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História do Brasil - Funag

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Manual <strong>do</strong> Candidato<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>João Daniel Lima de AlmeidaBrasília, 2013


Direitos reserva<strong>do</strong>s àFundação Alexandre de GusmãoMinistério das Relações ExterioresEsplanada <strong>do</strong>s Ministérios, Bloco HAnexo II, Térreo, Sala 170170-900 Brasília - DFTelefones: (61) 2030-6033/6034Fax: (61) 2030-9125Site: www.funag.gov.brE-mail: funag@itamaraty.gov.brEquipe Técnica:Eliane Miranda PaivaFernanda Antunes SiqueiraGuilherme Lucas Rodrigues MonteiroJessé Nóbrega Car<strong>do</strong>soVanusa <strong>do</strong>s Santos SilvaProjeto gráfico:Wagner AlvesProgramação Visual e Diagramação:Gráfica e Editora IdealFotografia da capa:Sem título 10, da Série Jardim, de Chiara Banfi. Obra premiada noI Concurso Itamaraty de Arte Contemporânea (2010/2011).Acervo <strong>do</strong> Ministério das Relações Exteriores.A447hImpresso no <strong>Brasil</strong> 2013Almeida, João Daniel Lima de.<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> / João Daniel Lima de Almeida. – Brasília : FUNAG, 2013.595 p. (Manual <strong>do</strong> candidato)ISBN 978-85-7631-445-51. <strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. 2. <strong>Brasil</strong> - perío<strong>do</strong> colonial. 3. <strong>Brasil</strong> - perío<strong>do</strong> regencial. 4. <strong>Brasil</strong> -perío<strong>do</strong> republicano. 5. Regime militar - <strong>Brasil</strong>. 6. Nova república - história. I. Título. II. Série.CDD 981Bibliotecária responsável: Ledir <strong>do</strong>s Santos Pereira, CRB-1/776Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional conforme Lei nº 10.994, de 14/12/2004.


ApresentaçãoEmbaixa<strong>do</strong>r Georges LamazièreDiretor <strong>do</strong> Instituto Rio BrancoA Fundação Alexandre de Gusmão (<strong>Funag</strong>) retoma, em importante iniciativa, a publicaçãoda série de livros “Manual <strong>do</strong> Candidato”, que comporta diversas obras dedicadas a matériastradicionalmente exigidas no Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata. O primeiro“Manual <strong>do</strong> Candidato” (“Manual <strong>do</strong> Candidato: Português”) foi publica<strong>do</strong> em 1995, e desdeentão tem acompanha<strong>do</strong> diversas gerações de candidatos na busca por uma das vagas oferecidasanualmente.O Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata, cumpre ressaltar, reflete de maneirainequívoca o perfil <strong>do</strong> profissional que o Itamaraty busca recrutar. Refiro-me, em particular,à síntese entre o conhecimento abrangente e multifaceta<strong>do</strong> e a capacidade de demonstrarconhecimento específico ao lidar com temas particulares. E assim deve ser o profissional quese dedica à diplomacia. Basta lembrar que, em nosso Serviço Exterior, ao longo de uma carreiratípica, o diplomata viverá em diversos países diferentes, exercen<strong>do</strong> em cada um deles funçõesdistintas, o que exigirá <strong>do</strong> diplomata não apenas uma visão de conjunto e entendimento amploda política externa e <strong>do</strong>s interesses nacionais, mas também a flexibilidade de compreendercomo esses interesses podem ser avança<strong>do</strong>s da melhor maneira em um contexto regionalespecífico.Nesse senti<strong>do</strong>, podemos indicar outro elemento importante que se encontra semprepresente nas avaliações sobre o CACD: a diversidade. O Itamaraty tem preferência pela diversidadeem seus quadros, e entende que esse enriquecimento é condição para uma expressãoexterna efetiva e que faça jus à amplitude de interesses dispersos pelo país. A Chancelariabrasileira é, em certo senti<strong>do</strong>, um microcosmo da sociedade, expressa na miríade de diferentesdivisões encarregadas de temas específicos, os quais formam uma composição <strong>do</strong>s temasprioritários para a ação externa <strong>do</strong> Governo brasileiro. São temas que vão da Economia e Finançasà Cultura e Educação, passan<strong>do</strong> ainda por assuntos políticos, jurídicos, sobre Energia,Direitos Humanos, ou ainda tarefas específicas como Protocolo e Assistência aos brasileiros noexterior, entre tantas outras. Essa diversidade de tarefas será tanto melhor cumprida quantomaior for a diversidade de quadros no Itamaraty, seja ela de natureza acadêmica, regional ouainda étnico-racial. O CACD é, em razão disso, um concurso de caráter excepcional, dada a


11Palavras introdutórias:o manual <strong>do</strong> manualAlberto da Costa e Silva em seu magnífico artigo em O Itamaraty na Cultura <strong>Brasil</strong>eiratoma empresta<strong>do</strong> o quadro de Hans Holbein, “Os embaixa<strong>do</strong>res”, para avaliar, por meio dasrepresentações iconográficas da tela, as características <strong>do</strong> diplomata. O mapa, o alaúde, o sextante,o globo, o livro e a tapeçaria seriam metáforas indicativas da qualidade de homenscapazes de decifrar to<strong>do</strong>s os códigos nos mais diversos campos da inteligência humana. Eis odiplomata.Para os atuais candidatos à carreira diplomática persiste a fixação no glamour intelectualda profissão. Ampla erudição e sofisticação cultural, ainda que úteis, não são mais, contu<strong>do</strong>,há longa data, precondições para que alguém se torne diplomata. Afinal, necessário é apenaspassar no concurso público. Mesmo sen<strong>do</strong> o mais difícil <strong>do</strong> país, é, tão somente, um concursopúblico: avalia cidadãos e aprova servi<strong>do</strong>res. Lembrar da simplicidade desta enunciação facilitarásua aprovação e tornará sua carreira posterior mais útil à sociedade.Este manual tem o intuito de facilitar sua aproximação à imensa quantidade de informaçõesnecessárias ao sucesso de uma das etapas <strong>do</strong> Concurso de Admissão à Carreira Diplomática,que é a prova de história <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. Sem sombra de dúvidas, nesta, mais que em todasas outras provas, ainda persiste a necessidade de alguma erudição que mantém a mística emtorno da carreira e da prova. Entretanto, não basta a erudição. Há candidatos famintos, queinocula<strong>do</strong>s com o vírus da gula livresca leem tu<strong>do</strong> o que podem, anotam e ficham, resumeme digerem informações factuais, mas apresentam desempenho subótimo na prova quan<strong>do</strong>ela se apresenta. Apesar de saberem muito, são incapazes de traduzir esse conhecimento emum texto articula<strong>do</strong>, com argumentos sustentáveis e apresenta<strong>do</strong> de mo<strong>do</strong> objetivo e coeso.Questões sem introdução ou conclusão. Questões jornalísticas. Questões narrativas e nãodissertativas. Questões nas quais os fatos sucedem outros fatos em um estilo de “lista de supermerca<strong>do</strong>”histórica, cujo texto poderia ser facilmente transforma<strong>do</strong> em “bullets” itemiza<strong>do</strong>s.Textos prolixos que não levam em consideração o limite de linhas e são força<strong>do</strong>s a encerrarseus argumentos abruptamente quan<strong>do</strong> elas acabam. São to<strong>do</strong>s exemplos de provas fadadasao fracasso, ou ao menos ao insucesso, em conquistar uma pontuação alta.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>12Por outro, há candidatos excelentes em estabelecerargumentos e em discutir temáticas. Para estes, o que é necessárioé o <strong>do</strong>mínio factual <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> histórico cobra<strong>do</strong>,que lhe permita minimamente articular informações dediversos matizes – políticas, sociais, econômicas, culturais eartísticas, ou no plano internacional, sistêmicas, regionais,bilaterais ou multilaterais – para que forme um argumentoao mesmo tempo coerente, objetivo e embasa<strong>do</strong>.Identificar que tipo de candidato é você é uma prioridade.Permitirá que você concentre seus esforços em superaras dificuldades que você realmente possui e não asque acredita possuir. A maior parte <strong>do</strong>s candidatos acreditaque “estudar, estudar, estudar, ler e fichar” é o único mo<strong>do</strong>de passar, quan<strong>do</strong> parcela significativa deles vive problemasde ordem diversa da simples aquisição de conteú<strong>do</strong>, edeveriam passar mais tempo treinan<strong>do</strong> a redação de questõese aprenden<strong>do</strong> a organizar melhor o conteú<strong>do</strong> de quejá dispõem. Aban<strong>do</strong>nar a ilusão de que é possível dar contade to<strong>do</strong> o conteú<strong>do</strong> histórico – não é! Não no tempo deuma vida humana – ajudará bastante no processo.Este trabalho busca auxiliar ambos os tipos de candidatos.Sistematiza em capítulos, cronológicos, e em sessõesdentro de cada capítulo – em geral temáticas (excetonos capítulos III e VII, onde se optou pela cronologia), praticamenteto<strong>do</strong> o conhecimento de <strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> necessárioao candidato iniciante no estu<strong>do</strong> para o Concursode Admissão à Carreira Diplomática. Naturalmente, foramfeitas muitas escolhas. O que aprofundar? O que deixar defora? O que discutir historiograficamente e o que apresentarapenas factualmente?A diretriz que guiou essas escolhas foi sempre aanálise <strong>do</strong>s conteú<strong>do</strong>s exigi<strong>do</strong>s e da forma pela qual essesconteú<strong>do</strong>s foram cobra<strong>do</strong>s nas provas de <strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong><strong>do</strong> Concurso de Admissão à Carreira Diplomática. Foramanalisa<strong>do</strong>s os Testes de Pré-Seleção e, principalmente, asavaliações discursivas da Terceira Fase. Foram li<strong>do</strong>s e reli<strong>do</strong>salguns milhares de espelhos aos quais este autor teveacesso desde 2003. Avaliações bem-sucedidas e, também,a maior parte, que não tiveram sucesso. Essas últimas forammuito mais instrutivas sobre “Como não se deve fazeruma questão de <strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>”.Com base neste material, foi dada ênfase na históriapolítica, em especial na história da política externa brasileira.Sem, naturalmente, negligenciar os demais temas, enfatizou-seainda o papel <strong>do</strong>s parti<strong>do</strong>s políticos, os debatesparlamentares e a história institucional <strong>do</strong> Ministério dasRelações Exteriores. Estes temas e fontes são muito privilegia<strong>do</strong>snos textos publica<strong>do</strong>s pelos membros da banca.Inicialmente composta por Ama<strong>do</strong> Luiz Cervo e, brevemente,em 2008, por Eugênio Vargas Garcia, a banca temsi<strong>do</strong> composta, nos últimos anos, pelo trio de professoresforma<strong>do</strong>s pela UnB e especialistas em <strong>História</strong> da PolíticaExterna: José Flávio Sombra Saraiva, Antonio Carlos Lessa eFrancisco Doratioto. Os novos integrantes imprimiram um


13Palavras introdutórias:O manual <strong>do</strong> manualtipo de avaliação que, naturalmente, foca os temas afeitosà história das relações internacionais <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, ten<strong>do</strong>, emalguns anos (2011, por exemplo), si<strong>do</strong> a prova inteira constituídapor questões de política externa. Em média, desde2007, três das quatro questões anuais tratam de PolíticaExterna – o que é compreensível, dada a natureza <strong>do</strong> exame,mas que acaba negligencian<strong>do</strong> temas importantes. Ahistória cultural não é cobrada há anos – houve, em 2006,uma questão sobre o Modernismo e, em 2007, outra sobreo impacto cultural <strong>do</strong> êxo<strong>do</strong> rural e não mais desde então.Apesar disso, o presente trabalho procurou abrangercuida<strong>do</strong>samente os principais temas da história artístico--cultural brasileira, tema que causa arrepios aos candidatos,justamente por quase nunca ser cobra<strong>do</strong>. A menosque a banca mude (ou leia estas linhas), o candidato maispragmático pode, por exemplo, pular o capítulo culturalsobre o Regime Militar, que jamais foi objeto de avaliação.Naturalmente, qualquer discussão sobre a relevânciacomparativa <strong>do</strong>s temas é imbuída de juízos de valorideológicos. A teledramaturgia brasileira tem a mesma idadeda Operação Pan-Americana, e o Rock Nacional é apenasum pouco mais velho que o Mercosul. Se estas iniciativas<strong>do</strong> Itamaraty foram mais ou menos bem-sucedidas queRoque Santeiro ou a Legião Urbana, se tiveram mais ou menosimpacto em nossa sociedade a ponto de serem ou nãoobjeto de avaliação na prova de <strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, caberánaturalmente aos membros da banca decidir. Até entãosuas decisões apontam em favor <strong>do</strong>s temas considera<strong>do</strong>s“sérios”, e que, naturalmente, tiveram prioridade nestemanual.Outra tendência perceptível nos últimos anos temsi<strong>do</strong> o progressivo aban<strong>do</strong>no de questões de longa duração.O multilateralismo na segunda metade <strong>do</strong> século XX,a África nos anos 60 e 70 e a política brasileira de segurançanas décadas após a Segunda Guerra Mundial têm da<strong>do</strong>lugar a um enfoque em questões bem específicas, comoa Comissão Mista <strong>Brasil</strong>-Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, as arbitragens davirada <strong>do</strong> século XIX para o XX, a África durante a PolíticaExterna Independente, o papel <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> na ConferênciaPan-Americana de Washington. Acredito que o intuito tenhasi<strong>do</strong> o de dificultar a prova, que conta em geral comcandidatos cada vez mais prepara<strong>do</strong>s, mas que nem sempre<strong>do</strong>minam profundamente as especificidades da históriada Política Externa brasileira. Por isso recomenda-se aoscandidatos usar este manual como ponto de partida parao aprofundamento – e creio ser esta sua maior utilidade.Sintetiza-se, aqui, temas já cobra<strong>do</strong>s e indica-se bibliografiasuplementar à qual se deve recorrer. Naturalmente, éimpossível cobrir todas as temáticas específicas de mo<strong>do</strong>detalha<strong>do</strong>. Nem seria esse o objetivo.Por ser introdutório, geral, sintético e panorâmico,ronda o texto o espectro da superficialidade, <strong>do</strong> qual nemsempre foi possível escapar, apesar de grandes esforços.As notas de pé de página são um exemplo desses esforços.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>14Desnecessárias à compreensão geral <strong>do</strong> texto, têm quasesempre o caráter de uma informação adicional, anedótica,reflexiva, ou ainda bibliográfica. Há aqueles que terão seuraciocínio interrompi<strong>do</strong> ao lê-las. Pulem-nas sem culpa. Há,no entanto, aqueles que encontrarão função mnemônicanos detalhamentos das notas, que poderão ser úteis aocérebro na hora fatal <strong>do</strong> TPS (Teste de Pré-Seleção <strong>do</strong> Concursode Admissão à Carreira Diplomática), por exemplo.Igualmente pela função mnemônica, o autor preferiuarre<strong>do</strong>ndar, quase sempre, todas as estatísticas. A únicafunção de apresentar um percentual com duas casas decimaisou um número de exportação de US$ 207.343.722,17é <strong>do</strong>tar de legitimidade matemática o texto. O número éimediatamente esqueci<strong>do</strong> pelo leitor. Acredito que 49,7%,quan<strong>do</strong> vira 50%, cumpre uma função pedagógica que ésuperior à necessidade de precisão, exceto quan<strong>do</strong> issotraz consequências políticas (tal qual o percentual de votosque Getúlio Vargas teve em 1950, e que motivou o golpismoudenista por não ter alcança<strong>do</strong> 50%). Pela mesmarazão, as tabelas foram evitadas, ainda que isso não tenhasi<strong>do</strong> possível nas sessões econômicas.Estas palavras introdutórias já devem ter si<strong>do</strong> suficientespara que o leitor tenha se da<strong>do</strong> conta <strong>do</strong> caráterpragmático deste autor. Em nome deste pragmatismo,faço um último apelo ao candidato, que quase certamenteconsidera história sua disciplina favorita, ou ao menos umadas favoritas – não ia querer ser diplomata se assim nãofosse. Para você, estudar história é um prazer, mais que umdever. Da<strong>do</strong> o caráter subjetivo da prova – são desconhecidasnotas máximas na prova de <strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, e, raríssimasaquelas acima de 85% – convém lembrar-lhe quecada hora dedicada ao estu<strong>do</strong> de <strong>História</strong> é hora a menosdedicada ao estu<strong>do</strong> de Direito, Português, Economia ouInglês, disciplinas mais cartesianas, com conteú<strong>do</strong>s finitos,nas quais o esforço pode ser mais transparentemente traduzi<strong>do</strong>em pontos que levarão você ao passaporte vermelho.Um ponto em história vale o mesmo que um pontoem Direito, Inglês ou Economia, ainda que a satisfação advindade horas de estu<strong>do</strong>s seja desigual. São aprova<strong>do</strong>s oscandidatos mais disciplina<strong>do</strong>s, mas também os mais pragmáticos,para o bem <strong>do</strong> nosso serviço exterior.Gostaria de agradecer à Sabrina Primo e Priscilla Negreiros,que revisaram o texto de alguns capítulos. RobertaLemos e Camila D’E Carli, que ajudaram a compilar o conteú<strong>do</strong><strong>do</strong> capitulo II e parte <strong>do</strong> Capítulo IV. Rita de Curtis,que fez o mesmo com a sessão das Sedições Coloniais.O excelente professor Daniel Araújo, que é coautor da sessãopolítica <strong>do</strong> Regime Militar, tema sobre o qual é especialista.Roberta Luz, que organizou parte da bibliografia. Ricar<strong>do</strong>Victalino de Oliveira, insigne constitucionalista, deupalpites sobre a CF/88 e Larissa Lacombe, herdeira de umadinastia de historia<strong>do</strong>res ilustres, que leu partes e disse tergosta<strong>do</strong>, me estimulan<strong>do</strong> a prosseguir. Que to<strong>do</strong>s os equívocossão meus, ça va sans dire.


Fora <strong>do</strong> plano <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong>, cabe enorme agradecimentoao incrível staff da <strong>Funag</strong> – Fernanda, Henrique,Dirceu, Pablo – que apoiaram essa iniciativa, mas principalmente,ao Embaixa<strong>do</strong>r Gilberto Vergne Saboia, que apostouno sucesso <strong>do</strong> trabalho. À incrível coordena<strong>do</strong>ra-geralde projetos Marta Cezar e à Eliane Miranda, <strong>do</strong> setor de publicações,que tiveram enorme paciência com os atrasosdeste autor. À Ursula, ao Élson e à Diná, que ofereceram omelhor lugar <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> para que eu redigisse a maior partedeste trabalho. E aos muitos, to<strong>do</strong>s, alunos que tive aolongo <strong>do</strong>s últimos dez anos preparan<strong>do</strong> candidatos parao Concurso de Admissão à Carreira Diplomática. Sem elesesse trabalho não existiria.Não existiria também sem Maria, minha mãe, queme dividiu com este Manual durante as numerosas sessõesde quimioterapia e o leito <strong>do</strong> hospital onde veio a falecerem agosto de 2012. Não existiria ainda sem Stefanie ToméSchmitt, que insistiu muito para que eu colocasse por escritoo que falava durante as aulas. Ambas criaram – literalou metaforicamente – parte relevante deste trabalho:“o autor”. A elas dedico este esforço.15Palavras introdutórias:O manual <strong>do</strong> manual


171. O Perío<strong>do</strong> Colonial1.1 O senti<strong>do</strong> da colonizaçãoPara que serve uma Colônia? Mercantilismo e monopólio.Práticas e méto<strong>do</strong>s <strong>do</strong> mercantilismo. O impacto da economia mercantil na Colônia.A cidade colonial como expressão <strong>do</strong> poder da metrópole.Ó mar salga<strong>do</strong>, quanto <strong>do</strong> teu salSão lágrimas de Portugal!Por te cruzarmos, quantas mães choraram,Quantos filhos em vão rezaram!Quantas noivas ficaram por casarPara que fosses nosso, ó mar!Valeu a pena? Tu<strong>do</strong> vale a penaSe a alma não é pequena.Quem quer passar além <strong>do</strong> Boja<strong>do</strong>rTem que passar além da <strong>do</strong>r.Deus ao mar o perigo e o abismo deu,Mas nele é que espelhou o céu.Mar português (Fernan<strong>do</strong> Pessoa)Não é surpresa que colônias são estabelecidas em virtude <strong>do</strong> interesse das metrópoles.Em alguns casos, sua instalação se dá como simples válvula de escape demográfico afim de evitar conflitos sociais (na Antiguidade, temos as colônias mediterrânicas gregas <strong>do</strong>perío<strong>do</strong> arcaico); em outros casos, como locais de desterro ou prisão (até o século passa<strong>do</strong>,a ilha <strong>do</strong> Diabo, na Guiana Francesa, por exemplo). A Colônia portuguesa na América <strong>do</strong> Sulnão foi exceção.Existe um amplo debate sobre o senti<strong>do</strong> da colonização, mas não há dúvidas deque esse senti<strong>do</strong> era mercantil. O mercantilismo português engendrou a ocupação <strong>do</strong> territórioamericano subordinan<strong>do</strong> essa ocupação a seus interesses econômico-comerciais.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>18Inicialmente de mo<strong>do</strong> tími<strong>do</strong>, aos poucos a colonizaçãoassume feições cada vez mais intensas, com a presença daCoroa portuguesa fazen<strong>do</strong>-se sentir de forma tão significativa.Em suma, se um estudante mais afoito exigisse, sobameaça de morte, um resumo da história da colonizaçãoem uma única frase, este professor diria que se tratou deuma crescente presença <strong>do</strong>s interesses mercantis <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>português na América <strong>do</strong> Sul. No entanto, essa é umasimplificação radical. Nem to<strong>do</strong>s os interesses <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>português eram mercantis; ao menos, não exclusivamentemercantis.As décadas iniciais <strong>do</strong> chama<strong>do</strong> perío<strong>do</strong> pré-colonialdemonstram que o interesse mercantil de Portugalnão estava na América, mas na Ásia, e a ocupação americanatinha objetivo estritamente geopolítico. Como diriaFernan<strong>do</strong> Pessoa, o objetivo era o controle <strong>do</strong> “Mar português”,o mar oceano, o Oceano Atlântico, cuja rota levariaàs especiarias asiáticas; estas, sim, objeto de cobiça mercantillusitana. Os objetivos religiosos também não podemser negligencia<strong>do</strong>s. Por que outra razão encontramos naColônia, viven<strong>do</strong> em meio aos nativos, em condições muitodistintas das que tinham na metrópole, padres, sobretu<strong>do</strong>da Companhia de Jesus, a espalhar a palavra de Deus?Os méto<strong>do</strong>s, o desfecho de sua empresa ou mesmo amanipulação política de seu serviço podem ser questiona<strong>do</strong>shoje, mas a sinceridade religiosa era em geralgenuína e não deve ser subsumida esquematicamente emmodelos explicativos estruturais surgi<strong>do</strong>s séculos depois,que reduzem as causalidades à dimensão econômica ou aqualquer outra.Um segun<strong>do</strong> reducionismo óbvio que é o geográfico.A empresa mercantil da Coroa portuguesa tinha, dentre ascapitanias, suas filhas preferidas. A Bahia, Pernambuco e,mais tarde, o Rio de Janeiro estavam sempre sob a atençãode Sua Majestade, o que não ocorria com o Maranhão oucom São Vicente. Por serem menos relevantes gozavam demaior autonomia. No caso paulista isso trouxe consequênciasexpressivas: a aventura para o sertão. A autoridade daCoroa sobre a América colonial, crescente no tempo, foidesigual no espaço. O fracasso geral <strong>do</strong> ensaio das capitaniashereditárias é exemplar disso. Largadas à própria sorte,poucas vingaram.Aban<strong>do</strong>nadas, sujeitas ao ataque de índios, evidencian<strong>do</strong>escassez de braços e/ou de vontade, as capitaniasmanifestam o relativo anacronismo <strong>do</strong> modelo jurídicoao qual se vinculavam, o feudal. Doar terras de mo<strong>do</strong> hereditárioaos fidalgos <strong>do</strong> reino mantinha a tradição quevinha desde a Reconquista moura, passan<strong>do</strong> pela tomadade Ceuta e pela aventura africana: premiar o serviço ao reicom a <strong>do</strong>ação de terras. Esse modelo se reproduziria deforma bastante adaptada à realidade colonial. O capitão<strong>do</strong>natário <strong>do</strong>ava sesmarias, que eram ocupadas apenasem sua “testada” e alugadas ou arrendadas para novoscolonos, reproduzin<strong>do</strong> uma relação de hierarquia muito


19O Perío<strong>do</strong> Colonialverticalizada, marco até hoje da sociedade brasileira. Se,de um la<strong>do</strong>, isso lembra a herança feudal da Idade Médiaportuguesa, de outro, aos poucos seus marcos jurídicos,como a vassalagem, a segurança, o caráter militar, bemcomo a liturgia existente na Idade Média, não existemmais. Haveria na Colônia menos institucionalização jurídicada hierarquia, mas esta permanecia sen<strong>do</strong> traço essencialda sociedade colonial. Tal hierarquia é o fio condutorda organização da sociedade colonial, expressan<strong>do</strong>-se naforma de monopólios.O monopólio é a síntese <strong>do</strong> mercantilismo. Assumin<strong>do</strong>a lógica mercantil como defini<strong>do</strong>ra da empresa colonial,devemos nos perguntar o que define o mercantilismo. Nãosen<strong>do</strong> uma teoria econômica como o liberalismo e sem seconstituir em uma escola teórica, o mercantilismo não éabstrato. É empírico e, por isso mesmo, pouco homogêneo.Trata-se de um conjunto de práticas econômicas a<strong>do</strong>tadaspelos modernos esta<strong>do</strong>s absolutistas europeus para sustentaros crescentes gastos com a burocracia e, sobretu<strong>do</strong>,com as Forças Armadas. Esses gastos eram inexistentes nomodelo feudal, que terceirizava as funções estatais – justiça,coerção, segurança, cobrança de impostos –, exercidasprivadamente, na Idade Média, por senhores feudais.Toda essa trajetória centraliza<strong>do</strong>ra não faz parte <strong>do</strong> escopodeste livro, mas foi sintetizada na formulação weberiana deque o Esta<strong>do</strong> é o “monopólio legítimo <strong>do</strong>s meios de coerção”e discutida longamente por debate<strong>do</strong>res e estudiososda formação <strong>do</strong>s esta<strong>do</strong>s nacionais, como Perry Anderson,Charles Tilly, Hendrik Spruyt, Janice Thomson e outros.Assim sen<strong>do</strong>, o mercantilismo é o que viabiliza economicamenteo Esta<strong>do</strong> moderno absolutista. Poderíamos dizerque são duas faces da mesma moeda, metáfora que seráampliada em breve, quan<strong>do</strong> voltarmos da Europa para aColônia, se ainda houver paciência <strong>do</strong> leitor para com estabreve digressão. O mercantilismo é a expressão econômica<strong>do</strong>s monopólios assumi<strong>do</strong>s pelo Esta<strong>do</strong> ao final <strong>do</strong> perío<strong>do</strong>feudal, enquanto o absolutismo seria a expressão políticadesse monopólio, que – é bom que se diga – sempre foimais uma pretensão que uma realidade (o Esta<strong>do</strong>, não raro,será obriga<strong>do</strong> a terceirizar monopólios tanto na esfera política– corsários, mercenários – quanto na esfera econômica– companhias de comércio, capitanias hereditárias, zonasde contratação como o distrito diamantino).Dessa forma, o monopólio, ou a pretensão a ele, vaital qual um polvo, um monstro necessário, como na imagemhobbesiana, espalhan<strong>do</strong> seus tentáculos políticos,econômicos, militares progressivamente. Quanto maislonge alcançavam, mais forte era considera<strong>do</strong> o Esta<strong>do</strong>.Eram recorrentes as guerras mercantis com o objetivo deengrandecer o Esta<strong>do</strong> e enriquecer o rei; com frequência,essas guerras eram mais caras que os lucros que advinhamdelas. A obsessão <strong>do</strong>s monarcas franceses com a conquistade Flandres nada mais era que a cobiça por seu “ricocomércio”. A conquista portuguesa de Ceuta (1415),


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>20entreposto comercial muçulmano no norte da África,não fez senão desviar as rotas de comércio que até entãoafluíam para aquela metrópole antes da chegada <strong>do</strong>s cristãos.A concepção de que a guerra era um instrumento deacumulação de ouro e de recursos, tão comum ao espíritomercantil da época moderna, segue arraigada em nossosdias e dita as regras nos jogos de tabuleiro ou eletrônicos<strong>do</strong>s dias de hoje, cuja pretensão é conquistar o mun<strong>do</strong> 1 .Nem to<strong>do</strong> mercantilismo é lucrativo. No entanto as tentativase/ou pretensões de conquista, por caras que fossem,aumentava o prestígio <strong>do</strong> rei, fortalecen<strong>do</strong>-o. Dirá CharlesTilly, em capítulo clássico <strong>do</strong> livro Coercion, Capital and EuropeanStates, no qual desenvolve a definição weberiana,que, se os esta<strong>do</strong>s fizeram a guerra tanto quanto as guerrasfizeram os esta<strong>do</strong>s nacionais.A expressão variável <strong>do</strong> monopólio mercantil se dánas distintas estratégias de arrecadação – em muitos casos,desesperadas e crescentemente insolventes – que os reismodernos e seus ministros vão inventar ao longo <strong>do</strong>s séculosXIV ao XVIII. O famoso Colbert, ministro <strong>do</strong> rei francêsbuscou criativamente aumentar as rendas de seu soberano1 Em War e Risk, para cada <strong>do</strong>is territórios, mais um exército. Em jogoseletrônicos, como Civilization e afins, mais matérias-primas e mais podermilitar afluem <strong>do</strong>s territórios conquista<strong>do</strong>s. São jogos que em algummomento viciaram toda uma geração nerd. Esquecem os designers de jogosque, não raro, controlar esses territórios é mais custoso que os lucros queeles poderiam produzir. A lógica deles é a mesma <strong>do</strong> mercantilismo.estimulan<strong>do</strong> manufaturas de luxo que, por exclusivíssimas,contribuíram, junto com Versalhes e demais extravagâncias<strong>do</strong> monarca heliocêntrico, para a fama de capital <strong>do</strong> bomgosto, da moda e da sofisticação que a França evoca atéos dias de hoje. Outros menos criativos – ou mais pragmáticos– recorriam à tributação pura e simples, como o cameralismoaustríaco. Os ingleses e holandeses investiramna criação de companhias de comércio. Oliver Cromwellleva o monopólio a um novo patamar com os Atos de Navegação,que contribuiriam para a primazia naval britânicanos séculos seguintes. Os reis de Portugal e Espanha, sobretu<strong>do</strong>em virtude <strong>do</strong> pioneirismo na expansão marítimae legitima<strong>do</strong>s que estavam pelo Trata<strong>do</strong> de Tordesilhas(1494) – o testamento de Adão, na colorida imagem <strong>do</strong> reifrancês Francisco I –, priorizaram desde ce<strong>do</strong> o colonialismocomo forma de acumular recursos. No caso espanhol, aprata justificava o esforço; no caso português, a esperança<strong>do</strong> ouro.O monopólio, característica absoluta <strong>do</strong> mercantilismo,chega então à América portuguesa. Ilmar Mattos nosensina que o monopólio está tão arraiga<strong>do</strong> à mentalidademercantil que ele é percebi<strong>do</strong> até entre as colônias de ummesmo Império. Sugestões de que Portugal plantasse pimentano litoral brasileiro foram ignoradas pela metrópole,pois feririam o exclusivo das colônias. O açúcar foi uma alternativa.Ante o preço exorbitante <strong>do</strong> frete, só faria senti<strong>do</strong>a produção de bens de alto valor agrega<strong>do</strong> por volume,


21O Perío<strong>do</strong> Coloniale isso explica a opção pelo açúcar, produto tão exclusivona Europa que chegou a ser parte <strong>do</strong> <strong>do</strong>te de princesasportuguesas.A civilização produzida pelo açúcar tem a realizaçãode sua produção em um merca<strong>do</strong> muito distante, controla<strong>do</strong>e dirigi<strong>do</strong> de um outro continente 2 . Reitera a afirmativainicial de que as colônias servem aos propósitos – mercantis;monopolistas – da metrópole. Na obra de Roberto Simonsen,encontramos o esforço de síntese bastante famoso naconstrução de um modelo histórico que estruturasse aexperiência mercantil portuguesa na América <strong>do</strong> Sul.Em <strong>História</strong> Econômica <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> de 1937, Simonsendefende uma visão cíclica e evolucionista da economia colonial.Teríamos vivi<strong>do</strong> sucessivos ciclos com a primazia deum único produto – o açúcar, o ouro, o café. Esta visão estápresente de tal forma e durante tanto tempo nos livros didáticosque se tornou parte <strong>do</strong> “senso comum”, talvez porsua simplicidade quase didática, mas vem sen<strong>do</strong>, desde2 Isso dito a brasileiros <strong>do</strong> início <strong>do</strong> século XXI pode parecer curioso. Afinalpassamos boa parte <strong>do</strong> século XX buscan<strong>do</strong> a autonomia da “substituiçãode importações” e ocupan<strong>do</strong> fatia <strong>do</strong> comércio internacional, mínima,desproporcional ao tamanho de nossa economia. Após quase seis décadasvolta<strong>do</strong>s “para dentro” foi apenas recentemente que o setor primárioexporta<strong>do</strong>r da economia voltou a ter impacto político determinante, comose percebe em nossa influente bancada parlamentar ruralista. Na RepúblicaVelha, to<strong>do</strong> o Congresso, e não apenas uma bancada, era ruralista. Na Colônia,quan<strong>do</strong> não existia bancada, o país era governa<strong>do</strong> de fora, de Portugal, osintermediários monopolistas de nosso modelo mercantil de produção.então longamente questionada. Entendimentos mais recentescomplexificam o panorama colonial tanto em razãode pesquisas que desmontam empiricamente a posição<strong>do</strong> industrial paulista quanto por novos insights interpretativosou abordagens meto<strong>do</strong>lógicas.Um exemplo é a perspectiva de Ilmar Mattos. Esteautor resgata as complexidades internas da sociedadecolonial que foi aos poucos ganhan<strong>do</strong> dinâmica própria,independente <strong>do</strong>s interesses metropolitanos. Isso se deuà medida que o coloniza<strong>do</strong>r português, com seu intuitode monopólio colonial, foi se transforman<strong>do</strong> em colono“brasileiro”. Também este “colono” era titular de outros tiposde monopólios – da violência sobre os escravos, porexemplo – ao mesmo tempo que seguia submeti<strong>do</strong> aosmonopólios emana<strong>do</strong>s da metrópole – monopólio comercial,monopólio da fé, entre outros. Estes monopólios emanavam<strong>do</strong>s centros de poder aqui cria<strong>do</strong>s para disseminara autoridade <strong>do</strong> rei: as cidades coloniais.Ao contrário da cidade medieval, expressão da liberdadecontra a opressão feudal <strong>do</strong>s camponeses, servos <strong>do</strong>snobres, a cidade colonial era expressão da autoridade metropolitanae centro administrativo e burocrático <strong>do</strong> poderportuguês. Seu símbolo era o pelourinho, marco <strong>do</strong> exercícioda violência. Na famosa expressão medieval “o ar dacidade liberta”. Bastava ao servo viver um ano e um dia parase tornar um homem livre. Muito diferente era a dinâmicada cidade colonial. A vida <strong>do</strong>s escravos, mas também a <strong>do</strong>s


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>22senhores, <strong>do</strong>s funcionários e <strong>do</strong>s homens livres, era objetode constante vigilância social. As autoridades metropolitanasexerciam sobre eles controles social, religioso, comerciale legal. Não surpreende que, nos registros históricos,seja frequente a menção a brancos e mestiços em quilombos.O quilombo desterritorializa<strong>do</strong> negava o espaço depoder e se constituía em espaço de liberdade.A cidade, não raro nascida a partir de um forte ede uma igreja (expressão <strong>do</strong> monopólio político-militar ereligioso), era igualmente a forma <strong>do</strong> Império portuguêsse afirmar perante inimigos como os franceses e os espanhóis.As fundações <strong>do</strong> Rio de Janeiro (1565) e Belém(1616), originada <strong>do</strong> Forte <strong>do</strong> Presépio, serviram de elementode defesa e dissuasão contra os franceses invasoresna Guanabara e na Amazônia. A Colônia <strong>do</strong> Sacramentoé originariamente apenas um forte português; e, mesmona África, a presença portuguesa no Daomé era originariamentecomposta de fortes. O mais famoso foi São Jorge daMina, em torno <strong>do</strong> qual surgiu toda uma cidade de portugueses,estrangeiros e brasileiros retorna<strong>do</strong>s, transforman<strong>do</strong>Uidá em centro exporta<strong>do</strong>r de escravos, fundamentalpara o abastecimento das Minas Gerais no século XVIII.1.2 A sociedade colonialA moeda colonial de Ilmar Mattos. Esquema didático dasociedade colonial: uma pirâmide hetero<strong>do</strong>xa.Os coloniza<strong>do</strong>res e a expressão de seu monopólio naColônia. Os comerciantes e os grandes senhores: ascensãosocial e tensões. Os senhores: de engenho, de terras, deescravos. Os coloniza<strong>do</strong>s: escravos, mestiços e brancospobres. O trabalho como estigma na sociedade colonial.Ilmar Mattos cunhou uma boa metáfora para ilustrara relação da metrópole com a Colônia: tratava-se de umamoeda. Não é um pacto, tampouco uma sucessão de ciclos.A moeda colonial tem <strong>do</strong>is la<strong>do</strong>s: em um deles, há osinteresses da metrópole; no outro, estão os interesses <strong>do</strong>scolonos. Um não existe sem o outro, e cada qual tem interesseno/necessidade <strong>do</strong> outro, embora nem sempre como mesmo entusiasmo.A interpretação de Mattos sobre o perío<strong>do</strong> colonialtem o propósito mais amplo de iluminar uma época maisrecente. Trata-se apenas de um preâmbulo em sua obra cujocerne da análise é posterior. Está este autor mais preocupa<strong>do</strong>com a fase de “recunhagem” da moeda colonial, que se dariaapós a Independência. No chama<strong>do</strong> perío<strong>do</strong> <strong>do</strong> “regresso”(de 1837 em diante), uma facção conserva<strong>do</strong>ra foi capaz dearticular-se de mo<strong>do</strong> bem-sucedi<strong>do</strong> para restauração, commodificações, o modelo de produção mercantil. Retomaram


23O Perío<strong>do</strong> Colonialo monopólio da violência legitimada pelo Esta<strong>do</strong> imperialque se desejava fortalecer. Mattos chamou essa época de“tempo saquarema”, título de seu livro homônimo, clássicoda historiografia sobre o Império brasileiro.Mesmo ciente <strong>do</strong> propósito ilmariano, tomo aquiemprestada sua síntese didática da formação da sociedadecolonial sob a hegemonia da lógica mercantil monopolista.O monopólio estava presente em todas as relações sociaise, para fugir dele, o indivíduo, fosse branco ou negro,precisava escapar para um quilombo, já que até na morteestava sob o controle da igreja que decidia se ele podiaou não ser enterra<strong>do</strong> em campo santo. A imagem de umapirâmide ilustra visualmente o entendimento <strong>do</strong> que eraa sociedade colonial de acor<strong>do</strong> com “Tempo saquarema”.O coloniza<strong>do</strong>r, que aos poucos vai se transmudan<strong>do</strong>em colono, é, ao chegar, agente <strong>do</strong> Império português, trazen<strong>do</strong>para a Colônia o monopólio mercantil grava<strong>do</strong> nasleis e nos editos reais. O monopólio era a liga, o metal noqual era cunhada a “moeda colonial” e se expressava emdiversos níveis. Era monopólio <strong>do</strong> coloniza<strong>do</strong>r o comércio,estabeleci<strong>do</strong> para o interesse da metrópole e feito exclusivamentecom a metrópole. Mais que um “pacto” a relaçãoentre a metrópole e a colônia se traduzia na intenção<strong>do</strong> estabelecimento jurídico de uma lógica exclusivista.O contraban<strong>do</strong> notório e constante, estimula<strong>do</strong> pela corrupção<strong>do</strong>s agentes da coroa, garantiram que raramenteessa intenção fosse plenamente posta em prática.Coloniza<strong>do</strong>resColonosColoniza<strong>do</strong>sAlém <strong>do</strong> monopólio comercial, havia o monopólioreligioso. Expressava-se de mo<strong>do</strong> violento nas visitações<strong>do</strong> Santo Ofício à Colônia, que punia comportamentosdesviantes da fé católica. O controle era espiritual e comportamental.Eram punidas tanto as práticas ditas judaizantesou protestantes – preocupação grave após a expulsão<strong>do</strong>s holandeses – quanto nas práticas nefandas, sexualmentedesviantes ou animistas <strong>do</strong>s escravos africanos e<strong>do</strong>s brancos que fossem denuncia<strong>do</strong>s. Havia o “tempo <strong>do</strong>perdão”, no qual aqueles que confessavam voluntariamenteseus crimes sofriam penas menores. O confisco de bense a pena de morte foram com frequência aplica<strong>do</strong>s noscrimes contra a fé.Como vimos, esses monopólios eram expressos apartir da cidade colonial, centro de difusão <strong>do</strong> poder metropolitanoe quanto mais longe desses centros, mais difusaera a presença da autoridade metropolitana. O sertão era


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>24a expressão da liberdade. O sertão além <strong>do</strong> lugar <strong>do</strong>s quilombosera também para onde partiam os bandeirantes,tão ciosos de sua autonomia que chegam a aclamar umrei paulista em 1640. Essa vocação para o sertão explica ograu de liberdade de que gozavam os bandeirantes paulistasque apenas remota e nominalmente estavam a serviçode Portugal e, não raro, desobedeciam as ordens de El-Rei.A desobediência mais frequente era no tocante à escravização<strong>do</strong>s índios.Com o passar <strong>do</strong>s anos e com o crescimento da populaçãobranca na Colônia, começam a se diferenciar maisclaramente os papéis <strong>do</strong>s coloniza<strong>do</strong>res e <strong>do</strong>s colonos.O interesse <strong>do</strong>s primeiros está na metrópole. O coloniza<strong>do</strong>r éagente direto ou indireto <strong>do</strong>s interesses da metrópole. Comerciantes,funcionários da Coroa, padres e bispos – não existiaseparação entre Esta<strong>do</strong> e Igreja; esta era um braço <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>português – eram to<strong>do</strong>s agentes <strong>do</strong> exclusivo metropolitanoem suas expressões religiosas, políticas ou comerciais.Tal distinção, entretanto, nunca foi tão rígida comoa que ocorria na América espanhola entre criollos e peninsulares,os chapetones. Muitos agentes da Coroa e grandescomerciantes nasci<strong>do</strong>s no <strong>Brasil</strong>, ten<strong>do</strong> estuda<strong>do</strong> na Universidadede Coimbra ou se torna<strong>do</strong> cortesãos em Lisboa,adquiriram prestígio social muito mais difícil de conseguirpara um criollo nasci<strong>do</strong> no Peru ou em Buenos Aires.Fiquemos com <strong>do</strong>is exemplos. Alexandre de Gusmão,secretário particular de D. João V, negocia<strong>do</strong>r <strong>do</strong>Trata<strong>do</strong> de Madri, e Azere<strong>do</strong> Coutinho, bispo de Pernambuco,funda<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Seminário de Olinda, inquisi<strong>do</strong>r <strong>do</strong> reinoem Lisboa. O primeiro nasceu em Santos, litoral paulista;o segun<strong>do</strong>, em Campos, no norte <strong>do</strong> Rio de Janeiro. Nãoestava fecha<strong>do</strong> aos brasileiros talentosos, afortuna<strong>do</strong>s oucom fortuna, o cursus honorum da burocracia portuguesa.Essa distinção com a América espanhola é explicada porSérgio Buarque de Holanda. O pai de Chico nos ensina quea escassez de gente em Portugal, sobretu<strong>do</strong> alfabetizada,obrigava a incorporação à burocracia portuguesa de talentoscoloniais. Favorecia-se uma certa “democratização” noacesso às instituições <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Na Colônia, entretanto,não eram infrequentes as tensões entre os colonos e oscoloniza<strong>do</strong>res, em torno <strong>do</strong> questionamento não <strong>do</strong>s pressupostos,mas da aplicação <strong>do</strong> exclusivo metropolitano.Quem são os colonos? Os colonos eram os senhoresda colônia. Tais senhores eram detentores <strong>do</strong> monopóliosobre os meios de produção: o engenho, a terra e oescravo.A hierarquia medieval relegava ao comerciante,burguês, um lugar de pária na sociedade. Desconfiava-sedaquele indivíduo que viajava, era livre e não tinha umsenhor. Já o senhor de terras invariavelmente era um nobre,nunca um plebeu. A lógica se invertia na sociedade colonialcriada pela empresa mercantil portuguesa na América.O comerciante, rico e poderoso, era agente da Coroa. Titular<strong>do</strong> monopólio comercial que controlava o merca<strong>do</strong> ao qual


25O Perío<strong>do</strong> Colonialse subordinava o colono brasileiro. Não raro era tambémo comerciante cre<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s senhores de Engenho. Os colonosdependiam <strong>do</strong>s comerciantes para o abastecimento<strong>do</strong>s escravos africanos. Dependiam deles igualmente parafazer escoar sua produção. Apesar desta dependência,não se muda da noite para o dia a mentalidade secularpreconceituosa contra os comerciantes. Os senhoreseram ciosos de sua pretensa “nobreza” e ressentiam-se daposição subordinada. Defendiam seu status dificultan<strong>do</strong>como podiam a expressão política <strong>do</strong>s comerciantes nascidades coloniais, o que gerou enfrentamentos conheci<strong>do</strong>s3 . Esta relação tensa era amenizada pela relativa tolerânciada coroa que se valia da concessão de títulos, cargos,sinecuras e honrarias para os colonos. Dotava assim,a administração colonial de elementos brasileiros. Vendiacargos e prebendas. Arrendava o privilégio de cobrar impostos“o arremata<strong>do</strong>r” que lhe adiantava os recursos.Às vezes, porém, em vez de amenizar o conflito,essa estratégia favorecia o confronto, como no caso da3 Na Guerra <strong>do</strong>s Mascates (1684) os grandes comerciantes que buscavamem Portugal a elevação <strong>do</strong> “bairro” de Recife à condição de Vila viram seupelourinho derruba<strong>do</strong> pelos grandes senhores de Olinda. Estes, estavamendivida<strong>do</strong>s e eram ciumentos da nova Vila controlada pelos comerciantes,chama<strong>do</strong>s pejorativamente de “mascates”. O episódio, trata<strong>do</strong> peloembaixa<strong>do</strong>r Eval<strong>do</strong> Cabral de Mello em “A fronda <strong>do</strong>s mazombos”, inverteno título <strong>do</strong> livro a zombaria aos comerciantes ao usar a expressão quecaracterizou a rebelião da nobreza francesa contra Luís XIV, associada à“mazombice” mestiça desses pretensos aristocratas.Guerra <strong>do</strong>s Emboabas. Nessa ocasião, paulistas, estimula<strong>do</strong>sindiretamente por cargos e títulos recebi<strong>do</strong>s <strong>do</strong>rei de Portugal, julgaram que eram os <strong>do</strong>nos das minase atacaram grupos “estrangeiros” que igualmente haviamsi<strong>do</strong> agracia<strong>do</strong>s pela Coroa com cargos e começavam arivalizar com os paulistas em termos de autoridade e deprestígio na zona das minas recém-descobertas. Discutiremosessas rebeliões, suas semelhanças e diferenças naúltima seção deste capítulo.Quanto à questão da hierarquia, ela estava presentemesmo no nível intraestamental. Havia uma clara hierarquiaentre os colonos, que dependia <strong>do</strong> tamanho da terrapossuída, <strong>do</strong> número de escravos em sua(s) senzala(s) e/ou<strong>do</strong> número de foreiros em suas possessões. Esses “homensbons” que se queriam nobres se relacionavam entre si emum mun<strong>do</strong> em que a hierarquia era clara para to<strong>do</strong>s e cadaum sabia qual era o seu lugar. Entretanto, ao possuir umúnico escravo, o indivíduo se libertava da carga negativaestigmatizante <strong>do</strong> trabalho e se tornava um senhor, aindaque <strong>do</strong>s mais humildes. Dentre os fatores de produção,a mão de obra era o mais escasso. Na economia mercantil,ainda que existissem pequenos posseiros, com poucos ounenhum escravo, o modelo de plantation era hegemônico,sen<strong>do</strong> necessário um grande número de escravos para arealização da produção.A terra, em relação à mão de obra, era muitomais abundante. O modelo de <strong>do</strong>ação de sesmarias


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>26na zona litorânea e as chamadas “datas auríferas” nazona minera<strong>do</strong>ra. Impressiona o tamanho das sesmarias<strong>do</strong>adas, imensas, e, às vezes, mais de uma, para omesmo beneficiário. Está aí a origem <strong>do</strong> sistema latifundiárioque ainda hoje é hegemônico no <strong>Brasil</strong>. Erafrequente a ocupação apenas parcial da terra parafins de produção, já que seria impossível para a maiorparte <strong>do</strong>s sesmeiros ocupar completamente suas sesmariassem fim. Resulta disso que a ocupação se restringiaà chamada “testada” da sesmaria, deixan<strong>do</strong> osertão desocupa<strong>do</strong>. Outra prática frequente era o aluguelda sesmaria aos foreiros que pagavam, geralmenteem bens e produtos, o foro ao proprietário. Muitaseram as ordens religiosas que tiravam <strong>do</strong> foro o grossode suas rendas.Esse modelo perpetuava a hierarquização até entreos colonos; desde o simples posseiro, que mediante grilagemocupava a terra até então desocupada, até o sesmeiro,passan<strong>do</strong> pelo foreiro que alugava a terra. Daí sedepreende que, em uma sociedade na qual a plantationera a norma, não adiantava muito ser <strong>do</strong>no de uma grandeterra sem possuir escravos. O padre João Daniel, uma espéciede Antonil amazônico, relata a situação de famílias,outrora ricas e titulares de imensas propriedades, reduzidasà miséria em virtude da fuga de seus escravos indígenas.Cabem ainda algumas palavras sobre os coloniza<strong>do</strong>s.São os homens obriga<strong>do</strong>s ao trabalho. Fossem escravos oulibertos, brancos pobres ou mestiços, carregavam em seucotidiano diário o estigma <strong>do</strong> peca<strong>do</strong> original, reforça<strong>do</strong> acada dia em uma cultura escravocrata. Humilha<strong>do</strong>s, subordina<strong>do</strong>sa um senhor, aprendem a cada dia que sua sobrevivênciae subsistência residem apenas e exclusivamenteno trabalho que exercem. Seu lugar na sociedade é muitopouco prestigioso. Tais indivíduos na base da pirâmidecarregavam consigo uma esperança. Esperança perniciosacujo eco ainda hoje se percebe em nossa sociedade. Seuprincipal sonho era o de liberdade. O dia em que livres,não mais precisariam trabalhar. Sonhavam ainda, após aalforria, com a compra de um escravo que trabalhasse poreles. O escravo como aposenta<strong>do</strong>ria. Nos dias de hoje, taisimagens se transmudaram no sonho <strong>do</strong> enriquecimentorápi<strong>do</strong>, da loteria, da aposenta<strong>do</strong>ria precoce ou até de umemprego público no qual não seja necessário trabalhar.O trabalho segue sen<strong>do</strong> visto por muitos como um castigo.Havia ainda, e quase sempre um consolo para os pobrescoita<strong>do</strong>s da colônia. Havia sempre alguém ainda maisabaixo na escala de degradação social.Quase to<strong>do</strong>s estão abaixo <strong>do</strong> senhor de engenho,“título a que muitos aspiram e que poucos podem possuir”,segun<strong>do</strong> Antonil, exceto o rei e seus representantes(bispos, governa<strong>do</strong>res, inquisi<strong>do</strong>res). O senhor de engenhosubordina a “cana obrigada” de outros senhores que, semengenho, não têm outra escolha senão recorrer a ele parabeneficiar industrialmente sua cana, transmudan<strong>do</strong>-a em


27O Perío<strong>do</strong> Colonialpães de açúcar. O senhor de terras explora<strong>do</strong> pelo senhorde engenho que o extorque está acima, no entanto, <strong>do</strong> colonoque só possui escravos, mas tem de alugá-los por nãoter terras. Este, por sua vez, se sente feliz por não estar nadesdita <strong>do</strong> i<strong>do</strong>so ou da i<strong>do</strong>sa que só tem um escravo parachamar de seu, escravo que o sustenta com sua jornada dealuguel e que foi compra<strong>do</strong> com o esforço de uma vida detrabalho.Bem pior era a vida <strong>do</strong>s que não possuíam escravos.Restava-lhes apenas a alegria de não ser escravo.Trabalhavam mas eram brancos. Ou libertos. Não tinham“<strong>do</strong>nos”, apenas um senhor. Não eram açoita<strong>do</strong>s. Se escravo,preferia ter a felicidade de viverem em cidades.Os escravos urbanos se consolavam com a oportunidadede terem alguma chance de montar pecúlio, trabalharpor jornal, ser “escravo de ganho”, inviável no ambienterural da senzala. Melhor que a senzala era ao menos viverna Casa Grande, como <strong>do</strong>mésticos. Comemoravampoder viver perto de seu senhor ou capataz. Eram dispensa<strong>do</strong>sde trabalhar no eito. Mas mesmo na senzalahavia diferenciação. Os escravos ladinos tinham nasci<strong>do</strong>no <strong>Brasil</strong> ou pelo menos falavam português. Com issoconseguiam privilégios, vantagens, impossíveis paraos que não conseguiam se comunicar, diferentemente<strong>do</strong>s recém-chega<strong>do</strong>s da África, chama<strong>do</strong>s pretos boçais.Tinham a pior das fortunas na colônia portuguesa: nãoestavam acima de ninguém.Não é de surpreender a tão propalada incapacidade<strong>do</strong> povo brasileiro para se indignar, de se rebelar contra asmalversações, a indignidade <strong>do</strong>s poderosos de hoje, <strong>do</strong>scorruptos. Desde a Colônia, cada grupo social aprendiarapidamente que era melhor olhar para baixo em buscade consolo ou vingança <strong>do</strong> que para cima. Olhar paracima significava ameaçar alguém poderoso, ciumento ecioso de sua posição, que vigiava constantemente os queestavam abaixo. Puniam-se violentamente os que nãosoubessem o seu lugar. Acomodação era sobrevivência.O monopólio da violência era o monopólio <strong>do</strong> senhor contrao escravo rebelde, que sofria as mais variadas sevíciasaté que seu espírito, sua resistência, irremediavelmentealquebrada, não pudesse mais planejar fugas, vingançasou rebeliões. O tronco e o pelourinho eram os lugares <strong>do</strong>castigo público. Serviam de exemplo recorrente e pedagogicamenteeficiente. Marcavam na alma o aprendiza<strong>do</strong> dasubmissão. Era ensinamento que se generalizava um poucomais a cada vergastada assistida. Contra um poder quelhe era muito superior, restava ao escravo – e resta, muitasvezes, ainda hoje ao povo – conformar-se. Se, como sabemos,democracia e cidadania são práticas cotidianamenteaprendidas, não podemos ser acusa<strong>do</strong>s de maus alunos.A lição por muitos séculos repetida formou o aprendiza<strong>do</strong>hierarquizante <strong>do</strong> submeter e da submissão.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>281.3 Escravidão e trabalho compulsório na ColôniaEscravidão e trabalho compulsório. A complexidade sociale as variantes <strong>do</strong> trabalho compulsório colonial. A transiçãoda mão de obra nativa para a mão de obra africana.Casos singulares de organização da mão de obra. Eixoseconômicos da expansão territorial.O ubíquo historia<strong>do</strong>r Ciro Flamarion Car<strong>do</strong>so, emcapítulo sobre o trabalho colonial, desmonta o excessivoesquematismo da dicotomia senhores/escravos. Tece umaanálise na qual se acolhem as complexidades <strong>do</strong> imensonúmero de brancos pobres, mestiços e mulatos que nãoeram nem senhores nem escravos. Estes foram, segun<strong>do</strong>Car<strong>do</strong>so, negligencia<strong>do</strong>s pelos historia<strong>do</strong>res em virtude daobsessão plantacionista que esteve presente nas narrativassobre a Colônia e o Império. Fora da plantation, não existiahistória.Em termos sociais, colocar escravos africanos,indígenas, mestiços e mulatos no mesmo barco <strong>do</strong>s “coloniza<strong>do</strong>s”tal qual fizemos seção anterior é aceitar a afirmaçãomusical de Caetano Veloso de que mestiços e mulatoseram “quase pretos de tão pobres”. Car<strong>do</strong>so nos resgata daesquematização e sugere o conceito de trabalho compulsório,no qual a escravidão está presente junto com outrasformas de coerção análogas à escravidão e em concomitânciacom ela. Ele investiga as principais linhas estruturaisque favoreceram e caracterizaram o trabalho compulsóriono <strong>Brasil</strong> colonial.O autor nos lembra que, em que pese a corrente migratóriaforçada <strong>do</strong> tráfico negreiro, não convém negligenciaro intenso fluxo de brancos que veio para o Centro-Sul,o que explicaria, segun<strong>do</strong> Car<strong>do</strong>so, a melhor possibilidadede ascensão social <strong>do</strong>s negros libertos no Nordeste, ondea concorrência com brancos com posses era muito menor.Kehinde, a personagem africana que seria Luísa Mahin,mãe <strong>do</strong> abolicionista Luís Gama, no incrível romance deAna Maria Gonçalves, Um defeito de cor, torna-se umaself-made woman na Bahia <strong>do</strong> início <strong>do</strong> século XIX. Car<strong>do</strong>sonos ensina que talvez ela fosse tão bem-sucedida se tivessesi<strong>do</strong> traficada para a parte meridional da Colônia.Outro fator relevante foi a abundância de terras,guardadas as diferenças no tempo e no espaço. Até mea<strong>do</strong>s<strong>do</strong> século XIX, em um quadro em que o acesso aterra não era difícil, o único mo<strong>do</strong> <strong>do</strong>s grandes senhoresnecessita<strong>do</strong>s de trabalho intenso era o recurso à força.O trabalha<strong>do</strong>r precisava ser obriga<strong>do</strong> a trabalhar, pois, selivre, cultivaria a própria terra ou as terras aban<strong>do</strong>nadas eabundantes <strong>do</strong> sertão.Na literatura de Ana Maria Gonçalves, a linha devida de Kehinde ilustra detalhadamente a complexidadeque historia<strong>do</strong>res como Car<strong>do</strong>so resgatam nas linhas naturalmentemais áridas da historiografia. Havia, no <strong>Brasil</strong>,escravos que tinham escravos. Escravos que compravam a


29O Perío<strong>do</strong> Colonialliberdade de seus familiares, mas não conseguiam comprara própria (eram escravos de ordens religiosas, ou valiososdemais, ou estavam hipoteca<strong>do</strong>s como garantia de dívidasde seus senhores). Escravos que formavam cooperativas,verdadeiros consórcios de liberdade, depositan<strong>do</strong> seus ganhosnessas sociedades de complexa administração econômica,conquistan<strong>do</strong>, aos poucos, a liberdade; quan<strong>do</strong>livres, continuavam a contribuir para a liberdade <strong>do</strong>s demais.Existia o fenômeno generaliza<strong>do</strong> da “brecha camponesa”,que era quase um “direito” <strong>do</strong>s escravos em muitasregiões. Cultivavam sua própria “roça” aos <strong>do</strong>mingos, o queera bom para o senhor que se eximia da responsabilidadeda subsistência e melhorava a dieta <strong>do</strong>s seus escravos.Alguns acumularam pecúlio suficiente para se alforriarem.A manumissão no <strong>Brasil</strong>, portanto, foi muito maisintensa e recorrente que em qualquer outra zona <strong>do</strong> escravismomoderno na América. Foi recorrente, por exemplo,nas Minas Gerais em virtude da maior urbanização ese intensificou com o declínio econômico das minas. Antea perspectiva cada vez mais decrescente das rendas auríferas,os senhores preferiam libertar seus escravos a seguirsustentan<strong>do</strong>-os. Resultou daí imenso contingente de libertos,ingênuos (filhos de cativos e ex-cativos que nasciamlivres) e escravos de ganho ou urbanos que construíam“espaços de liberdade” nas cidades da Colônia e <strong>do</strong> Império,e provocavam o terror na população branca. Eles eramcontrola<strong>do</strong>s e vigia<strong>do</strong>s intensamente pela polícia, sen<strong>do</strong>proibi<strong>do</strong>s de andar na rua à noite ou sem carta de alforriaou sem bilhete <strong>do</strong> senhor que evidenciasse estarem a seuserviço. Esse me<strong>do</strong> foi agrava<strong>do</strong> após o levante haitiano davirada <strong>do</strong> século XVIII para o XIX. O haitianismo teria, maistarde, consequências políticas muito relevantes na história<strong>do</strong> Império.Cabia ao Esta<strong>do</strong>, portanto, a repressão no âmbitocoletivo que garantia e legitimava a escravidão. Reprimirrebeliões, destruir quilombos e punir no pelourinho escravosurbanos castiga<strong>do</strong>s por seus senhores era uma funçãopública. Esse sistema contaria ainda com o tempo de racionalizaçãoideológica racial. Uma série de leis racistas foibaixada pelas autoridades coloniais a fim de limitar o acessode índios e de africanos a certas profissões e posiçõessociais. Isto nada mais era <strong>do</strong> que a atuação das elites quecontrolavam o Esta<strong>do</strong> para forçar os libertos ao trabalho.É claro que a maior parte <strong>do</strong>s escravos viveu a vidainteira na zona rural. Nas cidades, apesar da repressão evigilância constante, as possibilidades de algum grau deliberdade sob a escravidão eram muito maiores que nasgrandes fazendas. Também era maior a possibilidade dese conseguir alforria. É interessante notar que, mesmo naszonas rurais da Colônia, a escravidão não aparece tão concentradanas mãos de poucos grandes senhores, como seacreditava até pouco tempo. Havia muitos pequenos senhores– com cinco escravos ou menos – que <strong>do</strong>rmiamna mesma casa que seus escravos. Produziam farinha de


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>30mandioca e outros gêneros alimentícios ou cana-de-açúcarna terra arrendada de algum grande senhor de engenho,a quem o pequeno senhor se subordinava.O trabalho compulsório africano foi, aos poucos,substituin<strong>do</strong> o trabalho indígena. Considerada sua velocidade,esse processo foi muito desigual regionalmente. Se otráfico negreiro ganha relevância impressionante ao longo<strong>do</strong> século XVII, em zonas de economia periférica como oMaranhão ou São Paulo o processo demoraria muito mais.Sérgio Buarque de Holanda nos lembra que, no início <strong>do</strong>século XIX, na cidade de São Paulo ainda se ouvia com frequênciaa língua geral <strong>do</strong>s índios sen<strong>do</strong> usada na comunicaçãocotidiana.A disseminação da escravidão africana acelerou-secom a descoberta de Minas Gerais. A razão dessa substituiçãoé altamente controversa e constantemente debatidapela historiografia. Índios preguiçosos e inadapta<strong>do</strong>s aotrabalho escravo de agricultura intensiva é a explicação quemuitos de nós recebemos de nossas professoras primárias.A seu respeito só nos resta o riso. Se pudéssemos voltarao tempo, perguntaríamos à “tia” da escolinha: “Quem seadapta ao trabalho escravo?”. Parece-me que a escravidão,inerentemente violenta, tem acelera<strong>do</strong>s méto<strong>do</strong> de adaptação:o tronco e o chicote garantem a anuência <strong>do</strong>s maisrecalcitrantes. Tal explicação é ainda veladamente racista.Faz parecer que o africano se adaptou plenamente à vidaescrava. Para os defensores dessa opinião, só faltaria descobrirnos arquivos africanos que hauçás, benguelas, fonse eves, mandaram seus currículos para disputar vaga nassenzalas da América.É bem verdade que, ao contrário <strong>do</strong> que existia noPeru ou na Mesomérica, no <strong>Brasil</strong> inexistiam sociedadesautóctones de agricultura intensiva. O valor das coisas erao <strong>do</strong> uso, e não o valor mercantil presente nas sociedadeseuropeias e naquelas <strong>do</strong> litoral africano que estimularamo tráfico. Nesse senti<strong>do</strong>, a resistência cultural <strong>do</strong> nativosul-americano tendia a ser maior, mas essa explicação culturalistanão parece ser capaz de fazer frente à chibata eao pelourinho. O elemento demográfico parece ser maisdeterminante.Os engenhos brasileiros funcionaram ao longode décadas com mão de obra indígena e aos poucos otráfico negreiro se tornou alternativa para o desaparecimentogradual <strong>do</strong>s índios e para a crescente dificuldadeem obtê-los. É interessante esse ponto em que a procuradiversifica o tipo de oferta. Isso desconstrói a visão tradicionalmonopolista <strong>do</strong> “pacto colonial”, já que o tráficonegreiro foi um tipo de comércio internacional em que seevidencia a significativa autonomia comercial da Colônia.Os traficantes de escravos estavam estabeleci<strong>do</strong>s no Riode Janeiro e em Salva<strong>do</strong>r, e não em Lisboa. A libertaçãode Angola, que foi ocupada pelos holandeses no segun<strong>do</strong>quartel <strong>do</strong> século XVII, foi planejada e executadade mo<strong>do</strong> bem-sucedi<strong>do</strong> pelos traficantes fluminenses.


31O Perío<strong>do</strong> ColonialEm certo senti<strong>do</strong> foi a primeira força expedicionária saída<strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. Sob o coman<strong>do</strong> <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r Salva<strong>do</strong>r Correiade Sá e Benevides, a expedição retomou Angola, SãoTomé e Príncipe <strong>do</strong>s holandeses e garantiu o restabelecimento<strong>do</strong> tráfico para o sul da colônia.O desaparecimento progressivo <strong>do</strong>s índios – genocídiocausa<strong>do</strong> por escravização, epidemias, destruiçãode seu mo<strong>do</strong> de vida e ecossistema –, concomitante àcrescente necessidade de mão de obra por parte <strong>do</strong>s colonos,estimulou o tráfico africano, mas este sempre foiimensamente vantajoso para a metrópole, que o tributava,e também para os padres. A igreja justificava ideologicamentea manutenção da reserva de mão de obra indígena.Os índios, livres da escravização por parte <strong>do</strong>s colonos,eram monopoliza<strong>do</strong>s sobretu<strong>do</strong> pelos jesuítas. Isso explicaa pressão constante <strong>do</strong>s jesuítas pela proibição da escravização<strong>do</strong>s índios. A coroa decretou a proibição sucessivasvezes, provocan<strong>do</strong> até rebeliões, como maranhense, lideradapelos Beckman. As ordens metropolitanas não seriamcapazes, no entanto, mesmo em suas sucessivas ressurreições,de impedir que o preamento <strong>do</strong>s índios a partir deregiões como São Paulo e Maranhão.A mão de obra era investimento mais que um custofixo. Um investimento alto tornan<strong>do</strong> o investi<strong>do</strong>r muitocioso. Em um quadro avesso à incorporação das inovaçõestecnológicas e com enorme abundância de terras, a mãode obra era o principal fator de produção.É bom lembrar que há casos singulares de organização<strong>do</strong> trabalho compulsório, como a Amazônia e o RioGrande <strong>do</strong> Sul. Na Amazônia havia reprodução interna damão de obra. Era suprida por bandeiras de apresamentodenominadas “tropas de resgate”, por sua pretensa funçãode “resgatar” índios condena<strong>do</strong>s à morte em suas tribos.A base econômica desse modelo era o extrativismo, e não amineração ou o plantation, como nas zonas coloniais centrais.Havia, além das missões que controlavam o grossoda mão de obra nativa, um amplo setor campesino independentede posseiros livres e etnicamente heterogêneose um grande número de pequenas propriedades.No sul <strong>do</strong> país por sua vez, a destruição das missõesespanholas pelos paulistas, tornou o ga<strong>do</strong> selvagem.Grupos nômades e mestiços caçavam este ga<strong>do</strong> em umaregião de escassa densidade demográfica. A exportaçãode couro serviu de embrião para a crescente valorização<strong>do</strong> ga<strong>do</strong>, que ganhou novo impulso com a descobertade ouro. Este empreendimento passou a demandar carnee também as mulas que serviriam para o transporte <strong>do</strong>s“tropeiros”. No século XVIII as estâncias de criação e a organizaçãoda mão de obra se impuseram à vida nômade <strong>do</strong>século XVII. Nestes extremos geográficos, <strong>do</strong> norte e <strong>do</strong> sula ocupação se iniciou mais por ditames geopolíticos – ocontrole da fronteira e a expulsão de estrangeiros – <strong>do</strong> quepor ditames econômico-mercantis. Em ambos os casos, a


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>32iniciativa da Coroa, ao criar Belém em 1616 e Sacramentoem 1680, foi essencial.Contu<strong>do</strong>, além da atividade da Coroa, a base econômicada expansão territorial foi muito diversa no tempo eno espaço. Ainda que iniciada no século XVII, dinamizou--se aceleradamente apenas no século XVIII, basicamentea partir de quatro eixos: 1) o bandeirantismo paulista (deapresamento para o Sul no século XVII e monçoeiro deabastecimento no século XVIII); 2) o extrativismo amazônicodas drogas <strong>do</strong> sertão; 3) a mineração; e 4) a pecuária.A análise deste processo será objeto das próximas seções.1.4 <strong>História</strong>s <strong>do</strong> sertãoNomenclaturas. Expansão paulista: primaziapolítica ou econômica?O papel <strong>do</strong> rio no movimento sertanista. Os ciclos didáticos.O impacto da União Ibérica. O mito da ilha <strong>Brasil</strong>.A lenda negra <strong>do</strong>s jesuítas.O lega<strong>do</strong> <strong>do</strong> movimento sertanista para a história.Trata-se de senso comum, universaliza<strong>do</strong> pelos livrosdidáticos e sem base empírica, a divisão corrente entre“entradas” e “bandeiras”. As primeiras seriam encomendadaspela Coroa; as segundas teriam motivação particularou privada. Tal divisão não faz senti<strong>do</strong> por duas razões. Emprimeiro lugar, é certo que o nome “bandeiras” é uma atribuiçãoposterior. Não se relaciona a nenhum estandarte ousímbolo político da Coroa, mas a “ban<strong>do</strong>s”, nome que eraatribuí<strong>do</strong> às incursões ao sertão junto com “tropa”, “guerra”ou mesmo “arraial”, que passavam a ideia de “cidade emmovimento”. Além disso, a expressão “bandeira” só teria sevulgariza<strong>do</strong> em mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> século XVIII, quan<strong>do</strong> o fenômenojá se esgotara. Em segun<strong>do</strong> lugar, a maior parte dessas“entradas” ou “bandeiras” não tinha motivação política, maseconômica, ainda que haja algumas exceções, em geralcomandadas por portugueses, como a bandeira de RaposoTavares; mesmo nesses casos, é bem provável que pre<strong>do</strong>minasseo estímulo escravocrata.


33O Perío<strong>do</strong> ColonialO bandeirantismo mais típico era o de apresamento,e seu objetivo, era a captura de índios para o trabalhona lavoura. Inicialmente se aproveitan<strong>do</strong> de conflitos entreas tribos para fazer escravos, os paulistas aos poucos alargaramo horizonte de suas razias rumo ao sertão, às vezescapturan<strong>do</strong> centenas, milhares de índios de uma só vez.Iam cada vez mais longe de São Vicente e não poupavamos jesuítas que tinham estabeleci<strong>do</strong> missões onde hoje éo Paraná e, mais tarde, no que hoje é o Rio Grande <strong>do</strong> Sul.Os inacianos fugiam para longe <strong>do</strong>s bandeirantes, masnão ficavam, com esse distanciamento, livres <strong>do</strong>s ataques,ten<strong>do</strong> até, por volta da quinta década <strong>do</strong> século XVII, consegui<strong>do</strong>autorização <strong>do</strong> papa e <strong>do</strong> rei da Espanha para searmarem em defesa.Outra crença desmontada pela recente historiografiafoi o papel <strong>do</strong> rio, sobretu<strong>do</strong> o Tietê, no processo deincursão ao sertão. Há razoável consenso sobre o bandeirantismopaulista, ter si<strong>do</strong> um fenômeno terrestre, aomenos até o advento das monções (início <strong>do</strong> século XVIII).O rio era guia, era rumo, mas seguia-se, por terra, o caminhoàs margens <strong>do</strong>s rios.Uma visão didática estimulada pela ideia de ciclosdivide o bandeirantismo em: bandeiras de apresamento;bandeiras de prospecção (que partiam de São Paulo eacabavam por encontrar ouro em Minas Gerais, na últimadécada <strong>do</strong> século XVII, e na Bahia, em Goiás e no Mato Grossonos anos iniciais <strong>do</strong> século seguinte); o sertanismo decontrato (para a repressão armada de quilombos e detribos hostis, da qual a guerra palmarina é a mais famosaexpressão); e as monções. Em muitos casos, um se sobrepunhaao outro e me parece difícil acreditar que um bandeirante<strong>do</strong> final <strong>do</strong> século XVII, oprimi<strong>do</strong> pelo didatismocontemporâneo, deixasse passar uma pepita de ouro porser fiel à sua missão de “bandeira de apresamento”.Teve a União Ibérica muita importância para o fenômeno<strong>do</strong> bandeirantismo paulista? Synesio Sampaio GoesFilho descarta essa hipótese. Segun<strong>do</strong> ele, os únicos pontosde contato frequentes entre portugueses e espanhóiseram as missões, justamente foco de conflito. De resto,ninguém sabia onde ficava o meridiano de Tordesilhas, ea fronteira entre os <strong>do</strong>is reinos, se é que assim poderia serchamada, era livre e fluida. Nunca foi fiscalizada, nem antes,nem durante, nem depois da união das coroas. Servin<strong>do</strong>--se de um contrafatual, o autor de Navegantes, bandeirantes,diplomatas aventa, no entanto, que a escassez de mãode obra escrava, em decorrência da invasão holandesa <strong>do</strong>Nordeste e de Angola, pode ter estimula<strong>do</strong> o bandeirantismoescravista ao longo <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> quartel <strong>do</strong> século XVII,o que evidenciaria algum impacto da União Ibérica, aindaque indireto, no bandeirantismo. Outra controvérsia seria ocaráter despovoa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> bandeirantismo “genocida” paulista,que Goés Filho considera exagera<strong>do</strong>. Lista ele dezenasde vilas e cidades que foram fundadas pelos paulistas, oque faria deles, no mínimo, simultânea e dialeticamentepovoa<strong>do</strong>res e despovoa<strong>do</strong>res.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>34Ainda que a Coroa portuguesa tenha estimula<strong>do</strong> o“mito da ilha <strong>Brasil</strong>” – a crença de que as bacias setentrionalamazônica e meridional <strong>do</strong> Prata se encontrariam em umagrande lagoa conforman<strong>do</strong> geograficamente “o destinomanifesto” português na América –, cada vez mais pareceque o movimento bandeirante foi espontâneo e motiva<strong>do</strong>por motivos econômicos locais, e não para viabilizar aocupação <strong>do</strong> território. Mesmo em casos famosos como ode Raposo Tavares, não parece ter a Coroa portuguesa realmenteorganiza<strong>do</strong> e provi<strong>do</strong> a expedição, tampouco queseu fim tenha si<strong>do</strong> a ocupação <strong>do</strong> território. Documentosda época comprovam a finalidade apresa<strong>do</strong>ra.A historiografia sobre os bandeirantes se inicia como silêncio. Não há relatos contemporâneos, muito menosrepresentações iconográficas <strong>do</strong>s bandeirantes. Suas representaçõesclássicas só foram recriadas séculos depois,fruto da imaginação idealista da ascensão paulista <strong>do</strong> séculoXX, que buscou, no bandeirantismo, legitimação histórica.São os ancestrais valentes das famílias quatrocentonasenriquecidas pelo café. Vê-se isso nos monumentos e logra<strong>do</strong>urospaulistas: Ro<strong>do</strong>via Fernão Dias, Raposo Tavares,Palácio <strong>do</strong>s Bandeirantes, Ro<strong>do</strong>via <strong>do</strong>s Bandeirantes ou“O monumento às bandeiras”, de Brecheret, inaugura<strong>do</strong>em 1954, no quarto centenário da cidade, pelo governa<strong>do</strong>rLucas Garcez (1951-55), que bizarramente recebeu umaborduna <strong>do</strong> cacique Krumare, um botocu<strong>do</strong>.Esse tipo de idealização é muito posterior. Os primeirosescritos a mencionarem os bandeirantes são bastantenegativos e produzi<strong>do</strong>s, claro, pelos inacianos espanhóis.A chamada “lenda negra” enfatizava o aspecto violento,escravizante, genocida das bandeiras paulistas, que tambémfaz parte <strong>do</strong> movimento. Por meio das pesquisas <strong>do</strong>Instituto Histórico e Geográfico <strong>Brasil</strong>eiro (IHGB), são redescobertase republicadas obras como as de Pedro Taques(1714-1777), que ainda no perío<strong>do</strong> colonial, mas já depois<strong>do</strong> apogeu <strong>do</strong> bandeirantismo, deixam extrair informaçõesválidas sobre o movimento.Na década de 1920, com a organização <strong>do</strong>s arquivosde São Paulo, a obra extraordinária e interessantíssima deAlcântara Macha<strong>do</strong> permite ver o bandeirante como umindivíduo muito pobre, ignorante e truculento, cuja maiorriqueza, além <strong>do</strong>s escravos indígenas, “os negros da terra”,eram os teci<strong>do</strong>s e panos de vesti<strong>do</strong>s femininos usa<strong>do</strong>s emdias de festa para ir à igreja. Não se movem para o interior,na epopeia sertanista, em busca de riquezas ou para alargaros <strong>do</strong>mínios de El Rey, mas por necessidade ou – comosugere, em sua passagem mais poética, o extraordináriocapítulo <strong>do</strong> embaixa<strong>do</strong>r Goes Filho sobre o bandeirantismo– por uma inexplicável, quase mística atração pelosertão, que poderia vir da miscigenação com o sangue indígenae que, segun<strong>do</strong> o autor, ainda nos persegue musicale literariamente nas homenagens que nossos maioresfizeram aos Sertões, ao Grande sertão ou ao “Luar <strong>do</strong> sertão”,e que ainda hoje lemos e ouvimos.


35O Perío<strong>do</strong> Colonial1.5 As águas da discórdiaO elemento fluvial no embate luso-espanholna América.Semelhanças e diferenças entre as ocupaçõesmeridional e setentrional.A fundação de Belém e a de Sacramento.As dificuldades no estabelecimento das duas colônias.As consequências das metrópoles no Prata.Os agentes envolvi<strong>do</strong>s.No estu<strong>do</strong> da expansão territorial, é inescapávelevidenciar o papel que tiveram os grandes rios no Nortee no Sul na ocupação portuguesa na América. As duasprincipais bacias hidrográficas, o Prata ao Sul e a amazônicaao Norte, tiveram para os brasileiros <strong>do</strong>s séculos XVIIe XVIII importância análoga, mas creio que ainda maior <strong>do</strong>que a <strong>do</strong>s rios Mississippi-Missouri para franceses e anglo--americanos na América <strong>do</strong> Norte. Não há aí, é claro, muitanovidade. Sabemos recorrentes e poderosos os impactosque os grandes corpos correntes de água <strong>do</strong>ce tiveram naaventura humana, desde que o primeiro historia<strong>do</strong>r decretouque “O Egito é uma dádiva <strong>do</strong> Nilo”.No caso português, no entanto, por motivos distintosdaqueles <strong>do</strong>s antigos egípcios, é possível parafrasear Heró<strong>do</strong>toe dizer que o Mato Grosso português é uma dádiva<strong>do</strong> Prata e que a região amazônica brasileira é umadádiva <strong>do</strong> rio que a batiza. Esses rios serviam de curso,estrada molhada, via de entrada privilegiada para o sertão,a qual a Coroa portuguesa não se esquivou de buscar controlar,com mais sucesso ao Norte e menos ao Sul. Essa étalvez a principal diferença da presença portuguesa nos<strong>do</strong>is extremos <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> de hoje. A ocupação <strong>do</strong> Norte, comexceção das duas décadas turbulentas após a criação deBelém (1616), foi mais “mansa e pacífica”, na terminologiajurídica, <strong>do</strong> que a <strong>do</strong> entorno de Sacramento (1680), conflituosaem qualquer tempo desde então.Diferencia-se também aí, politicamente, esses eixosde expansão Norte e Sul daquele implementa<strong>do</strong> pelosbandeirantes paulistas rumo ao sertão, no centro <strong>do</strong> territórioportuguês. A presença da Coroa, constante, vigilantee diuturna no Pará e no Prata, era fluida, escassa e constantementedesobedecida em São Vicente. A expansãobandeirante era muito mais privada que pública, aindaque seus efeitos tenham si<strong>do</strong> aproveita<strong>do</strong>s pelo estadistapaulista quan<strong>do</strong> houve oportunidade para tanto. Umarústica tentativa de síntese visual didática está presente naimagem a seguir.O triângulo representaria o <strong>Brasil</strong> pós-Madri (1750),e as setas a aventura sertanista na Amazônia (A), no bandeirantismopaulista (B) e no Prata (C), que permitiram aanulação da linha de Tordesilhas. Maior alcance ela temde cima para baixo, acompanhan<strong>do</strong> justamente a menorquantidade de resistência espanhola. Percebe-se ainda


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>36que as setas escuras representam significativa presença daCoroa portuguesa. Já na seta transparente, a presença <strong>do</strong>sinteresses metropolitanos quan<strong>do</strong> da organização dessasexpedições era, perceptivelmente, muito mais limitada.Belém foi fundada em 1616, pouco depois da saída<strong>do</strong>s franceses lidera<strong>do</strong>s por La Touche <strong>do</strong> Maranhão.A localização estratégica <strong>do</strong> Forte <strong>do</strong> Presépio, origemda cidade, garantiria a ocupação futura <strong>do</strong> rio e de seusafluentes, apesar da resistência de ingleses, franceses e holandesesafinal expulsos por volta de 1645. Apesar de maisABCpoderosos que Portugal, as demais coroas europeias jamaisderam grande prioridade para esta região 4 . Ten<strong>do</strong>si<strong>do</strong> descobertos por navegantes a serviço <strong>do</strong> rei da Espanha(há controvérsia se foi Américo Vespúcio ou VicentePinzón), a bacia amazônica e seu delta foram aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>spor quase um século, sen<strong>do</strong>, ao contrário <strong>do</strong> que se deucom o Prata, ocupa<strong>do</strong>s afinal por portugueses.A origem de Belém como forte em defesa da baciaamazônica após a ocupação francesa <strong>do</strong> Maranhão estabeleceua proximidade entre as duas regiões cujo nomeoriginal era Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Maranhão. O nome mudaria para“Grão-Pará e Maranhão” em 1737, quan<strong>do</strong> a capital deixoude ser São Luís e passou a ser Belém. O Esta<strong>do</strong> existiu de1622 a 1774, sen<strong>do</strong> extinto pelo Marquês de Pombal. A realidadejurídica, junto com a criação de cidades, era o meioinstitucional de a Coroa portuguesa dar corpo a seu projetocolonial de ocupação daquele território. Isso também severificaria algumas décadas depois no Prata.O rei de Portugal, muito provavelmente acreditan<strong>do</strong>(erroneamente) estar a foz <strong>do</strong> Prata dentro <strong>do</strong> la<strong>do</strong>português delimita<strong>do</strong> por Tordesilhas, man<strong>do</strong>u, em 1678,Jorge Soares, governa<strong>do</strong>r no Rio de Janeiro, fundar povoaçãofortificada na margem oriental <strong>do</strong> rio. O mau tempo4 Também não o era para os espanhóis que batizaram o Rio por conta dasmulheres indígenas guerreiras com as quais Francisco Orellana se deparouainda no século XVI.


37O Perío<strong>do</strong> Colonialforçou o retorno antecipa<strong>do</strong> da expedição a Santos comum navio a menos. Isso fez que a honra da fundação da Colônia<strong>do</strong> Santíssimo Sacramento coubesse a Manuel Lobo,que lá se estabeleceu em janeiro de 1680, com cerca de400 pessoas, quase em frente a Buenos Aires. É inequívocaa primazia <strong>do</strong>s interesses da Coroa nessa empresa. Alémda esperança de compartilhar os lucros <strong>do</strong> comércio deBuenos Aires, é possível que os portugueses acreditassemainda que Sacramento seria apenas a ponta de lança para aconquista completa da região no futuro. O que não se põeem dúvida é a necessidade de garantir a ocupação de amploterritório desocupa<strong>do</strong> ao sul de São Paulo, que se constituíaem perigoso vazio demográfico aberto à conquistaespanhola na parte meridional da América portuguesa.Não tar<strong>do</strong>u para os espanhóis perceberem, atacarem eocuparem, ainda em 1680, a Colônia. Seria devolvida aosportugueses no ano seguinte pelo Trata<strong>do</strong> Provisional deLisboa, esperan<strong>do</strong> um arbitramento papal sobre a questão,que nunca ocorreu.Seriam mais três invasões ao longo <strong>do</strong> perío<strong>do</strong>colonial: além da primeira, já em 1680, os espanhóis conquistaramSacramento em 1704, em 1762 e em 1776.Devolveram a Colônia nos <strong>do</strong>is primeiros casos: depois deocupá-la por <strong>do</strong>ze anos até a devolução <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> Trata<strong>do</strong>de Utrecht (1715) e, logo, após cerca de um ano deocupação pelo Trata<strong>do</strong> de Paris em 1763. Houve tentativasfrustradas de invasão, resistidas de mo<strong>do</strong> bem-sucedi<strong>do</strong> pelosdefensores portugueses em 1735, cujo cerco durou quase<strong>do</strong>is anos. O que podemos depreender diante de tanta discórdiaem disputa dessa que hoje é considerada a capitalhistórica <strong>do</strong> Mercosul?Em primeiro lugar, que se tratava de foco prioritáriopara as duas metrópoles. A Espanha tinha a intenção decontrolar as duas margens <strong>do</strong> Prata, e Portugal não queriaperder o acesso ao rio; Os espanhóis insistiam que Sacramentoe seu entorno eram seus por direito 5 . Já Portugalambicionava toda a margem oriental <strong>do</strong> Prata, ou seja,to<strong>do</strong> o Uruguai, e assim permaneceu consideran<strong>do</strong>, excetono perío<strong>do</strong> que se seguiu ao Trata<strong>do</strong> de Madri (1750-1761)quan<strong>do</strong> Alexandre de Gusmão cedeu Sacramento aosEspanhóis.Em segun<strong>do</strong> lugar, essa disputa estimulou a ocupaçãodemográfica <strong>do</strong> entorno, então desabita<strong>do</strong>. Depoisde frustrarem no início da terceira década <strong>do</strong> século XVIIa fortificação portuguesa <strong>do</strong> sítio próximo onde fica hojea capital uruguaia, os espanhóis, valen<strong>do</strong>-se da boa visibilidadehomenageada pelo nome que teria, fundam a cidadede Montevidéu em 1726, que serviu de núcleo paraa ocupação <strong>do</strong> entorno uruguaio, insulan<strong>do</strong> Sacramento,que aos poucos se tornava enclave luso em territóriomajoritariamente ocupa<strong>do</strong> por espanhóis. Alexandre de5 Por entorno os espanhóis consideravam a distância de um tiro de canhão.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>38Gusmão, secretário pessoal <strong>do</strong> rei D. João V desde 1730,percebe isso e estimula o estabelecimento de núcleos coloniza<strong>do</strong>resna Lagoa <strong>do</strong>s Patos, o chama<strong>do</strong> Continente deSão Pedro, base originária <strong>do</strong> que hoje é o Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> RioGrande <strong>do</strong> Sul. A parte norte da lagoa seria ocupada nasdécadas seguintes, a partir de Viamão, com a chegada <strong>do</strong>scasais açorianos que dariam origem a Porto Alegre.Em terceiro lugar, cabe a pergunta: por que a Espanhasempre devolvia Sacramento depois de conquistá-latrês vezes? É necessário nos voltarmos para a configuraçãode poder sistêmica na Europa. Lá encontraremos umapenínsula Ibérica dividida em uma Espanha sob influênciafrancesa desde 1712, com a coroação de um príncipeBourbon, neto de Luís XIV, e Portugal sob forte influênciainglesa, consolidada comercialmente após o Trata<strong>do</strong> deMethuen, de 1703. Nas guerras <strong>do</strong> século XVIII, não raro,a aliança liderada por Londres levou a melhor e Portugalse beneficiava disso, como no caso <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is trata<strong>do</strong>s deUtrecht – em 1713, conseguiu que os franceses aceitassemestabelecer a fronteira no Oiapoque; e, em 1715, conseguiua devolução de Sacramento, ocupada desde 1704 – ou nocaso <strong>do</strong> Trata<strong>do</strong> de Paris (1763), que encerrava favoravelmentepara a Inglaterra e seus alia<strong>do</strong>s (Portugal, Prússia)a Guerra <strong>do</strong>s Sete Anos. Novamente, voltava a Colônia <strong>do</strong>Sacramento à soberania portuguesa, demonstran<strong>do</strong>, emmuitos casos, a primazia <strong>do</strong> elemento sistêmico em detrimentodas configurações de poder favoráveis à Espanhano Prata. Na maioria das vezes, um padrinho forte vale maisque dez mil solda<strong>do</strong>s.Por último, convém lembrar que a semelhança dapresença firme da Coroa na bacia amazônica e na baciaplatina, coadjuvante na expansão bandeirante, mesmo nocaso das monções cuiabanas, esconde uma diferença deagência. Os agentes a serviço da Coroa no Prata estavamdiretamente a serviço <strong>do</strong> rei de Portugal. Eram governa<strong>do</strong>res,capitães, solda<strong>do</strong>s, colonos envia<strong>do</strong>s da metrópolepara povoar o Continente de São Pedro. No caso amazônico,estavam a serviço da Coroa os padres, sobretu<strong>do</strong> jesuítas,mas igualmente outras ordens, que, a partir de 1657,fundaram a primeira de suas muitas reduções indígenas.Assim como os jesuítas espanhóis eram um braço da Coroamadrilena no Prata, não teria si<strong>do</strong> possível a Portugalestender sua soberania sobre quase toda a região setentrionalsem o serviço <strong>do</strong>s homens de Deus.A base econômica dessa ocupação era a extraçãodas chamadas “drogas <strong>do</strong> sertão”: baunilha, salsaparrilha,castanhas, ervas variadas – especiarias americanas – quesubstituíam aquelas asiáticas não mais submetidas aomonopólio português, e que garantira tantos lucros nasdécadas que se seguiram à viagem de Vasco da Gama.À semelhança <strong>do</strong> bandeirantismo meridional, o fator deprodução mais importante era a mão de obra indígena,capturada por bandeiras fluviais que partiam de Belém efaziam <strong>do</strong> Amazonas e de seus subsidiários estrada de guerra,


39O Perío<strong>do</strong> Colonialabastecen<strong>do</strong> com nativos os colonos <strong>do</strong> Norte. Não raro, adisputa acerba por mão de obra provocou conflitos entreleigos e padres, sen<strong>do</strong> os jesuítas expulsos pelo governorevolucionário <strong>do</strong>s Beckman, que tomou o poder no Maranhãoem 1684, anos depois de a Coroa proibir, sem muitosucesso, a escravização <strong>do</strong>s índios em 1680.Se é verdade que interesses estatais e priva<strong>do</strong>s coexistiramnem sempre de mo<strong>do</strong> harmônico na conquistaportuguesa da Amazônia, também é verdade que o projeto,a concepção, as ordens, a organização e a mobilização<strong>do</strong>s recursos humanos e <strong>do</strong>s materiais necessários àempreitada tiveram, com frequência – e ao contrário <strong>do</strong>bandeirantismo –, sua origem em Lisboa. Isso evidenciaque, como no Prata, a prioridade dada por Portugal à regiãoamazônica foi o que garantiu sua soberania mesmoem disputa com nações mais poderosas.1.6 O Trata<strong>do</strong> de Madri de 1750As motivações <strong>do</strong> Trata<strong>do</strong> de Madri. Alexandrede Gusmão.O contexto internacional na época <strong>do</strong> trata<strong>do</strong>.As consequências <strong>do</strong> trata<strong>do</strong> para a Colônia.Urgências e definições. O lega<strong>do</strong> de Madri.Negocia<strong>do</strong> ao final <strong>do</strong> reina<strong>do</strong> de D. João V, o maisrico <strong>do</strong>s reis portugueses, o Trata<strong>do</strong> de Madri é a culminânciadiplomática desse reina<strong>do</strong>. Apesar de ter ti<strong>do</strong> parcosresulta<strong>do</strong>s em curto prazo, em longo prazo a obra de Alexandrede Gusmão é, com exceção de pouco mais que oAcre, a base para o que hoje é o território brasileiro.Mas quais foram seus antecedentes?To<strong>do</strong>s os trata<strong>do</strong>s de fronteira colonial assina<strong>do</strong>spela Coroa portuguesa até 1750 eram trata<strong>do</strong>s tópicos, istoé, circunscritos regionalmente. Ou se disputava Sacramento(como nos <strong>do</strong>is trata<strong>do</strong>s de Lisboa, de 1681 e de 1700),ou o Cabo Norte (como em Utrecht, 1713). A novidade deAlexandre de Gusmão era um trata<strong>do</strong> compreensivo quesubstituísse o caduco diploma das Tordesilhas e definissepara to<strong>do</strong> o sempre as fronteiras entre Portugal e Espanhana América, o que por si só já era empresa ambiciosa.Algumas diretrizes nortearam a longa negociaçãoentre as duas coroas. Em primeiro lugar, o princípio<strong>do</strong> uti possidetis, complementa<strong>do</strong> pela ideia de fronteiras


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>40naturais. O uti possidetis é uma adaptação inteligente deGusmão <strong>do</strong> direito romano para o direito internacional. Nodireito romano, tratava-se de simples fórmula cautelar paraevitar a continuação de conflito por território em litígio antesda decisão final <strong>do</strong> pretor ou juiz romano. Ficava entãoo território, cautelarmente, com quem o estava ocupan<strong>do</strong>.Sua natureza era temporária. A aplicação que Gusmão deuao princípio – princípio, aliás, pouco aceito ou usa<strong>do</strong> demo<strong>do</strong> generaliza<strong>do</strong> no direito internacional, com exceção<strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> – é bem mais ampla em escala temporal. Não setratava mais de, “como está ocupan<strong>do</strong>, seguirá ocupan<strong>do</strong>”,como na tradução literal da expressão latina uti possidetis,ita possideatis, mas sim da livre tradução usada hoje noprincípio <strong>do</strong> usucapião: “Quem possui de fato deve possuirde direito”. A tradução livre de Gusmão <strong>do</strong> latim não fezmal a Portugal.Outro aspecto negocia<strong>do</strong>r pertinente foi a princípiodas “fronteiras naturais”, que permaneceu sen<strong>do</strong> basilarnas negociações lindeiras até a República. O negocia<strong>do</strong>rnão deveria negligenciar os acidentes geográficos visíveis,como rios, montanhas etc., que favorecessem a demarcaçãoposterior à assinatura. Caberia até o sacrifício da regiãoefetivamente ocupada para facilitar a demarcação em casosóbvios de acidentes geográficos que tornassem a fronteiraevidente.Claro está que esses preceitos não eram, à primeiravista, favoráveis à Espanha. Como se explica então oenorme sucesso de Gusmão? Teria a capacidade <strong>do</strong> negocia<strong>do</strong>rsantista supera<strong>do</strong> em talentos o negocia<strong>do</strong>r espanholde mo<strong>do</strong> tão formidável a ponto de este entregaraos portugueses quase tu<strong>do</strong> o que hoje é o <strong>Brasil</strong>? Quevantagens teve Portugal na negociação que redun<strong>do</strong>u noTrata<strong>do</strong> de Madri?Em primeiro lugar, o timing. Foi bem utiliza<strong>do</strong> o panoramada balança de poder europeia e ibérica em mea<strong>do</strong>s<strong>do</strong> século XVIII. A disputa sistêmica que, no séculoanterior, se dava entre os Habsburgo austro-espanhóis hegemônicose a França contra-hegemônica tinha cedi<strong>do</strong>lugar a uma frágil estabilidade na qual a Inglaterra exercia afunção de contrabalançar a crescente hegemonia da Françapós-rei Sol. O rei espanhol era um Bourbon, sob influênciade Paris (em 1761, seria assina<strong>do</strong> o Pacto de Família, queuniria formalmente os Bourbon de toda a Europa: França,Parma, Espanha e Nápoles), e Portugal estava há mais deum século vincula<strong>do</strong> politicamente à Coroa britânica. Como trata<strong>do</strong> de Methuen ao vínculo político somou-se o econômico.A Península Ibérica era um tabuleiro privilegia<strong>do</strong>,ainda que periférico, da balança de poder europeia, emque as grandes potências – Inglaterra e França – podiamtestar seu poder. Já haviam feito isso, décadas antes, naGuerra de Sucessão espanhola, encerrada com o Trata<strong>do</strong>de Utrecht em 1713. Mal comparan<strong>do</strong>, os ibéricos eram,para a disputa franco-britânica <strong>do</strong> século XVIII, o que a


41O Perío<strong>do</strong> ColonialAlemanha foi para a Guerra Fria. Se, para Espanha, estarsubordinada à França favorecia percepção geral de decadência<strong>do</strong> país (a Espanha tinha si<strong>do</strong> “a” grande potência<strong>do</strong>s séculos anteriores), para Portugal, ao contrário, a vinculaçãoà Inglaterra era a uma tábua de salvação de suaautonomia. Monarca de um país diminuto, de importâncialimitada na geopolítica continental, D. João V precisava <strong>do</strong>singleses, que eram a garantia de independência <strong>do</strong>s Bragança.Eram também, o que não é trivial, um escu<strong>do</strong> navalpara a manutenção da soberania colonial.Já não havia grandes disputas entre portugueses eingleses na América (voltariam a existir com os brasileiros,na fronteira com a Guiana Inglesa no século XIX), e o apogeuda mineração havia torna<strong>do</strong> abasta<strong>do</strong> D. João V. El Reyera ti<strong>do</strong> por monarca mais rico <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> dada a ostentaçãosem precedentes de seu reina<strong>do</strong>. No <strong>Brasil</strong>, “as” MinasGerais eram o tesouro que valia a pena defender. A aliançacom a Inglaterra, ainda que trouxesse ou talvez justamentepor trazer prejuízos comerciais a Portugal, servia a esse fim.A aliança com os britânicos contra a França na Guerrade Sucessão espanhola já demonstrara valer resulta<strong>do</strong>s internacionaisfavoráveis a Lisboa. Na negociação <strong>do</strong> primeiroUtrecht (1713), o rei francês havia acata<strong>do</strong> o Oiapoquecomo fronteira provisória das duas coroas na Amazônia.Tal desfecho certamente não se teria logra<strong>do</strong> se Álbionnão estivesse ao la<strong>do</strong> de Portugal. É de se supor óbvio paraos estadistas da época – e não apenas para Gusmão, queservira anos em Paris – que o crescen<strong>do</strong> de tensões entreInglaterra e França redundaria em nova guerra sistêmica.Isso prenunciava os conflitos anglo-franceses, ocorri<strong>do</strong>s nadécada de 1840 duas vezes: diretamente no subcontinenteindiano e indiretamente na Guerra de Sucessão austríaca.A sombra dessa guerra, que eclodiria definitivamenteem 1756 – a Guerra <strong>do</strong>s Sete Anos – pairou sobre toda anegociação <strong>do</strong> Trata<strong>do</strong> de Madri.Estava claro que haveria divisão na Península Ibérica,como de fato houve: Portugal, <strong>do</strong> la<strong>do</strong> inglês, e Espanhaao la<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Bourbon franceses. Urgia, portanto, resolver,e logo, as indefinidas e fluidas fronteiras americanas, antesque pudessem ser envolvidas no conflito generaliza<strong>do</strong> quese avizinhava. Isso era <strong>do</strong> interesse de ambos os países, e ofamoso artigo 21 <strong>do</strong> trata<strong>do</strong> de Madri, que consolidaria juridicamenteo isolamento colonial <strong>do</strong>s potenciais conflitosibéricos, foi sugestão de José Carvajal y Lancaster, o negocia<strong>do</strong>respanhol.Não queria a Espanha um novo Utrecht. Naquelaocasião, foi Madri que pagou a conta <strong>do</strong> compromisso postbellumanglo-francês de 1713. A França aceitara encerrar aguerra e manter o trono espanhol para os Bourbon, coma anuência britânica, mas ao preço da cessão de Gibraltar,além de significativos privilégios de carga para os inglesesem navios espanhóis. Ficava claro que o suborno inglês poderianovamente ser quita<strong>do</strong> em pesetas. A Gusmão nãodevia ser difícil supor igualmente que, em eventual derrota


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>42inglesa, o pourboire parisiense – que poderia evitar maioresperdas para Londres – poderia ser a Amazônia, celebradaem vinho <strong>do</strong> Porto. Ajuda a corroborar esse temor generaliza<strong>do</strong>lembrarmos que as negociações foram entabuladassecretamente pelas partes ibéricas ao longo de quase quatroanos.Não é demais recordar ainda que, além da urgênciaexterna, o negocia<strong>do</strong>r espanhol tinha uma urgência interna.O bom negocia<strong>do</strong>r sabe que, para melhor resulta<strong>do</strong> danegociação, o ideal é que as urgências estejam <strong>do</strong> outrola<strong>do</strong>, e nisso Portugal levava dupla vantagem.No campo sistêmico, como vimos, a aliança bourbônicaera de ordem dinástico-familiar, muito mais ideológicaque o pragmático elo que unia Lisboa aos ingleses eque se manterá familiar para os brasileiros que estudam atransmigração. Tratava de trocar vantagens comerciais porproteção, o que se verifica novamente avançan<strong>do</strong>-se poucosanos. Com o início da Guerra <strong>do</strong>s Sete Anos (1756-63),a Espanha entra imediatamente no la<strong>do</strong> francês, junto coma Áustria e a Suécia, contra a Prússia. Os portugueses só seenvolvem na briga muito tempo depois.No campo interno, no entanto, a pressão era aindamaior. A rainha da Espanha era portuguesa de nascimentoe, conforme nos conta o embaixa<strong>do</strong>r Goes Filho, a historiografiahispano-americana a acusa com frequência de trai<strong>do</strong>ra.A influência da rainha sobre Fernan<strong>do</strong> VI era imensa;quan<strong>do</strong> ela morreu, em 1758, o rei parou de se vestir, defazer a barba e de tomar banho, vagan<strong>do</strong> imun<strong>do</strong> pelasmadrugadas até sua própria morte um ano depois.Em suma, Portugal era mais rico e próspero, e seurei, apesar de soberano de um país pequeno, nadava emouro e tinha o apoio da maior potência naval <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.Era necessário resolver rapidamente a questão das fronteirasamericanas, antes que estourasse outra guerra generalizadaentre as duas maiores potências. Na última vez emque isso ocorreu, o palco foi a Espanha, e o desfecho, péssimopara Madri, que cedera muito aos ingleses. Some-sea isso uma rainha portuguesa que era, nas circunstâncias,o avesso <strong>do</strong> que foi Carlota Joaquina (rainha espanhola dePortugal) meio século depois. A tarefa de Carvajal não eradas mais simples.Afora o contexto internacional, o argumento <strong>do</strong> utipossidetis acabou por ser aceito pelos espanhóis por trêsmotivos principais. O primeiro é que, no Pacífico, a Espanhaalegava que sua ocupação se dava fora da zona definidacomo portuguesa por Tordesilhas (Filipinas), o que não eraverdade. Para os espanhóis, Portugal devia abrir mão dequalquer pleito asiático que obrigasse a Espanha a devolverterritórios. O segun<strong>do</strong> motivo é o Mapa das Cortes. Evidentementefavorável a Portugal, o mapa encomenda<strong>do</strong>por Gusmão minimizava bastante o alcance da ocupaçãoportuguesa além Tordesilhas. O mapa foi feito segun<strong>do</strong> omáximo de conhecimento cartográfico que se tinha naépoca, que, como sabemos, ignorava largamente o cálculo


43O Perío<strong>do</strong> Colonialcorreto das longitudes. O embaixa<strong>do</strong>r Goes Filho defendeGusmão alegan<strong>do</strong> que os espanhóis também falsificavamcartas para benefício próprio. O fato é que o Mapa das Cortesfacilitou enormemente a negociação e foi aceito pelos<strong>do</strong>is países como base de negociação legítima. O terceiromotivo foi a concordância de Gusmão, pela primeira vezna história de Portugal, em aceitar como espanholas asduas margens <strong>do</strong> Prata, ceden<strong>do</strong> assim a Colônia <strong>do</strong> SantíssimoSacramento, da qual trataremos em detalhes embreve. Receberia em troca os Sete Povos das Missões, zonade ocupação jesuítica havia décadas e que precisaria serevacuada.Para o candidato ao Concurso de Admissão à Carreirade Diplomata (CACD), fica claro que pesam muito poucoas vicissitudes locais da Colônia. A definição <strong>do</strong> Trata<strong>do</strong> deMadri obedece aos ditames da política interna das metrópolese, mais ainda, ao contexto internacional no qual elasse inseriam. Muitas vezes, ignorava-se o que se passavana Colônia e também o equilíbrio de forças na América,o que, em muitos casos, como no de Madri, inviabilizariaa implementação posterior <strong>do</strong>s acor<strong>do</strong>s e/ou sua demarcação.Isso será a regra para a definição de quase to<strong>do</strong>s ostrata<strong>do</strong>s de limites antes e depois de Madri. Perceberemosque ainda demoraria cerca de um século para que as consideraçõessistêmicas perdessem a primazia absoluta quetinham sobre a definição <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s que configuravamaquilo que viria a ser o <strong>Brasil</strong>.Pouco mais de uma década depois de assina<strong>do</strong>, oTrata<strong>do</strong> de Madri não era mais defendi<strong>do</strong> por ninguém eacusa<strong>do</strong> por muitos, até pelo Marquês de Pombal, novohomem forte da monarquia portuguesa sob o reina<strong>do</strong> deJosé I. Morreram seus negocia<strong>do</strong>res e os reis que o assinaram.A permuta de Sacramento pelos Sete Povos não seconcluiu. Nenhum <strong>do</strong>s la<strong>do</strong>s aban<strong>do</strong>nou o que consideravaainda seu e, no caso <strong>do</strong>s Sete Povos, isso redun<strong>do</strong>u emguerra sangrenta com os jesuítas arman<strong>do</strong> os índios, comofoi mostra<strong>do</strong> no filme A missão (1986), de Roland Joffé,com Robert De Niro e Jeremy Irons. Madri seria finalmenteanula<strong>do</strong> em 1761 pelo Trata<strong>do</strong> de El Par<strong>do</strong>, durante o perío<strong>do</strong>pombalino, já que Sebastião Carvalho e Melo jamaishavia concorda<strong>do</strong> com a cessão de Sacramento. Na região<strong>do</strong> Prata, o conflito se manteria até o século XIX.Na parte setentrional e central, no entanto, o trata<strong>do</strong>se manteve. As fronteiras amazônicas permanecempraticamente idênticas ao que se havia decidi<strong>do</strong> em 1750,mesmo por diplomas em geral mais favoráveis à Espanhano Sul, como o Trata<strong>do</strong> de Santo Ildefonso. Nos trata<strong>do</strong>s de1777 e 1801, as linhas traçadas por Gusmão parecem novamenteganhar força e sobrevida e só começam a tracejarintermitentes quan<strong>do</strong> banhadas pelo Prata, zona naturalmentemais litigiosa, por ser mais povoada. A obra de Gusmão,incompleta ou borrada pelas guerras <strong>do</strong> Sul, manteveo esboço original quase intacto no Norte. Duarte da PonteRibeiro e Rio Branco terminariam a pintura.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>441.7 O perío<strong>do</strong> minera<strong>do</strong>r e a época pombalinaA “negociação da descoberta”. Os anos iniciais das MinasGerais. A Guerra <strong>do</strong>s Emboabas. A crescentepresença da Coroa. As consequências <strong>do</strong> perío<strong>do</strong>minera<strong>do</strong>r para a América portuguesa. A época pombalinae suas consequências no curto e no longo prazos.O declínio da mineração.Foi em algum ponto das recém-descobertas MinasGerais que um paulista, bandeirante, futuro faisca<strong>do</strong>r, encontroupela primeira vez um baiano que descia atraí<strong>do</strong>pela “febre <strong>do</strong> ouro”. Isso ocorreu em algum momentono finalzinho <strong>do</strong> século XVII, logo após a “descoberta <strong>do</strong>ouro” pelos paulistas. Começava a se romper a lógica <strong>do</strong>sarquipélagos, onde as regiões coloniais, semiautônomas,tinham mais contato com Portugal <strong>do</strong> que entre si. O quese encontrava era o próprio <strong>Brasil</strong>.Há muita divergência na historiografia clássica sobreo bandeirantismo e a mineração, sobre quem e quan<strong>do</strong>encontrou o ouro, mas pesquisas recentes apontam queo mais provável é que a descoberta entre 1694-5 tenhasi<strong>do</strong> mais a “negociação da descoberta” <strong>do</strong> que a descobertapropriamente dita. É quase certo que os paulistas jásabiam fazia algum tempo que havia ouro na região que sechamava, na época, Sabarabuçu. É de se estranhar que, em<strong>do</strong>is ou três anos, de vários lugares e de regiões distintascomecem a surgir anúncios e mais anúncios de que o ourofoi descoberto quan<strong>do</strong>, pouco tempo antes, não havia senãosilêncio e esperança em Portugal.Destacam-se, nesse contexto, <strong>do</strong>is personagens:Fernão Dias e Borba Gato. O primeiro teria, em expediçãoencomendada pela Coroa, dilapida<strong>do</strong> boa parte desua grande fortuna com a busca constante e incessante<strong>do</strong> ouro, que rendia poucos frutos (esmeraldas que nãoeram verdadeiras, por exemplo) e que lhe valeu até umaconspiração para matá-lo, na qual participou um de seusfilhos (executa<strong>do</strong> pelo pai quan<strong>do</strong> descoberto). Foi FernãoDias quem descobriu a chave para abrir as portas <strong>do</strong> sertão<strong>do</strong>ura<strong>do</strong>: a agricultura! Meses antes de partir, man<strong>do</strong>ubate<strong>do</strong>res plantarem, ao longo <strong>do</strong> caminho, mandioca eoutros víveres, permitin<strong>do</strong> assim a sobrevivência da expedição,uma vez esta em curso. É justo que tenha vira<strong>do</strong>hoje nome de ro<strong>do</strong>via, e é irônico que, mesmo durante operío<strong>do</strong> minera<strong>do</strong>r, a atividade agrícola tenha da<strong>do</strong> muitomais lucro que a atividade minera<strong>do</strong>ra. Dada a abundância<strong>do</strong> metal o quadro inflacionário foi constante ainda quemais grave nos primórdios. Comprar no litoral para vendernos arraiais <strong>do</strong>ura<strong>do</strong>s era sempre um ótimo negócio. Umavez passada a época <strong>do</strong> ouro, Minas assume sua vocaçãoagrária, tornan<strong>do</strong>-se um <strong>do</strong>s principais celeiros <strong>do</strong> Impériono século XIX.Borba Gato era casa<strong>do</strong> com a filha de Fernão DiasPais e foi com ele para o Sertão. Assassinou um funcionário


45O Perío<strong>do</strong> Colonialda Coroa, emissário real e teve que viver no sertão, comofugitivo em meio aos nativos por vários anos. Conheciaprofundamente aqueles vales e serras, e se tornou a maioresperança da Coroa para a descoberta <strong>do</strong> ouro. Uma vezdescoberto o ouro, Borba Gato foi per<strong>do</strong>a<strong>do</strong> pelas autoridadesreais e cumula<strong>do</strong> de cargos e de vantagens. Morreurico, mas não sem antes se envolver na Guerra <strong>do</strong>sEmboabas. Em breve o encontro <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is Brasis, de nortea sul, deixaria de ser um tranquilo córrego para tornar-sepororoca.De certo mo<strong>do</strong>, ao prenunciar o afluxo de gente queinevitavelmente se seguiria à descoberta <strong>do</strong> ouro, os paulistasadiaram tanto quanto possível a anunciação da descoberta.Sen<strong>do</strong> inevitável – ouro escondi<strong>do</strong> de nada serve– o anúncio, este foi muito bem negocia<strong>do</strong> com a coroa.O perdão a Borba Gato, os cargos ofereci<strong>do</strong>s aos notáveisde São Vicente, as garantias da Coroa de que os sertanistaspermaneceriam no controle da região são alguns exemplosque dão conta da negociação em jogo. A Coroa nãotinha como ter acesso ao ouro sem os bandeirantes, e essecontrole priva<strong>do</strong> sobre as zonas minera<strong>do</strong>ras permaneceriana mão <strong>do</strong>s paulistas por mais de uma década. Nestadécada a Coroa arreca<strong>do</strong>u muito pouco, quase nada <strong>do</strong>quinto real que lhe era devi<strong>do</strong>.A fotografia <strong>do</strong>s anos iniciais da zona aurífera era tétrica.Sem a presença da Coroa e ante o caos e a desordemprovoca<strong>do</strong>s pelo afluxo constante de pessoas, os paulistastu<strong>do</strong> controlavam e em tu<strong>do</strong> mandavam. Grassava a criminalidadecomo consequência ou não da fome, inevitávelem face <strong>do</strong>s preços extorsivos <strong>do</strong>s víveres, no mínimo dezvezes mais altos que os preços cobra<strong>do</strong>s no litoral. Umagalinha, um saco de farinha de mandioca, uma vaca tornaram-sebens preciosos, que precisavam ser vigia<strong>do</strong>s eguarda<strong>do</strong>s por escolta armada para não serem toma<strong>do</strong>spor algum faminto mais forte ou mais ousa<strong>do</strong>. Havia monopóliosde fornecimento de carne, por exemplo, outorga<strong>do</strong>nos moldes mercantis aos paulistas, e houve, por duasvezes, epidemias generalizadas de fome, que durarammeses em decorrência da precariedade <strong>do</strong> abastecimento.Os homens, garimpeiros livres, senhores e escravos seamontoavam como animais em arraiais insalubres que setornariam o embrião da primeira civilização eminentementeurbanizada <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>.Duas causas estruturais explicam a crescente tensãona zona minera<strong>do</strong>ra entre os paulistas e os emboabas lidera<strong>do</strong>spor Manuel Nunes Viana. Uma delas é simplesmentedemográfica. Os estrangeiros, ou seja, os não paulistas– chama<strong>do</strong>s pejorativamente por estes, de emboabas 6 ,em pouco tempo, já eram em número muito maior que6 Nome de significa<strong>do</strong> controverso. Era provavelmente a alcunha indígena deum pássaro amarelo, de penugens escuras nas patas, talvez em referência aohábito inusita<strong>do</strong> <strong>do</strong>s recém-chega<strong>do</strong>s de usarem calça<strong>do</strong>s, incomum entreos paulistas.


47O Perío<strong>do</strong> ColonialO Estatuto das Minas, a regulamentação das datas (lotesde terras na zona minera<strong>do</strong>ra), o estabelecimento das casasde fundição, a separação da capitanias de Minas Geraise São Paulo, foram algumas das medidas tomadas pelaCoroa para maximizar sua presença na Colônia nos anosque se seguiram. Sobretu<strong>do</strong> a presença fiscal da coroaportuguesa.Ao contrário da Guerra <strong>do</strong>s Emboabas, quan<strong>do</strong> poucomais de dez anos depois eclodiu uma rebelião de faisca<strong>do</strong>reslidera<strong>do</strong>s por Filipe <strong>do</strong>s Santos em Vila Rica (1720),a autoridade real foi impie<strong>do</strong>sa e o Conde de Assumar fezexecutar Filipe <strong>do</strong>s Santos e esquartejá-lo para servir deexemplo. Acabara o tempo das conciliações e das concessões.A Coroa não dependia mais de paulistas e/ou deemboabas. Portugal assumia o controle direto da região enão faria senão aumentar o alcance <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> ao longodas décadas que se seguiriam.Os bandeirantes foram responsáveis depois da guerra,por desbravar novos veios auríferos, no segun<strong>do</strong> ciclominera<strong>do</strong>r, que, na década de 1710, surgiria no Mato Grossoe em Goiás. Por mais um século manteriam com estasregiões, a muito custo, o contato anual por perigosíssimasvias fluviais. Partiam de São Paulo para o interior remoto amilhares de quilômetros de distância em expedições, chamadasmonções. As monções foram responsáveis, em longoprazo, pela disseminação da pecuária pelo Centro-Oeste,pela sedentarização e pela transformação <strong>do</strong>s paulistasem mato-grossenses e em goianos, e, em última análise,pelo alargamento <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> com parte significativa de seuterritório a oeste, atesta<strong>do</strong> pelo Trata<strong>do</strong> de Madri em 1750.A descoberta <strong>do</strong> ouro em Minas Gerais – e tambémno sul da Bahia, em Goiás e no Mato Grosso – deu origema um processo acelera<strong>do</strong> de urbanização, que se espraioupelo Sudeste e fez surgir núcleos urbanos no caminho <strong>do</strong>ouro, aumentan<strong>do</strong> e muito a importância e a populaçãode outros núcleos preexistentes, como o Rio de Janeiro.Sorocaba se torna um centro importante de distribuiçãopecuária, necessário ao abastecimento da zona minera<strong>do</strong>ra.Além <strong>do</strong> ga<strong>do</strong>, que transporta a si mesmo, quan<strong>do</strong>vivo, uma série de outros bens e víveres dependiam <strong>do</strong>transporte feito por mulas, sem as quais não haveria MinasGerais, assim como sem as canoas <strong>do</strong>s bandeirantes monçoeirosnão existiria o Mato Grosso.Dentre as consequências <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> minera<strong>do</strong>rpara a América portuguesa, esta a ampla disseminação damão de obra africana e a crescente importância <strong>do</strong> tráficonegreiro, que se tornou um <strong>do</strong>s maiores negócios <strong>do</strong>perío<strong>do</strong>. Era controla<strong>do</strong> majoritariamente por grupos coloniais,o que questionava a rigidez <strong>do</strong> pacto colonial. Empouco tempo, o número de escravos e de mulatos na regiãode Minas Gerais já superava a Bahia. Ao final <strong>do</strong> perío<strong>do</strong>minera<strong>do</strong>r, constata-se ainda um imenso contingentede libertos, o maior <strong>do</strong> país, evidencian<strong>do</strong> que a prática damanumissão e da miscigenação fez nas Minas, em menos


49O Perío<strong>do</strong> Colonialem face à prosperidade britânica que vivia a prosperidadeda Revolução Industrial incipiente. Os ingleses estavam,aos poucos, transforman<strong>do</strong> os demais esta<strong>do</strong>s europeusem economias periféricas e o despotismo esclareci<strong>do</strong> era atentativa destes reinos de escapar disso.No caso português, a situação era ainda de maiordependência, política e econômica. A obra de Pombal seenquadra na tentativa de diminuir essa dependência estruturale cavar espaços de mais autonomia para Portugal.Tratava-se, sim, de uma contradição aparente: utilizar osméto<strong>do</strong>s ilustra<strong>do</strong>s para <strong>do</strong>tar de mais racionalidade e eficiênciaa estrutura <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> absolutista, fortalecen<strong>do</strong>-o.Os meios eram iluministas; os fins, mercantis.Na análise cuida<strong>do</strong>sa de Falcon, percebe-se que aretórica ilustrada <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> pombalino deixa entreverque se trata de coisa estrangeira. Admirada, aplicada, masdiferente <strong>do</strong> que seria o “português”, persiste um distanciamento.Sua aplicação deve ser mediada pela realidadeportuguesa, uma sociedade tradicional, isolada, mercantil.A avaliação desse autor é que o sucesso da obra pombalinareside mais nas medidas socioculturais 7 que nas medidas7 Falcon também ressalta que o maior sucesso da obra pombalina, questionadacom sua queda, mas não revogada, foi o direcionamento crescente para asecularização da sociedade, que minou seriamente as bases <strong>do</strong> poder <strong>do</strong>clero em geral e <strong>do</strong>s jesuítas em particular. Como o clero era parte essencialda sociedade portuguesa, ainda mais sob D. João V, que nada fazia sem areligião e tinha até amantes freiras, isso significou o questionamento e ade racionalização econômica. Do ponto de vista técnico,persiste a defasagem; <strong>do</strong> ponto de vista político, segue oabsolutismo. Os escravos <strong>do</strong> reino são liberta<strong>do</strong>s, mas permanecea lógica populacionista que impede a imigraçãoem massa para as colônias, manten<strong>do</strong> uma estrutura quemais prende os homens que os liberta. Do ponto de vistaeconômico, não conseguiu mais <strong>do</strong> que fortalecer umaburguesia já existente, sem ser capaz de criar um estamentoburguês ou industrial ou financeiro, muito menos de superara dependência da Inglaterra, como ficaria evidentenos episódios de 1807-10, ainda décadas adiante. Para aColônia, entretanto, a racionalização significou arrocho etraria consequências graves.Para reconstruir Lisboa <strong>do</strong> terremoto que a destruiuem 1755 – um <strong>do</strong>s maiores registra<strong>do</strong>s na história da humanidade– Pombal foi acumulan<strong>do</strong> poderes delega<strong>do</strong>slimitação da atuação clerical nos senti<strong>do</strong>s ideológico, jurídico, econômico epolítico. Novas escolas, reforma universitária, limitação <strong>do</strong> poder de censurae da inquisição, confisco de bens, limitação das rendas, questionamento aoultramontanismo, limitação da presença no governo, reforma nas indicações<strong>do</strong>utrinárias e no ensino <strong>do</strong> direito, tu<strong>do</strong> isso são elementos elenca<strong>do</strong>s porFalcon como medidas moderniza<strong>do</strong>ras <strong>do</strong> que se pressupunha uma visãoatrasada e obscura. A mudança no tratamento jurídico da<strong>do</strong> aos índios,aos cristãos-novos e aos negros é exemplarmente influenciada pelas ideiasilustradas, ainda que persistam o preconceito e as atitudes discriminatórias,não de to<strong>do</strong> contraditórias com o pensamento iluminista eiva<strong>do</strong> da ideia deprogresso e de meritocracia baseada na razão ocidental. Ver Falcon (1993,pp. 487-8).


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>50por um monarca crescentemente abúlico 8 . Às “subscriçõesvoluntárias” exigidas <strong>do</strong>s colonos nas Minas se somariauma série de leis e regulamentos cujo objetivo fiscalistaera óbvio; mais controle sobre a região minera<strong>do</strong>ra em gerale sobre o distrito diamantino em particular. Em 1740,tem início a fase de contratação (ou seja, entrega-se a umparticular, como em um arrendamento, a zona <strong>do</strong> diamante)que, durante o perío<strong>do</strong> pombalino, rendeu cerca de 1,5milhão de quilates, derruban<strong>do</strong> dramaticamente o preço<strong>do</strong> diamante na Europa.A expulsão <strong>do</strong>s jesuítas em 1759, cujo pretexto foi oenvolvimento de um inaciano na conspiração para assassinarD. José, descoberta a tempo e punida exemplarmentepor Pombal, obedeceu a um ditame mais amplo, que erao fortalecimento <strong>do</strong> absolutismo 9 . Para isso, era necessárioeliminar os rivais mais fortes da casa real: os nobres maispoderosos e a Companhia de Jesus, riquíssima tanto noreino quanto na Colônia. A devassa que se seguiu à descobertada conspiração aniquilou famílias aristocráticas8 D. José se torna claustrofóbico após o terremoto – <strong>do</strong> qual escapou porpouco – e passaria a <strong>do</strong>rmir em tendas.9 Outros autores enfatizam que o motivo teria si<strong>do</strong> a oposição da Companhiade Jesus ao Trata<strong>do</strong> de Madri, evidenciada pelas Guerras Guaraníticas, masessa posição é controversa, da<strong>do</strong> que o próprio marquês não era exatamenteum fã <strong>do</strong> trabalho de Gusmão, seu antecessor, e o revogou em tratativascom a Coroa espanhola em 1761, pouco mais de um ano depois de efetivara expulsão <strong>do</strong>s jesuítas <strong>do</strong> território colonial.seculares e garantiu, com a expulsão <strong>do</strong>s padres jesuítas(prática, aliás, seguida generalizadamente por diversosmonarcas católicos depois disso), a retomada – de eficáciadiscutível, é verdade – <strong>do</strong> controle por parte <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> deáreas até então sob o <strong>do</strong>mínio exclusivo da companhia, sobretu<strong>do</strong>na Amazônia das drogas <strong>do</strong> sertão.O setor educacional sofre, assim, uma reviravolta. Se,na metrópole, a reforma universitária coimbrã de 1772 e acriação <strong>do</strong> colégio <strong>do</strong>s padres onze anos antes são os grandesmarcos da secularização e da modernização <strong>do</strong> ensino,na Colônia a criação <strong>do</strong> cargo de mestres particulares,com subsídios <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e autoridade para criar turmas,diminuiu o alcance <strong>do</strong> sistema, elitizan<strong>do</strong> ainda mais o ensinono <strong>Brasil</strong>, mas melhorou sensivelmente a qualidadeao criar padrões de avaliação e concessão dessas licenças.Permanecia a Colônia sem o direito de ter universidadescomo aquelas existentes na América espanhola. Os alunosbrasileiros que quisessem seguir os estu<strong>do</strong>s em uma universidadeprecisavam ir para Coimbra, como fez José Joaquimde Azere<strong>do</strong> Coutinho. Já muito mais velho <strong>do</strong> que oque era normal então (e ainda hoje), parte para a Coimbrarecém-reformada em 1775, com 32 anos, após aban<strong>do</strong>naros negócios da família. Teria impacto significativo no breveperío<strong>do</strong> em que foi bispo e governa<strong>do</strong>r de Pernambuco.O impacto das reformas educacionais e, por meiodelas, o alcance das ideias pombalinas são muito maislongínquos <strong>do</strong> que se poderia supor à primeira vista.


51O Perío<strong>do</strong> ColonialO filósofo Antônio Paim entende o momento pombalinocomo transcenden<strong>do</strong> ao perío<strong>do</strong> pombalino stricto sensu echegan<strong>do</strong> até a criação, pelo príncipe D. João, da AcademiaMilitar em 1810-11, depois chamada de Escola Politécnica.Para Paim, é perceptível a influência <strong>do</strong> modelo pombalinode Esta<strong>do</strong> nas concepções de Rodrigo de Sousa Coutinho,segui<strong>do</strong>r e protegi<strong>do</strong> de Pombal, conselheiro e ministrode D. João (1755-1811), e de José Maria da Silva Paranhos(1816-80), o mais dura<strong>do</strong>uro presidente de conselho <strong>do</strong>Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong> 10 .José Murilo de Carvalho argumenta que o pombalismoe suas concepções arraigadas ao modelo de gestão <strong>do</strong>Esta<strong>do</strong> dissemina<strong>do</strong> pelo ensino de direito tiveram impactomuito mais grandioso. A geração coimbrã que participouda Independência <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, <strong>do</strong> Primeiro Reina<strong>do</strong> e <strong>do</strong> perío<strong>do</strong>regencial tinha em comum uma homogeneidade depensamento, ilustrada, porém estatista, lega<strong>do</strong> inequívoco<strong>do</strong> pombalismo. Para Carvalho, a própria unidade territoriale a resiliência sui generis <strong>do</strong> regime monárquico na Américaportuguesa se devem à transmigração institucional <strong>do</strong>espírito pombalino – iluminista, mas não revolucionário –10 A concepção taxonômica, quase evolucionista de Paim, bem ao estilo dasobras estruturalistas comuns à época em que esse texto foi escrito, crê aindaem um segun<strong>do</strong> ciclo, positivista, <strong>do</strong> pensamento cientificista herdeiro <strong>do</strong>pombalismo no <strong>Brasil</strong> e em um terceiro ciclo, marxista, que, segun<strong>do</strong> ele,ainda não se havia esgota<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> escrevia, em fevereiro de 1981. Aindaque datada, é uma análise interessante. Ver Paim (1982, pp. 11-15).para as faculdades de direito de São Paulo e Olinda (depoistransferida para Recife), organizadas de acor<strong>do</strong> com o modelode Coimbra e que perpetuaram no <strong>Brasil</strong> uma homogeneidadede concepções e de categorias de pensamentoem um setor específico da elite nacional, os bacharéis emdireito, magistra<strong>do</strong>s. Esse grupo conseguiu impor sua visãode Esta<strong>do</strong> aos demais grupos da elite que não tinham essahomogeneidade, como os padres e os militares.O significa<strong>do</strong> mais amplo <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> pombalinopara a América portuguesa foi o esgarçamento das tensõesentre a metrópole e aquela parte <strong>do</strong> Império que superavade longe tanto econômica quanto demograficamente ametrópole. Os estímulos sociais, políticos e ideológicos dailustração pombalina confluíram concomitantemente como arrocho e o arbítrio da mão pesada <strong>do</strong> fisco portuguêspara acelerar o declínio <strong>do</strong> antigo sistema colonial na América.Não havia grandes obstáculos contra os brasileiros noscargos públicos da administração colonial, como no caso<strong>do</strong>s criollos da América espanhola, ainda que a imigraçãometropolitana em larga escala, que Pombal tentou conter,tenha minimiza<strong>do</strong> um pouco o controle crescentementebrasileiro <strong>do</strong>s cargos administrativos.A criação de companhias comerciais de caráterexplora<strong>do</strong>r, a reforma <strong>do</strong>s sistemas judiciário e financeiro(o real erário ficava sob o coman<strong>do</strong> direto de Pombal), amudança no sistema fiscal das minas, retornan<strong>do</strong> o quinto,agora com a finta de cem arrobas de ouro por ano, que


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>52abria espaço para a decretação da odiosa derrama (cobrançageneralizada <strong>do</strong>s atrasa<strong>do</strong>s da população em geral), sãoexemplos de medidas que levariam, em médio prazo, asedições. Em longo prazo, essas medidas levariam ao reconhecimentoda Coroa portuguesa da impossibilidade demanutenção <strong>do</strong> regime de controle mercantil, ainda quemotivadas pelo quadro das relações internacionais europeiasna primeira década <strong>do</strong> século XIX.Às vezes, eram as medidas ilustradas, como a libertação<strong>do</strong>s índios no Pará, que provocavam a insatisfação<strong>do</strong>s colonos 11 ; em outras, a má administração, sobretu<strong>do</strong>das zonas relegadas após a expulsão <strong>do</strong>s jesuítas que assistiramao declínio econômico, como no caso da ilha deMarajó. Embora o perío<strong>do</strong> minera<strong>do</strong>r tenha contribuí<strong>do</strong>para iniciar o processo de união <strong>do</strong> arquipélago econômico,essas unidades semi-independentes <strong>do</strong> ponto de vistaeconômico ainda tinham muito pouco contato entre si, ea reforma administrativa pombalina seria o primeiro passopara aquilo que viria a ser a interiorização da metrópoleno início <strong>do</strong> século seguinte. A criação de um vice-reinoem 1861 e a mudança da capital para o Rio de Janeiroem 1863 evidenciavam, além <strong>do</strong>s problemas econômicos(maior controle das minas, obsessão pombalina) egeopolíticos (maior proximidade <strong>do</strong>s conflitos platinos), oreconhecimento de uma região mais dinâmica, o Sudeste,que estava ultrapassan<strong>do</strong> a riqueza <strong>do</strong> açúcar nordestino.Já a mineração entrava em seu perío<strong>do</strong> de declínio maispronuncia<strong>do</strong>.O Barão de Von Eschwege – contrata<strong>do</strong> <strong>do</strong> prínciperegente na geração seguinte para recuperar a mineração– diagnosticaria que era a falta de investimentos e depaciência para extrair de mo<strong>do</strong> constante e eficaz o ouro<strong>do</strong> fun<strong>do</strong> da terra, a causa para a percepção declínio <strong>do</strong>ouro. Esgotara-se não o ouro, mas o ouro de aluvião e amineração nele baseada. Esses estímulos capitalistas parainversões em longo prazo eram inviabiliza<strong>do</strong>s pelo mercantilismopredatório, intensifica<strong>do</strong> pelo governo pombalinotanto mais quanto ficava claro o declínio da produção.A queda na arrecadação era atribuída por Lisboa exclusivamenteao contraban<strong>do</strong>. A resposta era a repressão.A profissão de ourives foi simplesmente abolida no <strong>Brasil</strong>em 1766 e radicalizada no perío<strong>do</strong> de D. Maria, que proibiumanufaturas em geral em 1785, com seu fatídico alvará, intensifican<strong>do</strong>a política de repressão pombalina.Tais achaques, em plena época das luzes, não ficariamsem consequências.11 Chegaram a conspirar em entregar a capitania aos franceses para garantir amanutenção da escravidão.


53O Perío<strong>do</strong> Colonial1.8 Levantes coloniais: insatisfação, separatismo eapropriações contemporâneasOs movimentos nativistas: nomenclatura e historiografia.Aclamação de Ama<strong>do</strong>r Bueno (1640). Quilombo <strong>do</strong>sPalmares (1654). Revolta de Beckman (1684). Guerra<strong>do</strong>s Emboabas (1708-9). Guerra <strong>do</strong>s Mascates (1710).Revolta de Vila Rica (1720). Inconfidência Mineira (1789).Conjuração <strong>do</strong> Rio de Janeiro (1794). Conjuração Baiana(1798). Conspiração <strong>do</strong>s Suassunas (1801), o bispo Azere<strong>do</strong>Coutinho e o Seminário de Olinda.O termo movimentos nativistas, cria<strong>do</strong> na historiografia<strong>do</strong> século XIX e perpetua<strong>do</strong> nos livros didáticos 12 ,é controverso. Já atribui de pronto um sentimento quedificilmente pode ser verifica<strong>do</strong> nesses levantes: um protonacionalismobrasileiro. Como crítica a essa tradição seconvencionou usar o termo movimentos antifiscalistas,que também não é ideal, por não dar conta de levantes emque a questão tributária não estava no cerne <strong>do</strong> conflito,como no caso da Guerra <strong>do</strong>s Emboabas ou da Aclamaçãode Ama<strong>do</strong>r Bueno. Usemos termo mais neutro: levantescoloniais. Ele vale tanto para os movimentos pré-iluministas,sem nenhuma pretensão separatista (exceto no caso<strong>do</strong>s paulistas em 1640, quan<strong>do</strong> por pouco não se chegoua tal desfecho), quanto para as sedições pós-pombalinas,nas quais, conforme alega grande parte da historiografia,se queria a ruptura completa, ainda que regional, com ametrópole 13 . O fim <strong>do</strong> exclusivo tinha, nesses casos de fins<strong>do</strong> século XVIII e início <strong>do</strong> XIX, exemplos concretos a seguir:na América <strong>do</strong> Norte, a Independência das Treze Colôniasem 1776); na América Central, o levante haitiano e a própriaRevolução Francesa que o havia motiva<strong>do</strong>.A razão da resiliência historiográfica <strong>do</strong> nativismo éfácil de ser verificada desde os clássicos Varnhagen e Capistranode Abreu. Trata-se de buscar, no passa<strong>do</strong> colonial,antecedentes libertários que inventassem uma tradiçãonacionalista avant la lettre, importante no momento deconstrução <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> nacional no Império, mas não sóno Império. Também nos primórdios da República o novoregime republicano, necessitadíssimo de legitimidade, iriabuscá-la na Inconfidência Mineira e em Tiradentes, que teriamprenuncia<strong>do</strong> a República cem anos antes. Tiradentes12 O termo não é privilégio <strong>do</strong>s livros didáticos. Também pode ser encontra<strong>do</strong>em clássicos, como em muitos artigos de <strong>História</strong> geral da civilização brasileira,coleção seminal organizada por Sérgio Buarque de Holanda (perío<strong>do</strong>scolonial e imperial).13 Em O manto de Penélope: história, mito e memória da Inconfidência Mineirade 1788-9, por exemplo, João Pinto Furta<strong>do</strong> (2002) alega que não se tratavade um projeto nacional de independência <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> e que a apropriaçãorevolucionária é construção de uma memória posterior, não presentena época.


55O Perío<strong>do</strong> Colonialum <strong>Brasil</strong> espanhol com sede em São Paulo no século XVIIou talvez uma grande Argentina ou um grande Paraguai,que faria fronteira com o Rio de Janeiro e faria de Resendeuma nova Colônia <strong>do</strong> Sacramento. Eis aí muito espaço paraficção científica.Quilombo <strong>do</strong>s Palmares (1654)Durante to<strong>do</strong> o perío<strong>do</strong> colonial, existiram escravosdispostos a fugir. Os mais de quinze anos de conflitosdurante o reina<strong>do</strong> de D. João IV e a montagem de umaadministração colonial que enfraqueceu o poder da Coroaconstituíram os fatores que facilitaram a fuga de cativos noNordeste brasileiro para a criação <strong>do</strong> Quilombo <strong>do</strong>s Palmares.Da faixa de 120 quilômetros de palmeiras localizada, demo<strong>do</strong> paralelo à costa, entre o rio São Francisco e o Cabode Santo Agostinho, partiam os quilombolas para assaltosàs zonas vizinhas. Dispunham coiteiros entre os brancos,que ganhavam com transações de proteção, e eram organiza<strong>do</strong>se numerosos, ao passo que o governa<strong>do</strong>r dePernambuco já não contava com contingente suficientepara pôr fim ao quilombo. Lavrou, então, contrato com DomingosJorge Velho, pelo qual o bandeirante se obrigava adestruir os quilombos e a enviar as presas para serem vendidasno Rio de Janeiro ou em Buenos Aires e, em troca, receberiamunições, escravos, sesmarias, hábitos das ordensmilitares e anistia aos crimes que tivesse cometi<strong>do</strong>. Antesque terminassem as operações, nas quais Domingos Jorgeperdera muitos homens, já se havia ordena<strong>do</strong> para que adireção da guerra fosse transmitida a outro paulista: MatiasCar<strong>do</strong>so, cuja campanha também foi difícil.Apenas em 1694, com o reforço de tropas auxiliares,comandadas pelo capitão-mor de Igaraçu, e decompanhias de infantaria pagas foi possível dar início aobloqueio à ação de Zumbi, cujo Exército havia construí<strong>do</strong>uma cerca tripla no alto da Serra da Barriga, com flancos,redutos, guaritas, fossas e estrepes, e contava com armasde fogo e flechas. A luta intensa culminou com a fugaem massa <strong>do</strong>s quilombolas, mortes, degolas e cerca de500 prisões em uma só noite. Zumbi, contu<strong>do</strong>, escaparanaquela noite de 6 de fevereiro de 1694 e só foi captura<strong>do</strong>cerca de um ano depois, ao ser traí<strong>do</strong> por um <strong>do</strong>sseus. Muitos milhares de quilombolas ficaram dispersospelos palmeirais, mas o reduto principal foi destruí<strong>do</strong> ea cabeça de Zumbi, exposta em praça pública. As tropaspaulistas também permaneceram na região, fundaramarraiais e aldeias, e passaram a ser tão temidas quanto osquilombolas que combateram.A história <strong>do</strong> maior quilombo <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> também setornou disputada, sobretu<strong>do</strong> pelo movimento negro, quevê, ainda hoje, em Zumbi, um precursor na luta pela liberdadee pela igualdade <strong>do</strong>s negros, o que é muito controverso.Como líder africano, Zumbi, como seu antecessorGanga Zumba, não questionava a escravidão, mas sim seu


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>56lugar nela. É quase certo que existiam escravos em Palmares,ainda que não fosse um regime econômico escravista.O questiona<strong>do</strong> feria<strong>do</strong> de Zumbi e sua cabeça empaladaem bronze no canteiro central da Avenida Presidente Vargasno Rio de Janeiro, que foi foco de conflitos de memóriacontemporâneos em 1988, evidenciam que a memória <strong>do</strong>passa<strong>do</strong> colonial adquire ainda hoje os contornos políticosque se prestam às circunstâncias, em apropriação nemsempre fiel ao que dizem os historia<strong>do</strong>res.Revolta de Beckman (1684)A Revolta <strong>do</strong>s Irmãos Beckman, ou de Bequimão,ocorreu no então Esta<strong>do</strong> de Maranhão, empobreci<strong>do</strong> apósa imposição de estanco em 1676. Em 1682, fora lavra<strong>do</strong>contrato para introdução de mão de obra escrava no Esta<strong>do</strong>,até então incipiente em face das dificuldades de escravizaçãode indígenas, decorrentes da vantagem numéricae <strong>do</strong> conhecimento sobre o território que tinha o gentioem relação aos colonos, além da resistência jesuítica. A administração<strong>do</strong> tráfico de escravos africanos foi, no entanto,corrupta desde os primeiros tempos e o suprimento denegros e a aquisição da produção local de cacau, cravo etabaco não eram realiza<strong>do</strong>s conforme as regras <strong>do</strong> comérciomonopolístico, de inviável fiscalização nas zonas periféricas.O resulta<strong>do</strong> foi que, sem poder contar nem como braço indígena nem com o africano e sem condiçõesfinanceiras para progredir na lavoura de açúcar, cacau outabaco, a insatisfação maranhense aumentou.Aproveitan<strong>do</strong> a viagem <strong>do</strong> capitão-general a Belémpara tentar solucionar a situação, um grupo de colonoslidera<strong>do</strong>s por Manuel Beckman e Manuel Serrão de Castroaprisionou o sargento-mor Baltasar Fernandes (quese encontrava na qualidade de capitão-mor), ocupouos armazéns da Companhia de Comércio de escravos eprendeu jesuítas por combaterem a escravização indígena.Em assembleia, decretaram a abolição <strong>do</strong> estanco, oencerramento das atividades da companhia, a deposição<strong>do</strong> capitão-mor e a expulsão <strong>do</strong>s inacianos. O governo foicomposto de uma junta, da qual participavam o irmão deManuel Beckman, Tomás, proprietários rurais e, portanto,representantes da nobreza local.Para pôr fim à revolta, Lisboa enviou Gomes Freire aoMaranhão como novo capitão-general. Ao chegar à Colôniaquase um ano após o início da revolta, Freire não enfrentoureação, uma vez que o movimento já se encontrava enfraqueci<strong>do</strong>por dissidências. Aboliu, porém, definitivamente oestanco, como, aliás, é comum na história nacional. Reprime-seo revoltoso, mas acedem-se às suas demandas. ManuelBeckman e Jorge Sampaio, aponta<strong>do</strong>s como líderes darevolta, foram condena<strong>do</strong>s à morte, e os demais à prisão ouao degre<strong>do</strong>. Os menos atuantes foram per<strong>do</strong>a<strong>do</strong>s. Os jesuítasforam restituí<strong>do</strong>s e regressaram sem a possibilidade derevanche contra os que os haviam expulsa<strong>do</strong>.


57O Perío<strong>do</strong> ColonialGuerra <strong>do</strong>s Emboabas (1708-1709)Data de abril de 1700 a primeira manifestação paulistade pedi<strong>do</strong> de exclusividade sobre as terras mineiras descobertaspelas bandeiras. O pedi<strong>do</strong> da Câmara de São Paulo à Coroapara que <strong>do</strong>asse as terras das Minas somente a mora<strong>do</strong>res deSão Paulo era, no entanto, impossível de ser atendi<strong>do</strong>. O aumento<strong>do</strong> fluxo migratório não só de Portugal em direção àColônia mas também de outras regiões em direção às Geraisaumentava progressivamente a irritação <strong>do</strong>s paulistas contraos emboabas intrusos no território de sua conquista. Essa insatisfaçãoestá na base da transformação <strong>do</strong>s pequenos episódiospoliciais na guerra civil eclodida em 1708.O chefe da luta <strong>do</strong>s emboabas contra as exigênciase a violência <strong>do</strong>s paulistas, Manuel Nunes Viana, praticavaatividade – era provavelmente contrabandista – de negociaçãode ga<strong>do</strong> baiano e de escravos <strong>do</strong> Nordeste, desnecessáriosaos engenhos em decorrência da diminuição daprodução de açúcar. Viana foi proclama<strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r detodas as Minas após os incidentes e assim permaneceuaté que Lisboa nomeasse, em junho de 1709, substitutoao governa<strong>do</strong>r Fernan<strong>do</strong> de Lancastre 14 . Nas Minas, BorbaGato era teoricamente a autoridade máxima. Por ser14 Este que estava no Rio de Janeiro e ao chegar às Minas tomou o parti<strong>do</strong>paulista e nada conseguiu <strong>do</strong>s emboabas. Acabou fugin<strong>do</strong>.paulista, porém, estava demasiadamente envolvi<strong>do</strong> naquerela. Tentou expulsar Nunes Viana mas não foi capaze desistiu.O novo governa<strong>do</strong>r foi envia<strong>do</strong> <strong>do</strong> reino à Colôniacom instruções especiais de pacificar o território mineiro.Tratava-se de Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho,que não enfrentou resistência por parte de Viana. Estese retirou para suas fazendas no São Francisco. Os paulistasnão aceitaram, contu<strong>do</strong>, o desfecho que não punia Vianae consolidava o status quo que lhes era desfavorável. Aindaem 1709 houve tentativa de resistência paulista, mas apresença <strong>do</strong> novo governa<strong>do</strong>r com tropas leais ao rei apazigouo território.As consequências imediatas da intervenção de Albuquerqueforam a criação das capitanias de São Paulo eMinas, a elevação da vila de São Paulo à categoria de cidadee a criação das vilas de Mariana, Ouro Preto e Sabará.A Guerra <strong>do</strong>s Emboabas encerrou-se com o indulto geralde novembro de 1709, a restituição das lavras aos paulistasem 1711 e a instalação das primeiras municipalidades mineiras.Na prática, acabou o perío<strong>do</strong> anárquico pré-estatalde Minas Gerais. A Coroa chegara para ficar e estabeleceuseu man<strong>do</strong> de mo<strong>do</strong> completo.As consequências de mais longo prazo se relacionamcom a procura, pelos paulistas, de novas fronteirasde expansão após os reveses sofri<strong>do</strong>s durante a guerra.Novas reservas foram descobertas em Cuiabá e em Goiás,


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>58favorecen<strong>do</strong> a ocupação portuguesa dessas regiões e, emúltima análise, contribuin<strong>do</strong> para que Portugal tivesse aposse definitiva desses territórios quan<strong>do</strong> da delimitaçãode fronteiras entre a América portuguesa e a América espanholaem 1750.Guerra <strong>do</strong>s Mascates (1710)O perío<strong>do</strong> da <strong>do</strong>minação holandesa significou fasede decadência para a cidade de Olinda em face da preferênciada administração de Nassau pela promoção <strong>do</strong>desenvolvimento <strong>do</strong> Recife. O fim da ocupação não modificaraa tendência de crescimento <strong>do</strong> Recife, que culminoucom sua ascensão à categoria de vila, com Câmara independenteda de Olinda, autorizada pela Coroa em 1709,para irritação da população olindense. A escalada de violênciacomandada pelos verea<strong>do</strong>res e pelo bispo de Olindaculminou com a fuga <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Recife em direçãoà Bahia, a destruição <strong>do</strong> pelourinho recém-construí<strong>do</strong> noRecife e a marcha <strong>do</strong>s revoltosos de Olinda sobre a novavila. A vitória de novembro de 1709 criava, para os rebeldesde Olinda, o problema relativo à constituição de novogoverno. Indecisos entre a entrega <strong>do</strong> poder ao bispo e aconstituição de uma República que desligasse Pernambucoda sujeição a Lisboa, prevaleceu a escolha conserva<strong>do</strong>ra<strong>do</strong> governo <strong>do</strong> religioso. Esse recuo conserva<strong>do</strong>r anteas consequências que uma radicalização separatista ourepublicana poderia trazer também é uma constante nahistória nacional. Já vimos decisão semelhante na Aclamaçãode Ama<strong>do</strong>r Bueno e veremos muitas outras, durante oavanço liberal das regências, por exemplo.Os comerciantes <strong>do</strong> Recife (mascates) planejaram avingança com o apoio <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r-geral de Salva<strong>do</strong>r e<strong>do</strong> capitão-mor da Paraíba, João da Maia Gama. Aprisiona<strong>do</strong>,o bispo governa<strong>do</strong>r dirigiu uma circular às autoridades<strong>do</strong> interior para que acatassem a restauração <strong>do</strong> governolegítimo. Apesar da resistência de Olinda e das diversasbatalhas que se seguiram, o encerramento da revolta foifavorável ao Recife, uma vez que o novo governa<strong>do</strong>r, envia<strong>do</strong>de Lisboa para administrar a capitania, não demoroua revelar-se partidário da causa <strong>do</strong>s mascates.A violência foi apenas suspensa. Em abril de 1714,decreto <strong>do</strong> novo governa<strong>do</strong>r tinha por objetivo restabelecera paz e a prosperidade na capitania. O pronunciamentoresultou na vitória <strong>do</strong> Recife, manti<strong>do</strong> como vila e capitalde Pernambuco.O diplomata e historia<strong>do</strong>r pernambucano Eval<strong>do</strong>Cabral de Mello, em estu<strong>do</strong> clássico sobre a rebelião intitula<strong>do</strong>A fronda <strong>do</strong>s mazombos, aponta uma alternativa denomenclatura interessante para a Guerra <strong>do</strong>s Mascates.Ambos os nomes são pejorativos: mascate é o comercianteerrante, transumante, que vai de porta em porta, de fazendaem fazenda, muito distante daqueles comerciantesde grosso trato, enriqueci<strong>do</strong>s com o comércio atlântico,


59O Perío<strong>do</strong> Colonialque eram os grandes de Recife. Era alcunha depreciativa epassou à história porque aqueles que a contaram no Impériose identificavam mais com os latifundiários “brasileiros”de Olinda que com os comerciantes portugueses de Recifebeneficia<strong>do</strong>s pela metrópole e favoreci<strong>do</strong>s pelo exclusivometropolitano. Os brasileiros nacionalistas <strong>do</strong> dezenoveeram herdeiros <strong>do</strong>s senhores de engenho pernambucanos<strong>do</strong> dezoito e os viam como precursores na luta “nativista”.Já o nome fronda <strong>do</strong>s mazombos é depreciativopara os senhores de Olinda. Fronda foi o levante aristocráticocontra Luís XIV, debela<strong>do</strong> pela Coroa francesa meioséculo antes da guerra pernambucana. Trata-se de umaironia. Esses “mazombos”, que se julgam aristocratas, desafiama Coroa, mas não passam de mestiços, de sangueimpuro e mistura<strong>do</strong>.Na primeira questão objetiva de <strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>no Teste de Pré-Seleção de 2011, um <strong>do</strong>s itens asseveravacorretamente que era muito difícil aos comerciantes teracesso a cargos públicos, sinecuras e benesses na Américaportuguesa ao longo <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> colonial. A Guerra <strong>do</strong>sMascates é a prova viva de que essa dificuldade permaneciae encontrava resistência entre os “nobres da terra”ainda no início <strong>do</strong> século XVIII. A mentalidade feudal deque são nobres os que possuem terra e de que o comércioé uma atividade menor e vergonhosa ainda subsistiana alma <strong>do</strong>s colonos brasileiros mesmo após três séculosde mercantilismo.Revolta de Vila Rica (1720)<strong>História</strong> geral da civilização brasileira, organiza<strong>do</strong> porSérgio Buarque de Holanda, dedica apenas <strong>do</strong>is parágrafosàs revoltas contra o sistema fiscal aplica<strong>do</strong> nas Gerais em1720. As agitações <strong>do</strong> distrito de Vila Rica foram debeladaspor contrarrevolta desencadeada pelo Conde de Assumare encerradas com a morte <strong>do</strong> líder da revolta, Filipe <strong>do</strong>sSantos, impon<strong>do</strong>-se a autoridade da metrópole 15 .O capítulo de <strong>História</strong> geral que descreve o incidentenão atribui a ele o caráter de revolta nativista, uma vez quetodas as pessoas nele implicadas eram portuguesas, inclusiveFilipe <strong>do</strong>s Santos. Além disso, contesta a tese de que arevolta tivesse o mesmo senti<strong>do</strong> da Inconfidência Mineira,ten<strong>do</strong> significa<strong>do</strong> histórico e social diferente, apesar de teremsi<strong>do</strong> ambas desencadeadas por descontentamentosem relação às medidas fiscais de Lisboa. Para os autores <strong>do</strong>compêndio, a Revolta de Vila Rica “surgiu numa sociedadeem formação e consistiu num conflito primário de interessescontraria<strong>do</strong>s”. A Conjuração Mineira, ao contrário,15 A execução de Filipe <strong>do</strong>s Santos é objeto de controvérsia. Teria si<strong>do</strong> eleesquarteja<strong>do</strong> antes ou depois de morto? Não é algo que faça muita diferençapara nós, mas certamente fez para ele. O objetivo da Coroa, é claro, era usarsua execução exemplar como modelo para aqueles que cogitassem selevantar contra a autoridade real. Nesse senti<strong>do</strong>, é a culminância sangrenta<strong>do</strong> processo de hegemonia metropolitana que se estabelecera com o fim daGuerra <strong>do</strong>s Emboabas.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>60surgiu “numa sociedade estabilizada, altamente organizadae denunciava já as fissuras da estrutura colonial”.Inconfidência Mineira (1789)A Inconfidência Mineira é diretamente decorrente<strong>do</strong> agravamento de problemas locais, sobretu<strong>do</strong> <strong>do</strong> aumentodas tensões econômicas advindas da política agressivamentefiscalista de Pombal, continuada no perío<strong>do</strong>mariano. Há, no entanto, consenso sobre a influência <strong>do</strong>pensamento europeu e norte-americano sobre as ideias<strong>do</strong>s líderes da conjuração. Nas últimas décadas <strong>do</strong> séculoXVIII, a Colônia vivia o declínio da sociedade mineira emvirtude da queda na produção <strong>do</strong> ouro e <strong>do</strong> arrocho dasmedidas da metrópole para garantir a arrecadação fiscal,ao mesmo tempo que a primeira sociedade urbana da Colôniaera, com o Rio de Janeiro, o centro mais propício paraa difusão das ideias ilustradas que nesse momento ganhavamo mun<strong>do</strong> civiliza<strong>do</strong>.To<strong>do</strong>s os inconfidentes tinham vínculos com asautoridades coloniais na capitania. Alguns ocupavam cargosde magistratura. O entrosamento entre a elite local ea administração da capitania foi abala<strong>do</strong> pela chegada <strong>do</strong>governa<strong>do</strong>r Cunha Menezes, que marginalizou os locais.A substituição de Menezes pelo Visconde de Barbacena,cujas instruções eram garantir a arrecadação de cem arrobasde ouro por ano, agravou o descontentamento.Para garantir a arrecadação tributária, o visconde poderiadecretar a derrama e mandar investigar deve<strong>do</strong>res e ocorreto cumprimento de contratos entre particulares e aadministração pública. Os inconfidentes iniciaram o planejamentoda revolta antes mesmo que a cobrança da derramafosse decretada e não chegaram a concretizar seusplanos, pois foram denuncia<strong>do</strong>s e, saben<strong>do</strong> da trama, ogoverno suspendeu a derrama para evitar a mobilizaçãoem torno da medida impopular. A devassa para apurar osenvolvi<strong>do</strong>s durou alguns meses e puniu e degre<strong>do</strong>u váriosnotáveis locais. Tiradentes, que nos depoimentos dadevassa analisa<strong>do</strong>s por Kenneth Maxwell (1985) parece histriônicoe meio desequilibra<strong>do</strong>, ao contrário <strong>do</strong>s demais,assume exclusivamente a responsabilidade pela conspiração,sen<strong>do</strong>, quase certamente por esse motivo o únicoexecuta<strong>do</strong> de fato 16 , e não, como querem muito livrosdidáticos infantis, por ser pobre e excluí<strong>do</strong>, já que era oficial<strong>do</strong> Exército e tinha patente de alferes.A intenção da maioria <strong>do</strong>s inconfidentes era proclamara República toman<strong>do</strong> como modelo a Constituição16 Este com toda certeza foi esquarteja<strong>do</strong> apenas depois de enforca<strong>do</strong>, comomostra o quadro laudatório de Pedro Américo que transforma num Cristorepublicano: Tiradentes Esquarteja<strong>do</strong> (1893). Seus restos foram espalha<strong>do</strong>sno caminho entre o Rio de Janeiro e Vila Rica, e no lugar onde sua cabeça foiexposta (até ser roubada, reza a lenda por uma antiga amante) a Repúblicaergueria 100 anos depois (1892) o imenso monumento que ainda hoje se vêna praça central de Ouro Preto.


61O Perío<strong>do</strong> Colonial<strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, liberar o distrito diamantino das restriçõesque pesavam sobre ele, per<strong>do</strong>ar os deve<strong>do</strong>res daCoroa, incentivar a instalação de manufaturas e extinguira manutenção de um Exército permanente. A respeito <strong>do</strong>abolicionismo, havia divergências entre os conjura<strong>do</strong>s,apesar <strong>do</strong> crescente consenso sobre a necessidade delibertação <strong>do</strong>s escravos nasci<strong>do</strong>s no <strong>Brasil</strong>, o que evidenciaclaramente a preocupação nacionalista, igualmentepresente no movimento francês que começaria semanasdepois da Inconfidência.Conjuração <strong>do</strong> Rio de Janeiro (1794)Foi o movimento conspiratório mais inofensivo daépoca pré-Independência e não representou ameaça à ordemda Colônia por não passar de uma série de conversasde intelectuais <strong>do</strong> Rio de Janeiro agremia<strong>do</strong>s em academiase sociedades. O prof. Manuel Inácio da Silva Alvarengarecebia, em sua casa, os integrantes da SociedadeLiterária para conversas que adquiriram, progressivamente,conteú<strong>do</strong> político e filosófico de contestação aos regimesmonárquicos. Foram denuncia<strong>do</strong>s por José Bernar<strong>do</strong> daSilva Frade e pelo Frei Raimun<strong>do</strong> Penaforte da Anunciação,que conseguiram que fossem suspensas, pelo vice-rei,as atividades da sociedade. Em seguida, seus membrosforam presos, em dezembro de 1794, sob o pretexto de quecontinuavam a se reunir secretamente. As investigações seestenderam até maio de 1796 e resultaram na absolvição ena liberação de to<strong>do</strong>s os acusa<strong>do</strong>s. A conjuração fluminensefoi um sintoma da difusão <strong>do</strong> pensamento liberal, quese tornaria pre<strong>do</strong>minante na geração seguinte. O meio, tipicamenteeuropeu de difusão dessas ideias, sociedadessecretas, literárias e/ou filosóficas com seus nomes pomposose carnavalescos, proliferaria tanto no Velho Mun<strong>do</strong>(carbonários, franco-maçons) quanto no Novo (Areópagode Itambé, Grande Oriente <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>).Conjuração Baiana (1798)A conjuração foi chamada de Revolta <strong>do</strong>s Alfaiatesporque reuniu mulatos e negros livres ou libertos liga<strong>do</strong>sa profissões urbanas, como artesãos e solda<strong>do</strong>s. Reclamavamsobretu<strong>do</strong> melhorias das más condições de vida dacidade de Salva<strong>do</strong>r. Republicana e abolicionista, a revoltareivindicava o livre-comércio na Colônia (notadamentecom a França), aumento de salário para os militares e a punição<strong>do</strong>s padres contrários à liberdade <strong>do</strong>s escravos.A conjuração não se concretizou. A tentativa deobter apoio <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r foi seguida pelo início dasprisões e por quatro enforcamentos. A dura repressãose explica não apenas pela origem social <strong>do</strong>s acusa<strong>do</strong>s,mas também pelo temor em relação à possibilidade deproliferação das rebeliões de negros e escravos. A insurreiçãode Santo Domingo estava em pleno curso e só


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>62terminaria em 1801, com a criação <strong>do</strong> Haiti como Esta<strong>do</strong>independente. A Bahia era – e continuaria sen<strong>do</strong> por maisquatro décadas – a região onde os motins de escravoseram frequentes e o me<strong>do</strong> de uma haitianização <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>gerou a repressão violenta, que serviria de exemplo paraevitar – inutilmente, como veremos – novas insurreições 17 .A inspiração da Revolução Francesa era clara nessarevolta que foi a primeira expressão de uma conjuraçãode raiz popular a combinar claramente independentismocom reivindicações sociais, da<strong>do</strong> que o quadro econômicona época dessa conjura era de forte aumento de preços,desacompanha<strong>do</strong> de aumento de salários, o que favoreceua insatisfação generalizada.Conspiração <strong>do</strong>s Suassunas (1801)Ocorrida em Olinda, foi influenciada pelo Iluminismoe pela Revolução Francesa e consistiu, a exemplo daConjuração <strong>do</strong> Rio de Janeiro, em reunião de intelectuaisque discutiam temas políticos e filosóficos no Areópago deItambé (funda<strong>do</strong> em 1798). As conversas evoluíram para17 Pesquisas recentes de Patrícia Valim na USP modificam a visão tradicionalde que esta teria si<strong>do</strong> um levante popular e sugerem que um grupo de oitofazendeiros poderosos da elite baiana estimularam o movimento e vinhamconspiran<strong>do</strong> desde a chegada de um navio Frances em 1796 que circulouboatos de planos de uma invasão napoleônica à Bahia. Por suas conexõescom o poder teriam fica<strong>do</strong> impunes.um projeto de independência <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> de Pernambuco,que se tornaria uma República sob a proteção de NapoleãoBonaparte. O primeiro proprietário <strong>do</strong> Engenho Suassunaintegrava o grupo de conspira<strong>do</strong>res, delata<strong>do</strong>s emmaio de 1801 e, mais tarde, absolvi<strong>do</strong>s por falta de provas.O areópago foi fecha<strong>do</strong> em 1802 e reaberto pouco tempodepois com o nome de Academia <strong>do</strong>s Suassunas e sede nomesmo engenho.O movimento pode ser considera<strong>do</strong> mais um sintomada crise <strong>do</strong> sistema colonial, uma vez que a repressão aosenvolvi<strong>do</strong>s não gerou uma dissuasão a respeito das ideiasque ventilavam, o que se pôde notar pelo mo<strong>do</strong> como voltaramà tona na Revolução Pernambucana de 1817.Alguns autores vinculam o movimento <strong>do</strong>s Suassunasao recém-inaugura<strong>do</strong> Seminário de Olinda (1800),exigência <strong>do</strong> novo governa<strong>do</strong>r de Pernambuco e bispo deOlinda, Azere<strong>do</strong> Coutinho, um brasileiro abasta<strong>do</strong> que, tardiamente,decidiu aban<strong>do</strong>nar as fazendas da família para irestudar na Universidade de Coimbra recém-reformada porPombal. Ilustra<strong>do</strong>, adquiriu fama e prestígio intelectual naCorte e exerceu cargos eclesiásticos e administrativos importantesna metrópole, antes de ser nomea<strong>do</strong> bispo naColônia. Como governa<strong>do</strong>r por cerca de <strong>do</strong>is anos, Coutinhoconseguiu cobrar dívidas que eram consideradas jáperdidas e aumentou muito a arrecadação. A Conspiração<strong>do</strong>s Suassunas complicou sua situação e fez com quevoltasse a Portugal, onde, a convite <strong>do</strong> príncipe D. João,


continuou e foi nomea<strong>do</strong> para diversos cargos importantes(inquisi<strong>do</strong>r-mor, por exemplo). Em Pernambuco, ospadres forma<strong>do</strong>s no novo seminário foram presença constantenos movimentos sediciosos posteriores, de 1817 e1824, o primeiro deles chama<strong>do</strong> também de Revolução<strong>do</strong>s Padres.63O Perío<strong>do</strong> Colonial


652. O Processo de Independência(1808-1831)2.1 O perío<strong>do</strong> joanino e o processo de emancipação brasileiro (1808-1831)Historiografia da Independência <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. Diferenças em relação à América espanhola.Interiorização da metrópole. Medidas iniciais da transmigração. Reformas joaninas. As raízes daRevolução Pernambucana. A Revolução <strong>do</strong> Porto e os liberais brasileiros. O papel de José Bonifácio.As guerras de Independência.Como nunca antes na historiografia deste país, há uma proliferação relativamente recentede estu<strong>do</strong>s sobre o século XIX. Consideran<strong>do</strong> o perío<strong>do</strong> da independência, de 1995até 2002 – Jurandir Malerba se deu o trabalho de contar –, foram 46 obras que retomaramo interesse que o tema suscitou nas décadas de 1960 e 1970, quan<strong>do</strong> se institucionalizavamno <strong>Brasil</strong> os cursos de pós-graduação em história (excluída a Revista <strong>do</strong> IHGB, com 99 artigos,Malerba inventariou 201 publicações, mais <strong>do</strong> que a soma de tu<strong>do</strong> o que já se havia publica<strong>do</strong>desde o Grito <strong>do</strong> Ipiranga).No mesmo livro, o sempre didático José Murilo de Carvalho, divide os autores dessestítulos sobre o século XIX em três gerações. A primeira, sem formação universitária especializada(José Honório Rodrigues, Pedro Calmon, Hélio Viana), vinha desde o início <strong>do</strong> século XX; asegunda, na qual ele mesmo se inclui, é fruto <strong>do</strong> processo de especialização e de consolidação<strong>do</strong> sistema universitário no país (Ilmar Mattos, Maria Odila Leite Dias, Emília Viotti da Costa,Maria Yedda Linhares, Carlos Guilherme Mota); e a terceira é a responsável por este boom maisrecente de publicações sobre o Império, que não fez senão crescer desde 2002, em parte porcausa <strong>do</strong>s duzentos anos da transmigração, comemora<strong>do</strong>s com muitos lançamentos. Destacam-seas recentíssimas compilações de Keila Grinberg e Ricar<strong>do</strong> Salles (2009) e de Lilia MoritzSchwarcz (2011), que o candidato ao Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata (CACD)mais dedica<strong>do</strong> não deveria evitar.O senso comum sobre o perío<strong>do</strong> joanino repete um tipo de ênfase que favorece a ridicularização.Nas palavras de Iara Schiavinatto:


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>66é ocioso lembrar que a memória <strong>do</strong> governo joaninoenfatiza o rei glutão e acovarda<strong>do</strong>, a rainha fogosa einteresseira, a rainha-mãe enlouquecida que executouos inconfidentes mineiros, a atabalhoada transferênciada Corte. Prepondera o tom de comédia, repeti<strong>do</strong>na filmografia, em programas de tevê, no ane<strong>do</strong>tário(2009).Contra esse tipo de memória que servia perfeitamenteà propaganda republicana da virada <strong>do</strong> século selevantou – quixotescamente, diria Gilberto Freyre, seu afilha<strong>do</strong>intelectual – Oliveira Lima, que é um <strong>do</strong>s primeirosautores da história <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> a fugir exclusivamente <strong>do</strong>s temaspolíticos e diplomáticos, discutin<strong>do</strong> também aspectossociais e culturais. Não por acaso seus estu<strong>do</strong>s (D. João VI no<strong>Brasil</strong> e O movimento da independência) ainda hoje marcamo tom de boa parte da historiografia. Lima promove umalargamento <strong>do</strong> horizonte cronológico sobre a emancipaçãona historiografia que lhe sucedeu. A independência defato começa em 1808, quan<strong>do</strong> há a “inversão brasileira”, e oRio de Janeiro se torna a capital <strong>do</strong> Império português. Seainda não é a completa independência <strong>do</strong> país, certamentejá é o fim de um regime colonial, efetiva<strong>do</strong> juridicamenteem 1815, com a elevação <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> a Reino Uni<strong>do</strong>.Com base em Oliveira Lima, uma série de questionamentosimportantes sobre o tema da emancipação vemsen<strong>do</strong> discutida pelos historia<strong>do</strong>res. Muitos já estão hojesupera<strong>do</strong>s, mas são constantemente revisita<strong>do</strong>s por trataremafinal <strong>do</strong> tema da independência, sempre retoma<strong>do</strong>por motivos diversos – sentimentais, de legitimação históricaou de comemoração de efemérides –, como foi o casoda repatriação <strong>do</strong>s restos mortais de Pedro I para o Museu<strong>do</strong> Ipiranga em 1972.Uma das questões mais relevantes é justamente ada continuidade <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> português no Esta<strong>do</strong> brasileiro,que daquele herdaria estruturas, aparelhos e instituições,incluin<strong>do</strong> aí a própria dinastia; a independência foi umamera “transação” bragantina, um acor<strong>do</strong> relativamentepacífico. A pergunta sobre se foi uma revolução ou nãopermeou longamente o debate historiográfico, e isso ficaevidente nos cinco volumes em que José Honório Rodrigues(1975) se dedica a lhe dar resposta. Para Rodrigues, foiuma revolução de fato, feita por brasileiros liberais a partirda ruptura com as cortes portuguesas. O autor enfatiza opapel das guerras de Independência (contabiliza o númerode mortos e destaca sua relevância proporcionalmentea outras lutas de libertação) e o papel <strong>do</strong> patriarca JoséBonifácio, cuja demissão, em 1823, desencadearia o queRodrigues chama de “contrarrevolução absolutista” 18 .18 Rodrigues era professor <strong>do</strong> Instituto Rio Branco na década de 1970, empleno regime militar. O contexto de sua obra é justamente o rescal<strong>do</strong> dascomemorações <strong>do</strong> sesquicentenário da independência, em que convinhauma interpretação nacionalista <strong>do</strong> movimento. Não se quer com issonecessariamente sugerir que se tratava de um historia<strong>do</strong>r <strong>do</strong> establishment,já que o Esta<strong>do</strong> é, em qualquer época – autoritária ou não –, sempre o maioremprega<strong>do</strong>r de historia<strong>do</strong>res, quan<strong>do</strong> não o único.


67O Processo de Independência(1808-1831)Hoje está mais <strong>do</strong> que claro que o processo to<strong>do</strong>foi conserva<strong>do</strong>r, ainda que frequentemente eiva<strong>do</strong> de correntesliberais radicais, mas que tiveram desfecho trágico(Frei Caneca) ou nunca foram capazes de chegar ao poder(Gonçalves Le<strong>do</strong>), ou, quan<strong>do</strong> chegavam, eram impedidasde implementar um programa mais radical (Teófilo Ottoni).A manutenção da escravidão por gerações inteiras após aindependência é a prova mais cabal, embora longe de sera única, <strong>do</strong> conserva<strong>do</strong>rismo resiliente e <strong>do</strong> liberalismomatiza<strong>do</strong> e/ou mutila<strong>do</strong> que se vivenciou no processo deindependência <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> 19 . É a obra de José Murilo de Carvalho,A construção da ordem, que vai buscar em Coimbraas origens dessa homogeneidade conserva<strong>do</strong>ra das elitesque caracterizou e garantiu a significativa unidade da históriaimperial brasileira.Em 1981, foi lançada, sob a organização de CarlosGuilherme Mota, Dimensões: 1822, obra em que aparecepela primeira vez o clássico de Maria Odila Leite Dias,“A interiorização da metrópole”, de onde se depreendemvários insights de forte impacto na historiografia que lhe foiposterior. A premissa <strong>do</strong> texto é a especificidade da Américaportuguesa em relação à América espanhola, imbuída19 A escravidão desaparece muito rapidamente na América espanhola pós--independência. Nos anos de 1810 na Argentina, de 1820 na maior partede nossos vizinhos, e embora tenha subsisti<strong>do</strong> um pouco mais no Peru, porexemplo, em lugar nenhum o foi tanto quanto aqui.da crítica certa tradição historiográfica na qual a imagemtradicional da independência é sempre de uma Colôniaem luta contra sua metrópole. Em que pese a importânciadisso até para a construção da nacionalidade em termosideológicos – e é inegável que foi o caso para a geração<strong>do</strong> romantismo –, tal paralelismo perde de vista os interessesque os próprios portugueses tinham no processo deemancipação. Não se tratava, no <strong>Brasil</strong>, simplesmente deuma luta de criollos versus chapetones, mas justo o oposto,uma aliança entre colonos e reinóis que vinha desde 1808,em um processo que Maria Odila chama de “interiorizaçãoda metrópole”.A autora se distancia assim <strong>do</strong> que chama de “feticheeuropeísta” <strong>do</strong> modelo de independência norte-americanoe defende uma historiografia baseada em parâmetrosbrasileiros, mesmo sem perder de vista o contexto geralao destacar a absoluta excepcionalidade que foi a transmigraçãoda Corte, evento sem nenhum outro paralelo nahistória da humanidade. Para Maria Odila, com a abertura<strong>do</strong>s portos em fevereiro de 1808, tem início a “interiorizaçãoda metrópole”, cujo processo segue pelo menos até ogabinete <strong>do</strong> Marquês <strong>do</strong> Paraná e seu Ministério de Conciliaçãoem 1853. A independência é vista como um longoprocesso de quase quarenta anos de construção negociada<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> imperial brasileiro.Destacan<strong>do</strong> muito mais o contexto geral, está umtexto de síntese, um pouco posterior ao de Maria Odila,


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>68publica<strong>do</strong> pelo historia<strong>do</strong>r Leslie Bethell em sua famosaCambridge History of Latin America. Trata-se de síntese incrivelmentedidática que enumera sete diferenças entre osprocessos de emancipação da América portuguesa e daAmérica espanhola. Dada a frequência com que o tema “independência”é cobra<strong>do</strong> nas provas <strong>do</strong> CACD, até mesmopedin<strong>do</strong> explicitamente as diferenças entre os <strong>do</strong>is processos,convém destacar cada uma delas e reforçá-las comexemplos que nem sempre Bethell fornece.A primeira diferença é que a colonização espanholajá era mais arraigada e seus agentes, <strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s de umaperspectiva de mais longo prazo que os colonos portugueses.Nos vice-reinos espanhóis, formaram-se famílias,verdadeiras dinastias de criollos ricos, de até sete geraçõescoloniais. No <strong>Brasil</strong>, a maior parte <strong>do</strong>s grandes proprietáriosna década de 1820 era composta de brasileiros de primeirageração, filhos de portugueses 20 .A segunda diferença é que havia mais mobilidadesocial na colonização portuguesa <strong>do</strong> que na colonizaçãoda América espanhola, e disso nem precisamos de Bethellpara saber. Trata-se de tema importante em Raízes <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>,de Sérgio Buarque de Holanda, clássico <strong>do</strong>s anos 1930.O sistema português era bem menos opressivo e bemmenos excludente para com os colonos notáveis. Imediatamentenos ocorrem os exemplos de Alexandre de Gusmão,Azere<strong>do</strong> Coutinho e <strong>do</strong> próprio José Bonifácio, to<strong>do</strong>socupantes de altos cargos na administração portuguesapré-independência.O terceiro elemento destaca<strong>do</strong> pelo autor inglês éque não havia universidades aqui no <strong>Brasil</strong> como houve naAmérica espanhola. Tanto a universidade quanto a imprensaforam proibidas pela Coroa, mesmo quan<strong>do</strong> essa iniciativapartia de seus próprios funcionários, como no caso<strong>do</strong> Marquês <strong>do</strong> Lavradio, governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Rio de Janeiro noséculo XVIII. O <strong>Brasil</strong> era talvez o único lugar <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> civiliza<strong>do</strong>ocidental onde a palavra impressa não existia até1808. Nesse senti<strong>do</strong>, os brasileiros ricos e abasta<strong>do</strong>s tinhamde ir para Coimbra, e isso criava uma espécie de esprit decorps, uma espécie de contato comunitário com a eliteportuguesa 21 .O quarto elemento estabeleci<strong>do</strong> por Bethell é que aAmérica portuguesa era um sistema escravista, com base emuma produção majoritariamente escravista, e isso inexistia20 É claro que é possível encontrar famílias quatrocentonas em São Paulo,no Rio de Janeiro e nos núcleos mais antigos de colonização, como Bahiae Pernambuco, mas o fato é que a vinculação familiar e emocional <strong>do</strong>sbrasileiros ainda era muito forte em relação a Portugal.21 Ainda que houvesse certo preconceito contra os brasileiros, eles setornavam parte de uma mesma “turma”, o que facilitaria, no nível dasrelações pessoais, os mecanismos de administração, que, no Antigo Regime,eram praticamente os mesmos. Essa relação personalista que se estabeleciafavorecia então os traços de continuidade jurídica e social entre a metrópolee a Colônia, ainda que houvesse descontinuidade geográfica.


69O Processo de Independência(1808-1831)na América espanhola. Trata-se <strong>do</strong> argumento <strong>do</strong> haitianismotambém enfatiza<strong>do</strong> por quase to<strong>do</strong>s os historia<strong>do</strong>rescomo amálgama da aliança posterior por um tipo de independênciademofóbica que evitasse um levante popular 22 .Uma quinta diferenciação se dava na configuraçãogeográfica da economia colonial brasileira, relativamenteisolada e com poucos vínculos comerciais endógenos.Uma economia de plantation que os geógrafos chamamde “arquipélagos”, ou seja, não havia vinculações intensase muito significativas entre as zonas coloniais da Américaportuguesa 23 , o que favorecia os laços de continuidadecom Portugal. Na América espanhola, a produção para omerca<strong>do</strong> interno era muito mais intensa poderia viver perfeitamentesem a Europa, o que seria muito mais complica<strong>do</strong>no caso da economia brasileira, fortemente informadapela lógica de plantation. Prova disso é que a substituição22 Historiografia mais recente, como os trabalhos de Gladys Sabino, por exemplo,argumenta que os próprios escravos participaram da independência a seumo<strong>do</strong>, incorporan<strong>do</strong> símbolos da ideia de liberdade. Identificavam-se comparte daquela liberdade acreditan<strong>do</strong> que a liberdade <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> poderiade algum mo<strong>do</strong> transformar-se em liberdade <strong>do</strong>s escravos. Claro que oprojeto conserva<strong>do</strong>r, com algumas exceções, como Hipólito José da Costaou o próprio José Bonifácio, tinha como objetivo negar essa liberdade. Ver.RIBEIRO, Gladys S. A Liberdade em Construção. FAPERJ/Ed. Relume Dumará.23 As capitanias estavam basicamente desvinculadas entre si, situaçãoque só começou a ser superada em mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> século XVII, quan<strong>do</strong> seestabeleceram alguns laços de continuidade entre os tropeiros de Goiás,que se vinculavam a Sorocaba e que, por sua vez, se vinculavam ao Sul ouentre o Rio de Janeiro e Minas Gerais.de Portugal pela Inglaterra se deu sem grandes traumas,bem ao contrário, com crescimento econômico.Um sexto fator a se destacar é que o exclusivo metropolitanoera muito mais frágil na América portuguesa.O tráfico negreiro controla<strong>do</strong> por baianos e cariocas é umexemplo disso. Se, na América espanhola, o controle eraabsolutamente estrito, até com o regime de porto únicona metrópole, na América portuguesa o caminho para aÁfrica raramente passava pela Europa.Por último, um elemento conjuntural, que são as reformasda Ilustração. As reformas bourbônicas da Espanhailustrada e as reformas pombalinas tinham praticamente omesmo intuito: buscavam modernizar o Antigo Regime eviabilizar uma política absolutista mais racional e mais estruturada.Usava-se um instrumental iluminista para fortalecero absolutismo e o Antigo Regime. Embora o objetivoseja o mesmo, no caso brasileiro, as reformas pombalinas,em que pese o arrocho fiscal, produziram igualmentemelhorias no padrão de vida colonial e/ou eliminaraminteresses poderosos, como o <strong>do</strong>s jesuítas no <strong>Brasil</strong>. O renascimentoagrícola no Nordeste estimulou a produção,enriqueceu to<strong>do</strong> um grupo social que produzia algodão,couro, pecuária, farinha de mandioca, muitas vezes parao merca<strong>do</strong> de exportação. Essa situação não ocorreu naAmérica espanhola. O regime opressivo aumentou drasticamente,ainda que, durante o processo de independência,verifique progressiva hostilidade <strong>do</strong>s brasileiros.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>70Não me parece que qualquer uma dessas distinçõesquestione a importância <strong>do</strong> conceito de “interiorização dametrópole” proposto por Maria Odila, que continua sen<strong>do</strong>uma referência historiográfica relevante. Toman<strong>do</strong>-ocomo premissa estrutural, caberia perceber que o quadrose altera significativamente com a transmigração da Corteapós 1808. A conjuntura se impõe e o processo se acelera.A leitura atenta <strong>do</strong> texto de Odila permite destacar várioselementos, sen<strong>do</strong> o sociológico <strong>do</strong>s mais relevantes.O estabelecimento de vínculos comerciais, pessoaise mesmo familiares se dará pela compra de fazendas no Riode Janeiro e nos arre<strong>do</strong>res por membros da aristocracia eda elite comercial portuguesa 24 ou por meio de matrimôniosentre a elite reinol que se interiorizava e os filhos proeminentes<strong>do</strong>s colonos ricos <strong>do</strong> Centro-Sul – Rio de Janeiro,Minas Gerais e São Paulo –, centro dinâmico da nova metrópole.Era o contexto de prosperidade econômica motiva<strong>do</strong>pelo estabelecimento da cúpula <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> português.24 Não eram apenas os portugueses. Com a abertura <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> aos estrangeiros,figuras proeminentes, não portuguesas, vão investir seu dinheiro e seestabelecer no país durante o perío<strong>do</strong> joanino. Alguns se casam comfiguras importantes da elite comercial fluminense, paulista ou mineira e seinteriorizam no Centro-Sul. O Barão de Langs<strong>do</strong>rff vai ter fazenda no Rio deJaneiro; Jean-Baptiste Debret constrói um solar na Gávea, hoje administra<strong>do</strong>pela Pontifícia Universidade Católica <strong>do</strong> Rio de Janeiro (PUC-Rio); o Barãode Von Eschwege investe seu dinheiro na zona de mineração e lucra até aliquidação de seus bens e retorno à Alemanha; a família Taunay se estabelecedefinitivamente, crian<strong>do</strong> um ramo brasileiro até hoje proeminente nadiplomacia e no Exército.D. João é o cimento institucional desse processo.Oferece sinecuras, empregos públicos, mercês, concedecentenas de títulos de nobreza e vantagens diversas tantopara cooptar seus súditos autóctones a lhe serviremcom renovada lealdade quanto para apaziguar os súditosde além-mar força<strong>do</strong>s a acompanhá-lo no exílio. Mais tarde,durante o processo de independência, esse cimentose renovaria com nova camada de argamassa na figurade D. Pedro I, quan<strong>do</strong> então o temor de uma rebelião generalizadade escravos, nos moldes de São Domingos, erafator de preocupação comum entre brasileiros e portugueses,favorecen<strong>do</strong> uma solução conciliatória, conformeveremos.Em breve síntese <strong>do</strong> impacto <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> joanino no<strong>Brasil</strong>, há que se identificar as medidas tomadas e as instituiçõescriadas a partir da transmigração da Corte. Foramquase sete anos de indecisão e de disputa política entrea facção inglesa e a francesa na Corte de Lisboa. A vitóriada facção inglesa, em 1807, tem muito mais de iniciativafrancesa. Napoleão cansou de esperar uma decisão <strong>do</strong>príncipe regente, que chegou a sugerir aos ingleses umaguerra simulada e toda a sorte de meios de escapar a umadifícil decisão, que por fim lhe foi praticamente impostaquan<strong>do</strong> chega a Portugal a notícia de que as tropas <strong>do</strong>general Junot já se encaminhavam para a fronteira norte.


71O Processo de Independência(1808-1831)A velha ideia de transmigração da Corte 25 para o centromais dinâmico <strong>do</strong> Império português, o <strong>Brasil</strong>, finalmente éposta em prática em 1807.A chegada da família real traz impacto socioeconômicoprofun<strong>do</strong> e levaria, no quadro político, a crescentesdemandas por autonomia e, eventualmente, à articulaçãoeficaz das ideias liberais em prol da independência. Quatrodias depois <strong>do</strong> desembarque em Salva<strong>do</strong>r, o príncipe decide,por sugestão <strong>do</strong> liberal José da Silva Lisboa, abrir osportos às nações amigas, e isso basta para desfechar omais formidável e definitivo golpe no modelo <strong>do</strong> exclusivometropolitano. Reconheçamos que esse exclusivo eraaplica<strong>do</strong> de mo<strong>do</strong> bem pouco rígi<strong>do</strong>, mas, em fevereiro de1808, acabava definitivamente, e abria-se a Colônia para ocomércio internacional e sua vinculação com o restante <strong>do</strong>mun<strong>do</strong>.Até 1810, essa vinculação se deu nos moldes <strong>do</strong>liberalismo smithiano que os ingleses, eles mesmos, sóa<strong>do</strong>tariam no governo de Sir Robert Peel em mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong>século XIX. No entanto, com a chegada ao <strong>Brasil</strong> de LordStrangford, a pressão inglesa se faz sentir, e o modelo liberala<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> com a abertura <strong>do</strong>s portos torna-se um modelode favorecimento aos ingleses. A cláusula de nação25 Oliveira Lima gasta dezenas de páginas fazen<strong>do</strong> o balanço das sugestõesprévias de transmigração da Corte, da qual a mais famosa é da décadaanterior, de D. Rodrigo de Sousa Coutinho, ministro da rainha D. Maria.mais favorecida vinha acompanhada de uma série de privilégios.Além da baixíssima tarifa de 15% para produtosingleses, havia vantagens políticas, como o direito à extraterritorialidadejudicial – um “juiz conserva<strong>do</strong>r” <strong>do</strong>s ingleses,eleito pelos próprios e nomea<strong>do</strong> pelo príncipe –, quetornava os ingleses livres da jurisdição legal portuguesa noterritório da Colônia.Ao longo desse perío<strong>do</strong>, já fica clara certa vocaçãoindustrialista que se tornará forte nas legislaturas parlamentaresnos anos de 1820 e 1830. Tal vocação havia si<strong>do</strong>prejudicada quan<strong>do</strong>, em 1785, D. Maria proíbe as manufaturasna Colônia. Pouco mais de vinte anos depois, seufilho, como príncipe regente e residente, passa a incentivarabertamente as manufaturas, tornan<strong>do</strong> o próprio Esta<strong>do</strong>português transmigra<strong>do</strong> um grande investi<strong>do</strong>r no setorsecundário 26 .Assim, a revogação <strong>do</strong> alvará de 1785, somada àabertura <strong>do</strong>s portos, em 1808, e os trata<strong>do</strong>s desiguais coma Inglaterra, em 1810, formam a tríade de medidas iniciais<strong>do</strong> perío<strong>do</strong> joanino que, juntas, reconfigurariam a situaçãoeconômica da América portuguesa. Há, é claro, um26 Dentre as manufaturas estabelecidas por D. João, destacam-se a Fábrica dePólvora, a Casa da Moeda, a própria Imprensa Régia e as medidas de pesquisa,comandadas pelo Barão de von Eschwege na região de Minas Gerais, quelevariam ao estabelecimento de manufaturas e ao desenvolvimento damineração de metais não preciosos.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>72elemento contraditório entre incentivar manufaturas e aomesmo tempo a<strong>do</strong>tar medidas tão generosas na políticatarifária com os ingleses, nosso maior parceiro comercial.O <strong>Brasil</strong> estava submeti<strong>do</strong> economicamente a tarifas tãobaixas em relação à Inglaterra que se moverá verdadeiracruzada no Parlamento contra esse sistema de “trata<strong>do</strong>sdesiguais” até sua revogação, em 1844. Por um la<strong>do</strong>, tratava-sede defender e de estimular a incipiente indústria nacional;por outro, era também um problema de receita e deorçamento <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, da<strong>do</strong> que o grosso da arrecadaçãoestava justamente na tributação das importações.Os trata<strong>do</strong>s de 1810 foram tão favoráveis à vindade merca<strong>do</strong>rias inglesas que, por uma questão de oportunismoe também por causa da conjuntura de bloqueiocontinental, chegou imediatamente ao <strong>Brasil</strong> enormequantidade de produtos inúteis para o uso <strong>do</strong>s brasileirose que, naturalmente, encalhou 27 . Essas observações nãoinvalidam o fato de que o <strong>Brasil</strong> era um merca<strong>do</strong> formidávelpara os comerciantes ingleses. Éramos então o terceiromaior merca<strong>do</strong> para a Inglaterra, ultrapassan<strong>do</strong> quaseto<strong>do</strong> o comércio com a Ásia.27 Vestimentas de inverno, esquis de gelo, corsets de metal para mulher etc.acabaram provocan<strong>do</strong> prejuízo para os ingleses em uma primeira leva.Demoraria ainda alguns anos para que ambos os la<strong>do</strong>s – fornece<strong>do</strong>res econsumi<strong>do</strong>res – se acostumassem uns aos outros, a um comércio bilateralque agora dispensava os intermediários portugueses.A essas medidas iniciais soma-se uma série de outrasmedidas muito relevantes que vão sen<strong>do</strong> implementadas apartir de 1808 e ao longo da década de 1810. No conjunto,são chamadas de reformas joaninas: o Jardim Botânico (RealHorto), a Escola de Música, o Teatro Real, a Casa da Moeda,a Fábrica de Pólvora, novas estradas ou a melhoria das estradasjá existentes, visan<strong>do</strong> melhorar a comunicação entreas capitanias, notoriamente entre a nova Corte e Minas Gerais,que já era então a mais populosa das capitanias e, como declínio da mineração, havia se converti<strong>do</strong> progressivamenteem uma capitania agrícola de abastecimento cujoprincipal merca<strong>do</strong> era justamente o Rio de Janeiro. Saltaaos olhos que a maior parte dessas medidas e instituiçõestenha si<strong>do</strong> criada no Rio de Janeiro ou em seu entorno.Tais medidas reforçam a tese de Maria Odila de queestava em curso, no Sudeste e no Centro-Sul <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>,um processo de “interiorização da metrópole”. Tratava-sede uma integração significativa da região Centro-Sul comos interesses <strong>do</strong>s comerciantes portugueses e burocratastransmigra<strong>do</strong>s, mediada pelas novas instituições criadaspelo Esta<strong>do</strong> português na América. Os portugueses transmigra<strong>do</strong>sseriam mais tarde o chama<strong>do</strong> “parti<strong>do</strong> português”,enquanto as novas instituições seriam o embrião<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> imperial brasileiro após 1822. Nada simbolizamelhor essa “interiorização da metrópole” <strong>do</strong> que a suaveadaptação <strong>do</strong> próprio príncipe regente à sua Colônia, emblemáticada conjunção de interesses socioeconômicos


73O Processo de Independência(1808-1831)que se formou entre os reinóis aclimata<strong>do</strong>s aos trópicos eos colonos beneficiários das reformas joaninas.O outro la<strong>do</strong> da moeda era a permanência de umarelação metrópole-Colônia. Se a metrópole se interiorizou,significa que continuavam existin<strong>do</strong> uma Colônia e um exclusivometropolitano, traduzi<strong>do</strong> na relação com as demaisregiões <strong>do</strong> Império português agora subordinadas ao Riode Janeiro. Nenhuma região <strong>do</strong> Império sofreu tanto quantoo Nordeste, crescentemente extorqui<strong>do</strong> em pleno declínioda economia açucareira. Afinal, para bancar as reformasjoaninas, as novas instituições <strong>do</strong> Império transmigra<strong>do</strong>, vaise recorrer à extração fiscal pura e simples, sobretu<strong>do</strong> comas <strong>do</strong> Nordeste. Estas se sentem ainda mais prejudicadaspor estarem pagan<strong>do</strong> a conta sem os benefícios da proximidadecom o poder 28 . Pernambuco, por exemplo, era umacapitania que já vinha sofren<strong>do</strong> achaques fiscais nada desprezíveisdesde o final <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> colonial. As separaçõesda capitania <strong>do</strong> Ceará e da capitania da Paraíba já haviamsi<strong>do</strong>, em 1799, parte desse intuito de maior afã extrativo.Somem-se o declínio econômico e o aumento daextração fiscal à grande seca de 1816, em um contextode crescente negligência para com a região por parte <strong>do</strong>Esta<strong>do</strong> português, e eclodiria em 1817 a Revolução Pernambucana,naquela que foi a única grande rebelião provincialdurante o perío<strong>do</strong> joanino. A rebelião também foimotivada ideologicamente pela presença significativa demembros <strong>do</strong> clero, muitos <strong>do</strong>s quais forma<strong>do</strong>s na instituiçãoconhecida como Seminário de Olinda. Havia si<strong>do</strong>criada pelo bispo e educa<strong>do</strong>r D. Azere<strong>do</strong> Coutinho, governa<strong>do</strong>rde Pernambuco em 1800. Apesar de nomea<strong>do</strong> pelaCoroa, o bispo era um intelectual saí<strong>do</strong> da Universidade deCoimbra, reformada por Pombal, e era originariamente umgrande colono <strong>do</strong> norte fluminense; em seus escritos, criticavaa sanha fiscalista da Coroa portuguesa sediada emLisboa. Não seria agora que, sediada no Rio de Janeiro, haveriade mudar os sentimentos <strong>do</strong>s pernambucanos, muitopelo contrário, eles se haviam agrava<strong>do</strong> 29 .O movimento foi reprimi<strong>do</strong>, mas sem a violênciaque será verificada posteriormente à independência. Seuslíderes, presos, seriam anistia<strong>do</strong>s em 1821. A Coroa, únicada América, seguia mais firme e mais forte em sua estadacolonial que seus vizinhos recém-republicaniza<strong>do</strong>s ouem vias de se tornarem. O que D. João, agora “sexto” 30 , não28 Havia um imposto particularmente revoltante, que era o imposto sobre ailuminação pública, quase inexistente em Recife, mas pago pelos recifensespara iluminar o Rio de Janeiro. Tal exemplo é ilustrativo <strong>do</strong> quadro pré--revolucionário que se desenhava.29 Com a Revolução Pernambucana, serão desmembradas de Pernambuco,ainda em 1817, também a capitania de Alagoas e a <strong>do</strong> Rio Grande (hoje, RioGrande <strong>do</strong> Norte).30 Com a morte de D. Maria em 1816, o príncipe regente é coroa<strong>do</strong> no <strong>Brasil</strong>D. João VI após governar como regente por duas décadas.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>74imaginava era que sofreria questionamentos liberais tambémno próprio reino, em Portugal.Posta em perspectiva, a situação <strong>do</strong> reino era aindamais dramática que a de Pernambuco. Os prejuízos daguerra eram grandes – o porto havia si<strong>do</strong> completamenteevacua<strong>do</strong> –, mas ainda maior era o impacto econômicoque Portugal havia sofri<strong>do</strong> com a perda, desde a abertura<strong>do</strong>s portos, <strong>do</strong> papel de intermediário monopolista nocomércio entre o <strong>Brasil</strong> e o restante <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> de que aburguesia lusa sempre gozara. Aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong> desde 1808 egoverna<strong>do</strong> por um preposto britânico – Beresford –, haviauma pressão <strong>do</strong>s ingleses também, mais que tu<strong>do</strong> <strong>do</strong>sportugueses, para que a família real retornasse. Era comose o retorno fosse a panaceia para curar todas as mazelaseconômicas vividas pelo reino.O quadro geral de disseminação das ideias liberaispós-1815 contra a ordem de Viena chegou a Portugal apóster convulsiona<strong>do</strong> a Espanha e o sul da Itália. Setores significativosda burguesia portuguesa vão se reunir na cidade<strong>do</strong> Porto claman<strong>do</strong> pelo retorno da família real e pela constitucionalização<strong>do</strong> reino em 1820. Seu projeto liberal serárecebi<strong>do</strong> com simpatia pelos liberais da Corte e das demaiscapitanias americanas. O entusiasmo constitucionalista noRio de Janeiro motivaria o efetivo retorno <strong>do</strong> rei, que temeupor uma revolução também deste la<strong>do</strong> <strong>do</strong> oceano.Entre 1821 e mea<strong>do</strong>s de 1822, ocorre um flerte entre osliberais de lá e os de cá, com a eleição de deputa<strong>do</strong>s paraas “cortes” constitucionais em todas as províncias brasileirase até na África. O movimento é fortemente estimula<strong>do</strong>pela imprensa, já praticamente livre de qualquer tipo decensura, que vigorara firme nos anos posteriores à transmigração.De repente, porém, <strong>do</strong> riso fez-se o pranto, e oflerte entre os liberais, que poderia virar namoro, muito rapidamentese transmu<strong>do</strong>u em divórcio.Insatisfeitos com a chamada inversão colonial, emque a Colônia era sede <strong>do</strong> reino e o reino parecia ter vira<strong>do</strong>Colônia, os membros portugueses das cortes sugeriammodelos políticos inaceitáveis para os brasileiros. Ávi<strong>do</strong>spor serem compensa<strong>do</strong>s pelos anos de guerra e sedentospelo retorno <strong>do</strong> modelo monopolista, os deputa<strong>do</strong>s portuguesesnem sequer cogitaram a sugestão de Martim Franciscode Andrada, que propunha <strong>do</strong>is parlamentos, um naEuropa e outro no Rio de Janeiro, com uma Coroa transumanteou compartilhada com o príncipe Pedro comoregente. Defenderam, para a estupefação <strong>do</strong>s brasileirospresentes, o retorno a um modelo mais que pré-joanino,pré-pombalino, em que toda a administração retornaria àEuropa e o contato com as províncias seria fragmenta<strong>do</strong>sem passar pelo Rio de Janeiro. Não seria possível conciliaçãoou acor<strong>do</strong>, e os brasileiros aban<strong>do</strong>nam a Assembleia.Essa falta de percepção política da burguesia portuguesa,entretanto, não era comum ao rei, que percebeu claramenteque os liberais brasileiros, e mesmo os interessesportugueses da elite transmigrada, não aceitariam, em


75O Processo de Independência(1808-1831)nenhuma hipótese, um retrocesso que previsse a revogação<strong>do</strong> regime de portos abertos.A elite brasileira-portuguesa interiorizada se vinculouentão à figura <strong>do</strong> príncipe regente D. Pedro 31 . Após1821, ele serviria de âncora de legitimação tanto para osbrasileiros, que viam nele a última tábua de salvação paraa manutenção legítima <strong>do</strong> regime de portos abertos instituí<strong>do</strong>por seu pai, quanto pelos portugueses, que viamem um príncipe da casa de Bragança o derradeiro bastiãode uma ordem monárquica que garantisse os bens,os interesses e, sobretu<strong>do</strong>, a integridade física <strong>do</strong>s portuguesesresidentes no <strong>Brasil</strong>. Sem Pedro, seria a guerra,e isso to<strong>do</strong>s queriam evitar. Daí a percepção de parte dahistoriografia 32 de que o que houve, mais que uma luta deindependência, foi um acor<strong>do</strong> político, uma conciliaçãodinástica 33 , para evitar a ruptura radical. Maria Odila ressaltaainda que o cimento dessa aliança complexa entre colonose reinóis, parte <strong>do</strong> que ela chamou de “interiorizaçãoda metrópole”, foi o me<strong>do</strong>.Sombra subjacente a pairar temerariamente sobrea cabeça de to<strong>do</strong>s os brancos, sobretu<strong>do</strong> proprietários,o me<strong>do</strong> era de que, no caso de uma conflagração revolucionáriapela independência, fosse necessário mobilizaras camadas populares, disseminan<strong>do</strong> o conceito de liberdade.Não era tolo acreditar que, para escravos, mulatos ehomens pobres em geral, a liberdade de Portugal fosse umconceito abstrato demais a ser traduzi<strong>do</strong> de outro mo<strong>do</strong>.A liberdade mais ansiada era outra, e, em termos histórico--sociológicos, o Haiti parecia bem mais perto que em termosgeográficos.31 O projeto das cortes portuguesas para o príncipe era formá-lo na recentíssimaescola de monarcas constitucionais. Para tanto, ele deveria ser educa<strong>do</strong>em várias cortes europeias, empreenden<strong>do</strong> uma grande viagem, em umaespécie de intercâmbio dinástico. Optou o príncipe por ficar. Gostava mais<strong>do</strong> projeto de se tornar o impera<strong>do</strong>r <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> e construir uma nova pátriapartin<strong>do</strong> de uma economia muito mais dinâmica e promissora em um paísonde ele tinha vivi<strong>do</strong> os últimos treze anos.32 José Honório Rodrigues tem entendimento distinto. Para ele, com a ruptura<strong>do</strong>s deputa<strong>do</strong>s brasileiros com as cortes, tem-se momento análogo ao daseparação <strong>do</strong> terceiro Esta<strong>do</strong> na Paris de 1789. É a revolução brasileira ummovimento contrário aos intuitos recoloniza<strong>do</strong>res da Corte, portanto, <strong>do</strong>interesse efetivamente <strong>do</strong>s brasileiros. A contrarrevolução “absolutista” sóteria início com a demissão de Bonifácio e o fechamento da AssembleiaConstituinte brasileira <strong>do</strong>is anos mais tarde.33 Certa memória, estimulada por parcela significativa da historiografia,entende que o desfecho da independência teria si<strong>do</strong> planeja<strong>do</strong> por D. Joãodesde 1821. O rei teria, antes de partir, instruí<strong>do</strong> seu filho, o príncipe Pedro,a permanecer no Rio de Janeiro como forma de preservação de vínculosdinásticos entre <strong>Brasil</strong> e Portugal. Não importa muito se D. João dissemesmo a frase “Faça você a independência antes que algum aventureiroa faça”, mas é incontornável que a presença <strong>do</strong> príncipe demonstrava umadesobediência parcial às ordens da Corte portuguesa, que exigia o retornode toda a família real. Assim, os conflitos <strong>do</strong>s liberais que até então eramcom o rei, tornam-se conflitos ainda mais sérios com o príncipe rebelde querecusava o retorno. Nisso, D. Pedro teria to<strong>do</strong> o apoio da elite “interiorizada”<strong>do</strong> Centro-Sul, manifesto no <strong>do</strong>cumento entregue a ele em janeiro de 1822e que motivou o Dia <strong>do</strong> Fico.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>76Com o vasto apoio de camadas políticas poderosase amplas no Centro-Sul brasileiro, era natural que o príncipeassumisse a liderança <strong>do</strong> movimento de enfrentamentoàs cortes portuguesas que seu pai, praticamente prisioneiroem Portugal, não tinha condições de implementar.Surgem, entre 1821 e 1822, questões de ordem jurídicaque embasam o debate em torno da soberania sobre o<strong>Brasil</strong> e o país se torna um laboratório de ciência políticailustrada. Quem é soberano? Quem tem autoridade para governaro <strong>Brasil</strong>? As cortes portuguesas, uma vez que D. João,efetivo monarca, havia aceita<strong>do</strong> uma Constituição transferin<strong>do</strong>,portanto, parcela significativa de sua autoridadepara a Constituinte? Ou seria o príncipe regente, deixa<strong>do</strong>como governante residente por seu pai no Reino <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>,efetivamente autônomo desde 1815 por ordem <strong>do</strong> própriomonarca? É um confronto de vontades venci<strong>do</strong> naturalmentepelo príncipe por ser o representante de umacoalizão invencível <strong>do</strong>s interesses interioriza<strong>do</strong>s que searticulavam social e economicamente desde 1808 e vinhamse articulan<strong>do</strong> politicamente desde 1820. O Dia <strong>do</strong>Fico e o episódio <strong>do</strong> “Cumpra-se” nada mais são <strong>do</strong> queos fatos mais conheci<strong>do</strong>s dessa sucessão de conflitos deautoridade que, com o sete de setembro, culminam emruptura definitiva e início de hostilidades militares.O grande articula<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s interesses difusos da elitebrasileira junto ao príncipe foi José Bonifácio de Andradae Silva, uma espécie de superministro de D. Pedro queacumulava as principais pastas <strong>do</strong> reino que se configurariaindependente após o sete de setembro. Uma das pastasfoi a das Relações Exteriores, o que faz de Bonifácio nossoprimeiro chanceler. Um mês antes <strong>do</strong> sete de setembro,Bonifácio faz circular o famoso Manifesto às Nações Amigas,em que já antecipava uma série de justificativas contraa submissão humilhante de uma pátria irmã, um ReinoUni<strong>do</strong> (desde 1815) leva<strong>do</strong> a cabo pelas cortes portuguesas.Seu intuito não era o mesmo da Declaração das TrezeColônias de 1776. Não falava em ruptura. Desejava angariarsimpatia para seu príncipe junto aos reinos europeus, revestin<strong>do</strong>-lheda legitimidade paterna oriunda <strong>do</strong> decretode 1815 e de sua condição de regente contra a “usurpação”<strong>do</strong>s liberais portugueses e sua sanha contrária ao regimede portos abertos. Aos ingleses tocavam o argumento econômico,aos austríacos o Dinástico, aos franceses o jurídico,a cada qual segun<strong>do</strong> seu gosto, evidencian<strong>do</strong> a formaçãocoimbrã, ilustrada porém conserva<strong>do</strong>ra, <strong>do</strong> cientista e mineralogistaJosé Bonifácio 34 .A história de nossa ruptura é sui generis. Se tentarmosexplicá-la a um colega latino-americano, teremoscomplicações. Podemos imaginar o seguinte diálogo:34 Se, de um la<strong>do</strong>, José Bonifácio pensava que a independência poderiase tornar inevitável, de outro sua preferência era por um modelo maisconserva<strong>do</strong>r, que evitasse os excessos tanto <strong>do</strong> absolutismo quanto <strong>do</strong> quevia como anarquia jacobina.


77O Processo de Independência(1808-1831)Latino-Americano: Quem é o herói da sua independência?<strong>Brasil</strong>eiro: O herdeiro <strong>do</strong> trono da metrópole, opríncipe Pedro de Alcântara. LA: Estava o príncipe emconflito com o próprio pai? B: Não, estava em conflitocontra os liberais portugueses! LA: Liberais? Os liberaiseram contra a independência? B: Eram! Os liberais portuguesesnão eram bem liberais, queriam recolonizar o<strong>Brasil</strong> e restaurar o exclusivo metropolitano! LA: Comoassim restaurar? Vocês já não eram mais submeti<strong>do</strong>sao monopólio antes da independência? E ainda eramColônia? B: Sim, desde 1808. D. João havia aberto osportos quan<strong>do</strong> se mu<strong>do</strong>u para cá. LA: O rei de Portugalse mu<strong>do</strong>u para a Colônia?! B: É, e acabou com o exclusivometropolitano. É, é complica<strong>do</strong> mesmo!Acredito que só não nos damos conta dessa sucessãode improbabilidades por sermos apresenta<strong>do</strong>s a eladesde a mais tenra idade nas aulas de história <strong>do</strong> colégio.Maria Odila acredita que parcela não desprezível da historiografia– fortemente influenciada pela literatura norte elatino-americana de independência como ruptura, levanterevolucionário e guerras de libertação – quis enxergarsemelhanças no modelo brasileiro, deixan<strong>do</strong> de perceberos elementos de continuidade que ela apresenta com oconceito clássico, ainda hoje relevante, de “interiorizaçãoda metrópole”. Entende-se ali a emancipação como umprocesso, um longo processo de criação e de consolidação<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> imperial brasileiro. Vincula-se então tal processode independência ao marco cronológico de 1808 eà transmigração da Corte, <strong>do</strong> qual o ano de 1822 era apenasmais um des<strong>do</strong>bramento. Des<strong>do</strong>bramento relevante,mas não inédito, já que a emancipação política evidenciadapelo sete de setembro já era, na prática, antecedidapela elevação <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> em 1815 à categoria de reino 35 .Para Maria Odila, os conflitos posteriores ao sete desetembro ainda podem ser enxerga<strong>do</strong>s como uma guerracivil portuguesa. Entre os interesses <strong>do</strong>s portugueses de lá,apoia<strong>do</strong>s significativamente por regiões mais vinculadas aLisboa que ao Rio de Janeiro, como o Maranhão e o Pará,contra os interesses <strong>do</strong>s portugueses de cá, apoia<strong>do</strong>s fortementepelos interesses <strong>do</strong>s brasileiros <strong>do</strong> Centro-Sul, <strong>do</strong>sliberais e de to<strong>do</strong>s aqueles que eram beneficiários <strong>do</strong> regimede portos abertos de 1808. Essa última aliança é seladapela figura <strong>do</strong> príncipe. Ele serviria de argamassa. Oferecialegitimidade dinástica e dava garantia aos portugueses deque não seriam espolia<strong>do</strong>s. O outro cimento era o haitianismo,verdadeiro amálgama aterrorizante das elites, quetemiam mais que tu<strong>do</strong> o levante popular. Seu temor deuma rebelião negra favoreceu o entendimento intraelitemesmo entre grupos rivais.Não é possível, no entanto, fingir que não houveGuerra de Independência. Houve significativa resistência35 Os construtores da mitologia nacional posterior terão grande dificuldadecom os símbolos e as datas. Por muitos anos, discutia-se se seria realmenteo sete de setembro a data nacional. Muitos liberais contrários ao parti<strong>do</strong>português defendiam o sete de abril, data da abdicação <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>rem 1831.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>78ao Grito <strong>do</strong> Ipiranga nas regiões em que a vinculação a Lisboaera mais forte que ao Rio de Janeiro – Pará e Maranhão,por exemplo – e também nas regiões onde havia grandepresença de militares e de comerciantes portugueses,como a Bahia e a Cisplatina. Diferentemente da luta cruentaocorrida na América espanhola, <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de cá <strong>do</strong>s Andeso conflito foi tópico e muito mais concentra<strong>do</strong> no tempo.A disputa mais estratégica se deu no plano naval,em que a superioridade de forças era claramente portuguesa,e o <strong>Brasil</strong> independente, sem Marinha, teve de recorrera mercenários ingleses que, com o fim das guerrasnapoleônicas, viam no contexto turbulento da América <strong>do</strong>Sul oportunidades de atuação. Em que pesem os combatesterrestres na Bahia, por exemplo, foi a atuação de LordCochrane 36 , semiaposenta<strong>do</strong>, no coman<strong>do</strong> de uma armadaimprovisada, que garantiu a capitulação das forçasportuguesas, mais por meio de expedientes e uso inteligentede sua própria reputação <strong>do</strong> que por superioridadeinequívoca de forças. São Luís se rende sem combate, eBelém, após rápida demonstração de força, seria facilmentecontida com a chegada de reforços.Em menos de um ano, todas as províncias estão sobo controle <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r aclama<strong>do</strong> no Rio de Janeiro. Dosete de setembro paulista ao <strong>do</strong>is de julho baiano não sepassaram dez meses, diferente <strong>do</strong>s mais de dez anos queseparam Hidalgo de Iturbide no México ou da década emeia que separa Miranda de Ayacucho nos Andes.Política e militarmente, estava consolidada a independência.Faltava agora seu reconhecimento internacional,que ocorreria nos turbulentos anos <strong>do</strong> PrimeiroReina<strong>do</strong>.36 Cochrane ficou durante muito tempo discutin<strong>do</strong> o preço de seus serviçospara, no final, não ser pago. Apenas seus descendentes receberiam <strong>do</strong>Império a soma combinada na década de 1840. Ele, que já havia servi<strong>do</strong>a várias nações em processo de emancipação na América espanhola –inclusive Bolívar –, ignorava as leis inglesas que proibiam o alistamentode oficiais da Marinha inglesa como mercenários. Embora em geralestivesse a serviço das independências, não se tratava propriamente deum ideólogo.


79O Processo de Independência(1808-1831)2.2 O Primeiro Reina<strong>do</strong>Facções políticas <strong>do</strong> Primeiro Reina<strong>do</strong>. Anteprojetoconstitucional de 1823. Carta de 1824. Confederação<strong>do</strong> Equa<strong>do</strong>r. Guerra da Cisplatina. Críticas parlamentaresao impera<strong>do</strong>r. Crise econômica e seus des<strong>do</strong>bramentospolíticos. Abdicação.A história <strong>do</strong> Primeiro Reina<strong>do</strong> inicia-se sob o signodas discussões constituintes. Não deixa de ser irônico queos debates da Assembleia Constituinte que tomam conta<strong>do</strong> ano de 1823 sejam, em larga medida, os mesmosdebates políticos que marcaram as “cortes” em 1821, comexceção óbvia <strong>do</strong> status <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, agora inequivocamenteindependente. A perspectiva <strong>do</strong>s liberais, os mesmosliberais que agora se chamavam de “parti<strong>do</strong> brasileiro”, emoposição aos portugueses, era criar um Império brasileiroconstitucional, como em 1821 tinham a perspectiva de umImpério português constitucional. A personalidade <strong>do</strong> jovemimpera<strong>do</strong>r, bem como sua ambiguidade em relaçãoao liberalismo que dizia abraçar, será um formidável obstáculoà execução desse intuito.As tendências absolutistas <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r eram estimuladaspelo grupo “caramuru” (o “parti<strong>do</strong> português”).Não faltaram apeli<strong>do</strong>s pejorativos para os portugueses:corcundas – em referência irônica aos que se curvavamao absolutismo –, pés de chumbo, caramurus, marotos,evidencian<strong>do</strong> a crescente oposição entre os grupos que sehaviam alia<strong>do</strong> ao príncipe na luta contra as cortes e pelacausa da independência. Nenhum desses grupos tinhagrau significativo de institucionalização formal, coesão,hierarquia clara, regras estabelecidas, programa de governoestrito ou mesmo presença definida em to<strong>do</strong> o territórionacional. Suas lideranças eram conhecidas, bem comosua agenda, mas não se pode falar que eram parti<strong>do</strong>s nosenti<strong>do</strong> moderno <strong>do</strong> termo.As clivagens internas desses agrupamentos erammuitas, e sua diferenciação se dá sobretu<strong>do</strong> no pontodas maiores ou das menores limitações constitucionaisao poder <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r e da maior ou menor vinculaçãoa Portugal. Para os caramurus, a independência ainda nãoera vista como uma ruptura definitiva. A manutenção dadinastia <strong>do</strong>s Bragança no <strong>Brasil</strong> e a demora calculada <strong>do</strong> jovemimpera<strong>do</strong>r em abdicar <strong>do</strong> trono português – o que sófaria após a morte <strong>do</strong> pai, em favor de sua filha – aumentavamo temor <strong>do</strong>s “brasileiros” de uma possível reunificação.Para além destas linhas gerais, fica difícil definir caramuruse liberais de mo<strong>do</strong> inequívoco ou simplesmente apelan<strong>do</strong>para uma distinção entre os mais conserva<strong>do</strong>res/absolutistase os mais progressistas/ilustra<strong>do</strong>s. O caso de JoséBonifácio é ilustrativo. Considera<strong>do</strong>, ao final <strong>do</strong> PrimeiroReina<strong>do</strong>, um caramuru, por sua defesa de um Esta<strong>do</strong> fortee seu vínculo com o impera<strong>do</strong>r, havia si<strong>do</strong> preso e exila<strong>do</strong>pela atuação na Constituinte de 1823.


81O Processo de Independência(1808-1831)<strong>Brasil</strong>, sem necessariamente usar a palavra escravo. Umfunesto exemplo <strong>do</strong> “jeitinho brasileiro”. Ficou defini<strong>do</strong> entãoque a quantidade de alqueires de mandioca planta<strong>do</strong>sseria a base para o direito de votar no <strong>Brasil</strong>. Evitava-se,dessa forma, a constrange<strong>do</strong>ra palavra escravo como mecanismode direito político em uma Constituição que sepretendia liberal. Se o anteprojeto constitucional de 1823tivesse vinga<strong>do</strong>, teria fica<strong>do</strong> escamoteada a premissa escravistada cidadania, estabelecida na prática pelo textoconstitucional, afinal, a base da alimentação <strong>do</strong>s escravos<strong>do</strong> eito era universalmente a farinha de mandioca. O númerode alqueires de mandioca planta<strong>do</strong>s em uma fazendaera indicativo inequívoco <strong>do</strong> tamanho <strong>do</strong> plantel deescravos que seu senhor possuiria.Seria excluída, assim, grande parcela da elite portuguesainteriorizada no Rio de Janeiro e no Sudesteque vivia <strong>do</strong> comércio nas zonas urbanas, sem qualquernecessidade de plantar alqueires de mandioca. Essas decisõesocorreram em um clima de crescente antilusitanismopopular, estimula<strong>do</strong> pela imprensa em jornais comoO Tamoio e Sentinela da Liberdade. Era o fim <strong>do</strong> flerte entreportugueses e brasileiros. Nunca chegou a ser noiva<strong>do</strong>, aindaque tenha si<strong>do</strong> um “namoro” pouco turbulento duranteo perío<strong>do</strong> de permanência da Corte no <strong>Brasil</strong>. Cogitou-se onoiva<strong>do</strong> em 1821, estabeleceu-se o divórcio antes mesmo<strong>do</strong> casamento, em 1823. A pressão <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> portuguêsse faz cada vez maior e, com o fechamento da AssembleiaConstituinte, é esse o grupo de burocratas, militares e comerciantesportugueses que sustentará politicamente oimpera<strong>do</strong>r, que vai apoiá-lo e manter-se a seu la<strong>do</strong> até aabdicação, em 1831, e mesmo depois disso.Desse mo<strong>do</strong>, por três anos, a partir da Noite daAgonia, os liberais brasileiros estarão, para to<strong>do</strong>s os efeitos,excluí<strong>do</strong>s das decisões políticas nacionais, tomadaspraticamente de forma isolada pelo impera<strong>do</strong>r e por seusministros áulicos <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> português. Nesses três anos,duas decisões 37 , tomadas de cima para baixo, sem consultaaos representantes da nação – pois não haverá Parlamentoaté 1826 –, marcarão por décadas o processo político brasileiro.A constituição outorgada de 1824 e os acor<strong>do</strong>s internacionaispara o reconhecimento da independência <strong>do</strong><strong>Brasil</strong>. Tanto uma quanto o outro sofrerão crítica acerba <strong>do</strong>sliberais, mas estes terão de aprender a conviver com suasconsequências muito tempo depois que o próprio impera<strong>do</strong>rjá tivesse abdica<strong>do</strong>. Trataremos da questão <strong>do</strong> reconhecimentoem outra parte. Passemos à Carta de 1824.O Conselho de Esta<strong>do</strong>, órgão que se tornou definitivocom o texto constitucional, analisou o <strong>do</strong>cumento37 O início das hostilidades com uruguaios e argentinos no que viria a sera Guerra da Cisplatina também é uma decisão relevante tomada peloimpera<strong>do</strong>r e por seus chefes militares sem que houvesse Parlamentoconstituí<strong>do</strong>, mas, talvez por termos si<strong>do</strong> “derrota<strong>do</strong>s”, suas consequênciaspolíticas não foram tão perversivas quanto as outras duas.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>82que ficou pronto em menos de um mês, entre dezembrode 1823 e janeiro de 1824. A partir daí, o texto foi submeti<strong>do</strong>à apreciação das câmaras municipais para sugestõese emendas, em uma espécie de “consulta” 38 <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>ra seu povo sobre um <strong>do</strong>cumento que ele prometera ser“duplicadamente mais liberal”. São, naturalmente, poucosos verea<strong>do</strong>res que se aventuram a dar palpites na Cartaapresentada. Mesmo estes foram ignora<strong>do</strong>s. Muitos nemsequer a leram, já que óbices no sistema de transporte e decomunicação da época impediriam que os cuiabanos oumora<strong>do</strong>res de Belém apresentassem a tempo suas apreciações.Não se passam <strong>do</strong>is meses, e a Constituição é juradapelo impera<strong>do</strong>r em 25 de março de 1824, data que passa aser feria<strong>do</strong> no <strong>Brasil</strong> imperial e ainda hoje é rua celebrada –por motivos distintos – no Centro de São Paulo.Trata-se – e disso não devem restar dúvidas – de um<strong>do</strong>cumento liberal. Certamente não liberal da perspectivaatual ou mesmo <strong>do</strong>s liberais de mea<strong>do</strong>s ou <strong>do</strong> final <strong>do</strong> séculoXIX, mas bastante liberal para o contexto europeu daépoca. As ambiguidades de um impera<strong>do</strong>r que cortejava oabsolutismo não foram suficientes para evitar que ele fosse38 Talvez por isso o historia<strong>do</strong>r Boris Fausto considere que a Carta de 1824foi promulgada, e não outorgada. Ou talvez tenha si<strong>do</strong> apenas um erro dedigitação, já que a leitura de seu <strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, manual didático clássicopublica<strong>do</strong> pela Edusp e traduzi<strong>do</strong> para muitas línguas, permite aduzir ooposto.considera<strong>do</strong> o chefe da facção liberal portuguesa após amorte de D. João ou mesmo que fosse considera<strong>do</strong> paraassumir a Coroa da Grécia quan<strong>do</strong> de sua independência,em 1830, como fonte de legitimidade e, ao mesmo tempo,uma alternativa liberal. A Constituição, só por existir, jáevidenciava alguma adesão aos princípios <strong>do</strong> liberalismo,combati<strong>do</strong>s pela Santa Aliança e que complicariam a negociação<strong>do</strong> reconhecimento por parte <strong>do</strong>s austríacos e,sobretu<strong>do</strong>, <strong>do</strong>s russos, ciosos defensores <strong>do</strong> absolutismo,antítese de qualquer forma de contratualismo. Era inegavelmentecentraliza<strong>do</strong>ra, mas com fortes componentesliberais. Vejamos <strong>do</strong>is deles.Ao contrário da Constituição republicana de 1891,que lhe sucederia sete décadas depois, a Carta de 1824estabelecia que era obrigação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> prover a educaçãobásica de seus cidadãos, compromisso que desaparecena Primeira República. O papel da Igreja no novoEsta<strong>do</strong> é outro exemplo. Trata-se de debate herda<strong>do</strong> daConstituinte, em que muitos deputa<strong>do</strong>s anticlericais defendiama completa nacionalização da Igreja brasileira.Essa posição foi defendida até por padres, sobretu<strong>do</strong> ogrupo pernambucano que desde a criação <strong>do</strong> Semináriode Olinda (1800) era foco de congregação liberal no nordeste.A discussão sobre a criação de prelazias em MatoGrosso e em Goiás, prerrogativa papal assumida pelo Esta<strong>do</strong>brasileiro, foi objeto de controvérsia e finalmenteratificada pelo estabelecimento <strong>do</strong> regime de padroa<strong>do</strong>


83O Processo de Independência(1808-1831)na Constituição afinal outorgada. O impera<strong>do</strong>r era o chefeda Igreja no <strong>Brasil</strong>; os padres, funcionários <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>.A Igreja estava sob o controle <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, como desejavamos liberais, e, nos futuros momentos de conflito entrea Igreja e o Esta<strong>do</strong>, nenhum liberal ficou insatisfeito com asimples aplicação da Constituição, tanto no caso de Feijónos anos 1830 quanto no caso <strong>do</strong> Visconde <strong>do</strong> Rio Branconos anos 1870.A nobiliarquia americana, ainda que herdeira daportuguesa, só reconhecia títulos de nobreza estrangeirosvalida<strong>do</strong>s pelo impera<strong>do</strong>r. Os títulos concedi<strong>do</strong>s no<strong>Brasil</strong> não eram hereditários, o que, na prática, tinha ointuito de criar uma aristocracia meritocrática, o que evidenciamais um afastamento <strong>do</strong> Antigo Regime clássico.Havia, no entanto – e isso é o que se enfatiza na tradiçãoposterior de crítica liberal ao impera<strong>do</strong>r, sobretu<strong>do</strong> apóssua abdicação –, vários resquícios absolutistas presentesno texto constitucional. A “tríade maldita” que os liberaistentaram sem sucesso abolir no perío<strong>do</strong> regencial eracomposta <strong>do</strong> Sena<strong>do</strong> vitalício, <strong>do</strong> Conselho de Esta<strong>do</strong> e<strong>do</strong> Poder Modera<strong>do</strong>r.No caso <strong>do</strong> Sena<strong>do</strong>, sua vitaliciedade era uma formaintermediária entre um modelo republicano de legislaturase um modelo consuetudinário inglês, da Câmara <strong>do</strong>sLordes. Trata-se, sem dúvida, de inovação liberalizanteem relação a uma assembleia de aristocratas hereditária.Os sena<strong>do</strong>res brasileiros eram eleitos, e uma lista trípliceera submetida ao impera<strong>do</strong>r 39 . Não havia nenhuma exigênciade titulação. Ao fim e ao cabo, a verdade é que oSena<strong>do</strong> se tornou, ao longo <strong>do</strong> Império, uma casa profundamenteconserva<strong>do</strong>ra e voltada para os interessesda Coroa, o que fazia dele um alvo frequente <strong>do</strong>s liberaismais radicais.O Conselho de Esta<strong>do</strong> existia desde o perío<strong>do</strong> joaninoe foi restaura<strong>do</strong> depois da independência com oobjetivo de fazer a Constituição após o fechamento daAssembleia em novembro de 1823. Ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> o órgãoque elaborou a Constituição, é bem natural que seu papelno novo regime seja de destaque e ainda mais naturalque acabe por concentrar os ódios <strong>do</strong>s liberais, que oextinguem assim que conseguem (1834). Tratava-se deórgão exclusivamente consultivo, vincula<strong>do</strong> ao PoderModera<strong>do</strong>r. Não era um poder à parte. O Conselho sofreriamodificações em seu tamanho e organização aolongo <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> imperial.39 O impera<strong>do</strong>r não abria mão da escolha <strong>do</strong>s sena<strong>do</strong>res em lista tríplice. Emalguns casos, a escolha de um sena<strong>do</strong>r que não era o preferi<strong>do</strong> por seusministros provocou crises de gabinete que se tornaram crises políticas.O mais famoso deles é o pretexto para a demissão coletiva <strong>do</strong> gabineteprogressista de 1868, quan<strong>do</strong>, em julho desse ano, Zacarias de Góis eVasconcelos se demite sem indicar sucessor. Embora o pano de fun<strong>do</strong> fossea Guerra <strong>do</strong> Paraguai e os confrontos com Caxias, o ministro da Guerra, opretexto foi a escolha de um sena<strong>do</strong>r que não era da preferência <strong>do</strong> chefede gabinete.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>84Inicialmente com <strong>do</strong>ze membros, foi extinto peloAto Adicional de 1834 e seria restaura<strong>do</strong> e amplia<strong>do</strong> como fim da Regência em 1841. Os conselheiros dividiam-seem quatro subgrupos, de acor<strong>do</strong> com as atribuições <strong>do</strong>sprincipais temas <strong>do</strong> Império brasileiro: Império, Justiça,Guerra e Relações Exteriores, e Fazenda. Os conselheiroseram vitalícios e se especializavam em determina<strong>do</strong>s temas,mas frequentemente eram convoca<strong>do</strong>s pelo impera<strong>do</strong>rpara deliberar coletivamente em casos de destituiçãode gabinete e/ou dissolução da Assembleia. As consultasnão eram vinculantes e não produziam decisões, apenassugestões. No texto original da Constituição, o impera<strong>do</strong>rera obriga<strong>do</strong> a consultar o Conselho de Esta<strong>do</strong> nos casosque envolvessem o uso <strong>do</strong> Poder Modera<strong>do</strong>r, mas não necessariamentea seguir suas recomendações. No Segun<strong>do</strong>Reina<strong>do</strong>, essa obrigatoriedade cairia, mas, ainda assim, oimpera<strong>do</strong>r quase sempre consulta o Conselho de Esta<strong>do</strong>e mantém suas recomendações. Houve casos, entretanto,em que o impera<strong>do</strong>r consultou o Conselho de Esta<strong>do</strong> etomou uma decisão diferente.A vitaliciedade <strong>do</strong>s conselheiros dava ao órgão umaperenidade, uma resiliência institucional que foi um elementopositivo de continuidade política no Império. Teveimpacto sobretu<strong>do</strong> no exercício da política externa. Muitos<strong>do</strong>s conselheiros haviam si<strong>do</strong> ministros uma ou muitasvezes antes de serem nomea<strong>do</strong>s para o Conselho, ten<strong>do</strong>por isso ampla experiência administrativa e legal. Seuspareceres são sempre objetivos, e a leitura deles, compila<strong>do</strong>s40 que foram por José Honório Rodrigues para o Sena<strong>do</strong>Federal na década de 1970, ainda hoje surpreende pelainteligência e segurança. São verdadeiras aulas de políticae de direito constitucional.Por último, o Poder Modera<strong>do</strong>r, que tinha atribuiçõesvinculadas à própria pessoa <strong>do</strong> monarca, que eratambém o titular <strong>do</strong> Poder Executivo. Este era exerci<strong>do</strong>por delegação aos ministros 41 , e, após 1847, aos presidentesde Conselho de Ministros; aquele, exclusivamentepelo impera<strong>do</strong>r ou por seu regente. Como titular de <strong>do</strong>is<strong>do</strong>s quatro poderes, o Impera<strong>do</strong>r tinha, portanto, enormeconcentração de autoridade e de atribuições constitucionais.No caso <strong>do</strong> Poder Modera<strong>do</strong>r, eram suas atribuições:assinatura de trata<strong>do</strong>s 42 , concessão de títulos de nobreza,declaração de guerra, convocação e dissolução da Assembleia,livre demissão de ministros e comutação das penas<strong>do</strong>s réus condena<strong>do</strong>s, entre muitas outras.Qual era o propósito de Benjamin Constant, o suíço,ao sugerir a criação de um poder “modera<strong>do</strong>r”? Certamentenão era que fosse o que se tornou no <strong>Brasil</strong>, um40 Atas completas disponíveis em: . Acesso em: 6/1/2013.41 Foram seis as pastas que perduraram ao longo de to<strong>do</strong> o Império brasileiro:Guerra, Marinha, Justiça, Império, Negócios Estrangeiros e Fazenda.42 Estes só precisavam ser ratifica<strong>do</strong>s pelo Legislativo se houvesse cessão e/oupermuta de território nacional.


85O Processo de Independência(1808-1831)instrumento de legitimação de uma autoridade quase absoluta.Constant era um liberal e buscava um meio-termoentre o absolutismo e o modelo inglês, no qual o PoderExecutivo era completamente subordina<strong>do</strong> ao Legislativo,a ele responden<strong>do</strong> e perante ele se responsabilizan<strong>do</strong>. OPoder Modera<strong>do</strong>r foi cria<strong>do</strong> para evitar um Executivo irresponsável.Este responderia não à Câmara, mas ao PoderModera<strong>do</strong>r. Não foi o que se deu no <strong>Brasil</strong>. O impera<strong>do</strong>ré declara<strong>do</strong> inviolável e irresponsável na Constituição de1824, o defensor perpétuo <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. Para liberais como FreiCaneca, não é tão diferente <strong>do</strong> que era no absolutismo epor isso se insurgiu contra o Poder Modera<strong>do</strong>r.Os liberais limitarão o exercício <strong>do</strong> Poder Modera<strong>do</strong>rpor parte <strong>do</strong> regente após a abdicação e ao longo <strong>do</strong>Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>, em grande parte por causa da autocontençãode Pedro II. O modelo constitucional brasileiro vaise aproximan<strong>do</strong> da prática liberal parlamentarista britânica,em que os ministros se acostumam a ir ao Parlamentopara dar explicações sobre os atos <strong>do</strong> governo. Foi umaacomodação histórica que se deu na prática e com o tempo,muito graças à experiência regencial de fortalecimentolegislativo e também em parte ao temperamento <strong>do</strong> segun<strong>do</strong>monarca. Não foi o que se percebeu ao longo <strong>do</strong>Primeiro Reina<strong>do</strong>, em que a própria outorga da Constituiçãomotivou sedições em Pernambuco e na Cisplatina.Em Pernambuco, rearticulam-se os mesmos interessesque já se haviam insurgi<strong>do</strong> contra o governo de D. João IVem 1817. Os liberais, insatisfeitos com o fechamento daConstituinte e com a Constituição outorgada, mais umavez se rebelam e proclamam a República 43 . O papel da imprensafoi bastante relevante e convém destacar as figurasde Cipriano Barata – médico que criou o jornal Sentinelada Liberdade, defenden<strong>do</strong> a liberdade de imprensa, comimita<strong>do</strong>res em to<strong>do</strong> o <strong>Brasil</strong> – e <strong>do</strong> frade Joaquim <strong>do</strong> Amor<strong>do</strong> Divino Espírito Santo, conheci<strong>do</strong> popularmente em Recifecomo Frei Caneca e que veiculava, por meio impresso,uma série de diatribes contra o Poder Modera<strong>do</strong>r, contra oabsolutismo <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r, que evidenciava mais uma veza participação <strong>do</strong> clero liberal radical herdeiro <strong>do</strong>s padresde 1817.A adesão das províncias <strong>do</strong> Norte ao impera<strong>do</strong>rera, em grande medida, uma questão fiscal. Havia enormeexpectativa de alívio fiscal, sobretu<strong>do</strong> para os pernambucanos– pernambucanos no senti<strong>do</strong> amplo, pois, até recentemente,paraibanos, cearenses, alagoanos e potiguares eram43 Inaugura<strong>do</strong>r de to<strong>do</strong> um ramo dissidente da historiografia brasileira, oembaixa<strong>do</strong>r Eval<strong>do</strong> Cabral de Mello é crítico aos historia<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Sudesteque consideram Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais os construtoresda nacionalidade brasileira. Mello defende que o contexto <strong>do</strong> Nordeste eramuito distinto <strong>do</strong> Centro-Sul. Se, no Rio de Janeiro, a questão era o lugar<strong>do</strong> país no contexto político de um Esta<strong>do</strong> constitucionaliza<strong>do</strong>, em Recife aquestão que se punha era a luta da Colônia contra a metrópole. Ele acreditaque é mais justo falar em autonomismo nordestino <strong>do</strong> que ceder à tentação“saquarema” de legar aos pernambucanos a pecha de separatistas. Para esseautor, 1824 é a simples continuidade da luta da Colônia contra a metrópoleno Nordeste, mas a metrópole, desde muito, agora estava no Rio de Janeiro.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>86também pernambucanos 44 – que vinham sen<strong>do</strong> achaca<strong>do</strong>spelo Rio de Janeiro, a nova metrópole desde 1808. Com adeterioração da situação financeira, o alívio não veio. O caféainda não era significativo, e o açúcar e o algodão nordestinosprecisavam continuar a pagar a conta da criação deum Esta<strong>do</strong> cujas rendas da alfândega estavam reduzidas por“trata<strong>do</strong>s desiguais”.A Confederação acaba sen<strong>do</strong> debelada com vigor.As garantias constitucionais foram suspensas na província.O Almirante Cochrane bombardeia Recife enquanto tropas<strong>do</strong> Brigadeiro Lima e Silva, pai <strong>do</strong> futuro Duque de Caxias,invadem Pernambuco pela Bahia, e Frei Caneca torna-se aprimeira vítima <strong>do</strong> modelo repressivo que se estabelece apartir de então. Foram onze condena<strong>do</strong>s à morte, três <strong>do</strong>squais no Rio de Janeiro. Frei Caneca subestimou, segun<strong>do</strong>Eval<strong>do</strong> Cabral de Mello, os meios à disposição <strong>do</strong> Impera<strong>do</strong>re superestimou a vontade de resistência nordestinacontra o “despotismo fluminense”. Terminaria captura<strong>do</strong>em novembro e, em 20 de dezembro, condena<strong>do</strong> sumariamenteà morte por enforcamento em virtude de crimede sedição. Em 13 de janeiro de 1825, acabaria arcabuza<strong>do</strong>,“visto não poder ser enforca<strong>do</strong> pela desobediência <strong>do</strong>scarrascos”, segun<strong>do</strong> consta da ordem da Comissão Militar.44 Com a Confederação, Pernambuco perderia ainda mais territórios, dessa vezpara a Bahia, que levou a margem esquerda <strong>do</strong> rio São Francisco.Já a Cisplatina drenaria os recursos <strong>do</strong> Império emuma guerra que era a simples manutenção da lógica externaportuguesa pelo país recém-independente. Semmaior apoio da opinião pública, o impera<strong>do</strong>r insiste emuma guerra que não pode ganhar. Ao contrário, permiteo fortalecimento institucional de Buenos Aires no controleda frágil Confederação das Províncias Unidas <strong>do</strong> Prata e,ao final, é obriga<strong>do</strong> a aceitar intermediação britânica, que,por motivos próprios, impõe-se aos <strong>do</strong>is la<strong>do</strong>s atola<strong>do</strong>s,em um desgastante impasse político-militar, e força o reconhecimentoda independência uruguaia.A renovação <strong>do</strong>s privilégios é consequência <strong>do</strong>mo<strong>do</strong> centraliza<strong>do</strong> e excludente pelo qual foram negocia<strong>do</strong>sos trata<strong>do</strong>s de reconhecimento com Portugal ecom a Inglaterra. Situação sui generis na América Latina, anegociação foi trilateral, e não bilateral. A dificuldade <strong>do</strong>sportugueses em aceitar o fato consuma<strong>do</strong>, insistin<strong>do</strong> emfórmulas que mantivessem o vínculo com a antiga Colônia,atrasou o reconhecimento, cujas reuniões entre osrepresentantes das duas coroas tanto no Rio de Janeiro,em 1823, quanto em Londres, em 1824, não chegaram àconclusão alguma. Oferece então George Canning mediaçãoinglesa, aceleran<strong>do</strong>, como era de seu interesse, oreconhecimento. Pressiona Portugal que acaba dan<strong>do</strong> aCharles Stuart carta plenipotenciária de D. João para o reconhecimento<strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>.


87O Processo de Independência(1808-1831)As concessões feitas a Portugal, no entanto, não forampequenas e geraram vivas insatisfações. O título de impera<strong>do</strong>r<strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> era dividi<strong>do</strong> com o rei de Portugal até suamorte; abríamos mão de qualquer pretensão às colôniasafricanas, fornece<strong>do</strong>ras de mão de obra ao país, e aceitávamoso pagamento de indenização pela independênciae pelos bens da família real aqui deixa<strong>do</strong>s em soma quemontava a 2 milhões de esterlinas. Ficava ainda <strong>do</strong>cumentadaa humilhação de acatar a falsidade de que a independência,duramente conquistada com o derramamentode sangue brasileiro, havia si<strong>do</strong> livremente concedida porobra e graça <strong>do</strong> rei de Portugal.O grande silêncio <strong>do</strong> <strong>do</strong>cumento, e que causou suarepulsa também na metrópole, era a questão da sucessão.Nada estava defini<strong>do</strong>, e o impera<strong>do</strong>r <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, após a guerracom o pai, seguia sen<strong>do</strong> seu herdeiro no trono português.Fica patente que o interesse dinástico superava o interesseda nação brasileira, conforme afirma Ama<strong>do</strong> Cervo e Clo<strong>do</strong>al<strong>do</strong>Bueno. Pela mediação, ganham os ingleses leveragepara negociar com um gabinete dadivoso, que lhes oferecemais <strong>do</strong> que esperavam. Sem Parlamento, alija<strong>do</strong>s osnacionalistas como José Bonifácio, fica simples para CharlesStuart arrancar <strong>do</strong> Impera<strong>do</strong>r to<strong>do</strong>s os privilégios <strong>do</strong>strata<strong>do</strong>s de 1810, ainda agrava<strong>do</strong>s. Robert Gor<strong>do</strong>n substituiCharles Stuart justamente para conseguir ainda maisconcessões. A dependência agora também era financeira(empréstimos de 1824 que chegaram a 5 milhões de librasao final <strong>do</strong> Primeiro Reina<strong>do</strong>) e o compromisso, internacional,com valor de lei interna após a ratificação <strong>do</strong> trata<strong>do</strong>de abolição <strong>do</strong> tráfico de escravos a partir de 1830, medidaconsiderada funesta pela elite latifundiária, excluída <strong>do</strong>processo decisório. A manutenção <strong>do</strong>s 15% concorre naturalmentepara o agravamento da situação econômica 45 ,que, por sua vez, agrava a indisposição generalizada paracom um impera<strong>do</strong>r considera<strong>do</strong> voluntarista e autoritário.Essa insatisfação se torna pública com a instalaçãoda primeira legislatura de 1827-30 na Câmara <strong>do</strong>s Deputa<strong>do</strong>se encontra eco em uma imprensa crescentementeatuante, ainda que constrangida pela ação <strong>do</strong> governo.Os deputa<strong>do</strong>s não se melindravam em críticas aos funestostrata<strong>do</strong>s desiguais, e a apreciação da situação econômicacriava um clima de hostilidade. Em 1828, o deputa<strong>do</strong>liberal Bernar<strong>do</strong> Pereira de Vasconcelos propõe e faz aprovarlei que, apesar de ter como intuito evitar o monopóliobritânico <strong>do</strong> comércio brasileiro, agrava ainda mais o problemaao estender aos demais países amigos a tarifa preferencialde 15%, anulan<strong>do</strong>, na prática, o privilégio inglês.O Banco <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, por iniciativa da Assembleia, foi liquida<strong>do</strong>em 1829, depois da descoberta de um passivo imensoe de numerosas malversações de seus administra<strong>do</strong>res.45 Convém recordar que D. João secara as reservas <strong>do</strong> Banco <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> antes departir para o reino em 1821.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>88Os gastos com a Cisplatina, a concorrência <strong>do</strong> açúcar debeterraba e, sobretu<strong>do</strong>, o até então desconheci<strong>do</strong> processoinflacionário motiva<strong>do</strong> pela inclusão <strong>do</strong> cobre nasmoedas de ouro e prata vão minan<strong>do</strong> o apoio ao primeiroimpera<strong>do</strong>r, ao mesmo tempo que revivem, de mo<strong>do</strong>ainda mais agressivo, as manifestações antilusitanas queterminam, não raro, em pancadaria. O nome pelo qualpassaram à história não deixa dúvida disso. Para citarmosapenas duas: a Noite das Garrafadas no Rio de Janeiro ea Revolta <strong>do</strong>s Mata-Marotos na Bahia, já depois da abdicação.O quadro favorece a impressão de desordemtrazen<strong>do</strong> à tona a já conhecida demofobia das elites assombradaspelo espectro <strong>do</strong> haitianismo. Em suas últimasaparições públicas, o defensor perpétuo <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> erasauda<strong>do</strong> com gritos de vivas tipicamente cariocas: “Viva,D. Pedro... Segun<strong>do</strong>!”Outro elemento nem sempre lembra<strong>do</strong> foi a influênciada Revolução Francesa de 1830 sobre o povo <strong>do</strong> Rio deJaneiro e os liberais. Após o maelstrom causa<strong>do</strong> por Napoleão,a simbologia revolucionária era poderosíssima e, no<strong>Brasil</strong>, o impacto foi potencializa<strong>do</strong> pela visão, ainda no horizonte<strong>do</strong> mar, <strong>do</strong> navio francês de novo com a bandeiratricolor. Apenas no dia seguinte, com o desembarque <strong>do</strong>smarinheiros, chegou a notícia de deposição <strong>do</strong>s Bourbon ea subida ao trono de Luís Felipe, “o rei burguês”. A comoçãopela bandeira tricolor era imensa. Significava a coragemde um povo para, por meio de um levante popular, umarevolução, derrubar – mais uma vez – seu monarca e imporum regime liberal. A bandeira tricolor significava a soberaniapopular que encontrava eco na imprensa. Jornalistascomo Evaristo da Veiga, no Rio de Janeiro, e Libero Badaró,em São Paulo, favoreciam a mobilização não apenas <strong>do</strong>ssetores letra<strong>do</strong>s e liberais mas também <strong>do</strong> povo, que tomavaconhecimento oralmente das notícias e <strong>do</strong>s panfletos.O assassinato de Libero Badaró por autoridades da intendênciade São Paulo – um <strong>do</strong>s alvos de seu jornal – mobilizaos estudantes paulistas e causa comoção.Faltou igualmente habilidade política ao impera<strong>do</strong>rpara transigir, negociar ou aplacar os ânimos liberais.Tinha ele ainda amplo respal<strong>do</strong> de setores populares queviam na monarquia um caráter quase sagra<strong>do</strong>. No entanto,de mau passo em mau passo, foi se afastan<strong>do</strong> <strong>do</strong>s brasileirosao cercar-se de portugueses, inclusive nomean<strong>do</strong> ofatídico Ministério <strong>do</strong>s Marqueses, um gabinete compostode aristocratas lusos que aumentava a impressão derecolonização e de falta de independência. Os liberaisidentificavam claramente, na permanência <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r,a permanência <strong>do</strong>s vínculos com Portugal. Seu afastamentoseria a verdadeira independência; e deveria ser rápi<strong>do</strong> esem conflitos para evitar a ampla mobilização popular quepoderia se suceder em um contexto de crescente radicalização.Ninguém queria estimular mais jacobinos, muitomenos a elite liberal brasileira, que, ao olhar para as ruas,temia bem mais que Robespierres, Toussaint L’Ouvertures...


