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Álcool e nicotina: mecanismos de dependência

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evisãoINTRODUÇÃOA associação entre álcool e tabaco é um problema<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> pública cada vez maior. Entre 80 e95% dos alcoólatras fumam, uma proporção três vezesmaior do que a população em geral. Ambas as substânciastêm o potencial <strong>de</strong> causar <strong>de</strong>pendência 1 .O reforço ou recompensa refere-se aos processosfisiológicos pelos quais um dado comportamento,como o consumo <strong>de</strong> droga, torna-se habitual. Istoocorre quando neurônios liberam o neurotransmissordopamina para o nucleus accumbens (NAc) após o consumoda droga 2-6 .No tabaco, a <strong>nicotina</strong> é o principal componente<strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ante do reforço. Uma vez <strong>de</strong>ntro do cérebro,a <strong>nicotina</strong> ativa receptores nicotínicos, que por sua vez,contribui para o mecanismo <strong>de</strong> reforço. O álcool tambémaumenta a liberação <strong>de</strong> dopamina no NAc 7 .A tolerância consiste na diminuição <strong>de</strong> sensibilida<strong>de</strong>ao efeito da droga <strong>de</strong> tal modo que, com opassar do tempo, doses maiores são necessárias para aobtenção do mesmo efeito. A administração crônica <strong>de</strong><strong>nicotina</strong> em animais induz tolerância a alguns dos efeitos<strong>de</strong> recompensa ao álcool, enquanto a administraçãocrônica <strong>de</strong> álcool induz tolerância a alguns dos efeitosda <strong>nicotina</strong> 8 . Esta tolerância cruzada leva ao aumentodo consumo <strong>de</strong> ambas as drogas numa tentativa <strong>de</strong> alcançaros níveis anteriores <strong>de</strong> recompensa.Tendo em vista os argumentos apresentados,faz-se necessário um melhor entendimento sobre os<strong>mecanismos</strong> envolvidos na <strong>de</strong>pendência a essas substâncias,a fim <strong>de</strong> se encontrar um tratamento eficaz ecom baixos custos. Esse trabalho visa a uma revisão <strong>de</strong>literatura acerca dos principais <strong>mecanismos</strong> envolvidosna <strong>de</strong>pendência do álcool e do tabaco, bem como nasprincipais perspectivas <strong>de</strong> tratamento.MÉTODOPara a realização <strong>de</strong>sse trabalho, foi feita uma revisão<strong>de</strong> literatura via internet utilizando-se os portaiseletrônicos Pubmed, LILACS, Bireme, Sicience Direct,<strong>de</strong>ntre outros. Foram utilizadas como palavras-chavespara a busca <strong>de</strong> artigos: álcool, <strong>nicotina</strong>, <strong>de</strong>pendência.A pesquisa foi realizada no segundo semestre <strong>de</strong> 2009e foram pesquisados trabalhos das línguas portuguesae inglesa. Foram escolhidos os artigos que <strong>de</strong>screviam<strong>mecanismos</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência, toxicologia e tratamentopara os <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> álcool e <strong>nicotina</strong>.RESULTADOSDependênciaA <strong>de</strong>pendência é uma <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m crônica caracterizadapelo uso compulsivo <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminada substância,que leva a uma inabilida<strong>de</strong> em limitar o consumoe ao surgimento <strong>de</strong> uma síndrome <strong>de</strong> abstinênciadurante a interrupção do uso. Esse termo tambémtem sido <strong>de</strong>finido como um conjunto <strong>de</strong> fenômenoscomportamentais, cognitivos e fisiológico que se <strong>de</strong>senvolvemapós o uso repetido <strong>de</strong> uma