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OS MENSAGEIROS André Luiz Lendo este livro ... - a era do espírito

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<strong>OS</strong> MENSAGEIR<strong>OS</strong>André <strong>Luiz</strong><strong>Len<strong>do</strong></strong> <strong>este</strong> <strong>livro</strong>, que relaciona algumas experiências de mensageirosespirituais, certamente muitos leitores concluirão, com os velhos conceitos daFilosofia, que “tu<strong>do</strong> está no cérebro <strong>do</strong> homem”, em virtude da materialidaderelativa das paisagens, observações, serviços e acontecimentos.Forçoso é reconhecer, todavia, que o cérebro é o aparelho da razão eque o homem desencarna<strong>do</strong>, pela simples circunstância da morte física, nãopenetrou os <strong>do</strong>mínios angélicos, permanecen<strong>do</strong> diante da própria consciência,lutan<strong>do</strong> por iluminar o raciocínio e preparan<strong>do</strong>-se para a continuidade <strong>do</strong>aperfeiçoamento noutro campo vibratório.Ninguém pode trair as leis evolutivas.Se um chimpanzé, guinda<strong>do</strong> a um palácio, encontrasse recursos paraescrever aos seus irmãos de fase evolucionária, quase não encontrariadiferenças fundamentais para relacionar, ante o senso <strong>do</strong>s semelhantes. Darianotícias de uma vida animal aperfeiçoada e talvez a única zona inacessível àssuas possibilidades de definição estivesse justamente na auréola da razão queenvolve o espírito humano. Quanto às formas de vida, a mudança não seriaprofundamente sensível. Os pelos rústicos encontram sucessão nas casimirase sedas modernas. A Natureza que cerca o ninho agr<strong>este</strong> é a mesma quefornece estabilidade à moradia <strong>do</strong> homem. A fauna ter-se-ia transforma<strong>do</strong> naedificação de pedra. O pra<strong>do</strong> verde liga-se ao jardim civiliza<strong>do</strong>. A continuaçãoda espécie apresenta fenômenos quase idênticos. A lei da h<strong>era</strong>nça continua,com ligeiras modificações. A nutrição demonstra os mesmos trâmites. A uniãode família consangüínea revela os mesmos traços fortes. O chimpanzé, dessemo<strong>do</strong>, somente encontraria dificuldade para enum<strong>era</strong>r os problemas <strong>do</strong>trabalho, da responsabilidade, da memória enobrecida, <strong>do</strong> sentimentopurifica<strong>do</strong>, da edificação espiritual, enfim, relativa à conquista da razão.Em vista disso, não se justifica a estranheza <strong>do</strong>s que lêem asmensagens <strong>do</strong> teor das que André <strong>Luiz</strong>, endereçadas aos estudiososdevota<strong>do</strong>s à construção espiritual de si mesmos.O homem vulgar costuma estimar as expectativas ansiosas, à esp<strong>era</strong>de acontecimentos espetaculares, esqueci<strong>do</strong> de que a Natureza não seperturba para satisfazer a pontos de vista da criatura.A morte física não é salto <strong>do</strong> desequilíbrio, e passo da evolução,simplesmente.À maneira <strong>do</strong> macaco, que encontra no ambiente humano uma vidaanimal enobrecida, o homem que, após a morte física, mereceu o ingresso noscírculos eleva<strong>do</strong>s <strong>do</strong> invisível, encontra uma vida humana sublimada.Naturalmente, grande número de problemas, referentes àEspiritualidade Superior, aí esp<strong>era</strong> a criatura, desafian<strong>do</strong>-lhe o conhecimentopara a ascensão sublime aos <strong>do</strong>mínios ilumina<strong>do</strong>s da vida. O progresso nãosofre estacionamento e a alma caminha, incessantemente, atraída pela LuzImortal.


No entanto, o que nos leva a grafar <strong>este</strong> prefácio singelo, não é aconclusão filosófica, mas a necessidade de evidenciar a santa oportunidade detrabalho <strong>do</strong> leitor amigo, nos dias que correm.Felizes os que buscarem na revelação nova o lugar de serviço que lhescompete, na Terra, consoante a Vontade de Deus.O Espiritismo cristão não oferece ao homem tão somente o campo depesquisa e consulta, no qual raros estudiosos conseguem caminhardignamente, mas, muito mais que isso, revela a oficina de renovação, ondecada consciência de aprendiz deve procurar sua justa integração com a vidamais alta, pelo esforço interior, pela disciplina de si mesma, pelo autoaperfeiçoamento.Não falta concurso divino ao trabalha<strong>do</strong>r de boa vontade. E quemobservar o nobre serviço de um Aniceto, reconhecerá que não é fácil prestarassistência espiritual aos homens. Trazer a colaboração fraterna <strong>do</strong>s planossuperiores aos Espíritos encarna<strong>do</strong>s não é obra mecânica, enquadrada emprincípios de menor esforço. Claro, portanto, que, para recebê-la, não poderá ohomem fugir aos mesmos imp<strong>era</strong>tivos. É indispensável lavar o vaso <strong>do</strong> coraçãopara receber a “água viva”, aban<strong>do</strong>nar envoltórios inferiores, para vestir os“trajes nupciais” da luz eterna.Entregamos, pois, ao leitor amigo, as novas páginas de André <strong>Luiz</strong>,satisfeitos por cumprir um dever. Constituem o relatório incompleto de umasemana de trabalho espiritual <strong>do</strong>s mensageiros <strong>do</strong> bem, junto aos homens e,acima de tu<strong>do</strong>, mostram a figura de um emissário consciente e benfeitorgeneroso em Aniceto, destacan<strong>do</strong> as necessidades de ordem moral no quadrode serviço <strong>do</strong>s que se consagram às atividades nobres da fé.Se procuras, amigo, a luz espiritual; se a animalidade já te cansou ocoração, lembra-te de que, em Espiritualismo, a investigação conduz sempreao Infinito, tanto no que se refere ao campo infinitesimal, como à esf<strong>era</strong> <strong>do</strong>sastros distantes, e que só a transformação de ti mesmo, à luz daEspiritualidade Superior, te facultará acesso as fontes da Vida Divina. E,sobretu<strong>do</strong>, recorda que as mensagens edificantes <strong>do</strong> Além não se destinamapenas à expressão emocional, mas, acima de tu<strong>do</strong>, ao teu senso de filho deDeus, para que faças o inventário de tuas próprias realizações e te integres, defato, na responsabilidade de viver diante <strong>do</strong> Senhor.EmmanuelPedro Leopol<strong>do</strong>, 26 de fevereiro de 1944.


I - RenovaçãoDesligan<strong>do</strong>-me <strong>do</strong>s laços Inferiores que me prendiam às atividad<strong>este</strong>rrestres, eleva<strong>do</strong> entendimento felicitou-me o espírito.Semelhante libertação, contu<strong>do</strong>, não se fiz<strong>era</strong> espontânea.Sabia, no fun<strong>do</strong>, quanto me custara aban<strong>do</strong>nar a paisagem <strong>do</strong>méstica,suportar a incompreensão da esposa e a divergência <strong>do</strong>s filhos ama<strong>do</strong>s.Guardava a certeza de que amigos espirituais, abnega<strong>do</strong>s e poderosos,me haviam auxilia<strong>do</strong> a alma pobre e imperfeita, na grande transição.Antes, a inquietude relativa à companheira torturava-meincessantemente o coração; mas, agora, ven<strong>do</strong>-a profundamente identificadacom o segun<strong>do</strong> mari<strong>do</strong>, não via recurso outro que procurar diferentes motivosde interesse.Foi assim que, eminentemente surpreendi<strong>do</strong>, observei minha própriatransformação, no curso <strong>do</strong>s acontecimentos.Experimentava o júbilo da descoberta de mim mesmo. Dantes, vivia àfeição <strong>do</strong> caramujo, segrega<strong>do</strong> na concha, impermeável aos grandiososespetáculos da Natureza, rastejan<strong>do</strong> no lo<strong>do</strong>. Agora, entretanto, convencia-mede que a <strong>do</strong>r agira em minha construção mental, à maneira da aluvião pesada,cujos golpes eu não entend<strong>era</strong> de pronto. A aluvião quebrara a concha deantigas viciações <strong>do</strong> sentimento. Libertara-me. Expus<strong>era</strong>-me o organismoespiritual ao sol da Bondade Infinita. E comecei a ver mais alto, alcançan<strong>do</strong>longa distância.Pela primeira vez, cataloguei adversários na categoria de benfeitores.Comecei a freqüentar, de novo, o ninho da família terrestre, não mais comosenhor <strong>do</strong> círculo <strong>do</strong>méstico, mas como operário que ama o trabalho da oficinaque a vida lhe designou. Não mais procurei, na esposa <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, acompanheira que não pud<strong>era</strong> compreender-me e sim a irmã a quem deveriaauxiliar, quanto estivesse em minhas forças. Abstive-me de encarar o segun<strong>do</strong>mari<strong>do</strong> como intruso que modificara meus propósitos, para ver apenas o irmãoque necessitava o concurso de minhas experiências. Não voltei a consid<strong>era</strong>r osfilhos propriedade minha e alui companheiros muito caros, aos quais mecompetia <strong>este</strong>nder os benefícios <strong>do</strong> conhecimento novo, amparan<strong>do</strong>-osespiritualmente na medida de minhas possibilidades.Compeli<strong>do</strong> a destruir meus castelos de exclusivismo injusto, senti queoutro amor se instalava em minhalma.Órfão de afetos terrenos e conforma<strong>do</strong> com os desígnios superioresque me haviam traça<strong>do</strong> diverso rumo ao destino, comecei a ouvir o apeloprofun<strong>do</strong> e divino, da Consciência Universal.Somente agora, percebia quão distancia<strong>do</strong> viv<strong>era</strong> das leis sublimes queregem a evolução das criaturas.A Natureza recebia-me com transportes de amor. Suas vozes, agora,<strong>era</strong>m muito mais altas que as <strong>do</strong>s meus interesses isola<strong>do</strong>s. Conquistava,pouco a pouco, o júbilo de escutar-lhe os ensinamentos misteriosos no grandesilêncio das coisas. Os elementos mais simples adquiriam, a meus olhos,extraordinária significação. A colônia espiritual, que me abrigaragenerosamente, revelava novas expressões de indefinível beleza. O rumor dasasas de um pássaro, o sussurro <strong>do</strong> vento e a luz <strong>do</strong> Sol pareciam dirigir-se àminhalma, enchen<strong>do</strong>-me o pensamento de prodigiosa harmonia.


A vida espiritual, inexprimível e bela, abrira-me os pórticosresplandecentes. Até então, viv<strong>era</strong> em “Nosso Lar” como hóspede enfermo deum palácio brilhante, tão extremamente preocupa<strong>do</strong> comigo mesmo, que metornara incapaz de anotar deslumbramentos e maravilhas.A conversação espiritualizante tornara-se indispensável.Aprazia-me, antigamente, torturar a própria alma com as reminiscênciasda Terra. Estimava as narrativas dramáticas de certos companheiros de luta,lembran<strong>do</strong> o meu caso pessoal e embriagan<strong>do</strong>-me nas perspectivas de meagarrar, novamente, à parentela <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, valen<strong>do</strong>-me de laços inferiores.Mas agora... perd<strong>era</strong> totalmente a paixão pelos assuntos de ordem menosdigna: as próprias descrições <strong>do</strong>s enfermos, nas Câmaras de Retificação,figuravam-se-me desprovidas de maior interesse. Não mais desejava informarmeda procedência <strong>do</strong>s infelizes, não indagava de suas aventuras nas zonasmais baixas. Buscava irmãos necessita<strong>do</strong>s. Desejava saber em que lhespoderia ser útil.Identifican<strong>do</strong> essa profunda transformação, falou-me Narcisa certo dia:— André, meu amigo, você vem fazen<strong>do</strong> a renovação mental. Em taisperío<strong>do</strong>s, extremas dificuldades espirituais nos assaltam o coração. Lembre-seda meditação no Evangelho de Jesus. Sei que você experimenta intraduzívelalegria ao contacto da harmonia universal, após o aban<strong>do</strong>no de suas criaçõescaprichosas, mas reconheço que, ao la<strong>do</strong> das rosas <strong>do</strong> júbilo, defrontan<strong>do</strong> osnovos caminhos que se descerram para sua esp<strong>era</strong>nça, há espinhos de tédionas margens das velhas estradas inferiores que você vai deixan<strong>do</strong> para trás.Seu coração é uma taça iluminada aos raios <strong>do</strong> alvorecer divino, mas vazia <strong>do</strong>ssentimentos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, que a ench<strong>era</strong>m por séculos consecutivos.Não poderia, eu mesmo, formular tão exata definição <strong>do</strong> meu esta<strong>do</strong>espiritual.Narcisa tinha razão. Suprema alegria inundava-me o espírito, ao la<strong>do</strong>de incomensurável sensação de tédio, quanto às situações da natureza inferior.Sentia-me liberto de pesa<strong>do</strong>s grilhões, porém, não mais possuía o lar, aesposa, os filhos ama<strong>do</strong>s. Regressava freqüentemente ao círculo <strong>do</strong>méstico eaí trabalhava pelo bem de to<strong>do</strong>s, mas sem qualquer estímulo. Minha devotadaamiga acertara. Meu coração <strong>era</strong> bem um cálice luminoso, porém, vazio. Adefinição comov<strong>era</strong>-me.Ven<strong>do</strong>-me as lágrimas silenciosas, Narcisa acentuou:— Encha sua taça nas águas eternas daquele que é o Doa<strong>do</strong>r Divino.Além disso, André, to<strong>do</strong>s nós somos porta<strong>do</strong>res da planta <strong>do</strong> Cristo, na terra <strong>do</strong>coração. Em perío<strong>do</strong>s como o que você atravessa, há mais facilidade para nosdesenvolvermos com êxito, se soubermos aproveitar as oportunidades.Enquanto o espírito <strong>do</strong> homem se engolfa apenas em cálculos e raciocínios, oEvangelho de Jesus não lhe parece mais que repositório de ensinamentoscomuns; mas, quan<strong>do</strong> se lhe despertam os sentimentos superiores, verifica queas lições <strong>do</strong> Mestre têm vida própria e revelam expressões desconhecidas dasua inteligência, à medida que se esforça na edificação de si mesmo, comoensinamento <strong>do</strong> Pai. Quan<strong>do</strong> crescemos para o Senhor, seus ensinos crescemigualmente aos nossos olhos. Vamos fazer o bem, meu caro! Encha seu cálicecom o bálsamo <strong>do</strong> amor divino. Já que você sente os raios da alvorada nova,caminhe confiante para o dia!...E, conhecen<strong>do</strong> meu temp<strong>era</strong>mento de homem, amante <strong>do</strong> serviçomovimenta<strong>do</strong>, acrescentou, generosa:


— Você tem trabalha<strong>do</strong> bastante aqui nas Câmaras, onde me preparo,por minha vez, consid<strong>era</strong>n<strong>do</strong> o futuro próximo, na carne. Não poderei, portanto,acompanhá-lo, mas creio deve você aproveitar os novos cursos de serviço,instala<strong>do</strong>s no Ministério da Comunicação. Muitos companheiros nossoshabilitam-se a prestar concurso na Terra, nos campos visíveis e invisíveis aohomem, acompanha<strong>do</strong>s, to<strong>do</strong>s eles, por nobres instrutores. Poderia vocêconhecer experiências novas, aprender muito e coop<strong>era</strong>r com excelente açãoindividual. Porque não tenta?Antes que pudesse agradecer o alvitre valioso, Narcisa foi chamada aointerior das Câmaras, a serviço, deixan<strong>do</strong>-me <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> por esp<strong>era</strong>nçasdiferentes de quantas abrigara até então, relativa mente às minhas tarefas.II - AnicetoComunican<strong>do</strong> meus novos propósitos a Tobias, verifiquei a satisfaçãoque lhe transpareceu <strong>do</strong> olhar.— Fique tranqüilo — disse, bon<strong>do</strong>so — você possui a quantidadenecessária de horas de trabalho para justificar o pedi<strong>do</strong>. Temos, por nossa vez,grande número de colegas na Comunicação. Não será difícil localizá-lo cominstrutores amigos. Conhece o nosso estima<strong>do</strong> Aniceto?— Não tenho esse prazer.— É antigo companheiro de serviço — continuou informan<strong>do</strong>, amável —e <strong>este</strong>ve conosco na Regen<strong>era</strong>ção, algum tempo. Em seguida, devotou-se àtarefas sacrificiais no Ministério <strong>do</strong> Auxílio e, hoje, é Instrutor competente naComunicação, aonde vem prestan<strong>do</strong> concurso respeitável. Conversarei, arespeito, com o Ministro Genésio. Não tenha dúvidas. Seu desejo, André, émuito nobre aos nossos olhos.O prestimoso companheiro deixou-me num mar de contentamentoindefinível.Comecei a compreender o valor <strong>do</strong> trabalho. A amizade de Narcisa eTobias <strong>era</strong> tesouro de inapreciável grandeza, que o espírito de serviço mehavia descortina<strong>do</strong> ao coração. Novo setor de luta des<strong>do</strong>brar-se-ia a minhafrente. Não deveria perder a oportunidade. “Nosso Lar” estava cheio deentidades ansiosas por aquisições dessa natureza. Não seria justo entregarme,de boa vontade, ao novo aprendiza<strong>do</strong>? Além disso, certo da minha volta àcarne, em futuro talvez não distante, a providência constituiria realização deprofun<strong>do</strong> interesse ao meu aproveitamento g<strong>era</strong>l.Misteriosa alegria <strong>do</strong>minava-me to<strong>do</strong>, sublimada esp<strong>era</strong>nça iluminavameos sentimentos. Aquele desejo ardente de colaborar em benefício <strong>do</strong>soutros, que Narcisa me acend<strong>era</strong> no íntimo, parecia encher, agora, a taça vazia<strong>do</strong> meu coração.Trabalharia, sim. Conheceria a satisfação <strong>do</strong>s coop<strong>era</strong><strong>do</strong>res anônimosda felicidade alheia. Procuraria a prodigiosa luz da fraternidade, através <strong>do</strong>serviço às criaturas.À noite, fui procura<strong>do</strong> por Tobias, sempre generoso, trazen<strong>do</strong>-me aconforta<strong>do</strong>ra aquiescência <strong>do</strong> Ministro Genésio.Com sorrisos afetuosos, convi<strong>do</strong>u-me a acompanhá-lo. Conduzir-me-iaà presença de Aniceto, para conversarmos relativamente ao assunto.Emocionadíssimo segui para a residência da nova personagem que seligaria fundamente à minha vida espiritual.


Aniceto, ao contrário de Tobias, não se consorciara em “Nosso Lar”.Vivia ao la<strong>do</strong> de cinco amigos que lhe foram discípulos na Terra, em edifícioconfortável, encrava<strong>do</strong> entre árvores fron<strong>do</strong>sas e tranqüilas, que pareciampostas ali para protegerem extenso e maravilhoso roseiral.Recebeu-nos com extrema gentileza, o que me causou excelenteimpressão. Aparentava ele a calma refletida <strong>do</strong> homem que chegou à idademadura, sem fantasias da mocidade inexperiente. Embora lhe transparecessemuita energia no rosto, revelava o otimismo sadio <strong>do</strong> coração cheio de ideaissacrossantos. Muito sereno, recebeu todas as alegações <strong>do</strong> meu benfeitor,dirigin<strong>do</strong>-me, de quan<strong>do</strong> em vez, olhares amistosos e indaga<strong>do</strong>res.Tobias falou longamente, comentan<strong>do</strong> minha posição de ex-médico noplano terráqueo, agora em reajustamento de valores no plano espiritual.Depois de examinar-me com atenção, o orienta<strong>do</strong>r aduziu:— Não há o que embargar, meu preza<strong>do</strong> Tobias. No entanto, é precisoreconhecer que a solução depende <strong>do</strong> candidato. Sabe você que estamos aquina Instituição <strong>do</strong> Homem Novo.— André está pronto e disposto — adiantou o amigo, carinhosamente.Aniceto fixou em mim o olhar penetrante e advertiu:— Nosso serviço é varia<strong>do</strong> e rigoroso. O departamento de trabalho,afeto à nossa responsabilidade, aceita somente os coop<strong>era</strong><strong>do</strong>res interessa<strong>do</strong>sna descoberta da felicidade de servir, comprometemo-nos, mutuamente, acalar toda espécie de reclamação. Ninguém exige expressão nominal nasobras úteis realizadas, e to<strong>do</strong>s respondem por qualquer erro cometi<strong>do</strong>.Achamo-nos, aqui, num curso de extinção das velhas vaidades pessoais,trazidas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> carnal. Dentro <strong>do</strong> mecanismo hierárquico de nossasobrigações, interessamo-nos tão somente pelo bem divino. Consid<strong>era</strong>mos quetoda possibilidade construtiva vem de nosso Pai e esta convicção nos auxilia aesquecer as exigências descaídas de nossa personalidade inferior.Identifican<strong>do</strong>-me a surpresa, Aniceto esboçou um gesto significativo econtinuou:— Nos trabalhos de emergência, destina<strong>do</strong>s à preparação decolabora<strong>do</strong>res ativos, tenho um quadro suplementar de auxiliares, constante decinqüenta lugares para aprendizes. No momento, disponho de três vagas. Háintensa atividade de instrução, necessária a Servi<strong>do</strong>res que coop<strong>era</strong>rão emsocorros urgentes, na Terra. Orienta<strong>do</strong>res há que se fazem acompanhar, nosserviços da crosta, por to<strong>do</strong> o pessoal em aprendiza<strong>do</strong>, mas eu a<strong>do</strong>to processodiferente. Costumo dividir a classe em grupos especializa<strong>do</strong>s, de acor<strong>do</strong> com aprofissão familiar aos estudantes, para melhor aproveitamento no preparo e naprática. Tenho, presentemente, um sacer<strong>do</strong>te católico-romano, um médico, seisengenheiros, quatro professores, quatro enfermeiras, <strong>do</strong>is pintores, onze irmãsespecializadas em trabalhos <strong>do</strong>mésticos e dezoito operários diversos. Em“Nosso Lar”, a ação que nos compete é des<strong>do</strong>brada de maneira coletiva; mas,nos dias de aplicação na crosta terrestre, não me faço segui<strong>do</strong> de to<strong>do</strong>s.Naturalmente, não se negará ao engenheiro, ou ao operário, o ensejo deaquisição de conhecimentos outros, que transcendem a paisagem derealizações que lhes cabem; mas, tais manifestações devem constar <strong>do</strong> quadrode esforços espontâneos, no tempo vasto que cada qual aufere para descansoe entretenimento. Consid<strong>era</strong>n<strong>do</strong>, pois, o serviço atual, temos interesse emaproveitar as horas no limite máximo, não só em benefício <strong>do</strong>s que necessitam


de nosso concurso fraternal, como também a favor de nós mesmos, no quetoca à eficiência.Ponderei, admira<strong>do</strong>, o curioso processo, enquanto o orienta<strong>do</strong>r fazialonga pausa.Após mergulhar toda a atenção em mim, como se desejasse perceber oefeito de suas palavras, Aniceto continuou:— Este méto<strong>do</strong> não visa apenas a criar obrigações para os outros.Aqui, como na Terra, quem alcança a melhor porção, nas aulas edemonstrações, não é propriamente o discípulo e sim o instrutor, que enriqueceobservações e intensifica experiências. Quan<strong>do</strong> o Ministro Espiridião mechamou a exercer o cargo, aceitei-o sob a condição de não perder tempo namelhoria e educação de mim mesmo. Desse mo<strong>do</strong>, não preciso alongar-menoutras consid<strong>era</strong>ções. Creio haver dito o bastante. Se está, portanto, disposto,não posso recusar-me a aceitá-lo.— Compreen<strong>do</strong> seus nobres programas — respondi, comovi<strong>do</strong> — seráhonra para mim a possibilidade de acompanhá-lo e receber suasdeterminações de serviço.Aniceto esboçou a expressão fisionômica de quem atinge a solução,desejada, e concluiu:— Pois bem; poderá começar amanhã. E, dirigin<strong>do</strong>-se a Tobias,acrescentou:— Encaminhe o nosso amigo, amanhã ce<strong>do</strong>, ao Centro deMensageiros. Lá estaremos em estu<strong>do</strong> ativo e providencia para que André sejabonifica<strong>do</strong> pelas tabelas da Comunicação.Agradecemos, satisfeitos e, logo em seguida a Tobias despedi-me,alimentan<strong>do</strong> novas esp<strong>era</strong>nças.III - No Centro de MensageirosNo dia seguinte, após ouvir longas pond<strong>era</strong>ções de Narcisa, demandeio Centro de Mensageiros, no Ministério da Comunicação. Acompanhava-me oprestimoso Tobias, não obstante os imensos trabalhos que lhe ocupavam ocírculo pessoal.Deslumbra<strong>do</strong>, atingi a série de majestosos edifícios de que se compõea sede da Instituição. Julguei encontrar algumas universidades reunidas, tal aenorme extensão deles. Pátios amplos, povoa<strong>do</strong>s de arvore<strong>do</strong> e jardins,convidavam a sublimes meditações.Tobias arrancou-me <strong>do</strong> encantamento, exclaman<strong>do</strong>:— O Centro é muito vasto. Atividades complexas são desempenhadasn<strong>este</strong> departamento de nossa colônia espiritual. Não creia <strong>este</strong>ja resumida ainstituição nos edifícios sob nossos olhos. Temos, nesta parte, tão somente aadministração central e alguns pavilhões destina<strong>do</strong>s ao ensino e à preparaçãoem g<strong>era</strong>l.— Mas esta organização imensa restringe-se ao movimento detransmissão de mensagens? — perguntei,. curioso.O companheiro sorriu significativamente e esclareceu:— Não suponha se encontre aqui localiza<strong>do</strong> o serviço de correio,simplesmente. O Centro prepara entidades a fim de que se transformem emcartas vivas de socorro e auxílio aos que sofrem no Umbral, na Crosta e nasTrevas. Acreditaria, por ventura, que tanto trabalho se destinasse apenas àm<strong>era</strong> movimentação de noticiário? Amplie suas vistas. Este serviço é a cópia


de quantos se vêm fazen<strong>do</strong> nas mais diversas cidades espirituais <strong>do</strong>s planossuperiores. Preparam-se aqui numerosos companheiros para a difusão deesp<strong>era</strong>nças e consolos, instruções e avisos, nos diversos setores da evoluçãoplanetária. Não me refiro tão só a emissários invisíveis. Organizamos turmascompactas de aprendizes para a reencarnação. Médiuns e <strong>do</strong>utrina<strong>do</strong>res saemdaqui às centenas, anualmente. Tarefeiros <strong>do</strong> conforto espiritual encaminhamsepara os círculos carnais, em quantidade considerável, habilita<strong>do</strong>s pelo nossoCentro de Mensageiros.— Que me diz? — interroguei, surpreso. — Segun<strong>do</strong> seus informes, ostrabalhos de esclarecimento espiritual devem estar muitíssimo adianta<strong>do</strong>s nomun<strong>do</strong>!...Fixou Tobias expressão singular, sorriu tranqüilamente e explicou:— Você não ponderou, todavia, meu caro André, que essa preparaçãonão constitui, ainda, a realização propriamente dita. Saem milhares demensageiros aptos para o serviço, mas são muito raros os que triunfam. Algunsconseguem execução parcial da tarefa, outros muitos fracassam de to<strong>do</strong>. Oserviço legítimo não é fantasia. É esforço sem o qual a obra não pode aparecernem prevalecer. Longas fileiras de médiuns e <strong>do</strong>utrina<strong>do</strong>res para o mun<strong>do</strong>carnal partem daqui, com as necessárias instruções, porque os benfeitores daEspiritualidade Superior, para intensificarem a redenção humana, precisam derenúncia e de altruísmo. Quan<strong>do</strong> os mensageiros se esquecem <strong>do</strong> espíritomissionário e da dedicação aos semelhantes, costumam transformar-se eminstrumentos inúteis. Há médiuns e mediunidade, <strong>do</strong>utrina<strong>do</strong>res e <strong>do</strong>utrina,como existem a enxada e os trabalha<strong>do</strong>res. Pode a enxada ser excelente, mas,se falta espírito de serviço no cultiva<strong>do</strong>r, o ganho da enxada seráinevitavelmente a ferrugem. Assim acontece com as faculdades psíquicas ecom os grandes conhecimentos. A expressão mediúnica pode ser riquíssima;entretanto, se o <strong>do</strong>no não consegue olhar além <strong>do</strong>s interesses próprios,fracassará fatalmente na tarefa que lhe foi conferida. Acredite, meu caro, queto<strong>do</strong> trabalho construtivo tem as batalhas que lhe dizem respeito. São muitoescassos os servi<strong>do</strong>res que tol<strong>era</strong>m as dificuldades e reveses das linhas defrente. Esmaga<strong>do</strong>ra percentagem permanece à distância <strong>do</strong> fogo forte.Trabalha<strong>do</strong>res sem conta recuam quan<strong>do</strong> a tarefa abre oportunidades maisvaliosas.Algo impressiona<strong>do</strong>, considerei:— Isto me surpreende sobremaneira. Não supunha fossem prepara<strong>do</strong>s,aqui, determina<strong>do</strong>s mensageiros para a vida carnal.— Ah! meu amigo — falou Tobias sorridente —, poderia você admitirque as obras <strong>do</strong> bem estivessem circunscritas a simples op<strong>era</strong>çõesautomáticas? Nossa visão, na Terra, costuma viciar-se no círculo <strong>do</strong>s cultosexternos, na atividade religiosa. Cremos, por lá, resolver to<strong>do</strong>s os problemaspela atitude suplicante. Entretanto, a genuflexão não soluciona questõesfundamentais <strong>do</strong> espírito, nem a m<strong>era</strong> a<strong>do</strong>ração à Divindade constitui a máximaedificação. Em verdade, to<strong>do</strong> ato de humildade e amor é respeitável e santo, e,incontestavelmente, o Senhor nos concederá suas bênçãos; no entanto, éimprescindível consid<strong>era</strong>r que a manutenção e limpeza <strong>do</strong> vaso, para recolhêlas,é dever que nos assiste. Não preparamos, pois, n<strong>este</strong> Centro, simplespostalistas, mas espíritos que se transformem em cartas vivas de Jesus para aHumanidade encarnada. Pelo menos, <strong>este</strong> é o programa de nossaadministração espiritual...


Calei, emociona<strong>do</strong>, pond<strong>era</strong>n<strong>do</strong> a grandeza <strong>do</strong>s ensinamentos. Meucompanheiro, após longa pausa, prosseguiu observan<strong>do</strong>:— Raros triunfam, porque quase to<strong>do</strong>s estamos ainda liga<strong>do</strong>s a extensopretérito de erros criminosos, que nos deformaram a personalidade. Em cadanovo ciclo de empreendimentos carnais, acreditamos muito mais em nossastendências inferiores <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, que nas possibilidades divinas <strong>do</strong> presente,complican<strong>do</strong> sempre o futuro. É desse mo<strong>do</strong> que prosseguimos, por lá,agarra<strong>do</strong>s ao mal e esqueci<strong>do</strong>s <strong>do</strong> bem, chegan<strong>do</strong>, por vezes, ao disparate deinterpretar dificuldades como punições, quan<strong>do</strong> to<strong>do</strong> obstáculo traduzoportunidade verdadeiramente preciosa aos que já tenham “olhos de ver”.A essa altura, alcançamos enorme recinto.Centenas de entidades penetravam no vasto edifício, cujas escadariasgalgamos em animada conversação.Os aspectos <strong>do</strong> maravilhoso átrio impressionavam pela imponentebeleza. Espécies de flores, até então desconhecidas para mim, a<strong>do</strong>rnavamcolunatas, espalhan<strong>do</strong> cores vivas e delicioso perfume.Quebran<strong>do</strong>-me o enlevo, Tobias explicou:— As diversas turmas de aprendizes encaminham-se às aulas.Procuremos Aniceto no departamento de instrutores.Atravessamos galerias vastíssimas, sempre defronta<strong>do</strong>s porverdadeiras multidões de entidades que buscavam as aulas, em palestrasvibrantes.Em pequeno grupo que parecia manter conversação muito discreta,encontramos o generoso amigo da vésp<strong>era</strong>, que nos abraçou sorridente ecalmo.— Muito bem! — disse, alegre e bon<strong>do</strong>so — esp<strong>era</strong>va o novo aluno,desde a manhãzinha.E em virtude de Tobias alegar muita pressa, o nobre instrutor explicou:— Doravante, André ficará aos meus cuida<strong>do</strong>s. Volte tranqüilo.Despedi-me <strong>do</strong> companheiro, comovidamente.Notan<strong>do</strong>-me o natural acanhamento, Aniceto determinou a um auxiliarde serviço:— Chame o Vicente em meu nome.E, voltan<strong>do</strong>-se para mim, esclareceu:— Até agora, Vicente é o meu único aprendiz médico. Vocês ficarãojuntos, em vista da afinidade profissional.Não haviam decorri<strong>do</strong> três minutos e tínhamos Vicente diante de nós.— Vicente — falou Aniceto sem afetação —, André <strong>Luiz</strong> é nosso novocolabora<strong>do</strong>r. Foi também médico nas esf<strong>era</strong>s carnais. Creio, pois, que ambosse encontrarão à vontade, partilhan<strong>do</strong> a mesma experiência.O interpela<strong>do</strong> abraçou-me, demonstran<strong>do</strong> extrema generosidade, e,após encorajar-me com belas palavras de estímulo, perguntou ao nossoorienta<strong>do</strong>r:— Quan<strong>do</strong> deveremos procurá-lo para os estu<strong>do</strong>s de hoje?Aniceto pensou um instante e respondeu:— Esclareça ao novo candidato os nossos regulamentos e venhamjuntos para as instruções, após o meio-dia.IV - O caso VicenteImpossível traduzir meu contentamento com a nova companhia.


Vicente, semblante muito calmo, olhar inteligente e lúci<strong>do</strong>, irradiavacarinho e bondade, sensatez e compreensão.Disse-me de sua alegria por haver encontra<strong>do</strong> um companheiro médico,alojou-me convenientemente junto dele, demonstran<strong>do</strong> extrema generosidadefraternal.Era o primeiro colega na profissão, igualmente recém-chega<strong>do</strong> dasesf<strong>era</strong>s da Crosta, de quem me aproximava de mo<strong>do</strong> direto.Trocamos idéias, largamente, sobre as surpresas que nos defrontavam.Comentamos as dificuldades oriundas da ilusão terrestre, a miopia da pequenaciência, os problemas profun<strong>do</strong>s e sedutores da medicina espiritual.Vicente, conquanto não houvesse feito ainda qualquer visita ao plano<strong>do</strong>s encarna<strong>do</strong>s, em caráter de serviço, admirava Aniceto extraordinariamente,e punha-me ao corrente <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s valiosos a que se entregava junto dele.Estava cheio de conceitos entusiásticos. Em pouco mais de uma hora,nossa intimidade semelhava-se ao sentimento de <strong>do</strong>is irmãos uni<strong>do</strong>s, desdemuito, por laços espirituais. O novo companheiro conquistara-me infinitaconfiança.Evidencian<strong>do</strong> minha delicadeza, indagou da minha posição p<strong>era</strong>nte osparentes terrestres, ao que respondi com a história resumida de minha singularaventura, ao conhecer as segundas núpcias de minha viúva. Imprimi toda aênfase possível ao meu relatório verbal, sensibilizan<strong>do</strong>-me, profundamente, nocurso da narrativa. Em cada pormenor culminante <strong>do</strong>s fatos, detinha-me depropósito, salientan<strong>do</strong> meus velhos sofrimentos e relacionan<strong>do</strong> dissabores queme pareciam insuperáveis.Vicente ouviu silencioso, sorrin<strong>do</strong> a intervalos.Quan<strong>do</strong> terminei a comovida exposição, ele pôs-me a destra no ombroe murmurou:— Não se julgue desventura<strong>do</strong> e incompreendi<strong>do</strong>. Saiba, meu caroAndré que você foi muitíssimo feliz.— Como assim?— Sua Zélia respeitou o companheiro até ao fim, e o segun<strong>do</strong>matrimônio, em tais circunstâncias, não é de admirar. No meu caso, porém, acoisa foi muito pior.E, da<strong>do</strong> meu justo espanto, o novo amigo continuou:— Explico-me.Meditou alguns instantes, como quem alinhava reminiscências, eprosseguiu:— Não pode você imaginar como foi intenso o sonho de amor <strong>do</strong> meucasamento. Logo após a aquisição <strong>do</strong> diploma profissional, aos vinte e cincoanos, esposei Rosalinda, exultante de ventura. Não levava a esposa tãosomente uma situação material conforta<strong>do</strong>ra e sólida, no terreno financeiro,mas também os meus tesouros de afeto e devotamento. Minha felicidade nãotinha limites. Em pouco tempo, <strong>do</strong>is filhinhos enriquec<strong>era</strong>m-me o lar ditoso.Meu bem-estar <strong>era</strong> inexprimível.Em virtude das reservas bancárias, não me especializei na clínica,consagran<strong>do</strong>-me, todavia, apaixonadamente, ao laboratório. Atenden<strong>do</strong> aosmeus pen<strong>do</strong>res, não me foi difícil atrair a confiança de numerosos colegas evários centros de estu<strong>do</strong>s, multiplican<strong>do</strong> pesquisas e resulta<strong>do</strong>s brilhantes. ERosalinda <strong>era</strong> a minha primeira e melhor colabora<strong>do</strong>ra. De quan<strong>do</strong> em quan<strong>do</strong>,notava-lhe o enfa<strong>do</strong> no trato com os tubos de ensaio, mas minha esposa sabia


então calar as contrariedades pequeninas, a favor da nossa felicidade<strong>do</strong>méstica. Parecia compreender-me integralmente. Era, aos meus olhos, amãe dedicada e companheira sem defeitos.Contávamos dez anos de ventura conjugal, quan<strong>do</strong> meu irmãoEleutério, advoga<strong>do</strong>, solteiro, algo mais velho que eu, deliberou localizar-sejunto de nós. Rosalinda foi inexcedível em atenções, consid<strong>era</strong>n<strong>do</strong> que setratava de pessoa de minha família. Eleutério entrou em nossa casa comoirmão. Embora residisse em hotel, compartilhava <strong>do</strong>s nossos serões caseiros,sempre bem posto e interessa<strong>do</strong> em agradar.Observei, desde então, que minha mulher se modificava pouco apouco. Exigiu fosse contratada uma auxiliar que a substituísse nos meusserviços, alegan<strong>do</strong> que os nossos filhinhos não dispensavam assistênciamaternal, mais assídua. Anuí, satisfeito. Tratava-se, afinal, de providênciainteressante ao bem-estar de nossos filhos. Contu<strong>do</strong>, a transformação deRosalinda assumiu caráter impressionante. Passou a não comparecer aolaboratório, onde tantas vezes nos abraçávamos, alegremente, ao vermoscoroadas de êxito nossas pesquisas mais sérias. Preferia o cinema ou aestação de repouso, em companhia de Eleutério.Isso me entristecia bastante, mas eu não poderia desconfiar da condutade meu irmão. Fora sempre criterioso, em família, não obstante ousa<strong>do</strong> efilaucioso nas atividades profissionais.Minha vida <strong>do</strong>méstica, antes tão feliz, passou a ser de solidão assazamarga, que eu tentava iludir com o trabalho persistente e honesto.Assim corriam as coisas, quan<strong>do</strong> singular transformação me alterou aexperiência. Pequena borbulha na fossa nasal, que nunca me troux<strong>era</strong>incômo<strong>do</strong>s de qualquer natureza, depois de levemente ferida, tomou caráter deextrema gravidade. Em poucas horas, declarou-se a septicemia. Reuniram-secolegas em verdadeira assembléia, junto de meu leito. Inúteis, todavia, to<strong>do</strong>sos cuida<strong>do</strong>s; anuladas as melhores expressões de assistência. Compreendique o fim se aproximava, rápi<strong>do</strong>. Rosalinda e Eleutério pareciam consterna<strong>do</strong>se, até hoje guar<strong>do</strong> a impressão de rever-lhes o olhar ansioso, no momento emque a neblina da morte me envolvia os olhos materiais.Nessa altura, Vicente fez longo estacato, como a fixar reminiscênciasmais <strong>do</strong>lorosas, e continuou menos vivaz:— Depois de algum tempo de tristes perturbações nas zonas inferiores,quan<strong>do</strong> já me encontrava restabeleci<strong>do</strong>, em “Nosso Lar”, certifiquei-me de todaa verdade. Voltan<strong>do</strong> ao lar terreno, encontrei a grande surpresa: Rosalindahavia desposa<strong>do</strong> Eleutério em segundas núpcias.— Como são idênticas as nossas histórias! — exclamei impressiona<strong>do</strong>— Isso é que não — protestou a sorrir.E continuou:— Outra surpresa me dilac<strong>era</strong>va o coração. Somente ao regressar aolar, soube que fora vítima de odioso crime. Meu próprio irmão inspirou a tramasutil e perversa. Minha mulher e ele apaixonaram-se perdidamente um pelooutro e ced<strong>era</strong>m a tentações inferiores. Não havia que recorrer a divórcio, e,mesmo que a legislação o facultasse, constituiria um escândalo o afastamentode Rosalinda para unir-se ao cunha<strong>do</strong>. Eleutério lembrou, porém, quepossuíamos experiências de laboratório e sugeriu a Rosalinda a idéia de meaplicarem determinada cultura microbiana, que ele mesmo se incumbiria deobter, na primeira oportunidade.


A pobre da companheira não vacilou, e, valen<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> meu sonodescuida<strong>do</strong>, introduziu na minúscula espinha nasal, algo ferida, o vírusdestrui<strong>do</strong>r.E aí tem você o meu caso naturalmente resumi<strong>do</strong>.Eu estava assombra<strong>do</strong>.E os criminosos? — perguntei.Vicente sorriu ligeiramente e informou:— Rosalinda e Eleutério vivem aparentemente felizes, são excelentesmaterialistas, por enquanto, e gozam, no mun<strong>do</strong> transitório, grande fortunaamoedada e alto conceito social.— Mas.., e a justiça? — indaguei, aterra<strong>do</strong>.— Ora, André — esclareceu serenamente —, tu<strong>do</strong> vem a seu tempo,tanto no bem quanto no mal. Primeiro a semente, depois os frutos.Perceben<strong>do</strong>-me, porém, as tristes impressões, Vicente concluiu:Não falemos mais nisto. Aproxima-se a hora da instrução. Atendamosas nossas necessidades essenciais, auxilian<strong>do</strong> os nossos ama<strong>do</strong>s, que aindapermanecem à distância, nos círculos terrestres. Não se impressione. A árvore,para produzir, não reclama as folhas mortas. Para nós, atualmente, meu amigo,o mal é simples resulta<strong>do</strong> da ignorância e nada mais.V - Ouvin<strong>do</strong> instruçõesNo grande salão, Aniceto esp<strong>era</strong>va-nos, acolhe<strong>do</strong>r.Fileiras enormes de assistentes enchiam o espaço vastíssimo.Homens e mulheres, aparentan<strong>do</strong> idades diversas, permaneciamrecolhi<strong>do</strong>s, a demonstrar, porém, expectativa e interesse.— Hoje — explicou o nosso orienta<strong>do</strong>r, dirigin<strong>do</strong>-se a Vicente demaneira particular — teremos a palavra de Telésforo, antigo lida<strong>do</strong>r daComunicação que pediu a presença de to<strong>do</strong>s os aprendizes <strong>do</strong> trabalho deintercâmbio entre nós e os irmãos encarna<strong>do</strong>s.Sentamo-nos, confortavelmente, aguardan<strong>do</strong>, por nossa vez.Daí a minutos, Telésforo penetrava no recinto, sob harmoniosasvibrações de simpatia g<strong>era</strong>l.Aniceto e outros instrutores instalaram-se ao la<strong>do</strong> dele, em torno damesa nobre, onde se localizava a direção da assembléia.Após saudar a assistência numerosíssima, formulan<strong>do</strong> votos de paz eincentivan<strong>do</strong>-nos aos t<strong>este</strong>munhos redentores, Telésforo atingiu o assuntoprincipal que o levara até ali.— Agora — disse com autoridade sem excitação — conversaremossobre as necessidades da representação de nossa colônia nos trabalhosterrestres. Aqui se encontram companheiros fracassa<strong>do</strong>s nas intenções maisnobres e irmãos outros desejosos de colaborar nas tarefas que condizem comas nossas responsabilidades atuais. Referimo-nos às laboriosas atividades daComunicação, no plano carnal. Vemos nesta reunião grande parte <strong>do</strong>scoop<strong>era</strong><strong>do</strong>res de “Nosso Lar”, que faliram nas missões da mediunidade e da<strong>do</strong>utrinação, bem como outros muitos colegas que se preparam para provasdessa natureza, nos círculos da Crosta.Nossa repartição vem promoven<strong>do</strong> grande movimento de auxílio airmãos encarna<strong>do</strong>s e desencarna<strong>do</strong>s, que se revelam incapazes de qualqu<strong>era</strong>ção além da superfície terrestre.


Nossa tarefa é enorme. Precisamos ditar ensinamentos novos,relativamente à preparação <strong>do</strong>s que habitam nossa colônia, consid<strong>era</strong>n<strong>do</strong> osesforços e realizações <strong>do</strong> presente e <strong>do</strong> porvir.É indispensável socorrer os que enfrentam, corajosos, as profundastransformações <strong>do</strong> planeta.As transições essenciais da existência na Terra encontram a maioria<strong>do</strong>s homens absolutamente distraí<strong>do</strong>s das realidades eternas. A mentehumana abre-se, cada vez mais, para o contacto com as expressõesindivisíveis, dentro das quais funciona e se movimenta. Isto é uma fatalidadeevolutiva. Desejamos e necessitamos auxiliar as criaturas terrestres; todavia,contra a extensão de nosso concurso fraterno, op<strong>era</strong>m dilatadas correntes deincompreensão. Não relacionamos apenas a ação da ignorância e daperversidade. Agem, contraditoriamente, nesse particular, grande número deforças <strong>do</strong> próprio espiritualismo. Combatem-nos algumas escolas cristãs, comose não colaborássemos com o Mestre Divino. A Igreja Romana classifica-nos acoop<strong>era</strong>ção como diabólica. A Reforma Lut<strong>era</strong>na, em seus matizes varia<strong>do</strong>s,persegue-nos a colaboração amistosa. E há correntes espiritualistas deeleva<strong>do</strong> teor educativo, que nos malsinam a influência, por quererem o homemaperfeiçoa<strong>do</strong> de um dia para outro, rigorosamente redimi<strong>do</strong> a golpe instantâneoda vontade, sem realização metódica.No campo de nosso conhecimento da vida, não podemos condená-lospelo desentendimento atual. O catolicismo romano tem suas razõesponderáveis; o protestantismo é digno de nosso acatamento; as escolasespiritualistas possuem notáveis edificantes. Toda expressão religiosa ésagrada, to<strong>do</strong> movimento superior de educação espiritual é santo em simesmo. Temos, então, diante de nós, a incompreensão <strong>do</strong>s bons, que constitui<strong>do</strong>lorosa prova para to<strong>do</strong>s os trabalha<strong>do</strong>res sinceros, porque, afinal, nãoestamos fazen<strong>do</strong> obra individual e sim promoven<strong>do</strong> movimento liberta<strong>do</strong>r daconsciência humana, a favor da própria idéia religiosa <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.Sacer<strong>do</strong>tes e Intérpretes <strong>do</strong>s núcleos organiza<strong>do</strong>s da religião e dafilosofia, não percebem ainda que o espírito da Revelação é progressivo, comoa alma <strong>do</strong> homem. As concepções religiosas se elevam com a mente dacriatura. Muitas igrejas não compreendem, por enquanto, que não devemosespalhar a crença nos tormentos eternos para os desventura<strong>do</strong>s, e sim acerteza de que há homens infernais crian<strong>do</strong> infernos para si mesmos.Não podemos, porém, perder tempo no exame da teimosia alheia.Temos serviços complexos e dilata<strong>do</strong>s. E, como dizíamos, a Humanidadeterrena aproxima-se, dia a dia, da esf<strong>era</strong> de vibrações <strong>do</strong>s invisíveis decondição inferior, que a rodeia em to<strong>do</strong>s os senti<strong>do</strong>s. Mas, segun<strong>do</strong>reconhecemos, esmaga<strong>do</strong>ra percentagem de habitantes da Terra não sepreparou para os atuais acontecimentos evolutivos. E os mais angustiososconflitos se verificam no sendal humano. A Ciência progride vertiginosamenteno planeta, e, no entanto, à medida que se suprimem sofrimentos <strong>do</strong> corpo,multiplicam-se aflições das almas. Os jornais <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> estão cheios denotícias maravilhosas, quanto ao progresso material. Segre<strong>do</strong>s sublimes daNatureza são surpreendi<strong>do</strong>s nos <strong>do</strong>mínios <strong>do</strong> mar, da terra e <strong>do</strong> ar; mas aestatística <strong>do</strong>s crimes humanos é espantosa. Os assassínios da guerra,apresentam requintes de perversidade muito além <strong>do</strong>s que foram conheci<strong>do</strong>sem épocas anteriores. Os homicídios, os suicídios, as tragédias conjugais, osdesastres <strong>do</strong> sentimento, as greves, os impulsos revolucionários da


indisciplina, a sede de experimentação inferior, a inquietação sexual, asmoléstias desconhecidas, a loucura, invadem os lares humanos. Não existe empaís algum preparo espiritual bastante para o conforto físico. Entretanto, esseconforto tende a aumentar naturalmente. O homem <strong>do</strong>minará, cada vez mais, apaisagem exterior que lhe constitui moradia, embora não se conheça a simesmo. Atendi<strong>do</strong>, porém, o corpo revelará as necessidades de cima e vemosagora a criatura terrestre assoberbada de problemas graves, não só pelasdeficiências de si própria, senão também pela espontânea aproximaçãopsíquica com a esf<strong>era</strong> vibratória de milhões de desencarna<strong>do</strong>s, que se agarramà Crosta planetária, sequiosos de renovar a existência que menosprezaram,sem maior consid<strong>era</strong>ção aos desígnios <strong>do</strong> Eterno.A rigor, também nós compreendemos que os serviços da Comunicação,no mun<strong>do</strong>, deveriam realizar-se apenas no plano da inspiração divina para oscírculos terrenos, <strong>do</strong> superior ou inferior; mas, como agir diante de milhões deenfermos e criminosos nas zonas visíveis e invisíveis da experiência humana?Pelo simples culto externo, como pretende a Igreja de Roma? Pelo ato de fé,exclusivamente, como esp<strong>era</strong> a Reforma Protestante? Por m<strong>era</strong> afirmação davontade, conforme pontificam certas escolas espiritualistas? Não podemos, noentanto, circunscrever apreciações, na visão unilat<strong>era</strong>l <strong>do</strong>s problemas.Concordamos que a reverência ao Pai, a fé e a vontade são expressõesbásicas da realização divina no homem, mas não podemos esquecer que otrabalho é necessidade fundamental de cada espírito. Que outros irmãosnossos perseverem, tão somente, nas especulações teológicas; encaremos,porém, os serviços <strong>do</strong> Senhor, como se faz indispensável.A Humanidade terrena, atualmente, é como um grande organismocoletivo, cujas células, que são as personalidades humanas, se envolvem nodesequilíbrio entre si, em processo g<strong>era</strong>l de reajustamento e redenção.Quantos coop<strong>era</strong>m conosco, vêem a extensão <strong>do</strong>s que se debate amente humana. Criminosos agarram-se a criminosos, <strong>do</strong>entes associam-se a<strong>do</strong>entes. Precisamos oferecer, no mun<strong>do</strong>, os Instrumentos adequa<strong>do</strong>s àsretificações espirituais, habilitan<strong>do</strong> nossos irmãos encarna<strong>do</strong>s a um maiorentendimento <strong>do</strong> Espírito <strong>do</strong> Cristo. Para consegui-lo, todavia, necessitamos decolabora<strong>do</strong>res fiéis, que não cogitem de condições, compensações ediscussões, mas que se interessem pela sublimidade <strong>do</strong> sacrifício e derenunciação com o Senhor.A essa altura, Telésforo interrompeu a lição em curso, e, fixan<strong>do</strong> o olharpercuciente na assembléia, tornou em voz mais alta:— Quem não deseje servir, procure outros gêneros de tarefa. AComunicação não comporta perda de tempo nem experimentação <strong>do</strong>entia, semgrave prejuízo <strong>do</strong>s coop<strong>era</strong><strong>do</strong>res incautos. Noutros Ministérios, a designaçãode trabalha<strong>do</strong>res define, com precisão, to<strong>do</strong>s os que colaboram com o DivinoMestre. Aqui, porém, acima de trabalha<strong>do</strong>res, precisamos de servi<strong>do</strong>res queatendam de boa vontade.Nesse instante, em vista <strong>do</strong>utra longa pausa, identifiquei a forteimpressão <strong>do</strong>s ouvintes, que se entreolhavam com inexprimível espanto.VI - Advertências profundasIrmãos nossos, — prosseguiu Telésforo, sob de sagrada inspiração —fazem-se ouvir gritos comove<strong>do</strong>res de sofrimento. Necessito de servi<strong>do</strong>res quedesejem integrar-se na evangélica da renúncia.


Desde as primeiras tantas <strong>do</strong> Espiritismo renova<strong>do</strong>r, “Nosso Lar” temenvia<strong>do</strong> diversas turmas ao trabalho de disseminação de valores educativos.Centenas de companheiros partem daqui anualmente, alian<strong>do</strong> necessidades deresgate ao serviço redentor; mas ainda não conseguimos os resulta<strong>do</strong>sdesejáveis. Alguns alcançaram resulta<strong>do</strong>s parciais nas tarefas a desenvolver,mas a maioria tem fracassa<strong>do</strong> rui<strong>do</strong>samente. Nossos institutos de socorrodebalde movimentam medidas de assistência indispensável. Raríssimosconquistam algum êxito nos delica<strong>do</strong>s misteres da mediunidade e da<strong>do</strong>utrinação.Outras colônias de nossa esf<strong>era</strong> providenciam tarefas da mesmanatureza, mas pouquíssimos são os que se lembram das realidades eternas,no “outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong> véu”... A ignorância <strong>do</strong>mina a maioria das consciênciasencarnadas. E a ignorância é mãe das misérias, das fraquezas, <strong>do</strong>s crimes.Grandes Instrutores, nos flui<strong>do</strong>s da carne, amedrontam-se por sua vez, diante<strong>do</strong>s atritos humanos, e se recolhem, indevidamente, na concepção que lhes éprópria. Esquecem-se de que Jesus não esperou que os homens lheatingissem as glórias magnificentes e que, ao invés, desceu até ao plano <strong>do</strong>shomens para amar, ensinar e servir. Não exigiu que as criaturas se fizessemimediatamente iguais a Ele, mas fêz-se como os homens, para ajudá-los navida ásp<strong>era</strong>.E, com profun<strong>do</strong> brilho no olhar, Telésforo acentuou, depois depequeno intervalo:— Se o Mestre Divino a<strong>do</strong>tou essa norma, que dizer das nossasobrigações de criaturas falidas?Abstrain<strong>do</strong>-nos das necessidades imensas de outros grupos,procuremos identificar as falhas existentes naqueles que nos são afins.Em derre<strong>do</strong>r de nós mesmos, os laços pessoais constituem extensocampo de atividade para o t<strong>este</strong>munho.Cesse, para nós outros, a concepção de que a Terra é o valetenebroso, destina<strong>do</strong> a quedas lamentáveis, e agasalhemos a certeza de que aesf<strong>era</strong> carnal é única grande oficina de trabalho redentor. Preparemo-nos paraa coop<strong>era</strong>ção eficiente e indispensável. Esqueçamos os erros <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> elembremo-nos de nossas obrigações fundamentais.A causa g<strong>era</strong>l <strong>do</strong>s desastres mediúnicos é a ausência da noção deresponsabilidade e da recordação <strong>do</strong> dever a cumprir.Quantos de vós fostes abona<strong>do</strong>s, aqui, por generosos benfeitores quebuscaram auxiliar-vos, con<strong>do</strong>í<strong>do</strong>s de vosso pretérito cruel? Quantos de vóspartistes, entusiastas, formulan<strong>do</strong> enormes promessas? Entretanto, nãosoub<strong>este</strong>s recapitular dignamente, para aprender a servir, conforme osdesígnios superiores <strong>do</strong> Eterno. Quan<strong>do</strong> o Senhor vos enviava possibilidadesmateriais para o necessário, regressáveis à ambição desmedida; ante oacréscimo de misericórdia <strong>do</strong> labor intensifica<strong>do</strong>, agarrastes a idéia daexistência cômoda; junto às experiências afetivas, preferistes os desvios seriaisao la<strong>do</strong> da família, voltastes à tirania <strong>do</strong>méstica, e sob interesses da vidaeterna sobrepus<strong>este</strong>s as sugestões interiores da preguiça e da vaidade.D<strong>este</strong>s-vos, na maioria, a palavra sem responsabilidade e à indagação semdiscernimento, amontoan<strong>do</strong> atividades inúteis. Como médiuns, muitos de vóspreferíeis a inconsciência de vós mesmos; como <strong>do</strong>utrina<strong>do</strong>res, formuláveisconceitos para exportação, jamais para uso próprio.


Que resulta<strong>do</strong>s atingimos? Grandes massas batem às fontes <strong>do</strong>Espiritismo sagra<strong>do</strong>, tão só no propósito de lhe mancharem as águas. Não sãoprocura<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Reino de Deus os que lhe forçam, desse mo<strong>do</strong>, as portas, esim caça<strong>do</strong>res <strong>do</strong>s interesses pessoais. São os sequiosos da facilidade, osamigos <strong>do</strong> menor esforço, os preguiçosos e delinqüentes de todas assituações, que desejam ouvir os Espíritos desencarna<strong>do</strong>s, receosos daacusação que lhes dirige a própria consciência. O fel da dúvida invade obálsamo da fé, nos corações bem intenciona<strong>do</strong>s. A sede de proteção indevidaazorraga os segui<strong>do</strong>res da ociosidade. A ignorância e a maldade entregam-seas manifestações inferiores da magia negra.Tu<strong>do</strong> porque, meus irmãos? Porque não temos sabi<strong>do</strong> defender osagra<strong>do</strong> depósito, por termos esqueci<strong>do</strong>, em nossos labores carnais, queEspiritismo é revelação divina para a renovação fundamental <strong>do</strong>s homens. Nãoatendemos, ainda, como se faz indispensável, a construção <strong>do</strong> “Reino deDeus” em nós.Contu<strong>do</strong>, não aban<strong>do</strong>nemos nossos deveres a meio da tarefa.Voltemos ao campo, retifican<strong>do</strong> as semeaduras. O Ministério da Comunicaçãovem incentivan<strong>do</strong> esse movimento renova<strong>do</strong>r. Necessitamos de servi<strong>do</strong>res deboa vontade, leais ao espírito da fé. Não serão admiti<strong>do</strong>s os que nãodesejarem conhecer a glória oculta da cruz <strong>do</strong> t<strong>este</strong>munho, nem atendem aquios que se aproximem com objetivos diferentes..Aqui estamos to<strong>do</strong>s, companheiros da Comunicação, endivida<strong>do</strong>s como mun<strong>do</strong>, mas esp<strong>era</strong>nçosos de êxito em nossa tarefa permanente.Levantemos o olhar, o Senhor renova diariamente nossas benditasoportunidades de trabalho, mas, para atingirmos os resulta<strong>do</strong>s precisos, éimprescindível sejamos segui<strong>do</strong>res da renunciação ao inferior. Nenhum de nós,<strong>do</strong>s que aqui nos encontramos, está livre <strong>do</strong> ciclo de reencarnações na Crosta,portanto, somos sequiosos de Vida Eterna. Não olvidemos, desse mo<strong>do</strong>, oCalvário de Nosso Senhor, convictos de que toda saída <strong>do</strong>s planos mais baixosdeve ser uma subida para a esf<strong>era</strong> superior. E ninguém espere subir,espiritualmente, sem esforço, sem suor e sem lágrimas.Nesse momento, cessou a preleção de Telésforo, que abençoou aassembléia, mostran<strong>do</strong> o olhar infinitamente brilhante e aceitan<strong>do</strong>, em seguida,o braço de Aniceto, para afastar-se debaixo de profunda impressão, em facedas incisivas declarações <strong>do</strong> instrutor, observei que numerosos circunstanteschoravam em silêncio.Ao meu olhar interrogativo, Vicente explicou:— São servi<strong>do</strong>res fracassa<strong>do</strong>s.Nesse instante, Telésforo e o nosso orienta<strong>do</strong>r postaram-se junto denós.Duas senhoras, de grave fisionomia, aproximaram-se respeitosamentee uma delas dirigiu-se a Aniceto, n<strong>este</strong>s termos:— Desejávamos o obséquio de uma informação concernente à próximaoportunidade de serviço que será concedida a Otávio.— O Ministério prestará esclarecimentos — respondeu o interpela<strong>do</strong>atencioso.— Todavia — tornou a interlocutora —, ousaria reit<strong>era</strong>r-lhe o pedi<strong>do</strong>. Éque Marina, grande amiga nossa, casada na Terra há alguns meses, prometeumecoop<strong>era</strong>ção para auxiliá-lo, e seria muito de meu agra<strong>do</strong> localizar, agora, omeu pobre filho em novos braços maternais.


