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Ano 7, n. o 7, 2010MINISTÉRIO DA SAÚDEFUNDAÇÃO OSWALDO CRUZBrasília – DF2011


SUMÁRIOEditorialAntonio Ivo de Carvalho ............................................5Percepções sobre a sexualidade nacidade de Maputo, MoçambiqueMargarida Paulo.............................................................7Teias da Saúde: desigualdades de saúde,saúde das desigualdadesMaria Engrácia Leandro............................................17“Você é de onde?”: a definição daidentidade a partir da noção de “origens”Elsa Ramos.............................................................. 33Território Integrado de Atenção à Saúde: a experiênciado TEIAS Escola Manguinhos como um novo modelo deatenção e gestão na garantia do direito à saúdeAdriana Coser Gutiérrez, Elyne Engstrom eGastão Wagner de Sousa Campos......................................39Direitos Humanos na Cidade dosExcluídos: Estratégia de cidadaniaGina Ferreira........................................................................53Primeira infância em Moçambique, constatações e desafiosCarla Ladeira.............................................................................75Direitos Humanos e Saúde: possibilidades e desafiosMiriam Ventura..........................................................................87“De quem é a responsabilidade do cuidado?” O papelde mulheres no processo de desinstitucionalizaçãoda pessoa em sofrimento psíquicoRachel Gouveia Passos...............................................................101A construção das intervenções educativas emsaúde junto à pobrezaJoão Vinicius dos Santos Dias e Jaqueline Ferreira......................... 123Comunidades locais na Promoção da Saúde: reflexões emtorno da implementação de medidas de descentralizaçãono sector rural de águas e saneamento em MoçambiqueRehana Dauto Capurchande .......................................................... 131


desafios e críticas se mesclam na análise que a autorafaz sobre o modelo de organização política fundadana cultura dos direitos humanos. Assim é que o cuidare o cuidador daquele que sofre volta às páginas da revistaatravés do texto da Rachel que persiste chamandoatenção para a feminização do cuidado e da necessidadede se debater essa prática na perspectiva das relaçõesde gênero.A pobreza é o pano de fundo dos artigos de Jaquelinee João, e Rehana. Brasil e Moçambique se aproximam nadiscussão que as autoras e autor fazem seja na ótica daeducação para a saúde seja na participação em ConselhosComunitários.Lúcia, Irene, e Neli completam os artigos desta ediçãotrazendo, mais uma vez, à luz a criança e o jovem. Primeiro,às tensões incorporadas nas leis que regulam a convivênciaentre crianças e adultos e a problematização do ordenamentojurídico, como a referência última da ética da convivência social.Em seguida, e por fim, a atenção à criança e ao adolescentecom deficiência que gira em torno do confinamento e do acolhimentoquando a institucionalização é questionada.Esperamos que esta edição leve o leitor à reflexão e aoaprofundamento de outras temáticas, mas na certeza de que odireito à saúde é um direito humano inalienável.Boa Leitura!Antônio Ivo de CarvalhoDiretor da Escola Nacional de SaúdePública Sergio Arouca /Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz)


Margarida PauloIntroduçãoEste artigo apresenta o resumo dos resultados deum capítulo de uma pesquisa realizada no contexto doMestrado em Antropologia Social na Universidade doCabo, na África do Sul, em 2004. O artigo procura trazeras percepções dos jovens residentes no bairro da Mafalala2 em relação à sexualidade e ao aborto. Os dados foramrecolhidos a partir de histórias de vida segundo Goodson(2001), De Queiroz et al. (1988) e Thomas & Znaniecki(1958 [1863-1947]) e da observação participante, comoBernard (1995) e Silverman argumentam (1993).De 1988, quando iniciaram as propagandas de prevençãocontra o Vírus de Imunodeficiência Humana (VIH)/Síndrome de Imunodeficiência Adquirida, (SIDA) a 2011 foramrealizados mais de 100 programas de educação sexualdos quais 70 com enfoque para prevenção do VIH/SIDA e 30programas sobre comportamentos, atitudes e práticas. Todosos programas argumentam que prover educação sexual aosjovens vai reduzir os riscos de infecção por doenças sexuais. Noentanto, o aumento do VIH/SIDA na cidade de Maputo faz-mepensar sobre a eficácia dos programas de educação sexual queparecem não contribuir para a consciencialização dos jovenspara se prevenirem usando o preservativo.O aumento de jovens infectados pelo VIH/SIDA na cidade deMaputo faz-me reflectir sobre os métodos até então usados, nosprogramas de educação sexual, na Mafalala para a prevenção doVIH/SIDA e outras doenças sexualmente infecciosas. O aumentode jovens infectados por VIH/SIDA também leva-me a questionaras razões que estão por detrás desse aumento, mesmo com a vastainformação existente sobre o uso do preservativo.2. Discussão TeóricaOs debates sobre a sexualidade tendem a ser polarizados àvolta de duas perspectivas. A primeira perspectiva é a da visão pós--estruturalista que sustenta que não há algo que se compare com asexualidade. A segunda perspectiva argumenta que as práticas sexuaisnão podem ser universais. As mesmas devem ser enquadradas nosseus contextos. No entanto, existem, também, várias discussões sobrea sexualidade oriundas de diferentes fontes como: biologia, culturapopular, religião entre outros.2Localizado no Distrito Urbano Nº 3 KaMaxaquene.8


Margarida PauloO artigo de Manuel é interessante para esta discussãoporque fala sobre alunos (jovens, vivendo na cidadede Maputo); assunto que também me proponho analisar.No entanto, o estudo apresenta alguns constrangimentosna aplicação do método de grupos focais, que pode terinfluenciado os alunos a compartilharem experiências sexuais,que lhes põem em vantagem, com os outros.Da Cunha e Luísa (1997:10) examinaram a “mobilizaçãovisando a protecção de adolescentes e mãessolteiras de rua residentes em Maputo”. Estes autores argumentaramque a educação sexual foi útil para protegeros adolescentes de rua contra as doenças de transmissãosexual. Contudo, a lacuna deste estudo reside no facto deDa Cunha e Luísa não terem indicado as mudanças queocorreram nos adolescentes de rua depois de terem recebidoa educação sexual.Explorando a reacção dos jovens em relação à epidemiado VIH/SIDA, Arthur e Santos (1993) mostraram que osjovens estavam envolvidos em comportamentos de alto riscoporque iniciavam as actividades sexuais na puberdade do queantes, por exemplo: com a idade dos 12 anos em diante. Arthure Santos (1993: 5) argumentaram que os pais não forneciameducação sexual aos filhos, por isso, estes não eram orientadospara entender questões ligadas à sexualidade. Arthur e Santos(1993: 18) sugeriram que as mudanças de opinião das famíliasquanto aos seus filhos e à sexualidade mudariam a maneira comoos jovens reagiram à epidemia do VIH/SIDA.3. Percepções sobre SexualidadeDado o facto do conceito de sexualidade ser debatido pelosdiversos autores apresentados usando várias perspectivas, optei porperguntar aos jovens o que eles próprios entendiam por sexualidade,de modo a encontrar elementos para perceber como os jovensencaram a prevenção, principalmente no que diz respeito ao uso dopreservativo.Respondendo à pergunta: O que é sexualidade? Rapazes e raparigasentrevistados disseram:Sexualidade é normal, porque todos a praticam. Sexualidade é arelação sexual entre o homem e a mulher.Nesta afirmação a sexualidade é percebida como algo que é óbvio.Em outras palavras, não há realmente nenhuma necessidade de fazerperguntas sobre a sexualidade pois todos sabem o que ela significa.10


Percepções sobre a sexualidade na cidade de Maputo, MoçambiqueOutra afirmação revela:A sexualidade é um ciclo biológico que começaaos dezessete anos. É um acto que deve acontecer entreum homem e uma mulher.Arthur et al. (1993) e Manuel (2005) nos seus estudosmostram que os jovens iniciam relações sexuaismais cedo. Isso pode explicar a dimensão da pressãosocial a que os jovens passam para se tornarem adultos.A afirmação dos nossos entrevistados privilegia a relaçãosexual entre um homem e uma mulher o que os coloca numaesfera de entendimento de relacionamentos heterossexuais.Ainda outro argumento:Não sei o que dizer...A sexualidade está associada comsexo e prazer. Deve ser feita entre o homem e a mulher. Achoque sexo deve ser praticado com o seu próprio namorado (a).As raparigas que fazem sexo com mais de um parceiro sãoprostitutas.A percepção do nosso entrevistado sobre sexualidadeassocia sexo para o prazer e a confiança no parceiro. E seassim não acontecer, as raparigas, e não os rapazes, são estigmatizadas,apesar de ser extremamente complicado definir oslimites entre a prostituição e a promiscuidade. Segundo Daninos(1963:57) “as prostitutas são caracteres infantis instáveis que emgeral provêm de famílias dissociadas. No plano sexual são frígidasou tornam-se rapidamente frígidas”. A afirmação destes nossosúltimos entrevistados remete-nos ao estigma porque a sociedadeonde vivemos tem regras de conduta em que as pessoas podemnão se sentir à vontade com as mesmas.A discussão sobre a sexualidade, de acordo com os nossosentrevistados, levanta um outro aspecto: o do aborto, que a seguirvamos abordar.3.1. Sobre o abortoDas conversas tidas com os jovens, ficou evidente que as raparigasestavam mais preocupadas com o aborto do que os rapazes. Talvezporque a questão do aborto não afecte, directamente, aos rapazes. Oque se verifica no caso de uma rapariga engravidar e o rapaz e a suafamília não se sentirem capazes de assumir ou sustentar a gravidez, afamília da rapariga assume mesmo que isso signifique mais despesaspara a família da rapariga.11


Margarida PauloEmbora a gravidez seja a via pela qual as raparigasse tornam mulheres, algumas raparigas afirmaramque optaram pelo aborto provocado por causada decepção que tiveram com os namorados que nãoaceitam ser pais, mas que aceitam ter namoradas semfilhos. Quase todas as raparigas afirmaram já terem tidomais de dois abortos provocados. Estes abortos foramfeitos em casa, sozinhas ou com a ajuda de amigas. Asraparigas teriam ido ao hospital apenas para tratamentonos casos em que surgisse complicações.As raparigas falaram sobre dois tipos de aborto. Oprimeiro tipo de aborto é feito através de um golpe de uma“amiga confiada” às costas. Enquanto o segundo tipo deaborto é realizado, individualmente, quando ingerida cocamisturada com aspirina 3 , como explica uma das entrevistadas:Quando desconfio que estou grávida, por exemplo, nasduas primeiras semanas antes do fim do mês, conto a umaamiga confiada. Ela espera até que eu esteja distraída e entãome bate nas costas. No dia seguinte a menstruação desce.A nossa entrevistada acredita que o golpe de uma “amigaconfiada” pode ajudar a expulsar o feto. Embora a descrição danossa entrevistada levante algumas dúvidas de quão sério é ofacto de realizar aborto, isso mostra a importância de uma “amigaconfiada” na vida das raparigas e futuras mulheres. Amiga seriaalguém que estivesse disposta a compartilhar o problema atémesmo a responsabilizar-se pelas consequências negativas desseacto. O segundo tipo de aborto é descrito por outra entrevistada:Elas [as raparigas] põem uma garrafa de coca com uma aspirinaao sol até aquecê-la e logo que aquece bebe-se. Algumas vezes énecessário beber mais de duas cocas para se livrar mais rápido [dofeto].... Este tipo de aborto funciona quando a gravidez é de duassemanas [no máximo].A explicação da nossa segunda entrevistada sobre o aborto mostraque, apesar do aborto ser ilegal, este acto é praticado, clandestinamente,pelas raparigas, alegando falta de condições materiais e afectivas paramanter a gravidez. Sete das dez raparigas entrevistadas acreditam queos rapazes não estão preocupados com a gravidez porque encaram agravidez como um problema das mulheres. A situação do aborto é muitomais complexa do que a explicação que as raparigas apresentaram eprecisa de ser entendida com profundidade dada a delicadeza do assunto.Provavelmente, estas raparigas não tenham tido condições de negociar o3Não achei dados consistentes para sustentar esta prática. Não obstante, o que ficou claro é que ocorrem abortosna Mafalala, o que pode criar condições para o surgimento de cancro ou mesmo levar as raparigas à morte.12