89O Processo de Independência(1808-1831)Como é frequente em nossa história, evitou-se amobilização popular. O impera<strong>do</strong>r abdicou em 7 de abrilde 1831, depois de perder o apoio até de setores das ForçasArmadas. A recém-criada Guarda Nacional no Rio deJaneiro, sob a liderança <strong>do</strong> Brigadeiro Lima e Silva, apoiao movimento opositor, e Pedro I parte imediatamente emuma corveta inglesa para Londres. Ten<strong>do</strong> evita<strong>do</strong> com seugesto a guerra civil brasileira, ainda teria de lutar, em seucurto tempo de vida, contra seu irmão Miguel, uma guerracivil em Portugal.Chegavam ao poder os liberais e enfraquecia-se afacção portuguesa (caramuru). Nessa “segunda independência<strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>”, os liberais acreditavam ter se livra<strong>do</strong> parasempre <strong>do</strong> jugo <strong>do</strong> absolutismo. Teria início o governo <strong>do</strong>srepresentantes da nação, mas esses representantes eram, ese tornariam com o tempo, ainda mais conserva<strong>do</strong>res emseus propósitos. Em sua maior parte, eram proprietários deescravos. Embora simpáticos ao liberalismo político, nãoqueriam saber de reformas revolucionárias ou jacobinaspara a sociedade. A revolução se iniciara e se esgotara nosete de abril. Fim. Os que discordassem – e não eram poucos– eram tacha<strong>do</strong>s de “exalta<strong>do</strong>s”.Eis então o grande pomo da discórdia da políticabrasileira em seus primórdios. O que era ser liberal? Nãohavia consenso. Como tu<strong>do</strong> em política, trata-se de umaquestão de percepção que só se define de mo<strong>do</strong> relacional.Compara<strong>do</strong> com os caramurus portugueses, os novos<strong>do</strong>nos <strong>do</strong> poder pareciam bem liberais. Suas reformas limitariamo absolutismo e o poder central. Compara<strong>do</strong>s aosexalta<strong>do</strong>s, eram semelhantes aos corcundas. Defensoresda escravidão, <strong>do</strong> latifúndio, <strong>do</strong> voto censitário, da unidadeterritorial a qualquer preço, em suma, da ordem. Em nomeda ordem se livraram de Pedro I, pela ordem governariamem nome de Pedro II. Repudiam manifestações populares,desprezam o povo das ruas cada vez mais mobilizadas, autointitulam-se“modera<strong>do</strong>s”. São esses indivíduos, em suacontradição “liberal”, que governarão o <strong>Brasil</strong> ao longo <strong>do</strong>perío<strong>do</strong> regencial, de 1831 a 1840.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>902.3 A política externa no <strong>Brasil</strong> entre 1808 e 1831Política <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> e política no <strong>Brasil</strong>. Marcos gerais dainserção internacional da nação em formação. A abertura<strong>do</strong>s portos e os trata<strong>do</strong>s desiguais (1808-10). A invasão deCaiena. A questão platina. As negociações diplomáticaspara o casamento <strong>do</strong> príncipe Pedro. Independência ereconhecimento. O reconhecimento <strong>do</strong>s demais países.Avaliação geral da atuação externa brasileira.O perío<strong>do</strong> entre 1808 e 1831 é de importância determinantepara a futura inserção internacional <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> por setratar da formação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> nacional independente. Aindaque nominalmente Colônia de Portugal até 1815 e ReinoUni<strong>do</strong> a partir de então, já se percebem as linhas gerais daatuação externa <strong>do</strong> futuro país independente desde 1808.Para o diplomata e cientista político Paulo Robertode Almeida, o que há no perío<strong>do</strong> joanino é uma políticaexterna feita no <strong>Brasil</strong>. Isso não significa dizer que issonão tenha ti<strong>do</strong> impacto determinante na vida nacional daantiga Colônia. Os interesses coloniais já estavam se constituin<strong>do</strong>mesmo que não houvesse, na cúpula <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>português, presença significativa de políticos brasileirosque representassem as demandas da nação.Das três grandes questões que envolviam Portugalno Congresso de Viena, em 1815, duas tinham mais aver com a Colônia <strong>do</strong> que com a metrópole. A decisão dedesocupação portuguesa nas Guianas e o tráfico negreiroeram assuntos mais brasileiros que reinóis. O único casodiscuti<strong>do</strong> no Congresso de Viena que dizia respeito exclusivamenteà antiga metrópole foi a questão da praça-fortede Olivença, que havia si<strong>do</strong> conquistada pelos espanhóisem 1801. Sen<strong>do</strong> o foro multilateral mais importante da história<strong>do</strong> século XIX, tais observações são evidências de quea política externa feita no <strong>Brasil</strong> pelo governo portuguêsteve um impacto significativo na região colonial.Quais são as diretrizes gerais da inserção internacionaldessa nação em formação a partir de 1808 – processoque Sérgio Buarque de Holanda chama de “transação <strong>do</strong>perío<strong>do</strong> colonial para o perío<strong>do</strong> emancipa<strong>do</strong>”?O contexto internacional diferenciava notoriamenteo <strong>Brasil</strong> de seu entorno regional. Já em curso desde 1807, osincipientes processos de independência, fracamente articula<strong>do</strong>s(com exceção de Buenos Aires, que tinha algum graude independência externa), sem governos constituí<strong>do</strong>s, semexércitos nacionais e, invariavelmente, derrota<strong>do</strong>s pelo menosaté 1817 contrastavam com o caso <strong>do</strong> brasileiro. Aqui aautoridade foi mantida dentro de um modelo dinástico absolutista.Assim, os interesses da dinastia acabavam prevalecen<strong>do</strong>em detrimento <strong>do</strong>s interesses da nação ou <strong>do</strong> povo 46 .46 Um exemplo da prevalência <strong>do</strong>s interesses dinásticos foi a missão Marialvaà Corte de Viena, cujo objetivo era conseguir a mão da arquiduquesaCarlota Josefa Leopoldina para se casar com o príncipe herdeiro, D. Pedro.


91O Processo de Independência(1808-1831)Em pelo menos <strong>do</strong>is escritos sobre o perío<strong>do</strong>, o embaixa<strong>do</strong>rRubens Ricupero diferencia as ações diplomáticasem <strong>do</strong>is eixos: no eixo simétrico, seriam organizadas asrelações com os países vizinhos da América, nas quais ouo diferencial de poder bilateral não era muito significativo,ou, quan<strong>do</strong> significativo, favorecia o Rio de Janeiro; no eixoassimétrico, as relações de poder são desfavoráveis a Portugale ao <strong>Brasil</strong>, e se concentram nas relações europeias,notadamente com a Inglaterra.As relações de dependência da Coroa portuguesapara com a Inglaterra vinham desde a restauração bragantinae poderiam ser consideradas quase uma característicaatávica da história da dinastia. Desde os anos de1640, sucessivos trata<strong>do</strong>s comerciais e alianças dinásticasentre Lisboa e Londres vinham estreitan<strong>do</strong> os laços entreos <strong>do</strong>is países, em uma relação de crescente subordinação,da qual o famoso Trata<strong>do</strong> de Methuen era o exemplo maisnotório. Apesar <strong>do</strong>s esforços moderniza<strong>do</strong>res <strong>do</strong> MarquêsMarialva teve gastos exorbitantes autoriza<strong>do</strong>s pela Coroa portuguesa paraimpressionar a Corte de Viena, chegan<strong>do</strong> a proporcionar festa para mais dequatrocentos convida<strong>do</strong>s nos jardins da embaixada alugada em Viena. Alidistribuiu ouro e diamantes para to<strong>do</strong>s os presentes. Uma joia especial emque aparecia a figura <strong>do</strong> mancebo real, D. Pedro I, foi entregue à princesa,causan<strong>do</strong> furor junto à Corte. Estima-se que Marialva tenha gasta<strong>do</strong> emsua missão cerca de 1,5 milhão de francos, o que na época era uma fortunaextraordinária. Observa<strong>do</strong>res contemporâneos comparavam a festa àsextravagâncias orientais <strong>do</strong>s potenta<strong>do</strong>s árabes. O objetivo desses gastosera legitimar o interesse da dinastia na aliança entre a casa de Bragança e acasa de Habsburgo.de Pombal, Portugal não havia consegui<strong>do</strong> viabilizar suaindependência efetiva em relação aos ingleses, fazen<strong>do</strong> <strong>do</strong><strong>Brasil</strong> uma espécie de “colônia da colônia”.Quan<strong>do</strong>, em 1808, o <strong>Brasil</strong> se tornou o centro político<strong>do</strong> Império português – a inversão colonial –, issotrouxe consequências funestas para a antiga metrópole efoi o principal motiva<strong>do</strong>r da Revolução <strong>do</strong> Porto de 1820.Sob as guerras napoleônicas, padecia Portugal e florescia o<strong>Brasil</strong>. Já era ruim para os portugueses arcar com os gastosde defesa de um reino que havia si<strong>do</strong> ocupa<strong>do</strong> e assola<strong>do</strong>.O direcionamento <strong>do</strong> comércio inglês para o <strong>Brasil</strong> pioravaa situação. Interrompida em 1808, a lucrativa reexportação<strong>do</strong>s produtos coloniais – que chegou, em alguns momentos,a cerca de 90% <strong>do</strong> total <strong>do</strong> comércio externo <strong>do</strong> reino– vai mergulhar Portugal em uma situação absolutamentecalamitosa.Cabem algumas palavras sobre os interesses ingleses.Se, por um la<strong>do</strong>, a Inglaterra não podia perder Portugal– alia<strong>do</strong> tradicional –, por outro, seguin<strong>do</strong> a lógica <strong>do</strong>plano traça<strong>do</strong> pelo Foreign Office desde William Pitt e quefoi defendi<strong>do</strong> abertamente por seu principal sucessor político,George Canning 47 , a Inglaterra precisava se vincular47 George Canning, homenagea<strong>do</strong> com nome de rua no bairro de Ipanema,no Rio de Janeiro, foi figura fundamental na chefia <strong>do</strong> Foreign Office nos <strong>do</strong>ismomentos seminais da inserção internacional <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, em 1808 e em 1822,quan<strong>do</strong> havia volta<strong>do</strong> ao poder em virtude <strong>do</strong> suicídio de Castlereagh.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>92ao <strong>Brasil</strong>. Isso havia fica<strong>do</strong> evidente e dramático a partir<strong>do</strong> bloqueio continental napoleônico, fazen<strong>do</strong> com que o<strong>Brasil</strong> se tornasse destino preferencial na América <strong>do</strong> Suldas exportações inglesas 48 . Essa situação, portanto, esclarecepor que a Inglaterra, em 1808, tinha fortes motivos defazer que a Colônia deixasse de ser Colônia, pelo menos nosenti<strong>do</strong> formal <strong>do</strong> exclusivo metropolitano.1808 e 1810: a abertura <strong>do</strong>s portos e os trata<strong>do</strong>sdesiguaisO caminho atlântico em detrimento da opção continentalevidenciava a continuidade de uma história secularde vinculação política e econômica com a Inglaterra.A base desse vínculo residia na defesa necessária de umpequeno reino contra um vizinho muito mais poderoso(a União Ibérica fazia recordar aos chefes portugueses osriscos para sua independência). Remontam da década de1640 as sucessivas alianças militares, dinásticas e os casa-48 Para a Inglaterra, o <strong>Brasil</strong> de fato é um alívio, um bálsamo comercial para asconsequências funestas que o bloqueio continental provocou no comércioinglês. O <strong>Brasil</strong> representava 50% de praticamente todas as exportações daInglaterra para a América Latina e era uma fração bastante significativa <strong>do</strong>total <strong>do</strong> comércio das Américas, perden<strong>do</strong> apenas para os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s.Uma parte significativa <strong>do</strong>s produtos ingleses, a partir de 1808, parava no<strong>Brasil</strong> para ser reexporta<strong>do</strong> para a região <strong>do</strong> Prata. Essa situação fazia que sóo <strong>Brasil</strong> representasse, por volta da primeira década <strong>do</strong> século XIX, mais <strong>do</strong>que toda a exportação britânica para a Ásia.mentos entre a família real inglesa e a família real portuguesa.A decisão de partir em 1807 é coerente com estatrajetória. Tratava-se de decisão inédita na história: transmigrartoda a alta cúpula <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> português e todas assuas instituições políticas, culturais e econômicas para umaColônia a milhares de quilômetros de distância 49 . Entretanto,em 1808, não estava ainda clara a submissão rigorosa daCoroa portuguesa aos interesses ingleses.Os termos práticos dessa “relação assimétrica” sãoda<strong>do</strong>s na transição entre o momento inicial da abertura<strong>do</strong>s portos e o ano de 1810, quan<strong>do</strong>, exatos <strong>do</strong>is anos depois,são assina<strong>do</strong>s os trata<strong>do</strong>s com a Inglaterra, inauguran<strong>do</strong>o regime <strong>do</strong>s trata<strong>do</strong>s desiguais. Há uma diferençanotória entre a abertura <strong>do</strong>s portos e os trata<strong>do</strong>s de 1810,que, em geral, é negligenciada pela historiografia, mas quefoi discutida recentemente por Ricupero. Este autor en-49 Essa decisão contrasta com a maneira como a historiografia retrata D. João,com o espírito indeciso, tími<strong>do</strong>, fraco, ignorante, absolutamente caricatura<strong>do</strong>,imagem essa que prevaleceu por to<strong>do</strong> o século XIX e foi resgatada no livro deManuel de Oliveira Lima, D. João VI no <strong>Brasil</strong>, publica<strong>do</strong> cem anos depois datransmigração. Voz dissonante na historiografia de sua época, Oliveira Lima(chama<strong>do</strong>, por isso, de D. Quixote gor<strong>do</strong> por Gilberto Freyre) tenta reabilitara figura joanina ao mostrar que D. João tomou a decisão correta ao optar porum caminho que garantiu a continuidade institucional e evitou o colapso <strong>do</strong>Império em meio à convulsão napoleônica que varria o Velho Continente.Ressalte-se ainda a inteligência <strong>do</strong> príncipe regente ao desembarcarprimeiro em Salva<strong>do</strong>r – segunda cidade mais importante da Colônia depois<strong>do</strong> Rio de Janeiro –, honran<strong>do</strong> seus súditos baianos e contribuin<strong>do</strong> para aunidade.


93O Processo de Independência(1808-1831)fatiza a distinção entre 1808 e 1810. Para Ricupero, 1810é uma ruptura com o espírito liberal presente em 1808.Em 1808, recusou-se à Inglaterra, por uma série de motivos50 – ausência temporária de Lord Strangford, influêncialiberal de José da Silva Lisboa etc. –, a ideia de uma aberturaexclusiva para os ingleses em um único porto brasileiro.Optou-se pela solução smithiana de abertura não restritivaa todas as nações amigas. O governo <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s,por exemplo, reabre quase imediatamente uma representaçãojunto à Corte portuguesa, que havia si<strong>do</strong> fechada emLisboa muito antes. O objetivo inglês, desde 1808, era quea Inglaterra tivesse um único porto, provavelmente o deSanta Catarina, onde ela pudesse desembarcar de maneiraexclusiva, o que não se verificou com a abertura <strong>do</strong>s portosnão restritiva de 1808. Esse sistema não excludente permanecerápor apenas <strong>do</strong>is anos, de janeiro de 1808 a fevereirode 1810.Em 1810, assistiu-se ao triunfo da diplomacia deStrangford após <strong>do</strong>is anos de pressão, além da canduracom que a recepção <strong>do</strong>s interesses ingleses foi recebidapelo ministro, chefe da facção britânica durante a disputaeuropeia, Rodrigo de Sousa Coutinho. Strangford receberá50 Ressalte-se ainda a velocidade da decisão sobre a abertura <strong>do</strong>s portos.D. João chegou ao <strong>Brasil</strong> em 22 de janeiro, em 24 de janeiro desembarca emSalva<strong>do</strong>r e em 28 de janeiro assina a carta régia. Tal celeridade contrasta coma indecisão notória <strong>do</strong> príncipe regente.bem mais <strong>do</strong> que previa. As relações assimétricas nuncaforam tão assimétricas, e Strangford explicita isso em seusdespachos, nos quais declara que o preço da proteção –feita a transmigração – seria a completa submissão e obediênciaa Londres.Os acor<strong>do</strong>s de 1810 foram consegui<strong>do</strong>s com relativafacilidade. Na conversa que Lord Strangford tem comD. Rodrigo de Sousa Coutinho, futuro Conde de Linharese espécie de eminência parda <strong>do</strong> governo de D. João, sãoestabeleci<strong>do</strong>s termos definitivos para os trata<strong>do</strong>s.Foram três os trata<strong>do</strong>s assina<strong>do</strong>s com os britânicos:Um político, de Aliança e Amizade; um econômico de Comércioe Navegação; e o ultimo logístico, sobre a troca decorreio por meio de paquetes. Sobressaem, sem sombrade dúvida, as tarifas de 15% dadas aos ingleses, que passavama gozar <strong>do</strong> status de nação mais favorecida, ou seja,no caso de qualquer outra nação receber menos de 15%,os ingleses deveriam ser beneficia<strong>do</strong>s com a mesma tarifa.Havia ainda o que Oliveira Lima chamou de “uma espéciede arreme<strong>do</strong> de reciprocidade”, com o direito de o <strong>Brasil</strong>colocar seus produtos nas colônias inglesas (nas Antilhas,por exemplo), mas isso era bastante improvável porquemuitos produtos coloniais brasileiros eram proibi<strong>do</strong>s deentrar na Inglaterra e assim permaneceram.O que ganha Portugal ao assinar trata<strong>do</strong>s que permitemà Inglaterra uma série de coisas formidáveis, tornan<strong>do</strong>o <strong>Brasil</strong> espécie de vassalo inglês? Basicamente


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>94segurança, proteção dinástica. Era fundamental, para Portugal,que fosse feita a defesa <strong>do</strong> reino português, perdi<strong>do</strong>para os franceses e sem chance de recuperação semo apoio da Marinha inglesa. Os ingleses reconhecem, noprimeiro trata<strong>do</strong>, que a dinastia de Bragança era a única legítima.Tratava-se de uma preocupação relevante em um contextode proliferação de reis com o sobrenome Bonaparteque se espalhavam pela Europa, substituin<strong>do</strong>, com o apoioda Grande Armée, as dinastias consideradas legítimas.Além <strong>do</strong>s 15% de tarifa, a Inglaterra tinha o direitode vistoriar os navios portugueses; abastecer – ainda quenão comerciar – no litoral <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>; permissão para fazercomércio nos quatro principais portos abertos na Colônia;o direito de reexportação de produtos sem a taxa de15% no porto de Santa Catarina, pagan<strong>do</strong> apenas 5% dedesembaraço (esses produtos iam para o Prata ou paraValparaíso); o direito de que os súditos ingleses, protestantesem sua maioria, desembarcassem, fossem recebi<strong>do</strong>s eestabelecessem residência na Colônia sem que fossempersegui<strong>do</strong>s por questões religiosas. Era o fim <strong>do</strong> poderda Inquisição, instituição temível nos séculos anterioresem um Esta<strong>do</strong> cujo catolicismo era a religião oficial. Nasgrandes cidades, são abertos cemitérios para os inglesesenterrarem seus mortos.Humilhante é o direito que o Trata<strong>do</strong> de Aliança eAmizade confere aos ingleses residentes: elegerem porconta própria, sob o beneplácito <strong>do</strong> príncipe, um juiz,chama<strong>do</strong> conserva<strong>do</strong>r, para julgá-los em caso de crimes,livran<strong>do</strong>-os da jurisdição legal portuguesa. Tal direito,afrontoso à soberania nacional, seria novamente concedi<strong>do</strong>no momento <strong>do</strong> reconhecimento da independência.Tu<strong>do</strong> isso demonstrava que o Império português estavade joelhos para a Inglaterra, e as relações <strong>do</strong> eixo assimétricose tornam, em 1810, profundamente subordinadas 51 ,ao menos até o fim das guerras napoleônicas. Depois de1814, no entanto, tal esta<strong>do</strong> de coisas começa a incomodaro governo português no <strong>Brasil</strong>.Assim, nos anos que se seguiram à queda de Napoleão,percebe-se alguma diminuição da influência britânica,até então hegemônica. No quadro de diversificação deparcerias, D. João se reaproxima <strong>do</strong>s franceses e <strong>do</strong>s austríacos.Com a França, o flerte começa graças à concertaçãoem Viena entre o Conde de Palmela e Talleyrand, quesugeriu a elevação <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> à categoria de Reino Uni<strong>do</strong>a Portugal. A devolução de Caiena, em 1817, e o patro-51 Surpreende que a avaliação <strong>do</strong> Visconde de Cairu sobre os trata<strong>do</strong>s tenhasi<strong>do</strong> positiva para com os trata<strong>do</strong>s de 1810. Argumentava Cairu que seriarealizada a verdadeira vocação agrícola <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. Jorge Caldeira nos lembraque o visconde, como bom súdito, estava dentro da lógica <strong>do</strong> AntigoRegime e obedecia à Coroa e aos trâmites <strong>do</strong> Antigo Regime usan<strong>do</strong> seupoder hermenêutico para justificar o injustificável – o trata<strong>do</strong> e seus efeitossão consensualmente considera<strong>do</strong>s funestos pela historiografia de onteme de hoje. O liberalismo de Cairu restringia-se aos temas econômicos, enão aos políticos, e seu entendimento <strong>do</strong>s trata<strong>do</strong>s de 1810 era político.O trata<strong>do</strong> era necessário para a manutenção da dinastia de Bragança, aindaque o acor<strong>do</strong> fosse negativo para o restante <strong>do</strong> povo ou para a elite <strong>do</strong> reino.


95O Processo de Independência(1808-1831)cínio à vinda de artistas franceses para o <strong>Brasil</strong>, em 1816,completam o quadro 52 . Com os austríacos, potência continentalque dividia os louros da vitória com os ingleses e anfitriã<strong>do</strong> Congresso restaura<strong>do</strong>r, as pretensões eram aindamais ambiciosas. Tratava-se de uma aliança dinástica pormeio <strong>do</strong> casamento <strong>do</strong> herdeiro <strong>do</strong> trono português comuma princesa de Habsburgo.Merecem alguma atenção as negociações diplomáticaspara o casamento <strong>do</strong> príncipe Pedro. O Marquêsde Marialva vai à Áustria e promove gastos suntuosos parapromover a figura <strong>do</strong> príncipe. Consegue que os Habsburgoconcedam uma de suas muitas arquiduquesas para casar-secom um príncipe de um país exótico que morava em outrocontinente. Para não dizer que não há amor na história, tantoOliveira Lima quanto Honório Rodrigues enfatizam que a“pessoa garbosa <strong>do</strong> noivo” foi aspecto importante a influirna decisão e que a arquiduquesa, muito antes de chegar ao<strong>Brasil</strong>, já estava apaixonada pelo príncipe. A busca de umnovo alia<strong>do</strong> que se contrapusesse ao enfraquecimento <strong>do</strong>peso britânico era necessária. Portugal temia que uma Espanhareconstituída alimentasse anseios hegemônicos pelaBanda Oriental. Havia o temor de que os espanhóis enviassemtropas ou navios para a Banda Oriental para resistirem52 É certo que esses artistas eram bonapartistas caí<strong>do</strong>s em desgraça, mas éigualmente certo que tal acor<strong>do</strong> media<strong>do</strong> pelo Conde da Barca não teriasi<strong>do</strong> possível no quadro de guerra anterior a 1814.à nova intervenção de 1816, e é justamente nesse contextoque se dão as negociações para o matrimônio 53 .A princesa, porém, teve muita dificuldade parachegar ao <strong>Brasil</strong>. A rebelião pernambucana de 1817 chegaa Viena e é habilmente explorada pelos ingleses, quedefendiam que a princesa esperasse seu noivo em Lisboa.Era um mo<strong>do</strong> de pressionar a família real a retornar,maximizan<strong>do</strong> sua influência em declínio sobre o príncipeno <strong>Brasil</strong> 54 . Metternich, no entanto, a<strong>do</strong>ta postura naturalmenteconserva<strong>do</strong>ra. Era essencial dar apoio a D. Joãocontra os revolucionários liberais, e a simbologia da viagemda princesa – já casada por procuração em Viena –passava a ser ainda mais relevante. Leopoldina chega ao<strong>Brasil</strong> e é a<strong>do</strong>tada com carinho pelos brasileiros, mas nemtanto assim por seu noivo, menos interessa<strong>do</strong> nos intelectuaisda missão científica que vieram com a princesa<strong>do</strong> que nas numerosas amantes que colecionou no <strong>Brasil</strong>.53 Os espanhóis, por sua vez, buscavam uma aproximação com os russos.Chegou a haver o boato de que proporiam a cessão da ilha de Minorcacomo base mediterrânea para a eventual aliança com a Marinha russa,o que provocou temores na Corte portuguesa <strong>do</strong> Rio de Janeiro. E sesolda<strong>do</strong>s russos ou navios espanhóis e russos se pusessem a praticaraventuras sul-americanas na Banda Oriental? O casamento de Pedro comLeopoldina era fundamental para estabelecer uma blindagem austríaca àpotencial aliança russo-espanhola.54 A presença de Leopoldina seria também, argumentavam os ingleses, ummo<strong>do</strong> de acalmar os súditos <strong>do</strong> reino, insatisfeitos com a demora de D. Joãoem voltar para Portugal. A Áustria, contu<strong>do</strong>, manteve-se fiel à aliança com aCoroa portuguesa e deu ordens para que Leopoldina atravessasse o Atlântico.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>96Contu<strong>do</strong>, nem só de relações assimétricas vivia o governo<strong>do</strong> Rio de Janeiro. Também no entorno regional a chegadada Corte provocou evoluções relevantes, ainda que setenha manti<strong>do</strong> o padrão histórico de atuação portuguesa.O contexto de guerra europeia estimula a a<strong>do</strong>ção de umapolítica fortemente intervencionista na América. Os inimigosfranceses são ataca<strong>do</strong>s em Caiena com o apoio da Marinhainglesa, fican<strong>do</strong> a Guiana Francesa sob ocupação portuguesaaté 1817. Ao sul foram duas as intervenções na BandaOriental, que, incorporada em 1821 sob o nome de Cisplatina,aumentou o tamanho <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, que se torna independenteem 1822.O motivo principal da ocupação de Caiena era anecessidade de retomar a chamada “Guiana brasileira”,perdida na brevíssima guerra de 1801. Tratava-se da regiãoentre o Araguari e o Oiapoque que era controversadesde Utrecht, cuja solução só viria mediante arbitragemSuíça em 1900. Já os objetivos das intervenções platinasdiferem e são mais complexos. Em 1808, D. Rodrigo deSousa Coutinho, ao desembarcar na cidade <strong>do</strong> Rio de Janeiro,declara que o cabil<strong>do</strong> da região está sob a proteçãoda Corte <strong>do</strong> Rio de Janeiro, da<strong>do</strong> o colapso da Coroa espanholacom a abdicação de seu rei 55 . O cabil<strong>do</strong> natural-55 Os espanhóis não aceitam a abdicação, juntan<strong>do</strong>-se no parti<strong>do</strong> deD. Fernan<strong>do</strong> VII, filho <strong>do</strong> rei, que era prisioneiro <strong>do</strong>s franceses, geran<strong>do</strong> umamente recusa essa proteção, o que motiva a intervençãode 1811.Logo após a chegada das tropas portuguesas, há umentendimento com o vice-rei, Francisco Javier de Elio, quefoi nomea<strong>do</strong> pelo conselho de regência de Cádiz e chegoua Montevidéu em janeiro de 1811. Em outubro desse mesmoano, ele assina a pacificação, e as tropas luso-brasileirasse retiram. Esse acor<strong>do</strong>, entretanto, não foi aceito por JoséArtigas, caudilho da Banda Oriental que não concorda nemcom as ações imperialistas <strong>do</strong> governo <strong>do</strong> Rio de Janeiro,nem com as pretensões anexa<strong>do</strong>ras das Províncias Unidas.Artigas, considera<strong>do</strong> precursor <strong>do</strong> movimento de independênciauruguaio, começa um movimento de resistênciaque vai acabar redundan<strong>do</strong> na necessidade de uma novaintervenção 56 .Os ingleses não viam com bons olhos esse potencialdesagrega<strong>do</strong>r entre as monarquias ibéricas. Os imbrógliosplatinos não valiam o risco de ter, no início da década de1810, conflitos entre Portugal e Espanha que enfraquecessituaçãode vácuo de poder. Esse vácuo de poder faz que D. Rodrigo deSousa Coutinho decrete a proteção da Coroa portuguesa.56 Concorriam também para acelerar a intervenção as conspirações deD. Carlota, que já havia tenta<strong>do</strong> interditar seu mari<strong>do</strong> alegan<strong>do</strong> que o príncipeera louco como sua mãe. Sob a influência de Sir Sidney Smith, comandantebritânico no Atlântico Sul, D. Carlota consegue o apoio de cabil<strong>do</strong>s na BandaOriental, que a aclamam “A rainha <strong>do</strong> Prata”. Strangford é testemunha das“relações impróprias” entre a princesa e Sir Sidney Smith, e recomenda aoForeign Office sua retirada.


97O Processo de Independência(1808-1831)sem a aliança contra os franceses. Tal obstáculo sistêmicoao intervencionismo foi, das experiências vividas na América,a que mais entristeceu o príncipe, segun<strong>do</strong> OliveiraLima. Foi preciso adiar até 1816 a alteração <strong>do</strong> quadro sistêmicoque permitiu um novo envio de tropas, dessa vezcom o intuito anexacionista indisfarçável. Artigas é finalmentederrota<strong>do</strong> na Batalha de Taquarembó, em janeirode 1820. O caudilho foge para o Paraguai, onde se tornauma espécie de asila<strong>do</strong> político e, na prática, prisioneiro<strong>do</strong> dita<strong>do</strong>r paraguaio Gaspar Rodríguez de Francia, e ondemorrerá, em 1850, profundamente desiludi<strong>do</strong> com a políticauruguaia, de acor<strong>do</strong> com Francisco Doratioto. Incorpora-se,em 1821, a Província Cisplatina ao Reino <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>.A situação, porém, não estava ainda definida. A resistênciaartiguista não morre com o exílio de seu líder, mas,enfraquecida, busca apoio em Buenos Aires, declaran<strong>do</strong>-separte das províncias unidas em 1824. A aceitação por partede Buenos Aires motiva o impera<strong>do</strong>r, D. Pedro I, a declararuma guerra que se provaria custosa e difícil para ambosos la<strong>do</strong>s. Sua perpetuação por quase três anos contribuiupara desestabilizar os <strong>do</strong>is governos, favorecen<strong>do</strong> a abdicaçãode Pedro I em 1831 e, efetivamente, levan<strong>do</strong> à queda<strong>do</strong> presidente argentino, Bernardino Rivadavia. Aliás, a próprianecessidade de mobilização militar e de organizaçãopara o conflito forçou o Congresso das Províncias Unidas aaceitar a formação de um Executivo. Segun<strong>do</strong> Doratioto,os representantes argentinos que chegaram ao Rio de Janeironão conseguiram um acor<strong>do</strong> de paz satisfatório como impera<strong>do</strong>r, o que motivou, mais uma vez, a intervençãobritânica, interessada em encerrar o oneroso bloqueio <strong>do</strong>Prata pela Marinha brasileira 57 , mas igualmente preocupadacom a manutenção política da única monarquia <strong>do</strong>continente 58 .Se é que existe tal coisa, o que se deu na Guerra daCisplatina foi um “empate de Pirro”. Pior ainda que a vitória,nenhum <strong>do</strong>s la<strong>do</strong>s ganhou coisa alguma. No <strong>Brasil</strong>, a percepçãoera de derrota, sobretu<strong>do</strong> após o colapso militar deItuzaingó (Batalha <strong>do</strong> Passo <strong>do</strong> Rosário para os brasileiros);derrota em uma guerra que não tinha nenhuma simpatiada opinião nacional, que não se considerava emocionalmentecompatriota <strong>do</strong>s “cisplatinos”. Ama<strong>do</strong> Cervo eClo<strong>do</strong>al<strong>do</strong> Bueno consideram que, mais que um “Esta<strong>do</strong>tampão” cria<strong>do</strong> pelos ingleses, o Uruguai é um esta<strong>do</strong>57 Os regentes teriam de se haver com uma série de pleitos, de diversos países,de compensação financeira por esse bloqueio. Pagariam várias indenizaçõesaté que, no Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>, por decisão <strong>do</strong> Conselho de Esta<strong>do</strong>, decidiu-senão mais acatá-las.58 A guerra, na visão inglesa, poderia levar ao colapso <strong>do</strong> já controversogoverno de Pedro I. A intervenção inglesa é salvar a imagem <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>re garantir que seja feito um acor<strong>do</strong> aceitável para ambos os la<strong>do</strong>s. LordPonsonby, negocia<strong>do</strong>r britânico, usa a famosa expressão “Um algodão entre<strong>do</strong>is cristais” para caracterizar o Uruguai como um “Esta<strong>do</strong> tampão”, nosmoldes <strong>do</strong>s pequenos esta<strong>do</strong>s cria<strong>do</strong>s na Europa pelo Congresso de Vienapara garantir o equilíbrio de poder. Se o objetivo era evitar conflitos, não foibem-sucedi<strong>do</strong>. Não tardaria para que o algodão se encharcasse de sanguenas guerras civis uruguaias entre blancos e colora<strong>do</strong>s, que de algum mo<strong>do</strong>seguiam refletin<strong>do</strong> os parti<strong>do</strong>s brasileiro e argentino.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>98“legítimo”, com aspirações nacionalistas autônomas quesurgiram com Artigas e se desenvolveram durante a guerra,garantin<strong>do</strong> a emancipação.Para o <strong>Brasil</strong>, as consequências não se esgotam nasindenizações e na desestabilização <strong>do</strong> Primeiro Reina<strong>do</strong>,mas persistem no perío<strong>do</strong> regencial. O Rio Grande <strong>do</strong> Sul,desprestigia<strong>do</strong> com o desfecho da Cisplatina em 1828, foia província que mais contribuiu e, por isso mesmo, maissofreu com a guerra. Toda a cavalaria mobilizada era gaúcha.Alimentação, requisições, custos de transporte foramarca<strong>do</strong>s mais pesadamente pela província e sua identificaçãocom a política <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r não contribuiu para quefossem bem trata<strong>do</strong>s pelo novo governo regencial. Entreas causas da Farroupilha está certamente a insatisfação <strong>do</strong>Rio Grande <strong>do</strong> Sul com o mo<strong>do</strong> como foi trata<strong>do</strong> após suacontribuição para a guerra.A questão <strong>do</strong> reconhecimento – Portugal eInglaterraUma vez independente, o <strong>Brasil</strong> busca o reconhecimentode mo<strong>do</strong> desproporcional à sua necessidade.Segun<strong>do</strong> Cervo e Bueno, o primeiro erro da diplomacia brasileirafoi deixar-se tomar pela questão <strong>do</strong> reconhecimentocomo se fosse uma necessidade inescapável. Uma posturapragmática entenderia que o reconhecimento britânicojá era tácito e o <strong>Brasil</strong> já mantinha relações comerciais eaté financeiras com os ingleses, sem a necessidade de umreconhecimento formal, que interessava a Londres quasetanto quanto ao Rio de Janeiro. Quanto aos portugueses,a independência já estava consumada em 1823 e, sem oapoio britânico, nada havia que pudesse ser feito. Aceitar aseparação não era mais questão de negociação. Assim, nãofazia senti<strong>do</strong> – tanto na visão <strong>do</strong>s contemporâneos (JoséBonifácio 59 , por exemplo) quanto na <strong>do</strong>s estudiosos <strong>do</strong>tema – oferecer concessões para efetivar o que já era fato.O afastamento de Bonifácio, em 1823, favoreceu oisolamento <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r <strong>do</strong> restante da sociedade. Com59 José Bonifácio de Andrada e Silva, o “Patriarca da independência”, tem umperfil bastante distinto <strong>do</strong>s demais “heróis” da independência na América. Emgeral, eram juristas – John Adams e José Hidalgo – ou militares, como SimónBolívar e George Washington. O patriarca era um homem das ciências, objetivoe pragmático. Mineralogista, tinha vivi<strong>do</strong> na Europa por mais de trinta anos,ten<strong>do</strong> participa<strong>do</strong> até da Revolução Francesa. Foi figura importantíssimapara a independência como articula<strong>do</strong>r <strong>do</strong> consenso nas províncias <strong>do</strong>Centro-Sul, que permitiram a aclamação <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r e o enfrentamento àscortes. Guardava distância <strong>do</strong> jacobinismo liberal radical ao mesmo tempoque não concordava com o absolutismo. Inicialmente adepto da ideia deuma monarquia dual, com <strong>do</strong>is parlamentos, é força<strong>do</strong> pela conjunturadas cortes a aban<strong>do</strong>nar a esperança de manutenção de qualquer vínculocom Portugal. Tornou-se, durante breve perío<strong>do</strong>, uma espécie de primeiro--ministro, eminência parda e o primeiro ministro das relações exteriores <strong>do</strong><strong>Brasil</strong> no processo de independência. Fez circular, em julho de 1822, o Manifestoàs Nações Amigas, no qual legitimava a autonomia brasileira com base nodecreto de elevação <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> a Reino Uni<strong>do</strong>, oriun<strong>do</strong> da vontade legítima <strong>do</strong>príncipe D. João e, que, portanto, tornava ilegal a ação reacionária das cortes.Seu afastamento, alguns meses depois <strong>do</strong> sete de setembro, foi essencial paraque o reconhecimento se processasse como se processou; no exílio, criticouduramente o <strong>do</strong>cumento de reconhecimento português, chaman<strong>do</strong>, emcorrespondência privada, os protagonistas de João “Burro” e “Pedro Malasartes”.


99O Processo de Independência(1808-1831)o fechamento da Assembleia em dezembro desse ano, o isolamentose agrava, o que é fatal para a desdita <strong>do</strong> processodecisório. Novamente, foram consideradas mais as necessidadesdinásticas que o “interesse nacional”. Aproveitan<strong>do</strong>-se daposição influente em ambas as cortes, os ingleses oferecemmediação para buscar superar os desentendimentos entreos representantes de D. João e os representantes de D. Pedro.A negociação <strong>do</strong> reconhecimento deixava de ser bilateral epassava a ser tripartite. O media<strong>do</strong>r era também parte muitointeressada. Não por acaso dirigia o Foreign Office o mesmoGeorge Canning que arrancara, por meio de Strangford, ostrata<strong>do</strong>s de 1810 de D. João. Em 1825, o representante inglêsera Charles Stuart, e o contexto muito distinto, com uma conjunturamenos dramática que na época da invasão a Portugal.O desfecho, no entanto, foi similar, ainda que mais lento <strong>do</strong>que gostaria Canning 60 . Ao se apresentar como media<strong>do</strong>ra<strong>do</strong> reconhecimento português e amiga <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, a Inglaterraconsegue se posicionar negocialmente de mo<strong>do</strong> favorável a60 George Canning herda o cargo de chanceler quase junto com o sete desetembro, após o suicídio <strong>do</strong> Marquês de Castlereagh. Reassume o Ministériodefenden<strong>do</strong> o reconhecimento imediato da independência <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, mas foiconti<strong>do</strong> pelos tories <strong>do</strong> gabinete. O ministro acreditava que os ingleses tinhamde aproveitar a oportunidade de ascendência sobre o impera<strong>do</strong>r para garantir,sobretu<strong>do</strong>, a abolição <strong>do</strong> tráfico de escravos. O <strong>Brasil</strong>, a essa altura, era oterceiro maior parceiro comercial da Inglaterra no mun<strong>do</strong>, mas havia trata<strong>do</strong>scom Portugal que deveriam ser respeita<strong>do</strong>s. Além disso, para a Santa Aliança,monarquia ou não, o governo brasileiro era um governo revolucionário.A aclamação popular <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r não ajudara a mitigar essa percepção.O título <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r evocava Napoleão e seu modelo de soberania popular.conseguir repetir com o <strong>Brasil</strong> independente as concessõesde 1810 arrancadas <strong>do</strong> príncipe transmigra<strong>do</strong>.Mediante pressão inglesa, Charles Stuart chega ao<strong>Brasil</strong> com autoridade plenipotenciária para reconhecero país e o nome <strong>do</strong> rei português. A mesma pressão foiexercida sobre o impera<strong>do</strong>r brasileiro para a aceitação dasexigências portuguesas, todas muito controversas. Em primeirolugar, D. João reservava para si o direito de ser tambémchama<strong>do</strong>, enquanto vivesse, de impera<strong>do</strong>r <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>.O título se diferenciava da ideia de rei por remeter à herançaromana. José Bonifácio diz que tal exigência é atesta<strong>do</strong>de vaidade senil por parte <strong>do</strong> rei.Em segun<strong>do</strong> lugar, vem a indenização de 2 milhõesde libras para a Coroa portuguesa, que combinavam 1,4milhão pela independência 61 e um valor a ser apura<strong>do</strong> emcomissões bilaterais pelos bens que a família real haviadeixa<strong>do</strong> na antiga Colônia. A indenização naturalmente éoriunda de empréstimos britânicos, cujo montante chegoua 5 milhões ao final <strong>do</strong> Primeiro Reina<strong>do</strong>. Boa partedesses créditos será usada, sobretu<strong>do</strong>, com embaixadas,representações no exterior e aventuras militares, sen<strong>do</strong>muito pouco, efetivamente, investi<strong>do</strong> no país (algo em tornode 10% <strong>do</strong>s empréstimos).61 Em apreciação muito posterior, o historia<strong>do</strong>r Barão <strong>do</strong> Rio Branco defendeessa cláusula consideran<strong>do</strong> normal que, em divórcios de esta<strong>do</strong>s, cada parteassuma seu quinhão da dívida pública conjunta.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>100A terceira concessão é a promessa que o governobrasileiro faz de não aceitar a incorporação de nenhumadas colônias portuguesas na África, interesse natural <strong>do</strong>safricanos. Fazia senti<strong>do</strong> para Portugal essa salvaguarda.O tráfico negreiro era naturalmente o elo entre o <strong>Brasil</strong>e os angolanos. Dos três deputa<strong>do</strong>s angolanos que estiverampresentes na reunião das cortes em 1820, <strong>do</strong>isse puseram a favor da posição brasileira, entre eles o comenda<strong>do</strong>rEusébio de Queirós, pai <strong>do</strong> ministro da Justiçaque, ironicamente, vai abolir o tráfico negreiro em 1850.Ao acatar a exigência portuguesa em 1825, o <strong>Brasil</strong> abortaqualquer possibilidade de incorporar colônias africanas,como o Reino <strong>do</strong> Benin, que reconheceu a independênciabrasileira antes mesmo <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, aindaem 1823.A quarta e última concessão é uma exigência política.D. João exige, e os negocia<strong>do</strong>res <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> aceitam,que, <strong>do</strong> trata<strong>do</strong>, conste que a independência <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> foiconcedida, e não conquistada, o que é uma inverdade.A mobilização militar pela independência foi significativa.E cara. Tanto em recursos para mobilização de tropas econtratação de mercenários quanto em sangue nacionalderrama<strong>do</strong>. Em que pese o caráter de negociação dinásticono processo de emancipação houve uma Guerra deIndependência, que durou cerca de um ano e assolou asprovíncias em que havia maciça presença portuguesa,caso <strong>do</strong> Maranhão, da Bahia, <strong>do</strong> Pará e da Cisplatina, aindaque grande parte <strong>do</strong>s conflitos tenha se resolvi<strong>do</strong> por demonstraçãode força naval por parte de Cochrane.A magnitude dessas concessões só pode ser explicadacom base na prevalência <strong>do</strong>s interesses dinásticosde D. Pedro I, que não abre mão <strong>do</strong> trono português, jáque não há referência no trata<strong>do</strong> ao tema da sucessão.Os portugueses ficam preocupa<strong>do</strong>s com o futuro porque,na prática, o impera<strong>do</strong>r <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> era também o herdeiro<strong>do</strong> trono português. Assim, a indenização acabou servin<strong>do</strong>para apaziguar seus futuros súditos.Na mesma época em que ganhava a guerra pelaindependência, o impera<strong>do</strong>r afastava José Bonifácio <strong>do</strong>Ministério 62 . O afastamento da posição autonomista, altivae nacionalista de José Bonifácio foi funesto. Das medidasnegociadas com a Inglaterra em 1825, no bojo da mediaçãopelo reconhecimento português, nem mesmo o fim<strong>do</strong> tráfico concedi<strong>do</strong> pelo impera<strong>do</strong>r agrada ao patriarcaexila<strong>do</strong>. Bonifácio não aceitava que o fim <strong>do</strong> tráfico fosseimposto pelos ingleses e defendia uma postura soberanaque reconhecesse a realidade nacional.62 O autor de uma proposição de abolição para a Assembleia dissolvida seindispôs com o amplo setor escravista da elite nacional e fica amaldiçoa<strong>do</strong>até o fim da vida como o abolicionista que era, afinal, havia vivi<strong>do</strong> mais detrinta anos afasta<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> e, portanto, não tinha as vinculações das elitescoloniais brasileiras.


101O Processo de Independência(1808-1831)A exigência da abolição <strong>do</strong> tráfico de escravos eraantiga na política externa britânica e reaparece no Congressode Viena em 1815. Em 1817, novo acor<strong>do</strong> com Portugalproíbe o tráfico acima <strong>do</strong> Equa<strong>do</strong>r. Voltam à cargaos ingleses durante os acor<strong>do</strong>s de independência da décadade 1820, ainda insistin<strong>do</strong> no méto<strong>do</strong> bilateral – só oaban<strong>do</strong>nam em favor <strong>do</strong> unilateralismo em 1845, com oBill Aberdeen. Na direção contrária <strong>do</strong>s interesses da eliteagrário-escravista, o impera<strong>do</strong>r a<strong>do</strong>ta uma postura autocrática,acatan<strong>do</strong> a pressão inglesa. Sobrepunham-se osinteresses externos aos interesses nacionais 63 . Há agoraum prazo de três anos para a abolição <strong>do</strong> tráfico de escravos.Isso provoca uma gritaria generalizada na Assembleiaparlamentar eleita em 1826, mas a Constituição garantialegalidade aos atos internacionais, e o impera<strong>do</strong>r não precisavapassar essas questões pela Assembleia. O trata<strong>do</strong> ératifica<strong>do</strong> 64 , e o fim <strong>do</strong> tráfico negreiro torna-se mais umelemento que fará com que a opinião pública se volte contraD. Pedro I e contra os ingleses.Os termos <strong>do</strong> trata<strong>do</strong> afinal assina<strong>do</strong> superam asexpectativas das instruções dadas à Stuart. Todas as vantagensque haviam si<strong>do</strong> oferecidas pelos trata<strong>do</strong>s de 1810são reiteradas, e, para garantir o direito a um juiz inglês emterritório brasileiro e a permanência <strong>do</strong> direito de vistoria anavios brasileiros em águas internacionais, Canning chega asubstituir Stuart por Robert Gor<strong>do</strong>n. Sempre é bom lembrarque, para Cervo e Bueno, a principal razão de o trata<strong>do</strong> tersi<strong>do</strong> assina<strong>do</strong> como foi é diretamente motivada pelo restritogrupo, liga<strong>do</strong> ao impera<strong>do</strong>r, que participava <strong>do</strong> processodecisório, excluin<strong>do</strong>-se a opinião nacional em um momentoem que o Parlamento estava fecha<strong>do</strong>. Para Honório Rodrigues,era a contrarrevolução que se seguira à revolução.63 Lord Strangford, desde o perío<strong>do</strong> joanino, em sua correspondência comCanning, dá conta <strong>do</strong> sentimento antibritânico e <strong>do</strong> ódio crescente que osbrasileiros passam a ter contra os ingleses no <strong>Brasil</strong>, sobretu<strong>do</strong> em virtudeda pressão pela abolição <strong>do</strong> tráfico. Uma das razões para isso é que o <strong>Brasil</strong>se torna praticamente zona colonial <strong>do</strong>s ingleses e o comércio inglêsmonopoliza intensamente o comércio <strong>do</strong> Rio de Janeiro e de Salva<strong>do</strong>r. Outrarazão é a captura <strong>do</strong>s navios baianos quan<strong>do</strong> estão fazen<strong>do</strong> comércio com oGolfo <strong>do</strong> Benin. Havia uma interpretação de que o Congresso proibira o tráficode escravos ao norte <strong>do</strong> Equa<strong>do</strong>r – segun<strong>do</strong> Ricupero, geograficamenteerrônea –, fazen<strong>do</strong> que a captura <strong>do</strong>s navios baianos tenha si<strong>do</strong> muitomais intensa <strong>do</strong> que a captura de navios saí<strong>do</strong>s <strong>do</strong> porto fluminense. Combase nisso, o sentimento antibritânico cresce e, nas décadas posteriores àindependência, muitos <strong>do</strong>s traficantes de escravos são alça<strong>do</strong>s, pela opiniãopública, à condição de heróis contra o imperialismo da Inglaterra.O reconhecimento <strong>do</strong>s demais paísesO governo <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s foi o primeiro <strong>do</strong> hemisférioa reconhecer nossa independência. O presidente64 Ratifica<strong>do</strong> em 1827, fica então, em 1830, legalmente proibi<strong>do</strong> no <strong>Brasil</strong> otráfico de escravos. Ao tratar <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> regencial veremos como, em 1831,será feita uma lei (Lei Feijó) ainda mais rigorosa que a definida pelo trata<strong>do</strong>,punin<strong>do</strong> também os compra<strong>do</strong>res e garantin<strong>do</strong> a liberdade <strong>do</strong>s cativosdesembarca<strong>do</strong>s ilegalmente.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>102James Monroe o fez em janeiro de 1824, um mês depois eem decorrência clara da enunciação de sua famosa <strong>do</strong>utrinae de motivos econômicos 65 . Não se deve ignorar otrabalho de José Silvestre Rebelo, envia<strong>do</strong> brasileiro que seencontrou repetidas vezes com John Quincy Adams para<strong>do</strong>cumentar os motivos nacionais em favor da ruptura.A fim de embasar o debate parlamentar, Adams exige, porexemplo, o <strong>do</strong>cumento de 1815, em que D. João elevarao <strong>Brasil</strong> a Reino Uni<strong>do</strong>. Em 1824, com o reconhecimento,José Silvestre Rebelo torna-se o primeiro funcionário públicobrasileiro em serviço no exterior. A presença, na mesmaépoca, de representantes das monarquias africanas noRio de Janeiro criou uma controvérsia sobre a primazia <strong>do</strong>reconhecimento. Mesmo sem terem si<strong>do</strong> recebi<strong>do</strong>s peloimpera<strong>do</strong>r, tratava-se de ato de reconhecimento tácito,para o qual a maior parte da historiografia não dá muitaimportância.O México é o segun<strong>do</strong> país das Américas a reconhecer,de Londres, a independência <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. O representantemexicano em Londres estabelece relações diplomáticascom o representante brasileiro João Felisberto CaldeiraBrant. Pouco depois disso, outros países, como a França ea Áustria, reconhecem o governo brasileiro. A Rússia foi aúltima das grandes potências a fazer o reconhecimento,apenas em 1831.Continuidades e rupturas (1808-31)A tabela abaixo sintetiza de mo<strong>do</strong> superficial a comparaçãoentre os <strong>do</strong>is momentos <strong>do</strong> longo processo deemancipação <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. Percebe-se, de cara, que na açãoexterna o filho saiu ao pai bem mais <strong>do</strong> que se poderia supor,visto suas personalidades tão distintas. No eixo simétricoplatino, há forte continuidade – defende Doratioto.A lógica que motivou a Guerra da Cisplatina ainda era a lógica<strong>do</strong>s impérios coloniais ibéricos, herdada acriticamentepelos esta<strong>do</strong>s independentes que os sucederam não apenasno <strong>Brasil</strong>, onde a continuidade era mais óbvia dada amanutenção da dinastia.Eixo assimétricoPerío<strong>do</strong> joaninoDependência para coma Grã-Bretanha(Ex.: trata<strong>do</strong>s de 1810)=>Primeiro Reina<strong>do</strong>Dependência paracom a Grã-Bretanha(Ex.: trata<strong>do</strong>s dereconhecimento)65 Alguns ministros <strong>do</strong> gabinete de Monroe se puseram contra oreconhecimento, sobretu<strong>do</strong> por causa da forma monárquica de governo,mas acabaram pesan<strong>do</strong> os interesses comerciais norte-americanos no Riode Janeiro.Eixo simétricoIntervencionismo militarno Prata(Ex.: intervenções naBanda Oriental, 1811e 1816)=>Intervencionismomilitar no Prata(Ex.: Guerra daCisplatina, 1825-8)


103O Processo de Independência(1808-1831)No eixo de poder assimétrico, não seria esse umcaso no qual as variáveis externas suplantaram a “primeiraimagem” 66 , forçan<strong>do</strong> a homogeneização da ação externade países fracos? Acredito que não. Como vimos, sob ogoverno <strong>do</strong> príncipe – depois, rei – D. João, as restriçõessistêmicas à ação internacional de Portugal eram bemmais rígidas, e, uma vez desaparecida a ameaça bonapartista,a Corte <strong>do</strong> Rio de Janeiro não tar<strong>do</strong>u a aproveitar abrecha sistêmica para diversificar parcerias e fugir, aindaque parcialmente, da hegemonia britânica, como ficouclaro no episódio <strong>do</strong> casamento <strong>do</strong> príncipe 67 . Já Pedro,ao contrário <strong>do</strong> pai, não tinha nenhuma necessidade dese subordinar de mo<strong>do</strong> tão tíbio à diplomacia de GeorgeCanning e o fez mais por escolha que por impossibilidade.Seus cálculos eram mais dinásticos que sistêmicos. D. Joãotambém se submeteu aos cálculos dinásticos em 1810,mas não deixou de aproveitar um liberalismo autônomoem relação a Londres de 1808 a 1810. O traço de continuidade,no entanto, é inegável. A dependência <strong>do</strong> novoImpério brasileiro é marcadamente a mesma que vincularao antigo Império português, sen<strong>do</strong> ele sedia<strong>do</strong> em Lisboaou no Rio de Janeiro, no mínimo desde o século XVII. Foiassim, de mo<strong>do</strong> dependente e subordina<strong>do</strong>, que o <strong>Brasil</strong>se inseriu no plano das nações ocidentais no século XIX; eassim permanecerá ao longo <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> regencial, apesardas críticas crescentes e das tentativas de medidas maisautonomistas, como a Lei Feijó.66 Conceito cria<strong>do</strong> por Kenneth Waltz, em seu livro Man, the State and the War,para identificar a primeira – o indivíduo – das três grandes causalidadesexplicativas para o fenômeno das guerras no plano internacional. A segundaseria a conformação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e a terceira imagem, o Sistema Internacional.67 Sobre o casamento ver. TRABUCO, Igor. “Pedro e Leopoldina: a políticaexterna sobe ao altar”, in: Revista Candelária, Rio de Janeiro, ano 05, volume08, 2008.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>1042.4 A economia das primeiras décadasO início <strong>do</strong> comércio internacional <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> em 1808: umanova era? O exclusivo metropolitano e o contraban<strong>do</strong>.O arcaísmo como projeto. Medidas iniciais <strong>do</strong> perío<strong>do</strong>joanino: abertura <strong>do</strong>s portos e os trata<strong>do</strong>s de 1810.Acumulação fiscal e a rebelião pernambucana de 1817.O Banco <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. Os custos da independência e oreconhecimento. Inflação e antilusitanismo. Quadro geralda produção nacional no perío<strong>do</strong>.Em 1808, há apenas quatro dias em terras brasileiras,o príncipe regente D. João assina o decreto que abre osportos às nações amigas, dan<strong>do</strong> início a nosso comércioexterior e abrin<strong>do</strong> o <strong>Brasil</strong> para o restante <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Erao início <strong>do</strong> fim <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> colonial. Com o fim <strong>do</strong> exclusivo,punha-se termo ao principal elemento que nos caracterizavacomo Colônia. Cabe, no entanto, uma perguntainicial: foi mesmo somente com a transmigração da Corteportuguesa, em 1808, que se iniciou o comércio exteriorda Colônia?A historiografia discute se o notório contraban<strong>do</strong>existente desde o primeiro século da colonização já nãodescaracterizava, inelutavelmente, a ideia <strong>do</strong> exclusivometropolitano. Para muitos historia<strong>do</strong>res, o contraban<strong>do</strong>,por sua recorrência e volume, constituía, sim, uma exceçãoa essa lógica exclusivista. Outra corrente historiográficadefende que as exceções eram tantas que o exclusivo metropolitano,na prática, nem existia, tal qual a “negligênciasalutar” que permitia o comércio triangular da América inglesa.Arthur Cezar Ferreira Reis argumenta que o que faz acarta régia de 1808 é simplesmente legalizar uma situaçãode facto.O historia<strong>do</strong>r Fernan<strong>do</strong> Novaes argumenta, dialeticamente,que o contraban<strong>do</strong> fez parte <strong>do</strong> sistema colonial,realimentan<strong>do</strong>-o, na medida em que foi determinantepara abastecer o território colonial de escravos. Essa mãode obra era fundamental para garantir a produção interna,da qual parte era reexportada. Os portugueses eramapenas os intermediários e, com isso, auferiam lucros significativos,que só eram possíveis com o tráfico negreiro.Assim, a “vista grossa” das autoridades lusas com o contraban<strong>do</strong>permite considerá-lo parte essencial da reproduçãoda lógica econômica colonial, garantin<strong>do</strong> lucros formidáveisaos que nela se engajaram. O infame comércio gerouprosperidade e bolsões de riqueza e acumulação primitivaendógena na sociedade colonial, contrarian<strong>do</strong> a tese deque a Colônia não produz riqueza interna, constituin<strong>do</strong>--se apenas um instrumento da acumulação primitiva decapital para a metrópole. Sabe-se que, por volta de 1808,aproximadamente 85% da produção econômica <strong>do</strong> paísestava concentrada na Colônia e apenas 15% correspondiaàs exportações. As pesquisas de João Luís Fragoso eManolo Florentino discutem de mo<strong>do</strong> mais aprofunda<strong>do</strong>


105O Processo de Independência(1808-1831)essa acumulação interna – isto é, colonial – de riqueza eapresentam hipóteses curiosas para o destino que se deua ela ao longo desse perío<strong>do</strong>.Em O arcaísmo como projeto, escrito por Fragoso emparceria com Florentino, os autores desenvolvem o temaque ambos haviam discuti<strong>do</strong> em seus <strong>do</strong>utoramentos 68 .A economia brasileira desses anos de transição (entre 1790e 1840) é analisada pela lógica regional <strong>do</strong>s comerciantesda praça mercantil <strong>do</strong> Rio de Janeiro. Fragoso e Florentinoalertam que o méto<strong>do</strong> é indutivo, e não dedutivo, e forambastante critica<strong>do</strong>s justamente por se concentraremem uma única cidade durante um único perío<strong>do</strong>. Justificamque o objetivo <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> é buscar as origens de umprocesso de concentração de renda que se perpetuará no<strong>Brasil</strong> por quase <strong>do</strong>is séculos e que só será parcialmentealtera<strong>do</strong> no século XXI. O que defendem é plausível e relevantee merece alguma atenção.De acor<strong>do</strong> com suas fontes, verifica-se que havia,nesse perío<strong>do</strong>, significativa acumulação primitiva <strong>do</strong> capitalnas mãos <strong>do</strong>s grandes comerciantes fluminenses,muitos <strong>do</strong>s quais dedica<strong>do</strong>s ao tráfico interatlântico de68 Ver ainda FRAGOSO, João Luís. Homens de grossa aventura: acumulaçãoe hierarquia na praça mercantil <strong>do</strong> Rio de Janeiro, 1790-1830. 2 a . ed. Rio deJaneiro: Civilização <strong>Brasil</strong>eira, 1998; e FLORENTINO, Manolo. Em costas negras:uma história <strong>do</strong> tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIIIe XIX). São Paulo: Companhia das Letras, 1997.pessoas. Uma fazenda média com sessenta escravos rendiaem média 2 contos anuais, e uma única viagem de umtumbeiro para a África poderia render em média 7 contosde réis. O que faziam esses comerciantes com a riquezaacumulada? Era bem ao contrário <strong>do</strong> que fazia a burguesiana Inglaterra, que reinvestia seus lucros na continuidade daempreitada mais lucrativa, Manolo e Fragoso chegaram àconclusão de que as maiores empresas comerciais não duravammais <strong>do</strong> que duas ou, quan<strong>do</strong> muito, três gerações.Esses indivíduos investiam suas riquezas em escravos,fazendas, chácaras ou prédios públicos nas zonasurbanas, interrompen<strong>do</strong> a dinâmica da acumulação primitiva<strong>do</strong> capital ao optarem por atividades menos lucrativas.O que, à primeira vista, poderia ser visto como segurançae estabilização <strong>do</strong> capital não se sustenta; afinal, em umaeconomia voltada para o merca<strong>do</strong> externo, as flutuações<strong>do</strong>s preços internacionais das commodities afetavam, aindaque em menor grau, também os latifundiários. Essescomerciantes imobilizavam deliberadamente seu capital,segun<strong>do</strong> os autores, em nome <strong>do</strong> prestígio social que advinhada posse de terras e de escravos, e não da atividademercantil. Avalian<strong>do</strong> os inventários como fonte privilegiada,chegam à conclusão de que a maior parte <strong>do</strong>s grandesproprietários da capital era ou, em muitos casos, já haviasi<strong>do</strong> comerciante.Roberto Schwarz, que criticou essa tese, argumentaque a vinculação entre a burguesia mercantil e a aristocracia


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>106da terra também ocorria na Europa e em outros lugares <strong>do</strong>mun<strong>do</strong>, como a gentry inglesa. Segun<strong>do</strong> Schwarz, a tesede Fragoso pode ser considerada muito limitada, pois sóutilizou as fontes <strong>do</strong> Rio de Janeiro durante um determina<strong>do</strong>perío<strong>do</strong> de prosperidade econômica. Schwarz sugereque não é irracional investir a riqueza oriunda <strong>do</strong> tráficode escravos em bens imóveis, já que se troca mais lucratividadepor menos risco. Fragoso, no entanto, refuta essaideia da maior segurança no investimento lembran<strong>do</strong> queos produtores de cana-de-açúcar, por exemplo, tambémeram vulneráveis à instabilidade <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> externo.Para Fragoso, essa migração <strong>do</strong>s investimentos econômicosse dá em razão <strong>do</strong> status social e da mentalidademedieval de acor<strong>do</strong> com a qual o comerciante tem umlugar inferior na sociedade e o proprietário de terra é percebi<strong>do</strong>de forma nobre. Se isso também ocorria na Europa,Fragoso faz uma diferenciação em relação ao <strong>Brasil</strong>: naEuropa, já existia um sistema senhorial de nobreza hereditáriaque vigorava há centenas de anos, enquanto no<strong>Brasil</strong> esse sistema estava se constituin<strong>do</strong> em um país independente69 . Para Manolo e Fragoso, o merca<strong>do</strong> interno69 O Marquês de Pombal tentou mudar essa concepção medieval de nobrezaao editar um decreto que estabelecia que a atividade comercial era tãonobre quanto todas as outras. Percebe-se, contu<strong>do</strong>, que a mentalidade deum povo não se transforma por decreto <strong>do</strong> governo, e na Colônia as coisasdemorariam a mudar.brasileiro estava constituí<strong>do</strong>, e as oportunidades de comércioalheias ao exclusivo metropolitano permitiramuma acumulação de capital significativa, que era investidadentro <strong>do</strong> país, nobilitan<strong>do</strong> a burguesia nacional no que osautores chamam de “arcaísmo como projeto”.São perceptíveis os esforços econômicos <strong>do</strong> prínciperegente desde que chegou ao <strong>Brasil</strong> para dinamizara economia da antiga Colônia. Muitas das instituiçõescriadas quan<strong>do</strong> da vinda da família real tinham intençãoeminente ou exclusivamente econômica e subsistem – ousuas sucessoras – ainda hoje. Era a montagem <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>que, em poucos anos, viria a ser o <strong>Brasil</strong>.Ao Banco <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> e à Casa da Moeda, instituiçõesparadigmáticas per se, somaram-se a permissão <strong>do</strong> restabelecimentodas manufaturas proibidas desde o alvará de1785, a construção de estradas, como a nova estrada quelevava à província de Minas Gerais, província essa na qualo príncipe buscava estimular a retomada da produção mineralógica(os famosos estu<strong>do</strong>s de Von Eschwege, que resultaramna publicação de Pluto brasiliensis), e, sobretu<strong>do</strong>,a abertura <strong>do</strong>s portos às nações amigas, que inaugurouoficialmente o comércio internacional <strong>do</strong> país (extraoficialmente,como vimos, as brechas <strong>do</strong> exclusivo metropolitano,notadamente no tráfico negreiro, já eram muitosignificativas mesmo antes da transmigração), cuja dinâmicae consequências veremos a seguir.


107O Processo de Independência(1808-1831)A medida de abertura <strong>do</strong>s portos merece consideraçõesimportantes, visto que o senso comum a consideraexigência <strong>do</strong>s ingleses e, portanto, concessão e pressão deum príncipe fragiliza<strong>do</strong> que começava a saldar a conta dadefesa <strong>do</strong> reino contra Napoleão e <strong>do</strong> frete de si próprioe da Corte que havia acaba<strong>do</strong> de chegar escoltada pelaArmada Real Inglesa. Não é exatamente assim.Em primeiro lugar, é incorreto dizer que as naçõesamigas eram apenas a Inglaterra. O decreto abria automaticamenteos principais portos brasileiros (Belém,Recife, Salva<strong>do</strong>r, Rio de Janeiro, por exemplo) ao comércio<strong>do</strong>s norte-americanos. Estes não tardaram a reabrirsua legação junto a Corte portuguesa no Rio de Janeiro,que havia si<strong>do</strong> fechada em Lisboa por motivos financeiros.Os demais países da América, o Império austríacoe, com o tempo, hamburgueses, prussianos, holandeses,entre outros, poderiam, a salvo ou em desobediência aobloqueio continental desembarcar e comerciar com osbrasileiros sem precisar fazer uso <strong>do</strong>s navios de Portugal.A medida era inegavelmente liberal. Não havia nenhumavantagem tarifária para a Inglaterra. Desse mo<strong>do</strong>, assucessivas pressões de Lord Strangford – ministro plenipotenciáriobritânico junto a Corte portuguesa no Riode Janeiro – acabaram redundan<strong>do</strong>, <strong>do</strong>is anos depoisda abertura <strong>do</strong>s portos, na assinatura de três trata<strong>do</strong>scom a Inglaterra, conheci<strong>do</strong>s pela historiografia como“trata<strong>do</strong>s desiguais”.Assim, por <strong>do</strong>is anos (1808-10), o <strong>Brasil</strong> viveu um regimeliberal inaugura<strong>do</strong> pela carta de abertura <strong>do</strong>s portosque o príncipe assinou, ainda em Salva<strong>do</strong>r, sob a influênciade José da Silva Lisboa, a quem o príncipe daria honras,mercês e cargos, e faria Visconde de Cairu. Lisboa era adepto<strong>do</strong> liberalismo smithiano e defensora xiita <strong>do</strong> absolutismoe da autoridade real, no que configura uma contradiçãobastante comum 70 no perío<strong>do</strong> trata<strong>do</strong>.Cabe, portanto, reafirmar a distinção entre os <strong>do</strong>ismomentos. Em 1808, a abertura comercial foi de caráterliberal. Já em 1810, prevalece o que ficou conheci<strong>do</strong> comotrata<strong>do</strong>s desiguais com a Inglaterra, em consequência dapressão das instâncias políticas britânicas para que D. Joãopagasse os custos de proteção da família real e de defesa<strong>do</strong> reino português em face da ameaça napoleônica. Poresses trata<strong>do</strong>s, a Inglaterra passa a desfrutar de taxas alfandegáriasde 15% e de uma série de outros privilégios.O <strong>Brasil</strong>, segun<strong>do</strong> os críticos <strong>do</strong>s trata<strong>do</strong>s, se transformavaem Colônia informal da Inglaterra.70 Lisboa era apenas um exemplo de muitos da contradição entre liberalismoeconômico desacompanha<strong>do</strong> de liberalismo político. O liberalismo noséculo XIX foi uma das “ideias (mais) fora <strong>do</strong> lugar” no <strong>Brasil</strong>, que as readaptoua uma sociedade, para ficarmos só no óbvio, escravista. O contrário tambémexistiu. Não eram raras as figuras defensoras de um liberalismo político(Constituição, Parlamento, limites ao poder real e liberdades individuais) queainda assim pregavam a manutenção de um sistema mercantil, como nocaso <strong>do</strong>s liberais da Revolução <strong>do</strong> Porto.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>108Foram estabeleci<strong>do</strong>s três trata<strong>do</strong>s com a Inglaterraem 1810: de Aliança e Amizade, de Comércio e Navegaçãoe um trata<strong>do</strong> logístico sobre o correio e a troca de paquetes.O Trata<strong>do</strong> de Aliança e Amizade consubstanciouo vínculo entre a família de Bragança e a Coroa inglesa,permitin<strong>do</strong> que, em tempos de expansão napoleônica,apenas a família de Bragança fosse reconhecida pela Inglaterracomo legítima detentora <strong>do</strong> trono português. Como Trata<strong>do</strong> de Comércio e Navegação, iniciou-se a pressãoinglesa contra o tráfico negreiro, garantiram-se o direito devistoria inglesa aos navios portugueses e o direito de abastecimentode navios ingleses em qualquer ponto da costabrasileira. Por esse trata<strong>do</strong>, poucos privilégios foram manti<strong>do</strong>spara a metrópole em relação ao sistema monopolista,como o comércio de ouro, marfim, pau-brasil e as trocascom as demais colônias portuguesas, que seguiam vedadasaos navios estrangeiros, manten<strong>do</strong> a ideia mercantil<strong>do</strong> exclusivo metropolitano agora para com o <strong>Brasil</strong>. Os inglesespodiam comercializar nos quatro principais portos<strong>do</strong> litoral brasileiro e tinham direito a livre acesso ao portode Santa Catarina, unicamente para o armazenamentode merca<strong>do</strong>rias, com tarifas menores. De Nossa Senhora<strong>do</strong> Desterro (futura Florianópolis) seguiam para o Prata oupara portos <strong>do</strong> pacífico, como Valparaíso.A tarifa de 15%, como sabemos, era muito vantajosapara a Inglaterra, mas prejudicaria enormemente aarrecadação fiscal da Coroa e <strong>do</strong> futuro Império <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>.Some-se a isso a crescente pressão inglesa contra o tráficode escravos 71 , um <strong>do</strong>s mais lucrativos negócios da Colônia.É surpreendente que o príncipe tenha consegui<strong>do</strong>manter o crescimento econômico e a popularidade deque o rei gozou 72 . Jorge Caldeira explica que o milagre deD. João se deu em razão de investimentos significativospor parte da Coroa, notadamente no Centro-Sul. Se, em1785, D. Maria havia decreta<strong>do</strong> um alvará determinan<strong>do</strong>o fim das manufaturas na Colônia, a partir de 1808 incentiva-seessa produção. A fábrica de pólvora, a criação daCasa da Moeda e as manufaturas de ferro demonstramque boa parte da produção industrial cuja gênese é desseperío<strong>do</strong> tinha como principal agente a Coroa. A presença<strong>do</strong> mineralogista Barão de Eschwege ilustra essa novavisão de incentivo às manufaturas ao investir na extraçãode metais preciosos e não preciosos na região de MinasGerais, superan<strong>do</strong> a velha lógica predatória da extração<strong>do</strong> ouro de aluvião.71 Conforme nos ensina Pierre Verger, a captura de navios baianos na costada África remonta ao perío<strong>do</strong> joanino e encontra, quan<strong>do</strong> protestada,resposta arrogante das autoridades inglesas, contribuin<strong>do</strong> para a crescentemá vontade generalizada <strong>do</strong>s brasileiros contra os ingleses, reconhecidanos despachos de Lord Strangford para o Foreign Office. In: VERGER, Pierre.Fluxo e refluxo <strong>do</strong> tráfico de escravos entre o Golfo <strong>do</strong> Benin e a Bahia de To<strong>do</strong>s osSantos, <strong>do</strong>s séculos XVII a XIX. Rio de Janeiro: Corrupio, 1987.72 Em treze anos de governo absolutista no <strong>Brasil</strong>, em um contexto de levantesliberais por toda a Europa e por toda a América, o fato de que apenas umarebelião relevante, em Pernambuco, eclodiu na América portuguesa nãodeixa de ser surpreendente.


109O Processo de Independência(1808-1831)Como foi pago o milagre <strong>do</strong> crescimento? São duasas respostas: achaque fiscal e endividamento. Vejamos primeiroo achaque fiscal. Há um aumento generaliza<strong>do</strong> <strong>do</strong>simpostos que deveria compensar a diminuição das tarifaspara os ingleses. O aumento <strong>do</strong> volume de comércio tambémcompensa parcialmente a queda na arrecadação, jáque o <strong>Brasil</strong> se tornou um <strong>do</strong>s principais destinos das merca<strong>do</strong>riasinglesas quan<strong>do</strong> da vigência <strong>do</strong> bloqueio continental.Esse aumento de impostos foi bem absorvi<strong>do</strong> peloCentro-Sul. Tratava-se de zona dinâmica de uma economiaem crescimento, de merca<strong>do</strong> aqueci<strong>do</strong>, em virtude da chegadae <strong>do</strong> crescente aumento de uma população de altopoder aquisitivo. Some-se a isso a criação de instituições ede cargos bem remunera<strong>do</strong>s na estrutura <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> português,que retroalimentava a injeção de capital na economia.A situação no Nordeste era distinta.A região, tradicionalmente mais próxima de Lisboaque <strong>do</strong> Rio de Janeiro, foi alvo de muito menos benfeitoriase instituições novas que o Centro-Sul. O impacto que sesentiu foi mais negativo que positivo. Os trata<strong>do</strong>s de 1810e o início da repressão inglesa ao tráfico de escravos terãoimpacto negativo na economia pernambucana, que, atéentão, era o dínamo de maior arrecadação fiscal da Coroapor ser a maior zona exporta<strong>do</strong>ra de cana-de-açúcar. Mesmoantes da transmigração, com o declínio da produçãoaurífera, Pernambuco já havia passa<strong>do</strong> a sofrer forte pressão<strong>do</strong> fisco. Caldeira explica que a criação da capitania <strong>do</strong>Ceará, em 1796, e das capitanias da Paraíba e <strong>do</strong> Rio Grande<strong>do</strong> Norte, em 1799, separadas de Pernambuco, sinalizamum arrocho fiscal que não fez senão se intensificar, em1808, quan<strong>do</strong> a Coroa decide desviar as rendas pernambucanaspara o Rio de Janeiro. Tais elementos contribuempara o entendimento das causas da Insurreição Pernambucanapara além da difusão das ideias liberais iluministaspelos padres <strong>do</strong> Seminário de Olinda 73 .Já sobre o endividamento, ocorreu sobretu<strong>do</strong> emrelação à própria sociedade colonial por meio da estruturaçãode um incipiente sistema financeiro, inexistente antesde 1808. O Banco <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> foi funda<strong>do</strong> com o explícitoobjetivo de financiar os gastos da Coroa.O Banco <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>Cria<strong>do</strong> em 12 de outubro de 1808, o Banco <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>nasceu como o quarto banco estatal <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong>foi cria<strong>do</strong>, deveria ser uma instituição privada com capital73 O fracasso <strong>do</strong>s liberais pernambucanos evidencia a falta de condições naAmérica portuguesa para a organização de um governo alternativo, já que aCoroa conseguira efetivamente impor sua autoridade no território, gozan<strong>do</strong>,inclusive, de significativa popularidade. O mesmo não aconteceu na Américaespanhola, onde houve um vazio de poder após as invasões napoleônicasna Espanha, favorecen<strong>do</strong> a movimentação política <strong>do</strong>s cabil<strong>do</strong>s e aimplementação das ideias liberais pelas elites criollas. O único movimentocapaz de enfraquecer o regime joanino não por acaso ocorreu em Portugal,onde havia um vácuo de autoridade.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>110inicial de 12 mil contos de réis, 12 mil ações de 1 conto deréis cada uma. A administração seria controlada por umaassembleia de quarenta membros, forma<strong>do</strong>s pelos maioressócios, entre os quais a Coroa não precisaria figurar.Entretanto, até 1813, ainda não se havia alcança<strong>do</strong> o valormínimo de 100 contos de réis. A Coroa então cria impostosextraordinários para capitalizar o banco. O dinheiro dessesimpostos se reveste em ações da Coroa. Trata-se, no momentode seu funcionamento, de um banco priva<strong>do</strong> comparticipação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Novos acionistas foram estimula<strong>do</strong>scom vantagens honoríficas, mercês, e o estímulo deuresulta<strong>do</strong>. Como até 1808 não existiam juridicamente empresasno <strong>Brasil</strong>, com a criação <strong>do</strong> banco, passa a existir umincipiente sistema bancário e financeiro, que conta comserviços como emissão de notas, câmbio, depósitos etc.Até então to<strong>do</strong> o sistema creditício e a própria acumulaçãoeram feitos por meio <strong>do</strong> entesouramento ou individualmente,por meio de famílias, muitas das quais passaram ainvestir no banco. Para os acionistas, foi um excelente negócio.Já para os depositários ou compra<strong>do</strong>res de títulosou letras emiti<strong>do</strong>s pelo banco, foi péssimo.Essa vinculação entre a Coroa e a elite colonial detentorade recursos aporta<strong>do</strong>s direta ou indiretamenteno Banco <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> é mais um exemplo <strong>do</strong> processo queMaria Odila Leite da Silva Dias denominou “interiorizaçãoda metrópole”. A Coroa cria incentivos para que brasileirosinvistam em um banco cujo principal objetivo é sustentaros gastos <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Assim como ocorreu no momento deformação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> norte-americano – a Guerra de Independência–, convém traçar o paralelo com um governo(português) que aqui também se endivi<strong>do</strong>u com a sociedade.Guardadas as proporções, nos <strong>do</strong>is casos a sociedadefinanciou a montagem de um novo Esta<strong>do</strong> (o banco<strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, cria<strong>do</strong> por Hamilton e depois extinto,é dessa mesma época). No entanto, é interessante observarque, se nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s esse financiamento tem origemem quase todas as camadas da população – muitasvezes por meio da extração compulsória durante a guerra–, no <strong>Brasil</strong> quem financia o Esta<strong>do</strong> é a elite.Com a piora da situação econômica, evidencia-se adificuldade de remuneração <strong>do</strong>s acionistas. Fraudes e desviosparecem ser a única explicação plausível para o bancocontinuar pagan<strong>do</strong> a cada ano dividen<strong>do</strong>s aos acionistasem balanços sempre lucrativos, apesar <strong>do</strong>s gastos muitomaiores que os recursos aporta<strong>do</strong>s. No início <strong>do</strong>s anos1820, a instituição começa a perder a credibilidade <strong>do</strong>sdepositários. A situação torna-se dramática quan<strong>do</strong>, em 7de março de 1821, D. João declara seu retorno a Portugal,e a polícia e o Exército precisam ser utiliza<strong>do</strong>s para evitarconfusões de depositários que se aglomeram na porta <strong>do</strong>banco para efetuar saques. Embora D. João tenha, a princípio,garanti<strong>do</strong> as dívidas <strong>do</strong> Banco <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> empenhan<strong>do</strong>o tesouro nacional e as próprias joias da Coroa, essalisura duraria apenas um mês. Quan<strong>do</strong> <strong>do</strong> embarque para


111O Processo de Independência(1808-1831)Lisboa, o Banco <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> é saquea<strong>do</strong> pelo rei. Saca-se nãoapenas os aportes da garantia anterior, mas todas as suasreservas, com a consequente e acentuada desvalorizaçãodas letras emitidas. Isso contribuiu para o processo inflacionárioque se verificou na economia <strong>do</strong> Primeiro Reina<strong>do</strong>.O Banco <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> só não faliu imediatamente porque foiresgata<strong>do</strong> pelos empréstimos feitos com a Inglaterra apósa independência.Com base em todas as vantagens diplomáticasconcedidas à Inglaterra quan<strong>do</strong> <strong>do</strong> reconhecimento daindependência, o governo brasileiro, ao longo <strong>do</strong> PrimeiroReina<strong>do</strong>, toma empréstimos da ordem de 5 milhões de librasesterlinas. Desse montante, apenas 600 mil libras esterlinasforam depositadas no Banco <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. Dos 4,4 milhões delibras, 2 milhões serviram ao pagamento da indenizaçãoa Portugal pela independência brasileira, e o restante foidireciona<strong>do</strong> a expedições diplomáticas na Europa (com osobjetivos de reconhecimento da independência e estabelecimento<strong>do</strong> Império <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> nas relações internacionais)e a despesas militares (com as guerras de Independência,1822-1823; a repressão da Confederação <strong>do</strong> Equa<strong>do</strong>r, 1824;e a Guerra da Cisplatina, 1825-1828). Nota-se que a maiorparte <strong>do</strong>s recursos obti<strong>do</strong>s mediante empréstimos com aInglaterra nos anos iniciais <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> independente foi conseguidacom o objetivo de sustentar a posição pessoal edinástica de D. Pedro I, e não com o objetivo de viabilizaros interesses nacionais.Há um crescente aumento da dívida pública como Banco <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. Em 1822, essa dívida chegava a 8,8 milcontos de réis. Dois anos depois, em virtude das guerras deIndependência e da Confederação <strong>do</strong> Equa<strong>do</strong>r, registrou--se um aumento de 30% da dívida pública. Com a Guerrada Cisplatina, a dívida pública chega a 21,5 mil contos deréis. O Banco <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> caracterizou-se, no Primeiro Reina<strong>do</strong>,praticamente como uma agência <strong>do</strong> tesouro nacional.A imprensa brasileira não se furtou a criticar a atuação<strong>do</strong> banco, considera<strong>do</strong> um “Midas às avessas”, pois, emvez de transformar o que toca em ouro, conseguia fazerque o ouro evaporasse. Essa situação motivou o Parlamentobrasileiro, em sua primeira legislatura (1826-9), a aprovaruma lei que liqui<strong>do</strong>u o banco, substituin<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s os títulosemiti<strong>do</strong>s por papel-moeda. É curioso que, até a liquidação<strong>do</strong> banco, nenhum acionista tenha deixa<strong>do</strong> de receberseus dividen<strong>do</strong>s e que suas ações tenham si<strong>do</strong> resgatadascom uma taxa bastante valorizada. O descalabro financeiroprovoca<strong>do</strong> pelos crescentes gastos <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> seria, a partirde então, resolvi<strong>do</strong> apenas com a emissão pura e simples– que, como vimos, tinha um componente militar não desprezível74 . Esses conflitos consumiram recursos que já eram74 Não foram poucos os conflitos arma<strong>do</strong>s em que Pedro I se envolveu.À Guerra de Independência (1822-3) somou-se imediatamente a repressãoà Confederação <strong>do</strong> Equa<strong>do</strong>r (1824), ambas com recurso significativo amercenários, sobretu<strong>do</strong> na formação de uma armada de guerra, inexistente


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>112escassos no novo Império, estrangula<strong>do</strong> financeiramentepor uma arrecadação limitada de forma severa pelos 15%concedi<strong>do</strong>s inicialmente aos ingleses mas universaliza<strong>do</strong>sem 1828 pela Lei Bernar<strong>do</strong> Pereira de Vasconcelos. Como ogrosso da arrecadação <strong>do</strong> Império estava concentra<strong>do</strong> nosetor externo da economia, mais especificamente nas rendasalfandegárias de importação, os 15% foram a principalrazão para o déficit constante que o Império viveria até ofim de seus dias. Esse déficit era compensa<strong>do</strong> com endividamento,o que, em médio e longo prazos, contribuía,da<strong>do</strong>s os juros extorsivos que nos eram cobra<strong>do</strong>s, paraagravar ainda mais o estrangulamento financeiro <strong>do</strong> país.Na avaliação de Caldeira, se, em 1808, as ideias denação independente e de capitalismo constituí<strong>do</strong> aindaeram praticamente ficção, no ano da abdicação de D.Pedro I, em 1831, esse projeto tornava-se realidade, aindaque não houvesse instituições organizadas que fizessemfrente ao desafio <strong>do</strong> capitalismo que se impunha, tarefaque ficou para os liberais da regência completarem.Segun<strong>do</strong> esse autor, o <strong>Brasil</strong> independente apresentava umquadro político e econômico pior que o de seus vizinhos.Convém então, para fins de síntese, dividir em <strong>do</strong>isciclos o perío<strong>do</strong> trata<strong>do</strong>. O primeiro, de ascensão econômica,de 1808 a 1821, e o segun<strong>do</strong>, de crise, concomitanteao Primeiro Reina<strong>do</strong>. Aos custos da independência (e darepressão às rebeliões internas), ao altíssimo endividamento(cerca de 5 milhões de libras esterlinas) e à inflação altapromovida pelo governo com o aumento <strong>do</strong>s custos desenhoriagem (cunhava moedas de cobre com o valor deface muito mais alto que o valor <strong>do</strong> cobre, o que estimuloua falsificação) somou-se a herança maldita <strong>do</strong>s “trata<strong>do</strong>sdesiguais”, cujos privilégios da<strong>do</strong>s à Inglaterra foram renova<strong>do</strong>sem 1827. Tu<strong>do</strong> isso contribuiu para que a espiral deprogresso que se vivenciou, sobretu<strong>do</strong> no Centro-Sul, coma transmigração da Corte, se tornasse recessiva.quan<strong>do</strong> da independência. Com o término da Guerra da Cisplatina (1825-8),um novo esforço, no apoio financeiro aos “liberais” partidários de D. Maria I,sua filha na guerra civil portuguesa, acirrou os ânimos liberais, que viamnisso manobra de reunificação <strong>do</strong>s tronos e acusavam o impera<strong>do</strong>r de serportuguês, mesmo ten<strong>do</strong> ele renuncia<strong>do</strong> ao trono de Lisboa.


113O Processo de Independência(1808-1831)Quadro geral da produção brasileira por região na época da independênciaProvíncia Produção Escoamento(Continua)AmazôniaAmazonas e ParáComércio monçoeiro (chamadas ali de“resgate”) com os índios <strong>do</strong> interior.No extremo sul, os resgates tocavamo território das rotas tropeiras, emuma incipiente integração <strong>do</strong> interiorbrasileiro.Mato GrossoPecuária substitui produção auríferadeclinante.Via terrestre para Goiás e monções (viafluvial) para São Paulo.Centro-OesteGoiásMineração tardia, transumante eincapaz de sedimentar grupos urbanosou instituições governamentais,dada a constante movimentação <strong>do</strong>sminera<strong>do</strong>res.Com o declínio da mineração, houvetransição para a pecuária.Ouro: via monções para o Sudeste.Pecuária: para o Sul e para o ValeAmazônico (pelas bacias Araguaia eTocantins).Centro-SulSão PauloRio de JaneiroMinas GeraisSorocaba: centro colonial <strong>do</strong> comérciode mula e ga<strong>do</strong>.Vale <strong>do</strong> Rio Paraíba: produçãode açúcar (em Itu, Guaratinguetá eCampinas).Sorocaba era a base de to<strong>do</strong> o sistemade transporte e de abastecimento daColônia, sen<strong>do</strong> o centro nevrálgico queligava o Sul, o Sudeste e o extremo oeste<strong>do</strong> território.Centro administrativo da ColôniaCana-de-açúcarPrincipal centro de comércio internacional com a metrópole e com a África(comércio de escravos)Maior economia da Colônia (teci<strong>do</strong>s,fumo, agricultura e pecuária).Produção quase exclusiva para omerca<strong>do</strong> interno, sobretu<strong>do</strong> Rio deJaneiro e Salva<strong>do</strong>r.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>114NordesteSulQuadro geral da produção brasileira por região na época da independênciaProvíncia Produção EscoamentoMaranhãoBahiaCearáPernambucoSertão NordestinoRio Grande <strong>do</strong> SulSanta CatarinaParanáAlgodão (75%) e arroz (10%).Sul <strong>do</strong> Maranhão e interior <strong>do</strong> Piauí:pecuária.Pecuária no interior (abastecia MinasGerais e Goiás), algodão (exportação)e fumo (fundamental nas trocas coma África).Algodão (1780 em diante) no litoral.Cana-de-açúcarRecife era o destino da produção<strong>do</strong> merca<strong>do</strong> interno das capitaniasadjacentes e principal centro deabastecimento de escravos, incluin<strong>do</strong> oVale Amazônico.PecuáriaAracati e Camocim (<strong>do</strong>is principaisnúcleos urbanos <strong>do</strong> Ceará): centrocharquea<strong>do</strong>r.Ga<strong>do</strong>(aproximadamente 11 mil cabeças dega<strong>do</strong>, 13,5 muares e 4,5 mil cavalos porano).Planalto: parte <strong>do</strong> circuito de mulas ega<strong>do</strong> gaúcho.Litoral: óleo de baleia.Cria<strong>do</strong>uro de ga<strong>do</strong> nos campos deCuritiba e erva-mate.ExportaçãoPelo Vale <strong>do</strong> Rio São Francisco. Ligaçãoentre Salva<strong>do</strong>r e Minas Gerais para oabastecimento das zonas minera<strong>do</strong>ras(ouro e diamante).Representava 90% das exportações dacapitania para a metrópole na virada <strong>do</strong>século.Exportação de cana-de-açúcar.(Conclusão)As boiadas seguiam <strong>do</strong> Maranhão peloVale <strong>do</strong> Jaguaribe até o Ceará.A carne-seca seguia por via marítima paraRecife e Salva<strong>do</strong>r.Troca<strong>do</strong> sobretu<strong>do</strong> por escravos, farinhae aguardente. No caminho das tropas, eratroca<strong>do</strong> por sal, fumo, açúcar, café, arroz,vinho, azeite, bacalhau e teci<strong>do</strong>.Por via marítima, cerca de 200 milarroubas de charque, em 1808, comcrescimento de 900% desde 1791,sobretu<strong>do</strong> para o Rio de Janeiro (68%) eSalva<strong>do</strong>r (21%).Rio de Janeiro (parte <strong>do</strong> circuito deescoamento <strong>do</strong>s tropeiros gaúchos).


115O Processo de Independência(1808-1831)2.5 O panorama cultural <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> antes e durante oprocesso de independênciaInstituições joaninas e seu objetivo político. Nascimentoda imprensa. Literatura e protorromantismo naturalista.Música. Panorama urbano e transformações sociais. Índios.Viajantes estrangeiros e missões científicas. Missão artísticafrancesa de 1816 e autoexotismo.A transmigração da Corte é de importância seminalpara o estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> panorama cultural brasileiro – como aliáso é para to<strong>do</strong>s os demais campos de estu<strong>do</strong> histórico – nosanos de formação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> nacional (1808-31). Das questõesque se apresentam como relevantes para o candidatoao Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata (CACD),percebe-se que 1808 se impõe como inescapável ponto departida para grande parte das respostas. Concentremo-nos,em primeiro lugar, na questão das instituições, da imprensae da literatura para depois abordarmos o papel <strong>do</strong>sviajantes estrangeiros e das missões que vieram ao <strong>Brasil</strong>(notadamente a francesa e a austríaca) no perío<strong>do</strong> joanino,mas cuja herança seria dura<strong>do</strong>ura.No caso <strong>do</strong> elemento institucional, convém recordarque praticamente inexistiam instituições culturais naAmérica portuguesa antes de 1808. As exceções eram asescolas religiosas, como os seminários de São José e SãoJoaquim (1739), depois uni<strong>do</strong>s em uma só instituição que,cem anos depois, daria lugar ao Imperial Colégio Pedro II, eo Seminário de Olinda (1800), tour de force <strong>do</strong> bispo governa<strong>do</strong>rde Pernambuco, Azere<strong>do</strong> Coutinho. Mesmo após aexpulsão <strong>do</strong>s jesuítas (1759), ainda havia uma hegemoniareligiosa sobre o panorama cultural brasileiro.Contrasta a América portuguesa com o mun<strong>do</strong>americano sob o <strong>do</strong>mínio de Madri. Aqui as autoridadesnão apenas não autorizaram como também reprimiramreiteradamente o estabelecimento de universidades e apresença de tipografias. Estas últimas, quan<strong>do</strong> apareciam– e apareceram em Minas Gerais e no Rio de Janeiro no séculoXVIII, às vezes com a conivência de autoridades locais,como o governa<strong>do</strong>r Gomes Freire –, eram recolhidas e sequestradaspara Lisboa assim que sabidas, fazen<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>o único lugar <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> ocidental onde, até o início <strong>do</strong>século XIX, inexistia a palavra impressa. Compara<strong>do</strong> como perío<strong>do</strong> joanino, o perío<strong>do</strong> colonial anterior é um longoinverno de ignorância. Com 1808, começa a primavera.São cria<strong>do</strong>s, nesse perío<strong>do</strong>, a Academia Militar, a Escolade Engenharia, a Biblioteca Real, o Museu Real vincula<strong>do</strong> aoJardim Botânico 75 , a Escola de Artilharia, a Escola de Medicina75 Com a criação <strong>do</strong> Real Horto (futuro Jardim Botânico), há uma tentativade sistematizar a fauna e a flora de to<strong>do</strong> o Império português nos quatrocontinentes <strong>do</strong> globo. Para plantar chá e cultivar as plantações asiáticas, oschineses foram trazi<strong>do</strong>s ao <strong>Brasil</strong> e formaram uma curiosa Colônia asiática noRio de Janeiro.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>116em Salva<strong>do</strong>r, o Real Teatro de São João, o Banco <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, a ImprensaRégia, a Escola de Belas-Artes, a Escola de Música, paraficarmos apenas com os exemplos mais relevantes. Se, por umla<strong>do</strong>, evidencia-se uma preocupação militar preponderante,por outro se percebe a necessidade de <strong>do</strong>tar a nova sede <strong>do</strong>Império português de algum aparato cultural digno da pessoa<strong>do</strong> príncipe regente e de sua Corte.Quais eram os objetivos da criação dessas instituições?Afora o interesse específico mais ou menos útil decada uma delas 76 , o que estava em jogo na proliferação deinstituições culturais era garantir o real controle <strong>do</strong> territóriopor parte da Coroa portuguesa. Em oposição ao quevinha ocorren<strong>do</strong> na América espanhola, cujos levantescontra a metrópole começaram nesse mesmo momento,urgia, no caso da América portuguesa, governar e cooptara “nobreza da terra” como aliada e legitima<strong>do</strong>ra da Coroa.As instituições culturais eram um <strong>do</strong>s meios privilegia<strong>do</strong>sde construir aquilo que Maria Odila Leite Dias chamou de“interiorização da metrópole” 77 .76 A Escola de Música demonstrava o grande interesse <strong>do</strong>s Bragança na artede Euterpe. O Banco <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> tinha o claro intuito de financiar os gastos <strong>do</strong>governo, enquanto o Jardim Botânico o de estimular a pesquisa científica.Já o Museu Real foi, por muito tempo, simplesmente o ajuntamento dasquinquilharias e curiosidades <strong>do</strong> acervo da família real portuguesa, tão aogosto <strong>do</strong>s colecionismos <strong>do</strong> Antigo Regime.77 Essas instituições se somam à tentativa de cooptação da elite local, quejá se dava, em alguma medida, desde o perío<strong>do</strong> colonial. Era possível, emmuitos casos, significativa ascensão – social e política –, na qual indivíduosTomemos como exemplo o Real Teatro de São João.Tornou-se o principal centro de expressão dramatúrgica daColônia e passou a servir como vitrine da Corte interiorizada,um lugar para ver e ser visto, onde os nobres, reinóis ounão, iam acompanhar o príncipe e medir seus prestígios,e reconhecer-se mutuamente. Ou, lembremos a denominaçãopara o banco cria<strong>do</strong> por D. João em 1808. Não eraBanco Real ou Banco de Portugal, mas sim, Banco <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>,evidencian<strong>do</strong> a importância maior da Colônia brasileira ouao menos seu maior grau de autonomia.A imprensaDo ponto de vista político, a presença da imprensafoi a que teve mais impacto no curto prazo. Em 1808, odecreto real que cria a imprensa régia estabelece a possibilidadede impressão de gráfica. O primeiro jornal publica<strong>do</strong>no <strong>Brasil</strong> foi a Gazeta <strong>do</strong> Rio, jornal oficial, sob a responsabilidadede um oficial <strong>do</strong> Ministério <strong>do</strong>s Estrangeiros, quebasicamente publicava os atos e decretos <strong>do</strong> governo emmeio a elogios à família real. Não foi, entretanto, o primeironasci<strong>do</strong>s na Colônia tinham acesso a cargos políticos e chegavam a recebertítulos de nobreza, ordens, comendas, sinecuras e mercês, poden<strong>do</strong>, pormeio da formação universitária comum em Coimbra, chegar a altos cargosna administração <strong>do</strong> reino em Lisboa ou nas colônias, como foi o caso deAlexandre de Gusmão, nasci<strong>do</strong> em Santos.


117O Processo de Independência(1808-1831)jornal brasileiro a ser publica<strong>do</strong>. Hipólito da Costa, mesesantes, deu início, em Londres, à publicação <strong>do</strong> Correio Braziliense,na qual fazia críticas ao governo <strong>do</strong> príncipe regentee à sociedade brasileira, defenden<strong>do</strong> até mesmo o fim daescravidão. Seu jornal foi publica<strong>do</strong> até a independência<strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, em uma continuidade rara para as folhas dessaépoca que raras vezes ultrapassavam meses.Em pouco tempo, o jornalismo político se disseminapara além da Corte. No perío<strong>do</strong> da independência e aolongo <strong>do</strong> Primeiro Reina<strong>do</strong>, a imprensa já está presente emoutros centros, como Salva<strong>do</strong>r, Recife e Vila Rica, não semdespertar críticas contundentes. Deputa<strong>do</strong>s da primeira legislaturadesdenhavam da “opinião pública” e da qualidadedas opiniões veiculadas pelos panfletos e opúsculos políticosque circulavam na capital.Nos debates que motivaram a criação das faculdadesno Primeiro Reina<strong>do</strong>, essa crítica à “imprensa” foi umadas razões alegadas, segun<strong>do</strong> Wilson Martins, para que acidade de São Paulo fosse escolhida em detrimento daCorte para o estabelecimento da primeira faculdade de direito<strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. Para muitos deputa<strong>do</strong>s, São Paulo era umaprovíncia que ainda se mantinha afastada da chamada“opinião pública”, adequada, portanto, à formação <strong>do</strong>s futuroslíderes da nova nação.Não tardaria, contu<strong>do</strong>, para que essa “imunidade”fosse solapada pela influência <strong>do</strong>s próprios estudantes, quese tornariam a elite intelectual <strong>do</strong> país, cujo treinamentocom a palavra escrita se iniciaria frequentemente no jornalismo,como seria o caso de Rio Branco e de JoaquimNabuco nas décadas de 1860 e 1870. Libero Badaró, italianoradica<strong>do</strong> em São Paulo, tornou-se, no final da décadade 1820, um <strong>do</strong>s precursores da imprensa paulista comocrítico constante <strong>do</strong> autoritarismo da Corte. Acabou porser o infeliz protagonista e catalisa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> movimento quelevou ao sete de abril quan<strong>do</strong> de seu assassinato, muitoprovavelmente por criminosos a man<strong>do</strong> da intendênciaprovincial. O jornalismo, na província considerada a menos“panfletária”, inaugurava ali sua contribuição em sanguepara com a política nacional.Mesmo antes da morte de Badaró, proliferam jornaise panfletos claramente vincula<strong>do</strong>s a uma perspectiva política,que se diferenciavam <strong>do</strong>s órgãos oficiais ou oficiosose das produções majoritariamente religiosas <strong>do</strong>s primeirosanos da imprensa, sob a rígida censura <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> joanino.No Rio de Janeiro, Evaristo de Veiga e seu jornal, Aurora Fluminense,também tiveram impacto significativo no processode abdicação de D. Pedro I.Ainda antes disso, os irmãos Bonifácio, durante trêsmeses <strong>do</strong> ano de 1824, vão publicar o jornal O Tamoio,que também oferecia posição crítica em relação ao processode centralização e de repressão desencadea<strong>do</strong> porD. Pedro I desde o fechamento da Assembleia em dezembrode 1823. Outro exemplo mais destaca<strong>do</strong> de atuaçãooposicionista no Primeiro Reina<strong>do</strong> é Sentinela da Liberdade,


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>118de Pernambuco, que estava sob o coman<strong>do</strong> de CiprianoBarata, médico que havia participa<strong>do</strong> da Insurreição Pernambucanade 1817. Na mesma província, os panfletos deFrei Caneca, críticos em relação ao Poder Modera<strong>do</strong>r e àcentralização política em curso, serviram para estimular aConfederação <strong>do</strong> Equa<strong>do</strong>r. Uma vez debelada a rebelião,o frei seria condena<strong>do</strong> à morte por arcabuzamento, tipode execução desconhecida no <strong>Brasil</strong>. Segun<strong>do</strong> a memórialiberal posterior, isso se deu pela incapacidade das autoridadesem encontrar verdugo disposto a enforcá-lo.Na contramão dessa tendência, foi cria<strong>do</strong>, no final <strong>do</strong>Primeiro Reina<strong>do</strong>, o jornal que teria vida mais longa e queexiste com esse nome até os dias de hoje: o Jornal <strong>do</strong> Commercio,vincula<strong>do</strong> aos interesses <strong>do</strong> governo. Seria norma,no Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>, que políticos proeminentes assegurassemo controle mediante aliança ou compra de jornaisque pudessem lhes dar respal<strong>do</strong> político. É conhecida avinculação entre Justiniano José da Rocha, o mais relevantepanfletário <strong>do</strong> Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>, e os próceres <strong>do</strong> parti<strong>do</strong>conserva<strong>do</strong>r, como o conselheiro Paranhos, futuro Visconde<strong>do</strong> Rio Branco. Outro exemplo no mesmo senti<strong>do</strong> foi a aquisição,por parte <strong>do</strong> Marquês de Caxias, de um jornal, outroraliberal, em que ele se assegurou, em plena condução daGuerra <strong>do</strong> Paraguai, de ter jornalistas alia<strong>do</strong>s antes de aceitarassumir o Ministério da Guerra sob o coman<strong>do</strong> de um gabineteprogressista, temen<strong>do</strong>, como seria visto depois, corretamente,que fosse ataca<strong>do</strong> pela imprensa.LiteraturaAlém <strong>do</strong>s jornais mais visíveis, a imprensa produziuno perío<strong>do</strong> centenas, milhares de livros, livretos e brochuras.Apenas a imprensa régia imprimiu mais de 700 brochurase edições e cerca de 1.500 papéis avulsos <strong>do</strong>s maisvaria<strong>do</strong>s temas (religiosos, econômicos, políticos, informativos,entre outros). Data dessa época o início da impressãode obras brasileiras e da tradução de clássicos europeus.Se ainda não tinham a qualidade <strong>do</strong>s futuros clássicos,essas obras já apresentavam uma ótica brasileira, frequentementeinfluenciada pelo espírito da ilustração. É o casode Atalaia, de José da Silva Lisboa, o primeiro livro de economiapolítica influencia<strong>do</strong> pelas obras de Adam Smith.Muitas dessas obras se vinculavam já àquilo que poderíamoscaracterizar de protorromantismo. O que viria aser o romantismo, a partir <strong>do</strong> Instituto Histórico e Geográfico<strong>Brasil</strong>eiro (IHGB) nas décadas de 1840 e 1850, já aparecenos anos de 1810 e 1820 em obras que valorizam a naturezaacima das ações <strong>do</strong>s homens ou <strong>do</strong> heroísmo <strong>do</strong>s personagens.A fascinação romântica com a natureza e comos índios já aparece nos escritos iniciais de Gonçalves deMagalhães e seu inspira<strong>do</strong>r, o viajante francês FerdinandDenis. Magalhães seria mais tarde o principal artífice <strong>do</strong> romantismo,tal qual forja<strong>do</strong> pelo IHGB nas décadas de 1840e 1850. Essa literatura protorromântica só tem condiçõesde se viabilizar com a propagação da imprensa.


119O Processo de Independência(1808-1831)Dois elementos são perceptíveis nesse protorromantismoliterário: o nacionalismo incipiente <strong>do</strong>s anos daindependência e a fascinação pelo exótico, pela natureza,que os intelectuais brasileiros herdaram <strong>do</strong>s viajantes estrangeiros,legan<strong>do</strong>-nos uma visão <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> de fora paradentro mesmo quan<strong>do</strong> produzida por brasileiros. Quantoao segun<strong>do</strong> caso, trataremos dele quan<strong>do</strong> mencionarmosos viajantes estrangeiros e as missões artísticas e científicasque lideraram no país. Para ilustrar o primeiro, bastalembrarmos um único exemplo entre os muitos nacionaisque, envergonha<strong>do</strong>s de continuarem a carregar, após a independência,seu nome português, por uma questão denacionalismo, às vezes exagera<strong>do</strong>, e para marcarem seuamor à pátria e romperem com a história europeia, mudaramseus nomes de batismo. O deputa<strong>do</strong> Francisco GêAcayaba de Montezuma, figura importante <strong>do</strong> liberalismobrasileiro da primeira metade <strong>do</strong> século XIX, assume umnome marcadamente americano, indianista – e por quenão dizer – essencialmente romântico.MúsicaA música era quase uma obsessão <strong>do</strong>s Bragança.O próprio príncipe regente D. Pedro I era também umcompositor com algum talento, ten<strong>do</strong> composto diversoshinos pátrios e marchas militares. Inicialmente, padreMaurício, espécie de Mozart da Corte transmigrada, faziacomposições, sobretu<strong>do</strong> religiosas, para agradar aos ouvi<strong>do</strong>sda real família. Alguns anos depois, chega ao <strong>Brasil</strong>Marcos Portugal, maestro da Corte, que inclui tons profanosnas composições sacras.A mais notável das instituições musicais criadasno <strong>Brasil</strong> foi o conservatório de Santa Cruz. A fazenda deSanta Cruz era uma espécie de casa de veraneio da famíliareal, onde os escravos só trabalhavam parte da semana etinham o direito de cuidar da própria lavoura. Além disso,recebiam educação e instrução musical. To<strong>do</strong>s os escravosda fazenda aprendiam a tocar um instrumento e a cantar.Apresentavam-se com frequência para a família real comuma qualidade considerada então extraordinária. Essa experiênciade escravos canta<strong>do</strong>res de Santa Cruz durou gerações,até o fim <strong>do</strong> Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>.O Rio de Janeiro e a vida urbanaAo se pensar na cultura na Colônia entre 1808 e1821, deve-se atentar para o papel fundamental da Corteportuguesa, sediada no Rio de Janeiro. Essa cidade setransforma profundamente e irradia suas transformaçõespara as demais províncias, a começar pelo número, mastambém pela posição social <strong>do</strong>s recém-chega<strong>do</strong>s – aristocratas,altos funcionários, nobres e ministros. Há umadiscussão historiográfica relativamente recente de desqualificar,para além de qualquer dúvida, a ideia resiliente


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>120de que desembarcaram com D. João 15 mil imigrantes daCorte portuguesa em 1808. Esse número não sofreu nenhumacontestação por parte da maioria <strong>do</strong>s historia<strong>do</strong>res,que, na verdade, reproduziam a estimativa dada, levianamente,por um marinheiro inglês coadjuvante na viagem.O arquiteto e historia<strong>do</strong>r Nireu Cavalcante chega à conclusãode que essa informação não é confiável. Ele estima queesse número é consideravelmente menor, na casa das centenas,e que 15 mil seria mais próximo <strong>do</strong> aumento totalda população da cidade, incluin<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s os imigrantes aolongo <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> joanino.Estima-se que, em 1808, a cidade <strong>do</strong> Rio de Janeirotinha uma população um pouco maior que a de Salva<strong>do</strong>r,entre 50 e 60 mil pessoas. A cidade de Salva<strong>do</strong>r tinha talvezum pouco menos, 50 mil pessoas; Recife, entre 20 e 25 milalmas; Belém, cerca de 10 mil; e São Paulo abrigava maisou menos 20 mil habitantes. Se Lisboa tinha então 180 mil(o triplo de cariocas), por outro la<strong>do</strong> a segunda maior cidadede Portugal, o Porto, tinha cerca de 50 mil habitantes,estan<strong>do</strong> no mesmo nível das maiores cidades da Colônia.Não fazíamos tão má feição em tamanho. Já quanto à qualidadee ao conforto eram outros quinhentos.O que mais chamava a atenção <strong>do</strong>s viajantes erama sujeira e o mau cheiro da cidade <strong>do</strong> Rio de Janeiro. Causavaespécie a presença de escravos carregan<strong>do</strong> baldesde excrementos pela cidade (os chama<strong>do</strong>s “tigres”). À repulsaà sujeira somava-se o profun<strong>do</strong> preconceito racial<strong>do</strong>s europeus que, ao verem uma mistura generalizada debrancos e negros conviven<strong>do</strong> no mesmo espaço com umaenorme quantidade de mestiços, frequentemente se fascinavamou se enojavam com o que dizem ser uma cidadeque transbordava de sensualidade, em uma crítica à faltade pu<strong>do</strong>res – muitos negros andavam seminus nas ruas, àmoda da África – e à mestiçagem.Teve início, nesse perío<strong>do</strong>, a preocupação em aumentardemograficamente a proporção de indivíduosbrancos na proporção geral da população. Muito provavelmenteem consequência <strong>do</strong> impacto causa<strong>do</strong> pela rebeliãode escravos em São Domingos, que criou o Esta<strong>do</strong>independente <strong>do</strong> Haiti em 1804, passou a existir um estímuloda Coroa à vinda de imigrantes brancos: prussianos,suíços, ingleses, portugueses e franceses. Não era ainda odelibera<strong>do</strong> branqueamento racial que se verificaria na segundametade <strong>do</strong> século XIX, fruto da disseminação dasideias <strong>do</strong> racismo imperialista europeu, pois não se tratavade uma política de Esta<strong>do</strong> explicitamente com esse objetivo,mas é uma preocupação que se inicia com a transmigraçãoda Corte. Afinal, esses imigrantes seriam professores,tutores, livreiros, marceneiros, carpinteiros, chapeleiros,modistas, músicos, pintores e outras profissões cuja demandaera muito limitada no perío<strong>do</strong> colonial. Serviriam auma nova elite que se constituía então na cidade <strong>do</strong> Rio deJaneiro e, aos poucos, também em outras capitais. Nessecontingente de imigrantes, fugin<strong>do</strong> à ideia eugenista que


121O Processo de Independência(1808-1831)só ganharia contornos de planejamento governamentaldécadas depois, também está incluí<strong>do</strong> um grande númerode ciganos, muitos judeus e até alguns chineses que trabalhavamno Horto Real.Para além da presença maciça de europeus estrangeiros,é bom lembrarmos que, apesar das promessas feitasà Inglaterra, as décadas iniciais <strong>do</strong> século XVIII formamo perío<strong>do</strong> que assistiu à maior entrada de cativos africanosnos portos <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. Conjuntamente, essa miríade deindivíduos das mais diversas proveniências e estratos sociaiscontribuiu para modificar, de forma impactante, astradições e os costumes tanto de cima para baixo (costumeseuropeus que começam a se disseminar pela antigaColônia) quanto de baixo para cima (hábitos e costumesafricanos que se tornam nossos). Quanto ao primeiro senti<strong>do</strong>,fiquemos com <strong>do</strong>is exemplos <strong>do</strong> cotidiano das cidades:a cadeirinha e o hábito de as mulheres saírem às ruas.Reza a lenda que quan<strong>do</strong> D. João foi obriga<strong>do</strong>,por ordens médicas, a tomar banho, pela primeira vez, porme<strong>do</strong> de entrar na água, ele foi transporta<strong>do</strong> para o marem uma cadeirinha carregada por escravos. Por mimetismo,isso criou o hábito de os membros das famílias maisabastadas da elite serem transporta<strong>do</strong>s na rua por escravos,tornan<strong>do</strong> o carrega<strong>do</strong>r de liteiras parte <strong>do</strong> panoramadas principais zonas urbanas <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>.No mesmo lustro, a princesa Carlota Joaquina, mulherbastante autônoma e futura rainha de Portugal, saíacom frequência às ruas da cidade que odiava. Nesses passeios,obrigava que to<strong>do</strong>s se curvassem sob pena de seremchicotea<strong>do</strong>s (houve um incidente diplomático com dignitárioinglês que sacou pistolas quan<strong>do</strong> viu que poderia servergasta<strong>do</strong> por um escravo ao se recusar a se curvar). Sob oexemplo da princesa, timidamente, as mulheres da Colôniacomeçaram a sair de casa. Nos anos que se seguem, essasmulheres saíam para ir às compras em lojas da rua Direitae da rua <strong>do</strong> Ouvi<strong>do</strong>r que começavam a se constituir comopontos chiques, com lojas caras que vendiam produtoseuropeus. Começam a existir escolas para as mulheres,que aos poucos deixam de ser educadas por tutoras individuais.Ver e ser visto nessas ruas passa a ser um esportesocial, em que o pináculo <strong>do</strong> teste de prestígio era o TeatroSão João.No segun<strong>do</strong> senti<strong>do</strong>, proliferam exemplos: a miscigenaçãotem enorme impacto na vida das pessoas. O folcloreafricano e indígena que as amas contavam para osfilhos brancos das elites se torna parte integrante da alma<strong>do</strong> futuro bacharel ou deputa<strong>do</strong> nas catalogações futurasde Câmara Cascu<strong>do</strong>. Também as formas de moradia, quereproduziam padrões arquitetônicos das quintas portuguesas,incorporavam socialmente numerosos agrega<strong>do</strong>s,que, como nas famílias africanas, constituíam fonte deprestígio para o <strong>do</strong>no da casa. Na alimentação, conta-noso embaixa<strong>do</strong>r Costa e Silva, o toucinho e o azeite portuguêsse misturavam com a mandioca e com alimentos que


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>122vinham da África. No campo musical, vários instrumentos eritmos se inseriam nas modinhas e nos saraus <strong>do</strong>s homensbrancos, como é o caso <strong>do</strong> lundu, ritmo africano assimila<strong>do</strong>nas festas das elites. Para além <strong>do</strong>s hábitos, moradia ealimentação, é bom lembrarmos o impacto de tal saladahumana na conformação de identidades.Sofre uma ressignificação a identidade daquelesque vieram para o <strong>Brasil</strong>, crian<strong>do</strong>-se, no país, um cadinhoidentitário que acirra a tendência miscigenada já presentedesde os primórdios da colonização. Afinal, o africano naÁfrica não é africano, mas um natural Daomé, <strong>do</strong> Benin, deAngola, um jejê ou malê. O mesmo vale para o português,que em Portugal é bem mais mourão, galego, minhoto, <strong>do</strong>algarve, lisboeta, açoriano ou beirão que português. Essasidentidades “africano” e “português” só se impõem comotais no <strong>Brasil</strong>, onde esses indivíduos passam a ressignificarsua identidade – homem branco, mulato ou mestiço –,dan<strong>do</strong> a isso importância muito maior que a que tinha emseu lugar de origem. O português, ao possibilitar a comunicaçãodaqueles que falavam línguas ou dialetos distintosem suas vilas natais, torna-se a língua <strong>do</strong> encontro entreos povos.No entanto, se por um la<strong>do</strong> o encontro teve dimensõespositivas, teve também como consequência o congelamentode duas oposições, bastante dura<strong>do</strong>uras naautoimagem da composição social e racial <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. Coma vinda da família real, não resta dúvida de que se acelerae se estimula o surgimento de oposições. Por um la<strong>do</strong>, aoposição entre brancos e negros vai persistir de maneiradramática, no mínimo, até o fim da escravidão, por outro,há a oposição menos automática entre portugueses e nãoportugueses, que tem vinculação racial muito menor e émais fruto de uma escolha política (apoiar ou não a independência)que de uma característica atávica. A primeiraoposição é muito mais violenta e estará presente nas preocupaçõespolíticas <strong>do</strong>s estadistas brasileiros ao longo deto<strong>do</strong> o século XIX, engendran<strong>do</strong> a perniciosa defesa <strong>do</strong>branqueamento. Essa oposição estabelecia uma relaçãode hierarquização automática. Por outro la<strong>do</strong>, a forma deresolução negociada da independência brasileira, na qualsobressai o aspecto de continuidade mais que de ruptura,será lembrada espasmodicamente nos levantes antilusitanosfrequentes no perío<strong>do</strong> regencial, mas recorrentes detempos em tempos até a primeira República (praieira, jacobinismoflorianista).A política joanina para os índiosNo que diz respeito aos índios, logo depois da chegada,D. João dá ordem ao governa<strong>do</strong>r de Minas Geraispara que seja feita guerra ofensiva aos botocu<strong>do</strong>s depoisde considerar que já estavam esgotadas todas as tentativasde reduzi-los à condição civilizada. Uma vez que essesíndios continuavam atacan<strong>do</strong> e invadin<strong>do</strong> regiões no


123O Processo de Independência(1808-1831)norte de Minas Gerais e no Espírito Santo, a Coroa estabeleceque a guerra contra os índios era legítima, e simplesmenteautoriza o que já vinha sen<strong>do</strong> feito há séculos.Pesquisas sobre os índios no <strong>Brasil</strong> vêm se desenvolven<strong>do</strong>e novos estu<strong>do</strong>s sobre a temática indígena proliferam.Já no clássico de Oliveira Lima, porém, encontramos aprimeira crítica à política indianista de D. João. Sua avaliaçãonegativa desse aspecto <strong>do</strong> governo <strong>do</strong> príncipe regentecontrasta com a disposição positiva que o diplomata sempreteve para com D. João. Tal avaliação, é bom lembrar, foifeita em 1908, em um contexto ainda mais marca<strong>do</strong> peloforte preconceito racial <strong>do</strong> que o <strong>do</strong>s dias atuais. OliveiraLima e a maior parte <strong>do</strong>s historia<strong>do</strong>res até muito recentementerecorrem, sem a devida crítica, a fontes históricasportuguesas que tratam de maneira preconceituosa a figura<strong>do</strong>s indígenas. Ou então, no caminho inverso, recorrema fontes de estrangeiros (Denis, Saint-Hilaire, Debret), cujavisão idílica e idealizada <strong>do</strong> já menciona<strong>do</strong> protorromantismoenxergava o índio em chave rousseuniana – “um bomselvagem, ingênuo puro e livre”, consagra<strong>do</strong> pela primeirageração romântica posterior 78 .78 Essa visão não impede que o índio real seja trata<strong>do</strong> como parte integranteda fauna, como um animal humano que é integrante <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> natural. Aetnografia é irmã <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s da fauna e da flora e pode bem ser ilustradapelo caso <strong>do</strong> príncipe Maximiliano, que, apesar <strong>do</strong> pouco tempo no <strong>Brasil</strong>,levou para a Europa uma enorme quantidade de espécimes (6,5 milplantas; 2,7 mil insetos; 80 aracnídeos; 116 peixes; 85 espécimes animais),Há uma grande contradição entre a idealização intelectual<strong>do</strong> índio romântico rousseauniano e o mo<strong>do</strong>como o índio real era trata<strong>do</strong> pelas autoridades. Essa é agrande contradição que será percebida de forma mais clarano romantismo. Gesta<strong>do</strong> pelo IHGB e herdeiro das missõescientíficas e etnográficas das décadas de 1810 e 1820,o romantismo contribuirá para a idealização <strong>do</strong> índio aotransformá-lo em um ícone literário de pureza, bondade ebravura na luta contra o português, tornan<strong>do</strong>-o o símbolomaior da identidade nacional. A comemoração ainda hoje<strong>do</strong> Dia <strong>do</strong> Índio é indicativo da resiliência dessa imagemromântica que teve sua gênese contraditória no perío<strong>do</strong>joanino.Os viajantes europeus e as missões estrangeirasAté 1808, o <strong>Brasil</strong> estava fecha<strong>do</strong> aos estrangeiros.Humboldt foi proibi<strong>do</strong> pelas autoridades portuguesas dedesembarcar na Colônia e poucas foram as exceções a essaregra. Afora um punha<strong>do</strong> de famílias inglesas residentes noRio de Janeiro, apenas Thomas Lindsey e John Mawe entraramno <strong>Brasil</strong> antes da transmigração da Corte, sen<strong>do</strong>o último o primeiro estrangeiro a visitar as Minas Gerais,entre os quais incluiu um índio. Leva<strong>do</strong> à Europa, o botocu<strong>do</strong> “felizar<strong>do</strong>” foiapresenta<strong>do</strong> à Corte austríaca.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>124então já em decadência acentuada. Ressalte-se o fato deque ambos eram ingleses, o que evidencia a vinculação estreitaentre Londres e Lisboa que se intensificaria após 1808.Para Sérgio Buarque de Holanda, a abertura aos estrangeirossignificou um “novo descobrimento”. Antes de1808, eram viajantes portugueses os autores de livros ede estu<strong>do</strong>s sobre o <strong>Brasil</strong> que faziam viagens pelo territórioe reconheciam esses <strong>do</strong>mínios, como o padre Antonil,em 1711, ou Alexandre Ferreira pela Amazônia entre 1782e 1793. Com a flexibilização da entrada de estrangeirosapós 1808, proliferam os estrangeiros, embora pre<strong>do</strong>minemos ingleses em um primeiro momento. Entre 1808e 1809, John Luccock e Henry Koster visitaram o Rio deJaneiro. No entanto, não foram apenas os ingleses quevieram ao <strong>Brasil</strong>.O casamento <strong>do</strong> príncipe Pedro com a arquiduquesaCarlota Josefa Leopoldina de Habsburgo foi o motivopara a vinda de duas importantes missões científicas quechegam ao <strong>Brasil</strong> com a futura princesa em 1817. Umabatava e outra austríaca, esta composta por Von Martiuse Von Spix, que, em viagem pelo interior <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, foramacompanha<strong>do</strong>s pelo pintor Thomas Ender. Von Martius teriamais tarde um papel fundamental para além <strong>do</strong> conhecimentobotânico que produziu: a etnografia, descreven<strong>do</strong>o panorama geral das províncias que visitava.O que poderia ser chama<strong>do</strong> de “missão russa” estáentre os empreendimentos mais ambiciosos entre osviajantes estrangeiros que estiveram no país nesse perío<strong>do</strong>.O Barão Von Langs<strong>do</strong>rff, cônsul russo no Rio de Janeiro,convence o czar Alexandre I a investir 300 mil rublos parapromover aquela que seria a trágica missão de exploraçãoe de coleta de material da região amazônica. Trouxe desgraçapara boa parte de seus integrantes. Após três anosexploran<strong>do</strong> as capitanias amazônicas, Langs<strong>do</strong>rff enlouqueceu,Johann Rugendas aban<strong>do</strong>nou a expedição antes<strong>do</strong> fim após contrair malária, Adrian Taunay morreu afoga<strong>do</strong>,e Thomas Ender perdeu a memória. Como em quasetodas as viagens desse perío<strong>do</strong>, o objetivo era acumular esistematizar, por meio de uma lógica taxonômica, de categorização,o conhecimento natural, dentro de uma visãomais quantitativa que analítica.Já Saint-Hilaire percorreu mais de 12 mil quilômetrospelo interior <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> e escreveu nove volumes comdescrição de suas três viagens. Inicialmente, percorreu ascapitanias de Minas Gerais e Espírito Santo. De volta à Corte,reinicia suas andanças pelo caminho da tropa das mulase <strong>do</strong>s tropeiros, in<strong>do</strong> a Goiás e descen<strong>do</strong> por São Paulo atéSorocaba, de onde ele se dirige para o sul <strong>do</strong> território atéa Colônia <strong>do</strong> Sacramento. Ao avistar São Paulo, escreve quejamais havia respira<strong>do</strong> ar tão puro. Manten<strong>do</strong> a tradição dedesgraças nessas expedições, Saint-Hilaire foi pica<strong>do</strong> poruma abelha e teve parte de seu corpo paralisada até amorte três décadas depois.


125O Processo de Independência(1808-1831)A missão artística francesa de 1816A missão artística francesa de 1816, liderada pelooutrora poderoso Joachim Lebreton teve impacto determinantena conformação de novos cânones para o panoramaartístico-cultural <strong>do</strong> futuro Império <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. Taltransformação, entretanto, se daria apenas no médio prazo.No curto prazo, o que talvez tenha si<strong>do</strong> inicialmenteuma “missão” em pouco tempo se desagregou e seus integrantesseguiram, cada um, rumos distintos no país, algunsse isolan<strong>do</strong> como Montigny, na floresta da Gávea, outrosviajan<strong>do</strong> pelo país produzin<strong>do</strong> pinturas e testemunhos,como Jean Baptiste Debret, outros ainda encontran<strong>do</strong> umfinal trágico, como Adrien Taunay, que morreu afoga<strong>do</strong> naexpedição de Langs<strong>do</strong>rff, conforme menciona<strong>do</strong>.Recentemente, a historia<strong>do</strong>ra e antropóloga LilianMoritz Schwarcz, no livro O sol <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, analisa os cânoneshistoriográficos sobre a vinda da missão artística, discutin<strong>do</strong>a própria ideia de missão. Lilian argumenta quenão houve uma organização e um planejamento oficialda vinda <strong>do</strong>s artistas franceses, sob a responsabilidade <strong>do</strong>Conde da Barca, tal qual consolida<strong>do</strong> pela historiografia.A autora defende que essa missão se tratou de um encontrode interesses. Por um la<strong>do</strong>, os artistas franceses estavamdesemprega<strong>do</strong>s e espalha<strong>do</strong>s pela Europa depois daderrota de Napoleão, por outro, a Coroa portuguesa percebia,na atuação conjunta desses artistas, a possibilidade delegitimação dinástica no território ao incorporar, na iconografia,no estatuário e nas arquiteturas coloniais, os modelos“civiliza<strong>do</strong>s” de arte.Lilian argumenta que a motivação desses integrantesda missão era mais artística que econômica. Antes deenxergarem a missão como um meio de ganhar a vida,os franceses chegaram, não raro, em busca de experiênciaartística. Vieram como Debret ou Taunay para pintar anatureza, os índios e os costumes de uma terra ainda pordescobrir. Com a criação da Escola de Belas Artes (maistarde, Academia Imperial de Belas Artes), esses indivíduospassam a ter sinecuras.Três motivos contribuíram para a desagregação damissão. Em primeiro lugar, a recepção pouco calorosa quetiveram por parte <strong>do</strong> panorama artístico já estabeleci<strong>do</strong> naColônia. Ainda que incipiente, muitos artistas luso-brasileirosse ressentiram <strong>do</strong> papel e das vantagens financeirasque os franceses obtiveram. Uma vez inaugurada após longademora, a Academia Imperial de Belas Artes, sucessorada Escola de Belas Artes, esteve por anos sob direção hostilaos franceses, que acabaram, em muitos casos, optan<strong>do</strong>por assumir funções de pintor e professor particular. Emsegun<strong>do</strong> lugar, o próprio cônsul francês, Maler, nomea<strong>do</strong>pelo governo Bourbon restaura<strong>do</strong> em 1814, via nos artistasda missão bonapartistas perigosos. Se precisou aceitá-los,por estarem sob a proteção real e emprega<strong>do</strong>s junto a Coroaportuguesa, não os acolheu ou lhes deu apoio diante


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>126das vicissitudes que enfrentaram na América portuguesa.Por último, a morte prematura de Lebreton, o líder da “missão”e, de certo mo<strong>do</strong>, o polo agrega<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s artistas contribuiu,para a dispersão <strong>do</strong> grupo.Nos anos finais <strong>do</strong> Primeiro Reina<strong>do</strong>, ocorreu no<strong>Brasil</strong>, no âmbito da Academia Imperial de Belas Artes, asduas primeiras exposições oficiais de pintura e esculturano país, contan<strong>do</strong> com a presença <strong>do</strong> próprio impera<strong>do</strong>r.O que tinha tu<strong>do</strong> para se tornar uma tradição anual foi interrompi<strong>do</strong>com o sete de abril e a abdicação. O governo<strong>do</strong>s liberais às voltas com sucessivas rebeliões na Corte enas províncias devia ter mais com o que se preocupar <strong>do</strong>que com a organização de exposições de arte. A preocupaçãocultural só volta a ser significativa no perío<strong>do</strong> <strong>do</strong> regresso,e as exposições da acadêmica só foram retomadasno Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>. Nesse momento, os artistas proeminentesforam, em muitos casos, alunos <strong>do</strong>s franceses.Alterava-se assim, em médio prazo, o panorama daarte feita no <strong>Brasil</strong>. Seus alunos e sucessores, os artistas <strong>do</strong>Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>, disseminariam, por meio da AcademiaImperial – e de seus concursos periódicos –, o estiloneoclássico, também chama<strong>do</strong> de arte acadêmica, queprovocaria o declínio <strong>do</strong> barroco. Não foram poucos osartistas que, revela<strong>do</strong>s nas exposições da Academia Imperial,seriam financia<strong>do</strong>s pelo “bolsinho imperial” para passarlongas temporadas de formação na Europa, como PedroAmérico e Victor Meireles.Essa nova geração de artistas diferia socialmente<strong>do</strong>s artistas coloniais <strong>do</strong> barroco mineiro e fluminenseoriun<strong>do</strong>s, não raro, das mais baixas camadas da sociedade.Muitos eram escravos (ou filhos de escravos, como Alejadinho).A profissão de artista não era então considerada umaprofissão nobre ou digna, sen<strong>do</strong> equiparada ao trabalho<strong>do</strong> artesão ou carpinteiro, um trabalha<strong>do</strong>r manual, e nãointelectual, e, como tal, próximo <strong>do</strong>s escravos.Considerações finaisTanto a literatura <strong>do</strong>s viajantes quanto as composiçõespictóricas da mesma época, de artistas como Ender,Rugendas e Debret, contribuíram para construir aquilo queRoberto Ventura chamou de “autoexotismo”. A visão da elitenacional sobre o <strong>Brasil</strong> passa a ser majoritariamente dirigidapelo olhar estrangeiro. Os brasileiros passam a olharpara si mesmos e seu país eiva<strong>do</strong>s de significações oraidealizadas, ora mistificadas, ora preconceituosas e/ou pejorativas.Na aurora da pátria, o olhar estrangeiro, privilegia<strong>do</strong>social e politicamente, criou para a elite brasileira, comsuas missões, pinturas e contribuições científico-culturais,toda uma weltanschauung que disseminou, na cultura nacional,os cânones europeus contra os quais os modernistasse insurgiriam radicalmente no século XX.


1273. O Perío<strong>do</strong> Regencial(1831-1840)3.1 O avanço liberal (1831-1837)O mal-estar da regência: motivos e origem. As facções políticas e seus pleitos. As medidas iniciaisda regência e seus objetivos. A Guarda Nacional e as rebeliões de tropa e povo. Manietan<strong>do</strong> o PoderModera<strong>do</strong>r: a primazia legislativa. O Código de Processo Criminal e a Lei de Responsabilidade Fiscal.O significa<strong>do</strong> <strong>do</strong> Ato Adicional de 1834 e suas medidas. O avanço liberal: balanço geral.O perío<strong>do</strong> regencial é um tópico pouco estuda<strong>do</strong> e, talvez por isso mesmo, poucocobra<strong>do</strong> na prova discursiva da terceira fase <strong>do</strong> Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata(CACD). O Teste de pré-seleção muito raramente tem trazi<strong>do</strong> questões sobre o perío<strong>do</strong>regencial, mas é de se supor que esse preconceito generaliza<strong>do</strong> contra a regência há de sersupera<strong>do</strong>, e rapidamente. Indícios disso estão presentes cada vez mais em obras gerais sobreo perío<strong>do</strong> monárquico que dão muita relevância, necessária, à época das regências 79 .O motivo desse preconceito é de fácil compreensão. O que é difícil compreendersão os nove anos da história brasileira transcorri<strong>do</strong>s entre 1831 e 1840. Alguns autores, paradar ainda mais relevância a essa complexidade, enfatizam o plural: “as regências”. Confusão,instabilidade, fragmentação territorial, revoltas de homens livres e de escravos, anarquia, sãoto<strong>do</strong>s termos vincula<strong>do</strong>s ao perío<strong>do</strong> regencial que assustam os alunos desde o colégio (etambém alguns professores), perpetuan<strong>do</strong> a má vontade. Cabem algumas palavras sobrea historiografia que consoli<strong>do</strong>u essa visão, ainda hegemônica, e que explica um pouco otrauma.79 O segun<strong>do</strong> volume da coleção financiada pela MAPFRE, organizada por Lilia Moritz Schwarcz (2009), e o primeiro volume dacoleção organizada por Keila Grinberg e Ricar<strong>do</strong> Salles são exemplos disso.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>128Com a vitória <strong>do</strong> “regresso conserva<strong>do</strong>r” – inicia<strong>do</strong>em 1837, mas só concluí<strong>do</strong> plenamente na décadade 1850, após o gabinete de conciliação com o Impériopacifica<strong>do</strong> –, fica claro que a “ordem” passa a ser um valoracima de tu<strong>do</strong>, e a estabilidade um discurso conserva<strong>do</strong>rde manutenção <strong>do</strong> poder, inclusive compartilha<strong>do</strong> (e/ouimposto aos) entre os liberais, como nos mostra Ilmar Mattosem O tempo saquarema. Demonizar a regência era ao mesmotempo valorizar a estabilidade e a ordem monárquica.Tal propósito foi alcança<strong>do</strong> de mo<strong>do</strong> tão completo que,mesmo com o fim <strong>do</strong> Império, a República Velha, mais federalistae descentralizada, não foi capaz 80 de desfazer aimagem negativa da Regência.Podemos tentar, sem muita pretensão à neutralidade,buscar um resumo da história política regencial, talqual é contada pela historiografia refletida na bibliografiaindicada nos últimos editais <strong>do</strong> CACD. Resumida, seria assim:com a abdicação de nosso primeiro impera<strong>do</strong>r, ficaclara a vitória <strong>do</strong>s brasileiros, agora simplesmente liberais,contra a facção <strong>do</strong>s portugueses, também chama<strong>do</strong>s,dependen<strong>do</strong> da boa vontade <strong>do</strong> interlocutor e da regiãoonde se encontravam, de corcundas (se curvavam ao poderabsoluto), caramurus (nome <strong>do</strong> jornal <strong>do</strong>s portugueses80 Muitos historia<strong>do</strong>res até tentaram. Em São Paulo, Alfre<strong>do</strong> Ellis Jr, por exemplo,buscou resgatar a memória <strong>do</strong> padre Feijó e <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> regencial.edita<strong>do</strong> no Rio de Janeiro), pés de chumbo, marotos eoutros nomes que indicam que não havia muita simpatiapara com as gentes da antiga metrópole. Cogitou-se,muitas vezes, expulsá-los simplesmente, com exceção<strong>do</strong>s casa<strong>do</strong>s com brasileiras ou com filhos brasileiros. Esseconflito vinha se delinean<strong>do</strong> claramente e, grosso mo<strong>do</strong>,evidenciava mais ou menos uma clivagem política entre,de um la<strong>do</strong>, os brasileiros, defensores <strong>do</strong> liberalismoconstitucionalista, da autonomia brasileira e da soberaniada nação sobre a dinastia; <strong>do</strong> outro, os portugueses,partidários de Pedro I e, portanto, sem muito apreço peloliberalismo, simpáticos à autocracia e, em última instância,suspeitos de quererem a recolonização, risco irrealem 1831.De algum mo<strong>do</strong> esses <strong>do</strong>is grupos, que haviam si<strong>do</strong>alia<strong>do</strong>s conjunturais entre 1821 e 1822 contra a tentativade recolonização das cortes, vinham se desentenden<strong>do</strong>desde o fechamento da Assembleia Constituinte por atodiscricionário e autoritário <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r em dezembro de1823. Os antigos alia<strong>do</strong>s racharam. A luta pela independênciaos unira, a montagem <strong>do</strong> novo Esta<strong>do</strong> os separou. Contribuírampara isso ainda as ondas liberais europeias, que,no início da década de 1830, convulsionaram novamente aFrança, mas também as futuras Itália e Alemanha, e chegaramao <strong>Brasil</strong> estimulan<strong>do</strong> uma postura mais agressiva <strong>do</strong>sliberais contra o impera<strong>do</strong>r. Uma vez toma<strong>do</strong> o poder, osete de abril (data da abdicação) significará, para os liberais


129O Perío<strong>do</strong> Regencial(1831-1840)brasileiros, uma continuação <strong>do</strong> sete de setembro, a verdadeiravitória na luta pela independência de Portugal 81 .O que fizeram esses liberais no poder? O natural seriaque tivessem amplia<strong>do</strong> o máximo possível o alcance<strong>do</strong> pêndulo político para o campo diametralmente opostodaquele marca<strong>do</strong> autoritarismo centraliza<strong>do</strong>r <strong>do</strong> PrimeiroReina<strong>do</strong>. De fato, houve um esforço nesse senti<strong>do</strong>, mas <strong>do</strong>iselementos de feição inercial contribuíram para que os novos<strong>do</strong>nos <strong>do</strong> poder fossem bem mais devagar com o an<strong>do</strong>r.A principal delas era o haitianismo, isto é, o me<strong>do</strong> deuma rebelião popular generalizada, com apoio de mestiços,mulatos e escravos. Esse me<strong>do</strong> estava entranha<strong>do</strong> naalma <strong>do</strong>s senhores e <strong>do</strong>s homens brancos em geral, desdeos primórdios da escravidão no <strong>Brasil</strong>, e havia saí<strong>do</strong> <strong>do</strong>plano da hipótese para o da realidade com a rebelião deSão Domingos em plena eclosão da Revolução Francesa.O mun<strong>do</strong> havia vira<strong>do</strong> de ponta-cabeça, e o <strong>Brasil</strong> não podiair tão rapidamente rumo ao liberalismo radical, pensavamos liberais brasileiros. A revolução já havia si<strong>do</strong> feita!De oito de abril em diante, cabia consolidar suas conquistas(tão somente a transformação política, e não social).É claro que nem to<strong>do</strong>s concordavam com esse pensamento81 É sintomático que demoraria ainda algum tempo para que se consolidasse osete de setembro como a data nacional da independência, mais um marcoque evidencia a vitória de uma determinada visão, conserva<strong>do</strong>ra, da históriabrasileira.essencialmente conserva<strong>do</strong>r e isso contribuirá para dividiresse grupo heterogêneo que estamos chaman<strong>do</strong> deliberais. José Bonifácio já havia alerta<strong>do</strong>, em 1823, para anecessidade de incorporar os negros (e também os índios)na “nação” brasileira, sob pena de termos uma nação porosa,tal qual pedras sedimentares, e não dura como rochamagmática. Parafrasean<strong>do</strong> as metáforas mineralógicas <strong>do</strong>patriarca da independência, o santo <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> era de barro,e era preciso muito cuida<strong>do</strong> ao carregá-lo para a esquerda.Liberalismo sim, jacobinismo não, haitianismo jamais!A segunda força era a capacidade de resistência <strong>do</strong>sportugueses, reduzida após a abdicação, é verdade, masainda atuante; em alguns casos, institucionalizada constitucionalmente,como o Conselho de Esta<strong>do</strong> e o Sena<strong>do</strong>,ambos vitalícios, preenchi<strong>do</strong>s, portanto, com muitos <strong>do</strong>spróceres <strong>do</strong> regime anterior, nomea<strong>do</strong>s diretamente peloimpera<strong>do</strong>r. Os liberais partiram para a briga e, dessa vez,mais bem arma<strong>do</strong>s e posiciona<strong>do</strong>s politicamente, tentaramacabar com ambas as instituições, mas só conseguiramabolir o Conselho de Esta<strong>do</strong> em 1834, no mesmo ano,aliás, que assistiu à morte <strong>do</strong> defensor perpétuo <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>no palácio de Queluz, onde havia nasci<strong>do</strong>. Mais uma derrotapara os portugueses que haviam se organiza<strong>do</strong> e, sob aalcunha de “restaura<strong>do</strong>res”, buscavam trazer de volta Pedro IAtlântico abaixo. Voltaria, sim, mas somente 138 anos depois,em pleno governo Médici, em contexto de pretensõespolíticas algo distintas.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>130Em resumo, temos então o seguinte panorama deforças no início da regência: 1) liberais brasileiros, insatisfeitoscom o autoritarismo petrino e com seus áulicos (acusaçãogeneralizada a to<strong>do</strong>s os portugueses corcundas),mas que não podiam ir muito longe na radicalização, poistemiam que o caos se instaurasse e o <strong>Brasil</strong> se jacobinizasseou, pior, se haitianizasse. A historiografia convencionouchamá-los de “liberais modera<strong>do</strong>s” ou “chimangos”; 2) portugueses,recém-alija<strong>do</strong>s <strong>do</strong> poder, mas muito bem instala<strong>do</strong>sdesde 1808 ou antes no comércio das grandes cidadese nas instituições políticas mais conserva<strong>do</strong>ras (isto é, oConselho de Esta<strong>do</strong> e o Sena<strong>do</strong>), bem como na burocracia.Buscavam o retorno de Pedro I ao <strong>Brasil</strong> até 1834 e, porisso, foram chama<strong>do</strong>s de “restaura<strong>do</strong>res”; 3) as dissidênciasliberais, escassamente organizadas, com projetos de autonomiamais radicais que o <strong>do</strong>s chimangos, presentessobretu<strong>do</strong> nas zonas urbanas, na Corte, mas também emSalva<strong>do</strong>r, Recife, Belém, Ouro Preto, e que, ao se rebelarem,não raro se valiam <strong>do</strong>s mestiços e mulatos pobres, sen<strong>do</strong>,portanto, acusa<strong>do</strong>s de “radicais” e/ou “exalta<strong>do</strong>s”. Esses liberaisexalta<strong>do</strong>s, presentes nos livros didáticos como sefossem uma facção clara ou coesa contra os modera<strong>do</strong>s,é claro, não tinham essa coerência ou mesmo capacidadede organização nacional. Quem alcunharia a si mesmode “exalta<strong>do</strong>”? Seu próprio nome evidencia a deslegitimaçãoimpingida a eles pelo governo, que via nesse grupo aameaça da fragmentação e da desordem.Mesmo os modera<strong>do</strong>s não eram homogêneos, e asdivergências internas <strong>do</strong>s grupos que haviam combati<strong>do</strong> oimpera<strong>do</strong>r são perceptíveis nas prisões políticas que se seguiramà abdicação. Cipriano Barata, o redator <strong>do</strong> Sentinelada Liberdade persegui<strong>do</strong> no Primeiro Reina<strong>do</strong>, durante oqual ficou muito tempo preso, foi novamente encarcera<strong>do</strong>três semanas depois da abdicação e transferi<strong>do</strong> de Salva<strong>do</strong>rpara a Corte. Nenhum desses grupos era um parti<strong>do</strong>no significa<strong>do</strong> contemporâneo <strong>do</strong> termo, embora a palavraexistisse na época com o senti<strong>do</strong> de facção. A criação<strong>do</strong>s parti<strong>do</strong>s políticos ao final <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> regencial seráuma das grandes contribuições para a institucionalizaçãoda luta política no <strong>Brasil</strong> e, também para a consolidação <strong>do</strong>Esta<strong>do</strong> Imperial.Com base no que foi apresenta<strong>do</strong>, fica mais fácil superarmosa ideia de que as medidas tomadas pelos liberaisno poder seriam contraditórias. Elas têm o duplo objetivode estabelecer um regime mais liberal, “democrático” edescentraliza<strong>do</strong>, e conter os grupos portugueses e exalta<strong>do</strong>s82 que, ora uni<strong>do</strong>s, ora separa<strong>do</strong>s, conspiravam pararadicalizar os pêndulos para o conserva<strong>do</strong>rismo <strong>do</strong> retorno<strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r ou para a radicalização <strong>do</strong> liberalismo rumo82 Sempre lembran<strong>do</strong> que não se trata de um grupo coeso e/ou organiza<strong>do</strong>,embora tratá-los em conjunto sob a alcunha de exalta<strong>do</strong>s, como, aliás,é sempre feito pela historiografia, contribua para a perpetuação desseentendimento.


131O Perío<strong>do</strong> Regencial(1831-1840)àquilo que os modera<strong>do</strong>s consideravam a desordem.Como eram duas forças bem distintas <strong>do</strong> ponto de vistaideológico (que se uniram, conjunturalmente, em poucasrevoltas contra o governo), cabiam-lhes remédios distintos.Entretanto, a criação da Guarda Nacional, em 1831, podeser entendida como uma panaceia de dupla eficácia.Se, de um la<strong>do</strong>, a criação da Guarda pelo ministroda Justiça, Diogo Antônio Feijó, teria caráter liberalizanteao definir como eletivo o critério de coman<strong>do</strong> <strong>do</strong> poderrepressivo, agora descentraliza<strong>do</strong>, de outro, era necessáriauma força capaz de reprimir movimentos populares, nãoraro apoia<strong>do</strong>s por setores <strong>do</strong> Exército, e que fosse imuneaos caramurus e aos exalta<strong>do</strong>s – a Guarda Nacional. Estavavedada a participação de negros ou libertos, bem como<strong>do</strong>s que não tivessem renda suficiente para participar daseleições. Nas palavras de um autor clássico, tratava-se deum “Minotauro” em sua duplicidade (Uricochea, 1978). Delegavaa grupos priva<strong>do</strong>s da elite uma função pública: asegurança; e, se de um la<strong>do</strong> havia o caráter liberal descentraliza<strong>do</strong>r,de outro havia por objetivo manter a ordem ereprimir movimentos populares.Chamadas de rebeliões de “tropa e povo” e ocorridassobretu<strong>do</strong> na Corte (seis delas entre 1831 e 1832), mas tambémem grandes cidades das províncias (Setembrizada,Novembrada e Abrilada em Pernambuco), essas rebeliõesenvolviam quase sempre setores militares que, ao longode quase to<strong>do</strong> o Primeiro Reina<strong>do</strong>, estiveram ao la<strong>do</strong> dePedro I. Esses militares, praças e oficiais, muitos portugueses,não haviam necessariamente passa<strong>do</strong> para o la<strong>do</strong> <strong>do</strong>schimangos após o sete de abril. A Guarda Nacional teriaentão a função de esvaziar o papel <strong>do</strong> Exército como instrumentode ordem, e essa medida de enfraquecimentodas Forças Armadas teria consequências para a história <strong>do</strong>Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>. A Guarda Nacional, ainda que desmobilizadaem tempos de paz na década de 1870, subsistiriaaté a República para emprestar os títulos, facilmente adquiri<strong>do</strong>s,de major a Policarpo Quaresma e de coronéis aosgrandes latifundiários.Outra tendência perceptível nos anos iniciais da regênciafoi a necessidade de enfraquecer o Poder Executivo.A opção por uma regência trina (inicialmente provisória,que governou por <strong>do</strong>is meses, depois permanente) já evidenciaisso. Como o objetivo declara<strong>do</strong> <strong>do</strong> Poder Modera<strong>do</strong>rera dar respal<strong>do</strong> ao Executivo, tornan<strong>do</strong>-o responsávelnão diante <strong>do</strong> Legislativo, mas sim <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r (que erao titular constitucional desse poder, mas o exercia por delegaçãoao gabinete de ministros), urgia aproveitar a oportunidadede um impera<strong>do</strong>r não coroa<strong>do</strong> para limitar oexercício <strong>do</strong> Poder Modera<strong>do</strong>r, cujas funções foram suspensas.Pela lei de 1831, o Poder Modera<strong>do</strong>r não mais poderiaconceder títulos de nobreza, declarar guerra, dissolver aAssembleia, nomear ministros livremente, sem a aprovaçãoda Câmara, ratificar trata<strong>do</strong>s internacionais tambémsem a aprovação da Câmara, em suma, ficava manieta<strong>do</strong>.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>132Tais medidas são evidências de que o poder estavasen<strong>do</strong> transferi<strong>do</strong> de um Executivo, agora enfraqueci<strong>do</strong>,para o Legislativo, que se fortalecia ao fiscalizar e, em muitoscasos, controlar as medidas <strong>do</strong> Executivo, grande pleito<strong>do</strong>s deputa<strong>do</strong>s durante o Primeiro Reina<strong>do</strong>, que acusavamo impera<strong>do</strong>r de cometer erros por se afastar da vontade danação, como quan<strong>do</strong> da celebração <strong>do</strong>s trata<strong>do</strong>s com a Inglaterra.Esse entendimento é compartilha<strong>do</strong> por Ama<strong>do</strong>Cervo, que julga que o insulamento decisório em 1825-7foi um <strong>do</strong>s principais responsáveis pelo “primeiro erro” denossa política externa. A regência parecia querer corrigi-lo.Em 1832, novamente duas medidas aparentementecontraditórias: o Código de Processo Criminal e a Lei deResponsabilidade Fiscal.O código, feito pelo superministro da Justiça, o padreFeijó, estabelecia o habeas corpus, reformava o sistemajudiciário brasileiro, ao criar os tribunais <strong>do</strong> júri, e estabeleciaigualmente o caráter eletivo <strong>do</strong>s juízes de paz. Suainspiração era claramente democrática e federalista. Já aLei de Responsabilidade organizava o fisco e estabelecia asrendas em provinciais e centrais, mas essa divisão não eraclaramente determinada e, portanto, cabia ao poder centralfazer a partilha, o que permite interpretações de parteda historiografia que as medidas “federativas” <strong>do</strong> Código deProcesso e, mais tarde, <strong>do</strong> Ato Adicional não teriam eficáciaprática nas províncias, pois o controle <strong>do</strong> dinheiro permanecerianas mãos <strong>do</strong> governo <strong>do</strong> Rio de Janeiro. José Murilode Carvalho, em Teatro das sombras, estu<strong>do</strong> sobre a arrecadaçãoimperial, aponta que, em 1856, mais de 80% <strong>do</strong> total<strong>do</strong> orçamento ficava com o governo central, contrastan<strong>do</strong>com os menos de 40% evidencia<strong>do</strong>s no caso norte-americanoem data um pouco posterior (Carvalho, 1996, p. 224).Em comum, ambas as medidas evidenciavam a preocupaçãoem estruturar o Esta<strong>do</strong>, ainda em formação, em novasbases mais liberais. Mas nem tanto assim. Era sempre precisose preocupar com o vulcão popular que poderia noslevar ao Haiti.Mais que as medidas específicas, cabe perceber, nasfontes, sobretu<strong>do</strong> nos jornais liberais da época e nas atas<strong>do</strong> Congresso Nacional, tendências gerais <strong>do</strong>s modera<strong>do</strong>sque se encaminhavam para a transformação <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> emum regime federativo. O Conselho de Esta<strong>do</strong> e o Poder Modera<strong>do</strong>rseriam aboli<strong>do</strong>s, o Sena<strong>do</strong> perderia a vitaliciedade,e a Câmara, foco <strong>do</strong> debate político e titular da soberania,como representante <strong>do</strong> povo seria eleita a cada <strong>do</strong>is anos,periodicidade mais democrática, o que, aliás, já se apontavano senti<strong>do</strong> das medidas que “democratizavam” o poderde repressão (a Guarda Nacional com seus oficiais eleitos) eo sistema judiciário (juízes de paz também eleitos).Naturalmente, nem to<strong>do</strong>s esses objetivos foramconquista<strong>do</strong>s. As forças conserva<strong>do</strong>ras, mesmo enfraquecidascom a morte <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r em 1834, não haviamdesapareci<strong>do</strong>, e as forças inerciais (sociais e/ou institucionais)dificultavam, pelo me<strong>do</strong> ou pela resiliência, a a<strong>do</strong>ção


133O Perío<strong>do</strong> Regencial(1831-1840)de medidas tão enfáticas. O liberalismo tinha limites. Porexemplo, o Sena<strong>do</strong>, não muito surpreendentemente, nãoconcor<strong>do</strong>u com o fim da vitaliciedade <strong>do</strong>s sena<strong>do</strong>res. Serianecessário um golpe parlamentar para mudar a Constituiçãosem a anuência <strong>do</strong>s sena<strong>do</strong>res. Seria necessário desobedecê-laabertamente, e não apenas contorná-la, comono caso da regência trina em 1831 e no golpe da maioridadeem 1840. Os modera<strong>do</strong>s, por modera<strong>do</strong>s que eram, nãoiriam tão longe 83 .A solução de compromisso <strong>do</strong>s liberais foi o Ato Adicionalde 1834 que, de fato, instituía o federalismo (comseus limites fiscais) e ia além: extinguia o Conselho de Esta<strong>do</strong>;transformava a Corte em município neutro, desvincula<strong>do</strong>da província <strong>do</strong> Rio de Janeiro; e estabelecia uma regênciaque passaria a ser una <strong>do</strong>ravante. A vitória de Feijó,mancha<strong>do</strong> pela tentativa de golpe contra a Constituição83 Embora a solução de ruptura (golpe contra a Constituição) tenha si<strong>do</strong>tentada, houve, em 1832, uma demissão coletiva <strong>do</strong>s regentes, que serviriade preparatório para um golpe da Câmara – que se autoconverteria emAssembleia Nacional Constituinte – contra o Sena<strong>do</strong>. O estopim da querelaentre as casas se deu quan<strong>do</strong> o Sena<strong>do</strong> – notoriamente conserva<strong>do</strong>r –se colocou em oposição a Feijó quanto à demissão de José Bonifácio deAndrada e Silva como tutor <strong>do</strong> jovem impera<strong>do</strong>r. Tratava de mais umaresistência aos ataques constantes que lhe eram feitos pela Câmara, entreeles o fim da vitaliciedade. O golpe de Esta<strong>do</strong> acabou sen<strong>do</strong> aborta<strong>do</strong> naCâmara, sobretu<strong>do</strong> graças à atuação de Honório Hermeto Carneiro Leão,que fez discurso desmobiliza<strong>do</strong>r defenden<strong>do</strong> a Constituição. Representavaele, além da cautela mineira, os grupos recalcitrantes em dar o passo deilegalidade que, muito provavelmente, levaria à República.e o Sena<strong>do</strong> em 1832, tinha <strong>do</strong>is significa<strong>do</strong>s. Em primeirolugar, ainda que aparentemente uma regência una fosseuma medida de centralização, a verdade é que o avançoliberal teria prosseguimento a partir de 1835, sob a liderançadaquele que havia si<strong>do</strong> seu maior executor nos anosapós a abdicação: Feijó. Em segun<strong>do</strong> lugar, reafirman<strong>do</strong> alógica de avanço liberal, naquela que foi a primeira eleiçãogeral no <strong>Brasil</strong>, o Império viveria uma efêmera porém significativa“experiência republicana”. Afinal, em que regimese escolhe a cada quatro anos por meio de eleições geraiso chefe de Esta<strong>do</strong>? Das monarquias eletivas medievais sórestava mesmo a Santa Sé. O <strong>Brasil</strong> inovava em seu liberalismoadapta<strong>do</strong>.Viriam as rebeliões provinciais, porém, e o cal<strong>do</strong> entornaria.Para boa parte da historiografia, a mudança <strong>do</strong>tipo de rebeliões que eclodiriam no <strong>Brasil</strong> a partir de 1834tem relação direta com o Ato Adicional. Tal interpretaçãoé a mesma, aliás, de Bernar<strong>do</strong> Pereira de Vasconcelos, quese referia ao Ato Adicional como o “Ato da Anarquia”. Vasconcelosseria a figura principal daquilo que chamamos deregresso conserva<strong>do</strong>r. O pêndulo começava a voltar para aordem em detrimento da liberdade.O que significou afinal o perío<strong>do</strong> <strong>do</strong> “avanço liberal”?Um conjunto de medidas liberalizantes, com seuslimites impostos pelas circunstâncias específicas de umpaís escravista, de herança monárquica, que fora cimentadapela transmigração da Corte e pela força das instituições


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>134monárquicas sedimentadas com a interiorização da metrópole.As ideias de representação, voto, democracia, justiçasocial, todas de matriz iluminista, não eram consenso nemaqui nem em nenhum lugar <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> (talvez apenas nosEsta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, onde essas ideias se institucionalizaramainda no final <strong>do</strong> século XVIII). Como vimos, nem mesmoentre aqueles que com elas concordavam – os liberais –havia consenso sobre qual era o melhor mo<strong>do</strong> de aplicá--las. Isso não significa que não tentaram. Aqui e alhures.Onde quer que se tentasse, no entanto, as forças da reação,como é natural, reagiam.Mesmo nas repúblicas da América, onde a escravidãotinha presença menos forte ou já havia si<strong>do</strong> abolida, osliberais eram exila<strong>do</strong>s e persegui<strong>do</strong>s. São exemplos dissoAlberdi e Sarmiento, fugi<strong>do</strong>s da autocracia de Juan Rosas,caudilho portenho que se dizia federalista na Argentina. Ouainda os liberais mexicanos sob a ditadura de Sant’Anna,que só floresceriam nos anos 1850 e 1860, sob a liderançade Benito Juarez, um índio que governou o México sobforte oposição conserva<strong>do</strong>ra, até ser deposto por intervençãoestrangeira, à qual ele resistiu com o apoio <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>sUni<strong>do</strong>s.Nosso Benito Juarez, Diogo Feijó, era filho bastar<strong>do</strong>.Na certidão, era de pais incógnitos, mas que to<strong>do</strong>s sabiambem quem eram. Virou padre por influência <strong>do</strong> tio que oabrigou sem reconhecê-lo e, ao ser eleito regente, nadatinha de seu, a não ser uma casa de subúrbio em São Paulo.Falava mal, era imensamente teimoso e intransigente, resistiuàs cortes portuguesas, ao impera<strong>do</strong>r autocrata e foialça<strong>do</strong> ao posto máximo de regente por meio de uma eleição,inédita na história <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, por ser geral e sem queexistissem parti<strong>do</strong>s políticos. Não tinha títulos de nobreza.Depois de governar <strong>do</strong>is anos, foi varri<strong>do</strong> tanto pela desordemque sucedeu à sua eleição quanto pela reação conserva<strong>do</strong>raque fez da ordem sua bandeira. Emblemático daluta entre o liberalismo federativo e o regresso conserva<strong>do</strong>r,Feijó seria preso por Caxias em 1842, evidencian<strong>do</strong> avitória definitiva <strong>do</strong> regresso, mas deixou alguma saudade.Macha<strong>do</strong> de Assis, talvez a refletir sobre as regências,diria, muitos anos depois: “Liberdade, antes confusa <strong>do</strong> quenenhuma!”.


135O Perío<strong>do</strong> Regencial(1831-1840)3.2 As forças centrífugasPanorama político geral quan<strong>do</strong> da queda de Feijó.As rebeliões de primeira leva. Revoltas de escravose o haitianismo. Cemiterada.Rebeliões provinciais. Cabanagem eBalaiada. Farroupilha.Quan<strong>do</strong> o padre Feijó abdicou <strong>do</strong> cargo de regente,o governo <strong>do</strong> Rio de Janeiro não controlava as províncias<strong>do</strong> extremo sul <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, por causa da revolta Farroupilha,nem o norte amazônico, em virtude da Cabanagem, quehavia toma<strong>do</strong> a entrada <strong>do</strong> Amazonas em 1835. O regenteera suspeito de simpatia e até de contatos com os rebeldesgaúchos, e essa suspeição foi uma das principais causas desua queda 84 .Dois meses depois da abdicação, e certamente porcausa dela, eclodiu na Bahia a Sabinada. Tomou conta deSalva<strong>do</strong>r em 1838 e se espalhou pelo sertão próximo epelo interior da província (Feira de Santana e Vila da Barrapor cerca de quatro meses), deixan<strong>do</strong> um sal<strong>do</strong> de quase2 mil mortos. A cidade de Salva<strong>do</strong>r foi cercada, bombardeada<strong>do</strong> mar e, mais tarde, incendiada. Mais de 2 mil rebeldesforam presos e 18 foram condena<strong>do</strong>s à morte ouàs galés. Para José Murilo de Carvalho, a Sabinada, por seruma revolta urbana, já no perío<strong>do</strong> <strong>do</strong> regresso, escapa àcaracterização que esse autor faz das rebeliões de segundaleva, rurais, e se aproxima das rebeliões mais urbanas<strong>do</strong> primeiro momento regencial. Vejamos primeiramenteessas últimas.Ao longo <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> que vai da regência trina provisória,no qual o padre Feijó fora ministro da Justiça, até suarenúncia ao cargo de regente uno em setembro de 1837,houve seis rebeliões na Corte, cinco em Pernambuco – que,de tão recorrentes, começaram a ser chamadas pelos nomes<strong>do</strong>s meses em que ocorriam 85 –, duas em Salva<strong>do</strong>r 86 ,uma no Ceará 87 e uma em Ouro Preto 88 , sem contar as duas84 A fuga <strong>do</strong> revolucionário Bento Gonçalves da prisão baiana, onde foraencarcera<strong>do</strong>, precipitaria a crise que levaria à renúncia <strong>do</strong> regente. Ogoverno foi acusa<strong>do</strong> de colaborar ou de ser leniente. O ministro <strong>do</strong>sNegócios Estrangeiros, Francisco Gê Acayaba de Montezuma, em episódioque beira o cômico, leu, em defesa <strong>do</strong> governo, no plenário da Câmara, cartade Bento Gonçalves que eximia o governo de culpa em sua fuga recente.Tal inépcia política teve o efeito inverso ao deseja<strong>do</strong> por Montezuma e foisuficiente para convencer os que ainda tinham dúvidas de que o governotinha contato com os farrapos ou, no mínimo, que se empenhava poucopara debelá-los.85 Setembrizada e Novembrada em 1831, Abrilada em 1832, Cabanos, quedurou de 1832 a 1835, embrenhan<strong>do</strong>-se pelo interior da província, e aCarneirada em 1834, liderada pela tropa sublevada de Recife que só seriadebelada no ano seguinte.86 A Crise Federalista de 1832-33 e a dramática rebelião de escravos emSalva<strong>do</strong>r, 1835, conhecida como Revolta <strong>do</strong>s Malês, que veremos a seguir.87 Revolta de Pinto Madeira, 1831-2.88 Revolta da Fumaça, 1833.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>136mais famosas, Farroupilha e Cabanagem, que demorariamainda muitos anos para serem sufocadas.Essas rebeliões mais conhecidas e relatadas não foramas únicas a assolar o <strong>Brasil</strong> durante o início <strong>do</strong> perío<strong>do</strong>regencial. Revoltas insólitas, às vezes pouco críveis, de curtaduração, impacto limita<strong>do</strong> temporal e geograficamenteou motivos políticos banais também proliferaram em umambiente político permissivo e confuso. Vale mencionarduas delas: em 1833, a Revolta das Carrancas foi um levantede escravos que ocorreu em Minas Gerais. Dezenas deescravos se revoltam em uma fazenda em São Tomé dasLetras, matam os emprega<strong>do</strong>s e membros da família e passama atacar as fazendas vizinhas. Isso ocorre justamentequan<strong>do</strong> a Revolta da Fumaça, na capital Ouro Preto, já haviasi<strong>do</strong> debelada por tropas <strong>do</strong> Rio de Janeiro, após destituire prender autoridades provinciais moderadas, entreos quais o vice-presidente da província, Bernar<strong>do</strong> Pereirade Vasconcelos. Apesar de debelada, com a condenaçãoe execução de dezessete escravos, essa rebelião, por seseguir imediatamente à revolta liberal exaltada, em umaimportante província tão próxima da Corte, favorece a impressãogeral de desordem permanente.Não seria a única rebelião de escravos a ocorrer noperío<strong>do</strong> regencial. Muito mais assusta<strong>do</strong>res foram os levantesde 1835 e 1838, respectivamente em Salva<strong>do</strong>r e emVassouras. A Revolta <strong>do</strong>s Malês é bem conhecida. Foi o momentoem que mais perto o <strong>Brasil</strong> chegou de ser o Haiti,apesar de a rebelião ter dura<strong>do</strong> apenas uma madrugada.Foi muito bem planejada, e sua principal obra de referênciaé Rebelião escrava no <strong>Brasil</strong>, de João José Reis, critica<strong>do</strong> peloembaixa<strong>do</strong>r Alberto da Costa e Silva apenas por minimizara influência muçulmana no levante. Para o grande africanista,o levante de janeiro de 1835 foi uma verdadeira jihad.Cerca de 600 escravos, a maioria islâmica, tentaram tomara cidade de Salva<strong>do</strong>r, com o objetivo provável de eliminarto<strong>do</strong>s os brancos e par<strong>do</strong>s, escravizan<strong>do</strong> os africanos nãoislamiza<strong>do</strong>s.Embora controla<strong>do</strong>s, o julgamento de quase 500escravos (mais de 70 morreram nas lutas que tomaramconta das ruas de Salva<strong>do</strong>r), com depoimentos que comprovavamo intuito radical <strong>do</strong>s escravos, contribuiu para adisseminação de um pânico silencioso que cada senhor deescravos no <strong>Brasil</strong> sentia ao ir <strong>do</strong>rmir. A lei de junho de 1835que passou a prever pena de morte para escravos envolvi<strong>do</strong>sem insurreições, mesmo sem unanimidade <strong>do</strong> júri,é sintomática da paúra generalizada que não demoraria achegar ao eixo mais dinâmico da economia brasileira naépoca: as fazendas de café 89 .89 Esta visão de pânico e de que o haitianismo era um me<strong>do</strong> generaliza<strong>do</strong> entrea população branca, antes e depois das rebeliões de escravos <strong>do</strong> Perío<strong>do</strong>regencial é fortemente contestada por Jeffrey D. Neddell que percebequase nenhum debate sobre o assunto de rebeliões de escravos nas fontesparlamentares e mesmo nos jornais. Este autor argumenta que ao contrário<strong>do</strong> que ocorria no Caribe ou no sul <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, onde o absenteísmo


137O Perío<strong>do</strong> Regencial(1831-1840)Onipresente, o futuro Duque de Caxias percorreriapor uma semana as florestas da região de Paty <strong>do</strong> Alferespara reprimir cerca de duas centenas de escravos fugi<strong>do</strong>sde várias fazendas de café da região. Por ter ocorri<strong>do</strong> tãoperto da Corte e por ser ainda tão simbólica da expansãocafeeira em seu início incipiente no Vale <strong>do</strong> Paraíba, essarebelião merece algumas considerações.A expansão da cafeicultura teria como consequênciade curto prazo o fortalecimento político-econômico<strong>do</strong>s conserva<strong>do</strong>res, que fariam <strong>do</strong> aban<strong>do</strong>no da Lei Feijóde 1831, que abolia o tráfico de escravos, uma de suasprincipais bandeiras. Graças ao ataque constante dessescafeicultores necessita<strong>do</strong>s de mão de obra africana, a lei,inicialmente cumprida, passaria à história da segunda metade<strong>do</strong>s anos 1830 em diante como “lei para inglês ver” 90 .A crescente chegada, ilegal, de mais escravos ao Rio de Janeiro,que agora se concentravam no sudeste cafeicultor,<strong>do</strong>s proprietários era a norma e as rebeliões muito mais freqüentes, no <strong>Brasil</strong>.os senhores de escravos, bem mais presentes, eram especialistas em <strong>do</strong>sarrepressão e negociação com seus escravos. Tal expertise deixava-os bastanteseguros de que saberiam controlar seus escravos, mesmo em momentosde crise, e que teriam amplo e imediato apoio das autoridades no caso derebelião. Este autor contesta a própria existência <strong>do</strong> haitianismo enquantofenômeno no século XVIII e na maior parte <strong>do</strong> século XIX. Ver NEDDELL,Jeffrey D. The Abolition of the Brazilian Slave Trade in 1850: Historiography, SlaveAgency and Statesmanship. Journal of Latin American Studies. Vol. 33, No. 4(Nov., 2001), Cambrigde University Press. pp. 681-711.90 Ver PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>: 1826-1865.Rio de Janeiro: Civilização <strong>Brasil</strong>eira, 2011.novo polo dinâmico da economia agrária brasileira, contribuiupara a eclosão da rebelião de Vassouras e tambémpara chamar ainda mais atenção para o problema da ordem.A “ordem” era uma questão recorrente desde antes daindependência, mas, agrava<strong>do</strong> a partir da segunda metade<strong>do</strong>s anos 1830, ele se tornaria o tema principal da organização<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e questão fulcral para a mobilização <strong>do</strong>ssetores da elite que iriam junto com Bernar<strong>do</strong> Pereira deVasconcelos ajudar a fundar o parti<strong>do</strong> conserva<strong>do</strong>r.Este dito “parti<strong>do</strong> da ordem” faria oposição aos liberais,ao Ato Adicional de 1834, à lei de 1831 e defenderiammão firme na repressão às rebeliões, das quais Caxias seriao grande símbolo militar. Ironicamente, <strong>do</strong>ze anos depois,esses mesmos conserva<strong>do</strong>res, agora pela segunda vez nopoder, decidiriam pela abolição definitiva <strong>do</strong> tráfico de escravos(1850), em nome da mesma ordem pela qual se haviambati<strong>do</strong> nos anos 1830. Em virtude de tu<strong>do</strong> isso, apesarda brevidade e da aparente irrelevância, a rebelião escravade Vassouras e sua repressão, por ter ocorri<strong>do</strong> onde ocorreu,parecem ser um estímulo poderoso para o laboratóriode ideias que o regresso estava pon<strong>do</strong> em prática.Bem mais bizarra e menos dada a generalizaçõespolíticas foi a Cemiterada. Ocorrida na cidade de Salva<strong>do</strong>rem 26 de outubro de 1836, reuniu mais de mil pessoas deambos os sexos, incluin<strong>do</strong> negros e negras. Foi depreda<strong>do</strong>


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>138um novíssimo cemitério priva<strong>do</strong> 91 , que seria beneficia<strong>do</strong>pela lei provincial que entraria em vigor no dia seguinte,obrigan<strong>do</strong> o sepultamento no “Campo Santo” e proibin<strong>do</strong>o tradicional enterramento intramuros, até então feitonas igrejas. Os rebeldes foram vitoriosos, e a lei foi revogada.Os sepultamentos permaneceram como antes, e adevassa instaurada foi nula. Somente sete testemunhas foramouvidas. E ninguém reconheceu ninguém. Ninguémfoi acusa<strong>do</strong> ou indicia<strong>do</strong>. Apenas duas décadas depois osepultamento intramuros seria definitivamente bani<strong>do</strong>.A regência mostrava que não tinha forças sequer para legislarsobre os mortos 92 .Para José Murilo de Carvalho, a primeira onda derebeliões até 1835 teve um caráter urbano e eclodiu nasprincipais capitais <strong>do</strong> Império, com o epicentro óbvio noRio de Janeiro, a ponto de o Conselho de Esta<strong>do</strong> ter si<strong>do</strong>consulta<strong>do</strong> sobre as medidas a serem tomadas para protegero impera<strong>do</strong>r em caso de anarquia na cidade. Segun<strong>do</strong>91 O cemitério pertencia a uma empresa privada, e, por força da lei, detentora<strong>do</strong> monopólio de enterramentos por trinta anos. Ver REIS, João José. A morteé uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no <strong>Brasil</strong> <strong>do</strong> século XIX. São Paulo:Companhia das Letras, 1991.92 Esse episódio, bem como toda a conspiração anterior para a Revolta <strong>do</strong>sMalês, é descrito de mo<strong>do</strong> colori<strong>do</strong> por Ana Maria Gonçalves no romanceUm defeito de cor (Rio de Janeiro: Record, 2009) onde a vida de Luísa Mahin,participante desses episódios e futuramente mãe <strong>do</strong> abolicionista LuísGama, é ficcionada de mo<strong>do</strong> livre, porém embasada em ampla e rigorosapesquisa histórica.Carvalho, apenas o Piauí e Santa Catarina “escaparam à turbulência”.Já a segunda fase de revoltas teve, para o autor,caráter diverso da primeira:descentraliza<strong>do</strong> o poder graças ao ato adicional, o conflitotambém se descentralizou e se deslocou para ointerior, para as áreas rurais, e aí remexeu nas camadasprofundas da fábrica social <strong>do</strong> país (Teatro das sombras,Carvalho, 1996, p. 232).De acor<strong>do</strong> com Carvalho, essas rebeliões já eramprenunciadas pela revolta restaura<strong>do</strong>ra <strong>do</strong>s cabanos, de1832, em Pernambuco e Alagoas. Os cabanos <strong>do</strong> Nordestequeriam a volta de D. Pedro I e eram compostos de pequenosproprietários, camponeses, índios e escravos. A revoltacontou com o apoio de portugueses de Recife e <strong>do</strong> Riode Janeiro. A repressão, que durou até 1835, caçou os rebeldessobreviventes como animais. Dão conta de que osfugitivos se embrenharam pelo interior e passaram a viverde “frutos, lagartos, cobras silvestres e mel”. As rebeliõesque se seguiram após 1835 seriam ainda mais violentas.O avanço liberal, com a culminância <strong>do</strong> Ato Adicional de1834, fez <strong>do</strong>s governos provinciais um prêmio relevantedemais, antes fora <strong>do</strong> alcance das elites, já que nomea<strong>do</strong>sdiretamente pelo impera<strong>do</strong>r. Com a descentralização concomitanteao enfraquecimento <strong>do</strong> governo central, conflitosintraelites surgiram e não raro transbordaram para osgrupos populares, sain<strong>do</strong> <strong>do</strong> controle.


139O Perío<strong>do</strong> Regencial(1831-1840)No Pará, o que inicialmente era um conflito de facçõesse tornou, em 1835, um amplo movimento popular– de negros e índios –, capaz de tomar a capital, Belém, econtrolar o governo, matan<strong>do</strong> brancos que, para sobreviver,haviam fugi<strong>do</strong> (cerca de nove mil) para navios de guerraestrangeiros ancora<strong>do</strong>s no porto. O conflito se espalhoupor toda a província, chegan<strong>do</strong> a Manaus, no alto Amazonas.Apesar das tentativas de negociação com o governo e<strong>do</strong>s pedi<strong>do</strong>s de anistia ao Rio de Janeiro, a cidade de Belémfoi cercada pelo envia<strong>do</strong> <strong>do</strong> governo, o general Andreia,que recusou qualquer negociação e aumentou a escaladade violência. Eduar<strong>do</strong> Angelim, líder da rebelião, um jovemde 21 anos, foi força<strong>do</strong> a fugir para a mata, transforman<strong>do</strong>a resistência em guerrilha que duraria, mesmo depois daprisão de Angelim, até 1840, quan<strong>do</strong> o governo <strong>do</strong> novopresidente, Bernar<strong>do</strong> de Sousa Franco, conseguiu da Cortea anistia geral. O sal<strong>do</strong> de mortos foi de 30 mil de ambosos la<strong>do</strong>s, um quinto da população da província. A maiorcarnificina da história <strong>do</strong> país em to<strong>do</strong>s os tempos.O padrão de repressão se repetiu no caso <strong>do</strong> Maranhão.Um conflito inicialmente intraelite aos poucos setransforma em ampla rebelião popular em uma provínciaperiférica. Embora menos violenta que a Cabanagem, assustoupor ser liderara por um escravo, Cosme. Tinha maisde 3 mil negros fugi<strong>do</strong>s e juntou-se a um faze<strong>do</strong>r de balaios,Raimun<strong>do</strong> Gomes para tomar a segunda maior cidadeda província, Caxias, que foi saqueada, causan<strong>do</strong> amorte de mais de 200 habitantes que se haviam rendi<strong>do</strong>aos rebeldes em agosto de 1839. No ápice da revolta osbalaios chegaram a mobilizar mais de 11 mil homens. Emfevereiro de 1840, chega à província, nomea<strong>do</strong> pelo regente,Luís Alves de Lima e Silva, o futuro Duque de Caxias, queacumula a chefia das armas e a presidência da província.A repressão se inicia sen<strong>do</strong> muito bem-sucedida e forçan<strong>do</strong>os rebeldes a fugirem para o Piauí, mas tal estratégia fracassae mais de mil rebeldes são presos. Força<strong>do</strong> a voltar aoMaranhão, Cosme pede condições a Caxias para se render,mas este nega. A cisão entre os grupos de homens livrese ex-escravos divide o movimento, e Cosme aprisiona Gomes,tornan<strong>do</strong>-se líder único <strong>do</strong> movimento 93 .A partir daí, começam as deserções, dispersões e fugas.Em homenagem à maioridade <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r, Caxiasoferece anistia e consegue a deposição das armas de grandeparte <strong>do</strong>s chefes rebeldes. Cosme foi aprisiona<strong>do</strong>, condena<strong>do</strong>à morte e executa<strong>do</strong> em 1842. Gomes, que fugirade Cosme, rendeu-se e foi exila<strong>do</strong> para São Paulo, morren<strong>do</strong>no caminho. Em 1841, nomea<strong>do</strong> Barão de Caxias emhomenagem à cidade que pacificara, entrega o governo aseu substituto, em 13 de maio, dizen<strong>do</strong>-lhe:Não existe hoje um só grupo de rebeldes arma<strong>do</strong>s, to<strong>do</strong>sos chefes foram mortos, presos ou envia<strong>do</strong>s para93 Para a Cabanagem e a Balaiada, ver Reis (2004).


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>140fora da Província; restabeleceu-se a ordem, fui semprerespeita<strong>do</strong> e obedeci<strong>do</strong>, não tive oposições de parti<strong>do</strong>algum, to<strong>do</strong>s os emprega<strong>do</strong>s e chefes de repartiçõesdesvelaram-se em cumprir os seus deveres duranteo tempo de meu Governo; mas não me ufano de havermuda<strong>do</strong> os corações e sufoca<strong>do</strong> antigos ódios departi<strong>do</strong>s ou antes de famílias, que por algum tempo seacalmam, e como a peste se desenvolvem por motivosque não prevemos e não nos é da<strong>do</strong> dissipar (apud Reis,2004, p. 190).Estava traduzi<strong>do</strong> pela prática repressiva o discursoda ordem. Vinha da voz daquele que se tornaria o grandeherói militar <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> brasileiro no século XIX. O título queo tornou conheci<strong>do</strong> evoca a cidade maranhense, símboloda violência que caracteriza o processo de consolidação<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> nacional, que não abria mão da legitimidade <strong>do</strong>monopólio sobre o uso da força. Para reforçar a legitimidadesimbólica, agrega-se, em julho de 1840, outro fatorpoderosíssimo: a maioridade.Um mês após a maioridade, a engrenagem simbólica,sobrepon<strong>do</strong>-se à militar, concede, por decreto imperialde 22 de agosto de 1840, anistia ampla a to<strong>do</strong>s oscrimes políticos <strong>do</strong> país. Nesse momento, a maior partedas rebeliões já está debelada. Tal decreto, entretanto, foisignificativo para esvaziar a Balaiada e a Cabanagem já emseus estertores. Foi também importante para anistiar os 18condena<strong>do</strong>s à morte ou às galés da Sabinada, que tiveramsuas penas comutadas para degre<strong>do</strong> dentro <strong>do</strong> país. Emparte essa anistia se deve ao retorno <strong>do</strong>s liberais ao poder.Outra parte vinha de um governo já se sentia forte osuficiente para o perdão. De to<strong>do</strong> mo<strong>do</strong>, é inegável que afigura de Pedro II, coroa<strong>do</strong>, aumentava, e muito, os custossimbólicos da dissidência. Os rebeldes não mais levantavamarmas contra o governo da regência, mas contra opróprio impera<strong>do</strong>r.Já a rebelião gaúcha é a mais complexa de to<strong>do</strong>sos levantes militares <strong>do</strong> perío<strong>do</strong>. Foram dez anos de idase vindas, negociação e conflito, traições de parte a parteem uma guerra fratricida que, antes de unir, dividiu o RioGrande contra o Império. Começou em setembro de 1835,liderada por Bento Gonçalves, um coronel monarquistacontrário à separação republicana, que foi proclamada em1836, à sua revelia, e para a qual foi eleito o primeiro presidente,apesar de estar preso no Rio de Janeiro. Tinha caí<strong>do</strong>prisioneiro por motivo de traição após rendição a BentoManoel, que prometera sua liberdade. A tentativa de fugafracassada com a participação de Garibaldi provocou suaremoção para a Bahia, de onde fugiu espetacularmentepara, enfim, aceitar a república que comandaria. Bento Manoeltrocou de la<strong>do</strong> mais duas vezes até o fim <strong>do</strong> conflito.A historiografia e o balanço da Farroupilha são tão evidentescomo a lealdade de Bento Manoel.As alegações de extorsão tributária por conta <strong>do</strong>simpostos sobre o charque que faziam <strong>do</strong> produto uruguaiomais barato que o gaúcho no Império só evidenciam o queparte importante da historiografia sobre o perío<strong>do</strong> desconfia:a separação republicana foi mais uma comédia de


141O Perío<strong>do</strong> Regencial(1831-1840)erros ou uma radicalização exagerada <strong>do</strong> que o real desejode uma elite que dependia profundamente <strong>do</strong>s merca<strong>do</strong>surbanos <strong>do</strong> Sudeste e da Corte para sobreviver. Ao longo<strong>do</strong> conflito, por exemplo, o contraban<strong>do</strong> com o Uruguaifoi a alternativa de escoamento possível, porém complexa,da<strong>do</strong> o controle <strong>do</strong> litoral na maior parte da guerra pelasforças imperiais. Isso forçava o envolvimento <strong>do</strong>s farroupilhasna complexa luta entre blancos e colora<strong>do</strong>s que afinalse tornou, igualmente, guerra civil aberta <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> dafronteira na virada para a década de 1840. Parecia aindanão ser mesmo tão convicto assim o republicanismo gaúcho.Mesmo republicanos declara<strong>do</strong>s, como Manuel LuísOsório, o futuro Marquês <strong>do</strong> Herval, permaneceram o tempoto<strong>do</strong> ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> Império 94 .A Farroupilha foi briga de brancos e não “transbor<strong>do</strong>u”para os grupos populares, como teria ocorri<strong>do</strong> com osdemais levantes de segunda leva. Tratou-se de um movimentosem pretensões sociais e sem nenhum caráter revolucionário,por mais que isso seja alega<strong>do</strong> no hino gaúchoe na historiografia hagiográfica recorrente no Rio Grande.Mesmo a questão da alforria <strong>do</strong>s escravos que participaram94 O então tenente Osório – até o fim da Farroupilha seria promovi<strong>do</strong> duasvezes, a capitão e a major – alegava que bastava olhar o “espelho” republicano<strong>do</strong>s vizinhos para que se visse “a feia cara da anarquia”. Para ele, o <strong>Brasil</strong> aindanão estava prepara<strong>do</strong> para a República. Embora constantemente seduzi<strong>do</strong>pelos farroupilhas, aos quais diversas vezes recusou adesão, mas com osquais manteve laços de amizade. Ver Doratioto, 2008.da luta ao la<strong>do</strong> de Davi Canavarro foi resolvida com seumassacre ao final da guerra, com a provável anuência deseu comandante.Em uma síntese das causas da farroupilha teriam queconstar: as requisições constantes de cavalos e ga<strong>do</strong> paraas forças militares perenemente presentes no Sul; o exemploautonomista da Cisplatina liberta; o crescente processode limitação da autonomia <strong>do</strong>s senhores da guerra sulistas,com a ascensão de uma nova elite no Sudeste que consolidavaseu poder na corte; os impostos crescentes sobre osal, insumo essencial da indústria saladeira; e sobretu<strong>do</strong> oliberalismo para com o charque estrangeiro (para barateara comida <strong>do</strong>s escravos da Corte). Cada uma destas coisascontribuiu para que os sulistas perceberem no Império umleviatã opressor. A instabilidade regencial serviu para que ainsatisfação virasse estopim, e o estopim se transformasseem um separatismo artificial. A entrada da maçonaria noRio Grande, em 1831, e a circulação das ideias ilustradasem sociedades secretas e pela imprensa (O Continentino)contribuíram para agravar o quadro e levar à sedição.Para além da questão tarifária ou ideológica, o componenteinternacional parece ter si<strong>do</strong> claramente relevantena eclosão <strong>do</strong> conflito. Se, para o Império, a independência<strong>do</strong> Uruguai ao final da Guerra da Cisplatina havia si<strong>do</strong> ruim,para o Rio Grande <strong>do</strong> Sul foi trágica. A província, indiretamenteresponsabilizada pela derrota, perde prestígio juntoao governo <strong>do</strong> Rio de Janeiro. O orgulho feri<strong>do</strong> de um


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>142povo que já se sentia oprimi<strong>do</strong>, onde cada peão era tambémum solda<strong>do</strong>, tornou-se intolerável. Era a culminância<strong>do</strong> processo que transformara a capitania <strong>do</strong> Rio Grandeem província <strong>do</strong> Rio Grande <strong>do</strong> Sul e que implicara emgraves perdas.José Murilo de Carvalho, em A construção da ordem,tratan<strong>do</strong> de outras fontes e cuja problemática de pesquisae perguntas são completamente distintas, sugere tangencialmenteuma explicação muito curiosa para esseafastamento gaúcho. Embora seja apenas uma sugestão,vale a pena citar. O número de alunos gaúchos na Universidadede Coimbra – que, para esse autor, foi o dínamo dehomogeneização das elites imperiais formadas em direito– era o menor entre as principais províncias/capitanias <strong>do</strong>Império, o que explicaria, em parte, a menor vinculaçãoideológica das elites meridionais com as elites <strong>do</strong> restante<strong>do</strong> país 95 .95 Do total de estudantes brasileiros em Coimbra matricula<strong>do</strong>s entre 1772--1872, 1,53% era gaúcho. Bem pouco se compara<strong>do</strong> com os 26% da Bahia,os 11,5% de Pernambuco, os 13,6% de Minas Gerais, os 8,8% <strong>do</strong> Maranhãoe os 26,8% <strong>do</strong> Rio de Janeiro. Diz Carvalho: “No que se refere ao Rio Grande<strong>do</strong> Sul, a relativa ausência de gaúchos em Coimbra foi certamente umarazão adicional para o isolamento da província e seu sempre problemáticorelacionamento com o governo central” (1996, p. 62). São Paulo tambémé outra unidade relevante com poucos alunos em Coimbra, mas, mesmoassim, com o <strong>do</strong>bro de alunos em relação aos gaúchos. O autor mitiga apequena presença de paulistas em Coimbra pela proximidade com o Riode Janeiro e a proeminência da figura de José Bonifácio no processo deindependência.Para além <strong>do</strong> far<strong>do</strong> <strong>do</strong> conflito cisplatino em si haviaquestões políticas envolven<strong>do</strong> o Uruguai e os gaúchos.O novo Esta<strong>do</strong> Oriental, sob o coman<strong>do</strong> <strong>do</strong> presidente Rivera,havia excluí<strong>do</strong> <strong>do</strong> poder Juan Antonio Lavalleja quetinha laços de amizade próximos com os <strong>do</strong>is principaiscomandantes militares da fronteira gaúcha, Bento ManoelRibeiro (comandante de Alegrete) e Bento Gonçalvesda Silva, de quem era compadre (no Jaguarão). Esteslhe deram refúgio no Rio Grande, demonstran<strong>do</strong> assim aporosidade da fronteira meridional brasileira e os vínculossocioeconômicos que se estabeleciam <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is la<strong>do</strong>s mesmoapós a independência uruguaia. Denuncia<strong>do</strong>s, foramconvoca<strong>do</strong>s ao Rio de Janeiro em 1834 a fim de explicarem-se.Inverteram a situação e com isso conseguiram anomeação de um gaúcho, Antônio Rodrigues FernandesBraga, para a presidência da província. Braga acabou porcontrariar os interesses <strong>do</strong>s senhores da guerra quepor meio de ação militar tomara Porto Alegre, depuseramem 20 de setembro de 1835, o presidente que haviam ajuda<strong>do</strong>a nomear. Era o início ao conflito.Chama<strong>do</strong>s de farroupilhas, nome pejorativo quealudia, por metonímia com os rebeldes da Corte, aos exalta<strong>do</strong>sde to<strong>do</strong> o Império, os rebeldes gaúchos assumiramhonrosamente o nome, emprestan<strong>do</strong> uma retórica socialque contribuiu para a arregimentação de adeptos em to<strong>do</strong>sos setores da sociedade na luta contra “a opressão imperial”.Seriam os menos farroupilhas <strong>do</strong>s farroupilhas da


143O Perío<strong>do</strong> Regencial(1831-1840)época, mas, por terem si<strong>do</strong>, indubitavelmente, os mais resilientes,praticamente monopolizaram a memória <strong>do</strong> nome.Para fins <strong>do</strong> Concurso de Admissão à Carreira deDiplomata (CACD), a questão mais relevante que os dezanos de Farroupilha suscitam é a imbricada teia de aliançase de contra-alianças feita e desfeita nas relações internacionais<strong>do</strong> subsistema platino que veremos ao finaldeste capítulo.3.3 O regresso conserva<strong>do</strong>rOs marcos <strong>do</strong> regresso: um problema de datação. Ação,reação, transação. Herdeiros de Justiniano na historiografia.As medidas de centralização <strong>do</strong> regresso. As engrenagensadministrativa, militar e simbólica na consolidação <strong>do</strong>Esta<strong>do</strong> imperial.A herança de Diogo Antônio Feijó não pode ser vistacomo positiva <strong>do</strong> ponto de vista da estabilidade. Ao renunciarà regência em setembro de 1837, o padre paulista nemsequer conseguiu, entre seus próprios partidários, quemse dispusesse a assumir seu emprego. Recusas sucessivas 96entre os membros da liderança de seu próprio parti<strong>do</strong> – osliberais modera<strong>do</strong>s – forçaram Feijó a nomear como seusucessor Pedro de Araújo Lima 97 . Secunda<strong>do</strong> por Bernar<strong>do</strong>Pereira de Vasconcelos, que no novo gabinete ocuparia as96 Conta Paulo Pereira de Castro que Limpo de Abreu, Costa Ferreira, AurelianoCoutinho, Alves Branco e Paula Sousa recusaram a nomeação <strong>do</strong> regentedemissionário para a pasta <strong>do</strong> Império, o que constitucionalmente ostornaria sucessores legais da regência após a renúncia de Feijó. Ver: CASTRO,Paulo Pereira. A experiência republicana – 1831-1840. In: HOLANDA, SérgioBuarque. <strong>História</strong> geral da civilização brasileira. 8 a . ed. Rio de Janeiro: Bertrand<strong>Brasil</strong>, 2004. v. 4.97 Araújo Lima assumiu a regência em 19 de setembro, exatamente duassemanas depois de ter si<strong>do</strong> nomea<strong>do</strong> sena<strong>do</strong>r pernambucano por Feijó nalista tríplice. O futuro Marques de Olinda tinha fica<strong>do</strong> apenas em terceirolugar nas eleições. Essa escolha “pouco democrática” é evidência dasintenções <strong>do</strong> padre.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>144pastas <strong>do</strong> Império e da Justiça, o futuro Marquês de Olindainiciaria o perío<strong>do</strong> de centralização e de consolidação <strong>do</strong>Esta<strong>do</strong> que ficou conheci<strong>do</strong> como “regresso”, que discutiremosagora e que podemos datar, grosso mo<strong>do</strong>, até 1844.Este será ano da derrota militar da Farroupilha (batalha dePorongos, 14 de novembro de 1844), da Tarifa Alves Branco(12 de agosto de 1844) e ainda da queda <strong>do</strong>s conserva<strong>do</strong>res,com a demissão de Honório Hermeto Carneiro Leão(31 de janeiro de 1844), o retorno ao Congresso <strong>do</strong>s Luzias,finalmente anistia<strong>do</strong>s pela rebelião de 1842 (em 14 demarço), e finalmente a dissolução da Câmara conserva<strong>do</strong>ra(24 de maio).Assim, para efeitos meto<strong>do</strong>lógicos e de exposição<strong>do</strong> argumento, consideraremos os anos de 1837 e 1844,respectivamente, como o início e o fim <strong>do</strong> “regresso”.A construção e o fortalecimento <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> imperial brasileiroé o principal objetivo <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> elabora<strong>do</strong> por JoséMurilo de Carvalho em <strong>do</strong>is livros, hoje edita<strong>do</strong>s conjuntamente:A construção da ordem e Teatro das sombras. É comesses estu<strong>do</strong>s que, de mo<strong>do</strong> geral, este capítulo vai dialogar,concordan<strong>do</strong> com suas conclusões, mas enfatizan<strong>do</strong>elementos diferentes.Para Carvalho, o regresso conserva<strong>do</strong>r foi a fase de“acumulação primitiva de poder”, expressão que ele cita,mas não explica. Esse conceito <strong>do</strong> autor ilustra de formaexata o que foi o regresso, mas merece maior refinamentoteórico.Claro está que a construção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> imperialbrasileiro não ocorreu <strong>do</strong> dia para a noite. O trabalho <strong>do</strong>historia<strong>do</strong>r e, ao longo <strong>do</strong> tempo, da historiografia é escolhermarcos, datas simbólicas que, por motivos apenasparcialmente empíricos, se tornam emblemáticas de umatransição ou mudança. Benno Teschke, em seu livro, TheMyth of 1648 98 , discute longamente a ideia de marcos e oestabelecimento de datas simbólicas como um instrumentoteórico muitas vezes negligencia<strong>do</strong>. Para ele, selecionarmarcos, escolher recortes de tempo é um <strong>do</strong>s elementosteóricos mais relevantes para uma pesquisa.No caso <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, criou-se uma espécie de consensohistoriográfico sobre os marcos da construção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>nacional. Essas datas foram sen<strong>do</strong> sedimentadas de mo<strong>do</strong>distinto por intermédio de diversos autores que, com o passar<strong>do</strong> tempo – e das teses –, as reificaram. Basicamente essaconstrução <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> é datada a partir da experiência decentralização político-burocrática ocorrida a partir <strong>do</strong> finalda década de 1830 e que se chamou de regresso. O próprionome – regresso – simbolizava a reação conserva<strong>do</strong>raque pôs fim à experiência federativa descentraliza<strong>do</strong>ra98 TESCHKE, Benno. The Myth of 1648: Class, Geopolitics, and the Makingof Modern International Relations. New York: Verso, 2003. Nesse texto, oautor tenta desconstruir o mito de Vestfália como sen<strong>do</strong> o nasce<strong>do</strong>uro dasoberania e propõe uma análise processual que discute a gradualidade <strong>do</strong>surgimento <strong>do</strong> conceito ao longo <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is séculos anteriores.


145O Perío<strong>do</strong> Regencial(1831-1840)<strong>do</strong> início <strong>do</strong>s anos regenciais. Não se quer negar, no entanto,a inescapável dinâmica processual da construção, bemcomo a consolidação de um Esta<strong>do</strong>, qualquer Esta<strong>do</strong>, quetorna arbitrárias datações precisas. Reconhecemos como ofez Carvalho ao afirmar queo processo de enraizamento social da monarquia, delegitimação da Coroa perante as forças <strong>do</strong>minantes <strong>do</strong>país foi difícil e complexo. Embora se possa dizer que estavadefini<strong>do</strong> em torno de 1850, ele permaneceu tensoaté o final <strong>do</strong> império (1996, pp. 229-30).Seguramente uma das bases dessa escolha cronológicaé o texto Ação, reação e transação, de Justiniano Joséda Rocha, publica<strong>do</strong> como panfleto em 1855. Justinianoera um jornalista, mais tarde político, com fortes vínculoscom o parti<strong>do</strong> conserva<strong>do</strong>r 99 , instituição que nasceu justamente<strong>do</strong> regresso. Como mito funda<strong>do</strong>r <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> conserva<strong>do</strong>r,o regresso era, para Justiniano, também o mitofunda<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> nacional.99 Pesquisas recentes comprovam que Justiniano recebia pagamentos de altasfiguras <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> conserva<strong>do</strong>r para publicar panfletos na imprensa da épocaque fossem favoráveis ao governo, em uma relação algo promíscua entrepoder e imprensa que nunca se tornaria exceção no <strong>Brasil</strong>. Ver BARBOSA,Silvana Mota. Panfletos vendi<strong>do</strong>s como canela. In: CARVALHO, José Murilode. (org.). Nação e cidadania no Império: novos horizontes. Rio de Janeiro:Civilização <strong>Brasil</strong>eira, 2007.Nesse panfleto, a luta pela construção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>se des<strong>do</strong>brou em três fases: a primeira, batizada de “ação”(1822-36), caracterizou-se pela “[…] luta <strong>do</strong>s elementosmonárquico e democrático”, estendeu-se por to<strong>do</strong> o PrimeiroReina<strong>do</strong> e foi sucedida <strong>do</strong> “[…] triunfo democráticoincontesta<strong>do</strong>”, com a implementação das diversas reformas,que se tornaram parte da agenda liberal após o setede abril de 1831. Triunfo para Justiniano é uma palavra negativaque remonta aos desfiles romanos <strong>do</strong>s generais quemandavam erigir “arcos” especialmente para essas ocasiõesem que o povo de Roma humilhava, cuspia, atirava dejetosnos prisioneiros bárbaros. Triunfo é mais que a vitória, é ahumilhação pós-vitória, é o exagero da democracia, designaçãodada aos adeptos <strong>do</strong> federalismo, que se contrapunhaaos elementos monárquicos, adeptos da centralização<strong>do</strong> poder na Corte <strong>do</strong> Rio de Janeiro.Na segunda fase, “reação” (1836-52), a pressão conserva<strong>do</strong>raconseguiu, de mo<strong>do</strong> dinâmico, reverter asmedidas liberais alcançadas na primeira parte <strong>do</strong> perío<strong>do</strong>regencial, abrin<strong>do</strong> o caminho para o “<strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> princípiomonárquico”. Estariam aí lançadas as bases da centralizaçãopolítica, marco apropria<strong>do</strong> pela historiografia posteriora Justiniano para estabelecer, a partir de então, o início <strong>do</strong>processo de construção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> nacional.Em um esforço dialético, típico <strong>do</strong> argumento conserva<strong>do</strong>r,Justiniano argumentaria que a síntese entre asduas fases antagônicas daria origem ao terceiro momento,


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>146o da “transação”. Caracteriza<strong>do</strong> pelo advento <strong>do</strong> Gabineteda Conciliação de 1853, sob o coman<strong>do</strong> de Honório HermetoCarneiro Leão, o futuro Marquês <strong>do</strong> Paraná, que carregavaem seu próprio nome de família um oximoro deconciliação zoonômica; improvável na natureza, mas quese realizou na política.A realização no gabinete de 1853 da improvávelconciliação entre liberais e conserva<strong>do</strong>res no início dadécada de 1850, seria, para Justiniano, a concretizaçãode uma nova era de vitória da ordem sem opressão e daliberdade sem triunfo. A institucionalização <strong>do</strong> poder <strong>do</strong>impera<strong>do</strong>r com o Poder Modera<strong>do</strong>r restaura<strong>do</strong>, o governo<strong>do</strong>s <strong>do</strong>is parti<strong>do</strong>s em um único gabinete em um regimede coexistência e de cooperação mútua, tu<strong>do</strong> isso punhafim às duas décadas de desordem causadas pelo exageroora da opressão monárquica, ora da anarquia democrática.Como diriam os romanos, e en<strong>do</strong>ssava Justiniano com seunome de impera<strong>do</strong>r, “a virtude está no meio” 100 .100 São frequentes as análises que transformaram conciliação em símbolo decerta característica tipicamente brasileira, que, desde a independência,optava por acor<strong>do</strong>s intraelites que excluíssem a “choldra”, símbolo <strong>do</strong> caose da desordem. Entre tantos marcos políticos demofóbicos em nossahistória, a conciliação de 1853 pode ser vista, entre outras formas, como a“mãe” de uma República proclamada sem apoio popular por um marechalmonarquista que se uniu às oligarquias cafeeiras republicanas que com osmilitares antipatizavam. A mesma conciliação poderia ainda ser vista comoa “avó” de uma revolução modernizante feita por um caudilho gaúchoapoia<strong>do</strong> por grandes latifundiários de Minas Gerais e da Paraíba, e talvezcomo a “ancestral” de uma redemocratização feita pelo parti<strong>do</strong> de oposiçãoA proposta de periodização de Justiniano deixoumuitos herdeiros na historiografia. José Murilo de Carvalho,por exemplo, assume explicitamente a influência justiniana.Na introdução de Teatro das sombras, o autor afirmaque essemomento de acumulação primitiva de poder podeser data<strong>do</strong> com alguma precisão: ele tem origem noregresso conserva<strong>do</strong>r de 1837, quan<strong>do</strong> as incertezase turbulências da Regência começaram a dar lugara um esboço de sistema de <strong>do</strong>minação mais sóli<strong>do</strong>,centra<strong>do</strong> na aliança entre, de um la<strong>do</strong>, o rei e a altamagistratura, e, de outro, o grande comércio e a grandepropriedade, sobretu<strong>do</strong> a cafeicultura fluminense(Carvalho, 1996, p. 229).Pouco depois, Carvalho citaria um panfleto de Justiniano,de 1843 (Antes, portanto, de Ação, reação e transação),nos mesmos termos:Sem o trono, continuava Justiniano, o <strong>Brasil</strong> se fragmentaria.A solução era então <strong>do</strong>tar o trono de apoio social.Este apoio não poderia vir <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong> <strong>do</strong> campo,foco das revoltas que marcaram a Regência. Tambémnão podia vir da desiludida e inquieta população urbana.<strong>do</strong> regime militar, mas que coroou como presidente um ex-arenista, JoséSarney, depois disso três vezes presidente <strong>do</strong> Sena<strong>do</strong> Federal. No <strong>Brasil</strong>, apartir de então, entre os grandes vitoriosos da política, não haveria senão os“radicais de centro”. Para os fisiológicos não importam as correntes políticas.A ideologia está no méto<strong>do</strong>: a conciliação.


147O Perío<strong>do</strong> Regencial(1831-1840)A única saída era buscar o apoio no grande comércio ena grande indústria: “Dê o governo a essas duas classestoda a consideração, vincule-as por to<strong>do</strong>s os mo<strong>do</strong>s àordem estabelecida, identifique-as com as instituições<strong>do</strong> país, e o futuro estará em máxima parte consolidada”(Carvalho, 1996, p. 234).um movimento dialético que supera tanto o excessivoliberalismo quanto a excessiva antítese conserva<strong>do</strong>ra,para criar um regime político mais conserva<strong>do</strong>r<strong>do</strong> que desejariam os liberais e mais liberal <strong>do</strong> que osconserva<strong>do</strong>res gostariam de admitir (Martins, 1979,pp. 225-6).Muito antes de Carvalho, o autor de um <strong>do</strong>s maioresclássicos sobre o perío<strong>do</strong> monárquico, Joaquim Nabuco,em Um estadista <strong>do</strong> Império, escrevia que a função histórica<strong>do</strong> perío<strong>do</strong> foidesprender o sentimento liberal da aspiração republicana,que em teoria é a gradação mais forte daquelesentimento, mas que na prática sul-americana o exclui(...) a grande reputação <strong>do</strong>s homens dessa quadra, Feijó,Evaristo, Vasconcelos, não é o que eles fizeram pelo liberalismo,é a resistência que opuseram à anarquia (Nabuco,1997 v. 1, pp. 24-25).Oliveira Lima, na mesma época, reitera esse pontode vista “justiniânico” em O Império <strong>Brasil</strong>eiro, pressentin<strong>do</strong>a “transação” em nome da “ordem”, duas décadas antes.Um autor mais recente, Wilson Martins, no segun<strong>do</strong>volume de sua <strong>História</strong> da inteligência brasileira, assim descreveo regresso, fazen<strong>do</strong> eco à síntese da “transação” deJustiniano mais de um século depois:O Regresso é normalmente encara<strong>do</strong> como simplesmovimento pendular de retorno às posições conserva<strong>do</strong>ras,em razão <strong>do</strong>s excessos liberais que haviamforça<strong>do</strong> à Abdicação. Entretanto, o Regresso é tambémIlmar Mattos, no entanto, enxerga de forma diferente.Para ele, a conciliação – o terceiro momento, que paraJustiniano é momento de síntese – é, na verdade, o verdadeiro“triunfo” <strong>do</strong>s conserva<strong>do</strong>res, <strong>do</strong> elemento monárquicopró-centralização, mascara<strong>do</strong> de acor<strong>do</strong> e de consenso.Àquela altura, os saquaremas já haviam sequestra<strong>do</strong> aidentidade e a agenda liberal, transforman<strong>do</strong> os liberais emuma paródia <strong>do</strong> que haviam si<strong>do</strong> nas décadas anteriores.Para Mattos a conciliação é uma vitória “saquarema”.São anos percebi<strong>do</strong>s como confusos, durante osquais se concentrou a maior quantidade de rebeliões –populares e de elite, algumas delas declaradamente separatistas– que se espalharam, como vimos, por to<strong>do</strong> o territóriobrasileiro. Era um quadro de instabilidade que jamaisteria novamente lugar em nossa história. Nunca a unidadeterritorial <strong>do</strong> país correu tão grande risco. O regime monárquicofoi questiona<strong>do</strong> até no Parlamento da Corte 101 .101 Pouco antes, em 16 de maio de 1835, o deputa<strong>do</strong> Antônio Ferreira Françapropôs um projeto de lei que encerrava o governo dinástico no <strong>Brasil</strong> esugeria o estabelecimento de um governo eletivo. O projeto não foi acolhi<strong>do</strong>


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>148Foi, no entanto, nos anos finais <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> regencialque se percebeu o início de duas tendências centrípetasmuito claras e concomitantes: a retomada <strong>do</strong> controle <strong>do</strong>Rio de Janeiro e da Corte sobre as províncias, que seriamprogressivamente enfraquecidas, política e financeiramente;e na Corte, o fortalecimento paulatino, porém sistemático,<strong>do</strong> Poder Executivo, com a retomada <strong>do</strong> Poder Modera<strong>do</strong>r,em detrimento <strong>do</strong> governo parlamentar. Algumasmedidas desse perío<strong>do</strong> exemplificam perfeitamente essatendência: (A) A lei interpretativa ao Ato Adicional, que esvaziaas assembleias provinciais das prerrogativas que haviamsi<strong>do</strong> conquistadas por elas apenas três anos antes. (B)A reforma <strong>do</strong> Código de Processo Penal, que igualmenteretoma, no Ministério da Justiça, o controle decisório sobreos mecanismos judiciários provinciais, contribuin<strong>do</strong> significativamentepara o estabelecimento, por parte <strong>do</strong> podercentral, <strong>do</strong> monopólio <strong>do</strong>s meios de coerção; e (C) O golpeda maioridade, que permitiria a restauração plena <strong>do</strong>Poder Modera<strong>do</strong>r, o retorno <strong>do</strong> Conselho de Esta<strong>do</strong> quehavia si<strong>do</strong> aboli<strong>do</strong> pelo Ato Adicional de 1834.A partir daí, e mesmo antes <strong>do</strong> golpe, teria curso arestauração simbólica da autoridade imperial com a supremaciada ideia monárquica, ou seja, o estabelecimento depelo presidente da Câmara, Araújo Lima, que <strong>do</strong>is anos mais tarde assumiriacomo o regente que comandaria o “regresso”.um juiz supremo, media<strong>do</strong>r institucionaliza<strong>do</strong> das forçassociais, que contribuiria para dirimir os conflitos até entãoresolvi<strong>do</strong>s privadamente ou fora <strong>do</strong>s marcos institucionais.A regência, segun<strong>do</strong> José Murilo de Carvalho, falhara em<strong>do</strong>is pontos: na manutenção da ordem e na capacidadede arbitragem. A figura <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r traria a legitimidadenecessária no arbitramento de conflitos intraelites, o quecontribuiria decisivamente para a restauração da ordem.Não por acaso, entre 1838 e 1845, são debeladas,mediante repressão e/ou negociação, todas as rebeliõesprovinciais que eclodiram no perío<strong>do</strong> regencial, garantin<strong>do</strong>o controle efetivo – incluin<strong>do</strong> militar –, por parte <strong>do</strong>governo <strong>do</strong> Rio de Janeiro, de cada província. O fim negocia<strong>do</strong>da Farroupilha, a mais perigosa e dura<strong>do</strong>ura dasrevoltas, em fevereiro de 1845, marca o início de um esta<strong>do</strong>já significativamente consolida<strong>do</strong>.Essas medidas viram concomitantes às reformasadministrativas que deram mais racionalidade e alcanceà burocracia central <strong>do</strong> país, sobretu<strong>do</strong> no Ministério <strong>do</strong>sEstrangeiros, relevante em especial para o Concurso de Admissãoà Carreira de Diplomata (CACD). Tais reformas foramgrandemente favorecidas pelo aumento substancial dacapacidade extrativa <strong>do</strong> governo, expresso em 1844 pelofim <strong>do</strong>s trata<strong>do</strong>s desiguais, com a Tarifa Alves Branco, que,para Ama<strong>do</strong> Cervo e Clo<strong>do</strong>al<strong>do</strong> Bueno, marcou o início dafase de “autonomia da política externa brasileira”. Essa leicontribuiria, após 1844, para financiar cada um <strong>do</strong>s demais


149O Perío<strong>do</strong> Regencial(1831-1840)elementos de state-building e expansão <strong>do</strong> alcance da políticaexterna.Por último, mas não menos essencial, uma maiorpreocupação por parte <strong>do</strong> governo com a educação <strong>do</strong>povo e com a construção de uma identidade nacional brasileira.De mo<strong>do</strong> formal, isso é expresso na criação, já noinício <strong>do</strong> regresso, <strong>do</strong> Colégio Pedro II. O prédio e o própriocolégio já existiam na forma <strong>do</strong> Educandário São Joaquim,mas sua refundação e rebatismo em 1837, o <strong>do</strong>tou de novosprogramas, novos professores e nova proposta pedagógica.A data não é uma coincidência. A começar pelonome escolhi<strong>do</strong> que reflete a intencionalidade política na“formação das almas”. Era parte de um processo de construção– intencional – da identidade nacional brasileira.O colégio é contemporâneo <strong>do</strong> Instituto Histórico e Geográfico<strong>Brasil</strong>eiro (IHGB), onde se daria a construção <strong>do</strong> romantismoindigenista na literatura.Marco Morel, em um livreto de síntese sobre o perío<strong>do</strong>das regências, que nunca na história se concentrouviolência tão disseminada em tão curto espaço de tempo.A hipérbole <strong>do</strong> autor bem poderia constar de discursospolíticos recentes, além de ser muito discutível se somarmosos acidentes de trânsito contemporâneos às mortesurdidas por traficantes e pela criminalidade em geral dasgrandes cidades brasileiras, bem como as violências nocampo, nas ocupações de terra de norte a sul <strong>do</strong> país,às das grilagens da Amazônia e nas reservas indígenas.Contabilizadas grosseiramente as formas de violência <strong>do</strong>início <strong>do</strong> século XXI, superam anualmente e, em largamedida, os mortos da Cabanagem, da Farroupilha, da Balaiadae da Revolta <strong>do</strong>s Malês.Contu<strong>do</strong>, embora ele não diga, é muito provávelque, em uma leitura mais generosa, Morel se referisseàquela forma de violência patrocinada pelo Esta<strong>do</strong>; a violênciaestatal que, para muitos, no frigir <strong>do</strong>s ovos, é a própriaessência <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> nacional 102 .É natural que, na constituição <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> brasileiro,o exercício da violência se exacerbasse como sucedâneopróprio <strong>do</strong> estabelecimento <strong>do</strong> monopólio da autoridadelegítima em face de seus competi<strong>do</strong>res. O próprio Morel,crítico da visão negativa que relega à regência uma interpretaçãode “caos”, concorda que, a partir <strong>do</strong> regresso,a engrenagem nacional centraliza<strong>do</strong>ra, modernizante edefensora da ordem social urdida por agentes históricosincorpora e homogeneíza os multifaceta<strong>do</strong>s rebeldes,não somente eliminan<strong>do</strong>-os, mas digerin<strong>do</strong>-os e assimilan<strong>do</strong>os pedaços de parti<strong>do</strong>s, na busca de uma naçãopróspera e desigual (2003, pp. 65-6).102 Ver Thomson (1994), Spruyt (1994), Tilly (1996), Giddens (2001), apenas paracitar alguns exemplos de autores que colocam a violência como elementocentral da construção e da própria existência <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Moderno.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>150Caberia detalhar as engrenagens <strong>do</strong> regresso.A partir de 1837 fica patente o esforço em prol de umacentralização que inclusive seria essencial para a retomadade uma política externa mais assertiva a partir <strong>do</strong> final dadécada seguinte. Com base na imagem fornecida por JoséMurilo, podemos dividir em três tipos essas “engrenagens”.Ao se movimentar, elas garantiram a “centralização modernizantee defensora da ordem”. Em funcionamento, essasengrenagens “incorporam e homogeneízam os multifaceta<strong>do</strong>srebeldes”. Seu encaixe, progressivamente lubrifica<strong>do</strong>e cada vez mais justo, contribui, a partir de 1836, para queesses rebeldes sejam incorpora<strong>do</strong>s, assimila<strong>do</strong>s ou, em algunscasos, elimina<strong>do</strong>s, moí<strong>do</strong>s por essas engrenagens <strong>do</strong>Esta<strong>do</strong> Imperial.A primeira engrenagem é a administrativa. Umaampla reforma das instituições <strong>do</strong> governo, ainda que desigual,errática e cheia de contramarchas, foi implementadano Esta<strong>do</strong> durante o regresso. Se o Colégio Pedro II e oIHGB podem ser toma<strong>do</strong>s como exemplos de instituiçõesa serviço de um projeto simbólico com motivações políticas,uma série de outras instituições, como o Conselhode Esta<strong>do</strong>, o Exército, a Armada, o Ministério <strong>do</strong>s Estrangeirose, certamente, os próprios poderes Legislativo eExecutivo (haja vista a criação <strong>do</strong> cargo de presidente <strong>do</strong>conselho de ministros no final <strong>do</strong>s anos 1840), sofreramalterações relevantes – em alguns casos, refundações.Estavam ainda melhor lubrificadas pela injeção de fôlegofiscal. O aumento da capacidade extrativa <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>a partir de 1844 tornou mais eficaz o encaixe <strong>do</strong>s dentesda engrenagem institucional. À medida que aumenta arobustez <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, torna-se mais simples triturar dissidentesinternos, agora cada vez mais raros, e igualmentemais fácil enfrentar desafios internacionais de mo<strong>do</strong> maisautônomo e ousa<strong>do</strong>.A segunda engrenagem é a força, essencial para oestabelecimento <strong>do</strong> “monopólio legítimo <strong>do</strong>s meios decoerção”, sem o qual não há Esta<strong>do</strong>. A enorme quantidadede rebeliões ocorridas durante o perío<strong>do</strong> regencial tornavaqualquer tentativa de governabilidade vã. Urgia reprimi-lasou debelá-las com base em alguma forma de acor<strong>do</strong> ouconvencimento. Não raro, a violência se combinou com aassimilação. A depender <strong>do</strong> tipo de inimigo a ser derrota<strong>do</strong>variará uso <strong>do</strong> lubrificante: a palavra ou o sangue. Serãoassimila<strong>do</strong>s ou reprimi<strong>do</strong>s?Para tanto são fortaleci<strong>do</strong>s os meios jurídico-institucionaisque viabilizarão este processo. Os exemplos maisfirmes são a Lei Interpretativa ao Ato Adicional e, no casoespecífico da repressão, a reforma <strong>do</strong> Código de ProcessoCriminal, ambos <strong>do</strong> início <strong>do</strong>s anos 1840, que fortalecemo governo central. Menos de cinco anos depois, cada umadessas rebeliões havia cessa<strong>do</strong> de existir.Desde 1837, vinha se discutin<strong>do</strong> na Assembleia anecessidade de reformar as medidas <strong>do</strong> avanço liberal emprol de medidas mais centraliza<strong>do</strong>ras. Em 1840, virou lei o


151O Perío<strong>do</strong> Regencial(1831-1840)projeto de interpretação <strong>do</strong> Ato Adicional, uma brecha <strong>do</strong>art. 20 <strong>do</strong> próprio ato que dava à Assembleia Legislativao direito de interpretar aqueles artigos que porventuradessem margem a dúvidas. O art. 20 era simbólico de umaépoca liberal em que a Assembleia ganhara poderes, sobretu<strong>do</strong>as assembleias provinciais, que tinham si<strong>do</strong> criadasno próprio Ato. A redação da interpretação redigidapor Paulino José Soares de Sousa esvaziava as prerrogativasdas assembleias provinciais. Cassava vários de seus poderes,entre eles o de nomear os funcionários judiciários,bem como sua responsabilidade sobre os cargos públicoscria<strong>do</strong>s por Lei Geral ou manti<strong>do</strong>s pelo Tesouro <strong>do</strong> Império.Transferia-se ainda praticamente to<strong>do</strong> o sistema judicial epolicial para o governo central, com a criação da políciajudiciária, separada da polícia administrativa. As provínciasperdiam o controle sobre um <strong>do</strong>s mais importantes meiosde violência institucional, que se tornava, de novo, monopólio<strong>do</strong> governo central.Complemento essencial, a lei de interpretação seriaa reforma <strong>do</strong> código, que previa o esvaziamento das funções<strong>do</strong> juiz de paz, último <strong>do</strong>s juízes eleitos. O ministro daJustiça passava a poder nomear e demitir to<strong>do</strong>s os funcionáriosda justiça, <strong>do</strong>s desembarga<strong>do</strong>res aos guardas, e asfunções <strong>do</strong> tribunal <strong>do</strong> júri foram muito reduzidas, eliminan<strong>do</strong>em boa parcela o princípio eletivo <strong>do</strong> sistema judicial.Ao contrário da Lei de Interpretação, a reforma <strong>do</strong>Código de Processo Criminal não se tornou decreto em1840. Foi adiada por uma reviravolta política provocadacertamente pelo alvoroço liberal diante dessas medidasconserva<strong>do</strong>ras. Somadas a elas, a proposta de restabelecimento<strong>do</strong> Conselho de Esta<strong>do</strong> provocou o me<strong>do</strong> <strong>do</strong>sliberais de que uma ditadura conserva<strong>do</strong>ra se institucionalizasse,excluin<strong>do</strong>-os definitivamente <strong>do</strong> poder. A últimacartada liberal foi o golpe da maioridade.O golpe da maioridade foi em grande parte estimula<strong>do</strong>pela terceira engrenagem, a engrenagem simbólica.Ao fortalecimento da imagem <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r comosíntese <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> somou-se o processo delibera<strong>do</strong> porparte <strong>do</strong> regresso da busca pela construção de umaidentidade nacional explícita em instituições como oColégio Pedro II e o IHGB. O movimento da engrenagemsimbólica pode ser sintetiza<strong>do</strong> em paráfrase livre da máximaitaliana pós-risorgimento, <strong>do</strong> igualmente Massimod’Azeglio: “Para fazer o <strong>Brasil</strong>, era necessário fazer tambémos brasileiros.” Evidentemente um “determina<strong>do</strong> tipo debrasileiro”. Afinal, o projeto de construção da identidadenacional era um projeto das elites para as elites e contribuiu,em conjunto com as demais engrenagens, para evitarnovas rebeliões ancoradas em sentimentos regionais,bem como para consolidar a figura de D. Pedro II como oárbitro natural <strong>do</strong>s conflitos intraelites. Para José Murilo,os magistra<strong>do</strong>s – juízes e desembarga<strong>do</strong>res, herdeiros <strong>do</strong>pensamento ilustra<strong>do</strong> de Coimbra – foram os protagonistasdeste momento, com destaque para Bernar<strong>do</strong> Pereira


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>152de Vasconcellos. Tanto quanto os padres haviam si<strong>do</strong> osprotagonistas <strong>do</strong> liberalismo, e cuja derrota para VasconcellosFeijó simboliza perfeitamente.Ninguém mais que os conserva<strong>do</strong>res <strong>do</strong> regressohavia contribuí<strong>do</strong> para a restauração da dignidade e daautoridade <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r a<strong>do</strong>lescente. O regente AraújoLima restaurou a cerimônia <strong>do</strong> beija-mão buscava ressaltaro caráter simbólico <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r nas cerimônias públicas.O monarca que deveria pairar acima das facçõescomo símbolo da nação. Daí a inteligência <strong>do</strong> movimentopolítico liberal que propôs a antecipação inconstitucionalde sua maioridade, que já vinha sen<strong>do</strong> discutida há <strong>do</strong>isanos por uma liga criada para este fim. O povo saiu às ruasapoian<strong>do</strong> e dan<strong>do</strong> “vivas” ao impera<strong>do</strong>r. A nação dispensavaa lei, e os conserva<strong>do</strong>res ficaram na constrange<strong>do</strong>rasituação de invocar a Constituição e parecer inimigos damonarquia, tão exaltada por eles próprios.Um panfleto da época dizia:indissociáveis. Juntas, <strong>do</strong>taram o Esta<strong>do</strong> de mais força e legitimidadee significaram, no médio prazo, a consolidação<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Imperial.Queremos Pedro Segun<strong>do</strong>Ainda que não tenha idadeA nação dispensa a LeiE Viva a maioridadeNesta breve descrição, já é possível perceber comoessas engrenagens – institucional, militar e simbólicas seinter-relacionaram. Em determina<strong>do</strong>s episódios, se tornam


153O Perío<strong>do</strong> Regencial(1831-1840)3.4 A política externa <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> regencialAvalian<strong>do</strong> o imobilismo. Condicionantes políticos.Condicionantes econômicos.O eixo assimétrico: imperialismo amazônico.Ameaças imperialistas na fronteira setentrional.A querela da investidura. A Farroupilha e o Prata.Sain<strong>do</strong> <strong>do</strong> imobilismo: discurso na reação parlamentar.Transformação institucional e o fim <strong>do</strong>s ministros‘relâmpagos’.Depreende-se da leitura <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is livros de Ama<strong>do</strong>Cervo – <strong>História</strong> das Relações Internacionais <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> e O Parlamentobrasileiro e as relações exteriores (1826-1831) – certasimpatia pelos esforços <strong>do</strong>s homens que levaram a cabo apolítica externa no perío<strong>do</strong> regencial. É a sensação de reconhecimentode que fazer o possível ante circunstânciasmuito adversas também é louvável, ainda que as glórias elouros recaiam sobre os outros perío<strong>do</strong>s. Trata-se de umavantagem das análises estruturais. Ao retirar <strong>do</strong>s indivíduosa primazia nas causalidades e nos resulta<strong>do</strong>s, de um la<strong>do</strong>nega grandes glórias ou genialidades a um Paulino ou a<strong>do</strong>is Paranhos, também per<strong>do</strong>a os muitos ministros – éaté difícil contá-los – que não tiveram a sorte de servir sobestruturas internas e sistêmicas mais favoráveis, mas mesmoassim “tocaram o barco” em meio às águas turbulentasda regência, “administran<strong>do</strong> o imobilismo”. O balanço quedisso se extrai é que esses estadistas deixaram um lega<strong>do</strong>importante, que frutificaria somente a posteriori. Reforça-sea ideia de que política externa, como política de Esta<strong>do</strong> (e,nesse caso, era o próprio Esta<strong>do</strong> que estava sen<strong>do</strong> cria<strong>do</strong>),só pode ser avaliada em longo prazo. Examinaremos partedesse lega<strong>do</strong> ao final desta seção.Ama<strong>do</strong> Cervo é um autor cuja pesquisa se centrouno papel <strong>do</strong> Parlamento. Parlamento fragiliza<strong>do</strong> por umregime constitucional no qual o Legislativo tinha escassascompetências na área internacional. Pela Constituição de1824, nem sequer podia ratificar trata<strong>do</strong>s se não cedessemou permutassem territórios brasileiros. É bastante naturalque as fontes por ele usadas, os debates nas atas parlamentaresfavoreçam a interpretação positiva <strong>do</strong> perío<strong>do</strong>regencial. Afinal, foi justamente no perío<strong>do</strong> regencial queo Parlamento conquistou preeminência e viveu o ápice desua relevância política, pois não havia impera<strong>do</strong>r reinan<strong>do</strong>,e os regentes estavam submeti<strong>do</strong>s a lei de 1831 quecassara parte de seus poderes, dan<strong>do</strong> mais prerrogativasao próprio Parlamento. O regente devia prestar contas aolegislativo.Mencionam Cervo e Bueno que esse controle inexistiano primeiro reina<strong>do</strong>. Iniciou-se apenas com a lei de15 de dezembro 1830, nos estertores <strong>do</strong> Primeiro Reina<strong>do</strong>,que, pela primeira vez, obrigará os Ministérios a prestarcontas à Assembleia. Sen<strong>do</strong> esta complementada pela leide 14 de junho de 1831, que definiu a competência <strong>do</strong>s


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>154regentes, inaugura-se a prática de apresentar anualmenteo Relatório da Repartição <strong>do</strong>s Negócios Estrangeiros, fontedas mais preciosas para o estu<strong>do</strong> da política externa e quefoi digitalizada na íntegra pela Universidade de Chicago,que o disponibiliza para acesso virtual.Essa lei também exigia que to<strong>do</strong>s os trata<strong>do</strong>s fossemsubmeti<strong>do</strong>s à aprovação da Assembleia, exigência que vinhadesde o Primeiro Reina<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> começaram, noParlamento, as críticas ao “sistema de trata<strong>do</strong>s desiguais”.A maioridade, reconhecem os autores, encerrou essaexigência, mas eles ressalvam que, de to<strong>do</strong> mo<strong>do</strong>, “o Parlamentoiria dispor <strong>do</strong> poder decisório em matéria detrata<strong>do</strong>s pelo tempo necessário à destruição <strong>do</strong> sistemaoriginal” (Cervo e Bueno, 2002, p. 53).Em uma época de rotatividade sem precedentesnos gabinetes ministeriais e com a extinção <strong>do</strong> Conselhode Esta<strong>do</strong> e os ataques ao Sena<strong>do</strong> vistos como bastiões“caramurus”, a política externa passaria, de fato, a ser determinadamais pelos deputa<strong>do</strong>s, tornan<strong>do</strong>-se a “caixa deressonância”, lócus preferencial <strong>do</strong> debate das ideias de inserçãointernacional brasileira; essas ideias, uma vez testadase vitoriosas no Parlamento, seriam, após algum tempo,aplicadas pelo Executivo. Para Cervo, tal modelo subsistiriaaté o fim <strong>do</strong> Império.As limitações de ordem sistêmica, no entanto, erammuito mais draconianas e conformaram o perío<strong>do</strong> <strong>do</strong> “imobilismo”.Elas têm sua principal origem no campo econômico.As combalidas finanças de um Esta<strong>do</strong> que estava em fasede criação e de montagem institucional eram achacadas deto<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s. Nenhum deles mais <strong>do</strong> que pelo duplo torniquete<strong>do</strong>s trata<strong>do</strong>s desiguais. Se, de um la<strong>do</strong>, limitavama arrecadação, de outro praticamente impediam superávitscomerciais, devi<strong>do</strong> a não reciprocidade para os produtos nacionaisna Europa e na Inglaterra em particular.Quanto ao orçamento, o máximo <strong>do</strong>s 15% conformavaa patamares pífios a arrecadação de um país herdeirode estruturas tributárias centralizadas e sem capilaridadefiscal. A regência, mesmo em seu afã federativo, nunca descentralizoua arrecadação. Assim, o Esta<strong>do</strong> obtinha a maiorparte <strong>do</strong>s seus rendimentos tributan<strong>do</strong> o setor externo daeconomia, mais simples de fiscalizar.A balança com a Inglaterra, nas mais de duas décadasque se seguem da independência ao fim <strong>do</strong> Regresso,o Império registrou déficit comercial em to<strong>do</strong>s os anos,exceto quatro. Às vezes o que se comprava era mais queo <strong>do</strong>bro <strong>do</strong> que se vendia. Esse quadro era apenas parcialmentecompensa<strong>do</strong> no comércio com os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s,de muito menor monta, mas crescentemente favorável ao<strong>Brasil</strong> no perío<strong>do</strong> regencial. A outra forma de compensar odéficit eram os empréstimos, que chegavam a 1/3 <strong>do</strong> déficitda balança comercial. Segun<strong>do</strong> Cervo, até 1843 o <strong>Brasil</strong>recebeu 5 milhões de libras, consideran<strong>do</strong> o deságio médiode 20% (mas que, em alguns casos o deságio chegoua 50%) e juros de 5%. Esse valor foi investi<strong>do</strong> sobretu<strong>do</strong> no


155O Perío<strong>do</strong> Regencial(1831-1840)pagamento <strong>do</strong>s demais juros, no custeio de missões diplomáticase na amortização <strong>do</strong>s déficits, mas não no setorprodutivo.As heranças malditas <strong>do</strong> Primeiro Reina<strong>do</strong> tambémficaram para a regência pagar. As comissões para indenizaros súditos portugueses combinadas no trata<strong>do</strong> de reconhecimentode 1825 só se estabeleceram na década de1830. Por causa delas, a antiga metrópole levou mais de500 contos de réis, visto que os prejuízos <strong>do</strong>s súditos portuguesese o transporte de suas forças somavam quasetrês vezes mais <strong>do</strong> que os apura<strong>do</strong>s para com os súditos<strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r.Outro exemplo são as numerosas reclamações estrangeirasde indenizações em virtude <strong>do</strong> bloqueio <strong>do</strong>Prata pela armada brasileira durante a Guerra da Cisplatina.Tais reclamações, acolhidas, levaram a pagamentos descabi<strong>do</strong>sao longo de toda a regência para a Inglaterra e outrasnações (Dinamarca, Chile, Países Baixos e Suécia), até quecomeçaram a ser negadas a partir de 1839 e passaram à alçada<strong>do</strong> Conselho de Esta<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> este voltou a funcionarjá no início <strong>do</strong> Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>. Somente à Inglaterrafoi pago quase 5 mil contos de réis, o equivalente à cercade 1/8 de todas as exportações <strong>do</strong> Império. A fragilidadeinstitucional <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> impedia que nos defendêssemos deataques externos ao Tesouro <strong>do</strong> Império.Percebe-se assim que, na relação com as grandespotências europeias, pre<strong>do</strong>minou a manutenção deuma submissão indesejável, criticada diretamente peloParlamento, que via como nefasto o sistema de trata<strong>do</strong>sdesiguais. Se, em alguns momentos, houve encontro deposições entre o Império e a Álbion, como no caso da LeiFeijó de 1831, isso não tinha por objetivo principal agradaros ingleses, mas implementar internamente medidas decunho liberal que nem no <strong>Brasil</strong> eram consensuais.No caso da Lei Feijó em particular, já se prenunciavamas soluções soberanas de 1850, da<strong>do</strong> que muitas dasprerrogativas da lei eram ainda mais duras que o convêniofirma<strong>do</strong> com Londres que abolira a escravidão após 1830.Por exemplo, criminalizava a aquisição de escravos ilegalmente,implican<strong>do</strong> potencialmente o grupo mais poderosoe influente <strong>do</strong> país: os senhores de escravos. Não é de sesurpreender que a lei se tornaria letra morta com o regresso.Os princípios não estavam mais acima <strong>do</strong> pragmatismopolítico. Ainda assim, funcionou inicialmente e nem semprefoi “lei pra inglês ver”.Outra afronta notória era o imperialismo europeu noterritorial amazônico.Na França, o regime de Luís Felipe, chega<strong>do</strong> aopoder em 1830, a<strong>do</strong>tou uma postura expansionista naAmazônia e fortificou o lago Amapá, ignoran<strong>do</strong> os protestosque se seguiram da chancelaria <strong>do</strong> Império em Paris.Aproveitou-se <strong>do</strong> quadro instável que se vivia com a Cabanagem,usan<strong>do</strong> como desculpa a proteção de seus nacionaiscontra a guerra paraense. De mo<strong>do</strong> oportunista


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>156tentava fazer valer a posição de força contra a letra <strong>do</strong>Trata<strong>do</strong> de Utrecht e da Convenção de Viena, que haviadevolvi<strong>do</strong> a Guiana Francesa depois de oito anos de ocupaçãoportuguesa no perío<strong>do</strong> joanino. O governo da regênciahabilmente vai recorrer a Londres, buscan<strong>do</strong> cavaralguma autonomia na rivalidade imperialista entre as potências,visto que não interessava aos ingleses o imperialismode Paris na zona amazônica próximo às possessõesbritânicas da Guiana Inglesa. Funcionou, e a solicitaçãoinglesa, junto à demonstração de força da corveta Race naregião, forçou o recuo <strong>do</strong> governo francês, que desocupouo território, declara<strong>do</strong> a partir de então zona neutra.A resolução definitiva <strong>do</strong> litígio, como sabemos, só viriacom o Barão em 1900.Também os ingleses abusavam de nosso momentode fragilidade. Synesio Sampaio nos ensina que, nessamesma época, o explora<strong>do</strong>r alemão naturaliza<strong>do</strong> inglêsRobert Hermann Schomburgk fez duas expedições à GuianaInglesa (1835; 1837-8), base <strong>do</strong> livro que escreveria em1840, Description of British Guiana, em que descreve territóriosque eram desconheci<strong>do</strong>s por ingleses e holandesesque ocupavam o litoral norte havia séculos. A primeira viagemfoi patrocinada pela Royal Geographical Society, masa segunda o descobri<strong>do</strong>r da vitória-régia o fez a serviço daCoroa britânica. Depois, passou a defender uma SchomburgkLine que incorporaria à Guiana Inglesa territórios atéa Serra <strong>do</strong> Acari, muito mais ao sul que as fronteiras atéentão desguarnecidas <strong>do</strong> Pirara e reduzidas <strong>do</strong> Forte deSão Joaquim em virtude da Cabanagem.O oportunismo <strong>do</strong> alemão era açucara<strong>do</strong> com coberturahumanitária. Esse explora<strong>do</strong>r conseguiria o apoioda opinião pública inglesa na defesa <strong>do</strong>s índios escraviza<strong>do</strong>spelos paraenses, bem como o envio de missionáriosanglicanos ao Pirara. O contexto de combate ao tráfico negreiro,que se agravaria nos anos seguintes, não favoreciaa imagem de um <strong>Brasil</strong> escravista em face de um públicocrescentemente hostil à escravidão e cada vez mais sensívelaos argumentos humanitários de líderes abolicionistas,como Wilberforce, ou <strong>do</strong>s grupos religiosos organiza<strong>do</strong>s,como os Quakers. Estava da<strong>do</strong> mais um conflito de fronteira,que igualmente só se resolveria, desfavoravelmente ao<strong>Brasil</strong>, cerca de seis décadas depois. O “imobilismo” regencialdeixaria hipotecas de longo prazo para serem resgatadascom prejuízo.Ainda nas relações com a Europa, convém lembrar asquerelas com a Santa Sé, motivadas, em parte, pela conhecidaintransigência <strong>do</strong> Regente Feijó, mas que são sintomasinteressantes da presença não desprezível de um regalismojansenista em defesa <strong>do</strong> padroa<strong>do</strong> no <strong>Brasil</strong>. Os liberais maisradicais já haviam pleitea<strong>do</strong> pela nacionalização absoluta daIgreja <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> quan<strong>do</strong> <strong>do</strong>s debates constituintes em 1823.Entre outros pontos, propuseram a abolição <strong>do</strong> novicia<strong>do</strong>(que encerraria, em longo prazo, a atuação das ordens religiosasno <strong>Brasil</strong>), a abolição <strong>do</strong> foro privilegia<strong>do</strong> para os


157O Perío<strong>do</strong> Regencial(1831-1840)padres (o que se efetivou com o Código de Processo de1832) e a exclusão definitiva da autoridade estrangeira deRoma. O sentimento nativista era generaliza<strong>do</strong> logo após aindependência, frutificou apenas parcialmente.É interessante notar que essas defesas contra Romaeram, não raro, levantadas por padres, demonstran<strong>do</strong> oimpacto das ideias da ilustração sobre esse estrato social.Cabe aí lembrar o papel de instituições como o Semináriode Olinda, organiza<strong>do</strong> de acor<strong>do</strong> com as diretrizes ilustradasde um conserva<strong>do</strong>r, Azere<strong>do</strong> Coutinho, que radicalizaramo iluminismo de seu funda<strong>do</strong>r e contribuírampara mais de uma sedição pernambucana no início <strong>do</strong>século XIX. Raras também eram as sociedades secretasou ilustradas que não contavam com a presença de umou mais padres. Muitos padres defendiam abertamente ofim celibato, e Antônio Maria de Moura o fez por escrito,ten<strong>do</strong> obti<strong>do</strong> a concordância de Feijó. Feijó, bastar<strong>do</strong> ecelibatário, considerava-o o fim <strong>do</strong> celibato clerical necessáriopara legalizar a paternidade de filhos bastar<strong>do</strong>s<strong>do</strong>s padres. Seria simplesmente legalizar o que já eraprática corrente. Naturalmente haverá grande objeçãoda Santa Sé com a nomeação de Moura como bispo <strong>do</strong>Rio de Janeiro, como insistiu Feijó 103 . O Regente alegou103 Sérgio Buarque de Holanda, no primeiro capítulo <strong>do</strong> volume III da <strong>História</strong>geral, sugere que, além da questão <strong>do</strong> celibato, Moura, que era também filhoilegítimo, sofria de epilepsia e era alcoólatra.intervenção estrangeira indevida contra a honra nacionale resgatou os debates sobre autonomia <strong>do</strong> clero brasileiroque vinham de 1823. Feijó quase rompe definitivamentecom Roma. Por pouco não transformou a da vacância dadiocese carioca em pretexto para que se tornar um novoTu<strong>do</strong>r. A controvérsia só seria sanada, já no Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>,com a desistência, algo estimulada pelo Regresso,<strong>do</strong> padre Moura, que favoreceu a normalização das relaçõescom a Santa Sé.No plano <strong>do</strong> eixo simétrico, percebe-se o enfraquecimentoda posição brasileira no Prata. Era difícil exercerinfluência ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> limita<strong>do</strong> o alcance militar das forçasarmadas em um quadro de enfraquecimento institucional.Os crescentes custos políticos, sociais e financeiros paraaplacar as rebeliões agravavam o quadro. Com a separaçãoda mais militarizada das províncias, estância da cavalariabrasileira e foco de formidável de resistência, complicaraseainda mais o quadro. É impossível entender a políticaexterna <strong>do</strong> Império no Prata sem entender as relações internacionaiscomplexas no Prata na época da Farroupilha.Se, após a Guerra da Cisplatina, as tropas brasileiras perdemo acesso ao Prata, com a Farroupilha sete anos depoiso problema muda de latitude e se aproxima da Corte quepassa a ter que manter tropas em Santa Catarina e no litoral<strong>do</strong> Rio Grande <strong>do</strong> Sul.Guardar na memória todas as facções que se sucedeme se rearranjam na política platina em qualquer


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>158tempo é um pesadelo para o candidato e pode provocardias de <strong>do</strong>r de cabeça aos mais insistentes. Feita a ressalva,tentemos um resumo, necessário, para essa conjunturacomplexa no perío<strong>do</strong> regencial.Os <strong>do</strong>is gigantes herdeiros das disputas <strong>do</strong>s impérioscoloniais ibéricos eram a Confederação Argentina e o Império<strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. Se, para o Império, sob a regência a situaçãonão era boa, dada a instabilidade generalizada, a maré eraascendente para a Confederação no Prata, cujo líder, JuanManuel Rosas, conseguira se consolidar em Buenos Airescom o apoio de caudilhos importantes nas províncias. Delegarama ele a exclusividade na condução da política externada Confederação. No Uruguai, Rosas contava com oapoio de Manuel Oribe, segun<strong>do</strong> presidente uruguaio quehavia desentendi<strong>do</strong> com seu antecessor e antigo protetor,Fructuoso Rivera. Inspira<strong>do</strong> nos ideais federativos de Rosase chefe <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> Federal argentino, Oribe, apoia<strong>do</strong> porLavalleja, tinha cria<strong>do</strong> o Parti<strong>do</strong> Nacional uruguaio, e a retóricafederalista de to<strong>do</strong>s eles os manteve próximos aosfarroupilhas até 1838. O que os diferenciava era apenas acor. Vermelho para os federales argentinos, vermelho paraos farroupilhas (que mantinham também o verde/amareloda bandeira imperial, mas, como era impossível encontrare produzir tantas cores na época, o vermelho se generalizou)e branco para o Parti<strong>do</strong> Nacional de Oribe, que atéhoje são chama<strong>do</strong>s de blancos. Os colora<strong>do</strong>s uruguaios deRivera eram alia<strong>do</strong>s naturais <strong>do</strong>s unitários argentinos queusavam o azul. Fructuoso Rivera tentou usar o azul, masnão havia corantes azuis dura<strong>do</strong>uros, e ele acabou fican<strong>do</strong>com o vermelho mesmo.É forçoso confessar que se trata de um herói o leitorque ainda não se perdeu. Até a aquarela era contraditória,a depender <strong>do</strong> lugar. Isso sem contar as rosas e frutosque, juntos ou separa<strong>do</strong>s, faziam uma salada muito poucoprimaveril nas fronteiras meridionais <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. Enquantoo leitor mais tenaz relê o parágrafo acima, recuperemos ofôlego para continuar a história. Ao final de 1838 e iníciode 1839, o que era uma disputa política com rusgas e escaramuçasmilitares se tornou uma guerra civil aberta noUruguai, e as sucessivas reviravoltas de posição de BentoManoel, muito próximo a Rivera, levou a uma crescenterearticulação, liderada por Fructuoso, para conquistar oapoio <strong>do</strong>s fracos e oprimi<strong>do</strong>s contra os grandes e fortes.Os farrapos então mudaram de posição.Os impasses nas tratativas com Rosas culminaramcom o Trata<strong>do</strong> de Cangue, em agosto de 1838, assina<strong>do</strong>com Rivera. Os farroupilhas esperavam, com essa “aliançaofensiva e defensiva”, obter um porto exclusivo no litoraluruguaio para o escoamento de sua produção, o quenunca ocorreu. Rivera tinha, como Rosas, objetivos grandiosos.Este queria recriar o vice-reino <strong>do</strong> Prata, incluin<strong>do</strong>Uruguai, Paraguai e Bolívia sob a hegemonia de Buenos Aires.Aquele, menos ambicioso, queria criar uma confederaçãocontra-hegemônica de Esta<strong>do</strong>s <strong>do</strong> “litoral” para resistir


159O Perío<strong>do</strong> Regencial(1831-1840)à ameaça de Buenos Aires e <strong>do</strong> Império. O projeto quasedeu certo com a inclusão de Corrientes, província antirrosistaque se aliou ao Uruguai e fechou a triangulação emjaneiro de 1842. Pelo trata<strong>do</strong> de Corrientes, aproximam-seos correntinos da República Farroupilha. Tratava-se de umaaliança comercial e militar que prenunciava o encontromultilateral sob a liderança de Rivera em Paysandu, ocorri<strong>do</strong>em outubro de 1842. Bento Gonçalves, presente emPaysandu, achou melhor não assinar formalmente o convêniode aliança geral contra Rosas, o que não evitou queo representante brasileiro em Montevidéu e o representanteargentino no Rio de Janeiro disparassem o alarmede incêndio, motiva<strong>do</strong>r principal da aliança que a ConfederaçãoArgentina entabularia com o Império <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> noRio de Janeiro, em 1843. Era Rosas tentan<strong>do</strong> reagir a essaBandung platina.Não foi necessário. Rosas e Oribe conseguiram enfraquecere isolar tanto Rivera quanto o general Paz, caudilhocorrentino, redimensionan<strong>do</strong> os sonhos <strong>do</strong> presidenteuruguaio que não mais frutificariam. Por quase uma décadaMontevidéu ficou sitiada, como uma Troia americana– metáfora de Alexandre Dumas. De um la<strong>do</strong> o governode Defensa <strong>do</strong>s colora<strong>do</strong>s de Rivera, sustenta<strong>do</strong> basicamentepor batalhões estrangeiros (2/3 da população dacidade) e pelas esquadras francesa e inglesa inimigas deRosas, e, <strong>do</strong> outro, o governo <strong>do</strong> Cerrito, <strong>do</strong>s blancos de Oribe,com o apoio militar expressivo <strong>do</strong>s federales de Rosas.No entanto, nem as nacionalidades eram determinantes:o comandante da esquadra da Confederação Argentinaera um inglês, almirante Brown, e a figura de mais destaqueentre as forças de corso da Defensa, Giuseppe Garibaldi,futuro herói da unificação italiana que havia tenta<strong>do</strong>tirar Bento Gonçalves da cadeia em 1837, além de se envolvercom uma gaúcha casada, Anita, que ele raptara.Outro complica<strong>do</strong>r presente, evidencia<strong>do</strong> nos trabalhosde Keila Grinberg sobre a lei de 1831 e de Guazzellisobre as fronteiras nesse perío<strong>do</strong>, é a questão da escravidão.O Império temia mais que tu<strong>do</strong> medidas que ameaçassema manutenção <strong>do</strong> regime escravista. A Argentinajá havia aboli<strong>do</strong> a escravidão em 1815, durante a luta deSan Martin pela independência. Nem os uruguaios nemos farrapos foram muito longe com o abolicionismo, queera defendi<strong>do</strong> por uma minoria na república rio-grandense.Com o regresso, o tema da escravidão (e o temor <strong>do</strong>haitianismo) se tornou parte essencial <strong>do</strong> debate políticoe arma retórica contra os liberais pelo parti<strong>do</strong> da ordem.A possibilidade real de uma vitória de Caxias contra os farroupilhasfez que o Conselho de Esta<strong>do</strong> fosse consulta<strong>do</strong>sobre a possibilidade de confirmar a alforria <strong>do</strong>s escravosque lutaram ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong>s insurretos como meio de viabilizarum fim negocia<strong>do</strong> para a rebelião. Os conselheirosforam unanimemente contrários à abertura de um precedenteque premiasse com a liberdade os crimes de fugae insurreição.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>160Já Rivera não tinha os mesmos pu<strong>do</strong>res. Em situaçãodesesperada, aboliu a escravidão no Uruguai em 1843,buscan<strong>do</strong> atrair antigos escravos brasileiros para sua tropade infantaria. Esse ponto merece ser enfatiza<strong>do</strong>. Foi justamenteum <strong>do</strong>s motivos que favoreceu o entendimentoentre os farrapos e o Império. A situação se tornou aindamais urgente quan<strong>do</strong> Rosas voltou atrás no acor<strong>do</strong> propostoao Império em 1843 e se negou a ratificá-lo. Rosasacreditava que a guerra já estava ganha para Oribe e que oImpério não era mais necessário na luta contra Rivera. Parao império restava claro que Rosas não era confiável e, paracombatê-lo, era necessário pacificar o sul.Rosas se enganou quanto a proximidade <strong>do</strong> desfechona guerra civil uruguaia. Oribe não era nenhum Ulissese a Troia americana ainda resistiria muitos anos. Os líderesmilitares, nossos vizinhos, estavam muito mais paraAjax e Agamenon que para Odisseu. Seriam necessáriosna década seguinte um Visconde – nasci<strong>do</strong> em Paris – eum Paranhos baiano para abrir as portas da Troia platinacombinan<strong>do</strong> a força com a diplomacia, o nosso cavalo demadeira. Dez anos antes, no entanto, cabia ao Império defender-se.O desgaste com Guerra encaminhava a situaçãomilitar para a conciliação. Os farroupilhas eram constantementefustiga<strong>do</strong>s por Caxias, que aceitava dar passagemaos líderes que quisessem negociar com o Rio de Janeiro,mas se recusava a dar trégua aos rebeldes que, inferioriza<strong>do</strong>snumericamente, evitavam um combate aberto e definitivo.Bento Manoel mais uma vez aderira ao Império apósa maioridade. Ao mesmo tempo, o governo imperial faziavista grossa ao uso feito pelos farroupilhas <strong>do</strong>s portos litorâneosao final <strong>do</strong> conflito, impedi<strong>do</strong>s que estavam defazer comércio <strong>do</strong> charque por Montevidéu, sob cerco. Começaramentão a abastecer com ga<strong>do</strong> a pé os centros urbanoscontrola<strong>do</strong>s pelo Império (Porto Alegre, Pelotas, RioGrande), em um “contraban<strong>do</strong> tolera<strong>do</strong>” que prenunciavao fim <strong>do</strong> conflito. To<strong>do</strong>s esses entendimentos demonstramque o tratamento da<strong>do</strong> aos farroupilhas era muito distintodaquele da<strong>do</strong> aos cabanos e aos balaios. Eram entendimentosentre iguais.É curioso notar que, nas negociações com Caxias,Bento Gonçalves sugeriu o modelo federativo para a organizaçãodas províncias <strong>do</strong> Império <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, garantin<strong>do</strong>que conseguiria a adesão a esse modelo de Corrientes,Entre Rios e <strong>do</strong> Uruguai, incorpora<strong>do</strong>s ao Império. Caxiasnão aceitou. Tratava-se provavelmente de uma quimera,mas que de to<strong>do</strong> mo<strong>do</strong> retornaria ao debate político brasileiroa partir da década de 1860, sen<strong>do</strong> elemento fundamental<strong>do</strong> republicanismo paulista <strong>do</strong>s anos 1870.É razoavelmente consensual na historiografia que apreocupação com a sorte <strong>do</strong>s escravos teve desfecho funesto.Presente no acor<strong>do</strong> de paz, foi apenas uma concessãovazia para acelerar a paz, sem muitos efeitos práticos.Era um enorme problema para o Império, decidir o que


161O Perío<strong>do</strong> Regencial(1831-1840)fazer com os escravos que lutaram ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong>s farrapos.A resolução foi pragmática e sangrenta. Em um <strong>do</strong>s últimosenfrentamentos das tropas <strong>do</strong> general Canabarro com asforças imperiais, a batalha de Porongos, centenas de lanceirosnegros foram extermina<strong>do</strong>s. Canabarro negou até ofim da vida ter facilita<strong>do</strong> a vitória das forças imperiais, mas éinegável que, depois disso, quan<strong>do</strong> já era óbvia a rendição<strong>do</strong>s farrapos, ficou muito mais fácil a inclusão da cláusulade libertação <strong>do</strong>s negros no Acor<strong>do</strong> de Poncho Verde. Ospoucos ex-escravos sobreviventes emigraram para o Uruguai,muitos outros foram reescraviza<strong>do</strong>s.A Farroupilha ou, melhor dizen<strong>do</strong>, o seu fim contribuiudecisivamente para uma virada na ação internacional<strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, que promoveria em poucos anos o retorno <strong>do</strong>intervencionismo platino já então debati<strong>do</strong> abertamenteno Parlamento nacional.Nos anos que se seguiriam, os senhores da guerra,como Chico Preto, o Barão <strong>do</strong> Jaraí, figura importantíssimana luta contra os farrapos ao la<strong>do</strong> de Caxias, assumiramprivadamente o justiçamento militar <strong>do</strong>s blancos, quefaziam constantes razias, as chamadas “califórnias”, em territóriogaúcho. A reação se dava na mesma moeda e contavacom o amplo apoio das elites meridionais brasileiras.Tropas gaúchas atravessavam a fronteira em busca de vingança,ga<strong>do</strong> rouba<strong>do</strong> e de escravos fugi<strong>do</strong>s que haviam seuni<strong>do</strong> aos blancos. O Império que recebia as reclamaçõesda Confederação Argentina nada podia fazer. Não iria maisse indispor com a mais militarizada de suas províncias. Nãoé exagera<strong>do</strong> dizer que, nos anos que se seguiram à Farroupilha,foi a elite gaúcha quem definiu o “interesse nacional”platino.Em 1851, rio-grandenses contribuíram decisivamentepara transformar em intervenção militar brasileira o quejá era feito com frequência privadamente. Um terço dastropas <strong>do</strong> Império e toda a cavalaria estavam sediadas noRio Grande <strong>do</strong> Sul. As medidas consubstanciadas no trata<strong>do</strong>de 1851 entre o <strong>Brasil</strong> e o Uruguai foram amplamentefavoráveis aos gaúchos em to<strong>do</strong>s os senti<strong>do</strong>s, e recolocaramos colora<strong>do</strong>s no poder. O Uruguai voltava a estar sobclara hegemonia <strong>do</strong> Império, como nunca mais estiveradesde sua independência.Mas qual foi o lega<strong>do</strong> geral da regência?Ama<strong>do</strong> Cervo aponta uma reação discursiva no Parlamentoque, já ao final <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> regencial, começa arender frutos. O trauma antitrata<strong>do</strong>s fará que progressivamentediversos trata<strong>do</strong>s comerciais sejam recusa<strong>do</strong>s ounão ratifica<strong>do</strong>s. Essa postura quanto a trata<strong>do</strong>s comerciaispermanecerá até a proclamação da República.Esse autor identifica ainda no Parlamento, após amaioridade, um crescente debate sobre a modernizaçãonacional, cuja facção, que ele chamou de “industrialista”,herdeira direta <strong>do</strong>s antitrata<strong>do</strong>s. Aos poucos o parlamentofaria prevalecer seu ponto de vista, e a Lei Alves Brancode 1844 coroa esta vitória. Em razão <strong>do</strong> uso das fontes


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>162parlamentares e <strong>do</strong>s relatórios anuais <strong>do</strong> Ministério <strong>do</strong>sNegócios Estrangeiros (instituí<strong>do</strong>s por lei em 1831), Cervose esquece de destacar outros pontos que parecemrelevantes. Um exame mais deti<strong>do</strong> o orçamento <strong>do</strong> Ministérioe da rotatividade <strong>do</strong>s ministros revela alguns da<strong>do</strong>sinequívocos.Três ministérios evidenciam melhor que os demais opotencial para o exercício da ação estrangeira <strong>do</strong> Império.Negócios Estrangeiros, Guerra e Marinha. Percebe-se, nasimples contagem <strong>do</strong> número de titulares <strong>do</strong>s cargos, umamaior regularidade a partir <strong>do</strong> “regresso”. Embora não se verifiquenenhum fenômeno como o <strong>do</strong> Barão <strong>do</strong> Rio Branco– que praticamente personificou a pasta <strong>do</strong>s Estrangeirospor cerca de uma década no início da República –,fica claro que a tendência à permanência no cargo pormais que alguns poucos meses deixou de ser uma exceçãoapós a maioridade 104 .O número de ministros por perío<strong>do</strong> é um importanteindicativo da possibilidade de mais ou menos regularidadee estabilidade <strong>do</strong> exercício da política externa, comopode ser visto na tabela a seguir.104 É absolutamente simbólico <strong>do</strong> fim de uma era o famoso Ministério das NoveHoras, o último convoca<strong>do</strong> pelo regente Araújo Lima no dia da maioridade,23 de julho de 1840. Bernar<strong>do</strong> Pereira de Vasconcelos o recordaria depoiscomo as “nove horas mais gloriosas de sua vida”.