Aniceto esboçou um gesto de compreensão, sorriu e esclareceu, semafetação:— Convém não estabelecer o plano por enquanto, porque, antes detu<strong>do</strong>, precisamos conhecer a solução <strong>do</strong> processo de médiuns fracassa<strong>do</strong>s, emque está ele envolvi<strong>do</strong>. Somente depois, minha irmã.Volvi os olhos para o Vicente, sem ocultar a surpresa, mas, enquantoas senhoras se retiravam conformadas, Aniceto dirigia-nos a palavra:— Tenho serviços imediatos, em companhia de Telésforo. Deixo-os, ato<strong>do</strong>s, em estu<strong>do</strong>s e observação aqui no Centro de Mensageiros.Retirou-se Aniceto com os maiores, e um companheiro declaroualegremente:— Podemos conversar.— Nosso orienta<strong>do</strong>r — explicou-me Vicente, solicito — consid<strong>era</strong>trabalho útil toda conversação sadia que nos enriqueça os conhecimentos eaptidões para o serviço. Pelas nossas palestras construtivas, portanto,receberemos também a remun<strong>era</strong>ção devida à coop<strong>era</strong>ção normal.Curioso e surpreendi<strong>do</strong>, indaguei:— E se eu tentasse voltar aos assuntos ulteriores da Terra, esquecen<strong>do</strong>a conversação edificante?Vicente sorriu e retrucou:— O prejuízo seria seu, porque aqui a palavra define o Espírito, e, sevocê fugisse à luz da palestra instrutiva, nossos orienta<strong>do</strong>res conheceriam suaatitude imediatamente, porquanto sua presença se tornaria desagradável e seurosto se cobriria de sombra indefinível.VII - A queda de OtávioA ausência de Aniceto deu ensejo à palestras interessantes.Formaram-se grupos de conversação amiga.Impressiona<strong>do</strong> com as senhoras que haviam solicita<strong>do</strong> providênciaspara Otávio, pedi a Vicente me apresentasse a elas, não que me movessecuriosidade menos digna, mas desejo de alcançar novos valores educativossobre a tarefa mediúnica, que a palavra de Telésforo me fiz<strong>era</strong> sentir em tonsdiferentes.O amigo atendeu de boamente.Em breves momentos, não me achava tão só à frente das irmãs Isaurae Isabel, mas <strong>do</strong> próprio Otávio, um páli<strong>do</strong> senhor que aparentava quarentaanos.— Também sou principiante aqui — expliquei — e minha condição é a<strong>do</strong> médico fali<strong>do</strong> nos deveres que o Senhor lhe confiou.Otávio sorriu e respondeu:— Possivelmente, o meu amigo terá a seu favor o fato de haverignora<strong>do</strong> as verdades eternas, no mun<strong>do</strong>. O mesmo não ocorre comigo, ademais; não desconhecia o roteiro certo, que o Pai me designava para as lutasna Terra. Não possuía títulos oficializa<strong>do</strong>s de competência entretanto, dispunhade considerável cultura evangélica, coisa que, para a vida eterna, é de maiorimportância que a cultura intelectual, simplesmente consid<strong>era</strong>da. Tive amigosgenerosos <strong>do</strong> plano superior, que se faziam visíveis aos meus olhos, recebimensagens repletas de amor e sabe<strong>do</strong>ria e, no entanto, caí mesmo assim,obedecen<strong>do</strong> à imprudência e à vaidade.


As observações de Otávio impressionava-nos vivamente. Quan<strong>do</strong> nomun<strong>do</strong>, eu não tiv<strong>era</strong> contacto especial com as escolas espiritistas eexperimentava certa dificuldade para compreender tu<strong>do</strong> quanto ele desejavadizer.— Ignorava a extensão das responsabilidades mediúnicas — respondi.— As tarefas espirituais — tornou o interlocutor, algo acabrunha<strong>do</strong> —ocupam-se de interesses eternos e da grande enormidade de minha falta. Osmor<strong>do</strong>mos de bens da alma estão investi<strong>do</strong>s de responsabilidadespesadíssimas. Os estudiosos, os crentes, os simpatizantes no campo da fé,podem alegar ignorância e inibição; todavia, os sacer<strong>do</strong>tes não têm desculpa.É o mesmo que se verifica na tarefa mediúnica. Os aprendizes ou beneficiários,nos templos da Revelação nova, podem referir-se a determina<strong>do</strong>simpedimentos; mas o missionário é obriga<strong>do</strong> a caminhar com um patrimônio decertezas tais, que coisa alguma o exon<strong>era</strong> das culpas adquiridas.— Depois de contrair dívidas enormes na esf<strong>era</strong> carnal, noutro tempo,vim bater às portas de “Nosso Lar”, sen<strong>do</strong> atendi<strong>do</strong> por irmãos dedica<strong>do</strong>s, quese revelaram incansáveis para comigo. Preparei-me, então, durante trinta anosconsecutivos, para voltar a Terra em tarefa mediúnica, desejoso de saldarminhas contas e elevar-me alguma coisa. Não faltaram lições verdadeiramentesublimes, nem estímulos santos ao meu coração imperfeito. O Ministério daComunicação favoreceu-me com todas as facilidades e, sobretu<strong>do</strong>, seisentidades amigas movimentaram os maiores recursos em benefício <strong>do</strong> meuêxito. Técnicos <strong>do</strong> Auxílio acompanharam-me a Terra, nas vésp<strong>era</strong>s <strong>do</strong> meurenascimento, entregan<strong>do</strong>-me um corpo físico rigorosamente sadio. Segun<strong>do</strong> amagnanimidade <strong>do</strong>s meus benfeitores daqui, ser-me-ia concedi<strong>do</strong> certotrabalho de relevo, na esf<strong>era</strong> de consolação às criaturas. Permaneceria juntodas falanges de colabora<strong>do</strong>res encarrega<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Brasil, animan<strong>do</strong>-lhes osesforços e atenden<strong>do</strong> a irmãos outros, ignorantes, perturba<strong>do</strong>s ou infelizes. Omatrimônio não deveria entrar na linha de minhas cogitações, não que ocasamento possa colidir com o exercício da mediunidade, mas porque meucaso particular assim o exigia. Nada obstante, solteiro, deveria receber, aosvinte anos, os seis amigos que muito trabalharam por mim, em “Nosso Lar”, osquais chegariam ao meu círculo como órfãos. Meu débito para com essasentidades tornou-se muito grande e a providência não só constituiria agradávelresgate para mim, como também garantia de triunfo pelo serviço de assistênciaa elas, o que me preservaria o coração de leviandades e vacilações,porquanto, o ganha-pão laborioso me compeliria a não aceder a sugestõesinferiores nos <strong>do</strong>mínios <strong>do</strong> sexo e das ambições incontidas. Ficou tambémassenta<strong>do</strong> que minhas atividades novas começariam com muitos sacrifícios,para que o possível carinho de outrem não amolecesse a minha fibra derealização, e para que se não escravizasse, minha tarefa a situaçõescaprichosas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, distantes <strong>do</strong>s desígnios de Jesus, e, sobretu<strong>do</strong>, paraque fosse mantida a minha impessoalidade <strong>do</strong> serviço. Mais tarde, então, como correr <strong>do</strong>s anos de edificação, me enviariam de “Nosso Lar” socorrosmateriais, cada vez maiores, à medida que fosse t<strong>este</strong>munhan<strong>do</strong> renúncia demim mesmo, desprendimento das posses efêm<strong>era</strong>s, desinteresse pelaremun<strong>era</strong>ção <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s, de maneira a intensificar, progressivamente asemeadura de amor confiada às minhas mãos.


Tu<strong>do</strong> combina<strong>do</strong>, voltei, não só prometen<strong>do</strong> fidelidade aos meusinstrutores, como também hipotecan<strong>do</strong> a certeza <strong>do</strong> meu devotamento as seisentidades amigas, a quem muito devo até agora.Otávio, nesse momento, fez uma pausa mais longa, suspiroufundamente, e prosseguiu:— Mas, ai de mim, que olvidei to<strong>do</strong>s os compromissos! Os benfeitoresde “Nosso Lar” localizaram-me ao la<strong>do</strong> de verdadeira serva de Jesus. Minhamãe <strong>era</strong> espiritista cristã desde moça, não obstante as tendências morais demeu pai, que <strong>era</strong>, todavia um homem de bem. Aos treze anos fiquei órfão demãe e, aos quinze, vi<strong>era</strong>m para mim os primeiros chama<strong>do</strong>s da esf<strong>era</strong>Superior. Por essa ocasião, meu pai contraiu segundas núpcias, e, apesar dabondade e op<strong>era</strong>ção que a madrasta me oferecia, eu me colocava num planode falsa superioridade a respeito dela. Então, minha genitora endereçou <strong>do</strong>invisível, apelos sagra<strong>do</strong>s ao meu coração. Eu vivia revolta<strong>do</strong>, entre queixas elamentações descabíveis. Meus parentes conduziram-me a um grupo espíritade excelente orientação evangélica onde minhas faculdades poderiam serpostas a serviço <strong>do</strong>s necessita<strong>do</strong>s e sofre<strong>do</strong>res; entretanto, faltava-mequalidades de trabalha<strong>do</strong>r e companheiro fiel. Minha negação em matéria deconfiança nos orienta<strong>do</strong>res espirituais e acentua<strong>do</strong> pen<strong>do</strong>r para a crítica <strong>do</strong>satos alheios compeliam-me a desagradável estacionamento. Os beneméritosamigos <strong>do</strong> invisível estimulavam ao serviço, mas eu duvidava deles com aminha vaidade <strong>do</strong>ente. Como prosseguissem os apelos sagra<strong>do</strong>s, por miminterpreta<strong>do</strong>s como alucinações, procurei um médico que me aconselhouexperiências sexuais. Completara, então, dezenove anos e entreguei-medesenfreadamente ao abuso de faculdades sublimes. Desejava conciliar, aforça, o prazer delituoso e o dever espiritual, alhean<strong>do</strong>-me, cada vez mais, <strong>do</strong>sensinos evangélicos que os amigos da esf<strong>era</strong> superior nos ministravam. Tinhapouco mais de vinte anos, quan<strong>do</strong> meu pai foi arrebata<strong>do</strong> pela morte. Com atriste ocorrência, ficavam na orfandade seis crianças desfavorecidas, porquantominha madrasta, ao se consorciar com meu genitor, lhe troux<strong>era</strong> para a tutelatrês pequeninos. Em vão implorou-me socorro a pobre viúva. Nunca me digneiaceitar os encargos redentores que me estavam destina<strong>do</strong>s. Após <strong>do</strong>is anos desegunda viuvez, minha desventurada madrasta foi recolhida a um leprosário.Afastei-me, então, <strong>do</strong>s pequenos órfãos, toma<strong>do</strong> de horror. Aban<strong>do</strong>nei-osdefinitivamente, sem refletir que lançava meus cre<strong>do</strong>res generosos, de “NossoLar”, a destino incerto. Em seguida, dan<strong>do</strong> largas a ociosidade, com uma açãomenos digna e fui obriga<strong>do</strong> a casar-me pela violência. Mesmo assim, porém,persistiam os chama<strong>do</strong>s <strong>do</strong> invisível, revelan<strong>do</strong>-me a inesgotável misericórdia<strong>do</strong> Altíssimo. Contu<strong>do</strong>, à medida que olvidava meus deveres, toda tentativa derealização espiritual figurava-se-me mais difícil. E continuou a tragédia queinventei para meu próprio tormento. A esposa a que me ligara, tão somente porapetites inconfessáveis, <strong>era</strong> criatura muito inferior à minha condição espiritual eatraiu uma entidade monstruosa, em ligação com ela, para tomar o papel demeu filho. Releguei à rua seis carinhosas crianças, cuja convivênciaconcorreria decisivamente para minha segurança moral, mas a companheira eo filho, ao que me pareceu, incumbiram-se da vingança. Atormentaram-meambos, até ao fim da existência, quan<strong>do</strong> para aqui regressei. Mal ten<strong>do</strong>completa<strong>do</strong> quarenta anos, roí<strong>do</strong> pela sífilis, pelo álcool e pelos desgostos...sem nada haver feito para meu futuro eterno... Sem construir coisa alguma noterreno <strong>do</strong> bem...


Enxugou os olhos úmi<strong>do</strong>s e concluiu;— Como vê, realizei to<strong>do</strong>s os meus condenáveis desejos, menos osdesejos de Deus. Foi por isso que fali, agravan<strong>do</strong> antigos débitos.Nesse Instante, calou-se como se alguma coisa invisível lhe viesse agarganta.Abracei-o com simpatia fraternal, ansioso de proporcionar estímulo aocoração, mas Dona Isaura aproximou-se mais, acariciou-lhe a fronte e falou:— Não chores, filho! Jesus não nos falta com a bênção <strong>do</strong> tempo. Temcalma e coragem..Com carinho, meditei na Bondade Divina, que faz eco no amor de mãe,mesmo nas regiões de além morte.VIII - O desastre de AcelinoIa dirigir-me a Otávio novamente, quan<strong>do</strong> alguém se aproximou e falouao ex-médium, com voz forte:— Não chore, meu caro. Você não está desampara<strong>do</strong>. Além disso,pode contar com o devotamento materno. Vivo em piores condições, mas nãome faltam esp<strong>era</strong>nças. Sem dúvida, estamos em bancarrota espiritual; noentanto, é razoável aguardarmos, confiantes, um novo empréstimo deoportunidades <strong>do</strong> Tesouro Divino. Deus não está pobre.Voltei-me surpreendi<strong>do</strong> e não reconheci o recém-chega<strong>do</strong>.Dona Isaura fez o obséquio das apresentações.Estávamos diante de Acelino, que participa a mesma experiência.Notan<strong>do</strong>-o, triste, Otávio sorriu e advertiu:— Não sou um criminoso para o mun<strong>do</strong>, mas sou um fali<strong>do</strong> para Deus epara “Nosso Lar”.— Sejamos, porém, lógicos — revi<strong>do</strong>u Acelino, parecen<strong>do</strong> maisencoraja<strong>do</strong> — você perdeu a partida porque não jogou, e eu a perdi jogan<strong>do</strong>desastradamente. Tive onze anos de tormento nas zonas inferiores. Suasituação não reclamou esse drástico. Mesmo assim, confio na Providência.Nesse instante, interveio Vicente, acrescentan<strong>do</strong>:— Cada um de nós tem a experiência que lhe é própria. Nem to<strong>do</strong>sganham nas provas terrestres.E voltan<strong>do</strong>-se de mo<strong>do</strong> especial, para mim aduziu:— Quantos de nós, os médicos, perdemos lamentavelmente na luta?Depois de concordar, trazen<strong>do</strong> à baila o meu próprio caso, objetei:— Seria, porém, muitíssimo interessante conhecer a experiência deAcelino. Teria sofri<strong>do</strong> o mesmo acidente de Otávio? Creio de grandeaproveitamento penetrar essas lições. No mun<strong>do</strong>, não compreendia bem o quefossem tarefas espirituais, mas aqui a nossa visão se modifica. Há que cogitar<strong>do</strong> nosso futuro eterno.Acelino sorriu e obtemperou:— Minha história é muito diferente. A queda que experimenteiapresenta características diversas e, a meu ver, muito mais graves.E, atenden<strong>do</strong>-nos a expectativa, prosseguiu, narran<strong>do</strong>:— Também parti de “Nosso Lar”, no século fin<strong>do</strong>, após receber valiosopatrimônio instrutivo <strong>do</strong>s nossos assessores. Segui enriqueci<strong>do</strong> de bênçãos.Uma de nossas beneméritas Ministras da Comunicação presidiu, em pessoa,as medidas pertinentes a minha nova tarefa. Não faltaram providências paraque me felicitassem a saúde <strong>do</strong> corpo e o equilíbrio da mente. Após formular


grandes promessas aos nossos maiores, parti para uma das grandes cidadesbrasileiras, em serviço de nossa colônia. O casamento estava em meu roteirode realizações. Ruth, minha devotada companheira, incumbir-se-ia decolaborar comigo para melhor desempenho das tarefas.Cumprida a primeira parte <strong>do</strong> programa, aos vinte anos de idade fuichama<strong>do</strong> à tarefa mediúnica, receben<strong>do</strong> enorme amparo <strong>do</strong>s benfeitoresinvisíveis. Recor<strong>do</strong> ainda a sinc<strong>era</strong> satisfação <strong>do</strong>s companheiros <strong>do</strong> grupo<strong>do</strong>utrina<strong>do</strong>r. A vidência, a audição e a psicografia que o Senhor me conced<strong>era</strong>,por misericórdia seriam decisivos fatores de êxito em nossas atividades. Aalegria de to<strong>do</strong>s <strong>era</strong> inexcedível. Entretanto apesar das lições maravilhosas deamor evangélico Inclinei-me a transformar minhas faculdades em fonte derenda material. Não me dispus a esp<strong>era</strong>r pelos abundantes recursos que oSenhor me enviaria mais tarde, após meus t<strong>este</strong>s no trabalho, e provoquei, eumesmo, a solução <strong>do</strong>s problemas lucrativos. Não <strong>era</strong> meu serviço igual aoutros? Não recebiam os sacer<strong>do</strong>tes católicos romanos a remun<strong>era</strong>ção detrabalho espiritual e religiosos? Se to<strong>do</strong>s pagávamos por serviços ao corpo,que razões haveria para fugir ao pagamento por serviços à alma? Amigos,inscientes <strong>do</strong> caráter sagra<strong>do</strong>, da fé, aprovava as conclusões egoístas.Admitíamos que, no fun<strong>do</strong>, o trabalho essencial <strong>era</strong> <strong>do</strong>s desencarna<strong>do</strong>s, mastambém havia colaboração minha, pessoal, como pelo que devia ser justa aretribuição.Debalde, movimentaram-se os amigos espirituais aconselhan<strong>do</strong>-me omelhor caminho. Em vão, companheiros encarna<strong>do</strong>s chamavam-me aesclarecimento oportuno. Agarrei ao interesse inferior e fixei meu ponto devista. Ficaria definitivamente por conta <strong>do</strong>s consulentes. Arbitrei o preço dasconsultas com bonificações especiais aos pobres e desvali<strong>do</strong>s da sorte, e meuconsultório encheu-se de gente. Interesse enorme foi desperta<strong>do</strong> entre os quedesejavam melhoras físicas e solução de negócios materiais. Grande númerode famílias abastadas tomou-me por conselheiro habitual, para to<strong>do</strong>s osproblemas da vida. As lições de espiritualidade Superior, a confraternizaçãoamiga, o serviço redentor <strong>do</strong> Evangelho e as preleções <strong>do</strong>s hemisférios divinosficaram a distância. Não mais a escola da virtude, <strong>do</strong> amor fraternal, daedificação superior e sim a consulta comercial, as ligações humanas legais oucriminosas, os caprichos apaixona<strong>do</strong>s, os casos de polícia e to<strong>do</strong> um cortejo demisérias da humanidade, em suas experiências menos dignas. Transformarasecompletamente a paisagem espiritual que me rodeava. À força de me cercarde pessoas criminosas, por questões de ganho sistemático, as baixascorrentes mentais <strong>do</strong>s inquietos clientes encarc<strong>era</strong>ram-me em sombria cadeiapsíquica. Cheguei ao crime de zombar <strong>do</strong> Evangelho de Nosso Senhor Jesus,esqueci<strong>do</strong> de que os negócios delituosos <strong>do</strong>s homens de consciência viciadacontam igualmente com entidades perniciosas, que se interessam por eles nosplanos invisíveis. E transformei a mediunidade em fonte de palpites materiais ebaixos avisos.Nesse momento, os olhos <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r cobriram-se de súbitavermelhidão, estampan<strong>do</strong>-se-lhe fun<strong>do</strong> horror nas pupilas, como se estivessereviven<strong>do</strong> atrozes dilac<strong>era</strong>ções.— Mas a morte chegou, meus amigos, e arrancou-me a fantasia —prosseguiu mais grave. Desde o instante da grande transição, a ronda escura<strong>do</strong>s consulentes criminosos, que me haviam precedi<strong>do</strong> no túmulo, rodeou-me areclamar palpites e orientações de natureza inferior. Queriam notícias de


cúmplices encarna<strong>do</strong>s, de resulta<strong>do</strong>s comerciais, de soluções atinentes aligações clandestinas.Gritei, chorei, implorei, mas estava algema<strong>do</strong> a eles por sinistros elosmentais, em virtude da imprevidência na defesa <strong>do</strong> meu próprio patrimônioespiritual. Durante onze anos consecutivos, expiei a falta, entre eles, entre oremorso e amargura.Acelino calou-se, parecen<strong>do</strong> mais comovi<strong>do</strong>, em vista das lágrimasabundantes. Fundamente sensibiliza<strong>do</strong>, Vicente considerou:— Que é isso? Não se atormente assim. Você não cometeuassassínios, nem alimentou a intenção delib<strong>era</strong>da de espalhar o mal. A meuver, você enganou-se também, como tantos de nós.Acelino, porém, enxugou o pranto e respondeu:— Não fui homicida nem ladrão vulgar, não mantive o propósito íntimode ferir ninguém, nem desrespeitei alheio lares, mas, in<strong>do</strong> aos círculos carnaispara servir às criaturas de Deus, nossos irmãos, auxilian<strong>do</strong> no crescimentoespiritual com Jesus, apenas fiz vicia<strong>do</strong>s da crença religiosa e delinqüentesocultos, mutila<strong>do</strong>s da fé e aleija<strong>do</strong>s <strong>do</strong> pensamento. Não tenho desculpas,porque estava esclareci<strong>do</strong>, não tenho perdão, porque não me faltou assistênciadivina.E, depois de longa pausa, concluiu gravemente:— Podem avaliar a extensão da minha culpa?IX - Ouvin<strong>do</strong> impressõesDeixan<strong>do</strong> Acelino em conversa mais íntima com Otávio, fui leva<strong>do</strong> porVicente a outro ângulo da sala.Muitos grupos se mantinham em palestra interessante e educativa,observan<strong>do</strong> eu que quase to<strong>do</strong>s comentavam as derrotas sofridas na Terra.— Fiz quanto pude — exclamava uma velhinha simpática para duascompanheiras que a escutavam atentamente —; no entanto, os laços de famíliasão muito fortes. Algo se fazia ouvir sempre, com voz muito alta, em meuespírito, compelin<strong>do</strong>-me ao desempenho da tarefa; mas... e o mari<strong>do</strong>? Nuncase conformou. Se os enfermos me procuravam no receituário comum,agravava-se-lhe a neurastenia; se os companheiros de <strong>do</strong>utrina meconvidavam aos estu<strong>do</strong>s evangélico, revoltava-se, ciumento. Que pensamvocês? Chegava a mobilizar minhas filhas contra mim. Como seria possível,em tais circunstâncias, atender a obrigações mediúnicas?— Todavia — ponderou uma das senhoras que parecia mais segura desi — sempre temos recursos e pretextos para fugir as culpas. Encaremosnossos problemas com realismo. Há de convir que, com o socorro da boavontade, sempre lhe ficariam alguns minutos na semana e algumas pequenasoportunidades para fazer o bem. Talvez pudesse conquistar o entendimento <strong>do</strong>esposo e a colaboração afetuosa das filhas, se trabalhasse em silêncio,mostran<strong>do</strong> sinc<strong>era</strong> disposição para o sacrifício. Nossos atos, Mariana, sãomuito mais contagiosos que as nossas palavras.— Sim — respondeu a interlocutora, emitin<strong>do</strong> voz diferente —,concor<strong>do</strong> com a observação. Em verdade, nunca pude sofrer a incompreensão<strong>do</strong>s meus, sem reclamar.— Para trabalharmos com eficiência — tornou a companheira, sensata—, é preciso saber calar, antes de tu<strong>do</strong>. Teríamos atendi<strong>do</strong> perfeitamente aosnossos deveres, se tivéssemos usa<strong>do</strong> todas as receitas de obediência e


otimismo que fornecemos aos outros. Aconselhar é sempre útil, masaconselhar excessivamente pode traduzir esquecimentos de nossasobrigações. Assim digo, porque meu caso, ao dizer, é muito semelhante aoseu. Fomos ao círculo carnal para construir com Jesus, mas caímos na tolicede acreditar que andávamos pela Terra para discutir nossos caprichos. Nãoexecutei minha tarefa mediúnica, em virtude da irritação que me <strong>do</strong>minou, dadaa indiferença <strong>do</strong>s meus familiares pelos serviços espirituais. Nossos instrutores,aqui, muito me recomendaram, antes, que para bem ensinar é necessárioexemplificar melhor. Entretanto, por minha desventura, tu<strong>do</strong> esqueci notrabalho temporário da Terra. Se meu mari<strong>do</strong> fazia pond<strong>era</strong>ções, eu criavarefutações. Não suportava qualquer parecer contrário ao meu ponto de vista,em matéria de crença, incapaz de perceber a vaidade e a tolice <strong>do</strong>s meusgestos. Das irreflexões nasceu minha perda última, na qual agravei, de muito,as responsabilidades. Quase mensalmente, Joaquim e eu nos empenhávamosem discussões e então trocávamos apenas os insultos contundentes, mastambém os flui<strong>do</strong>s venenosos, segrega<strong>do</strong>s por nossa mente rebelde eenfermiça. Entre os conflitos e suas conseqüências, passei o tempo inutilizadapara qualquer trabalho de elevação espiritual.Nesse instante, chamou-me Vicente para apresentar um amigo.Ao nosso la<strong>do</strong>, outro grupo de senhoras conversava animadamente:— Afinal, Ernestina — indagava uma delas mais jovem — qual foi acausa <strong>do</strong> seu desastre?— Apenas o me<strong>do</strong>, minha amiga — explicou-se a interpelada —, tiveme<strong>do</strong> de tu<strong>do</strong> e de to<strong>do</strong>s. Foi o meu grande mal.Mas, como tu<strong>do</strong> isto impressiona! Você foi muitíssimo preparada.Recor<strong>do</strong>-me ainda das nossas lições em conjunto. As instrutoras <strong>do</strong>Esclarecimento confiavam extraordinariamente no seu concurso. Seuaproveitamento <strong>era</strong> um padrão para nós outras.— Sim, minha querida Lesta, suas reminiscências fazem-me sentir, commais clareza, a extensão da minha bancarrota pessoal. Entretanto, não devofugir à realidade. Fui a culpada de tu<strong>do</strong>. Preparei-me o bastante para resgatarantigos débitos e efetuar edificações novas; contu<strong>do</strong>, não vigiei como seimpunha. O chamamento ao serviço ressoou no tempo próprio, orientan<strong>do</strong>-meo raciocínio a melhores esclarecimentos; nossos instrutores meproporcionavam os mais santos incentivos, mas desconfiei <strong>do</strong>s homens, <strong>do</strong>sdesencarna<strong>do</strong>s e até de mim mesma. Nos estudiosos <strong>do</strong> plano físico,enxergava pessoas de má fé; nos irmãos invisíveis presumia encontrar apenasgalhofeiros fantasia<strong>do</strong>s de orienta<strong>do</strong>res, e, em mim mesma, receava astendências nocivas. Muitos amigos tinham conta de virtuosa, pelo rigorismo dasminhas exigências; todavia, no fun<strong>do</strong>, eu não passava de enferma voluntária,carregada de aflições inúteis.— Foi uma grande infantilidade da sua parte — retrucou a outra —,você olvi<strong>do</strong>u que, na esf<strong>era</strong> carnal, o maior interesse da alma é a realização dealgo útil para o bem de to<strong>do</strong>s, com vistas ao Infinito e à Eternidade. Nessemister, é indispensável contar com o assédio de to<strong>do</strong>s os elementos contrários.Ironias da ignorância, ataques da insensatez, sugestões inferiores da nossaprópria animalidade surgirão, com certeza, no caminho de to<strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>r fiel.São circunstâncias lógicas e fatais <strong>do</strong> serviço, porque não vamos ao mun<strong>do</strong>psíquico para descanso injustificável, mas para lutar pela nossa melhoria, adespeito de to<strong>do</strong> impedimento fortuito.


— Compreen<strong>do</strong>, agora — disse a outra —; todavia, o receio dasmistificações prejudicou minha bela oportunidade.— Minha amiga — tornou a interlocutora — é tarde para lamentar.Tanto tememos as mistificações, que acabamos por mistificar os serviços <strong>do</strong>Cristo.Eu ouvia a palestra, com interesse crescente, mas o companheirolevou-me adiante para novas apresentações.Atendia a esses agradáveis deveres da sociedade de “Nosso Lar”, mas,para não perder ensejo de instruir-me, continuava atento às conversações emtorno. Alguns cavalheiros mantinham discreta permuta de pareceres.— Reconheço que fali — dizia um deles em tom grave — e muito jáexpiei nas regiões inferiores, mas aguar<strong>do</strong> novos recursos da Providência.— Faltou-lhe, porém, bastante orientação para o caminho? —perguntava um companheiro.— Explico-me — esclareceu o primeiro —, faltou-me o amparo daesposa. Enquanto a tive a meu la<strong>do</strong>, verificava-se profun<strong>do</strong> equilíbrio emminhas forças psíquicas. A companhia dela, sem que eu pudesse explicar,compensava-me to<strong>do</strong> gasto de energia mediúnica. Minha noção de balançoestava nas mãos de minha querida Adélia. Esqueci-me, porém, de que o bomservo deve estar prepara<strong>do</strong> para o serviço <strong>do</strong> Senhor, em qualquercircunstância.Não aprendi a ciência da conformação e nem me resignei a percorrersozinho as estradas humanas. Quan<strong>do</strong> me senti sem a dedicada companheira,arrebatada pela morte, amedrontei-me, por sentir-me em desequilíbrio e,erradamente, procurei substituí-la, e fui acidenta<strong>do</strong>. Extremamente ligada aentidades malfazejas, minha segunda mulher, com os seus desvarios, arrastoumea perversões sexuais de que nunca me supus<strong>era</strong> capaz. Voltei, insensívelao convívio de criaturas perversas e, ten<strong>do</strong> começa<strong>do</strong> bem, acabei mal. Meusdesastres foram enormes; entretanto, embora reconheça minha deficiência,enten<strong>do</strong>, ainda hoje, que o triunfo, mesmo no futuro, ser-me-á muito difícil sema companheira bem-amada.Tornara-se a palestra sumamente interessante. Desejava acompanharlheo curso, mas Vicente chamou-me a atenção para outro assunto e <strong>era</strong>necessário acompanhá-lo.X - A experiência de JoelAfastan<strong>do</strong>-nos para um canto <strong>do</strong> salão, acompanhei Vicente que sedirigiu a um velhote de fisionomia simpática.— Então, meu caro Joel, como vai? — perguntou, atencioso.O interpela<strong>do</strong> teve uma expressão melancólica e informou:— Graças à Bondade Divina, sinto-me bastante melhora<strong>do</strong>. Tenho i<strong>do</strong>diariamente as aplicações magnéticas <strong>do</strong>s Gabinetes de Socorro, no Auxílio, eestou mais forte.— Ced<strong>era</strong>m as vertigens? — indagou o companheiro, com interesse.— Agora são mais espaçadas e, quan<strong>do</strong> surgem, não me afligem ocoração com tanta intensidade.Nesse instante, Vicente descansou os olhos muito lúci<strong>do</strong>s nos meus, edisse, sorrin<strong>do</strong>:— Joel também an<strong>do</strong>u nos círculos carnais em tarefa mediúnica e podecontar experiência muito interessante.


O novo amigo, que me parecia um enfermo em princípios deconvalescença, esboçou melancólico sorriso e falou:— Fiz minha tentativa na Terra, mas fracassei. A luta não <strong>era</strong> pequenae fui fraco demais.— O que mais me impressionou no caso dele, porém — interpôsVicente em tom fraterno — é a moléstia que o acompanha até aqui e persisteainda agora. Joel atravessou as regiões inferiores com dificuldades extremas,após demorar porém muito tempo, voltan<strong>do</strong> ao Ministério <strong>do</strong> auxílio persegui<strong>do</strong>de alucinações estranhas, relativamente ao pretérito.— Ao passa<strong>do</strong>? — perguntei, surpreendi<strong>do</strong>— Sim — esclareceu humilde —, minha tarefa mediúnica exigiasensibilidade mais apurada e, quan<strong>do</strong> me comprometi executar o serviço, fui aoMinistério <strong>do</strong> Esclarecimento onde me aplicaram tratamento especial que meaguçou as percepções. Necessitava condições sutis para o desempenho <strong>do</strong>sfuturos deveres. Assistentes amigos des<strong>do</strong>braram-se em obséquios, por mefavorecerem e parti para a Terra com to<strong>do</strong>s os requisitos indispensáveis aoêxito de minhas benevolências, porém...— Mas por que — indaguei — perdeu as realizações? Tão só emvirtude da sensibilidade adquirida?Joel sorriu e obtemperou:— Não perdi pela sensibilidade, mas pelo seu mau uso.— Que diz? — tornei, admira<strong>do</strong>.— O meu amigo compreendeu sem dificuldades. Imagine, com umcabedal dessa natureza, ao invés de auxiliar os outros, perdi-me a mimmesmo. É que, segun<strong>do</strong> concluo agora, Deus concede a sensibilidade apuradacomo espécie de lente poderosa, que o proprietário deve usar para definirroteiros, fixar perigos e vantagens <strong>do</strong> caminho, localizar obstáculos comumajudan<strong>do</strong> ao próximo e a si mesmo. Procedi, porém ao inverso. Não utilizei alente maravilhosa de um mo<strong>do</strong> muito justo. Deixei-me empolgar pelacuriosidade <strong>do</strong>entia, apliquei-a tão somente para dilatar minhas sensações. Noquadro <strong>do</strong>s meus trabalhos mediúnicos, estava a recordação de existênciaspregressas como expressão indispensável ao serviço de esclarecimentocoletivo e benefício aos semelhantes, que me fora concedi<strong>do</strong> realizar, masexiste uma ciência de recordar, que não respeitei como devia interrompen<strong>do</strong>um instante a narrativa, aguçava-me o desejo de conhecer-lhe a experiênciapessoal até ao fim. Em seguida, continuou no mesmo diapasão.— Ao primeiro chama<strong>do</strong> da esf<strong>era</strong> superior, acorri, apressa<strong>do</strong>. Sentia,intuitivamente, a vívida lembrança de minhas promessas em “Nosso Lar”. Tinhao coração repleto de propósitos sagra<strong>do</strong>s. Trabalharia muito longe a vibraçãodas verdades eternas. Contu<strong>do</strong>, aos primeiros contatos com o serviço, aexcitação química fez rodar o mecanismo de minhas recordações a<strong>do</strong>rmecidas,como o disco sob a agulha da vitrola, e lembrei toda a minha penúltimaexistência, quan<strong>do</strong> envergara a batina, sob o nome de Monsenhor AlexandrePizarro, nos últimos perío<strong>do</strong>s da Inquisição Espanhola. Foi, então, que abuseida lente sagrada a que me referi. A volúpia das grandes sensações, que podeser tão prejudicial como o uso <strong>do</strong> álcool que embriaga os senti<strong>do</strong>s, fêz-meolvidar os deveres mais santos. Bafejaram-me claridades espirituais de elevadaexpressão. Desenvolveu-se-me a clarividência, mas não estava satisfeitosenão por rever meus companheiros visíveis e invisíveis, no setor das velhaslutas religiosas. Impunha a mim mesmo a obrigação de cada um deles no


tempo, fazen<strong>do</strong> questão de as fichas biográficas, sem cuidar <strong>do</strong> verdadeiroaproveitamento no campo <strong>do</strong> trabalho construtivo. A audição psíquica tornouse-memuito clara; entretanto, não queria ouvir os benfeitores espirituais sobretarefas proveitosas e sim interpelá-los, ousadamente no capítulo da minhasatisfação egoística. Despendi um tempo enorme, dentro <strong>do</strong> qual fugia aoscompanheiros que me vinham pedir atividades a bem <strong>do</strong> próximo, engolfa<strong>do</strong>em pesquisas referentes à Espanha <strong>do</strong> meu tempo. Exigia notícias de bispos,de autoridades políticas da época, de padres amigos que haviam erra<strong>do</strong> tantoquanto eu mesmo.Não faltaram generosas advertências. Freqüentemente, os colegas <strong>do</strong>nosso grupo espiritista chamavam-me a atenção para os problemas sérios denossa casa. Eram sofre<strong>do</strong>res que nos batiam à porta, situações quereclamavam t<strong>este</strong>munho cristão. Tínhamos um abrigo de órfãos em projeto, umambulatório que começava a nascer e, sobre tu<strong>do</strong>, serviços semanais deinstrução evangélica, nas noites de terças e sextas-feiras. Mas, qual! eu nãoqueria saber senão das minhas descobertas pessoais. Esqueci que o Senhorme permitia aquelas reminiscências, não por satisfazer-me a vaidade, maspara que entendesse a extensão <strong>do</strong>s meus débitos para com os necessita<strong>do</strong>s<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e me entregasse a obra de esclarecimento e conforto aos feri<strong>do</strong>s dasorte. Contrariamente a expectativa <strong>do</strong>s abnega<strong>do</strong>s amigos que me auxiliaramna obtenção da oportunidade sublime, não me movi no concurso fraterno edesinteressei-me da <strong>do</strong>utrina consola<strong>do</strong>ra, que hoje revive o Evangelho deJesus entre os homens. Somente procurei, a rigor, os que se encontravamafins comigo, desde o pretérito. Nesse propósito, descobri, com evidentessinais de identidade, personalidades outrora eminentes, em relação comigo.Reconheci o senhor Higino de Salce<strong>do</strong>, grande proprietário de terras, que mehavia si<strong>do</strong> magnânimo protetor, p<strong>era</strong>nte as autoridades religiosas da Espanha,reencarna<strong>do</strong> como proletário inteligente e honesto, mas em grande experiênciade sacrifício individual. Revi o velho Gaspar de Lorenzo, figura solerte deinquisi<strong>do</strong>r cruel, que me quis<strong>era</strong> muito bem, reencarna<strong>do</strong> como paralítico ecego de nascença. E desse mo<strong>do</strong>, meu amigo, passei a existência, de surpresaem surpresa, de sensação em sensação. Eu, que renasc<strong>era</strong> para edificaralguma coisa de útil, transpor a lembrança em viciação da personalidade, perdia oportunidade bendita de redenção, e o esta<strong>do</strong> de alucinação em que vivo.Com o meu erro, a mente desequilibrada e as perturbações psíquicasconstituem <strong>do</strong>loroso martírio. Estou sen<strong>do</strong> submeti<strong>do</strong> a tratamento magnéticode longo tempo.Nesse momento, porém, o interlocutor empalideceu de súbito. Os olhos,desmesuradamente abertos, vagavam como se fixassem quadrosimpressionantes, muito longe da nossa perspectiva. Depois cambaleou, masVicente o amparou de pronto, e, passan<strong>do</strong> a destra na fronte, murmurava emvoz firme:— Joel! Joel! Não se entregue às impressões <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>! Volte aoPresente de Deus!...Profundamente admira<strong>do</strong> notei que o convalescente regressava aexpressão normal, esfregan<strong>do</strong> os olhos.XI – Belarmino, o Doutrina<strong>do</strong>rAs lições <strong>era</strong>m eminentemente proveitosas. Traziam-me novosconhecimentos e, sobretu<strong>do</strong>, com elas, admirava cada vez mais, a bondade de


Deus, que nos permitia a to<strong>do</strong>s a restauração <strong>do</strong> aprendiza<strong>do</strong> para serviços <strong>do</strong>futuro. Em muitos de nós havia zonas purgatórias de sombra e tormento íntimo.Uns mais, outros menos. Bastara, contu<strong>do</strong>, o reconhecimento de nossapequenez, a compreensão <strong>do</strong> nosso imenso débito e ali estávamos, to<strong>do</strong>reuni<strong>do</strong>s em “Nosso Lar”, reaniman<strong>do</strong> energias desfalecidas e reconstituin<strong>do</strong>programas de trabalho. Eu via em to<strong>do</strong>s os companheiros presentes oreflorescimento da esp<strong>era</strong>nça. Ninguém se sentia ao desamparo. Observan<strong>do</strong>que numerosos médiuns prosseguiam, em valiosa permuta de idéias,referentemente ao quadro de suas realizações, e ouvin<strong>do</strong> tantas observaçõessobre <strong>do</strong>utrina<strong>do</strong>res perguntei a Vicente, em tom discreto:— Não seria possível, para minha edificação, consultar a experiência dealgum <strong>do</strong>utrina<strong>do</strong>r em trânsito por aqui? Recolhen<strong>do</strong> notícias de tantosmédiuns com enorme proveito, creio não deva perder esta oportunidade.Vicente refletiu um minuto e respondeu:— Procuremos Belarmino Ferreira. É meu amigo há alguns meses.Segui o companheiro, através de grupos diversos. Belarmino lá estavaa um canto, em palestra com um amigo. Fisionomia grave, gestos lentos,deixava transparecer grande tristeza no olhar humilde.Vicente apresentou-me, afetuoso, dan<strong>do</strong> início à conversaçãoedificante. Após a troca de alguns conceitos, Belarmino falou, comovi<strong>do</strong>:— Com que, então, meu amigo deseja conhecer as amarguras de um<strong>do</strong>utrina<strong>do</strong>r fali<strong>do</strong>?— Não digo isso — obtemperei a sorrir —, desejaria conhecer suaexperiência, ganhar também de sua palavra educativa.Ferreira esboçou sorriso força<strong>do</strong>, que expressava to<strong>do</strong> o absinto queainda lhe requeimava a alma, e falou:— A missão <strong>do</strong> <strong>do</strong>utrina<strong>do</strong>r é muitíssimo grave para qualquer homem.Não é sem razão que se atribui a Nosso Senhor Jesus o título de Mestre.Somente aqui, vim pond<strong>era</strong>r bastante esta profunda verdade. Mediteimuitíssimo, refleti intensamente e concluí que, para atingirmos umaressurreição gloriosa, não há, por enquanto, outro caminho além daquelepalmilha<strong>do</strong> pelo Doutrina<strong>do</strong>r Divino. É digna de menção a atitude dele,absten<strong>do</strong>-se de qualquer escravização aos bens terrestres. Não vemos passaro Senhor, em to<strong>do</strong> o Evangelho, se não fazen<strong>do</strong> o bem, ensinan<strong>do</strong> o amor,acenden<strong>do</strong> a luz, disseminan<strong>do</strong> a verdade. Nunca pensou nisso? Depois delongas meditações, cheguei ao conhecimento de que na vida humana, juntoaos que administram e aos que obedecem, há os que ensinam. Chego, pois, apensar que nas esf<strong>era</strong>s da Crosta há mor<strong>do</strong>mos, coop<strong>era</strong><strong>do</strong>res e servos. Muitoespecialmente, os que ensinam devem ser <strong>do</strong>s últimos. Entende o meu irmão?Ah! sim, havia compreendi<strong>do</strong> perfeitamente. A conceituação deBelarmino <strong>era</strong> profunda, irrefutável. Aliás, nunca ouvira tão belas apreciações,relativamente à missão educativa.Após ligeiro intervalo, continuou sempre grave:— Há de estranhar, certamente, tenha eu fracassa<strong>do</strong> saben<strong>do</strong> tanto.Minha tragédia angustiosa, porém, é a de to<strong>do</strong>s os que conhecem o bem,esquecen<strong>do</strong>-lhe a prática.Calou-se de novo, pensou, pensou, e prosseguiu:— Faz muitos anos, saí de “Nosso Lar” com tarefa de <strong>do</strong>utrinação nocampo <strong>do</strong> Espiritismo evangélico. Minhas promessas aqui, foram enormes.Minha abnegada Elisa dispôs-se a acompanhar-me no serviço laborioso. Ser-


me-ia companheira desvelada, abençoada amiga de sempre. Minha tarefaconstaria de trabalho assíduo no Evangelho <strong>do</strong> Senhor, de mo<strong>do</strong> a <strong>do</strong>utrinarprimeiramente com o exemplo, e, em seguida com a palavra.Duas colônias importantes que nos convizinham, enviaram muitosservos para a mediunidade e pediram ao nosso Governa<strong>do</strong>r coop<strong>era</strong>sse com aremessa de missionários competentes para o ensino e a orientação.Não obstante meu passa<strong>do</strong> culposo, candidatei-me ao serviço comen<strong>do</strong>sso <strong>do</strong> Ministro Gedeão, que não vacilou em auxiliar-me. Deveriadesempenhar atividades concernentes meu resgate pessoal e atender à tarefahonrosa, veiculan<strong>do</strong> luzes a irmãos nossos nos plano visível e invisível.Impunha-se-me sobretu<strong>do</strong>, o dever de amparar as organizações mediúnicas,estimulan<strong>do</strong> companheiros de luta, postos na Terra a serviço da idéiaimortalista. Entretanto meu amigo, não consegui escapar à rede envolvente dastentações. Desde criança, meus pais socorr<strong>era</strong>m-me com a fé e noçõesconsola<strong>do</strong>ras e edificantes <strong>do</strong> Espiritismo cristão. Circunstâncias várias, queme parec<strong>era</strong>m casuais, situaram-me o esforço na presidência de um grandegrupo espiritista. Os serviços <strong>era</strong>m promissores, as atividades nobres econstrutivas, mas enchi-me de exigências, leva<strong>do</strong> pelo excessivo apego àposição de coman<strong>do</strong> <strong>do</strong> barco <strong>do</strong>utrinário. Oito médiuns, extremamentededica<strong>do</strong>s ao esforço evangélico, ofereciam-me colaboração ativa; contu<strong>do</strong>,procurei colocar acima de tu<strong>do</strong> o preceito científico das provas insofismáveis.Cerrei os olhos à lei <strong>do</strong> merecimento individual, olvidei os imp<strong>era</strong>tivos <strong>do</strong>esforço próprio e, envaideci<strong>do</strong> com os meus conhecimentos <strong>do</strong> assunto,comecei por atrair amigos de mentalidade inferior ao nosso círculo, tãosomente em virtude da falsa posição que usufruíam na cultura filosófica e napesquisa científica. Insensivelmente, vicejaram-me na personalidade estranhospropósitos egoísticos. Meus novos amigos queriam demonstrações de toda asorte e, ansioso por colher colabora<strong>do</strong>res na esf<strong>era</strong> da autoridade científica, euexigia <strong>do</strong>s pobres médiuns longas e porfiadas perquirições nos planosinvisíveis. O resulta<strong>do</strong> <strong>era</strong> sempre negativo, porque cada homem receberá,agora e no futuro, de acor<strong>do</strong> com as próprias obras. Isso me irritava. Instalousea dúvida em meu coração, devagarzinho. Perdi a serenidade <strong>do</strong>utro tempo.Comecei a ver nos médiuns, que se retraíam aos meus caprichos,companheiros de má vontade e má fé. Prosseguiam nossas reuniões, mas dadúvida passei à descrença destrui<strong>do</strong>ra.Não estávamos num grupo de intercâmbio entre o visível e o invisível?Não <strong>era</strong>m os médiuns simples aparelhos <strong>do</strong>s defuntos comunicantes? Por quenão viriam aqueles que pudessem atender aos nossos interesses materiais,imediatos? Não seria melhor estabelecer um processo mecânico e rápi<strong>do</strong> paraas comunicações? Porque a negação <strong>do</strong> invisível aos meus propósitos dedemonstrar positivamente o valor da nova <strong>do</strong>utrina?Debalde, Elisa me chamava para a esf<strong>era</strong> religiosa e edificante, ondepoderia aliviar o espírito atormenta<strong>do</strong>.O Evangelho, todavia, é <strong>livro</strong> divino e, enquanto permanecemos nacegueira da vaidade e da ignorância, não nos expõe seus tesouros sagra<strong>do</strong>s.Por isso mesmo, tachava-o de velharia. E, de desastre a desastre, antes queme firmasse na tarefa de ensinar, os amigos brilhantes <strong>do</strong> campo decogitações inferiores da Terra arrastavam-me ao negativismo completo. Donosso agrupamento então, onde poderia edificar construções eternas, transferimepara o movimento, não da política que eleva, mas da politicalha inferior,


que impede o progresso comum e estabelece a confusão nos encarna<strong>do</strong>s. Porisso estacionei muito tempo desvia<strong>do</strong> <strong>do</strong>s meus objetivos fundamentais porquea escravidão ao dinheiro me transformou os sentimentos.E assim foi, até que acabei meus dias com uma bela situação financeirano mun<strong>do</strong> e... um corpo criva<strong>do</strong> de enfermidades; um palácio confortável depedra e um deserto no coração. A revivescência da minha inferioridade antigareligou-me a companheiros menos dignos no plano <strong>do</strong>s encarna<strong>do</strong>s edesencarna<strong>do</strong>s, e o resto o meu amigo poderá avaliar: tormentos, remorsos,expiações...Concluin<strong>do</strong>, asseverou:— Mas, como não ser assim? Como aprender sem a escola, semretomar o bem e corrigir o mal?— Sim, Belarmino — disse, abraçan<strong>do</strong>-o —, você tem razão. Tenho acerteza de que não vim tão só ao Centro de Mensageiros, mas também aocentro de grandes lições.XII - A palavra de MonteiroOs ensinamentos aqui são varia<strong>do</strong>s. Foi o amigo de Belarmino quemtomara a palavra. Mostran<strong>do</strong> agradável maneira de dizer, continuou:— Há três anos sucessivos, venho diariamente ao Centro deMensageiros e as lições são sempre novas. Tenho a impressão de que asbênçãos <strong>do</strong> Espiritismo chegaram prematuramente ao caminho <strong>do</strong>s homens.Se minha confiança no Pai fosse menos segura, admitiria essa conclusão.Belarmino, que observava atento os gestos <strong>do</strong> amigo, interveio,explican<strong>do</strong>:— O nosso Monteiro tem grande experiência <strong>do</strong> assunto.— Sim — confirmou ele —, experiência não me falta. Também andei àstontas nas semeaduras terrestres. Como sabem, é muito difícil escapar àinfluência <strong>do</strong> meio, quan<strong>do</strong> em luta na carne. São tantas e tamanhas asexigências <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s, em relação com o mun<strong>do</strong> externo, que não escapei,igualmente, a <strong>do</strong>loroso desastre.— Mas, como? — indaguei interessa<strong>do</strong> em consolidar conhecimentos.— É que a multiplicidade de fenômenos e as singularidades mediúnicasreservam surpresas de vulto a qualquer <strong>do</strong>utrina<strong>do</strong>r que possua mais raciocíniona cabeça que sentimentos no coração. Em to<strong>do</strong>s os tempos o vício intelectualpode desviar qualquer trabalha<strong>do</strong>r mais entusiasma<strong>do</strong> que sincero, e foi o queme aconteceu.Depois de ligeira pausa, prosseguiu.— Não preciso esclarecer que também parti de “Nosso Lar”, noutrotempo, em missão de Entendimento Espiritual. Não ia para estimularfenômenos, mas para colaborar na jornada de companheiros encarna<strong>do</strong>s edesencarna<strong>do</strong>s. O serviço <strong>era</strong> imenso. Nosso amigo Ferreira pode dart<strong>este</strong>munho, porquanto partimos quase juntos. Recebi to<strong>do</strong> o auxílio para iniciarminha grande tarefa e intraduzível alegria me <strong>do</strong>minava o espírito nodes<strong>do</strong>bramento <strong>do</strong>s primeiros serviços. Minha mãe, que se convert<strong>era</strong> emminha devotada orienta<strong>do</strong>ra não cabia em si de contente. Enorme entusiasmoinstalara-me no espírito. Sob meu controle direto, estavam alguns médiuns deefeitos físicos, além de outros à psicografia e à incorporação; e tamanho <strong>era</strong> ofascínio que o comércio com o invisível exercia sobre mim, que me distraícompletamente quanto à essência moral da <strong>do</strong>utrina. Tínhamos quatro


euniões semanais, às quais comparecia com assiduidade absoluta. Confessoque experimentava certa volúpia na assistência aos desencanta<strong>do</strong>s decondição inferior. Para to<strong>do</strong>s eles, tinha longas dissertações decoradas, naponta da língua. Aos sofre<strong>do</strong>res, fazia ver que padeciam por culpa própria. Aosembusteiros, recomendava enfaticamente, a extensão da mentira criminosa.Os casos de obsessão mereciam ar<strong>do</strong>r apaixona<strong>do</strong>. Estimava enfrentarobsessores cruéis para reduzi-los a zero, no campo da argumentação pesada.Outra característica que me assinalava a ação firme <strong>era</strong> a <strong>do</strong>minação quepretendia exercer sobre alguns pobres sacer<strong>do</strong>tes católicos desencarna<strong>do</strong>s,em situação de ignorância das verdades divina. Chegava ao cúmulo deestudar, pacientemente, longos trechos das Escrituras, não para meditá-lascom o entendimento, mas por mastigá-los a meu bel-prazer, bolçan<strong>do</strong>-asdepois aos Espíritos perturba<strong>do</strong>s, em plena sessão, com a idéia criminosa defalsa superioridade espiritual. O apego às manifestações exterioresdesorientou-me por completo. Acendia luzes para os outros, preferin<strong>do</strong>, porém,os caminhos escuros e esquecen<strong>do</strong> a mim mesmo. Somente aqui, de volta,pude verificar a extensão da minha cegueira.Por vezes, após longa <strong>do</strong>utrinação sobre a paciência, impon<strong>do</strong>pesadíssimas obrigações aos desencarna<strong>do</strong>s, abria as janelas <strong>do</strong> grupo denossas atividades <strong>do</strong>utrinárias, para descompor as crianças que brincavaminocentemente na rua. Concitava os perturba<strong>do</strong>s invisíveis a conservaremserenidade para, daí a instantes, repreender senhoras humildes, presentes àreunião, quan<strong>do</strong> não podiam conter o pranto de algum pequenino enfermo.Isso, quanto a coisas mínimas, porque, no meu estabelecimento comercial,minhas atitudes <strong>era</strong>m inflexíveis. Raro o mês que não mandasse promissóriasa protesto público. Lembro-me de alguns varejistas menos felizes, que merogavam prazo, desculpas, proteção. Nada me demovia, porém. Os advoga<strong>do</strong>sconheciam minhas delib<strong>era</strong>ções implacáveis. Passava os dias no escritórioestudan<strong>do</strong> a melhor maneira de perseguir os clientes em atraso, entrepreocupações e observações nem sempre muito retas e, à noite, ia ensinar oamor aos semelhantes, a paciência e a <strong>do</strong>çura, exaltan<strong>do</strong> o sofrimento e a lutacomo estradas benditas de preparação para Deus.Andava cego. Não conseguia perceber que a existência terrestre, por sisó, é uma sessão permanente. Talhava o Espiritismo a meu mo<strong>do</strong>: toda aproteção e garantia para mim, e valiosos conselhos ao próximo. Ao demaisdisso, não conseguia retirar a mente <strong>do</strong>s espetáculos exteriores. Fora dassessões práticas, minha atividade <strong>do</strong>utrinária consistia em vastíssimoscomentários <strong>do</strong>s fenômenos observa<strong>do</strong>s, duelos palavrosos, narrações deacontecimentos insólitos, crítica rigorosa <strong>do</strong>s médiuns.Monteiro deteve-se um pouco, sorriu e continuou:— De desvio em desvio, a angina encontrou-me absolutamentedistraí<strong>do</strong> da realidade essencial. Passei para cá, qual demente necessita<strong>do</strong> dehospício. Tarde reconhecia que abusara das sublimes faculdades <strong>do</strong> verbo.Como ensinar sem exemplo, dirigir sem amor? Entidades perigosas erevoltadas aguardaram-me à saída <strong>do</strong> plano físico. Sentia, porém, comigo,singular fenômeno. Meu raciocínio pedia socorro divino, mas meu sentimentoagarrava-se a objetivos inferiores. Minha cabeça dirigia-se ao Céu, em súplica,mas o coração colava-se a Terra. Nesse esta<strong>do</strong> triste, vi-me rodea<strong>do</strong> de seresmalévolos que me repetiam longas frases de nossas sessões. Com atitudeirônica, recomendavam-me serenidade, paciência e perdão às alheias faltas;


perguntavam-me, igualmente, porque me não desgarrava <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, estan<strong>do</strong>já desencarna<strong>do</strong>. Vociferei, roguei, gritei, mas tive de suportar esse tormentopor muito tempo.Quan<strong>do</strong> os sentimentos de apego à esf<strong>era</strong> física se atenuaram, aconsid<strong>era</strong>ção de alguns bons amigos me trouxe até aqui. E imagine o irmãoque meu Espírito infeliz ainda estava revolta<strong>do</strong>. Sentia-me descontente.Não havia comanda<strong>do</strong> as sessões de intercâmbio entre os <strong>do</strong>is planos?Não me consagrara ao esclarecimento <strong>do</strong>s desencarna<strong>do</strong>s?Perceben<strong>do</strong>-me a irritação ridícula, amigos generosos submet<strong>era</strong>m-mea tratamento. Não fiquei satisfeito. Pedi a Ministra Ven<strong>era</strong>nda uma audiência,visto ter si<strong>do</strong> ela a intercessora da minha oportunidade. Queria explicações quepudessem atender ao meu capricho individual. A Ministra é sempre muitoocupada, mas sempre atenciosa. Não marcou a audiência, dada a insensatezda solicitação; no entanto, por demasia de gentileza, visitou-me em ocasiãoque reservara a descanso. Crivei-lhe os ouvi<strong>do</strong>s de lamentações. Choreiamargamente e, durante duas horas, ouviu-me a benfeitora por um prodígio depaciência evangélica. Em silêncio expressivo, deixou que me cansasse naexposição longa e inútil. Quan<strong>do</strong> me calei, à esp<strong>era</strong> de palavras quealimentassem o monstro da minha incompreensão ven<strong>era</strong>nda sorriu erespondeu:“Monteiro meu amigo, a causa da sua derrota não é complicada nemdifícil de explicar. Entregou-se você, ao Espiritismo prático, junto <strong>do</strong>s homensnossos Irmãos mas nunca se interessou pela verdadeira prática <strong>do</strong> Espiritismojunto de Jesus, nosso Mestre.”Nesse instante, Monteiro fez longa pausa, pensou uns momentos efalou, comovi<strong>do</strong>.— Desde então, minha atitude mu<strong>do</strong>u muitíssimo, entendeu?Aturdi<strong>do</strong> com a lição profunda respondi mastigan<strong>do</strong> palavras comoquem pensa mais, para falar menos:— Sim, sim estou procuran<strong>do</strong> compreender.XIII - Pond<strong>era</strong>ções de VicenteNão estava farto de lições, mas, para o momento, havia aprendi<strong>do</strong>bastante. Impressiona<strong>do</strong> com o que me fora da<strong>do</strong> observar, não insisti comVicente para prolongar nossa demora no Centro de Mensageiros.Deixan<strong>do</strong> grandes grupos em conversação ativa, reconstituin<strong>do</strong> projetose refazen<strong>do</strong> esp<strong>era</strong>nças, segui o companheiro que me convidava a visitar osimensos jardins. Roseirais enormes balsamizavam a atmosf<strong>era</strong> leve e límpida.— Sinto-me fortemente impressiona<strong>do</strong> - murmurei. Quem diria pudessecaber tantas responsabilidades a essas criaturas? Não conheci pessoalmentenenhum médium ou <strong>do</strong>utrina<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Espiritismo, justifican<strong>do</strong> agora minhasurpresa.Vicente sorriu e ponderou:— Você, meu caro, procede das Câmaras de Retificação, onde ostrabalhos são muito reserva<strong>do</strong>s e circunscritos. Talvez sua impressão provenhadessa circunstância. Verá, porém, com o tempo, que existem aqui locais deconversação dessa natureza, referentes a todas as oportunidades perdidas. Jávisitou alguma dependência Ministério <strong>do</strong> Esclarecimento?— Não.