Percepções sobre a sexualidade na cidade de Maputo, Moçambiqueuso do preservativo para a prevenção da gravidez edas doenças sexualmente infecciosas.Embora as raparigas tenham falado sobre oaborto, este assunto é encarado como tabu porque estácarregado de aspectos morais que a lei e a religião condenam.Ficou também claro que, apesar de serem subtis,as raparigas querem ser sexualmente livres, mas pareceque não têm conhecimentos básicos sobre a sexualidadee/ou não são encorajadas a aprender mais sobre a suaprópria sexualidade e a sexualidade dos rapazes. Essefacto pode ser surpreendente se nos lembrarmos que existemvários canais de informação desde as amigas, colegas,Internet e televisão onde as raparigas podem apreendere optar, por exemplo, pelos métodos de prevenção que seadequam a elas já que o importante mesmo é prevenir.Após ter apresentado as percepções sobre a sexualidadee do aborto entre os jovens residentes no bairro da Mafalala,a secção a seguir apresentará as conclusões do estudo.4. Considerações FinaisAs percepções sobre a sexualidade estão associadasàquilo que os jovens aprendem na família, na qual a relaçãosexual tem por finalidade a procriação. Poucos jovens falaramde relações sexuais para o prazer. Isto mostra que, na perspectivamédica, os indivíduos são vistos, primariamente, como entidadesbiológicas, negligenciando-se, desse modo, o aspecto social. Asexualidade tem uma função social antes de ser individual. Issoporque as percepções que os jovens têm sobre a sexualidade sãoalgo socialmente construídoAssim, os programas de educação sexual estão sendo ineficientesdevido a desconfianças e a incertezas da família nos programasde prevenção. As famílias sabem que doenças sexualmente infecciosasexistem e que podem ceifar vidas, mas porque os programasde educação sexual enfatizam o uso do preservativo, que limita aprocriação, contrastam com os anseios e a preocupação das famíliasde alargar a família.O aborto é uma prática perigosa, particularmente se realizadasem o acompanhamento de profissionais da saúde. Discussões sobre oaborto têm sido levantadas pelo Fórum Mulher, mas que ainda não têmtido um entendimento do que possa ser feito para apoiar as raparigas emulheres que se encontram em situações de fazer o aborto.13


Margarida PauloAgradecimentosAgradeço às seguintes instituições e individualidades:A CODESRIA (Council for the Development of SocialScience Research in Africa) por ter reconhecido o meutrabalho e financiado a pesquisa.Ao senhor José Daniel e senhor Carlos Manganhela,já falecido, na altura secretário e secretário adjunto dobairro da Mafalala, respectivamente, pelo apoio que meprestaram durante o trabalho de campo. À senhora MadalenaManjate, na altura chefe do Quarteirão n° 39, Célula‘C’ e membro da Organização da Mulher Moçambicana(OMM), pela paciência e carinho com que contava parte dahistória do bairro.À todos os jovens residentes no bairro da Mafalala, emparticular, aos jovens do grupo Machaca, que aceitaram partilharsuas experiências em relação à sexualidade e ao VIH/SIDA.Ao José Bambo, pela assistência no trabalho de campo,especialmente na entrevista com os rapazes. Ao Cardoso Tondolopela tradução do texto do Inglês para o Português.À Dra. Pércida Langa pela revisão do texto final.As opiniões expressas neste artigo são da inteira responsabilidadeda autora e não são necessariamente compartilhadas pelainstituição que financiou o mesmo.Referências BibliográficasArnfred, S. 2004. African sexuality/sexuality in Africa: Tales and silencesin Rethinking sexualities in Africa, pp. 59-76. Sweden: Almqvist& Wiksell Tryckeri.Arthur, J. e Santos, B. 1993. CAP entre os jovens escolares: As DTS’S,o Sida, o preservativo, a vida sexual e afectiva. Maputo: Ministério daSaúde.Da Cunha and Luisa M. 1997. Mobilization to Protect Homeless AdolescentCSW and Single Homeless Mothers in Maputo. Disponível no endereçoseguinte: www.aegis.com/pubs/aidsline/2003/dec/m03c0910.htmlDaninos, A. 1963. Prostituição in Sociologia das Relações Sexuais, pp.56-59. Publicações Europa América.14


Percepções sobre a sexualidade na cidade de Maputo, MoçambiqueDe Queiroz, M., Demartini, Z., Cipriani, R., andMacioti, M. 1988. Experimentos com histórias de vidain Enciclopédia aberta de Ciências Sociais, pp. 2-43.São Paulo: Vértice.Denzin, K. 1992. Symbolic interactionism and culturalstudies. Oxford: Blackwell. Foucault, M. 1992 (1979).Introduction in The history of sexuality 2. London: PenguinBooks.Gagnon, H. 1995. Conceiving sexuality approaches tosex research in Post modern World. New York: Routledge.Goodson, I. 2001. ‘The story of life history: Origins of thelife history method in sociology’ Identity: An internationaljournal of theory and research 1 (2): 129-142.Manuel, S. 2005. Obstacles to condom use among secondaryschool students in Maputo City Culture, Health & Sexuality7(3): 293-302.Thomas, W., and Znaniecki, F. 1958 (1863-1947). The Polishpeasant in Europe and America. New York: Dover Publications.Weeks, J. 1991 (1986). The social construction of sexuality, inSexuality, pp. 23-36. London & New York: Routledge.15


ArtigoTeias da Saúde: desigualdadesde saúde, saúde das desigualdadesMaria Engrácia Leandro** Prof. Catedrática de Sociologia do ICS da Universidadedo Minho e: mail: engrácia@ics.uminho.pt“Toda a pessoa tem direito a um nível de vida capazde assegurar a sua saúde, o seu bem-estar e o da suafamília, sobretudo a alimentação, o vestuário, a habitação,os cuidados médicos, bem como os serviços sociaisnecessários” Declaração Universal dos Direitos do Homem,artº 25.Resumo: Este trabalho, numa óptica reflexiva, examinaconcepções e realidades que transformam as desigualdadessociais em desigualdades de saúde, ao arrepio dos direitoshumanos. Apoiada na estratificação social, relações de gêneroe condições de vida das minorias, colocamos duas questõesfulcrais: a inscrição da desigualdade social nos corpos faz partede lógicas universais reproduzidas em toda a parte, ou constituiantes uma particularidade do mundo moderno, dado que as sociedadesantigas eram mais igualitárias e menos medicalizadas?Que mecanismos permitem inscrever a ordem social na ordembiológica, isto é, como é que as diferenças de estatuto social seexprimem em disparidades perante a saúde?Palavras-chave: condições sociais, desigualdades, dignidadehumana, saúde, trabalhoWeb of Health: health inequalities,health inequalitiesAbstract: From a reflective view, this work examines concepts andrealities that transform the social inequalities in health ones, defying thehuman rights. With the support of social stratification, gender relations,and living conditions of minorities, we bring up two key issues: Is theinscription of social inequality on the bodies part of universal logic playedeverywhere, or is it rather a modern world peculiarity, since the past societieswere more egalitarian and less medicalized? and What mechanismsallow inscribing the social order in the biological order, that is, how thedifferences in social status are expressed in disparities regarding health?Keywords: Social conditions, inequalities, human dignity, health, work17


Maria Engrácia LeandroIntroduçãoA preocupação humana com a saúde remonta atempos de antanho. Porém, só nos tempos modernos,com o alvorecer do iluminismo, a humanidade passoua investir de forma mais racional na melhoria da saúdee no combate à doença. Descartes (1628) insurge-secontra o ensino duma filosofia especulativa e preconizaantes uma outra que seja prática, permitindo conhecer oagir das forças da natureza e outros meandros da vida, talcomo se conhecem os ofícios dos artesãos, facultando aoshumanos tornarem-se “mestres e possuidores da natureza”.Dá, assim, muito mais força à racionalidade científicaacerca do corpo e da mente, da saúde e da doença, emboraHipócrates, nos finais do século IV a. C., com a sua célebreteoria dos humores, já tenha apontado nesse sentido.Ademais, a ideia segundo a qual a humanidade poderávencer a doença, ainda que continue sujeita à morte – qualcerteza das certezas - está fortemente imbricada no contextodas Luzes, projecto que tem vindo a persistir e a intensificar-se.Basta pensar como desde o século XIX as descobertas científicase tecnológicas se têm vindo a alargar e a intensificar, o que com amelhoria dos níveis de vida contribui para extraordinárias melhoriasda saúde. As sociedades ocidentais, no século XX, ganharamà morte cerca de 30 anos. Porém, países menos desenvolvidos nãoatingem, de modo algum, semelhantes patamares, o que é bemrevelador dos efeitos das profundas desigualdades internacionais.Outro tanto se diga da interferência das pertenças sociais, do género,dos fenômenos migratórios ou da pertença a outras minorias.As desigualdades sociais, sendo igualmente desigualdadesde saúde, são uma realidade universal e antiga, mas não tão visívelcomo nos tempos modernos. Todas as sociedades conhecidassão hierarquicamente ordenadas em função da idade, do sexo, doestatuto, da riqueza e, por cúmulo, legitimam estas disparidades emmitos fundadores, religiões, na ordem simbólica da natureza, inclusivena biologia, o que os trabalhos de Godelier (1982) e Héritier (1996),entre outros, atestam perfeitamente. Ademais, a progressão da esperançade vida e, concomitantemente, o crescimento das disparidadessociais perante a morte são constatadas desde o século XVII, isto é,muito antes da generalização das vacinas e das grandes descobertasbiológicas (Fassin, 2000).Com efeito, é a construção diferenciada das condições sociais deexistência que conduz à produção de desigualdades sociais de saúde:primeiro acentuadas com o desenvolvimento da urbanização e depoiscom o impulso do capitalismo (Patlagean, 1977; Védrenne-Villeneuve,18


Teias da Saúde: desigualdades de saúde, saúde das desigualdades1961). A industrialização, as formas de exploraçãoda classe operária e os fenômenos de segregaçãourbana exacerbam as disparidades em matéria desaúde, conduzindo a profundas desigualdades perantea morte, o que é veemente denunciado pelos higienistasdo século XIX. Destaca-se a intervenção de Villermé emFrança, Virchow na Alemanha, Chadwick na Inglaterrae Ribeiro Sanches em Portugal.As grandes transformações sócio-econômicas e amelhoria das condições de existência durante o séculoXX, permitindo melhorar os modos de vida, nem por issocontribuíram para diminuir as disparidades perante a saúde,a doença e a morte, ainda que o estado sanitário daspopulações ocidentais tenha melhorado bastante. Ao longodos últimos decênios, até, em nome das várias “crises” quetêm assolado as sociedades da modernidade inacabada,sobretudo desde a primeira crise petrolífera de 1973, asdesigualdades sociais têm-se acentuado. Fassin (1996), falada “civilização das desigualdades”.Não obstante, desde a Reforma à Filosofia das Luzes e aosnossos dias, a igualdade é um dos “deuses” da democracia, talcomo o mérito e os talentos são alguns dos “deuses” do capitalismo.Aliás, a cristologia primitiva, com cerca de 2000 anos,perfilha a igualdade de todos, uma nova justiça social (Mt. 5,20,25,34; Lc. 14,12), o que foi retomado por João XXIII (Encíclica“Pacem in Terris”, 1963), mas que continua a ser uma miragem. Éuma alquimia extensiva a todos os domínios da vida social desdeidades muito precoces com muitas repercussões sobre a saúde.Neste trabalho, de carácter mais teórico-analítico, teremosessencialmente em conta as gritantes desigualdades sociais quesão igualmente desigualdades perante a saúde, a doença, a vidae a morte, o que, acentuando-se, como vem acontecendo nas sociedadesda ultramodernidade, constitui um verdadeiro atentadocontra os direitos humanos. Aliás, uma leitura atenta da Declaraçãouniversal dos direitos do homem, permite-nos constatar que os vinteprimeiros artigos, incidindo sobre os direitos civis, sociais e políticos,destacam a liberdade do indivíduo e a sua segurança física. Mas paraque os desfavorecidos possam sair da situação em que se encontramnão basta um acto de vontade própria. Importa, sobretudo, mudar oolhar que a sociedade e as suas instituições projectam sobre eles. A referidadeclaração inspira-se de uma ética altruísta que respeite a vida,reconheça e consagre a diferença mas não a discriminação e se esforcepor promover a igualdade de oportunidades e a conquista da autonomiada pessoa através do exercício das suas responsabilidades, em correlaçãocom a sociedade, inclusive em termos de saúde.19