163O Perío<strong>do</strong> Regencial(1831-1840)Tabela 1Perío<strong>do</strong>DuraçãoMinistros daGuerraMinistros daMarinhaMinistros <strong>do</strong>sEstrangeirosPrimeiro Reina<strong>do</strong>Da independência em 1822 a abril de18318 anos e 10 meses14 11 14(1 interino) (5 interinos) (2 interinos)Avanço liberal11 12 116 anos e meioDe abril de 1831 a setembro de 1837 (1 interino) (6 interinos) (5 interinos)Regresso conserva<strong>do</strong>rDe setembro de 1837 a fevereiro de1844Consolidação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> imperialDe fevereiro de 1844 a setembro de18536 anos e 4 meses9 anos e 8 meses8 11 6(2 interinos) (3 interinos)6 9 8(2 interinos)Percebe-se, analisan<strong>do</strong> a Tabela 1, que, a partir <strong>do</strong> regresso, a rotatividade, embora aindaalta, vai se amenizan<strong>do</strong>, com a visível diminuição <strong>do</strong> número de ministros ao longo <strong>do</strong> tempo.Desconta<strong>do</strong>s os interinos – uma vez que a própria interinidade já indica uma transitoriedadeintencional no cargo, embora haja algumas poucas exceções excepcionais 105 –, pode-seperceber uma média crescente no tempo de permanência no cargo (ver Tabela 2), à medidaque o Esta<strong>do</strong> vai se organizan<strong>do</strong> melhor e as convulsões políticas causa<strong>do</strong>ras da instabilidadevão sen<strong>do</strong> mitigadas, o que ocorre a partir <strong>do</strong> regresso de 1837.105 Como no caso de Manoel Alves Branco, o segun<strong>do</strong> Marquês de Caravelas, que foi ministro interino <strong>do</strong>s Negócios Estrangeirosde janeiro a outubro de 1835, bem mais tempo que muitos <strong>do</strong>s ministros titulares que lhe foram contemporâneos.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>164Descontar o número de interinos para fazer o cálculo <strong>do</strong> tempo médio de permanênciano cargo de ministros não deve obscurecer o fato de que a própria recorrência de ocupantesinterinos no cargo de Ministro de Esta<strong>do</strong> é fator de instabilidade e volatilidade política. Percebe-seque, <strong>do</strong> total de 121 ministros nas três pastas, 27 (ou seja, 22% <strong>do</strong> total) foram nomea<strong>do</strong>sinterinamente, isto, é de mo<strong>do</strong> provisório. Desses, 20 assumiram nos <strong>do</strong>is primeiros perío<strong>do</strong>s.No perío<strong>do</strong> de maior instabilidade, que foi o perío<strong>do</strong> inicial das regências (1831-37), 12 ministrosinterinos foram nomea<strong>do</strong>s, o que é quase metade <strong>do</strong> total.Tabela 2Tempo médio de permanência* no cargo <strong>do</strong>s:Perío<strong>do</strong>DuraçãoMinistros daGuerraMinistros daMarinhaMinistros <strong>do</strong>sEstrangeirosPrimeiro Reina<strong>do</strong>Da independência em 1822 a abril de 18318 anos e 10meses8,1 meses 16,8 meses 8,4 mesesAvanço liberalDe abril de 1831 a setembro de 18376 anos e meio 7,8 meses 13 meses 12,6 mesesRegresso conserva<strong>do</strong>rDe setembro de 1837 a fevereiro de 1844Consolidação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> imperialDe fevereiro de 1844 a setembro de 1853* Desconta<strong>do</strong>s os ministros interinos.6 anos e 4meses9 anos e 8meses12,6 meses 9,5 meses 12,6 meses19,3 meses 16,6 meses 14,5 meses


165O Perío<strong>do</strong> Regencial(1831-1840)Já nos <strong>do</strong>is perío<strong>do</strong>s finais, apenas sete ministros interinosforam nomea<strong>do</strong>s, o que nos permite supor maiorestabilidade nessas pastas, sobretu<strong>do</strong> no Ministério <strong>do</strong>sEstrangeiros, no qual não foi nomea<strong>do</strong> nenhum ministrointerino após 1837.A maior estabilidade também pode ser caracterizadapela contagem de tempo médio <strong>do</strong>s ocupantes das pastas,que aumenta muito significativamente após a maioridade.No último perío<strong>do</strong> delimita<strong>do</strong>, a permanência no cargo deministro da Guerra é mais <strong>do</strong> que o <strong>do</strong>bro, quase o triplo <strong>do</strong>tempo <strong>do</strong>s antecessores, que tiveram a má sorte de seremnomea<strong>do</strong>s por D. Pedro I ou pelos primeiros regentes. Nocaso da Armada, o perío<strong>do</strong> de consolidação (1844-53) aparececom permanência semelhante ao <strong>do</strong> Primeiro Reina<strong>do</strong>(quase 17 meses), mas, ainda assim, muito superior ao <strong>do</strong>perío<strong>do</strong> <strong>do</strong> avanço liberal (13 meses). Nesse caso específico,a exclusão <strong>do</strong>s ministros interinos (metade <strong>do</strong>s ocupantesda pasta da Marinha nos <strong>do</strong>is primeiros perío<strong>do</strong>s foi nomeadainterinamente) distorceu os números, dan<strong>do</strong> uma falsaimpressão de instabilidade ao <strong>do</strong>brar praticamente o tempode permanência médio nesses momentos iniciais.Caso semelhante é o Ministério <strong>do</strong>s Estrangeiros,que é o que nos interessa mais detidamente. Mesmo desconta<strong>do</strong>sos <strong>do</strong>is interinos <strong>do</strong> Primeiro Reina<strong>do</strong> e os cinco<strong>do</strong> avanço liberal, a permanência <strong>do</strong>s chanceleres no cargoaumentou significativamente, quase <strong>do</strong>bran<strong>do</strong> na segundadécada após a abdicação.Sem descontar os interinos, essa estabilização ficabem mais explícita, e os números se tornam quase lineares,no crescimento, como expresso na Tabela 3. É curioso notarque, nesse senti<strong>do</strong>, a própria expressão “regresso”, comotentativa de retorno à centralização expressa pela Constituiçãode 1824, denota certa mitificação da estabilidade <strong>do</strong>Primeiro Reina<strong>do</strong>, que não tem nenhuma base real se analisadaa rotatividade nesses ministérios. Com base nessesda<strong>do</strong>s, o “regresso” foi mais longe que sua inspiração e, emvez de regressar, avançou significativamente no estabelecimentoda “ordem” estável que almejava.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>166Tabela 3Tempo médio de permanência* no cargo <strong>do</strong>s:Perío<strong>do</strong>DuraçãoMinistros daGuerraMinistros daMarinhaMinistros <strong>do</strong>sEstrangeiroPrimeiro Reina<strong>do</strong>Da independência em 1822 aabril de 1831Avanço liberalDe abril de 1831 a setembrode 1837Regresso conserva<strong>do</strong>rDe setembro de 1837 afevereiro de 1844Consolidação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>imperialDe fevereiro de 1844 asetembro de 18538 anos e 10 meses 7,5 meses 9,1 meses 7,2 meses6 anos e meio 7 meses 6,5 meses 6,9 meses6 anos e 4 meses 9,5 meses 6,9 meses 12,6 meses9 anos e 8 meses 19,3 meses 12,8 meses 14,5 meses* Sem descontar os interinos.Esses cálculos não consideram que não poucas personalidades ocuparam o mesmocargo mais de uma vez. Se cruzarmos os três ministérios, o número de ministros repeti<strong>do</strong>schega a 15%. No Ministério da Marinha, o Visconde de Tramandaí ocupou duas vezes a pastadurante o avanço liberal (por <strong>do</strong>is meses em 1832 e por seis meses em 1834). No perío<strong>do</strong> seguinte,o Visconde de Paranaguá foi igualmente titular da pasta da Armada duas vezes (por umano e cinco meses entre 1841 e 1842 e por mais cinco meses <strong>do</strong> final de 1842 até janeiro de1843). O Visconde de Albuquerque, Holanda Cavalcanti, ocupou essa pasta em 1840 (por oito


167O Perío<strong>do</strong> Regencial(1831-1840)meses) e, depois, por muito mais tempo, de 1844 a 1847.Ainda na Armada, o Visconde de Itaboraí, Joaquim JoséRodrigues Torres, um <strong>do</strong>s mais destaca<strong>do</strong>s líderes saquaremas,ocupou a pasta nada menos que seis vezes, duasdurante o avanço liberal (em um total de <strong>do</strong>is anos e seismeses) e quatro durante o regresso (totalizan<strong>do</strong> <strong>do</strong>is anose nove meses).Essas observações não são meras curiosidades dealmanaque. Lembrar tais exemplos tem o intuito de fortalecero argumento de uma estabilidade que escapava à variávelpersonalista. Não foram novos talentos que surgirame, por isso, por mais tempo lograram permanecer ministros.Eram os mesmos homens, em estruturas institucionaismais robustas, mais capazes de enfrentar a entropia queameaçou a própria existência <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> brasileiro nos anosiniciais da regência. Essa estrutura institucional se alimentavada estabilização política <strong>do</strong> país, ao mesmo tempoque contribuía decisivamente para mantê-la e fortalecê-lamediante a centralização <strong>do</strong> poder e a racionalização <strong>do</strong>aparato estatal, em uma retroalimentação dinâmica. A estabilidadepermitia o fortalecimento das instituições, enquantoinstituições cada vez mais fortes contribuíam parauma maior estabilidade.No caso <strong>do</strong> Ministério das Relações Exteriores, a variávelpersonalista cai por terra com apenas três exemplos.O importantíssimo Visconde <strong>do</strong> Uruguai, considera<strong>do</strong> porboa parte da historiografia um chanceler demiurgo dasnovas diretrizes da Política Externa <strong>Brasil</strong>eira no início <strong>do</strong>sanos 1850, já havia ocupa<strong>do</strong> a pasta, em 1843, por oitomeses. Seis anos depois, em um Esta<strong>do</strong> imperial completamenteconsolida<strong>do</strong>, debelada a última das rebeliões liberais– a Praieira –, o mesmo Paulino José Soares de Sousaficaria 48 meses no cargo de chanceler, seis vezes mais queda primeira vez. O Marquês de Olinda, antigo regente, quefoi interino da pasta por um mês e meio em 1832, ficouum ano no cargo, entre 1848 e 1849. Já o futuro Viscondede Sepetiba, Aureliano Coutinho, interino por três semanas(de 21/12/1834 a 16/1/1835), governaria a política externa<strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> por <strong>do</strong>is anos e meio, entre 1840 e 1843, nogabinete da maioridade, sen<strong>do</strong> o grande reforma<strong>do</strong>r <strong>do</strong>Ministério.Sobre as reformas <strong>do</strong> Ministério, tema sobre o qualCervo e Bueno passam acelerada e displicentemente, convémigualmente dizer algumas palavras. Era consensualque houvesse a necessidade de uma reforma e isso aparecenas fontes ao longo de to<strong>do</strong> o perío<strong>do</strong> regencial, mas aúnica coisa que havia de consensual era a necessidade dareformar. A vontade/capacidade política para fazê-lo nãoapareceria antes da maioridade.A necessidade de reformar as instituições e <strong>do</strong>tá-lasde mais racionalidade administrativa só é percebida claramenteno Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>, se analisarmos comparativamenteos principais decretos e atos legislativos da área <strong>do</strong>Ministério <strong>do</strong>s Negócios Estrangeiros. No Primeiro Reina<strong>do</strong>


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>168e na regência, com exceção das medidas referidas porCervo e Bueno – necessidade de apreciação <strong>do</strong>s trata<strong>do</strong>sna Assembleia de 1831 (que, aliás, era uma lei geral sobreas atribuições <strong>do</strong> regente) e os <strong>do</strong>is estatutos que regulavamas legações e os consula<strong>do</strong>s, aprova<strong>do</strong>s em decretode 1834 –, praticamente to<strong>do</strong>s os demais decretos tinhamrelação com o exercício da política externa propriamentedita. Quase não foram tomadas medidas administrativas.Na lista elaborada pelo embaixa<strong>do</strong>r Álvaro Soaresem Organização e administração <strong>do</strong> Ministério <strong>do</strong>s Estrangeiros,são cita<strong>do</strong>s cinco decretos e oito cartas de lei queele considerou relevantes no perío<strong>do</strong> de 1823 a 1841.Entre esses, apenas o decreto de 13 de novembro de 1823era de fun<strong>do</strong> administrativo, desmembran<strong>do</strong> a Secretariade Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Negócios Estrangeiros da Secretaria de Esta<strong>do</strong><strong>do</strong> Império, dan<strong>do</strong>, nesse sentin<strong>do</strong>, existência própriaà burocracia externa <strong>do</strong> país. Nessa obra, aliás, ao elencaresses principais decretos e leis, nem sequer menciona osestatutos de 1834 106 .No perío<strong>do</strong> que vai de 1842 a 1851, entretanto, praticamenteto<strong>do</strong>s os decretos e leis cita<strong>do</strong>s por essa obra dereferência são de ordem administrativa. Com exceção dacarta de ratificação de dezembro de 1823 107 , a atividade legaloriunda <strong>do</strong> Ministério regulava, basicamente, o próprioMinistério. Parecia que, antes <strong>do</strong> momento de expansãoexterna característico <strong>do</strong> início <strong>do</strong>s anos 1850, o Ministérioprimeiro se voltou para dentro para arrumar “a casa”.Nesse quadro, destaca-se o decreto 135 de 26 defevereiro de 1835, <strong>do</strong> ministro Aureliano Coutinho, queconseguiu autorização legislativa para reformar a Secretaria<strong>do</strong>s Negócios Estrangeiros e, efetivamente assim o fezcom o “Regulamento para Reformar a Secretaria <strong>do</strong>s NegóciosEstrangeiros”. A importância desse regulamento nãopode ser negligenciada. Trata-se <strong>do</strong> primeiro, embora nãoo único, que estabelece claras atribuições aos funcionários,regras, determinações, horários, salários e procedimentos.Nos anos que se seguiram, o texto foi modifica<strong>do</strong> por umdecreto de abril de 1844 pelo ministro <strong>do</strong> gabinete liberal106 Entre os cinco decretos cita<strong>do</strong>s pelo autor, estão: o da necessidade dejuramento de fidelidade ao impera<strong>do</strong>r por portugueses que viessem aresidir no país (janeiro de 1823); o decreto que declarou guerra às ProvínciasUnidas <strong>do</strong> Rio da Prata (dezembro de 1825); o de reconhecimento daindependência por parte de Portugal (abril de 1825); e o de aprovação <strong>do</strong>trata<strong>do</strong> entre <strong>Brasil</strong> e Bélgica (junho de 1835). Entre as cartas de lei aprovadasno perío<strong>do</strong> e selecionadas pelo autor, temos: a ratificação da convenção coma Inglaterra para a abolição <strong>do</strong> tráfico (novembro de 1826) e uma série deratificações de trata<strong>do</strong>s sobre o reconhecimento da independência (com ascidades Hanseáticas e com a Áustria em novembro de 1827; com a Prússia, aDinamarca e os Países Baixos em 1828, um artigo adicional <strong>do</strong> trata<strong>do</strong> coma França em 1829), além da ratificação <strong>do</strong> trata<strong>do</strong> das segundas núpcias <strong>do</strong>impera<strong>do</strong>r com D. Amélia de Leuchtemberg em julho de 1828. (Soares, 1984,pp. 81-2).107 Sobre o trata<strong>do</strong> que regulou o estabelecimento de uma lancha de paquetespara transporte de correspondência oficial e passageiros entre o <strong>Brasil</strong> e aFrança.


169O Perío<strong>do</strong> Regencial(1831-1840)e, mais tarde, complementa<strong>do</strong> pelo Marquês de Olinda,que, ministro em janeiro de 1849, modificou a tabela deemolumentos. Essas medidas, somadas à lei de agosto de1851, na qual o Visconde <strong>do</strong> Uruguai buscou organizar ocorpo diplomático brasileiro, mostravam o ímpeto moderniza<strong>do</strong>rque contagiara os chanceleres brasileiros na décadaque se seguiu à maioridade.A última lei, aliás, se somada ao decreto 520 de junhode 1847, relativiza completamente a importância <strong>do</strong>s<strong>do</strong>is estatutos menciona<strong>do</strong>s por Cervo e Bueno de 1834.Nesse decreto, Saturnino Coutinho, irmão de Aureliano e,naquele ano, ministro <strong>do</strong>s Negócios Estrangeiros, man<strong>do</strong>uexecutar o novo regulamento <strong>do</strong> corpo consular brasileiro.Passa<strong>do</strong>s treze anos e dezenove ministros, as providênciasconsulares mencionadas pelos autores de <strong>História</strong> da políticaexterior <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> pareciam finalmente acontecer.Não deixa de ser verdade que o regulamento foi longamentedebati<strong>do</strong> no Ministério e no Parlamento nos anosfinais da regência, antes de ser finalmente implementa<strong>do</strong>pelo futuro Visconde de Sepetiba, que, desde 1834, já defendiaa necessidade de reforma <strong>do</strong> Ministério sugerin<strong>do</strong> aformação de uma comissão de diplomatas e de deputa<strong>do</strong>snos seguintes termos:Sen<strong>do</strong> de absoluta necessidade dar uma novaorganização às diferentes secretarias de Esta<strong>do</strong>, as quaisse achan<strong>do</strong> ainda hoje no mesmo pé em que forammontadas no tempo da monarquia pura não podemprestar com a precisa regularidade o serviço, que detais repartições se exige <strong>do</strong>s governos representativos:a regência, em nome <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r, há por bem criaruma comissão composta não só <strong>do</strong>s oficiais-maioresdas sobreditas secretarias de Esta<strong>do</strong>, mas também<strong>do</strong>s das câmaras legislativas, cujas luzes e experiênciasadquiridas naquelas repartições, às quais anteriormentepertenceram, muito convém aproveitar, para queproceda com urgência à formação de um projeto deregimento que regule os seus trabalhos de maneiramais vantajosa ao serviço público, e com relaçãoa eles o número, graduação e mais vantagens <strong>do</strong>semprega<strong>do</strong>s 108 .É interessante perceber como o ministro interino de1834 argumenta politicamente a necessidade da reformaao diferenciar as necessidades administrativas distintas damonarquia pura e <strong>do</strong> “governo representativo”, apelan<strong>do</strong>para os sentimentos liberais, tão acirra<strong>do</strong>s então, de seuscolegas deputa<strong>do</strong>s. Apesar da urgência, entretanto, talreforma só se verificaria seis anos depois, após o fim daregência. O fato de essa reforma ser implementada justocom a volta de Aureliano à chancelaria denota a força daconjuntura sobre as ideias. A vontade reformista é a mesma;as conjunturas, muito diversas.Na década de 1830, a comissão proposta por Aurelianose reuniu, mas seus resulta<strong>do</strong>s foram parcos. A suces-108 Discurso sobre o decreto de 12 de junho de 1834 em Códice – Portarias aooficial-maior da Secretaria de Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Negócios Estrangeiros, de 1821 a1848 – Arquivo Histórico <strong>do</strong> Itamaraty.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>170são de ministros – onze, de 1834 até a maioridade – certamentecontribuiu para a dificuldade de se estabelecer umaautoridade minimamente perene para que se implementasseuma reforma ampla, que to<strong>do</strong>s julgavam necessária.Maciel Monteiro, ministro em 1838, ainda chegou aesboçar um projeto de reforma que aparece em seu Relatórioanual à Assembleia, e que previa basicamente trêspontos. O primeiro era a necessidade de estabelecimentode condições mínimas para a admissão <strong>do</strong>s funcionários– o relatório menciona “habilitações literárias e aptidãoexperimental à natureza <strong>do</strong> serviço” –, que permitisse aoministro delegar funções e diretrizes a seus subordina<strong>do</strong>sna própria Corte, como fazia com os chefes de legações noexterior. Esse ponto parece sugerir que havia uma excessivacentralização <strong>do</strong> Ministério na figura <strong>do</strong> ministro em virtudede um funcionalismo reduzi<strong>do</strong> (19 pessoas em 1836,23 em 1840, incluin<strong>do</strong> correios e estafeta), desorganiza<strong>do</strong>e, possivelmente, inepto, de apanigua<strong>do</strong>s políticos semas “aptidões literárias” necessárias ao bom desempenho<strong>do</strong> serviço. Essa excessiva centralização em um Ministériomulticéfalo, que trocava de ministro em média a cada seismeses, certamente favoreceu a entropia na qual entraramas relações exteriores <strong>do</strong> país no perío<strong>do</strong> 109 .109 A própria razão pela qual Maciel Monteiro pode se dar o trabalho de fazeruma proposição de reforma talvez tenha si<strong>do</strong> o fato de ele ter si<strong>do</strong> o ministroque, de 1834 até a posse de Aureliano em 1840, ficou mais tempo no cargo.O segun<strong>do</strong> ponto, igualmente essencial para o exercíciode uma boa política externa, era a necessidade dacriação de um arquivoonde se depositem os necessários <strong>do</strong>cumentos, peçasoficiais, e mais elementos, que sirvam a constituir umasérie de fatos tão necessários à história geral de nossopaís, como mesmo a história diplomática, sen<strong>do</strong> igualmentenecessário que se crie uma biblioteca especial,onde se encontrem todas as produções que o desenvolvimento<strong>do</strong> espírito humano houver de dar luz noque respeita à marcha <strong>do</strong>s governos, e as modificaçõesque porventura se tenham de realizar nas relações dasdiversas associações 110 .Fica difícil imaginar como seria possível lidar comdezenas de países, os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s e demais repúblicasna América, impérios, reinos, duca<strong>do</strong>s e principa<strong>do</strong>s naEuropa, a Santa Sé, a Sublime Porta Otomana, sem um arquivo.Custa crer que não existisse um, ainda que informalmente.A atividade diplomática é simplesmente inexequívelse não se toma nota de cada ato feito no passa<strong>do</strong> paraque ele seja modifica<strong>do</strong> ou simplesmente cumpri<strong>do</strong> nopresente e no futuro. Não é possível que, até o início <strong>do</strong>sSeu um ano e sete meses de gestão (de setembro de 1837 a abril de 1839)contribuem para fazer subir a média de maior estabilização no perío<strong>do</strong> <strong>do</strong>regresso. Parece, e o relatório de 1838 <strong>do</strong> futuro Barão de Itamaracá indicaainda para o entendimento, que reconhecer a existência <strong>do</strong> problema já era,no início da regência de Araújo Lima, o início de sua solução.110 Relatório de Antônio Peregrino Maciel Monteiro de 1838.


anos 1840, os efêmeros ministros contassem simplesmentecom a memória de seus funcionários, que poderiam, emcaso de urgência, não estar disponíveis, <strong>do</strong>entes, em licença,aposenta<strong>do</strong>s, removi<strong>do</strong>s para o exterior, demiti<strong>do</strong>s ou,como humanos que eram, mortos.Em seu terceiro ponto, Maciel Monteiro destacaque o mais importante seria, sobretu<strong>do</strong>, a necessidadede divisão <strong>do</strong> Ministério em assunto ou matéria, que parece,não havia até 1842. Só isso, descontadas as propostasanteriores, já é suficiente para dar dimensão <strong>do</strong> caosque devia ser o trabalho na rua <strong>do</strong> Passeio, 42, durante operío<strong>do</strong> regencial.Essas ideias voltam a aparecer no relatório de 1839,já com Cândi<strong>do</strong> de Oliveira como ministro, e são criticadaspor Aureliano, que fazia parte de grupo político distinto<strong>do</strong> ministro. Em outubro de 1838, a Lei de Meios,que estabelecia o orçamento para o ano financeiro de1838-9, era, em seu art. 32, muito enfática na necessidadede dar “às secretarias de Esta<strong>do</strong> a organização mais adequadaàs exigências <strong>do</strong> serviço público”. Era consensual anecessidade de reformar entre liberais e regressistas, mas,ao que parece, suas brigas políticas, a propósito <strong>do</strong>s detalhesdessa reforma, não deixaram de ser um significativoempecilho que contribuiu para adiá-las até depois damaioridade.171O Perío<strong>do</strong> Regencial(1831-1840)


1734. O Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>(1840-1889)4.1 Governo de GabinetesParlamentarismo às avessas. Os parti<strong>do</strong>s políticos liberal e conserva<strong>do</strong>r.Síntese breve <strong>do</strong>s gabinetes <strong>do</strong> Império. O quinquênio liberal. O gabinete saquarema. A conciliação.A experiência progressista. O decênio conserva<strong>do</strong>r. O retorno <strong>do</strong>s liberais ao poder. O ocaso damonarquia. Conclusões gerais.Parlamentarismo às avessasEm julho de 1840, com o golpe da maioridade, os liberais assumem o poder por umbrevíssimo tempo e, vitoriosos nas escandalosas “eleições <strong>do</strong> cacete”, notoriamente fraudadas,acabam sen<strong>do</strong> excluí<strong>do</strong>s <strong>do</strong> governo por intervenção <strong>do</strong> Poder Modera<strong>do</strong>r, com o retorno <strong>do</strong>sconserva<strong>do</strong>res ao poder. A partir daí, grandes ciclos de hegemonia política se sucedem, nosquais liberais e conserva<strong>do</strong>res se revezam no poder, sempre por indicação <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r. Se ogabinete fosse minoritário na Câmara, esta era dissolvida, e novas eleições convocadas. Nuncahouve caso de eleições convocadas pelo governo serem vencidas pelo parti<strong>do</strong> de oposição.Era o governo que fazia os vitoriosos nas eleições, e não o contrário. Esse fenômeno ficou conheci<strong>do</strong>como “parlamentarismo às avessas”, em que o rei reina e governa.A partir de 1847, para preservar a figura <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r, foi cria<strong>do</strong> o cargo de presidente<strong>do</strong> Conselho de Ministros, que era alguém convida<strong>do</strong> pelo impera<strong>do</strong>r para formar o gabinetede governo e nomear os seis ministros – Guerra, Marinha, Fazenda, Império, Negócios Estrangeirose Justiça –, muitas vezes acumulan<strong>do</strong> ele próprio um <strong>do</strong>s ministérios.É um truísmo dizer que os parti<strong>do</strong>s liberal e conserva<strong>do</strong>r eram iguais, conforme o temasói aparecer na bibliografia 111 . Trata-se de uma simplificação perigosa. Eles tinham semelhanças111 Nestor Duarte, Caio Pra<strong>do</strong> Jr., Nelson Werneck Sodré, entre outros, sustentam a indistinção entre os <strong>do</strong>is parti<strong>do</strong>s.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>174de base ideológica e faziam parte, como ensina IlmarMattos, da matriz <strong>do</strong> conserva<strong>do</strong>rismo. Desejavam a manutençãoda ordem e da monarquia, mas havia clivagensideológicas importantes intra e interpartidárias. José Murilode Carvalho destaca alguns pontos relevantes dediferenciação. Nas duas primeiras décadas, a questão eraquase sempre a disputa entre mais ou menos centralização<strong>do</strong> poder 112 .A ideia de centralização política e de fortalecimentodas instituições imperiais foi a base de formação <strong>do</strong> parti<strong>do</strong>conserva<strong>do</strong>r na década de 1830, com destaque para osmagistra<strong>do</strong>s, burocratas e grandes proprietários da Bahia,<strong>do</strong> Rio de Janeiro e de Pernambuco, lugares de maior cosmopolitismoe, portanto, com maior contingente de indivíduoscom formação superior, sobretu<strong>do</strong> jurídica, herdadada matriz coimbrã. A eclosão de revoltas durante o perío<strong>do</strong>regencial motivou maior preocupação com a ordem nestasprovíncias, onde também havia mais comerciantes degrosso trato com visão menos provinciana e maior concentraçãourbana. No Rio de Janeiro, a combinação entrecosmopolitismo, burocracia, comércio e grande lavoura se112 Bernar<strong>do</strong> Pereira de Vasconcelos e Paulino José Soares de Sousa –magistra<strong>do</strong>s – eram os principais ideólogos a favor <strong>do</strong> fortalecimento <strong>do</strong>Poder Modera<strong>do</strong>r e <strong>do</strong> controle centraliza<strong>do</strong> <strong>do</strong> Judiciário e da polícia,enquanto os latifundiários e comerciantes de São Paulo e Minas Gerais –representa<strong>do</strong>s por Teófilo Ottoni, Nicolau Vergueiro e Francisco de PaulaSousa – defendiam o contrário.realizou de mo<strong>do</strong> pleno com a ascensão da cafeicultura, oque favoreceu o surgimento das principais lideranças saquaremas.Em Pernambuco, por exemplo, o parti<strong>do</strong> conserva<strong>do</strong>rera menos coeso, e muitos latifundiários se vincularamao parti<strong>do</strong> liberal.Os liberais eram mais fortes em Minas Gerais, em SãoPaulo e no Rio Grande <strong>do</strong> Sul, províncias defensoras <strong>do</strong> federalismoque se insurgiram em 1835 e em 1842 conta acentralização em curso. Esses liberais eram, em sua maioria,grandes proprietários. Com o desenvolvimento da cafeiculturaem Minas Gerais, teria início uma disputa interna pelopoder na província, até então fortemente liberal. Assimcomo em São Paulo, a cafeicultura ascendente acabou favorecen<strong>do</strong>o republicanismo pragmático e federalista. Já orepublicanismo gaúcho tem matriz muito distinta e defendea centralização pela influência <strong>do</strong> positivismo.No tema da escravidão, a situação se torna bem maiscomplexa. Parece haver aí um dilema interno no parti<strong>do</strong>conserva<strong>do</strong>r. Os funcionários públicos e os burocratas emgeral defendiam as medidas abolicionistas, especialmenteos <strong>do</strong> norte. Para aprovar a Lei <strong>do</strong> Ventre Livre, o primeiroRio Branco precisou vencer a resistência desses indivíduosno sul, sobretu<strong>do</strong> no Rio de Janeiro, em São Paulo e emMinas Gerais. Os proprietários naturalmente eram contrae votaram com frequência contra o governo, algo que erabem mais difícil para os funcionários <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> fazerem,ainda que tivessem de votar contra os interesses de sua


175O Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>(1840-1889)classe social de origem. Os políticos <strong>do</strong> norte foram maisflexíveis nessa questão que os <strong>do</strong> sul. Já no parti<strong>do</strong> liberal,essas medidas tinham amplo apoio <strong>do</strong>s padres nos anosiniciais <strong>do</strong> Império. Com o desaparecimento da classe clericalda política, os padres foram substituí<strong>do</strong>s por profissionaisliberais, advoga<strong>do</strong>s e jornalistas, mas também pormagistra<strong>do</strong>s que, inicialmente conserva<strong>do</strong>res, acabaram setornan<strong>do</strong> liberais, como é o caso de Nabuco de Araújo e deJosé Antônio Saraiva.No parti<strong>do</strong> liberal, era muito mais coesa e ativa aoposição às medidas reformistas que, por exemplo, derrubaramo gabinete Sousa Dantas quan<strong>do</strong> este tentouaprovar a Lei <strong>do</strong>s Sexagenários em 1884. Os grandes latifundiáriosde Minas Gerais e de São Paulo bloqueavam astentativas reformistas que surgiam <strong>do</strong>s liberais <strong>do</strong> norte ou<strong>do</strong>s profissionais liberais da cidade <strong>do</strong> Rio de Janeiro. Emrazão disso, os liberais estavam sempre na vanguarda depropostas que eram bloqueadas por facções <strong>do</strong> próprioparti<strong>do</strong> na Câmara e só conseguiam ser aprovadas com achegada ao poder <strong>do</strong>s conserva<strong>do</strong>res, mais coesos. Mesmoa Lei <strong>do</strong>s Sexagenários, aprovada na Câmara pelo conselheiroSaraiva, que sucedeu Sousa Dantas, só foi possívelcom o apoio <strong>do</strong>s conserva<strong>do</strong>res. As demais leis abolicionistas,e mesmo de reforma social, foram aprovadas todaspor gabinetes conserva<strong>do</strong>res, como foi o caso <strong>do</strong> longogabinete Rio Branco, no qual explicitamente se buscou –e se conseguiu – esvaziar as propostas <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> liberal.A incorporação da agenda liberal em gabinetes conserva<strong>do</strong>ressempre tinha como consequência o enfraquecimentoda unidade <strong>do</strong> parti<strong>do</strong>.Procederemos então a uma síntese sumária <strong>do</strong>s 32gabinetes imperiais de 1847 a 1889 e trataremos, em seçõesposteriores específicas, <strong>do</strong>s principais temas políticosque galvanizaram os parti<strong>do</strong>s e o Parlamento ao longo <strong>do</strong>Império – a política internacional, as reformas eleitorais, asleis abolicionistas e a ação política <strong>do</strong>s militares.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>176Grandes ciclos de hegemonia partidária no Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>Perío<strong>do</strong> Tempo no poder Parti<strong>do</strong> no poder Presidente <strong>do</strong> Conselho de Ministros1840-41 - de 1 ano Liberal Não existia1841-44 3 anos Conserva<strong>do</strong>r Não existia1844-48 5 anos Liberal1847: Manuel Alves Branco (Visconde de Caravelas)1848: Visconde de Macaé1848: Francisco de Paula Sousa1848-62 14 anos Conserva<strong>do</strong>r*1848: Marquês de Olinda1849: Marquês de Monte Alegre1852: Visconde <strong>do</strong> Itaboraí1853: Honório H. Carneiro Leão (Marquês <strong>do</strong> Paraná)*1856: Marquês de Caxias1857: Marquês de Olinda1858: Antonio Paulino Limpo de Abreu (Visconde de Abaeté)1859: Ângelo Muniz da Silva Ferraz (Barão de Uruguaiana)1861: Marquês de Caxias1862-68 6 anos Progressista1862: Zacarias de Góis e Vasconcelos1863: Marquês de Olinda1864: Zacarias de Góis e Vasconcelos1864: Francisco José Furta<strong>do</strong>1865: Marquês de Olinda1866: Zacarias de Góis e Vasconcelos1868-78 10 anos Conserva<strong>do</strong>r1868: Visconde <strong>do</strong> Itaboraí1870: Marquês de São Vicente1871: Visconde <strong>do</strong> Rio Branco1875: Duque de Caxias(continua)


177O Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>(1840-1889)Grandes ciclos de hegemonia partidária no Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>Perío<strong>do</strong> Tempo no poder Parti<strong>do</strong> no poder Presidente <strong>do</strong> Conselho de Ministros1878-85 7 anos Liberal1878: Visconde <strong>do</strong> Sinimbu1880: José Antônio Saraiva1882: Martinho Campos1882: Marquês de Paranaguá1883: Lafayette Rodrigues Pereira1884: Manuel de Sousa Dantas1885: José Antônio Saraiva1885-89 4 anos Conserva<strong>do</strong>r1885: Barão de Cotegipe1888: João Alfre<strong>do</strong>1889 - de 1 ano Liberal 1889: Visconde de Ouro Preto(conclusão)* Entre 1853 e 1857, vigorou o gabinete de conciliação, com a presença de ministros liberais.Os anos finais <strong>do</strong> regresso (1841-44)Ficaram os liberais menos de um ano no poder após o golpe da maioridade. As fraudadas“eleições <strong>do</strong> cacete”, que deram maioria absoluta ao parti<strong>do</strong> liberal, tiveram o efeitocontrário ao pretendi<strong>do</strong> e acarretaram o retorno <strong>do</strong>s conserva<strong>do</strong>res ao poder. As maracutaiaseleitorais foram exageradas até para os padrões da época, provocan<strong>do</strong> uma cisão entre osliberais e os áulicos, que sugeriram uma dissolução <strong>do</strong> gabinete. A transição <strong>do</strong>s áulicos parao la<strong>do</strong> conserva<strong>do</strong>r é evidenciada pela permanência de Aureliano na pasta <strong>do</strong>s Estrangeiros,em que implementou significativa reforma, ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> a influência determinante na formação<strong>do</strong> novo gabinete, inexistin<strong>do</strong> então ainda a figura <strong>do</strong> presidente <strong>do</strong> Conselho de Ministros.Uma vez restaura<strong>do</strong>s no governo, os conserva<strong>do</strong>res continuaram o trabalho <strong>do</strong>“regresso”, desmontan<strong>do</strong> boa parte <strong>do</strong> que restava das medidas liberalizantes <strong>do</strong> avanço


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>178liberal, apesar <strong>do</strong> que acredita a historia<strong>do</strong>ra paulista MiriamDolhnikoff 113 , na contramão de toda a historiografiasobre o perío<strong>do</strong>. O Conselho de Esta<strong>do</strong>, extinto em 1834,é restaura<strong>do</strong> e, em dezembro de 1841, é aprovada a polêmicalei de Reforma <strong>do</strong> Código Criminal, que centraliza osistema judiciário e a polícia. To<strong>do</strong>s os juízes passam a sernomea<strong>do</strong>s pelo ministro da Justiça, e o juiz de paz, que seguiasen<strong>do</strong> eleito, tem parte significativa de seus poderestransferida para os delega<strong>do</strong>s de polícia, cria<strong>do</strong>s pela lei.Apesar de essas leis terem si<strong>do</strong> aprovadas pela Câmaraanterior, os liberais de São Paulo e de Minas Gerais,temen<strong>do</strong> que os conserva<strong>do</strong>res jamais deixassem o poder,pegam em armas para voltar ao governo. Ao contrário daFarroupilha, deixavam clara sua lealdade ao impera<strong>do</strong>r. Rebelavam-seem nome da autonomia, de certo mo<strong>do</strong> antecipan<strong>do</strong>o que ocorreria novamente em São Paulo noventaanos depois. Derrota<strong>do</strong>s em Santa Luzia, passaram os liberaisde to<strong>do</strong> o <strong>Brasil</strong>, por metonímia, a ser chama<strong>do</strong>s de “luzias”,momento vergonhoso em que se insurgiram contra ogoverno e foram derrota<strong>do</strong>s.Enquanto isso, o impera<strong>do</strong>r ia amadurecen<strong>do</strong> e, aospoucos, toman<strong>do</strong> conhecimento <strong>do</strong> governo e de suastarefas. Na maior parte da a<strong>do</strong>lescência, acabou sen<strong>do</strong>113 Miriam defende que foram mantidas as estruturas federativas <strong>do</strong> AtoAdicional e que o Império era uma grande negociação com os interessesregionais (Dolhnikoff, 2005).guia<strong>do</strong> pelo grupo palaciano, com destaque para o mor<strong>do</strong>moPaulo Barbosa e para Aureliano Coutinho, chama<strong>do</strong>s“os áulicos”, ou “facção áulica” 114 . Ao completar 18 anos,anistia os liberais e convida o parti<strong>do</strong> – ainda que não osinsurretos – para formar o governo. Seu gesto evidenciavacrescente autonomia decisória e uso <strong>do</strong> Poder Modera<strong>do</strong>rpara equilibrar o peso <strong>do</strong>s parti<strong>do</strong>s. A anistia e o retorno<strong>do</strong>s liberais ao poder eram indícios de moderação e tranquilizavaa oposição liberal quanto à possibilidade de umaditadura que eternizasse o parti<strong>do</strong> conserva<strong>do</strong>r no poder.Os liberais permaneceriam por cinco anos no poder.O quinquênio liberal (1844-1848)Uma vez no poder, os liberais não revogam nenhumadas leis <strong>do</strong> regresso e, ao contrário, ajudam com o objetivode favorecer as medidas jurídicas e militares que facilitama tarefa <strong>do</strong>s governantes. A continuação da repressãoà Farroupilha e sua submissão final ocorrem no governoliberal, que negocia a rendição, a reincorporação <strong>do</strong>s oficiaisfarrapos ao Exército imperial e o aumento <strong>do</strong>s impos-114 Assim como se haviam indisposto com o gabinete da maioridade, quatroanos depois a indisposição seria com Honório Hermeto Carneiro Leão,líder <strong>do</strong>s conserva<strong>do</strong>res no gabinete que tentou demitir o irmão deAureliano, Saturnino de Sousa, inspetor da alfândega que havia hostiliza<strong>do</strong>publicamente o governo. O impera<strong>do</strong>r se recusou e Honório se demitiu.


179O Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>(1840-1889)tos sobre o charque estrangeiro. É também no primeirogabinete liberal <strong>do</strong> quinquênio que o ministro da Fazenda,Manuel Alves Branco, aprova a legislação protecionista que<strong>do</strong>bra as tarifas médias para os produtos importa<strong>do</strong>s (de15% para 30%), aumentan<strong>do</strong> consideravelmente a arrecadação<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Imperial.Além <strong>do</strong> aumento da arrecadação, seu principalobjetivo, a medida tem o intuito de fomentar as manufaturas.Cria o conceito de “similar nacional” e protege-asmediante a a<strong>do</strong>ção de uma tarifa de até 60% para produtosproduzi<strong>do</strong>s no <strong>Brasil</strong> ou que pudessem ter análogosfáceis. Também busca desonerar insumos e máquinasimportadas para as manufaturas. Trata-se de um marcoimportante da ação autônoma <strong>do</strong> Império, pois é considera<strong>do</strong>o marco <strong>do</strong> fim <strong>do</strong>s trata<strong>do</strong>s desiguais e da vitória parlamentar,segun<strong>do</strong> Cervo e Bueno, da facção industrialista<strong>do</strong> Parlamento brasileiro. O espírito de 1844, tão sauda<strong>do</strong>por esse autor como símbolo de nossa maturidade política,seria o antialvará de 1785, de D. Maria. O país estavalivre das amarras internacionais para seu desenvolvimento.No entanto, sempre segun<strong>do</strong> Cervo e Bueno, o espírito de1844 teria vida curta, e o apogeu da cafeicultura coincidiriapoliticamente com a acomodação das elites imperiais notema da industrialização. Medidas de livre-cambismo reapareceriamnos anos 1850, dificultan<strong>do</strong> o processo industrializanteque ficou restrito a iniciativas pioneiras <strong>do</strong> Barãode Mauá e a outros poucos corajosos bate<strong>do</strong>res <strong>do</strong> futuro.Na ação externa, o <strong>Brasil</strong> reconheceria o governo paraguaiona missão de Pimenta Bueno (1844), indican<strong>do</strong> oinício <strong>do</strong> afastamento da política de apaziguamento comRosas, que Cervo e Bueno incluem no perío<strong>do</strong> de “imobilismo”.Era o início <strong>do</strong> fim <strong>do</strong> imobilismo que a conclusão daFarroupilha marcaria.Foi ainda durante o quinquênio liberal que se estabeleceua figura <strong>do</strong> presidente <strong>do</strong> Conselho de Ministrospelo decreto 523 de julho de 1847. O primeiro presidente<strong>do</strong> Conselho de Ministros foi justamente Manuel AlvesBranco, o futuro Visconde de Caravelas, que já havia ocupa<strong>do</strong>praticamente todas as pastas nos ministérios desde operío<strong>do</strong> regencial e se destacara, na pasta da Fazenda, coma reforma tributária de 1844, que leva seu nome 115 .A criação <strong>do</strong> cargo de presidente <strong>do</strong> Conselho deMinistros se tornaria, a partir daí, um “fusível” político queblindava o impera<strong>do</strong>r das crises políticas frequentes. Caíao Ministério, caía o parti<strong>do</strong>, dissolvia-se o Parlamento, maspoupava-se o monarca. Análogo ao primeiro-ministroinglês, o cargo de presidente tinha a vantagem de nãoresponder exclusivamente ao Parlamento, mas sobretu-115 Apesar disso, to<strong>do</strong> esse perío<strong>do</strong> ainda foi marca<strong>do</strong> por forte influência <strong>do</strong>sáulicos, ainda que cada vez menor. Paulo Barbosa, depois de ser vítimade tentativa de assassinato, solicita ao impera<strong>do</strong>r nomeação para cargodiplomático na Rússia, para onde segue em 1846. Aureliano seguiria comopresidente da província <strong>do</strong> Rio de Janeiro até 1848, quan<strong>do</strong> seria afasta<strong>do</strong>pelo retorno <strong>do</strong>s conserva<strong>do</strong>res ao poder.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>180<strong>do</strong> ao monarca, que o nomeava e que podia dissolver oParlamento fazen<strong>do</strong> uso <strong>do</strong> Poder Modera<strong>do</strong>r. Ainda quemuitos presidentes <strong>do</strong> Conselho de Ministros tenham si<strong>do</strong>derruba<strong>do</strong>s por votos de desconfiança parlamentar, nenhumjamais perdeu as eleições parlamentares convocadasapós a dissolução, ainda que, ao final <strong>do</strong> Império, asmaiorias tenham fica<strong>do</strong> cada vez mais apertadas.O gabinete saquarema (1848-53)O segun<strong>do</strong> mais longo gabinete da história da monarquiafoi <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> pelo grupo mais forte <strong>do</strong> parti<strong>do</strong>conserva<strong>do</strong>r, os saquaremas, liga<strong>do</strong>s sobretu<strong>do</strong> à cafeiculturafluminense. Os três ministros <strong>do</strong> Rio de Janeiro – Paulino,Eusébio e Torres 116 – compuseram a chamada trindadesaquarema, símbolo desse gabinete e dessa hegemoniacafeicultora, latifundiária e conserva<strong>do</strong>ra.Começam seu governo reprimin<strong>do</strong> duramente a Revoltada Praia, feita pelos liberais de Pernambuco em 1848.Tal repressão motivou um ataque radical <strong>do</strong> panfletárioFrancisco de Sales Torres Homem, que, no Libelo <strong>do</strong> Povo,acusa os conserva<strong>do</strong>res e a monarquia de opressão, sempoupar o impera<strong>do</strong>r e sua dinastia, retrata<strong>do</strong>s como tira-116 Curioso que <strong>do</strong>is deles nasceram fora <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, embora tenham vin<strong>do</strong> morarno Rio de Janeiro. Eusébio nasceu em Angola, e Paulino em Paris.nos. Usou o pseudônimo de Timandro, mas to<strong>do</strong>s sabiamquem era. Nada lhe aconteceu. A liberdade de opinião foimantida e, anos mais tarde, Torres Homem seria ministro<strong>do</strong> governo <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r que ofendera e lhe pediria perdão.Era sinal de que se haviam alcança<strong>do</strong> a estabilidade ea plena legitimidade <strong>do</strong> regime monárquico e <strong>do</strong> sistemabipartidário vigente. A Praieira foi a última grande rebeliãoprovincial, encerran<strong>do</strong> o ciclo de instabilidades iniciadasno perío<strong>do</strong> regencial.Os saquaremas podiam então se dedicar a implementaras grandes medidas necessárias à modernização<strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. Em 1850, são aprovadas três das medidas maisimportantes da história da monarquia: o fim definitivo <strong>do</strong>tráfico negreiro, com a aprovação da Lei Eusébio de Queirós;a aprovação da Lei de Terras dias depois; e a promulgação<strong>do</strong> Código Comercial. Foi ainda reformada a GuardaNacional, encerran<strong>do</strong> o caráter eletivo <strong>do</strong>s coronéis,que passaram a ser nomea<strong>do</strong>s pelo ministro da Justiça.Com a autonomia local perdida, os coronéis se tornaraminstrumentos de manipulação eleitoral <strong>do</strong> governo, cujostatus da patente se gru<strong>do</strong>u de tal forma aos chefes políticose latifundiários locais que, mesmo depois da GuardaNacional enfraquecida e extinta, ainda seriam chama<strong>do</strong>sde coronel o latifundiário e o chefe político <strong>do</strong> município,e de “coronelismo” o fenômeno político <strong>do</strong> man<strong>do</strong>nismolocal.


181O Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>(1840-1889)O fim <strong>do</strong> tráfico vinha sen<strong>do</strong> adia<strong>do</strong> desde o perío<strong>do</strong>joanino. Depois <strong>do</strong> sucesso inicial da Lei Feijó, de 1831,essa lei acabou sen<strong>do</strong> superada pelos interesses <strong>do</strong>s latifundiáriosda cafeicultura fluminense, que chegaram aopoder em 1837. A lei virou “lei para inglês ver”. Os motivospelos quais o mesmo grupo, de volta ao poder em 1848,decidiu novamente impor o fim <strong>do</strong> tráfico, agora definitivamentereprimin<strong>do</strong> com vontade e vigor os traficantes ecompra<strong>do</strong>res de 1850 a 1856, são controversos.Há os que defendem – José Murilo de Carvalho e LeslieBethell, por exemplo – o peso determinante da pressão inglesae <strong>do</strong> Bill Aberdeen. Em 1849, navios ingleses chegarama trocar tiros com fortalezas brasileiras no litoral norte fluminense,em afronta direta à soberania <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. Outros, comoCervo e Bueno, preferem, no entanto, dar caráter soberanistaà decisão, enfatizan<strong>do</strong> que as pressões inglesas não fizeramsenão aumentar exponencialmente o tráfico e que, se ogoverno decidiu aboli-lo, o fez por motivos exclusivamenteinternos quan<strong>do</strong> assim o decidiu. Esses motivos seriam deordem econômica (endividamento <strong>do</strong>s grandes senhorescom os traficantes), de saúde pública (epidemia de febreamarela de 1850, cuja origem se atribuía aos escravos desembarca<strong>do</strong>s),humanitários (risíveis, já que o mesmo grupopolítico havia por décadas defendi<strong>do</strong> abertamente o tráfico,enfatizan<strong>do</strong> até seu caráter cristão e civilizacional) e de segurançapública (aumento da concentração de escravos naprovíncia fluminense, tão perto da Corte poderia engendrarrevoltas como a <strong>do</strong>s Malês, em 1835, e a de Vassouras em1838). Não por acaso a lei tomou o nome <strong>do</strong> ministro daJustiça, Eusébio de Queirós. Enfatizava o governo razões internaspara não ter o ônus de ser considera<strong>do</strong> subservientea uma potência europeia. É esse o cerne da defesa que Eusébiofará da lei em discurso no Parlamento um ano depois,fonte que é base <strong>do</strong> argumento de Cervo e Bueno.A Lei de Terras e o Código Comercial (1850) podemser considera<strong>do</strong>s des<strong>do</strong>bramentos <strong>do</strong> fim <strong>do</strong> tráfico. Noprimeiro caso, cumpria estimular os imigrantes que substituiriamos escravos no futuro sem que fosse da<strong>do</strong> a estes oacesso a terras <strong>do</strong> governo, prática comum desde o tempodas sesmarias. Criar um merca<strong>do</strong> de terras que só fossemacessíveis por compra manteria o caráter excludente <strong>do</strong>sistema fundiário brasileiro. A lei, que demorou oito anospara ser aprovada – vinha sen<strong>do</strong> discutida desde 1842 –,não pegou. O imposto sobre a terra não foi aprova<strong>do</strong>, ea venda das terras públicas e o cadastramento das propriedadesnão interessavam à elite fundiária, que resistiuo quanto pôde à sua aplicação. No segun<strong>do</strong> caso, era essencialregulamentar as atividades comerciais florescentesno <strong>Brasil</strong> de então. A entrada maciça de capitais inglesesna década de 1850, a expansão da lavoura cafeeira e a liberação<strong>do</strong>s extraordinários recursos até então aplica<strong>do</strong>sno infame comércio fomentaram o que ficou conheci<strong>do</strong>como surto industrial, sobretu<strong>do</strong> na Corte e nos arre<strong>do</strong>res.O Império ia se tornan<strong>do</strong> capitalista.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>182Na ação externa, o ministro <strong>do</strong>s Negócios Estrangeiros,Paulino José Soares de Sousa – o futuro Visconde<strong>do</strong> Uruguai –, uma vez ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> concluída a controvérsiacom a Inglaterra, pôde se dedicar a retomar o protagonismo,reafirman<strong>do</strong> a posição <strong>do</strong> Império brasileirono Prata, enfraquecida desde o fim da Cisplatina haviamais de vinte anos. Esse absenteísmo fora aproveita<strong>do</strong>pelo caudilho buenairense que se tornara hegemôniconão apenas na Argentina, mas igualmente no Uruguai,apoian<strong>do</strong> Manuel Oribe, que atacava os interesses brasileiros– isto é, gaúchos – no Uruguai. Há os que defendemque, desde o fim da Farroupilha (1845), o RioGrande <strong>do</strong> Sul sequestrara a política externa brasileirapara o Prata. De fato, não era conveniente enfrentar umnovo levante no Rio Grande <strong>do</strong> Sul, província sui generisonde os chefes políticos e latifundiários eram tambémchefes militares, e onde se concentravam a quase totalidadede nossa cavalaria e grande parte de nosso Exército.É mister defender o interesse gaúcho, que se tornarao interesse nacional. Foram feitas duas intervençõesentre 1851 e 1852 na esteira <strong>do</strong>s conflitos de fronteiraentre Uribe e os chefes gaúchos irrita<strong>do</strong>s com as califórnias,que não respeitavam a fronteira meridional e oga<strong>do</strong> <strong>do</strong>s estancieiros. Na primeira, destituímos Uribe;na segunda, apoiamos a destituição de Rosas, venci<strong>do</strong>por Urquiza, que liderou a coalizão oposicionista formadapor outros chefes, liberais e dissidentes federalistasna Batalha de Monte Caseros (1852), apoia<strong>do</strong>s indiretamentepor tropas brasileiras.Havia aprendi<strong>do</strong> o <strong>Brasil</strong> a atuar de mo<strong>do</strong> bem-sucedi<strong>do</strong>na região platina. Os fracassos da Cisplatina, nadécada de 1820, e <strong>do</strong>s ingleses e franceses, na década de1840, demonstraram a conveniência de estabelecer aliançascom as facções locais antes de intervir militarmente.A diplomacia vinha antes <strong>do</strong>s canhões, fazen<strong>do</strong> com queo Império fosse bem-sucedi<strong>do</strong> onde as potências europeiashaviam fracassa<strong>do</strong>. Destituí<strong>do</strong>s Oribe e Rosas, tinhainício uma fase de hegemonia brasileira na região, favorecidapor uma década de instabilidade e de fragmentaçãopolítica argentina. O imobilismo regencial brasileiro <strong>do</strong>sanos 1830 daria lugar ao imobilismo argentino <strong>do</strong>s anos1850.Para dar suporte financeiro a essa hegemonia, PaulinoJosé Soares de Sousa e o representante brasileiro noUruguai em 1851, José Maria da Silva Paranhos, o futuroVisconde <strong>do</strong> Rio Branco, implementarão uma cooperaçãofinanceira com os colora<strong>do</strong>s novos <strong>do</strong>nos <strong>do</strong> poder naRepública Oriental. Era a diplomacia <strong>do</strong> patacão, em queo <strong>Brasil</strong> assume a postura inédita e singular de cre<strong>do</strong>r internacional.Generoso e leniente, manteve-se por décadascre<strong>do</strong>r de um deve<strong>do</strong>r muito pouco afeito a saldar suasdívidas, evidencian<strong>do</strong> o caráter político desses empréstimosque contribuíram para a falência <strong>do</strong> Barão de Mauádécadas depois. Singular também foi a concessão <strong>do</strong> título


183O Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>(1840-1889)de nobreza a Paulino em 1853. Curiosamente, o título escolhi<strong>do</strong>foi Visconde <strong>do</strong> Uruguai, nome pelo qual passariaà história e que não deixa nenhuma margem de dúvidassobre a hegemonia brasileira conquistada em sua gestão.Convém destacar ainda o apoio de Paulino aos esforçosde mais de uma década <strong>do</strong> envia<strong>do</strong> brasileiro às repúblicas<strong>do</strong> pacífico, Duarte da Ponte Ribeiro, que finalmenteconseguiu a aceitação <strong>do</strong> princípio <strong>do</strong> uti possidetis, quevoltaria a nortear, a partir daí, nossas negociações lindeirascom os vizinhos. É marco relevante dessa negociação otrata<strong>do</strong>, afinal ratifica<strong>do</strong> no Parlamento, com o governo peruano(1851), que usava direitos de navegação como moedade troca para a aceitação de termos fronteiriços maisfavoráveis. O <strong>Brasil</strong> iniciava, sob Paulino, um movimentoimportante de articulação com os vizinhos amazônicospara retardar e evitar a presença imperialista norte-americanana Amazônia, que vinha exercen<strong>do</strong> pressão no paísdesde 1848, em plena vigência <strong>do</strong> Destino Manifesto, sobJames Polk. A tática protelatória de Paulino deu certo, e,com os conflitos entre o norte e o sul que desembocariamna Guerra Civil (1861-65), o <strong>Brasil</strong> deixa de ser alvo na listade prioridades <strong>do</strong> expansionismo estadunidense.A conciliação e seu colapso (1853-1857)Marca<strong>do</strong> quase que exclusivamente por sucessos,o gabinete saquarema se esgota com a demissão de trêsministros, que alegaram cansaço. Estavam de fato cansa<strong>do</strong>sde um impera<strong>do</strong>r que José Murilo de Carvalho chamade “máquina de governar”, aten<strong>do</strong>-se a to<strong>do</strong>s os detalhes,len<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s os jornais, interpelan<strong>do</strong> ministros, visitan<strong>do</strong>repartições públicas. Deram lugar a um líder conserva<strong>do</strong>rinova<strong>do</strong>r, que conquista a simpatia <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r com aproposta de melhorar a representatividade eleitoral, aproximan<strong>do</strong>os representantes <strong>do</strong> povo. Pela primeira vez, háum esboço de projeto de governo por parte <strong>do</strong> gabinetepara o impera<strong>do</strong>r, e o próprio gabinete era inova<strong>do</strong>r. Incorporavam-seno ministério líderes liberais – a conciliação 117– e jovens proeminentes <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> conserva<strong>do</strong>r, como éo caso de José Maria da Silva Paranhos no Ministério daMarinha.Foram implementa<strong>do</strong>s uma reforma <strong>do</strong> ensino, osEstatutos da Estrada de Ferro Central e o voto distrital, chama<strong>do</strong>de Lei <strong>do</strong>s Círculos. O ministro da Justiça, José ThomazNabuco de Araújo, fortaleceu o poder <strong>do</strong> Judiciáriocomplementan<strong>do</strong>, em 1854, a lei de dezembro de 1841,que criara o delega<strong>do</strong> de polícia. A Lei <strong>do</strong>s Círculos de 1855permitiu uma brecha que deu 17% da Câmara aos liberais,117 A conciliação era defendida na imprensa por Torres Homem, o Timandrode 1849, e no Parlamento por Nabuco de Araújo. O impera<strong>do</strong>r gostou daideia e acreditou que o ministro brasileiro em Montevidéu, Honório HermetoCarneiro Leão, que não se havia curva<strong>do</strong> aos áulicos em 1844, era a pessoacerta para implementá-la.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>184resulta<strong>do</strong> muito melhor que o único deputa<strong>do</strong> eleito na legislaturade 1850 – Sousa Franco –, que cresceria para 20%na legislatura seguinte (eleita em 1860), quan<strong>do</strong> então jáhavia morri<strong>do</strong> o Marquês <strong>do</strong> Paraná (setembro de 1856),sem que pudesse ver o resulta<strong>do</strong> da lei que fez aprovar.A Lei <strong>do</strong>s Círculos havia si<strong>do</strong> alterada pelo gabineteque lhe sucedeu em virtude das críticas que sofreu aotrazer para o Parlamento deputa<strong>do</strong>s ignorantes, incapazesde discutir as grandes questões nacionais. Aos 20% liberaissomava-se a cada dia um número maior de conserva<strong>do</strong>resdissidentes, o que dificultava crescentemente a ação <strong>do</strong>governo conserva<strong>do</strong>r que sucedeu Paraná com Caxias eseus sucessores. O chama<strong>do</strong> “renascer liberal” tornava crescentementecomplexas as articulações para a formação degabinetes, suceden<strong>do</strong> cinco deles em pouco menos deseis anos (setembro de 1856 a maio de 1862). São gabinetesinstáveis, marca<strong>do</strong>s por crise financeira e incapazesde implementar agendas importantes, como a propostade Código Civil encomendada ao jurista Teixeira de Freitaspelo ministro da Justiça, Nabuco de Araújo.A conciliação é frequentemente considerada ummarco da estabilidade política <strong>do</strong> Império; poderia terdura<strong>do</strong> mais não fosse a morte prematura de seu líder, oMarquês <strong>do</strong> Paraná. Exemplo dessa estabilidade foi que ospresidentes de províncias nomea<strong>do</strong>s pelo governo conserva<strong>do</strong>rvitorioso que saíra e pelo gabinete da conciliaçãoque se iniciava empreenderam iniciativas administrativase urbanísticas que só eram possíveis em tempos de paz etranquilidade. Separou-se a província de São Paulo, a partemais meridional crian<strong>do</strong> a província <strong>do</strong> Paraná, que dariao título ao chefe <strong>do</strong> gabinete 118 . Foi nomea<strong>do</strong> presidenteda província recém-criada o chefe liberal Zacarias de Góise Vasconcelos, que estabeleceu a capital em Curitiba, parairritação <strong>do</strong>s habitantes de Paranaguá, então centro econômicoda província recém-criada.Foram também mudadas a capital <strong>do</strong> Piauí, aindaem 1852, e a de Sergipe em 1855: de Oeiras para Teresina,batizada em nome da imperatriz, e de São Cristóvão paraAracaju, duas cidades surgidas <strong>do</strong> nada, por ordem <strong>do</strong> governo.Em Aracaju, nos primeiros meses, o presidente daprovíncia <strong>do</strong>rmiu em uma casa de palha e a assembleia sereunia sob um cajueiro, segun<strong>do</strong> conta Calmon (1963).O renascer liberal e a experiência progressista(1860-1868)As eleições de 1860 assistiram ao retorno <strong>do</strong> líderliberal da época regencial, Teófilo Ottoni, que se havia retira<strong>do</strong>da vida política <strong>do</strong>ze anos antes. Fez campanha intensaem Minas Gerais e no Rio de Janeiro, onde conseguiua eleição de correligionários da imprensa carioca, como118 Visconde em 1852 e marquês em 1854.


185O Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>(1840-1889)Saldanha Marinho e Francisco Otaviano. Foram eleitos 25deputa<strong>do</strong>s liberais com grande alarde. Era um quinto daCâmara, mas se considerava uma grande vitória, um renascimento.Esses liberais se aliaram a grupos conserva<strong>do</strong>resmodera<strong>do</strong>s, simpáticos à ideia de conciliação, e derrubaramo presidente conserva<strong>do</strong>r, Marquês de Caxias, em1862, já que o impera<strong>do</strong>r não concor<strong>do</strong>u com a dissoluçãoda Câmara.Era uma aliança frágil e instável, chamada de LigaProgressista, liderada por Zacarias de Góis e Vasconcelos,chama<strong>do</strong> pelo impera<strong>do</strong>r para formar o gabinete por sero líder da liga. Seu gabinete durou seis dias, mas voltarianovamente em 1864 e em 1866, agora embasa<strong>do</strong> pelainstitucionalização da liga em parti<strong>do</strong> progressista, quesubstituía o antigo parti<strong>do</strong> liberal, com a adesão de conserva<strong>do</strong>resmodera<strong>do</strong>s, como o antigo regente, Marquêsde Olinda. Ainda assim serão mais seis gabinetes em seisanos (1862-68) – <strong>do</strong>is de Olinda e três de Zacarias –, evidencian<strong>do</strong>a fragilidade da aliança, sobretu<strong>do</strong> em temposde enorme turbulência internacional.Apesar da instabilidade, esse também foi o tempoda retomada das discussões públicas sobre o papel <strong>do</strong>impera<strong>do</strong>r, sobretu<strong>do</strong> <strong>do</strong> Poder Modera<strong>do</strong>r. José Murilode Carvalho defende que as ideias <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> regencialde autonomia provincial, <strong>do</strong>s limites <strong>do</strong> Poder Modera<strong>do</strong>re de reformas eleitorais iniciadas com a conciliação ganharamo campo das ideias, <strong>do</strong>s jornais e <strong>do</strong> Parlamento.O próprio Zacarias era defensor da fórmula de Thiers, deque o “rei reina mas não governa” 119 , a que o Visconde <strong>do</strong>Uruguai respondeu defenden<strong>do</strong> a Constituição: “O rei reinaE governa.” Argumenta Carvalho que a eclosão da Guerra<strong>do</strong> Paraguai, com o agravamento das questões internacionaisplatinas, impediria a continuação <strong>do</strong> debate político.No plano internacional, os conflitos se sucediam. AQuestão Christie levou à ruptura de relações diplomáticasentre o <strong>Brasil</strong> e a Inglaterra (1863-65), e o crescente ativismoparaguaio envenenaria as relações bilaterais com Assunção,sobretu<strong>do</strong> após a morte de Carlos López (1862),que legou a seu filho, Solano, o coman<strong>do</strong> <strong>do</strong> país. Novaintervenção militar brasileira no Uruguai, dessa vez comrespal<strong>do</strong> argentino, serviu de motivo para que problemasfronteiriços não resolvi<strong>do</strong>s com os paraguaios levassemà invasão paraguaia, não provocada, <strong>do</strong> Mato Grosso etambém das províncias argentinas de Corrientes e EntreRíos na virada de 1864 para 1865. Acreditava Solano Lópezque seria capaz de forçar uma guerra rápida contrao <strong>Brasil</strong> que lhe daria condições favoráveis na balançade poder platina. A guerra civil argentina e a luta política119 VASCONCELOS, Zacarias de Góis. Da natureza e limites <strong>do</strong> Poder Modera<strong>do</strong>r(1860). Símbolo desse debate acirra<strong>do</strong> entre liberais e conserva<strong>do</strong>res foi ainauguração da estátua equestre de D. Pedro I na praça da Constituição,hoje praça Tiradentes, que foi objeto de protestos e de oposição liberalna imprensa em março de 1862. Teófilo Ottoni a chamou de “mentira embronze”. Para os liberais, era o símbolo <strong>do</strong> regresso.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>186uruguaia tornariam esses países meros especta<strong>do</strong>res.Enganou-se o dita<strong>do</strong>r paraguaio quan<strong>do</strong> a diplomaciabrasileira demonstrou ser capaz de costurar a TrípliceAliança em março de 1865 para lhe fazer frente. Apesar dainferioridade em to<strong>do</strong>s os quesitos, López levou a guerra– e seu povo – até seu limite, aniquilan<strong>do</strong> uma geraçãointeira de paraguaios. Foi morto na Batalha de Cerro Coráem 1 o de março 1870, mas conseguiu sobreviver ao parti<strong>do</strong>progressista, vítima da guerra que se esfacelou quan<strong>do</strong>o impera<strong>do</strong>r precisou escolher, em julho de 1868, Zacariase seus ministros ou Caxias, figura expoente <strong>do</strong> parti<strong>do</strong>conserva<strong>do</strong>r, ministro da Guerra e comandante em chefedas forças aliadas. Escolheu Caxias, saiu Zacarias e, convulsionou-seo sistema político <strong>do</strong> Império.O parti<strong>do</strong> progressista racha. Os liberais revolta<strong>do</strong>sfazem manifestos acusan<strong>do</strong> o impera<strong>do</strong>r de tirania. Os liberaisradicais exigiam “reforma ou revolução”. Em 1870,aparecia no Rio de Janeiro o Manifesto Republicano, queganharia força em São Paulo, em Minas Gerais e também,já em uma feição positivista, no Rio Grande <strong>do</strong> Sul. Não foicapaz, entretanto, de se articular nacionalmente, e muitosde seus propositores de primeira hora acabaram voltan<strong>do</strong>às fileiras <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> liberal quan<strong>do</strong> este voltou aopoder em 1878, como foi o caso de Lafayette RodriguesPereira, presidente <strong>do</strong> Conselho de Ministros em 1883,governo sob o qual iniciaria a questão militar. Para viabilizarema República, os republicanos fragmenta<strong>do</strong>s teriamde se aliar aos militares, uni<strong>do</strong>s contra o governo liberalna década de 1880.Para grande parte <strong>do</strong>s autores, a Guerra <strong>do</strong> Paraguaié o grande divisor de águas que marca o início <strong>do</strong> declínio<strong>do</strong> regime monárquico, abrin<strong>do</strong> a ferida das grandes questões– militar, republicana e abolicionista – que levariam aseu colapso.O decênio conserva<strong>do</strong>r (1868-1878)A nomeação <strong>do</strong> Visconde <strong>do</strong> Itaboraí para assumir ogoverno serviu para dar tranquilidade política à conduçãoda guerra, com um gabinete <strong>do</strong> mesmo parti<strong>do</strong> <strong>do</strong> comandantemilitar. Os liberais diziam que era a supremacia<strong>do</strong> militar sobre o civil, e a conflagração política que adveiodaí é conhecida – manifestos e programas liberais e radicaisaté o advento <strong>do</strong> republicanismo. Se a queda <strong>do</strong> gabineteZacarias provocou a tormenta política, por outro la<strong>do</strong> fezmuito bem à condução <strong>do</strong> conflito que afinal se encerrariaem março de 1870, já com Caxias afasta<strong>do</strong> <strong>do</strong> teatro deoperações, apesar <strong>do</strong> pedi<strong>do</strong> <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r. Não se consideravahomem para dar captura a Solano López. Concluída aguerra externa, é deflagrada nova guerra interna em tornodas medidas abolicionistas suscitadas pela Coroa à revelia<strong>do</strong> Parlamento, que indispôs o chefe de gabinete, Itaboraí,com a Coroa em 1870. O impera<strong>do</strong>r nomeia Pimenta Bueno,o jurista autor das cinco propostas-base para a Lei <strong>do</strong>


187O Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>(1840-1889)Ventre Livre, mas este não dura seis meses no cargo. Coubeao Visconde <strong>do</strong> Rio Branco a tarefa de aprovar a Lei <strong>do</strong> VentreLivre. Consegue formar o gabinete em 7 de março e só passaa lei em 28 de setembro de 1871, sob a primeira regência daprincesa Isabel 120 .Cheio de prestígio junto à Coroa, conseguiu implementaruma série de reformas modernizantes com o objetivode esvaziar a agenda liberal. Foi o mais longo gabinete<strong>do</strong> Império (quatro anos e quatro meses), mas que assistiuà divisão <strong>do</strong> próprio parti<strong>do</strong>, agravada pela questão religiosa(1874), que levou à prisão <strong>do</strong>s bispos de Olinda e Belém,e pela crise financeira por causa da falência <strong>do</strong> BancoMauá, que levou Rio Branco a pedir demissão em junhode 1875, sen<strong>do</strong> substituí<strong>do</strong> por Caxias. Este tentou apaziguaro ânimo <strong>do</strong>s conserva<strong>do</strong>res e comutou a pena <strong>do</strong>sbispos presos e implementou a reforma eleitoral, que eraexigência <strong>do</strong>s liberais que reivindicavam sufrágio universal.Como, para isso, seria necessário reformar a Constituição,algo com o qual o impera<strong>do</strong>r sempre implicou, o que acabousen<strong>do</strong> aprova<strong>do</strong> em 1875 foi simplesmente a Lei <strong>do</strong>Terço, que incorporava as minorias nas eleições das futuraslegislaturas.O impera<strong>do</strong>r decidiu afinal trazer de volta os liberaisao poder para implementar a reforma eleitoral por meio <strong>do</strong>voto direto. O debate mais intenso era se seria ou não necessáriauma revisão constitucional. Os conserva<strong>do</strong>res poderiamter feito tal revisão, mas, como a ideia era liberal, oimpera<strong>do</strong>r julgou por bem nomear o líder liberal alagoano,Visconde de Sinimbu, provocan<strong>do</strong>, em 1878, reclamações<strong>do</strong>s conserva<strong>do</strong>res análogas, ainda que menos intensas,àquelas <strong>do</strong>s liberais em 1868. Os conserva<strong>do</strong>res então boicotariamas eleições convocadas pelo novo governo. Era ofim <strong>do</strong> decênio conserva<strong>do</strong>r.O retorno <strong>do</strong>s liberais ao poder (1878-1885)É o mais longo perío<strong>do</strong> <strong>do</strong>s liberais no poder.Os sete gabinetes em sete anos representam também umexcelente exemplo da grande dificuldade que tinham osliberais para encontrar coesão e se manter uni<strong>do</strong>s uma vezque estavam no governo. O primeiro gabinete <strong>do</strong> Viscondede Sinimbu ainda durou algum tempo. Tinha uma Câmaraunanimemente liberal e, a seu la<strong>do</strong>, o prestígio <strong>do</strong>Marechal Osório 121 , eleito sena<strong>do</strong>r pelo Rio Grande <strong>do</strong> Sul(1877) e acolhi<strong>do</strong> no Rio de Janeiro com grande júbilo, mas120 Pedro Calmon conta que o impera<strong>do</strong>r viajou para a Europa em maio e disseque, se não se aprovasse a lei que libertava os filhos das escravas, preferianão voltar.121 O herói da guerra <strong>do</strong> Paraguai foi nomea<strong>do</strong> ministro da Guerra pelo novogabinete, mas faleceu em 1879.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>188o gabinete não foi capaz de passar no Sena<strong>do</strong> a miniconstituintepara fazer a reforma eleitoral. Cisões internas <strong>do</strong>sliberais sob o caráter da reforma eleitoral vieram à tona,como a concessão <strong>do</strong> voto aos não católicos, exigida peloliberal Gaspar Silveira Martins. Os mortos na repressão àRevolta <strong>do</strong> Vintém (1880) contra o aumento das tarifas debonde na Corte derrubaram afinal o aumento, mas tambémo gabinete Sinimbu, já que o impera<strong>do</strong>r lhe recusou adissolução da assembleia.O sucessor, José Antônio Saraiva, desistiu da miniconstituintee decidiu proceder à reforma eleitoral por viade lei ordinária e a fez aprovar em 1881. Estabeleciam-se aeleição direta, o censo literário – estavam excluí<strong>do</strong>s os analfabetos–, mas não o sufrágio universal. Decidiu o ministroSaraiva, em nome da correção, dissolver a assembleia unânimepara testar a nova lei e recusou qualquer intervençãono processo eleitoral 122 , o que permitiu efetivamente a participaçãoda oposição, com apenas 61% de liberais eleitospara a Câmara. Era a menor maioria da história <strong>do</strong> Império,o que complicaria ainda mais a estabilidade <strong>do</strong>s gabinetesseguintes, que tinham de se haver com a oposição122 Criou uma comissão mista bipartidária para a regulamentação da lei,substituiu vários presidentes de província e se recusou a indicar candidatos<strong>do</strong> governo. Chegou a apresentar sua demissão ao impera<strong>do</strong>r para que aeleição fosse feita por outro governo, mas o impera<strong>do</strong>r recusou. Pela primeiravez, <strong>do</strong>is ministros – Homem de Melo e Pedro Luís – foram derrota<strong>do</strong>s emsuas províncias.parlamentar e com o fogo amigo das dissidências liberais.Os ministros seguintes mostrariam a dificuldade de governardescola<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Parlamento.O ministro Martinho Campos, sucessor de Saraiva,não durou seis meses, sen<strong>do</strong> derruba<strong>do</strong> por dissidentes <strong>do</strong>próprio parti<strong>do</strong> liberal. O Visconde de Paranaguá não chegoua um ano, vitima<strong>do</strong> pela crescente propaganda abolicionistae pela crise financeira por controvérsia relativa aodireito das províncias sobre os impostos de importação.Foi igualmente derruba<strong>do</strong> por moção de desconfiançana qual dissidentes exalta<strong>do</strong>s <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> liberal votaramcontra o ministro <strong>do</strong> próprio parti<strong>do</strong>. Lafayette RodriguesPereira foi quem teve de lidar com a questão militar, transbordamentocada vez mais tenso <strong>do</strong> movimento abolicionista.O assassinato <strong>do</strong> jornalista agita<strong>do</strong>r Apulco de Castro,alveja<strong>do</strong> e apunhala<strong>do</strong> por dezenas de solda<strong>do</strong>s e oficiais<strong>do</strong> Exército quan<strong>do</strong> estava sob proteção da polícia, derrubouo gabinete dito fraco. Durara um ano e treze dias.O caso teve ainda consequências negativas parao impera<strong>do</strong>r, acusa<strong>do</strong> de levar longe demais a liberdadede imprensa, que permitia que as Forças Armadas fossemofendidas por qualquer gazeta leviana. Era a culpabilizaçãoda vítima. Tratava-se igualmente de um prenúncio da históriarepublicana quan<strong>do</strong> os militares chegassem ao poder.Sousa Dantas sucedeu Lafayette Pereira e tambémfoi derruba<strong>do</strong> por dissidentes de seu parti<strong>do</strong> em São Pauloe em Minas Gerais, que se recusaram a aprovar a Lei <strong>do</strong>s


189O Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>(1840-1889)Sexagenários, proposta pelos próprios liberais. JoaquimNabuco havia acaba<strong>do</strong> de publicar O abolicionismo, e algumasprovíncias <strong>do</strong> norte – Ceará e Amazonas – aboliamunilateralmente a escravidão, mas ainda havia resistênciano sul. Dissolvida a Câmara pelo governo, a situação ficouainda mais indefinida. Foram 60 deputa<strong>do</strong>s liberais (54%),55 conserva<strong>do</strong>res (44%) e, pela primeira vez, 3 deputa<strong>do</strong>srepublicanos. Os escravistas, até no parti<strong>do</strong> liberal, radicalizavamsua posição e não aceitavam mais nenhuma medidaque não previsse indenização. Para eles, a propriedadeprivada era sagrada. O governo caía, novamente, derruba<strong>do</strong>pela desconfiança de uma Câmara de maioria liberal.Foi preciso um antigo membro <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> conserva<strong>do</strong>r,José Antônio Saraiva, que, em aliança com os conserva<strong>do</strong>res,aprovou na Câmara a Lei <strong>do</strong>s Sexagenários apenaspara se exonerar três meses depois de assumir, sem indicarsucessor. Era patente a incapacidade <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> liberal deseguir governan<strong>do</strong>.Os anos finais <strong>do</strong> Império (1885-1889)A influência <strong>do</strong> boulangismo francês e a intervençãocrescente <strong>do</strong>s militares positivistas na vida política brasileiraantagonizavam os políticos “casacas”, considera<strong>do</strong>spelos militares “moles” e incapazes de governar comme ilfaut. A punição de Sena Madureira, veterano da Guerra <strong>do</strong>Paraguai, professor de esgrima <strong>do</strong> paço, por pronunciarpublicamente seu abolicionismo pela imprensa, sem autorização<strong>do</strong> governo, catalisou a insatisfação castrense em1883. O retorno <strong>do</strong>s conserva<strong>do</strong>res ao governo pareciadesanuviar a questão. Deo<strong>do</strong>ro, o marechal que defenderaSena Madureira e acabou se tornan<strong>do</strong> líder da insatisfaçãomilitar, era visto como o novo Caxias, que respeitaria seuscorreligionários de novo no poder com o Barão de Cotegipe,mas a trégua dura pouco, com a insubordinação noPiauí <strong>do</strong> coronel Cunha Matos, que, puni<strong>do</strong> por uma razãomenor, se defende na imprensa atacan<strong>do</strong> o ministro e édefendi<strong>do</strong> pelo Marechal Câmara, o Visconde de Pelotasno Sena<strong>do</strong>. A honra militar acabou unin<strong>do</strong> esses <strong>do</strong>is marechais,Pelotas e Deo<strong>do</strong>ro. O governo acabou recuan<strong>do</strong> ecancelou as penas disciplinares impostas a Cunha Matose a Sena Madureira. Os militares se organizaram no ClubeMilitar, funda<strong>do</strong> em junho de 1887. Os meses que se seguiramforam de agitação abolicionista por toda parte. NaCorte, os meetings abolicionistas não raro acabavam dispersa<strong>do</strong>spelo chefe de polícia, Coelho Bastos.A demissão de Cotegipe por uma questão menor,em defesa <strong>do</strong> chefe de polícia em março de 1888, tambémenvolveu agitação militar nas ruas da Corte – protesto deaspirantes da Escola Naval contra a polícia que maltrataraum oficial da armada à paisana. A princesa pediu a cabeçade Coelho Bastos, e Cotegipe se retirou. Com sua saída,abre-se o caminho para que a princesa assuma a liderança<strong>do</strong> movimento abolicionista pessoalmente, encaminhan<strong>do</strong>


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>190o projeto de abolição completa por meio <strong>do</strong> novo gabinete,lidera<strong>do</strong> por João Alfre<strong>do</strong>. O movimento ganha as ruas.A princesa estimula alforrias privadas anteriores à lei, queocorrem apoteoticamente em vários bairros da Corte e emtoda a cidade de Petrópolis em 1º de abril de 1888. Em 4 demaio, convi<strong>do</strong>u para almoçar com ela no Palácio Imperialcatorze africanos foragi<strong>do</strong>s. Os escravocratas <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> republicanode São Paulo vão inutilmente se aliar à ala maisreacionária <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> conserva<strong>do</strong>r para tentar conseguira indenização.A lei, um primor de síntese, em um único artigo,aboliu a escravidão depois de sucessivas obstruções dabancada fluminense entre 8 e 13 de maio. No Sena<strong>do</strong>, foiaprovada no dia 13, sen<strong>do</strong> o Barão de Cotegipe o único avotar contra, vaticinan<strong>do</strong> que aquele ato seria a prévia daRepública. O abolicionista José <strong>do</strong> Patrocínio, comovi<strong>do</strong>,queria beijar os pés da redentora, esquecen<strong>do</strong> seu republicanismo.A abolição da escravidão afinal feita sem indenizaçãoalijou a monarquia <strong>do</strong> grupo político de grandes latifundiáriosescravistas que lhe dera sustentação desde sempre. Háos que defendem que, apesar <strong>do</strong> abolicionismo declara<strong>do</strong><strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r e <strong>do</strong>s esforços que fez pelo abolicionismogradual após a Guerra <strong>do</strong> Paraguai, a monarquia e o escravismoeram duas faces da mesma moeda. Não era possívelque uma sobrevivesse sem a outra. Joaquim Nabuco afirmaque “a princesa era popular, mas as classes fogem delae a lavoura está republicana”. De fato, sucediam-se novosclubes e jornais republicanos em enfrentamento com a“guarda negra”, batalhões de ex-escravos dispostos a dar avida pela princesa e pela monarquia. Em 28 de setembro,a princesa Isabel recebia de presente <strong>do</strong> papa, pelas mãos<strong>do</strong> núncio apostólico, a rosa de ouro, com a presença e aoração de D. Antônio Mace<strong>do</strong> da Costa, bispo preso em1874 para comprovar que o clero não faria nenhuma objeçãoa um terceiro reina<strong>do</strong>.No ano <strong>do</strong> centenário da Revolução Francesa, os republicanossaíam às ruas cantan<strong>do</strong> a Marselhesa, e a economiae as finanças <strong>do</strong> país iam muito bem. Os conserva<strong>do</strong>ressentiam a pressão das ruas e da opinião públicapor mais reformas, sobretu<strong>do</strong> pelo federalismo, defendi<strong>do</strong>no Parlamento pelo deputa<strong>do</strong> Rui Barbosa. O impera<strong>do</strong>rnegou aos conserva<strong>do</strong>res a dissolução <strong>do</strong> Parlamento, eJoão Alfre<strong>do</strong> demitiu-se, favorecen<strong>do</strong> o retorno <strong>do</strong>s liberaisao poder.Afonso Celso de Assis Figueire<strong>do</strong>, o Visconde deOuro Preto, assumiu o ministério em junho, recusan<strong>do</strong> adar a pasta a Rui Barbosa, que defendia o federalismo noparti<strong>do</strong> liberal. Nomeou Silveira Martins para presidenteda província <strong>do</strong> Rio Grande <strong>do</strong> Sul, acreditan<strong>do</strong> apaziguaro republicanismo positivista no lugar onde era maisaguerri<strong>do</strong>. Seu programa econômico, beneficia<strong>do</strong> pelasexcelentes condições financeiras – alcançou-se a paridadecom a libra estabelecida em lei em 1846 –, favoreceu


191O Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>(1840-1889)a liberalidade creditícia para a lavoura <strong>do</strong> gabinete. Apeli<strong>do</strong>uo programa de crédito fácil e o auxílio à agriculturade “inutilização da República”. Era, em menor escala, oemissionismo, que Rui Barbosa replicaria muitas vezesmais com o encilhamento.A viagem <strong>do</strong> Conde d’Eu ao norte foi acompanhadapelo republicano Silva Jardim, que quase foi lincha<strong>do</strong> naBahia pela “guarda negra” de Salva<strong>do</strong>r, que dispersou suaescassa plateia. Em 14 de julho, talvez para comemorar adata, um alucina<strong>do</strong> de nacionalidade portuguesa resolveudisparar revólver contra a carruagem imperial que saía <strong>do</strong>teatro, sem maiores consequências imediatas, mas comenormes consequências simbólicas.O apartamento <strong>do</strong>s militares <strong>do</strong> governo era total.Por ocasião da visita <strong>do</strong>s marinheiros chilenos homenagea<strong>do</strong>spelo impera<strong>do</strong>r com o baile da ilha fiscal, o ClubeMilitar aderiu ao republicanismo de Benjamin Constant,que já vinha visitan<strong>do</strong> frequentemente o Marechal Deo<strong>do</strong>ro.Os republicanos civis perceberam, na insatisfaçãomilitar, oportunidade de ouro e, lidera<strong>do</strong>s por QuintinoBocaiuva, passaram igualmente a visitar Deo<strong>do</strong>ro, queconcor<strong>do</strong>u em lhes dar presença em seu futuro ministério,que a<strong>do</strong>taria a forma republicana. Marcada a insurreiçãopara o dia 17, foi antecipada por Quintino e pelomajor Sólon, que insurgiram as tropas na madrugada <strong>do</strong>dia 15 de novembro com o boato de que o governo removeriapara as províncias os batalhões da Corte. O boatotinha credibilidade, pois se sabia das simpatias de OuroPreto pela Guarda Nacional.Avisa<strong>do</strong>, o ministro fugiu para o Ministério da Marinhae depois para o da Guerra, onde foi sitia<strong>do</strong>. Enviou umtelegrama ao impera<strong>do</strong>r informan<strong>do</strong> que não tinha escolha,a não ser pedir demissão. Instou o ajudante de generalFloriano Peixoto a resistir, mas este se recusou a abrir fogocontra brasileiros, decretan<strong>do</strong>, assim, a impossibilidade deresistência. A Câmara municipal declarava instituída a República,já que o Marechal Deo<strong>do</strong>ro, ao depor o gabinete,não tocara na questão <strong>do</strong> regime e só se decidiu definitivamentepela República à noite, quan<strong>do</strong> foi informa<strong>do</strong> deque o possível substituto de Ouro Preto seria um desafetopolítico seu. O major Sólon levou pessoalmente a carta dedeposição ao impera<strong>do</strong>r, que partiu <strong>do</strong> país no dia 17 efoi recebi<strong>do</strong> em Portugal por seu sobrinho, o rei D. Carlos.D. Teresa Cristina morreu dias depois, e o impera<strong>do</strong>r, semrecursos, viveu ainda mais <strong>do</strong>is anos da ajuda de amigosem hotéis sem glamour em Paris, para não criar embaraçosnas relações com o <strong>Brasil</strong> para o governo de Portugal, ondelhe foi ofereci<strong>do</strong> asilo.Parti<strong>do</strong>s políticos e governabilidadeEm relação ao Poder Modera<strong>do</strong>r e ao papel <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>rno jogo político partidário no Império, percebemseciclos de reafirmação e questionamento. Enfraqueci<strong>do</strong>


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>192e praticamente extinto durante o perío<strong>do</strong> regencial, voltaa ter peso durante o regresso e é efetivamente usa<strong>do</strong>no arbitramento <strong>do</strong>s conflitos intraelites, sobretu<strong>do</strong> interpartidários.Para José Murilo de Carvalho, esse foi um <strong>do</strong>sgrandes fracassos políticos da regência, a incapacidade deangariar legitimidade para arbitrar os conflitos intraelites,causa de grande parte das rebeliões regenciais. O impera<strong>do</strong>rtinha essa legitimidade e a usava em prol da estabilidadee da alternância <strong>do</strong> poder, como se viu na reabilitaçãoliberal de 1844.Uma década depois, no entanto, a questão <strong>do</strong> uso<strong>do</strong> Poder Modera<strong>do</strong>r passa a ser questionada. Discussõessobre suas atribuições no Parlamento, na imprensa e até emmeetings e em reuniões públicas dão o tom <strong>do</strong> renascimentoliberal e da formação da Liga Progressista. De um la<strong>do</strong>,Teófilo Ottoni e Zacarias de Góis e Vasconcelos, chefe <strong>do</strong>sprogressistas que publicou o mais importante livro questionan<strong>do</strong>os limites <strong>do</strong> Poder Modera<strong>do</strong>r (1860); de outro, oVisconde <strong>do</strong> Uruguai, herdeiro político de Bernar<strong>do</strong> Pereirade Vasconcelos, também magistra<strong>do</strong> e autor de obras comoEnsaio sobre o direito administrativo (1862) e Estu<strong>do</strong>s práticossobre a administração das províncias no <strong>Brasil</strong> (1865), que defendiao Poder Modera<strong>do</strong>r em sua acepção constitucional.Carvalho considera que a Guerra <strong>do</strong> Paraguai interrompeu adiscussão, retomada com radicalismo na esteira da dispensade Zacarias em 1868, considerada intervenção indevida editatorial <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r no processo político.Assim, se no início <strong>do</strong> Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong> o uso equilibra<strong>do</strong><strong>do</strong> Poder Modera<strong>do</strong>r foi visto como legítimo e fontede estabilização política, após a Guerra <strong>do</strong> Paraguai vai sequestionan<strong>do</strong> mais e mais seu uso, além de outras característicaspolíticas da monarquia, como a centralização.Os republicanos defenderão a bandeira federalista, queserá plenamente vitoriosa com a Constituição de 1891 <strong>do</strong>perío<strong>do</strong> republicano.Ainda Carvalho, quantifican<strong>do</strong> os gabinetes, informaque os liberais formaram a maioria <strong>do</strong>s gabinetes,mas não se mostraram capazes de permanecer no poder.Totalizaram, nas quase cinco décadas <strong>do</strong> Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>,dezenove anos de governo, somada aí a experiênciaprogressista. Já os conserva<strong>do</strong>res permaneceram maisde trinta anos na condução <strong>do</strong>s negócios <strong>do</strong> país, comum número inferior de gabinetes. Na média, um gabineteliberal durava um ano, enquanto a média conserva<strong>do</strong>raalcançava quase o <strong>do</strong>bro, com o pico no gabinete RioBranco, que chegou a quatro anos. As dissensões internas<strong>do</strong> parti<strong>do</strong> liberal impediam que as reformas que o parti<strong>do</strong>propunha fossem feitas; boa parte das quais acabavasen<strong>do</strong> implementada pelo parti<strong>do</strong> conserva<strong>do</strong>r, que,apesar de não possuir unidade partidária nacional, eramais coeso e tinha maior presença de magistra<strong>do</strong>s e defuncionários públicos, dependentes <strong>do</strong> governo para amanutenção de seus empregos e/ou privilégios.


193O Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>(1840-1889)Essas características intra e interpartidárias explicammelhor a frase “Nada mais saquarema <strong>do</strong> que um luziaquan<strong>do</strong> chega ao poder” <strong>do</strong> que a tese simplista da indistinçãopartidária. Durante boa parte <strong>do</strong> Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>,faria mais senti<strong>do</strong> dizer, ao contrário, que não havia nadatão liberal quanto um governo <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> conserva<strong>do</strong>r.4.2 As reformas eleitorais no ImpérioAs contradições <strong>do</strong> sistema eleitoral brasileiro.O parlamentarismo às avessas.O Gabinete de Conciliação e a Lei <strong>do</strong>s Círculos.O Renascer Liberal e a 2 a Lei <strong>do</strong>s Círculos.A Lei <strong>do</strong> Terçoe a oposição parlamentar. O papel <strong>do</strong> Impera<strong>do</strong>r e daImprensa. A Lei Saraiva e o retrocesso democrático.A ideia de <strong>do</strong>tar o povo de representatividade é inerenteao liberalismo e esteve no cerne das preocupaçõespolíticas ao longo <strong>do</strong> Império no <strong>Brasil</strong>. Ainda que o Perío<strong>do</strong>monárquico tenha si<strong>do</strong> indiscutivelmente um perío<strong>do</strong>elitista e excludente, a busca constante por melhorá-lo,reformá-lo e <strong>do</strong>tar ao povo melhores meios de representaçãonão pode ser ignorada e foi o cerne <strong>do</strong> debate parlamentarao longo de to<strong>do</strong> o Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>. Ignorava-se,ou fingia-se ignorar a contradição natural que era tais debatesocorrerem no seio de uma sociedade escravista quemanteve, ao longo de toda sua existência, o voto censitário.Como a história frequentemente nos ensina, às vezeso óbvio é o mais difícil de ser enxerga<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> estamosmergulha<strong>do</strong>s nele e os debates abolicionistas e sufragistassó ganharão força no bojo da Guerra <strong>do</strong> Paraguai.A divisão da população em cidadãos ativos e inativospresente na constituição de 1824 vinculava a cidadaniaplena à renda. Num sistema eleitoral indireto eram


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>194necessários 100 mil-réis para votar e 200 mil-réis anuaispara ser eleitor. Os valores <strong>do</strong>bravam sucessivamente paraos candidatos a deputa<strong>do</strong> e sena<strong>do</strong>r. O esta<strong>do</strong> confessionalainda exigia a fé católica para exercício da cidadania ea questão <strong>do</strong> voto para os não católicos defendida peloVisconde <strong>do</strong> Rio Branco – foi uma controvérsia parlamentarséria.Outra característica que dificultava a presença daoposição no parlamento era voto era em lista. No caso daprovíncia <strong>do</strong> Rio de Janeiro que tinha direito a <strong>do</strong>ze deputa<strong>do</strong>s,cada eleitor votava em <strong>do</strong>ze deputa<strong>do</strong>s, numalista fechada pelo parti<strong>do</strong>. O sistema se tornava completamentehegemônico. Se um parti<strong>do</strong> ganhava, levava tu<strong>do</strong>,sistema análogo ao que elege o presidente <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>sUni<strong>do</strong>s por meio de delega<strong>do</strong>s na maior parte <strong>do</strong>s esta<strong>do</strong>snorte-americanos.O parti<strong>do</strong> no governo então tinha praticamente garantidaa hegemônica completa da câmara <strong>do</strong>s deputa<strong>do</strong>s.Durante o quinquênio liberal (1844-1848), 99% <strong>do</strong>s deputa<strong>do</strong>seram liberais. Com a chegada <strong>do</strong>s conserva<strong>do</strong>res aopoder em 1848, 100% <strong>do</strong>s deputa<strong>do</strong>s daquela legislaturaeram conserva<strong>do</strong>res. Não existia oposição representada ea troca de parti<strong>do</strong> no poder dependia de alguma crise políticae, sobretu<strong>do</strong>, da atuação <strong>do</strong> poder modera<strong>do</strong>r. Era ofamoso “Parlamentarismo às Avessas” no qual, o monarca,ao trocar o gabinete e dissolver o parlamento independentementeda maioria parlamentar, determinava, semchance de equívoco, o resulta<strong>do</strong> das eleições fraudadasque se seguiriam. As eleições ditas “<strong>do</strong> cacete” logo apóso golpe da maioridade foram a apenas a mais escandalosadas que recorreram ao uso da fraude pró-governo. Em certosenti<strong>do</strong>, todas as eleições <strong>do</strong> império eram “<strong>do</strong> cacete”.Urgia moralizar o sistema e trazer a oposição para o debateparlamentar mas isso só poderia ser feito pelo parti<strong>do</strong> queestivesse no governo, que, por óbvio, tinha poucos incentivospara tanto.Coube a iniciativa ao Marquês <strong>do</strong> Paraná, HonórioHermeto Carneiro Leão que inovou nos anos 1850 aoconvidar jovens conserva<strong>do</strong>res – José Maria Paranhos – eliberais para compor um inédito ministério misto. Encerradasas rebeliões regenciais, debelada à praieira, anistia<strong>do</strong>sos liberais de 1842, pacifica<strong>do</strong> o debate político,consolidada a monarquia petrina e sustadas as ameaçasinglesa nos mares (1850) e rosista no Prata (1852), o Esta<strong>do</strong>se consolidava. Podia se dar ao luxo de incorporar aoposição e discutir a representatividade de mo<strong>do</strong> desapaixona<strong>do</strong>.Os liberais da década de 1850 não eram maisos radicais exalta<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s anos de 1830 e tinham, de acor<strong>do</strong>com Ilmar Mattos, feito seu mea culpa transforman<strong>do</strong>seem defensores modera<strong>do</strong>s da ordem. Em certo senti<strong>do</strong>era a vitória <strong>do</strong> “Tempo Saquarema” que permitia a extravagânciapolítica <strong>do</strong> Marquês <strong>do</strong> Paraná, de vontade inflexívele sem papas na língua faz tour de force contra seupróprio parti<strong>do</strong> e aprova, sob forte resistência, em 1855, a


195O Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>(1840-1889)primeira reforma eleitoral <strong>do</strong> império que ficou conhecidacomo a “Lei <strong>do</strong>s Círculos”.O intuito da reforma era evitar a fraude e aproximaro povo de seus representantes agora eleitos sob a forma<strong>do</strong> voto distrital, extinguin<strong>do</strong> a lista onde o distrito eratoda a Província. Em nome da moralidade, ficavam aindaproibi<strong>do</strong>s de concorrer nos círculos (distritos) onde exerciamfunção, os funcionários públicos gradua<strong>do</strong>s comoos juízes, os delega<strong>do</strong>s de polícia, e os presidentes deprovíncia.O desaparecimento <strong>do</strong> Marquês em 1857 enfraquecea conciliação e impede que ele veja os resulta<strong>do</strong>spráticos de sua obra que seria tão bem-sucedida naaproximação <strong>do</strong>s eleitores de seus representantes quantofracassada na tentativa de moralização. A lei, no entanto,não sobrevive ao seu próprio sucesso. O círculo queelegia apenas um deputa<strong>do</strong> renovou sem precedentesa câmara <strong>do</strong>s deputa<strong>do</strong>s e deixou sem mandato figuraspolíticas tradicionais, inclusive o próprio filho <strong>do</strong> Marquêsfaleci<strong>do</strong>. Chegaram ao parlamento segun<strong>do</strong> o deputa<strong>do</strong>Francisco Otaviano as “notabilidade de paróquia” substituema representação que até então era de “alta dignidade”.Teriam si<strong>do</strong> eleitos o mascate, o verdureiro, o curalocal. Indivíduos que o preconceito intelectual consideravaincapazes de estarem à altura da tarefa de discutiros problemas complexos da economia, da política externa,das leis <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. O preconceito – representa<strong>do</strong> porOtaviano que afirma que “a nação se apequena” – foi tãoforte que a lei não durou senão uma legislatura e foi reformadapara a seguinte, em 1860.A década de 1860 se inicia sob o signo <strong>do</strong> que ficouconheci<strong>do</strong> como o “Renascer Liberal” o retorno <strong>do</strong> liberalhistórico de Minas Gerais, Teófilo Ottoni, secunda<strong>do</strong> por figurasque fariam o prestígio <strong>do</strong>s liberais como Nabuco deAraújo e Zacarias de Góis e Vasconcelos que formam umaoposição atuante ainda sob o signo <strong>do</strong> fim da conciliação.Seu “renascer” é, claro, consequência da Lei <strong>do</strong>s Círculos,que agora reformada, simplesmente ampliava o círculode um para um círculo de três deputa<strong>do</strong>s. O aumento <strong>do</strong>raio circular permitiu a acomodação política de parte <strong>do</strong>spolíticos tradicionais excluí<strong>do</strong>s na votação plebiscitária <strong>do</strong>círculo unitário, sem necessariamente eliminar o espíritoda Reforma <strong>do</strong> Marquês <strong>do</strong> Paraná. Esse sistema dura atéa década de 1870, quan<strong>do</strong> será reforma<strong>do</strong> no gabinete <strong>do</strong>Visconde <strong>do</strong> Rio Branco.Em 1874-5, a preocupação seguia sen<strong>do</strong> a mesma.Como melhorar a qualidade <strong>do</strong> voto, moralizar as eleições,e incorporar a representação parlamentar da oposição queseguia alijada por um sistema no qual o governo fazia aseleições e não o contrário. A terceira reforma eleitoral <strong>do</strong>império foi proposta pelo Visconde <strong>do</strong> Rio Branco e aprovadapelos conserva<strong>do</strong>res em 1875. Ficou conhecida comoa “Lei <strong>do</strong> terço” encerran<strong>do</strong> a experiência distrital. O distritovoltava a ser a província, sen<strong>do</strong> que o eleitor escolhia


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>196apenas <strong>do</strong>is terços das vagas disponíveis na câmara,fican<strong>do</strong> reserva<strong>do</strong> o último terço para os candidatos oposicionistasmais vota<strong>do</strong>s. Minimizava-se assim a maioriaesmaga<strong>do</strong>ra que o parti<strong>do</strong> governista sempre conquistavanas eleições proporcionais garantin<strong>do</strong>, no mínimo, umterço da câmara para a oposição fosse ela liberal ou conserva<strong>do</strong>ra.A aprovação da Lei <strong>do</strong> terço permitiu inclusiveque alguns deputa<strong>do</strong>s republicanos fossem eleitos em SãoPaulo na última década <strong>do</strong> Império.O Impera<strong>do</strong>r era, por formação e ín<strong>do</strong>le, uma dasfiguras mais preocupadas com a representatividade da reformapopular e enxergava a si mesmo como imbuí<strong>do</strong> damissão de compensar por meio <strong>do</strong> uso <strong>do</strong> poder modera<strong>do</strong>ras distorções eleitorais advindas da fraude e manipulação<strong>do</strong> sistema representativo. Em seu diário é frequenteas referências à Imprensa, que ele enxergava como umajanela, mesmo que translúcida, da vontade popular. Ávi<strong>do</strong>leitor, defendeu sempre a liberdade de imprensa mesmoquan<strong>do</strong> esta o atacava pessoalmente ou à sua família. Per<strong>do</strong>oue fez ministro Francisco de Salles Torres Homem, o“Timandro” <strong>do</strong> Libelo <strong>do</strong> Povo que o acusara de tirano em1849, e se recusou a ouvir a Condessa de Barral, seu maisdura<strong>do</strong>uro vínculo amoroso, que frequentemente reclamavada “impertinência” desrespeitosa da Imprensa paracom a família Imperial. Como o Impera<strong>do</strong>r acreditava quea câmara e o Sena<strong>do</strong> representavam não o povo, mas osparti<strong>do</strong>s, organiza<strong>do</strong>s pelos caciques políticos de cadaprovíncia. Para saber o que o povo queria precisava de umaimprensa livre de constrangimentos, e assim foi ao longode to<strong>do</strong> o segun<strong>do</strong> reina<strong>do</strong> para espanto de muitos observa<strong>do</strong>resestrangeiros que comparavam favoravelmente opanorama jornalístico brasileiro ao inglês ou ao francês emtermos de liberdade.A necessidade de moralização <strong>do</strong> voto aparecia frequentementenas páginas da imprensa dezenovesca quecarregava nas tintas ao caracterizar as figuras que ganhavama vida fraudan<strong>do</strong> eleições. Chamavam-se “cabalistas”os que, a man<strong>do</strong> <strong>do</strong>s coronéis, juntavam os eleitores desdeas vésperas das eleições, às vezes, prenden<strong>do</strong>-os durante anoite com banquetes, benesses ou méto<strong>do</strong>s menos gentispara evitar que fugissem. Eram literalmente currais eleitoraisque viabilizavam o “voto de cabresto” 123 .Os debates sobre as formas de evitar a venda <strong>do</strong>voto chegam ao Congresso mas a solução foi um retrocessodemocrático. A câmara, sob a hegemonia conserva<strong>do</strong>ra123 As eleições eram um espetáculo tragicômico. Nas freguesias distantesa eleição ocorria dentro das igrejas e era necessário esvaziar a nave deornamentos e objetos religiosos para evitar que santos e cruzes ganhassemos ares como projéteis nos conflitos partidários frequentes. A mesa eraformada literalmente “no grito” e a comprovação de renda e de identidadeera feita por meio da arregimentação de testemunhas ou simplesmente peloconvencimento. Gaiatos apelida<strong>do</strong>s de “fósforos” faziam se passar por quemnão eram e votavam no lugar de mortos ou até de vivos que descobriam, aochegar na mesa eleitoral que já tinham vota<strong>do</strong>! Ficavam célebres os fósforosmais ousa<strong>do</strong>s ou talentosos que conseguiam, na presença da vítima, provarà mesa que eram quem não eram.


197O Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>(1840-1889)até 1878, terá na minoria liberal os mais radicais defensoresda ideia de moralização eleitoral. Defendiam a instituiçãoda eleição direta. Carcomi<strong>do</strong> pela desvalorização desde1824, o limite censitário permitia a participação política deindivíduos pauperiza<strong>do</strong>s que vendiam seu voto a quempagasse mais. A eleição direta reflete a preocupação <strong>do</strong>Parti<strong>do</strong> Liberal que chegou ao poder no final da década de1870 e no início <strong>do</strong>s anos de 1880 tinha como presidente<strong>do</strong> conselho o Conselheiro Saraiva que fez aprovar a ReformaEleitoral de 1881, que ficou conhecida como “Lei Saraiva”.Não haveria mais distinção entre votantes e eleitores.To<strong>do</strong>s com renda anual superior a 200 mil-réis poderiamvotar em eleições sem intermediários nos deputa<strong>do</strong>s e sena<strong>do</strong>res.Longe de moralizar o sistema a Lei Saraiva conseguiufoi torná-lo menos democrático. O retrocesso derepresentatividade para além da elevação <strong>do</strong> valor mínimode renda se dá justamente na inovação mais funesta:o censo literário. Para votar, a partir de 1881 era necessárioser alfabetiza<strong>do</strong>. Com o intuito de evitar a venda de vototornan<strong>do</strong> o eleitora<strong>do</strong> mais esclareci<strong>do</strong>, a Lei Saraiva diminuiuem mais de dez vezes o eleitora<strong>do</strong> nacional quepassou para menos de 1% da população e só recuperariaseus índices de representatividade na década de 1930.A inovação literária seria copiada na República por todas asconstituições e os analfabetos só recuperariam o direito devotar em 1988.4.3 A economia brasileira no Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>As regiões econômicas <strong>do</strong> Império.As tarifas Alves Branco e a política tarifária <strong>do</strong>Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>.Orçamento e endividamento no Império. A questão<strong>do</strong> trabalho. Imigração e parceria. A questão da terra.Cafeicultura. Industrialização.No panorama das atividades econômicas brasileirasno século XIX, percebe-se a manutenção, grosso mo<strong>do</strong>,<strong>do</strong> quadro geral da economia colonial. Sem aceitar o reducionismo<strong>do</strong> modelo historiográfico de ciclos que perpetuao entendimento determinista de ascensão, apogeue declínio, é forçoso reconhecer que a grande novidadeda economia <strong>do</strong> Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong> são a hegemonia dacafeicultura e os impactos que ela teve na modernizaçãoda infraestrutura, na dinamização das estruturas de produção,na urbanização <strong>do</strong> Sudeste, no surgimento das casasbancárias e de comércio, no sistema político brasileiro e,possivelmente, dependen<strong>do</strong> da visão historiográfica, aténo estímulo à nascente indústria nacional.A Amazônia extrativista permaneceu assim, majoritariamente,extrativista <strong>do</strong>s bens da floresta (madeira,resina, óleos e fibras, além das ervas), mas, com o adventoda vulcanização, sua produção dá um salto qualitativocujo impacto só será senti<strong>do</strong> no perío<strong>do</strong> republicano.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>198Ainda assim,é ao final <strong>do</strong> Império que a atração de migrantesnordestinos, sobretu<strong>do</strong> cearenses, vai formar amão de obra necessária para a extração <strong>do</strong> látex. Juridicamentelivres, esses indivíduos acabam se tornan<strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>rescompulsórios, uma vez submeti<strong>do</strong>s a dívidasimpagáveis graças à política de monopólios na relaçãoentre os seringueiros e os seringalistas. Estes eram os únicosque compravam a borracha e os únicos autoriza<strong>do</strong>sa vender – inflan<strong>do</strong> artificialmente os preços – os bensde subsistência <strong>do</strong>s seringueiros, que eram obriga<strong>do</strong>s alonguíssimas jornadas de trabalho em virtude da grandedispersão <strong>do</strong>s seringais pela Amazônia.Nos anos finais <strong>do</strong> Império, a borracha teve, guardadasas devidas proporções, papel análogo ao <strong>do</strong> café noSudeste no que tange à modernização e à urbanização decidades como Belém e Manaus. No entanto, entraria emcolapso na década de 1910, quan<strong>do</strong> se tornaria incapaz deenfrentar a concorrência <strong>do</strong>s seringais asiáticos planta<strong>do</strong>sla<strong>do</strong> a la<strong>do</strong> com sementes contrabandeadas <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. Atéseu advento, a economia amazônica <strong>do</strong> século XIX diferiumuito pouco daquela praticada no perío<strong>do</strong> colonial após aexpulsão <strong>do</strong>s jesuítas.Igualmente, no Nordeste a manutenção <strong>do</strong> açúcarcomo produto principal não exclui a possibilidade da presençade outras atividades econômicas, como o cacau (noentorno de Ilhéus) e o fumo (no Recôncavo). Este últimodiferia da lógica <strong>do</strong> latifúndio, da monocultura e da escravidão,pre<strong>do</strong>minantes por ser cultiva<strong>do</strong> em propriedadesmenores, com pequena participação de escravos e priman<strong>do</strong>pela enorme qualidade <strong>do</strong> tabaco aprecia<strong>do</strong> pelosafricanos e moeda de troca no tráfico negreiro até 1850.Mesmo depois <strong>do</strong> fim <strong>do</strong> tráfico, a exportação <strong>do</strong> fumoseguiu crescen<strong>do</strong>, atingin<strong>do</strong> o ápice de 3,5% da pauta deexportações na década de 1870. Ainda é necessário notara produção de algodão no Ceará e no Maranhão, mas quese expande para outras regiões de acor<strong>do</strong> com a demanda<strong>do</strong> merca<strong>do</strong> internacional, como quan<strong>do</strong> da eclosão daguerra civil americana na década de 1860. Nesse perío<strong>do</strong>,a produção algo<strong>do</strong>eira atingiu quase um quinto <strong>do</strong> totaldas exportações <strong>do</strong> Império, o que explica a ampla mobilizaçãode trabalha<strong>do</strong>res livres ao la<strong>do</strong> da mão de obraescrava, naturalmente mais perene.Embora mais provável no algodão que no açúcar,também na chamada “civilização <strong>do</strong> açúcar” não era infrequentea presença de mão de obra de homens livres oulibertos nas atividades intermediárias ou complementaresàs da produção <strong>do</strong> açúcar, como artesanato e as demaisfunções técnicas e administrativas 124 .124 Mesmo os escravos tinham, em grande parte <strong>do</strong>s engenhos, direito auma lavoura própria, a chamada “brecha camponesa”, onde cuidavam degêneros para sua subsistência ou para o pequeno comércio. Esse dia “livre”de trabalho, usa<strong>do</strong> para cuidar de sua roça, trazia também vantagens paraos senhores, que diminuíam os custos de manutenção de seu plantel deescravos.


199O Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>(1840-1889)Mão de obra quase que exclusivamente livre só encontramosmesmo na pecuária, tanto nordestina quantomeridional. Seu caráter transumante, <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> de amplamobilidade, inviabilizava o uso de escravos e estimulavao uso da mão de obra familiar ou <strong>do</strong> sistema de parceria,no qual o vaqueiro contrata<strong>do</strong> fazia jus a um quarto <strong>do</strong>sbezerros e potros nasci<strong>do</strong>s nos rebanhos sob seus cuida<strong>do</strong>s.A pecuária sempre foi forte no Nordeste, a ponto deo rio São Francisco ser conheci<strong>do</strong> como o “rio <strong>do</strong>s currais”.Fornecia carne, couros, animais de tração e algum precáriocontato entre as zonas escassamente vinculadas entresi, favorecen<strong>do</strong> ainda o transporte das muitas fazendas degêneros de abastecimento ou das roças de subsistênciaque proliferavam pelo sertão e pelo agreste nordestino.A província na qual a pecuária era a base de sua economiaera o Piauí, que concentrava a produção de couros.Em uma história econômica marcada por permanências<strong>do</strong> século XVIII para o século XIX, o maior contingentedemográfico e o aparecimento de fazendas deabastecimento são mais que novidades. Há a intensificaçãogradual da tendência anterior, a saber, a de uma economiaque se voltava cada vez mais para o abastecimento<strong>do</strong> merca<strong>do</strong> interno, sobretu<strong>do</strong> da região de Minas Gerais.Apesar <strong>do</strong> destaque da pecuária – atividade latifundiáriafeita nas grandes estâncias sulinas –, gêneros como trigo,milho e carne eram produzi<strong>do</strong>s em fazendas menores como uso de mão de obra livre ou familiar. Isso não significaque não tenha havi<strong>do</strong> escravidão no Sul. A percepção demenor presença de escravos se dá pelas sucessivas ondasde imigração europeia, que diluíram parcialmente a presençada população negra – relevante e significativa – naregião ao longo <strong>do</strong> século XIX e no início <strong>do</strong> XX.Minas Gerais, no entanto, se transformou. Já tinhadeixa<strong>do</strong> havia longa data de ser uma província minera<strong>do</strong>rapara se tornar uma província agrícola, mas não perdeu seudinamismo. Tratava-se, como ainda hoje, da província maispopulosa <strong>do</strong> país, tanto em número de escravos quantoem homens livres. Desenvolveu significativa indústria detransformação agroindustrial, manufaturas e atividadesde artesanato no século XIX – indústria têxtil <strong>do</strong>méstica,ampla indústria de aguardentes e significativa presença deforjas e de manufaturas de ferro. No plano das novidades,a introdução da cultura <strong>do</strong> café na zona da mata mineira,ainda que não tivesse o peso que tinha no Rio de Janeiroou em São Paulo, favoreceu o significativo dinamismodessa região. A superação da decadência econômica teriasérias implicações na política provincial nos anos finais<strong>do</strong> Império. As novas elites oriundas <strong>do</strong> café defendiama maior autonomia provincial, aderin<strong>do</strong> ao republicanismoem oposição aos velhos liberais 125 . Seria esse o grupo125 O auge simbólico da briga entre a velha elite da mineração decadente ea nova elite <strong>do</strong> café foi a longa disputa pela transferência da capital com a


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>200vância econômica. Inacessível por terra até o século XX, foialvo de inúmeros projetos de integração ferroviária e pomode discórdia em disputas de fronteira com o Paraguai quecontribuíram para a eclosão <strong>do</strong> conflito de 1864. Graças aoMato Grosso, era essencial para o Império o controle da baciaplatina, como veremos na seção sobre política externa.Ao final desta seção, trataremos especificamente dacafeicultura e <strong>do</strong>s extraordinários impactos que seu adventotrouxe para a economia <strong>do</strong> Império <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, sobretu<strong>do</strong>no campo das transformações no “mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho”.hegemônico no Parti<strong>do</strong> Republicano Mineiro (PRM) da PrimeiraRepública.No plano das permanências, a mineração segue sen<strong>do</strong>atividade relevante, mas agora feita nos subterrâneos,da<strong>do</strong> o esgotamento <strong>do</strong> ouro de aluvião característico <strong>do</strong>perío<strong>do</strong> colonial. A necessidade de maiores investimentosestimulou a vinda, no século XIX, de empresas estrangeiras,que trouxeram inovações tecnológicas, com destaquepara a produção de diamantes no Tejuco, que se tornoupolo regional de serviços e de manufaturas.Por último, Mato Grosso e Goiás, o “extremo oeste”que foi ocupa<strong>do</strong> inicialmente por bandeirantes em buscade mão de obra indígena e depois pela pecuária extensiva.O segun<strong>do</strong> ciclo <strong>do</strong> ouro em Goiás e em Cuiabá favoreceuo estabelecimento de núcleos urbanos esparsos, muitodistantes uns <strong>do</strong>s outros, cujo contato era feito apenaspelos tropeiros e rebanhos. Palco de constantes conflitoscom os índios que ainda hoje são relevantes, algumas zonastiveram ocupação intermitente ou foram desocupadaspor ataques e <strong>do</strong>enças, além das frequentes crises de desabastecimento.Tornou-se o Mato Grosso muito relevante para o Impériomais por sua situação geopolítica que por sua relecriaçãode Belo Horizonte. A solução de compromisso foi estabelecer a novacapital em terreno neutro.


201O Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>(1840-1889)Porcentagem <strong>do</strong> valor <strong>do</strong>s principais produtos exporta<strong>do</strong>s sobre o valor totaldas exportações por décadaDécada Café Açúcar Borracha Algodão Couro e peles Outros 1261830 44% 24% 0,3% 11% 8% 13%1840 41,5% 27% 0,5% 7,5% 8,5% 15%1850 49% 21% 2,5% 6% 7% 14,5%1860 45,5% 12% 3% 18% 6% 15,5%1870 57% 12% 5,5% 9,5% 5,5% 14,5%1880 61,5% 10% 8% 4% 3% 13,5%Fonte: Adapta<strong>do</strong> de João Antônio de Paula (2012, p. 184). Valores arre<strong>do</strong>nda<strong>do</strong>s.126O marco econômico mais relevante <strong>do</strong> início <strong>do</strong> Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong> foi a aprovação,em 1844, da Lei Alves Branco, de cunho protecionista. Mais que arrecadatória, a nova tarifa sepropunha explicitamente a incentivar a indústria nacional sobretaxan<strong>do</strong> itens que tivessem“similar nacional” –, conceito cria<strong>do</strong> pela lei e que se tornaria a norma posterior. A tarifa médiasubia de 15% para 30%, encerran<strong>do</strong> o ciclo de 34 anos de submissão ao sistema de trata<strong>do</strong>sdesiguais que diminuía a arrecadação 127 .Debatida no Parlamento desde o Primeiro Reina<strong>do</strong>, a Lei Alves Branco era, segun<strong>do</strong>Ama<strong>do</strong> Cervo e Clo<strong>do</strong>al<strong>do</strong> Bueno, a culminância da prevalência <strong>do</strong> pensamento industrialistano Parlamento imperial e que teria inaugura<strong>do</strong> uma “época de ouro” na história econômica126 Os outros são o fumo em primeiro lugar (entre 2% e 3% da pauta), erva-mate, cacau e farinha de mandioca (varian<strong>do</strong> entre1% e 2% da pauta). To<strong>do</strong>s demonstram presença perene nas exportações <strong>do</strong> Império.127 A justificativa de Silva Ferraz no Relatório <strong>do</strong> Ministério da Fazenda de 1845, no entanto, deixa clara a prioridade arrecadatória:“Sen<strong>do</strong> o primeiro objetivo da Tarifa preencher o déficit, em que há annos labora o paiz, era meu dever fazer que a nova taxade direitos, que compreendesse a maior somma de valores, fosse tal, que provavelmente o preenchesse; e porque a renda<strong>do</strong>s 20 por cento, que em geral pagavão as merca<strong>do</strong>rias estrangeiras trazidas ao paiz, importava de 12 a 13 mil contos, eraevidente que para conseguir aquelle fim, cumpria elevá-la em mais 10 por cento; e tal he a razão por que em geral ficou aimportação estrangeira tributada em 30 por cento” (Relatório <strong>do</strong> Ministério da Fazenda, 1845, p. 34). A referência aos 20% é ataxa corrente de 15% mais 10% de desembaraço, taxa de expediente sempre paga, mesmo em caso de produtos isentos.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>202brasileira <strong>do</strong> século XIX. Dos quase 2.500 produtos atingi<strong>do</strong>spela lei, apenas 2.146 estavam submeti<strong>do</strong>s à nova taxamédia de 30%. Outros 173 produtos tinham taxações quevariavam entre 2% e 60%. Vista como uma afronta à Inglaterrapela recusa na renovação <strong>do</strong>s privilégios, a Lei AlvesBranco não diferia das alíquotas da Bélgica e da Holanda(30% e 35%) e era bem inferior às <strong>do</strong> Zollverein, da Itália,da França e <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s (aonde chegava a 50%) naépoca.É inegável o caráter industrialista da lei de 1844, e opróprio Alves Branco o reconhece em discurso no Parlamentoreproduzi<strong>do</strong> no Relatório de 1845:Sim, Senhores, com huma Tarifa meramente fiscal, eque não podíamos fazer variar em consequência deTrata<strong>do</strong>s, fomos força<strong>do</strong>s a tirar de empréstimos nestesúltimos trinta e quatro annos enormes quantias. Comhuma Tarifa meramente fiscal, e que nada protegia,mallograrão-se no paiz muitas tentativas de manufacturas[...] (Relatório <strong>do</strong> Ministério da Fazenda, 1845, p. 37).Se, de um la<strong>do</strong>, isentava de tarifas gêneros de consumoalimentar – vinhos, farinhas, peixe –, de outro, desagravavaainda mais máquinas a vapor (que já eram isentase agora não pagavam nem taxa de expediente) e insumosindustriais – folha de flandres, cobre, ferro. Quotas de 40%a 60% ficavam reservadas aos vidros e chás produzi<strong>do</strong>s no<strong>Brasil</strong> ou a itens como o canhamaço, que podiam ser facilmentesubstituí<strong>do</strong>s. No entanto, o que Cervo e Buenochamam de “espírito de 1844” teria si<strong>do</strong> desmobiliza<strong>do</strong>por seu próprio sucesso. O sucesso da cafeicultura e suasrendas seguras teriam acomoda<strong>do</strong> a elite nacional, quenão buscou alternativas de superação e desenvolvimento.Contribuiu para tanto o que esse autor caracteriza comouma política tarifária errática 128 , na qual se sucediam leis liberais– que ele considera pre<strong>do</strong>minantes – a leis protecionistas,impedin<strong>do</strong> a previsibilidade e a organização eficaz<strong>do</strong> processo econômico nacional. Esse é também o entendimentode João Antônio de Paula. Protecionismo, livre--cambismo, de novo protecionismo logo sucedi<strong>do</strong> por maislivre-cambismo, que se alternaram, sempre aumentan<strong>do</strong> astarifas de acor<strong>do</strong> com a necessidade de arrecadação.André Villela discorda da avaliação e propõe umameto<strong>do</strong>logia diversa. Analisa a média tarifária ponderadapelo peso/impacto <strong>do</strong> produto taxa<strong>do</strong> e, após passar emrevista uma por uma, considera que, no geral, as tarifastiveram caráter protecionista. Reconhece que, depois demais de uma década de vigência da Lei Alves Branco, a influênciade Ângelo Muniz da Silva Ferraz 129 nas tarifas que128 No total, foram dez as alterações tarifárias no Império: Tarifa Alves Branco(1844); Tarifa Wanderley (1857); Tarifa Sousa Franco (1857-58); Tarifa SilvaFerraz (1860); Tarifa Itaboraí (1869); Tarifa Rio Branco (1874); Tarifa Ouro Preto(1879); Tarifa Saraiva (1881); Tarifa Belisário (1887); e Tarifa João Alfre<strong>do</strong> (1889).Na República, o encilhamento (1890) faz nova revisão tarifária. O nome ésempre o <strong>do</strong> ministro da Fazenda no momento da publicação <strong>do</strong> decreto.129 Presidente de uma comissão para esse fim que elaborou as mudançasefetivadas por João Maurício Wanderley (1857), Bernar<strong>do</strong> Sousa Franco


203O Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>(1840-1889)se seguiram contribuiu para uma desoneração média decerca de 5% <strong>do</strong> total, mas que logo foi alterada pela própriatarifa que leva seu nome (1860), que majorou essa médiaem 10% no início <strong>do</strong>s anos 1860, anulan<strong>do</strong> na prática osefeitos das medidas anteriores. A média tarifária ad valoremno <strong>Brasil</strong>, ensina Villela, estava por volta de 26% em 1862.O protecionismo se tornaria ainda mais necessáriodurante a Guerra <strong>do</strong> Paraguai, quan<strong>do</strong> os direitos aduaneirospassaram a ser cobra<strong>do</strong>s em ouro. A arrecadação aumentouem cerca de 50% no final da década de 1860, ea tarifa média ultrapassou a casa <strong>do</strong>s 30% novamente. Asmedidas provocaram aumento de preços de bens de consumo,geran<strong>do</strong> reações, mas, apesar disso e ten<strong>do</strong> conta<strong>do</strong>com consultas aos comerciantes e aos inspetores, as tarifasItaboraí e Rio Branco aumentaram ainda mais a carga tributáriapara dar conta <strong>do</strong>s déficits constantes <strong>do</strong> governoagrava<strong>do</strong>s durante a Guerra <strong>do</strong> Paraguai. A média <strong>do</strong>s direitoscobra<strong>do</strong>s na década de 1880, apesar das várias tarifasaprovadas, permaneceu em torno de 30% ad valorem. Nosanos finais <strong>do</strong> Império, a Tarifa Belisário e a Tarifa João Alfre<strong>do</strong>tiveram por consequência ampliar esse patamar para acasa <strong>do</strong>s 40%, contribuin<strong>do</strong> decisivamente para o desenvolvimentoindustrial que se percebia então.(1858), Francisco Sales Torres Homem (1859) e depois ele próprio ministro daFazenda.Os <strong>do</strong>is principais objetivos da política tarifária <strong>do</strong>século XIX eram o fiscal – meramente arrecadatório – e o“protecionista”. O primeiro era bastante consensual entreos policy makers brasileiros, dada a dependência <strong>do</strong> tesourodessa arrecadação. Em média, 60% <strong>do</strong> total <strong>do</strong> orçamentoprovinha de impostos de importação, ten<strong>do</strong> esse valorchega<strong>do</strong> ao máximo de 68% em 1854. Mesmo os liberaisprecisavam concordar com a inviabilidade de uma aberturaeconômica ideológica que quebrasse o Esta<strong>do</strong>. Emrelação ao caráter protecionista, contu<strong>do</strong>, os debates noParlamento se sucediam, prevalecen<strong>do</strong> sempre a posiçãopragmática de desagravar os gêneros alimentícios e osbens de consumo de massa e insumos industriais, aumentan<strong>do</strong>as tarifas para os produtos que o <strong>Brasil</strong> já produzia.Evidencia-se uma intencionalidade protecionista ao longode to<strong>do</strong> o Império, e não apenas durante a vigência <strong>do</strong>espírito de 1844. Percebe-se que o estamento burocráticoestatal soube, ao longo <strong>do</strong> Império, mitigar e equilibrar osanseios e as pressões livre-cambistas <strong>do</strong>s importa<strong>do</strong>res e<strong>do</strong>s setores liga<strong>do</strong>s à lavoura.O orçamento, entretanto, não conseguia superarseu déficit constante. José Murilo de Carvalho chega a citara constante máxima parlamentar que dizia “O império é odéficit”, já que as promessas de equilíbrio orçamentário feitaspor cada novo gabinete que assumia o governo eramsucessivamente descumpridas. Os motivos da perenidadedeficitária em geral são identifica<strong>do</strong>s com as despesas


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>204militares (intervenções no Prata nos anos 1850 e a Guerra<strong>do</strong> Paraguai) e com as secas e epidemias <strong>do</strong> Nordeste 130 ,que agravavam sobremaneira esse déficit, contaminan<strong>do</strong>os sucessivos orçamentos. Carvalho defende a mudançade foco <strong>do</strong>s gastos para a arrecadação.Excessivamente concentra<strong>do</strong> no setor externo daeconomia, esse autor explica como o governo arrecadavamal. Era desprezível o impacto <strong>do</strong>s impostos, afora osde importação e exportação. Alguns, como o imposto derenda, foram inexistentes até depois da Guerra <strong>do</strong> Paraguaie, ainda assim, só atingiam os funcionários públicos. Váriosimpostos urbanos, como o de aluguel e rurais, como o queincidia sobre os escravos, eram sonega<strong>do</strong>s escandalosamente,e o imposto sobre a terra, presente na lei de 1850,jamais foi regulamenta<strong>do</strong>. Assim, quase quatro quintos <strong>do</strong>total da arrecadação <strong>do</strong> Império dependia <strong>do</strong> setor externoda economia, sen<strong>do</strong>, como vimos, uma média de 60%advinda <strong>do</strong>s impostos de importação. A razão disso era afacilidade de controlar e de fiscalizar essa cobrança, muitomais difícil <strong>do</strong> que em outros tipos de arrecadação. Os bensimporta<strong>do</strong>s entravam no <strong>Brasil</strong> quase que exclusivamentepela via portuária, e um Esta<strong>do</strong> centraliza<strong>do</strong> concentravanos poucos portos <strong>do</strong> país quase toda a sua estrutura fiscal.130 Foram 10 milhões de libras gastos com a guerra e 4,5 milhões com a secacearense de 1877-80, que motivou a imigração de quase meio milhão denordestinos para a Amazônia da borracha.Restava pouca atividade fiscal para as províncias – justamenteo imposto de exportação – e quase nenhuma parao município, na contramão <strong>do</strong> que ocorria nos Esta<strong>do</strong>sUni<strong>do</strong>s ao longo <strong>do</strong> século XIX. Uma estrutura federativamuito mais descentralizada deixava cerca de metade <strong>do</strong>trabalho de arrecadação de impostos para o município,maximizan<strong>do</strong> o alcance dessa cobrança. Feita por indivíduospróximos física e socialmente <strong>do</strong>s contribuintes,diminuía-se o risco de sonegação. Uma administraçãocentralizada e distante como a da monarquia brasileiratinha enormes dificuldades de garantir a cobrança eficazde seus impostos a grandes senhores e latifundiários acostuma<strong>do</strong>sa não pagar nada. Faltava capilaridade à estruturafiscal brasileira ao longo <strong>do</strong> século XIX, o que forçava a dependência<strong>do</strong> estatal das tarifas alfandegárias.Os déficits eram naturalmente compensa<strong>do</strong>s como endividamento externo, que não parou de crescer aolongo de to<strong>do</strong> o século XIX 131 . Ten<strong>do</strong> termina<strong>do</strong> o PrimeiroReina<strong>do</strong> na casa <strong>do</strong>s 5 milhões de libras esterlinas,131 Paulo Roberto de Almeida ensina que o prazo médio era de trinta anos, semnenhum tipo de carência, e os juros variavam entre 4,5% e 5%, e o títulonominal tinha um desconto em relação a seu valor de face, dependen<strong>do</strong><strong>do</strong> contexto da negociação. Tipo 95, tipo 85, tipo 75, que era o quantoefetivamente o país receberia. O deságio variava entre 5% e 15%, mas, em1829, houve até um empréstimo ruinoso de 52%. Apenas <strong>do</strong>is empréstimostiveram o valor de face de 100%: o que incorporou, em 1825, parte da dívidaportuguesa negociada pelo reconhecimento e o que resgatou, em 1859, oempréstimo ruinoso de 1829.


205O Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>(1840-1889)percebe-se uma interrupção de quase uma década deempréstimos internacionais nos anos que se seguiram àaprovação da Lei Alves Branco (1844), sen<strong>do</strong> novamentenecessário tomá-los em 1852. De qualquer mo<strong>do</strong>, de1829 (empréstimo de tipo 52) até 1859 (empréstimo detipo 95,5), a credibilidade internacional financeira <strong>do</strong> Impériocrescera no ritmo da qualificação das instituições eda organização <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>.O padrão é justamente o da necessidade. Assimcomo a guerra contra Rosas aumentou o déficit, exigin<strong>do</strong>a retomada <strong>do</strong>s empréstimos, novamente a Guerra <strong>do</strong>Paraguai elevaria a dívida pública a patamares até entãonunca atingi<strong>do</strong>s, chegan<strong>do</strong> aos 20 milhões de libras nadécada de 1880 e quase <strong>do</strong>bran<strong>do</strong> depois disso, na transiçãopara a República. O cre<strong>do</strong>r hegemônico era naturalmenteo Reino Uni<strong>do</strong>, com destaque para a casa NathanMayer Rothschild e irmãos, que, em 1855, se tornaramagentes financeiros exclusivos <strong>do</strong> Império. Apesar disso,em virtude de considerações de ordem política, durantea chamada diplomacia <strong>do</strong>s patacões, na região platina, oImpério assumiria – de forma inusitada e inédita – o papelde cre<strong>do</strong>r a partir de 1850 132 . Naturalmente, o serviço132 O Império fez vários empréstimos para o Uruguai e para a província de EntreRios e Corrientes. Segun<strong>do</strong> Paulo Roberto de Almeida, enreda<strong>do</strong> em umapolítica de poder da qual não poderia sair sem prejuízo de sua imagemexterna, o Império foi leva<strong>do</strong> a fazer, sem garantias reais de que receberiada dívida impactava de mo<strong>do</strong> significativo o orçamento,ten<strong>do</strong> ultrapassa<strong>do</strong> a casa <strong>do</strong>s 30% na última década <strong>do</strong>regime.Eram também os ingleses os principais investi<strong>do</strong>resno <strong>Brasil</strong>. Esses investimentos se concentrariam, depois de1850, nos setores de infraestrutura, sobretu<strong>do</strong> nas estradasde ferro, mas também nos engenhos de açúcar e nos moinhos.Com a estabilização política, o <strong>Brasil</strong> chegou a ser um<strong>do</strong>s principais destinos não europeus <strong>do</strong>s investimentosbritânicos, perden<strong>do</strong> espaço para a Argentina apenas nasdécadas finais <strong>do</strong> século XIX.A questão da mão de obra no <strong>Brasil</strong> imperial já foiobjeto de sucessivas avaliações na fase discursiva <strong>do</strong> Concursode Admissão à Carreira de Diplomata (CACD). Háduas vertentes: uma é o processo histórico que levou àsuperação da mão de obra escrava, que, por sua importância– e também destaque na historiografia –, mereceráuma seção à parte, “A legislação abolicionista”; a outra é arelação <strong>do</strong> fim <strong>do</strong> escravismo com a política imigratória <strong>do</strong><strong>Brasil</strong> <strong>do</strong> século XIX.de volta, sucessivos empréstimos durante cerca de três décadas. Figuraprotagonista de grande parte desses empréstimos foi o Barão de Mauá,que chegou a assinar acor<strong>do</strong>s com os uruguaios com o mesmo status <strong>do</strong>sesta<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Império <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> e da República Oriental. Arriscou seu dinheiroe, algumas vezes, sua vida para viabilizar a política brasileira na região. Tevefiliais em várias cidades uruguaias e abriu duas agências na Argentina, emRosário e em Gualeguaychú.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>206De um la<strong>do</strong>, o escravismo viveria seu ápice com acafeicultura – tanto em termos demográficos quanto deprodutividade –, de outro, entraria em rápi<strong>do</strong> declínio emface <strong>do</strong>s questionamentos, notadamente morais e ideológicos,que enfrentaria por meio de pressões externas – sobretu<strong>do</strong>inglesas até 1850 – e internas, com o advento <strong>do</strong>movimento abolicionista após a Guerra <strong>do</strong> Paraguai. É umafalsa correlação a que identifica o fim da escravidão com oadvento e o desenvolvimento capitalista, e numerosos trabalhosbrasileiros e estrangeiros comprovam a convivêncialucrativa de zonas escravistas vinculadas à produção capitalistapor décadas a fio. O historia<strong>do</strong>r norte-americanoEugene D. Genovese, em Economia política da escravidão,defende que o sul agrário algo<strong>do</strong>eiro era capitalista na plenaacepção <strong>do</strong> termo.O que se percebe na análise <strong>do</strong> escravismo brasileiro<strong>do</strong> século XIX é que ele reduz progressivamente seu escopo:primeiro, geograficamente, concentran<strong>do</strong>-se no Sudestegraças ao crescente tráfico interno favoreci<strong>do</strong> peloaumento de preço – o preço <strong>do</strong> escravo quadruplicouao longo <strong>do</strong> século XIX, sobretu<strong>do</strong> a partir de 1850 133 – e,133 Apenas para cair de novo à metade na última década <strong>do</strong> Império, comcerteza por causa da percepção da iminência da abolição, da<strong>do</strong> o crescentemovimento abolicionista: 550$000 réis na década de 1840, 1.200$000 nadécada de 1850, 1.800$000 na década de 1860 e mais de <strong>do</strong>is contosna década de 1870, para afinal cair novamente para menos de um conto nadécada de 1880 (valores aproxima<strong>do</strong>s).depois, numericamente. Em 1872, apenas 15% da populaçãoera de escravos, e esse número não chegaria a ummilhão de indivíduos em 1888. O marco de ambos os declíniosé a Lei Eusébio de Queirós, que analisaremos especificamenteem outra seção deste capítulo. Basta ter claroque, com a cessação da fonte externa de abastecimentode mão de obra escrava, a reprodução interna não era,como nunca havia si<strong>do</strong> no <strong>Brasil</strong>, suficiente para manterpositivo o crescimento vegetativo, ao contrário <strong>do</strong> que severifica nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, onde o tráfico se encerra em1831, mas a 13. a emenda libertou quatro milhões de escravos.Some-se ainda a prática culturalmente bem brasileirade disseminação da manumissão – alforria –, que fazia comque, após quatro séculos de escravismo, a população escravanão representasse, em 1872, nem um terço <strong>do</strong> totalda população negra e parda brasileira.Ao declínio <strong>do</strong> escravismo se contrapõe a necessidadede substituir a mão de obra cativa, e a opção, fortementeideologizada, será pelo imigrante europeu. Tentativasde trazer para o <strong>Brasil</strong> chineses, como na Califórnia, redundaramem proibição parlamentar e em perseguição aospoucos que aqui aportaram. Fazia parte <strong>do</strong> entendimentoda elite brasileira que o “branqueamento” era uma alternativapara civilizar o país. Trazen<strong>do</strong> imigrantes europeus,acreditavam trazer também a civilização e o progresso.As tentativas de estabelecimento de colônias europeiassemiautárquicas tiveram início ainda no perío<strong>do</strong> joanino


207O Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>(1840-1889)– suíços na Serra Fluminense, em Nova Friburgo – e seguiramcom a presença de alemães no Sul durante o PrimeiroReina<strong>do</strong>. Esse tipo de colonização feito com terras <strong>do</strong>adaspelo Esta<strong>do</strong> com o uso de mão de obra familiar não sobreviveriae foi substituí<strong>do</strong> por duas outras modalidades: aparceria e a imigração subvencionada.A parceria era financiada pela iniciativa privada, eseu pioneiro foi o sena<strong>do</strong>r Nicolau de Campos Vergueiro,que, em 1846, levou para Limeira, em São Paulo, 177 famíliasde imigrantes suíços e alemães que cuidavam dasplantações de café junto aos escravos na fazenda de Ibicaba134 . Misturar as duas formas de mão de obra causoumuitos contratempos. O endividamento <strong>do</strong>s parceiros e,sobretu<strong>do</strong>, o tempo que demorava a maturação <strong>do</strong> café –no mínimo quatro anos – fizeram com que os colonos sesentissem ludibria<strong>do</strong>s. Reclamavam da pesagem das sacase <strong>do</strong>s maus-tratos e se revoltaram lidera<strong>do</strong>s por ThomasDavatz, que, ao voltar para a Europa, escreveu um livro contan<strong>do</strong>as agruras <strong>do</strong>s suíços e alemães no <strong>Brasil</strong>. Diversosreinos germânicos e a Suíça proibiram a imigração, e issocontribuiu para o declínio <strong>do</strong> sistema de parceria.O sistema mais largamente utiliza<strong>do</strong> foi o da subvenção<strong>do</strong> governo – <strong>do</strong> Império e das províncias –, que,134 Nas décadas seguintes, com o uso exclusivo de mão de obra escrava, apóso fracasso da experiência com os imigrantes, Ibicaba chegou a ser a maiorfazenda de café <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, com mais de um milhão de pés de café planta<strong>do</strong>s.embora inicia<strong>do</strong> anteriormente, atingiu sua maturidade nadécada de 1870, durante o gabinete Rio Branco. A partirdaí, o número de imigrantes europeus mais <strong>do</strong> que <strong>do</strong>brariaa cada década. Pouco mais de 100 mil nos anos 1860,pouco menos de 200 mil na década seguinte, mais de 500mil na década de 1880 e mais de 1,2 milhão de imigrantesna última década <strong>do</strong> século, processo intenso que só seriainterrompi<strong>do</strong> na Era Vargas. Dois terços desses imigranteseram italianos e portugueses, mas também vieram japoneses(3%), espanhóis (14%) e diversas outras nacionalidadeseuropeias.Com legislações específicas para regulamentar otrabalho <strong>do</strong>s estrangeiros desde 1830 (lei que inaugurou apossibilidade de imigração para o trabalho), houve modificaçõesem 1837 e em 1879, esta última regulamentan<strong>do</strong> osdiversos tipos de parceria em um momento em que haviaenorme demanda de mão de obra para a cafeicultura nocontexto de fim da escravidão. Ganha destaque aí a açãoda província de São Paulo, que subvencionará um enormecontingente de imigrantes italianos, seu transporte e suaacomodação, minimizan<strong>do</strong> parcialmente a dependênciadessa província da mão de obra cativa.Outro elemento frequentemente discuti<strong>do</strong> pelahistoriografia é a questão da terra. Salta aos olhos a coincidênciatemporal <strong>do</strong>s marcos jurídicos que regulam a questãoda terra e a questão da mão de obra: 1850. É o ano daLei Eusébio de Queirós e da Lei de Terras. Impossível não


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>208estabelecer a vinculação entre as duas medidas, cuja promulgaçãofoi separada por semanas. Na leitura <strong>do</strong>s discursosda aprovação da Lei de Terras, percebe-se claramenteo impacto que a percepção <strong>do</strong> fim da escravidão tem naregulamentação – e crescente obstaculização – <strong>do</strong> acessoa terra. A comparação com os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s é ilustrativa.Lá o sistema estabeleci<strong>do</strong> pelo Homestead Act (1863) ampliou,em larga medida, o acesso a terra, oferecen<strong>do</strong> aospioneiros terra muito barata ou quase de graça. Aprovadano contexto da guerra civil pelo presidente AbrahamLincoln depois de ter si<strong>do</strong> vetada por seu antecessor,James Buchanan, o Homestead era a consubstanciação daconcepção vitoriosa <strong>do</strong> Norte de pequenas propriedades elivre-iniciativa. No <strong>Brasil</strong>, era como se o Sul tivesse venci<strong>do</strong>sem a necessidade de guerra civil. Nossa Lei de Terras anterioré, ao contrário, o congelamento <strong>do</strong> modelo de latifúndiosherda<strong>do</strong> <strong>do</strong> sistema de sesmarias.Assim como na França revolucionária e até no Japãopós-guerra, a distribuição de terra foi um <strong>do</strong>s pilares essenciaispara a melhor distribuição de renda e premissa para odesenvolvimento. Nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, o modelo vigorouaté 1976 e transferiu cerca de 1,6 milhão de lotes para ospioneiros, em um total de 270 milhões de acres, cerca de10% <strong>do</strong> território americano. No <strong>Brasil</strong>, urgia impedir queos imigrantes que viriam para substituir os escravos tivessemacesso a terra. A terra, extensa e imensa, de acessorelativamente simples durante o perío<strong>do</strong> colonial, já erainalcançável, já que, para explorá-la no modelo de plantationhegemônico, era necessário grande contingente de mãode obra escrava, investimento proibitivo, exceto para osmais abasta<strong>do</strong>s. Uma vez colocada no horizonte a perspectivade encerramento <strong>do</strong> escravismo, urgia restringirurgentemente o acesso a terra, que passou a ser o meio dehierarquização no <strong>Brasil</strong> <strong>do</strong>s séculos XIX e XX, cumprin<strong>do</strong> opapel excludente e segrega<strong>do</strong>r antes reserva<strong>do</strong> à propriedadede escravos. Na experiência americana, a atração deimigrantes, oferecen<strong>do</strong>-lhes terra, ampliou imensamente abase econômica e o merca<strong>do</strong> interno <strong>do</strong> país. No <strong>Brasil</strong>, oimigrante vinha para trabalhar em terra alheia, com poucaou nenhuma perspectiva de se tornar proprietário.A Lei de Terras guardava, portanto, relação diretacom a questão da imigração. Os recursos das terras vendidasem hasta pública – a partir de 1850, terras públicassó poderiam ser adquiridas por meio de compra 135 – deveriamser usa<strong>do</strong>s para subvencionar a vinda de imigrantes.Estes estavam proibi<strong>do</strong>s de comprar terras antes de viverempelo menos três anos no <strong>Brasil</strong>. Criava-se uma Repartiçãode Terras Públicas para supervisionar o processo.Para José Murilo de Carvalho, no entanto, vários <strong>do</strong>sdispositivos da lei se tornaram letra morta. Nas décadasque se seguiram, não se conseguiu aprovar um imposto135 Exceto em casos de faixas de fronteira.


209O Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>(1840-1889)sobre a posse de terras, essencial até para fins de fiscalização,como não se conseguiu sequer proceder ao cadastramentodas propriedades fundiárias e à verificaçãodas sesmarias caídas em comisso (que haviam perdi<strong>do</strong> avalidade). To<strong>do</strong>s os dispositivos da lei que estabeleciam algumtipo de regulamentação, ameaça ou ônus aos grandeslatifundiários <strong>do</strong> país não foram aplica<strong>do</strong>s. Era “o veto<strong>do</strong>s barões” à tentativa de intromissão <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> em seusprivilégios.To<strong>do</strong> o debate sobre o trabalho escravo e imigrantesó faz senti<strong>do</strong> se o compreendemos sob o contexto <strong>do</strong>enorme desenvolvimento da cafeicultura no Sudeste aolongo <strong>do</strong> século XIX. A cafeicultura se estabeleceu primordialmenteno Rio de Janeiro no início <strong>do</strong> século XIX, vinda<strong>do</strong> Pará. Estabeleceu-se no Vale <strong>do</strong> Paraíba Fluminense ePaulista e depois se expandiu para a zona da mata mineirae para o “novo” oeste paulista, onde a produtividade maisque <strong>do</strong>brou em virtude de propriedades de terra menores,porém mais férteis e com inovações técnicas relevantes.A demanda crescente <strong>do</strong> produto no merca<strong>do</strong> internacionaldeveu-se especialmente aos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, cujacrescente população ao longo daquele século parece teradquiri<strong>do</strong> o gosto pelo consumo da rubiácea. O aburguesamento<strong>do</strong> gosto francês e a urbanidade de sua civilizaçãode cafés parisienses, aos poucos exportada mun<strong>do</strong>afora, também contribuíram para o enriquecimento <strong>do</strong>sbarões <strong>do</strong> café brasileiros.No plano interno, a cafeicultura era favorecida aindapela política de desvalorização cambial, que aumentava arenda <strong>do</strong>s produtores e estimulava um crescimento constanteda produção brasileira. O salto é extraordinário: de3 milhões de sacas de café na década de 1830 para quase52 milhões de sacas na década de 1880. Até o final <strong>do</strong> Império,mais da metade dessa produção era fluminense. SãoPaulo respondia por menos de um quarto <strong>do</strong> total. Na República,essa proporção mais que se inverteria, perceben<strong>do</strong>-setambém o crescimento da produção mineira, querepresentava pouco mais de um quinto <strong>do</strong> total.Além da questão da produtividade, percebe-seigualmente a vinculação política <strong>do</strong>s cafeicultores fluminensescom a monarquia – um em cada quatro era barão –,herança <strong>do</strong> tempo saquarema que não se verificava emsuas contrapartes paulistas, “os empresários <strong>do</strong> café”, menosdependentes da mão de obra escrava, menos conserva<strong>do</strong>res,mais abertos às ideias novas e menos vincula<strong>do</strong>sà Corte. Não surpreende que o Parti<strong>do</strong> Republicano maisorganiza<strong>do</strong> e forte tenha surgi<strong>do</strong> em São Paulo ainda em1873. Defendiam o federalismo e renegavam a centralizaçãoexcessiva, que transferia os recursos da cafeiculturapara as províncias <strong>do</strong> Nordeste em constante déficitou acometidas por mazelas, como a seca cearense de1877-80.João Antônio de Paula identifica, no sucesso dacafeicultura, a gênese <strong>do</strong> processo de difusão da malha


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>210ferroviária a partir de 1850, mas ganhan<strong>do</strong> vulto na décadade 1870. Sobretu<strong>do</strong> em São Paulo, a difusão <strong>do</strong>s investimentosem infraestrutura de produção de energia acompanhouo vigoroso processo de urbanização em curso.Com o crescimento da malha ferroviária nas províncias <strong>do</strong>Sudeste, há significativa unificação <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> interno,barateia-se o preço <strong>do</strong>s bens e se favorece o intercâmbioentre pessoas e ideias. Criam-se também numerosas oficinas,onde operários e mecânicos qualifica<strong>do</strong>s são inseri<strong>do</strong>sna dinâmica de trabalho capitalista moderna, forman<strong>do</strong>até associações de trabalha<strong>do</strong>res, que legariam à categoriade ferroviários nas décadas seguintes mais esclarecimentoe politização se compara<strong>do</strong>s aos demais setores.A cafeicultura favoreceu ainda o surgimento e ofortalecimento <strong>do</strong> setor bancário a partir <strong>do</strong>s comissários<strong>do</strong> café, que financiavam sua comercialização e atraíamcapital inglês. Os ingleses abriram grande número de casasbancárias. Surgidas em to<strong>do</strong> o país nos anos 1830 e1840 após o encerramento <strong>do</strong> Banco <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. Recria<strong>do</strong>em 1854, em fusão com o banco pertencente ao Barão deMauá, o Banco <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> é apenas o mais importante entreos muitos bancos surgi<strong>do</strong>s nessa década, até a crise bancáriade 1857. O debate entre “papelistas” e orto<strong>do</strong>xos sobrese deveriam ou não os bancos ter privilégios de emissãoacabaram penden<strong>do</strong> pelo monopólio de emissão <strong>do</strong> Tesouro,que, como vimos, contribuiu para a perene desvalorização<strong>do</strong> mil-réis que favorecia o setor cafeicultor.Há ainda os que vinculam a cafeicultura à industrialização,como é o caso de Warren Dean. A obra de Dean secontrapunha aos textos clássicos de Roberto Simonsen,que, ainda na lógica estanque <strong>do</strong>s ciclos econômicos,defendia a oposição absoluta entre a cafeicultura e a indústria.Autores mais recentes recuperam as conclusõesde Simonsen para defender que, mesmo que a renda eos estímulos <strong>do</strong> “sucesso” <strong>do</strong> café tenham favoreci<strong>do</strong> odespontar incipiente da atividade industrial, a dependênciaeconômica estrutural de um produto primário, deexportação, perpetuava indefinidamente nossa situaçãode dependência e garantia ao <strong>Brasil</strong> um lugar periféricono concerto das nações. Jacob Gorender, por exemplo,vê na industrialização <strong>do</strong> século XIX maior relação com oartesanato que com o café.Alguns elementos, no entanto, são incontroversosno que tange à historiografia da industrialização dezenovesca.Ela esteve restrita a determina<strong>do</strong>s segmentos econtou com expressiva participação <strong>do</strong> capital estrangeiro,sobretu<strong>do</strong> nas áreas de infraestrutura, mineração e transportes.A profícua legislação tarifária, igualmente, como vimos,fruto de controvérsia historiográfica, também pareceter contribuí<strong>do</strong> para o desenvolvimento de alguns setoresprotegi<strong>do</strong>s. Os têxteis (juta, lã e algodão) representavammais da metade da indústria brasileira no Império; a indústriade madeira, móveis, instrumentos de madeira e carpintariaestrutural, cerca de 10%. Além desses destaques,


211O Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>(1840-1889)percebe-se o crescimento <strong>do</strong>s setores de calça<strong>do</strong>s, chapéus,moagem de cereais, vidro, sabão, velas e gráficas.Aliás, os trabalha<strong>do</strong>res das gráficas foram os primeiros afazer uma greve no <strong>Brasil</strong> em 1858.As associações de promoção industrial, como a SociedadeAuxilia<strong>do</strong>ra da Indústria Nacional, criada em 1827,e a Associação Industrial, de 1881, não parecem ter si<strong>do</strong> capazesde fazer lobby junto ao governo para uma política industrialmais proativa que superasse apenas a sucessão deleis tarifárias, primordialmente voltadas para a arrecadaçãoe para a composição <strong>do</strong> orçamento. É por isso que JoãoAntônio de Paula destaca não ter havi<strong>do</strong> industrializaçãono senti<strong>do</strong> de mudança completa <strong>do</strong> modelo de produçãoda sociedade, defenden<strong>do</strong> o uso da expressão “surtoindustrial”. Estas associações apesar de inspiradas nas ideiasintervencionistas de Friedrich List, ainda teriam de esperaraté o século XX para que o Esta<strong>do</strong> brasileiro as colocasseem prática de mo<strong>do</strong> sistemático e eficaz.Isso fica patente na biografia empresarial de IrineuEvangelista de Sousa, o barão, depois visconde de Mauá,entre 1845 e 1875, os anos de apogeu <strong>do</strong> Império e tambémapogeu da fortuna daquele que foi o maior empresáriodesse perío<strong>do</strong>. Investiu em estaleiros, infraestrutura,bancos, ferrovias, comércio e companhias de navegação.Em vez de ter o Esta<strong>do</strong> lhe apoian<strong>do</strong>, apoiou inúmeras vezeso Esta<strong>do</strong>, fazen<strong>do</strong> empréstimos a fun<strong>do</strong> perdi<strong>do</strong> para aRepública Oriental <strong>do</strong> Uruguai, famosa por sua insolvência.Fali<strong>do</strong> após a Guerra <strong>do</strong> Paraguai, evidenciava os limites daindustrialização em um país periférico, escravista e sem políticainstitucionalizada de fomento à modernização.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>2124.4 O panorama cultural <strong>do</strong> Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>Atraso atávico e ideias fora <strong>do</strong> lugar. O colégio Pedro II eo Ensino Superior. O Romantismo e suas gerações. Poesiae prosa. O naturalismo e o parnasianismo. O Teatro noImpério. O Mecenato Imperial e a construção de umaidentidade nacional. Instituições Culturais: O IHGB e oIndianismo. A Academia Imperial de Belas Artes.O marco político de início <strong>do</strong> Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong> foi oRegresso Conserva<strong>do</strong>r que legou um projeto monárquicoe centraliza<strong>do</strong>r com profun<strong>do</strong> impacto cultural ao Segun<strong>do</strong>Reina<strong>do</strong> que duraria quase meio século. O liberalismoradical <strong>do</strong>s anos da regência foi substituí<strong>do</strong> por uma matrizconserva<strong>do</strong>ra hegemônica inclusive entre os principaispróceres <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> liberal, segun<strong>do</strong> o entendimento deIlmar Mattos em “Tempo Saquarema”. O liberalismo brasileiroparecia, segun<strong>do</strong> o entendimento de alguns autores,“fora de lugar”.Mas a verdade é que em todas as circunstâncias históricasas ideias estão sempre meio desajustadas à realidade.A realidade teima em ser diferente da teoria, e mesmoa escravidão que serve de principal baliza para explicitarmosa contradição <strong>do</strong> liberalismo brasileiro só foi abolidana democracia americana pela 13 a emenda de 1865,e apenas um pouco antes nas colônias inglesas (1838)e francesas (1845). Se hospedávamos ideias deslocadasentre nós, nunca estivemos sozinhos no clube <strong>do</strong>s mausanfitriões.Também não procede a alegação de discronia, oatraso atávico das ideias em relação às europeias. Se oromantismo surge entre nós nos anos <strong>do</strong> Regresso, tambémna França, esteve muito atrasa<strong>do</strong> se compara<strong>do</strong> àAlemanha e à Inglaterra. O romantismo brasileiro, herdeiro<strong>do</strong> francês, traduziu suas ideias por aqui quase que imediatamentegraças ao pioneirismo de Gonçalves de Magalhães136 e Araújo Porto Alegre. O IHGB (1838) que auxiliouem sua difusão “oficial” foi cria<strong>do</strong> apenas quatro anos apóssua inspiração francesa. O mesmo vale para o positivismoque foi dissemina<strong>do</strong> no <strong>Brasil</strong> quase que imediatamentepor Miguel Lemos e Teixeira Mendes, contemporâneosde Littré e Laffitte que divulgaram a “ordem e o progresso”após a morte de Comte em 1857. O Colégio Pedro II, cria<strong>do</strong>em 1837, tinha em seu curriculum aulas de descobertascientíficas que haviam ocorri<strong>do</strong> menos de uma década136 Domingos José Gonçalves de Magalhães é o pioneiro <strong>do</strong> romantismo no<strong>Brasil</strong> com “Suspiros poéticos e saudades” publica<strong>do</strong> na Europa em 1836,onde junto com Pereira da Silva e Torres Homem publicava a efêmera revistaliterária Niterói. É também o pioneiro na prosa romântica com “Antonio Joséou o poeta da Inquisição” (1838). Foi considera<strong>do</strong> um poeta formalista epouco inspira<strong>do</strong> tanto por contemporâneos quanto por críticos posteriores.Sua obra mais polêmica, no entanto, foi A confederação <strong>do</strong>s Tamoios (1857),fortemente inspirada no Uraguai de Basílio da Gama que lhe valeu polêmicacom José de Alencar. Magalhães foi defendi<strong>do</strong> pelo próprio impera<strong>do</strong>r queescreveu nos jornais sob pseudônimo.


213O Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>(1840-1889)antes na Europa. Os alunos brasileiros estavam atualizadíssimoscom a moderna ciência da época, possivelmentemais que muitos alunos <strong>do</strong>s dias de hoje.Ao Colégio Pedro II, ícone máximo da educação básicano Império somam-se diversos outros colégios regionaise estaduais que seguiam os modelos <strong>do</strong> Pedro II. Erao único colégio que dava aos seus forman<strong>do</strong>s o título debacharéis em ciências e letras e que lhes franqueava acessoautomático nas instituições de nível superior <strong>do</strong> Império.Destas as duas mais relevantes eram as duas faculdadesde Direito em São Paulo e Pernambuco que entre a Regênciae o Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong> substituíram definitivamentea Universidade de Coimbra como centro de formação debacharéis. Para José Murilo de Carvalho, foram os magistra<strong>do</strong>so grupo social responsável pelo Regresso centraliza<strong>do</strong>rque consoli<strong>do</strong>u o Esta<strong>do</strong> Imperial e a homogeneidadejurídica da formação reformista conserva<strong>do</strong>ra, herdada deCoimbra e reproduzida nas faculdades de direito brasileiras,o que garantiu a unidade da monarquia. Não é possívelentender a história cultural brasileira no Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>e mesmo depois, sem levarmos em consideração quea maioria esmaga<strong>do</strong>ra <strong>do</strong>s poetas, romancistas, ensaístas,filósofos, e escritores em geral tinham formação jurídica.A cultura jurídica permeia generalizadamente a formaçãointelectual brasileira.O ensino da Engenharia estava restrito às escolas militares,e só passou a ser ofereci<strong>do</strong> aos civis em 1874 com acriação no gabinete <strong>do</strong> Visconde <strong>do</strong> Rio Branco – ele própriomilitar de formação matemática – da Escola politécnica<strong>do</strong> Rio de Janeiro. Priorizava-se, compreensivelmente,o ensino da ciência da mineração e da metalurgia dentro<strong>do</strong> campo da engenharia nacional. No Perío<strong>do</strong> joaninoforam cria<strong>do</strong>s cursos de agricultura na Bahia e no Rio deJaneiro que até a década de 1870 permaneceram sen<strong>do</strong>praticamente os únicos onde a ciência agrária era ensinadainstitucionalmente. Nos anos finais <strong>do</strong> império escolasde ciências agrárias começaram a se disseminar e se espalharampor diversas províncias (Rio Grande <strong>do</strong> Sul, MinasGerais, São Paulo). Também foi o caso das escolas de medicinacirúrgica (Rio e Salva<strong>do</strong>r) que se tornaram no perío<strong>do</strong>regencial (1832) faculdades de medicina.Naturalmente a primazia cultural se deve ao InstitutoHistórico e Geográfico Nacional (1838), principalinstituição de pesquisa e polo difusor das ideias culturais.Ideia de Januário Cunha Barbosa era composta basicamentepor intelectuais palacianos, nobilita<strong>do</strong>s peloprimeiro ou que o seriam pelo segun<strong>do</strong>. Congregava oprincípio ilustra<strong>do</strong> da busca pelo conhecimento e pelaciência com o espírito romântico que se difundiu a partir<strong>do</strong> IHGB a ponto de se confundir com ele. Fica patentee indiscutível o caráter “oficial” <strong>do</strong> romantismo brasileiroe seu objetivo político explícito.Em sua primeira geração o romantismo brasileiroviabilizava culturalmente o projeto conserva<strong>do</strong>r em curso


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>214estimulan<strong>do</strong> o nacionalismo por meio de obras patrióticasque exaltavam a figura <strong>do</strong> índio. Acusa<strong>do</strong> de antilusitanismo,o paladino-mor <strong>do</strong> movimento, Gonçalves de Magalhãesrespondia que em todas as nações <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> oshomens chamam de conterrâneos aqueles que nascemna mesma terra, ainda que falem línguas distintas. Assimsen<strong>do</strong>, ele optava explicitamente por se irmanar ao índio eesta escolha era política. Criava-se uma mitologia brasileirabaseada na pureza, ingenuidade e honra <strong>do</strong> nativo queforam legadas aos brasileiros mesmo após o genocídio<strong>do</strong>s nativos pelos portugueses. A literatura patriótica daprimeira geração era uma literatura de autoafirmação quetinha uma forte dimensão retrospectiva, nativista, e resgatavapoetas <strong>do</strong> Perío<strong>do</strong> colonial como Santa Rita Durão eBasílio da Gama que com o Uraguai e Caramuru já haviamlança<strong>do</strong> as bases deste indigenismo, ten<strong>do</strong> os personagensindígenas em papéis protagonistas.O nativismo <strong>do</strong> IHGB, ironiza<strong>do</strong> por Varnhagen étípico <strong>do</strong> romantismo. Trata-se da dimensão retrospectiva deresgate colonial idealiza<strong>do</strong>, tanto <strong>do</strong>s árcades da inconfidênciaquanto <strong>do</strong>s movimentos anteriores aos quais se atribuíaum anacrônico desejo de independência de Portugal.A valorização da natureza – ambiente <strong>do</strong> índio –também era uma característica <strong>do</strong> romantismo, que acabouse tornan<strong>do</strong> uma constante no panorama culturalbrasileiro. Estava em voga na Europa, por conta da urbanizaçãoe <strong>do</strong> distanciamento <strong>do</strong> elemento rural, a valorizaçãoda paisagem, da natureza selvagem, que motivou asviagens e expedições estrangeiras ao <strong>Brasil</strong>. Tal percepção<strong>do</strong> “autoexotismo” foi incorporada pelos escritores brasileiroscomo um sinal de glória e projeção <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. A naturezaexuberante – selvas, praias, rios, montanhas, a diversidadeda fauna e da flora – passou a ser considerada o maior patrimônionacional.O principal e mais inspira<strong>do</strong> poeta <strong>do</strong>s índios foi omaranhense Antônio Gonçalves Dias (1823-1864), verdadeirogênio literário brasileiro. Fez parte de uma das últimasgerações <strong>do</strong> Império a decidir-se por ir estudar direito emCoimbra, onde editou uma gazeta literária. O surgimentode Gonçalves Dias na cena literária brasileira é considera<strong>do</strong>pelos críticos em geral – Antônio Candi<strong>do</strong>, por exemplo – asuperação de quase meio século de falta de inspiração artístico-literária.Seus livros Primeiros Cantos (1846) e Segun<strong>do</strong>sCantos (1848) escritos ainda na Europa deram um enormefôlego ao romantismo brasileiro e sua Canção <strong>do</strong> Exílio é aindahoje repetida e declamada. A temática <strong>do</strong> índio nem eraa mais frequente em sua obra. Dias cantou ainda a solidão, amelancolia, a natureza, a fé religiosa, e a saudade, da pátria,da infância, to<strong>do</strong>s temas românticos. O olhar da posteridade,no entanto, voltou-se para o índio. O escritor português AlexandreHerculano que elogiou seus livros, lamentava a faltade mais poemas sobre os índios, reclamação tipicamenteeuropeia. Mais que cantor <strong>do</strong>s índios, Gonçalves Dias foi ocantor <strong>do</strong> holocausto nativo. Da tragédia e <strong>do</strong> genocídio <strong>do</strong>


215O Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>(1840-1889)índio, um índio ao mesmo tempo épico e elegíaco, que exigiade Tupã sua vingança. Gonçalves Dias trabalhou para oImpério como educa<strong>do</strong>r e diplomata e morreu num naufrágiona costa maranhense quan<strong>do</strong> voltava da Europa aos 41anos de idade. To<strong>do</strong>s os passageiros e a tripulação sobreviveram,exceto o poeta que foi esqueci<strong>do</strong> no leito onde deviasonhar com Palmeiras.Os poetas que sucederam Gonçalves Dias, multiplicaramas temáticas e enfoques de mo<strong>do</strong> tão plural que maisinteligente seríamos nos referirmos aos “romantismos” noplural. O elemento identitário, fortemente político da primeirageração dará lugar à uma introspecção na geraçãoseguinte. A segunda geração romântica, identificava-secom o “mal <strong>do</strong> século” de Lord Byron, poeta inglês quemorrera na Grécia durante a luta de independência destepaís. Poetas como Álvares de Azeve<strong>do</strong> (1831-1852),Junqueira Freire (1832-1855), Casimiro de Abreu (1839--1860) e Fagundes Varela (1841-1875) terão to<strong>do</strong>s emcomum a união <strong>do</strong>s temas <strong>do</strong> amor e da morte. Morte quealiás os fez célebres. Colheu-os precocemente, com exceção<strong>do</strong> último que viveu quase três décadas e meia, umrecorde neste time – <strong>do</strong> qual também faria parte CastroAlves – onde não se passava <strong>do</strong>s vinte e cinco 137 .137 A questão da sobrevivência não é trivial. Leiamos o que escreve a esserespeito Ricupero, ao nos lembrar que o Barão <strong>do</strong> Rio Branco tinha já perdi<strong>do</strong>seus oito irmãos quan<strong>do</strong> chegou aos 55 anos. “Em país de expectativa deA forte característica introspectiva desta geração,não raro flertava com a morbidez e com o niilismo. No casode Álvares de Azeve<strong>do</strong>, vinha acompanhada da libertinagem,da boemia, da irreverência he<strong>do</strong>nista que fez dele o“poeta da noite”. Já Junqueira Freire foi marca<strong>do</strong> pela experiência<strong>do</strong> claustro religioso que aban<strong>do</strong>u, ainda que tenhamanti<strong>do</strong> a fé, defendia uma religiosidade menos mística emais humana, mundana e cotidiana. O tema da nostalgiada infância também aparece em Casimiro de Abreu, que seeternizou com o poema Meus oito anos.O elemento político reifica<strong>do</strong>r, nacionalista, construtorde uma identidade nacional oficialista da primeirageração contrasta com o caráter contesta<strong>do</strong>r da terceirageração romântica. Superan<strong>do</strong> o caráter introspectivo dastemáticas românticas da segunda geração, o romantismoda terceira geração é engaja<strong>do</strong> como a primeira mas longede ser oficialista é fortemente crítico àquele que era agrande questão social <strong>do</strong> Império: a escravidão. Expressãomáxima desta geração chamada “con<strong>do</strong>reira” foi o jovempoeta baiano Antônio Frederico de Castro Alves (1847-1871)vida média de trinta e poucos anos, onde os muito ricos como Eduar<strong>do</strong>Pra<strong>do</strong> morriam de febre amarela aos 41 anos, políticos promissores comoTavares Bastos desapareciam aos 36 e poetas como Álvares de Azeve<strong>do</strong>,Fagundes Varela, Junqueira Freire e Castro Alves mal passavam <strong>do</strong>s 20,sobreviver, simplesmente durar, era já sinal de boa fortuna e condição parafazer alguma coisa.” (RICUPERO, Rubens. Rio Branco. O <strong>Brasil</strong> no Mun<strong>do</strong>, Rio deJaneiro: Ed. Contraponto, 2000. p. 11)


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>216que foi contemporâneo de Fagundes Varela, Rui Barbosa,Joaquim Nabuco, Afonso Pena, Salva<strong>do</strong>r de Men<strong>do</strong>nça, RodriguesAlves, muitos deles seus colegas na faculdade deDireito de São Paulo onde não concluiu seu curso.Seu mais recente biógrafo, o Embaixa<strong>do</strong>r Albertoda Costa e Silva, destaca que no início da década de 1860quan<strong>do</strong> quase ninguém era abolicionista, Castro Alves,com 16 anos, já escrevia A Canção <strong>do</strong> Africano (1863) e defendiao abolicionismo. Seus poemas contribuíram significativamentepara a difusão <strong>do</strong> movimento abolicionistano <strong>Brasil</strong>, sobretu<strong>do</strong> no magnífico Navio Negreiro (1868),obra-prima que merece ser lida na íntegra, de preferênciaem voz alta. Este autor não se aborrecerá com o leitor queinterromper a leitura imediatamente para ler agora o NavioNegreiro, e inclusive estimula que o faça, mesmo que sejano Google <strong>do</strong> seu smartphone. Dever de aula!Li<strong>do</strong>?Se é que ainda cabe algo a ser dito sobre o NavioNegreiro, ficam alguns comentários, muitos <strong>do</strong>s quaistem o crédito o embaixa<strong>do</strong>r Costa e Silva. Parece um filmeHollywoodiano, 70 anos antes de Cecil B. DeMille.A câmara vai descen<strong>do</strong> <strong>do</strong>s céus, em um zoom de aberturaque pega empresta<strong>do</strong> os olhos <strong>do</strong> albatroz <strong>do</strong>oceano. Começa leve, onírico. O poeta sonha e devaneiacom o rastro <strong>do</strong> navio e ao se aproximar, especula quepovos navais conduzem o “brigue voa<strong>do</strong>r”. Se houvessetrilha sonora seria o Bolero de Ravel com seu crescen<strong>do</strong>de tensão. A quebra na tranquilidade narrativa abruptacomo uma cena de Hitchcock, se dá quan<strong>do</strong> o poetavislumbra a “cena de horror” na qual “tétricas figuras” sãoobrigadas a dançar no convés de um navio negreiro aoritmo de um chicote enquanto “ri-se Satanás”. Não faltaao cinema poético de Castro Alves flashbacks sobre avida idealizada que os escravos viviam na África, “a virgemna cabana” sequestrada. A parte final é incrível ebem conhecida. Juntos concluem o poema o patriotismoe a indignação. Um manifesto da vergonha de sercompatriota de um país que permite que sua bandeiraseja usada para tal “infâmia e covardia”. Faltou um efeitode Cecil B. DeMille que fizesse realmente o mar de Andradae de Colombo fechar-se para os navios negreiros,mas isto fica subentendi<strong>do</strong> na imaginação <strong>do</strong>s leitores/ouvintes.É incrível a coragem de um jovem de 21 anos quedeclamou seu poema perante o auditório lota<strong>do</strong> <strong>do</strong> Teatrobaiano para uma audiência majoritariamente cúmplice ebeneficiária da escravidão. A repetição de um refrão “SenhorDeus <strong>do</strong>s Desgraça<strong>do</strong>s” convoca a incorporação damensagem trágica e a responsabilidade é compartilhadacom a plateia na hora da surpresa na hora em que se percebeque a bandeira é na verdade “o auriverde pendão” danossa terra. O tráfico negreiro já acabou há 18 anos, mas aguerra <strong>do</strong> Paraguai está em pleno curso em 1868. A licençapoética é temporal. No poema o tráfico negreiro está


217O Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>(1840-1889)vivo, bem vivo, mas a guerra é passa<strong>do</strong> nos versos “anteste houvessem roto na batalha/que servires a um povo demortalha!...”.Mas se a batalha ainda não se havia concluí<strong>do</strong>, oleitor/ouvinte é obriga<strong>do</strong> a se questionar que tipo de“infâmia”, que tipo de “covardia” subsistirá sob o “auriverdependão” finda a Guerra. A discronia é brilhante e proposital.Ela amaldiçoa a escravidão e não o tráfico negreiro,apelan<strong>do</strong> para o patriotismo de brasileiros escravistas ouindiferentes, justo no momento de maior sensibilidade patrióticaque é foi a Guerra <strong>do</strong> Paraguai. Por seu impacto emprol <strong>do</strong> movimento abolicionista ainda embrionário, é justodizer que o navio negreiro foi o Amazing Grace 138 .Os temas sociais não são exclusivamente volta<strong>do</strong>spara os escravos, embora naturalmente, em virtude desua realidade Castro Alves tenha acaba<strong>do</strong> por se tornar o“poeta <strong>do</strong>s escravos”. Ele também se manifestava contra apobreza e a injustiça em geral, tal qual aparece em diversosde seus poemas. Foi o precursor de uma literatura abolicionistaque aparece novamente em Bernar<strong>do</strong> de Guimarães,José <strong>do</strong> Patrocínio e Luis Gama, os <strong>do</strong>is últimos, mulatos,que deram, em seu jornalismo e teatro, voz não branca ao138 Canção inglesa composta por pastor, ex-capitão de navio negreiro, JohnNewton que virou hino contra o tráfico de escravos na campanha <strong>do</strong>sQuakers, Wilberforce, e demais abolicionistas na Inglaterra <strong>do</strong> final <strong>do</strong> séculoXVIII.abolicionismo. O abolicionismo é frequentemente retrata<strong>do</strong>como mobilização exclusiva de brancos em prol <strong>do</strong>sescravos, esvazian<strong>do</strong> a agência <strong>do</strong>s negros no processopolítico que conduziria à abolição. A Lei Áurea, nesta perspectivahistoriográfica pálida seria mera dádiva da redentora,à qual os negros deveriam, portanto, gratidão eterna.Outro poeta que teima em fugir aos cânones tradicionaise não se encaixa nas etiquetas tradicionais dasescolhas dezenovescas é Sousândrade, também maranhense,autor <strong>do</strong> livro Guesa Errante escrito em Nova Yorkdurante décadas e concluí<strong>do</strong> em 1888. Tinha uma perspectivaindigenista muito curiosa, por ser o índio <strong>do</strong> continenteamericano – o inca – não o índio brasileiro. Cheiode neologismos, de rimas mais livres e fugin<strong>do</strong> à métrica,o Guesa é profundamente critico ao capitalismo, que Sousândradeenxergava como uma <strong>do</strong>ença. Esqueci<strong>do</strong> porquase um século Sousândrade foi recupera<strong>do</strong> pela críticaliterária <strong>do</strong>s irmãos Campos, pioneiros <strong>do</strong> construtivismona década de 1960, responsáveis pela análise e resgatede sua obra.Em prosa os grandes expoentes literários <strong>do</strong> Perío<strong>do</strong>romântico foram José de Alencar, Joaquim Manoel deMace<strong>do</strong> e Manoel Antônio de Almeida. To<strong>do</strong>s três ambientaramseus romances na corte fluminense, mas cortesmuito distintas. Mace<strong>do</strong>, preferia focar no polo palaciano,a elite nobilitada, enquanto Almeida, em Memórias de umsargento de Milícias (1854) trata da rua, da vida cotidiana


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>218daqueles que “se viravam” para sobreviver na corte fluminense,fossem remedia<strong>do</strong>s ou funcionários públicospobres, como é o caso de Leonar<strong>do</strong>, o protagonista quese torna sargento da guarda que o perseguia quan<strong>do</strong>moleque. Um romance “malandro” no dizer de AntônioCândi<strong>do</strong>. Alencar era o meio-termo. Optou por enfocar acamada média da sociedade imperial em seus romancesurbanos. Seria uma espécie de Nelson Rodrigues às avessas.Tal qual o dramaturgo <strong>do</strong> século XX, preferia submeterseus personagens a situações extremas, no limite daética mas o final feliz e moralista, fortemente conserva<strong>do</strong>re tradicionalista, contrastava com a mercantilizaçãodas relações amorosas que ele retratava em suas tramas– Lucíola, Senhora – e o diferenciava <strong>do</strong> vanguardismosexual de Nelson. O conserva<strong>do</strong>rismo também aparecenas obras indigenistas, nas quais o índio será dignifica<strong>do</strong>e valoriza<strong>do</strong> na medida em que se submete ao coloniza<strong>do</strong>re é por ele acolhi<strong>do</strong>. A valorização <strong>do</strong> elemento coloniza<strong>do</strong>rcontrasta com a postura crítica em relação aosportugueses de Gonçalves de Magalhães.A geração seguinte é a geração de 1870, a geraçãode Castro Alves que morreu muito antes que os demaiscolegas brilhantes de sua geração alcançassem a notoriedadeque ele precocemente alcançou.Para Silvio Romero a geração de 1870 foi a expressãode “um ban<strong>do</strong> de ideias novas” importadas cuja cópiaficou mal ajustada ao <strong>Brasil</strong>. Ângela Alonso repudiaesta visão, expressa ainda de mo<strong>do</strong> mais sofistica<strong>do</strong> emRoberto Schwarcz, que defende que as ideias “estavamfora <strong>do</strong> lugar”. Alonso utiliza o conceito de “repertório”resgatan<strong>do</strong> a agência <strong>do</strong>s intelectuais brasileiros na seleção,incorporação e adaptação das ideias europeias eamericanas ao <strong>Brasil</strong>. Frutificaram nacionalmente aquelasideias que melhor serviriam ao reformismo sociopolítico,a partir da década de 1870.Alfre<strong>do</strong> Bosi enfatiza em seu texto sobre a culturano segun<strong>do</strong> reina<strong>do</strong> o lega<strong>do</strong> oposto <strong>do</strong> positivismo e <strong>do</strong>darwinismo escolas que se desenvolveram no <strong>Brasil</strong> nobojo da geração de 1870. Marca<strong>do</strong>s pelo evolucionismoos herdeiros de Comte e Spencer epitomizaram o debateintelectual brasileiro <strong>do</strong>s anos finais <strong>do</strong> regime monárquicocom lega<strong>do</strong>s bastante distintos. O positivismo temuma visão mais autoritária e enxergava a “ditadura” comouma alternativa positiva de modernização e progresso. Noentanto, herdeiros notórios <strong>do</strong>s positivistas como MarechalRon<strong>do</strong>n, Júlio de Castilhos e Getúlio Vargas legaram-nosa proteção aos índios e a legislação trabalhista. Por outrola<strong>do</strong> os darwinistas spencerianos enxergavam no progressoum obstáculo determinante: a marca racial. A ideia debranqueamento racial afetou diversas gerações de intelectuaise políticos brasileiros que acreditavam que o <strong>Brasil</strong> sóse desenvolveria mediante atração de imigrantes que viabilizassemno médio e no longo prazo o branqueamentoda população.


219O Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>(1840-1889)Se liberalismo legou conquistas políticas importantes,havia, no entanto, negligência para com os direitossociais, como, aliás, é típico <strong>do</strong> liberalismo <strong>do</strong> século XIX.Entre os positivistas o racismo tinha muito menos espaço.Este debate apareceu de mo<strong>do</strong> mais bem acaba<strong>do</strong> na disputaentre Clóvis Bevilacqua e Rui Barbosa para a confecção<strong>do</strong> código civil brasileiro que só ficou pronto em 1916,já sob a República.Rui Barbosa, tal qual Joaquim Nabuco e o próprioCastro Alves, colega de turma que desapareceu tão ce<strong>do</strong>,tiveram suas obras marcadas pelo dilema e luta pela liberdade.A liberdade <strong>do</strong>s escravos era a mais óbvia e explícita,mas nas obras <strong>do</strong> primeiro baiano aparecem igualmentea liberdade religiosa – e o direito a voto para os não católicos– e a liberdade de ensino, reformas que Rui tentouimplementar, sem sucesso, no perío<strong>do</strong> de governo liberalna última década <strong>do</strong> regime.A disseminação <strong>do</strong> pensamento científico, fortementeenviesa<strong>do</strong> pelo racismo cientificista, presente nasescolas de medicina, por exemplo, teve impacto grande naliteratura. O realismo brasileiro foi influencia<strong>do</strong> por EmileZola e seu Germinal (1885) quase que imediatamente. Emo Ateneu (1888) de Raul Pompéia e O Cortiço (1890) AluisioAzeve<strong>do</strong> encontram-se os <strong>do</strong>is mais famosos exemplos literáriosde determinação <strong>do</strong> homem pelo meio em quevive. A comparação das massas humanas com os vermesque se movem para o trabalho de mo<strong>do</strong> cego e instintivo écomum em Aluisio Azeve<strong>do</strong> e em Zola. O português trabalha<strong>do</strong>re dedica<strong>do</strong> supervisor da pedreira vai se deixan<strong>do</strong>cair no estupor da atividade degradante da vida <strong>do</strong> cortiço,passa a beber cachaça, se amasia com uma brasileira elarga família. O tom da ironia é moralizante. Ao se livrar daBertoleza, escrava com quem fez a vida antes de enricar,João Romão segue para o encontro de abolicionistas semmaiores dramas de consciência.Já na obra de Raul Pompéia, a escola de jovens évista como um microcosmo da sociedade cruel. Os determinismossão de natureza hereditária e a crueldade, acompetição, as assimetrias da sociedade fazem da escolaambiente igual e não protegi<strong>do</strong>. O retrato é ameaça<strong>do</strong>r.O naturalismo de Raul Pompéia assim como o de Macha<strong>do</strong>de Assis, vislumbra as características e os defeitosda alma, mais que os vícios <strong>do</strong> corpo que aparecem emO Cortiço.Macha<strong>do</strong> de Assis é autor à parte. Basta dizer queum mulato autodidata se tornou o maior escritor brasileirode to<strong>do</strong>s os tempos. Sua obra foi analisada centenasmilhares de vezes em outras obras que se tornaram porsua vez igualmente clássicas. Ela vai se desenvolven<strong>do</strong>sempre genialmente, <strong>do</strong> jornalismo aos contos, das crônicasde periódicos aos romances como Quincas Borca,Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro e Esaúe Jacó, to<strong>do</strong>s marca<strong>do</strong>s pela ironia social e política, pelaincrível capacidade de desnudar psicologicamente seus


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>220personagens e de provocar a reflexão no leitor, inclusivepara a posteridade, que segue em dúvida até nossos diassobre a traição de Capitu em Dom Casmurro. Apesar de terti<strong>do</strong> sua obra atravessan<strong>do</strong> a mudança de regime, e suacarreira sen<strong>do</strong> coroada com a criação da Academia <strong>Brasil</strong>eirade Letras, Macha<strong>do</strong> é certamente um escritor da monarquia,perío<strong>do</strong> no qual construiu sua trajetória.O parnasianismo e o simbolismo trazem à tona umadiscussão mais ampla da arte pela arte. Uma arte menosengajada que prenuncia novamente este mesmo debatena comparação entre o Teatro <strong>Brasil</strong>eiro de Comédia (Anos50) vs. O Opinião e o Arena (anos 60), ou entre o tropicalismoe a jovem guarda, ou ainda entre o cinema novo ea chanchada. Naturalmente tratam-se distinção entre expressõesartísticas que buscam na sua função social ou políticao elemento de classificação. Diz Bosi:a poesia converteu-se em uma sociedade regida culturalmentepelas novas burguesias, em aparelho decorativo.Seu status passou a valer enquanto objeto pairan<strong>do</strong>fora <strong>do</strong> tempo e <strong>do</strong> espaço cotidiano.Os parnasianos optam pelo fetiche da palavra.O conteú<strong>do</strong> é menos importante que a forma, insurgin<strong>do</strong>-secontra o romantismo subjetivo. A objetividade éconcreta em sua semântica, mas o fim maior são as rimasricas ainda que estas expressem sentimentos poderososde sensualidade, erotismo e volúpia em Olavo Bilac, ou dereflexão melancólica em Raimun<strong>do</strong> Correia.Tal qual o parnasianismo o teatro <strong>do</strong> Império, como,aliás, em qualquer tempo sofria ainda mais os dilemas provoca<strong>do</strong>spela necessidade de equacionar a arte pela artecom a expressão de uma arte reflexiva ou crítica. A necessidade<strong>do</strong> público condiciona o teatro de mo<strong>do</strong> muitomais imediato <strong>do</strong> que condiciona a literatura ou a poesia.O custo de produção e reprodução da poesia é ínfimo secompara<strong>do</strong> ao teatro, e pode ser banca<strong>do</strong> por diletantes.O hábito <strong>do</strong> caderno de poesia nas salas das “boas” famíliascontribuiu, segun<strong>do</strong> Alberto da Costa e Silva para a famade Castro Alves entre seus contemporâneos. Mesmo umaaudição ou declamação teatral prescinde de música, cenárioou figurino. A moda de ser poeta que gerações debacharéis bem educa<strong>do</strong>s viveram nos anos <strong>do</strong> império, pareceter si<strong>do</strong> ainda mais poderosa que a moda das bandase violões entre a juventude brasileira a partir <strong>do</strong>s anos 50.Em um e outro caso, fica patente que a quantidade geraquantidade e os talentos se criaram por meio da interlocuçãoe da prática. Tu<strong>do</strong> isso é mais difícil no teatro – eno século XX, no cinema – o que explica que o gênio deGonçalves Dias tenha frutifica<strong>do</strong> em sua poesia mas nãono seu teatro.A formação de um processo econômico por trás<strong>do</strong>s espetáculos teatrais na corte começou a se criar coma vinda da família real e se consoli<strong>do</strong>u com a dramaturgiade Martins Pena. Em dupla com o ator João Caetano, comquem formou uma parceria artístico comercial muito


221O Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>(1840-1889)bem-sucedida, foram produzidas dezenas de peças, emgeral comédias que eram da preferência <strong>do</strong> público, mesclan<strong>do</strong>situações motes de comicidade que envolviam ostipos os mais varia<strong>do</strong>s da sociedade brasileira de então.O cortesão, o meirinho, o funcionário público, o barão, oescravo, a mulher adúltera, o médico, o capitão da guardanacional. A criação de tipos facilmente identificáveiscriou um estilo de comédia que teria vida dura<strong>do</strong>ura noteatro, no rádio e na televisão brasileira no século XX.A comédia de tipos que celebrizou Jô Soares, Chico Anysioe tantos outros programas de humor cuja raiz pareceestar no nosso teatro dezenovesco incrivelmente prolífico,<strong>do</strong> qual Martins Pena foi o grande promotor nos anosde 1830/1840.Nas décadas finais <strong>do</strong> Império, o espetáculo vai fican<strong>do</strong>mais “espetacular”. O teatro deixa de ter como meiodetermina<strong>do</strong> o texto para se tornar uma produção cara.A expressão dramatúrgica adquire características que a tornammais que um gênero literário. A transição de José deAlencar <strong>do</strong> teatro dito “sério”, que promove a reflexão, paraum teatro de revista/opereta, que diverte, é evidência dadificuldade de emplacar textos como os que discutiam aescravidão e os dilemas familiares nas primeiras peças deAlencar. O exemplo de Artur Azeve<strong>do</strong> (irmão de Aluisio)é emblemático. Suas peças mais elaboradas fracassaram.Dependente <strong>do</strong>s “empresários” <strong>do</strong> teatro, optou por comporrevistas que, mais que “inspiradas” nas revistas francesasda mesma época, valeram a este autor a acusação deser o responsável pela decadência <strong>do</strong> bom teatro brasileiro.Seu sucesso de público, no entanto, inicia<strong>do</strong> na décadade 1870 atravessaria o 15 de novembro e seguiria Repúblicaadentro.Soma<strong>do</strong> ao Colégio Pedro II e ao Instituto Históricoe Geográfico <strong>Brasil</strong>eiro estava a Academia Imperial deBelas Artes. A atuação unificada destas três instituiçõesevidenciam a existência deliberada de um projeto culturalcom o objetivo explícito de criar uma identidade nacional.O Impera<strong>do</strong>r dava nome ao colégio, e era o patrono <strong>do</strong>Instituto Histórico desde sua criação, ten<strong>do</strong> cedi<strong>do</strong> umasala no Paço Imperial para sua primeira reunião. Instituiuprêmios para os melhores trabalhos apresenta<strong>do</strong>s no IHGBdesde o início <strong>do</strong>s anos de 1840. Torna-se o Instituto umcentro difusor da pesquisa histórica, geográfica e literária eum media<strong>do</strong>r institucional entre os intelectuais e o Esta<strong>do</strong>,que custeava 75% de sua verba. O impera<strong>do</strong>r se interessavapessoalmente pelas pesquisas <strong>do</strong> Instituto e presidiumais de 500 de suas sessões. Foi onde se difundiu o indianismocomo símbolo da nacionalidade, que na literatura seexpressou no romantismo <strong>do</strong>s primeiros anos.No plano da história, a proposta de Von Martius deconstruir a historiografia brasileira na contribuição dastrês raças (brancos, negros e índios) acabou naturalmentepor valorizar o indígena simbolicamente em relação aosnegros, mas também aos portugueses que precisavam


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>222ser denegri<strong>do</strong>s, por motivos distintos. Os negros eramtambém “importa<strong>do</strong>s” e, nesse senti<strong>do</strong>, estrangeiros 139 .A sociedade, mais que racista, era escravista. Não haviacomo, um projeto de elite como era o IHGB construir nossanacionalidade com base na contribuição primordial <strong>do</strong> negro.O próprio português também não servia. A afirmaçãoda nacionalidade brasileira se dava pela negação simbólicade Portugal. O <strong>Brasil</strong> para ser independente não podiaser português. O herói nacional da independência, oprimeiro impera<strong>do</strong>r era português e para os liberais, o 7de abril era a verdadeira emancipação da metrópole. Issofica patente com a polêmica da construção da estátua dePedro I nos anos de 1860 na praça da Constituição. Assim, aconstrução da identidade nacional acaba se tornan<strong>do</strong>deliberadamente vinculada à figura <strong>do</strong> índio. Um índiorousseauniano, o bom selvagem. Transplantava-se a visãoidealizada e romantizada <strong>do</strong>s cientistas e naturalistas estrangeirosque visitaram o <strong>Brasil</strong> no perío<strong>do</strong> joanino e no1 o Reina<strong>do</strong> da natureza tão em moda numa Europa que seurbanizava aceleradamente.A obra de José de Alencar com seus senhores bon<strong>do</strong>sose índios honra<strong>do</strong>s foge ao modelo de desvalorizaçãosimbólica <strong>do</strong> português e recupera a contribuiçãolusitana idealizada. Transplantada para a ópera na décadade 1870 foi apresentada por Carlos Gomes no Teatro Scalade Milão financiada por Pedro II. O Impera<strong>do</strong>r exportava o<strong>Brasil</strong> para a Europa nos modelos reconhecíveis como civiliza<strong>do</strong>spelos Europeus: a ópera. O indianismo, mais queum projeto estético era um projeto oficial de construçãoda nacionalidade. Lilia Moritz Schwarcz cita a valorizaçãoda língua indígena que ele próprio inclusive aprendeu, ese valeu dela para a concessão de títulos de nobreza comnomes indígenas ou de locais com designação tupi, o quenão raro provocava desagra<strong>do</strong> naqueles que eram assimenobreci<strong>do</strong>s. O Visconde de Sinimbu ou <strong>do</strong> Inhomirim.O barão de Itamaracá ou Paranapiacaba e o para semprelembra<strong>do</strong>, Marquês de Sapucaí eram to<strong>do</strong>s exemplos datradução <strong>do</strong> costume topográfico da nobreza europeia àscondições tropicais da nossa monarquia.Também a Academia Imperial de Belas Artes de1826, herdeira da instituição criada por D. João dez anosantes terá papel fundamental por gravar no plano pictóricoeste projeto oficial de construção de uma identidadenacional brasileira no Império. Trata-se no médio prazo <strong>do</strong>desaparecimento <strong>do</strong> barroco e da imposição <strong>do</strong> neoclássicocomo a arte oficial <strong>do</strong> Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>, ainda querecentemente os historia<strong>do</strong>res tenham enfatiza<strong>do</strong> mais o139 Inclusive assim considera<strong>do</strong>s juridicamente. Um escravo alforria<strong>do</strong>, se fosseafricano, não teria direito à cidadania brasileira e teria que voltar para a África,poden<strong>do</strong> inclusive ser “deporta<strong>do</strong>”.


223O Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>(1840-1889)surgimento <strong>do</strong> individualismo 140 que uma dicotomia completaentre Neoclássico vs. Barroco.Mario Barata, acadêmico e gravurista, em seu textona <strong>História</strong> Geral da Civilização <strong>Brasil</strong>eira, aponta que odeclínio <strong>do</strong> barroco e sua substituição pelo neoclássico sederam de mo<strong>do</strong> muito desigual entre a Corte – centro difusor– e as províncias que aderiam muito gradualmente,sobretu<strong>do</strong> na arquitetura. Características nacionais comoo revestimento de azulejos nas fachadas das casas inicia<strong>do</strong>na década de 1840 relativizam a crença de cópia purae simples <strong>do</strong>s cânones europeus. Impossível desmerecer ainfluência de figuras como Grandjean de Montigny na arquiteturada Corte e na difusão de conhecimentos e técnicas depintura, escultura, gravação e arquitetura dissemina<strong>do</strong>s pelosfranceses na Academia. O neoclassicismo é igualmenteconheci<strong>do</strong> como Arte Acadêmica, que será muito critica<strong>do</strong>pelos modernistas a partir da década de 1920, dan<strong>do</strong> a dimensãode sua duração e persistência secular.O impera<strong>do</strong>r além de financiar pessoalmente a viagem-prêmioque dava três anos e bolsa na Europa parao estudante vence<strong>do</strong>r da exposição anual de Belas Artestambém servia frequentemente de modelo para retratosproduzi<strong>do</strong>s sob encomenda, como o famoso quadro de140 O exemplo desse individualismo esta na difusão <strong>do</strong> retratismo, desestimula<strong>do</strong>no perío<strong>do</strong> colonial por regras oficiais com poucas exceções, no Império setornou a moda maior das famílias ricas até o advento da fotografia.Pedro Américo majestático, que mostra o monarca abrin<strong>do</strong>os trabalhos da Assembleia Geral. O impera<strong>do</strong>r assumiao mecenato como uma obrigação de Esta<strong>do</strong>. Toda naçãocivilizada precisava de uma iconografia oficial e a nossa, aexemplo da Europeia, retratava os índios, o impera<strong>do</strong>r egrandes momentos históricos – a Primeira Missa, a vindada Família Real, a batalha de Guararapes. Não eram escolhasaleatórias.A dimensão ética também não está excluída destapintura acadêmica de objetivos pedagógicos. Pinturas demotivos bíblicos ou com motivos nobres. Devia-se inspirara moral, a bondade, o patriotismo e a honra. Tais pinturaseram a representação iconográfica <strong>do</strong> que se defendia porescrito no IHGB desde a década de 1850 e que na pintura ena escultura chegaram mais tarde. Diz Schwarcz:O romantismo brasileiro alcançou, portanto, grandepenetração, ten<strong>do</strong> o indígena como símbolo. Na literaturae na pintura os índios idealiza<strong>do</strong>s nunca foramtão brancos; assim como o monarca e a cultura brasileiratornavam-se mais e mais tropicais. Afinal, essa eraa melhor resposta para uma elite que se perguntava incessantementesobre sua identidade, sobre sua verdadeirasingularidade. Diante da rejeição ao negro escravoe mesmo ao branco coloniza<strong>do</strong>r, o indígena restavacomo uma espécie de representante digno e legítimo.“Puros, bons, honestos e corajosos”, os índios atuavamcomo reis no exuberante cenário da selva brasileira eem total harmonia com ela. Como dizia Magalhães: “Apátria é uma idéia, representada pela terra em que nascemos(...) De resto, o herói de um poema é um pretexto(...)” (SCHWARCZ, 1998, p.148).


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>224Este mesmo índio, símbolo da pátria seria depois utiliza<strong>do</strong>pelo cartunista Ângelo Agostini na década de 1880para satirizar o impera<strong>do</strong>r e os gabinetes. Como o Zé Povoda República Velha, o índio que foi elemento de consolidaçãoda identidade, agora resignifica<strong>do</strong> pela contestaçãodas charges, era usa<strong>do</strong> para criticar o governo, o que dábem a medida <strong>do</strong> sucesso <strong>do</strong> projeto identitário inicia<strong>do</strong>com o regresso.Cabe, no entanto, lembrar o óbvio. Este projeto nãotinha qualquer pretensão popular. Era um discurso para aselites, afinal apenas as elites liam os poemas e romancese compareciam às exposições de quadros e esculturas.Longe de querer aqui afirmar a inexistência de uma culturapopular, esta não fazia parte <strong>do</strong> projeto político-estéticoem curso para a construção de um nacionalismo brasileiro.Uma grande lacuna deste trabalho é negligenciar completamentea expressão da cultura popular que não é objetodas provas <strong>do</strong> concurso. O alcance <strong>do</strong> sentimento de nacionalidadeserá amplifica<strong>do</strong> durante a guerra <strong>do</strong> Paraguaipor conta <strong>do</strong>s contingentes de voluntários que viriam detodas as partes <strong>do</strong> país. Este projeto identitário não tinhacomo ter alcance maior <strong>do</strong> que o que teve, nem o desejava.Quan<strong>do</strong> começou a ser gesta<strong>do</strong>, no Regresso, importavamais era reincorporar as elites em esta<strong>do</strong> de rebelião – nosul, na Bahia, em São Paulo e Minas Gerais, em Pernambuco– e deslealdade para com a Coroa, símbolo da centralizaçãoem curso.Será apenas na Era Vargas, já sob o signo <strong>do</strong> modernismo,que o Esta<strong>do</strong> brasileiro terá efetivamente umprojeto cultural com o explícito objetivo de incorporar e alcançar“o povo” conforman<strong>do</strong> uma determinada forma deenxergar o <strong>Brasil</strong> e os brasileiros.


225O Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>(1840-1889)4.5 A política externa <strong>do</strong> Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>O processo decisório da política externa imperial.O Fim <strong>do</strong>s Trata<strong>do</strong>s desiguais.A política externa saquarema: os limites amazônicos eo intervencionismo platino. As relações bilaterais com aInglaterra. Imigração e influências culturais europeias.As relações com os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s e o panoramahemisférico. A Guerra <strong>do</strong> Paraguai. As relações com aArgentina após a Guerra <strong>do</strong> Paraguai.Ensaio universalista <strong>do</strong>s anos de 1880.Uma grande conquista que não desapareceu como golpe da maioridade foi a participação <strong>do</strong> parlamentobrasileiro no processo decisório em política externa. Aindaque tenha si<strong>do</strong> efetivamente restaura<strong>do</strong> o poder modera<strong>do</strong>re a constituição declarasse que o impera<strong>do</strong>r poderiaratificar trata<strong>do</strong>s que não cedessem territórios sem consultaao parlamento, o que se percebe é que o ativismo parlamentarnos debates de política externa durante a monarquiafoi bastante mais significativo <strong>do</strong> que sob a República,mesmo nos dias atuais. Hoje os temas de política externaseguem sen<strong>do</strong> pouco relevantes na agenda legislativa, aaprovação de embaixa<strong>do</strong>res pelo Sena<strong>do</strong> é quase automáticae o congresso nacional praticamente referendatu<strong>do</strong> que vem <strong>do</strong> Itamaraty, possivelmente reconhecen<strong>do</strong>a competência <strong>do</strong> ministério, mas diminuin<strong>do</strong> o debatepolítico sobre a ação externa brasileira e sua importânciade divulgação para o resto da sociedade. Tal característicanão poderia estar mais distante da realidade parlamentar<strong>do</strong> século XIX, onde controvérsias internacionais poderiamderrubar o gabinete que sofresse oposição parlamentar.Cervo e Bueno descrevem assim o processo decisório:As instituições, depois de consolidadas, funcionavamregularmente permitin<strong>do</strong> a continuidade <strong>do</strong>s órgãose <strong>do</strong>s homens que ocupavam os postos-chaves de coman<strong>do</strong>.A racionalidade era produzida pela avaliação ecrítica constantes da política externa feitas conjuntamenteno Parlamento, Conselho de Esta<strong>do</strong>, Gabinete echefia da nação, órgãos que a referiam às metas concretas.(...) A formulação de política externa fazia-se pormeio de um sistema de equilíbrio de influências em queos órgãos <strong>do</strong> Executivo e o Conselho de Esta<strong>do</strong>, maispropícios a se guiar pelas razão de Esta<strong>do</strong>, tinham delevar em conta a ingerência parlamentar, que se ligavateoricamente a nação (CERVO e BUENO, 2011, p. 157).Ainda que possamos questionar essa visão monolíticae acrítica de uma “razão de Esta<strong>do</strong>” objetiva e apreensívelconcretamente <strong>do</strong>s autores supracita<strong>do</strong>s, vale àpena recordar o conceito de caixa de ressonância para caracterizara ação parlamentar que Ama<strong>do</strong> Cervo cunhouem outra obra 141 . O Congresso <strong>do</strong> Império reverberava os141 CERVO, Ama<strong>do</strong> Luiz. O Parlamento brasileiro e as relações internacionais (1826-1889). Brasília: Ed. UnB, 1981.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>226temas <strong>do</strong> interesse da “nação” na ação externa <strong>do</strong> gabinetee alterava a política externa de acor<strong>do</strong> com essa influência.São inúmeros os exemplos, citemos apenas alguns.A revogação tácita da Lei Feijó que se tornou por mais deuma década lei para inglês por pressão saquarema emmomento de ascensão da cafeicultura fluminense; ouainda quan<strong>do</strong> sustentou as críticas aos trata<strong>do</strong>s desiguaise fez prevalecer a visão industrialista/protecionista nosanos 40 que se consubstanciaria com a Lei Alves Branco;a política imigratória; a pressão pelo intervencionismoplatino após o fim da Farroupilha são to<strong>do</strong>s exemplos deativa presença <strong>do</strong> parlamento em temas da atuação externabrasileira.Len<strong>do</strong> as atas objetivas e seguras <strong>do</strong> Conselho deEsta<strong>do</strong> sobre os temas de política externa percebe-se o papeldeterminante <strong>do</strong> Conselho de Esta<strong>do</strong>, frequentementeconsulta<strong>do</strong> sobre tu<strong>do</strong> o que era relevante em termos depolítica externa. A presença de experimenta<strong>do</strong>s conhece<strong>do</strong>res,quase sempre, ex-ministros, que tinham função perene– o Conselho era vitalício – favorecia a continuidadeda política externa. O interregno de sete anos sem Conselhode Esta<strong>do</strong> (1834-1841) prejudicou significativamente aatuação internacional <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>.A década de 1840 foi um marco na consolidaçãodestas instituições. A restauração plena <strong>do</strong> novo conselhode Esta<strong>do</strong> (1841), a Reforma Sepetiba no Ministério <strong>do</strong>sNegócios Estrangeiros (1842) e finalmente a aprovação daLei Alves Branco (1844) foram marcos que transcenderamo aspecto institucional e tiveram consequências importantespara a consolidação de uma política externa mais proativa.A superação <strong>do</strong> imobilismo regencial foi concomitanteao fim da Farroupilha e a crescente pressão gaúcha para aatuação brasileira mais firme na região platina. A décadade 1850 há de colher os frutos <strong>do</strong> que se plantou nos anosde 1840 e esta colheita será concomitante a presença dePaulino José Soares de Sousa à frente <strong>do</strong> Ministério <strong>do</strong>s NegóciosEstrangeiros entre 1849-1853.O futuro Visconde <strong>do</strong> Uruguai foi quem equacionouplenamente e com enorme grau de sucesso pendênciasimportantes nas relações bilaterais brasileiras com aInglaterra, o Uruguai, a Argentina, o Peru, e a tentativaparcialmente bem-sucedida de negociação de fronteirascom a Venezuela e a Colômbia. A questão <strong>do</strong> fim <strong>do</strong>tráfico será discutida em outra parte. Tratemos, pois, daatuação platina <strong>do</strong> gabinete da Trindade Saquarema e <strong>do</strong>seu encaminhamento das questões lindeiras com as repúblicasque fazem fronteiras conosco ao norte. Nos <strong>do</strong>iscasos houve uma significativa mudança de enfoque nosobjetivos estratégicos da política externa brasileira, aindaque na região platina a continuidade entre a política <strong>do</strong>sliberais (1844-1848) e <strong>do</strong>s conserva<strong>do</strong>res (1848-1853) sejabem mais perceptível.A grande reviravolta na região norte foi a aceitação<strong>do</strong> princípio <strong>do</strong> uti possidetis de Alexandre de Gusmão, que


227O Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>(1840-1889)vinha sen<strong>do</strong> advoga<strong>do</strong> por Duarte da Ponte Ribeiro desdeo final da década de 1830, sem receptividade no ministérioque chegou a afirmar que este princípio não servia ao <strong>Brasil</strong>.Cabe a Duarte da Ponte Ribeiro o mérito da reintrodução<strong>do</strong> princípio <strong>do</strong> uti possidetis nas negociações lindeiras<strong>do</strong> Império e cabe ao visconde <strong>do</strong> Uruguai a primazia deter da<strong>do</strong> o apoio político necessário à sua execução apósmais de uma década de insistência de Ponte Ribeiro 142 .Duarte da Ponte Ribeiro verá a relutância na aceitação<strong>do</strong> princípio <strong>do</strong> uti possidetis utiliza<strong>do</strong> para selar otrata<strong>do</strong> com o Peru em 1841 se tornar política oficial <strong>do</strong>Esta<strong>do</strong> com a chegada de Paulino a chancelaria. Era o repúdiooficial ao trata<strong>do</strong> de Santo Ildefonso, e as pretensõescontraditórias de afirmação de um pretenso uti possidetisde jure defendi<strong>do</strong> pela Colômbia que reafirmava a validade<strong>do</strong>s trata<strong>do</strong>s coloniais. O esforço lindeiro <strong>do</strong> gabinete saquaremafoi dividi<strong>do</strong> em duas missões de des<strong>do</strong>bramentosdistintos. Miguel Maria Lisboa foi envia<strong>do</strong> à Colômbia eà Venezuela, conseguin<strong>do</strong> firmar trata<strong>do</strong>s com ambas quenão foram ratifica<strong>do</strong>s 143 , e Duarte da Ponte Ribeiro foi novamenteenvia<strong>do</strong> em missão ao Peru e à Bolívia. Foi bem--sucedi<strong>do</strong> apenas no primeiro país, retoman<strong>do</strong> na práticaos termos <strong>do</strong> trata<strong>do</strong> não ratifica<strong>do</strong> pelo <strong>Brasil</strong> de 1841.Já na Bolívia <strong>do</strong> governo itinerante <strong>do</strong> dita<strong>do</strong>r Belzu percebeuque não seria recebi<strong>do</strong> e desistiu seguin<strong>do</strong> para oChile onde negociaria trata<strong>do</strong> comercial que também nãovingou.Apesar <strong>do</strong> sucesso apenas parcial das duas missõesficou o lega<strong>do</strong> <strong>do</strong> uti possidetis, inegavelmente favorávelao <strong>Brasil</strong> que herdara <strong>do</strong>s portugueses a expansão maisdinâmica, favorecida por este princípio pragmático. O trata<strong>do</strong>com o Peru de 1851 abriu precedentes para as demaisnegociações posteriores, todas estudadas, revisadas, mapeadasou defendidas por Duarte da Ponte Ribeiro que aose aposentar na década de 1850 seguiu sen<strong>do</strong> consultor<strong>do</strong> Itamaraty até sua morte, incorporan<strong>do</strong> à mapoteca <strong>do</strong>ministério centenas de cartas geográficas da região. Ficoudaí o aprendiza<strong>do</strong> usa<strong>do</strong> pelos diplomatas <strong>do</strong> Império edepois pelo barão <strong>do</strong> Rio Branco de jamais multilateralizardiscussões lindeiras. Apesar <strong>do</strong>s protestos de terceiros, o142 Mais uma vez o melhor texto para tratar em detalhes <strong>do</strong> assunto fronteirasem qualquer época é Navegantes, bandeirantes, diplomatas de SynésioSampaio Goes Filho. Este autor nos ensina que depois de ter negocia<strong>do</strong> emvão Trata<strong>do</strong> Lindeiro em missão no final <strong>do</strong>s anos de 1830 à confederaçãoperuviano-boliviana (separa<strong>do</strong>s em virtude da guerra com o Chile) Duarteda Ponte Ribeiro veria seus esforços serem lança<strong>do</strong>s por terra com a recusa<strong>do</strong> parlamento imperial em ratificar trata<strong>do</strong> basea<strong>do</strong> no uti possidetis.143 Venezuelanos e colombianos que firmaram trata<strong>do</strong>s com o plenipotenciárioMiguel Maria Lisboa, futuro barão de Japurá em 1852 e 1853 respectivamentenão ratificaram os trata<strong>do</strong>s por não aceitarem o principio <strong>do</strong> uti possidetisde jure, que retomava os trata<strong>do</strong>s coloniais e não a ocupação efetiva <strong>do</strong>território.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>228<strong>Brasil</strong> sempre resolvia bilateralmente suas contendas, oferecen<strong>do</strong>direitos de navegação fluvial em troca da aceitação<strong>do</strong> uti possidetis 144 .Assim foi com a Venezuela que finalmente acatouo princípio e firmou com o <strong>Brasil</strong> trata<strong>do</strong> lindeiro em1859 145 , sob protestos colombianos, e assim seria novamentecom a Bolívia que recebeu, no trata<strong>do</strong> de Ayacucho,concessões que não receberia, não fosse o <strong>Brasil</strong>estar no meio da Guerra <strong>do</strong> Paraguai, temen<strong>do</strong> o apoiode La Paz a Solano Lopez.Já na política saquarema para a região platina nãohouve propriamente uma reviravolta mais um amadurecimento.Com as negociações em curso para o fim daFarroupilha (1844), o Império brasileiro reconheceu a independência<strong>do</strong> Paraguai sob protesto <strong>do</strong>s argentinos epassou a ver com cada vez mais desconfiança as intençõesexpansionistas de Rosas, sobretu<strong>do</strong> depois de malogradaa aliança de 1843 contra Rivera. O parlamento, segun<strong>do</strong>Cervo, se dividia entre aqueles que defendiam o interven-144 Como veremos a oferta de direitos de navegação como moeda de troca nãoera inocente, pois servia para ampliar o número de alia<strong>do</strong>s <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> na defesacontra a abertura internacional da bacia Amazônica demanda <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>sUni<strong>do</strong>s e de governos europeus que tinham intenções imperialistas. Ten<strong>do</strong>os vizinhos ao nosso la<strong>do</strong>, ficava menos incoerente a tese <strong>do</strong>s “ribeirinhossuperiores” que o <strong>Brasil</strong> usava para justificar sua posição, distinta da queexercia na mesma época na bacia platina.145 Não mencionava explicitamente o uti possidetis, mas reafirmava as fronteirasestabelecidas no trata<strong>do</strong> de 1852. Sua demarcação durou mais de um século.cionismo e aqueles que eram adeptos da manutenção <strong>do</strong>apaziguamento. A chegada <strong>do</strong>s Saquaremas ao poder nadécada de 1840 encerrou a indecisão e contribuiu para aretomada firme da posição brasileira no Prata depois de 23anos de relativo “imobilismo”.São vários os motivos para tanto. Do ponto de vistageopolítico era imperativo que se preservasse a livre navegação<strong>do</strong>s rios Paraná e Paraguai sem os quais se cortavao acesso à província <strong>do</strong> Mato Grosso, inalcançável àépoca por terra. A garantia da independência uruguaia eparaguaia fortaleciam a ideia de águas internacionais paraa bacia <strong>do</strong> Prata, essencial para a implementação <strong>do</strong> projetobrasileiro. Não interessava ao <strong>Brasil</strong> a manutenção <strong>do</strong>sconflitos na região que colocavam em risco o acesso fluvial.Uma Argentina estável, mas não forte o suficiente pararivalizar com o <strong>Brasil</strong> “era uma equação difícil de resolver”segun<strong>do</strong> Francisco Doratioto (2008, p. 266).Escola<strong>do</strong>s pela derrota na Guerra da Cisplatinaem 1828, os políticos saquaremas perceberam o óbvio.A diplomacia seria a arma mais forte <strong>do</strong> Império na buscapela hegemonia platina. Antes das tropas, os diplomatas.O Visconde <strong>do</strong> Uruguai sabia que o uso exclusivo daforça simplesmente contribuiria para que as inimizadeshispânicas se tornassem menos relevantes que um inimigocomum monárquico e considera<strong>do</strong> expansionista.Era necessário antes de a intervenção buscar alia<strong>do</strong>s paraque se evitasse um novo malogro militar. A tentativa <strong>do</strong>s


229O Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>(1840-1889)liberais de conseguir apoio na Europa – Missão <strong>do</strong> Marquêsde Abrantes à Europa em 1844 – não fora bem-sucedida146 o que fez Paulino José Soares de Sousa perceberem 1849 que mais valia um pássaro no Prata <strong>do</strong> que duaspotências na Europa.Mais de 10% da população <strong>do</strong> Uruguai era de brasileiros,sobretu<strong>do</strong> gaúchos proprietários de terras. Muitosviviam lá desde a época da província cisplatina. O fim daguerra civil e a vitória de Oribe em 1851 complicou bastantea vida <strong>do</strong>s brasileiros, inclusive aqueles gaúchos quetinham negócios e terras na República Oriental e que passarama ser vítimas das “califórnias” 147 . Para além da pressãogaúcha pela intervenção no Uruguai acendeu ainda o alarmeno Rio de Janeiro o temor <strong>do</strong> fortalecimento de Rosasna Argentina, sem a pressão da guerra civil uruguaia e <strong>do</strong>bloqueio europeu. Acreditava Paulino que o próximo alvo146 Ingleses e franceses descartavam uma intervenção por terra depois deanos usan<strong>do</strong> a tática <strong>do</strong> bloqueio naval sem conseguir vencer Rosas. Paraa Inglaterra ainda pesava negativamente a postura de recusa <strong>do</strong> Impérioem renovar os trata<strong>do</strong>s de comércio e amizade que venciam em 1844, bemcomo a recalcitrância em relação à questão <strong>do</strong> tráfico.147 Roubo de ga<strong>do</strong> brasileiro estimula<strong>do</strong> ou não reprimi<strong>do</strong> pelas autoridadesuruguaias – quase duzentas fazendas foram invadidas e foram rouba<strong>do</strong>smais de 800 mil cabeças de ga<strong>do</strong> e 16 mil cavalos – o que motivou invasõesprivadas ao Uruguai lideradas por estancieiros e chefes militares comoFrancisco Pedro Buarque de Abreu, futuro barão de Jacuí que decidiu fazerjustiça com as próprias mãos entre 1849 e 1850: “As Califórnias de ChicoPedro” como ficaram conhecidas em referencia a corrida <strong>do</strong> Ouro queacontecia na costa oeste norte americana na mesma época.seria o Paraguai. A consolidação da hegemonia de Rosasseria perigosíssima para o Império. Resume assim a situaçãoFrancisco Doratioto:O governo imperial estava convenci<strong>do</strong> de que Rosas,livre da pressão anglo-francesa e se os blancos vencessema guerra civil no Uruguai, se imporia à oposiçãointerna argentina. Consegui<strong>do</strong> esse objetivo, segun<strong>do</strong>esse raciocínio, seria a vez de o Paraguai ser anexa<strong>do</strong>pela Confederação. Esta se tornaria extremamente forte,isolan<strong>do</strong> o Império, e, acreditava o chanceler brasileiroPaulino José Soares de Souza, seria o momento deRosas “vir sobre nós com forças e recursos maiores, quenunca teve, e envolver-nos em uma luta em que havíamosde derramar muito sangue e despender somasenormes” (DORATIOTO, 2008, p. 227).A estratégia para superar esta ameaça se deu emduas vias. A via financeira, inicialmente mais discreta, quefoi o apoio à Rivera feito pelo tesouro <strong>do</strong> Império e pelobarão de Mauá – que juntos iniciavam aí seus prejuízoseconômicos crescentes e dura<strong>do</strong>uros como cre<strong>do</strong>res <strong>do</strong>Uruguai – e a via militar decidida em 1851, com a rupturade Justo José Urquiza governa<strong>do</strong>r da província de EntreRios, com Rosas. Com o apoio <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> este retira a delegaçãoque Rosas possuía de representação internacionalda província e celebra com o Império aliança para destituirOribe <strong>do</strong> poder no Uruguai. Foram movimentos calcula<strong>do</strong>screscentemente pela chancelaria brasileira para provocara Reação de Rosas que tinha que ser adia<strong>do</strong> para que oImpério se preparasse e tarde o suficiente para evitar que


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>230Rosas se fortalecesse demais. A busca de alia<strong>do</strong>s locaisesolveu a medida.Oribe se rendeu e Rosas declarou guerra ao <strong>Brasil</strong>em Agosto de 1851, mas agora era Buenos Aires quem estavaisolada. Em novembro trata<strong>do</strong> entre o <strong>Brasil</strong>, o Uruguaie Corrientes contra Rosas evidenciam a prévia <strong>do</strong> que seria14 anos depois a Tríplice Aliança. O <strong>Brasil</strong> havia aprendi<strong>do</strong>a lição da farroupilha e nunca mais atuaria no Prata semantes buscar alia<strong>do</strong>s locais. O apoio militar brasileiro foi determinantepara a vitória de Urquiza na batalha de MonteCaseros em fevereiro de 1852. Suas tropas foram transportadaspela Armada <strong>do</strong> Império e a cavalaria brasileira integroudeu suporte ao seu exército sem que fosse necessárioque interviesse. Com o desaparecimento de Rosas da cenapolítica platina o <strong>Brasil</strong> saía imensamente fortaleci<strong>do</strong>. Tinhaalia<strong>do</strong>s em cada um <strong>do</strong>s governos da região <strong>do</strong> Prata e,ao menos provisoriamente, desmontara toda oposição aoImpério.O ministro plenipotenciário brasileiro José Maria daSilva Paranhos no Uruguai já havia celebra<strong>do</strong> seis trata<strong>do</strong>sque colocavam esse país em situação de dependênciapara com o <strong>Brasil</strong>, ainda que deixasse brechas para conflitosposteriores. Se o Trata<strong>do</strong> de fronteiras encerrava aspendências que vinham desde 1828 – da<strong>do</strong> que o trata<strong>do</strong>que se sucedeu à guerra da Cisplatina nunca foraratifica<strong>do</strong> – o trata<strong>do</strong> que autorizava a entrada de escravosbrasileiros no Uruguai “escamotea<strong>do</strong>s” sob o signo de“trabalha<strong>do</strong>res em débito” além <strong>do</strong> compromisso de deportaçãode escravos fugi<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Rio Grande <strong>do</strong> Sul sãoexemplos de conflitos adia<strong>do</strong>s, que renderão problemasà diplomacia <strong>do</strong> Império até a década de 1860. Além disso,a dependência financeira, parte integrante da políticahegemônica <strong>do</strong> Visconde <strong>do</strong> Uruguai – a “diplomacia <strong>do</strong>patacão”, – se provou trágica para os cofres <strong>do</strong> Tesouro epara a saúde financeira <strong>do</strong> Banco Mauá. O <strong>Brasil</strong> substituíraparcialmente ingleses e franceses no Prata e teve o reconhecimentoeuropeu <strong>do</strong> fortalecimento formidável de suaposição de poder, mas teve que arcar com os custos, nadabaratos, desta hegemonia. Diz Paulo Roberto de Almeida:Aparentemente, a “diplomacia <strong>do</strong>s patacões” redun<strong>do</strong>uem grandes vitórias políticas e diplomáticas parao governo brasileiro, mas igualmente em retumbantesfracassos financeiros para o Tesouro nacional, o que talveztenha servi<strong>do</strong> de lição para o futuro: durante muitotempo, neste século, o <strong>Brasil</strong> não voltaria a exercer ostalentos de sua diplomacia financeira na qualidade decre<strong>do</strong>r generoso (Paulo Roberto de Almeida, p. 15).Não tinham os ingleses a mesma generosidade creditíciano trato conosco na condição de deve<strong>do</strong>res, tal qualveremos em sessão específica sobre o nosso orçamento. Jánas relações comerciais com o <strong>Brasil</strong> não teve a Inglaterrao mesmo pre<strong>do</strong>mínio ao longo <strong>do</strong> século XIX que se verificavanas relações político-financeiras. Nunca os inglesescompraram mais que um terço da produção nacional e noinício <strong>do</strong> século XX suas importações <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> estavam no


231O Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>(1840-1889)mesmo patamar <strong>do</strong>s franceses e abaixo <strong>do</strong>s alemães. OsEsta<strong>do</strong>s, naturalmente, haviam ultrapassa<strong>do</strong> os britânicospor conta da importação de café que nunca foi um produtomuito aprecia<strong>do</strong> pelos súditos da rainha Vitória. Entretanto,boa parte destas exportações, ainda que para destinos nãobritânicos, eram muitas vezes feitas em navios da Álbion.No plano <strong>do</strong>s investimentos diretos os ingleses detinhamquase que o monopólio ao longo <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> monárquicoe triplicou nas duas últimas décadas <strong>do</strong> império, durante oprocesso de internacionalização <strong>do</strong> capital da Era <strong>do</strong>s Impérios.A esmaga<strong>do</strong>ra maioria destas inversões se deu nasestradas de ferro brasileiras, todas majoritariamente de capitaisingleses. Também houve investimentos de serviçosurbanos – iluminação, transporte, água, esgoto, gás – emportos, fábricas e bancos. A ligação telegráfica feita pelobarão de Mauá com a Europa em 1874 havia si<strong>do</strong> precedidade investimentos telegráficos ingleses que ligavam acorte a outras províncias desde a década de 1850.As relações com a Inglaterra também foram marcadaspor tensões, das quais a mais grave foi relativa à pressãode meio século sobre o tráfico negreiro que o governoportuguês e depois brasileiro se comprometeu sucessivamentea abolir, sem o fazer por motivos internos que trataremosem outra sessão. Essa controvérsia desapareceuem 1850, quan<strong>do</strong>, por motivos internos – segun<strong>do</strong> Ama<strong>do</strong>Cervo e vários autores – e por conta <strong>do</strong> aumento exponencialda pressão de Londres – segun<strong>do</strong> Leslie Bethell eJeffrey Neddell – foi promulgada a Lei Eusébio de Queirozque efetivamente impôs o cessar <strong>do</strong> infame comércio.José Murilo de Carvalho considera ter desapareci<strong>do</strong> aícompletamente as pressões <strong>do</strong> governo britânico relativasà escravidão, ainda que reconheça que intelectuais e gruposda sociedade, não apenas inglesa, mas europeias emgeral, persistiram solicitan<strong>do</strong> ao impera<strong>do</strong>r o fim da escravidão148 . Um episódio apenas remotamente vincula<strong>do</strong> aotema, mas que acabou geran<strong>do</strong> significativas controvérsias– o ápice das tensões bilaterais entre os <strong>do</strong>is países – foi aquestão Christie. Este episódio levou a ruptura de relaçõesdiplomáticas entre os <strong>do</strong>is países por quase <strong>do</strong>is anos.A questão Christie colocou a honra nacional emjogo quan<strong>do</strong> a arrogância <strong>do</strong> representante inglês WilliamChristie. Este representan<strong>do</strong> já chega ao <strong>Brasil</strong> tecen<strong>do</strong> críticasao trabalho escravo e exigin<strong>do</strong> sua abolição. Mas oescalar das tensões se deu de fato por controvérsias menores– o naufrágio <strong>do</strong> navio Prince of Wales no litoral sul<strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> e a prisão pela polícia de três marinheiros inglesesà paisana, envolvi<strong>do</strong>s em confusão na Tijuca – decidiu exigirsatisfações ao <strong>Brasil</strong>, com um ultimato de 15 dias. Alémde indenizações relativas à pilhagem <strong>do</strong> Prince of Wales,148 A atuação de Joaquim Nabuco na Inglaterra, nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s e em Roma,junto ao papa para mobilizar a opinião pública internacional <strong>do</strong> tipo ‘”efeitobumerangue” foi eficaz para pressionar internacionalmente o governo eacelerar as medidas abolicionistas.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>232exigia a censura ao chefe de polícia, o afastamento <strong>do</strong>s policiaise um pedi<strong>do</strong> de desculpas. A chancelaria brasileirasob o coman<strong>do</strong> <strong>do</strong> Marquês de Abrantes considerou osmo<strong>do</strong>s de Christie inaceitáveis e informou-lhe que passavaa tratar diretamente com o governo de Londres. Furioso,Christie informou ao chefe da Estação naval britânica queempregasse a força, apreenden<strong>do</strong> em 1762 navios mercantesna entrada da Baía e, dias depois vapores costeirosno litoral. Acreditava Christie que isso faria o governo recuar,mas a opinião pública já estava sublevada ao pontode Christie pedir ao Marquês de Abrantes que garantissesua segurança e a <strong>do</strong>s comerciantes ingleses na cidade.O governo fez preparativos militares de defesa e o Impera<strong>do</strong>rera aclama<strong>do</strong> como reserva da honra nacional ao sairà rua para ir à Missa. O <strong>Brasil</strong> pagou a indenização para veros navios libera<strong>do</strong>s, mas a questão foi levada à arbitragem.Em 18 de Julho de 1863, o Rei <strong>do</strong>s Belgas, Leopol<strong>do</strong> I, tioda rainha da Inglaterra, deu razão ao <strong>Brasil</strong>. Os ingleses serecusaram a devolver o valor, declaran<strong>do</strong> apenas que “nãose teve a intenção de ofender o <strong>Brasil</strong>”. Com isso determinouo Impera<strong>do</strong>r a retirada da delegação brasileira de Londres,com to<strong>do</strong> o pessoal. Estavam rompidas as relaçõesdiplomáticas entre os <strong>do</strong>is governos. Que só voltariam a serestabelecer em 1865, por mediação <strong>do</strong> Rei de Portugal.De resto, Ama<strong>do</strong> Cervo e Clo<strong>do</strong>al<strong>do</strong> Bueno fazemquestão de afirmar que em que pese as relações bilateraisàs vezes tensas entre os <strong>do</strong>is governos – <strong>Brasil</strong> e Inglaterra –as relações entre as duas nações “que marchavam para umentrelaçamento crescente e <strong>do</strong>minante”, seja lá o que issoqueira dizer, mas que não deixa de ser bonito. Reconhecemos autores que a nossa dependência em relação à Inglaterrano século XIX, iniciada sob o signo <strong>do</strong>s trata<strong>do</strong>sdesiguais, foi no Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong> bastante relativizadaapós o ano de 1844. A conformação desta dependênciaparcial não era de mo<strong>do</strong> algum inevitável e teve condicionantesinternos tanto ideológicos quanto sociais queimpediram a política internacional brasileira de ir mais longeem termos de autonomia. Consideram que “a políticaexterior <strong>do</strong> Império esteve acima das forças da nação (...) maspreferiu acomodar-se a uma relativa mediocridade, impostaem parte pelo modelo escravista de produção” (p. 158).Com os demais países da Europa destacam-se asrelações com os reinos que comporiam a Itália e a Alemanha,exporta<strong>do</strong>res de população para o <strong>Brasil</strong> ao longo <strong>do</strong>Império. Prússia, Suíça, Hamburgo, Saxônia e outras regiõesde língua alemã forneceram imigrantes ao <strong>Brasil</strong> desde osprimórdios das experiências <strong>do</strong> Sena<strong>do</strong>r Vergueiro como sistema de parceria, mas esta situação não progrediu, eapós a revolta de Ibicaba (1856) e a publicação <strong>do</strong> livro deThomas Davatz, muitos países europeus proibiram a vindade imigrantes ao <strong>Brasil</strong>, o que não impediu que estas levasiniciais de imigrantes favorecessem o adensamento <strong>do</strong>comércio bilateral importan<strong>do</strong> de seus países de origemgêneros que estavam acostuma<strong>do</strong>s a consumir lá.