— Localizam-se, ali, os enormes pavilhões das escolas maternais. Sãomilhares de irmãs que comentam, por lá, as desventuras da maternidadefracassada, buscan<strong>do</strong> reconstituir energias e caminhos. Ainda ali, temos osCentros de Preparação à Paternidade. Grandes massas de irmãos examinam oquadro de tarefas perdidas e recordam, com lágrimas, o passa<strong>do</strong> deindiferença ao dever. Nesse mesmo Ministério, temos a Especialização Médica.Nobres profissionais da Medicina, que perd<strong>era</strong>m santas oportunidades deelevação, lá discutem seus problemas.Nesse instante o interrompi, observan<strong>do</strong>:— Entretanto, somos médicos e não nos achamos lá.— Sim — explicou Vicente, bon<strong>do</strong>so — infelizmente para nós ambos,caímos em toda a linha. Não só na qualidade de médicos, mas muito maiscomo homens, pois que, se disse a você o que sofri, ainda não contei o que fiz.É verdade — concordei, desaponta<strong>do</strong>, recordan<strong>do</strong> minha condição desuicida inconsciente.— Ainda no Esclarecimento — prosseguiu o companheiro —, temos oInstituto de Administra<strong>do</strong>res, onde os Espíritos cultos procuram restaurar asforças próprias e corrigir os erros cometi<strong>do</strong>s na mor<strong>do</strong>mia terrestre. NosCampos de Trabalho, <strong>do</strong> Ministério da Regen<strong>era</strong>ção, existem milhares detrabalha<strong>do</strong>res que se renovam para a recapitulação das grandes tarefas daobediência.Somos numerosos — continuou, sorridente — os fali<strong>do</strong>s nas missõ<strong>este</strong>rrestres e note-se que to<strong>do</strong>s os que hajam chega<strong>do</strong> a zonas como “NossoLar” devem ser leva<strong>do</strong>s à conta <strong>do</strong>s extremamente felizes. Temos aqui <strong>do</strong>isMinistérios Celestiais, como o da Elevação e o da União Divina, cujainfluenciação santificante eleva o padrão <strong>do</strong>s nossos pensamentos sem que opercebamos de maneira direta. O estágio aqui, André, representa uma bênção<strong>do</strong> Senhor, e, por muito que trabalhássemos, nunca retribuiríamos a estacolônia na medida de nosso débito para com ela. Nossa situação é a deabriga<strong>do</strong>s em verdadeiro paraíso, pelo ensejo de serviço edificante que se nosoferece. Quanto a outros companheiros nossos...Fez longo hiato e continuou:— Quanto a muitos, estão fazen<strong>do</strong> angustiosas estações deaprendiza<strong>do</strong> nas regiões mais baixas. São infelizes prisioneiros uns <strong>do</strong>s outros,pela cadeia de remorsos e malignas recordações. No que concerne à Medicina,os colegas em bancarrota espiritual são inúmeros. A saúde humana épatrimônio divino e o médico é sacer<strong>do</strong>te dela. Os que recebem o títuloprofissional, em nosso quadro de realizações sem dele se utilizarem a bem <strong>do</strong>ssemelhantes, pagam caro a indiferença. Os que dele abusam são, por sua vez,situa<strong>do</strong>s no campo <strong>do</strong> crime. Jesus não foi somente o Mestre, foi Médicotambém. Deixou no mun<strong>do</strong> o padrão da cura para o Reino de Deus. Eproporcionava socorro ao corpo e ministrava fé às almas. Nós, porém, meucaro André, em muitos casos terrestres, nem sempre aliviamos o corpo equase sempre matamos a fé.As palavras sensatas <strong>do</strong> amigo caíam-me na alma como raios de luz.Tu<strong>do</strong> <strong>era</strong> a verdade, simples e bela. Ainda não pensara, de fato, em toda agrandeza <strong>do</strong> serviço divino de Jesus Médico. Ele expulsara febres malignas,curara leprosos e cegos de nascença, levantara paralíticos, mas nunca ficavaapenas nisto. Reanimava os <strong>do</strong>entes, dava-lhes esp<strong>era</strong>nças novas, convidavaosà compreensão da Vida Eterna.


Engolfara-me em pensamentos grandiosos, quan<strong>do</strong> o companheirovoltou a falar:— Tenho um amigo, nosso colega de profissão, que se encontra naszonas inferiores, há alguns anos, atormenta<strong>do</strong> por <strong>do</strong>is inimigos cruéis.Acontece que ele muito faliu como homem e médico. Era cirurgião exímio, mas,tão logo alcançou renome e respeito g<strong>era</strong>l, impressionou-se com as aquisiçõesmonetárias e caiu desastradamente. Nos dias de grandes negócios financeiros,deslocava a mente das obrigações veneráveis, colocan<strong>do</strong>-a distante, na esf<strong>era</strong><strong>do</strong>s banqueiros comuns. Não fosse a proteção espiritual, essa atitude teriacomprometi<strong>do</strong> oportunidades vitais de muita gente. A colaboração <strong>do</strong> pobreamigo tornara-se quase nula, e alguns desencarna<strong>do</strong>s nas intervençõescirúrgicas que ele praticava, notan<strong>do</strong>-lhe a irresponsabilidade, atribuíram-lhe acausa da morte física, quan<strong>do</strong> não a esp<strong>era</strong>vam votan<strong>do</strong>-lhe ódio terrível.Amigos <strong>do</strong> op<strong>era</strong><strong>do</strong>r prestaram esclarecimentos justos a muitos; entretanto,<strong>do</strong>is deles, mais ignorantes e mal<strong>do</strong>sos, persev<strong>era</strong>ram na estranha atitude e oesp<strong>era</strong>ram no limiar <strong>do</strong> Sepulcro.Horrível — exclamei. Se ele, porém, não é culpa<strong>do</strong> da desencarnaçãodesses adversários gratuitos, como pode ser atormenta<strong>do</strong> desse mo<strong>do</strong>?Explicou Vicente, em tom mais grave:— Realmente, não tem a culpa da morte deles. Nada fez parainterromper-lhe a existência física. Mas é responsável pela inimizade eincompreensão criadas na mente dessas pobres criaturas, porque, não estan<strong>do</strong>seguro <strong>do</strong> seu dever, nem tranqüilo com a consciência, o nosso amigo julga-seculpa<strong>do</strong>, em razão das outras falhas a que se entregou imprevidentemente.To<strong>do</strong> erro traz fraqueza e, assim sen<strong>do</strong>, o nosso colega, por enquanto nãoadquiriu forças para se desvencilhar <strong>do</strong>s algozes p<strong>era</strong>nte a Justiça Divina,portanto, ele não resgata crimes inexistentes, mas repara certas faltas graves eaprende a conhecer-se a si mesmo, a entender as obrigações nobres e práticálas,compreenden<strong>do</strong>, por fim, a felicidade <strong>do</strong>s que sabem ser úteis comsegurança de fé em Deus e em si mesmos. A noção <strong>do</strong> dever bem cumpri<strong>do</strong>,André ainda que to<strong>do</strong>s os homens permaneçam contra nós, é uma luz firmepara o dia e abençoa<strong>do</strong> travesseiro para a noite. O nosso colega, ten<strong>do</strong>abusa<strong>do</strong> da profissão entrou em <strong>do</strong>lorosa prova.— Ah! sim — exclamei .—, agora compreen<strong>do</strong>. Onde exista uma falta,pode haver muitas perturbações. Quan<strong>do</strong> apagamos a luz, podemos cair emqualquer precipício.— Justamente.Calou-se o amigo, andan<strong>do</strong>, muito tempo ao meu la<strong>do</strong>, como seestivesse surpreendi<strong>do</strong>, como eu, defrontan<strong>do</strong> as avenidas de rosas. Depois delongas meditações, convi<strong>do</strong>u-me fraternalmente:— Regressemos ao nosso núcleo. Creio devamos ouvir Aniceto, aindahoje, referentemente ao serviço comum.XIV - PreparativosÀ noite, Aniceto veio ver-nos, começan<strong>do</strong> por dizer:— Amanhã deveremos partir os três, a serviço nas esf<strong>era</strong>s da Crosta.Telésforo recomen<strong>do</strong>u-me certas atividades de importância, mas posso atendêlasem particular, proporcionan<strong>do</strong> a ambos uma estação semanal deexperiência e serviço.


Fiquei radiante. Muitas vezes regressara ao ninho <strong>do</strong>méstico, tornara àcidade em que desenvolv<strong>era</strong> a tarefa última e, todavia, não me detiv<strong>era</strong> noexame das possibilidades extensas <strong>do</strong> concurso fraternal. De quan<strong>do</strong> em vez,<strong>era</strong> defronta<strong>do</strong> por situações difíceis, nas quais velhos conterrâneosencaravam problemas de vulto; entretanto, sentia-me incapaz de auxiliá-los,eficientemente, na solução desejável. Faltava-me técnica espiritual para fazêlo.Não tinha bastante confiança em mim mesmo.Deixan<strong>do</strong> perceber que ouvira meus pensamentos profun<strong>do</strong>s, Anicetodirigiu-me a palavra de maneira especial, assev<strong>era</strong>n<strong>do</strong>:— Você, André, ainda não pôde auxiliar os amigos encarna<strong>do</strong>s porqueainda não adquiriu a devida capacidade para ver. É razoável. Quan<strong>do</strong> nacarne, somos muitas vezes inclina<strong>do</strong>s a verificar tão somente os efeitos, sempond<strong>era</strong>r as origens. No mendigo, vemos apenas a miséria; no enfermo,somente a ruína física. Faz-se indispensável identificar as causas.Depois de meditar alguns momentos, prosseguiu:— Procuraremos, contu<strong>do</strong>, remediar a situação. Amanhã, pelamadrugada, você e Vicente apareçam no Gabinete de Auxílio Magnético àsPercepções, que fica junto ao Centro de Mensageiros. Darei as providênciaspara que vocês alcancem o necessário melhoramento da visão. Peço-lhes,todavia, receberem semelhante auxílio em prece. Roguem a Deus lhes permitaa dilatação <strong>do</strong> poder visual. Compenetrem-se da grandeza desse <strong>do</strong>m sublime.E, sobretu<strong>do</strong>, enviem à Majestade Eterna um pensamento de consagração aoseu amor e aos seus serviços divinos. Não desejo induzi-los a atitudes defanatismo sem consciência. Não podemos abusar da oração aqui, segun<strong>do</strong>antigas viciações <strong>do</strong> sentimento terrestre. No círculo carnal, costumamosutilizá-la em obediência a delituosos caprichos, suplican<strong>do</strong> facilidades quesurgiriam em detrimento de nossa própria iluminação. Aqui, todavia, André, aoração é compromisso da criatura para com Deus, compromisso det<strong>este</strong>munho, esforço e dedicação aos superiores desígnios. Toda prece, entrenós, deve significar, acima de tu<strong>do</strong>, fidelidade <strong>do</strong> coração. Quem ora, em nossacondição espiritual, sintoniza a mente com as esf<strong>era</strong>s mais altas e novas luzeslhe abrilhantam os caminhos.Deixou-nos o generoso instrutor com palavras carinhosas de amizade eincentivo.Vicente e eu acalentávamos projetos magníficos. Iríamos, pela primeiravez, coop<strong>era</strong>r a favor <strong>do</strong>s encarna<strong>do</strong>s em g<strong>era</strong>l. Nosso repouso noturno foibrevíssimo. Aguardávamos, ansiosamente, a alvorada, afim de receber oauxílio magnético <strong>do</strong> Gabinete referi<strong>do</strong>.Poucas vezes orei com a emoção daquela hora. Os esclareci<strong>do</strong>stécnicos da instituição colocaram-nos, primeiro em relação mental direta comeles e, em seguida, submet<strong>era</strong>m-nos a determinadas aplicações espirituais,que ainda não posso compreender em toda a extensão e transcendência.Observei, contu<strong>do</strong>, que a colaboração magnética não nos retirava o senti<strong>do</strong>consciencial, e aproveitei a oportunidade para a oração sinc<strong>era</strong>, que <strong>era</strong> maisum compromisso de trabalho que ato de súplica, propriamente consid<strong>era</strong><strong>do</strong>.Decorri<strong>do</strong> certo tempo, fomos declara<strong>do</strong>s em liberdade para sair,quan<strong>do</strong> nos prouvesse.A princípio, nada notei de extraordinário embora sentisse, dentro <strong>do</strong>coração, nova coragem e alegria diferente. Experimentava bom ânimo, até


então desconheci<strong>do</strong>. Meus senti<strong>do</strong>s da visão e da audição pareciam maislímpi<strong>do</strong>s.Aniceto, que se mostrava muito satisfeito, esp<strong>era</strong>va no Centro,marcan<strong>do</strong> a partida para o meio-dia.Ansioso, aguardei o instante apraza<strong>do</strong>.Não nos ausentamos de “Nosso Lar”, como os viajores terrestres,g<strong>era</strong>lmente carrega<strong>do</strong>s de matalotagens e volumes diversos.— Aqui — disse Aniceto —, toda a nossa bagagem é a <strong>do</strong> coração. NaTerra, malas, bolsas, embrulhos; mas, agora, devemos conduzir propósitos,energias, conhecimentos e, acima de tu<strong>do</strong>, disposição sinc<strong>era</strong> de servir.Alguns companheiros presentes riram-se com gosto.Nesse instante, nosso orienta<strong>do</strong>r fez algumas recomendações.Designou colegas para a chefia de turmas de aprendiza<strong>do</strong>, estabeleceuprogramas de serviço e notificou que voltaria à colônia, diariamente, poralgumas horas, deixan<strong>do</strong>-nos Vicente e eu, nos serviços da Crosta, emtrabalhos e observações que deveriam prolongar-se por toda a semana.Despedimo-nos <strong>do</strong>s camaradas de luta, repletos de esp<strong>era</strong>nça. Era anossa primeira excursão de aprendiza<strong>do</strong> e coop<strong>era</strong>ção aos semelhantes.Quan<strong>do</strong> nos puséramos a caminho, nosso Instrutor observou:— Creio que a viagem para vocês será diferente. Certo, estãohabitua<strong>do</strong>s à passagem livre, mantida por ordem superior para as atividadesnormais de nossos trabalhos e trânsito <strong>do</strong>s irmãos esclareci<strong>do</strong>s, em vésp<strong>era</strong>sde reencarnação.— Como assim? — perguntou Vicente, admira<strong>do</strong>.— Pois não sabia? As regiões inferiores, entre “Nosso Lar” e os círculosda carne, são tão grandes que exigem uma estrada ampla e bem cuidada,requer tanto esforço de conservação, como as importantes rotas terrestres. Porlá, obstáculos físicos; por cá, obstáculos espirituais. As vias de comunicaçãonormais destinam-se a intercâmbio indispensável. Os que se encontram nastarefas da nossa rotina sagrada precisam livre trânsito e os que se dirigem daesf<strong>era</strong> superior à reencarnação devem seguir com a harmonia possível, semcontacto direto com as expressões <strong>do</strong>s círculos mais baixos. A absorção deelementos inferiores determinaria sérios desequilíbrios no renascimento deles.Há que evitar semelhantes distúrbios. Nós, porém, seguimos numa expediçãode aprendiza<strong>do</strong> e experiência. Não devemos, por isso, preferir os caminhosmais fáceis.Identifican<strong>do</strong>-nos a perplexidade, Aniceto concluiu:— Imaginemos um rio de imensas proporções, separan<strong>do</strong> duas regiõesdiferentes. Existe o vau que oferece transporte rápi<strong>do</strong> e há passagens diversasatravés de fun<strong>do</strong>s precipícios.Pela expressão <strong>do</strong> bon<strong>do</strong>so instrutor, concluí que ele poderia voltar àcolônia quan<strong>do</strong> quisesse, que não encontraria obstáculos de qualquer ordem,em parte alguma, em razão <strong>do</strong> poder espiritual de que se achava revesti<strong>do</strong>,mas fazia-se peregrino, como nós, por devotamento à missão de ensinar.Vicente e eu não dispúnhamos de expressão vibratória adequada aos grandesfeitos. Éramos vulgares, quanto o <strong>era</strong> a maioria <strong>do</strong>s habitantes da nossa cidadeespiritual. Possuía apenas alguns princípios de volitação, contu<strong>do</strong>,permanecíamos muito distantes <strong>do</strong> verdadeiro poder. Nunca vira, pois, aenergia e a humildade em tão belo consórcio. Aniceto dirigia-nos, firmemente


como orienta<strong>do</strong>r de pulso, vigoroso e sábio mas não vacilava por se fazer iguala nós, a fim de servir como devota<strong>do</strong> companheiro.Meditan<strong>do</strong> sobre a lição sublime em pleno impulso volitante, contempleias torres de “Nosso Lar”, que iam fican<strong>do</strong> a distância...XV - A viagemDepois de empregarmos o processo de condução rápida, atravessan<strong>do</strong>imensas distâncias, surgiu uma região menos bela. O firmamento cobrira-se denuvens espessas e alguma coisa que eu não podia compreender impedia-nosa volitar com facilidade. Creio que o mesmo não acontecia ao nosso instrutor,mas Vicente e eu fazíamos enorme esforço para acompanhá-lo.Aniceto percebeu, de pronto, nossos obstáculos e considerou:— Será conveniente utilizarmos a locomoção. A atmosf<strong>era</strong> começa apesar muitíssimo e não devemos andar muito distante <strong>do</strong> Campo da Paz. Nãoprecisaremos ir até lá; todavia, descansaremos no Posto de Socorro.Encontraremos, ali, os recursos indispensáveis.— Mas, que é isto? — perguntei, admira<strong>do</strong> da profunda modificaçãoambiente.— Estamos penetran<strong>do</strong> a esf<strong>era</strong> de vibrações mais fortes da mentehumana. Achamo-nos a grande distância da Crosta; entretanto, já podemosidentificar, desde logo, a influenciação mental da Humanidade encarnada.Grandes lutas desenrolam-se n<strong>este</strong>s planos e milhares de irmãos abnega<strong>do</strong>saqui se votam à missão de ensinar e consolar os que sofrem. Em parte algumaescasseia o amparo divino.Nesse instante, chegáramos ao cume de grande montanha envolvidaem sombra fumarenta. No solo, desenhavam-se trilhas diversas, à maneira delabirintos bem forma<strong>do</strong>s. Observan<strong>do</strong>-nos a estranheza, Aniceto falou comotimismo.— Sigamos!Nesse momento, ó Deus de Bondade, alguma coisa imprevista mefelicitava o coração. Contrastan<strong>do</strong> as sombras, raios de luz desprendiam-se,intensamente, de nossos corpos. Extraordinária comoção apossou-se-medalma. Vicente e eu ajoelhamo-nos a um só tempo, banha<strong>do</strong>s em lágrimasenvian<strong>do</strong> ao Eterno os nossos profun<strong>do</strong>s agradecimentos, em votos de júbilofervoroso. Estávamos embriaga<strong>do</strong>s de ventura. Era a primeira vez que mevestia de luz, luz que se irradiava de todas a células <strong>do</strong> meu corpo espiritual.Aniceto que se mantinha de pé, a contemplar-nos com expressão de alegria,falou comovidamente.— Muito bem, meus amigos. Agradeçamos a Deus os <strong>do</strong>ns de amor,sabe<strong>do</strong>ria e misericórdia. Saibamos manifestar ao Pai o nosso reconhecimento.Quem não sabe agradecer, não sabe receber e, muito menos, pedir.Durante muito tempo, Vicente e eu mantivemo-nos em prece repletosde alegrias e de lágrima. Em seguida, retomamos a marcha como seestivéssemos vesti<strong>do</strong>s em sublime luminosidade.As surpresas no entanto, sucediam-se ininterruptamente.Aquelas vias de comunicação <strong>era</strong>m muito diversas das que conheciaaté ali. Mergulhávamos num clima estranho onde pre<strong>do</strong>minavam o frio e aausência de luz solar. A topografia <strong>era</strong> um conjunto de paisagens misteriosas,lembran<strong>do</strong> filmes fantásticos da cinematografia terrestre. Picos altíssimossemelhavam vigorosas agulhas de treva, desafian<strong>do</strong> a vastidão. Descíamos


sempre, como viajores ladean<strong>do</strong> escuros precipícios, em país de exotismoameaça<strong>do</strong>r. Esquisita vegetação subia <strong>do</strong> solo, de espaço a espaço, entre osgrandes abismos. Aves de horripilante aspecto surgiam, medrosas, de quan<strong>do</strong>em quan<strong>do</strong>, enchen<strong>do</strong> o silêncio de pios angustia<strong>do</strong>s. Rija ventania soprava emtodas as direções.Fundamente assombra<strong>do</strong>, cobrei ânimo e perguntei ao nosso instrutor:— Que dizeis de tu<strong>do</strong> isto? Ignorava que houvesse tais regiões entre aCrosta e nossa cidade espiritual. À nossa frente, sinto um mun<strong>do</strong> novo, que meé totalmente desconheci<strong>do</strong>... Por quem sois, nobre Aniceto, nada vos perguntopor ociosidade, mas estas terras me surpreendem profundamente.Aniceto, sempre generoso, sorriu <strong>do</strong>cemente e respondeu:— To<strong>do</strong> <strong>este</strong> mun<strong>do</strong> que vemos é continuação de nossa Terra. Osolhos humanos vêem apenas algumas expressões <strong>do</strong> vale em que seexercitam para a verdadeira visão espiritual, como nós outros que, observan<strong>do</strong>agora alguma coisa, não estamos igualmente ven<strong>do</strong> tu<strong>do</strong>.Este, André, é um <strong>do</strong>mínio diferente. A percepção humana nãoconsegue apreender senão determina<strong>do</strong> número de vibrações. Comparan<strong>do</strong> asrestritas possibilidades humanas com as grandezas <strong>do</strong> Universo Infinito, ossenti<strong>do</strong>s físicos são muitíssimo limita<strong>do</strong>s. O homem recebe reduzi<strong>do</strong> noticiário<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> que lhe é moradia. É verdade que tem devassa<strong>do</strong> com a sua ciênciaproblemas profun<strong>do</strong>s. A astronomia terrena conhece que o Sol, por medidasaproximadas, é 1.300.000 vezes maior que a Terra e que a estrela Capela é5.800 vezes maior que o nosso Sol; sabe que Arcturo equivale a milhares desóis, iguais ao que nos ilumina; está informada de que Canopo corresponde a8.760 sóis idênticos ao nosso, reuni<strong>do</strong>s; mediu as distâncias entre o nossoplaneta e a Lua; acompanha certos fenômenos em Marte, Saturno, Vênus eJúpiter; sonda os milhões de sóis aglom<strong>era</strong><strong>do</strong>s na Via-Láctea; conhece asestrelas variáveis, as nebulosas espirituais e difusas. E não param asobservações humanas na grandeza ilimitada <strong>do</strong> Macrocosmo. A Ciência vai,igualmente aos círculos atômicos, analisa a materialização da energia, omovimento <strong>do</strong>s elétrons, estuda o bombardeio de átomos e esquadrilhacorpúsculos diversos. Mas to<strong>do</strong> esse trabalho com a colaboração das lunetasde alta potência e <strong>do</strong>s g<strong>era</strong><strong>do</strong>res de milhões de voltagem, ainda é serviço queapenas identifica os aspectos exteriores da vida. Há, porém, André, outrosmun<strong>do</strong>s sutis, dentro <strong>do</strong>s mun<strong>do</strong>s grosseiros; maravilhosas esf<strong>era</strong>s que seinterpenetram o olho humano sofre várias limitações e todas as lentes físicasreunidas não conseguiriam surpreender o campo da alma, que exige odesenvolvimento das faculdades espirituais para tornar perceptível. Aeletricidade e o magnetismo são duas correntes poderosas que começam adescortinar aos nossos irmãos encarna<strong>do</strong>s alguma coisa <strong>do</strong>s infinitospotenciais <strong>do</strong> invisível, mas ainda é ce<strong>do</strong> para cogitarmos de êxito completo.Somente ao homem de senti<strong>do</strong>s espirituais desenvolvi<strong>do</strong>s é possível revelaralguns pormenores das paisagens sob nossos olhos. A maioria das criaturasligadas à Crosta não entende estas verdades, senão após perderem os laçosfísicos mais grosseiros. É da lei, que não devemos ver senão o que possamosobservar com proveito.Nessa altura, Aniceto calou-se.Comovi<strong>do</strong> com as instruções, guardei religioso silêncio.Agora, em meio das sombras, divisava alguns vultos negros, quepareciam fugir apressa<strong>do</strong>s confundin<strong>do</strong>-se na treva das furnas próximas.


Nosso orienta<strong>do</strong>r avisou, cauteloso:Procuremos interromper os efeitos luminosos <strong>do</strong> nosso corpo espiritual.Bastará que pensem com vigor na necessidade dessa providência. Estamosatravessan<strong>do</strong> extensa zona, a que se acolhem muitos desventura<strong>do</strong>s, e não éjusto humilhar os que sofrem com a exibição de nossos bens.Obedecen<strong>do</strong> ao conselho, verifiquei o efeito imediato. Os fios de luzque me irradiavam <strong>do</strong> corpo apagaram-se como por encanto. A excursãotornou-se menos agradável. Descíamos, milagrosamente, através <strong>do</strong>sdespenhadeiros de longa extensão. A sombra fiz<strong>era</strong>-se mais densa, a ventaniamais lamentosa e impressionante.Após algum tempo de marcha em silêncio, divisamos ao longe umgrande castelo ilumina<strong>do</strong>. Aniceto fez um gesto significativo com o indica<strong>do</strong>r eaplicou:— É um <strong>do</strong>s Postos de Socorro de Campo da Paz.XVII - No Posto de SocorroDeslumbrava-me a visão <strong>do</strong> castelo soberbo! Incapaz de exprimir aadmiração que me <strong>do</strong>minava, acompanhei Aniceto em silêncio. Com grandesurpresa, entretanto, verifiquei que a construção magnífica não se mantinhasem defesa. Cercavam-na pesa<strong>do</strong>s muros numa extensão que meus olhos nãoconseguiam abranger.Quem imaginasse uma tal instituição, localizada nas zonas invisíveis,dificilmente conceberia contrafortes daquela natureza. A noção de céu einferno, fundamente arraigada na mente popular, nos deixa perceber que oshomens, de mo<strong>do</strong> g<strong>era</strong>l, não se modificam com a morte física, como a troca deresidência não significa mudança de personalidade para a criatura comum.Espanta<strong>do</strong>, notei que o nosso orienta<strong>do</strong>r fazia mover quaseimperceptível campainha, disfarçada na muralha. Creio que, se Anicetoestivesse só, não precisaria desse expediente, da<strong>do</strong> o seu poder espiritualacima de todas as resistências grosseiras; no entanto, estávamos em suacompanhia e, mais uma vez, quis igualar-se a nós, por fidalguia de tratamento.Ocultar a própria glória é <strong>do</strong> código <strong>do</strong> bom-tom nas sociedades espirituaisnobres e santas.Atenden<strong>do</strong>-nos, <strong>do</strong>is servi<strong>do</strong>res abriram a porta extremamente pesada,que ro<strong>do</strong>u nos gonzos, como se daria em qualquer edificação final antiga <strong>do</strong>plano terrestre.— Salve! mensageiros <strong>do</strong> bem! — diss<strong>era</strong>m ambos ao mesmo tempo,fixan<strong>do</strong> Aniceto, em atitude reverente.Aniceto levantou a mão, que se fez luminosa nesse instante, ebalbuciou algumas palavras de amor, retribuin<strong>do</strong> a saudação respeitosa.Entramos.Fiquei admira<strong>do</strong>! Pomares e jardins maravilhosos perdiam-se de vista.A sombra, aí, não <strong>era</strong> tão intensa. Sentíamo-nos banha<strong>do</strong>s em suavidadecrepuscular, graças aos grandes focos de luz radiante. O Interior apresentavaaspectos inesp<strong>era</strong><strong>do</strong>s. Somente agora eu compreendia que a muralha ocultavaa maioria das construções. Pavilhões de vulto alinhavam-se como seestivéssemos diante de prodigioso educandário. Turmas variadas de homens emulheres dedicavam-se a serviços múltiplos. Ninguém parecia dar conta denossa presença, tal o interesse que o trabalho despertava em cada um.


Acompanhávamos Aniceto através de numerosas fileiras de árvoressenhoris, que se assemelhavam a carvalhos antiqüíssimos.Observava, todavia, que nesse abençoa<strong>do</strong> Posto de Socorro aNatureza se fiz<strong>era</strong> maternal. Havia, agora, mais luz no céu e o vento <strong>era</strong> maisfagueiro, sussurran<strong>do</strong> brandamente no arvore<strong>do</strong> farto. O bon<strong>do</strong>so instrutor,notan<strong>do</strong> a nossa admiração, esclareceu:— Esta paz reflete o esta<strong>do</strong> mental <strong>do</strong>s que vivem n<strong>este</strong> pouso deassistência fraterna. Acabamos de atravessar uma zona de grandes conflitosespirituais, que vocês ainda não podem perceber. A Natureza é mãe amorosaem toda a parte, mas, cada lugar mostra a influência <strong>do</strong>s filhos de Deus que ohabitam.A explicação não poderia ser mais clara.Atingin<strong>do</strong> o edifício central, construí<strong>do</strong> à maneira de formoso casteloeuropeu <strong>do</strong>s tempos feudais, fomos defronta<strong>do</strong>s por um casal extremamentesimpático.— Meu caro Aniceto! — falou o cavalheiro, abraçan<strong>do</strong> o nossoorienta<strong>do</strong>r.— Meu caro Alfre<strong>do</strong>! nobre irmã Ismália! — respondeu Aniceto,sorridente.Após as saudações afetuosas, apresentou-nos lisonjeiro.O casal abraçou evidencian<strong>do</strong> cordialidade e atenção amiga.— Nosso preza<strong>do</strong> Alfre<strong>do</strong> — continuou Aniceto, elucidan<strong>do</strong> — é odedica<strong>do</strong> administra<strong>do</strong>r d<strong>este</strong> Posto de Socorro. Há muito tempo consagrou-sea serviço de nossos irmãos ignorantes e desvia<strong>do</strong>s.— Oh! Oh! não prossiga — revi<strong>do</strong>u o apresenta<strong>do</strong>, como a fugir asreferências elogiosas — consagrei-me simplesmente ao dever.E, como se quisesse modificar a conversação, prosseguiu, atencioso:— Mas, que surpresa agradável! Faz muitos dias não temos visitas de“Nosso Lar”! Ainda bem que vi<strong>era</strong>m hoje, quan<strong>do</strong> Ismália veio igualmente tercomigo!...Por quê? — considerei intimamente. Não seria aquela senhora, de lin<strong>do</strong>semblante, a esposa? Não viveriam ali juntos, como na Terra? Antes, porém,que pudesse chegar a qualquer conclusão, Alfre<strong>do</strong> conduzia ao interior<strong>do</strong>méstico. As escadas de substância idêntica ao mármore, me impressionavapela transparente beleza.De varanda extensa e nobre, onde as colunatas se enfeitavam de h<strong>era</strong>florida, muito diferente, porém, da que conhecemos na Terra, penetramos emvasto salão mobilia<strong>do</strong> ao gosto mais antigo. Os móveis, de delicada esculturaformavam conjunto encanta<strong>do</strong>r. Admira<strong>do</strong> fixei as paredes, de onde pendiamquadros maravilhosos. Um deles, contu<strong>do</strong>, impunha-me especial atenção. Erauma tela enorme, representan<strong>do</strong> o martírio de São Dinis, o Apóstolo das Gáliasrudemente suplicia<strong>do</strong> nos primeiros tempos <strong>do</strong> Cristianismo, segun<strong>do</strong> meushumildes conhecimentos de História. Intriga<strong>do</strong>, recordei que vira, na Terra, umquadro absolutamente igual àquele. Não se tratava de um famoso trabalho deBonnat, célebre pintor francês <strong>do</strong>s últimos tempos? A cópia <strong>do</strong> Posto deSocorro, todavia, <strong>era</strong> muito mais bela. A lenda popular estava lindamenteexpressa nos mínimos detalhes, o glorioso Apóstolo, seminu, com a cabeçadecepada, tronco aureola<strong>do</strong> de intensa luz, fazia um esforço supremo porlevantar o próprio crânio que lhe rola aos pés, enquanto os assassinos ocontemplavam, toma<strong>do</strong>s de intenso horror; <strong>do</strong> alto, via-se descer um emissário


divino, trazen<strong>do</strong> ao Servo <strong>do</strong> Senhor a coroa e a palma da vitória. Havia,porém, naquela cópia, profunda luminosidade, como se cada pinceladacontivesse movimento e vida.Observan<strong>do</strong>-me a admiração, Alfre<strong>do</strong> falou, sorrin<strong>do</strong>:Quantos nos visitam, pela primeira vez, estimam a contemplação destacópia soberba.— Ah! sim — retruquei —, o original, segun<strong>do</strong> estou informa<strong>do</strong>, podeser visto no Panteão de Paris.— Engana-se — eluci<strong>do</strong>u o meu gentil interlocutor —, nem to<strong>do</strong>s osquadros, como nem todas as grandes composições artísticas, sãooriginariamente da Terra. É certo que devemos muitas criações sublimes àcelebração humana; mas, n<strong>este</strong> caso, o assunto é mais transcendente. Temosaqui a história real dessa tela magnífica. Foi idealizada e executada por nobreartista cristão, numa cidade espiritual muito ligada à França. Em fins <strong>do</strong> séculopassa<strong>do</strong>, embora estivesse reti<strong>do</strong> no círculo carnal, o grande pintor deBayonne visitou essa colônia em noite de excelsa inspiração, que ele,humanamente, poderia classificar de maravilhoso sonho. Desde o minuto emque viu a tela, Florentino Bonnat não descansou enquanto não a reproduziu,palidamente, em desenho que ficou célebre no mun<strong>do</strong> inteiro. As cópiasterrestres, todavia, não têm essa pureza de linhas e luzes, e nem mesmo areprodução, sob nossos olhos, tem a beleza imponente <strong>do</strong> original, que já tive afelicidade de contemplar de perto, quan<strong>do</strong> organizávamos, aqui no Posto,homenagens singelas para a honrosa visita que nos fez o grande servo <strong>do</strong>Cristo. Para movimentar as providências necessárias, visitei pessoalmente acidade espiritual a que me referi.Grande espanto apossara-se-me <strong>do</strong> coração. Via, agora, explicada atortura santa <strong>do</strong>s grandes artistas, divinamente inspira<strong>do</strong>s na criação de obrasimortais; agora, reconhecia que toda arte elevada é sublime na Terra, porquetraduz visões gloriosas <strong>do</strong> homem na luz <strong>do</strong>s planos superiores.Parecen<strong>do</strong> interessa<strong>do</strong> em completar meus pensamentos, Alfre<strong>do</strong>considerou:— O gênio construtivo expressa superioridade espiritual com livretrânsito entre as fontes sublimes da vida. Ninguém cria sem ver, ouvir ou sentir,e os artistas de superior mentalidade costumam ver, ouvir e sentir asrealizações mais altas <strong>do</strong> caminho para Deus.Mas, voltan<strong>do</strong>-se, afável, para Aniceto, exclamou:— No entanto, o momento não comporta divagações. Sentemo-nos.Devem estar cansa<strong>do</strong>s da peregrinação difícil. Necessitam refazer energias erepousar algum tanto.XVII - O romance de Alfre<strong>do</strong>Depois de alguns minutos, utiliza<strong>do</strong>s por nós no serviço da higienereconforta<strong>do</strong>ra, Alfre<strong>do</strong> convi<strong>do</strong>u-nos à mesa, onde Ismália, com extremafidalguia, man<strong>do</strong>u servir frutos diversos.Os senhores <strong>do</strong> castelo não podiam ser mais gentis.Servi<strong>do</strong>res iam e vinham, com grande júbilo a lhes transparecer <strong>do</strong>rosto.A palestra de Alfre<strong>do</strong> e as observações de Ismália estavam cheias denotas interessantes e educativas.


— E qual a sua impressão <strong>do</strong>s serviços em g<strong>era</strong>l? — perguntouAniceto, atencioso, dirigin<strong>do</strong>-se ao <strong>do</strong>no da casa.— Excelente, quanto às oportunidades de realização que nos oferecem— respondeu Alfre<strong>do</strong> em tom significativo — entretanto, não tenho o mesmoparecer quanto à situação em curso. As zonas a que servimos estão repletasde novidades <strong>do</strong>lorosas. O presente perío<strong>do</strong> humano é de conflitosdevasta<strong>do</strong>res e as vibrações contraditórias que nos atingem são de molde aenfraquecer qualquer ânimo menos decidi<strong>do</strong>. Desencarna<strong>do</strong>s e encarna<strong>do</strong>sempenham-se em batalhas destrui<strong>do</strong>ras. É uma lástima.Multiplica-se o número de necessita<strong>do</strong>s que recorrem ao Posto? —continuou indagan<strong>do</strong> nosso orienta<strong>do</strong>r.— Enormemente. Nossa produção de alimentos e remédios tem si<strong>do</strong>integralmente absorvida pelos famintos e <strong>do</strong>entes. Tenho quinhentoscoop<strong>era</strong><strong>do</strong>res, mas nos sentimos presentemente incapazes de atender a todasas obrigações. As massas de sofre<strong>do</strong>res são incontáveis. Noutro tempo, nossapaisagem se mantinha sem sombras, durante muitas semanas, mas agora...Nesse instante, Ismália pediu licença para dirigir-se ao interior. E comoAlfre<strong>do</strong> fixasse os olhos nos meus, aventurei-me a consid<strong>era</strong>r:— Ainda bem que tendes uma abnegada companheira ao vosso la<strong>do</strong>.Ele e Aniceto sorriram, quase a um só tempo, falan<strong>do</strong>-nos oadministra<strong>do</strong>r;— Ah! meus amigos, por enquanto, não tenho essa felicidade emcaráter definitivo. Minha esposa e eu temos o divino compromisso da uniãoeterna, mas ainda não lhe mereço a presença contínua. Ela é a bondadecel<strong>este</strong>, e eu, a realidade humana.Depois de pequena pausa, prosseguiu com gentileza:— Aniceto conhece a história. Vocês, porém, a ignoram. Sentir-me-ei,portanto, contente, em relatar algumas lembranças, com benefício duplo.Aliviarei o coração, uma vez mais, contan<strong>do</strong> minhas faltas, e vocês <strong>do</strong>is, quetalvez tenham em breve novos serviços na Terra, aproveitarão, por certo,alguma coisa das minhas experiências.Ismália e eu guardávamos um escrínio de felicidade no mun<strong>do</strong>; noentanto, os saltea<strong>do</strong>res perversos espreitavam-nos a ventura. Minharesponsabilidade <strong>era</strong> enorme no campo <strong>do</strong>s negócios materiais, e, longe decompreender as obrigações sublimes de esposo e pai, não procurava atend<strong>era</strong>os deveres justos para com o lar e os <strong>do</strong>is filhinhos que Deus me enviam aocírculo <strong>do</strong>méstico. Ismália, porém, <strong>era</strong> a providência de nossa casa. Esquecime,contu<strong>do</strong>, de que a virtude, a qualquer tempo, será atormentada pelo vício eminha nobre companheira foi vítima da maldade de um amigo desleal, comquem tinha eu inúmeros interesses em comum, no campo monetário. Minhaesposa sofreu, em silêncio, a perseguição dele por alguns anos consecutivos.E quan<strong>do</strong> meu desventura<strong>do</strong> sócio verificou a inutilidade da atitude criminosa,em franco desespero buscou envenenar-me o espírito despreveni<strong>do</strong>. Começoupor advertir-me, quanto ao procedimento dela. Ator<strong>do</strong>ou-me, envolven<strong>do</strong>-a emacusações descabidas. Subornou cria<strong>do</strong>s <strong>do</strong>mésticos e colocou espiões queseguissem minha querida Ismália, nas tarefas de esposa e mãe. Esse homemexercia profunda influência sobre mim, e, atenden<strong>do</strong> aos laços que nos uniam,minha companheira jamais se sentiu com bastante coragem para denunciá-lo.Enquanto dava ouvi<strong>do</strong>s à calúnia, fora de meu círculo <strong>do</strong>méstico, tomara-meintolerável dentro dele. Não sabia contemplar minha esposa com a


despreocupação e a confiança absoluta de outra época. Via o mal nos seusmínimos gestos e queria descobrir segundas intenções nas suas frases maisinocentes. Cheguei a acusá-la, veladamente. Ismália chorou e calou-se. Porfim, nosso infeliz persegui<strong>do</strong>r subornou um homem de baixa condição quepermaneceu, certa noite, ao la<strong>do</strong> de nossos aposentos particulares comovulgar ladrão, às ocultas, sen<strong>do</strong> eu convoca<strong>do</strong> à prova máxima. Penetrei noquarto em extremo desespero e acusei em voz alta ao ver a companheiraprofundamente tranqüila. Ismália levantou-se, receosa da minha saúde mental,mas não lhe atendi os rogos, procuran<strong>do</strong>, como louco, o conspurca<strong>do</strong>r daminha honra... Abri violentamente grande armário antigo, vasculhan<strong>do</strong> o quarto.Nesse instante, o vulto de um homem esgueirou-se na sombra, <strong>do</strong> aposentopróximo, e, antes que eu pudesse agarrá-lo no meu ódio infrene, saltou ajanela, alcançan<strong>do</strong> o pomar de nossa casa. Corri, desesp<strong>era</strong><strong>do</strong>, detonan<strong>do</strong>balas a esmo, mas, nada consegui. Regressei ao quarto e, para cúmulo dacalúnia odiosa, o desconheci<strong>do</strong> deixara, atrás de si, um chapéu novo,rigorosamente moderno, para que se acentuassem meus sentimentos terríveis.Olhos congestos, vomitan<strong>do</strong> insultos, quis eliminar Ismália, banhada emlágrimas a meus pés; no entanto, alguma coisa, que nunca pude compreenderna Terra, paralisou-me o braço quase homicida. Vocif<strong>era</strong>n<strong>do</strong> blasfêmias, sur<strong>do</strong>aos rogos dela, afastei-me <strong>do</strong> lar, toma<strong>do</strong> de horror. No dia imediato, fiz valermeu direito exclusivo sobre os filhos e providenciei para que Ismália, convertidaem estátua de <strong>do</strong>r, fosse restituída à fazenda paterna. Contratei umagovernanta para os meninos e, logo após, tomei um paquete para a Europa,onde me demorei mais de três anos. Nunca me propus a verificações sérias, e,embora tivesse o espírito incessantemente atormenta<strong>do</strong>, omitin<strong>do</strong> ossentimentos mais íntimos, jamais procuran<strong>do</strong> notícias da companheiracaluniada. Certo dia, recebi uma carta lacônica na costa francesa. Um parentedava-me informações da esposa. Após <strong>do</strong>is anos angustiosos, entre a saudadee o aban<strong>do</strong>no, Ismália fora colhida pela tuberculose, falecen<strong>do</strong> em terrívelmartírio moral. Deliberei, então, a volta. Fixei-me novamente no Rio, eduqueios filhinhos e conservei a <strong>do</strong>lorosa viuvez no desencanto <strong>do</strong> coração. Os anosrolaram uns sobre os outros, quan<strong>do</strong> fui chama<strong>do</strong> à cabeceira <strong>do</strong> ex-sócioagonizante. O infeliz, em face da morte, confessou o crime odioso, pedin<strong>do</strong> umperdão que, infelizmente, não pude conceder. Transformei-me, desde então,num louco irremediável. Cansa<strong>do</strong>, envelheci<strong>do</strong>, procurei a propriedade rural<strong>do</strong>s sogros, tentan<strong>do</strong> reparar, de alguma sorte, a injustiça, mas a morte não medeu ensejo e voltei para a esf<strong>era</strong> <strong>do</strong>s desencarna<strong>do</strong>s, em tristes condiçõesespirituais.Nesse instante, fez uma pausa, para continuar comovi<strong>do</strong>:— Não preciso dizer que recebi de Ismália to<strong>do</strong> o amparo de quenecessitava. Todavia, infelizmente para mim, estávamos separa<strong>do</strong>s. Nãomereci a bênção da união sublime. Ismália segue-me de perto, mas temresidência num plano superior, que devo esforçar-me por alcançar. Desdemuito, dediquei-me aos serviços <strong>do</strong> nosso Posto de Socorro, consagrei-me aosignorantes e sofre<strong>do</strong>res, e minha santa Ismália vem até aqui, mensalmente,incentivar-me o bom ânimo e amparar-me nas lutas.— Mas não poderia ela transferir-se definitivamente para aqui? —indagou Vicente, tão impressiona<strong>do</strong> quanto eu, com o romance comove<strong>do</strong>r.Alfre<strong>do</strong> sorriu e falou:


— Sei que Ismália tem trabalha<strong>do</strong> para isso, que seu ideal de uniãoeterna é idêntico ao meu, atenden<strong>do</strong> à circunstância de estar o superiorsempre em posição de dar ao inferior; mas não ignoro que foi advertida pornossos maiores, sobre as minhas atuais necessidades de esforço e solidão.Preciso conhecer o preço da felicidade, para não menosprezar, de novo, asbênçãos de Deus. Minha esposa deseja descer para encontrar-sedefinitivamente comigo; entretanto, é necessário que eu aprenda a subir e, por<strong>este</strong> motivo, ainda não recebemos a devida permissão para o definitivoconsórcio espiritual.Observan<strong>do</strong>-nos a emoção, concluiu:Estou resgatan<strong>do</strong> crimes de precipitação. Pela impulsividade delituosa,perdi minha paz, meu lar e minha devotada companheira. Conforme ouviram,não matei nem roubei a ninguém, mas envenenei-me a mim próprio. A calúniaé um monstro invisível, que ataca o homem através <strong>do</strong>s ouvi<strong>do</strong>s invigilantes e<strong>do</strong>s olhos despreveni<strong>do</strong>s.XVIII - Informações e esclarecimentosA volta de Ismália ao círculo da conversação impediu o prosseguimento<strong>do</strong> assunto.Aproveitan<strong>do</strong>, talvez, a oportunidade, Aniceto perguntou aoadministra<strong>do</strong>r:— Que me diz da continuação de nossa viagem? Estimamos alcançar,ainda hoje, as esf<strong>era</strong>s da Crosta.Dirigiu-nos Alfre<strong>do</strong> significativo olhar e falou:Não me sinto com o direito de alt<strong>era</strong>r-lhes o plano de serviço, mas seriaconveniente pernoitarem aqui. Nossos aparelhos assinalam aproximação degrande tempestade magnética, ainda para hoje. Sangrentas batalhas estãosen<strong>do</strong> travadas na superfície <strong>do</strong> globo. Os que não se encontram nas linhas defogo, permanecem nas linhas da palavra e <strong>do</strong> pensamento. Quem não luta nasações bélicas, está no combate das idéias, comentan<strong>do</strong> a situação. Reduzi<strong>do</strong>número de homens e mulheres continuam cultivan<strong>do</strong> a espiritualidade superior.É natural, portanto, que se intensifiquem, ao longo da Crosta, espessas nuvensde resíduos mentais <strong>do</strong>s encarna<strong>do</strong>s invigilantes, multiplican<strong>do</strong> as tormentasdestrui<strong>do</strong>ras.Aniceto escutava com atenção.— Não me preocupo com sua pessoa — continuou Alfre<strong>do</strong>, dirigin<strong>do</strong>-sede maneira particular ao nosso instrutor —, mas <strong>este</strong>s <strong>do</strong>is amigos, penso,seriam desagradavelmente surpreendi<strong>do</strong>s.— Tem razão — concor<strong>do</strong>u Aniceto.E, esboçan<strong>do</strong> significativa expressão fisionômica, prosseguiu:— Avalio o sacrifício <strong>do</strong>s nossos companheiros espirituais, nostrabalhos de preservação da saúde humana.— São grandes servi<strong>do</strong>res — disse o senhor <strong>do</strong> castelo. — De quan<strong>do</strong>em quan<strong>do</strong>, observo-lhes, pessoalmente, os núcleos de atividade santa. AHumanidade parece preferir a condição de eterna criança. Faz e desfaz ospatrimônios da civilização, como se brincasse com bonecas. Nossos irmãossuportam pesa<strong>do</strong>s far<strong>do</strong>s de serviço para que as tormentas magnéticas,invisíveis ao olhar humano, não disseminem vibrações mortíf<strong>era</strong>s, a setraduzirem pela dilatação de penúrias da guerra e por epidemias sem conta. Ascolônias espirituais da Europa, mormente as de nosso nível, estão sofren<strong>do</strong>


amargamente para atenderem as necessidades g<strong>era</strong>is. Já começamos areceber grandes massas de desencarna<strong>do</strong>s, em conseqüência <strong>do</strong>sbombardeios. “Nosso Lar”, pela missão que lhe cabe, ainda não pode imaginarto<strong>do</strong> o esforço que o conflito mundial vem exigin<strong>do</strong> da nossa colaboração nasesf<strong>era</strong>s mais baixas. Os Postos de Socorro de várias colônias, ligadas a nós,estão superlota<strong>do</strong>s de europeus desencarna<strong>do</strong>s violentamente. Fomosnotifica<strong>do</strong>s de que as súplicas da Europa dilac<strong>era</strong>m o coração angélico <strong>do</strong>smais altos coop<strong>era</strong><strong>do</strong>res de Nosso Senhor Jesus Cristo. Aos terríveisbombardeios na Inglaterra, na Holanda, Bélgica e França, sucedem-se outrosde não menor extensão. Depois de reit<strong>era</strong>das assembléias <strong>do</strong>s nossosmentores espirituais, resolveu-se providenciar a remoção de, pelo menos,cinqüenta por cento <strong>do</strong>s desencarna<strong>do</strong>s na guerra em curso, para os nossosnúcleos americanos. Temos aqui o nosso campo de concentração com mais dequatrocentos.— Mas não há dificuldade no socorro a essa gente? — Indagou Anicetoem tom grave. — E a questão da linguagem?— Os serviços de socorro, apesar de intensos na Europa, têm si<strong>do</strong>muito bem organiza<strong>do</strong>s, explicou Alfre<strong>do</strong> —; para cada grupo de cinqüentainfelizes, as colônias, <strong>do</strong> Velho Mun<strong>do</strong> fornecem um enfermeiro-instrutor, comquem nos possamos entender, de mo<strong>do</strong> direto. Desse mo<strong>do</strong>, o problema nãopesa tanto, porque nossa parte de colaboração consta de fornecimento depessoal de serviço e de material de assistência.— Não seria, porém, mais justo — indagou Vicente — que osdesencarna<strong>do</strong>s dessa espécie fossem manti<strong>do</strong>s nas próprias regiões <strong>do</strong>conflito?Alfre<strong>do</strong> sorriu e explicou:— Nossos instrutores mais eleva<strong>do</strong>s são de parecer que essasaglom<strong>era</strong>ções seriam fatais à coletividade <strong>do</strong>s Espíritos encarna<strong>do</strong>s.Determinariam focos pestilenciais de origem transcendente, com resulta<strong>do</strong>simprevisíveis. Inúmeros de nossos irmãos que perd<strong>era</strong> o corpo nas zonasassoladas não conseguem subtrair-se ao campo da angústia; mas, quantosofereçam possibilidades de transferência para cá, dentro das nossas cotas dealojamento, são retira<strong>do</strong>s dali, sem perda de tempo, para que seuspensamentos atormenta<strong>do</strong>s não pesem em demasia nas fontes vitais dasregiões sacrificadas.Nesse ínterim, Aniceto interveio, esclarecen<strong>do</strong>:— Embalde voltarão os países <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> aos massacres recíprocos. Oerro de uma nação influirá em todas, como o gemi<strong>do</strong> de um homem perturbariao contentamento de milhões. A neutralidade é um mito, o insulamento umaficção <strong>do</strong> orgulho político. A Humanidade terrestre é uma família de Deus,como bilhões de outras famílias planetárias no Universo Infinito. Em vão aguerra desfechará desencarnações em massa. Esses mesmos mortos pesarãona economia espiritual da Terra. Enquanto houver discórdia entre nós,pagaremos <strong>do</strong>loroso preço em suor e lágrimas. A guerra fascina a mentalidadede to<strong>do</strong>s os povos, inclusive de grande número de núcleos das esf<strong>era</strong>sinvisíveis. Quem não empunha as armas destrói <strong>do</strong>ns, dificilmente se afastará<strong>do</strong> verbo destrui<strong>do</strong>r, no campo da palavra ou da idéia. Mas, to<strong>do</strong>s nóspagaremos tributo. É da lei divina, que nos <strong>este</strong>ndamos e nos amemos uns aosoutros. To<strong>do</strong>s sofreremos os resulta<strong>do</strong>s <strong>do</strong> esquecimento da lei, mas cada um


será responsabiliza<strong>do</strong>, de perto, pela cota de discórdia que haja trazi<strong>do</strong> àfamília mundial.Alfre<strong>do</strong>, que parecia pond<strong>era</strong>r seriamente os conceitos ouvi<strong>do</strong>s,observou:— É justo.Aniceto voltou a consid<strong>era</strong>r, após silêncio mais longo:— Estive pessoalmente, a semana passada, em “Alvorada Nova”, quefica em zonas mais altas, e vim a saber que avança<strong>do</strong>s núcleos deespiritualidade superior, <strong>do</strong>s planetas vizinhos, desde as primeiras declaraçõesdesta guerra, determinaram providências de máxima vigilância, nas fronteirasvibratórias mantidas conosco. Ensinam-nos os vizinhos beneméritos quedevemos suportar, nos próprios ombros, toda a produção de mal que levarmosa efeito. Somos, finalmente, a casa grande, obrigada a lavar a roupa suja naspróprias dependências.Sorrimos to<strong>do</strong>s, com essa comparação.Ismália, que permanecia em silêncio, não obstante a funda impressãoque se lhe estampara no rosto, considerou com delicadeza:— Infelizmente, na feição coletiva, somos ainda aquela Jerusalémescravizada ao erro. To<strong>do</strong>s os dias somos cura<strong>do</strong>s por Jesus e to<strong>do</strong>s os diasconduzimo-lo ao madeiro. Nossas obras estão reduzidas quase a simplesrecapitulações que fracassam sempre. Não saímos <strong>do</strong> estágio da experiência.E, <strong>do</strong>lorosamente para nós, estamos sempre a ensaiar, no mun<strong>do</strong>, apolítica com os Césares, a justiça com os Pilatos, a fé religiosa com osFariseus, o sacerdócio com os rabinos <strong>do</strong> Sinédrio, a crença com os Jairos queacreditam e duvidam ao mesmo tempo, os negócios com os Anases eCaifases. N<strong>este</strong> passo, não podemos prever a extensão <strong>do</strong>s acontecimentoscruciais.Encanta<strong>do</strong> com as definições ouvidas, aventurei-me a dizer:— Como é angustiosa, porém, a destruição pela guerra!— N<strong>este</strong>s tempos, contu<strong>do</strong> — observou Alfre<strong>do</strong>, bon<strong>do</strong>samente — aprece é união à luz mais intensa no coração <strong>do</strong>s homens. Bem se diz que aestrela brilha mais fortemente nas noites sem luz. Imaginem que, para iniciarprovidências de recepção aos desencarna<strong>do</strong>s em desespero, já fui, mais deuma vez, aos serviços de assistência na Europa. Há dias, em missão dessanatureza, fomos, eu e alguns companheiros, aos céus de Bristol. A nobrecidade inglesa estava sen<strong>do</strong> sobrevoada por alguns aviões pesa<strong>do</strong>s debombardeio. As perspectivas de destruição <strong>era</strong>m assusta<strong>do</strong>ras. No seio danoite, porém, destacava-se, à nossa visão espiritual, um farol de intensa luz.Seus raios faiscavam no firmamento, enquanto as bombas <strong>era</strong>m arremessadasao solo. A chefia da expedição recomen<strong>do</strong>u nossa descida no ponto luminoso.Com surpresa, verifiquei que estávamos numa igreja, cujo recinto devia serquase sombrio para o olhar humano, mas altamente luminoso para nossosolhos. Notei, então, que alguns cristãos corajosos reuniam-se ali e cantavamhinos. O Ministro <strong>do</strong> Culto l<strong>era</strong> a passagem <strong>do</strong>s Atos, em que Paulo e Silascantavam à meia-noite, na prisão, e as vozes cristalinas elevavam-se ao Céu,em notas de fervorosa confiança. Enquanto rebentavam estilhaços lá fora, osdiscípulos <strong>do</strong> Evangelho cantavam, uni<strong>do</strong>s, em celestial vibração de fé viva.Nosso chefe man<strong>do</strong>u que nos conservássemos de pé, diante daquelas almasheróicas, que recordavam os primeiros cristãos persegui<strong>do</strong>s, em sinal derespeito e reconhecimento. Ele também acompanhou os hinos e depois nos


disse que os políticos construiriam os abrigos anti-aéreos, mas que os cristãosedificariam na Terra os abrigos anti-trevosos.Às vezes — concluiu o senhor <strong>do</strong> castelo, em tom significativo — épreciso sofrer para compreender as bênçãos divinas.XIX – O soproDepois de interessantes consid<strong>era</strong>ções relativamente à situação <strong>do</strong>scírculos carnais, Aniceto voltou a examinar nossas necessidades de serviço.Muito amável, Alfre<strong>do</strong> ponderou;— Em virtude da tormenta iminente, poderiam demorar conoscoalgumas horas, seguin<strong>do</strong> amanhã, ao alvorecer.E, com profunda surpresa, ouvi-o afirmar:— Poderão utilizar meu carro, até à zona em que se torne possível.Fornecerei condutor adestra<strong>do</strong> e ganham muito tempo com a medida.Não podia caber em meu espanto. Embora conhecen<strong>do</strong> as op<strong>era</strong>ções<strong>do</strong>s Samaritanos em “Nosso Lar”, que empregavam grandes veículos de traçãoanimal, em trabalhos de salvamento nas regiões inferiores e consid<strong>era</strong>n<strong>do</strong> asdificuldades de vulto que defrontáramos na caminhada longa, rumo ao Postode Socorro, não supunha possível semelhante condução naquele instituto deauxílio.Soube, mais tarde, que os sistemas de transporte, nas zonas maispróximas da Crosta, são muito mais numerosos <strong>do</strong> que se poderia imaginar,em bases transcendentes <strong>do</strong> eletromagnetismo.Nosso orienta<strong>do</strong>r, que parecia meditar gravemente a situação, observoupreocupa<strong>do</strong>:— Entretanto, temos serviços urgentes nos círculos carnais. Vicente eAndré precisam iniciar aprendiza<strong>do</strong> ativo.Alfre<strong>do</strong> sorriu, bon<strong>do</strong>so, assev<strong>era</strong>n<strong>do</strong>:— Quanto a isso, não necessitaremos de maiores cuida<strong>do</strong>s. Há sempreque fazeres em toda a parte. Onde houver espírito de coop<strong>era</strong>ção da criatura,existe igualmente o serviço de Deus. Nossos amigos poderiam colaborarconosco, ainda hoje, nas atividades de assistência. Acompanhar-nos-iam, porexemplo, nos trabalhos da prece, nos quais há sempre muita coisa a fazer emuita lição a aprender.— Excelente sugestão! — exclamou nosso instrutor. — A oraçãoindividual, ou coletiva, é sempre vasto reservatório de ensinos edificantes.— Aliás — falou Ismália, afetuosa — não devemos demorar. Estamosquase na hora.Nesse momento, como se fora chama<strong>do</strong>, de súbito, à lembrança degrave compromisso de trabalho, falou o administra<strong>do</strong>r, dirigin<strong>do</strong>-se àcompanheira:— É preciso prevenir Olívia e Madalena das providências que se fazemimperiosas para a noite. Necessitaremos a colaboração de mais algunstécnicos <strong>do</strong> sopro. Temos alguns irmãos em esta<strong>do</strong> grave, toma<strong>do</strong>s deimpressões físicas mais fortes.— Técnicos <strong>do</strong> sopro? — indaguei, assombra<strong>do</strong>, antes que Ismáliapudesse fazer qualquer observação referente aos serviços.— Sim, meu amigo — respondeu Alfre<strong>do</strong>, atenciosamente —, o soprocura<strong>do</strong>r, mesmo na Terra, é sublime privilégio <strong>do</strong> homem. No entanto, quan<strong>do</strong>encarna<strong>do</strong>s, demoramo-nos muitíssimo a tomar posse <strong>do</strong>s grandes tesouros


que nos pertencem. Comumente, vivemos por lá, perden<strong>do</strong> tempo com afantasia, acreditan<strong>do</strong> em futilidades ou alimentan<strong>do</strong> desconfianças. Quempudesse compreender, entre as formas terrestres, toda a extensão d<strong>este</strong>assunto, poderia criar no mun<strong>do</strong> os mais eficientes processos soproterápicos.— Mas, semelhante patrimônio está à disposição de qualquer Espíritoencarna<strong>do</strong>? — perguntou Vicente, compartilhan<strong>do</strong> minha surpresa.Nosso interlocutor pensou alguns instantes e respondeu, atencioso:— Como o passe pode ser movimenta<strong>do</strong> pelo maior número depessoas, com benefícios apreciáveis, também o sopro curativo poderia serutiliza<strong>do</strong> pela maioria das criaturas, com vantagens prodigiosas. Entretanto,precisamos acrescentar que, em qualquer tempo e situação, o esforçoindividual é imprescindível. Toda realização nobre requer apoio sério, o bemdivino, para manifestar-se em ação, exige a boa vontade humana. Nossostécnicos <strong>do</strong> assunto não se formaram de pronto. Exercitaram-se longamente,adquiriram experiências a preço alto. Em tu<strong>do</strong> há uma ciência de começar. Sãoservi<strong>do</strong>res respeitáveis pelas realizações que atingiram, ganham remun<strong>era</strong>çõesde vulto e gozam enorme acatamento, mas, para isso, precisam conservar apureza da boca e a santidade das intenções.Compreenden<strong>do</strong> o interesse que suas palavras despertavam, continuouo administra<strong>do</strong>r, depois de pequena pausa:— Nos círculos carnais, para que o sopro se afirme suficientemente, éimprescindível que o homem tenha o estômago sadio, a boca habituada a falaro bem, com abstenção <strong>do</strong> mal, e a mente reta, interessada em auxiliar.Obedecen<strong>do</strong> a esses requisitos, teremos o sopro calmante e revigora<strong>do</strong>r,estimulante e curativo. Através dele, poder-se-á transmitir, também na Crosta,a saúde, o conforto e a vida.E, como Vicente e eu não pudéssemos ocultar a perplexidade, Alfre<strong>do</strong>considerou:— Isto não é novo. Jesus, além de tocar naqueles a quem curava,concedia-lhes, por vezes, o sopro divino. O sopro da vida percorre a Criaçãointeira. Toda página sagrada, comentan<strong>do</strong> o princípio da existência, refere-se aisso. Nunca pensaram no vento, como sopro cria<strong>do</strong>r da Natureza? Quanto amim, desde o ingresso em Campo da Paz, quan<strong>do</strong> fui ali recolhi<strong>do</strong> empéssimas condições espirituais, tenho aprendi<strong>do</strong> maravilhosas lições nesseparticular. Tanto assim que, chefian<strong>do</strong> <strong>este</strong> Posto, tenho incentiva<strong>do</strong>, com aspossibilidades ao meu alcance, a formação de novos coop<strong>era</strong><strong>do</strong>res nessesenti<strong>do</strong>, oferecen<strong>do</strong> compensações aos que se decidam iniciar a tarefa deespecialização, nem sempre fácil para to<strong>do</strong>s.Há esse tempo, Ismália recebia algumas colabora<strong>do</strong>ras de importância,que se preparavam para a tarefa.Impressiona<strong>do</strong> com o que ouvira, acompanhei de perto as providênciasque se organizavam.Encontran<strong>do</strong>-me, porém, mais a sós com Aniceto, transmiti-lhe minhaenorme surpresa, responden<strong>do</strong>-me ele em tom confidencial:— Esquecem-se vocês de que a própria Bíblia, aludin<strong>do</strong> aos primórdios<strong>do</strong> homem, narra que o Cria<strong>do</strong>r assoprou na forma criada, comunican<strong>do</strong>-lhe ofôlego da vida. Referin<strong>do</strong>-nos aos nossos irmãos encarna<strong>do</strong>s, faz-se precisoreconhecer, André, que, mesmo partin<strong>do</strong> de homens imperfeitos, mas de boavontade, to<strong>do</strong> sopro com intenção de aliviar ou curar tem relevante significaçãoentre as criaturas, porque to<strong>do</strong>s nós somos herdeiros diretos <strong>do</strong> Divino Poder.