Maria Engrácia LeandroAs desigualdades sociais nas sociedadesmodernasAs sociedades modernas são atravessadas poruma contradição fundamental. Sendo democráticas,preconizam a igualdade para todos, em todo o casonum registo considerado essencial como a igualdade dedireitos, das liberdades ou ainda das oportunidades e dascapacidades. Mais recentemente tem sido dado ênfaseparticular à democracia sanitária. Todavia, constroem,incessantemente, formas de organização social, mercadosde trabalho, comercialização dos bens, hierarquias dosméritos e das competências, reais ou forjados, tendentes aaumentarem as desigualdades sociais que, sobretudo desdeo último quartel do século XX, se têm acentuado. É o que R.Boudon (1977) classifica de « efeitos perversos ». Dá comoexemplo privilegiado uma política de igualdade perante aescolarização que, não tendo em conta a redução das desigualdadessociais a partir da base, muito dificilmente poderáatingir os objectivos da tão propalada igualdade escolar erespectivo sucesso (Boudon, 1979).Tocqueville (1993 [1850]) identifica a modernidade e osentido da história com o “triunfo obstinado da igualdade”.Contudo, esta igualdade não é uma pura igualdade real dascondições de vida, mas apenas a extensão de um princípio, oda igualdade dos indivíduos para lá das desigualdades sociaisreais. Retira-se daqui o princípio segundo o qual as sociedadesmodernas são igualitárias tão só na medida em que estendem odireito à igualdade de oportunidades, o que na realidade levantamuitas questões, na medida em que a correlação entre igualdade edesigualdade dos estatutos sócio-econômicos é bastante complexa.É que a igualdade de direito nem sempre se traduz em igualdade defacto, devido às consequências das estruturas sociais. A contradiçãodas desigualdades “reais” e da igualdade de princípio ignora tambémas condições efectivas dos enredos e o facto das desigualdades nãoforjarem apenas as diferenças inter-individuais, mas a reproduçãosocial, pois cada geração herda as desigualdades da precedente edificilmente poderá ultrapassá-las. De maneira geral, o encontro entrea igualdade e o mérito agem como se os indivíduos nascessem todosdotados das mesmas condições sociais, as mesmas capacidades ou asmesmas possibilidades de atingirem os seus objectivos e de realizaremas suas aspirações, o que não corresponde de modo algum à realidade.Olhando para estas realidades, constamos que as sociedades industriaise liberais preconizaram, progressivamente, a passagem da igualdadejurídica para a igualdade política e depois para a igualdade social,insistindo também na igualdade de direitos perante a saúde. Pelo menos,20


Teias da Saúde: desigualdades de saúde, saúde das desigualdadesdevido à persistência e ao aumento das desigualdadesnas últimas décadas, têm procurado contê-las emdomínios aceitáveis, o que parece tornar-se cada vezmais problemático perante o seu agudizar. Por toda aparte, a conciliação entre eficácia econômica e justiçasocial têm suscitado muitas questões. As crises sócio--econômicas existentes, em grande parte desencadeadaspor individualismos exacerbados, põem cada vez maisem causa as políticas de solidariedade e de saúde quetêm vindo a ser seguidas. O certo é que as sociedadesmodernas permanecem aferrolhadas entre ideais igualitáriose as profundas disparidades que segregam entre oshumanos, acentuando o fosso entre ricos e pobres.Podemos, pois, afirmar que as desigualdades são processossociais, com mecanismos e experiências individuais ecolectivas, conduzindo a desigualdades e injustiças, por vezes“escandalosas” e anti-humanas. Porque para cada um de nósexistem desigualdades mais (in)toleráveis do que outras, nosgrupos de condição social modesta frequentemente as distânciasdos rendimentos (salários, prestações da segurança social,benefícios do capital social…) tendem ainda a acentuarem-se.Daí que o nosso “postulado”, com outros que trabalham sobreestas problemáticas, seja o de que as desigualdades perante asaúde e a doença, avaliadas concretamente a partir das taxasde morbilidade e de mortalidade, a frequência das deficiênciasmotoras ou perturbações mentais, a esperança e a qualidade devida, assentam igualmente nas desigualdades sociais.A questão crucial que daqui decorre tem que ver com a formacomo as desigualdades produzidas socialmente se exprimemno corpo, ou seja, com o modo como o social se inscreve no biológico,qual “genética ou natureza sociais” socialmente construídas.Situando-nos à escala de uma sociedade, levanta-se a questão dapertença social a certas categorias sócio-profissionais e a incidênciade doenças cardiovasculares, cancros, suicídios, lombalgias, tuberculose,depressões a que frequentemente ficam ainda mais sujeitos ostrabalhadores que exercem trabalhos duros, desgastantes, mal pagose desvalorizados, de sobremaneira os migrantes e outras minoriassimilares (Leandro et al., 2002, 2009a).Trata-se de desigualdades fundamentais na medida em que seprendem essencialmente com a “condição humana”, de que fala Arendt(1961, 111), ao afirmar “…que vivemos em condições tais que não estãoasseguradas nem a propriedade dos nossos talentos, nem da nossacapacidade de trabalho”. Podemos, assim, falar de desigualdades que,podendo inscrever-se na existência sócio-biológica, produzem efeitos,tanto na vida familiar e social, como face à doença e à morte Não se21


Maria Engrácia Leandroadoece e morre da mesma maneira quando se pertencea esta ou àquela categoria social, se vive nestaou naquela família, sociedade, ou em tempos distintos(Thomas, 1975, 1991).Mas o que não deixa de ser intrigante é que quantomais estes imbróglios são conhecidos, mais têm vindo aaumentar as desigualdades sociais, com particular destaqueapós os anos oitenta do último século com o exacerbarda economia neo-liberal, precipitando o passo, quiçá osalto para uma queda “violenta” na actual crise que assolao mundo. Perante esta situação não faltam vozes a alertarpara os riscos do aumento da insegurança, precariedadedo emprego, vulnerabilidade, conflitos sociais, aumento dasdoenças, da pobreza, da exclusão e assim por diante.Daí a questão: democracia sanitária para quem, e emque condições? Apesar de pelo menos no seio da Europa,o direito à saúde ser um direito fundamental para todosos cidadãos, independentemente da sua pertença social enacionalidade, na prática em muitas situações este direito éainda uma miragem. Com certeza que, em termos teóricos, todostêm acesso aos serviços de saúde públicos. Mas a questãopermanece. Em que condições e em que tempo, no atinente auma saúde mais debilitada, quiçá de doença, é que uns outrosprocuram estes serviços? Que olhar e consciência conseguemter da sua própria situação de saúde ou de doença, dado que édelas e do seu corpo que se trata? De que recursos dispõem osdiferentes utilizadores 1 para poderem tomar decisões advertidas?A democracia exige confiança, responsabilidade, transparência,justiça, sem esquecer que a novos direitos correspondem novasresponsabilidades de todas as partes implicadas neste processo.Fora de confusão, as desigualdades?Os tempos mudam mas há realidades que teimam em persistir,mesmo se reinterpretadas em contextos diferenciados. Designadamente,antes da industrialização das sociedades, as diferenças de estatutosou de riqueza, sendo menores têm menos tradução na longevidadedos indivíduos, nos riscos face aos perigos da existência, nas suas capacidadespara cuidar dos doentes. A inscrição das desigualdades noscorpos, acontece mais no interior do espaço doméstico e, singularmente,nas relações de género. Desigualdade fundamental pois que, na época,1A utilização dos termos de utilizador ou de consumidor e de cliente, reenviam a realidades distintas. A construçãoda noção de utilizador, sendo concomitante da de serviço público, têm vindo a tomar forma desde o séculoXIX, e diz respeito ao direito enquanto a segunda às leis da economia e a terceira às do mercado. Acontece,porém, que em situações de extrema desigualdade, apenas os indivíduos e famílias de boa condição socialpodem aceder ao estatuto de clientes, isto é, poderem seguir as suas preferências individuais (Leandro, 2002).22


Teias da Saúde: desigualdades de saúde, saúde das desigualdadesse inscreve na ordem “natural”, o que constitui umabarreira intransponível dos sexos. De maneira geral,as hierarquias sociais não parecem inscrever-se noscorpos através de distâncias de morbilidade e mortalidade,mas antes através das relações de dominação àsquais o exercício da violência pode dar uma expressãofísica. É sobre os corpos que as marcas se imprimematravés de golpes, feridas, mutilações, sofrimento, traçosdeixados na pele ou nas atitudes (Fassin, 2006). Umacicatriz física ou psíquica lembra sempre que houve ouhá sofrimento.No livro “Discurso sobre a origem e os fundamentosda desigualdade entre os homens”, Rousseau (1995 [1755]),num texto seminal de filosofia política, refere uma distinçãoque considerava irredutível. Na espécie humana há duasformas de desigualdade. Uma que designa de natural oufísica, porque estabelecida pela natureza e que consiste nadiferença das idades, da saúde, das forças do corpo, dasqualidades do espírito ou da alma. A outra pode designar-sede desigualdade moral ou política, porque depende de umaespécie de convenção assente na diferença de privilégios deque usufruem alguns, em prejuízo dos outros, como ser maisrico, beneficiar de mais honras, ser mais poderoso do que osoutros, podendo fazer-se obedecer.Contrariamente a estas asserções, sabe-se, hoje, atravésde estudos de grande folgo (Chombart de Lauwe, 1956; Aïchet al., 1994; Townsend et al. 1990; Fassin, 1996; Fassin et al.,2000; Drulhe, 1986, Annandale et al, 2000, Leandro et al., 2002,Leandro, 2009b) que este tipo de desigualdades tem muito maisque ver com as condições sociais de existência do que com o biológico.Sem negar as diferenças de tipo genético, podendo induzirvulnerabilidades diferenciadas perante certas patologias, podemosinterrogarmo-nos como é que a sociedade, mesmo nestes casos,transforma as próprias predisposições para a doença em desigualdadesde saúde.Normalmente, a estratificação social traz consigo uma estratificaçãodos corpos e da saúde, tendo presente que o desgaste físico, emvirtude da dureza ou não do trabalho e das condições de existência,é absolutamente diferenciado. Não só as disparidades físicas entreos indivíduos não estão absolutamente fundamentadas na natureza,numa espécie de essência biológica do ser humano, mas são, sobretudo,determinadas pelas desigualdades que a sociedade institui e estrutura.Em concreto, tendo presente o acesso à educação escolar, à qualidadeda habitação e do quadro de vida, inclusive familiar, a situação profissionale o capital de relações sociais, a questão das desigualdades reenvia23


