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Vinicius de Moraes Embaixador do Brasil - Funag

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EMBAIXADOR DO BRASIL


Copyright © Fundação Alexandre <strong>de</strong> GusmãoMinistério das Relações ExterioresEsplanada <strong>do</strong>s Ministérios, Bloco HAnexo II, Térreo70170-900 Brasília – DFTelefones: (61) 3411-6033/6034Fax: (61) 3411-9125Site: www.funag.gov.brE-mail: funag@itamaraty.gov.brEquipe Técnica:Maria Marta Cezar LopesCíntia Rejane Sousa Araújo GonçalvesErika Silva NascimentoFabio Fonseca RodriguesJúlia Lima Thomaz <strong>de</strong> Go<strong>do</strong>yJuliana Corrêa <strong>de</strong> FreitasProgramação Visual e Diagramação:Juliana Orem e Maria LoureiroImpresso no <strong>Brasil</strong> 2010E44 <strong>Embaixa<strong>do</strong>r</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. – Brasília : FUNAG, 2010.132p : il.Inclui atos legais e artigo <strong>de</strong> Bernan<strong>do</strong> <strong>de</strong> MelloFranco no Jornal O Globo <strong>de</strong> 28 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong>2009.ISBN: 978.85.7631.237-61. <strong>Moraes</strong>, <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> - Diplomata. I. Título.CDU: 92:341.7Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional conformeLei n° 10.994, <strong>de</strong> 14/12/2004.


Tramitação Legislativa, 99a. Mensagem Presi<strong>de</strong>ncial,99b. Parecer <strong>do</strong> Deputa<strong>do</strong> Emiliano José, Comissão <strong>de</strong> Educação eCultura da Câmara <strong>do</strong>s Deputa<strong>do</strong>s,101c. Requerimento <strong>de</strong> urgência, Câmara <strong>do</strong>s Deputa<strong>do</strong>s,108d. Votação no Plenário da Câmara <strong>do</strong>s Deputa<strong>do</strong>s, 09 <strong>de</strong> fevereiro<strong>de</strong> 2010,109e. Parecer <strong>do</strong> Sena<strong>do</strong>r Marco Maciel, Comissão <strong>de</strong> Constituição,Justiça e Cidadania <strong>do</strong> Sena<strong>do</strong> Fe<strong>de</strong>ral,112f. Votação no Plenário <strong>do</strong> Sena<strong>do</strong> Fe<strong>de</strong>ral, 2 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2010, 115Lei 12.265, <strong>de</strong> 21 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2010, 119Anexos, 107


ApresentaçãoCelso AmorimMinistro das Relações ExterioresChega <strong>de</strong> sauda<strong>de</strong> e <strong>de</strong> injustiça“Não te direi o nome, pátria minhaTeu nome é pátria amada, é patriazinhaNão rima com mãe gentilVives em mim como uma filha, que ésUma ilha <strong>de</strong> ternura: a Ilha<strong>Brasil</strong>, talvez.”<strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong>Um <strong>do</strong>s maiores poetas em língua portuguesa <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os tempos,<strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong> foi também diplomata <strong>de</strong> carreira. Ten<strong>do</strong> ingressa<strong>do</strong> noItamaraty por concurso, em 1942, serviu em Los Angeles, Paris e Montevidéu.Cultivou amiza<strong>de</strong>s e admiração nos círculos artísticos e diplomáticos quefrequentou. Foi aposenta<strong>do</strong> compulsoriamente em 1969.Em 21 <strong>de</strong> junho último, o Presi<strong>de</strong>nte Lula sancionou a lei que promove<strong>Vinicius</strong>, que não está entre nós já há trinta anos, ao cargo <strong>de</strong> <strong>Embaixa<strong>do</strong>r</strong>. Apromoção póstuma <strong>de</strong> <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong> a Ministro <strong>de</strong> Primeira Classe dacarreira diplomática teve duplo propósito.O primeiro foi reverter a injustiça perpetrada pelo regime militar, queaposentou prematuramente o então Primeiro Secretário como parte <strong>do</strong>7


CELSO AMORIMmovimento <strong>de</strong> “caça às bruxas” no serviço público. O Secretário <strong>Vinicius</strong> –poeta e compositor <strong>de</strong> renome – não se encaixava exatamente no mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong>funcionário público imagina<strong>do</strong> pelos <strong>do</strong>nos <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r em tempos <strong>de</strong> AI-5.Embora fosse um diplomata competente, que cumpria suas funções noItamaraty com esmero, foi vítima da intolerância característica <strong>do</strong> regime.Por outro la<strong>do</strong>, a homenagem póstuma a <strong>Vinicius</strong> – um <strong>do</strong>s pais da bossanova e autor <strong>de</strong> clássicos que ecoam no cancioneiro popular até hoje –representa um reconhecimento a sua enorme contribuição à divulgação daimagem <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> no exterior. Garota <strong>de</strong> Ipanema, fruto <strong>de</strong> sua prolífica parceriacom Tom Jobim, é das canções mais tocadas em to<strong>do</strong>s os tempos. <strong>Vinicius</strong>cantou o nome e as belezas <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> mun<strong>do</strong> afora. Traduziu na música e napoesia os i<strong>de</strong>ais da diversida<strong>de</strong> racial. Foi, sem dúvida, um gran<strong>de</strong> <strong>Embaixa<strong>do</strong>r</strong>da cultura popular brasileira.Esta publicação, que conta com <strong>de</strong>poimentos <strong>de</strong> diplomatas sobre avida e obra <strong>de</strong> <strong>Vinicius</strong>, insere-se no ciclo <strong>de</strong> homenagens que a Casa <strong>de</strong> RioBranco faz, algo tardiamente, a um <strong>de</strong> seus membros mais ilustres e talentosos.8


Depoimento<strong>Embaixa<strong>do</strong>r</strong> Affonso Arinos <strong>de</strong> Mello FrancoAo entrar no Itamaraty, fui <strong>de</strong>signa<strong>do</strong> para servir na Comissão <strong>de</strong>Organismos Internacionais, subordinada à Divisão <strong>de</strong> AtosInternacionais. Ali chega<strong>do</strong>, apontaram-me uma mesa vazia, que seria aminha. Na mesa pegada, aboletava-se o diplomata <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> Morais.Des<strong>de</strong> então, ficamos praticamente inseparáveis por to<strong>do</strong> o tempo emque servimos juntos na Secretaria <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong> – durante o dia noMinistério, à noite em romaria incessante pelos bares <strong>de</strong> Copacabana.O horário manso <strong>do</strong> trabalho permitia a vida boêmia colateral.Fin<strong>do</strong> o expediente, nos dirigíamos à se<strong>de</strong> <strong>do</strong> jornal Última Hora,distante apenas uns quarteirões, on<strong>de</strong> <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong>via entregar sua crônicadiária, com que suplementava os mo<strong>de</strong>stos vencimentos funcionais. Eu<strong>de</strong>sconhecia, a princípio, que a colaboração <strong>do</strong> poeta com a imprensaia além daquela coluna. Uma tar<strong>de</strong>, estávamos em nossa sala noItamaraty, quan<strong>do</strong> entrou o contínuo trazen<strong>do</strong> a correspondência parao cronista, que aproveitava as folgas <strong>do</strong> serviço para respondê-la. Sóque, naquele dia, a gran<strong>de</strong> quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cartas me surpreen<strong>de</strong>u.Intriga<strong>do</strong>, indaguei-lhe se eram todas <strong>de</strong> leitores da sua crônica. Meiosem jeito, ele perguntou se eu lia mesmo a Última Hora, ao que confirmeilê-la diariamente. Seu embaraço aumentava: “ – Flan, semanário daÚltima Hora, tem um consultório sentimental.” “– Eu sei, assina<strong>do</strong> porHelenice.”9


AFFONSO ARINOS DE MELLO FRANCOHelle Nice fora uma corre<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> automóveis francesa, conhecida noRio <strong>de</strong> Janeiro ao disputar o Circuito da Gávea em seus tempos heróicos,antes da segunda guerra mundial. Fazia sensação, ao posar, fuman<strong>do</strong>, napraia <strong>de</strong> Copacabana, com maiô <strong>de</strong> duas peças. O próprio dita<strong>do</strong>r GetúlioVargas, a<strong>de</strong>pto <strong>do</strong> gênero ve<strong>de</strong>tte, <strong>de</strong>ixou-se fotografar a cumprimentá-la,embeveci<strong>do</strong>.Veio, em seguida, a confissão encabulada <strong>de</strong> <strong>Vinicius</strong>: “ – Helenice soueu. Esse monte <strong>de</strong> cartas se <strong>de</strong>ve ao fato <strong>de</strong>la ter anuncia<strong>do</strong> uma receitainfalível contra a queda <strong>de</strong> cabelos.” Conhecen<strong>do</strong> o poeta, não duvi<strong>do</strong> <strong>de</strong>que seus conselhos possam ter <strong>de</strong>sfeito vários lares <strong>de</strong> leitoras incautas. Eainda ganhei uma receita <strong>de</strong> próprio punho, <strong>de</strong>dicada por Helenice, quecomeçava mais ou menos assim: “Comprar uma escova <strong>de</strong> pelo-<strong>de</strong>-arame.Esfregar com força o couro cabelu<strong>do</strong>. Vai cair cabelo á beça. Não dar bola.”Na redação da Última Hora, formavam uma rodinha, conversan<strong>do</strong> ecomentan<strong>do</strong> os fatos <strong>do</strong> dia, os queri<strong>do</strong>s Oto Lara Resen<strong>de</strong> e Hélio Pellegrino,além <strong>de</strong> outros amigos. Oto cobrava <strong>de</strong> <strong>Vinicius</strong>, o gran<strong>de</strong> lírico <strong>de</strong> Poemas,sonetos e baladas, a continuida<strong>de</strong> da obra literária, mas o poeta se <strong>de</strong>fendia,lembran<strong>do</strong> que suas letras para a música popular estavam no coração e naboca <strong>do</strong> povo, ao passo que a leitura <strong>do</strong>s versos ficaria restrita a uma elite.Eu achava que os <strong>do</strong>is tinham razão, mas a verda<strong>de</strong> é que, no caso, a música,sempre bonita, matou a poesia, cujas últimas tentativas foram bem medíocres.Beatriz <strong>de</strong> Morais, a Tati, fazia crônica <strong>de</strong> cinema. Recém-separada <strong>de</strong><strong>Vinicius</strong>, era constrange<strong>do</strong>r para ela juntar-se ao grupo. No entanto,caminhan<strong>do</strong> <strong>de</strong> um la<strong>do</strong> para o outro, passava por nós com freqüência, e daínasceu o primeiro samba-canção <strong>de</strong> <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> Morais, “Quan<strong>do</strong> tu passaspor mim”.<strong>Vinicius</strong> separou-se <strong>de</strong> Tati, pela primeira vez, por causa <strong>de</strong> ReginaPe<strong>de</strong>rneiras, arquivista <strong>do</strong> Itamaraty, inspira<strong>do</strong>ra da sua “Balada dasarquivistas”. Arranjou, lá pela região serrana, um padre que o casou com anova amada, na ausência conspícua da mãe e das irmãs. Passa<strong>do</strong>s uns dias,reapareceu em casa e cobrou: “– Vocês não apareceram no meu casamento.”Elas ficaram esperan<strong>do</strong> a reprimenda, mas a reação veio sob forma carinhosa:“– Pois per<strong>de</strong>ram. Estava muito bonitinho.”O resto da história me foi conta<strong>do</strong> por Pedro Nava, companheiro fraterno<strong>de</strong> <strong>Vinicius</strong>. Mais tar<strong>de</strong>, aquele <strong>do</strong>rmia, por volta das quatro da manhã, quan<strong>do</strong>Regina telefonou acordan<strong>do</strong>-o, alarmada: “– Nava, <strong>Vinicius</strong> está <strong>de</strong>smaia<strong>do</strong>.Não sei o que fazer. Me aju<strong>de</strong>!” Nava vestiu-se, arrumou a maleta <strong>de</strong>10


DEPOIMENTOinstrumentos e remédios, e rumou para a casa <strong>do</strong> amigo, bem distante. Deulheuma injeção, reanimou-o e foi-se embora. Uma semana <strong>de</strong>pois, <strong>de</strong> novo:“– Nava, <strong>Vinicius</strong> voltou a <strong>de</strong>smaiar.” Lá estava o poeta, <strong>de</strong>sacorda<strong>do</strong>. Destavez, o médico pediu: “– Regina, traz-me um café forte, por favor.” Quan<strong>do</strong>ela <strong>de</strong>sapareceu na cozinha, Nava sacudiu severamente o corpo inerte <strong>do</strong>amigo: “– O que é que há?” E <strong>Vinicius</strong>, entreabrin<strong>do</strong> um olho súplice: “–Pedrinho, eu não aguento mais ...”O poeta não seria réu primário neste truque. Um dia, com o lar já soboutra gerência, a musa <strong>de</strong> turno recorreu a Oto Lara Resen<strong>de</strong>, pois ocompanheiro sentia-se mal. Oto se fez acompanhar por Hélio Pellegrino, quetinha formação médica. Mas, ao a<strong>de</strong>ntrar o quarto on<strong>de</strong> jazia <strong>Vinicius</strong>, lobrigou,sobre a cabeceira, a intimação <strong>de</strong> uma promissória vencida. Tirou, então, dacarteira uma nota <strong>de</strong> <strong>do</strong>is cruzeiros, cuja cor alaranjada era semelhante à <strong>de</strong>mil, ilustrada por um retrato <strong>de</strong> Pedro Álvares Cabral. Dobrou-a com cuida<strong>do</strong>e, ao <strong>de</strong>spedir-se <strong>de</strong> <strong>Vinicius</strong>, passou-a sorrateiramente ao pseu<strong>do</strong>-enfermo,que, na sua expressão, a capturou “com mão <strong>de</strong> garçom receben<strong>do</strong> gorjeta”.Os <strong>do</strong>is amigos pretextaram sair, mas ficaram esperan<strong>do</strong> atrás da porta, atéouvirem uma risada. O poeta confessou: “– Eu pensava que fosse umCabralzinho...” E, já reconforta<strong>do</strong>, seguiram juntos para a cida<strong>de</strong>.Voltemos, porém, à Última Hora. Do jornal, saíamos para o bar Maxim’s,na Avenida Atlântica. Lá era também diária a presença <strong>de</strong> escritores ejornalistas talentosos, e boêmios contumazes, como Rubem Braga, Fernan<strong>do</strong>Sabino, Paulo Men<strong>de</strong>s Campos, Sérgio Porto, Lúcio Rangel e Antônio Maria,então inseparável <strong>de</strong> <strong>Vinicius</strong>. E começava a paixão <strong>de</strong> <strong>Vinicius</strong> por LilaBoscoli, que gerou a “Balada <strong>do</strong>s olhos da amada”.Naquele tempo, eu frequentava o Grêmio Recreativo Escola <strong>de</strong> SambaUnião <strong>de</strong> Vaz Lobo, <strong>do</strong> qual era sócio, com carteirinha e tu<strong>do</strong>. Tínhamosensaios todas às sextas-feiras. E, às vezes, o gran<strong>de</strong> compositor da escola,Zé Kéti, vinha fazer uma escola <strong>de</strong> samba em casa <strong>de</strong> parentes ou amigosnossos. Uma noite, a reunião ocorreu em casa <strong>do</strong> sena<strong>do</strong>r Hamilton Nogueira,cujo filho Luís Paulo era prócer importante <strong>do</strong> Grêmio Recreativo. Convi<strong>de</strong>i<strong>Vinicius</strong> e Lila para irmos juntos. Lá chega<strong>do</strong>s, encontramos Zé Keti na suaanimação habitual, acompanha<strong>do</strong> por um amigo silencioso. Este começou a<strong>de</strong>dilhar seu violão, cantarolan<strong>do</strong>: “Se alguém diz que eu sou um covar<strong>de</strong>,errou / Só porque aban<strong>do</strong>nei aquela mulher / Quem con<strong>de</strong>na é certamenteporque nunca amou.” Lila ficou no auge da excitação: “– <strong>Vinicius</strong>, o sambada minha vida! Por favor, <strong>de</strong> quem é ele?”, exultava. “– Meu, minha senhora”,11


AFFONSO ARINOS DE MELLO FRANCOrespon<strong>de</strong>u discreto, o senhor moreno e grisalho. “– Mas, então, o senhor...”“– Sou Nelson Cavaquinho, para servi-la, minha senhora.”Certa vez, <strong>Vinicius</strong> e Antônio Maria, acompanha<strong>do</strong>s das respectivasamadas <strong>de</strong> ocasião, passaram em minha casa, já tar<strong>de</strong>, para levar-me comele a São Paulo, aon<strong>de</strong> chegamos ao amanhecer. O pernambucano gor<strong>do</strong>dirigia o automóvel, e, <strong>de</strong> repente, pôs-se a reproduzir, em voz alta, a discussãoque imaginava estar-se travan<strong>do</strong> entre o casal que viajava no carro ao la<strong>do</strong>,com o qual ele apostava corrida para ultrapassá-lo: “Cuida<strong>do</strong>, Azeve<strong>do</strong>, vámais <strong>de</strong>vagar... Azeve<strong>do</strong>, você está andan<strong>do</strong> <strong>de</strong>pressa <strong>de</strong>mais... Não corra,Azeve<strong>do</strong>, por favor... Azeve<strong>do</strong>, aquilo é um negro, Azeve<strong>do</strong>!”.Às vezes, íamos ao Michel, que ficava atrás, no “beco das garrafas”,para ouvir Dolores Duran. De uma feita, <strong>Vinicius</strong> e eu percorremos váriospontos <strong>de</strong> encontro <strong>do</strong>s notívagos em Copacabana, até amanhecermos emum bar da praia, comemoran<strong>do</strong> o nascimento, naquele dia, da sua filhaGeorgiana. Afonso Arinos, ao saber disso, insinuou que o poeta, esquerdistafestivo, <strong>de</strong>ra o nome à filha para homenagear Stalin, nasci<strong>do</strong> na Geórgia.(Um dia, Oto, Marco Aurélio Matos e eu resolvemos visitar <strong>Vinicius</strong>, queestava <strong>do</strong>ente. Encontramos Tom Jobim senta<strong>do</strong> à cabeceira <strong>do</strong> poeta. Aconversa <strong>de</strong>scambou para os crimes <strong>de</strong> Stalin. Os amigos mineirospressionavam <strong>Vinicius</strong>, que acabou concordan<strong>do</strong>: “Foi uma gran<strong>de</strong> figura,mas era um monstro moral.”).A Embaixada em Paris lhe foi <strong>de</strong>stinada como posto diplomático. Entãonos afastamos, mas ele precisou <strong>de</strong> dinheiro no Rio, e arranjei-lhe empréstimocom parente meu que geria uma agência bancária. Por carta <strong>de</strong> março <strong>de</strong>1955, <strong>Vinicius</strong> me informava da França que “figura <strong>de</strong> Pedro Nava esteveexcelente aqui. Gran<strong>de</strong>s bate-papos. Ele te contará aí. Consta que meulivro esgotou rápi<strong>do</strong>, e eu estou brilhan<strong>do</strong> muito por aí. Se for verda<strong>de</strong>,escreve contan<strong>do</strong>, pois sempre dá prazer saber que a gente ainda não foiesqueci<strong>do</strong>.” O poeta diplomata pedia ainda: “Manda me avisar da data <strong>do</strong>vencimento.” Eu já estava noivo; ao aproximar-se a ocasião <strong>do</strong> matrimônio,verifiquei que teria necessida<strong>de</strong> das parcas economias imobilizadas pelafiança. Então, escrevi-lhe recordan<strong>do</strong> que a promissória por mim avalizadaestava por vencer; e me lembro <strong>de</strong> cor, até hoje, da sua resposta telegráfica,redigida em latim macarrônico: “Non Afobare Fili Mihi. PapagaiusPagatus Est. <strong>Vinicius</strong>”.Ao felicitar-me pelo casamento, em agosto, contou-me que, apesar dagran<strong>de</strong> agitação social, mesmo em Château d’Eu, “este sarcófago on<strong>de</strong> me12


DEPOIMENTOenterrei por quinze dias para po<strong>de</strong>r trabalhar um pouco em coisas minhas – oque é impossível em Paris”, ia “tocan<strong>do</strong> assim mesmo o cenário <strong>de</strong> um filmee uma peça <strong>de</strong> teatro noite a<strong>de</strong>ntro”. Eram o Orfeu Negro e o Orfeu daConceição, a propósito <strong>do</strong>s quais ele me pedia, em setembro, para ajudá-loa apressar uma resposta favorável ao pedi<strong>do</strong>, que fizera ao Itamaraty, parapassar <strong>do</strong>is meses <strong>de</strong> férias no <strong>Brasil</strong>. “O tempo está corren<strong>do</strong>, e eu nãoposso per<strong>de</strong>r essa minha viagem, que é importantíssima, <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista‘cinematográfico’ da carreira. Você, por essa altura, já <strong>de</strong>ve ter li<strong>do</strong> aí sobreo meu filme com o Gourdine, etc. (...) Breve nos veremos aí, para trançar umviolão. Estou cheio <strong>de</strong> sambinhas novos.”Casei-me, e fui removi<strong>do</strong> para a Embaixada em Roma. Passamos emférias por Paris, revimos <strong>Vinicius</strong> e Lila, e revivemos por uma noite, sain<strong>do</strong>em ban<strong>do</strong>, a boêmia <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro. Mas, naquela mesma noite, o casalse <strong>de</strong>sfazia; enquanto eu me sentava no meio-fio, consolan<strong>do</strong> Lila, aconteciaali mesmo, bem por <strong>de</strong>trás <strong>de</strong> nós, um novo amor para <strong>Vinicius</strong>, a namorarostensivamente Lúcia Proença.Devoto <strong>do</strong>s encantos femininos, o poeta não era discreto sobre suas<strong>de</strong>tentoras que lhe retribuíam as atenções. De um <strong>de</strong>sses amores, flama alta ebrilhante, muito exótica, mas <strong>de</strong> curta duração, confi<strong>de</strong>nciou-me, certa vez,não saber se a consi<strong>de</strong>rava “uma beleza ou um bofe”.Mas tinha o coração bon<strong>do</strong>so. Um dia, <strong>de</strong>safiou o brutamontes que, nobar Recreio, ousara falar mal <strong>de</strong> Alceu Amoroso Lima. De outra feita, jáhavia bebi<strong>do</strong> bastante, no Maxim’s, quan<strong>do</strong> disse <strong>de</strong> repente: “Eu sinto umapena das pessoas...”. E pôs-se a chorar.Voltamos a estar juntos no Rio, bem mais tar<strong>de</strong>, e por pouco tempo,<strong>Vinicius</strong> se apresentava, então, num vasto auditório, com Tom Jobim, Toquinhoe minha prima Miúcha. Termina<strong>do</strong> o espetáculo, esticávamos a noite numachurrascaria, o poeta na cabeceira da mesa comprida, o dinheiro da bilheteriaa estufar os bolsos da camisa, pagan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> para nós.Nosso encontro final ocorreu quan<strong>do</strong> ele vivia com a argentina Nelita.Duas amigas da nova mulher passavam uma temporada em sua casa no Rio,enquanto a companheira permanecia em Buenos Aires. Fomos jantar os quatronum restaurante em Ipanema. <strong>Vinicius</strong> bebia muito, e ora se inclinava sobreuma das moças, ora caía por cima da outra, que lhe endireitava a roupa.Levei-os para casa, na Gávea, à qual dava acesso, a partir da rua, uma vastaescadaria. Dali o vi pela última vez, como que subin<strong>do</strong> aos céus, ampara<strong>do</strong>por um par <strong>de</strong> anjos portenhos.13


AFFONSO ARINOS DE MELLO FRANCOEm uma das fases mais sombrias da nossa história recente, <strong>Vinicius</strong> foiexcluí<strong>do</strong> da carreira diplomática por ato arbitrário <strong>do</strong> regime militar. Os catões<strong>de</strong> plantão, capachos da ditadura, julgavam sua vida artística e boêmiaincompatível com a alegada pureza revolucionária. Mas poucos diplomatascontribuíram como ele para divulgar o <strong>Brasil</strong> no exterior. Seu nome <strong>de</strong>veriaser da<strong>do</strong> a algum órgão <strong>do</strong> Itamaraty encarrega<strong>do</strong> <strong>de</strong> promoção cultural,pelo tanto que a cultura brasileira <strong>de</strong>ve a <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> Morais.Fonte: Mello Franco Filho, Affonso Arinos. Mirante. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Topbooks, 2006.14


<strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong>: o Poeta da Proximida<strong>de</strong>Miguel Sanches NetoEstrean<strong>do</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma visão filosófica e política e <strong>de</strong> um estilo alheios,<strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong> se viu, no início <strong>de</strong> sua carreira, planta<strong>do</strong> em uma latitu<strong>de</strong>literária mais à direita. Autor <strong>do</strong> primeiro livro aos vinte anos (O caminhopara a distância, 1933), vin<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma família pobre, cujo patriarca renunciaraà carreira artística em prol <strong>de</strong> um emprego burocrático, herda a missão implícita<strong>de</strong> dar credibilida<strong>de</strong> social às aptidões familiares que trazia em si. Oa<strong>do</strong>lescente que, no passa<strong>do</strong>, assinara um <strong>do</strong>s poemas <strong>do</strong> pai para enredarcerta menina, sentia agora a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> dar consistência à vocaçãopaterna, conquistan<strong>do</strong> espaços <strong>de</strong> prestígio. Assim, era o pai que, pelatransmissão <strong>do</strong> <strong>do</strong>m, se faria ver na poesia <strong>de</strong> um filho admiti<strong>do</strong> em importantenúcleo <strong>do</strong> campo literário. Destina<strong>do</strong> a redimir a pobreza e o silêncio <strong>de</strong> seusgenitores, porque sua mãe também possuía um talento musical circunscritoao ambiente <strong>do</strong>méstico, o poeta se liga ao grupo espiritual que si<strong>de</strong>rava emtorno <strong>de</strong> Octavio <strong>de</strong> Faria e Augusto Fre<strong>de</strong>rico Schmidt, receben<strong>do</strong> <strong>de</strong>lesuma influência que não po<strong>de</strong> ser vista como negativa, pois lhe possibilitouentrar na cena cultural e superar algumas limitações juvenis.Com isso, ele passa a fazer parte <strong>de</strong> um discurso literário e social quenegava os valores populares, as liberda<strong>de</strong>s mo<strong>de</strong>rnas e a poesia <strong>do</strong> à vonta<strong>de</strong>(instalada heroicamente pela geração anterior, responsável pela ação profiláticada conquista <strong>de</strong> códigos contemporâneos), referendan<strong>do</strong> o po<strong>de</strong>r <strong>do</strong> indivíduoque busca, pela ascese, a re<strong>de</strong>nção pessoal – que no fun<strong>do</strong> é a <strong>do</strong> eleitos.15


MIGUEL SANCHES NETOUma visão, portanto, elitista da arte, bem ao gosto <strong>do</strong>s encaminhamentospolíticos da primeira fase <strong>do</strong> governo Vargas (1930-1945), para o qual opoeta trabalhará, em 1936, como censor cinematográfico, posto herda<strong>do</strong> <strong>do</strong>amigo Presi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> Morais, neto.A força centraliza<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> grupo foi fundamental para que <strong>Vinicius</strong> se<strong>de</strong>dicasse plenamente à arte poética. Isso, no caso <strong>de</strong> uma pessoa dispersivacomo ele, <strong>de</strong>finiu seu próprio futuro, pois seus primeiros livros criaram,<strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> sólida, a figura <strong>do</strong> vate marca<strong>do</strong> pela grandiloquência <strong>de</strong> dramasmetafísicos que davam origem a versos dilata<strong>do</strong>s – verda<strong>de</strong>iros tapetesaristocráticos que não cabiam nos apartamentos acanha<strong>do</strong>s <strong>de</strong> uma poesiamo<strong>de</strong>rna já naquele instante repleta <strong>de</strong> cacoetes. O la<strong>do</strong> positivo <strong>de</strong>stainfluência é visível no ritmo criativo <strong>do</strong> poeta, que, em apenas três anos,editou três livros, média que nunca mais atingirá. É claro que não há umacorrespondência entre a quantida<strong>de</strong> e a qualida<strong>de</strong>. Os seus melhores poemasserão escritos <strong>de</strong>pois, quan<strong>do</strong> o autor adquire voz própria. Suas raízes, noentanto, permanecem em seu universo <strong>de</strong> estréia, que não será mais repeti<strong>do</strong>e sim, nega<strong>do</strong>.Ao filiar-se a um grupo, ele tem valorizada a sua criativida<strong>de</strong>, receben<strong>do</strong><strong>de</strong> empréstimo a nomeada <strong>de</strong> seus mestres e as posições conquistadas. Negar,por isso, essa influência primeira é <strong>de</strong>sconhecer o seu papel na formação <strong>do</strong>poeta e na conquista <strong>de</strong> visibilida<strong>de</strong>, mesmo que mascarada por traçoscoletivos. Seus primeiros livros guardam um gran<strong>de</strong> interesse crítico, mesmosen<strong>do</strong> esteticamente secundários.Não se po<strong>de</strong> falar, nem em seus momentos mais religiosos, <strong>de</strong> uma poesiacatólica, embora fosse esta a orientação <strong>do</strong> grupo. Os seus são versosassinala<strong>do</strong>s, como fica dito em “Místico”, por um “vago senti<strong>do</strong> <strong>de</strong>espiritualização” (p. 161). Poeta aprendiz, o <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong>ssa fase sofre o choque<strong>do</strong>s apelos eróticos e a orientação para a superação <strong>de</strong> sua natureza sensual.Na verda<strong>de</strong>, os poemas refletem o embate entre <strong>do</strong>is tipos <strong>de</strong> satisfação, aespiritual e a carnal. Não se encontra o poeta em um esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> pacificação,mas no meio <strong>de</strong> uma disputa acalorada entre suas experiências <strong>de</strong> homem esua formação religiosa e filosófica, referendada pelo tutor intelectual que eraOctavio <strong>de</strong> Faria. Daí os versos <strong>de</strong>sbraga<strong>do</strong>s, num <strong>de</strong>rramamento <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>spara to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s, razão da vaguida<strong>de</strong> que o próprio poeta confessa aoabrir o livro. Entram em disputa a formação e a <strong>de</strong>formação, puxan<strong>do</strong> opoeta para la<strong>do</strong>s opostos. A poesia é uma maneira <strong>de</strong> tentar impor (fazen<strong>do</strong>ecoar os ensinamentos <strong>de</strong> seus mestres) os conceitos adquiri<strong>do</strong>s, obrigan<strong>do</strong>-16


VINICIUS DE MORAES: O POETA DA PROXIMIDADEo a sentir-se “acorrenta<strong>do</strong> à noite murmurosa”, ou seja, a uma escuridão emque não há paz.São <strong>do</strong>is, portanto, os caminhos que ele tem para seguir – um o levará àconquista da calma e o outro à incerteza <strong>do</strong> <strong>de</strong>sconheci<strong>do</strong>, como fica relata<strong>do</strong>em “Velha História”:O homem olhou por um momento a estrada clara e <strong>de</strong>sertaOlhou longamente para <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> siE voltou.É essa paralisação diante <strong>de</strong> <strong>do</strong>is caminhos que caracteriza a produção<strong>de</strong> <strong>Vinicius</strong> nesse instante inicial <strong>de</strong> sua trajetória. Sua condição bipartidaserá relevada em “O poeta”, auto-retrato em que ele se vê “preso, eternamentepreso pelos extremos intangíveis”, uma vez que, naquele instante, se senteincapaz <strong>de</strong> se <strong>de</strong>cidir por um <strong>do</strong>s pólos.O pivô <strong>de</strong>ssa in<strong>de</strong>cisão é a figura da mulher, em suas duas versõesantagônicas:Ele ama as mulheres castas e as mulheres impurasSua alma as compreen<strong>de</strong> na luz e na lama.Seria impossível negar qualquer uma <strong>de</strong>ssas mulheres, responsáveis peloimpasse que se manifesta nos três livros iniciais. Ao mesmo tempo em queama toda forma feminina, ele se sente imobiliza<strong>do</strong> diante <strong>de</strong>las. Num sonho(“A esposa”) em que lhe aparece a companheira, o poeta impotente nada fazpara retê-la:Eu só verei a porta que se vai fechan<strong>do</strong> brandamente...Ela terá i<strong>do</strong>, a esposa amiga, a esposa que eu nunca terei.Essa era a versão da mulher como luz, que oferece ao poeta serenida<strong>de</strong>,embora em outro instante (“A uma mulher” – a esposa torna-se simplesmentemulher), o encontro com a carne sirva para pôr o amante em contato com amorte e com o sofrimento, <strong>do</strong>s quais o poeta foge, amedronta<strong>do</strong> com estepo<strong>de</strong>r aniquila<strong>do</strong>r inerente ao sexo: “Eu compreendi que a morte estava emseu corpo / e que era preciso fugir para não per<strong>de</strong>r o único instante / em quefoste realmente a ausência <strong>de</strong> sofrimento”. Mas sem se entregar à castida<strong>de</strong>,17