substância. Geralmente,tais fenômenos incluem um <strong>de</strong>sejo forte emconsumir a droga, dificulda<strong>de</strong>s em controlar seu usoe persistência no uso 9 . Bem estabelecido como umadoença, o abuso <strong>de</strong> drogas está entre as enfermida<strong>de</strong>smais economicamente dispendiosas na socieda<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna10 .O abuso <strong>de</strong> drogas tem sido conceituado comoum processo crônico e complexo <strong>de</strong> neuro-adaptaçãopelos quais estas drogas alteram aspectos celulares emoleculares da função neural, que levam aos efeitoscomportamentais <strong>de</strong>stas substâncias, sendo moduladopor fatores genéticos e ambientais 11 .A dopamina é a molécula que está mais claramenteligada ao reforço positivo das drogas <strong>de</strong> abuso.As drogas realçam a transmissão dopaminérgica, principalmentepelo sistema dopaminérgico mesolímbico.Esse sistema dopaminérgico <strong>de</strong> recompensa se originana área tegmental ventral (ATV) e se projeta para oNAc, córtex pré-frontal e outras áreas límbicas.Outro componente <strong>de</strong>sta ampla concepção <strong>de</strong>reforço positivo é o sistema neuronal glutamatérgico,que influencia diretamente o sistema mesolímbico dopaminérgico.Inervações glutamatérgicas para a AVTe NAc, surgindo do córtex pré-frontal, hipocampo eamígdala basolateral, foram implicados no estabelecimentoda <strong>de</strong>pendência <strong>de</strong> drogas 11 .Nos últimos anos, tem sido dada uma maiorimportância à ação da serotonina e norepinefrina, juntamentecom sistema <strong>de</strong> neuropeptí<strong>de</strong>os, incluindoos peptí<strong>de</strong>os opiói<strong>de</strong>s e peptí<strong>de</strong>os relacionados com oeixo hipotalâmico-pituitário-adrenal 11 .O tabagismo e a <strong>nicotina</strong>Dos cerca <strong>de</strong> 3.000 ingredientes presentes nocigarro, a <strong>nicotina</strong> é o principal responsável pela tolerânciae <strong>de</strong>pendência 12-14 .O cigarro apresenta 800 mg <strong>de</strong> tabaco por unida<strong>de</strong>,dos quais 9 a 17 mg são <strong>de</strong> <strong>nicotina</strong>. Dez porcento <strong>de</strong>ste valor é absorvido pelo indivíduo fumante.A maior taxa <strong>de</strong> absorção ocorre no pulmão, e menoresquantida<strong>de</strong>s são absorvidas pela boca e nasofaringe 15 .No cérebro, a <strong>nicotina</strong> atua nos subtipos a4,a2 e a7 dos receptores nicotínicos da acetilcolina (nA-ChR) no córtex e hipocampo, permitindo a abertura532 Rev Neurocienc 2010;18(4):531-537


evisão<strong>de</strong> canais catiônicos e promovendo excitação neuronale maior liberação <strong>de</strong> neurotransmissores. Na medula,inibe os reflexos espinhais e causa relaxamento do músculoesquelético. Esse processo ocorre <strong>de</strong>vido a uma estimulaçãodas células inibitórias <strong>de</strong> Renshaw, no cornoventral da medula espinhal. Deste modo, não se po<strong>de</strong>afirmar que a <strong>nicotina</strong> é simplesmente excitatória ouinibitória. Em baixas doses, a <strong>nicotina</strong> promove umahiperativida<strong>de</strong> e, em altas doses, sedação 16 .A <strong>nicotina</strong> também atua inibindo a ativação <strong>de</strong>receptores 5-HT3 17 . Estudos sugerem que a <strong>nicotina</strong>participa no início da <strong>de</strong>pressão subsequente à supressão<strong>de</strong> transportadores 5-HT 18 . Além disso, a administração<strong>de</strong> <strong>nicotina</strong> também reduz os níveis <strong>de</strong> 5-HT e<strong>de</strong> tirosina hidroxilase nos núcleos dorsal e medianoda rafe.A estimulação dos nAChRs na AVT pela <strong>nicotina</strong>resulta