Aliás, é necessário observar também que não estamos diante de umaexclusividade. Você, por certo, passou muito ligeiramente pelo nosso Ministério<strong>do</strong> Auxílio. Temos, ali, grande instituto especializa<strong>do</strong> nesse senti<strong>do</strong>, ondenobres colegas se votam a essa modalidade de coop<strong>era</strong>ção. No plano carnal,toda boca, santamente intencionada, pode prestar apreciáveis auxílios,notan<strong>do</strong>-se, porém, que as bocas generosas e puras poderão distribuir auxíliosditos, transmitin<strong>do</strong> flui<strong>do</strong>s vitais de saúde e reconforto.Esp<strong>era</strong>va que Aniceto prosseguisse, mostran<strong>do</strong>-me as qualidadesmagnéticas <strong>do</strong> sopro, mas Alfre<strong>do</strong> acercara-se de nós, operoso e solícito,exclaman<strong>do</strong>:— Estamos no momento destina<strong>do</strong> aos trabalhos de assistência eoração.— Segui-lo-emos com prazer — respondeu nosso instrutor, sorrin<strong>do</strong>.Era necessário interromper a lição, atenden<strong>do</strong> a deveres diferentes.O administra<strong>do</strong>r percebeu a estranheza que se apossara de Vicente ede mim.— Já sei a impressão que a nossa defesa lhes causa — disse Alfre<strong>do</strong>,deten<strong>do</strong>-se para explicar.Fixan<strong>do</strong>-nos com o olhar muito lúci<strong>do</strong>, continuou:XX - Defesas contra o malDescemos as escadarias e, em frente <strong>do</strong>s muros altos, pude observar aextensão das defesas <strong>do</strong> soberbo edifício. Aquela construção grandiosa <strong>era</strong>muito mais importante que a de qualquer castelo antigo, transforma<strong>do</strong> emfortaleza.Novamente no exterior, podia detalhar a visão panorâmica com maisexatidão. Reconhecia, agora, que entráramos por um baluarte avança<strong>do</strong>,identifican<strong>do</strong> a imponência da construção majestosa. Apresentavam-se-me aslinhas g<strong>era</strong>is com nitidez.Impressionavam-me, sobretu<strong>do</strong>, as fortificações. Via a torre demensagem, consagrada, por certo, ao serviço de resistência; o baluarte agu<strong>do</strong>,elevan<strong>do</strong>-se acima <strong>do</strong>s fossos que deixavam transbordar a água corrente; atorre de vigia, esbelta e alterosa. Observei o caminho da ronda, a cisterna, asseteiras e, em seguida, as paliçadas e barbacãs, refletin<strong>do</strong> na complexidade deto<strong>do</strong> aquele aparelhamento defensivo. E as armas? Identificava-lhes apresença na maquinaria instalada ao longo <strong>do</strong>s muros, copian<strong>do</strong> os pequenoscanhões conheci<strong>do</strong>s na Terra. Entretanto, vi com emoção, no cume da torre devigia, a enorme bandeira de paz, muito alva, tremulan<strong>do</strong> ao vento como largopenacho de neve...O administra<strong>do</strong>r percebeu a estranheza que se apossara de Vicente ede mim.— Já sei a impressão que a nossa defesa lhes causa — disse Alfre<strong>do</strong>,deten<strong>do</strong>-se para explicar.Fixan<strong>do</strong>-nos com o olhar muito lúci<strong>do</strong>, continuou:— Naturalmente, não imaginavam necessárias tantas fortificações.Conforme vêem, nossa bandeira é de concórdia e harmonia; no entanto, éimprescindível consid<strong>era</strong>r que estamos em serviço que precisaremos defender,em qualquer circunstância. Enquanto não imp<strong>era</strong>r a lei universal <strong>do</strong> amor, éindispensável persevere o reina<strong>do</strong> da justiça. Nosso Posto está coloca<strong>do</strong>, aqui,igualmente, como “ovelha em meio de lobos”, e, embora não nos caiba efetuar


o extermínio das f<strong>era</strong>s, necessitamos defender a obra <strong>do</strong> bem contra osassaltos indébitos. As organizações <strong>do</strong>s nossos irmãos consagra<strong>do</strong>s ao malsão vastíssimas. Não admitam a hipótese de serem, to<strong>do</strong>s eles, ignorantes ouinconscientes. A maioria se constitui de perversos e criminosos. São entidadesverdadeiramente diabólicas. Não tenham disso qualquer dúvida.— Deus meu! — exclamou Vicente, admira<strong>do</strong> mas por que seorganizam delib<strong>era</strong>damente para o mal? Não sabem, porventura, que to<strong>do</strong>s ospatrimônios universais pertencem à Majestade Divina? Não reconhecem oSob<strong>era</strong>no Poder?— Ah! meu amigo — falou Alfre<strong>do</strong> em tom grave —, fiz as mesmasperguntas quan<strong>do</strong> aqui cheguei pela primeira vez. As respostas que tive foramincisivas e concludentes. Poderíamos, Vicente, formular na Crosta as mesmasinterrogações. Os criminosos que fazem as vítimas da guerra, os explora<strong>do</strong>resda economia popular, os avarentos misérrimos, os sedentos de injustifica<strong>do</strong>pre<strong>do</strong>mínio e os vai<strong>do</strong>sos cheios de fatuidade sabem, tão bem quanto osnossos adversários daqui, que tu<strong>do</strong> pertence a Deus, que o homem é simplesusufrutuário <strong>do</strong>s divinos bens. Não ignoram que os antepassa<strong>do</strong>s foramchama<strong>do</strong>s à verdade e à contas pela morte, e que eles seguirão os mesmoscaminhos; entretanto, atormentam-se na Crosta como verdadeiros loucos,amontoan<strong>do</strong> possibilidades para a ruína e abusan<strong>do</strong> das oportunidades maissantas. Aqui se verifica a mesma coisa. Querem <strong>do</strong>minar antes de se<strong>do</strong>minarem, exigem antes de dar e entram em perene conflito com o espíritodivino da lei. Estabeleci<strong>do</strong> o duelo entre a fantasia deles e a verdade <strong>do</strong> Pai,resistem às corrigendas <strong>do</strong> Senhor e transformam-se, esses desventura<strong>do</strong>s,em verdadeiros gênios da sombra, até que, um dia, se decidam a novos rumos.Intriga<strong>do</strong> com as profundas observações, perguntei:— Mas, como explicar as bases de semelhante atitude? Na Terra,compreendemos certos enganos, mas aqui...O generoso interlocutor não me deixou terminar e prosseguiu:— Na Crosta, nossos irmãos menos felizes lutam pela <strong>do</strong>minaçãoeconômica, pelas paixões desordenadas, pela hegemonia de falsos princípios.Nestas zonas imediatas à mente terrestre, temos tu<strong>do</strong> isso em identidade decondições. Entre as entidades perversas e ignorantes, há coop<strong>era</strong>tivas para omal, sistemas econômicos de natureza feudalista, baixa exploração de certasforças da Natureza, vaidades tirânicas, difusão de mentiras, escravização <strong>do</strong>sque se enfraquecem pela invigilância, <strong>do</strong>loroso cativeiro <strong>do</strong>s Espíritos fali<strong>do</strong>s eimprevidentes, paixões talvez mais desordenadas que as da Terra,inquietações sentimentais, terríveis desequilíbrios da mente, angustiososdesvios <strong>do</strong> sentimento. Em to<strong>do</strong> o lugar, meu amigo, as quedas espirituais,p<strong>era</strong>nte o Senhor, são sempre as mesmas, embora variem de intensidade ecoloração.— Mas... e as armas? — perguntei — acaso são utilizadas?— Como não? — disse Alfre<strong>do</strong>, pressuroso — não temos balas de aço,mas temos projeteis elétricos. Naturalmente, a ninguém atacaremos. Nossatarefa é de socorro e não de extermínio.— No entanto — aduzi, sob forte impressão —, qual o efeito dessesprojéteis?— Assustam terrivelmente — respondeu ele, sorrin<strong>do</strong> — e, sobretu<strong>do</strong>,demonstram as possibilidades de uma defesa que ultrapassa a ofensiva.— Mas apenas assustam? — tornei a interrogar.


Alfre<strong>do</strong> sorriu mais significativamente e acrescentou:— Poderiam causar a impressão de morte.— Que diz! — exclamei com insofreável espanto.O administra<strong>do</strong>r meditou alguns instantes, e, pond<strong>era</strong>n<strong>do</strong>, talvez, agravidade <strong>do</strong>s esclarecimentos, obtemperou:— Meu amigo! meu amigo! se já não estamos na carne, busquemosdesencarnar também os nossos pensamentos. As criaturas que se agarram,aqui, às impressões físicas, estão sempre crian<strong>do</strong> densidade para os seusveículos de manifestação, da mesma forma que os Espíritos dedica<strong>do</strong>s àregião superior estão sempre purifican<strong>do</strong> e elevan<strong>do</strong> esses mesmos veículos.Nossos projéteis, portanto, expulsam os inimigos <strong>do</strong> bem através de vibrações<strong>do</strong> me<strong>do</strong>, mas poderiam causar a ilusão da morte, atuan<strong>do</strong> sobre o corpodenso <strong>do</strong>s nossos semelhantes menos adianta<strong>do</strong>s no caminho da vida. Amorte física, na Terra, não é igualmente pura impressão e ninguémdesaparece. O fenômeno é apenas de invisibilidade ou, por vezes, deausência. Quanto à responsabilidade <strong>do</strong>s que matam, isto é outra coisa. Ealém desta observação, que é da alçada da Justiça Divina, temos a consid<strong>era</strong>r,igualmente que, nesta esf<strong>era</strong>, o corpo denso modifica<strong>do</strong> pode ressurgir to<strong>do</strong>sos dias, pela matéria mental destinada à produção dele, enquanto que, paraobter o corpo físico, almas há que trabalham, por vezes, durante séculos...Vicente e eu caláramos, estupefatos.Alfre<strong>do</strong> sorriu serenamente e perguntou, bem humora<strong>do</strong>:— Vocês conhecem a lenda hindu da serpente e <strong>do</strong> santo?Ante a nossa expressão negativa, o administra<strong>do</strong>r continuou:— Contam as tradições populares da Índia que existia uma serpentevenenosa em certo campo. Ninguém se aventurava a passar por lá, recean<strong>do</strong>lheo assalto. Mas um santo homem, a serviço de Deus, buscou a região, maisconfia<strong>do</strong> no Senhor que em si mesmo. A serpente o atacou, desrespeitosa. Ele<strong>do</strong>minou-a, porém, com o olhar sereno, e falou: — Minha irmã, é da lei que nãofará mal a ninguém. A víbora recolheu-se, envergonhada. Continuou o sábio oseu caminho e a serpente modificou-se completamente. Procurou os lugareshabita<strong>do</strong>s pelo homem, como desejosa de reparar os antigos crimes. Mostrouseintegralmente pacífica, mas, desde então, começaram a abusar dela.Quan<strong>do</strong> lhe identificaram a submissão absoluta, homens, mulheres e criançasdavam-lhe pedradas. A infeliz recolheu-se à toca, desalentada. Vivia aflita,medrosa, desanimada. Eis, porém, que o santo voltou pelo mesmo caminho edeliberou visitá-la. Espantou-se, observan<strong>do</strong> tamanha ruína. A serpentecontou-lhe, então, a história amargurada. Desejava ser boa, afável e carinhosa,mas as criaturas perseguiam-na e apedrejavam-na. O sábio pensou, pensou erespondeu após ouvi-la:— Mas, minha irmã, houve engano de tua parte. Aconselhei-te a nãomorderes ninguém, a não praticares o assassínio e a perseguição, mas não tedisse que evitasses de assustar os maus. Não ataques as criaturas de Deus,nossas irmãs no mesmo caminho da vida, mas defende a tua coop<strong>era</strong>ção naobra <strong>do</strong> Senhor. Não mordas, nem firas, mas é preciso manter o perverso àdistância, mostran<strong>do</strong>-lhe os teus dentes e emitin<strong>do</strong> os teus silvos.Nesse momento, Aniceto sorriu de maneira expressiva.O administra<strong>do</strong>r fez longa pausa e concluiu:— Creio que a fábula dispensa comentário.


XXI - Espíritos dementa<strong>do</strong>sInúmeros servi<strong>do</strong>res acompanhavam-nos ao serviço. Movimentavamcarrega<strong>do</strong>res sem conta. Conduziam grandes botijas dágua, caldeirões desopa, vasos de substância medicamentosa, em galeotas diversas.Mais alguns passos e notei que centenas de entidades se reuniam emvastos albergues, olhos vagueantes e rostos sombrios, parecen<strong>do</strong> umaassembléia de loucos em manicômio de amplas proporções.Alfre<strong>do</strong> aconselhou umas tantas providências de serviço à maioria <strong>do</strong>stécnicos <strong>do</strong> sopro curativo, os quais se desviaram de nós, rumo às edificaçõessituadas em zona diferente.Gentilmente nos explicava que os benfeitores de “Campo da Paz”localizavam, ali, grande número de Espíritos enfermos, mais desequilibra<strong>do</strong>sque propriamente perversos. Os <strong>do</strong>entes que tínhamos sob os olhospermaneciam em melhores condições. Já se locomoviam e muitos deles jáconversavam, apesar <strong>do</strong> desequilíbrio que lhes assinalava as palavras epensamentos.Esclarecia-nos sobre as múltiplas obrigações <strong>do</strong> trabalho de rotina,quan<strong>do</strong> algumas entidades se acercaram, respeitosas.— Senhor Alfre<strong>do</strong> — disse um velho de barbas muito alvas —, estouaguardan<strong>do</strong> o resulta<strong>do</strong> da minha petição. Em que ficamos, quanto às minhasterras e os escravos? Paguei bom preço ao Carmo Garcia. Sabe o senhor quevenho sen<strong>do</strong> persegui<strong>do</strong> durante muitos anos, e não posso perder mais tempo.Quan<strong>do</strong> volto para casa? Creio <strong>este</strong>ja o senhor ciente da necessidade de euvoltar ao seio <strong>do</strong>s meus. Esp<strong>era</strong>m-me a mulher e os filhos.Como excelente médico da alma, Alfre<strong>do</strong> prestou a maior atenção erespondeu, como se estivesse tratan<strong>do</strong> com pessoa de bom senso:Sim, Malaquias, você reclama com razão, mas sua saúde não permite oregresso apressa<strong>do</strong> ao lar. Você sabe que sua esposa, Dona Sinhá, pediufosse você aqui trata<strong>do</strong> convenientemente. Creio que ela deve estar muitotranqüila a seu respeito. Suas idéias, porém, meu amigo, não estão ainda bemcoordenadas. Temos alguma coisa mais a fazer. Porque preocupar-se tanto,assim, com as terras e os escravos? Primeiramente a saúde, Malaquias; nãoesqueça a saúde!O velho sorriu, como o <strong>do</strong>ente apoia<strong>do</strong> na firmeza e no otimismo <strong>do</strong>médico.— Reconheço que as suas observações são justas, mas meus filhosnão se movem sem mim, são preguiçosos e necessitam da minha presença.Mas, <strong>do</strong>utrinan<strong>do</strong> sutilmente o pobre velhinho, o administra<strong>do</strong>r objetou:— Entretanto, <strong>do</strong>nde vi<strong>era</strong>m os filhos para os seus braços paternos?Não vi<strong>era</strong>m das mãos de Deus?— Sim, sim... — afirmava o ancião, trêmulo e satisfeito.— Pois é isso, Malaquias, chegam instantes na vida, em queprecisamos devolver a Deus o que a Ele pertence. Além <strong>do</strong> mais, seus filhossão também responsáveis, e, se forem ociosos, responderão pelos males quecriarem em torno de si mesmos. Por agora, é indispensável que você se refaça,aclare as idéias e sossegue o coração.O velho sorriu, conforta<strong>do</strong>, mas, antes que pudesse falar de novo, umcavalheiro, denotan<strong>do</strong> nobre aprumo, adiantou-se, exclaman<strong>do</strong>:— E a solução <strong>do</strong> meu processo, senhor Alfre<strong>do</strong>? Sinto-me prejudica<strong>do</strong>pelos parentes de má fé. Minha parte na h<strong>era</strong>nça <strong>do</strong>s avós é cobiçada pelos


primos. Segun<strong>do</strong> já lhe fiz ver, meu quinhão é superior aos demais. Soube,todavia, que o Visconde de Cairu interpôs toda a sua influência contra mim.Ninguém ignora tratar-se de um grande velhaco. Que não poderá ele fazer comas artimanhas políticas? Está mal Informa<strong>do</strong> a meu respeito. O senhor envioumeu pedi<strong>do</strong> ao Imp<strong>era</strong><strong>do</strong>r?Já expedi a mensagem — esclareceu Alfre<strong>do</strong> com carinho fraternal — oImp<strong>era</strong><strong>do</strong>r certamente levará em conta a solicitação.— Entretanto, a demora é muito grande!... — falou o cavalheiro,impaciente, como se estivesse diante de insubordina<strong>do</strong> vulgar.— Mas, meu caro Aristarco — respondeu o administra<strong>do</strong>r, muito calmo—, acredito que você está sen<strong>do</strong> experimenta<strong>do</strong> para conhecer a grandeza dah<strong>era</strong>nça divina. Que valem os patrimônios terrestres, ante os patrimôniosimperecíveis? Não pense no que tem perdi<strong>do</strong>; medite nos bens sublimes quepoderá alcançar, diante da Vida Eterna. Esqueça os primos ambiciosos e oVisconde que não o compreendeu. Terão eles de deixar quanto possuem, nocampo transitório, a fim de prestarem contas à Divindade. Nunca pensou nisto?Aristarco pareceu perder, por momentos, a inquietação, sorriufrancamente e respondeu:— É verdade! Os tratantes morrerão...Uma senhora, mostran<strong>do</strong>-se aflita, pôs-se à nossa frente e interpelou,altiva:— Senhor Alfre<strong>do</strong>, peço-lhe não me retenha aqui. Meu mari<strong>do</strong> é nossopróprio adversário. Prometeu perseguir as filhas, tão logo me ausentasse decasa. Aqui permanecen<strong>do</strong>, estou certa de que ele nos dissipará os bens,desmoralizar-nos-á o nome. Por favor, autorize o meu regresso. O coração mediz que as filhinhas estão desesp<strong>era</strong>das. Convenço-me, cada vez mais, de quea minha moléstia teve origem n<strong>este</strong> esta<strong>do</strong> de coisas...— Já sei, minha irmã — respondeu o nosso amigo com a mesmasolicitude —; no entanto, que adiantaria regressar, tão fortementeatormentada? Não será melhor curar-se, tranqüilizar o espírito para ajudar asfilhinhas com eficiência?— Mas, nem sequer sei onde estou — reclamou a pobre senhora,torcen<strong>do</strong> as mãos —, creio me tenham trazi<strong>do</strong> ao fim <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, paratratamento de uma simples perda de senti<strong>do</strong>s!— Todavia, ninguém a maltrata — disse o interlocutor, bon<strong>do</strong>samente— e seu caso não é tão simples como parece. Tenha calma. Os laçosconsangüíneos são edificantes, mas, acima deles, vibra a família universal. Hácriaturas suportan<strong>do</strong> far<strong>do</strong>s muito mais pesa<strong>do</strong>s que o seu. Aprenda, quanto<strong>este</strong>ja em suas possibilidades, a desfazer-se de aquisições passageiras, paraganhar os eternos bens.A infeliz não sorriu como os outros. Fechan<strong>do</strong>-se em sombria catadura,afastou-se pesadamente, olhos fulgurantes de cól<strong>era</strong>, como se a menteestivesse cravada muito longe, incapaz de qualquer compreensão.Adiantaram-se outros enfermos, mas o administra<strong>do</strong>r falou em voz alta:— Não posso atender a to<strong>do</strong>s no momento. Depois de amanhã, serãorecebi<strong>do</strong>s para explicações.E, voltan<strong>do</strong> para nós, esclareceu a sorrir:No círculo carnal, seriam to<strong>do</strong>s absolutamente normais; no entanto,aqui, são verdadeiros loucos. São desencarna<strong>do</strong>s que, por muito tempo, seagarraram aos problemas inferiores. Reclamam providências, sem falar no


ensejo de iluminação que menosprezaram, acusam os outros, semrelacionarem os próprios erros. Procurei ouvi-los para lhes dar uma idéia <strong>do</strong>nosso trabalho, no setor <strong>do</strong>s que se desequilibram mentalmente por excessode centralização em propósitos inferiores. Não é crime interessar-se alguémpelas atividades rurais, pela recepção de uma h<strong>era</strong>nça, pelo bem-estar dafamília; mas, no fun<strong>do</strong>, o velhinho que reclama terras e escravos nunca pensousenão em tirania no campo; o cavalheiro, que aguarda a h<strong>era</strong>nça, deseja lesaros primos; e a senhora, que se revelou tão interessada pelo ambiente<strong>do</strong>méstico, desencantou quan<strong>do</strong> pretendia envenenar o mari<strong>do</strong>, às ocultas.Conheço os processos um a um. Acordaram de longo sono, na inconsciência, ejulgam-se ainda encarna<strong>do</strong>s, supon<strong>do</strong> igualmente que podem dissimular aspretensões criminosas.Eu estava assombra<strong>do</strong>. Expressan<strong>do</strong> minha profunda admiração,perguntei:— Esses <strong>do</strong>entes demoram-se aqui? Como alcançaram o Posto?Gentil, como sempre, Alfre<strong>do</strong> respondeu:— Foram recolhi<strong>do</strong>s em pior esta<strong>do</strong>. Já estiv<strong>era</strong>m em pesa<strong>do</strong> sonodurante muito tempo e vão readquirin<strong>do</strong> a memória, gradativamente, até quepossam ser encaminha<strong>do</strong>s aos Institutos Magnéticos de “Campo da Paz”, a fimde receberem maiores auxílios e necessários esclarecimentos.XXII - Os que <strong>do</strong>rmemSeguimos através de longas filas de arvore<strong>do</strong> acolhe<strong>do</strong>r, rumo àsvastas edificações que obedeciam a linhas arquitetônicas singulares.Sem que eu pudesse explicar o fenômeno, as luzes diminuíamprogressivamente. Que teria aconteci<strong>do</strong>? Vicente e eu nos entreolhamos,assusta<strong>do</strong>s. Alfre<strong>do</strong>, Aniceto e os demais, todavia, caminhavam sem surpresa.A serenidade deles tranqüilizava-me o íntimo, embora o espanto insofreável.Mais alguns passos, atingimos os pavilhões diferentes, que se<strong>este</strong>ndiam em área superior a três quilômetros, pelos meus cálculos. Lá dentro,contu<strong>do</strong>, as sombras se fiz<strong>era</strong>m mais densas. Conseguia distinguir,vagamente, os quadros interiores, observan<strong>do</strong> que se tratava, a meu ver, deespaçosas enfermarias com teto sóli<strong>do</strong>, mas semi-abertas ao longo dasparedes altas, dan<strong>do</strong> livre passagem ao ar.Dezenas de operários, devota<strong>do</strong>s e operosos, seguiam-nos emabsoluto silêncio.Alfre<strong>do</strong> <strong>era</strong> o único a falar, notan<strong>do</strong>-se, contu<strong>do</strong>, que se fiz<strong>era</strong>extremamente discreto nas palavras.Tu<strong>do</strong> isso me dava a impressão de haver penetra<strong>do</strong> um cemitérioescuro, onde os visitantes fossem obriga<strong>do</strong>s a guardar to<strong>do</strong> o respeito aosmortos.Com estranheza, notei que um <strong>do</strong>s servi<strong>do</strong>res entregara ao chefe <strong>do</strong>Posto pequenina máquina, que Alfre<strong>do</strong> nos deu a conhecer gentilmente,explican<strong>do</strong>:— Este é o nosso aparelho de sinalização luminosa. Estamos no centro<strong>do</strong>s pavilhões a que se recolhem irmãos ainda a<strong>do</strong>rmeci<strong>do</strong>s. Temos aqui,presentemente, quase <strong>do</strong>is mil.Os numerosos coop<strong>era</strong><strong>do</strong>res dirigiam-se em ardente para a zona deserviços que lhes competiam.Depois de pequena pausa, falou o administra<strong>do</strong>r com firmeza:


— Iniciemos o trabalho de assistência.Ao primeiro sinal luminoso de Alfre<strong>do</strong>, acend<strong>era</strong>m-se numerosaslâmpadas elétricas e, então, <strong>do</strong>minan<strong>do</strong>, a custo, a primeira impressão dehorror, vi extensas filas de leitos ao rés-<strong>do</strong>-chão, ocupa<strong>do</strong>s to<strong>do</strong>s por pessoasmergulhadas em profun<strong>do</strong> sono. Muitos tinham o semblante horren<strong>do</strong>. Erammuito poucos os que traziam as pálpebras cerradas, parecen<strong>do</strong> tranqüilos. Emquase to<strong>do</strong>s, estampavam-se-lhes nos olhos, aparentemente vitrifica<strong>do</strong>s, oextremo pavor e o <strong>do</strong>loroso desespero da morte. Cadavérica palidez cobrialhesa face.Recordan<strong>do</strong> a lit<strong>era</strong>tura antiga, pensei nos velhos túmulos egípcios.Tínhamos, diante de nós, centenas de múmias perfeitas. Raríssimos pareciam<strong>do</strong>rmir um sono natural.Aproximan<strong>do</strong>-se de nós outros, Alfre<strong>do</strong> falou a Aniceto, em particular:— Infelizmente, não podemos atender a to<strong>do</strong>s.— Porquê? — indagou nosso orienta<strong>do</strong>r, comovi<strong>do</strong>.— Estamos aguardan<strong>do</strong> pessoal adestra<strong>do</strong>. Tenho aqui a colaboraçãode oitenta auxiliares para <strong>este</strong> gênero de serviço; entretanto, não pode cadaqual atender a mais de cinco <strong>do</strong>entes de uma só vez. À vista disso, <strong>do</strong>s nossosmil novecentos e oitenta abriga<strong>do</strong>s, separei os quatrocentos mais suscetíveisde próximo despertar, a fim de submetê-los ao tratamento intensivo.— E os demais?— Recebem alimento e medicação mais densos uma vez por dia.Aniceto calou-se, pensativo.Profundamente toca<strong>do</strong> pelo que via, inclinei-me instintivamente para oabriga<strong>do</strong> mais próximo, tentan<strong>do</strong> examinar-lhe o esta<strong>do</strong> fisiológico. Identifiqueio calor orgânico, a pulsação regular e os movimentos respiratórios, emboraverificasse a extrema rigidez <strong>do</strong>s membros, como que mergulha<strong>do</strong>s emimobilidade cataléptica.Indescritível impressão apoderou-se de mim. Levantei-me assusta<strong>do</strong>,dirigi-me a Aniceto com a máxima discrição, e interroguei:— Explicai-me, por Deus! que vemos aqui? Estamos, acaso, namoradia da morte, depois da morte?O instrutor sorriu, complacente, e explicou em voz quase imperceptível:— Sim, André, <strong>este</strong> sono é, verdadeiramente, avançada imagem damorte. Aqui permanecem, com a bênção <strong>do</strong> abrigo, alguns milhões <strong>do</strong>s nossosirmãos que ainda <strong>do</strong>rmem. São as criaturas que nunca se entregaram ao bemativo e renova<strong>do</strong>r, em torno de si, e mormente os que acreditaramconvictamente na morte, como sen<strong>do</strong> o nada, o fim de tu<strong>do</strong>, o sono eterno. Acrença na vida superior é atividade incessante das almas. A ferrugem ataca aenxada ociosa. O entorpecimento invade o Espírito vazio de ideal cria<strong>do</strong>r. Osque, nos círculos canais, homens e mulheres, crêem na vida eterna, ainda quenão sejam fundamentalmente cristãos, estão desenvolven<strong>do</strong> faculdades demovimentação espiritual e podem penetrar as esf<strong>era</strong>s extraterrenas em esta<strong>do</strong>anima<strong>do</strong>r, pelo menos quanto a locomoção e juízo mais ou menos exato. Noentanto, as criaturas que persev<strong>era</strong>m em negação delib<strong>era</strong>da e absoluta, nãoobstante, por vezes, filiadas a cultos externos de atividade religiosa, que nadavêem além da carne nem de sejam qualquer conhecimento espiritual, sãoverdadeiramente infelizes. Muitos penetram nossas regiões de serviço, comoembriões de vida, na colméia da Natureza sempre divina. Um amigo nossocostuma designá-los por fetos da espiritualidade; entretanto, a meu ver, seriam


felizes se estivessem nessa condição inicial. Temos a certeza, porém, de quemuitos se negaram ao contacto da fé, absolutamente por indiferença criminosaaos desígnios <strong>do</strong> Eterno Pai. Dormem, porque estão magnetiza<strong>do</strong>s pelaspróprias concepções negativistas; permanecem paralíticos, porque preferiram arigidez ao entendimento; mas dia virá em que deverão levantar-se e pagar osdébitos contraí<strong>do</strong>s. Eis porque os considero sofre<strong>do</strong>res. Primeiramente,demoram no sono em que acreditaram, mais tarde acordam; porém, a maiorianão pode fugir à enfermidade e à perturbação, como acontece aos irmãosdementa<strong>do</strong>s, que vimos inda há pouco.Grande o meu assombro. Como Vicente se aproximasse, também, paraouvi-lo, falou Aniceto, esclarecen<strong>do</strong> a nós ambos:— A fé sinc<strong>era</strong> é ginástica <strong>do</strong> Espírito. Quem não a exercitar de algummo<strong>do</strong>, na Terra, preferin<strong>do</strong> delib<strong>era</strong>damente a negação injustificável, encontrarse-ámais tarde sem movimento. Semelhantes criaturas necessitam de sono,de profun<strong>do</strong> repouso, até que despertem para o exame das responsabilidadesque a vida traduz.Observan<strong>do</strong> que o nosso orienta<strong>do</strong>r se esquivava a comentárioslongos, para que pudéssemos seguir, de mais perto, os trabalhos deassistência, calei as muitas indagações que me escaldavam a mente.Com exceção de algumas senhoras que permaneciam junto de Ismália,to<strong>do</strong>s os servi<strong>do</strong>res se mantinham em posição de vigilância, ao pé <strong>do</strong>s gruposmumifica<strong>do</strong>s. A luz artificial iluminava os leitos, que se perdiam de vista, masobservei que nenhum <strong>do</strong>s alberga<strong>do</strong>s reagia à intensa claridade que se fiz<strong>era</strong>.Continuavam rígi<strong>do</strong>s, cadavéricos, prostra<strong>do</strong>s.Notei, então, que Alfre<strong>do</strong> começou a mover o aparelho de sinalização,para emitir as ordens de serviço. Cada sinal determinava op<strong>era</strong>ção diferente.Vi os servi<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Posto distribuírem pequenas porções de alimentolíqui<strong>do</strong> e medicação bucal, em profun<strong>do</strong> silêncio. Em seguida, fornec<strong>era</strong>mreduzidas quantidades de água efluviada aos infelizes, com exceção, porém,de muitos que pareciam prepara<strong>do</strong>s a receber, tão somente, cal<strong>do</strong> e remédio.Dois terços <strong>do</strong>s quatrocentos abriga<strong>do</strong>s em tratamento receb<strong>era</strong>m passesmagnéticos. Alguns poucos receb<strong>era</strong>m aplicações <strong>do</strong> sopro cura<strong>do</strong>r.To<strong>do</strong>s os movimentos <strong>do</strong> trabalho <strong>era</strong>m transmiti<strong>do</strong>s pela sinalizaçãoluminosa, partida das mãos <strong>do</strong> administra<strong>do</strong>r, que parecia interessa<strong>do</strong> namanutenção <strong>do</strong> máximo silêncio. Impressiona<strong>do</strong> com o que via, perguntei aoorienta<strong>do</strong>r, em voz baixa, a razão de alguns enfermos não terem si<strong>do</strong>beneficia<strong>do</strong>s com a água e com o socorro de forças novas, através <strong>do</strong> passe e<strong>do</strong> sopro vivificante.Aniceto, to<strong>do</strong> bondade, inclinou-se aos meus ouvi<strong>do</strong>s, com a ternura deum pai ansioso por tranqüilizar o filhinho inquieto, e falou:— Cada um na vida, meu caro André, tem a necessidade que lhe épeculiar. Aqui, compreendemos com amplitude esse imp<strong>era</strong>tivo da Natureza.XXIII - PesadelosEnquanto Alfre<strong>do</strong> continuava dirigin<strong>do</strong> os serviços, nosso instrutor, coma permissão dele, conduziu-nos aos leitos distantes, onde se asilavam osenfermos desatendi<strong>do</strong>s quanto ao auxílio magnético.— Precisamos acentuar experiências e aproveitar oportunidades —afirmou Aniceto, sorridente.


Acompanhamo-lo, curiosos, identifican<strong>do</strong> as expressões isoladas,<strong>do</strong>lorosas ou terríveis, daquelas máscaras mortuárias.Quan<strong>do</strong> nos encontrávamos a regular distância da zona central, oinstrutor esclareceu, em tom grave:Desejaria conhecer a extensão <strong>do</strong>s benefícios colhi<strong>do</strong>s por vocês noGabinete de Auxílio Magnético às Percepções. Para ajudar eficientemente aosnossos amigos encarna<strong>do</strong>s, é necessário saibamos ver com clareza eprecisão.Indican<strong>do</strong> os <strong>do</strong>entes imóveis, acrescentou:— To<strong>do</strong>s os que <strong>do</strong>rmem n<strong>este</strong>s pavilhões permanecem dentro <strong>do</strong> mausono.— Mas teremos, porventura, nas zonas espirituais, os que <strong>este</strong>jam embom sono? — interrogou Vicente, de mo<strong>do</strong> brusco.Sem dúvida — respondeu Aniceto, solícito — temos na esf<strong>era</strong> denossas atividades os que repousam perío<strong>do</strong>s curtos, quais trabalha<strong>do</strong>res retosque esp<strong>era</strong>m o repouso noturno a tranqüilidade <strong>do</strong>s que sabem trabalhar edescansar, de consciência aliviada.Fez uma pausa, como quem estudava o melhor meio de sintetizar, pornão perder tempo, e acentuou:— Mas esses não precisam estacionar, como filhos da sombra, nasconstruções de emergência de um Posto de Socorro.Em seguida, retomou o fio da lição e continuou:— Quem <strong>do</strong>rme em desequilíbrio, entrega-se a pesadelos. To<strong>do</strong>s <strong>este</strong>sirmãos desventura<strong>do</strong>s que nos cercam, aparentemente mortos, são presas dehorríveis visões íntimas. Vejamos o aproveitamento de vocês. Procedamos aobservações rápidas. Antigamente, o inquérito anatômico, o exame dasvísc<strong>era</strong>s, a perquirição científica nas células, também aparentemente mortas;agora, a auscultação profunda da alma, a sondagem <strong>do</strong>s sentimentos a visão<strong>do</strong> plano mental.E, com expressão decidida, concluiu, resoluto:— Mãos a obra!Designan<strong>do</strong>-me um corpo envelheci<strong>do</strong> de mulher, recomen<strong>do</strong>u:— Você, André, examine detidamente essa irmã. Abstenha-se de todasas consid<strong>era</strong>ções <strong>do</strong> plano exterior. Observe-a com todas as possibilidades epercepções ao seu alcance.Sinc<strong>era</strong>mente interessa<strong>do</strong> em atender, não reparei nas ordens que onosso instrutor transmitia a Vicente.Procurei esquecer os quadros externos, focalizan<strong>do</strong> aquela máscarafeminina com to<strong>do</strong>s os meus recursos mentais. À medida que medespreocupava <strong>do</strong>s interesses diferentes, observava a sombra cinzento-escuraque se lhe ia condensan<strong>do</strong> em torno da fronte. A visão parecia auxiliar-me opoder de concentração. Reconhecen<strong>do</strong> que o fenômeno se acentuava, nãomais lembrei qualquer objeto ou situação exterior. Estupefato, comecei adivisar formas movimentadas no âmbito da pequena tela sombria. Surgiu umacasa modesta de cidade humilde. Tive a impressão de transpor-lhe a porta. Ládentro, um quadro horrível e angustioso. Uma senhora de idade madura,demonstran<strong>do</strong> crueldade impassível no rosto, lutava com um homemembriaga<strong>do</strong>.— “Ana! Ana! pelo amor de Deus! não me mates!” — dizia ele, súplice,incapaz de defender-se.


— “Nunca! Nunca te per<strong>do</strong>arei !“ — exclamava a mulher, acrescentan<strong>do</strong>em tom lúgubre — “Morrerás esta noite”. — Vi o infeliz cair, exausto.— “Envenenaste-me com bebida mortal” — reclamava ele, lacrimoso —“per<strong>do</strong>a-me se te causei algum mal! Sou pai! Ana! preciso viver para meusfilhos! Não me mates, por piedade!” — Ela ouviu com frieza e respondeu duramente : — “Morrerás mesmo assim. Tenho a infelicidade de amar-te, a ti quepertences a outra mulher! Não quis<strong>este</strong> seguir-me e preciso vingar-me!”Rebolcan<strong>do</strong>-se no assoalho, tornava o Infeliz: — “Deus sabe que estouarrependi<strong>do</strong> <strong>do</strong> meu criminoso passa<strong>do</strong>! Quero viver para o bem, Ana! Per<strong>do</strong>amepor amor <strong>do</strong> Eterno Pai! Quem sabe poderei auxiliar-te como irmão! Ajudamepara que te possa ajudar! Não me mates! Não me mates!” A mulher, porém,como se tivesse a maldade agravada, ao ouvir a expressão da virtude, tomoude um pesa<strong>do</strong> martelo e exclamou: — “Deus não existe! Deus não existe!Morrerás, infame!” E, de súbito, crivou-lhe o crânio de marteladas surdas. Ohomem expirou sem um grito. Logo após, vi a criminosa conduzin<strong>do</strong> o cadáverem carrinho de mão, através de um trilho ermo. Acompanhava-lhe osmovimentos com interesse. A noite estava muito escura, mas observei a pararjunto à via férrea. Son<strong>do</strong>u os arre<strong>do</strong>res, certificou-se <strong>do</strong> isolamento em que seencontrava e depôs a estranha carga sobre os trilhos. Vi-a dispon<strong>do</strong> o cadáverpara que a cabeça fosse decepada à passagem <strong>do</strong> comboio, retiran<strong>do</strong>-seapressadamente, reconduzin<strong>do</strong> o pequeno carrinho vazio. Não esperei amáquina de ferro. Segui a mulher que me pareceu inquieta e pensativa. Antes,porém, que depusesse o carrinho no extenso quintal, vi que arregalava osolhos como louca, cercada de seres que me parec<strong>era</strong>m bandi<strong>do</strong>s de negrasv<strong>este</strong>s. Era ela, agora, quem acusava estranha embriaguez de pavor. Venc<strong>era</strong>um pobre homem invigilante, mas, a meu ver, seria vencida por seres maisperversos, talvez, que ela própria: — “Acudam-me! Acudam-me!” — gritava,espavorida. E continuava a cena, em que a desventurada golfava súplicas emvão.Senti-me como especta<strong>do</strong>r que precisasse movimentar qualquersocorro. E, graças à Bondade Divina, não experimentei pela mulher infelizsenão a mais viva compaixão. Ao primeiro impulso de revolta pelo crimeconsuma<strong>do</strong>, recordei as lições já recebidas em “Nosso Lar” e pensei napossibilidade de ser a criminosa alguma pessoa querida ao meu coração. SeAna estivesse no mun<strong>do</strong>, ao meu la<strong>do</strong>, na família <strong>do</strong> sangue, não desejariaauxiliá-la? Porque haveria de acusá-la, se não lhe conhecia o passa<strong>do</strong> total!Ter-lhe-iam da<strong>do</strong> a educação na infância, a bênção <strong>do</strong> lar, a segurança de umafeto sem manchas? Quem sabe vi<strong>era</strong> de longe, como pedra incompreendida,rolan<strong>do</strong> nos abismos <strong>do</strong> sofrimento? Que laços a uniriam à vítima, igualmentedigna de piedade fraternal? Como teria começa<strong>do</strong> o drama <strong>do</strong>loroso? Nãosabia. Enxergava somente a pobre mulher rodeada de sombras agressivas,imploran<strong>do</strong> socorro. Ignorava como ajudá-la, mas recordei que Ana <strong>era</strong> minhairmã, filha, <strong>do</strong> mesmo Pai, irmã que a<strong>do</strong>ec<strong>era</strong> no caminho comum, sem que eupudesse, pelo menos por agora, indagar a causa. Procurava, comigo mesmo,algum meio de auxiliá-la, quan<strong>do</strong> alguém me chamou de súbito.Era Aniceto que exclamava, bon<strong>do</strong>so:— Venha, André! Vicente e você têm sabi<strong>do</strong> aproveitar alguma coisa.Estou satisfeito. Seus pensamentos de fraternidade e paz muito auxiliaramessa Irmã infeliz. Guarde a certeza disso e continue buscan<strong>do</strong> a compreensãopara socorrer e ajudar com êxito. Conforme observaram de perto, sabem agora


que cada um <strong>do</strong>s que aqui <strong>do</strong>rmem sono atormenta<strong>do</strong>, vivem estranhospesadelos, de que não podem isentar-se de um instante para outro. Nãoprecisamos comentar qualquer episódio dessas existências vividas emoposição à Vontade Divina. Bastará lembrar sempre que a dívida, em todaparte, anda com os deve<strong>do</strong>res.E com expressivo olhar, acrescentou:— Voltemos ao centro. Devemos coop<strong>era</strong>r na oração.XXIV - A prece de IsmáliaDentro de poucos instantes, reuníamo-nos, de novo, ao grupo.O administra<strong>do</strong>r fez um sinal luminoso, em forma triangular, e observeique to<strong>do</strong>s os coop<strong>era</strong><strong>do</strong>res se pus<strong>era</strong>m de pé, em atitude respeitosa.— É o momento da oração, no Posto de Socorro — disse Alfre<strong>do</strong>,gentil, como a prestar-nos esclarecimentos precisos.O Sol desaparec<strong>era</strong> no firmamento, mas toda a cúpula cel<strong>este</strong> refletialheo disco de ouro. Os tons crepusculares ench<strong>era</strong>m as vizinhanças demaravilhosos efeitos de luz, muito visíveis agora ao nosso olhar, porqueAlfre<strong>do</strong>, sem que eu pudesse conhecer o motivo, mandara apagar todas asluzes artificiais, antes da oração. No centro <strong>do</strong>s pavilhões, a sombra se fiz<strong>era</strong>,desse mo<strong>do</strong>, muito intensa, mas o novo aspecto <strong>do</strong> firmamento, banha<strong>do</strong> emtonalidades sublimes, dava-nos a impressão da permanência em prodigiosopalácio, em virtude <strong>do</strong> imenso teto azul ilumina<strong>do</strong> a distância.Fundamente impressiona<strong>do</strong>, procurei convizinhar-me mais <strong>do</strong> pequenogrupo de companheiros.Do quadro de colabora<strong>do</strong>res <strong>do</strong> castelo, apenas algumas senhoraspermaneciam junto de nós, como se estivessem fazen<strong>do</strong> honrosa companhia ànobre Ismália. Os demais, homens e mulheres, manteriam-se nos lugares deserviço que lhes competiam, não longe das criaturas mumificadas.Notei que, embora insta<strong>do</strong>, Aniceto esquivou-se à chefia espiritual daoração, alegan<strong>do</strong> que, por direito, essa posição cabia à devotada esposa deAlfre<strong>do</strong>.Ismália, então, num gesto de indefinível delicadeza, começou a orar,acompanhada por to<strong>do</strong>s nós, em silêncio, salientan<strong>do</strong>-se, porém, que lheseguíamos a rogativa, frase por frase, atenden<strong>do</strong> a recomendações <strong>do</strong> nossoorienta<strong>do</strong>r, que aconselhou repetir, em pensamento, cada expressão, a fim deimprimir o máximo ritmo e harmonia ao verbo, ao som e à idéia, numa sóvibração.“Senhor! — começou Ismália, comovidamente — dignai-vos assim osnossos humildes tutela<strong>do</strong>s, envian<strong>do</strong>-nos a luz de vossas bênçãossantificantes, nós estamos, prontos para executar vossa vontade,sinc<strong>era</strong>mente, de secundar vossos alto desígnios convosco, Pai, reúnem-se osirmãos que ainda <strong>do</strong>rmem, an<strong>este</strong>sia<strong>do</strong>s pela negação espiritual a que seentregaram no mun<strong>do</strong>. Desperta Senhor, se é de vossos desígnios sábios emisericordiosos, despertai-os <strong>do</strong> sono <strong>do</strong>loroso e infeliz. Acordai-os para aresponsabilidade, para a noção <strong>do</strong>s deveres justos!... Magnânimo Rei, apiedaivosde vossos filhos sofre<strong>do</strong>res; Cria<strong>do</strong>r compassivo, levantai as vossascriaturas; Pai Justo, desculpai vossos filhos desventura<strong>do</strong>s! Permiti caia oorvalho <strong>do</strong> vosso amor infinito sobre o nosso modesto Posto de Socorro!... Sejafeita a vossa vontade acima da nossa, mas se for possível Senhor, deixai queos nossos <strong>do</strong>entes recebam um raio vivificante da vossa bondade!


A voz de Ismália penetrava-me o recesso <strong>do</strong> coração.Observan<strong>do</strong>-a, por um momento, reparei que a esposa de Alfre<strong>do</strong> setransfigurara. Luzes diamantinas irradiavam de to<strong>do</strong> o seu corpo, em particular<strong>do</strong> tórax, cujo âmago parecia conter misteriosa lâmpada acesa.Em vista da ligeira pausa que imprimira a oração, observei a nós outros,verifican<strong>do</strong> que o mesmo fenômeno se dava conosco, embora menosintensamente. Cada qual parecia, ali, apresentar uma expressão luminosa,gradativa. As senhoras que acompanhavam Ismália estavam quasesemelhantes a ela, como se trajassem soberbos costumes radiosos, em quepre<strong>do</strong>minava a cor azul. Depois delas, em brilho, vinha a luz de Aniceto, de umlilás surpreendente. Em seguida, tínhamos Alfre<strong>do</strong>, cuja luz <strong>era</strong> de um verdesuave e sugestivo, sem grande esplen<strong>do</strong>r. Depois dele, vinham algunsservi<strong>do</strong>res ostentan<strong>do</strong> na fronte claridades sublimes, expressas em variadascores, e, logo após, Vicente e eu, mostrávamos fraca luminosidade, a qual,porém, nos enchia de brilho intenso, consid<strong>era</strong>n<strong>do</strong> que a maioria <strong>do</strong>scoop<strong>era</strong><strong>do</strong>res em serviço apresentava o corpo obscuro, como acontece naesf<strong>era</strong> carnal.Com voz pausada e comove<strong>do</strong>ra, Ismália prosseguiu:“Temos, ao nosso la<strong>do</strong>, Senhor, infortunadas mães que não soub<strong>era</strong>mdescobrir o senti<strong>do</strong> sublime da fé, resvalan<strong>do</strong>, imprudentemente, nosdespenhadeiros da indiferença criminosa; pais que não conseguiramultrapassar a materialidade no curso da existência humana, incapazes de ver aformosa missão que lhes confiastes; cônjuges desventura<strong>do</strong>s pelaincompreensão de vossas leis augustas e generosas; jovens que seentregaram, de corpo e alma aos alvitres da ilusão!... Muitos deles, atolaram-seno pantanal <strong>do</strong> crime, agravan<strong>do</strong> destinos <strong>do</strong>lorosos! Agora <strong>do</strong>rmem, Pai, àesp<strong>era</strong> de vossos desígnios santos. Sabemos, contu<strong>do</strong>, Senhor, que <strong>este</strong> sononão traduz repouso <strong>do</strong> pensamento. Quase to<strong>do</strong>s os nossos asila<strong>do</strong>s sãovítimas de terríveis pesadelos, por terem olvida<strong>do</strong>, no mun<strong>do</strong> material, osvossos mandamentos de amor e sabe<strong>do</strong>ria. Sob a imobilidade aparente.movimenta-se-lhes o Espírito, entre aflições angustiosas que, por vezes, nãopodemos sondar. Per<strong>do</strong>e-os, Pai, vossos filhos transvia<strong>do</strong>s e nossoscompanheiros de luta, necessita<strong>do</strong>s de vossa mão paternal para o caminho!Quase to<strong>do</strong>s se desviaram da senda reta, pelas sugestões da ignorância que,como aranha gigantesca, tece os fios da miséria, enredan<strong>do</strong> destinos ecorações! Deprecan<strong>do</strong> vossa misericórdia para eles, rogamos, para nós, averdadeira noção da fraternidade universal! Ensinai-nos a transpor as fronteirasde separação para que vejamos em cada enfermo o irmão necessita<strong>do</strong> <strong>do</strong>nosso entendimento! Ajudai-nos a com preensão, a fim de que venhamos aperder to<strong>do</strong> impulso de acusação nas estradas da vida! Ensinai-nos a amarcomo Senhor nos amou? Também nós, Senhor, que aqui vos rogamos, fomosleprosos espirituais, cegos <strong>do</strong> entendimento, paralíticos da vontade, filhospródigos <strong>do</strong> vosso amor!... Também nós <strong>do</strong>rmimos, em tempos i<strong>do</strong>s, nosPostos de Socorro da vossa misericórdia!... Somos simples deve<strong>do</strong>res,ansiosos de resgatar imensos débitos! Sabemos que vossa bondade nuncafalha e esp<strong>era</strong>mos contemplar a bênção de vida e luz!. .Fiz<strong>era</strong> Ismália nova pausa, agora mais longa. Os olhos umedeci<strong>do</strong>s depranto. Suave calor, todavia, apossava-se-me da alma. E tão intensa <strong>era</strong> essanova sensação de conforto, que interrompi a concentração em mim mesmo, afim de olhar em torno. Fixan<strong>do</strong> instintivamente o alto, enxerguei, maravilha<strong>do</strong>,


grande quantidade de flocos esbranquiça<strong>do</strong>s, de tamanhos variadíssimos, acaírem copiosamente sobre nós que orávamos, exceto sobre os que <strong>do</strong>rmiam.Tive a impressão de que <strong>era</strong>m derrama<strong>do</strong>s <strong>do</strong> céu sobre nossa fronte, cain<strong>do</strong>com a mesma abundância sobre to<strong>do</strong>s, desde Ismália ao último <strong>do</strong>s servi<strong>do</strong>res.Não cabia em mim de admiração, quan<strong>do</strong> novo fenômeno me surpreendeu. Osflocos leves desapareciam ao tocar-nos, começan<strong>do</strong>, porém, a sair de nossafronte e <strong>do</strong> peito grandes bolhas luminosas, com a coloração da claridade deque estávamos revesti<strong>do</strong>s, elevan<strong>do</strong>-se no ar e atingin<strong>do</strong> as múmias. Ainda aí,reparava o problema da gradação espiritual. As luzes emitidas por Ismália <strong>era</strong>mmais brilhantes, intensas e rápidas, alcançan<strong>do</strong> muitos enfermos de uma sóvez. Em seguida, vinham as fornecidas pelas senhoras <strong>do</strong> seu círculo pessoal.Depois, tínhamos as de Aniceto, de Alfre<strong>do</strong> e <strong>do</strong>s demais. Os servos de corpoobscuro emitiam vibrações fracas, mas visivelmente luminosas. Cada qual,naquele instante de contacto com o plano superior, revelava o valor próprio nacoop<strong>era</strong>ção que podia prestar.Observan<strong>do</strong>-me o assombro, Aniceto falou-me aos ouvi<strong>do</strong>s:— Na prece encontramos a produção avançada de elementos-força.Eles chegam da Providência em quantidade igual para to<strong>do</strong>s os que se dêemao trabalho divino da intercessão, mas cada Espírito tem uma capacidadediferente para receber. Essa capacidade é a conquista individual para o maisalto. E como Deus socorre o homem pelo homem e atende a alma pela alma,cada um de nós somente poderá auxiliar os semelhantes e colaborar com oSenhor, com as qualidades de elevação já conquistadas na vida.XXV - Efeitos da oraçãoAs luzes da prece inundaram o vasto recinto. Palpitava em tu<strong>do</strong>, agora,uma claridade serena, <strong>do</strong>ce, irradiante, muito diversa da luminosidade artificial.Os flocos radiosos que partiam de nós multiplicavam-se no ar, como seobedecessem a misterioso processo de segmentação, e caíam sempre sobreos corpos inanima<strong>do</strong>s e enrijeci<strong>do</strong>s, dan<strong>do</strong> a impressão de lhes penetrarem ascélulas mais íntimas.Eu estava boquiaberto. Não me fora permiti<strong>do</strong> contemplar fenômenosdessa natureza em “Nosso Lar”. Aliás, concluía, ainda não receb<strong>era</strong> auxíliomagnético às percepções, senão poucas horas antes da viagem.A claridade crescia e <strong>este</strong>ndia-se em espetáculo prodigioso.Agora, porém, aban<strong>do</strong>náramos a atitude de recolhimento destinada àconcentração de nossas próprias forças e emissão de energias vibratórias.Nossos corpos, todavia, continuavam envolvi<strong>do</strong>s em vasto círculo irradiante.Prosseguin<strong>do</strong>, porém, o grande silêncio, notei que a luz da oração se faziamais clara, mais penetrante. Comecei a ver, como no caso de Ana, que to<strong>do</strong>saqueles esqueletos misérrimos apresentavam núcleos de sombra, além dasmáscaras mortuárias, núcleos que se mostravam dentro de formasvariadíssimas.As bolhas luminosas caíam incessantemente, mas agora, como sefossem dirigidas por uma vontade Inteligente, concentravam-se quase todassobre as frontes imóveis. Então, pude observar o inaudito e inconcebível paramim.As múmias, porque não posso dar outro nome aos irmãos que <strong>do</strong>rmem,começaram a dar sinais de vida. Alguns daqueles infelizes deixavam escapargemi<strong>do</strong>s angustiosos, outros falavam em voz alta, dan<strong>do</strong> conta <strong>do</strong>s pesadelos


que os atormentavam, como sonâmbulos pr<strong>este</strong>s a despertar. Muitos moviamos pés e as mãos, como a se esforçarem por fugir ao sono <strong>do</strong>loroso.Eminentemente surpreendi<strong>do</strong>, reparei que <strong>do</strong>is se levantaram, distantede nós. Recordei que ambos faziam parte daqueles que haviam recebi<strong>do</strong> todaespécie de assistência, inclusive o sopro curativo. Olharam-nos de longe, comoloucos que acordassem de súbito, e dispararam a correr, espavori<strong>do</strong>s, nãoobstante a impressão de cadáveres ambulantes, que nos causavam.Admira<strong>do</strong>, verifiquei que ninguém esboçou a menor disposição desegui-los. E quan<strong>do</strong> me propunha, instintivamente, a fazê-lo, Alfre<strong>do</strong> deteveme,exclaman<strong>do</strong>:— Não se preocupe. Eles seriam amargamente surpreendi<strong>do</strong>s, sefossem notifica<strong>do</strong>s agora de sua permanência longa entre verdadeiras múmias.Acreditam sonhar e é melhor assim. Não poderão fugir às nossas fortificaçõese voltarão a pedir socorro noutras dependências, a que serão recolhi<strong>do</strong>s paraadequa<strong>do</strong> tratamento.Continuamos silenciosos mais alguns minutos, e notei que as luzes seforam apagan<strong>do</strong> gradativamente, ao passo que os cadáveres retomavam aimobilidade anterior.Ismália declarou terminadas as nossas atividades da oração e oadministra<strong>do</strong>r, após o sinal luminoso, que notificava aos operários o términodas obrigações, adiantou-se para nós, exclaman<strong>do</strong>:— Gratíssimo pelo concurso fraternal. Realizamos belo serviçointercessório. Desde alguns dias, ninguém se levantava.Aniceto, perceben<strong>do</strong>-nos a perplexidade, falou a Vicente e a mim, demaneira significativa:— Conforme viram, o trabalho da prece é mais importante <strong>do</strong> que sepode imaginar no círculo <strong>do</strong>s encarna<strong>do</strong>s. Não há prece sem resposta. E aoração, filha <strong>do</strong> amor, não é apenas súplica; comunhão entre o Cria<strong>do</strong>r e acriatura, constituin<strong>do</strong>, assim, o mais poderoso influxo magnético queconhecemos. Acresce notar, porém, já que comentamos o assunto, que arogativa maléfica conta, igualmente, com enorme potencial de influenciação.Toda vez que o Espírito se coloca nessa atitude mental, estabelece um laço decorrespondência entre ele e o Além. Se a oração traduz atividade no bemdivino, venha <strong>do</strong>nde vier, encaminhar-se-á para o Além em senti<strong>do</strong> vertical,buscan<strong>do</strong> as bênçãos da vida superior, cumprin<strong>do</strong>-nos advertir que os mausrespondem aos maus nos planos inferiores, entrelaçan<strong>do</strong>-se mentalmente unscom os outros. É razoável, porém, destacar que toda prece impessoal dirigidaàs Forças Supremas <strong>do</strong> Bem, delas recebe resposta imediata, em nome deDeus. Sobre os que oram nessas tarefas benditas, fluem, das esf<strong>era</strong>s maisaltas, os elementos-força que vitalizam nosso mun<strong>do</strong> interior, edifican<strong>do</strong>-nos asesp<strong>era</strong>nças divinas, e se exteriorizam, em seguida, contagia<strong>do</strong>s de nossomagnetismo pessoal, no intenso desejo de servir com o Senhor.E, procuran<strong>do</strong> materializar o pensamento para facilitar-nos acompreensão, acentuou:— Viram, vocês, cair sobre nós os elementos a que me refiro, eobservaram a sua exteriorização com as luzes de cada um de nós, embenefício <strong>do</strong>s irmãos que <strong>do</strong>rmem e sofrem. Concedeu-nos o Altíssimo a forçade auxiliar, em porções iguais para to<strong>do</strong>s, mas nós a espalhamos de acor<strong>do</strong>com a nossa possibilidade e coloração individuais. Ismália, cujos sentimentossão mais amplos e universalistas que os nossos, pôde receber com mais


clareza o auxílio divino e distribuí-lo com mais abundância e eficiência. Temos,aqui, uma profunda lição. Como já disse, o Pai visita os filhos necessita<strong>do</strong>s,através <strong>do</strong>s filhos que procuram compreendê-Lo. Não poderíamos abusar <strong>do</strong>Senhor, como abusamos no círculo terrestre <strong>do</strong>s nossos pais humanos. Nãovive Ele ao sabor de nossos caprichos pessoais. Nunca poderia vir, em pessoa,enxugar o pranto <strong>do</strong> necessita<strong>do</strong> que chora, em conseqüência, aliás, <strong>do</strong> olvi<strong>do</strong>das Divinas Leis. Compete ao necessita<strong>do</strong> caminhar ao reencontro dele. <strong>OS</strong>enhor, todavia, atende sempre a to<strong>do</strong>s os homens de boa vontade, porintermédio <strong>do</strong>s homens bons, que se edificam na casa divina. To<strong>do</strong>s os nossosdesejos e impulsos razoáveis são atendi<strong>do</strong>s pelas bênçãos paternais <strong>do</strong>Eterno. Ainda que nos demoremos nas lágrimas e nas aflições, jamaispermanecemos ao desamparo. Apenas devemos salientar que as respostas deDeus vão sen<strong>do</strong> maiores e mais diretas, à medida que se intensifique o nossomerecimento, competin<strong>do</strong>-nos reconhecer que, para semelhantes respostas,são utiliza<strong>do</strong>s to<strong>do</strong>s quantos trazem consigo a luz da bondade, ou já possuemmérito e confiança para auxiliar em nome de Deus.As explicações de Aniceto abriam-me novos campos de meditação. Oesclareci<strong>do</strong> instrutor, contu<strong>do</strong>, não d<strong>era</strong> por finda a lição e, depois de longapausa, concluiu:— Já que vocês se encontram comigo num curso de serviço auxilia<strong>do</strong>r,espero aproveitem o máximo ensinamento desta hora. Reparem que, n<strong>este</strong>spavilhões, temos mil e novecentos e oitenta abriga<strong>do</strong>s que <strong>do</strong>rmem. To<strong>do</strong>sreceben<strong>do</strong> diariamente alimento e medicação comuns mas só quatrocentossão atendi<strong>do</strong>s com alimento e medicação especializa<strong>do</strong>s, por se mostraremmais suscetíveis de justa melhora. Desses quatrocentos, apenas <strong>do</strong>is terços serevelaram aptos à recepção de passes magnéticos. Muitos não podem receber,por enquanto, a água efluviada. Poucos foram contempla<strong>do</strong>s com o soprocurativo e somente <strong>do</strong>is se levantaram, ainda assim, profundamenteperturba<strong>do</strong>s. Já que iniciam um trabalho de coop<strong>era</strong>ção fraternal, nãoesqueçam esta lição. Façamos to<strong>do</strong>s o bem, sem qualquer ansiedade.Semeemo-lo sempre e em toda a parte, mas não estacionemos na exigênciade resulta<strong>do</strong>s. O lavra<strong>do</strong>r pode espalhar as sementes à vontade e onde querque <strong>este</strong>ja, mas precisa reconhecer que a germinação, o crescimento e oresulta<strong>do</strong> pertencem a Deus.XXVI - Ouvin<strong>do</strong> servi<strong>do</strong>resNotei que o trabalho no Posto se desenvolvia em ambiente da maisbela camaradagem, não obstante o respeito natural às noções de hi<strong>era</strong>rquia.Enquanto palestrávamos animadamente, Ismália recebia senhorasnumerosas, em atitude verdadeiramente maternal, embora muitas mostrassemo rosto envelheci<strong>do</strong>, parecen<strong>do</strong> avós da esposa <strong>do</strong> administra<strong>do</strong>r. Aniceto nosministrava lições de vulto, extraídas de circunstâncias aparentementeinexpressivas, e Alfre<strong>do</strong> recebia os colabora<strong>do</strong>res de todas as condições, nãosó com espírito de solidariedade, mas também de imenso afeto. Ria-secarinhosamente ou fornecia pareceres, sem o menor gesto de impaciência ouirritação.Aquele clima de concórdia fazia-me enorme bem. Tu<strong>do</strong> respirava ordeme compreensão, bondade e harmonia. A atitude paterna <strong>do</strong> administra<strong>do</strong>r <strong>do</strong>Posto de Socorro, expressa em energia e amizade, organização eentendimento, atraía-me com força.