Maria Engrácia Leandroa uma organização hierárquica da sociedade. Estaapreensão assenta num eixo vertical traduzido nasreformas legislativas e normativas, tanto de carácterpúblico como privado.Se esta representação da sociedade correspondea uma certa realidade, nas últimas décadas o aumentode famílias e indivíduos a viverem em situação maisvulnerável, precária, com menos recursos, alguns, quiçá,na miséria, e a sua mediatização tornam o fenômenodas desigualdades sociais e o seu crescimento ainda maissensível. Não obstante, dada a situação social de urgênciaem que vivemos perante o aumento do desemprego, dapobreza, da exclusão e da insegurança, as políticas públicasde solidariedade tendem a focalizar-se mais sobre os desfavorecidos.Este é um ponto crucial no domínio da saúde porque,contrariamente ao que se diz frequentemente, inclusiveos que têm o poder de decisão, não se está apenas peranteexcluídos e incluídos, mas sim confrontado com o aumento daesperança de vida ou, ao inverso, um aumento das diversascausas de morte que seguem, quase perfeitamente, a elevaçãona hierarquia social. Esta constatação estende-se praticamentea todas as patologias, acidentes e deficiências e é válida paraambos os gêneros e as várias idades da vida.Torna-se, pois, necessário abandonar ideias pré-concebidas,segundo as quais são sobretudo os sistemas de saúde que maiscontribuem para a melhoria da saúde das populações, quandoafinal é essencialmente a pertença social e respectivos modos devida que exercem a maior influência a este respeito. Uma outraexplicação tem que ver com os programas de prevenção, insistindono abandono de comportamentos nefastos: o consumo de álcool,tabaco, falta de exercício físico, alimentação de má qualidade,relações sexuais desprotegidas… Trata-se de factores com efeitossobre a saúde, mas que na realidade, em muitas circunstâncias,mais não são do que mediações entre condições sociais e estadosmórbidos. Mais simplesmente, pode não tratar-se tão só de condutasindividuais decididas pelos respectivos actores racionais, analisandoos riscos, mas de práticas que relevam de hábitos familiares, valorestransmitidos, referências estéticas, modos de socialização e, para alguns,de constrangimentos sócio-econômicos. Todos estes elementossão difíceis de transmitir fora de condições propícias para o efeito. É oque atestam programas educativos, pois ainda que se mostrem benéficospara a saúde, são frequentemente mais eficazes junto dos grupos de boacondição social do que nos meios sociais modestos, agravando assim asdesigualdades sociais e sanitárias.24


Teias da Saúde: desigualdades de saúde, saúde das desigualdadesEsta perspectiva integra, ainda, três elementosinteressantes que têm sido evidenciados na interpretaçãodas desigualdades de saúde. Primeiro, a importânciada coesão social explorada não apenas atravésdas redes sociais mas dos suportes sociais, ou seja, dogrupo de pessoas com quem se pode efectivamentecontar, tanto no dia a dia como em situações de maiornecessidade, contribuindo para diminuir os riscos demortalidade (Epinay et al, 2008); o capital social, geralmenteapreendido ao nível de um determinado contextosócio-geográfico, é fundamental no que se relaciona coma produção de efeitos para a saúde. Não são só os elementoseconómicos que intervém nesta matéria mas tambéma natureza dos laços sociais designadamente ao nível dafamília e dos amigos (Leandro et al., 2009b).Registra-se, também, o controle sobre a actividadeexercido sobretudo ao nível profissional, prevenindo efeitosnefastos nas coronárias de que são mais atingidos os indivíduosde condição social modesta (Aïch et al, 1994). Mas esteselementos não nos permitem menosprezar outros factores derisco mais imediatos aos quais estão mais expostos os trabalhadoresmanuais, em termos de acidentes e doenças profissionais,decorrentes das formas de organização do trabalho. Enfim, oreconhecimento psicossocial das pessoas abre um quadro quepermite pensar o lugar dos indivíduos na sociedade e a auto--imagem que se constrói através dos outros, com benefícios paraa saúde, como o mostram estudos sobre a diminuição da diabetesnas populações ameríndias, beneficiando de programas de reforçoda auto-estima (Fassin, 2009). Ao contrário, as discriminações e asensação de rejeição, como acontece frequentemente em contextosmigratórios, exercem efeitos nocivos sobre a saúde e a vida daspessoas (Leandro, 2009a).Note-se que nas situações evocadas: coesão social, auto--estima, controlo e reconhecimento social, não se trata, de modoalgum, de influências psicológicas mas sim de verdadeiros factoressociais, porque socialmente construídos, revestindo-se de valoresaxiais fulcrais, conferindo outro sentido à vida.Daí que não baste o desenvolvimento científico e tecnológico decariz médico, como o afirmamos anteriormente e já inscrito na ambiçãoprometaica do positivismo, para promover a saúde. Como o mostrouBalandier (1964), a propósito das sociedades em desenvolvimento, afuga de certas sociedades em busca de poder tecnológico multiplicou eacentuou os fossos e as distâncias sociais no seio das respectivas populaçõese a exacerbação das tensões e violências através da eliminação designificações tradicionais, pois que, em termos de sentido, nada as veio25


Maria Engrácia Leandrosubstituir. Nas sociedades ocidentais científicas e tecnológicasesta é uma faceta que tem vindo a revelar-sede grande importância. A hipótese weberiana (1964)do “desencanto do mundo” no seio das sociedades industrializadasvai no mesmo sentido: a multiplicação dassuas capacidades electrónicas, informáticas, medicalizadase medicamentadas para detectar e tratar a doençanão parecem ter trazido novos recursos para explicar aprocura de sentido do mal, do bem-estar e da existênciahumana e social.Estas lógicas da produção e da reprodução das desigualdades,mesmo no atinente às significações para aexistência, mostram que é a conjunção e articulação de umconjunto de elementos atinentes aos recursos materiais, sociais,axio-simbólicos, emocionais, profissionais e as posiçõesna estrutura do emprego, a integração social e as relaçõescom os outros que tornam as distâncias mais ou menos alargadas.Nesta perspectiva, podemos dizer que os cuidados dosprofissionais de saúde não exercem o papel mais importante,embora não sejam de menos importância. Todavia, mesmo aeste nível, as desigualdades permanecem e não basta poderter mais ou menos acesso facilitado a estes serviços. Há que terigualmente em conta a qualidade das prestações disponíveis,sendo que, frequentemente, os cuidados prestados aos doentestambém podem variar em função dos meios sociais, com efeitossignificativos sobre a esperança de vida, particularmente em doentesatingidos por cancro ou enfarto do miocárdio.De maneira geral, as determinantes médicas das desigualdadesde saúde são importantes a ter em conta, pois são mais fáceisde corrigir do que, por exemplo, a disparidade de recursos. A esterespeito, quem mais dispõe, mais acesso rápido tem à medicinaprivada, o que não é o caso de quem depende apenas do sectorpúblico e das listas de espera, como acontece frequentemente emPortugal. como afirmou Claudine Herzlich num atelier de trabalhopara elaboração, em França, do relatório “Soubie”, Santé 2010, émais fácil consultar um médico do que mudar de categoria social paraaumentar as oportunidades de vida.Por outro lado, podemos interrogar-nos acerca da igualdade queprocuramos em termos de saúde. A longevidade, tal como a ausênciade doença e o famoso bem-estar de que fala a definição de saúde daOMS de 1946 são deveras importantes para todos os humanos e nãoapenas para alguns mais bafejados pelas boas condições de existência.Mas poderemos também deslocar o objecto para o que fundamenta aexistência das desigualdades. A “descoberta” de que o sofrimento, a26


Teias da Saúde: desigualdades de saúde, saúde das desigualdadesviolência, o traumatismo e a humilhação atingem aidentidade corporal e psíquica da pessoa faz apelo anovas respostas. Mais do que uma maior esperançade vida com boa saúde, podemos interessar-nos poruma esperança de vida boa, conferindo-lhe uma possibilidadeefectiva e não teórica, de auto-realização emsociedade em boa relação com os outros, numa atitudede respeito pela dignidade de todo o ser humano e oque lhe diz respeito, o que consiste em poder e saberviver bem.Os direitos humanos e as desigualdadesde saúdeA Declaração universal dos direitos do homem inspira--se numa ética altruísta que respeite a vida, reconheça econsagre a diferença, mas não a discriminação, se esforcepor promover a igualdade de oportunidades, inclusive desaúde, e a conquista da autonomia da pessoa através doexercício das responsabilidades. Uma pedagogia dos direitosdo homem dirigindo-se às crianças de maneira apropriada,desde idades precoces, à escola e fora dela, prolongando-senuma acção educativa, contribuirá a médio e longo prazo parafazer penetrar esta ética no conjunto do corpo social e mudaro olhar da sociedade sobre tudo o que constitui um atentado àdignidade humana. Se a família, a escola e outras instâncias similaresfizerem tábua rasa do valor da transmissão deste elevadopatrimônio da humanidade, podem arriscar-se a contribuir, aindamais, para a intensificação da “desumanização” das sociedades,o que se reflecte no exercício da cidadania, na coesão social, umsuma na saúde integral, incluindo as relações humanas e sociais.Sob o ponto de vista da saúde propriamente dita 2 , o artº 25 dareferida declaração preconiza que “Toda a pessoa tem direito a umnível de vida suficiente para assegurar a sua saúde…”. O que se pode,então, entender por nível de vida suficiente? Trata-se de uma questãoque pode obter várias respostas. Mas ninguém poderá contestar o factode que a noção de vida suficiente implica pelo menos a possibilidadede cada um poder satisfazer certas necessidades essenciais: alimentação,habitação, vestuário, serviços domésticos e comunitários comoabastecimento de água, instalações sanitárias, serviços de saúde e deeducação. Significa, também, que cada um tem direito a trabalhar parapoder levar uma vida decente e que um sistema de segurança social de-2Não nos sintonizando totalmente com o conteúdo da célebre definição de saúde da OMS, de 1946, pois entendemosque a saúde é uma realidade muito mais dinâmica do que a que encerra e pode ter tantas definiçõesquanto as condições sociais e sanitárias das pessoas, as representações colectivas e as culturas, na esteira deLazorthe (1993), concebemos a saúde, enquanto noção, como a capacidade de manter um estado de harmoniapsicossocial e biológica, constantemente ameaçada do nosso organismo, de se adaptar continuadamente às variaçõesexteriores, de resistir às agressões microbianas, tóxicas traumáticos e de se curar após ter estado doente.27


Maria Engrácia Leandroverá ser previsto de modo a satisfazer as necessidadesdos incapacitados de o fazerem.Todavia, à medida que fomos passando de sociedadesdo trabalho para sociedades do emprego, éessencialmente este que assegura a sobrevivência dosindivíduos e das suas famílias. Ademais, se na Bíblia(Gen. 3, 19) o trabalho aparece como punição do pecado,nas sociedades hipermodernas tornou-se num prémio,um valor fundamental para os europeus a seguir à família(Almeida, 2003). O que acontece, de há uns anos a estaparte, é que o desemprego tem aumentado vertiginosamentedeixando muitas pessoas e suas famílias sujeitas aosimponderáveis das circunstâncias e ainda mais quando nãousufruem do tal capital social de que falámos anteriormente.A interacção entre o desemprego e a saúde pode jogarem dois sentidos: uma pessoa com saúde precária, que atépode ser estigmatizante, pode ter mais riscos de perder oude vir a encontrar um emprego; ao inverso, a saúde pode seralterada pelo desemprego e sobretudo o de longa duração.Ora, o aumento do desemprego abrange em primeiro lugar osindivíduos menos qualificados e mais frágeis, estendendo-sedepois a categorias menos expostas. A este propósito um estudofeito na França (Mesrine, 1999) veio revelar que nos anos 1990,a mortalidade relativa dos desempregados aumentou. Tal factopode traduzir um agravamento das condições de vida que se vãoreflectir na saúde, na doença e no acelerar da morte. Ora, o direitoao trabalho, consagrado no artigo 23 da Declaração universal dosdireitos do homem, é dos mais elementares, pois dele decorrem ascapacidades de sobrevivência e de realização humana.Ao invés, o desemprego pode estar na origem de várias alteraçõesde saúde através de vários mecanismos. Um deles é a pobrezae quiçá o desespero e a desilusão. Os efeitos do desemprego sobrea saúde poderão estar associados às dificuldades econômicas e emocionaisque arrasta (Leandro, 2010). O desemprego é considerado umimportante factor de stress, de várias desordens psicossociais, comoa perda da auto-estima, de contacto com os outros, de estatuto social,das habituais condições de existência… A ansiedade crônica que tendea instalar-se afecta a saúde mental que, por sua vez, atinge a saúdefísica e relacional. Pode ainda fazer desencadear comportamentos derisco: consumo de álcool, tabaco, alimentação sem qualidade, etc. Masimporta referir que algumas destas propensões até poderiam existir anteriormente.Só que agora há toda uma cadeia de riscos, que podem darazo a vários males, intervindo o desemprego em interacção com outrosfactores percursores de doença (Mesrine, 2000).28