233O Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>(1840-1889)A experiência de atração de imigrantes chineses,discutida no parlamento foi abortada principalmente pormotivos de racismo. A ideia de branqueamento que vinculavacivilização e modernidade a cor da população acabouse tornan<strong>do</strong> obstáculo intransponível para a vinda dechineses das colônias inglesas e portuguesas na China emesmo da China continental.Em termos quantitativos, o ápice da vinda de imigrantesao país se deu na última década <strong>do</strong> Império (emborafosse crescer ainda mais com a República) 149 . Vieramprincipalmente italianos e portugueses que juntos representavammais de 4/5 <strong>do</strong> total. Os portugueses se estabeleciamprincipalmente nas zonas urbanas, principalmentena cidade <strong>do</strong> Rio de Janeiro, onde o percentual chegava à30%. Leslie Bethell atribui a vinda crescente de italianos nofim <strong>do</strong> Império à Missão <strong>do</strong> Visconde de Parnaíba a váriospaíses europeus, principalmente à Itália em 1878. Na décadaseguinte entraram no <strong>Brasil</strong> cerca de 200 mil italianosque foram majoritariamente para São Paulo, província quea partir de 1884 passou a subsidiar o transporte <strong>do</strong>s imigrantes.Em termos de atração e imigrantes o Império competiacom muita dificuldade em relação aos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s149 O censo de 1872 apontava para menos de 4% de imigrantes, mas essenúmero aumentava muito nas zonas urbanas, sobretu<strong>do</strong> na Corte.e mesmo a Argentina. O clima, a distância, as <strong>do</strong>ençastropicais e a dificuldade de conseguir terra barata após1850 colocaram o <strong>Brasil</strong> como destino secundário na vinda<strong>do</strong>s imigrantes que vinham “fazer a América” excetopara os portugueses que não tinham a barreira da língua.A persistência dura<strong>do</strong>ura <strong>do</strong> sistema de trabalho escravistatambém era um óbice à atração de europeus, ainda quetenha atraí<strong>do</strong> algumas centenas de sulistas norte-americanosque se estabeleceram em São Paulo após a derrota daconfederação em 1865.Apesar disso a influência cultural determinante eramesmo francesa. Modelo máximo das artes, arquitetura,ideologias, teatro, literatura e moda. Exceto na música,onde pre<strong>do</strong>minava o gosto pela ópera italiana, em to<strong>do</strong>sos demais ramos culturais o centro irradia<strong>do</strong>r da preferênciadas elites brasileiras era Paris. O positivismo, o racismoe o branqueamento defendi<strong>do</strong>s pelo Conde de Gobineau,o teatro de revista, as heranças da Missão Artística francesa.A necessidade brasileira de participar com grandiosidadedas exposições universais em Paris 1867, em plenaGuerra <strong>do</strong> Paraguai e, depois em 1889, quan<strong>do</strong> apresentamospavilhão de três andares e encomendamos volumede 700 páginas para divulgar o <strong>Brasil</strong> de 1889, são algunsexemplos desta influência. Além disso, as transformaçõespolíticas francesas repercutiam imediatamente no <strong>Brasil</strong>às vezes com consequências políticas sérias. Os três exemplosóbvios são a Abdicação <strong>do</strong> Impera<strong>do</strong>r em 1831, após


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>234a queda de Carlos X, a Praieira em Pernambuco após aproclamação da Segunda República e o Manifesto Republicanode 1870 no Rio de Janeiro após a proclamação daTerceira República Francesa.As relações com os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s se caracterizarampor um distanciamento mútuo que foi se transforman<strong>do</strong>em aproximação na medida em que estes iam setornan<strong>do</strong> os principais compra<strong>do</strong>res <strong>do</strong> café brasileiro 150 .A visita <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r em 1876 consolida essa amizademarcada por desconfianças e mesmo algumas sérias tensõesbilaterais entre os <strong>do</strong>is países nas décadas de 1850 e1860, depois que na década de 1840, os clippers – velozesnavios – com bandeira americana foram usa<strong>do</strong>s para escaparao Bill Aberdeen durante as controvérsias relativas aotráfico negreiro com os ingleses 151 .A rivalidade com a Inglaterra nos aproximava tantoquanto o republicanismo proselitista de Washington– principalmente a partir <strong>do</strong> governo Polk (1845-1849)nos afastava, e motivaram uma série de incidentes que150 No plano da importação de bens americanos a participação deste país eratímida. Comprávamos farinhas e laticínios mas tal parcela caiu à metade aolongo <strong>do</strong> império (menos de 10%), enquanto que a venda de café seguiacrescente geran<strong>do</strong> superávit.151 Havia participação de cidadãos americanos e mesmo alguns cônsules notráfico africano feito a partir da Bahia. Chegou a haver em 1844 sondagens<strong>do</strong> governo brasileiro sob a chancelaria de Ernesto Ferreira França ao ministronorte-americano no <strong>Brasil</strong> Henry Wise, invocan<strong>do</strong> a <strong>do</strong>utrina Monroe paraproteção contra intervenções europeias no continente americano.levaram a retirada <strong>do</strong> ministro Wise <strong>do</strong> Rio de Janeiro em1847, acusa<strong>do</strong> de se imiscuir nos assuntos internos brasileirosno Prata.Controvérsia bem mais séria, no entanto, foi a pressãonorte-americana, secundada por ingleses e francesespara a abertura <strong>do</strong> Amazonas que atingiu seu ápice coma propaganda <strong>do</strong> tenente Matthew Maury 152 . AntoniaWright defende que a queda de Rosas em 1852 mu<strong>do</strong>u atônica <strong>do</strong> relacionamento bilateral <strong>Brasil</strong>-Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s,que aban<strong>do</strong>nou suas pretensões em mediar os conflitosplatinos e voltou seus olhos para a Amazônia, “estradafluvial” que poderia servir de gargalo para a expansão dalavoura escravista sulista. A política norte-americana viviaem franco expansionismo com a difusão prática <strong>do</strong>Destino Manifesto (1845) ao longo <strong>do</strong> governo Polk.A incorporação <strong>do</strong> Texas (1845), a guerra contra o México(1845-49), a descoberta de ouro na Califórnia (1848) e otrata<strong>do</strong> Clayton-Bulwer 153 (1850) são evidências deste ativismoexpansionista.Naturalmente esta pressão foi vista com enormedesconfiança pela chancelaria de Paulino José Soares152 No influente livro The Amazon and the atlantic slopes of south America de1853, Maury defendia a abertura <strong>do</strong> Amazonas “pacificamente” ou “à força seprecisarmos”.153 O trata<strong>do</strong> negociava com a Inglaterra a possibilidade de construção conjuntade um canal transoceânico para ligar o Atlântico ao Pacífico na AméricaCentral (o projeto original era que fosse construí<strong>do</strong> na Nicarágua).


235O Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>(1840-1889)de Sousa que entendia perfeitamente o estilo texanode “abertura” amazônica que se pretendia. A resistênciainicial se deu pela via da procrastinação, tão bem utilizadana questão <strong>do</strong> tráfico negreiro por quatro décadas.Era complica<strong>do</strong> defender a manutenção da interdiçãoda navegação amazônica justo no momento em queo <strong>Brasil</strong> defendia a abertura da livre navegação platina.A incoerência enfraquecia a posição brasileira, que buscouminimizá-la por meio <strong>do</strong> argumento <strong>do</strong>s “ribeirinhossuperiores”, na qual a abertura à navegação <strong>do</strong>s rios seriafranqueada aos países tributários <strong>do</strong>s “ribeirinhos” destabacia. Para tanto, tornava-se ainda mais urgente buscarnos vizinhos amazônicos o apoio à tese brasileira para adefesa conjunta da região contra a penetração imperialistanorte-americana. É neste contexto que ganham aindamais força as missões de Miguel Maria Lisboa e Duarte daPonte Ribeiro, que se valeram de concessões de navegaçãofluvial para conseguir vantagens na negociação dasfronteiras com base no uti possidetis.O <strong>Brasil</strong> abriria afinal a livre navegação amazônicaem dezembro 1866 “para os navios mercantes de todas asnações” por conta de duas guerras. A guerra civil norte-americanaque terminada no ano anterior extinguira definitivamentea ameaça <strong>do</strong> expansionismo sulista para aregião e a Guerra da tríplice aliança, cujo trata<strong>do</strong> (1865) foirepudia<strong>do</strong> firmemente por nossos vizinhos <strong>do</strong> norte – ogoverno peruano chegou a romper relações diplomáticascom o <strong>Brasil</strong> – para os quais a concessão de livre navegaçãopoderia servir como um apazigua<strong>do</strong>r que evitasse oapoio a Solano Lopez 154 .Outra controvérsia foi a chamada “Questão Webb”,contemporânea a Questão Christie. O <strong>Brasil</strong> declarara suaneutralidade na Guerra Civil americana, mas o ministro deWashington no Rio de Janeiro, o general James WatsonWebb, representante <strong>do</strong> governo de Abraham Lincoln,não aceitava esta neutralidade e escrevia sucessivas memóriasreclama<strong>do</strong> da atitude leniente <strong>do</strong> governo brasileiro.Dizia Webb que os portos <strong>do</strong> Império abasteciamnavios confedera<strong>do</strong>s que saiam de portos brasileiros paraatacar navios baleeiros nortistas. De fato, alguns conflitosnavais entre navios <strong>do</strong> norte e <strong>do</strong> Sul acontecerampróximos à costa brasileira e alguns em nossas águas territoriais.O <strong>Brasil</strong> lucrara notoriamente com a Guerra Civilque estimulou a produção algo<strong>do</strong>eira <strong>do</strong> Maranhão.O marquês de Abrantes acolhia as reclamações justas deWebb, mas não tinha qualquer interesse em romper coma neutralidade, o que era, no fun<strong>do</strong>, o interesse <strong>do</strong> representantenorte-americano.Webb ainda teria tempo de se aproveitar da rupturade relações entre o Império e a Inglaterra para tentar154 Também contribuiu para o início desta decisão o interesse incipiente <strong>do</strong>comércio internacional na extração da borracha amazônica escoada porBelém e Manaus.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>236estabelecer uma linha de transportes a vapor entre o Rio deJaneiro e Nova York que levaria além de passageiros, correio,passan<strong>do</strong> pelo nordeste, pela Amazônia e pelas Antilhas.O fato de que seu filho Robert Webb seria o concessionáriofez com que o presidente Lincoln se recusasse a dar encaminhamentoà proposta 155 , igualmente denunciada pelaimprensa brasileira, prejudican<strong>do</strong> a posição <strong>do</strong> ministroque deixou o <strong>Brasil</strong> em 1869, quan<strong>do</strong> as relações bilateraiscomeçaram a melhorar.Com os demais países da América, à exceção daregião platina a política brasileira foi de grande distanciamento.À exceção das tratativas lindeiras iniciadas nadécada de 1840 e estimuladas pelo gabinete saquaremaque renderiam frutos posteriores Peru (1851), Venezuela(1859) e Bolívia (1867), pode-se dizer que foram relaçõespraticamente inexistentes, tanto no plano bilateral quantomultilateral. As sucessivas tentativas de criação de umaconfederação americana que ocorreram nas malogradasconferências de Lima (a primeira em 1847 e a segundaem 1864) Santiago (1856) e Caracas (1883) não tiverama participação brasileira que quan<strong>do</strong> recebia convite, osrecusava. A única conferência que o <strong>Brasil</strong> demonstroualgum interesse em participar foi a convocada por Simon155 Com o fim da Guerra civil americana a linha foi afinal estabelecida em 1865por outra firma concorrente da <strong>do</strong> filho <strong>do</strong> general.Bolívar no Panamá em 1826, mas nossos representantesjamais chegaram.Os motivos deste distanciamento são múltiplos. Paraos demais países da América Latina o <strong>Brasil</strong> era um impérioexpansionista que herdara o lega<strong>do</strong> português que maisque duplicara o território de Tordesilhas. O fato de ser umamonarquia maximizava as desconfianças. O episódio deChiquitos, no qual o governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Mato Grosso mobilizoutropas para incorporar ao Império a província bolivianaarranhara muito a imagem internacional <strong>do</strong> país, ainda quea ação tenha si<strong>do</strong> desautorizada pela corte <strong>do</strong> Rio de Janeiro.Para os brasileiros persistia, como parece ainda persistir,uma visão pejorativa <strong>do</strong> resto da América Latina. O motede aproximação era com a civilização europeia, e os políticos<strong>do</strong> Império gostavam de imaginar a si mesmos e ao<strong>Brasil</strong> como representantes da civilização <strong>do</strong> velho mun<strong>do</strong>transplantada para os trópicos. Para tanto, o contraste coma instabilidade, o militarismo e o caudilhismo latino-americanotinham uma função para além <strong>do</strong> preconceito, maspara a própria autoafirmação nacional <strong>do</strong> império por alteridade.Naturalmente estas concepções não contribuíampara o adensamento das relações com os demais paísesda região.Não poderia haver maior contraste com esta posição<strong>do</strong> que a ação brasileira no Prata. Aban<strong>do</strong>nan<strong>do</strong>ce<strong>do</strong> o expansionismo, o <strong>Brasil</strong> não abdicava de seu papelhegemônico na região ainda que existissem os mesmos


237O Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>(1840-1889)preconceitos frutos <strong>do</strong> caudilhismo e da estabilidade paracom uruguaios, argentinos e paraguaios. A situação de instabilidadetomou conta da Argentina na década de 1850.Se por um la<strong>do</strong> era bom para o Império uma Argentinaenfraquecida, por outro preocupava nossos estadistas queo exemplo de fragmentação chegasse ao Uruguai ou aoRio Grande <strong>do</strong> Sul. Mantivemos estrita neutralidade militarnos conflitos entre Urquiza e Buenos Aires, durante operío<strong>do</strong> em que a Argentina teve <strong>do</strong>is centros de poder– o governo da Confederação, no Paraná, e o governo deBuenos Aires.O pomo da discórdia que rompeu o equilíbrio delica<strong>do</strong>que o <strong>Brasil</strong> mantinha com me<strong>do</strong> de ser traga<strong>do</strong> parauma guerra civil foi o Paraguai. Este país que havia se manti<strong>do</strong>isola<strong>do</strong> durante a ditadura de Francia e o início <strong>do</strong> governode Carlos Antonio Lopez, com o estabelecimento dahegemonia brasileira, começaram a vir à tona as divergênciasentre o Rio de Janeiro e Assunção. Se no início de suavida internacional os paraguaios tiveram no <strong>Brasil</strong> apoiointernacional – o reconhecimento em 1844 e a intermediaçãodiplomática em Londres para a modernização <strong>do</strong>país – após a intervenção no Uruguai em 1851, Carlos Lopeztratou de modernizar militarmente seu país, temen<strong>do</strong>que pudesse também um dia ser vítima de vizinhos muitomais fortes, com os quais tinha sérios litígios de fronteira.O <strong>Brasil</strong> chegou a ter o apoio da Confederação em seusconflitos com o Paraguai – pagos com empréstimo de 300mil patacões – mas logo Urquiza mudaria de posição e seaproximaria <strong>do</strong>s paraguaios.Apesar da crescente desinteligência bilateral, o governode Carlos Antônio Lopez não ousava buscar a resoluçãomilitar de seus problemas com o Império, apesar desua organização militar superior, inclusive numericamente.Sabia <strong>do</strong> potencial de mobilização militar e econômica<strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> e <strong>do</strong> desastre nacional que poderia advir de umaguerra incerta. Tampouco o Paraguai era a preocupaçãoprimordial da política externa <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. Tratava-se de vizinhode importância secundária, que dava algum trabalho,mas que seria leva<strong>do</strong> diplomaticamente, como se levavamos uruguaios e argentinos, muito mais complexos. Entre1861 e 1863 as coisas mudariam completamente.A Batalha de Pavón em setembro de 1861, apesarde militarmente indefinida abriu caminho para a consolidaçãoda unidade argentina sob hegemonia de BuenosAires. Exatamente um ano depois desaparecia Carlos AntônioLopez sucedi<strong>do</strong> por seu filho Solano Lopez, muito maisimpulsivo e insensato. Neste mesmo perío<strong>do</strong> chegava aopoder no <strong>Brasil</strong> os liberais progressistas, identifica<strong>do</strong>s ideologicamentecom os liberais que governavam a Argentinae não se opunham à livre navegação platina. O entendimentoentre Mitre, presidente de uma argentina unificadae os progressistas brasileiros favoreceu a intervençãode Venâncio Flores no Uruguai em Abril de 1863 paraderrubar Bernar<strong>do</strong> Berro foi a consequência desta conver-


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>238gência singular entre o Rio de Janeiro e Buenos Aires 156 frutoparcial da Missão Saraiva ao Prata em 1864, que se nãofoi capaz de impedir o conflito no Uruguai, conseguiu aneutralidade argentina para a intervenção <strong>do</strong> Império emapoio à Venâncio Flores, que motivou um ultimato paraguaioem defesa da soberania uruguaia. O <strong>Brasil</strong> ignorou oultimato e prosseguiu com a intervenção.Na breve guerra civil que se seguiu entre blancos ecolora<strong>do</strong>s no Uruguai constituíram-se duas ententes maisdiplomáticas que militares. Ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong>s colora<strong>do</strong>s <strong>Brasil</strong>e Argentina, ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong>s blancos Paraguai e Entre Rios.Os des<strong>do</strong>bramentos deste enfrentamento são a antessalapara a eclosão da maior guerra da história da América Latina,segun<strong>do</strong> maior conflito internacional <strong>do</strong> século XIX,atrás apenas da Guerra da Crimeia.Há um mito que persistiu nos livros didáticos e noensino de história brasileira até recentemente de que teriasi<strong>do</strong> a Inglaterra a principal responsável pela guerra.A depender <strong>do</strong> grau de desvario, ia-se da caracterizaçãode Solano Lopez como um déspota esclareci<strong>do</strong> que erradicarao analfabetismo e promovera a Reforma Agráriano Paraguai até a sugestão de que os ingleses temiam a“concorrência paraguaia” que estaria viven<strong>do</strong> sua revolu-156 Ainda assim, a postura <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> era de desconfiança. Fazer parte da aliançaao la<strong>do</strong> <strong>do</strong>s argentinos era um meio de contrabalancear sua influênciaapesar da abertura amigável de Mitre para com o <strong>Brasil</strong>.ção industrial local. O exemplo de autonomia paraguaiaprecisava ser sufoca<strong>do</strong> e a Inglaterra manipulara o Rio deJaneiro e Buenos Aires para que fizessem o serviço pesa<strong>do</strong>em seu nome.Não tinham nem nunca tinham ti<strong>do</strong> os inglesescondições de influenciar deste mo<strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> e Argentinaao ponto de levá-los à guerra, mesmo no ápice de sua influênciapolítica no perío<strong>do</strong> joanino e no primeiro reina<strong>do</strong>.O perío<strong>do</strong> entre 1863 e 1865, marcaram, no entanto, onadir da relação bilateral entre o Rio de Janeiro e Londres.Havia ruptura formal de relações diplomáticas provacadapela questão Christie. Além disso, os ingleses, longe depugnar pela guerra, tinham, como ficara patente na guerrada Cisplatina, muito interesse na manutenção da paz e natranquilidade político-militar na bacia <strong>do</strong> Prata. A tranquilidadefavorecia os negócios. Mantiveram a neutralidadeao longo <strong>do</strong> conflito ainda que tenham se manti<strong>do</strong> comocre<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Império. Ainda assim, o custo total da guerrapara o <strong>Brasil</strong> foi três vezes maior que o empréstimo querecebemos de 5,1 milhões de libras em 1865, o único duranteo conflito.Trata-se, portanto, de visão historiográfica datadamarcada por uma ideologia vitimizante na qual a Inglaterra<strong>do</strong> século XIX era o análogo passa<strong>do</strong> <strong>do</strong> imperialismonorte-americano <strong>do</strong> século XX, e o exército brasileiro, uma


239O Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>(1840-1889)instituição genocida 157 o antecessor cruel <strong>do</strong>s generais militaresda ditadura de 1964-85. Nesta metáfora torta, o anacronismomais inacreditável era o lugar de Solano Lopeznesta narrativa, que de agressor, tornou-se o símbolo davanguarda, da modernidade e da justiça social na AméricaLatina.Toda história é feita em seu contexto, e nenhum historia<strong>do</strong>restá livre disso. Escreven<strong>do</strong> em 2013 parece-medesnecessário continuar desmontan<strong>do</strong> este mito já critica<strong>do</strong>desde mea<strong>do</strong>s da década de 1980 por Luiz AlbertoMoniz Bandeira e Francisco Doratioto. Este último, o maiorespecialista na política platina <strong>do</strong> século XIX apresenta noabstract de seu clássico Maldita Guerra <strong>do</strong> seguinte mo<strong>do</strong>os antecedentes <strong>do</strong> conflito:A história <strong>do</strong> Paraguai esteve intimamente ligada ao<strong>Brasil</strong> e a Argentina, principais pólos <strong>do</strong> subsistema derelações Internacionais <strong>do</strong> Rio da Prata. O isolamentoparaguaio até a década de 1840, bem como sua aberturae inserção internacional se explicam, em grandeparte, pela situação política platina. Nos anos seguintesa essa abertura, o Paraguai teve boas relações com o Império<strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, e manteve-se afasta<strong>do</strong> da Confederaçãoargentina da qual se aproximara nos anos de 1850, aomesmo tempo que vivia momentos de tensão com oRio de Janeiro. Na primeira metade da década de 1860,157 O jornalista e historia<strong>do</strong>r diletante José Julio Chiavenato divulga<strong>do</strong>rdesta versão chamou sua principal obra sobre o conflito de “O genocídioAmericano” (São Paulo: Editora <strong>Brasil</strong>iense, 1979).o governo paraguaio, presidi<strong>do</strong> por Francisco SolanoLopez, buscou ter participação ativa nos acontecimentosplatinos, apoian<strong>do</strong> o governo uruguaio hostiliza<strong>do</strong>pela Argentina e pelo Império. Desse mo<strong>do</strong>, o Paraguaientrou em rota de colisão com seus <strong>do</strong>is maiores vizinhose Solano Lopez acabou por ordenar a invasão deMato Grosso e Corrientes e iniciou uma guerra que seestenderia por cinco anos. A guerra <strong>do</strong> Paraguai foi, naverdade, resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong> processo de Construção <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>sNacionais no Rio da Prata e, ao mesmo tempo, marconas suas consolidações (Doratioto, 2002, abstract) 158 .Em outro texto busca entender as motivações <strong>do</strong>líder paraguaio:López via no porto de Montevidéu uma saída parao comércio exterior paraguaio, uma alternativa à dependênciade Buenos Aires, e convenceu-se de que158 O contexto em que Doratioto, professor <strong>do</strong> Instituto Rio Branco, desenvolveusua pesquisa, é bem outro. Já estávamos sob a égide <strong>do</strong> Mercosul e daaproximação multilateral <strong>do</strong>s países que participaram <strong>do</strong> conflito. Doratiotoconsultou os arquivos oficiais <strong>do</strong> Itamaraty, e também os arquivos <strong>do</strong>Paraguai e da Argentina. Sua interpretação mais estruturalista minimizaas responsabilidades nacionais e ajusta-se perfeitamente ao contexto damontagem <strong>do</strong> Mercosul. Não há culpa<strong>do</strong>s. Há apenas estruturas históricasimpessoais. Ainda que seja discutível afirmar que o Império e o Paraguaiviviam nos anos de 1860 sua formação e consolidação enquanto esta<strong>do</strong>snacionais, para este autor as engrenagens desta consolidação no subsistemaplatino em mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> século XIX servem de lembrança amarga que nospermite celebrar tempos mais pacíficos onde as engrenagens da formaçãode blocos econômicos e aduaneiros estimula a aproximação e não oconflito. A visão de Doratioto é também uma testemunha positiva e, aindahoje, rara, <strong>do</strong>s frutos historiográficos que rendem a aproximação entrehistória e Relações Internacionais. Nesta confluência prolífica, o trabalho<strong>do</strong>s professores <strong>do</strong> departamento de Relações Internacionais, herdeiro<strong>do</strong> departamento de <strong>História</strong>, na Universidade de Brasília é de destaca<strong>do</strong>pioneirismo.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>240poderia derrotar militarmente o Império a anular o governoargentino. Nos cálculos <strong>do</strong> chefe de Esta<strong>do</strong> paraguaio,Mitre seria venci<strong>do</strong> por uma ação da oposiçãofederalista, principalmente de Urquiza, enquanto osblancos se uniriam às tropas paraguaias que chegariamem seu socorro e venceriam as forças <strong>do</strong> Exército imperialque invadiram o Uruguai, em outubro de 1864.(DORATIOTO, 2008, p. 230)Não imaginava Solano Lopez que mesmo diante dainferioridade militar o Império se dedicaria intensamente avingar a afronta à soberania que foi considerada a invasão<strong>do</strong> Mato Grosso em dezembro de 1864. O Impera<strong>do</strong>r pessoalmentese considerou o voluntário número um, e noano de 1865 o entusiasmo nacional e patriotismo tomouconta das diversas províncias ten<strong>do</strong> milhares de pessoas seapresenta<strong>do</strong> como voluntários 159 .Leslie Bethell avalia o erro de cálculo de Solano Lopez:O mínimo que se pode dizer é que Solano Lopez fezuma tremenda aposta – e perdeu. Ele superestimou opoderio econômico e militar <strong>do</strong> Paraguai. Subestimou o159 Na medida em que o desenrolar da guerra ia tornan<strong>do</strong> obsoleta a bravatade Bartolomeu Mitre de que em três meses estariam em Assunção, oentusiasmo diminuia e os voluntários desapareceram. Nas tentativas que oimpério fez durante a guerra para conseguir alista<strong>do</strong>s a resistência passoua ser grave e contava com o apoio <strong>do</strong>s “coronéis” que em tese ofereciam“proteção” aos seus agrega<strong>do</strong>s e diante da necessidade de alistamento queninguém queria cumprir, perdiam prestígio. Houve rebeliões em diversasprovíncias motivadas pela resistência ao alistamento.poderio militar em potencial, se não efetivo, <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> – esua disposição em lutar. E errou em pensar que a Argentinaseria neutra numa guerra contra o Paraguai e o <strong>Brasil</strong>em disputa pelo Uruguai. Mitre não acreditava queos interesses argentinos seriam afeta<strong>do</strong>s pelo que se esperavaser uma breve intervenção cirúrgica <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> noUruguai. Solano Lopez também avaliou mal e exagerouas contradições internas da Argentina e a possibilidadede que Entre Rios (ainda sob o coman<strong>do</strong> de Urquiza)e Corrientes, por exemplo, impediriam a Argentina decombater contra o Paraguai, ou, em hipótese de guerra,tomariam o la<strong>do</strong> <strong>do</strong> Paraguai contra Buenos Aires(Bethell, 2012, p. 162).A vitória de Flores no Uruguai em fevereiro de 1865abriu caminho para a assinatura da Tríplice Aliança em 1ºde maio de 1865 com o objetivo de derrubar Solano Lopez,garantir a livre navegação <strong>do</strong>s rios Paraguai e Paraná,preocupação perene da diplomacia nacional, e resolver aspendências lindeiras, o que para a Argentina significava incorporação<strong>do</strong> Chaco entre outras regiões 160 . Ao fim daguerra, o <strong>Brasil</strong> mu<strong>do</strong>u sua política e decidiu-se por assinarem separa<strong>do</strong> a paz com o Paraguai (1872) reafirman<strong>do</strong> suasoberania e buscan<strong>do</strong> evitar o excessivo desmembramentodeste país em favor <strong>do</strong>s argentinos.160 As cláusulas territoriais secretas foram reveladas pelos ingleses em 1866 emotivaram repúdio generaliza<strong>do</strong> na América Latina, simpáticas a SolanoLopez. A abertura da navegação amazônica e o trata<strong>do</strong> de Ayacuchocelebra<strong>do</strong> com a Bolívia são exemplos de tentativas de contenção dadiplomacia brasileira <strong>do</strong> mal-estar causa<strong>do</strong> pela revelação da clausulasecreta.


241O Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>(1840-1889)Apesar <strong>do</strong> equilíbrio inicial a disparidade de recursosmateriais e militares foi fican<strong>do</strong> óbvia ao longo <strong>do</strong> conflito.O <strong>Brasil</strong> mais que triplicou seu efetivo militar, inicialmentede 17 mil homens e depois <strong>do</strong> primeiro ano da guerrapassou a lutar praticamente sozinho, mas abasteci<strong>do</strong> pelosargentinos cuja participação foi essencial em termos logísticos.Ao final da Guerra os argentinos tinham menos de10% <strong>do</strong>s solda<strong>do</strong>s que ocupavam o Paraguai.A marinha teve papel essencial. Uma vez expulsas astropas paraguaias da Argentina, a marinha brasileira destruiuem 1866 a armada paraguaia na Batalha <strong>do</strong> Riachuelo(11 de junho) deixan<strong>do</strong> o <strong>Brasil</strong> em situação de superioridadenaval até o fim <strong>do</strong> conflito, ainda que permanecesseten<strong>do</strong> que se preocupara com as fortalezas em terra, comoHumaitá que só seria tomada em 1868.A enorme duração <strong>do</strong> conflito – cinco anos – sedeveu a vários fatores. O desconhecimento completo <strong>do</strong>território paraguaio zona principal de conflito; a extraordináriaresistência <strong>do</strong> povo paraguaio que tomou a lutacomo sobrevivência de Esta<strong>do</strong>; as dissidências internasem to<strong>do</strong>s os países da Tríplice Aliança 161 ; a dificuldade de161 Rebeliões de motoneros sufocadas na Argentina, resistências ao alistamentoe cisão interna entre liberais e conserva<strong>do</strong>res sobre a condução <strong>do</strong> conflitoque levaram a queda <strong>do</strong> gabinete no <strong>Brasil</strong> em julho de 1868 e oposição daopinião pública uruguaia que motivou o assassinato de Venâncio Flores nasruas de Montevidéu <strong>do</strong>is meses depois de deixar o poder em 1868.acesso <strong>do</strong> território paraguaio 162 . Também contribuiu emmenor grau a rotatividade de coman<strong>do</strong> das tropas – Mitre,Caxias e o Conde D’Eu – to<strong>do</strong>s com interesses políticosem suas capitais que os faziam pensar mais em se livrar<strong>do</strong> coman<strong>do</strong> <strong>do</strong> que efetivamente comandar. Caxias, pivôda queda <strong>do</strong> gabinete progressista de Zacarias, depois detomar Assunção no réveillon de 1869, aban<strong>do</strong>nou o teatrode operações consideran<strong>do</strong> a guerra vencida, apesar<strong>do</strong>s apelos <strong>do</strong> Impera<strong>do</strong>r para que permanecesse. Este nomeouentão seu genro, o Conde D’Eu, cuja função inglóriaera capturar Solano Lopez que permaneceu mais 14 mesesevadi<strong>do</strong> no norte <strong>do</strong> país, preparan<strong>do</strong> a resistência deguerrilha, até ser morto em março e 1870 em Cerro Corá.O Paraguai perdeu cerca de 20% de sua populaçãocom a guerra, metade vitimada por <strong>do</strong>enças como o cólera,que também vitimou 12 mil argentinos e milhares desolda<strong>do</strong>s brasileiros. A guerra <strong>do</strong> Paraguai transformou opaís em um satélite econômico de Buenos Aires ainda quea preeminência política permanecesse sen<strong>do</strong> <strong>do</strong> Império– à exceção de breves hiatos, como durante a presidênciade Juan Bautista Gill (1874-1877). Favoreceu o fim daproximidade entre brasileiros e argentinos, a mudança degoverno nos <strong>do</strong>is países em 1868. Domingo Sarmiento via162 A tentativa <strong>do</strong> coronel Camisão de dar combate aos paraguaios invasorespela via terrestre <strong>do</strong> Mato Grosso <strong>do</strong> Sul foi uma tragédia épica que se tornouo tema <strong>do</strong> clássico romance de Taunay, A retirada da laguna.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>242o Império com desconfiança, e ao contrário de Mitre, achava-nosexpansionistas. Os conserva<strong>do</strong>res que sucederamZacarias por sua vez, reverteram a política <strong>do</strong> trata<strong>do</strong> daTríplice Aliança, fizeram a paz em separa<strong>do</strong> com o Paraguai(1872) e forçaram o redimensionamento para baixo das expectativasterritoriais de Buenos Aires.A persistência <strong>do</strong>s litígios com a Argentina nos anosfinais <strong>do</strong> império levou a momentos de tensão em 1874 e1887. No primeiro caso por conta da cobiça argentina sobrea região <strong>do</strong> Chaco paraguaio que o <strong>Brasil</strong> soube encaminharpara a arbitragem norte-americana <strong>do</strong> presidenteRutheford B. Hayes em 1877. Esse excessivo apetite territorialde Buenos Aires tinha si<strong>do</strong> a principal razão para a manutençãodas tropas brasileiras ocupan<strong>do</strong> o Paraguai porcerca de seis anos depois de fin<strong>do</strong> o conflito. Já o conflito<strong>do</strong>s anos 1880 era relativo à questão lindeira e seria equaciona<strong>do</strong>por meio de um protocolo de 1889 estabelecen<strong>do</strong>prazo para o entendimento bilateral ou recurso à arbitragemse decorri<strong>do</strong>s três meses. A proclamação da Repúblicainterrompeu o prazo e a Argentina foi objeto de visita <strong>do</strong>chanceler Quintino Bocayuva, meio brasileiro meio argentinoque celebrou o desastroso trata<strong>do</strong> de Montevidéu, em1890, não ratifica<strong>do</strong> pelo <strong>Brasil</strong>. A arbitragem <strong>do</strong> presidenteCleveland, 1895, daria ganho de causa ao <strong>Brasil</strong> e fama dura<strong>do</strong>uraao barão <strong>do</strong> Rio Branco. É comum na historiografiaa referência ao crescente entendimento entre <strong>Brasil</strong> eChile nos anos finais <strong>do</strong> Império. Lembremos que o baileda ilha fiscal foi uma homenagem aos oficiais da Armadachilena. Essa aproximação com o Chile sofreria um baquedurante a Conferência Pan-Americana de Washington,quan<strong>do</strong> a República alteraria substancialmente as instruçõesdadas aos delega<strong>do</strong>s pela monarquia deposta.Na década de 1880, Cervo e Bueno observam umensaio universalista na ação internacional brasileira. Favoreceuisso as viagens internacionais <strong>do</strong> Impera<strong>do</strong>r e nossacrescente aproximação <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s – visita<strong>do</strong>pelo monarca em 1876, primeira cabeça coroada a visitar aRepública norte-americana – estimulada pela parceria comercialsuperavitária em favor <strong>do</strong> Império por conta dasexportações <strong>do</strong> Café 163 . Depois de décadas de absenteísmoo <strong>Brasil</strong> concorda com a proposta <strong>do</strong> secretário Blainede participar em 1881 de uma conferência pan-americanaem Washington que acabaria por não se realizar até 1889devi<strong>do</strong> a Guerra <strong>do</strong> Pacífico. O <strong>Brasil</strong> manteve a neutralidadeno conflito e fez parte das comissões de arbitramentono pós-guerra o que é indicativo da situação prestigiosa<strong>do</strong> país. Pedro II foi ainda chama<strong>do</strong> a indicar árbitros decontrovérsias entre potências europeias e os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s,evidencian<strong>do</strong> o prestígio internacional <strong>do</strong> monarca163 Em 1870 os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s compravam 75% <strong>do</strong> café brasileiro acumulan<strong>do</strong>o <strong>Brasil</strong> sal<strong>do</strong>s exponencialmente crescentes no comércio bilateralsuperavitário que representava mais que o comércio americano com to<strong>do</strong>o resto da América Latina.


243O Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>(1840-1889)nos anos finais <strong>do</strong> Império. Houve inclusive uma tentativade acor<strong>do</strong> entre o governo brasileiro e o chinês que PedroII criticou por conter cláusulas de desigualdade comoaquelas que o <strong>Brasil</strong> tinha si<strong>do</strong> vítima nos anos iniciais apósa independência. Cervo e Bueno sugerem, um tanto utopicamente,que o <strong>Brasil</strong> perdeu a ocasião de criar um BRICavant la lettre e “sacudir a diplomacia mundial, alian<strong>do</strong>-sepolítica e juridicamente a uma grande nação dependente,com a qual podia se identificar” (p. 148).4.6 A Geração de 1870 e a crise <strong>do</strong> ImpérioAs “questões” para o fim <strong>do</strong> império. O gabinete <strong>do</strong>Visconde <strong>do</strong> Rio Branco.A Questão religiosa. A geração de 1870 e as novas formasde atuação política.A herança <strong>do</strong>s intelectuais de 1870.A historiografia sintetiza em “Questões” as causalidadestradicionalmente percebidas como determinantespara o ocaso <strong>do</strong> império. Seriam estas a questão religiosa,a questão abolicionista, a questão republicana e a questãomilitar. Desconsiderada a questão religiosa comoum exagero daquilo que não passou de uma crise políticapontual e limitada no tempo, sem consequênciasde maior longo prazo ou capaz de colocar a Igreja Católicaem oposição ao regime monárquico, as outras trêstiveram significativo impacto para o enfraquecimentoda monarquia – o abolicionismo – e para a Proclamaçãoda República – o republicanismo e o alijamento de parcelarelevante das forças armadas na década de 1880. Todaselas ganham força somente após a Guerra <strong>do</strong> Paraguai(1864-1870).Durante o conflito a traumática substituição <strong>do</strong>sprogressistas pelos conserva<strong>do</strong>res em 1868 já haviaexacerba<strong>do</strong> as críticas <strong>do</strong>s liberais ao poder modera<strong>do</strong>r,às instituições políticas e ao escravismo. O colapso <strong>do</strong>


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>244parti<strong>do</strong> progressista daria origem a agremiações liberaiscrescentemente radicais em sua agenda, e afinal, no inícioda década de 1870 ao parti<strong>do</strong> Republicano primeirono Rio de Janeiro, onde se agremiaram jornalistas e figuraspolíticas então obscuras e, alguns anos depois em SãoPaulo, onde cafeicultores menos vincula<strong>do</strong>s à Corte e àaristocracia fluminense defendiam a bandeira <strong>do</strong> federalismo.Acontece que aos progressistas sucederam-se dezanos de governos conserva<strong>do</strong>res muito bem-sucedi<strong>do</strong>s.Bem-sucedi<strong>do</strong>s, inclusive, em implementar reformas liberalizantesdefendidas pelos liberais cujo ápice se deu comJosé Maria da Silva Paranhos, o presidente <strong>do</strong> Conselho deMinistros entre 1871 e 1875. Se a história política <strong>do</strong> Impériofosse tão conhecida quanto a da República, o Visconde <strong>do</strong>Rio Branco seria conheci<strong>do</strong> como um Juscelino Kubitschek<strong>do</strong> século XIX. Suas realizações certamente o autorizam,talvez mais que a JK a defender que fez cinquenta anosem cinco.A agenda implementada pelo primeiro Rio Branco énotoriamente progressista a começar pela mais polêmicade todas, razão de sua nomeação para o cargo. Obsessão daCoroa, considerada pelos escravistas intervenção indevidae autoritária na agenda parlamentar, a libertação <strong>do</strong> ventreescravo após a guerra <strong>do</strong> Paraguai sofria aguerrida oposição<strong>do</strong>s conserva<strong>do</strong>res que assumiram o governo após1868. Era necessário um conserva<strong>do</strong>r que enfrentasse acâmara conserva<strong>do</strong>ra e Paranhos foi muito bem-sucedi<strong>do</strong>.Fez <strong>do</strong> Ventre Livre questão de Esta<strong>do</strong>, e apesar <strong>do</strong>s debatesparlamentares ferrenhos ao longo <strong>do</strong> ano de 1871,conseguiu aprová-la dan<strong>do</strong> início ao reformismo em largaescala que caracterizou seu governo.Por quatro anos e três meses reformou o ensino, amplioua rede de estradas de ferro em escala sem precedentes,estimulou através de subsídios a imigração europeia– à época vista como essencial para o desenvolvimento –,conectou o <strong>Brasil</strong> à Europa por meio de cabos telegráficossubmarinos diminuin<strong>do</strong> para horas ao invés de semanasa comunicação interatlântica, determinou a realização <strong>do</strong>primeiro censo <strong>do</strong> país em 1872, fez a reforma eleitoral ejudiciária e criou um novo código criminal, antigo anseioliberal, estabelecen<strong>do</strong> a fiança e o habeas corpus estabeleceuuma rede de saneamento urbana tornan<strong>do</strong>-se o <strong>Brasil</strong>o terceiro país <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> a possuir uma estação de tratamentode esgoto. Segun<strong>do</strong> José Murilo de Carvalho foi omais longo e eficiente governo <strong>do</strong> Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>, queapesar de conserva<strong>do</strong>r fez aprovar várias das reformas defendidaspelos liberais.A questão religiosa ocorre justamente ao final deseu perío<strong>do</strong> (1874), e, muito desgasta<strong>do</strong> por conta dela,acaba se afastan<strong>do</strong> <strong>do</strong> governo, que, no entanto, se mantémconserva<strong>do</strong>r até 1878. A questão religiosa não foi suficientesequer para derrubar o Parti<strong>do</strong> no poder que dirá oregime, quinze anos depois de iniciada.


245O Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>(1840-1889)Do que se tratou a questão? Foram presos por desobediênciaos bispos de Olinda e Belém, considera<strong>do</strong>s pelaConstituição subordina<strong>do</strong>s ao Impera<strong>do</strong>r. Haviam ambosse recusa<strong>do</strong> a retroceder nas proibições aos maçons emsuas dioceses. Estas proibições eram condizentes com oprocesso conserva<strong>do</strong>r de romanização da Igreja no pontifica<strong>do</strong>de Pio IX, o papa que havia recentemente perdi<strong>do</strong>seu poder secular por conta <strong>do</strong> Risorgimento. Compensavaseu declínio maximizan<strong>do</strong> suas prerrogativas espirituais.O concílio Vaticano I considerara-o “infalível” em questões<strong>do</strong>gmáticas e, alguns anos depois, a Bula Quanta Cura eraacompanhada de um famoso Syllabus de erros da modernidade<strong>do</strong>s quais a maçonaria – instituição mística secular,que se organizava na forma de sociedade secreta – eraigualmente condenada.No <strong>Brasil</strong> as sociedades secretas eram fortes desdeo Perío<strong>do</strong> Colonial e as lojas maçônicas se organizaramno início <strong>do</strong> século XIX em capitais como Recife, Salva<strong>do</strong>re Rio de Janeiro. Políticos prestigiosos eram maçonse as medidas <strong>do</strong> papa não foram autorizadas a vigorar no<strong>Brasil</strong>, já que a Constituição facultava ao impera<strong>do</strong>r, comochefe da Igreja no país, dar ou não o seu placet às diretrizesde Roma. Apesar de não ter si<strong>do</strong> placitada, Dom Vital,bispo de Olinda, e D. Antônio Mace<strong>do</strong> Costa, bispo de Belém,decidem fazer valer a Bula assim mesmo, atingin<strong>do</strong>maçons prestigiosos de Pernambuco, afastan<strong>do</strong> padresmaçons e suspenden<strong>do</strong> ordens religiosas, o que provocaum processo na Justiça. Processa<strong>do</strong>s na Corte são condena<strong>do</strong>sa quatro anos de prisão e trabalhos força<strong>do</strong>s, convertidaem detenção <strong>do</strong>miciliar e mais tarde comutadapelo Impera<strong>do</strong>r.A prisão <strong>do</strong>s bispos, inédita e única na história brasileiralevada à cabo no governo <strong>do</strong> Visconde – ele própriomaçom desde 1840 – faz dele provisoriamente umherói entre os liberais radicais, positivistas e republicanos 164que viam na medida um ataque frontal ao obscurantismoeclesiástico e a supremacia da lei sobre a fé. Como eramrepublicanos a maior parte <strong>do</strong>s jornalistas de então o episódiofoi amplamente divulga<strong>do</strong> e o historia<strong>do</strong>r mais afoito,contagia<strong>do</strong> pelas fontes tem a certeza que se dava entãoo divórcio entre a monarquia e a Igreja Católica. Ignoramque houve inclusive uma missão diplomática a Roma querestabeleceu os bons ofícios com a Santa Sé, ten<strong>do</strong> o própriopapa critica<strong>do</strong> o radicalismo de seus bispos. Ignoramtambém que o Terceiro Reina<strong>do</strong> seria o de Isabel I, princesafamosa por sua religiosidade, que se indispôs com seupai quan<strong>do</strong> esse decidiu fazer valer a constituição e puniros bispos. A Igreja brasileira via em D. Isabel e no Terceiro164 Se o visconde fosse JK, a prisão <strong>do</strong>s bispos foi sua ruptura com o FMI. Setorespolíticos muito a esquerda <strong>do</strong> governo – os republicanos da década de 1870,os comunistas <strong>do</strong> final <strong>do</strong>s anos 1950 – comemoraram a medida. Quan<strong>do</strong> arepública, afinal, proclamada, decreta-se, sob inspiração positivista, o esta<strong>do</strong>laico, e propõem-se medidas rigorosas contra a Igreja, discutin<strong>do</strong>-se naAssembleia o fechamento da legação brasileira junto à Santa Sé.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>246Reina<strong>do</strong> sua verdadeira redenção 165 . Estavam longe dequerer desestabilizar o regime monárquico.Quem desejava desestabilizar a monarquia eram osliberais radicais transforma<strong>do</strong>s em republicanos depoisde uma década de exclusão <strong>do</strong>s cargos <strong>do</strong> governo 166 .Em maior ou menor grau sua ação é de contestação àsbases <strong>do</strong> Regime Monárquico estabeleci<strong>do</strong>. Abolicionismo,positivismo cientificista e republicanismo ganhamrelevo juntos, conforman<strong>do</strong> o que Silvio Romero chamariadepois de “o esvoaçar de ideias novas”. Não eram nada165 Leão XIII chegou a premiar a princesa com uma Rosa de Ouro – condecoraçãotradicional, e rara, oferecida pelo Papa aos monarcas como símbolo de suaafeição – pela decretação da Lei Áurea. Foi homenageada inclusive porD. Vital.166 Um argumento sociológico cínico sobre a ação contestatória da geraçãode 1870 é explicá-la por meio da exclusão política <strong>do</strong>s bacharéis liberais.Esta exclusão gerava a impossibilidade de sustentação material para muitosliberais. Se formar em Direito no <strong>Brasil</strong> <strong>do</strong> século XIX não deixava quasealternativas de subsistência material fora <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Numa sociedadeprotocapitalista estabelecer banca de advoga<strong>do</strong> era projeto muito arrisca<strong>do</strong>– Joaquim Nabuco, por exemplo, deputa<strong>do</strong> famoso, tenta fazê-lo após aproclamação da República e não consegue se sustentar. Mais seguro era amagistratura, a política, a <strong>do</strong>cência, o funcionalismo em geral, para os qual,na inexistência de concursos públicos, o indivíduo precisava ser indica<strong>do</strong>pelo governo. Ora uma década conserva<strong>do</strong>ra era mais que suficiente paradesestabilizar toda uma geração de jovens bacharéis liberais que excluí<strong>do</strong>s<strong>do</strong> poder encontravam poucas alternativas de carreiras. Tal exclusão nãoexistia desde os anos de 1840, pois tanto na década de 1850 quanto na de1860 houve experiências de conciliação partidária que abriam caminhos naburocracia tanto para os conserva<strong>do</strong>res quanto para os liberais progressistas,o que desaparece depois de da queda <strong>do</strong> gabinete Zacarias. Disto derivaa grande criatividade presente nas novas formas de atividade política daGeração de 1870, quase sempre de contestação.novas na Europa e nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, mas chegavamcom grande potencial disruptivo ao <strong>Brasil</strong> <strong>do</strong>s anos de1870 e 1880. Tinham pouco em comum o positivismocomtiano de matriz francesa, a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> por muitos oficiais<strong>do</strong> exército nacional, e o federalismo, secular nos Esta<strong>do</strong>sUni<strong>do</strong>s, esposa<strong>do</strong> pelos cafeicultores paulistas. O primeiro,divulga<strong>do</strong> no <strong>Brasil</strong> por Miguel Lemos, defendia umgoverno forte e autoritário como mo<strong>do</strong> mais eficaz depromoção <strong>do</strong> progresso enquanto o segun<strong>do</strong> defendiajustamente o contrário, a descentralização administrativacomo solução para os problemas nacionais, tal qual apareceem livros como A Província de Tavares Bastos. Paraprovíncias prósperas, como São Paulo, o regime centraliza<strong>do</strong><strong>do</strong> Império era uma expropriação sem fim, pois seusrecursos eram ano a ano redireciona<strong>do</strong>s para as províncias<strong>do</strong> norte eternamente deficitárias, acometidas pordesditas frequentes como secas e fomes, cujo socorro erapago pelo café paulista.Ao positivismo e federalismo somava-se o abolicionismoe o republicanismo que começam a andar de mãosdadas no Rio de Janeiro. A França, eterno modelo político<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> ocidental, proclamara a República em 1870, anoem que era publica<strong>do</strong> no <strong>Brasil</strong> o “Manifesto Republicano”,defenden<strong>do</strong> que um país da América não podia ser umamonarquia e creditan<strong>do</strong> ao regime monárquico o isolamentocontinental. Os moldes – americano ou francês – podiamvariar, mas a retórica era de contestação. Era também


247O Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>(1840-1889)na Inglaterra e nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s que o abolicionistaJoaquim Nabuco buscava articulação contra o escravismobrasileiro constituin<strong>do</strong> uma rede de ativismo internacional.Ângela Alonso reconhece a eficácia da estratégia queCatherine Sikkink chama de efeito bumerangue, quan<strong>do</strong> apressão internacional faz mais efeito que a interna, convéma articulação da sociedade civil organizada internacionalmente,como fez talentosamente Nabuco. Na corte e emSão Paulo, meetings organiza<strong>do</strong>s para esse fim estreitavamos contatos entre os abolicionistas brasileiros que atuavamna imprensa ou na advocacia liberal, e por meio e passeatas,encontros, panfletos e artigos jornalísticos descobriamnovas formas não partidárias de atuação política, entre asquais se destaca a própria literatura 167 .Nem to<strong>do</strong>s os republicanos eram abolicionistas –O PRP tem o cuida<strong>do</strong> de defender em seu programa quea abolição era uma questão a ser definida pelas provínciasapós a proclamação da República. Eram federalistas maisque abolicionistas. Nem to<strong>do</strong>s os federalistas eram republicanospor convicção. Há os que declaram que se houvessecomo conciliar a autonomia provincial e eleição <strong>do</strong>s presi-167 São exemplos disso Bernar<strong>do</strong> de Guimarães com Escrava Isaura, as obras deMacha<strong>do</strong> de Assis, e o precursor <strong>do</strong> abolicionismo literário brasileiro, CastroAlves, que morreu muito jovem antes mesmo que a década de 1870 seconformasse em “geração”, mas chocava suas plateias escravocratas com adeclamação poderosa e épica da tragédia <strong>do</strong> Navio Negreiro.dentes de província com o regime monárquico manteriama lealdade ao Impera<strong>do</strong>r. Mas parecia não haver. Havia abolicionistasmonarquistas, que flertaram com a República,como Joaquim Nabuco, ou que se tornaram devotos daprincesa após 1888, como José <strong>do</strong> Patrocínio. O panoramaera diverso e heterogêneo.Rui Barbosa, Nina Rodrigues, Miguel Lemos, JoaquimNabuco, André Rebouças, José <strong>do</strong> Patrocínio, LopesTrovão, Tavares Bastos, Luiz Gama, Silva Jardim, QuintinoBocayuva, Tobias Barreto, Silvio Romero tiveram trajetóriase propostas bastante distintas o que dá ideia da diversidadeda Geração de 1870. Para Ângela Alonso o que uneto<strong>do</strong>s estes protagonistas é a crítica ao status quo da sociedadeimperial 168 e à incorporação reinterpretada <strong>do</strong> “repertório”intelectual europeu e norte-americano para intervire buscar modificar a sociedade brasileira, então governadapelos saquaremas. Estes tradicionalmente avessos às mudançasforam tal qual os liberais pegos de surpresa peloesforço reformista liberalizante <strong>do</strong> gabinete Rio Branco quesequestrou a agenda <strong>do</strong>s liberais e <strong>do</strong>mesticou suas propostas,enfraquecen<strong>do</strong>-as. Libertava-se o ventre mas adiavaa Abolição. Criava o terço eleitoral para representaçãoda oposição mas negava-se a discutir a Reforma Política.168 Esta autora tece na verdade uma crítica ao determinismo social de umatradição historiográfica que os considera expressão <strong>do</strong> pensamento deuma classe média ou burguesia incipiente.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>248Vinha o habeas corpus, mas não a autonomia provincial.O Reform-mongering roubava a voz da contestação liberal,ao mesmo tempo que perpetuava os conserva<strong>do</strong>res nopoder. A volta <strong>do</strong>s Liberais com Sinimbu em 1878 não émais que a expressão da vontade <strong>do</strong> poder modera<strong>do</strong>r.É curioso que os próprios integrantes da geração de1870 reinterpretariam sua própria trajetória política. Ressignificam-nade mo<strong>do</strong> exclusivamente intelectual quase trêsdécadas depois. Foi o caso interessante de um grupo quefoi capaz de interpretar, em vida, sua própria ação sociala posteriori, e deixar isso como lega<strong>do</strong> institucionaliza<strong>do</strong>.Trata-se da Academia <strong>Brasil</strong>eira de Letras fundada por Macha<strong>do</strong>de Assis e Joaquim Nabuco em 1897. Esvanecia-seo político reafirmava-se a atuação literária e intelectual.Certamente se envergonhavam em alguma medida daRepública proclamada à quartelada, da abolição feita semas necessárias medidas de inclusão <strong>do</strong>s antigos escravose <strong>do</strong> federalismo implementa<strong>do</strong> para o serviço das fraudeseleitorais, da prevalência <strong>do</strong>s coronéis e da hegemoniapaulista. Não queriam ter nada a ver com isso tu<strong>do</strong>. Reitera-sea famosa frase de Karl Marx de que os homens fazemsua própria história, mas não a fazem como querem, não afazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelascom que se defrontam diretamente, legadas e transmitidaspelo passa<strong>do</strong>.4.7 A legislação abolicionistaPrecursores <strong>do</strong> abolicionismo. A questão <strong>do</strong> Tráfico Negreiroe as pressões inglesas no perío<strong>do</strong> Joanino e no PrimeiroReina<strong>do</strong>. Lei Feijó: Lei pra Inglês ver? A Lei Eusébio de Queiroze suas controvérsias. O fim <strong>do</strong> tráfico e o abolicionismo.A Lei <strong>do</strong> Ventre Livre e os debates políticos para suaaprovação. O nordeste e o abolicionismo. Espaçosde liberdade e decadência <strong>do</strong> Escravismo. A Lei <strong>do</strong>sSexagenários e a Lei Áurea.As ideias abolicionistas no <strong>Brasil</strong> remontam ao perío<strong>do</strong>colonial. Em sedições contra a coroa Portuguesa naBahia ao final <strong>do</strong> século XVIII já havia a proposta de aboliçãoda Escravidão, que também apareceu em Minas, aindaque não fosse consensual entre os inconfidentes. Mas deum mo<strong>do</strong> geral o escravismo era consensual, inclusive entreescravos que ao se rebelarem contra seus senhores defendiamsuas liberdades e não o fim da escravidão. Muitocomum nas zonas urbanas brasileiras encontrar ex-escravos<strong>do</strong>nos de escravos, tal qual o Prudêncio personagemmachadiano 169 .169 Em Memórias Póstumas, Brás Cubas surpreende seu ex-escravo Prudêncioaçoitan<strong>do</strong> seu novo escravo acusan<strong>do</strong>-o de bêba<strong>do</strong> e intervêm. Recebe porresposta: “nhônhô manda, não pede.” Denotan<strong>do</strong> a obediência ao antigosenhor.


249O Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>(1840-1889)Muito mais exceção que a norma o abolicionismoaparece aqui e acolá em personagens como o patriarcaJosé Bonifácio ou Hipólito José da Costa, o jornalista pioneiro<strong>do</strong> Correio <strong>Brasil</strong>iense. O primeiro se alijou da elitepolítica escravista permanecen<strong>do</strong> por uma década noostracismo até o final <strong>do</strong> primeiro reina<strong>do</strong>. O segun<strong>do</strong>editava sua folha <strong>do</strong> exílio em Londres.Era <strong>do</strong> governo de Londres que vinham as ideiasabolicionistas. Tratava-se antes de abolir o tráfico e, depoisde 1850, exceto pelo brevíssimo affair Christie (1863), nãohouve segun<strong>do</strong> José Murilo de Carvalho, maiores pressõesinglesas para a abolição da Escravidão. Quais os motivosque explicam a cruzada britânica contra o tráfico de escravosde 1807 a 1850. Ainda que cause comoção entre leitoresacostuma<strong>do</strong>s a entender a história maquiavelicamentecomo uma sucessão de atos imperialistas motiva<strong>do</strong>s porinteresses materiais, este parece ser um caso em que a forçadas ideias foi determinante 170 . Patrocina<strong>do</strong> por grupos170 Outras teses mais materialistas foram sucessivamente propostas. Karl Marxno Capital defende que ao combater a escravidão o parlamento inglêstinha por objetivo diminuir o preço <strong>do</strong>s itens coloniais da cesta básica <strong>do</strong>trabalha<strong>do</strong>r inglês, no intuito de aumentar a mais-valia ao diminuir o valorde subsistência. Pierre Verger, em “Fluxo e Refluxo” defende que o interessecomercial anglo-francês na costa africana na primeira metade <strong>do</strong> século XIXera prejudica<strong>do</strong> pelos subprodutos comerciais <strong>do</strong> tráfico de escravos com o<strong>Brasil</strong>, que de tão lucrativo acabava excluin<strong>do</strong> a presença <strong>do</strong>s comerciantes<strong>do</strong> óleo de palma – palm olive –, por exemplo. No <strong>Brasil</strong>, chama<strong>do</strong> óleode dendê, o óleo de palma era matéria-prima essencial para a gordura <strong>do</strong>chama<strong>do</strong> savon de marseille produto de luxo cujo consumo não fazia senãoreligiosos abolicionistas – os quakers, por exemplo – o deputa<strong>do</strong>William Wilberforce faz carreira durante as guerrasnapoleônicas defenden<strong>do</strong> a abolição <strong>do</strong> Tráfico Negreiro evai ganhan<strong>do</strong> numerosos adeptos entre os grupos puritanos171 . Com a abolição <strong>do</strong> tráfico na Inglaterra isso se tornaum tema eleitoral de relevância e sucessivos governosbuscam a cooperação – no mínimo ambígua e protelatória– <strong>do</strong> governo brasileiro para conseguir encerrar o infamecomércio.Nos trata<strong>do</strong>s assina<strong>do</strong>s em 1807, 1815 e 1817, osportugueses se comprometem com a Inglaterra sem terema real intenção ou mesmo condição de cumprir.À exceção <strong>do</strong>s anos entre 1845 e 1850, nunca entrou tantoescravo no <strong>Brasil</strong> quanto no perío<strong>do</strong> em que essas leis foramassinadas. Não havia um prazo, apenas o compromisso.Talvez por perceber a colaboração <strong>do</strong> governo com osingleses, os comerciantes e seus compra<strong>do</strong>res, os grandessenhores latifundiários decidiram comprar o máximo possívelde escravos antes que o tráfico fosse proibi<strong>do</strong>, o quenaturalmente nos leva à discussão sobre o impacto da Leide 1831, objeto de grande debate historiográfico.aumentar numa época em que se retomava o hábito <strong>do</strong> banho diário naEuropa. Para Verger, o banho europeu foi uma das razões para a crescentepressão inglesa para a abolição <strong>do</strong> tráfico. O que não faltam são teses sobreo assunto.171 HORSCHILD, Adam. Enterrem as Correntes. Profetas e Rebeldes na luta pelalibertação <strong>do</strong>s Escravos. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2007.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>250O entendimento hegemônico sobre a lei de 1831 éde que se tratou desde o início de letra morta, visto quefoi aprovada em contexto de turbulência política e implementadapor uma esta<strong>do</strong> fragiliza<strong>do</strong> e em formação contrainteresses muito bem articula<strong>do</strong>s de grupos poderosos.“Lei pra inglês ver” foi e continua sen<strong>do</strong> seu epíteto. Estu<strong>do</strong>smais recentes desmistificam essa visão clássica. KeilaGrinberg e Tamis Parron em textos recentes esmiúçam alei, seu contexto e suas consequências e descobrem coisasinteressantes. Do ponto de vista jurídico ela era desnecessária.O trata<strong>do</strong> de reconhecimento com os ingleses, umavez decorri<strong>do</strong>s os três anos de sua ratificação já previa aabolição <strong>do</strong> Tráfico e tinha força de lei. Por que motivo foinecessário aprovar uma nova lei de abolição <strong>do</strong> tráfico em1831?A lei de 1831 é mais firme. Liberta automaticamentequalquer escravo que tenha entra<strong>do</strong> ilegalmente no<strong>Brasil</strong> 172 . Há ainda um motivo soberano. A Lei de 1831,aprovada pelo ministro liberal Diogo Antônio Feijó assumiaa responsabilidade <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> brasileiro frente à questão<strong>do</strong> Tráfico, evitan<strong>do</strong> que o combate ao tráfico fosse172 Os abolicionistas das décadas de 1870 e 1880, como Luiz Gama, irão seaproveitar desta lei, que nunca foi revogada, para entrar com ações delibertação em larga escala, sobretu<strong>do</strong> em São Paulo, exigin<strong>do</strong> comprovação<strong>do</strong>s senhores, impossível de ser feita, de que seus escravos africanos tinhamentra<strong>do</strong> antes de 1831.identifica<strong>do</strong> no <strong>Brasil</strong> como uma imposição britânica.A lei era nacional.O Esta<strong>do</strong> efetivamente foi capaz de impor a lei eJosé Murilo de Carvalho reconhece que nos anos que seseguiram à sua aprovação diminuiu consideravelmente aentrada de africanos nos portos brasileiros 173 . Tamis Parron,entretanto, investiga detalhadamente o profun<strong>do</strong> lobby escravistacontra a Lei Feijó se verificou junto à cafeiculturafluminense, onde surgiria o núcleo da ala saquarema <strong>do</strong>parti<strong>do</strong> Conserva<strong>do</strong>r. O livro de Tamis é a história da contrapartidareacionária brasileira aos “profetas e rebeldes”que são descritos no livro de Adam Horschild. São numerosasas petições das câmaras municipais para a abolição dalei de 1831 e <strong>do</strong>s termos <strong>do</strong> trata<strong>do</strong> com a Inglaterra. Umavez no poder a partir <strong>do</strong> final <strong>do</strong>s anos de 1830, este grupo,de fato, transformará a Lei Feijó em letra morta. Talveza primeira grande obra política <strong>do</strong> conserva<strong>do</strong>rismo brasileirotenha si<strong>do</strong> justamente dar uma sobrevida de duasdécadas ao Tráfico Negreiro em um contexto de difusão173 José Murilo de Carvalho atribui essa diminuição a uma variável puramenteeconômica: entraram tantos escravos no <strong>Brasil</strong> durante o perío<strong>do</strong> joanino e o1 o Reina<strong>do</strong>, que já não havia mais necessidade de novos escravos na décadade 1830. A verdade, no entanto, é que, ao menos no curto prazo após suaaprovação, a lei valeu. Os traficantes acreditaram em sua validade, muitos aoponto de deixar completamente os negócios e mudar de ramo. E tambémos latifundiários, sobretu<strong>do</strong> os cafeicultores fluminenses que se lançaram emuma vigorosa e coordenada campanha política para revogar a lei.


251O Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>(1840-1889)de ideias liberais e de debates sobre a questão da raça quesurgiram no bojo da abdicação 174 estimula<strong>do</strong>s pela açãoda Inglaterra.A atuação inglesa por sua vez encontrará repúdiogeneraliza<strong>do</strong> na “opinião pública” da elite brasileira que aenxerga como imperialismo e procura resistir. Na décadade 1840, no entanto, este entendimento se altera parauma visão crescentemente crítica em relação aos traficantes,por duas razões principais. Uma econômica – o preçocrescentemente proibitivo <strong>do</strong>s escravos que entravam – eoutra social – o me<strong>do</strong> da grande concentração de cativosno sudeste cafeeiro – ambas agravadas pela radicalizaçãoda posição inglesa a partir <strong>do</strong> fim <strong>do</strong> Sistema de Trata<strong>do</strong>sem 1844.174 Segun<strong>do</strong> Marco Morel o perío<strong>do</strong> regencial viveu um momento de incipienteabolicionismo nos panfletos e jornais da época, graças a crescente liberdadede imprensa que inexistia no perío<strong>do</strong> colonial e, apenas nominalmenteno Primeiro Reina<strong>do</strong>. Ele ensina que foram publica<strong>do</strong>s na década de 1830diversos jornais e panfletos a respeito da situação <strong>do</strong> homem negro no<strong>Brasil</strong>. Estima que 1/3 da população de negros <strong>do</strong> país já era de libertos oque não só eram público-alvo destes debates como, alguns inclusive setornaram panfletários e jornalistas. Foi o caso de Paula Brito, que se tornoupatrono da carreira de outro mulato ainda mais famoso, Macha<strong>do</strong> deAssis. Panfletos como O mulatinho, O homem de cor, O liberto, começam adiscutir abertamente a questão racial no <strong>Brasil</strong> <strong>do</strong>s anos de 1830. Trata-senaturalmente de uma “história vista de baixo”, já que nas fontes tradicionais,atas <strong>do</strong> parlamento, e jornais mainstream o que se percebe é o repúdioao abolicionismo e à herança negra. Sobressai o interesse econômico<strong>do</strong> escravismo, o haitianismo e o início das teses de branqueamento queestimularão a política imigratória.O governo britânico decide partir para a ação unilateralcontra a procrastinação brasileira e faz aprovar a BillAberdeen (1845), também conhecida como Brazilian Actque equipara o Tráfico de Escravos à pirataria e permite oconfisco <strong>do</strong>s navios negreiros. Os Ingleses, ao final da décadachegam a invadir as águas territoriais <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> e abrirfogo contra fortes no litoral fluminense em perseguiçãoa navios negreiros provenientes da África. Não adiantava.O Tráfico não fazia senão crescer mais e mais, o que contrariaa tese de Leslie Bethell que atribui à ação inglesa oFim <strong>do</strong> Tráfico no <strong>Brasil</strong>. Trata-se de uma controvérsia interessante.É tão expressivo o número de escravos que entramno país entre 1845 e 1850 que os grandes senhoresse tornam quase reféns <strong>do</strong>s traficantes seus cre<strong>do</strong>res.A pressão inglesa elevara bastante o preço da mão de obra,estimulan<strong>do</strong> ainda mais sua lucratividade, mas colocan<strong>do</strong>em risco o patrimônio de uma elite rural dependente deum punha<strong>do</strong> de traficantes que controlavam to<strong>do</strong> o fluxode mão de obra, e eram seus cre<strong>do</strong>res. Os traficantesmudam rapidamente de status. De “vanguarda” nacional naluta contra o imperialismo britânico se tornam perigosos ecruéis merca<strong>do</strong>res de carne humana.A retomada de uma agenda de abolição <strong>do</strong> tráficojá vinha sen<strong>do</strong> debatida no parlamento desde 1842 e como retorno <strong>do</strong>s conserva<strong>do</strong>res ao poder fazia senti<strong>do</strong> para omesmo grupo político – que estimulara no final <strong>do</strong>s anos


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>252de 1830 a desobediência e eventual revogação da Lei de1831 – fazer agora uma nova lei para abolir o tráfico de escravos,antes que o número de escravos ultrapasse aquiloque as autoridades seriam capazes de controlar em casode rebelião. Estava bem viva ainda na memória das elitesnacionais o levante de fevereiro de 1835 em Salva<strong>do</strong>r, segui<strong>do</strong>por outra rebelião escrava em Vassouras no ano de1838. A Lei de abolição <strong>do</strong> Tráfico seria também uma leide segurança pública, razão pela qual recebeu o nome<strong>do</strong> ministro da justiça da trindade saquarema, Eusébio deQueiroz.O projeto de lei tinha a simpatia <strong>do</strong> Conselho deEsta<strong>do</strong>, que considerava a manutenção <strong>do</strong> tráfico comoum obstáculo a uma ação mais firme <strong>do</strong> Império na regiãoplatina. A rationale <strong>do</strong> Conselho era de que seria impossívelà Armada nacional, acuada como estava pela marinha inglesa175 enquanto durasse a controvérsia sobre os traficantes,ter ação efetiva em qualquer campanha contra JuanManuel Rosas. A questão é encaminhada ao parlamento erapidamente aprovada por uma câmara hegemonicamenteconserva<strong>do</strong>ra. Para José Murilo de Carvalho a lei Eusébiode Queiroz é um confronto entre o polo econômico e opolo burocrático das elites nacionais. Se a lei desinteressavaaos grandes senhores, era medida essencial para o Esta<strong>do</strong>,e este interesse prevaleceria.Foi efetivamente implementada um Esta<strong>do</strong> muitomais forte <strong>do</strong> que tinha si<strong>do</strong> aquele que aprovara a Lei Feijóe Eusébio de Queiroz usa to<strong>do</strong>s os meios ao dispor <strong>do</strong>executivo para fazê-la cumprir 176 . Vários traficantes forampresos e deporta<strong>do</strong>s graças à ação <strong>do</strong>s delega<strong>do</strong>s de políciacria<strong>do</strong>s logo após a maioridade e os compra<strong>do</strong>res tambémeram responsabiliza<strong>do</strong>s legalmente pela nova lei, aindaque na prática acabassem anistia<strong>do</strong>s quan<strong>do</strong> leva<strong>do</strong>s à júri.O número de escravos entrantes cai de mais de 50 mil paramenos de três mil um ano depois de aprovada a lei.Os liberais acusam os saquaremas de subserviênciaaos ingleses. A abolição só se deu, segun<strong>do</strong> eles, devi<strong>do</strong>ao recrudescimento da pressão sob Palmerston, ele próprioàs voltas com as críticas de seus opositores – inclusiveda anti-salavery society – de que sua política não tinha feitosenão aumentar o Tráfico no <strong>Brasil</strong>. Eusébio se defendedas acusações de subserviência defenden<strong>do</strong> que a medida175 Com a chegada de Palmerston ao poder os ingleses passaram a abordarqualquer navio com a bandeira nacional. O Conselho de Esta<strong>do</strong> reconheceque não é possível enfrentar Palmerston e Rosas ao mesmo tempo, se é queseria possível enfrentar a Inglaterra. Sugere a abolição soberana, feita pelo<strong>Brasil</strong>.176 Substituiu vários juízes, inclusive desembarga<strong>do</strong>res em tribunais de segundainstância, que não referendaram sentenças condenatórias contra indivíduosque julga<strong>do</strong>s por tráfico. Substituin<strong>do</strong> presidentes de províncias e delega<strong>do</strong>sde polícia lenientes nesta repressão nomean<strong>do</strong> figuras notoriamenteengajadas na perseguição ao tráfico, para fazê-lo cessar.


253O Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>(1840-1889)foi soberana e que os ingleses só atrapalharam atrasan<strong>do</strong>sua implementação. A historiografia ainda hoje ecoa estedebate. Leslie Bethell concorda com Palmerston de que aação inglesa teria si<strong>do</strong> essencial para a abolição <strong>do</strong> Tráfico.Ama<strong>do</strong> Cervo prefere concordar com Eusébio de Queirozpara quem a medida foi soberana, motivada por razões nacionaise desvinculada da pressão inglesa que apenas atrapalhou.Parece um exemplo claro de influência das fontes.Dependen<strong>do</strong> de que fontes o historia<strong>do</strong>r prioriza isso temimpacto em sua conclusão.Parece razoável supor que se trata de um falso debatejá que a pressão inglesa era “dialética”. Ao mesmo tempoque estimulou em curto prazo o tráfico por conta da elevação<strong>do</strong> preço, é óbvio que sua manutenção sob a oposiçãomilitante da marinha inglesa era inviável por muito maistempo. Nem o <strong>Brasil</strong> iria à guerra contra os ingleses, nem omerca<strong>do</strong> de trabalho teria condições de continuar absorven<strong>do</strong>tantos cativos. Eusébio e os saquaremas foram incrivelmenteoportunistas em aproveitar este contexto paraabolir o tráfico sem que isso trouxesse problemas imediatospara a cafeicultura saturada de africanos, ao mesmotempo que tinham amplo apoio <strong>do</strong>s grandes senhorespara perseguir os traficantes de quem eles eram deve<strong>do</strong>res.A Inglaterra aju<strong>do</strong>u e o conselho de Esta<strong>do</strong> reconheciaser impossível ir à guerra com Rosas em meio a controvérsiacom os ingleses. Se não fosse a pressão britânica e oato fosse simplesmente uma medida soberana, como querAma<strong>do</strong> Cervo, os conserva<strong>do</strong>res já teriam aprova<strong>do</strong> a leiaté 1844 quan<strong>do</strong> estiveram pela primeira vez no poder e otema já tinha volta<strong>do</strong> ao debate político.A esperteza de Eusébio é ainda mais ampla, já quecom o fim <strong>do</strong> tráfico se congela por quase duas décadas odebate sobre a questão da escravidão no <strong>Brasil</strong>, que só voltaráa ser discutida por iniciativa da coroa durante a Guerra<strong>do</strong> Paraguai 177 .A iniciativa de Pedro II é encarada como intervençãoindevida da coroa. Ao longo da Guerra <strong>do</strong> Paraguai, oconselho de Esta<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> consulta<strong>do</strong>s sobre a questãoabolicionista declara não ser conveniente <strong>do</strong> debate. Masé mais difícil censurar o impera<strong>do</strong>r que o deputa<strong>do</strong> SilvaGuimarães. Diversas sociedades culturais das quais o impera<strong>do</strong>rera membro o questionam educadamente sobrea questão da escravidão no <strong>Brasil</strong>. Os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s aprovama emenda que abole a escravidão (a décima terceira)em 1865. A coroa responde que trataria o assunto comprioridade assim que terminasse a guerra, e assim o fez.Foi acusa<strong>do</strong> por conserva<strong>do</strong>res e liberais de tirano,déspota, de prover o suicídio dinástico, de ir contra a177 O deputa<strong>do</strong> Silva Guimarães propôs duas vezes, em 1851 e 1852, um projetode abolição <strong>do</strong> ventre no <strong>Brasil</strong>. A questão não foi sequer debatida. SilvaGuimarães insiste em defender o tema na tribuna e é censura<strong>do</strong>! A mesa usao regimento interno declarar a não conveniência deste debate. O deputa<strong>do</strong>recorre e perde ten<strong>do</strong> ti<strong>do</strong> o apoio de apenas mais um deputa<strong>do</strong>.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>254vontade da nação para agradar os intelectuais franceses.O Marquês de São Vicente a pedi<strong>do</strong> <strong>do</strong> Impera<strong>do</strong>r elaboroucinco projetos de lei distintos, que foram amalgama<strong>do</strong>s ealtera<strong>do</strong>s para formar o que se tornou a Lei <strong>do</strong> Ventre Livre.Seus dispositivos foram intensamente debati<strong>do</strong>s pelo parlamentodurante a guerra, mas o gabinete não foi capazde fazê-la aprovar no imediato pós-guerra. São Vicente nãoera bom político para reunir um gabinete que se colocassecontra o próprio parti<strong>do</strong> conserva<strong>do</strong>r e o Marquês de Olindasimplesmente se recusa a colocar a lei em discussão.O Visconde de Itaboraí renuncia por causa da lei. A vida deImpera<strong>do</strong>r nem sempre é fácil.Foi José Maria da Silva Paranhos, o homem chama<strong>do</strong>por D. Pedro para essa espinhosa missão. Forma umgabinete de jovens como era ele mesmo quan<strong>do</strong> foi convida<strong>do</strong>pelo marquês <strong>do</strong> Paraná para fazer parte <strong>do</strong> gabinetede Conciliação e a faz aprovar em 28 de Setembro de1871. Foi intensamente debatida no parlamento e só foiaprovada graças à divisão regional entre as províncias <strong>do</strong>Norte, que votaram a favor <strong>do</strong> governo, e as <strong>do</strong> Sul <strong>do</strong> paísque se opunham à Lei, o que levou José Murilo de Carvalhoa questionar o senso comum que identifica o Nordestecomo sen<strong>do</strong> uma área de atraso, resistente à renovação,sen<strong>do</strong> São Paulo a vanguarda. No que se refere à aboliçãonão é o que se percebe.Muito mais dependentes <strong>do</strong> governo e muito menosdependentes da escravidão, o norte – como eramchamadas até então as províncias da Bahia pra cima – játinha sofri<strong>do</strong> significativa hemorragia de mão de obra escravapara os cafezais <strong>do</strong> sudeste nas duas décadas que seseguiram à aprovação da Lei Eusébio de Queiroz. O chama<strong>do</strong>tráfico interno que deslocara os escravos jovens esadios de economias periféricas e pouco dinâmicas paraa lucrativa lavoura <strong>do</strong> café. Não era uma grande questãoeconômica para o Norte/Nordeste a abolição <strong>do</strong> Ventre.Igualmente, segun<strong>do</strong> José Murilo os funcionários públicospresentes na câmara, juízes, promotores, delega<strong>do</strong>s, etc.,que naturalmente votaram com o gabinete evidencian<strong>do</strong>mais uma vez a tensão entre o polo palaciano – o estamentoburocrático da sociedade brasileira – e o polo rural, agricultore escravista que repudiava vigorosamente a lei emsua premissa e em vários de seus dispositivos o que explicaos testemunhos da época que dão conta de que Paranhosia buscar no laço os deputa<strong>do</strong>s <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> conserva<strong>do</strong>r emsuas casas para que fossem votar. Foi aprovada com grandeoposição.Mais que ao ventre livre, os detratores <strong>do</strong> 28 desetembro, criticavam os demais dispositivos da lei quesegun<strong>do</strong> eles “abria na alma <strong>do</strong> escravo a perspectiva dedireitos”, favorecen<strong>do</strong> à rebeldia. O direito de propriedade,alegavam, é erga omnis e o Esta<strong>do</strong> não pode se imiscuir narelação entre o senhor e seus bens. Pela lei poderiam conseguira alforria se comprovassem maus tratos, ou possede pecúlio que fosse suficiente para comprar sua liberdade


255O Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>(1840-1889)por preço estabeleci<strong>do</strong> por um juiz. Tais intervenções <strong>do</strong>Esta<strong>do</strong> dificultariam o exercício da autoridade <strong>do</strong> senhor,defendiam. “Loucura dinástica, sacrilégio histórico, suicídionacional” são termos que caracterizaram a iniciativa da leipela coroa e que, segun<strong>do</strong> José Murilo de Carvalho foi um<strong>do</strong>s principais impulsos da<strong>do</strong>s ao movimento republicanoao abalar a legitimidade <strong>do</strong> sistema Imperial com grupospoderosos que lhe sustentavam.A eficácia da lei também é duvi<strong>do</strong>sa. Os muitos ingênuos,filhos de escravos nasci<strong>do</strong>s após 28 de setembrode 1871 poderiam permanecer com suas mães ou ser entreguesaos cuida<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> o que raramente se verificou.Manti<strong>do</strong>s juntos ao senhor eram obriga<strong>do</strong>s a prestarserviços como forma de indenização por sua alimentaçãoe moradia, manten<strong>do</strong>-se na verdade dependentes até aidade adulta.É somente na década de 1870 que o movimentoabolicionista ganha força e na década seguinte se tornapresente em quase to<strong>do</strong> o país e ganha adesão de amplossetores sociais. A publicação por Joaquim Nabuco em 1883<strong>do</strong> livro O abolicionismo e a adesão de grande números deoficiais <strong>do</strong> exército à causa abolicionista, mesmo em detrimentode suas carreiras, já que muitos eram puni<strong>do</strong>s porse recusar a perseguir escravos fugi<strong>do</strong>s são evidência damaior penetração das ideias abolicionistas na sociedade.Até a década de 1860, no entanto, era praticamente inexistente,enquanto “movimento” e não passava de iniciativade uns poucos indivíduos excepcionais – Castro Alves, porexemplo, com pouco mais de 20 anos, declaman<strong>do</strong> o NavioNegreiro no principal teatro de Salva<strong>do</strong>r 178 – no seio deuma sociedade na qual o escravismo era visto como normal.Eram desbrava<strong>do</strong>res.Para além da ação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e <strong>do</strong>s abolicionistascomo Joaquim Nabuco, José <strong>do</strong> Patrocínio, Luiz Gama,Silva Jardim entre outros que transformaram a causa emmovimento popular amplamente apoia<strong>do</strong> no país, e comapoio internacional, está a própria obsolescência <strong>do</strong> sistemaescravista. Sem sombra de dúvida isso se dá no planodas ideias. No espaço de uma geração o que era aceito socialmentese torna inaceitável, e em parte, podemos dizerem grande parte, isso se deve à ação <strong>do</strong>s próprios escravos.Contar a história da abolição como se os escravos fossemcriaturas passivas é uma injustiça. Trata-se da tradicional“história branca” <strong>do</strong> abolicionismo que culmina com a dádivaoferecida pela princesa “redentora” no 13 de maio.Da leitura <strong>do</strong>s mais diversos historia<strong>do</strong>res que sedebruçaram nas duas últimas décadas sobre o estu<strong>do</strong> daEscravidão nos anos finais <strong>do</strong> império, fica a impressão deque a Lei Áurea não fez senão legitimar juridicamente oque na prática já era a norma: a liberdade. Em Visões da178 Ver SILVA, Alberto da Costa e Castro Alves. Um poeta sempre jovem. Rio dejaneiro: Ed. Cia. das Letras, 2006.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>256Liberdade, o historia<strong>do</strong>r Sidney Chalhoub descreve a cidade<strong>do</strong> Rio de Janeiro na década de 1880 como um oásis deliberdades e autonomia para muitos mulatos, negros forrose escravos que construíam cotidianamente seus espaçosde liberdade 179 . A figura <strong>do</strong> escravo de ganho que pagava“jornal” ao seu senhor, mas que para to<strong>do</strong>s os outros efeitosera livre, ou os quilombos urbanos que se proliferaram 180 ,muitos com o conhecimento de autoridades e apoio de figurasde destaque da elite comercial carioca demonstramo esboroamento da instituição <strong>do</strong> escravismo.Em termos demográficos quan<strong>do</strong> <strong>do</strong> 13 de Maio,o número de escravos no <strong>Brasil</strong> já não chegava à 10% <strong>do</strong>total da população. No censo de 1872 apenas 15% eramescravos enquanto soma<strong>do</strong>s etnicamente pretos e par<strong>do</strong>schegavam a 57%. Desconta<strong>do</strong>s aí os escravos, havia maisde 42% de indivíduos pretos ou par<strong>do</strong>s, portanto, egressosda escravidão que, em 1872 eram livres. Ou seja, quase74% da população negra já era livre em 1872 181 . Isso éevidência de que na sociedade brasileira era relativamente179 Este mesmo autor, no entanto destaca que havia restrições significativasao exercício pleno desta liberdade. Desde restrições jurídicas, como aperseguição pela polícia, a alforria condicional, a reescravização, e capturade homens livres para escravizá-los, dentre outras dificuldades que sofriamos ex-escravos.180 Para um exemplo ver Eduar<strong>do</strong> Silva “As camélias <strong>do</strong> Leblon”.181 Esse número contrasta com os apenas 11% da população negra nos Esta<strong>do</strong>sUni<strong>do</strong>s, inclusive contabiliza<strong>do</strong>s aí os Esta<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Norte onde não havia maisescravidão.muito mais aberta à manumissão <strong>do</strong> que em todas as outrassociedades escravistas modernas, o que favorecia muitoa disseminação <strong>do</strong> abolicionismo.No nordeste brasileiro como o escravismo foi desaparecen<strong>do</strong>estatisticamente por conta <strong>do</strong> tráfico internocontinua<strong>do</strong> desde 1850, o impacto econômico daescravidão vai se tornan<strong>do</strong> nulo, o que levou a aboliçãopelo Ceará da Abolição em 1884, província onde o governocentral decidiu punir um regimento inteiro de oficiaisabolicionistas em Fortaleza, transferin<strong>do</strong>-o para Belém. Nomesmo ano a Província <strong>do</strong> Amazonas decretava abolida aescravidão. Serão novamente as províncias <strong>do</strong> Norte queapoiariam o Governo quan<strong>do</strong> da longa tramitação e debatesa respeito da Lei <strong>do</strong>s Sexagenários que começa a serdiscutida no gabinete liberal e só é aprovada pelos conserva<strong>do</strong>ressob Cotegipe. A Lei Saraiva Cotegipe de 1885libertava to<strong>do</strong>s os escravos acima de 65 anos de idade e éconsiderada inócua pelos abolicionistas. O debate já nãoera mais se haveria ou não a abolição definitiva da escravidãono <strong>Brasil</strong>, o que era percebi<strong>do</strong> como inevitável mesmopelos grandes proprietários de escravos. A questão passavaa ser se o governo aprovaria ou não indenização porconta da defesa da propriedade privada 182 .182 Ironizan<strong>do</strong> a proposta o republicano e abolicionista Antônio da Silva Jardimescreveu um artigo pela indenização... aos escravos!


257O Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>(1840-1889)O <strong>Brasil</strong> era o último país <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> ocidental aindacom escravos. Cuba abolira a escravidão em 1886 mas comindenização aos senhores. Os gabinetes <strong>do</strong> fim <strong>do</strong> impériodiscutem alternativas de indenização, mas a abolição virá,afinal, no gabinete João Alfre<strong>do</strong> em 1888, sem indenização,alijan<strong>do</strong> os latifundiários escravistas <strong>do</strong> Vale <strong>do</strong> Paraíba dabase de sustentação da monarquia. Neste mesmo ano foramconcedi<strong>do</strong>s baronatos em uma escala sem precedentespara quase duas centenas de indivíduos. A monarquiatentava compensar com vantagens honoríficas o que haviatoma<strong>do</strong> em patrimônio, mas, como sabemos, era tardedemais. A profecia de Cotegipe para a princesa se cumpria.Ganhou o povo, mas perdeu a coroa.4.8 As Forças ArmadasOs militares no <strong>Brasil</strong> e na AméricaEspanhola <strong>do</strong> século XIX.O cadetismo e sua superação. A Marinha. A GuardaNacional. O bacharelismo na formação militar.A clivagem geracional entre os tarimbeiros ecientíficos. O debate historiográfico sobre o papel <strong>do</strong>smilitares na queda <strong>do</strong> império. O abolicionismo e a“Questão Militar”.O estu<strong>do</strong> da participação política <strong>do</strong>s militares noSegun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong> passa pelo reconhecimento da situaçãosui generis que vivia o Império <strong>Brasil</strong>eiro no tocante ao papeldas Forças Armadas em seu contexto regional. Ao contráriode nossos vizinhos onde a presença <strong>do</strong> exército na políticatinha si<strong>do</strong> fundamental desde a independência no <strong>Brasil</strong>essa presença foi declinante. Na Argentina, no Chile, noMéxico, não raro, generais ocupavam a presidência, sen<strong>do</strong>eleitos (Bartolomeu Mitre, Júlio Roca, para citar o exemplomais próximo) ou por meio de golpes militares.O caso brasileiro era mais próximo <strong>do</strong>s EUA. Apenastrês generais ocuparam a presidência desde a independência– George Washington, Andrew Jackson e Ulisses Grant– mesmo assim sempre após guerras que aumentaramsuas popularidades. No <strong>Brasil</strong> era raro um militar ocupar achefia <strong>do</strong> gabinete, e o único caso foi o de Caxias depois da


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>258guerra <strong>do</strong> Paraguai por conta da renúncia <strong>do</strong> Visconde <strong>do</strong>Rio Branco. Os militares eram, no máximo, ministros daGuerra, mas mesmo esse cargo era, bem mais frequentementeocupa<strong>do</strong> por civis. O elemento marcial não seduzianossa sociedade e nosso Impera<strong>do</strong>r raríssimas vezes permitiuser retrata<strong>do</strong> em uniforme militar – sen<strong>do</strong> a Guerra <strong>do</strong>Paraguai a exceção evidente. Mesmo após a guerra preferiuque fosse usa<strong>do</strong> para construir cinco escolas o dinheiroarrecada<strong>do</strong> em subscrição entre os comerciantes da Cortepara homenageá-lo com uma estátua marcial, análoga ade seu pai, até hoje presente na Praça Tiradentes. Era umcivilista, e talvez por isso, não tinha afinidade com o setormilitar que terminaria por derrubá-lo <strong>do</strong> Trono.No Perío<strong>do</strong> Joanino e no Primeiro Reina<strong>do</strong> o exército,ainda que precário, tinha seu prestígio. As intervençõessucessivas na Banda Oriental e a guerra de Independênciaderam-lhe relevo. D. João cria no <strong>Brasil</strong> uma academia militar(1811) embrião <strong>do</strong> que hoje é a Academia Militar dasAgulhas Negras (AMAN) e também instituições navais –Arsenal de Guerra da Marinha, hospital militar, entre outras.No Primeiro Reina<strong>do</strong> foi o apoio militar que permitiu ao Impera<strong>do</strong>rfechar a Assembleia em dezembro de 1823 semqualquer base de apoio na elite brasileira. Os oficiais eramem sua maioria portugueses, e por isso mesmo, precisamser conti<strong>do</strong>s pelos liberais após a abdicação. Se os oficiaisnão eram confiáveis por serem caramurus, muito menos atropa. Entre 1831 e 1832 sucederam-se numerosos levantesna corte que, não raro, contaram com a participação dastropas em articulação com os grupos populares – farroupilhas/exalta<strong>do</strong>scomo eram chama<strong>do</strong>s. A Regência é oponto mais baixo de desvalorização das Forças Armadasbrasileiras. Os liberais fazem um esforço delibera<strong>do</strong> paradiminuir guarnições, desmobilizar regimentos e deixar emesta<strong>do</strong> de penúria a organização castrense no país. Na biografiade Manuel Luis Osório, general importante da guerra<strong>do</strong> Paraguai biografa<strong>do</strong> por Francisco Doratioto, são frequentesas reclamações de sol<strong>do</strong>, péssimas condições datropa e aban<strong>do</strong>no no Perío<strong>do</strong> <strong>do</strong>s anos de 1830 e 1840.Osório temia mais que tu<strong>do</strong> que seus filhos resolvessemseguir a carreira militar, e por diversas vezes pensou emaban<strong>do</strong>ná-la. A situação não era muito melhor no Segun<strong>do</strong>Reina<strong>do</strong>. Melhora o orçamento, melhoram as condiçõesmateriais, mas o desprestígio <strong>do</strong>s militares continua.Segun<strong>do</strong> José Murilo de Carvalho, para além da questãopolítica, há também uma razão sociológica que explica adiferença da percepção <strong>do</strong>s militares entre 1808 e 1831ser tão distinta desta mesma percepção após o perío<strong>do</strong>regencial: o desaparecimento progressivo <strong>do</strong> cadetismo.Cadetismo é o nome que damos a prática típica <strong>do</strong>Antigo Regime que recruta entre seus os aristocratas os jovenscadetes, futuros oficiais <strong>do</strong> exército nacional. A persistênciadesta prática na França, Inglaterra, Prússia, e demaispaíses europeus no século XIX é um <strong>do</strong>s sustentáculosmais robustos da tese de Arno J. Mayer sobre a persistência


259O Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>(1840-1889)<strong>do</strong> Antigo Regime 183 . Na América espanhola as guerras deindependência mobilizam ampla parcela da população edestroem as bases <strong>do</strong> exército colonial espanhol. Na Américaportuguesa, a permanência <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Português noEsta<strong>do</strong> Imperial brasileiro deu sobrevida ao cadetismo aolongo <strong>do</strong> Primeiro Reina<strong>do</strong>. Assim, na primeira geração militar<strong>do</strong> pós-independência os oficiais militares brasileirossão os nobres da terra: os filhos <strong>do</strong>s comerciantes ricos e<strong>do</strong>s grandes proprietários.Isso, no entanto, rapidamente modifica-se. Progressivamente,a Academia Militar torna-se uma alternativapara os segun<strong>do</strong>s filhos, os filhos das famílias sem recursos,e até, <strong>do</strong>s bastar<strong>do</strong>s e órfãos. Diferentemente das faculdadesde Direito de Olinda e São Paulo não havia cobrançade taxas de matrícula para a Escola Militar (nem para escolapolitécnica onde estu<strong>do</strong>u José Maria da Silva Paranhos,o futuro Visconde <strong>do</strong> Rio Branco, que ficou órfão muitojovem). Era, portanto, uma alternativa de ascensão socialpara os filhos de uma camada média baixa, remediada. Serãoos oficiais nas gerações finais <strong>do</strong> Império tão diferentesem origens <strong>do</strong>s oficiais <strong>do</strong>s anos iniciais.183 Em “A Força da Tradição” este autor defende que mesmo com oaburguesamento progressivo das sociedades europeias no século XIX, aschamadas estruturas de aço (Schumpeter) <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> – diplomacia e exército– seguiam firmes nas mãos <strong>do</strong>s aristocratas o que relativiza a ideia marxistade sociedades burguesas. Arno Mayer alega que o colapso <strong>do</strong> AntigoRegime só será completo após a Primeira Guerra Mundial.Na Armada imperial, no entanto, o cadetismo não foisupera<strong>do</strong>. A primeira geração de oficiais navais eram naturalmentemercenários ingleses, mas, a partir daí serão continuamenteseleciona<strong>do</strong>s para oficiais da marinha brasileiraindivíduos de posses e famílias abastadas. O desprestígioinerente à carreira militar no exército não era o mesmo namarinha e a razão pra isso era o caríssimo “enxoval”, obstáculosuficiente para afastar da Armada Imperial os pobrecoita<strong>do</strong>s. Isso explica porque a lealdade <strong>do</strong>s oficiais da marinhapermanece com a monarquia muito tempo depois quesignificativa parcela <strong>do</strong>s oficiais <strong>do</strong> exército já havia aderi<strong>do</strong>ao republicanismo. Para muitos autores explica mesmo aeclosão das duas revoltas da Armada nos anos iniciais daRepública, onde almirantes notoriamente monarquistas –como Saldanha da Gama – tomaram parte.Naturalmente esse elitismo estava restrito ao oficialato.Entre os marujos o recrutamento era o mesmo pratica<strong>do</strong>em quase todas as marinhas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> no séculoXIX, o famoso impressment, o recrutamento força<strong>do</strong> de marinheirosque podiam vir de navios mercantes ou <strong>do</strong>s estratosmais baixos da sociedade. O mo<strong>do</strong> de manutenção dadisciplina também não variava de bandeira para bandeira:era o açoitamento. Havia um descolamento completo entreos marujos e seus oficiais, tanto quanto existia entre osproprietários e seus escravos, correlação, aliás, não desprovidade senti<strong>do</strong>. A marinha não poderia estar mais longe<strong>do</strong> povo, e não hesitará na Segunda Revolta da Armada de


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>260decidir pelo bombardeio de civis, praticamente destruin<strong>do</strong>a cidade de Niterói. Já no Exército, desde o Perío<strong>do</strong> regencial,tropa e povo lutaram la<strong>do</strong> a la<strong>do</strong>. Tal vocação reformistae popular <strong>do</strong> exército brasileiro será resgatada quan<strong>do</strong><strong>do</strong> advento <strong>do</strong> movimento abolicionista nos anos finais damonarquia. A defesa da liberdade <strong>do</strong>s escravos encontraráabrigo nos quartéis e na consciência <strong>do</strong>s oficiais <strong>do</strong> exércitobrasileiro, como veremos.Afora o Exército e a Marinha o Império brasileiroconheceu uma outra forma de organização militar objetode grande controvérsia historiográfica: a Guarda Nacional.Criada no primeiro reina<strong>do</strong> e organizada pelo futuro patrono<strong>do</strong> exército, Caxias durante o perío<strong>do</strong> regencial tevepapel fundamental para manutenção da ordem durante osmomentos de convulsão social da Regência. Para o autor,a Guarda tem um papel contraditório, pois representa umapermanência de uma tradição anterior, mas ao mesmotempo, tem um papel dialético, um papel que ajuda oucontribui nessa evolução.No segun<strong>do</strong> reina<strong>do</strong>, a guarda nacional será crescentementepercebida como uma rival <strong>do</strong> exército. A mávontade <strong>do</strong>s oficiais <strong>do</strong> exército para com a Guarda Nacionalé compreensível. Os sacrifícios da carreira militar eramconsideráveis. Transferências e viagens constantes promoçõeslentíssimas – Frank McCann estudan<strong>do</strong> os generaisda Primeira década republicana chega a conclusão que tinhamem média chega<strong>do</strong> à patente de capitão com cercade 40 anos de idade – sol<strong>do</strong> baixo, alimentação precária,material e infraestrutura ruim. Compara<strong>do</strong> com a guardaera injusto que um civil sem nenhuma formação militar,por razões políticas tivesse patente de coronel, e para to<strong>do</strong>sos fins fosse assim trata<strong>do</strong>, sobretu<strong>do</strong> durante a Guerra<strong>do</strong> Paraguai. Após a guerra a oposição à guarda nacionalatinge proporções insustentáveis e o gabinete <strong>do</strong> Visconde<strong>do</strong> Rio Branco decide por sua desmobilização em 1873– só poderia funcionar para treinamentos uma vez por anoou em caso de emergência nacional.O mais clássico estu<strong>do</strong> sobre a Guarda Nacionalé o <strong>do</strong> sociólogo colombiano Fernan<strong>do</strong> Uricochea. EmO Minotauro Imperial, Uricochea se debruça no problemarecorrente das formas de <strong>do</strong>minação weberianas. Seria oimpério um modelo tradicional de organização política oua lógica de <strong>do</strong>minação era racional-legal. Seu caminho éindutivo. Estuda o caso da Guarda Nacional para responderse era uma instituição pública ou privada. Afinal os coronéis,cujo título permanece muito tempo depois de extintaa Guarda, são até hoje símbolos <strong>do</strong> patrimonialismo rural,de um mo<strong>do</strong> de <strong>do</strong>minação tradicional, onde o público eo prova<strong>do</strong> não se dissociam claramente.A conclusão de Uricochea está na própria duplicidadede seu título. Nem homem nem touro, a guarda eraum Minotauro. Reconhecen<strong>do</strong> a tradição historiográficaque vincula à Guarda ao localismo, este autor defende queela foi parte importante <strong>do</strong> progressivo desenvolvimento


261O Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>(1840-1889)institucional, burocrático e administrativo <strong>do</strong> Império. Emprimeiro lugar porque a Guarda ajudava a garantir a presença<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> onde este não teria como chegar. UmEsta<strong>do</strong> de pequena capilaridade, ainda em processo deformação, cujos vazios de poder eram preenchi<strong>do</strong>s pelaGuarda Nacional, ainda que sob a forma pretérita de <strong>do</strong>minaçãoanterior, <strong>do</strong>s senhores locais. Em segun<strong>do</strong> lugar, elapermitia um mo<strong>do</strong> de socialização política <strong>do</strong>s cidadãosdas zonas rurais. Teve uma função educacional de cidadaniadurante o processo de transição entre duas formas de<strong>do</strong>minação: a tradicional e a racional-legal. Era uma protocidadanianascente entre aqueles que homens livres, noexercício de uma função pública, ainda que sobre o controledireto ou indireto <strong>do</strong>s senhores locais. A Guarda teriaentão um papel dialético, pois, se representa a permanênciade uma tradição anterior ao mesmo tempo contribuipara a evolução institucional em curso.A formação da academia militar <strong>do</strong> Império era fortementemarcada pela presença <strong>do</strong> ensino técnico. Estu<strong>do</strong>sde Mineralogia, Geografia, Matemática diferenciavamo mo<strong>do</strong> de pensamento militar <strong>do</strong> pensamento típico<strong>do</strong>s bacharéis direito que governavam o <strong>Brasil</strong> <strong>do</strong> séculoXIX. José Murilo de Carvalho, ao estudar o currículo daAcademia Militar defende que este imbuía de um projetode <strong>Brasil</strong> e de sociedade mais que simplesmente um projetode formação de militares. Estes se percebiam comoverdadeiros intelectuais e ao saírem da academia eramtrata<strong>do</strong>s por “<strong>do</strong>utor”: “Doutor Major”, “Doutor capitão”. Erauma alternativa de prestígio social que ser <strong>do</strong>utor trazia eser militar não. Criava-se assim o embrião <strong>do</strong> pensamentosalvacionista. O exército se autoincumbia de uma missãoregenera<strong>do</strong>ra da nação que, em alguma medida permanecerápor mais de um século com consequências políticassérias para a vida nacional.São exemplos disso os clássicos literários <strong>do</strong> final <strong>do</strong>século XIX escrito por militares como A Retirada da Lagunade Taunay e Os Sertões de Euclides da Cunha, cujo impactono panorama literário brasileiro não terão paralelo remotocom qualquer contribuição militar no século XX. A recepção<strong>do</strong> positivismo, as missões de Ron<strong>do</strong>n na Amazôniadas décadas de 1900, a revista Defesa Nacional (1913) e opapel <strong>do</strong>s jovens turcos, o tenentismo, são to<strong>do</strong>s exemplosdesta missão civilizatória que dará novo papel político aosmilitares brasileiros para muito além da proclamação daRepública.Essa formação também servia para dividir a classe,já que não eram to<strong>do</strong>s os oficiais que tinham formaçãoacadêmica. Os chama<strong>do</strong>s tarimbeiros, frequentes até daGuerra <strong>do</strong> Paraguai, tinham seu conhecimento basea<strong>do</strong>na experiência empírica. Tarimba é o nome da<strong>do</strong> a ripade madeira que formava o leito <strong>do</strong>s quartéis portugueses.Dormir na tarimba era sinônimo de experiência. Este conhecimentoera despreza<strong>do</strong> pelos intelectuais da academiaque, não raro, desdenhavam de seus superiores sem a


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>262mesma formação. Abria-se nos anos de 1870 e 1880 umaclivagem geracional. Isso contribuiu para impedir que seformasse no seio <strong>do</strong> exército uma homogeneidade educacionalanáloga a que o bacharelismo jurídico produziuentre a elite civil.Os “casacas” como eram chama<strong>do</strong>s pejorativamenteos civis temiam que a organização militar subvertesse aordem constitucional desde o trauma <strong>do</strong> Primeiro Reina<strong>do</strong>.O “cesarismo” poderia assumir uma função absolutista “corcunda”,como fizera em dezembro de 1823, ou pior, um moldebonapartista republicano. Dada a enorme presença desetores pauperiza<strong>do</strong>s na tropa. Ex-escravos, mestiços e mulatospoderiam liderar um levante generaliza<strong>do</strong> nos moldes<strong>do</strong> que ocorrera no Haiti. Se o exército brasileiro no séculoXIX fosse proporcional ao francês em termos populacionais,teríamos que ter 40 mil oficiais. José Murilo de Carvalho contabilizouquatro mil, 10% <strong>do</strong> total. A segurança externa nãoera a mais relevante para os <strong>do</strong>nos <strong>do</strong> poder no Império, a internasim. E no que tange a segurança interna, o exército eramais ameaça potencial que garantia de segurança. Não eraconveniente dispersar 40 mil braços da lavoura. Melhor mobilizá-losparcialmente por meio da Guarda Nacional, ondeeram arregimenta<strong>do</strong>s temporariamente. O agravamentodas tensões entre civis e militares após a Guerra <strong>do</strong> Paraguai(1864-70) deve ser compreendi<strong>do</strong> a partir destas questões.Crescentemente o positivismo – que já era conheci<strong>do</strong>no <strong>Brasil</strong> desde os anos de 1850 – vai ganhan<strong>do</strong> asfileiras militares e garantin<strong>do</strong> uma protounidade em defesa<strong>do</strong> progresso. Nem 1 / 3<strong>do</strong>s oficiais brasileiros era positivista,mas graças ao positivismo e ao abolicionismo muitos delesse tornam republicanos na década de 1880. A desmobilizaçãoda Guarda Nacional contribuiu para melhoria <strong>do</strong> prestígio<strong>do</strong>s militares e favorece a maior homogeneização quea ideologia positivista incorporava.Para além <strong>do</strong> positivismo, a discussão historiográficaé rica. Entender o divórcio entre civis e militares ao final <strong>do</strong>Império é entender o próprio advento da República e nesteponto divergem a historiografia monarquista, na qualJoaquim Nabuco, Afonso Celso, e até Oliveira Vianna desvinculamos militares <strong>do</strong> povo entenden<strong>do</strong> a proclamaçãocomo uma simples quartelada, golpe de esta<strong>do</strong> ilegítimoe impopular. Os republicanos contra-argumentam que aRepública tinha mais de 100 anos de vida no <strong>Brasil</strong> e farãode Tiradentes seu herói e símbolo. Proclamada à Repúblicacomeçava a guerra por seu lugar na <strong>História</strong>. Em algumamedida, o lugar da República de 15 de novembro é tambémo lugar <strong>do</strong>s militares que a tornaram possível.São compreensíveis as aspirações por maior relevânciae participação política por parte <strong>do</strong>s militares apósa Guerra <strong>do</strong> Paraguai. Mas a identificação da Guerra com oinício da insatisfação castrense com o regime é forçada. Elase dá bem antes ou só depois, e não na década de 1870.Como vimos, vinha de longa data o desprestígio <strong>do</strong>s militaresbrasileiros, mas com a Guerra eles ganham prestígio.


263O Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>(1840-1889)A desmobilização da Guarda Nacional é indicativa desteprestígio. A presença no governo de ministros militares oupercebi<strong>do</strong>s como “amigo <strong>do</strong>s militares” é outro indicativo.Tal é o caso <strong>do</strong> longo gabinete Rio Branco, <strong>do</strong> gabinete deCaxias que o sucedeu em 1875 e da presença de ManuelLuís Osório na pasta da Guerra com o retorno <strong>do</strong>s Liberaisao poder.A questão militar explode apenas na década de1880 e para Sérgio Buarque de Hollanda é mais a intervençãoindevida <strong>do</strong>s militares na política <strong>do</strong> que a exclusãopolítica <strong>do</strong>s militares. A visão de Hollanda chega a serácida. Entende que desde a Regência os militares tinhampreocupações militares. Com as rebeliões internas, Rosas eos blancos nas décadas de 1840 e 1850, com Solano Lopezna década seguinte. Findas as preocupações militares oexército passará duas décadas “tranquilas” o suficiente paraque decida intervir onde não deveria: a política interna.Essa também é a percepção de Heitor Lira. Ficava o <strong>Brasil</strong>mais pareci<strong>do</strong> com seus vizinhos. Contágio?É justamente essa a tese de Joaquim Nabuco emUm Estadista no Império. Monarquista, Nabuco defendeque o contato <strong>do</strong>s militares brasileiros com os oficiaisuruguaios e argentinos teria gera<strong>do</strong> contágio da <strong>do</strong>ençarepublicana. Custa a crer que tivessem oportunidadede conversar em portunhol sobre Ciência Política entreas batalhas de Curupaiti ou Acosta Ñu e nisso Nabucoparece exagerar. O desprezo à forma republicana degoverno era generaliza<strong>do</strong> e a situação de caudilhismo noParaguai era lembrete suficiente para que os brasileirosnão a a<strong>do</strong>tassem. Demoraria ainda bastante para que orepublicanismo grassasse entre as hostes castrenses. Seurastilho espoucaria primeiro entre os jornalistas civis dacorte autores <strong>do</strong> Manifesto Republicano, e apenas com otempo alcançariam os quartéis.O ativismo político – não necessariamente republicano– das forças armadas fica mais perceptível, como,aliás, de toda a sociedade. A adesão ao abolicionismo seráfoco de muitos conflitos Escritos sobre a necessidade deuma reforma educacional, sobre o desenvolvimento e modernização<strong>do</strong> país, e a proposta <strong>do</strong> Marechal Osório deuma ferrovia que ligasse por terra o Mato Grosso – entendimentoda integração regional como questão de segurançanacional – evidencia o viés crescentemente salvacionista eintervencionista <strong>do</strong>s oficiais.Tentemos então uma síntese das questões quemotivaram o divórcio político-social e intelectual <strong>do</strong>s militarescom a classe política <strong>do</strong> império. Do ponto de vistasocial, como vimos, eram os oficiais em sua maioria declasses médias e não comungavam das mesmas visõesou <strong>do</strong> mesmo interesse <strong>do</strong>s barões <strong>do</strong> café e senhores deengenho que constituíam a elite nacional. Muito menoscom os bacharéis em direito, os “casacas” a quem desprezavam.A morosidade das promoções incomodava indivíduosque viviam de sol<strong>do</strong> – notoriamente reduzi<strong>do</strong> – cujo


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>264aumento ou reforma dependia de autoridades civis as quaisestavam submeti<strong>do</strong>s 184 . Pouquíssima era participaçãomilitar nas instâncias parlamentares (Sena<strong>do</strong> e Câmara<strong>do</strong>s deputa<strong>do</strong>s) e com a morte sucessiva de Rio Branco,Osório e Caxias na década de 1880, os militares ficamórfãos de padrinhos poderosos justamente quan<strong>do</strong> seagravam as tensões que culminariam na “Questão Militar”(1883-1885).O cerne da questão militar foi o abolicionismo. Discussãoóbvia durante a Guerra <strong>do</strong> Paraguai em que seusaram tropas com numerosos escravos e ex-escravos.Quan<strong>do</strong> nos anos de 1880 a questão das Missões se tornasensível à alta cúpula militar faz saber que não iria novamenteà guerra, desta vez contra os argentinos com umexército de escravos. São muitos os motivos estruturaispara o abolicionismo nas Forças Armadas. Escravidão eraperceptível como incompatível com a defesa nacional. Inviabilizavao alistamento obrigatório. Para além da enormedificuldade de alistar escravos, a existência <strong>do</strong> escravismo184 Na história republicana quan<strong>do</strong> há a nomeação de um ministro civil parauma pasta tradicionalmente militar isso é visto em geral sob o signo dapolêmica. Na primeira República o único caso foi João Pandiá Calógeras,um diplomata. Redun<strong>do</strong>u nos levantes tenentistas. De 1922 a 1995 nuncamais. Os diplomatas José Viegas no governo Fernan<strong>do</strong> Henrique Car<strong>do</strong>soe mais recentemente Celso Amorim no governo Dilma Roussef tambémamargaram a má vontade militar com suas nomeações. No império, oministro da guerra ser civil era a norma não a exceção.ainda impedia que parcela significativa da população fossemobilizada por razão de segurança interna. Era necessárioimenso número de homens livres emprega<strong>do</strong>s pelainiciativa privada para garantir sua segurança contra seuspróprios escravos, impedin<strong>do</strong> a mobilização para fins desegurança externa. Os oficiais-intelectuais percebiamisso e se colocavam crescentemente em conflito com oestablishment escravocrata para fazer valer seus pontos devista em detrimento da hierarquia.O principal pomo da discórdia era a recorrente exigênciade que regimentos fossem mobiliza<strong>do</strong>s na capturade escravos fugi<strong>do</strong>s. Oficiais se sentiam capitães <strong>do</strong> matoe essa insatisfação ecoava no parlamento e na Imprensa,em discursos abolicionistas como os de Joaquim Nabuco.Muitos solda<strong>do</strong>s eram ex-escravos. A situação era potencialmenteexplosiva e seu estopim se deu quan<strong>do</strong> o MajorSena Madureira, professor de esgrima <strong>do</strong>s netos <strong>do</strong> Impera<strong>do</strong>r,se recusa a obedecer ao Marquês da Gávea, generale latifundiário escravista que ordena que seu regimentoparta em busca de seus escravos fugi<strong>do</strong>s. Cria um precedente.Cada vez mais novas recusas se sucedem, sujan<strong>do</strong> aficha militar de muitos oficiais que são puni<strong>do</strong>s pela recusa.Quan<strong>do</strong> servin<strong>do</strong> na Escola Militar, Sena Madureira recebeo jangadeiro Francisco José <strong>do</strong> Nascimento, famoso noCeará por organizar o movimento de jangadeiros que serecusava a abastecer navios que transportassem escravos


265O Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>(1840-1889)vendi<strong>do</strong>s para o Sul 185 . O Major é puni<strong>do</strong> por isso e sua puniçãodivide a classe militar, ten<strong>do</strong> Madureira si<strong>do</strong> defendi<strong>do</strong>e protegi<strong>do</strong> pelo Marechal Deo<strong>do</strong>ro da Fonseca. O décimoquinto regimento militar de Fortaleza foi transferi<strong>do</strong> inteiropara Belém em punição por adesão ao abolicionismo.No Sena<strong>do</strong>, o Marechal Câmara protesta contra a proibiçãode que os oficiais se manifestassem publicamente sem apermissão <strong>do</strong> governo. “O exército precisa pedir permissãoaté para gemer” discursa.A situação se agrava quan<strong>do</strong> se inicia o movimentopara que se limpe a ficha <strong>do</strong>s oficiais puni<strong>do</strong>s por convicçãoabolicionista. O nível de tensão pública entre o exércitoe os civis sobe muito. As tensões se agravam quan<strong>do</strong> oeditor da folha O Corsário, Apulcro de Castro, mesmo depoisde ter pedi<strong>do</strong> a proteção da polícia, é assassina<strong>do</strong> àfacadas por vários oficiais – entre eles Moreira Cesar – porter critica<strong>do</strong> o exército. O episódio que provocou a queda<strong>do</strong> gabinete em 1884. Com o retorno <strong>do</strong>s conserva<strong>do</strong>resao poder, os militares são anistia<strong>do</strong>s mas a trégua foi curta.A partir daí são fatos conheci<strong>do</strong>s. Deo<strong>do</strong>ro se tornaherói da classe militar e começa a ser crescentementeprocura<strong>do</strong> por conspira<strong>do</strong>res republicanos civis e militares– positivistas – para patrocinar o golpe. Torna-se o primeiropresidente <strong>do</strong> Clube Militar cria<strong>do</strong> em junho de 1887,institucionalizan<strong>do</strong> a insatisfação militar. Doente, foi leva<strong>do</strong>a acreditar que Gaspar Silveira Martins, seu desafetosubstituiria Ouro Preto na chefia <strong>do</strong> ministério. Acreditavaprovavelmente que derrubava somente o ministério, e hátestemunhos que sugerem que tenha grita<strong>do</strong> “Viva o Impera<strong>do</strong>r”na manhã <strong>do</strong> 15 de Novembro. O episódio nãoteve nenhuma mobilização popular. A Câmara Municipalaproveita a quartelada militar e declara proclamada a República.O Impera<strong>do</strong>r, cansa<strong>do</strong>, e queren<strong>do</strong> evitar derramamentode sangue, acata a ordem de exílio e deixa o país nodia seguinte. A República não tinha qualquer legitimidadepopular e escassa organização político-partidária em escalanacional. No Norte e Nordeste eram praticamente inexistentesos parti<strong>do</strong>s republicanos. Sem o apoio <strong>do</strong>s militares aRepública não se sustentaria e Boris Fausto lembra-nos queo Exército era única instituição presente em to<strong>do</strong> territórionacional capaz de mobilizar-se politicamente pelo novoregime o que foi essencial para garanti-la em seu conturba<strong>do</strong>início.185 Conheci<strong>do</strong> como Chico da Matilde, o jangadeiro deu origem a um amplomovimento abolicionista em Fortaleza que conseguiu que a escravidãofosse abolida na província em 25 de Março de 1884. A primeira província aabolir a escravidão no <strong>Brasil</strong>.


2675. A Primeira República(1889-1930)5.1 O processo político na Primeira RepúblicaGoverno Provisório e a Constituição de 1891. Deo<strong>do</strong>ro, Floriano e o Jacobinismo. O governoPrudente de Morais. Campos Sales, e a política <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s. O Rio Grande <strong>do</strong> Sul e suatrajetória política na Primeira República. O Coronelismo. As cisões Oligárquicas: 1910 e 1922.A Aliança Liberal e a Revolução de 1930.O 15 de Novembro, inicia<strong>do</strong> numa conspiração militar que apenas destituiu o gabinetede Ouro Preto, mas concluí<strong>do</strong> num golpe republicano civil desfecha<strong>do</strong> pela Câmara <strong>do</strong>s Verea<strong>do</strong>res<strong>do</strong> Rio de Janeiro, é marca<strong>do</strong> por uma ambiguidade civil-militar que evidencia a aliançafortuita que pôs fim a monarquia. Cria-se então uma disputa negociada nos primeiros anos,mas que logo descambaria para a violência entre os distintos projetos de república estuda<strong>do</strong>spor José Murilo de Carvalho no livro Formação das Almas.A conciliação entre os militares e os civis já estava dada na composição <strong>do</strong> primeirogabinete republicano <strong>do</strong> governo provisório. Militares de carreira, como o próprio Deo<strong>do</strong>ro eo ministro da Marinha Wandenkolk, científicos (Benjamin Constant na pasta da Guerra), conviviamcom positivistas como o ministro da Agricultura Demétrio Ribeiro e com republicanoshistóricos fluminenses (Quintino Bocayuva, no ministério <strong>do</strong>s negócios estrangeiros) e paulistas(Campos Sales no ministério da justiça). Ruy Barbosa, liberal reformista no império assumiua pasta das finanças.Essa composição frequentemente faiscava. É famoso o quase duelo entre o presidentee seu ministro da guerra em controvérsia assistida pelo gabinete. Meses depois, ainda desacostuma<strong>do</strong>com as práticas republicanas, o marechal-presidente, em sua reforma ministerial,nomeia o Barão de Lucena, político tradicional da monarquia para compor um novo gabinete,emulan<strong>do</strong> o fazer político <strong>do</strong> império, como se Lucena revivesse o presidente <strong>do</strong> conselho nanova ordem. Claramente liga<strong>do</strong> aos interesses açucareiros <strong>do</strong> nordeste, esse novo gabinetecontribuiu para açodar ainda mais a relação de Deo<strong>do</strong>ro com cafeicultores, e por conseguinte,


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>268com seu parlamento Constituinte, que apesar <strong>do</strong>s pesares,o reconduziu a presidência, mas não sem a humilhação deamargar uma votação inferior a <strong>do</strong> vice da chapa oposicionista,o general Floriano Peixoto, que foi aclama<strong>do</strong> comvivas e palmas muito mais entusiásticas que as oferecidasao presidente.Era 1891, passara-se menos de <strong>do</strong>is anos de República,mas significativas transformações políticas haviam si<strong>do</strong>a<strong>do</strong>tadas.O Esta<strong>do</strong> laico, decreta<strong>do</strong> por Campos Sales, provocouresistências país afora, e protesto institucional da Igreja.Nenhum culto receberia mais subsídio público e clérigosde qualquer confissão não poderiam votar ou ser vota<strong>do</strong>s.Os cemitérios, os registros de nascimento, matrimônio eóbito passavam a ser administra<strong>do</strong>s pela República.O decreto de grande naturalização buscava incorporara política e ao voto os numerosos estrangeiros residentesde longa data no território nacional. Criou milharesde brasileiros com uma única canetada em 1890.To<strong>do</strong>s os residentes estrangeiros nada precisavam fazer,exceto se quisessem manter a nacionalidade originária.De nada adiantou os protestos coletivos feitos pelas principaispotencias europeias – os italianos sugeriram mobilizaçãonaval contra a República – que conseguiram nomáximo adiar para depois da promulgação da constituiçãoo prazo da<strong>do</strong> para a manifestação de oposição <strong>do</strong>sseus nacionais.O voto deixou de ser censitário, mas restrições deidade, sexo, profissão (praças, desocupa<strong>do</strong>s, padres) e, sobretu<strong>do</strong>,a manutenção <strong>do</strong> chama<strong>do</strong> censo literário instituí<strong>do</strong>pela Leia Saraiva de 1881 não fizeram o eleitora<strong>do</strong>aumentar para mais <strong>do</strong> que 2% da população, quan<strong>do</strong>chegara a quase 10% na década de 1870. Não voltaria apassar <strong>do</strong>s 5% durante a Primeira República evidencian<strong>do</strong>seu caráter excludente. A constituição de 1891, misto defederalismo liberal e positivismo 186 confirmou o voto abertoe facultativo, abrin<strong>do</strong> caminho para a arregimentaçãoeleitoral que possibilitava o coronelismo e o voto de cabresto.A constituição tinha de positivista, além o slogan dabandeira, o papel das forças armadas fortemente valoriza<strong>do</strong>na carta de 1891, devi<strong>do</strong> à presença de muitos militaresnesta assembleia. É interessante que um <strong>do</strong>s seus artigos(Art. 88) proibisse ao <strong>Brasil</strong> a guerra de conquista. De federalistatinha muito mais. A denominação de “Esta<strong>do</strong>s”rebatizou as antigas províncias (cada governa<strong>do</strong>r seguiasen<strong>do</strong> chama<strong>do</strong>, por hábito monárquico, de presidente<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, equiparan<strong>do</strong>-se ao mandatário da federação).Estas tinham agora direito de contrair empréstimos noexterior e possuir força militar própria, algumas quase tão186 Os positivistas como Júlio de Castilhos defendiam o voto aberto comovirtude cívica. Para ser cidadão é preciso ter coragem de assumir umaposição.


269A Primeira República(1889-1930)numerosas quanto às <strong>do</strong> governo federal – caso <strong>do</strong> RioGrande <strong>do</strong> Sul, Minas Gerais e São Paulo. Tais exércitos regionais,quan<strong>do</strong> poderosos, dissuadiam o governo federala intervir nos assuntos <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, legitiman<strong>do</strong> uma espéciede “federalismo <strong>do</strong>s fortes”, mas relegan<strong>do</strong> os Esta<strong>do</strong>s menoresà subordinação presidencial.No plano social uma regressão. Não mencionava asobrigações que o Esta<strong>do</strong> Imperial tinha assumi<strong>do</strong> com aeducação básica, estadualizan<strong>do</strong> esta responsabilidade.Não mencionava qualquer forma de proteção ao trabalho,estimulan<strong>do</strong> este debate e a formação de círculos, e movimentostrabalhistas, herdeiros <strong>do</strong> jacobinismo, já desdeo início <strong>do</strong> século XX. O máximo que Ruy Barbosa, comorelator informal da constituição, ao vistoriar pelo executivoos trabalhos da constituinte, fez pelo trabalha<strong>do</strong>r brasileirofoi mandar queimar os registros públicos sobre a escravidão,para desespero <strong>do</strong>s historia<strong>do</strong>res. Temia processos<strong>do</strong>s antigos proprietários que reclamassem indenização àRepública.No plano econômico, o encilhamento promovi<strong>do</strong>pelo mesmo Ruy Barbosa, inun<strong>do</strong>u o país com papelmoeda recém-impresso por casas bancárias estimuladaspela dádiva creditícia <strong>do</strong> governo. Seu intuito moderniza<strong>do</strong>rera <strong>do</strong>tar de mais liquidez uma economia que com ofim da escravidão caminhava para o século XX com maiornecessidade de meio circulante. Conseguiu especulaçãona bolsa em escala jamais vista no país, seguida dequebradeira generalizada e alta inflacionária dura<strong>do</strong>ura.A inflação castigava na capital os inquilinos e clientes <strong>do</strong>sportugueses, grupo majoritário no comércio de varejoe aluguéis no centro cidade. Nos anos que se seguirammuitos jacobinos veriam em cada português um João Romão187 , contribuin<strong>do</strong> para o radical antilusitanismo quese associou a este movimento republicano xenófobo.No embate entre o federalismo liberal e a ditadurapositivista, o jacobinismo popular seria a reação militar-popularde apoio ao segun<strong>do</strong>, contra liberalismoelitista <strong>do</strong>s coronéis que sequestraram a constituinte 188e muito em breve conseguiriam sequestrar a República.Com apoio <strong>do</strong>s setores <strong>do</strong> alto oficialato, era tambémmuito forte junto à população urbana da capitalque daria sustentação ao presidente Floriano Peixoto.Floriano sucedeu Deo<strong>do</strong>ro quan<strong>do</strong> este, num lance histriônico,tentou fechar o Congresso e, ante a oposiçãoda marinha, acabou renuncian<strong>do</strong>. Floriano intervém emto<strong>do</strong>s os Esta<strong>do</strong>s <strong>do</strong> país, tenta <strong>do</strong>mesticar o SupremoTribunal Federal – chegou a nomear um médico para oTribunal – e se recusa a convocar eleições reclamadaspela constituição em caso de renúncia prematura <strong>do</strong>187 Personagem imoral, português acumula<strong>do</strong>r, protagonista e proprietário <strong>do</strong>comércio e de “O cortiço imortaliza<strong>do</strong> na obra de Aluísio Azeve<strong>do</strong>.188 Segun<strong>do</strong> Leôncio Basbaum eram 128 bacharéis e apenas 55 militares emuma constituinte de pouco mais de 200 membros.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>270presidente. Sua “ditadura” conforme era caracterizada pelosjornais monarquistas sofreu oposição federalista noSul <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> e, logo recebeu apoio da Armada, lideradapor Custodio de Melo (declaradamente republicano)e Saldanha da Gama (considera<strong>do</strong> monarquista) quedurante vários meses ameaçou bombardear a capital earrasou com a cidade de Niterói no ano de 1893. Florianoexonerou e man<strong>do</strong>u prender toda a alta cúpula da Marinha,bem como figuras proeminentes como José <strong>do</strong>Patrocínio (desterra<strong>do</strong> para o Amazonas) e Olavo Bilac(seis meses preso em uma fortaleza militar da capital).A ameaça de bombardeio da capital só não seconcretizou por intervenção conjunta <strong>do</strong>s representantesestrangeiros que conseguiram transformar o Rio deJaneiro em zona livre de combates. Floriano não transigiu.Governou até o fim <strong>do</strong> mandato de Deo<strong>do</strong>ro. Reprimiuduramente o levante federalista (1893-1895) 189 ,chancelan<strong>do</strong> massacres como o perpetra<strong>do</strong> pelo Cel.189 Foi inicialmente uma guerra civil de coronéis gaúchos que acabou ganhan<strong>do</strong>relevância nacional na oposição à “ditadura” de Floriano ao ganhar o apoio<strong>do</strong>s rebeldes da Armada. De um la<strong>do</strong> Gaspar de Silveira Martins (liberal naépoca da monarquia) lideran<strong>do</strong> os maragatos, <strong>do</strong> outro Julio de Castilhose Pinheiro Macha<strong>do</strong> que defendiam uma ditadura positivista e tiveramapoio <strong>do</strong> governo federal (os pica-paus) para implementá-la na constituiçãogaúcha autoritária de 1891, que, entre outras coisas, permitia a reeleiçãosucessiva <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. O parti<strong>do</strong> Federalista <strong>do</strong> Rio Grande<strong>do</strong> Sul funda<strong>do</strong> por Silveira Martins em 1892 se opunha a esta constituiçãopositivista e a ditadura de Julio de Castilhos.Moreira César na cidade de Desterro 190 e, acusan<strong>do</strong> omovimento de monarquista, conseguiu apoio norte--americano contra os rebeldes e encomen<strong>do</strong>u uma esquadraimprovisada ao banqueiro americano CharlesFlint, com navios obsoletos e adapta<strong>do</strong>s que vieram deNova York , tripula<strong>do</strong>s por mercenários em auxílio ao governo.Tomou ainda medidas amplamente populares decombate aos efeitos da inflação, como o congelamento<strong>do</strong>s aluguéis, angarian<strong>do</strong> enorme simpatia da população.No rescal<strong>do</strong> da revolta, Floriano rompe relações diplomáticascom Portugal 191 açulan<strong>do</strong> o já significativoantilusitanismo carioca.De certo mo<strong>do</strong> a radicalização da marinha conseguiucerrar as forças ao re<strong>do</strong>r <strong>do</strong> “Marechal de Ferro” inclusiveno congresso nacional, onde o deputa<strong>do</strong> FranciscoGlicério conseguiu, por meio da fundação <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> RepublicanoFederal (PRF), galvanizar o apoio parlamentarao executivo e articular nacionalmente os republicanospela primeira vez. O PRF garantiria em 1894 a vitória naseleições para o executivo federal, para a câmara <strong>do</strong>s deputa<strong>do</strong>s,e para o terço <strong>do</strong> sena<strong>do</strong> que estava em disputa,190 Que a partir de então passou a ser denominada Florianópolis.191 No que, aliás, Floriano estava coberto de razão, da<strong>do</strong> que o navio portuguêsque concedeu asilo aos rebeldes da revolta da Armada, por inépcia ou faltade zelo, permitiu que dezenas deles desembarcassem e fugissem em BuenosAires, de onde reentraram no território brasileiro para apoiar os federalistas<strong>do</strong> Sul <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>.


271A Primeira República(1889-1930)tornan<strong>do</strong>-se, ainda que por pouco tempo, o parti<strong>do</strong> hegemônicono país.A sucessão de Floriano por um civil, Prudente deMoraes, não fez desaparecer o espectro da intervenção da“espada” por meio de um golpe militar e o governo Prudentefoi marca<strong>do</strong> por ainda mais instabilidade que o <strong>do</strong>Marechal. A revolta federalista só foi debelada após a morte<strong>do</strong> Almirante Saldanha da Gama em 1895, e a eclosãode Canu<strong>do</strong>s desestabilizaria a frágil e recente repúblicaque dizia oferecer “ordem e progresso”. Prudente teve quelidar com a aguerrida oposição jacobina que atacava portuguesese monarquistas 192 , promoven<strong>do</strong> desordens frequentesna rua <strong>do</strong> Ouvi<strong>do</strong>r. A incrível mobilização popularno velório de Floriano, com multidão seguin<strong>do</strong> o cortejoem frequentes atos de histeria jacobina evidenciava a faltade popularidade <strong>do</strong> novo presidente civil e a presença <strong>do</strong>singredientes potenciais de uma ditadura positivista comapoio popular.Prudente teria ainda que se ver com a insuspeitaoposição de seu próprio parti<strong>do</strong> no congresso nacional,o PRF de Francisco Glicério que o considerava meroinstrumento <strong>do</strong>s interesses partidários. Seu afastamento,por motivo de <strong>do</strong>ença por quatro longos meses entre1896-7, contribuiu para o acirramento da crise política.Temia-se que uma vitória de Moreira César em Canu<strong>do</strong>sdeslanchasse durante a interinidade de Manuel Vitorinoum levante jacobino na capital. A morte de Moreira Césarconcomitante recuperação <strong>do</strong> presidente levaria os jacobinosao desespero de tentar assassinar Prudente de Moraesem 5 de novembro de 1897 193 , quan<strong>do</strong> da recepçãono Arsenal de Guerra <strong>do</strong>s solda<strong>do</strong>s que voltavam vitoriososde Canu<strong>do</strong>s.Renato Lessa e parte da historiografia permite-nosconcluir que mais que a vitória <strong>do</strong> modelo oligárquico, oque se assistiu foi o fracasso <strong>do</strong> projeto de ditadura positivista.Tratava-se de exército desorganiza<strong>do</strong>, desacostuma<strong>do</strong>ao exercício <strong>do</strong> poder após mais de meio século de umamonarquia civilista, preconceituosa contra os militares identifica<strong>do</strong>scom o caudilhismo anárquico latino-americano.Ainda que um herói bonapartista como Floriano angariasse192 Gentil de Castro, proprietário de jornais considera<strong>do</strong>s monarquistas, foiassassina<strong>do</strong> por um grupo de majores e tenentes que empastelaram suagazeta. Joaquim Nabuco confessa que tinha me<strong>do</strong> de sair de casa e que,como colabora<strong>do</strong>r de seus periódicos, por pouco não escapa <strong>do</strong> ataque quematou Gentil de Castro.193 Na tentativa, o anspeçada Marcelino Bispo de Melo fracassou em dispararuma garrucha contra o chefe de Esta<strong>do</strong>, mas feriu de morte com umpunhal o Ministro da Guerra Carlos Bittencourt que havia saí<strong>do</strong> em defesade Prudente. No inquérito policial que se seguiu, notórios jacobinos no seio<strong>do</strong> exército e até da política foram implica<strong>do</strong>s e a repressão ao movimentoseria bem-sucedida. Marcelino foi encontra<strong>do</strong> enforca<strong>do</strong> na cadeia com umlençol.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>272imenso apoio popular 194 , perdeu-se no atoleiro das revoltasao norte (Canu<strong>do</strong>s) e ao sul <strong>do</strong> país (Federalista), que confiscarama legitimidade <strong>do</strong> projeto positivista assinalan<strong>do</strong> aevidente falta de ordem no progresso inicial da República.A questão <strong>do</strong> papel político reserva<strong>do</strong> às forças armadasna república estaria indissociavelmente vinculada ànecessidade de modernização e aparelhamento das tropas,sempre retomada no contexto de rebeliões populares(Contesta<strong>do</strong>, por exemplo). Esse assunto retornaria comfrequência nas décadas seguintes, transforman<strong>do</strong> o exércitoem “poder desestabiliza<strong>do</strong>r” <strong>do</strong> regime oligárquico.Rebeliões populares e militares voltariam a se confundir naRevolta da Vacina em (1904), e o jacobinismo ressurgi<strong>do</strong><strong>do</strong>mestica<strong>do</strong> na “Política das Salvações” <strong>do</strong> governo Hermesda Fonseca (1910-14), e, de novo no tenentismo <strong>do</strong>sanos de 1920, mas com muito menor apoio popular e quasenenhum apoio na alta cúpula <strong>do</strong> exército. À medida quese profissionalizava, a corporação militar se afastava dasmassas, e passava a reivindicar uma revolução que seriafeita em nome <strong>do</strong> povo mas não com ele.194 Muitos outros fracassaram no posto de herói da república. BenjaminConstant, Deo<strong>do</strong>ro, Patrocínio nenhum emplacou. A morte prematura deFloriano fez com que a república tivesse que encontrar um herói asséptico,histórico, recria<strong>do</strong>: Tiradentes. Ensina José Murilo de Carvalho em A formaçãodas Almas a figura de Tiradentes imortaliza<strong>do</strong> por Pedro Américo com o rostode Cristo, esquarteja<strong>do</strong> e martiriza<strong>do</strong>, se tornaria o símbolo heroico de umarepública com dificuldades de angariar apoio popular, sobretu<strong>do</strong> entre osantigos escravos, simpáticos e sau<strong>do</strong>sos <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r e da princesa.Já os civis conseguiram mal ou bem se articular nocongresso nacional com o PRF, e, também no Executivoquan<strong>do</strong> da sucessão de Prudente de Moraes. O capitalpolítico de Prudente havia aumenta<strong>do</strong> após o atenta<strong>do</strong>fracassa<strong>do</strong> e a decretação de esta<strong>do</strong> de sítio e repressãoferoz aos jacobinos permitiu-lhe certo grau de estabilização.Em 15 de novembro de 1898, com o fim <strong>do</strong> mandatode Prudente de Moraes, e, após nove anos de turbulências,começava a ter fim a “década <strong>do</strong> caos”.A normalização definitiva da vida política republicanaseria afinal conquistada pelo segun<strong>do</strong> presidente civil,Manoel Ferraz de Campos Sales (1898-1902), antigo ministroda justiça <strong>do</strong> governo provisório, e então governa<strong>do</strong>rde São Paulo. A colorida citação de Costa Porto, emprestadade Maria Efigênia Lage de Resende, caracteriza assim oprojeto <strong>do</strong> político de Campinas:O paulista tem um plano: sanear as finanças, saneá-lasdrasticamente e, como prevê dificuldades, quer começarpela normalização da vida política a fim de encontrarapoio e ficar livre para agir. Sua posição é precária:não tem o Exército para prestigiá-lo, não tem as “brigadas”[Força Pública Estadual], não tem nem mesmoo calor <strong>do</strong> civilismo e da pacificação de Prudente, nãopode nomear e demitir presidentes, nem afastar governa<strong>do</strong>res,e precisa <strong>do</strong> Congresso, a fim de não passar porsobressaltos e crises, em que se viram envolvi<strong>do</strong>s os presidentesque o antecederam. Faltan<strong>do</strong>-lhe, e que tantoajudara os predecessores, qualquer mística – a ilegalidade,o florianismo jacobinista, o espírito de pacificação –,forçoso lhe era recorrer a outras forças, etc. (Costa Porto,


273A Primeira República(1889-1930)Pinheiro Macha<strong>do</strong> e seu tempo. Rio de Janeiro: JoséOlympio Editora, 1951).As outras forças eram os “Esta<strong>do</strong>s”. Os grandes Esta<strong>do</strong>sem oposição ao “povo das ruas” que despertavam ohorror de Campos Sales. Esse “demiurgo” político no dizerde Renato Lessa, foi capaz de por fim à década <strong>do</strong> caos organizan<strong>do</strong>as finanças nacionais, e no processo de aprovação<strong>do</strong> Funding Loan institucionalizar o mecanismo de normalizaçãopolítica. Esvaziou o legislativo <strong>do</strong>tan<strong>do</strong> de enormeautonomia o executivo federal em articulação com osexecutivos estaduais. O acor<strong>do</strong> entre o executivo federale os grandes Esta<strong>do</strong>s foi chama<strong>do</strong> por Campos Sales de“A Política <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s” e passou para a história com onome de “política <strong>do</strong>s governa<strong>do</strong>res”. Era, para Renato Lessa,o sucedâneo <strong>do</strong> poder modera<strong>do</strong>r. A garantia da estabilidadeinstitucional da República.Para aprovar o Funding Loan, Campos Sales segueem missão para Minas, onde fecha acor<strong>do</strong> com o governa<strong>do</strong>rSilviano Brandão, responsável pela refundação <strong>do</strong>Parti<strong>do</strong> Republicano Mineiro (PRM) em 1897 195 . Já possuíaa anuência de seu sucessor paulista Rodrigues Alves. Tevemais dificuldades na Bahia, mas com 81 votos no congresso195 A partir daí Minas Gerais conseguiria um certo grau de estabilidade nosconflitos intraoligárquicos. A instância partidária se tornava uma espéciede fórum de concertação institucional onde os grandes coronéis <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>deliberavam politicamente, indicavam seus apanigua<strong>do</strong>s e dirimiamquerelas sem precisar recorrer a meios menos civiliza<strong>do</strong>s.oriun<strong>do</strong>s das bancadas <strong>do</strong>s três principais Esta<strong>do</strong>s (37 deputa<strong>do</strong>smineiros, e 22 paulistas e mais 22 baianos 196 ) tinhapraticamente a maioria necessária. Tal mecanismo tinhacomo contrapartida a leniência federal com a política <strong>do</strong>scoronéis. Que cada Esta<strong>do</strong> governasse a si mesmo, sem ainterferência <strong>do</strong> governo federal. Coloca-se em prática ofederalismo que não passava de teoria constitucional nosgovernos anteriores acostuma<strong>do</strong>s a substituir governa<strong>do</strong>resa seu bel-prazer.Decorrem daí algumas consequências políticas sériasque persistiriam até a revolução de 1930. Em primeirolugar o esvaziamento <strong>do</strong> legislativo como espaço de lutapolítica. À exceção de alguns episódios dramáticos comona “Revolta da Vacina”, ou durante a “Chibata”, o congressoda Primeira República esteve longe de ser protagonistada ação política, agin<strong>do</strong> na maior parte <strong>do</strong>s casos maiscomo figurante que como coadjuvante <strong>do</strong> executivo 197 .196 A Bahia, ao contrário de Minas não conseguiu evitar que as disputas ferrenhasentre facções rivais de coronéis dividissem o Esta<strong>do</strong>, frequentemente demo<strong>do</strong> arma<strong>do</strong>. Talvez por isso assistiria o sucesso <strong>do</strong> Rio Grande <strong>do</strong> Sul,que muito graças à habilidade de articulação junto às bancadas menores<strong>do</strong> Sena<strong>do</strong>r Pinheiro Macha<strong>do</strong> (PRR) rapidamente ultrapassaria a Bahia emimportância.197 Renato Lessa enfatiza o papel da Comissão Verifica<strong>do</strong>ra <strong>do</strong>s Poderes,responsável pela diplomação <strong>do</strong>s deputa<strong>do</strong>s eleitos, já que não haviaintervenção da justiça no processo político. Essa comissão tinha papelfundamental numa conjuntura na qual eram frequentes as duplicidadesde bancadas. Até Campos Sales era o deputa<strong>do</strong> mais i<strong>do</strong>so da legislaturaque assumia sua presidência. A partir de então, passou a ser o presidente dalegislatura anterior, o que na prática favorecia a perpetuação da câmera que


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>274Bancadas estaduais dóceis garantiam que não houvesseóbices a quase totalidade das iniciativas presidenciais. Essecongresso emascula<strong>do</strong> contrasta com os legislativos <strong>do</strong>império, atuantes e protagônico, mesmo que quase sempregovernistas, ou mais ainda com as legislaturas <strong>do</strong> pós-1946, polarizadas e relevantes.Em segun<strong>do</strong> lugar, como a relação entre o executivofederal com os executivos estaduais era assimétricana maior parte <strong>do</strong>s casos (exceção feita aos grandes Esta<strong>do</strong>sque chancelavam a política federal), pairava sempre ofantasma da intervenção nos Esta<strong>do</strong>s menores. Isso nãoera infrequente, sobretu<strong>do</strong> nos momentos de sucessãopresidencial. Esta<strong>do</strong>s oposicionistas não raro amargaramintervenção federal após a posse <strong>do</strong> candidato vitorioso.A sucessão era o momento de maior tensão na “política <strong>do</strong>sgoverna<strong>do</strong>res”, pois abria a possibilidade de dissidências senão houvesse acor<strong>do</strong> entre os grandes Esta<strong>do</strong>s como foio caso das eleições de 1910, 1922 e 1930. De to<strong>do</strong> mo<strong>do</strong>,fica óbvia a força da herança de Campos Sales. Em to<strong>do</strong>sos casos, inclusive em 1930, o candidato da situação saiuvitorioso, e por grande margem.Em terceiro lugar, e em decorrência das razões jácitadas, foi no quadriênio de Campos Sales que declinou,se diplomava a si mesma, e “degolava” – termo da época para caracterizardeputa<strong>do</strong>s não diploma<strong>do</strong>s – os oposicionistas ao governo.para afinal morrer melancolicamente, a experiência de parti<strong>do</strong>nacional de Francisco Glicério. O PRF não sobreviveu a“Política <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s” e a Primeira República se acostumariaa ser governada por parti<strong>do</strong>s estaduais hegemônicos exclusivamenteem suas províncias, sem qualquer ingerênciafora delas. A luta política <strong>do</strong>s coronéis era intrapartidária.Disputava-se a indicação na lista <strong>do</strong> parti<strong>do</strong>. Fora <strong>do</strong> parti<strong>do</strong>era o ostracismo. Poucas foram as dissidências queconseguiram se institucionalizar em parti<strong>do</strong>s de oposiçãona primeira república 198 . Poucas também foram as tentativasde articulação partidária em nível nacional depois <strong>do</strong>débâcle gliceriano 199 .Por último, destaca-se a crescente presença <strong>do</strong> RioGrande <strong>do</strong> Sul nas composições <strong>do</strong>s grandes Esta<strong>do</strong>s,ou em oposição a estas. O Esta<strong>do</strong> contava com numerosocontingente <strong>do</strong> exército nacional, nem sempre fiel aoRio de Janeiro. Contava ainda com grande força públicaestadual, um exército próprio a serviço <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> RepublicanoRio-grandense (PRR). Este parti<strong>do</strong>, hegemônico noEsta<strong>do</strong> passou a ser controla<strong>do</strong> por Borges de Medeiros198 A mais conhecida foi o Parti<strong>do</strong> Democrático (PD) de São Paulo, onde juristas<strong>do</strong> Largo São Francisco em articulação com os setores médios urbanos daburguesia paulista firmaram posição contra os desman<strong>do</strong>s das oligarquiasque compunham o velho e poderoso PRP.199 Uma foi o PRC de Pinheiro Macha<strong>do</strong> durante o governo Hermes da Fonseca,de vida curta. Outra, bem-sucedida em longo prazo foi o Parti<strong>do</strong> Comunista<strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> (PCB) que, cria<strong>do</strong> em 1922, se nacionalizaria na década seguinte.


275A Primeira República(1889-1930)após a morte prematura de Júlio de Castilhos. Borges foisucessivamente reeleito presidente <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> por mais de20 anos. A atuação gaúcha viabilizada no congresso pelosena<strong>do</strong>r Pinheiro Macha<strong>do</strong>, “o coronel <strong>do</strong>s coronéis” foi essencialpara garantir a vitória <strong>do</strong> único candidato militar noPerío<strong>do</strong> da República Oligárquica, Hermes da Fonseca, e apartir de então, não mais seria possível ignorar os gaúchosna definição política das chapas presidenciais, sob pena dedissidências problemáticas como as de 1922 e 1930.Apesar desta influência crescente, o Rio Grande <strong>do</strong>Sul era o único esta<strong>do</strong> onde o parti<strong>do</strong> no governo não erao único relevante. A dissidência liberal federalista de SilveiraMartins que capitulara em 1895, jamais deixou de fazeroposição ao PRR, e mais tarde seria liderada pelo prestigia<strong>do</strong>intelectual, diplomata e político Francisco de Assis <strong>Brasil</strong>na chamada revolução Liberta<strong>do</strong>ra de 1923.Isso não quer dizer que nos demais Esta<strong>do</strong>s não existisseoposição. Mas esta oposição estava no nível <strong>do</strong> município,onde coronéis dissidentes eram capazes de fazer eleiçõesarregimentan<strong>do</strong> eleitores suficientemente numerosospara garantir a eleição de opositores. O conhecidíssimo“voto de cabresto” era a prática de arregimentação eleitoralconhecida desde o Império, mas agora mais sofisticada,já que não votavam analfabetos, o grosso da população.Ou bem o coronel ensinava seus “cabras” a escrever o próprionome antes das eleições, onde sob o olhar vigilante<strong>do</strong>s jagunços e <strong>do</strong> preposto <strong>do</strong> coronel “desenhavam”seu nome na lista eleitoral (o voto era “aberto”!), ou sequerfingia fazer eleição, simplesmente mandan<strong>do</strong> escrever nalista eleitoral como bem entendesse os nomes necessáriosà vitória de seu candidato. A caligrafia homogênea eperfeita fez com que ficassem conhecidas como eleições“de bico de pena”. Era a normalização e institucionalizaçãoda fraude eleitoral, característica mais criticada, <strong>do</strong> sistemapolítico da Primeira República, inclusive e, sobretu<strong>do</strong>, peloscontemporâneos.Para viabilizar, portanto, a política <strong>do</strong>s governa<strong>do</strong>resno nível federal, pressupunha-se que o governa<strong>do</strong>r, chefeda oligarquia estadual fosse capaz de mobilizar votos pormeio <strong>do</strong>s coronéis que controlavam os municípios. EmCoronelismo, enxada e voto texto clássico de 1949, sobre omunicípio na Primeira República e que vem sen<strong>do</strong> critica<strong>do</strong>e debati<strong>do</strong> desde então, Vitor Nunes Leal caracteriza ocoronel como a figura mais relevante da política local, responsávelpelo seu prestígio ou bonança por todas as melhorias– da iluminação pública à estrada, <strong>do</strong> policiamento,à escola. Tais benesses supostamente públicas precisavamser conquistadas por meio <strong>do</strong> prestígio <strong>do</strong> coronel junto àautoridade estadual ou bancadas com seus próprios recursos.Daí advinha e se mantinha seu prestígio político.O governa<strong>do</strong>r, no entanto, não era dependente <strong>do</strong>coronel, poden<strong>do</strong> muito bem, em caso de defecção, apoiara facção política oposta no mesmo município. Os gruposoligárquicos opostos viviam em frequentes rusgas, se


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>276revezan<strong>do</strong> no poder e promoven<strong>do</strong> uma circularidade deelites no controle <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> republicano estadual e <strong>do</strong>próprio Esta<strong>do</strong>. A perpetuação era <strong>do</strong> regime oligárquico,mas nem sempre das mesmas oligarquias.A hegemonia São Paulo – Minas Gerais, consubstanciadana fórmula <strong>do</strong> “Café com Leite” de tão conhecidaacabou por servir de substituta para nomear o perío<strong>do</strong> inteiro200 . Inicialmente em composição com a Bahia, às vezesincorporan<strong>do</strong> o Rio Grande <strong>do</strong> Sul, ou o Rio de Janeiro ePernambuco, a verdade é que eram os grandes Esta<strong>do</strong>sque definiam a sucessão presidencial. Juntos eram imbatíveis.A sucessão de Rodrigues Alves, paulista, pelo mineiroAfonso Pena, em 1906, foi a culminância <strong>do</strong>s interesses <strong>do</strong>scafeicultores <strong>do</strong> sudeste consubstanciada no convênio deTaubaté (1906). Essa articulação de fluminenses, mineirose paulistas para viabilizar a valorização artificial <strong>do</strong> café seriarepetida mais duas vezes, nos governos Wenceslau Braz(1914) e Epitácio Pessoa (1922), e culminaria com o estabelecimentoda defesa permanente <strong>do</strong> café, assumi<strong>do</strong> porSão Paulo a partir <strong>do</strong> governo Artur Bernardes.Mas acontecia <strong>do</strong>s grandes Esta<strong>do</strong>s se separem emcisões oligárquicas nas quais se abria espaço para elei-200 Trata-se na verdade de uma meia verdade, já que parcela poderosa erelevante <strong>do</strong> PRM era na verdade proveniente da região cafeicultora deMinas Gerais. O nome correto seria Política <strong>do</strong> Café com Café, o que fariaperder parte <strong>do</strong> apelo semântico da combinação.ções verdadeiramente disputadas e controversas. Nestascisões vinha à tona com ainda mais força no debatepolítico o tema da moralização eleitoral e as críticas aocoronelismo que estiveram sempre presentes nos jornaisde oposição e mesmo nos discursos <strong>do</strong>s políticos. Algunscomo Ruy Barbosa, defendiam a moralização eleitoral pormeio <strong>do</strong> voto secreto nas disputadas eleições de 1910.Tinha o apoio <strong>do</strong> PRP que nunca antes ou depois, quan<strong>do</strong>esteve no poder implementou a promessa de seu candidatoderrota<strong>do</strong> em 1910. Ruy, em sua campanha “civilista”mobilizou milhares de pessoas em comícios nas principaiscapitais, denuncian<strong>do</strong> o “militarismo” de Hermes, quese tornou candidato da situação apenas por conta damorte de Afonso Pena.O presidente mineiro havia indica<strong>do</strong> o deputa<strong>do</strong>Davi Campista, mas seu sucessor, o líder político fluminenseNilo Peçanha, advoga<strong>do</strong> e figura popular junto às camadasmédias da capital lançou Hermes da Fonseca, cujoapelo era fortíssimo junto aos antigos jacobinos da décadaanterior. A articulação da candidatura hermista foi feita pelosena<strong>do</strong>r gaúcho Pinheiro Macha<strong>do</strong> que também tinha umdiscurso moderniza<strong>do</strong>r e intervencionista, contrário ao coronelismo<strong>do</strong> qual ele mesmo era beneficiário. Tornan<strong>do</strong>insuspeita a candidatura de Hermes, como representanteda situação, contou com o apoio <strong>do</strong> PRM, ainda que sema dissidência importante <strong>do</strong>s cafeicultores de Juiz de Foraque apoiaram Ruy.


277A Primeira República(1889-1930)O hermismo deslanchou significativa reforma noexército com o intuito de profissionalizar as Forças Armadas,sobretu<strong>do</strong> por meio da lei de sorteio, que foi implementadano governo seguinte, e, para José Murilo de Carvalho seriaimportante antecedente para o tenentismo. Seu chefe degabinete era o deputa<strong>do</strong> trabalhista Mauricio de Lacerda,e em 1912 patrocinou um congresso operário na Capital.Ao mesmo tempo lançou intervenções em praticamenteto<strong>do</strong>s os Esta<strong>do</strong>s na chamada “política das Salvações” removen<strong>do</strong>oligarquias tradicionais em prol de grupos políticosoposicionista e/ou militares. Pinheiro Macha<strong>do</strong> tentaria institucionalizaro “salvacionismo” no PRC (Parti<strong>do</strong> RepublicanoConserva<strong>do</strong>r), mas seus conflitos com o Nilo Peçanha e seuassassinato em 1915, impediram que este parti<strong>do</strong> vingasse,fazen<strong>do</strong> das eleições de 1914, 1918 e 1919 201 , pleitos fáceispara a aliança “Café com Leite”, PRP – PRM, que se rearticularaem 1913, no pacto de Ouro Fino.O mesmo ocorreria em 1921-2, mas não sem controvérsias.A candidatura oposicionista de Nilo Peçanha (eseu vice o baiano J. J. Seabra) contou com o apoio <strong>do</strong> Riode Janeiro, Bahia, Pernambuco e, como não podia deixarde ser, <strong>do</strong> Rio Grande <strong>do</strong> Sul. Ainda que sem mencionaro “voto secreto” bandeira de Ruy, a chamada “Reação Republicana”foi capaz de mobilizar ainda mais gente nosgrandes centros urbanos <strong>do</strong> país, no que Boris Fausto caracterizoucomo um “ensaio populista”. Forte nas zonas urbanas,contava ainda com entusiástico apoio <strong>do</strong>s militaresherdeiros <strong>do</strong> salvacionismo <strong>do</strong> ex-presidente Hermes daFonseca, então presidente <strong>do</strong> Clube Militar. Seria o marechalpivô das controvérsias. Em cartas apócrifas atribuídasao candidato situacionista <strong>do</strong> PRM, Artur Bernardes, o presidente<strong>do</strong> clube militar era taxa<strong>do</strong> de “sargentão venal esem compostura”, o que foi recebi<strong>do</strong> como uma ofensa atoda a classe militar, da<strong>do</strong> o prestígio e a posição <strong>do</strong> Marechal.Preso pelo governo Epitácio Pessoa que temia umgolpe militar, foi o suficiente para deslanchar os levantesque deram início ao tenentismo em julho de 1922 202 . Aindaassim, graças a máquina governamental e as fraudes recorrentes,Bernardes foi eleito com quase sessenta por cento<strong>do</strong>s votos e tomou posse em 15 de novembro de 1922 203 ,201 Foram eleitos Wenceslau Braz em 1914 como candidato único, RodriguesAlves em 1918, que morreu de gripe espanhola antes de tomar possenovamente como presidente, e Epitácio Pessoa, o primeiro nordestino,eleito em 1919, em eleições especiais para suceder Delfim Moreira, vicede Rodrigues Alves. Nesta última, Ruy Barbosa foi novamente candidatooposicionista, e mesmo sem o apoio de nenhum Esta<strong>do</strong> teve um terço <strong>do</strong>svotos e venceu no Distrito Federal.202 Seu Filho, o capitão Euclides Hermes era o comandante <strong>do</strong> Forte deCopacabana.203 A Reação Republicana não aceita a derrota eleitoral e não reconhecea presidência de Bernardes. Exige um arbitramento que não foi aceitopor Minas e São Paulo. Ameaça com a revolução e acena para as forçasarmadas. Muitas análises identificam o início <strong>do</strong> tenentismo com o clima deanimosidade patrocina<strong>do</strong> pela imprensa oposicionista e pela intransigência


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>278para governar em Esta<strong>do</strong> de Sítio por praticamente to<strong>do</strong>o governo.Fez intervenções nos Esta<strong>do</strong>s oposicionistas – usoucomo pretexto a duplicidade da Câmera fluminense paraintervir e derrubar os alia<strong>do</strong>s de Nilo Peçanha – e praticamenteprovocou a guerra civil no Rio Grande <strong>do</strong> Sul aoapoiar e fortalecer os opositores <strong>do</strong> PRR de Borges de Medeiros,lidera<strong>do</strong>s por Assis <strong>Brasil</strong> no Parti<strong>do</strong> Liberta<strong>do</strong>r (PL).Em 1923, reuni<strong>do</strong>s no Castelo de Pedras Altas, o presidenteconseguiu afinal forçar os <strong>do</strong>is la<strong>do</strong>s a negociar. “O chimango”204 seria reconheci<strong>do</strong> mais uma vez como governa<strong>do</strong>r,mas constituição gaúcha seria emendada para proibir novasreeleições e a oposição teria presença nos legislativos.Em 1928, o ministro da fazenda de Washington Luís, GetúlioVargas, seria o candidato de consenso, que ao acenarpara os maragatos, conseguiu afinal pacificar o Esta<strong>do</strong>.A sucessão de Bernardes foi tranquila, sen<strong>do</strong> eleito, egovernan<strong>do</strong> sem maiores percalços, o “paulista de Macaé”Washington Luís que apesar de nasci<strong>do</strong> no norte fluminensetinha si<strong>do</strong> indica<strong>do</strong> pelo PRP. O tenentismo amainara,com o fim da Coluna Prestes em 1927 e o governo parecia<strong>do</strong>s eleitos que não aceitam qualquer tipo de conciliação marginalizan<strong>do</strong>completamente a oposição e excluin<strong>do</strong> seus deputa<strong>do</strong>s da legislatura eleita.204 Sátira literária gaúcha de Borges de Medeiros que de tão popular acaboudan<strong>do</strong> nome a seus partidários, a situação, em oposição aos maragatos, quese consideravam herdeiros da farroupilha.caminhar para o fim tranquilo até surgir a questão sucessória.A indicação <strong>do</strong> paulista Júlio Prestes pelo PRP já eraprevista como o mau augúrio no horizonte pelo PRM, seualia<strong>do</strong> tradicional. Em 1929, envia<strong>do</strong>s <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r AntonioCarlos de Andrada ao Rio de Janeiro assinaram o Pacto<strong>do</strong> Hotel Glória, acor<strong>do</strong> preventivo que se comprometiaem apoiar a candidatura gaúcha de Getúlio Vargas ao Cateteno caso <strong>do</strong> presidente Washington Luís não apoiar ummineiro para sua sucessão. Dito e feito. Veio um paulista, ecindiu-se o Café com Leite em proveito <strong>do</strong> chimarrão.A chamada “Aliança Liberal” contou ainda com oapoio da Paraíba que indicou como vice na chapa JoãoPessoa, e dissidentes em vários Esta<strong>do</strong>s, como o Parti<strong>do</strong>Democrático (PD) em São Paulo. Tinha ampla simpatia <strong>do</strong>stenentes e incorporava em sua plataforma propostas e legislaçãosocial e anistia aos tenentes presos nos levantes<strong>do</strong>s anos de 1920. Propunha ainda o voto secreto que jáhavia si<strong>do</strong> instituí<strong>do</strong> em Minas Gerais durante o governode Antonio Carlos de Andrada (1926-1930) candidato presidencialpreteri<strong>do</strong> por Washington Luís. Não se diferenciavatanto das demais dissidências oposicionistas da RepúblicaOligárquica, como a “campanha civilista” de 1910 e a“reação republicana” de 1922 a não ser nos números mobiliza<strong>do</strong>s,que chegaram às dezenas de milhares. O resulta<strong>do</strong>inclusive foi praticamente igual. Cinquenta e nove porcento para a situação, cerca de 40% para a oposição. JulioPrestes estava indiscutivelmente eleito, e mesmo Getúlio


279A Primeira República(1889-1930)Vargas, temen<strong>do</strong> em Julio Prestes um novo Artur Bernardesque patrocinasse intervenção federal no Rio Grande <strong>do</strong> Sul,aceitou a derrota e aquietou-se, mesmo enquanto muitos<strong>do</strong>s seus alia<strong>do</strong>s faziam planos para a Revolução.O que faz Getúlio mudar de ideia e assumir o coman<strong>do</strong>revolucionário foi o assassinato <strong>do</strong> paraibano JoãoPessoa, seu colega de chapa. Sua morte tinha si<strong>do</strong> motivadapor razões mais próximas <strong>do</strong> crime passional e apenasremotamente políticas, mas foi capitalizada pelos tenentese aliancistas como uma tentativa de calar a voz que denunciavaa fraude eleitoral, que, é claro, se fez presente emambos os la<strong>do</strong>s. O cadáver de Pessoa se tornou bandeirarevolucionária a partir de 3 de outubro de 1930, mas antea perspectiva de guerra civil, deu-se desfecho inédito. Reuniu-sea alta cúpula das Forças Armadas – “o Movimento Pacifica<strong>do</strong>r”– que se decidiu pela destituição de WashingtonLuiz e a entrega <strong>do</strong> poder aos revolucionários em 24 deoutubro, encerran<strong>do</strong> a primeira experiência republicanabrasileira.5.2 Os movimentos sociais e o papel <strong>do</strong> Exército naPrimeira RepúblicaOs movimentos sociais – historiografia e classificação.Exclusão social e o papel <strong>do</strong> exército. O GovernoHermes da Fonseca e o Salvacionismo. O Cangaço.Participação popular e política. A Guerra de Canu<strong>do</strong>s ea consolidação da República. A Revolta da Vacina e oquestionamento militar ao governo Rodrigues Alves.O Contesta<strong>do</strong>. O exército e suas propostas de modernização.A modernização da Marinha e a Revolta da Chibata.O Senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> Tenentismo – história e historiografia.Entre 1889 e 1930 a eclosão de numerosos levantespopulares, urbanos e rurais atraiu a atenção de grandenúmero de historia<strong>do</strong>res. Essa atenção contrasta com orelativo silêncio historiográfico sobre muitos outros temasno mesmo perío<strong>do</strong>, notoriamente os da “grande política”.Renato Lessa reclama da falta de estu<strong>do</strong>s sobre o processopolítico-legislativo na República Velha, enquanto EugenioGarcia chama atenção para a “medievalização” historiográficapara os temas da Política Externa <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> pós-barão.A atenção historiográfica aos levantes populares contrastaainda com o silêncio ainda maior sobre as rebeliões populares<strong>do</strong> Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong>, como o Vintém e a Cemiterada.Tais preferências permitem hipóteses descomprometidas.O entendimento raso de que a Primeira República


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>280é excludente e oligárquica favorece generalizações. Taisplatitudes não deveriam ser motivo para limitar seu estu<strong>do</strong>,tanto quanto não se esgota o estu<strong>do</strong> da Repúblicaromana clássica, igualmente oligárquica e excludente. Parareafirmar esses truísmos, o estu<strong>do</strong> <strong>do</strong>s movimentos sociaisda Primeira República era perfeito para caracterizar-lhe ocaráter excludente. Tratava-se <strong>do</strong> equivalente ao popularíssimoestu<strong>do</strong> da escravidão antes <strong>do</strong> 15 de novembro. Emuma universidade marcada pelo marxismo, não era de bomtom estudar os <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>res. Era igualmente um mo<strong>do</strong> demarcar uma posição acadêmica – simpática aos rebeldes apartir <strong>do</strong> final <strong>do</strong>s anos de 1950 205 – de apoio também aosmovimentos sociais contemporâneos – sindicatos, camponeses,guerrilheiros – em suas lutas contra o governo opressivodurante o regime militar. Em alguns casos, assumin<strong>do</strong>causas e reabrin<strong>do</strong> questões antigas como a da reabilitação<strong>do</strong> marinheiro João Candi<strong>do</strong> expulso da marinha durantea revolta da Chibata. Fazer <strong>História</strong> nunca é neutro e quasesempre ela fala tanto <strong>do</strong> presente quanto <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>.205 O texto de Rui Facó, Cangaceiros e Fanáticos, é um marco desta viradapositiva. Foi escrito pela Ed. Civilização <strong>Brasil</strong>eira em 1 a . Edição em 1963,ten<strong>do</strong> antes si<strong>do</strong> escrito ao final <strong>do</strong>s anos 50 pela editora Vitória ligada aoPCB. Sua abordagem é claramente favorável aos sertanejos de Canu<strong>do</strong>s e <strong>do</strong>Juazeiro objetos de seu estu<strong>do</strong>, mas praticamente desconsidera a variávelreligiosa, crian<strong>do</strong> uma escola antieuclidiana. Obviamente não temos comodeixar de mencionar que toda uma geração de estudantes foi estimuladaa ler o Facó após assistir “Deus e o Diabo na Terra <strong>do</strong> Sol” (1964) de GlauberRocha.Assim, estudar mais os movimentos sociais, e muitomenos <strong>do</strong> resto, consoli<strong>do</strong>u a marca historiográfica recorrentena apreciação da Primeira República, que é a ênfasena exclusão, seu peca<strong>do</strong> maior. Por tratar-se de um regimeoligárquico no qual o sistema representativo era sistematicamentemanipula<strong>do</strong> por eleições fabricadas e fraude eleitoral,os levantes populares são li<strong>do</strong>s quase sempre comoparte de um pano de fun<strong>do</strong> maior. Por um la<strong>do</strong> é inegávelque em regimes de maior representatividade, setores marginaliza<strong>do</strong>sda população encontram meios institucionais,ainda que limita<strong>do</strong>s, para vocalizar suas queixas sem a necessidadede pegar em armas 206 . Por outro la<strong>do</strong> é razoavelmenteconsensual na historiografia a falta de consciênciamais ampla <strong>do</strong>s levantes populares <strong>do</strong> Perío<strong>do</strong>. Tinham porobjetivo transformar a sua realidade e se rebelar contra aspectosespecíficos que lhes oprimiam e não transformartoda a realidade social ou derrubar o regime oligárquico.Os sertanejos de Canu<strong>do</strong>s só queriam ser deixa<strong>do</strong>s empaz. Os rebeldes <strong>do</strong> Contesta<strong>do</strong>, igualmente não tinhammaiores aspirações senão aguardar o messias e serem deixa<strong>do</strong>sem paz. As revoltas urbanas são ainda mais espetacularesno comedimento de suas demandas, ao ponto de206 São bem menos recorrentes de movimentos populares insurretos no regimedemocrático de 1946 em diante, e mesmo no Regime Militar, com seuarreme<strong>do</strong> de representatividade e na nova República, onde o fenômenopraticamente desaparece.


281A Primeira República(1889-1930)ser complica<strong>do</strong> explicar a alunos cresci<strong>do</strong>s em contexto deliberdade civil como era possível que os marinheiros tivessemque bombardear a capital para não serem mais açoita<strong>do</strong>sou pior, que povo tivesse que se rebelar para não terque tomar vacina.Assim, reconhecer o contexto excludente <strong>do</strong> regimeliberal vigente é essencial para estabelecer o panorama geraldestes movimentos e nos ajuda a compreender inclusivea maior propensão à repressão violenta como forma privilegiadade solução encontrada pelos governos de então.Apenas a exclusão não é capaz de explicar movimentosparticulares cada qual com suas especificidades.Não deixa de ser curioso que o grupo institucionalmentemais coeso e articula<strong>do</strong>, o Exército Nacional, parteindissociável desta história <strong>do</strong>s movimentos sociais, pelola<strong>do</strong> da repressão, considerasse a si mesmo neste perío<strong>do</strong>,uma instituição excluída, marginalizada e repositóriada moralidade e da cidadania, cuja responsabilidade serialiderar o processo de regeneração nacional, salvar a pátriadas oligarquias. Eram os excluí<strong>do</strong>s – os rebeldes – reprimi<strong>do</strong>spor outros excluí<strong>do</strong>s – os militares. Na década de 1920encontraremos os segun<strong>do</strong>s sistematicamente no lugar<strong>do</strong>s primeiros. Trata-se de raridade historiográfica um estu<strong>do</strong>integra<strong>do</strong> <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is fenômenos. Uma hipótese possívelé que, bem mais que uma continuação <strong>do</strong>s movimentossociais, o Tenentismo é fruto da crescente consciência reformistaque o Exército adquire ao reprimi-los. À contestaçãosem consciência de um Conselheiro ou um José Maria,seguiu-se à contestação consciente de militares comoSiqueira Campos e Luis Carlos Prestes nos anos 1920, namesma instituição que havia nas décadas anteriores destruí<strong>do</strong>Canu<strong>do</strong>s e o Contesta<strong>do</strong>.É claro que os militares já haviam vivi<strong>do</strong> antes momentosde crise e ímpetos reformistas, como o que levouà Proclamação da República. Mas no embate com os “casacas”haviam perdi<strong>do</strong> na década seguinte. A Repúblicada Espada (1889-94) se encerra em Floriano e o projetode uma ditadura militar terá seu último suspiro em Canu<strong>do</strong>scom a morte de Moreira César e a desmoralização <strong>do</strong>Exército pela resistência <strong>do</strong>s segui<strong>do</strong>res de Antônio Conselheiro.Por outro la<strong>do</strong> seria a resistência aguerrida <strong>do</strong>srebeldes <strong>do</strong> Contesta<strong>do</strong> que apontam para a necessidadedramática de reforma <strong>do</strong> exército nacional. Os debatessobre o melhor meio de fazê-lo, culminariam em últimaanálise na Missão Francesa e no tenentismo da décadaseguinte. Entre Canu<strong>do</strong>s (1897) e o Contesta<strong>do</strong> (décadade 1910), os militares aproveitaram-se <strong>do</strong> contexto turbulentoda revolta da Vacina (1904), para tentar retomaro poder, e fracassaram, amargan<strong>do</strong> o fechamento da EscolaMilitar por quase uma década. A vitória eleitoral <strong>do</strong>Marechal Hermes da Fonseca (1910-14), estimularia aindamais a vertente salvacionista <strong>do</strong> Exército, e uma vez acostuma<strong>do</strong>sao poder, o retorno da oligarquia seria cada vezmais amargo.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>282Hermes chegara ao poder na mais conturbada eleiçãoda República, disputada com Rui Barbosa – popularjurista que tinha si<strong>do</strong> o “herói” brasileiro em Haia – depoisque o Barão <strong>do</strong> Rio Branco se recusou a ser o nome deconsenso das oligarquias. Hermes dividia mais que congregava,e Rui, abertamente usava da condição militarde seu adversário para acusá-lo, defenden<strong>do</strong> o “civilismo”nome que deu à sua campanha derrotada. Hermes teveo apoio <strong>do</strong> vice, agora presidente empossa<strong>do</strong>, Nilo Peçanha,político fluminense, mulato, liga<strong>do</strong> aos setores médiose simpático aos militares, além <strong>do</strong> apoio <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong>Republicano Rio-grandense (PRR) de Borges de Medeiros,insatisfeito com o papel secundário na política <strong>do</strong>s grandesEsta<strong>do</strong>s.A eleição e o governo intervencionista de cunhomilitarista que se seguiu, levaram a um reordenamento<strong>do</strong> pacto oligárquico em 1913. O Parti<strong>do</strong> RepublicanoPaulista (PRP) e o Parti<strong>do</strong> Republicano Mineiro (PRM)se reuniram em Ouro Fino para definir não apenas suaaliança para a sucessão de 1914, mas igualmente parainstitucionalizá-la. Surgiu aí a política <strong>do</strong> Café com Leite,a aliança entre Minas Gerais e São Paulo que se tornoupor metonímia à definição política da Primeira República.Traumatizadas com o nível radical de intervenção nofederalismo tacitamente tolera<strong>do</strong> por Campos Salles, aselites tradicionais reunidas em Ouro Fino, pensavam: “militaresnunca mais”.No caso específico <strong>do</strong> governo Hermes, percebesea presença de duas facções importantes que apesarde juntas no poder, não se confundem. Os militares, representa<strong>do</strong>spor Euclides, filho <strong>do</strong> presidente defensor <strong>do</strong>“salvacionismo” e os civis, com a preponderância gaúchaexplícita na figura de Pinheiro Macha<strong>do</strong> – presidente dapoderosa comissão de Verificação <strong>do</strong>s Poderes – vistocomo a eminência parda <strong>do</strong> regime, e origem de to<strong>do</strong>sos males <strong>do</strong> governo, e que foi, talvez por isso, assassina<strong>do</strong>em 1915. Os militares, desmontan<strong>do</strong> a tradição PoncioPilatos de Campos Sales, estimularam frequentes medidasinterventoras, imiscuin<strong>do</strong>-se nas disputas políticas dasoligarquias estaduais. Já Pinheiro Macha<strong>do</strong> representavaa evidência da ascensão gaúcha e <strong>do</strong> declínio, ainda queprovisório, <strong>do</strong>s paulistas.O que se verificou, tanto no plano federal quanto e,sobretu<strong>do</strong>, nos planos estaduais, foi uma circularidade deoligarquias. Mudava a oligarquia no poder, mas apesar daretórica moralizante, não mudava o regime, que seguia oligárquico.A intervenção política <strong>do</strong>s militares no momentoque alcançaram a presidência falhou em promover mudançasinstitucionais. Suas intervenções ad hoc nos Esta<strong>do</strong>soposicionistas, não raro fruto de voluntarismos – comono caso <strong>do</strong> Ceará – não obedeciam a um projeto coesode transformação, nem conseguiram se institucionalizar.Curiosamente ao chegarem ao poder na revolução de1930, e novamente em aliança com a oligarquia gaúcha,


283A Primeira República(1889-1930)os militares saberão institucionalizar o modelo de interventoriasque de fato substituirá o sistema de Campos Salessepultan<strong>do</strong> de vez a Política <strong>do</strong>s Governa<strong>do</strong>res.O CangaçoUm <strong>do</strong>s exemplos mais claros de como a centralizaçãoe a institucionalização das interventorias deu cabode dinâmicas estabelecidas na República Velha é o seu impactono fenômeno <strong>do</strong> Cangaço, que Eric Hobsbawn chamoude “Banditismo Social” 207 . O cangaço não é exclusivo<strong>do</strong> perío<strong>do</strong> da Primeira República, já que cangaceiros existiamdesde o Império 208 . Mas proliferam como subcultura<strong>do</strong> coronelismo nordestino. O coronel mantinha peões ejagunços arma<strong>do</strong>s para a repressão de dissidentes e enfrentamentosde coronéis rivais. Com o tempo, surgemcada vez mais ban<strong>do</strong>s livres, em constante movimento deuma fazenda a outra, de uma cidade a outra, sobreviven<strong>do</strong>em uma frágil dinâmica que misturava assaltos, terrore, não raro, aliança com os coronéis estabeleci<strong>do</strong>s, que207 O autor marxista faleci<strong>do</strong> em 2012, inseriu o cangaço brasileiro no fenômenomais amplo de banditismo social, algo “robinhoodiano”, que ele analisadetalhadamente, no controverso “Bandi<strong>do</strong>s”, no qual defende que o fenômenoé universal. “O banditismo é a liberdade, mas numa sociedade camponesapoucos podem ser livres”.208 Jesuíno Brilhante famoso no sertão <strong>do</strong>s anos de 1870 e Lucas Evangelistamorto em 1848 na Bahia.frequentemente se beneficiavam <strong>do</strong>s serviços <strong>do</strong>s cangaceiros,ao mesmo tempo que deles podiam ser vítimas.Lampião foi morto em 1938 e Corisco em 1940,quan<strong>do</strong> ia se render. O Cangaço não resistiu a cruzada promovidapelo Esta<strong>do</strong> Novo (1937-45) contra os elementosde desordem. Seriam anistia<strong>do</strong>s os que se rendessem, emortos o que se recusassem. Não era tão diferente assimna época <strong>do</strong>s coronéis, mas o federalismo facilitava a mobilidade<strong>do</strong>s cangaceiros. Se persegui<strong>do</strong> na Paraíba, podiaencontrar proteção no Ceará. Se jura<strong>do</strong> de morte na Bahia,talvez tivesse abrigo em Pernambuco. Governos de interventores,to<strong>do</strong>s nomea<strong>do</strong>s pela mesma autoridade centralque declarava guerra aos cangaceiros, tornaram essa dinâmicatransumante impossível a partir de 1938, e decretaram,em pouco tempo, o fim <strong>do</strong> cangaço.Em praticamente to<strong>do</strong>s os episódios de revoltaspopulares na Primeira República é possível estabelecerum vínculo direto ou indireto com a luta política em cursonuma oposição algo esquemática entre oligarquias e militares.Se na revolta da Vacina, um governo civil se veriaas voltas com uma rebelião militar que se aproveitava daagitação popular, houve momentos em que se deu o contrário.Seria o caso da tentativa da oposição no CongressoNacional durante a rebelião <strong>do</strong>s marinheiros em novembrode 1910, com Hermes da Fonseca recém-empossa<strong>do</strong>.O que era um movimento popular acaba servin<strong>do</strong> aosinteresses políticos da facção oposicionista com o intuito


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>284de desestabilizar e derrubar o grupo no poder, intuito essenão presente nas aspirações originais <strong>do</strong>s movimentos.O caso de Canu<strong>do</strong>s é emblemático desta vinculação.A Guerra de Canu<strong>do</strong>sAntônio Vicente Mendes Maciel era filho de comercianteremedia<strong>do</strong> e torna-se mascate com o fechamentoda casa comercial <strong>do</strong> pai. Casa-se aos 29 anos e, com oaban<strong>do</strong>no da mulher, que o deixa para se amasiar a ummilitar, torna-se prega<strong>do</strong>r errante restauran<strong>do</strong> cemitérios,igrejas e arregimentan<strong>do</strong> segui<strong>do</strong>res. Critica em suas pregaçõesas medidas <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Laico, e sua <strong>do</strong>utrina rigorosasobre a moral. Seu sucesso, no entanto, provoca reações<strong>do</strong> clero local que alertam os párocos para o perigo que oagora chama<strong>do</strong> Antônio Conselheiro representava para a<strong>do</strong>utrina oficial. Chegou a reunir milhares de fiéis que em1893, estabeleceram-se na fazenda aban<strong>do</strong>nada <strong>do</strong> BeloMonte em Canu<strong>do</strong>s após a primeira demonstração deoposição ao regime, quan<strong>do</strong> seus segui<strong>do</strong>res queimaramas tábuas com as leis republicanas.Demoraria ainda alguns anos para que esta reuniãode fiéis, adeptos de um catolicismo “rústico” e hetero<strong>do</strong>xo,incomodasse o suficiente as autoridades baianas para quese motivasse a violência institucional. O episódio de retaliaçãopela compra de madeira, nunca entregue, para a Igreja<strong>do</strong> Belo Monte, é frequentemente cita<strong>do</strong> como estopimpara a repressão, mas carece de fontes. Autores marxistasmencionam a desarticulação da mão de obra local com oafluxo demográfico significativo para o Belo Monte, malvistopelos coronéis da região. Apenas em 1897, ao final <strong>do</strong>quadriênio de Prudente, o governo federal resolve intervir.Duas expedições da força policial baiana já haviam si<strong>do</strong>derrotadas e a fama de uma Canu<strong>do</strong>s reputada monarquistae de seu Conselheiro crescia exageradamente na capital.Fica difícil saber se a violenta repressão teve a vercom a rebelião <strong>do</strong>s sertanejos ou com a fragilidade e necessidadede legitimação da recém-proclamada República.Suspeito que o segun<strong>do</strong> elemento foi determinante.O governo federal só passou a considerar Canu<strong>do</strong>s umaameaça à ordem quan<strong>do</strong> a imprensa <strong>do</strong> “Sul” transformouBelo Monte em uma rebelião monarquista articulada internacionalmentequan<strong>do</strong> da terceira expedição.O quadro político era <strong>do</strong>s mais bagunça<strong>do</strong>s. Prudenteafasta<strong>do</strong> <strong>do</strong> governo por motivo de <strong>do</strong>ença tinhasi<strong>do</strong> substituí<strong>do</strong> por seu Vice, Manoel Vitorino, que trocarato<strong>do</strong> o ministério e era fiel ao PRR de Francisco Glicério.A provável vitória sobre Canu<strong>do</strong>s da terceira expedição(fevereiro-março de 1897) liderada pelo Cel. Moreira César,degola<strong>do</strong>r implacável da revolução federalista, poderia sera antessala de um golpe de inspiração florianista articula<strong>do</strong>na ausência de Prudente.Deu tu<strong>do</strong> erra<strong>do</strong>. Feri<strong>do</strong> em 3 de março de 1897,Moreira Cesar morreria no dia 4. As notícias de sua morte e


285A Primeira República(1889-1930)a consequente desarticulação da terceira expedição coincidiramcom a pronta e quase milagrosa recuperação dePrudente. A partir daí tem-se ampla radicalização da repressãoaos monarquistas na capital e a organização da quartaexpedição, que após meses de preparação, bombardeouintensamente o povoa<strong>do</strong> e deu ordem para degolar to<strong>do</strong>sos sobreviventes. Foi um massacre. Um <strong>do</strong>s mais famososmassacres da história nacional.Tanto ou mais impacto que a Guerra de Canu<strong>do</strong>s,teve a série de reportagens para O Esta<strong>do</strong> de S. Paulo queunidas se tornaria Os Sertões. A obra de Euclides da Cunhatorna-se tão seminal que, toda a historiografia posterior terácomo pano de fun<strong>do</strong>, o diálogo oculto com Os sertões que,embasa<strong>do</strong> em um determinismo geográfico cientificista,retrata o sertanejo de mo<strong>do</strong> simpático, ainda que complexo.O isolamento <strong>do</strong> sertanejo, marca da obra, e o atraso dapopulação rural, se configura em força e coragem, apesarde retratar seus aspectos negativos. Tratava-se de um manifestoque conclamava as elites nacionais a desviarem seuolhar da Europa para dentro <strong>do</strong> país. Com a popularidadeda obra, o sertanejo ganha ares de símbolo de identidadenacional, e influenciará o Modernismo, o Regionalismo, e ahistoriografia sobre Canu<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s anos 60 em diante 209 .209 Mario Vargas Llosa, prêmio Nobel de literatura que escreveu A guerra <strong>do</strong> Fim<strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> inspira<strong>do</strong> em Canu<strong>do</strong>s.Que um oficial <strong>do</strong> exército brasileiro cuja principalformação se deu na Academia Militar fosse capaz de produzirobra de tamanho impacto, político-literário, não éexceção atribuível exclusivamente à genialidade, mas sim,emblemática da notável da formação humanista que seoferecia então aos oficiais brasileiros. Estes eram vistos pormuitos, e principalmente por si mesmos como intelectuais,agentes da reforma social e <strong>do</strong> progresso. Altamente improvávelque um oficial <strong>do</strong>s dias de hoje sequer cogitasseiniciar empreitada intelectual semelhante 210 .Na capital as consequências <strong>do</strong> levante de Canu<strong>do</strong>stambém se fizeram sentir. O exército alistava “voluntários”à força, ao ponto de que as ruas ficavam desertas à noite,ten<strong>do</strong> o povo me<strong>do</strong> de ser “pego para o massacre deCanu<strong>do</strong>s”. Muitos foram coopta<strong>do</strong>s com a promessa deconstrução de moradias populares para os veteranos. Noano de 1898, após o retorno <strong>do</strong>s combatentes à capital,foram aloja<strong>do</strong>s provisoriamente no morro da providência,210 Houve, por longo tempo, um certo preconceito anti-intelectualista emboa parte das forças armadas brasileiras, que evidencia o enorme divórcioexistente entre os militares e a intelligentsia nacional. Esta cisão foi causada,sobretu<strong>do</strong>, pelo regime militar e seu ataque à liberdade universitária.Contribui também o declínio espetacular no nível de formação humanistaque passou a ser ofereci<strong>do</strong> ao oficial médio brasileiro. Com raras exceções,trata-se de ensino exclusivamente técnico ou então <strong>do</strong>utrina<strong>do</strong>r, fortementeideologiza<strong>do</strong>, marcadamente data<strong>do</strong> da lógica da Guerra Fria, e, produtorde anacrônicos caça<strong>do</strong>res de comunistas, ou paranoicos anti-imperialistas.Tais feridas, passadas já quase três décadas de democracia, ainda não fomoscapazes de curar.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>286no que viria a ser a primeira favela <strong>do</strong> Rio de Janeiro. Evidenciava-seassim a exclusão social de dupla face. Apóso massacre <strong>do</strong>s sertanejos, eram aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>s à própriasorte, também os solda<strong>do</strong>s veteranos. Um destes veteranos,Marcelino Bispo de Melo, atentaria contra a vida<strong>do</strong> presidente Prudente em seu último ano de mandato.O atenta<strong>do</strong> era parte de uma conspiração orquestradapelo capitão Deocleciano Martyr, na espiral de radicalização<strong>do</strong> jacobinismo. O magnicídio, fracassa<strong>do</strong>, tomoua vida <strong>do</strong> ministro da Guerra Mal. Bittencourt e desencadeouincrível repressão contra os jacobinos, consolidan<strong>do</strong>o poder civil. Canu<strong>do</strong>s evidenciara a incapacidade<strong>do</strong>s militares de transformar a “ordem” e o “progresso” emrealidade e, segun<strong>do</strong> Renato Lessa garantiu a vitória <strong>do</strong>projeto oligárquico sobre a “espada”.A Revolta da VacinaOs militares não se conformavam e, sete anos depois,tentariam voltar ao poder, no contexto da Revolta daVacina (1904). Instrumentalizan<strong>do</strong> o levante popular contraa Lei de Vacinação Obrigatória aprovada pelo Parlamentoapós a campanha <strong>do</strong> médico sanitarista Oswal<strong>do</strong> Cruz, oscadetes da Praia Vermelha marcharam contra o Palácio <strong>do</strong>Catete e foram intercepta<strong>do</strong>s por forças leais ao governo.A escola militar foi novamente fechada 211 e só seria reabertaem Realengo muitos anos depois.Afora a instrumentalização política pelo grupo deoposição e a evidente marca violenta com a qual o governotratava sua população, excluída <strong>do</strong> processo de decisãopolítica, os <strong>do</strong>is levantes, Canu<strong>do</strong>s e Vacina, guardammuito pouca relação entre si. Um rural e messiânico outrourbano. No caso da Vacina não houve uma liderança óbvia,e teve mais que a simpatia <strong>do</strong>s militares, o que no casode Canu<strong>do</strong>s ocorreu de forma oposta, terminan<strong>do</strong> em degolaa relação entre rebeldes e os militares. A participaçãoda “comunidade científica” de então se restringiu, no casobaiano, a tentar buscar as causas da “loucura” de Conselheiro,examinan<strong>do</strong> seu crânio, em pesquisa feita pelo médicoNina Rodrigues. Já no levante carioca de 1904, to<strong>do</strong> o debatesanitarista desde a época <strong>do</strong> Império 212 serve-lhe deantecedente.O estabelecimento <strong>do</strong> paradigma microbiológicode Louis Pasteur, discuti<strong>do</strong> e implementa<strong>do</strong> no <strong>Brasil</strong> pornomes como Vital <strong>Brasil</strong>, Chapot Prevost, Domingos Freiree Oswal<strong>do</strong> Cruz, competia e negociava com a velha teoria211 Já havia si<strong>do</strong> fechada brevemente por conta de um levante no governoPrudente de Moraes.212 Esse debate muito complexo é bem analisa<strong>do</strong> por Jaime Benchimol, noextraordinário texto “Reforma Urbana e a Revolta da Vacina na cidade <strong>do</strong> Riode Janeiro” no primeiro volume de O <strong>Brasil</strong> Republicano organiza<strong>do</strong> por JorgeFerreira e Lucilia Delga<strong>do</strong>.


287A Primeira República(1889-1930)<strong>do</strong>s miasmas <strong>do</strong>s mangues que conclamava ampla reformaurbana no centro da velha capital colonial. Ambos osprojetos se encontram e ganham destaque na administraçãode Rodrigues Alves, cujo prefeito, o engenheiro PereiraPassos, havia esta<strong>do</strong> em Paris e se entusiasma<strong>do</strong> com as reformasurbanas <strong>do</strong> Barão Haussmann. A relativa facilidadecreditícia e a situação financeiro-fiscal confortável herdadade Campos Salles, deu liberdade ao segun<strong>do</strong> presidente<strong>do</strong> século passa<strong>do</strong> para alargar o endividamento com osRothschild e financiar a ampla reforma urbana cujo carrochefe foi a abertura da Avenida Central – hoje Avenida RioBranco – que subiu radicalmente a escala da derrubada decortiços e moradias populares.Embora a derrubada de cortiços na <strong>do</strong>wntown cariocanão fosse novidade 213 , a escala, durante o quadriênioPereira Passos, aumentou exponencialmente. O prefeitogovernava com poderes excepcionais e autoritários, inicialmentepor conta <strong>do</strong> fechamento <strong>do</strong> Conselho Municipal,e depois por conta de aprovação de leis centraliza<strong>do</strong>ras<strong>do</strong> poder <strong>do</strong> prefeito no parlamento. Pereira Passos iniciouuma cruzada higienista – posturas, leis, estabelecimento213 O prefeito anterior a Pereira Passos, Barata Ribeiro ficara célebre pelo botaabaixo<strong>do</strong> mais famoso cortiço da cidade, o “Cabeça de Porco” que diziam serpropriedade <strong>do</strong> Conde D’Eu. A charge famosa da “Revista Ilustrada” eternizoua destruição ao colocar na capa uma realista barata desenhada sobre umacabeça de porco servida numa bandeja, com maçã na boca, para o deleitediscutível da opinião pública das elites.autoritário de regras para o comércio, os transeuntes e ashabitações – que concomitantemente legitimava o reformismourbano.Quais os motivos que levaram o povo, em diversasregiões da cidade, a se revoltar contra uma medida quelhe era pretensamente benéfica: a vacinação? Há um debatehistoriográfico prolífico. Um corrente da historiografia,mormente de São Paulo 214 , defende que se tratava dagota d’água <strong>do</strong> processo <strong>do</strong> bota-abaixo movi<strong>do</strong> por PereiraPassos. A rebelião não seria senão a culminância da“paciência popular” após um longo processo de exclusãosocial. O povo não se revoltava contra a vacinação, mascontra o longo processo de exclusão em curso para <strong>do</strong>tara cidade de um caráter cosmopolita-burguês autoritário,no qual a vacinação era apenas o último episódio.Para José Murilo de Carvalho, o Esta<strong>do</strong> teria, com avacinação obrigatória, ultrapassa<strong>do</strong> um limite moral. Maisque desrespeitar a inviolabilidade constitucional <strong>do</strong> <strong>do</strong>micílio,desrespeitava a inviolabilidade, para o povo sagrada,<strong>do</strong> corpo. Estimulada por setores da elite, inclusive parlamentaresque denunciavam a ilegitimidade da lei de vacinação,o povo revoltou-se por razões morais. Carvalhodesmonta a ideia de que o “bota-abaixo” tenha si<strong>do</strong> umarazão fundamental para os levantes de 1904, ao circunscre-214 Nicolau Sevcenko, entre outros.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>288ver geograficamente as áreas onde houve rebeliões, muitodistintas das áreas onde estava em curso a destruição decortiços e moradias populares. Outros autores enfatizam arepressão à população negra, ou o caráter místico religiosoda “variolização”, que motivou a rebelião contra a vacinapara a varíola mais que para o combate a peste amarela ea febre bubônica que lhe eram concomitantes <strong>do</strong> projetode Oswal<strong>do</strong> Cruz.De um mo<strong>do</strong> geral, a credibilidade de Oswal<strong>do</strong>Cruz e <strong>do</strong>s sanitaristas não estava em alta com o povo,nem com parte da imprensa. A vacina, além de poderser aplicada à força nos recalcitrantes, nas mulheres,nas crianças, não era exatamente uma versão antiga <strong>do</strong>“Zé Gotinha”. Tratava-se de injeção <strong>do</strong>lorosa que a imprensasensacionalista demonizou rapidamente. As incompreensíveiscontrovérsias médicas em curso, que jáhaviam si<strong>do</strong> objeto de ridículo durante o debate sobre oque causava a “febre amarela”, agora menosprezava a vacinada varíola, transforman<strong>do</strong> em charges e caricaturasque ameaçavam, entre outras coisas menos prosaicas,a “bovinização” em massa <strong>do</strong> povo vacina<strong>do</strong> ao aludir oprocesso de produção da vacina, que usara ga<strong>do</strong> comocobaia. Uma parte significativa da população simplesmentemorria de me<strong>do</strong> de ser vacinada. Não era raro, nascondições de saneamento e higiene de então, que umavez vacina<strong>do</strong> com um vírus mais frágil, o indivíduo a<strong>do</strong>ecessepor conta de um sistema imunológico fragiliza<strong>do</strong>e viesse a morrer. Essas mortes eram imediatamenteatribuídas à vacina.Não houve qualquer campanha de mobilizaçãoou de educação popular. Houve sim, como frequente noperío<strong>do</strong>, enorme truculência na aplicação de uma lei ilegítimae impopular, que desencadeou revoltas por toda aregião central da cidade se espalhan<strong>do</strong> para Vila Isabel eSão Cristovão, com apoio <strong>do</strong>s monarquistas, positivistas ecomerciantes portugueses que anos antes eram vítimas daturba quan<strong>do</strong> da sanha antilusitana <strong>do</strong>s primeiros anos <strong>do</strong>regime.Nos anos que se seguiram à dupla rebelião popularmilitarde 1904, o Rio de Janeiro viveria outra gravíssima – amais grave registrada – epidemia de varíola (1908). Oswal<strong>do</strong>Cruz deixaria o coman<strong>do</strong> da saúde pública em 1909,quan<strong>do</strong> da morte de Afonso Pena e o conturba<strong>do</strong> governode Nilo Peçanha, traga<strong>do</strong> pela questão sucessória. Seu lega<strong>do</strong>foi dissociar o discurso higienista da questão urbana.A maior parte da população despossuída <strong>do</strong> centro<strong>do</strong> Rio de Janeiro, que vivia de viração ou “diárias”,sem emprego fixo, ou garantias trabalhistas, não podiaarcar com os custos de moradia e transportes inescapáveispara aqueles que se mudavam para o subúrbio. Este,em crescimento acelera<strong>do</strong>, era crescentemente procura<strong>do</strong>pelos funcionários públicos e pela classe média, emgeral. Aos desaloja<strong>do</strong>s, restava amontoar-se nos morrospróximos <strong>do</strong> centro, escreven<strong>do</strong> mais alguns capítulos da


289A Primeira República(1889-1930)história da favelização carioca que se havia inaugura<strong>do</strong>após Canu<strong>do</strong>s.Embora novos ímpetos demoli<strong>do</strong>res e reformistas<strong>do</strong> poder municipal em prol da civilização tenham apareci<strong>do</strong>em Carlos Sampaio (1920-22), Henrique Dodsworth, duranteo Esta<strong>do</strong> Novo e Carlos Lacerda, nos anos 1960. Elesnão eram mais legitima<strong>do</strong>s pela questão da saúde pública,mas agora, contra os morros e a favelização. Se no campocientífico e urbanístico as controvérsias eram acirradas, nãomenos o eram no seio <strong>do</strong> oficialato brasileiro, às voltas como óbvio despreparo de suas forças inclusive para lidar comas sedições internas como foi o caso <strong>do</strong> contesta<strong>do</strong>.A Guerra <strong>do</strong> Contesta<strong>do</strong>Entre 1911 e 1912, reivindican<strong>do</strong> ser parte de umalinhagem de homens-santos, Miguel Lucena de Boaventura,desertor <strong>do</strong> 14 o Regimento de Cavalaria de Curitiba eforagi<strong>do</strong> da cadeia, ganhou fama como curandeiro e profeta,após assumir o nome de Monge José Maria e declarar-seirmão de João Maria, um homem santo e eremitaque havia critica<strong>do</strong> a República e morri<strong>do</strong> em data incertaentre 1904 e 1908, prometen<strong>do</strong> voltar para seu povo,ou enviar “emissário”. José Maria se apresentava como oemissário. Em constante movimento pela região, contestadaentre a fronteira <strong>do</strong> Paraná com Santa Catarina, foi arregimentan<strong>do</strong>adeptos, que chegaram a 12 mil homens.Igualmente reuniam-se inimigos e detratores entre oscoronéis da região, e nas forças governamentais paranaensesque viam no monge o arauto de uma invasão catarinenseao território litigioso. Claramente milenarista, ogrupo estabeleceu-se em Irani, cidadela sagrada, a esperao fim <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Explicitamente monarquista, atacava aRepública e chegou a aclamar Impera<strong>do</strong>r um fazendeiroabasta<strong>do</strong> e analfabeto da região. Nos combates que se seguiramao início da guerra iniciada em 1912, José Maria émorto, mas seus adeptos seguem na luta, agora em Taquaraçu(1913). O movimento só foi completamente debela<strong>do</strong>em 1915 e o julgamento das centenas de prisioneiros atravessouo ano de 1916.Múltiplas interpretações surgiram sobre a chamadaGuerra <strong>do</strong> Contesta<strong>do</strong>. Enquanto muitos enfatizam o carátermessiânico antimonarquista já recorrente na região,outras correntes historiográficas colocam luz em aspectosdistintos da Guerra <strong>do</strong> Contesta<strong>do</strong>, alguns enfatizan<strong>do</strong>,como fez Rui Facó no caso de Canu<strong>do</strong>s, o aspecto da lutapela terra. Assim, ganham destaque as desapropriaçõesfeitas pela atuação de empresas estrangeiras recém-estabelecidasna região: A Brazil Railway que expulsava osmora<strong>do</strong>res da área de 15 km e cada la<strong>do</strong> da ferrovia e suasubsidiária a Southern Brazil Lumber and Colonization quese instalou na fronteira e deu continuidade ao esvaziamentodas propriedades locais favorecen<strong>do</strong> o ajuntamentomessiânico de Irani para onde acorriam os despossuí<strong>do</strong>s.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>290A repressão militar ao Contesta<strong>do</strong> foi feroz, mas evidencioumuitos <strong>do</strong>s problemas que o exército precisariaenfrentar nos anos seguintes. A eclosão concomitante daGrande Guerra faz <strong>do</strong>s quartéis um campo de batalha políticoque eclodiria nos anos de 1920 no chama<strong>do</strong> Tenentismo,como veremos.A modernização das Forças Armadas e a Revoltada ArmadaAs discussões sobre reforma das Forças Armadasganhavam destaque em momentos nos quais os militaresse viram questiona<strong>do</strong>s em sua capacidade militar strictosensu e se viram as voltas com problemas estruturais demobilização. No caso das forças terrestres isso ocorreriaem Canu<strong>do</strong>s (1896-7), e mais tarde, novamente durantea Guerra <strong>do</strong> Contesta<strong>do</strong> (1912-15) episódios nos quais osgraves problemas <strong>do</strong> Exército ficaram patentes. No casoda Marinha, as preocupações parecem ter aflora<strong>do</strong> maissignificativamente a partir <strong>do</strong> caso Panther (1905). Com aPrimeira Guerra Mundial a temática militar ganhou fôlegoainda maior, e a necessidade de reorganização e reaparelhamentodas Forças Armadas, que já era óbvia, tornou-seurgente.Duas alternativas possíveis de modernização dasForças Armadas brasileiras competiram entre si na décadade 1910. A primeira, que McCann chamaria “horizontal”parece ter si<strong>do</strong> ideia <strong>do</strong> Barão <strong>do</strong> Rio Branco e se consubstancioucom o envio, entre 1906 e 1912 <strong>do</strong>s cadetesmelhor coloca<strong>do</strong>s no curso de formação da Escola Militarà Alemanha 215 . Na estrutura meritocrática <strong>do</strong> Exército,estes oficiais com dupla formação (brasileira e alemã) aovoltarem, gozavam de enorme respeito entre seus pares eestavam em posição de disseminar horizontalmente osaprendiza<strong>do</strong>s que tinham obti<strong>do</strong> na Europa. Foram chama<strong>do</strong>sde “jovens turcos” em referência aos colegas revolucionáriosotomanos que também tinham si<strong>do</strong> treina<strong>do</strong>spelos alemães anos antes.Os jovens turcos são contemporâneos das propostasde modernização da marinha, cuja consequência maisespetacular foi a Revolta da Armada de 1910, quan<strong>do</strong> osnavios mais poderosos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, sob o coman<strong>do</strong> de seusmarinheiros, sequestraram a capital e deram ordens no governoque havia os encomenda<strong>do</strong>.Na mesma época e logo após o episódio da canhoneiraPanther (1905), o Barão <strong>do</strong> Rio Branco sugeriu aoAlmirante Alexandrino, Ministro da Marinha a encomendade navios de guerra modernos aos estaleiros ingleses.215 O Ministro da Guerra Hermes da Fonseca foi ele próprio à Alemanha em 1909,em missão militar enviada durante o governo Nilo Peçanha e articulada peloBarão, entusiasta durante toda a vida das coisas marciais, e conhece<strong>do</strong>r inloco da excelência das forças armadas prussianas por conta da sua estada emBerlim entre 1900 e 1902.


291A Primeira República(1889-1930)A Lei de Meios aprovada pelo Parlamento tinha comoprotagonistas os três poderosíssimos encouraça<strong>do</strong>s queeram o ápice da tecnologia naval da época. Encomenda<strong>do</strong>sem 1906, os <strong>do</strong>is primeiros foram entregues em1910, tornan<strong>do</strong> o <strong>Brasil</strong>, por um breve momento, uma dasmaiores potências navais <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Jornais ingleses eamericanos temeram que o <strong>Brasil</strong> pudesse vender essesnavios – O Minas Gerais e o São Paulo – para o Japão oua Alemanha 216 .Navios de 19 mil toneladas com uma tripulaçãode centenas de homens causaram uma revolução navida cotidiana <strong>do</strong>s marinheiros. Verdadeiras indústriasflutuantes, tinham necessidade de poucos oficiais quelhe comandassem e este elemento tecnológico-modernizanteé pouco destaca<strong>do</strong> nos estu<strong>do</strong>s que buscamas causas da chamada Revolta da Chibata. Telegrafistas,opera<strong>do</strong>res de rádio, mecânicos, eletricistas eram216 Mais ainda temeram os argentinos que viam nestes Leviatãs, conforme eramchama<strong>do</strong>s a época uma ameaça ao equilíbrio naval da região. “Bastaria um só<strong>do</strong>s encouraça<strong>do</strong>s encomenda<strong>do</strong>s pelo <strong>Brasil</strong> para destruir toda a esquadraargentina e chilena” escreveu Montes Oca, chanceler argentino antes desugerir ao <strong>Brasil</strong> que ficasse com apenas um deles, ceden<strong>do</strong> os outros <strong>do</strong>is aoChile e a Argentina, sugestão que o Barão considerou “absurda”. Zeballos quesucedeu Montes Oca no governo Alcorta cairia em 1909 quan<strong>do</strong> um planoseu para bloqueio <strong>do</strong> Rio de Janeiro veio à público. A intenção “tresloucada”era forçar o <strong>Brasil</strong> a desistir <strong>do</strong>s navios. Afinal chegou-se a um acor<strong>do</strong> e o<strong>Brasil</strong> desistiu <strong>do</strong> maior, o Rio de Janeiro, ainda em construção, que cedeupara a Turquia, mas foi confisca<strong>do</strong> pelos ingleses em 1914, quan<strong>do</strong> daeclosão da guerra.técnicos que naturalmente tinham perfil muito distintoda marujada que chegava à Marinha pelos meios brutaisde alistamento que se tinha à época. A modernizaçãonão havia chega<strong>do</strong> à política de pessoal, e os castigoscorporais permaneciam 217 .Sen<strong>do</strong> planejada há cerca de <strong>do</strong>is anos a rebeliãofoi antecipada pela comoção devi<strong>do</strong> à punição exageradade 250 chibatadas dada a um marinheiro, que havia feri<strong>do</strong>com navalhadas um companheiro 218 . O comandante <strong>do</strong>navio é morto e oficiais e sargentos são feri<strong>do</strong>s. A rebeliãose espalha para os demais navios que ameaçam bombardeara capital federal se, além da anistia, não tivesse fim oscastigos corporais. A rebelião durou quatro dias no final <strong>do</strong>mês de novembro, maculava a festa patriótica e laudatóriacom que o Minas Gerais foi sauda<strong>do</strong> em sua chegada, no17 de Abril anterior 219 .O governo cedeu as exigências <strong>do</strong>s revoltosospor absoluta falta de alternativa. O sequestro funcionara.O navio mais poderoso <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> ameaçava transformar217 Esta interpretação é baseada na frase de Gilberto Freyre, que no livro Ordeme Progresso descreve a Revolta da Chibata como uma “versão em menorescala <strong>do</strong> grande drama brasileiro”, o desenvolvimento tecnológico à custa<strong>do</strong> desenvolvimento humano.218 Tratava-se de vingança o marinheiro Marcelino de Menezes contra o colegaque o havia surpreendi<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> subia a bor<strong>do</strong> com cachaça.219 Tinha i<strong>do</strong> antes aos EUA escoltar o navio americano que trazia o corpo <strong>do</strong>Primeiro embaixa<strong>do</strong>r brasileiro, Joaquim Nabuco.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>292a capital em destroços. Metade nos marinheiros da capital(2379 de um total de cerca de cinco mil marinheiros lota<strong>do</strong>sno Rio de Janeiro) já haviam aderi<strong>do</strong>. A estratégia dedeixar os navios sem comida ou carvão fracassara. A causaera considerada justa por to<strong>do</strong>s e, os olhos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> estavamsobre a Baía de Guanabara. Hermes da Fonseca temiaque a rebelião se espalhasse para outros setores, inclusive<strong>do</strong> exército nacional.Uma comissão parlamentar visitou o Minas Gerais erecomen<strong>do</strong>u a anistia, que não foi cumprida. Quase imediatamenteapós a deposição das armas dezenas de marinheirossão presos sem justificativa, e muitos morremnas péssimas condições de encarceramento que foramsubmeti<strong>do</strong>s, ou são simplesmente expulsos da marinha.O governo que praticamente torcia por uma segundarebelião. Esta ocorreu dias depois na Ilha das Cobras edurou poucas horas. Foi o suficiente para que se decretasseesta<strong>do</strong> de sítio e se legitimassem os inquéritos e arepressão que se seguiu. A marinha entrava no século XXem seus equipamentos, mas ainda seguia firme no séculoXIX, tratan<strong>do</strong> os marinheiros, muitos <strong>do</strong>s quais ex-escravos,como se ainda vivessem em senzalas. João Candi<strong>do</strong>,líder da negociação da anistia, e “comandante” por quatrodias <strong>do</strong> Minas Gerais, expulso, virou canção contra aditadura militar, e ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> reabilita<strong>do</strong> e anistia<strong>do</strong> nogoverno Lula, ganhou estátua na praça XV de Novembro,estragan<strong>do</strong> os versos finais da música de Aldir Blanc.Enquanto isso no exército, a influência <strong>do</strong>s “jovensturcos” 220 vai se esvanecen<strong>do</strong>. O programa de intercâmbiose encerra em 1913. A morte <strong>do</strong> Barão (1912) e a crescenteinfluência <strong>do</strong>s paulistas em prol de uma Missão Francesa“de cima pra baixo” mina a continuidade da influência alemã.A alternativa ao modelo “horizontal” era justamente avinda de uma missão estrangeira que daria formação aosoficiais brasileiros de mo<strong>do</strong> “vertical”. Os jovens turcos aspiravampor uma “missão alemã”, enquanto que os políticospaulistas flertavam com a França 221 . Com a eclosão da PrimeiraGuerra Mundial, a discussão sobre a vinda de umamissão militar ao <strong>Brasil</strong> foi adiada.Essa segunda alternativa só seria implementada em1919, com o governo já claramente de volta nas mãos das220 Esse grupo fundaria em 1913 a Revista “Defesa Nacional” sobre temasmilitares, onde se discutia questões como o tiro de guerra, o alistamentoobrigatório – houve mesmo uma campanha nacional cujo garotopropagandafoi Olavo Bilac – entre outras. Contou com a contribuição deintelectuais <strong>do</strong> porte de um Alberto Torres e aju<strong>do</strong>u a espalhar a influênciade lideranças como Bethol<strong>do</strong> Klinger e Euclides Figueire<strong>do</strong>, pai <strong>do</strong> futuropresidente João Batista Figueire<strong>do</strong>.221 Os franceses já haviam envia<strong>do</strong> uma missão para formação ereaparelhamento da força pública <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> de São Paulo em 1906, o queexplica sua predileção pelos setores civis paulistas. A pressão francófila poruma missão militar francesa para o Exército Federal começou ainda nogoverno Hermes, a partir de 1913 quan<strong>do</strong> o Marechal buscou se aproximar<strong>do</strong> PRP. O Governo Federal sob Hermes interveio em muitos Esta<strong>do</strong>soposicionistas, mas deixou São Paulo – que apoiara Ruy Barbosa – em paz.Isso se deveu em parte por conta <strong>do</strong> prestígio de seu presidente RodriguesAlves, mas também devi<strong>do</strong> ao tamanho e ao preparo da força públicapaulista treinada então pelos franceses.


293A Primeira República(1889-1930)oligarquias tradicionais. O presidente Epitácio Pessoa nomeiapara Ministro da Guerra, João Pandiá Calógeras 222 . Erao primeiro civil a ocupar a pasta na República, e a inovaçãofoi polêmica e considerada por muitos um desrespeito aosmilitares. Trazia de volta a sombra <strong>do</strong>s casacas que geriamas coisas militares no império sem considerar os interesses<strong>do</strong>s quartéis. Calógeras gerenciou muitas crises com seuEsta<strong>do</strong>-Maior dada a insatisfação que gerou no Exército avinda da Missão Militar Francesa. O principal objetivo <strong>do</strong>sfranceses com o envio da missão era a venda privilegiadaao <strong>Brasil</strong> de armamentos e material bélico. Os oficiais brasileirosconsideravam duvi<strong>do</strong>sa a qualidade <strong>do</strong>s produtosfranceses, acostuma<strong>do</strong>s que estavam aos canhões Kruppe viam nisso manobra para o pagamento de polpudas comissõesaos civis que arranjaram o negócio, mais que o interessegenuíno de melhorias às forças armadas brasileiras.A resistência ao nome de Calógeras contribuía para dramatizaras tensões. Incomodava ainda, os numerosos privilégios,o choque cultural e, sobretu<strong>do</strong> o altíssimo salário<strong>do</strong>s oficiais franceses se compara<strong>do</strong>s aos precários sol<strong>do</strong>s<strong>do</strong>s brasileiros de mesma patente. Não é de se surpreender222 Calógeras tinha si<strong>do</strong> deputa<strong>do</strong> por Minas Gerais e ministro da Agriculturae Fazenda no governo anterior. Atuara como diplomata subordina<strong>do</strong> aEpitácio Pessoa na delegação brasileira na Conferência de Paz de Paris.Era também historia<strong>do</strong>r, com estu<strong>do</strong>s tão diversos quanto a presença <strong>do</strong>sjesuítas no <strong>Brasil</strong> e a história da política exterior <strong>do</strong> Império.que na revolta de 1922, canhões franceses tenham si<strong>do</strong> joga<strong>do</strong>sno mar.Tenentismo – <strong>História</strong> e HistoriografiaO tenentismo <strong>do</strong>s anos de 1920 é, enquanto movimentohistórico-político, um divisor de águas. Mas éigualmente uma ideologia poderosa cobiçada como antecessorade diversos movimentos posteriores. Sua primeirainterpretação sociológica, quan<strong>do</strong> ainda <strong>do</strong> calor <strong>do</strong>s fatose <strong>do</strong>s atores ainda longe da coxia, foi a de Virgínio SantaRosa, que em O Senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> Tenentismo vinculou-o às camadasmédias urbanas de onde provinham a maior parte <strong>do</strong>sjovens oficiais revolucionários engaja<strong>do</strong>s da década de 20.Criou escola. Nelson Werneck Sodré, Hélio Jaguaribe, GuerreiroRamos, Wanderley Guilherme <strong>do</strong>s Santos e Edgar Caroneseguiram o caminho de Santa Rosa. Esta visão é aindamuito forte, afinal a vinculação tenentes-classe média existee torna-se quase automática na década de 1930. Após o3 de outubro o tenentismo com sua herança polissêmicaserá a principal fonte político-ideológica das classes médiasmilitantes nos parti<strong>do</strong>s de massa que sucederam osparti<strong>do</strong>s oligárquicos da Primeira República.Tal corrente, não deixa, no entanto, de pecar poruma certa teleologia. A identificação <strong>do</strong> tenentismo coma classe média é uma conquista que ocorreu apenas depoisde muito sangue ter si<strong>do</strong> derrama<strong>do</strong>. No calor da fase


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>294heroica <strong>do</strong>s anos 20, o tenentismo não tinha grande apoio<strong>do</strong>s setores médios urbanos 223 , o que explica o fracassoretumbante de to<strong>do</strong>s os muitos levantes contra o poderinstituí<strong>do</strong> que organizaram. Os revoltosos de 1922 foramjulga<strong>do</strong>s e condena<strong>do</strong>s não apenas pelos tribunais, maspela opinião pública como “perigosos revolucionários”com o intento de mudar a situação política pela força dasarmas, às margens da constituição 224 .Outro caminho para entender o tenentismo épercebê-lo, como fez José Murilo de Carvalho em textoclássico de 1977 225 , como parte integrante da história institucional<strong>do</strong> Exército brasileiro. Como uma instituição totalizante,detentora de agenda e história própria que vinha223 Esse debate é trava<strong>do</strong> na década de 1980 entre Maria Cecília Spina Forjaze José Augusto Drummond. A primeira autora, ainda que reconhecen<strong>do</strong>a centralidade <strong>do</strong> elemento corporativo, chama atenção para os vínculosque os jovens tenentes estabeleceram com setores da sociedade civil e queinclusive dificultaram a adesão das patentes mais altas. Já Drummond dizque a adesão ao tenentismo por parte da sociedade não foi nem “tão grande,nem tão sistemática” tratan<strong>do</strong>-se o tenentismo de movimento políticodentro <strong>do</strong> Exército que fala para o próprio exército, reivindican<strong>do</strong> falar emnome <strong>do</strong> povo. Ao contrário <strong>do</strong> jacobinismo florianista, o tenentismo nãoconseguiu grande adesão popular nem <strong>do</strong> alto oficialato que lhe moveuintensa repressão.224 A base da coluna Prestes que percorreu o <strong>Brasil</strong> era de solda<strong>do</strong>s oriun<strong>do</strong>s <strong>do</strong>sestratos populares, e não das camadas médias. O levante de São Paulo foi oque melhor parece ter si<strong>do</strong> capaz de galvanizar apoio civil, justamente nacidade com a classe média mais dinâmica <strong>do</strong> país.225 Publica<strong>do</strong> no volume republicano, organiza<strong>do</strong> por Boris Fausto, da <strong>História</strong>Geral da Civilização <strong>Brasil</strong>eira, “Os militares na Primeira República: o poderdesestabiliza<strong>do</strong>r”.se profissionalizan<strong>do</strong> ao longo da República 226 . Com meiosautônomos de socialização política e formação de quadros,o Exército seria um estamento independente. O senti<strong>do</strong> <strong>do</strong>tenentismo seria institucional, o que libertaria a ação <strong>do</strong>stenentes <strong>do</strong>s setores médio-urbanos, da onde provinhamem maior parte. Não são meros porta-vozes de uma luta declasses em curso, mas agentes históricos autointeressa<strong>do</strong>s.Mais recentemente Frank D. McCann, em seu completíssimoOs solda<strong>do</strong>s da Pátria contribui ainda mais para essahistória militar que lança luz sobre os antecedentes institucionaisque nos ajudam a entender o tenentismo.Na tipologia weberiana de José Murilo de Carvalho, osanos de 1920 e o início <strong>do</strong>s anos de 1930, foram o ápice <strong>do</strong>embate entre duas concepções políticas sobre o papel <strong>do</strong>solda<strong>do</strong>. Ao solda<strong>do</strong>-profissional, fiel cumpri<strong>do</strong>r de ordens,sem questionar suas motivações e obediente da hierarquia,se contrapôs uma minoria crescente e barulhenta <strong>do</strong>s quese consideravam solda<strong>do</strong>s-cidadãos, cujo dever era paracom a pátria, não com o establishment. Tinham a obrigaçãode agir, ainda que revolucionariamente contra um regimeque consideravam lesivo à pátria. Eram os tenentes.226 Este autor enfatiza o recrutamento <strong>do</strong> oficialato por sorteio universal,modelo instituí<strong>do</strong> em 1916 que minimizou o caráter de hereditariedademilitar e ventilou o exército para presença de outros setores sociais, o fim daguarda nacional, a atuação <strong>do</strong>s jovens turcos (1906-12) e o caráter tecnicistada formação <strong>do</strong> oficialato marcadamente presente na escola militar a partirda vinda da Missão Francesa em 1919.


295A Primeira República(1889-1930)Os tenentes foram forma<strong>do</strong>s em uma escola militarfortemente politizada – que como vimos, chegou a ser fechada– onde até o advento da reforma da Missão Francesaestudava-se filosofia, sociologia e propagava-se uma visãohumanista que arejava mentalmente os cadetes e favoreciao surgimento de questionamentos sobre a situação social,favorecen<strong>do</strong> uma visão intervencionista sobre a sociedade.Tal concepção intervencionista já havia marca<strong>do</strong> o exércitoRepublicano das décadas de 1880 e 1890 e o Exército salvacionistada época de Hermes da Fonseca, mas as preocupaçõesinstitucionais e a necessidade de aparelhamentoe reforma da corporação, se somaram, e eventualmentesuperaram os questionamentos políticos.Outro elemento destaca<strong>do</strong> por José Murilo de Carvalho,que contribuiu para o tenentismo, foi a estagnaçãoda carreira militar na patente de tenente. As promoçõesa partir de capitão eram mais céleres, mas se pagava pedágiolongo no baixo oficialato, justamente onde maisadesões encontrou o pensamento revolucionário <strong>do</strong>solda<strong>do</strong>-cidadão, razão inclusiva para que se batizasse omovimento como batiza<strong>do</strong> foi.Boris Fausto nos lembra ainda que os tenentes nãotinham uma agenda revolucionária inédita. Tu<strong>do</strong> o quedefendiam – moralização da coisa pública, intervenção <strong>do</strong>Esta<strong>do</strong> na economia, voto secreto, justiça eleitoral, fortalecimento<strong>do</strong> Exército, centralização política entre outros– eram bandeiras velhas. Já tinham si<strong>do</strong> enunciadas porbocas <strong>do</strong> establishment como o Barão <strong>do</strong> Rio Branco, RuyBarbosa, Olavo Bilac, ou no máximo dissidentes modera<strong>do</strong>scomo Assis <strong>Brasil</strong> (defendia a justiça eleitoral) e intelectuaisnão revolucionários como Alberto Torres. O que erainédito no tenentismo era a sua forma: a revolução armada,incomum até então, exceto na política polarizada <strong>do</strong>Rio Grande <strong>do</strong> Sul. Até os anos de 1920, quem se revoltavaera o povo ignorante, a massa. Os militares os reprimiam.O perío<strong>do</strong> de 1922-27 traria essa grande novidade.Nesta fase heroica e de quase nenhuma conquistatrês episódios se destacam. A Revolta <strong>do</strong>s Dezoito <strong>do</strong> Forte,marco originário da mitologia <strong>do</strong>s tenentes, o levanterevolucionário de São Paulo em 1924 e a coluna MiguelCosta-Luís Carlos Prestes. Em to<strong>do</strong>s os casos o alvo individualera o presidente Artur Bernardes, considera<strong>do</strong> inimigonúmero um <strong>do</strong> tenentismo, supostamente por terofendi<strong>do</strong> o presidente <strong>do</strong> Clube Militar, Mal. Hermes daFonseca, ex-presidente da República, em cartas apócrifasque lhe foram atribuídas no contexto da turbulenta eleiçãode 1922, quan<strong>do</strong> Bernardes candidato da situação, venceuo candidato das camadas médias, próximo <strong>do</strong>s militares,Nilo Peçanha 227 .227 Peçanha teria, segun<strong>do</strong> Boris Fausto, inaugura<strong>do</strong> um pré-populismo, saí<strong>do</strong>com sua “Reação Republicana” em campanhas e comícios pelas grandescidades <strong>do</strong> país e busca<strong>do</strong> mobilizar as camadas médias urbanas numaestratégia que funcionou na argentina seis anos antes na eleição de Hipólito


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>296No primeiro episódio, ao final <strong>do</strong> governo EpitácioPessoa, entre 5 e 8 de julho eclodiram levantes em váriasguarnições <strong>do</strong> Rio de Janeiro (mas também <strong>do</strong> Mato Grosso),notoriamente em Realengo e Copacabana, onde amaior parte <strong>do</strong>s oficiais foi morta, na rua da praia, ao recusara rendição. As exceções são Eduar<strong>do</strong> Gomes e SiqueiraCampos, figuras essenciais da história posterior <strong>do</strong> tenentismoe <strong>do</strong> país. O objetivo declara<strong>do</strong> era impedir a possede Artur Bernardes.Com a inviabilidade <strong>do</strong> levante paulista, Isi<strong>do</strong>ro DiasLopes e Miguel Costa seguem para se encontrar com LuisCarlos Prestes no Sul <strong>do</strong> país e iniciam uma marcha quepercorreu 25 mil quilômetros com o objetivo de levantar anação para a revolução. Após se decidirem pela inviabilidadede um ataque ao Rio de Janeiro para a tomada imediata<strong>do</strong> poder – proposta da facção paulista – a coluna seguiuYrigojen pon<strong>do</strong> fim ao regime das oligarquias. Mas na Argentina, Yrigojentinha três poderosas vantagens que Nilo Peçanha não possuía. Em primeirolugar a classe média de Buenos Aires, e das demais cidades argentinas era jádemograficamente muito mais representativa que a brasileira. A Argentinaera o único país das Américas, excluí<strong>do</strong> os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s que poderia serconsidera<strong>do</strong> um país de classe média. Em segun<strong>do</strong> lugar essa classe médiahavia consegui<strong>do</strong> uma reforma política essencial que havia altera<strong>do</strong> alegislação eleitoral favorável às oligarquias, a Lei Sanz Peña de 1912, marcona história <strong>do</strong> país. Em terceiro e último lugar, e talvez o mais importante,essa classe média era, e se sentia representada por um parti<strong>do</strong> nacionalatuante, a UCR (União Cívica Radical) antigo e revolucionário, cujas origenshistóricas remontavam ao século XIX, a Bartolomeu Mitre e a Revolução <strong>do</strong>Parque de 1890, contra o governo de Miguel Celman.para o nordeste aonde chegou a encontrar abrigo e apoioem lideranças civis no Maranhão e na Bahia, e inclusive cercara cidade de Teresina.Evitan<strong>do</strong> confrontos diretos com as forças legalistase a<strong>do</strong>tan<strong>do</strong> táticas de guerrilha, a coluna se manteveinvicta, ainda que tenha si<strong>do</strong> fortemente fustigada por coronéis,líderes de milícias privadas no Nordeste que caçavama coluna cujos solda<strong>do</strong>s tinham a cabeça a prêmio,sen<strong>do</strong> retrata<strong>do</strong>s pela propaganda oficial como “perigososrevolucionários, estupra<strong>do</strong>res e bandi<strong>do</strong>s”. Com o final <strong>do</strong>governo Bernardes e o fracasso das últimas tentativas delevantes no Rio Grande <strong>do</strong> Sul em aliança com Assis <strong>Brasil</strong>e os liberais, os líderes da coluna optaram pelo exílio e atravessarama fronteira com a Bolívia, encerran<strong>do</strong> o tenentismoheroico e inician<strong>do</strong> a fase de cooptação.A partir daí o tenentismo vai se tornan<strong>do</strong> a ideologiaoficial de uma classe média apenas parcialmente contempladano programa da Aliança Liberal e da revoluçãoque se seguiu. Com a formação <strong>do</strong> Clube 3 de Outubro e,ten<strong>do</strong> diversos representantes no ministério <strong>do</strong> GovernoProvisório de Vargas, os tenentes se tornam a força mais revolucionária<strong>do</strong> movimento. Serão o contrapeso radical àsoligarquias dissidentes que buscavam uma restauração daordem constitucional anterior com reformas moderadas.Defensores da Revolução, e partidários de transformaçõesprofundas que encerrassem de vez o <strong>do</strong>mínio oligárquico,os tenentes, revolucionários heroicos da década de 1920,


297A Primeira República(1889-1930)se veriam, nos inícios <strong>do</strong>s anos de 1930, na posição dejacobinos da República.5.3 O processo econômico da Primeira RepúblicaSituação econômica no final <strong>do</strong> império.Metalistas vs. Papelistas. O Encilhamento.O Funding Loan. O Convênio de Taubaté e a questão <strong>do</strong>Café. O Ciclo da Borracha. O processo de Industrialização.As missões econômicas. Balanço geral.No avesso <strong>do</strong> que o senso comum tenderia acrer, a crise da monarquia brasileira foi uma crise política,desvinculada de uma crise econômica. A situação da economiaia bem. A incipiente indústria nacional se desenvolveraao longo da década de 1880, e ainda que concentradano sudeste, sobretu<strong>do</strong> no setor têxtil, não era desprezível.O último gabinete da monarquia, cujo chefe era Visconde deOuro Preto, lançou um programa de desmonte <strong>do</strong>s conhecidíssimosentraves à iniciativa privada e estímulo econômicocom concessão de créditos. Chamou seu tími<strong>do</strong> pacote de“Inutilização da República”, mas já era tarde demais.Nos <strong>do</strong>is últimos anos da monarquia, após a aboliçãoforam concedi<strong>do</strong>s títulos de nobreza em número semprecedente, principalmente para os cafeicultores <strong>do</strong> Vale<strong>do</strong> Paraíba fluminense atingi<strong>do</strong>s pela Lei Áurea. Era umacompensação honorífica, um “suborno aristocrático” parao que tinha si<strong>do</strong> percebi<strong>do</strong> como uma expropriação. Nocaso <strong>do</strong> Oeste Paulista isso de nada valeria. Já eram, em suamaioria republicanos, e o tíbio aceno creditício de Ouro


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>298Preto, embasa<strong>do</strong> de mo<strong>do</strong> oportunista pelas excelentescondições internacionais 228 não seria suficiente para impediro movimento que culminou no 15 de Novembro.Em larga medida foram os primeiros governos republicanosque tiveram que dar conta da modernizaçãojurídico-institucional necessária para o desenvolvimentoeconômico e das consequências advindas da abolição daescravidão, da necessidade de crédito, e <strong>do</strong> alargamentoda base monetária de uma economia em transição para otrabalho livre. Fizeram isso na medida de suas limitações,sen<strong>do</strong> profundamente critica<strong>do</strong>s pelos “metalistas” conserva<strong>do</strong>resque a<strong>do</strong>tavam uma postura orto<strong>do</strong>xa de defesa<strong>do</strong> padrão-ouro e <strong>do</strong> valor de uma moeda nacional queguardasse alguma paridade digna com a libra esterlina.Sua desvalorização não poderia ser tolerada.O que hoje não passa de uma questão históricajá que nossa moeda é completamente fiduciária era, àépoca, a maior das controvérsias. O padrão-ouro era umbastião. Servia para estabelecer que a moeda nacionalguardava correspondência com o valor em metal armazena<strong>do</strong>pelo Esta<strong>do</strong>. Afastar-se <strong>do</strong> padrão-ouro equivalia, paraseus defensores, a confiscar o poder de compra <strong>do</strong> cidadão,coisa que era feita pelos Esta<strong>do</strong>s Absolutistas diminuin<strong>do</strong>228 O mil-réis tinha atingi<strong>do</strong> a paridade <strong>do</strong> decreto de 1846 que estabelecia seuvalor pelo padrão-ouro, ocorrência singular, e, claramente efêmera.a quantidade de metal presente nas moedas físicas. A existênciade papel-moeda precisava, portanto, ter igual correspondênciaresgatável. A força <strong>do</strong> argumento metalista residia,portanto, nas bases liberais <strong>do</strong> próprio Esta<strong>do</strong> e na defesacontra os mecanismos de opressão que roubavam o poderde compra <strong>do</strong>s cidadãos. Defender a moeda era defendero povo. Essas ressalvas teóricas são importantes para quese compreenda como, durante quase toda a Primeira República,lideranças orto<strong>do</strong>xas como Campos Salles foramcapazes de angariar significativo apoio político para impormedidas deflacionárias mesmo contra os poderosos interessesorganiza<strong>do</strong>s da cafeicultura.Mas não foi essa a tônica que prevaleceu nos anosiniciais da República. E a experimentação “papelista” deRui Barbosa, que passou à história com o nome de “Encilhamento”,aproveitou o contexto favorável da economiainternacional para dar ao mesmo tempo um choque decrédito que estimulasse o capitalismo nacional e alargassea base monetária. Isso foi feito por meio da concessão <strong>do</strong>direito de emissão para grandes bancos regionalmente estabeleci<strong>do</strong>s,que foram autoriza<strong>do</strong>s a participar <strong>do</strong> capitaldas empresas, o que era uma novidade legal.Apesar <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s positivos, principalmente osurgimento de um grande número de firmas viáveis, o quea historiografia enfatiza <strong>do</strong> encilhamento foi sua “herançamaldita” de alta inflacionária, especulação desenfreada e lega<strong>do</strong>de instabilidade econômica <strong>do</strong>s bancos que tiveram


299A Primeira República(1889-1930)que ser paulatinamente resgata<strong>do</strong>s pelos governos seguintes.A ênfase na avaliação negativa <strong>do</strong> encilhamentose deve a influência historiográfica <strong>do</strong>s observa<strong>do</strong>res monarquistasque conseguiram praticamente monopolizar o“balanço” <strong>do</strong> encilhamento, inclusive atribuin<strong>do</strong>-lhe estenome infame.O termo “encilhamento”’ se refere ao momento em queos cavalos eram prepara<strong>do</strong>s para o páreo, e as combinaçõeseram feitas, e serviu de título para o romance à clefescrito originalmente sob o pseudônimo “Heitor Malheiros”,na forma de um folhetim em setenta capítulosa partir de fevereiro de 1893 pelo Visconde de Taunay,destaca<strong>do</strong> monarquista, que teve imensa e dura<strong>do</strong>urainfluência sobre a historiografia. Taunay retratou em coresespetaculares as operações abusivas na bolsa comorepresentativas de uma nova ordem na qual, conformelúcida observação de José Murilo de Carvalho, a Repúblicateria trazi<strong>do</strong> “uma vitória <strong>do</strong> espírito <strong>do</strong> capitalismodesacompanha<strong>do</strong> da ética protestante” (Carvalho, 1988,pp. 26-27; Franco & Correia <strong>do</strong> Lago, p. 181).Os monarquistas identificavam naturalmente aRepública à corrupção e à imoralidade, e a impressão dedesregramento deixada pelas medidas de Rui Barbosa favoreciamesse quadro.O colapso <strong>do</strong> encilhamento foi, em larga medida,oriun<strong>do</strong> de um quadro sistêmico restritivo por conta <strong>do</strong>sproblemas <strong>do</strong> Banco inglês Barings em operações de riscona Argentina. A situação de exposição provocou uma espéciede minicalamidade coletiva no sistema bancárioEuropeu 229 e, naturalmente, atingiu por contágio o <strong>Brasil</strong>,vitima<strong>do</strong> pelo repatriamento de investimentos e fuga decapital ante a crise de credibilidade da região sul-americana.A crise cambial que se seguiu catalisa o débâcle das medidasiniciadas por Rui Barbosa, tornan<strong>do</strong> difícil afirmar se ocolapso foi motiva<strong>do</strong> majoritariamente por razões internasou externas.Para dar conta da crise provocada pelo Encilhamentoo governo Floriano e seus ministros da Fazenda,primeiro Rodrigues Alves e depois Serzedelo Correa a<strong>do</strong>tarammedidas conserva<strong>do</strong>ras para salvar o que podiamde ativos positivos <strong>do</strong>s bancos recorren<strong>do</strong> à encampaçãoparcial destas instituições financeiras mediante a fusão<strong>do</strong>s <strong>do</strong>is principais bancos emissores, o Banco <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> e oBanco da República <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> (Breub),o que serviu para adiar a liquidação destes bancos e tornaro governo corresponsável pela sua administração. Era ummo<strong>do</strong> de salvar as empresas ainda consideradas “viáveis”que cujos bancos eram acionistas.Mas o quadro de instabilidade política grave porconta das rebeliões da Armada e Federalistas exigiu oapoio <strong>do</strong>s cafeicultores <strong>do</strong> PRP hegemônicos no Congresso229 Assim como o romance de Heitor Malheiros, a literatura inglesafrequentemente romantiza o episódio <strong>do</strong> Barings de 1891. É o caso <strong>do</strong>sexcelentes romances Uma fortuna Perigosa de Ken Follett e Stone’s Fall de IanPears, este último um must read.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>300Nacional – em articulação para criar o PRF (Parti<strong>do</strong> RepublicanoFederal) resistente à orto<strong>do</strong>xia <strong>do</strong> MinistroRodrigues Alves, afinal substituí<strong>do</strong> – cujo preço foram medidasde proteção aduaneira e a desvalorização cambial,além de medidas de ampliação <strong>do</strong> crédito para a agricultura.O impacto disso na alta inflacionária foi significativo,já que muitos produtos da cesta básica – azeite,por exemplo – eram importa<strong>do</strong>s e cota<strong>do</strong>s em libra.A inflação chegou a 20% ao ano, pela primeira vez desdea Guerra <strong>do</strong> Paraguai.O que se percebe é uma sucessão de hetero<strong>do</strong>xiasintercaladas com orto<strong>do</strong>xias. A República vai fazen<strong>do</strong> experimentaçõesna medida de suas limitações. Mesmometalistas convictos como Campos Salles não podemfazer muito no quadro político instável que se colocavanos anos iniciais de vigência <strong>do</strong> Regime. Já os papelistaseram critica<strong>do</strong>s pelo descalabro e irresponsabilidade queprovocavam na economia sob a justificativa de estimularo crescimento e/ou a cafeicultura. O governo Prudente deMorais foi uma tentativa de conjunção <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is elementos,o presidente representan<strong>do</strong> a oligarquia cafeeira enquantoo ministro, novamente Rodrigues Alves, representan<strong>do</strong>a orto<strong>do</strong>xia metalista 230 . A conjuntura seguia conturbada,230 Uma espécie de ajuste pré-Funding Loan foi conseguida neste governo. Umempréstimo de “tomada de fôlego” da ordem de 7,5 milhões de Libras e aconclusão da obra de saneamento e encampação <strong>do</strong>s principais bancos quemas essa conciliação foi fundamental para preparar o terrenopara o Funding Loan negocia<strong>do</strong> no último ano destegoverno, quan<strong>do</strong> a entropia já parecia ter arrefeci<strong>do</strong>. A negociaçãocontou com o beneplácito <strong>do</strong> próprio presidenteeleito Campos Sales que viajou a Londres e participou <strong>do</strong>acerto com os Rothschild.O governo Campos Sales é até hoje considera<strong>do</strong> ummomento de orto<strong>do</strong>xia radical. A imposição de um ajuste,em grande medida imposto pelos cre<strong>do</strong>res internacionaisse tornou um modelo. Empréstimo mediante contrapartidasde ajuste, que exigiam medidas que limitavam a soberaniafinanceira <strong>do</strong> país. O empréstimo inicial de 10 milhõesteria uma carência de 13 anos – mais cinquenta deprazo para pagar – em que seria fundamental para pagar asalvação <strong>do</strong>s bancos e os custos monumentais da operaçãode Canu<strong>do</strong>s.As garantias para o funding loan são um capítuloà parte. Inicialmente as ferrovias brasileiras serviriam degarantia para os juros, mas seriam resgatadas por títulosemiti<strong>do</strong>s com esse fim – rescision bonds. A moeda forte obtidana Alfândega <strong>do</strong> Rio de Janeiro foi hipotecada comopoderiam provocar o colapso de to<strong>do</strong> o sistema. Foram cassa<strong>do</strong>s seus direitosde emissão e resgate levan<strong>do</strong> para dentro <strong>do</strong> governo os ativos “sujos” dasempresas inviáveis das quais estes bancos eram sócios ou cre<strong>do</strong>res. Umaespécie de “socialização das perdas” necessárias para garantir a credibilidadede um sistema as vias <strong>do</strong> colapso.