MIGUEL SANCHES NETOele encontra um caminho intermediário no encontro rápi<strong>do</strong> e provisório, semamor e sem apego ao corpo das mulheres <strong>de</strong>sejadas, nas quais experimentaapenas as luzes da manhã, distancian<strong>do</strong>-se em seguida <strong>de</strong>las. Este poemapo<strong>de</strong> ser li<strong>do</strong> como uma premonição <strong>do</strong> próprio <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> <strong>Vinicius</strong>, quebuscará em mulheres mais novas um afastamento da morte – questão discutidaem outra profissão <strong>de</strong> fé, “O poeta na madrugada”, ou seja, a caminho daluminosida<strong>de</strong>:O poeta tem a alegria que vive na luzE tem a mocida<strong>de</strong> que nasce da luzOferecen<strong>do</strong> a tristeza <strong>do</strong> seu amor e a alegria <strong>de</strong> sua carneO poeta amou a carne das mulheresMas não envelheceu no amor que elas lhe davam[...]E se o poeta amasseEle não viveria eternamente jovem, brilhan<strong>do</strong> na luz.Se estes são os diálogos <strong>de</strong>sencontra<strong>do</strong>s com as mulheres, ele,paralelamente, busca se enten<strong>de</strong>r com Deus, na esperança <strong>de</strong> se livrar<strong>de</strong> seus próprios <strong>de</strong>sejos, arrependi<strong>do</strong> <strong>de</strong> suas entregas às <strong>de</strong>lícias damatéria: “É terrível, Senhor! Só a voz <strong>do</strong> prazer cresce nos ares / (...)Só a miséria da carne, e o mun<strong>do</strong> se <strong>de</strong>sfazen<strong>do</strong> na lama da carne” (“Agran<strong>de</strong> voz”). Sen<strong>do</strong> o corpo algo que se <strong>de</strong>teriora, ele é toma<strong>do</strong> comuma falsida<strong>de</strong>, incapaz, portanto, <strong>de</strong> dar segurança ao homem: “Nãopo<strong>de</strong>m prevalecer o prazer e a mentira. / A verda<strong>de</strong> é o Espírito”. <strong>Vinicius</strong>clama então para que Deus combata a So<strong>do</strong>ma por ele habita<strong>do</strong>,pedin<strong>do</strong>, em outro poema (“Ju<strong>de</strong>u errante”), para seguir sozinho embusca da aurora. Apega<strong>do</strong> ao mesmo tempo aos aspectos corpóreos esensitivos <strong>do</strong> homem e a uma moralida<strong>de</strong> pacifica<strong>do</strong>ra, <strong>Vinicius</strong> nãoconsegue fugir da mulher e nem assumi-la integralmente, buscan<strong>do</strong>-aapenas para encontros mais fortuitos, lenitivo para sua ânsia <strong>de</strong> amor –um amor que o pren<strong>de</strong>rá ao perecível.Essa dilaceração tem <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bramentos em seu estilo, tornan<strong>do</strong>-o prolixo,porque permanece a antítese, sem possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> síntese. Insufla<strong>do</strong> pelodilema, ele tenta pôr em cena todas as suas oscilações psicológicas, produzin<strong>do</strong>versos e poemas longos, retratos <strong>de</strong> uma incontornável tormenta interior enão apenas apropriação <strong>de</strong> um estilo alheio.18


VINICIUS DE MORAES: O POETA DA PROXIMIDADENo capítulo seguinte <strong>de</strong>ste drama, Forma e exegese (1935), diminui ograu <strong>de</strong> abstração, aumentan<strong>do</strong> a contextualização <strong>de</strong> uma poesia que continuaa cifrar o impasse. É extremamente revela<strong>do</strong>r um <strong>do</strong>s versos <strong>do</strong> primeirotexto <strong>do</strong> livro (“O olhar para trás”), em que <strong>Vinicius</strong> divi<strong>de</strong>-se em <strong>do</strong>ismomentos conflitantes, a juventu<strong>de</strong> preocupada com o sublime e aa<strong>do</strong>lescência entregue à carne:Eu estaria sempre como um círio queiman<strong>do</strong> para o céu a minhafatalida<strong>de</strong>Sobre o cadáver ainda morno <strong>de</strong>sse passa<strong>do</strong> a<strong>do</strong>lescente.É esse seu passa<strong>do</strong> ainda meio presente que exerce o papel <strong>de</strong>contraponto a seu <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> ascese, puxan<strong>do</strong>-o para perto <strong>do</strong> pântano. Aentrada <strong>de</strong> alguns da<strong>do</strong>s biográficos, embora meio vela<strong>do</strong>s, permite, à luz <strong>de</strong><strong>de</strong>poimentos e poemas posteriores, enten<strong>de</strong>r melhor tal conflito. Ao recordarseda Ilha <strong>do</strong> Governa<strong>do</strong>r, no poema com esse título, para on<strong>de</strong> sua família setransferiu em 1922, o poeta expressa uma ternura pelos seres humil<strong>de</strong>s comos quais partilhou a infância e a<strong>do</strong>lescência. Se há uma pacificação nessamirada pelo retrovisor, em outro poema ele recusa uma figura que o marcarápara sempre, a mulata que lhe abriu os horizontes <strong>do</strong> sexo. Aqui, ela nãoaparece <strong>de</strong> forma <strong>de</strong>clarada, mas apenas como a mulher morena, num poemaque fala <strong>do</strong> retorno <strong>de</strong>la, seja pela memória, seja por estar personificada emoutra mulher:A volta da mulher morenaMeus amigos, meus irmãos, cegai os olhos da mulher morenaQue os olhos da mulher morena estão me envolven<strong>do</strong>E estão me <strong>de</strong>spertan<strong>do</strong> <strong>de</strong> noite.Tanto a cor da mulher quanto o momento em que ele pensa nela tem umsenti<strong>do</strong> figura<strong>do</strong>, representan<strong>do</strong> o extremo oposto da mulher luminosa, numavisão ariana <strong>do</strong> impasse vivi<strong>do</strong>, nesse momento, pelo poeta simpatizante <strong>do</strong>fascismo. O poeta acaba com um pedi<strong>do</strong> <strong>de</strong> morte cruel a essa mulher,símbolo <strong>do</strong> lo<strong>do</strong> que o poeta traz em si. Na verda<strong>de</strong>, ele a queria extirpada<strong>de</strong> seu coração, porque se sabia capaz <strong>de</strong> se entregar às fêmeas impuras. Éum grito <strong>de</strong>sespera<strong>do</strong> para matá-la em si, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> assim prosseguir em seucaminho rumo à distância. O poeta vê viva a recordação <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>butância19


MIGUEL SANCHES NETOerótica perturba<strong>do</strong>ra, pois se assumira, no poema “O incria<strong>do</strong>”, como aquele“que não po<strong>de</strong> fugir à carne e à memória”.Anos <strong>de</strong>pois, em Poemas, sonetos e baladas (1943), quan<strong>do</strong> <strong>Vinicius</strong>goza <strong>de</strong> uma liberda<strong>de</strong> condicional <strong>de</strong> suas influências <strong>de</strong> estreia, apareceránominada, e fisicamente, a mulher morena, “Rosária”, com quem ele se iniciousexualmente:E eu que era um menino puroNão fui per<strong>de</strong>r a infânciaNo mangue daquela carne!Dizia que era morenaSaben<strong>do</strong> que era mulataDizia que era <strong>do</strong>nzelaNem isso não era ela.Retornan<strong>do</strong> a poemas e tensões <strong>de</strong> Forma e exegese, encontramos oantí<strong>do</strong>to para essa experiência erótica matinal na construção estética <strong>de</strong> ummito feminino da mulher-luz, espiritualizada. Encontrava-se em seu dia a diavariantes sensuais, <strong>de</strong>finidas metaforicamente como cadafalso e voragem, ele<strong>de</strong>sejava um símbolo apazigua<strong>do</strong>r, que po<strong>de</strong>ria ser a mulher clara, comoAlba, <strong>do</strong> poema homônimo. Mas, mesmo Alba é recordada sensualmente,trazen<strong>do</strong> tormenta para o poeta, que não se livra <strong>de</strong> sua luxúria, nem diante<strong>de</strong> possíveis personificações <strong>de</strong> pureza, ambicionadas pelo jovem comformação espiritual. O penúltimo e o último poemas <strong>do</strong> livro fundam-se nestedilema. Aquele é “O nascimento <strong>do</strong> homem”, visto como amante da belezaimpura, com vocação sensual. Poema longo, em que vislumbramos quaseuma certidão <strong>de</strong> nascimento <strong>do</strong> homem no poeta i<strong>de</strong>alista. Mas este volta no<strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro texto, um fragmento intitula<strong>do</strong> “A criação da poesia (I<strong>de</strong>al)”, quetraz uma epígrafe revela<strong>do</strong>ra: “O poeta parte no eterno renovamento. Masseu <strong>de</strong>stino é fugir sempre ao homem que ele traz em si”. E a palavra <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>ira<strong>do</strong> livro, que tenta anular as solicitações da carne, vastamente representadaao longo <strong>do</strong>s poemas, é “anjo”, o antípoda <strong>do</strong> homem que <strong>de</strong>ve ser anula<strong>do</strong>pela força da poesia e <strong>do</strong> i<strong>de</strong>al.I<strong>de</strong>al que ele buscará num transe, durante um sonho, na figura <strong>de</strong> Ariana(Ariana, a mulher, 1936) – representação intangível da figura imaginária dabranca amada, a Exaltada (sic), imagem da mulher transfigurada em perfeiçãoangélica. Este conceito olímpico <strong>de</strong> mulher é fortaleci<strong>do</strong> pela mitologia20


VINICIUS DE MORAES: O POETA DA PROXIMIDADEhollywoodiana <strong>do</strong>s anos 1930, que surgia, para os habitantes <strong>do</strong> espaço<strong>de</strong>sloca<strong>do</strong> das periferias, como promessa <strong>de</strong> estranhamento e <strong>de</strong>distanciamento. <strong>Vinicius</strong>, especta<strong>do</strong>r profissional, percorreu esse caminho dadistância em filmes americanos que lhe transmitiram uma miragem feminina.Italo Calvino, sofren<strong>do</strong> as mesmas influências, <strong>de</strong>ixou algumas notas que<strong>de</strong>finem com precisão o drama <strong>de</strong> nosso poeta cindi<strong>do</strong>: “As mulheres [nocinema francês] tinham uma presença carnal que as empossava na memóriacomo mulheres vivas e, ao mesmo tempo, como fantasmas eróticos, ao passoque nas estrelas <strong>de</strong> Hollywood o erotismo era sublima<strong>do</strong>, estiliza<strong>do</strong>, i<strong>de</strong>aliza<strong>do</strong>.(Mesmo a mais carnal das americanas <strong>de</strong> então, a loura platinada Jean Harlow,tornava-se irreal pelo alvor <strong>de</strong>slumbrante da pele. No preto e branco a força<strong>do</strong> branco operava uma transfiguração <strong>do</strong>s rostos femininos, das pernas, <strong>do</strong>sombros e <strong>de</strong>cotes, fazia <strong>de</strong> Marlene Dietrich não o objeto imediato <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo,mas o próprio <strong>de</strong>sejo como essência extraterrestre)” (p. 49). A fixação nesseimaginário, que tirava a mulher <strong>do</strong> convívio terreno para colocá-la no pe<strong>de</strong>staldas musas perfeitas, produz uma impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reconhecê-la no dia adia. O poeta, em Ariana, a mulher, percorre to<strong>do</strong>s os lugares à procura daamada, sem encontrá-la. Resta-lhe, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>ssa miragem, uma espécie <strong>de</strong>vazio, ten<strong>do</strong> que, passada a fase mais i<strong>de</strong>alizante, se entregar sem traumasmetafísicos à mulher imediata.A mulher salva<strong>do</strong>ra não será imaginária, mas a jovem bonita e sensualque o livrará <strong>de</strong> ver nela a in<strong>de</strong>sejada da qual ele foge, dan<strong>do</strong> início ao longocaminho por várias mulheres, centro <strong>de</strong> sua poesia e <strong>de</strong> sua visão <strong>de</strong> mun<strong>do</strong>.O seu Velho Testamento acaba com as Cinco elegias (1943), ainda ligadasao estilo <strong>de</strong>rrama<strong>do</strong>. Daí serem <strong>de</strong>dicadas, quase como que in memorian, aOctavio <strong>de</strong> Faria e outros amigos <strong>do</strong> grupo. Este livro temporão, já haviasi<strong>do</strong> publica<strong>do</strong> Novos poemas (1938), traz sinais <strong>de</strong> ruptura, como a últimadas elegias, que reproduz uma percepção visual <strong>do</strong> bairro londrino <strong>de</strong> Chelsea,local on<strong>de</strong> o autor conjuga o amor lascivo com sua primeira mulher, BeatrizAzeve<strong>do</strong> <strong>de</strong> Mello, conhecida como Tati. Ele se afasta fisicamente <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>,in<strong>do</strong> estudar em Oxford, distancian<strong>do</strong>-se ainda mais da influência recebidanos anos <strong>de</strong> formação, e encontra na língua inglesa e nos poetas li<strong>do</strong>s naInglaterra novos paradigmas. É um momento <strong>de</strong> renovação, expressa nessaelegia que mistura português e inglês, que consolida a presença <strong>de</strong> poetasmais liga<strong>do</strong>s a uma estética mo<strong>de</strong>rna. É o momento <strong>de</strong> viver unifica<strong>do</strong> emuma personalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>finida, superan<strong>do</strong> a cisão anterior, o seu NovoTestamento, escrito na pele <strong>de</strong> tantas mulheres, cuja sensualida<strong>de</strong> é tida agora21


MIGUEL SANCHES NETOcomo força motriz da existência e da poesia. O poeta po<strong>de</strong> então escreverseus melhores poemas <strong>de</strong> amor, ren<strong>de</strong>n<strong>do</strong> homenagem à mulher e ao momentoque passa.De Novos poemas, é preciso <strong>de</strong>stacar “Balada feroz”, uma <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong>po<strong>de</strong>r purifica<strong>do</strong>r <strong>do</strong> poeta. <strong>Vinicius</strong> conclama o poeta que há em si aexperimentar todas as formas <strong>de</strong> sordi<strong>de</strong>z e <strong>de</strong> volúpia. Ele já não tem maisme<strong>do</strong> <strong>do</strong> peca<strong>do</strong> ou da perdição, porque se reconhece <strong>do</strong>no <strong>de</strong> um po<strong>de</strong>rsanea<strong>do</strong>r: “e com to<strong>do</strong> este pus, faz um poema puro”. Desaparecida aoposição tão forte nos primeiros anos <strong>de</strong> sua formação, ele agora se encontra<strong>de</strong> posse <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> que o livra da visão maniqueísta. Surge, portanto,a sua personalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>finitiva:Canta! canta, porque cantar é a missão <strong>do</strong> poetaE dança, porque dançar é o <strong>de</strong>stino da purezaFaz para o cemitério e para os lares o teu gran<strong>de</strong> gesto obscenoCarne morta ou carne viva – toma! Agora falo eu que sou um!Esse poema é uma carta <strong>de</strong> alforria e serve como <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> princípios<strong>do</strong> novo homem/poeta que surge, não mais rebela<strong>do</strong> contra as manifestações<strong>do</strong> baixo, e sim irmana<strong>do</strong> a elas.Em vários poemas <strong>do</strong> livro aparecem referências à mulher e à vida, oque po<strong>de</strong> ser visto já em alguns títulos: “Amor nos três pavimentos”, “Invocaçãoà mulher única”, “A mulher que passa” (“que é tanto pura como <strong>de</strong>vassa”),“Vida e poesia” (unidas e não rivalizan<strong>do</strong> entre si), “Sonata <strong>do</strong> amor perdi<strong>do</strong>”,“A brusca poesia da mulher amada” (I e II), “A vida vivida” (redundânciamais <strong>do</strong> que necessária, pois é uma <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> plena entrega ao <strong>de</strong>stinoque lhe coube) e “Balada para Maria”. São poemas <strong>de</strong> afirmação daquiloque era nega<strong>do</strong> por sua tentativa <strong>de</strong> redução <strong>do</strong> ser a uma or<strong>de</strong>m imaterial.Ele não apenas rompe com esta sua formação, abrin<strong>do</strong>-se para novasexperiências, como passa a ver a mulher não mais como ser único eextraterrestre, porque, como concluirá em seu mais célebre poema, o amorsó é infinito enquanto dura. Está dada a sustentação <strong>de</strong> uma poética <strong>do</strong>presente, em que prevalece o imediato e não mais o distante, manti<strong>do</strong> à custa<strong>de</strong> novas paixões, uma vez que o autor, rebelan<strong>do</strong>-se contra os conceitospuros, relativiza o que se enten<strong>de</strong> por fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>, que só <strong>de</strong>ve existir naqueleinstante <strong>de</strong> ar<strong>de</strong>nte entrega. O poeta, portanto, vai assumir o papel <strong>de</strong> cigano<strong>do</strong> amor, cantan<strong>do</strong>-o em sua versão sempre nova.22


VINICIUS DE MORAES: O POETA DA PROXIMIDADECessa<strong>do</strong>s os tumultos <strong>de</strong> alma, ele se instala em um verso enxuto, namaioria das vezes metrifica<strong>do</strong>, entregan<strong>do</strong>-se ao humor e à simplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong>um léxico mais cotidiano, longe <strong>do</strong>s extravasamentos matinais.Se estas são as matrizes semânticas para se enten<strong>de</strong>r gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong>seus poemas <strong>de</strong> maturida<strong>de</strong>, centra<strong>do</strong>s na mulher que participa das paisagenspor ele frequentadas, é preciso enten<strong>de</strong>r como se <strong>de</strong>u a passagem <strong>do</strong> poetapoliticamente à direita para o cantor popular, o que não está muito longe dasdiscussões levantadas até aqui, imbrican<strong>do</strong>-se na própria evolução <strong>do</strong>sconceitos erótico-artísticos <strong>de</strong> <strong>Vinicius</strong>. Forma<strong>do</strong> por uma percepção artificial<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, que lhe dava não os fatos reais da existência, mas imagens fundadasem i<strong>de</strong>ias pré-concebidas, ele teve que se <strong>de</strong>frontar com o homemcontemporâneo.Ninguém po<strong>de</strong> contestar que, como é sabi<strong>do</strong>, a influência <strong>do</strong> escritorsocialista norte-americano Wal<strong>do</strong> Frank, com quem viajou para o nor<strong>de</strong>ste,<strong>de</strong>scortinan<strong>do</strong> uma situação social <strong>de</strong> precarieda<strong>de</strong>, foi importante para essapassagem. A viagem se <strong>de</strong>u, no entanto, em 1942, momento em que já haviauma aproximação <strong>do</strong> poeta à visão ban<strong>de</strong>riana <strong>de</strong> poesia, que valoriza obaixo e o pequeno. Essa influência também foi significativa e se faz presenteno livro Poemas, sonetos e baladas, <strong>de</strong> 1943, on<strong>de</strong> há um tributo a Ban<strong>de</strong>ira(“Sauda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Manuel Ban<strong>de</strong>ira”). <strong>Vinicius</strong> se põe a mitificar algumas figurase alguns locais que representam as camadas mais pobres. O pesca<strong>do</strong>r, aquem ele pe<strong>de</strong> que traga uma tainha gorda para Maria Mulata, as meninasque se ven<strong>de</strong>m por pouco (“Balada <strong>do</strong> Mangue”), a mulata que a to<strong>do</strong>s seentregava facilmente, e que lhe roubara, na infância, a virginda<strong>de</strong> (“Rosário”),a mulher simples, tornada musa (“Valsa à mulher <strong>do</strong> povo”). A sua percepçãosocial, embora aguçada, não é (e não será nunca) prioritária, porque <strong>Vinicius</strong>foi o poeta da mulher. Mas é neste momento que ele <strong>de</strong>sce à base subterrâneada pirâmi<strong>de</strong> social, sentin<strong>do</strong>-se também pertencente a ela – recuperan<strong>do</strong>assim um passa<strong>do</strong> <strong>de</strong> humilda<strong>de</strong> e <strong>de</strong> pobreza que tentara redimir pela a<strong>de</strong>sãoa um discurso espiritualista.Sem dúvida, em 1942, ao percorrer o Nor<strong>de</strong>ste brasileiro, sentin<strong>do</strong>-setão estrangeiro como seu acompanhante, o poeta vai se posicionar como umrevolta<strong>do</strong> social, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> para trás o <strong>de</strong>sejo i<strong>de</strong>aliza<strong>do</strong>r <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong>nova, fundada na busca <strong>de</strong> uma pureza impossível, <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m meramenteintelectual. Mas há um outro componente que, soman<strong>do</strong>-se a estas duassituações vividas, vai consolidar a opção <strong>do</strong> poeta: um profun<strong>do</strong> sentimento<strong>de</strong> irmanda<strong>de</strong> que a II Guerra Mundial criou nas pessoas mais distantes, que23


MIGUEL SANCHES NETOse viram partícipes <strong>do</strong>s conflitos bélicos. Renegan<strong>do</strong> seu fascismo juvenil, elepô<strong>de</strong> fazer parte, por exemplo, da FEB, não <strong>de</strong> forma real, mas pela ligaçãoafetiva com Rubem Braga, correspon<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> guerra na Itália, a quem ren<strong>de</strong>homenagem no poema-carta “Mensagem a Rubem Braga”, dan<strong>do</strong> notícias<strong>do</strong> Rio:[...] Digam-lhe, porém, que muito o invejamosTati e eu, e as sauda<strong>de</strong>s são gran<strong>de</strong>s, e eu seria muito felizDe po<strong>de</strong>r estar um pouco ao seu la<strong>do</strong>, farda<strong>do</strong> <strong>de</strong> segun<strong>do</strong> sargento.Essa co-participação na guerra é crucial para que <strong>Vinicius</strong> se encaminhe<strong>de</strong>finitivamente para um discurso mais humano e mais volta<strong>do</strong> para o outro,levan<strong>do</strong>-o a enxergar para além <strong>de</strong> seu gran<strong>de</strong> tema, a mulher. A sua poéticanessa quadra histórica está estampada em um poema (“Mensagem à poesia”)vincula<strong>do</strong> aos conflitos bélicos, no qual o autor se dirige à amada para dizerque a sua preocupação no momento não é com o amor a ela, mas com algomaior, no qual este amor também está incluí<strong>do</strong>: “Digam-lhe que estoutristíssimo, mas não posso ir esta noite ao seu encontro. / Contem-lhe que hámilhões <strong>de</strong> corpos a enterrar / Muitas cida<strong>de</strong>s a reerguer, muita pobreza pelomun<strong>do</strong>”. Diante <strong>do</strong> sofrimento alheio, o poeta <strong>de</strong>ve se manter alerta, atento à<strong>do</strong>r coletiva, afastan<strong>do</strong>-se <strong>de</strong> seus interesses pessoais: “Não <strong>de</strong>vo [...]<strong>de</strong>bruçar-me sobre mim quan<strong>do</strong> a meu la<strong>do</strong> / Há fome e mentira: e o pranto<strong>de</strong> uma criança sozinha numa estrada / Junto a um cadáver <strong>de</strong> mãe”. Essedistanciamento da amada que está perto <strong>de</strong>le e a aproximação <strong>de</strong> umarealida<strong>de</strong> distante na geografia, mas muito próxima psicologicamente, é maisum elemento que mostra o po<strong>de</strong>r unifica<strong>do</strong>r da guerra, que fez <strong>de</strong> boa parte<strong>do</strong> Oci<strong>de</strong>nte uma única e gran<strong>de</strong> nação.Um aforismo poético <strong>de</strong> Murilo Men<strong>de</strong>s, outro amigo importante naformação <strong>de</strong> <strong>Vinicius</strong>, po<strong>de</strong> ilustrar sinteticamente essa dissolução da distânciaque se <strong>de</strong>u na primeira meta<strong>de</strong> <strong>do</strong>s anos quarenta:No ano <strong>de</strong> bombar<strong>de</strong>ar Paris <strong>de</strong>stelhavam a casa <strong>de</strong> meu pai.(Carta geográfica, “Fragmentos <strong>de</strong> Paris”)Foi nesse momento que se consoli<strong>do</strong>u a sensibilida<strong>de</strong> para o outro numpoeta que canta suas emoções e sentimentos íntimos, legan<strong>do</strong>-lhe uns poucostextos engaja<strong>do</strong>s. O mais importante, no entanto, não é propriamente o24


VINICIUS DE MORAES: O POETA DA PROXIMIDADEengajamento <strong>do</strong> poeta, mas reconhecer que foi este olhar volta<strong>do</strong> aos seressimples que configurou uma ternura para as coisas <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, vistas nas ruas enas praias, presente tanto em poemas como nas letras <strong>de</strong> música e nas crônicas.Assim, ao ingressar no Itamaraty, em 1943, <strong>Vinicius</strong> se encontrava empleno processo <strong>de</strong> re<strong>de</strong>finição <strong>de</strong> rota, re<strong>de</strong>scobrin<strong>do</strong> uma pátria terrena naqual outrora se sentira estrangeiro. No campo da poesia, e paralelamente aoque se dava em sua percepção social, o poeta luta para negar a força centrípeta<strong>do</strong> grupo espiritualista, afirman<strong>do</strong> sua liberda<strong>de</strong> no amor e na poesia, <strong>de</strong>stina<strong>do</strong>a viver poeticamente na e para a mulher. Além disso, ele trazia pulsan<strong>do</strong> nalembrança a frustrada trajetória artística <strong>de</strong> seu pai, preterida em nome <strong>de</strong>uma regularida<strong>de</strong> econômica advinda <strong>de</strong> pequena função burocrática, na qualse consumiu anonimamente o poeta que, no passa<strong>do</strong>, tivera o incentivo <strong>de</strong>Olavo Bilac.<strong>Vinicius</strong> tinha consegui<strong>do</strong> resolver o conflito <strong>de</strong> duplicida<strong>de</strong> que o marcaratão profundamente e lutaria para não se <strong>de</strong>ixar confundir com a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> dafunção que acabara <strong>de</strong> conquistar. Em Los Angeles, para on<strong>de</strong> fora <strong>de</strong>signa<strong>do</strong>como vice-cônsul em 1946, sofre, quatro anos <strong>de</strong>pois, a perda <strong>do</strong> pai, paraquem escreve: “Elegia na morte <strong>de</strong> Clo<strong>do</strong>al<strong>do</strong> Pereira da Silva <strong>Moraes</strong>, poetae cidadão”. Sete anos <strong>de</strong>pois da entrada no Itamaraty, ele <strong>de</strong>ixa algumaspistas, ao tratar <strong>de</strong>sta morte, sobre o que trazia consigo. O pai, <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>como poeta, é resgata<strong>do</strong> <strong>de</strong> sua condição <strong>de</strong> funcionário, mais visívelsocialmente. Afirmar isso no título <strong>do</strong> poema é operar uma inversão na figura<strong>do</strong> homem que foi poeta apenas na intimida<strong>de</strong> da família, fazen<strong>do</strong> com queesta mudança da or<strong>de</strong>m <strong>do</strong>s termos funcione como <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> princípios.No final <strong>do</strong> poema, ao tratar das injustiças sofridas pelo funcionário e poetaeternamente esqueci<strong>do</strong>, <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong>sloca as atribuições, tiran<strong>do</strong> o pai <strong>do</strong> papelno qual ele se anulou:Eras, meu pai mortoUm gran<strong>de</strong> Clo<strong>do</strong>al<strong>do</strong>Capaz <strong>de</strong> sonharMelhor e mais altoPrecursor <strong>do</strong> binômioQue reverteriaAo nome originalSemente <strong>do</strong> sêmenRevolucionário25


MIGUEL SANCHES NETOGentil-homem insignePoeta e funcionárioSempre preteri<strong>do</strong>Nunca titular[...]Pai da Poesia.Reverten<strong>do</strong> os qualificativos “funcionário e poeta”, na sequencia em queeles se efetivaram na existência <strong>do</strong> cidadão Clo<strong>do</strong>al<strong>do</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong>, <strong>Vinicius</strong>redime a história paterna e já anuncia o que só viria a ser <strong>de</strong>clara<strong>do</strong> em uma<strong>de</strong> suas canções, “Samba da bênção”, lançada em seu primeiro show, naboate carioca Au Bom Gourmet, em 1962: “Eu, por exemplo, o capitão <strong>do</strong>mato / <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong> / Poeta e diplomata”. Está, por fim, explicitada amaneira como ele se via, fugin<strong>do</strong> da perigosa trajetória paterna.Não po<strong>de</strong>ria mesmo tornar-se um funcionário exemplar, volta<strong>do</strong>prioritariamente para as tarefas diplomáticas, restan<strong>do</strong>-lhe profissionalmentea promoção por antiguida<strong>de</strong>: cônsul <strong>de</strong> segunda classe em 01/09/1950 ecônsul <strong>de</strong> primeira classe em 6 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1959. Ele estava predisposto alevar, em qualquer função que ocupasse, uma vida <strong>de</strong> amor e poesia,inteiramente entregue ao gozo da vida. É sobre isto que discorre, por interpostapessoa, num poema para aquela que foi sua segunda companheira, ReginaPe<strong>de</strong>rneira, funcionária <strong>do</strong> Itamaraty – em “Balada das arquivistas”. Ven<strong>do</strong>as belas jovens no cuida<strong>do</strong> diário e atento <strong>do</strong>s papéis da burocracia, o poetaexige que elas <strong>de</strong>ixem o serviço e procurem os namora<strong>do</strong>s:Oh jovens anjos cativosQue as asas vos machucaisNos armários <strong>do</strong>s arquivos!Delicadas funcionáriasDa mais fria das prisõesÉ triste ver-vos, suavesentre monstros impassíveis[...]Conheceis, mudas, a nuO lixo das promoçõesE das exoneraçõesA bem <strong>do</strong> serviço público26


VINICIUS DE MORAES: O POETA DA PROXIMIDADE[...]No fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> meu silêncioEu vos incito a lutar<strong>de</strong>sContra o Prefixo que venceOs anjos acorrenta<strong>do</strong>sE ir passear pelas tar<strong>de</strong>sDe braço com os namora<strong>do</strong>s.Esse poema da década <strong>de</strong> quarenta cifra o próprio choque que <strong>Vinicius</strong>sofria com as suas novas ativida<strong>de</strong>s, das quais, ao longo <strong>de</strong> sua carreiradiplomática, ele, sempre que possível, foge, entregue ao pleno exercício (maisvivi<strong>do</strong> na carne <strong>do</strong> que posto no papel) da poesia. Essa ética <strong>do</strong> prazer e suaescancarada orientação à esquerda, como não po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser, vãogerar um relacionamento tumultua<strong>do</strong> entre o poeta e alguns <strong>do</strong>s companheiros<strong>de</strong> trabalho e superiores, culminan<strong>do</strong> em sua aposenta<strong>do</strong>ria compulsória em30 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1969, com base no artigo XI, parágrafo I <strong>do</strong> Ato Institucionalnº 5, que suspen<strong>de</strong>u as garantias constitucionais e legais, facultan<strong>do</strong> aoPresi<strong>de</strong>nte da República <strong>de</strong>mitir, remover e aposentar funcionários comvencimentos proporcionais ao tempo <strong>de</strong> serviço.<strong>Vinicius</strong> mantém-se sempre fiel a seu <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> poeta boêmio, indiferenteaos percalços burocráticos e políticos – um poeta que vai se distancian<strong>do</strong> <strong>do</strong>poema e buscan<strong>do</strong> consolidar outras vocações cultivadas secundariamente,como a música e o cinema – praticadas em nome da poesia. Depois <strong>de</strong>erigida a figura <strong>do</strong> poeta no universo erudito, ele passa a se <strong>de</strong>dicar com maisassiduida<strong>de</strong> a outras ocupações artísticas, escassean<strong>do</strong> as coletâneas poéticas,que dão lugar a livros <strong>de</strong> crônicas, peças <strong>de</strong> teatro e letras <strong>de</strong> música –principalmente estas lhe trarão a nomeada popular.Não obstante essa gradativa escassez <strong>de</strong> poesia escrita, é possívelvislumbrar o ganho qualitativo na produção <strong>de</strong> <strong>Vinicius</strong> durante seu tempo <strong>de</strong>diplomata, em postos como Los Angeles, Paris e Montevidéu. Seria cegueiracrítica injustificável <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rar o amadurecimento <strong>do</strong> poeta que passalongos perío<strong>do</strong>s fora da pátria. Isso teve repercussão direta em sua produção.Analisan<strong>do</strong> o drama intelectual vivi<strong>do</strong> por Joaquim Nabuco, figura axialda cultura brasileira <strong>do</strong> século XIX, Wilson Martins <strong>de</strong>tectou a luta entreduas forças antagônicas, que puxam os intelectuais para fora <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> e, aomesmo tempo, empurra-as <strong>de</strong> volta – a isso o crítico chamou <strong>de</strong> “atração <strong>do</strong>mun<strong>do</strong>” e “atração <strong>do</strong> país” que, em Minha formação, livro <strong>de</strong> 1900, se27