Teias da Saúde: desigualdades de saúde, saúde das desigualdadesMais ainda. A diferentes categorias sócio--profissionais, segundo vários estudos (Desplanques,1993; Cambois et al., 2008), correspondem diferentesníveis de esperança de vida e de esperança de vidasem incapacidade. Os operários, tal como já o tinhamverificado os higienistas no início do século XIX (Villermé,1840), não só têm uma esperança de vida maiscurta como vivem mais tempo com mais incapacidades(Cambois et al., 2006). As condições de trabalho, asconcomitantes situações de vida e maiores dificuldadesde acesso a serviços médicos, sobretudo especializados,são factores relevantes a este propósito.Frise-se que a má saúde confina ainda mais profundamentea pessoa na sua família, quiçá no círculo da miséria:a capacidade de trabalho é reduzida, a auto-desvalorizaçãopara quem vive do trabalho aumenta, bem como as despesascom a saúde. Os modos de vida riscam de se desorganizar porinactividade e mudanças de ritmo e os problemas familiarestendem a aumentar, o que pode vir a fragilizar os laços familiarese sociais. O entusiasmo, a esperança, as aspirações e avontade de investir e de s’investir tornam-se menos vigorosos.Em termos de direitos humanos, e em forma de síntese,estas são situações que suscitam muitas questões, na medidaem que as profundas desigualdades sociais, tornando-se igualmenteem desigualdades de saúde, deixam muitos indivíduos erespectivas famílias à mercê de muitos imponderáveis. Trata-sede condições que tocam igualmente a dignidade humana de todose de cada um, a coesão social e a harmonia das sociedades. Semeste sentir não será possível conferir realidade ao primeiro artigoda Declaração universal dos direitos do homem, segundo o qual“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade eem direitos. São dotados de razão e de consciência e devem agir emrelação uns aos outros com espírito fraterno”, sabendo que os demaisdireitos consagrados na referida declaração interagem entre si.Nota: As opiniões expressas neste artigo são da inteira responsabilidadeda autora.Referências BibliográficasALMEIDA, A. N. (2003), “Família, conjugalidade e procriação: valores epapéis”, in J. Vala et al. (orgs.), Atitudes sociais dos portugueses. Valoressociais: mudanças e contrates em Portugal e na Europa, Lisboa, ICS, pp.50-93.29


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Artigo«VOCÊ É DE ONDE?»: A DEFINIÇÃODA IDENTIDADE A PARTIR DA NOÇÃODE «ORIGENS»Elsa Ramos** Maitre de conference a l Universite Paris Descartes,chercheur du CERLIS-Universite Paris Descartes-CNRS(Centre de recherches sur les liens sociaux)Resumo: O texto reflete sobre a forma como o indivíduoconstrói a si próprio e ao mesmo tempo produzsua inserção na sociedade. Hoje percebe-se mais do quenunca uma tensão entre a definição de pertença familiar eo ser autônomo. Tensão esta característica do individualismocontemporâneo.O indivíduo é definido somente por sua origem familiare por ser um «indivíduo individualizado» (Singly, 2003). Oobjetivo é compreender como o indivíduo “negocia” a históriafamiliar mantendo ao mesmo tempo as suas aspiraçõesde autonomia.Palavras-chave: indivíduo; autonomia; família; modernidade;sociedade.Abstract: The text highlights on how the individual constructshimself while producing their integration into society. Todaywe can see more than ever a tension between the definition offamily membership and be autonomous. Stress this feature ofcontemporary individualism.The individual is not anymore definedonly by their descent and being an ‘individualized individual’ (Singly,2003). The goal is to understand how the individual “negotiates”the family history while maintaining their aspirations for autonomy.Keywords: individual; individualization; family; modernity;society.33


Elsa RamosA interrogação sobre a maneira como o indivíduoconstrói e produz as suas origens na sociedade atual,nos leva a interrogar sobre a tensão existente entre, porum lado, a definição dos pertencimentos familiares, ouseja, a definição de si mesmo como membro do grupofamiliar, como herdeiro e por outro lado as aspirações àautonomia, que caracterizam o individualismo contemporâneoque define o « eu » : « Com o modelo do indivíduoemancipado, o individualismo é um humanismo. Eledesenha um mundo ideal onde cada ser humano poderiase tornar ele próprio, desapertando os constrangimentossociais. Este indivíduo emancipado não é um indivíduodesapegado de vínculos e do social, feliz numa ilha deserta.Ele tem idealmente o poder – socialmente reconhecidoe validado - de definir as suas pertenças, de decidir da suavida, de resistir à prova de uma identidade que outros podemlhe impor.» (Singly, 2005, p.10). De fato, o indivíduo não édefinido somente pelos seus laços familiares, existe tambémcomo um « indivíduo individualizado » (Singly, 2003). A questãoda construção das origens permite perceber como entre opertencimento familiar e a autonomia, entre apego e desapegose constrói uma fidelidade a si próprio (Ramos, 2006). Os índicesdessa fidelidade - tendo em conta que a memória se definecomo reconstrução do passado a partir do presente (Coenen--Hurther, 1994 ; Halbwachs, 1950 ; Halbwachs, 1994) - podemser procurados em elementos que fazem sentido, isto é, que temsignificado para os indivíduos: podem ser lugares, objetos quepertenceram ao patrimônio familiar ou as experiências individuais.O objetivo é então de compreender como é que o indivíduonegocia a história familiar (a casa, a terra, os objetos de um avôou uma tia…) mantendo ao mesmo tempo as suas aspirações deautonomia.Esta questão foi estudada a partir das « origens » dos « provinciaux» morando em Paris e na região parisiense 1 e buscou-secompreender, através das entrevistas, o sentido que os entrevistadosdão aos diferentes lugares vividos e, também, os vínculos guardadoscom uma « terra de origem ». « A terra de origem » : é nesta noçãoque reside a problemática. Ao começo da pesquisa, postulava que paracada pessoa existia uma « terra de origem ». Desde a segunda entrevista1Este artigo apóia-se numa pesquisa sociológica realizada na França sobre a questão das origens dos habitantesdo interior da França num contexto de mobilidade territorial e residencial. Em França, o território geográficoque fica fora de Paris e dos ses arredores è chamado de « província ». São várias regiões como a Bretanha, aSarthe, Alsace, Périgord, etc. As pessoas que vêm da província para se instalar em Paris e na região parisiensesão chamados de “provinciaux”. Assim, o objetivo da pesquisa era perceber como essas pessoas no contexto damigração conservam laços, vínculos com a terra de origem: trata-se de uma questão da definição de si mesmocomo sendo “Bretão”, “Sarthois”… No Brasil, seria, por exemplo, uma pessoa que vêm do sul, e que defende“eu sou gaúcha”, ou “eu sou mineiro(a)” vindo de Minas, etc.… Quarenta entrevistas em média de hora e meiaforam realizadas com homens e mulheres que vieram de província viver em Paris ou para a região parisiense.Esta pesquisa foi realizada numa perspectiva de uma sociologia compreensiva buscando o sentido que os indivíduosdão à vida social.34


« Você é de onde? » : a definição da identidade a partir da noção de « origens »começaram as dificuldades. Um entrevistado 2 explica:« Terra de origem? “Terra” compreendo. “Origem”compreendo mas “terra de origem”, não compreendoo que significa ». Outro entrevistado 3 diz : « O quecostumo dizer é que eu sou de origem alsaciana. Mas oque isto significa? Tenho uma avó alsaciana mas ela nasceuem Aubervilliers 4 . Quer dizer que somos parisienseshá 3 gerações. Porque é que eu digo que sou de origemalsaciana ? Poderia dizer que sou de origem normanda,sobretudo que o meu sobrenome é normando, meu avônasceu na Normandie. Os outros avós, é pior ainda. Nemsei de onde eles são. Eu penso que minha avó materna, eugosto muito dela e ela ainda é viva, talvez seja de origemespanhola, mas não é com certeza. Ela talvez nasceu emMayenne. Minha mãe me disse recentemente que o meu avôtinha comprado uma casa perto do lugar onde ele nasceu naSarthe. Mas não sei aonde. Eu vejo-o muitas vezes mas nãosei onde ele nasceu. Até minha mãe não sei onde ela nasceu.Ela nasceu na Sarthe, numa pequena aldeia da Sarthe mastudo isso foi circunstancial. Também foi o meu caso. Eu nasciem Saint-Denis 5 porque «minha mãe teve as contrações parao parto na estrada ». O que percebemos com esta resposta éque quando se pergunta : « você é de onde? » a questão ficano modo singular. A pergunta assim formulada reenvia à ideiade uma terra única, de uma « terra de origem » que se podeidentificar, de um território com limites bem definidos. Essa «terra de origem » corresponderia a um modelo onde o lugar denascimento e de vida do indivíduo, o lugar de nascimento e devida dos pais, o lugar de nascimento e de vida dos avós seriamsuperpostos num mesmo território. De fato, é o que acontece paracertas pessoas. Mas para outras esta adequação não faz sentido.Os avós maternos e paternos podem ser de regiões diferentes oque já confere aos pais do entrevistado origens diferentes. Tambémas mudanças de residência de uns e de outros, em família ouindividualmente, levam a multiplicação dos territórios, das casasde referência. E também existem fatores familiares, por exemplo, aseparação dos pais, que podem influenciar a quantidade de lugaresnos quais a pessoa morou.Por outro lado, falar de « origens » pressupõe um lugar de partidae um lugar de chegada e desta forma a mobilidade é definida comouma sucessão de etapas bem delimitadas. No entanto, as pessoas podemfazer idas e voltas, por exemplo, se os pais continuam morando2Nasce em 1970 en Alsace. Vai morar para a região parisiense em 1987, solteiro, empregado de escritório.3Nasce em 1966 em Saint-Denis. Os pais se separam e a mãe decide de ir viver na « província ». Ele têm então5 anos. Volta para Paris em 1987, casado, um filho, pesquisador..4Cidade da região parisiense.5Cidade da região parisiense.35


Elsa Ramosna região. Além disso, quando o entrevistado relataa história dele, ele não fala de todos os lugares nosquais viveu. Faz uma seleção e é importante de compreenderporque certos lugares são evocados e outrosnão. Uma entrevistada 6 explica: « A terra de origem é ada infância e é aquela que me fez ser o que sou e talvezque me permite de apreciar o lugar onde moro agora ».Ela faz um vínculo entre os dois lugares. Este vínculo éimportante : os lugares não existem independentementeuns dos outros, eles se definem uns em relação aos outros.Percebendo isto, tive que transformar a questão dapesquisa. Decidi não fazer mais a pergunta em termos de« terra de origem » mas de ampliar a problemática procurandocompreender a questão das âncoras da identidade.A âncora se define pela mobilidade : num navio podemosviajar, chegar num lugar e botar a âncora para arrimar onavio durante um tempo, e quando o desejamos, levantara âncora para viajar novamente. Pelo contrário, a ideia de« terra de origem » reenvia a ideia de raízes, que me parecemuito rescrita. Se levarmos a imagem a sério, significa que araiz se corta ou então que se desterra para ser enterrada emoutra terra quando as pessoas se deslocam para se instalaremem outra região, dando a ideia de perca dum substrato inicial.E sobretudo parte dos entrevistados refutam a ideia de terem «raizes ».Passar da noção de « terra de origem » para a noção de «âncora » permite ampliar a questão de pesquisa e ir além de umaideia que põe o nascimento do indivíduo como existindo fora delepróprio: ligado à família, as gerações precedentes, ao « que já existia», ao passado. Consequentemente, vimos como o entrevistadorefuta a existência de uma terra de origem. Para ele, o indivíduo étambém « uma coisa individual ». A definição das origens dele estáem relação com uma concepção pessoal da construção do seu mundo.Ele explica: « Não tenho apego visceral a um lugar. Tenho apegoa outras coisas, a leituras, a músicas. É isso que me territorialisa, é porisso que sei de onde venho. Sei qual é a musica que ouço, o que vejo, oque faço. Sei onde estão os meus quadros (de pintura), onde eles estãoexpostos. Isso também é uma maneira de se territorializar, os objetos quecriei » Um ponto comum sobressai entre o discurso dele e o discurso daentrevistada que já evoquei: « a terra de origem é a infância e é aquelaque me fez ser o que sou e talvez que me permite de apreciar o lugaronde moro agora ». O ponto comum é a função identitária. A questãonão é compreender de onde se vêm, mas sim compreender “quem eusou”. Das entrevistas se destacam elementos significativos : lugares, casas,6Nasceu en 1968 em Dordogne, vêm para Paris em 1989, casada, um filho, aluna de graduação.36