301A Primeira República(1889-1930)garantia especial <strong>do</strong> empréstimo e motivou a separação<strong>do</strong> orçamento em duas moedas.O quadro da cafeicultura também não era bom, jáque a superprodução começava a ameaçar gravementeo preço, mas a solução para esse problema ainda estavaquase uma década adiante. As medidas <strong>do</strong> ministro JoaquimMurtinho foram altamente prejudiciais à cafeiculturae à agricultura em geral 231 , mas ainda assim, mesmo contrarian<strong>do</strong>interesses tão poderosos, o ministro seguiu emfrente, aumento os impostos (sobre os bens de consumo esobre o selo, origem <strong>do</strong> apeli<strong>do</strong> “Campos Selos”), cortan<strong>do</strong>ao mesmo tempo, drasticamente o orçamento das rubricasem libra, e mandan<strong>do</strong> queimar publicamente o papel--moeda correspondente aos resgates <strong>do</strong> ouro. Foi retira<strong>do</strong>de circulação cerca de 13% <strong>do</strong> total da moeda correnteprovocan<strong>do</strong> deflação. Mas o retorno para a economia foipífio e as críticas ao “metalismo” reinante se agravaramenormemente. O câmbio teve ligeira apreciação, mas issose deu muito mais por conta da recuperação das exportaçõese das entradas de capitais advindas da crescentelucratividade da borracha amazônica.231 Joaquim Murtinho, médico e darwinista, acreditava que o processoeconômico deveria selecionar os mais aptos que a superabundância decrédito favorecia a sobrevivência de empresas ineptas além de estimulara superprodução de café. Uma Lei de liquidações bancárias e a falênciade várias destas casas bancárias “inviáveis” é evidência <strong>do</strong> “darwinismoeconômico” de Murtinho.O radicalismo de Joaquim Murtinho havia enfraqueci<strong>do</strong>as ilusões de uma paridade clássica com a libra eas tentativas posteriores de a<strong>do</strong>ção <strong>do</strong> Padrão Ouro comAfonso Pena, e, quase vinte anos depois, com WashingtonLuiz seriam ainda mais pragmáticas. Reconhecia-se a impossibilidadede que se voltasse aos 27 pence de libra pormil-réis que havia provoca<strong>do</strong> euforia no gabinete OuroPreto de 1888.A partir da chegada ao catete <strong>do</strong> antigo ministroorto<strong>do</strong>xo metalista Rodrigues Alves as condições internacionaisse tornaram bem melhores e tem início a um cicloascendente nas condições sistêmicas das quais o <strong>Brasil</strong> seaproveitaria. Os investimentos <strong>do</strong> governo triplicaram nestequadriênio (de 3% para 9%) e chegariam a 24% <strong>do</strong> orçamentoem mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> governo Hermes (1912). A médiade crescimento econômico chegou a 4% no perío<strong>do</strong> entre1900 e 1913, demonstran<strong>do</strong> que apesar de uma economiarelativamente fechada, o <strong>Brasil</strong> respondia muito bem aosmomentos em que o contexto internacional era favorável,e muito mal quan<strong>do</strong> havia restrições sistêmicas, tal qual seriao caso a partir da eclosão da Grande Guerra. O contextofavorável inicia<strong>do</strong> no governo de Rodrigues Alves favoreceua conciliação sempre complexa entre os paulistas eos orto<strong>do</strong>xos, já que o presidente era ao mesmo tempo asduas coisas. Em um governo de impecável orto<strong>do</strong>xia, erapossível reconhecer que um câmbio acima de 12 pence delibra por mil-réis seria muito prejudicial a uma cafeicultura


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>302que viu sua produção triplicar em uma década. Era urgenteque se estabelecesse uma solução para o problema da superproduçãoe o encontro de Taubaté (1906) apresentariaa solução que se tornaria paradigma, apesar das alteraçõespara as futuras políticas de valorização que ocorreriam novamenteem 1914 e em 1922.O chama<strong>do</strong> Convênio de Taubaté só foi possível emuma conjuntura muito favorável de apreciação cambial decorrente<strong>do</strong>s investimentos externos e <strong>do</strong> aumento das divisascom exportação, principalmente da borracha. O mil-réischegou em 1905 a 17 pence de libra (apreciação de cercade 30% desde Campos Salles) e isso motivou a mobilização<strong>do</strong> setor econômico mais poderoso da República para “defendero preço <strong>do</strong> café” mesmo sem contar com o apoio <strong>do</strong>Catete que só viria em 1908, no governo Afonso Pena.De mo<strong>do</strong> resumi<strong>do</strong> pode-se dizer que os cafeicultoresde Minas, São Paulo e Rio de Janeiro conceberamum esquema de retenção <strong>do</strong>s estoques excedentes queseriam compra<strong>do</strong>s com recursos provenientes de empréstimosinternacionais ao Esta<strong>do</strong> de São Paulo. A garantiadada aos cre<strong>do</strong>res seria o próprio estoque reti<strong>do</strong>, da<strong>do</strong> queo governo Federal se recusou a fornecer outras garantias enão participou inicialmente <strong>do</strong> acerto. O quadro abundantede recursos creditícios internacionais permitia dispensara atuação de um Catete relutante. Ao longo <strong>do</strong> tempo estascaracterísticas tiveram alterações, mas resistia o objetivode “defender o preço”.Tais políticas mantiveram o preço estável e levaraminclusive a um ligeiro aumento a partir de 1909 crian<strong>do</strong>um perigoso para<strong>do</strong>xo, discuti<strong>do</strong> incessantemente pelahistoriografia econômica com destaque para os trabalhosde Celso Furta<strong>do</strong> e Roberto Simonsen. Para conter a superproduçãoera necessário desestimular o plantio, mas osincentivos <strong>do</strong> Convênio e das sucessivas políticas de valorizaçãonão faziam senão oferecer mais e mais estímulos àcafeicultura, produzin<strong>do</strong> mais e mais áreas de plantio até asituação explosiva de 1929.O Convênio é emblemático da encruzilhada que o<strong>Brasil</strong> vivia no advento <strong>do</strong> seu regime republicano. Suarecorrência simboliza as dificuldades de conciliar os interessesda política cambial com a política para a cafeicultura,em geral, opostas. Às vezes estes interesses opostosconviviam no mesmo personagem, como foi o caso <strong>do</strong>presidente Rodrigues Alves, mas a conjuntura sistêmicafavorável permitia uma solução de compromisso positivacomo foi o Convênio de Taubaté. Mas nem sempre foio caso. Em outros momentos o excessivo afã “papelista”para proteger o Café basea<strong>do</strong> em uma moeda crescentementefiduciária levava ao afastamento <strong>do</strong> Padrão Ouroe o crescente inflamar das críticas “metalistas” mineiroscomo foi o caso no governo Epitácio Pessoa. Em outrosmomentos, no entanto, se dava a vitória <strong>do</strong> “metalistas”,como durante a hegemonia mineira no governo ArturBernardes após o fracasso da Missão Montagu (1924) que


303A Primeira República(1889-1930)levou ao aban<strong>do</strong>no da participação federal na política devalorização <strong>do</strong> Café.Aos poucos o Esta<strong>do</strong> de São Paulo foi assumin<strong>do</strong>mais e mais a responsabilidade pela “defesa <strong>do</strong> café”. A partir<strong>do</strong> governo Epitácio Pessoa, com a criação da carteirade redesconto <strong>do</strong> Banco <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> cria-se um mecanismo<strong>do</strong>méstico de financiamento à política de defesa <strong>do</strong>s preçosque, claro incomodava os orto<strong>do</strong>xos, mas era perfeitopara os paulistas que assim podiam passar a controlardiretamente os estoques, até então na mão <strong>do</strong>s cre<strong>do</strong>resinternacionais. Evitava-se assim o risco de que ocorresse oque havia ocorri<strong>do</strong> em 1913, quan<strong>do</strong> o comitê da dívidaem Londres resolveu vender centenas de milhares de sacasde Café estoca<strong>do</strong> derruban<strong>do</strong> ainda mais o preço, que játinha si<strong>do</strong> atingi<strong>do</strong> meses antes pela ação antitruste movidanos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s contra a cafeicultura brasileira, eque levou ao embargo de 950 mil sacas de Café em NovaYork. Desenvolveram-se assim instituições que se tornaramfortemente identificadas com a “soberania” da cafeicultura.O Instituto Paulista <strong>do</strong> Café e o Banco <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> de SãoPaulo (Banespa), este último cria<strong>do</strong> após a saída <strong>do</strong> governofederal da política de “defesa permanente <strong>do</strong> café”ocorrida no governo Bernardes.Sintomas <strong>do</strong> fim <strong>do</strong> ciclo virtuoso da economia brasileiraapareceriam no conturbadíssimo governo Hermesda Fonseca contribuin<strong>do</strong> para sua impopularidade. Presidenteeleito à revelia <strong>do</strong>s paulistas viveria em oposição generalizadade setores varia<strong>do</strong>s. Ainda que contasse com oapoio <strong>do</strong> Exército Nacional em campanha “salvacionista” deintervenções nos Esta<strong>do</strong>s opositores, estas intervençõesem geral se davam em aliança com as oligarquias oposicionistasde então. As revoltas sucessivas de seu quadriêniocoincidiram com a crescente dificuldade de se conseguirempréstimos internacionais, agravada com queda pelametade <strong>do</strong> preço da borracha entre a posse <strong>do</strong> Marechal eo início da Guerra. Quan<strong>do</strong> o Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Pará ficou impossibilita<strong>do</strong>de honrar seus compromissos internacionais porconta da diminuição da entrada de divisas, isso provocoucontágio generaliza<strong>do</strong> <strong>do</strong>s papéis brasileiros. Com o inícioda Guerra a situação das finanças nacionais que já era ruimse agravou significativamente, como veremos.O <strong>Brasil</strong> era o maior produtor de café e de borracha<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Mas se o café vivia instabilidades cíclicas motivadaspela superprodução, a economia da borracha amazônicanão sobreviveria. Era muito mais recente e menosinstitucionalizada. Além disso, seus interesses não tinhama mesma representação no Governo Federal. Em face dasexternalidades hostis sucumbiria.O “ciclo da borracha” iniciou-se ao final <strong>do</strong> Impériograças à necessidade de matéria-prima para o processode vulcanização que havia si<strong>do</strong> descoberto nos EUA porWilliam Goodyear. Viveu seu ápice na primeira década <strong>do</strong>século e chegou mesmo a ameaçar o café em sua posiçãode primeiro produto da pauta. No entanto, diferentemente


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>304<strong>do</strong> café, o <strong>Brasil</strong> não foi capaz de impor seus preços internacionalmente.Muito pelo contrário, a borracha amazônicaseria justamente vítima da queda no preço.Apesar de estimular o crescimento e o enriquecimentodas capitais amazônicas, sobretu<strong>do</strong> Belém, o cicloda borracha era basea<strong>do</strong> na exploração <strong>do</strong> trabalho dedezenas de milhares de imigrantes nordestinos, principalmentecearenses, que em face das frequentes secas,minimizaram em levas sucessivas o vazio demográfico daregião com o aumento <strong>do</strong> preço <strong>do</strong> látex que enriqueceuos barões da borracha. Submeti<strong>do</strong>s às intempéries,as <strong>do</strong>enças amazônicas que desconheciam e às péssimascondições de trabalho de coleta, estes seringueiros <strong>do</strong>século passa<strong>do</strong> sucumbiam massivamente ao que ficouconheci<strong>do</strong> como “inferno verde”.O provável contraban<strong>do</strong> das mudas da hévea brasiliensis– a planta da seringueira – foi desacompanha<strong>do</strong> dequalquer medida governamental para incentivar a modernizaçãoda produção nacional, o que na Malásia e In<strong>do</strong>nésiaera feito em condições, se não melhores para os trabalha<strong>do</strong>rescoloniais, certamente mais produtivas. Isso teve oefeito de baratear imensamente o preço <strong>do</strong> látex no merca<strong>do</strong>,provocan<strong>do</strong> o declínio monumental da produçãobrasileira de borracha que só viveria novo despertar coma iminência da 2 a Guerra Mundial e a necessidade norte-americana de matéria-prima mais próxima e, estrategicamentemenos vulnerável aos efeitos da Guerra no Pacífico.A questão da industrialização também é objeto degrandes debates na historiografia <strong>do</strong> perío<strong>do</strong>. Como sóiacontece em economias em processo de industrializaçãoo carro chefe <strong>do</strong> processo foi a indústria têxtil que era amaior da América Latina. E no levantamento industrial de1907 representava ¼ da capacidade industrial <strong>do</strong> país 232 .Essa indústria estava fortemente concentrada no sudeste,e o crescimento de São Paulo, destino majoritário <strong>do</strong>simigrantes estrangeiros, foi muito maior que o <strong>do</strong> resto <strong>do</strong>país. Suzingan estima quase 10% ao ano o crescimento daindústria paulista no perío<strong>do</strong> que exportava principalmenteos têxteis para o resto <strong>do</strong> país, e durante a guerra, tambémpara a América Latina e África, embora infelizmente,apenas enquanto durou o conflito.É frequente na literatura a enunciação de que a Guerrade 1914-18 beneficiou a indústria nacional por conta deuma “substituição de importações”. Embora seja inegávelde que esta ocorreu, o gargalo de investimentos, bens decapital e matéria-prima importada dificultou sobremo<strong>do</strong> oulterior crescimento da indústria até que se firmasse a pazem Paris. O uso intenso da sucata, que motivou a abertu-232 Os demais setores representativos eram a indústria de alimentos processa<strong>do</strong>s(19%), calça<strong>do</strong>s e bebidas (8% cada). Produzia-se também papel, vidro,couros, sabão, fumo e fósforos com uso, sobretu<strong>do</strong> da energia a vapor (74%).A eletricidade era muito rara na indústria de 1907 (5%) atrás inclusive daenergia hidráulica (22%).


305A Primeira República(1889-1930)ra de muitas pequenas firmas de reparos e da capacidadeociosa das indústrias favoreceu o desenvolvimento industriale persistiu após a Guerra, mas não houve qualquer tipode coordenação ou proteção ao setor industrial, exceto emcasos muitos específicos e isola<strong>do</strong>s, como foi a indústria decimento, que vendia 1/3 de sua produção para o governo.Não havia um projeto industrializante em curso.É, portanto, controversa a tese da industrializaçãodecorrente da Guerra. Teria a Guerra realmente beneficia<strong>do</strong>a nação? O <strong>Brasil</strong> cresceu em media 3% durante osanos finais da guerra (1916-18), embora tenha ti<strong>do</strong> recessãoem 1915. O País foi incapaz de se beneficiar da transiçãoglobal para uma economia de guerra por não ser produtorde bens estratégicos ao conflito. Isso nos deixou aindarelega<strong>do</strong>s à margem <strong>do</strong>s fluxos de bens de capital europeus,favorecen<strong>do</strong> o estabelecimento definitivo <strong>do</strong>s EUA,já há muito nosso principal merca<strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r, comoexporta<strong>do</strong>r de capitais para o <strong>Brasil</strong>. A abertura <strong>do</strong> canal <strong>do</strong>Panamá favorecia a logística <strong>do</strong> comércio internacional interamericano,enquanto a infraestrutura deveras precária<strong>do</strong> transporte nacional dificultava a integração <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>interno e o ulterior desenvolvimento da indústria nacional.No plano das finanças feneceria no governo Hermes,também vítima <strong>do</strong>s “Canhões de Agosto”, o efêmero“padrão-ouro tropical” reestabeleci<strong>do</strong> alguns anos antescom a caixa de conversão (extinta). O governo teria ainda anecessidade de negociar um novo funding loan para adiaras amortizações previstas para o longínquo ano de 1927.Conseguiu o Marechal em seu último ano de governo mais15 milhões de libras esterlinas para fazer face aos compromissosfinanceiros venci<strong>do</strong>s ou na iminência de vencer.Um novo, e novamente efêmero, padrão-ouro improvisa<strong>do</strong>só seria tenta<strong>do</strong> no governo Washington Luís 233 , já naantessala <strong>do</strong> crash de 1929. No total, o <strong>Brasil</strong> não esteve nopadrão-ouro nem por dez anos ao longo <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> daPrimeira República.Nos anos finais da guerra o governo Venceslau Brásteve que fazer face a greves generalizadas contra o aumentosignificativo <strong>do</strong> custo de vida. Novos impostos sobre oconsumo soma<strong>do</strong>s a uma emissão descoberta de 300 milcontos de réis que pudesse oferecer um desafogo a estoquesde café que montavam a seis milhões de sacas levarama uma perda real <strong>do</strong> poder de compra com a desvalorizaçãoda moeda e o aumento <strong>do</strong>s importa<strong>do</strong>s essenciais, jáencareci<strong>do</strong>s pela Guerra. No caso específico da cafeicultura,a situação macroeconômica só não se tornou mais calamitosapor que a geada de 1918 reduziu drasticamente asafra prevista levan<strong>do</strong>, em menos de seis meses, o preço a<strong>do</strong>brar na bolsa de Nova York.233 Que criou a caixa de estabilização, sucessora da antiga caixa de conversão.Um de seus principais objetivos era evitar que a moeda ficasse por muitotempo abaixo da nova paridade de 1926 – que substituía a paridade de 1846 –de pouco menos de seis pence por mil-réis.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>306Elemento interessante que aparece no pós-guerrasão os “money <strong>do</strong>ctors” economistas pretensamente independentesque se tornam a chave <strong>do</strong> cofre <strong>do</strong>s cre<strong>do</strong>reseuropeus, em particular <strong>do</strong>s Rothschild. Estes empréstimoscondiciona<strong>do</strong>s exigiam em contrapartida reformas estruturaise institucionais, nas quais, não raro, aparecia a sugestãode criação de um banco central. Parte <strong>do</strong> institucionalismoproselitista <strong>do</strong> idealismo <strong>do</strong> pós-guerra, as sucessivas missõesque passaram pelo <strong>Brasil</strong> – Montagu (1924), D’Abernon(1929) e Niemeyer (1931) – estabeleceram um padrão deempréstimo condiciona<strong>do</strong> <strong>do</strong> qual não nos livraríamosmesmo depois da criação <strong>do</strong> FMI. Também se tornou paradigmático,desde 1924, a reação da opinião pública à estes“money <strong>do</strong>ctors”. Sempre vistas como humilhantes por boaparte imprensa, era como se o governo fosse um mau alunoque precisava de aula particular de reforço econômicose quisesse presente de natal.A missão liderada por Lord Edwin Samuel Montaguque chegou ao <strong>Brasil</strong> no Réveillon de 1923-4 tem o duvi<strong>do</strong>somérito de inaugurar esse padrão FMI avant la lettre. Foitão intensamente criticada e ridicularizada pela imprensaoposicionista que o governo Bernardes chegou a viverconstrangimentos com a presença destes economistasem quadro de instabilidade político-militar no auge <strong>do</strong> tenentismo.O nacionalismo <strong>do</strong>s tenentes aproveitou-se paratransformar Montagu no mastermind da submissão brasileiraaos interesses imperialistas internacionais, já que umadas principais propostas da missão era a venda de 50% <strong>do</strong>Banco <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> para o capital estrangeiro, medida com aqual o governo concor<strong>do</strong>u, mas os Rothschild não.O adiamento <strong>do</strong> empréstimo de 25 milhões de librasacabou inviabilizan<strong>do</strong>-o quan<strong>do</strong> o governo inglês proibiuindeterminadamente a saída de capitais <strong>do</strong> país, crian<strong>do</strong>um quadro sistêmico de restrição de divisas que piorou ascondições macroeconômicas <strong>do</strong> governo Artur Bernardes,lançan<strong>do</strong>-o em uma recessão. Os metalistas mineiros quehaviam se oposto ao esquema de favorecimento paulistada cafeicultura no governo Venceslau Brás agora controlavamo ministério da Fazenda e o Banco <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> e promoverammedidas de apreciação cambial que levaram àdeflação de 1926, após a recessão de 1924-5. Para um presidenteque governava há três anos em Esta<strong>do</strong> de Sítio, asituação não era das melhores.Como em to<strong>do</strong> o resto, o governo Washington Luísfoi de maior calmaria. Hoje sabemos que era “calmaria prétempestade”mas o quadro internacional se estabilizou e oscréditos se tornaram menos escassos. O presidente anunciouum “retorno triunfal” ao padrão-ouro e, não fosse asrecorrentes supersafras <strong>do</strong> café, tu<strong>do</strong> pareceria positivo. De1925 a 1929 a produção de café no <strong>Brasil</strong> <strong>do</strong>brou, e, é claro,que mesmo que não tivesse havi<strong>do</strong> uma crise em 1929, oimpacto no preço se faria sentir. O crescimento <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>consumi<strong>do</strong>r não se fazia na mesma proporção, e coma crise o Instituto Paulista <strong>do</strong> Café não teve recursos para


307A Primeira República(1889-1930)continuar retiran<strong>do</strong> café <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>, ainda mais sem oapoio <strong>do</strong> governo federal, que acreditava na necessidadede estimular a venda, e não a estocagem. A solução efetiva –e inflamada – para o problema da superprodução só viriaapós a revolução.O balanço geral generoso de Gustavo Franco e LuizAranha Correia <strong>do</strong> Lago é de que o <strong>Brasil</strong>, um país rural,muito pobre, imensamente desigual social e regionalmente,tateava em busca <strong>do</strong> melhor mo<strong>do</strong> de se inserir numaeconomia internacional liberal. Foram diversos modelos,mormente reativos, numa sucessão de tentativas e erros,que durou 41 anos. A leitura é generosa por que os mesmosautores concordam que o desempenho foi pífio mesmo secompara<strong>do</strong> aos nossos vizinhos latino-americanos como oChile, que dirá a Argentina, destino principal <strong>do</strong>s capitais eimigrantes Europeus. O PIB brasileiro teve desempenho inferiorao da média da região e visto retroativamente tem-sea impressão de que o país perdeu tempo em se vinculara uma ordem internacional quan<strong>do</strong> deveria ter se volta<strong>do</strong>para o merca<strong>do</strong> interno, como faria a partir de 1930.É certo que tal exigência é teleológica e, veremos,que mesmo nos anos iniciais após o 24 de Outubro, ogoverno provisório fortemente marca<strong>do</strong> pela influência<strong>do</strong> tenentismo intervencionista ainda guardava um“liberalismo inercial” em que persistia a crença de que a“normalidade” pré-1929 voltaria. Vargas, ex-ministro das Finançasde Washington Luís acabaria optan<strong>do</strong> gradativa epaulatinamente pela “substituição de importações”, nãocomo uma opção clara e inevitável que hoje pareceria óbviaem vista de seus sucessos posteriores, mas, sobretu<strong>do</strong>,através de experimentações, tentativas e erros tal qual nasquatro décadas da Primeira República. A diferença é queisso se deu no espaço comprimi<strong>do</strong> <strong>do</strong> governo provisório.Mas os momentos de crise e as revoluções aceleram otempo histórico e, em 1930, o <strong>Brasil</strong> viveria ambas.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>3085.4 A política externa da Primeira República – Parte I(1889-1902)O Barão <strong>do</strong> Rio Branco e a periodização daPolítica Externa da Primeira República.A fase kantiana ou ideológica. A virada americanistae o Trata<strong>do</strong> de Montevidéu.Conferência interamericana de Washington.O Trata<strong>do</strong> Blaine-Men<strong>do</strong>nça.Floriano Peixoto e a política externa em tempos de crise.A ocupação de Trindade.A Política externa de Prudente de Morais e Campos Sales.As arbitragens.O Perío<strong>do</strong> da Primeira República é considera<strong>do</strong> um<strong>do</strong>s mais relevantes no estu<strong>do</strong> da política externa, semsombra de dúvidas, graças à figura <strong>do</strong> barão <strong>do</strong> Rio Branco,patrono da diplomacia brasileira e insigne referênciapara to<strong>do</strong>s os diplomatas, que se formam no instituto queleva seu nome até os dias atuais. Se referir ao Itamaraty ése referir à “casa de Rio Branco” e, portanto, é natural quesua diplomacia tenha a centralidade historiográfica quetem. Precisamos voltar recorrentemente aos mitos de origempara reforçá-los e reafirmá-los, ou então para questioná-los,mas estão sempre em nosso foco de atenção.O caso da Prova <strong>do</strong> CACD não é diferente, ten<strong>do</strong> adiplomacia de Rio Branco si<strong>do</strong> objeto frequente das avaliaçõesanuais 234 .A consequência negativa deste aspecto é que operío<strong>do</strong> republicano imediatamente anterior ao Barão(1889-1902), tanto quanto aquele imediatamente posterior(1912-30) acabam sen<strong>do</strong> relega<strong>do</strong>s à controversa categoriade “antecedentes” e “sucessores”, nos quais não seescapa a centralidade da figura de Paranhos na <strong>História</strong> daPolítica Externa <strong>Brasil</strong>eira. É difícil escapar a isso, como nosalertou Bradford Burns no artigo clássico publica<strong>do</strong> no volumerepublicano da <strong>História</strong> Geral da Civilização <strong>Brasil</strong>eiraorganiza<strong>do</strong> por Boris Fausto, mas alguns vêm tentan<strong>do</strong>.Clo<strong>do</strong>al<strong>do</strong> Bueno se propôs a escrever uma trilogia dapolítica externa da Primeira República das quais só concluiu<strong>do</strong>is volumes. Outro autor, Eugênio Vargas Garcia sededicou a estudar o perío<strong>do</strong> posterior ao Barão de mo<strong>do</strong>a resgatar o que ele chamou de “medievalização” de umaatuação externa espremida entre <strong>do</strong>is momentos-fetichesda historiografia: o Barão e Vargas, o que obscurece o quevai no meio.É absolutamente natural que a obra rio-branquina tenhadestaque e relevância que ofuscam seus antecessores,234 É o único personagem que tem duas biografias na bibliografia obrigatória<strong>do</strong> Guia de Estu<strong>do</strong>s <strong>do</strong> CACD. A clássica de Álvaro Lins, e uma mais moderna,bem contextualizada e menos hagiográfica de Rubens Ricupero, Rio Branco:O <strong>Brasil</strong> no Mun<strong>do</strong>.


309A Primeira República(1889-1930)sucessores e até contemporâneos. Ao se colocar sua figuraem evidência – diga-se de passagem, merecida – outrassaem de evidência. Os “grandes homens”, entretanto,como nos lembra Brecht, não fazem a história sozinhos 235 .Mais que lembrar <strong>do</strong>s operários que construíram a Tebasdas sete portas ou pereceram com a Invencível Armadaé lembrar o contexto histórico em que se deu a atuaçãode Rio Branco, e que permitiram sua obra 236 . Nos estu<strong>do</strong>s<strong>do</strong> panorama econômico brasileiro <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> percebe--se a melhora significativa das condições internacionais eda situação econômica brasileira a partir de 1902-3. Esse“ciclo positivo” se encerra em 1912-13, logo após a morte<strong>do</strong> Barão. Do ponto de vista político a consolidação da hegemoniaoligárquica paulista igualmente se conclui com a“Política <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s”, de Campos Salles, encerran<strong>do</strong> a instabilidadedas sucessivas rebeliões enfrentadas por Deo<strong>do</strong>ro,Floriano e Prudente de Morais. O quadro de instabilidadena luta entre civis e militares só voltaria a ser preocupanteno governo Hermes da Fonseca. Mas o Barão morreuem fevereiro de 1912, pouco tempo depois de pedir, sem235 “Quem construiu a Tebas das Sete Portas? Nos livros constam os nomes <strong>do</strong>sreis.” Pergunta de Berthold Brecht em seu poema clássico Perguntas de umoperário que lê.236 Sua mitificação, contu<strong>do</strong>, é obra posterior, e sobretu<strong>do</strong> na Era Vargaspercebem-se motivos outros para sua transformação em modelo dediplomacia, como ensina Cristina Patriota de Moura em seu estu<strong>do</strong> sobre asociologia <strong>do</strong>s diplomatas e da diplomacia.que o Marechal aceitasse, demissão <strong>do</strong> cargo por conta <strong>do</strong>bombardeio à Salva<strong>do</strong>r.Trata-se de um truísmo dizer que o barão teve sorte.Afinal, o homem ganhou na loteria na mesma época emque se formava na faculdade. Mas, é claro que o Barão nãoseria “o” Barão se tivesse si<strong>do</strong> ministro de Floriano Peixotoou de Artur Bernardes. As circunstâncias fazem o homemmais que o homem é capaz de fazer as circunstâncias,para parafrasear a frase mais citada nas provas <strong>do</strong> CACD.Ten<strong>do</strong> vivi<strong>do</strong> em um momento de estabilidade política efortalecimento <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> pôde dar vazão ao seu talentoorganizacional e moldar o Itamaraty de mo<strong>do</strong> a deixar seusvalores e diretrizes arraiga<strong>do</strong>s institucionalmente, e perenizá--los. Fez isso não sem enfrentar críticas, vindas muitas vezesde dentro de seu Ministério – Oliveira Lima, por exemplo –,já que a imprensa o tratava com grande benevolência,da<strong>do</strong> seu talento para manipulá-la. Não teria si<strong>do</strong> capaz defazê-lo em outras conjunturas menos propícias, como foi ocaso <strong>do</strong> imediato pós-proclamação.Quan<strong>do</strong> da Proclamação, o Barão vivia na Europa,onde servia como cônsul <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> em Liverpool há 13anos. A República cassou-lhe o uso <strong>do</strong> título recém-conferi<strong>do</strong>(recebera-o em 1888 para homenagear seu pai,o Visconde <strong>do</strong> Rio Branco, autor da Lei <strong>do</strong> Ventre Livre,que não vivera para ver a Abolição) e houve debate nocongresso constituinte para discutir se os monarquistasdeveriam ou não perder seu emprego no Ministério <strong>do</strong>s


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>310Estrangeiros. Sem renegar a monarquia, portou-se discretamentee manteve cargos cobiça<strong>do</strong>s como o de Liverpoole depois, chefe da imigração em Paris. Escreveu aoImpera<strong>do</strong>r 237 lamentan<strong>do</strong> não ter condições financeirasde aban<strong>do</strong>nar o cargo de diplomata e nele permaneceuaté que os ânimos esfriaram e sua reputação e prestígiocomeçaram a crescer. Após 1895 deixou de ser apenas ofilho <strong>do</strong> Visconde para se tornar o especialista em históriadiplomática e questões platinas e lindeiras. Foi chama<strong>do</strong>para substituir Aguiar de Andrada, morto, como advoga<strong>do</strong><strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, meio de improviso em 1893, e o resulta<strong>do</strong> daarbitragem com a Argentina, imbróglio secular das relaçõesplatinas, foi brilhantemente encerra<strong>do</strong> tão favoravelmenteao <strong>Brasil</strong> que o representante argentino Zeballos,criatura de notória empáfia, saiu “em faniquitos”, da salaem Washington onde era lida a sentença <strong>do</strong> presidenteGroover Cleveland.A “questão de Palmas”, como lhe chamou o barãopara que não fosse contaminada pelo nome Missões quepoderia remeter à província argentina de Missiones, foi,junto com a I Conferência Interamericana de Washington,as duas maiores questões da transição <strong>do</strong> Império para237 A correspondência entre Pedro II e o barão não era antiga, e praticamente serestringia a trocar impressões e recomendações bibliográficas, mas persistiuaté a morte <strong>do</strong> monarca deposto que continuou se interessa<strong>do</strong> por livrossobre o <strong>Brasil</strong> que o barão lhe recomendava no exílio.a República em Novembro de 1889. Dois eventos quedemonstram o que boa parte da historiografia caracterizoucomo o “contágio” da Política Externa <strong>Brasil</strong>eira peloespírito idealista kantiano. Este espírito também é perceptívelem muitos artigos da constituição de 1891. Emlinhas gerais trata-se da crença distorcida de que to<strong>do</strong>s osproblemas internacionais <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> eram oriun<strong>do</strong>s dascaracterísticas monarquistas <strong>do</strong> regime. Uma vez republicanizada,a política externa se transformaria numinstrumento de concórdia e amizade com os vizinhosda América, to<strong>do</strong>s repúblicas. Ecoava-se o fechamento<strong>do</strong> Manifesto de 1870 de que “sen<strong>do</strong> da América, urgiasermos americanos”, isto é republicanos, para superar oisolamento. Era como se Proclamar a República fosse asolução final para to<strong>do</strong>s os problemas da inserção internacional<strong>do</strong> país 238 . Como veremos, estas ilusões duraram238 Trecho final <strong>do</strong> Manifesto de 1870, assim defendia: “Somos da América equeremos ser americanos. A nossa forma de governo é, em sua essência eem sua prática, antinômica e hostil ao direito e aos interesses <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>samericanos. A permanência dessa forma tem de ser forçosamente, alémda origem de opressão no interior, a fonte perpétua da hostilidade e dasguerras com os povos que nos rodeiam. Perante a Europa passamos por seruma democracia monárquica que não inspira simpatia nem provoca adesão.Perante a América passamos por ser uma democracia monarquizada, aondeo instinto e a força <strong>do</strong> povo não podem preponderar ante o arbítrio e aonipotência <strong>do</strong> soberano. Em tais condições pode o <strong>Brasil</strong> considerar-se umpaís isola<strong>do</strong>, não só no seio da América, mas no seio <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. O nossoesforço dirige-se a suprimir este esta<strong>do</strong> de coisas, pon<strong>do</strong>-nos em contatofraternal com to<strong>do</strong>s os povos, e em solidariedade democrática com ocontinente de que fazemos parte”.


311A Primeira República(1889-1930)pouco e foram denunciadas pela imprensa 239 , principalmentepelos monarquistas 240 .Em setembro, o império havia chega<strong>do</strong> a um entendimentocom o governo Célman dan<strong>do</strong> prazo de três mesespara resolução bilateral da questão ou então levá-la aoarbitramento. A questão <strong>do</strong> arbitramento também era um<strong>do</strong>s temas mais relevantes em discussão em Washington,a partir de quan<strong>do</strong> os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s se tornam árbitrospreferenciais de questões envolven<strong>do</strong> querelas entre paíseslatino-americanos.O entusiasmo <strong>do</strong>s Republicanos Históricos pela RepúblicaArgentina tinha seu epítome na figura <strong>do</strong> primeiroministro<strong>do</strong>s negócios estrangeiros da república, QuintinoBocayuva que tinha mãe portenha. A Argentina e o Uruguaireconhecem a República brasileira quase que imediatamenteo que motivou um tour <strong>do</strong> ministro ao Prata. Emsua passagem por Buenos Aires, menos de três meses depois<strong>do</strong> 15 de novembro, chegou a discursar dizen<strong>do</strong> quea república no <strong>Brasil</strong> tinha muito a aprender com o exemplo<strong>do</strong>s vizinhos. Em meio a crise econômica crescente eparanoia política 241 o entusiasmo por uma solução bilateralfavorável tomou conta <strong>do</strong> gabinete Célman, sobre o queparecia ser uma possível vitória na frente internacional quecompensasse a situação interna complexa que o levaria opresidente argentino a renunciar em Agosto.Durante a passagem por Montevidéu foi então assina<strong>do</strong>entre <strong>Brasil</strong> e Argentina Trata<strong>do</strong> que leva o nome dessacidade (Jan. 1890). Nele o ministro demonstrava generosidadesui generis à custa <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> e ia além, muito alémda tradição imperial e mesmo das aspirações <strong>do</strong> seu governo.Optara pelo salomônico espírito de divisão da zonalitigiosa, o que criava um problema de segurança nacionalpara o <strong>Brasil</strong>, ao entregar à Argentina terras que limitavamcontato com o Rio Grande <strong>do</strong> Sul a uma faixa de terra deapenas 200 km no litoral, facilmente bloqueável em casode guerra. Os argentinos exultavam, mas a imprensa maisrealista sabia ser impossível que um tal trata<strong>do</strong> fosse aprova<strong>do</strong>pelo parlamento brasileiro. A Quintino só foi possívelconcordar com tais termos devi<strong>do</strong> a situação de rupturainstitucional e a inexistência de um Congresso Nacionaldurante o Governo Provisório que governava por decretos.Critica<strong>do</strong> generalizadamente pela imprensa, o gabinete239 Euclides da Cunha ecoou o “perigo” da solidariedade latino-americana,sau<strong>do</strong>so <strong>do</strong> “isolamento esplendi<strong>do</strong>” <strong>do</strong> império.240 Eduar<strong>do</strong> Pra<strong>do</strong> escreveu A Ilusão americana para se opor à esta visãoalertan<strong>do</strong> para o histórico imperialista e expansionista <strong>do</strong>s EUA. O livro foiproibi<strong>do</strong> e retira<strong>do</strong> de circulação durante a ditadura florianista.241 Para dar um exemplo da paranoia <strong>do</strong> governo após a Revolução <strong>do</strong> Parque,um jogo de rugby que o governo suspeitava ser uma reunião política veladafoi interrompi<strong>do</strong> e foram deti<strong>do</strong>s os <strong>do</strong>is times e os 2500 especta<strong>do</strong>res.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>312teve que se reunir e en<strong>do</strong>ssar coletivamente a medida deBocayuva, que era acusa<strong>do</strong> de traição. Assim que se reúne,a Assembleia Constituinte critica os termos <strong>do</strong> trata<strong>do</strong> ese recusa a ratificá-lo forçan<strong>do</strong> o arbitramento da questão.Ao mesmo tempo que era assina<strong>do</strong> o Trata<strong>do</strong> deMontevidéu, transcorria a Conferência Interamericanade Washington, tema recentemente cobra<strong>do</strong> na avaliaçãodiscursiva <strong>do</strong> CACD, e que evidencia a transição dapolítica externa imperial para a política externa republicanamais americanista 242 . A ideia de pan-americanismovinha se desenvolven<strong>do</strong> sob a liderança estadunidensede Thomas Blaine desde 1881 quan<strong>do</strong> o então Secretáriode Esta<strong>do</strong>, Blaine convocou para uma ampla Conferênciaos países <strong>do</strong> hemisfério. Então o objetivo era “discutir asmaneiras de prevenir a guerra entre as nações da América”.O convite, então aceito pelo Império acabou sen<strong>do</strong>retira<strong>do</strong> por conta <strong>do</strong> assassinato <strong>do</strong> presidente Garfielde pela persistência da Guerra <strong>do</strong> Pacífico. Em 1889, o Secretáriode Esta<strong>do</strong> era novamente Blaine, e sua proposta242 A bibliografia em geral é escassa sobre este tema. Livros específicos tratamda conferência em apenas uma ou duas páginas. O melhor texto é o últimocapítulo <strong>do</strong> livro de Luiz Cláudio Villafañe Santos, O <strong>Brasil</strong> entre a América ea Europa – O Império e o Interamericanismo, que trata especificamente daI Conferência Interamericana de Washington, seus antecedentes e decisões,<strong>do</strong> ponto de vista da política externa brasileira. Para uma perspectiva chilenaver BURR. Robert. N. By reason or force: Chile and the Balancing of Power inSouth America, 1830-1905. University of CaliforniaPress, 1965. pp. 188-190.mais ambiciosa e não apenas de segurança. Tratava-setambém da criação de uma zona aduaneira evidencian<strong>do</strong>a crescente importância <strong>do</strong>s temas econômicos que suplantaraa questão arbitral originalmente razão principalda cimeira.A Conferência reuniu-se de 2 de outubro de 1889a 19 de abril de 1890 e resultou na criação <strong>do</strong> Bureau deAssuntos Americanos, instituição avó da atual OEA 243 .Apesar de ter aceita<strong>do</strong> o convite de Washington as instruções<strong>do</strong>s delega<strong>do</strong>s <strong>do</strong> império eram contrárias aos princípiosda realização da Conferência 244 . A lógica de “nós” e“outros” que ainda vigorava nas relações com os vizinhos,levava o império a se identificar muito mais com a Europacivilizada que com as repúblicas latino-americanas.Explicitamente via-se a necessidade de sobrevivência <strong>do</strong>regime monárquico como sen<strong>do</strong> antitético aos princípios<strong>do</strong> Pan-americanismo.243 O bureau era volta<strong>do</strong> principalmente para temas comerciais e evoluiria paraUnião Pan-Americana em 1910 (IV Conferência de Buenos Aires) e para OEAem 1948 (Bogotá). A prevalência <strong>do</strong>s EUA é patente, da<strong>do</strong> que o escritórioera vincula<strong>do</strong> ao departamento de Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong>s EUA, e seus funcionáriosescolhi<strong>do</strong>s pelo secretário de Esta<strong>do</strong>.244 As instruções originais <strong>do</strong> império oporiam o <strong>Brasil</strong> aos objetivos <strong>do</strong>encontro e o deixariam isola<strong>do</strong> junto com o Chile, que tinha razões própriaspara se opor ao arbitramento, por exemplo, e buscou inclusive se articularformalmente com o <strong>Brasil</strong> para obstar esta proposta, antes da realização daconferência. Essa articulação chileno-brasileira, no entanto, não sobreviveuao 15 de Novembro, dan<strong>do</strong> lugar uma crescente articulação entre o Rio deJaneiro e Buenos Aires.


313A Primeira República(1889-1930)A Conferência é exclusivamente americana e seu planoparece conduzir até certo ponto a uma limitação dasrelações políticas e comerciais <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s independentesda América com os da Europa, dan<strong>do</strong> ao governoamericano um começo de protetora<strong>do</strong> que poderácrescer em prejuízo <strong>do</strong>s outros Esta<strong>do</strong>s. (...) O <strong>Brasil</strong> nãotem interesse em se divorciar da Europa; bem ao contrário,convém-lhe conservar e desenvolver as suas relaçõescom ela, quan<strong>do</strong> mais não seja para estabelecerum equilíbrio exigi<strong>do</strong> para manter a sua forma atual degoverno. (Instruções <strong>do</strong> governo imperial aos seus delega<strong>do</strong>s,Villafañe, p.117).Salva<strong>do</strong>r de Men<strong>do</strong>nça que tinha si<strong>do</strong> signatário<strong>do</strong> Manifesto Republicano assumiu a chefia da delegação,quan<strong>do</strong> Lafayette Pereira se afastou a pedi<strong>do</strong> após a Proclamaçãoda República, cujo governo provisório o convi<strong>do</strong>u apermanecer no cargo.A inspiração da proposta americana era o Zollvereine envolvia não apenas uma zona de livre-comércio, mastambém a a<strong>do</strong>ção de tarifas unificadas em relação a terceirosmerca<strong>do</strong>s. A proposta incomodava o <strong>Brasil</strong> emmuitos aspectos. O Zollverein evoluíra desde 1834 paraum império unifica<strong>do</strong>. O precedente era perigosamentevisto como primeira etapa de um imperialismo econômico<strong>do</strong>s EUA. Além disso, o <strong>Brasil</strong> praticamente não tinharelações comerciais com o resto <strong>do</strong> continente, excetono cone sul e com os EUA (que já eram o principal destinodas nossas exportações, por conta da prevalência<strong>do</strong> café). Uma união ampla não fazia senti<strong>do</strong> para o país.Como não estava claro se a arrecadação permaneceriadescentralizada ou seria centralizada como no caso <strong>do</strong>Zollverein, tratava-se de uma ideia perigosíssima para umpaís cujo orçamento dependia significativamente da arrecadaçãoexterna de impostos de importação. De acor<strong>do</strong>com as instruções dadas aos delega<strong>do</strong>s brasileiros em1889, “o governo imperial não pode e não deve aceitar aideia de União Aduaneira Americana”.Mas havia outros assuntos, como a a<strong>do</strong>ção de pesose medidas comuns a to<strong>do</strong> continente, acor<strong>do</strong>s de extradiçãode criminosos, comunicação regular e frequente entreos portos <strong>do</strong>s países <strong>do</strong> continente, proteção aos direitosde autor, enfim, vários outros. Em to<strong>do</strong>s os casos a posiçãooriginal <strong>do</strong> império brasileiro era defensiva e as instruçõesdadas aos seus delega<strong>do</strong>s eram de que a discussão detais assuntos não seria relevante, e, em certos casos, nemmesmo prejudicial aos interesses <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, exceto quan<strong>do</strong>discuti<strong>do</strong>s em âmbito regional sem a interferência <strong>do</strong>sEUA. Essa perspectiva mudaria radicalmente com o 15 denovembro.A questão <strong>do</strong> Tribunal Arbitral proposta pelos americanoslevantava ainda questões de âmbito regional, nasrelações triangulares entre <strong>Brasil</strong>, Argentina e Chile. Burrressalta a crítica chilena tanto à questão da Arbitragemquanto à questão da crítica à guerra de conquista. Ambasprejudicavam os interesses chilenos quanto às questõeslindeiras em aberto com a guerra <strong>do</strong> Pacífico terminadauma década antes. Enquanto o <strong>Brasil</strong> era um Império as


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>314posições <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is países eram próximas. O <strong>Brasil</strong> aceitavao arbitramento apenas se facultativo. Com o advento darepública a posição brasileira se americaniza e junto à argentinaaceita a tese <strong>do</strong> arbitramento obrigatório. O Chilefinalmente se absteve quan<strong>do</strong> conseguiu que a resoluçãoaprovada levasse em conta apenas conflitos futuros e nãopretéritos. Ainda assim, a posição chilena se ressentiu dacoalizão Rio de Janeiro – Buenos Aires, contrária aos seusinteresses 245 . Se o novo chefe da delegação Salva<strong>do</strong>r deMen<strong>do</strong>nça foi instruí<strong>do</strong> a “dar espírito republicano às instruçõesrecebidas” isso se traduziu em reversão da posiçãobrasileira sobre a questão <strong>do</strong> arbitramento obrigatório.Men<strong>do</strong>nça em coordenação com a Argentina conseguiuaprovar unanimemente (apenas com a abstenção chilena)a proposta americana de arbitramento obrigatório, comoainda conseguiu convencer o recalcitrante governo americanoa aceitar a proibição da guerra de conquista, sugestãobrasileira não prevista originalmente que acabaria incorporadaao texto constitucional brasileiro no ano seguinte.No que tange a União aduaneira a Conferência nãologrou êxito. A maior parte <strong>do</strong>s países dependia sobremo<strong>do</strong>das tarifas alfandegárias e o comitê acabou por aprovarapenas uma resolução incentivan<strong>do</strong> a a<strong>do</strong>ção de acor<strong>do</strong>sbilaterais ou plurilaterais de comércio que convergiriam(algum dia) para a união, frustran<strong>do</strong> o governo americano.A partir daí, Blaine e Salva<strong>do</strong>r de Men<strong>do</strong>nça, que assumirialogo depois o cargo de ministro plenipotenciário <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>em Washington se aproximariam 246 e passariam a discutirintensamente um acor<strong>do</strong> de reciprocidade comercial queo Império, por tradição e trauma <strong>do</strong>s “trata<strong>do</strong>s desiguais”,recusara e protelara por seis décadas. Em 1891, o trata<strong>do</strong>Blaine-Men<strong>do</strong>nça, como ficou conheci<strong>do</strong>, seria igualmenteobjeto de controvérsias.Não chegou a passar pelo Congresso – então AssembleiaConstituinte – crian<strong>do</strong> uma crise institucional de prerrogativasque se somaram às crescentes desinteligênciasentre o Executivo e o Legislativo de hegemonia paulista.Acusações de favorecimento a parentes <strong>do</strong> presidente e o245 Villafañe (em outra obra) critica a posição de Robert Burr de que teria existi<strong>do</strong>ao fim <strong>do</strong> império uma entente informal entre o <strong>Brasil</strong> e o Chile. Lega queisso não se baseia em fatos, e que as homenagens simbólicas oferecidasàs duas armadas um pouco antes da queda <strong>do</strong> império não é suficientepara acreditar que o Império <strong>Brasil</strong>eiro en<strong>do</strong>ssava a posição chilena quantoaos conflitos lindeiros contra a Argentina, Peru e Bolívia. De to<strong>do</strong> mo<strong>do</strong> éimportante destacar que o redirecionamento da PEB feito por Bocayuva paraadensar as relações com Buenos Aires – <strong>do</strong>s quais a posição conjunta naConferência é um exemplo – prejudicou a relação bilateral com o Chile.246 Esta maior proximidade não faria senão se adensar com o tempo. Clo<strong>do</strong>al<strong>do</strong>Bueno considera Salva<strong>do</strong>r de Men<strong>do</strong>nça um precursor <strong>do</strong> Barão, já que apartir de sua relação com Blaine resultariam direta ou indiretamente oapoio americano ao presidente Floriano no episódio da Revolta da Armadae o arbitramento favorável ao <strong>Brasil</strong> contra a Argentina proferi<strong>do</strong> porCleveland em 1895. Já Francisco Doratioto lembra o bem <strong>do</strong>cumenta<strong>do</strong>enriquecimento de Men<strong>do</strong>nça logo após a assinatura <strong>do</strong> convênio de 1891,que ele se empenhou tanto em fazer aprovar pelo governo brasileiro.


315A Primeira República(1889-1930)debate sobre o Trata<strong>do</strong> Comercial com os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>scontribuíram para tentativa fracassada de Deo<strong>do</strong>ro de fecharo Congresso que levaram à sua renúncia prematura.Essencialmente tratava-se de favorecer a entrada <strong>do</strong>açúcar brasileiro nos EUA, já que o café já gozava de privilégiosextraordinários. O governo acreditava que o <strong>Brasil</strong> poderiasubstituir Cuba como fornece<strong>do</strong>r privilegia<strong>do</strong> de açúcar 247 ,mas, como possivelmente já sabia Salva<strong>do</strong>r de Men<strong>do</strong>nça,estava em curso um acerto análogo de reciprocidade como governo Espanhol, assina<strong>do</strong> meses depois, que, na práticaanularia as vantagens brasileiras. Outra motivação era ganhara simpatia <strong>do</strong> governo americano que seria, como vimos, oárbitro óbvio da querela lindeira após a não ratificação <strong>do</strong>Trata<strong>do</strong> de Montevidéu. Na caracterização colorida de StevenTopik tratava-se de a<strong>do</strong>çar a boca <strong>do</strong> árbitro 248 . Funcionou,provavelmente não por essa razão, mas funcionou.O governo Floriano teve entre titulares e interinosmais de uma dezena de ocupantes no cargo de ministro247 Favoreceu a concordância <strong>do</strong> governo a presença <strong>do</strong> Barão de Lucena, como“primeiro-ministro” informal <strong>do</strong> governo Deo<strong>do</strong>ro favorecia a valorização <strong>do</strong>sinteresses nordestinos, e, para<strong>do</strong>xalmente, sub-representação <strong>do</strong>s interessespaulistas, maiores interessa<strong>do</strong>s na Proclamação da República mas quevinham se afastan<strong>do</strong> rapidamente das posições de Deo<strong>do</strong>ro.248 Em menos de três anos, com alguma vantagem bilateral para o <strong>Brasil</strong>, otrata<strong>do</strong> seria denuncia<strong>do</strong> por ambos os governos em 1894. O retorno <strong>do</strong>sdemocratas à Casa Branca e a alteração das prioridades <strong>do</strong> governo Florianoacabou levan<strong>do</strong> ao aban<strong>do</strong>no <strong>do</strong> trata<strong>do</strong> sem que isso prejudicasse asrelações bilaterais.das relações exteriores. Só este indício já evidencia a faltade continuidade e estabilidade da ação externa <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>no turbulento triênio florianista (1891-94). Em relação aoPrata, as relações com a Argentina padeciam da convicçãoflorianista avessa à de Bocayuva de que a guerra, algumdia, seria inevitável. Para garantir a manutenção deum governo favorável no Paraguai a<strong>do</strong>ta-se uma posturaintervencionista consubstanciada pelo apoio <strong>do</strong> envia<strong>do</strong>Amaro Cavalcanti que financiou um golpe de Esta<strong>do</strong> eevitou que o candidato favorável a Buenos Aires vencesseas eleições. O golpe no Paraguai em 1894 é evidência damanutenção de uma postura intervencionista da época <strong>do</strong>Império que, segun<strong>do</strong> Francisco Doratioto, só seria revertidacom o Barão em 1904.Ao contrário, no eixo assimétrico é crescente aaproximação com Washington, sempre alavancada porSalva<strong>do</strong>r de Men<strong>do</strong>nça que viabilizou a vinda da EsquadraFlint, ou “esquadra de papel” com o apoio <strong>do</strong>s EUApara debelar a segunda revolta da Armada que por váriosmeses transformou a Guanabara em zona de guerra, destruin<strong>do</strong>a cidade de Niterói e contribuin<strong>do</strong> para a popularidadede Floriano como o “Marechal de Ferro” visto comodefensor da República e <strong>do</strong>s pobres contra o bombardeiomonarquista feito pela armada, como o governo procurouretratar a rebelião.Contrasta a ação americana com a <strong>do</strong>s representanteseuropeus, que mantiveram a neutralidade estrita,


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>316intervin<strong>do</strong> apenas para evitar o bombardeio da Capital Federal.O navio português ainda ofereceria asilo a dezenasde revoltosos, o que levaria à ruptura de relações diplomáticascom Portugal retomadas no governo Prudente 249 .Portugal inclusive se oferece para mediar a controvérsiaentre o <strong>Brasil</strong> e a Inglaterra sobre a ocupação de Trindade.Esta questão ocupou a imprensa entre 1895-6, e contribuiupara a instabilidade <strong>do</strong> primeiro governo civil. O governoamericano sugere arbitramento, a Inglaterra aceita e o <strong>Brasil</strong>recusa, declaran<strong>do</strong> sua indignação contra o argumentobritânico de que se tratava de Terra Nullis, i.e. desocupada.Tinham os ingleses interesses de usar Trindade como basede ancoramento de cabos telegráficos transatlânticos.A mediação <strong>do</strong> rei português é bem-sucedida e a Inglaterrareconhece Trindade como território brasileiro em 1896.Também no governo Prudente começa a controvérsiachamada então de “guerra das farinhas”, onde os argentinosexigem paridade tarifária para seu trigo que concorria como norte-americano. Sen<strong>do</strong> os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s nosso maior249 Impossibilita<strong>do</strong> de cruzar o Atlântico com tantos asila<strong>do</strong>s rebeldes, ocomandante português optou por seguir à Buenos Aires para fretar novonavio que procedesse ao transporte transatlântico. Lá chegan<strong>do</strong>, evadiramseos asila<strong>do</strong>s, muitos <strong>do</strong>s quais reentraram no <strong>Brasil</strong> para apoiar o levantefederalista no Rio Grande <strong>do</strong> Sul. Tal omissão portuguesa contribuiu parao antilusitanismo radical verifica<strong>do</strong> no governo Floriano e estimula<strong>do</strong> pelaimprensa jacobina que aplaudiu vivamente a ruptura e criticou o governocivil sucessor que reatou as relações com Lisboa.consumi<strong>do</strong>r de café, o <strong>Brasil</strong> reclama, e acabará obten<strong>do</strong>em 1902, vantagens tarifárias semelhantes para o café emBuenos Aires, mas sem necessariamente acatar as exigênciasde Buenos Aires, o que não impediria o clima de concórdiabilateral que se estabeleceu nas visitas mútuas <strong>do</strong>spresidentes Júlio Roca e Campos Sales nos anos finais <strong>do</strong>século XIX.O Campos Sales teria uma política externa bem menosconfusa, o que é evidência da maior consolidação políticaobra de seu governo. Olintho de Magalhães foi o únicotitular da pasta denotan<strong>do</strong> mais estabilidade. Seu sucessorseria o Barão <strong>do</strong> Rio Branco foi mais perene que os chefes<strong>do</strong> Executivo. Em nove anos veria quatro presidentes.O <strong>Brasil</strong> voltava ao caminho da normalidade em sua açãointernacional. A negociação <strong>do</strong> Funding Loan ocorrida em1898, com a participação <strong>do</strong> presidente eleito retira o <strong>Brasil</strong>da condição de insolvente, e dá fôlego para a políticafinanceira da República. Campos Sales pôde inaugurar noperío<strong>do</strong> Republicano o que Sérgio Danese chamou de “DiplomaciaPresidencial”, negocian<strong>do</strong> a dívida em Londres,e a compra de Armas em Berlim, onde o <strong>Brasil</strong> criaria umescritório de compra de Armas em Essen. A visita à BuenosAires, mesmo sem consequências mais relevantes, serviupara estabelecer um clima de amizade que não era positivadesde a Proclamação, por conta da controvérsia da questãode Palmas e da intervenção no Paraguai. As coisas seguiamum rumo mais sereno e apenas duas controvérsias


317A Primeira República(1889-1930)mais sérias surgiam como desafios. O Acre e a arbitragemcontra a França.A chamada questão <strong>do</strong> Acre era fruto da crescenteinstabilidade acreana, território que o <strong>Brasil</strong> reconheciaser boliviano desde, no mínimo, 1867. Com o apogeu daborracha, após a invenção <strong>do</strong> pneumático em 1890. Rebeliõescomo a de Galvez e a de Pláci<strong>do</strong> de Castro, à frentede milhares de nordestinos imigra<strong>do</strong>s para a região acreanafugin<strong>do</strong> das secas cearenses, ameaçavam a separação,sem que a Bolívia tivesse recursos para manter a ordem emseu território. A solução boliviana foi ceder os direitos deexploração <strong>do</strong> Acre a uma empresa de capital norte-americano,o Bolivian Syndicate. Isso se deu em pleno governoMcKinley, no ápice <strong>do</strong> intervencionismo americano <strong>do</strong> queviria a ser chama<strong>do</strong> anos depois de Big Stick 250 . O espectrode uma intervenção americana levou o governo CamposSales a fechar o acesso amazônico, aberto desde 1866, e ainstruir nosso representante em Berlim, Rio Branco, a desestimulara presença de capitais alemães no Bolivian Syndicate.Era necessário minimizar ao máximo a oposição ao<strong>Brasil</strong> e neutralizar a ação americana.250 A guerra hispano-americana de 1898 é o maior exemplo, mas a intervençãona Colômbia para a criação <strong>do</strong> Panamá, a política de Portas Abertas na Chinae vários outros episódios concorrem para colocar o governo McKinley notopo da escala <strong>do</strong> imperialismo. Essa prática seria mantida e legitimada pelocorolário Roosevelt de 1904, após o assassinato <strong>do</strong> presidente McKinley em1901. Passou à <strong>História</strong> como Política <strong>do</strong> Big Stick.A controvérsia acreana ficaria de lega<strong>do</strong> para RioBranco, o futuro chanceler, mas ao desembarcar no Rio deJaneiro em dezembro de 1902 já estava bem familiariza<strong>do</strong>com a questão da qual tratou no perío<strong>do</strong> berlinense paraonde fora removi<strong>do</strong> por quase <strong>do</strong>is anos após o sucessona arbitragem contra os franceses. Paul Vidal de La Blachetinha si<strong>do</strong> o advoga<strong>do</strong> da França e o presidente da ConfederaçãoHelvética, Walter Hauser, o árbitro.O início da República foi o momento de definiçãodas três fronteiras mais controversas da história <strong>do</strong> Império.Eram justamente aquelas nas quais a assimetria de podernão era favorável ao <strong>Brasil</strong>. A Questão de Palmas de 1895se arrastava desde os trata<strong>do</strong>s coloniais entre as potênciasibéricas, e o que Rio Branco fez em 1895 foi comprovar odireito líqui<strong>do</strong> e certo brasileiro com base no melhor conhecimentotécnico <strong>do</strong>s trata<strong>do</strong>s coloniais, e da efetivaocupação portuguesa e brasileira da área. A mesma certezageograficamente embasada esteve presente na arbitragemsuíça de 1900, igualmente favorável ao <strong>Brasil</strong> contra aFrança na fronteira da Guiana Francesa com o Amapá. Nos<strong>do</strong>is casos a força <strong>do</strong> argumento brasileiro residiu sobretu<strong>do</strong>na identificação <strong>do</strong>s marcos geográficos defini<strong>do</strong>s portrata<strong>do</strong>s na época colonial, o que não era exatamente ocaso na controvérsia com os Ingleses, arbitrada pelo Rei daItália em 1904, quan<strong>do</strong> a sentença não foi tão favorável ao<strong>Brasil</strong>, e foi percebida como tragédia por Joaquim Nabuco,advoga<strong>do</strong> brasileiro da causa que tinha expectativa de


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>318vitória semelhante às conseguidas por Rio Branco, comodemonstra Ricupero em seu texto sobre o assunto.Assessora<strong>do</strong> por pequeno grupo, Nabuco redigiu quasesozinho os dezoito tomos em francês da memória entregueao árbitro em 1903, mais tarde publicada sob otítulo de O Direito <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>.A divergência era mais complicada <strong>do</strong> que os <strong>do</strong>is arbitramentosanteriores nos quais a defesa estivera a cargo<strong>do</strong> barão <strong>do</strong> Rio Branco: o de Palmas com a Argentina(lau<strong>do</strong> em 1895), e o <strong>do</strong> Amapá com a França (1900).As dificuldades adicionais provinham não apenas determos agora como adversária a potência hegemônicamundial, mas por serem mais duvi<strong>do</strong>sos e controversosos títulos invoca<strong>do</strong>s pelo <strong>Brasil</strong>. Por estarem conscientes<strong>do</strong> risco, muitos estadistas brasileiros, inclusive Paranhos,teriam preferi<strong>do</strong> resolver a pendência por negociaçãodireta, solução que se frustrou quan<strong>do</strong> CamposSales rejeitou proposta inglesa de compromisso julgadaaceitável por Rio Branco e Nabuco.Escolhera-se como árbitro o jovem rei da Itália, VitorEmanuel III, que iniciava sob auspícios favoráveis um reina<strong>do</strong>de mais de 45 anos que se apagaria, sob a sombradesonrosa <strong>do</strong> fascismo, na terrível tragédia da SegundaGuerra Mundial. Emiti<strong>do</strong> em junho de 1904, o lau<strong>do</strong> julgavaque nenhuma das partes havia demonstra<strong>do</strong> deforma completa os direitos alega<strong>do</strong>s, resolven<strong>do</strong> dividirentre elas o objeto <strong>do</strong> litígio. O critério geográfico a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>na partilha terminou por favorecer o Reino Uni<strong>do</strong>com algo mais de 19 mil km 2 e um pé na bacia amazônica,contra 13 mil km 2 para o <strong>Brasil</strong>.Não chegava a ser uma catástrofe; coteja<strong>do</strong>, todavia,com as vitórias cabais e indiscutíveis de Rio Branco, odesfecho possuía sabor de derrota e assim foi senti<strong>do</strong>pelos contemporâneos e pelo próprio advoga<strong>do</strong>, queexclamaria dramaticamente: “Será a causa de minhamorte!” (RICUPERO, Rubens. Joaquim Nabuco e as fronteiras<strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. Conferência proferida na Academia <strong>Brasil</strong>eirade Letras como parte <strong>do</strong> ciclo em memória <strong>do</strong>scem anos da morte de Joaquim Nabuco; Rio de Janeiro,7 de dezembro de 2010).A primeira questão discursiva <strong>do</strong> CACD de 2011 pediapara que se diferenciassem as arbitragens, o que não étarefa tão simples. A querela com a França remontava aoPerío<strong>do</strong> colonial enquanto que a com a Inglaterra tiverainício apenas no Perío<strong>do</strong> Regencial. Vale à pena fazermosum histórico de ambas.Na zona setentrional em disputa com a França, houvepre<strong>do</strong>minância portuguesa de 1616 ao final <strong>do</strong> séculoXVIII. A fundação de Belém (1616) no bojo <strong>do</strong> colapsoda França Equinocial (1612-15) é o marco inicial destapre<strong>do</strong>minância. Os Franceses repeli<strong>do</strong>s se estabeleceramem Caiena (1634). Reconhecem em 1700 e em 1713 o RioOiapoque (ou Japoc) como fronteira. Ao longo <strong>do</strong> séculoXVII insistem que a fronteira é o Araguari, mas a capitulaçãoportuguesa só se dá no perío<strong>do</strong> napoleônico, ondea inferioridade lusa é patente, inauguran<strong>do</strong> um segun<strong>do</strong>momento de retração.Este é segun<strong>do</strong> momento que vai de 1797 quan<strong>do</strong>Portugal reconhece o Rio Calçoene como fronteira até1806 quan<strong>do</strong> D. João declara nulos to<strong>do</strong>s os acor<strong>do</strong>s <strong>do</strong>Perío<strong>do</strong> que obti<strong>do</strong>s por meio de força fizeram Portugalceder mais em Badajoz (1801) estabelecen<strong>do</strong> a fronteira noAraguari, e mais ainda em um segun<strong>do</strong> trata<strong>do</strong> de Madri,


319A Primeira República(1889-1930)estabelece-se a Fronteira em Caranapatuba. O terceiro momentovai da Invasão de Caiena (1809) até sua devolução,combinada em Viena (1815), mas só efetivada em 1817quan<strong>do</strong> os franceses concordam com os limites fixa<strong>do</strong>s emUtrecht, isto é, o Oiapoque.No pós-independência, entretanto, o imperialismofrancês seguiu seu curso. Durante a regência, aproveitan<strong>do</strong>-sedas conflagrações no Pará, tropas de Caiena erigiramum forte no Lago Amapá. O recém-titula<strong>do</strong> Visconde <strong>do</strong>Uruguai, ex-ministro brasileiro, voltou em 1855 a Paris – cidadeem que havia nasci<strong>do</strong> – em missão para oferecer novamenteo Rio Calçoene, mas foi repeli<strong>do</strong> pelo governo deNapoleão III que exigia o Araguari. Em 1897, se estabeleceo compromisso arbitral cujo lau<strong>do</strong> final deveria ser da<strong>do</strong>pelo presidente da Confederação Helvética. A pressa se deveuà recente descoberta de Ouro na Região que levou aconflitos entre brasileiros e guianenses.Já na região dita “<strong>do</strong> Pirara”, na fronteira com a GuianaInglesa, a controvérsia era bem mais recente e deveraseà ação de Robert Schomburgk, o descobri<strong>do</strong>r da VitóriaRégia que fez duas viagens à região (1835 e, de novo em1837) no quadro da conflagração da Cabanagem, e ten<strong>do</strong>encontra<strong>do</strong> fortes aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>s – ou quase – na zonafronteiriça decide defender a apropriação da área pelos inglesesinvocan<strong>do</strong> a defesa <strong>do</strong>s índios e mobilizan<strong>do</strong> a opiniãopública por meio de argumentos humanitários nãomuito diferentes <strong>do</strong> que fazia à mesma época Palmerstone Aberdeen. Não era um momento tranquilo nas relaçõesbilaterais com a Álbion, como vimos ao tratar da questão<strong>do</strong> Tráfico de Escravos.Errou o <strong>Brasil</strong> ao considerar em 1842, litigiosa umaregião maior que a <strong>do</strong> Pirara 251 . Ao longo da segunda metade<strong>do</strong> século, várias tentativas de acor<strong>do</strong> foram feitas,algumas propostas inglesas inclusive mais favoráveis quea sentença italiana posterior. Entre 1897 e 1899, no ápicedas discussões <strong>do</strong> imperialismo inglês – Boers, Fachoda,Suez –, e a recusa <strong>do</strong> governo brasileiro em resolver bilateralmentelevaram a questão à arbitragem para a qual foiescolhi<strong>do</strong> como advoga<strong>do</strong> brasileiro Joaquim Nabuco 252 .O trabalho já havia si<strong>do</strong> inicia<strong>do</strong> por Rio Branco 253 que nãotem – ou não quer – assumir mais um encargo às vésperas<strong>do</strong> prazo final da questão <strong>do</strong> Amapá.A defesa de Nabuco se baseou em <strong>do</strong>is princípiosjurídicos: o <strong>do</strong> inchoate title (que dá ao possui<strong>do</strong>r tem-251 Incluía to<strong>do</strong>s os rios forma<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Rio Branco, e até então reconheci<strong>do</strong>spela Inglaterra como de soberania brasileira.252 Nabuco que vivera na penúria por dez anos, sen<strong>do</strong> persegui<strong>do</strong> por sermonarquista, faz um mea culpa admitin<strong>do</strong> a inviabilidade da restauraçãoe é nomea<strong>do</strong> por Campos Sales para assumir a questão, sen<strong>do</strong> muitocritica<strong>do</strong> pelas festas e recepções que oferece na Itália, acreditan<strong>do</strong> com issoinfluenciar o rei. Ver a biografia de Nabuco escrita por Ângela Alonso.253 Rio Branco teve um papel bem menor no caso <strong>do</strong> Pirara, mas suas memóriassobre a questão (1897) foram elogiadas tanto por biógrafos posteriores(Emb. Araújo Jorge) quanto por contemporâneos (Joaquim Nabuco) nãosomente pela imensa erudição, mas pelo estilo conciso, elegante e objetivo,de que se valeu Nabuco para preparar seus dezoito tomos.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>320porário ou intermitente direito contra terceiros) e a <strong>do</strong>watershed que dá ao ocupante de um rio direitos sobreseus afluentes. Aqui se percebe uma controvérsia que émais jurídica que geográfica, como a <strong>do</strong> caso francês noqual basicamente a questão era definir o Japoc de Utrecht,que inclusive já havia si<strong>do</strong> reconheci<strong>do</strong> diversas vezes pelosfranceses (1713, 1817, etc.). Sem desmerecer nenhum<strong>do</strong>s <strong>do</strong>is, é patente que o trabalho de Nabuco era maiscomplexo que os anteriores feitos por Rio Branco. O lau<strong>do</strong>arbitral (de duas páginas, em contraste com as 900 páginas<strong>do</strong> lau<strong>do</strong> Suíço no caso Francês) estabelecia a impossibilidadede definir o direito líqui<strong>do</strong> e certo de nenhuma daspartes e sugeriu a divisão <strong>do</strong> território, desigual, por forçadas condições da geografia. Coube à Inglaterra 60% <strong>do</strong> territórioe ao <strong>Brasil</strong> apenas 40%. Além de perder o territórioem litígio (o Pirara) levava os limites da Guiana inglesa atéa Bacia Amazônica, que era o temor brasileiro. O lau<strong>do</strong> foiaceito pelo <strong>Brasil</strong> sem nenhum protesto, mas recebeu críticasaté de juristas neutros.É bom lembrar que mesmo em casos onde a decisãoé técnica, considerações de ordem política não são desimportantes.O Barão sabia que a preferência <strong>do</strong>s árbitrosé sempre pela solução intermediária 254 , e procurou forçar a254 Esta foi a principal razão pela qual ele aban<strong>do</strong>naria o recurso às arbitragens umavez nomea<strong>do</strong> chanceler. A partir de então, a preferência por soluções bilateraisque se embasavam na assimetria favorável ao <strong>Brasil</strong> com os demais países.sorte com o auxílio <strong>do</strong> Suíço, Emílio Goeldi que lhe trouxepreciosas informações sobre a opinião <strong>do</strong>s especialistas.Ao que se sabe Nabuco não tinha informantes em Roma.Além disso, cabe lembrarmos outros fatores: (a) ascontrovérsias entre Ingleses e Venezuelanos na época haviammotiva<strong>do</strong> a intervenção americana; (b) em 1902 os imigrantesitalianos foram proibi<strong>do</strong>s de vir ao <strong>Brasil</strong> subsidia<strong>do</strong>spelo governo, após forte campanha na península que denunciavaos emprega<strong>do</strong>res, sobretu<strong>do</strong> paulistas, por maustratos. Podemos ainda lembrar, ainda que nenhum destesargumentos possa sustentar a causalidade da decisão, que;(c) a formação da entente cordiale franco-britânica (mesesantes <strong>do</strong> lau<strong>do</strong> sair) evidenciava a fragilidade da posição italianaao la<strong>do</strong> <strong>do</strong>s alemães e austríacos (com quem tinhamproblemas sérios de fronteiras no norte: a chamada Itáliairredenta). Não era um bom momento para se indispor coma Álbion; (d) a Herança da Conferência de Berlim (1884-5)que estabelecera as bases <strong>do</strong> princípio da posse efetiva podemter leva<strong>do</strong> a desconsideração <strong>do</strong>s princípios watershede inchoate de Nabuco. A decisão estabelece que nenhum<strong>do</strong>s <strong>do</strong>is países conseguiu comprovar a posse efetiva <strong>do</strong>sterritórios contesta<strong>do</strong>s e decide pelo que Rio Branco temiamais, o recurso favorito <strong>do</strong>s árbitros à herança salomônica.Não temos como adivinhar, mas podemos especular.Estes são alguns elementos que podem ter contribuí<strong>do</strong>para que Vittorio Emmanuel tenha resolvi<strong>do</strong> a questãocomo resolveu. Mas em 1904, o chanceler já era Rio Branco.


321A Primeira República(1889-1930)5.5 A política externa da Primeira República – Parte II(1902-1912)O Barão <strong>do</strong> Rio Branco – Formação e histórico.As estratégias e desafios <strong>do</strong> Barão. A questão <strong>do</strong> Acre e osdemais problemas lindeiros. A diplomacia <strong>do</strong> Prestígio e oslimites <strong>do</strong> Americanismo. A ameaça imperialista.O Barão <strong>do</strong> Rio Branco e o contexto platino. Virtuose,contexto e Lega<strong>do</strong>.O jovem Juca Paranhos tinha seis anos quan<strong>do</strong>acompanhou seu pai na viagem ao Uruguai que o impactousignificativamente. Na juventude, ao invés da poesia,vocação comum à sua geração, voltou-se para a história epara os mapas. Foi grande a influência da figura paterna,ícone <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> conserva<strong>do</strong>r que o Barão reputava comosen<strong>do</strong> o maior nome da história <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> atrás apenas <strong>do</strong>Impera<strong>do</strong>r. O Visconde, seu pai, começou a carreira secretarian<strong>do</strong>Honório Hermeto Carneiro Leão, o futuro marquês<strong>do</strong> Paraná em sua missão uruguaia, justo quan<strong>do</strong> o <strong>Brasil</strong>ensaiava ares de potência com a retomada saquaremada hegemonia platina sob Paulino José Soares de Sousa,quan<strong>do</strong> levou o filho ao Prata. Nos anos seguintes Honórioassumiu a presidência <strong>do</strong> conselho de ministros e seupai, o ministério da Marinha e <strong>do</strong>s Negócios estrangeiros.O barão afirmou mais de uma vez que tinha visto a Secretaria<strong>do</strong>s Negócios Estrangeiros funcionar em sua casa, e seimpressionava com as figuras elegantes e dignas que porela passavam. Foi assim, sua singular infância.Cresceu amigo <strong>do</strong>s mapas e da história, virava noitesestudan<strong>do</strong> com lampião. Notívago assumi<strong>do</strong>, manteriao hábito já velho, trabalhan<strong>do</strong> até altas horas e instalan<strong>do</strong>uma cama em seu gabinete de ministro. Sua via noturnana juventude lhe rendeu enormes problemas. Foi provavelmentepor conta de sua vida boêmia que foi força<strong>do</strong>a mudar-se de São Paulo para Recife para concluir a graduaçãoem Direito que não tinha vocação para exercer.Prenuncian<strong>do</strong> sua boa sorte, ganhou 12 contos de réis naloteria que gastou em temporada na Europa, experiêncianão tão comum assim para filho de funcionário <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>que era. Não era rico, seu pai, órfão, seguira carreira militare jornalística e se fizera sozinho, sem herança, sem fazenda,diferente de Nabuco que cresceu em latifúndio. Após brevíssimoperío<strong>do</strong> como professor <strong>do</strong> Colégio Pedro II, elegeu-sedeputa<strong>do</strong> por um Mato Grosso que nunca visitarae, não se notabilizou pela atuação parlamentar modesta,secretarian<strong>do</strong> seu pai no ministério durante parte de seumandato, quan<strong>do</strong> este era o importantíssimo presidente<strong>do</strong> conselho de ministros <strong>do</strong> Impera<strong>do</strong>r entre 1871 e 1878.Teve ainda experiência jornalística – Dirigiu o jornal A Nação– e de historia<strong>do</strong>r, que o barão <strong>do</strong> Rio Branco teve najuventude se somou. Era famoso por suas noitadas no Alcazare nos teatros. Engravi<strong>do</strong>u uma atriz belga e insistiuem reconhecer o filho, contra a vontade <strong>do</strong> próprio pai.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>322Desta breve síntese podemos perceber o maturarde talentos que serão úteis, quan<strong>do</strong> afinal, for chama<strong>do</strong>a brilhar. Aprendera a política e os mo<strong>do</strong>s aristocráticos<strong>do</strong> Império em casa. O exemplo <strong>do</strong> pai, dignificante, deixou-lheo gosto pelas coisas militares, ainda que avessoao militarismo, e pela lógica cartesiana, o conhecimentoaprofunda<strong>do</strong>, a erudição de atacar um só assunto e ir neleaté o fim, esgotan<strong>do</strong>-o noites adentro. Do debate parlamentar,o talento para os argumentos. Ainda que autoritárioem seu ministério, justificava ponderadamente seusatos externos para os críticos e para o público em geral,por meio da imprensa. Nisso o jornalismo lhe valeu. Tinhacuida<strong>do</strong> com a imprensa. Gostava de escrever para o públicoamplo, e influenciar a cobertura <strong>do</strong>s seus atos. Publicou,quan<strong>do</strong> ministro, frequentes cartas sob pseudônimona sessão “a pedi<strong>do</strong>s” justifican<strong>do</strong> as ações <strong>do</strong> ministério. Oapreço pela história, o conhecimento <strong>do</strong>s mapas, o hábitode ler e anotar cada coisa e sua paixão pelo <strong>Brasil</strong> forammuitíssimo úteis para suas vitórias arbitrais e seus discursosdiplomáticos que transformaram a história em arma dadiplomacia traçan<strong>do</strong> as raízes de legitimação <strong>do</strong> presente,às vezes em um passa<strong>do</strong> seletivo que melhor convinha aseus desígnios.Mas era corajoso pública e pessoalmente. Defendeua abolição da escravidão e assumiu relação amasiada comfilho e tu<strong>do</strong> saben<strong>do</strong> que isso lhe prejudicaria a carreira.Considera<strong>do</strong> playboy pelo Impera<strong>do</strong>r foi necessário esperarque esse viajasse para que Caxias pusesse em prática o estratagemade sua nomeação. Caxias, que o tratava carinhosamentepor “o pequeno Juca” ameaçou a princesa com aqueda <strong>do</strong> gabinete se não fosse o jovem Paranhos nomea<strong>do</strong>para o cargo de cônsul em Liverpool, um <strong>do</strong>s mais cobiça<strong>do</strong>s<strong>do</strong> Império devi<strong>do</strong> às comissões que pagava como“extras”. Só assim conseguiu o cargo. E partiu para a Europaonde permaneceria 18 anos, aprenden<strong>do</strong> o jogo <strong>do</strong> poderdas grandes potências da época.Trabalhava em Liverpool, mas tinha família em Paris.Como a família era ilegítima consta que o Visconde quan<strong>do</strong>o visitou em Paris, não conheceu os netos. Destacousena pesquisa histórica mais que na diplomacia consular.Publicava constantemente sobre a história <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> na Europae representou o <strong>Brasil</strong> na Exposição Mundial de SãoPetersburgo em 1884, para onde redigiu uma memória sobreo país. Por conta <strong>do</strong>s interesses históricos e pesquisasfoi autoriza<strong>do</strong> pelo Impera<strong>do</strong>r a corresponder-se com elediretamente. Dessa correspondência, curta, praticamentesó se trocam informações bibliográficas, mesmo depois dederrubada a monarquia. O já barão – foi titula<strong>do</strong> em 1888– lamentou ao Impera<strong>do</strong>r não ter condições financeiras deaban<strong>do</strong>nar o emprego diplomático. Foi tranquiliza<strong>do</strong> pelomonarca que lhe declarou que devia “servir à pátria!”.Quan<strong>do</strong> afinal foi convoca<strong>do</strong> para substituir o fina<strong>do</strong>advoga<strong>do</strong> brasileiro da causa arbitral contra a Argentina, játinha quase 50 anos. Teria 55 quan<strong>do</strong> vence<strong>do</strong>r também


323A Primeira República(1889-1930)da outra, contra os franceses. Ambas as vitórias catapultaramseu nome para a fama. Foi objeto de sonetos e artigoselogiosos que o comparavam ao pai. Rui Barbosa, Nabuco,Macha<strong>do</strong> de Assis, to<strong>do</strong>s celebravam na República um “barão”que a tu<strong>do</strong> remetia os tempos <strong>do</strong> império, e não viviano <strong>Brasil</strong> há duas décadas.Os brasileiros entre 1895 e 1900 estavam carentesde vitórias. O futebol apenas se anunciava como um jogodas elites britânicas transmigradas, e ainda não era capazde provocar aquela catarse de orgulho nacional coletivoque nos é tão comum nas copas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. O barão era oúnico traço de vitória numa ação externa confusa, <strong>do</strong>s anosiniciais da república, quan<strong>do</strong> até invadi<strong>do</strong>s pelos inglesesnós fomos – Trindade – nos moldes <strong>do</strong>s países colonizáveisda África. No mun<strong>do</strong> de então, o barão era a copa <strong>do</strong>mun<strong>do</strong> personificada na diplomacia. Suas vitórias, contraos argentinos e franceses, se deram no tabuleiro <strong>do</strong>s grandes.No campo <strong>do</strong> direito internacional, nas arbitragensfeitas pelo presidente norte-americano e suíço. Não eramvitórias menores. O carinho, simpatia e admiração sinceraque o povo 255 passou a ter por seu “barão” – e até o fim da255 Já ministro, famoso, contam seus auxiliares e contemporâneos que às vezesdecidia sair à rua “para ver o povo”, e o povo o cercava, o cumprimentava,encostava nele. Era uma celebridade. Uma vez tentou ir a Niterói “para ver opovo”, mas não conseguiu saltar da barca tal o arrulho popular a sua volta.Teve que retornar, mas retornou satisfeito.vida seria só assim, barão, “o” barão – pode ainda hoje serperceptível nas caricaturas – centenas – que lhe fizeram,quase sempre gentis com sua figura, ao contrário <strong>do</strong> viéssatírico que denigre, tão comum a este meio de expressãoque vitimou quase to<strong>do</strong>s os demais políticos <strong>do</strong> mesmoperío<strong>do</strong>.Teve sucesso em quase tu<strong>do</strong> que fez a partir daí 256 .Removi<strong>do</strong> para Berlim teve <strong>do</strong>is anos de oportunidadepara assistir como observa<strong>do</strong>r privilegia<strong>do</strong> parte da ascensãoarrogante da Alemanha recém-unificada em sua trajetóriade grande potência. Admirava os alemães e a eficáciade seu exército, e, como ministro, trabalhou para enviar osoficiais brasileiros para ali se capacitarem. E tratou <strong>do</strong>s assuntosque se seguiram a visita <strong>do</strong> presidente eleito CamposSalles (1898), como um escritório para a compra dearmas. Conseguiu ainda obstar investimentos alemães noBolivian Syndicate, inteiran<strong>do</strong>-se <strong>do</strong>s problemas diplomáticosem curso no Acre, que o chanceler que lhe antecedeu,Olyntho de Magalhães, não foi capaz de por termo.Rodrigues Alves insistiu para que aban<strong>do</strong>nasse a Europa,onde vivia toda sua família (os vários irmãos mais novoshavia morri<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s) e fosse ser seu chanceler. Hesitoupor quase <strong>do</strong>is meses e chegou a redigir carta de recusa,256 Ministro em Berlim, casou sua filha com um aristocrata alemão que o julgavarico e veio lhe pedir dinheiro empresta<strong>do</strong> logo após o matrimônio. Erapossível que o Barão pensasse o mesmo <strong>do</strong> futuro genro. Decepção mútua.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>324mas o dever falou mais forte ante a insistência <strong>do</strong> presidente257 . Depois de 14 anos envergan<strong>do</strong> na heráldica <strong>do</strong>baronato, ao Ubique Pátriae Memor (“Aonde for me lembrareida Pátria”) tinha chega<strong>do</strong> a hora reencontrá-la fora dalembrança, muito modificada pela República, insondávelna época em que partira, em 1876, no apogeu <strong>do</strong> Império.Ricupero alega que para além das fronteiras, vitóriasconcretas e palpáveis a bibliografia deixou de fora as conquistasmenos óbvias <strong>do</strong> Barão. A ênfase no americanismoe nas fronteiras empobrece o que segun<strong>do</strong> ele é um lega<strong>do</strong>muito mais rico. Para superarmos este “empobrecimento”seria útil entender que tanto o “americanismo” como aquiloque ficou conheci<strong>do</strong> como “diplomacia <strong>do</strong> prestígio” forammeios e não fins em si. A aliança “informal” com os Esta<strong>do</strong>sUni<strong>do</strong>s, descrita por Bradford Burns, favoreceu a relaçãocom nossos vizinhos na medida em que se neutralizavaa possível intervenção americana nas questões lindeiras,favorecen<strong>do</strong> o desfecho favorável ao <strong>Brasil</strong>, como se deuno Acre. Favorecia ainda a posição brasileira nas relaçõesbilaterais com a Argentina, nem sempre tranquilas, masprincipalmente e acima de tu<strong>do</strong>, servia de poderoso escu<strong>do</strong>contra o imperialismo europeu que se avizinhava naregião como ficara patente na questão de Trindade (1895)e na intervenção franco-britânica na Venezuela, justo nomomento em que Rio Branco tomava posse no ministério(dezembro de 1902).Também a “diplomacia <strong>do</strong> prestígio” que buscavaresgatar a imagem internacional <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> <strong>do</strong> limbo semglamour em que tinha si<strong>do</strong> atirada pelos turbulentos anosiniciais da República não era apenas uma vaidade nacional.Era uma necessidade. A recuperação e valorização <strong>do</strong>“<strong>Brasil</strong> no Mun<strong>do</strong>”, título <strong>do</strong> texto de Ricupero, tinha utilidadeprática. Quanto mais conheci<strong>do</strong>s e respeita<strong>do</strong>s menossujeitos a achaques e humilhações internacionais, menospercebi<strong>do</strong>s como “colônias” potenciais, menos vítimas seriamosdas potências europeias. Quanto mais reconheci<strong>do</strong>sinternacionalmente, melhor seria nossa capacidade deinfluenciar o entorno e resolver, sem necessidade de recursoà força, nossas contendas regionais.257 “Valiosas ponderações cartas não me convenceram. Nome V. Excia serámuito bem recebi<strong>do</strong> não poden<strong>do</strong> negar país sacrifício pedi<strong>do</strong>” (Ricupero,2000, p. 26).


325A Primeira República(1889-1930)Estratégias <strong>do</strong> BarãoDesafios <strong>do</strong> BarãoAmericanismoDiplomacia <strong>do</strong>Prestígio1. Se não era necessário o apoio americano nestas questões depois de 1895, aomenos a neutralidade seria útil para garantir que o <strong>Brasil</strong> decidiria as questõeslindeiras bilateralmente, sem o risco de ter que enfrentar os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s.2. A preferência norte-americana pela aliança com o <strong>Brasil</strong> favoreceria, em umquadro de rivalidade, a prevalência das posições brasileiras frente aos argentinos.3. A lembrança da Doutrina Monroe e a mobilização da opinião pública norteamericanacontra intervenções europeias no hemisfério ocidental era escu<strong>do</strong> <strong>do</strong>smais eficazes contra o apetite imperialista Europeu.4. Países respeita<strong>do</strong>s, com presença multilateral intensa e que se fazem ver, temmais amigos e são menos sujeitos a intervenções militares, frequentes na Era <strong>do</strong>sImpérios, em nações desconhecidas, como as africanas e asiáticas.5. O <strong>Brasil</strong> disputava com os argentinos a atração de imigrantes europeus, e aimagem argentina na Europa era das melhores. País considera<strong>do</strong> muito rico epróspero. Forçoso era melhorar nossa a imagem externa.6. Na eventualidade de arbitragem e/ou multilateralização <strong>do</strong> debate lindeiro – oque o Barão procurou evitar a to<strong>do</strong> custo – o prestígio <strong>do</strong> país teria influência nãodesprezível no desfecho das questões, como ficou óbvio na questão <strong>do</strong> Pirara.FronteirasArgentinaAmeaçaimperialistaEuropeiaArgentinaFronteirasO entendimento das realizações <strong>do</strong> Barão sempre vincula<strong>do</strong> a <strong>do</strong>is eixos, estratégia/desafios, traz muitas vantagens ao candidato, ainda que ele opte por não usar esta terminologia.Favorece em primeiro lugar a criação de argumentos, essenciais para a prova discursiva.Estabelece causalidades, determina hipóteses, cria vínculos entre temáticas aparentementedistintas. O Acre deixa de ser apenas uma questão lindeira e passa a ser uma questão lindeira,cujo sucesso dependeu parcialmente da neutralização de uma potencial intervenção americanacom a indenização ao Bolivian Syndicate. O caso Panther não é mais simplesmente umaameaça imperialista alemã, mas um sucesso da diplomacia rio-branquina em articular a opiniãopública estadunidense por meio da ação diplomática de Joaquim Nabuco.A própria presença de Nabuco em Washington como nosso primeiro embaixa<strong>do</strong>r transcendeao “americanismo ideológico” que a história acabou lhe imputan<strong>do</strong> na comparação com


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>326Rio Branco. Era pragmático para o chanceler ter alguémcomo Nabuco naquele que ele percebia como sen<strong>do</strong> oprincipal posto diplomático <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> no Exterior. Nabucoera respeita<strong>do</strong> como intelectual abolicionista nos Esta<strong>do</strong>sUni<strong>do</strong>s. Era famoso. Sabia ser percebi<strong>do</strong> e era mestre naarte de “ver e ser visto” como bem descreve Ângela Alonso.O entusiasmo americanista de que começou a ser toma<strong>do</strong>após o mau humor inicial de ter que deixar a Europa eraútil aos interesses de Rio Branco que precisava <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>sUni<strong>do</strong>s e de sua amizade. Sem Nabuco em Washingtonnão teria havi<strong>do</strong> “americanismo” e possivelmente nem teriacogita<strong>do</strong> a Bradford Burns conceber sua discutida hipótesede “aliança não escrita”.Ao se aproximar <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, o Barão <strong>do</strong> RioBranco legitimava esta posição historicamente. Justificavater si<strong>do</strong> esse o primeiro país a reconhecer nossa independênciae o que dera apoio ao governo Floriano para debelara rebelião naval, selecionan<strong>do</strong> os episódios históricosque legitimavam sua opção política. Era uma opção políticacontroversa, que foi questionada por muitos, inclusiveManoel de Oliveira Lima, embaixa<strong>do</strong>r que frequentementeentrava em polêmicas com o chanceler. Para a maior parte<strong>do</strong>s observa<strong>do</strong>res <strong>do</strong> início <strong>do</strong> século XX, o centro dinâmicodas relações internacionais era tão somente a Europa, eisso tal como sempre tinha si<strong>do</strong> assim, sempre seria. Nãopercebiam as dinâmicas de mudança que apontavam paraWashington como novo centro de poder. Rio Branco estavasolitário nesta percepção e precisava constantemente legitimá-lapara um público de formação intelectual europeístacomo ele próprio.Nada parecia supor que o <strong>Brasil</strong> venceria a questão<strong>do</strong> Acre, e Rio Branco já previa isso ao recusar inicialmenteo cargo de ministro. Suas vitórias passadas não serviriamde consolo em caso de derrota em uma questão muitomais complexa, que dependia mais de talento político <strong>do</strong>que talento de erudito e pesquisa<strong>do</strong>r. O Acre tomava todasas expectativas <strong>do</strong> início <strong>do</strong> governo Rodrigues Alves, e oBarão com to<strong>do</strong> seu prestígio não ignorava estar chegan<strong>do</strong>em uma circunstância política complexa da qual estiveraalija<strong>do</strong> por 26 anos.Mesmo em face das demais vitórias a questão <strong>do</strong>Acre foi a mais complexa e singular. Defende Ricupero noque chama de “Excepcionalismo da questão <strong>do</strong> Acre”.Com o tempo e a gradual acumulação de outras realizaçõesem nove anos de trabalho, perdeu-se a noçãoda importância suprema <strong>do</strong> Acre entre as questões resolvidaspelo barão e das características que o tornaramproblema único e inconfundível. Aos poucos, veio oassunto a ser assimila<strong>do</strong> a granel às demais controvérsiaslimítrofes, esmaecen<strong>do</strong> a indispensável distinção.Em resulta<strong>do</strong>, enfraqueceu a apreciação no justo valorda contribuição de Rio Branco à questão que encarna,mais que qualquer outra, as qualidades que lhe possibilitaramtornar-se o refunda<strong>do</strong>r da diplomacia brasileira.(Ricupero, 2012, p. 121).


327A Primeira República(1889-1930)Nenhum outro litígio brasileiro envolvia tanta riquezaquanto a presente nos seringais acreanos. O Acre respondiapor 60% daquele que era o 2 o produto da pautade exportações brasileiras e que no seu auge representou40% <strong>do</strong> total, atrás apenas <strong>do</strong> Café. Ricupero compara queseria como se hoje a região fosse riquíssima em Petróleo.Nenhum outro envolvia tantos interesses brasileiros: osseringueiros, as casas de aviamento em Manaus e Belémtemerosas da eventual concorrência de uma multinacionalestrangeira. O governo <strong>do</strong> Amazonas, cioso <strong>do</strong>s recursosque obtinha com a cobrança de impostos que seriam sustadascom a afirmação da soberania boliviana. Em nenhumoutro caso a situação tinha chega<strong>do</strong> ao ponto de conflitosexplosivos e enfrentamentos arma<strong>do</strong>s.Incapazes de impor a soberania boliviana sobre a regiãoos dirigentes em La Paz resolveram arriscar a sorte naatração <strong>do</strong> capital internacional. A presença de empresasestrangeiras de grande capital para extração de recursosem um país periférico era um modelo que se disseminavana “Era <strong>do</strong>s impérios”, frequentemente preceden<strong>do</strong> a açãoimperialista militar. Foi, no entanto, um erro estratégico acessão de direitos quase soberanos ao Bolivian Syndicate– que por 30 anos poderia inclusive cobrar impostos – afinal,a ameaça motivou a insurreição armada de Pláci<strong>do</strong> deCastro e mobilizou a opinião pública e o Esta<strong>do</strong> brasileiro ase mover para dar solução à questão, ante a “ameaça imperialista”na Amazônia. Como o <strong>Brasil</strong> reconhecia desde 1867a soberania boliviana, isso paralisava a ação brasileira, quenão raro teve que agir em compasso com os interesses bolivianos.A potencial entrada estrangeira mudava o problemade figura. Olyntho de Magalhães, em contradição como reconhecimento da soberania boliviana, conseguiu queo governo fechasse o acesso fluvial à região, impedin<strong>do</strong> naprática o cumprimento <strong>do</strong> contrato com o Bolivian Syndicateem agosto de 1901.O barão é o primeiro a reconhecer que há litígio.Em consonância com a opinião pública, muda a posiçãobrasileira de aceitar a soberania boliviana sobre o territórioe se coloca com disposição para a difícil tarefa deincorporar a região ao <strong>Brasil</strong>, “exclusivamente por serembrasileiros seus habitantes”. Três medidas prévias isolaramos bolivianos e foram essenciais para forçá-los à negociação.A indenização ao Bolivian Syndicate que na práticanão teria acesso à região com o amazonas fecha<strong>do</strong> eliminouo inconveniente de ter a oposição norte-americana.O valor de 110 mil libras esterlinas acabou sen<strong>do</strong> lucrolíqui<strong>do</strong> para investi<strong>do</strong>res que não tinham gasto nada atéentão. O barão temia que se alterasse a Doutrina Monroe“espantalho contra a <strong>do</strong>minação imperialista” convidan<strong>do</strong>os europeus à hegemonia compartilhada sobre a América<strong>do</strong> Sul. Por isso convinha isolar os interesses, lutan<strong>do</strong>contra um de cada vez. Do mesmo mo<strong>do</strong> se adioua controvérsia com o Peru que também tinha interessesna região <strong>do</strong> Acre e queriam de to<strong>do</strong> mo<strong>do</strong> participar da


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>328negociação, mas foram firmemente afasta<strong>do</strong>s pelo Barãoque adiou o problema peruano – também espinhoso –para o futuro.A terceira e última providência foi decidir ocuparmilitarmente a região, o que se deu em resposta à mobilizaçãode tropas ordenada pelo presidente Pan<strong>do</strong>.Ocupada e isolada a região, agora em litígio, neutraliza<strong>do</strong>sos peruanos e os interesses imperialistas, a Bolíviaestava isolada e foi forçada a negociar. O tom inicial defirmeza <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> passou a ser cordial e convidativo à negociação.Eram três os plenipotenciários brasileiros: RioBranco, chanceler, Rui Barbosa, sena<strong>do</strong>r, e Assis <strong>Brasil</strong>, ministroem Washington que acompanhara desde o início anegociação. Os bolivianos eram refratários à venda purae simples <strong>do</strong> Acre. “Terra, tal como a honra, não tem preço”.O que motivou o barão a propor uma permuta deterritórios que fez com que Rui Barbosa se afastasse dasnegociações e publicasse suas razões <strong>do</strong> plenipotenciáriovenci<strong>do</strong>. Discordava da cessão <strong>do</strong>s pouco mais de 3 milkm 2 de territórios que o <strong>Brasil</strong> fez aos bolivianos no Amazonase no Mato Grosso. Acreditava que teríamos maissorte na arbitragem, justamente influencia<strong>do</strong>s pelos <strong>do</strong>issucessos anteriores <strong>do</strong> Barão <strong>do</strong> Rio Branco, que mais queninguém sabia como seria difícil ter resulta<strong>do</strong> favoráveldepois de quase quatro décadas reconhecen<strong>do</strong> o <strong>Brasil</strong>ser o território boliviano.Declarava o Barão:Não se pode dizer que compramos o Acre, que adquirimoso título espanhol que a Bolívia tinha sobre essa região.O que fizemos foi resgatar, mediante indenização,o título português ou brasileiro, que havíamos cedi<strong>do</strong> àBolívia pelo Trata<strong>do</strong> de Ayacucho.Mas era, sem dúvida, uma compra mal disfarçadareconhecida pelo barão em várias correspondências privadascom o presidente. Pela permuta desigual de territórios258 indenizamos os bolivianos em 2 milhões de librasesterlinas o que em valores atualiza<strong>do</strong>s seria 250 milhõesde dólares. Comprometia-se ainda o <strong>Brasil</strong> a pagar a construçãode uma ferrovia que ligasse Santo Antônio (no RioMadeira) à Vila Bela (na confluência <strong>do</strong> Rio Mamoré), comliberdade de passagem e de alfândega para os produtosbolivianos pela ferrovia e pelos rios até o atlântico. Facilitavae ampliava ainda o acesso boliviano ao Rio Paraguai.Apesar <strong>do</strong> inequívoco sucesso <strong>do</strong> Trata<strong>do</strong> de Petrópolisassina<strong>do</strong> em 1903, ele foi alvo de muitas críticas <strong>do</strong>scontemporâneos e não apenas de Rui Barbosa. OliveiraLima e opositores políticos <strong>do</strong> presidente Rodrigues Alvestambém se opuseram ao trata<strong>do</strong>, mas ele foi ratifica<strong>do</strong>com ampla maioria nas duas casas.258 O <strong>Brasil</strong> recebeu 191 mil km 2 , <strong>do</strong>s quais cerca de ¼ não eram litigiosos, masinequivocamente bolivianos, habita<strong>do</strong>s por brasileiros e que naturalmentenão entrariam em nenhuma eventual arbitragem.


329A Primeira República(1889-1930)O caso <strong>do</strong> Acre estabeleceu precedentes úteis paraas demais negociações de fronteiras, todas bem-sucedidas.A busca pela neutralidade norte-americana. A alternânciaentre o discurso de força e a disposição para negociar, e,claro, a insistência na negociação bilateral, ainda que ressalva<strong>do</strong>sos direitos de terceiros – que invariavelmente protestavampela exclusão, sobretu<strong>do</strong> na Amazônia. Ficava omultilateralismo descarta<strong>do</strong> completamente e a arbitragemreservada apenas para o último caso, esgotadas todas aspossibilidades de negociação. No entendimento <strong>do</strong> barão,que era inquestionavelmente o brasileiro que mais entendiade arbitragem então 259 , <strong>do</strong> caráter algo lotérico da soluçãopor arbitramento, no qual se entregava a outrem a responsabilidadepela decisão. Sabia ainda que os juízes tendemsempre ao meio-termo, o que ficou patente no desfechonão plenamente favorável da questão <strong>do</strong> Pirara em 1904,no qual o rei da Itália, Vittorio Emmanuel recusara as razões<strong>do</strong>s <strong>do</strong>is la<strong>do</strong>s decidia quase salomonicamente a divisão <strong>do</strong>território, em termos nos quais o <strong>Brasil</strong> ficava pior <strong>do</strong> que setivesse aceita<strong>do</strong> as ofertas britânicas na negociação bilateral.259 E por isso mesmo foi indica<strong>do</strong> em 1911 para o prêmio Nobel da paz, por umdiplomata cubano e <strong>do</strong>is deputa<strong>do</strong>s brasileiros, mas solicitou por motivospessoais que seu nome fosse retira<strong>do</strong> <strong>do</strong> concurso, ato sem precedentes.Ver. MOURÃO, Gonçalo. “Fins de semana em Copenhague: o Barão <strong>do</strong> RioBranco e o Prêmio Nobel da Paz – política externa ou política interna?”. In.PEREIRA, Manoel Gomes. Barão <strong>do</strong> Rio Branco: 100 anos de Memória. Brasília:<strong>Funag</strong>, 2012, pp. 77-119.Ao final, ficaram os ingleses com quase 60% <strong>do</strong> território.O Pirara ensinou a Rio Branco as vantagens de negociarbilateralmente, sobretu<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> os casos de ajuste lindeirosainda em abertos evidenciavam explícita assimetriade poder favorável ao <strong>Brasil</strong>. Confirmou um ano depois <strong>do</strong>Trata<strong>do</strong> de Petrópolis o acerto de sua posição frente à de RuiBarbosa que pugnava pelo arbitramento.Criou também o precedente da permuta, útil para aresolução da controvérsia com os peruanos que ocuparammilitarmente o alto Juruá e o alto Purus, região ocupadapor brasileiros, e que os peruanos alegavam ter a Bolíviacedi<strong>do</strong> ilegalmente ao <strong>Brasil</strong> em 1867. A tensão escalou até1904, já que o barão se recusava a negociar enquanto oterritório estivesse ocupa<strong>do</strong> militarmente. Ordenou o enviode <strong>do</strong>is destacamentos militares que forçaram Lima aassinar um modus vivendi que durou até 1906. No trata<strong>do</strong>que afinal decidiu a questão, o <strong>Brasil</strong> trocou a confirmaçãode posse <strong>do</strong>s 155 mil km 2 pleitea<strong>do</strong>s pelos peruanos porum território muito menor entre os Rios Purus, Curanja eSanta Rosa.Em to<strong>do</strong>s os casos em que o Barão negociou nossasfronteiras, ou seja, to<strong>do</strong>s os países exceto a Venezuela e oParaguai, ele também redigiu exposições de motivos quejustificavam sua negociação, necessárias para a aprovaçãono parlamento de sua obra. Tornou-se, portanto, tal qualChurchill, o primeiro historia<strong>do</strong>r de seu próprio feito. Suasinterpretações subsistiram na historiografia e marcaram a


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>330visão <strong>do</strong>s historia<strong>do</strong>res posteriores que não a alteraram nasubstância. Foi ator e Autor.Sobre o papel de Rio Branco como historia<strong>do</strong>r defronteiras, que ao mesmo tempo legitima sua obra e a explicaaos conterrâneos e à posteridade, vale a pena a leitura<strong>do</strong> excelente artigo <strong>do</strong> embaixa<strong>do</strong>r Synésio Sampaio GoesFilho, Rio Branco, Inventor da <strong>História</strong>, no qual é feito o cotejodas interpretações rio-branquinas da nossa história defronteiras em contraste com a <strong>do</strong>s historia<strong>do</strong>res bolivianosque tem visões diferentes, e desfavoráveis ao <strong>Brasil</strong>, sobreos mesmos fatos. Seus argumentos merecem ser li<strong>do</strong>s atépara que se supere o melindre que ele identifica entre osdiplomatas em discutir os temas de fronteiras, como se tivéssemosalgo a esconder ou feito algo de erra<strong>do</strong>.O plano da diplomacia <strong>do</strong> prestígio tinha um objetivoclaro: melhorar a imagem <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, que era prestigiosano Perío<strong>do</strong> <strong>do</strong> 2 a Reina<strong>do</strong> e caíra no mesmo rol <strong>do</strong>s caudilhismose instabilidades latino-americanos nos anos iniciaisda República. Era necessário apresentar novamente o<strong>Brasil</strong> como um país sério, estável, digno de se fazer ouvire respeitoso <strong>do</strong> Direito Internacional. É incontornável queesta obra, subjetiva, foi também responsabilidade <strong>do</strong> Barão<strong>do</strong> Rio Branco, que desde o Impera<strong>do</strong>r, foi quem mais fezpelo prestígio internacional <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>.Isso se deu mediante a multiplicação de representaçõesbrasileiras no exterior, abertas ou reabertas, empaíses como o Império Otomano, a Grécia e o Japão, mastambém pelo estímulo que se abrissem no <strong>Brasil</strong> legaçõesestrangeiras. Destaca-se neste esforço a prioridade dada aohemisfério ocidental, no qual foram nomea<strong>do</strong>s ministrospara todas as legações em aberto, ou cumulativas herdadas<strong>do</strong> perío<strong>do</strong> de contenção de gastos da época de CamposSalles. Nossos vizinhos passariam a ter, to<strong>do</strong>s eles, umrepresentante brasileiro residente.As transformações urbanísticas no centro da CapitalFederal, que tomaram o governo Rodrigues Alves soba intervenção <strong>do</strong> prefeito Pereira Passos, também podem serentendidas como parte da Diplomacia <strong>do</strong> Prestígio. Tiverama função internacional explícita, e assumida de “civilizar”o Rio de Janeiro, importan<strong>do</strong> o modelo francês <strong>do</strong> barãoHaussmann que Pereira Passos conhecera em Paris. A civilidade,urbanidade, os traços da arquitetura, o bulevar daAvenida Central, o Teatro Municipal, a remoção <strong>do</strong>s cortiços,tu<strong>do</strong> concorria para transformar a Capital Federal emvitrine para o mun<strong>do</strong>. A função externa <strong>do</strong> “bota-abaixo”não pode ser diminuída. Os visitantes estrangeiros <strong>do</strong> Riode Janeiro reforma<strong>do</strong>, na Conferência de 1906, ou na comemoração<strong>do</strong>s 100 anos da chegada da família real em1808 teriam outra percepção da Capital da República quenão mais seria simplesmente o “cemitério de estrangeiros”apeli<strong>do</strong> que ela carregava desde o império por conta das<strong>do</strong>enças e epidemias corriqueiras. Estava se transforman<strong>do</strong>– pelo menos sua região central, reformada – em umacidade europeia nos trópicos.


331A Primeira República(1889-1930)Para encimar o prestígio internacional <strong>do</strong> Rio de Janeiro,o Itamaraty fez gestões em Roma para que o papaPio X nomeasse cardeal o arcebispo <strong>do</strong> Rio de Janeiro,D. Joaquim Arcoverde. A preferência de Roma era que ocardinalato fosse concedi<strong>do</strong> a Sé de Salva<strong>do</strong>r na Bahia,por conta de sua precedência temporal, mas a insistência<strong>do</strong> barão acabou prevalecen<strong>do</strong>, e Arcoverde tornou-se oprimeiro cardeal da América <strong>do</strong> Sul em 1905, coroan<strong>do</strong> oprestígio da Capital Federal e <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>.A participação ativa <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> em Conferências multilaterais– várias – ao longo <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> Rio Branco foimarcada igualmente por um ineditismo. O <strong>Brasil</strong> passou asediar conferências internacionais das quais a mais relevantefoi a III Conferência Interamericana <strong>do</strong> Rio de Janeiroem 1906, com a Avenida Central e seu Palácio Monroerecém-inaugura<strong>do</strong>s. O nome escolhi<strong>do</strong> por Nabuco parabatizar o palácio que ganhou a medalha de ouro no GrandePrêmio Mundial de Arquitetura na Exposição Universalde Saint Louis (1904), e desmonta<strong>do</strong>, voltou ao Rio parafechar a avenida em construção não deixa dúvidas quantoa simpatia americanista <strong>do</strong> gesto. Nesta Conferência,presidida por Nabuco, há apenas um ano como embaixa<strong>do</strong>rem Washington, fica óbvio seu talento de articulação.Conseguiu trazer o secretário de Esta<strong>do</strong> norte-americanoElihu Root ao <strong>Brasil</strong>, naquela que foi a primeira visita de umSecretário de Esta<strong>do</strong> a um país estrangeiro. Já havia Rootda<strong>do</strong> apoio decisivo ao <strong>Brasil</strong> para que fosse o Rio escolhi<strong>do</strong>como sede da III Conferência em disputa com Buenos Aires.O prestígio se unia ao americanismo.A relação com os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s é certamente o elementomais pragmático deste prestígio. Se aproximar <strong>do</strong>grande irmão <strong>do</strong> norte e ter a reciprocidade nas relaçõesbilaterais, bem como seu apoio nas relações multilateraisfavoreceu consideravelmente o prestígio brasileiro comresulta<strong>do</strong>s bastante concretos trazi<strong>do</strong>s pela melhoria internacionalda nossa imagem. Entretanto, a visão de Rio Brancoquanto à aliança com os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s nunca perdeude vista o elemento pragmático, e nos momentos em quesentia poder divergir, assim o fazia. A Conferência Interamericanaoferece <strong>do</strong>is bons exemplos da “autonomia” que o Barãoreservava à ação externa <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> mesmo em questõespuramente simbólicas. Como chanceler <strong>do</strong> país anfitriãocoube ao Barão abrir a III Conferência, quan<strong>do</strong> então, napresença de Elihu Root, proferiu discurso sobre a importânciada herança europeia e defendeu o estreitamento de relações<strong>do</strong>s países americanos com a Europa. Quan<strong>do</strong> maistarde Nabuco lhe sugeriu retribuir a visita de Root e ir aosEsta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, declinou educadamente, pois consideravanão ter si<strong>do</strong> uma visita em honra ao <strong>Brasil</strong> especificamente,mas apenas por ser o <strong>Brasil</strong> o país sede da Conferência.A maior controvérsia com os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s ao longo<strong>do</strong> perío<strong>do</strong> Rio Branco é, certamente, a participação<strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> na II Conferência de Haia. Articulan<strong>do</strong>-se com osdemais países latino-americanos, Rui Barbosa e Rio Branco


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>332sustentam a tese da igualdade jurídica entre as naçõese franca oposição à tese norte-americana de hierarquizaçãointernacional <strong>do</strong>s países na composição <strong>do</strong> Tribunal.Tal “desvio” brasileiro da disciplina de Washingtonfoi motivo de várias reclamações de Joaquim Nabuco,que não via motivos para que o <strong>Brasil</strong> se “agastasse” comWashington.O barão entendia de mo<strong>do</strong> distinto. Enquanto oprestígio brasileiro pudesse ser potencializa<strong>do</strong> pela aliançacom os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, o <strong>Brasil</strong> não poderia perder essaoportunidade, quan<strong>do</strong>, no entanto, fora <strong>do</strong> âmbito hemisféricoa política americana em aliança com os interesseseuropeus diminuía ao invés de aumentar nosso prestígio,o barão não hesitou em dispensar a convergência comWashington. Não era automático o alinhamento. O barãose valia <strong>do</strong> americanismo quan<strong>do</strong>, e apenas quan<strong>do</strong> convinhaao <strong>Brasil</strong>. Dizia ele nas instruções a Rui Barbosa.É possível que, renuncian<strong>do</strong> à igualdade de tratamento(...) alguns se resignem a assinar convenções, em quesejam declara<strong>do</strong>s e se confessem nações de terceira,quarta, ou quinta ordem. O <strong>Brasil</strong> não pode ser dessenúmero. (...) Agora que não mais podemos ocultarnossa divergência, cumpre-nos tomar aí francamente adefesa <strong>do</strong> nosso direito e <strong>do</strong> das demais nações americanas.(Rio Branco, in.: Ricupero, 2000, p. 55).O principal motivo pelo qual o americanismo era essencialnos cálculos geopolíticos <strong>do</strong> barão era realmente adefesa contra o imperialismo europeu que ele viu crescere acompanhou de perto nas longas estadias inglesas efrancesas, e na não tão longa, mas instrutiva estadia emBerlim entre 1900 e 1902, onde assistiu em posição privilegiadao momento de afirmação da weltpolitik guilhermina.Seus críticos e detratores contemporâneos, defensoresda manutenção de uma linha europeísta não percebiamque o cerne <strong>do</strong> pragmatismo americanista era usá-lo, e àDoutrina Monroe, como escu<strong>do</strong> contra as intervençõesarmadas que as potências da Europa vinham rotinizan<strong>do</strong>no trato contra países <strong>do</strong> hemisfério sul. Não percebiam,ademais, a emergência <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s como polo depoder alternativo, que, mesmo sen<strong>do</strong> igualmente imperialista,exercia seu imperialismo longe <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, motivo peloqual o <strong>Brasil</strong> não se sentia constrangi<strong>do</strong> em apoiar o BigStick. Tratava-se de pragmatismo. Afinal o <strong>Brasil</strong> tinha fronteiracom três países europeus, e temia ainda que pudessehaver entendimento entre os demais e os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>scontra o <strong>Brasil</strong>, como quase ocorrera na questão <strong>do</strong> Acre.Precisava Rio Branco de apoio norte-americano contra oseuropeus e neutralidade norte-americana nas negociaçõescom os vizinhos.Simbólico da importância <strong>do</strong> americanismo foi ocaso Panther, encouraça<strong>do</strong> com história pregressa e futurade envolvimento em controvérsias internacionais. Seucomandante autoriza<strong>do</strong> pelo governo brasileiro de fazermanobras e abastecer em nossa costa, teria autoriza<strong>do</strong> odesembarque de solda<strong>do</strong>s em território brasileiro para dar


333A Primeira República(1889-1930)caça a um desertor em Itajaí, Santa Catarina em Setembrode 1905. A comoção da opinião pública contra o desrespeitoa nossa soberania reviveu os temores da época daocupação de Trindade. Foi apenas mediante a demonstraçãode firmeza brasileira frente ao representante alemão –“Que seja a guerra então” – e a mobilização da opinião públicae das autoridades norte-americana por Nabuco quelevou o Império alemão a acatar os protestos brasileiros epedir desculpas aplacan<strong>do</strong> a opinião pública.Isso não arranhou as relações bilaterais de umaAlemanha que já era o nosso segun<strong>do</strong> maior compra<strong>do</strong>rde café atrás apenas <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s e fornece<strong>do</strong>raimportante de manufaturas, atrás <strong>do</strong>s ingleses. A partirde 1906 seriam envia<strong>do</strong>s aspirantes da Escola Militar paraestudar na Alemanha dentro <strong>do</strong> projeto de modernização<strong>do</strong> exército.As relações com a Argentina, cordiais nos governosMitre (década de 1860) e Roca (virada <strong>do</strong> século), figuras políticasque seguiam influentes na Argentina quan<strong>do</strong> o barãoassumiu a chancelaria, não fazia prever que momentos deinstabilidade e enfrentamento na relação bilateral estavamprestes a emergir. Tanto mais que esse não era o entendimentomuito menos a intenção <strong>do</strong> chanceler brasileiro paraquem a paz e a estabilidade regional eram pré-condiçõespara evitar desculpas das potências europeias para intervir.A herança da formação monárquica <strong>do</strong> barão fazia comque tivesse ojeriza ao caudilhismo <strong>do</strong>s golpes de Esta<strong>do</strong>frequentes aos nossos vizinhos, e tinha si<strong>do</strong> um <strong>do</strong>s motivospelos quais – monarquista – decidira-se pelo apoio e serviçoà república. Entendia, ao contrário de Nabuco que passoude anos no ostracismo por conta de seu monarquismo proselitista– que não se tratava mais da disputa entre Repúblicaou Monarquia, mas da disputa entre a República e a anarquia,que ele buscou evitar a qualquer custo.Propôs mais de uma vez a institucionalização <strong>do</strong>entendimento entre os grandes da América <strong>do</strong> Sul – <strong>Brasil</strong>,Argentina e Chile – em parte para neutralizar os Pactosde Mayo, entre chilenos e argentinos em 1902, que buscoucongelar a corrida armamentista entre os <strong>do</strong>is paísese estabelecer áreas de influência mútuas. Chegou a fazersacrifícios para alcançar sua intenção de aproximação. Alterouem 1904 a política externa de intervenção políticano Paraguai que remontava aos tempos <strong>do</strong> pós-guerra erecusou-se a ajudar o governo constitucional colora<strong>do</strong> noParaguai destituí<strong>do</strong> por uma revolução liberal apoiada porargentinos. Francisco Doratioto chama de gambito <strong>do</strong> rei apermuta rio-branquina no tabuleiro platino. Trocava-se ainfluência de décadas no Paraguai pela estabilidade regionale aproximação com Buenos Aires.Infelizmente não deu certo. A chegada ao poder <strong>do</strong>vice-presidente Figueroa Alcorta com a morte de ManoelQuintana em 1906 contribuiu para desestabilizar as relaçõesbilaterais já que foi nomea<strong>do</strong> para ministro das RelaçõesExteriores e Culto da Argentina Estanilao Zeballos,


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>334rival antigo de Rio Branco desde a época em que esseexercia o jornalismo na capital <strong>do</strong> Império. Tinha si<strong>do</strong> oadvoga<strong>do</strong> argentino derrota<strong>do</strong> em 1895 na arbitragem deGroover Cleveland na questão Missões e percebia em 1906a intensificação da aproximação entre os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s eo <strong>Brasil</strong>. O que Burns chama de aliança não escrita, comovimos com certo exagero, ficou evidente para Zeballos naIII Conferência Interamericana sediada, não por acaso comapoio norte-americano, no Rio de Janeiro e com a presençade Root. Zeballos estava convenci<strong>do</strong> de que o <strong>Brasil</strong> seaproximava <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s para exercer o subimperialismoe viu no projeto brasileiro de modernização daMarinha um indício de que Rio Branco preparava o <strong>Brasil</strong>para guerra.A proposta de melhoria das condições <strong>do</strong>s naviosbrasileiros em esta<strong>do</strong> quase de sucata vinha desde1904 e ganhara urgência no governo Afonso Pena apósa eclosão <strong>do</strong> caso Panther. Para Rio Branco que trocavacorrespondências constantes o Almirante Alexandrino deAlencar que ele próprio tinha indica<strong>do</strong> para ocupar o ministérioem 1906, acreditava que a questão era urgentíssimapor conta das controvérsias de fronteira com o Perue aproveitou o momento favorável, resulta<strong>do</strong> positivo dacanhoneira alemã. A nova proposta de 1906, aprovadano Congresso, previa a compra três cruza<strong>do</strong>res, seis torpedeirose contratorpedeiros, três submarinos além detrês dreadnaughts, o ápice <strong>do</strong> poderio naval em termosde tecnologia, resistência e poder de fogo até então existente.Apesar de não ter o governo intenção de conflitocom a Argentina, e estar mais preocupa<strong>do</strong> com umaarmada defensiva necessária a um país com o litoral <strong>do</strong>tamanho <strong>do</strong> brasileiro. Zeballos ficou assusta<strong>do</strong> e interpretoucomo expansionismo. Denunciou os Pactos deEquivalência Naval de 1902 com o Chile que impunhamlimites ao rearmamento argentino e iniciou uma corridaarmamentista com o <strong>Brasil</strong>, curiosamente in<strong>do</strong> buscarnos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s propostas de construção de navios,enquanto o <strong>Brasil</strong> aguardava os seus ficarem prontos emestaleiros britânicos. Era uma interessante inversão deparcerias tradicionais.Em 1908, o ministro argentino elevou o tom e decidiuousar uma cartada arriscada. Em reunião com to<strong>do</strong>o gabinete sugeriu que se aproveitasse a fraqueza militartemporária <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> para impor ao Rio de Janeiro um ultima<strong>do</strong>para a desistência <strong>do</strong> projeto de rearmamento naval,sob pena de bloqueio, torpedeamento e ocupação dacapital <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. O “treslouca<strong>do</strong> governo Alcorta”, como sereferia privadamente o chanceler brasileiro, não chegoua implementar o treslouca<strong>do</strong> projeto, pois este vazou naimprensa e provocou reações adversas ferozes na opiniãopública e no congresso que viva às turras com o executivo,dada a preeminência de partidários de Roca e Mitre (este jámorto), políticos amigos <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>.


335A Primeira República(1889-1930)Zeballos se demitiu depois <strong>do</strong> desgaste provoca<strong>do</strong>pelo episódio, mas continuou estimulan<strong>do</strong> o conflito nas páginasda imprensa acusan<strong>do</strong> o <strong>Brasil</strong> de expansionismo. Suainfluência política não desapareceu e havia muitos interessesno governo argentino a favor de uma corrida naval com o<strong>Brasil</strong> que estimulasse a compra de navios <strong>do</strong>s quais sempresobravam valiosas comissões, segun<strong>do</strong> Domício da Gama, fielcolabora<strong>do</strong>r <strong>do</strong> barão em várias ocasiões, e, à época ministroem Buenos Aires. Zeballos faz publicar em outubro de 1908na imprensa portenha um telegrama cifra<strong>do</strong> para a delegaçãobrasileira em Santiago de junho de 1908, cuja decodificaçãoadulterada daria a entender que o <strong>Brasil</strong> tinha intençõesmanifestamente hostis para com a Argentina. A decodificaçãocorreta era justamente uma proposta de entendimentoentre <strong>Brasil</strong>, Argentina e Chile, que segun<strong>do</strong> o Barão só eraobstaculizada justamente por Zeballos. Num gesto surpreendente,Rio Branco libera o telegrama original e a chave paradecodificá-lo, expon<strong>do</strong> toda a correspondência diplomáticabrasileira. Tal ato jamais poderia ter si<strong>do</strong> imagina<strong>do</strong> peloex-ministro argentino trata<strong>do</strong> por Rio Branco como “embusteiro”.“Sempre vi vantagens numa certa inteligência políticaentre <strong>Brasil</strong>, o Chile e a Argentina, e lembrei por vezes sua conveniência”dizia a versão correta que desmoralizava Zeballos.As relações de entendimento cordiais de Rio Branco com oChile não avançaram. A semente <strong>do</strong> futuro Pacto ABC, só frutificariana chancelaria de Lauro Müller a partir de 1914, mas oeste acabaria por não ser ratifica<strong>do</strong> pelo congresso argentino.No ano de 1909, sem que houvesse solicitação préviapara além <strong>do</strong> direito de tráfego de navios, Rio Brancoofereceu a soberania compartilhada da lagoa Mirim e <strong>do</strong>Rio Jaguarão aos uruguaios. O movimento visto como generosidadebrasileira foi justifica<strong>do</strong> pelo chanceler quasede forma estética. “Este testemunho de amor ao Direito ficabem ao <strong>Brasil</strong> e é uma ação digna <strong>do</strong> povo brasileiro” 260 .Apesar da explicação moral que causou impressão ao Embaixa<strong>do</strong>rRicupero, um de seus biógrafos, o ato de amor aoDireito também se explica por razões mais rasteiras, afinalvínhamos de uma crise com a Argentina e havíamos abdica<strong>do</strong>em 1904 da influência no Paraguai. No ano seguinteem 1910, Buenos Aires sediaria a IV Conferência Interamericana,ficava bem ao <strong>Brasil</strong> um amigo grato no cone sul,entre os países pequenos. Vacinava-nos das acusações tãofrequentes de subimperialismo.Tanto no caso da diplomacia <strong>do</strong> prestígio, quantono caso da questão das fronteiras é importante lembrarque a obra <strong>do</strong> barão não é apenas fruto da genialidade e<strong>do</strong> talento, mas das circunstâncias herdadas de estabilidade<strong>do</strong> governo Campos Salles. Tratava-se tanto da estabilidadefinanceira, alcançada pelo Funding Loan, quanto daestabilidade política interna conseguida por meio da política<strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s.260 Ricupero, op. cit. p. 7.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>336A renegociação da dívida brasileira e a relativa tranquilidadeeconômica <strong>do</strong> governo Rodrigues Alves permitiua Rio Branco ampliar as representações brasileiras noestrangeiro e estimular o estabelecimento de legaçõesestrangeiras para o Rio de Janeiro, se valer de recursos financeirosmais disponíveis para indenizar nossos vizinhosem muitas das negociações lindeiras, e apresentar posiçãofirme no caso da controvérsia sobre a Doutrina Drago.Tal repertório não estaria disponível ao chanceler, nãofosse a conjuntura de estabilização herdada. Afinal, os homensfazem a história, mas não nas circunstâncias que escolhem,mas nas que são dadas pelo passa<strong>do</strong>. O passa<strong>do</strong>recente <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> não era promissor, mas havia melhora<strong>do</strong>sensivelmente na gestão de Campos Salles, apesar disso, avirtuose <strong>do</strong> Barão permitiu-lhe aproveitar-se das circunstânciaspara melhorar ainda mais a projeção internacional<strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, encerrar as controvérsias de fronteiras que tantasguerras causaram e causam pelo mun<strong>do</strong> afora e buscar aprosperidade, a estabilidade e o entendimento no planoregional latino-americano. Seu lega<strong>do</strong> é extraordinário, epor isso, não custou muito para se transformar em mito,ícone e tradição.Infelizmente seus sucessores tomaram por conteú<strong>do</strong>o que era meio, e muitas vezes ficaram paralisa<strong>do</strong>spor sua sombra, pensan<strong>do</strong> como agiria o barão ao invésde agir pragmaticamente com as circunstâncias dadas nomomento em que viviam.Ricupero, Synésio e tantos outros resgatam uma dimensãoimportante <strong>do</strong> chanceler ainda hoje muito relevantequan<strong>do</strong> o <strong>Brasil</strong> é muito mais poderoso <strong>do</strong> que erano tempo <strong>do</strong> Barão. Mesmo saben<strong>do</strong> que o poder é umadimensão inescapável da vida internacional Rio Branconunca perdia de vista que o exercício <strong>do</strong> poder devia sersempre media<strong>do</strong> pelo Direito, e pela negociação. Nenhumpaís tem o poder completo e a nenhum escapa algumpoder. Saber usar corretamente seu quinhão de poder,alian<strong>do</strong>-o ao Direito e à justiça nos vacina contra os perigosda <strong>do</strong>minação imperialista tanto como vítimas quantocomo algozes. Pragmático se valeu da assimetria de poderfavorável ao <strong>Brasil</strong>, mas sempre legitiman<strong>do</strong> no Direitointernacional suas razões na negociação das fronteiras. Aose aproximar <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s fazia isso, não raro, parafacilitar o entendimento com nossos vizinhos, o que às vezestinha o efeito contrário de provocar desconfianças. Nãofoi o Barão um realista grosseiro, adepto <strong>do</strong> poder militar e<strong>do</strong> uso da força, e não é à toa que passou a história comoo único estadista <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, que em país de dimensõescontinentais, resolveu diplomaticamente to<strong>do</strong>s os conflitoslindeiros. Sua obra, que não foi pequena, permaneceatual, inclusive com os acreanos que chegam ao Ministériodas Relações Exteriores como foi o caso da diplomata MilenaOliveira de Medeiros, formada em Música, que morreude malária em 2011, a serviço <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>.


337A Primeira República(1889-1930)5.6 A política externa da Primeira República – Parte III(1912-1930)Lauro Müller e Domício da Gama. A questão <strong>do</strong> Café.Niágara Falls e o Pacto ABC. O <strong>Brasil</strong> e a Primeira GuerraMundial. O <strong>Brasil</strong> e a Liga das Nações. O <strong>Brasil</strong> e o contextoregional latino-americano. As missões militares. Entre aAmérica e a Europa, a política externa <strong>do</strong>s anos de 1920.Com o desaparecimento de Rio Branco ficava apolítica externa republicana órfã, e assim reconhecia o catarinenseLauro Müller que em seu discurso de posse afirmava:“Suce<strong>do</strong> mas não substituo”. A aura mítica construídaem vida seria institucionalizada pelos sucessivos governosem homenagens a logra<strong>do</strong>uros públicos, à capital <strong>do</strong> Acre,e no Esta<strong>do</strong> Novo na criação de uma escola de diplomatasque leva seu nome. O Itamaraty se tornava para to<strong>do</strong> osempre “a casa de Rio Branco”.Durante a gestão de Lauro Muller é relevante destacartrês eixos: as relações com os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, marcadaspela controvérsia <strong>do</strong> trust <strong>do</strong> café; as relações no Cone Sulque levaram a consecução <strong>do</strong> sonho de Rio Branco, o ABC(1915) e a controvérsia sobre a entrada ou não <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> naPrimeira Guerra Mundial.No campo das relações com os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, ganharelevo a figura de Domício da Gama, colabora<strong>do</strong>r <strong>do</strong>Barão desde a época das arbitragens que havia substituí<strong>do</strong>Joaquim Nabuco como embaixa<strong>do</strong>r. Respeita<strong>do</strong> como sefosse um lega<strong>do</strong> vivo <strong>do</strong> chanceler morto, Domício discorda<strong>do</strong> tom conciliatório que o novo ministro a<strong>do</strong>ta paracom o governo americano. Quan<strong>do</strong> Lauro Müller sugereao embaixa<strong>do</strong>r uma consulta ao Departamento de Esta<strong>do</strong>sobre a posição a tomar na guerra civil <strong>do</strong> Paraguai, aresposta foi um telegrama que ficou famoso, defenden<strong>do</strong>uma postura altiva, na qual o <strong>Brasil</strong> não tem que consultaros Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s sobre assuntos relativos aos nossosvizinhos. Apesar de ter prevaleci<strong>do</strong> a posição de Domício,os historia<strong>do</strong>res até bem recentemente usavam o exemplo<strong>do</strong> telegrama para desqualificar a diplomacia pós-barãocomo subserviente aos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s 261 .A postura estava longe de ser subserviente. Quan<strong>do</strong>um promotor distrital decidiu que a comissão <strong>do</strong> Caféde Nova York deveria vender to<strong>do</strong> o estoque para encerrarsuas manobras de elevação <strong>do</strong> preço, Domício fez durodiscurso em defesa da soberania nacional e <strong>do</strong> direito quetem o vende<strong>do</strong>r de escolher seu preço, acusan<strong>do</strong> ironicamenteos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s de querer impor <strong>do</strong>utrina de261 Contribuiu para essa imagem a visita de um mês <strong>do</strong> chanceler Lauro Mülleraos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, viagem que tinha si<strong>do</strong> sugestão de Joaquim Nabucopara retribuir a vinda <strong>do</strong> secretário de Esta<strong>do</strong> Elihu Root ao <strong>Brasil</strong>. O barãoa recusara por motivos de saúde, mas que em correspondência privadaconsiderava subserviente, já que a vinda de Root se dera no contexto deuma conferência multilateral Interamericana e não como uma denotaçãoespecial de prestígio aos brasileiros.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>338definição <strong>do</strong> preço pelo consumi<strong>do</strong>r a um país soberano.A contundência <strong>do</strong> discurso público em face de autoridadesnorte-americanas poderia ter leva<strong>do</strong> à tensões bilaterais, afinaltratava-se <strong>do</strong> mais importante produto de nossa pauta deexportações (chegaria à 72,5% <strong>do</strong> total ao final <strong>do</strong>s anos de1920) e que gozava de isenção para entrar no merca<strong>do</strong> norte-americano.Mas não era interessante para o <strong>Brasil</strong> comprarbriga com os americanos. Domício é critica<strong>do</strong> pelo chancelerem correspondência privada e a questão acabou sen<strong>do</strong>abafada sem prejudicar as relações entre os <strong>do</strong>is países.Do la<strong>do</strong> americano não interessava ao governo <strong>do</strong> presidenteWilson já implica<strong>do</strong> com as consequências da RevoluçãoMexicana dramatizar também a agenda com o <strong>Brasil</strong> ea situação se resolve mediante negociação. O promotor foiafasta<strong>do</strong>, mas o <strong>Brasil</strong> recua na manipulação <strong>do</strong> preço.As boas relações foram mantidas ao ponto de o<strong>Brasil</strong> assumir a representação mexicana em Washingtonquan<strong>do</strong> da ruptura de relações diplomáticas, após a invasãoamericana <strong>do</strong> Porto de Vera Cruz em Abril de 1914 262 .Tanto o México quanto os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s aceitaram a sugestãode mediação feita por <strong>Brasil</strong>, Argentina e Chile e foi262 Sucedeu-se a invasão após o que ficou conheci<strong>do</strong> como Tampico Affair.Marinheiros americanos foram presos em Tampico o que motivou aintervenção. Na verdade Wilson temia o desembarque de armas alemãspara o governo de Huerta que havia derruba<strong>do</strong> o presidente Madero e oassassina<strong>do</strong>.então convocada uma conferência em Niágara Falls no Canadápara resolver a questão. Foi a primeira ação internacional<strong>do</strong> ABC e evitou a Guerra entre os <strong>do</strong>is países apesarda continuação da guerra civil entre as forças de Huertae de Carranza, que havia se retira<strong>do</strong> da mediação. O governoWilson acaba por declarar Huerta um usurpa<strong>do</strong>r epassa a apoiar as forças constitucionalistas lideradas pelogeneral Carranza reconheci<strong>do</strong> como presidente <strong>do</strong> Méxicoem 1915, no que foi segui<strong>do</strong> pelo <strong>Brasil</strong> e to<strong>do</strong>s os paíseslatino-americanos.Foi de fato a questão mexicana que permitiu o fortalecimentoda ideia de institucionalização <strong>do</strong> ABC, afinalassina<strong>do</strong> em 1915 263 . Critica<strong>do</strong> no <strong>Brasil</strong> e na Argentina porrepetir fórmulas já a<strong>do</strong>tadas em acor<strong>do</strong>s prévios de soluçãode controvérsias, o trata<strong>do</strong> não foi ratifica<strong>do</strong> pelo legislativoargentino, a partir de 1916 sob a influência de HipólitoYrigojen, opositor que se alçara a presidência em oposiçãoà elite agrária que via representada no em seu antecessor,o presidente Victorino de La Plaza, que assinara o ABC.De to<strong>do</strong> mo<strong>do</strong>, trata-se de uma evidência de melhoresrelações no cone sul <strong>do</strong> que aquelas existentes durantea corrida naval no perío<strong>do</strong> <strong>do</strong> Barão. Prova disso é a ida deRui Barbosa a frente de uma embaixada especial com três263 O nome oficial era Trata<strong>do</strong> para facilitar a solução pacífica de controvérsiasinternacionais.


339A Primeira República(1889-1930)cruza<strong>do</strong>res para homenagear a Argentina nas comemorações<strong>do</strong> centenário <strong>do</strong> Congresso de Tucumán em 1916.As controvérsias relativas ao envolvimento brasileirona guerra europeia seriam o motivo que levaria a queda deLauro Muller em 1917. Defensor da neutralidade, e invocan<strong>do</strong>a constituição brasileira, o ministro verá sua posiçãocrescentemente fragilizada graças ao peso que a Guerravai ganhan<strong>do</strong> junto à imprensa e à opinião pública. Se forcorreta a tese de que a política externa é pouco relevantee discutida pelo conjunto da sociedade brasileira, a políticaexterna nos anos de Guerra certamente é uma exceção eo debate se torna acirra<strong>do</strong> entre os aliadófilos e germanófilos.O chanceler, descendente de alemães era acusa<strong>do</strong> defavorecer o segun<strong>do</strong> grupo e passa a ser objeto de críticasde Rui Barbosa, principal defensor da causa aliada.A opinião pública se torna ainda mais favorável aosalia<strong>do</strong>s após o torpedeamento de <strong>do</strong>is navios (Paraná e Tijuca)no litoral francês por submarinos alemães, levan<strong>do</strong> aruptura de relações diplomáticas (11 de Abril) e finalmenteao afastamento <strong>do</strong> ministro (7 de Maio). Em seu lugar o ex-presidente Nilo Peçanha a<strong>do</strong>ta postura favorável aos alia<strong>do</strong>s.O torpedeamento <strong>do</strong> navio Macau serve de estopimpara a revogação <strong>do</strong> decreto de neutralidade e o envolvimento<strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> no conflito.Dentre as causas deste envolvimento, cobradas noCACD de 2008, não podem ser esquecidas as condicionantessistêmicas. Já era o <strong>Brasil</strong> fortemente dependenteda economia norte-americana, principal consumi<strong>do</strong>ra <strong>do</strong>café, e, com a situação de guerra na Europa, em vias de setornar nosso principal parceiro comercial. A declaração deguerra por parte <strong>do</strong> governo Wilson em Abril de 1917 favoreceo entendimento hemisférico de oposição ferrenhaa declaração de Guerra de Submarinos irrestrita pelo ImpérioAlemão em dezembro de 1914. Reafirmava-se o direito<strong>do</strong>s países neutros, na boa companhia de Washington.Some-se ainda o interesse manifesto em se valer dasquatro dezenas de navios alemães ancora<strong>do</strong>s em portosbrasileiros desde o início da guerra. Tinha o <strong>Brasil</strong> uma restriçãonotória à ação de sua marinha mercante por contada guerra de submarinos e o aumento <strong>do</strong> preço <strong>do</strong> fretamentoque dificultava a exportação de café. Com a rupturade relações os navios foram considera<strong>do</strong>s “posse fiscal” emuitos deles arrenda<strong>do</strong>s aos franceses que inclusive indenizaramos brasileiros pelo afundamento de um deles.Por último podemos considerar que sen<strong>do</strong> o <strong>Brasil</strong>o único país a participar militarmente <strong>do</strong> conflito 264264 Avia<strong>do</strong>res para a Royal Air Force, seis navios para o patrulhamento <strong>do</strong>s mares(Divisão Naval de Operações de Guerra, o DNOG), um hospital constituí<strong>do</strong>por médicos e enfermeiras brasileiros em Paris. Foi uma participaçãolimitada, porém não irrelevante. Prejudicou a ação da DNOG a epidemiade gripe espanhola que imobilizou a frota no Marrocos e matou dezenasde marinheiros. Atribui-se ao retorno <strong>do</strong>s navios a disseminação da gripeEspanhola no <strong>Brasil</strong> que matou centenas de milhares de pessoas inclusive opresidente eleito Rodrigues Alves em janeiro de 1919.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>340tínhamos a expectativa de incorporação com certo graude importância nas conversações de paz que se seguiriamao conflito. Isso se confirma com a excessiva importânciaque o governo brasileiro deu a si mesmo tanto naConferência de Paz de Paris, quanto na atuação na Ligadas Nações nos sete anos que se seguiram ao término <strong>do</strong>conflito.Na Conferência de Paz de Paris, o <strong>Brasil</strong> buscou oapoio norte-americano para maximizar seu prestígio emquestões como o número de delega<strong>do</strong>s que teria direito– as grandes potências tinham cinco, o <strong>Brasil</strong> conseguiutrês 265 , mesmo número que os espanhóis, por exemplo –, opagamento ao café brasileiro devi<strong>do</strong> pelos alemães antesda guerra e a partilha <strong>do</strong>s navios apresa<strong>do</strong>s. De um mo<strong>do</strong>geral a aliança com os americanos foi suficiente para que o<strong>Brasil</strong> conseguisse que seus pontos de vista prevalecessem– não muito distintos das pretensões americanas nos mesmostemas – apesar de certa má vontade das potênciaseuropeias. Favoreceu o prestígio brasileiro na Conferênciaa eleição para presidente <strong>do</strong> chefe da delegação brasileira,Epitácio Pessoa, presente em Paris em 1919.Na criação da Liga das Nações, mesmo não ten<strong>do</strong>o <strong>Brasil</strong> consegui<strong>do</strong> a vaga permanente que pleiteava,265 Epitácio Pessoa chefiava a delegação composta ainda por João PandiáCalogeras e Raul Fernandes.acabou eleito e reconduzi<strong>do</strong> seguidamente para o Conselhoda Liga nos seis primeiros anos de seu funcionamento.A não ratificação da Liga pelo Sena<strong>do</strong> norte-americanomotiva o argumento brasileiro sobre a necessidade de umrepresentante das Américas, ainda que não tivesse o apoiode muitos <strong>do</strong>s vizinhos.Francisco Doratioto considera o governo EpitácioPessoa o último marco da Época de Ouro da política externabrasileira que se iniciara com o barão. Presença relevantena Liga, postura cordial e cautelosa com os argentinos,reaproximação com o governo paraguaio e tentativa de retomadada influência brasileira no país e as comemorações<strong>do</strong> centenário da independência com uma exposição quecontou com a presença de pavilhões das principais potências.Novamente viria o secretário de Esta<strong>do</strong> americanoCharles Hughes além <strong>do</strong> presidente de Portugal AntonioJosé de Almeida.O governo de Arthur Bernardes foi caracteriza<strong>do</strong>por Eugenio Garcia como uma fase de hiperatividade diplomáticaque não trouxe ganhos concretos ao <strong>Brasil</strong>, pelocontrário, isolou-nos crescentemente no plano regionallatino-americano e superestimou a posição brasileira na insistênciaao pleito de assento permanente no Conselho daLiga, sob o argumento não consensual de representante dasAméricas, o substituto natural <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s. Algunsautores consideram que a aventura externa de Arthur Bernardes,principalmente no caso da Liga tinha por objetivo


341A Primeira República(1889-1930)melhorar sua popularidade interna prejudicada pelas grevese levantes <strong>do</strong> tenentismo. Se era esse seu objetivo, nãodeu certo.Membro provisório <strong>do</strong> Conselho desde a fundaçãoda Liga, mas sempre corren<strong>do</strong> o risco de perder essa posiçãopor conta <strong>do</strong> rodízio que deveria existir, Bernardeseleva nossa representação em Genebra à categoria deembaixada e aposta suas fichas na negociação a propósitoda entrada alemã na Liga, país derrota<strong>do</strong> que vinhasen<strong>do</strong> gradualmente reincorpora<strong>do</strong> ao sistema europeu.O marco dessa incorporação tinha si<strong>do</strong> os Acor<strong>do</strong>s deLocarno (1924) onde a Alemanha renunciava à guerracomo forma de resolver controvérsias. O <strong>Brasil</strong> não seopunha à entrada alemã como membro permanente<strong>do</strong> Conselho, desde que, nesta reforma, também fôssemospromovi<strong>do</strong>s. Nisso se articulava com a posiçãoespanhola, idêntica. Sucessivas gestões das potênciasfeitas com Afrânio, Félix Pacheco e com o PresidenteArthur Bernardes fracassaram ante a resolução <strong>do</strong> chefe<strong>do</strong> executivo. Valen<strong>do</strong>-se da Carta da Liga que exigiasolução por consenso o <strong>Brasil</strong> na prática veta (17 deMarço) a entrada alemã na Liga em 1926 e, com isso, seisola da política multilateral. Antes que a articulação paraa derrubada <strong>do</strong> veto brasileiro por meio da exclusão <strong>do</strong><strong>Brasil</strong> <strong>do</strong> Conselho se verifique, o <strong>Brasil</strong> se retira da Liga,justifican<strong>do</strong> que esta não representa a América (12 de Junho).Devi<strong>do</strong> ao prazo de carência exigi<strong>do</strong> pela Carta daLiga, essa saída só se efetivaria no governo WashingtonLuís.O isolamento não era apenas europeu. Na últimahora os espanhóis recuaram e aceitaram a incorporaçãoalemã. Os demais países latino-americanos presentes naLiga solicitaram que o <strong>Brasil</strong> voltasse atrás no veto, e delediscordaram coletivamente. Na Europa as potências nãoacreditavam que o <strong>Brasil</strong> pudesse sozinho desmontar to<strong>do</strong>o projeto de pacificação das Relações Internacionais apósa Guerra. No <strong>Brasil</strong>, em nome da “honra nacional”, e da própriapublicidade que havia da<strong>do</strong> ao imbróglio, Bernardesnão poderia voltar atrás. Apesar da discordância <strong>do</strong> Embaixa<strong>do</strong>rAfrânio de Melo Franco, a postura tomada se radicalizouaté o ponto da ruptura em face da percepção irrealistada realidade de poder brasileira.A posição brasileira já havia fica<strong>do</strong> isolada naV Conferência Pan-Americana de Santiago <strong>do</strong> Chile em1923. Por conta da Guerra mundial há 13 anos não se realizavamconferências hemisféricas, e, há exemplo <strong>do</strong> quese configurava em 1909, o <strong>Brasil</strong> volta a ser alvo de acusaçõesde “corrida naval” e “prussianismo” por parte de seusvizinhos. Notoriamente atrasa<strong>do</strong> em termos de poder navalfrente aos argentinos e chilenos, o <strong>Brasil</strong> viu o delega<strong>do</strong>argentino multilateralizar a proposta de rearmamentonaval em curso no <strong>Brasil</strong>. Queria congelar o status quomediante um acor<strong>do</strong> no qual o <strong>Brasil</strong> aceitasse um tetoem tonelagens de navios capitais para sua modernização.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>342O <strong>Brasil</strong> propôs acor<strong>do</strong>s que levassem em conta a desproporçãode tamanho <strong>do</strong> litoral, mas a recém-contratadamissão naval norte-americana fragilizava o discursobrasileiro. O que salvou a Conferência foi a proposta <strong>do</strong>delega<strong>do</strong> paraguaio Manuel Gondra de arbitramento aoqual o <strong>Brasil</strong> aderiu entusiasticamente para demonstrarseu pacifismo e moderação. O representante brasileiroem Santiago era o mesmo Afrânio de Melo Franco quedepois disso seria alça<strong>do</strong> a condição de embaixa<strong>do</strong>r emGenebra na Liga das Nações.O isolamento na Conferência de Santiago se transformariaem distanciamento ao longo <strong>do</strong> governo WashingtonLuiz, cuja prioridade não era a América Latina. Nofamoso triângulo proposto por Rubens Ricupero, ao seaproximar <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s no eixo assimétrico, o <strong>Brasil</strong>prejudicava suas relações no plano regional (eixo simétrico).O governo Washington Luiz era notoriamente americanista,e seu chanceler, Octávio Mangabeira, foi sucessivasvezes critica<strong>do</strong> pelos tenentes e pelos promotores da revoluçãode 1930 como sen<strong>do</strong> subserviente. Promoveu a reformadas instalações <strong>do</strong> Ministério, a melhoria <strong>do</strong> quadro depessoal. Criou o Serviço econômico-comercial, promoveupor meio de comissões demarca<strong>do</strong>ras mistas, a delimitaçãode trechos de fronteira ainda não demarca<strong>do</strong>s e manteveestrita neutralidade nas tensões paraguaio-bolivianasque levariam à Guerra <strong>do</strong> Chaco. Esse neutralismo tambémfoi o motivo pelo qual o <strong>Brasil</strong> não aderiu ao famoso pactoBriand-Kellog de proscrição às Guerras de 1928, relativizan<strong>do</strong>as acusações de subserviência aos americanos 266 .De fato, segun<strong>do</strong> Garcia, a posição brasileira não estavaclara nos anos de 1920. Inegavelmente satélites, cabiadefinir se orbitávamos a esfera de poder europeia ou sejá havíamos nos transferi<strong>do</strong> completamente para a esferanorte-americana. Parece que a década de 1920 é justamenteo momento de transição. A década se iniciara coma enorme relevância da Liga das Nações como principalforo multilateral para a diplomacia brasileira. A retomada<strong>do</strong>s foros pan-americanos assistiu ao isolamento <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>em 1923. Do ponto de vista hemisférico, os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>shavias desde o início da década assumi<strong>do</strong> definitivamenteo papel de principal parceiro comercial brasileiro, masa Inglaterra seguia firme como principal cre<strong>do</strong>ra e investi<strong>do</strong>rano país, ainda que os norte-americanos ganhassemterreno.No plano militar, se veio ao <strong>Brasil</strong> uma missão militarfrancesa em 1919, veio, três anos depois uma missão navalnorte-americana. Ambas foram definidas por meio detrata<strong>do</strong>s secretos o que maximizava as preocupações <strong>do</strong>svizinhos de uma corrida armamentista e aliança militar266 Considerava que o trata<strong>do</strong> era redundante à Constituição <strong>Brasil</strong>eira de 1891e se ressentia de não ter si<strong>do</strong> o <strong>Brasil</strong> convida<strong>do</strong> a participar desde o iníciodas deliberações entre franceses e americanos.


343A Primeira República(1889-1930)brasileira com as potências 267 . A década terminava, no entanto,com o <strong>Brasil</strong> fora da Liga das Nações 268 , justifican<strong>do</strong>sua ausência com base no americanismo. O governoamericano era o principal parceiro político e comercialbrasileiro e a visita <strong>do</strong> presidente eleito Herbert Hooverem 1928 ao <strong>Brasil</strong> assim o evidencia. Se havia um discursode autonomia como na recusa ao pacto Briand-Kellog ouna defesa na VI Conferência Interamericana de Havana de1928 <strong>do</strong> princípio de não intervenção em meio as críticasgeneralizadas da América Latina ao Big Stick, era porquea própria diplomacia americana já vinha relativizan<strong>do</strong> ofracasso <strong>do</strong> intervencionismo. A posição brasileira era,no máximo, de discordância moderada. A resposta à perguntageográfica de Eugenio Garcia era clara no final <strong>do</strong>sanos de 1920 e, a definição pela América influenciaria emlongo prazo a decisão brasileira quan<strong>do</strong> teve que enfrentarnovamente essa escolha na segunda metade <strong>do</strong>s anosde 1930. A conjuntura, no entanto, se tornara muito maisdramática. Optar pela Europa se tornara, então, optar pelaaliança com o nazismo.267 O principal motivo para que os acor<strong>do</strong>s fossem secretos era provavelmenteevitar que os oficiais brasileiros descobrissem o valor pago pelo governobrasileiro aos oficiais estrangeiros bem como seus privilégios (de transporte,licença, moradia e férias) frente aos seus colegas nacionais.268 Permaneceu, no entanto, pagan<strong>do</strong> sua contribuição anual e em diálogocom os organismos técnicos da Liga.5.7 O panorama cultural da Primeira RepúblicaA geração de 1870 e papel <strong>do</strong>s intelectuais. As origens <strong>do</strong>pensamento autoritário. O papel da Igreja Católica naPrimeira República. Educação nos primórdios <strong>do</strong> século XX.Jornalismo e Caricaturas. Os caminhos e descaminhos <strong>do</strong>modernismo após 1922. O advento <strong>do</strong> Futebol e <strong>do</strong> Samba.Na literatura sobre cultura brasileira após o quinzede Novembro destaca-se a centralidade <strong>do</strong> papel <strong>do</strong>s intelectuais,os verdadeiros “mosqueteiros” (Sevcenko) da ideiade modernidade. A maior parte <strong>do</strong>s intelectuais da cidade<strong>do</strong> Rio de Janeiro no final da década de 1880 era republicanae abolicionista. Entusiastas <strong>do</strong> golpe que derrubou amonarquia tinham a certeza de que dias melhores viriam,e que com a República to<strong>do</strong>s os males <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> seriam resolvi<strong>do</strong>s.A euforia era a norma.Coincide a proclamação da República com a maturidadeintelectual e de atuação política <strong>do</strong>s indivíduos quecompunham a chamada “geração de 1870”. Fossem elesliberais como Joaquim Nabuco e Rui Barbosa, ou positivistascientificistas como Nina Rodrigues e Miguel Lemos,to<strong>do</strong>s compuseram uma certa ideia de ilustração brasileira(Roque Spencer de Barros) em oposição ao conserva<strong>do</strong>rismocatólico. To<strong>do</strong>s tinham uma aposta positiva nas transformaçõesque viriam com a República e perderam. Anoapós ano, presidente após presidente. Ficou a desilusão e


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>344o desencanto no lugar <strong>do</strong> que em 1889 era otimismo voluntaristae a crença no seu próprio papel de vanguardatransforma<strong>do</strong>ra.Ficou também a Academia <strong>Brasil</strong>eira de Letras, fundadaquan<strong>do</strong> a desilusão já era significativa. Macha<strong>do</strong> de Assis,Joaquim Nabuco, Graça Aranha, Olavo Bilac e outros criarama instituição que seria a guarda das letras e da língua portuguesano <strong>Brasil</strong>. Seu intuito, segun<strong>do</strong> a historia<strong>do</strong>ra ÂngelaAlonso 269 era restringir o papel político da geração de 1870 àsua vertente literária e intelectual, dirigin<strong>do</strong> propositalmentea memória institucionalizada de seu lega<strong>do</strong> para da República,símbolo de seu fracasso no plano político.Era impossível ser apenas intelectual na República,como, aliás, já havia si<strong>do</strong> no Império. As condições de sobrevivênciamaterial destes intelectuais eram o mecenato– ainda menos provável numa República sem barões e viscondes– ou o funcionalismo público. O caso mais famosode mecenato em larga escala na Primeira República foi o<strong>do</strong> próprio ministério das Relações Exteriores 270 . A outra269 ALONSO, Ângela. Idéias em Movimento. A Geração de 1870 na crise <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>Império. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 2002.270 Com a presença <strong>do</strong> Barão <strong>do</strong> Rio Branco em sua década de chancelariaintensifica-se a presença de intelectuais no MRE. Era uma espécie demecenato público em face da inexistência de concurso de admissão. Àfunção de diplomata servia também para garantir meios de vida aos bempensantes, amigos <strong>do</strong> Barão, para que pesquisassem e publicassem sem sepreocupar com as necessidades comezinhas e mesquinhas da sobrevivência.alternativa de sobrevivência era o jornalismo, como veremos,marco de alternativa de expressão <strong>do</strong>s intelectuais dabelle époque, ainda que significativamente concentra<strong>do</strong>sno sudeste, sobretu<strong>do</strong> na Capital Federal. Aos poucos, vãose crian<strong>do</strong> os primórdios de uma indústria cultural e de ummerca<strong>do</strong> editorial que passaria a permitir ganhos capitalistaspara aqueles que a explorassem, e, eventualmente,meios de subsistência para aqueles poucos corajosos obastante e talentosos o suficiente para poderem viver desuas obras.Outra marca da desilusão 271 era a amargura dascríticas que começam a aparecer nas décadas de 1910 e1920 e que destacavam os graves problemas brasileiros.A questão da educação, <strong>do</strong> trabalho, da economia e modernização,da lisura e moralidade política, da organização<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, da dependência mental <strong>do</strong>s modelos estrangeiros,<strong>do</strong> papel e da modernização das Forças Armadas. Eram271 A carreira de Alberto Torres é revela<strong>do</strong>ra da desilusão de um intelectualcom a atuação política. Bacharel, neto <strong>do</strong> Visconde de Itaboraí famoso chefeda Trindade Saquarema e um <strong>do</strong>s homens mais poderosos <strong>do</strong> impériobrasileiro, Alberto Torres foi Ministro da Justiça <strong>do</strong> governo Prudente deMoraes, mas se demitiu no interregno de Manuel Vitorino por conta daintervenção deste presidente no sua região, o norte fluminense. Nomea<strong>do</strong>Ministro <strong>do</strong> Supremo, pede licença por motivo de saúde, mas após viagemà Europa solicita aposenta<strong>do</strong>ria, com apenas 43 anos de idade. Passou oresto da vida escreven<strong>do</strong> sobre os problemas nacionais, que sua atuaçãopolítica não conseguiu resolver. Frustra<strong>do</strong>, transformou suas frustrações emsociologia e das palestras e comunicações no IHGB surgiam livros amargossobre o <strong>Brasil</strong> em que vivia.


345A Primeira República(1889-1930)questões estruturais, questões de fun<strong>do</strong> da sociedade brasileiraque era vista como uma tábula rasa. Um país quenão tinha nada. Não tinha educação, não tinha civilização,não tinha história, e não tinha povo ou não o conhecia.A crítica ao europeísmo coloniza<strong>do</strong> e ao formalismoexcessivo aparece em Euclides da Cunha, mas também emMacha<strong>do</strong> de Assis, que em seu famoso conto “Teoria <strong>do</strong>Medalhão” ironiza a formação das elites da virada <strong>do</strong> séculoem conselhos que o pai dá ao filho se quiser ser ummedalhão. Tratava-se de aperfeiçoar-se na superficialidade.Parecer muito sem ser nada. Nenhuma substância.Tratava-se de encadernação vazia sem conteú<strong>do</strong>, demoldura oca, sem tela. Era necessário criar tu<strong>do</strong> novo. Essacrítica ácida, presente sobretu<strong>do</strong> em Alberto Torres, invariavelmentedestacava a centralidade <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> na tarefade criar, ou recriar, a sociedade. Em O problema Nacional<strong>Brasil</strong>eiro (1914), Torres escreve defenden<strong>do</strong> a necessidadede um Esta<strong>do</strong> forte e interventor, e seus escritos serviriamde base para toda uma geração que lhe seguiria nos anosde 1920, e implementaria nos anos de 1930, parcela significativade sua agenda, sobretu<strong>do</strong> a partir de 1937. BorisFausto entende-o como o pai de um pensamento nacionalistaautoritário que depois se ramificaria em três correntes:os intelectuais coopta<strong>do</strong>s pelo Esta<strong>do</strong>, de certo mo<strong>do</strong>alia<strong>do</strong>s à agenda <strong>do</strong> tenentismo (Oliveira Viana, Azeve<strong>do</strong>Amaral, Francisco Campos) que constituíam o caminho<strong>do</strong> meio, e os integralistas, originários, em sua maioria davertente verde-amarela <strong>do</strong> modernismo, e os intelectuaiscatólicos como Carlos de Laet e Jackson de Figueire<strong>do</strong> quetiveram um impacto importante na história da Igreja naPrimeira República, e evidenciavam, sobretu<strong>do</strong> nas grandescidades, a participação política da Igreja feita de mo<strong>do</strong>indireto. Mediada pela enorme influência que exercia emsetores relevantes das camadas médias urbanas no sudeste,e <strong>do</strong>s setores das elites política e intelectual que se deupor meio de sua atuação destacada no setor educacional.É pequena a quantidade de textos que se debruçamsobre o papel da Igreja e <strong>do</strong> clero na Primeira República,exceto aqueles textos dedica<strong>do</strong>s aos movimentos messiânicosque tangenciam a questão clerical ao tratar de Canu<strong>do</strong>sou da Revolta <strong>do</strong> Juazeiro, mas é inegável que a Igrejafoi uma das instituições mais afetadas pelo regime instituí<strong>do</strong>no quinze de novembro. Instituição seminal, umbilicalmenteligada aos poderes instituí<strong>do</strong>s tanto na colôniaquanto no Império, a Igreja Católica brasileira teria que, apartir da República, aprender a fazer política fora <strong>do</strong> governo,o que de fato aprendeu.Nos anos de 1970, em plena ditadura militar brasileiraaparecia uma nova abordagem pastoral por parte<strong>do</strong> clero latino-americano, sobretu<strong>do</strong> após a ConferênciaEpiscopal Latino-Americana de Medellín (CELAM, 1968) eseus des<strong>do</strong>bramentos eram, no entender <strong>do</strong>s militares, potencialmentesubversivos. A Teologia da Libertação não erabem vista pelo governo, e não foram poucos os chama<strong>do</strong>s


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>346“padres vermelhos” presos pelo regime. Nessa conjunturaa universidade assiste um renovar de interesses pela históriada Igreja, e a Primeira República aparece como marcorelevante.No contexto mais amplo da história <strong>do</strong> catolicismo,a Proclamação da República se insere no processo de intensificação<strong>do</strong> conserva<strong>do</strong>rismo religioso e da romanização<strong>do</strong> clero pelo mun<strong>do</strong>. Esse processo, alimenta<strong>do</strong> pelaperda de poder temporal <strong>do</strong> papa com a criação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>italiano em 1860 e a tomada de Roma em 1870, teria comomarcos o Concílio Vaticano I que deliberou sobre a infalibilidadepapal e o famoso Syllabus Errorum da EncíclicaQuanta Cura de 1868, que denunciava todas as ideologiasda modernidade 272 como sen<strong>do</strong> contrária a fé católica. Oultramontanismo nada mais era que a defesa da supremacia<strong>do</strong> papa<strong>do</strong> e da hierarquia clerical na forma de um ataquefrontal ao cientificismo laicizante em plena ascensãona Era <strong>do</strong> Impérios.Tal ataque às posições clericais já era perceptível nosanos finais <strong>do</strong> império e levou mais de um autor a vincularo longínquo confronto Esta<strong>do</strong>-Igreja de 1874 com a Proclamaçãoda República em 1889. Chama<strong>do</strong> de “A QuestãoReligiosa”, o conflito levou a prisão de <strong>do</strong>is bispos pordesobediência às ordens <strong>do</strong> Impera<strong>do</strong>r. Não por acasoocorreu durante o ministério laicizante e moderniza<strong>do</strong>r <strong>do</strong>Visconde <strong>do</strong> Rio Branco 273 que com o apoio <strong>do</strong> Monarcasustentou a supremacia da Constituição sobre a autoridade<strong>do</strong> Papa.Com a República viria tu<strong>do</strong> junto. O Esta<strong>do</strong> Laicopressupunha a perda <strong>do</strong> controle da Igreja sobre os casamentos,cemitérios, registros civis e a educação, além daperda de meios materiais de sustento aos cultos e o declínio<strong>do</strong> prestígio, incluin<strong>do</strong> a proibição <strong>do</strong> voto e, portanto,da participação política institucional aos padres. São numerosasas interpretações que enxergam na Primeira Repúblicaum interregno <strong>do</strong> prestígio da Igreja. Uma “Idadedas Trevas” entre o Padroa<strong>do</strong> imperial e o Renascimentocatólico permiti<strong>do</strong> pela “aliança” que se verificaria entre oCardeal Leme e Getúlio Vargas nos Anos 30.Não era esse o entendimento de parte <strong>do</strong>s própriosmembros <strong>do</strong> clero na Primeira República. Muitos viam asi mesmos e à sua Igreja com otimismo renova<strong>do</strong>. Aindaque o estabelecimento <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> laico tenha si<strong>do</strong> critica<strong>do</strong>duramente pela Igreja durante a Constituinte em 1890,ele na verdade liberava o clero para a verdadeira tarefa deevangelização apostólica. A cooptação de importantes272 O liberalismo, o positivismo, a maçonaria, o cientificismo, o socialismo, entremuitos outros.273 O Visconde já havia proposto também o fim da interdição <strong>do</strong> voto aos nãocatólicos, atrain<strong>do</strong> para si a ira <strong>do</strong>s políticos ultramontanos, muitos <strong>do</strong>s quaiseram padres e bispos.


347A Primeira República(1889-1930)setores da intelectualidade seria o ápice deste otimismona década de 1920, com a fundação <strong>do</strong> Centro D. Vitale o surgimento de revistas católicas como a dirigida porJackson de Figueire<strong>do</strong>.Ainda assim, o panorama traça<strong>do</strong> por parte da historiografiaé de penumbra. Por um la<strong>do</strong> a romanização erafeito com a “exportação” intensa de padres europeus parao <strong>Brasil</strong>, que sofriam resistência surda <strong>do</strong> clero local. Poroutro, estes esforços apostólicos não eram mais que a sobrevivênciade uma instituição fragilizada no contexto decrescente laicização das elites, perda de prestígio políticoda Igreja e falta de controle sobre as formas de religiosidadepopular que favoreciam a proliferação de sebastianismos,milenarismos e messianismos, ou pior, permitiam ocrescimento de religiosidades alternativas como o protestantismo,o espiritismo e as religiões africanas.Tais abordagens foram fortemente criticadas porSérgio Miceli 274 . Este autor reconhece a incapacidade daIgreja controlar os movimentos e religiosidades populares,mas entende o perío<strong>do</strong> da Primeira República como sen<strong>do</strong>o momento de requalificação <strong>do</strong> entendimento <strong>do</strong> poderinstitucional <strong>do</strong> clero, que nesta fase ampliou e intensificousua presença geográfica por to<strong>do</strong> o país – trata-se da faseáurea da proliferação de paróquias, dioceses e prelazias –com intensa articulação junto às oligarquias no poder, sobretu<strong>do</strong>no sudeste.Da leitura de Miceli temos ao final <strong>do</strong> Perío<strong>do</strong> umaIgreja muito mais forte e segura inclusive de sua influênciapolítica, conforme evidencia<strong>do</strong> pela articulação <strong>do</strong>s intelectuaiscatólicos no Centro D. Vital e na revista A Ordem, eno papel relevante desempenha<strong>do</strong> ao longo da Era Vargas.A Igreja da Primeira República, ao recusar a participaçãopolítica direta 275 em prol de uma autoridade moral indireta,conseguia preencher uma lacuna essencial deixada pelopoder público no campo da sociedade. Isso se deu principalmentepor meio da ampla gama de colégios religiosos,funda<strong>do</strong>s então no vácuo deixa<strong>do</strong> pelo poder público porfalta de meios e recursos, onde os jovens filhos das elitesestaduais estudariam.O problema da educação era uma discussão pungentena Terceira República Francesa, modelo para osintelectuais brasileiros. Entre uma educação laica e técnicapor um la<strong>do</strong> e, por outro, a proposta ultramontanade uma educação confessional e tradicionalista, o Esta<strong>do</strong>Republicano lavava as mãos. A Igreja educava as elites,mas o povo era relega<strong>do</strong>. Exceto na Capital Federal, ondese estima cerca de 50% da população tinha condições274 MICELI, Sérgio. A elite eclesiástica no <strong>Brasil</strong>. São Paulo: Difel, 1988.275 Inclusive critican<strong>do</strong> os “políticos de batina” e os anseios para o estabelecimentode um parti<strong>do</strong> católico nos moldes chilenos, arduamente defendi<strong>do</strong>s porparcela da intelectualidade, como por exemplo, Carlos de Laet.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>348de leitura, no interior não havia escolas. Quan<strong>do</strong> havia,submetia-se o estudante a um ensino de “cartilhas” comfrases vazias, basea<strong>do</strong> em repetições descoladas da realidade<strong>do</strong> aluno, e entremeadas pela palmatória e outroscastigos físicos, que serviam para sustentar a disciplina ea hierarquia, função, ainda hoje primordial para as instituiçõeseducacionais <strong>do</strong> país. Não chegava a 30% o totalde crianças e jovens matricula<strong>do</strong>s em escolas durante oprimeiro Perío<strong>do</strong> República 276 .Desta forma, os escritores e intelectuais que buscavamreformar o <strong>Brasil</strong>, insatisfeitos e decepciona<strong>do</strong>s comas elites que os ignoravam e/ou alijavam das decisões políticas,por mais que simpatizassem com o “povo”, este enteabstrato e poderoso, não podia ser por ele li<strong>do</strong>.Neste contexto de poucos leitores se destaca acentralidade <strong>do</strong> jornalismo. A palavra impressa ganhasignificativo espaço nas primeiras décadas <strong>do</strong> século e odesenvolvimento tecnológico passa a permitir a presençade caricaturas e fotografias. Praticamente to<strong>do</strong>s os intelectuais<strong>do</strong> perío<strong>do</strong> tiveram passagem pela imprensa, bem276 Na década de 1920 ganham força os méto<strong>do</strong>s da chamada “Escola Nova”cujo projeto moderniza<strong>do</strong>r e laicizante embasa as reformas educacionais deSão Paulo (Sampaio Dória, 1920), Ceará (Lourenço Filho, 1925), Minas Gerais(Francisco Campos) e Distrito Federal (Fernan<strong>do</strong> de Azeve<strong>do</strong>, 1928). Senacionalizaria na Era Vargas a partir <strong>do</strong> Manifesto <strong>do</strong>s Pioneiros da EducaçãoNova de 1932, cujo principal nome foi o de Anísio Teixeira funda<strong>do</strong>r daUniversidade <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>.como muitos políticos importantes – Quintino Bocayuva,Joaquim Nabuco e o Barão <strong>do</strong> Rio Branco são os exemplosmais famosos de figuras relevantes da história da políticaexterior <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> que começaram sua atuação profissionalcomo jornalistas. Tratava-se sim da verdadeira escola deintelectuais. A exposição pública das ideias era feita na formacurta da crônica, nos moldes políticos <strong>do</strong>s manifestos eeditoriais, nas reportagens coloridas de linguagem literáriatípica <strong>do</strong>s jornais de então, li<strong>do</strong>s por quem tinha tempo desobra para dispensar “lides” e ser seduzi<strong>do</strong> por repórterescom laivos de Sherazade, alongavam narrativamente osacontecimentos, mas também nas curtas e diretas caricaturas,de crítica social e política popularizadas nas revistasilustradas que proliferam na Primeira República.A chegada ao <strong>Brasil</strong> <strong>do</strong> italiano Ângelo Agostini em1867, e a fundação de sua Revista Ilustrada (1876-1898)nove anos depois promoveram uma enorme transformaçãono panorama editorial brasileiro. A “Revista” se tornariao periódico por excelência a ironizar os acontecimentospolíticos <strong>do</strong> final <strong>do</strong> império e <strong>do</strong>s anos iniciais da repúblicapor meio <strong>do</strong> traço pesadão, litográfico, detalhista echeio de sombras e jogos de luz que o italiano deixou delega<strong>do</strong> para muitos que resolveram copiá-lo.Era uma potencial forma de comunicar ideias complexasacessíveis até aos analfabetos (ou quase) que pediama outros lhes lessem as legendas e tornava acessíveisa muitos os rostos <strong>do</strong>s famosos e poderosos. Isso explica


349A Primeira República(1889-1930)o sucesso e a longevidade da revista e sua enorme permeabilidadena capital e no interior, onde os fazendeirosaguardavam-na ansiosos para lerem-nas em suas varandas,conforme imagem imortalizada por Monteiro Lobato.Ao final <strong>do</strong> século, o traço de Agostini foi sen<strong>do</strong> deixa<strong>do</strong>de la<strong>do</strong> em prol de um desenho mais limpo e simples<strong>do</strong> português Rafael Bordalo Pinheiro cujos segui<strong>do</strong>res sãoconsidera<strong>do</strong>s os príncipes da caricatura da primeira república.Kalixto, J. Carlos e Raul Pederneiras, pais da caricaturabrasileira 277 , fizeram um modernismo irônico e crítico muitoantes <strong>do</strong> modernismo, satirizan<strong>do</strong> os poderosos de mo<strong>do</strong>“cordial” 278 , isto é, não belicoso ou impessoal, mas trazen<strong>do</strong>o presidente, o político para a esfera de convívio <strong>do</strong> homemcomum, tornan<strong>do</strong>-o alguém capaz de dialogar como “Zé Povo”, personagem frequente nos cartuns da época,e, sintomaticamente, nunca negro.277 Em revistas como O Malho (1902), Careta (1907), Fon-Fon (1907) e, sobretu<strong>do</strong>D. Quixote (1917) que este grupo de cartunistas, articula<strong>do</strong> ao grupo <strong>do</strong>scronistas ditos boêmios faria historia. Cada qual com seu traço particular(caricaturas de autor, facilmente reconhecidas) em publicações queprimavam pelo esmero estético, edições com páginas coloridas, diagramaçãomoderna e novas técnicas de impressão e que ainda hoje chamam atençãopor sua beleza e são disputadas valiosamente por coleciona<strong>do</strong>res.278 Isabel Lustosa chama de herança cordial da nossa caricatura, reconhecen<strong>do</strong>a polêmica que o conceito cria<strong>do</strong> por Sérgio Buarque suscita. Aproveita-se desua ambiguidade propositalmente para reconhecer na caricatura o veículoperfeito para ilustrar ambas as acepções de “cordialidade”: a Buarquiana –pessoalidade, mediação improvisada e familiar, emoção sobre a razão – e aque lhe foi atribuída erroneamente – hospitalidade, simpatia, moderação,gentileza.Assim, personagens antipáticos e presidentes autoritárioscomo Deo<strong>do</strong>ro, Floriano, e mais tarde, Getúlio,eram satiriza<strong>do</strong>s, sempre no intuito <strong>do</strong> humor e da blague,nunca saem massacra<strong>do</strong>s. Já personagens mais simpáticoscomo o presidente “baixinho” Rodrigues Alves, que chegavaa colecionar suas representações frequentes durante o“bota-abaixo” e seu Ministro <strong>do</strong>s negócios estrangeiros, umbarão <strong>do</strong> Rio Branco “parru<strong>do</strong>” e “bonachão”, foram trata<strong>do</strong>scom incrível simpatia e generosidade pelo traço destescartunistas. Se os satirizavam, não raro demonstravamcarinho com o presidente – que ganhou uma caricaturade “Feliz Aniversário” – e que no caso <strong>do</strong> barão teciam frequentesloas a sua atuação e o transformaram em “estadistagenial”, sen<strong>do</strong> certamente responsáveis por parcela nãodesprezível da grande popularidade que gozava em vidaentre o povo.Os cartunistas e jornalistas <strong>do</strong> círculo boêmio encontraramou criaram pontes entre a elite culta e o povodas ruas. Lima Barreto e João <strong>do</strong> Rio, Donga e Sinhô, ErnestoNazareth e muitos outros produziam bens culturais parao consumo das elites letradas basea<strong>do</strong>s nas experiênciasque viviam nos bas-fond, na pequena África, nos círculosde lundus que eram reprimi<strong>do</strong>s pela polícia que zelavapela moralidade pública afrontada pelas umbigadas. Ironicamenteo lundu e o maxixe, eram aprecia<strong>do</strong>s quan<strong>do</strong>apareciam no teatro de Revista, e não raro furavam amembrana que parecia separar o gosto <strong>do</strong>s abasta<strong>do</strong>s das


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>350tradições populares 279 . Agora estavam mais “populares”,e seus personagens refletiam isso em figuras como o “ZéPovo” e o “Jeca Tatu” de Monteiro Lobato, personagens maispróximos da realidade <strong>do</strong> que a tradição idealizada da épocade Agostini que retratava o “povo” como um índio, brancoe europeiza<strong>do</strong>.Esse mediação busca questionar a tradição de escritossobre o modernismo que pelo menos desde AntonioCandi<strong>do</strong> (1957) enxerga tu<strong>do</strong> o que veio entre a geraçãode 1870 e a Semana de 1922 como sen<strong>do</strong> de menor valor.Uma espécie de interregno intelectual, de vazio, quemesmo a existência de um Euclides da Cunha e um LimaBarreto não teria si<strong>do</strong> capaz de debelar. Os conceitos controversosde pré-modernismo procuram dar conta <strong>do</strong> que279 É conhecidíssima a polêmica que Ruy Barbosa levou ao Congressoquan<strong>do</strong> a jovem esposa <strong>do</strong> presidente Hermes, Nair de Teffé inseriu emprogramação da recepção oficial no Palácio <strong>do</strong> Catete o já famoso “cortajaca”,maxixe de Catulo da Paixão Cearense, que ela fez questão de tocarcomo representante da música verdadeiramente brasileira. Nada melhorque as palavras preconceituosas <strong>do</strong> baiano para se ter uma ideia da reaçãodas “elites bem pensantes” da época sobre a cultura popular. “Uma das folhasde ontem estampou em fac-símile o programa da recepção presidencial emque diante <strong>do</strong> corpo diplomático, da mais fina sociedade <strong>do</strong> Rio de Janeiro,aqueles que deviam dar ao país o exemplo das maneiras mais distintas e <strong>do</strong>scostumes mais reserva<strong>do</strong>s elevaram o Corta-Jaca à altura de uma instituiçãosocial. Mas o Corta-Jaca de que eu ouvira falar há muito tempo, que vem aser ele, Sr. Presidente? A mais baixa, a mais chula, a mais grosseira de todas asdanças selvagens, a irmã gêmea <strong>do</strong> batuque, <strong>do</strong> cateretê e <strong>do</strong> samba. Masnas recepções presidenciais o Corta-Jaca é executa<strong>do</strong> com todas as honrasda música de Wagner, e não se quer que a consciência deste país se revolte,que as nossas faces se enrubesçam e que a mocidade se ria?”.veio antes como mero antecedente e demonstram a centralidade<strong>do</strong>s marcos cronológicos de ruptura, como foi ocaso da Semana de Arte Moderna. Na verdade comprama Semana pelo que ela quis se vender, como uma rupturaradical com um passa<strong>do</strong> arcaico, e se esquecem <strong>do</strong>s elementosde continuidade inescapáveis entre a “Geração de1870” e o Modernismo.O modernismo pós-1922, rapidamente se subdivideem vertentes. Polêmicas a respeito <strong>do</strong> regionalismo comofragmenta<strong>do</strong>r ou como o verdadeiro lócus da identidadenacional. Polêmicas sobre as duas tradições a serem incorporadas<strong>do</strong> século XIX: o mecanicismo e o romantismo.A razão ou a emoção? O intelecto ou a alma? O objetivoou o subjetivo? Polêmicas sobre o conceito de “Raça” oude “Cultura”.Elias Thomé Saliba, em um texto diverti<strong>do</strong>, identificaduas tendências no Modernismo. Uma mais irracionalista,ahistórica, que buscava a identidade nacional em um passa<strong>do</strong>idealiza<strong>do</strong> e/ou construí<strong>do</strong>. O outro era mais analítico,buscava através da análise etnográfica e da pesquisa sobrea identidade nacional. O Folclore <strong>do</strong> povo brasileiro e suastradições iriam desvelar nossa “cultura” tal qual fica patentenos estu<strong>do</strong>s de Mário de Andrade e Villa-Lobos, e, depoisna historiografia ensaística sobre a identidade nacional deSérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre e Paulo Pra<strong>do</strong>.Na outra ponta <strong>do</strong> modernismo estavam Menotti DelPicchia, Cassiano Ricar<strong>do</strong>, Guilherme de Almeida e Plínio


351A Primeira República(1889-1930)Salga<strong>do</strong>. Como no clássico de Guilherme de Almeida, aoinvés da “cultura” a<strong>do</strong>tava-se o conceito polêmico de “Raça”.O contraste entre as duas vertentes está na comparaçãonunca ausente nas análises <strong>do</strong> modernismo entre oMartim Cererê de Cassiano Ricar<strong>do</strong> com o Macunaíma deMário de Andrade, ambos de 1928, ambos com a pretensãode ser a síntese literária <strong>do</strong> herói nacional modernista.Cererê é a culminância das três raças que formam o <strong>Brasil</strong>.Macunaíma é “herói de nossa gente” e não de nossa raça.Não tem qualquer objetivo nem lógica e quer incorporaro improviso e a sensualidades brasileiras. Cererê é wagneriano,mitológico, epopeico. Sobressaía nesta visão a centralidadede São Paulo e, elegeu-se a figura <strong>do</strong> bandeiranteguerreiro como símbolo desta volta ao passa<strong>do</strong> míticoonde se encontrava a identidade nacional 280 . De um la<strong>do</strong>o Pau-brasil (1924) e a Antropofagia (1928). De outro osverde-amarelos. O verde-amarelismo flertava com um tipode nacionalismo irracionalista tão em voga na Europa daépoca que beirava o chauvinismo. Sabemos bem os des<strong>do</strong>bramentospolíticos que daí advieram, bastan<strong>do</strong>, paratanto, seguir a carreira <strong>do</strong> poeta Plínio Salga<strong>do</strong>.Na mesma época que se deu a redação <strong>do</strong> manifestoPau-brasil (1924) destacam-se as chamadas “viagens dedescobrimento” ao interior <strong>do</strong> país. As caravanas modernistasde Oswald e Mário de Andrade, Tarsila <strong>do</strong> Amaral, ManuelBandeira e Blaise Cendrars eram jornadas feitas paradescobrir o “povo”. Tinham o intuito de encontrar o “<strong>Brasil</strong>profun<strong>do</strong>” e se transformaram em crônicas de um “turistaaprendiz” publicadas no final <strong>do</strong>s anos 1920.A chegada ao <strong>Brasil</strong> <strong>do</strong> intelectual franco-suíço BlaiseCendrars em 1924 demonstra a aceitação possível da influênciaeuropeia, que não era negada radicalmente comonão brasileira, mas incorporada e digerida, como diria anosmais tarde seu companheiro de caravana, Oswald de Andrade.Oswald e Tarsila já haviam conheci<strong>do</strong> Cendrars naFrança e, quan<strong>do</strong> este chegou ao <strong>Brasil</strong> aceitan<strong>do</strong> o convite<strong>do</strong> Mecenas e intelectual Paulo Pra<strong>do</strong> desencadeouimportante transformação no cenário <strong>do</strong> modernismobrasileiro. Foi ele, por exemplo, quem estimulou a a<strong>do</strong>çãopelos modernistas <strong>do</strong> primitivismo das vanguardas europeias,e provocou com sua influência uma certa libertaçãoestilística na produção oswaldiana. Cendrars era irônico aorefletir sobre seu próprio papel de legitimação “civilizada”<strong>do</strong> modernismo paulista 281 . Oswald resolvia essa contradiçãode mo<strong>do</strong> irreverente: abrasileirava o suíço chaman<strong>do</strong>-ode “Blaise du Blaisil”280 Os logra<strong>do</strong>uros e o estatuário da capital paulista ainda hoje ostentamagiganta<strong>do</strong>s os símbolos da “Epopeia bandeirante” como é o caso da estátuade Borba Gato ou <strong>do</strong> Monumento às Bandeiras de Victor Brecheret.281 “Abominavam a Europa mas não conseguiam viver sem o modelo de suapoesia. Queriam estar por dentro, a prova é que me convidaram...” CENDRARS,Blaise. Apud. VELLOSO, Monica Pimenta, p. 373.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>352O que salta aos olhos na maioria esmaga<strong>do</strong>ra dasabordagens sobre o modernismo é o quão aquém estão<strong>do</strong> seu objeto de estu<strong>do</strong>. Contrastam com o caso machadiano,no qual é a qualidade e a criatividade é perceptívelem seus analistas (Roberto Schwarcz, John Gledson,Gustavo Franco). No caso <strong>do</strong> modernista, sua autoironia,sua irreverência, seu recorrente humor, sua insistência emnão levar as coisas e a si mesmos muito à sério, incorporan<strong>do</strong>a sensualidade inerente à brasilidade, não encontrasenão enfa<strong>do</strong>, teorizações complexas, seriedade demasiada,polêmicas formalistas e sucessões de exemplificaçõesque tentam forçar o modernismo nas categoriastaxionômicas quase tão diversas quanto os próprios autores.Os analistas não estão à altura <strong>do</strong>s analisa<strong>do</strong>s e sãomuito chatos. Talvez por isso, e por conta da polissemia ediversidade <strong>do</strong> modernismo, não conseguem senão ir decitação em citação, de referência em referência como quereconhecen<strong>do</strong> que o ideal mesmo seria deixar os autores,pintores, compositores, críticos e intérpretes da época falarempor si mesmos.Não é propriamente uma história <strong>do</strong> modernismoque se percebe, mas uma longa cura<strong>do</strong>ria. Infelizmenteesse texto não foge à norma e assim se reconhece, porfalta, sobretu<strong>do</strong>, de talento, mas também falta de coragemde escrever sobre o modernismo em versos macunaímicosque frustraria os leitores mais sérios destemanual.Não custa concluir com algumas palavras sobre acrescente popularidade <strong>do</strong> football esporte inicialmenteelitista, e que aos poucos vai conquistan<strong>do</strong> os brasileiros –não sem detratores como, por exemplo, Lima Barreto quecriou uma liga contra o futebol – e se tornan<strong>do</strong> o esportemais popular <strong>do</strong> país ainda antes da revolução de 1930.Heróis da bola como Arthur Friedenreich, filho de alemãocom mulata, levava para o racionalismo inglês nos camposonde pre<strong>do</strong>minava a força e a velocidade, o ginga<strong>do</strong>, a malíciae o improviso típico <strong>do</strong>s sambistas. Aos poucos as “peladas”foram sen<strong>do</strong> incorporadas ao cotidiano de lazer <strong>do</strong>soperários brasileiros e com o advento <strong>do</strong> rádio, as partidas<strong>do</strong>s clubes e da seleção nacional passaram a ser objeto dei<strong>do</strong>latria por parte significativa da população.Concomitantemente, o samba, pratica<strong>do</strong> e desenvolvi<strong>do</strong>a partir das danças escravas <strong>do</strong>s homens livres queapós a Lei Áurea vieram <strong>do</strong> Vale <strong>do</strong> Paraíba para habitaros morros cariocas, como o Estácio, se tornava cada vezmais popular. Cantores renoma<strong>do</strong>s compravam sambas<strong>do</strong>s artistas negros <strong>do</strong> morro como Ismael Silva, ou lhesofereciam parceria. Um la<strong>do</strong> entrava com a canção e letra,o outro com dinheiro ou a possibilidade de gravação. Emboraimensamente polêmica, convencionou-se dizer queé de 1917 o primeiro samba urbano grava<strong>do</strong>, Pelo Telefonede Ernesto <strong>do</strong> Santos, o Donga. Sua gravação mecânica eelétrica aponta para o surgimento de um merca<strong>do</strong> culturalque daria amplitude a uma riquíssima cultura oral prévia.


Juntos, o samba e o futebol – criações desta Repúblicaexcludente e oligárquica – se tornariam, em poucotempo, sínteses culturais <strong>do</strong> que é ser brasileiro para omun<strong>do</strong>.353A Primeira República(1889-1930)


3556. A Era Vargas (1930-1945)6.1 O Governo Provisório (1930-1934): Forças Políticas e DissidênciasFacções políticas no Governo Provisório. A heterogeneidade das bases. Oligarquias dissidentes versus tenentes.O problema militar: rabanetes e picolés. Os antecedentes <strong>do</strong> levante paulista. Algumas considerações sobre arepercussão internacional da Revolução de 1932. As consequências da Revolução Constitucionalista.Uma vez concluída a tarefa revolucionária <strong>do</strong> três de outubro, assumiam os novos senhores da situação,tenentes e gaúchos à frente, a formidável obra de transformar o <strong>Brasil</strong>. Avalia<strong>do</strong>s oitenta anos depois,pode-se dizer que foram bem-sucedi<strong>do</strong>s. No contexto da época, no entanto, a revolução – e os revolucionáriosmais ainda – era grandemente controversa. O movimento opositor que eclodiria em São Paulo,um ano e meio depois da revolução de 30 é a evidência mais óbvia e conhecida desta controvérsia. Mas a“Revolução Constitucionalista”, que por pouco não foi apoiada pelos governos de Minas Gerais e <strong>do</strong> RioGrande <strong>do</strong> Sul, teve significativo apoio da população <strong>do</strong> Rio de Janeiro, de importantes setores <strong>do</strong> Exército,além de certa simpatia internacional 282 . Tratava-se, entre julho e outubro de 1932, da expressão mais resolutae intransigente de uma oposição que era mais branda, porém mais generalizada <strong>do</strong> que o restrito levantebandeirante.Na heterogeneidade das forças que compunham o movimento revolucionário de outubro resideparte significativa da explicação da instabilidade <strong>do</strong> Governo Provisório. Foram dezenas de levantes militares,motins e revoltas em guarnições importantes e periféricas que levaram José Murilo de Carvalho acomparar o Governo Provisório e sua instabilidade ao perío<strong>do</strong> regencial ocorri<strong>do</strong> exatamente um séculoantes. Se ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> governo que assumia estavam inequivocamente os tenentes e os gaúchos, estavamtambém, menos inequivocamente, os mineiros e a importante oposição paulista ao PRP representadapelo Parti<strong>do</strong> Democrático (PD). E ainda, de mo<strong>do</strong> relutante, a alta cúpula das Forças Armadas, que282 Stanley Hilton demonstra em Guerra Civil <strong>Brasil</strong>eira momentos de simpatia internacional à causa constitucionalista, por parte de países como aFrança e o Paraguai, por exemplo.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>356desfechara o golpe de misericórdia contra o governo deWashington Luiz em 24 de outubro. Fizeram os generaiso que fizeram em parte por perceber os riscos de umaguerra civil de consequências imprevisíveis, e, em parte,para preservar-se <strong>do</strong> protagonismo <strong>do</strong>s tenentes, ameaçarecorrente à hierarquia das Forças Armadas. Tambémtranquilizava a alta cúpula a presença de um político tradicionalna liderança revolucionária. Getúlio Vargas, governa<strong>do</strong>r<strong>do</strong> Rio Grande <strong>do</strong> Sul, ex-ministro da Fazendaera visto como um freio ao radicalismo <strong>do</strong>s tenentes eviabilizava a negociação intramilitar vertical, impossívelnos movimentos de 1922, 1924 e 1925. Vargas seria pelospróximos quinze anos o media<strong>do</strong>r, cada vez mais competente,segun<strong>do</strong> Frank McCann, <strong>do</strong>s conflitos internos nasforças armadas.Na expectativa por mudanças, o povo, com a convicçãode que “pior <strong>do</strong> que estava não ficaria”, tinha grandesimpatia pela oposição que Vargas representava. Esta simpatiaaumentou com a morte de João Pessoa cujos motivos– passionais – não foram claramente compreendi<strong>do</strong>sna época, além de abertamente manipula<strong>do</strong>s pela AliançaLiberal para deflagrar a revolução. Dentro da rubrica generalistade “povo”, podemos incluir o movimento operário.Eram os operários – comunistas ou não – esperançosos demelhoras em sua situação. Se a agenda <strong>do</strong>s tenentes contemplavamelhorias das condições <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res pormeio da intervenção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e da crítica ao liberalismo,estes eram bem vistos. Mas, para além de aclamar Getúlioquan<strong>do</strong> de sua breve passagem por São Paulo no trem queo levaria <strong>do</strong> Rio Grande ao Catete, não foram os operários,revolucionários em 1930. Por mais que insista parte da historiografia<strong>do</strong>s anos 1970 e 1980, a verdade é que o operaria<strong>do</strong>brasileiro era fraco e bem pouco presente de mo<strong>do</strong>organiza<strong>do</strong> fora <strong>do</strong>s grandes centros e, principalmente, porisso não teve papel protagonista nos eventos de outubrode 1930. A recusa de Luís Carlos Prestes, já converti<strong>do</strong> aocomunismo, em se vincular à revolução é sintomática destealijamento.Em síntese, tinha Getúlio um problema clássicode base. Divisões internas óbvias de uma base heterogêneademais. Em um sistema institucionaliza<strong>do</strong>, como nademocracia parlamentar representativa, isso já seria umgera<strong>do</strong>r de instabilidades. Ainda mais em um quadro defrequente intervenção militar na vida política herda<strong>do</strong> daturbulenta década de 1920 que culminara na Revolução.Não existiam mais marcos institucionaliza<strong>do</strong>s de mediaçãode conflitos. Uma divisão simplificada da base revolucionárianos permite perceber três grupos distintos. O maisforte, mais radical e revolucionário destes grupos eram ostenentes. Eles eram os jacobinos de 1930. Tinham amplorespal<strong>do</strong> popular, simpatia junto à classe operária, um lega<strong>do</strong>de lutas heroicas <strong>do</strong>s anos 20, com mártires e tu<strong>do</strong>.Arregimentaram significativo apoio na elite civil e, com aformação <strong>do</strong> Clube Três de Outubro, institucionalizaram-se.


357A Era Vargas (1930-1945)Não tinham uma agenda muito definida 283 , mas eram herdeirosde um pensamento nacionalista autoritário, fortementedefensor <strong>do</strong> intervencionismo, como já visto emoutra parte.Os girondinos de 1930 eram uma pletora heterogêneade elites. De um la<strong>do</strong>, elites tradicionais como a mineiraque se sentira preterida e excluída pelo PRP e porWashington Luiz nas eleições de 1930, mas que estiverano poder ao longo de toda a República. De outro, eliteslocais como o PD, que formavam uma oposição liberal, intelectual,urbana e com presença na classe média e alta deSão Paulo. Os gaúchos eram eles próprios dividi<strong>do</strong>s. Estrelade segunda grandeza na Política <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s de CamposSalles, o Rio Grande já apresentara oposição ao candidatosituacionista em 1910 (Hermes venceu) e em 1922 (NiloPeçanha perdeu). Getúlio havia si<strong>do</strong> um candidato de consensopara o governo gaúcho na difícil concertação entreliberais e republicanos, que já havia derrama<strong>do</strong> muitosangue nos pampas até o pacto de Pedras Altas de 1923.Esta conciliação forçara Borges de Medeiros, o eterno presidente<strong>do</strong> Rio Grande (duas décadas), para fora <strong>do</strong> Piratinie alçara Vargas à posição de liderança nacional, quan<strong>do</strong>283 O fato de não possuírem uma agenda clara permitiu, em longo prazo, quemuitos de seus líderes se tornassem figuras políticas relevantes de facçõesmuito distintas entre si. Luiz Carlos Prestes, presidente <strong>do</strong> PCB, e Eduar<strong>do</strong>Gomes, da UDN, são apenas os <strong>do</strong>is principais exemplos.os mineiros propuseram no Hotel Glória uma alternativa à“traição” de Washington Luís.Em poucas palavras, eram situacionistas magoa<strong>do</strong>sem Minas e na Paraíba, oposicionistas liberais de elite emSão Paulo, e as duas coisas juntas no Rio Grande. Tratava-sede gente acostumada à velha ordem, que se opusera a elaconjunturalmente e não estruturalmente. Queriam o fimda hegemonia <strong>do</strong> PRP e não, como os tenentes, a destruição<strong>do</strong> sistema. Uma vez derruba<strong>do</strong> Washington Luís,começam os conflitos “jacobinos-girondinos”, já que osnossos girondinos estavam muito mais próximos <strong>do</strong> PRPque <strong>do</strong>s tenentes.Estes grupos estavam representa<strong>do</strong>s geograficamenteno Ministério. Um paulista na Fazenda (Whithaker),um mineiro nas Relações Exteriores (Afrânio, e em 1934,no recém-cria<strong>do</strong> Ministério da Educação, Capanema) egaúchos na Agricultura (o chefe liberal Assis <strong>Brasil</strong>), na Justiça(Oswal<strong>do</strong> Aranha, próximo <strong>do</strong>s tenentes) e no Trabalho(Lin<strong>do</strong>lfo Collor). Restou aos generais que derrubaramWashington Luís a pasta da Guerra (Leite de Castro). Jáos tenentes, presentes no “gabinete negro”, que se reuniafrequentemente com Getúlio no Palácio da Guanabara, tinhamcomo principal representante Juarez Távora, que foiministro da Viação e Obras Públicas por <strong>do</strong>is dias para, emjaneiro de 1931, ser nomea<strong>do</strong> delega<strong>do</strong> militar <strong>do</strong> Norte eNordeste, função na qual, fazia e desfazia os interventores


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>358da região 284 . Apelida<strong>do</strong> “Vice-Rei <strong>do</strong> Norte” pela imprensa,foi, nos anos iniciais <strong>do</strong> novo regime, uma espécie de governa<strong>do</strong>r<strong>do</strong>s governa<strong>do</strong>res.O terceiro grupo, a alta cúpula militar, era o maisperigoso. Desfechara o golpe em Washington Luís, train<strong>do</strong>o governo que jurara constitucionalmente defender. Pararepetir o feito, desta vez com um governo recém-empossa<strong>do</strong>,sem Constituição e com parca legitimidade não custariamuito. Exonerar imediatamente os generais da juntaque entregaram o poder a Vargas também não era viável.Talvez Vargas não conhecesse a história mexicana recentepara recordar o que tinha aconteci<strong>do</strong> com fina<strong>do</strong> presidenteFrancisco Madeiro, assassina<strong>do</strong> ao ignorar os riscosde situação análoga. E, certamente, o general humanista284 Foi na nomeação de interventores estaduais que residiu a expressão máxima<strong>do</strong> poder <strong>do</strong> tenentismo nos anos iniciais pós-revolução. Revogada aConstituição e desmontada a máquina federalista herdada de Campos Salescom a Política <strong>do</strong>s Governa<strong>do</strong>res, ficava muito mais fácil enfraquecer oscoronéis. O salvacionismo hermista buscara o mesmo objetivo vinte anosantes. Agora parecia que o tenentismo conseguiria o que seu herói, o ex--presidente Hermes da Fonseca, não fora capaz de lograr. Articula<strong>do</strong>s noMinistério da Justiça sob o coman<strong>do</strong> de Oswal<strong>do</strong> Aranha, e na DelegaciaMilitar <strong>do</strong> Norte, sob o coman<strong>do</strong> de Juarez Távora, os esta<strong>do</strong>s, to<strong>do</strong>s, comexceção de Minas, tiveram interventores, a maior parte <strong>do</strong>s quais liga<strong>do</strong>sao tenentismo, nomea<strong>do</strong>s para substituir os governa<strong>do</strong>res anteriores. Como passar <strong>do</strong> tempo, a extinção da Delegacia <strong>do</strong> Norte (dezembro de 1931)e a criação <strong>do</strong> Código das Interventorias (agosto de 1931), bem como asubstituição de Aranha por Mauricio Car<strong>do</strong>so na pasta da Justiça (dezembrode 1931), Vargas vai demonstran<strong>do</strong> crescente capacidade em aplacar otenentismo e, aos poucos, assumir o controle de seu próprio governo,centralizan<strong>do</strong>-o.Tasso Fragoso não tinha vocação para dita<strong>do</strong>r como umHuerta, mas, intuitivamente, ter si<strong>do</strong> cria<strong>do</strong> nas guerras civisgaúchas o deixaram atento aos riscos iminentes de umnovo golpe militar. Vargas passou por maus momentos e,não raro, como atesta seus diários, cogitou suicidar-se.A situação era complexa e Vargas precisava equilibrar-seperigosamente entre as três facções, conten<strong>do</strong> osradicalismos <strong>do</strong>s tenentes, que incomodavam as elites eirritavam os generais da velha ordem, saben<strong>do</strong>, ao mesmotempo, que eram os tenentes que poderiam garantir suamanutenção no poder contra uma revolução da elite alijada(como ocorreria em 1932) ou contra um golpe <strong>do</strong>sgenerais, que só viria quinze anos depois, quan<strong>do</strong>, então,muitos <strong>do</strong>s tenentes já eram generais.Em verdade, o problema militar era bem mais complexo.Herda<strong>do</strong> das tentativas de reforma <strong>do</strong> Exército nosanos de 1910 e 1920, uma geração anterior à <strong>do</strong>s tenentes,os “jovens turcos” de inspiração alemã, como o generalBerthol<strong>do</strong> Klinger, defendiam a hierarquia acima de tu<strong>do</strong>.O tenentismo por meio <strong>do</strong> Clube 3 de outubro e de JuarezTávora dispunham de acesso direto ao Presidente e ao Ministro.Tinham enorme influência para nomear e removercomandantes militares. Tal intervenção era a antítese dahierarquia e uma ameaça ao próprio Exército, para muitosoficiais, e Klinger não era o único de sua geração a pensarassim. Góis Monteiro, da mesma geração, buscou umapostura conciliatória e, ao criar o Clube 3 de Outubro para


359A Era Vargas (1930-1945)“tirar a política <strong>do</strong>s quartéis”, demonstrou sua preocupaçãocom a questão da hierarquia, mas o tiro saiu pela culatra,o 3 de Outubro institucionalizou algumas das propostasmais radicais <strong>do</strong>s tenentes, discutin<strong>do</strong> questões como aReforma Agrária, por exemplo. Não é de se surpreenderque muitos destes militares tenham se uni<strong>do</strong> às elites paulistasem 1932 para derrubar o governo “<strong>do</strong>s tenentes”.O ápice da crise militar se deu na chamada crise<strong>do</strong>s “rabanetes” vs. “picolés” quan<strong>do</strong> o general Leite deCastro reincorporou ao exército centenas de aspirantes,que tinham si<strong>do</strong> expulsos da escola militar no governoBernardes por apoiarem o tenentismo. Era na prática oconflito entre a revolução “picolés” e a hierarquia “rabanetes”.Oito anos de vida civil, não necessariamentemarca<strong>do</strong>s por atividades revolucionárias, levaram aoquestionamento desta medida pelos oficiais preteri<strong>do</strong>sem suas promoções pelos recém-chega<strong>do</strong>s. O generalAntonio Carlos da Silva Muricy em depoimento ao Centrode Pesquisa e Documentação de <strong>História</strong> Contemporânea<strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> (CPDOC), em 1981, diz que se tratava dedefesa da carreira, absolutamente impessoal. Revela quetinha muitos amigos “picolés”. Desconsiderar no mínimoseis anos de vida militar (foram expulsas três turmas) eradesconsiderar a própria carreira. Assim, os “rabanetes” –como ficaram conheci<strong>do</strong>s os oficiais que se opuserampor escrito a esta decisão <strong>do</strong> ministro da Guerra e forampuni<strong>do</strong>s por isso – deflagraram a crise e levaram a queda<strong>do</strong> ministro Leite de Castro. A punição foi posteriormenterevogada e foram cria<strong>do</strong>s <strong>do</strong>is quadros distintos de promoção,um exclusivamente para os picolés reincorpora<strong>do</strong>s.A substituição <strong>do</strong> ministro foi complicadíssima paraVargas. Qualquer escolha evidenciaria a opção por umadas duas facções. Ao escolher Espírito Santo Car<strong>do</strong>so, umgeneral reforma<strong>do</strong>, promovi<strong>do</strong> apenas pela aposenta<strong>do</strong>ria,Vargas tentara encontrar um nome neutro no generalato.Sua solução foi ironizada pela imprensa como umrecurso quase religioso, da<strong>do</strong> o nome <strong>do</strong> escolhi<strong>do</strong>. Vistocomo um potencial “joguete” nas mãos <strong>do</strong>s tenentes, suanomeação serviu de pretexto para a ruptura de Berthol<strong>do</strong>Klinger com o governo em defesa da hierarquia e, comisso, a precipitação da Revolução Constitucionalista, daqual este general foi o comandante militar.Há, claro, outros fatores que levaram a eclosão daRevolução Constitucionalista para além da questão militar,que são bem mais enfatiza<strong>do</strong>s pela historiografia. Ascausas civis. A historiografia paulista, ou simplesmente anti-Vargas,consoli<strong>do</strong>u o entendimento incorreto, até hojepresente nos livros escolares e nas aulas de ensino médio,que neles se embasam que o movimento paulista contraa “ditadura” que Vargas queria implementar se revestia delegitimidade constitucional. Argumentam, repetin<strong>do</strong> simplesmenteo discurso <strong>do</strong>s paulistas, que Vargas, passa<strong>do</strong>squase <strong>do</strong>is anos, não tinha intenção de reconstitucionalizaro país e ofendia a dignidade de São Paulo com sucessivos


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>360interventores militares, não paulistas. Mesmo se descontarmosum certo grau, nada desprezível, de preconceito daelite paulista contra o nordestino João Alberto, que rapidamentese indispôs com os líderes <strong>do</strong> PD, é possível elencarrazões estruturais para esse conflito. Tratava-se <strong>do</strong> atopaulista <strong>do</strong> espetáculo maior. Tenentes (reforma agrária,intervenção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> na luta Capital vs. Trabalho, fim dafraude, justiça eleitoral) contra elites tradicionais (PRP) ounão (PD), que nem por isso deixavam de serem elites, eram,perto <strong>do</strong>s tenentes, mais pareci<strong>do</strong>s que diferentes. No fun<strong>do</strong>,a bandeira constitucionalista era apenas a forma maisapresentável de defender o retorno ao sistema anterior, nomáximo com a troca das elites no poder. Foi certamenteum movimento liberal e reacionário.João Alberto não ficou sequer um ano no cargo. Defensorde medidas favoráveis aos trabalha<strong>do</strong>res paulistasque contrariavam os interesses <strong>do</strong>s liberais da elite de SãoPaulo, João Alberto chegou a ameaçar de confisco as fábricasque não acatassem as medidas sociais tomadas pelogoverno. Permitiu o funcionamento <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> Comunistae se filiou ao Clube Três de Outubro, após criar a chamadaguarda revolucionária, um grupo militar de defesa da revolução.Estas medidas o indispuseram com to<strong>do</strong>s os setoresda elite paulista e levaram à ruptura <strong>do</strong> PD com o interventore ao seu afastamento em julho de 1931.Derrubar João Alberto não apaziguou os ânimospaulistas. O PD considerava-se, pelo apoio à Aliança Liberal,herdeiro natural ao governo de São Paulo 285 . Romperia como Governo Provisório em março de 1932, logo depois de seformar a Frente Única Paulista (FUP) no mês anterior. Preferiamos democratas a aliança com os antigos “ressequi<strong>do</strong>s”<strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> Republicano à submissão ao Rio de Janeiro, queconsideravam sequestra<strong>do</strong> pelo tenentismo.Mas Vargas, perceben<strong>do</strong> que animosidade crescentede São Paulo contra as medidas intervencionistas tomadaspelo governo vinha contaminan<strong>do</strong> outros Esta<strong>do</strong>s,transigiu e buscou apaziguar os ânimos. Fez aprovar ummoderno Código Eleitoral – fruto de quatro décadas daluta de Assis <strong>Brasil</strong>, então ministro da Agricultura que o redigiuquase to<strong>do</strong> –, que permitia o voto feminino e secreto,e convocou eleições para a Assembleia Constituinte ao final<strong>do</strong> ano. Mas a corda já havia si<strong>do</strong> esticada demais e SãoPaulo acreditava que a revolução tinha si<strong>do</strong> feita contraSão Paulo. Não acreditaram na sinceridade da convocaçãode novas eleições. A trajetória posterior de eleições canceladas(1937) ou quase (1945, por conta <strong>do</strong> queremismo) fezcom que, por teleologia, a historiografia também desacreditasse,assumin<strong>do</strong> o argumento <strong>do</strong>s constitucionalistas deque Vargas queria apenas ganhar tempo. Não parece ser285 O Professor Francisco Morato, líder <strong>do</strong> PD, por pouco não assumiu o governono dia seguinte à revolução. Nomeou secretaria<strong>do</strong>, mas esperou, porcortesia, a confirmação <strong>do</strong> Governo Provisório, que por pressão <strong>do</strong>s tenentesnunca veio.


361A Era Vargas (1930-1945)o caso. O Presidente estava preso em meio a um embatede forças opostas, que ele não controlava, mas precisavaconciliar. Sua legitimidade era pequena, e a possibilidadede um golpe governamental nos moldes de 1937 comosugeriam os paulistas, altamente improvável.De fato, quem tinha to<strong>do</strong> o interesse em ganhartempo eram os tenentes. Não seria possível fazer “a revolução”com eleições e regras constitucionais feitas por constituinteseleitos, muito provavelmente nos mesmos moldesda República Velha. Eram necessários poderes excepcionaispara fazer reformas excepcionais. Confronta<strong>do</strong>s comeleições inevitáveis os tenentes incluem, para desgosto deAssis <strong>Brasil</strong>, a figura <strong>do</strong> deputa<strong>do</strong> classista. Quarenta indivíduosescolhi<strong>do</strong>s por suas representações sindicais (dezoito<strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res, dezessete <strong>do</strong>s patrões e cinco <strong>do</strong>s profissionaisliberais) nos moldes <strong>do</strong> corporativismo, então emvoga na Europa, e que fortaleceriam o voto urbano, industriale de serviços, em detrimento <strong>do</strong> voto rural, sob o jugo<strong>do</strong>s coronéis que favoreceria aos “ressequi<strong>do</strong>s” das velhaselites.Após o pedi<strong>do</strong> de demissão coletiva <strong>do</strong>s gaúchosem altos cargos <strong>do</strong> governo em março de 1932 286 , fica claro286 Lin<strong>do</strong>lfo Collor ministro <strong>do</strong> Trabalho, Mauricio Car<strong>do</strong>so da Justiça, BatistaLuzar<strong>do</strong> chefe da polícia <strong>do</strong> DF e João Neves da Fontoura, consultor jurídico<strong>do</strong> Banco <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> se demitiram em protesto contra o empastelamento <strong>do</strong>jornal oposicionista Diário Carioca por tenentes que Vargas relutou em punir.que o risco de oposição não estava apenas em São Paulo.Somadas, as forças paulistas e gaúchas tinham efetivomaior que o Exército nacional 287 . E mesmo este, como vimos,estava divi<strong>do</strong>. O governo federal teria que ceder aindamais se quisesse evitar o golpe, que estava em curso comapoio de São Paulo e Rio Grande <strong>do</strong> Sul.Ao nomear o tão ansia<strong>do</strong> interventor civil e paulista,Pedro de Tole<strong>do</strong>, diplomata e político tradicional <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>,Vargas tenta apaziguar os ânimos, mas já era tarde.Temeu-se, em São Paulo, que Tole<strong>do</strong> não teria autonomiapara nomear seu secretaria<strong>do</strong>, por conta da demora dasnomeações. Quan<strong>do</strong> finalmente Tole<strong>do</strong> forma seu secretaria<strong>do</strong>em 23 de maio, cinco estudantes 288 são mortospor membros da guarda revolucionária de João Alberto eViajaram to<strong>do</strong>s imediatamente para o Rio Grande <strong>do</strong> Sul, onde passaram aconspirar com o interventor Flores da Cunha, com os militares insatisfeitoscomo Klinger, e com os paulistas para derrubar Getúlio e reconstitucionalizaro país.287 Tratava-se de uma perigosa herança federalista da Constituição de 1891que permitia a formação de exércitos estaduais. O Código <strong>do</strong>s Interventoresde agosto de 1931 limitaria radicalmente os gastos militares <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>se proibia o empréstimo internacional, anulan<strong>do</strong>, enfim, o federalismoexcessivo da Constituição <strong>do</strong> regime anterior.288 Mário Martins de Almeida, Euclides Bueno Miragaia, Dráusio Marcondesde Sousa, Antônio Américo Camargo de Andrade morreram em por conta<strong>do</strong>s tiros recebi<strong>do</strong>s na praça da república em 23 de maio de 1932. Emhomenagem a eles foi fundada no dia 24/05 a sociedade secreta <strong>do</strong> MMDCpela reconstitucionalização <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. Orlan<strong>do</strong> de Oliveira Alvarenga, quetambém havia si<strong>do</strong> alveja<strong>do</strong>, morreu dias depois da formação <strong>do</strong> MMDC,também em consequência <strong>do</strong>s ferimentos recebi<strong>do</strong>s.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>362Miguel Costa. Ambos eram vistos pela elite paulista como“<strong>do</strong>natários” ilegítimos de São Paulo, que junto a Oswal<strong>do</strong>Aranha e Góis Monteiro, queriam intervir na formação <strong>do</strong>secretaria<strong>do</strong> de Pedro de Tole<strong>do</strong> e submeter São Paulo àagenda <strong>do</strong> tenentismo. A morte <strong>do</strong>s estudantes provocoucomoção generalizada e ampla mobilização da populaçãopaulista contra o governo federal e a favor de Pedro de Tole<strong>do</strong>.O MMDC organizou os preparativos para a revolução,e, à exceção <strong>do</strong> operaria<strong>do</strong>, alija<strong>do</strong> da luta, contoucom amplo apoio da sociedade paulista. A demissão intempestivade Klinger (7 de julho) antecipou o levante queeclodiria em 9 de julho, com Pedro de Tole<strong>do</strong> sen<strong>do</strong> aclama<strong>do</strong>governa<strong>do</strong>r civil de São Paulo e rompen<strong>do</strong> com ogoverno federal. Tinham os paulistas a certeza de contarcom o interventor gaúcho Flores da Cunha que lhes haviagaranti<strong>do</strong> apoio, participa<strong>do</strong> de todas as conspirações, e,nos momentos iniciais <strong>do</strong> levante, mu<strong>do</strong>u de ideia e ficouao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> governo 289 . Seu recuo selou a sorte de São Pauloe garantiu a vitória <strong>do</strong> governo federal.Durante três meses a população da capital e dediversas cidades <strong>do</strong> interior sofreram com o conflito.289 Flores, de temperamento passional, foi convenci<strong>do</strong> na última hora dasinceridade <strong>do</strong> governo com a convocação das eleições. Segun<strong>do</strong>depoimentos posteriores, teria fica<strong>do</strong> consterna<strong>do</strong> ante a ameaça desuicídio de Getúlio em conversa pessoal.As indústrias e a população foram conclamadas a contribuircom o esforço de guerra e o fizeram com <strong>do</strong>nativosem ouro, horas-extras de trabalho e organização de umesforço militar que congregou parcela <strong>do</strong> Exército coma totalidade da força pública <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Foram dezenasde batalhas e centenas – alguns alegam milhares – demortos, neste que foi o último conflito arma<strong>do</strong> da históriabrasileira.Foi também, e pela primeira vez em território nacional,que se assistiu ao uso por ambos os la<strong>do</strong>s da força área.Inicialmente para fins de reconhecimento e propaganda.Aviões paulistas jogavam panfletos contra a ditadura epela reconstitucionalização enquanto avia<strong>do</strong>res federais –sob protesto – arriscavam a vida para responder jogan<strong>do</strong>panfletos sobre Campinas e São Paulo. Mas eram muitopoucos aviões de ambos os la<strong>do</strong>s, e o risco de perdê-losera alto. Góis Monteiro (comandante militar) e Eduar<strong>do</strong> Gomes(chefe da aviação) autorizam então o bombardeio emfábricas e linhas de transmissão de energia elétrica o quemotivaria protestos de países estrangeiros como a Itália ea Inglaterra contra pretensos danos a seus bens e cidadãosem território paulista.O Ministério das Relações Exteriores passou então aconcentrar esforços no senti<strong>do</strong> de impedir que os paulistasconseguissem apoio internacional. Tratava-se, sobretu<strong>do</strong>,de evitar a compra de armas no exterior e o reconhecimento<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> de beligerância, ofensiva de Pedro de


363A Era Vargas (1930-1945)Tole<strong>do</strong> ao convocar os representantes consulares em SãoPaulo logo após o 9 de julho. A ofensiva diplomática deAfrânio de Melo Franco é bem-sucedida, e nenhum paísreconhece o esta<strong>do</strong> de beligerância. Afrânio invocou oprincípio de Havana 290 contra a ingerência estrangeira emnegócios internos <strong>do</strong>s países soberanos na América Latinae buscou conter as iniciativas de São Paulo para compra dearmas nos EUA. O governo federal conseguiu ainda interrompertoda a comunicação telegráfica internacional deSão Paulo, ameaçan<strong>do</strong> expulsar a Cia norte-americana AllAmerican Cables caso esta não interrompesse o contato internacionalfeito pelos cabos submarinos que conectavamo porto de Santos.Mas o Itamaraty estava dividi<strong>do</strong>, e alguns diplomataspaulistas no exterior pediram licença ou dispensa paranão contribuir na luta contra seus compatriotas. Outros,abertamente, decidiram usar seus contatos internacionaispara ajudar São Paulo. Foi este o caso que redun<strong>do</strong>una compra de alguns aviões, que uma firma americana290 A VI Conferência Interamericana de Havana em 1928 foi marcada pelocontexto final da política <strong>do</strong> Big Stick, grandemente criticada pelos paísesda região. A aprovação de uma resolução contrária à intervenção aconteciano mesmo ano em que o Presidente norte-americano eleito Herbert Hoovercriticaria o intervencionismo dizen<strong>do</strong> que “democracia não era compatívelcom o imperialismo” e daria início ao desmonte <strong>do</strong> Big Stick, que seriasubstituí<strong>do</strong> com a chegada <strong>do</strong>s democratas ao poder em 1933 pela políticada Boa Vizinhança.construíra no Chile. Como o Chile desistiu <strong>do</strong>s aviões, este setornou o único caso bem-sucedi<strong>do</strong> de compra de materialbélico por São Paulo durante a revolução e provocou sériosprotestos <strong>do</strong> governo <strong>do</strong> Rio de Janeiro junto a Santiago.O governo federal também penou para conseguirarmas no estrangeiro. Os franceses, fornece<strong>do</strong>res privilegia<strong>do</strong>sde material bélico ao <strong>Brasil</strong> desde o estabelecimentoda missão militar de 1919, mal disfarçavam a simpatia aoconstitucionalismo paulista. Deixaram em maus lençóis osdiplomatas e militares brasileiros a cargo <strong>do</strong> nosso escritóriode compra de armas em Paris, que mesmo ten<strong>do</strong> paga<strong>do</strong>antecipadamente não receberam as armas contratadas.Estas já estavam fabricadas e prontas para entrega, mas foramretidas por motivos políticos, o que levou o <strong>Brasil</strong> a desistirda compra e buscar outros fornece<strong>do</strong>res. A devolução<strong>do</strong> montante pago aos franceses só seria restituída após ofim das hostilidades, o que contribui para explicar o direcionamentocrescente <strong>do</strong> governo Vargas para compra dematerial bélico nos EUA e na Alemanha a partir de mea<strong>do</strong>s<strong>do</strong>s anos de 1930, como prévia <strong>do</strong> que seria chama<strong>do</strong> porGerson Moura de “Equidistância Pragmática”. Era o início<strong>do</strong> fim da influência da missão militar francesa que tantosdissabores tinham causa<strong>do</strong> aos militares brasileiros, agoracom muito maior influência política junto ao governo.É controversa a tese de que, derrota<strong>do</strong>s militarmente,os paulistas foram vitoriosos politicamente. Apresenta-secomo verdade que a Constituinte foi conquista paulista,


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>364quan<strong>do</strong> já estava convocada desde fevereiro de 1932, eteve as eleições adiadas para maio de 1933, justamente porconta da insurreição. As medidas econômicas intervencionistas<strong>do</strong> governo federal para salvar a cafeicultura paulistajá estavam em curso antes a revolução e só se tornaramainda mais intervencionistas e centraliza<strong>do</strong>res depois disso.No plano político a derrota foi bem mais óbvia.Se por um la<strong>do</strong> a “Chapa única paulista”, que congregavaa FUP e a liga católica, obteve 17 <strong>do</strong>s 22 deputa<strong>do</strong>spor São Paulo, no resto <strong>do</strong> país os interventores e tenentestiveram vitória ainda mais esmaga<strong>do</strong>ra, em muitos casosderrotan<strong>do</strong> os alia<strong>do</strong>s e simpatizantes locais <strong>do</strong>s paulistas(31 a 6 contra o PRM em Minas Gerais, 11 a 3 contra a FrenteÚnica Gaúcha no Rio Grande <strong>do</strong> Sul, 60% <strong>do</strong>s deputa<strong>do</strong>s<strong>do</strong> Distrito Federal liga<strong>do</strong>s ao interventor Pedro Ernesto,chama<strong>do</strong> de “a mãe <strong>do</strong>s tenentes” e quase 90% <strong>do</strong>s deputa<strong>do</strong>sem Pernambuco). O eleitora<strong>do</strong> nacional, exceto emSão Paulo, deu a vitória nas urnas aos vitoriosos nas armas.Isso sem contar nos 40 deputa<strong>do</strong>s classistas, inventa<strong>do</strong>spelo tenentismo e favoráveis na maioria, à sua agendacrescentemente intervencionista.Curioso que tenha prevaleci<strong>do</strong> historiograficamenteo entendimento <strong>do</strong>s derrota<strong>do</strong>s. A Constituição teria si<strong>do</strong>feita mesmo sem o 9 de Julho, e possivelmente o resulta<strong>do</strong>eleitoral da constituinte não teria si<strong>do</strong> muito diferente.Em maio de 1933, o Governo Provisório elegeu uma amplamaioria que permitiu a Vargas ser eleito indiretamentePresidente da República pela Assembleia, enfraquecen<strong>do</strong>ainda mais o papel político de São Paulo na Federação. Opróximo paulista só seria eleito presidente em 1960. Nãoparece incorreto afirmar que a derrota foi tanto militarquanto política, sem o “gol de honra” constitucional quegrande parte da historiografia <strong>do</strong>s livros didáticos concedeaos perde<strong>do</strong>res.Do la<strong>do</strong> vitorioso a rebelião facilitou o trabalho <strong>do</strong>governo para reformar e se livrar de boa parte <strong>do</strong>s militaresda velha guarda, promoven<strong>do</strong> muitos e afastan<strong>do</strong> muitosmais. A hegemonia de Pedro Aurélio de Góis Monteiro, quede tenente coronel antes de 1930 chegaria a general dedivisão em 1931 e ministro da Guerra em 1934, teria influênciadura<strong>do</strong>ura e impactante em um Exército mal prepara<strong>do</strong>,mal aparelha<strong>do</strong>, indisciplina<strong>do</strong> e em crise interna,como ficara óbvio nos eventos anteriores de 1932. Góisassumiria a tarefa de sua reforma e nisso seria largamentebem-sucedi<strong>do</strong>. Iniciava-se em mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s anos de 1930 omodelo <strong>do</strong> “solda<strong>do</strong> corporação”, que, segun<strong>do</strong> José Murilode Carvalho, agiria politicamente em bloco, e não maisdividi<strong>do</strong>. Mais tarde, este general diria que queria pôr fimda política no exército e começar a política <strong>do</strong> exército.Com isso, o tenentismo, força maior da política nacionalda primeira metade da década de 1930 e grandevitorioso das eleições de 1932, vai sen<strong>do</strong> paulatinamentedisciplina<strong>do</strong>. Incapaz de se viabilizar em um parti<strong>do</strong> úniconacional – as eleições para Assembleia foram largamente


365A Era Vargas (1930-1945)<strong>do</strong>minadas ainda por parti<strong>do</strong>s estaduais como na RepúblicaVelha – o processo de centralização, defendi<strong>do</strong> pelaagenda <strong>do</strong>s tenentes, faria deles suas primeiras vítimas.Coopta<strong>do</strong>s (João Alberto) ou persegui<strong>do</strong>s (Pedro Ernesto),perderiam força enquanto movimento político, justamentepor sua falta de coesão e organização. O Clube 3de Outubro seria extinto e o tenentismo se fragmentariafornecen<strong>do</strong> braços para uma miríade de confissões ideológicasmuito distintas entre si desde os integralistas atéo comunismo, que absorveria os tenentes mais radicais,seduzi<strong>do</strong>s também pela mística que cercava o cavaleiroda esperança, Luís Carlos Prestes, agora, secretamente, devolta ao <strong>Brasil</strong>.6.2 Da Revolução à DitaduraA incorporação política de novos setores sociais.A Constituinte de 1934 – Debates. Governo Constitucionale polarização política. Comunismo e Integralismo no<strong>Brasil</strong>. O Levante Comunista de 1935. As eleições de 1937 eo Golpe de Novembro. Esta<strong>do</strong> Novo – bases ideológicas einstitucionalização. A Invenção <strong>do</strong> Trabalhismo e a Crise <strong>do</strong>Esta<strong>do</strong> Novo. Golpe Militar e redemocratização.Uma das novidades mais interessantes trazidas pelomovimento revolucionário de 1930 foi a inclusão de umamiríade de novos participantes <strong>do</strong> jogo político. Oriun<strong>do</strong>sde grupos sociais até então completa ou parcialmenteexcluí<strong>do</strong>s <strong>do</strong> governo, esta participação contribuirá sensivelmentepara a superação, em alguma medida, da tradiçãopolítica tutelada advinda de séculos de patriarcalismoescravista. Naturalmente essa superação não foi completae, em larga medida, as lideranças políticas <strong>do</strong>s anos 1930seguiam enxergan<strong>do</strong> a “massa” como “massa de manobra”ou simplesmente “o povo”, que deveria ser guia<strong>do</strong> pelos luminares,fossem eles tenentes, integralistas, interventores,comunistas, aliancistas ou intelectuais. Mas apenas trazer a“massa” para a política já era um enorme avanço em relaçãoà Primeira República oligárquica e excludente.Esta incorporação política de setores médios e populares,que inexistira no <strong>Brasil</strong> <strong>do</strong> século XIX e da Primeira


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>366República, já havia si<strong>do</strong> efetivada de mo<strong>do</strong> revolucionáriono México da década de 1910. Foi, ainda, feita medianteampla mobilização urbana pela UCR argentina, que conquistouuma importante Reforma Eleitoral no governoSanz Peña em 1912 e, logo depois, a Presidência da Repúblicacom Hipólito Yrigojen em 1916. O <strong>Brasil</strong> estava duasdécadas atrasa<strong>do</strong>.Convém recordar que nem sempre a “massa” secomportava como previam os seus líderes. Foi exatamenteeste o caso da falta de mobilização em 1935 no levante deesquerda e em 1938 no levante integralista de direita, bemcomo da mobilização, ao contrário <strong>do</strong> espera<strong>do</strong>, pela permanênciade Getúlio no poder em 1945 em meio à amplamobilização <strong>do</strong>s intelectuais e das elites político-militarespela redemocratização. Resgatar a agência e ação políticaracional <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res (“a massa”) foi mérito da historia<strong>do</strong>raÂngela de Castro Gomes em seu livro A Invenção <strong>do</strong>Trabalhismo <strong>do</strong> qual trataremos mais à frente.Sen<strong>do</strong> assim, salta aos olhos a quantidade e pluralidadede agremiações políticas, as quais surgem para disputaras eleições constituintes que ocorrem após a guerrapaulista. Incapazes de unificarem-se em parti<strong>do</strong> único nacional,os tenentes se perceberão dividi<strong>do</strong>s em correntesmuito distintas. Isso se deu, sobretu<strong>do</strong>, por conta da opçãoradical de Luís Carlos Prestes. General e líder máximo<strong>do</strong>s tenentes nos anos 1920, havia se converti<strong>do</strong> ao comunismoe recusa<strong>do</strong> a liderança militar da revolução de1930. Isso fragmentou o tenentismo, e nem o movimentoTrês de Outubro, nem Getúlio Vargas conseguiram, apesarde tentarem, a unificação partidária. Nas eleições, o que sepercebeu foi uma ampla gama de parti<strong>do</strong>s estaduais, queobtiveram vitórias eleitorais graças à ação e organização<strong>do</strong>s interventores estaduais, muitos <strong>do</strong>s quais naturalmenteoriun<strong>do</strong>s <strong>do</strong> tenentismo.Por isso Vargas foi eleito presidente indiretamente,e as ações <strong>do</strong> seu governo provisório foram aprovadas –apesar <strong>do</strong> placar pouco dilata<strong>do</strong> de apenas 60% da AssembleiaConstituinte –, mas não foi capaz de conquistar2/3 <strong>do</strong> Congresso, que lhe permitiria margem de manobrainclusive para reformar a Constituição, nem muito menosde fazer da Constituição o que desejaria. Algum grau decentralização se obteve, mas o Esta<strong>do</strong> seguia firmementefederalista e as medidas mais relevantes estavam na esferaeconômica graças à presença <strong>do</strong>s deputa<strong>do</strong>s classistas,que representan<strong>do</strong> patrões, emprega<strong>do</strong>s, funcionários públicose profissionais liberais criaram um consenso a propósitoda modernização industrial <strong>do</strong> país, incorporan<strong>do</strong>estas diretrizes na carta aprovada.Se quase to<strong>do</strong>s concordavam com a industrialização,não havia consenso no como industrializar. Parcela significativa<strong>do</strong>s deputa<strong>do</strong>s oriun<strong>do</strong>s das antigas oligarquiasou pertencentes às novas, como os industriais paulistas,acreditavam que ao Esta<strong>do</strong> caberia não mais que o papelde coadjuvante, mas o de apoiar a infraestrutura e cuidar


367A Era Vargas (1930-1945)da saúde e educação <strong>do</strong> povo. A livre-iniciativa da naçãofaria o resto se o Esta<strong>do</strong> não atrapalhasse. Não foi o quesucedeu. Tal liberalismo, típico de indivíduos que crescerame se acostumaram a atuar politicamente na PrimeiraRepública, vai sen<strong>do</strong> paulatinamente percebi<strong>do</strong>, inclusivepor eles próprios, como inviável e/ou anacrônico. Muitos,mesmo manten<strong>do</strong> intimamente suas convicções liberaispara tempos mais propícios (pós-45), adeririam ao governoe com ele contribuiriam para industrialização nacionalista,na qual o Esta<strong>do</strong> de coadjuvante roubava a cena. Alguns,como Monteiro Lobato, seguiram se lamurian<strong>do</strong>, critican<strong>do</strong>como ineficiente a política <strong>do</strong> Petróleo dirigida peloConselho Nacional <strong>do</strong> Petróleo (CNP), que Lobato apeli<strong>do</strong>ude órgão que “não fura nem deixa furar” – e acabaram presosno Esta<strong>do</strong> Novo. Para o bem ou para o mal venceria emlongo prazo, a posição estatista.A a<strong>do</strong>ção <strong>do</strong> intervencionismo <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> no capítuloda ordem econômica e social não significava centralizaçãopolítica e autonomia para o executivo federal. O pre<strong>do</strong>míniolegislativo permanecia significativo e Vargas precisounegociar muitas vezes para fazer aprovar projetos <strong>do</strong>interesse <strong>do</strong> governo – o caso mais emblemático sen<strong>do</strong> oAcor<strong>do</strong> Comercial <strong>Brasil</strong>-Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s de 1935. Teve quepremiar os Esta<strong>do</strong>s que lhe apoiaram – Minas, Rio Grande<strong>do</strong> Sul, Pernambuco e Bahia – com cargos em seu Ministérioem moldes muito semelhantes aos que eram a normada Política <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s. Curiosamente, à exceção de Minas,serão os mesmos Esta<strong>do</strong>s cujos governa<strong>do</strong>res – Carlos Cavalcanti(PE), Juracy Magalhães (BA) e Flores da Cunha (RS)– se oporão à prorrogação <strong>do</strong> mandato de Getúlio e apoiarãoa candidatura de Arman<strong>do</strong> Salles de Oliveira em 1937.As eleições para os executivos federal e estaduaiseram diretas (exceto a primeira). Em 1935 os governa<strong>do</strong>resforam eleitos pelas Assembleias Estaduais, tal qual Getúliohavia si<strong>do</strong> eleito indiretamente pela Assembleia Constituintecom 165 votos <strong>do</strong>s 220. Foram mantidas a representaçãoclassista, o direito ao voto às mulheres e, naturalmente,o voto secreto (previstos desde o Código Eleitoralde 1932). Votavam to<strong>do</strong>s os maiores de 18 anos. Adicionalmente,a Igreja Católica conseguiu incluir a educaçãoconfessional nas escolas públicas, certamente por ter si<strong>do</strong>capaz de organizar sob a Liga Eleitoral Católica os candidatosde quaisquer parti<strong>do</strong>s que se comprometessem comas propostas da <strong>do</strong>utrina social da Igreja.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>368Cartum de Belmonte ironizan<strong>do</strong> a posse de Getúlio após a eleição indireta pela Constituinte e sua crítica à Constituição aprovada.Teleologia à parte, era líqui<strong>do</strong> e certo para os próprios contemporâneos – ver chargede Belmonte acima – que esta Constituição não duraria. O próprio Getúlio fazia em seudiscurso de posse críticas à Constituição que deveria jurar. Criticava, sobretu<strong>do</strong>, os limitesque ela impunha à ação <strong>do</strong> Presidente de República e, em conversas privadas, admitia queseria o primeiro a reformá-la. Inspirada parcialmente na carta de Weimar, a musa <strong>do</strong> nossocontratualismo foi erradicada pelo nazismo no mesmo ano que a nossa entrava em vigor.O plano internacional demonstrava que o momento era plenamente desfavorável às soluçõesliberais e moderadas. Era moda ser autoritário. O Esta<strong>do</strong> forte era considera<strong>do</strong> pelaintelligentsia europeia e brasileira como a vanguarda que seria promotora <strong>do</strong> desenvolvimentoe exercia seu poder de sedução inclusive em países anglo-saxões de forte tradição


369A Era Vargas (1930-1945)liberal, onde a revista Time escolheria em 1935, Hitlercomo o homem <strong>do</strong> ano.Também no <strong>Brasil</strong> as soluções autoritárias defensorasde um Esta<strong>do</strong> forte se dividiam em um espectro ideológico,onde o espaço para a democracia liberal era cadavez menor. De um la<strong>do</strong> os integralistas que reuniram umamplo espectro de agremiações de direita (fascistas, monarquistas,conserva<strong>do</strong>res católicos), <strong>do</strong> outro os aliancistasque graças à figura de Luís Carlos Prestes conseguiramreunir a esquerda liberal, o PCB e diversos expoentes <strong>do</strong>tenentismo ainda relevantes no oficialato das Forças Armadas.São os primeiros parti<strong>do</strong>s de “massa” da história brasileirae, apesar da vida muito curta (seis anos para a AIB equatro meses para a Aliança Nacional Liberta<strong>do</strong>ra – ANL)tiveram impacto muito relevante durante o governo constitucional.Do la<strong>do</strong> conserva<strong>do</strong>r, a Ação Integralista <strong>Brasil</strong>eira(AIB), criada por Plínio Salga<strong>do</strong> em 1932, nada mais foi <strong>do</strong>que a tentativa bem-sucedida de unificação <strong>do</strong>s diversosgrupos políticos da direita presentes em esta<strong>do</strong>s como oCeará, o Maranhão, o Rio Grande <strong>do</strong> Sul, São Paulo, entreoutros. Essa divisão era contraditória com o próprio ideáriode parti<strong>do</strong> único e liderança forte. A escolha <strong>do</strong> líder, entretanto,não foi sábia. Plínio Salga<strong>do</strong>, poeta <strong>do</strong> grupo conserva<strong>do</strong>rpaulista da Semana de Arte Moderna quem haviaelogia<strong>do</strong> Lênin em obra literária anterior, era um sujeito deconvicções cambiantes, cuja trajetória o levara para extremadireita. Crítico <strong>do</strong> liberalismo constitucionalista e <strong>do</strong>sistema partidário, participava de eleições em coligaçõescom parti<strong>do</strong>s tradicionais nos Esta<strong>do</strong>s, elegia representantespara os legislativos estaduais e federal e negociava seuapoio como qualquer outro político.Assustava a ordem constituída e a hierarquia militar àgrande capacidade de mobilização popular <strong>do</strong>s integralistase à sua organização paraestatal fortemente militarizada.Marchas uniformizadas no estilo fascista foram combatidaspela cúpula militar <strong>do</strong> governo 291 . O sigma e a saudaçãode braço ergui<strong>do</strong> acompanhada <strong>do</strong> bra<strong>do</strong> “anauê” legaramaos adeptos da AIB o apeli<strong>do</strong> nada gentil de “galinhas-verdes”.Não raro essas marchas encontravam opositores deesquerda igualmente fervorosos, às vezes arma<strong>do</strong>s, quepartiam pra desinteligência, polarizan<strong>do</strong> violentamenteo debate político no país e tornan<strong>do</strong> o clima explosivo.O ápice da confrontação se deu ao longo <strong>do</strong> ano de 1935,após a criação em março, da ANL 292 .291 Em janeiro de 1935, o ministro da Guerra proibiu a participação uniformizadapara os militares. O alvo eram, naturalmente, os oficiais integralistas:“Não é faculta<strong>do</strong> a oficiais e praças tomarem parte em manifestações públicade caráter político, mesmo à paisana ou com uniforme característico <strong>do</strong>parti<strong>do</strong>”. Em junho, praças e sargentos que participaram <strong>do</strong> comício da ANLem Madureira foram expulsos <strong>do</strong> Exército. No mesmo mês, decreto oficialdecide proibir a presença de integralistas na Marinha. Em novembro, ajustiça eleitoral proíbe o uso de camisas verdes.292 Em maio de 1935, o prefeito de Vassouras Mauricio de Lacerda da ANLdissolveu à bala um comício integralista. Em junho, Petrópolis, local ondeMarco se reunira em Congresso com os integralistas, é palco de confronto


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>370Não é simples caracterizar a ANL. Fruto de muitademonização após os levantes de novembro de 1935, elafoi igualmente mitificada pelos comunistas que se apropriaramexclusivamente de sua herança. O Comunismobrasileiro era ingênuo e limita<strong>do</strong>. Aderira ao Komintern (3 aInternacional Comunista, 1919) e ao centralismo democrático,mas demonstrava alguma independência em relaçãoà Moscou. Apesar de simpáticos ao tenentismo, não tomaramparte nos levantes <strong>do</strong>s anos 1920 e foram repeli<strong>do</strong>spelos militares quan<strong>do</strong> em 1927 propuseram uma uniãopara o 3 o levante. Viam no tenentismo o de<strong>do</strong> <strong>do</strong> imperialismo“industrialista” norte-americano, que se opunha aoimperialismo “agrarista” inglês. Na visão naïve <strong>do</strong>s comunistas,o <strong>Brasil</strong> era apenas um tabuleiro nas lutas imperialistase a recusa <strong>do</strong> líder da Coluna em tomar parte na revoluçãode 1930 refletia esta visão. Prestes teve que fazer umesforço considerável <strong>do</strong> exílio para ser aceito entre os comunistasbrasileiros depois de sua conversão, afinal o PCBera quase menchevique, participava de eleições, mesmona ilegalidade, por meio <strong>do</strong> Bloco Operário Camponês elançou Minervino de Oliveira para Presidente em 1930.Mas o prestígio de Prestes era extraordinário, e uma vezaceito pelo PCB ainda em Moscou foi sua vez de buscar oapoio <strong>do</strong>s tenentes na formação de uma ampla frente deoposição ao governo. Ao contrário <strong>do</strong>s integralistas, a ANLjá nasce na oposição e, certamente por isso, morre, quatromeses depois, na oposição.Lançada no teatro João Caetano, a ANL congregavaamplo espectro das forças de esquerda, muitos <strong>do</strong>s quaisliberais e modera<strong>do</strong>s. Os comunistas <strong>do</strong> PCB não eram senãoum dentre os muitos grupos ali representa<strong>do</strong>s, masque se sobressaíam por conta da aclamação de Prestescomo presidente de honra – proposta <strong>do</strong> desconheci<strong>do</strong>estudante comunista Carlos Frederico de Lacerda, que traziadesde o batismo a homenagem aos autores <strong>do</strong> “Manifesto”.Prestes que se empenhara <strong>do</strong> exílio para ser aceitona cúpula <strong>do</strong> PCB 293 agora se empenhava para conseguiro apoio <strong>do</strong>s seus antigos correligionários <strong>do</strong> tenentismo,muitos <strong>do</strong>s quais aderiram entusiasticamente à ANL, graçasao prestígio <strong>do</strong> Cavaleiro da Esperança 294 o que tambémaumentava a visibilidade e a aceitação da aliançadurante um comício da ANL, no qual morreu um operário, Leonar<strong>do</strong> Candu.Essa morte desencadeou greve de têxteis, padeiros e ferroviários contraos integralistas que levou a polícia a fechar a sede da AIB na cidade. Emsetembro, reunião integralista foi dissolvida a tiros em Bonsucesso, subúrbiocarioca.293 Chegou o Prestes a fazer a autocrítica <strong>do</strong> tenentismo “instrumento da lutaburguesa” e <strong>do</strong> prestismo “ingenuidade conserva<strong>do</strong>ra”.294 Miguel Costa, Trifino Correia, João Cabanas, Hercolino Cascar<strong>do</strong> (dirigente darevolta <strong>do</strong> Encouraça<strong>do</strong> São Paulo em 1924 e presidente da ANL) e Agil<strong>do</strong>Barata são alguns <strong>do</strong>s nomes militares mais expoentes. João Alberto, noentanto, convida<strong>do</strong> por Prestes, declinou educadamente dizen<strong>do</strong>-se “semânimo” para a luta.


371A Era Vargas (1930-1945)entre estudantes, intelectuais, operários. O fato de Prestesestar fora <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> aumentava a carga de expectativa, jáque os jornais a cada mês anunciavam seu retorno iminentecomo se fosse o messias.Além disso, a ANL recebeu expressiva adesão de políticosestabeleci<strong>do</strong>s, inclusive em cargos executivos, comoo governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Pará Magalhães Barata e o prefeito <strong>do</strong> DistritoFederal, o médico Pedro Ernesto, que tinha o apeli<strong>do</strong>simbólico de “Mãe <strong>do</strong>s Tenentes”. Em menos de <strong>do</strong>is meses,já havia representações da ANL na maioria <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>sda federação e mais de 50 mil inscritos na cidade <strong>do</strong> Riode Janeiro. Comícios em vários bairros <strong>do</strong> subúrbio carioca(Madureira, Bonsucesso) reuniam milhares de adeptos.Para a direita, por estarem <strong>do</strong> mesmo la<strong>do</strong> de Prestes, eramsimplesmente “comunistas”, mas seu programa era praticamenteo mesmo <strong>do</strong>s tenentes: governo popular, proteçãoàs pequenas e médias propriedades, nacionalização dasempresas estrangeiras e cancelamento da dívida externa.A resposta <strong>do</strong> governo não tardaria. Entre o lançamentoe o fechamento da ANL o governo de Vargas viviamais uma grave crise militar 295 e não podia se dar ao luxo295 Tinha por pomo da discórdia <strong>do</strong>is elementos. O primeiro era a aprovaçãoda Lei de Segurança Nacional, controversa e vista por muitos como uminstrumento de opressão e limitação às liberdades políticas. Sancionadaem 4 de abril e imediatamente aplicada para fechar o jornal A Pátria, é umasemana depois desautorizada pelo Juiz Ribas Carneiro que julga a apreensãoilegal e condena o chefe de polícia Filinto Müller. O outro elemento era ade aceitar passivamente o discurso de Prestes li<strong>do</strong> no TeatroMunicipal <strong>do</strong> Rio de Janeiro em 5 de julho. O Discursodita<strong>do</strong> de Buenos Aires concluía com a palavra de ordem“To<strong>do</strong> poder à ANL” e ecoava Lênin após as Teses de Abril.Era provocação em demasia e seis dias depois, no dia 11de julho, o Decreto 299 coloca a ANL na ilegalidade, e nosdias em que se seguem suas sedes são fechadas pela polícia,ten<strong>do</strong> muitos <strong>do</strong>s seus líderes presos com base na Leide Segurança Nacional. Uma vez na ilegalidade, iniciou-se,sobretu<strong>do</strong> pela liderança militar, a conspiração para umgolpe de Esta<strong>do</strong>, um levante nacional que congregasseoperários, estudantes, e as Forças Armadas.O programa nacionalista, antifascista, anti-imperialistae antilatifundiário da ANL, que congregou católicos,socialistas, modera<strong>do</strong>s e democratas não foi suficiente paraevitar o fechamento, bastava o nome de Prestes para quese considerassem to<strong>do</strong>s os que estivessem contra o governocomunistas, pecha que se agravou com os levantes denovembro de 1935 em Recife, Natal e no Distrito Federal.dúvida sobre a aprovação ou não <strong>do</strong> aumento <strong>do</strong>s vencimentos militares.O quadro era de restrição orçamentária e pairava a suspeita de que se nãofosse aprova<strong>do</strong> Vargas seria derruba<strong>do</strong>. Em março há suspeita de subversãona Primeira Região Militar e ameaça de greve na Marinha mercante. Em 22de abril são exonera<strong>do</strong>s os comandantes da 1 a Brigada e <strong>do</strong> 2 o Regimentode Infantaria. Em 1 o de maio, Góis Monteiro pede exoneração <strong>do</strong> cargo deMinistro da Guerra. Vargas concede a exoneração e uma semana depois vetaparcialmente o reajuste <strong>do</strong>s militares.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>372Os levantes passaram à história pelo nome de “IntentonaComunista” para horror <strong>do</strong>s historia<strong>do</strong>res de esquerda queveem como justeza, incorreção e partidarismo depreciativo.Mas essa batalha da memória está, admitamos, perdida.Tanto quanto lâmina de barbear é gilette, goma de mascar,chiclete, ainda hoje é difícil se referir aos levantes porqualquer coisa que não seja “Intentona Comunista”, aindaque o intento não seja depreciativo e saibamos que eramuito mais tenentista que comunista, já que o tenentismoera o único elemento que unia as três rebeliões. Em Natal,contou com ampla participação popular e foi reprimidainclusive com o apoio de coronéis <strong>do</strong> interior. Em Recife,desencadeada pela direção regional <strong>do</strong> PCB, teve adesãomuito limitada. Ambas se anteciparam à data combinadade 27 de novembro. Por isso, no Rio de Janeiro, os levantesde quartéis, decidi<strong>do</strong>s por Prestes, acabaram se inician<strong>do</strong>desastradamente depois que as rebeliões <strong>do</strong> Nordeste játinham si<strong>do</strong> debeladas.É muito controversa a crença de que foram ordenadaspor Moscou, mas tal afirmação servia perfeitamenteao governo na repressão que se seguiria. Considera<strong>do</strong> peloshistoria<strong>do</strong>res como o último levante tenentista, diferiu<strong>do</strong>s demais pelo grau de repressão que desencadeou daCúpula Militar, que parecia ter perdi<strong>do</strong> a paciência após13 anos de insurreições (e duas anistias). Os insurretos,que esperavam tratamento análogo aos <strong>do</strong>s rebeldes de1922 e 1924, foram trata<strong>do</strong>s com nenhuma complacência.O governo solicita e consegue a aprovação de esta<strong>do</strong> desítio ao Congresso Nacional e, a partir daí, centraliza significativamenteseus poderes desfechan<strong>do</strong> repressão nãoapenas aos comunistas, mas a to<strong>do</strong>s os setores liberais quede algum mo<strong>do</strong> se relacionassem à ANL, manten<strong>do</strong> por<strong>do</strong>is anos na memória popular as consequências exageradasda Conspiração Comunista Internacional 296 .Com a correlação de forças agora ao seu favor, GetúlioVargas se aproveitava ao máximo da ameaça comunistae manobrava para ampliar seu mandato. Ante a negativade alguns <strong>do</strong>s mais poderosos governa<strong>do</strong>res eleitos apósa constituinte (Pernambuco, São Paulo, Bahia e Pernambuco),que apoiaram o governa<strong>do</strong>r de São Paulo, Arman<strong>do</strong>Salles de Oliveira à presidência, Getúlio buscou desestabilizá-lose desfechar um golpe, para o qual precisava de tempo.Lançou então a candidatura situacionista <strong>do</strong> escritorparaibano José Américo de Almeida à presidência, apoia<strong>do</strong>por quase to<strong>do</strong>s os demais governa<strong>do</strong>res enquanto searticulava com os militares e governa<strong>do</strong>res situacionistaspara fechar o Congresso 297 .296 Somente um ano depois de novembro de 1937 é que o Procura<strong>do</strong>r <strong>do</strong>Tribunal de Segurança Nacional apresentou a denúncia. Líderes comoHercolino Cascar<strong>do</strong>, Roberto Sisson, não tiveram sua participação noslevantes comprovadas, mas foram presos assim mesmo. Desarticulavam-se,assim, to<strong>do</strong>s os setores remotamente liga<strong>do</strong>s à ANL.297 O deputa<strong>do</strong> Francisco Negrão de Lima foi envia<strong>do</strong> em 1937 em missão parasondar e convencer os governa<strong>do</strong>res a dar apoio ao golpe de Esta<strong>do</strong>.