MIGUEL SANCHES NETOmanifestava pela presença intelectual da Europa e a sentimental <strong>do</strong> espaçoem que Nabuco se criou. Vale a pena reler esta bela página da reflexão sobrenossa condição bipartida:Estamos assim con<strong>de</strong>na<strong>do</strong>s à mais terrível das instabilida<strong>de</strong>s, e é istoo que explica o fato <strong>de</strong> tantos sul-americanos preferirem viver naEuropa... Não são os prazeres <strong>do</strong> rastaquerismo, como se crismou emParis a vida elegante <strong>do</strong>s milionários da Sul-América, a explicação émais <strong>de</strong>licada e mais profunda: é a atração das afinida<strong>de</strong>s esquecidas,mas não apagadas, que estão em to<strong>do</strong>s nós, da nossa comum origemeuropeia. A instabilida<strong>de</strong> a que me refiro provém <strong>de</strong> que na Américafalta à paisagem, à vida, ao horizonte, à arquitetura, a tu<strong>do</strong> que noscerca, o fun<strong>do</strong> histórico, a perspectiva humana; e que na Europa nosfalta a pátria, isto é, a fôrma em que cada um <strong>de</strong> nós foi vaza<strong>do</strong> aonascer. De um la<strong>do</strong> <strong>do</strong> mar, sente-se a ausência <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>; <strong>do</strong> outro,a ausência <strong>do</strong> país. O sentimento em nós é brasileiro, a imaginaçãoeuropeia. (Minha formação, p. 49)Habitante <strong>de</strong> um outro tempo, quan<strong>do</strong> se estabelecia a hegemonia norteamericana,<strong>Vinicius</strong>, que tinha se forma<strong>do</strong> na língua francesa, cujos gran<strong>de</strong>sescritores lhe influenciaram, também vivia, pelo viés <strong>do</strong> cinema, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> umhorizonte americano, sofren<strong>do</strong> assim uma dupla atração <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, tanto porParis, capital cultural da Europa eterna, quanto pela nova se<strong>de</strong> artística daAmérica, Hollywood, que disseminava filmes e i<strong>de</strong>ologias. Não foi, por acaso,portanto, que o poeta se encaminhou para Los Angeles.Nomea<strong>do</strong> para este posto em 1946, on<strong>de</strong> fica até 1950, quan<strong>do</strong> morreseu pai, <strong>Vinicius</strong> po<strong>de</strong> se entregar a to<strong>do</strong>s os divertimentos <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong>festivo, conhecen<strong>do</strong> gente e técnicas <strong>do</strong> cinema. Perío<strong>do</strong> mais volta<strong>do</strong> àobservação <strong>do</strong>s acontecimentos <strong>do</strong> cinema e <strong>do</strong> jazz, em que o poeta nãoproduziu muita poesia, esses anos apresentam como resulta<strong>do</strong> direto o contatocom um mun<strong>do</strong> que, para ele, era apenas ficção em celulói<strong>de</strong>. Seus poemasamericanos, no entanto, são raros e se <strong>de</strong>stacam principalmente comocenários, tal como: “Crepúsculo em Nova York” e “História passional,Hollywood, Califórnia”.Depois <strong>de</strong> uma temporada no Rio e <strong>de</strong> viagens para a Europa, parte em1953 para Paris, on<strong>de</strong> fica lota<strong>do</strong> até 1957. São nos anos parisienses que seintensifica a “atração <strong>do</strong> país”, que já se manifestara em seu outro posto,28


VINICIUS DE MORAES: O POETA DA PROXIMIDADEquan<strong>do</strong> ele escrevera “Balada <strong>do</strong> Morto Vivo”, recuperan<strong>do</strong> um casoamazônico, e um poema como “Pátria minha”, nova canção <strong>do</strong> exílio, em que<strong>Vinicius</strong> humaniza a pátria, transforman<strong>do</strong>-a em mulher acolhe<strong>do</strong>ra, fiel portantoà sua poética da paixão:Pátria minha, e perfuma o teu chão...Que vonta<strong>de</strong> me vem <strong>de</strong> a<strong>do</strong>rmecer-meEm teus <strong>do</strong>ces montes, pátria minhaAtento à fome em tuas entranhasE ao batuque <strong>do</strong> teu coração.Pelo último verso, percebemos em sua obra uma maior visibilida<strong>de</strong> dacultura musical popular, que seduzirá o poeta daqui para frente, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> <strong>de</strong>ser uma paixão meio secreta. Em outro poema <strong>de</strong>ssa época, “Copacabana”,ele liga sua poesia a essa praia carioca, antecipan<strong>do</strong> sua futura personalida<strong>de</strong><strong>de</strong> habitante das geografias planas. Troca as montanhas, presentes nos poemasda fase inicial, e símbolos da elevação rumo ao sublime, pelo nível zero <strong>de</strong>altitu<strong>de</strong>, novo en<strong>de</strong>reço poético.Além <strong>de</strong> dar à imaginação estrangeira uma <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> <strong>de</strong> coisaexperimentada, essas longas permanências fora <strong>do</strong> país <strong>de</strong>svelam o sentimento<strong>do</strong> país, que ele saberá incorporar às suas letras e à sua maneira <strong>de</strong> ser apartir <strong>de</strong> fins <strong>do</strong>s anos cinquenta, perío<strong>do</strong> em que a música ganha importância(principalmente financeira) em sua vida e o projeta num outro nível <strong>de</strong>recepção, mais amplo. Começam então os retratos enamora<strong>do</strong>s <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>,tu<strong>do</strong> funcionan<strong>do</strong> no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> atraí-lo <strong>de</strong> volta a esta fôrma em que nasceu,da qual ele se sente separa<strong>do</strong>, como confessa em “Poema <strong>de</strong> Auteil”: “Nãohá nenhuma razão no mun<strong>do</strong> [...] / Para eu estar andan<strong>do</strong> nesse meio-dia poresta rua estrangeira / Eu <strong>de</strong>via estar andan<strong>do</strong> numa rua chamada Travessa DiCavalcanti / No Alto da Tijuca, ou melhor na Gávea, ou melhor ainda, nola<strong>do</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> Ipanema”.Todavia, o mais próximo <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> que consegue chegar é Montevidéu –posto que assume em 1958.Quan<strong>do</strong> <strong>de</strong> sua saída <strong>de</strong> Los Angeles, um milionário americano nãocompreen<strong>de</strong> a opção <strong>do</strong> cônsul que po<strong>de</strong>ria permanecer mais tempo nosEsta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s. Esse raciocínio autocentra<strong>do</strong> receberá uma resposta nosmesmos termos, em um poema incluí<strong>do</strong> sob a rubrica <strong>de</strong> “A lua <strong>de</strong>Montevidéu”:29


MIGUEL SANCHES NETOMe diga sinceramente uma coisa, Mr. Buster:O Sr. sabe lá o que é um choro <strong>do</strong> Pixinguinha?O Sr. sabe lá o que é uma jabuticabeira no quintal?O Sr. sabe lá o que é torcer pelo Botafogo?Perguntas incompreensíveis para um estrangeiro, mas que dão ao poetarazões para retornar. É ainda em Montevidéu que surge, em 1958, um retrato<strong>do</strong> poeta como jovem, o que estava perfeitamente sincroniza<strong>do</strong> com a postura<strong>de</strong> prazer perene e <strong>de</strong> novas conquistas amorosas <strong>de</strong> <strong>Vinicius</strong>. “O poetaaprendiz” recupera uma infância alegre e ativa, em versos breves e musicais(o poema viria a ser musica<strong>do</strong>), mostran<strong>do</strong>-o como um ser que colecionaacha<strong>do</strong>s <strong>do</strong> chão e ama todas as mulheres, tanto as vadias como as suas tias.Este texto é mais uma das poéticas <strong>de</strong> <strong>Vinicius</strong>, posta em prática em um viver,a partir <strong>do</strong>s anos sessenta, sob o signo da juventu<strong>de</strong>, que vai incorporar umvisual e um comportamento hippies. Há portanto uma inversão em suatrajetória. Aproxima-se <strong>de</strong> um discurso mais antiqua<strong>do</strong> nos anos <strong>de</strong> estreia,assumin<strong>do</strong> posturas ascéticas e posições elitistas, para aos poucos se <strong>de</strong>sfazer<strong>de</strong>sta vestimenta pesada e ir re<strong>de</strong>scobrin<strong>do</strong> e valorizan<strong>do</strong> a maneira <strong>de</strong>spojadada alma a<strong>do</strong>lescente, que o torna contemporâneo <strong>de</strong> gerações bem maisnovas.O retorno sentimental às coisas <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> coinci<strong>de</strong> com a recuperaçãosimbólica <strong>do</strong> tempo da infância através da figura <strong>do</strong> poeta aprendiz, “ummenino valente e caprino, um pequeno infante, sadio e grimpante”.Os anos fora <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, a serviço <strong>do</strong> Itamaraty, ocupam um papelimportante em sua produção, reconheci<strong>do</strong> pelo poeta que, ao organizar asobras completas, criou três rubricas para abrigar poemas: “Nossa Senhora<strong>de</strong> Los Angeles”, “Nossa Senhora <strong>de</strong> Paris” e “A lua <strong>de</strong> Montevidéu” –sugerin<strong>do</strong> assim a relevância <strong>de</strong> sua estada no estrangeiro, que lhe <strong>de</strong>u umapoética <strong>do</strong> retorno.Num poema incompleto que se dirige a Millôr Fernan<strong>de</strong>s, “Poesiacoligidas”, <strong>Vinicius</strong> sente-se <strong>de</strong> volta à pátria amada: “sou apenas o filhopródigo e sinto-me ainda obnubila<strong>do</strong> / <strong>de</strong> beleza”. Toda a gran<strong>de</strong>za daterra natal reaparece para o poeta, que a vê com outros olhos, valorizan<strong>do</strong>as suas pequenas coisas, que antes passavam <strong>de</strong>spercebidas. É nessesenti<strong>do</strong> que ele se enxerga, em outro texto, como “O poeta em trânsitoou o filho pródigo”, <strong>de</strong>scobrin<strong>do</strong>, em sua volta, a cida<strong>de</strong> antes habitadatimidamente.30


VINICIUS DE MORAES: O POETA DA PROXIMIDADEO mito <strong>do</strong> filho-pródigo está estreitamente vincula<strong>do</strong> à literatura <strong>de</strong>fundação da América, por abrir um caminho <strong>de</strong> fuga que culmina em outro <strong>de</strong>volta. É essa circularida<strong>de</strong> que encontramos em <strong>Vinicius</strong>, filho-pródigo que<strong>de</strong>ixou sua terra para per<strong>de</strong>r horizontes e <strong>de</strong>pois retornou a ela, fundan<strong>do</strong>-aem uma poesia marcada pelo sentimento local e pelo amor à mulhermorenamente tropical. Octavio Paz, ao analisar o caso <strong>do</strong>s poetas latinoamericanos<strong>do</strong> fim <strong>do</strong> século passa<strong>do</strong>, <strong>de</strong>tectou este movimento <strong>de</strong> fundação:“O caminho até Palenque ou até Buenos Aires passava quase sempre porParis. A experiência <strong>de</strong>stes poetas e escritores confirma que para voltar àcasa é necessário primeiro arriscar-se e aban<strong>do</strong>ná-la. Somente regressa ofilho pródigo” (p. 19).É essa experiência estrangeira ligada ao aguçamento da sensibilida<strong>de</strong>nacional que configura a face mais conhecida <strong>de</strong> <strong>Vinicius</strong>, a <strong>de</strong> intérprete <strong>de</strong>um povo que assume sua diferença pela tradição musical (afirmação <strong>de</strong> umacultura africanizada), <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> a poesia mais erudita em segun<strong>do</strong> plano. Nãopo<strong>de</strong>mos encarar isso como algo negativo, e sim como o encaminhar natural<strong>de</strong> uma poética que vai se <strong>de</strong>spren<strong>de</strong>n<strong>do</strong> <strong>de</strong> conceitos centraliza<strong>do</strong>res parase entregar aos eventos <strong>de</strong> um cotidiano <strong>de</strong> praias, bebidas, amiza<strong>de</strong>s, paixõese acasos. É assim que a poesia da distância, <strong>de</strong>ntro da qual <strong>Vinicius</strong> estreara,vê-se irreversivelmente invertida na poesia da proximida<strong>de</strong> plena.BibliografiaCALVINO, Italo. O caminho <strong>de</strong> San Giovanni. São Paulo: Cia das Letras,2000.MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira. São Paulo: T. A.Queiroz, 1996.MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Nova Aguilar,1994.BUENO, Alexei (Org.). Poeta completa e prosa. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Nova Aguilar,1998.MORAES, <strong>Vinicius</strong>. Poesia completa e prosa (org. Alexei Bueno). Rio <strong>de</strong>Janeiro: Nova Aguilar, 1998.31


MIGUEL SANCHES NETONABUCO, Joaquim. Minha formação. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Topbooks, 1999.PAZ, Octavio. Puertas al campo. Barcelona: Seix Barral, 1981.32


<strong>Vinicius</strong>, Poeta e Diplomata, na Música PopularRicar<strong>do</strong> Cravo AlbinDizer-se que a música popular brasileira é <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>ra – e muito – dapoesia e da presença <strong>de</strong> <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong> é quase lugar-comum,repeti<strong>do</strong> à exaustão em to<strong>do</strong>s os manuais escolares. Menos usual,contu<strong>do</strong>, é dizer-se que se <strong>de</strong>ve também à passagem <strong>de</strong> <strong>Vinicius</strong> pelaMPB a inconveniência <strong>do</strong> apeli<strong>do</strong>, “Poetinha”, que lhe fora pespega<strong>do</strong>ao começo <strong>do</strong>s anos sessenta por duas razões. A primeira, pela maneirarenitentemente carinhosa <strong>do</strong> poeta em usar e abusar <strong>do</strong> diminutivo “inho”,aplica<strong>do</strong> a amigos, parceiros e até objetos <strong>do</strong> seu universo afetivo, como,por exemplo, o uisquinho, ou a cervejinha. E, finalmente, porque algunsamigos seus, jornalistas e cronistas <strong>do</strong> porte <strong>de</strong> Sérgio Porto e AntônioMaria, começaram a acarinhá-lo em citações e até crônicas pelodiminutivo, no exato momento em que sua popularida<strong>de</strong> pessoal subia àestratosfera, alavancada pela consagração mundial da bossa nova, apartir <strong>de</strong> 1962.Eu sempre consi<strong>de</strong>rei a palavra “poetinha” preconceituosa. Deinício, ela era um afago apenas admissível aos mais íntimos. Depois,contu<strong>do</strong>, passou a ganhar a força dramática <strong>do</strong> próprio diminutivo,servin<strong>do</strong>, muitas vezes, para uma interpretação caolha e até maligna daobra, da poesia e até da pessoa <strong>do</strong> gran<strong>de</strong> poeta, um ser humanosuperlativo. Ou seja, a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> “poetinha” passaria a ser aviltante, quasesinônimo, para muitas pessoas, <strong>de</strong> poeta <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte, <strong>de</strong> bicão da33


RICARDO CRAVO ALBINliteratura, <strong>de</strong> pân<strong>de</strong>go, até <strong>de</strong> bufão <strong>de</strong> parolagens ou <strong>de</strong> festas etílicasem que se celebrassem, noite e dia, a indigência intelectual e as farras maisgrosseiras.Ao menos, nessa exata acepção <strong>de</strong> menosprezo e repugnância, a palavra“poetinha” teria si<strong>do</strong> dita pelo General Presi<strong>de</strong>nte Costa e Silva ao entãoMinistro das Relações Exteriores, José <strong>de</strong> Magalhães Pinto, quan<strong>do</strong> o <strong>de</strong>sligouda carreira diplomática. Um caudilho <strong>de</strong> ocasião cortava-lhe abruptamente aprofissão, que ele cumprira décadas a fio e da qual retirava seu sustentopessoal. Com efeito, ten<strong>do</strong> em vista o que constava <strong>do</strong> processo MRE 312.4/69, <strong>Vinicius</strong> foi aposenta<strong>do</strong> em 29 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1969, pelo Ato Institucional nº5, <strong>de</strong> 13 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1968, como primeiro secretário da Carreira <strong>de</strong>Diplomata.O ato colocava um ponto final a uma série <strong>de</strong> insatisfações <strong>do</strong> poeta como governo militar que se encastelara no po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1964. O fato é quenesse perío<strong>do</strong> – 1964 a 1969 – o reconhecimento público a <strong>Vinicius</strong> comocompositor e cantor o elevara a uma posição única. Ele não era apenas ogran<strong>de</strong> poeta <strong>de</strong> antologia, incensa<strong>do</strong> pela crítica e pelos ca<strong>de</strong>rnos literários,mas também uma sólida li<strong>de</strong>rança no meio musical <strong>do</strong> país, que vivia entãoum momento culminante, galar<strong>do</strong>a<strong>do</strong> pelos polêmicos festivais da canção.Essa febre <strong>do</strong>s festivais começara nos meses iniciais <strong>de</strong> 1965, quan<strong>do</strong> atelevisão Excélsior <strong>de</strong> São Paulo lançou o primeiro <strong>de</strong>les, cujo ganha<strong>do</strong>rseria, nada mais, nada menos, que <strong>Vinicius</strong>. A música intitulava-se “Arrastão”e nela o já consagra<strong>do</strong> letrista lançou Edu Lobo, um jovem cantor e compositor<strong>de</strong> quase vinte anos, filho <strong>do</strong> seu amigo <strong>de</strong> tertúlias musicais <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o começo<strong>do</strong>s anos 50, o jornalista e compositor Fernan<strong>do</strong> Lobo. A intérprete da músicafoi a cantora gaúcha Elis Regina, também apadrinhada por <strong>Vinicius</strong> e cujapopularida<strong>de</strong>, que era nenhuma, começou a subir em nível meteórico, fazen<strong>do</strong><strong>de</strong>la uma estrela <strong>de</strong> primeira gran<strong>de</strong>za em poucos meses.Para surpresa geral, e também para consagração <strong>de</strong> <strong>Vinicius</strong>, o segun<strong>do</strong>lugar <strong>do</strong> mesmo festival ficou com “Valsa <strong>do</strong>s anos que não vêm”, interpretadapela cantora Elizeth Car<strong>do</strong>so e que era uma parceria sua com Ba<strong>de</strong>n Powell,violonista excepcional com quem ele começara a fazer música três anos antes.Aliás, esses festivais <strong>de</strong> música popular ajudaram muitíssimo a consolidar osnovos talentos que neles viam a possibilida<strong>de</strong> única <strong>de</strong> se lançarem para to<strong>do</strong>o país. Porque, e pela porta <strong>do</strong>s festivais, tanto os <strong>do</strong> Rio quanto os <strong>de</strong> SãoPaulo, consolidaram-se nomes como Edu, Chico Buarque (“A Banda”, 1966,FIC - Rio), Dori Caymmi-Nelson Motta (“Saveiros”, 1966, Festival da34


VINICIUS, POETA E DIPLOMATA, NA MÚSICA POPULARRecord), Milton Nascimento (“Travessia”, 1967, FIC - Rio) e muitos outroscomo Caetano e Gil, Martinho da Vila, Paulinho da Viola, Ivan Lins,Gonzaguinha, Aldir Blanc, <strong>de</strong>ntre tantos.<strong>Vinicius</strong>, é verda<strong>de</strong>, só ganharia o primeiro <strong>do</strong>s festivais, mas sempreestimulava novos e antigos parceiros a inscrever suas músicas. O último <strong>do</strong>sgran<strong>de</strong>s festivais, a meu juízo, seria o Internacional da Canção <strong>do</strong> Rio,transmiti<strong>do</strong> para o <strong>Brasil</strong> e para o mun<strong>do</strong> pela já po<strong>de</strong>rosa TV Globo. Ali,travou-se a batalha musical entre “Sabiá” (<strong>de</strong> Chico Buarque e Tom Jobim) e“Caminhan<strong>do</strong>” (<strong>de</strong> Geral<strong>do</strong> Vandré). <strong>Vinicius</strong> estava no Maracanãzinho,torcen<strong>do</strong> discreta mas fervorosamente pelos amigos e parceiros Tom e Chico.Em <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> momento dirigiu-se ao júri, <strong>do</strong> qual eu fazia parte ao la<strong>do</strong> <strong>de</strong>outros amigos <strong>de</strong>le, como Eneida, Paulo Men<strong>de</strong>s Campos e Ary Vasconcellos,e me segre<strong>do</strong>u com a <strong>do</strong>çura e <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za habituais: “– Olha, eu tenho certeza<strong>de</strong> que você vota no “Sabiá” apenas pela qualida<strong>de</strong> inquestionável da música.O meu me<strong>do</strong> é que os ânimos políticos estejam exacerba<strong>do</strong>s e que a Eneidaou o Paulinho (Men<strong>de</strong>s Campos) e até o Ary, ou mesmo o Alceu Bocchino,votem politicamente no Vandré. E aí Tom e Chico se estrepam. “<strong>Vinicius</strong>concluiu com sabe<strong>do</strong>ria sua fraterna recomendação: “Convença-os <strong>de</strong> quepoliticamente nós to<strong>do</strong>s estamos ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> Vandré. Mas musicalmente nóstemos que estar com Tom e Chico. Até porque isso é um festival <strong>de</strong> música.E se o público daqui quer a política e não a música, o público vai ficar aindamais contra a ditadura, se o júri <strong>de</strong>r o prêmio à música e não à política”.<strong>Vinicius</strong> estava certo. Tu<strong>do</strong> o que previra foi o que aconteceu. Vandré per<strong>de</strong>u,Tom e Chico ganharam, embaixo da mais injusta vaia que registra a históriada música popular brasileira. E “Caminhan<strong>do</strong> – Pra dizer que não falei <strong>de</strong>flores” acabou por se transformar num <strong>do</strong>s estopins da <strong>de</strong>cretação <strong>do</strong> AI-5,que fez exilar centenas <strong>de</strong> brasileiros, inclusive boa parte <strong>do</strong>s envolvi<strong>do</strong>s nofestival. Além <strong>de</strong> castrar a carreira diplomática <strong>do</strong> já consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> maior letristada MPB em seu tempo, o poeta <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong>.Na verda<strong>de</strong>, esse embriaga<strong>do</strong>r interesse pela música popular chegariamuito ce<strong>do</strong>. Não fossem seus pais músicos ama<strong>do</strong>res – Clo<strong>do</strong>al<strong>do</strong> eraviolonista e Lídia pianista –, eu ficaria tenta<strong>do</strong> a consi<strong>de</strong>rar que o tio Henrique<strong>de</strong> Mello <strong>Moraes</strong>, boêmio e melômano aficciona<strong>do</strong> por samba e choro, teriasi<strong>do</strong> o maior responsável por fazer registrar na alma <strong>do</strong> menino <strong>Vinicius</strong> todaa sedução pela música popular carioca. Pois foi na casa <strong>do</strong>s pais, na Ilha <strong>do</strong>Governa<strong>do</strong>r, on<strong>de</strong> a família <strong>Moraes</strong> passou a morar a partir <strong>de</strong> 1922, embusca <strong>de</strong> melhores ares para a frágil Dona Lídia, que o futuro poeta abriu os35


RICARDO CRAVO ALBINouvi<strong>do</strong>s – e o coração – ao choro, à seresta, à valsa e ao samba. Possotestemunhar, num encontro que promovi com Bororó, Pixinguinha e <strong>Vinicius</strong>no bar Gouveia – lá pelos i<strong>do</strong>s <strong>de</strong> 1967, 1968 – que ouvi o poeta pedir aambos que se recordassem <strong>do</strong> repertório que era executa<strong>do</strong> nos saraus daIlha em 22, on<strong>de</strong> eles iam leva<strong>do</strong>s pelo Mello <strong>Moraes</strong>. No que Pixinguinhacantarolou uma valsa – cujo nome me foge – os olhos claros <strong>de</strong> <strong>Vinicius</strong>foram fican<strong>do</strong> vermelhos e encheram-se <strong>de</strong> lágrimas. Era a música preferida<strong>de</strong> Dona Lídia, que a acompanhava ao piano enquanto o som da flauta <strong>de</strong>Pixinguinha a<strong>de</strong>ntrava o jardim coberto <strong>de</strong> manacás, rosas e buganvílias. Osom agu<strong>do</strong> perpassava pelos tranquilos chalés da vizinhança e possivelmentechegava a atingir a praia <strong>de</strong> Cocotá, on<strong>de</strong> passeavam namora<strong>do</strong>s, bêba<strong>do</strong>sou pacatas <strong>do</strong>nas <strong>de</strong> casa, to<strong>do</strong>s em busca <strong>do</strong> frescor da noite perfumada.<strong>Vinicius</strong>, no segun<strong>do</strong> livro que publicou, Forma e exegese, em 1935, fala daIlha <strong>do</strong> Governa<strong>do</strong>r <strong>de</strong> sua infância:Esse ruí<strong>do</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> mar invisível são barcos passan<strong>do</strong>Esse ei/ou que ficou nos meus ouvi<strong>do</strong>s são os pesca<strong>do</strong>res esqueci<strong>do</strong>sEles vêm reman<strong>do</strong> sob o peso <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s mágoasVêm <strong>de</strong> longe e murmuran<strong>do</strong> <strong>de</strong>saparecem no escuro quieto.Não seria essa, certamente, a Ilha <strong>de</strong> hoje, cercada por favelas on<strong>de</strong> sehomiziam quadrilhas <strong>de</strong> traficantes que matam entre si. O poeta jamais po<strong>de</strong>riaimaginar que seria aquela a mesma Ilha que hoje abriga o aeroportointernacional, cujo nome é Antônio Carlos Jobim, a maior <strong>de</strong>ntre todas ashomenagens prestadas a seu parceiro, o primeiro e o mais famoso <strong>de</strong>ntreto<strong>do</strong>s os <strong>de</strong>mais.Em 1924, pela mesma época que frequentava saraus na Ilha, <strong>Vinicius</strong>entrou no Colégio Santo Inácio, em Botafogo. Logo ingressaria no coro,confirman<strong>do</strong> o encanto pela música. Foi ali que conheceu os irmãos Paulo eHarol<strong>do</strong> Tapajós, ambos igualmente toca<strong>do</strong>s pelo fascínio da música popular.A tal ponto que colecionavam os velhos e pesa<strong>do</strong>s discos 78 RPM <strong>de</strong> AracyCortes, Vicente Celestino e <strong>do</strong>s Oito Batutas, formação orquestral li<strong>de</strong>radapor Pixinguinha. Paulo emprestava alguns <strong>de</strong>sses discos a <strong>Vinicius</strong>, que osouvia com unção na victrola paterna, entre um e outro intervalo <strong>do</strong>s pesa<strong>do</strong>s<strong>de</strong>veres escolares <strong>do</strong> curso que já se aproximava <strong>do</strong> final. Em 1927, cursan<strong>do</strong>o último ano <strong>do</strong> Santo Inácio, o poeta esboça sua primeiríssima tentativa <strong>de</strong>fazer música popular para valer. Formou, junto com Harol<strong>do</strong> e Paulo Tapajós,36


VINICIUS, POETA E DIPLOMATA, NA MÚSICA POPULARum conjunto que tocava em festinhas nas casas <strong>do</strong>s amigos. Curioso notar-seque, pela mesma época, meninos um a três anos mais talu<strong>do</strong>s formavam, emoutro ponto da cida<strong>de</strong>, Vila Isabel, o esboço inicial <strong>do</strong> “Ban<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Tangarás”,cujo núcleo estava também em colégio <strong>de</strong> padres, o São Bento. O conjuntoera li<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> por um talento precoce chama<strong>do</strong> Noel Rosa, que logo <strong>de</strong>poisinjetaria toda sua veia poética exclusivamente na música popular, e que tinhacomo parceiros Braguinha (o João <strong>de</strong> Barro) e Almirante. Enquanto Noelcompunha no Tangarás sua primeira música, “Minha Viola”, na forma matuta(então muito em voga pelo sucesso <strong>do</strong> conjunto “Turunas da Mauriceia”),<strong>Vinicius</strong> estreava com um foxtrot bem ao gosto da música americana.Chamava-se “Loura ou Morena”. Portanto, em 1928, na flor <strong>do</strong>s quinzeanos, ele antecipava uma singular apetência em relação a to<strong>do</strong>s os tipos <strong>de</strong>mulheres:Se por acaso o amor me agarrarQuero uma loura pra namorarCorpo bem feito, magro, perfeitoE o azul <strong>do</strong> céu no olharQuero também que saiba dançarQue seja clara como o luarSe isso se <strong>de</strong>r, posso dizerQue amo uma mulherMas se uma loura eu não encontrarUma morena é o tom, uma pequenaLinda morena, era o i<strong>de</strong>alMas uma lourinha não era malCabelo louro vale um tesouroÉ meu tipo fenomenalCabelos negros têm seu lugarPele morena convida a amarQue vou fazer?Ah! Eu não sei como é que vai serOlho as mulheres, que <strong>de</strong>sesperoQue <strong>de</strong>sespero <strong>de</strong> amorÉ a lourinha, é a moreninhaMeu Deus, que horror!Se da morena vou me lembrar37


RICARDO CRAVO ALBINLogo na loura fico a pensarLouras, morenasEu quero apenas a todas glorificarSou bem constanteNo amor sou lealLouras, morenas, sois o i<strong>de</strong>alHaja o que houverEu amo em todas, somente a mulher.O foxtrot, musica<strong>do</strong> pelo Harol<strong>do</strong> Tapajós, seria grava<strong>do</strong>, em 1932,por Paulo e Harol<strong>do</strong>, em dupla, inician<strong>do</strong> historicamente as carreiras <strong>do</strong>sirmãos, especialmente Paulo, que jamais <strong>de</strong>ixaria a música popular e o rádio.E, também, <strong>de</strong> <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong>, cujo gosto pela MPB teria curta duração,ao menos em seu início. Porque a partir <strong>de</strong>ssa época, ele começa a priorizara literatura e a Faculda<strong>de</strong> Nacional <strong>de</strong> Direito, on<strong>de</strong> ingressou no ano seguinte,1929. Ali, o poeta trava relacionamento com uma <strong>de</strong> suas maiores influências,o romancista Octávio <strong>de</strong> Faria que, <strong>de</strong>scobrin<strong>do</strong> e incentivan<strong>do</strong> sua vocaçãoliterária, acaba por afastá-lo aos poucos, embora <strong>do</strong>cemente, da seduçãodas vesperais e das noites <strong>de</strong> músicas, músicos e cantores, o que eraconsi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> ao começo <strong>do</strong>s 30 a “boemia musical”.Octávio leva <strong>Vinicius</strong> a voos que ele consi<strong>de</strong>rava mais altos, o convíviocom os escritores e pintores. Era um outro viés <strong>de</strong> boemia, a “boemiaintelectual”. Por essa época, Manuel Ban<strong>de</strong>ira, Oswald <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> e Mário<strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> ficaram seus amigos. Este último, segun<strong>do</strong> o próprio <strong>Vinicius</strong> metestemunhou, era um <strong>do</strong>s poucos amigos intelectuais que ao vê-lo sempre lhepedia opiniões sobre a música popular carioca, seus cantores e compositores.Em 1933, ano em que terminou os cursos <strong>de</strong> Direito e <strong>do</strong> CPOR (Centro<strong>de</strong> Formação <strong>de</strong> Oficiais da Reserva), dá a lume seu primeiro livro, O caminhopara a distância, pela Schmidt Editora (<strong>do</strong> poeta Augusto Fre<strong>de</strong>rico Schmidt),edição recolhida <strong>de</strong>pois pelo autor. E lança também o fox Dor <strong>de</strong> uma sauda<strong>de</strong>(música <strong>de</strong> J. Medina), além <strong>de</strong> Namora<strong>do</strong> da lua, Canção para alguém,Diga, moreninha e Doce ilusão, todas com música <strong>de</strong> Harol<strong>do</strong> Tapajós,sen<strong>do</strong> duas <strong>de</strong>las gravadas e lançadas pela Victor, mas sem maioresrepercussões. A falta <strong>de</strong> reconhecimento público <strong>de</strong> suas músicas iniciais fezo poeta <strong>de</strong>dicar-se com afinco à literatura, o que lhe permitiu prazeres maissuculentos, como o Prêmio Felipe d’ Oliveira para o livro Forma e Exegese,concorren<strong>do</strong> com Jorge Ama<strong>do</strong>, aliás uma sua admiração. Foi, portanto, a38