« Você é de onde? » : a definição da identidade a partir da noção de « origens »mas também objetos, músicas, comidas, bebidas, etc.e todos convergem para uma ideia de necessidade deuma âncora identitária.Deste modo, as pessoas « retêm » certos lugarese não outros, podem fazer idas e vindas entre lugaresdiferentes nos quais reencontram pessoas, lembrançasque lhes são caras. Certos lugares reenviam a infância,outros ao presente, e todos estes lugares têm sentidouns em relação aos outros: eles nos levam ao mundodos entrevistados. Eles desenham « geografias pessoais» que relacionam o patrimônio da família, as gerações, opassado, e também numa vida presente, as relações queexistem entre os membros da família e as aspirações individuais.O discurso da Nathalie 7 , uma das entrevistadas,ilustra esta ideia de geografia pessoal: « Eu falo muito docasamento (formal) porque é um ato importante para mimnuma sociedade na qual podemos não casar. Você conhecea tradição de pôr nomes nas mesas dos convidados? Nós tínhamosescolhido de pôr nomes de lugares importantes paramim, para ele e para os dois. Lugares em Pau 8 , havia a Rua dosPinsons onde fica a minha casa. A beira do rio com o castelo ea mata. Depois o que era importante era a cote basque, Saint--Jean de Luz. Depois ao leste de Pau é Lourdes onde levei muitaspessoas visitarem o santuário apesar de eu ser protestante etambém porque a paisagem de Lourdes é mais verde. Depois haviales landes, e toda a travessia de Landes, muito austera, muitodura para chegar sobre Bordeaux e depois sobre a Charente. EmCharente há a aldeia onde estão os meus avós, há também a aldeiaonde nos casamos que é a aldeia mais linda da Charente… O que éimportante ainda? Dunkerque onde fiz a minha primeira experiênciaprofissional e onde nunca voltei ». Ela nos leva em todos os lugaresque são importantes para ela. Com o casamento, de certa forma, elaoficializa lugares que são testemunhas da sua trajetória biográfica.Confirma a importância dos lugares onde ela passou a infância e aadolescência e também lugares de vida adulta: ela fez os estudos emBordeaux, a primeira experiência profissional em Dunkerque. Ela «evoca » os laços de família: os avós, a casa onde morou com os paisquando era mais pequena e na qual ficam gravadas as relações comos pais. Ela sublinha o seu pertencimento religioso. De certo modo,viajamos com ela no seu mundo e na sua vida. Estes lugares não sãotodos os lugares nos quais ela viveu. Na totalidade, ela fez uma seleçãodaqueles que faziam sentido na biografia e na maneira de ela se definir.Do mesmo modo, as pessoas fazem seleção dos objetos e lembranças.7Nasce em Cognac em 1971, vai morar para Paris em 1995, casada, 2 filhos, sem profissão, graduação.8Todos os lugares que ela lembra estão localizados na « província ».37


Elsa RamosO que é importante então é compreender que aherança, não é a totalidade do patrimônio territorial ematerial. Não é uma caixa cujo conteúdo vai se ampliargeração após geração. O indivíduo escolhe o que está ádisposição, o que faz sentido para ele: o « herdeiro escreveo seu testamento » (Singly, 2003). Assim a questão dasorigens reenvia não tanto a pergunta “Você é de onde?”mas sim “Quem é você ?” Essa questão das origens ésubstituída pela função identitária de lugares, a ideia deraiz è substituida pela ideia da âncora da identidade.Nota: As opiniões expressas neste artigo são da inteiraresponsabilidade da autora.Referências BibliográficasCOENEN-HUTHER J., 1994. La mémoire familiale. Un travailde reconstruction du passé. Paris, L’Harmattan.HALBWACHS M., 1994, 1ère éd. 1925. Les cadres sociauxde la mémoire. Paris, Albin Michel HALBWACHS M, 1950. Lamémoire collective. Paris, PUF.RAMOS E., 2006, L’invention des origines. Sociologie de l’ancrageidentitaire, Paris, Armand Colin.SINGLY F. de, 2005, L’individualisme est un humanisme, La Tourd’Aigues, Editions de l’Aube.SINGLY F. de, 2003. Les uns avec les autres. Paris, Armand Colin.38


ArtigoTERRITÓRIO INTEGRADO DE ATEN-ÇÃO À SAÚDE: A EXPERIÊNCIA DOTEIAS ESCOLA MANGUINHOS COMOUM NOVO MODELO DE ATENÇÃO EGESTÃO NA GARANTIA DO DIREITO ÀSAÚDE.Adriana Coser Gutiérrez 1 , Elyne Engstrom 2 e GastãoWagner de Sousa Campos 31Doutoranda em Saúde Coletiva pela UNICAMP, Analistade Gestão em Saúde da Escola Nacional de Saúde PúblicaSérgio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz. E-mail:acoser@ensp.fiocruz.br2Doutora em Saúde Pública, Tecnologista em Saúde da EscolaNacional de Saúde Pública Sérgio Arouca da FundaçãoOswaldo Cruz e atual Coordenadora da Iniciativa TeiasEscola Manguinhos. E- mail: engstrom@ensp.fiocruz.br3Professor Titular livre docente do Departamento de MedicinaPreventiva e Social da Universidade Estadual de Campinas.E-mail: gastaowagner@mpc.com.brResumo: Este trabalho apresenta-se como um relatodescritivo da experiência de um novo modo de organização daatenção à saúde proposto para a comunidade de Manguinhos/Rio de Janeiro, a partir do conceito de Território Integrado deAtenção à Saúde- TEIAS- Escola.Para além do conceito tradicional de integração da redeestrutural dos serviços e ações de assistência, promoção e prevençãoem saúde, o conceito de Teias Escola pretende incorporar oscomponentes de ensino e pesquisa aliados ao olhar da dinâmicade estruturas e pessoas que fazem cotidianamente o território deManguinhos.Com isso, na primeira parte apresentaremos o contexto históricoe conceitual e na segunda parte o processo que segue ainda em cursoapontando para descrição do processo estruturante de uma TEIASEscola e seus desafios.Palavras-chave: atenção primária; saúde da família; gestão emsaúde.Abtract: This work is presented as a descriptive narrative of theexperience in a new way of organization of the attention to the healthconsidered for the community of Manguinhos/Rio De Janeiro, from the39


Adriana Coser Gutiérrez, Elyne Engstrom e Gastão Wagner de Sousa Camposconcept of Integrated Territory of Attention to HealthTEIAS- School. It stops beyond the traditional conceptof integration of the structural net of the services andaction of assistance, promotion and prevention in health,the concept of Teias School intends to incorporate thecomponents of education and research allies to the lookof the dynamics of structures and people who make theterritory of Manguinhos daily. With this, in the first partwe will present the historical and conceptual context andin the second part the process that still follows in coursepointing with respect to description of the structured processof a TEIAS School and its challenges.Key words: primary care; family health; managementin health.40


Território Integrado de Atenção à Saúde: a experiência do TEIAS Escola Manguinhoscomo um novo modelo de atenção e gestão na garantia do direito à saúde.IntroduçãoUm sistema de saúde com forte referencial naAtenção Primária à Saúde tende a ser mais efetivoe satisfatório para a população, tem custos menorese é mais equitativo, mesmo em contextos de grandeiniquidade social (Starfiled, 2002; WHO, 2008). No Brasil,após 20 anos de implantação do Sistema Único deSaúde (SUS), 15 anos da Estratégia de Saúde da Família(ESF), novas experiências, como a Iniciativa Teias EscolaManguinhos (TEIAS), retomam conceitos e modos de agirpara a renovação da atenção primária em saúde comocoordenadora da atenção a saúde.O Teias, parceria entre a Escola Nacional de SaúdePública/ENSP/Fiocruz e a Secretaria Municipal de Saúde eDefesa Civil do Rio de Janeiro (SMSDC) tem o desafio deconstruir em um dado território de população definida, umaRede de Saúde da Família resolutiva articulada com a Unidadede Pronto Atendimento-UPA, com os Centros de AtençãoPsicossocial (Caps), com a atenção especializada e hospitais.Pretende ainda, agregar ações de vigilância, saúde coletiva,promoção da saúde e intersetoriais, com um modelo participativode gestão da saúde que fortaleça o SUS e a construção deum ambiente saudável. No entanto, na vivência do cotidiano doSUS, observa-se que a efetivação da articulação em rede (saúdee intersetorial) não é processo simples, traz desafios conceituaise operacionais, envolvendo mecanismos institucionais da relaçãoentre gestores, trabalhadores e usuários. Sendo que alguns dessesdesafios são abordados nesse artigo. O intuito é apresentarnossas reflexões e ações, como participantes desta iniciativa, sobrereorientação de um modelo de atenção primária e gestão a saúdedo território de Manguinhos.O Território de Manguinhos e o Programa deAceleração do Crescimento- PACO bairro de Manguinhos está situado na Zona Norte do municípiodo Rio de Janeiro, na 10ª Região Administrativa da cidade, quecompreende os bairros de Bonsucesso, Olaria e Ramos, sendo cortadopela Estrada de Ferro da Leopoldina e dois importantes rios: Jacaré eFaria Timbó – e Canal do Cunha. Há 13 comunidades construídas aolongo dos anos e a população estimada é de cerca de 38.000 habitantes(dados do Sistema de Informação da Atenção Básica-SIAB, 2011). A comunidadecresceu no entorno da Fiocruz, instituição que há mais de 100anos está localizada no território, relacionando-se com seus moradorese ambiente (Fernandes, 2010).41


Adriana Coser Gutiérrez, Elyne Engstrom e Gastão Wagner de Sousa CamposAinda distante de se constituir em um espaço dasaúde, beneficiando-se das inovações, do ensino ouda pesquisa, missão institucional da Fiocruz no Brasil,este é um território de grande vulnerabilidade econômicae social. Em 2000, situava-se entre os cinco pioresÍndices de Desenvolvimento Humano (IDH) comparadoaos demais bairros da cidade - IDH de 0, 726. Este valoré desfavorável em relação à média para cidade (0, 842em 2000) e inferior até aos valores do Rio do ano de1991 (0.798), ou seja, mais de uma década de atraso nodesenvolvimento humano. A situação também é desfavorávelna análise dos componentes IDH educação, renda elongevidade (Instituto Pereira Passos, 2009).Podemos assim observar que não ao acaso Manguinhosfoi priorizado como território prioritário de intervenção peloPrograma de Aceleração do Crescimento- PAC e da iniciativaTeias. Além de território das desigualdades, o movimento socialque se organizava em Manguinhos, com apoio da Fiocruz(atuando na formação em cooperativa de trabalhadores queprestavam serviços à instituição) foi também instrumento reivindicatóriopara transformações no ambiente hostil e insalubre.O PAC quando inicialmente proposto na comunidade deManguinhos no ano de 2007, através das ações de urbanizaçãode favelas - unindo os governos federal, estadual e municipal comorçamento de aproximadamente 230 milhões de reais, tinha comoobjetivo enfrentar a realidade complexa e transformá-la, integrandoas favelas à cidade formal através do processo de urbanizaçãoe da prestação de serviços públicos de qualidade.Desde então, o PAC tem proporcionado modificações nashabitações, nas ruas, no acesso a serviços básicos, mas pouco seavaliou desse programa. Do censo social inicialmente previsto paraa área, apenas uma parte foi realizado, em um segmento do território.Quanto aos equipamentos de saúde, algumas conquistas foramobtidas nos anos de 2009 e 2010, mas ainda há muito para caminharpara atender às necessidades de saúde do território.Essa escassez é histórica. Desde 1966, o único equipamentode saúde em Manguinhos era uma unidade básica vinculada à ENSP(Centro de Saúde Escola Germano Sinval Faria-CSEGSF), prestandoatenção médica e multiprofissional, ações coletivas e serviços de apoio(laboratório, imunização, outras) à população de Manguinhos; nessecentro, em 2000, por convênio com a SMSDC Rio e como primeiro movimentode mudança do modelo tradicional de atenção, instalam-se duasESF, ampliando para oito em 2006. Estas equipes formaram a base de42