373A Era Vargas (1930-1945)Eurico Gaspar Dutra foi nomea<strong>do</strong> ministro da Guerraem dezembro de 1936 e afastou ao longo <strong>do</strong> ano de1937 to<strong>do</strong>s os comandantes militares vincula<strong>do</strong>s à oposição,sobretu<strong>do</strong> no Rio Grande <strong>do</strong> Sul, onde Flores daCunha e seus batalhões de “provisórios” se organizavamcontra o possível golpe <strong>do</strong> governo contra as eleições.Pedro Aleixo é eleito presidente da Câmara, derruban<strong>do</strong> ooposicionista Antônio Carlos (MG). O governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> MatoGrosso foi deposto em 8 de março de 1937 e o governa<strong>do</strong>roposicionista de Pernambuco Carlos Cavalcanti, bemcomo o prefeito <strong>do</strong> Distrito Federal, Pedro Ernesto foramacusa<strong>do</strong>s pelo Tribunal de Segurança Nacional de teremapoia<strong>do</strong> o levante de 1935. Plínio Salga<strong>do</strong>, oficialmentecandidato aclama<strong>do</strong> em plebiscito integralista como candidatoda AIB à presidência, aderia secretamente ao golpe.A “descoberta” e divulgação <strong>do</strong> Plano Cohen 298 , farsaintegralista de provável autoria <strong>do</strong> então capitão OlímpioMourão Filho, servirá de pretexto para que a Câmara declareem outubro, sob a oposição de 52 deputa<strong>do</strong>s, maisum “Esta<strong>do</strong> de Guerra” em 1º de Outubro. O Congressoseria fecha<strong>do</strong> 10 dias depois.298 Os oficiais não comunistas seriam “justiça<strong>do</strong>s” preferencialmente nas portasde suas residências em frente às suas famílias. Este e outros absur<strong>do</strong>sconstavam no Plano Cohen que o “Exército” teria captura<strong>do</strong> e que os jornaisdivulgaram. Era o pretexto para o golpe de Esta<strong>do</strong>.Há uma discussão velha, acalentada no bojo daderrubada <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Novo e nunca completamentesuperada sobre se o Esta<strong>do</strong> Novo foi ou não uma experiênciafascista. Não temos como negar que há elementosmuito semelhantes ao fascismo italiano na experiência esta<strong>do</strong>-novista,dentre os quais a tentativa de estabelecimento<strong>do</strong> corporativismo no mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho. Mas até aí,todas as ditaduras se parecem em algum nível. Repressão,centralização, propaganda e culto ao líder eram comunsàs experiências ditatoriais que a América Latina tinha maisa ensinar <strong>do</strong> que a aprender com a Europa. Tanto quantonuma pizza de quatro queijos há também muçarela, faltavaao Esta<strong>do</strong> Novo características tipicamente fascistascomo o parti<strong>do</strong> único – o regime, como vimos, aboliu osparti<strong>do</strong>s políticos justifican<strong>do</strong> que o povo não precisavade intermediários e seu contato com o líder era direto – eo militarismo típico <strong>do</strong>s integralistas e fascistas italianos ealemães. O Esta<strong>do</strong> Novo estava longe de ser uma ditaduramilitar, embora contasse, naturalmente, com apoio militar.Tampouco recorreu a uma retórica expansionista xenófobaque guardassem similitude com a lebensraun alemã ou oNovo Império Romano de Mussolini, ainda que fosse fortementenacionalista e tenha ti<strong>do</strong> arroubos de retórica xenófobacom a proximidade da Guerra.Mas não é só de ingredientes políticos que se fazuma pizza fascista, já que a questão é mais de propósitoque de contabilidade política. Houve diversos tipos de


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>374fascismo, e o português também era civil e seu expansionismose traduzia em retórica colonial débil. O nome“Esta<strong>do</strong> Novo” Vargas emprestou de Salazar, mas a propostabrasileira não era fascista. Sua tradição vinha <strong>do</strong>autoritarismo positivista-tenentista, que combina<strong>do</strong> levouVargas ao poder em 1930. O nacionalismo não queriasalvar o capitalismo, como no caso da Alemanha – queriaimplantá-lo em moldes intervencionistas, buscan<strong>do</strong> oapoio <strong>do</strong> capital estrangeiro, fosse ele americano, inglêsou alemão. A forte retórica nacionalista-desenvolvimentistanão foi suficiente para discriminar os empréstimos<strong>do</strong> Eximbank. No máximo, para decretar a moratória dadívida em 1937, plataforma, aliás, não muito distante <strong>do</strong>que desejava a ANL.A solução autoritária presente no DNA <strong>do</strong> tenentismonão era nova no <strong>Brasil</strong> e apenas ganhara fôlego nomomento histórico europeu. O pensamento de AlbertoTorres, cria<strong>do</strong>r de uma <strong>do</strong>utrina de feição corporativistalançada em O problema Nacional <strong>Brasil</strong>eiro e A OrganizaçãoNacional, remontava a 1914, quan<strong>do</strong> estes livros forampublica<strong>do</strong>s. Torres era a base ideológica <strong>do</strong> pensamentonacionalista autoritário revisita<strong>do</strong> por expoentes <strong>do</strong> Direitoe da Sociologia Política ao longo <strong>do</strong>s anos de 1930. Suasideias reverberavam poderosamente junto aos militares,aos intelectuais e entre amplos grupos da sociedade emgeral. Citemos os três exemplos mais famosos: o <strong>do</strong> juristaniteroiense Oliveira Viana 299 e <strong>do</strong> reitor da Universidade<strong>do</strong> Distrito Federal Azeve<strong>do</strong> Amaral 300 e, daquele que tevemaior oportunidade de aplicar suas ideias, Francisco Campos,Ministro da Educação <strong>do</strong> Governo Provisório e da Justiçadurante o Esta<strong>do</strong> Novo. Campos via em Getúlio lídernecessário e providencial de um Esta<strong>do</strong> forte, corporativoe centraliza<strong>do</strong>. Tal líder era o porta-voz direto das massassem a necessidade de intermediários, conforme consubstancia<strong>do</strong>na Constituição que redigiria em 1937, inspira<strong>do</strong>na carta polonesa de Josef Pilsudski de 1926.A carta dava poderes excepcionais ao Presidente emuma linguagem pretensamente liberal que legou a FranciscoCampos o apeli<strong>do</strong> de “Chico Ciência” da<strong>do</strong> o seu talentoem metamorfosear o corporativismo autoritário <strong>do</strong>sfascistas em <strong>do</strong>cumentos legais de retórica “democrática”.A nomeação de interventores nos Esta<strong>do</strong>s, a organizaçãocorporativa <strong>do</strong> trabalho, a extensão da justiça militar a civisque cometessem crimes de “segurança” e a faculdade que299 Autor de “Populações Meridionais <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>”, tornar-se-ia consultor jurídico <strong>do</strong>Ministério <strong>do</strong> Trabalho até 1940. Escreveu uma obra fortemente deterministae com um viés racial da história brasileira. Valorizava os “mulatos”, masdiferenciava os “mulatos superiores” <strong>do</strong>s “mulatos inferiores”. A visão eraracista, mas fortemente embasada nos princípios sociológicos da época,seduzin<strong>do</strong> muitos leitores. Em 1930, antecipan<strong>do</strong> o Esta<strong>do</strong> Novo, escreveuProblemas de Política Objetiva, no qual defendia uma solução autoritária ecorporativa pra o <strong>Brasil</strong>.300 Autor de Ensaios <strong>Brasil</strong>eiros (1930) e Esta<strong>do</strong> Autoritário e Realidade Nacional(1938). Neste último louvava o Esta<strong>do</strong> Novo como a primeira revoluçãoconstrutiva <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>.


375A Era Vargas (1930-1945)tinha o Presidente de afastar ou aposentar funcionáriospúblicos arbitrariamente somou-se à inexistência de CongressoNacional, que, apesar de previsto na Constituição,não chegou a se reunir. O presidente Vargas era o homemque estava incumbi<strong>do</strong> pela Constituição de exercer o poderque “emana <strong>do</strong> povo, e é exerci<strong>do</strong> (...) no interesse de seubem-estar, de sua honra, de sua independência e de sua prosperidade”(art.1).Essa imagem de Getúlio foi justamente o que atraiuo apoio integralista para o golpe. Acreditavam que teriampapel importante no novo regime. Essa crença cai por terraem 1938. Vargas descumpre a promessa de entregar oMinistério da Educação para Plínio Salga<strong>do</strong> e manda fechartodas as agremiações políticas colocan<strong>do</strong> a AIB nailegalidade exatamente como fizera com a ANL em 1935.O resulta<strong>do</strong> será semelhante, um putsch integralista duramentereprimi<strong>do</strong> – com fuzilamentos sumários – queculminou com o exílio de Plínio Salga<strong>do</strong> em Portugal. Nomesmo ano de 1938, era promulga<strong>do</strong> o decreto que regulamentavaa expulsão de estrangeiros. No Ministério, àexceção <strong>do</strong> paulista Fernan<strong>do</strong> Costa (Agricultura) e de Oswal<strong>do</strong>Aranha (Relações Exteriores), que havia discorda<strong>do</strong>da “polaca” e pedi<strong>do</strong> demissão <strong>do</strong> cargo de embaixa<strong>do</strong>rnos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, estavam figuras que defendiam abertamentea solução autoritária-corporativa. Livre das “peias”da democracia liberal, o Esta<strong>do</strong> Novo implementa a partirentre 1937-1942, perío<strong>do</strong> considera<strong>do</strong> de consolidação<strong>do</strong> regime, um grande número de reformas intervin<strong>do</strong> emquase to<strong>do</strong>s os campos da vida <strong>do</strong> país. Jornalismo, literatura,esportes, educação básica, forças armadas, produçãoindustrial e agrícola, transportes, urbanismo e arquitetura,legislação trabalhista, organização universitária, cinema,música, comunicação, e até no futebol o Esta<strong>do</strong> Novo pormeio da cooptação <strong>do</strong>s agentes sociais e/ou da repressãoem suas diversas formas, estendeu seus tentáculos numaescala jamais vista até então no <strong>Brasil</strong>.A partir de 1942, entretanto, o regime começa a darsinais de esgotamento e o motivo principal é sempre identifica<strong>do</strong>pela historiografia com a participação <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> naSegunda Guerra Mundial. O <strong>Brasil</strong> declara guerra à Alemanhae à Itália em agosto de 1942 em meio a forte mobilizaçãopopular 301 contraria aos nazistas e aos torpedeamentosde navios brasileiros. Cem mil pessoas se reúnem em 2 desetembro no Rio de Janeiro em apoio à declaração deGuerra. A partir daí, todas as manifestações serão ambíguas.Repudiar o nazismo e as ditaduras europeias e elogiar osEsta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, a Inglaterra e as democracias liberais comas quais o Esta<strong>do</strong> Novo se aliava significava inicialmente demo<strong>do</strong> implícito e, cada vez mais explicitamente crítica àditadura brasileira 302 .301 Muitas manifestações se seguiram à organização da UNE de repúdio aonazismo em 4 de Julho de 1942.302 O principal grupo organiza<strong>do</strong>r destas manifestações é a Sociedade <strong>do</strong>sAmigos da América, fundada em janeiro de 1943. Fechada pelo governo


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>376Em 24 de outubro de 1943, exatos treze anos depoisde lança<strong>do</strong> o movimento de 1930, foi divulga<strong>do</strong> emBelo Horizonte o Manifesto <strong>do</strong>s Mineiros 303 que explicitavaa contradição óbvia entre a política interna e a política externa304 . O Manifesto será o embrião <strong>do</strong> futuro parti<strong>do</strong> oposicionista(União Democrática Nacional, a UDN, criada em7 de abril de 1945) para dar base partidária a candidatura<strong>do</strong> Brigadeiro Eduar<strong>do</strong> Gomes 305 após articulação intensade Virgílio de Melo Franco desde o final de 1944, quan<strong>do</strong>chegou a ser preso em São Paulo. O lançamento da candidatura<strong>do</strong> Brigadeiro, quan<strong>do</strong> ainda não se falavam emem agosto de 1944. Oswal<strong>do</strong> Aranha se demite <strong>do</strong> Ministério das RelaçõesExteriores em protesto.303 Dentre os signatários estavam Magalhães Pinto, Virgílio e Afonso Arinos deMelo Franco, Milton Campos, Artur Bernardes, Pedro Aleixo e Afonso Pena Jr.Foram imediatamente persegui<strong>do</strong>s pelo regime que os exonerou de funçõespública inclusive encampan<strong>do</strong> o Banco Hipotecário de cuja diretoria faziaparte os <strong>do</strong>is últimos.304 O presidente Vargas respondeu aos mineiros na efeméride seguinte em 10de novembro. Para ele, o maior risco à segurança nacional era a “divergênciainterna” em plena guerra, acusan<strong>do</strong> os mineiros de “impatriotismo”. Prometeque com o fim da guerra fará “de forma ampla e segura as necessáriasconsultas ao Povo <strong>Brasil</strong>eiro”. Em dezembro de 1943, fazen<strong>do</strong> eco aoManifesto, a polícia reprime manifestação de estudantes contra a prisão <strong>do</strong>diretório XI de Agosto da Faculdade de Direito na Praça <strong>do</strong> Patriarca em SãoPaulo. O sal<strong>do</strong> são <strong>do</strong>is mortos e 25 feri<strong>do</strong>s.305 O Brigadeiro foi lança<strong>do</strong> candidato a presidência logo após a famosaentrevista dada por José Américo de Almeida (22/02) a Carlos Lacerdano Correio da Manhã que rompia com a censura e exigia eleições livres.Pressiona<strong>do</strong>, Vargas convoca eleições na semana seguinte pelo Ato adicionalde n. 9 (28/02/1945).eleições, foi um lance de gênio da oposição que colocavaem pauta a questão da sucessão fazen<strong>do</strong> eco às manifestações<strong>do</strong>s oficiais brasileiros na Itália em reunião com Dutra(Set/1944). Sucedeu-se ainda, no <strong>Brasil</strong>, o Congresso <strong>Brasil</strong>eirode Escritores, em 22 de janeiro de 1944, que exigiaeleições e o fim da censura 306 , e a surpreendente declaraçãode Góis Monteiro de apoio às eleições e à Anistia, nodia 1º de fevereiro.A situação se articula rapidamente para responderaos movimentos da oposição liberal. No dia seguinte àcriação da UDN, Benedito Valadares lança o general Dutracomo candidato a presidente no recém-cria<strong>do</strong> PSD(Parti<strong>do</strong> da Social Democrático), nome irônico para umaagremiação formada e composta pela burocracia político--administrativa <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Novo, cujas lideranças principaiseram justamente interventores nomea<strong>do</strong>s pelo Presidente.Seguin<strong>do</strong> sua política de distensão controlada, o presidentedecreta Anistia em abril. Luís Carlos Prestes é soltoe reúne mais de 100 mil simpatizantes <strong>do</strong> comunismo emComício no Rio de Janeiro. Logo depois, o governo reatarelações diplomáticas com a União Soviética. Em 15 demaio é funda<strong>do</strong> o PTB, concluin<strong>do</strong> a troika partidária hegemônica<strong>do</strong> sistema político-democrático que vigoraria306 Participaram, entre outros, Carlos Drummond de Andrade, Monteiro Lobato,Graciliano Ramos, Mario de Andrade e Caio Pra<strong>do</strong> Jr.


377A Era Vargas (1930-1945)nas duas décadas seguintes. Sintomaticamente Vargas éescolhi<strong>do</strong> para ser presidente de <strong>do</strong>is deles!O que há em comum em todas essas manifestações,para além <strong>do</strong>s anseios de redemocratização, é a base socialde seus propositores. São naturalmente membros da elitepolítica e intelectual <strong>do</strong> país, desconecta<strong>do</strong>s com a maiorparte da população cuja lealdade estava ainda no Catete.A força desta mobilização aparece claramente no tenentismoe parece ter surpreendi<strong>do</strong> até o próprio Getúlio, quetransigira significativamente com os liberais, e só começaa dar mostras de que parecia disposto a permanecer nopoder depois que Luís Carlos Prestes o retira de seu isolamento.Após quase uma década nas prisões <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>Novo, Prestes lança de São Paulo em julho de 1945 o lema“Constituinte com Getúlio” 307 . A partir daí nasce o “queremismo”com forte base sindical. O lema “Queremos Getúlio”<strong>do</strong> trabalhista Hugo Borghi abafa o “Lembrai-vos de 1937”agressivo slogan da campanha udenista que recuperava afrase de Café Filho. Abafava literalmente, pois os popularesde to<strong>do</strong> país, que escreviam milhares de cartas emocionadaspedin<strong>do</strong> para que Getúlio ficasse, impediam os comícios<strong>do</strong> Brigadeiro, e consideravam ofensiva à forma comoos opositores se referiam ao Presidente. Viam em Getúlio307 Na mesma época em aceno aos comunistas Vargas faz aprovar a Lei Malaya,uma lei antitruste fortemente nacionalista.um “pai”, e com razão, estranhavam na campanha udenistaa presença de figuras “carcomidas” como ex-presidenteArtur Bernardes que perseguira os operários e reprimira ostenentes.Como Getúlio fora capaz de construir tamanhoapoio junto aos trabalha<strong>do</strong>res? A explicação mais óbvia,explicitada pela CLT (1943) é a organização da legislaçãotrabalhista e a garantia <strong>do</strong>s direitos <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res.Ainda que apenas para os trabalha<strong>do</strong>res urbanos, sindicaliza<strong>do</strong>s,porta<strong>do</strong>res da carteira de trabalho, estes direitossociais inexistiam na Primeira República e a esparsa legislaçãotrabalhista de então ou era repressiva ou estava restritaa setores privilegia<strong>do</strong>s de trabalha<strong>do</strong>res. O cientista políticoWanderley Guilherme <strong>do</strong>s Santos evidencia a prevalência<strong>do</strong>s direitos sociais sobre os direitos políticos, crian<strong>do</strong>uma cidadania tutelada. É natural que o ápice destas medidas,a consolidação das Leis <strong>do</strong> Trabalho tenha apareci<strong>do</strong>justamente no momento em que se iniciava a crise <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>Novo.Vinculan<strong>do</strong>-se a essa visão, Ângela de Castro Gomesdefende o resgate <strong>do</strong> papel <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res nesteprocesso e aprofunda-o. Vargas promoveu sua cooptação,sem dúvida, mas a escolha de ser coopta<strong>do</strong> era umaentre muitas. Ela permitia algum grau de acesso às instânciasde poder a partir da criação <strong>do</strong> Ministério <strong>do</strong> Trabalhoe da sindicalização vinculada ao Ministério como formade acesso às garantias que a carteira de trabalho oferecia.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>378Além <strong>do</strong>s benefícios materiais, o Ministério foi – sobretu<strong>do</strong>na gestão de Alexandre Marcondes Filho – capazde ressignificar a história de luta <strong>do</strong>s operários brasileirosnos anos 1920, transforman<strong>do</strong> a figura de Vargas em suacontinuidade. Vem desse processo a mítica de “pai <strong>do</strong>spobres”, criada para Getúlio, seus recorrentes discursosaos “trabalha<strong>do</strong>res <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>” e as comemorações <strong>do</strong> 1º demaio. O governo oferecia aos trabalha<strong>do</strong>res vantagenstanto de ordem material quanto um referencial simbóliconada desprezível. A este delibera<strong>do</strong> processo de negociaçãodesigual Ângela de Castro Gomes chamou de “Invenção<strong>do</strong> Trabalhismo”.Esta <strong>do</strong>mesticação da força de trabalho de cunhocorporativo paternalista agradava aos empresários brasileirose era percebida como necessária para a implementaçãode uma economia industrial moderna, racional ecronometrada contra a qual se insurgia a figura mítica <strong>do</strong>malandro que tinha amplo apelo popular após três séculosde escravidão. Valorizar o trabalha<strong>do</strong>r era também ummo<strong>do</strong> eficaz de valorizar o trabalho, que em sua forma manualera, como nos ensinou Sergio Buarque, demoniza<strong>do</strong>na sociedade luso-brasileira, antítese da “ética protestante”weberiana. Era a tentativa, parcialmente bem-sucedida, decriar uma nova cultura de trabalho como dignificante eapagar a humilhante e simbólica negativa <strong>do</strong> escravismo.O próprio Vargas era retrata<strong>do</strong> como o primeiro e incansáveltrabalha<strong>do</strong>r <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> e sua carteira de trabalho, aindahoje exposta no Museu da República, tem anota<strong>do</strong> o número0001.Isso explica o porquê, na feliz fórmula de Jorge Ferreira,no ocaso da ditadura crescia o prestígio e a popularidade<strong>do</strong> dita<strong>do</strong>r. Dutra percebe a intenção continuísta deGetúlio, e os frequentes comícios queremistas com intensapresença comunistas, que reuniam milhares de pessoas,assustam os setores de elite e também o Embaixa<strong>do</strong>r norte-americanoA<strong>do</strong>lf Berle Jr. Em flagrante intervenção nosassuntos internos <strong>do</strong> país, Berle Jr. faz discurso antiqueremistaem Petrópolis e alerta para o perigo de uma eleiçãoconstituinte junto com a presidencial em reca<strong>do</strong> claro paraas Forças Armadas 308 , o que irrita Getúlio. O estopim parasua deposição foi a nomeação conjunta para Prefeito eChefe de Polícia <strong>do</strong> Distrito Federal de João Alberto e deseu irmão “Bejo” Vargas. Dutra e Góis Monteiro ordenamque os tanques sigam para o Catete e Vargas apresentaao general Cordeiro de Farias sua renúncia em outubro de1930, e segue para a fazenda <strong>do</strong> Itu, em São Borja, ondeamargaria não tão longo “exílio” <strong>do</strong>méstico.308 Segun<strong>do</strong> Gerson Moura e Stanley Hilton a embaixada americana estava emcontato frequente com os militares e temia a permanência de um Getúlioem tintas nacionalistas cada vez mais próximo <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res.


379A Era Vargas (1930-1945)6.3 O Processo EconômicoLiberalismo ou Positivismo?A política cafeeira. O câmbio e a moeda eas finanças públicas.Administração e Funcionalismo Público.A industrialização e as instituições para o desenvolvimento.A questão <strong>do</strong> petróleo.A questão siderúrgica. O setor energético.As consequências macroeconômicas sistêmicas.O processo econômico da Era Vargas marca a transiçãode uma economia agrária para uma economia industrial.Esta transição só se completaria nos anos 1960, após ogoverno Juscelino Kubitschek, mas suas bases foram estabelecidaspelo Esta<strong>do</strong> nos anos 1930, por um governo comprometi<strong>do</strong>com a industrialização. Este comprometimentofoi se estabelecen<strong>do</strong> gradualmente. Ainda se percebemresquícios <strong>do</strong> pensamento liberal anterior em muitas dasmedidas <strong>do</strong>s anos iniciais da Era Vargas. O presidente, quetinha si<strong>do</strong> ministro da Fazenda <strong>do</strong> liberal Washington Luís,também tinha ti<strong>do</strong> formação positivista e castilhista no RioGrande <strong>do</strong> Sul. Entre suas duas heranças acabou optan<strong>do</strong>por emprestar sua biografia para simbolizar a a<strong>do</strong>ção daopção intervencionista pelo país inteiro. Tratava-se de industrializarpor meio da intervenção massiva <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> naeconomia. A ordem, afinal, levaria ao progresso quase cincodécadas após a confecção da bandeira republicana pelasfilhas de Benjamin Constant. Tratava-se de uma ordem autoritáriae de um progresso desigual, mas, ainda assim, emparte graças às medidas tomadas pelo Esta<strong>do</strong> crescentementecentraliza<strong>do</strong>, o <strong>Brasil</strong> se tornaria, a partir de 1930 atéo final <strong>do</strong>s anos 1970, o país de crescimento mais dinâmico<strong>do</strong> planeta 309 .A questão da cafeicultura encontrou na Era Vargasenfoque muito semelhante ao percebi<strong>do</strong> em cada um <strong>do</strong>ssegmentos sociais, políticos e econômicos <strong>do</strong> perío<strong>do</strong>:maior centralização e intervencionismo. Este intervencionismo,no entanto, não era inédito. Vinha sen<strong>do</strong> pratica<strong>do</strong>pelos governos da Primeira República desde 1906. O queo governo federal fará a partir da revolução será retomara ideia de “defesa permanente <strong>do</strong> café”, retiran<strong>do</strong> crescentementea autonomia <strong>do</strong>s paulistas que tiveram seu “Instituto”esvazia<strong>do</strong>. A política da cafeicultura passaria a serresponsabilidade <strong>do</strong> Conselho Nacional <strong>do</strong> Café, substituí<strong>do</strong>em 1932 pelo Departamento Nacional <strong>do</strong> Café (DNC).O candidato que se der ao trabalho de reler a última linhaverá na própria nomenclatura os indícios da centralizaçãoem curso – notório quan<strong>do</strong> um “Departamento” substitui“Conselho”. Do ponto de vista prático, o governo ou309 Na verdade, de 1929 a 1987, segun<strong>do</strong> Marcelo Paiva Abreu, o <strong>Brasil</strong> perdeuapenas para Taiwan/Formosa.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>380comprava o café paulista no ápice de sua superproduçãoou deixava a cafeicultura quebrar.Não se tratava exatamente de uma escolha, se lembrarmosque as divisas externas eram advindas sobretu<strong>do</strong>da cafeicultura. Dito de mo<strong>do</strong> simplifica<strong>do</strong>, lembremos queo café representava em 1930, mais de 70% <strong>do</strong>s dólares queentravam no país. Com 20 milhões de libras emprestadas<strong>do</strong>s ingleses, o governo comprou a safra paulista abaixo <strong>do</strong>preço tradicional para desespero <strong>do</strong>s produtores, evitan<strong>do</strong>,entretanto sua falência. Ao longo <strong>do</strong>s anos seguintes opreço <strong>do</strong> café chegaria a um terço <strong>do</strong> que tinha alcança<strong>do</strong>antes da crise.O que fazer com o café adquiri<strong>do</strong>? “Dumpear” omerca<strong>do</strong> internacional era uma aventura arriscadíssima nocontexto de retração sistêmica <strong>do</strong> comércio em curso (estapostura mudaria com o Esta<strong>do</strong> Novo). Decidiu-se, então,por incinerar a produção em um total de 78 milhões desacas ao final de uma década, segun<strong>do</strong> nos ensina DelfimNeto, pesquisa<strong>do</strong>r clássico <strong>do</strong> tema. Era o equivalentea três vezes o consumo anual <strong>do</strong> produto e, ao mesmotempo, uma grande virada na economia política brasileira,já que, ao comprar abaixo <strong>do</strong> preço, pagan<strong>do</strong> em moedanacional em crescente desvalorização, o governo federaldesestimulava o ciclo de superprodução que as intervençõesanteriores haviam favoreci<strong>do</strong>. Por outro la<strong>do</strong>, ao queimarparcela significativa da produção, evitava que o preçocaísse ainda mais e garantia que os recursos em dólarescontinuassem entran<strong>do</strong> no país, não raro, sob o controle<strong>do</strong> próprio governo 310 , desestimulan<strong>do</strong> as importações.Ao final <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Novo, o café havia caí<strong>do</strong> de 72% paramenos de 40% <strong>do</strong> total da pauta de exportações, perden<strong>do</strong>lugar para o algodão (cujo crescimento se devera aocomércio compensa<strong>do</strong> com a Alemanha), a borracha (insumoessencial para a indústria bélica norte-americana) epara os bens manufatura<strong>do</strong>s.Com Celso Furta<strong>do</strong> aprendemos que há relação diretaentre a política cafeeira e o advento de uma indústrianacional moderna. Há décadas que o principal centro decrescimento industrial <strong>do</strong> país era São Paulo, e isso põe porterra a dicotomia <strong>do</strong> senso comum que opõe os industriaisaos agricultores. No caso de São Paulo eram as mesmaspessoas que investiram inicialmente em atividades manufatureiraspróximas à cafeicultura (transporte, ensacamento,mecanização) e crescentemente passavam à condiçãode industriais sem aban<strong>do</strong>nar os vínculos tradicionais como café. Com a desvalorização cambial, a renda <strong>do</strong> setor cafeeirofoi salva, ainda que o preço seguisse em queda. Pelaprimeira vez, a política intervencionista <strong>do</strong> governo contribuíadecisivamente para estancar a superprodução e não310 Além disso, o governo tomou ainda uma série de outras medidas paraevitar a saída de recursos, centraliza<strong>do</strong> o setor de seguros (IRB), limitan<strong>do</strong>a remessa de lucros, contingencian<strong>do</strong> o pagamento de juros da dívida erenegocian<strong>do</strong>-a até eventualmente decretar a moratória em 1937.


381A Era Vargas (1930-1945)o contrário, como tinha si<strong>do</strong> a norma desde o convênio deTaubaté. O mil-réis em queda contribuía adicionalmentepara limitar as importações, estimulan<strong>do</strong> a produção industrialno <strong>Brasil</strong>. Uma das principais medidas que contribuiupara isso foi que, já em 1931, o Banco <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> passoua deter o monopólio da negociação de divisas. Passava aoEsta<strong>do</strong> o controle da moeda forte, até então utilizada indiscriminadamentepara o consumo de bens suntuários pelasoligarquias exporta<strong>do</strong>ras.Na correlação de forças entre os cafeicultores e oEsta<strong>do</strong>, este não mais controla<strong>do</strong> pelos cafeicultores, inverte-sea lógica da República Velha. As medidas paliativas<strong>do</strong>s anos iniciais não foram suficientes para salvar a to<strong>do</strong>s,e com o DNC, fica óbvio o poder <strong>do</strong> governo em determinara política <strong>do</strong> setor cafeeiro, provocan<strong>do</strong> a gritaria generalizada<strong>do</strong>s muitos paulistas arruina<strong>do</strong>s. Mesmo com acrescente participação da indústria, minimizan<strong>do</strong> a importância<strong>do</strong> café na pauta de exportações, ele seguia sen<strong>do</strong>o carro-chefe que garantia, inclusive, as divisas indispensáveisao governo em sua política industrial. Era necessárioproteger seu preço e evitar retaliações às suas vantagenstarifárias no nosso principal merca<strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r, os EUA,o que motivou, mesmo a contragosto, à assinatura <strong>do</strong>Acor<strong>do</strong> Comercial de 1935, torpedea<strong>do</strong> incessantementeno Congresso pelos industriais e deputa<strong>do</strong>s classistas.Sem acor<strong>do</strong> não se venderia mais café, e sem café não seriapossível investir no setor industrial. O acor<strong>do</strong> de 1935 e asdifíceis negociações que permitiram a Vargas aprová-lo noCongresso de Deputa<strong>do</strong>s classistas articula<strong>do</strong>s por Euval<strong>do</strong>Lodi marcam um novo momento das relações entre oEsta<strong>do</strong> e os industriais, como veremos.A política em relação ao café mudaria com a “carona”que os produtores colombianos estavam pegan<strong>do</strong> napolítica brasileira de valorização <strong>do</strong> preço. O governo brasileiroqueimava tanto café que isso acabou benefician<strong>do</strong>os concorrentes. Nos anos iniciais <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Novo, o <strong>Brasil</strong>começa a reverter essa lógica inician<strong>do</strong> uma política agressivade venda barata de café, e, aos poucos, aban<strong>do</strong>nan<strong>do</strong>a “cota <strong>do</strong> sacrifício” a ser incinerada. Depois de algum tempo,o <strong>Brasil</strong>, que em 1937 tinha caí<strong>do</strong> a menos da metadedas exportações globais de café, se recupera e volta parapatamares em torno de 57%. Ao mesmo tempo, consegueincluir nos acor<strong>do</strong>s de guerra com os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s quotasfixas a partir de 1941, garantin<strong>do</strong> a venda da produçãopara o principal merca<strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r, ansioso por agradaro governo brasileiro por razões mais políticas que econômicas.Tais idas e vindas permitiram inclusive a abertura tímidade novas frentes cafeeiras tanto em São Paulo quantono Paraná, substituin<strong>do</strong> zonas em declínio que acabaramdan<strong>do</strong> lugar à outras atividades.No setor bancário e securitário houve intensa centralização.O papel <strong>do</strong>s bancos e segura<strong>do</strong>ras estrangeirasdeclinou sensivelmente e seu espaço foi sen<strong>do</strong> ocupa<strong>do</strong>pelo Banco <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> e pelos bancos estaduais que crescem


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>382na atmosfera de nacionalismo em curso. No bojo das discussõesnacionalistas da Constituinte de 1934 e da outorgada Constituição de 1937, houve a preocupação de nacionalizaçãode to<strong>do</strong> o sistema financeiro estrangeiro, mas asolução a<strong>do</strong>tada pelo governo foi mais branda. Impedia aentrada de segura<strong>do</strong>ras ainda não estabelecidas, mas permitiaque seguissem funcionan<strong>do</strong> as que já existiam semque, no entanto, pudessem se expandir. Nacionalizava-se,assim, progressivamente o setor financeiro <strong>do</strong> país, garantidaa primazia <strong>do</strong> Banco <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, que desempenhava diversospapéis. Era ao mesmo tempo Banco Central e Bancode Fomento. Tinha função de prove<strong>do</strong>r de crédito agrícolae industrial e desde 1931 controlava exclusivamente ocâmbio 311 . O crescimento <strong>do</strong> Branco <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> é exponencial,mas já ocorria desde o perío<strong>do</strong> da Primeira República.Termina a Era Vargas com 35% <strong>do</strong> total de depósitos nacionaise presença em to<strong>do</strong>s os Esta<strong>do</strong>s <strong>do</strong> país. No campo<strong>do</strong>s seguros, o processo de centralização em curso, com oobjetivo de evitar a saída de recursos <strong>do</strong> país, encontrariaseu ápice institucional com a criação <strong>do</strong> Instituto de Resseguros<strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> (IRB) em 1939. Trata-se de um <strong>do</strong>s muitosexemplos de institucionalização burocrática da política dedesenvolvimento nacionalista em curso.311 A SUMOC só seria criada em 1945.No plano macroeconômico, os anos iniciais foram deconsolidação das opções <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> mediante turbulênciapolítica sem precedentes – José Murilo de Carvalho contabilizaentre 1930 e 1933 mais levantes militares que sobo governo <strong>do</strong>s regentes – o que legou ao PIB crescimentodébil, da ordem de 1% ao ano. A partir de 1933, superadaconjuntura da guerra paulista e da seca cearense de 1932,a média <strong>do</strong> crescimento <strong>do</strong> PIB ultrapassa os 10% até 1945,e isso se deve à indústria e à melhoria da capacidade <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>de administrar suas finanças em tempos turbulentosde escassez de divisas. O gerenciamento da dívida externaé um exemplo disso 312 .A limitação creditícia por um la<strong>do</strong> e a melhor capacidadede negociação por outro estabilizaram o valor dadívida que se reduziria significativamente ao longo <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>Novo. A formação de pessoal qualifica<strong>do</strong> fez com quepor quase duas décadas o governo brasileiro prescindissede receber notáveis estrangeiros, como Otto Niemeyer, <strong>do</strong>Banco da Inglaterra que veio ao <strong>Brasil</strong> em 1931 em missão312 Melhor negociada ela se reduziria a partir de 1937, chegan<strong>do</strong> à cerca demetade <strong>do</strong> valor deve<strong>do</strong>r em 1935. Os diplomatas brasileiros começam areceber treinamento econômico institucional e os melhores classifica<strong>do</strong>spassam a fazer estágios nos escritórios de Londres e Nova York para essefim. Não existia uma escola de formação de diplomatas – o Instituto RioBranco só seria cria<strong>do</strong> em 1945 – e o concurso público era incerto, emborajá existisse na República Velha, ao contrário das demais carreiras públicas,exceto a militar.


383A Era Vargas (1930-1945)para viabilizar a concessão de empréstimos britânicos.A Missão Niemeyer fez recomendações orto<strong>do</strong>xas de equilíbrioorçamentário, inviáveis 313 aquela altura, quan<strong>do</strong> seagudizava a deterioração das condições macroeconômicassistêmicas. A própria Inglaterra aban<strong>do</strong>naria o padrão-ourologo depois <strong>do</strong> fim da missão, sinalizan<strong>do</strong> para o <strong>Brasil</strong> queo caminho velho não mais servia.A partir de 1933, com a superação <strong>do</strong>s anos maisgraves da crise, o <strong>Brasil</strong> retoma o índice de crescimento, viven<strong>do</strong>até os anos de guerra um verdadeiro “primeiro” milagreeconômico. O monopólio cambial <strong>do</strong> Banco <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> ésuspenso em 1934 (voltará em 1937) e o que tinha si<strong>do</strong> deflaçãode 1929 a 1932 começa a se tornar inflação. Com a2 a Guerra Mundial, a necessidade de meio circulante se tornatão intensa que o mil-réis é troca<strong>do</strong> pelo cruzeiro pelasimples razão de maior necessidade de moeda no quadrode desvalorização em curso. Ao mesmo tempo, finalmentese superava o quadro de dependência orçamentária combase nos tributos de importação que vinham desde o Império.Uma vez que as importações diminuam, e o governose esforçava para diminuí-las ainda mais, restringin<strong>do</strong>-asaos bens essenciais e insumos para a indústria – máquinaspara a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) no início <strong>do</strong>sanos 1940, por exemplo –, a participação <strong>do</strong>s impostos deimportação na arrecadação total foi reduzida drasticamenteao longo da Era Vargas 314 .Mas o governo tentava ainda assim manter o equilíbrioorçamentário quase atingi<strong>do</strong> entre 1935 e 1936, emparte graças ao chama<strong>do</strong> “esquema Aranha” formula<strong>do</strong>pelo homem forte <strong>do</strong> governo provisório, agora Ministroda Fazenda, que estendia ainda mais os prazos de pagamentosda dívida, mas o quase é significativo. O “esquema”acabou jogan<strong>do</strong> para frente as parcelas que comprometeriamo equilíbrio orçamentário <strong>do</strong>s anos seguintes. Como Esta<strong>do</strong> Novo viria outra moratória (1937), recebida comprotestos pelos cre<strong>do</strong>res, mas com menor dramaticidadepelo governo americano que tinha interesse em umaparceria estratégica com o <strong>Brasil</strong> que reduzisse a presençaalemã no país e garantisse o fornecimento de matérias-primasestratégicas para a indústria em caso de guerra.Além da salvação da cafeicultura, o destino preferencial<strong>do</strong>s crescentes gastos estatais será o funcionalismoque se expandiu de mo<strong>do</strong> sem precedentes na Era Vagas.Uma das vertentes mais fortes <strong>do</strong> processo de centralizaçãoem curso era a formação de uma burocracia weberianasubordinada à Presidência da República. O crescimento e313 A sugestão de criação de um Banco Central é um exemplo. Tal medida sóseria implementada mais de 30 anos depois.314 Representavam 40% <strong>do</strong> total no governo Washington Luís e pouco mais de11% em 1945.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>384aparelhamento <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> será uma das metas <strong>do</strong> Ministério<strong>do</strong> Trabalho e sua base teórico-ideológica está presenteno positivismo castilhista, no pensamento autoritário deAlberto Torres e na ação <strong>do</strong>s tenentes herdeiros de ambasas tradições. Não é de se surpreender, portanto, a presençarecorrente de militares em atividades de promoção <strong>do</strong> desenvolvimentismo,auxilian<strong>do</strong> os técnicos e engenheirosou atuan<strong>do</strong> eles próprios nestas funções 315 imbuí<strong>do</strong>s daideologia nacionalista. O ápice desta visão foi a criação <strong>do</strong>Departamento Administrativo <strong>do</strong> Serviço Público (DASP)em 1938 que buscou modernizar a estrutura administrativa<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> introduzin<strong>do</strong> princípios meritocráticos e generalizan<strong>do</strong>a prática de admissão por meio de concursopúblico.Intervenção estatal. Controle de divisas. Desvalorizaçãoda moeda. Crescimento e qualificação <strong>do</strong> funcionalismo.Desestímulo à produção cafeeira. Ideologianacionalista moderniza<strong>do</strong>ra. Cada um destes fatores emconsonância com a conjuntura internacional contribuiuem maior ou menor grau para o deslanchar de um processoindustrializante que a historiografia reconhece terti<strong>do</strong> lugar durante a Era Vargas. É importante reconhecerque havia significativa base industrial herdada <strong>do</strong> perío<strong>do</strong>anterior, mas sua ampliação se deveu indubitavelmente apolíticas de fomento, como a tarifa de 1934 (protecionista),a política cambial e os estímulos <strong>do</strong> Banco <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> 316 . A legislaçãotrabalhista e previdenciária também teve impactofavorável ao regular e disciplinar o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho.Os setores tradicionais da indústria brasileira – têxtil,alimentos, bebidas e fumo – crescem, mas perdem participaçãono conjunto da produção de manufatura<strong>do</strong>s parasetores novos das indústrias de base como metalurgia, mecânica,cimento, e também papel 317 . Na década que transcorreuentre a Revolução até à eclosão da Segunda GuerraMundial, a metalurgia cresceu 300%, a mineração mais de500% e o setor de papel 700%. O ritmo da substituição deimportações no setor de base é incrível. Em 1937, quaseto<strong>do</strong> o cimento e ferro gusa consumi<strong>do</strong> é produzi<strong>do</strong> nopróprio país. No caso <strong>do</strong> aço – em lingotes – esse consumochega à 3/4, mesmo sem uma grande siderúrgica nacional,que só viria na década seguinte.315 Horta Barbosa no CNP para a promoção da extração <strong>do</strong> Petróleo e JuarezTávora como ministro da Agricultura que deu o pontapé inicial para aelaboração <strong>do</strong> Código de Águas são apenas <strong>do</strong>is exemplos. Os gaúchosLin<strong>do</strong>lfo Collor no Ministério <strong>do</strong> Trabalho e Oswal<strong>do</strong> Aranha na Fazendatambém se vinculam a tradição castilhista de fortalecimento <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>.316 Que criou em 1937 a Carteira de Crédito Agrícola e Industrial (CREAE).317 A desvalorização cambial teve impacto no extraordinário crescimentodas indústrias gráficas e <strong>do</strong> setor editorial brasileiro – no qual se destacouMonteiro Lobato – com muitas traduções e extraordinário boom delançamentos de autores brasileiros.


385A Era Vargas (1930-1945)É muito significativa a prevalência <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> deSão Paulo, onde esta diversificação é ainda mais intensa eo processo desenvolvimentista o mais dinâmico. Esta primazia<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> onde a oposição ao governo tinha si<strong>do</strong>a mais aguerrida, trouxe, naturalmente, consequênciaspolíticas. Segun<strong>do</strong> Eli Diniz, estabeleceu-se um novo tipode relação entre o governo e o empresaria<strong>do</strong>, media<strong>do</strong>por uma pletora de novas instituições diretamente relacionadasà promoção das atividades econômicas e <strong>do</strong>desenvolvimento. Por meio destas instituições 318 , o governoconquistava maior autonomia em relação aos grupos318 Dentre as principais instituições criadas podemos citar o Conselho Federal deComércio Exterior (CFCE) em 1934 diretamente subordina<strong>do</strong> à Presidênciada República, órgão consultivo para as questões econômicas, imensamenterelevante em suas proposições e sugestões para o desenvolvimento; oConselho Técnico de Economia e Finanças (CTEF) em 1937, vincula<strong>do</strong> aoMinistério da Fazenda, que pesquisava propunha medidas referentes aosistema monetário-financeiro; a Coordenação da Mobilização Econômica(CME) em 1942, subordinada à presidência da República como intuito deregular o esforço de Guerra, centralizan<strong>do</strong> o controle da produção e sualogística; o Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial (CNPIC), em1944, subordina<strong>do</strong> ao Ministério <strong>do</strong> Trabalho, tinha por objetivo sugerir umapolítica econômica para o perío<strong>do</strong> pós-guerra; a Comissão de PlanejamentoEconômico (CPE), em 1944, vinculada ao Conselho de Segurança Nacionalpara estu<strong>do</strong> das atividades econômicas. Além destes órgãos gerais, haviainúmeros órgãos setoriais que regulavam a produção e o consumo debens considera<strong>do</strong>s estratégicos. São alguns exemplos: DNC (DepartamentoNacional <strong>do</strong> Café, 1933); IAA (Instituto <strong>do</strong> Açúcar e <strong>do</strong> Álcool, 1933); INM(Instituto Nacional <strong>do</strong> Mate, 1938), INS (Instituto Nacional <strong>do</strong> Sal, 1941),DNPM (Departamento Nacional de Produção Mineral, 1934); CNP (ConselhoNacional <strong>do</strong> Petróleo, 1938); CNAEE (Conselho Nacional de Águas e EnergiaElétrica, 1939).oligárquicos ou empresariais estabeleci<strong>do</strong>s que antes sedirigiam ao aparato estatal sem media<strong>do</strong>res, quan<strong>do</strong> nãoos dirigia diretamente. Com um Esta<strong>do</strong> crescentementeintervencionista, burocratas mais qualifica<strong>do</strong>s, técnicos incorpora<strong>do</strong>screscentemente com base na meritocracia servemde media<strong>do</strong>res <strong>do</strong>s interesses <strong>do</strong> empresário individual,da coletividade <strong>do</strong> empresaria<strong>do</strong> e, claro, <strong>do</strong> governo.O desenvolvimentismo se institucionaliza, incorporan<strong>do</strong>e, em muitos casos, protegen<strong>do</strong> os interesses <strong>do</strong> empresaria<strong>do</strong>319 , que passa crescentemente a perceber o Esta<strong>do</strong>como um alia<strong>do</strong>, e não mais como um rival 320 , ainda quecom momentos de tensão, como quan<strong>do</strong> da aprovação <strong>do</strong>Acor<strong>do</strong> Comercial com os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s em 1935.Durante o Esta<strong>do</strong> Novo, o intervencionismo, já semopositores, e contan<strong>do</strong> com a aliança <strong>do</strong>s setores empresariais,venceria to<strong>do</strong>s os óbices da herança liberal e assumiriaplenamente sua vocação econômica dinamizan<strong>do</strong>,sobretu<strong>do</strong>, os setores considera<strong>do</strong>s estratégicos da in-319 O sistema corporativo da Carta de 1934 facilita esta representação <strong>do</strong>empresaria<strong>do</strong>, inclusive mediante o voto classista que reserva 17 vagas naCâmara <strong>do</strong>s Deputa<strong>do</strong>s para as categorias patronais.320 Catherine Sikkink em um livro interessante sobre a institucionalizaçãodas ideias, em particular das ideias desenvolvimentistas no <strong>Brasil</strong> e naArgentina, atribuiu o relativo sucesso <strong>do</strong> desenvolvimentismo no <strong>Brasil</strong> à suacapacidade de institucionalizar as ideias com algum grau de consenso entreos grupos sociais – empresários, burocratas, militares, opinião pública – aocontrário <strong>do</strong> que ocorreu na Argentina. Ainda que seu estu<strong>do</strong> de caso sejaos governo Kubitschek e Frondizi, o que ela defende vale perfeitamente paraa Era Vargas.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>386dústria de base e infraestrutura. Maria Antonieta Leopoldiargumenta que o estu<strong>do</strong> da política governamental paraos setores de petróleo, energia elétrica e siderurgia fornecemos melhores exemplos da institucionalização <strong>do</strong> desenvolvimentismobrasileiro no perío<strong>do</strong>. Por se tratarem dequestões controversas no seio da elite nacional, foi apenascom o estabelecimento de algum consenso congregan<strong>do</strong>militares, industriais e a burocracia estatal que foi possívelao Esta<strong>do</strong> passar <strong>do</strong> papel de promotor da industrializaçãopara o papel de empresário direto, para horror <strong>do</strong>s liberaismais radicais que até hoje pelejam pela privatização 321 .É curioso que em cada um destes casos a definição <strong>do</strong> caminhoa ser segui<strong>do</strong> pelo Esta<strong>do</strong> evoca considerações deordem sistêmica.O caso <strong>do</strong> petróleo evidencia mais dissenso <strong>do</strong> queconsenso. Importa<strong>do</strong> por refinarias privadas nos anos de1930, o petróleo vai ganhan<strong>do</strong> importância e se tornan<strong>do</strong>uma preocupação de Segurança Militar. Um general,Horta Barbosa presidiu o CNP de 1938 a 1943 e só perdeuforça com a entrada no <strong>Brasil</strong> na guerra, o que minimizousuas posições nacionalistas. As propostas <strong>do</strong>s industriais(Simonsen, por exemplo) era uma divisão – 40% para o321 São exemplos de empresas públicas criadas durante o Esta<strong>do</strong> Novo a CSN(Cia. Siderúrgica Nacional, 1940), CRVD (Cia. Vale <strong>do</strong> Rio Doce, 1942), CNA(Cia. Nacional de Álcalis, 1943), a FNM (Fábrica Nacional de Motores, 1943) ea CHESF (Cia. Hidrelétrica <strong>do</strong> São Francisco, 1945).capital estrangeiro e 60% para as empresas nacionais – queapesar de considerada pelo Esta<strong>do</strong>, não vingou. Este debateainda se estenderia por uma década até que prevaleceu,em 1953, a posição de Horta Barbosa em defesa <strong>do</strong> monopólioestatal 322 , que passara, com a redemocratização, acontar com amplo apoio popular com a campanha “O Petróleoé Nosso”. Depois de 1953, após uma década de paixõesacirradas em ambas as posições, com lobby agressivodas empresas estrangeiras por uma regulamentação maisliberal das prerrogativas nacionalistas da Constituição de1946, coube a elas apenas a distribuição <strong>do</strong> combustível, jáque a Petrobras passava a deter o monopólio da extraçãoe <strong>do</strong> refino. Certamente por conta <strong>do</strong> dissenso entre os váriosatores políticos, o debate se inicia com o Esta<strong>do</strong> Novo,mas só se resolve 15 anos depois.Bem menos controversa foi a questão siderúrgica.Sucessivos fracassos da iniciativa privada de construir umgrande complexo siderúrgico nos anos de 1920 e 1930foram evidencian<strong>do</strong> progressivamente a necessidade322 Não por acaso se chama Horta Barbosa um <strong>do</strong>s principais prédios daPetrobras no Rio de Janeiro. Tanto a Argentina (anos 1920) quanto o México(1938) haviam a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> políticas nacionalistas para o setor de petróleo einfluenciaram a posição brasileira crescentemente nacionalista e que tantoincomo<strong>do</strong>u Monteiro Lobato, tão adepto da livre-iniciativa ao ponto detentar educar as crianças brasileiras no empreende<strong>do</strong>rismo, o que levou oVisconde de Sabugosa a prospectar e encontrar petróleo no Sítio <strong>do</strong> Pica-Pau Amarelo, enriquecen<strong>do</strong> a D. Benta.


387A Era Vargas (1930-1945)de intervenção estatal para a superação <strong>do</strong> quadro depequenas e médias empresas siderúrgicas privadas 323 , quefalhavam em aproveitar to<strong>do</strong> o potencial mineral brasileiro324 . A pressão <strong>do</strong>s militares contribuiu decisivamente paraa crescente presença <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> na construção de umagrande siderúrgica nacional. A decepção <strong>do</strong> governo coma desistência da US Steel em investir no <strong>Brasil</strong> foi percebida,segun<strong>do</strong> Gerson Moura, pelo Embaixa<strong>do</strong>r americano echegou ao Departamento de Esta<strong>do</strong> norte-americano, quedecidiu apoiar o projeto siderúrgico brasileiro em benefíciodas relações bilaterais, que pareciam ficar seriamenteprejudicadas com a recusa da empresa criada por AndrewCarnegie. Foi criada em 1940 a Comissão Executiva <strong>do</strong> PlanoSiderúrgico, que contava com a presença de militarescomo Edmun<strong>do</strong> Mace<strong>do</strong> Soares e empresários como GuilhermeGuinle. Se não fosse com o capital priva<strong>do</strong> nacional,nem com o capital estrangeiro, o Esta<strong>do</strong> faria, se necessáriosozinho, e de qualquer mo<strong>do</strong>, sua siderúrgica. Tornar-se-iaassim, mais por necessidade que por desejo, um Esta<strong>do</strong>-323 É bom lembrar que a CSN não foi a primeira siderúrgica brasileira. Já existiammais de uma dezena delas em Minas e São Paulo – a Belgo Mineira, comduas unidades em Minas Gerais, já era a maior da América Latina em 1940.324 Caso emblemático da necessidade de apoio <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> no setor foi o projetoda Acesita, sonho siderúrgico de Percival Farqhuar – o megaempresáriodas ferrovias da Primeira República que investiu tu<strong>do</strong> que possuía na AçosEspeciais de Itabira. Ultrapassou tanto o custo inicial previsto que não teriasi<strong>do</strong> concluída não fosse o financiamento generoso <strong>do</strong> Banco <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, queassumiu seu controle quan<strong>do</strong> finalmente foi inaugurada.-empresário, com amplo apoio <strong>do</strong>s militares, burocratas eempresários ávi<strong>do</strong>s por coque, ferro-gusa e aço. Os custos,no entanto, eram proibitivos e precisavam de financiamentoestrangeiro, o que, em um contexto de radical restriçãode créditos internacionais, só seria possível no bojo de umanegociação política mais ampla, segun<strong>do</strong> Gerson Moura.Flertava-se tanto com a Alemanha quanto com os Esta<strong>do</strong>sUni<strong>do</strong>s. A Krupp promete a siderúrgica para depois daguerra, e para evitar o aumento da influência alemã quaseexplícita nos discursos de Vargas de junho de 1940, ogoverno norte-americano abriu os cofres <strong>do</strong> Eximbank pordeterminação direta <strong>do</strong> presidente Roosevelt.A capacidade de barganha <strong>do</strong> governo – objeto decontrovérsias entre Marcelo Paiva Abreu e Gerson Moura –foi fundamental para que o financiamento <strong>do</strong> setor siderúrgico<strong>do</strong> Eximbank, inicialmente previsto em 20 milhões dedólares, alcançasse a soma de 45 milhões. A CSN criada noinício <strong>do</strong>s anos 1940 sofreu imensamente com a necessidadede importação de máquinas em tempos de guerra – e orisco de que os navios que transportavam esse maquináriofossem bombardea<strong>do</strong>s – e só alcançou sua produção plenaem 1948, três anos depois de sua inauguração. Mesmodepois disso, o Esta<strong>do</strong> seguiu investin<strong>do</strong> intensamente, tantona CSN quanto em companhias siderúrgicas privadas aoponto de que em determina<strong>do</strong> momento o Banco Nacionalde Desenvolvimento Econômico (BNDE), cria<strong>do</strong> em 1953,chegou a ser chama<strong>do</strong> de Banco <strong>do</strong> Aço.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>388Deste mo<strong>do</strong>, na questão <strong>do</strong> petróleo, a falta de consensoadiou a decisão, finalmente definida em bases nacionalistasapenas nos anos 1950 e, na questão siderúrgica,a falta de capacidade e/ou recursos da iniciativa privadafavoreceu o consenso e forçou o Esta<strong>do</strong> a se tornar empresário.Na questão da energia elétrica prevaleceu o confrontoaberto entre o Esta<strong>do</strong> e as companhias concessionáriasque formavam holdings poderosíssimas desde a PrimeiraRepública, controlavam o fornecimento, a distribuição deenergia e os serviços de bondes e se opunham ao intervencionismo<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. O confronto começa quan<strong>do</strong> o governo,pressiona<strong>do</strong> pela falta de divisas, proíbe reajustes quegarantiam historicamente a rentabilidade das empresas(“cláusula ouro”) a menos que fosse comprova<strong>do</strong> o custoreal <strong>do</strong> serviço. As empresas se recusam a abrir suas contaspara o governo o que congela por décadas as tarifas, impactan<strong>do</strong>negativamente nos investimentos, que igualmentesão congela<strong>do</strong>s. Recursos à justiça e resistência contra asinstituições frágeis que regulavam o setor – vinculadas aoMinistério da Agricultura – adiam por muitos anos a modificaçãoda situação herdada <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> anterior.Ainda assim, se percebem vitórias relevantes <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>no confronto com a Light e a Amforp, as duas maioresconcessionárias em atuação no país. O Código de Águas,que o Congresso da Primeira República não fora capaz deaprovar em 1907, reaparece de mo<strong>do</strong> significativamentemais centraliza<strong>do</strong>r em 1934 sob o coman<strong>do</strong> de JuarezTávora no Ministério da Agricultura. Centraliza também aconcessão, antes a cargo <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s e Municípios, agoraexclusividade <strong>do</strong> governo Federal.Agin<strong>do</strong> nas brechas da falta de investimentos dasconcessionárias, o governo vai aos poucos aderin<strong>do</strong> aomodelo norte-americano de grandes hidrelétricas <strong>do</strong> NewDeal. A Cia. <strong>do</strong> Vale <strong>do</strong> Tennessee serve de inspiração paraa CHESF, empresa formada com o objetivo de construir egerir a hidrelétrica de Paulo Afonso, que supriria em parteos “buracos negros” que iam surgin<strong>do</strong> com a falta deinvestimentos. Apagões e faltas d’água se tornam frequentesnos anos de 1940 e 1950, inspiran<strong>do</strong> marchinhas carnavalescas325 e a presença <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> se fazia cada vez maispremente. Apesar da criação da CHESF, ao final <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>Novo, seria necessária ainda maior presença <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>,tanto como empresário como regula<strong>do</strong>r <strong>do</strong> setor energético.A fórmula definitiva, no entanto, seria ainda maistardia que a da questão petrolífera. A Eletrobras, inspiradana CEMIG mineira de JK, “foi obstaculada até o desespero”325 Vagalume de Fernan<strong>do</strong> Martins e Vitor Simon assim dizia nos anos 50: “Rio deJaneiro/ Cidade que nos seduz/ De dia falta água/De noite falta luz/ Abro ochuveiro/ Não cai nem um pingo/Desde segunda até <strong>do</strong>mingo./ Eu vou promato/ Ai! pro mato eu vou/ Vou buscar um vagalume/ Pra dar luz ao meuchatô”. De 1954, o samba de Braguinha, o João de Barro lança<strong>do</strong> por EmilinhaBorba, mesmo sem ter feito tanto sucesso assim dizia: “Acenda a vela, Iaiá/Acende a vela/ Que a Light cortou a luz/ No escuro eu não vejo aquela/Carinha que me seduz./ Ó seu inglês da Light/ A coisa não vai all right/ Secom uísque não vai não/ Bota cachaça no ribeirão”.


389A Era Vargas (1930-1945)conforme o próprio Vargas afirmava dramaticamente emsua Carta Testamento (1954), sen<strong>do</strong> implementada apenasno governo de João Goulart quase dez anos depois.Como consequência político-econômica da “opção”brasileira, durante a 2 a Guerra Mundial, os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>sassumiram definitivamente o papel de “sol” da economiabrasileira tanto em termos de comércio quanto em termosde investimentos diretos, ultrapassan<strong>do</strong> os inglesestambém neste quesito. Pesou nesse senti<strong>do</strong> os créditos <strong>do</strong>Eximbank (45 milhões de dólares) e os investimentos diretosde setores priva<strong>do</strong>s como os de Henry Ford na Amazôniaou aqueles feitos no setor de transportes e mineração emMinas Gerais para o escoamento <strong>do</strong>s minérios essenciais aoesforço de guerra. O <strong>Brasil</strong> se beneficiara imensamente daparceria bilateral mas agora, com o fim da Política da BoaVizinhança, se via às voltas com um problema que caracterizariato<strong>do</strong> o governo Dutra e parte <strong>do</strong> 2 o governo Vargas.As divisas acumuladas pelo governo brasileiro tornavam-nosalvo preferencial da investida exporta<strong>do</strong>ra deslanchadapelo governo <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s que, ao fimda guerra, não mais via com bons olhos a ideia de substituiçãode importações e se sentia desconfortável em tercomo alia<strong>do</strong> uma ditadura 326 . Não havia mais com quembarganhar e o alinhamento não traria mais as recompensasem um momento onde a “aliança especial” não passavade uma ilusão (Gerson Moura). De alia<strong>do</strong>, o governo <strong>do</strong>sEsta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s passava a ser percebi<strong>do</strong> pelos setores nacionalistasbrasileiros cada vez mais como um obstáculo aodesenvolvimento.326 O embaixa<strong>do</strong>r A<strong>do</strong>lf Berle Jr. em articulação com os militares contribuiu paraa derrubada de Getúlio.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>3906.4 As relações internacionais <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> (1930-1945)Liberalismo inercial. Projeto desenvolvimentista gradual.Os acor<strong>do</strong>s comerciais <strong>do</strong>s anos 1930. O ContextoInternacional de Crise <strong>do</strong> Liberalismo. A Política daBoa Vizinhança. O comércio compensa<strong>do</strong> com a Alemanhae o Acor<strong>do</strong> Comercial de 1935 com os EUA. A EquidistânciaPragmática e a política de barganhas. A participação <strong>do</strong><strong>Brasil</strong> na Segunda Guerra Mundial. A “mão” de Washingtonno fim <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Novo.Periodizar é um exercício político. Na seara <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>shistóricos, a periodização nunca é isenta ou neutra, eos intérpretes da história, mesmo quan<strong>do</strong> herdam marcosinequívocos de ruptura como 1889, 1930 ou 1937, podemressignificá-los, valorizá-los ou desmerecê-los. No campoda história das relações internacionais <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, a décadade 1930 é unanimemente percebida como um divisor deáguas. Inaugura-se durante a Era Vargas o paradigma desenvolvimentistade Política Externa. Uma política externaprioritariamente a serviço <strong>do</strong> desenvolvimento industrial<strong>do</strong> país.No imediato pós-revolução, no entanto, estes ditamesgrandiosos ainda não estavam claros. Em que pese aforça <strong>do</strong> tenentismo e seu compromisso com a modernização<strong>do</strong> país, o movimento revolucionário de 1930 contavaem suas fileiras um numeroso grupo de oligarcas dissidentesacostuma<strong>do</strong>s ao relativo laissez-faire da Primeira República,entre eles o próprio Getúlio que tinha si<strong>do</strong> o primeiroministro da Fazenda de Washington Luiz, o presidente querestaurara o padrão-ouro. Para muitos, o que se devia fazerera aguardar o retorno da normalidade econômica quecertamente viria passada a tempestade sistêmica da crisede 1929. Até lá, o governo deveria agir cautelosamente eseu intervencionismo seria reativo, não proativo.Mas a crise de 1929 virou a Grande Depressão <strong>do</strong>sanos 1930 e o que era paliativo e temporário começou ase insinuar na perenidade, institucionalizan<strong>do</strong>-se nas agênciase ideias <strong>do</strong> grupo que havia toma<strong>do</strong> o poder. Assim,paulatinamente, estimula<strong>do</strong> por externalidades estruturais,o projeto desenvolvimentista brasileiro foi sen<strong>do</strong> construí<strong>do</strong>,conforme observa e defende Francisco Corsi. Este autoracredita que apenas em 1937 podemos identificar claramenteo desenvolvimentismo industrialista encastela<strong>do</strong>no aparato estatal e sen<strong>do</strong> por ele fomenta<strong>do</strong>. Antes disso,o debate ainda estava em curso, e, mesmo que crescentementeconsensual ao compromisso industrialista, não eracapaz de chegar ao mesmo grau de consenso quanto aopapel que teria o Esta<strong>do</strong> nesta meta. Esta<strong>do</strong> forte para ospaulistas, vanguarda da industrialização nacional, evocavaquase automaticamente “ditadura tenentista” e escravizaçãomilitar de São Paulo. A luta por autonomia paulista eraem certo nível de simplificação uma luta pela manutençãode algum liberalismo.


391A Era Vargas (1930-1945)A maior parte <strong>do</strong>s industriais paulistas que havia angaria<strong>do</strong>ou aumenta<strong>do</strong> suas fortunas nas franjas da economiacafeeira ou diretamente vincula<strong>do</strong>s a ela, tinhamgrande fé nos <strong>do</strong>gmas liberais da Primeira República e odefendiam ferrenhamente, como ficou claro nos debatesda Constituinte de 1934. Industrializar sim, Esta<strong>do</strong> não.A modernização seria um movimento da sociedade exclusivamente,caben<strong>do</strong> ao Esta<strong>do</strong> o papel de fornecer osmeios de suporte ao empreende<strong>do</strong>rismo: estabilidadeeconômica, acesso aos merca<strong>do</strong>s internacionais, infraestruturade transporte e energia, estímulo à educação, semse exceder em medidas de fomento e sem obstaculizar oespírito da livre-iniciativa.Esta visão é perfeitamente exemplificada pela obrae vida de paulistas como Roberto Simonsen e MonteiroLobato. O primeiro, rebelde em 1932, foi o articula<strong>do</strong>rna Constituinte da bancada industrialista de São Paulo efunda<strong>do</strong>r da Escola de Sociologia e Política de São Paulo,onde lecionou história econômica, base para muitos deseus livros. O segun<strong>do</strong>, empreende<strong>do</strong>r de sucesso, bissextono merca<strong>do</strong> editorial e na prospecção de petróleo, viroupanfletário da livre-iniciativa nos moldes norte-americanos.Anos depois <strong>do</strong> golpe <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Novo, tal vertente serevigoraria na releitura udenista <strong>do</strong>s anos de redemocratizaçãoao final da 2 a Guerra.Essa contenda sobre o “como?” da industrializaçãobrasileira teve naturalmente impacto no exercício daPolítica Externa <strong>do</strong> Governo Provisório. Ricar<strong>do</strong> Seitenfussdefende que os homens que tomaram o poder em 1930davam importância limitada à inserção internacional, excetonaturalmente no caso <strong>do</strong>s temas econômicos: comércio(de café, sobretu<strong>do</strong>) e dívida externa. Justamente os temasque poderiam minimizar o estrangulamento creditício ea escassez de divisas em curso. Voltar-se para dentro foi,nos primeiros anos, menos uma opção e mais uma necessidade.Mas como se justificar isso para fins de propagandae consumo interno? O nacionalismo era a resposta queencontrava respal<strong>do</strong> tanto na vocação <strong>do</strong>s militares queapoiaram o golpe quanto na demonização da República“Velha” anterior retratada como submissa ao imperialismo<strong>do</strong>s fortes.Críticos <strong>do</strong> governo Washington Luís e da sua aproximaçãocom os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s na chancelaria de OctavioMangabeira – não por acaso, futuro líder udenista – viamno americanismo <strong>do</strong> último presidente da Primeira Repúblicaindícios de uma submissão estrutural à Washington.Washington Luís representaria assim toda a vocação submissada República, não por acaso, “Velha”. Tratava-se deuma visão de dependência por metonímia. Tal visão, fortementecontroversa, como podemos depreender daleitura das obras de Eugenio Garcia, marcaria a historiografiae ajudaria a conformar o marco de 1930 como data deruptura seminal tanto na política interna quanto na políticaexterna.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>392O que se percebe, ao menos no campo da políticaexterna, que o que se deu foi muito mais uma transiçãogradual de paradigma que uma ruptura da noite para odia. Essa transição que durou toda a primeira metade <strong>do</strong>sanos de 1930 teve como principal motor a permanênciadas restrições sistêmicas que sofria a atuação externa <strong>do</strong>país com o agravar da Grande Depressão e da restriçãocreditícia e escassez de divisas dela advinda. Assim, como objetivo de permitir o escoamento da superproduçãode café e a diversificação de parcerias que minimizassem adependência <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> estadunidense, o <strong>Brasil</strong> buscouo estabelecimento de acor<strong>do</strong>s de comércio bilaterais comdezenas de países. Estes acor<strong>do</strong>s celebra<strong>do</strong>s foram a tônicada ação externa da chancelaria de Afrânio de Melo Franco(1930-1933) 327 , ele próprio um diplomata e deputa<strong>do</strong> destaca<strong>do</strong>da velha ordem, representante <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> na Liga dasNações nos anos de 1920.327 Também é relevante destacar que no plano regional esta chancelariamanteve a estrita neutralidade na escalada de conflitos que levou à Guerra<strong>do</strong> Chaco (1833-35) e além <strong>do</strong> início da solução negociada da controvérsiade Letícia (resolvida em maio de 1934) envolven<strong>do</strong> o Peru e a Colômbia, masna qual o <strong>Brasil</strong> tinha interesse relevante (linha Apapóris-Tabatinga marcavaa fronteira originalmente negociada com os peruanos). Até a soluçãodefinitiva e a aceitação <strong>do</strong> Trata<strong>do</strong> Salomon-Lozano de 1922 e da linhaApapóris-Tabatinga como fronteira com o <strong>Brasil</strong> a região foi administradapor uma comissão com mandato da Liga das Nações. O <strong>Brasil</strong> fazia parte dacomissão junto com os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s e a Espanha.Os mais de 30 acor<strong>do</strong>s comerciais se comprometiam,como é óbvio supor, a desagravar tarifas alfandegárias, comungan<strong>do</strong>,portanto, da matriz liberal que acreditava noretorno, ce<strong>do</strong> ou tarde, da ordem pré-1929. Não sobreviveramao contexto de Crise <strong>do</strong>s anos de 1930, e descumpri<strong>do</strong>stanto pelo <strong>Brasil</strong> quanto por seus parceiros seriamto<strong>do</strong>s, sem exceção, denuncia<strong>do</strong>s até 1935. Aos poucos, oliberalismo inercial ia dan<strong>do</strong> lugar a uma política externamais focada no fomento à industrialização por substituiçãode importações, o que nos leva ao exame <strong>do</strong>s parceiroscomerciais que poderiam efetivamente viabilizar ou obstaculizara modernização: os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s da América ea Alemanha nazista. Foram os <strong>do</strong>is únicos acor<strong>do</strong>s comerciaisassina<strong>do</strong>s pelo governo brasileiro após 1934.Ambos os países haviam passa<strong>do</strong> por transição políticasignificativa em janeiro de 1933. Em Berlim, a formaçãode um governo de coalizão lidera<strong>do</strong> por Hitler em brevedaria lugar a uma autocracia nazista que poria fim à Repúblicade Weimar e sua Constituição inauguran<strong>do</strong> o regimemalévolo mais demoniza<strong>do</strong> da história humana, mas admira<strong>do</strong>e emula<strong>do</strong> por muitos de seus contemporâneos, nãoexcluí<strong>do</strong> o <strong>Brasil</strong>. Em Washington, a transição menos radicalde quase sete décadas de hegemonia republicana 328 para328 Apoia a Guerra Civil a hegemonia <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> republicano só foi arranhadapelos breves perío<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s democratas Groover Cleveland (<strong>do</strong>is mandatosnão consecutivos ao final <strong>do</strong> século XIX) e Woodrow Wilson (1913-1921).


393A Era Vargas (1930-1945)um perío<strong>do</strong> de sucessivas presidências democratas (duasdécadas) se iniciava.Imediatamente se fez sentir o peso de um governobem mais intervencionista detesta<strong>do</strong> pelos liberais de WallStreet. A intervenção se daria ao longo <strong>do</strong>s anos que seseguiram ao New Deal em quase to<strong>do</strong>s os campos da vidasocial – das artes aos sindicatos, da produção industrial àagricultura – fortalecen<strong>do</strong> imensamente a Presidência daRepública, o alcance <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, o tamanho <strong>do</strong> funcionalismopúblico e crian<strong>do</strong> as bases <strong>do</strong> que seria o Wellfare Statevigente por quase cinco décadas, e ainda vivo em muitosaspectos. A política externa não foi exceção. O liberalismoaparecia abala<strong>do</strong> no reino da prosperidade capitalista norte-americanae feri<strong>do</strong> de morte na Europa central. A políticaexterna destas duas potências não tardaria em colocar ogoverno brasileiro igualmente revolucionário em seu radar.No caso <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s é muito bem estudadaa transição das três décadas de “Big Stick” para a Políticada Boa Vizinhança 329 . Basta-nos aqui lembrar que poucas329 Lars Shoultz, Antônio Pedro Tota, Gerson Moura, são alguns <strong>do</strong>s muitosautores que se dedicaram ao estu<strong>do</strong> da política da Boa Vizinhança. Emsíntese <strong>do</strong> que dizem esses autores, podemos afirmar que já na presidênciade Herbert Hoover se percebiam sinais de descompressão para com osvizinhos <strong>do</strong> Sul evidencia<strong>do</strong>s pela sua “Goodwill Trip” pela América Latina,logo depois de eleito e antes da posse. Mas reconhecer que “democracia eimperialismo” não combinavam não foi suficiente para dar início a iniciativasmais eficazes em um mandato traga<strong>do</strong> pelos problemas da Crise de 1929.Apenas com Franklin Delano Roosevelt (1933-1945) que os contornos <strong>do</strong>eram as diferenças em termos de seus objetivos entre umae outra política. Nos <strong>do</strong>is casos tratava-se de garantir asupremacia comercial norte-americana na região, a segurança<strong>do</strong>s bens e direitos <strong>do</strong>s cidadãos estadunidenses ea aliança diplomática da região contra eventuais inimigoseuropeus, na esteira da velha Doutrina Monroe. As diferençaseram de duas ordens: o méto<strong>do</strong> e a ideologia.A primeira é mais óbvia, mudava a forma de se alcançaros objetivos. A América Latina deixava, com FranklinDelano Roosevelt, de ser a “mulher de malandro” americanasujeita a constantes intervenções em nome da democraciaou da defesa contra a intervenção europeia. Passava a ser,no mínimo, amante cortejada. Empréstimos <strong>do</strong> Eximbank,cooperação técnico-cultural e militar, tolerância com governosde perfil mais nacionalista, missões financeiras e estímulospara que empresários americanos investissem emsetores estratégicos <strong>do</strong>s governos da região contribuírampara a melhoria das relações no eixo vertical <strong>do</strong> hemisfério.O “grande irmão <strong>do</strong> Norte” finalmente aprendia a agircomo irmão maduro, excluin<strong>do</strong> o porrete como méto<strong>do</strong>de negociação.que viria a ser a Política da Boa Vizinhança começaram a ser percebidas. Seumarco relevante foi a revogação da Emenda Platt à Constituição cubanaem 1934 que demonstrava a sinceridade das declarações <strong>do</strong> Secretáriode Esta<strong>do</strong> Cordell Hull na Conferência de Montevidéu de 1933, repelin<strong>do</strong>intervenções estrangeiras que ferissem a soberania <strong>do</strong>s países americanos.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>394A segunda, menos notada, é ideológica. Se antes,por mais contraditório que possa parecer, era a “Democracia”o objetivo declara<strong>do</strong> das intervenções <strong>do</strong> Big Stick –por isso mesmo sempre seguidas de eleições locais queratificavam a vitória, não raro efêmera <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> pró-CasaBranca – agora, fins mais pragmáticos não permitiriam quese insistisse na promoção da democracia continental emum hemisfério onde as únicas democracias estáveis eramos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s e o Canadá. Convinha aban<strong>do</strong>nar a ideiade promoção da democracia e aceitar a realpolitik <strong>do</strong> convíviocom ditaduras que forçavam o Secretário americanoa enunciar frases de cinismo espetacular como a que sereferia à Trujillo ou Somoza 330 , ou que assim lhe atribuíram.Substituía-se assim a democracia pela neutra ideia de pan--americanismo, a solidariedade geograficamente determinadaentre os povos da América, perfeitamente ilustradapelo encontro anima<strong>do</strong> <strong>do</strong> Pato Donald com Panchito eZé Carioca no longa “The Three Caballeros” no qual WaltDisney sintetizava à Boa Vizinhança em 1945 331 .330 A frase “He may be a son of a bitch but He’s our son of a bitch” é apócrifa eapareceu no Washington Post em 1934, com diferentes variações. Em geral éassociada a Anastácio Somoza, dita<strong>do</strong>r nicaraguense que só chegou ao poderem 1937. Trujillo sim. Embora o candidato menos óbvio de protagonista deuma frase que não sabemos se foi dita, governava a República Dominicanadesde 1930. Além de Cordell Hull a frase também é atribuída ao própriopresidente Roosevelt.331 Disney foi apenas um <strong>do</strong>s muitos artistas engaja<strong>do</strong>s na Política da BoaVizinhança pelo OCIAA (Office of Coordinator of Interamerican Affairs)Se no caso americano o Soft Power da Boa Vizinhançamotivava a conquista <strong>do</strong>s “corações e mentes” da regiãolatino-americana, a estratégia de sedução nazista se restringiaaos canais mais tradicionais de influência bilateral:o comércio, os intelectuais e os militares. As três coisas seinter-relacionavam, já que a parte relevante <strong>do</strong> comércioentre o <strong>Brasil</strong> e a Alemanha em mea<strong>do</strong>s da década de 1930era de material bélico alemão importa<strong>do</strong> pelas ForçasArmadas brasileiras. Os militares brasileiros estavam frustra<strong>do</strong>sdesde 1932 com a ambiguidade francesa em seguirvenden<strong>do</strong> arma ao Exército no contexto da luta contra osconstitucionalistas paulistas. Mas onde encontrar divisaspara financiar a compra destes armamentos em um quadrode restrição sistêmica <strong>do</strong>s empréstimos e das exportaçõesde café?Também os alemães careciam de divisas, e sofren<strong>do</strong><strong>do</strong> mesmo problema surgiram com uma solução criativa,graças à perspicácia de Hjalmar Schacht 332 no tocante aquestão da balança de pagamentos. Gustavo Franco, emtexto sublime que não pode deixar de ser elogia<strong>do</strong>, resuchefia<strong>do</strong>por Nelson Rockefeller e que respondia diretamente ao Presidente.Orson Wells, Carmem Miranda, Diego Rivera e muitos outros em algummomento de suas vidas serviram ao propósito da amizade pan-americanaestimulada culturalmente pelo OCIAA, como bem <strong>do</strong>cumenta<strong>do</strong> por GersonMoura no livro “Tio Sam chega ao <strong>Brasil</strong>”.332 Schacht foi a principal figura <strong>do</strong> sistema financeiro de Weimar e <strong>do</strong> Reich. Obanqueiro de Hitler.


395A Era Vargas (1930-1945)me assim a questão e suas implicações no sistema internacional:A Alemanha devia procurar equilibrar seu comércioexterior em bases bilaterais, usan<strong>do</strong> controles cambiaisadministra<strong>do</strong>s pelo Ministério da Economia de mo<strong>do</strong> aque o país comprasse apenas até o equivalente ao quefosse capaz de vender. O esquema agra<strong>do</strong>u em cheio, eSchacht, feito ministro, pode colocá-lo em prática quaseque imediatamente. Pouca coisa gerou mais irritaçãoaos parceiros comerciais da Alemanha, que se puserama fazer o mesmo com re<strong>do</strong>brada hostilidade. Nada resultariamais emblemático desse momento de desintegraçãoda economia internacional: uma regressão a ummercantilismo primitivo que colocava diversas nações aum passo da autarquia e, ademais, parecia um prelúdioa uma economia de guerra que parecia já se desenhar.(FRANCO, Gustavo B. Prefácio ao Setenta e Seis anos deminha vida, de Hjalmar Schacht, p.12).Não era o caso <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. Ao contrário, ao invés dehostilidade, o que se verificou foi adesão e emulação aoponto que, em poucos anos, a Alemanha, ocupan<strong>do</strong> crescentementeo espaço britânico, rivalizaria e finalmenteultrapassaria os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s como principal parceirocomercial brasileiro sem que fosse necessário o recurso auma grande quantidade de divisas. Era o comércio compensa<strong>do</strong>.Concebi<strong>do</strong> para justamente minimizar a necessidadede troca de moedas, o comércio compensa<strong>do</strong> era umaespécie de escambo sofistica<strong>do</strong> nos quais os produtos brasileiros,compra<strong>do</strong>s no <strong>Brasil</strong> por uma Câmara de comérciocompensa<strong>do</strong> envolven<strong>do</strong> apenas mil-réis, na prática, trocava,usan<strong>do</strong> dólares ou libras apenas como padrão, estesmesmos bens por material manufatura<strong>do</strong> alemão adquiri<strong>do</strong>com o desembolso exclusivo de reichmarks por umaCâmara de comércio compensa<strong>do</strong> similar na Alemanha.Ao final <strong>do</strong> exercício, as diferenças eram contabilizadas equitadas ou postergadas, excluin<strong>do</strong> assim a necessidadede divisas, da<strong>do</strong> que este ajuste era forçosamente transforma<strong>do</strong>em produtos.Tratava-se de um plano perfeito para o contexto daGrande Depressão, e uma péssima notícia para os Esta<strong>do</strong>sUni<strong>do</strong>s que viam a Alemanha preenchen<strong>do</strong> as necessidadesde fornecimento de bens manufatura<strong>do</strong>s, sobretu<strong>do</strong>armas para o governo brasileiro, em muitos casos por preçosnominais muito superiores aos pratica<strong>do</strong>s pelos fabricantesamericanos. Mas os americanos não aceitavamcafé ou açúcar como pagamento e os alemães, graças aoesquema <strong>do</strong> comércio compensa<strong>do</strong>, sim. E o café seriaqueima<strong>do</strong> de qualquer forma. Acor<strong>do</strong>s assina<strong>do</strong>s em 1934e 1936 garantiam que o governo brasileiro poderia exportarpara a Alemanha couro, laranja, carne enlatada, tabacoalém <strong>do</strong> café e principalmente <strong>do</strong> algodão 333 , sem depender<strong>do</strong> merca<strong>do</strong> norte-americano em retração e fugin<strong>do</strong>333 A produção brasileira de algodão foi catapultada de menos de 2% da pautapara cerca de 17% graças ao comércio compensa<strong>do</strong>.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>396ao modelo de comércio liberal que os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s tentavamimpor ao <strong>Brasil</strong> desde 1933.Finalmente, conseguiram em 1935, com a ratificaçãona Câmara <strong>do</strong>s Deputa<strong>do</strong>s, o acor<strong>do</strong> de comércio bilateralentre os <strong>do</strong>is países. Isso não foi consegui<strong>do</strong> sem aforte pressão <strong>do</strong> Presidente junto aos Deputa<strong>do</strong>s classistase, principalmente, Euval<strong>do</strong> Lodi, líder industrial e deputa<strong>do</strong>,que suspeitava <strong>do</strong> prejuízo que abrir o merca<strong>do</strong> brasileiroaos manufatura<strong>do</strong>s estadunidenses provocaria na incipienteindústria nacional. A alternativa era ainda mais amarga.Se não fosse ratifica<strong>do</strong>, o governo <strong>do</strong> Rio de Janeiro poderiaesperar retaliação norte-americana, muito provavelmenteem restrições a entrada <strong>do</strong> café <strong>Brasil</strong>eiro, então responsávelpor mais de 2/3 da pauta de exportações <strong>do</strong> país. Era o fogoou a frigideira. O <strong>Brasil</strong> então assina e ratifica o acor<strong>do</strong> e iniciaa segunda metade da década de 1930 com um pé na Américae o outro na Alemanha, num equilíbrio delica<strong>do</strong>.Para Gerson Moura, teve início neste momento, napolítica comercial brasileira, o que ele chamou de EquidistânciaPragmática. Trata-se de uma crítica conceitual àideia de “política pendular” relevante na historiografia <strong>do</strong>sanos de 1970. Como o próprio nome sugere, a política externabrasileira, segun<strong>do</strong> o entendimento “pendular”, oscilouao longo <strong>do</strong>s anos de 1930 entre Washington e Berlimem busca de melhores condições de parceria bilateral atéfinalmente se definir pelo la<strong>do</strong> americano. Este conceitotem o inconveniente de atribuir ao Itamaraty e a Vargasuma postura errática, como se o país não soubesse direitoo que queria e de certo mo<strong>do</strong> caracterizan<strong>do</strong> a continuidadeinserção internacional brasileira <strong>do</strong>s anos de 1920,“entre a América e a Europa” tal qual o entendimento deEugênio Vargas Garcia.A controvérsia historiográfica que se seguiu à crítica<strong>do</strong> pretenso ‘pêndulo’ de Vargas não é irrelevante. Trata-se,afinal, de explicar a participação brasileira na 2 a GuerraMundial, tema <strong>do</strong>s mais caros à história diplomática. Quala razão pela qual um regime autoritário, análogo em muitosaspectos aos fascismos <strong>do</strong> Eixo optou por permanecer<strong>do</strong> la<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Alia<strong>do</strong>s após flertar por mais de meia décadacom o nazismo alemão? Dois caminhos hermenêuticossão possíveis.O caminho estrutural, defendi<strong>do</strong> com ênfase naeconomia por Marcelo Paiva Abreu e na estrutura <strong>do</strong> sistemainternacional por Vágner Camilo Alves, assevera a inevitabilidadeda aliança <strong>Brasil</strong>-Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s. Os vínculosde ordem cultural, histórica, comercial e, claro, geográficareforçam este entendimento. Nesta visão, o <strong>Brasil</strong> não teveoutra alternativa a não ser se unir ao alia<strong>do</strong> tradicional,potência hegemônica da região. Os frutos atribuí<strong>do</strong>s porGerson Moura à aliança com os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s teriam si<strong>do</strong>liberalidades de Washington ou frutos da própria dinâmica<strong>do</strong> capitalismo americano.Gerson Moura discorda com veemência. Mais quesimples concessões liberais ou benesses tais frutos foram


397A Era Vargas (1930-1945)conquista<strong>do</strong>s pelo Esta<strong>do</strong> brasileiro mediante barganha ediplomacia talentosa, aproveitan<strong>do</strong>-se da situação internacionalfavorável de disputa entre alemães e americanos. Emseu livro Autonomia na Dependência, o faleci<strong>do</strong> professorda PUC-Rio defende que o governo brasileiro conseguiucavar, mesmo em face da enorme assimetria de poder existenteno sistema internacional, um espaço de autonomiadecisória por meio de barganhas bem negociadas entre aspotências. Eis o Pragmatismo Equidistante. Em resposta aosseus críticos, defendia que a equidistância era política, não“geométrica”. Não significava ignorar a maior proximidade<strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s em termos financeiros, culturais, e históricos,mas entender que no plano comercial onde haviamaior simetria, o <strong>Brasil</strong> podia se beneficiar, em um contextode restrição sistêmica, ao fazer comércio ao mesmo tempo– liberal e compensa<strong>do</strong> – com as duas potências, semprecisar escolher. Convinha ao <strong>Brasil</strong> manter-se o máximopossível no ponto neutro, equidistante, onde teria canais decomunicação abertos com os <strong>do</strong>is la<strong>do</strong>s. Isso maximizavaa nossa possibilidade de ganhos. Não havia pendularidadeou oscilação. O <strong>Brasil</strong> optara conscientemente pelo meio.Com a eclosão da guerra em 1939 a equidistânciacomercial começa a ruir, sobretu<strong>do</strong> por razões logísticas 334 .334 Houve séria controvérsia política em 1938 por conta <strong>do</strong> endurecimentonacionalista <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Novo que proibiu a atuação política de estrangeirosno <strong>Brasil</strong> – fechan<strong>do</strong> o parti<strong>do</strong> nazista atuante em São Paulo – e a Lei deAos poucos a equidistância ia dan<strong>do</strong> lugar à barganha,e o equilíbrio ia se tornan<strong>do</strong> crescentemente mais difícil.Não é à toa que data de 1939 a Missão de Góes Monteiro aWashington e o início das negociações para o reaparelhamentodas Forças Armadas nacionais que se consubstanciarianos marcos <strong>do</strong> Lend and Lease Act. As Forças Armadaseram a instituição onde se encastelava mais fortementeas posições germanófilas (Eurico Gaspar Dutra e o próprioGóes Monteiro), embora não falte quem defenda que talpolarização no seio da burocracia brasileira <strong>do</strong>s anos 1930e 1940 era calculadamente orquestrada por Vargas para assimextrair melhores dividen<strong>do</strong>s. O la<strong>do</strong> americanista tinhacomo defensor prioritário o chanceler Oswal<strong>do</strong> Aranha,embaixa<strong>do</strong>r em Washington que se demitira em 1937 emprotesto contra o golpe de Esta<strong>do</strong>, mas retornara ao Ministériocomo chefe em 1938.Gerson Moura congrega as explicações da terceiraimagem – o sistema internacional – incorporan<strong>do</strong> em suaanálise os agentes e a burocracia de Esta<strong>do</strong> (primeira e,Educação que proibia o ensino em língua estrangeira. O embaixa<strong>do</strong>r alemãoKarl Ritter protestou de mo<strong>do</strong> bem pouco cordial o que, ao invés de alterara política brasileira, transformou-o em persona non grata levan<strong>do</strong> a suaretirada. Entretanto, o <strong>Brasil</strong> era o maior parceiro comercial latino-americano<strong>do</strong>s alemães e as considerações políticas estavam em segun<strong>do</strong> plano frentea prioridades econômicas. As relações voltaram a normalidade pouco tempodepois e esta controvérsia não teve maior impacto, tanto que logo depois aAlemanha se tornava o maior parceiro comercial <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, ultrapassan<strong>do</strong> osnorte-americanos.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>398sobretu<strong>do</strong>, segunda imagem) que souberam habilmentese valer das brechas que o sistema internacional ofereciapara angariar alguma autonomia mesmo em um contextode fortes restrições estruturais. Conseguiram assim o apoionorte-americano para o financiamento da Companhia SiderúrgicaNacional (CSN), objetivo central para o projetodesenvolvimentista em curso, e o reaparelhamento dasForças Armadas.No caso da CSN, são bem conheci<strong>do</strong>s os meios pelosquais se deu a barganha. Seduzi<strong>do</strong> pela proposta decriação privada de uma grande siderúrgica norte-americanano <strong>Brasil</strong> – proposta originalmente pela US Steel <strong>do</strong>grupo Carnegie – o Esta<strong>do</strong> ainda não dava os passos maisconsistentes para longe <strong>do</strong> liberalismo que consistiria emassumir ele próprio o papel de empresário. O aban<strong>do</strong>no daideia por parte da US Steel 335 incomoda o governo brasileiroque ensaia – sincera ou calculadamente – aproximaçãocom a Alemanha nazista, cujo marco retórico foi o discurso<strong>do</strong> presidente à bor<strong>do</strong> <strong>do</strong> navio Minas Gerais, o mesmocompra<strong>do</strong> 30 anos antes pelo Barão <strong>do</strong> Rio Branco e palcoda Revolta da Chibata o que não deixa de ser uma ironia 336 .No discurso, proferi<strong>do</strong> em junho, logo depois da entradade Hitler em Paris, era um elogio explícito ao regimealemão, “as nações fortes da Europa” e foi imediatamentereporta<strong>do</strong> ao Departamento de Esta<strong>do</strong> norte-americano eao Presidente Roosevelt que interveio pessoalmente paraviabilizar o financiamento <strong>do</strong> Eximbank que permitiu aconstrução da CSN.O episódio, que não é singular 337 , fortalece a interpretaçãoque foca na percepção de Washington. Washingtonpercebia ser possível uma aliança entre o <strong>Brasil</strong> e a Alemanha.Essa percepção era o cerne da estratégia brasileiraainda que se reconheça a assimetria de poder favorávelaos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s. Dentro da lógica da política da BoaVizinhança, era mais simples e fazia mais senti<strong>do</strong> cortejaro <strong>Brasil</strong> <strong>do</strong> que ter que lidar no futuro, possivelmente militarmente,com as consequências de uma aliança brasileiracom Berlim. Por mais improvável que fosse essa aliança,segun<strong>do</strong> análises posteriores, é fato relevante que ela pareciaprovável aos olhos <strong>do</strong>s toma<strong>do</strong>res de decisão estadunidensesgraças às ações e discursos <strong>do</strong>s toma<strong>do</strong>res dedecisão brasileiros, e é isso que importa.335 Provavelmente a decisão <strong>do</strong>s investi<strong>do</strong>res norte-americanos guarda algumarelação com a recente nacionalização das refinarias de petróleo americanaspelo presidente <strong>do</strong> México, Lázaro Cárdenas. Temia-se que o <strong>Brasil</strong> seguisseo mesmo rumo e o governo Roosevelt, em sua política de aproximaçãocom a América Latina, fizesse como fez no México, ao a<strong>do</strong>tar discurso demoderação e concórdia.336 Na verdade o navio sofrera extensa modernização em 1935 e 1939.337 Houve outros momentos em que o Presidente ou seus ministros próximosevidenciaram publicamente admiração pelo regime alemão.


399A Era Vargas (1930-1945)Para o sucesso da Política da Boa Vizinhança, mesmoa neutralidade brasileira era vista como perigosa, comoficaria claro nas relações hemisféricas após a Conferênciade Ministros, não por acaso ocorrida no Rio de Janeiro em1942. A Argentina e também o Chile se recusaram a acatara decisão coletiva de ruptura de relações diplomáticas coma Alemanha 338 , crian<strong>do</strong> uma dissonância perigosa na sinfoniapan-americana em contexto de Guerra. Para o maestronorte-americano era necessário que o <strong>Brasil</strong> permanecessefirmemente alia<strong>do</strong> sob pena de maiores dissidências,como a que ocorreria na Bolívia, sob o exemplo argentinono ano seguinte. O exemplo e a liderança brasileira eramfundamentais para garantir a anuência <strong>do</strong> resto da AméricaLatina. À Argentina caberia o papel de ovelha negra. Issocriou uma percepção, não longe da realidade até 1945, deque o país era um “Alia<strong>do</strong> Especial” <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, e,portanto, merece<strong>do</strong>r de um tratamento especial 339 .O reaparelhamento das Forças Armadas se deu pormeio da inclusão <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> no esquema <strong>do</strong> Lend and LeaseAct 340 que reservava nos Acor<strong>do</strong>s de Washington US$ 200milhões para este fim. Depois disso seriam varridas quaisquerresistências que ainda pudessem existir no seio daelite militar nacional contra os americanos. Encerrava-se ociclo de influência europeia, sobretu<strong>do</strong> francesa pós-1919,no Exército brasileiro para se iniciar a fase de influêncianorte-americana. Esta seria estimulada pelo convívio <strong>do</strong>soficiais <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is países nas bases militares que os estadunidensesinstalaram no Nordeste brasileiro e entre aquelesque participaram da Força Expedicionária <strong>Brasil</strong>eira (FEB)nos anos finais da Guerra.O envolvimento direto <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> na Guerra e o envioda Força Expedicionária <strong>Brasil</strong>eira é, segun<strong>do</strong> GersonMoura, uma outra conquista certamente a última relevante,que o governo Vargas conseguiu junto aos Esta<strong>do</strong>sUni<strong>do</strong>s. Não fazia parte <strong>do</strong> plano alia<strong>do</strong> aceitar contribuiçãodireta, na forma de destacamentos humanos<strong>do</strong>s países latino-americanos, mas Vargas assim insistiu.338 A ruptura de relações diplomáticas com o Japão ocorreu apenas em 1945.339 Esta percepção infelizmente permaneceu no Ministério das RelaçõesExteriores ao longo <strong>do</strong> governo Dutra quan<strong>do</strong> a realidade internacionaljá era muito distinta. Levaria a decisões controversas de alinhamento semquaisquer contrapartidas, baseadas na ilusão de uma Aliança Especialque não mais existia e levan<strong>do</strong> a sérias frustrações por parte <strong>do</strong> governobrasileiro.340 Por meio <strong>do</strong> Lend and Lease act, de março de 1941, o presidente americanopoderia vender, transferir, emprestar ou arrendar qualquer tipo de materialbélico – armas, transporte, comida – aos seus alia<strong>do</strong>s. Inicialmente volta<strong>do</strong>para auxílio da China contra o Japão e da Inglaterra contra os nazistas, acabousen<strong>do</strong> estendi<strong>do</strong> para to<strong>do</strong>s os alia<strong>do</strong>s. Era a vitória final de FDR contra osRepublicanos após quase uma década de constrangimentos na conduçãoda política internacional amarrada por um Congresso isolacionista quetemia o envolvimento <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s em uma nova guerra europeiae para tanto amarrara o executivo com uma série de legislações restritivasconhecidas como Neutrality Acts (1934-39), que impediam o governo deauxiliar militarmente alia<strong>do</strong>s ou financiar armamento para zonas em conflito.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>400A logística era insana, o transporte custoso, a comunicaçãocomplexa – a língua portuguesa não era falada pornenhum <strong>do</strong>s países alia<strong>do</strong>s, até a tradução tinha que serprovidenciada. Churchill sugeria que fossem envia<strong>do</strong>s enfermeiros,médicos, suporte, mas para Vargas tratava-sede prestígio internacional, essencial às negociações <strong>do</strong>pós-guerra da qual o <strong>Brasil</strong> não poderia ser alija<strong>do</strong> comoalia<strong>do</strong> combatente 341 .O elemento mais relevante, contu<strong>do</strong>, que levavao governo brasileiro a querer participar diretamente <strong>do</strong>conflito, era, sem dúvida, o reaparelhamento das ForçasArmadas. Como alia<strong>do</strong> não combatente, o país era crescentementedesconsidera<strong>do</strong> pelo Departamento de Esta<strong>do</strong>como destino para o envio de material bélico, apesarda nossa inclusão no Lend and Lease. Tal desfavorecimentoera compreensível dada a necessidade, inequivocamentemaior, <strong>do</strong>s chineses, britânicos, gregos ou russos. O únicomo<strong>do</strong> de sair <strong>do</strong> fim da fila era enviar tropas para Europa,consideração que não escapou ao alto coman<strong>do</strong>.A chave para convencer Roosevelt a apoiar o pleitobrasileiro foi o golpe boliviano de 1943 que derrubouo governo que havia assina<strong>do</strong> o acor<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio de Janeirono ano anterior 342 . Nada mais eficaz que uma dissidênciapara dar relevo aos alia<strong>do</strong>s fiéis. Era necessário favorecer o<strong>Brasil</strong> como a liderança latino-americana a ser seguida, enão os argentinos. Com isso, o governo consegue o envioda Força Expedicionária <strong>Brasil</strong>eira, tornan<strong>do</strong>-se o único paísda América <strong>do</strong> Sul a fazê-lo.A participação brasileira no teatro de operações nãofortaleceu o Esta<strong>do</strong> Novo, muito pelo contrário. Evidencioucabalmente a contradição de um regime fecha<strong>do</strong> eautoritário que sacrificava a vida de muitos brasileiros emdefesa da democracia na Europa, sob a liderança da maiordemocracia <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, cujos oficiais influenciavam diretamenteos oficiais brasileiros, crescentemente comprometi<strong>do</strong>scom a democratização e pleitean<strong>do</strong>-a junto aos seussuperiores. A mobilização da sociedade polarizaria novamenteo país entre 1944 e 1945, enquanto Vargas tentavaganhar tempo para permanecer no poder, ainda que dissesseo contrário publicamente. Ao convocar eleições, nãodeclarava apoio a nenhum <strong>do</strong>s candidatos, que durante acampanha eram assombra<strong>do</strong>s com as palavras de ordem<strong>do</strong> Queremismo – “Queremos Vargas” ou “Constituinte com341 O Presidente tinha também considerações de ordem interna, para garantir aunidade <strong>do</strong> regime, apelo que um inimigo externo angariava. Este objetivocomo sabemos fracassou completamente, já que é justamente a partir daparticipação brasileira na 2 a Guerra Mundial que começam a surgir as vozescríticas ao regime em defesa da democratização.342 O Major Gualberto Villaroel com vínculos antigos com grupos simpatizantes<strong>do</strong> fascismo derrubou o governo <strong>do</strong> presidente Enrique Peñaranda.Washington se recusa a reconhecer o novo governo, enxergan<strong>do</strong> no golpede Esta<strong>do</strong> a influência <strong>do</strong>s militares argentinos.


401A Era Vargas (1930-1945)Getúlio” – que mostravam um Getúlio muito mais popularque os <strong>do</strong>is candidatos.Em Sucessos e Ilusões, Gerson Moura destaca umaspecto até então pouco estuda<strong>do</strong> na queda <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>Novo. Que os militares foram a principal força na democratizaçãode 1945, desfechan<strong>do</strong> o golpe que depôs oPresidente, isso to<strong>do</strong>s sabemos. Que este golpe foi informa<strong>do</strong>e concerta<strong>do</strong> com o governo <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s,que assim, aban<strong>do</strong>nava aquele que tinha si<strong>do</strong> seu “alia<strong>do</strong>especial” <strong>do</strong>s últimos anos, é bem menos conheci<strong>do</strong>. Mouradescreve detalhadamente o crescente temor por parte<strong>do</strong> departamento de Esta<strong>do</strong> americano de que o Presidentedesse uma virada nacionalista nos moldes peronistas, ese aliasse aos comunistas anistia<strong>do</strong>s <strong>do</strong> PCB. A presença deLuís Carlos Prestes, recém-saí<strong>do</strong> da cadeia, e de milharesde comunistas nos comícios <strong>do</strong> queremismo certamentenão contribuíram para aplacar os temores de A<strong>do</strong>lf BerleJr., o Embaixa<strong>do</strong>r americano, que tinha o mesmo nome deHitler. Stanley Hilton descreve a complicada relação entreVargas e o Embaixa<strong>do</strong>r que inicialmente era seu admira<strong>do</strong>rmas vai dele se afastan<strong>do</strong> ao ponto de estimular os conspira<strong>do</strong>res.A insistência de Getúlio em nomear seu mal afama<strong>do</strong>irmão Benjamin Vargas para a chefia de polícia <strong>do</strong>Distrito Federal acelera a mobilização para o golpe militar.Perdi<strong>do</strong> o apoio das Forças Armadas e <strong>do</strong> governo <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>sUni<strong>do</strong>s, precisava de um homem de confiança napolícia da capital caso fosse necessária a mobilização popularpara um novo golpe no estilo de novembro de 1937.Goés Monteiro se antecipa. Conhecia os meandros queantecediam um golpe de Esta<strong>do</strong>. Coordenara militarmenteos <strong>do</strong>is únicos bem-sucedi<strong>do</strong>s da história republicanadesde 1889 para colocar e manter Vargas no Poder. Em 29de outubro de 1945 desfechava o terceiro, desta vez paradepor Getúlio Vargas.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>4026.5 O Modernismo <strong>do</strong>mestica<strong>do</strong>A superação <strong>do</strong> Branqueamento. Cooptação intelectuale modernismo de Esta<strong>do</strong>. O DIP. Era <strong>do</strong> Rádio no <strong>Brasil</strong>.Capanema e o Ministério da Educação. A arquitetura.Dois projetos Universitários distintos: a USP e a Universidade<strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. Literatura e Regionalismo. Cinema e aBoa Vizinhança. As artes cênicas. As artes plásticas.A música erudita e popular. O Carnaval.No século XIX, a grande pergunta sobre o <strong>Brasil</strong> quese faziam os pensa<strong>do</strong>res era como seria possível superara contradição entre ser civiliza<strong>do</strong> e ser uma nação de índios,mestiços, mulatos e matutos. A resposta racista foraa teoria <strong>do</strong> branqueamento, segun<strong>do</strong> a qual o estímulo àimigração europeia lentamente – estimava-se quatro gerações– subsumiria o elemento mestiço e mulato no sanguebranco mais forte. O Conde de Gobineau, intelectual francêsracista que foi Embaixa<strong>do</strong>r no <strong>Brasil</strong> tinha visão menosotimista. Enxergava o <strong>Brasil</strong> como um país de mulatos eque por isso – a palavra mulato vem de mula, estéril – seriamosextintos em <strong>do</strong>is séculos. Contrasta com o quadrode Modesto Brocos y Brocos, exposto no Museu Nacionalde Belas Artes no Rio de Janeiro, que é a síntese iconográfica<strong>do</strong> branqueamento. Retrata uma Santíssima Trindade<strong>Brasil</strong>eira, na qual Santana é uma mulher negra, escrava,i<strong>do</strong>sa que ergue as mãos para o céu em júbilo ao ver que oneto é branco, fruto de sua filha mulata alforriada com umhomem branco.A superação da ideologia racista <strong>do</strong> branqueamentocomeça com o Modernismo e ganha força institucionalapós a década de 1930. Encerram-se as subvenções <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>para a imigração, restringin<strong>do</strong>-a. A Lei de Nacionalização<strong>do</strong> Trabalho de 1931 é uma medida antibranqueamentona medida em que exigia que médias e grandes empresastivessem ao menos 2/3 de trabalha<strong>do</strong>res brasileiros. Inevitávelque parte considerável destes fosse de negros emcidades como o Rio de Janeiro, Salva<strong>do</strong>r e muitas outras.O nacionalismo modernista incorporava todas as raças emesmo nas formulações mais conserva<strong>do</strong>ras, que maistarde redundariam no integralismo, o negro e o mestiçoeram valoriza<strong>do</strong>s. Era sem sombra de dúvidas uma grandeconquista da sociedade brasileira na incorporação, aindaque parcial, de sua própria diversidade.Surge neste contexto a ideia de Democracia Racialque teve em Gilberto Freyre seu principal propositor comCasa Grande e Senzala (1933). A miscigenação como trunfoe não como ônus. Um país que incluía e aceitava todas asraças, to<strong>do</strong>s os tipos. Busca-se a partir de então a identidadenacional também no negro e no mestiço, como já se tinhabusca<strong>do</strong> no índio durante o romantismo. A literatura <strong>do</strong>sanos de 1930 e 1940 será pródiga em seu regionalismo aotentar encontrar no localismo, nos tipos regionais, a identidadebrasileira legada pela nova visão <strong>do</strong> Modernismo,


403A Era Vargas (1930-1945)promoven<strong>do</strong> a competição entre vários tipos de expressõesculturais regionalistas distintas, cada qual aspiran<strong>do</strong>a ser considerada nacional, ou a mais nacional. A valorizaçãopaulista <strong>do</strong>s bandeirantes (Martim Cererê de CassianoRicar<strong>do</strong>), os mulatos e mestiços baianos de Jorge Ama<strong>do</strong>,os tipos nordestinos de José Lins <strong>do</strong> Rego e a literatura épicagaúcha de Erico Veríssimo são evidências desta buscada identidade nacional em cada região <strong>do</strong> país, valorizadapelo governo, sobretu<strong>do</strong> após o Esta<strong>do</strong> Novo. Era o regimecooptan<strong>do</strong> a influência <strong>do</strong> Modernismo e incorporan<strong>do</strong> abusca <strong>do</strong>s primeiros modernistas <strong>do</strong> “verdadeiro” brasileiropor meio da revalorização <strong>do</strong> folclore e <strong>do</strong>s costumes locais.No caso da música popular, no entanto, a hierarquizaçãofoi bem mais óbvia. A prevalência e escolha <strong>do</strong> sambacomo expressão musical “nacional” se deu em detrimentode várias outras expressividades musicais que passaram aser classificadas como “regionais”, “folclóricas” ou “sertanejas”e isso se explica devi<strong>do</strong> à presença no Rio de Janeiroda Rádio Nacional, da Rádio Mayrink Veiga e das principaisgrava<strong>do</strong>ras <strong>do</strong> país como a RCA Victor, que vinculou seunome ao próprio objeto reprodutor de bolachas no <strong>Brasil</strong>:a Victrola.O Esta<strong>do</strong> sob Vargas buscou deliberadamente cooptarsetores inteiros da intelectualidade nacional por meiode instituições, que canalizavam a energia intelectual <strong>do</strong>sescritores, músicos, artistas, em geral, para o nacionalismo.Era um enfoque elitista, que exigia que o povo puroe ingênuo, autêntico e verdadeiro, fosse transforma<strong>do</strong>pela educação cívica e perdesse a inconsciência, analfabetae ignorante. Era fundamental um Esta<strong>do</strong> forte quepudesse tutelar seu povo na luta cruenta para superar aprópria ignorância. O Esta<strong>do</strong> a<strong>do</strong>ta no campo intelectualsua vertente mais paternalista. Precisava guiar a sociedadeinfantilizada. Precisava para isso <strong>do</strong> apoio <strong>do</strong>s intelectuais eisso foi feito mediante duas estratégias, típicas de qualquerinstituição política, por meio de incentivos e por meio darepressão e da censura.De um mo<strong>do</strong> bem esquemático, o Departamento deImprensa e Propaganda (DIP) era responsável pelos sticksenquanto o Ministério da Educação distribuía as carrots.Mas é claro que para além da visão epitelial encontramosnumerosos exemplos de estímulo e promoção cultural noDIP e, certamente, elementos repressivos <strong>do</strong> Ministério deCapanema. O que não há como negar é que estas duasinstituições estão no cerne da política cultural paternalista<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Novo.A censura na Primeira República era feita pelos Municípios,o que muda após a Revolução. Centralizada sob oMinistério da Educação e Saúde em abril de 1932, passaráao controle <strong>do</strong> Ministério da Justiça em 1934 e ganharácrescente autonomia sob o DPDC (Departamento de Propagandae Difusão Cultural) que se transforma em Departamentode Imprensa e Propaganda em 1939. Seu chefe maisimportante foi o jornalista Lourival Fontes que se tornou


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>404sinônimo de censura no Regime. Concentrava-se na AtividadeEditorial e Jornalística, mas atuava também no campo<strong>do</strong>s Audiovisuais. Cercou-se de figuras simpáticas ao pensamentocentralista como o próprio Cassiano Ricar<strong>do</strong> quechefiaria o DIP paulista (DIESP), estimulan<strong>do</strong> a criação decartilhas e livros escolares que exaltavam a figura <strong>do</strong> Presidentee promoveram a encampação de diversas empresasde comunicação para fins de promoção da ideologia oficial.O caso mais famoso é o da Rádio Nacional encampadaem 1941, e no jornalismo o Esta<strong>do</strong> de S. Paulo que sofreuintervenção em 1940, além <strong>do</strong>s jornais A Manhã no Rio deJaneiro (1941) e A Noite em São Paulo (1942). Periódicos dedivulgação como a Revista Planalto (em São Paulo sob o coman<strong>do</strong>de Orígenes Lessa) e a Revista Cultura Política (noRio de Janeiro, editada por Almir Andrade). To<strong>do</strong>s esses organismosestavam subordina<strong>do</strong>s ao DIP de Lourival Fontes.O DIP a serviço <strong>do</strong> Trabalhismo censurava sambasque se manifestassem contra o trabalho ou louvan<strong>do</strong> o“malandro”, figura mítica nas composições da Primeira República343 . Mas não se incomodava com a veiculação da“malandragem” de Vargas. O próprio Presidente se divertia343 O Bonde de São Januário de Wilson Batista e Ataulfo Alves é o caso maisfamoso. Teve sua letra alterada e se tornou uma ode ao trabalho: “Quemtrabalha é quem tem razão/ Eu digo e não tenho me<strong>do</strong> de errar/ O bondede S. Januário/ Leva mais um operário/ Sou eu que vou trabalhar”. Na versãooriginal o trabalha<strong>do</strong>r que rimava com S. Januário era otário.com as piadas e charges a seu respeito. Interessava que osbrasileiros pensassem que eram governa<strong>do</strong>s por um “malandro”trabalha<strong>do</strong>r. O monopólio estatal <strong>do</strong> papel de imprensatambém era um instrumento de barganha contraperiódicos que insistissem em seguir a linha independentecomo foi o caso da revista Diretrizes de Samuel Wainer 344 e<strong>do</strong> Diário de Notícias de Orlan<strong>do</strong> Dantas.A “Hora <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>”, programa obrigatório diário transmiti<strong>do</strong>no rádio das 19h às 20h, foi estabelecida em 1934 eapelida<strong>do</strong> popularmente de “fala sozinho”. Isso motivou ogoverno a dar atenção especial ao rádio no Esta<strong>do</strong> Novo, efoi bem-sucedi<strong>do</strong> em praticamente monopolizar a audiênciade rádio no país com a encampação da Rádio Nacional.O governo formou um elenco de estrelas (Ari Barroso,Lamartine Babo, Almirante, Castro Barbosa, Silvino Neto,Orlan<strong>do</strong> Silva), ao oferecer bons salários mensais por contratode exclusividade. Era o cast fixo de cada emissora quegerava seus fãs e segui<strong>do</strong>res e segui<strong>do</strong>ras fiéis 345 .344 Mais tarde Wainer seria coopta<strong>do</strong> como <strong>do</strong>no <strong>do</strong> maior fenômenojornalístico <strong>do</strong>s anos 1950, a Última Hora, defenderia o governo e Getúlio,tal qual conta com notável grau de sinceridade em sua autobiografia MinhaRazão de Viver.345 A música Fanzoca <strong>do</strong> Rádio de Miguel Gustavo, gravada por Carequinha nosanos 1950 satirizava o público feminino das Rádios. “Ela é fã da Emilinha/Não sai <strong>do</strong> Cesar de Alencar/ Grita o nome <strong>do</strong> Cauby! E depois de desmaiar/Pega a Revista <strong>do</strong> Rádio/ E começa a se abanar/ É um abano aqui/ É umabano ali/É o dia inteiro/ Ela não faz nada/ E enquanto isso/ Na minha casa/Ninguém arranja uma empregada!”.


405A Era Vargas (1930-1945)Embora já existisse no <strong>Brasil</strong> desde os anos de 1920,graças ao pioneirismo de Roquette Pinto, o rádio era umadiversão elitista, sem fins lucrativos que se organizava emclubs. Todas as rádios se chamavam Rádio Sociedade (<strong>do</strong> Riode Janeiro em 1923, de São Paulo em 1924) ou Rádio Club.Esse panorama muda com a Revolução e o governo regulamentaa propaganda no rádio em 1932, torna<strong>do</strong> a emissãoradiofônica um negócio lucrativo e a preocupação com aaudiência e popularização da programação fundamental.Agências de publicidade americanas chegam ao <strong>Brasil</strong> nosanos de 1930 para ajudar a vender sabonetes, pasta dentalou Coca-cola com seus jingles. Em 1938, a copa da Françafoi transmitida pela Rádio Club <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> galvanizan<strong>do</strong> a audiênciamasculina.O governo naturalmente percebe o potencial <strong>do</strong>rádio para reunir simbolicamente to<strong>do</strong>s os brasileiros.Ocupava lugar de destaque nas casas, reunia a família e osamigos, transmitia alegria e bem-estar. Durante a Guerrafalava notícias <strong>do</strong> conflito e transmitia segurança por informescensura<strong>do</strong>s <strong>do</strong> governo, ainda que a maior parte desua programação fosse de entretenimento 346 . Divulgava os346 Futebol, Programas de Auditório – que criavam uma ilusão de intimidadeentre os anônimos e seus í<strong>do</strong>los –, Novelas, Programas Musicais e Jornalismoeram os mais frequentes na demonstran<strong>do</strong> a resiliência de certo modelode programação que foi lega<strong>do</strong> a partir <strong>do</strong>s anos de 1950 à televisão e queainda hoje é hegemônico.comícios de interesse <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> como o Dia da Raça, o 7de Setembro ou o 1 o de Maio, e era proibida de divulgar assuntosincômo<strong>do</strong>s como o desfalque da Caixa Econômicade Niterói ou a escassez de peixe no país. Não podia veicularnada sobre a União Nacional <strong>do</strong>s Estudantes (UNE), nemnada que fosse assina<strong>do</strong> por Oswald de Andrade. Conformava-seuma certa imagem de nação que o ouvinte vaiadquirin<strong>do</strong>. O futebol e o samba foram tributários destaimagem se tornan<strong>do</strong> símbolos <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>.Já no Ministério da Educação a postura era menosinvasiva e mais benevolente. O mineiro Gustavo Capanema,ministro por onze anos (1934-1945), estava mais preocupa<strong>do</strong>com a cultura erudita que com a cultura populara cargo <strong>do</strong> DIP. Cercou-se de intelectuais que constituírama vanguarda <strong>do</strong> Modernismo e tinha muito maior tolerânciapara com a dissidência política de seus colabora<strong>do</strong>res.Comunistas como Portinari e Niemeyer que participaramda construção e decoração <strong>do</strong> novo Ministério, chama<strong>do</strong>até hoje de Palácio Capanema. Pintores malditos como Fláviode Carvalho e escritores ideologicamente “enviesa<strong>do</strong>s”como Carlos Drummond de Andrade – seu chefe de gabinete– tinham sua proteção, desde que não criticassem ogoverno. Bastava ao Esta<strong>do</strong> que promovessem o nacionalismopor meio de suas obras. Esse mecenato estatal deixouum lega<strong>do</strong> expressivo neste Modernismo coopta<strong>do</strong>por diversos setores <strong>do</strong> panorama cultural brasileiro. Deixavao Modernismo de ser a vanguarda da oposição estética,


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>406que tinha si<strong>do</strong> nos anos de 1920, para se tornar a expressãocultural oficial <strong>do</strong> regime 347 .A construção <strong>do</strong> Palácio Capanema se deu a partirda sugestão <strong>do</strong> arquiteto suíço Le Corbusier e foi elabora<strong>do</strong>por uma comissão de arquitetos entre os quais os trêsmais famosos da história <strong>do</strong> país – Afonso Eduar<strong>do</strong> Reidy,Lucio Costa e Oscar Niemeyer. Foi decora<strong>do</strong> por Portinari,Pancetti, Guignard. As esculturas são de Bruno Giorgi e opaisagismo de Burle Marx. Projeta<strong>do</strong> em 1936 e inaugura<strong>do</strong>no Esta<strong>do</strong> Novo, trata-se <strong>do</strong> primeiro grande marcopúblico desta nova arquitetura brasileira que já vinha projetan<strong>do</strong>casas particulares “racionalistas” desde o final <strong>do</strong>sanos 1920. Esses arquitetos eram fortemente inspira<strong>do</strong>spela Escola de Bauhaus, além de pelo próprio Corbusiere Frank Lloyd Wright, e favoreceram a superação <strong>do</strong> estiloeclético, hiperluxuoso das mansões e prédios públicos daPrimeira República 348 .347 Manuel Bandeira foi escolhi<strong>do</strong> presidente <strong>do</strong> primeiro Salão Nacional deBelas Artes e Mário de Andrade foi presidente <strong>do</strong> Serviço <strong>do</strong> PatrimônioHistórico e Artístico Nacional. O escritor regionalista José Américo de Almeidafoi ministro da Agricultura e depois escolhi<strong>do</strong> candidato situacionista naseleições de 1937. Os intelectuais <strong>do</strong> modernismo conserva<strong>do</strong>r comoCassiano Ricar<strong>do</strong>, Menotti Del Picchia e Cândi<strong>do</strong> Mota Filho estiveram aserviço <strong>do</strong> DIP.348 Essa arquitetura velha e pesa<strong>do</strong>na era ainda ensinada aos alunos na EscolaNacional de Belas Artes, cujos alunos se rebelaram em 1930 exigin<strong>do</strong> oafastamento de seu Diretor para poderem superar um ensino que ensinavaos alunos a copiar portais e abóbodas em livros clássicos. O governo nomeouLucio Costa, revolucionan<strong>do</strong> o ensino arquitetônico a partir de então.Maquete da sede <strong>do</strong> Ministério da Educação e Saúde, o Palácio Capanema, 1936.Capanema herdara <strong>do</strong> governo provisório a preocupação<strong>do</strong>s tenentes com a educação. A própria criação deum Ministério com essa função é exemplo disso. O ministroFrancisco Campos, que deixa a pasta em 1934, implementoua mais significativa reforma <strong>do</strong> Ensino Secundáriojamais feita. Amplia-se este ensino de seis para sete anosem <strong>do</strong>is ciclos, o primeiro de formação humanista 349 e o349 A prioridade dada aos estu<strong>do</strong>s ditos “clássicos” em detrimento da minoria <strong>do</strong>chama<strong>do</strong> Ensino “cientifico” denota ainda mais significativamente a crescenteinfluência católica na Educação Superior. Gustavo Capanema sucessor deFrancisco Campos, também mineiro, era católico e muito próximo de Alceu


407A Era Vargas (1930-1945)segun<strong>do</strong> para prepará-lo para o Ensino Superior. O EnsinoSecundário não chega a se democratizar, mas amplia-sesignificativamente quadruplican<strong>do</strong> o número de alunosentre 1930 e 1936. O número de escolas tanto primáriasquanto secundárias aumentou em cerca de 40% até o início<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Novo e em 1939 havia 3,5 milhões de alunosmatricula<strong>do</strong>s no <strong>Brasil</strong>, com uma população de 38 milhões.No campo da Educação Superior o Esta<strong>do</strong> de SãoPaulo foi o pioneiro. Ideia defendida por Júlio de Mesquitae outros expoentes da elite paulista foi levada a caboem 1934 pelo interventor e depois governa<strong>do</strong>r Arman<strong>do</strong>Salles de Oliveira congregan<strong>do</strong> escolas tradicionais preexistentescom outras escolas recém-criadas como as deFilosofia e Ciências Humanas e a de Ciências Naturais eQuímica. Foram contrata<strong>do</strong>s 13 professores estrangeiros(França, Portugal, Alemanha e Itália) dentre os quais ClaudeLévi-Strauss, Giuseppe Ungaretti e Roger Bastide. Era umareafirmação intelectual paulista após a derrota de 1932.de Amoroso Lima, intelectual católico liga<strong>do</strong> ao cardeal arcebispo <strong>do</strong> Riode Janeiro, D. Sebastião Leme líder espiritual <strong>do</strong>s grupos políticos católicos,organiza<strong>do</strong>s no Centro D. Vital (Cria<strong>do</strong> por Jackson de Figueire<strong>do</strong> em 1928),da Ação Católica <strong>Brasil</strong>eira e da Liga Eleitoral Católica. Inicialmente distante,a Igreja vai sen<strong>do</strong> cooptada pelo governo a partir da inauguração <strong>do</strong> CristoRedentor em 1931. Vargas dá sinais de aban<strong>do</strong>no público <strong>do</strong> positivismo defeição ateísta e se casa em cerimônia privada religiosa com sua esposa, D.Darcy em 1934. Durante a Constituinte, a Igreja consegue ser reconhecidacomo a religião <strong>do</strong> povo brasileiro. O casamento religioso é reconheci<strong>do</strong>como civil, por sua vez considera<strong>do</strong> indissolúvel, e a presença da Igreja nasEscolas, asilos, penitenciária e nas Forças Armadas é reconhecida.No Rio de Janeiro, foi criada por Anísio Teixeira em1935 a Universidade <strong>do</strong> Distrito Federal que, a exemplo daUSP criada no ano anterior, congregava cinco escolas (Faculdadede Filosofia e Letras, Faculdade de Ciências, Faculdadede Ciência Política e Direito, a Escola de Educação e oInstituto de Artes). Seu primeiro reitor, Afrânio Peixoto iria aEuropa contratar professores como fora feito em São Paulo.Com o Esta<strong>do</strong> Novo, a Universidade <strong>do</strong> Distrito Federalseria absorvida pela Universidade <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>.Para além <strong>do</strong> Ministério da Educação e da Saúde, aatividade educacional e de pesquisa específica foi estimuladasob o âmbito de outros Ministérios. O Instituto Nacionalde Estatística (1934), que é uma união de diversosórgãos em Ministérios distintos, por sugestão de JuarezTávora, em 1938, se torna IBGE (Instituto <strong>Brasil</strong>eiro de GeografiaEstatística). E os Ministérios <strong>do</strong> Trabalho e da Guerrapassam a investir na criação de cursos técnicos. Fábricascom mais de 500 funcionários precisavam instituí-los paramelhorar a formação profissional.O surgimento de uma camada média de leitoresmais educada, somada à desvalorização da moeda nacionalfaz explodir o merca<strong>do</strong> editorial brasileiro nos anos de1930. Casas importa<strong>do</strong>ras como a Charroux desaparecemdan<strong>do</strong> lugar a empresas editoriais brasileiras modernasque traduzem os clássicos ou Best-sellers estrangeiros e começama publicar autores nacionais. Destacam-se, nestepanorama, a Companhia Editora Nacional de propriedade


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>408<strong>do</strong> autor que mais vendia livros no <strong>Brasil</strong>, Monteiro Lobato.Seu sucesso como escritor obnubilou sua extraordináriaatuação editorial que revolucionou o merca<strong>do</strong>. Incorporoucomo norma as capas coloridas, fazia vender livros emquitandas, farmácias, armarinhos, onde quer que não sepudesse achar livraria, ainda assim fazia chegar livros, ofereci<strong>do</strong>sem consignação, com uma campanha de publicidadepor trás. Pessoalmente vendeu mais de um milhão deexemplares entre traduções e obras suas, cujo carro chefeera o Sítio <strong>do</strong> Pica-Pau Amarelo, sinônimo de literatura infantilpara sucessivas gerações de brasileiros, inclusive esteautor que só é autor graças às aulas de história da D. Benta,as primeiras de que se lembra 350 .Outras editoras importantes <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> são a EditoraGlobo de Porto Alegre, a Francisco Alves e a Melhoramentos(que publicavam livros infantis e didáticos). A JoséOlympio, que se mu<strong>do</strong>u nos anos de 1930 de São Paulopara o Rio de Janeiro, para ficar mais próxima <strong>do</strong> governoe <strong>do</strong>s escritores nordestinos que viviam na capital, pagouantecipa<strong>do</strong> direitos autorais para José Lins <strong>do</strong> Regoe depois disso atraiu para si to<strong>do</strong>s os grandes escritores350 Lobato, apesar da inegável contribuição a cultura e literatura brasileira eraracista e promotor engaja<strong>do</strong> da eugenia racial nos moldes da Ku Klux Klan.Em seus livros é frequente as associações racistas que passam despercebidaspelo leitor infantil, sobretu<strong>do</strong> se ele for branco, mas que não devem ser nadasaudáveis para a autoestima de pequenos leitores negros.nacionais, conferin<strong>do</strong> à vários notoriedade graças ao sucessocomercial da própria editora. Foi José Olympio quemchamou a obra de José Lins <strong>do</strong> Rego de “ciclo da cana-de--açúcar” e quem republicou to<strong>do</strong>s os livros de Jorge Ama<strong>do</strong>sob o título de “Romances da Bahia” após o sucesso deJubiabá. De certo mo<strong>do</strong>, ele foi o principal cura<strong>do</strong>r <strong>do</strong> regionalismo,publican<strong>do</strong> Rachel de Queiroz e Graciliano Ramos,mas não Érico Veríssimo que seguiu na Editora Globo,gaúcha. Percebe-se o maior sucesso editorial <strong>do</strong> regionalismonordestino e seus tipos (o coronel, o jagunço, o retirante)que das outras vertentes <strong>do</strong> regionalismo (como opaulista, o mineiro e o gaúcho) que não deixaram de fazersucesso, ainda que em menor escala.José Olympio publicava também os intelectuais <strong>do</strong>modernismo sociológico: Gilberto Freyre, Sérgio Buarquede Hollanda, Luís da Câmara Cascu<strong>do</strong>, Nelson Werneck deSodré. Apesar de ter publica<strong>do</strong> os 11 volumes d’A Nova Política<strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> de Getúlio Vargas entre 1938 e 1947 e a obrade Plínio Salga<strong>do</strong>, também sofreu com apreensão de livrose prisão, além da perseguição de autores considera<strong>do</strong>s comunistasdurante a repressão que se seguiu aos levantescomunistas de 1935.Mas a grande vedete cultural da Era Vargas era ocinema e não a literatura. Num país onde a grande parteda população ainda era de analfabetos, o cinema se tornavainstrumento privilegia<strong>do</strong> de divulgação de ideias eeducação.


409A Era Vargas (1930-1945)O cinema chega ao <strong>Brasil</strong> nos primórdios <strong>do</strong> séculoXX em casas de exibição espalhadas pelo Rio de Janeiropouco depois de sua invenção pelos irmãos Lumière naFrança. Quase que somente filmes importa<strong>do</strong>s, as audiênciassofriam com a falta de legenda cuja técnica só se disseminanos anos 1930. As produções também, escassas,ganham ímpeto com a Lei Getúlio Vargas de 1926 quegarante o pagamento de Direitos Autorais tornan<strong>do</strong> o deputa<strong>do</strong>Getúlio patrono da classe cinematográfica. Depoisda revolução era frequente que se organizassem os trabalha<strong>do</strong>resda indústria áudio visual para manifestações emseu favor nos jardins <strong>do</strong> Palácio Guanabara. Vargas reconheciaa importância <strong>do</strong> cinema para a educação cívica <strong>do</strong>povo brasileiro e nisso ecoava o Manifesto <strong>do</strong>s Pioneiros daEducação, que, em 1932, já reconheciam a superioridadee dinamismo <strong>do</strong> cinema na divulgação de informações eeducação <strong>do</strong> povo.Em 1934 é cria<strong>do</strong> o INCE (Instituto Nacional <strong>do</strong> CinemaEducativo), que até 1945 produziu mais de 200 obras.Contou com a colaboração de figuras de relevo comoHumberto Mauro 351 , Villa-Lobos, e Roquette Pinto na produção<strong>do</strong> longa Descobrimento <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. A ele se seguiramobras educativas, em geral sobre os grandes escritores, os351 Principal cineasta <strong>do</strong> Ciclo de Cataguases nos anos de 1920 é autor <strong>do</strong>clássico de Ganga Bruta (1933), filme que ressalta os valores interioranosrecorrentes na literatura regionalista.marcos da história brasileira, o sistema de esgoto cariocaou a construção das estradas de ferro de Minas Gerais.As produções brasileiras crescem e ganham em complexidadee são favorecidas legalmente no Esta<strong>do</strong> Novo pelalei de reserva de merca<strong>do</strong> que exigia uma “metragem” mínimade filmes nacionais. O pacote que se definiu era umcurta ou animação, segui<strong>do</strong> de um jornal curto e depois<strong>do</strong> longa metragem quase sempre estrangeiro. Com isso,o governo se tornou cliente de produtoras como a Cinédia,que basicamente vivia de produzir <strong>do</strong>cumentárioscurtos e jornalísticos de louvor aos atos <strong>do</strong> governo oueducativos, históricos, literários, como os filmes <strong>do</strong> INCE.O DIP encomen<strong>do</strong>u mais de 500 edições <strong>do</strong> Cinejornal<strong>Brasil</strong>eiro.Em 1941, mesmo com a enorme dificuldade de importarmatéria-prima por conta da Guerra, o Cinema <strong>Brasil</strong>eiroé um <strong>do</strong>s que produz em maior quantidade no mun<strong>do</strong>.Do ponto de vista da recepção, o brasileiro via sobretu<strong>do</strong>filmes americanos, já que a Embaixada norte-americanatinha si<strong>do</strong> eficiente em estabelecer uma “lista negra” queexcluía <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> de Hollywood os exibi<strong>do</strong>res que insistissemem exibir filmes alemães ou italianos. A hegemonianorte-americana no campo cinematográfico permitiu, duranteos anos de guerra, o monopólio mediante ameaçade exclusão e falência. A cultura americana exposta noscinemas contribuiu para dirimir o preconceito cultural daelite brasileira afrancesada que parou de ver os Esta<strong>do</strong>s


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>410Uni<strong>do</strong>s como bárbaros e passou, nos anos de 1930 e 1940,a vê-los como a vanguarda <strong>do</strong> progresso.Tal política foi orquestrada pelo multimilionário NelsonRockefeller herdeiro das refinarias de petróleo e presidente<strong>do</strong> MoMA, que se articula com a classe jornalística eempresarial norte-americana pra promover a cultura estadunidensenas “Outras Américas”. Torna-se em 1940 presidente<strong>do</strong> OCIAA (Office of Coordinator of Inter-AmericanAffairs) e promove o intercâmbio de artistas americanos elatino-americanos. Era o braço cultural da política da BoaVizinhança. Enquanto os alemães tentavam se insinuar no<strong>Brasil</strong> por meio da influência nos meios militares e pelocomércio, os americanos investiram também na sedução<strong>do</strong>s hearts and minds da população em geral. O OCIAA,estuda<strong>do</strong> por Gerson Moura em Tio Sam Chega ao <strong>Brasil</strong>,tinha divisões de rádio, cinema, imprensa, literatura, artes,música entre outras e investiu pesa<strong>do</strong> em sua política depenetração cultural.Promoveu o American Way of Life convidan<strong>do</strong> intelectuaisbrasileiros para conhecer os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s. Embarcaramrumo ao norte, Érico Veríssimo, Adalgisa Neri –poetisa esposa <strong>do</strong> chefe <strong>do</strong> DIP –, Orígenes Lessa e até ogeneral Góis Monteiro, simpático ao Eixo, foram conhecerHollywood. Por sua vez, visitaram o <strong>Brasil</strong> Peter Fonda, ErrolFlynn, Orson Welles, além, é claro, de Walt Disney queproduziu os <strong>do</strong>is mais famosos filmes da Política da BoaVizinhança: Salu<strong>do</strong>s Amigos (Alô Amigos) de 1943 e ThreeCaballeros (incrivelmente traduzi<strong>do</strong> por Você já foi a Bahia)de 1945 352 , obra em que pela primeira contracenam animaçõescom seres humanos – entre eles Aurora Miranda,que canta as músicas de Ari Barroso (Os quindins de Iaiá eAquarela <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>) e guia as aves no passeio baiano.A Política da Boa Vizinhança terá um impacto culturaldura<strong>do</strong>uro na influência norte-americana no <strong>Brasil</strong>.A disseminação da palavra “ok”, a coca-cola, substituin<strong>do</strong> ossucos de fruta nas mesas das famílias, o thumbs up que setorna universalmente aceito como sinal “coisa boa” – antesrepresenta<strong>do</strong> pelo gesto de apertar com o polegar e o indica<strong>do</strong>ro lóbulo da orelha – usar Kolynos para os dentese Palmolive para se limpar e ler Reader’s Digest ou “O PatoDonald” são alguns <strong>do</strong>s exemplos prosaicos (e perenes) <strong>do</strong>sucesso <strong>do</strong> OCIAA.O teatro também passou pela revolução modernistagradualmente. O teatro da Primeira República era centra<strong>do</strong>nos atores e o texto estava em segun<strong>do</strong> plano. O público352 No Primeiro Zé Carioca, personagem cria<strong>do</strong> especialmente para agradar osbrasileiros, to<strong>do</strong> verde-amarelo, conhece o Pato Donald e o apresenta ao Riode Janeiro. Donald toma cachaça e fica <strong>do</strong>i<strong>do</strong>. No seguinte, se reencontramno aniversário de Donald para conhecer a Bahia e várias outras regiões daAmérica, com destaque para o México onde são recebi<strong>do</strong>s por Panchito, oZé Carioca mexicano vesti<strong>do</strong> de ban<strong>do</strong>leiro. Declaram amizade eterna namúsica tema <strong>do</strong> filme. Vale a pena procurar no YouTube e rever estas cenasque são a síntese da Boa Vizinhança em versão com penas. O imperialismose insinuava por meio de um marinheiro, Donald, desastra<strong>do</strong> e carismáticoque não usa calças. Destaque especial para as cores das penas <strong>do</strong> rabo <strong>do</strong> ZéCarioca.


411A Era Vargas (1930-1945)afluía para assistir os atores (Procópio Ferreira, Ro<strong>do</strong>lfo Mayere Alda Garri<strong>do</strong>) e a Escola de Arte Dramática da Prefeitura<strong>do</strong> Rio de Janeiro era dirigida pelo célebre escritorCoelho Neto. As companhias levavam o nome <strong>do</strong>s Atores,como as de Jayme Costa, de Dulcina de Morais, e Luís Iglésias-EvaTo<strong>do</strong>r. O teatro era cheio de formalismos. Jamais sevirava as costas para a plateia ainda que pre<strong>do</strong>minassem aschamadas revistas e comédias. Data <strong>do</strong> início <strong>do</strong>s anos de1930 a revolução <strong>do</strong> chama<strong>do</strong> “Teatro que faz Pensar” naexpressão <strong>do</strong> ator e dramaturgo Álvaro Moreira. Sua largadase deu em São Paulo em 1932 quan<strong>do</strong> estreou de JoraciCamargo a peça Deus lhe Pague no qual um homem – nopapel, Procópio Ferreira – levava vida dupla de mendigo emilionário e citava Karl Marx. Wilson Martins conta que acabariaproibida depois de encenada no Rio de Janeiro, noano seguinte, com to<strong>do</strong>s os especta<strong>do</strong>res presos na saída.No entanto, o marco revolucionário de antes e depois<strong>do</strong> Teatro brasileiro é a encenação pela companhiade teatro “Os comediantes” da peça Vesti<strong>do</strong> de Noiva, quetornou célebre o até então jornalista policial Nelson Rodrigues.Sob a direção <strong>do</strong> polonês Zibgniew Ziembinski cadadetalhe da montagem era cuida<strong>do</strong>samente prepara<strong>do</strong>,cenário, figurino cria<strong>do</strong>s pelo pintor Santa Rosa davam relevoaos três níveis de realidade da peça: a realidade (Alaídemorren<strong>do</strong> após ser atropelada), o da memória (Alaíderevisita sua vida infeliz) e o da alucinação (Alaíde e MadameClessi, prostituta da Primeira República). Vinte e oitoatores, frases curtas e diretas, presença <strong>do</strong> inconsciente,discussão de moralidade e sexualidade, estética bauhausianae os três níveis da encenação incorporam a revoluçãoda dramaturgia brasileira que já vinha acontecen<strong>do</strong> demo<strong>do</strong> mais modera<strong>do</strong> desde o final <strong>do</strong>s anos de 1920.São alguns exemplos o Teatro de Brinque<strong>do</strong> funda<strong>do</strong>por Álvaro Moreira em 1929. A peça O baila<strong>do</strong> <strong>do</strong> Deus Morto(1933) de Flávio de Carvalho (Grupo Teatro da Experiência),não tinha roteiro defini<strong>do</strong> e se inspirava no surrealismoespanhol e no expressionismo alemão. Ficou três dias emcartaz até o teatro ser fecha<strong>do</strong> pela polícia. Pascoal CarlosMagno criou o Teatro <strong>do</strong> Estudante (1938) no Rio de Janeiroenquanto Alfre<strong>do</strong> de Mesquita criava o Teatro Experimental(1942) e Décio de Almeida Pra<strong>do</strong> o Grupo Universitário deTeatro (1943) ambos de São Paulo. Em to<strong>do</strong>s os casos, percebe-sea incorporação da temática social, a crítica políticae a incorporação de novidades dramatúrgicas no cenário,no figurino e na montagem em geral. O ator não sai decena, mas se torna coadjuvante <strong>do</strong> to<strong>do</strong> dramatúrgico.Percebe-se íntima relação <strong>do</strong> Teatro com as ArtesPlásticas no esforço <strong>do</strong> núcleo modernista de São Paulopara manter e divulgar a arte moderna. Lasar Segall,Anita Malfatti, Tarsila <strong>do</strong> Amaral, Victor Brecheret e Máriode Andrade criam em 1932 a SPAM (Sociedade Pró-ArteModerna), que, apesar da vida curta marcada por desentendimentosinternos, evidencia a resiliência <strong>do</strong> Modernismouma década depois de seu debut. As organizações


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>412coletivas <strong>do</strong>s artistas acabavam ten<strong>do</strong> vida curta como tambémfoi o caso <strong>do</strong> CAM (Clube <strong>do</strong>s Artistas Modernos liga<strong>do</strong>ao Teatro da Experiência) que contava com Flávio de Carvalhoe Di Cavalcanti, promoveu exposições, palestras e peçasde Teatro, mas também acabou em 1934, quan<strong>do</strong> a políciafechou o Teatro da Experiência. Os chama<strong>do</strong>s Salões deMaio se tornam uma tradição, e, no II Salão de Maio (1938)participam quase to<strong>do</strong>s os grandes nomes da Arte Modernapaulista (Brecheret, Volpi, Segall, Di Cavalcanti) legitiman<strong>do</strong>-os com a chancela oficial. Incorporavam também as obras<strong>do</strong> modernismo internacional, como Picasso e Brancusi.Contrapunha-se à elite paulista o grupo de SantaHelena, inaugura<strong>do</strong> pelo pintor de paredes Rebolo Soares.Não gostavam <strong>do</strong>s acadêmicos e defendiam uma pinturaque não fosse narrativa ou anedótica. Queriam pintar porpintar. Que a pintura legitimasse a si mesma. Fizeram parte<strong>do</strong> grupo que tinha ateliês no Palacete Santa Helena Alfre<strong>do</strong>Volpi (originalmente ladrilha<strong>do</strong>r), Mario Zanini (carpinteiro),Clóvis Graciano (ferroviário), Al<strong>do</strong> Bonadei (borda<strong>do</strong>r)e Fúlvio Pennachi (açougueiro). Sua origem social os tornavaimunes ao modismo estético. Ignoravam a crítica eretratavam os bairros e subúrbios de São Paulo, o cotidiano<strong>do</strong>s imigrantes e operários. Eram em grande parte autodidatas.Em reação aos Salões de Maio esse grupo criou aFamília Artística Paulista que buscou recuperar o conhecimentotécnico, o equilíbrio plástico, porém desprezava onarrativismo ou figurativismo da pintura.Ao contrário de São Paulo, onde o mecenato priva<strong>do</strong>era a norma, no Rio de Janeiro, graças à figura de GustavoCapanema, o mecenato público se torna cada vez maisrecorrente, e o principal beneficiário disso é justamente opaulista de Brodósqui Candi<strong>do</strong> Portinari, que transforma otrabalha<strong>do</strong>r em um herói mítico idealiza<strong>do</strong>, <strong>do</strong>tan<strong>do</strong>-o derespeito e, salvan<strong>do</strong>-o da imagem caipira <strong>do</strong> Jeca Tatu 353 .Ganha notoriedade com a tela Café, premiada pelo InstitutoCarnegie em 1935, e se torna professor de arte mural daUniversidade <strong>do</strong> Distrito Federal. Trabalhou por oito anosno Palácio Capanema – com o mural Evolução Econômica<strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> – criou os murais de azulejos que decoram o conjuntoda Pampulha em Belo Horizonte e criou três painéispara o pavilhão brasileiro da Feira Mundial de Nova York.Era o Diego Rivera brasileiro, e sua preferência por muraisgrandiosos e épicos, narrativos foram objeto de crítica demodernistas como os <strong>do</strong> grupo de Santa Helena que criticavamessa arte “vendida”. Na Escultura tal monumentalismotambém aparece no Rio de Janeiro com Bruno Giorgi eem São Paulo com os monumentos de louvor aos bandeirantesde Victor Brecheret.353 Aliás, o próprio Jeca Tatu cria<strong>do</strong> por Monteiro Lobato nos anos de 1910 éresgata<strong>do</strong> por seu autor que reescreve sua história depois que descobriuque sua preguiça e falta de disposição eram frutos de <strong>do</strong>enças. Vira garotopropaganda das campanhas de saúde pública e saneamento, enriquece,descobre petróleo, se torna político. Lobato transforma o Jeca em um Selfmade Jeca.


413A Era Vargas (1930-1945)No campo da música erudita a figura mais célebrefoi o maestro Heitor Villa-Lobos que se tornou o regente<strong>do</strong>s eventos oficiais <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Novo que reuniam milharesno Estádio de São Januário no Rio de Janeiro. Utilizan<strong>do</strong>-seda técnica <strong>do</strong> canto orfeônico e se aproveitan<strong>do</strong>das aulas de educação musical dadas para as crianças nasescolas cariocas, Villa-Lobos reunia coros de até quatromil jovens e cantava músicas folclóricas e hinos patrióticospara o pasmo <strong>do</strong> público que era toca<strong>do</strong> pela belezada apresentação. Acreditava o maestro que a músicaera capaz de instilar emoções mesmo nos espíritos maisembruteci<strong>do</strong>s e, portanto, tinha vantagens educacionaisóbvias em face <strong>do</strong>s livros e das aulas. Suas composições,tal qual o modernismo em geral, iam buscar nos cantosfolclóricos e populares inspirações, tal qual é o caso <strong>do</strong>mais famoso Trenzinho <strong>do</strong> Caipira, tocatta das Bachianas<strong>Brasil</strong>eiras n o .2 (1930).Mas popular de verdade é o carnaval. Desde o séculoXVII, servia como válvula de escape para as angústias esofrimentos <strong>do</strong> povo, com escassa intervenção governamental,que não a da repressão da Primeira República, cujapolícia impedia os ranchos e os cordões populares de desfilar.Em geral, as subvenções para a festa eram feitas peloscomerciantes das cidades e o primeiro a <strong>do</strong>tar de subvençãopública foi o prefeito <strong>do</strong> Distrito Federal, Antônio Pra<strong>do</strong>Jr. em 1928. A Era Vargas institucionalizaria o patrocínio,estimulan<strong>do</strong> a criação das Agremiações carnavalescas eEscolas de Samba, que se multiplicam nos anos de 1930 354 .Decreto <strong>do</strong> governo de 1937 as <strong>do</strong>ta de função didáticahistórica e patriótica e estimula enre<strong>do</strong>s nacionalistas. Em1939, a comissão julga<strong>do</strong>ra desclassificou a Vizinha Faladeira,porque o samba trazia um tema estrangeiro “Branca deNeve e os sete anões”.Ganhou destaque nesta incorporação política <strong>do</strong>carnaval o prefeito <strong>do</strong> Distrito Federal, Pedro Ernesto quedeu início a institucionalização da “alegria dirigida”. Seu secretárioAmaral Peixoto entregou em 1934 a chave da cidadepara o primeiro Rei Momo, cria<strong>do</strong> pelos repórteres <strong>do</strong>jornal A Noite. Pedro Ernesto via nas Escolas de Samba umcanal de contato entre o governo e o povo, uma intermediáriadas demandas populares. Sua simpatia ao carnavallhe valeu homenagem por diversas escolas de Samba.Além <strong>do</strong> carnaval de rua existiam também os bailescarnavalescos organiza<strong>do</strong>s para a em clubes para os maisabona<strong>do</strong>s, inclusive o baile <strong>do</strong> Municipal. Tocavam o últimosucesso que era reproduzi<strong>do</strong> nas rádios e certamente seriagrava<strong>do</strong> pela Odeon. O mais bem-sucedi<strong>do</strong> autor de sambasda Era Vargas foi o jovem Noel Rosa que aban<strong>do</strong>nou amedicina pela boemia e morreu de tuberculose em 1937aos 27 anos de idade. Com que roupa? No ritmo <strong>do</strong> hino354 A primeira escola é a Deixa Falar <strong>do</strong> Estácio (1928), seguida pela Mangueira(1929). A Portela é de 1935. Data de 1932 o primeiro desfile-concurso.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>414nacional faz sucesso no carnaval de 1931 e o torna famoso.Autor de Fita Amarela, Feitiço da Vila, Orvalho vem cain<strong>do</strong>,Três Apitos, Palpite Infeliz, Conversa de Botequim e Último Desejoentre vários outros clássicos <strong>do</strong> samba, Noel destacousecomo homem branco, oriun<strong>do</strong> da classe média que fezsucesso em um mun<strong>do</strong> no qual até a geração anterior eraquase exclusivamente de negros. É a evidência mais clarada transição social <strong>do</strong> samba e sua aceitação generalizadapela “boa sociedade” que a Rádio Nacional e os desfiles deEscolas de Samba transformariam em expressão oficial dabrasilidade.


4157. A Experiência Democrática(1946-1964)7.1 A democracia brasileira (1945-1954)Os parti<strong>do</strong>s políticos. O contexto de guerra fria. Os militares e a polarização política.As diretrizes políticas <strong>do</strong> governo Dutra e sua política Externa. O Plano Salte e a Missão Abbink.As eleições de 1950. O Segun<strong>do</strong> governo Vargas e suas crises. Os militares. A Comissão mista<strong>Brasil</strong>-Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s. A questão <strong>do</strong> Petróleo. O debate historiográfico e nacionalismo.O atenta<strong>do</strong> da Tonelero, a República <strong>do</strong> Galeão e o Suicídio.O primeiro perío<strong>do</strong> verdadeiramente democrático da história brasileira seria marca<strong>do</strong>por profunda instabilidade. Para além da frequente participação <strong>do</strong>s militares na vida política<strong>do</strong> país, havia o quadro sistêmico de divisão de blocos de poder fortemente ideologiza<strong>do</strong>s.Aos contornos da Guerra Fria, que se estabeleceu desde os anos iniciais <strong>do</strong> governo Dutra,somaram-se características autóctones da polarização entre liberais “cosmopolitas” e nacionalistassintetiza<strong>do</strong>s por Helio Jaguaribe em O Nacionalismo na Atualidade <strong>Brasil</strong>eira – livro publica<strong>do</strong>em 1958 nos marcos <strong>do</strong> ISEB. Esta polarização estava expressa muito evidentemente nosparti<strong>do</strong>s políticos <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> e sua evolução conta boa parte da história.Uma das preocupações da legislação eleitoral que Vargas implementou em maio de1945, quan<strong>do</strong> <strong>do</strong> processo de abertura política no Esta<strong>do</strong> Novo era que os parti<strong>do</strong>s cria<strong>do</strong>stivessem caráter nacional e representação em pelo menos cinco Esta<strong>do</strong>s. Temia-se o retornoao modelo pré-1930 de parti<strong>do</strong>s estaduais, o que não chegou a ocorrer. Em verdade, tem-se apartir de 1945 o início <strong>do</strong> primeiro sistema realmente democrático e pluripartidário da históriabrasileira que vigoraria por quase duas décadas. A constituição de 1946 ainda ampliaria a cidadaniaincorporan<strong>do</strong> definitivamente o voto feminino e reduzin<strong>do</strong> de 21 para 18 anos a idadeeleitoral. O voto volta a ser obrigatório, mas segue restrito aos alfabetiza<strong>do</strong>s.Cria<strong>do</strong>s ao final <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Novo, são quatro os parti<strong>do</strong>s que se destacam na cena políticabrasileira, o Parti<strong>do</strong> Trabalhista <strong>Brasil</strong>eiro (PTB), o Parti<strong>do</strong> Social Democrático (PSD), a UniãoDemocrática Nacional (UDN) e o Parti<strong>do</strong> Comunista <strong>do</strong>s <strong>Brasil</strong> (PCB). Fortíssimo em São Paulo


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>416graças a popularidade de Adhemar de Barros, o Parti<strong>do</strong> SocialProgressista (PSP) também conseguiu alguma influênciapolítica nacional e chegou a quase 10% <strong>do</strong> Congressoem 1954.O PTB era a institucionalização partidária <strong>do</strong> trabalhismo,da CLT e da imagem de Getúlio de “Pai <strong>do</strong>s Pobres”que o Vargas foi construin<strong>do</strong> com o DIP e o Ministério <strong>do</strong>Trabalho ao final <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Novo. Seu grande teste demobilização foi o Queremismo. Ainda que frustra<strong>do</strong> poruma quartelada militar, passou no teste de adesão e arregimentação<strong>do</strong> povo, que seria visto muitas outras vezes.A experiência queremista é emblemática e pedagógica.A mobilização militar a partir de 1945 seria frequente(1945, 1954, 1955, 1961 e 1964) – e, nem sempre no mesmosenti<strong>do</strong> da mobilização popular, o que, naturalmente,enfraquecia da democracia brasileira. Estabelece-se aíuma das principais diferenças entre este perío<strong>do</strong> e o dademocracia atual, muito mais estável, onde a influênciapolítica castrense é nula.Rodrigo Mota lembra que existia um setor fisiológicono PTB que era tributário da estrutura sindical autoritáriae vertical que se estabelecera de mo<strong>do</strong> paternalistana Era Vargas, mas acredita que mesmo forte este grupofoi perden<strong>do</strong> cada vez mais espaço para a ala ideológica,responsável pelo crescimento exponencial que o parti<strong>do</strong>vai ten<strong>do</strong> ao longo <strong>do</strong> deste perío<strong>do</strong> – ao sair de 9% (1946)para quase 30% da Câmara <strong>do</strong>s Deputa<strong>do</strong>s em 1962, o PTBfoi o parti<strong>do</strong> que mais cresceu no <strong>Brasil</strong> da experiência democrática.É justamente o fortalecimento <strong>do</strong> grupo verdadeiramentecomprometi<strong>do</strong> com as transformações sociaise conquistas <strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>r que, no controle <strong>do</strong> executivoe no momento de ápice eleitoral <strong>do</strong> PTB, desestabiliza ofrágil equilíbrio da política nacional polarizada forçan<strong>do</strong>o debate sobre as “Reformas de Base” que Juscelino foracapaz de congelar em seus cinco anos de governo.O PSD sempre foi ao longo de to<strong>do</strong> o perío<strong>do</strong> omaior parti<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. Parti<strong>do</strong> cria<strong>do</strong> pelos interventoresque tinha em Vargas seu presidente, naturalmente contoucom o amplo apoio da máquina estatal que lhe permitiuconquistar mais da metade da Câmara Constituinte de1946, o que lhe permitiria dispensar o apoio de to<strong>do</strong>s osdemais parti<strong>do</strong>s. Ainda que tenha reduzi<strong>do</strong> gradualmentesua participação, manteve-se como o parti<strong>do</strong> mais relevante<strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>.Ao contrário <strong>do</strong> PTB, sua ala ideológica era mínima.A maior parte de seus integrantes era de políticos profissionaisvincula<strong>do</strong>s aos Municípios e Esta<strong>do</strong>s. Era o parti<strong>do</strong><strong>do</strong>s coronéis que persistiam ten<strong>do</strong> influência na políticanacional. As cidades médias e pequenas, o campo, os latifundiáriose empresários <strong>do</strong> interior constituíam a base <strong>do</strong>PSD, o que não significa que não tivesse influência grandetambém nas cidades e capitais. O mo<strong>do</strong> de angariar apoioera a velha fórmula de cargos indica<strong>do</strong>s na máquina governamentalpelo executivo em troca de apoio político.


417A Experiência Democrática(1946-1964)Tais cargos permitiam a realização de obras e melhoramentosconcretos com recursos <strong>do</strong> governo que eram usa<strong>do</strong>scomo plataforma eleitoral no pleito seguinte. E assim a coisase perpetuava.Duas frases deliciosamente irônicas – ambas proferidaspor pessedistas – dão conta da vocação municipalistae <strong>do</strong> fisiologismo <strong>do</strong> PSD. “Se Juscelino for eleito o <strong>Brasil</strong>terá o seu melhor prefeito”. Já sobre a ideologia de seuparti<strong>do</strong> Tancre<strong>do</strong> teria dito “entre a ‘Bíblia’ e ‘O Capital’ o PSDfica com o diário oficial”. Se hay gobierno o PSD era favor.Só não apoiou Café Filho (1954-55), Jânio Quadros (1961)e João Goulart a partir de Março de 1964. Não vai aqui nenhumacausalidade automática, mas é curioso perceberque nenhum <strong>do</strong>s três terminou seu mandato, sen<strong>do</strong> <strong>do</strong>isdeles derruba<strong>do</strong>s por movimento militar. O apoio político<strong>do</strong> PSD parecia ser pré-condição mínima de estabilidade.O PTB era o irmãozinho pobre <strong>do</strong> PSD. Quan<strong>do</strong> oPTB chegou à a<strong>do</strong>lescência contestatória e acreditou termaturidade suficiente para escolher seus próprios caminhos,o PSD rompeu com ele. Até então a aliança eraassimétrica <strong>do</strong> maior parti<strong>do</strong> (PSD) com o parti<strong>do</strong> minoritário(PTB), que aju<strong>do</strong>u a eleger Dutra e JK, dan<strong>do</strong>, principalmentea este último condições de governabilidadeque não teria sem o apoio <strong>do</strong> trabalhismo. É curioso queambos os presidentes <strong>do</strong> PSD governaram <strong>do</strong> início ao fimde seu mandato, enquanto ambos os presidentes <strong>do</strong> PTBtiveram seus mandatos encurta<strong>do</strong>s por mobilização militarvinculada à UDN. A UDN tolerava mal ou bem presidentes<strong>do</strong> PSD, com quem congregava os valores <strong>do</strong> conserva<strong>do</strong>rismo,mas não os presidentes reformistas <strong>do</strong> PTB, queprocurava desestabilizar a qualquer custo.A UDN por fim era a agremiação antigetulista. To<strong>do</strong>sos que se tornaram inimigos de Getúlio em algum momentoentre 1930 e 1945 – e não foram poucos – encontraramno parti<strong>do</strong> <strong>do</strong> brigadeiro pouso certo. Vinculada desde suafundação ao grande patrono da aeronáutica, não é de sesurpreender que esta fosse a arma mais virulentamenteansiosa para pegar em armas e depor o governo não udenistada vez. Ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> a Força Aérea <strong>Brasil</strong>eira criada comos recursos <strong>do</strong> Lend and Lease, era também a arma maisvulnerável à influência norte-americana. Tinha si<strong>do</strong> completamentemoldada pela U.S. Air Force. Para os inimigos, osudenistas eram simplesmente os entreguistas.Ainda que majoritariamente liberais, que desejavamum desenvolvimentismo sem óbices ao capital estrangeiros,pouca intervenção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> na economia e simpatiapara com a liderança norte-americana na luta contra o“comunismo ateu”, nem to<strong>do</strong>s os udenistas se encaixavamno estereótipo Carlos Lacerda de ser. Houve os que propuseramo monopólio <strong>do</strong> Petróleo durante a mobilizaçãopopular pela nacionalização, os que apoiaram as medidasdesenvolvimentistas <strong>do</strong> governo JK e até aqueles que integrarama Frente Parlamentar Nacionalista que era simpáticaàs Reformas de Base. Muitos eram simplesmente


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>418políticos fisiológicos que vislumbravam benesses em apoiaro governo inexistentes para os oposicionistas, mas haviamaqueles sinceros, e ainda assim udenistas. Nunca é demaislembrar que a Política Externa Independente foi gestadainicialmente por um udenista histórico, funda<strong>do</strong>r <strong>do</strong> parti<strong>do</strong>,Afonso Arinos de Melo Franco, que era tu<strong>do</strong> menos“entreguista”. Eram os udenistas afinal, também um parti<strong>do</strong>majoritariamente urbano e igualmente desenvolvimentista,que contava com o apoio de muitos empresários em seusquadros. Não eram “liberais” agraristas ou fanáticos. Estasdicotomias portanto, apesar de didáticas, são empobrece<strong>do</strong>rasda complexa realidade política brasileira <strong>do</strong> perío<strong>do</strong>.Tão complexa que a aliança PTB-PSD escapa a todae qualquer modalidade de teorização mais cartesiana, queexclua a historicidade <strong>do</strong>s parti<strong>do</strong>s. Se fosse pela opçãoideológica a aliança óbvia teria si<strong>do</strong> PSD-UDN que congregavamo conserva<strong>do</strong>rismo da sociedade brasileira contrao Trabalhismo na vanguarda social. Esta aliança chegoua ser ensaiada no governo Dutra, mas naturalmente nãosobreviveu às eleições de 1950 com a candidatura de GetúlioVargas à presidência. Cristiano Macha<strong>do</strong>, o candidatopessedista foi aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong> por seu próprio parti<strong>do</strong> –cristianiza<strong>do</strong> – como passou a se dizer desde então. Se, poroutro la<strong>do</strong>, a clivagem partidária se guiasse pela divisão urbano– rural, então, naturalmente a aliança teria que serPTB-UDN contra o parti<strong>do</strong>s fisiológico <strong>do</strong>s coronéis e daspequenas cidades que atravancavam o desenvolvimentobrasileiro. Mas esta aliança nunca ocorreu no plano nacional– embora tenha ocorri<strong>do</strong> várias vezes no plano estaduale municipal.A chave <strong>do</strong> aparentemente inexplicável é a históriade sua formação. Cada um destes parti<strong>do</strong>s nasceu aindasob os estertores da ditadura esta<strong>do</strong>novista e guardamportanto o espectro <strong>do</strong> getulismo em seus cromossomos.Seja a síntese <strong>do</strong> sindicalismo vincula<strong>do</strong> ao esta<strong>do</strong> no PTB,seja a organização política <strong>do</strong>s interventores nos Esta<strong>do</strong>s<strong>do</strong> PSD, seja ainda o ferrenho antigetulismo de to<strong>do</strong>s osque se opunham à Vargas da UDN. A influência de Getúlio,para o bem ou para o mal permearia toda a experiênciapartidária brasileira sob a democracia e não diminuiria como seu desaparecimento.Depois <strong>do</strong> suicídio então, aquilo que era uma aliançainformal – apoio constrangi<strong>do</strong> à Dutra pelo PTB em1945, e apoio dividi<strong>do</strong>, escamotea<strong>do</strong> <strong>do</strong> PSD à Vargas em1950 – se torna aliança institucionalizada nas duas eleiçõesseguintes. JK precisava desesperadamente <strong>do</strong> apoio <strong>do</strong>PTB para vencer Juarez Távora, Adhemar de Barros e PlínioSalga<strong>do</strong>, apresentan<strong>do</strong>-se como herdeiro de Getúlio, impossívelsem Jango na chapa. Por isso impôs a coligaçãoao seu parti<strong>do</strong> que a via com desconfianças. Já o MarechalLott foi o candidato por aclamação da coligação PTB-PSD,enquanto o presidente Juscelino conspirava para umaaliança com a UDN que elegesse Juracy Magalhães comocandidato de união nacional. Se a improvável aliança PTB-


419A Experiência Democrática(1946-1964)-PSD existiu e persistiu, é porque tais parti<strong>do</strong>s estavam uni<strong>do</strong>sfraternalmente, como Esaú e Jacó. Tinham na certidãode nascimento, o mesmo sobrenome: Vargas!Além <strong>do</strong>s parti<strong>do</strong>s o exército era a outra força, nãopartidária, essencial para se compreender o perío<strong>do</strong> – esua instabilidade. As mesmas correntes que dividiam asociedade brasileira entre nacionalistas e liberais tambémeram fortes no exército, com o agravante que ambos osgrupos estiveram frequentemente dispostos a pegar emarmas para fazer valer seus pontos de vista sobre o governocivil que não comungasse com suas convicções. Acabara-seo tempo <strong>do</strong> solda<strong>do</strong>-cidadão que mobilizava seuregimento ou seu quartel romanticamente pela pátria. Haviase imposto o modelo <strong>do</strong> solda<strong>do</strong> corporação graças aGóis Monteiro. Agora a mobilização política <strong>do</strong> exército sedava de mo<strong>do</strong> institucionaliza<strong>do</strong> por meio das chefias, <strong>do</strong>sgenerais e ministros. Era o parti<strong>do</strong> da farda, que inclusivedisputava eleições. Não houve eleição no perío<strong>do</strong> na qualum grande parti<strong>do</strong> não indicasse um candidato farda<strong>do</strong>.A primeira, de 1945 tinha <strong>do</strong>is. Brigadeiro Eduar<strong>do</strong> Gomesvs. General Eurico Gaspar Dutra. Eduar<strong>do</strong> Gomes concorreunovamente contra Vargas em 1950, e Juarez Távora contraJuscelino em 1955. Quan<strong>do</strong> a UDN desistiu <strong>do</strong>s militarese resolveu apoiar a candidatura de Jânio, foi a vez <strong>do</strong> PTB/PSD indicar o Marechal Lott.O termômetro da “temperatura” ideológica das forçasarmadas era a eleição bianual <strong>do</strong> Clube Militar que tinhasi<strong>do</strong> funda<strong>do</strong> por Deo<strong>do</strong>ro em 1897 no final <strong>do</strong> Império.De 1944 a 1950 o clube triplicou seu número de associa<strong>do</strong>s.O candidato vitorioso no clube militar indicava naturalmentea tendência ideológica pre<strong>do</strong>minante, e o governo, claro,sempre tinha um candidato preferi<strong>do</strong>. Assim, a vitória deEstillac Leal sobre Cordeiro de Farias, antes da posse de Vargasem 1950, tranquilizou o presidente eleito, que inclusiveo nomeou seu ministro da Guerra em 1951. Já sua derrotapara Alcides Etchegoyen da Cruzada Democrática quan<strong>do</strong>tentou se reeleger era um indício de que graves problemasestavam por vir. A Cruzada Democrática ganhou novamenteem 1954, desta vez com Canrobert Pereira – ex-ministro daGuerra <strong>do</strong> governo Dutra – e Juarez Távora, evidencian<strong>do</strong>que as crises políticas da República quase nunca estavamdesvinculadas <strong>do</strong>s quartéis. José Murilo de Carvalho chamaos militares de fia<strong>do</strong>res <strong>do</strong> governo. Se retirassem seu apoio,desestabilizava-se o regime. O único governo sem revoltasmilitares contra o executivo foi justamente o único sob apresidência de um militar, Eurico Gaspar Dutra.O governo Dutra era um governo aparta<strong>do</strong> <strong>do</strong>s anseiospopulares, que eram vistos com desconfiança poruma cúpula militar anticomunista da qual o presidenteera o chefe. Reprimiu greves e interveio agressivamenteno movimento sindical, se valen<strong>do</strong> das armas autoritárias<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Novo para cooptar sindicalistas e fechar e proibirsindicatos não vincula<strong>do</strong>s ao governo. A desculpa parao autoritarismo era que os sindicatos eram instrumentos


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>420para a manipulação e infiltração comunista no <strong>Brasil</strong> e oconserva<strong>do</strong>rismo <strong>do</strong> governo justifica a Reforma Ministerialimplementada em 1948 que incorporava a UDN aogoverno.Para Gerson Moura é nesta perseguição ao sindicalismoe depois ao PCB que reside a explicação para a rupturacom a URSS provocada pelo governo <strong>Brasil</strong>eiro em 1945.Crítico de uma visão sistêmica determinista que vinculariaa ruptura ao agravamento da Guerra Fria, Moura demonstraque os motivos estão no anticomunismo autóctoneindelével da alta cúpula de um governo chefia<strong>do</strong> por umgeneral que tinha si<strong>do</strong> expoente da facção germanófila no<strong>Brasil</strong> <strong>do</strong>s anos de 1930.Vargas havia resisti<strong>do</strong> o quanto pode às sugestõesde estabelecimento de relações com a URSS que provinham<strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s desde 1943. Sabia que desagradariao Exército, cujo ministro era Dutra, além <strong>do</strong> DIP e daIgreja. Chegou a assinar a Carta das Nações Unidas sem terrelações com Moscou, apesar das sugestões em contráriode Oswal<strong>do</strong> Aranha. Só estabeleceu relações quan<strong>do</strong> percebeuque seria impossível ter qualquer presença políticainternacional nas conversações <strong>do</strong> pós-guerra, e na futuraONU, se não reconhecesse a URSS, e por isso o fez em Abrilde 1945. Logo depois foi legaliza<strong>do</strong> o PCB.Mas Dutra já assume queren<strong>do</strong> fechá-lo, e houvetentativas para fazer isso durante a Assembleia Constituinteque não prosperaram. Aprova-se um decreto que proíbeparti<strong>do</strong>s que recebessem recursos estrangeiros e o artigo141 da Constituição proibia agremiações cujas propostasviolassem os princípios democráticos. Ao mesmo tempoque a polícia de Dutra inicia uma ofensiva contra os comunistasapreenden<strong>do</strong> material e os reprimi<strong>do</strong>, como seilegais fossem. Eram a 4 a maior bancada <strong>do</strong> Congresso, eem São Paulo e Salva<strong>do</strong>r haviam consegui<strong>do</strong> bancadas estaduaisainda maiores. O Tribunal Superior Eleitoral cassou,em maio de 1947, por três votos à <strong>do</strong>is, o registro <strong>do</strong> parti<strong>do</strong>que se tornou novamente ilegal após viver sua fasemais forte no <strong>Brasil</strong>. Pesou na decisão a entrevista de LuísCarlos Prestes alegan<strong>do</strong> que em uma eventual guerra entrea URSS e o <strong>Brasil</strong>, lutaria pela URSS. Tinha dura<strong>do</strong> <strong>do</strong>isanos na legalidade. Seus deputa<strong>do</strong>s e o Sena<strong>do</strong>r Luís CarlosPrestes ainda resistiram na Câmara, alegan<strong>do</strong> que nãorepresentavam o parti<strong>do</strong>, mas o povo que os havia elegi<strong>do</strong>.Não funcionou, meses depois foram cassa<strong>do</strong>s também,após a longa “batalha das cassações” que durou de julhoà dezembro de 1947. Enquanto isso eram aprovadas leissobre a questão da segurança <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e prosseguiamas intervenções nos sindicatos <strong>do</strong>s mais varia<strong>do</strong>s matizesideológicos. Mais de duzentos sofreram intervenção e aCentral Geral <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res <strong>Brasil</strong>eiros foi proibida defuncionar.Para Moura, a ruptura de relações com a URSS foiapenas o degrau seguinte da escalada anticomunista implementadapelo governo Dutra.


421A Experiência Democrática(1946-1964)instrumento de propaganda de uma ideologia e umapolítica inteiramente contrárias às conveniências <strong>do</strong><strong>Brasil</strong>, à sua forma de governo e ao mo<strong>do</strong> de viver <strong>do</strong>s<strong>Brasil</strong>eiros (segun<strong>do</strong> formulação <strong>do</strong> nosso ministro daguerra em 1947) (MOURA, 1991, p. 90).O estopim foram as críticas a Dutra presentes naGazeta Literária periódico soviético. A Secretaria de Esta<strong>do</strong>enviou uma nota de protesto exigin<strong>do</strong> desculpas eretratações que pela linguagem e forma como foi redigidatinha o claro intuito de que fosse recusada, comoo foi. Alertada pelo embaixa<strong>do</strong>r brasileiro em Moscou, epor Oswal<strong>do</strong> Aranha na ONU, não foram suficientes parademover Raul Fernandes para quem “o <strong>Brasil</strong> tem tu<strong>do</strong> aganhar e nada a perder com o rompimento de relações”.Desmontan<strong>do</strong> a hipótese sistêmica para o rompimentode relações, o secretário de Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>sGeorge Marshall ainda procurou Aranha em Nova Yorkpara evitar a ruptura, argumentan<strong>do</strong> que Truman era seguidamenteataca<strong>do</strong> pela imprensa soviética sem queisso acarretasse maiores consequências, mas estava claroo propósito <strong>do</strong> governo brasileiro de não ser dissuadi<strong>do</strong>.Para Gerson Moura:Enquanto o anti-sovietismo americano era parte deuma estratégia global de grande potência em buscade hegemonia, o anti-sovietismo brasileiro era expressãode uma compreensão enviesada <strong>do</strong>s conflitossociais internos e da melhor maneira de enfrentá-los(Moura, 1991, p. 92).O propala<strong>do</strong> alinhamento automático com os Esta<strong>do</strong>sUni<strong>do</strong>s sofre matizes que o complexificam. Em algunssetores não havia sequer alinhamento, como era ocaso das discussões econômicas no GATT, onde o <strong>Brasil</strong>defendia teses desenvolvimentistas. Em outros, como nasrelações com a URSS, o <strong>Brasil</strong> era, por considerações de ordeminterna, ainda mais realista que o rei. No plano geral,no entanto, o governo Dutra aderiu entusiasticamente àcrescente securitização da agenda hemisférica norte-americanaque substituíra a Política da Boa Vizinhança.Essa visão subserviente levou a confrontos entre achancelaria e o representante brasileiro na ONU, Oswal<strong>do</strong>Aranha, eleito presidente <strong>do</strong> Conselho de Segurança emfevereiro de 1946 e presidente da II Assembleia Geral em1947, o principal símbolo de prestígio internacional brasileirono exterior. Aranha, que tinha si<strong>do</strong> o chefe da facçãoamericanista quan<strong>do</strong> ministro de Esta<strong>do</strong> (1938-1944) percebiaagora em sua ação na ONU as mudanças no cenáriointernacional com mais clareza que a chancelaria à qualestava subordina<strong>do</strong> e que exigia que se seguisse sempreo voto americano para demonstrar uma frente ocidentalunida, único meio de evitar a <strong>do</strong>minação soviética na Europa.Aranha percebia que não haveria guerra global entreas duas potências, e que em muitos casos prevalecia acolaboração. Estar alia<strong>do</strong> aos Esta<strong>do</strong>s uni<strong>do</strong>s não significavasubserviência. Já o Itamaraty guiava sua ação externapauta<strong>do</strong> pelo me<strong>do</strong> <strong>do</strong>s conflitos sociais brasileiros e as


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>422reivindicações <strong>do</strong>s operários cuja legitimidade o governoDutra recusava. Via neles presença da ação internacionalsoviética e, portanto, hipotecava solidariedade a outrospaíses que vivessem conflagrações semelhantes – guerracivil na Grécia – ainda que regimes motiva<strong>do</strong>s por regimesautoritários como o português e seu colonialismo africano.Deu apoio político aos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s na ONU na questãocoreana e exigiu à delegação brasileira “ajustar-se aosEsta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s sem qualquer indecisão”, e Raul Fernandeschegou a boicotar a tentativa de eleição de Aranha para apresidência da III Assembleia Geral.A crença de que havia uma aliança especial com osEsta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s aos poucos vai fican<strong>do</strong> mais e mais frágil.Os poucos investimentos americanos no projeto desenvolvimentistabrasileiro tinham si<strong>do</strong> dita<strong>do</strong>s pelo contextopolítico da guerra e perderam sua razão de ser. A ata deChapultepec de 1945 prescrevia os princípios liberais detratamento igualitário para o capital estrangeiro nos povos<strong>do</strong> continente, e o governo Dutra aderiu entusiasticamentea essa liberalização ao ponto de gerar uma grave crisecambial no <strong>Brasil</strong>. As reservas acumuladas pelo <strong>Brasil</strong> durantea guerra eram inconversíveis para o financiamentode déficits comerciais e a situação ficou tão fora de controleque o governo Dutra foi obriga<strong>do</strong> a recorrer novamenteao controle das importações a partir de 1948.Durante os trabalhos da constituinte, sobretu<strong>do</strong> nocapítulo das questões sociais eram manti<strong>do</strong>s alguns <strong>do</strong>s dispositivos<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Novo que mantinham a nacionalização<strong>do</strong> subsolo, mas não regulamentou como se dariam as concessões.Os anos seguintes seriam anos de luta sobre essaregulamentação, sobretu<strong>do</strong> em relação ao petróleo, cujamobilização popular obrigou Dutra a recuar na intençãode abrir esse merca<strong>do</strong> para as grandes empresas estrangeiras,o que contava com a simpatia <strong>do</strong> Itamaraty. Em 1947,logo depois de promulgada a constituição, Dutra autorizaconcessão de exploração <strong>do</strong> manganês para a US Steel e aBethleem Steel, além de manter a venda das areias monazíticasiniciada no perío<strong>do</strong> da guerra. O governo Dutra havialança<strong>do</strong> o Plano Salte cuja sigla simbolizava as prioridades<strong>do</strong> governo (Saúde, Alimentação, Transporte e Energia), masas dificuldades de financiar tanto interna quanto externamenteas inversões necessárias para dar conta destas prioridadesfizeram com que pouco mais <strong>do</strong> que já havia si<strong>do</strong>inicia<strong>do</strong> no Esta<strong>do</strong> Novo – a inauguração da CSN, a CHESF ea Hidrelétrica <strong>do</strong> São Francisco – fosse leva<strong>do</strong> a cabo.No plano multilateral, Petrópolis sediou a ConferênciaInteramericana de Defesa que criou o Trata<strong>do</strong> Interamericanode Assistência Recíproca – TIAR. Dizia o TIAR:“Um ataque arma<strong>do</strong> de qualquer Esta<strong>do</strong> contra um Esta<strong>do</strong>americano será considera<strong>do</strong> um ataque contra to<strong>do</strong>sos Esta<strong>do</strong>s americanos”, naturalmente o alvo oculto destaprevisão era a URSS. Várias delegações quiseram discutiro tema da luta continental contra o comunismo, a ameaçade “subversão”, mas foram dissuadidas pela delegação


423A Experiência Democrática(1946-1964)americana. Era interessante que o real objetivo da conferência– criação de um sistema de poder americano contrárioao sistema de poder soviético – permanecesse oculto, ouao menos escamotea<strong>do</strong> pela ideia de “defesa hemisférica”.O elemento de coesão hemisférica e liderança americana,no entanto, se sobrepunha ao de “defesa” continental,como ficaria tragicamente claro para os argentinos em1982, quan<strong>do</strong> o TIAR foi-se com a breca.Como um sucedâneo <strong>do</strong> TIAR, tem-se a criação daOEA na IX Conferência Interamericana de 1948 para sucederos antigos Bureau de Repúblicas Americanas cria<strong>do</strong> em1890 na Primeira Conferência e a UPA (União Pan-americana)criada em 1910 na IV Conferência. Institucionalizavamultilateralmente as relações políticas e econômicas <strong>do</strong>sEsta<strong>do</strong>s americanos. O delega<strong>do</strong> brasileiro e ex-chancelerJoão Neves da Fontoura declarou a George Marshall queagiria em consonância com os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s e que fariato<strong>do</strong>s os esforços para que as posições das duas delegaçõesconvergissem sempre. A carta da OEA, com o apoioda delegação brasileira incorporou em seu artigo 32 umadeclaração de anticomunismo, que legitimou muito maistarde a intervenção americana na República Dominicana.As reformas militares que resultaram na criação deum Esta<strong>do</strong>-Maior das Forças Armadas, e mais tarde (1949)da Escola Superior de Guerra (ESG) fez dentro <strong>do</strong>s padrõesnorte americanos, seguin<strong>do</strong> a ESG, o modelo <strong>do</strong> War College,e inclusive, envian<strong>do</strong> seus oficiais para lá estagiarem.As relações bilaterais e multilaterais são marcadaspelo tom subserviente. O governo americano recusou aindaempréstimo <strong>do</strong> Eximbank para a construção de umarefinaria de petróleo no <strong>Brasil</strong> solicita<strong>do</strong> por uma comitivaeconômica enviada aos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s em 1946. Recusoutambém empréstimo para reequipar os transportes marítimose terrestres <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. A postura brasileira é adesivae demandante, e a <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, distante. Não haviaqualquer aliança especial. Quan<strong>do</strong> em 1949, o governoDutra solicitou ajuda econômica para a manutenção e modernizaçãodas bases no nordeste utilizadas pelos americanosna guerra, a recusa de Washington evidenciou explicitamenteque as prioridades econômicas e de segurança<strong>do</strong> governo Truman estavam na Europa e na Ásia, e nãomais na América Latina. Demorou muito tempo para queRaul Fernandes percebesse que Volta Re<strong>do</strong>nda tinha si<strong>do</strong>um contexto de emergência não o marco inicial de modelode assistência econômica continuada. Isso fica expressono seu “Memoran<strong>do</strong> da frustração”, ao final de sua gestão,quan<strong>do</strong> já era patentemente óbvia a falta de reciprocidade.Gerson Moura sintetiza:Os ministros das Relações Exteriores <strong>do</strong> governo Dutra,João Neves da Fontoura e Raul Fernandes, aprenderama forma da política de Vargas (alinhamento aos EUA),mas não foram capazes de reproduzir sua substânciamais notável (utilizá-la como instrumento de barganhaem suas negociações internacionais). (...) O alinhamento


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>424(...) constituiu-se praticamente em objetivo permanenteda política exterior brasileira. Os ganhos substantivospassaram para o reino imponderável da esperança (grifos<strong>do</strong> autor; MOURA, 1991, p. 69).Um <strong>do</strong>s lega<strong>do</strong>s da relação bilateral <strong>Brasil</strong>-Esta<strong>do</strong>sUni<strong>do</strong>s no governo Dutra foi a vinda ao <strong>Brasil</strong> da MissãoAbbink que buscou estudar os pontos de “gargalos” <strong>do</strong>desenvolvimento brasileiro e estabelecer propostas para asuperação destes gargalos. O governo <strong>Brasil</strong>eiro insistiu nainstitucionalização deste mecanismo, acreditan<strong>do</strong> podertransformar a comissão em um meio de conseguir o apoioamericano para financiar tais projetos. Nascia aí a ideia deuma Comissão Mista <strong>Brasil</strong>-Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s que terá importânciano Segun<strong>do</strong> Governo Vargas.As eleições de 1950, embaladas pela marchinha carnavalescaque virou jingle de campanha: “Bota o retrato <strong>do</strong>velho outra vez/bota no mesmo lugar/ o sorriso <strong>do</strong> velhinho/faz a gente trabalhar.” Assistiram à enorme popularidade <strong>do</strong>velho dita<strong>do</strong>r junto aos grupos populares. Vargas articuloucuida<strong>do</strong>samente a campanha. Primeiro deu uma entrevistaao jornalista Samuel Wainer que na época trabalhavanos Diários Associa<strong>do</strong>s, declaran<strong>do</strong> que voltaria comolíder de massas. A capa “Ele voltará!” serviu para sondar atemperatura política da recepção à sua possível volta. Foium alvoroço. Depois, neutralizou o rival Adhemar de Barroscom uma aliança que estabelecia Getúlio em 50, Adhemarem 55, e concor<strong>do</strong>u em incorporar à chapa o pessepistaJoão Café Filho, antigo inimigo político como candidatoà vice-presidência. A aliança com o PSP foi fundamental.Um quarto <strong>do</strong>s votos que o elegeram vieram de São Paulo.Conseguiu ainda a garantia de Góis Monteiro da “autorização”das Forças Armadas que o haviam deposto. Góis, queapoiou Cristiano Macha<strong>do</strong>, lhe garantiu que se vitoriososeria empossa<strong>do</strong>.A candidatura de Cristiano Macha<strong>do</strong> começou anaufragar ainda no porto. O pragmatismo <strong>do</strong>s políticos<strong>do</strong> PSD não permitiu que diante da enorme popularidadede Getúlio e <strong>do</strong> crescimento de sua candidatura, permanecessemembarca<strong>do</strong>s numa canoa furada. Mesmo como candidato oficial, grande parte <strong>do</strong> PSD apoiou formal ouinformalmente Getúlio, que lhes retribuiu com as principaispastas de seu ministério: Horacio Lafer na Fazenda,João Neves da Fontoura nas Relações Exteriores, Negrãode Lima na Justiça e Ernesto Simões na Educação. O PTBtinha apenas um ministro, o <strong>do</strong> Trabalho e o PSP ficou coma Viação e Obras Públicas, e a UDN dissidente ganhou tambémum ministro, João Cleofas na Agricultura que apoiouVargas e recebeu em troca seu apoio contra AgamenonMagalhães (PSD) para o governo de Pernambuco. Cleofasperdeu, mas ganhou um ministério. Mesmo sem o apoioformal nas eleições Getúlio tinha claro que era impossívelgovernar sem o PSD. Um militar nacionalista – Estillac Leal,presidente <strong>do</strong> Clube Militar – completava o ministério, sópra garantir.


425A Experiência Democrática(1946-1964)A UDN indicara novamente o brigadeiro Eduar<strong>do</strong>Gomes (vote no brigadeiro ele é bonito e é solteiro, não foium slogan lá muito eficaz) que teve menos de 30% <strong>do</strong>svotos. Derrotada, lançou a tese de que Getúlio, por nãoter ti<strong>do</strong> a maioria absoluta <strong>do</strong>s votos – foi eleito com48,7% <strong>do</strong> total – não poderia tomar posse, dan<strong>do</strong> inícioao seu flerte com os militares e o golpismo, traço de todasua trajetória política. A chicana não deu certo e Getúliofoi empossa<strong>do</strong> com a anuência <strong>do</strong>s militares em 31 deJaneiro de 1951.A divisão no seio das Forças Armadas marcou parteimportante da instabilidade <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> governo Vargas.De um la<strong>do</strong> nacionalistas como Horta Barbosa e EstillacLeal. Do outro “entreguistas” como Cordeiro de Farias, JuarezTávora e Canrobert Pereira. Como vimos, o clube militarera o palco desta disputa. Vargas se apoiava na primeirafacção mas tentou flertar e cooptar o segun<strong>do</strong> grupocomo fazia frequentemente na época <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Novo. Estejogo duplo <strong>do</strong> presidente se fez sentir em três momentosrelevantes. Na assinatura <strong>do</strong> acor<strong>do</strong> militar <strong>Brasil</strong>-Esta<strong>do</strong>sUni<strong>do</strong>s de 1952, na questão da participação <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> naGuerra da Coreia 355 e na questão <strong>do</strong> Petróleo.A política de Getúlio para apaziguar os militares explicaos três ministros que ocuparam a pasta da Guerra(Estillac, Ciro Car<strong>do</strong>so e Zénobio da Costa) em seu governo– na verdade o nome era Ministério <strong>do</strong> Exército. Contrastavacom o único que a havia ocupa<strong>do</strong> no governoanterior (Canrobert) e o único que a ocuparia no governoJK (Lott).Estillac Leal se demitiu após assinatura <strong>do</strong> Acor<strong>do</strong>Militar com os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s consideran<strong>do</strong> que fora alija<strong>do</strong>das negociações, feitas pelo chanceler João Nevesda Fontoura. Fontoura <strong>do</strong> PSD era ex-ministro de Dutra eex-advoga<strong>do</strong> da Standard Oil com claras simpatias pelosEsta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, ainda que vacina<strong>do</strong> contra o perigo <strong>do</strong> alinhamento“automático” sem recompensas, que fracassarano governo Dutra. Para a Comissão militar mista <strong>Brasil</strong>-Esta<strong>do</strong>sUni<strong>do</strong>s Vargas indicou o brigadeiro Eduar<strong>do</strong> Gomes,seu rival na corrida presidencial. Sentin<strong>do</strong>-se desprestigia<strong>do</strong>,Estillac se exonera e é substituí<strong>do</strong> por Ciro <strong>do</strong> EspíritoSanto Car<strong>do</strong>so, filho <strong>do</strong> Espírito Santo que fora ministro <strong>do</strong>governo provisório e desencadeou a crise da revoluçãoconstitucionalista. Este por sua vez não resiste ao “Manifesto<strong>do</strong>s Coronéis” que redigi<strong>do</strong> por Golbery <strong>do</strong> Couto e Silvada ESG, se opõe ao reajuste de 100% <strong>do</strong> salário mínimo.355 Um exemplo da polarização no exército que vinham antes da posse deVargas. Em Agosto de 1950, um artigo da revista <strong>do</strong> clube militar repudian<strong>do</strong>o envio de tropas à Coreia, com base na tradição brasileira de nãointervenção nos assuntos <strong>do</strong>s outros povos, provocou um abaixo-assina<strong>do</strong>de mais de 600 oficiais, acusan<strong>do</strong> os editores de subversivos, simpatizantes<strong>do</strong> comunismo. O ministro ainda era Canrobert, e puniu a diretoria <strong>do</strong> clubemilitar transferin<strong>do</strong>-os para regiões distantes <strong>do</strong> Rio de Janeiro.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>426Seu último ministro foi o legalista Zenóbio da Costa quehavia si<strong>do</strong> um <strong>do</strong>s que garantira sua posse. Não seria, noentanto, capaz de evitar o desfecho que levaria ao seu suicídio.Segun<strong>do</strong> Vagner Alves Vargas procurou “embolar” aquestão coreana com a questão <strong>do</strong> Acor<strong>do</strong> Militar, que aindaque tenha alija<strong>do</strong> Estillac Leal, foi negociada pelo GeneralGóis Monteiro, que havia deposto o presidente em 1945e da<strong>do</strong>-lhe garantia à sua posse em 1950. Quan<strong>do</strong> decidiupela recusa no envio de tropas, o fez por perceber a própriadivisão interna em relação à questão na cúpula dasForças Armadas, o que apresentou como justificativa aosamericanos, fazen<strong>do</strong>-os ver que apoiava os demais pontosda estratégia de segurança <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s. Ademais,em relação ao acor<strong>do</strong> de 1952, que substituía o de 1942,concor<strong>do</strong>u com a maior parte <strong>do</strong>s pontos propostos, parainsatisfação <strong>do</strong> militares “nacionalistas” que procuraram,como Estillac Leal, se eximir de responsabilidade por ele.Em certo senti<strong>do</strong>, a posição de Vargas de ficar emcima <strong>do</strong> muro em relação a questões que envolviam osmilitares, ainda que compreensível politicamente, acaboulhe valen<strong>do</strong> acusações de ambos os la<strong>do</strong>s. A políticade cooptação não mais funcionava e a Banda de Músicada UDN usava o plenário da câmara para acusar, agredire achincalhar o presidente sempre que possível, fazen<strong>do</strong>--lhe oposição ferrenha e a<strong>do</strong>tan<strong>do</strong> táticas obstrucionistasa quaisquer projetos <strong>do</strong> governo. No caso <strong>do</strong> Petróleo, asituação seria ainda mais complexa, e o presidente precisousair de cima <strong>do</strong> muro.O governo era otimista no plano econômico. O planoLafer previa investimentos da ordem de US$ 1 bilhãoem cinco anos a serem investi<strong>do</strong>s na indústria de base, sobretu<strong>do</strong>,de transporte e energia. A Assessoria Econômicada Presidência, coordenada pelo técnico em planejamentoRômulo de Almeida foi o órgão específico cria<strong>do</strong> paratraçar metas e planos para alavancar o desenvolvimentoda indústria no <strong>Brasil</strong>. Para Maria Antonieta Leopoldi a intenção<strong>do</strong> presidente era despolitizar ao máximo a implementação<strong>do</strong>s temas econômicos e técnicos, separan<strong>do</strong> aquestão <strong>do</strong> desenvolvimento das calorosas e turbulentascrises políticas frequentes então. A burocracia tinha que sereficaz e só. Os recursos necessários ao financiamento seriamconsegui<strong>do</strong>s atrain<strong>do</strong> empresas estrangeiras e viabilizan<strong>do</strong>uma reforma tributária. Para tanto, a comissão Mista<strong>Brasil</strong>-Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s era parte essencial <strong>do</strong> projeto.Criada em dezembro de 1950, por insistência brasileirae, instituída no Rio de Janeiro em julho de 1951, acomissão evidenciava um momento no qual as relações<strong>Brasil</strong>-EUA já não estavam no mesmo nível <strong>do</strong> imediatopós-guerra, devi<strong>do</strong> às frustrações com os insucessos dapolítica de Dutra, capitaliza<strong>do</strong>s nas eleições de 1950 nodiscurso nacionalista de Getúlio e na recusa <strong>do</strong> envio detropas à Coreia que Vargas manteve em 1951. A comissãodeveria formular projetos para a apreciação das instituições


427A Experiência Democrática(1946-1964)de fomento, mas o nacionalismo aguerri<strong>do</strong> de setores dasociedade e das forças armadas amedrontava os investi<strong>do</strong>resem potencial. Ainda assim a comissão aprovou 41projetos na área de infraestrutura que seriam financia<strong>do</strong>ssobretu<strong>do</strong> pelo Banco Mundial (BIRD) e o Eximbank, mastambém por capital europeu em menor grau.A comissão foi criticada interna e externamente. Deinstrumento <strong>do</strong> imperialismo americano (por parte da esquerdanacionalista presente no congresso) a denúnciasde corrupção (envolven<strong>do</strong> aliança com empresários brasileiros,como a Light canadense) demonstravam a polarizaçãointerna no congresso nacional. Com a eleição deEisenhower, os republicanos extinguiram unilateralmentea comissão (junho de 1953). Apesar disso, o <strong>Brasil</strong> até o encerramento<strong>do</strong>s trabalhos da comissão recebeu créditossoma<strong>do</strong>s que ultrapassaram US$ 160 milhões <strong>do</strong> Eximbanke <strong>do</strong> Banco Mundial, menos da metade <strong>do</strong>s quase US$ 390milhões previstos.No médio prazo a Comissão representa os limites <strong>do</strong>modelo de desenvolvimento associa<strong>do</strong> que priorizava a relaçãobilateral com os EUA, fortalecen<strong>do</strong> as ideias cepalinasmais nacionalistas, que seriam defendidas pelo ISEB à partirde 1955. O Governo JK seria uma síntese <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is modelos.Atrairia financiamentos (mais priva<strong>do</strong>s que públicos) semdesmerecer a relação bilateral, ao mesmo tempo que usavao peso <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> para financiar setores sobretu<strong>do</strong> deinfraestrutura.No plano macroeconômico Getúlio herdara a situaçãocomplexa <strong>do</strong> governo Dutra. A inflação era crescentee as dificuldades de conseguir recursos no exterior,como vimos, notórias. Pioram em seu mandato. O superávitcomercial de 1950 se torna déficit de US$ 67 milhõesem 1951 e de US$ 286 milhões em 1952. Ainda assim ogoverno precisará estabelecer o controle <strong>do</strong> câmbio, implementa<strong>do</strong>pela Instrução de número 70 da SUMOC,que criava faixas de câmbio específicas para a compra dedólares. Esse protecionismo cambial tinha por objetivoevitar importações de supérfluos e estimular as exportaçõesbrasileiras.Para cada uma destas medidas econômicas umenorme debate politiza<strong>do</strong> entre “nacionalistas” e “liberais”vinha à tona. A politização de questões que Getúlio teriapreferi<strong>do</strong> dar solução “técnica” contribuía para o aumentoda temperatura política. A crise no balanço de pagamentos,por exemplo, era atribuída pelos nacionalistas aoslucros extraordinários que as empresas estrangeiras remetiampara o exterior sem qualquer controle. O relatório deuma comissão técnica chegou a valores que ultrapassavamUS$ 140 milhões em 1951. O governo então decretouque a SUMOC passava a ter poder para limitar estasremessas sempre que se exercesse pressão demasiadasobre o balanço de pagamentos. Apesar disso, o decreto sobreas remessas de lucros não foi aplica<strong>do</strong>, o que evidencia ainexistência de um projeto autárquico antiamericano nas


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>428formulações <strong>do</strong> governo Vargas. O presidente mostrava-seaberto à vinda de empresas estrangeiras que investissemnas áreas consideradas prioritárias para o desenvolvimento<strong>do</strong> país. Mônica Hirst chama sua política externa de perío<strong>do</strong>da “barganha nacionalista”.É exemplar desta cautela a escolha <strong>do</strong> “caminho <strong>do</strong>meio” no encaminhamento da questão <strong>do</strong> petróleo. Fortementepolitizada por conta da Campanha “O Petróleo énosso” ocorrida no governo anterior em oposição ao Estatuto<strong>do</strong> Petróleo que previa a regulamentação da nacionalização<strong>do</strong> subsolo sem impedimento de atuação dasempresas estrangeiras. O encaminhamento <strong>do</strong> projetopelo governo Dutra em 1947 motivou a organização <strong>do</strong>snacionalistas em torno da CEDP (Centro de Estu<strong>do</strong>s emDefesa <strong>do</strong> Petróleo) em 1948 que teve no general HortaBarbosa seu principal defensor. Contou com o apoio daUNE e de amplos setores da sociedade, tornan<strong>do</strong>-se entre1948-1949 um movimento amplamente popular, e suprapartidárioque organizou passeatas, encontros, palestras eaté uma eleição da rainha <strong>do</strong> petróleo, chamada curiosamentede Petronilha Pimentel, fotografada com as mãossujas de petróleo e de braços abertos na Bahia. O temadividiu o clube militar e tinha a maior parte da imprensacontrária ao monopólio. Frente a oposição organizada oestatuto não an<strong>do</strong>u sob o governo Dutra.O governo Vargas buscou dar um encaminhamentotécnico ao projeto, evitan<strong>do</strong> sua politização ainda maior.Rômulo de Almeida preparou o texto que teve dez versões,todas analisadas e comentadas por Vargas. Passouainda pelos militares (Horta Barbosa, Juarez Távora e EstillacLeal) e pela consultoria jurídica de San Tiago Dantas. Os industriaisda FIESP e <strong>do</strong> CNI eram contrários ao monopólio,ainda que apoiassem a Petrobras. O projeto <strong>do</strong> governoprevia uma empresa de economia mista, 51% de ações <strong>do</strong>governo, e a empresa seria financiada com o patrimônio<strong>do</strong> CNP que passaria a ela, e um imposto único sobre osderiva<strong>do</strong>s <strong>do</strong> petróleo <strong>do</strong> qual 75% iria para as ro<strong>do</strong>vias e25% para a futura Petrobras. Não se falou em monopóliojurídico, mas o presidente acreditava que este monopólioaconteceria na prática. Acreditava que teria o apoio daUDN na questão, mas se enganou.O projeto foi recebi<strong>do</strong> como entreguista e tanto aUDN quanto o PTB apresentaram substitutivos que o alteravamradicalmente e, cujo cerne da oposição era oestabelecimento <strong>do</strong> monopólio. Vargas teve que atuarativamente nas negociações com o Congresso Nacional– por quase <strong>do</strong>is anos (desde dezembro de 1951) – queafinal transformou-se na Lei n. 2004 de 3 de outubro de1953. Tinha o monopólio da exploração e prospecção <strong>do</strong>petróleo, obrigan<strong>do</strong>-se a garantir o fornecimento para asrefinarias privadas que tiveram sua produção “congelada”,novas refinarias apenas estatais. O CNP apenas supervisionariaa oferta de petróleo e a Petrobras passaria a cuidar daprospecção, extração, refino, transporte, e comercialização.


429A Experiência Democrática(1946-1964)Juracy Magalhães, político e militar udenista se tornou seuprimeiro presidente.Para além da criação da Petrobras o ano de 1953foi intenso. Inicia<strong>do</strong> sob o signo da greve <strong>do</strong>s 300 mil(março) e seguiu com uma ampla reforma ministerial(junho). A greve, iniciada nos setores têxteis e metalúrgicos,mas rapidamente se alastrou para os gráficos, ferroviáriosportuários motoristas, atingin<strong>do</strong> diversos setoresda economia. Foram inicialmente reprimi<strong>do</strong>s – muitoslíderes sindicais foram presos, após a “marcha da panelavazia” – mas conseguiram vitórias importantes. A saída deSegadas Viana <strong>do</strong> Ministério <strong>do</strong> Trabalho, o aumento de32% no salário e a libertação <strong>do</strong>s presos. Surgia um novogrupo na liderança <strong>do</strong> PTB, e João Goulart era o portavozdeste grupo. Pouco depois João Neves da Fontourase exonerava da chancelaria e saía acusan<strong>do</strong> Getúlio deestar conspiran<strong>do</strong> uma aliança com Perón contra os Esta<strong>do</strong>sUni<strong>do</strong>s, costurada por Batista Luzar<strong>do</strong>, embaixa<strong>do</strong>rem Buenos Aires. Fontoura estimulava o me<strong>do</strong> conserva<strong>do</strong>rde que se implantasse uma ditadura sindicalista no<strong>Brasil</strong>, nos moldes <strong>do</strong> peronismo. Para seu lugar, Getúlionomeou o jurista Vicente Rao. Entre as principais mudançasno seu ministério na reforma de junho está a nomeaçãode Tancre<strong>do</strong> Neves para o Ministério da Justiça, deOswal<strong>do</strong> Aranha para a pasta da Fazenda – nem de longeum antiamericanista – e José Américo de Almeida para aAgricultura.Em fevereiro de 1954 estudan<strong>do</strong> a necessidade derecomposição <strong>do</strong> salário mínimo que registrava perdade cerca de 50% de seu poder de compra desde que tinhasi<strong>do</strong> cria<strong>do</strong>, propôs Goulart seu reajuste em 100% para viabilizarsua recomposição. As reações no meio patronal e naImprensa foram ferozes. E a mais perigosa de todas veio <strong>do</strong>exército. Seu “manifesto <strong>do</strong>s coronéis” alertava para o riscode impossibilidade de recrutamento de solda<strong>do</strong>s caso osalário mínimo subisse tanto. Após o manifesto cai tambémo ministro Ciro Car<strong>do</strong>so, substituí<strong>do</strong> por Zenóbio daCosta (fevereiro de 1954). A pressão contra o aumento <strong>do</strong>salário mínimo fez com que Getúlio buscasse novamenteo “difícil caminho <strong>do</strong> meio”. Concedeu o aumento em 1º demaio 356 mas permitiu a saída de Goulart, que sob pressão,renunciou à pasta.A percepção de crise política generalizada era maximizadapela completa falta de apoio no governo <strong>do</strong>ssetores da imprensa brasileira. Os principais órgãos de comunicação<strong>do</strong> país se colocaram contra a candidatura eposteriormente contra o governo Vargas. É o caso <strong>do</strong> Correioda Manhã, Diário de Notícias, Diário Carioca, O Globo e oJornal, no Rio de Janeiro e <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> de S. Paulo e da Folhada Manhã no Esta<strong>do</strong> de São Paulo. Praticamente não de-356 Declarava o presidente ao povo que o saudava pelo aumento. “Hoje vocêsestão com o governo, amanhã vocês serão o governo”.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>430ram cobertura à campanha eleitoral de Getúlio, obrigan<strong>do</strong>-o a utilizar caminhões equipa<strong>do</strong>s com alto-falantes, percorrerto<strong>do</strong>s os Esta<strong>do</strong>s da Federação e imprimir panfletospara divulgar seu programa de governo. Tanto na campanhaquanto ao longo <strong>do</strong> seu governo, a grande imprensatentará, sem sucesso, demolir a imagem de Pai <strong>do</strong>s Pobresconstruída pelo DIP 357 .Vargas tentará quebrar este monopólio após suaeleição, “sugerin<strong>do</strong>” a Samuel Wainer que abra um jornal.A história da Última Hora, financia<strong>do</strong> por empresários liga<strong>do</strong>sa Getúlio e com um empréstimo <strong>do</strong> Banco <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>,Wainer em seis meses vendia mais que O Globo, que era ojornal de maior tiragem <strong>do</strong> país. Inovou com um cadernopublica<strong>do</strong> em cores, debatia o custo de vida e os problemas<strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>r. Notícias policiais vinham em primeirapágina – o que era então considera<strong>do</strong> mau gosto. Apoiavapessoalmente Getúlio, quebran<strong>do</strong> de mo<strong>do</strong> bem-sucedi<strong>do</strong>a corrente de imprensa oposicionista. Em 1952 criava aÚltima Hora Paulista.Gestou-se então uma aliança contra Getúlio e a ÚltimaHora na Imprensa conserva<strong>do</strong>ra em geral. Assis Chateaubriandcedeu espaço na TV Tupi e Roberto Marinho naRádio Globo para que Lacerda, <strong>do</strong>no <strong>do</strong> minúsculo jornal357 Ver ABREU, Alzira & LATTMAN-WELTMAN, Fernan<strong>do</strong>. “Fechan<strong>do</strong> o Cerco:A Imprensa e a crise de Agosto de 1954” in.: GOMES, Ângela de Castro (Org.)Vargas e a Crise <strong>do</strong>s Anos 50. Rio de Janeiro: Ed. Relume-Dumará, 1994.A Tribuna da Imprensa atacasse constantemente o governo,acusan<strong>do</strong>-o de corrupto e apelan<strong>do</strong> para que as Forças Armadaso retirassem <strong>do</strong> poder.Wainer cometeu um erro. Sugeriu que o Congressoconvocasse uma CPI para investigar os supostos “crimes”envolven<strong>do</strong> a Última Hora – concorrência desleal, favorecimentopolítico, dumping, falta de ética, deve<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> Banco<strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> –, mas a CPI acabou se tornan<strong>do</strong> palco para aBanda de Música da UDN que a transformou em um tribunalinquisitorial de tipo Macarthista, estimulada e divulgadapela grande imprensa. Wainer chegou a ficar dez diaspreso por “desacato ao congresso” por ter se recusa<strong>do</strong> a daros nomes de seus financia<strong>do</strong>res. O ponto alto da CPI foiquan<strong>do</strong> Lacerda, amigo de infância de Wainer, acusou-o denão ser brasileiro nato, e portanto, não poder ser proprietáriode meios de comunicação no <strong>Brasil</strong>. Wainer teria vin<strong>do</strong>ainda criança da Bessarábia, o que era verdade, mas Lacerdanão conseguiu provar, apesar de colher depoimentosde antigos professores da escola no Bom Retiro onde Wainerestu<strong>do</strong>u e, ainda, enviar o repórter Davi Nasser para aBessarábia em busca de informações. Enquanto foi vivo,Wainer negou não ser brasileiro, inclusive nas primeirasedições <strong>do</strong> seu livro biográfico, Minha Razão de Viver.O debate historiográfico sobre o significa<strong>do</strong> <strong>do</strong> segun<strong>do</strong>governo Vargas é intenso. Maria Antonieta Leopoldiem artigo intitula<strong>do</strong> “o difícil caminho <strong>do</strong> meio” publica<strong>do</strong>no livro sobre o segun<strong>do</strong> governo Vargas organiza<strong>do</strong> por


431A Experiência Democrática(1946-1964)Ângela de Castro Gomes tenta desmontar as teses de oposiçãoda burguesia industrial ao governo. Esta burguesiateria se alia<strong>do</strong> contra o “populismo” de Getúlio por contade medidas como o salário mínimo, por exemplo. Leopoldiestuda detalhadamente a relação entre os industriais esuas associações de classes (Federação das Indústrias <strong>do</strong>Esta<strong>do</strong> de São Paulo – FIESP, Federação das Indústrias <strong>do</strong>Rio de Janeiro – então FIRJ e Confederação Nacional da Indústria– CNI). Chega a conclusão que houve mais aliançaque oposição e as políticas cambial e tarifárias, pilares essenciaisda política industrial foram gestadas com a participaçãoativa <strong>do</strong>s industriais.Outra vertente historiográfica hoje superada é a divisãodidática <strong>do</strong> governo Vargas em <strong>do</strong>is momentos distintos(Helio Jaguaribe e Thomas Skidmore, por exemplo)que veriam uma primeira fase conciliatória que iria de 1951a mea<strong>do</strong>s de 1953, onde o governo tenta uma composição“pelo ministério da experiência” com os setores da burguesiae <strong>do</strong> capital estrangeiro e, um segun<strong>do</strong> momento marca<strong>do</strong>por uma virada nacionalista com o recrudescimento<strong>do</strong> movimento de massas e mobilização popular. A reformaministerial de 1953 e a instrução 70 da SUMOC seriamexemplos disso. Sintetiza assim Maria Celina D’Araújo:passa<strong>do</strong> o espírito de conciliação que presidira o primeiromomento a radicalização <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> restringiaas possibilidades de negociação por parte <strong>do</strong> governo.A crise de Agosto teria si<strong>do</strong> o resulta<strong>do</strong> desta trajetóriade composição de interesses, que malsucedida na conciliação,induzira a uma reformulação, por sua vez, fatal.(D’Araújo, 1982, p. 18)Esta autora, no entanto, discorda de tal periodização.Considera que o governo Vargas buscou a conciliação aolongo de to<strong>do</strong> governo e foi nacionalista ao longo de to<strong>do</strong>governo. Para D’Araújo o que levou à crise não foi uma pretensavirada nacionalista de enfrentamento, mas:O fracasso de uma política conciliatória e a impossibilidadede se estabelecerem alianças estáveis provém daforma parcial como se tentou articulá-las. Esse ponto écentral para a elucidação de um <strong>do</strong>s nossos principaisargumentos: a nosso ver o governo não é marca<strong>do</strong> porum corte temporal que o dividia em fases distintas,mas por uma clivagem interna refletin<strong>do</strong> as tendênciasopostas que convivem no seu interior durante to<strong>do</strong> operío<strong>do</strong> presidencial. (idem, p. 34).Esta autora considera que o motivo estrutural paraa crise de agosto de 1954 é o enfraquecimento partidárioque era estimula<strong>do</strong> inclusive pelo getulismo que secolocava acima <strong>do</strong>s parti<strong>do</strong>s e não buscou fortalecê-los.A política econômica nacionalista é despolitizada pelogoverno e não é implementada por meio de compromissospartidários, mas por meio de assessorias técnicascomo a assessoria econômica 358 . A solução de ruptura po-358 Para Leopoldi, agravou ainda o fato de que se desarticulava o sistemacorporativista de cooptação sindical <strong>do</strong>s empresários que se montara desde1930. Euval<strong>do</strong> Lodi, figura central da CNI e da Firj foi implica<strong>do</strong> no escândalo


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>432lítica foi inclusive delegada aos militares, já que os parti<strong>do</strong>sno congresso se recusaram a votar o impeachment <strong>do</strong>presidente.O estopim que levou ao colapso definitivo <strong>do</strong> governoe a solução trágica que teve como desfecho foi oatenta<strong>do</strong> da Tonelero. Carlos Lacerda figura principal daarticulação udenista na imprensa contrária a Getúlio haviarecebi<strong>do</strong> de um grupo de oficiais da aeronáutica a ofertade que estivessem sempre um deles com ele. O que previamaconteceu. Na madrugada de 5 de Agosto de 1954,quan<strong>do</strong> voltava de uma palestra no Colégio São José comseu filho Sérgio foi alveja<strong>do</strong> por <strong>do</strong>is pistoleiros que o acertaramlevemente no pé, mas atingiram o avia<strong>do</strong>r MajorRubens Vaz, que faleceu nos braços de Lacerda a caminho<strong>do</strong> hospital, um guarda, Sálvio Romeiro, que presenciou acena também foi feri<strong>do</strong> mas acertou um tiro no táxi ondefugiram os criminosos.No dia seguinte Lacerda publicava na Tribuna daImprensa:(...) perante Deus acuso um só homem como responsávelpor esse crime. É o protetor <strong>do</strong>s ladrões, cuja impunidadelhes dá audácia para atos como o desta noite. Estehomem chama-se Getúlio Vargas.da Última Hora e, novamente implica<strong>do</strong> no atenta<strong>do</strong> da Tonelero. Fugiu <strong>do</strong>Rio de Janeiro deixan<strong>do</strong> a CNI acéfala.Como a bala de calibre 45 que matou Vaz era deuso exclusivo das Forças Armadas, Lacerda conseguiu <strong>do</strong>Brigadeiro Eduar<strong>do</strong> Gomes autorização para instaurar umIPM na aeronáutica tiran<strong>do</strong> da polícia as investigações. Em24 horas já se conhecia o nome <strong>do</strong>s pistoleiros – ClimérioEurides de Almeida e João Alcino <strong>do</strong> Nascimento, presospela mobilização de forças de Terra e Ar. O motorista detáxi preso acusou Climério, que preso acusou o tenenteGregório Fortunato chefe da guarda presidencial da qualClimério era membro.Gregório Fortunato foi pressiona<strong>do</strong> de todas as formaspelos oficiais integrantes <strong>do</strong> IPM, muitos <strong>do</strong>s quais<strong>do</strong> grupo que servia Lacerda como guarda-costas 359 .Exigiam-lhe que desse nome a um mandante que fossesuficiente para derrubar o governo. Na imprensa escrita,rádio e TV, agitada por Lacerda exigia-se a renúncia deGetúlio que declarava que resistiria. Trinta brigadeirosda Aeronáutica divulgaram nota exigin<strong>do</strong> sua renúncia.“Apenas morto sairei <strong>do</strong> Palácio <strong>do</strong> Catete” foi a mancheteda Última Hora em 23/08.359 A cada dia a chamada “República <strong>do</strong> Galeão” convocava uma figura expoente<strong>do</strong> getulismo para depor: Euvau<strong>do</strong> Lodi, Danton Coelho, Alzira Vargas, BejoVargas, e o deputa<strong>do</strong> Lutero Vargas, filho <strong>do</strong> presidente. O IPM se encerrouem 19 de Setembro de 1954 quan<strong>do</strong> o Cel. João Adil que o comandavatransferiu as investigações ao ministro da Aeronáutica, depois que Gregórioacusou um general, de patente superior a sua. Gregório só foi condena<strong>do</strong>pela justiça em 1957.


433A Experiência Democrática(1946-1964)Foram dezenove dias de agonia lenta para o governoaté que na reunião ministerial de 23/08, informa<strong>do</strong> deque as Forças Armadas não teriam como evitar a GuerraCivil se o presidente não se retirasse, Getúlio, resistiu aosapelos de Oswal<strong>do</strong> Aranha para resistir e declarou que selicenciaria. “O problema é meu, eu resolvo”. O Gen. Zenóbioda Costa foi alcança<strong>do</strong> nas escadarias, onde se preparavapara dar ordens pela resistência. O presidente não deve ter<strong>do</strong>rmi<strong>do</strong> esta noite. Na manhã <strong>do</strong> dia 24, fatídico dia de SãoBartolomeu, depois de trocar poucas palavras com Alzira eseu irmão Bejo, que tinha acaba<strong>do</strong> de ser convoca<strong>do</strong> paradepor no IPM <strong>do</strong> Galeão. O presidente respondeu à filha:“se quiserem o depoimento <strong>do</strong> Bejo eles que venham buscá-loaqui. Hoje ele não pode sair”. Pouco depois, por volta das 8hda manhã, ouve-se um tiro, e Alzira, Tancre<strong>do</strong> e outros quechegam ao quarto <strong>do</strong> presidente ainda o encontram vivo,segun<strong>do</strong> os depoimentos sorrin<strong>do</strong> 360 .360 A Útima hora repetiu a manchete <strong>do</strong> dia anterior e publicou a cartatestamento que era lida no rádio ininterruptamente. Circularam quase 800mil exemplares nesse dia. Um sincero sentimento de <strong>do</strong>r tomou contade grande parte <strong>do</strong> povo, sobretu<strong>do</strong> os mais humildes, que haviam seacostuma<strong>do</strong> com o pai <strong>do</strong> povo, sua voz, sua figura, e seus pronunciamentospara os “trabalha<strong>do</strong>res <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>” nos últimos 24 anos. Era como se falecessealguém da família. Milhares de pessoas saíram às ruas para chorar porGetúlio. Depredaram O Globo, O diário de Notícias, a Tribuna da Imprensa e osjornais oposicionistas. Foi necessário abrir fogo contra a multidão para evitarque invadissem a embaixada <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s. Mobilizações semelhantesocorreram em São Paulo, Belo Horizonte e várias outras cidades <strong>do</strong> país.Centenas de milhares de pessoas seguiram pela praia o transporte que levouAo la<strong>do</strong> <strong>do</strong> corpo o <strong>do</strong>cumento mais famoso dahistória <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> desde a carta de Pero Vaz Caminha.Mais uma vez, as forças e os interesses contra o povocoordenaram-se e novamente se desencadeiam sobremim. Não me acusam, insultam; não me combatem,caluniam, e não me dão o direito de defesa. Precisamsufocar a minha voz e impedir a minha ação, para queeu não continue a defender, como sempre defendi, opovo e principalmente os humildes.Sigo o destino que me é imposto. Depois de decêniosde <strong>do</strong>mínio e espoliação <strong>do</strong>s grupos econômicos e financeirosinternacionais, fiz-me chefe de uma revoluçãoe venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaureio regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei aogoverno nos braços <strong>do</strong> povo. A campanha subterrânea<strong>do</strong>s grupos internacionais aliou-se à <strong>do</strong>s grupos nacionaisrevolta<strong>do</strong>s contra o regime de garantia <strong>do</strong> trabalho.A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso.Contra a justiça da revisão <strong>do</strong> salário mínimo se desencadearamos ódios. Quis criar liberdade nacional na potencializaçãodas nossas riquezas através da Petrobras e, malcomeça esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma.A Eletrobras foi obstaculada até o desespero. Não queremque o trabalha<strong>do</strong>r seja livre.Não querem que o povo seja independente. Assumi oGoverno dentro da espiral inflacionária que destruía osvalores <strong>do</strong> trabalho. Os lucros das empresas estrangeirasalcançavam até 500% ao ano. Nas declarações devalores <strong>do</strong> que importávamos existiam fraudes constatadasde mais de 100 milhões de dólares por ano. Veioa crise <strong>do</strong> café, valorizou-se o nosso principal produto.o caixão <strong>do</strong> Catete para o Santos Dumont, onde seguiria para São Borja. Foio “Carnaval da Tristeza”, cuja ressaca foi o governo Café Filho.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>434Tentamos defender seu preço e a resposta foi uma violentapressão sobre a nossa economia, a ponto de sermosobriga<strong>do</strong>s a ceder.Tenho luta<strong>do</strong> mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistin<strong>do</strong>a uma pressão constante, incessante, tu<strong>do</strong> suportan<strong>do</strong>em silêncio, tu<strong>do</strong> esquecen<strong>do</strong>, renuncian<strong>do</strong> a mimmesmo, para defender o povo, que agora se quedadesampara<strong>do</strong>. Nada mais vos posso dar, a não ser meusangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém,querem continuar sugan<strong>do</strong> o povo brasileiro, euofereço em holocausto a minha vida.Escolho este meio de estar sempre convosco. Quan<strong>do</strong>vos humilharem, sentireis minha alma sofren<strong>do</strong> ao vossola<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong> a fome bater à vossa porta, sentireis emvosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos.Quan<strong>do</strong> vos vilipendiarem, sentireis no pensamento aforça para a reação. Meu sacrifício vos manterá uni<strong>do</strong>se meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gotade meu sangue será uma chama imortal na vossa consciênciae manterá a vibração sagrada para a resistência.Ao ódio respon<strong>do</strong> com o perdão.E aos que pensam que me derrotaram respon<strong>do</strong> coma minha vitória. Era escravo <strong>do</strong> povo e hoje me libertopara a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravonão mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficarápara sempre em sua alma e meu sangue será o preço<strong>do</strong> seu resgate. Lutei contra a espoliação <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>.Lutei contra a espoliação <strong>do</strong> povo. Tenho luta<strong>do</strong> de peitoaberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abaterammeu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereçoa minha morte. Nada receio. Serenamente <strong>do</strong>u o primeiropasso no caminho da eternidade e saio da vidapara entrar na <strong>História</strong>.carga dramática o getulismo. Neutralizou com o gesto ecom a carta as vantagens políticas que seus adversárioshaviam acumula<strong>do</strong>. Era um ato político definitivo, para umindivíduo que havia si<strong>do</strong> político a vida inteira. Seus des<strong>do</strong>bramentosainda se fazem sentir.A carta causa arrepios ainda hoje.Se renunciasse, possivelmente teria morri<strong>do</strong> o políticoe enfraqueci<strong>do</strong> o lega<strong>do</strong>. Morto, renascia com toda uma


435A Experiência Democrática(1946-1964)7.2 Os anos JKO governo Café Filho. As eleições de 1955 e a Novembrada.Conciliação política nos Anos JK. O plano de Metas e odesenvolvimentismo. A Construção de Brasília.A Política Externa de Juscelino Kubitschek. A OPA e opositivismo às avessas. Eleições de 1960.Uma vez passada a comoção pelo suicídio <strong>do</strong> presidente,o “carnaval da tristeza”, a situação política volta à suaaparente normalidade e o governo Café Filho, transcorresem maiores convulsões até quase seu final. Chama<strong>do</strong> deInterregno Café Filho, os mais de quatorze meses que o antigotrabalhista potiguar ficou no poder representam umaguinada política relevante, possivelmente maior que ossete meses – metade – <strong>do</strong> governo Jânio Quadros, e queninguém chama de interregno.Sem o apoio <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is maiores parti<strong>do</strong>s, mesmo apóster prometi<strong>do</strong> manter os compromissos de Getúlio, declaraçãoainda naturalmente sob o contexto de comoçãopós-suicídio, Café Filho precisaria buscar na UDN o apoionecessário para governar. A presença de Eduar<strong>do</strong> Gomesno ministério da Aeronáutica é apenas o exemplo maisóbvio da incorporação udenista ao ministério. A presençade Eugenio Gudin 361 no ministério da Fazenda e a volta deRaul Fernandes ao ministério das Relações Exteriores faziaparecer que voltávamos ao governo Dutra tanto por seuliberalismo quanto pela política externa de alinhamentoaos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s.O teste eleitoral <strong>do</strong> PTB três meses após o suicídiofoi decepcionante 362 . Acreditava-se que nas eleições deoutubro de 1954 a vitória <strong>do</strong> trabalhismo seria estron<strong>do</strong>sa,mas o parti<strong>do</strong> ganhou apenas duas cadeiras em relaçãoa legislatura anterior. O único grande parti<strong>do</strong> quecresceu significativamente foi o PSP <strong>do</strong> presidente CaféFilho, que ampliou em 25% sua representação, passan<strong>do</strong>361 Contrário a quase to<strong>do</strong> tipo de intervenção estatal, Eugênio Gudin acreditavano crescimento oriun<strong>do</strong> <strong>do</strong> setor agrícola. Defendia o crédito agrícola paraviabilizar o aumento da produção rural que para Gudin era o diferencial<strong>do</strong> país. Acreditava que o investimento em infraestrutura (principalmenteinfraestrutura a transporte) poderia ser viabiliza<strong>do</strong> pelo capital estrangeiro,para ele principal agente <strong>do</strong> desenvolvimento. Acreditava que a reformaagrária era o caminho para o atraso. Não concordava com o planejamentoeconômico que identificava com o socialismo antidemocrático. Achava queo protecionismo era uma forma de transferência de renda <strong>do</strong> conjunto dasociedade para um empresaria<strong>do</strong> que se acostumaria a ser preguiçoso. Viana concorrência estrangeira um meio de baratear os produtos. Aceitavaincentivos apenas à indústria nascente e por tempo determina<strong>do</strong> paradesestimular a ineficiência. Considerava o Esta<strong>do</strong> um mau gestor e suaexcessiva intervenção aumentava os impostos e favorecia a inflação.362 Os exemplos mais notórios da decepção em capitalizar eleitoralmente osuicídio foram a derrota de João Goulart para o Sena<strong>do</strong> no Rio Grande <strong>do</strong> Sule a eleição de Lacerda para a câmara <strong>do</strong>s deputa<strong>do</strong>s. Em São Paulo Adhemarde Barros perdeu a eleição para o governo de São Paulo para o prefeito dacapital Jânio Quadros.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>436a deter quase 10% <strong>do</strong> total de deputa<strong>do</strong>s. PSD e UDN reduziramapenas ligeiramente sua participação.Ao longo <strong>do</strong> ano que se seguiu a<strong>do</strong>tou as diretrizesde Gudin que eram fortemente liberalizantes e indutorasda atração <strong>do</strong> capital estrangeiro. Sob sua batuta foi aprovadaa instrução 113 da SUMOC que isentava de “coberturacambial” uma série de procedimentos de compra deinsumos e máquinas importadas como se fossem investimentosdiretos. Tal medida seria essencial para o estabelecimentode muitas multinacionais no governo JK. A<strong>do</strong>touuma política de austeridade e de corte de gastos governamentais.Fez uma minirreforma fiscal e passou a recolherna fonte o Imposto de Renda.No plano externo retoma a aproximação com osEsta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s promoven<strong>do</strong> medidas como a revisão<strong>do</strong> acor<strong>do</strong> militar de 1952, aceitan<strong>do</strong>-o como meromeio de fornecimento de armas e material bélico. Nissoera favorecida a Força Aérea, notoriamente a arma maisamericanizada e politicamente mais vinculada à UDN.Abria mão <strong>do</strong>s anseios varguistas de transferência detecnologia que levaram o presidente anterior inclusive acriar o CNPq para financiar a ida de estudantes brasileirospara o Exterior. O Acor<strong>do</strong> de Cooperação atômica assina<strong>do</strong>com o governo norte-americano em 1955, peloqual o governo brasileiro compraria <strong>do</strong>s EUA reatores deurânio enriqueci<strong>do</strong> para três laboratórios nacionais, referendavaa lógica <strong>do</strong> projeto de Eisenhower de Átomospara a Paz, o <strong>Brasil</strong> como mero importa<strong>do</strong>r de tecnologiaamericana.Entretanto, o momento mais relevante <strong>do</strong> governoCafé Filho foi seu fim melancólico no que ficou conheci<strong>do</strong>como a novembrada. O episódio é complexo maspode ser resumi<strong>do</strong>. Em 1955 o alto coman<strong>do</strong> militar tentouimpor uma candidatura única de consenso entre oPSD e a UDN, os <strong>do</strong>is principais parti<strong>do</strong>s. Por não pertencera nenhum <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is caberia ao presidente Café Filhocosturar o acor<strong>do</strong>. O PTB, naturalmente, vetou o arranjomas isso favoreceu o acor<strong>do</strong> interno no PTB para apoiara candidatura pessedista <strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r de Minas Gerais,Juscelino Kubitschek, apoia<strong>do</strong> pela vanguarda <strong>do</strong> PSD,chamada de “Ala Moça”, as lideranças mais jovens <strong>do</strong> parti<strong>do</strong>,que apoiavam a exótica agenda desenvolvimentistaindustrializante de Juscelino que não tinha tanto eco novelho parti<strong>do</strong> <strong>do</strong>s interventores que se beneficiava eleitoralmente<strong>do</strong> atraso e <strong>do</strong> voto rural. Foram dissidentes<strong>do</strong> PSD, o pernambucano Etelvino Lins, o gaúcho ParachiBarcellos e o catarinense Nereu Ramos, ex-vice-presidentede Dutra.Com o acor<strong>do</strong> que indicou João Goulart para a vice-presidênciana chapa de Juscelino, sua candidatura ganhoufôlego e decolou, apesar da má vontade de grandeparte <strong>do</strong>s pessedistas, antipáticos em relação ao ex-ministro<strong>do</strong> Trabalho. A reunião <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is parti<strong>do</strong>s funda<strong>do</strong>spor Vargas em 1945 permitia a JK se apresentar como seu


437A Experiência Democrática(1946-1964)sucessor e continua<strong>do</strong>r, coisa que seria impossível sem oapoio <strong>do</strong> PTB.Sepultada a ideia de candidato único, a UDN lançoua chapa Juarez Távora/Milton Campos mas os votos da direitaacabaram dividi<strong>do</strong>s com a candidatura extemporâneade Plínio Salga<strong>do</strong>, ex-líder integralista que ainda contavacom muitos adeptos (teria 10% <strong>do</strong>s votos). Completava oquadro eleitoral Adhemar de Barros <strong>do</strong> PSP de Café Filhoque era bastante forte em São Paulo. Juscelino terminoueleito com 36% <strong>do</strong>s votos, o menor contingente absolutodesde a redemocratização em 1945 – Dutra teve 53%, Vargas,48% – o que levou ao questionamento udenista sobrea legitimidade de sua posse 363 , por não possuir a maioria<strong>do</strong>s votos váli<strong>do</strong>s reeditan<strong>do</strong> a tese que tentou impedir aposse de Vargas em 1950. Carlos Lacerda naturalmente erao principal agita<strong>do</strong>r golpista na imprensa 364 .A única chance, no entanto, de que tal desrespeitoà constituição frutificasse era o apoio das forças armadas,sempre cortejadas pelos udenistas, para viabilizar o que opovo teimava em vetar por meio das urnas. Da<strong>do</strong> comocerto o apoio da aeronáutica, começam a aparecer no seio<strong>do</strong> exército vozes entre os oficiais questionan<strong>do</strong> a legitimidade<strong>do</strong> presidente eleito e colocan<strong>do</strong> em dúvida suaposse. Tal posição não era en<strong>do</strong>ssada pelo Ministro daGuerra, Henrique Teixeira Lott 365 , e o enfrentamento sedeu quan<strong>do</strong> <strong>do</strong> caso Mamede em 1º de novembro de1955.O Cel. Jurandir Mamede cedi<strong>do</strong> à Escola Superior deGuerra, e dizen<strong>do</strong>-se representante <strong>do</strong> clube militar pedea palavra para homenagear o General Canrobert Pereiravela<strong>do</strong> no cemitério São Francisco Xavier. Seu discurso dehomenagem é antes um manifesto político contra o resulta<strong>do</strong>das eleições 366 . Como a ESG era uma instituição <strong>do</strong>Esta<strong>do</strong>-Maior das Forças Armadas, vincula<strong>do</strong> à presidênciada República, Lott não pode simplesmente punir Mamede,sem comunicar o fato ao presidente o que não foi possívelno dia 2, por ser feria<strong>do</strong> nas repartições públicas, nem nodia 3, porque o presidente havia sofri<strong>do</strong> um infarto.Carlos Luz, o presidente da Câmara toma posseno dia 8, e desautoriza Lott no caso Mamede, forçan<strong>do</strong>sua exoneração. Certo de que se tratava da iminência de363 Adhemar e Plínio Salga<strong>do</strong> reconhecem a vitória de Juscelino, apenas a UDNreclama que o STF declare a necessidade de um segun<strong>do</strong> turno.364 Lacerda já havia se vali<strong>do</strong> de uma carta falsa, a carta Brandi, para acusar ocandidato a vice de conspirar com peronistas argentinos para dar um golpesindicalistas no <strong>Brasil</strong>. A carta foi publicada em vários jornais e lida na TV porLacerda, favorecen<strong>do</strong> eleitoralmente à UDN.365 O general Lott era considera<strong>do</strong> profissional e apolítico e visto comocontraponto à posição <strong>do</strong> general nacionalista Estillac Leal, razão pela qualfoi nomea<strong>do</strong> por Café Filho.366 Em certo trecho de seu discurso profere: “Não será por acaso indiscutívelmentira democrática um regime presidencial que, dada a enorme soma depoder que concentra em mãos <strong>do</strong> Executivo, possa vir a consagrar, para ainvestidura <strong>do</strong> mais alto mandatário da nação, uma vitória da minoria?”.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>438um golpe udenista 367 Lott depõe Carlos Luz pela forçadas armas em 11 de novembro – data em que deveriatransmitir o cargo de ministro <strong>do</strong> Exército para o generalFiúza de Castro. O presidente deposto se refugia, comCarlos Lacerda, no cruza<strong>do</strong>r Tamandaré da Marinha eparte rumo a São Paulo, onde Jânio Quadros lhe garantiaapoio, mas não consegue desembarcar em Santos.Toma posse, com o apoio da Câmara o presidente <strong>do</strong>Sena<strong>do</strong>, Nereu Ramos.Dez dias depois, João Café Filho, aparentemente isola<strong>do</strong>no hospital e sem maiores conhecimentos <strong>do</strong> sucedi<strong>do</strong>,tem alta e retorna <strong>do</strong> hospital ao seu apartamentosob os aplausos de uma multidão que o aguardava. Nomomento em que entrou no edifício as tropas de Lottcercaram o prédio e dispersaram os populares com bombasde efeito moral. Permaneceria o presidente em “prisão<strong>do</strong>miciliar” até a posse de Juscelino Kubitschek em 1º defevereiro de 1956, perío<strong>do</strong> sob o qual o país esteve em Esta<strong>do</strong>de Sítio. Impetrou habeas corpus no supremo que sófoi julga<strong>do</strong> depois da posse de JK, quan<strong>do</strong> não havia maisnecessidade de manter sua prisão.367 Este entendimento não é desprovi<strong>do</strong> de juízo. Vários ministros udenistasse declararam contrário a posse de JK. Pra<strong>do</strong> Kelly das Relações Exteriores,Eduar<strong>do</strong> Gomes da Aeronáutica e Edmun<strong>do</strong> Jordão <strong>do</strong> Vale da Marinhaposicionaram-se publicamente a favor da realização de um segun<strong>do</strong> turno.Não fosse a intervenção de Lott, JK seria o novo Júlio Prestes da República.Golpe ou contragolpe? Parece que neste momento,como em vários outros anteriores havia clara divisão no seiodas forças armadas. A união militar em torno da descontinuidadeda legalidade só se verificaria mesmo em marçode 1964. A posse de JK era constitucional e seu governo,apesar da constante sombra golpista, mormente oriundada aeronáutica, foi de conciliação. Manteve durante quaseto<strong>do</strong> seu mandato Henrique Batista Duffles Teixeira Lottcomo ministro da Guerra, e, seu prestígio e compromissocom a legalidade foram certamente elementos decisivospara que terminasse o mandato, único civil a consegui-loentre 1926 e 1990. Lott era o “fia<strong>do</strong>r” <strong>do</strong> regime junto aosmilitares.Isso não significou a ausência de problemas. Imediatamenteapós a posse, Lott precisou debelar a rebelião deJacareacanga no Pará, onde oficiais avia<strong>do</strong>res haviam subleva<strong>do</strong>a base aérea. Contra a vontade <strong>do</strong> Ministro, Juscelinoanistia os amotina<strong>do</strong>s envolvi<strong>do</strong>s em atos revolucionáriosde 10 de novembro à 1º de março. Esta e outras decisõesconciliatórias marcaram sua gestão e dão a medida de seusucesso como político e negocia<strong>do</strong>r. Com a figura de Lotta garantir militarmente a legalidade, Juscelino procurou seaproximar das demais armas. Pleitos salariais e de modernizaçãoforam atendi<strong>do</strong>s. Pode ser entendida como umajogada política a compra <strong>do</strong> primeiro porta-aviões brasileiro– o que gerou conflito entre a Marinha e a Aeronáutica– adquiri<strong>do</strong> <strong>do</strong>s ingleses, reforma<strong>do</strong>, e sintomaticamente


439A Experiência Democrática(1946-1964)batiza<strong>do</strong> de Minas Gerais. Eram frequentes as nomeaçõesde militares para cargos prestigiosos no executivo, como apresidência da Petrobras, por exemplo.Apesar da manutenção da oposição ferrenha <strong>do</strong>sudenistas, agora ten<strong>do</strong> Lacerda como deputa<strong>do</strong> no CongressoNacional, Juscelino procura entendimento com setoresda UDN que, por exemplo, apoiaram a transferênciada capital, e vários outros projetos <strong>do</strong> governo. Ao final <strong>do</strong>governo o próprio presidente tentaria inclusive viabilizar acandidatura única de Juraci Magalhães (UDN/BA) em possívelaliança entre pessedistas e udenistas. Ao longo de seugoverno movimentos sociais no campo – as ligas camponesas– e nas cidades, a UNE, os operários e sindicatos eaté o Parti<strong>do</strong> Comunista ilegal tiveram ampla liberdade deorganização e associação, inclusive promoven<strong>do</strong> grevesgerais, sem que houvesse repressão.Soube ainda se valer da coligação com o PTB costuradaà duras penas, a despeito de máquina política deseu próprio parti<strong>do</strong>. O PTB precisou de um presidentepessedista para ampliar o pequeno espaço que possuíano governo Vargas, passan<strong>do</strong> a controlar não apenas oMinistério <strong>do</strong> Trabalho, mas também o da agricultura,conheci<strong>do</strong>s “cabides de emprego”. Esses cargos fortalecerama estrutura partidária <strong>do</strong> trabalhismo nos Esta<strong>do</strong>se ampliaram sua base de voto para além <strong>do</strong>s operáriosurbanos. Supervisiona<strong>do</strong>s de perto pelo vice-presidenteJoão Goulart, favoreceram seu expressivo crescimentonas eleições legislativas de 1958 e 1962, fazen<strong>do</strong> <strong>do</strong> PTBo parti<strong>do</strong> que mais cresceu no perío<strong>do</strong> democrático(1945-1964). A urbanização e a industrialização promovidaspelo governo Juscelino, contraditoriamente servirampara estimular o êxo<strong>do</strong> rural que tirava contingentes inteiros<strong>do</strong> controle eleitoral <strong>do</strong>s chefes pessedistas, aindaentão o maior parti<strong>do</strong> político <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. Por outro la<strong>do</strong>pode contar com a figura de Goulart para mediar as crisesjunto aos trabalha<strong>do</strong>res, e servir de interlocutor preferencial<strong>do</strong> governo com as centrais sindicais, o que foi muitoútil quan<strong>do</strong> em meio a crises grevistas.Inicialmente apoia<strong>do</strong> pela “Ala moça” <strong>do</strong> PSD quefoi essencial para viabilizar a aliança com o PTB, Juscelinoaban<strong>do</strong>naria esse grupo ao longo de seu mandato por váriasrazões. Suas expectativas de vir a concorrer de novo àpresidência em 1965 só seriam possíveis se pudesse contarcom a tradicional e hegemônica máquina <strong>do</strong> parti<strong>do</strong>.A ala moça não chegou a eleger nem 10% <strong>do</strong>s deputa<strong>do</strong>s<strong>do</strong> PSD, e suas bandeiras vanguardistas eram bloqueadaspelos setores mais conserva<strong>do</strong>res <strong>do</strong> parti<strong>do</strong>, como porexemplo, a Reforma Agrária tema que não interessava aopresidente debater. Assim como a Reforma Agrária, váriaspolíticas de “adiamento estratégico” de temas complexos 368368 Por exemplo, a defesa <strong>do</strong> PTB de extensão <strong>do</strong>s direitos trabalhistas parao campo que surgem no final <strong>do</strong> governo JK e incomodam os setoresreacionários <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> <strong>do</strong> presidente.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>440eram deixadas para o futuro para não comprometer o frágilquadro político de polarização. Explodiriam ao longo <strong>do</strong>quinquênio seguinte.Por último é importante destacar que o plano demetas e a construção de Brasília favoreceram a capitalização<strong>do</strong> que Maria Victoria Benevides chama de “política daesperança”. Juscelino soube traduzir politicamente as expectativasdesenvolvimentistas de otimismo e euforia devários setores da sociedade para seu governo. Os gastosgovernamentais com Brasília e com as construções ro<strong>do</strong>viáriase, medidas de infraestrutura em geral lhe garantiramo apoio <strong>do</strong>s políticos profissionais fisiológicos cujoúnico compromisso é com a obtenção de cargos e vantagensque possam viabilizar sua reeleição. Nisso o governoJK foi pródigo, o que é bem mais complexo em governosque a<strong>do</strong>tam postura mais orto<strong>do</strong>xa de corte de gastos eajuste fiscal.A ideia de planejamento da economia não era novano <strong>Brasil</strong> e já havia si<strong>do</strong> suscitada no Esta<strong>do</strong> Novo dentro<strong>do</strong> DASP. Ganhou força com a vinda da missão Cooke(1943) e sobretu<strong>do</strong> da Missão Abbink (1948). A ideia demacroeconomia planejada nasce nas conversas tributáriasdesta última missão e na sua institucionalização que foi aComissão Mista <strong>Brasil</strong>-Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s que funcionou noSegun<strong>do</strong> Governo Vargas até 1953. Interrompida pelo governoEisenhower, as discussões sobre planejamento seguiramfirmes no BNDE, e no plano internacional, na CEPAL.O elo entre as duas instituições era o economista CelsoFurta<strong>do</strong>, que não por acaso seria o primeiro Ministro <strong>do</strong>Planejamento <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. A principal herança <strong>do</strong>s debates noseio destas instituições é o conceito bottlenecks, ou “pontosde estrangulamento”. Era necessário atacar com ênfase estespontos para viabilizar o crescimento acelera<strong>do</strong> <strong>do</strong> país.A proposta de planificação tinha seus detratorescomo Eugênio Gudin e Octávio Gouveia de Bulhões liberaisque viam a intervencionismo como funesto. Ficaramnotórios os debates de Gudin e de Roberto Simonsen nosConselhos Econômicos de que fizeram parte ao final <strong>do</strong>Esta<strong>do</strong> Novo 369 . Simonsen junto com Euval<strong>do</strong> Lodi representavama FIESP e a CNI, sem as quais não havia comoviabilizar o plano de metas. O empresaria<strong>do</strong> era um alia<strong>do</strong>essencial para os cinquenta anos que Juscelino queriaacelerar.Além das inversões da burguesia nacional, a atração<strong>do</strong> capital estrangeiro era o terceiro pé <strong>do</strong> “tripé desenvolvimentista”<strong>do</strong> plano de metas. Capital estatal, capitalestrangeiro e capital priva<strong>do</strong> nacional para viabilizar a continuidadeda substituição de importações.O Esta<strong>do</strong> teria papel central como indutor, regula<strong>do</strong>re coordena<strong>do</strong>r <strong>do</strong> desenvolvimento planeja<strong>do</strong>, mas também369 Simonsen atuara no Conselho Nacional de Política Industrial e Gudin naComissão de Planejamento Econômico.