Pedi permissão ao nosso orienta<strong>do</strong>r para ouvir os esclarecimentospresta<strong>do</strong>s àqueles numerosos coop<strong>era</strong><strong>do</strong>res.Aproximei-me, impressiona<strong>do</strong>.Nesse momento, um colabora<strong>do</strong>r de maneiras simpáticas dirigia-lhe apalavra, com grande interesse; tratava-se de um velhinho de humildeexpressão, que lhe falava com mostras de justo respeito.— E o senhor recebeu as notícias?— Sim, Alonso — atendia o chefe, sem excitação — nossosmensageiros certificaram-me <strong>do</strong>s detalhes mínimos. Sua viúva continuamuitíssimo acabrunhada, os filhinhos gozam saúde, mas permanecem namesma ansiedade por motivo de sua ausência.O velho, que parecia muito bon<strong>do</strong>so, esboçou um gesto de confirmaçãoe acrescentou:— Tenho senti<strong>do</strong> tanta falta deles!Nos olhos transparecia a tristeza resignada, de quem deseja algumacoisa, medin<strong>do</strong> a extensão <strong>do</strong>s obstáculos.— Você, porém, Alonso — continuou Alfre<strong>do</strong>, comovi<strong>do</strong> —, não deveangustiar-se. Sei que está trabalhan<strong>do</strong> agora pelo futuro da família. Na Terra,na qualidade de pais, conseguimos movimentar muitas providências a favor<strong>do</strong>s filhos; entretanto, aqui, podemos realizar certas medidas em benefíciodeles, com maior segurança. Nem sempre agimos no mun<strong>do</strong> com a necessáriavisão; mas aqui é possível sentir, de mais perto, os interesses imperecíveisdaqueles que amamos. O sentimento eleva<strong>do</strong> é sempre um caminho reto paranossa alma; todavia, não podemos dizer o mesmo, a respeito <strong>do</strong>sentimentalismo cultiva<strong>do</strong> no círculo da Crosta. É preciso que você tenha muitocuida<strong>do</strong> em não desorganizar a mente. A saudade que fere, impedin<strong>do</strong>-nosatender à Vontade Divina, não é louvável nem útil. É enfermidade <strong>do</strong> coração,precipitan<strong>do</strong>-nos em abismos insondáveis <strong>do</strong> pensamento.Alonso deixou de sorrir, mostrou os olhos rasos dágua e falou em vozsúplice.— Reconheço, senhor Alfre<strong>do</strong>, a oportunidade de suas observações.Graças a Jesus, venho melhoran<strong>do</strong> minha vida mental, nos deveres novos queme concedeu e, de fato, sinto-me renova<strong>do</strong> espiritualmente. Sei que suapalavra não me advertiria sem razão, mas, ousaria pedir licença para visitar aesposa e os filhos à noite, quan<strong>do</strong> me concentro nas preces habituais, sinto,em torno de mim, os seus pensamentos. Esses pensamentos me penetramfun<strong>do</strong>, atrain<strong>do</strong>-me toda a atenção para a Terra. Às vezes, consigo repousarum pouco, mas com muita dificuldade. Sei que a esposa e os filhos estãochaman<strong>do</strong>, <strong>do</strong>lorosamente, por mim. Esta certeza me perturba de algum mo<strong>do</strong>.Não tenho senti<strong>do</strong> a mesma firmeza para o trabalho diário e desejaria remediara situação. Reconheço que minhas obrigações, presentemente, são outras eque devo estar conforma<strong>do</strong>; no entanto, confesso que minha luta espiritual temsi<strong>do</strong> bem grande. Estou certo de que me per<strong>do</strong>ará a fraqueza. Que chefe defamília não se sentiria atormenta<strong>do</strong>, ouvin<strong>do</strong> angustiosos apelos <strong>do</strong> lar, semmeios de atender, como se faz indispensável?E, revelan<strong>do</strong> o enorme anseio da alma, enxugou os olhos e prosseguiu:— Quis<strong>era</strong> rogar aos meus, calma e coragem, esclarecen<strong>do</strong> que meucoração inda é frágil e necessita <strong>do</strong> amparo deles; estimaria pedir-lhes esseauxílio para que eu possa atender as atuais obrigações, sem desfalecimentos.Quem sabe me concederá, agora, a permissão precisa? Temos bem perto de


nossa casa um grupo de amigos espiritistas; talvez não me fosse difíciltransmitir algumas palavras, breves que fossem, tentan<strong>do</strong> tranqüilizar a esposae os filhos!..Alfre<strong>do</strong>, imperturbável, não respondeu negativamente. Pareciacompreender toda a inquietação <strong>do</strong> servi<strong>do</strong>r simpático e humilde. Observei-lheno olhar, muito lúci<strong>do</strong>, o desejo sincero de atender, e, com extrema simpatiapor sua conduta generosa, ouvi-o pond<strong>era</strong>r:— Não será impossível satisfazê-lo, meu caro. Nossos emissáriospoderão conduzi-lo, nas viagens comuns; entretanto, creia que, como amigo,ficaria preocupa<strong>do</strong> com você, pela manutenção de sua paz. Não posso abusarda autoridade e sei que cada um tem a experiência que lhe cabe, mas creioseja de seu vital interesse o fortalecimento <strong>do</strong> coração. É imprescindívelconformarmo-nos com os desígnios <strong>do</strong> Eterno. Você e sua mulher não ficariamsepara<strong>do</strong>s se não necessitassem de experiências novas. As dificuldades queela vem amargan<strong>do</strong> com a sua ausência, sofre-as também você com aseparação dela. Tenho a impressão, Alonso, de que Deus nos deixa sozinhos,por vezes, a fim de refazermos o aprendiza<strong>do</strong>, melhoran<strong>do</strong> o coração. Asoledade, porém, quan<strong>do</strong> aproveitada pela alma, precede o sublimereencontro. Além disso, você não deve ignorar que os filhos pertencem a Deus,que cada um deles precisa definir responsabilidades e cogitar da própriarealização. Por enquanto, vivem chorosos, desalenta<strong>do</strong>s. A revolta lhes visita aalma invigilante. Estabeleceu-se a desordem <strong>do</strong>méstica, depois da sua vinda.Entretanto, que fazer senão pedir para eles e para nós a bênção <strong>do</strong> Eterno?Precisam eles da conformação com a realidade justa, e você, que já lhes deu oque <strong>era</strong> razoável, necessita, igualmente, evolver e aperfeiçoar-se na sendanova a que fomos chama<strong>do</strong>s. Em que ficaria, meu caro, se permitisse ainvasão total <strong>do</strong> sentimentalismo <strong>do</strong>entio em seus pensamentos? Tão dedica<strong>do</strong>é você à família <strong>do</strong> sangue, que, por agora, não o sinto com bastante preparo atu<strong>do</strong> ver no antigo lar, sem sofrer desastrosamente. Há tempos, autorizei avisita de <strong>do</strong>is colegas nossos à esf<strong>era</strong> da Crosta, a fim de reverem as viúvas eabraçarem de novo os filhinhos; mas foram tão violentamente surpreendi<strong>do</strong>spela situação, que não pud<strong>era</strong>m voltar aos seus deveres aqui, lá fican<strong>do</strong>agarra<strong>do</strong>s ao ninho que haviam aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>. Não vigiaram o coração,convenientemente. Ouviram, em demasia, os prantos familiares terrestres,envolv<strong>era</strong>m-se nos pesa<strong>do</strong>s flui<strong>do</strong>s <strong>do</strong> clima <strong>do</strong>méstico e, passada a semanade licença, não conseguiram erguer-se para o regresso. Estavam comopássaros aprisiona<strong>do</strong>s pela visão das tentações. Os encarrega<strong>do</strong>s <strong>do</strong> noticiárioparticular voltaram ao Posto sem eles, com grande surpresa para mim. E,francamente, não sei quan<strong>do</strong> poderão reassumir as funções que lhes cabem, oprejuízo de ambos é muito grande.Depois de pequena pausa, Alfre<strong>do</strong> rematou:— Os vôos de grande altura pedem asas fortes. Alonso, que ouvia deolhos arregala<strong>do</strong>s, considerou resigna<strong>do</strong>:— Desisto <strong>do</strong> pedi<strong>do</strong>. O senhor tem razão.O administra<strong>do</strong>r abraçou-o e murmurou:— Deus ilumine o seu entendimento.Admiradíssimo, reparei que outros colabora<strong>do</strong>res se aproximavam,rogan<strong>do</strong> esclarecimentos, pareceres, edifican<strong>do</strong>-me no exemplo <strong>do</strong>administra<strong>do</strong>r amigo, que respondia em voz firme e afetuosa, demonstran<strong>do</strong>interesse de irmão.


XXVII - O calunia<strong>do</strong>rEnquanto o administra<strong>do</strong>r se entregava a conversações educativas comos numerosos subordina<strong>do</strong>s, Aniceto chamou-nos a pequena construçãoIsolada e falou:— Vejamos outro ensinamento.Avançamos na direção de algumas câmaras separadas.Nosso Instrutor abriu uma porta e vimos um louco, que pareciafundamente irrita<strong>do</strong>. Fixou em nós o olhar inexpressivamente e gritouhistericamente. Aniceto, porém, adiantou-se e cumprimentou-o, atencioso:— Como vai, Paulo?As palavras, ao que senti, emitiram certo fluxo magnético e o enfermorevelou profunda modificação. Aquietou-se de súbito. Sentou-se mais calmo,embora trêmulo e espantadiço.— Tem senti<strong>do</strong> melhoras, Paulo? — perguntou nosso orienta<strong>do</strong>r,bon<strong>do</strong>samente, tocan<strong>do</strong>-o no ombro.Ao contacto pessoal de Aniceto, o <strong>do</strong>ente mostrou algum raciocínio erespondeu:— Vou melhoran<strong>do</strong>, graças...À vista da expressão reticenciosa, o instrutor falou em tom Firme, comose desejasse auxiliar-lhe a vontade enfraquecida:— Termine!O <strong>do</strong>ente fez enorme esforço e concluiu:G. .r. .a. .ç. . a. .s. .a..D. .e. .u. .s.Anotan<strong>do</strong>-lhe o sofrimento e a indecisão, lembrei <strong>do</strong>s enfermos dasCâmaras, aos quais prestava Narcisa ampla colaboração afetuosa.Perceben<strong>do</strong>--me as íntimas consid<strong>era</strong>ções, disse o mentor esclareci<strong>do</strong>:— Vêem a diferença entre os que <strong>do</strong>rmem, os que estão loucos e osque sofrem? Em “Nosso Lar”, não temos <strong>do</strong>s primeiros, e os que se encontremdesequilibra<strong>do</strong>s, nos serviços da Regen<strong>era</strong>ção, sentem, na maioria, angústiascruéis. É necessário reconheçamos que os que gemem e sofrem, em qualquerparte, estão melhoran<strong>do</strong>. Toda lágrima sinc<strong>era</strong> é bendito sintoma derenovação. Os escarnece<strong>do</strong>res, os ironistas e os perturba<strong>do</strong>s que nãoregistram a <strong>do</strong>r são mais dignos de piedade, por permanecerem embota<strong>do</strong>s emestranha rigidez de entendimento.E, designan<strong>do</strong> o enfermo sob nossos olhos, afirmou:— Paulo é um <strong>do</strong>ente a caminho de melhora positiva. Ainda não possuia consciência exata da situação, mas já chora, já padece com as recordações<strong>do</strong> passa<strong>do</strong> triste.Recebi o esclarecimento com atenção. Lembrei-me que, de fato, os<strong>do</strong>entes conduzi<strong>do</strong>s pelos Samaritanos a “Nosso Lar”, em serviço diário, <strong>era</strong>mgrandes sofre<strong>do</strong>res. Os que não acusavam padecimentos atrozes, revelavamestranho pavor das sombras. A única entidade que ali observara, com absolutainconsciência da própria miséria, fora a de pobre vampiro que não encontraraguarida nas Câmaras de Retificação.Nosso instrutor, sem qualquer preocupação de transformar o <strong>do</strong>ente emcobaia, recomen<strong>do</strong>u, afetuoso:— Concentrem no Paulo a capacidade de visão!Estimula<strong>do</strong> pela experiência anterior, fixei nele to<strong>do</strong> o meu potencial deobservação.


Aos poucos, caracterizou-se a meus olhos a sua tela mental, parecen<strong>do</strong>formada em compacta sombra noturna. Com surpresa, divisei formas diversasque se movimentavam. Vários vultos de mulher ali surgiam, despertan<strong>do</strong>-meenorme admiração. Entre eles, reparei o de Ismália como que <strong>do</strong>ente,enfraquecida, ansiosa. Alguns homens passavam, igualmente, mostran<strong>do</strong>desesp<strong>era</strong>ção, e notei, nessas imagens, o próprio Alfre<strong>do</strong> a evidenciar cansaçoe extrema velhice prematura. Vozes misteriosas se faziam ouvir. Sobre Paulochovia maldições e blasfêmias. As mulheres pareciam acusá-lo,clamorosamente; os homens davam idéia de persegui<strong>do</strong>res ferozes, ocultos nomun<strong>do</strong> interior daquele enfermo estranho. Observan<strong>do</strong>, porém, que os vultosde Ismália e Alfre<strong>do</strong> se movimentavam naquele painel escuro, não pude sofreara curiosidade e interrompi o minucioso exame, voltan<strong>do</strong> a conversar com onosso orienta<strong>do</strong>r, perguntan<strong>do</strong>:— Como explicar o fenômeno? Estou assombra<strong>do</strong>!Antes, porém, que pudesse expressar mormente o espanto que me<strong>do</strong>minara, Aniceto ajuntou:— Já sei. Admira-se da presença de Ismália e <strong>do</strong> seu mari<strong>do</strong> nasreminiscências <strong>do</strong> enfermo.E, ante a minha perplexidade, continuou:— Lembram-se da história de Alfre<strong>do</strong>? Temos diante de nós o falsoamigo que lhe arruinou o lar. Paulo, contu<strong>do</strong>, não somente cometeu aingratidão, como envenenou o espírito <strong>do</strong>utras senhoras, traiu outros amigos edestruiu a alegria e a paz <strong>do</strong>utros santuários <strong>do</strong>mésticos. Observan<strong>do</strong> Ismáliaaflita e Alfre<strong>do</strong> desesp<strong>era</strong><strong>do</strong>, nas recordações dele, vemos as imagens criadaspelo calunia<strong>do</strong>r, para seus próprios olhos. Nossos amigos d<strong>este</strong> Postoevoluíram, transpus<strong>era</strong>m a fronteira da mágoa, escaparam aos monstros <strong>do</strong>ódio, v<strong>este</strong>m-se hoje de luz; no entanto, Paulo os vê como imagina, paraescarmento de suas culpas. O criminoso nunca consegue fugir da verdadeirajustiça universal, porque carrega o crime cometi<strong>do</strong>, em qualquer parte. Tantonos círculos carnais, como aqui, a paisagem real <strong>do</strong> Espírito é a <strong>do</strong> campointerior. Viveremos, de fato, com as criações mais íntimas de nossas almas.Reparan<strong>do</strong>-me a dificuldade para compreender de pronto, Anicetoprosseguiu, depois de pequeno intervalo:— Para melhor elucidação, recordemos a crucificação <strong>do</strong> Mestre Divino.Sabemos que Jesus penetrou na glória sublime logo após a suprema <strong>do</strong>r <strong>do</strong>Calvário; entretanto, estamos ainda a vê-Lo freqüentemente pendura<strong>do</strong> nacruz, martiriza<strong>do</strong> pelos nossos erros, flagela<strong>do</strong> pelos nossos açoites, por que avisão interior a isso nos compele. A condenação <strong>do</strong> Mestre foi um crimecoletivo e esse crime estará conosco até ao dia em que nos vestirmos na divinaluz da redenção.O esclarecimento não poderia ser mais lúci<strong>do</strong>. Sentia-me diante denobre revelação.— O dever possui as bênçãos da confiança, mas a dívida tem osfantasmas da cobrança — tornou o generoso mentor, com grave acento.Readquirin<strong>do</strong> a serenidade, interroguei:— Mas Paulo veio ter casualmente a <strong>este</strong> Posto?— Não respondeu Aniceto, atencioso — foi trazi<strong>do</strong> pelo próprio Alfre<strong>do</strong>,que se sentiu necessita<strong>do</strong> de disciplinar o coração. Nosso amigo, que hojedirige esta casa de amor, desprendeu-se <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, sob intensa vibração deódio e desesp<strong>era</strong>ção. Sofreu muitíssimo nos primeiros tempos, embora nunca


fosse aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong> pela dedicação da abnegada companheira. Alfre<strong>do</strong>, todavia,não pôde ver Ismália enquanto não se desvencilhou das baixas manifestações<strong>do</strong> rancor. Socorri<strong>do</strong> em “Campo da Paz”, compreendeu as própriasnecessidades. Tão logo adquiriu algum mérito, intercedeu pelo amigo infiel,buscou-o em recanto abismal, e tão nobremente se dedicou aoaperfeiçoamento de si mesmo, que conquistou a posição de administra<strong>do</strong>r deum Posto de Socorro. Trouxe o tutela<strong>do</strong> em sua companhia e trata-o comoirmão, atualmente. Não julguem que o mari<strong>do</strong> de Ismália conseguiu essa vitóriaespiritual tão somente pelo fato de desejá-la. Ele desejou-a, procurou-a,alimentou-a, e, agora, permanece na realização. Há muitos anos conversa comPaulo, diariamente. Nos primeiros tempos, aproximava-se <strong>do</strong> enfermo, comonecessita<strong>do</strong> de reconciliação; depois, como pessoa cari<strong>do</strong>sa; mais tardeadquiriu entendimento, comparan<strong>do</strong> situações; em seguida, sentiu piedade;logo após, experimentou simpatia e, presentemente, conquistou a verdadeirafraternidade, o amor sublime de irmão pelo ex-inimigo.Fazen<strong>do</strong> pequena pausa, voltou a dizer, espirituosamente:— Como vêem, o ensinamento de Jesus, quanto ao “batei e abrir-sevos-á”,é muito extenso. No plano da carne, insistimos à porta das coisasexteriores, procuran<strong>do</strong> facilidades e vantagens; mas, aqui, temos de bater àporta de nós mesmos, para encontrar a virtude e a verdadeira iluminação.Vicente, que até então se conservara cala<strong>do</strong>, indagou:— Paulo, todavia, permanecerá aqui, indefinidamente?Nosso instrutor fez um gesto significativo e concluiu:— Voltará breve à Terra. Ismália tem feito a seu favor inúm<strong>era</strong>sintercessões e não deseja que ele, ao retomar a razão plena, se sintahumilha<strong>do</strong>, com o benefício das próprias vítimas. Uma das irmãs, por elecaluniada no mun<strong>do</strong>, já voltou ao círculo carnal, e a abnegada esposa deAlfre<strong>do</strong> pediu-lhe que recebesse Paulo como filho, tão logo seja oportuno.XXVIII - Vida socialÀ noite, surpreendiam-me os sublimes aspectos <strong>do</strong> firmamento noPosto de Socorro. O luar safirino envolvia todas as coisas, O céu <strong>era</strong> qualinfinita colcha de azul muito límpi<strong>do</strong>, pontilha<strong>do</strong> de astros fulgurantes. Asnuvens da tarde haviam desapareci<strong>do</strong>.Contemplan<strong>do</strong> a beleza da noite, Alfre<strong>do</strong> acentuou:— Felizmente, os fenômenos magnéticos foram desloca<strong>do</strong>s <strong>do</strong> nossocírculo. Os aparelhos, porém, continuam registran<strong>do</strong> enorme conflito de forçasinferiores.Ia comentar a beleza <strong>do</strong> céu, ante a observação <strong>do</strong> administra<strong>do</strong>r,quan<strong>do</strong> a campainha retiniu suavemente.Chamavam à entrada. Alfre<strong>do</strong> e Ismália sorriram.Muito gentil, o chefe <strong>do</strong> Posto asseverou:— Temos a visita de amigos <strong>do</strong> “Campo da Paz”.E, convidan<strong>do</strong>-nos à recepção no baluarte avança<strong>do</strong>, acrescentoujovialmente:— Temos, também, aqui, a nossa vida social. Como não? É precisosaber viver.Encanta<strong>do</strong> com essa nota alegre, acompanhei os <strong>do</strong>nos da casa,verifican<strong>do</strong>, com indizível surpresa, que tínhamos sob os olhos um belo carrotira<strong>do</strong> por <strong>do</strong>is soberbos cavalos brancos. Tratava-se de veículo confortável e


interessante, quase idêntico aos velhos carros de serviço público, <strong>do</strong> tempo deLuís XV, que eu vira, mais de uma vez, em publicações antigas. Nele chegarapequena família da colônia próxima, que, pelas informações de Aniceto,demorava a três léguas <strong>do</strong> Posto, aproximadamente.Alfre<strong>do</strong> apresentou-nos, cavalheirescamente, com exceção de nossoorienta<strong>do</strong>r, que <strong>era</strong> velho amigo <strong>do</strong>s recém-chega<strong>do</strong>s.Constituíam-se os visitantes <strong>do</strong> casal Bacelar e duas filhas jovens. Ochefe <strong>do</strong> grupo mostrava idade avançada, revelan<strong>do</strong>, porém, excelentesdisposições. A senhora dava impressão de madureza, aparentan<strong>do</strong>, contu<strong>do</strong>,maravilhosa vivacidade, assim como as duas moças.A alegria <strong>era</strong> enorme. Não se observava qualquer nota deconvencionalismo menos digno, como na Terra. Os gestos de cada um, asimplicidade, a despreocupação e as frases afetuosas demonstravasinceridade pura. Permanecíamos num quadro social inacessível aofingimento.Voltan<strong>do</strong> ao interior <strong>do</strong>méstico, entre grandes manifestações de júbilofamiliar, observei que os recém-chega<strong>do</strong>s <strong>era</strong>m amigos de muito tempo, quevinham ao encontro de Ismália. A nobre senhora pareceu-me contentíssima.Expediu reca<strong>do</strong>s afetuosos para algumas famílias <strong>do</strong> Posto e, em brevesminutos, o castelo recebia inúm<strong>era</strong>s pessoas que concorriam ao brilhantismoda seleta reunião.Sentin<strong>do</strong>-me assaz insignificante, ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong>s novos amigos, limitavamea ouvir e observar.Logo aos primeiros instantes de conversação particularizada, ouviAniceto perguntar ao senhor Bacelar:— Como corre o serviço?O velho bon<strong>do</strong>so respondeu num sorriso largo:— Bem, sempre bem. Apenas não podemos fixar demasiada atençãonos companheiros encarna<strong>do</strong>s.E ajuntou com graça:— É indispensável aprender a servir e passar.Nosso instrutor sorriu igualmente e observou:— Compreen<strong>do</strong>, compreen<strong>do</strong>. Aliás, o progresso humano não é umaquestão de dias. Não tenhamos ilusões.E, perceben<strong>do</strong> que Vicente e eu poderíamos aproveitar com a palestra,Aniceto indicou o novo hóspede de Alfre<strong>do</strong>, explican<strong>do</strong> solícito:— Nosso salgo Bacelar é chefe de turmas de assistência aos nossosirmãos <strong>do</strong> círculo carnal. Tem longa experiência <strong>do</strong>s homens e conhece-oscomo ninguém. Há muito que aproveitar nas suas observações.— Não tanto, meus caros — exclamou o senhor Bacelar, de bom humor— não tanto. Sou simples companheiro de vocês, cumprin<strong>do</strong> deveres poracréscimo da misericórdia divina. Não posso fazer muito, em razão de minhasdeficiências naturais.— Estamos certos <strong>do</strong> grande proveito da sua palavra — objetouVicente, até então cala<strong>do</strong>.— Tu<strong>do</strong> o que nos disser sobre o problema de assistência constituirá,para nós, ensinamento precioso — disse por minha vez.O novo amigo fitou-nos com inteligência, e perguntou:— Foram médicos no mun<strong>do</strong>?— Sim — respondemos a um só tempo.


O senhor Bacelar pensou alguns momentos e acentuou:— Sempre gostei de conversar com os amigos, recorren<strong>do</strong> aossímbolos sugeri<strong>do</strong>s pela profissão que exercem. Mas, no tocante às minhasatividades, não teria muito o que dizer a médicos militantes.— Pelo contrário — aduzi — seus esclarecimentos enriquecerãonossas experiências.O interlocutor sorriu, otimista, e declarou:— Não creia. Recorde os seus <strong>do</strong>entes comuns.Muito raramente lembram a medicina preventiva. De mo<strong>do</strong> quaseinvariável, esp<strong>era</strong>m a positivação das moléstias para buscarem o recursopreciso. Necessitam de anestésicos para o socorro <strong>do</strong> bisturi. Fogem ao regimetão logo surja a primeira melhora. Confundem o méto<strong>do</strong> de tratamento, apenasse registre o primeiro sinal de cura. Detestam a <strong>do</strong>r que restabelece oequilíbrio. Descontentam-se com a indicação de purgativos. Preferem amedicação de sabor agradável. E, sobretu<strong>do</strong>, quase sempre querem sabermuito mais que os médicos. Esta síntese aplicável a corpos <strong>do</strong>entesrepresenta, em nosso campo de serviço, o resumo <strong>do</strong> programa de assistênciaaos Espíritos enfermos, encarna<strong>do</strong>s na Terra, e com agravantes de vulto,porque, em nosso setor, não podemos manipular a alma, à maneira <strong>do</strong>cirurgião que op<strong>era</strong> as amídalas. Somos força<strong>do</strong>s à preparação <strong>do</strong> campomental conveniente, a proceder à semeadura de pensamentos novos, velarpela germinação, ajudar os rebentos minúsculos e aguardar a obra <strong>do</strong> tempo.Nossa luta não é simples, porque, se o clínico <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> encontra semprefamiliares amorosos, dispostos a coop<strong>era</strong>r com ele em benefício <strong>do</strong> <strong>do</strong>ente, oque encontramos, por nossa vez, são enormes legiões de elementos adversosà nossa atividade restaura<strong>do</strong>ra e curativa. Em g<strong>era</strong>l, o médico <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> prestasocorro a quem deseja recebê-lo, pelo menos nas ocasiões de graves perigos;nós, porém, meus amigos, muitas vezes temos de prestar assistência aos quenão a desejam, por viverem sob véus de profunda ignorância.— Tem razão — murmurei, ouvin<strong>do</strong> comparações tão lógicas —;entretanto, vale por conforto a certeza de que há muitos coop<strong>era</strong><strong>do</strong>resencarna<strong>do</strong>s no mun<strong>do</strong> prontos a colaborar na tarefa.O senhor Bacelar teve uma expressão fisionômica muito significativa, erevelou:— Nem sempre. A coop<strong>era</strong>ção é outro problema: a maioria <strong>do</strong>s irmãosque se propõem ao serviço, partem daqui prometen<strong>do</strong>, mas gostam de viverdescansa<strong>do</strong>s, no planeta. Poucos fogem ao estalão comum. Raramenteencontramos companheiros encarna<strong>do</strong>s com bastante disposição para amar otrabalho pelo trabalho, sem idéia de recompensa. A maioria está procuran<strong>do</strong>remun<strong>era</strong>ção imediata. Nessas condições, não percebem que a mente lhes ficacomo aposento escuro, atulha<strong>do</strong> de elementos inúteis. À força de viciaremraciocínios, confundem igualmente a visão. Enxergam tormentas onde hápaisagens cel<strong>este</strong>s, montanhas de pedra onde o caminho é gloriosa elevação.De pequenos enganos a pequenos enganos, formam o continente das grandesfantasias. Daí por diante, a recapitulação das experiências terrenas inclina-os,mais fortemente, para a exigência animal e, chega<strong>do</strong>s a esse ponto, rarosvoltam ao dever sagra<strong>do</strong>, para consid<strong>era</strong>r a grandeza das divinas bênçãos.Nosso interlocutor fez uma pausa e tornou:— E o “desculpismo”? Nesse terreno de assistência espiritual, verão,um dia, quantos pretextos são inventa<strong>do</strong>s pelas criaturas terrestres por fugir ao


t<strong>este</strong>munho da verdade divina, nas tarefas que lhes são próprias. Osmor<strong>do</strong>mos da responsabilidade alegam excesso de deveres, os servi<strong>do</strong>res daobediência afirmam ausência de ensejo. Os que guardam possibilidadesfinanceiras montam guarda ao patrimônio amoeda<strong>do</strong>, os que receb<strong>era</strong>m abênção da pobreza de recursos monetários aconselham-se com a revolta. Osmoços declaram-se muito jovens para cultivar as realidades sublimes, os maisi<strong>do</strong>sos afirmam-se inúteis para servi-las. Os casa<strong>do</strong>s reclamam quanto àfamília, os solteiros queixam-se da ausência dela. Dizem os <strong>do</strong>entes que nãopodem, comentam os sãos que não precisam. Raros companheirosencarna<strong>do</strong>s conseguem viver sem a contradição.O senhor Bacelar parecia disposto a prosseguir, mas as duas jovensforam buscá-lo, a ele e Aniceto, em nome de Alfre<strong>do</strong>, a fim de providenciarsolução de problema íntimo que lhes dizia respeito.XXIX - Notícias interessantesEm vista de apresentação mais íntima de Aniceto, que deixara asjovens em nossa companhia, entramos a conversar animadamente com Ceciliae Al<strong>do</strong>nina. A primeira tinha si<strong>do</strong> filha <strong>do</strong>s Bacelar, quan<strong>do</strong> na Crosta; asegunda <strong>era</strong> uma sobrinha <strong>do</strong> chefe da família, que aguardava a volta damãezinha para a organização de um lar na cidade próximas.Ambas demonstravam magnífico desenvolvimento mental, robustainteligência e notável capacidade de expressão.E, enquanto os nossos maiores se conservavam afasta<strong>do</strong>s, cogitan<strong>do</strong>de assunto priva<strong>do</strong>, Vicente e eu ouvíamos as jovens, encanta<strong>do</strong>s com a suanobreza e vivacidade.Verificava que o quadro <strong>era</strong> idêntico à paisagem social da Terra,apenas diferin<strong>do</strong> quanto aos sentimentos reais. Não havia qualquer nota defalsa apresentação. Em tu<strong>do</strong> a alegria pura, a simplicidade fiel, a sinceridadesem mácula.No desenvolvimento espontâneo da palestra, falou Cecilia, com graça:— Estou trabalhan<strong>do</strong>, há muito, para alcançar um prêmio de visita a“Nosso Lar”. Minhas superioras promet<strong>era</strong>m-me semelhante satisfação para oano próximo...E, sorrin<strong>do</strong>, rematou expressivamente:— Entretanto, para consegui-lo, tenho de atender a umas tantasobrigações importantes.— Pois quê! — perguntou Vicente, admira<strong>do</strong> — é preciso tanto?!— Sem dúvida — tornou a jovem, bem humorada — o meu amigotalvez não <strong>este</strong>ja convenci<strong>do</strong>, quanto ao brilho de sua atual posição. Viver em“Nosso Lar” é uma grande bênção. Acaso não o terá compreendi<strong>do</strong> ainda?Sorrimos to<strong>do</strong>s. E, reafirman<strong>do</strong> o conceito, Cecilia continuou:— Segun<strong>do</strong> os instrutores que nos visitam em “Campo da Paz”, os seusMinistérios são verdadeiras universidades de preparação espiritual. O ensejoeducativo, neles, é imenso. E chego a crer que, para avaliarem a extensão dabenesse que Jesus lhes concedeu, seria necessário viverem alguns anos emnossa colônia, onde o trabalho ativo de vigilâncias e assistência é maisimperioso, mais exigente.— Em “Nosso Lar”, porém — objetei —, temos um grande número desofre<strong>do</strong>res. A Regen<strong>era</strong>ção é uma colméia de milhares.


A interlocutora, todavia, revelan<strong>do</strong> profunda acuidade nas observações,considerou:— Você diz muito bem, quan<strong>do</strong> se refere à colméia, significan<strong>do</strong>possibilidades de trabalho. Creia que os sofre<strong>do</strong>res que atingem o seu núcleojá se encontram a caminho de excelentes realizações. Naturalmente que osirmãos desequilibra<strong>do</strong>s, que por lá existem, já se torturam pelo vagarosodespertar da consciência, já sentem remorsos e arrependimentos indicativos derenovação. São sofre<strong>do</strong>res que melhoram progressivamente, porque oambiente da cidade é de elevação positiva. Onde a maioria vive com abondade, a maldade da minoria tende sempre a desaparecer. “Nosso Lar”,portanto, mesmo para os que choram, possui sob<strong>era</strong>nas vantagens espirituais.Impressiona<strong>do</strong> com o que ouvia, lembrei:— Eu mesmo trabalhei algum tempo, em coop<strong>era</strong>ção, nas câmarasretifica<strong>do</strong>ras.— Já ouvi diversas referências a essa instituição — exclamou Cecilia,senhora <strong>do</strong> assunto —, mas, basean<strong>do</strong>-me nos informes de mentores amigos,continuo a manter minha opinião.E, como se já conhecesse nossos processos de serviço, asseverou,sorridente:— Vocês conhecem lá muitos espíritos sofre<strong>do</strong>res, mas, em “Campo daPaz conhecemos muitos espíritos obsessores. Lá poderá existir muita genteque ainda chora; mas em nosso meio há muita gente que se revolta. É maisfácil remediar o que geme, que atender ao revolta<strong>do</strong>. Nas câmaras a que serefere, vocês retificam erros que já aparec<strong>era</strong>m, <strong>do</strong>res que já se manifestaram;mas aqui, meu amigo, somos compeli<strong>do</strong>s a lutar com irmãos ignorantes eperversos, que se sentem absolutamente certos nas fantasias perigosas queesposaram, e vemo-nos obriga<strong>do</strong>s a atender a <strong>do</strong>entes que não acreditam naprópria enfermidade.Começava a entender a lógica daquela argumentação, e, reconhecen<strong>do</strong>a impossibilidade de qualquer contradita, a jovem continuou, segura de si:— Aliás, é natural que assim seja. Estamos a pouca distância <strong>do</strong>shomens, nossos irmãos na carne. E sabemos que, na Crosta, a situação não édiferente. Quantos materialistas se fantasiam, por lá, de filósofos? Quantosdemônios com capa de santos? Quanta má fé a fingir generosidade e boasintenções? A influência da Humanidade encarnada em nosso núcleo de serviçoé vigorosa e inevitável.Vicente, que ouvia atencioso, obtemperou:— Deduzo de tu<strong>do</strong> isso manifestações sacrificantes muito grandes, maso trabalho em “Campo da Paz” deve ser altamente meritório.— Incontestavelmente — respondeu a jovem.— A história da fundação é interessante. Alguns benfeitores,reconheci<strong>do</strong>s a Jesus, resolv<strong>era</strong>m organizar, em nome dele, uma colônia emplena região inferior, que funcionasse como Instituto de socorro imediato aosque são surpreendi<strong>do</strong>s na crosta com a morte física, em esta<strong>do</strong> de ignorânciaou de culpas <strong>do</strong>lorosas. O projeto mereceu a bênção <strong>do</strong> Senhor e o núcleo secriou, há mais de <strong>do</strong>is séculos. Nem to<strong>do</strong>s os Espíritos evoluí<strong>do</strong>s, no entanto,estimam o serviço nesse órgão de assistência constante. A maioria <strong>do</strong>smissionários vitoriosos, ao se ausentarem da Terra, necessitam refazerenergias, por direito natural <strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>r fiel, e os mentores de nobre posiçãohierárquica têm seus programas de serviços, que não devem quebrar, em


obediência aos desígnios <strong>do</strong> Senhor. Desse mo<strong>do</strong>, nosso serviço é ativo, masnossas aquisições são lentas e devemos sempre esp<strong>era</strong>r por coop<strong>era</strong><strong>do</strong>resque se eduquem na própria colônia, em benefício g<strong>era</strong>l. Ganha-se excelenterecompensa, temos direito a grandes valores intercessários, mas, por issomesmo, nossas responsabilidades não são pequenas. Conhecen<strong>do</strong> a utilidade<strong>do</strong>s que servem em nossa colônia, não passamos nunca sem instrutoresabnega<strong>do</strong>s, que procedem da zona superior, alentan<strong>do</strong>-nos o bom ânimo. Oque pedimos, com fundamentação legítima, nunca é nega<strong>do</strong>; e, se tarda orecurso, beneméritos orienta<strong>do</strong>res de nossas atividades prestam explicaçõesque nos libertam de qualquer angústia na esp<strong>era</strong>. Por isso, nosso grupo estásempre coeso e muitos preferem adiar certas realizações sublimes, parapermanecer ao la<strong>do</strong> de companheiros antigos, aos quais se unem comdesvela<strong>do</strong> amor.Os esclarecimentos da jovem encantavam-me. Naquelas poucaspalavras estava to<strong>do</strong> um resumo de lições sobre o sacrifício e o merecimento, ocompromisso fraterno e a solidariedade compensa<strong>do</strong>ra.— A sua família sempre viveu lá? — perguntei com interesse.A jovem sorriu e explicou:— Meu pai, há mais de cinqüenta anos, foi socorri<strong>do</strong> pelos benfeitoresde “Campo da Paz” e, restabelecida a saúde espiritual, fixou-se na colônia,com razoável impulso de amizade e gratidão. E mais tarde, minha mãe reuniusea ele e, faz precisamente vinte anos, Al<strong>do</strong>nina e eu fomos atraídasamorosamente por ambos, a fim de continuarmos, ali, no santuário familiar.Desse mo<strong>do</strong>, trabalhamos ao la<strong>do</strong> deles, desde a primeira hora.— E tem muitos programas para o futuro? Indaguei.Cecilia fez um gesto que lhe caracterizava o coração de moçasonha<strong>do</strong>ra, e redargüiu:— Tenho muitos projetos e problemas a resolver, mas estouaguardan<strong>do</strong> a chegada de alguém que ainda se encontra na Terra.XXX - Em palestra afetuosaVoltávamo-nos em conversação para as belezas de “Nosso Lar”,quan<strong>do</strong> Al<strong>do</strong>nina interveio, acrescentan<strong>do</strong>:— Alguns membros de nossa família visitam a cidade de vocês, detempos a tempos. Nossa irmã Isaura, que se casou em “Campo da paz” há trêsanos, lá reside em companhia <strong>do</strong> esposo que é funcionário <strong>do</strong>s Serviços deinvestigação <strong>do</strong> Ministério <strong>do</strong> Esclarecimento.Perceben<strong>do</strong>-nos a curiosidade, prosseguiu:— Morava ele conosco, mas, desde tempo, foi convoca<strong>do</strong> a serviçospor lá, in<strong>do</strong>, mais tarde, buscar a noiva.Vicente, que se mantinha em atitude séria, exclamou:— Tocamos num assunto que muito me tem desperta<strong>do</strong>, desde queregressei aos círculos terrenos. Não tinha, no mun<strong>do</strong>, nenhuma idéia de quepudéssemos cogitar de uniões depois da morte <strong>do</strong> corpo. Quan<strong>do</strong> assisti afestividades dessa natureza, em “Nosso Lar’ confesso que minha surpresaralou pela estupefação.Cecília, vivaz, acentuou, sorrin<strong>do</strong>:— Isto se deu também conosco. É forçoso reconhecer que tal esta<strong>do</strong>dalma resulta <strong>do</strong> exclusivismo pernicioso a que nos entregamos no planocarnal, porque, se o casamento humano é um <strong>do</strong>s mais belos atos da


existência na Terra, porque deixaria de existir aqui, onde a beleza é sempremais quintessenciada e mais pura? E, além <strong>do</strong> mais, é imprescindível pond<strong>era</strong>rque não vivemos à revelia de leis sábias e justas.— E como são felizes os que se casam em nossos planos! — acentuouo companheiro, denotan<strong>do</strong> aspirações secretas <strong>do</strong> coração.Al<strong>do</strong>nina esboçou um gesto expressivo e considerou:— Sim, para possuirmos aqui essa ventura, é preciso ter ama<strong>do</strong> naTerra, movimentan<strong>do</strong> os mais nobres impulsos <strong>do</strong> espírito. Para colher osjúbilos dessa natureza, é necessário ter ama<strong>do</strong> com almas. Os que seconsagram exclusivamente aos desejos <strong>do</strong> corpo, não sabem amar além daforma, sen<strong>do</strong> incapazes de sentir as profundas vibrações espirituais <strong>do</strong> amorsem morte.Desejan<strong>do</strong>, porém, retomar o assunto referente a ela interroguei,curioso:— Continuem falan<strong>do</strong>-nos da irmã que se mu<strong>do</strong>u para “Nosso Lar”.Estimaria saber como se realizou o consórcio. Se você, Cecilia, estáaguardan<strong>do</strong> um prêmio de visita à nossa cidade, como se casou ela,transferin<strong>do</strong>-se para lá definitivamente?Cecilia sorriu e retrucou:— Isto é outro caso. Isaura não poderia correr atrás <strong>do</strong> noivo, porqueestava em situação inferior à dele, mas Antônio, como superior, poderia desc<strong>era</strong> buscá-la. Não creiam, porém, que o matrimônio se tenha verifica<strong>do</strong> semqualquer preparação ou exigência. O noivo poderia conduzi-la sem qualquerformalidade, desde que recebesse o devi<strong>do</strong> consentimento, porquanto obtiv<strong>era</strong>permissão das autoridades de “Nosso Lar”, mas um <strong>do</strong>s chefes de serviçoaconselhou a Isaura, nesse senti<strong>do</strong>, explican<strong>do</strong>-lhe que, como administra<strong>do</strong>r deuma colônia em condições de inferioridade, não podia opor qualquer embargo,mas pedia à noiva preparar-se, por seis anos sucessivos, em “Campo da Paz”,antes da partida definitiva, acrescentan<strong>do</strong> sensatamente que, num casamentode almas, é indispensável apurar o enxoval <strong>do</strong>s sentimentos. Nossa irmã, quefoi sempre muito prudente, aceitou a solicitação e trabalhou durante to<strong>do</strong> essetempo em nossa colônia, adquirin<strong>do</strong> valores culturais e aprimoran<strong>do</strong> o campo<strong>do</strong> pensamento.Recebia essas delicadas informações, sem disfarçar a enormesurpresa.— Já fui visitar o casal, uma vez — disse Al<strong>do</strong>nina, honrada — quan<strong>do</strong>ganhei o prêmio de assiduidade e bom comportamento. Estive em “Nosso Lar”,durante uma quinzena inesquecível para mim. No entanto, embora visitassesublimes instituições como o Bosque das Águas, o Salão da Arte Divina, oCampo da Prece Augusta, reconheço ter volta<strong>do</strong> muito longe de umconhecimento integral da enorme cidade. Lá irei, contu<strong>do</strong>, mais tarde, poiscontinuo em meu trabalho e nossos instrutores afirmam sempre que tu<strong>do</strong> debom deve aguardar <strong>do</strong> destino quem saiba servir ao bem e trabalhar comesp<strong>era</strong>nça.Admiran<strong>do</strong> a beleza de sentimentos daquelas jovens indagueiemociona<strong>do</strong>:— Mas não têm vocês, em “Campo da Paz”, instituições semelhantes?Não existirão, por lá, templos de alegria abertos à juventude?— Ah! sim — murmurou Cecilia como quem não desejava ser ingrata àsBênçãos <strong>do</strong> Eterno —, muito nos dá o Senhor, em nossa colônia; entretanto,


permanecemos na vizinhança <strong>do</strong>s irmãos encarna<strong>do</strong>s. As tempestades quenos atingem, obrigam-nos a serviços constantes. Os quadros inferiores que noscercam são profundamente <strong>do</strong>lorosos. Nossa cidade não possui Ministérios daUnião Divina, nem da Elevação. Não podemos receber a influência superiorcom muita facilidade. Nossos trabalhos de comunicação e auxílio necessitamainda de muita gente educada no Evangelho, para funcionar com eficiência.Além disso, temos os problemas de finalidade. Nossa colônia foi instituída parasocorro urgente. A nosso ver, “Campo da Paz” é, mais que tu<strong>do</strong>, um avança<strong>do</strong>centro de enfermagem, rodea<strong>do</strong> de perigos, porque os irmãos ignorantes einfelizes nos cercam o esforço por to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s. De dez em dez quilômetros,nas zonas de nossa vizinhança, há Postos de Socorro como <strong>este</strong>, quefuncionam como instituições de assistência fraternal e sentinelas ativas, aomesmo tempo.A jovem fez uma pausa mais longa, observan<strong>do</strong> o efeito de suaspalavras, e rematou:— Nosso governa<strong>do</strong>r, quan<strong>do</strong> se agravam os serviços, costumaassev<strong>era</strong>r que estamos num campo de batalha, com a Paz de Jesus. Imagemalguma define tão bem o nosso núcleo, como esta. No exterior, o trabalho érigoroso e incessante, mas, dentro de nós, existe uma tranqüilidade que nósmesmos dificilmente podemos compreender.— O serviço circunscreve-se à cidade? — perguntei.— Não — o trabalho é multiforme. Eu e Al<strong>do</strong>nina, por exemplo, temosgrandes tarefas de assistência junto <strong>do</strong>s recém-encarna<strong>do</strong>s. Nossa cidadeprepara, em média, quinze a vinte reencarnações diárias e torna-seimprescindível assistir os companheiros ou tutela<strong>do</strong>s, pelo menos no perío<strong>do</strong>infantil mais tenro, que compreende os primeiros sete anos de existênciacarnal.E talvez porque lesse em nossos olhos a mais viva admiração, a jovemadiantou-se, explican<strong>do</strong>:Felizmente, porém, temos as faculdades de volitação bastanteadestradas. Raramente encontramos empecilhos vibratórios e podemos, porisso mesmo, agir com grande economia de tempo. Além disso, somentenossos instrutores vão ao serviço sozinhos. Quanto a nós, não saímos, a nãoser em grupos. Necessitamos auxílio recíproco, não só no que diz com aeficiência, senão também no que se refere ao amparo magnético.E, sorrin<strong>do</strong> de mo<strong>do</strong> singular, concluiu:— No trabalho de assistência aos outros e defesa de nós mesmos, nãopodemos dispensar a prática avançada e justa da coop<strong>era</strong>ção sinc<strong>era</strong>.XXI - Cecilia ao órgãoPoucas vezes, no círculo carnal, tiv<strong>era</strong> o prazer de assistir a reunião tãoseleta.To<strong>do</strong>s os lustres estavam magnificamente acesos e, lá fora, as grandesárvores, <strong>do</strong>cemente agitadas pelo vento bran<strong>do</strong>, pareciam refletir o clarãolunar. Pares graciosos passeavam ao longo da varanda e as escadariasextensas. O castelo ench<strong>era</strong>-se de alegria, com a crescente multiplicação deconvida<strong>do</strong>s. O administra<strong>do</strong>r mostrava-se orgulhoso de confraternizar com oscolabora<strong>do</strong>res diretos da sua obra, na recepção condigna aos amigos dacolônia próxima. O júbilo transparecia em to<strong>do</strong>s os rostos, e eu, observan<strong>do</strong> abeleza <strong>do</strong> espetáculo, meditava na ventura da vida social, no ambiente


daqueles que começavam a compreender e praticar o “amai-vos uns aosoutros”, distancia<strong>do</strong>s da hipocrisia e das convenções aviltantes.Conversávamos, animadamente, quan<strong>do</strong> Alfre<strong>do</strong> nos convi<strong>do</strong>u para oSalão de Música.Houve g<strong>era</strong>l contentamento. A senhora Bacelar, dan<strong>do</strong> o braço à nobreIsmália, parecia encantada com a lembrança.Dirigimo-nos para o grande reduto, prodigiosa semente ilumina<strong>do</strong> porluzes de um azul <strong>do</strong>ce e brilhante. Deliciosa música embalava-nos a alma.Observei, então, que um coro de pequenos musicantes executava harmoniosapeça, ladean<strong>do</strong> um grande órgão, algo diferente <strong>do</strong>s que conhecemos naTerra. Oitenta crianças, meninos e meninas, surgiam, ali, num momento vivo,encanta<strong>do</strong>r. Cinqüenta tangiam instrumentos de corda e trinta conservavam-se,graciosamente, em posição de canto. Executavam, com maravilhosa perfeição,uma linda barcarola que eu nunca ouvira no mun<strong>do</strong>.Comovidíssimo, ouvi o administra<strong>do</strong>r explicar:— As crianças <strong>do</strong> Posto são as nossas flores vivas. Dão-nos perfume,encantamento, alegria, suavizan<strong>do</strong>-nos to<strong>do</strong>s os trabalhos.Abeiramo-nos <strong>do</strong> órgão, sentan<strong>do</strong>-nos to<strong>do</strong>s em confortáveis poltronas.Quan<strong>do</strong> as crianças terminaram, sob aplausos calorosos, Ismália pediua Cecilia executasse alguma coisa,— Eu? — disse a jovem, coran<strong>do</strong> — se a senhora vem das altasesf<strong>era</strong>s, onde a harmonia é santificada e pura, como poderei executar para osseus ouvi<strong>do</strong>s?— Não diga isso, Cecilia — tornou, sorridente, a generosa esposa <strong>do</strong>administra<strong>do</strong>r —, a música elevada é sublime em toda parte. Vá, minha filha!lembre-me o lar terreno nos dias mais belos!...E, antes que a jovem Bacelar perguntasse qual a peça preferida,Ismália continuou:— Os serviços musicais <strong>do</strong> Posto levam-me a recordar a velhaFazenda, quan<strong>do</strong> voltava <strong>do</strong> Internato... Meus pais estimavam as composiçõeseuropéias e, quase todas as noites, ensaiava ao piano...E, fixan<strong>do</strong> em Cecilia os olhos úmi<strong>do</strong>s e brilhantes, rematou:Sua mamãe deve lembrar comigo a música predileta de meu velho ecarinhoso pai.Notei que a senhora Bacelar disse alguma coisa à filha, em voz baixa, evimos Cecilia caminhar para o grande instrumento, sem hesitação. Comemoção indizível, ouvimo-la executar, magistralmente, a “Tocata e Fuga em RéMenor”, de Bach, acompanhada pelas crianças exultantes.Fixei o rosto de Ismália, notan<strong>do</strong>, pela luz <strong>do</strong> seu olhar, que seuspensamentos vagueavam longe, talvez em torno <strong>do</strong> antigo ninho <strong>do</strong>méstico. Vienxugar as lágrimas discretas e abraçar Cecilia carinhosamente, ao findar aexecução.— Agora, Cecília, cante alguma canção da própria alma! falou a nobresenhora com ternuras de mãe — mostre-nos seu coração...Os senhores Bacelar estavam satisfeitos e emociona<strong>do</strong>s. Lia-se-lhesnos gestos o carinho com que acompanhavam os menores movimentos dafilha.A jovem sorriu, voltou ao tecla<strong>do</strong>, mas permanecia, agora, fundamentetransfigurada. Seu belo semblante parecia refletir alguma luz diferente, quevinha de mais alto. Começou a cantar, de maneira misteriosa e comove<strong>do</strong>ra. A


música parecia sair-lhe das profundezas <strong>do</strong> coração, mergulhan<strong>do</strong>-nos emsublime emotividade. Procurei guardar as palavras da maravilhosa canção,mas seria impossível repeti-las integralmente no círculo <strong>do</strong>s encarna<strong>do</strong>s naTerra. A sombra da meia-noite não poderia traduzir o revérbero da aurora. Masde algo me lembro, para registrar aqui, com a fidelidade de que é auscetivelminha memória imperfeita.Como se fora rodeada de claridades diversas daquela em que nosbanhávamos, Cecilia cantou com voz velu<strong>do</strong>sa e acariciante:“Guardei para os teus olhosAs estrelas brilhantes <strong>do</strong> céu calmo...Guardei para tua almaTo<strong>do</strong>s os lírios puros <strong>do</strong>s caminhos!...Ama<strong>do</strong> meu, ama<strong>do</strong> meu,Como é longa a viagem entre escolhosN<strong>este</strong> oceano imenso da saudade,Ao sublime Luar da eternidade!!!...Em vão, a fada Esp<strong>era</strong>nçaAcende a luz dentro de mim...Porque te foste ao mun<strong>do</strong>, assim?!Volta, ama<strong>do</strong>!Ainda mesmoQue as tuas mãos <strong>este</strong>jam friasE que teus pés sangrem de <strong>do</strong>r.Trago comigo o bálsamo, a ternura,Volte a mim,Vem respirar, de novo, no jardimDa imortal união!...Curarei tuas chagas de amargura,Dar-te-ei o roteiro para a estrada,Amare os que amas,Para que me abençoes com o teu sorriso.Volta, ama<strong>do</strong>!Esquece a <strong>do</strong>r e a sombra <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>,Volta, de novo, ao nosso paraíso...”Quan<strong>do</strong> desferiu as últimas notas, vi-lhe o semblante lava<strong>do</strong> emlágrimas, como se fora banha<strong>do</strong> em pérolas de luz. Observei que a senhoraBacelar, muitíssimo comovida, tocou de leve a mão de Ismália, e falou:— Cecilia nunca o esquece.A esposa <strong>do</strong> administra<strong>do</strong>r, mostran<strong>do</strong>-se extremamente sensibilizada,indagou:— Não têm vocês novas noticias de Hermínio?— O pobrezinho tem vivi<strong>do</strong> de queda em queda — esclareceu a nobreinterlocutora — e Cecilia sabe que não poderá contar com ele, por muito tempo


ainda, guardan<strong>do</strong>, por esse motivo, muitas mágoas íntimas. Entretanto, nossafilha não desanima e trabalha, incessantemente, cheia de esp<strong>era</strong>nça.Nesse momento, porém, a jovem regressava ao círculo familiar,enxugan<strong>do</strong> os olhos.A esposa de Alfre<strong>do</strong> abraçou-a e falou:— Minhas felicitações. Não sabia que você progredira tanto na artedivina! E que bela canção!...Cecilia fez um gesto de timidez, beijou a mão da carinhosa amiga eretrucou:— Per<strong>do</strong>e-me, querida Ismália, meu coração permanece ainda muitoliga<strong>do</strong> à Terra!...Ismália, porém, de olhos úmi<strong>do</strong>s e compreenden<strong>do</strong>-lhe o sofrimentoíntimo, conchegou-a ao peito e murmurou:— Devotar-se não é crime, minha boa Cecilia. O amor é luz de Deus,ainda mesmo quan<strong>do</strong> resplandece no fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> abismo.XXXII - Melodia sublimeNum gesto nobre, Aniceto pediu a Ismália que executasse algum motivomusical de sua elevada esf<strong>era</strong>.A esposa de Alfre<strong>do</strong> não se fez rogada. Com extrema bondade, sentouseao órgão, falan<strong>do</strong>, gentil:— Ofereço a melodia ao nosso caro Aniceto.E, ante nossa admiração comovida, começou a tocarmaravilhosamente. Logo às primeiras notas, alguma coisa me arrebatava aosublime. Estávamos extasia<strong>do</strong>s, silenciosos. A melodia, tecida em misteriosabeleza, inundava-nos o espírito em torrentes de harmonia divina. Penetrava-meo coração um campo de vibrações suavíssimas quan<strong>do</strong> fui surpreendi<strong>do</strong> porpercepções absolutamente inesp<strong>era</strong>das. Com assombro indefinível, repareique a esposa de Alfre<strong>do</strong> não cantava, mas no seio caricioso da música haviauma prece que atingia o sublime — oração que eu não escutava com osouvi<strong>do</strong>s mas recebia em cheio na alma, através de vibrações sutis, como se omelodioso som estivesse impregna<strong>do</strong> <strong>do</strong> verbo silencioso e cria<strong>do</strong>r. As notasde louvor alcançavam-me o âmago <strong>do</strong> espírito, arrancan<strong>do</strong>-me lágrimas deintraduzível emotividade:“Ó Senhor Supremo de To<strong>do</strong>s os Mun<strong>do</strong>sE de To<strong>do</strong>s os Seres,Recebe, Senhor.O nosso agradecimentoDe filhos deve<strong>do</strong>res <strong>do</strong> teu amor!Dá-nos tua bênção,Ampara-nos a esp<strong>era</strong>nça,Ajuda-nos o idealNa estrada imensa da vida...Seja para o teu coração,Cada dia,Nosso primeiro pensamento de amor!Seja para tua bondade


Nossa alegria de viver!...Pai de amor infinitoDá-nos tua mão generosa e santa.Longo é o caminho.Grande o nosso débito,Mas inesgotável é a nossa esp<strong>era</strong>nça.Pai Ama<strong>do</strong>,Somos as tuas criaturas,Raios divinosDe tua Divina Inteligência.Ensina-nos a descobrirOs tesouros imensosQue guardasteNas profundezas de nossa vida,Auxilia-nos a acenderA lâmpada sublimeDa Sublime Procura!Senhor,Caminhamos contigoNa eternidade!...Em Ti nos movemos para sempre.Abençoa-nos a senda,Indica-nos a Sagrada Realização,E que a glória eternaSeja em teu eterno trono!...Resplandeça contigo a Infinita Luz,Mane em teu coração misericordiosoA sob<strong>era</strong>na Fonte <strong>do</strong> Amor,Cante em tua Criação InfinitaO sopro divino da Eternidade.Seja a tua bênçãoClaridade aos nossos olhos,Harmonia ao nosso ouvi<strong>do</strong>,Movimento às nossas mãos,Impulso aos nossos pés.No amor sublime da Terra e <strong>do</strong>s Céus!...Na beleza de todas as vidas,Na progressão de todas as coisas,Na voz de to<strong>do</strong>s os seres,Glorifica<strong>do</strong> sejas para sempre,Senhor.