na liberação <strong>de</strong> uma varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> neurotransmissoresno cérebro, levando, por exemplo, a umaumento nos níveis <strong>de</strong> dopamina no NAc e os efeitos<strong>de</strong> recompensa 19 . Outros neurotransmissores liberadosincluem a norepinefrina, acetilcolina, serotonina, ácidogama-aminobutírico (GABA), glutamato e endorfinas,que me<strong>de</strong>iam vários efeitos da <strong>nicotina</strong> 9 .Acredita-se que a maior parte da liberação <strong>de</strong>neurotransmissores ocorre via modulação <strong>de</strong> nAChRspré-sinápticos, embora possa ocorrer liberação direta<strong>de</strong>stes neurotransmissores. A liberação <strong>de</strong> dopaminaé facilitada pelo aumento da liberação <strong>de</strong> glutamatomediada pela <strong>nicotina</strong> e, em longo prazo, pela inibiçãoda liberação do GABA. Além disso, o uso crônico docigarro po<strong>de</strong> reduzir os níveis <strong>de</strong> monoamino-oxidases(MAO) A e B. Isso aumenta os níveis <strong>de</strong> monoaminasnas sinapses e, consequentemente, aumenta os efeitos<strong>de</strong> recompensa 20 .Após exposições repetidas à <strong>nicotina</strong>, é estabelecidoum processo <strong>de</strong> neuro-adaptação a alguns (masnão a todos) efeitos da <strong>nicotina</strong>. Observa-se um aumentodos nAChRs no cérebro em resposta à <strong>de</strong>ssensibilização<strong>de</strong>stes receptores mediados pela <strong>nicotina</strong>.Essa <strong>de</strong>ssensibilização po<strong>de</strong> ter um importante papelno <strong>de</strong>senvolvimento da tolerância e <strong>de</strong>pendência. Foisugerido que os sintomas <strong>de</strong> abstinência e ânsia pelouso da droga são estabelecidos em fumantes crônicosquando nAChRs previamente <strong>de</strong>ssensibilizados são<strong>de</strong>socupados e recuperam sua resposta, o que ocorredurante os períodos <strong>de</strong> abstenção, como por exemplodurante uma noite <strong>de</strong> sono 20 .Em relação aos efeitos periféricos, a <strong>nicotina</strong>,em pequenas doses, realiza estimulação dos gângliosautônomos e dos receptores sensoriais periféricos nocoração e nos pulmões. São geradas algumas respostasreflexas autônomas como taquicardia, aumento do débitocardíaco e da pressão arterial, diminuição da motilida<strong>de</strong>gastrintestinal e sudorese 21 .A retirada abrupta da <strong>nicotina</strong>, assim como <strong>de</strong>outras substâncias utilizadas <strong>de</strong> forma abusiva, acarretao <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> uma síndrome <strong>de</strong> abstinência.Entre os principais sintomas, <strong>de</strong>stacam-se irritabilida<strong>de</strong>,<strong>de</strong>sempenho prejudicado das ativida<strong>de</strong>s psicomotoras,agressivida<strong>de</strong> e distúrbios do sono. Entretanto,a síndrome <strong>de</strong> abstinência é menos severa do que a<strong>de</strong>senvolvida com fármacos opiáceos. A <strong>de</strong>pendênciafísica propriamente dita dura cerca <strong>de</strong> 2 a 3 semanas;após esse período, a <strong>de</strong>pendência psicológica é maisimportante para o retorno da utilização da <strong>nicotina</strong>como substância <strong>de</strong> abuso 16 .AlcoolismoO uso abusivo <strong>de</strong> <strong>de</strong>rivados do álcool etílico (ouetanol) é hoje reconhecido pela Organização Mundial<strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> como uma doença e tem tratamento médico.O quadro <strong>de</strong> alcoolismo configura-se quando a ingestão<strong>de</strong> <strong>de</strong>rivados etílicos <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser um hábito sociale passa a ser uma <strong>de</strong>pendência, a ter caráter <strong>de</strong> obrigatorieda<strong>de</strong>22 .No Brasil, os índices <strong>de</strong>monstram que uma emcada <strong>de</strong>z pessoas tem problemas consequentes ao usoin<strong>de</strong>vido <strong>de</strong> álcool 23 . Estima-se que cerca <strong>de</strong> 10% dasmulheres e 20% dos homens façam uso abusivo do álcoole 5% das mulheres e 10% dos homens apresentema síndrome <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência do álcool. Em um estudorealizado no estado <strong>de</strong> São Paulo para avaliar o perfildo uso <strong>de</strong> drogas <strong>de</strong> abuso, o álcool e o tabaco foramas drogas com maiores prevalências <strong>de</strong> uso, com percentuais<strong>de</strong> 53,2% e 39%, respectivamente. Quanto àsestimativas <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência <strong>de</strong> álcool, as percentagensestiveram em torno <strong>de</strong> 6%, valores próximos aos observadosem estudos em outros países 24 .Evidências <strong>de</strong>monstram que o etanol atua emsítios hidrofóbicos <strong>de</strong> proteínas e modificam sua estruturatridimensional. Estas proteínas incluem canaisiônicos, receptores <strong>de</strong> neurotransmissores e enzimasenvolvidas na transdução <strong>de</strong> sinais 25 . Os neurotransmissorese receptores sensíveis aos seus efeitos incluemdopamina, serotonina, GABA, ácido glutâmico, a<strong>de</strong>nosina,neuropeptí<strong>de</strong>o Y, noradrenalina (NA), receptores<strong>de</strong> canabinói<strong>de</strong>s e peptí<strong>de</strong>os opiói<strong>de</strong>s 26 . Importantesalvos neuroquímicos para os efeitos agudos doetanol são o GABA, no qual o etanol atua facilitandoa inibição gabaérgica, e o sistema glutamatérgico, noqual o etanol atua na inibição da excitação mediadaRev Neurocienc 2010;18(4):531-537 533


evisãopelo glutamato. Mudanças adaptativas na transmissãomediada por estes dois neurotransmissores seriamresponsáveis pelo <strong>de</strong>senvolvimento da <strong>de</strong>pendência aoálcool. Em resposta à exposição crônica ao álcool, existeuma hiperexpressão compensatória <strong>de</strong> receptores dosistema glutamatérgico e uma hipoexpressão <strong>de</strong> receptoresdo sistema gabaérgico, resultando no estabelecimentoda tolerância ao álcool 27 .O álcool em altas doses aumenta a liberação <strong>de</strong>dopamina no NAc 28 . Entretanto, este processo po<strong>de</strong>requerer a ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> outra categoria <strong>de</strong> neuromoduladorese peptídios opiói<strong>de</strong>s endógenos. Esta hipóteseé baseada por observações que compostos, queinibem as ações dos peptídios opiói<strong>de</strong>s endógenos,previnem os efeitos do álcool na liberação <strong>de</strong> dopamina.Antagonistas <strong>de</strong> peptídios opiói<strong>de</strong>s agem primariamenteem uma área cerebral on<strong>de</strong> os neurônios dopaminérgicosse esten<strong>de</strong>m até a origem no NAc. Estasobservações indicam que o álcool estimula a ativida<strong>de</strong>dos peptídios opiói<strong>de</strong>s endógenos, levando indiretamenteà ativação dos neurônios dopaminérgicos. Antagonistasdos peptídios opiói<strong>de</strong>s po<strong>de</strong>riam interferircom este processo, portanto reduzindo a liberação <strong>de</strong>dopamina 29 .Um mecanismo que po<strong>de</strong> ser responsável parao significado anormal, associado com os incentivos relacionadosao álcool, é a natureza não adaptativa daestimulação induzida pelo álcool da transmissão dopaminérgicano NAc. A liberação aumentada <strong>de</strong> dopaminano