Território Integrado de Atenção à Saúde: a experiência do TEIAS Escola Manguinhoscomo um novo modelo de atenção e gestão na garantia do direito à saúde.ampliação do Teias em 2010. Com a articulação doPAC, os equipamentos conquistados foram a Unidadede Pronto Atendimento-UPA em 2009 e a Clínica da FamíliaVictor Valla em 2010 (espaço para as equipes desaúde da família; anexo a UPA); espera-se ainda pelaconstrução da Clínica da Família localizada na comunidadeda Vila Turismo, pelo Centro de apoio psicossocial(CAPS) para promoção da saúde mental dos indivíduose apoio às ações de prevenção e controle do uso abusivode álcool e drogas, situações de grande magnitude e comsérias repercussões na saúde, nas condições de vida.Mapa do Território de Manguinhos e dos equipamentosde saúde existentes (Clínicas da FamíliaVictor Valla, CMS Manguinhos e CSEGSF/ENSP, UPA)Integrar as ações do PAC e do TEIAS tem sido um exercício cotidiano.Pensar e agir para a promoção, prevenção e cuidados de saúdearticulados às mudanças do ambiente, em sua dimensão intersetorial.É promover a articulação de atores e intervenções locais, como habitação,saneamento, esporte e lazer, geração de renda e inclusão social,mapeamento de população residente em áreas de risco ambiental, soboutras vulnerabilidades. É a execução de ações integradas, visando atuarnos determinantes sociais relacionados à saúde. (CNDSS, 2008)43


Adriana Coser Gutiérrez, Elyne Engstrom e Gastão Wagner de Sousa CamposMas há outros desafios do campo da atençãoà saúde e é preciso acesso e qualidade nas ações. Ocenário epidemiológico do território é de “tripla cargade doença”, com coexistência de:• População acometida por infecções, agravos nainfância e problemas de saúde reprodutiva; característicasdo mundo em desenvolvimento.• Forte predominância de doenças crônicas e de seusfatores de riscos, como tabagismo, sobrepeso, inatividadefísica, uso excessivo de álcool e outras drogas e alimentaçãoinadequada; males do mundo desenvolvido.• Forte crescimento da violência e da morbimortalidadepor causas externas, um território de “exceção”.Considerando tal cenário de iniquidades, era precisoque tais necessidades fossem contempladas no componenteatenção do Teias, incorporando-se também o olhar ampliadoda saúde na compreensão e superação destas questões, aliadoao reconhecimento evidente da necessidade e busca do direitoa saúde das pessoas que vivem a realidade de Manguinhos.A análise das características particulares da população (osaspectos ambientais, socioeconômicos, demográficos, culturais ede saúde) tem orientado a organização local da atenção, considerandoo modelo para atenção primária baseado na estratégia desaúde da família (ESF) como porta de entrada efetiva do sistemade saúde, que organiza as referências para os demais serviçosde maior densidade tecnológica (WHO, 2008, Brasil, 2006). Taisequipamentos e serviços precisarão ser integrados em uma efetivarede de atenção á saúde. Para isso, o TEIAS Manguinhos adota oconceito proposto pelo Ministério da Saúde em 2007 de TerritórioIntegrado de Atenção a Saúde-TEIAS- como organização sistêmicadas diferentes ações e serviços de saúde em um determinado território.(Brasil, 2008; Brasil, 2009)TEIAS Escola Manguinhos e Fiocruz: um desafiopara inovação de tecnologia na atenção asaúdeDesenvolver um território integrado de atenção à saúde comoespaço de inovação das práticas de atenção, do ensino e da pesquisaem saúde para melhoria da condição de saúde e vida da população deManguinhos são objetivos do Teias-Escola Manguinhos.Estes objetivos foram viabilizados por uma pactuação de co-gestãolocal por meio de Contrato de Gestão firmado entre a ENSP/Fiocruz/FIOTEC e44


Território Integrado de Atenção à Saúde: a experiência do TEIAS Escola Manguinhoscomo um novo modelo de atenção e gestão na garantia do direito à saúde.a SMSDC, iniciado em janeiro de 2010 (Rio de Janeiro,2009). Atendendo a opção do governo municipal deexpansão da ESF em toda a cidade do Rio nessa modalidadede gestão, a Fiocruz candidatou-se a co-gerir pormeio de sua fundação-Fiotec um conjunto de ações desaúde no intuito de desenvolver uma iniciativa defensorado SUS local ao propor a construção e fortalecimentode uma região de saúde em Manguinhos. A fim de criarações integradas e sistêmicas que permitam aumentar econsolidar a presença do poder público na garantia decontribuir na construção de um ambiente digno, seguro,acolhedor e de oportunidades de crescimento pessoal, culturale econômico para seus habitantes.A partir de inúmeros encontros com os atores-chave,como gestores, trabalhadores, população local e pesquisadores,pode-se traçar uma estratégia de organização deum novo modelo de atenção e gestão da saúde que tivessecomo diretrizes centrais aquelas pactuadas com a SMSDC enorteadoras do SUS. Destaca-se:• Ampliação de 100 % da cobertura da ESF com adscriçãoda clientela; e ajuste do número de famílias por equipe (cercade 3000 pessoas/equipe)• Redefinição do mapa sanitário segundo nova lógica deterritorialização;• Revisão dos referenciais do modo de produção da clínicaampliando-a na perspectiva do aumento da capacidade resolutivabaseada nas práticas de saúde coletiva; promoção e prevenção;acolhimento e humanização.• Resolutividade da Atenção: ampliação no modo de fazer aclínica, privilegiando a integralidade do cuidado, melhor qualidadee consequentemente maior satisfação dos usuários;• Fomento à integração com a rede do SUS, otimizando fluxossegundo necessidades.• Qualificação das informações em saúde, desde o registro eletrônicoem todos os processos da produção de saúde, até a análise edivulgação, subsidiando a tomada de decisões local.• Instituição de mecanismos de co-gestão e de monitoramentobaseado em metas; Reconhecimento do cenário privilegiado como potentecampo de qualificação e formação do ensino e pesquisa aplicávele aplicada no cotidiano;• Fomento as práticas intersetoriais sendo estas já disparadas pelaprópria intervenção do PAC.45


Adriana Coser Gutiérrez, Elyne Engstrom e Gastão Wagner de Sousa CamposModificar processos de trabalho, reorganizarespaços físicos, fluxos e conquistar a adesão dos profissionaise da comunidade para essa nova forma de“conceber e fazer saúde” foi e está sendo um desafioque se consolida no dia-a-dia do trabalho. Sabemosque é um caminho a percorrer, reconhecendo a históricafragmentação dos processos de trabalhos perceptíveis,em que a equação das tradicionais ofertas e demandasdos serviços não parece nunca alcançar respostas as necessidadesde saúde dos usuários.Para mudar, nosso projeto optou pela revisão daorganização sistêmica do território (novas ESF, redefiniçãode áreas), incorporando o conceito organizativo dos TEIAS(MS,20070, mas investindo fortemente em mecanismos deco-gestão e gestão participativa, no componente educaçãoem saúde e produção de inovações (na gestão, na atenção,na produção do conhecimento) para alcance do modelo deatenção proposto, tendo sempre como cenário o fortalecimentodo SUS.Quando da definição deste novo modelo de atenção egestão da atenção a saúde algumas prioridades foram estabelecidaspara a organização da atenção básica pela estratégiade saúde da família. Destaca-se:Gestão da Clínica e Vigilâncias em saúde:• Organização das demandas espontâneas por meio do acolhimento,com a definição de gradientes de risco e vulnerabilidadeaplicados a atenção básica.• Criação de espaços coletivos que contribuam para melhorgestão a partir da revisão e ampliação dos referenciais tradicionaisdo modo de se fazer clínica em que se considere também a dimensãosubjetiva das relações dos sujeitos implicados (profissional e paciente),a construção de projetos terapêuticos singulares e coletivos; alémda utilização dos clássicos protocolos clínicos normatizados pelo MSe SMSDC Rio de Janeiro.• Constituição de um Núcleo de Apoio à Saúde da Família- NASFcom profissionais de diferentes núcleos de formação, voltado para asnecessidades do mapa sanitário local e organizados segundo a lógicado apoio matricial;• Implantação de um Núcleo de Saúde Coletiva, cujas prioridadesforam: i) apoio matricial às ESF e a gestão local na análise de indicadoresde saúde, na definição de prioridades, na contratualização interna,ii) maior capilaridade e articulação das vigilâncias em saúde (epidemiológica,ambiental, saúde do trabalhador), iii) desenvolvimento de ações46


Território Integrado de Atenção à Saúde: a experiência do TEIAS Escola Manguinhoscomo um novo modelo de atenção e gestão na garantia do direito à saúde.coletivas de promoção, prevenção de saúde e controlede agravos dos indivíduos e do território;• Organização de novas rotinas e fluxos regulatórios(qualificação dos encaminhamentos ao SISREG– Sistema de Regulação), com núcleo interno de regulação,análise das filas de espera e demandas, visandootimizar a integração em rede e investindo em educaçãocontinuada.• Implantação do Registro Eletrônico em saúde, comoferramenta para qualificar a prática clínica e as ações coletivascom permanentes estratégias de monitoramento eavaliação.Gestão Participativa e Promoção da saúde:• Participação comunitária: para que a comunidadeatue como co-responsável pelo monitoramento e avaliaçãodas ações públicas em seu território, há movimento localde construção do Conselho Gestor Intersetorial e criação deestratégias de Comunicação (material informativo, site).• Investimentos em tecnologias de informação e comunicaçãovoltados aos diferentes atores- gestores, profissionais,pesquisadores, comunidade.• Intersetorialidade: articulação com outras políticas públicastais como a do próprio PAC, Programa Saúde na Escola.• Implantação de gestão colegiada cotidiana de todo o TeiasEscola Manguinhos• Proposta de um modelo de avaliação de desempenho dostrabalhadores.Discutindo o componente Escola do TeiasPara o TEIAS Escola Manguinhos, a abordagem territorialpara a promoção da saúde deve incorporar várias significações doterritório – espacial, geográfica, relações de poder, relações sociais,históricas e pessoais. A participação comunitária, entendida comprodução compartilhada de conhecimento e informação, faz com quecada micro-processo de trabalho torne-se um ato educativo. Pensarnum processo de participação-gestão que tenha como objetivo, nãoapenas a produção de bens ou serviços, mas também como um espaçocom função pedagógica e “terapêutica”. Um lugar onde se produziriaaprendendo.Nesta perspectiva, acreditamos que a pesquisa transformadora, quecontribua para a solução dos problemas e vulnerabilidades sócio-ambientaisdestes territórios, deve ser objetivada como um ato educativo. Um ato de47


Adriana Coser Gutiérrez, Elyne Engstrom e Gastão Wagner de Sousa Campostransformação dos sujeitos em e na ação. Ao contrárioda visão da pesquisa tradicional que coloca as classespopulares como objeto de estudo, a pesquisa como atoeducativo incorpora as pessoas das classes popularescomo sujeitos de conhecimento. Assim sendo está conectadaao ensino e a educação para a autonomia e paraa emancipação: um processo de a pesquisa-ação para acidadania que forme o cidadão investido do poder pararealizar escolhas, autônoma e conscientemente, de acordocom princípios morais e éticos, que contribua para ampliaras possibilidades de democratização da nossa sociedade.Cabe ainda destacar que a concepção de TerritórioEscola-Manguinhos assumido nesta proposta, toma comobase o conceito de Bairro-escola proposto pelo jornalistaGilberto Dimenstein em desenvolver um programa de educaçãopara a cidadania que estimule os alunos para além dosmuros da escola assumindo responsabilidades comunitárias.O conceito de Bairro-Escola parte de dois pressupostos.“O ato de aprender é o ato de se conhecer e de intervir emseu meio e que a educação deve acontecer por meio de gestãode parcerias, envolvendo escolas, famílias, poder público,empresas, organizações sociais, associações de bairro e indivíduos,capazes de administrar as potencialidades educativas dacomunidade”. Neste sentido o bairro passa a ser uma grandesala de aula. Segundo Pierre Levy, os processos educativos poderiamacontecer nos espaços da vida cotidiana, fortalecendo ocomponente social e humano local, com constituição de redes derelações, rede de aprendizagem e TEIAS de conhecimento.Além da educação junto à comunidade, investe-se na educaçãoprofissional, como componente ensino para atenção primáriano SUS, por meio de parcerias com universidades, como a Federaldo Rio de Janeiro (UFRJ) e o Departamento de Medicina Preventiva eSocial da Unicamp, com outras unidades e pesquisadores da Fiocruz,com a criação de um espaço coletivo de colaboração- Grupo de Trabalho.Os estágios curriculares, residência médica e multiprofissional,formação técnica dos agentes comunitários, educação permanentepara trabalhadores, curso de aperfeiçoamento “Ambiência em saúdeda família” são experiências em andamento e há outras previstas,como curso de preceptoria, matriciadores em atenção primária, mestradoprofissional. Além disso, o GT realizou levantamento dos projetosda Fiocruz e parceiros no território, apontando-se para a realização deum grande encontro, para pactuar conceitos norteadores para o ensinoe a pesquisa e integração de experiências. Revigorando o fomento àprodução do conhecimento e a integração, em 2010, a Fiocruz publica48