VINICIUS, POETA E DIPLOMATA, NA MÚSICA POPULARpartir da literatura, e não da música, que começou a ser fala<strong>do</strong> e reconheci<strong>do</strong>nos círculos intelectuais <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, a partir <strong>do</strong>s anos 30, década, <strong>de</strong> resto,vertiginosa para o seu <strong>de</strong>sabrochar público. Assim é que em 1936, mesmoano em que começa a brilhar com intensida<strong>de</strong> a estrela <strong>de</strong> Orlan<strong>do</strong> Silva, aquem <strong>Vinicius</strong> consi<strong>de</strong>raria o maior cantor <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, ele é <strong>de</strong>signa<strong>do</strong> para atalvez mais incompreensível <strong>de</strong> suas funções, a <strong>de</strong> censor cinematográfico.Representan<strong>do</strong> o Ministério da Educação e Cultura, terá si<strong>do</strong> o mais amável<strong>do</strong>s censores, liberan<strong>do</strong> praticamente to<strong>do</strong>s os filmes. No que quase semprenão era acompanha<strong>do</strong> pelos <strong>de</strong>mais colegas, rígi<strong>do</strong>s e furibun<strong>do</strong>s, como eramesmo <strong>de</strong> se esperar <strong>do</strong>s guardiões da moral pública <strong>do</strong> regime autoritárioinstituí<strong>do</strong> pela Constituição Polaca <strong>de</strong> 1937. <strong>Vinicius</strong> se <strong>de</strong>svencilha das funções<strong>de</strong> censor, quan<strong>do</strong>, em 1938, ganha uma bolsa <strong>do</strong> Conselho Britânico paraestudar língua e literatura inglesas na Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Oxford, <strong>de</strong> on<strong>de</strong>retornaria no ano seguinte, ao eclodir a Segunda Gran<strong>de</strong> Guerra.Chegan<strong>do</strong> ao Rio em 1939, mergulha, como nunca, <strong>de</strong>ntro da alma cariocaque, apesar <strong>do</strong> começo da guerra, resplan<strong>de</strong>cia na música popular. Afinal, oRio vivia as rebarbas da época <strong>de</strong> ouro, que trouxe a opulência <strong>do</strong> rádio e <strong>do</strong>disco elétrico, além <strong>de</strong> centenas <strong>de</strong> canções que varavam o <strong>Brasil</strong> comosetas sonoras, projetadas por um exército cada vez maior <strong>de</strong> compositores eintérpretes. Carmen Miranda era a estrela absoluta <strong>do</strong> rádio, <strong>do</strong> disco e <strong>do</strong>Cassino da Urca. <strong>Vinicius</strong> chegou até a ajudá-la, em 1939, na tradução dasconversas entre ela e seu <strong>de</strong>scobri<strong>do</strong>r para o estrelato internacional, o produtorda Broadway Lee Schubert. Nas incursões por <strong>de</strong>ntro da música popular,aliás, <strong>Vinicius</strong> tinha um passaporte fixo, seu tio Mello <strong>Moraes</strong>, <strong>do</strong>no <strong>de</strong> sóli<strong>do</strong>prestígio junto a to<strong>do</strong> o universo musical carioca, que ia das estações <strong>de</strong>rádio e <strong>do</strong>s cassinos da Zona Sul às biroscas e tendinhas das fraldas <strong>do</strong>smorros cariocas, especialmente o da Mangueira, a lendária Escola <strong>de</strong> Samba<strong>de</strong> Cartola, Zé Com Fome (o Zé da Zilda) e Geral<strong>do</strong> Pereira. <strong>Vinicius</strong>,aparentemente não escreven<strong>do</strong> mais para a canção popular, mergulha <strong>de</strong>corpo e alma na noite carioca. Por essa época faz uma crônica que eratestemunho <strong>do</strong> seu interesse pela MPB e cuja história lhe fora soprada porum jovem colega seu <strong>do</strong> Itamaraty.Intitulada “Samba <strong>de</strong> Breque”, a página narra uma historinha singular: ocolega subia a Lopes Quintas, on<strong>de</strong> os pais <strong>de</strong> <strong>Vinicius</strong> moravam, e ao passarpor uma pequena vila ouve o som <strong>de</strong> um cavaquinho, irrequieto e saltitante.O jovem pára, hipnotiza<strong>do</strong> pela magia <strong>do</strong> instrumento executa<strong>do</strong>, e resolvea<strong>de</strong>ntrar a casa. Depara-se, contu<strong>do</strong>, com uma cena insólita. No meio da39


RICARDO CRAVO ALBINsala um pequeno caixão <strong>de</strong> <strong>de</strong>funto era vela<strong>do</strong> por senhoras cabisbaixas esoluçantes. Ele olha a cena e, constrangi<strong>do</strong>, prepara-se para sair, quan<strong>do</strong> amãe da criança-<strong>de</strong>funta, toma-lhe pelo braço e o leva a um outro aposento,on<strong>de</strong> o cavaquinista – olhos injeta<strong>do</strong>s pela vermelhidão <strong>do</strong> sofrimento – pe<strong>de</strong>que ele fique alguns minutos mais, porque tem uma coisinha para lhe mostrar.Perplexo, o jovem ouve o pai <strong>do</strong> menino morto cantar, entre soluços, o seunovo samba <strong>de</strong> breque, acaba<strong>do</strong> <strong>de</strong> compor:A minha mulher sem falaE no ambiente flores milE sobre a mesaTo<strong>do</strong> vesti<strong>do</strong> <strong>de</strong> anjinhoO Manduca, meu filhinhoTinha estica<strong>do</strong> o pernil.E aí o homem dava uma paradinha, respirava fun<strong>do</strong> e finalizava com obreque surpreen<strong>de</strong>nte, quase insultuoso, não fosse a acachapante ingenuida<strong>de</strong><strong>de</strong> compositor popular:O meu filhinhoJá durinhoGeladinho...Em 1941, <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong> abraça uma outra profissão, a <strong>de</strong> jornalista,empregan<strong>do</strong>-se como crítico <strong>de</strong> cinema no jornal A Manhã, mas colaboran<strong>do</strong>também no seu suplemento literário e ainda na revista Clima, dirigida pelocrítico Antônio Cândi<strong>do</strong>.O espírito ar<strong>de</strong>nte e inquieto <strong>do</strong> poeta logo o faria envolver-se em umapolêmica sobre cinema, cujas raízes estavam plantadas em intelectuaisfranceses: ele começa a <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r, apaixonadamente, a integrida<strong>de</strong> estética<strong>do</strong> cinema mu<strong>do</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>z, quinze anos antes. A polêmica se espalhou e a<strong>Vinicius</strong> ficaria pespega<strong>do</strong>, por algum tempo, o rótulo <strong>de</strong> “crítico reacionárioe passadista”. Aliás, essa paixão pela imagem – e pelo cinema – marcaria seuprimeiro casamento com Beatriz Azeve<strong>do</strong> <strong>de</strong> Mello <strong>Moraes</strong>, a Tati, intelectual<strong>de</strong> esquerda e também crítica <strong>de</strong> cinema durante muitos anos seguintes. Osfilhos <strong>do</strong> casal, Susana (1940) e Pedro (1942) vieram a abraçar a imagem. Aprimeira seria cineasta e o segun<strong>do</strong>, fotógrafo.40


VINICIUS, POETA E DIPLOMATA, NA MÚSICA POPULAREnquanto <strong>de</strong>senvolvia sua polêmica atuação <strong>de</strong> crítico <strong>de</strong> cinema, começaa preparar-se para aquela que seria a sua verda<strong>de</strong>ira profissão, <strong>de</strong>pois, éclaro, <strong>de</strong> poeta, escritor e boêmio: a <strong>de</strong> diplomata. Aconselha<strong>do</strong> por Oswal<strong>do</strong>Aranha, <strong>Vinicius</strong> resolve prestar exames para o Itamaraty.A escolha da diplomacia não lhe terá si<strong>do</strong> uma súbita paixão ou umavocação irresistível. Antes, a vida diplomática lhe propiciaria a paz necessáriapara elaborar sua obra e também, por que não?, para consolidar arepercussão internacional que sua poesia já esboçava. O Itamaraty, pois,foi uma escolha pragmática, e não apaixonada. Até porque <strong>Vinicius</strong>, emnenhum momento, <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser o poeta, o escritor, o espírito livre <strong>de</strong>amarras, ante qualquer circunstância funcional. Especialmente naquela queeu consi<strong>de</strong>ro como sua última fase <strong>de</strong> diplomata, a <strong>de</strong> seu reconhecimentopúblico como estrela da música popular, que vai <strong>de</strong> 1956 – com a encenação<strong>de</strong> Orfeu da Conceição e com o início da parceria com Antônio CarlosJobim – até 1969, quan<strong>do</strong> é aposenta<strong>do</strong> compulsoriamente pelo AtoInstitucional nº 5. Já a primeira fase <strong>do</strong> diplomata <strong>Vinicius</strong> é mais amena,aquela que vai <strong>de</strong> sua nomeação em 1943 até sua entrada <strong>de</strong>finitiva comocompositor <strong>de</strong> música popular, em 1956.Foi nomea<strong>do</strong> para o cargo inicial da carreira <strong>de</strong> diplomata, classe J, <strong>do</strong>Quadro Permanente, por <strong>de</strong>creto <strong>de</strong> 10 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1943, assina<strong>do</strong>pelo Presi<strong>de</strong>nte Getúlio Vargas e pelo Chanceler Oswal<strong>do</strong> Aranha. No diaseguinte, o chefe <strong>do</strong> Departamento <strong>de</strong> Administração, Carlos Alves <strong>de</strong>Sousa, comunica à Casa a <strong>de</strong>signação <strong>do</strong> poeta para a Divisão Econômicae Social, on<strong>de</strong>, em apenas um mês <strong>de</strong> serviço, recebe <strong>do</strong> Ministro MárioMoreira da Silva as notas máximas (cem pontos) no processo <strong>de</strong> confirmação<strong>do</strong>s funcionários recém-admiti<strong>do</strong>s, aos quais eram conferi<strong>do</strong>s pontos emitens, até bizarros hoje, como discrição, pontualida<strong>de</strong>, iniciativa, urbanida<strong>de</strong>,capacida<strong>de</strong> intelectual, disciplina, <strong>de</strong>dicação ao serviço e – surpresa maior!– caráter.Aliás, em relação a <strong>do</strong>is <strong>de</strong>sses itens, discrição e disciplina, o poeta viusemeti<strong>do</strong> em sério apuro <strong>do</strong>is anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> nomea<strong>do</strong>. O fato ocorreria nolimiar <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> re<strong>de</strong>mocratização <strong>de</strong> 1945. O escritor Aníbal Macha<strong>do</strong>,cujas tertúlias literárias o poeta frequentava no casarão <strong>de</strong> Ipanema, solicitou– como presi<strong>de</strong>nte da Associação <strong>Brasil</strong>eira <strong>de</strong> Escritores – sua dispensa <strong>de</strong>ponto no Itamaraty. Seriam <strong>de</strong>z dias, 22 <strong>de</strong> janeiro a 2 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1945,para integrar a <strong>de</strong>legação carioca ao Primeiro Congresso <strong>Brasil</strong>eiro <strong>de</strong>Escritores, realiza<strong>do</strong> em São Paulo.41


RICARDO CRAVO ALBINO Cônsul <strong>Vinicius</strong> foi ao Congresso com <strong>do</strong>is outros colegas <strong>de</strong> Ministério,o Secretário Jayme <strong>de</strong> Azeve<strong>do</strong> Rodrigues e o Cônsul Lauro Escorel Rodrigues<strong>de</strong> <strong>Moraes</strong>. Os três tiveram o topete <strong>de</strong> assinar um manifesto em que, comofuncionários <strong>de</strong> carreira, pediam a volta <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> direito e <strong>de</strong>sancavam opróprio governo a que serviam. O <strong>do</strong>cumento, amplamente publica<strong>do</strong> pelaimprensa carioca e paulista, provocou fúria em alguns chefetes <strong>do</strong>s trêsdiplomatas, que só não foram <strong>de</strong>miti<strong>do</strong>s porque isso po<strong>de</strong>ria enfraquecerainda mais o governo, já cambaleante. Insta<strong>do</strong> por escrito pelo chefe <strong>do</strong>Departamento <strong>de</strong> Pessoal, Ministro José Roberto <strong>de</strong> Mace<strong>do</strong> Soares, aconfirmar suas <strong>de</strong>clarações, respon<strong>de</strong>u em seco memoran<strong>do</strong> data<strong>do</strong> <strong>de</strong> 12<strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1945: “Em resposta ao memorandum pelo qual pe<strong>de</strong>-me VossaExcelência informar se a inclusão <strong>do</strong> meu nome entre os signatários <strong>do</strong>Manifesto da Associação <strong>Brasil</strong>eira <strong>de</strong> Escritores é autêntica, tenho a honra<strong>de</strong> levar ao seu conhecimento que ela é autêntica. Respeitosamente. <strong>Vinicius</strong><strong>de</strong> <strong>Moraes</strong>, Diplomata, Classe J.”O <strong>Brasil</strong> efervescia em 1945, enquanto a guerra acabava. Vargas caía eto<strong>do</strong>s queriam passar o velho mun<strong>do</strong> a limpo. <strong>Vinicius</strong> também efervescia, oumelhor, resplan<strong>de</strong>cia na construção <strong>de</strong> novos poemas e na sofreguidão davida boêmio-intelectual exercida em horas intermináveis nos bares Amarelinho,Vermelhinho e Vilarinho. Era o tempo da entrega aos amigos, on<strong>de</strong> eleamadurecia e se tornava mais sábio no confronto das i<strong>de</strong>ias, regadas peloconvívio ameno e pela bebida abundante. Paralelamente ao circuito <strong>do</strong>s baresem “inho” <strong>do</strong> centro da cida<strong>de</strong> (Amarelinho, Vermelhinho e Vilarinho) e à<strong>do</strong>ação aos amigos, <strong>Vinicius</strong> começa a marcar presença no jornalismo,tornan<strong>do</strong>-se cronista e esgrimin<strong>do</strong> sua velha paixão, a crítica <strong>de</strong> cinema.Em 1946, é <strong>de</strong>staca<strong>do</strong> para seu primeiro posto no exterior, Los Angeles,não sem razão capital mundial <strong>do</strong> cinema, sua permanente sedução. Ali, <strong>Vinicius</strong>permaneceria entre 16 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1946 a 5 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1950, ocasiãoem que foi <strong>de</strong>signa<strong>do</strong> Cônsul <strong>de</strong> 2ª classe, por antiguida<strong>de</strong>, apesar <strong>de</strong> tersi<strong>do</strong> sempre avalia<strong>do</strong> com notas máximas por seu colega Sérgio Corrêa daCosta, intelectual como ele e que era o seu chefe imediato. Aliás, amboschegaram a ser tão amigos, que fizeram juntos um roteiro cinematográfico –hoje infelizmente perdi<strong>do</strong> – a que intitularam “Boul<strong>de</strong>r Dam”, uma citação àgran<strong>de</strong> represa americana.Logo que <strong>de</strong>sembarca na Califórnia, <strong>Vinicius</strong> procura Orson Welles, aquem conhecera nas noites boêmias <strong>do</strong> Rio, especialmente no Cassino daUrca. O cineasta havia passa<strong>do</strong> alguns meses no <strong>Brasil</strong>, tentan<strong>do</strong> filmar o42


VINICIUS, POETA E DIPLOMATA, NA MÚSICA POPULARinacaba<strong>do</strong> It’s all true, quan<strong>do</strong> se encantou pelo carnaval carioca e pelasedução <strong>do</strong>s ritmos brasileiros e <strong>de</strong> seus intérpretes. O poeta foi logo dizen<strong>do</strong>que queria uma indicação para fazer um curso <strong>de</strong> cinema, ao que Wellesrespon<strong>de</strong>u com sua voz grave, quase pastosa: “– Você não vai fazer nadadisso, que é perda <strong>de</strong> tempo. Quan<strong>do</strong> eu filmar, eu lhe chamo e você apren<strong>de</strong>cinema <strong>de</strong> maneira direta. É mais inteligente”. Dito e feito. Se <strong>Vinicius</strong> nãoaplicou os ensinamentos práticos <strong>de</strong> Welles, foi porque não quis, já queacompanhou toda a filmagem <strong>de</strong> <strong>do</strong>is clássicos <strong>do</strong> Orson Welles, A Dama<strong>de</strong> Xangai (com Rita Hayworth, mulher <strong>do</strong> diretor) e Macbeth. Mas nem só<strong>de</strong> cinema alimenta-se ele em Los Angeles. O jazz entra em sua vida através<strong>de</strong> mestres como Louis Armstrong e Dizzy Gillespie ou ainda da novíssimamúsica que começava a aparecer nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, o West Coast Jazz,salpicada <strong>de</strong> estrelas jovens como Stan Kenton e Chet Baker, músicos queinspirariam os garotos da bossa nova, no Rio a partir <strong>de</strong> 1957 ou 1958.O pai Clo<strong>do</strong>al<strong>do</strong> morre em 1950 e <strong>Vinicius</strong> resolve voltar ao <strong>Brasil</strong>,permanecen<strong>do</strong> lota<strong>do</strong> na Chancelaria, <strong>do</strong> final <strong>de</strong> 1950 até 1953. Convémregistrar que em Hollywood, contu<strong>do</strong>, o poeta não só aproveitou para construirsóli<strong>do</strong>s poemas e conviver <strong>de</strong> perto com figuras <strong>do</strong> cinema que lhe erammíticas, quase inacessíveis. Desenvolveu uma intensa amiza<strong>de</strong> com CarmenMiranda, a quem ele conhecia <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os tempos <strong>do</strong> Cassino da Urca.Frequentan<strong>do</strong>-lhe a casa, mansão milionária plantada no setor mais exclusivodas gran<strong>de</strong>s estrelas <strong>do</strong> cinema em Beverly Hills, o poeta e diplomata conviveu,mesmo distante, com toda a atualida<strong>de</strong> da MPB. A casa <strong>de</strong> Carmen era umaembaixada, viva e reluzente, por on<strong>de</strong> passavam quase to<strong>do</strong>s os brasileirosque iam parar em Los Angeles, especialmente compositores, músicos eintérpretes liga<strong>do</strong>s à cantora. De resto, seus amigos e admira<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Rio amantinham informada <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> que se passava no meio musical carioca.Quan<strong>do</strong> resolveu retornar ao <strong>Brasil</strong>, um milionário americano, um certoMr. Buster – possível apeli<strong>do</strong> jocoso pespega<strong>do</strong> a um certo amigo americanomanti<strong>do</strong> anônimo – disse-lhe que na compreendia como ele voltaria para aLatin America pobre, ten<strong>do</strong> o direito <strong>de</strong> ficar um ano ainda em Los Angeles.O poeta, posto em brios, e esvain<strong>do</strong>-se em sauda<strong>de</strong>s, não per<strong>de</strong>u tempo efez um poema:Olhe aqui Mr. Buster: está muito certo que o senhor tenha umapartamento em Park Avenue e uma casa em Beverly Hills.Está muito certo que em seu apartamento em Park Avenue43


RICARDO CRAVO ALBINO senhor tenha um caco <strong>de</strong> friso <strong>do</strong> ParthenonE no quintal <strong>de</strong> sua casa em Hollywood o senhor tenha um poço <strong>de</strong>petróleoTrabalhan<strong>do</strong> <strong>de</strong> dia para lhe dar dinheiro e à noite para lhe darinsôniaEstá muito certo que em ambas as residências o senhor tenhagigantescas gela<strong>de</strong>irasCapazes <strong>de</strong> conservar o seu preconceito racial(...)Está tu<strong>do</strong> muito certo, Mr. Buster – o senhor ainda acabarágoverna<strong>do</strong>r <strong>do</strong> seu esta<strong>do</strong>E sem dúvida presi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> muitas companhias <strong>de</strong> petróleo, aço econsciências enlatadasMas me diga uma coisa, Mr. BusterMe diga sinceramente uma coisa, Mr. BusterO senhor sabe lá o que é um choro <strong>de</strong> Pixinguinha?O senhor sabe lá o que é ter uma jaboticabeira no quintal?O senhor sabe lá o que é torcer pelo Botafogo?”No Rio, <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong> <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> enveredar por <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> jornalismocom mais firmeza. Trabalhan<strong>do</strong> no Palácio <strong>do</strong> Itamaraty da velha Rua Larga,o poeta mantém no jornal Última Hora, uma participação muito ativa,assinan<strong>do</strong> uma crônica diária que tinha o título genérico <strong>de</strong> “Na hora H”. Aofinal <strong>de</strong> 1952, está lota<strong>do</strong> num setor burocrático chama<strong>do</strong> Comissão <strong>de</strong>Organismos Internacionais e ali recebe um diplomata em cargo inicial, AfonsoArinos <strong>de</strong> Melo Franco, filho <strong>de</strong> queri<strong>do</strong> amigo seu, também intelectual <strong>de</strong>primeira linha.O jovem Afonso, futuro integrante da Aca<strong>de</strong>mia <strong>Brasil</strong>eira <strong>de</strong> Letras (em1999), afeiçoa-se ao poeta e testemunha uma outra faceta singular <strong>do</strong> <strong>Vinicius</strong>jornalista. Certa tar<strong>de</strong>, o contínuo da Última Hora, que diariamente recolhiaa matéria <strong>do</strong> colabora<strong>do</strong>r e lhe entregava correspondência, chegou aoItamaraty com uma enorme caixa entupida <strong>de</strong> cartas. Afonso, entre surpresoe curioso, pergunta-lhe se aquela montanha <strong>de</strong> correspondência era para ele.“– Não, é para a Helenice”, respon<strong>de</strong> o poeta meio sem jeito. Helenice era atitular <strong>do</strong> consultório sentimental que era publica<strong>do</strong> no semanário Flan,edita<strong>do</strong> pela Última Hora a cada <strong>do</strong>mingo, on<strong>de</strong> também escrevia OttoLara Resen<strong>de</strong>. Muita gente imaginava que a coluna “Helenice” pu<strong>de</strong>sse ser44


VINICIUS, POETA E DIPLOMATA, NA MÚSICA POPULARfeita (ou ao menos inspirada) por Helle-Nice, mulher francesa <strong>de</strong> notorieda<strong>de</strong>no Rio intelectual <strong>do</strong>s anos 30. Ela era uma senhora <strong>de</strong> hábitos consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>savança<strong>do</strong>s para a época – cigarro sempre à boca, lábios muito vermelhos,roupas ousadas, <strong>de</strong>cotes escandalosos. Helle-Nice dava-se ao luxo <strong>de</strong> sercorre<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> automóveis e disputou várias vezes o circuito da Gávea, lápelos anos <strong>de</strong> 37 a 39. Ficou célebre na crônica automobilística o aci<strong>de</strong>nteocorri<strong>do</strong> com sua baratinha azul <strong>de</strong> corrida, quan<strong>do</strong> uma roda <strong>do</strong> carro soltousee matou quatro pessoas.“– Mas, <strong>Vinicius</strong>, e por que essas cartas todas vêm para você e não vãopara a Helenice?”, questionou Afonso. “– Ora, Afonsinho, a Helenice sou eu.Desse mo<strong>do</strong>, o jornal me paga mais um bom dinheirinho... Ah! se você quisersaber o porquê da montanha <strong>de</strong> correspondência, é <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à receita secretacontra a perda <strong>de</strong> cabelo que eu prometi dar para quem me escrevesse.Aliás, é ótima, você ainda não precisa, mas se algum dia quiser, anote aí:escove o couro cabelu<strong>do</strong> com uma escova <strong>de</strong> pelos <strong>de</strong> arame e lave bastantecom sabão Aristolino. É tiro e queda!”Naquela altura, início <strong>do</strong>s anos 50, o eixo da boemia musical se<strong>de</strong>slocara da Lapa para as boates <strong>de</strong> Copacabana. O samba-canção<strong>do</strong>lori<strong>do</strong>, em que corações <strong>de</strong>spedaça<strong>do</strong>s e amores frustra<strong>do</strong>s eram a tônicaforte, estava em franca ascensão junto ao gosto <strong>do</strong> público. Havia um da<strong>do</strong>novíssimo e estimulante no front da música carioca. Era o interesse <strong>de</strong>poetas e jornalistas, muitos <strong>de</strong>les liga<strong>do</strong>s a jornais, como Antônio Maria,Fernan<strong>do</strong> Lobo, Reynal<strong>do</strong> Dias Leme, Sérgio Porto, Ricar<strong>do</strong> Galeno, emingressar na canção popular para cantar a solidão ou a <strong>do</strong>r <strong>do</strong> amor. Masnão era uma maladie d’amour qualquer, porque, helàs!, era assumidamenteinspirada no chique das caves francesas <strong>de</strong> Sartre e Simone <strong>de</strong> Beauvoir,on<strong>de</strong> o existencialismo transbordava angústia e solidão, personificadas nocanto rouco e sombrio da musa Juliette Greco. <strong>Vinicius</strong> ficouimpressionadíssimo quan<strong>do</strong> seu amigo Antônio Maria – cujo comportamentointelectual e bagagem literária lhe eram familiares, até muito próximos –estreou como compositor da “fossa existencial” com “Ninguém me ama” e“Se eu morresse amanhã <strong>de</strong> manhã”.Em 1953, embriaga<strong>do</strong> pela atmosfera noire em que mergulhara boa parteda música carioca, a mesma que estava sen<strong>do</strong> preferida pelo público, o poetareestreia na MPB como letrista, justamente ao la<strong>do</strong> <strong>de</strong> Antônio Maria. Elança “Quan<strong>do</strong> tu passas por mim”, grava<strong>do</strong> quase ao mesmo tempo porDóris Monteiro e por uma <strong>de</strong> suas melhores amigas, a cantora Aracy <strong>de</strong>45


RICARDO CRAVO ALBINAlmeida. Este samba-canção inicial <strong>do</strong> poeta ostenta uma letra <strong>de</strong> insuspeitaqualida<strong>de</strong>:Quan<strong>do</strong> tu passas por mimPor mim passam sauda<strong>de</strong>s cruéisPassam sauda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> um tempoEm que a vida eu vivia a teus pésQuan<strong>do</strong> tu passas por mimPassam coisas que eu quero esquecerBeijos <strong>de</strong> amor infiéisJuras que fazem sofrerQuan<strong>do</strong> tu passas por mimPassa o tempo e me leva para trásLeva-me a um tempo sem fimA um amor on<strong>de</strong> o amor foi <strong>de</strong>maisE eu que só fiz te a<strong>do</strong>rarE <strong>de</strong> tanto te amar penei mágoas sem fimHoje nem olho para trásQuan<strong>do</strong> passas por mim.Segun<strong>do</strong> Afonso Arinos <strong>de</strong> Mello Franco, <strong>Vinicius</strong> escreveu o poema paraTati <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong>, <strong>de</strong> quem começava a separar-se. Afonso saía com o poeta <strong>do</strong>Itamaraty e quase to<strong>do</strong>s os dias caminhavam a pé até a redação da ÚltimaHora, então localizada logo <strong>de</strong>pois da Central <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, a poucos quarteirõesda Chancelaria. Ali ficavam conversan<strong>do</strong>, numa rodinha só <strong>de</strong> homens, comOtto Lara Resen<strong>de</strong>, Hélio Pellegrino, Nelson Rodrigues, entre outros. Tati, queassinava a crítica <strong>de</strong> cinema <strong>do</strong> jornal, passava para cima e para baixo, semparar uma vez sequer, constrangida pelo esta<strong>do</strong> <strong>de</strong>teriora<strong>do</strong> em que o casamentose encontrava. Enquanto dizia a<strong>de</strong>us a Tati com Quan<strong>do</strong> tu passas por mim,começava a dar as boas vindas a Lila Bôscoli, com o Poema para os olhos daamada. Com ela, aliás, encontrava-se a cada noite no Maxim’s da AvenidaAtlântica, escala imediatamente posterior às rodas <strong>de</strong> amigos da Última Hora.Aliás, a nova e fulminante paixão era presenciada por outro grupo <strong>de</strong> fiéisescu<strong>de</strong>iros <strong>do</strong> poeta, a que não faltavam Sérgio Porto, Paulo Men<strong>de</strong>s Campos,Antônio Maria e Afonso Arinos <strong>de</strong> Mello Franco.Com Aracy <strong>de</strong> Almeida, Araca, como chamava a quase inseparável amiga,<strong>Vinicius</strong> fundaria, junto com Fernan<strong>do</strong> Lobo e Paulinho Soleda<strong>de</strong>, um clube46


VINICIUS, POETA E DIPLOMATA, NA MÚSICA POPULARque não era literário, nem sequer musical. O Clube da Chave era, na verda<strong>de</strong>,um clube cria<strong>do</strong> somente para que os sócios <strong>de</strong>gustassem bebidas: cinquentasócios, to<strong>do</strong>s com uma chavinha e um armário individualiza<strong>do</strong>, on<strong>de</strong> seguardavam, única e exclusivamente, garrafas, muitas garrafas. A essa alturacom oito livros publica<strong>do</strong>s, começa a preparar a sua Antologia poética (quesairia em 1954) e, simultaneamente, passa a compor sozinho, fazen<strong>do</strong> tambéma música, ativida<strong>de</strong> que até então ele não ousara <strong>de</strong>senvolver. Sua primeiramúsica, Serenata <strong>do</strong> A<strong>de</strong>us não só se imortalizou como uma das principaisserestas <strong>do</strong>s anos 50, como também apresentou uma <strong>de</strong> suas letras maisarrebata<strong>do</strong>ras:“Ai, a lua que no céu surgiuNão é a mesma que te viuNascer <strong>do</strong>s braços meusCai a noite sobre nosso amorE agora só restou <strong>do</strong> amorUma palavra: a<strong>de</strong>us!Ai, vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> ficarMas ten<strong>do</strong> que ir emboraAi, que amar é se ir morren<strong>do</strong> pela vida aforaÉ refletir na lágrima um momento breveDe uma estrela pura cuja luz morreuAh! mulher, estrela a refulgirParte, mas antes <strong>de</strong> partirRasga o meu coraçãoCrava as garras no meu peito em <strong>do</strong>rE esvai em sangue to<strong>do</strong> amor, toda <strong>de</strong>silusãoAi, vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> ficarMas ten<strong>do</strong> <strong>de</strong> ir emboraAi, que amar é se ir morren<strong>do</strong> pela vida aforaÉ refletir na lágrima um momento breveDe uma estrela pura cuja luz morreuNuma noite escura, triste como eu.Logo <strong>de</strong>pois o poeta dá a lume mais duas canções, letras suas feitas umpouco antes, ambas em parceria com o amigo Paulinho Soleda<strong>de</strong>, “Poema<strong>do</strong>s olhos da amada”–47