NAc induzida por reforçadores comuns (p. ex.comida) rapidamente induz habituação, e a apresentaçãorepetida do estímulo não mais induz a liberação <strong>de</strong>dopamina. Em contraste, nenhuma habituação ocorreapós o consumo repetido do álcool. Como resultadoda persistente liberação <strong>de</strong> dopamina no NAc em respostaao álcool, o estímulo associado ao álcool adquireum significado emocional e motivacional anormaisque resultam no controle excessivo sobre o comportamentodo alcoólatra. Esse controle excessivo constituia essência da <strong>de</strong>pendência 30 .A exposição ao álcool influencia a ativida<strong>de</strong>neuronal serotoninérgica no núcleo dorsal da rafe 31,32 .Os níveis dos metabólitos <strong>de</strong> serotonina na urina e nosangue aumentam após consumo agudo, indicandouma liberação aumentada <strong>de</strong> serotonina no sistemanervoso 33 . Esse aumento po<strong>de</strong> refletir transmissão intensificadanas sinapses serotonérgicas.Os receptores 5-HT 2parecem sofrer mudançasadaptativas após consumo crônico <strong>de</strong> álcool, como aumentodo número e da ativida<strong>de</strong> dos receptores 5-HT 2.A ativida<strong>de</strong> aumentada do receptor 5-HT 2, causadapela exposição crônica ao álcool, po<strong>de</strong> também contribuirpara a síndrome <strong>de</strong> abstinência ao álcool 34 .A administração aguda <strong>de</strong> etanol produz umefeito bifásico na liberação <strong>de</strong> NA no córtex frontal.Baixas doses (0,2 g/kg) aumentam a liberação, enquantodoses altas (2g/kg) diminuem a liberação <strong>de</strong> NA 35 .Os autores sugeriram que a diminuição na liberação<strong>de</strong> NA cortical po<strong>de</strong> refletir as proprieda<strong>de</strong>s sedativashipnóticasdo etanol em altas doses, enquanto a liberaçãoaumentada <strong>de</strong> NA po<strong>de</strong> representar uma correlaçãobioquímica da reativida<strong>de</strong> e alerta aumentados<strong>de</strong>correntes das baixas doses <strong>de</strong> etanol.Estudos recentes em nosso laboratório 36 têm <strong>de</strong>monstradoque a administração do etanol aumenta osníveis <strong>de</strong> glutamato no corpo estriado <strong>de</strong> rato e queesse efeito foi revertido pela associação do álcool comketamina, um antagonista não-competitivo do receptorNMDA.A inibição do receptor NMDA induzida peloálcool tem sérias consequências nos processos <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento,aprendizado e memória. A mais severamanifestação dos efeitos do álcool na plasticida<strong>de</strong> duranteo <strong>de</strong>senvolvimento é a síndrome alcoólica fetal 37 .Outros pesquisadores <strong>de</strong>monstraram que o álcoolinibiu a potenciação a longo prazo (LTP, long termpotentiation) mediada por receptores NMDA in vivo ein vitro, fato que po<strong>de</strong> explicar a interferência do álcoolno aprendizado 38 .Alguns dos efeitos <strong>de</strong>letérios do consumo crônicodo álcool po<strong>de</strong>m resultar na excitotoxicida<strong>de</strong>,excessiva ativida<strong>de</strong> celular mediada pelos receptoresNMDA. Em resposta à inibição do NMDA pela administraçãocrônica <strong>de</strong> álcool, o número e a ativida<strong>de</strong><strong>de</strong>sses receptores aumentam. Quando o álcool é retirado,entretanto, os receptores NMDA são <strong>de</strong>sinibidose a ativida<strong>de</strong> aumenta além do normal. Essa excessivaativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> receptores NMDA contribui para convulsõese <strong>de</strong>ixa as células mais susceptíveis à morte celularexcitotóxica 39 .O sistema colinérgico também está implicadonos efeitos