Que melodia <strong>era</strong> aquela que se ouvia através de sons inarticula<strong>do</strong>s?Não pude conter as lágrimas abundantes. Cecilia comov<strong>era</strong>-nos asensibilidade, lembran<strong>do</strong> as harmonias terrenas e os afetos humanos. Ismália,no entanto, arrebatava-nos o Espírito, elevan<strong>do</strong>-nos ao Supremo Pai. Nuncaouvira oração de louvor como aquela! Além disso, a esposa de Alfre<strong>do</strong>glorificava o Senhor de maneira diferente, inexprimível na linguagem humana.A prece tocara-me as recônditas fibras <strong>do</strong> coração e reconhecia que nuncameditara na grandeza divina, como naquele instante em que uma almasantificada falava de Deus, com a maravilha de suas riquezas espirituais.E não <strong>era</strong> só eu a chorar como criança. Aniceto enxugava os olhos, demaneira discreta, e algumas senhoras levavam o lenço ao rosto.Compreendi que a oração terminara, porque a música mu<strong>do</strong>u deexpressão. O caráter heróico cedeu lugar a lirismo encanta<strong>do</strong>r.Experimentan<strong>do</strong> a profunda serenidade ambiente, vi que luzes prodigiosasjorravam <strong>do</strong> Alto sobre a fronte de Ismália, envolven<strong>do</strong>-a num arco irisa<strong>do</strong> deefeito magnífico e, com admiração e enlevo, observei que belas flores azuispartiam <strong>do</strong> coração da musicista, espalhan<strong>do</strong>-se sobre nós. Desfaziam-secomo se feitas de cariciosa bruma anilada, ao tocar-nos, de leve, enchen<strong>do</strong>nosde profunda alegria. A maior parte caía sobre Aniceto, fazen<strong>do</strong>-nosrecordar as palavras amigas da dedicatória. Impressionavam-meprofundamente aquelas corolas fluídicas, de sublime azul-cel<strong>este</strong>,multiplican<strong>do</strong>-se, sem cessar, no ambiente, e penetran<strong>do</strong>-nos o coração comopétalas constituídas apenas de colori<strong>do</strong> perfume. Sentia-me tão alegre,experimentava tamanho bom ânimo que não conseguiria traduzir as emoções<strong>do</strong> momento.Mais alguns minutos e Ismália terminou a magistral melodia.A esposa <strong>do</strong> administra<strong>do</strong>r desceu até nós, coroada de intensa luz.Alfre<strong>do</strong> avançou, beijan<strong>do</strong>-a no rosto, ao mesmo tempo que Aniceto lhe<strong>este</strong>ndia a destra, agradeci<strong>do</strong>.— Há muito tempo não ouvia músicas tão sublimes como as desta noite— exclamou nosso orienta<strong>do</strong>r, sorrin<strong>do</strong>. Cecilia falou-nos <strong>do</strong> sublime amorterrestre, Ismália arrebatou-nos ao divino amor celestial. Idéia feliz a depermanecermos no Posto! Fomos igualmente socorri<strong>do</strong>s pela luz da amizade,que nos revigorou o bom ânimo!Aproximaram-se os Bacelar, eminentemente comovi<strong>do</strong>s.— Que maravilhosas flores nos d<strong>este</strong>, querida amiga! — disse amãezinha de Cecilia, abraçan<strong>do</strong> a esposa de Alfre<strong>do</strong>.— Voltaremos ao trabalho, repletos de energia nova! — acrescentou osenhor Bacelar, sorridente.A extensa sala estava cheia de notas de reconhecimento e júbilosincero. A melodia de Ismália constituíra singular presente <strong>do</strong> Céu. A alegria eo bom ânimo transpiravam em to<strong>do</strong>s os rostos.Observan<strong>do</strong> que Aniceto se retirava para um canto <strong>do</strong> salão, procurei-o,ansioso. Desejava esclarecer o fenômeno da prece sem palavras, dasharmonias, das luzes e das flores. Antes, porém, das interpelações <strong>do</strong>aprendiz, o orienta<strong>do</strong>r amigo sorriu, amável, e explicou:— Conheço a sua sede, André. Não precisa perguntar. Impressionou-sevocê com a grandeza espiritual da nobre companheira <strong>do</strong> nosso amigo. Nãoprecisarei alinhar esclarecimentos. Recorda-se de Ana, a infeliz criatura que


<strong>do</strong>rme nos pavilhões, entre pesadelos cruéis? Lembra-se de Paulo, ocalunia<strong>do</strong>r? Não os viu carregan<strong>do</strong> pesa<strong>do</strong>s far<strong>do</strong>s mentais? Cada um de nóstraz, nos caminhos da vida, os arquivos de si mesmo. Enquanto os mausexibem o inferno que criaram para o íntimo, os bons revelam o paraíso queedificaram no próprio coração. Ismália já amontoou muitos tesouros que astraças não roem. Ela já pode dar da infinita harmonia a que se devotou pelabondade e pelo divino amor. A luz que vimos é a mesma que jorra <strong>do</strong> planosuperior, de maneira incessante, inundan<strong>do</strong> os caminhos da vida, mas amelodia, a prece e as flores constituem sublime criação dessa alma santificada.Ela repartiu conosco, n<strong>este</strong> momento, uma parte <strong>do</strong>s seus tesouros eternos!Peçamos ao Senhor, meu amigo, que não tenhamos recebi<strong>do</strong> em vão assublimes dádivas!XXXIII - A caminho da CrostaApós nos refazermos pela manhã, consid<strong>era</strong>n<strong>do</strong> a viagem ainda longa,despedimo-nos, comovi<strong>do</strong>s. Pelo menos, quanto a mim podia afirmar que meafastava com mágoa, tão belas as lições ali colhidas!Alfre<strong>do</strong> e a esposa nos abraçaram, sensibiliza<strong>do</strong>s, desejan<strong>do</strong>-nosjornada feliz e êxito no trabalho.Vários amigos da vésp<strong>era</strong> estavam presentes, saudan<strong>do</strong>-nos jubilosos.Tomamos o carro, agradavelmente surpreendi<strong>do</strong>s.Ser-me-ia muito difícil descrever a pequena máquina, que mais seassemelhava a pequeno automóvel de asas, a deslocar-se impulsiona<strong>do</strong> porflui<strong>do</strong>s elétricos acumula<strong>do</strong>s.Sempre atencioso, Aniceto explicou:— Aceitei a coop<strong>era</strong>ção <strong>do</strong> aparelho, não por que os desejaescraviza<strong>do</strong>s ao menor esforço, mas porque a permanência, embora ligeira, noPosto de Socorro, constituiu ensejo <strong>do</strong>s mais frutuosos à aquisição deconhecimentos necessários. Receb<strong>era</strong>m vocês lições intensivas, relativamenteaos nossos irmãos perturba<strong>do</strong>s e sofre<strong>do</strong>res, bem como sobre os efeitos daprece. Desse mo<strong>do</strong>, temos nosso expediente bastante adianta<strong>do</strong>, consid<strong>era</strong>n<strong>do</strong>que se encontram ambos em tarefa de observação e aprendiza<strong>do</strong>, acima detu<strong>do</strong>.Depois de ligeira pausa, continuou:— Não creiam, todavia, que possamos aproveitar a máquina até aCrosta. Calculo que só poderemos voar até ao meio-dia. Em seguida,prosseguiremos a pé.Aniceto calou-se por instantes, sorriu noutra expressão fisionômica, eacentuou:— Isto, porém, acontecerá somente enquanto não hajam vocês cria<strong>do</strong>asas espirituais, que possam vencer todas as resistências vibratórias.Semelhante realização pode não estar distante. Dependerá <strong>do</strong> esforço quedesejarem despender no trabalho aquisitivo. To<strong>do</strong> aquele que opere, e cooperede espírito volta<strong>do</strong> para Deus, poderá aguardar sempre o melhor. Não épromessa de amizade. É lei.O pequeno aparelho nos conduziu por enormes distâncias, sempre noar, mas conservan<strong>do</strong>-se a reduzida altura <strong>do</strong> solo.Quase precisamente ao meio-dia, estacionamos em humilde pouso,destina<strong>do</strong> a abastecimento e reparação de maquinaria de natureza daquela emque havíamos viaja<strong>do</strong>.


Despediu-se de nós o condutor, que nos desejou boa viagempreparan<strong>do</strong>-se para regressar.A paisagem tornou-se, então, muito fria e diferente. Não estávamos emcaminho trevoso, mas muito escuro e nevoento. Tomara-se densa a atmosf<strong>era</strong>,alt<strong>era</strong>n<strong>do</strong>-nos a respiração.Aniceto contemplou, conosco, a vastidão caliginosa e falou em tomgrave:— Com quatro horas de locomoção, estaremos na Crosta. Reparem assombras que nos rodeiam, identifiquem a mudança g<strong>era</strong>l. Infelizmente, asemissões vibratórias da Humanidade encarnada são de natureza bastanteinferior, em nos referin<strong>do</strong> à maioria das criaturas terrestres, e estas regiõesestão repletas de resíduos escuros, de matéria mental <strong>do</strong>s encarna<strong>do</strong>s edesencarna<strong>do</strong>s de baixa condição.Atravessaremos grandes zonas, não propriamente tenebrosas, masmuito obscuras ao nosso olhar. Daqui a duas horas, porém, encontraremossinais da luz solar.Nossa peregrinação, francamente, foi muito pesada e <strong>do</strong>lorosa, e,somente ai, avaliei, de fato, a enorme diferença da estrada comum, que liga aCrosta a “Nosso Lar” e aquela que agora percorríamos a pé, vencen<strong>do</strong>obstáculos de vulto. Imaginei, comovi<strong>do</strong>, o sacrifício <strong>do</strong>s grandes missionáriosespirituais que assistem o homem, compreenden<strong>do</strong>, então, quão meritório lhesé o serviço e como necessitam disposições especiais e extraordinário bomânimo, para auxiliarem as criaturas encarnadas, de maneira constante.Os monstros, que fugiam à nossa aproximação, esconden<strong>do</strong>-se nofun<strong>do</strong> sombrio da paisagem, <strong>era</strong>m indescritíveis e, obedecen<strong>do</strong> adeterminações de Aniceto, não posso ensaiar qualquer informe nesse senti<strong>do</strong>,a fim de não criar imagens mentais de ordem inferior no espírito <strong>do</strong>s que,acaso, venham a ler estas humildes notícias.No horário previsto por nosso orienta<strong>do</strong>r, começamos a vislumbrar, denovo, a luz <strong>do</strong> Sol, como se estivéssemos em madrugada clara. O espetáculo<strong>era</strong> magnífico e novo para mim. Calor bran<strong>do</strong> começou a revigorar-nos.Aniceto fixou o quadro maravilhoso <strong>do</strong>s raios de luz atravessan<strong>do</strong> assombras, e falou, de olhos úmi<strong>do</strong>s:— Agradeçamos ao Senhor <strong>do</strong>s Mun<strong>do</strong>s a bênção <strong>do</strong> Sol! Na Naturezafísica, é a mais alta imagem de Deus que conhecemos. Temo-lo, nas maisvariadas combinações, segun<strong>do</strong> a substância das esf<strong>era</strong>s que habitamos,dentro <strong>do</strong> sistema. Ele está em “Nosso Lar”, de acor<strong>do</strong> com os elementosbásicos de vida, e permanece na Terra segun<strong>do</strong> as qualidades magnéticas daCrosta. É visto em Júpiter de maneira diferente. Ilumina Vênus com ousadia.Avançamos, comovi<strong>do</strong>s, e, dai a algum tempo, surgiu-nos o astrosublime, na posição que antecede o crepúsculo.Doutras vezes, viajan<strong>do</strong> sempre através da estrada luminosa e fácil deser percorrida, em vista das possibilidades de volita não fiz<strong>era</strong> maior reparo.Agora, porém, que atravessara névoas compactas, anotava diferençasprofundas.A certa distância, surgia a Terra, não na forma esférica, porque nosachávamos não longe da Crosta, mas como paisagem além, a interpenetrar-senas extensas regiões espirituais.O Sol resplandecia, rumo ao Poente, como enorme lâmpada de ouro.Aniceto, que parecia alegrar-se sobremaneira, exclamou:


— Entramos na zona de influenciação direta da Crosta. Poderemos,<strong>do</strong>ravante, praticar a volitação, utilizan<strong>do</strong> nossos conhecimentos detransformação da força centrípeta. A luz que nos banha resulta <strong>do</strong> contactomagnético entre a energia positiva <strong>do</strong> Sol e a força negativa da massaplanetária. Prossigamos. Não tardaremos a entrar no Rio de Janeiro.A essa altura, assaltou-me o desejo de perguntar alguma coisarelativamente à, direção.— Como nos orientaremos? — indaguei, curioso.— Antes de tu<strong>do</strong> — respondeu o instrutor — é preciso não esquecerque nossas colônias estão situadas no campo magnético da América <strong>do</strong> Sul.Qualquer bússola seria sensível, de agora em diante, mas, em nosso caso, éindispensável educar o pensamento e orientar-nos dentro da energia que lhe épeculiar.Empregamos, de novo, a capacidade volitante e, dentro em pouco, asmatas de Petrópolis estavam a vista. Mais alguns minutos e perlustrávamos asgrandes artérias cariocas. Por sugestão <strong>do</strong> instrutor, abeiramo-nos <strong>do</strong> mar, emexercício respiratório de maior expressão.Vicente e eu estávamos positivamente exaustos. Reconhecíamos que oesforço fora significativo para nossas escassas forças.Indiferentes à nossa presença, os transeuntes passavam apressa<strong>do</strong>s,de mente chumbada aos problemas de ordem material. Fonfonavam ônibusrepletos. A grande baía figurava-se-nos cheia de forças renova<strong>do</strong>ras.Quan<strong>do</strong> se acendiam as primeiras luzes elétricas, Aniceto convi<strong>do</strong>unos,generosamente:— Vamos ao reconforto! Vocês estão fatigadíssimos. Irei mostrar-lhesque “Nosso Lar” tem, igualmente, alguns refúgios na Crosta.XXXIV - Oficina de «Nosso Lar»Entre dezoito e dezenove horas, atingimos uma casa singela de bairromodesto. No longo percurso, através de ruas movimentadas, surpreendia-me,sobremaneira, por se me depararem quadros totalmente novos. Identificava,agora, a presença de muitos desencarna<strong>do</strong>s de ordem inferior, seguin<strong>do</strong> ospassos de transeuntes vários, ou cola<strong>do</strong>s a eles, em abraço singular. Muitosdependuravam-se a veículos, contemplavam-nos outros, das sacadasdistantes. Alguns, em grupos, vagavam pelas ruas, forman<strong>do</strong> verdadeirasnuvens escuras que houvessem baixa<strong>do</strong> repentinamente ao solo.Assustei-me. Não havia anota<strong>do</strong> tais ocorrências nas excursõesanteriores ao círculo carnal. Aniceto, porém, explicou que não fora vão o auxiliorecebi<strong>do</strong> para intensificação <strong>do</strong> poder visual. Estávamos em tarefa deobservação ativa, com vistas ao aprendiza<strong>do</strong>.Não dissimulava, entretanto, minha surpresa. As sombras sucediam-seumas às outras e posso assegurar que o número de entidades inferiores,invisíveis ao homem comum, não <strong>era</strong> menor, nas ruas, ao de pessoasencarnadas, em contínuo vai vem. Não havia, ali, a serenidade <strong>do</strong>s ambientesde “Nosso Lar”, nem a calma relativa <strong>do</strong> Posto de Socorro de Campo da Paz.Receios imprevistos instalavam-se-me nalma, desagradáveis choques íntimosassaltavam-me o coração, sem que lhes pudesse localizar a procedência.Tinha a impressão nítida de havermos mergulha<strong>do</strong> num oceano de vibraçõesmuito diferentes, onde respirávamos com certa dificuldade. Nosso instrutoresclarecia que, com o tempo, seriam dilata<strong>do</strong>s nossos poderes de resistência e


que as penosas sensações experimentadas obedeciam à circunstância de s<strong>era</strong>quela a primeira vez que descíamos ao ambiente da Crosta em serviço deanálise mais intenso. Recomendava-nos bom ânimo e, sobretu<strong>do</strong>, aconservação da fortaleza mental, ante quaisquer quadros menos estimáveisque nos defrontassem de imprevisto. A eficiência <strong>do</strong> auxílio, exclamava ele,necessita educação persistente. Não seria possível ajudar alguém, prenden<strong>do</strong>nosa fraquezas de qualquer espécie.Os conselhos de Aniceto acalmavam-nos a alma surpreendida einquieta, e eu tu<strong>do</strong> fazia, no íntimo, para ajustar-me aos alvitres <strong>do</strong> bon<strong>do</strong>soorienta<strong>do</strong>r, mesmo porque, assev<strong>era</strong>va ele, que diversos companheirosadiavam nobres realizações em virtude das manifestações de injustificávelreceio.Aquela residência de aspecto tão humilde, que alcançávamos, agora,proporcionava-me cari<strong>do</strong>sa impressão de conforto. Estava lindamenteiluminada por clarões espirituais, que recordavam precisamente nossa cidadetão distante. Fundamente surpreendi<strong>do</strong>, reparei que o nosso orienta<strong>do</strong>r sedetiv<strong>era</strong>. Notan<strong>do</strong> a nossa admiração, Aniceto indicou a casa pobre, e falou:— Teremos aqui o nosso refúgio. É uma oficina que representa “NossoLar”.Profun<strong>do</strong> assombro empolgou o íntimo, mas não tive ensejo paraindagações. Precisava seguir o Instrutor, que tomara a direção da casapequenina. Aproximamo-nos <strong>do</strong> jardim que rodeava a construção muito simplese, estupefato, observei que numerosos companheiros espirituais assomavam àjanela, saudan<strong>do</strong>-nos alegremente.Que significava tu<strong>do</strong> aquilo? De outras vezes, visitara minha cidade emeu antigo lar, mas nunca vira tal coisa.Aniceto compreendeu-me a perplexidade e explicou:— Os irmãos que nos saúdam são trabalha<strong>do</strong>res espirituais que seabrigam nesta tenda de amor.Um cavalheiro muito simpático e acolhe<strong>do</strong>r abriu-nos a porta.Este pormenor foi outra nota imprevista. Tal não sucedia quan<strong>do</strong>voltava à minha velha casa terrena. As portas cerradas não me ofereciamobstáculos. Ali, porém, vigorava um sistema vibratório de vigilância que eu nãoconhecia, até então.Nosso instrutor envolveu o anfitrião num abraço amistoso,apresentan<strong>do</strong>-nos em seguida.— Aqui, meu caro Isi<strong>do</strong>ro — disse a indicar-nos, carinhoso —, sãonossos amigos Vicente e André, novos coop<strong>era</strong><strong>do</strong>res de serviço, em “NossoLar”.— Muito bem! muito bem! — exclamou Isi<strong>do</strong>ro abraçan<strong>do</strong>-nos —nossas atividades precisam de trabalha<strong>do</strong>res operosos. Entrem!E acrescentou, hospitaleiro:— A casa pertence a to<strong>do</strong>s os coop<strong>era</strong><strong>do</strong>res fiéis <strong>do</strong> serviço cristão.Era a primeira vez que eu via uma entidade espiritual com tão segurachefia de uma casa terrestre.Penetramos o ambiente modesto.Altamente surpreendi<strong>do</strong>, reparei o interior. À paisagem materialmostrava alguns móveis singelos, velhos quadros a óleo nas paredes alvas,velha máquina de costura movimentada por uma jovem aparentan<strong>do</strong> dezesseisanos, um rapazote de <strong>do</strong>ze anos presumíveis, atento a cadernetas de exercício


escolar, três crianças de nove, sete e cinco anos aproximadamente, e, comofigura central <strong>do</strong> grupo <strong>do</strong>méstico, uma senhora de quarenta anos, mais oumenos, tricotan<strong>do</strong> uma blusa. Notei, porém, que da fronte, <strong>do</strong> tórax, <strong>do</strong> olhar edas mãos dessa senhora irradiava-se luz incessante que me não permitiasofrear minhas expressões admirativas.Aniceto designou-a, respeitoso, e falou:— Temos, aqui, a nossa irmã Isabel. Para os olhos humanos ela é aviúva de Isi<strong>do</strong>ro, mas para nós é uma servi<strong>do</strong>ra leal nas atividades da fé.Reparei que Dona Isabel parecia, de algum mo<strong>do</strong>, registrar a nossapresença, acusan<strong>do</strong> certa surpresa no olhar, mas Aniceto adiantou-se,esclarecen<strong>do</strong>:— Nossa amiga é senhora de grande vidência psíquica, mas osbenfeitores que nos orientam os esforços recomendam não se lhe permita avisão total <strong>do</strong> que se passa em torno de suas faculdades mediúnicas. Oconhecimento exato da paisagem espiritual, em que vive, talvez lheprejudicasse a tranqüilidade. Isabel, portanto, apenas pode ver, mais oumenos, a vigésima parte <strong>do</strong>s serviços espirituais em que colabora, de mo<strong>do</strong>direto...A essa altura, Isi<strong>do</strong>ro nos indicou pequena sala ao la<strong>do</strong>, e falou aAniceto em particular:— Desculpem-me se não lhes posso acompanhar no repousonecessário. Descansem, contu<strong>do</strong>, à vontade. Tenho serviços urgentes narecepção de outros amigos.Nosso mentor agradeceu, comovidamente, e, acompanhan<strong>do</strong>-o,alcançamos modesto salão pobremente mobilia<strong>do</strong>, mas quase repleto deentidades evolvidas em conversação edificante.Conforta<strong>do</strong>ras luzes brilhavam em to<strong>do</strong>s os recantos. Havia ali umvelho relógio, tosca mesa de grandes proporções, uma dúzia de cadeiras ealguns bancos rústicos.A claridade espiritual reinante, todavia, <strong>era</strong> de maravilhoso efeito. Muitagente esclarecida e generosa <strong>do</strong> plano invisível aos humanos aí se reunia.Aniceto cumprimentou os grupos que lhe <strong>era</strong>m mais íntimos, de mo<strong>do</strong> especial,e apresentou-nos com a bondade de sempre.Sentin<strong>do</strong>-nos a admiração, esclareceu, quan<strong>do</strong> nos vimos mais a sósnum canto <strong>do</strong> salão:— Estamos numa oficina de “Nosso Lar”. Isi<strong>do</strong>ro e Isabel edificaram-na,num ato de heroísmo e fé, ten<strong>do</strong> saí<strong>do</strong> de nossa cidade para essa tarefa, vaipara mais de quarenta anos. Graças a Deus ambos têm venci<strong>do</strong>,galhardamente, árduas provas, e mantêm seus compromissos corajosamente,em serviço na Crosta. Há três anos, voltou ele para nossa esf<strong>era</strong>, e contu<strong>do</strong>,graças ao altruísmo da esposa e aos vínculos de amor espiritual queconservam acima de todas as expressões físicas, continuam estreitamenteuni<strong>do</strong>s, como no primeiro dia <strong>do</strong> reencontro na existência material. Dada estacircunstância invulgar, as autoridades de “Nosso Lar” conced<strong>era</strong>m-lhepermissão para continuar nesta casa como esposo amigo, pai devota<strong>do</strong>,sentinela vigilante e trabalha<strong>do</strong>r fiel.E, observan<strong>do</strong> talvez a nossa maior surpresa, Aniceto acrescentou:— Sim, amigos, o acaso não define responsabilidades nem atende aconstrução séria. A edificação espiritual pede esforço e dedicação. Assim comoos navios <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> necessitam de âncoras fortes para atenderem


eficientemente à sua tarefa nos portos, também nós precisamos de irmãoscorajosos e abnega<strong>do</strong>s que façam o papel de âncoras entre as criaturasencarnadas, a fim de que, por elas, possam os grandes benfeitores daEspiritualidade Superior se fazerem sentir entre os homens ainda animaliza<strong>do</strong>s,ignorantes e infelizes.XXXV - Culto <strong>do</strong>mésticoNas primeiras horas da noite, Dona Isabel aban<strong>do</strong>nou a agulha econvi<strong>do</strong>u os filhinhos para o culto <strong>do</strong>méstico.Notan<strong>do</strong> o interesse que me despertavam as crianças, Aniceto explicou:— As meninas são entidades amigas de “Nosso Lar”, que vi<strong>era</strong>m paraserviço espiritual e resgate necessário, na Terra. O mesmo, porém, nãoacontece ao pequeno, que procede de região inferior.De fato, eu identificava perfeitamente a situação. O rapazola não serevestia de substância luminosa e atendia ao convite materno, não como quemse alegra, mas como quem obedece. Com tamanha naturalidade se sentaramto<strong>do</strong>s em torno da mesa, que compreendi a antiguidade daquele abençoa<strong>do</strong>costume familiar. A filha mais velha, que atendia por Joaninha, trazia cadernosde anotações e recortes de jornais.Tão logo começou aquele serviço espiritual da família, as luzesambientes se tornaram muito mais intensas.Profunda sensação de paz envolvia-me o coração.A pequena Neli, em voz comovente, fez a prece:— Senhor, seja feita a vossa vontade, assim na Terra como nos Céus.Se está em vosso santo desígnio que recebamos mais luz, permiti, Senhor,tenhamos bastante compreensão no trabalho evangélico! Dai-nos o pão daalma, a água da vida eterna! Sede em nossos corações, agora e sempre.Assim seja!...Dona Isabel pediu à filha mais velha lesse uma página instrutiva econsola<strong>do</strong>ra e, em seguida, algum fato interessante <strong>do</strong> noticiário comum, aoque Joaninha atendeu, len<strong>do</strong> pequeno capitulo de um <strong>livro</strong> <strong>do</strong>utrinário sobre airreflexão, e um episódio triste de jornal leigo. A primogênita de Isi<strong>do</strong>ro, querevelava muita <strong>do</strong>çura e afabilidade, parecia impressionada. Tratava-se de umajovem de bairro distante, vítima de suicídio <strong>do</strong>loroso. O repórter gravara a cenacom característicos muito fortes. A leitora estava trêmula, sensibilizada.Assim que Joaninha terminou, Dona Isabel abriu o Novo Testamento,como se estivesse proceden<strong>do</strong> ao acaso, mas, em verdade, eu via que Isi<strong>do</strong>ro,<strong>do</strong> nosso plano, intervinha na op<strong>era</strong>ção, ajudan<strong>do</strong> a localizar o assunto danoite. A seguir, fixou o olhar na página pequenina e falou:— A mensagem-versículo de hoje, meus filhos, está no capítulo 13 <strong>do</strong>Evangelho de S. Mateus.E len<strong>do</strong> o versículo 31, fê-lo em voz alta:— “Outra parábola lhes propôs, dizen<strong>do</strong>: — O Reino <strong>do</strong>s Céus ésemelhante ao grão de mostarda que o homem tomou e semeou no seucampo.” Observei, então, um fenômeno curioso. Um amigo espiritual, quereconheci de nobilíssima condição, pelas v<strong>este</strong>s resplandecentes, colocou adestra sobre a fronte da generosa viúva.A viúva sentou à cabeceira e, após meditar breves instantes,recomen<strong>do</strong>u à pequena Neli, de nove anos, fizesse a oração inicial <strong>do</strong> culto,pedin<strong>do</strong> a Jesus o esclarecimento espiritual.


To<strong>do</strong>s os trabalha<strong>do</strong>res invisíveis sentaram-se, respeitosos. Isi<strong>do</strong>ro ealguns companheiros mais íntimos <strong>do</strong> casal permanec<strong>era</strong>m ao la<strong>do</strong> de DonaIsabel, sen<strong>do</strong> quase to<strong>do</strong>s vistos e ouvi<strong>do</strong>s por ela.Antes que lhe perguntasse, Aniceto explicou em voz quaseimperceptível:— Aquele é o nosso irmão Fábio Aleto, que vai dar a interpretaçãoespiritual <strong>do</strong> texto li<strong>do</strong>. Os que estiverem nas mesmas condições dele, poderãoouvir-lhe os pensamentos; mas, os que estiverem em zona mental inferior,receberão os valores interpretativos, como acontece entre os encarna<strong>do</strong>s, istoé, teremos a luz espiritual <strong>do</strong> verbo de Fábio na tradução <strong>do</strong> verbomaterializa<strong>do</strong> de Isabel.Nosso mentor não poderia ser mais explícito. Em poucas palavrasfornec<strong>era</strong>-me a súmula da extensa lição.Notei que a viúva de Isi<strong>do</strong>ro entrara em profunda concentração poralguns momentos, como se estivesse absorven<strong>do</strong> a luz que a rodeava. Emseguida, revelan<strong>do</strong> extraordinária firmeza no olhar, iniciou o comentário:— “Lemos hoje, meus filhos, uma página sobre a irreflexão e a notíciade um suicídio em tristíssimas circunstâncias. Afirma o jornal que a jovemsuicida se matou por excessivo amor; entretanto, pelo que vimos aprenden<strong>do</strong>,estamos certos de que ninguém comete erros por amar verdadeiramente. Osque amam, de fato, são cultiva<strong>do</strong>res da vida e nunca espalham a morte. Apobrezinha estava <strong>do</strong>ente, perturbada, irrefletida. Entregou-se à paixão queconfunde o raciocínio e rebaixa o sentimento. E nós sabemos que, da paixãoao sofrimento, ou à morte, não é longa a distância. Lembremos, todavia, essaamiga desconhecida, com um pensamento de simpatia fraternal. Que Jesus aproteja nos caminhos novos. Não estamos examinan<strong>do</strong> um ato, que ao Senhorcompete julgar, mas um fato, de cuja expressão devemos extrair oensinamento justo.A mensagem evangélica desta noite assev<strong>era</strong>, pela palavra <strong>do</strong> nossoDivino Mestre aos discípulos, que o reino <strong>do</strong>s céus é também “semelhante aogrão de mostarda que o homem tomou e semeou no seu coração”. Devemosver, n<strong>este</strong> passo, meus filhos, a lição das coisas mínimas. A esf<strong>era</strong> carnal ondevivemos está repleta de irreflexões de toda sorte. Raras criaturas começam arefletir seriamente na vida e nos deveres, antes <strong>do</strong> leito da morte física. Nãodevemos fixar o pensamento tão só nessa jovem que se suici<strong>do</strong>u em condiçõestão dramáticas, ao nos referirmos aos ensinos de agora. Há homens emulheres, com maiores responsabilidades, em to<strong>do</strong>s os bairros, queevidenciam paixões nefastas e destrui<strong>do</strong>ras no campo <strong>do</strong>s sentimentos, <strong>do</strong>snegócios, das relações sociais. As mentes desequilibradas pela irreflexãopermanecem, n<strong>este</strong> mun<strong>do</strong>, quase por toda a parte. É que nós temosdescuida<strong>do</strong> das coisas pequeninas. Grande é o oceano, minúscula é a gota,mas o oceano não é senão a massa das gotas reunidas. Fala-nos o Mestre, emdivino simbolismo, da semente de mostarda. Recordemos que o campo <strong>do</strong>nosso coração está cheio de ervas espinhosas, demoran<strong>do</strong>, talvez, há muitosséculos, em terrível <strong>este</strong>rilidade. Naturalmente, não deveremos esp<strong>era</strong>rcolheitas milagrosas. É indispensável amanhar a terra e cuidar <strong>do</strong> plantio. Asemente de mostarda, a que se refere Jesus, constitui o gesto, a palavra, opensamento da criatura. Há muitas pessoas que falam bastante em humildade,mas nunca revelam um gesto de obediência. Jamais realizaremos a bondade,sem começarmos a ser bons. Alguma coisa pequenina há de ser feita, antes de


edificarmos as grandes coisas. O Senhor ensinou, muitas vezes, que o reino<strong>do</strong>s céus está dentro de nós. Ora, é portanto em nós mesmos que devemosdesenvolver o trabalho magnânimo de realização divina, sem o que nãopassaremos de grandes irrefleti<strong>do</strong>s. A floresta também começou de sementesminúsculas. E nós, espiritualmente falan<strong>do</strong>, temos vivi<strong>do</strong> em densa floresta demales, cria<strong>do</strong>s por nós mesmos, em razão da invigilância na escolha desementes espirituais. A palestra de uma hora, o pensamento de um dia, ogesto de um momento, podem representar muito em nossas vidas. Tenhamoscuida<strong>do</strong> com as coisas pequeninas e selecionemos os grãos de mostarda <strong>do</strong>reino <strong>do</strong>s céus. Lembremos que Jesus nada ensinou em vão. Toda vez que“pegarmos’ desses grãos, consoante a Palavra Divina, semean<strong>do</strong>-os no campoíntimo, receberemos <strong>do</strong> Senhor to<strong>do</strong> o auxílio necessário. Conceder-nos-á achuva das bênçãos, o sol <strong>do</strong> amor eterno, a vitalidade sublime da esf<strong>era</strong>superior. Nossa semeadura crescerá e, em breve tempo, atingiremos elevadasedificações. Aprendamos, meus filhos, a ciência de começar, lembran<strong>do</strong> abondade de Jesus a cada instante. O Mestre não nos desampara, segue-nosamorosamente, inspira-nos o coração. Tenhamos, sobretu<strong>do</strong>, confiança ealegria!”Reparei que Fábio retirou a mão da fronte da viúva e observei que elaentrava a meditar, como quem sentira o afastamento da idéia em curso.Havia grande comoção na assembléia invisível às crianças que, por suavez, também pareciam impressionadas.Dona Isabel voltou a contemplar maternalmente os filhos, e falou:— Procuremos, agora, conversar um pouco.XXXVI - Mãe e filhosNo comentário evangélico, eu recolhia observações interessantes. Talcomo no caso de Ismália, quan<strong>do</strong> lhe ouvíamos a sublime melodia, ainterpretação de Fábio estava cheia de maravilhas espirituais que transcendiamà capacidade receptiva de Dona Isabel. À viúva de Isi<strong>do</strong>ro parecia deter tãosomente uma parte.Desse mo<strong>do</strong>, as crianças recebiam a lição de acor<strong>do</strong> com aspossibilidades mediúnicas da palavra materna, enquanto que a nós outros sepropiciava o ensinamento com maravilhoso conteú<strong>do</strong> de beleza.Sempre solícito, o instrutor esclareceu:— Não se admirem <strong>do</strong> fenômeno! Cada qual receberá a luz espiritualconforme a própria capacidade. Há muitos companheiros nossos, aquireuni<strong>do</strong>s, que registram o comentário de Fábio com mais dificuldade que aspróprias crianças. Experimentam, ainda, grandes limitações.Havia grande respeito em to<strong>do</strong>s os presentes.Fábio Aleto sentou-se em plano superior, ao passo que Isi<strong>do</strong>ro seacomodava junto a sua esposa, no impulso afetivo <strong>do</strong> pai que se aproxima,solícito, para a conversação carinhosa com os filhos bem-ama<strong>do</strong>s.Nesse instante, a pequenina Marieta, que parecia haver atingi<strong>do</strong> ossete anos, aproveitan<strong>do</strong> o momento de palavra livre, perguntou à mãezinha,em tom comove<strong>do</strong>r:— Mamãe, se Jesus é tão bom, porque estamos comen<strong>do</strong> só uma vezpor dia, aqui em casa? Na casa de Dona Fausta, eles fazem duas refeições,almoçam e jantam. Neli me contou que no tempo de papai também fazíamosassim, mas agora.


Porque será?A viúva esboçou um sorriso algo triste e falou:— Ora, Maneta, você vive muito impressionada com essa questão. Nãodevemos, filhinha, subordinar to<strong>do</strong>s os pensamentos às necessidades <strong>do</strong>estômago. Há quanto tempo estamos toman<strong>do</strong> nossa refeição diária e gozan<strong>do</strong>boa saúde? Quanto benefício estaremos colhen<strong>do</strong> com esta frugalidade dealimentação?Joaninha interveio, acrescentan<strong>do</strong>:— Mamãe tem toda a razão. Tenho visto muita gente a<strong>do</strong>ecer porabuso da mesa.— Além disso — acentuou Dona Isabel confortada — vocês devemestar certos de que Jesus abençoa o pão e a água de todas as criaturas quesabem agradecer as dádivas divinas. É verdade que Isi<strong>do</strong>ro partiu antes denós, mas nunca nos faltou o necessário. Temos nossa casinha, nossa uniãoespiritual, nossos bons amigos. Convençam-se de que o papai estátrabalhan<strong>do</strong> ainda por nós.Nessa altura da palestra, dada a nossa comoção, Isi<strong>do</strong>ro enxugou osolhos úmi<strong>do</strong>s.Noemi, a caçula pequenina, falou em voz infantil:— É mesmo, é verdade! eu vi papai ajudan<strong>do</strong> a segurar o bolo queDona Cora nos trouxe <strong>do</strong>mingo.— Também vi, Noemi — disse Dona Isabel, de olhos vivamentebrilhantes —, papai continua auxilian<strong>do</strong>-nos.E voltan<strong>do</strong>-se para to<strong>do</strong>s, acentuou:— Quan<strong>do</strong> sabemos amar e esp<strong>era</strong>r, meus filhos, não nos separamos<strong>do</strong>s entes queri<strong>do</strong>s que morrem para a vida física. Tenhamos certeza naproteção de Jesus!...Marieta, parecen<strong>do</strong> agora absolutamente tranqüila, assentiu:— Quan<strong>do</strong> a senhora fala, mamãe, eu sinto que tu<strong>do</strong> é verdade! ComoJesus é bom! E se nós não tivéssemos a senhora? Tenho visto os pequenosmendigos aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>s. Talvez não comam coisa alguma, talvez não tenhamamigos como os nossos! Ah! como devemos ser agradeci<strong>do</strong>s ao Céu!...A viúva, que se confortava visivelmente, ouvin<strong>do</strong> aquelas palavras,exclamou com profunda emoção:— Muito bem, minha filha! Nunca deveremos reclamar e sim louvarsempre. E possivelmente não saberia você compreender a situação, seestivéssemos em mesas lautas.Observei, porém, que o menino não compartilhava aquele dilúvio debênçãos. Entre Dona Isabel e as quatro filhinhas havia permuta constante devibrações luminosas, como se estivessem identificadas no mesmo ideal eunidas numa só posição; mas o rapazote permanecia espiritualmente distante,fecha<strong>do</strong> num círculo de sombras. De quan<strong>do</strong> em quan<strong>do</strong>, sorria irônico,insensível pela significação <strong>do</strong> momento. Valen<strong>do</strong>-se da pausa mais longa, eleperguntou à genitora, menos respeitosamente:— Mamãe, que entende a senhora por pobreza?Dona Isabel respondeu, muito serena:— Creio, meu filho, que a pobreza é uma das melhores oportunidadesde elevação, ao nosso alcance. Estou convencida de que os homensafortuna<strong>do</strong>s têm uma grande tarefa a cumprir, na Terra, mas admito que ospobres, além da missão que lhes cabe no mun<strong>do</strong>, são mais livres e mais


felizes. Na pobreza, é mais fácil encontrar a amizade sinc<strong>era</strong>, a visão daassistência de Deus, os tesouros da natureza, a riqueza das alegrias simples epuras. É claro que não me refiro aos ociosos e ingratos <strong>do</strong>s caminhos terrenos.Refiro-me aos pobres que trabalham e guardam a fé. O homem de grandespossibilidades financeiras muito dificilmente saberá discernir entre a afeição e ointeresse descrente de que tu<strong>do</strong> pode, nem sempre como entender a divinaproteção; pelo conforto vicia<strong>do</strong> a que se entrega, as mais das vezes se afastadas bênçãos da Natureza; e em vista de muito desfazer aos próprios caprichos,restringe a vida de alegrar-se e confiar no mun<strong>do</strong>.Apesar da beleza profunda daquela opinião, o rapazola permaneceuimpassível, responden<strong>do</strong> algo contraria<strong>do</strong>:— Infelizmente não posso concordar com a senhora. Até os garotos <strong>do</strong>jardim de infância pensam de mo<strong>do</strong> contrário.Dona Isabel mu<strong>do</strong>u a expressão fisionômica, assumiu a atitude dequem instrui com a noção de responsabilidade, e acentuou:— Não estamos aqui num jardim de infância, meu filho. Sim no jardim<strong>do</strong> lar, competin<strong>do</strong>-nos saber que as flores são sempre belas, mas que a vidanão pode prosseguir sem a bênção <strong>do</strong>s frutos. Por onde aí no mun<strong>do</strong>,receberemos muitos alvitres da mentira venenosa. É preciso vigiar o coração,valorizan<strong>do</strong> as bênçãos que Jesus nos envia.O rapazinho entretanto demonstran<strong>do</strong> enorme rebeldia íntima tomou:— A Senhora não consid<strong>era</strong> razoável alugar <strong>este</strong> salão a fim de termosalgum dinheiro a mais? Estive conversan<strong>do</strong> ontem, com o “seu” Maciel, quan<strong>do</strong>vim da escola. Ele nos pagaria bem, para ter aqui um depósito de móveis.Dona Isabel, de ânimo decidi<strong>do</strong>, respondeu com energia, sem irritação:— Você deve saber, meu filho que enquanto respeitarmos a memóriade seu pai, <strong>este</strong> salão será consagra<strong>do</strong> às nossas atividades evangélicas. Jálhes contei a história <strong>do</strong> nosso culto <strong>do</strong>méstico e não desejo que vocês sejamcegos às bênçãos <strong>do</strong> Senhor. Mais tarde, Joãozinho, quan<strong>do</strong> você entrardiretamente na luta material, se for agradável ao seu temp<strong>era</strong>mento, construacasas para alugar; mas agora, meu filho, é indispensável que você considere<strong>este</strong> recanto como algo de sagra<strong>do</strong> para sua mamãe.— E se eu insistir? — perguntou, mal humora<strong>do</strong>, o pequeno orgulhoso.A viúva, muito calma, esclareceu firme:— Se você insistir, será puni<strong>do</strong>, porque eu não sou mãe para criarilusões perigosas ao coração <strong>do</strong>s filhinhos que Deus me confiou. Se muito amoa vocês, precisarei incliná-los ao caminho reto.O pequeno quis retrucar, mas a luz emitida pelo tórax de Dona Isabel,ao que me pareceu, confundiu-lhe o espírito rebelde e vi-o calar-se, acontragosto, amua<strong>do</strong> e enraiveci<strong>do</strong>. Admirei, então, profundamente, aquelabon<strong>do</strong>sa mulher, que se dirigia à filha mais velha como amiga, às filhinhas maisnovas como mãe, e ao filho orgulhoso como instrutora sensata e pond<strong>era</strong>da.Aniceto, que também se mostrava satisfeito, disse-nos em tomsignificativo:— O Evangelho dá equilíbrio ao coração.A pequena Neli, amedrontada, pediu, humilde:— Mamãe, não deixe Joãozinho alugar a sala!A viúva sorriu, acariciou o rostinho da filha e asseverou:— Joãozinho não fará isso, saberá compreender a mamãe. Nãofalemos mais n<strong>este</strong> assunto, Neli.


E fixan<strong>do</strong> o relógio, dirigiu-se à primogênita:— Joaninha, minha filha, ore agradecen<strong>do</strong>, em nosso nome. Nossohorário está fin<strong>do</strong>.A jovem, com expressão nobre e carinhosa agradeceu ao Senhor,tocan<strong>do</strong>-nos os corações.XXXVII - No santuário <strong>do</strong>mésticoTermina<strong>do</strong> o culto familiar, um <strong>do</strong>s companheiros também rendeugraças.— Esperemos que esses celeiros de sentimentos se multipliquem —disse Aniceto, sensibiliza<strong>do</strong>. O mun<strong>do</strong> pode fabricar novas indústrias, novosarranha-céus, erguer estátuas e cidades, mas, sem a bênção <strong>do</strong> lar, nuncahaverá felicidade verdadeira.— Bem-aventura<strong>do</strong>s os que cultivam a paz <strong>do</strong>méstica — exclamou umasenhora simpática, que estiv<strong>era</strong> presente ao nosso la<strong>do</strong>, durante a reunião.Dois coop<strong>era</strong><strong>do</strong>res de “Nosso Lar” serviram-nos alimentação leve esimples, que não me cabe especificar aqui, por falta de termos analógicos.— Em oficinas como esta — explicou o instrutor amigo — é possívelpreservar a pureza de nossas substâncias alimentícias. Os elementos maisbaixos não encontram, n<strong>este</strong> santuário, o campo imprescindível à prolif<strong>era</strong>ção.Temos bastante luz para neutralizar qualquer manifestação da treva.E, enquanto a família humana de Isi<strong>do</strong>ro fazia frugal refeição de chácom torradas, numa saleta próxima, fazíamos nós ligeiro repasto, entremea<strong>do</strong>de palestra elevada e proveitosa.O ambiente continuou anima<strong>do</strong>, em teor de franca alegria.Depois das vinte e três horas, a viúva recolheu-se com os filhos, emmodesto aposento.Intraduzível a nossa sensação de paz.Aniceto, Vicente e eu, em companhia <strong>do</strong>utros amigos, fomos aopequeno jardinzinho que rodeava a habitação.As flores velu<strong>do</strong>sas rescendiam. A claridade espiritual ambiente, comoque espancava as sombras da noite.Respiran<strong>do</strong> as brisas cari<strong>do</strong>sas que sopravam da Guanabara, reparei,pela primeira vez, no delica<strong>do</strong> fenômeno, que não havia observa<strong>do</strong> até então.Uma pequena carinhosa, enquanto a mãezinha palestrava com um amigo,despreocupadamente, colheu um cravo perfumoso, num grito de alegria. Vi amenina colher a flor, retirá-la da haste, ao mesmo tempo que a parte material<strong>do</strong> cravo emurchecia, quase de súbito. A senhora repreendeu-a, com calor:— Que é isso, Regina? Não temos o direito de perturbar a ordem dascoisas. Não repitas, minha filha! Desgostaste a mamãe!Aniceto, sorrin<strong>do</strong> bon<strong>do</strong>so, explicou discreta mente:— Esta é a nossa Irmã Emilia, servi<strong>do</strong>ra em “Nosso Lar”, que vem aoencontro <strong>do</strong> esposo ainda encarna<strong>do</strong>.— E ele virá até aqui? — interrogou Vicente, curioso.— Virá pelas portas <strong>do</strong> sono físico — acrescentou nosso orienta<strong>do</strong>r,sorridente. — Estas ocorrências, no círculo da Crosta, dão-se aos milhares,todas as noites. Com a maioria de irmãos encarna<strong>do</strong>s, o sono apenas refleteas perturbações fisiológicas ou sentimentais a que se entregam; entre tanto,existe grande número de pessoas que, com mais ou menos precisão, estãoaptas a desenvolver <strong>este</strong> intercâmbio espiritual.


Estava surpreendi<strong>do</strong>. Aquele trabalho interessante, a que nos traziaAniceto, com tão vasto campo de serviços g<strong>era</strong>is, fazia-me intensamente feliz.Em cada canto pressentia atividades novas.Embora as luzes que nos rodeavam, notei que os céus prometiamaguaceiros próximos. As brisas leves transformavam-se, repentinamente, emventania forte. Não obstante, as sensações de sossego <strong>era</strong>m agradabilíssimas.— O vento, na Crosta, é sempre uma bênção cel<strong>este</strong> — exclamouAniceto, sentencioso. — Podemos avaliar-lhe o caráter divino, em virtude danossa condição atual. A pressão atmosférica sobre os Espíritos encarna<strong>do</strong>s é,aproximadamente, de quinze mil quilos.— . Todavia, é interessante notar — aduziu Vicente — que nãosentimos tamanho peso sobre os ombros.— É a diferença <strong>do</strong>s veículos de manifestação — esclareceu Aniceto,atencioso. — Nossos corpos e os de nossos companheiros encarna<strong>do</strong>sapresentam diversidade essencial. Imaginemos o círculo da Crosta como umoceano de oxigênio. As criaturas terrestres são elementos pesa<strong>do</strong>s que semovimentam no fun<strong>do</strong>, enquanto nós somos as gotas de óleo, que podemvoltar à tona, sem maiores dificuldades, pela qualidade <strong>do</strong> material de que seconstituem.A essa altura <strong>do</strong> esclarecimento, notei que formas sombrias, algumasmonstruosas, se arrastavam na rua, à procura de abrigo conveniente. Reparei,com espanto, que muitas tomavam a nossa direção, para, depois de algunspassos, recuarem amedrontadas. Provocavam assombro. Muitas, pareciamverdadeiros animais p<strong>era</strong>mbulan<strong>do</strong> na via pública. Confesso que insopitávelreceio me invadira o coração.Calmo, como sempre, Aniceto nos tranqüilizou:— Não temam — disse. Sempre que ameaça tempestade, os seresvagabun<strong>do</strong>s da sombra se movimentam procuran<strong>do</strong> asilo. São os ignorantesque vagueiam nas ruas, escraviza<strong>do</strong>s as sensações mais fortes <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>sfísicos. Encontram-se ainda cola<strong>do</strong>s às expressões mais baixas da experiênciaterrestre e os aguaceiros os incomodam tanto quanto ao homem comum,distante <strong>do</strong> lar. Buscam, de preferência, as casas de diversão noturna, onde aociosidade encontra válvula nas dissipações. Quan<strong>do</strong> isto não se lhes tornaacessível, penetram as residências abertas, consid<strong>era</strong>n<strong>do</strong> que, para eles, amatéria <strong>do</strong> plano ainda apresenta a mesma densidade característica.E, demonstran<strong>do</strong> interesse em valorizar a lição <strong>do</strong> minuto, acrescentou:— Observem como se inclinam para cá, fugin<strong>do</strong>, em seguida,espanta<strong>do</strong>s e inquietos. Estamos colhen<strong>do</strong> mais um ensinamento sobre osefeitos da prece. Nunca poderemos enum<strong>era</strong>r to<strong>do</strong>s os benefícios da oração.Toda vez que se ora num lar, prepara-se a melhoria <strong>do</strong> ambiente <strong>do</strong>méstico.Cada prece <strong>do</strong> coração constitui emissão eletromagnética de relativo poder.Por isso mesmo, o culto familiar <strong>do</strong> Evangelho não é tão só um curso deiluminação interior, mas também processo avança<strong>do</strong> de defesa exterior, pelasclaridades espirituais que acende em torno. O homem que ora traz consigoinalienável couraça. O lar que cultiva a prece transforma-se em fortaleza,compreend<strong>era</strong>m? As entidades da sombra experimentam choques de vulto, emcontacto com as vibrações luminosas d<strong>este</strong> santuário <strong>do</strong>méstico, e é por issoque se mantêm à distância, procuran<strong>do</strong> outros rumos...Daí a momentos, penetrávamos, de novo, no salão abençoa<strong>do</strong> damodesta residência.


Como quem estivesse atravessan<strong>do</strong> um país de surpresas, outro fatome despertava profunda admiração.Isi<strong>do</strong>ro e Isabel vi<strong>era</strong>m a nós, de braços entrelaça<strong>do</strong>s, irradian<strong>do</strong>ventura. Aquela viúva pobre <strong>do</strong> bairro humilde vestia-se agora lindamente, nãoobstante a a<strong>do</strong>rável singeleza de sua presença. Sorria contente, ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong>esposo, via-nos a to<strong>do</strong>s, cumprimentava-nos, amável.— Meus amigos — disse ela, serena — meu mari<strong>do</strong> e eu temos umaexcursão instrutiva para esta noite. Deixo-lhes as nossas crianças por algumashoras e, desde já, lhes agradeço o cuida<strong>do</strong> e o carinho.— Vá, minha filha! — respondeu uma senhora i<strong>do</strong>sa — aproveite orepouso corporal. Deixe os meninos conosco. Vá tranqüila!O casal afastou-se com a expressão dum sublime noiva<strong>do</strong>.Nosso orienta<strong>do</strong>r inclinou-se para nós e falou:— Observam vocês como a felicidade divina se manifesta no sono <strong>do</strong>sjustos? Poucas almas encarnadas, conheço, com a ventura desta mulh<strong>era</strong>dmirável, que tem sabi<strong>do</strong> aprender a ciência <strong>do</strong> sacrifício individual.XXXVIII - Atividade plenaNo salão acolhe<strong>do</strong>r de Dona Isabel, permanecemos em plena atividade.Lá fora, começara o aguaceiro forte, mas tínhamos a nítida impressão degrande distância da chuva torrencial.Logo às primeiras horas da madrugada, o movimento intensificou-se.Muita gente ia e vinha.— Numerosos irmãos — explicou o orienta<strong>do</strong>r — encontram-se n<strong>este</strong>pouso de trabalho espiritual, na esf<strong>era</strong> a que os encarna<strong>do</strong>s chamariam sonho.Não é fácil transmitir mensagens de teor instrutivo, nessa tarefa, utilizan<strong>do</strong>lugares comuns, contamina<strong>do</strong>s de matéria mental menos digna. Nas oficinasedificantes, porém, onde conseguimos acumular maiores quantidades deforças positivas da espiritualidade superior, é possível prestar grandesbenefícios aos que se encontram encarna<strong>do</strong>s no planeta.Acentuei minhas observações, verifican<strong>do</strong> que muitas das pessoasrecém-chegadas pareciam convalescentes, titubeantes... Algumas semantinham de pé, sob o amparo de braços carinhosos. Eram os amigosencarna<strong>do</strong>s a se valerem <strong>do</strong> desprendimento parcial, pelo sono físico, que sereuniam a nós, aproveitan<strong>do</strong> o auxílio de entidades generosas e dedicadas.Reconhecia, entretanto, que a maior parte não entendia, com precisão, o quese lhes desejava dizer. Muitos pareciam <strong>do</strong>entes, incompreensivos. Sorriaminfantilmente, revelan<strong>do</strong> boa vontade na recepção <strong>do</strong>s conselhos, mas grandeincapacidade de retenção. Eu estudava os quadros ambientes, com justaestranheza. Sempre cuida<strong>do</strong>so, Aniceto veio ao encontro de nossaperplexidade.Os espíritos encarna<strong>do</strong>s — disse — tão logo se realize a consolidação<strong>do</strong>s laços físicos, ficam submeti<strong>do</strong>s a imperiosas leis <strong>do</strong>minantes na Crosta.Entre eles e nós existe um espesso véu. É a muralha das vibrações. Sem aoblit<strong>era</strong>ção temporária da memória, não se renovaria a oportunidade. Se onosso campo lhes fora francamente aberto, olvidariam as obrigaçõesimediatas, estimariam o parasitismo, prejudican<strong>do</strong> a própria evolução. Eisporque raramente estão lúci<strong>do</strong>s ao nosso la<strong>do</strong>. Na maioria <strong>do</strong>s casos, junto denós, permanecem vacilantes, enfraqueci<strong>do</strong>s... Vejam aquela jovem senhora


encarnada, em conversa com a vovozinha que trabalha conosco, em “NossoLar”.Assim dizen<strong>do</strong>, Aniceto indicou um grupo mais próximo.A anciã, de olhos brilhantes e gestos decidi<strong>do</strong>s, abraçava-se à neta,lânguida e palidíssima.— Niêta — exclamava a velhinha, em tom firme — não dê tamanhaimportância aos obstáculos. Esquece os que te perseguem, a ninguém odeies.Conserva tua paz espiritual, acima de tu<strong>do</strong>. Tua mãe não te pode valer agora,mas crê na continuidade de nossa vida. A vovó não te esquecerá. A calúnia,Niêta, é uma serpente que ameaça o coração; entretanto, se a encararmos defrente, fortes e tranqüilas, veremos, a breve tempo, que a serpente não temvida própria. É víbora de brinque<strong>do</strong> a se quebrar como vidro, pelo impulso denossas mãos. E, venci<strong>do</strong> o espantalho, em lugar da serpente, teremos conoscoa flor da virtude. Não temas, querida! Não percas a sagrada oportunidade det<strong>este</strong>munhar a compreensão de Jesus!...A jovem senhora não respondia, mas seus olhos semi lúci<strong>do</strong>s estavamcheios de pranto. Demonstrava no gesto vago uma consolação divina,recostada ao seio carinhoso da devotada velhinha.— Esta irmã se lembrará de tu<strong>do</strong>, ao despertar no corpo físico? —perguntei, intriga<strong>do</strong>, ao nosso orienta<strong>do</strong>r.Aniceto sorriu e esclareceu:— Sen<strong>do</strong> a avó superior e ela inferior, e, examinan<strong>do</strong> ainda a condição<strong>do</strong>s planos de vida em que ambas se encontram, a jovem encarnada está sobo <strong>do</strong>mínio espiritual da benfeitora. Entre ambas, portanto, há uma correntemagnética recíproca, salientan<strong>do</strong>-se, porém, que a vovó amiga detém umaascendência positiva. A neta não vê o ambiente com precisão, nem ouve aspalavras integralmente. Não esqueçamos que o desprendimento no sono físicovulgar é fragmentário e que a visão e a audição, peculiares ao encarna<strong>do</strong>, seencontram nele também restritas. O fenômeno, pois, é mais de união espiritualque de percepções sensoriais, propriamente ditas. A jovem está receben<strong>do</strong>consolações positivas, de Espírito a Espírito. Não se recordará, despertan<strong>do</strong>nos véus materiais mais grosseiros, de todas as minúcias d<strong>este</strong> venturosoencontro que acabamos de presenciar. Acordará, porém, encorajada e bemdisposta, sem poder identificar a causa da restauração <strong>do</strong> bom ânimo. Dirá quesonhou com a avó num lugar onde havia muita gente, sem recordar asminudências <strong>do</strong> fato, acrescentan<strong>do</strong> que viu, no sonho, uma cobraameaça<strong>do</strong>ra, que logo se transformou em serpente de vidro, quebran<strong>do</strong>-se aoimpulso de suas mãos, para transformar-se em perfumosa flor, da qual aindaconserva a lembrança agradável <strong>do</strong> aroma. Afirmará que sob<strong>era</strong>no conforto lheinvadiu a alma e, no fun<strong>do</strong>, compreenderá a mensagem consola<strong>do</strong>ra que lhe foiconcedida.— Não se lembrará, contu<strong>do</strong>, das palavras ouvidas? — indagouVicente, curioso.— Precisaria ter adquiri<strong>do</strong> profunda lucidez no campo da existênciafísica — prosseguiu Aniceto, explican<strong>do</strong> — e devo esclarecer que recordará asimagens simbólicas da víbora e da flor, porque está em relação magnética coma ven<strong>era</strong>nda avozinha, receben<strong>do</strong>-lhe a emissão de pensamentos positivos. Abenfeitora não fala apenas. Está pensan<strong>do</strong> fortemente também. A neta,todavia, não está ouvin<strong>do</strong> ou ven<strong>do</strong> pelo processo comum, mas estáperceben<strong>do</strong> claramente a criação mental da anciã amiga, e dará notícia exata


<strong>do</strong>s símbolos entrevistos e arquiva<strong>do</strong>s na memória real e profunda. Dessemo<strong>do</strong>, não terá dificuldade para informar-se quanto à essência <strong>do</strong> que abon<strong>do</strong>sa avó deseja transmitir-lhe ao coração sofre<strong>do</strong>r, compreenden<strong>do</strong> que acalúnia, quan<strong>do</strong> fere uma consciência tranqüila não passa de serpentementirosa, a transformar-se em flor de virtude nova, quan<strong>do</strong> enfrentada com ovalor duma coragem serena e cristã.A lição fora profundamente significativa para mim. Começava a adquiriramplas noções <strong>do</strong> intercâmbio entre as duas esf<strong>era</strong>s. Pensei no longo esforço<strong>do</strong>s que indagam o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s sonhos. Quanta riqueza psíquica, suscetível deconquista, se os pesquisa<strong>do</strong>res conseguissem deslocar o centro de estu<strong>do</strong>,das ocorrências fisiológicas para o campo das verdades espirituais! Lembrei apsicanálise, a tese freudiana, as manifestações instintivas, inferiores.Importância atribuída pelo grande cientista às tendências inferiores,indaguei, um tanto tími<strong>do</strong>:— Haverá, porém, centros de reunião para os espíritos desequilibra<strong>do</strong>sno mal, como acontece, aqui, aos amigos interessa<strong>do</strong>s no bem?O generoso mentor sorriu, benévolo, e falou:— Não haja dúvidas quanto a isto. Através das correntes magnéticassuscetíveis de movimentação, quan<strong>do</strong> se efetua o sono <strong>do</strong>s encarna<strong>do</strong>s, sãomantidas obsessões inferiores, perseguições permanentes, exploraçõespsíquicas de baixa classe, vampirismo destrui<strong>do</strong>r, tentações diversas. Aindasão poucos, relativamente, os irmãos encarna<strong>do</strong>s que sabem <strong>do</strong>rmir para obem... E, fazen<strong>do</strong> um gesto por demais expressivo, concluiu:— Livre-nos o Senhor de cair novamente...Perceben<strong>do</strong>-me as elucubrações, o devota<strong>do</strong> mentor dirigiu-me apalavra de maneira especial:— Freud — asseverou Aniceto — foi um grande missionário da Ciência;no entanto, manteve-se, como qualquer Espírito encarna<strong>do</strong>, sob certaslimitações. Fez muito, mas não tu<strong>do</strong>, na esf<strong>era</strong> da indagação psíquica.Pela pausa <strong>do</strong> nosso instrutor, percebi que ele não desejava entrar emminucioso exame da teoria famosa. Lembran<strong>do</strong>, porém, a extraordináriaimportância atribuída pelo grande cientista às tendências inferiores, indaguei,um tanto tími<strong>do</strong>:— Haverá, porém, centros de reunião para os espíritos desequilibra<strong>do</strong>s<strong>do</strong> mal, como acontece aqui, aos amigos interessa<strong>do</strong>s no bem?O generoso mentor sorriu, benévolo, e asseverou:— Não hajas dúvidas quanto a isso. Através das correntes magnéticassuscetíveis de movimentação, quan<strong>do</strong> se efetua o sono <strong>do</strong>s encarna<strong>do</strong>s, sãomantidas obsessões inferiores, perseguições permanentes, exploraçõespsíquicas de baixa classe, vampirismo destrui<strong>do</strong>r, tentações diversas. Aindasão poucos, relativamente, os irmãos encarna<strong>do</strong>s que sabem <strong>do</strong>rmir para obem...E fazen<strong>do</strong> um gesto por demais expressivo, concluiu:— Livre-nos o Senhor de cair novamente...XXXIX - Trabalho incessanteAo alvorecer, observei que Aniceto recebia numerosos amigos, com osquais se entendeu em particular. Informou-nos o estima<strong>do</strong> orienta<strong>do</strong>r, porespírito de delicadeza, que trazia consigo incumbências várias, de acor<strong>do</strong> comas instruções de Telésforo, das quais <strong>era</strong> força<strong>do</strong> a tratar em caráter priva<strong>do</strong>,


não nos ocultan<strong>do</strong>, todavia, o objetivo essencial, que <strong>era</strong>, ao que disse, ocombate ativo a uma grande coop<strong>era</strong>tiva de desencarna<strong>do</strong>s ignorantes,congrega<strong>do</strong>s para o mal.Enquanto ele se mantinha em conversação íntima, ouvíamos, por nossavez, outros amigos da faina espiritual.O dia raiava, agora, com sob<strong>era</strong>no esplen<strong>do</strong>r. Tínhamos a impressãode que a chuva da noite varr<strong>era</strong> as sombras <strong>do</strong> firmamento.Pelo número de trabalha<strong>do</strong>res espirituais que pernoitaram na casinhahumilde, reconheci a importância daquele núcleo de serviço, tão apaga<strong>do</strong> aosolhos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.Uma senhora, que se aproximara de nós, exclamava, comovida:— Que o Senhor recompense a nossa irmã Isabel, conceden<strong>do</strong>-lheforças para resistir às tentações <strong>do</strong> caminho. Por haver descansa<strong>do</strong> n<strong>este</strong>pouso de amor, pude encontrar minha pobre filha, desvian<strong>do</strong>-a <strong>do</strong> suicídiocruel. Graças à Providência Divina!Incapaz de sofrear o desejo de aprender, perguntei, curioso:— Mas como a encontrou, minha irmã?— Em sonho — respondeu a velhinha bon<strong>do</strong>sa.— Minha Dalva ficouviúva há três anos, e, faz onze meses, deixei-a só, por haver tambémdesencarna<strong>do</strong>. A pobrezinha não tem resisti<strong>do</strong> ao sofrimento quanto dev<strong>era</strong> edeixou-se empolgar por entidades maléficas, que lhe tramam a ruína. Em baldeme aproximo dela, durante o dia, mas, com a mente engolfada em negócios ecomplicações materiais, não me pode sentir a influenciação. Precisavaencontrar-me com ela à noite, e isso não <strong>era</strong> fácil, porque não tenho bastanteelevação espiritual para op<strong>era</strong>r sozinha e o grupo em que sirvo não poderiademorar na Crosta uma noite inteira por minha causa. Foi então que umaamiga me trouxe a <strong>este</strong> posto de serviço de “Nosso Lar”. Aqui descansei epude agir com os grupos de tarefa permanente, ajudada por infatigáveisoperários <strong>do</strong> bem.— E conseguiu seus fins com facilidade? — indagou Vicente,interessa<strong>do</strong>.— Graças a Jesus! — respondeu a senhora, evidencian<strong>do</strong> enormesatisfação — agora sei que minha filha recebeu meus alvitres carinhosos demãe e estou certa de que me atenderá as rogativas.— Escute, minha amiga — interroguei —, há muitos postos de “NossoLar”, como <strong>este</strong>?— Ao que me informaram, há regular número deles, não somente aqui,mas também noutras cidades <strong>do</strong> país, além de numerosas oficinas querepresentam outras colônias espirituais, entre as criaturas corporificadas naTerra. Nesses núcleos, há sempre possibilidades avançadas, imprescindíveisao nosso abastecimento para a luta.Nesse instante, <strong>do</strong>is camaradas que nos haviam dirigi<strong>do</strong> a palavradurante a noite, despertan<strong>do</strong>-nos sinc<strong>era</strong> simpatia, apresentaram-nossaudações.— Mas, como? — perguntei — retiraram-se tão ce<strong>do</strong>?— Vamos ao trabalho — respondeu-me um deles —; hoje, à noite,realizar-se-á o estu<strong>do</strong> evangélico e devemos auxiliar os irmãos ignorantes esofre<strong>do</strong>res que <strong>este</strong>jam em condições de vir até aqui.— Há também semelhante tarefa? — indaguei, espanta<strong>do</strong>.