RICARDO CRAVO ALBINOh! minha amada que olhos os teusSão cais noturnos, cheios <strong>de</strong> a<strong>de</strong>usSão <strong>do</strong>cas mansas, trilhan<strong>do</strong> luzesQue brilham longe, longe <strong>do</strong>s breus...– e “São Francisco” (“Que ia pela estrada, tão pobrinho...”), ambasgravadas entre 1954 e 1956.Mas música popular ainda não dava dinheiro. Muito menos seu emprego<strong>de</strong> jornalista na Última Hora ou mesmo suas colaborações para revistas esuplementos literários. O remédio era pedir posto ao Itamaraty. Teve tantasorte que, em vez <strong>de</strong> ser manda<strong>do</strong> para <strong>de</strong>sterros como Afeganistão, foienvia<strong>do</strong> para Paris, on<strong>de</strong> ficaria <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1953 até novembro <strong>de</strong>1957. Como 2º secretário na Embaixada em Paris, <strong>Vinicius</strong> ostentava tambéma condição <strong>de</strong> personalida<strong>de</strong> brasileira, ou seja, era figura influente nos círculosculturais da capital francesa, relacionan<strong>do</strong>-se com a fina flor da intelligentsialocal. Autoriza<strong>do</strong> a vir ao Rio em 1956, ele por aqui fica durante quase to<strong>do</strong>o ano. Um ano, diga-se logo, <strong>do</strong>s mais <strong>de</strong>cisivos em sua vida. Especialmenteporque foi o tempo suficiente para se <strong>de</strong>finir pela paixão à música popular.Aliás, um pouco antes ele havia feito em Paris, numa manhã <strong>de</strong> sauda<strong>de</strong>s <strong>do</strong><strong>Brasil</strong>, um samba-canção, Bom dia tristeza, que acabou por entregar à amigaAracy <strong>de</strong> Almeida no Hotel Como<strong>do</strong>ro, quan<strong>do</strong> em rápida viagem a SãoPaulo, só para entrevistá-la. Aracy gostou mais da letra que da música epediu ao sambista A<strong>do</strong>niran Barbosa para mexer na melodia. Nasceu assim,sem ele sequer saber, a parceria única <strong>de</strong> <strong>Vinicius</strong> com o rei <strong>do</strong> samba paulista(autor <strong>de</strong> <strong>de</strong>lícias como Sau<strong>do</strong>sa Maloca e Samba <strong>do</strong> Arnesto). A peçaseria gravada por Aracy, como também por Maysa, pouco tempo <strong>de</strong>pois.Nesse fértil começo <strong>de</strong> 1956, <strong>Vinicius</strong> comporia ainda uma série <strong>de</strong> cançõessemi-camerísticas com Cláudio Santoro, <strong>de</strong> que resultaram pérolas comoAcalanto da rosa, Amor e lágrimas, Pregão da sauda<strong>de</strong>. O maior <strong>do</strong>sprojetos <strong>do</strong> poeta, todavia, era encenar a peça Orfeu da Conceição, queele havia feito antes, inspira<strong>do</strong>, a meu ver, na adaptação cinematográfica queo poeta e <strong>de</strong>senhista Jean Cocteau levara à tela, ao finalzinho <strong>do</strong>s anos 40,com o ator Jean Marais fazen<strong>do</strong> um Orfeu contemporâneo, nos subúrbios <strong>de</strong>Paris <strong>do</strong> pós-guerra. Já a ação da peça <strong>do</strong> nosso poeta, toda em versos, se<strong>de</strong>senvolvia numa favela carioca, em dias <strong>de</strong> carnaval.<strong>Vinicius</strong> conseguiu um financia<strong>do</strong>r (setecentos contos) e um cenaristamuito especial, o maior arquiteto brasileiro Oscar Niemeyer, cujo trabalho48


VINICIUS, POETA E DIPLOMATA, NA MÚSICA POPULARimediatamente posterior, aliás, seria projetar a nova capital, Brasília. O atorHarol<strong>do</strong> Costa faria o papel título. Mas ainda faltava o essencial, ou seja,quem fizesse a música, que, a essa altura, teria que ser popular mas sofisticada,genial mas <strong>de</strong> compreensão imediata. Procura daqui, procura dali, e nada.Alguns amigos <strong>do</strong> poeta, Sérgio Porto, Harol<strong>do</strong> Barbosa e Lúcio Rangel,ficaram especialmente mobiliza<strong>do</strong>s para encontrar o parceiro i<strong>de</strong>al. Até quealguém lembra um pianista que, tocan<strong>do</strong> em boates <strong>de</strong> Copacabana, começavauma carreira promissora <strong>de</strong> compositor e arranja<strong>do</strong>r numa grava<strong>do</strong>ra daépoca, a Continental, on<strong>de</strong> Braguinha (o João <strong>de</strong> Barro) era diretor artístico.Chamava-se Antônio Carlos Jobim, a quem <strong>Vinicius</strong> já havia visto pela noite<strong>de</strong> Copacabana, mas com quem ainda não havia conversa<strong>do</strong>.Uma certa tar<strong>de</strong>, o poeta bebericava no Vilarinho com amigos, quan<strong>do</strong>entra o jovem Jobim, imediatamente apresenta<strong>do</strong> por Lúcio Rangel a <strong>Vinicius</strong><strong>de</strong> <strong>Moraes</strong>. Nascia ali não apenas o convite para o score musical da peça.Nasciam também, os <strong>do</strong>is maiores vultos da segunda meta<strong>de</strong> <strong>do</strong> século XXem música popular brasileira: o letrista <strong>Vinicius</strong> e o compositor Tom Jobim.Nascia, finalmente, daquele encontro a mais bela coleção <strong>de</strong> canções dahistória da MPB, as canções da dupla Tom-<strong>Vinicius</strong>, cujas músicas iniciais,as <strong>do</strong> Orfeu, são Lamento no Morro, Valsa <strong>de</strong> Eurídice, Mulher sempremulher, Eu e o amor e, especialmente a monumental Se to<strong>do</strong>s fossem iguaisa você, que ficaria meses a fio em todas as paradas <strong>de</strong> sucesso.Posteriormente, seria essa uma das canções mais executadas e cantadas <strong>do</strong>país. A trilha sonora da peça, registrada em elepê (da O<strong>de</strong>o, em 10 polegadas),marcaria o início da escalada <strong>de</strong> <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong> por <strong>de</strong>ntro da imortalida<strong>de</strong>da canção popular. E seu afastamento da literatura formal...Em agosto <strong>de</strong> 1957, é removi<strong>do</strong> para o Consula<strong>do</strong> Geral em Montevidéu,mas suas intensas ativida<strong>de</strong>s musicais, subitamente requisitadas mais e mais,só o <strong>de</strong>ixariam assumir o posto muitos meses <strong>de</strong>pois, em junho <strong>de</strong> 1958.Ficaria lota<strong>do</strong> no Uruguai até 1960. Mas sua cabeça e seu coração estavam<strong>de</strong>finitivamente na música, que ele sabia que chegara, enfim, para tomá-lopor inteiro.<strong>Vinicius</strong> vem ao Rio com constância. Sua produção se acelera e ele assisteà gravação <strong>do</strong> primeiro álbum <strong>de</strong> músicas, as suas e as <strong>de</strong> Tom. Irineu Garcia,<strong>do</strong>no da grava<strong>do</strong>ra Festa, que se <strong>de</strong>dicara <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o começo <strong>do</strong>s anos 50 afazer discos <strong>de</strong> poesia (com os próprios poetas <strong>de</strong>claman<strong>do</strong>), grava e lançaem 1957 o histórico Canção <strong>do</strong> amor <strong>de</strong>mais, com arranjos <strong>de</strong> Tom, <strong>do</strong>squais era estrela a voz perfeita <strong>de</strong> Elizeth Car<strong>do</strong>so. Em duas <strong>de</strong>ssas faixas,49


RICARDO CRAVO ALBINum violão totalmente novo se ouvia. Era a primeira vez que a batida da bossanova se apresentava. Exatamente em duas canções da nova dupla Tom-<strong>Vinicius</strong>, Chega <strong>de</strong> Sauda<strong>de</strong> e Outra vez.Estava lança<strong>do</strong> o primeiro registro da bossa nova, promovi<strong>do</strong> e quasetrama<strong>do</strong> pelo poeta <strong>do</strong>s olhos claros que amava o choro e o samba tradicionaldas biroscas cariocas. Por ironia, ficaria contra esses velhos gêneros musicais(indiretamente, é verda<strong>de</strong>) boa parte <strong>do</strong>s músicos da bossa nova que a partirdaí se projetaria.Se a Lapa emoldurou a época <strong>de</strong> ouro, os anos 30, Copacabana, obairro, seria a quintessência <strong>do</strong> habitat da bossa nova. O Beco das Garrafas,composto por quatro casas, o Little Club, o Baccarat, o Bottle’s e o MaGriffe, <strong>de</strong>sembocava na Rua Duvivier. Pouco adiante estavam o 36, oCarrossel, o Manhattan e o Michel, on<strong>de</strong> <strong>Vinicius</strong> e seus amigos davam sempreuma paradinha para ouvir Dolores Duran. Depois, na Gustavo Sampaio,reluziam o Arpège e o Sacha’s.O poeta circula com gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvoltura no final <strong>do</strong>s anos 50 por essageografia etílica, on<strong>de</strong> em cada ambiente enfumaça<strong>do</strong> encontra amigos, músicae quase sempre a possível aventura <strong>de</strong> uma paixão. <strong>Vinicius</strong> pontifica, naverda<strong>de</strong>, pela cida<strong>de</strong> toda, andarilho em busca <strong>de</strong> emoções, da beleza, <strong>do</strong>safetos. Vive, como nunca, o <strong>de</strong>stino <strong>do</strong> poeta. E cada vez mais se afasta <strong>do</strong>gabinete, <strong>do</strong> formal, da obrigação diária. A diplomacia se distancia, portanto.Mas o poeta, cujo prestígio pessoal começa a ser mitifica<strong>do</strong>, é amigo <strong>do</strong>presi<strong>de</strong>nte JK, <strong>de</strong> quem recebe a encomenda <strong>de</strong> fazer uma Sinfonia paraBrasília, tarefa <strong>de</strong> que ele se <strong>de</strong>sencumbe com o parceiro Tom Jobim, e queé logo gravada em elepê <strong>de</strong> luxo (1960, capa <strong>de</strong> Oscar Niemeyer).Enquanto a parceria com Tom prossegue a to<strong>do</strong> vapor – aparecemCanção <strong>do</strong> amor <strong>de</strong>mais, Amor em paz, Eu sei que vou te amar, Brigasnunca mais, Só danço samba, entre outras duas dúzias <strong>de</strong> pérolas – maisum álbum com peças <strong>de</strong> Tom e <strong>Vinicius</strong> é edita<strong>do</strong> em refina<strong>do</strong> acabamentomusical: o elepê Por toda a minha vida, com a cantora semilírica LenitaBruno, casada com o maestro Leo Perachi. E <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> muitas marchas econtra-marchas, sai finalmente o filme <strong>de</strong> Marcel Camus Orfeu Negro, to<strong>do</strong>filma<strong>do</strong> no Rio entre 1957 e 1958, produzi<strong>do</strong> por um sujeito chama<strong>do</strong> SachaGordine, conheci<strong>do</strong> nas rodas cinematográficas francesas como “o rei <strong>do</strong>cheque sem fun<strong>do</strong>”. Segun<strong>do</strong> o poeta, porém, Gordine era “boa gente” e sóvivia em apuros porque fazia qualquer negócio para estar sempre filman<strong>do</strong>.Mesmo saben<strong>do</strong> que podia ser engana<strong>do</strong> pelo produtor (e foi mesmo, porque50


VINICIUS, POETA E DIPLOMATA, NA MÚSICA POPULARsó receberia meta<strong>de</strong> <strong>do</strong> que foi combina<strong>do</strong>), <strong>Vinicius</strong> lhe ven<strong>de</strong>u a história ese responsabilizou pela trilha sonora, encomendada a Tom (além das cançõesoriginais da peça, mais duas foram feitas especialmente, Nosso amor e AFelicida<strong>de</strong>) e a Luiz Bonfá e Antônio Maria (que compuseram Manhã <strong>de</strong>Carnaval, afinal, o gran<strong>de</strong> sucesso <strong>do</strong> score musical <strong>do</strong> filme, para certo<strong>de</strong>sapontamento <strong>de</strong> Tom e <strong>Vinicius</strong>). Havia ele pensa<strong>do</strong> em exigir 2% dabilheteria, mas acabou não o fazen<strong>do</strong>, o que, segun<strong>do</strong> me confi<strong>de</strong>nciou noMuseu da Imagem e <strong>do</strong> Som, <strong>de</strong>z anos <strong>de</strong>pois (1967), foi a maior besteiraque fez em toda a sua vida. Na verda<strong>de</strong>, o êxito <strong>do</strong> filme no mun<strong>do</strong> inteiro oteria feito milionário até morrer, apenas com aqueles aparentemente irrelevantes<strong>do</strong>is por cento...Em outubro <strong>de</strong> 1959 é promovi<strong>do</strong>, por antiguida<strong>de</strong>, a cônsul <strong>de</strong> 1ª classe.Logo <strong>de</strong>ixa Montevidéu, porque, convida<strong>do</strong> por Paulo Carneiro para servirna Delegação <strong>Brasil</strong>eira junto à UNESCO, vai para Paris, on<strong>de</strong> passará quase<strong>do</strong>is anos. As vindas ao Rio, contu<strong>do</strong>, eram cada vez mais frequentes. Abossa nova começava a se encorpar. E uma novida<strong>de</strong> alvissareira surgiria: asmelodias iniciais <strong>do</strong> parceiro Tom haviam consegui<strong>do</strong> penetrar no merca<strong>do</strong>americano, especialmente Samba <strong>de</strong> uma nota só e Desafina<strong>do</strong>, ambasfeitas com Newton Men<strong>do</strong>nça. <strong>Vinicius</strong>, contu<strong>do</strong>, também entraria logo <strong>de</strong>poisno maior merca<strong>do</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> ao compor, também com Tom, a Garota <strong>de</strong>Ipanema. A história já é lenda, mas vale repeti-la aqui: estavam Tom e ele abebericar no Bar Veloso, hoje Garota <strong>de</strong> Ipanema, quan<strong>do</strong> o olhar <strong>de</strong> ambosé arrebata<strong>do</strong> pelo andar ondulante <strong>de</strong> uma jovem que, <strong>de</strong> maiô, caminhavaem direção ao mar, ali em frente. Foi a justa conta para ser produzi<strong>do</strong>, alimesmo, o mote principal <strong>de</strong> Garota <strong>de</strong> Ipanema, em cujos versos <strong>Vinicius</strong>produziria uma <strong>de</strong>scrição exata – e enxuta – da cena carioca, uma sínteseperfeita que fica entre o bucólico e o sensual.A música daria a sequência cronológica <strong>do</strong> êxito que foi o lançamento dabossa nova nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, quan<strong>do</strong> ocorreu o Concerto <strong>do</strong> CarnegieHall, <strong>de</strong> que foi organiza<strong>do</strong>r outro colega e amigo <strong>do</strong> poeta, o diplomataMário Dias Costa. Também em 1962, torna-se, finalmente, parceiro <strong>de</strong>Pixinguinha, seu amigo e sua máxima referência em música popular, quan<strong>do</strong> oconvida para dirigir musicalmente a trilha sonora <strong>do</strong> filme Sol sobre a lama,<strong>de</strong> seu amigo, o crítico e cineasta Alex Viany. Coloca então letra em <strong>do</strong>ischoros <strong>do</strong> mestre, Lamentos e Mun<strong>do</strong> melhor, além <strong>de</strong> produzir um pequenopoema em francês para uma antiga valsa <strong>do</strong> enorme baú <strong>de</strong> melodias <strong>do</strong>Pixinguinha, que recebeu o nome <strong>de</strong> Seule, até hoje inédita.51


RICARDO CRAVO ALBINAinda neste ano começa a compor com Ba<strong>de</strong>n Powell <strong>de</strong> Aquino, aquem conhecera como solista <strong>de</strong> violão na Boate Arpège, quan<strong>do</strong> Tom Jobimfazia mais um <strong>de</strong> seus shows. Os primeiros sambas da generosa safra comBa<strong>de</strong>n foram feitos quase <strong>de</strong> uma tacada só. <strong>Vinicius</strong> levou o novo parceiropara sua casa <strong>de</strong> Petrópolis e ali se trancaram ten<strong>do</strong> por companhia umacaixa <strong>de</strong> uísque. Em menos <strong>de</strong> quinze dias estavam prontas jóias como Sambaem Prelúdio, Consolação, Apelo, Tem dó e o Samba da bênção. Neste, opoeta pe<strong>de</strong> a bênção à boa parte <strong>do</strong> olimpo centenário da MPB, começan<strong>do</strong>por chamar-se a si próprio <strong>de</strong> “capitão <strong>do</strong> mato <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong>, o brancomais preto <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, na linha direta <strong>de</strong> Xangô, saravá!”.O Samba da Bênção não apenas virou um <strong>do</strong>s cartões postais <strong>do</strong> poetaem quase todas suas apresentações públicas. Virou também um gran<strong>de</strong>problema internacional para seus autores. Em 1964, servin<strong>do</strong> em Paris eintegran<strong>do</strong> a <strong>de</strong>legação brasileira junto à UNESCO, o poeta conheceu oprodutor Pierre Barouh. Com ele negociaria a venda <strong>de</strong> um argumentocinematográfico chama<strong>do</strong> Arrastão, que resultaria num filme “<strong>de</strong>testável”,segun<strong>do</strong> <strong>Vinicius</strong>. Mais tar<strong>de</strong>, já no <strong>Brasil</strong>, Barouh pediu aos autores umagravação especial <strong>do</strong> Samba da Bênção, prometen<strong>do</strong>-lhes incluir numa gran<strong>de</strong>produção francesa.Quase <strong>do</strong>is anos <strong>de</strong>pois, em 1966, foi convida<strong>do</strong> a participar <strong>do</strong> cobiça<strong>do</strong>júri <strong>do</strong> Festival Internacional <strong>do</strong> Cinema em Cannes. Era o ano daapresentação <strong>do</strong> filme <strong>de</strong> Clau<strong>de</strong> Lelouch Um homem, uma mulher, porsinal, gran<strong>de</strong> êxito <strong>de</strong> público. <strong>Vinicius</strong>, contu<strong>do</strong>, teve dupla surpresa quan<strong>do</strong>assistiu ao filme: a primeira, a <strong>de</strong> ouvir o seu Samba da Bênção, e a segunda,a <strong>de</strong> comprovar que nos créditos finais <strong>do</strong> filme era dada uma citaçãomarotíssima que dizia apenas: “musique et paroles: Francis Lai et PierreBarouh”. Como se não apenas a canção título (“Un homme, une femme”,sucesso mundial, <strong>de</strong> resto), mas também o “Samba da Bênção fossemgenericamente da dupla francesa.<strong>Vinicius</strong> reclamou, mas Clau<strong>de</strong> Lelouch alegou que a simples inclusão<strong>do</strong>s nomes <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong> - Ba<strong>de</strong>n Powell custaria mais <strong>de</strong> 160 milfrancos. O poeta ameaçou processá-lo. Lelouch, pressiona<strong>do</strong>, incluiu o nomeda dupla brasileira no filme, muito embora, ao que comprovou <strong>de</strong>pois <strong>Vinicius</strong>,não em todas as centenas <strong>de</strong> cópias espalhadas pelo mun<strong>do</strong> inteiro...Tão intensa, aliás, seria a temporada etílico-musical com Ba<strong>de</strong>n, entre62 e 63, que internou-se numa clínica para <strong>de</strong>sintoxicar-se, o que, <strong>de</strong> resto,fazia com pru<strong>de</strong>nte frequência, sempre acompanha<strong>do</strong> pelo médico Clementino52


VINICIUS, POETA E DIPLOMATA, NA MÚSICA POPULARFraga Filho. Ali, além <strong>de</strong> limpar o fíga<strong>do</strong>, tinha ainda a missão <strong>de</strong> colocarletra no samba Pra que chorar, que Ba<strong>de</strong>n lhe entregara dias antes. O poetame contou a seguinte historinha: “Mal me <strong>de</strong>itara, passei a ouvir um choro,um chorinho <strong>de</strong> mulheres que vinha <strong>do</strong> quarto ao la<strong>do</strong>. Levantei-me e <strong>de</strong>icom um velhinho à morte, cerca<strong>do</strong> por duas velhinhas inconsoláveis. Volteipara meu quarto, passei a me inspirar no ato <strong>de</strong> chorar das velhinhas e termineio samba alta madrugada. Nesse exato momento, o chorinho das velhinhasparou. Fui até lá, o velhinho estava morto e as velhinhas, ajoelhadas e contritas,rezavam um terço interminável”.Esse perío<strong>do</strong> to<strong>do</strong>, o <strong>de</strong>cênio que me<strong>de</strong>ia entre 1957 e 1967, marca oapogeu <strong>de</strong> <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong> como letrista <strong>de</strong> música popular, o que, segun<strong>do</strong>alguns críticos mais orto<strong>do</strong>xos, <strong>de</strong>fine também seu afastamento da literatura.Sentia-se resplan<strong>de</strong>cente com o acesso às massas brasileiras, o enormepúblico que só a extensão e o prestígio da música popular po<strong>de</strong>m permitir.Sobre essa dicotomia, música popular ou literatura, eu ouvi <strong>do</strong> poeta certanoite no Antonio’s, lá por 1968 ou 1969, uma sentida confissão feita a OttoLara Resen<strong>de</strong>, Paulo Men<strong>de</strong>s Campos, Sérgio Porto e, creio, Fernan<strong>do</strong>Sabino: “Você, Otto, está me cobran<strong>do</strong> mais um livro <strong>de</strong> poesia. Só que euquero lhe dizer que o meu trabalho como letrista nesses anos to<strong>do</strong>s dá parafazer <strong>de</strong> oito a <strong>de</strong>z livros. E mais: apenas uma ou duas <strong>de</strong>ssas letras meren<strong>de</strong>m o <strong>do</strong>bro que <strong>do</strong>is ou três livros <strong>de</strong> literatura. E, finalmente, meu xequematepara esses críticos que me ficam a fazer cobranças. Essas canções dãomemuito prazer, porque minhas letras são reverenciadas por to<strong>do</strong>s osbrasileiros. A maioria – para minha glória – as cantas <strong>de</strong> <strong>do</strong>r, quan<strong>do</strong> estãoalegres ou tristes. Ou seja, o <strong>de</strong>stino <strong>do</strong> poeta é esse mesmo, fazer <strong>de</strong> suapoesia uma arma para a emoção das pessoas. Portanto, eu recuso qualquercobrança”.<strong>Vinicius</strong>, com efeito, trabalhou muitíssimo. Entre 1962 a 1967 são gravadasquase cem composições suas. O poeta participa intensamente <strong>de</strong> shows noRio. Em 1962 comanda Encontro, ao la<strong>do</strong> <strong>de</strong> Tom Jobim, João Gilberto eOs Cariocas, com direção <strong>de</strong> Aluízio <strong>de</strong> Oliveira (na boate Au Bom Gourmet),quan<strong>do</strong> são lançadas músicas dar<strong>de</strong>jantes como Garota <strong>de</strong> Ipanema, Sódanço samba, Insensatez, Ela é carioca, Samba <strong>do</strong> avião e o Samba daBênção. Nessa mesma boate foi apresentada sua peça Pobre menina rica(com músicas <strong>de</strong> Carlos Lyra), que projeta Nara Leão e ainda pepitas dacanção como Primavera, Sabe você e Pau <strong>de</strong> arara. Nesse ano grava oprimeiro disco como cantor (para a Elenco), estrean<strong>do</strong> ao la<strong>do</strong> da cantora-53


RICARDO CRAVO ALBINatriz O<strong>de</strong>tte Lara. Em 1964, aparece publicamente um novo parceiro <strong>de</strong><strong>Vinicius</strong>, Francis Hime, com quem faz Eu te amo, amor, Sauda<strong>de</strong> <strong>de</strong> amore Sem mais a<strong>de</strong>us.E ainda estreia na boate Zum-Zum um show memorável com DorivalCaymmi, que não só viraria disco (Elenco, <strong>de</strong> Aluízio <strong>de</strong> Oliveira) mas quetambém lançaria o Quarteto em Cy. Mas, em 1967, após a estreia <strong>do</strong> filmeGarota <strong>de</strong> Ipanema, <strong>de</strong> Leon Hirshman, <strong>Vinicius</strong> começa a se afastar daintensa, sempre trepidante vida artístico-musical <strong>do</strong> Rio. Vai então organizarum Festival <strong>de</strong> Arte em Ouro Preto, on<strong>de</strong> fica uma temporada. Logo <strong>de</strong>poisparticipa <strong>de</strong> shows em Lisboa com Chico Buarque e Nara Leão (1968), emBuenos Aires com Dorival Caymmi e Ba<strong>de</strong>n Powell (1968) e em Punta <strong>de</strong>lEste com Dori Caymmi e Maria Creusa (começo <strong>de</strong> 1969).Quan<strong>do</strong> <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong> é <strong>de</strong>sliga<strong>do</strong> <strong>do</strong> Itamaraty, pelo AtoInstitucional nº 5, em abril <strong>de</strong> 1969, o poeta pensa, inicialmente, em autoexilar-sena Europa, on<strong>de</strong> boa parte <strong>de</strong> seus amigos já estava, inclusive ChicoBuarque, além <strong>de</strong> Caetano, Gil, Vandré e tantos intelectuais, escritores, amigose companheiros seus. Ele, contu<strong>do</strong>, <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> resistir e fica no <strong>Brasil</strong>. Feri<strong>do</strong>com o afastamento da carreira diplomática, sua produção cai verticalmente,gravan<strong>do</strong> em 1969 apenas uma única composição. Em contrapartida, volta aescrever, a fazer crônicas, a trabalhar para jornais. E <strong>de</strong>scobre um novoparceiro, Toquinho, um violonista <strong>de</strong> São Paulo que era amigo <strong>de</strong> ChicoBuarque. Logo <strong>Vinicius</strong> reencontra o sabor <strong>de</strong> fazer novas composições elança e, 1970, <strong>do</strong>is sucessos populares, o Samba da Rosa e Na Tonga damironga <strong>do</strong> Kabuletê, um título in<strong>de</strong>cifrável mas que escondia um protestosolitário <strong>do</strong> poeta à censura, à repressão política e à sua própria aposenta<strong>do</strong>ria<strong>do</strong> Itamaraty. Segun<strong>do</strong> o próprio autor, confi<strong>de</strong>nciaria a boca pequena pelosbares <strong>do</strong> Rio, a expressão significava, em língua nagô, algo próximo a “vãoto<strong>do</strong>s à merda”.Entre 1970 e 1980, <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong> resiste aos governos militares,fazen<strong>do</strong> o que sabia e aquilo no que foi mestre: o exercício <strong>de</strong> sua seduçãopessoal, encenan<strong>do</strong> espetáculos em to<strong>do</strong> o país para os jovens <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>.On<strong>de</strong> a poesia e a música se conjugavam para que o poeta <strong>de</strong>stilasse, gotaa gota, as emoções que brotavam <strong>do</strong> seu coração generoso e fiel aos<strong>de</strong>stinos <strong>do</strong>s poetas clássicos. Isto é, viver como poeta, livre das amarras,liberto como um pássaro em pleno vôo, como a ele se referiu Drummond,com uma ponta assumida <strong>de</strong> inveja, ao fazer setenta e cinco anos <strong>de</strong> vidaem 1975.54


VINICIUS, POETA E DIPLOMATA, NA MÚSICA POPULARPouco antes <strong>de</strong> morrer, o que ocorre aos 10 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1980, num <strong>do</strong>sprolonga<strong>do</strong>s banhos <strong>de</strong> banheira em sua casa da Gávea, mesmo bairro on<strong>de</strong>nascera em 1913, <strong>Vinicius</strong> sente-se pronto a retomar o filão da literatura.Copo <strong>de</strong> vinho ao la<strong>do</strong>, violão <strong>do</strong> Toquinho em frente e mulher nova (GildaMattoso) a acarinhá-lo <strong>de</strong> atenções e mesuras, o poeta grava para umatelevisão, a meu pedi<strong>do</strong>, a seguinte <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> amor à vida e à beleza,uma precisa e cortante mensagem para a posterida<strong>de</strong>:“Por isso que eu chorei tantas lágrimas para que não precisasseschorar, sem saber que criava um mar <strong>de</strong> pranto em cujos vórtices tehaverias também <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r. E amordacei minha boca para que nãogritasses e ceguei meus olhos para que não visses; e quanto maisamordaça<strong>do</strong>, mais gritavas; e quanto mais cego, mais vias. Porque apoesia foi para mim uma mulher cruel em cujos braços me aban<strong>do</strong>neisem remissão, sem sequer pedir perdão a todas as mulheres que porela aban<strong>do</strong>nei. E assim como sei que toda a minha vida foi uma lutapara que ninguém tivesse mais que lutar, assim é o canto que te querocantar...”55


<strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong> e a PátriaFelipe FortunaBacharel em Direito, i<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong> a um grupo <strong>de</strong> intelectuais católicos,<strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong>, aos 23 anos, ainda procurava emprego. A família carioca<strong>de</strong> classe média pressionava o rapaz, que mostrara, com apenas 15 anos,notável talento <strong>de</strong> compositor – sobretu<strong>do</strong> com o sucesso <strong>do</strong> foxtrot "Louraou Morena", composto em 1928, em parceria com os irmãos Paulo e Harol<strong>do</strong>Tapajós. Mas numa carta escrita em Itatiaia e remetida à irmã, em 1936, orapaz reclama da politicagem e das dificulda<strong>de</strong>s que encontra para seposicionar, confessa que novamente fracassou, e brada nas linhas da suamissiva: "Trata-se <strong>de</strong> meter a cara em outra porta. O.k., <strong>Brasil</strong>, let's go!Hei <strong>de</strong> trabalhar nem que seja por 200$000.". No mesmo ano, consegueo pasmoso emprego <strong>de</strong> Censor Cinematográfico <strong>do</strong> Ministério da Educação,embora não seja <strong>do</strong> conhecimento geral, até o momento, o teor <strong>do</strong>s pareceresassina<strong>do</strong>s pelo poeta.É mais profunda <strong>do</strong> que se apresenta a cisão <strong>de</strong> <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong> emrelação às experiências que viveu e às opções que fez: não se trata, apenas,<strong>de</strong> um poeta que iniciou carreira com livros <strong>de</strong> forte religiosida<strong>de</strong> egrandiloquência literária para <strong>de</strong>saguar, décadas <strong>de</strong>pois, no letrista popular.Nele também se assiste ao católico que, em seguida, <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> acreditar emDeus – e pratica, ao final da vida, uma forma sensual e até libertina <strong>de</strong>ecumenismo místico. Em relação ao emprego público que acabou por fazêlooptar pela diplomacia, na qual ingressou em 1943, <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong> se57


FELIPE FORTUNAviu cada vez mais dividi<strong>do</strong>, buscan<strong>do</strong> sempre uma conciliação entre ofuncionário e o compositor com incursões noturnas pelas casas <strong>de</strong> show. Hámuita ironia quan<strong>do</strong> o flagramos preocupadíssimo já no seu primeiro Postodiplomático, o Consula<strong>do</strong> Geral em Los Angeles, cida<strong>de</strong> em que acabara <strong>de</strong>escrever o poema "Pátria Minha". Nostálgico, seguramente toca<strong>do</strong> pelo tommelancólico da "Canção <strong>do</strong> Exílio", sentin<strong>do</strong> falta <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> e <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s, o poetaestá em dúvida sobre a reação que po<strong>de</strong>ria provocar um verso <strong>do</strong> seu poema.Numa carta a Manuel Ban<strong>de</strong>ira, <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1948, ele <strong>de</strong>staca o verso,para fazer uma pergunta em seguida: "A minha pátria não é filha <strong>de</strong>negociante nem mulher <strong>de</strong> militar. Diga se você acha se vão me <strong>de</strong>spedirou pren<strong>de</strong>r por causa. (...) Não quero trapalhadas agora. Estou pagan<strong>do</strong>lentamente minhas dúvidas. (...) Depois po<strong>de</strong>m me pren<strong>de</strong>r, se quiserem.".O ex-Censor Cinematográfico agora se preocupa com censura - e logopercebe os conflitos nos quais sua arte po<strong>de</strong>ria metê-lo. O poema "PátriaMinha" foi afinal publica<strong>do</strong> em livro anos <strong>de</strong>pois – e, <strong>de</strong> fato, nele não seencontra aquele verso adverso: o autocensor falou mais alto. E talvez o versotenha si<strong>do</strong> substituí<strong>do</strong> por outros mais profun<strong>do</strong>s e menos agressivos, a exemplo<strong>de</strong>Não te direi o nome, pátria minhaTeu nome é pátria amada, é patriazinhaNão rima com mãe gentilEis, no entanto, a única cisão que o poeta jamais apresentou: a <strong>do</strong>sentimento nacional e genuinamente patriótico, no qual to<strong>do</strong> o ufanismo setransforma numa impressão intimista e melancólica, provocada pela distânciaque separa o poeta <strong>de</strong> "Uma ilha <strong>de</strong> ternura: a Ilha / <strong>Brasil</strong>, talvez.".É com essa nota <strong>de</strong> <strong>de</strong>rrama<strong>do</strong> lirismo que o poeta inicia o poema:A minha pátria é como se não fosse, é íntimaDoçura e vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> chorar; uma criança <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong>É minha pátria. Por isso, no exílioAssistin<strong>do</strong> <strong>do</strong>rmir meu filhoChoro <strong>de</strong> sauda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> minha pátria.Esse amor ao <strong>Brasil</strong> não foi adquiri<strong>do</strong> apenas quan<strong>do</strong> <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong>passou a representar o país diplomaticamente. Ainda estudante em Oxford,58