441A Experiência Democrática(1946-1964)como investi<strong>do</strong>r nas áreas de infraestrutura e bens de capital.Para suplantar a burocracia ministerial, notoriamentelenta, JK cria imediatamente o Conselho <strong>do</strong> Desenvolvimento,órgão interministerial que tinha a palavra final nasdecisões sobre o plano de metas, que acompanhava e reviaas metas a cada reunião. O secretário-geral <strong>do</strong> Conselho <strong>do</strong>Desenvolvimento, subordina<strong>do</strong> diretamente à Presidênciada República era o presidente <strong>do</strong> BNDE, Lucas Lopes.Foram cria<strong>do</strong>s ainda, no âmbito <strong>do</strong> Conselho, gruposexecutivos para metas específicas que envolviam ossetores implica<strong>do</strong>s, empresários, militares, técnicos. O casomais famoso foi o GEIA (Grupo Executivo da Indústria Automobilística),mas também houve um para a construçãoNaval e para o Ensino e Aperfeiçoamento, entre outros.Eram essenciais para bypassar a burocracia tradicional e articularmetas que dependiam de outras metas, em setoresdiferentes da estrutura produtiva nacional (por exemplo,tratores para viabilizar as metas agrícolas).Dada a enorme quantidade de investimentos necessáriospara viabilizar suas metas, de acesso a fontes deinvestimento e financiamento externas, viabilizadas, sobretu<strong>do</strong>,pela instrução 113 da SUMOC, editada no governoCafé Filho que favorecia a entrada de capital estrangeiro.O Esta<strong>do</strong> sozinho não daria conta de todas as inversões necessárias,em primeiro lugar por conta <strong>do</strong> baixo índice depoupança interna nacional, e, em segun<strong>do</strong> lugar, por conta<strong>do</strong>s crescentes déficits nas contas externas que obrigava ogoverno à recorrer ou ao endividamento, de curto e médioprazo, ou ao financiamento inflacionário por meio da emissão.Esse quadro restritivo será a moldura básica na qual seinsere a ação internacional <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> no perío<strong>do</strong>, que veremosem seguida.Segue adiante um quadro-síntese <strong>do</strong>s investimentose resulta<strong>do</strong>s de cada um <strong>do</strong>s cinco setores e trinta metas<strong>do</strong> plano.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>442(Continua)Meta Síntese e Investimentos Resulta<strong>do</strong>1. Energia Elétrica2. Energia Nuclear3. Carvão MineralENERGIA (43% <strong>do</strong> total de investimentos)Potência instalada de 3 para 5 milhões de kw.Obras para elevar para 8 m. Em 1965.Instalação de central pioneira de 10.000 kw.Investimento em metalurgia atômica.Produção de carvão de 2 para 3 milhões detoneladas por ano. Ampliação da utilizaçãotermelétricas <strong>do</strong>s restos e tipos inferiores.Produzia-se ao fim <strong>do</strong> governo 4,770milhões de kW. (95%)Foi construí<strong>do</strong> o reator da USPProduzia-se me 1960 2,199 ton/ano. (73%)4. Produção de Petróleo De 6,8 mil barris para 100 mil barris/dia Alcançou 75,5 mil/dia. (75,5%)5. Refino de Petróleo 130 mil barris para 330 mil/dia. Chegou à 218 mil/dia. (67%)6.7.8.9.Reaparelhamento deFerroviasConstrução deFerroviasPavimentação dero<strong>do</strong>vias.Construção deRo<strong>do</strong>vias10. Portos e dragagemTRANSPORTES (30% <strong>do</strong> total de investimentos)Investimento de 239 milhões de dólares e 39,8bilhões de cruzeiros2100 km de novas ferrovias.280 variantes.320 km alargamento de bitola.Cerca de 76% estima<strong>do</strong>.Apenas 826 km de ferrovias foramconstruídas. (40%)Pavimentar 5 mil km de ro<strong>do</strong>vias. Pavimentaram-se 6202 km. (124%)12 mil km até 1960. 14.970 km. (125%)Ampliação, reaparelhamento e aquisição dedragas. Investimento US$ 32 milhões e Cr$ 5,9bilhões.Estima-se que se alcançou 56 % da meta.Aumento de 330 mil toneladas para petroleiros e 300 mil para petroleiros (91%)11. Marinha Mercante300 mil para os demais navios.255 mil para os demais navios (85%)12. Transporte Aéreo Compra de 42 aviões. 13 unidades (31%)ALIMENTAÇÃO (3% <strong>do</strong> total de investimentos)Retrocesso: produziu-se menos (370 mil13. Produção Agrícola Dobrar a produção de trigo.ton.) que no início <strong>do</strong> perío<strong>do</strong>.


443A Experiência Democrática(1946-1964)Meta Síntese e Investimentos Resulta<strong>do</strong>(Continuação)14. Armazenagem Aumentar para 742 mil toneladas. 570 mil ton. (77%)15. Frigoríficos Aumentar para 45 mil toneladas. 8 mil ton. (18%)16. Mata<strong>do</strong>uros17.MecanizaçãoAgrícola18. Fertilizantes19. Siderurgia20. AlumínioExportação deMinérios370IndústriaAutomobilísticaConstrução de mata<strong>do</strong>uros para o abate de 3,5mil bovinos/dia e 1,3 mil suínos/dia.2,1 mil bovinos (60%)700 suínos (54%)Subir 45 mil para 72 mil o número de tratores. Estima-se 77 mil em 1960 (107%)Aumento da produção de 18 mil para 120 miltoneladas.INDÚSTRIAS DE BASE (20% <strong>do</strong> total de investimentos)Dobrar a produção até 1960 e + que triplicar até1965 (3,5 milhões de ton.)Passar a produção de 2,6 mil para 18,8 miltoneladas até 1960 e 42 mil toneladas até 1965.21. Metais não ferrosos Expansão da produção e refino.290 mil toneladas. (242%)2,3 mil toneladas e 1960 (114%)16,5 ton. (92%)Cobre (203%), Chumbo (148%), Estanho(93,7%) e Níquel (144%)22. Cimento Dobrar a produção (5 milhões de ton) 4,37 milhões de toneladas (87,5%)23. Álcalis24. Celulose e Papel25. Borracha.26.27.Subir a produção de 20 mil para 152 miltoneladas/ano.Aumentar a produção de 90 mil para 260 mil ton. decelulose e de papel jornal de 40 mil para 130 mil ton.Triplicar a produção e passar a produzir borrachasintética.Triplicar a exportação até 1960 e quadruplicá-lanovamente até 1965 (30 milhões de toneladas/ano).Implantar indústria capaz de produzir 170 milveículos em 1960.100%Celulose: 200 mil ton. (77%)Papel Jornal 65,7 mil ton. (50,5%)Fabricação de borracha sintética, mas aprodução de borracha subiu para apenas22,5 mil ton. (2,3%)5 milhões (62,5%)200 mil unidades de capacidade totalinstalada (117%) 370370 A meta de nacionalização <strong>do</strong>s automóveis, no entanto, não foi alcançada.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>444(Conclusão)Meta Síntese e Investimentos Resulta<strong>do</strong>28. Construção Naval Implantá-la!29.Indústria Mecânicae de material elétricopesa<strong>do</strong>.30. CapacitaçãoImplantá-la!EDUCAÇÃO (3,5% <strong>do</strong> total de investimentos)Orientação da educação para odesenvolvimento forman<strong>do</strong> mais técnicos.Condições de produzir 158 mil ton/anoem 1960.Aumento de 100% para máquinas.Aumento de 200% para mat. elétrico.Cria<strong>do</strong> em 1959 o Grupo Executivo deEnsino e Aperfeiçoamento Técnico.Aumento progressivo das verbas para oMECHá um debate sobre a herança maldita advinda <strong>do</strong> Plano de Metas e <strong>do</strong> governo JKem geral. Inflação altíssima para financiar internamente seu sucesso, endividamento crescente,fracasso <strong>do</strong>s planos de estabilização que José Maria Alkmin de mo<strong>do</strong> ad hoc, e, LucasLopes como ministro tentaram implementar e que levaram inclusive à ruptura com o FMI, omodelo ro<strong>do</strong>viarismo com a negligência às hidrovias e ferrovias, o aumento <strong>do</strong> Custo <strong>Brasil</strong> ea dependência externa <strong>do</strong> petróleo, o aban<strong>do</strong>no da questão social, principalmente <strong>do</strong> Nordeste,visto como “região-problema”, apesar da criação da Sudene por ideia de Celso Furta<strong>do</strong>,o enorme êxo<strong>do</strong> rural com o consequente inchaço urbano e os problemas daí advin<strong>do</strong>s.Tu<strong>do</strong> isso é fato, mas a avaliação negativa em geral deve ser relativizada. As circunstânciaseram muito restritivas no plano internacional, sobretu<strong>do</strong> para a obtenção de créditos, comopoderá se perceber no estu<strong>do</strong> da OPA. Ou se industrializava com estas características ou nãose industrializava. O crescimento <strong>do</strong> parque industrial é indiscutível e nas décadas seguintesnos tornaríamos uma das maiores economias – industriais – <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Com EugênioGudin, o <strong>Brasil</strong> seria uma grande granja cafeicultora.Pode-se afirmar que o Plano de Metas foi um caso de sucesso. Nas avaliações acima,percebe-se um determina<strong>do</strong> enfoque em desenvolvimento na indústria pesada e de


445A Experiência Democrática(1946-1964)infraestrutura, fican<strong>do</strong> em segun<strong>do</strong> plano a alimentaçãoe a Educação. Em geral, apesar <strong>do</strong> endividamento e daalta inflacionária também havia a percepção generalizadade sucesso das metas por conta <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is elementos maisemblemáticos <strong>do</strong> plano de metas cujo sucesso era indiscutível.A indústria automobilística e, claro, a meta síntese,a construção de Brasília. Caríssima (mais de 2% <strong>do</strong> PIB), anova capital era carregada de simbolismos, como veremosna sessão cultural.A construção de Brasília não ganhou grande adesãonos anos iniciais <strong>do</strong> mandato de JK. Parecia mais uma promessavazia de campanha, mas não era. O presidente fezaprovar a criação da Novacap – empresa de capital estatalincumbida de construir a nova capital – pelo Congressoainda em 1956, concluin<strong>do</strong> um velho sonho de políticosde muitas épocas distintas 371 . Numa promessa de campanhano município de Jataí em Goiás, Juscelino foi cobra<strong>do</strong><strong>do</strong> cumprimento pleno da Constituição que ele juravaque cumpriria. Aproveita a deixa e transforma Brasília emmeta síntese <strong>do</strong> seu plano de metas. Aparece na historiografiarecorrentemente o tema da segurança interna.371 O Marques de Pombal, Hipólito José da Costa, José Bonifácio sugeriram e asconstituintes desde 1891 previam a mudança da capital para o interior. EmMinas Gerais ou nas Margens <strong>do</strong> Rio São Francisco, o lugar variou conformeo personagem por motivos de integração regional ou segurança interna,Juscelino é o primeiro a dar o passo concreto de cumprir o que previa aconstituição de 1946.As rebeliões da Primeira República e os levantes na EraVargas, mostravam o potencial explosivo da mobilizaçãomilitar e/ou popular que tinha o Rio de Janeiro. Transferir acapital para o Planalto Central daria alguma tranquilidadea governantes que eram obriga<strong>do</strong>s a decidir os rumos <strong>do</strong>país sob a pressão, às vezes ameaça<strong>do</strong>ra, das ruas cariocas,como tinha fica<strong>do</strong> óbvio no 24 de agosto de 1954.A integração regional favorecida por uma capital nocentro geográfico <strong>do</strong> país, e a necessidade de promover odesenvolvimento <strong>do</strong> centro-oeste, tal qual a Sudene tentavaviabilizar no Nordeste também foram consideraçõesrelevantes. Não deixava de ser a continuação da “Marchapara o Oeste” <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Novo, agora, em novas bases.A prática diplomática de Juscelino segue, como napolítica interna, a tática <strong>do</strong> adiamento estratégico. Temasrelevantes de política internacional eram congela<strong>do</strong>s porrazões de política interna. A conciliação no plano internacional,no entanto, impediu que se aproveitassem oportunidadesrelevantes como por exemplo o apoio efetivo efirme ao processo de descolonização em seus momentosiniciais. Prevaleceria o peso <strong>do</strong> lobby português no <strong>Brasil</strong>,de significativo peso econômico e eleitoral, que Juscelinonão podia e não queria alijar. Gerson Moura caracteriza apolítica exterior de Juscelino como sen<strong>do</strong> de “avanços e recuos”.Ela inaugura temas muito relevantes que só seriamplenamente desenvolvi<strong>do</strong>s durante a política externa independente.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>446O contexto internacional era de mudança no panoramada Guerra Fria clássica <strong>do</strong> final <strong>do</strong>s nos 40 e início <strong>do</strong>sanos 50. A coexistência pacífica de Eisenhower escondiana verdade fissuras no interior <strong>do</strong>s blocos ideológicos quedemonstravam que suas coesões não eram monolíticas epermitiam supor que se abria maior espaço para a açãoautônoma de países periféricos como o <strong>Brasil</strong>. A Crise deSuez em 1956, na qual as superpotências juntas desautorizama ação colonialista franco-britânica contra o Egito e asexperiências autonomistas polonesa (Gomulka) e húngara(Imre Nagy) são exemplares tanto da menor capacidade decontrolar seus alia<strong>do</strong>s por parte de Washington e Moscouquanto da disposição das superpotências de usar a força senecessário para manter sua influência internacional.A questão mais relevante no plano internacionalera naturalmente a descolonização e suas consequências.Ganhou dinamismo justamente nos Anos JK. Durante seumandato 24 países africanos conquistam sua independência,sen<strong>do</strong> 17 apenas no ano de 1960, chama<strong>do</strong> de“O ano da África”. O processo de descolonização foi tambémessencial para mudar a configuração de poder na AssembleiaGeral das Nações Unidas, onde desaparecem asmaiorias automáticas <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s e surgem novostemas, de interesse <strong>do</strong> terceiro-mundismo para debate.As conferências de Bandung (1955) e de Acra (1858) reafirmavama necessidade de descolonização, repudiavam oracismo e introduziam o tema <strong>do</strong> desenvolvimento comopreocupação fundamental daquilo que viria a ser, a partirde 1961 em Belgra<strong>do</strong> o movimento <strong>do</strong>s não alinha<strong>do</strong>s,muito mal recebi<strong>do</strong> pelas potências, cada qual acusan<strong>do</strong>o não alinhamento de ser linha adicional de atuação <strong>do</strong>outro la<strong>do</strong>. O <strong>Brasil</strong> foi enviou um observa<strong>do</strong>r tanto paraBandung quanto para Belgra<strong>do</strong>, mas jamais aderiu ao movimentoformalmente.No plano regional o pós-guerra evidenciava o fim daPolítica da Boa Vizinhança e as Conferências pan-americanasque se seguiram, com destaque para a <strong>do</strong> Rio de Janeiroem 1947 e a de Bogotá em 1948 com a criação <strong>do</strong> TIARe da OEA, demonstram as novas diretrizes de Washingtonpara seu hemisfério. Repúdio ao planejamento e à intervenção<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, críticas ao protecionismo, aberturade merca<strong>do</strong>s, defesa contra o comunismo eram a tônicada ação multilateral americana, estrangulan<strong>do</strong> as possibilidadesde inserção autônoma <strong>do</strong>s países da região eperpetuan<strong>do</strong> o modelo assimétrico de relacionamento.Se Churchill fosse brasileiro, a cortina de ferro teria si<strong>do</strong>aqui, e o teci<strong>do</strong> forja<strong>do</strong> com ferro <strong>do</strong> Kansas, onde Eisenhowertinha si<strong>do</strong> cria<strong>do</strong>.Gerson Moura analisan<strong>do</strong> a troca de cartas entre Eisenhowere Kubitschek evidencia o diálogo de sur<strong>do</strong>s quese estabelecia, na qual o governo brasileiro enfatizava suasprioridades desenvolvimentista enquanto o mandatárioamericano estava preocupa<strong>do</strong> com os temas de segurança.Para Ike o “comunismo” era a causa de to<strong>do</strong>s os males,


447A Experiência Democrática(1946-1964)para Juscelino, a ameaça comunista era a consequência dafalta de desenvolvimento e investimentos no país.Apesar disso, a cordialidade entre os <strong>do</strong>is é notória eé uma evidência da manutenção da vinculação prioritária<strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> aos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s que caracterizava na políticaexterna desde o advento da República. Entre os exemplospráticos desse alinhamento estão a cessão em 1956 da Ilhade Fernan<strong>do</strong> de Noronha para o estabelecimento de umabase americana de rastreamento de foguetes e a concordância<strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> em integrar a Força de Paz da ONU paraSuez (1956-1957), a primeira que o <strong>Brasil</strong> participou apósrecusar enviar tropas à Coreia no início <strong>do</strong>s anos de 1950.Como síntese temos então no quadro sistêmicomais amplo a presença de fissuras estruturais nos blocosde poder que abriam oportunidades para a inserção maisautônoma <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> enquanto que no plano regional umasucessão firmes amarras, bilaterais e multilaterais para aexpressão desta autonomia. Um exemplo da tentativa emconciliar estes <strong>do</strong>is quadros contraditórios foi a primeiraexpressão da multilateralização <strong>do</strong> problema <strong>do</strong> desenvolvimentocria<strong>do</strong> pela diplomacia de JK em 1958, a OperaçãoPan-Americana – OPA.Tratava-se de uma ambiciosa proposta de encaminhamentopara o desenvolvimento e modernização daAmérica Latina que contaria com o financiamento <strong>do</strong>sEsta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s com empréstimos a juros baixos. Umnovo Plano Marshall para os primos pobres <strong>do</strong> hemisférioesqueci<strong>do</strong>s no pós-guerra, quan<strong>do</strong> os olhos <strong>do</strong> Tio Samse preocupavam apenas com os alvos de Moscou. Atéentão a posição brasileira nos fóruns multilaterais econômicosera de moderação entre o crescente radicalismolatino-americano e a posição <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s de priorizarEuropa e Ásia. O <strong>Brasil</strong> criticava, por exemplo, o BIRD,defenden<strong>do</strong> que deveria mudar a ênfase da “Reconstrução”para o desenvolvimento, mas não chegava a proporum banco regional de financiamento, como faria após aOPA, quan<strong>do</strong> o pássaro perdeu o “R” e se tornou interamericano.Provavelmente surgida direto <strong>do</strong> palácio, a OPAfoi proposta por Augusto Frederico Schmidt, consultorinternacional da presidência, sem maiores consultas aoItamaraty, e mesmo aos demais países beneficiários 372 , aOPA terá dificuldades logísticas e estruturais para se viabilizar,mas era um avanço importante em relação a lógicaanterior que presidirá a experiência da Comissão Mista<strong>Brasil</strong>-Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s (1951-1953). Não se tratava mais deuma questão bilateral, ou da implementação das sugestõesverticais <strong>do</strong> governo <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s – Missão372 Mário Gibson Barboza conta que o único chefe de Esta<strong>do</strong> consulta<strong>do</strong>previamente foi o presidente argentino Arturo Frondizi que aderiuentusiasticamente quan<strong>do</strong> a proposta foi apresentada. Seu lançamento emdiscurso presidencial causou surpresa em boa parte <strong>do</strong>s funcionários <strong>do</strong>Itamaraty.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>448Abbink, 1949 – mas antes uma discussão no âmbito regional,que mesmo pouco articulada, incluía multilateralmenteto<strong>do</strong> o continente.O brilhantismo da OPA está principalmente no argumento,mas também no timing. Foi lançada no mesmoano a desastrada visita <strong>do</strong> vice-presidente Richard Nixonao Peru e à Venezuela 373 que evidenciara a fragilidade daimagem americana na região. A visita tivera impacto “pedagógico”para o establishment e para a opinião pública norte-americana.Não se podia relegar por uma década umcontinente sem que isso arranhasse seriamente a posiçãoestadunidense. É exatamente nesse contexto que o presidenteque lançara o lema “ordem e desenvolvimento” noplano interno sugere que o mesmo se aplique no planohemisférico. Juscelino securitizava a perspectiva desenvolvimentista,defenden<strong>do</strong> que a malograda visita de Nixone a penetração de ideologias “alienígenas” – evita calculadamentea palavra socialismo – era resulta<strong>do</strong> da falta deinvestimentos, de empregos e de indústrias na AméricaLatina. Neste positivismo às avessas, JK invertia com a OPAo lema da bandeira brasileira. Era o progresso o promotorda ordem social e não o contrário. A OPA incorporava o discursoamericano de ordem e segurança para se fazer ouvir373 Nixon foi hostiliza<strong>do</strong> em ambos os países e Eisenhower cogitou mobilizartropas para resgatá-lo em Caracas, o que provocou protestos generaliza<strong>do</strong>sna região.pelos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s naquilo que interessava ao <strong>Brasil</strong> eseus vizinhos: o desenvolvimento.A recepção <strong>do</strong> discurso da OPA variou conforme odestinatário. Os latino-americanos gostaram <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong>desenvolvimentista, o governo <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s aplaudirama preocupação com a segurança, mas nenhum <strong>do</strong>s<strong>do</strong>is gostou da forma. Para os demais países da região, eraincômo<strong>do</strong> que o presidente <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> se autopromovesse àcondição de tribuno da plebe. Não era bem vista a liderançabrasileira como porta-voz da pobreza alheia. Suscitavaperguntas como: “Se vierem, como estes recursos serãodistribuí<strong>do</strong>s?”, “Qual o papel <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> na distribuição destesrecursos?” entre outras.Para o governo Eisenhower era “esmola com chapéualheio”, perigosa pela adesão que suscitava e pelo potencialaglutina<strong>do</strong>r que tinha na região. Temia o governo americanoque a OPA fosse debatida na ONU com a participaçãoda CEPAL nas discussões. Forçou o encaminhamento daspropostas para o CIES (Conselho Interamericano Econômicoe Social) que fora incorpora<strong>do</strong> à estrutura da OEA,onde a hegemonia americana era indiscutível 374 . Com isso374 Foram três reuniões <strong>do</strong> “Comitê <strong>do</strong>s 21” em Washington (1958), Buenos Aires(1959) e Bogotá (1960), que estabeleceram as diretrizes para a criação <strong>do</strong> BID,banco interamericano de Desenvolvimento com o sinal verde <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>sUni<strong>do</strong>s. A reunião de Bogotá é considerada a mais relevante, naturalmente,devi<strong>do</strong> ao contexto cubano que favorecia o pleito da OPA.


449A Experiência Democrática(1946-1964)esvaziava as propostas econômicas e dava ênfase nas propostasde segurança.Tentativas posteriores, já sob a chancelaria de HoracioLafer, de trazer de novo a OPA para a agenda esbarraramno problema cubano que agora tomava conta daspreocupações de Eisenhower e <strong>do</strong>s candidatos às eleiçõesamericanas de 1960. Uma vez venci<strong>do</strong> John Kennedy, aproposta da OPA se tornaria o marco básico da “Aliançapara o Progresso” (1961). Outros lega<strong>do</strong>s da OPA foram acriação <strong>do</strong> BID e da ALADI, demonstran<strong>do</strong> o pioneirismobrasileiro em articular internacionalmente a região parafins desenvolvimentistas. Se não foi um êxito no curto prazo,a OPA certamente deixou um aprendiza<strong>do</strong> diplomático,e um lega<strong>do</strong> multilateral de médio e longo prazos.Outro tema explosivo era o possível reatamento derelações diplomáticas com a URSS, rompi<strong>do</strong>s por Dutra háquase dez anos. Não fazia senti<strong>do</strong> manter essa posição – o<strong>Brasil</strong> era o único país importante <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> que não tinharelações com Moscou – e o insuspeito Oswal<strong>do</strong> Aranhajá há longo tempo defendia essa posição. Estava ao la<strong>do</strong>dele os ministros das áreas econômicas como José MariaAlkmin da Fazenda que por conta disso se indispôs com oMarechal Lott e acabou sain<strong>do</strong> <strong>do</strong> governo. Os comunistastambém bebem café, tomam suco de frutas e consomembens brasileiros. As razões políticas eram ideologizadas enão pragmáticas, mas galvanizavam a opinião pública conserva<strong>do</strong>ra,principalmente Carlos Lacerda. Até o cardealarcebispo <strong>do</strong> Rio de Janeiro escreveu coluna nos jornaisdenuncian<strong>do</strong> o movimento, que considerava anticristãoe imoral, de reatamento de relações diplomáticas com aURSS.Afinal, o <strong>Brasil</strong> decidiu reatar apenas relações comerciaiscom a URSS e abriu um escritório comercial emMoscou, sem o reatamento das relações diplomáticas.A solução de meio-termo mostra o espírito concilia<strong>do</strong>r dapolítica externa, fortemente limitada em suas aspiraçõespelo contexto ideologiza<strong>do</strong> da Guerra Fria e seu contágiono panorama político brasileiro. Sempre ousa<strong>do</strong> na políticainterna, o governo Juscelino Kubitschek era cautelosoe tími<strong>do</strong> no plano internacional, temen<strong>do</strong> sensibilizar ossetores mais conserva<strong>do</strong>res <strong>do</strong> país, como os militares, fortementecontrários ao reatamento.A atuação <strong>do</strong> governo brasileiro no tema da descolonizaçãoé o cerne <strong>do</strong> que Gerson Moura chama de “avançose recuos”. Declara “difícil de entender” como um temade natureza econômica relevante como aderir a causa dadescolonização africana pode ter si<strong>do</strong> encara<strong>do</strong> com tantatibieza por um presidente desenvolvimentista que queriapromover o comércio exterior <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> 375 . Aponta algumas375 No GATT, o <strong>Brasil</strong> defendia compensações para os países produtores de bensprimários que enfrentavam concorrência desigual com os países africanosbeneficia<strong>do</strong>s pelo Merca<strong>do</strong> Comum Europeu na exportação de seusprodutos, muitos isentos de tarifas.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>450causas para minimizar a incompreensão. O racismo é umadelas. A sociedade brasileira <strong>do</strong> século XX, depois de umséculo de antilusitanismo preferia enfatizar sua herançaportuguesa que sua herança africana. Mas isso não justificaa posição brasileira, afinal enfatizar a herança portuguesanão significaria en<strong>do</strong>ssar seu colonialismo como muitobem argumentavam figuras expoentes da ação externabrasileira da época, como Oswal<strong>do</strong> Aranha, Álvaro Lins,Bezerra de Menezes, Maria Yedda Linhares, entre outros 376 .Estas vozes acabavam neutralizadas pelo “lusotropicalismo”de Gilberto Freyre, imensamente simpático ao “mun<strong>do</strong> queo português criou”, titulo que deu a um de seus livros 377 .Juscelino lusotropicalistamente en<strong>do</strong>ssava o salazarismo,desautorizava seu embaixa<strong>do</strong>r em Lisboa 378 , e pagava em1960 a visita que o presidente português fizera ao <strong>Brasil</strong> noinício de seu governo.Não que Juscelino declarasse apoio à colonizaçãodiretamente. No plano geral e teórico, o governo brasileirocriticava o apartheid, defendia à descolonização,asseverava a igualdade jurídica <strong>do</strong>s povos. No plano376 Propostas incorporadas no Africanismo de Afonso Arinos na montagem daPolítica Externa Independente.377 Chegou a visitar as colônias portuguesas na África a convite de Salazar eescreveu o interessante, porém controverso Aventura e Rotina.378 O embaixa<strong>do</strong>r Álvaro Lins, amigo de JK, romperia publicamente com ele pornão ter lhe da<strong>do</strong> apoio no caso de asilo político da<strong>do</strong> ao general HumbertoDelga<strong>do</strong>, opositor de Salazar.prático, no entanto, contraditoriamente, aceitava a tesede províncias ultramarinas portuguesas, votava contra aArgélia na ONU e seguia vincula<strong>do</strong> ao trata<strong>do</strong> de Concertaçãoe Amizade que tinha assina<strong>do</strong> com Portugalem 1953, crian<strong>do</strong> uma situação de subordinação insólita.Os portugueses reclamavam até de gestos menores,como o apoio brasileiro à criação na ONU de uma comissãoeconômica para a África, inspirada na CEPAL. Em referênciaà óbvia assimetria de poder, dizia-se à época queera “um camun<strong>do</strong>ngo balançan<strong>do</strong> o elefante pelo rabo”.Salazar era um camun<strong>do</strong>ngo esperto e o <strong>Brasil</strong> o elefantetonto. O rabo era Gilberto Freyre.Também tinha um peso, na esquizofrenia africana dapolítica de JK, o chama<strong>do</strong> lobby português. Forte e poderosoem muitas cidades como o Rio de Janeiro e Salva<strong>do</strong>r,tratava-se de um arregimenta<strong>do</strong>r organiza<strong>do</strong> que poderiatrazer dissabores eleitorais ao presidente e seu parti<strong>do</strong>.Ao reafirmar os laços fraternos que uniam <strong>Brasil</strong> e Portugal,JK falava mais para dentro <strong>do</strong> que para fora. A explicaçãode Gerson Moura é mais ideológico-institucional. JK eraum prisioneiro <strong>do</strong>s “velhos tempos” e embora buscasse seadaptar aos “novos”, no campo da política externa isso nãose verificou. Tratou-se, inegavelmente, de uma oportunidadeperdida, tanto mais que seria resgatada eleitoralmentepor Jânio Quadros e pela UDN na campanha presidencialde 1960, demonstran<strong>do</strong> significativa base de apoio internopara o africanismo.


451A Experiência Democrática(1946-1964)Por último convém lembrar a ruptura com o FMIem junho de 1959. Exigia <strong>do</strong> governo brasileiro medidasanti-inflacionárias para viabilizar os empréstimos de queo governo necessitava. A cobertura jornalística americanaquan<strong>do</strong> da ida de Lucas Lopes e <strong>do</strong>s negocia<strong>do</strong>res brasileirosaos EUA era humilhante. Tratava o <strong>Brasil</strong> como paísfali<strong>do</strong>. A intransigência <strong>do</strong> FMI já fizera outras vítimas naAmérica Latina, sobretu<strong>do</strong> na Argentina que para conseguirum empréstimo de US$ 300 milhões teve que acatarmedidas monetaristas draconianas. O presidente decidepela ruptura e apresenta o problema como sen<strong>do</strong> ou issoou o plano de metas. Decide que seguiria o projeto desenvolvimentistaa qualquer custo, mesmo que sem recursos<strong>do</strong> Fun<strong>do</strong>. A medida foi recebida entusiasticamente pelossetores da esquerda brasileira, e o presidente celebra<strong>do</strong> noPalácio <strong>do</strong> Catete por uma multidão após o anúncio.Entretanto, no ano seguinte, quan<strong>do</strong> da visita deEisenhower ao <strong>Brasil</strong>, JK negocia seu retorno ao fun<strong>do</strong> emcondições um pouco mais favoráveis, o que nos leva a considerarse a ruptura não foi apenas jogo de cena para melhoraras condições negociais e/ou galvanizar o apoio daopinião pública nacionalista. O que se tem por certo é quenão interessava a Juscelino se afastar da posição americanistatradicional da Política Externa <strong>Brasil</strong>eira.Na avaliação de Moura, apesar da consciência de umanova fase na estrutura <strong>do</strong> sistema internacional o governobrasileiro sob a presidência de Juscelino não se dispôs atirar todas as consequências desta consciência. Prevaleceua manutenção <strong>do</strong> cosmopolitismo defini<strong>do</strong> pela aliançacom os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s. Ao invés de superar as contradiçõesvigentes em nossa política internacional, o governo preferiaconciliá-las ou adiá-las. Tal postura ficou clara na propostada OPA, quan<strong>do</strong> se buscou a conciliação de um discurso desegurança e soberania, com o discurso <strong>do</strong> desenvolvimento.Ainda que a concepção de segurança proposta fossenova para os formula<strong>do</strong>res americanos, era uma tentativade compatibilização <strong>do</strong>s anseios moderniza<strong>do</strong>res com manutençãoda aliança tradicional, necessária igualmente paraviabilizar os recursos essenciais ao desenvolvimento.Para Helio Jaguaribe isso se devia à falta de articulaçãode uma opinião pública bem informada sobre osproblemas internacionais, crian<strong>do</strong> um déficit de representatividade.Nossa Política Externa não representava vastossegmentos da sociedade brasileira. Esse déficit democráticocomeçaria a ser sana<strong>do</strong> com a Política Externa Independente,talvez a primeira vez em que temas de políticaexterna foram amplamente discuti<strong>do</strong>s na campanha eleitoral,angarian<strong>do</strong> apoios significativos entre os intelectuaisafricanistas para Jânio Quadros que incorporara o discursoafricanista em seus pronunciamentos. Contribuiu igualmentepara o fracasso da cambaleante campanha de Lott,que declarava abertamente seu anticomunismo mesmoquan<strong>do</strong> sua plateia preferia ouvir que reataria relações diplomáticascom a URSS.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>452Percebe-se que vários <strong>do</strong>s temas inaugura<strong>do</strong>s e“congela<strong>do</strong>s” na política internacional <strong>do</strong> governo JK apareceriammais bem acaba<strong>do</strong>s e defini<strong>do</strong>s na PEI, marco relevantede autonomia e globalismo na história da PolíticaExterna <strong>Brasil</strong>eira.Mereceria no mínimo uma tese uma explicação queparece ser óbvia para o advento da PEI. Surpreendentementejamais apareceu na historiografia contemporâneadas Relações Exteriores. Trata-se da causalidade partidária.Recorrente na ciência política norte-americana, são raríssimosno <strong>Brasil</strong> os estu<strong>do</strong>s que procuram vincular os parti<strong>do</strong>spolíticos à ação internacional <strong>do</strong> país. Convém lembrarque fosse nos governos pessedistas de Dutra e JK, fosseno governo petebista de Vargas, o Ministério das RelaçõesExteriores jamais saiu <strong>do</strong> controle <strong>do</strong> PSD. Ainda que suscetívela influências externas como as de Oswal<strong>do</strong> Aranhaou de Afonso Arinos, o Itamaraty só troca efetivamente decoman<strong>do</strong> com a posse de Jânio e a nomeação de AfonsoArinos chanceler. Afonso Arinos e Santiago Dantas eramrepresentantes de parti<strong>do</strong>s urbanos, e, ainda que de espectrosideológicos bem distintos, congregavam posiçõesmuito diferentes daquelas defendidas pelo PSD, e que seassemelhavam no plano internacional 379 . Se a mudança379 Tanto é que se intercambiaram no coman<strong>do</strong> <strong>do</strong> MRE e da principalembaixada brasileira, a de Washington, sem maiores alterações nas diretrizesda PEB. Arinos chanceler indica Dantas para Washington, mas a medida nãopartidária no coman<strong>do</strong> <strong>do</strong> Itamaraty não é a variável determinantepara explicar a Política Externa Independente, certamente,seu impacto merece ao menos maiores estu<strong>do</strong>s.A grande questão que surge no quadro eleitoral de1960, no qual Juscelino tenta viabilizar a candidatura única“de união nacional” de seu alia<strong>do</strong> baiano udenista, JuraciMagalhães, é por que a aliança eleitoral mais bem-sucedida<strong>do</strong> país, PTB-PSD, apesar de ter elegi<strong>do</strong> mais de 50%<strong>do</strong> Congresso Nacional, foi fragorosamente derrotada naeleição majoritária para presidente. Impossível não compararo apelo, o carisma e a força eleitoral <strong>do</strong>s candidatosescolhi<strong>do</strong>s.Ao longo <strong>do</strong> politizadíssimo governo JK, o MarechalLott vai ganhan<strong>do</strong> ares de nacionalista. Apesar de ter reprimi<strong>do</strong>no início <strong>do</strong> governo manifestações da UNE, sedeclara<strong>do</strong> a favor <strong>do</strong> capital estrangeiro e anticomunista,contrário ao restabelecimento de relações econômicascom a União Soviética, algumas posições de Lott acabaramtransforman<strong>do</strong>-o em figura querida <strong>do</strong> PTB. Defendiao voto <strong>do</strong>s analfabetos – proposta <strong>do</strong> PTB que não passouna Câmara – e declarara “A Petrobras é intocável” durante avisita <strong>do</strong> Secretário de Esta<strong>do</strong> norte-americano John FosterDulles que havia sugeri<strong>do</strong> mudança no estatuto da empreefetivapor conta da renúncia de Jânio. Uma vez chanceler, Dantas, indicaArinos para Washington num diálogo raro e respeitoso entre o PTB e a UDNmais tradicional.


453A Experiência Democrática(1946-1964)sa. Sucessivas vezes colocou tropas militares contra a marchada produção na qual cafeicultores paulistas, mineirose paranaenses exigiam apoio <strong>do</strong> governo para a produçãode café, nos moldes <strong>do</strong> que ocorria na Primeira República.Em face destas posições acabou se tornan<strong>do</strong> o “Dutra” daesquerda brasileira – candidato militar de consenso – e viabilizan<strong>do</strong>a manutenção da aliança PTB-PSD nas eleiçõesde 1960.Lott, no entanto, se mostraria um candidato inviável.Intransigente. Não aceitava conselhos e considerava queser inflexível era uma qualidade. Para um candidato a presidenteisso era fatal. Alijou os <strong>do</strong>a<strong>do</strong>res de campanha daindústria automobilística ao criticá-los pelos altos preçosde seus veículos. Defendia abertamente a não retomadade relações com a URSS e a manutenção da ilegalidade <strong>do</strong>PCB, cujos eleitores naturalmente apoiavam o candidato<strong>do</strong> PTB. Preferia perder a eleição a iludir o eleitor. Dizia oque pensava, o eleitora<strong>do</strong> que decidisse com base em suasinceridade. Naturalmente perdeu. Eleições não premiamcandidatos majoritários apolíticos. Contara ainda com escassoapoio <strong>do</strong> presidente JK nas eleições. “Para Juscelinonão existia 1960, apenas 1965” 380 .O candidato apoia<strong>do</strong> pela UDN, Jânio Quadros(PTN/SP), ao contrário, vinha de sucessivas vitórias eleitorais.Foi eleito verea<strong>do</strong>r em 1947, deputa<strong>do</strong> estadualem 1950, prefeito em 1953, governa<strong>do</strong>r em 1954, únicomandato que concluiu e deputa<strong>do</strong> federal pelo Paranáem 1958. Tinha imposto derrota fragorosa a Adhemar deBarros para o governo <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> de São Paulo em 1954.Era político ao extremo. Representava o eleitora<strong>do</strong> conserva<strong>do</strong>re moralista forte em São Paulo e isso lhe valeuo apoio da UDN, e entusiástica adesão de Lacerda. Fenômenoeleitoral em discursos empola<strong>do</strong>s, que lhe davamum ar intelectual, ao mesmo tempo com a apresentaçãode homem simples. O discurso da moralidade tomavacomo símbolo a vassoura para “varrer a bandalheira”, cujojingle de campanha empolgou to<strong>do</strong> o país. Foi eleito comextraordinária votação, após renunciar duas vezes à candidatura381 , e depois renunciar às renúncias, num prenúnciofunesto <strong>do</strong> que estava por vir.380 A frase é de Ernani <strong>do</strong> Amaral Peixoto, ex-interventor <strong>do</strong> Rio de Janeiroque Juscelino afastara deliberadamente as esferas de poder para evitar suacandidatura a presidente, fortalecen<strong>do</strong> a tese de “união nacional” com a UDNde Juraci Magalhães.381 O motivo, trivial, é que Jânio se recusava a subir em palanque com <strong>do</strong>isvices. O PDC indicara Fernan<strong>do</strong> Ferrari, a UDN, Leandro Maciel governa<strong>do</strong>r<strong>do</strong> Sergipe. Ferrari se abstém de fazer campanha com Jânio e Maciel acabaceden<strong>do</strong> o lugar para Milton Campos que perderia a eleição de vice paraJoão Goulart.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>4547.3 A polarização política no início <strong>do</strong>s anos sessentaO governo Jânio Quadros. A Política Externa Independente.O africanismo nas relações Internacionais <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>durante a PEI. Renúncia, parlamentarismoe o plebiscito. O governoJoão Goulart e o plano Trienal.Os motivos para o golpe militar de 1964.O breve governo Jânio Quadros foi – como tambémseria o de Fernan<strong>do</strong> Collor, três décadas depois – marca<strong>do</strong>pelas excentricidades <strong>do</strong> mandatário. Dava frequentes entrevistasfalan<strong>do</strong> mal de políticos. Tinha mania de bilhetes,e queria deixar cada ato <strong>do</strong>cumenta<strong>do</strong>. Agiu na Presidênciada República como se fosse um verea<strong>do</strong>r ou prefeitode cidade pequena. Proibiu a briga de galo. Proibiu que seexibissem “maiôs de duas peças” em concursos de missestelevisiona<strong>do</strong>s em defesa da família brasileira e outras medidasmoralistas e conserva<strong>do</strong>ras 382 .No plano econômico buscou implementar umprograma de combate à inflação e redução <strong>do</strong> déficit públicoherda<strong>do</strong> <strong>do</strong> governo JK. Reduziu a concessão de créditos,iniciou uma reforma cambial e congelou o valor <strong>do</strong>382 Proibiu o uso <strong>do</strong> lança-perfume, limitou as corridas de cavalo aos finais desemana, por exemplo.salário mínimo. Era o tipo de medida que agradava a UDNque o apoiara. Medidas orto<strong>do</strong>xas que evidenciavam a“responsabilidade” <strong>do</strong> governo, contrastan<strong>do</strong> com a “irresponsabilidade”<strong>do</strong> governo JK. Garantiu com isso um novoempréstimo <strong>do</strong> FMI, mas seu breve governo não foi capazde reduzir a inflação ao mesmo tempo que sua políticaexterna afastaria os americanistas da UDN, ainda que estatenha si<strong>do</strong> implementada pelo ministro, udenista históricoe funda<strong>do</strong>r <strong>do</strong> parti<strong>do</strong>, Afonso Arinos de Melo Franco.A Política Externa Independente inaugura uma novafase na trajetória da ação externa brasileira. Não é uma ruptura,já que como vimos, parte significativa de seus temase des<strong>do</strong>bramento já haviam se insinua<strong>do</strong>, ainda que comtratamento ambíguo, na agenda externa <strong>do</strong> governo JK,mas é, certamente, um marco. Pode se considerar que seencerrava o longo ciclo americanista da história da república,que se consolidara a partir <strong>do</strong> Barão <strong>do</strong> Rio Branco.Inaugurava-se, com exceção <strong>do</strong> governo Castelo Branco,um novo ciclo de maior autonomia externa e de globalismo.Os interesses internacionais brasileiros se alargavampara além <strong>do</strong> hemisfério. Para viabilizar a plena consecução<strong>do</strong> projeto desenvolvimentista nacional urgia aban<strong>do</strong>narvinculações ideológicas restritivas e alargar os limites daação brasileira diversifican<strong>do</strong> parcerias. Buscaríamos criarou adensar parcerias com o continente africano, com ospaíses em desenvolvimento em geral, o mun<strong>do</strong> socialista,mas sobretu<strong>do</strong> a América Latina, zona prioritária da ação


455A Experiência Democrática(1946-1964)brasileira, além <strong>do</strong> apoio à ALALC e <strong>do</strong> BID, herdeiros daOPA, Jânio se encontrou com o presidente argentino Frondiziem Uruguaiana em 1961 e na ocasião assinaram o convêniode Amizade e Consulta na qual se estabelecia umsistema de troca de informações. O “espírito de Uruguaiana”não sobreviveria à chegada <strong>do</strong>s militares ao poder.Em 1961, o presidente Jânio, em ato provocativo,condecorava com a prestigiosa Ordem <strong>do</strong> Cruzeiro <strong>do</strong> Sulo guerrilheiro e ministro cubano Ernesto Che Guevara emvisita ao país. Em 1962 o <strong>Brasil</strong> reataria relações diplomáticascom a URSS, dan<strong>do</strong> continuidade à política de diversificaçõesde parcerias incluin<strong>do</strong> os países socialistas quetivera como lance mais dramático a ida <strong>do</strong> vice-presidenteJoão Goulart à China comunista em Agosto de 1961. A dramaticidade,como sabemos, tinha sua origem na inusitadae desatinada atitude <strong>do</strong> presidente Jânio, que, com o vicena China, renunciou a presidência da República, em 25 deagosto, mergulhan<strong>do</strong> o país numa crise política que poderiater leva<strong>do</strong> à guerra civil.Os motivos que levaram a renúncia de Jânio Quadrosforam muito especula<strong>do</strong>s e longamente discuti<strong>do</strong>sà época. Alegava evasivamente incapaz de persistir 383383 “Fui venci<strong>do</strong> pela reação e assim deixo o governo. Nestes sete meses cumprio meu dever. Tenho-o cumpri<strong>do</strong> dia e noite, trabalhan<strong>do</strong> infatigavelmente,sem prevenções, nem rancores. Mas baldaram-se os meus esforços paraconduzir esta nação, que pelo caminho de sua verdadeira libertação políticacontra forças terríveis não nomeadas. Para além dasconsiderações psicológicas sobre um político que já renunciaraa to<strong>do</strong>s os cargos públicos para os quais tinhasi<strong>do</strong> eleito 384 convém lembrar a hipótese mais sociológicada renúncia cesarista. Jânio foi o primeiro presidentee econômica, a única que possibilitaria o progresso efetivo e a justiça social,a que tem direito o seu generoso povo. (...) Sinto-me, porém, esmaga<strong>do</strong>.Forças terríveis levantam-se contra mim e me intrigam ou infamam,até com a desculpa de colaboração. Se permanecesse, não manteria aconfiança e a tranquilidade, ora quebradas, indispensáveis ao exercício daminha autoridade. Creio mesmo que não manteria a própria paz pública.Encerro, assim, com o pensamento volta<strong>do</strong> para a nossa gente, para osestudantes, para os operários, para a grande família <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, esta páginada minha vida e da vida nacional. A mim não falta a coragem da renúncia. (...)O agradecimento é aos companheiros que comigo lutaram e mesustentaram dentro e fora <strong>do</strong> governo e, de forma especial, às Forças Armadas,cuja conduta exemplar, em to<strong>do</strong>s os instantes (...) Retorno agora ao meutrabalho de advoga<strong>do</strong> e professor. Trabalharemos to<strong>do</strong>s. Há muitas formasde servir nossa pátria”. Os grifos são meus. Nem parecia tão valente assim “acoragem da renúncia”, quan<strong>do</strong> recordamos que a última carta neste mesmoestilo fora escrita por um presidente ao qual, exatos oito anos antes, nãofaltara a coragem <strong>do</strong> suicídio.384 Renunciara o mandato de verea<strong>do</strong>r para ser candidato a deputa<strong>do</strong> estaduale renunciou ao mandato de deputa<strong>do</strong> estadual para ser candidato a prefeitode São Paulo. Renunciou à prefeitura para concorrer ao governo <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>,único cargo em que cumpriu o mandato até o fim. Concorreu a deputa<strong>do</strong>federal mas renunciou ao cargo de deputa<strong>do</strong> para concorrer a presidênciada república, ten<strong>do</strong> renuncia<strong>do</strong> à candidatura em duas ocasiões, mas depoisrenuncia<strong>do</strong> à renuncia. Os brasileiros pareciam cansa<strong>do</strong>s de saber quenão lhe faltava “a coragem da renúncia”. A renúncia parecia ser sua únicacoerência. Seus assessores já sabiam dessa mania renuncista e guardavamno bolso os numerosos bilhetes de renúncia que o prefeito, governa<strong>do</strong>re depois presidente escrevia “sem ser pra valer”. Jânio renunciou tambémao que disse na carta, pois no ano seguinte se candidatava novamenteao governo <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Estava, no entanto, desmoraliza<strong>do</strong> politicamente eperdeu as eleições de 1962 para Adhemar de Barros, seu adversário político.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>456democraticamente eleito que não tinha maioria parlamentar.Governava com a oposição PTB-PDS majoritáriano Congresso Nacional que desprezava, sob o presidencialismode coalizão. A UDN se afastava <strong>do</strong> presidente porconta de sua personalidade “incontrolável” e difícil de negociar.Lacerda rompera com Jânio no dia 24 de agosto eo acusava de tramar um golpe de Esta<strong>do</strong>.Sen<strong>do</strong> o vice-presidente quem era – ex-ministro <strong>do</strong>trabalho, vincula<strong>do</strong> aos sindicatos, líder <strong>do</strong> trabalhismo,herdeiro político de Vargas e acusa<strong>do</strong> de simpatizante comunista– e fora <strong>do</strong> país, na China, Jânio parecia ter certezade que sua carta de renúncia não seria entregue aoCongresso Nacional e, se entregue, não seria aceita. Seusmodelos políticos internacionais, como Nasser e De Gaulle,já havia recorri<strong>do</strong> a renúncias que haviam se prova<strong>do</strong>politicamente frutíferas em curto ou em longo prazo. Acreditavaque a ameaça de renúncia serviria, como serve noparlamentarismo para forçar a anuência das Forças conserva<strong>do</strong>ras<strong>do</strong> Congresso Nacional a apoiá-lo. Ou que haveriaampla mobilização militar e/ou popular para mantê-lo nocargo. Jânio renunciou no dia <strong>do</strong> Solda<strong>do</strong>, como que conclaman<strong>do</strong>as Forças Armadas a intervir.Mas a renúncia foi imediatamente aceita, e empossou-seRanieri Mazzili o presidente da Câmara <strong>do</strong>s Deputa<strong>do</strong>s,terceiro na linha sucessória. Ninguém cogitou apermanência ou o retorno de Jânio. As Forças Armadasbem que tentaram assumir o coman<strong>do</strong>. Em comunica<strong>do</strong>conjunto das três armas, declararam a “inconveniência” <strong>do</strong>retorno de Jango ao <strong>Brasil</strong>, com ameaça da aeronáuticade abater seu avião em pleno voo. O golpe, no entanto,teve ampla resistência. A principal voz que se insurgiu emdefesa da constituição e pela posse <strong>do</strong> vice-presidente foia de Leonel Brizola, cunha<strong>do</strong> de Jango e governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong>Rio Grande <strong>do</strong> Sul. O governa<strong>do</strong>r reuniu o povo na Praçada Matriz em frente ao Palácio Piratini em Porto Alegre ecomeçou a discursar em defesa da Legalidade. Seus discursoscomeçaram a ser retransmiti<strong>do</strong> pelos meios decomunicação, sobretu<strong>do</strong> o rádio, forman<strong>do</strong> o que ficou conheci<strong>do</strong>como “Cadeia pela Legalidade”. Depoimentos pelaLegalidade foram colhi<strong>do</strong>s de autoridades, juristas e figurapúblicas de to<strong>do</strong> país e reproduzi<strong>do</strong>s pela Cadeia da Legalidade.Por manifestar-se a favor da posse de Jango, o MarechalLott foi preso por ordem de seu antigo subordina<strong>do</strong>,o General Odílio Denys, ministro da Guerra. A aeronáuticaameaçou bombardear o Palácio <strong>do</strong> Piratini, mas recuoucom a adesão à legalidade <strong>do</strong> III exército sedia<strong>do</strong> no RioGrande <strong>do</strong> Sul, que instalou baterias antiaéreas na praça daMatriz. Era o impasse. O próximo passo seria a guerra civil.A saída honrosa para os ministros militares veio <strong>do</strong>Congresso Nacional que propôs e aprovou com enormerapidez, à 2 de setembro, a instauração <strong>do</strong> parlamentarismoque limitaria os poderes políticos <strong>do</strong> presidente daRepública. Jango, que entrara no país pela fronteira como Uruguai concorda com a solução de compromisso e


457A Experiência Democrática(1946-1964)permite o recuo <strong>do</strong>s militares e a posse <strong>do</strong> vice-presidenteno dia da pátria em 7 de setembro de 1961, para o lamentode Leonel Brizola, para quem o parlamentarismoera golpe. O primeiro primeiro-ministro <strong>do</strong> novo regimeseria o político pessedista Tancre<strong>do</strong> Neves, que se afastouem 1962 para se candidatar a deputa<strong>do</strong> federal por MinasGerais. Durante sua gestão agravaram-se as lutas rurais efoi assassina<strong>do</strong> um líder das ligas camponesas. Deu prioridadea discussão no parlamento sobre o tema da ReformaAgrária 385 . Tais medidas seriam o antecedente da extensão<strong>do</strong>s direitos trabalhistas aos trabalha<strong>do</strong>res rurais que seriaaprovada em 1963, já sob o presidencialismo.Com a saída de Tancre<strong>do</strong> aumentam ainda mais ascríticas ao parlamentarismo, que se torna alvo de campanhapopular para que se antecipe seu fim. Sucederam-lheem gabinetes de poucos meses de duração o político gaúchoBrocha<strong>do</strong> da Rocha e o jurista Hermes Lima, depois derejeita<strong>do</strong> pelo Congresso o nome de Santiago Dantas. Foilança<strong>do</strong> ainda o Plano Trienal elabora<strong>do</strong> pelo recém-cria<strong>do</strong>Ministério <strong>do</strong> Planejamento cujo titular era Celso Furta<strong>do</strong>,o idealiza<strong>do</strong>r da Sudene, sob JK. O plano, entre outrosprojetos, buscava combater a inflação que crescia a olhosvistos. Não deu certo, e o governo precisou negociar com385 Criou o Conselho nacional de Reforma Agrária e o Plano de SindicalizaçãoRural.o FMI empréstimos externos que equilibrassem as contaspúblicas. O empréstimo viria com as necessárias contrapartidasorto<strong>do</strong>xas de corte de gastos e de investimentos.No plano externo aprofundavam-se e institucionalizavam-seas diretrizes independentistas da Política ExternaIndependente (PEI). Santiago Dantas foi o principal chanceler<strong>do</strong> Perío<strong>do</strong> parlamentarista e <strong>do</strong> início <strong>do</strong> governopresidencialista de Jango, assumin<strong>do</strong> posteriormente oministério da Fazenda. João Goulart visita os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>se se encontra com Kennedy, moderan<strong>do</strong> o discursomais radicaliza<strong>do</strong> da época de Jânio, notório conserva<strong>do</strong>r.Ficava demonstra<strong>do</strong> que em diplomacia às vezes quemfala importa mais que o que vai ser dito.Essa segunda fase da PEI, marcada pela transição <strong>do</strong>voluntarismo presidencialista de Jânio Quadros para ummaior comedimento e institucionalização das principaisdiretrizes da Política Externa Independente. A autodeterminação<strong>do</strong>s povos. A luta pelo desarmamento e soluçãopacífica de controvérsias. A defesa da soberania e da nãointervenção. A valorização <strong>do</strong> multilateralismo. A desideologizaçãoda ação externa brasileira. A diversificação deparcerias. O universalismo. A prioridade dada ao Desenvolvimentoe Industrialização. A luta contra o Racismo.A aproximação com a África. A centralidade da AméricaLatina na agenda de cooperação brasileira. Eram todas diretrizesda PEI que já haviam si<strong>do</strong> defendidas em texto queo presidente Jânio havia publica<strong>do</strong> na revista Foreign Affairs


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>458em 1961 e que agora encontravam um lugar na estruturainstitucional <strong>do</strong> Itamaraty, deixan<strong>do</strong> raízes profundas paraos perío<strong>do</strong>s seguintes.Os <strong>do</strong>is principais marcos da PEI durante a gestão deSantiago Dantas foram o reatamento das relações diplomáticascom a URSS (novembro de 1961) e a abstenção naConferência de Punta del Este (1962) em defesa da soberaniacubana contra a expulsão <strong>do</strong> país da OEA, após ter aderi<strong>do</strong>ao modelo comunista. Quatro ex-chanceleres haviamdivulga<strong>do</strong> nota conjunta a favor da expulsão, mas o <strong>Brasil</strong>defende o princípio da autonomia e da não intervenção.Ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> estavam Argentina, Chile, Bolívia, Equa<strong>do</strong>re México. Tais questões eram amplamente discutidas pelauniversidade, nos jornais, na imprensa especializada epela opinião pública, e tinham um grande respal<strong>do</strong> interno,embora fossem grandemente controversas e denunciadaspelos setores da direita como uma política comunista.As diretrizes da PEI ganhariam contorno teórico maisrobusto na terceira e última fase da PEI, que se inicia coma gestão de João Augusto de Araújo Castro 386 , sucessor deSantiago Dantas na chancelaria de Jango. Sua atuação sedava na crítica ao “veto invisível” da Assembleia Geral aostemas sempre negligencia<strong>do</strong>s da ordem econômica e dadescolonização. No discurso de 1963, como chanceler,Araújo Castro alertava que ao Desarmamento, Desenvolvimentoe Descolonização restavam a Morte, a Fome e aEscravidão. Além da rima, o tom era alarmista e inédito. Incorporavaquestões como a dignidade humana que apenasmuito mais tarde se tornariam prioritárias no discursoexterno brasileiro, ainda que com o tom mais modera<strong>do</strong>que nos discursos anteriores.Nos anos 60, sobretu<strong>do</strong> ao discutir os temas <strong>do</strong> racismo,da não proliferação, e das relações bilaterais comos EUA, Araújo Castro introduzirá além <strong>do</strong> conceito de“Congelamento <strong>do</strong> Poder Mundial” vários outros, oriun<strong>do</strong>s<strong>do</strong> realismo e adapta<strong>do</strong>s à realidade brasileira. Seria umvigoroso comenta<strong>do</strong>r de Morgenthau e Kissinger (a ideiade pentagrama) e crítico <strong>do</strong> perigo de relegar a ONU à irrelevância.Esta não estava organizada baseada na ideia dejustiça redistributiva entre as nações mas da realidade depoder de fato ao fim da 2 a . Guerra Mundial, que Castro não386 Araújo Castro é um <strong>do</strong>s poucos diplomatas de sua geração que tem em seustextos a preocupação constante de complementar a atuação política coma reflexão intelectual/acadêmica. Desde a época em que era conselheiro,sobressai de suas palestras na ESG (1958) algumas concepções interessantessobre a ordem internacional que reencontraríamos em seus discursos comochanceler (1963-4), embaixa<strong>do</strong>r na ONU (1968-71) e embaixa<strong>do</strong>r nos EUA(1971-6). A mais importante delas é que a ordem internacional é dinâmicaé mutável, e que o equilíbrio de poder realista (que ele não negava) aforaas realidades mais estanques de tamanho <strong>do</strong> território, estavam sujeitas àtransitoriedade. As potências se sucediam umas as outras. Isso está presenteclaramente em seus textos de 1958 como no discurso <strong>do</strong> Congelamento <strong>do</strong>Poder Mundial proferi<strong>do</strong> em Washington em 1971.


459A Experiência Democrática(1946-1964)questionava, por realista que era. Entretanto suas ideias podemser vistas como precursoras das críticas mais recentes<strong>do</strong> Itamaraty que, alteradas as realidades de poder, é misteruma alteração da composição <strong>do</strong> Conselho de Segurança.Para Castro a “Paz não pode permanecer indefinidamente dissociadada ideia de justiça internacional”. Dizia ainda:As nações unidas são alvo de freqüentes críticas quedenunciam sua ineficácia diante <strong>do</strong>s problemas quese complicam e se acumulam no cenário internacional.Esquecem-se esses críticos de que a organização nãopode ser mais forte que a vontade conjugada <strong>do</strong>s seus126 Esta<strong>do</strong>s-membros e, em certos casos, <strong>do</strong> que a vontadeconjugada <strong>do</strong>s cinco membros permanentes <strong>do</strong>conselho de segurança e ainda em outros casos a vontadeconjugada das duas superpotências 387 .Segun<strong>do</strong> o professor José Flávio Sombra Saraiva aPEI marcou ainda o alvorecer <strong>do</strong> africanismo na históriada Política Externa <strong>Brasil</strong>eira. A partir da gestão de AfonsoArinos, são muitos os exemplos disso. Trata-se <strong>do</strong> primeirochanceler a visitar o continente, abrin<strong>do</strong> igualmente diversasembaixadas 388 e consula<strong>do</strong>s (Lourenço Marques e Luanda),além de diversas legações (Nairóbi, Casablanca, Tunis).387 AMADO, Rodrigo (Org.). Araújo Castro. Brasília: Ed. UnB, 1982.388 A de Accra, em Gana, era simbólica da<strong>do</strong> o pioneirismo da independênciaganense e o protagonismo de seu presidente Kwame Nkrumah naconstrução <strong>do</strong> pan-africanismo. Para o cargo nomeou o jornalista negroRaimun<strong>do</strong> de Sousa Dantas, que escreveu um livro sobre sua experiência.Procedeu também a Reforma <strong>do</strong> Itamaraty com a criaçãoda divisão de África 389 sinal institucional da importância <strong>do</strong>continente nas relações internacionais brasileiras. Os intuitoscomerciais desta aproximação que só renderiam frutosposteriormente podem ser exemplifica<strong>do</strong>s pelo grandepériplo africano realiza<strong>do</strong> pelo navio-escola “Custódio deMelo” pelos portos africanos, mostran<strong>do</strong> produtos brasileirosem vários portos da África Ocidental e Oriental. EmGana foi visita<strong>do</strong> por Nkrumah com grande staff.Apesar disso, a política em relação à África portuguesapermanecia ambígua. Sombra Saraiva a caracterizacomo um “zigue-zague” durante a PEI. É exemplo dissoa posição brasileira na ONU. Em 1962, o <strong>Brasil</strong> vota juntocom 98 países a resolução 1742 da ONU que defende acriação de instituições livres como forma de encaminhar oprocesso de autonomia, ao mesmo tempo que se recusa acondenar Portugal nas resoluções 1807 e 1808, baseadasna Carta da ONU, que condenavam a morte de mais de 30mil pessoas entre 1961 e 1964 apenas em Angola. As idas evindas <strong>do</strong> governo ficam ainda mais explícitas quan<strong>do</strong> daenorme confusão ocorrida em um discurso <strong>do</strong> presidenteJoão Goulart em 1963. A parte <strong>do</strong> discurso que defendiaa independência das colônias africanas de Portugal foi389 Esta divisão estava ainda subordinada à subsecretaria de Europa Ocidentalganharia uma subsecretaria apenas no governo Costa e Silva.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>460retirada da versão escrita divulgada oficialmente e para aimprensa. A justificativa <strong>do</strong> chanceler Hermes Lima, interinoque substituíra Santiago Dantas (chanceler) é de que foium equívoco, “felizmente” percebi<strong>do</strong> a tempo. Jango falou,mas o governo não assinou embaixo. A PEI ajoelhava, masnão rezava.Essas idas e vindas se explicam também institucionalmente.Foram cinco ministros em cerca de três anos.Os óbices que discutimos no governo JK ainda se impunham– o discurso <strong>do</strong> lusotropicalismo tributário <strong>do</strong> pensamentode Gilberto Freyre, o lobby português no <strong>Brasil</strong>, oracismo, entre outras questões. Se não éramos mais o elefantepuxa<strong>do</strong> por um camun<strong>do</strong>ngo pela cauda, éramos umpaquiderme indeciso, ao menos no que tange à África portuguesaem processo de independência.Além disso, pode-se afirmar que o governo brasileirodurante a PEI intensificou as relações comerciais com aÁfrica <strong>do</strong>s Sul – recebe uma missão comercial, e negociao envio de uma missão brasileira – apesar das críticas aoracismo. Isso se explica pragmaticamente: as exportaçõesbrasileiras para a África <strong>do</strong> Sul representavam 50% <strong>do</strong> totalpara to<strong>do</strong> o continente.Após o golpe militar, como veremos, mais que umaruptura radical, o que se percebe é a securitização da políticaafricana, tal qual ensina Saraiva. O objetivo brasileiropassará a ser de evitar que o comunismo substitua o colonialismo.A realização <strong>do</strong> plebiscito pelo retorno <strong>do</strong> presidencialismoera igualmente <strong>do</strong> interesse da oposição udenista.Favorecia a candidatura competitiva de um udenista,possivelmente Lacerda em 1965, ao mesmo tempo quetirava as desculpas <strong>do</strong> governo pelo mau desempenho daeconomia. O presidente não estaria mais de mãos atadas.A vitória <strong>do</strong> presidencialismo no plebiscito foi estron<strong>do</strong>sa.Com a vitória e o retorno <strong>do</strong> presidencialismo em janeirode 1963, o governo João Goulart pode se concentrar embuscar o apoio popular para a aprovação das chamadasReformas de Base, da qual a Reforma Agrária era o carrochefe390 . Seria necessária uma reforma constitucional, jáque a constituição previa que desapropriações deveriamser pagas em dinheiro, previamente, e o governo pretendiaindenizar os proprietários em títulos da dívida públicacom base na aprovação <strong>do</strong> conceito de “função social dapropriedade”.Em pesquisas realizadas nas principais capitais <strong>do</strong>país, em 1962, mais de 70% da população era a favor da ReformaAgrária. Para Antônio Lavareda, o Congresso Nacionalnão refletia plenamente o vanguardismo das posições390 Previa ainda a Reforma Urbana (amplo programa de ampliação das moradiaspopulares), a Reforma Educacional (erradicação <strong>do</strong> analfabetismo, autonomiae democratização universitária), Reforma Fiscal (aumento da arrecadação eLei de Remessa de Lucros), Reforma Bancária (ampliar o acesso ao créditorural), Reforma Eleitoral (legalização <strong>do</strong> PCB, extensão <strong>do</strong> direito a voto paraos sargentos e praças e aos analfabetos).


461A Experiência Democrática(1946-1964)políticas da sociedade, mais claramente refletidas no executivo. Ainda assim, é perceptível nasurnas o crescimento da posição <strong>do</strong> PTB, que nas eleições de 1962 chegou a 29% das cadeiras<strong>do</strong> Congresso Nacional, ligeiramente atrás <strong>do</strong>s 30% <strong>do</strong> PSD seu tradicional alia<strong>do</strong>, cujos correligionárioseram em sua maioria opositores ferrenhos da Reforma Agrária. A transformaçãoda divisão política no Parlamento era ainda mais impactante se analisada desde 1946, comodemonstra<strong>do</strong> na tabela 1.Tabela 1: Divisão da Câmara <strong>do</strong>s Deputa<strong>do</strong>s por parti<strong>do</strong>s naseleições <strong>do</strong> Perío<strong>do</strong> democrático (1946-62)1946 1950 1954 1958 1962PSD 53% 37% 35% 35% 30%UDN 29% 24% 23% 22% 23%PTB 8% 17% 17% 20% 30%PCB 5% -- -- -- --PSP -- 8% 10% 8% 5%Outros 5% 14% 15% 15% 16%Fonte: MOTA, Rodrigo Patto. 1999, pp. 85-87.O declínio <strong>do</strong> PSD contrasta justamente com a ascensão <strong>do</strong> PTB, parti<strong>do</strong> que mais cresceuno perío<strong>do</strong>. A UDN, declinou ligeiramente no Segun<strong>do</strong> Governo Vargas, manteve-se apartir daí estabilizada no patamar ligeiramente abaixo de ¼ <strong>do</strong> total <strong>do</strong> eleitora<strong>do</strong> nacional.O PSD perdeu 23% <strong>do</strong> total <strong>do</strong> eleitora<strong>do</strong>, e mais de 40% <strong>do</strong>s seus deputa<strong>do</strong>s entre 1946 e1962, quase o mesmo número que ganhou seu principal alia<strong>do</strong> no perío<strong>do</strong> o PTB. O que issosignifica?Significa um país em processo de modernização e desenvolvimento. A urbanização eo êxo<strong>do</strong> rural levou, principalmente no governo JK, enorme contingente de trabalha<strong>do</strong>res


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>462<strong>do</strong> campo para as cidades, onde o controle <strong>do</strong>s “coronéis”<strong>do</strong> PSD não mais os alcançavam, mas sim as campanhas,propostas e propagandas trabalhistas que iam de encontrodireto aos seus anseios. Some-se a isso a crescentepolitização camponesa e o alargamento da influência <strong>do</strong>trabalhismo no campo, depois de ter ocupa<strong>do</strong> no mandatode JK o ministério da agricultura. Uma das maioresrealizações de JK foi, justamente ter favoreci<strong>do</strong> o crescimento<strong>do</strong> PTB, seu principal alia<strong>do</strong>, mas em 1962-64, crescentementeseu rival na questão das reformas de base emgeral, e da Reforma Agrária em particular. JK, como vimos,bloqueou o tema o quanto pode. Não podia mais. O executivoagora estava novamente nas mãos <strong>do</strong> PTB, que sevalia da mobilização popular rural e urbana para forçarum congresso dividi<strong>do</strong> a aceder às aspirações populares.Apoiavam abertamente este esforço os sindicatos, a UNE,as ligas camponesas, o Parti<strong>do</strong> Comunista e setores popularesda Igreja Católica.Setores conserva<strong>do</strong>res se articulavam em órgãos intelectuaiscomo o Instituto de Pesquisa e Estu<strong>do</strong>s Sociais(IPES) e o Instituto <strong>Brasil</strong>eiro da Ação Democrática (IBAD,que fecha<strong>do</strong> por ordem judicial depois que se descobriuque recebia dinheiro da CIA). Eram o que hoje se chamariade ONGs, think tanks que reuniam empresários conserva<strong>do</strong>respara desestabilizar o governo João Goulart. Financiavam,produziam programas de rádio e TV e materialjornalístico de conteú<strong>do</strong> anticomunista e “antipopulista”.Uma das obras clássicas sobre o golpe <strong>do</strong> cientista políticoRené Armand Dreyfuss destaca, e mesmo exagera, o papel<strong>do</strong> IPES como principal articula<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s setores conserva<strong>do</strong>res,por meio da difusão em <strong>do</strong>cumentários, novelas, ematerial de propaganda <strong>do</strong>s valores cristãos, capitalistase estadunidenses, e sua estreita ligação com empresários,militares de alta patente, com a Igreja Católica e com ogoverno <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s.A divisão da sociedade se refletia no CongressoNacional, onde se formam duas grandes frentes parlamentares,como a Frente Parlamentar Nacionalista (FPN),com grande número de deputa<strong>do</strong>s <strong>do</strong> PTB, mas váriosdissidentes udenistas e pessedistas (ala moça) a favor dasreformas, e a Ação Democrática Parlamentar (ADP) conserva<strong>do</strong>rae contrária as reformas, majoritariamente formadapor udenistas. Tratava-se de blocos suprapartidários queaglutinavam, às vezes incoerentemente deputa<strong>do</strong>s quenão seguiam a linha majoritária de seus parti<strong>do</strong>s. A FPNnão conseguiu, no entanto, a maioria, graças ao comportamento<strong>do</strong> PSD, que tradicional alia<strong>do</strong> <strong>do</strong> PTB, não maisse sentia representa<strong>do</strong> por um governo lidera<strong>do</strong> pelo PTBque mobilizava a população para impor a Reforma Agrária.O PSD rompeu com o governo, sintomaticamente, emmarço de 1964.A tática de mobilização popular e comícios pararomper a resistência parlamentar era, no entanto, muitoarriscada no contexto de Guerra Fria. A polarização <strong>do</strong>


463A Experiência Democrática(1946-1964)planeta se refletia na sociedade brasileira perigosamentee a presença política constante <strong>do</strong>s militares tornava o cal<strong>do</strong>ainda mais explosivo. Fora considera<strong>do</strong> provocativo ocomício pelas Reformas de Base com a presença de dezenasde milhares de pessoas na Central <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> – praticamenteem frente ao Ministério da Guerra – em 13 demarço de 1964, justo numa sexta-feira prenuncian<strong>do</strong> mausaugúrios. Neste mesmo dia o presidente anunciava a desapropriaçãodas terras às margens das ro<strong>do</strong>vias federais.A resposta da direita viria na semana seguinte com umamarcha da Família com Deus pela Liberdade (19/03) emSão Paulo, onde se pedia que as forças armadas salvassemo <strong>Brasil</strong> <strong>do</strong> comunismo. No dia seguinte o General CastelloBranco, chefe <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>-Maior das Forças Armadas emitiucircular reservadas aos oficiais alertan<strong>do</strong> contra os perigos<strong>do</strong> comunismo.Nas crises de Agosto de 1954, novembro de 1955,agosto-setembro de 1961 tinha si<strong>do</strong> por muito pouco quese evitara o golpe militar e a prevalência da facção liberal.As circunstâncias haviam muda<strong>do</strong>, e o presidente JoãoGoulart, havia contribuí<strong>do</strong> com seu apoio ao movimento<strong>do</strong>s sargentos 391 para a percepção castrense de que ostrabalhistas queriam subverter a hierarquia das forças armadaspara embasar uma revolução sindicalista.A presença de Goulart – contrarian<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s os conselhoscontrários de seus ministros – numa reunião da Associação<strong>do</strong>s sargentos e suboficiais da Polícia Militar noAutomóvel Clube em 30 de Março de 1964 foi o estopimnecessário para o início da mobilização golpista. A marchafoi iniciada pelo general Olimpio Mourão Filho que decidiumarchar de Juiz de Fora para a capital após assistir na televisãoa chegada de Jango ao Automóvel Clube e considerarque estava quebrada a hierarquia.O movimento desencadea<strong>do</strong> por Mourão acaboucontan<strong>do</strong> com crescente adesão de diversos outrosgenerais e comandantes, e ampla adesão civil articuladapelos governa<strong>do</strong>res da Guanabara, Carlos Lacerda, SãoPaulo, Adhemar de Barros e Minas Gerais, Magalhães Pinto.A pouca disposição <strong>do</strong> presidente em resistir apesar <strong>do</strong>sapelos de Brizola, evitaram a necessidade de intervenção<strong>do</strong> governo <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, comprovadamente articula<strong>do</strong>com os golpistas, e prepara<strong>do</strong> para a eventualidadede resistência <strong>do</strong> governo com a “operação Brother Sam”.O reconhecimento <strong>do</strong> novo regime pelos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>sfoi imediato.391 Os sargentos defendiam a elegibilidade legislativa que foi negada peloSupremo com base na constituição em setembro 1963. Os suboficiais serevoltaram, mas foram conti<strong>do</strong>s com facilidade. A postura <strong>do</strong> presidente erapercebida como simpática a causa <strong>do</strong>s sargentos e suboficiais.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>4647.4 A euforia cultural <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> em transformaçãoDo Rádio à Televisão. A música Erudita e a Bossa Nova.O Teatro. Artes plásticas e o Cinema. O Cinema Novo.Os Esportes. O jornalismo e o merca<strong>do</strong> Editorial.A arquitetura e a Construção de Brasília. O Concretismoe a cena literária.O rádio viveu ao final <strong>do</strong>s anos 40 e início <strong>do</strong>s anos50 seu apogeu e o início <strong>do</strong> seu declínio. Principal meiode comunicação de massas <strong>do</strong> país havia cria<strong>do</strong> uma legiãode fãs e segui<strong>do</strong>res e fabricava celebridades tal qualfaz a TV nos dias de hoje. O exemplo desta fabricação decelebridades eram as rainhas <strong>do</strong> rádio, cujo concurso promovi<strong>do</strong>pela primeira vez em 1937 – e venci<strong>do</strong> por LindaBatista, que reinou onze anos – que seria reorganiza<strong>do</strong> pelaAssociação <strong>Brasil</strong>eira de Rádio em 1948. Em 1948, venceua irmã de Linda, Dircinha Batista. Mas o concurso mais famosoe polêmico de to<strong>do</strong>s foi o de 1949 no qual disputouEmilinha Borba, a “favorita da Marinha” com Marlene, avence<strong>do</strong>ra, crian<strong>do</strong> uma rivalidade estimulada pelas rádiosque não existia na realidade, mas que angariou enormepublicidade para ambas. Dalva de Oliveira (1951), a própriaEmilinha (1953) e Ângela Maria (1954) foram outras rainhas<strong>do</strong> rádio eleitas com votos compra<strong>do</strong>s pelos ouvintes.Os votos eram vendi<strong>do</strong>s, patrocina<strong>do</strong>s por grandes empresas,assim como também era vendida a participaçãonos fã-clubes que tinham taxa de adesão e mensalidade.O rádio fabricava milionários, dentre os quais, Maysa, CaubyPeixoto, Marlene e Emilinha. A revista <strong>do</strong> Rádio acompanhavaa vida das celebridades e os boatos e escândalos emque frequentemente um í<strong>do</strong>lo estava envolvi<strong>do</strong>.Para além das marchinhas de carnaval, popularíssimas,o gênero romântico era dispara<strong>do</strong> o favorito <strong>do</strong>scantores da Era <strong>do</strong> Rádio. Muito frequentemente um romantismotrágico, abolera<strong>do</strong>, cheio de <strong>do</strong>r de cotovelo.A música Nervos de Aço (1947) <strong>do</strong> compositor gaúcho LupicínioRodrigues, o rei da <strong>do</strong>r de cotovelo, chegou a setornar trilha sonora para suicídios. Não foram poucas às vezesem que os bombeiros encontravam a vítima <strong>do</strong> amornão correspondi<strong>do</strong> morto no apartamento com as janelasfechadas e o gás liga<strong>do</strong>, na vitrola, Nervos de Aço compostapor esse Goethe musical. Nelson Gonçalves, Vicente Celestino,“o cantor das multidões” Orlan<strong>do</strong> Silva, Sílvio Caldas eprincipalmente Francisco Alves, o “Chico Viola” se especializamem cantar os “samba-canções” que embalavam osamores e as <strong>do</strong>res de cotovelo <strong>do</strong> povo brasileiro. A mortetrágica de Francisco Alves num acidente de automóvel naVia Dutra em setembro de 1952 parou o Rio de Janeiro.Foi acompanha<strong>do</strong> por mais de 500 mil pessoas na CâmaraMunicipal. Uma passeata correu o centro da cidade paraarrecadar fun<strong>do</strong>s para a construção de uma estátua paraseu túmulo que até hoje é um <strong>do</strong>s mais visita<strong>do</strong>s <strong>do</strong> cemitérioSão João Batista. Sua morte era um pouco o início


465A Experiência Democrática(1946-1964)da morte da hegemonia <strong>do</strong> rádio e o início <strong>do</strong> ciclo da TV,transição que se processou ao longo <strong>do</strong>s anos 50.A televisão cuja primeira transmissão brasileira foifeita em São Paulo em setembro 1950 na sede <strong>do</strong>s DiáriosAssocia<strong>do</strong>s teve impacto cultural limita<strong>do</strong> neste perío<strong>do</strong>.Sua primeira década de vida foi marcada por muito improviso– não existia videoteipe – e cópias <strong>do</strong>s programas derádio. Quem a trouxe ao <strong>Brasil</strong> quinze anos depois de inventada,foi Assis Chateaubriand que conseguiu patrocínioda Antarctica, Sul-América e Moinho Santista para adquirirda RCA Victor uma estação americana de TV e criar a TVTupi. Quatro meses depois da primeira exibição em SãoPaulo, a TV Tupi chegava ao Rio de Janeiro. Os televisoreseram caríssimos e compra<strong>do</strong>s exclusivamente pela elitemais abastada, o que limitava o impacto da publicidade.Os anunciantes <strong>do</strong>s primeiros anos recebiam anúncios decortesia por anunciarem também nos jornais e outros veículos<strong>do</strong>s Diários Associa<strong>do</strong>s. Nada era planeja<strong>do</strong>, tu<strong>do</strong> eraimprovisa<strong>do</strong>. Os cenários <strong>do</strong>s programas eram muitas vezesdesenha<strong>do</strong>s à mão, e não raro desabavam durante astransmissões. O primeiro programa transmiti<strong>do</strong> foi A TV naTaba, que nada mais era <strong>do</strong> que uma colagem de atraçõesjornalísticas, cômicas (Mazaroppi fazen<strong>do</strong> rir) e musicais.O Circo na TV com os palhaços Fuzarca e Torresmo e programascomo o Céu é o Limite (1955) de perguntas e respostasapresenta<strong>do</strong> por Aurélio Campos, eram a evidência<strong>do</strong> canibalismo que a TV de então fazia de outras formasde atração. A maior parte de seus artistas vinha <strong>do</strong> Rádio(Chacrinha) ou <strong>do</strong> Teatro (Tônia Carreiro). Adaptavamseclássicos da literatura mundial (Dr. Jivago) e nacional(O Sítio <strong>do</strong> Pica-Pau-Amarelo), e os teleteatros de alto nívelagradavam ao público de elite, antes <strong>do</strong> advento da teledramaturgiamais longa, vocação máxima da TV no <strong>Brasil</strong>.Com o crescimento <strong>do</strong> público começaram a semultiplicar os canais de TV e os investimentos <strong>do</strong>s anunciantes.A TV Itacolomi foi inaugurada em Belo Horizonteem 1952, a TV Paraná aparece em Curitiba no mesmo ano.A TV Rio data de 1953 e a TV Rádio Clube de Pernambuco,em Recife, data de 1957. A TV Piratini em Porto Alegre éde 1959, e Brasília já nasce com a TV Alvorada (1960). Em1956, a Tupi consegue realizar com base no improviso técnico– antenas de arame em Ilhabela e Itapeva – a primeiratransmissão interestadual de um jogo no Maracanã paraSão Paulo (<strong>Brasil</strong> e Itália). O futebol e a dramaturgia transformariamem breve a TV no novo ópio <strong>do</strong> povo.No campo da música erudita se processava umatentativa de aban<strong>do</strong>no da música orfeônica, fortementemarcada pela adesão política de Villa-Lobos ao Esta<strong>do</strong>Novo. O movimento música viva, capitanea<strong>do</strong> por EdinoKrieger, Claudio Santoro e Guerra Peixe, alunos de Hans-Joachim Koellreuter, um <strong>do</strong>s funda<strong>do</strong>res da OrquestraSinfônica <strong>Brasil</strong>eira e professor <strong>do</strong> Conservatório de Música<strong>do</strong> Rio de Janeiro, depois de aban<strong>do</strong>nar a Alemanhaem 1937. Ele e seus alunos que formariam o grupo


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>466“Música Viva” incorporavam a estética <strong>do</strong>decafônica deArnold Schoenberg também obriga<strong>do</strong> a fugir <strong>do</strong> nazismopara os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s por sua herança judaicae seu estilo de música considera<strong>do</strong> decadente pelosnazistas.Koellreuter acabou se mudan<strong>do</strong> para São Pauloonde havia menos patrulhamento nacionalista duranteo Esta<strong>do</strong> Novo. Entre 1943 e 1944, o músico alemão redigiriaartigos e manifestos no senti<strong>do</strong> de libertar a músicada lógica nacionalista e propor um internacionalismomarca<strong>do</strong> pela gramática marxista. Discussões em tornoda função social da música. Esse funcionalismo da arte éanálogo na poesia ao concretismo e se insurge contra asconcepções meramente estéticas e he<strong>do</strong>nistas, que são taxadasde conserva<strong>do</strong>ras, pelo grupo que era, naturalmente,simpático ao PCB. O “Música Viva” tinha uma concepçãoevolucionista na qual a independência da música brasileirapassara por <strong>do</strong>is momentos. O momento “nacionalista”simboliza<strong>do</strong> por Villa-Lobos fizera a ruptura com o clássicoeuropeu, e o “Música Viva” faria definitivamente a emancipaçãopor meio <strong>do</strong> universalismo estético e engaja<strong>do</strong>socialmente.Os alunos de Koellreuter (Guerra Peixe em Pernambuco,por exemplo) depois se dispersariam para fazerpesquisas musicais regionais e folclóricas que renderiamum novo renascimento <strong>do</strong> regionalismo, evidencian<strong>do</strong> aforça e o apelo da tradição anterior <strong>do</strong>s grandes mestres.Mas no meio <strong>do</strong> caminho entre o erudito e o popular nasceriaa Bossa Nova.A bossa nova é o ritmo mais famoso cria<strong>do</strong> no perío<strong>do</strong>.Se identificou a tal ponto com o governo JK, queJuscelino passou a ser chama<strong>do</strong> de presidente bossa-nova.Foi criada por jovens em apartamentos da zona sul cariocaque cantavam para seus amigos em rodinhas de bar, os deapartamentos, que misturou o samba e o jazz, que faziasucesso no <strong>Brasil</strong> apenas para uma pequena elite que tinhaacesso aos improvisos geniais de Charlie Parker, DizzieGillespie. Foi o caso de Roberto Menescal, Ronal<strong>do</strong> Bôscoli,Carlos Lyra, Nara Leão e Tom Jobim jovens aos quais sejuntou o diplomata e poeta consagra<strong>do</strong> Vinicius de Morais.Reza a lenda que tu<strong>do</strong> começou quan<strong>do</strong> Viniciusconheceu Tom no bar Vilarinho no centro <strong>do</strong> Rio e o convi<strong>do</strong>upara musicar sua peça Orfeu da Conceição que haviasi<strong>do</strong> premiada em São Paulo no concurso <strong>do</strong> IV centenárioda cidade em 1954 e ia ser adaptada para o cinema pelo cineastafrancês Marcel Camus. As canções impressionaramo poetinha e ele decidiu escrever letras que estivessem àaltura, entre elas obras-primas como Lamento no Morro eSe to<strong>do</strong>s fossem iguais a você, que a Odeon gravou em 1956.Era o início da parceria musical mais famosa da história damúsica, mas ainda não era o marco inicial da Bossa Nova.Este viria em 1958, quan<strong>do</strong> Elizeth Car<strong>do</strong>so gravou da duplaTom/Vinicius Canção <strong>do</strong> Amor Demais no qual fazia participaçãoespecial o violinista baiano João Gilberto.


467A Experiência Democrática(1946-1964)A música Chega de Saudade é uma verdadeirarevolução na cena musical. O estilo intimista, quase deapartamento que João Gilberto usava para cantar eracompletamente diferente <strong>do</strong>s í<strong>do</strong>los das multidões <strong>do</strong>rádio. A música começa triste e vai fican<strong>do</strong> alegre, em certosenti<strong>do</strong>, simbolizan<strong>do</strong> o aban<strong>do</strong>no da fossa bolerizada,da <strong>do</strong>r de cotovelo que marcava a cena musical brasileiraaté então, cheia de gestos, impostações empoladas,e maneirismo dramáticos. João Gilberto seria imita<strong>do</strong>por uma infinidade de admira<strong>do</strong>res que incorporaram o“estilo de apartamento” e foram seduzi<strong>do</strong>s pela Bossa Nova.Tocavam nas boates de Copacabana, no Beco das GarrafasLuís Bonfá, Dick Farney, Johnny Alf, Lúcio Alves, Garoto,e até um Roberto Carlos em início de carreira. Seduziram-setambém figuras importantes <strong>do</strong> rádio como ElizethCar<strong>do</strong>so e Orlan<strong>do</strong> Silva que gravaram composições daBossa Nova, talvez por perceber aí um importante públicocada vez mais numeroso que era a classe média, que agorapodia se aproximar de uma forma “sofisticada” de samba,diferencian<strong>do</strong>-se da massa.A Bossa Nova tinha um enorme apuro técnico, herda<strong>do</strong>da música erudita, formação original de Tom Jobim,por exemplo. Tal conhecimento musical sóli<strong>do</strong> foi usa<strong>do</strong>para desobedecer a harmonia, que alterava acordes e saltavainesperadamente, e o ritmo independente da melodia,incorporava o pretenso “desafinar” à forma de fazer música,e inclusive se referin<strong>do</strong> à isso na canção desafina<strong>do</strong>, umametamúsica simbólica <strong>do</strong> movimento Bossa Nova. Suabase forte no jazz, com a incorporação de elementos <strong>do</strong>samba fez com que tivesse enorme sucesso nos Esta<strong>do</strong>sUni<strong>do</strong>s, a partir <strong>do</strong> show de vários artistas no Carnegie Hallem 1962, onde João Gilberto lotou o Teatro.O sucesso estron<strong>do</strong>so e internacional da Bossa Novaguarda relação com o momento <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> no governo Juscelino,onde se consolidava essa classe média que ao misturarjazz com samba em seu apreço musical simbolizavao projeto de país <strong>do</strong> presidente que tentava fazer a mesmacoisa no plano financeiro para industrializar o país comcapital nacional e estrangeiro. Os críticos de música maisnacionalistas, <strong>do</strong>s quais sempre se destaca José Ramos Tinhorão,discordam da ideia de que Bossa Nova possa serconsiderada parte da MPB. Para Tinhorão é apenas maisum capítulo da história <strong>do</strong> Jazz que por acaso foi escrito nazona sul carioca.O que Tinhorão, marxista, não per<strong>do</strong>a é que se tratavade uma música sem engajamento social de origemnão popular, música para diversão, tal qual a “arte pela arte”<strong>do</strong> TBC ou <strong>do</strong>s filmes da Vera Cruz. O próprio Jazz ao sair<strong>do</strong>s bairros negros de Nova Orleans e outras cidades <strong>do</strong>sul <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s onde era visto com preconceitopela boa sociedade norte-americana e fazer sucesso nomun<strong>do</strong> inteiro, o jazz se dissociara de sua herança de luta eexpressão social para tornar-se um mecanismo de diferenciação– distinction na acepção de Pierre Bourdieu – entre


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>468uma elite que consumia quadros, esculturas, lia literaturapsicológica escrita com experimentações linguísticas incompreensíveispara a grande maioria <strong>do</strong> povo. O povonão frequentava o beco das garrafas nem importava bolachasde jazz. O povo ouvia rádio, com suas musas e rainhas,com seus í<strong>do</strong>los das multidões. A Bossa Nova, seu estilo,suas inovações e suas temáticas definitivamente não erampara as multidões, mas bem ao contrário. Era “música deapartamento” e de pocket shows que fará enorme sucessojustamente por servir como meio de distinção social paraos setores da elite e da classe média que agora podiamvariar a música clássica com a música popular sem se comisso precisar se popularizar. A Bossa Nova era – e seguesen<strong>do</strong> – cool.No teatro, a renovação se deu com Franco Zamparique criou em 1948 o Teatro <strong>Brasil</strong>eiro de Comédia (TBC)associação sem fins lucrativos inicialmente financiada porduzentas personalidades da alta sociedade paulista, articuladaspor ele. Congregou vários grupos de teatro ama<strong>do</strong>rexistentes em São Paulo e reorganizou a cena teatral brasileira.Em 1954 se expandiu para o Rio de Janeiro ondese exibia no Teatro Ginástico que pegou fogo em 1957,justo na peça Gata em Teto de Zinco Quente, de TennesseeWilliams.O TBC marcou a profissionalização <strong>do</strong> teatro no <strong>Brasil</strong>,com elenco fixo de atores profissionais além de cenógrafos,figurinistas, marceneiros, eletricistas e contrarregras,muitos importa<strong>do</strong>s da Itália. Franco Zampari se importavamais com a técnica e o apuro da produção e <strong>do</strong>s atores <strong>do</strong>que com o público. Foram importantes nomes <strong>do</strong> TBC SérgioCar<strong>do</strong>so, Paulo Autran, Cacilda Becker, Fernanda Montenegro,Walmor Chagas, Natália Timberg e Tereza Rachel,entre muitos outros.A qualidade literária <strong>do</strong>s textos, <strong>do</strong>s atores e damontagem criou escola, mas não tinham uma preocupaçãosocial como a que apareceria na década seguinte.O elemento artístico-estético era prioritário e servia comosucedâneo da cena dramatúrgica nova-iorquina ou parisiensepara as elites paulista e carioca, ao encenar textosestrangeiros de sucesso ou que tinham desponta<strong>do</strong> na Europae nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s. O Paga<strong>do</strong>r de Promessas de DiasGomes foi o marco <strong>do</strong> início de uma preocupação socialaté então inexistente. Foi também a primeira peça encenadapor um diretor brasileiro, Flávio Rangel, marcan<strong>do</strong> umavirada mais nacionalista <strong>do</strong> TBC, que até então prioritariamenteencenava autores estrangeiros.Esse alijamento <strong>do</strong>s temas sociais e de dramaturgosmais engaja<strong>do</strong>s como Brecht e Beckett, mas principalmentea incapacidade de perceber a relevância <strong>do</strong>s temaspolíticos em uma sociedade cada dia mais politizada fezcom que o TBC ficasse preso ao teatro de Abílio Pereira deAlmeida, que tinha apelo de bilheteria com a elite paulista,mas não impacto social. Ao longo <strong>do</strong>s anos 50, os principaisnomes artísticos <strong>do</strong> TBC vão sain<strong>do</strong> para fundar suas


469A Experiência Democrática(1946-1964)próprias companhias até que o TBC encerra suas atividadesem 1960. Dramaturgos engaja<strong>do</strong>s Dias Gomes, AugustoBoal, José Celso Martinez Correa e Gianfrancesco Guarnieriterão no Teatro Arena um novo epicentro da cena dramatúrgicabrasileira, pelo menos até o fechamento <strong>do</strong> regimeapós o golpe militar.Foi Francisco Mattarazzo Sobrinho o mais influentemecenas da história <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. Está para o século XX,como Pedro II esteve para a Arte <strong>do</strong> século XIX. Sua maisimportante contribuição foi o MAM (Museu de Arte Moderna)que ele criou em São Paulo em 1948. Em 1949 oMAM, em uma exposição intitulada Do Figurativismo aoAbstracionismo abriu caminho ao sintetizar perfeitamenteos dilemas das artes plásticas brasileiras nas décadas quese seguiriam. Cada vez mais as tendências <strong>do</strong> modernismoabstracionista iam suplantan<strong>do</strong> os artistas figurativos eeste debate apareceu frequentemente nas Bienais Internacionaisde Arte promovidas por Matarazzo a partir de 1951.Ao longo <strong>do</strong>s Anos 50 a Bienal se tornou o principal eventodas Artes Plásticas latino-americanas e uma <strong>do</strong>s principais<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, atrain<strong>do</strong> obras de artistas consagra<strong>do</strong>s comoPablo Picasso, Max Bill, Henry Moore, Alexander Calder eFernand Léger já na I Bienal e expoentes da Bauhaus comoPaul Klee, e Vassily Kandisky (IV Bienal).Premiar ao longo de suas edições figuras que atéhoje são os grandes nomes da expressão artística brasileira<strong>do</strong> século XX como os escultores Victor Brecheret(1951), Bruno Giorgi (1953), os gravuristas Oswal<strong>do</strong> Goeldi(1951) e Marcelo Grassmann (1955 e 1959) e os pintoresAlfre<strong>do</strong> Volpi, Emiliano Di Cavalcanti (1953) Hector Carybé,Aldemir Martins, Milton Dacosta (1955), Frans Krajcberg,Fayga Ostrower (1957) e Manabu Mabe (1959). Só da leitura<strong>do</strong>s nomes e sobrenomes depreende-se a importânciada imigração para a expressão artística brasileira. O maisbrasileiro <strong>do</strong>s sobrenomes, Carybé, foi assumi<strong>do</strong> por umargentino radica<strong>do</strong> em Salva<strong>do</strong>r, Hector Bernabó que seabaianou completamente para pintar os orixás, os prostíbulos,o comércio, a praia, os pesca<strong>do</strong>res, e as mulheresda Bahia, num figurativismo colori<strong>do</strong> e cheio de alegria.O abstracionismo ganhou cada vez mais espaço e setornou manifesto, como na literatura o seria o concretismo.Almir Mavigner, com suas formas geométricas repetidas, eLigia Clark na escultura com placas de metal articuladascom <strong>do</strong>bradiças representam a corrente geométrica <strong>do</strong>abstracionismo junto com Helio Oiticica e Abraham Palatnik.Chegaram a influenciar pintores figurativos comoAlfre<strong>do</strong> Volpi, com suas bandeirinhas coloridas. Já FaygaOstrower e Manabu Mabe, na experimentação não representativadas cores a<strong>do</strong>taram uma postura não geométricae informal que aparece também nas gravuras de BurleMarx e Krajcberg. Mesmo os figurativistas assumem traços<strong>do</strong> abstracionismo em suas obras, como é o caso de DarelValença Lins, um <strong>do</strong>s mais famosos grava<strong>do</strong>res, que seespecializa em metais fantásticos sobre cidades, monstros,


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>470e também, gravuras eróticas que podem ter contribuí<strong>do</strong>para seu relativo ostracismo a partir <strong>do</strong> regime militar. Estainfluência <strong>do</strong> abstracionismo aparece também na correnteprimitivista, da qual fez parte o sambista carioca e mangueirenseHeitor <strong>do</strong>s Prazeres que pinta cirandas, frevos,rodas de samba e crianças achatadas e bidimensionais,muito coloridas.Francisco Matarazzo e sua Bienal não apenas catalisarama efervescência da vanguarda artística nacional,como colocaram o <strong>Brasil</strong> e os artistas brasileiros no mapadas artes internacional.Menos feliz foi Matarazzo no cinema, quan<strong>do</strong> emassociação com o empresário de Teatro Franco Zampari(cria<strong>do</strong>r <strong>do</strong> TBC, Teatro brasileiro de Comédia que renovouo teatro brasileiro pós-Ziembinski) fundariam em 1949 aCia. Cinematográfica Vera Cruz que em seis anos de funcionamento,produziu 22 filmes que a tornaram conhecidacomo a Hollywood <strong>Brasil</strong>eira.A Vera Cruz renegava o cinema das chanchadas, vedetese comédias da Atlântida no Rio de Janeiro e buscouum cinema que tivesse a qualidade narrativa e dramatúrgicaque Zampari exigia <strong>do</strong>s seus atores <strong>do</strong> TBC. Importoudiretores, técnicos, filma<strong>do</strong>ras e máquinas caríssimas.O investimento jamais se pagaria, e embora tenha lega<strong>do</strong>obras como Ângela (1951), Tico-tico no fubá (1952), SinháMoça e O Cangaceiro (1953), Floradas na Serra (1954), comastros como Eliana Lage, Tônia Carreiro, Anselmo Duarte,Jardel Filho e Mazzaropi, que recebiam fortunas – de 25 a35 mil cruzeiros por mês quan<strong>do</strong> o salário mínimo era 300vezes menos –, a maior parte de seus filmes deu prejuízo.O surgimento da televisão também contribuiu para a falênciada Vera Cruz.O outro grande referencial <strong>do</strong> cinema brasileiro <strong>do</strong>final <strong>do</strong>s anos de 1940 e 1950 foram as chanchadas, praticamenteo único tipo de filme nacional que tinha público.Inspiradas nas comédias <strong>do</strong> rádio, aos poucos evoluíram<strong>do</strong>s sketches cômicos para uma história de comédia musicadacom começo meio e fim, cheios de frases de duplosenti<strong>do</strong>, humor bem carioca, e uma sexualidade de tipoburlesco que era desprezada pela boa sociedade. Consideravamas chanchadas de mau gosto e ofensivas à moral eaos bons costumes 392 .A principal produtora de chanchadas foi a Atlântidaque durou duas décadas de 1943 a 1962 e produziu 62filmes de ficção e <strong>do</strong>is <strong>do</strong>cumentários. Os mais bem-sucedi<strong>do</strong>sfaziam referência ao carnaval. Oscarito e GrandeOtelo, a dupla de astros principais, sen<strong>do</strong> José Lewgoy ovilão arremata<strong>do</strong> mais famoso das chanchadas e Zezé Mace<strong>do</strong>,a empregadinha cômica. Os custos de produção nãoeram altos, e a equipe mais ou menos fixa. O cronogramacomeçava em novembro, filmava em dezembro e eram392 Chanchada em espanhol significa porcada ou porcaria.


471A Experiência Democrática(1946-1964)lança<strong>do</strong>s às vésperas da grande festa. A Atlântida sofreuum grave incêndio em 1952, e a concorrência da HerbertRichers (1956) e da Cinelândia Filmes que revelaram outrosatores-personagens como Dercy Gonçalves, Zé Trindade eAnkito, que aos trejeitos de Oscarito somava sua experiênciacircense.Não sobreviveram muito. A Atlântida faliu em 1962 ecom ela vinha o ocaso da chanchada, incapaz de competircom a disseminação da televisão que oferecia o mesmotipo de humor bobo na comodidade da sala de estar. Coma liberalização progressiva <strong>do</strong>s costumes, a temática marcadamentesexualizada transformaria o cinema de entretenimentobrasileiro na pornochanchada <strong>do</strong>s anos 60 e 70.O público até então acostuma<strong>do</strong> com as chanchadasde Carlos Manga foi surpreendi<strong>do</strong> pelo cineasta NelsonPereira <strong>do</strong>s Santos em 1955 com o filme Rio, 40 Graus, emmuitos senti<strong>do</strong>s um precursor. O Sambista Zé Kéti, depoisimportante personagem <strong>do</strong> Teatro Opinião nos anos 1960contracenava com Jece Valadão e Glauce Rocha num filmesocial que se ambientava no morro e tinha como enfoqueo povo, e não a elite. A linguagem era direta e a técnica defilmagem sem os grandes rebuscamentos e orçamentosda Vera Cruz. Era um cinema de realidade tal qual era feitopelo Neorrealismo italiano de Lucchino Visconti (Obsessão,1942), Vittorio de Sica (Ladrões de Bicicleta, 1948) e RobertoRosselini (Roma, Cidade Aberta, 1945), filmes de críticasocial de uma Itália assolada no pós-guerra, influenciadapoliticamente pela grande força <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> Comunista.Essa estética neorrealista já havia si<strong>do</strong> defendida por AleViany, crítico de cinema nos jornais que dirigiu em 1952o filme Agulha no Palheiro (Nelson Pereira <strong>do</strong>s Santos eraassistente de direção).Ambos, Viany e Pereira <strong>do</strong>s Santos já haviam participa<strong>do</strong>com Carlos Ortiz, Moacyr Fenelon <strong>do</strong> Congresso <strong>do</strong>Cinema Nacional que havia aconteci<strong>do</strong> em 1952 e reclamavada falta de investimento estatal e <strong>do</strong> custo da películaimportada. Demandavam uma agência governamentalque importasse toda película virgem e se responsabilizassepela distribuição <strong>do</strong>s filmes brasileiros. Em 1953 ocorreu oII Congresso Nacional <strong>do</strong> Cinema <strong>Brasil</strong>eiro desta vez emSão Paulo, num clima fortemente politiza<strong>do</strong>. Polêmicascomo o aumento <strong>do</strong> preço <strong>do</strong>s ingressos (cinema popularou cinema autossustentável) e o reatamento de relaçõesdiplomáticas com os países socialistas (dan<strong>do</strong> o tom <strong>do</strong>nível de politização <strong>do</strong>s cineastas) dividiram o Congresso.Cada vez ficava mais claro que sem o apoio <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> seriaseguidamente mais difícil fazer cinema no <strong>Brasil</strong>, que àépoca importava mais de 90% <strong>do</strong> total <strong>do</strong>s filmes exibi<strong>do</strong>s.A situação <strong>do</strong> cineasta individual era muito complicada,e se tornaria ainda mais complicada nos anos seguintesquan<strong>do</strong> a Vera Cruz fechasse as portas.A frase atribuída posteriormente a Glauber Rocha“Uma câmara na mão, uma ideia na cabeça” tinhanão apenas uma dimensão estética revolucionária, mas


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>472principalmente de evidenciar a pauperização crescente<strong>do</strong>s meios à disposição <strong>do</strong>s cineastas. Fazer cinema baratomais que uma opção era uma necessidade. Glauber fez seuprimeiro curta na Bahia em 1959 e dirigiu em 1961 Barraventosobre uma aldeia de pesca<strong>do</strong>res que se insere numquadro mais amplo de filmes com temáticas sociais e politiza<strong>do</strong>scomo: O grande Momento (Roberto Santos, 1958)que se passava no bairro operário <strong>do</strong> Brás e vários curtasmetragens,mais baratos de produzir como o Cinco VezesFavela (1962) encomenda<strong>do</strong> pelo CPC da UNE.O fato de o <strong>Brasil</strong> estar duas vezes presente em trêsanos no prêmio principal <strong>do</strong> Festival de Cinema de Cannesserviu para estimular essa geração de cineastas. Em 1959, ofilme Orfeu Negro, produção franco-brasileira que mostravao morro carioca mitifica<strong>do</strong>, ainda longe das preocupaçõessociais, contrastava com O paga<strong>do</strong>r de Promessas (1962) deAnselmo Duarte, crítica social profunda das mazelas <strong>do</strong>nordeste. A antítese <strong>do</strong> que o governo Juscelino teria deseja<strong>do</strong>apresentar como imagem <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. Obscurantismoe ignorância popular, violência e desigualdade, a contrapropaganda<strong>do</strong> alardea<strong>do</strong> progresso <strong>do</strong>s 50 anos em cincoque teimava em não chegar a certas regiões ou grupossociais.O ano de 1963 é o marco <strong>do</strong> Cinema Novo com olançamento de Vidas Secas de Nelson Pereira <strong>do</strong>s Santos,Os Fuzis de Ruy Guerra e Deus e o Diabo na Terra <strong>do</strong> Sol deGlauber Rocha, que se tornaria o porta-voz <strong>do</strong> movimento,com um cinema fortemente politiza<strong>do</strong>, e muitas vezes incompreensívelpara a grande maioria <strong>do</strong>s especta<strong>do</strong>res, nãoacostuma<strong>do</strong>s com o existencialismo sartreano da NouvelleVague francesa, incapazes de compreender as referências aFrançois Truffaut e a Roberto Rosselini. O público era mínimo,mas a mensagem era poderosa. O exato oposto da manifestaçãomusical da Bossa Nova. Cinema engaja<strong>do</strong> sem resposta<strong>do</strong> público e discuti<strong>do</strong> apenas por um pequeno grupo de aficiona<strong>do</strong>se acadêmicos, que enquanto desprezavam as chanchadas,pareciam não se importar com sua própria incapacidadede se comunicar com o resto da sociedade.A sociedade se sentia plenamente representada pelossucessos desportivos brasileiros, a partir <strong>do</strong>s anos de1950, o país se destacava como nunca antes. Í<strong>do</strong>los parato<strong>do</strong>s os grupos sociais. O tênis elegante de Maria EsterBueno, campeã em Wilmble<strong>do</strong>n (1959, 1960 e 1964) e númeroum <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, era tão motivo de orgulho quanto ossaltos de Adhemar Ferreira da Silva, bicampeão olímpicoem Helsinque (1952) e Melbourne (1956), cuja explicaçãopara o início da carreira era quase concretista: “Achei a palavraatleta bonita e decidi que queria ser um”.Seus saltos lembravam o <strong>Brasil</strong> que tinha acaba<strong>do</strong>de eleger um presidente que dizia pretender saltar cinquentaanos em seu mandato. Eder Jofre, pugilista invicto– 38 lutas, 35 vitórias e 3 empates, 26 nocautes – consagrar--se-ia campeão mundial peso-galo em 1960. Chico Landino automobilismo, fazia com suas vitórias propaganda


473A Experiência Democrática(1946-1964)de um esporte que era ao mesmo tempo publicidadeda indústria de automóveis que aqui se estabelecia.Era um tempo de euforia e o maior símbolo destaeuforia nos esportes era naturalmente o futebol campeão<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> em 1958, vencen<strong>do</strong> a Suécia o país sede na finalno estádio Rassunda por cinco a <strong>do</strong>is, sen<strong>do</strong> a seleçãoaplaudida de pé pelos 50 mil torce<strong>do</strong>res de Estocolmo, enquantoos brasileiros deliravam pelo rádio 393 . O presidenteimpaciente, os campeões <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> no Palácio <strong>do</strong> Catete,enquanto Assis Chateaubriand que subornara a comitivade escolta para conseguir fotos com os campeões e seusfamiliares – igualmente coopta<strong>do</strong>s – na parada estratégicafeita na sede da revista O Cruzeiro, marco importante da renovaçãoeditorial e jornalística <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> <strong>do</strong>s anos de 1950.Desde os anos de 1940 que vinha se aban<strong>do</strong>nan<strong>do</strong>o mo<strong>do</strong> francês de digressões filosóficas e longas narrativasde se fazer jornalismo em prol de um modelo de maiorobjetividade influencia<strong>do</strong> pelo jornalismo norte-americano.O editor Pompeu de Sousa introduziu pela primeira veza lead (cinco perguntas da pirâmide invertida da informaçãoque devem vir no início de cada reportagem: Quem?Onde? Quan<strong>do</strong>? Como? e Por quê?) em um jornal brasileiro,o Diário Carioca, cuja diagramação, o copidesque, redatores393 Apenas alguns poucos privilegia<strong>do</strong>s, menos de 2 milhões viram a final pelaTV quan<strong>do</strong> as gravações chegaram uma semana depois da final.e repórteres apoia<strong>do</strong>s por pesquisa<strong>do</strong>res e arquivos assumiamo lugar <strong>do</strong>s intelectuais, bacharéis e eruditos, autoresde longos textos com muita digressão e pouca informação.Iniciavam nas universidades os primeiros cursos degraduação em jornalismo. Era a profissionalização da ImprensaNacional.Do ponto de vista político, destaca-se a criação daÚltima Hora em 1951, pivô de um <strong>do</strong>s grandes escândalos<strong>do</strong> segun<strong>do</strong> governo Vargas, por se tratar praticamente <strong>do</strong>único grande veículo de comunicações que defendia o governo.Suspeitava-se que seu proprietário Samuel Wainer,havia consegui<strong>do</strong> ilegalmente financiamento <strong>do</strong> Banco <strong>do</strong><strong>Brasil</strong> e apoio de empresários governistas para lançar estejornal que em pouco tempo se tornou um <strong>do</strong>s maiores <strong>do</strong>país e se espalhou para São Paulo, Recife e Porto Alegre.Destacam-se ainda o Jornal <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, que contratou Amílcarde Castro para supervisionar a diagramação e lançou oCaderno B, com notícias de cultura e o suplemento <strong>do</strong>minicalcolori<strong>do</strong> que depois viraria a Revista de Domingo e artigosde Drummond e Ferreira Gullar, mantiveram colunas.Disputava merca<strong>do</strong> com O Globo igualmente em processode modernização dirigi<strong>do</strong> por Roberto Marinho, filho <strong>do</strong>funda<strong>do</strong>r <strong>do</strong> jornal Irineu Marinho em 1925. Quarenta anosdepois, os Marinho partiriam para uma outra aventura aindamais bem-sucedida que o jornal: a TV Globo.O principal grupo jornalístico <strong>do</strong> país, no entanto,continuava sen<strong>do</strong> o Império de Assis Chateaubriand <strong>do</strong>s


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>474Diários Associa<strong>do</strong>s. Seu carro-chefe era a revista O Cruzeiroque, lançada no final <strong>do</strong>s anos 20, inovava nos final <strong>do</strong>sanos 40 com reportagens fotográficas feitas pela duplaDavi Nasser (repórter) e Jean Manzon (fotógrafo) sobretemas de interesse imediato <strong>do</strong>s brasileiros. Contava aindacom uma coluna social e sessões de humor como aPif-Paf que contava com a contribuição de Millôr Fernandes,e personagens que marcaram época como o “Amigoda Onça” <strong>do</strong> desenhista Péricles.Nos anos 50, no entanto, a revista O Cruzeiro, no entantonão estava mais isolada e hegemônica no plano <strong>do</strong>jornalismo periódico impresso. Surgiam novos concorrentesao grupo de Chateaubriand, como os irmãos Bloch ea Editora Abril de Victor Civita, que inovou lançan<strong>do</strong> nopaís o Pato Donald 394 , cujos lucros mensais sustentavamdezenas de publicações que não se pagavam. Civita laçouainda Capricho revista de fotonovelas completas querevolucionaram o merca<strong>do</strong>. Ultrapassaram de longe oPato Donald – em 1957 vendeu mais de meio milhão deexemplares de fotonovelas – e se multiplicaram em váriasoutras publicações, dan<strong>do</strong> início ao império editorial <strong>do</strong>394 Esta foi também a difusão <strong>do</strong>s Gibis, nome infantiliza<strong>do</strong> que pegou enunca mais largou as histórias em quadrinho no <strong>Brasil</strong>. Proliferaram ospersonagens americanos como o Batman, Superman, Zorro e Popeye,lança<strong>do</strong>s inicialmente pela Rio Gráfica (1939) e mais tarde pela Ebal (1947)que se tornou hegemônica no merca<strong>do</strong> lançan<strong>do</strong> títulos como Flash Gor<strong>do</strong>n,Fantasma, Mandrake, Dick Tracy e o Príncipe Valente.Grupo Abril, que passou a investir também em distribuiçãodas suas revistas. No final <strong>do</strong>s anos 50 e ao longo dadécada seguinte o Grupo Abril inovaria no lançamentode revistas como Manequim, no campo da moda, Claudia,para o público feminino, e Quatro Rodas, toman<strong>do</strong> caronano sucesso da indústria automobilística. Ofereceu aindaobras de clássicos da literatura em fascículos vendi<strong>do</strong>s embanca de jornal, que ainda hoje resistem e lançou a revistaRealidade buscou competir, por pouco tempo, com O Cruzeiro,mas que não sobreviveu por muito tempo.Quem conseguiu enfrentar O Cruzeiro e vencê-loforam os irmãos Bloch que em 1952 lançam a Manchete,cópia <strong>do</strong> projeto gráfico da Paris Match francesa e buscavao público leitor cosmopolita das grandes cidades. Fotosimensas, de páginas inteiras ou páginas duplas e grandesreportagens sobre o cotidiano, o Jet set internacional, osartistas de Hollywood e as socialites cariocas e paulistanas.Inovava e ousava. Publicou uma foto de Marilyn Monroenua em 1955 e contratava cronistas e escritores <strong>do</strong> calibrede Fernan<strong>do</strong> Sabino, Paulo Mendes Campos e RubemBraga para entremearem as reportagens. Humoristascomo Sérgio Porto e Leon Eliachar e o colunista IbrahimSued também faziam parte <strong>do</strong> sucesso da Manchete, queapoiou decisivamente o projeto de Brasília, e fez váriasreportagens sobre a capital que ia sen<strong>do</strong> construída porJuscelino. A edição especial sobre Brasília esgotou em 48horas e vendeu quase um milhão de exemplares.


475A Experiência Democrática(1946-1964)A arquitetura brasileira então despontava como ofutebol como um símbolo de “país <strong>do</strong> futuro”, aberto paraa modernidade e o progresso. Nosso modernismo arquitetôniconão poderia ter ganha<strong>do</strong> ícone mais poderoso parasua difusão que uma nova capital, modernista, a ser construídano meio <strong>do</strong> Planalto Central, transforman<strong>do</strong> OscarNiemeyer no arquiteto mais famoso <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.A nova capital era, e é, marcada de simbolismos emsua arquitetura e urbanismo. Símbolo máximo <strong>do</strong> modernismono século XX, é o ícone da arquitetura brasileira, ede sua projeção internacional prestigiosa. A comissão queescolheu o projeto vence<strong>do</strong>r optou pela simplicidade <strong>do</strong>straços de Lúcio Costa, que defende que nada mais fez querabiscar um “X”. Em suas palavras: “(...) gesto primário dequem assinala um local ou dele toma posse: <strong>do</strong>is eixos cruzan<strong>do</strong>-seem ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz”.O arqueamento <strong>do</strong> eixo horizontal se deve a necessidadede conformação da topografia local à natureza, princípiocaro aos modernistas desde, no mínimo, Frank LloydWright. Nascia daí o avião.Se Brasília era a síntese <strong>do</strong> mais bem-sucedi<strong>do</strong> modelode planificação econômica <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> contemporâneo– o plano de metas – também a cidade seria planejada,escalonada e dividida, em setores, áreas para cada um <strong>do</strong>sfins urbanos, entremean<strong>do</strong> zonas residenciais e comerciaisque se sucediam sem a existência de cruzamentos. Pistascentrais de velocidade e pistas laterais de circulação local.Edifícios eleva<strong>do</strong>s em pilotis que já tinham si<strong>do</strong> testa<strong>do</strong>sno belíssimo palácio Capanema <strong>do</strong>s anos de 1940 e nãoimpedem a circulação <strong>do</strong>s transeuntes. A cidade flutua.O avião decola. Era o símbolo de um <strong>Brasil</strong> desenvolvimentistavolta<strong>do</strong> para o progresso e a modernidade.Na praça <strong>do</strong>s Três Poderes percebe-se a centralidadegeográfica <strong>do</strong> Congresso Nacional em relação aosdemais poderes. É o cockpit <strong>do</strong> avião que encabeça seueixo monumental. Quem pilota a aeronave <strong>Brasil</strong> é o povo.O urbanismo celebra a democracia.De cada um <strong>do</strong>s la<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Congresso Nacional, <strong>do</strong>isministérios se destacam <strong>do</strong> monolitismo quadra<strong>do</strong> <strong>do</strong>sdemais. Transparentes, com espelhos d’água, belíssimosde serem admira<strong>do</strong>s, o Ministério da Justiça e o Ministériodas Relações Exteriores simbolizam o povo que fala paradentro – com justiça – e o povo que se expressa para fora.Utopia arquitetônica. Transparentes também são o Palácio<strong>do</strong> Executivo e da Suprema Corte. O poder deve ser transparenteao povo, que o observa, vigia e fiscaliza. São tantasas associações permitidas pela cura<strong>do</strong>ria de Brasília quepoderíamos fazê-la durar to<strong>do</strong> o capítulo. Melhor percebê--las ao vivo. Pouparei o leitor que, se ainda não conhece acapital, terá que se mudar pra lá assim que for aprova<strong>do</strong> noConcurso de Admissão à Carreira Diplomática.O concretismo despontou na poesia graças à atuaçãoem São Paulo <strong>do</strong>s irmãos Campos – Humberto e Harol<strong>do</strong>– e Décio Pignatari, editores a partir de 1953 da


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>476revista Noigandres. Era a poesia que valorizava a forma.A forma física e visual. O elemento semântico é coadjuvante.A aparência na composição das palavras se torna arquitetura,não no senti<strong>do</strong> metafórico, mas no senti<strong>do</strong> explícito,visual <strong>do</strong> termo. O poeta é um operário da construção poéticae a palavra, seu tijolo. Repudiavam o expressionismo edefendiam a racionalidade. Repudiavam a vinculação abstrataentre as palavras em prol de uma associação concretae visual entre elas. O racionalismo radical de sua poesia tinhapor intuito encerrar a distinção entre forma e conteú<strong>do</strong>. Resgata-seMaiakovski para quem a revolução na arte começavasempre na forma. Inicialmente importante na música eruditae nas artes plásticas – Max Bill, vence<strong>do</strong>r da Bienal de SãoPaulo em 1951 – foi no <strong>Brasil</strong> que pela primeira vez atingiu aliteratura.Ainda que estejamos cientes <strong>do</strong>s limites de umahermenêutica que vincule de mo<strong>do</strong> automático às correntesartísticas com as vicissitudes socioeconômicas de seutempo, parece-nos impossível não encontrar no concretismoa metáfora artística adequada para as transformaçõessocioeconômicas pelas quais passava o <strong>Brasil</strong> de JK.O manifesto concretista 395 tinha inspiração no Manifesto395 Alguns pressupostos <strong>do</strong> concretismo (1956): “*A poesia concretacomeça por assumir uma responsabilidade total perante a linguagem:aceitan<strong>do</strong> o pressuposto <strong>do</strong> idioma histórico como núcleo indispensávelde comunicação, recusa-se a absorver as palavras com meros veículosComunista, e a tentativa despir o poeta da mística de “gênioinspira<strong>do</strong>” identifican<strong>do</strong>-o com o povo, o trabalha<strong>do</strong>re o operário da construção civil. Isto se dava justo no momentode maior expressão que era a construção de umaNova Capital, visualmente e geograficamente simbólica.Era também o despontar da publicidade e <strong>do</strong> marketing,com seus logotipos e tipografias, desenhos mais quepalavras, slogans, que nos anos vin<strong>do</strong>uros seriam muitotributários <strong>do</strong> concretismo. Exerceriam também grandeinfluência sobre o tropicalismo.indiferentes, sem vida sem personalidade sem história - túmulos-tabu comque a convenção insiste em sepultar a ideia. * O poeta concreto não volta aface às palavras, não lhes lança olhares oblíquos: vai direto ao seu centro, paraviver e vivificar a sua facticidade.* O poeta concreto vê a palavra em si mesma- campo magnético de possibilidades - como um objeto dinâmico, umacélula viva, um organismo completo, com propriedades psicofisicoquímicastacto antenas circulação coração: viva. (...) * Contra a organização sintáticaperspectivista, onde as palavras vêm sentar-se como ‘cadáveres embanquete’, a poesia concreta opõe um novo senti<strong>do</strong> de estrutura, capazde, no momento histórico, captar, sem desgaste ou regressão, o cerne daexperiência humana poetizável. (...) * O poema concreto ou ideogramapassa a ser um campo relacional de funções. * O núcleo poético é posto emevidência não mais pelo encadeamento sucessivo e linear de versos, maspor um sistema de relações e equilíbrios entre quaisquer parses <strong>do</strong> poema.* Funções-relações gráfico-fonéticas (‘fatores de proximidade e semelhança’)e o uso substantivo <strong>do</strong> espaço como elemento de composição entretêmuma dialética simultânea de olho e fôlego, que, aliada à síntese ideogrâmica<strong>do</strong> significa<strong>do</strong>, cria uma totalidade sensível ‘verbivocovisual’, de mo<strong>do</strong> ajustapor palavras e experiência num estreito colamento fenomenológico,antes impossível.”


477A Experiência Democrática(1946-1964)“Beba Coca-Cola” de Décio Pignatari (1957) e capa da Revista Noigandres N o 5 (1958).Uma reação carioca, e praticamente apenas carioca, contra a orto<strong>do</strong>xia concretista<strong>do</strong>s pioneiros paulistas foi o neoconcretismo <strong>do</strong>s anos de 1960, cujo principal pioneiro foiFerreira Gullar. Os neoconcretistas tentaram humanizar a poética cientificista radical <strong>do</strong>sconcretistas, seu fetiche geométrico, sua crença de que eram operários de protótipos industriais.Procuraram resgatar a sensibilidade e o diálogo com o leitor/observa<strong>do</strong>r e valorizavamo simbólico sobre o racionalismo positivista <strong>do</strong>s paulistas. O debate entre as duas vertentes<strong>do</strong> concretismo foi acirra<strong>do</strong> e alcançou as artes plásticas, por meio das obras de escultorescomo Lygia Clark, Amílcar de Castro e Lygia Pape, adeptos <strong>do</strong> neoconcretismo, que convidamseus observa<strong>do</strong>res a tocarem e interagirem com suas obras. Os irmãos Campos tiveram


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>478ainda vasta atuação no campo da crítica literária e da tradução,que consideravam também uma forma de arte ede crítica e desta forma resgataram autores esqueci<strong>do</strong>s<strong>do</strong> passa<strong>do</strong> como Sousândrade.Para além <strong>do</strong> concretismo a poesia brasileira ia muitobem, obriga<strong>do</strong>, com poetas que já publicavam no perío<strong>do</strong>anterior que se renovavam como Carlos Drummondde Andrade, com uma poesia cada vez mais crítica e social,Vinicius de Moraes que fazia a virada popular e cotidianaaban<strong>do</strong>nan<strong>do</strong> o se chamou de “poeta <strong>do</strong> sublime”para uma poesia mais carnal, irônica e igualmente crítica,ao mesmo tempo que apurava a forma e compunha sonetosde tipos camonianos. Jorge de Lima publicou em 1952A Invenção de Orfeu e João Cabral de Melo Neto sua obra--prima Morte e Vida Severina (1955) que trata da vida difícil<strong>do</strong> migrante nordestino rumo ao litoral ten<strong>do</strong> como panode fun<strong>do</strong> o anseio pela terra. Poema de crítica atualíssimono contexto <strong>do</strong>s anos de 1950.Vivia-se também o pináculo da crítica literária brasileiracom Wilson Martins, Sérgio Milliet, Antônio Candi<strong>do</strong>(Formação da Literatura <strong>Brasil</strong>eira, 1958) Otto MariaCarpeaux (<strong>História</strong> da Literatura Ocidental em 8 volumes,iniciada em 1947 e concluída em mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s anos 50),com frutífero diálogo com os debates das demais CiênciasSociais enormemente polariza<strong>do</strong>s pela Guerra Fria. A geraçãoposterior a de Caio Pra<strong>do</strong> Jr. (Evolução Política <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>,1954), Sérgio Buarque (Visões <strong>do</strong> Paraíso, 1959) e GilbertoFreyre (Sobra<strong>do</strong>s e Mocambos, 1951) que seguiam prolíficospublican<strong>do</strong>, foi a de Josué de Castro (Geografia daFome, 1945), Victor Nunes Leal (Coronelismo, Enxada e Voto,1948), Raymun<strong>do</strong> Faoro (Os Donos <strong>do</strong> Poder, 1958), NelsonWerneck Sodré (Raízes Históricas <strong>do</strong> Nacionalismo <strong>Brasil</strong>eiro,1959), Celso Furta<strong>do</strong> (Formação Econômica <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, 1959)e Florestan Fernandes (Mudanças Sociais no <strong>Brasil</strong>, 1960)que legaram obras importantíssimas para a historiografia,como o leitor que chegou até aqui já foi capaz de perceber.Estes novos intérpretes <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> eram muito influencia<strong>do</strong>spela CEPAL e pelo Instituto Superior de Estu<strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>eiros, oISEB (1955), que, apesar de cria<strong>do</strong> no governo Café Filho, setornou a instituição porta-voz <strong>do</strong> nacionalismo intelectualno <strong>Brasil</strong> em oposição à ESG e aos futuros IPES e IBAD.Por fim, a literatura nacional vivia seu grande momento,como de resto, toda a cultura brasileira. Os destaquesem termos de criatividade foram Guimarães Rosa,com seu Grande Sertão Veredas (1956) e Clarice Lispectorcom obra de contos com Laços de Família (1960) ou romancescomo a Cidade Sitiada (1949). Enquanto Lispectora<strong>do</strong>ta uma postura existencialista de profunda densidadepsicológica em seus personagens, Rosa transforma o sertãode Minas Gerais numa gesta medieval épica, na quala linguagem ganha ritmo musical e a prosa contornospoéticos. A inovação sem precedentes na forma e na linguagemnão superam nem obscurecem o extraordináriovanguardismo também <strong>do</strong> tema de Grande Sertão onde a


479A Experiência Democrática(1946-1964)história <strong>do</strong> amor de Riobal<strong>do</strong> e Dia<strong>do</strong>rim envoltos em umcenário místico e mítico. Trata-se como sabemos de um deamor proibi<strong>do</strong>, maravilhoso e terrível que chocaria a boasociedade muito mais que as chanchadas semiexplícitas,se a boa sociedade tivesse li<strong>do</strong> Guimarães Rosa. Além demuita coragem e muito talento para escrever Grande Sertão,Rosa, demonstra uma sensibilidade e uma tolerânciaque já eram explícitas desde sua atuação como diplomataconceden<strong>do</strong> em Paris vistos não autoriza<strong>do</strong>s pelo governoVargas para judeus em fuga <strong>do</strong> nazismo 396 .Rosa e Clarice representam, como Fernan<strong>do</strong> Sabino(Encontro Marca<strong>do</strong>, 1956) e Lygia Fagundes Telles (Cirandade Pedra, 1955), o romance psicológico que demonstravao esgotamento <strong>do</strong> “ciclo” <strong>do</strong> regionalismo inicia<strong>do</strong> com aBagaceira (José Américo de Almeida, 1928). À exceção eraÉrico Veríssimo que segun<strong>do</strong> Wilson Martins fizera romancepsicológico na época <strong>do</strong> romance social (Olhai os Lírios<strong>do</strong> Campo, 1939) e na década <strong>do</strong> existencialismo se voltavapara a história <strong>do</strong> Rio Grande <strong>do</strong> Sul na trilogia O tempo e oVento, um <strong>do</strong>s maiores best-sellers <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> junto comA Muralha (Dinah Silveira de Queiroz em 1954), romancehistórico que seria o Tempo e o Vento <strong>do</strong>s bandeirantespaulistas, e Gabriela, Cravo e Canela (Jorge Ama<strong>do</strong>, 1958).396 Rosa faleceu aos 59 anos três dias depois de tomar posse na cadeira denúmero 2 da Academia <strong>Brasil</strong>eira de Letras, para a qual havia si<strong>do</strong> eleito 4 anosantes. Adiou o quanto pode a posse com me<strong>do</strong> de morrer depois.Santuza Cambraia Neves faz uma comparação interessanteentre as três vertentes eruditas que ela abordaem seu ensaio Os novos experimentos culturais <strong>do</strong>s anos1940/50. Diz a autora:Os três movimentos analisa<strong>do</strong>s – o abstracionismo nasartes plásticas, o concretismo na poesia e o <strong>do</strong>decafonismona música – compartilham diversas idéias eprocedimentos. Suas palavras de ordem são comuns:objetividade, concretude, racionalidade, funcionalidade,universalismo e desenvolvimentismo. Suas atitudesapresentam o mesmo componente combativo, típicodas performances vanguardistas. E um aspecto quechama atenção nestas experiências construtivistas éa sua tentativa singular de equacionar procedimentoshistoricamente incompatíveis. Assim, por exemplo, tantoos artistas plásticos de linha abstracionista quanto ospoetas paulistas, transitan<strong>do</strong> no terreno <strong>do</strong> erudito, defendiama integração <strong>do</strong> artista na sociedade industrial.(Naves, 2003, p. 294).A título de conclusão é interessante perceber comoNaves relê a ironia <strong>do</strong> despolitiza<strong>do</strong> movimento bossanovistacumprin<strong>do</strong> exatamente os preceitos <strong>do</strong> concretismo.As práticas vanguardistas caracterizadas por procedimentosradicais de ruptura com determinadastradições, não mantiveram acesas, entretanto, as suasfagulhas no <strong>Brasil</strong>. Entraram aqui com bastante força,a partir da década de 1930, mas não resistiram àsreinterpretações <strong>do</strong> modernismo que passaram a vigorar,principalmente a partir <strong>do</strong> início da década de1960, com a estética nacionalista <strong>do</strong> CPC e com outrosmovimentos que surgiram ao longo desta década namúsica popular. (...) O Canto <strong>do</strong> cisne dessa tendência


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>480de viés construtivista materializou-se no <strong>Brasil</strong> no terrenoda música popular com as inovações promovidaspela bossa nova. Isentos de programas e pouco afeitosa discussões intelectuais, os compositores que criarameste estilo musical, como João Gilberto e Tom Jobim,procederam, entretanto, de maneira convergente comas vanguardas construtivistas. Por um la<strong>do</strong> romperamcom longa tradição implantada no <strong>Brasil</strong>, desde a décadade 1930, vinculada a floreios estilísticos tanto na estruturamusical quanto na interpretação e inauguraramum estilo conciso, racional e funcional. Os músicos bossa-novistasrejeitaram o que consideravam uma diluição<strong>do</strong> operismo na música popular com o seu sentimentalismopiegas. Por outro, tentaram atualizar a músicabrasileira, aplican<strong>do</strong>-lhe procedimentos afina<strong>do</strong>s comas linhas <strong>do</strong> cool jazz e outras criações musicais que seguiramessa linha. (Naves, 2003, pp. 297-8)Para esta autora o desengajamento bossanovistanão resistiria à tropicália nos anos sessenta e às canções deprotesto da geração seguinte que incorporariam o ritmo ea harmonia da bossa nova, politizan<strong>do</strong> seus temas.


4818. O Regime Militar(1964-1985)8.1 Os generais presidentesGoverno Castelo Branco e a Institucionalização <strong>do</strong> Regime Autoritário (1964-1967).O Governo Costa e Silva e o AI-5 (1967-1969). O Governo Médici e os Anos de Chumbo (1969-74).O Governo Geisel e a Abertura Lenta, Gradual e Segura. (1974-79). O Governo Figueire<strong>do</strong> eo ocaso <strong>do</strong> Regime Militar brasileiro (1979-85).O Governo Castelo Branco (1964-67)A crescente radicalização política <strong>do</strong>s últimos meses <strong>do</strong> governo Goulart resultou naDitadura Civil-Militar instituída no <strong>Brasil</strong> a partir de 1964. Saudada como uma “Revolução Democrática”por grande parcela da sociedade civil, desde sua gênese, o movimento teve comocaracterística marcante justamente o fato de manter um alto grau de institucionalização. Aindanos primeiros dias, é instituí<strong>do</strong> o Coman<strong>do</strong> Supremo da Revolução, composto pelo comandante-em-chefe<strong>do</strong> Exército Artur da Costa e Silva, o Brigadeiro Francisco de Assis Correia deMelo e o vice-almirante Augusto Rademaker. Estes, com o auxílio <strong>do</strong> autor da “Polaca” (1937),Francisco Campos, lançaram o primeiro Ato Institucional (AI-1), que concedia aos “revolucionários”o direito de cassar mandatos legislativos, suspender direitos políticos e, entre outrospontos, convocava eleição indireta para o cargo de Presidente da República.Nome de consenso entre os golpistas, Humberto Castelo Branco é eleito Presidente,acompanha<strong>do</strong> pelo Vice, o civil José Maria Alkmin, político <strong>do</strong> PSD mineiro, que tinha si<strong>do</strong>Ministro da Fazenda <strong>do</strong> governo JK. O para<strong>do</strong>xo da manutenção de um discurso democráticoem um regime instaura<strong>do</strong> através das armas causou uma situação inusitada que, de acor<strong>do</strong>com Alessandra Carvalho:A despeito da fluidez e da incerteza institucional (…) foram mantidas as atividades partidárias e aseleições diretas para os cargos de verea<strong>do</strong>r, deputa<strong>do</strong>s estadual e federal, e sena<strong>do</strong>r, bem comode prefeito – excetuan<strong>do</strong>-se as capitais <strong>do</strong>s esta<strong>do</strong>s e os municípios classifica<strong>do</strong>s como áreas de


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>482segurança nacional e estâncias hidrominerais. Esse aspectodistinguiu o regime autoritário brasileiro de seuscongêneres latino-americanos e, acreditamos, conferiua ele uma dinâmica bastante peculiar 397 .A manutenção da legalidade <strong>do</strong>s parti<strong>do</strong>s que geraramo foco de descontentamento militar – com inserçãoinclusive nos quartéis – fazia parte <strong>do</strong> simulacro democráticoda ditadura. A ideia era construir uma ampla rede deapoio social a fim de que não fosse necessário recorrer àforça durante to<strong>do</strong> o perío<strong>do</strong> (como ocorreria na Argentinadurante a chamada “Guerra Suja” 398 ). Consenso com omínimo de coerção 399 .Neste contexto, é difundi<strong>do</strong> um discurso progressistae de “correção <strong>do</strong>s rumos” por parte <strong>do</strong>s gestores intelectuais<strong>do</strong> regime. Era necessário acabar com a corrupçãona política e, com base na Doutrina de Segurança Nacional(difundida pela ESG), suprimir da vida política quem querque parecesse ser comunista ou simpatizante. Herdeiros<strong>do</strong> positivismo salvacionista, os militares imaginavam que397 CARVALHO, Alessandra. “Elites políticas durante o regime militar: umestu<strong>do</strong> sobre os parlamentares da ARENA e <strong>do</strong> MDB”. Tese de Doutora<strong>do</strong>apresentada ao Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia<strong>do</strong> Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal <strong>do</strong> Rio deJaneiro. Rio de Janeiro, 2008.398 PEREIRA, Anthony W. Ditadura e repressão: o autoritarismo e o esta<strong>do</strong> de direitono <strong>Brasil</strong> no Chile e na Argentina. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2010. Pp. 35.399 SOARES, Samuel Alves. Controles e autonomia – As Forças Armadas e o sistemapolítico brasileiro (1974 – 1999). São Paulo: Editora Unesp, 2006.o país estava <strong>do</strong>ente e somente a “Revolução de 1964” iriacurá-lo 400 . Esta “utopia revolucionária” 401 balizava a “operaçãolimpeza”, que foi instituída logo nos primeiros dias deabril e durou três meses. Foi levada a cabo por elementosradicais e, muitas vezes, autônomos dentro <strong>do</strong> governo.Restava claro que a partir de então o Esta<strong>do</strong> estava a serviçoda luta contra a subversão, sen<strong>do</strong> utiliza<strong>do</strong>s to<strong>do</strong>s osrecursos disponíveis, desde prisões arbitrárias, passan<strong>do</strong>por exílio, tortura e mortes.Ao mesmo tempo que tentava controlar a “operaçãolimpeza”, o grupo castelista impunha a centralizaçãopolítica. No dia 13 de junho, foi cria<strong>do</strong> o Serviço Nacionalde Informações (SNI), com o objetivo de supervisionar ecoordenar as atividades de informação e contrainformaçãodentro <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> e também no exterior. Em mensagem enviadaao Congresso, o Presidente Castelo Branco mencionavaa necessidade <strong>do</strong> Poder Executivo possuir um órgãoque produzisse “informações seguras, oportunas e convenientementeanalisadas e avaliadas, que sirvam de baseàs múltiplas decisões a tomar, inclusive no quadro da própriaSegurança Nacional” 402 . Ainda no Congresso, Castelo400 CASTELO BRANCO, Carlos. Introdução à revolução de 1964; a queda de JoãoGoulart. Rio de Janeiro: Artenova, 1975.401 D’ARAÚJO, Maria Celina; SOARES, G. A. Dillon; CASTRO, Celso (Org.) Visões <strong>do</strong>golpe: a memória sobre 1964. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.402 FIGUEIREDO, Lucas. Ministério <strong>do</strong> Silêncio – A história <strong>do</strong> serviço secreto brasileirode Washington Luís a Lula – 1927-2005. Rio de Janeiro, Record, 2005. P. 125.


483O Regime Militar(1964-1985)Branco articula para retirar Ranieri Mazzili da presidência,organizan<strong>do</strong> a criação <strong>do</strong> Bloco Parlamentar Revolucionário,uma frente parlamentar de apoio ao governo quefoi fundamental para colocar Bilac Pinto na presidência <strong>do</strong>Congresso Nacional.O diálogo fluí<strong>do</strong> com o Legislativo levou à aprovaçãode leis autoritárias como a Lei Suplicy, criada a fim dereprimir os órgãos de representação estudantis e a Lei deSegurança Nacional. A Lei da Reforma Eleitoral adiava aeleição para o Executivo Federal para outubro de 1966 epermitia a elegibilidade <strong>do</strong>s sargentos (reivindicação <strong>do</strong>smovimentos que foi estopim para o golpe) 403 . Foi aindaaprovada a Leis das Inelegibilidades, que impediu candidatosfortes de oposição – como o Marechal Henrique Lott(Guanabara) ou Paes de Almeida (Minas Gerais) – concorressemao cargo de governa<strong>do</strong>r.Mesmo contan<strong>do</strong> com tantos mecanismos de intervenção,o resulta<strong>do</strong> das eleições não agra<strong>do</strong>u os setoresmais radicais <strong>do</strong> governo. Dos onze Esta<strong>do</strong>s que escolhiamseus governa<strong>do</strong>res naquele ano, foram cinco vitórias da403 Apesar destas medidas, grupos que estavam “à direita” <strong>do</strong> Presidente,pressionaram Castelo Branco para que este não permitisse as eleições de1965, e criaram a Liga Democrática Revolucionária, propon<strong>do</strong> o fechamento<strong>do</strong> Congresso a fim de impedir um possível retorno de políticos liga<strong>do</strong>s aovarguismo.oposição, cinco da situação 404 , além da intervenção federalem Alagoas, uma vez que nenhum candidato conseguiumaioria <strong>do</strong>s votos (algo exigi<strong>do</strong> pela Lei da Reforma Eleitoral,antigo anseio udenista). Para evitar a radicalização<strong>do</strong>s setores mais conserva<strong>do</strong>res, Castelo lança o AI-2 405 ,suspenden<strong>do</strong> a Constituição de 1946, as eleições diretaspara Presidente e desativan<strong>do</strong> o pluripartidarismo. Após algumassemanas sem parti<strong>do</strong>s no <strong>Brasil</strong>, é cria<strong>do</strong> o sistemabipartidário, que vai ao encontro da ideia <strong>do</strong>s militares decriar um sistema semelhante ao das democracias anglo--saxãs. Tal medida traz como resulta<strong>do</strong> a criação da AliançaRenova<strong>do</strong>ra Nacional (ARENA), que aglutinaria os parlamentaresque apoiavam o regime, e <strong>do</strong> Movimento Democrático<strong>Brasil</strong>eiro (MDB), que seria uma frente de oposiçãoao governo, reunin<strong>do</strong> aqueles que discordavam <strong>do</strong>s rumostoma<strong>do</strong>s pelos militares 406 .404 A oposição vence nos Esta<strong>do</strong>s da Guanabara, Minas Gerais, Mato Grosso,Santa Catarina e Rio Grande <strong>do</strong> Norte, enquanto os governistas ganham naParaíba, Pará, Goiás, Paraná e Maranhão.405 Dentre outros pontos, o AI-2 determina: aumento <strong>do</strong> número de Ministros<strong>do</strong> STF de 11 para 16; reabertura <strong>do</strong> processo de punições <strong>do</strong>s adversários<strong>do</strong> regime; impossibilidade de reeleição <strong>do</strong> Presidente da República; direitoao Presidente de decretar esta<strong>do</strong> de sítio por 180 dias sem consulta préviaao Congresso, de ordenar intervenção federal nos Esta<strong>do</strong>s, de decretar orecesso <strong>do</strong> Congresso e demitir funcionários civis e militares “incompatíveiscom a revolução”, além de emitir atos complementares e baixar decretos-leis.406 SCHMIT, Rogério. Parti<strong>do</strong>s políticos no <strong>Brasil</strong> (1945 – 2000). Rio de Janeiro:Jorge Zahar Editor, 2000.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>484Em seguida, entram em vigor o AI-3, que determinavaas eleições indiretas para governa<strong>do</strong>res e a nomeaçãode prefeitos das capitais pelos governa<strong>do</strong>res <strong>do</strong>s respectivosesta<strong>do</strong>s; a Lei de Imprensa, que limitava as atividadesda mídia no país; e o AI-4, que procurava legitimar as medidasde exceção já elaboradas. Para isto, o Ato convocao Congresso para votar, discutir e promulgar uma novaConstituição.Ao logo <strong>do</strong> primeiro governo militar, a oposição tentou,ainda que com muitas dificuldades, articular algum movimentode resistência. Destacam-se a eclosão das grevesestudantis e pequenas ações operárias, que a Frente Amplatentaria articular nacionalmente. Essa iniciativa reunia alguns<strong>do</strong>s principais nomes da política nacional pré-1964 com ointuito de pressionar pelo retorno da democracia: CarlosLacerda, Juscelino Kubistchek e João Goulart. No mesmoUruguai em que João Goulart encontrava-se exila<strong>do</strong> estavaLeonel Brizola 407 , que obteve dinheiro cubano para montaro Movimento Nacionalista Revolucionário.No plano econômico, o Plano de Ação Econômica<strong>do</strong> Governo (PAEG) tinha por objetivo sustar o “populismofinanceiro” <strong>do</strong> governo anterior e promover o arrocho salariale a intervenção política nos sindicatos que407 Brizola estava afasta<strong>do</strong> de seu cunha<strong>do</strong> desde o golpe, pois acreditava queJango deveria ter resisti<strong>do</strong> com armas ao movimento.colocan<strong>do</strong> interventores que logo foram substituí<strong>do</strong>spor dirigentes anódinos, (...) começaram uma forma depeleguismo sui generis, pois embora os sindicatos tivessemfunção de organismos auxiliares <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, nãoparticipavam minimamente de sua gestão (...) 408 .O setor de telecomunicações tinha particular relevânciapolítica na ideologia da segurança nacional. Eraimpreterível defender as fronteiras – a Floresta Amazônicatorna-se foco crescente de preocupação <strong>do</strong>s militares – econtrolar o território nacional a fim de inibir qualquer tentativade perturbação da ordem por comunistas, terroristase subversivos. Para tal fim, os meios de comunicação deveriamser cada vez mais desenvolvi<strong>do</strong>s.No intuito de instalar uma rede básica de telecomunicações,o governo havia cria<strong>do</strong> o Ministério das Comunicações,suporte político da Eletrobras. Sete anos depois,tem origem a Telecomunicações <strong>Brasil</strong>eiras S. A. (Telebras),cujo objetivo era coordenar a telecomunicação em to<strong>do</strong>o país. Segun<strong>do</strong> Alzira Alves Abreu e Fernan<strong>do</strong> Lattman--Weltman, a Embratel “com um plano de estações repeti<strong>do</strong>rase canais de micro-ondas, permitiria a formação e aconsolidação das redes de televisão no país” 409 . Desta forma,408 OLIVEIRA, Francisco de. “Ditadura Militar e Crescimento Econômico:A Redundância Autoritária”. In. REIS, Daniel Aarão, RIDENTI, Marcelo & MOTA,Rodrigo Patto de Sá. O golpe e a ditadura militar 40 anos depois (1964 – 2004).Bauru, SP: EDUSC, 2004.409 ABREU, Alzira e LATTMAN-WELMAN, Fernan<strong>do</strong>. “Uma instituição ausente nosestu<strong>do</strong>s de transição: a mídia brasileira” In: A Democratização no <strong>Brasil</strong> – atorese contextos. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.


485O Regime Militar(1964-1985)viabilizou-se a ampliação maciça das emissoras de televisão,como veremos na sessão cultural. Essas emissoras procurarampopularizar suas grades de programação, o que setornou viável pelo crescimento significativo da venda deaparelhos no país. Entre 1967 e 1979, aumenta em quase25% a venda de aparelhos em preto e branco. Neste momento,a classe média e a elite elegem a TV como principalmeio de entretenimento, informação e comunicação e,aproveitan<strong>do</strong>-se disso, é criada a TV Globo, que em poucotempo tornou-se a principal emissora <strong>do</strong> país. Também osmilitares percebem a força deste meio de comunicação,utilizan<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> mesmo como um difusor da ideologia <strong>do</strong>regime 410 .Ao mesmo tempo, a modernização <strong>do</strong>s meios decomunicação passava pela necessidade de importaçãode equipamentos gráficos e pela construção de novosedifícios para as redações 411 Os capitais necessários eramobti<strong>do</strong>s através de empréstimos facilita<strong>do</strong>s nos bancos defomento <strong>do</strong> governo ou publicidades oficiais. A criação410 Propagandas oficiais nos intervalos das suas telenovelas com dizeres como“Até 1964, o <strong>Brasil</strong> era o país <strong>do</strong> futuro. E então o futuro chegou.” foramindispensáveis para o regime. A expansão da Rede Globo, por exemplo,coincidiu com o início das transmissões ao vivo das partidas e a consolidação<strong>do</strong> Campeonato <strong>Brasil</strong>eiro.411 O prédio <strong>do</strong> Jornal <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, considerada uma das “obras faraônicas” <strong>do</strong>perío<strong>do</strong>. Localiza<strong>do</strong> próximo à ponte Rio-Niterói, que hoje abriga o INTO(Instituto Nacional de Trauma-ortopedia), é um exemplo claro destasimbiose.<strong>do</strong> Grupo Executivo da Indústria de Papel e Artes Gráfico(GEIPAG), que analisava as importações de equipamentosno setor e era liga<strong>do</strong> ao Ministério da Indústria e Comércio,é uma prova palpável deste esforço <strong>do</strong> governo 412 .Obviamente, se o governo garantia a expansão <strong>do</strong>smeios de telecomunicações, ele também faria com este setoro que tentava fazer com os outros: controlá-lo. Estariamassim consolida<strong>do</strong>s os chama<strong>do</strong>s “pilares básicos” de umaditadura, uma vez que a polícia política e a espionagem jáexistiam; instituía-se agora a formulação de um aparelhopropagandístico e de censura. A mídia seria fundamentaltambém para aferir a legitimação <strong>do</strong> regime através da divulgaçãode suas benfeitorias e/ou ocultação de fatos ouíndices que manchariam a imagem <strong>do</strong> governo. De acor<strong>do</strong>com Anne-Marie Smith:O regime acreditava que uma imprensa fidedigna seriaum instrumento importante para garantir o êxito deseu desempenho em legitimar-se. Alguém precisavaproclamar as conquistas <strong>do</strong> regime. Os departamentosde relações públicas oficiais se esforçavam arduamenteem divulgar as informações sobre construção de novasestradas, pontes e usinas hidrelétricas, e a imprensa poderiaser um forte alia<strong>do</strong> <strong>do</strong> regime para a disseminaçãodessa informação (embora, ao mesmo tempo, umaameaça se ela pusesse a questionar ou criticar os custossociais dessas realizações) 413 .412 Idem, Ibidem.413 SMITH, Anne-Marie. Um acor<strong>do</strong> força<strong>do</strong> – O consentimento da imprensa àcensura no <strong>Brasil</strong>. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>486A produção de uma boa imagem <strong>do</strong> governo eraalvo de debates acalora<strong>do</strong>s dentro <strong>do</strong>s círculos militares.Ainda no governo Castelo Branco, levantou-se a hipóteseda criação de um órgão de propaganda, porém o próprioPresidente mostrou-se contra, pois associava esta iniciativaaos tempos <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Novo com o DIP 414 . A criação daAssessoria Especial de Relações Públicas (AERP) 415 tevecomo embrião um certo desgaste da imagem de Costa eSilva no momento da sucessão, dan<strong>do</strong> origem a um grupode trabalho para “favorecer uma imagem <strong>do</strong> candidato eequacionar o problema de comunicação social no <strong>Brasil</strong>,como vistas ao futuro governo” 416 . Oficialmente, foi instituí<strong>do</strong>no dia 15 de janeiro de 1968, pelo decreto número62.119, como uma assessoria, e não um “serviço nacional”– tu<strong>do</strong> para tentar afastar-se da sombra funesta de LourivalFontes ou Joseph Goebbels.Governo Costa e Silva (1967-1969)Ainda que tivesse si<strong>do</strong> apoia<strong>do</strong> pelo grupo militarmais conserva<strong>do</strong>r, alcunha<strong>do</strong> de “linha-dura”, o segun<strong>do</strong>414 FICO, Carlos. Reinventan<strong>do</strong> o otimismo: ditadura, propaganda e imagináriosocial no <strong>Brasil</strong>. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1997.p 91 – 99.415 No início <strong>do</strong> governo Geisel a AERP foi desativada, porém após a derrotaeleitoral em 1974, acaba sen<strong>do</strong> retomada como Assessoria de RelaçõesPúblicas (ARP). Idem, ibidem.416 Idem, Ibidem.Presidente militar, Artur da Costa e Silva, manteve inicialmentea linha moderada <strong>do</strong>s castelistas. Concentrava-seo governo em eliminar os pontos de “estrangulamento”da economia, através <strong>do</strong> Programa Estratégico <strong>do</strong> Desenvolvimento(1967), que dava ênfase aos investimentos naprodução industrial e em infraestrutura com o intuito deestimular o merca<strong>do</strong> interno. No plano da política externa,o alinhamento <strong>do</strong> governo Castelo Branco dará lugar auma diplomacia – chamada pelo chanceler de Diplomaciada Prosperidade – que resgatava muitos <strong>do</strong>s antigos ideaisda Política Externa Independente. Entre outras coisas,recuava na ideia de criar uma Força Internacional de Pazpara servir de polícia ideológica na região, como o governoCastelo tinha en<strong>do</strong>ssa<strong>do</strong> no envio de tropas brasileirasà República Dominicana em 1965.O contexto era de turbulência internacional. Agitaçõesocorriam tanto no mun<strong>do</strong> socialista (Primaverade Praga) quanto no mun<strong>do</strong> capitalista (Maio de 1968 naFrança), ten<strong>do</strong> um impacto imediato na sociedade brasileira,o que levaria o regime a promover simultaneamenteo aumento da repressão e uma corrida para buscar crescimentoacelera<strong>do</strong> que desmobilizasse a oposição.Operários promovem greves significativas em Osascoe Contagem, sen<strong>do</strong> duramente reprimi<strong>do</strong>s pelo regimeque, com o objetivo de sufocar as greves, concedeum abono emergencial elevan<strong>do</strong> os salários. O movimentoestudantil, mesmo na ilegalidade, ganha força com o


487O Regime Militar(1964-1985)assassinato <strong>do</strong> estudante paraense Edson Luís após protestono restaurante Calabouço no centro <strong>do</strong> Rio de Janeiro.Seu corpo foi leva<strong>do</strong> até a Assembleia Legislativa daGuanabara como forma de denunciar os arbítrios de umregime que se dizia democrático. Intelectuais e camadasmédias participam de passeatas como a Passeata <strong>do</strong>s CemMil 417 . As guerrilhas de esquerda já se articulavam nas cidades,objetivan<strong>do</strong> a revolução comunista no país 418 . Atédetermina<strong>do</strong>s políticos posicionavam-se de forma críticaao governo, como demonstra<strong>do</strong> também no assertivodiscurso de Márcio Moreira Alves. Encontrava-se posto umdilema para os militares: permitir os crescentes protestos emanter a fachada democrática ou “fechar” definitivamenteo regime? A negativa <strong>do</strong> Congresso – de maioria arenista– em permitir abertura de processo contra Márcio MoreiraAlves selou a decisão <strong>do</strong> governo naquela mesma madrugadade dezembro de 1968. Defendiam os deputa<strong>do</strong>s deoposição e situação a inviolabilidade <strong>do</strong> mandato parlamentar.Comemoraram a vitória cantan<strong>do</strong> o hino nacional.O Congresso seria fecha<strong>do</strong> no dia seguinte.Com a decretação <strong>do</strong> AI-5, em 13 de dezembro, ogoverno federal passava a ter o direito de, em nome dasegurança nacional, intervir nos Esta<strong>do</strong>s e em alguns municípios;poderia promover a suspensão de direitos políticospor dez anos e a cassação de mandatos daquelesque ameaçassem o regime; estava permiti<strong>do</strong> o confisco debens “de to<strong>do</strong>s quantos tenham enriqueci<strong>do</strong>, ilicitamente,no exercício de cargo ou função pública”; efetuava-se o fim<strong>do</strong> habeas corpus para crimes políticos; e, através <strong>do</strong> atocomplementar 38, o Congresso é fecha<strong>do</strong> por tempo indetermina<strong>do</strong>.Naquele momento, tornava-se claro que a “Revoluçãode 1964” não seria mais apenas uma temporária“correção de rumos” a fim de “restabelecer a ordem” a devolução<strong>do</strong> poder aos civis era adiada para as calendas gregas.O autor Carlos Fico ressalta que é a partir de 1968 que acensura passa a preocupar-se “de maneira mais enfática”com questões políticas, realizan<strong>do</strong> o que ele chama deuma “dupla censura” no país. Para muitos historia<strong>do</strong>res, esteseria o “golpe dentro <strong>do</strong> golpe” 419 .O AI-5 foi o último ato relevante <strong>do</strong> governo Costae Silva. O Presidente era, poucos meses depois, diagnostica<strong>do</strong>com trombose cerebral, impossibilitan<strong>do</strong> sua permanênciano poder. Fica ainda mais óbvia a ditadura <strong>do</strong>smilitares com a solução encontrada para substituir Costa e417 Os slogans eram “mataram um estudante, podia ser seu filho!”, “os velhos nopoder, os jovens no caixão!” e “bala mata fome?”.418 FERREIRA, Jorge e AARÃO, Daniel (orgs). As esquerdas no <strong>Brasil</strong>. Revolução edemocracia (1964...), volume 3. Rio de Janeiro: Civilização <strong>Brasil</strong>eira, 2007.419 Outros autores, no entanto, contestam esta denominação, ressaltan<strong>do</strong> queo regime já era bastante autoritário antes mesmo de 1968 e que o AI-5 seriaapenas um reforço deste autoritarismo, não uma inovação.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>488Silva, evitan<strong>do</strong> a posse <strong>do</strong> Vice-Presidente civil, Pedro Aleixo.Assume o governo, no dia 31 de agosto de 1969, umaJunta Militar (chamada de Junta Governativa Provisória),composta pelo General Aurélio de Lira Tavares (Ministro <strong>do</strong>Exército), pelo Almirante Augusto Rademaker (Ministro daMarinha) e pelo Brigadeiro Márcio de Sousa e Melo (Ministroda Aeronáutica). Era um desfecho gritantemente inconstitucional,já que a linha sucessória legal passava peloVice-Presidente.A passagem <strong>do</strong> poder para a Junta se deu nomesmo momento em que a oposição inaugurava criativamenteuma nova maneira de enfrentar o regime, naqueleque foi o ato mais espetacular <strong>do</strong>s movimentos deluta armada: o sequestro <strong>do</strong> Embaixa<strong>do</strong>r estadunidenseCharles Elbrick, em 4 de setembro de 1969. O governocede às exigências <strong>do</strong>s revolucionários – libertação deprisioneiros, leitura de um manifesto em rede de TV – eedita imediatamente uma série de atos institucionais queaprofundam o fechamento <strong>do</strong> regime. Parecia o início deuma grande instabilidade política. A reabertura <strong>do</strong> Congressopara a votação da Emenda Constitucional n o. 1, quepromovia profundas mudanças na Constituição de 1967,não conseguiu amenizar o clima de incerteza na políticanacional. Ao final de outubro, os militares tentam reduziras tensões, promoven<strong>do</strong> a antecipação das eleições paraPresidente.Governo Emílio Garrastazu Médici (1969-1974)A eleição indireta de Emílio Garrastazu Médici garantiaa manutenção <strong>do</strong>s militares da “linha-dura” no poder. Se,na política externa, as bases da “Diplomacia da Prosperidade”são mantidas pelo chanceler Mario Gibson Barbosa emsua “Diplomacia <strong>do</strong> Interesse Nacional”, internamente, ogoverno Médici é marca<strong>do</strong> pelo aprofundamento da centralizaçãopolítica. A escolha meticulosa de cada um <strong>do</strong>sgoverna<strong>do</strong>res <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s em 1970 420 e as intervenções naARENA são algumas das ações autoritárias <strong>do</strong> novo Presidente<strong>do</strong> país. Com o respal<strong>do</strong> das urnas nas eleições municipais,o tricampeonato na Copa <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> Méxicoe o Legislativo <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> pelo parti<strong>do</strong> governista, Médiciconstruiria um ambiente perfeito para realizar o governoconsidera<strong>do</strong> o mais bem-sucedi<strong>do</strong> das duas décadas deRegime Militar 421 .Em termos econômicos, desde 1968, as coisas caminhavamalém das expectativas. O crescimento acelera<strong>do</strong>420 Apenas o Esta<strong>do</strong> da Guanabara tem um governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> MDB, Chagas Freitas.421 Nas eleições municipais de 1972, a Arena conseguiu 80% <strong>do</strong>s Executivos e85% das Câmaras Municipais, ainda que seja importante destacar que houvequase 30% de abstenção. Nem mesmo a tentativa malograda de PedroAleixo - que deixara a ARENA após ser preteri<strong>do</strong> na sucessão de Costa eSilva - de criar um Parti<strong>do</strong> Democrático Republicano, fiel aos princípios da“Revolução de 1964”, abalaria a confortável situação política na Praça <strong>do</strong>s TrêsPoderes.


489O Regime Militar(1964-1985)<strong>do</strong> PIB favoreceu a criação de um merca<strong>do</strong> de trabalhomarca<strong>do</strong> por situação próxima ao <strong>do</strong> pleno emprego. <strong>Brasil</strong>eirose brasileiras passam a ser consumi<strong>do</strong>res vorazes<strong>do</strong>s bens produzi<strong>do</strong>s pelas grandes empresas nacionais emultinacionais que seguiam entran<strong>do</strong>, de mo<strong>do</strong> cada vezmais otimista, no <strong>Brasil</strong>. O “Milagre Econômico” criava milhõesde novos trabalha<strong>do</strong>res – empregadas <strong>do</strong>mésticas,ambulantes, técnicos de automobilísticas, emprega<strong>do</strong>s daconstrução civil, etc. – que tinham a satisfação <strong>do</strong> consumo,o trabalho, a competitividade e o individualismo, comotemas centrais de sua cultura política 422 . Isso era retrata<strong>do</strong>em novelas como Beto Rockefeller da TV Tupi, que tinha LuizGustavo no inescrupuloso papel principal.Enquanto isso, os muitos jovens que buscavam noenfrentamento revolucionário o caminho para pôr fim àDitadura – e ao capitalismo – estavam perden<strong>do</strong> a guerra.Movimentos da esquerda armada como ALN e MR-8,depois <strong>do</strong> sucesso inicial no sequestro de Elbrick, não resistemao terrorismo de Esta<strong>do</strong> e à eficiência <strong>do</strong>s serviçosde informação. Em pleno ano de 1972, restava apenas umprojeto ambicioso, organiza<strong>do</strong> pelo PC <strong>do</strong> B: a guerrilha fo-422 FURTADO, João Pinto. “Engajamento Político e Resistência Cultural emMúltiplos Registros: Sobre ‘Transe, Trânsito’, Política e Marginalidade Urbananas décadas de 1960 a 1980”. In:. AARÃO, Daniel Reis, MOTTA, Rodrigo PattoSá e RIDENTI, Marcelo. O golpe e a ditadura militar – 40 anos depois (1964-2004)”. Edusc, São Paulo, 2004.quista na floresta Amazônica. A Guerrilha <strong>do</strong> Araguaia foio movimento arma<strong>do</strong> mais dura<strong>do</strong>uro contra o regime.Os militares levaram quase <strong>do</strong>is anos para derrotar os comunistasno interior <strong>do</strong> Pará.Ao mesmo tempo que eram mobiliza<strong>do</strong>s “milharesde homens” para combater o movimento de esquerda noNorte <strong>do</strong> país, o regime militar estava em festa. Contra umaoposição simplista, que opõe o chama<strong>do</strong> perío<strong>do</strong> de “Anosde Chumbo” ao <strong>do</strong> “Anos de Ouro”, historia<strong>do</strong>res como JanaínaMartins Cordeiro afirmam que o governo Médici foimuitas vezes, os <strong>do</strong>is ao mesmo tempo, ou ainda: se foium e outro, é preciso perceber que há um enorme espaçoentre quem os viveu como anos de ouro e quemos viveu como anos de chumbo, configuran<strong>do</strong>, entreum polo e outro, uma diversidade enorme de comportamentossociais 423 .Emblemática <strong>do</strong> momento festivo foi a grande comemoraçãopromovida em torno <strong>do</strong> sesquicentenário daindependência <strong>do</strong> país. Diversos eventos foram cria<strong>do</strong>spelo governo; os mais destaca<strong>do</strong>s seriam a reedição delivros acerca <strong>do</strong> processo de independência, liga<strong>do</strong>s aoIHGB, o lançamento de novas notas de Cr$ 500,00 – trazen<strong>do</strong>a reprodução de uma série de mapas históricos <strong>do</strong>423 CORDEIRO, Janaína Martins. “Anos de chumbo ou anos de ouro? A Memóriasocial sobre o governo Médici.” Revista Estu<strong>do</strong>s Históricos, Rio de Janeiro, vol.22, n o . 43, janeiro-junho de 2009, pp. 85-104.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>490<strong>Brasil</strong> –, o já tradicional desfile <strong>do</strong> 7 de setembro, especialmenteturbina<strong>do</strong> em 1972, e, é claro, um torneio de futebolprotagoniza<strong>do</strong> pela seleção tricampeã mundial 424 .O auge da campanha ufanista relacionan<strong>do</strong> o futebolao crescimento nacional ocorreu, de fato, com a participaçãoe a vitória <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> na Copa de 1970. Sloganscomo “Ninguém segura este país”, “Ontem, hoje, sempre,<strong>Brasil</strong>” e “<strong>Brasil</strong>, ame-o ou deixe-o”, embala<strong>do</strong>s pela marchinha“Pra frente <strong>Brasil</strong>” 425 , acompanharam a seleção desdesua partida para o México até a volta triunfal, com os joga<strong>do</strong>rescarregan<strong>do</strong> a taça Jules Rimet em carro aberto nasprincipais capitais <strong>do</strong> país 426 . Neste contexto, elabora-setambém o “pacote de notícias”, no qual a imprensa recebia424 Aqui podemos notar outra semelhança entre as comemorações de 1822e 1972; em 1822, ainda nos primórdios <strong>do</strong> futebol no <strong>Brasil</strong>, também foirealiza<strong>do</strong> um campeonato de seleções para o evento. Este reuniu Paraguai,Argentina, Chile, Uruguai e <strong>Brasil</strong>, que foi o campeão. O esporte “paixãonacional” <strong>do</strong> brasileiro foi novamente usa<strong>do</strong> para a teatralização da imagemde uma nação “feliz e longeva” e, <strong>do</strong>is anos após o carnaval fora de épocaderiva<strong>do</strong> da conquista da Copa <strong>do</strong> México em 1970, serve como justificativapara promover um novo evento nacional, onde a sociedade reafirmaria seussentimentos e ideais coletivos, base da formação de sua identidade.425 A música tema da seleção é cantada por to<strong>do</strong>s, e em seus versos, a uniãoentre povo e time tão desejada pelos militares fica explícita (“Noventamilhões em ação/Pra frente <strong>Brasil</strong>, no meu coração/To<strong>do</strong>s juntos, vamospra frente <strong>Brasil</strong>/Salve a seleção!!!/De repente é aquela corrente pra frente,parece que to<strong>do</strong> o <strong>Brasil</strong> deu a mão!/To<strong>do</strong>s liga<strong>do</strong>s na mesma emoção, tu<strong>do</strong>é um só coração!/To<strong>do</strong>s juntos vamos pra frente <strong>Brasil</strong>!/Salve a seleção!/To<strong>do</strong>s juntos vamos pra frente <strong>Brasil</strong>!/Salve a seleção!”).426 JÚNIOR, Hilário Franco. A dança <strong>do</strong>s deuses: futebol, sociedade e cultura.São Paulo: Companhia das Letras, 2007.declarações ou notícias já prontas <strong>do</strong>s órgãos <strong>do</strong> governo.De números da economia à agenda oficial, os press releaseseram li<strong>do</strong>s em voz alta por funcionários <strong>do</strong> governo ou reproduzi<strong>do</strong>sem toca-fitas.Sob a presidência de Médici, seria cria<strong>do</strong> ainda o Sistemade Comunicação Social <strong>do</strong> Poder Executivo, cujo objetivoera “formular e aplicar a política capaz de, no campointerno, predispor, motivar e estimular a vontade coletivapara o esforço nacional de desenvolvimento e, no campoexterno, contribuir para o melhor conhecimento da realidadebrasileira” 427 . Segun<strong>do</strong> Carlos Fico:De fato, prevaleceu a exaltação otimista <strong>do</strong>s comerciaisda AERP, que falavam de “amor” e “participação” na fasemais truculenta da repressão – o governo <strong>do</strong> generalEmílio Garrastazu Médici. A televisão foi inundada poranúncios que destacavam valores ético-morais associa<strong>do</strong>sà “democracia cristã” e a supostos traços característicos<strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> e <strong>do</strong>s brasileiros, como a alegria, o otimismo,a cordialidade etc., tu<strong>do</strong> transparecen<strong>do</strong> a tradição,de razoáveis antecedentes, segun<strong>do</strong> a qual a pretensasingularidade da sociedade brasileira era garantida paraque o país se transformasse em uma grande potência 428 .A temática usada pela AERP/ARP era fundamentadana construção de um novo país durante o regime militar enas transformações realizadas pelo mesmo. A ideia de que427 ABREU, Alzira e LATTMAN-WELTMAN, Fernan<strong>do</strong>. Op.cit.428 FICO, Carlos. “A Pluralidade das Censuras e das Propagandas da Ditadura”. In.O golpe e a ditadura militar 40 anos depois (1964 – 2004). Bauru, SP: EDUSC, 2004.


491O Regime Militar(1964-1985)o <strong>Brasil</strong> estava seguin<strong>do</strong> o rumo certo com os militares nopoder era consubstanciada através de campanhas anuais,como “Em tempo de Construção”, de 1971 ou “Você Constróio <strong>Brasil</strong>”, com filmes cria<strong>do</strong>s e veicula<strong>do</strong>s na TV. Simultaneamente,há uma tentativa importante de regulamentaçãoda censura com a criação <strong>do</strong> decreto-lei nº 1077, de 26 dejaneiro de 1970, por parte <strong>do</strong> ministro da Justiça Alfre<strong>do</strong>Buzaid. Nele, o governo estabelece que “não serão toleradasas publicações e exteriorizações contrárias à moral eaos bons costumes”, alegan<strong>do</strong> mais uma vez que tais publicaçõespoderiam colocar em risco a segurança nacional.Assim, o Ministério da Justiça e a Polícia Federal ficavamencarrega<strong>do</strong>s de realizar a censura através <strong>do</strong> Conselho Superiorde Censura e <strong>do</strong> Juiza<strong>do</strong> de Menores.Vitoriosa a repressão sobre os “subversivos”, não era,pensava Médici, necessário um Presidente de perfil marcial,mas um técnico, modera<strong>do</strong>. A candidatura <strong>do</strong> ex-presidenteda Petrobras e Ministro <strong>do</strong> Supremo Tribunal Militar ErnestoGeisel ganhou força graças à influência <strong>do</strong> Ministro<strong>do</strong> Exército <strong>do</strong> governo Médici, Orlan<strong>do</strong> Geisel, seu irmão.O General Orlan<strong>do</strong> Geisel foi o principal cabo eleitoral <strong>do</strong>Presidente que viria a dar início ao processo de aberturapolítica no <strong>Brasil</strong> 429 .Governo Ernesto Geisel (1974-1979)Geisel, que representava a facção moderada castelistano seio das Forças Armadas, foi eleito indiretamentepelo Colégio Eleitoral de maioria arenista emoutubro de 1973 contra Ulysses Guimarães, candidato<strong>do</strong> MDB. Este último fizera campanha de rua nas principaiscapitais <strong>do</strong> país – com o presidente da Associação<strong>Brasil</strong>eira de Imprensa e candidato à vice, BarbosaLima Sobrinho – apesar da inexistência de voto direto.Perdeu, mas tornou-se a si, e ao MDB, conheci<strong>do</strong> emto<strong>do</strong> o país, o que traria dividen<strong>do</strong>s políticos muito embreve.O retorno <strong>do</strong> grupo de militares modera<strong>do</strong>s, conheci<strong>do</strong>scomo o grupo da Sorbonne ou castelistas, aopoder ocorre no final <strong>do</strong> ano de 1973, em um momentono qual o governo ainda desfrutava de bons índiceseconômicos, mesmo ten<strong>do</strong> Médici afirma<strong>do</strong> que “o povoia mal”. Cai por terra a tese de que a abertura seria consequênciada falência <strong>do</strong> Milagre, isso não era claro, nemmesmo provável, quan<strong>do</strong> se decidiu pela sucessão comGeisel em 1973. Segun<strong>do</strong> o historia<strong>do</strong>r Francisco CarlosTeixeira, “foi a eficiência econômica <strong>do</strong> governo Médici429 Uma das primeiras medidas <strong>do</strong> novo Presidente foi comunicar ao seuirmão que ele não continuaria Ministro. Alegava o Geisel Presidente quenão pegava bem para a imagem <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> ter <strong>do</strong>is irmãos generais: um naPresidência e um no Ministério. Romperam o contato e praticamente nãomais se falaram depois disso.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>492que favoreceu a sucessão Geisel – Golbery e, portanto, aabertura <strong>do</strong> regime” 430 .Os modera<strong>do</strong>s divergiam daqueles conheci<strong>do</strong>scomo “linha-dura” – militares próximos <strong>do</strong>s setores de informaçãoe liga<strong>do</strong>s ao aparato de repressivo – em especialno que dizia respeito aos rumos <strong>do</strong> regime. Desde o início,os castelistas desejavam a transição <strong>do</strong> poder para os civisnum futuro próximo. Defendiam a tese <strong>do</strong> chama<strong>do</strong> “golpecirúrgico”, alegan<strong>do</strong> que a “presença militar no centro <strong>do</strong>poder político trazia consequências nefastas para o profissionalismomilitar, já que amplia (...) a presença de valoresdistintos da hierarquia e da disciplina e que, portanto, debilitaseus próprios fundamentos” 431 . Enquanto isso, os “duros”pregavam a longevidade <strong>do</strong> regime e a manutenção <strong>do</strong>aparelho repressor.A partir de 1974, o grupo da Sorbonne colocaria emprática um projeto de liberalização por etapas <strong>do</strong> regimeque fora interrompi<strong>do</strong> na sucessão de Castelo Branco. Percebia-sea necessidade de conter a autonomia crescente <strong>do</strong>ssetores liga<strong>do</strong>s à “comunidade de segurança”, bem comode rechaçar os riscos de quebra da disciplina e hierarquiamilitar 432 . Era hora <strong>do</strong> retorno aos quartéis de forma “lenta,gradual e segura”, justificada da seguinte forma por Geisel:(...) Por que tem que ser lenta? Porque não pode ser umaabertura abrupta. (...) Ela tinha que ser gradual, progressiva.E tinha que ser segura, porque nós não podíamosadmitir uma abertura que depois não funcionasse evoltasse o regime de exceção. Era preciso que ela fossemontada e organizada de maneira que representasseuma solução definitiva 433 .Matias Spektor resume assim o processo de aberturabrasileiro:Em retrospectiva, a abertura incluiu: o progressivo fimda censura à imprensa, a redução <strong>do</strong> poder e independênciada comunidade de informações, o aban<strong>do</strong>no daprática das prisões políticas, fortalecimento da hierarquiamilitar, a anistia a exila<strong>do</strong>s políticos e a imposiçãode uma nova lei eleitoral enviesada a favor <strong>do</strong> parti<strong>do</strong>governante. Essa agenda coexistiu com o uso políticoda tortura e <strong>do</strong> terrorismo de Esta<strong>do</strong>, a censura e a intervençãooficial em sindicatos e no Congresso Nacional.A abertura teve altos e baixos, evoluin<strong>do</strong> de forma não--linear. A liberalização era uma briga sem final defini<strong>do</strong>na qual nenhum ator político sabia ao certo como equan<strong>do</strong> se chegaria a um fim. Assim, o regime militarbrasileiro levou dez anos para consolidar-se (1964-1973)e mais quinze para instituir eleições presidenciais universaise competitivas (1974-1989) 434 .430 TEIXEIRA, Francisco Carlos. “Crise da Ditadura Militar e a Abertura Política” In.Delga<strong>do</strong>, Lucila de Almeida Neves e Ferreira, Jorge (org). O <strong>Brasil</strong> Republicano– O tempo da ditadura (o regime militar e os movimentos sociais em fins <strong>do</strong>século XX). Rio de Janeiro: Civilização Brazileira, 2003.431 SOARES, Samuel Alves. Opt. Cit.432 Idem, Ibidem.433 General Ernesto Geisel, entrevista, in COSTA COUTO, Ronal<strong>do</strong> (1999, p.209).434 SPEKTOR, Matias. “Origens <strong>do</strong> Pragmatismo Ecumênico e Responsável” InRevista <strong>Brasil</strong>eira de política Internacional. n. 47 (2), (2004). p. 211.


493O Regime Militar(1964-1985)Juntamente com o novo projeto, existe uma mudançano quesito institucionalização <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Se nos<strong>do</strong>is primeiros governos militares foram lançadas as bases<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> de Segurança Nacional, e, no perío<strong>do</strong> imediatamenteposterior, o “Milagre Econômico” serviu comoargumento para legitimar o regime, a partir de 1974 gradualmentechega-se à conclusão de que o modelo de desenvolvimentoassocia<strong>do</strong> e dependente <strong>do</strong> capital externoestava se esgotan<strong>do</strong> e, também, que novos mecanismospara a busca <strong>do</strong> respal<strong>do</strong> popular eram necessários. Segun<strong>do</strong>Maria Helena Moreira Alves, o projeto de “distensão”pretendia assegurar um afrouxamento da tensão sociopolítica,intentan<strong>do</strong> “erigir mecanismos representativos elásticosque pudessem cooptar setores da oposição” 435 .Um elemento fundamental desta via seria o fortalecimentoeleitoral da ARENA. Neste aspecto, o governo procuravaangariar legitimidade através das urnas, eliminan<strong>do</strong>as formas mais explícitas de coerção – Geisel deixa clarasua oposição aos “excessos” cometi<strong>do</strong>s nos “porões” <strong>do</strong> regime– mas, ao mesmo tempo, manten<strong>do</strong> sob o controlemilitar a maioria <strong>do</strong> Congresso, capaz de aprovar reformaslegais e estruturais indispensáveis para colocar em práticao projeto de redemocratização controlada.435 ALVES, Maria Helena Moreira. Esta<strong>do</strong> e a oposição no <strong>Brasil</strong> (1964-1984).Bauru:EDUSC, 2005.Sen<strong>do</strong> assim, as eleições estaduais de 1974 ganharamimportância estratégica para os castelistas que chegaramao poder naquele mesmo ano, uma vez que almejavamum resulta<strong>do</strong> simbólico nas primeiras disputas queenfrentariam. O clima de otimismo e confiança na vitóriada ARENA era tão grande que o governo temia uma votaçãoesmaga<strong>do</strong>ra, já que isto poderia passar uma impressãode fraude ao povo e aniquilar a oposição. A grandederrota sofrida pelo MDB nas eleições de 1970 seria umindicativo <strong>do</strong> que estava por vir em 1974, uma vez queneste ano o governo gozava ainda de apoio oriun<strong>do</strong> <strong>do</strong>stempos de cinco anos segui<strong>do</strong>s com taxas de crescimentode <strong>do</strong>is dígitos, com o pico de 14% de crescimento <strong>do</strong>PIB em 1973. Além disso, a ARENA era a <strong>do</strong>na da máquina<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Possuía 21 <strong>do</strong>s 22 esta<strong>do</strong>s, 91% das prefeiturase 86% das câmaras de verea<strong>do</strong>res. Obten<strong>do</strong> a esperadavitória esmaga<strong>do</strong>ra em 1974, deixaria o país praticamentesob um regime unipartidário. Na mais longa entrevista <strong>do</strong>Presidente aos jornalistas brasileiros nos <strong>do</strong>is primeirosanos de governo, quan<strong>do</strong> de sua visita ao Japão – concedidaa bor<strong>do</strong> <strong>do</strong> trem expresso que o trazia de Quiotopara Tóquio – Geisel deu sua opinião sobre a importânciadas eleições:O importante é que os parti<strong>do</strong>s se consolidem, inclusivea oposição, porque eu não quero parti<strong>do</strong> único. Temque haver oposição. (...) Isso não nos interessa, como


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>494também não nos atrairia o exemplo mexicano de parti<strong>do</strong>único. Eu acho que tem que haver oposição 436 .Mesmo procuran<strong>do</strong> afirmar sua força no Congresso437 ou proibin<strong>do</strong> a imprensa paulista de noticiar a epidemiade meningite, o governo tentava manter um climade relativa liberdade durante a campanha eleitoral. Aindaassim, o MDB temia que o afastamento da população dasquestões políticas e o desinteresse das esquerdas, que denunciavamo processo eleitoral como fraude para legitimaro regime, resultassem em um novo fracasso nas urnas,como ocorrera em 1970.Na sexta-feira, 15 de novembro de 1974, Geisel e80% <strong>do</strong> eleitora<strong>do</strong> inscrito (cerca de 36 milhões de brasileiros)participaram das eleições. Na seção eleitoral, o Presidentedizia aos jornalistas:O fundamental é este clima de liberdade vigente nopaís, contrarian<strong>do</strong> o que muitos dizem. Vim aqui comoum cidadão para cumprir um direito e um dever. Esperoque haja um mínimo de abstenção e que to<strong>do</strong>svotem 438 .436 Jornal <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, 2 o de setembro de 1976. Entrevista concedida ao jornalistaAlexandre Garcia. “Presidente não deseja governo de parti<strong>do</strong> único”.437 O governo denunciara, por exemplo, o deputa<strong>do</strong> Chico Pinto ao STF, poiseste bra<strong>do</strong>u contra o General chileno Pinochet no plenário, chaman<strong>do</strong>-ode “assassino”, “mentiroso” e “fascista”. Chico Pinto era um <strong>do</strong>s líderes <strong>do</strong>“autêntico” MDB que enfrentava o governo e, às vezes, a própria direção <strong>do</strong>MDB. Condena<strong>do</strong> a seis meses de prisão pelo Supremo Tribunal Federal, odeputa<strong>do</strong> saiu <strong>do</strong> Congresso em direção ao cárcere. Idem, Ibidem.438 Jornal <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, Rio de Janeiro, 16/11/1974.Os institutos de pesquisa já previam que os resulta<strong>do</strong>snão seriam diferentes daqueles deseja<strong>do</strong>s pelo governo.O jornal Folha de S. Paulo ressaltava que <strong>do</strong>is pontosem especial chamavam a atenção <strong>do</strong>s políticos: a disputaacirrada entre os parti<strong>do</strong>s pelas cadeiras <strong>do</strong> Sena<strong>do</strong> nos Esta<strong>do</strong>sde maior importância política, e a tentativa <strong>do</strong> MDBde conseguir, ao menos, 1/3 <strong>do</strong>s deputa<strong>do</strong>s federais parater o poder de requerer a formação de Comissões Parlamentaresde Inquérito sem necessitar de assinaturas depolíticos governistas 439 .No dia seguinte ao pleito, os principais jornais <strong>do</strong>país já destacavam a vitória de emedebistas nas urnas.Enquanto o Jornal <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> vinha com a manchete: “MDBvence as prévias em MG, RJ e SP” 440 , a Folha de S. Pauloapontava como grande vitorioso das eleições o PresidenteGeisel, que, segun<strong>do</strong> o diário, “presidiu as eleições comoverdadeiro magistra<strong>do</strong>, com uma isenção exemplar quenão se alterou mesmo diante de alguns excessos deopositores <strong>do</strong> governo” 441 . O amadurecimento cívico <strong>do</strong>eleitora<strong>do</strong> e a eficiência da Justiça Eleitoral também recebiamespecial atenção na Folha de S. Paulo, que recebiaconstantemente a visita de censores em sua redação.439 Folha de S. Paulo, 15/11/1974.440 Jornal <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, Rio de Janeiro, 16/11/1974.441 Folha de S. Paulo, 16/11/1974.


495O Regime Militar(1964-1985)O impacto da vitória emedebista, confirmada apósa apuração, deve ser analisada de forma cuida<strong>do</strong>sa. O parti<strong>do</strong>,apesar de ter aumenta<strong>do</strong> a sua representação na Câmara<strong>do</strong>s Deputa<strong>do</strong>s – que crescera devi<strong>do</strong> o aumento dapopulação de 310 para 364 cadeiras – praticamente <strong>do</strong>brouseu número de representantes (de 87 nas eleições de1970 para 185 em 1974), enquanto a ARENA recuou de 223para 199 deputa<strong>do</strong>s, garantin<strong>do</strong> mesmo assim uma maioriade 54,6% contra 45,3% <strong>do</strong> MDB. No entanto, sua forçafoi demonstrada ainda mais no Sena<strong>do</strong>, onde o parti<strong>do</strong>conseguiu 16 das 22 vagas em disputa, totalizan<strong>do</strong> assim20 deputa<strong>do</strong>s (antes eram apenas 7), contra a maioria arenista,reduzida de 59 para 46 sena<strong>do</strong>res. Outro ponto-chavena análise <strong>do</strong> processo eleitoral de 1974 foi a redução <strong>do</strong>voto de protesto em cerca de 9% com relação às eleiçõesde 1970 442 .Das seis cadeiras <strong>do</strong> Sena<strong>do</strong> conquistadas pelaARENA, quatro foram obtidas no Nordeste: Alagoas, Bahia,Maranhão e Piauí ainda estavam com o parti<strong>do</strong> governista,que assistiu à vitória <strong>do</strong> MDB em cinco Esta<strong>do</strong>s deuma região tradicionalmente favorável aos seus políticos.Enquanto isso, no Sul e no Sudeste a ARENA não ganhouem nenhum Esta<strong>do</strong>, chaman<strong>do</strong> atenção para a baixavotação em locais como a Guanabara (24,3%) e São Paulo(23,8%).Rodrigo Patto Sá Motta, em seu livro Parti<strong>do</strong> e Sociedade– A trajetória <strong>do</strong> MDB, lista alguns fatores para oresulta<strong>do</strong> eleitoral de 1974. O primeiro seria a atuaçãode grupos renova<strong>do</strong>res como os “autênticos” dentro <strong>do</strong>parti<strong>do</strong>. Estes teriam aglutina<strong>do</strong> forças – inclusive deex-militantes da esquerda armada derrotada pelo governo– e da<strong>do</strong> novo fôlego aos oposicionistas. O segun<strong>do</strong>seria a liberdade proporcionada pelo governona campanha e no processo eleitoral, a maior desde oinício <strong>do</strong> regime. Saber utilizar canais como o rádio eprincipalmente a televisão teria si<strong>do</strong> o terceiro fator, deacor<strong>do</strong> com o autor. Enquanto o MDB elaborou materialde orientação para seus candidatos com a ajuda de publicitários,crian<strong>do</strong> uma linguagem próxima aos populares,os candidatos arenistas “sem qualquer experiênciade falar no rádio e na televisão, encontravam dificuldadesem transmitir suas ideias em quatro minutos” 443 .O público não estava acostuma<strong>do</strong> a entrar em contatocom as mensagens oposicionistas e tal “ineditismo”– amplia<strong>do</strong> pelos meios de comunicação – e o mesmoteria conquista<strong>do</strong> os eleitores das grandes cidades.442 MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Parti<strong>do</strong> e Sociedade – A trajetória <strong>do</strong> MDB. OuroPreto: Editora UFOP, 1997.443 GRINBERG, Lucia. Parti<strong>do</strong> Político ou bode expiatório – um estu<strong>do</strong> sobre aAliança Renova<strong>do</strong>ra Nacional – ARENA (1965 – 1979). Rio de Janeiro: Mauadeditora, 2009. P. 187.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>496A campanha presidencial de Ulysses em 1974 fora muitoútil nesse senti<strong>do</strong>, além de ter servi<strong>do</strong> de aprendiza<strong>do</strong>.As mudanças populacionais no país seriam o quartofator. Enquanto a ARENA tinha no interior sua força eleitoral444 , o MDB era um parti<strong>do</strong> essencialmente urbano. Destamaneira, a urbanização crescente teria facilita<strong>do</strong> o crescimentoeleitoral da oposição em detrimento da ARENA.O esgotamento <strong>do</strong> “Milagre Econômico” seria o quinto eúltimo fator, uma vez que “indícios de que problemas econômicosestavam por vir eram claros para determina<strong>do</strong>ssetores empresariais”. Em sua campanha, o MDB enfatizoua crescente taxa de inflação anual – que chegava a 40%ao ano – e os salários <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res que não aumentavamde forma proporcional à inflação, levan<strong>do</strong> aquelesque pagavam prestações <strong>do</strong> Banco Nacional de Habitação(BNH) a terem suas dívidas aumentadas 445 .Para o jornalista Carlos Castello Branco, autor deOs Militares no Poder, a intervenção <strong>do</strong> governo nas indicaçõesde políticos da ARENA, excluin<strong>do</strong> a necessidade das444 Muitos políticos criticaram a Lei Etelvino Lins, que procurava impedir abusosde candidatos ou parti<strong>do</strong>s que trocavam votos por transporte nas cidades<strong>do</strong> interior, além de estabelecer que a propaganda eleitoral no rádio e natelevisão seria restrita ao tempo designa<strong>do</strong> pela Justiça Eleitoral, o quepermitiu, tanto aos candidatos da oposição quanto aos candidatos oficiais,acesso ao horário eleitoral gratuito. “Lei Etelvino é elogiada, mas causaconfusão”. Jornal <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, Rio de Janeiro, 16/11/1974.445 REGO, Antonio Carlos Pojo <strong>do</strong>. Opt. Cit. P. 138.convenções partidárias, seria uma explicação também plausívelpara a derrota nas eleições de 1974. Houve um climade insatisfação com os candidatos escolhi<strong>do</strong>s, uma vez queestes não contemplavam as demandas das diferentes facçõesinternas <strong>do</strong> parti<strong>do</strong>. Considerava-se, assim, que o parti<strong>do</strong>tinha si<strong>do</strong> “violenta<strong>do</strong>”, deixan<strong>do</strong> sem vez suas principaislideranças que, na maioria <strong>do</strong>s casos, decidiram afastar-seou limitar sua participação nas eleições. O desprestígio <strong>do</strong>spolíticos pelo regime, incluí<strong>do</strong>s aí aqueles que eram seusalia<strong>do</strong>s, seria um fator a mais nesta “derrota da ditadura”.Ao final da apuração, estava patente que os militaresenfrentariam uma “crescente dificuldade em obter a maioriaparlamentar, com as eleições livres mergulhadas em umclima econômico adverso e uma oposição disposta a pressionarsempre para que se atingisse, o mais rapidamentepossível, a democracia plena” 446 . Na visão de Geisel, a partirdeste momento a oposição “tornou-se mais virulenta,e essa virulência gerou uma reação e um fortalecimentoda linha dura” 447 . Tal declaração é sintomática, uma vez quedali por diante o aparato repressor aumentaria o cerco aoMDB, acusan<strong>do</strong>’ o parti<strong>do</strong> de infiltração comunista 448 .446 REGO, Antonio Carlos Pojo <strong>do</strong>. O Congresso <strong>Brasil</strong>eiro e o Regime Militar (1964– 1985). Rio de Janeiro: FGV Editora, 2008.447 CASTRO, Celso; D’ARAUJO, Maria Celina (Orgs.). Ernesto Geisel. 5 a . ed. Rio deJaneiro: Editora FGV, 1997. P. 383.448 De fato, existiam quadros emedebistas liga<strong>do</strong>s ao “Partidão”, algo assumi<strong>do</strong>pelo próprio Luís Carlos Prestes em entrevista concedida na Europa naquele


497O Regime Militar(1964-1985)As preocupações <strong>do</strong> governo de evitar o crescimentoemedebista no Congresso resultaram, em 1976, na restriçãopara as eleições municipais da propaganda eleitoralno rádio e nas televisões, com a Lei Falcão. Na avaliação <strong>do</strong>governo, a habilidade <strong>do</strong> MDB no uso <strong>do</strong>s meios de comunicaçãopara realizar sua campanha em 1974 teria si<strong>do</strong> umfator preponderante para o excelente resulta<strong>do</strong> obti<strong>do</strong> pelosoposicionistas. Início de uma série de estratagemas queobjetivavam favorecer o parti<strong>do</strong> governista, a Lei Falcão reduziua propaganda política na televisão às fotografias e aum breve currículo <strong>do</strong>s candidatos às eleições municipais.Acusações de importantes lideranças <strong>do</strong> MDB de que oscandidatos da ARENA usavam-se de propagandas oficiaispara atingir os eleitores eram inúmeras.Mesmo diante da intervenção governamental emfavor da ARENA, nas grandes cidades como Rio de Janeiro,São Paulo, Belo Horizonte, Salva<strong>do</strong>r, Porto Alegre e Campinaso MDB foi o grande vitorioso. Percebe-se que a liberalizaçãoem curso que se propalava não correspondia àrealidade.perío<strong>do</strong>. Assim, a repressão justificava-se como uma forma de desarticulara estrutura política <strong>do</strong> velho PCB e “mandar um reca<strong>do</strong>” ao MDB, que agorase mostrava como uma real ameaça ao regime. MOTTA, Rodrigo Patto Sá.“O MDB e as esquerdas”. Ver AARÃO, Daniel Reis e FERREIRA, Jorge. Revoluçãoe democracia (1964-...) – as esquerdas no <strong>Brasil</strong>. Rio de Janeiro: Civilização<strong>Brasil</strong>eira, 2007.O balanço final <strong>do</strong> processo eleitoral de 1976 seria,mais uma vez, positivo para os emedebistas. Em SãoPaulo, foram 56,49% <strong>do</strong>s votos contra 40,65% da ARENA,enquanto no recém-cria<strong>do</strong> município <strong>do</strong> Rio de Janeiro,o MDB obteve o <strong>do</strong>bro de votos da ARENA (502.186 contra226.255), angarian<strong>do</strong> catorze das vinte e uma vagas deverea<strong>do</strong>res.O ano de 1977 inicia-se de forma turbulenta para ogoverno. Cada vez mais, os reflexos da falência <strong>do</strong> “MilagreEconômico” podiam ser observa<strong>do</strong>s, o que obrigava ogoverno a anunciar medidas impopulares de arrocho naeconomia, consideradas essenciais para a contenção dainflação e <strong>do</strong> endividamento. Tensões entre os setores empresariaise a presidência também compunham o quadrode desgaste. No plano político, o temor era a exploraçãoda situação por parte <strong>do</strong>s oposicionistas, principalmenteporque se previa que as próximas eleições para o Executivo<strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s seria direta. As reações <strong>do</strong>s arenistas erammarcadas por essa tensão. Os oposicionistas gaúchos GlênioPerez e Marcos Klassman tiveram seus mandatos cassa<strong>do</strong>ssob a acusação de serem “agentes <strong>do</strong> comunismo” ecrescia a forte pressão no Congresso para a aprovação dareforma <strong>do</strong> Poder Judiciário.É no dia 1 o de abril de 1977, depois de analisar a situaçãopolítica com o Conselho de Segurança Nacional eescutar de membros <strong>do</strong>s serviços de informações que ocrescimento <strong>do</strong> MDB logo o transformaria no maior parti<strong>do</strong>


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>498<strong>do</strong> país, que o Presidente Geisel decidiu decretar o recesso<strong>do</strong> Congresso Nacional por tempo indetermina<strong>do</strong>. Empronunciamento à nação, o Presidente justifica sua atitude:Venho esta noite à televisão para dar conhecimento aosbrasileiros de medidas relevantes que a<strong>do</strong>tei, hoje pelamanhã, após ouvir o Conselho de Segurança Nacional.Elas são uma decorrência <strong>do</strong>s problemas que se suscitaramnestes últimos dias, com relação à reforma <strong>do</strong>Poder Judiciário. Esta reforma, de interesse de toda aNação, constitui fator importante para o nosso desenvolvimento.(...)Agora, em março deste ano, verificamos que o Parti<strong>do</strong>da Oposição apresentava reivindicações que nada tinhama ver com o reforma em si e nem tinham si<strong>do</strong> objeto<strong>do</strong> diagnóstico feito pelo Supremo Tribunal Federal.Assim mesmo, procurou-se negociar com a Oposição,transigin<strong>do</strong> em determina<strong>do</strong>s pontos, a fim de ver sechegaríamos a um resulta<strong>do</strong> conciliatório, que não privasseo nosso povo de uma melhor justiça.Infelizmente, não conseguiu resulta<strong>do</strong> algum, pois aoposição resolveu fechar a questão, impedin<strong>do</strong> que osseus representantes no Sena<strong>do</strong> e na Câmara votassem afavor da reforma. (...)Como a ARENA não possuía mais os 2/3 necessáriospara emendar a Constituição, Geisel aproveita-se <strong>do</strong> AI-5para fechar o Congresso por catorze dias. Neste perío<strong>do</strong>,um conjunto de “dispositivos acautelários para o regime” 449449 SOARES, Samuel Alves. Controles e autonomia – As Forças Armadas e o sistemapolítico brasileiro (1974-1999).foram elabora<strong>do</strong>s, modifican<strong>do</strong> significativamente as regras<strong>do</strong> jogo político. Era o Pacote de Abril, que tinha comoprincipais pontos: mandato de seis anos para o Presidenteda República; eleições indiretas <strong>do</strong>s governa<strong>do</strong>res; eleiçãoindireta de um <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is sena<strong>do</strong>res a serem eleitos em cadaEsta<strong>do</strong> da Federação nas eleições de 1978 450 ; possibilidadede alteração da Constituição por maioria simples; redução<strong>do</strong> prazo de inelegibilidade para três meses; instituição desublegendas na eleição direta <strong>do</strong>s sena<strong>do</strong>res; ampliaçãodas bancadas que representavam os Esta<strong>do</strong>s menos desenvolvi<strong>do</strong>se extensão da Lei Falcão para todas as eleiçõesdiretas, reduzin<strong>do</strong> a propaganda eleitoral na televisão àapresentação <strong>do</strong> nome, número e currículos <strong>do</strong>s candidatos.A instituição de três sublegendas na eleição direta<strong>do</strong>s sena<strong>do</strong>res permitiu à ARENA recompor suas bases,e também a ampliação da representação eleitoral <strong>do</strong>sEsta<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Norte e <strong>do</strong> Nordeste, garantin<strong>do</strong> mais força àsituação. Outra importante alteração no cenário políticonacional ocorre em 24 de agosto de 1977, quan<strong>do</strong>, atravésda mensagem número 91, Geisel envia o projeto de leicomplementar de criação de um novo Esta<strong>do</strong>. No dia 11 de450 O MDB a<strong>do</strong>tou como estratégia a divulgação das contradições existentesentre as medidas de controle elaboradas e o discurso de abertura de Geisel.Por exemplo, a publicidade negativa atrelada aos sena<strong>do</strong>res escolhi<strong>do</strong>spor eleição indireta pelas Assembleias Estaduais que, em sua maioria, eram<strong>do</strong>minadas pela ARENA. Estes ficaram conheci<strong>do</strong>s pelo irônico nome de“sena<strong>do</strong>res biônicos”.


499O Regime Militar(1964-1985)outubro seguinte, é assinada a Lei Complementar n. 31,“crian<strong>do</strong> o esta<strong>do</strong> de Mato Grosso <strong>do</strong> Sul pelo desmembramentode área <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> de Mato Grosso”, com capital emCampo Grande.O MDB não tardaria em responder às medidas <strong>do</strong>governo. O parti<strong>do</strong> organizou um pronunciamento transmiti<strong>do</strong>para cerca de vinte e um milhões de brasileiros, autoriza<strong>do</strong>pelo Tribunal Superior Eleitoral, no qual seus principaislíderes (Ulysses Guimarães, André Franco Montoro,Alceu Collares e José Alencar Furta<strong>do</strong>) abordaram diversostemas como o modelo econômico (considera<strong>do</strong> concentra<strong>do</strong>re elitista por Collares), as eleições (“fechar as urnasé tapar a boca da nação”, segun<strong>do</strong> Ulysses Guimarães) e oAI-5 (que para Alencar Furta<strong>do</strong>, “afrontava os padrões dedecência jurídica <strong>do</strong> povo brasileiro”). Além disso, apontavacaminhos considera<strong>do</strong>s indispensáveis para o desenvolvimento<strong>do</strong> país, como a inviolabilidade <strong>do</strong>s direitos dapessoa humana, o retorno da normalidade constitucional– ten<strong>do</strong> como exemplo a Espanha – e a geração de empregos.O impacto de tal peça propagandística nos círculosmilitares foi decisivo para os novos rumos traça<strong>do</strong>s peloPresidente. Chefe <strong>do</strong> Gabinete Militar, o general Hugo deAbreu iniciou conversas com membros da Alta Cúpula eo resulta<strong>do</strong> foi preocupante. “Vi. Não gostei e acho queninguém gostou (...)” 451 ; assim referia-se ao episódio o chefe<strong>do</strong> SNI, João Batista Figueire<strong>do</strong>. A vítima foi o líder <strong>do</strong> MDBna Câmara, José de Alencar Furta<strong>do</strong>, que teve seus direitospolíticos cassa<strong>do</strong>s por dez anos. Mais uma vez o AI-5 erautiliza<strong>do</strong> por Geisel.Tal qual o “Pacote de Abril”, o Ato Complementar número104 (que impedia o acesso da MDB ao rádio e à TV)e o uso da Lei de Segurança Nacional contra emedebistasconfiguram-se como mecanismos coercitivos que evidenciama disposição de limitar a abertura.Ao mesmo tempo o governo deixa claro aos setoresde “linha-dura” a irreversibilidade <strong>do</strong> processo, cujaculminância se deu em outubro de 1977, com a demissão<strong>do</strong> Ministro <strong>do</strong> Exército o general Sylvio Frota, que seapresentava como o candidato da contrademocratização.Temen<strong>do</strong> uma possível reação da linha-dura, Geisel reforçouinclusive a guarda <strong>do</strong> Palácio <strong>do</strong> Planalto com solda<strong>do</strong>sda Brigada de Infantaria (principal força <strong>do</strong> DistritoFederal). Desde a chegada <strong>do</strong>s militares ao poder, este foio primeiro Ministro <strong>do</strong> Exército exonera<strong>do</strong>, evidência nítida<strong>do</strong> embate em curso nas Forças Armadas. Em nota emitidaapós a sua saída <strong>do</strong> governo, Frota afirma que fatos comoo estabelecimento de relações com a República Popular daChina, o reconhecimento <strong>do</strong> governo <strong>do</strong> MPLA em Angola451 Revista Veja, 6 de julho de 1977. “E o MDB ficou sem líder”.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>500e a permissão de críticas da imprensa às Forças Armadasseriam indícios da “deformação e aban<strong>do</strong>no <strong>do</strong>s objetivosda Revolução” 452 .O último ano de mandato <strong>do</strong> Presidente ErnestoGeisel foi estratégico para os rumos <strong>do</strong> regime; as eleiçõesde outubro e a escolha <strong>do</strong> seu sucessor eram os principaistemas na agenda política de 1978. A imprensa especulavaque João Batista Figueire<strong>do</strong>, chefe <strong>do</strong> SNI, e o sena<strong>do</strong>rMagalhães Pinto eram os nomes preferi<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Planalto.E, nas primeiras semanas de janeiro, Geisel comunicavaaos dezesseis membros da comissão executiva da ARENAe aos cinco ministros que integravam o diretório nacionalque Figueire<strong>do</strong> era o escolhi<strong>do</strong>: “é um nome consagra<strong>do</strong>dentro das Forças Armadas, é um revolucionário daprimeira hora, um homem de senti<strong>do</strong> altamente humanoe larga experiência”.Resolvida a questão sucessória, o foco voltava-seagora para a reação das urnas. Mesmo com todas asmedidas elaboradas para deter o avanço <strong>do</strong> MDB no pleitoa ser realiza<strong>do</strong> em outubro, era perceptível que o parti<strong>do</strong>cada vez mais aban<strong>do</strong>nava o papel de oposição controladaque o regime lhe reservara desde 1965 e aglutinava sob sualegenda diversos setores da sociedade que desejavam o fimda ditadura, tornan<strong>do</strong>-se uma “real” ameaça ao governo 453 .Dar um caráter plebiscitário às eleições de 1978 foia estratégia <strong>do</strong> MDB diante das dificuldades enfrentadasem sua campanha, tais como a falta de consenso sobre aplataforma a ser seguida e a impossibilidade de acesso aosmeios de comunicação. As barreiras criadas pelos militares,por outro la<strong>do</strong>, fortaleceram o parti<strong>do</strong> perante os movimentosde base que lutavam pelos direitos humanos, pelaliberdade política ou mesmo diante <strong>do</strong>s sindicatos quepossuíam ideias antiestatistas, defenden<strong>do</strong> uma democraciadireta, onde o “peleguismo” <strong>do</strong>s tempos trabalhistasnão mais existiria 454 . A propaganda nas ruas, clubes e fábricasestava garantida.Uma análise <strong>do</strong> que se viu nas urnas reflete o momento-chaveque vivia a luta pela democracia no <strong>Brasil</strong>.Apesar das deformações proporcionadas pelo Pacote deAbril, que criaram um abismo entre o voto popular e o resulta<strong>do</strong>das eleições 455 . Mesmo obten<strong>do</strong> a maior parte <strong>do</strong>svotos váli<strong>do</strong>s (17.530.620 contra 13.239.418) na corrida parao Sena<strong>do</strong>, os “sena<strong>do</strong>res biônicos”, eleitos de forma indiretae a introdução das sublegendas garantiram maioria paraa ARENA: quinze deputa<strong>do</strong>s eram situacionistas, enquanto452 Revista Veja, 19 de outubro de 1977. “A voz da hierarquia”.453 ALVES, Maria Helena Moreira. Opt. Cit. P. 237.454 REGO, Antonio Carlos Pojo <strong>do</strong>. Opt. Cit. P. 210.455 É importante ressaltar o crescimento <strong>do</strong> número de eleitores quecomparecem às seções eleitorais. Foram 37.601.641 contra 28.925.792, naseleições de 1974.


501O Regime Militar(1964-1985)apenas oito eram <strong>do</strong> MDB 456 . Na Câmara <strong>do</strong>s Deputa<strong>do</strong>s,a ARENA manteve sua maioria, apesar de ter perdi<strong>do</strong> cadeiraspara os emedebistas (duzentos e trinta e um contracento e oitenta e nove).Para Márcio Moreira Alves:(...) A oposição e a imprensa consideram o resulta<strong>do</strong> daseleições de 1978 como uma vitória antigovernamentalpelo fato de o MDB ter ti<strong>do</strong>, para o Sena<strong>do</strong>, mais de4.291.202 votos que a ARENA e ter recolhi<strong>do</strong> vitórias nosEsta<strong>do</strong>s mais populosos e economicamente poderososda Região Centro-Sul, ou seja, Minas Gerais, Rio de Janeiro,São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande <strong>do</strong>Sul 457 .O lançamento <strong>do</strong> Comitê <strong>Brasil</strong>eiro pela Anistia 458 ,as pressões da Associação <strong>Brasil</strong>eira de Imprensa (ABI), daOrdem <strong>do</strong>s Advoga<strong>do</strong>s <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> (OAB) e da ConferênciaNacional <strong>do</strong>s Bispos <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> (CNBB), assim como a projeçãoobtida pelo “Novo Sindicalismo”, a partir da greve <strong>do</strong>smetalúrgicos de 1978, contribuem para acelerar a redemocratizaçãono <strong>Brasil</strong>. O sucessor de Geisel encontrava umadifícil missão: concluir o processo de abertura. Antes dedeixar o cargo, no entanto, no final de 1978, Ernesto Geisel456 ALVES, Márcio Moreira. “As Eleições no <strong>Brasil</strong> em 1978”. In: Revista Crítica deCiências Sociais, Lisboa, 1979.457 Idem. Ibidem.458 A palavra “Anistia” aparece em faixa sobre o corpo <strong>do</strong> ex-presidente JoãoGoulart, que havia morri<strong>do</strong> no Uruguai e, por autorização de Geisel, foraenterra<strong>do</strong> no Rio Grande <strong>do</strong> Sul.extinguiu o AI-5. Era um reca<strong>do</strong> para a “comunidade de informações”:o processo de abertura era irreversível.Governo Figueire<strong>do</strong> (1979-1985)O primeiro desafio <strong>do</strong> novo General-Presidente possuíaramificações internacionais: o movimento pela anistia.Em Portugal e no <strong>Brasil</strong>, diversos grupos mobilizavam-sepor uma anistia “ampla, geral e irrestrita”, algo considera<strong>do</strong>como temeroso pelos modera<strong>do</strong>s, que afirmavam quea abertura deveria ser realizada em um ritmo compatívelcom a segurança <strong>do</strong> regime. A opção foi esvaziar o pleitoda oposição através da aprovação da Lei da Anistia peloCongresso em agosto de 1979.Ainda polêmica nos dias de hoje, a Lei da Anistia beneficiavato<strong>do</strong>s os cidadãos puni<strong>do</strong>s com atos de exceçãodesde 9 de abril de 1964 (data <strong>do</strong> AI-1). Servi<strong>do</strong>res afasta<strong>do</strong>sde suas funções seriam submeti<strong>do</strong>s a decisões das ComissõesEspeciais criadas nos Ministérios para julgar cadaum <strong>do</strong>s casos. O benefício excluiu os acusa<strong>do</strong>s de “crimesde sangue” ao mesmo tempo que impediu que os militaresenvolvi<strong>do</strong>s em violações <strong>do</strong>s direitos humanos fossemresponsabiliza<strong>do</strong>s criminalmente. O retorno de exila<strong>do</strong>shistóricos, como Leonel Brizola e Luís Carlos Prestes, transformou-seem verdadeiros atos políticos contra a DitaduraCivil-Militar imposta em 1964.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>502Com o objetivo de acabar com o caráter plebiscitáriodas eleições, Golbery <strong>do</strong> Couto e Silva, Ministro da CasaCivil de Geisel manti<strong>do</strong> por Figueire<strong>do</strong> no novo Ministério,defendeu a ideia de terminar com o bipartidarismo estabeleci<strong>do</strong>em 1965. Temia-se em especial que o voto “a favor”ou “contra” pudesse prejudicar a posição governista no ColégioEleitoral que escolheria o primeiro Presidente civil em1985. A medida foi criticada pela bancada <strong>do</strong> MDB, que temiaa fragmentação <strong>do</strong>s seus votos. Aprovada em novembrode 1979, a Lei Orgânica <strong>do</strong>s Parti<strong>do</strong>s previa a extinçãodas organizações existentes em 18 meses e a criação <strong>do</strong>snovos parti<strong>do</strong>s dentro <strong>do</strong> mesmo prazo.Extinta a Arena, surge um grande parti<strong>do</strong> reunin<strong>do</strong>as direitas e os setores que desde 1965 apoiaram a ditadura.Lidera<strong>do</strong> por José Sarney, foi cria<strong>do</strong> o Parti<strong>do</strong> DemocráticoSocial (PDS). Com a extinção <strong>do</strong> MDB, surge o Parti<strong>do</strong><strong>do</strong> Movimento Democrático <strong>Brasil</strong>eiro (PMDB). Porém, aodesaprovar a incorporação de algumas facções à esquerdadas lideranças partidárias, como aquelas oriundas <strong>do</strong> MR-8e de outros movimentos guerrilheiros, emedebistas tradicionaiscomo Tancre<strong>do</strong> Neves optam pela criação de umnovo parti<strong>do</strong> que contava com alguns dissidentes arenistas:o Parti<strong>do</strong> Popular (PP) 459 .Leonel Brizola desejava o controle da sigla de suaantiga agremiação varguista, o Parti<strong>do</strong> Trabalhista <strong>Brasil</strong>eiro(PTB). Após anos no exílio no Uruguai, a repressão impostapelo Plano Con<strong>do</strong>r levou o político brasileiro para Portugal.Em sua breve estadia na Europa, afinal, chegou a Lisboa em1978, Brizola “deixara de la<strong>do</strong> a vestimenta de comandanterevolucionário para se apresentar como líder modernoe inconteste <strong>do</strong> trabalhismo brasileiro” 460 . Contou com oapoio (inclusive financeiro) <strong>do</strong> Primeiro-Ministro socialistaportuguês Mário Soares para entrar em contato com aSocialdemocracia europeia, buscan<strong>do</strong> modernizar seu discursovarguista de outrora.Constituía-se em um adversário “perigoso” na visão<strong>do</strong> ministro da Casa Civil Golbery, principalmente, se conseguissea legenda <strong>do</strong> PTB. Neste contexto, a disputa entreBrizola e a sobrinha-neta de Getúlio, Ivete Vargas, veio embom momento para as pretensões <strong>do</strong>s militares. A questãovai para o Tribunal Superior Eleitoral, que, influencia<strong>do</strong>pela cúpula governista, decide que a legenda ficaria sobo controle da ex-deputada por São Paulo. Atrain<strong>do</strong> velhosmilitantes petebistas, Brizola funda um novo parti<strong>do</strong> dedestaque: o Parti<strong>do</strong> Democrático Trabalhista (PDT).459 MOTTA, Rodrigo Patto Sá. “O MDB e as esquerdas”. In: Aarão, Daniel Reis eFerreira, Jorge. Revolução e democracia (1964-...) – as esquerdas no <strong>Brasil</strong>. Riode Janeiro: Civilização <strong>Brasil</strong>eira, 2007.460 FREIRE, Américo. “Ecos da Estação Lisboa: o exílio das esquerdas brasileirasem Portugal”. In. Sociologia, Problemas e Práticas, n.º 64, 2010, pp. 37-57.


503O Regime Militar(1964-1985)Propon<strong>do</strong> uma nova forma de se fazer política no<strong>Brasil</strong>, e fruto da união entre o “Novo Sindicalismo”, intelectuaisde esquerda – muitos professores da USP – católicosliga<strong>do</strong>s à Teologia da Libertação e lideranças <strong>do</strong> movimentoestudantil, é cria<strong>do</strong> o Parti<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res (PT), quetem na figura <strong>do</strong> líder <strong>do</strong>s metalúrgicos <strong>do</strong> ABC paulista edestaque nas greves de 1978, Luiz Inácio Lula da Silva, suafigura mais popular.O grande teste <strong>do</strong> pluripartidarismo cria<strong>do</strong> pelogrupo castelista viria nas eleições para governa<strong>do</strong>res de1982. O primeiro pleito direto desde 1965 era visto comoum grande laboratório para as eleições de 1985. Mas otemor de uma “acachapante derrota” nas urnas levou aalgumas alterações no “jogo democrático”. Com a justificativade que era preciso fortalecer as novas legendas ea fidelidade partidárias, foi determinada a “vinculação devotos”, ou seja, o eleitor deveria votar no mesmo parti<strong>do</strong>para to<strong>do</strong>s os cargos em disputa. Apostava o governoque o PDS, por controlar a maior parte <strong>do</strong>s municípios eEsta<strong>do</strong>s, seria beneficia<strong>do</strong> com a medida. Ou, na pior dashipóteses, os eleitores de baixa renda não saberiam lidarcom a novidade, anulan<strong>do</strong> seus votos na oposição, algoque não aconteceria com os ilustra<strong>do</strong>s que estavam aola<strong>do</strong> <strong>do</strong> PDS.Mesmo sob protestos da oposição, a lei foi aprovada.Mas o resulta<strong>do</strong> das eleições surpreendeu a to<strong>do</strong>s.O PMDB saiu fortaleci<strong>do</strong> diante <strong>do</strong> desafio das urnas, aumentan<strong>do</strong>suas bancadas e conseguin<strong>do</strong> vitórias significativasem vários Esta<strong>do</strong>s importantes: Paraná (José Richa), MinasGerais (Tancre<strong>do</strong> Neves), Rio de Janeiro, São Paulo –com a eleição para governa<strong>do</strong>r de André Franco Montoro.Ao contrário das previsões, o número de votos em brancoe nulos diminuiu. No Rio de Janeiro, a maior derrota:Leonel Brizola vence as eleições enfrentan<strong>do</strong> não somenteseu principal adversário, Wellington Moreira Franco (PDS),mas vencen<strong>do</strong> inclusive o esquema de fraude eleitoral queincluía membros <strong>do</strong> SNI e a empresa responsável pela apuração<strong>do</strong>s votos, a Proconsult.Além de protestos estudantis e greves, o governoFigueire<strong>do</strong> enfrentou outros obstáculos no caminho daabertura, que seria concluída em 1985. Ciente da existênciade graves problemas econômicos, como o déficit na balançade pagamentos e o retorno da inflação a níveis inéditosdesde 1964, o Presidente João Batista Figueire<strong>do</strong> advertiua população sobre a necessidade de se a<strong>do</strong>tar uma “economiade guerra”. A tendência de queda <strong>do</strong> PIB era utilizadapelos opositores nos ataques ao governo militar, exigin<strong>do</strong>o aceleramento <strong>do</strong> processo de transição.Ao mesmo tempo, o governo batia de frente contraa radicalização das ações de grupos liga<strong>do</strong>s à comunidadede informações, que não desejavam o retorno dademocracia e o desmonte <strong>do</strong> aparelho repressor. Os atenta<strong>do</strong>sà bomba se alastraram pelo território nacional. Dasbombas em bancas de jornal que vendiam pasquins de


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>504esquerda àquela que vitimou a secretária <strong>do</strong> presidente <strong>do</strong>Conselho Federal da OAB, Lida Monteiro da Silva – o objetivoera inviabilizar o processo de redemocratização <strong>do</strong>país. Depois de diversas cartas-bombas, os militares de“linha-dura” pareciam determina<strong>do</strong>s a elaborar uma açãode maior envergadura: instalar e detonar bombas emmeio ao show em homenagem ao dia <strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>r, queaconteceria no Riocentro no dia 30 de abril de 1981. Nãocontavam que o artefato explodiria ainda sob a posse <strong>do</strong>sargento Guilherme Pereira <strong>do</strong> Rosário, especialista em explosivos,que estava em um carro acompanha<strong>do</strong> <strong>do</strong> entãocapitão Wilson Dias Macha<strong>do</strong>, que acabou gravemente feri<strong>do</strong>.A morte de Rosário e os protestos da sociedade civilnão resultaram no esclarecimento <strong>do</strong> caso. O governo optoupor arquivar o caso, por falta de evidências no InquéritoPolicial Militar que se seguiu, o que levou à renúncia<strong>do</strong> insatisfeito Golbery <strong>do</strong> Couto Silva, que alegou para aimprensa “divergências irreconciliáveis”.O último grande obstáculo a ser supera<strong>do</strong> era a mobilizaçãopública diante da proposta de antecipação daseleições diretas para o Executivo nacional no ano de 1985.Embora inicialmente não tenha obti<strong>do</strong> grande repercussãono Congresso, a emenda constitucional proposta pelodeputa<strong>do</strong> Dante de Oliveira (PMDB) progressivamentemobilizou a opinião pública e as lideranças parlamentaresde oposição, assim como alas governistas que, de algummo<strong>do</strong>, estavam insatisfeitas com o regime.As “Diretas Já” mobilizaram as principais liderançascivis de oposição ao regime. Participaram também figuraspúblicas com muita exposição na mídia, o que facilitou arepercussão <strong>do</strong> movimento. Lá estavam cantores comoFafá de Belém, o narra<strong>do</strong>r esportivo Osmar Santos (que setornou a “voz oficial” das Diretas) e também joga<strong>do</strong>res defutebol. Estes, vistos como alvo de manipulação <strong>do</strong>s políticosnos casos da Copa <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> de 1970 ou na criação/ampliação <strong>do</strong> Campeonato Nacional de Clubes (“onde aArena vai mal, um time no nacional”), são os maiores focosde difusão das “Diretas Já”, sen<strong>do</strong> o episódio da DemocraciaCorinthiana 461 um exemplo de resistência ao status quoliga<strong>do</strong> ao esporte.Mesmo reunin<strong>do</strong> cerca de trezentas mil pessoas emBelo Horizonte, mais de quinhentas mil na Praça da Candeláriano Rio de Janeiro e cerca de um milhão na Praçada Sé em São Paulo, a emenda Dante de Oliveira não foiaprovada por falta de quórum. Medidas como a decretação<strong>do</strong> esta<strong>do</strong> de emergência em Brasília e seus arre<strong>do</strong>resno dia da votação, dificultaram a presença de congressistasque temiam um novo fechamento <strong>do</strong> regime, ou simples-461 Lideraram a Democracia Corinthiana atletas politiza<strong>do</strong>s como Sócrates,Casagrande e Vladimir. Neste momento, o futebol era foco de resistência e iacontra as crenças e o ideal autoritário <strong>do</strong> regime instala<strong>do</strong> em 1964. Sócratesafirmava em manifestações públicas que, uma vez aprovada a emendaDante de Oliveira, ele não iria para a Europa, exemplo de relação entre ofutebol e a política.


505O Regime Militar(1964-1985)mente não conseguiram chegar ao Congresso. O envio deproposta de emenda constitucional restabelecen<strong>do</strong> eleiçõesdiretas para Presidente em 1988 – saída honrosa paraos parlamentares contrários à emenda Dante de Oliveira,que naturalmente eram acusa<strong>do</strong>s de antidemocráticos,também pesaram no desfecho melancólico da maior mobilizaçãopolítica <strong>do</strong> povo brasileiro em sua história.Realizadas de maneira indireta, as eleições presidenciaisde janeiro de 1985 começaram a ser disputadas aindaem 1984, quan<strong>do</strong> da escolha <strong>do</strong>s candidatos à sucessão deFigueire<strong>do</strong>. No PDS, o nome <strong>do</strong> ministro <strong>do</strong> Interior e deputa<strong>do</strong>Paulo Maluf desagra<strong>do</strong>u diversos setores, incluin<strong>do</strong>aquele lidera<strong>do</strong> pelo próprio presidente da legenda, JoséSarney, que optou por se retirar <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> e negociar oseu apoio aos opositores, quan<strong>do</strong> Maluf venceu as prévias<strong>do</strong> PDS. Uma ampla coalizão formou a “Aliança Democrática”,que indicou o nome de Tancre<strong>do</strong> Neves para a Presidênciada República e, para vice, escolheu José Sarney, quetrouxe consigo numerosos dissidentes <strong>do</strong> PSD.No dia 15 de janeiro de 1985, o Colégio Eleitoralelegeu Tancre<strong>do</strong> Neves para a Presidência, com 480 votos,contra apenas 180 de Paulo Maluf 462 . A euforia em tornoda escolha de Tancre<strong>do</strong>, contu<strong>do</strong>, durou muito pouco. Navéspera da posse, o Presidente eleito foi interna<strong>do</strong> comfortes <strong>do</strong>res ab<strong>do</strong>minais, num caso grave de diverticulite.Recebia a faixa de Presidente um político que estivera aola<strong>do</strong> <strong>do</strong>s militares ao longo de quase to<strong>do</strong> o regime, sen<strong>do</strong>confirma<strong>do</strong> como o primeiro Presidente civil após a morteoficial de Tancre<strong>do</strong>, no simbólico dia 21 de abril. Iniciava-sea Nova República (1985-…) sob a presidência <strong>do</strong> arenista,ex-presidente <strong>do</strong> PDS, José Ribamar Sarney.462 Diante <strong>do</strong> resulta<strong>do</strong> indeseja<strong>do</strong>, o Presidente João Figueire<strong>do</strong> declarou ementrevista a TV Manchete: “Bom, o povo, o povão que poderá me escutarserá talvez os 70% <strong>do</strong>s brasileiros que estão apoian<strong>do</strong> o Tancre<strong>do</strong>. Entãodesejo que eles tenham razão, que o <strong>do</strong>utor Tancre<strong>do</strong> consiga fazer umbom governo para eles. E que eles tenham consigo o <strong>do</strong>utor Tancre<strong>do</strong>, eque ele dê a eles o que não consegui. E desejo felicidades a eles. E que meesqueçam. Aliás, pedi isso desde o começo, se lembra?” In.: ABREU, Alzira eLATTMAN-WELTMAN, Fernan<strong>do</strong>. Op.cit.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>5068.2 A economia <strong>do</strong> Regime MilitarO PAEG. As origens <strong>do</strong> “Milagre” Econômico.O que explica o Milagre? O choque <strong>do</strong> Petróleo e o 2 o PND.O segun<strong>do</strong> choque <strong>do</strong> Petróleo e a Década Perdida.O golpe militar encerrou o debate entre os estruturalistascepalinos e os liberais, que haviam caracteriza<strong>do</strong>a sociedade brasileira desde mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s anos quarenta.O embasamento econômico das Reformas de Base tinhamatriz cepalina estruturalista. Celso Furta<strong>do</strong> defendia a necessidadeda Reforma Agrária para induzir a sofisticaçãoe o aumento <strong>do</strong> poder de compra <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> interno.A superação das condições de dependência de uma matrizagrária exporta<strong>do</strong>ra dependia da igual superação <strong>do</strong>quadro de desigualdade por meio de significativa intervenção<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, só assim o <strong>Brasil</strong> retomaria suas taxas decrescimento historicamente acima de 6% que se haviamestagna<strong>do</strong> desde 1963.Abril de 1964 significava a vitória da tese de EugenioGudin de que não se deveria misturar política e economia.Tal vitória se consubstanciava com a nomeação de OctávioGouveia de Bulhões para o Ministério da Fazenda <strong>do</strong> governoCastelo Branco e de Roberto Campos para o Planejamento.Era a ascensão da tecnocracia sobre o que Gudinchamava de “populismo econômico” da República Sindical,representada por Juscelino e João Goulart. Os populistasprovocavam irresponsavelmente a inflação por meio deuma política demagógica creditícia, fiscal e salarial. Tal leviandadeprecisava ter fim, acreditavam. Era necessário<strong>do</strong>tar a moeda de estabilidade e estancar a inflação. Urgiaremover os entraves à livre-iniciativa <strong>do</strong> empresaria<strong>do</strong>, diminuin<strong>do</strong>o papel <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>.Imediatamente foi aprova<strong>do</strong> um novo orçamento,que estabelecia o corte de gastos <strong>do</strong> governo com o objetivode reduzir o déficit <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, e elaborou-se um planopara o biênio 1965-66, que recebeu o nome de PAEG (Planode Ação Econômica <strong>do</strong> Governo) e que tinha característicaexplicitamente anti-inflacionária. Seriam liberadas astarifas públicas subsidiadas (inflação corretiva, no câmbio,na gasolina, no trigo). Seria ainda essencial o ajuste da políticacreditícia, que naturalmente foi limitada, além de umaampla Reforma tributária e salarial.Dentre as medidas de reorganização e ajuste macroeconômico<strong>do</strong> PAEG, estão a criação da Correção Monetária(1964), a aprovação <strong>do</strong> Código Tributário Nacional(1966), a criação <strong>do</strong> Banco Central (1965), que substituía aSUMOC e, por meio <strong>do</strong> Conselho Monetário Nacional, assumiaas funções macroeconômicas mais amplas. Para financiaro setor público sem o emissionismo inflacionário,foi revogada a Lei de Usura de 1933, que limitava os juros a12% ao ano, e foram criadas as ORTN (Obrigações Reajustáveis<strong>do</strong> Tesouro Nacional), que estimulavam o investimentopriva<strong>do</strong> no financiamento público, antes desestimula<strong>do</strong>,


507O Regime Militar(1964-1985)já que a inflação corroía o valor <strong>do</strong>s títulos governamentaisimpedi<strong>do</strong>s de pagarem juros maiores que 12%. Separaramseas funções bancárias em instituições empresariais distintas(bancos de investimento, bancos comerciais, financeira,segura<strong>do</strong>ras), e a<strong>do</strong>tou-se uma fórmula que despolitizasseao máximo as negociações salariais, estiman<strong>do</strong> a inflaçãopela média. Como a estimativa era sempre subestimada, oresulta<strong>do</strong> foram reajustes constantemente abaixo da inflaçãoprovocan<strong>do</strong> um achatamento salarial que contribuiriapara o acirramento da desigualdade, característica <strong>do</strong>perío<strong>do</strong>.A criação <strong>do</strong> FGTS (Fun<strong>do</strong> de Garantia por Tempode Serviço) ainda encerrava a estabilidade de empregoque vinha desde a CLT, ao flexibilizar a demissão de emprega<strong>do</strong>spelas empresas. Antes indeniza<strong>do</strong> pelos patrões,o novo modelo criava uma poupança forçada na qual opróprio emprega<strong>do</strong> financiava parcialmente sua indenizaçãoem caso de demissão. Como o Fun<strong>do</strong> só poderiaser saca<strong>do</strong> em circunstâncias específicas, como dispensaou aposenta<strong>do</strong>ria, tornou-se instrumento privilegia<strong>do</strong> definanciamento público, sobretu<strong>do</strong> para o setor habitacionalpor meio <strong>do</strong> Banco Nacional de Habitação (BNH). Alémdisso, para estimular ainda mais a atração <strong>do</strong> capital estrangeirofoi reformada a Lei de Remessa de Lucros já em 1964.As medidas não foram suficientes para liquidar coma inflação que, embora se tenha reduzi<strong>do</strong>, continuava acima<strong>do</strong>s 40% ao ano na média <strong>do</strong> governo Castelo.Ano 1963 1964 1965 1966 1967Inflação 78% 90% 58% 38% 27%Naturalmente, essas medidas foram significativamenteimpopulares. Os Atos Institucionais, a Lei Suplicy(1964), o fechamento da UNE, a ampliação <strong>do</strong> mandatopresidencial de Castelo, o fechamento <strong>do</strong> Congresso em1966, entre outras medidas evidenciavam o fechamentocrescente de um Regime que declarava ter a intenção dedevolver o poder aos civis, mas que vivia um debate internoferrenho, no qual a ala castelista da Sorbonne acabouderrotada pelos militares nacionalistas que desejavam aperpetuação <strong>do</strong> regime e eram representa<strong>do</strong>s pela candidatura<strong>do</strong> Ministro <strong>do</strong> Exército, o general Costa e Silva. Paraapoiar Costa e Silva, Castelo exigiu a manutenção <strong>do</strong> cumprimentodas metas <strong>do</strong> programa de ajuste.O novo Presidente eleito pelo Congresso em outubrode 1966 assumiria a presidência em 15 de marçode 1967, sob o signo <strong>do</strong> baixo crescimento, da inflaçãoainda não controlada e da crescente oposição ao regime,inclusive por setores que haviam apoia<strong>do</strong> o golpe(Lacerda, por exemplo) e que se articulavam pelo retorno àdemocracia.Por um la<strong>do</strong>, a crescente contestação ao regime– mobilização estudantil, formação da Frente Ampla,insatisfação <strong>do</strong>s sindicatos – e por outro, a chegada deum novo grupo de nacionalistas ao poder fez com que


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>508progressivamente se fossem aban<strong>do</strong>nan<strong>do</strong> as diretrizesde uma política econômica que em 1967 parecia queseria mais <strong>do</strong> mesmo. Diretrizes de redução <strong>do</strong> peso <strong>do</strong>setor público e estímulos para <strong>do</strong>tar de mais dinamismoo setor priva<strong>do</strong>, considera<strong>do</strong> pelos liberais o indutor natural<strong>do</strong> crescimento.Antônio Delfim Netto, o novo Ministro da Fazenda,secunda<strong>do</strong> por Hélio Beltrão no Planejamento, tiveram quedar conta da crescente politização das diretrizes econômicasa<strong>do</strong>tadas. O país precisava crescer para fazer frente àsdemandas internas <strong>do</strong> regime 463 e também da sociedade.Roberto Campos chamou de a “legitimação pela eficácia”,diretriz que viria a permear toda a política econômica <strong>do</strong>país ao longo da vigência <strong>do</strong> regime, e favorecer que senegligenciassem outras esferas, desde que o crescimentoeconômico fosse alcança<strong>do</strong>.O anseio pelo crescimento se dava no explosivoano de 1968, quan<strong>do</strong> o regime precisou usar de força parareprimir manifestações estudantis que acabaram extravasan<strong>do</strong>para diversos outros setores da sociedade – artistas,jornalistas, operários – chegan<strong>do</strong> até o Congresso Nacionalno caso <strong>do</strong> discurso de Márcio Moreira Alves, considera<strong>do</strong>ofensivo às Forças Armadas 464 . Ainda que não haja significativarelação causal entre as duas coisas, o fato é que o AI-5 eo Milagre vieram juntos. Uma vez viabiliza<strong>do</strong> o crescimento,naturalmente legitimava-se o regime e seus excessos,transforman<strong>do</strong> o crescimento em retórica de propaganda,sobretu<strong>do</strong> no governo Médici, que assume após o afastamentode Costa e Silva, vítima de um derrame cerebral. Emseu governo intensifica-se a repressão.Delorme Pra<strong>do</strong> e Sá Earp sugerem que o “Milagre”pegou de surpresa a equipe econômica liderada por JoãoPaulo <strong>do</strong>s Reis Velloso, o novo Ministro <strong>do</strong> Planejamento, eDelfim Netto que permanecia a frente da pasta da Fazenda.No Plano Estratégico de Desenvolvimento <strong>do</strong> governoCosta e Silva, em 1967, previa-se um crescimento otimistada ordem de 6%. Tanto nas “Metas e bases para a ação <strong>do</strong>governo” de setembro de 1970 quanto no I PND (Plano Nacionalde Desenvolvimento) de 1971, propunham-se taxasde crescimento ainda mais ambiciosas e arrojadas: 9% aoano, que levariam o país ao estágio de desenvolvimentopleno. Não percebiam, argumentam estes autores, que as463 Eram principalmente militares nacionalistas, fortemente incomoda<strong>do</strong>s como “imperialismo norte-americano” e preocupa<strong>do</strong>s com vaticínios lazarentosde futurólogos como Hermann Khan, que em O Ano 2000 previa que ocrescimento <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> seria um <strong>do</strong>s menores <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Tal qual ocorreu napolítica externa que gradativamente reincorporava os ideais da PEI, tambémna política econômica o liberalismo puro fazia água.464 Jornalista <strong>do</strong> Correio da Manhã que fora eleito deputa<strong>do</strong> pelo MDB daGuanabara e influencia<strong>do</strong> pela peça de Lisístrata sugeriu que as mulheresbrasileiras repudiassem os militares a quem Moreira Alves culpava pelafalta de democracia. Sugeria de mo<strong>do</strong> ameniza<strong>do</strong> que as moças não maisdançassem com os cadetes, inspira<strong>do</strong> na greve de sexo das mulheres daAtenas retratada na comédia de Aristófanes.


509O Regime Militar(1964-1985)taxas de crescimento desde 1968 já ultrapassavam a casa<strong>do</strong>s <strong>do</strong>is dígitos.Ano 63 64 65 66 67 68 69 70 71 72 73 74Crescimento1% 3% 2% 7% 4% 10% 10% 10% 11% 12% 14% 8%<strong>do</strong> PIBA expressão “Milagre”, que já fora usada para caracterizaro inespera<strong>do</strong> crescimento alemão <strong>do</strong> pós-guerrae japonês da década de 1970, passava agora a se aplicarao <strong>Brasil</strong>. O entusiasmo provoca<strong>do</strong> por tal índice de crescimentolevou ao surgimento nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s de cátedraspara estudar o <strong>Brasil</strong> em diversas universidades e aformação de um grande número de brasilianistas em váriasáreas de conhecimento. To<strong>do</strong>s queriam explicar o <strong>Brasil</strong>.Mas o que explica o milagre?Várias coisas. A partir de 1967, o governo canalizato<strong>do</strong> seu esforço macroeconômico para alcançar altastaxas de crescimento em um contexto sistêmico imensamentefavorável à obtenção de créditos. No plano internacional,o Japão crescia a taxas próximas de 10%. A Itália ea Alemanha mais que 6%. O merca<strong>do</strong> financeiro europeucrescera quinze vezes em uma década (de 12 para quase200 bilhões de dólares em 1973), permitin<strong>do</strong> que governose empresas tomassem empréstimos em dólar em praçaseuropeias – as euromoedas – que não eram controladasou reguladas por nenhum governo. O combate à inflaçãonão se faria mais pela contenção ao crédito, mas pelo controlede preços <strong>do</strong>s segmentos menos competitivos daeconomia até que se tornassem competitivos. O aumentodas vendas financiadas por créditos governamentais compensariao menor preço.Outros setores nos quais houve enorme investimento<strong>do</strong> governo foram o da habitação e o das grandesobras públicas ou das empresas públicas, previstas no PND.Transporte, Energia, Comunicações, Petroquímica, Mineração,Siderurgia e Construção Naval foram estimuladas pormeio da redução tarifária e <strong>do</strong> subsídio à importação demáquinas e insumos. Os recursos <strong>do</strong> FGTS financiaram omaior programa de construção de habitações popularesda história, via BNH, e o DNER (Departamento Nacional deEstradas e Rodagens), que organizava a ampliação da malharo<strong>do</strong>viária <strong>do</strong> país, estimulan<strong>do</strong> todas as frentes possíveisà construção civil.As medidas tomadas durante o mandato de Castellopara separar por segmentos os bancos foram, na prática,ultrapassadas pelo imenso nível de concentração quese deu no setor bancário brasileiro durante o perío<strong>do</strong> <strong>do</strong>Milagre. Era necessário fortalecer as instituições financeirasprivadas, <strong>do</strong>tan<strong>do</strong>-as da robustez necessária para implementaro extenso programa de crédito proposto pelogoverno para o setor produtivo. O número de bancos caiupara a metade em três anos (1967-70).