— Como não, meu caro? O próprio Jesus já dizia, há muitos séculos,que a seara é grande. Há trabalho para to<strong>do</strong>s. E cumpre-nos reconhecer queesta oficina de assistência cristã funciona, há quase vinte anos, de maneiraincessante.— Vocês, no entanto — interroguei —, permanecem aqui desde osprimórdios da fundação?O interlocutor esclareceu prontamente:— Não. Muitos, como nós, fazem aqui estágios de serviço. Somentealguns coop<strong>era</strong><strong>do</strong>res de Isi<strong>do</strong>ro e Isabel aqui estacionam desde o início dainstituição. Nós outros, contu<strong>do</strong>, não nos demoramos em trabalho por mais de<strong>do</strong>is anos consecutivos. Um posto, como <strong>este</strong>, é sempre uma escola ativa esanta, e os que se encontrem no clima da boa vontade não devem perderensejo de aprender.— Desculpem-me tantas interrogativas — tornei —, mas estimariasaber se vocês são os únicos com as atribuições de recrutar os que ignoram esofrem, para a instrução e o consolo.— Não. Hildegar<strong>do</strong> e eu somos auxiliares apenas de alguns quarteirõesno centro urbano. Nesse ramo de socorro, os colabora<strong>do</strong>res são numerosos.A essa altura, um <strong>do</strong>s irmãos, que me parecia integrar o corpo deorientação da casa, aproximou-se e falou ao nosso interlocutor, de maneiraespecial:— Vieira, recomen<strong>do</strong> a você e ao Hildegar<strong>do</strong> a melhor observância <strong>do</strong>nosso critério <strong>do</strong>utrinário. Será inútil trazerem até aqui entidades vagabundasou de má fé, obedecen<strong>do</strong> aos alvitres da simpatia pessoal. Não podemosperder tempo com Espíritos escarninhos e ociosos, nem com aqueles que seaproximam de nossa tenda alimentan<strong>do</strong> certas intenções de natureza inferior.Não faltarão providências de Jesus para essa gente, em outra parte. Lembremsedisso— Não é falta de caridade, é compreensão <strong>do</strong> dever. Temos umprograma de trabalho muito sério, no capítulo da evangelização e <strong>do</strong> socorro,não podemos abusar da concessão de nossos maiores da EspiritualidadeSuperior. Quem aceita um compromisso não vive sem contas. Por muito quevocês amem a alguma entidade ociosa ou irônica, não facilitem os abusos dela.Ajudem-na de maneira individual quan<strong>do</strong> disponham de tempo e possibilidadespara isso. Não arrastem o grupo a dificuldades. Não se esqueçam de queexistem determina<strong>do</strong>s núcleos de tarefa para os sur<strong>do</strong>s e cegos voluntários.Vieira e o colega fiz<strong>era</strong>m-se palidíssimos, não responden<strong>do</strong> palavra.Quan<strong>do</strong> o orienta<strong>do</strong>r se afastou, sereno e ativo, Vieira explicou,desaponta<strong>do</strong>:— Recebemos uma admoestação justa.E porque visse nosso desejo de aprender, prosseguiu, atencioso:— Infelizmente, Hildegar<strong>do</strong> e eu temos alguns parentes desencarna<strong>do</strong>sem <strong>do</strong>lorosas condições espirituais. Na passada reunião, trouxemos meu tioHilário e o primo Carlos, embora soubéssemos que ambos não se encontramprepara<strong>do</strong>s para reflexões sérias, pelo desrespeito às leis divinas em que semovimentam, nos ambientes inferiores. Manifestaram-se ambos, porém, tãodesejosos de renovação, que ouvimos, acima de tu<strong>do</strong>, a simpatia pessoal,esquecen<strong>do</strong> a necessidade de preparação conveniente. Vi<strong>era</strong>m conosco,sentaram-se entre os ouvintes numerosos. Mas, em meio <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>sevangélicos, tentaram assaltar as faculdades mediúnicas da irmã Isabel, para


transmissão de uma mensagem de teor menos edificante. Sentin<strong>do</strong>-nos avigilância e surpreendi<strong>do</strong>s pelos coop<strong>era</strong><strong>do</strong>res desta santificada oficina,revoltaram-se, estabelecen<strong>do</strong> grande distúrbio. Não fossem as barreirasmagnéticas <strong>do</strong> serviço de guarda, teriam causa<strong>do</strong> males muito sérios. Assim, areunião foi menos frutuosa, pela grande perda de tempo. Ora, naturalmente,fomos responsabiliza<strong>do</strong>s...— Meu Deus! — exclamou Vicente, admira<strong>do</strong> — quanta lição nova!— Ah! sim, meu amigo — tornou Vieira, resigna<strong>do</strong> — aqui não devemosabusar tanto <strong>do</strong> amor, como no círculo carnal. Ninguém está impedi<strong>do</strong> deajudar, querer bem, interceder; to<strong>do</strong>s podemos auxiliar os que amamos, comos recursos que nos sejam próprios, mas a palavra “dever” tem aqui umasignificação positiva para quem deseje caminhar sinc<strong>era</strong>mente para Deus.XL - Rumo ao campoQuase to<strong>do</strong>s os servi<strong>do</strong>res espirituais pus<strong>era</strong>m-se a caminho de tarefasvariadas. Somente alguns amigos permaneceriam na residência de DonaIsabel, em missão de auxílio e vigilância.Notei que Aniceto continuava distribuin<strong>do</strong> instruções diversas, dirigin<strong>do</strong>se,em caráter confidencial, a determina<strong>do</strong>s companheiros, a respeito damissão que lhe confiara Telésforo.Antes <strong>do</strong> meio-dia, porém, convi<strong>do</strong>u-nos a acompanhá-lo.— Na oficina — disse-nos, bon<strong>do</strong>so — encontramos revigoramentoimprescindível ao trabalho. Recebemos reforços de energia, alimentamo-nosconvenientemente para prosseguir tão esforço, mas convenhamos que, paramuitos de nós, a noite representou uma série de atividades longas eexaustivas. Necessitamos de algum descanso. Voltaremos ao crepúsculo.Aonde iríamos? Ignorava. Recordei que, de fato, se alguns haviamrepousa<strong>do</strong> no santuário <strong>do</strong>méstico, durante a noite, a maioria havia trabalha<strong>do</strong>intensamente, e concluí que, se muitos pela manhã haviam toma<strong>do</strong> rumo àsobrigações outros teriam busca<strong>do</strong> o repouso indispensável.— Aonde vão? — perguntou um companheiro da vigilância, que sefiz<strong>era</strong> nosso amigo.Antes que respondêssemos, Aniceto esclareceu:— Vamos ao campo.E, dirigin<strong>do</strong>-se especialmente a Vicente e a mim, considerou:Utilizemos a volitação, mesmo porque não temos objetivos imediatos nocentro urbano.Notei que movimentava agora minhas faculdades volitantes comfacilidade crescente. A excursão educativa, com escala pelo Posto de Socorrode Campo da Paz, fiz<strong>era</strong>-me grande bem. Melhorara em adestramento, sentiamefortaleci<strong>do</strong> ante as vibrações de ordem inferior, mobilizava os recursospróprios sem dificuldade. Reparei, igualmente, que minhas possibilidadesvisuais cresciam sensivelmente. Volitan<strong>do</strong>, não observara, até então, o queagora verificava, extremamente surpreendi<strong>do</strong>. Dantes, via somente os homens,os animais, veículos e edifícios chumba<strong>do</strong>s ao solo. Agora, a visão dilatava-se.Reconhecia, de longe, o peso considerável <strong>do</strong> ar que se agarrava à superfície.Tive a impressão de que nadávamos em alta zona <strong>do</strong> mar de oxigênio, ven<strong>do</strong>em baixo, em águas turvas, enorme quantidade de irmãos nossos a searrastarem pesadamente meti<strong>do</strong>s em escafandros muito densos, no fun<strong>do</strong>lo<strong>do</strong>so <strong>do</strong> oceano.


— Estão ven<strong>do</strong> aquelas manchas escuras na via pública? — indagavanosso orienta<strong>do</strong>r, perceben<strong>do</strong>-nos a estranheza e o desejo de aprender cadavez mais.Como não soubéssemos definir com exatidão, prosseguia explican<strong>do</strong>:— São nuvens de bactérias variadas. Flutuam, quase sempre também,em grupos compactos, obedecen<strong>do</strong> ao princípio das afinidades. Reparemaqueles ambientes de sombra..E indicava-nos certos edifícios e certas regiões citadinas.— Observem os grandes núcleos pardacentos ou completamenteobscuros!... São zonas de matéria mental inferior, matéria que é expelidaincessantemente por certa classe de pessoas. Se demorarmos em nossasinvestigações, veremos igualmente os monstros que se arrastam nos passosdas criaturas, atraí<strong>do</strong>s por elas mesmas...Imprimin<strong>do</strong> grave inflexão às palavras, considerou:— Tanto assalta o homem a nuvem de bactérias destrui<strong>do</strong>ras da vidafísica, quanto as formas caprichosas das sombras que ameaçam o equilíbriomental. Como vêem, o “orai e vigiai” <strong>do</strong> Evangelho tem profunda importânciaem qualquer situação e a qualquer tempo. Somente os homens de mentalidadepositiva, na esf<strong>era</strong> da espiritualidade superior, conseguem sobrepor-se àsinfluências múltiplas de natureza menos digna.Interessa<strong>do</strong>, contu<strong>do</strong>, em maior esclarecimento, perguntei:— Mas a matéria mental emitida pelo homem inferior tem vida própriacomo o núcleo de corpúsculos microscópicos de que se originam asenfermidades corporais?O mentor generoso sorriu singularmente e acentuou:— Como não? Vocês, presentemente, não desconhecem que o homemterreno vive num aparelho psicofísico. Não podemos consid<strong>era</strong>r somente, nocapítulo das moléstias, a situação fisiológica propriamente dita, mas também oquadro psíquico da personalidade encarnada. Ora, se temos a nuvem debactérias produzidas pelo corpo <strong>do</strong>ente, temos a nuvem de larvas mentaisproduzidas pela mente enferma, em identidade de circunstâncias. Desse mo<strong>do</strong>,na esf<strong>era</strong> das criaturas desprevenidas de recursos espirituais, tanto a<strong>do</strong>ecemcorpos, como almas. No futuro, por esse mesmo motivo, a medicina da almaabsorverá a medicina <strong>do</strong> corpo. Poderemos, na atualidade da Terra, fornecertratamento ao organismo de carne. Semelhante tarefa dignifica a missão <strong>do</strong>consolo, da instrução e <strong>do</strong> alívio. Mas, no que concerne à cura real, somosforça<strong>do</strong>s a reconhecer que esta pertence exclusivamente ao homem-espírito.— Deus meu! — exclamou Vicente, espanta<strong>do</strong> — a que perigos estásubmeti<strong>do</strong> o homem!— Por isso — tornou Aniceto, cuida<strong>do</strong>so —, a existência terrestre éuma gloriosa oportunidade para os que se interessam pelo conhecimento eelevação de si mesmos. E, por esta mesma razão, ensinamos a necessidadeda fé religiosa entre as criaturas humanas. Desenvolven<strong>do</strong> essa campanha,não pretendemos intensificar as paixões nefastas <strong>do</strong> sectarismo, mas criar umesta<strong>do</strong> positivo de confiança, otimismo e ânimo sadio na mente de cadacompanheiro encarna<strong>do</strong>. Até agora, apenas a fé pode proporcionar essarealização. As ciências e as filosofias preparam o campo; entretanto, a fé quevence a morte, é a semente vital. Possuin<strong>do</strong>-lhe o valor eterno, encontra ohomem bastante dinamismo espiritual para combater até a vitória plena em simesmo.


Compreenden<strong>do</strong> que precisaria completar o esclarecimento, exclamou,depois de pausa mais longa:— To<strong>do</strong>s precisamos saber emitir e saber receber. Para alcançarem aposição de equilíbrio, nesse mister, empenham-se os homens encarna<strong>do</strong>s enós outros, em luta incessante. E já que conhecemos alguma coisa daeternidade, é preciso não esquecer que toda queda prejudica a realização, eto<strong>do</strong> esforço nobre ajuda sempre.As explicações recebidas não poderiam ser mais claras. Aquela visão,porém, repleta de pontos sombrios a se deslocarem vagarosos, atingin<strong>do</strong>homens e máquinas, nas vias públicas, assombrava-me.Sequioso de ensinamentos, tornei ao assunto:— A lição para mim tem valores incalculáveis. E quan<strong>do</strong> penso no altopoder destrutivo da flora microbiana...Aniceto, contu<strong>do</strong>, não me deixou terminar. Conhecen<strong>do</strong>, de antemão,minha pergunta natural, cortou-me a frase, exclaman<strong>do</strong>:— Sim, André, se não fosse o poder muito maior da luz solar, casadaao magnetismo terrestre, poder esse que destrói intensivamente paraselecionar as manifestações da vida, na esf<strong>era</strong> da Crosta, a flora microbiana deordem inferior não teria permiti<strong>do</strong> a existência dum só homem na superfície <strong>do</strong>globo. Por esta razão, o solo e as plantas estão cheios de princípios curativos etransforma<strong>do</strong>res.E, abanan<strong>do</strong> significativamente a cabeça, concluí:Nada obstante esse poder imenso, recurso divino, enquanto oshomens, herdeiros de Deus, cutivarem o campo inferior da vida, haverátambém criações inferiores, em número bastante para a batalha sem tréguasem que devem ganhar os valores legítimos da evolução.XVI - Entre as ÁrvoresDecorri<strong>do</strong>s alguns minutos, atingíamos pequena propriedade rural,povoada de arvore<strong>do</strong> acolhe<strong>do</strong>r.Laranjeiras em flor perdiam-se de vista. Bananeiras <strong>este</strong>ndiam-se emleque, enquanto o goiabal, de longe, semelhava-se a manchas fortes deverdura. A relva macia convidava ao descanso. E o vento calmo passava deleve, sussurran<strong>do</strong> alguma coisa através da folhagem.Aniceto respirou a longos haustos, e falou:— Os desencarna<strong>do</strong>s, embora não se fatiguem como as criaturasterrestres, não prescindem da pausa de repouso. Em g<strong>era</strong>l, nossas op<strong>era</strong>ções,à noite, são ativas e laboriosas. Apenas um terço <strong>do</strong>s companheiros espirituais,em serviço na Crosta, conserva-se em atividade diurna.E, notan<strong>do</strong>-nos a curiosidade justa, sentenciou:— Aliás, isto é razoável. O dia terrestre pertence, com maispropriedade, ao serviço <strong>do</strong> Espírito encarna<strong>do</strong>. O homem deve aprender a agir,t<strong>este</strong>munhan<strong>do</strong> compreensão das leis divinas. Pelo menos durante certonúmero de horas, deve estar mais só com as experiências que lhe dizemrespeito.Nosso instrutor amigo sorriu e observou:— O dia e a noite constituem, para o homem, uma folha <strong>do</strong> <strong>livro</strong> davida. A maior parte das vezes, a criatura escreve sozinha a página diária, coma ajuda <strong>do</strong>s sentimentos que lhe são próprios, nas palavras, pensamentos,


intenções e atos, e no verso, isto é, na reflexão noturna, ajudamo-la a retificaras lições e acertar as experiências, quan<strong>do</strong> o Senhor no-lo permite.Calan<strong>do</strong>-se o nosso orienta<strong>do</strong>r, tivemos a atenção exclusivamentevoltada para a beleza circundante. Aquele campo amigo e hospitaleirocaracterizava-se por ambiente muito diverso. Não mais as emanações pesadasda cidade grande, mas o vento leve, embalsama<strong>do</strong> de suavíssimos perfumes.Refletia eu na bondade <strong>do</strong> Senhor, que nos oferecia recursos novos, quan<strong>do</strong>Aniceto voltou a dizer:— A Natureza nunca é a mesma em toda parte. Não há duas porçõesde terra com climas absolutamente iguais. Cada colina, cada vale, possuiexpressões climatéricas diferentes. É forçoso reconhecer, porém, que o campo,em qualquer condição, no círculo <strong>do</strong>s encarna<strong>do</strong>s, é o reservatório maisabundante e vigoroso de princípios vitais. Em g<strong>era</strong>l, to<strong>do</strong>s nós, oscoop<strong>era</strong><strong>do</strong>res espirituais, estimamos o ar da manhã, quan<strong>do</strong> a atmosf<strong>era</strong>permanece igualmente em repouso, isenta <strong>do</strong>s glóbulos de poeira converti<strong>do</strong>sem microscópicos balões de bacilos e de outras expressões inferiores.Entretanto, os trabalhos de hoje não nos permitiram o descanso mais ce<strong>do</strong>...Apoiamo-nos no velu<strong>do</strong>so relva<strong>do</strong>, e, perceben<strong>do</strong>-nos a sede de saber,Aniceto prosseguiu:Assim me explico, porque na floresta temos uma densidade forte, pelapobreza das emanações, em vista da impermeabilidade ao vento. Aí, o arcostuma converter-se em elemento asfixiante, pelo excesso de emissões <strong>do</strong>sreinos inferiores da Natureza. Na cidade, a atmosf<strong>era</strong> é compacta e o artambém sufoca, pela densidade mental das mais baixas aglom<strong>era</strong>çõeshumanas. No campo, desse mo<strong>do</strong>, temos o centro ideal...Indican<strong>do</strong>, prazeroso, as frondes balouçantes, acentuou:— Reina aqui a paz relativa e equilibrada da Natureza terrestre. Nem aselvageria da mata virgem, nem a sufocação <strong>do</strong>s flui<strong>do</strong>s humanos. O campo énosso generoso caminho central, a harmonia possível, o repouso desejável.Embala<strong>do</strong>s ao pio de algumas juritis solitárias, repousamos algumashoras, magnificamente asila<strong>do</strong>s no templo da Natureza.Com as primeiras tonalidades <strong>do</strong> crepúsculo, Aniceto nos convi<strong>do</strong>u apasseio rápi<strong>do</strong> pelas imediações.Reconhecia que estávamos muito mais bem dispostos.— Somente depois de nos locomovermos por alguns minutos, observeique nas vizinhanças havia grande quantidade de trabalha<strong>do</strong>res espirituais.Em face das minhas interrogações, nosso mentor explicou,bon<strong>do</strong>samente:— O campo é também vasta oficina para os serviços de nossacolaboração ativa.E apontan<strong>do</strong> os servi<strong>do</strong>res, que iam e vinham, considerou:— O reino vegetal possui coop<strong>era</strong><strong>do</strong>res numerosos. Vocês,possivelmente, ignoram que muitos irmãos se preparam para o mérito de novaencarnação no mun<strong>do</strong>, prestan<strong>do</strong> serviço aos reinos inferiores. O trabalho como Senhor é uma escola viva, em toda parte.Nesse momento, nossa atenção foi atraída por significativo movimentona estrada próxima.Dirigimo-nos para lá, seguin<strong>do</strong> os passos de Aniceto, que pareciaadivinhar o acontecimento.


Observei, então, um quadro interessante: um homem jazia por terra,numa poça de sangue, ao la<strong>do</strong> de pequeno veículo sustenta<strong>do</strong> por um muarimpaciente, dan<strong>do</strong> mostras de grande inquietação. Dois companheirosencarna<strong>do</strong>s prestavam socorro ao feri<strong>do</strong>, apressadamente. “É preciso conduziloà fazenda sem perda de tempo”, dizia um deles, aflito, “temo haja fratura<strong>do</strong> ocrânio.” O número de desencarna<strong>do</strong>s que auxiliava o pequeno grupo, todavia,<strong>era</strong> muito grande.Um amigo espiritual que me pareceu o chefe, naquela aglom<strong>era</strong>ção,recebeu Aniceto e a nós com deferência e simpatia, explicou rapidamente aocorrência. O carroceiro havia recebi<strong>do</strong> a patada de um burro e <strong>era</strong> necessáriosocorrer o feri<strong>do</strong>.Serenada a situação, vi o referi<strong>do</strong> superior hierárquico chamar umguarda <strong>do</strong> caminho, interpelan<strong>do</strong>:— Glicério, como permitiu semelhante acontecimento? Este trecho daestrada está sob sua responsabilidade direta.O subordina<strong>do</strong>, respeitoso, considerou sensatamente:— Fiz o possível por salvar <strong>este</strong> homem, que, aliás, é um pobre pai defamília. Meus esforços foram improfícuos, pela imprudência dele. Há muitoprocuro cercá-lo de cuida<strong>do</strong>s, sempre que passa por aqui; entretanto, o infeliznão tem o mínimo respeito pelos <strong>do</strong>ns naturais de Deus. É de uma grosseriainominável para com os animais que o auxiliam a ganhar o pão. Não sabesenão gritar, encolerizar-se, surrar e ferir. Tem a mente fechada as sugestões<strong>do</strong> agradecimento. Não estima senão a praga e o chicote. Hoje, tanto perturbouo pobre muar que o ajuda, tanto o castigou, que pareceu mais animaliza<strong>do</strong>...Quan<strong>do</strong> se tornou quase irracional, pelo excesso de fúria e ingratidão, meuauxílio espiritual se tornou ineficiente. Atormenta<strong>do</strong> pelas descargas de cól<strong>era</strong><strong>do</strong> condutor, o burro humilde o atacou com a pata. Que fazer? Minha obrigaçãofoi cumprida...O superior, que ouvia atenciosamente as alegações, respondeu semhesitar:— Tem razão.E como dirigisse o olhar a Aniceto, desejan<strong>do</strong> aprova nosso orienta<strong>do</strong>rafirmou:— Auxiliemos o homem, quanto <strong>este</strong>ja em nossas mãos, cumpramosnosso dever com o bem, mas não desprezemos as lições. Esse trabalha<strong>do</strong>rimprudente foi puni<strong>do</strong> por si mesmo. A cól<strong>era</strong> é punida por suasconseqüências. Ao mal segue-se o mal. Se os seres inferiores, nossos irmãosno grande lar da vida, nos fornecem os valores <strong>do</strong> serviço, devemos dar-lhes,por nossa vez, os valores da educação. Ora, ninguém pode educar odian<strong>do</strong>,nem edificar algo de útil com a fúria e a brutalidade.E, indican<strong>do</strong> o grupo que conduzia o feri<strong>do</strong> a uma casa próxima,concluiu, imperturbável:— Como homem comum, nosso pobre amigo sofrerá muitos dias,chumba<strong>do</strong> ao leito; entre as aflições <strong>do</strong>s familiares, demorar-se-á um tanto arestabelecer o equilíbrio orgânico; mas, como Espírito eterno, recebeu agorauma lição útil e necessária.Altamente surpreendi<strong>do</strong>, reparei na grande serenidade <strong>do</strong> nossoorienta<strong>do</strong>r e comecei a compreender que ninguém desrespeita a Natureza semo <strong>do</strong>loroso choque de retorno, a to<strong>do</strong> tempo.


XLII - Evangelho no ambiente ruralApaga<strong>do</strong>s os comentários mais vivos, relativamente ao episódiodesagradável, o superior hierárquico daquela grande turma de trabalha<strong>do</strong>resespirituais indagou <strong>do</strong> nosso orienta<strong>do</strong>r, com delicadeza:— Nobre Aniceto, valen<strong>do</strong>-vos da oportunidade, poderíeis interpretarpara nós outros alguma das lições evangélicas, ainda hoje?Aniceto aquiesceu, pressuroso.Notei que o interesse em torno <strong>do</strong> assunto <strong>era</strong> enorme.Com grande surpresa, vi que os servi<strong>do</strong>res da gleba traziam aoestima<strong>do</strong> mentor um <strong>livro</strong>, que não tive dificuldades em identificar. Era umexemplar <strong>do</strong> Evangelho, que Aniceto abriu firmemente, como quem sabia ondeestava a lição <strong>do</strong> momento.Fixan<strong>do</strong> a página escolhida, começou a meditar, enquanto sublimadaluz lhe aureolava a fronte. Houve profun<strong>do</strong> silêncio. To<strong>do</strong>s os colabora<strong>do</strong>resdemonstravam grande interesse pela palavra que se fazia. Tu<strong>do</strong> <strong>era</strong> deaspecto imponente e calmo na Natureza. Um rebanho bovino acercara-se denós, atraí<strong>do</strong> por forças magnéticas que não consegui compreender. Algunsmuares humildes chegaram, igualmente, de longe. E as aves tranqüilizaram-senas frondes fartas, sem um pio. A única voz que toava, leve e branda, <strong>era</strong> a <strong>do</strong>vento, sussurran<strong>do</strong> harmonia e frescura. A paisagem não podia ser mais bela,vestida em ouro líqui<strong>do</strong> <strong>do</strong> Poente. Excetuada a rusticidade natural <strong>do</strong> quadrovivo, o ambiente sugeria recordações fiéis <strong>do</strong>s verdes salões de “Nosso Lar”.Aniceto, mergulhan<strong>do</strong> o olhar no Sagra<strong>do</strong> Livro, leu em voz alta osversículos 19, 20 e 21 <strong>do</strong> capitulo 8, da Epístola aos Romanos:— “Porque a ardente expectação da criatura esp<strong>era</strong> a manifestação <strong>do</strong>sfilhos de Deus. Porque a criação ficou sujeita a vaidade, não por sua vontade,mas por causa <strong>do</strong> que a sujeitou, na esp<strong>era</strong>nça de que também a mesmacriatura será libertada da servidão da corrupção, para a liberdade da glória <strong>do</strong>sfilhos de Deus.”Em seguida, refletiu alguns instantes e comentou, com evidenteinspiração:— Irmãos, recebamos a bênção <strong>do</strong> campo, louvan<strong>do</strong> o Amor e aSabe<strong>do</strong>ria de Nosso Pai! Exaltemos o Sob<strong>era</strong>no Espírito de Vida, que sopraem nós a força eterna da incessante renovação! Ponderemos a palavra <strong>do</strong>Apóstolo da Gentilidade, para extrair-lhe o conteú<strong>do</strong> divino!... Há milênios aNatureza esp<strong>era</strong> a compreensão <strong>do</strong>s homens. Não se tem alimenta<strong>do</strong> tãosomente de esp<strong>era</strong>nça, mas vive em ardente expectação, aguardan<strong>do</strong> oentendimento e o auxílio <strong>do</strong>s Espíritos encarna<strong>do</strong>s na terra, mais propriamenteconsid<strong>era</strong><strong>do</strong>s filhos de Deus. Entretanto, as forças naturais continuam sofren<strong>do</strong>a opressão de todas as vaidades humanas. Isto, porém, ocorre, meus amigos,porque também o Senhor tem esp<strong>era</strong>nça na libertação <strong>do</strong>s seres escraviza<strong>do</strong>sna Crosta, para que se verifique igualmente a liberdade na glória <strong>do</strong> homem.Conheço-vos de perto os sacrifícios, abnega<strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res espirituais <strong>do</strong>solo terrestre! Muitos de vós aqui permaneceis, como em múltiplas regiões <strong>do</strong>planeta, ajudan<strong>do</strong> a companheiros encarna<strong>do</strong>s, acorrenta<strong>do</strong>s às ilusões daganância de ordem material. Quantas vezes, vosso auxílio é converti<strong>do</strong> embaixas explorações no campo <strong>do</strong>s negócios terrestres? A maioria <strong>do</strong>scultiva<strong>do</strong>res da terra tu<strong>do</strong> exige sem nada oferecer. Enquanto zelais,cuida<strong>do</strong>samente, pela manutenção das bases da vida, tendes visto acivilização funcionan<strong>do</strong> qual vigorosa máquina de triturar, converten<strong>do</strong>-se os


homens, nossos irmãos, em pequenos Moloques de pão, carne e vinho,absolutamente mergulha<strong>do</strong>s na viciação <strong>do</strong>s sentimentos e nos excessos daalimentação, despreocupa<strong>do</strong>s <strong>do</strong> imenso débito para com a Natureza amorávele generosa. Eles oprimem as criaturas inferiores, ferem as forças benfeitorasda vida, são ingratos para com as fontes <strong>do</strong> bem, atendem às indústriasruralistas, mais pela vaidade e ambição de ganhar, que lhes são próprias, quepelo espírito de amor e utilidade, mas também não passam de infelizes servosdas paixões desvairadas. Traçam programas de riqueza mentirosa, que lhesconstituem a ruína; escrevem trata<strong>do</strong>s de política econômica, que redundamem guerra destrui<strong>do</strong>ra; desenvolvem o comércio <strong>do</strong> ganho indébito, colhen<strong>do</strong>as complicações internacionais que dão curso à miséria; <strong>do</strong>minam os maisfracos e os exploram, acordan<strong>do</strong>, porém, mais tarde, entre os monstros <strong>do</strong>ódio! É para eles, nossos semelhantes encarna<strong>do</strong>s na Crosta, que devemosvoltar igualmente os olhos, com espírito de tolerância e fraternidade. Ajudemolosainda, agora e sempre! Não esqueçamos que o Senhor está esp<strong>era</strong>n<strong>do</strong>pelo futuro deles! Escutemos os gemi<strong>do</strong>s da criação, pedin<strong>do</strong> a luz <strong>do</strong>raciocínio humano, mas não olvidemos, também, a lágrima desses escravos dacorrupção, em cujas fileiras permanecíamos até ontem, auxilian<strong>do</strong>-os adespertar a consciência divina para a vida eterna! Ainda que rodeiem o campode vaidades e insolências, auxiliemo-los ainda. O Senhor reserva acréscimossublimes de valores evolutivos aos seres sacrifica<strong>do</strong>s. Não olvidará Ele aárvore útil, o animal extermina<strong>do</strong>, o ser humilde que se consumiu em benefíciode outro ser! Cooperemos, por nossa vez, no despertar <strong>do</strong>s homens, nossosirmãos, relativamente ao nosso débito para com a Natureza maternal. Sempre,ao voltarmos à Crosta, envolven<strong>do</strong>-nos em flui<strong>do</strong>s <strong>do</strong> círculo carnal, levamosmuito longe a aquisição de nitrogênio. Convertemos em tragédia mundial o quepoderia constituir a procura serena e edificante. Como sabemos, organismoalgum poderá viver na Terra sem essa substância, e embora se locomova, nooceano de nitrogênio, respiran<strong>do</strong>-o na média de mil litros por dia, não pode ohomem, como nenhum ser vivo <strong>do</strong> planeta, apropriar-se <strong>do</strong> nitrogênio <strong>do</strong> ar.Por enquanto, não permite o Senhor a criação de células nos organismosviventes <strong>do</strong> nosso mun<strong>do</strong>, que procedam à absorção espontânea desseelemento de importância primordial na manutenção das vidas como aconteceao oxigênio comum. Somente as plantas, infatigáveis operárias <strong>do</strong> orbe,conseguem retirá-lo <strong>do</strong> solo, fixan<strong>do</strong>-o para o entretenimento da vida noutrosseres. Cada grão de trigo é uma bênção nitrogenada para sustento dascriaturas, cada fruto da terra é uma bolsa de açúcar e albumina, repleta <strong>do</strong>nitrogênio indispensável ao equilíbrio orgânico <strong>do</strong>s seres vivos. Todas asindústrias agropecuárias não representam, na essência, senão a procuraorganizada e metódica <strong>do</strong> precioso elemento da vida. Se o homemconseguisse fixar dez gramas, aproximadamente, <strong>do</strong>s mil litros de nitrogênioque respira diariamente, a Crosta estaria transformada no paraísoverdadeiramente espiritual. Mas, se muito nos dá o Senhor, é razoável queexija a colaboração <strong>do</strong> nosso esforço na construção da nossa própriafelicidade. Mesmo em “Nosso Lar”, ainda estamos distantes da grandeconquista <strong>do</strong> alimento espontâneo pelas forças atmosféricas, em carát<strong>era</strong>bsoluto. E o homem, meus amigos, transforma a procura de nitrogênio emmovimento de paixões desvairadas, ferin<strong>do</strong> e sen<strong>do</strong> feri<strong>do</strong>, ofenden<strong>do</strong> e sen<strong>do</strong>ofendi<strong>do</strong>, escravizan<strong>do</strong> e toman<strong>do</strong>-se cativo, segrega<strong>do</strong> em densas trevas!Ajudemo-lo a compreender, para que se organize uma <strong>era</strong> nova. Auxiliemo-lo a


amar a terra, antes de explorá-la no senti<strong>do</strong> inferior, a valer-se da coop<strong>era</strong>ção<strong>do</strong>s animais, sem os recursos <strong>do</strong> extermínio! Nessa época, o mata<strong>do</strong>uro seráconverti<strong>do</strong> em local de coop<strong>era</strong>ção, onde o homem atenderá aos seresinferiores e onde <strong>este</strong>s atenderão as necessidades <strong>do</strong> homem, e as árvoresúteis viverão em meio <strong>do</strong> respeito que lhes é devi<strong>do</strong>. Nesse tempo sublime, aindústria glorificará o bem e, sentin<strong>do</strong>-nos o entendimento, a boa vontade e aven<strong>era</strong>ção às leis divinas, permitir-nos-á o Senhor, pelo menos em parte, asolução <strong>do</strong> problema técnico de fixação <strong>do</strong> nitrogênio da atmosf<strong>era</strong>. Ensinemosaos nossos Irmãos que a vida não é um roubo incessante, em que a plantalesa o solo, o animal extermina a planta e o homem assassina o animal, masum movimento de permuta divina, de coop<strong>era</strong>ção generosa, que nuncaperturbaremos sem grave dano a própria condição de criaturas responsáveis eevolutivas! Não condenemos! Auxiliemos sempre!A assembléia, tanto quanto nós, estava sob forte impressão.Aniceto calou-se, contemplou com simpatia os animais e as avespróximas, como se estivesse a endereçar-lhes profun<strong>do</strong>s pensamentos deamor e, a seguir, fechou o Livro Sagra<strong>do</strong>, com estas palavras:— Observamos com o Evangelho que a criação aguarda ansiosamentea manifestação <strong>do</strong>s filhos de Deus encarna<strong>do</strong>s! Concordamos que as criaturasinferiores têm suporta<strong>do</strong> o peso de iniqüidades imensas! Continuemos emauxílio delas, mas não nos percamos em vãs contendas. Os homens esp<strong>era</strong>mtambém a nossa manifestação espiritual! Desse mo<strong>do</strong>, ajudemos a to<strong>do</strong>s, nocapítulo <strong>do</strong> grande entendimento.XLIII - Antes da reuniãoOs preparativos espirituais para a reunião <strong>era</strong>m ativos e complexos.Chegamos de regresso à residência de Dona Isabel, quan<strong>do</strong> faltavampoucos minutos para as dezoito horas e já o salão estava repleto detrabalha<strong>do</strong>res em movimento.Observan<strong>do</strong>, com estranheza, determinadas op<strong>era</strong>ções, fiz algumasperguntas ao nosso orienta<strong>do</strong>r, que me esclareceu com bondade:— Realizar uma sessão de trabalhos espirituais eficientes não é coisatão simples. Quan<strong>do</strong> encontramos companheiros encarna<strong>do</strong>s, entregues aoserviço com devotamento e bom ânimo, isentos de preocupação, deexperiências mal sucedidas e inquietações injustificáveis, mobilizamos grandesrecursos a favor <strong>do</strong> êxito necessário. Claro que não podemos auxiliaratividades infantis, nesse terreno. Quem não deseje cuidar de semelhantesobrigações, com a seriedade devida, poderá esp<strong>era</strong>r fatalmente pelos espíritosmenos sérios, porquanto a morte física não significa renovação para quem nãoprocurou renovar-se. Onde se reúnam almas levianas, aí estará igualmente aleviandade. No caso de Isabel, porém, há que lhe auxiliar o esforço edificante.Em to<strong>do</strong>s os setores evolutivos, é natural que o trabalha<strong>do</strong>r sincero e eficientereceba recursos sempre mais vastos. Onde se encontre as atividades <strong>do</strong> bem,permanecerá a colaboração espiritual de ordem superior.Calara-se o bon<strong>do</strong>so amigo.Continuei reparan<strong>do</strong> as laboriosas atividades de alguns irmãos quedividiam a sala, de mo<strong>do</strong> singular, utilizan<strong>do</strong> longas faixas fluídicas. Anicetoveio em socorro da minha perplexidade, explican<strong>do</strong>, atencioso:— Estes amigos estão promoven<strong>do</strong> a obra de preservação e vigilância.Serão trazidas aos trabalhos de hoje algumas dezenas de sofre<strong>do</strong>res e torna-


se imprescindível limitar-lhes a zona de influenciação n<strong>este</strong> templo familiar.Para isso, nossos companheiros preparam as necessárias divisõesmagnéticas.Reparei, admira<strong>do</strong>, que eles magnetizavam o próprio ar.Nosso instrutor, porém, informou, gentil:— Não se impressione, André. Em nossos serviços, o magnetismo éforça prepond<strong>era</strong>nte. Somos compeli<strong>do</strong>s a movimentá-lo em grande escala.E, sorrin<strong>do</strong>, concluiu:— Já os sacer<strong>do</strong>tes <strong>do</strong> antigo Egito não ignoravam que, para atingirdetermina<strong>do</strong>s efeitos, é indispensável impregnar a atmosf<strong>era</strong> de elementosespirituais, saturan<strong>do</strong>-a de valores positivos da nossa vontade. Para disseminaras luzes evangélicas aos desencarna<strong>do</strong>s, são precisas providências variadas ecomplexas, sem o que, tu<strong>do</strong> redundaria em aumento de perturbações. Estenúcleo é pequenino, consid<strong>era</strong><strong>do</strong> <strong>do</strong> ponto de vista material, mas apresentagrande significação para nós outros. É preciso vigiar, não o esqueçamos.Enquanto as atividades de preparação espiritual seguiam intensas,Dona Isabel e Joaninha noutra ordem de serviço, chegaram ao salão, dispon<strong>do</strong>arranjos diferentes. Usaram, largamente, a vassoura e o espana<strong>do</strong>r.Revestiram a mesa de toalha muito alva e troux<strong>era</strong>m pequenos recipientes deágua pura.A uma ordem de um <strong>do</strong>s superiores daquele templo <strong>do</strong>méstico,espalharam-se os vigilantes, em derre<strong>do</strong>r da moradia singela. Nos menoresdetalhes estava a nobre supervisão <strong>do</strong>s benfeitores. Em tu<strong>do</strong> a ordem, oserviço e a simplicidade.Logo após alguns minutos além das dezoito horas, começaram achegar os necessita<strong>do</strong>s da esf<strong>era</strong> invisível ao homem comum.Se fosse concedida à criatura vulgar uma vista de olhos, ainda queligeira, sobre uma assembléia de espíritos desencarna<strong>do</strong>s, em perturbação esofrimento, muito se lhes modificariam as atitudes na vida normal. Nessaafirmativa, devemos incluir, igualmente, a maioria <strong>do</strong>s próprios espiritistas, quefreqüentam as reuniões <strong>do</strong>utrinárias, alheios ao esforço auto-educativo,guardan<strong>do</strong> da espiritualidade uma vaga idéia, na preocupação de atender aoegoísmo habitual. O quadro de retificações individuais, após a morte <strong>do</strong> corpo,é tão extenso e varia<strong>do</strong> que não encontramos palavras para definir a imensasurpresa.Aqueles rostos esqueléticos causavam compaixão. Chegavam aorecinto aquelas entidades perturbadas, em pequenos magotes, seguidas deorienta<strong>do</strong>res fraternais. Pareciam cadáveres ergui<strong>do</strong>s <strong>do</strong> leito de morte. Algunsse locomoviam com grande dificuldade. Tínhamos diante <strong>do</strong>s olhos umaautêntica reunião de “coxos e estropia<strong>do</strong>s”, segun<strong>do</strong> o símbolo evangélico.— Em maioria — esclareceu Aniceto — são irmãos abati<strong>do</strong>s eamargura<strong>do</strong>s, que desejam a renovação sem saber como iniciar a tarefa. Aqui,poderemos observar apenas sofre<strong>do</strong>res dessa natureza, porque o santuáriofamiliar de Isi<strong>do</strong>ro e Isabel não está prepara<strong>do</strong> para receber entidadesdelib<strong>era</strong>damente perversas. Cada agrupamento tem seus fins.Com efeito, os recém-chega<strong>do</strong>s estampavam profunda angústia naexpressão fisionômica. As senhoras em pranto <strong>era</strong>m numerosas. O quadroconsternava. Algumas entidades mantinham as mãos no ventre, calcan<strong>do</strong>regiões feridas. Não <strong>era</strong>m poucas as que traziam ataduras e faixas.


— Muitos — disse-nos o mentor — não concordam ainda com asrealidades da morte corporal. E toda essa gente, de mo<strong>do</strong> g<strong>era</strong>l, estáprisioneira da idéia de enfermidade. Existem pessoas, e vocês, como médicos,as terão conheci<strong>do</strong> largamente, que cultivam as moléstias com verdadeiravolúpia. Apaixonam-se pelos diagnósticos exatos, acompanham no corpo, comindefinível ar<strong>do</strong>r, a manifestação <strong>do</strong>s indícios mórbi<strong>do</strong>s, estudam a teoria da<strong>do</strong>ença de que são porta<strong>do</strong>ras, como jamais a usa um dever justo no quadrodas obrigações diárias, e quan<strong>do</strong> não dispõem das informações nos <strong>livro</strong>s,estimam a longa atenção <strong>do</strong>s médicos, os minuciosos cuida<strong>do</strong>s daenfermagem e as compridas dissertações sobre a enfermidade de que seconstituem voluntárias prisioneiras. Sobrevin<strong>do</strong> a desencarnação, é muito difícilo acor<strong>do</strong> entre elas e a verdade, porquanto prosseguem manten<strong>do</strong> a idéia<strong>do</strong>minante. Às vezes, no fun<strong>do</strong>, são boas almas, dedicadas aos parentes <strong>do</strong>sangue e aproveitáveis na esf<strong>era</strong> restrita de entendimento a que se recolhem,mas, no entanto, carregadas de viciação mental por muitos séculosconsecutivos.E num gesto diferente, nosso instrutor considerou:— Demoramo-nos to<strong>do</strong>s a escapar da velha concha <strong>do</strong> individualismo.A visão da universalidade custa preço alto e nem sempre estamos dispostos apagá-lo. Não queremos renunciar ao gosto antigo, fugimos aos sacrifícioslouváveis. Nessas circunstâncias, o mun<strong>do</strong> que prevalece para a almadesencarnada, por longo tempo, é o reino pessoal de nossas criaçõesinferiores. Ora, desse mo<strong>do</strong>, quem cultivou a enfermidade com a<strong>do</strong>ração,submeteu-se-lhe ao império. É lógico que devemos, quan<strong>do</strong> encarna<strong>do</strong>s,prestar toda a assistência ao corpo físico, que funciona, para nós, como vasosagra<strong>do</strong>, mas remediar a saúde e viciar a mente são duas atitudesessencialmente antagônicas entre si.A palestra <strong>era</strong> magnificamente educativa; entretanto, o númerocrescente de entidades necessitadas chamava-nos à coop<strong>era</strong>ção. Muitaschoravam baixinho, outras gemiam em voz mais alta.Depois de longa pausa, Aniceto advertiu:— Vamos ao serviço. Para nós, coop<strong>era</strong><strong>do</strong>res espirituais, ostrabalhos já começaram. A prece e o esforço <strong>do</strong>s companheiros encarna<strong>do</strong>srepresentarão o termo desta reunião de assistência e iluminação em JesusCristo.XLIV - AssistênciaA paisagem de sofrimento, des<strong>do</strong>brada aos nossos olhos, lembrava-meo ambiente das Câmaras de Retificação.Entendeu-se Aniceto com Isi<strong>do</strong>ro e falou, resoluto:— Mãos a obra! Distribuamos alguns passes de reconforto!— Mas — objetei — estarei prepara<strong>do</strong> para trabalho dessa natureza?— Porque não? — indagou o instrutor em voz firme — todacompetência e especialização no mun<strong>do</strong>, nos setores de serviço, constituem odesenvolvimento da boa vontade. Bastam o sincero propósito de coop<strong>era</strong>ção ea noção de responsabilidade para que sejamos inicia<strong>do</strong>s, com êxito, emqualquer trabalho novo.Semelhantes afirmativas estimularam-me o coração.Recordei Narcisa, a dedicada irmã <strong>do</strong>s infortuna<strong>do</strong>s, que permanecia,em “Nosso Lar”, quase sempre sem repouso, como prisioneira <strong>do</strong> sacrifício.


Pareceu-me, ainda, ouvir-lhe a voz fraterna e carinhosa — “André, meu amigo,nunca te negues, quanto possível, a auxiliar os que sofrem. Ao pé <strong>do</strong>senfermos, não olvides que o melhor remédio é a renovação da esp<strong>era</strong>nça; seencontrares os fali<strong>do</strong>s e os derrota<strong>do</strong>s da sorte, fala-lhes <strong>do</strong> divino ensejo <strong>do</strong>futuro; se fores procura<strong>do</strong>, algum dia, pelos espíritos desvia<strong>do</strong>s e criminosos,não profiras palavras de maldição. Anima, eleva, educa, desperta, sem ferir osque ainda <strong>do</strong>rmem. Deus op<strong>era</strong> maravilhas por intermédio <strong>do</strong> trabalho de boavontade sinc<strong>era</strong>!“ Sem mais hesitação, dispus-me ao serviço”.Aniceto designou-me um grupo de seis enfermos espirituais,acentuan<strong>do</strong>:— Aplique seus recursos, André. Com a nossa colaboração, os amigosem tarefa nesta casa poderão atender a responsabilidades diferentes etambém imperiosas.Os mais apaga<strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res <strong>do</strong> bem rejubilem-se pelaexemplificação nas lutas comuns e edifiquem-se no Senhor Jesus, porquenenhuma de suas manifestações fica perdida no espaço e no tempo. Naqueleinstante em que fora chama<strong>do</strong> a prestar auxílios reais, eu não recorria aosmeus cabedais científicos, não me reportava tão somente à técnica damedicina oficial, a que me filiara no mun<strong>do</strong>, mas recordava aquela Narcisahumilde e simples, das Câmaras de Retificação, enfermeira devotada ecarinhosa, que conseguia muito mais com amor <strong>do</strong> que com medicações.Aproximei-me duma senhora profundamente abatida, lembran<strong>do</strong> oexemplo da generosa amiga de “Nosso Lar”, entenden<strong>do</strong> que não deveriasocorrer utilizan<strong>do</strong> apenas a firmeza e a energia, mas também a ternura e acompreensão.— Minha irmã — disse, procuran<strong>do</strong> captar-lhe a confiança —, vamos aopasse reconforta<strong>do</strong>r.— Ai! ai! — respondeu a interpelada — nada vejo, nada vejo! Ah! otracoma! Infeliz que sou! E me falam em morte, em vida diferente... Comorecup<strong>era</strong>r a vista?! Quero ver, quero ver!...— Calma — respondi, encoraja<strong>do</strong> —, não confia no Poder de Jesus?Ele continua curan<strong>do</strong> cegos, iluminan<strong>do</strong>-nos o caminho, guian<strong>do</strong>-nos ospassos!Somente mais tarde lembrei que, naquele instante, olvidara acuriosidade <strong>do</strong>entia, não pensei na impressão deixada pelo tracoma naqueleorganismo espiritual, nem me preocupei com a expressão propriamentecientifica <strong>do</strong> fenômeno, ven<strong>do</strong>, apenas, à minha frente, uma irmã sofre<strong>do</strong>ra enecessitada. E, à medida que me dispunha a observar a prática <strong>do</strong> amorfraternal, uma claridade diferente começou a iluminar e a aquecer-me a fronte.Lembran<strong>do</strong> a influência divina de Jesus, iniciei o passe de alívio sobreos olhos da pobre mulher, reparan<strong>do</strong> que enorme placa de sombra lhe pesavana fronte. Pronuncian<strong>do</strong> palavras de animação, às quais ligava a melhoressência de minhas intenções, concentrei minhas possibilidades magnéticas deauxílio nessa zona perturbada. Dentro de alguns instantes, a desencarnadadesferiu um grito de espanto.— Vejo! Vejo! — exclamou, entre o assombro e a alegria — grandeDeus! grande Deus!E ajoelhan<strong>do</strong>-se, num movimento instintivo para render graças, dirigiamea palavra, comovidamente:— Quem sois vós, emissário <strong>do</strong> bem?


Dominava-me profunda emoção, que não conseguia sofrear.Confundia-me a bondade <strong>do</strong> Eterno. Quem <strong>era</strong> eu para curar alguém? Mas aalegria daquela entidade, libertada das trevas, afirmava a ocorrência, na qualnão queria acreditar. A luz daquela dádiva como que mostrava mais fortementeo fun<strong>do</strong> escuro de minhas imperfeições individuais e o pranto inun<strong>do</strong>u-me asfaces, sem que pudesse retê-lo nos recônditos mananciais <strong>do</strong> coração.Enquanto a enferma espiritual se desfazia em lágrimas de louvor, também eume absorvia numa onda de pensamentos novos. O acontecimento surpreendiame.Desejava socorrer o <strong>do</strong>ente próximo e, contu<strong>do</strong>, estava enlaça<strong>do</strong> emsingular deslumbramento íntimo. Aniceto, porém, aproximou-se delicadamentee falou em voz baixa:— André, a excessiva contemplação <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s pode prejudicar otrabalha<strong>do</strong>r. Em ocasiões como esta, a vaidade costuma acordar dentro denós, fazen<strong>do</strong>-nos esquecer o Senhor. Não olvides que to<strong>do</strong> o bem procededele, que é a luz de nossos corações. Somos seus instrumentos nas tarefas deamor. O servo fiel não é aquele que se inquieta pelos resulta<strong>do</strong>s, nem o quepermanece enleva<strong>do</strong> na contemplação deles, mas justamente o que cumpre avontade divina <strong>do</strong> Senhor e passa adiante.Aquelas palavras não poderiam ser mais significativas. O generosomentor voltou ao serviço a que se entregara, junto de outros irmãos, e,valen<strong>do</strong>-me <strong>do</strong> amoroso aviso, dirigi-me à reconhecida senhora, acentuan<strong>do</strong>:— Minha amiga, agradeça a Jesus e não a mim, que sou apenasobscuro servi<strong>do</strong>r. Quanto ao mais, não se impressione em demasia com avisão <strong>do</strong>s aspectos exteriores; volte o poder visual para dentro de si mesma,para que possa consagrar ao Senhor da Vida os sublimes <strong>do</strong>ns da visão.Notei que a ouvinte se surpreendia com as minhas palavras, que lheparec<strong>era</strong>m, talvez, inoportunas e transcendentes, mas, novamente firme nacompreensão <strong>do</strong> dever, acerquei-me <strong>do</strong> enfermo próximo. Tratava-se duminfeliz irmão que falec<strong>era</strong> na Gamboa, vitima<strong>do</strong> pelo câncer. Toda a regiãofacial apresentava-se com horrível aspecto. Apliquei os passes de reconforto,ministran<strong>do</strong> pensamentos e palavras de bom ânimo, e reparei que opobrezinho se sentia toma<strong>do</strong> de considerável melhora. Prometi-lhe interesseamigo, a fim de internar-se em alguma casa espiritual de tratamento,recomendan<strong>do</strong> que preparasse a vida mental para colher semelhantebenefício, oportunamente. Em seguida, atendi a <strong>do</strong>is ex-tuberculosos <strong>do</strong>Encanta<strong>do</strong>, a uma senhora que desencarnara em Piedade, em conseqüênciade um tumor maligno, e a um rapaz de Olaria, que se desprend<strong>era</strong> num choqueop<strong>era</strong>tório. Nenhum d<strong>este</strong>s quatro últimos, contu<strong>do</strong>, manifestou qualquer alívio.Persistiam as mesmas indisposições orgânicas, os mesmos fenômenospsíquicos de sofrimento.Terminada a tarefa que me fora cometida, reuni-me ao nosso instrutor eVicente, que me esp<strong>era</strong>vam a um canto da sala.— As atividades de assistência — exclamou Aniceto, cuida<strong>do</strong>so — seprocessam conforme observamos aqui. Alguns se sentem cura<strong>do</strong>s, outrosacusam melhoras, e a maioria parece continuar impermeável ao serviço deauxílio. O que nos deve interessar, todavia, é a semeadura <strong>do</strong> bem. Agerminação, o desenvolvimento, a flor e o fruto pertencem ao Senhor.Vicente, que se mostrava fortemente impressiona<strong>do</strong>, observou:— O número de entidades perturbadas espanta. Vemo-las, em diversosgraus de desequilíbrio, desde “Nosso Lar” até a Crosta.


Aniceto sorriu e falou em tom grave:— Devemos esmaga<strong>do</strong>ra percentagem desses padecimentos à falta deeducação religiosa. Não me refiro, porém, àquela que vem <strong>do</strong> sacerdócio ouque parte da boca de uma criatura para os ouvi<strong>do</strong>s de outra. Refiro-me àeducação religiosa, íntima e profunda, que o homem nega sistematicamente asi mesmo.XLV - Mente enfermaObservan<strong>do</strong> e trabalhan<strong>do</strong> sempre, Aniceto considerou:Aqui não comparecem apenas os desencarna<strong>do</strong>s enfermos. Reparemos encarna<strong>do</strong>s, igualmente. Entre o nosso círculo e a assembléia <strong>do</strong>s irmãoscorporifica<strong>do</strong>s, a percentagem de trabalha<strong>do</strong>res em relação ao número de<strong>do</strong>entes e necessita<strong>do</strong>s é quase a mesma.Designan<strong>do</strong> um cavalheiro apruma<strong>do</strong> e bem posto, que se mantinha empalestra com o senhor Bentes, <strong>do</strong>utrina<strong>do</strong>r naquele grupo, acrescentou:— Vejam <strong>este</strong> amigo rodea<strong>do</strong> de sombra, em conversação com ocolabora<strong>do</strong>r de nossa irmã Isabel. Ouçam-lhe a palavra e, depois, ajuízem.Com efeito, o cavalheiro indica<strong>do</strong> rodeava-se de pequenas nuvens,mormente ao longo <strong>do</strong> cérebro.Fixan<strong>do</strong> nele a atenção, eu o ouvia distintamente:— Há muito — assev<strong>era</strong>va com ênfase — freqüento as reuniõesespiritistas, à procura de alguma coisa que me satisfaça; no entanto — e sorriuirônico — ou a minha infelicidade é maior que a <strong>do</strong>s outros ou estamos diantede mistificação mundial.Atento à respeitosa atitude <strong>do</strong> orienta<strong>do</strong>r encarna<strong>do</strong>, prosseguia,orgulhoso:— Tenho estuda<strong>do</strong> muitíssimo, não me furtan<strong>do</strong> ao crivo da razãorigorosa. Já devorei extensa lit<strong>era</strong>tura relativa à sobrevivência humana e,todavia, nunca obtive uma prova. O Espiritismo está cheio de teses sedutoras,mas o terreno se mostra cheio de dúvidas. A obra de Kardec, inegavelmente,representa extraordinária afirmação filosófica; entretanto, encontramos comRichet um acervo de perspectivas novas. A metapsíquica corrigiu muitos vôosda imaginação, trazen<strong>do</strong> à análise pública observações mais profundas sobreos desconheci <strong>do</strong>s poderes <strong>do</strong> homem. No exame dessas verdades científicas,o mediunismo foi reduzi<strong>do</strong> em suas proporções. Precisamos dum movimentode racionalização, ajustan<strong>do</strong> os fenômenos a critério adequa<strong>do</strong>. Todavia, meucaro Bentes, vivemos em paisagem de mistificações sutis, distantes dasdemonstrações exatas.A essa altura, o interlocutor, muito calmo e seguro na fé, interveio,consid<strong>era</strong>n<strong>do</strong>:— Concor<strong>do</strong>, Dr. Fidélis, em que o Espiritismo não deva fugir a todaespécie de consid<strong>era</strong>ções sérias; contu<strong>do</strong>, creio que a <strong>do</strong>utrina é um conjuntode verdades sublimes, que se dirigem, de preferência, ao coração humano. Éimpossível auscultar-lhe a grandeza divina com a nossa imperfeita faculdadede observação, ou recolher-lhe as águas puras com o vaso sujo <strong>do</strong>s nossosraciocínios vicia<strong>do</strong>s nos erros de muitos milênios. Ao demais, temos aprendi<strong>do</strong>que a revelação de ordem divina não é trabalho mecânico em leis de menoresforço. Lembremos que a missão <strong>do</strong> Evangelho, com o Mestre, foi precedidapor um esforço humano de muitos séculos. Antes de morrerem os cristãos noscircos <strong>do</strong> martírio, quantos precursores de Jesus foram sacrifica<strong>do</strong>s?


Primeiramente, devemos construir o receptáculo; em seguida, alcançaremos abênção. A Bíblia, sagra<strong>do</strong> <strong>livro</strong> <strong>do</strong>s cristãos, é o encontro da experiênciahumana, cheia de suor e lágrimas, consubstanciada no Velho Testamento, coma resposta celestial, sublime e pura, no Evangelho de Nosso Senhor.O cavalheiro, que respondia pelo nome de Dr. Fidélis, sorria de mo<strong>do</strong>vago, entre a ironia e a vaidade ofendida.Bentes, contu<strong>do</strong>, não perdeu a oportunidade e continuou:— Se to<strong>do</strong> serviço sério da existência humana é alguma coisa desagra<strong>do</strong> aos nossos olhos que dizer da expressão divina no trabalhoplanetário? E consid<strong>era</strong>n<strong>do</strong> a essência <strong>do</strong> serviço na organização <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>,que seria de nós se um punha<strong>do</strong> de espíritos amigos e sábios nosarrebatassem à visão ampla de orbes superiores, impelin<strong>do</strong>-nos para eles,precipitadamente, tão só pelo fato de nos dispensarem como indivíduos, umaestima santa? Estaríamos prepara<strong>do</strong>s para a mudança radical? Saberemos oque venha a ser a vida num orbe superior? Teremos trabalha<strong>do</strong> bastante paraentender os divinos desígnios? E a Terra? E as nossas milenares dívidas paracom o planeta que nos tem suporta<strong>do</strong> as imperfeições? Como residir nosandares mais altos, sem drenar os pântanos que jazem em baixo? Estasconsid<strong>era</strong>ções tornam-se imprescindíveis no exame de argumentação como asua, porquanto não poderemos ajuizar, com precisão, as correntes generosasde um rio caudaloso, observan<strong>do</strong> tão somente as gotas recolhidas no dedaldas nossas limitações.O pesquisa<strong>do</strong>r renitente acentuou a expressão irônica <strong>do</strong> rosto erevi<strong>do</strong>u:— Você fala como homem de fé, esquecen<strong>do</strong> que meu esforço se dirigeà razão e à ciência. Quero referir-me às ilações inevitáveis da consulta livre, asfarsas medidas de to<strong>do</strong>s os tempos. Você está informa<strong>do</strong> de que cientistasinúmeros examinaram as fraudes <strong>do</strong>s mais célebres aparelhos <strong>do</strong> mediunismo,na Europa e na América. Ora, que esp<strong>era</strong>r de uma <strong>do</strong>utrina confiada amistifica<strong>do</strong>res continentais?Bentes respondeu, muito sereno e pond<strong>era</strong><strong>do</strong>:— Está engana<strong>do</strong>, meu amigo. Estaríamos laboran<strong>do</strong> em erro grave, secolocássemos toda a responsabilidade <strong>do</strong>utrinária nas organizaçõesmediúnicas. Os médiuns são simples colabora<strong>do</strong>res <strong>do</strong> trabalho deespiritualização. Cada um responderá pelo que fez das possibilidadesrecebidas, como também nós seremos compeli<strong>do</strong>s a contas necessárias,algum dia. Não poderíamos cometer o absur<strong>do</strong> de atribuir a concentração detodas as verdades divinas somente na cabeça de alguns homens, candidatos anovos cultos de a<strong>do</strong>ração. A <strong>do</strong>utrina, Dr. Fidélis, é uma fonte sublime e pura,inacessível aos pruri<strong>do</strong>s individualistas de qualquer de nós, fonte na qual cadacompanheiro deve beber a água da renovação própria. Quanto às fraudesmediúnicas a que se refere, é forçoso reconhecer que a pretensa infalibilidadecientífica tem procura<strong>do</strong> converter os mais nobres colabora<strong>do</strong>res <strong>do</strong>sdesencarna<strong>do</strong>s em grandes nervosos ou em simples cobaias de laboratório. Ospesquisa<strong>do</strong>res, atualmente batiza<strong>do</strong>s como metapsiquistas, são estranhoslavra<strong>do</strong>res que enxameiam no campo de serviço sem nada produzirem defundamentalmente útil. Inclinam-se para a terra contam os grãos de areia e osvermes invasores, determinam o grau de calor e estudam a longitude,observam as disposições climáticas e anotam as variações atmosféricas, mas,com grande surpresa para os trabalha<strong>do</strong>res sinceros, desprezam a semente.