VINICIUS DE MORAES E A PÁTRIAgraças a uma bolsa concedida pelo British Council, ele se envolveu em lutabraçal com um estudante inglês que "disse à mesa coisas <strong>de</strong>sairosas sobre o<strong>Brasil</strong>." Esse mesmo sentimento <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa e <strong>de</strong>safio seria exibi<strong>do</strong>, tempos<strong>de</strong>pois, no poema "Olhe Aqui, Mr. Buster...", espécie <strong>de</strong> acerto <strong>de</strong> contascom a arrogância <strong>de</strong> um amigo norte-americano, contra o qual o poeta lançoumão da <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> uma parte <strong>do</strong> patrimônio imaterial brasileiro:Mas me diga sinceramente uma coisa, Mr. Buster:O Sr. sabe lá o que é um choro <strong>de</strong> Pixinguinha?O Sr. sabe lá o que é ter uma jabuticabeira no quintal?O Sr. sabe lá o que é torcer pelo Botafogo?Ao longo da vida e da obra <strong>de</strong> <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong>, foram numerosasessas <strong>de</strong>monstrações emotivas pelos valores mais caros à nacionalida<strong>de</strong>. Osentimento <strong>de</strong> exílio e <strong>de</strong> <strong>de</strong>senraizamento costumava afligir o poeta até quan<strong>do</strong>caminhava em ruas estrangeiras, como bem o mostra o "Poema <strong>de</strong> Auteil".Ali sobressaem espasmos <strong>de</strong> quem praticamente havia surta<strong>do</strong> <strong>de</strong> sauda<strong>de</strong>.Mesmo quan<strong>do</strong> a situação política no <strong>Brasil</strong> se agravou, e o diplomata se viucomo que força<strong>do</strong> a <strong>de</strong>ixar Paris e regressar ao Itamaraty <strong>do</strong> Rio, não lhefaltava nem mesmo a lembrança da celebração <strong>do</strong> 7 <strong>de</strong> setembro. É o que<strong>de</strong>monstra, em 1964, uma carta famosa – porque também <strong>de</strong>clamada num<strong>do</strong>s seus shows – na qual, dirigin<strong>do</strong>-se a Tom Jobim, ele faz nova <strong>de</strong>claração<strong>de</strong> amor: "Deixei Paris para trás com a sauda<strong>de</strong> <strong>de</strong> um ano <strong>de</strong> amor, epela frente tenho o <strong>Brasil</strong> que é uma paixão permanente em minha vida<strong>de</strong> constante exila<strong>do</strong>. A coisa ruim é que hoje é 7 <strong>de</strong> setembro, a datanacional, e eu sei que em nossa Embaixada há uma festa que me cairiamuito bem, com o Ba<strong>de</strong>n mandan<strong>do</strong> brasa no violão. Há pouco telefoneipara lá, para cumprimentar o embaixa<strong>do</strong>r, e veio to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> ao telefone.Estão queiman<strong>do</strong> um óleo firme!".O poema "Pátria Minha", por mais efusivo que fosse, atraiu a atenção <strong>de</strong>um poeta também diplomata, a quem notoriamente <strong>de</strong>sgostava qualquermanifestação sentimental em literatura: João Cabral <strong>de</strong> Melo Neto. Foi elequem editou 50 exemplares <strong>de</strong> uma plaqueta com o poema, em 1949,<strong>de</strong>stinan<strong>do</strong>-os aos amigos. Trabalho <strong>de</strong> artesão, saí<strong>do</strong> da prensa manual queo poeta mantinha em Barcelona, a título <strong>de</strong> terapia para atenuar a forte <strong>do</strong>r<strong>de</strong> cabeça que o atacou durante décadas. Foi justamente ali pelo final <strong>do</strong>sanos 40 que a amiza<strong>de</strong> <strong>do</strong>s poetas se tornou ainda mais sólida – com a59


FELIPE FORTUNAressalva <strong>de</strong> que ambos escreviam poesia a partir <strong>de</strong> concepções integralmenteopostas. Como <strong>de</strong>monstra a correspondência e o <strong>de</strong>poimento <strong>de</strong> amigos, oautor <strong>de</strong> A Educação pela Pedra (1966) sequer compreendia os arroubosromânticos <strong>de</strong> <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong>, e chegou a <strong>de</strong>clarar, numa entrevista, queo poeta <strong>de</strong> "Receita <strong>de</strong> Mulher" transformava o tema feminino em "abrigo <strong>de</strong>reações excessivamente subjetivas e até biográficas."Está claro que, ao imprimir "Pátria Minha", a homenagem que o amigopernambucano prestava ao amigo carioca não era <strong>de</strong> natureza estética, massim <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m política. O que os distanciava por completo na poesia os uniamuitíssimo no plano i<strong>de</strong>ológico: os <strong>do</strong>is homens partilhavam sensibilida<strong>de</strong> muitosemelhante para os problemas sociais, e <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ram em muitos momentosi<strong>de</strong>ias marxistas que visavam à transformação da realida<strong>de</strong>. Nunca é <strong>de</strong>maisrecordar que o principal tema <strong>de</strong> Morte e Vida Severina (1955) é a fome ea razão econômica <strong>do</strong> latifúndio. Tampouco se po<strong>de</strong> esquecer que, em "OOperário em Construção", <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong> sataniza (valen<strong>do</strong>-se <strong>de</strong> umacitação <strong>de</strong> Lucas!) a relação entre patrão e emprega<strong>do</strong>, fazen<strong>do</strong> surgir, entreoutros, o tema da alienação da classe proletária:Não sabia, por exemploQue a casa <strong>de</strong> um homem é um temploUm templo sem religiãoComo tampouco sabiaQue a casa que ele faziaSen<strong>do</strong> a sua liberda<strong>de</strong>Era a sua escravidão.A justaposição <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is poemas e <strong>de</strong> suas similarida<strong>de</strong>s e diferençaspo<strong>de</strong> ainda ser estendida ao diálogo que, afinal, os <strong>do</strong>is poetas estabeleceramsobre seus estilos – a começar pela provocação <strong>de</strong> <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong> em"Retrato, à sua Maneira". O poema mereceu uma "Resposta a <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong><strong>Moraes</strong>", na qual o poeta retrata<strong>do</strong> se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>.RETRATO, À SUA MANEIRA(JOÃO CABRAL DE MELO NETO)Magro entre pedrasCalcárias possível60


VINICIUS DE MORAES E A PÁTRIAPergaminho paraA anotação gráficaO grafito GraveNariz poema oFêmur fraternoRadiografável aOlho nu Ári<strong>do</strong>Como o <strong>de</strong>sertoE além TuIrmão totem ae<strong>do</strong>Exato e provávelNo friso <strong>do</strong> tempoAdiante AveCamarada diamante!RESPOSTA A VINICIUS DE MORAESCamarada diamante!Não sou um diamante natonem consegui cristalizá-lose ele te surge no que façoserá um diamante opaco<strong>de</strong> quem por incapaz <strong>do</strong> vagoquer <strong>de</strong> toda forma evitá-lo,senão com o melhor, o claro,<strong>do</strong> diamante, com o impacto:com a pedra, a aresta, com o aço<strong>do</strong> diamante industrial, barato,que incapaz <strong>de</strong> ser cristal rarovale pelo que tem <strong>de</strong> cacto.No poema <strong>de</strong> <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong> ao amigo, a maior provocação está naimitação <strong>do</strong> estilo (por isso mesmo, no retrato, à sua maneira). Em literatura,o conceito <strong>de</strong> imitatio – tão caro às i<strong>de</strong>ias artísticas da Renascença – consiste61


FELIPE FORTUNAna apropriação <strong>de</strong> textos clássicos, para que sejam atingi<strong>do</strong>s os i<strong>de</strong>ais <strong>de</strong>beleza e <strong>de</strong> criativida<strong>de</strong> surgi<strong>do</strong>s na Antiguida<strong>de</strong>. Por isso mesmo, aemulação tinha valor pedagógico, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong>-se que po<strong>de</strong>ria estimular– e não tolher – a criação <strong>do</strong> poeta: haveria sempre uma relação reverencialcom o passa<strong>do</strong>. Sutilmente, <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong> inverte a cronologiaobrigatória no processo <strong>de</strong> imitação, e passa a homenagear um poetamais jovem. Descreve João Cabral <strong>de</strong> Melo Neto com os mesmosinstrumentos cria<strong>do</strong>s pelo poeta pernambucano, e com igual dicção, comoque transforman<strong>do</strong> a originalida<strong>de</strong> em mo<strong>de</strong>lo a ser copia<strong>do</strong>. O resulta<strong>do</strong>final é um poema que, na obra <strong>de</strong> <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong>, encontra-secompletamente <strong>de</strong>sloca<strong>do</strong>: não é nem mesmo um soneto, forma a quetanto se afeiçoou, e que foi <strong>de</strong>cididamente repudiada pelo amigonor<strong>de</strong>stino. A pontuação quase inexistente – não fosse a exclamação final– e a oscilação por vezes confusa entre maiúsculas e minúsculas são oselementos fortes que traem o mo<strong>de</strong>lo, e induzem to<strong>do</strong> o retrato que estásen<strong>do</strong> elabora<strong>do</strong> a uma caricatura fraterna. Merece apreço, ainda, aseleção vocabular trazida pelo autor <strong>do</strong> retrato, que habilmente mistura asemântica mineral <strong>de</strong> João Cabral <strong>de</strong> Melo Neto (pedras, calcárias,grafito, ári<strong>do</strong>, <strong>de</strong>serto, diamante) a um vocabulário nunca por estetematiza<strong>do</strong> (irmão, camarada, fraterno, ae<strong>do</strong>).O último verso <strong>do</strong> poema traz uma informação relevante, pois ampliaa amiza<strong>de</strong> entre os <strong>do</strong>is poetas a uma dimensão política: é ao camaradaCabral a quem <strong>Vinicius</strong> se dirige, como se aquele fosse um homem <strong>de</strong>parti<strong>do</strong>. E está aí, mas nunca na concepção artística, o ponto <strong>de</strong> encontro.Tanto assim que a saudação final se transforma em epígrafe <strong>do</strong> poema <strong>de</strong>resposta, que também i<strong>de</strong>ntifica em <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong> um camarada <strong>de</strong>igual dureza... O poema <strong>de</strong> João Cabral <strong>de</strong> Melo Neto não é, por suavez, uma tentativa <strong>de</strong> retratar o amigo – mas uma autoexplicação <strong>de</strong> quemse acha "incapaz <strong>do</strong> vago" e, ironicamente, pe<strong>de</strong> <strong>de</strong>sculpas pela limitação.O poeta pernambucano distinguia entre os que faziam e construíam apoesia e os que a encontravam em atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> receptivida<strong>de</strong> – comoseguramente era o caso <strong>de</strong> <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong>. Na política e nadiplomacia, ambos se encontrariam pelo menos uma vez mais com asdificulda<strong>de</strong>s trazidas por suas opções. João Cabral <strong>de</strong> Melo Neto foicoloca<strong>do</strong> em disponibilida<strong>de</strong> pelo Itamaraty, em 1953, acusa<strong>do</strong> <strong>de</strong>subversão. E <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong> foi aposenta<strong>do</strong> pelo AI-5, em 1968.Resta, no entanto, um elemento consola<strong>do</strong>r na relação <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong>, em62


VINICIUS DE MORAES E A PÁTRIAque pesem as ressalvas críticas, e no projeto <strong>de</strong> uma Pátria melhor. APátria que po<strong>de</strong> ocasionalmente maltratar os seus admira<strong>do</strong>res genuínos,mas que consegue encontrar um tempo para reparar o erro.63


Turma <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong> (2001-2003):ExcertosPalácio Itamaraty, 20 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 2004.Discurso <strong>do</strong> Ministro das Relações Exteriores,<strong>Embaixa<strong>do</strong>r</strong> Celso Amorim(...)Não posso <strong>de</strong>ixar, também, <strong>de</strong>, num momento como este, lembrar que<strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong> foi muito mais <strong>do</strong> que poeta e diplomata. Foi, também,uma fonte <strong>de</strong> inspiração para muitos <strong>de</strong> nós, e permito-me, Senhor Presi<strong>de</strong>nte,numa nota também pessoal, lembrar que o <strong>Embaixa<strong>do</strong>r</strong> Ruy Nogueira, hojeSubsecretário <strong>de</strong> Cooperação e há até pouco tempo <strong>Embaixa<strong>do</strong>r</strong> em Caracas,lia para nós poemas <strong>do</strong> <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong>, <strong>de</strong> quem ele era especialmentea<strong>de</strong>pto, e conquistava nossos corações, mesmo que hoje não fosse sába<strong>do</strong>.(...)Discurso <strong>do</strong> Paraninfo,Ministro Rubem Antonio Corrêa Barbosa(...)Junto-me a vocês na justa homenagem que prestam a <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong>,ao elegê-lo patrono da turma. Poeta maior e diplomata, intelectual e artistacomo vários <strong>de</strong> nossos pares, soube abrilhantar as cores da ban<strong>de</strong>ira nacionalcom seu talento reconheci<strong>do</strong> <strong>de</strong>ntro e fora <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. Sinto que, obriga<strong>do</strong> a65


FORMATURA IRBRafastar-se <strong>de</strong> nosso convívio, em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões tomadas em outrostempos <strong>de</strong> nossa História, muito per<strong>de</strong>u o Itamaraty, ao não po<strong>de</strong>r continuara tê-lo em seus quadros. Mais ganhou o <strong>Brasil</strong>, que pô<strong>de</strong> <strong>de</strong>sfrutar por inteiro<strong>do</strong> talento, sensibilida<strong>de</strong>, carisma e simpatia <strong>de</strong>ste <strong>de</strong>staca<strong>do</strong> colega, quetinha no culto à liberda<strong>de</strong> e na máxima <strong>do</strong> amor eterno enquanto dure normas<strong>de</strong> vida <strong>de</strong> uma sabe<strong>do</strong>ria talvez à frente <strong>de</strong> seu próprio tempo.Carioca, como eu, <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong>ixou nosso convívio em julho <strong>de</strong> 1980.Consultan<strong>do</strong> da<strong>do</strong>s relevantes <strong>de</strong> sua vida, encontrei, referente ao ano <strong>de</strong>1979: participa <strong>de</strong> leitura <strong>de</strong> poemas no Sindicato <strong>do</strong>s Metalúrgicos <strong>de</strong> SãoBernar<strong>do</strong> <strong>do</strong> Campo, a convite <strong>do</strong> lí<strong>de</strong>r sindical Luís Inácio da Silva.(...)Discurso <strong>do</strong> Ora<strong>do</strong>r,Rubem Men<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Oliveira(...)Como patrono <strong>de</strong> nossa turma escolhemos um <strong>de</strong>sses nomes <strong>de</strong>expressão cultural, o diplomata <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong>. Ten<strong>do</strong> ingressa<strong>do</strong> noItamaraty em 1943, <strong>Vinicius</strong> já era poeta e letrista reconheci<strong>do</strong> e premia<strong>do</strong>,pois bem antes <strong>de</strong>sta data já havia publica<strong>do</strong> mais <strong>de</strong> um livro <strong>de</strong> poemas, ejá havia igualmente lança<strong>do</strong> algumas <strong>de</strong> suas primeiras canções. Por essarazão, certamente, <strong>Vinicius</strong> se auto-<strong>de</strong>finiu, no célebre “Samba da Benção”,como “...poeta e diplomata”, como a ressaltar, na or<strong>de</strong>m cronológica <strong>de</strong> suasativida<strong>de</strong>s, aquilo que <strong>de</strong>veria ter si<strong>do</strong> também a or<strong>de</strong>m <strong>de</strong>sejada para seupai. Na bela e comovente “Elegia na morte <strong>de</strong> Clo<strong>do</strong>al<strong>do</strong> Pereira da Silva<strong>Moraes</strong>, poeta e cidadão”, o filho <strong>Vinicius</strong> o apresenta como “...poeta efuncionário”, reverten<strong>do</strong> a realida<strong>de</strong> da vida daquele que, também poetatalentoso, manteve a veia artística confinada à intimida<strong>de</strong> familiar em favor dasegurança e regularida<strong>de</strong> <strong>do</strong> emprego público.Ten<strong>do</strong> inicia<strong>do</strong> sua carreira nesta Casa na então Divisão Econômica eSocial, o diplomata <strong>Vinicius</strong> obteve, apenas um mês <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> nomea<strong>do</strong>, aconfirmação no serviço público com nota máxima na avaliação que levavaem conta itens como discrição, pontualida<strong>de</strong>, iniciativa, urbanida<strong>de</strong>, capacida<strong>de</strong>intelectual, disciplina, <strong>de</strong>dicação ao serviço e caráter.No exterior, <strong>Vinicius</strong> serviu em Los Angeles, em Montevidéu e naDelegação <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> junto à UNESCO, em Paris. A experiência <strong>do</strong> amor àpátria – experiência comum a to<strong>do</strong>s nós nesta Casa - que se manifesta <strong>de</strong>66


TURMA VINICIUS DE MORAES (2001-2003): EXCERTOSforma mais intensa quan<strong>do</strong> estamos fora <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, foi também objeto <strong>de</strong> suapoesia, em “Pátria minha”, por exemplo:“...Ponho no vento o ouvi<strong>do</strong> e escuto a brisaQue brinca em teus cabelos e te alisaPátria minha, e perfuma o teu chão...Que vonta<strong>de</strong> me vem <strong>de</strong> a<strong>do</strong>rmecer-meEntre teus <strong>do</strong>ces montes, pátria minhaAtento à fome em tuas entranhasE ao batuque em teu coração”Do mesmo mo<strong>do</strong>, é essa experiência permanente da Pátria para a qualnos alertou o Barão <strong>do</strong> Rio Branco que encontramos na comovente alegriaque <strong>Vinicius</strong> manifesta em “Do amor à pátria”, quan<strong>do</strong>, atravessan<strong>do</strong> o oceano,consegue ouvir num rádio <strong>de</strong> ondas curtas uma emissora brasileira:“A<strong>do</strong>rável prefixo noturno, nunca te esquecerei!Foste mais uma vez essa coisa primeira tão única como o primeiroamigo, a primeira namorada, o primeiro poema.E a ti eu direi: é possível que o padre Vieira esteja certoao dizer que a ausência é, <strong>de</strong>pois da morte,a maior causa da morte <strong>do</strong> amor. Mas não <strong>do</strong> amor à terraon<strong>de</strong> se cresceu e se plantou raízes, à terra a cuja imagem esemelhançase foi feito e on<strong>de</strong> um dia, num pequeno lote,se espera po<strong>de</strong>r nunca mais esperar”(...)(Fonte: FORMATURAS DO INSTITUTO RIO BRANCO (2004-2008): Discursos. Brasília: <strong>Funag</strong>,2009)67


Tramitação no Po<strong>de</strong>r Executivo69


TRAMITAÇÃO NO PODER EXECUTIVO70


TRAMITAÇÃO NO PODER EXECUTIVO71


TRAMITAÇÃO NO PODER EXECUTIVO72


Artigo <strong>de</strong> Bernar<strong>do</strong> <strong>de</strong> Mello Franco, no JornalO GloboO Globo, 28 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2009Itamaraty usou AI-5 para investigar vida privada e expulsardiplomatasBernar<strong>do</strong> Mello FrancoNo perío<strong>do</strong> mais sombrio da ditadura militar, o Ministério das RelaçõesExteriores usou a segurança nacional como pretexto para violar a intimida<strong>de</strong><strong>de</strong> funcionários e expulsar diplomatas que, segun<strong>do</strong> o próprio órgão, eramconsi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s homossexuais, emocionalmente instáveis ou alcoólatras.Documentos obti<strong>do</strong>s pelo GLOBO no Arquivo Nacional, vincula<strong>do</strong> à CasaCivil, provam que a homofobia e a intolerância pautaram o funcionamentoda Comissão <strong>de</strong> Investigação Sumária, que fez uma caça às bruxas em to<strong>do</strong>sos escalões <strong>do</strong> Itamaraty. O órgão secreto <strong>de</strong>u origem a 44 cassações emabril <strong>de</strong> 1969, no maior expurgo da história da diplomacia brasileira.A comissão foi criada pelo ministro Magalhães Pinto e chefiada peloembaixa<strong>do</strong>r Antônio Cândi<strong>do</strong> da Câmara Canto, que teve 26 dias paraconfeccionar a lista <strong>de</strong> colegas a serem <strong>de</strong>gola<strong>do</strong>s com base no Ato Institucionalno5. Em vez <strong>de</strong> perseguir esquerdistas, como fizeram outros ministérios naépoca, o Itamaraty mirou nos funcionários cujo comportamento na vida privadaafrontaria os “valores <strong>do</strong> regime”. Entre os aposenta<strong>do</strong>s à força, sem direitoa <strong>de</strong>fesa, estava o poeta e então primeiro-secretário <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong>.73


BERNARDO DE MELLO FRANCOManti<strong>do</strong> em segre<strong>do</strong> há 40 anos, o relatório da comissão confirma que oódio contra homossexuais foi o fator que mais pesou na escolha <strong>do</strong>s cassa<strong>do</strong>s.Dos 15 pedi<strong>do</strong>s <strong>de</strong> <strong>de</strong>missão <strong>de</strong> diplomatas, sete foram justifica<strong>do</strong>s com asseguintes palavras: “Pela prática <strong>de</strong> homossexualismo, incontinência públicaescandalosa”. A lista segue com “incontinência pública escandalosa, <strong>de</strong>corrente<strong>do</strong> vício <strong>de</strong> embriaguez” (três casos), “insanida<strong>de</strong> mental” (mais três), “vidairregular e escandalosa, instabilida<strong>de</strong> emocional comprovada e indisciplinafuncional” (um caso) e “<strong>de</strong>sinteresse pelo serviço público resultante <strong>de</strong>frequentes crises psíquicas (um)”.Outros <strong>de</strong>z diplomatas “suspeitos <strong>de</strong> homossexualismo” <strong>de</strong>veriam sersubmeti<strong>do</strong>s a “cuida<strong>do</strong>so exame médico e psiquiátrico” por uma junta <strong>de</strong><strong>do</strong>utores <strong>do</strong> Itamaraty e da Aeronáutica. “Se ficar comprovada a suspeitaque paira sobre esses funcionários, a comissão recomenda que sejam também<strong>de</strong>finitivamente afasta<strong>do</strong>s <strong>do</strong> serviço exterior brasileiro”, diz o relatório. Aola<strong>do</strong> <strong>do</strong>s nomes, Magalhães Pinto anotou: “Chamar a serviço e submeter aoexame médico”. Não há registros <strong>de</strong> realização das consultas.A comissão ainda receitou penas como repreensão e remoção <strong>do</strong>cargo a cinco diplomatas por motivos como “<strong>de</strong>monstrações <strong>de</strong>irresponsabilida<strong>de</strong>” e “<strong>de</strong>smedida incontinência verbal”. Também pediua <strong>de</strong>missão <strong>de</strong> oito oficiais <strong>de</strong> chancelaria e 25 servi<strong>do</strong>res administrativos,além <strong>de</strong> exame médico para verificar a orientação sexual <strong>de</strong> outrosquatro.A lista <strong>de</strong> afastamentos sumários inclui funcionários humil<strong>de</strong>s, comooito serventes, cinco porteiros e auxiliares <strong>de</strong> portaria, <strong>do</strong>is motoristase um mensageiro. Junto aos nomes, aparecem acusações vagas, como“embriaguez” e “indisciplina”. De to<strong>do</strong>s os pedi<strong>do</strong>s <strong>de</strong> cassação, só os<strong>de</strong> <strong>do</strong>is oficiais <strong>de</strong> chancelaria indicam alguma motivação política. Trazema explicação “risco <strong>de</strong> segurança”. Outros <strong>do</strong>cumentos secretosmostram que eles eram acusa<strong>do</strong>s <strong>de</strong> simpatizar com o comunismo.Entre os diplomatas cassa<strong>do</strong>s estava Arnal<strong>do</strong> Vieira <strong>de</strong> Mello, queera cônsul em Stuttgart e acabara <strong>de</strong> ser promovi<strong>do</strong> a ministro <strong>de</strong> segundaclasse, penúltimo <strong>de</strong>grau na hierarquia da carreira. O episódio, anos<strong>de</strong>pois, levou seu filho, Sergio Vieira <strong>de</strong> Mello, a buscar outra carreira.O diplomata brasileiro mais conheci<strong>do</strong> das últimas décadas se recusoua prestar concurso para o Instituto Rio Branco e foi trabalhar na ONU.Sergio — morto em 2003 num ataque terrorista em Bagdá — dizia nãover senti<strong>do</strong> em servir à casa que expulsou seu pai.74


ARTIGO NO JORNAL O GLOBOOs 13 diplomatas cassa<strong>do</strong>s na ocasião foram Angelo RegattieriFerrari, Arnal<strong>do</strong> Vieira <strong>de</strong> Mello, Jenny <strong>de</strong> Rezen<strong>de</strong> Rubim, João BatistaTelles Soares <strong>de</strong> Pina, José Augusto Ribeiro, José Leal Ferreira Junior,Marcos Magalhães Dantas Romero, Nísio Batista Martins, Raul José<strong>de</strong> Sá Barbosa, Ricar<strong>do</strong> Joppert, Sérgio Maurício Corrêa <strong>do</strong> Lago,<strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> Morais e Wilson Sidney Lobato.Para compor a lista, a comissão recrutou informantes civis e militares.Sua primeira medida foi <strong>de</strong>spachar circular telegráfica aos chefes <strong>de</strong>missão no exterior, intima<strong>do</strong>s a entregar os nomes <strong>de</strong> servi<strong>do</strong>res“implica<strong>do</strong>s em fatos ou ocorrências que tenham comprometi<strong>do</strong> suaconduta funcional”. Arapongas das Forças Armadas ce<strong>de</strong>ram fichasindividuais <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> 80 diplomatas.Também assinam o relatório os embaixa<strong>do</strong>res Carlos Sette Gomes Pereirae Manoel Emílio Pereira Guilhon, que auxiliaram Câmara Canto na missãosigilosa. O chefe da comissão encerrou o texto com um autoelogio patriótico:“Tu<strong>do</strong> fizemos para atingir os objetivos colima<strong>do</strong>s e preservar o bom nome<strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> e <strong>do</strong> seu serviço exterior”. O chanceler Magalhães Pinto <strong>de</strong>volveuo <strong>do</strong>cumento assina<strong>do</strong> e com uma or<strong>de</strong>m escrita à mão: “Recomen<strong>do</strong> que secumpram as <strong>de</strong>terminações”.Cinco integrantes da lista seriam poupa<strong>do</strong>s até a publicação dasaposenta<strong>do</strong>rias, por ato <strong>do</strong> presi<strong>de</strong>nte Costa e Silva. Per<strong>de</strong>ram o cargo 13diplomatas, oito oficiais <strong>de</strong> chancelaria e 23 servi<strong>do</strong>res administrativos. Os<strong>de</strong>cretos <strong>de</strong> cassação ocupam três páginas <strong>do</strong> Diário Oficial <strong>de</strong> 30 <strong>de</strong> abril<strong>de</strong> 1969.Preconceito interrompeu carreiras em ascensãoO expurgo <strong>de</strong> 1969 interrompeu várias carreiras em ascensão noItamaraty. O primeiro-secretário Raul José <strong>de</strong> Sá Barbosa servia naembaixada <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> em Jacarta quan<strong>do</strong> recebeu um telegrama com anotícia da aposenta<strong>do</strong>ria compulsória. Era consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> um <strong>do</strong>s melhorestextos da sua geração <strong>de</strong> diplomatas. Aos 42 anos, encabeçava a fila <strong>de</strong>promoção por antiguida<strong>de</strong>. Ele atribui o afastamento ao fato <strong>de</strong> serhomossexual.— Fui vítima <strong>de</strong> preconceito. Cortaram minha carreira, <strong>de</strong>struíram minhavida. Minha turma <strong>de</strong> Rio Branco tinha 15 pessoas. To<strong>do</strong>s viraramembaixa<strong>do</strong>res, menos eu.75


BERNARDO DE MELLO FRANCOBarbosa sofreu uma pena adicional: passou <strong>do</strong>is meses na In<strong>do</strong>nésiareceben<strong>do</strong> apenas um salário mínimo, em cruzeiros. De volta ao <strong>Brasil</strong>, viu asdificulda<strong>de</strong>s financeiras se agravarem. A discriminação, também:— Muitos colegas que consi<strong>de</strong>rava amigos nunca mais me procuraram.Houve um silêncio acovarda<strong>do</strong> da carneirada, <strong>do</strong> rebanho.O diplomata se tornou um tradutor respeita<strong>do</strong> <strong>de</strong> autores como CharlesDickens e Virginia Woolf. Vive com poucos recursos numa casa em SantaTeresa, sozinho e com um cachorro.O mais novo da lista era o segun<strong>do</strong> secretário Ricar<strong>do</strong> Joppert. Em abril<strong>de</strong> 1969, ele servia no consula<strong>do</strong> <strong>de</strong> Gotemburgo quan<strong>do</strong> foi convoca<strong>do</strong> avoltar às pressas para o <strong>Brasil</strong>. Ao embarcar num avião da Varig, leu numexemplar <strong>do</strong> GLOBO a notícia da sua aposenta<strong>do</strong>ria. Tinha apenas 28 anos.— Nunca escondi que era homossexual. Na época isso era visto comoproblema, porque a socieda<strong>de</strong> não estava preparada para encarar as minorias— analisa ele, que foi reintegra<strong>do</strong> em 1986 e hoje serve no Museu Históricoe Diplomático, no Rio.Para a oficial <strong>de</strong> chancelaria Nair Saud, a <strong>de</strong>missão significou uma rupturatraumática com a casa on<strong>de</strong> conseguiu seu primeiro emprego, aos 17 anos.Aos 86, ela ainda não se conforma com a cassação por “risco <strong>de</strong> segurança”,como indica o relatório secreto da Comissão <strong>de</strong> Investigação Sumária.— Meu irmão ficou oito anos sem falar comigo. Disse que preferia teruma irmã prostituta a uma irmã comunista. Era tu<strong>do</strong> mentira, porque eu nuncame meti com política. Mas gente que frequentava minha casa <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> mecumprimentar, como se eu tivesse uma <strong>do</strong>ença — emociona-se.<strong>Vinicius</strong>: vida boêmia vigiada <strong>de</strong> pertoComo po<strong>de</strong> um poeta ameaçar uma ditadura? No caso <strong>de</strong> <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong><strong>Moraes</strong>, o risco parecia ainda mais remoto. Nos anos 60, enquanto osmilitares caçavam comunistas, ele cumpria uma rotina inofensiva emovimentada. De dia, dava expediente como diplomata no Palácio <strong>do</strong>Itamaraty. À noite, fazia a ronda pelos bares <strong>de</strong> Copacabana, quan<strong>do</strong> nãoestava no palco <strong>de</strong> boates ao la<strong>do</strong> <strong>de</strong> colegas da bossa nova como TomJobim e Nara Leão. Com os livros, os discos e os sucessivos namoros ecasamentos, às vezes simultâneos, sobrava pouco tempo para pensar empolítica. Mesmo assim, os arapongas mantiveram vigilância cerrada sobreos passos <strong>do</strong> poetinha.76