agudos do álcool, assim como nas mudançasem longo prazo. A ativação <strong>de</strong> receptores nicotínicosnos neurônios dopaminérgicos po<strong>de</strong> explicar emparte as interações que ocorrem entre a <strong>de</strong>pendência <strong>de</strong>álcool e do tabagismo 40 .A <strong>de</strong>pendência ao álcool causa substancial perdaneuronal em várias regiões do cérebro e induz neuro<strong>de</strong>generaçãoapoptótica no cérebro <strong>de</strong> ratos em <strong>de</strong>senvolvimento41 . A intoxicação alcoólica aguda afeta <strong>de</strong>modo adverso o <strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong> tarefas envolvendomemória <strong>de</strong> curta duração em roedores e humanos 42 .534 Rev Neurocienc 2010;18(4):531-537


evisãoTratamentoA abordagem farmacológica apresenta-se comoimportante fator no tratamento efetivo da <strong>de</strong>pendência<strong>de</strong> álcool e <strong>de</strong> tabagismo, paralelamente à intervençãopsicológica e abordagem social. Os papéis dosfármacos são diversos e <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m do estágio do estadoclínico do paciente e do estágio <strong>de</strong> tratamento.Em geral, são usados na reposição, <strong>de</strong>sintoxicação e naprevenção <strong>de</strong> recaídas. O manejo clínico se torna aindamais complexo em pacientes que fazem uso <strong>de</strong> mais <strong>de</strong>um tipo <strong>de</strong> droga.O tratamento para o <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> tabaco pormeio <strong>de</strong> fármacos envolve dois tipos <strong>de</strong> terapias aprovadaspela Food and Drug Administration (FDA). Oprimeiro é a Terapia <strong>de</strong> Reposição <strong>de</strong> Nicotina (TRN),que procura amenizar a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> busca pela drogausando formulações que contém <strong>nicotina</strong>, mas quesão incapazes <strong>de</strong> provocar <strong>de</strong>pendência se usadas damaneira correta 43 . Esta terapia é usada para substituir ouso da <strong>nicotina</strong> do tabaco e manter alguns <strong>de</strong> seus efeitosprazerosos, enquanto reduz o potencial <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendênciae efeitos tóxicos associados ao uso do tabaco. ATRN utiliza gomas <strong>de</strong> mascar, a<strong>de</strong>sivos transdérmicos,spray nasal e inaladores contendo níveis seguros <strong>de</strong> <strong>nicotina</strong>.A segunda terapia não compreen<strong>de</strong> o uso <strong>de</strong>formulações que apresentam <strong>nicotina</strong> em sua formulação.O principal fármaco usado é o anti<strong>de</strong>pressivobupropiona.Estudos tem comprovado que o mecanismo <strong>de</strong>ação da bupropiona está relacionado com a inibição darecaptação <strong>de</strong> noradrenalina e dopamina, aumentandoos níveis extracelulares <strong>de</strong>stas monoaminas. Outrasevidências sugerem que a bupropiona po<strong>de</strong> agir comoantagonista não-competitivo nos receptores nicotínicosda acetilcolina 44 .Fármacos <strong>de</strong> segunda linha usados no tratamentoda <strong>de</strong>pendência à <strong>nicotina</strong> são os anti<strong>de</strong>pressivosnortriptilina e clonidina. A nortriptilina atua comoinibidor seletivo da recaptação <strong>de</strong> noradrenalina eserotonina. Assim como foi observado com o uso dabupropiona, a eficácia da nortriptilina no tratamentoda abstinência foi <strong>de</strong>monstrada tanto em pacientes <strong>de</strong>pressivoscomo em pacientes não-<strong>de</strong>pressivos 45 .A clonidina é um agonista dos receptoresα2-adrenérgicos que inibe a liberação <strong>de</strong> neurotransmissores,incluindo