O interlocutor deixou de sorrir e observou:— Vamos ver, vamos ver... Espero ainda amigos <strong>do</strong>s meus com ossinais inaudíveis da sobrevivência, após a morte..Aniceto nos tocou de leve, e falou:— Como <strong>este</strong> homem traz a mente enfermiça? É um <strong>do</strong>s curiosos<strong>do</strong>entes, encarna<strong>do</strong>s. Tem vasta cultura e, todavia, como traz sentimentoenvenena<strong>do</strong>, tu<strong>do</strong> quanto lhe cai no raciocínio participa da g<strong>era</strong>l intoxicação. Épesquisa<strong>do</strong>r de superfície, como ocorre a muita gente. Tu<strong>do</strong> esp<strong>era</strong> <strong>do</strong>s outros,examina seu semelhante, mas não ausculta a si mesmo. Quer a realizaçãodivina sem o esforço humano; reclama a graça, formulan<strong>do</strong> a exigência; quer otrigo da verdade, sem participar da semeadura, esp<strong>era</strong> a tranqüilidade pela fé,sem dar-se ao trabalho das obras; estima a ciência, sem consultar aconsciência; prefere a facilidade, sem filiar-se à responsabilidade, e, viven<strong>do</strong> notorvelinho de continuadas libações, agarra<strong>do</strong> aos interesses inferiores e àsatisfação <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s físicos, em caráter absoluto, está aguardan<strong>do</strong>mensagens espirituais...Estávamos admira<strong>do</strong>s, ante as conclusões interessantes <strong>do</strong> instrutoramigo.Vicente, que se mantinha sob forte impressão, perguntou:— Afinal de contas, que deseja <strong>este</strong> homem?Aniceto sorriu e respondeu:— Também ele teria imensas dificuldades para responder. Para nósoutros, Vicente, o Dr. Fidélis é um desses enfermos que ainda não sedispus<strong>era</strong>m a procurar o alívio, pelo demasia<strong>do</strong> apego à sensação.XLVI - Aprenden<strong>do</strong> sempreSegun<strong>do</strong> informações de Aniceto, faltava mais de uma hora para oinício da preleção evangélica, sob a responsabilidade <strong>do</strong> senhor Bentes, naesf<strong>era</strong> <strong>do</strong>s freqüenta<strong>do</strong>res encarna<strong>do</strong>s, mas o movimento de serviço espiritualtornara-se intensíssimo.Reuniam-se ali, para olhos humanos, trinta e cinco individualidad<strong>este</strong>rrestres e, no entanto, em nosso círculo, o número de necessita<strong>do</strong>s excediade duas centenas, porquanto, agora, a assembléia estava acrescida de muitasentidades que formavam o séqüito perturba<strong>do</strong>r da maioria <strong>do</strong>s aprendizes alicongrega<strong>do</strong>s. Para elas, organizou-se uma divisão especial, que me pareceuconstituída por elementos de maior vigilância, visto chegarem, quaseobrigatoriamente, acompanhan<strong>do</strong> os que buscavam o socorro espiritual, sem aindicação <strong>do</strong>s orienta<strong>do</strong>res em serviço nas vias públicas.A movimentação <strong>era</strong> enorme e o tempo <strong>era</strong> escasso para qualquerobservação, sem movimento ativo. To<strong>do</strong>s os servi<strong>do</strong>res da casa se mantinhama postos, desenvolven<strong>do</strong> a melhor atenção.Reparei que num ângulo da grande mesa havia numerosas indicaçõesde receituário e assistência. Os mais varia<strong>do</strong>s nomes ali se enfileiravam.Muitas pessoas pediam conselhos médicos, orientação, assistência e passes.Quatro facultativos espirituais se moviam diligentes, e, secundan<strong>do</strong>-lhes oesforço humanitário, quarenta coop<strong>era</strong><strong>do</strong>res diretos iam e vinham, recolhen<strong>do</strong>informações e enriquecen<strong>do</strong> por menores.Aproximamo-nos <strong>do</strong> grande número de papéis nomina<strong>do</strong>s, e enquantocuriosamente buscava examiná-los, Aniceto explicou:


— Temos aqui a indicação das pessoas que se afirmam necessitadasde amparo e socorro imediato.— Mas recebem elas tu<strong>do</strong> quanto pedem? — indagou Vicente, curioso.Nosso mentor sorriu e respondeu:— Recebem o que precisam. Muitos solicitam a cura <strong>do</strong> corpo, massomos força<strong>do</strong>s a estudar até que ponto lhes podemos ser úteis, noparticularismo <strong>do</strong>s seus desejos; outros reclamam orientações várias,obrigan<strong>do</strong>-nos a equilibrar nossa coop<strong>era</strong>ção, de mo<strong>do</strong> a lhes não tolher aliberdade individual. A existência terrestre é um curso ativo de preparaçãoespiritual e, quase sempre, não faltam na escola os alunos ociosos, queperdem o tempo ao invés de aproveitá-lo, ansiosos pelas realizaçõesmentirosas <strong>do</strong> menor esforço. Desse mo<strong>do</strong>, no capítulo das orientações, amaior parte <strong>do</strong>s pedi<strong>do</strong>s são desassisa<strong>do</strong>s. A solicitação de t<strong>era</strong>pêutica para amanutenção da saúde física, pelos que de fato se interessem pelo concursoespiritual, é sempre justa; todavia, no que concerne a conselhos para vidanormal, é imprescindível muita cautela de nossa parte, diante das requisiçõesdaqueles que se negam voluntariamente aos t<strong>este</strong>munhos de conduta cristã. OEvangelho está cheio de sagra<strong>do</strong>s roteiros espirituais e o discípulo, pelo menosdiante da própria consciência, deve consid<strong>era</strong>r-se obriga<strong>do</strong> a conhecê-los.O instrutor antigo fez pequena pausa, mu<strong>do</strong>u a inflexão de voz, comopara acentuar fortemente as palavras, e considerou:— Possivelmente, vocês objetarão que toda pergunta exige resposta eto<strong>do</strong> pedi<strong>do</strong> merece solução; entretanto, nesse caso de esclarecerdeterminadas solicitações <strong>do</strong>s companheiros encarna<strong>do</strong>s, devemos recorrer,muitas vezes, ao silêncio. Como recomendar humildade àqueles que a pregampara os outros; como ensinar a paciência aos que a aconselham aossemelhantes, e como indicar o bálsamo <strong>do</strong> trabalho aos que já sabemcondenar a ociosidade alheia? Não seria contra-senso? Ler os ensinamentosda vida para os cegos e para os ignorantes é obra meritória, mas, repeti-losaos que já se encontram plenamente informa<strong>do</strong>s, não será menosprezo aovalor <strong>do</strong> tempo? Alma alguma, nas diversas confissões religiosas <strong>do</strong>Cristianismo, recebe notícias de Jesus, sem razão de ser. Ora, se todacondição de trabalho edificante traduz compromisso da criatura, to<strong>do</strong>conhecimento <strong>do</strong> Cristo traduz responsabilidade. Cada aprendiz <strong>do</strong> Mestre,portanto, está no dever de observar a consciência, conferin<strong>do</strong>-lhe os alvitresprofun<strong>do</strong>s com az disposições evangélicas.Vicente, que escutava com grande interesse, aventou:— No entanto, ousaria lembrar os que formulam semelhantes pedi<strong>do</strong>slevianamente...— Sim — eluci<strong>do</strong>u Aniceto, sorrin<strong>do</strong> — mas nós não poderemos copiarlheso impulso. Os desencarna<strong>do</strong>s e os encarna<strong>do</strong>s, que ainda abusam daspossibilidades <strong>do</strong> intercâmbio entre as esf<strong>era</strong>s visíveis e invisíveis ao homemcomum, pagarão alto preço pela invigilância.— N<strong>este</strong> caso — perguntei, respeitoso — como corresponder aospedi<strong>do</strong>s de orientação?— Alguns, raros — esclareceu nosso orienta<strong>do</strong>r — merecem oconcurso da nossa elucidação verbal, na hipótese de se referirem aosinteresses eternos <strong>do</strong> espírito, quan<strong>do</strong> isso nos seja possível; entretanto, quasesempre é indispensável nada responder de maneira direta, auxilian<strong>do</strong> osinteressa<strong>do</strong>s na pauta de nossos recursos, em silêncio, mesmo porque, não


temos grande tempo para relembrar a irmãos encarna<strong>do</strong>s certas obrigaçõesque lhes não deviam escapar da memória, para felicidade de si mesmos.Calou-se por momentos o bon<strong>do</strong>so instrutor, consid<strong>era</strong>n<strong>do</strong> em seguida,interessa<strong>do</strong> em nos subtrair quaisquer dúvidas:— Muitas entidades desencarnadas estimam o fornecimento de palpitespara as diversas situações e dificuldades terrestres, mas esses pobres amigosestacionam desastradamente em questões subalternas, incapazes de umavisão mais alta, em face <strong>do</strong>s horizontes infinitos da vida eterna, converten<strong>do</strong>-seem meros escravos de mentalidades inferiores, encarnadas na Terra.Esquecem que o nosso interesse imediato, agora, deve ser, acima de to<strong>do</strong>s,aquele que se refira à espiritualidade superior. Nossos irmãos inquietos, queforneçam palpites a preguiçosas mentes encarnadas, sobre assuntosreferentes à responsabilidade justa e necessária <strong>do</strong> homem, de vem fazê-lo deprópria conta.— Que acontece, então? — perguntou Vicente, curioso.Nosso mentor, contu<strong>do</strong>, respondeu com outra pergunta:— Que acontece ao homem de responsabilidade que se põe a brincar?Nesse instante, um <strong>do</strong>s clínicos espirituais, aproximan<strong>do</strong>-se, foigentilmente sauda<strong>do</strong> por Aniceto, que lhe disse, depois de apresentar-nos:— Disponha da nossa colaboração humilde. Aqui estamos na qualidadede médicos itin<strong>era</strong>ntes, prontos ao concurso ativo.— Vêm de “Nosso Lar”? — indagou o novo companheiro,respeitosamente.— Sim — respondeu Aniceto, prestativo.— Pois bem — considerou ele — se possível, estimarei receber-lhes oauxílio, após a reunião, para <strong>do</strong>is casos urgentes. Trata-se de uma jovemdesencarnada hoje e de um agonizante, meu amigo.— Sem dúvida — acentuou nosso orienta<strong>do</strong>r, solícito — aguardaremossuas indicações.XLVII - No trabalho ativoA interpretação de Bentes, obedecen<strong>do</strong> à inspiração de um emissáriode nobre posição, presente à assembléia, <strong>era</strong> recebida com respeito g<strong>era</strong>l, nocírculo das entidades desencarnadas.Na esf<strong>era</strong> <strong>do</strong>s encarna<strong>do</strong>s, porém, não se notava o mesmo traço deharmonia. Observava-se apreciável instabilidade de pensamento. A expectativaansiosa <strong>do</strong>s presentes perturbava a corrente vibratória. De quan<strong>do</strong> em quan<strong>do</strong>,surpreendíamos determina<strong>do</strong>s desequilíbrios, que afetavam, particularmente, aorganização, mediúnica de Dona Isabel e a posição receptiva <strong>do</strong> comentarista,que parecia perder “o fio das idéias”, tal qual se diria na linguagem comum.Colabora<strong>do</strong>res ativos restabeleciam o ritmo, quanto possível. Reparamos quealguns irmãos encarna<strong>do</strong>s se mantinham irrequietos, em demasia. Mormenteos mais novos em conhecimentos <strong>do</strong>utrinários exibiam enormeirresponsabilidade. A mente lhes vagava muito longe <strong>do</strong>s comentáriosedificantes. Viam-se-lhes, distintamente, as imagens mentais. Alguns seprendiam aos quefazeres <strong>do</strong>mésticos, outros se impacientavam por nãolograrem a realização imediata <strong>do</strong>s propósitos que os haviam leva<strong>do</strong> até ali.Aniceto, que não perdia ocasião de prestar-nos esclarecimentos novos,considerou, discreto:


— Muitos estudiosos <strong>do</strong> Espiritismo se preocupam com o problema daconcentração, em trabalhos de natureza espiritual. Não são poucos os queestabelecem padrão ao aspecto exterior da pessoa concentrada, os queexigem determinada atitude corporal e os que esp<strong>era</strong>m resulta<strong>do</strong>s rápi<strong>do</strong>s nasatividades dessa ordem. Entretanto, quem diz concentrar, forçosamente serefere ao ato de congregar alguma coisa. Ora, se os amigos encarna<strong>do</strong>s nãotomam a sério as responsabilidades que lhes dizem respeito, fora <strong>do</strong>s recintosde prática espiritista, se, porventura, são cultores da leviandade, da indiferença,<strong>do</strong> erro delib<strong>era</strong><strong>do</strong> e incessante, da teimosia, da inobservância interna <strong>do</strong>sconselhos de perfeição cedi<strong>do</strong>s a outrem, que poderão concentrar nosmomentos fugazes de serviço espiritual? Boa concentração exige vida reta.Para que os nossos pensamentos se congreguem uns aos outros, fornecen<strong>do</strong>o potencial de nobre união para o bem, é indispensável o trabalho preparatóriode atividades mental na meditação de ordem superior. A atitude íntima derelaxamento, ante as lições evangélicas recebidas, não pode conferir ao crente,ou ao coop<strong>era</strong><strong>do</strong>r, a concentração de forças espirituais no serviço de elevação,tão só porque <strong>este</strong>s se entreguem, apenas por alguns minutos na semana, apensamentos compulsórios de amor cristão. Como vêem, o assunto écomplexo e demanda longas consid<strong>era</strong>ções e ensinamentos.Reparei com mais atenção os circunstantes encarna<strong>do</strong>s. Não fosse odevotamento <strong>do</strong>s colabora<strong>do</strong>res <strong>do</strong> nosso plano, tornar-se-ia impossívelqualquer proveito concreto.Isi<strong>do</strong>ro e outros amigos devota<strong>do</strong>s trabalhavam com ar<strong>do</strong>r, despertan<strong>do</strong>alguns <strong>do</strong>rminhocos e reajustan<strong>do</strong> o pensamento <strong>do</strong>s invigilantes, paraneutralizar determinadas influências nocivas.Eu reconhecia que os benefícios imediatos da <strong>do</strong>utrinação de Bentes<strong>era</strong>m muito mais visíveis entre os desencarna<strong>do</strong>s. No grupo d<strong>este</strong>s, não haviaum só que isto recebesse consolações diretas e sublime conforto.Finda a interpretação, pouco antes de se entregar Dona Isabel aotrabalho <strong>do</strong> receituário, observei que uma senhora desencarnada seaproximara de Isi<strong>do</strong>ro, pedin<strong>do</strong>, emocionada:— Ser-lhe-á possível, meu irmão, entender por mim com os nossosorienta<strong>do</strong>res quanto à possibilidade de me comunicar diretamente com a minhafilha, presente à reunião? Estou certa de que, com a permissão devida, nossaIsabel me atenderá a angústia materna.O interpela<strong>do</strong> mostrou sincero desejo de ser útil, mas, depois de trocaralgumas palavras com o instrutor mais gradua<strong>do</strong> da reunião, que se colocaraentre a médium e o <strong>do</strong>utrina<strong>do</strong>r, veio trazer a resposta, algo constrangi<strong>do</strong>, comgrande surpresa para mim;— Minha irmã — disse ele — o nosso nobre Anselmo não julga viável oseu pedi<strong>do</strong>. Asseverou que sua filhinha ainda não está em condições dereceber essa bênção. Ela tem necessidade de t<strong>este</strong>munhar, agora, o queaprendeu <strong>do</strong> seu exemplo, no mun<strong>do</strong>, e precisa permanecer no campo daoportunidade, sem repousar indevidamente nos seus braços.E como a senhora denotasse tristeza, Isi<strong>do</strong>ro continuou em tomfraternal:— Não somente por isso, minha amiga, nosso instrutor se vê força<strong>do</strong> adesatender. A medida traria inconveniente grave para o seu sentimentomaternal. No esta<strong>do</strong> evolutivo em que se encontra, e consid<strong>era</strong>n<strong>do</strong> o velhohábito adquiri<strong>do</strong>, a filhinha se agarraria excessivamente ao seu auxílio.


Prender-se-ia à mãezinha afetuosa e sensível, e talvez a irmã se visseperturbada em sua nova carreira espiritual. Ela precisa estar mais livre parat<strong>este</strong>munhar, enquanto o seu coração deve permanecer em liberdade, pornobre merecimento conquista<strong>do</strong> ao preço <strong>do</strong> seu suor e lágrimas, quan<strong>do</strong> naTerra. Consid<strong>era</strong>n<strong>do</strong>, embora, o caráter sagra<strong>do</strong> <strong>do</strong> amor em sua feiçãomaternal, nossos orienta<strong>do</strong>res não podem conceder à sua filha o direito deperturbá-la. Compreende? Não se atormente com esta impossibilidadetransitória. Lembre-se de que to<strong>do</strong>s somos filhos de Deus. O Senhor terárecursos para atender cada jovem, em seu lugar. Quanto ao mais, alegremonosem nossos serviços. Recorde que o auxílio não se verificará pelo processodireto, mas podemos recorrer ao méto<strong>do</strong> indireto. Quem sabe? Amanhã,possivelmente, poderá encontrar-se com sua filha, em sonho.A interpelada sorriu, confortada, e obtemperou:— É verdade. Devo compreender a nova situação.Nesse instante, acercou-se de Isi<strong>do</strong>ro uma entidade amiga, quesolicitou:— Meu caro, estimaria suas providências junto <strong>do</strong>s receitistas, para queforneçam novas indicações ao Amaro. Meu sobrinho necessita de amparo àsaúde física.O esposo espiritual de Isabel tomou uma expressão significativa erespondeu:— Não posso, meu amigo, não posso. Se Amaro pedir e os receitistascederem, tu<strong>do</strong> estará muito bem; mas você não ignora que o nosso <strong>do</strong>ente émuito rebelde. Já lhe providenciei a obtenção de conselhos médicos <strong>do</strong> nossoplano, por cinco vezes, sem que ele correspondesse aos nossos esforços. Nãose resolve a adquirir os remédios indica<strong>do</strong>s, e quan<strong>do</strong> os obtém, por obséquiode amigos, despreza os horários e julga-se superior ao méto<strong>do</strong>. Criticamortalmente as indicações obtidas e serve delas com desprezo. Naturalmentenão estou agasta<strong>do</strong> com isso, como adulto que se não aborrece com asbrincadeiras de uma criança; mas você compreende que estamos lidan<strong>do</strong> comum material muito sagra<strong>do</strong> e não há tempo para conviver com os que estimama brincadeira. Além disso, não será caridade o ato de dar aos que não queremreceber.Isi<strong>do</strong>ro falava com uma inflexão de bondade fraternal, que afastavato<strong>do</strong>s os característicos da franqueza contundente. Compreendi que, paraatender a tanta gente e movimentar-se entre tantos propósitos heterogêneos,não seria possível tratar os assuntos de outro mo<strong>do</strong>.O serviço prosseguia com enorme demonstração educativa paraVicente e para mim. O esforço <strong>do</strong>s clínicos espirituais, alia<strong>do</strong> à abnegação daintermediária. comovia-me o coração. Era necessário, de fato, grande renúnciapara atender ao trabalho compacto e numeroso, no setor de assistência aosencarna<strong>do</strong>s, porque poucos freqüenta<strong>do</strong>res <strong>do</strong> grupo pareciam manter atitudecorrespondente à sublime dedicação fraternal em nome <strong>do</strong> Mestre.Aniceto, porém, adivinhan<strong>do</strong> meus pensamentos, falou com bondade:— Um dia, André, você compreenderá, com Jesus, que melhor é servirque ser servi<strong>do</strong>; mais belo é dar que receber.XLVIII - Pavor da morteNumerosas explicações <strong>do</strong> orienta<strong>do</strong>r atendiam-me às indagaçõesnaturais; no entanto, restava aprender alguma coisa. Por que motivo se


euniam ali tantos desencarna<strong>do</strong>s? Já que recebiam assistência espiritual, nãopoderiam congregar-se em lugares igualmente espirituais?Respeitosamente, interroguei Aniceto nesse senti<strong>do</strong>.— De fato, André — respondeu o generoso mentor — a maioria <strong>do</strong>sdesencarna<strong>do</strong>s recebe esclarecimentos justos em nossa esf<strong>era</strong> de ação. Vocêmesmo, nos primórdios da nova experiência espiritual, não foi conduzi<strong>do</strong> aoambiente de nossos amigos corporifica<strong>do</strong>s para o necessário encaminhamento.Grande número de criaturas, porém, na passagem para cá, sentem-sepossuídas de “<strong>do</strong>entia saudade <strong>do</strong> agrupamento”, como acontece, noutro planode evolução, aos animais, quan<strong>do</strong> sentem a mortal “saudade <strong>do</strong> rebanho”. Parafortalecer as possibilidades de adaptação <strong>do</strong>s desencarna<strong>do</strong>s dessa ordem aonovo “habitat”, o serviço de socorro é mais eficiente, ao contacto das forçasmagnéticas <strong>do</strong>s irmãos que ainda se encontram envolvi<strong>do</strong>s nos círculoscarnais. Esta sala, em momentos como <strong>este</strong>, funciona como grande incuba<strong>do</strong>rade energias psíquicas, para os serviços de aclimação de certas organizaçõesespirituais à vida nova.E, designan<strong>do</strong> a grande assembléia de necessita<strong>do</strong>s, continuou:— Os irmãos, nas condições a que me refiro, ouvem-nos a voz,consolam-se com o nosso auxílio, mas o calor humano está cheio dummagnetismo de teor mais significativo, para eles. Com semelhante contacto,experimentam o despertar de forças novas. Por isso, o trabalho de coop<strong>era</strong>ção,em templos desta espécie, oferece proporções que você, por agora, nãoconseguiria imaginar. Não observou os preguiçosos, os <strong>do</strong>rminhocos einvigilantes que vi<strong>era</strong>m colher benefícios nesta casa? Pois eles também d<strong>era</strong>malguma coisa de si... D<strong>era</strong>m calor magnético, irradiações vitais proveitosas aosbenfeitores d<strong>este</strong> santuário <strong>do</strong>méstico, que manipulam os elementos dessanatureza, distribuin<strong>do</strong>-os em valiosas combinações fluídicas às entidadescombalidas e inadaptadas.E, sorrin<strong>do</strong>, concluiu, bon<strong>do</strong>so:— Tu<strong>do</strong> tem algum proveito, André. Nosso Pai nada cria em vão.Terminada a reunião com benefícios g<strong>era</strong>is, que não me cabedescrever pormenorizadamente, atendeu Aniceto ao facultativo desejoso deaproveitar--lhe o concurso nobre, junto aos clientes.— Grande número de vezes — exclamou o receitista <strong>do</strong> grupo de DonaIsabel, como a prestar informações a Vicente e a mim — não só ministramosmedicação aos corpos <strong>do</strong>entes, mas também orientamos os desencarna<strong>do</strong>sque, no curso da moléstia, se encontram sob nossa assistência.— E são sempre muitos? — indaguei.Número crescente — eluci<strong>do</strong>u, atencioso. Há ocasiões em quecontamos com a coop<strong>era</strong>ção de amigos ou parentes espirituais <strong>do</strong>s enfermos;mas, na maioria <strong>do</strong>s casos, somos força<strong>do</strong>s a agir por nós mesmos.Felizmente, quase nunca estamos sem auxiliares dedica<strong>do</strong>s e ativos. Hácompanheiros que se consagram a cuidar de tuberculosos, cegos, aleija<strong>do</strong>s,leprosos, perturba<strong>do</strong>s e moribun<strong>do</strong>s, isoladamente. São eles nossos devota<strong>do</strong>scolabora<strong>do</strong>res em todas as situações.Puséramo-nos a caminho e, a breves minutos, estacionávamos diantedum edifício de vastas proporções.O colega, gentil, conduziu-nos ao interior de espaçoso necrotério, ondedefrontamos um quadro interessante. O cadáver de uma jovem, de menos detrinta anos, ali jazia gela<strong>do</strong> e rígi<strong>do</strong>, ten<strong>do</strong> a seu la<strong>do</strong> uma entidade masculina,


em atitude de zelo. Com assombro, notei que a desencarnada estava tinida aosdespojos. Parecia recolhida a si mesma, sob forte expressão de terror. Cerravaas pálpebras, delib<strong>era</strong>damente, receosa de olhar em torno.— Terminou o processo de desligamento <strong>do</strong>s laços fisiológicos —aclamou o facultativo atento — mas a pobrezinha há seis horas que está<strong>do</strong>minada por terrível pavor.E apontan<strong>do</strong> o cavalheiro desencarna<strong>do</strong>, que permanecia junto dela,cuida<strong>do</strong>so, o receitista esclareceu:— Aquele é o noivo que a esp<strong>era</strong>, há muito.Aproximamo-nos um tanto e ouvimo-lo exclamar carinhosamente.— Cremilda! Cremilda! vem! aban<strong>do</strong>na as v<strong>este</strong>s rotas. Fiz tu<strong>do</strong> paraque não sofresse mais... Nossa casa te aguarda, cheia de amor e luz.A jovem, todavia, cerrava os olhos, demonstran<strong>do</strong> não querer vê-lo.Notava-se, perfeitamente, que seu organismo espiritual permanecia totalmentedesliga<strong>do</strong> <strong>do</strong> vaso físico, mas a pobrezinha continuava <strong>este</strong>ndida, copian<strong>do</strong> aposição cadavérica, tomada de infinito horror.Aniceto, que tu<strong>do</strong> pareceu compreender num abrir e fechar de olhos,fez leve sinal ao rapaz desencarna<strong>do</strong>, que se aproximou comovi<strong>do</strong>.É preciso atendê-la <strong>do</strong>utro mo<strong>do</strong> — disse o nosso orienta<strong>do</strong>r, resoluto— vejo que a pobrezinha não <strong>do</strong>rmiu no desprendimento e mostra-seamedrontada por falta de preparação espiritual. Não convém que o amigo seapresente a ela já, já...Não obstante o amor que lhe consagra, ela não poderiarevê-lo sem terrível comoção, n<strong>este</strong> instante em que a mente lhe flutua semrumo...— Sim — considerou ele, tristemente —, há seis horas chamo-a semcessar, intensifican<strong>do</strong>-lhe o terror.Redargüiu Aniceto, conselheiro:— Ausência de preparação religiosa, meu irmão. Ela <strong>do</strong>rmirá, porém, e,tão logo consiga repouso, entregá-la-ei aos seus cuida<strong>do</strong>s. Por enquanto,conserve a alguma distância.E fazen<strong>do</strong>-se acompanhar <strong>do</strong> facultativo, que assistira espiritualmente ajovem nos últimos dias, aproximou-se da recém-desencarnada falan<strong>do</strong> cominflexão paternal.— Vamos, Cremilda, ao novo tratamento.Ouvin<strong>do</strong> a moça abriu os olhos espantadiços e exclamou:— Ah, <strong>do</strong>utor, graças a Deus! que pesadelo horrível! Sentia-me no reino<strong>do</strong>s mortos, ouvin<strong>do</strong> meu noivo, faleci<strong>do</strong> há anos, chamar-me para aEternidade!..— Não há morte, minha filha! — objetou Aniceto, afetuoso — creia navida, na vida eterna, profunda, vitoriosa!— É o senhor o novo médico? — indagou, confortada.— Sim, fui chama<strong>do</strong> para aplicar-lhe alguns recursos em basesmagnéticas. Torna-se indispensável que durma e descanse.— É verdade... — tornou ela de mo<strong>do</strong> comovente —, estou muitocansada, necessitan<strong>do</strong> de repouso...Recomen<strong>do</strong>u-nos o instrutor, em voz baixa, prestássemos auxílio, ematitude íntima de oração, e, depois de conservar-se em silêncio por instantesministrou-lhe o passe reconforta<strong>do</strong>r. A jovem <strong>do</strong>rmiu quase imediatamente.Deslocou-a Aniceto, afastan<strong>do</strong>-a <strong>do</strong>s despojos, com o zelo amorosodum pai, e, chaman<strong>do</strong> o noivo reconheci<strong>do</strong>, entregou-a carinhosamente.


— Agora, poderá encaminhá-la, meu irmão.O rapaz agradeceu com lágrimas de júbilo e vi-o retirar-se de semblanteilumina<strong>do</strong>, utilizan<strong>do</strong> a volitação, a carregar consigo o far<strong>do</strong> suave <strong>do</strong> seu amor.Nosso mentor fixou um gesto expressivo e falou:— Pela bondade natural <strong>do</strong> coração e pelo espontâneo cultivo davirtude, não precisará ela de provas purgatoriais. É de lamentar, contu<strong>do</strong>, nãose tivesse prepara<strong>do</strong> na educação religiosa <strong>do</strong>s pensamentos. Em breve,porém, ter-se-á adapta<strong>do</strong> à vida nova. Os bons não encontram obstáculosinsuperáveis.E, desejoso talvez de consubstanciar a síntese da lição, rematou:— Como vêem, a idéia da morte não serve para aliviar, curar ou edificarverdadeiramente. É necessário difundir a idéia da vida vitoriosa. Aliás, oEvangelho já nos ensina, há muitos séculos, que Deus não é Deus de mortos,e, sim, o Pai das criaturas que vivem para sempre.Máquina divinaNão se passaram muitos minutos e estávamos ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> agonizante,cuja situação preocupava o clínico espiritual.Era um cavalheiro de sessenta anos presumíveis, que a leucemiaaniquilava morosamente.— Há muitos dias se encontra em coma — explicou o facultativo — mastemos necessidade de mais forte auxílio magnético, para facilitar odesprendimento.No aposento, além de duas senhoras desencarnadas — a mãe <strong>do</strong>agonizante e uma parenta próxima — viam-se familiares encarna<strong>do</strong>s, dan<strong>do</strong>mostras de grande aflição.Nosso orienta<strong>do</strong>r examinou o enfermo detidamente e sentenciou:— Nada resta senão a necessidade de concurso para o desligamentofinal.Aniceto, a seguir, recomen<strong>do</strong>u observássemos o moribun<strong>do</strong> comatenção.Concentran<strong>do</strong> todas as minhas possibilidades, fixei o enfermo pr<strong>este</strong>s adesencarnar. Notei, com minúcias, que a alma se retirava lentamente atravésde pontos orgânicos insula<strong>do</strong>s. Assombra<strong>do</strong>, verifiquei que, bem no centro <strong>do</strong>crânio, havia um foco de luz mortiça, candelabro aceso às ondulações brandas<strong>do</strong> vento. Enchia toda a região encefálica, despertan<strong>do</strong>-me profundaadmiração.— A luz que você observa — disse o instrutor amigo — é a mente, paracuja definição essencial não temos, por agora, conceituação humana.Notan<strong>do</strong> minha estranheza Aniceto colocou-me a destra na fronte,transmitin<strong>do</strong>-me vigoroso influxo magnético, e acentuou:— Repare a máquina divina <strong>do</strong> homem, o tabernáculo sagra<strong>do</strong> que oSenhor permitiu se formasse na Terra para sublime habitação temporária <strong>do</strong>espírito. Agora, André, não está você diante duma demonstração anatômica daciência terrestre, examinan<strong>do</strong> carne morta e músculos enrijeci<strong>do</strong>s. Observeagora! O olho mortal não poderá contemplar o que se encontra à sua vistan<strong>este</strong> instante. O microscópio é ainda pobre, não obstante representar umanobre conquista para a limitada visão humana.


A coop<strong>era</strong>ção magnética <strong>do</strong> queri<strong>do</strong> mentor modificara a cena e fuicompeli<strong>do</strong> a concentrar todas as minhas energias, a fim de não inutilizar aobservação pelo golpe <strong>do</strong> espanto.A luz mental, embora fosca, tornara-se mais nítida e o corpo <strong>do</strong>moribun<strong>do</strong> agigantou-se, oferecen<strong>do</strong>-me espetáculo surpreendente aos olhosansiosos. Parecia-me o corpo, agora, maravilhosa usina nos mais íntimosdetalhes. O quadro científico <strong>era</strong> simplesmente estupefativo. Identificava, emgrandes proporções, os nove sistemas de órgãos da máquina humana; oarcabouço ósseo, a musculatura, a circulação sanguínea, o aparelho depurificação <strong>do</strong> sangue consubstancia<strong>do</strong> nos pulmões e nos rins, o sistemalinfático, o maquinismo digestivo, o sistema nervoso, as glândulas hormonais eos órgãos <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s. Tal revelação histológica <strong>era</strong> diferente de tu<strong>do</strong> que eupoderia sonhar nos meus trabalhos de medicina. A circulação <strong>do</strong> sanguesemelhava-se a movimento de canais vitaliza<strong>do</strong>res daquele pequeno mun<strong>do</strong> deossos, carne, água e resíduos. Milhões de organismos microscópicos iam evinham na corrente empobrecida de glóbulos vermelhos. Presenciava apassagem de formas esquisitas, à maneira de minúsculas embarcaçõescarregadas de bactérias mortíf<strong>era</strong>s. Elementos maiores da flora microbianatransformavam-se em pequeninos barcos hospedan<strong>do</strong> f<strong>era</strong>s minúsculas, ascentenas. Invadiam to<strong>do</strong>s os núcleos organiza<strong>do</strong>s. Os órgãos, como ospulmões, o fíga<strong>do</strong> e os rins, estavam sen<strong>do</strong> assalta<strong>do</strong>s, irremediavelmente, porincalculável quantidade de sabota<strong>do</strong>res infinitesimais. E à medida que seconsolidavam os micróbios invasores, em determinadas regiões celulares,alguma coisa se destacava, lentamente, da zona atacada, como se um moldesempre novo fosse expulso da forma gasta e envelhecida, reconhecen<strong>do</strong> eu,desse mo<strong>do</strong>, que a desencarnação se op<strong>era</strong>va através de processo parcial,facultan<strong>do</strong>-me ilações preciosas. Reparei que algumas glândulas faziamdesesp<strong>era</strong><strong>do</strong> esforço para enviar aos centros invadi<strong>do</strong>s determinadas porçõesde hormônios, que <strong>era</strong>m incontinente absorvi<strong>do</strong>s pelos elementos letais. Oplasma sanguíneo figurava-se líqui<strong>do</strong> estranho e gangrenoso.Pela excessiva movimentação da onda mental, observei que omoribun<strong>do</strong> tentava readquirir a direção <strong>do</strong>s fenômenos orgânicos, mas em vão.To<strong>do</strong>s os complexos celulares atritavam entre si e as bactérias pareciam gozaro direito de multiplicação crescente e festiva.— Está ven<strong>do</strong> a máquina divina, formada pelo molde espiritualpreexistente? — perguntou Aniceto, compreenden<strong>do</strong>-me a profundaadmiração. O corpo <strong>do</strong> homem encarna<strong>do</strong> é um tabernáculo e uma bênção.Nesta hecatombe angustiosa de uma existência, pode você reparar que to<strong>do</strong>sos movimentos <strong>do</strong> corpo estão subordina<strong>do</strong>s à administração da mente. Oorganismo vivo, André, representa uma conquista laboriosa da Humanidadeterrestre, no quadro de concessões <strong>do</strong> Eterno Pai. Pode você, agora, identificaros movimentos da matéria viva. Cada órgão é um departamento autônomo naesf<strong>era</strong> celular, subordina<strong>do</strong> ao pensamento <strong>do</strong> homem. Cada glândula é umcentro de serviços ativos. Há muita afinidade entre o corpo físico e a máquinamoderna. São ambos impulsiona<strong>do</strong>s pela carga de combustível, com adiferença de que no homem a combustão química obedece ao senso espiritualque dirige a vida organizada. É na mente que temos o governo dessa usinamaravilhosa. Não possuímos, aí, tão somente o caráter, a razão, a memória, adireção, o equilíbrio, o entendimento; mas, também, o controle de to<strong>do</strong>s osfenômenos da expressão corpórea. Na sede mental e, conseqüentemente, no


cérebro temos to<strong>do</strong>s os registros de distribuição <strong>do</strong>s princípios vitais aosnúcleos celulares, inclusive a água e o açúcar. Os centros metabólicos sãograndes oficinas de trabalho incessante. A mente humana, ainda queindefinível pela conceituação científica limitada, na Terra, é o centro de todamanifestação vital no planeta. Cada órgão, cada glândula, meu amigo, integrao quadro de serviço da máquina sublime, construída no molde sutil <strong>do</strong> corpoespiritual preexistente e, por isso mesmo, chegará o tempo em que a ciênciareconhecerá qualquer abuso <strong>do</strong> homem como ofensa causada a si mesmo. Ausina humana é repositório de forças elétricas de alto teor construtivo oudestrutivo. Cada célula é minúsculo motor, trabalhan<strong>do</strong> ao impulso mental.Aniceto calou-se por momentos, e, enquanto eu via, aterra<strong>do</strong>, os maisestranhos fenômenos microbianos no corpo <strong>do</strong> moribun<strong>do</strong>, volveu ele à palavraeducativa:— Vemos aqui um irmão no momento da retirada. Repare aincapacidade dele para governar as células em conflito. A corrente sangüíneatransformou-se em veículo de invasores mortíferos, que não encontraramqualquer fortificação na defensiva. Observe e identificará milhões de unidadesda tuberculose, da lepra, da difteria, <strong>do</strong> câncer, que até agora estavam contidasnos porões da atividade fisiológica, pela defesa organizada, e que semultiplicam assusta<strong>do</strong>ramente, de par com outros micróbios tão prolíferos quãoterríveis. A nutrição foi interrompida. Não há possibilidade de novossuprimentos hormonais. O agonizante retrai-se aos poucos e ainda nãoaban<strong>do</strong>nou totalmente a carne, por falta de educação mental. Vê-se peloexcesso de intemp<strong>era</strong>nça das células, sobre as quais não exerce nem mesmoum controle parcial, que <strong>este</strong> homem viveu bem distante da disciplina de simesmo. Seus elementos fisiológicos são demasiadamente impulsivos,atenden<strong>do</strong> muito mais ao instinto que ao movimento da razão concentrada. Afalar verdade, <strong>este</strong> nosso amigo não se está desencarnan<strong>do</strong>, está sen<strong>do</strong>expulso da divina máquina, onde, pelo que vemos, não parece ter preza<strong>do</strong>bastante os sublimes <strong>do</strong>ns de Deus.L - A desencarnação de Fernan<strong>do</strong>Quan<strong>do</strong> Aniceto retirou a destra da minha fronte, perdi a possibilidadede prosseguir nas observações <strong>do</strong> infinitesimal. Minha visão abrangia minúciasmuito importantes ao interesse comum; entretanto, estava longe daquele poderde apreensão que me transmitira o mentor amigo, ao contacto <strong>do</strong> seu eleva<strong>do</strong>potencial magnético.Centralizan<strong>do</strong> minhas energias visuais, o sistema ósseo, o sangue, osteci<strong>do</strong>s, os tumores, ainda via, mas aquelas batalhas microscópicas haviamdesapareci<strong>do</strong> como por encanto. De qualquer mo<strong>do</strong>, porém, minha surpresa<strong>era</strong> enorme, porque agora identificava, em mim mesmo, a potencialidade <strong>do</strong>raio X.Aniceto, depois de proporcionar a Vicente o mesmo estu<strong>do</strong>,movimentava providências novas.No aposento, conservava-se determina<strong>do</strong> número de parentes aflitos.Um médico encarna<strong>do</strong> examinava o moribun<strong>do</strong>, com atenção.Foi aí que as duas entidades que se mantinham no quarto, e queapenas nos haviam dispensa<strong>do</strong> a usual saudação, se aproximaram <strong>do</strong> nossoinstrutor, solicitan<strong>do</strong>-lhe uma coop<strong>era</strong>ção mais enérgica.


— Por favor, nobre amigo — disse a irmã que havia si<strong>do</strong> genitora <strong>do</strong>moribun<strong>do</strong> —, ajude-nos a retirar meu pobre filho <strong>do</strong> corpo esgota<strong>do</strong>. Hámuitas horas, estamos à esp<strong>era</strong> de alguém que nos possa auxiliar n<strong>este</strong>transe. Tenho procura<strong>do</strong> confortá-lo, mas em vão! — acentuou a nobresenhora em tom lastimoso — ele continua num esta<strong>do</strong> de incompreensão<strong>do</strong>lorosa e terrível. Está absolutamente preso às sensações de sofrimentofísico, como <strong>este</strong>ve liga<strong>do</strong>, no curso da existência, às satisfações <strong>do</strong> corpo.Aniceto concor<strong>do</strong>u, acrescentan<strong>do</strong>:— Notam-se, de fato, grandes lacunas na expressão mental <strong>do</strong>moribun<strong>do</strong>. Vê-se que atravessou a vida humana obedecen<strong>do</strong> mais ao instintoque à razão. Observam-se-lhe no mun<strong>do</strong> celular vastos complexos deindisciplina. Poderemos, contu<strong>do</strong>, ajudá-lo a desvencilhar-se <strong>do</strong>s laços maisfortes, no que se refere ao círculo carnal.— Será um cari<strong>do</strong>so obséquio — redargüiu a genitora, aflita.— A irmã está incumbida de encaminhá-lo? — perguntou o instrutor,compreenden<strong>do</strong> a magnitude da tarefa. — Precisamos pond<strong>era</strong>r, quanto a isto,porque o desprendimento integral se verificará dentro de poucos minutos.Ela esboçou um gesto triste e respondeu:— Desejaria sacrificar-me ainda um pouco por meu desventura<strong>do</strong>Fernan<strong>do</strong>, mas apenas obtive permissão para socorrê-lo nos seus últimosinstantes. Meus superiores prometem ajudá-lo, mas aconselharam-me a deixáloentregue a si mesmo durante algum tempo. Fernan<strong>do</strong> precisa reconsid<strong>era</strong>r opassa<strong>do</strong>, identificar os valores que, infelizmente, desprezou. As lágrimas e osremorsos, na solidão <strong>do</strong> arrependimento, serão porta<strong>do</strong>res de calma ao seuespírito irrefleti<strong>do</strong>. Grande é o meu desejo de conchegá-lo ao coração,regressan<strong>do</strong> aos dias que já se foram; todavia, não posso prejudicar, com aminha ternura materna, a marcha <strong>do</strong> serviço divino. Fernan<strong>do</strong>, em verdade, éfilho <strong>do</strong> meu afeto; contu<strong>do</strong>, tanto ele como eu, temos contas com a Justiça <strong>do</strong>Eterno e, no que respeita a mim, estou cansada de agravar os meus débitos.Não devo contrariar os desígnios de Deus.A essa altura <strong>do</strong> diálogo, interveio o clínico espiritual que nosencaminhara até ali, informan<strong>do</strong>, atencioso:— Nossa amiga tem razão. Fernan<strong>do</strong> não poderá acompanhá-la, mastão nobre tem si<strong>do</strong> a intercessão materna que tenho instruções para conduzi-loa lugar seguro, a uma casa de socorro, onde poderá colher o melhor proveito<strong>do</strong> sofrimento, porquanto será asila<strong>do</strong> em zona vibratória inacessível asinfluências inferiores e criminosas, embora situada em regiões baixas.— Já sei — murmurou Aniceto com grave entono — trata-se de medidamuito acertada.Em seguida, acentuou como quem não tinha tempo a perder:— A aflição <strong>do</strong>s familiares encarna<strong>do</strong>s, aqui presentes, poderádificultar-nos a ação. Observem como to<strong>do</strong>s eles emitem recursos magnéticosem benefício <strong>do</strong> moribun<strong>do</strong>.De fato, uma rede de fios cinzentos e fracamente ilumina<strong>do</strong>s parecialigar os parentes ao enfermo, quase morto.— Tais socorros — tornou Aniceto — são agora inúteis para devolverlheo equilíbrio orgânico. Precisamos neutralizar essas forças, emitidas pelainquietação, proporcionan<strong>do</strong>, antes de tu<strong>do</strong>, a possível serenidade à família.E, aproximan<strong>do</strong>-se ainda mais <strong>do</strong> agonizante, tomou a atitude <strong>do</strong>magnetiza<strong>do</strong>r, exclaman<strong>do</strong>:


— Modifiquemos o quadro <strong>do</strong> coma.Após alguns minutos em que nosso mentor op<strong>era</strong>va, secunda<strong>do</strong> pelonosso respeitoso silêncio, ouvimos o médico encarna<strong>do</strong> anunciar aos parentes<strong>do</strong> moribun<strong>do</strong>:— Melhoram os prognósticos. A pulsação, inexplicavelmente, estáquase normal. A respiração tende acalmar-se.Três senhoras suspiraram aliviadas.— Dona Amanda — dirigiu-se o assistente à esposa <strong>do</strong> moribun<strong>do</strong> —convém que vá repousar, levan<strong>do</strong> as suas cunhadas. O senhor Fernan<strong>do</strong> estámuito tranqüilo e a situação é francamente favorável. Ficaremos velan<strong>do</strong>, osenhor Januário e eu.As senhoras e mais <strong>do</strong>is cavalheiros, que se prontificavam a retirar,agradec<strong>era</strong>m satisfeitos e comovi<strong>do</strong>s. Permanec<strong>era</strong>m no aposento somente omédico e um irmão <strong>do</strong> agonizante. A melhora mórbita tranqüilizara a to<strong>do</strong>s. E,aos poucos, os fios cinzentos que se ligavam ao enfermo desaparec<strong>era</strong>m semdeixar vestígios.— Abramos a janela — disse o médico satisfeito — o ar talvez acelereas melhoras <strong>do</strong> nosso amigo.O senhor Januário atendeu, abrin<strong>do</strong> a ampla vidraça.Fundamente espanta<strong>do</strong>, reparei que três rostos horríveis pelaexpressão diabólica surgiram, de repente, no peitoril, e interrogaram em vozalta:— Como é? Fernan<strong>do</strong> vem ou não vem?Ninguém respondeu. Notei, porém, que Aniceto lhes dirigiu significativoolhar, compelin<strong>do</strong>-os, tão rápi<strong>do</strong> com essa medida. Meia hora passou, dentroda qual o médico e o senhor Januário, quase despreocupa<strong>do</strong>s <strong>do</strong> agonizante,pelas melhoras havidas, encetaram uma conversação animada, relativamentea problemas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.Aproveitou Aniceto a serenidade ambiente e começou a retirar o corpoespiritual de Fernan<strong>do</strong>, desligan<strong>do</strong>-o <strong>do</strong>s despojos, reparan<strong>do</strong> eu que iniciara aop<strong>era</strong>ção pelos calcanhares, terminan<strong>do</strong> na cabeça, a qual, por fim, pareciaestar preso o moribun<strong>do</strong> por extenso cordão, tal como se dá com os nasciturosterrenos. Aniceto cortou-o com esforço. O corpo de Fernan<strong>do</strong> deu umestremeção, chaman<strong>do</strong> o médico humano ao novo quadro. A op<strong>era</strong>ção nãofora curta e fácil. Demorara-se longos minutos, durante os quais fez o nossoinstrutor empregar to<strong>do</strong> seu o cabedal de sua atenção e talvez de suasenergias magnéticas.A família <strong>do</strong> morto, informada pelo senhor Januário, aflita penetrou noquarto, rui<strong>do</strong>samente.A genitora <strong>do</strong> desencarna<strong>do</strong>, porém, auxiliada por Aniceto e pelofacultativo espiritual que nos levara até ali, prestou ao filho os socorrosnecessários. Dai a instantes, enquanto a família terrena se debruçava empranto sobre o cadáver, a pequena expedição constituída por três entidades, asduas senhoras e o clínico, saía conduzin<strong>do</strong> o desencarna<strong>do</strong> ao Instituto deassistência, reparan<strong>do</strong> eu, contu<strong>do</strong>, que não saíam utilizan<strong>do</strong> a volitação, mascaminhan<strong>do</strong> como simples mortais.Sentia-me fortemente impressiona<strong>do</strong>. Intrigava-me, sobretu<strong>do</strong>, oaparecimento daqueles rostos satânicos quan<strong>do</strong> se abrira a janela. Porquesemelhante menosprezo a um agonizante?


Retiran<strong>do</strong>-nos da residência, o instrutor me fitou atento, e, antes queformulasse qualquer pergunta, esclareceu:— Não se preocupe tanto, André, com os vagabun<strong>do</strong>s que esp<strong>era</strong>vamnosso irmão infeliz. Só não penetraram na câmara de <strong>do</strong>r porque a nobrepresença maternal impedia tal assédio.E, depois de calar-se por momentos, acrescentou:— Cada criatura, na vida, cultiva as afeições que prefere. Fernan<strong>do</strong>estimava os companheiros desregra<strong>do</strong>s. Não é, pois, estranhável, que tenhamvin<strong>do</strong> esperá-lo na estação de volta à existência real. Pauto de Tarso, nocapítulo 12 da Epístola aos Hebreus, disse que o homem está cerca<strong>do</strong> de umagrande “nuvem de t<strong>este</strong>munhas”. Ora, essa informação foi endereçada aoespírito humano há quase vinte séculos. Cada um, pois, tem o séqüito invisívela que se devota na Terra. Mais tarde, quan<strong>do</strong> a coletividade apreender agrandeza das lições evangélicas, to<strong>do</strong> homem terá cuida<strong>do</strong> na escolha de suast<strong>este</strong>munhas.LI - Nas despedidasDepois de outras atividades espirituais, fin<strong>do</strong>u a semana de serviço aque Aniceto nos admitira em sua companhia.Seguíramos o nobre instrutor, através de tarefas variadas e complexas.Sedia<strong>do</strong>s no templo acolhe<strong>do</strong>r de Isabel, atendêramos a considerável númerode <strong>do</strong>entes, bem como a irmãos outros perturba<strong>do</strong>s, abati<strong>do</strong>s, transvia<strong>do</strong>s emoribun<strong>do</strong>s. Nosso orienta<strong>do</strong>r tinha, para to<strong>do</strong>s os casos, maravilhososrecursos de improvisação, sempre atencioso e otimista.Aqueles poucos dias de trabalho novo ench<strong>era</strong>m-me o cérebro d<strong>era</strong>ciocínios novos e o coração de sentimentos que até então desconhec<strong>era</strong>.Ao contacto das revelações de Aniceto, nos <strong>do</strong>mínios da eletricidade e<strong>do</strong> magnetismo, reformara to<strong>do</strong>s os meus antigos conhecimentos de medicina.A ascendência mental no equilíbrio orgânico, as forças radioativas, o campodas bactérias, a visão mais ampla da matéria organizada, compeliam-me anova conceituação científica na arte de curar os corpos enfermos.Alargara-se, sobretu<strong>do</strong>, em minhalma, o entendimento acerca <strong>do</strong>Médico Divino que restabelece a saúde <strong>do</strong> Espírito imortal. A claridadeextensa, que me felicitava agora o espírito, fornecia mais largo conhecimentode Jesus. Compreendi, então, que a fé não constitui uma afirmativa de lábios,nem uma adesão de ordem estatística. Procurá-la-ia, em vão, na esf<strong>era</strong>sectária, nas disputas vulgares, nos cultos exteriores alteráveis to<strong>do</strong>s os dias.Era, sim, uma fonte dágua viva, nascen<strong>do</strong> espontaneamente em minha alma.Traduzia-se em reverência profunda, aliada ao mais alto conceito de serviço eresponsabilidade, diante das sublimes concessões <strong>do</strong> Eterno Pai. Encontraraum tesouro inacessível à destruição e um bem intransferível, por nasci<strong>do</strong> econsolida<strong>do</strong> em mim mesmo.Quan<strong>do</strong> o Instrutor nos convi<strong>do</strong>u a regressar, sentia-me positivamenteoutro. Guardava a impressão de haver encontra<strong>do</strong> as notícias diretas <strong>do</strong>Senhor Jesus na descoberta <strong>do</strong> meu próprio mun<strong>do</strong> interior.Como poderia pagar ao prestimoso Aniceto semelhante capitalizaçãode bens imortais?Havia termina<strong>do</strong> o serviço de orações, na última reunião semanal daresidência de Isi<strong>do</strong>ro e Isabel.


Os trabalhos, sempre ativos, haviam representa<strong>do</strong> esf<strong>era</strong> deobservações e experiências sempre novas.Grande número de amigos de Aniceto acercaram-se <strong>do</strong> instrutor,ansiosos por partilharem a luz da conversação de despedidas.O devota<strong>do</strong> orienta<strong>do</strong>r oferecia a to<strong>do</strong>s a sua palavra de bom ânimo,otimismo, alegria e confiança no Senhor, como um príncipe de legenda, cujaboca fosse fonte inesgotável de ouro espiritual.Vicente e eu tínhamos os olhos úmi<strong>do</strong>s, desejosos de externar-lheverbalmente nosso reconhecimento pelas bênçãos recolhidas; mas, ao nosaproximarmos, o abnega<strong>do</strong> orienta<strong>do</strong>r sorriu e antecipou:— Agradeçam a Jesus pelo muito que nos tem da<strong>do</strong>.E toman<strong>do</strong> a Bíblia, como interessa<strong>do</strong> em fixar o assunto g<strong>era</strong>l no amoràs coisas santificadas, leu em voz alta, no capítulo segun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Provérbios deSalomão.— “Filho meu, se aceitares as minhas palavras e guardares contigo osmeus mandamentos, para fazeres atento à sabe<strong>do</strong>ria o teu ouvi<strong>do</strong> e parainclinares o teu coração ao entendimento; e se clamares por entendimento, epor inteligência alçares a tua voz, se como a prata a buscares e como atesouros ocultos a procurares, então entenderás o temor <strong>do</strong> Senhor, e acharáso conhecimento de Deus.” (1) (Provérbios,2:1-5.-Nota <strong>do</strong> autor espiritual).Deixou em seguida o <strong>livro</strong> sagra<strong>do</strong> sobre a mesa, e sentenciou:— Lembremo-nos <strong>do</strong> Senhor em nossas despedidas. Ratifiquemos,irmãos, nossos compromissos de trabalho e t<strong>este</strong>munho. Em tão pequenotrecho <strong>do</strong>s Provérbios encontramos muitos verbos que interessam os espíritoscristãos. Aceitar os mandamentos divinos e guardá-los, tornar o ouvi<strong>do</strong> atento eo coração esclareci<strong>do</strong>, pedir entendimento e inteligência alçan<strong>do</strong> a voz acima<strong>do</strong>s objetivos inferiores, buscar os tesouros <strong>do</strong> Cristo e procurar-lhe o programade serviços, representa o esforço nobre daquele que, de fato, deseja a DivinaSabe<strong>do</strong>ria. Não esqueçamos esses deveres.Como a pausa se fizesse mais longa, um Irmão rogou ao queri<strong>do</strong> amigoprosseguisse na interpretação <strong>do</strong> texto, mas Aniceto replicou em tom fraternal:— Por agora, meu Irmão, não é mais possível. Outras obrigações noschamam de longe.E, dirigin<strong>do</strong>-se particularmente a Vicente e a mim, acentuou:— Já que voltaremos pela estrada comum, poderemos esp<strong>era</strong>r pornossa amiga Isabel, para apresentar-lhe nossos agradecimentos e despedidas.Daí a momentos, a nobre companheira de Isi<strong>do</strong>ro, aban<strong>do</strong>nan<strong>do</strong> ocorpo ao repouso <strong>do</strong> sono veio até nós, junto <strong>do</strong> esposo espiritual, atenden<strong>do</strong>ao convite mental <strong>do</strong> nosso dedica<strong>do</strong> orienta<strong>do</strong>r. Aniceto exprimiu-lhe profun<strong>do</strong>reconhecimento, falou-lhe da nossa alegria, das oportunidades santas <strong>do</strong>serviço que a bondade divina nos havia proporciona<strong>do</strong>.Dona Isabel agradeceu, comovidamente, deixan<strong>do</strong> transparecer aslágrimas da gratidão que lhe <strong>do</strong>minava o espírito.— Nobre Aniceto — disse enxugan<strong>do</strong> os olhos —, se for possível, voltaisempre ao nosso modesto lar. Ensinai-me a paciência e a coragem, generosoamigo! Quan<strong>do</strong> puderdes, não me deixeis transviar nos deveres de mãe, tãodifíceis de cumprir na carne, onde os interesses menos dignos se entrechocamcom violência. Amparai-me as obrigações de serva <strong>do</strong> Evangelho de nossoSenhor! Por vezes, profundas saudades da família espiritual me dilac<strong>era</strong>m ocoração... desejaria arrebatar meus filhos esf<strong>era</strong> superior, incliná-los ao bem,


para que a nossa união divina não tarde nos planos mais altos da vida. E essassaudades de “Nosso Lar” me pungem a alma, ameaçan<strong>do</strong>, por vezes, minhatarefa humilde na Terra. Nobre Aniceto, não vos esqueçais desta amiga pobree imperfeita. Sei que Isi<strong>do</strong>ro me segue passo a passo, mas ele e euprecisamos de amigos fortes na fé, como vós, que nos reavive o bom ânimo najornada <strong>do</strong>s deveres cristãos!...A irmã Isabel não pôde continuar, porque o pranto lhe embargara a voz.Aniceto, de olhos brilhantes e serenos, enlaçou-a como pai e faloubrandamente:— Isabel, segue em teus t<strong>este</strong>munhos e não temas. Estaremos contigo,agora e sempre. Muitas criaturas admiráveis tiv<strong>era</strong>m a tarefa, mas nãoesqueçamos, filha, que Jesus teve a tarefa e o sacrifício no mun<strong>do</strong>. Não nosfaltará no caminho redentor o terno cuida<strong>do</strong> <strong>do</strong> Guia Vigilante. Tem bom ânimoe caminha!Em seguida, olhan<strong>do</strong>-nos a to<strong>do</strong>s, de frente, o nobre amigo exclamou:— Agora, irmãos, auxiliem-me a orar!E conservan<strong>do</strong> Isabel e Isi<strong>do</strong>ro, uni<strong>do</strong>s ao seu coração, Aniceto fixou osolhos no alto e falou com sublime beleza.“Senhor, ensina-nos a receber as bênçãos <strong>do</strong> serviço! Ainda nãosabemos, Ama<strong>do</strong> Jesus, compreender a extensão <strong>do</strong> trabalho que nosconfiaste! Permite, Senhor, possamos formar em nossa alma a convicção deque a Obra <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> te pertence, a fim de que a vaidade não se insinue emnossos corações com as aparências <strong>do</strong> bem!Dá-nos, Mestre, o espírito de consagração aos nossos deveres edesapego aos resulta<strong>do</strong>s que pertencem ao teu amor!Ensina-nos a agir sem as algemas das paixões, para quereconheçamos os teus santos objetivos!Senhor amorável, ajuda-nos a ser teus leais servi<strong>do</strong>res,Mestre Amoroso, concede-nos, ainda, as tuas lições,Juiz Reto, conduze-nos aos caminhos direitos,Médico Sublime, restaura-nos a saúde,Pastor Compassivo, guia-nos à fonte das águas vivas,Engenheiro Sábio, dá-nos teu roteiro,Administra<strong>do</strong>r Generoso, inspira-nos a tarefa,Semea<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Bem, ensina-nos a cultivar o campo de nossas almas,Carpinteiro Divino, auxilia-nos a construir nossa casa eterna,Oleiro Cuida<strong>do</strong>so, corrige-nos o vaso <strong>do</strong> coração,Amigo Desvela<strong>do</strong>, sê indulgente, ainda, para com as nossas fraquezas,Príncipe da Paz, compadece-te de nosso espírito frágil, abre nossosolhos e mostra-nos a estrada de teu Reino!”Aniceto calou-se comovi<strong>do</strong>, e, de olhos úmi<strong>do</strong>s, conten<strong>do</strong> a custo aslágrimas <strong>do</strong> meu reconhecimento, incorporei-me à nobre caravana que seguiriaconosco de regresso a “Nosso Lar”.Fim

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