ARTIGO NO JORNAL O GLOBOUm <strong>do</strong>ssiê secreto <strong>do</strong> Serviço Nacional <strong>de</strong> Informações (SNI) a que OGLOBO teve acesso revela que <strong>Vinicius</strong> esteve na mira <strong>de</strong> diversos órgãos<strong>de</strong> espionagem antes <strong>de</strong> ser cassa<strong>do</strong>, em 1969. A lista vai da polícia da antigaGuanabara ao temi<strong>do</strong> Centro <strong>de</strong> Informações da Marinha (Cenimar). Até aaposenta<strong>do</strong>ria pelo AI-5, o resumo <strong>do</strong> seu prontuário registra 32 anotações,em cinco páginas batidas à máquina.A maior parte <strong>do</strong>s arquivos narra fatos sem importância, como aparticipação em shows e manifestos <strong>de</strong> intelectuais. Outras folhas <strong>de</strong>screvem<strong>Vinicius</strong> como “comunista e escritor” e sócio <strong>do</strong> Centro <strong>Brasil</strong>eiro <strong>de</strong> Cultura,“organização <strong>de</strong> fachada <strong>do</strong> movimento comunista internacional”. Em 1966,a agência gaúcha <strong>do</strong> SNI tratou o poeta como “margina<strong>do</strong>, que é ao mesmotempo diplomata e sambista”. Em 1968, um araponga <strong>do</strong> Centro <strong>de</strong>Informações <strong>do</strong> Exército (CIE) redigiu uma nota mais sucinta: “Boêmio, pareceter erra<strong>do</strong> <strong>de</strong> profissão”.A preferência pela noite foi a <strong>de</strong>sculpa da Comissão <strong>de</strong> InvestigaçãoSumária para incluir <strong>Vinicius</strong> entre os cassáveis. A justificativa aparece num<strong>do</strong>ssiê da Aeronáutica sobre as <strong>de</strong>missões. Junto a seu nome, o <strong>do</strong>cumentotraz a explicação: “alcoólatra”.Surpreen<strong>de</strong>ntemente, o relatório secreto elogia o poeta e ofereceuma alternativa à <strong>de</strong>missão. “Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> que a conduta <strong>do</strong> primeirosecretário<strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong> é incompatível com as exigências e o<strong>de</strong>coro da carreira diplomática, mas em atenção aos seus méritos <strong>de</strong>homem <strong>de</strong> letras e artista consagra<strong>do</strong>, cujo valor não <strong>de</strong>sconhece, acomissão propõe o seu aproveitamento no Ministério da Educação eCultura”.Não se sabe se a sugestão era para valer, mas <strong>Vinicius</strong> foi aposenta<strong>do</strong>compulsoriamente dias <strong>de</strong>pois, aos 55 anos. Ficou indigna<strong>do</strong> com o atoarbitrário, mas manteve o bom humor. Quan<strong>do</strong> circulou que a <strong>de</strong>golaatingira homossexuais e bêba<strong>do</strong>s, apressou-se a avisar:— Eu sou alcoólatra!Apesar da brinca<strong>de</strong>ira, o poeta se abateu com a <strong>de</strong>missão sumária.— Foi uma sacanagem a forma como me expulsaram <strong>do</strong> Itamaraty— <strong>de</strong>sabafou, numa entrevista em 1979.A imagem <strong>de</strong> vagabun<strong>do</strong> traçada pelos militares não combina comos registros funcionais <strong>do</strong> poeta. Dividida em três pastas amareladas, aficha <strong>de</strong> <strong>Vinicius</strong> contém fartos elogios a seu talento e condutaprofissional. Três boletins <strong>de</strong> avaliação interna o classificam como “acima77


BERNARDO DE MELLO FRANCOda média” nos quesitos “atento e aplica<strong>do</strong> no trabalho”, “permanecedurante to<strong>do</strong> o expediente” e “realiza os serviços com presteza”.O <strong>do</strong>cumento mais recente antes da aposenta<strong>do</strong>ria atesta, para os<strong>de</strong>vi<strong>do</strong>s fins, que o poeta “não respon<strong>de</strong> a processo administrativo egoza <strong>de</strong> bom conceito funcional”. Tem data <strong>de</strong> 1968. A página seguintereproduz o Diário Oficial com a cassação.Embora sua expulsão ainda seja tratada como tabu, <strong>Vinicius</strong> épersonagem <strong>de</strong> algumas das melhores histórias <strong>do</strong> Itamaraty. Em 1946,após manter um caso ostensivo com a arquivista Regina Pe<strong>de</strong>rneiras,casou-se em segre<strong>do</strong> com ela numa igreja <strong>de</strong> Petrópolis. A relação duroupouco — entre outros motivos, porque ele já era casa<strong>do</strong>. Mas <strong>de</strong>ixouos versos da “Balada das arquivistas”.Um dia, na mesma época, um colega se espantou com o volume <strong>de</strong>cartas na mesa <strong>de</strong> <strong>Vinicius</strong>. Assim <strong>de</strong>scobriu que ele mantinha um segun<strong>do</strong>emprego: escrevia o consultório sentimental da revista “Flan”, assina<strong>do</strong> sob oinsuspeito pseudônimo <strong>de</strong> Helenice.Nos 24 anos <strong>de</strong> Itamaraty, o poeta nunca escon<strong>de</strong>u o fastio com aburocracia e a formalida<strong>de</strong> da carreira.— Detesto tu<strong>do</strong> o que oprime o homem, inclusive a gravata.( Ora, énotório que o diplomata é um homem que usa gravata — queixou-se, numaconversa com Clarice Lispector em 1967.Mas a boemia confessa não era sinônimo <strong>de</strong> vadiagem. Pelo contrário:foi nesse perío<strong>do</strong> que <strong>Vinicius</strong> escreveu a peça “Orfeu da Conceição” ecompôs as músicas mais famosas com Tom Jobim, como “Garota <strong>de</strong>Ipanema”.Em 1979, o poeta tentou ser readmiti<strong>do</strong> com base na Lei da Anistia.O ministro Ramiro Saraiva Guerreiro respon<strong>de</strong>u pelo Diário Oficial, em 4<strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1980: “In<strong>de</strong>ferida a reversão”. <strong>Vinicius</strong> morreria no mêsseguinte. Seus papéis estão guarda<strong>do</strong>s no Itamaraty e no Arquivo Nacional<strong>de</strong> Brasília. Foram consulta<strong>do</strong>s pelo GLOBO com autorização <strong>de</strong> suasfilhas.Quarenta anos <strong>de</strong>pois, poeta po<strong>de</strong> ganhar promoção a embaixa<strong>do</strong>rQuarenta anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ser cassa<strong>do</strong> pela ditadura militar, <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong><strong>Moraes</strong> po<strong>de</strong> ser agracia<strong>do</strong> com uma inédita promoção postmortem aembaixa<strong>do</strong>r. A i<strong>de</strong>ia foi lançada em 2006 no antigo Palácio <strong>do</strong> Itamaraty, no78


ARTIGO NO JORNAL O GLOBOCentro <strong>do</strong> Rio, que teve uma ala batizada com o nome <strong>do</strong> poeta. Apesar dasboas intenções, a proposta ainda não conseguiu vencer a burocracia <strong>do</strong>governo fe<strong>de</strong>ral.Uma minuta <strong>de</strong> <strong>de</strong>creto, a ser assinada pelo presi<strong>de</strong>nte Luiz Inácio Lulada Silva, está engavetada <strong>de</strong>s<strong>de</strong> agosto passa<strong>do</strong> no Ministério <strong>do</strong>Planejamento. De lá, o <strong>do</strong>cumento ainda terá que passar pela Casa Civilantes <strong>de</strong> chegar ao presi<strong>de</strong>nte.O <strong>do</strong>cumento já tem a assinatura <strong>do</strong> ministro das Relações Exteriores ,Celso Amorim. O texto vai direto ao ponto : “ É promovi<strong>do</strong> post-mortem aministro <strong>de</strong> primeira classe da carreira <strong>de</strong> diplomata o primeiro-secretárioMarcus <strong>Vinicius</strong> da Cruz <strong>de</strong> Mello <strong>Moraes</strong>, mundialmente conheci<strong>do</strong> como<strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong>”.No Itamaraty, um <strong>do</strong>s principais <strong>de</strong>fensores da homenagem é o embaixa<strong>do</strong>rJeronimo Moscar<strong>do</strong>, presi<strong>de</strong>nte da Fundação Alexandre <strong>de</strong> Gusmão. Ele<strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a medida com um argumento singelo: o Barão <strong>do</strong> Rio Branco, patronoda diplomacia brasileira, teria apronta<strong>do</strong> muito mais que o poeta.— Perto <strong>do</strong> Barão, o <strong>Vinicius</strong> foi um congrega<strong>do</strong> mariano — brinca.Por ironia, chegar ao nível máximo da carreira era uma i<strong>de</strong>ia temida por<strong>Vinicius</strong>. Ele explicou o motivo em <strong>de</strong>poimento ao Museu da Imagem <strong>do</strong>Som, no Rio <strong>de</strong> Janeiro, em 1967:— Nos escalões inferiores da carreira, ninguém presta atenção em você.O perigo é você virar embaixa<strong>do</strong>r, né? Minha gran<strong>de</strong> luta no Itamaraty temsi<strong>do</strong> para não ser promovi<strong>do</strong>.<strong>Embaixa<strong>do</strong>r</strong> chefiou caça às bruxasO responsável pelo maior expurgo da diplomacia brasileira era uruguaio.Antônio Cândi<strong>do</strong> da Câmara Canto nasceu em Montevidéu, em 1910, masher<strong>do</strong>u a nacionalida<strong>de</strong> brasileira <strong>do</strong> pai. Pouco lembra<strong>do</strong> nas publicaçõesoficiais <strong>do</strong> Itamaraty, foi uma das figuras mais influentes na casa durante osanos <strong>de</strong> chumbo da ditadura militar. Após comandar a caça às bruxas nogoverno Costa e Silva, teve papel central no golpe que <strong>de</strong>rrubou Salva<strong>do</strong>rAllen<strong>de</strong> no Chile, em 1973.Câmara Canto é consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> o quinto homem da junta chefiada pelogeneral Augusto Pinochet, que se manteria no po<strong>de</strong>r até 1990. Contrarian<strong>do</strong>a tradição da diplomacia brasileira, negou asilo a compatriotas que moravamno país e entraram na mira <strong>do</strong>s golpistas. No fatídico 11 <strong>de</strong> setembro, enquanto79


BERNARDO DE MELLO FRANCOo Palácio La Moneda, da Presidência da República chilena, ardia em chamas,ele atendia o telefone com uma exclamação festiva: “Ganhamos¡”No livro “A ditadura <strong>de</strong>rrotada”, o jornalista Elio Gaspari <strong>de</strong>screveCâmara Canto como “um golpista militante”. Traça o perfil <strong>de</strong> um homemconserva<strong>do</strong>r, “famoso no Itamaraty pela severa sincerida<strong>de</strong> e, nos postoson<strong>de</strong> passou, pelas habilida<strong>de</strong>s como cavaleiro”. Um embaixa<strong>do</strong>r aposenta<strong>do</strong>,que na época das cassações ainda estava em início <strong>de</strong> carreira, o classificaapenas como fascista.Antes <strong>de</strong> colaborar com a repressão no Chile, Câmara Canto chefiou arepresentação <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> na Espanha, que vivia a ditadura <strong>do</strong> generalíssimoFrancisco Franco. Seu currículo oficial, no Almanaque <strong>do</strong> Ministério dasRelações Exteriores, registra a participação em duas comissões <strong>de</strong> inquérito.Sobre as cassações que coman<strong>do</strong>u em 1969, nenhuma palavra. A ditaduramilitar soube reconhecer os serviços presta<strong>do</strong>s pelo embaixa<strong>do</strong>r. Em 1970, umano <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> instruir a cassação <strong>de</strong> 15 colegas, ele foi agracia<strong>do</strong> com a Or<strong>de</strong>m<strong>do</strong> Rio Branco no grau <strong>de</strong> Grã Cruz. O diplomata se aposentou em 1975.Morreu <strong>de</strong> câncer, no Rio, <strong>do</strong>is anos <strong>de</strong>pois.Expurgo não foi o únicoO expurgo <strong>de</strong> 1969 foi o maior, mas não o único da história <strong>do</strong> Itamaraty.Em 1954, em meio a uma campanha anticomunista li<strong>de</strong>rada por Carlos Lacerda,o rótulo <strong>de</strong> “subversivo” selou a <strong>de</strong>missão <strong>de</strong> cinco diplomatas, entre eles osintelectuais João Cabral <strong>de</strong> Melo Neto e Antonio Houaiss. To<strong>do</strong>s conseguiramreaver o cargo num julgamento histórico <strong>do</strong> Supremo Tribunal Fe<strong>de</strong>ral (STF).A ilegalida<strong>de</strong> das cassações foi <strong>de</strong>fendida por uma banca que reunia EvandroLins e Silva, Sobral Pinto e Luiz Gonzaga <strong>do</strong> Nascimento Silva.Os militares esperaram <strong>de</strong>z anos para dar o troco em Houaiss. Em 1964,o filólogo seria afasta<strong>do</strong> <strong>de</strong>finitivamente, junto com os colegas Jayme Azeve<strong>do</strong>Rodrigues. Dessa vez, Houaiss foi puni<strong>do</strong> por um discurso na Assembleia dasNações Unidas em que atacou a ditadura salazarista em Portugal, durante ogoverno João Goulart. Todas as cassações foram <strong>de</strong>cretadas <strong>do</strong>is meses <strong>de</strong>pois<strong>do</strong> golpe.Além <strong>do</strong>s 13 da lista <strong>de</strong> Câmara Canto, outros cinco diplomatas seriamcassa<strong>do</strong>s pelo AI-5 entre 1969 e 1975. O caso mais conheci<strong>do</strong> foi o <strong>do</strong>ssecretários Mário da Graça Roiter e Miguel Darcy <strong>de</strong> Oliveira, acusa<strong>do</strong>s <strong>de</strong>ação antipatriótica. Segun<strong>do</strong> os militares, os <strong>do</strong>is teriam ajuda<strong>do</strong> brasileiros80


ARTIGO NO JORNAL O GLOBOexila<strong>do</strong>s a <strong>de</strong>nunciar, no exterior, a prática <strong>de</strong> tortura e perseguição política no<strong>Brasil</strong>.O Globo, 10 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 2010***A reabilitação <strong>de</strong> <strong>Vinicius</strong> no ItamaratyTrinta anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> sua morte, o diplomata cassa<strong>do</strong> Marcus <strong>Vinicius</strong>da Cruz <strong>de</strong> Mello <strong>Moraes</strong> vai virar embaixa<strong>do</strong>r. A Câmara aprovou ontem apromoção <strong>do</strong> ex-servi<strong>do</strong>r a ministro <strong>de</strong> primeira classe <strong>do</strong> Itamaraty, cargomais alto da carreira diplomática. O ato reabilita a trajetória profissional <strong>do</strong>poeta <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong>, que foi persegui<strong>do</strong> pela ditadura militar e expulso<strong>do</strong> Ministério das Relações Exteriores em abril <strong>de</strong> 1969, com base no AtoInstitucional nº 5 (AI-5).Redigi<strong>do</strong> por amigos <strong>de</strong> <strong>Vinicius</strong> no Itamaraty, o texto da promoçãopassou três anos numa gaveta <strong>do</strong> Ministério <strong>do</strong> Planejamento. Foi finalmenteenvia<strong>do</strong> ao Congresso no fim <strong>de</strong> 2009, <strong>de</strong>pois que uma reportagem <strong>do</strong>GLOBO revelou basti<strong>do</strong>res da <strong>de</strong>missão sumária <strong>do</strong> poeta. Documentosinéditos <strong>do</strong> Serviços Nacional <strong>de</strong> Informações (SNI) comprovaram que elefoi vigia<strong>do</strong> <strong>de</strong> perto por diversos órgãos <strong>de</strong> espionagem, incluin<strong>do</strong> a políciada antiga Guanabara e o temi<strong>do</strong> Centro <strong>de</strong> Informações da Marinha (Cenimar).— A expulsão <strong>de</strong> <strong>Vinicius</strong> foi mais um ato <strong>de</strong> violência e arbítrio daditadura. Ele foi embaixa<strong>do</strong>r não só <strong>do</strong> Itamaraty, mas da cultura brasileira— disse ontem a cineasta Suzana <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong>, filha primogênita <strong>do</strong> poeta.A homenagem foi aprovada num raro consenso entre governo e oposição,com discursos favoráveis <strong>de</strong> representantes <strong>do</strong>s principais parti<strong>do</strong>s políticos.O único <strong>de</strong>puta<strong>do</strong> a se manifestar contra a promoção foi o militar da reservaJair Bolsonaro (PP-RJ), conheci<strong>do</strong> por <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r o golpe <strong>de</strong> 1964. Após aaprovação <strong>do</strong> texto no Sena<strong>do</strong>, os <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> <strong>Vinicius</strong> terão direito apensão correspon<strong>de</strong>nte ao topo da carreira <strong>do</strong> Itamaraty.O poeta foi a vítima mais conhecida da Comissão <strong>de</strong> Investigação Sumária,que usou o AI-5 para investigar vidas privadas e expulsar diplomatas que oregime tachava <strong>de</strong> homossexuais, alcoólatras ou emocionalmente instáveis.<strong>Vinicius</strong> foi puni<strong>do</strong> por sua vida boêmia, que <strong>de</strong>sagradava à linha-durada caserna. Apesar disso, os registros <strong>do</strong> Ministério das Relações Exterioresrevelam que ele era consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> um diplomata exemplar e recebeu uma série81


BERNARDO DE MELLO FRANCO<strong>de</strong> elogios por tarefas em nome <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> no exterior. O poeta morreu emjulho <strong>de</strong> 1980, aos 66 anos.A caça às bruxas no Itamaraty foi comandada pelo embaixa<strong>do</strong>r AntônioCândi<strong>do</strong> da Câmara Canto, alia<strong>do</strong> da ditadura que mais tar<strong>de</strong> apoiaria a<strong>de</strong>rrubada <strong>do</strong> presi<strong>de</strong>nte chileno Salva<strong>do</strong>r Allen<strong>de</strong>, em 1973. No maiorexpurgo da história da diplomacia brasileira, foram cassa<strong>do</strong>s 44 servi<strong>do</strong>res,sen<strong>do</strong> 13 diplomatas, oito oficiais <strong>de</strong> chancelaria e 23 funcionáriosadministrativos. As <strong>de</strong>missões foram assinadas pelo chanceler Magalhães Pintoe pelo presi<strong>de</strong>nte Costa e Silva.***82


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Tramitação Legislativaa. Mensagem Presi<strong>de</strong>ncialEMI 00409 MRE-MPOGBrasília, 18 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2008.Excelentíssimo Senhor Presi<strong>de</strong>nte da República,Elevamos à consi<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> Vossa Excelência o anexo Projeto <strong>de</strong> Leiconten<strong>do</strong> proposta <strong>de</strong> promoção post mortem <strong>do</strong> diplomata Marcus <strong>Vinicius</strong>da Cruz <strong>de</strong> Mello <strong>Moraes</strong>, conheci<strong>do</strong> mundialmente como <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong><strong>Moraes</strong>, um <strong>do</strong>s maiores poetas e músicos <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>.2. Não obstante haver termina<strong>do</strong> sua carreira <strong>de</strong> diplomata comoPrimeiro Secretário, <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong> prossegui a brilhante trajetória artísticaque vinha <strong>de</strong>senvolven<strong>do</strong> em solo brasileiro e também no exterior.3. Conheci<strong>do</strong> também pela alcunha carinhosa <strong>de</strong> “poetinha”, <strong>Vinicius</strong>soube transpor, com singular maestria, o talento da escrita poética para ocampo música. Em suas parcerias com Tom Jobim, Carlos Lyra, Ba<strong>de</strong>n Powell,85


TRAMITAÇÃO LEGISLATIVAToquinho, e outros gran<strong>de</strong>s músicos, <strong>Vinicius</strong> trouxe à luz algumas das maisbelas canções brasileiras. Seja no estilo da Bossa Nova, <strong>do</strong> qual “Garota <strong>de</strong>Ipanema” é exemplo insuperável, ou através <strong>do</strong> Samba, <strong>Vinicius</strong> produziuobras-primas da nossa música popular que representaram uma inestimávelcontribuição no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> difundir a cultura brasileira no exterior, tornan<strong>do</strong>aobjeto <strong>de</strong> apreço e admiração.4. Po<strong>de</strong>-se afirmar, sem qualquer dúvida, que o extraordinário trabalhoartístico <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> por <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong> durante décadas fez <strong>de</strong>le, mais<strong>do</strong> que divulga<strong>do</strong>r ímpar <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, um verda<strong>de</strong>iro embaixa<strong>do</strong>r da culturabrasileira. Nada mais justo <strong>do</strong> que prestar-lhe o <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> reconhecimento,elevan<strong>do</strong>-o, também como servi<strong>do</strong>r público e diplomata, à posição quemerecer ocupar.5. Estas são as razões, Senhor Presi<strong>de</strong>nte, que nos levam a submeter àconsi<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> Vossa Excelência o Projeto <strong>de</strong> Lei que autoriza a promoçãopost mortem <strong>do</strong> diplomata Marcus <strong>Vinicius</strong> da Cruz <strong>de</strong> Mello <strong>Moraes</strong>.Respeitosamente,Assina<strong>do</strong> eletronicamente por: Celso Luiz Nunes Amorim, PauloBernar<strong>do</strong> Silva86


TRAMITAÇÃO LEGISLATIVAb. Parecer <strong>do</strong> Deputa<strong>do</strong> Emiliano José, Comissão <strong>de</strong> Educação eCultura da Câmara <strong>do</strong>s Deputa<strong>do</strong>sCOMISSÃO DE EDUCAÇÃO e CULTURAPROJETO DE LEI Nº 6.417, DE 2009Promove post mortem o diplomata Marcus <strong>Vinicius</strong> da Cruz <strong>de</strong> Mello<strong>de</strong> <strong>Moraes</strong>.Autor: PODER EXECUTIVORelator: Deputa<strong>do</strong> EMILIANO JOSÉI – RELATÓRIOO projeto <strong>de</strong> lei em análise, oriun<strong>do</strong> <strong>do</strong> Po<strong>de</strong>r Executivo, objetivapromover post mortem a Ministro <strong>de</strong> Primeira Classe da Carreira <strong>de</strong>Diplomata o Primeiro Secretário Marcus <strong>Vinicius</strong> da Cruz <strong>de</strong> Mello <strong>Moraes</strong>,mais conheci<strong>do</strong> <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s nós como <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong>. Com tal medida,ficam também assegura<strong>do</strong>s aos atuais <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong> osbenefícios <strong>de</strong> pensão correspon<strong>de</strong>nte ao novo cargo <strong>de</strong> embaixa<strong>do</strong>r.Na Mensagem encaminhada junto à proposição, justifica-se tal medidapelo fato <strong>de</strong> que, embora tenha termina<strong>do</strong> precocemente sua carreira <strong>de</strong>diplomata como Primeiro Secretário, “<strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong> prosseguiu abrilhante trajetória artística que vinha <strong>de</strong>senvolven<strong>do</strong> em solobrasileiro e também no exterior. (...) Po<strong>de</strong>-se afirmar, sem qualquerdúvida, que o extraordinário trabalho artístico <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> por<strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong> durante décadas fez <strong>de</strong>le, mais <strong>do</strong> que divulga<strong>do</strong>rímpar <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, um verda<strong>de</strong>iro embaixa<strong>do</strong>r da cultura brasileira. Nadamais justo <strong>do</strong> que prestar-lhe o <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> reconhecimento, elevan<strong>do</strong>-o,também como servi<strong>do</strong>r público e diplomata, à posição que mereceocupar”.A tramitação dá-se conforme o art. 24, inciso II <strong>do</strong> Regimento Interno<strong>de</strong>sta Casa, sen<strong>do</strong> conclusiva a apreciação por parte da Comissão <strong>de</strong>Educação e Cultura (CEC). Cumpri<strong>do</strong>s os procedimentos e esgota<strong>do</strong>s osprazos regimentais, não foram recebidas emendas ao Projeto. Cabe-nos,agora, por <strong>de</strong>signação da Presidência da CEC, a elaboração <strong>do</strong> parecer,on<strong>de</strong> nos manifestaremos acerca <strong>do</strong> mérito cultural.87


TRAMITAÇÃO LEGISLATIVAÉ o Relatório.II – VOTO DO RELATORO que terá feito <strong>de</strong> <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> Morais um diplomata? E como ele conseguiuconciliar tanto pen<strong>do</strong>r criativo, tanta explosão musical, tanta veia poética,tanto violão, tanta bossa nova com os rigores da carreira <strong>do</strong> Itamaraty? Talvezcoubesse ao relator <strong>de</strong>bruçar-se um pouco que seja sobre sua trajetória para,então, respon<strong>de</strong>r a essas inquietações.Uma pista, antes <strong>de</strong> qualquer outro argumento, po<strong>de</strong> ser encontrada emuma reflexão feita por ele próprio: “Poucas coisas fazem tão bem quanto asolidão sincera”. É uma revelação feita à mãe em carta <strong>de</strong> 11 <strong>de</strong> março <strong>de</strong>1935. Nasci<strong>do</strong> em 1913, no Rio <strong>de</strong> Janeiro, aos 21 anos já raciocinava <strong>de</strong>mo<strong>do</strong> maduro, vivia angústias e dúvidas que ficariam melhor num homemmais velho, como diz Ruy Castro no prefácio <strong>do</strong> livro Queri<strong>do</strong> Poeta –Correspondência <strong>de</strong> <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> Morais –, organiza<strong>do</strong> pelo próprio RuyCastro, que subsidia esse voto. A solidão era uma parceira com que contava,nem que esporadicamente.Entra para a Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Direito, no Rio <strong>de</strong> Janeiro. Forma-se em1933. Essa década já o surpreen<strong>de</strong> crian<strong>do</strong>, compon<strong>do</strong>, poetan<strong>do</strong>.Em 1932, a primeira música gravada, com os irmãos Tapajós: “Loura ouMorena”. Surgem também seus primeiros livros <strong>de</strong> poesia: “O caminho paraa distância”, <strong>de</strong> 1933 “Forma e exegese”, <strong>de</strong> 1938, e “Novos Poemas”,também <strong>de</strong> 1938. Seu aparecimento como poeta provoca admiração emManoel Ban<strong>de</strong>ira e alguns outros poetas <strong>de</strong> nomeada. De Manoel Ban<strong>de</strong>iratorna-se amigo.O poeta tinha vocação para o mun<strong>do</strong>. Diplomata seria, por essa vocação.Uma vocação para o mun<strong>do</strong> que não conseguia afastá-lo da criação, e dacriação em torno <strong>de</strong> sua terra. Da poesia <strong>de</strong> sua gente. Da poesia vinculadaà paixão.Em1938, ano intenso para ele, vai para Oxford estudar Literatura Inglesa.Casa-se em 1939, pela primeira vez, e essa citação é feita apenas pararegistrar o primeiro casamento, a paixão que irrompeu por Tati – BeatrizAzeve<strong>do</strong> <strong>de</strong> Mello. Serão muitos os casamentos, inúmeras as paixões.O poeta, o diplomata, o intelectual refina<strong>do</strong> tinha uma propensão incrívelà paixão. Por tu<strong>do</strong> que fazia. E pelas mulheres. Apaixonou-se, e perdidamente,por muitas <strong>de</strong>las. O amor, infinito enquanto dure.88


TRAMITAÇÃO LEGISLATIVAO mesmo Ruy Castro lembra que a facilida<strong>de</strong> com que o poetinha seapaixonava e a <strong>de</strong>dicação com que se empenhava à paixão só encontravamparalelo na paixão seguinte, que não <strong>de</strong>morava muito a vir.Tentou sempre enten<strong>de</strong>r as mulheres, mas confessou, ainda no fértil ano<strong>de</strong> 1938, nunca saber se conhecia uma mulher direito. Achava mesmo quenunca conseguia o feito. “Minha admiração pelo que elas são em si, e pelopapel que têm na vida é tão gran<strong>de</strong> que eu acho que não me <strong>de</strong>ixa fazerpsicologia sobre”. A confissão está numa carta a Tati, sua primeira mulher.Sofria e amava. E amava e sofria. E se perdia sempre <strong>de</strong> amor.E era o amor, a paixão, que provavelmente estimulavam sua veia poética,o levavam à poesia, à bossa, ao violão. E tu<strong>do</strong> isso seguramente tornava asua missão <strong>de</strong> diplomata mais rica, mesmo que eventualmente, para os padrões<strong>de</strong> então, nem sempre seguisse os exatos cânones <strong>do</strong> Itamaraty. E era tu<strong>do</strong>isso que o tornava um gran<strong>de</strong> diplomata, um extraordinário embaixa<strong>do</strong>r <strong>do</strong><strong>Brasil</strong>.“Não importa. O que importa é ir embora/ Pela alegria <strong>de</strong> buscar a aurora/E pela <strong>do</strong>r <strong>de</strong> caminhar sozinho”.Os versos são <strong>de</strong> <strong>Vinicius</strong>. E o revelam.Amor e paixão. Amor e solidão. Solidão e criativida<strong>de</strong>. A busca da aurora.A solidão nele, quan<strong>do</strong> alcançada, talvez fosse aquela <strong>do</strong> momento criativo.Há quem diga ter ele leva<strong>do</strong> uma vida invejável. E talvez seja verda<strong>de</strong>iro.Em que senti<strong>do</strong>? No senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> ser a vida <strong>de</strong> um homem cheio <strong>de</strong> coragem,capaz <strong>de</strong> atirar-se em tu<strong>do</strong> que fazia com to<strong>do</strong> o vigor <strong>de</strong> sua inteligência.Com a característica <strong>de</strong> ser um homem <strong>de</strong> idéias, <strong>do</strong> pensamento. Capaz <strong>de</strong>suportar perdas e, como já se disse, insistin<strong>do</strong> na trilha <strong>de</strong> Ruy Castro, <strong>de</strong>distribuir amor, muito amor. Pela humanida<strong>de</strong>, pela poesia, pela música, pelasmulheres, por seus filhos, por sua mãe, por seus amigos. Foi assim, caminhan<strong>do</strong>pela vida <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> solidário, fraterno, que ele foi tentan<strong>do</strong> <strong>de</strong>cifrar o mistérioda vida, mistério ao qual ele se refere numa carta a Lúcio Car<strong>do</strong>so, em 1936.Ninguém o imagine um sujeito indisciplina<strong>do</strong>, sem metas, sem caminho<strong>de</strong>fini<strong>do</strong>. “O melhor caminho é sempre o mais difícil, e não o que sai <strong>do</strong>s pés.Muito provavelmente, a vida <strong>do</strong>s macacos é mais divertida que a <strong>do</strong>spassarinhos. E eu me tracei uma regra, que não é regra, não é nada senão umuso poético da minha vida: só rir para as coisas trágicas. Só chorar <strong>de</strong> emoção.Só andar na ponta <strong>do</strong>s pés. Só ser <strong>de</strong>lica<strong>do</strong>. Só topar paradas duras. Só<strong>do</strong>rmir em último caso. Só pensar nos outros. Só castigar a si próprio. Sóaceitar o inaceitável. Só criar em alegria e, sobretu<strong>do</strong>, só ser íntimo”.89