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>510Crédito agrícola e subsídios para abastecimento<strong>do</strong> merca<strong>do</strong> interno e para a exportação 465 . Crédito parao consumi<strong>do</strong>r final adquirir bens de consumo duráveis,sobretu<strong>do</strong> automóveis e eletro<strong>do</strong>mésticos. Créditos paraa exportação de manufatura<strong>do</strong>s que subiram de 20% para31% <strong>do</strong> total das exportações brasileiras entre 1966 e 1973.Desburocratização, redução de impostos, subsídios, valiatu<strong>do</strong> para melhorar o comércio exterior brasileiro que, defato, quase quintuplicou 466 .A redução das tarifas médias de importação de cercade 47% para menos de 20% vinha acompanhada aindade medidas adicionais de subsídios e incentivos, sobretu<strong>do</strong>para a importação de máquinas que pudessem permitira continuação <strong>do</strong> ritmo de crescimento acelera<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong>se esgotou, em 1970, a capacidade ociosa da indústria nacional.A partir daí o papel <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, por meio <strong>do</strong> Conselho<strong>do</strong> Desenvolvimento Industrial e, sobretu<strong>do</strong>, <strong>do</strong>s financiamentos<strong>do</strong> BNDE, foi no senti<strong>do</strong> de aumentar a estruturaindustrial pela implantação de novas unidades produtivas.Isso se deu por meio de investimento externo – maisque <strong>do</strong>brou no governo Médici – mas, igualmente pelaação indutora <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, que era facilmente financiável465 A exportação de soja saltou de 2% para 15% <strong>do</strong> total da pauta, enquanto ocafé caiu de 42% para 23% entre 1966 e 1973.466 De US$ 3 bilhões em 1966 (1,7 de exportação e 1,3 de importação) para maisde US$ 12 bilhões (cerca de 6,2 de exportação e importação) em 1973.no contexto internacional de então, aumentan<strong>do</strong> o endividamentobrasileiro.A pressão sobre o endividamento advinha ainda <strong>do</strong>déficit na balança comercial brasileira, que ocorre quan<strong>do</strong>as importações ultrapassam o valor das exportações emmea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> governo Médici. Naturalmente, o endividamentonão era uma preocupação antes de 1973. Ninguémimaginava que uma crise econômica internacional estavana antessala <strong>do</strong> Milagre, e que, por conta dela e <strong>do</strong> aumento<strong>do</strong>s juros, a dívida brasileira triplicaria em cinco anos.Na década de 1970, não era possível fazer um diagnósticodespolitiza<strong>do</strong> da economia brasileira em meio à repressãoviolenta <strong>do</strong>s “anos de chumbo”. Qualquer crítica àpolítica econômica era considerada crítica ao regime e vistacomo um instrumento político da oposição para enfraqueceros militares. A “legitimação pela eficácia” contagiavato<strong>do</strong> o debate sobre as virtudes e malefícios <strong>do</strong> “Milagre”.E o malefício óbvio e até hoje debati<strong>do</strong> pelo conjuntoda sociedade brasileira foi seu lega<strong>do</strong> concentra<strong>do</strong>r.Ficou como herança a enorme desigualdade que eleproduziu e que foi denunciada pelo presidente <strong>do</strong> BancoMundial e ex-secretário de Esta<strong>do</strong> Robert McNamara, em1972, na reunião da UNCTAD no Chile. Os da<strong>do</strong>s eram deAlbert Fishlow, economista norte-americano especializa<strong>do</strong>em <strong>Brasil</strong>, mas já estavam disponíveis nas conclusões<strong>do</strong> censo de 1970. O aumento da desigualdade suscitouenorme debate entre as correntes de economistas, que


511O Regime Militar(1964-1985)naturalmente não eram neutras, assumin<strong>do</strong> posições a favore contra o governo.Maria da Conceição Tavares, José Serra e, pouco depois,Celso Furta<strong>do</strong>, reven<strong>do</strong> suas teses, acabaram por defenderque o modelo perverso de crescimento brasileiroincorporava o aumento da desigualdade estruturalmente.Tratava-se de característica inerente <strong>do</strong> sistema financiaro consumo e ampliar a renda de apenas algumas camadasda sociedade – incluídas aí as classes médias urbanas.Era a Belíndia, da alegoria satírica de Edmar Bacha. A acumulaçãode capital em setores como construção civil e odinamismo concentra<strong>do</strong> em setores estratégicos favoreciao crescimento sem distribuição de renda. Para Furta<strong>do</strong>, oachatamento salarial acabava ten<strong>do</strong> seu impacto minimiza<strong>do</strong>pelo aumento absoluto no número de empregos naconformação <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r. Além disso, a exportaçãocompensava a demanda fraca.Carlos Langoni em estu<strong>do</strong> encomenda<strong>do</strong> pelo governoresponde aos críticos defenden<strong>do</strong> que a desigualdadeera provisória e característica típica das economiasem crescimento acelera<strong>do</strong>. Discrimina<strong>do</strong>s os setores daeconomia brasileira por meio de da<strong>do</strong>s específicos <strong>do</strong> censo,Langoni percebia que nos setores de baixa renda – ostrabalha<strong>do</strong>res rurais e a mão de obra com baixa escolaridade– a desigualdade também era menor. A desigualdademais alta era característica exclusiva <strong>do</strong> setor que congregavatrabalha<strong>do</strong>res urbanos e mais escolariza<strong>do</strong>s. Assim,tratava-se de uma desigualdade positiva por evidenciar atransição de numerosos grupos de trabalha<strong>do</strong>res das bolhasde atraso para a economia moderna. A desigualdadeseria superada paulatinamente mediante educação da forçade trabalho. O aumento geral da renda também compensavaa desigualdade.O estu<strong>do</strong> de Langoni é sintetiza<strong>do</strong> na magnífica econhecidíssima frase de pâtisserie enunciada por DelfimNetto. A metáfora <strong>do</strong> “bolo” que cresce antes de ser comi<strong>do</strong>,combinava perfeitamente com a physique du rôle <strong>do</strong>Ministro que seria substituí<strong>do</strong> pelo novo Presidente, ErnestoGeisel, em 1974.Geisel pertencia a outro grupo político – era o retorno<strong>do</strong>s castelistas ao poder – e nomeou Mario Henrique Simonsenpara o Ministério da Fazenda. Foi Simonsen quemteve que lidar com a conjuntura sistêmica desfavorávelapós o primeiro choque <strong>do</strong> Petróleo por conta da reaçãoda OPEP à intervenção ocidental na Guerra <strong>do</strong> Yom Kippurem outubro de 1973. O embargo durou até março de 1974,quan<strong>do</strong> Geisel tomava posse na Presidência, mas a OPEPpercebeu o controle efetivo que tinha <strong>do</strong>s preços e o petróleonão fez senão subir – <strong>do</strong>ze vezes até o fim da década– provocan<strong>do</strong> uma diminuição nos ritmos de crescimento<strong>do</strong>s países desenvolvi<strong>do</strong>s e um aumento considerável nosjuros <strong>do</strong>s empréstimos internacionais por conta da conjunturade instabilidade. Tal conjuntura, sinalizada pelo aban<strong>do</strong>nounilateral no governo Nixon <strong>do</strong>s acor<strong>do</strong>s de Bretton


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>512Woods desde 1971, encerrava o boom de estabilidade ecrescimento global que existira no quarto de século desdeo pós-guerra. O novo mun<strong>do</strong> era mais instável e as taxas dejuros, flutuantes.Ainda que o novo governo representasse outra facçãopolítica, a “legitimação pela eficácia” tinha um apelopolítico fortíssimo e, nas Forças Armadas, formadas no espectroideológico <strong>do</strong> positivismo, ainda mais. Ao contrário<strong>do</strong> que acontecia na Argentina, onde as Forças Armadas sevincularam ao modelo liberal em oposição ao peronismoestatista, no <strong>Brasil</strong>, desde o Esta<strong>do</strong> Novo, os militares sempreforam um grupo importante vincula<strong>do</strong> ao consensoque a ideia de desenvolvimentismo conseguira (ver CatherineSikkink).A escolha entre estabilização e crescimento não eramais possível, e coube a Simonsen acirrar o intervencionismo<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> para viabilizar, enquanto possível, os índicesde crescimento que legitimavam o regime. Tratava-se depisar fun<strong>do</strong> no acelera<strong>do</strong>r enquanto ainda restasse gasolina,e isso se deu por meio <strong>do</strong> maior programa de intervençãoestatal já aplica<strong>do</strong> até então, o 2 o PND (1975-1979),último grande plano <strong>do</strong> ciclo desenvolvimentista. Seus focoseram os insumos básicos da indústria, os alimentos, osbens de capital e, sobretu<strong>do</strong>, no setor de energia.Geisel havia si<strong>do</strong> presidente da Petrobras e vivera deperto o problema da dependência brasileira <strong>do</strong> petróleo.O <strong>Brasil</strong> precisava nacionalizar a produção e o refino, e investiupesadamente em pesquisa e prospecção neste perío<strong>do</strong>.É em seu governo que começam os trabalhos paraa exploração <strong>do</strong> petróleo em águas profundas, tecnologiada qual o <strong>Brasil</strong> é hoje uma das lideranças. É também objetivoexplícito <strong>do</strong> PND a diversificação da matriz energéticapor meio da incorporação da energia nuclear por meio deacor<strong>do</strong>s internacionais e <strong>do</strong> Proálcool 467 . As taxas de crescimentose mantinham altas, mas agora eram oscilantes enão mais estáveis.Ano 1974 1975 1976 1977 1978 1979Crescimento<strong>do</strong> PIB8% 5% 10% 5% 5% 7%O financiamento desta enorme gama de inversõesvinha <strong>do</strong> BNDE e <strong>do</strong> endividamento. O crédito continuava467 Testadas outras possibilidades, como a mandioca, acabou-se decidin<strong>do</strong>pela cana-de-açúcar que vivia um momento de baixa de preços. O etanolproduzi<strong>do</strong> por via fermentativa com base nas pesquisas <strong>do</strong> físico José WalterBautista Vidal começou a substituir, a partir de 1975, a gasolina, quan<strong>do</strong>foram produzi<strong>do</strong>s 600 milhões de litros de álcool. Esse volume quintuplicouaté 1980 e chegou a 12 bilhões de litros em 1986 quan<strong>do</strong> já tinham si<strong>do</strong>produzi<strong>do</strong>s cerca de 10 milhões de veículos movi<strong>do</strong>s a álcool. Em mea<strong>do</strong>s dadécada de 1980, o preço <strong>do</strong> petróleo voltou a cair no mesmo momento emque o preço <strong>do</strong> açúcar começava a subir, tornan<strong>do</strong> o álcool desinteressantetanto para os produtores quanto para os consumi<strong>do</strong>res. O desabastecimentogeneraliza<strong>do</strong> provocou descrença entre os consumi<strong>do</strong>res e monta<strong>do</strong>raslevan<strong>do</strong> um declínio <strong>do</strong> carro a álcool até o advento da tecnologia americanade bicombustíveis, que chegou ao <strong>Brasil</strong> nos anos de 1990.


513O Regime Militar(1964-1985)fácil – os petrodólares – mas as taxas de juros eram umabomba relógio, que explodiria na década seguinte. O segun<strong>do</strong>choque <strong>do</strong> petróleo, consequência da paralisaçãoda produção iraniana durante a revolução xiita de 1979,agravaria ainda mais a situação <strong>do</strong> governo que sucederiaErnesto Geisel 468 .O quadro externo agravar-se-ia ainda mais com o aumento<strong>do</strong>s juros <strong>do</strong> FED, o banco central americano, nummovimento que Maria da Conceição Tavares chamou de“a retomada da hegemonia <strong>do</strong> dólar”. Para superar a estagflaçãoamericana <strong>do</strong>s anos 1970, Paul Volcker, o presidente<strong>do</strong> FED, aumentou em mais de 10% os juros básicos daeconomia americana, que chegaram a um pico de 21,5%em 1981, primeiro ano <strong>do</strong> governo de Ronald Reagan, querenovou a indicação de Volcker, um democrata aponta<strong>do</strong>originalmente por Jimmy Carter em 1979, para o FED. Comcontratos de juros flutuantes, os países da América Latinase viram às voltas com uma situação de dívida impagável.No caso <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, a dívida ultrapassou a casa <strong>do</strong>s 100 bilhõesde dólares, o que levaria à moratória em 1982.Além da diminuição drástica <strong>do</strong>s índices de crescimento,o governo Figueire<strong>do</strong> viu disparar a inflação quesaiu de 40% ao ano para quase 230%, caracterizan<strong>do</strong> a468 Sintomaticamente, Figueire<strong>do</strong> foi eleito no colégio eleitoral com pouco maisde 60% <strong>do</strong>s votos. O candidato <strong>do</strong> MDB, o general Euler Bentes teve 39%.hiperinflação. O governo americano exportara para aAmérica Latina a estagflação.Ano 1980 1981 1982 1983 1984Crescimento <strong>do</strong> PIB 9% (-4) 1% (-3) 5,50%Ano 1985 1986 1987 1988 1989Crescimento <strong>do</strong> PIB 8% 7,50% 3,50% Zero 3%A criação <strong>do</strong> Fun<strong>do</strong> de Investimento Social era umatentativa <strong>do</strong> governo Figueire<strong>do</strong> de dar conta das críticasde aban<strong>do</strong>no da questão social, que naturalmente surgiamem um contexto de diminuição <strong>do</strong> crescimento e da grandeseca <strong>do</strong> nordeste de 1981. Saúde, educação, alimentose financiamento ao pequeno produtor, cujo slogan era“Plante que o João garante” eram os focos <strong>do</strong> FIS que conseguiureduzir o preço <strong>do</strong>s alimentos básicos.A situação da economia começou a melhorar em 1984com o retorno <strong>do</strong> crescimento, estimula<strong>do</strong> pela crescenteabertura da economia americana sob Reagan, que favoreceuo superávit da balança comercial brasileira, mas a inflação aindademoraria uma década para ser superada, o que fez o <strong>Brasil</strong>ser a única economia da história a viver um década inteira sobhiperinflação ao ponto de que isso foi normaliza<strong>do</strong> e institucionaliza<strong>do</strong>no sistema financeiro brasileiro.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>5148.3 Da Interdependência à Diplomacia <strong>do</strong> InteresseNacionalAs concepções da Política Externa<strong>Brasil</strong>eira no Regime Militar.Castelo Branco: o passo fora da cadência.A Diplomacia da Prosperidade <strong>do</strong> Governo Costa e Silva.Médici e a Diplomacia <strong>do</strong> Interesse Nacional.O apoio <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s ao Golpe Civil-Militarde abril de 1964, assim como a passagem de seus principaisprotagonistas pela ESG (Escola Superior de Guerra),favoreceu a recuperação da lógica de engajamento e aconcepção de uma ordem internacional com a hegemoniaestadunidense, nos moldes <strong>do</strong> que se tinha verifica<strong>do</strong>nos governos Dutra e Café Filho 469 . Trata-se de um <strong>do</strong>spoucos momentos na história de nossa política externaem que é consensual que os traços de ruptura suplantaramos elementos de continuidade. Aban<strong>do</strong>nam-se asprincipais ideais da Política Externa Independente, quetinha si<strong>do</strong> iniciada pela UDN na gestão de Afonso Arinoscomo Ministro das Relações Exteriores <strong>do</strong> Governo JânioQuadros.A partir de Castelo, tentativas de integração com ospaíses sul-americanos através da Associação Latino-Americanade Livre-Comércio (ALALC) e de oposição ao liberalismoeconômico, que nortearam as ações <strong>do</strong> Itamaraty noinício <strong>do</strong>s anos 1960, perdem peso em nome <strong>do</strong> foco nasegurança hemisférica 470 . Isso não significa que tenha havi<strong>do</strong>aban<strong>do</strong>no da ideia geral de que a política externa estariaa serviço <strong>do</strong> desenvolvimento. Mas a forma como esteobjetivo seria alcança<strong>do</strong> difere sob os novos mandatários.A partir <strong>do</strong> golpe, o projeto é basea<strong>do</strong> no liberalismo e naentrada de capitais externos no campo econômico, comadesão à lógica mais ampla de uma <strong>do</strong>utrina de segurançahemisférica. Além <strong>do</strong> apoio aos norte-americanos na defesa<strong>do</strong> Ocidente, “consoante os parâmetros <strong>do</strong> liberalismoeconômico e das fronteiras ideológicas” 471 . A ideia era atrairdesta forma:A marca registrada dessa reflexão era a rigidez que imputavaà bipolarização <strong>do</strong> sistema internacional. Sobessa ótica maniqueísta, rejeitava a possibilidade de uma469 Golbery <strong>do</strong> Couto e Silva, articula<strong>do</strong>r e teórico <strong>do</strong> regime, expôs suasprincipais teses geopolíticas em Geopolítica <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. Neste, defendiaabertamente “uma geopolítica processada nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, que sedestacava pela forte influência realista de Morgenthau, a qual ele adicionoua teoria cíclico-elitista da história de Arnold Toynbee”.470 SARAIVA, Flávio Sombra. Relações Internacionais. Dois séculos de <strong>História</strong>:entre a ordem bipolar e o policentrismo (1947 a nossos dias). v. 2. Brasília: IBRI,2001.471 VIZENTINI, Paulo Fagundes. A política externa <strong>do</strong> regime militar brasileiro:multilaterização, desenvolvimento e a construção de uma potência média(1964-1985). Porto Alegre: Editora da Universidade: UFRGS, 1998.


515O Regime Militar(1964-1985)opção fora <strong>do</strong> Ocidente (ciência, democracia e cristianismo)e <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> comunista (totalitarismo e ateísmo).O bloco afro-asiático e os não-alinha<strong>do</strong>s nada maisrepresentavam <strong>do</strong> que opções ainda hesitantes pelocomunismo 472 .Tal maniqueísmo, no entanto, terá vida curtíssima.O peso institucional <strong>do</strong> Itamaraty, bem como a chegada deum novo grupo político ao poder na sucessão de CasteloBranco em 1966-7, trouxe de volta uma boa <strong>do</strong>se de nacionalismoà nossa forma de inserção internacional. Este modelode inserção mostrou-se equivoca<strong>do</strong> até mesmo paraos setores mais à direita <strong>do</strong> regime. O alinhamento comos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s mais uma vez não viabilizaria os anseioseconômicos <strong>do</strong> país, que aban<strong>do</strong>nou a lógica preta e branca<strong>do</strong> tabuleiro de xadrez geopolítico global e começou, apartir <strong>do</strong> governo Costa e Silva, a perceber os tons de cinza,como veremos.Governo Castelo Branco (1964-1967): O Passofora da CadênciaAinda no brevíssimo mandato <strong>do</strong> presidente da Câmara<strong>do</strong>s Deputa<strong>do</strong>s, Ranieri Mazzilli, é indica<strong>do</strong> para assumiro Ministério das Relações Exteriores o embaixa<strong>do</strong>r472 GONÇALVES, Williams e MIYAMOTO, Shiguenoli. Os Militares na PolíticaExterna <strong>Brasil</strong>eira: 1964-1984. Estu<strong>do</strong>s Históricos, Rio de Janeiro, vol. 6, n. 12,1993, pp. 211-246.Vasco Leitão da Cunha, que afirmou pouco depois emdiscurso no plenário da XIX Assembleia Geral da ONUque a Revolução de 1964 resultara “num grande movimentode renovação nacional”. Vasco era diplomata decarreira e havia trabalha<strong>do</strong> com Octávio Mangabeirano governo Washington Luís. Seu posto anterior tinhasi<strong>do</strong> Moscou, logo depois <strong>do</strong> reatamento das relaçõesdiplomáticas em 1962, um <strong>do</strong>s marcos da PEI. Sua gestãoà frente <strong>do</strong> Ministério seria justamente no senti<strong>do</strong>de contribuir com o desmonte <strong>do</strong> globalismo da PolíticaExterna Independente, ainda que tenha ti<strong>do</strong> papelimportante de proteger o Ministério <strong>do</strong>s expurgos defuncionários no novo regime.Castelo Branco em discurso aos forman<strong>do</strong>s <strong>do</strong> InstitutoRio Branco criticou a “política da independência”exercida pelo governo de seu antecessor, deixan<strong>do</strong> suasintenções evidentes. Em seu discurso, o Presidente afirmaque:No presente contexto de uma confrontação de poderbipolar, com radical divórcio político-ideológico entreos <strong>do</strong>is respectivos centros, a preservação da independênciapressupõe a aceitação de um certo graude interdependência, quer no campo militar, quer noeconômico, quer no político. (…) O interesse <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>coincide, em muitos casos, em círculos concêntricos,com o da América Latina, <strong>do</strong> continente americano eda comunidade ocidental. Sen<strong>do</strong> independentes, nãoteremos me<strong>do</strong> de ser solidários. Dentro dessa independênciae dessa solidariedade, a política exterior será


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>516ativa, atual e adaptada às condições de nosso tempobem como aos problemas de nossos dias. Será esta apolítica externa da revolução 473 .Com isso fica patente a prioridade dada às relaçõesbilaterais com os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s. A cooperação na defesaestratégica <strong>do</strong> hemisfério coordenada pelos estadunidensesfortaleceu a ideia de segurança coletiva. A frase proferidapor Juracy Magalhães, então Embaixa<strong>do</strong>r brasileiro emWashington, que sucederia Vasco Leitão no Itamaraty em1966 é marca desta opção 474 . Enquanto no contexto internacionalas relações entre as potências caminhavam parao aprofundamento <strong>do</strong> diálogo, durante longo perío<strong>do</strong> dediástole, o governo brasileiro apostava, erroneamente, noacirramento da bipolarização mundial.De um mo<strong>do</strong> geral, o novo governo, principalmentepelo apoio <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s ao golpe, não teve maioresproblemas de legitimidade internacional e teve o reconhecimentoquase que imediato de Washington e de quaseto<strong>do</strong>s os países americanos, à exceção da Venezuela e <strong>do</strong>México, que alegaram impedimento para reconhecer regimesnão democráticos (Doutrina Bettancourt na Venezuela)473 GONÇALVES, Williams e SHIGUENOLI, Miyamoto, Op. Cit.474 O Embaixa<strong>do</strong>r mais tarde alegou que a frase, “o que é bom para os Esta<strong>do</strong>sUni<strong>do</strong>s é bom para o <strong>Brasil</strong>” foi retirada <strong>do</strong> contexto mais amplo, na qual ochanceler justificava uma certa autonomia brasileira para proceder tal qualos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s na questão nuclear, e na relação com os países socialistas.CUNHA, Vasco Leitão. Diplomacia em Alto-Mar.ou instituí<strong>do</strong>s pela força (Doutrina Estrada no México). Emambos os casos, os representantes no <strong>Brasil</strong> foram convoca<strong>do</strong>s.O governo mexicano reconheceu o <strong>Brasil</strong> apenasem junho, e o venezuelano apenas no final de 1966.Deixan<strong>do</strong> de ser vidraça para se tornar pedra, o <strong>Brasil</strong>,agia <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong>, e rompia relações diplomáticascom o governo de Fidel Castro em 2 de maio de 1964.Declarava o <strong>Brasil</strong> que quan<strong>do</strong> assumiu a forma “marxista-leninista,o governo de Cuba se excluiu, ipso facto, daparticipação no sistema americano” 475 .O estilingue de Castelo Branco, infelizmente, não parouem Cuba. Esticou ainda mais a corda, rompen<strong>do</strong> comuma longa tradição republicana de não intervenção nosassuntos internos <strong>do</strong>s países da região, quan<strong>do</strong> decidiuque em nome da “fidelidade cultural e política ao sistemademocrático”, o <strong>Brasil</strong> participaria da fatídica OperaçãoPower Pack, com envio de tropas brasileiras à RepúblicaDominicana em suporte ao governo golpista que derrubaraJuan Bosch no final de 1963 476 . Interpretações acerca475 Ministério das Relações Exteriores, Textos e Declarações sobre PolíticaExterna, 1965, pp. 47-49.476 Parte <strong>do</strong>s militares <strong>do</strong> país, no entanto, desejava o retorno de Bosch e seinsurgiram contra o governo golpista lançan<strong>do</strong> o país numa guerra civil, naqual o governo americano decidiu intervir – com apoio brasileiro – para evitare reinstalação de Bosch. Esta intervenção é a primeira ação norte-americanaembasada na Doutrina Johnson, formulada pelo subsecretário estadunidenseThomas Mann. Tratava-se de <strong>do</strong>utrina claramente intervencionista quepraticamente resgatava os tempos <strong>do</strong> Big Stick.


517O Regime Militar(1964-1985)<strong>do</strong>s objetivos brasileiros na participação militar vão alémde uma simples demonstração de alinhamento aos EUA,mas sim dar contornos coletivos a segurança continental,restringin<strong>do</strong> uma possível intervenção unilateral da potênciahegemônica.O <strong>Brasil</strong> parecia querer compartilhar com os americanoso papel de polícia ideológica continental, dan<strong>do</strong> anossos vizinhos a impressão de uma gendarmerie associada,como ficaria claro durante a X Reunião de Consulta daOEA. Neste encontro, criou-se a Força Interamericana dePaz (FIP), cujo coman<strong>do</strong> foi entregue ao general brasileiroHugo Penasco Alvim. Mil cento e cinquenta homens dasForças Armadas brasileiras compuseram a Faibras, atuan<strong>do</strong>junto com tropas de Honduras, Paraguai, Nicarágua eCosta Rica. Protestos foram realiza<strong>do</strong>s pelo México, Chile,Venezuela, Peru e Uruguai, que criticaram ferozmente esteprojeto de OTAN latino-americana. A iniciativa foi bastanteprejudicial à imagem brasileira, e o governo seguinte recuarianesta decisão.Nas relações com a Argentina, o “espírito de Uruguaiana”já havia si<strong>do</strong> fortemente abala<strong>do</strong> com o golpemilitar que derrubou o Presidente Arturo Frondizi em1962. De tranquilas e positivas, as relações vão se tornan<strong>do</strong>crescentemente tensas, e o motivo para estas tensõesé justamente a crescente aproximação da ditadura militarbrasileira com o regime autoritário paraguaio lidera<strong>do</strong> porAlfre<strong>do</strong> Stroessner. Era o retorno da hegemonia brasileirasobre o vizinho mediterrâneo que nas últimas seis décadasnão passara de um satélite argentino. Simbolizam estaaproximação entre Brasília e Assunção a inauguração, emmarço de 1965, da Ponte da Amizade em Foz <strong>do</strong> Iguaçue a assinatura da Ata das Cataratas (1966), que acertam aquestão em relação às pretensões recíprocas no Salto dasSete Quedas e o aproveitamento comum <strong>do</strong>s recursos hidroelétricos<strong>do</strong> Rio Paraná.Os des<strong>do</strong>bramentos da Ata das Cataratas engendrariamquase uma década de tensões bilaterais entrebrasileiros e argentinos na controvérsia que envolveu aconstrução da Usina de Itaipu, que prejudicava o projetoargentino de uma hipotética, e até hoje não construída,Usina de Corpus também em acor<strong>do</strong> com os paraguaios.O <strong>Brasil</strong> rompera relações diplomáticas com Cuba,mas decidira não fazer o mesmo com a URSS. Muito pelocontrário. Por iniciativa <strong>do</strong> Ministro <strong>do</strong> Planejamento RobertoCampos, houve incremento das relações comerciaisentre o <strong>Brasil</strong> e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas– URSS. Em 1965, Campos visita à URSS junto a empresáriosbrasileiros e, no ano seguinte, assina um protocolosobre o fornecimento de maquinaria e equipamentos daUnião Soviética ao <strong>Brasil</strong>. Tal aproximação naturalmentenão significava qualquer en<strong>do</strong>sso ideológico. Rompi<strong>do</strong>scomo estavam soviéticos e chineses, o <strong>Brasil</strong> se aproximava<strong>do</strong>s primeiros, mas mantinha distância <strong>do</strong>s segun<strong>do</strong>s.Acusa<strong>do</strong>s de fomentarem ações subversivas no <strong>Brasil</strong>, nove


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>518membros <strong>do</strong> escritório comercial chinês são expulsos <strong>do</strong>país após semanas de detenção, contrastan<strong>do</strong> com a calorosae efusiva recepção que o então Vice-Presidente JoãoGoulart recebera em Pequim menos de quatro anos antes.Para a América ou para a Ásia, o anticomunismo <strong>do</strong>s novos<strong>do</strong>nos <strong>do</strong> poder significava ruptura com o pragmatismode uma Política Externa globalista, que eram as conquistasda PEI após décadas de americanismo. Era a vitória militardas ideologias sobre os interesses.Nem to<strong>do</strong>s os elementos ideológicos eram negativosà imagem internacional <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. Da leitura de AntonioCarlos Lessa, percebe-se a significativa melhoria nasrelações <strong>do</strong> governo brasileiro com a Europa ocidental.A visita de Charles De Gaulle ao <strong>Brasil</strong> em 1965, a primeira deum chefe de Esta<strong>do</strong> francês, é sintomática <strong>do</strong>s esforços desuperação <strong>do</strong>s contenciosos herda<strong>do</strong>s <strong>do</strong> regime anterior,como a “Guerra das Lagostas” (1963). No mesmo ano, o <strong>Brasil</strong>recebia a visita <strong>do</strong> Presidente da República Federal Alemã.Encerrava-se um longo perío<strong>do</strong> de parceria bloqueada.Um exemplo das boas gestões brasileiras junto aosfranceses foi o envio de missão negocia<strong>do</strong>ra a Paris paraencaminhar – com urgência – a compra de to<strong>do</strong>s os títulosda Companhia Vitória-Minas ainda em circulação no merca<strong>do</strong>de valores francês. Gesto que surpreendeu o Quaid’Orsay e contentou os obrigacionistas das empresas queestimulavam o contencioso com o <strong>Brasil</strong>. Lograva então ogoverno brasileiro desmobilizar as pressões sociais, que seabatiam sobre o governo francês, conforme ensina Lessa.Esta e outras medidas acabariam por melhorar a imagem<strong>do</strong> país no exterior em curto prazo 477 .Já em relação à África, <strong>do</strong>ta-se de novo conteú<strong>do</strong> asrelações com o continente. A importância comercial e políticaque o continente africano tinha ganha<strong>do</strong> sob AfonsoArinos e a PEI será subordinada a uma crescente securitizaçãoda agenda bilateral com os países recém-independentes.Não é que a África tivesse perdi<strong>do</strong> relevância, massua relevância agora era encarada sob um novo prisma.Com Castelo Branco, o temor de uma possível influênciacomunista no Atlântico que pudesse alcançar o <strong>Brasil</strong> levouà tese de que seria preciso promover a “imunização”das recém-independentes nações africanas contra os perigos<strong>do</strong> comunismo. Esta lógica de securitização da agendaafricana tinha, naturalmente, a influência da ESG e de seusteóricos geopolíticos, sobressain<strong>do</strong> Golbery <strong>do</strong> Couto eSilva, diretor <strong>do</strong> SNI. Segun<strong>do</strong> José Flávio Sombra Saraiva:O Atlântico africano, incluí<strong>do</strong> na área <strong>do</strong> “semicírculo interior”,que se estendia na direção <strong>do</strong> Atlântico e da Áfricana extensão de 10.000 km <strong>do</strong> ponto central <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>,deveria estar sob a permanente observação. E a melhorobservação seria oferecida pela dimensão geopolíticae pela prática segura <strong>do</strong> governo de 1964. (…) Essas477 LESSA, Antonio Carlos. Os vértices marginais de vocações universais: as relaçõesentre a França e o <strong>Brasil</strong> de 1945 a nossos dias. Tese de Doutora<strong>do</strong> apresentadaao Departamento de Pós-Graduação em <strong>História</strong> da Universidade de Brasília.


519O Regime Militar(1964-1985)noções não eram exclusivas aos oficiais da Escola Superiorde Guerra. O me<strong>do</strong> <strong>do</strong>s militares brasileiros quea África “caísse em mãos hostis” requeria o alerta permanentetambém da Marinha. Altas patentes desta armacompartilhavam aquela espécie de Doutrina Monroeafricana construída de fora para dentro <strong>do</strong> Continentepor elites políticas que nunca haviam pisa<strong>do</strong> em soloafricano 478 .Pretória e Lisboa assumiriam, neste contexto, posiçõesrelevantes no sistema de defesa <strong>do</strong> Atlântico.A “missão civilizatória” portuguesa era invocada por CasteloBranco para reconhecer que a política externa para a Áfricatinha <strong>do</strong>is grandes campos: o da África independentee o da região cuja presença portuguesa ainda implicavaa permanência de laços coloniais. Era ainda a herança <strong>do</strong>lusotropicalismo freyreano. Ao sul <strong>do</strong> Atlântico, o comérciocom a África <strong>do</strong> Sul, então o principal parceiro africano <strong>do</strong><strong>Brasil</strong>, era incrementa<strong>do</strong>.A visita já acertada nos tempos de João Goulart(1961-1964) <strong>do</strong> Presidente Léopold Senghor ao <strong>Brasil</strong> seconverteu em oportunidade de ser um ponto de partidapara esta imunização. Visto como um modera<strong>do</strong>, muitomais intelectual de esquerda <strong>do</strong> que político de esquerda,Senghor era o primeiro Chefe de Esta<strong>do</strong> africano a visitaro <strong>Brasil</strong> 479 e poderia estimular a construção de uma linhade defesa entre Natal e Dacar. Entretanto, poucos foram osresulta<strong>do</strong>s práticos desta visita, limita<strong>do</strong>s a acor<strong>do</strong>s de cooperaçãocomercial e cultural 480 .O grande dilema para a política brasileira em relaçãoaos países africanos se expressava multilateralmente.Era perceptível e crescente o poder <strong>do</strong>s africanos na AssembleiaGeral da ONU, o que forçou a a<strong>do</strong>ção de posiçõescontraditórias ao que professava a ideologia da ESG. Sãoexemplos da manutenção <strong>do</strong> zigue-zague, agora alarga<strong>do</strong>para além das possessões portuguesas, o voto brasileiro favorávelà Resolução n o 2202, que conclamava os membrosdas Nações Unidas a desencorajar o estabelecimento derelações econômicas ou financeiras com a África <strong>do</strong> Sul.Ou ainda, quan<strong>do</strong> o <strong>Brasil</strong> sediou seminário sobre oapartheid com participação de 27 países e, naturalmente,com protesto <strong>do</strong> governo de Pretória. Era o pragmatismoencontran<strong>do</strong> brechas na valsa torta de Castelo Branco.Ama<strong>do</strong> Cervo define o governo Castelo Brancocomo um “passo fora da cadência”. Acredita este autor quetal “correção diplomática” <strong>do</strong>s rumos não era uma políticade Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Regime Militar, como o senso comum costumaacreditar. Tomou-se por metonímia para to<strong>do</strong> o perío<strong>do</strong>as diretrizes <strong>do</strong> governo Castelo cujo efeito simbólico478 SARAIVA, José Flávio Sombra. O Lugar da África: a dimensão geopolítica <strong>do</strong>Atlântico e a política africana. Pp.106-107.479 Idem, ibidem480 Ainda no governo Castelo Branco (1964-1967) outro chefe de Esta<strong>do</strong>africano visitou o <strong>Brasil</strong>: Maurice Yaméogo, Presidente <strong>do</strong> Alto Volta (atualBurquina Fasso).


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>520foi potencializa<strong>do</strong> pela frase de Juraci. Não é isso que sepercebe. Em pouco tempo, são supera<strong>do</strong>s os “círculos concêntricos”da ESG e a lógica de alinhamento e interdependência,retoman<strong>do</strong> os militares as tendências nacionalistasque vigorariam até o início <strong>do</strong>s anos 1990.Governo Costa e Silva (1967-1969): Diplomaciada ProsperidadeLíder <strong>do</strong> Coman<strong>do</strong> Supremo da Revolução e posteriormenteMinistro <strong>do</strong> Exército durante o governo CasteloBranco (1964-1967), Artur da Costa e Silva assume o podere promove uma mudança nos principais cargos dentro<strong>do</strong> governo. Saíam os militares “modera<strong>do</strong>s” ou “grupo daSorbonne” e entravam aqueles chama<strong>do</strong>s de “linha-dura”.É um momento de redefinição na política interna e, comisso, a política exterior passará igualmente por mudanças,entendidas como positivas pelos autores que se debruçaramsobre o tema 481 .O escolhi<strong>do</strong> para ficar à frente <strong>do</strong> Ministério das RelaçõesExteriores foi o ex-governa<strong>do</strong>r de Minas Gerais e um<strong>do</strong>s gestores civis <strong>do</strong> golpe, o banqueiro Magalhães Pinto.Recusara Magalhães Pinto o convite de Carlos Lacerda paraingressar na Frente Ampla oposicionista por “ter assumi<strong>do</strong>um compromisso” com Costa e Silva. Permanece à frente<strong>do</strong> Itamaraty mesmo após o derrame de Costa e Silva, ten<strong>do</strong>si<strong>do</strong> manti<strong>do</strong> no cargo pela Junta Provisória que governouo <strong>Brasil</strong> entre agosto e outubro de 1969.Ao assumir o poder, Costa e Silva “reformulou as diretrizesfundamentais da política externa, proceden<strong>do</strong> ànova limpeza de posições” 482 após o que era considera<strong>do</strong>um certo fracasso nas tentativas de implementação deum modelo liberal associa<strong>do</strong> aos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s na gestãoanterior. Os resulta<strong>do</strong>s obti<strong>do</strong>s através da “Aliança parao Progresso” apontavam para números inexpressivos. Eraimportante alterar os rumos da política exterior brasileirapara, com isso, colocar como prioridade o desenvolvimentonacional, no que o próprio Presidente chamara de “diplomaciada prosperidade”.Em um contexto de arrefecimento da dicotomiaLeste-Oeste da Guerra Fria, o Governo brasileiro viu aumentarsuas possibilidades de retomar a autonomia perdidano governo anterior. Em discurso na ESG, o chancelerMagalhães Pinto se coloca contra a criação de uma ForçaInteramericana de Paz regular, deixan<strong>do</strong> evidente seuprincípio de nacionalização da segurança. Tentava conseguiro respal<strong>do</strong> das Forças Armadas brasileiras para umaposição mais nacionalista. É responsabilidade de cada país481 VIZENTINI (1998), CERVO & BUENO (2003), MIYAMOTO & GONÇALVES (1993).482 CERVO, Ama<strong>do</strong> Luiz; BUENO, Clo<strong>do</strong>al<strong>do</strong>, Op. Cit.


521O Regime Militar(1964-1985)o controle da defesa de seu próprio território. Observavao Ministro que na política externa os interesses nacionaisse sobrepõem àqueles de motivações ideológicas. Eleaproveita-se <strong>do</strong> cenário externo de aproximação entre assuperpotências para salientar que mesmo no caso <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>sUni<strong>do</strong>s ficava óbvia a prioridade <strong>do</strong>s interesses sobrea ideologia. Aban<strong>do</strong>nava assim, o <strong>Brasil</strong>, a lógica ocidentalista.A necessidade, segun<strong>do</strong> o chanceler, era retomar ocrescimento econômico e promover o desenvolvimento.Afirman<strong>do</strong> que “na cooperação para o desenvolvimento vêo Governo brasileiro um caminho para a superação dessadramática divisão <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> no senti<strong>do</strong> Norte-Sul, entrepovos ricos e pobres” 483 .Não era de se surpreender que com Magalhães Pintovoltasse o Ministério das Relações Exteriores a ter umcoman<strong>do</strong> udenista. Tal qual Afonso Arinos, o novo chancelerera funda<strong>do</strong>r <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> que a ditadura tinha acaba<strong>do</strong>de extinguir. Se o olhar <strong>do</strong> analista se volta exclusivamentepara a comparação entre a política externa <strong>do</strong> governo militarcom a <strong>do</strong> governo democrático que lhe antecedeu,causa espanto que menos de três anos depois <strong>do</strong> golpeque depôs João Goulart, boa parte das diretrizes da PEI estivessemde novo no centro da agenda nacional. Se o foco483 PINTO, Magalhães, “Fundamentos da política exterior <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>; Conferênciapronunciada na Escola Superior de Guerra”, em 28 de junho de 1967, 10(37-38), pp. 11-17, mar.-jun. 1967.for partidário, o coman<strong>do</strong> <strong>do</strong> Ministério voltava às mãosda UDN, parti<strong>do</strong> urbano defensor de teses análogas às <strong>do</strong>PTB em política externa. A prioridade dada ao desenvolvimentismovinha de ainda mais longe, <strong>do</strong>s anos de 1930.Durante o Esta<strong>do</strong> Novo, como vimos, Vargas lograra transformaro desenvolvimentismo em política de Esta<strong>do</strong>, comsignificativo grau de consenso, o que não foi possível, porexemplo, na Argentina.Sen<strong>do</strong> assim, o que se percebe é a retomada de umatradição mais longa de política de Esta<strong>do</strong> na ação externa<strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. O governo Castelo Branco e a ideologia pós-golpenão passou de um hiato, que não conseguiu deixar raízesfirmes no Itamaraty.Nada expressa tão bem a posição nacionalistas <strong>do</strong><strong>Brasil</strong> que as querelas a propósito da assinatura <strong>do</strong> Trata<strong>do</strong>de Não Proliferação Nuclear. Logo no início <strong>do</strong> governo aquestão nuclear é o tema em destaque.Para sermos justos, o tratamento não mudara. Desdeo governo Castelo, a posição brasileira não aceitava óbicesao uso pelo <strong>Brasil</strong> de energia nuclear para fins pacíficos.Em fevereiro de 1967 (último mês <strong>do</strong> governo CasteloBranco), é assina<strong>do</strong>, na Cidade <strong>do</strong> México, o Trata<strong>do</strong> de Tlatelolcopara a Proscrição de Armas Nucleares na AméricaLatina e Caribe, em que os países signatários afirmam ser“desejosos de contribuir, na medida de suas possibilidades,para pôr termo à corrida armamentista, especialmente dearmas nucleares, e para a consolidação da paz no mun<strong>do</strong>,


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>522baseada na igualdade soberana <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s, no respeitomútuo e na boa vizinhança 484 ”. Foram estabeleci<strong>do</strong>s queórgãos como a Organização para a Proibição de ArmasNucleares na América Latina (OPANAL) e a AIEA seriam responsáveispela fiscalização <strong>do</strong>s dispositivos <strong>do</strong> trata<strong>do</strong>.O governo brasileiro utilizou o Trata<strong>do</strong> de Tlatelococomo um “escu<strong>do</strong> moral” para defender a sua posiçãodiante <strong>do</strong> Trata<strong>do</strong> de Não Proliferação Nuclear (TNP). Em1968, ano em que os franceses testaram seu artefato nuclear,as cinco potências nuclearmente armadas buscaramimpedir a proliferação global de países nucleariza<strong>do</strong>s,o que incomo<strong>do</strong>u o governo brasileiro. Agiu, então, inteligentementeo embaixa<strong>do</strong>r Sette-Camara em Tlateloco.A Convenção mexicana era um balão de ensaio para oTNP, cuja iniciativa <strong>do</strong> chanceler mexicano Garcia Roblesmal disfarçava o intuito de servir de procura<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s interessesestadunidenses. O <strong>Brasil</strong> colocou em Tlateloco umasérie de questionamentos à proposta de desnuclearizaçãoda América Latina, ao mesmo tempo que se ofereciapara assinar imediatamente o trata<strong>do</strong>, desde que este sóentrasse em vigor uma vez cumpridas as “exigências adicionais”,oriundas <strong>do</strong>s questionamentos suscita<strong>do</strong>s pelo<strong>Brasil</strong> 485 . Tais questionamentos transformaram Tlateloco484 .485 Por exemplo, se os países nucleariza<strong>do</strong>s com colônias na América seem um queijo suíço diplomático. Tinha tantas exigênciase exceções que não serviu para seu objetivo inicialde desnuclearizar a América Latina, mas passou a servirperfeitamente ao governo brasileiro, desde então, para sedefender contra novas exigências de compromissos coma desnuclearização. Afinal, se já éramos signatários de Tlateloco,qual a necessidade de um TNP?O <strong>Brasil</strong> não desejava nenhum tipo de limitação aseu acesso à tecnologia nuclear, considerada naquele momentofundamental para o progresso da nação. Assim, o<strong>Brasil</strong> se recusa a assinar o TNP. A base de sua justificativaestá expressa no pensamento de Araújo Castro, ChefeMissão brasileira junto às Nações Unidas, e Ex-Chanceler<strong>do</strong> governo João Goulart. Este afirmava que a ONU estavadefenden<strong>do</strong> um inaceitável “congelamento <strong>do</strong> podermundial” 486 , ressaltan<strong>do</strong>: “(…) E quan<strong>do</strong> falamos de poder,comprometiam a jamais colocar ogivas nucleares em seus territóriosamericanos, se estes mesmos países se comprometiam a jamais usar ouameaçar usar armas nucleares na América Latina, se abstinham de fazervoos nucleares sobre o território da América Latina, se, na eventualidadede surgimento de novas nações nuclearizadas, estas igualmente sesubmeteriam aos protocolos de Tlateloco. Enquanto cada uma destas précondiçõesnão fosse cumprida, o <strong>Brasil</strong> se reservava o direito de não aceitara entrada em vigor <strong>do</strong> trata<strong>do</strong>.486 Esta posição seria refinada teoricamente quan<strong>do</strong> Araújo Castro, já Embaixa<strong>do</strong>rem Washington, faria exposição detalhada <strong>do</strong> conceito e <strong>do</strong> realismo desuas bases em exposição <strong>do</strong>s estagiários <strong>do</strong> Curso Superior de Guerra daEscola Superior de Guerra, realizada em 15 de junho de 1971. O texto estádisponível na biblioteca virtual <strong>do</strong> Sena<strong>do</strong> e é um <strong>do</strong>s <strong>do</strong>cumentos maisrelevantes da história contemporânea das relações internacionais <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>.


523O Regime Militar(1964-1985)não falamos apenas <strong>do</strong> poder militar, mas também de poderpolítico, poder econômico, poder científico e tecnológico”. Osbrasileiros propunham emendas ao texto final <strong>do</strong> Trata<strong>do</strong>que não foram aceitas, sen<strong>do</strong> a principal crítica brasileira arestrição à disseminação horizontal da tecnologia atômica,mas não o crescimento <strong>do</strong>s arsenais das potências detentoras(ou seja, o crescimento vertical não era controla<strong>do</strong>com o mesmo rigor).Tal posição autônoma <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> gerou certo desconfortonas relações bilaterais com os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s.Pressões exercidas por Washington no âmbito comercialimpuseram dificuldades na comercialização de produtosbrasileiros como o café solúvel, têxteis de algodão, cacauou mesmo o açúcar 487 .No âmbito regional, segue a lógica de aproximaçãocom os vizinhos sul-americanos. O Trata<strong>do</strong> da Bacia <strong>do</strong> Prata,assina<strong>do</strong> em 1969, é um exemplo disso. Seu principalobjetivo seria “promover o desenvolvimento harmônico e aintegração física da Bacia <strong>do</strong> Prata e de suas áreas de influênciadireta e ponderável 488 ”. Seriam, assim, assina<strong>do</strong>s trata<strong>do</strong>sde cooperação entre os signatários <strong>do</strong> acor<strong>do</strong>, no casoEste autor sugere fortemente sua leitura aos futuros diplomatas brasileiros.,acessa<strong>do</strong> em 25 de março de 2013.487 GONÇALVES, Williams e MIYAMOTO, Shiguenoli. Op. Cit. pp. 215.488 Ver ,acessa<strong>do</strong> em 19 de março de 2013.Argentina, <strong>Brasil</strong>, Bolívia, Paraguai e Uruguai. Alguns interessesparticulares impulsionavam o <strong>Brasil</strong> para a assinaturadeste acor<strong>do</strong> – por exemplo, aumentar o comércio bilateralcom a Argentina e consolidar a aproximação com o Paraguai,o que resultaria nos estu<strong>do</strong>s <strong>do</strong> potencial hidráulico<strong>do</strong> Rio Paraná desde o Salto Grande das Sete Quedas até afoz <strong>do</strong> Iguaçu.Com a “Diplomacia da Prosperidade”, o <strong>Brasil</strong> iniciasua trajetória na ampliação <strong>do</strong>s merca<strong>do</strong>s e na busca pornovas parcerias comerciais no continente europeu, assimcomo incrementar a cooperação com os chama<strong>do</strong>s paísesem desenvolvimento. A COLESTE, criada ainda no governoJoão Goulart, passa a chamar-se Comissão de Comérciocom a Europa Oriental. Como fruto da visita de Willy Brandtem outubro de 1968, é assina<strong>do</strong> o Acor<strong>do</strong> Geral de Cooperaçãoentre República Federal da Alemanha, no qual sepreviam o desenvolvimento tecnológico, pesquisas científicase cooperação nuclear para fins pacíficos com aqueleque era o segun<strong>do</strong> maior merca<strong>do</strong> para as exportaçõesbrasileiras. Além disso, são adensadas as relações bilateraiscom a Índia, por meio de visitas diplomáticas e o estabelecimento<strong>do</strong> primeiro Acor<strong>do</strong> de Comércio entre o <strong>Brasil</strong>e a Índia.As perspectivas pareciam ainda melhores para aÁfrica. José Flávio Sombra Saraiva afirma que o governoCosta e Silva inaugura “os anos <strong>do</strong>ura<strong>do</strong>s da política africana<strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>”, que durariam até o final <strong>do</strong> governo Geisel.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>524Aban<strong>do</strong>na-se a ideia de segurança coletiva e enfatizam-seos laços econômicos 489 . O continente era visto como grandemerca<strong>do</strong> em potencial para produtos brasileiros já quea industrialização nacional agregava cada vez mais valor,e fonte alternativa para a aquisição de petróleo. Antesuma mera divisão, subordinada à Subsecretaria de Europa,agora, a estrutura institucional <strong>do</strong> Itamaraty evidenciava acrescente percepção da importância africana na PEB coma criação da Subsecretaria dedicada aos assuntos de Áfricae ao Oriente Médio 490 .Contu<strong>do</strong>, manten<strong>do</strong> o contraditório jogo duplo que vinhadesde JK, as relações com Portugal não somente forammantidas como aprofundadas neste governo. Rendeu frutos,como a criação <strong>do</strong> Dia da Comunidade Luso-<strong>Brasil</strong>eira (22 deabril). O maior exemplo desta fraternidade foi inclusão <strong>do</strong> artigo199 na Emenda à Constituição brasileira, que alterou otexto constitucional de 1967 e concedeu aos portugueses osmesmos direitos da<strong>do</strong>s aos brasileiros em terras lusitanas.Na Assembleia Geral da ONU, o <strong>Brasil</strong> mantinha posiçãode votar contra as resoluções que condenavam qualquerforma de colonialismo, o que agradava não somenteaos portugueses, mas também a África <strong>do</strong> Sul 491 . Ainda em489 SARAIVA, José Flávio Sombra. Op. Cit, p. 128.490 Idem Ibidem.491 No caso da África <strong>do</strong> Sul, o <strong>Brasil</strong> mantinha sua política contraditória, umavez que assinou em abril de 1967 um projeto de resolução que estabelecia odireito à independência da Namíbia.relação à ex-metrópole, a delegação brasileira votou de formafavorável a Portugal na Conferência Mundial sobre osDireitos Humanos de Teerã. Isso permitiu que se adensassea presença comercial brasileira nas colônias portuguesasna África, simbolizada através das viagens <strong>do</strong> navio Custódiode Mello a Lourenço Marques (hoje Maputo, capitalmoçambicana) ou mesmo as análises sobre a possibilidadede investimentos <strong>do</strong> Banco <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> em Luanda.Mesmo contra as recomendações da Comissão Especialde Políticas de Apartheid, o <strong>Brasil</strong> permite o estabelecimentode um voo semanal da South African Airways deJohanesburgo a Nova York com escala no Rio de Janeiro.O estreitamento <strong>do</strong>s laços econômicos com Pretória erajustifica<strong>do</strong> pelos brasileiros, afirman<strong>do</strong> estes que boicotaro país prejudicaria não só os gestores brancos <strong>do</strong> país, mastambém agravaria a situação <strong>do</strong>s negros 492 .Governo Médici (1969-1971): Diplomacia <strong>do</strong>Interesse NacionalTerceiro Presidente <strong>do</strong> regime instala<strong>do</strong> em 1964,Emílio Garrastazu Médici viveu o perío<strong>do</strong> de auge <strong>do</strong> regime.Foram momentos de intensa repressão aos opositores,em especial aqueles que escolheram a via armada.492 BARRETO Filho, Fernan<strong>do</strong> P. de Mello. Op. Cit. p. 125.


525O Regime Militar(1964-1985)Ao mesmo tempo, vivia o governo militar seu perío<strong>do</strong> demaior apoio popular, impulsiona<strong>do</strong> pela propaganda ufanista,pelas vitórias no esporte, mas, sobretu<strong>do</strong>, pelos índiceseconômicos favoráveis, proporciona<strong>do</strong>s pelo “MilagreEconômico”. O Milagre dava a Médici uma aura de legitimidade,que foi aproveitada no plano internacional.A política internacional <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> seguia a serviço <strong>do</strong>projeto desenvolvimentista e a<strong>do</strong>tou uma postura significativamentepragmática. Priorizou a busca de merca<strong>do</strong>s,investimentos e parceiros comerciais diretos, catapultan<strong>do</strong>o comércio exterior brasileiro, que no perío<strong>do</strong> <strong>do</strong> Milagrequase quintuplicou.Permanecia contestan<strong>do</strong> o TNP e a estratégia conjunta<strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s e da URSS. Araújo Castro eraagora o Embaixa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> em Washington – o que dá adimensão <strong>do</strong> seu prestígio – onde faria sua famosaexposição sobre o “Congelamento <strong>do</strong> Poder Mundial”,em junho de 1971, aos estagiários da ESG nos Esta<strong>do</strong>sUni<strong>do</strong>s. O chanceler era Mario Gibson Barboza, que forachefe de gabinete <strong>do</strong> Ministro Afonso Arinos de MeloFranco, e participara ativamente da gestação da PolíticaExterna Independente. Barboza criticava o aumento dapobreza na chamada “década <strong>do</strong> para<strong>do</strong>xo” e assim descreviaem linhas gerais a sua “Diplomacia <strong>do</strong> InteresseNacional:1) O <strong>Brasil</strong> defende a mudança das regras de convivênciainternacional, é contra a cristalização de posições depoder e se recusa a crer que a história se desenrole necessariamenteem benefício de uns e prejuízo de outrospaíses;2) Consideramos que, à medida que um país cresce,cabe-lhe uma parcela de decisão cada vez maior dentroda comunidade internacional, e não devemos deixar deusá-la em favor <strong>do</strong>s povos que, como o nosso, aspiramao progresso;3) A verdadeira paz não pode ser identificada como asimples manutenção <strong>do</strong> status quo, como resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong>equilíbrio de poder, nem ser instrumento de ampliaçãoda distância que separa as nações ricas das naçõespobres; implica, ao contrário, a mudança das regras <strong>do</strong>comércio internacional e a alteração <strong>do</strong> mecanismo dedistribuição mundial <strong>do</strong> progresso científico e tecnológico,pois não há verdadeira paz sem desenvolvimento;4) Nossa posição é, portanto, de ativa solidariedade comos países em desenvolvimento, competin<strong>do</strong> à nossa diplomaciaestreitar o entendimento com os povos quetravam conosco a dura batalha <strong>do</strong> progresso;5) Nossa política externa deve ser global, de íntima cooperaçãocom os países desenvolvi<strong>do</strong>s 493 .Podemos entender um pouco mais sobre os rumosda política exterior brasileira naqueles tempos através <strong>do</strong>discurso <strong>do</strong> Presidente Médici durante a inauguração oficial<strong>do</strong> palácio <strong>do</strong> Itamaraty em Brasília. Foi em seu governoque o Ministério das Relações Exteriores se mudaria493 <strong>Brasil</strong>, Ministério das Relações Exteriores, relatório 1972/ MRE (Brasília, MRE/CDO, 1972).


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>526para a capital em 1971. Sobre segurança, afirmou que a diplomaciaocupava importante posto no esquema de proteçãoda nação e, com relação ao desenvolvimentismo, viacomo obrigação <strong>do</strong> diplomata “manter e ampliar o diálogoentre as nações e aprofundar-lhes as alianças, resolven<strong>do</strong>ou reduzin<strong>do</strong> as dissensões internacionais, no interesse daprópria segurança nacional” 494 .Ainda em 1969, o Presidente estadunidense RichardNixon acenava aos países latino-americanos com medidasde facilitação da obtenção de empréstimos atravésda Agência Internacional de Desenvolvimento (AID). Talposição <strong>do</strong> Presidente republicano não evitou o agravamentodas tensões bilaterais durante o governo Médici,como aquele gera<strong>do</strong> pela recusa brasileira em aceitar oingresso da República Popular da China na ONU. O ápicedessas tensões ocorre em 1970, quan<strong>do</strong> o <strong>Brasil</strong> declaraunilateralmente, mediante decreto-lei, a ampliação <strong>do</strong> marterritorial brasileiro para 200 milhas marítimas. Mesmo sobcríticas <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, afirma a autonomia decisória<strong>do</strong> governo 495 .494 BARRETO Fº, Fernan<strong>do</strong> P. de Mello. Op. Cit, p. 163.495 Pouco tempo depois foram resolvidas as disputas em torno <strong>do</strong>snavios pesqueiros estadunidenses aprisiona<strong>do</strong>s no litoral brasileiro pordesrespeitarem os novos limites <strong>do</strong> mar territorial. Em 1972, os Esta<strong>do</strong>sUni<strong>do</strong>s concordavam em pagar uma taxa anual de US$ 200 mil pelaautorização brasileira da entrada de 325 barcos camaroeiros em águasnacionais. Ver ABREU, Alzira Alves de, BELOCH, Israel, LATTMAN-WELTMAN,O tema da soberania, caro aos governos militares,aparece sob a presidência de Médici, também quan<strong>do</strong> dadiscussão da necessidade de ocupação efetiva <strong>do</strong> territórionacional para fortalecer a capacidade de defesa <strong>do</strong> país.A presença demográfica, além de favorecer a defesa territorial,permitiria o aproveitamento <strong>do</strong>s recursos naturais dasbacias Amazônica e <strong>do</strong> Prata, focos <strong>do</strong> Plano de IntegraçãoNacional, apresenta<strong>do</strong> em julho de 1970. Sua implementaçãotem como destaques a expansão da fronteira agrícolabrasileira e a criação da Transamazônica, com a previsão deassentar 100 mil famílias em cem quilômetros reserva<strong>do</strong>spara esse fim de cada um <strong>do</strong>s la<strong>do</strong>s da ro<strong>do</strong>via.Apesar das tensões com o governo americano, duranteo governo Médici, ocorreu a assinatura <strong>do</strong> Acor<strong>do</strong>Nuclear com os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s. Nesse, fica estabeleci<strong>do</strong>que a companhia Westinghouse construiria uma usina nuclearna cidade de Angra <strong>do</strong>s Reis (futura Angra 1). Era opasso inicial no processo de nuclearização pacífica <strong>do</strong> país.O acor<strong>do</strong> foi limita<strong>do</strong> pela proibição da construção de umafábrica de enriquecimento de urânio no <strong>Brasil</strong>. Washingtonvetou a fábrica, porque o governo brasileiro seguia recusan<strong>do</strong>em assinar o TNP. Sem a transferência de tecnologia,a operação de venda foi realizada pelo sistema turn-key, ouFernan<strong>do</strong> & LAMARÃO, Sérgio Niemeyer (orgs.) Dicionário Histórico Biográfico<strong>Brasil</strong>eiro pós-1930. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2001.


527O Regime Militar(1964-1985)seja, em condições plenas de funcionamento. Como veremos,isso traria novas controvérsias sob o sucessor de Médici,Ernesto Geisel.As relações com os países latino-americanos forammarcadas por desencontros e suspeitas de envolvimentobrasileiro em questões internas <strong>do</strong>s países vizinhos. Apesar<strong>do</strong> discurso soberanista de afirmação da autonomiainternacional era difícil para o <strong>Brasil</strong> escapar da suspeita de“satélite privilegia<strong>do</strong>” <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s. A percepçãode subimperialismo foi ajudada por Richard Nixon, quan<strong>do</strong>em jantar formal ofereci<strong>do</strong> durante a visita <strong>do</strong> PresidenteMédici à Casa Branca, o mandatário estadunidense brin<strong>do</strong>ucom a frase “sabemos que para onde o <strong>Brasil</strong> for, o restoda América Latina irá também” 496 .A partir daí, são frequentes as denúncias da existênciade planos militares intervencionistas brasileiros, como aOperação Trinta Horas – uma força de auxílio brasileiro aosmilitares uruguaios em guerra contra os subversivos –, ouacusações de participação direta <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> no golpe de Esta<strong>do</strong>que colocou o general Hugo Banzer na presidênciada Bolívia 497 .Democraticamente eleito, o chileno Salva<strong>do</strong>r Allendeinaugurou a via chilena para o socialismo em 1970.Ao demonstrar a possibilidade da chegada <strong>do</strong>s socialistasao poder pela via democrática, o Chile de Allende tornou--se uma espécie de polo de atração das esquerdas de to<strong>do</strong>o mun<strong>do</strong>. Não foi diferente entre as esquerdas brasileirasque, diante da impossibilidade de continuar atuan<strong>do</strong> no<strong>Brasil</strong> em tempos de intensa repressão, buscaram refúgiono Chile.A despeito da evidente oposição ideológica, as relaçõeseconômicas entre os <strong>do</strong>is países foram mantidas, masa preocupação <strong>do</strong>s militares brasileiros era grande, principalmente,em relação à atuação <strong>do</strong>s exila<strong>do</strong>s brasileirosque, <strong>do</strong> Chile, buscavam denunciar as ações repressivas<strong>do</strong> governo brasileiro. As desconfianças <strong>do</strong>s militares brasileiroscrescem principalmente após a chegada a Santiago<strong>do</strong>s 70 presos políticos troca<strong>do</strong>s pelo Embaixa<strong>do</strong>r suíçoem janeiro de 1971. Ao contrário <strong>do</strong>s demais exila<strong>do</strong>s, estesreceberam atenção especial <strong>do</strong> governo Allende: alojamentocoletivo, alimentação, oportunidade de trabalho epossibilidade de estu<strong>do</strong>s 498 .496 Tradução livre de “we know that as Brazil goes, so will go the rest of that LatinAmerican continent”.497 Sobre o plano de intervenção no Uruguai, de fato crescia a concentração detropas brasileiras na região sul <strong>do</strong> país. Com relação à Bolívia, o golpe trará aBolívia para a área de influência brasileira, dan<strong>do</strong> sequência a uma série deacor<strong>do</strong>s de cooperação econômica, como aquele para a construção de umgasoduto ligan<strong>do</strong> Santa Cruz de la Sierra à refinaria de Paulínia (São Paulo).Ver em GONÇALVES, Williams e Miyamoto, Shiguenoli. Op. Cit. pp. 226-227.498 ROLLEMBERG, Denise. Exílio: entre raízes e radares. Rio de Janeiro: Record,1999. Página 108.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>528A partir de então, o governo Médici expande suasações em território chileno. Membros <strong>do</strong> SNI se articulamcom setores das Forças Armadas chilenas. Atuaram fornecen<strong>do</strong>armas, munições e contribuição financeira na articulação<strong>do</strong> golpe militar que levou a queda de Allende nodia 11 de setembro de 1973, comprova<strong>do</strong> através de <strong>do</strong>cumentoslibera<strong>do</strong>s pelo governo norte-americano 499 .Como menciona<strong>do</strong> anteriormente, as relações entre<strong>Brasil</strong> e Argentina se deterioram a partir de 1967, abrevian<strong>do</strong>assim a “cordialidade oficial”. Alguns fatores levaram aesta situação: o programa de multilateralização leva<strong>do</strong> acabo pelos militares a partir da “Diplomacia da Prosperidade”;o pen<strong>do</strong>r <strong>do</strong> equilíbrio nas relações a favor <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>,sen<strong>do</strong> a preeminência no Prata favorável ao <strong>Brasil</strong>; as relaçõesde alinhamento aos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s implementadaspela Casa Rosada distanciavam-se da busca de um posturaautônoma por parte <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>; e , por fim, a questão emtorno <strong>do</strong> aproveitamento hídrico <strong>do</strong> Prata 500 .499 MARQUES, Teresa Cristina Schneider. “As relações bilaterais <strong>Brasil</strong>-Chiledurante o governo de Salva<strong>do</strong>r Allende.” In: Anais <strong>do</strong> III Encontro Internacionalde Ciências Sociais, 2012, Pelotas - RS. Existem ainda informações sobre aparticipação de militares brasileiros em um <strong>do</strong>s episódios mais emblemáticosda repressão pós-golpe: os interrogatórios no Estádio Nacional. VerDocumentário Memórias de Chumbo – O futebol nos Tempos <strong>do</strong> Con<strong>do</strong>r –Chile. .500 SPEKTOR, Matias. O <strong>Brasil</strong> e a Argentina entre a cordialidade oficial e o projeto deintegração: a política externa <strong>do</strong> governo de Ernesto Geisel (1974-1979).Um capítulo importante nesse contexto de radicalizaçãoideológica latino-americano foi a deterioração dasrelações entre <strong>Brasil</strong> e Argentina, que se acirra durante aConferência de Estocolmo sobre o Meio Ambiente. Aproveitan<strong>do</strong>o contexto de fragilidade das posições desenvolvimentistasbrasileiras diante das teses zeristas defendidaspelos representantes das potências, os argentinos buscaminserir nos debates “um item relativo à necessidade deconsulta prévia para a utilização de recursos naturais compartilha<strong>do</strong>s”501 . Como a proposta argentina não obteveconsenso suficiente para ser aprovada naquela Conferência,o assunto foi trata<strong>do</strong> na Assembleia Geral da ONU,forçan<strong>do</strong> o <strong>Brasil</strong> a se articular para conseguir uma conciliaçãocom os interesses argentinos, sem que, no entanto, seaban<strong>do</strong>nasse o projeto geopolítico brasileiro no Prata. Muitopelo contrário, aprofunda-se a Ata das Cataratas (1966)e a relação bilateral com o Paraguai. A visita <strong>do</strong> PresidenteAlfre<strong>do</strong> Stroessner resulta na assinatura <strong>do</strong> Trata<strong>do</strong> deAproveitamento Hidrelétrico <strong>do</strong> Rio Paraná entre o <strong>Brasil</strong> eo Paraguai, que negocia a construção da usina hidrelétricabilateral, considerada essencial para modelo de desenvolvimentobrasileiro e a superação <strong>do</strong> gargalo energético.Neste encontro, foi estabeleci<strong>do</strong> o Estatuto da Itaipu Binacional,empresa a ser constituída de igual participação de501 BARRETO Filho, Fernan<strong>do</strong> P. de Mello. Op. Cit. p. 163.


529O Regime Militar(1964-1985)capitais brasileiros e paraguaios, e que teria como principaltarefa administrar a futura hidrelétrica. Era o fim <strong>do</strong> “gambito<strong>do</strong> rei”, que o Barão fizera em 1904, ceden<strong>do</strong> a influênciano Paraguai aos argentinos.Sofrem também alterações as relações com o continenteafricano. O principal motivo seria a necessidade nãosomente de obter merca<strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r para os produtosnacionais, mas também de importar petróleo. Eram possibilidadesteóricas nos anos sessenta, que, com o “Milagre”,tornavam-se ditames práticos relevantes à economia dinâmica<strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. Nigéria e Angola despontam como parceiraspreferenciais. Os “caminhos fáceis <strong>do</strong> oceano”, distantesapenas 1.600 milhas <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> reduziriam o frete e serviriamde porta de entrada para o resto <strong>do</strong> continente.Segun<strong>do</strong> Saraiva, em um primeiro momento, o governobrasileiro buscou projetar a ideia de “laços comuns”com os africanos, sen<strong>do</strong> o <strong>Brasil</strong> um país que superara afase colonial e que alcançara um poder “tropical e industrial”.No discurso brasileiro, éramos a África <strong>do</strong> futuro etínhamos uma história para compartilhar. Os esforços dadiplomacia brasileira foram no senti<strong>do</strong> de estabeleceracor<strong>do</strong>s de cooperação técnica e comercial frente ao obstáculoformidável que era justificar para os africanos nossasrelações históricas e presentes com Portugal.Marco destas novas relações com a “fronteira leste”<strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> foi a visita <strong>do</strong> chanceler Mário Gibson Barboza anove países da África Ocidental 502 . Nesta viagem, GibsonBarboza percebeu que a manutenção das relações comPortugal prejudicaria os interesses comerciais brasileiros naregião, o que incrementou o seu debate com o Ministro daFazenda Delfim Netto, defensor de uma visão ocidentalistaque via priorizava o relacionamento com Portugal e África<strong>do</strong> Sul.A maior autonomia <strong>do</strong> Itamaraty em relação ao Ministérioda Fazenda nessa questão se deu graças ao apoiode Médici às gestões de Gibson Barboza. Esta autonomiafoi decisiva, mas apenas ao final <strong>do</strong> governo. Contribuírampara isso pressões crescentes de países árabes e africanos,exemplificadas pela proposta da Nigéria de boicoteao <strong>Brasil</strong>, caso este não mudasse sua posição com relaçãoao colonialismo 503 . O resulta<strong>do</strong> foi a proposta brasileira demediação da guerra angolana, a<strong>do</strong>tan<strong>do</strong> uma posição deequidistância diante <strong>do</strong> tema. O aban<strong>do</strong>no <strong>do</strong> tradicionalalinhamento brasileiro a Portugal gera uma ríspida reaçãode Marcelo Caetano:502 Gibson visitou a Nigéria, Zaire, Camarões, Togo, Costa <strong>do</strong> Marfim, Benin,Gana, Gabão e Senegal entre outubro e novembro de 1972. A viagem deGibson Barboza foi seguida da Missão Comercial brasileira enviada aocontinente em 1973 e outras de igual importância para o fortalecimento <strong>do</strong>slaços comerciais entre <strong>Brasil</strong> e África.503 O <strong>Brasil</strong> seria incluí<strong>do</strong> em uma lista de seis países que sofreriam algum tipode embargo econômico devi<strong>do</strong> ao apoio ao apartheid sul-africano e aocolonialismo português na África Austral. Temia-se no <strong>Brasil</strong> a obstrução dascrescentes importações <strong>do</strong> petróleo nigeriano.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>530(…) No mesmo dezembro de 1973, o primeiroministroportuguês afirmou que também se ofereciacomo media<strong>do</strong>r entre o governo brasileiro e a guerrilhade esquerda que se instalara no <strong>Brasil</strong>. A troca de insultosjá configurava o incidente diplomático e a inclinaçãobrasileira para o apoio às independências da ÁfricaPortuguesa 504 .No início <strong>do</strong> governo Geisel, o <strong>Brasil</strong> aban<strong>do</strong>nariadefinitivamente a postura cordial e adjunta em relaçãoà ex-metrópole e implementaria, tardiamente, a efetivaaproximação com a África.504 SARAIVA, José Flávio Sombra. “Um momento especial nas relações <strong>Brasil</strong>-Angola: <strong>do</strong> reconhecimento da Independência aos des<strong>do</strong>bramentos atuais.“In. PANTOJA, Selma e SARAIVA, José Flávio. Angola e <strong>Brasil</strong> nas rotas <strong>do</strong>Atlântico. Rio de Janeiro: Editora Bertrand <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, 1997.8.4 Do Pragmatismo ao UniversalismoGoverno Geisel (1974-1979): PragmatismoEcumênico e ResponsávelGoverno Figueire<strong>do</strong> (1979-19859): UniversalismoSíntese comparativa, em defesa <strong>do</strong> Institucionalismo.Governo Geisel (1974-1979): PragmatismoEcumênico e ResponsávelErnesto Geisel é indica<strong>do</strong> como sucessor de Médiciem mea<strong>do</strong>s de 1973, quan<strong>do</strong> o regime vivia tempos deeuforia com os frutos <strong>do</strong> “Milagre Econômico”. O objetivode Médici ao escolher um <strong>do</strong>s principais nomes <strong>do</strong> grupocastelista que saíram <strong>do</strong> poder em 1967 era iniciar umprocesso de “transição por cima”, redemocratizan<strong>do</strong> o paísem um momento extremamente favorável aos militares.Os chama<strong>do</strong>s modera<strong>do</strong>s ou castelistas defendiam a tese<strong>do</strong> “golpe cirúrgico” desde 1964, utilizan<strong>do</strong> como um <strong>do</strong>sprincipais argumentos a tese de que a presença militarno centro <strong>do</strong> poder político trazia consequências nefastaspara o profissionalismo militar.Em menos de um ano, a situação se modifica completamente.Os sinais de desgaste <strong>do</strong> “Milagre” ficam cadavez mais evidentes, sobretu<strong>do</strong> após o boicote da OPEPapós a guerra <strong>do</strong> Yom Kippur em outubro 1973, que levariaà 1ª Crise <strong>do</strong> Petróleo. O desgaste <strong>do</strong> discurso de


531O Regime Militar(1964-1985)“legitimação pela eficácia” e o crescimento eleitoralimprevisível <strong>do</strong> MDB nas eleições de outubro de 1974transformaram completamente as condições em queGeisel e o Ministro da Casa Civil Golbery <strong>do</strong> Couto e Silvaimplementam a “abertura lenta, gradual e segura”. A Revolução<strong>do</strong>s Cravos (abril de 1974), que eclodiu exatos40 dias após a posse de Geisel, seguida <strong>do</strong> processo dedemocratização espanhol (1975) forneciam <strong>do</strong>is exemplosbem distintos de “abertura” política. Pareciam servirde metáforas ibéricas de caminhos possíveis para o<strong>Brasil</strong> como bem enxergou o compositor Chico Buarqueque em sua canção “Tanto Mar”, que pede urgentementeque os portugueses mandem um pouco <strong>do</strong> alecrimde sua festa democrática para o povo brasileiro que está“<strong>do</strong>ente” 505 .Com o crescimento da oposição, cresce também ome<strong>do</strong> <strong>do</strong>s grupos de “linha-dura” liga<strong>do</strong>s aos serviços de informaçãode que, na eventualidade de uma democratização505 A leitura política de “Tanto Mar” demonstra a inteligência <strong>do</strong> compositor nacomparação entre a realidade portuguesa após a Revolução <strong>do</strong>s Cravos ea situação brasileira em 1974-5. Naturalmente, a música foi censurada e sóseria gravada novamente sob nova versão no final da década de 1970, comos tempos verbais muda<strong>do</strong>s para o passa<strong>do</strong>. Ei-la no original: “Sei que está emfesta, pá/Fico contente/E enquanto estou ausente/Guarda um cravo para mim/Eu queria estar na festa, pá/Com a tua gente/E colher pessoalmente/Uma flor noteu jardim/Sei que há léguas a nos separar/Tanto mar, tanto mar/Sei, também,que é preciso, pá/Navegar, navegar/Lá faz primavera, pá/Cá estou <strong>do</strong>ente/Manda urgentemente/Algum cheirinho de alecrim”.abrupta, fossem presos e julga<strong>do</strong>s. Cresce no Exército a oposiçãoa Golbery <strong>do</strong> Couto e Silva, visto como o “cabeça” <strong>do</strong>projeto de abertura, e se fortalecem os setores liga<strong>do</strong>s à perpetuação<strong>do</strong> regime, encabeça<strong>do</strong>s pelo segun<strong>do</strong> ministro<strong>do</strong> Exército de Geisel, Sylvio Frota, nomea<strong>do</strong> após a morte<strong>do</strong> Ministro Dale Coutinho.É neste contexto que a política exterior brasileiraganha importância fundamental, como talvez não tenhati<strong>do</strong> desde Getúlio Vargas. Era preciso não somente buscarnovos merca<strong>do</strong>s, parcerias e, principalmente, petróleo paraamenizar os impactos da crise mundial no país; mas tambémusar a inserção internacional ecumênica e pragmática<strong>do</strong> país como um balão de ensaio para a abertura. Estatese, presente nos depoimentos <strong>do</strong> novo chanceler AntonioAzere<strong>do</strong> da Silveira ao CPDOC-FGV 506 , faz ainda maissenti<strong>do</strong> se lembrarmos que as acusações que Silvio Frotafez a Geisel de estar se afastan<strong>do</strong> <strong>do</strong>s ideais da “Revoluçãode 1964” incluíam justamente os pontos da política externa,como a aproximação com a China, ecoan<strong>do</strong> as críticasque a direita fazia à PEI em 1964. Desta vez, no entanto, opragmatismo vencia a ideologia.A partir de 1974, não estava a política externa brasileiraapenas a serviço <strong>do</strong> desenvolvimento, mas igualmente506 SPEKTOR, Matias (Org.). Azere<strong>do</strong> da Silveira. Um depoimento. Rio de Janeiro: Ed.FGV, 2010.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>532a serviço da redemocratização. Ao <strong>do</strong>tar de autonomiao Itamaraty para implementar com Azere<strong>do</strong> o “PragmatismoEcumênico e Responsável”, Geisel ia testan<strong>do</strong> atéque ponto podia ir com a abertura sem esgarçar demaiso conserva<strong>do</strong>rismo das Forças Armadas, razão pela qualvetou qualquer tipo de reatamento diplomático comCuba, o que naturalmente faria senti<strong>do</strong>, mas não era viável.Ao contrário de Cuba, no entanto, aproximação com a Chinase justificava pragmática <strong>do</strong> ponto de vista político eeconômico.E claro, com a decisão de manter o crescimento econômicoa to<strong>do</strong> custo, mais relevante ainda são as exportaçõese a necessidade de superação da dependência <strong>do</strong>petróleo, o que implicavam em a<strong>do</strong>ção de uma visão ecumênica<strong>do</strong> ponto de vista comercial. O ocidentalismo deDelfim Netto era um luxo <strong>do</strong> qual o <strong>Brasil</strong> não mais podiadispor em momento no qual os sinais de esgotamento <strong>do</strong>modelo econômico se tornavam cada dia mais evidentes.A diplomacia pragmática era uma necessidade. Em mensagemao Congresso Nacional no início <strong>do</strong> ano de 1975,Geisel buscou elucidar as principais bases de sua políticaexterior, pautada de forma “pragmática e responsável”, universale “ecumênica”.Antônio Francisco Azere<strong>do</strong> da Silveira era considera<strong>do</strong>um outsider na elite diplomática nacional. Ao contráriode seus colegas Embaixa<strong>do</strong>res, tivera que trabalhar antes dechegar ao Itamaraty 507 . Sua família de políticos tradicionaisdesde o Império caíra em desgraça sob o regime varguista.Não vinha de Washington ou de Londres, mas de BuenosAires, onde conhecera o então presidente da Petrobras ErnestoGeisel. Tinha uma visão distinta de como deveriamser pautadas as relações com os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s e com aArgentina – neste momento muito prejudicadas pela controvérsiaCorpus-Itaipu – e estas ideias foram aceitas peloPresidente que o nomeou Ministro das Relações Exteriores.Cético sobre a capacidade criativa <strong>do</strong> diplomata brasileiro,Azere<strong>do</strong> implementou medidas que evitassem osmalefícios inerciais da burocracia weberiana. Associara-seao longo da carreira a figuras hetero<strong>do</strong>xas à disciplina daCasa, como Araújo Castro e Ítalo Zappa, e, uma vez Ministro,passou recorrentemente o sistema de vistos sucessivos deuma hierarquia que diluía a responsabilidade individual e507 Descreve-o assim Matias Spektor: “Corajoso, audacioso, persistente,tenaz, vivaz, cordial, charmoso, gênio criativo e respeitoso são alguns <strong>do</strong>sadjetivos recorrentes com os que ele é identifica<strong>do</strong>. Excêntrico, louco,estridente, combativo, vingativo, mordaz e impetuoso também. O homemera adicto ao trabalho, expansivo na conversa, orgulhoso de seu próprioconhecimento em política externa e tinha obsessão por detalhe. Tinhaojeriza à falta de densidade analítica de muitos de seus colegas porque, porele, tal superficialidade permitia ao burocrata justificar a sua inação peranteos fatos. Não surpreende, portanto, que os critérios utiliza<strong>do</strong>s por Silveirapara julgar um interlocutor fossem essencialmente intangíveis – estilo,perspicácia, caráter e vocação para a ironia.” Ver SPEKTOR, Matias. “Origens<strong>do</strong> Pragmatismo Ecumênico e Responsável” In: Revista <strong>Brasil</strong>eira de políticaInternacional. n. 47 (2)(2004). p. 205.


533O Regime Militar(1964-1985)favorecia o corporativismo. Nomeou jovens em que confiava– chama<strong>do</strong>s Silveira boys – para postos de relevo, com osquais estabelecia contato frequente de troca de reflexões enão apenas a correspondência meramente informativa. Suasexcentricidades organizacionais lhe angariaram numerososdesafetos entre os setores mais conserva<strong>do</strong>res da burocracia,mas contou sempre com o firme apoio da Presidênciada República para implementar suas ideias. Foi o Ministroque mais despachou com Geisel, mostran<strong>do</strong> a prioridade dapolítica externa para o Presidente.Em seu discurso de posse no Itamaraty, Silveira afirmaque a “melhor tradição <strong>do</strong> Itamaraty é saber renovar-se”e, posteriormente, assim apresentou as diretrizes da PolíticaExterna Ecumênica e Responsável:Queremos que a nossa linguagem, no plano internacional,seja direta e simples, sem ambiguidades e subterfúgios.Queremos que o Governo brasileiro possacumprir a vocação ecumênica de seu povo, aberto àcomunicação desinibida e franca. Queremos explorartodas as vias <strong>do</strong> entendimento, por acreditarmos, fundamentalmente,que a cooperação é mais eficaz <strong>do</strong> queo antagonismo e que o respeito mútuo é mais cria<strong>do</strong>r<strong>do</strong> que as ambições de preponderância. Nossa conduta,para alcançar esses objetivos, é pragmática e responsável.Pragmática, na medida em que buscamos a eficáciae estamos dispostos a procurar, onde quer que nosmovam os interesses nacionais brasileiros, as áreas deconvergência e as faixas de coincidência com os interessesnacionais de outros povos. Responsável, porqueagiremos sempre na moldura <strong>do</strong> ético e exclusivamenteem função de objetivos claramente identifica<strong>do</strong>s e aceitospelo povo brasileiro 508 .Não foram poucos os estu<strong>do</strong>s sobre a política exteriorde Geisel. Em compilação <strong>do</strong> “esta<strong>do</strong> da arte”, MatiasSpektor faz uma síntese desta historiografia 509 . Segun<strong>do</strong>este autor, a matriz teórica <strong>do</strong> “Pragmatismo” é claramenterealista. Aproveitava-se de um contexto internacional de diminuiçãodas assimetrias de poder entre o <strong>Brasil</strong> e as potências,sobretu<strong>do</strong> os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, para se impor de mo<strong>do</strong>mais assertivo na relação bilateral e nos foros multilaterais.A década de 1970, a década da détente, começavaa ser vista por muitos como uma diminuição <strong>do</strong> espaçoamericano na Guerra Fria. O aban<strong>do</strong>no de BrettonWoods, a crise de legitimidade provocada por Watergatee a renúncia de Nixon, a derrota no Vietnã, a disseminação<strong>do</strong> socialismo na África, a enorme desvalorização <strong>do</strong>dólar, tu<strong>do</strong> isso contrastava com o “Milagre” brasileiro 510 .Era explícito que seriamos potência muito em breve.508 Discurso <strong>do</strong> chanceler brasileiro, Antônio F. Azere<strong>do</strong> da Silveira, na aberturada XXIX Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, em Nova York,em 23 de setembro de 1974.509 SPEKTOR, 2004. Op. Cit.510 A eleição <strong>do</strong>s democratas em 1976 é um sinal claro da insatisfação dapopulação com suas lideranças republicanas, mas o novo PresidenteJimmy Carter não terá sucesso em sua ação internacional. Os eventos de1979 na Nicarágua, no Irã e no Afeganistão eram a evidência mais cabal deque a hegemonia americana vivia seu fim, tal qual teorizaria anos depois ointernacionalista Robert Keohane em seu livro After Hegemony. Ele não estavasozinho. A decadência <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s havia se torna<strong>do</strong> percepçãogeneralizada entre os observa<strong>do</strong>res teóricos e leigos.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>534A política externa de Geisel era o <strong>Brasil</strong> falan<strong>do</strong> internacionalmentecomo se potência fosse, e, assim, desejavaser reconheci<strong>do</strong>. Durante o governo Médici, o discurso de<strong>Brasil</strong> Potência se voltava exclusivamente para dentro e nãopassava de retórica. Não havia uma ideologia clara para ainserção internacional brasileira, e, apesar da crítica à ordemvigente nos foros multilaterais, o <strong>Brasil</strong> não confrontavadiretamente as preferências das grandes potências.No governo Geisel, a ideia de <strong>Brasil</strong> Potência passava a serlevada a sério internacionalmente.Para Monica Hirst, com o governo de Ernesto Geisel(1974-1979), o <strong>Brasil</strong> inaugurou uma nova fase de políticainterna e externa; enquanto o regime militar dava seusprimeiros passos rumos à distensão, procurava-se conferirnovos conteú<strong>do</strong>s à política internacional <strong>do</strong> país. Ospostula<strong>do</strong>s fundamentais da ação internacional brasileiracompreendiam: o compromisso com os princípios da independência;a igualdade soberana <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s, a defesada autodeterminação e a não interferência nos assuntosinternos e externos <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s; e o apoio à solução pacíficade controvérsias 511 . O aban<strong>do</strong>no definitivo <strong>do</strong>s condicionamentosideológicos impostos pela Guerra Fria favoreciaa crescente identificação <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> com o Terceiro511 HIRST, Monica. <strong>Brasil</strong>-Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s: desencontros e afinidades. FGV Editora:Rio de Janeiro, 2009.Mun<strong>do</strong>. Um <strong>do</strong>s fatores que possibilitaram esta mudançafoi a criação de novos campos de coincidência entre o Ministériodas Relações Exteriores e as Forças Armadas quealmejavam a ampliação da autonomia <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> no campode segurança.Isso pode parecer contraditório. Como um país quepropõe ser potência se identificava crescentemente com oterceiro-mundismo? Socorre-nos o realismo <strong>do</strong>s fracos, defendi<strong>do</strong>por Ama<strong>do</strong> Cervo e explica<strong>do</strong> didaticamente porMatias Spektor:apesar da retórica da potência emergente, o <strong>Brasil</strong> <strong>do</strong>perío<strong>do</strong> mantinha-se fiel aos princípios <strong>do</strong> realismo <strong>do</strong>sfracos: a política externa enfatizava o pacifismo, o não--intervencionismo, a autodeterminação e a segurançacoletiva. O país de Médici, assim como o faria o de Geisel,continuava abraçan<strong>do</strong> o direito internacional comoescu<strong>do</strong> contra as pressões das grandes potências e desconfian<strong>do</strong>da celebração de trata<strong>do</strong>s entre desiguais.Assim, a política externa não se queria estacionária nemrevolucionária: sua abordagem era moderadamente revisionista.(Spektor, 2004, Op. Cit. p. 200)O primeiro momento de tensão entre o <strong>Brasil</strong> e osEsta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s ocorreu quan<strong>do</strong> o Chanceler Azere<strong>do</strong> daSilveira anunciou que havia entendimentos entre <strong>Brasil</strong>e República Federal da Alemanha para a construção dereatores nucleares no <strong>Brasil</strong>, com transferência de tecnologia,o que era inexistente no acor<strong>do</strong> com a Westinghouse,feito sob o governo Médici. Há imediata reação <strong>do</strong>


535O Regime Militar(1964-1985)governo de Washington, que protesta e se mobiliza parainviabilizar o Acor<strong>do</strong>. Assina<strong>do</strong> em Bonn em 1975, o Acor<strong>do</strong>Nuclear Teuto-<strong>Brasil</strong>eiro, previa, dentre outros pontos,a instalação de oito usinas nucleares e o enriquecimentode urânio através de parceria entre a Nuclebrás e umaempresa subsidiária da Siemens. Para Geisel e Azere<strong>do</strong>, oacor<strong>do</strong> era uma grande vitória diplomática, pois garantiriaautonomia energética ao país até o início <strong>do</strong> séculoXXI 512 . Ao romper o acor<strong>do</strong> nuclear com a Westinghousee voltar-se para a cooperação com a Alemanha, a diplomaciabrasileira demonstrava sua crítica a um inaceitáveldesejo de manter congela<strong>do</strong> o poder mundial pelas superpotências.As relações entre Brasília e a Casa Branca deterioraram-seainda mais significativamente quan<strong>do</strong> das campanhas<strong>do</strong> novo Presidente Jimmy Carter pela defesa <strong>do</strong>sdireitos humanos a partir de 1977. Azere<strong>do</strong> e Geisel informamao Embaixa<strong>do</strong>r norte-americano que o <strong>Brasil</strong> recusao recebimento de um relatório elabora<strong>do</strong> pelo Departamentode Esta<strong>do</strong> a pedi<strong>do</strong> <strong>do</strong> congresso americano sobrea situação <strong>do</strong>s Direitos Humanos no <strong>Brasil</strong>. Em resposta aoque considerava intervenção indevida nos assuntos internos<strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, o governo denuncia o Acor<strong>do</strong> Militar de512 ABREU, Alzira Alves de, BELOCH, Israel, LATTMAN-WELTMAN, Fernan<strong>do</strong> &LAMARÃO, Sérgio Niemeyer (orgs). Op. Cit.1952, assina<strong>do</strong> sob Vargas, mas que década de 1970 tinhapouca importância prática. O gesto é, no entanto, carrega<strong>do</strong>de simbologia.É importante ressaltar que, a despeito <strong>do</strong> baixoperfil político das relações entre <strong>Brasil</strong> e Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s,no plano econômico existiam interesses mútuos. Bancosestadunidenses eram os principais cre<strong>do</strong>res <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> e oincremento das exportações de produtos manufatura<strong>do</strong>se semimanufatura<strong>do</strong>s brasileiros para o merca<strong>do</strong> estadunidensesão elementos desta convergência, isso apenasnão significava mais adesão aos princípios ideológicos daliderança americana no mun<strong>do</strong> capitalistas, muito menossubmissão aos interesses de Washington. O <strong>Brasil</strong> tinhaagora seus próprios interesses que nem sempre convergiamcom os <strong>do</strong> governo <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, e, em algunscasos, conflitavam.Um caso em que não conflitava era o da China.O exemplo americano serviu a Geisel para firmar sua posiçãoe hierarquia sobre os chefes militares. Era a estratégiade usar a política externa como balão de ensaio para a abertura.O <strong>Brasil</strong> aban<strong>do</strong>na a sua oposição à entrada da RepúblicaPopular da China na Organização das Nações Unidas,reconhecen<strong>do</strong>, finalmente, o governo da China comunistaem agosto de 1974 e rompen<strong>do</strong> relações com Taiwan. Favoreceuo reconhecimento da República Popular da Chinao discurso de Deng Xiao-Ping nas Nações Unidas, onde odirigente comunista fez contundente defesa <strong>do</strong> Terceiro


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>536Mun<strong>do</strong> e contra a hegemonia das duas superpotências.Em depoimento ao CPDOC, Geisel conta a resistência aoreconhecimento por parte <strong>do</strong>s ministros militares:O Ministro Sylvio Frota veio a mim manifestar-se contrário,achan<strong>do</strong> que não era conveniente. Outro que no começotambém foi contrário foi o Henning da Marinha.O Araripe da Aeronáutica era mais ou menos contra echegou a conversar ligeiramente sobre o assunto. To<strong>do</strong>straziam opiniões e o pensamento <strong>do</strong>s escalões hierarquicamenteinferiores. Reuni os três e lhes perguntei:“Por que nós não vamos reatar relações com a China?”.A resposta foi a mesma para os três: “A China era comunista.”O Presidente então pergunta. “Por que entãovocês não vêm me propor romper relações com a Rússia.Se vocês querem ser coerentes, então vamos cortarrelações com a Rússia também e vamos nos isolar; vamosmesmo virar uma colônia <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s (...)argumentei com o fato de que a China representava umgrande merca<strong>do</strong> para os nossos produtos exportáveis.Estávamos liberalizan<strong>do</strong> o país que já era adulto, não sejustifican<strong>do</strong> um complexo de inferioridade. Tínhamos opróprio exemplo <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, o campeão <strong>do</strong> anticomunismo,que mantinha relações com a China (...) 513 .Na América Latina, ocorre a integração <strong>do</strong>s aparelhosrepressores através <strong>do</strong> Plano Con<strong>do</strong>r. Seria a transnacionalizaçãodas violações aos Direitos Humanos, promovidaspelos militares que acreditavam estar em guerra contra513 D’ARAÚJO, Maria Celina e CASTRO, Celso (orgs.). Ernesto Geisel. Rio de Janeiro:Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1997.os comunistas. Era um exemplo <strong>do</strong> quanto tinha saí<strong>do</strong> <strong>do</strong>controle da hierarquia os aparatos repressivos e <strong>do</strong> quantoera necessário implementar sua subordinação ao Executivoem curto prazo. Em termos econômicos, é assina<strong>do</strong> emBrasília o Trata<strong>do</strong> de Cooperação Amazônica (1978) entre<strong>Brasil</strong>, Bolívia, Equa<strong>do</strong>r, Colômbia, Guiana, Peru, Surinamee Venezuela, no qual os signatários buscavam impulsionaro desenvolvimento <strong>do</strong>s recursos econômicos da região euma maior integração política. Era uma resposta à crescentepropaganda ecológica internacional contra a gestãobrasileira de seu território amazônico. Tais pressões lembravamos tempos de pressão norte-americana no séculoXIX pela abertura da navegação <strong>do</strong> Rio Amazonas. O <strong>Brasil</strong>se articulava multilateralmente com seus vizinhos para defendersua soberania sobre uma região considerada crescentementerelevante na lógica geopolítica <strong>do</strong>s militaresbrasileiros.Por outro la<strong>do</strong>, ao Sul, as relações entre <strong>Brasil</strong> e Argentinanão eram boas. Ponto específico da atuação <strong>do</strong>chanceler Azere<strong>do</strong>, antigo embaixa<strong>do</strong>r em Buenos Aires,que era defensor de uma nova postura em relação aos argentinos.Criticava a postura tradicional de “Cordialidadeoficial”, que uma determinada facção <strong>do</strong> Itamaraty – cujoprincipal defensor era o embaixa<strong>do</strong>r Pio Corrêa – defendiacomo sen<strong>do</strong> necessária. Para o grupo tradicionalista, aproximidade com a Argentina, a mediação das crises dessepaís com os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, e a diminuição <strong>do</strong>s atritos


537O Regime Militar(1964-1985)bilaterais eram meios para evitar o enfrentamento militarentre os <strong>do</strong>is países. Incluir a Argentina daria legitimidadeàs ações brasileiras, daí ser necessário transigir com BuenosAires. Silveira achava que não. Não mais.Na análise de Silveira, havia uma incongruência entre aestrutura sul-americana de poder (onde a Argentina nãomais tinha meios materiais ou sociais para pressionar o<strong>Brasil</strong> como o fizera) e o comportamento das unidades(onde o <strong>Brasil</strong> <strong>do</strong>s tardios anos 60 continuava comportan<strong>do</strong>-secomo se a Argentina tivesse capacidadede pressioná-lo). O problema, Silveira deixava a entenderem seus inúmeros despachos, era de percepções:os constrangimentos <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> na cena sul-americanaeram auto-impostos. As amarras eram essencialmenteintelectuais, acumuladas progressivamente ao longodas décadas. O <strong>Brasil</strong> precisava, portanto, livrar-se dasombra de sua própria tradição (Spektor, Op. Cit. p. 208).A aproximação com uruguaios, bolivianos e paraguaios514 , era emblemática da estratégia realista de Silveirade deslocar estes países <strong>do</strong> eixo Buenos Aires para Brasília,aumentan<strong>do</strong> a legitimidade da liderança brasileira e aproveitan<strong>do</strong>-seda fraqueza <strong>do</strong> país vizinho. O <strong>Brasil</strong> se recusa ainterromper o projeto da hidrelétrica binacional Itaipu enquantoos militares que comandavam o Processo de Reor-514 Cooperação tecnológica com a Bolívia, revisão <strong>do</strong>s acor<strong>do</strong>s de administraçãodas águas compartilhadas na fronteira com o Uruguai, devolução simbólica<strong>do</strong>s troféus toma<strong>do</strong>s ao Paraguai na Guerra da Tríplice Aliança, são exemplosdesta estratégia, na qual o TCA de 1978 é o marco principal.ganização Nacional na Argentina mantinham a convicçãode que o projeto brasileiro “não era senão a consubstanciação<strong>do</strong> velho programa geopolítico brasileiro de <strong>do</strong>minar abacia <strong>do</strong> Prata” 515 . Isso não significava que as questões econômicasdeveriam ser prejudicadas. O comércio bilateralentre <strong>Brasil</strong> e Argentina crescia, consoante ao realismo deAzere<strong>do</strong>, que considerava os assuntos econômicos e comerciaisprioritários sobre as demais considerações.A busca por um caminho autônomo e uma maioraproximação com os países <strong>do</strong> Sul em curso resultou emuma inédita postura brasileira também na ONU. É rompidade forma definitiva a postura ambígua com relação África<strong>do</strong> Sul, votan<strong>do</strong> o <strong>Brasil</strong> de forma favorável a condenação<strong>do</strong> apartheid. O <strong>Brasil</strong> chega a sugerir o boicote de matérias-primasestratégicas para este país em novembro de1975 516 . No mesmo mês, a delegação brasileira na ONU,em gesto de aproximação com os países <strong>do</strong> Oriente Médio,merca<strong>do</strong>s-alvo das empreiteiras brasileiras, da Embraere da Imbel, recebe instruções para votar em bloco com ospaíses árabes na condenação ao sionismo 517 .515 GONÇALVES, Williams e MIYAMOTO, Shiguenoli. Op. Cit. p. 236516 Em 1976 o <strong>Brasil</strong> adere às recomendações <strong>do</strong> Conselho de Segurança daONU, que exigia medidas de bloqueio econômico ao governo branco ediscriminatório que estava no poder na Rodésia.517 Tal atitude foi condenada pelos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s. Segun<strong>do</strong> o Jornal <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong><strong>do</strong> dia 14 de março de 1976, Azere<strong>do</strong> da Silveira teria respondi<strong>do</strong> a Kissingerda seguinte forma sobre o assunto: “se vocês tivessem um milhão de barris


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>538Eliminava-se, com o fim <strong>do</strong> apoio envergonha<strong>do</strong> aocolonialismo português, o último grande obstáculo paraos interesses brasileiros na África. Ao assumir uma posiçãofirme em relação à política africana o <strong>Brasil</strong>, demonstrava àaliança afro-árabe na ONU que o país não era subservienteaos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s e agia de acor<strong>do</strong> com uma políticaprópria.O primeiro passo em direção à autonomia nas escolhasde parceiros ocorreu quan<strong>do</strong> o <strong>Brasil</strong> reconheceu deforma unilateral a independência da Guiné-Bissau mesmoantes da conclusão das negociações entre Portugal e oslíderes <strong>do</strong> PAIGC. Rompia-se, assim, o Trata<strong>do</strong> de Amizadee Consulta de 1953 que previa concertação prévia em assuntosde interesse <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is países. Esta ruptura foi muitocriticada em Portugal, inclusive por líderes progressistascomo Mário Soares, mas o governo Geisel não era nadasimpático às forças que haviam derruba<strong>do</strong> Marcelo Caetano,agora no poder em Portugal 518 . Lembravam-lhe a situaçãodesagradável que os militares brasileiros poderiamde petróleo para nos fornecer diariamente, talvez essa mudança não fossetão brusca”. A importância <strong>do</strong> petróleo não pode ser subestimada. Somentecom o continente africano o produto representou cerca de 70% de todas asimportações brasileiras entre 1975 e 1979.518 Forçou a nomeação em 1974 <strong>do</strong> General Carlos Alberto da Fontoura, exchefe<strong>do</strong> SNI, Embaixa<strong>do</strong>r em Lisboa, o que desagradava o novo governoportuguês. Geisel afirma que lhes fez saber que: ou era o General ou Portugalficaria sem Embaixa<strong>do</strong>r brasileiro.se encontrar caso processo de abertura saísse <strong>do</strong> controlee o “gradualismo” fosse rompi<strong>do</strong>. A abertura tinha que serlenta para que fosse “segura” pelo menos para as Forças Armadas,tal qual se dera na Espanha.Muito mais complexo e de maior interesse para o<strong>Brasil</strong> que os casos de Moçambique, Guiné-Bissau e CaboVerde era a independência Angola, que apresentava trêsmovimentos de libertação lutan<strong>do</strong> pelo poder: o MPLA, aUNITA e a FLNA. O <strong>Brasil</strong> demonstrou interesse na questão,apresentan<strong>do</strong>-se à Organização da Unidade Africana comopossível negocia<strong>do</strong>r da independência angolana ainda em1974, discutin<strong>do</strong> alguns diplomatas brasileiros com os movimentosuma possível cooperação após a autonomia 519 .Pela primordial relevância no processo decisóriobrasileiro em relação à questão angolana, o relatório deÍtalo Zappa resultou no estabelecimento de relações diplomáticascom o referi<strong>do</strong> país antes mesmo de sua independênciaformal 520 . O <strong>Brasil</strong> envia o diplomata Ovídiode Andrade Melo como Representante Especial perante oConselho Angolano <strong>do</strong>s Presidentes (Governo de Transiçãoforma<strong>do</strong> pelos três movimentos de libertação, além de519 SARAIVA, José Flávio Sombra. “Um momento especial nas relações <strong>Brasil</strong>-Angola: <strong>do</strong> reconhecimento da Independência aos des<strong>do</strong>bramentos atuais”.In. PANTOJA, Selma e SARAIVA, José Flávio. Angola e <strong>Brasil</strong> – nas rotas <strong>do</strong>Atlântico. Rio de Janeiro: Editora Bertrand <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, 1997.520 Idem, Ibidem.


539O Regime Militar(1964-1985)portugueses), que estabelece os primeiros acor<strong>do</strong>s entreos países, proporcionan<strong>do</strong> inclusive o envio de alimentos,equipamentos e roupas <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> para Luanda.Ao se tornar o primeiro país ocidental a reconhecero MPLA como o governo oficial de Angola, o <strong>Brasil</strong> tornaobsoletas as acusações de que era “subimperialista”. Era impossível,depois de 1975, a acusação de que o <strong>Brasil</strong> agiana África de acor<strong>do</strong> com os interesses <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s.O movimento era declaradamente comunista e lutava naguerra civil ao la<strong>do</strong> de soviéticos e, principalmente, cubanos,o que deixou o Itamaraty desconfortável com a situação,uma vez que não mantinha relações diplomáticascom Cuba. Segun<strong>do</strong> Geisel, o <strong>Brasil</strong> sabia da existência detropas cubanas no país 521 ,(...) Mas havia outros interesses. Em primeiro lugar, tratava-sede uma fronteira marítima nossa e, em segun<strong>do</strong>lugar, os angolanos falam português, a nossa língua. Jádisse que éramos a favor das colônias portuguesas quese emancipavam de Portugal. Achávamos que nossoapoio a Portugal nesse terreno tinha que mudar, inclusiveporque somos anticolonialistas. (...) O importante éque em Angola há petróleo! 522 .521 Ovídio de Mello nega as suspeitas de que não havia informa<strong>do</strong> ao Itamaratyda existência de tropas cubanas em Angola. Para mais informações ver odepoimento <strong>do</strong> embaixa<strong>do</strong>r em MELO, Ovídio. Recordações de um remove<strong>do</strong>rde mofo no Itamaraty. Brasília: <strong>Funag</strong>, 2009.522 CASTRO, Celso e D’ ARAUJO, Maria Celina (org). Ernesto Geisel. Editora FGV,1997, Rio de Janeiro.Controvérsias à parte, tal posição fortaleceu a imagem<strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> no sistema internacional, particularmente entre ospaíses <strong>do</strong> chama<strong>do</strong> Terceiro Mun<strong>do</strong>, o que implicou grandereceptividade as propostas mercantis brasileiras no Sul.Por último, convém lembrar uma consequência interna<strong>do</strong> pragmatismo, raro na história republicana brasileira,mesmo em momentos de democracia. A políticaexterna era debatida pela sociedade, pela opinião públicae pelos jornais cuja censura se afrouxara. Era instrumentode educação democrática e era, frequentemente, criticada,como, aliás, ocorreu nos últimos anos <strong>do</strong> governo Lula, queimplementou agenda semelhante. Ao mesmo tempo quea agenda pragmática era defendida por segmentos de esquerda,oposicionistas – compensan<strong>do</strong> em alguma medidao afastamento <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s e o discurso TerceiroMundista – apoiavam o ritmo lento da abertura e muitasde suas medidas autoritárias e repressivas, como o fechamento<strong>do</strong> Congresso e o Pacote de Abril. Spektor explica asrazões para esse fenômeno:A política externa foi a principal protagonista de um<strong>do</strong>s principais passos da abertura – o fim da censuraà imprensa. Ce<strong>do</strong> em seu governo, Geisel decidiu quedaria depoimentos durante suas viagens internacionais.Dessa forma, mantinha a mística em torno da figura <strong>do</strong>chefe de Esta<strong>do</strong> e evitava ter que lidar com o impactode suas declarações na caserna e na sociedade civil.Repentinamente, as viagens <strong>do</strong> presidente ao exteriorpassaram a incluir envia<strong>do</strong>s especiais <strong>do</strong>s principais jor-


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>540nais e televisões <strong>do</strong> país. Embora o interesse <strong>do</strong>s mesmosnão fosse prioritariamente por assuntos da agendainternacional, o clima das viagens e as inovações <strong>do</strong> governona pauta externa criaram uma situação na qual adiplomacia era a política governamental mais debatidae, consequentemente, mais questionada. Assim, a partirde 1975, encontra-se um número expressivo de artigosde jornal, editoriais e comentários sobre a política externa.Poucas vezes na história um chanceler tinha si<strong>do</strong>retrata<strong>do</strong> como carnavalesco, perigoso, pouco sério, inconscientee pueril. Não surpreende, portanto, que Silveiratenha si<strong>do</strong> o primeiro chefe <strong>do</strong> Itamaraty a instituiruma divisão para lidar exclusivamente com a imprensa(SPEKTOR, 2004, p. 211).Spektor lembra ainda que o discurso soberanista sobreo meio ambiente e os direitos humanos, denuncian<strong>do</strong>os regimes internacionais sobre estes temas, servia paragarantir a proteção aos segmentos das Forças Armadas,envolvi<strong>do</strong>s no desaparecimento de civis, e as empresasbrasileiras ou estrangeiras instaladas no país, que lucravamcom o desmatamento e com a leniência ecológica <strong>do</strong>stempos de ditadura.Não é possível esgotar, nem aqui, nem em qualqueroutra parte as numerosas e interessantes consideraçõesque se fazem possíveis ao analisarmos a política externamais relevante da história republicana na segunda metade<strong>do</strong> século XX. É apenas necessário lembrar ao candidatoque, esta importância é reconhecida pelo Concurso deAdmissão à Carreira Diplomática, que transformou o PragmatismoEcumênico e Responsável no tema mais cobra<strong>do</strong><strong>do</strong>s exames discursivos de história <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> aplica<strong>do</strong>s naúltima década. Fica a recomendação de que este texto sejaapenas uma pequena introdução. Que este perío<strong>do</strong> sigasen<strong>do</strong> estuda<strong>do</strong> e que o aspirante à diplomata leia tu<strong>do</strong>que caia em suas mãos sobre o pragmatismo.Governo Figueire<strong>do</strong> (1979-19859): UniversalismoIndica<strong>do</strong> por Geisel para concluir o processo deabertura “lenta, gradual e segura”, o ex-chefe <strong>do</strong> SNI, JoãoBatista de Oliveira Figueire<strong>do</strong> nunca demonstrou apreçopelo cargo. Militar de formação, acreditava possuir umamissão e, para isso, procura manter alguns <strong>do</strong>s principaisnomes <strong>do</strong> governo anterior ao seu la<strong>do</strong>, como Golbery <strong>do</strong>Couto e Silva na chefia da Casa Civil. Não foi diferente noplano externo. Ao tomar posse <strong>do</strong> cargo, Figueire<strong>do</strong> afirmaque o país manteria a “inalterável a tradição de convivênciaharmoniosa” em sua política exterior, e nomeia Chanceler oEmbaixa<strong>do</strong>r Ramiro Saraiva Guerreiro, Secretário-Geral dasRelações Exteriores da gestão anterior, indican<strong>do</strong> seu objetivode continuidade.Assim a agenda externa brasileira no perío<strong>do</strong> é marcadapela manutenção das linhas gerais a<strong>do</strong>tadas no PragmatismoEcumênico e Responsável. Para o Chanceler, oUniversalismo, nome que deu à sua política, deveria partirda aceitação das diversidades, respeitan<strong>do</strong> o princípio danão intervenção e <strong>do</strong> diálogo, enfatizan<strong>do</strong> o multilateralismo.Esta seria uma adaptação da política externa brasileira à


541O Regime Militar(1964-1985)irrefreável tendência à mundialização <strong>do</strong> sistema internacional.Sônia de Camargo acredita que “o que houve, talvez, foiuma mudança de estilo – uma diplomacia menos secreta ecom um diálogo mais aberto com o Congresso Nacional”.Com o fim da détente (1979) e a chegada de Reaganao poder nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s (1981),esfumava-se a noção de que o <strong>Brasil</strong> era uma potênciaemergente que, para o bem ou para o mal, detinha statusespecial nas relações internacionais. Em um contextointernacional adverso, a ideia de uma parceria como <strong>Brasil</strong> progressivamente desapareceu <strong>do</strong> menu dadiplomacia estadunidense 523 .Neste ambiente, a estratégia brasileira para lidar comos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s passou a ser o distanciamento consciente,marca<strong>do</strong> pela baixa sintonia política. O tema <strong>do</strong>s direitoshumanos que afastava os <strong>do</strong>is países é deliberadamenteevita<strong>do</strong> nas conversas entre Figueire<strong>do</strong> e Carter. Nem mesmoa mudança no sistema de poder internacional com aeclosão da Segunda Guerra Fria e a chegada à Casa Branca<strong>do</strong>s Republicanos alterou as relações entre os países, prevalecen<strong>do</strong>o desencontro.Na visão de mun<strong>do</strong> de Reagan, não havia espaçopara acor<strong>do</strong>s com grandes países periféricos. Eles eram, afinalde contas, tangenciais à grande narrativa das Relações523 SPEKTOR, Matias. Kissinger e o <strong>Brasil</strong>. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editora, 2009.Internacionais da Guerra Fria. A era das parcerias da CasaBranca com emergentes – exemplificada pela Doutrina Nixon,e o compartilhamento de responsabilidades – estavadefinitivamente encerrada.Os desencontros já vinham <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> de Geisel epermaneceram sob Figueire<strong>do</strong>. <strong>Brasil</strong> negou-se a aderir àssanções propostas por Carter contra a União Soviética em1979, em decorrência da invasão <strong>do</strong> Afeganistão. As expectativasgeradas pela visita <strong>do</strong> Presidente Reagan (1981-1989) ao <strong>Brasil</strong> em 1982 não foram correspondidas e odistanciamento foi manti<strong>do</strong>. Numerosas contendas sobretecnologia, comércio e investimento esgarçaram as relaçõesbilaterais <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> com os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s. O exemplomais visível dizia respeito às críticas que o PresidenteFigueire<strong>do</strong> e o Itamaraty faziam à política intervencionista<strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s na América Central. O <strong>Brasil</strong> denuncioupublicamente a intervenção em Granada (1983) e, demonstrousolidariedade ao Grupo de Conta<strong>do</strong>ra que pregavaa solução negociada <strong>do</strong>s conflitos na América Central.Certo nível de cooperação militar 524 não foi suficientepara restabelecer convergência bilateral no campo da524 Por ocasião da visita <strong>do</strong> Secretário de Esta<strong>do</strong> George Shultz ao <strong>Brasil</strong> foiassina<strong>do</strong> o Memoran<strong>do</strong> de Entendimento Industrial-Militar entre o <strong>Brasil</strong> e osEUA, reatan<strong>do</strong> a cooperação militar bilateral aban<strong>do</strong>nada desde 1977, mas,para Spektor, o Memoran<strong>do</strong> de Entendimento Industrial-Militar entre o <strong>Brasil</strong>e os EUA é uma exceção nas relações entre os <strong>do</strong>is países. Idem, Ibidem.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>542segurança e o <strong>Brasil</strong> reafirmava sua autonomia frente aWashington, recusan<strong>do</strong>, por exemplo, a proposta estadunidensede segurança no Atlântico Sul – “Organização <strong>do</strong>sTrata<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Atlântico Sul” – que contaria com a participaçãoda Argentina e da África <strong>do</strong> Sul.No plano econômico, o neoliberalismo defendi<strong>do</strong>pela administração Reagan era uma afronta aos valoresmais caros das elites militares brasileiras. No pensamentodiplomático, existia a percepção implícita de que os Esta<strong>do</strong>sUni<strong>do</strong>s utilizariam o neoliberalismo para produzirnovas formas de colonialismo. Acreditava-se que, através<strong>do</strong> endividamento externo brasileiro, os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>spoderiam exercer pressões sobre a política exterior, alfandegáriae fiscal. Estas pressões podem ser exemplificadasna proposta estadunidense aceita pelo Banco Mundial daexcluir o <strong>Brasil</strong> <strong>do</strong>s empréstimos <strong>do</strong> BIRD, cujos juros erammais baixos e os prazos mais longos, alegan<strong>do</strong> que o <strong>Brasil</strong>já se situava em um nível alto de renda per capita, citadapor Monica Hirst (Op. Cit.).Como consequência da política econômica deWashington, os Ministérios <strong>do</strong> Planejamento e da Fazendaficaram mais propensos a ceder aos EUA, enquanto oItamaraty assumia atitudes cada vez mais críticas. As ForçasArmadas brasileiras começaram a defrontar-se com a enérgicaoposição <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s às demandas brasileirasde desenvolvimento tecnológico em projetos, como oAcor<strong>do</strong> Nuclear com a República Federal da Alemanha, afabricação e exportação de material bélico e, por fim, da implementaçãoda indústria informática, que contavam com aespecial participação <strong>do</strong>s militares 525 . É nesse contexto queo Presidente Figueire<strong>do</strong> discursará de mo<strong>do</strong> contundentena abertura da Assembleia Geral da ONU em 1983:(...) a interdependência entre as nações parece, por vezes,degenerar em tentativas de reconstrução de quadroshegemônicos ou sistemas de subordinação, queem nada contribuem para a prosperidade, seja no mun<strong>do</strong>industrializa<strong>do</strong>, seja <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> em desenvolvimento.Como em muitos casos praticada, a interdependênciaparece reduzir-se a um novo nome para a desigualdade.Se o distanciamento consciente marcou as relaçõesentre <strong>Brasil</strong> e os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, a América Latina, comoum to<strong>do</strong>, e a Argentina, em particular, constituíram a primeiraprioridade da política universalista brasileira. Realizan<strong>do</strong>intenso programa de viagens e encontros com osrepresentantes governamentais da região, o governo brasileirogarantiu a continuidade da aplicação das diretrizesanteriormente estabelecidas. Com a Argentina, as relaçõesmelhoram sensivelmente 526 .525 Neste senti<strong>do</strong>, Figueire<strong>do</strong> criara a Secretaria Especial de Informática (SEI),subordinada à Secretaria Geral <strong>do</strong> Conselho de Segurança Nacional.526 Matias Spektor ressalta um episódio durante a visita <strong>do</strong> Secretárioestadunidense Vance a Geisel, no qual o secretário esquece, no salão em quese encontrava com as autoridades brasileiras, uma cópia das instruções quehavia recebi<strong>do</strong> <strong>do</strong> Departamento de Esta<strong>do</strong>. O Presidente notou o lapso e


543O Regime Militar(1964-1985)O ponto de partida para a aproximação com a Argentinafoi a assinatura <strong>do</strong> Acor<strong>do</strong> Tripartite sobre a coordenaçãotécnico-cooperativa para o aproveitamentohidrelétrico de Itaipu e Corpus, instrumento no qual seestabelece que Itaipu pode operar com a flexibilidadenecessária a sua melhor utilização até a totalidade de suapotência, manten<strong>do</strong>, a jusante, caudais de água em parâmetrospré-determina<strong>do</strong>s para que não prejudicasse opotencial hídrico necessário para o funcionamento da futura– e hipotética – usina de Corpus. Ademais, o Acor<strong>do</strong>coordena operativamente os projetos Itaipu e Corpus, semprejuízo ao regime <strong>do</strong>s rios e à operação <strong>do</strong>s portos.Logo depois ocorre a visita oficial de Figueire<strong>do</strong> àArgentina, realizada entre 14 e 17 de maio de 1979. Nas palavrasde Saraiva Guerreiro, esta pode ser considerada “umacontecimento excepcional”, mesmo porque, constituiriaapenas a terceira de um Presidente brasileiro à Argentinaem to<strong>do</strong> o perío<strong>do</strong> republicano 527 . Como resulta<strong>do</strong>senviou o material a Silveira, que fez cópia e man<strong>do</strong>u entregar os originais. Esteepisódio teve grande impacto sobre o pensamento estratégico brasileiro,pois a elite governante percebeu que a rivalidade e o distanciamento daArgentina eram fontes de debilidade diante <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s. Graças auma gafe de Vance, estava plantada a semente conceitual para os acor<strong>do</strong>snucleares que poriam fim à competição argentino-brasileira e que, poucosanos mais tarde, redesenhariam o ambiente estratégico da América <strong>do</strong> Sul.SPEKTOR, Matias. Op. Cit.527 A partir daí as visitas passam a ser regulares. Em agosto de 1980, Videla visitaBrasília; em 1981, Figueire<strong>do</strong> e Viola se encontram em Paso de los Libres,quan<strong>do</strong> se cria grupo de trabalho sobre integração econômica; em 1983,concretos desta, podemos destacar os acor<strong>do</strong>s de cooperaçãona área econômica, na área militar para a fabricaçãoconjunta de aviões e mísseis, e também na área de energiaatômica. O <strong>Brasil</strong> comprometia-se a fornecer à Argentinatório e outros combustíveis nucleares, além de participarno fornecimento de equipamento para o reator nuclearargentino 528 .Saraiva Guerreiro foi surpreendi<strong>do</strong> com a operaçãoRosário nas Malvinas em 1982, mas nem por isso deixou deagir. O <strong>Brasil</strong> declarava sua preferência pela solução pacíficade controvérsias ao mesmo tempo que reafirmava suaposição desde os tempos da Regência de que consideravaas Malvinas território argentino. Moniz Bandeira afirmaque o <strong>Brasil</strong> decide por uma neutralidade imperfeita 529 naGuerra das Malvinas (abril-junho de 1982), o que na práticafavorecia a Argentina. O <strong>Brasil</strong> assumia a representação <strong>do</strong>sinteresses argentinos na Grã-Bretanha e concedia ajudamaterial, inclusive militar – peças de reposição de materialbélico e alguns aviões, apesar de oficialmente neutrono conflito. Este apoio foi discreto e bem executa<strong>do</strong>. Voosde reconhecimento foram opera<strong>do</strong>s por pilotos da FAB eFigueire<strong>do</strong> se encontra com Bignone. Durante estas visitas presidenciais,eram sempre firma<strong>do</strong>s acor<strong>do</strong>s bilaterais.528 BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. <strong>Brasil</strong>-Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s: A Rivalidade Emergente -1955-1980. São Paulo: SENAC, 1999.529 Segun<strong>do</strong> Hélio Jaguaribe, a neutralidade seria “não equidistante” <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> naGuerra das Malvinas.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>544da<strong>do</strong> auxílio diplomático e econômico para amenizar o impactodas sanções internacionais impostas ao país vizinho,inclusive com venda preferencial de aviões. Paulo FagundesVizentini analisa as consequências <strong>do</strong> conflito para osenvolvi<strong>do</strong>s:(…) segun<strong>do</strong> um balanço <strong>do</strong> Chanceler Saraiva Guerreiro,a Guerra das Malvinas resultou num desastre paraa Argentina, custou tempo e dinheiro à Inglaterra e infelicitouos EUA, pelo que significou o desgaste de suasrelações com a América. Para o <strong>Brasil</strong>, a Guerra das Malvinasmostrou que a política de Figueire<strong>do</strong> para comseus vizinhos estava certa, apesar de trazer dificuldades,na medida em que tanto a Argentina quanto a Inglaterraeram amigos <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> 530 .Na avaliação <strong>do</strong>s círculos militares brasileiros, existiaa percepção que não seria interessante alimentar confrontocom a Argentina 531 . A inserção internacional brasileiraera análoga a <strong>do</strong> vizinho <strong>do</strong> Sul. Ambos estávamos submeti<strong>do</strong>sàs mesmas restrições financeiras e tecnológicasinternacionais e alija<strong>do</strong>s das mais importantes decisõespolíticas mundiais. As alterações no sistema internacional,com o advento da crise da dívida na região sepultara o530 VIZENTINI, Paulo Fagundes. Política externa <strong>do</strong> regime militar brasileiro. PortoAlegre: UFRGS, 1998.531 Ver MOREIRA, Artur Luiz Santana. “A Guerra das Malvinas como intensifica<strong>do</strong>rade tendências: As medidas de confiança mútua entre as marinhas de <strong>Brasil</strong>e Argentina”. In.: Argentina e <strong>Brasil</strong>. Vencen<strong>do</strong> preconceitos: as várias arestas deuma concepção estratégica. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 2009.sonho de <strong>Brasil</strong> Potência e, ao caírem da cama, os militaresbrasileiros encontravam os colegas argentinos no mesmochão duro e frio da insolvência. O elemento sistêmico nãofoi suficiente para que o <strong>Brasil</strong> aban<strong>do</strong>nasse a postura assertivae autônoma em relação aos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, masfavorecer o reencontro da amizade com os hermanos.Estes são tempos de relações mais cautelosas com ocontinente africano. Passada a euforia <strong>do</strong>s anos <strong>do</strong>ura<strong>do</strong>s,as relações sofrem refluxo e são limitadas devi<strong>do</strong> aos novoscontextos sistêmicos, nos quais, a África e o <strong>Brasil</strong> tinham,naturalmente, posição periférica. As externalidades hostisque o modelo desenvolvimentista sofreu nos anos 1980 impactaramgravemente no plano econômico interno. A inflaçãodecolou e o PIB caiu. Era um duro reposicionamento,inespera<strong>do</strong>, <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> na hierarquia de poder global. O endurecimentodas condições de relação com os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s,principal cre<strong>do</strong>r da dívida externa brasileira se refletiunas relações com a África. Apesar da maior cautela, ainda háreflexos <strong>do</strong>s anos <strong>do</strong>ura<strong>do</strong>s. O comércio <strong>Brasil</strong>-África atingiuseu nível mais alto na história, chegan<strong>do</strong> a 7% <strong>do</strong> total<strong>do</strong> comércio exterior brasileiro no perío<strong>do</strong>. A ampliação darepresentação diplomática no continente seguiu o mesmoritmo. Em 1974, o <strong>Brasil</strong> possuía 12 Embaixadas residentesno continente. Ao final <strong>do</strong> último governo militar, eram 21,que representavam o <strong>Brasil</strong> em 45 países africanos.Ainda em 1983, Figueire<strong>do</strong> realiza a primeira viagemde um Presidente brasileiro ao continente africano,


545O Regime Militar(1964-1985)realizan<strong>do</strong> um périplo por cinco países – Nigéria, Senegal,Guiné-Bissau, Cabo Verde e Argélia. Se o primeiro Presidentesul-americano a visitar o continente reservou sua agendaapenas para a África Ocidental, seu chanceler visitoumuitos outros países, com destaque para Angola. Em meioa Guerra Civil que assolava o país desde 1975, Guerreirodemonstra o apoio brasileiro ao governo de José Eduar<strong>do</strong><strong>do</strong>s Santos (MPLA), emitin<strong>do</strong> comunica<strong>do</strong> em que afirmavaser contrário aos atos “inadmissíveis de agressão” realiza<strong>do</strong>spela “Operação Savannah”, liderada pela África <strong>do</strong> Sul,que violava a soberania de Angola ao auxiliar as tropas daUNITA na região sul <strong>do</strong> país 532 . O <strong>Brasil</strong> chegou até mesmo adiscutir uma intervenção militar no conflito angolano, masa presença cubana abreviou a ideia.O governo Figueire<strong>do</strong>, é em política externa, tantoquanto em política interna e no plano econômico, a tentativade levar a cabo a mesma política <strong>do</strong> governo anteriorem contextos radicalmente distintos. Essa é a marca queficou <strong>do</strong> general João Batista. Um homem fora <strong>do</strong> lugar,que reconheceu isso ao pedir que o povo o esquecesse.No entanto, no plano externo, tal perenidade inercial <strong>do</strong>Pragmatismo no Universalismo longe de ser negativa representavaa institucionalização de uma política altiva eautônoma sob fortes restrições sistêmicas, o que é louvável.A leitura <strong>do</strong> soporífero Memórias de um funcionário <strong>do</strong>Itamaraty, escrita por Guerreiro para legitimar sua gestãocontrasta vivamente com a recusa de Azere<strong>do</strong> em se submetera tal tour de force, talvez consciente de que a históriao absolveria. A personalidade carismática e instigante deAzere<strong>do</strong> contrasta com a gestão burocrática de Guerreiro,e é evidência de que não devemos buscar na primeiraimagem, isto é, no indivíduo, os desideratos históricos.O sucesso de Geisel e Azere<strong>do</strong> – e se formos mais longe deVargas, Oswal<strong>do</strong> Aranha e Araújo Castro; entre outros – foijustamente, e mais ainda, de garantir a institucionalizaçãoda postura pragmática, defensora <strong>do</strong> desenvolvimentismo,capaz de resistir, mesmo sob tempos de turbulência,e mesmo sob a liderança de comandantes menos inspira<strong>do</strong>s.A política externa <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> década de 1980 viveriaambos os desafios.532 SARAIVA, José Flávio Sombra. O Lugar da África: a dimensão geopolítica <strong>do</strong>Atlântico e a política africana. P. 190.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>5468.5 A Cultura no Regime MilitarPanorama Cultural sob baionetas.O teatro nos anos de 1960. Poesia e literatura e imprensa.O tropicalismo e as canções de Protesto.O Cinema Novo e a Embrafilme.Televisão e dramaturgia. O Rock Nacional e a Abertura.Marcelo Ridenti em seu artigo sobre a cultura notempo da ditadura afirma que a década de 1960 foi a épocacom maior inter-relação entre cultura e política <strong>do</strong> perío<strong>do</strong>republicano. Sua postura é visivelmente crítica à incorporação<strong>do</strong>s artistas e intelectuais ao merca<strong>do</strong> cultural, e mesmoà formação de uma indústria cultural no país, que ele identifica,a partir <strong>do</strong>s anos 1970, com cooptação. Ainda quereconheça ser impossível voltar ao passa<strong>do</strong>, permeia seutexto um sau<strong>do</strong>sismo <strong>do</strong> intelectual e <strong>do</strong> artista engaja<strong>do</strong>,independente, crítico e rebelde. Este arquétipo, reconhece,é cada vez mais raro, e parece que a década de 1960 teriasi<strong>do</strong> o último suspiro deste modelo de intervenção cultural.Esta visão transparece na entrevista que Cacá Dieguesteria da<strong>do</strong> a Ridenti afirman<strong>do</strong>:a minha geração foi a última safra de uma série de redescobri<strong>do</strong>res<strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. O <strong>Brasil</strong> começa a se conhecer,sobretu<strong>do</strong> com o romantismo, aquele desejo de umaidentidade. Minha geração, <strong>do</strong> Cinema Novo, <strong>do</strong> Tropicalismo,é a última representação desse esforço secular.Perpassa a essa geração um elemento nostálgico,romântico e idealiza<strong>do</strong>, que, tal qual no Modernismo, acreditavaque poderia descobrir ou redescobrir o “<strong>Brasil</strong>” nohomem <strong>do</strong> povo, <strong>do</strong> campo no mun<strong>do</strong> rural, na favela navida urbanizada. Ao mesmo tempo, existe um anseio demodernidade que pudesse fugir <strong>do</strong> modelo imperialista,importa<strong>do</strong>, culturalmente pasteuriza<strong>do</strong> sob a hegemonianorte-americana que se desenha no contexto de GuerraFria e de fechamento <strong>do</strong> regime no <strong>Brasil</strong>. A valorização deíndios, negros, camponeses e operários demonstra umavinculação claramente de esquerda e contestatória ao regime,que se instituía.Era a cultura o único campo no qual a esquerda erahegemônica após o golpe. O único campo no qual o regimenão se fazia totalizante por desinteresse, incapacidadeou porque ainda se esforçava para ter uma aparência fajutade “democracia” até dezembro de 1968. As esquerdasherdaram da ampla mobilização cultural e intelectual, <strong>do</strong>sanos 1950 e início da década de 1960, instrumentos queradicaliza<strong>do</strong>s se tornariam a contestação aos governos militaresapós 1964.A influência Teórica de Stanislavski e sua ênfase noator e no méto<strong>do</strong> crítico de Berthold Brecht viria através daparticipação de Augusto Boal nestes seminários <strong>do</strong> Arena,e também no Teatro Oficina, cujo o objetivo era popularizaro teatro no final <strong>do</strong>s anos 1950. Após temporada de quase<strong>do</strong>is anos no Rio de Janeiro, Oduval<strong>do</strong> Vianna decidiu


547O Regime Militar(1964-1985)ficar na capital fluminense, e começar a se articular com osdemais movimentos sociais engaja<strong>do</strong>s durante o governoJoão Goulart. Em São Paulo, o Arena seguia sua cruzada nacionalista,encenan<strong>do</strong> peças brasileiras ou abrasileiran<strong>do</strong>antropofagicamente os clássicos internacionais, readapta<strong>do</strong>sa realidade brasileira.A partir <strong>do</strong> Teatro de Arena houve uma significativaintegração com outras correntes artísticas como haviaocorri<strong>do</strong> durante o Esta<strong>do</strong> Novo. A cenografia, a poesia, amúsica e as artes plásticas se tornam parte de um movimentomaior de contestação. Destaca-se ainda a aproximaçãocom a UNE e a criação <strong>do</strong> chama<strong>do</strong> CPC (CentroPopular de Cultura), que se espalhou por to<strong>do</strong> o <strong>Brasil</strong> coma experiência da “UNE Volante” em 1962, crian<strong>do</strong> CPCs noscentros universitários mais importantes <strong>do</strong> país, engaja<strong>do</strong>sculturalmente na luta pelas Reformas de Base.Um pouco antes <strong>do</strong> golpe, os CPCs em parceria coma Editora Civilização <strong>Brasil</strong>eira fizeram ainda a experiênciapoética <strong>do</strong> Violão de Rua, três volumes de poesia revolucionáriaengajada, que, no bojo das mobilizações das LigasCamponesas, criticava o latifúndio e idealizava o camponês,e, em menor escala, o povo, incluin<strong>do</strong> aí também os operários.Marcelo Ridenti vê nos poetas da classe média, autorescomo Ferreira Gullar e Vinicius de Morais, indícios fortesde um “romantismo revolucionário” de idealização nostálgicapré-capitalista, em contraponto ao concretismo, quetambém era estética e formalmente revolucionário, masrenegava qualquer retorno “às origens” vincula<strong>do</strong>s que estavamao “progresso”. Ressalta, no entanto, que mesmo apoesia, mais fortemente vinculada à forma – e menos aoconteú<strong>do</strong> – ainda assim, se mobilizou politicamente nocontexto <strong>do</strong> governo Goulart.Na literatura, além de autores já consagra<strong>do</strong>s queseguiam fazen<strong>do</strong> sucesso como Clarice Lispector, GuimarãesRosa, Jorge Ama<strong>do</strong> e Érico Veríssimo, uma geração inconformistafará uma literatura de novo tipo, tratan<strong>do</strong> <strong>do</strong>sdilemas da classe média ou a realidade sertaneja, numaliteratura que retratasse o tempo presente. São exemplosdestes autores Autran Doura<strong>do</strong>, assessor de imprensa deJK, que publicou a Ópera <strong>do</strong>s Mortos em 1967, incorporan<strong>do</strong>a metaliteratura na qual a própria crítica literária fazparte de sua obra; e Antônio Calla<strong>do</strong>, que, em Quarup de1967, retrata personagens intelectuais urbanos que vãoviver na selva e se deparam com a realidade da repressãopós-golpe. Outra vertente surgida na década de 1960, queAlfre<strong>do</strong> Bosi chama de “brutalista”, é a que não escamoteiaa agressividade e a violência da vida cotidiana nas grandescidades. São exemplos as obras de Dalton Trevisan (O Vampirode Curitiba, 1965), em Curitiba, e o antigo policial degabinete José Rubem Fonseca, no Rio de Janeiro (A coleira<strong>do</strong> cão, 1965; Lúcia McCartney, 1969; Feliz Ano Novo, 1975 eO Cobra<strong>do</strong>r, 1979). Era a versão literária <strong>do</strong> cinema marginal,mas que teve muito mais sucesso e perenidade queseu antecessor nas artes visuais, como veremos.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>548Assim como o merca<strong>do</strong> editorial, também o merca<strong>do</strong>jornalístico sofreu grande avanço técnico nos anos de1960. O principal veículo inova<strong>do</strong>r na imprensa da décadaanterior tinha si<strong>do</strong> a Última Hora de Samuel Wainer, talvezo único veículo da grande imprensa identifica<strong>do</strong> como governo e que não fizera oposição a Getúlio em 1954 ea Jango dez anos depois. Entraria em lento declínio sema simpatia <strong>do</strong>s governos de 1951 a 1964, até ser vendi<strong>do</strong>em 1971 para o grupo da Folha de S. Paulo. Caso distintoviveu o Correio da Manhã, que tinha si<strong>do</strong> simpático aogolpe, mas se tornaria crítico ao governo Castelo Brancopelas medidas restritivas e antidemocráticas que estavamem curso. Em um misto de jornalismo extenso – grandesreportagens investigativas – e fotografias ilustradas, edesbancan<strong>do</strong> as anteriores Manchete e Cruzeiro, a EditoraAbril lançou em 1966 a revista Realidade e em 1968 a revistaVeja, ambas editadas pelo italiano Mino Carta, nosmoldes <strong>do</strong>s semanários norte-americanos como a Time,abordan<strong>do</strong> assuntos gerais. Tratava-se da modernizaçãodas editoras jornalísticas brasileiras, ainda que sob crescentecensura.Também o Cinema Novo viveria seu grande momentonos anos de 1960, perpassan<strong>do</strong> o golpe. Buscavauma identidade nacional por meio de produções independentesde baixo custo destacan<strong>do</strong>-se diretores comoLeon Hizman, Joaquim Pedro de Andrada, Cacá Diegues,Nelson Pereira <strong>do</strong>s Santos, Ruy Guerra, Glauber Rocha,Zelito Viana, entre outros. Muito forte em Salva<strong>do</strong>r e noRio de Janeiro. Patrocina<strong>do</strong> pelo CPC, foi lança<strong>do</strong> em1963, Cinco Vezes Favela com cinco curtas dirigi<strong>do</strong>s pordiretores diferentes, sempre destacan<strong>do</strong> a vida, o cotidianoe os problemas da vida urbana nas comunidades pauperizadas,marca<strong>do</strong> por forte crítica social. Deus e o Diabona Terra <strong>do</strong> Sol de Glauber Rocha incorpora e simboliza atemática da terra na forma <strong>do</strong> conceito de “romantismorevolucionário” de Marcelo Ridenti.Com o golpe, cada uma destas vertentes, teatro,poesia, cinema e literatura radicalizaram sua opção políticacontrária à ditadura, até serem fortemente reprimidasapós o AI-5. Em muitas manifestações artísticas, às vezes seuniam expressões distintas, como no teatro Opinião e suasreedições, Opinião 65, Opinião 66, que reunia o teatro devanguarda com a MPB. No show, eram reuni<strong>do</strong>s os representantesda Bossa Nova (Nara Leão) de classe média, comos sambistas <strong>do</strong> morro (Zé Kéti) e <strong>do</strong> regional nordestino(João <strong>do</strong> Vale). Enquanto isso, em São Paulo, se consolidavao Teatro Oficina que, na esteira <strong>do</strong> Arena, encenava cadavez menos peças existenciais e cada vez mais textos decrítica social, apelan<strong>do</strong> para a ironia e o sarcasmo da realidadesocial <strong>do</strong> país. Destacam-se as montagens de Gorki,Pequenos Burgueses, e de Oswald de Andrade, O Rei da Vela.Pouco depois José Celso Martinez Correa iria encenar RodaViva de Chico Buarque, na mesma época em que GlauberRocha filmava Terra em Transe (1967).


549O Regime Militar(1964-1985)Foi parte integrante <strong>do</strong> movimento mais amplo namúsica, teatro, poesia, artes plásticas e cinema conheci<strong>do</strong>como Tropicalismo. Trata-se de um movimento muitodifícil de definir, já que nem seus próprios participantesconseguem defini-lo claramente. São impressionismosconceituais semelhantes a um texto pós-moderno ou umacura<strong>do</strong>ria de arte contemporânea, com pouca ou nenhumapreocupação didática ou de síntese. São incrivelmentetropicalistas as definições de Tropicalismo.De um mo<strong>do</strong> geral, tratou-se da atualização da antropofagiaoswaldiana entre 1967 e 1968, cujo marco, segun<strong>do</strong>Carlos Nelson Coutinho, foi o filme Terra em Transe.Coutinho, aliás, concorda que a incorporação <strong>do</strong> caótico, aaceitação das contradições, a valorização <strong>do</strong> irracional, queestão presentes em Terra em transe, influenciariam to<strong>do</strong> omovimento <strong>do</strong> Tropicalismo. Foi mais forte e reconheci<strong>do</strong>na música, ten<strong>do</strong> como expoentes Caetano Veloso, GilbertoGil, Tom Zé, Capinam e Gal Costa. Mas envolveu artistascomo Helio Oiticica, Lygia Clark e Rubens Gerchman; e cineastascomo Rogério Duarte e José Celso Martinez Correa.Tratava-se da incorporação crítica, mas não sem uma <strong>do</strong>sede admiração <strong>do</strong> movimento da contracultura antropofagicamentedeglutida pelos artistas nacionais. Uma reediçãoda absorção da herança cultural europeia e americana namatriz negra e indígena brasileira. Um sincretismo cultural.A enorme visibilidade <strong>do</strong> Tropicalismo se deu nosfestivais da canção que começaram a ser organiza<strong>do</strong>s porgrupos de TV como a Record, a Excelsior, e o mais famoso,Festival Internacional da Canção que começou na TVRio e depois passou para a TV Globo. Canções da Tropicáliacomeçam a disputar espaço com a música mais explicitamentepolitizada que agradava mais ao público universitário,que era o público preferencial <strong>do</strong>s Festivais, crian<strong>do</strong>situações constrange<strong>do</strong>ras e memoráveis de enfrentamentoentre o artista e o público como o caso de SérgioRicar<strong>do</strong>, que vaia<strong>do</strong> insistentemente pelo público, quebrao violão e o atira na plateia no 3 o Festival da Música Popular<strong>Brasil</strong>eira em outubro de 1967, enquanto tentava cantarBeto bom de bola.Episódio ainda mais sintomático da incompreensãoprovocada pela Tropicália se deu nas eliminatórias paulistas<strong>do</strong> 3 o Festival Internacional da Canção, realizada no TUCA(teatro da Universidade Católica de São Paulo) em setembrode 1968, no auge da politização da sociedade brasileira queredundaria no AI-5. Trata-se de um exemplo que mereceuma citação longa, por explicitar os dilemas da expressãocultural da Tropicália, incompreensível para boa parte <strong>do</strong>público que buscava mensagens políticas mais explícitase não necessariamente o questionamento comportamentalou estético. A contestação se restringia à Costa e Silva.Se era americano era imperialista. A Tropicália não tinha ointuito de ser a vanguarda da revolução ou <strong>do</strong> marxismo.O debate em torno da introdução da guitarra na MPB dábem o tom <strong>do</strong> nível de politização a que se chegara.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>550Caetano, já famoso por Alegria, Alegria (1967), aban<strong>do</strong>nadefinitivamente o comportamento convencional emergulha de vez na Tropicália, na performance vanguardistade É Proibi<strong>do</strong> Proibir. Vesti<strong>do</strong> com roupas exóticas,de plástico verde e <strong>do</strong>ura<strong>do</strong> brilhante, levan<strong>do</strong> um artistaamericano John Dandurand, que espalhafatosogritava frases sem senti<strong>do</strong>, logo depois de Caetano e Gilcantarem “Me dê um beijo meu amor/ Eles estão nos esperan<strong>do</strong>/Os automóveis ardem em chamas/ Derrubar asprateleiras/ As estantes, as estátuas/ As vidraças, louças/Livros, sim.../ E eu digo sim/ E eu digo não ao não/ E eudigo: É! / Proibi<strong>do</strong> proibir”. Inspirada nas pichações de Parisde maio de 1968. Tu<strong>do</strong> isso contrastava com a simplicidadeda forma e a explicitude <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> de Pra nãodizer que não falei das flores, que Geral<strong>do</strong> Vandré cantavaem um banquinho com apenas voz e violão, e que rapidamentevirou a favorita da plateia.Naturalmente, a hiperpolitização <strong>do</strong> público nãoreagiu bem à antropofagia tropicalista. A vanguarda políticanão era igualmente estética. Vaias crescentes parte <strong>do</strong>público de costas. Muitos gritan<strong>do</strong> “bicha! bicha!” não sesabe se para Caetano ou Dandurand, mas evidencian<strong>do</strong> ola<strong>do</strong> conserva<strong>do</strong>r da juventude de 1960, que queria tomaro poder. Em um discurso pra lá de tropicalista, Caetano interrompea performance e grita:Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar opoder? Vocês tem coragem de aplaudir este ano umamúsica que vocês não teriam coragem de aplaudir noano passa<strong>do</strong>; são a mesma juventude que vai sempre,sempre, matar amanhã o velhote inimigo que morreuontem! Vocês não estão entenden<strong>do</strong> nada, nada, nada,absolutamente nada. Hoje não tem Fernan<strong>do</strong> Pessoa!Eu hoje vim dizer aqui que quem teve coragem deassumir a estrutura <strong>do</strong> festival, não com o me<strong>do</strong> queSr. Chico de Assis pediu, mas com a coragem, quemteve essa coragem de assumir essa estrutura e fazê-laexplodir foi Gilberto Gil e fui eu. Vocês estão por fora!Vocês não dão pra entender. Mas que juventude é essa,que juventude é essa? Vocês jamais conterão ninguém!Vocês são iguais sabe a quem? São iguais sabe a quem?– tem som no microfone? – Àqueles que foram ao RodaViva e espancaram os atores. Vocês não diferem emnada deles, vocês não diferem em nada! E por falar nisso,viva Cacilda Becker! Viva Cacilda Becker! Eu tinha mecomprometi<strong>do</strong> em dar esse? viva? aqui, não tem nadaa ver com vocês. O problema é o seguinte: vocês estãoqueren<strong>do</strong> policiar a música brasileira! O Maranhão apresentouesse ano uma música com arranjo de charleston,sabem o que foi? Foi a Gabriela <strong>do</strong> ano passa<strong>do</strong> que elenão teve coragem de, no ano passa<strong>do</strong>, apresentar, porser americana. Mas eu e Gil abrimos o caminho, o queé que vocês querem? Eu vim aqui pra acabar com isso.Eu quero dizer ao júri: me desclassifique! Eu não tenhonada a ver com isso! Nada a ver com isso! Gilberto Gil!Gilberto Gil está comigo pra acabarmos com o festivale com toda a imbecilidade que reina no <strong>Brasil</strong>. Acabarcom isso tu<strong>do</strong> de uma vez! Nós só entramos em festivalpra isso, não é Gil? Não fingimos, não fingimos que desconhecemoso que seja festival, não. Ninguém nuncame ouviu falar assim. Sabe como é? Nós, eu e ele, tivemosa coragem de entrar em todas as estruturas e sairde todas, e vocês? E vocês? Se vocês em política forem


551O Regime Militar(1964-1985)como são em estética, estamos feitos! Me desclassifiquemjunto com Gil! Junto com ele, tá entenden<strong>do</strong>.O júri é muito simpático, mas é incompetente. Deusestá solto! (nesse ponto Caetano tenta cantar novamenteum trecho de É Proibi<strong>do</strong> Proibir e é novamente interrompi<strong>do</strong>por vaias) Fora <strong>do</strong> tom, sem melodia. Comoé júri? Não aceitaram? Desqualificaram a melodia deGilberto Gil e ficaram por fora! Juro que o Gil fundiu acuca de vocês. Chega!?Gil logo depois afirmaria: “Não tenho raiva deles, não,eles estão embota<strong>do</strong>s pela burrice que uma coisa chamadaParti<strong>do</strong> Comunista resolveu pôr nas cabeças deles”.Ganhou naturalmente a música que dizia “Solda<strong>do</strong>sperdi<strong>do</strong>s de armas na mão/ No quartel lhes ensinam antigaslições/ De morrer pela pátria e viver sem razão/ Vemvamos embora que esperar não é saber/ Quem sabe faz ahora/ Não espera acontecer”, que perderia na final <strong>do</strong> 3 o FICpara Sabiá de Chico Buarque, igualmente vaiada 533 . Se nãofosse “canção de protesto” não servia.533 A tropicália não tinha o intuito de ser a vanguarda da revolução ou <strong>do</strong>marxismo. O debate em torno da introdução da guitarra na MPB dá bem otom <strong>do</strong> nível de politização a que se chegara.John Dandurand urran<strong>do</strong> frases desconexas e Caetano atrás fazen<strong>do</strong> gestos de cópula(1967).No livro Verdade Tropical, escrito quase trinta anosdepois deste episódio, Caetano retoma as críticas às correntesnacionalistas da expressão artística de então, queestariam subordinadas direta ou indiretamente ao Parti<strong>do</strong>Comunista, e sua mentalidade preto ou branco. Para ele, onacionalismo não era expressão da brasilidade, mas, principalmente,um modelo reativo de crítica ao imperialismonorte-americano. A Tropicália era propositiva, não reativa,o que não desqualifica a contestação política, dentre as váriasformas de contestação em curso. Outras canções deCaetano da mesma época evidenciam a simpatia às guerrilhase à luta armada. Podres Poderes, Soy Loco por Ti América(1966) e Divino, Maravilhoso (1968), que canta<strong>do</strong> por Gal


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>552Costa de mo<strong>do</strong> agressivo, cabelo Black Power, sem a posturacomportada que a caracterizara como cantora de BossaNova, são exemplos disso.O mesmo Chico Buarque, vaia<strong>do</strong> por Sabiá, se tornaria,depois de 1968, alvo constante da censura, principalmentepor escrever com Ruy Guerra a peça Calabar:O elogio da Traição de 1973 em que relativizava o papelde Calabar na guerra contra os holandeses para relativizar,igualmente, o nacionalismo <strong>do</strong>s que apoiavam o RegimeMilitar. Precisou, a partir de então, passar a compor músicassob o pseudônimo de Julinho de Adelaide para evitar aproibição de suas canções. A música Apesar de Você (1970)é o principal exemplo, juntamente com Acorda Amor(1974), também composta por Julinho. Julinho foi mortopelo Jornal <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> em 1975 534 , mas várias outras cançõesseguiram a linha da contestação política. Este é o caso deCálice (1973), Angélica (1977) – que faz referência à luta daestilista Zuzu Angel para saber o paradeiro de seu filhoStuart Angel Jones morto pela repressão <strong>do</strong> regime militar534 O subterfúgio acabou transforman<strong>do</strong> numa grande blague para desmoralizara censura. “Julinho” deu uma entrevista ao jornalista Mário Prata em setembrode 1974 <strong>do</strong> jornal Última Hora paulista. Criou toda uma biografia de si mesmo– meio aliena<strong>do</strong>, meio apolítico – e da mãe, Adelaide, paralítica e autorade palavras cruzadas, ilustrada por foto de uma mulher negra anônima elindíssima que teria feito uma ponta em Orfeu da Conceição. Desmascara<strong>do</strong>pelo Jornal <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, em 1975, fez com que a censura passasse a exigir<strong>do</strong>cumentos de identidade <strong>do</strong>s compositores que submetiam canções.– e Mulheres de Atenas (1976) – composta para a peça deAugusto Boal, que é delicadamente um diálogo feito combase no discurso de Márcio Moreira Alves.O contexto da expressão artística <strong>do</strong>s anos 1970mudara significativamente. O pós-AI-5 foi o tempo <strong>do</strong> MilagreEconômico e da potencial desmobilização social queele encerrava em sua prosperidade. Estabelecida a censuraprévia por uma década, houve também um esforço <strong>do</strong>regime em cooptar os setores artísticos e intelectuais pormeio da criação de agências culturais, como a Embrafilme(1969) 535 e a Funarte (1975), e também <strong>do</strong> uso de agênciasque existiam desde o Esta<strong>do</strong> Novo como o Instituto Nacional<strong>do</strong> Livro ou o Serviço Nacional de Teatro.Muitos <strong>do</strong>s expoentes <strong>do</strong> Cinema Novo buscariamfinanciamento na Embrafilme, que chegou a ser inclusivedirigida pelo diretor de Cinema Roberto Farias no governoGeisel. Isso não evitava que muitas vezes a censura impedissea veiculação de filmes que a própria Embrafilme financiava.Ao la<strong>do</strong> de sucessos estron<strong>do</strong>sos de bilheteriacomo Dona Flor e seus <strong>do</strong>is mari<strong>do</strong>s (1976) e os filmes <strong>do</strong>sTrapalhões, havia uma enorme gama de produções – amaioria – que era financiada pela empresa e dava prejuízo,535 Inicialmente, uma empresa de economia mista, que contava, até 1973, comsócios cineastas, ten<strong>do</strong> a união como acionista majoritária. Isso é evidênciada estratégia de cooptação, já que em seu início os poucos filmes financia<strong>do</strong>seram de cineastas que dela eram acionistas.


553O Regime Militar(1964-1985)sem que houvesse cobrança posterior, já que a relaçãoda Embrafilme e, portanto, <strong>do</strong> governo, com os cineastas,outrora críticos <strong>do</strong> regime, passara a ser de paternalismoe cooptação. Enquadram-se neste modelo Bye, bye, <strong>Brasil</strong>(1979) de Cacá Diegues, Pixote (1980) de Hector Babencoe Idade da Terra (1980) de Glauber Rocha, to<strong>do</strong>s fracassosde bilheteria.Ao contrário <strong>do</strong> que se pensa, os filmes da chamadapornochanchada não foram financia<strong>do</strong>s pela Embrafilme.Eram financia<strong>do</strong>s por produtoras independentes – Cinemada Boca <strong>do</strong> Lixo – e ao contrário de grande parte <strong>do</strong>s filmesda Embrafilme tinham intenção comercial e davam lucro.Apesar de não mostrarem sexo explícito e muitas vezes seremretalha<strong>do</strong>s por cortes da censura de costumes, tiverama participação de atores e atrizes 536 de renome – muitosrevela<strong>do</strong>s pela pornochanchada – e, também, de cineastasimportantes, como Braz Chediak e Neville de Almeida, quepraticamente se especializaram em adaptar a dramaturgiapicante de Nelson Rodrigues.Uma terceira vertente <strong>do</strong> cinema brasileiro desteperío<strong>do</strong> foi o cinema marginal. Rogério Sganzerla, JúlioBressane e João Silvério Trevisan radicalizaram pela rupturacom o Cinema Novo, coopta<strong>do</strong> pela Embrafilme e536 Hugo Carvana, Nuno Leal Maia, Reginal<strong>do</strong> Farias, Sônia Braga, Lucélia Santos,Vera Fischer, Sandra Bréa e Nicole Puzzi entre muitos outros.produziram filmes cuja estética quase niilista, crua, era deum desencantamento absoluto e desesperança<strong>do</strong>. Tortura,sangue, desespero prolonga<strong>do</strong>, imagens agônicas edisformes, silêncios prolonga<strong>do</strong>s são características de filmescomo Matou a família e foi ao Cinema (Bressane, 1969),O Bandi<strong>do</strong> da Luz Vermelha (Sganzerla, 1968), A Mulher deTo<strong>do</strong>s (Sganzerla, 1969), Orgia ou o homem que deu cria(João Silvério Trevisan, 1970). Tinham em comum com asorigens <strong>do</strong> Cinema Novo o fato de serem filmes de baixíssimoorçamento, explicitamente confrontacionistas e queignoravam a censura. Apesar de politicamente engaja<strong>do</strong>s,não tinham a pretensão revolucionária. Seus personagenseram muito mais individualistas <strong>do</strong> que aqueles <strong>do</strong> CinemaNovo, representantes explícitos das classes sociais.Esse individualismo parecia contagiar os artistas eintelectuais na década de 1970, com o estabelecimentodefinitivo de uma indústria cultural rica e autossustentável.O Ministério das Comunicações, cria<strong>do</strong> em 1967, viabilizaria,através de concessões, a disseminação por to<strong>do</strong>país de uma estrutura televisiva, que seria acompanhadapelo crescimento vigoroso da indústria fonográfica, editorial,jornalística e radiofônica com a enorme demandapor publicidade, o que absorvia quadros profissionais dedesenhistas, gravuristas, redatores, músicos e poetas. O pagamentodas contas e a realização profissional individualse colocavam progressivamente acima <strong>do</strong>s compromissoscom a sociedade em abstrato, que podiam ser defendi<strong>do</strong>s


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>554verbalmente sem que necessariamente se colocasse emrisco o emprego ou o financiamento público, que garantiao pão de cada dia. Alguns exemplos da desmobilização,fruto da crescente e quase completa mercantilização<strong>do</strong> setor cultural – ou “indústria” cultural – foram a JovemGuarda, no plano musical, e o grosso da programação televisiva,sobretu<strong>do</strong> a teledramaturgia e os enlata<strong>do</strong>s norte--americanos.Roberto e Erasmo Carlos, Wanderley Car<strong>do</strong>so e Martinha,Wanderléa e Jerry Adriani traduziram o pop internacional,aban<strong>do</strong>nan<strong>do</strong> o engajamento de uma MPB quese voltava para o pobre, o rural, o miserável e dialogan<strong>do</strong>diretamente com a classe média brasileira em época decrescimento econômico. As gírias inventadas ou popularizadaspelo grupo “de arromba”, “brasa mora”, “gata”, “barralimpa” e “papo firme” eram divulgada nacionalmente peloprograma Jovem Guarda da TV Record em São Paulo e retransmiti<strong>do</strong>em videoteipe para outras capitais, alcançan<strong>do</strong>,segun<strong>do</strong> o IBOPE, mais de 3 milhões de telespecta<strong>do</strong>resque afluíam fanaticamente para os shows de seus í<strong>do</strong>los,como se fazia com os Beatles na mesma época. O Calhambeque,maior sucesso da Jovem Guarda virou marca deroupas, chapéus, e sapatos e teve fama internacional, chegan<strong>do</strong>às paradas de sucesso, sempre entre os primeiroslugares, na França, Portugal, Angola, Argentina e México.O individualismo consumista aparecia em letras comoQuero que tu<strong>do</strong> vá pro Inferno, no qual o que era importantepara o indivíduo jovem era sua namorada da vez e seu “carango”novo, não necessariamente nesta ordem. Não importavao problema político ou social.Não tardaria, no entanto, para que o fenômeno seesgotasse, e o Rei, em carreira solo, demonstrasse maisuma vez sua capacidade de reinvenção 537 para se tornaro í<strong>do</strong>lo da música romântica, que segue sen<strong>do</strong> até os diasde hoje, com anuais hits de e com dezenas de músicas queto<strong>do</strong>s os brasileiros de qualquer idade sabem cantar. Universalmentefamoso por cantar o amor, o maior cantor românticoda história nos permite afirmar que nem todas ascriações da ditadura foram maléficas 538 .Há autores que identificam o próprio surgimento <strong>do</strong>conceito “MPB” enquanto gênero no final <strong>do</strong>s anos de 1960como ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> um meio para dividir a música brasileira.De um la<strong>do</strong> os herdeiros da bossa nova e <strong>do</strong> samba e <strong>do</strong>outro os herdeiros <strong>do</strong> “rock”, representa<strong>do</strong>s por músicoscomo Roberto Carlos e a “jovem guarda”, que não eram537 Roberto Carlos começou sua carreira fazen<strong>do</strong> shows imitan<strong>do</strong> o í<strong>do</strong>lo daBossa Nova, João Gilberto em boates de Copacabana. Chegou a ser julga<strong>do</strong>por isso no programa Quem tem me<strong>do</strong> da verdade? da TV Record em 1968,onde foi defendi<strong>do</strong> memoravelmente por Silvio Santos. Trata-se de episódiopitoresco pela pretensa seriedade <strong>do</strong> advoga<strong>do</strong>. Ver , acessa<strong>do</strong> em 20 de março de 2013.538 Recentemente, Roberto voltou aos tempos da ditadura e censurou a elogiosabiografia que Paulo Cesar Araújo escreveu sobre ele. ARAUJO, Paulo César.Roberto Carlos, em detalhes. São Paulo. Ed. Planeta, 2006, livro extraordinário einfelizmente indisponível.


555O Regime Militar(1964-1985)considera<strong>do</strong>s MPB. Foi nesse contexto que se deu a marchacontra o uso da guitarra elétrica de 1967 539 . Esta divisãoinexistia antes. Música popular brasileira era toda músicanão erudita produzida no <strong>Brasil</strong>, por qualquer artista quefosse.Roberto Carlos não foi um fenômeno isola<strong>do</strong> devítima de patrulhamento ideológico. Dezenas de artistasconsidera<strong>do</strong>s “cafonas”, quase sempre de origem socialhumilde, eram ouvi<strong>do</strong>s por milhões de brasileiros mas sãoignora<strong>do</strong>s pela memória oficial da música brasileira contemporânea540 . Cantores como Paulo Sérgio, Waldick Soriano,Nelson Ned, Agnal<strong>do</strong> Timóteo, Odair José, entre outrosvendiam dezenas de vezes mais discos que os celebra<strong>do</strong>sChico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Elis Regina.Segun<strong>do</strong> Paulo Cesar Araújo estes “clássicos” para agradara juventude universitária de então só podiam ser lança<strong>do</strong>s539 Com slogans “Defender O Que É Nosso” e “Passeata da MPB”, ou “PasseataContra A Guitarra Elétrica”, aconteceu em julho de 1967, em São Paulo eculminaria com o programa Frente Ampla da MPB. Liderada por Elis Regina,contou com a participação de Zé Kéti, Edu Lobo, Jair Rodrigues e GilbertoGil e parecia retomar o nacionalismo integralista. Seu alvo óbvio era a JovemGuarda que crescia em popularidade com o programa apresenta<strong>do</strong> porRoberto Carlos na Rede Record, desbancan<strong>do</strong> “O Fino da Bossa” apresenta<strong>do</strong>por Elis Regina.540 Os cafonas não constam das obras de divulgação da MPB, nos acervos <strong>do</strong>MIS – Museu da Imagem e <strong>do</strong> Som e nas coletâneas de clássicos da MPBlançadas pelas grava<strong>do</strong>ras ou vendidas em bancas de jornais. À exceção datese de Araújo, não são debati<strong>do</strong>s nas universidades, nem se escrevem tesessobre eles. Foram praticamente apaga<strong>do</strong>s da memória da história da músicabrasileira escrita pela elite.no merca<strong>do</strong> por que as grava<strong>do</strong>ras poderiam se dar aoluxo de amargar lucros pequenos ou prejuízos com seusdiscos de elite por serem sustentadas financeiramente pelosí<strong>do</strong>los populares “cafonas” que, mesmo ten<strong>do</strong> vendi<strong>do</strong>milhões de discos, foram apaga<strong>do</strong>s da história. Os “cafonas”bancavam a elite da MPB.Em sua perturba<strong>do</strong>ra e eloquente tese “Eu não soucachorro não” sobre a musica “cafona”, Araújo estuda osmotivos para esse silêncio na memória coletiva brasileirae resgata o fenômeno popular. Este autor desmonta a dicotomiamúsica engajada e de contestação versus músicaalienante e “chapa branca”. Descobre dezenas de exemplosadesistas entre os músicos clássicos da MPB (Elis Regina,os irmãos Valle, Caetano e até Chico Buarque) e um grandenúmero de canções de crítica social e política entre os“cafonas” que foram censuradas e proibidas pelo regime 541 .Estes artistas alcançaram o ápice <strong>do</strong> seu sucesso justo durantea vigência <strong>do</strong> AI-5 (1968-1978), perío<strong>do</strong> em que a vendade LPs triplicou, o faturamento da indústria de discos subiumais de 1.300% e o consumo de toca-discos cerca de 800%.Fenômeno de massas ainda mais impactante e extraordinárioé a televisão. Chegara ao <strong>Brasil</strong> em 1950 mas,na década de 1960, já não estava restrita aos grupos de541 Ver Araújo. Paulo César. Eu não sou cachorro não. Musica Popular Cafona editadura militar. Rio de Janeiro, Ed. Record, 2002.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>556elite. Com a chegada <strong>do</strong> videoteipe no início <strong>do</strong>s anos de1950 melhorava incrivelmente a qualidade 542 de uma TVque até então era feita de improviso, por atores oriun<strong>do</strong>s<strong>do</strong> rádio, que gravavam seus programas sem poderem errar.Favoreceu ainda a rentabilização das emissoras graçasao alcance nacional que permitia. Programas grava<strong>do</strong>s, quese tornavam nacionais e despertavam muito mais interesse<strong>do</strong>s anunciantes, favoreciam o lucro e o reinvestimento emmaior qualidade.A Tupi era a líder de merca<strong>do</strong> no início da década.A pequena TV Paulista começou a disputar merca<strong>do</strong> com aTupi, revelan<strong>do</strong> nomes como Hebe Camargo e Silvio Santos.Junto com a TV Record as três disputavam a audiêncianacional até o aparecimento da TV Excelsior, que inovouno merca<strong>do</strong> com o capital <strong>do</strong> grupo Simonsen, a partir <strong>do</strong>início da década de 1960 (1960 em SP, 1963 no Rio de Janeiro).O grupo tentou inclusive transmitir a cores em 1962,sem sucesso comercial por conta <strong>do</strong> preço <strong>do</strong>s aparelhosreceptores NTSC. Ainda demoraria uma década até que seobtivesse sucesso na transmissão a cores da Festa da Uvade Caxias <strong>do</strong> Sul em 1972.542 Exemplos <strong>do</strong> uso inteligente <strong>do</strong> videoteipe, em seus primórdios, são osesquetes <strong>do</strong> programa de Chico Anysio, nas quais o ator contracenavaconsigo em seus diversos personagens numa edição que devia ser bemtrabalhosa. Além disso, a novela da TV Tupi, Mulheres de Areia na qual EvaWilma fazia o papel de gêmeas: a ingênua Ruth e a malvada Raquel.Até o golpe militar, a Excelsior era a líder incontestávelno horário nobre e na captação de recursos comanunciantes. Shows e programas de auditório com artistasrenoma<strong>do</strong>s (Elis Regina, Gilberto Gil, Jorge Ben), programashumorísticos como o Times Square, Gira o mun<strong>do</strong> gira (comChico Anysio), lutas encenadas como o Telecatch, jogosde futebol transmiti<strong>do</strong>s em videoteipe <strong>do</strong> Maracanã – eraproibida a transmissão ao vivo – e as séries enlatadas compradasdas emissoras americanas como Jornada nas Estrelas,Dr. Kildare e Missão Impossível faziam enorme sucesso.Não era uma programação muito “engajada” socialmente,ainda que a Excelsior não fosse a TV favorita <strong>do</strong> regime 543 .Mas nada fazia tanto sucesso quanto as novelas,graças à Excelsior, que inaugurou uma nova forma de fazerdramaturgia, contratan<strong>do</strong> um elenco milionário como slogan “Eu também estou na Excelsior”. Em 1963, GlóriaMenezes e Tarcisio Meira protagonizaram a primeira novelada Excelsior – “2-5499, Ocupa<strong>do</strong>” –, no qual Glória fazia uma543 Depois <strong>do</strong> golpe, a Excelsior entraria em lenta e espiral decadência atéo colapso definitivo em 1970. Isso explicitava a truculência <strong>do</strong> regime,colocan<strong>do</strong> no ar cenas cortadas pela censura com seus mascotes ten<strong>do</strong>a boca ouvi<strong>do</strong>s tapa<strong>do</strong>s escrito: “CENSURADO!”. O que irritava o governo.O principal executivo <strong>do</strong> grupo Simonsen havia apoia<strong>do</strong> a legalidade e apresidência de Goulart e se tornara persona non grata pelos militares nopoder. O grupo, que também possuía a PanAir foi obriga<strong>do</strong> a fechá-la apóster perdi<strong>do</strong> concessões importante de voo, cassadas pelo regime. Na mesmasemana em 1969, houve <strong>do</strong>is incêndios suspeitos na Excelsior destruin<strong>do</strong>seu acervo.


557O Regime Militar(1964-1985)presidiária que, trabalhan<strong>do</strong> como telefonista, se apaixonavapor um homem livre que não a conhecia pessoalmente.Criava-se no <strong>Brasil</strong> o hábito folhetinesco de acompanharuma trama diariamente no horário em que as pessoas terminavamseu jantar, após chegarem em casa, cansadas <strong>do</strong>trabalho. Se o leitor é brasileiro, não há qualquer necessidadede argumentar o impacto de tal inovação na culturanacional. Para não ferir os brios mais sofistica<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s futurosdiplomatas, o autor se abstém de fazer juízos de valordeste fenômeno cultural, mas não deixa de sublinhar seualcance, certamente <strong>do</strong>s maiores, se não o maior, da históriacultural brasileira em qualquer época.A dramaturgia evoluiu tal qual a própria TV. A maisfamosa novela da época era uma adaptação de um sucesso<strong>do</strong> rádio O Direito de Nascer, originalmente cubana,que devolveu a liderança <strong>do</strong> horário nobre à TV Tupi. Umdramalhão com Paulo Gracin<strong>do</strong>, que era filho ilegítimo deuma freira e apaixona<strong>do</strong> pela própria prima sem o saber.A polícia e o exército precisaram conter a multidão que seaglomerava para assistir o último episódio grava<strong>do</strong> ao vivonuma festa comemorativa de encerramento.As novelas eram patrocinadas pelas indústrias decosméticos que compravam o espaço publicitário <strong>do</strong>sreclames nos intervalos. A Colgate-Palmolive aproveitan<strong>do</strong>-seda situação de Cuba pós-revolucionária patrocina avinda da escritora de novelas cubana, Glória Magadan, quefez A outra e A cor de sua pele, em 1965, na TV Tupi, masneste mesmo ano foi contratada pela nova emissora quesurgira logo depois <strong>do</strong> golpe militar.A TV Globo (1965) aos poucos, graças à enorme qualidadetécnica, equipamentos de última geração – já nasciacom videoteipe – e grandes investimentos, se consolidariaao longo <strong>do</strong>s anos como líder incontestável <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>televisivo brasileiro. Nos anos sessenta, ainda disputavacom a Excelsior e a Tupi. Em 1966, Roberto Marinho compraa TV Paulista e se consolida nos <strong>do</strong>is principais Esta<strong>do</strong>s<strong>do</strong> país. As novelas escritas, supervisionadas e produzidaspor Glória Magadan, ditaram as regras iniciais <strong>do</strong> gênero,muito fortemente influenciadas pelos dramas lacrimososcubanos e mexicanos. Eu compro essa mulher (1966),O Sheik de Agadir (1966), A sombra de Rebecca (1967). Nestemesmo ano Glória Magadan contrata Janete Clair para auxiliá-lanas novelas da Rede Globo, que substituiria a antigachefe na Globo em 1969, quan<strong>do</strong> Magadan foi dispensada.Com Irmãos Coragem (1970), Selva de Pedra (1972) ePeca<strong>do</strong> Capital (1975), Janete Clair se tornava a “maga dasoito” e o <strong>Brasil</strong> deixaria de ser importa<strong>do</strong>r para se tornaro maior exporta<strong>do</strong>r de novelas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> 544 . Em O Astro544 Janete Clair é o caso mais emblemático de um novo modelo deteledramaturgia urbana que começava a emergir desde Beto Rockefeller.Aban<strong>do</strong>nava-se o drama puro e simples para mesclá-lo com um núcleocômico e personagens mais realistas, como o anti-herói interpreta<strong>do</strong> por LuísGustavo na novela que devolveu a Tupi a liderança no horário nobre. A novelafoi esticada várias vezes e inovou ao comentar os fatos <strong>do</strong> cotidiano e as


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>558(1978), a pergunta “Quem matou Salomão Hayalla?” garantiuaudiência absoluta para a Rede Globo, a esta altura jáhegemônica. Pai Herói (1979), Jogo da Vida (1981) e SétimoSenti<strong>do</strong> (1983) foram alguns <strong>do</strong>s últimos sucessos de JaneteClair antes de morrer precocemente de um câncer nointestino.Isso não significa que a teledramaturgia tenha si<strong>do</strong>espaço exclusivo da alienação. Casa<strong>do</strong> com Janete Clair,o dramaturgo oriun<strong>do</strong> <strong>do</strong> teatro, Dias Gomes, se tornouespecialista em satirizar a ditadura em horário nobre 545 .Em 1973, sua novela O Bem Ama<strong>do</strong> era uma comédia políticamuito sofisticada, que mostrava a pequena cidadede Sucupira como microcosmo <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. Seu prefeitoconserva<strong>do</strong>r caricato O<strong>do</strong>rico Paraguaçu 546 era popularnotícias <strong>do</strong>s jornais, aumentan<strong>do</strong> o realismo da trama. O diretor Lima Duartefazia pontas tarantinescas como o mecânico que só aparecia de costas ou omor<strong>do</strong>mo <strong>do</strong> qual só se viam as mãos e se ouvia a voz. Beto era um pobretãoque tentava se inserir no grand monde da sociedade, enganan<strong>do</strong> os grã-finoscom seu enorme talento para artimanhas. Tomava tanto uísque que a Engovcomeçou a patrocinar o personagem. Queria dar o golpe <strong>do</strong> baú, mas teveseus objetivos frustra<strong>do</strong>s numa época em que o moralismo ainda exigia umfinal feliz. Em 1986, Vale Tu<strong>do</strong> chocou os telespecta<strong>do</strong>res com a impunidadeexplícita, crítica da corrupção brasileira em um final no qual o vilão corruptoMarco Aurélio (Reginal<strong>do</strong> Faria) foge <strong>do</strong> país com o dinheiro desvia<strong>do</strong> daempresa TCA e, ao decolar, dá uma banana para o <strong>Brasil</strong> ao som de Cazuzaque cantava: “<strong>Brasil</strong>, mostra tua cara”.545 A Globo já havia si<strong>do</strong> obrigada a inaugurar um novo horário de novelas às22h, por conta <strong>do</strong>s textos políticos que Dias Gomes passou a inserir em suasnovelas, após a saída de Glória Magadan.546 O<strong>do</strong>rico era o típico coronel <strong>do</strong> interior com veleidades intelectuais, que falavafrases hilárias permeadas por neologismos pseu<strong>do</strong>intelectuais e ridículos.graças às obras públicas eleitoreiras que inaugurava. Nocaso, tratava-se de um Cemitério, “ininaugurável”, porqueninguém morria em Sucupira. O<strong>do</strong>rico, então, contrataZeca Diabo, pistoleiro para resolver o problema e calar aoposição. Não deve ter agrada<strong>do</strong> os militares já que, em1975, o governo proibiu, na semana de estreia, sua novelaRoque Santeiro, como já havia proibi<strong>do</strong> a peça na qualela se baseava, também no dia de sua estreia, em 1965.Roque Santeiro, um <strong>do</strong>s maiores sucessos da teledramaturgianacional, só foi ao ar em 1985, já sob o signo daredemocratização que permitia maior liberdade críticaao impactante horário nobre. No ano seguinte seria ValeTu<strong>do</strong> e a crítica à corrupção e à impunidade. Em 1989,Que Rei sou eu?, uma versão pastelão de Sucupira no reinoimaginário de Avilan no século XVIII pré-revolucionária,que nada mais era que o <strong>Brasil</strong>. Em 1992, estimulan<strong>do</strong> oscara-pintadas que saíam às ruas para pedir o impeachmentde Fernan<strong>do</strong> Collor, a minissérie Anos Rebeldes contavaa história da juventude nos anos sessenta, na qualo personagem principal, João Alfre<strong>do</strong>, entra para a lutaarmada. Gêneros como a novela rural – cujo maior expoenteé Benedito Ruy Barbosa – também evidenciam ocrescimento das cidades médias e <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> interiorano,Era claramente inspira<strong>do</strong> em Ponciano de Azere<strong>do</strong> Furta<strong>do</strong>, personagem deJosé Candi<strong>do</strong> de Carvalho no romance O coronel e o Lobisomem (1964).


559O Regime Militar(1964-1985)o que ficou explícito com o sucesso de Pantanal exibidapela TV Manchete em 1990.As novelas acompanham a trajetória política e social<strong>do</strong> país com alcance que nenhuma outra modalidadenarrativa possui. Recentemente, o maior sucesso <strong>do</strong> horárionobre, Avenida <strong>Brasil</strong> (2012) de João Emanuel Carneiro,focou pela primeira vez no subúrbio da emergente classe“C”, empreende<strong>do</strong>ra e progressiva, com o núcleo rico dazona sul carioca em segun<strong>do</strong> plano. O povo via a si mesmonas telas, não mais uma versão inalcançável <strong>do</strong>s seuspatrões.No contexto da abertura, já no governo João Figueire<strong>do</strong>,surgiu na cena musical outro movimento de considerávelimpacto e igualmente relevante até os dias atuais.O Rock Nacional, ou BRock. Sincrético, incorporou influências<strong>do</strong> New Wave, <strong>do</strong> Punk e <strong>do</strong> Pop internacional <strong>do</strong> final<strong>do</strong>s anos 1970, não apenas nos ritmos, mas também naestética. O show de Rock virava um espetáculo. Kiss, TheCure, David Bowie, com suas roupas extravagantes, Morrisey,com seu jeito esquisito de dançar, tanto quanto o PinkFloyd teriam impacto nas bandas brasileiras, como a Blitz,os Paralamas <strong>do</strong> Sucesso, o Biquíni Cavadão, ou o Kid Abelha.Em Brasília (Legião Urbana e Capital Inicial), PortoAlegre (Engenheiros <strong>do</strong> Hawaii e Nenhum de Nós), São Paulo(Ultraje a Rigor, RPM, Titãs, Ira!) e no Rio de Janeiro (BarãoVermelho, Blitz), cujo point era o Circo Voa<strong>do</strong>r, bandassaíam das garagens para aproveitar o contexto de aberturapolítica e mostrar a que vieram. Sem a obrigatoriedade denecessariamente se posicionarem politicamente, comonos anos de 1960, faziam crítica social, comportamental esexual, cumprin<strong>do</strong> plenamente a profecia de insatisfaçãode Caetano Veloso, duas décadas depois. Cantavam músicasirreverentes como “Betty Frígida” (Blitz, 1983) e críticassociais profundas como “Faroeste Caboclo” (Legião Urbana,1981), “Que país é esse?” (Legião Urbana, 1987) e “<strong>Brasil</strong>”(Cazuza, 1988). Cada um destes grupos demonstra umavocação distinta: Barão Vermelho, Capital Inicial e Ultraje aRigor eram puro Rock’n Roll. Ira! e Titãs, um rock mais pesa<strong>do</strong>,quase punk. A Blitz, um rock irreverente com performancesde palco e piadas. O Kid Abelha totalmente pope as bandas gaúchas um elemento mais folk. Em algumamedida, to<strong>do</strong>s eram herdeiros das performances de RaulSeixas e Rita Lee nas décadas anteriores, precursores <strong>do</strong>rock nacional.Cabe ainda mencionar o movimento Punk, que surgeno <strong>Brasil</strong> no final <strong>do</strong>s anos 1970, e tem seu ápice emSão Paulo nos anos 1980. São expoentes <strong>do</strong> punk brasileiroo Ratos de Porão e o Viper, cujo vocalista André Matos sairiapara fundar o Angra nos anos 1990. Na cena mineira,destaca-se o Sepultura. Tanto o Angra quanto o Sepulturativeram uma carreira internacional bem mais relevante quea trajetória nacional de suas bandas, ao ponto de AndréMatos ter si<strong>do</strong> sonda<strong>do</strong> para substituir Bruce Dickinson noIron Maiden.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>560Os <strong>do</strong>is maiores sucessos de vendas de discos e deshows foram o paulista RPM (mais de 2 milhões de cópiasvendidas com o álbum Revoluções por Minuto em 1986,cujo grande sucesso era o remake da música de exílio deCaetano Veloso, Lon<strong>do</strong>n Lon<strong>do</strong>n). Mas esse sucesso tevevida curta e a carreira solo de Paulo Ricar<strong>do</strong> não satisfezas expectativas criadas com o que foi o RPM. O outro é oLegião Urbana, que teve sucesso menos estron<strong>do</strong>so, masmuito mais perene, e ainda hoje a banda que mais vendediscos no <strong>Brasil</strong>. Seu vocalista Renato Russo, assumidamentehomossexual, tal qual Cazuza, morreria de AIDS, dan<strong>do</strong>uma conotação de dramaticidade romântica típica <strong>do</strong> mal<strong>do</strong> século dezenovesco a essa geração, e contribuin<strong>do</strong> aindamais para o sucesso das músicas da banda, que seguemsen<strong>do</strong> ouvidas por jovens de hoje, que sequer conheceramo Legião, já que Renato Russo morreu em 1996, há quase20 anos.Em que pese a censura e a repressão, o que sepercebe neste ensaio incompleto das vertentes artístico--culturais <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> <strong>do</strong> Regime Militar é a riqueza de manifestaçõesque a sociedade brasileira, por meio de seusartistas, foi capaz de produzir. Tanto nas manifestaçõesartísticas explicitamente politizadas e de contestação aoRegime, quanto naquelas mais abertamente comerciaistemos em comum o amadurecimento das estruturas deprodução e divulgação <strong>do</strong>s produtos culturais, no que seconvencionou chamar – não raro com viés de crítica – deindústria cultural. Isso é evidente na televisão, no jornalismo,no merca<strong>do</strong> editorial e fonográfico.Saltam aos olhos outras duas considerações breves.Em primeiro lugar, o Regime Militar deu muito menosatenção à expressão cultural que a ditadura esta<strong>do</strong>novista,ou mesmo o regime monárquico no século XIX. Ambostiveram a explícita intenção de criar uma identidade nacional,pretensão essa que passava longe da intervençãosob os generais <strong>do</strong>s anos sessenta e setenta. Quan<strong>do</strong> intervinham,era, quase sempre, para reprimir. Suas instituiçõesde cooptação como a Embrafilme, mais tarde extintano governo Collor, deixaram um lega<strong>do</strong> efêmero 547 . Em segun<strong>do</strong>lugar, nas áreas nas quais se estruturou uma indústriacoesa, lucrativa e com capacidade de reinvestimentoautossustentável, a obra cultural se fez perene. Expoentesque iniciaram suas carreiras nos anos 1960 e 1970, ao demonstraremtalento, conseguiram se perenizar manten<strong>do</strong>sua capacidade de influência cultural até os dias atuais.547 O cinema brasileiro parece ter morri<strong>do</strong> durante a década de 1980. O merca<strong>do</strong>diminuiu: de 3.200 cinemas em 1975 para 1.400 em 1985; de 270 milhõesde especta<strong>do</strong>res em 1975 para 90 milhões em 1985. Mas o <strong>Brasil</strong> produziumais filmes: chegou a 100 em 1978 e a 103 em 1980. E a participação <strong>do</strong>sfilmes brasileiros no merca<strong>do</strong> cresceu muito: de 14% <strong>do</strong>s ingressos vendi<strong>do</strong>sem 1971 para 35% em 1982. O renascimento só viria na década seguintecom Carlota Joaquina (Carla Camuratti, 1995), já sob os auspícios da Lei <strong>do</strong>Audiovisual (1993) e da Lei Rouanet (1994) na gestão de Antonio Houaissno Ministério da Cultura, no que ficou conheci<strong>do</strong> como A Retomada. SemEsta<strong>do</strong> não tem cinema, no máximo, tinha a pornochanchada.


Cantores como Caetano Veloso, Chico Buarque, GilbertoGil, Paulinho da Viola, Gal Costa, Maria Bethânia, RobertoCarlos, escritores como Rubem Fonseca e Dalton Trevisan,editores como Mino Carta, jornalistas como Mário Prata, roqueiroscomo Lobão, Fernanda Abreu, bandas como BarãoVermelho, Titãs e mesmo algumas extintas como a Blitz ea Legião Urbana ainda hoje fazem sucesso, tanto quantoa novela das oito, seja ela qual for, a poesia de Vinicius deMorais e a controversa e hoje desmoralizada Revista Veja.Essa permanência cultural <strong>do</strong>s anos da ditadura,passa<strong>do</strong>s quase 50 anos, tem seu maior exemplo na TV. Seno passa<strong>do</strong> era o IHGB, a ABL, o DIP ou o Ministério da Educaçãoas instituições culturais relevantes na conformaçãocultural <strong>do</strong> povo brasileiro, da década de 1970 em diante,é possível afirmar sem me<strong>do</strong> de errar que a instituição demaior alcance e impacto na conformação cultural, e mesmona identidade <strong>do</strong> povo brasileiro, é, para o bem e parao mal, a Rede Globo de Televisão.561O Regime Militar(1964-1985)


5639. A Nova República(1985-)9.1 Apontamentos introdutórios para a história da Nova RepúblicaGoverno Sarney – inflação e Constituinte.Política Externa <strong>do</strong> governo Sarney. Fernan<strong>do</strong> Collor, a abertura e o “Impeachment”.A Era FHC – des<strong>do</strong>bramentos e críticas. Petismo ou lulismo? Resumo da ação externa <strong>do</strong> governoLula. Esforço de síntese: os três ciclos hegemônicos da Nova República.No plano político o <strong>Brasil</strong> viveu três grandes ciclos na Nova República. O primeiro(1985-1994) foi marca<strong>do</strong> pela hegemonia confusa <strong>do</strong> PMDB, herdada principalmente davitória eleitoral de 1986, logo após o plano Cruza<strong>do</strong>. O grande desafio foi superar a hiperinflação.Fracassou. Sua preeminência partidária em declínio com a eleição de Fernan<strong>do</strong> Collore seu marco conclusivo é naturalmente o Plano Real (1994).Catapulta<strong>do</strong> pelo sucesso <strong>do</strong> plano, o sociólogo Fernan<strong>do</strong> Henrique Car<strong>do</strong>so, entãoMinistro da Fazenda, ultrapassa em visibilidade em seu próprio parti<strong>do</strong> o Governa<strong>do</strong>r de SãoPaulo, Mário Covas, que tinha si<strong>do</strong> o candidato anterior <strong>do</strong> PSDB à presidência e quase haviachega<strong>do</strong> ao 2 o turno. Eleito no primeiro turno, Fernan<strong>do</strong> Henrique marca o segun<strong>do</strong> momentoda Nova República, na qual a hegemonia <strong>do</strong> PSDB é compartilhada com o PFL (1995-2003), edivide o PMDB em uma ala governista e uma oposicionista. A aliança de centro-direita alteraa Constituição e reelege Fernan<strong>do</strong> Henrique em 1998, novamente em primeiro turno, apesarde patinar na economia. A prioridade <strong>do</strong> governo era manter a qualquer custo a estabilidadeda moeda, mesmo à custa <strong>do</strong> crescimento. O Plano Cruza<strong>do</strong> sustentou o PMDB – ao menosnos Esta<strong>do</strong>s e hegemônico no Congresso Nacional, se não na Presidência – por oito anos, oPlano Real sustenta o PSDB. A história recente brasileira parecia fazer crer que o assessor de BillClinton – no contexto <strong>do</strong> sexgate – tinha razão em dizer que a chave <strong>do</strong> sucesso eleitoral “It’sthe economy, stupid!”.Mas não tinha razão. O Plano Cruza<strong>do</strong> foi um fracasso, mas ao eleger quase to<strong>do</strong>s osgoverna<strong>do</strong>res <strong>do</strong> país permitiu a este parti<strong>do</strong> institucionalizar-se nos chama<strong>do</strong>s “grotões” que


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>564nas décadas de 1940 e 1950 eram os redutos <strong>do</strong> PSD e nasdécadas de 1960 e 1970, redutos da ARENA. Muitos antigosmilitantes da ARENA acabaram incorpora<strong>do</strong>s aderin<strong>do</strong> aoPMDB, motivo pelo qual ocorreu o racha de 1988 que criouo PSDB. O mesmo PSDB que ao chegar ao poder, precisou<strong>do</strong> apoio <strong>do</strong> PMDB e <strong>do</strong> PFL para governar. O Plano Realnão sustentava sozinho a governabilidade de Fernan<strong>do</strong>Henrique Car<strong>do</strong>so. Além disso, não foi nenhum plano econômicomilagroso que elegeu Luiz Inácio Lula da Silva em2003, em sua 4 a tentativa para chegar à Presidência, mas alonga trajetória institucional <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res,que crescia gradualmente a cada eleição, desde sua criaçãoem 1980, conquistan<strong>do</strong> espaços importantes de visibilidade– o primeiro foi a prefeitura de São Paulo, com LuizaErundina em 1988 – até chegar a Presidência da República.O governo Lula elegeu a luta contra a desigualdade,elemento prioritário de atenção, e por meio de programascomo o Bolsa Família conseguiu reduzi-la significativamente,viabilizan<strong>do</strong> a eleição de sua sucessora, a primeiramulher a presidir a República em mais de 110 anos. É oterceiro ciclo (2003-2013). Novamente para garantir a governabilidadee a eleição de Dilma Rousseff foi necessáriaa formação de uma ampla coligação político-partidária naqual o PMDB é essencial. Garantiu-lhe a vice-presidênciada República (Michel Temer), tal qual o PSDB garantia avice-presidência para o PFL (Marco Maciel), e o PSD <strong>do</strong>s anos1950/60 garantia a vice-presidência ao PTB (João Goulart).Não se faz política sem alianças, e no presidencialismo decoalizão não é possível governar sem o Congresso Nacional,como comprovam os exemplos de Jânio Quadros(1961) e Fernan<strong>do</strong> Collor de Melo (1990-1992).O Governo Sarney (1985-1990)Força<strong>do</strong>, pelas circunstâncias, a concluir o processode redemocratização, que sua própria trajetória políticanegava, o político maranhense se viu diante de desafiosformidáveis. Não tinha credibilidade popular nem mesmolegitimidade com seu próprio Ministério, pois se tratava deMinistério com forte presença de políticos peemedebistasnomea<strong>do</strong>s por Tancre<strong>do</strong> que ele buscou manter no cargo.Seu principal desafio era a hiperinflação, que, ao final deseu governo, passou à casa <strong>do</strong>s 80% ao mês.Inicialmente, o governo prometia a remoção <strong>do</strong>entulho autoritário. O “Emendão” de maio de 1985 foi umpacote de alterações constitucionais que foram embutidasna Emenda Constitucional n. 25 à Carta de 1967. Estabeleciaeleições diretas em <strong>do</strong>is turnos para to<strong>do</strong>s os cargosexecutivos de prefeitos ao Presidente da República; restabeleciaa legalidade <strong>do</strong>s parti<strong>do</strong>s comunistas; permitia arepresentação política <strong>do</strong> Distrito Federal e autorizava ovoto <strong>do</strong>s analfabetos. Foram ainda desmonta<strong>do</strong>s os serviçosde informações, o aparato repressivo, a intervençãonos sindicatos e outras medidas consideradas autoritárias.


565A Nova República(1985-)Já a luta contra a inflação se deu por meio de quatro“pacotes” – nomes pelos quais o povo brasileiro passoua chamar o conjunto de medidas macroeconômicas,que anunciadas em bloco pelo Ministro da Fazenda davez, carregavam a pesada carga de expectativa de queencerrariam o ciclo inflacionário. Inspira<strong>do</strong> pelo PlanoAustral argentino (1985) <strong>do</strong> governo Alfonsín, o MinistroDílson Funaro preparou o hetero<strong>do</strong>xo plano Cruza<strong>do</strong> 548 ,que previa congelamento de preços e salários paracombater a “inflação inercial”. Era um conceito econômicodesenvolvi<strong>do</strong> por Mário Henrique Simonsen, quedefendia haver uma grande <strong>do</strong>se de inflação “psicológica”na sociedade brasileira após quase uma década deconvívio inflacionário. Pouco antes da criação da novamoeda, o cruza<strong>do</strong>, os salários foram reajusta<strong>do</strong>s por umamédia superior a inflação o que gerou aumento real <strong>do</strong>poder de compra da população. O congelamento depreços favoreceu o consumo que catapultou a popularidadede Sarney e de Funaro. Milhares de <strong>do</strong>nas de casase transformaram em “fiscais <strong>do</strong> Sarney”, levan<strong>do</strong> para aeconomia a mobilização que <strong>do</strong>is anos antes tinha si<strong>do</strong>feita em prol das “Diretas Já”. É possível que o resulta<strong>do</strong>frustrante de ambas as mobilizações tenha contribuí<strong>do</strong>para a desmobilização política da sociedade brasileiraque se veria a partir de então.Outra consequência <strong>do</strong> Plano foi que, com a permanênciaindefinida <strong>do</strong> congelamento, ocorreu uma crise dedesabastecimento no país. Não era <strong>do</strong> interesse de muitosempresários vender seus estoques com lucros reduzi<strong>do</strong>sou zera<strong>do</strong>s. Tabelinhas sucessivas de reajustes permiti<strong>do</strong>s,enuncia<strong>do</strong>s pelo governo, transformaram por alguns meseso <strong>Brasil</strong> num país com merca<strong>do</strong> controla<strong>do</strong>, tal qual umregime socialista. Prateleiras vazias, merca<strong>do</strong> negro comágio, filas noturnas e secretas, limite da quantidade de produtosque podiam ser compra<strong>do</strong>s por cada cliente foramas consequências de um regime de congelamento que,originalmente provisório, ia se perpetuan<strong>do</strong> ao longo <strong>do</strong>smeses para que rendesse dividen<strong>do</strong>s eleitorais.Deu certo. Nas eleições de 1986 – extinguiu-seo voto vincula<strong>do</strong>, mas manteve-se a sublegenda – queelegeram os governa<strong>do</strong>res e os deputa<strong>do</strong>s constituintes,a vitória <strong>do</strong> PMDB foi tão estron<strong>do</strong>sa 549 que chegou a secomparar o PMDB ao PRI que controlava há seis décadasa política no México. Pouco tempo depois das eleições,o congelamento foi suspenso e a inflação não apenasvoltara, como ultrapassara seus índices anteriores. O três548 Extinguia a correção monetária, criava o gatilho salarial se a inflação passassede 20%, trocava a moeda cortan<strong>do</strong> 3 zeros <strong>do</strong> antigo cruzeiro entre outrasmedidas.549 Foram eleitos pelo PMDB 22 <strong>do</strong>s 23 governa<strong>do</strong>res (exceto o de Sergipe), 40<strong>do</strong>s 49 Sena<strong>do</strong>res e mais da metade (260) <strong>do</strong>s 487 deputa<strong>do</strong>s constituinteseleitos. O PFL, alia<strong>do</strong> <strong>do</strong> PMDB, elegeu o governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Sergipe, setesena<strong>do</strong>res e a segunda maior bancada no Congresso com 118 deputa<strong>do</strong>s.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>566pacotes que se seguiram Plano Cruza<strong>do</strong> II (Ministro DílsonFunaro) 550 , Plano Bresser (Ministro Bresser Pereira) 551 , e PlanoVerão (Ministro Mailson da Nóbrega) 552 não conseguiramevitar a espiral inflacionária, que marcou to<strong>do</strong> o governo.A formação da Frente Liberal que elegera Tancre<strong>do</strong>em 1985 se tornara aliança governamental que dariaampla base ao governo Sarney na Constituinte, mas nãosem crises, barganhas e concessões por parte <strong>do</strong> governopara conseguir aprovar medidas <strong>do</strong> seu interesse, comoo mandato presidencial de cinco anos. O chama<strong>do</strong> “Centrão”,uma agremiação de centro-direita que na prática feza Constituição brasileira de 1988, seria o análogo brasileiroao Pacto de Moncloa espanhol. O projeto Geisel-Golbery,apesar das vicissitudes, havia si<strong>do</strong> bem-sucedi<strong>do</strong>. A transiçãotinha si<strong>do</strong> lenta, gradual e certamente fora segura paraos militares protegi<strong>do</strong>s pela anistia ampla, geral e irrestritaque proibia abertura de processo contra os tortura<strong>do</strong>res.Apesar <strong>do</strong>s pesares, a Constituinte, que ficou prontaem 1988. Chamada “Cidadã”, incorporou direitos significativospara os cidadãos brasileiros e proteção às minorias.Entre as inovações da Carta estão a ampliação da licença--maternidade para 120 dias, o racismo, considera<strong>do</strong> crimeinafiançável, a proteção ao meio ambiente, o habeas data,projeto de lei por iniciativa popular, o salário-mínimo nacionalmenteunifica<strong>do</strong> que seja suficiente para garantiralimentação, transporte, moradia e lazer, a proteção aoi<strong>do</strong>so, à criança e ao a<strong>do</strong>lescente, a garantia de direitode demarcação das terras indígenas e quilombolas, entreoutras previsões 553 . Cada grupo de pressão conseguia umartigo que defendesse seus interesses em uma Constituinte554 que teve o defeito de ser Congressual, ou seja, os congressistasmantinham seus mandatos parlamentares umavez concluída a Constituição, estan<strong>do</strong>, portanto, sujeito àspressões comuns necessárias à reeleição. A Assembleianão era exclusivamente Constituinte. Dentre as críticas à550 Novembro de 1986, liberação de preços e aluguéis, ajuste fiscal e corte degastos, aumento de impostos e de tarifas públicas.551 Junho de 1987, no contexto da decretação da moratória da dívida externa.Busca de superação <strong>do</strong> déficit público. Desativou o gatilho salarial,suspendeu subsídios, aumentou tributos, cortou gastos e adiou a execuçãode obras já planejadas.552 Janeiro de 1989, novo congelamento de preços e salários. Alteração <strong>do</strong>regime da caderneta de poupança, criação de uma nova moeda, o Cruza<strong>do</strong>Novo, atrela<strong>do</strong> ao dólar, e extinção da OTN, elemento de indexação daeconomia. As perdas relativas aos investimentos financeiros e cadernetas depoupanças, atingidas pelo plano Bresser e pelo plano Verão, são até os diasde hoje motivo de controvérsias judiciais.553 A constituição de 1988 também foi a primeira na história <strong>do</strong> constitucionalismobrasileiro a prever expressamente princípios que regem as relaçõesinternacionais (art. 4º), o que denota sensível abertura <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> brasileiroao exterior.554 Por exemplo, o Colégio Pedro II, cria<strong>do</strong> no Perío<strong>do</strong> Regencial, mas restrito aoRio de Janeiro, formou uma comissão de professores, funcionários, alunose pais para pressionar a Constituinte a garantir a manutenção <strong>do</strong> seu statusfederal. Como resulta<strong>do</strong>, o Colégio Pedro II é o único colégio <strong>do</strong> país referi<strong>do</strong>na Constituição <strong>Brasil</strong>eira, junto às universidades federais e Escolas técnicasfederais.


567A Nova República(1985-)Constituição está justamente o seu gigantismo. Como elabuscou incluir diversos aspectos da vida social brasileiraem seu escopo, acabaram se fazen<strong>do</strong> necessárias uma infinidadede leis complementares que regulamentassem asprevisões constitucionais, muitas das quais ainda não concluídas,transforman<strong>do</strong> vários dispositivos constitucionaisem wishfull thinking ou ficção utópica. O número de emendasconstitucionais à Carta de 1988 já ultrapassou setenta,em 25 anos. A comparação com a constituição americanade apenas sete artigos e 27 emendas em 226 anos não éjusta, mas dá um pouco a dimensão da diferença de umaordem constitucional que se pretendeu totalizante, para obem ou para o mal.Com a Constituição completa-se definitivamenteo processo de redemocratização, garantin<strong>do</strong> a implementaçãoda democracia, que o novo governo prometeraem sua posse. Para conseguir viabilizar a manutenção<strong>do</strong> presidencialismo e garantir cinco anos de mandato,Sarney fez várias reformas ministeriais. Usou e abusou daprerrogativa governamental de concessão de redes derádio e TV, muitas das quais já decididas pelo governoFigueire<strong>do</strong> e que o novo Presidente suspendera logo quetomou posse. O “Centrão” garantiu a vitória de Sarney emambas as questões de seu interesse. O mandato presidencialpassou a ser de cinco anos, sem direito a reeleiçãoe o regime presidencialista era manti<strong>do</strong>, ao menosaté que se procedesse o plebiscito sobre o regime e osistema de governo, que ocorreu em 1993, confirman<strong>do</strong>a República presidencialista. Com o apoio da maior parte<strong>do</strong>s governa<strong>do</strong>res <strong>do</strong> PMDB, a Constituição promulgadaem outubro de 1988 adiava para o ano seguintea eleição presidencial. Contrário a tais medidas o blocoindependente <strong>do</strong> PMDB, forma<strong>do</strong> por 93 congressistaslidera<strong>do</strong>s por Mário Covas, Fernan<strong>do</strong> Henrique Car<strong>do</strong>soe José Richa saíram <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> para formar o PSDB em1988.No plano da política externa, o governo Sarney foimarca<strong>do</strong> pela intensificação das relações bilaterais e multilateraiscom os países latino-americanos, conforme previstona própria Constituição <strong>Brasil</strong>eira. Visitou to<strong>do</strong>s os vizinhosda América <strong>do</strong> Sul, institucionalizou em 1986 o Grupo <strong>do</strong>Rio 555 , oriun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s grupos de Conta<strong>do</strong>ra e Apoio à Conta<strong>do</strong>rae críticos ao intervencionismo da Era Reagan, queresgatava o Big Stick. Além disso, reatou relações diplomáticascom Cuba, em um <strong>do</strong>s primeiros atos <strong>do</strong> governo.555 O Grupo <strong>do</strong> Rio se torna o único grupo de concertação política das Américasque não conta com a participação <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s. O governo norteamericanosequer o menciona em seus <strong>do</strong>cumentos oficiais, encaminhan<strong>do</strong>as questões políticas de seu interesse para a OEA. Não tem sede fixa, nemaparato institucional regular. Sua principal vantagem é justamente seuformato de baixa institucionalidade que permite a ele a flexibilidade. Trata-se<strong>do</strong> encontro anual <strong>do</strong>s Chefes de Esta<strong>do</strong> da região, no qual a presidênciacabe sempre ao país sede e o Secretaria<strong>do</strong> ao país que sediou no ano anteriore o que sediará no ano seguinte. Chegou a ser importante instrumento deinterlocução da região com a União Europeia na década de 1990.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>568Era o início <strong>do</strong> resgate das hipotecas <strong>do</strong> Regime Militar.O <strong>Brasil</strong> adere aos regimes de direitos humanos e meio ambiente,temas bloquea<strong>do</strong>s pelo “soberanismo” <strong>do</strong>s militares,nos quais o <strong>Brasil</strong> era alvo negativo da opinião públicainternacional, por conta <strong>do</strong> desmatamento e das torturasaos presos políticos durante o regime anterior.A redemocratização marcou também o início damaior permeabilidade <strong>do</strong> Itamaraty às demandas da sociedadecivil, organizada em temas como os direitos humanos,defendi<strong>do</strong>s pela CNBB e pelo grupo “Tortura NuncaMais”, liga<strong>do</strong> à Arquidiocese de São Paulo; além de o tema<strong>do</strong> meio ambiente, que daria origem ao Parti<strong>do</strong> Verde eatrairia a atenção <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> para a questão amazônicacom o assassinato em 1985 <strong>do</strong> sindicalista e ativista ambientalChico Mendes. Recorde-se também a adesão àssanções da ONU contra o apartheid sul-africano, fruto daspressões internas <strong>do</strong> movimento negro brasileiro que datamigualmente de 1985.No plano das relações bilaterais com os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s,fica patente a continuidade das tensões que marcaramo Pragmatismo e o Universalismo. O governo Sarneypode ser considera<strong>do</strong> o último <strong>do</strong> ciclo desenvolvimentista,paradigma que entrará em colapso no governo de seusucessor a partir de 1990. A abertura unilateral <strong>do</strong> governonorte-americano neoliberal sob Reagan havia favoreci<strong>do</strong>imensamente as exportações brasileira, alavancadas aindamais pela desvalorização da moeda nacional, corroída poruma década de hiperinflação. A pressão estadunidense sobrea América Latina e, em especial, sobre o <strong>Brasil</strong> para queabrisse sua economia torna-se intensa. O foco <strong>do</strong>s governosReagan e Bush se voltará justamente os setores sensíveisque cresciam aceleradamente nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, osfármacos e o setor de informática, ambos protegi<strong>do</strong>s poruma legislação defensiva no <strong>Brasil</strong> 556 . O governo Reaganforçou o governo a rever a questão das patentes <strong>do</strong>s softwares,ameaçan<strong>do</strong> retaliar com medidas protecionistas emrelação ao <strong>Brasil</strong>. Mesmo facilitan<strong>do</strong> a entrada de softwaresem 1986, o governo americano insatisfeito encerrou o sistemapreferencial de tarifas em 1987, prejudican<strong>do</strong> váriosprodutos nacionais.556 No caso <strong>do</strong> PNI (Programa Nacional de Informática) de 1984, o <strong>Brasil</strong>estabelecia 8 anos de reserva de merca<strong>do</strong> para as empresas nacionais,protegidas contra a concorrência estrangeira. Foi justamente um <strong>do</strong>s setoresque mais cresceu em um perío<strong>do</strong> de estagnação da economia durante adécada perdida, geran<strong>do</strong> milhares de empregos. To<strong>do</strong> o setor bancáriofoi informatiza<strong>do</strong> na década que se seguiu se tornan<strong>do</strong> um <strong>do</strong>s maismodernos e ágeis setores da economia brasileira, além de exporta<strong>do</strong>r detecnologia para o resto <strong>do</strong> planeta. Os softwares bancários que rodassem nacaótica economia brasileira <strong>do</strong>s anos 80, com sua inflação galopante, seusindexa<strong>do</strong>res de vida incerta e seus “gatilhos”, certamente seriam capazesde funcionar em qualquer outra economia <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Do ponto de vistanegativo, ficou o atraso da indústria de microeletrônicos e a falta de conexãocom as universidades e empresas produtoras de softwares em geral. O ritmode inovação da indústria de informática se revelou muito mais dinâmico <strong>do</strong>que se supunha e dependente da troca de informações livres, o que umsistema de reserva de merca<strong>do</strong> impedia.


569A Nova República(1985-)Era ainda mais difícil resistir à pressão norte-americanasob a espada da dívida externa pendurada por umfio sobre a cabeça <strong>do</strong> governo brasileiro. Incapaz de honraros juros impagáveis e os compromissos assumi<strong>do</strong>s, o<strong>Brasil</strong> acreditou que poderia negociar em bloco o problemada dívida externa se articulan<strong>do</strong> multilateralmentecom os demais países da América Latina 557 . Chegou aemitir um comunica<strong>do</strong> conjunto ressaltan<strong>do</strong> os compromissosinternacionais, mas “não ao custo <strong>do</strong> sacrifício <strong>do</strong>desenvolvimento e <strong>do</strong> nível de vida de suas populações”.O tema da dívida foi denuncia<strong>do</strong> em três <strong>do</strong>s pronunciamentos<strong>do</strong> presidente Sarney no discurso de abertura daAssembleia Geral da ONU. O <strong>Brasil</strong> alegava que havia chega<strong>do</strong>ao limite <strong>do</strong> suportável. Depois de diversas tentativasde renegociação, decretou a moratória <strong>do</strong>s juros emfevereiro de 1987 na expectativa de que criaria um efeito<strong>do</strong>minó na região. Mas, apesar das propostas <strong>do</strong> G-3 558 ,o <strong>Brasil</strong> não foi capaz de irradiar sua influência para os557 O tema era o mais relevante na agenda da região. O Presidente peruano AlanGarcía havia em 1986 restringi<strong>do</strong> a 10% das exportações o total que o Perudespenderia com o pagamento da dívida externa. O governo americanoretaliou, cortan<strong>do</strong> a ajuda econômica ao país.558 No ano de 1987, <strong>Brasil</strong>, Argentina e México fizeram uma proposta denegociação que não foi aceita, pois tentava desvincular o FMI e negociardiretamente com os bancos cre<strong>do</strong>res, propon<strong>do</strong> corte de juros e substituiçãode parte da dívida por títulos de longo prazo. Mais tarde se juntaram ao G-3,Panamá, Colômbia, Venezuela e Uruguai, se tornan<strong>do</strong> grupo <strong>do</strong>s oito com ointuito de multilateralizar o debate com o governo americano e o FMI.vizinhos igualmente endivida<strong>do</strong>s, fican<strong>do</strong> na difícil situaçãode ter que cancelar a moratória no mesmo ano e retomaro pagamento <strong>do</strong>s juros.O ponto alto da política externa <strong>do</strong> governo Sarney,entretanto, foi o adensamento das relações bilateraiscom a Argentina, outro traço de continuidade política emrelação ao governo Figueire<strong>do</strong>. Em 30 de julho de 1986,Sarney assinou com Raúl Alfonsín a Ata para a Integraçãoargentino-brasileira. Era a primeira vez que se vislumbravao propósito de uma integração e cooperação econômica.Alfonsín retribuiu a visita em dezembro <strong>do</strong> mesmo ano.Além <strong>do</strong>s anseios econômicos de formação de um futuromerca<strong>do</strong> comum, as propostas e encontros evidenciavamuma questão política de fun<strong>do</strong> muito mais amplo, que eraa superação definitiva da rivalidade histórica por meio dainstitucionalização da amizade bilateral. A aproximação iniciadano governo Sarney, resultaria, em 1991, na criação<strong>do</strong> Merca<strong>do</strong> Comum <strong>do</strong> Sul (Mercosul), que reuniria aindaUruguai e Paraguai.Com a criação <strong>do</strong> Mercosul, percebe-se a crescentedessecuritização da fronteira meridional brasileira, e atransferência das preocupações geopolíticas e de segurançapara a Amazônia. É evidência disso a presença dastropas e quartéis brasileiros, historicamente concentra<strong>do</strong>sno Prata desde antes da independência, que hoje deixa deser realidade.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>570Fernan<strong>do</strong> Collor de Melo (1990-1992)As primeiras eleições diretas para Presidente desde1960 contaram com a candidatura de 22 chapas. Praticamenteto<strong>do</strong>s os parti<strong>do</strong>s existentes lançaram-se paraconcorrer a Presidência da República. Foram apenas trêscoligações. A formada pelos microparti<strong>do</strong>s (PRN, PSC, PSTe PTR) elegeu Fernan<strong>do</strong> Collor de Melo; a coligação de esquerda(PT, PSB e PC <strong>do</strong> B) levou Lula ao segun<strong>do</strong> turno;e a coligação ruralista (PSD e PDN) conquistou 0,68% <strong>do</strong>svotos e deixou Ronal<strong>do</strong> Caia<strong>do</strong> em décimo lugar.Políticos tradicionais como Ulysses Guimarães,Mário Covas, Paulo Maluf e Aureliano Chaves, não foramcapazes de chegar ao segun<strong>do</strong> turno. Quem mais seaproximou disso foi Leonel Brizola que teve 500 mil votosa menos que Lula e dividiu os votos da esquerda. Juntos,tinham pouco mais que os 22 milhões da<strong>do</strong>s a Fernan<strong>do</strong>Collor. Era um sinal <strong>do</strong> esgotamento da política tradicional,que favorecia os candidatos que se apresentavamcomo alternativas novas. Collor, que vinha da tradicionaloligarquia alagoana (seu pai fora governa<strong>do</strong>r de Alagoasnos anos 1950, e sua mãe era filha <strong>do</strong> gaúcho que forao primeiro Ministro <strong>do</strong> Trabalho, Lin<strong>do</strong>lfo Collor) com odiscurso de caça<strong>do</strong>r de marajás, retomava a tecla da moralizaçãopública que tinha si<strong>do</strong> o mote para eleger JânioQuadros em 1960, e a base <strong>do</strong> discurso udenista. Funcionou.Aglutinou o apoio generaliza<strong>do</strong> <strong>do</strong> empresaria<strong>do</strong>e <strong>do</strong>s meios de comunicação, quan<strong>do</strong> sua candidaturadecolou e as <strong>do</strong>s demais políticos patinava. Os candidatos<strong>do</strong> governo Ulysses Guimarães (PMDB) e AurelianoChaves (PFL) ficaram respectivamente em sétimo e nonolugar, e evitavam na campanha qualquer vinculação aogoverno Sarney.O segun<strong>do</strong> turno viveu uma radical polarizaçãoentre a esquerda e a direita justamente no momento emque caía o muro de Berlim. Collor, <strong>do</strong>no de um império decomunicações em Alagoas, bem forma<strong>do</strong>, bem falante,contrastava com o candidato <strong>do</strong> PT, a quem Brizola apeli<strong>do</strong>ude “sapo barbu<strong>do</strong>”, que tinha toda a má vontade damídia hegemônica e que, em troca, lhe devolvia desprezoe me<strong>do</strong>, perceptível em suas entrevistas e debates. Episódioscomo a vinculação midiática ao PT <strong>do</strong>s sequestra<strong>do</strong>resde Abílio Diniz (ficou seis dias em cativeiro em 1989,planeja<strong>do</strong> por um grupo guerrilheiro chileno); a denúnciade Collor de que Lula possuía uma filha fora <strong>do</strong> casamento;e as edições favoráveis a Collor feitas nas inserções <strong>do</strong>sdebates presidenciais que foram ao ar no Jornal Nacionalsão contadas por Mário Sérgio Conti em Notícias <strong>do</strong> Planalto,e contribuíram para definir completamente a vitória deCollor no segun<strong>do</strong> turno com mais de 4 milhões de votosde diferença.Numa dessas contradições comuns à história <strong>do</strong><strong>Brasil</strong>, no dia seguinte à sua posse, o país que elegeu o candidatoda direita, assistiria ao maior ataque à propriedade


571A Nova República(1985-)privada da história republicana 559 . Era o Plano Collor. Previao bloqueio inusita<strong>do</strong> de todas as aplicações financeiras,inclusive a caderneta de poupança, salvo o limite de 50mil cruza<strong>do</strong>s novos por dezoito meses, ao fim <strong>do</strong>s quaisseriam devolvi<strong>do</strong>s corrigi<strong>do</strong>s. Previa ainda congelamentode preços e salários e revisão da indexação. Paralelamenteseria implementa<strong>do</strong> um grande esforço para viabilizaro enxugamento da máquina estatal. Fundações, empresaspúblicas e autarquias foram extintas – a Embrafilme, porexemplo – e muitos funcionários públicos foram demiti<strong>do</strong>sao arrepio da legislação vigente. Era o Esta<strong>do</strong> mínimoneoliberal.Encerran<strong>do</strong> sessenta anos <strong>do</strong> ciclo desenvolvimentista,implementou-se a abertura unilateral e não negociadada economia brasileira para produtos estrangeiros.O Presidente declarava que nossos carros eram “carroças” eque a indústria nacional precisava de um choque de competitividade.Tratava-se <strong>do</strong> Presidente ideal para o consensode Washington que pregava a abertura das economiaslatino-americanas.559 Não era nada se comparada à independência feita pelo herdeiro <strong>do</strong> trono dametrópole, a República feita por um amigo <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r, a industrializaçãofeita por um caudilho latifundiário, ou a redemocratização feita pelos generaisda ditadura e pelo ex-presidente da ARENA. Era apenas o <strong>Brasil</strong> assistin<strong>do</strong> aoPlano Collor pela TV, sen<strong>do</strong> anuncia<strong>do</strong> pela ministra Zélia Car<strong>do</strong>so de Melo,futura amante <strong>do</strong> Ministro da Justiça Bernar<strong>do</strong> Cabral, futura personagem <strong>do</strong>grande escritor Fernan<strong>do</strong> Sabino e futura esposa <strong>do</strong> humorista Chico Anysio.Iniciavam-se igualmente as privatizações das empresasestatais. Instituiu imediatamente o PND, ProgramaNacional de Desestatização (1990), e deu início às privatizaçõesque se iniciaram no setor siderúrgico. A primeira foia lucrativa Usiminas, privatizada em 1991.O momento mais importante da política externade Fernan<strong>do</strong> Collor de Melo foi a Conferência das NaçõesUnidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNU-MAD-92), conhecida como Eco-92, que recebeu centenasde Chefes de Esta<strong>do</strong> e de Governo no Rio de Janeiro econtribuiu para a reabilitação <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> como país responsávelno campo <strong>do</strong> meio ambiente. Antes vidraça, hoje o<strong>Brasil</strong> é uma das vozes mais firmes no plano internacionalem defesa de metas mais rigorosas de proteção ao MeioAmbiente e está caminhan<strong>do</strong> para tornar crescentementesua matriz energética mais limpa e menos dependente<strong>do</strong> petróleo.O Plano Collor não foi capaz de acabar com a inflaçãoe aumentou a recessão brasileira. A economia brasileiradiminuía e a inflação crescia – chegou a 1.200% aoano – enquanto o Presidente midiático que pilotava caçase carros de Fórmula 1 e fazia corridas matinais peloPalácio começou a ser bombardea<strong>do</strong> por escândalos decorrupção que arranharam sua imagem de campanhade “caça<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s marajás”. Denuncia<strong>do</strong> por seu próprioirmão, descobriu-se o soturno tráfico de influência feitopelo tesoureiro de sua campanha, Paulo Cesar Farias em


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>572diversos escalões <strong>do</strong> governo com a conivência <strong>do</strong> Presidente.Esquema de dólares no Uruguai, obras na Casada Dinda, desvio de verbas na LBA (Legião <strong>Brasil</strong>eira deAssistência), presidida pela primeira-dama Rosane Collor,“laranjas” com contas no exterior, entre as quais o motoristaEriberto França que veio a público denunciar o caso,são alguns <strong>do</strong>s episódios investiga<strong>do</strong>s pela CPI que motivouem 1992 o Impeachment <strong>do</strong> primeiro presidentebrasileiro. No dia em que seria definitivamente afasta<strong>do</strong>,Collor renunciou pensan<strong>do</strong> com isso evitar o julgamento<strong>do</strong> Plenário, mas o Sena<strong>do</strong> manteve a sessão e cassou--lhe os direitos políticos por oito anos. Mais tarde o STFabsolveu o ex-Presidente <strong>do</strong> crime de responsabilidadee, na década seguinte, depois de perder as eleições paraPrefeito de São Paulo e Governa<strong>do</strong>r de Alagoas foi eleitoSena<strong>do</strong>r, (PTB/AL) cargo que exerce atualmente.Pode-se novamente tecer uma comparação entreo governo Jânio Quadros e o governo Fernan<strong>do</strong> Collorde Melo três décadas depois. Ambos encerra<strong>do</strong>s prematuramente,ambos eleitos por parti<strong>do</strong>s pequenos,sem base parlamentar. Jânio demonstrava seu desprezopelos políticos em geral e pelo Parlamento e perdeu oapoio da UDN, que fora o principal sustentáculo de suacandidatura, em parte, por conta da Política Externa Independente.Collor tentou buscar o apoio <strong>do</strong> PSDB, semsucesso – Franco Montoro e Mário Covas recusaram – edemonstrava desprezo pelo funcionalismo público e pelamáquina <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> que queria enxugar. Seus governosabrevia<strong>do</strong>s são uma lembrança das dificuldades invencíveisque é governar no presidencialismo de coalizão sembase parlamentar sólida. As instituições democráticaseram ainda frágeis, mas o Esta<strong>do</strong> e sua capacidade de resistênciainercial sempre foram, desde a Independência,muito fortes.O governo Itamar Franco (1992-1995)Assim que assumiu o governo, o Vice-Presidente ItamarFranco conseguiu construir um governo de consensocom o apoio de boa parte <strong>do</strong>s maiores parti<strong>do</strong>s <strong>do</strong> país,excluí<strong>do</strong> o Parti<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res. Com isso, a governabilidadeestava assegurada. A inflação seguia altíssima e foio principal desafio de sua gestão.Deu continuidade ao programa de privatização inicia<strong>do</strong>com Collor, venden<strong>do</strong> empresas com caráter simbólicona construção <strong>do</strong> desenvolvimentismo brasileirocomo a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e a Embraer.Foi ainda durante sua gestão que estourou um <strong>do</strong>smaiores escândalos de corrupção no Congresso Nacional,investigada pela CPI <strong>do</strong> Orçamento, que envolveu deputa<strong>do</strong>s,autoridades e Ministros no desvio de verbas públicas.Apesar disso, Itamar ao final de seu mandato tinha umadas mais altas popularidades já gozadas por um presidenteaté então.


573A Nova República(1985-)A razão disso foi o sucesso <strong>do</strong> Plano Real, que emjulho de 1994, com um esquema relativamente simples deindexação da moeda (a URV) conseguiu, sem grandes pacoteseconômicos traumáticos, aumentar as reservas emdólar <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> e reduzir drasticamente a inflação, que jáassolava a economia brasileira há mais de uma década.O Plano Real viabilizou, com o apoio <strong>do</strong> presidenteItamar Franco, a candidatura <strong>do</strong> Ministro da FazendaFernan<strong>do</strong> Henrique Car<strong>do</strong>so (PSDB) e sua eleição em primeiroturno.A década tucana (1995-2003)O governo Fernan<strong>do</strong> Henrique Car<strong>do</strong>so parece tersi<strong>do</strong> um governo JK às avessas. Pouco preocupa<strong>do</strong> com ocrescimento econômico, o sociólogo da Teoria da Dependência,precisava a qualquer custo manter a estabilidadeda moeda, grande conquista <strong>do</strong> Plano Real, que viabilizarasua candidatura presidencial. Serão oito anos nos quaiso equilíbrio orçamentário se elevará acima de qualqueroutra consideração macroeconômica. Marca<strong>do</strong> por umaconjuntura externa restritiva – crise mexicana em 2005,crise asiática em 2007, crise russa em 2008 e, finalmente,a crise cambial brasileira de 1999 – o governo deu prosseguimentoàs privatizações, em setores como o de telecomunicações,e vários outros. A Vale <strong>do</strong> Rio Doce foiprivatizada em 1997. As privatizações eram um meio deentrada de capitais estrangeiros que garantiam o equilíbriodas contas <strong>do</strong> governo e evitavam a desvalorização<strong>do</strong> Real.A entrada <strong>do</strong> hot-money, capital especulativo decurto prazo era outra medida para favorecer o equilíbriodas contas e a principal razão pela qual os juros básicos daeconomia foram, durante a maior parte de seu mandato,os maiores <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, sob a justificativa de também defendera economia de turbulências externas frequentes egarantir a estabilidade da moeda. A taxa média de crescimentoem seus oito anos de governo foi de 2,3% e a dívidapública saltou de 30% <strong>do</strong> PIB para 52% em 2002, forçan<strong>do</strong>o governo a recorrer três vezes ao FMI, inclusive nas vésperasda reeleição em 1998, garantin<strong>do</strong> o adiamento poralgumas semanas da crise cambial, muito inconvenientedurante a campanha.Sustaram-se os investimentos nas Forças Armadas,na ciência e tecnologia, nas universidades públicas, e nossalários <strong>do</strong> funcionalismo, que ficaram anos sem reajustes.Por conta disso, eclodiu em 1995 uma imensa greve<strong>do</strong>s petroleiros e, no segun<strong>do</strong> mandato – entre julhode 2001 e fevereiro de 2002 – o apagão, crise energéticageneralizada, por falta de chuvas e de investimentos nosetor, que forçaram uma enorme campanha de racionamentode energia, para que se evitassem cortes compulsóriosde fornecimento. O prejuízo calcula<strong>do</strong> é da ordemde US$ 45 bilhões.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>574No plano político, Fernan<strong>do</strong> Henrique contou com oapoio <strong>do</strong> PFL em seus <strong>do</strong>is mandatos e viveu relação conturbadacom o PMDB, dividi<strong>do</strong> depois <strong>do</strong> fracasso da candidaturade Orestes Quércia que tinha consegui<strong>do</strong> apenaso 4 o lugar nas eleições de 1994, atrás inclusive <strong>do</strong> singularcandidato nacionalista histriônico Enéas Carneiro, <strong>do</strong> PRO-NA, que chegou em 3 o com mais de quatro milhões de votos.A situação era tão singular que por conta das divisõespartidárias o maior parti<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, grande agremiaçãopor trás da redemocratização, não lançou candidato e nãoapoiou oficialmente ninguém nas eleições de 1998, quereelegeram Fernan<strong>do</strong> Henrique Car<strong>do</strong>so.Apesar de não ter ti<strong>do</strong> o apoio <strong>do</strong> PMDB, FHC reservounos <strong>do</strong>is mandatos pastas importantes no seuMinistério, como a <strong>do</strong>s Transportes e a da Justiça parapeemedebistas governistas como Nelson Jobim, RenanCalheiros e Eliseu Padilha. Para governar, como a históriaensina, precisava de apoio parlamentar. Quan<strong>do</strong> o PMDBfinalmente decidiu apoiar o PSDB e indican<strong>do</strong> a vice (RitaCamata) para a chapa de José Serra, este perdeu as eleiçõespara o PT em 2002.Medidas relevantes foram a aprovação da reeleiçãopara os cargos executivos em 1997, com diminuição <strong>do</strong>mandato presidencial para quatro anos e concomitânciadas eleições gerais com a eleição presidencial e <strong>do</strong>s governa<strong>do</strong>res.A aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal,na qual o governo federal assumiu as dívidas de Esta<strong>do</strong>s emunicípios e se tornou cre<strong>do</strong>r, estabeleceu o controle dadívida pública brasileira. Algumas das suas prerrogativasexigem um mínimo de “responsabilidade” administrativa,como a que limita a um teto o gasto <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s e municípioscom funcionalismo. A Lei favoreceu ainda a transparêncianos gastos públicos.No plano da saúde, a quebra de patentes para casosde emergência em saúde pública, o sucesso <strong>do</strong> programade combate à AIDS, considera<strong>do</strong> o melhor <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> graçasà ativa participação da sociedade civil, a criação da ANSe da ANVISA, e a popularidade <strong>do</strong> programa de medicamentospopulares, os “genéricos”, deram enorme visibilidadeao Ministro José Serra, que foi lança<strong>do</strong> candidato àpresidência para sucessão de Fernan<strong>do</strong> Henrique Car<strong>do</strong>soem 2002. Esgotava-se, no entanto, o fôlego tucano, e amilitância social de esquerda, articulada pelo Parti<strong>do</strong> <strong>do</strong>sTrabalha<strong>do</strong>res lança novamente Lula, que vence Serra nosegun<strong>do</strong> turno das eleições. Depois de três tentativas, chegavaà presidência, pela primeira vez um operário.A década petista (2003-2013)Simbolicamente, a eleição de um operário galvanizoupreconceitos sociais de toda ordem, contra um Presidentesem diploma, considera<strong>do</strong> ignorante, que falavaerra<strong>do</strong>. Setores da classe média conserva<strong>do</strong>ra por to<strong>do</strong> paísevidenciavam indiretamente seu desprezo à democracia


575A Nova República(1985-)falan<strong>do</strong> mal das características pessoais <strong>do</strong> Presidenteeleito pela maioria <strong>do</strong> povo brasileiro, esquecen<strong>do</strong> queeste representava um amplo grupo de interesses, que aolongo de seu mandato foi enormemente amplia<strong>do</strong>, paraalém <strong>do</strong> que seria necessário para a governabilidade.Praticamente to<strong>do</strong>s os setores relevantes da sociedadeforam incorpora<strong>do</strong>s ao governo. Mesmo se brigassem internamente,o Presidente sem diploma parecia gostar dasdisputas que enfraqueciam os parti<strong>do</strong>s e fortaleciam suaimagem política de concilia<strong>do</strong>r e negocia<strong>do</strong>r modera<strong>do</strong>,talento esse inegável. Assim, os empresários tinham umrepresentante no Ministério da Indústria (Luiz Fernan<strong>do</strong>Furlan) e outro na Vice-Presidência, que falava mal <strong>do</strong>sjuros altos sempre que podia, mas os banqueiros controlavama Fazenda – Henrique Meireles, presidente <strong>do</strong> BancoCentral era filia<strong>do</strong> ao PSDB. Incorporavam-se no mesmogoverno desenvolvimentistas e monetaristas. O discursoera desenvolvimentista, a prática monetarista. O mesmose dava no campo <strong>do</strong> meio ambiente, com a ministraMarina Silva, herdeira <strong>do</strong> ativismo ambiental de ChicoMendes, que convivia com desenvolvimentistas, osquais faziam pressão para que se agilizassem as licençasambientais, e com ruralistas, fortes no Ministério da Agricultura.Reinold Stephanes, Ministro da Agricultura, tinhamilita<strong>do</strong> na ARENA e no PFL, e possuía enorme bancadano Congresso, parte integrante da base governista lenientescom o desmatamento.São apenas <strong>do</strong>is exemplos de talento político <strong>do</strong>Presidente-operário em incorporar a oposição ao governo.Esvazian<strong>do</strong> progressivamente a oposição fora <strong>do</strong> governo.O PFL viu mirrar seu espaço político nos últimos dez anos,e nem mudar de nome para DEM pareceu garantir-lhe sobrevidapolítica. O PSDB, após perder três eleições seguidaspara o PT na presidência, perdeu novamente a prefeiturade São Paulo (2012) para o antigo Ministro da Educação deLula, Fernan<strong>do</strong> Haddad.O Parti<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res também sangrou. Suasprincipais lideranças políticas – José Dirceu, Antônio Palocci,Ricar<strong>do</strong> Berzoini, José Genoíno – foram sen<strong>do</strong> abatidas porescândalos sucessivos <strong>do</strong>s quais o mais famoso foi o “Mensalão”.Ou foram aban<strong>do</strong>nan<strong>do</strong> o PT para não se vincularemmais a imagem de um parti<strong>do</strong> que ao chegar ao poder pareciasacrificar os elementos éticos que havia prega<strong>do</strong> naoposição, como foi o caso de Heloísa Helena, Chico Alencare Marina Silva, os <strong>do</strong>is primeiros para fundar o PSOL ea segunda para lançar sua candidatura à presidência peloPV, com a qual alcançou a terceira colocação nas eleiçõesde 2010. Réus criminais em processos políticos, parte dacúpula velha <strong>do</strong> PT foi sen<strong>do</strong> substituída por novas caraspelo Presidente cujos escândalos não abalaram a liderança.Estava imune. Dilma Rousseff, ex-pedetista, de perfil técnicosem o gosto pela negociação política, foi elevada <strong>do</strong>Ministério das Minas e Energia para a Casa Civil e da CasaCivil para a candidatura bem-sucedida à Presidência da


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>576República. Seu principal eleitor foi o Presidente Lula, noauge de sua popularidade, que transformou um rostodesconheci<strong>do</strong> <strong>do</strong> grande público em vantagem eleitoral.O cientista político André Singer chama de “lulismo”, o fenômenopolítico que enfraqueceu o petismo.São inegáveis os méritos <strong>do</strong> governo petista. Seufoco na questão social não teve paralelo em qualquer outromomento da história republicana. A desigualdade foisubstancialmente reduzida. Não parece coincidência queisso tenha se da<strong>do</strong> justo no governo <strong>do</strong> Presidente cujaorigem social era a mais modesta desde Nilo Peçanha, masainda mais humilde. Lula fazia questão de enfatizar essa origeme se aproveitou politicamente dela quan<strong>do</strong> aprendeua falar com a imprensa. Ignorava os repórteres e falava diretamentepara o povo, numa linguagem frequentementeridicularizada nos meios de comunicação, mas que atingiaem cheio os pobres, traduzin<strong>do</strong> realidades político-econômicascomplexas em metáforas futebolísticas ou expressõescoloridas e cômicas como “marolinha” para se referir acrise econômica global de 2009.O aparecimento da “nova classe média” era resulta<strong>do</strong>da saída de dezenas de milhões de brasileiros da condiçãode pobreza. Entre os miseráveis mais pauperiza<strong>do</strong>s, aampliação <strong>do</strong> Programa Bolsa Família garantiu uma rendamínima com a contrapartida de que os filhos dessas famíliasfrequentassem a escola, num <strong>do</strong>s maiores programasde assistência social <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, critica<strong>do</strong> inicialmente pelaoposição como “paternalismo populista”, discurso que seprovou fatídico nos momentos de teste eleitoral. Falar malde Lula para grande parcela <strong>do</strong> eleitora<strong>do</strong> pobre <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>tinha se torna<strong>do</strong> blasfêmia.O desemprego geral da economia caiu de 10% para5%, e as taxas de juros caíram de 25% para 8% em média.Os bancos, como já haviam começa<strong>do</strong> a fazer no governoFHC, continuaram com lucros extraordinários, promoven<strong>do</strong>uma enorme concentração no setor. As centenas debancos reduzidas à metade no governo Castelo Branco setornaram dezenas no início de Nova República para apenascinco grandes bancos competitivos, quer pela compraou por meio de fusões, absorveram to<strong>do</strong>s os outros 560 . Eisum traço de continuidade entre os <strong>do</strong>is governos, a consolidaçãoe a concentração <strong>do</strong> setor bancário financeiro, quelucrou como nunca antes na história deste país.A ampliação interna <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r permitiuque o <strong>Brasil</strong> conseguisse sustentar índices de crescimentomesmo durante a recessão global. A média decrescimento sob o governo Lula é mais de 4%, com teto560 Caixa Econômica Federal e Banco <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, públicos, e Bradesco, Santandere Itaú, priva<strong>do</strong>s, juntos representam mais de 85% das agências, e mais de65% <strong>do</strong>s ativos e patrimônio total <strong>do</strong>s bancos <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, que hoje não passamde 30. Sen<strong>do</strong> 1/3 deles bancos públicos. Mais de sessenta bancos deixaramde existir nas duas ultimas décadas. Ou foram adquiri<strong>do</strong>s, ou liquida<strong>do</strong>s ouse fundiram aos cinco maiores que controlam hoje o merca<strong>do</strong> bancáriobrasileiro.


577A Nova República(1985-)de 7,5% em 2010. Houve igualmente o aumento <strong>do</strong> tamanho<strong>do</strong> funcionalismo e o reajuste recorrente de seussalários, achata<strong>do</strong>s sob FHC. Os salários <strong>do</strong> funcionalismohoje concorrem tão favoravelmente com a iniciativa privadaque se criou uma enorme expectativa social paraos concursos públicos em todas as áreas. A vocação daclasse média brasileira sempre foi, desde Pombal, servirà Coroa. Com o crescimento desta classe média, o Esta<strong>do</strong>buscou dar conta deste anseio amplian<strong>do</strong> vagas esalários e soman<strong>do</strong> ao sonho da casa própria, o sonhode passar em um concurso. Se o leitor chegou até aquina leitura deste Manual, vai compreender esta afirmaçãobem pessoalmente. E também o autor que se sustentabastante dignamente preparan<strong>do</strong> candidatos para o maisprestigioso de to<strong>do</strong>s os concursos. Leitor e autor exemplificama tendência.No plano geral, da política externa o governo Lulainovou radicalmente, trazen<strong>do</strong> figuras ostracizadas no governoanterior como Samuel Pinheiro Guimarães para a SecretariaGeral <strong>do</strong> Itamaraty, e nomean<strong>do</strong> o Chanceler CelsoAmorim, que havia si<strong>do</strong> Chefe da delegação brasileira naONU e na OMC e exerci<strong>do</strong> por breve perío<strong>do</strong> o cargo dechefe <strong>do</strong> Ministério das Relações Exteriores no governoItamar Franco. Amorim e Pinheiro Guimarães entraram nacarreira diplomática durante a gestação da Política ExternaIndependente e imprimiram o tom desenvolvimentistae autonomista <strong>do</strong>s seus anos de formação, recuperan<strong>do</strong>grande parte das temáticas internacionais presentes nosgoverno Geisel.Não chega a ser exatamente um retorno ao <strong>Brasil</strong> Potência,mas não vai muito longe disso. A articulação bilaterale multilateral com os países emergentes como a China,a Índia, a África <strong>do</strong> Sul, e também a Rússia, em fóruns comoo IBAS e os BRICS, se fortaleceu a partir da reunião da OMCem Cancun em 2003, que objetivou a conclusão da RodadaDoha. O <strong>Brasil</strong>, a Índia e a China lideraram a ofensivaprincipalmente contra os subsídios agrícolas, entre outrasquestões, sustenta<strong>do</strong>s pelos países desenvolvi<strong>do</strong>s, sobretu<strong>do</strong>Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s e União Europeia, provocan<strong>do</strong> umimpasse na região e mostran<strong>do</strong> que a articulação emergentenão se submeteria aos ditames <strong>do</strong>s países até entãohegemônicos no comércio mundial. A institucionalizaçãodestas alianças no segun<strong>do</strong> mandato de Lula; a liderançada Missão de Paz no Haiti; a proposta de mediação coma Turquia da crise nuclear iraniana; e as sugestões sobre acrise no Oriente Médio são evidências de um discurso dealargamento <strong>do</strong>s interesses brasileiros, e um renascer <strong>do</strong>globalismo mais proativo, apenas sonha<strong>do</strong> nos temposda PEI e <strong>do</strong> Pragmatismo. A síntese deste movimento foia campanha, fracassada, para uma Reforma <strong>do</strong> Conselhode Segurança da ONU que incluísse o <strong>Brasil</strong> como membropermanente ainda que sem direito ao veto por um perío<strong>do</strong>.A insistência na questão, quan<strong>do</strong> as chances políticasreais de obtê-la já haviam cessa<strong>do</strong>, fez com que a política


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>578externa se tornasse alvo de muitas críticas na imprensae <strong>do</strong>s grupos de Embaixa<strong>do</strong>res aposenta<strong>do</strong>s que se especializouem criticar a ação externa de Lula, Amorim eGuimarães, taxan<strong>do</strong>-a de ideologizada e esquerdizante naimprensa e em seminários públicos.O alvo mais frequente – e vulnerável – destas críticasfoi a relação estabelecida com a América Latina. A açãointernacional brasileira frente a países governa<strong>do</strong>s por expoentesda esquerda – Bolívia de Evo Morales, Equa<strong>do</strong>r deRafael Correa, Venezuela de Hugo Chávez, Paraguai de Fernan<strong>do</strong>Lugo e a Argentina <strong>do</strong>s Kirchner – era taxada comosimpática, fraca, subserviente ou ideológica. Em controvérsiascomo a que envolveu ativos da Petrobras na Bolívia ena Venezuela, ou o reajuste da negociação em Itaipu, o governobrasileiro procurou desdramatizar a questão, entenden<strong>do</strong>que algumas das ações mais espetaculares comoa ocupação militar das instalações da Petrobras na Bolíviaeram exclusivamente para consumo interno. Em muitoscasos, cedeu aos pleitos e demandas <strong>do</strong>s vizinhos.A imprensa, em geral, falou de “humilhação” <strong>do</strong><strong>Brasil</strong> sem perceber o realismo da decisão de focar naprioridade de Esta<strong>do</strong>, que é a integração regional, constitucionalmenteestabelecida. Os custos da estabilidadesão sempre pagos majoritariamente pelo país mais forte.A teoria da estabilidade hegemônica tem como exemplobem-sucedi<strong>do</strong> às cinco décadas de paz no continente europeufinanciadas com o capital alemão. A autocontençãoalemã permitiu que o crescimento econômico “milagroso”<strong>do</strong> país fosse acompanhan<strong>do</strong> também <strong>do</strong> crescimentoe prosperidade por décadas das economias menoresda Comunidade Europeia, como Portugal e Grécia. Ao<strong>Brasil</strong>, restava o mesmo caminho, financiar parcialmenteo crescimento conjunto da região, a fim de evitar acusaçõesde imperialismo que motivassem uma aliança contra-hegemônica,desfecho frequente e quase automáticoem casos de assimetrias de poder tão evidentes comoa que vemos em nossa região. O <strong>Brasil</strong> optou pela pazao lidar com Esta<strong>do</strong>s, a despeito de seus líderes. Como ahistória ensinou pouco tempo depois, os “Hugo Chávez”passarão, mas a Venezuela será sempre nossa vizinha, e omelhor é tê-la como amiga.Devem-se destacar a prioridade dada à África queassistiu um proliferar de novas Embaixadas e representações,tal qual sob Afonso Arinos e sob Azere<strong>do</strong>. O presidenteLula visitou mais de 20 países no continente africano,em diversas ocasiões, reiteran<strong>do</strong> a cooperação econômica,comercial e tecnológica com o continente. Dezenas deempresas brasileiras se estabeleceram nestes países na esteira<strong>do</strong>s acor<strong>do</strong>s bilaterais, assina<strong>do</strong>s na esteira das visitaspresidenciais. Ações como as da Embrapa em auxílio daagricultura africana e <strong>do</strong> Ministério da Saúde para melhoria<strong>do</strong> combate a AIDS no continente mostram que esta cooperaçãonão se restringe ao campo econômico. Tal posturacontrasta com a relativa frieza com que o continente era


579A Nova República(1985-)trata<strong>do</strong> no governo Fernan<strong>do</strong> Henrique Car<strong>do</strong>so, que, nomáximo, aderiu a CPLP (Comunidade <strong>do</strong>s Países de LínguaPortuguesa).África, Oriente Médio e América Latina dão o tom daadministração que declarava ter supera<strong>do</strong> o “complexo devira-lata” rodrigueano. Diz o Chanceler:quan<strong>do</strong> fomos à Síria a primeira vez, fui pergunta<strong>do</strong>:“Mas vocês perguntaram a Washington se podia?”.É achar que o <strong>Brasil</strong> tem que ser pequeno, caudatário…Eles querem o <strong>Brasil</strong> pequenininho. No máximo cuidan<strong>do</strong>um pouco aqui na região, sempre com uma posturaagressiva em relação aos fracos e submissa em relaçãoaos fortes.Inspira<strong>do</strong> na frase de Chico Buarque tantas vezesrepetida, o <strong>Brasil</strong> parecia defender a postura contrária.Falava forte com os fortes e suavemente com os fracos,angarian<strong>do</strong> respeito internacional no ponto da revistaForeign Policy ter publica<strong>do</strong> que Amorim foi o melhorchanceler <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> em 2009. O <strong>Brasil</strong> era respeita<strong>do</strong>mundialmente e foi capa de dezenas de publicaçõescomo a inglesa The Economist e as políticas Le Point e Monoclefrancesas. Melhor síntese da diferença entre a políticaexterna <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is governos foi feita por Maria ReginaSoares de Lima.Talvez a principal diferença seja que no governo Fernan<strong>do</strong>Henrique Car<strong>do</strong>so a expectativa desse reconhecimentovinha da identificação <strong>do</strong> país como o “últimoentre os primeiros”, ao passo que no governo de LuizInácio Lula da Silva o <strong>Brasil</strong> seria o “primeiro entre os últimos561 .É ocioso, no entanto, no manual de <strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>este autor querer se arrogar discutir assuntos que são naturalmentequestões relevantes da prova de outra disciplinae, portanto, muito melhor trata<strong>do</strong>s no Manual de PolíticaInternacional. Esta intervenção indevida nas últimas páginas,naturalmente expressa exclusivamente a opinião <strong>do</strong>autor que quase lamenta a conclusão deste texto. Vão aquientão algumas últimas reflexões, ensaísticas, sobre a históriada Nova República, a título de despedida.O melancólico início da Nova República parece servirainda de lembrança aos brasileiros de que democraciaé um processo e não um da<strong>do</strong>, simplesmente. Pratica-seou perde-se. Conquista-se diariamente por meio da açãopolítica coletiva e, sobretu<strong>do</strong>, <strong>do</strong> fortalecimento das instituiçõese da cidadania. Não tão somente é uma realidadeestanque, pois segue sob constante ameaça. A crítica aoEsta<strong>do</strong> laico com a crescente vinculação entre política ereligião. A nostalgia <strong>do</strong>s anos <strong>do</strong> Regime Militar e de seucrescimento econômico, perceptível nos comentários <strong>do</strong>sleitores anônimos nos grandes jornais online. A homofobia.561 LIMA, Maria Regina Soares de. Aspiração Internacional e Política Externa.Revista <strong>Brasil</strong>eira de Comércio Exterior. N. 82. ano XIX, Janeiro/ Março de2005.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>580O machismo e a violência contra mulher. O desrespeito aosdireitos humanos no sistema prisional e nas delegacias depolítica. A persistente desigualdade social. O racismo escamotea<strong>do</strong>.Os parti<strong>do</strong>s fisiológicos. A corrupção. Estes sãoapenas alguns exemplos presentes ainda com muita forçacomo desafios a democracia brasileira que ensinam que o“preço da liberdade é a eterna vigilância”.A tendência <strong>do</strong> brasileiro a reclamar – em geral <strong>do</strong>sgovernos e <strong>do</strong>s políticos – ao invés de agir é um retrato deum processo histórico demofóbico e desmobilizante e dequase quatro séculos de escravidão. Exclusão <strong>do</strong> povo emregimes como o da Primeira República ou nas ditaduras de1937 e 1964 permitiram ao brasileiro poucas oportunidadesde treinar cidadania e praticar democracia. O Perío<strong>do</strong>atual é o mais longo e dura<strong>do</strong>uro teste para estas práticas,vigoran<strong>do</strong> por quase três décadas sem interrupção. Umadas razões para isso é o afastamento completo <strong>do</strong>s militaresda política.Desde o 15 de novembro, nunca a instituição dasForças Armadas esteve tão desprestigiada. Sua influênciano cenário político de hoje é quase nula. Jovens das camadasmédias ou ricas sequer cogitam seguir carreira de oficial,mesmo na marinha ou aeronáutica. A exceção é o IMEe o ITA, mas mesmo nestes institutos de excelência, é bemalta a taxa de evasão. Não é mais considerada uma carreirade prestígio. No governo Fernan<strong>do</strong> Henrique criou-seo Ministério da Defesa, unin<strong>do</strong> as três armas sob um sócoman<strong>do</strong>. Foram nomea<strong>do</strong>s ministros civis o que nãoocorria desde a controversa gestão de Pandiá Calógerasno ministério da Guerra (1919-22). O alto coman<strong>do</strong> militarfoi então capaz de desestabilizar vários destes civis, comofoi o caso de José Viegas no governo Fernan<strong>do</strong> Henrique.Mas não é mais. O atual ministro da Defesa é Celso Amorim,o Chanceler acusa<strong>do</strong> de esquerdista radical. A Comissãoda Verdade foi instituída apesar <strong>do</strong>s seus protestos, e apresidenta se declara favorável à abertura <strong>do</strong>s arquivos daditadura da qual foi vítima.Esqueci<strong>do</strong>s salarialmente. Aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>s <strong>do</strong> pontode vista <strong>do</strong>s equipamentos, armas e material bélico. Ocaso mais recente é a novela da compra <strong>do</strong>s caças que jáse arrasta há anos, na qual considerações políticas parecemse superpor às considerações técnicas e preferênciasda Aeronáutica. Ridiculariza<strong>do</strong>s em suas posições políticasanacrônicas. O clube militar que motivou a República, o tenentismoe debateu a questão <strong>do</strong> petróleo nos anos 50 éretrata<strong>do</strong> hoje como uma máquina <strong>do</strong> tempo, nostálgica eexcêntrica. O principal defensor <strong>do</strong>s interesses castrensesno Congresso é um zelota <strong>do</strong> porte de Jair Bolsonaro, quese orgulha de sua homofobia. Não poderiam estar em piorsituação desde o perío<strong>do</strong> regencial. Por terem se descola<strong>do</strong><strong>do</strong> resto da sociedade desde o final <strong>do</strong> Regime Militarforam relega<strong>do</strong>s à irrelevância, posição profundamenteperigosa em um país com pretensões internacionais depotência.


581A Nova República(1985-)Caberia às Forças Armadas brasileiras rejuvenescerseu coman<strong>do</strong> e sua mentalidade. Assumirem-se modernase democráticas, repudian<strong>do</strong> a herança da “Revolução Gloriosa”que insistem em celebrar como se o passa<strong>do</strong> fosse aúltima glória que lhes resta. Trata-se de miopia política, poisé um passa<strong>do</strong> que amarra seu futuro e mantém a dificuldadede diálogo com os demais setores da elite nacional coma qual precisam urgentemente resgatar seu prestígio parao bem da própria segurança <strong>do</strong> país.A universalização <strong>do</strong> Ensino Básico. A facilitação democratizante<strong>do</strong> acesso à universidade (Pro-Uni). A preocupação,ainda que ineficiente, com a Reforma Agrária.A redução <strong>do</strong>s índices de desigualdade na ultima década.A criação de instituições no seio <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> para a defesa<strong>do</strong>s direitos humanos. A crescente valorização <strong>do</strong>s temasambientais e a consequente melhoria da imagem internacional<strong>do</strong> país. A persistência institucional <strong>do</strong>s parti<strong>do</strong>spolíticos. A integração completa <strong>do</strong> território brasileiropor meio da vinculação aéreo-ro<strong>do</strong>viária e <strong>do</strong> avanço datecnologia de comunicações. A completa liberdade de imprensainclusive para criticar – frequentemente – o governono poder. Eis algumas das características novas destaetapa histórica brasileira que podem nos deixar otimistas.No plano internacional, a crescente visibilidade e projeçãobrasileira para além <strong>do</strong> futebol faz lembrar os anos deeuforia <strong>do</strong> governo JK. O futebol, aliás, vai mal. Muito mal.Mas não deixa de ser um bom indício, já que podemos nosorgulhar de outras coisas que não o futebol. E mesmo nofutebol há um reflexo <strong>do</strong>s avanços. Os grandes craques brasileirosnão vão mais inescapavelmente jogar fora <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>,e há clubes brasileiros importan<strong>do</strong> craques estrangeiros oudisputan<strong>do</strong>-os com os clubes europeus, árabes e chineses.Perden<strong>do</strong> ou ganhan<strong>do</strong> a segunda Copa a ser realizada no<strong>Brasil</strong>, parece que estamos ganhan<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>.


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