noradrenalina, o que diminui suaativida<strong>de</strong> no locus coeruleus. Este fármaco é usado peloseu potencial sedativo e para o alívio da ansieda<strong>de</strong> eagitação que po<strong>de</strong>m acompanhar a abstinência. Anortriptilina e a clonidina promoveram a interrupçãodo uso do cigarro em ensaios clínicos, mas ainda nãoforam aprovados pelo FDA para este propósito 46 .O uso da vareniclina, um agonista parcial dosreceptores nicotínicos da acetilcolina do tipo α4β2, foisancionado pelo FDA como adjuvante para o tratamentoda <strong>de</strong>pendência por cigarro 46 . Acredita-se que osubtipo α4β2 seja um importante mediador dos efeitosfarmacológicos da <strong>nicotina</strong>. Na presença <strong>de</strong> <strong>nicotina</strong>, avareniclina atua como antagonista competitivo, o queresulta em uma menor taxa <strong>de</strong> receptores nicotínicosocupados pela <strong>nicotina</strong>.O tratamento do alcoolismo envolve várias etapas.A primeira refere-se à retirada aguda e à <strong>de</strong>toxificação46 . As etapas posteriores visam manter os pacientesem remissão e <strong>de</strong>senvolver um estilo <strong>de</strong> vida compatívelcom abstinência a longo prazo.Na tentativa <strong>de</strong> aliviar a síndrome da abstinênciaaguda, os benzodiazepínicos são eficazes. A clonidina eo propranolol também são úteis durante a abstinênciaao álcool 16 .O dissulfiram é usado para tornar o consumo <strong>de</strong>álcool <strong>de</strong>sagradável. O dissulfiram inibe a enzima al<strong>de</strong>ído<strong>de</strong>sidrogenase, elevando os níveis circulantes <strong>de</strong>acetal<strong>de</strong>ído. Rubor, taquicardia, hiperventilação e grauconsi<strong>de</strong>rável <strong>de</strong> pânico e angústia ocorrem em <strong>de</strong>corrênciado acúmulo excessivo <strong>de</strong> acetal<strong>de</strong>ído na correntesanguínea 16 .Há uma evidência experimental que sugere quebloqueadores <strong>de</strong> receptor NMDA (MK-801) po<strong>de</strong>mservir como uma via potencial para tratamento. MK-801 reduz a frequência e severida<strong>de</strong> <strong>de</strong> convulsões induzidaspela retirada do álcool 47,48 . MK-801 tambémbloqueia o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> tolerância ao álcool.Como a dopamina me<strong>de</strong>ia muitos efeitos centrais<strong>de</strong> reforço do álcool, uma tentativa <strong>de</strong> bloquearos efeitos <strong>de</strong> reforço do álcool parece uma estratégia lógica<strong>de</strong> tratamento. Antagonistas D2, como a bromocriptina,o pimozi<strong>de</strong> e o haloperidol, reduzem o consumo<strong>de</strong> álcool em camundongos e ratos 49,50 . Entretanto,surpreen<strong>de</strong>ntemente poucos dados clínicos no uso <strong>de</strong>agentes dopaminérgicos tem sido acumulados, e que osdados coletados não tem sido inequívocos. Tiapridal,outro antagonista dopaminérgico – D2, foi testado emhumanos, reduzindo o consumo <strong>de</strong> álcool, aumentandoo número <strong>de</strong> abstinência e diminuindo números <strong>de</strong><strong>de</strong>pressão e ansieda<strong>de</strong> 51,52 .Um estudo mostrou que a naltrexona, capaz <strong>de</strong>bloquear aos receptores opiói<strong>de</strong>s, reduz a liberação <strong>de</strong>dopamina pelo álcool no NAc, confirmando a teoria<strong>de</strong> que os opiói<strong>de</strong>s me<strong>de</strong>iam os efeitos <strong>de</strong> reforço do álcoolatravés do sistema dopaminérgico 53 . Esse bloqueiopo<strong>de</strong> reduzir os efeitos <strong>de</strong> reforço do álcool no cérebroRev Neurocienc 2010;18(4):531-537 535


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