TRAMITAÇÃO LEGISLATIVAFoi com esse caminhar que ele encontrou a serenida<strong>de</strong>. Não a serenida<strong>de</strong>burguesa. Mas serenida<strong>de</strong> como “a mais alta <strong>do</strong>r na mais funda consciência<strong>do</strong> próprio <strong>de</strong>stino”, como ele diz em carta à irmã mais nova, Leta.Foi aprova<strong>do</strong> em concurso para o Itamaraty em 1942. Entre 1941 e1942 nascem Suzana e Pedro, filhos com Tati. É nessa década que ele caminhada direita para a esquerda, sob a influência <strong>do</strong> escritor americano Wal<strong>do</strong>Frank. Continua poetan<strong>do</strong>: publica “Cinco Elegias” e “Poemas, sonetos ebaladas”.Em 1946, é nomea<strong>do</strong> vice-cônsul em Los Angeles, on<strong>de</strong> vai radicalizarsua visão política à esquerda. Revolta-se, por exemplo, com as ativida<strong>de</strong>s <strong>do</strong>Comitê <strong>de</strong> Ativida<strong>de</strong>s Antiamericanas, que estimulou <strong>de</strong>lações, revelou tantoscaracteres frágeis entre intelectuais e artistas. Era o tempo <strong>do</strong> anticomunismo,a Guerra Fria em ascensão. Torna-se amigo <strong>de</strong> Carmem Miranda, <strong>de</strong> GabrielaMistral, <strong>de</strong> Orson Wells, <strong>de</strong> Marlene Dietrich, <strong>de</strong> tantos outros.Em 1950, retorna ao Rio <strong>de</strong> Janeiro. Faz crítica <strong>de</strong> cinema no ÚltimaHora. Volta a compor. Comparece a vários festivais <strong>de</strong> cinema no exterior.Conhece Tom Jobim. Em 1953, nasce Georgiana, filha <strong>de</strong>le e <strong>de</strong> Lila Bôscoli.É nomea<strong>do</strong> segun<strong>do</strong> secretário da Embaixada parisiense.Em 1954, lança Antologia Poética. Em 1956, nasce a segunda filha comLila, Luciana. Em 1957, segue para Montevidéu como cônsul-adjunto, <strong>de</strong>pois<strong>de</strong> lançar um livro <strong>de</strong> sonetos. Em 1958, ganha as ruas o LP “Canção <strong>do</strong>Amor Demais”, com Elizeth Car<strong>do</strong>so interpretan<strong>do</strong> suas canções com TomJobim. Em 1959, publica Novos Poemas II.Em 1960, volta ao Rio. Trabalha então na Secretaria <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong>Relações Exteriores. É intensa a sua parceria com Tom Jobim. Começa acompor também com Carlos Lyra e Ba<strong>de</strong>n Powell.Em 1962, explo<strong>de</strong> “Garota <strong>de</strong> Ipanema”, <strong>de</strong>le e <strong>de</strong> Tom. Publica “Paraviver um gran<strong>de</strong> amor”. Em 1963, assume como <strong>de</strong>lega<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> junto aUnesco. Em 1964 volta ao Rio e em 1965 vence um festival da canção, coma música Arrastão, em parceria com Edu Lobo. No ano seguinte, publica“Para uma menina com uma flor”.No final <strong>de</strong> 1968, é afasta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Itamaraty pelo AI-5. A ditaduraradicalizava, mostrava sua verda<strong>de</strong>ira face. A ditadura não podia convivercom um homem como <strong>Vinicius</strong> no Itamaraty. Morra a cultura! Viva amorte! É a palavra-<strong>de</strong>-or<strong>de</strong>m das ditaduras, sempre. E <strong>Vinicius</strong> era acultura, a criação, o pensamento, o turbilhão <strong>de</strong> idéias volta<strong>do</strong> para mudar,melhorar o mun<strong>do</strong>, torná-lo mais belo e mais justo. Poeta não rimam com90


TRAMITAÇÃO LEGISLATIVAditaduras. Lorca não rimou com Franco. <strong>Vinicius</strong> não rimou com Costa eSilva.Em 1970, nasce Maria, filha <strong>de</strong>le e <strong>de</strong> Christina Gurjão. <strong>Vinicius</strong> jámora em Itapoã com Gesse Gessy. Anos seguintes, faz centenas <strong>de</strong> showscom Toquinho e cantoras como Marília Medalha, Bethânia, Maria Creuzae Joyce, na Itália, na Argentina e no Uruguai.Em 1976, <strong>de</strong>ixa a Bahia. E <strong>de</strong>ixa Gesse. E se apaixona pela argentinaMartha Rodriguez.Em 1977, o Canecão, no Rio, recebe o show Tom, <strong>Vinicius</strong>, Toquinhoe Miúcha por longa temporada. Deixa Martha. Casa-se com Gilda Matoso,em Paris. Em 1979, faz os últimos show e disco, sempre com Toquinho.Morre no Rio, no dia 9 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1980.Morria o poetinha. Eterno poetinha. O da “Garota <strong>de</strong> Ipanema”. Opoeta <strong>do</strong> Samba da Bênção:“É melhor ser alegre que ser triste,Alegria é a melhor coisa que existeÉ assim como a luz no coração”.A presente proposição vem, pois, resgatar uma dívida histórica aodispor sobre o reconhecimento <strong>de</strong> um cidadão brasileiro que, comoservi<strong>do</strong>r público, na carreira da diplomacia, merece ser promovi<strong>do</strong> postmortem ao cargo <strong>de</strong> Ministro <strong>de</strong> Primeira Classe, uma vez que foiarbitrariamente expulso <strong>do</strong> Itamaraty durante a ditadura militar. Permitamme,nobres Colegas, transcrever um texto que explicita melhor o porquê<strong>de</strong> se conferir post mortem a promoção a <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong> (1913-1980):“Em mea<strong>do</strong>s <strong>de</strong> 1968, durante a onda <strong>de</strong> protestos que sacudiuo regime, o marechal Costa e Silva teria redigi<strong>do</strong> <strong>de</strong> própriopunho bilhete para o então Chanceler Magalhães Pintoor<strong>de</strong>nan<strong>do</strong>: “Assunto: <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong>. Demita-se essevagabun<strong>do</strong>”. Fato ou lenda, o inci<strong>de</strong>nte ilustra a irritação <strong>do</strong>regime com o poeta, causada não por sua escassa assiduida<strong>de</strong>ao trabalho, mas por notórias amiza<strong>de</strong>s à esquerda e uma discretapolitização <strong>de</strong> suas letras. Tal irritação levou à abertura <strong>de</strong>processo administrativo contra <strong>Vinicius</strong> que acabou sen<strong>do</strong>exonera<strong>do</strong>, em meio às cassações que se seguiram ao AtoInstitucional nº 5.91


TRAMITAÇÃO LEGISLATIVAA caça às bruxas foi justificada pela ditadura como ato moraliza<strong>do</strong>r,objetivan<strong>do</strong> purgar o serviço público <strong>de</strong> “corruptos, homossexuais ebêba<strong>do</strong>s”. Amigos que foram receber <strong>Vinicius</strong> no Galeão, viram-no<strong>de</strong>scer <strong>do</strong> avião abati<strong>do</strong>, amargura<strong>do</strong>, mas com uma garrafa <strong>de</strong> uísqueem punho, para evitar qualquer mal-entendi<strong>do</strong>:- Eu sou bêba<strong>do</strong>!Nas longas temporadas que passou no Rio <strong>de</strong> Janeiro, aju<strong>do</strong>u (emuito) a criar a mística <strong>do</strong> Itamaraty como celeiro <strong>de</strong> intelectuais egran<strong>de</strong> bastião da cultura. À época, o Palácio da Rua Larga operavacomo verda<strong>de</strong>iro centro da vida social e política da Capital Fe<strong>de</strong>ral– em seus gabinetes, arquitetava-se a projeção <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> no concertodas nações; em suas recepções, tramavam-se os <strong>de</strong>stinos <strong>do</strong> país.Era um Itamaraty generoso, que sabia abrigar tanto homens <strong>de</strong> açãoquanto homens <strong>de</strong> pensamento, pessoas das mais diferentes inclinaçõese interesses, em leque ecumênico que ia <strong>do</strong> jovem economista RobertoCampos ao promissor literato João Guimarães Rosa. Deles, exigiaseapenas que fossem geniais.Ali, <strong>Vinicius</strong> estava em casa. O Itamaraty era seu porto e seu amparo,a instituição que lhe dava segurança e status para ir-se transforman<strong>do</strong>em um <strong>do</strong>s mais ativos intelectuais da época. Em setembro <strong>de</strong> 1956,com o espetáculo “Orfeu da Conceição”, o poeta atingia seu auge,na síntese perfeita entre o erudito e o popular, a tradição clássica ealma brasileira, o drama e a música. Que mais po<strong>de</strong>ria o Itamaratyexigir <strong>de</strong> seus funcionários? A arte <strong>de</strong> <strong>Vinicius</strong> era tão cativante quetinha o <strong>do</strong>m <strong>de</strong> se converter em política <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong>. <strong>Embaixa<strong>do</strong>r</strong> algumfez tanto pela pátria quanto ele.(DANTAS, Marcelo. A Volta In: No.mínimo. 27.9.2006. Disponível em:http://www.vinicius<strong>de</strong>moraes.com.br).A História se faz mediante o reconhecimento daqueles que, em vida,dignificaram o país, através <strong>de</strong> seu trabalho e divulgação positiva <strong>de</strong> nossaimagem no exterior, razão pela qual emitimos parecer favorável ao PL nº6.417, <strong>de</strong> 2009, que promove post mortem nosso queri<strong>do</strong> “poetinha” <strong>Vinicius</strong><strong>de</strong> Moares ao cargo <strong>de</strong> <strong>Embaixa<strong>do</strong>r</strong> (Ministro <strong>de</strong> Primeira Classe da Carreira<strong>de</strong> Diplomata).92


TRAMITAÇÃO LEGISLATIVAMas é a vida que vale, a fron<strong>do</strong>sa, luxuriante árvore da vida é que justificaa homenagem.Um homem que viveu assim, com tal intensida<strong>de</strong>, que conseguiu, viven<strong>do</strong>apaixonadamente, crian<strong>do</strong> apaixonadamente, revelar o mais profun<strong>do</strong> <strong>do</strong><strong>Brasil</strong>, o mais poético e criativo <strong>de</strong> sua cultura, um homem assim, mereceessa promoção pós-mortem inegavelmente.Quan<strong>do</strong>, já muito <strong>do</strong>ente, às vésperas <strong>de</strong> sua morte, em entrevista, umrepórter perguntou a <strong>Vinicius</strong> se ele estava com me<strong>do</strong> da morte ele,calmamente, respon<strong>de</strong>u:– Eu não estou com me<strong>do</strong> da morte. Estou é com sauda<strong>de</strong>s da vida.É assim que morre um poeta. Com sauda<strong>de</strong>s da vida. Sem me<strong>do</strong> damorte.Assim, morreu <strong>Vinicius</strong>. Para ser lembra<strong>do</strong> eternamente pelo seu país.Pela aprovação <strong>do</strong> PL 6417, <strong>de</strong> 2009.Sala da Comissão, em 01 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2009.93


TRAMITAÇÃO LEGISLATIVAc. Requerimento <strong>de</strong> urgência, Câmara <strong>do</strong>s Deputa<strong>do</strong>s94


TRAMITAÇÃO LEGISLATIVAd. Votação no Plenário da Câmara <strong>do</strong>s Deputa<strong>do</strong>s, 09 <strong>de</strong> fevereiro<strong>de</strong> 2010O SR. JOSÉ GENOÍNO (PT-SP. Sem revisão <strong>do</strong> ora<strong>do</strong>r.) - Sr. Presi<strong>de</strong>nte,é muito importante votarmos esse projeto <strong>de</strong> lei. Estamos fazen<strong>do</strong> um ato político,uma homenagem a <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong>, que marcou a cultura e a música brasileiras.A Câmara <strong>do</strong>s Deputa<strong>do</strong>s <strong>de</strong>veria aprovar essa urgência por unanimida<strong>de</strong>,assim como o projeto <strong>de</strong> iniciativa <strong>do</strong> Presi<strong>de</strong>nte da República, referenda<strong>do</strong> pelosMinistros Celso Amorim e Paulo Bernar<strong>do</strong>.Fico feliz, Sr. Presi<strong>de</strong>nte, em fazermos esta votação nesta tar<strong>de</strong>.Este é o encaminhamento que faço a este requerimento <strong>de</strong> urgênciaurgentíssima.O SR. JOSÉ GENOÍNO (PT-SP. Para emitir parecer. Sem revisão <strong>do</strong>ora<strong>do</strong>r.) - Sr. Presi<strong>de</strong>nte, quan<strong>do</strong> encaminhei a votação <strong>do</strong> requerimento <strong>de</strong>urgência, já avancei sobre a importância <strong>de</strong>ste projeto.Em nome da Comissão <strong>de</strong> Educação e Cultura, quanto ao mérito, <strong>do</strong>uparecer favorável ao projeto, pela sua simbologia e pelo que significou <strong>Vinicius</strong><strong>de</strong> <strong>Moraes</strong> para a cultura brasileira.O parecer é pela aprovação <strong>do</strong> projeto.O SR. INDIO DA COSTA (DEM-RJ. Para emitir parecer. Sem revisão<strong>do</strong> ora<strong>do</strong>r.) - Sr. Presi<strong>de</strong>nte, quem po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar votar favoravelmente à nossacultura, a versos que estão sempre em nossa lembrança? “De tu<strong>do</strong>, ao meuamor serei atento/ Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto,/ Que, mesmo emface <strong>do</strong> maior encanto...” E por aí vai.Naturalmente, nosso parecer é favorável ao projeto.O SR. PRESIDENTE (Michel Temer) - Portanto, o parecer é pelaa<strong>de</strong>quação financeira e orçamentária <strong>do</strong> projeto.O SR. EDUARDO CUNHA (Bloco/PMDB-RJ. Para emitir parecer. Semrevisão <strong>do</strong> ora<strong>do</strong>r.) - Sr. Presi<strong>de</strong>nte, o parecer é pela constitucionalida<strong>de</strong>,juridicida<strong>de</strong> e boa técnica legislativa.O SR. PRESIDENTE (Michel Temer) - O parecer é pelaconstitucionalida<strong>de</strong>, juridicida<strong>de</strong> e boa técnica legislativa.95


TRAMITAÇÃO LEGISLATIVAO SR. IVAN VALENTE (PSOL-SP. Pela or<strong>de</strong>m. Sem revisão <strong>do</strong>ora<strong>do</strong>r.) - Sr. Presi<strong>de</strong>nte, <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong>stacar a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sta proposta edizer da merecida promoção que se faz a esse gran<strong>de</strong> poeta, músico e luta<strong>do</strong>rbrasileiro.<strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong> foi persegui<strong>do</strong> pela ditadura militar por suas i<strong>de</strong>ias.Homem extremamente consciente, <strong>de</strong>u valiosa contribuição à cultura brasileira,sen<strong>do</strong>, muitas vezes, vítima <strong>de</strong> preconceito <strong>de</strong> setores conserva<strong>do</strong>res dasocieda<strong>de</strong> brasileira.Por isso, a nossa homenagem a <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong>, lembran<strong>do</strong> inclusivea sua poesia sobre o operário em construção.Viva!O SR. DANIEL ALMEIDA (Bloco/PC<strong>do</strong>B-BA. Pela or<strong>de</strong>m. Semrevisão <strong>do</strong> ora<strong>do</strong>r.) - Sr. Presi<strong>de</strong>nte, em nome <strong>do</strong> Bloco, quero manifestartambém o nosso apoio, o nosso voto “sim” a esta homenagem ao diplomata,ao poeta, ao gran<strong>de</strong> brasileiro que foi <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong>, que <strong>de</strong>monstrouser possível fazer cultura com arte e combinar a vida política - ele foi tambémum político - com a leveza que ele apresentou a to<strong>do</strong>s nós.Portanto, o Bloco PSB, PC<strong>do</strong>B, PRB, PMN vota “sim” a esta gran<strong>de</strong>homenagem.O SR. PRESIDENTE (Michel Temer) - O Bloco vota “sim”.O SR. ARNALDO VIANNA (PDT-RJ. Pela or<strong>de</strong>m. Sem revisão <strong>do</strong>ora<strong>do</strong>r.) - Sr. Presi<strong>de</strong>nte, o PDT vota “sim”, e amplia essa homenagem, dizen<strong>do</strong>da importância que teve <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong> para várias gerações neste Paíse a falta que nos faz hoje um diplomata como ele.PDT vota “sim”, Sr. Presi<strong>de</strong>nte.O SR. PRESIDENTE (Michel Temer) - O PDT vota “sim”.96


TRAMITAÇÃO LEGISLATIVADeclaração <strong>de</strong> voto encaminhada à mesa pelo Deputa<strong>do</strong> Paes <strong>de</strong>LiraExcelentíssimo Presi<strong>de</strong>nte da Câmara <strong>do</strong>s Deputa<strong>do</strong>s,Nos termos <strong>do</strong> artigo 182, parágrafo único, <strong>do</strong> Regimento Interno,apresento <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> voto contra o Projeto <strong>de</strong> Lei 6.417, <strong>de</strong> 2009.Embora o Projeto <strong>de</strong> Lei 6.417, <strong>de</strong> 2009, tenha por escoporeconhecimento póstumo ao diplomata Marcus <strong>Vinicius</strong> da Cruz <strong>de</strong> Mello <strong>de</strong><strong>Moraes</strong>, é inconstitucional.A própria exposição <strong>de</strong> motivos <strong>do</strong> PL em questão, da lavra <strong>do</strong>s Exmos.Ministros Celso Amorim e Paulo Bernar<strong>do</strong>, nada traz que ilustre supostobrilhantismo na carreira diplomática <strong>do</strong> homenagea<strong>do</strong>. Reduz-se aos inegáveisméritos <strong>de</strong> sua ativida<strong>de</strong> artística, que o consagrou - com o nome <strong>de</strong> <strong>Vinicius</strong><strong>de</strong> Morais - em to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong> como compositor absolutamente genial.O músico <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> Morais imortalizou-se por sua obra inigualável nocancioneiro brasileiro e universal. Já o diplomata, teve carreira limitada, <strong>de</strong>pouca relevância para o País.A<strong>de</strong>mais, à semelhança <strong>do</strong> que ocorre no âmbito militar, a promoçãopost mortem só se justifica na hipótese <strong>de</strong> tombamento no cumprimento <strong>do</strong><strong>de</strong>ver. E não é claramente o caso. Basta comparar o presente com o damorte <strong>do</strong> diplomata brasileiro Luiz Carlos da Costa, recentemente ocorridano Haiti, em missão oficial e em pleno exercício <strong>do</strong> cargo - este último, sim,passível <strong>de</strong> eventual promoção ao pós da existência física.O Projeto <strong>de</strong> Lei em comento afronta princípios consagra<strong>do</strong>s no Art. 37da Constituição Fe<strong>de</strong>ral: no mínimo, os da moralida<strong>de</strong> e da impessoalida<strong>de</strong>.Não obstante, se o propósito da iniciativa fosse o <strong>de</strong> reparar perseguiçãopolítica, o mo<strong>do</strong> a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong> seria, com base na Lei <strong>de</strong> Anistia, submeter ocaso à Comissão competente.Ante to<strong>do</strong> o exposto, voto não ao Projeto <strong>de</strong> Lei 6.417/2009.(Fonte: Diário da Câmara <strong>do</strong>s Deputa<strong>do</strong>s)97


TRAMITAÇÃO LEGISLATIVAe. Parecer <strong>do</strong> Sena<strong>do</strong>r Marco Maciel, Comissão <strong>de</strong> Constituição,Justiça e Cidadania <strong>do</strong> Sena<strong>do</strong> Fe<strong>de</strong>ral98


TRAMITAÇÃO LEGISLATIVA99


TRAMITAÇÃO LEGISLATIVA100


TRAMITAÇÃO LEGISLATIVAf. Votação no Plenário <strong>do</strong> Sena<strong>do</strong> Fe<strong>de</strong>ral, 2 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2010O SR. PRESIDENTE (José Sarney. PMDB – AP)– Passa-se àORDEM DO DIASrªs e Srs. Sena<strong>do</strong>res, aten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> ao apelo da Comissão <strong>de</strong> RelaçõesExteriores e Defesa Nacional, se não houver objeção, vou colocar em votaçãoo projeto que promove, post mortem, o Diplomata Marcus Vinitiusda Cruz e Mello <strong>Moraes</strong>, o famoso <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong> – ele foi puni<strong>do</strong>,e, então, o Congresso está restauran<strong>do</strong> os direitos que ele tinha, fazen<strong>do</strong>-lhejustiça post mortem –, <strong>de</strong> maneira que ele seja embaixa<strong>do</strong>r.Pergunto se há alguma objeção, porque recebi um apelo da Comissão<strong>de</strong> Constituição, Justiça e Cidadania, em especial <strong>do</strong> Sena<strong>do</strong>r Marco Maciel,paraque esse projeto fosse aqui submeti<strong>do</strong> à apreciação.O SR. JOSÉ AGRIPINO (DEM – RN. Sem revisão <strong>do</strong> ora<strong>do</strong>r.)– Sr. Presi<strong>de</strong>nte, pelo contrário, a iniciativa é meritória. <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong>foi um homem que, diplomata, só honrou o nome <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. No campo damúsica, ele produziu as mais belas páginas da música brasileira. Aju<strong>do</strong>u adivulgar bem o nome <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. É um homem por quem to<strong>do</strong>s nós temosimensa admiração,pelo seu talento, pela sua qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cidadão, pelo patriota que foi.Desse mo<strong>do</strong>, a homenagem que se presta, o reconhecimento na carreira <strong>de</strong>diplomata, é absolutamente meritória e merece<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> nosso aplauso,<strong>do</strong> meu aplauso e <strong>do</strong> aplauso <strong>do</strong> meu Parti<strong>do</strong>.O SR. PRESIDENTE (José Sarney. PMDB – AP)– Muito obriga<strong>do</strong>.Então, vou submeter a matéria a votos.Item extrapauta:PROJETO DE LEI DA CÂMARA Nº 5, DE 2010Discussão, em turno único, <strong>do</strong> Projeto <strong>de</strong> Lei da Câmara nº 5, <strong>de</strong> 2010(nº 6.417/2009, na Casa <strong>de</strong> origem, <strong>de</strong> iniciativa <strong>do</strong> Presi<strong>de</strong>nte101


TRAMITAÇÃO LEGISLATIVAda República), que promove post mortem o dipomata Marcus <strong>Vinicius</strong>da Cruz <strong>de</strong> Mello <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong>.Parecer sob nº 262, <strong>de</strong> 2010, da Comissão <strong>de</strong> Constituição, Justiça eCidadania, Relator: Sena<strong>do</strong>r Marco Maciel, favorável, com a emendanº 1-CCJ, <strong>de</strong> redação, que apresenta.Em discussão.Não haven<strong>do</strong> ora<strong>do</strong>res que queiram discutir...O SR. MARCELO CRIVELLA (Bloco/PRB – RJ)– Sr. Presi<strong>de</strong>nte, peço a palavra apenas para corroborar as palavras <strong>do</strong>Sena<strong>do</strong>r Agripino.O SR. PRESIDENTE (José Sarney. PMDB – AP)– Tem a palavra o Sena<strong>do</strong>r Marcelo Crivella.O SR. MARCELO CRIVELLA (Bloco/PRB – RJ. Sem revisão <strong>do</strong> ora<strong>do</strong>r.)– Sr. Presi<strong>de</strong>nte, como Sena<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro, on<strong>de</strong> <strong>Vinicius</strong> compôsa maioria <strong>de</strong> sua obra, on<strong>de</strong> ele viveu – ele amou aquela cida<strong>de</strong>e a enalteceu, bem como seu povo –, eu não po<strong>de</strong>ria também <strong>de</strong>ixarpassar a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> afirmar aqui apoio ao projeto, <strong>de</strong> afirmar meu apoioe o <strong>do</strong> PRB, que tenho a honra <strong>de</strong> li<strong>de</strong>rar nesta Casa.O SR. PRESIDENTE (José Sarney. PMDB – AP)– Agra<strong>de</strong>ço a V. Exª.Não foram oferecidas emendas perante a Mesa.Em discussão o Projeto e a Emenda, em turno único. (Pausa.)Não haven<strong>do</strong> quem peça a palavra, <strong>de</strong>claro encerrada a discussão.Votação <strong>do</strong> Projeto, sem prejuízo da Emenda.As Srªs Sena<strong>do</strong>ras e os Srs. Sena<strong>do</strong>res que o aprovam queirampermanecer senta<strong>do</strong>s. (Pausa.)Aprova<strong>do</strong>.Em votação a Emenda nº 1 – CCJ – <strong>de</strong> redação.As Srªs Sena<strong>do</strong>ras e os Srs. Sena<strong>do</strong>res que a aprovam queirampermanecer senta<strong>do</strong>s. (Pausa.)102


TRAMITAÇÃO LEGISLATIVAAprovada.É o seguinte o parecer da redação final:PARECER Nº 675, DE 2010(Da Comissão Diretora)Redação final <strong>do</strong> Projeto <strong>de</strong> Lei da Câmara nº 5, <strong>de</strong> 2010 (nº 6.417,<strong>de</strong> 2009, na Casa <strong>de</strong> origem).A Comissão Diretora apresenta a redação final <strong>do</strong> Projeto <strong>de</strong> Leida Câmara nº 5, <strong>de</strong> 2010 (nº 6.417, <strong>de</strong> 2009, na Casa <strong>de</strong> origem),que promove post mortem o diplomata Marcus <strong>Vinicius</strong> da Cruz <strong>de</strong>Mello <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong>, consolidan<strong>do</strong> a Emenda nº 1, <strong>de</strong> redação, daComissão <strong>de</strong> Constituição, Justiça e Cidadania, aprovada peloPlenário.Sala <strong>de</strong> Reuniões da Comissão, 2 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2010. – Sena<strong>do</strong>r JoséSarney, Presi<strong>de</strong>nte – Sena<strong>do</strong>r Mão Santa, Relator – Sena<strong>do</strong>r HeráclitoFortes – Sena<strong>do</strong>r A<strong>de</strong>lmir SantanaANEXO AO PARECER Nº 675, DE 2010Redação final <strong>do</strong> Projeto <strong>de</strong> Lei da Câmara nº 5, <strong>de</strong> 2010 (nº 6.417,<strong>de</strong> 2009, na Casa <strong>de</strong> origem).Promove post mortem o diplomata Marcos <strong>Vinicius</strong> da Cruz <strong>de</strong>Mello <strong>Moraes</strong>.O Congresso Nacional <strong>de</strong>creta:Art. 1º É promovi<strong>do</strong> post mortem a Ministro <strong>de</strong> Primeira Classe daCarreira <strong>de</strong> Diplomata o Primeiro-Secretário Marcus <strong>Vinicius</strong> da Cruz <strong>de</strong>Mello <strong>Moraes</strong>.Parágrafo único. Ficam assegura<strong>do</strong>s aos seus atuais <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes osbenefícios <strong>de</strong> pensão correspon<strong>de</strong>ntes ao cargo <strong>de</strong> Ministro <strong>de</strong> Primeira Classeda Carreira <strong>de</strong> Diplomata.Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data <strong>de</strong> sua publicação.103


TRAMITAÇÃO LEGISLATIVAO SR. PRESIDENTE (José Sarney. PMDB – AP)– Em discussão a redação final. (Pausa.)Não haven<strong>do</strong> quem peça a palavra, <strong>de</strong>claro encerrada a discussão.Em votação.As Srªs Sena<strong>do</strong>ras e os Srs. Sena<strong>do</strong>res que a aprovam queirampermanecer senta<strong>do</strong>s. (Pausa.)Também está aprovada, porque não há objeção. A matéria vai à sanção.Será feita a <strong>de</strong>vida comunicação à Câmara <strong>do</strong>s Deputa<strong>do</strong>s.O SR. PRESIDENTE (José Sarney. PMDB – AP)– Fico profundamente honra<strong>do</strong> em presidir o Sena<strong>do</strong> Fe<strong>de</strong>ral e a votação<strong>de</strong>ssa matéria, uma vez que não só tenho gran<strong>de</strong> admiração pelo gran<strong>de</strong>poeta que foi <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong>, como também tive o prazer <strong>de</strong> suaconvivência. Muito obriga<strong>do</strong>.Está encerrada a Or<strong>de</strong>m <strong>do</strong> Dia.(Fonte: Diário <strong>do</strong> Sena<strong>do</strong> Fe<strong>de</strong>ral)104


Lei nº 12.265, <strong>de</strong> 21 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2010Presidência da RepúblicaCasa CivilSubchefia para Assuntos JurídicosLEI Nº 12.265, DE 21 DE JUNHO DE 2010.Promove post mortem o diplomata Marcus <strong>Vinicius</strong>da Cruz <strong>de</strong> Mello <strong>Moraes</strong>.O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional<strong>de</strong>creta e eu sanciono a seguinte Lei:Art. 1º. É promovi<strong>do</strong> post mortem a Ministro <strong>de</strong> Primeira Classe da Carreira<strong>de</strong> Diplomata o Primeiro-Secretário Marcus <strong>Vinicius</strong> da Cruz <strong>de</strong> Mello<strong>Moraes</strong>.Parágrafo único. Ficam assegura<strong>do</strong>s aos seus atuais <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes os benefícios<strong>de</strong> pensão correspon<strong>de</strong>ntes ao cargo <strong>de</strong> Ministro <strong>de</strong> Primeira Classe daCarreira <strong>de</strong> Diplomata.Art. 2º. Esta Lei entra em vigor na data <strong>de</strong> sua publicação.Brasília, 21 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2010; 189º da In<strong>de</strong>pendência e 122º da República.LUIZ INÁCIO LULA DA SILVACelso Luiz Nunes Amorim105


ANEXOS


109


ANEXOSRetrato <strong>do</strong> jovem <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong>, por Candi<strong>do</strong> Portinari (1938).110


ANEXOS<strong>Vinicius</strong>, aos 20 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>.111


ANEXOS<strong>Vinicius</strong>, com os filhos Luciana, Georgiana e Pedro <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong>, em 1978.112


ANEXOS<strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong>, na década <strong>de</strong> 1930.113


ANEXOS<strong>Vinicius</strong>, em 1976.114


ANEXOS<strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong>, com o Prefeito <strong>de</strong> São Bernar<strong>do</strong> <strong>do</strong> Campo, Tito Costa, e oPresi<strong>de</strong>nte da República, Luiz Inácio Lula da Silva, em 1979.115


ANEXOSCom o amigo e também diplomata Lauro Escorel, no fim da década <strong>de</strong> 1960.116


ANEXOSCom o Presi<strong>de</strong>nte Luiz Inácio Lula da Silva, em 1979.117


ANEXOS118


ANEXOS119


ANEXOSCom o amigo e também diplomata Lauro Escorel, no fim da década <strong>de</strong> 1960.120


ANEXOSCom o Presi<strong>de</strong>nte Luiz Inácio Lula da Silva, em 1979.121


ANEXOSPátria minhaNão te direi o nome, pátria minhaTeu nome é pátria amada, é patriazinhaNão rima com mãe gentilVives em mim como uma filha, que ésUma ilha <strong>de</strong> ternura: a Ilha<strong>Brasil</strong>, talvezin Pátria minha (1949)Do amor à pátriaSão <strong>do</strong>ces os caminhos que levam <strong>de</strong> volta à pátria. Não à pátria amada<strong>de</strong> ver<strong>de</strong>s mares bravios, a mirar em berço esplêndi<strong>do</strong> o esplen<strong>do</strong>r <strong>do</strong>Cruzeiro <strong>do</strong> Sul; mas a uma outra mais íntima, pacífica e habitual – uma cujaterra se comeu em criança, uma on<strong>de</strong> se foi menino ansioso por crescer, umaon<strong>de</strong> se cresceu em sofrimentos e esperança canções, amores e filhos aosabor das estações.Sim, são <strong>do</strong>ces as rotas que reconduzem o homem à sua pátria, e tãomais <strong>do</strong>ces quanto mais ele teve, viu e conheceu outras pátrias <strong>de</strong> outroshomens.in Para uma menina com uma flor (1953)122


ANEXOSManuscrito <strong>de</strong> carta ao amigo Rodrigo Melo Franco <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> - Londres, 1938Arquivo Rodrigo Melo Franco <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> - AMLB/FCRB.123


ANEXOS<strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong>, em 1971.124


ANEXOSCom Ba<strong>de</strong>n Powell, em 1964.125


ANEXOSTom Jobim, <strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong>, Manuel Ban<strong>de</strong>ira e Chico Buarque, em 1963.126


ANEXOSCom Maria Bethânia, em 1966.127


ANEXOS<strong>Vinicius</strong> <strong>de</strong> <strong>Moraes</strong> e Tom Jobim, em 1956.128


ANEXOS<strong>Vinicius</strong>, em 1976.129


FormatoMancha gráficaPapelFontes15,5 x 22,5 cm12 x 18,3cmpólen soft 80g (miolo), duo <strong>de</strong>sign 250g (capa)Times New Roman 17/20,4 (títulos),12/14 (textos)

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