Território Integrado de Atenção à Saúde: a experiência do TEIAS Escola Manguinhoscomo um novo modelo de atenção e gestão na garantia do direito à saúde.edital colaborativo, e não competitivo, do Programade Desenvolvimento Tecnológico em Saúde Pública(PDTSP-Teias), para financiamento de projetos quetenham produtos aplicáveis à gestão e a abordagemecossistêmica dos territórios – de Manguinhos, aplicáveisa outras realidades brasileiras e ao SUS.Considerações finaisAcreditamos que o modelo proposto coloca a atençãobásica à saúde em exercício de centro coordenadorda atenção. Isso significa que, à exceção dos casos de urgênciae emergência, os fluxos e contra-fluxos das pessoassão organizados pela gestão local das Clínicas da família.Ou seja, é a partir das ESF se estrutura o atendimento e oacesso aos serviços especializados com efetivação de umaporta de entrada preferencial.Ressalta-se que a construção do projeto TEIAS Escola,desde a concepção do projeto até o acompanhamento de seudesenvolvimento, se dá através de um grande movimento demobilização social no bairro Manguinhos, envolvendo sociedadecivil (Fórum de Manguinhos que já existia anterior ao PAC),gestores e profissionais de saúde locais, gestores municipais(Como a Coordenação de Área Programática 3.1), estaduais, deoutras Unidades da Fiocruz e universidades parceiras, que garantema disseminação do conhecimento acumulado e as parceriasnecessárias para sua efetiva implantação. Todas as unidades daFiocruz estão sendo convidadas a repensar sua contribuição paraa saúde do território e das pessoas que nele habitam. Dessa forma,e como exemplo, o CSEGSF, departamento da ENSP, é convidadoa pensar seu modo de organização, atuando talvez como apoiomatricial às ESF ou um serviço de referência/especialidades, umcentro promotor de saúde por excelência, consolidando-se comouma unidade de ensino e a pesquisa na atenção primária.Compreendemos como um convite, a todos os profissionais, àreflexão e implementação de práticas efetivas e inovadoras na atençãoà saúde da população de um território definido, uma vez que ametodologia utilizada na implantação do TEIAS-Escola Manguinhosacontece a partir de um processo incremental e educativo.Os desafios são inúmeros e surgem a cada dia que passa, obrigando-nosa exercer a capacidade criativa cotidiana na compreensão esuperação dos mesmos, como para articular a rede de atenção à saúde,seja na qualificação dos trabalhadores, nas práticas intersetoriais ecomunitárias, enfim são diversos os desafios que tencionam a busca derespostas rápidas e qualificadas.49


Adriana Coser Gutiérrez, Elyne Engstrom e Gastão Wagner de Sousa CamposPor fim, podemos afirmar que sem dúvida algumapara a Fiocruz, o TEIAS Escola Manguinhos expressaum importante desafio e ao mesmo tempo umagrande oportunidade da busca e valorização do cenáriode significativa dificuldade sócio-culturais que é o territóriode Manguinhos, quando pretende-se a formaçãode recursos humanos articulados a prática em serviço epesquisa em saúde no contexto real de seu também próprioterritório no mais amplo sentido de pertencimento.Nota: As opiniões expressas neste artigo são da inteiraresponsabilidade do(as) autor (as).Referências BibliográficasBrasil. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS n. 648. PolíticaNacional da Atenção Básica. Diário Oficial da União 2006 mar.Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. Mais saúde:direito de todos: 2008 – 2011. 2. ed. Brasília: Editora do Ministérioda Saúde, 2008.Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde.Diretoria de Articulação de Redes de Atenção à Saúde. Redesregionalizadas e territórios integrados de atenção à saúde – TE-IAS. A estratégia: pressupostos, componentes e diretrizes (Propostade Documento para debate), 46p., 2009.Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamentode Atenção Básica. Brasília : Ministério da Saúde, 2009.160p.: il. – Série B. Textos Básicos de Saúde; Cadernos de AtençãoBásica; n. 27). Diretrizes do NASF -Núcleo de Apoio a Saúde daFamília.Campos GWS e Guerrero AVP (org.). Manual de práticas da atençãobásica. Saúde ampliada e compartilhada. Editora Hucitec, São Paulo,2008.COMISSÃO NACIONAL SOBRE DETERMINANTES SOCIAIS NA SAÚDE. AsCausas Sociais das Iniqüidades em Saúde no Brasil. Relatório Final 2008.Disponível em: http://www.cndss.fiocruz.br/pdf/home/relatorio.pdfFERNANDES, T. M. D. ; COSTA, Renato Gama-Rosa . Histórias de pessoase lugares: memórias das comunidades de Manguinhos. 1. ed. Rio deJaneiro: Fiocruz, 2009. v. 1. 230 p50


Território Integrado de Atenção à Saúde: a experiência do TEIAS Escola Manguinhoscomo um novo modelo de atenção e gestão na garantia do direito à saúde.Rio de Janeiro. Secretaria Municipal de Saúde e Fundaçãopara o Desenvolvimento Científico Tecnológicoem Saúde. Contrato de gestão no âmbito do territóriointegral de atenção à saúde (TEIAS) de Manguinhos.Documento oficial disponível nas instituições, 2009.Starfield, B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidadesde saúde, serviços e Tecnologia. Brasília: UNESCO,Ministério da Saúde, 2002.WHO, 2008. The world health report 2008: primary healthcare now more than ever.51


ArtigoDIREITOS HUMANOS NA CIDADEDOS EXCLUÍDOS: ESTRATÉGIA DE CI-DADANIAGina Ferreira** Mestre em Psicologia Social - UERJ, Doutoranda emPsicologia Social da Universidade de Barcelona; Coordenadorado Projeto Cinema na Praça/Intervenção naCultura - PETROBRÁS.Resumo: A autora descreve neste texto o projeto deIntervenção comunitária na área de política social de saúdeem Paracambi, cidade do Estado do Rio de Janeiro. Primeiro,faz um breve relato sobre o processo político da proteção socialno país e sua implicação no sistema de saúde, com especialatenção para o foco de saúde mental. Em seguida explica aorientação global, linhas de ação e avaliação do projeto e extrai,finalmente, as conclusões relevantes no conteúdo da metodologialúdico-comunitária e articulações de rede como influênciana promoção de políticas públicas.O projeto apresentado pela a autora, pretende contribuirpara a recuperação de uma cidade socialmente fragmentada peloimpacto dos sucessivos problemas econômicos através da inclusãosocial das pessoas internadas em condições desumanas em umgrande hospital psiquiátrico. Mas questiona, também, desiguaisacessos às políticas sociais que assegurem a qualidade de vida deuma população apática e desmotivada, superando assim o âmbitorestrito da política social da saúde. Mostra como a metodologiautilizada - projeção de filmes - pode ser uma nova maneira de integraçãomediada por mecanismos lúdicos e simbólicos que permitemcatalisar a subjetividade e retornar para os usuários dos serviços desaúde mental a capacidade de reconstruir seus sonhos e assumir ocontrole de seus destinos.Palavras-chave: intervenção comunitária; política social; proteçãosocial; saúde mental; metodologia.LES DROITS DE L´HOMME CHEZ UNE VILLE DESEXCLUS – des stratégies de citoyenneté.Resumé: L´auteur fait une description d´un projet d´intervention communitairedans le champs de la politique social en santé chez Paracambi – une53


Gina Ferreirapetite ville de l´État de Rio de Janeiro. D´abord, il estpresenté un bref rapport sur le processus politique de laprotection sociale au Brésil et ses effect dans le systèmede santé, particulierement en santé mentale. En suite, ilest expliqué la vision générale du projet, les directionsde l´action adoptées et le processus de son évaluation.Finalement, ils sont exposés les principales conclusions surla méthodologie de nature ludique-communitaire et lesarticulations disponibles dans le réseau social et son rôledans la promotion de politiques publiques.Le projet présenté par l´auteur vise à contribuer dansla récuperation d´une petite ville socialement fragmentéepar l´impact des succesives problèmes économiques, grâceà l´inclusion sociale des personnes hospitalisées dans desconditions humainement dégradantes d´un asile psychiatrique.Au même temps, l´auteur ne laisse pas de questionner l´inégalité de l´accès aux politiques sociales diponibles, un fortobstacle pour la production de la qualité de vie d´une populationapathique et sans motivation, ce que résulte en nécessitéde se surmonter les limites dominantes des politiques socialesen santé. La méthologie employée – c´est-à-dire, l´exibition defilmes – n´est qu´une démostration de qu´il est possible faireune construction sociale de nouvelles moyens d´intégration sociale,à travers de ressources ludiques et symboliques capablesde catalyser la subjectivité et assurer aux utilateurs des servicesen santé mentale la capacité de reconstruction de leurs rêves etdu contrôle de leurs destins.Mots-clés: intervention communautaire;politique sociale;protection sociale; santé mentale; méthodologie;54


Direitos Humanos na Cidade dos Excluídos: Estratégia de cidadaniaIntroduçãoEste artigo apresenta reflexões sobre um projetoconstituído por estratégias no campo da intervençãocomunitária, voltadas para facilitar a inserção socialde pacientes de longa permanência, originários de ummacro hospital psiquiátrico em vias de fechamento. Oobjetivo maior deste artigo é suscitar reflexão sobre oconjunto de ações que implicam na esfera dos DireitosHumanos o enfretamento de questões sociais como: odesemprego, a baixa renda e a desigualdade social,fatores que afetam todo um país, refletindo-se em suascomunidades, decorrentes da falta de investimento empolíticas sociais e cujos efeitos atingem, sobretudo, aárea de saúde. Estes indicadores, geradores de carênciassociais, são capazes de alterar gravemente o bem estar deuma comunidade, mudar seu perfil e criar uma cultura deexclusão, tal como aconteceu no Município de Paracambi,lócus do projeto aqui analisado.Para isso, devemos partir do pensamento que DireitosHumanos e Cidadania são uma única célula e que compreendea cidade como espaços de relações humanas não excludentes,espaços coletivos de política e sociabilidade para a realizaçãode uma cidade estruturada em ações de investimento ao desenvolvimentohumano, facilitadoras de relações que devempromover o bem-estar.Apesar de ser uma experiência piloto, ainda em processode construção, é importante que seja compartilhada e possa serdiscutida, contribuindo para o avanço de iniciativas neste campo edo aparato conceitual que lhe dá sustentação em sua viabilização.Políticas de Proteção Social: contextualizaçãoPoderíamos dizer que os primeiros passos da proteção socialsurgem no século XIX, na cidade de Ouro Preto, no Estado de MinasGerais, através da organização de uma cooperativa de trabalhadores.Os cooperados teriam direito a caixão e velório dando dignidade pelomenos à “hora de morrer” (Mesquita, Paiva, Filho e Martins, 2007).A seguridade social surgida a partir do século XX, já no EstadoRepublicano, tem como princípio o acesso exclusivo dado a seus associados;entendendo os benefícios como retorno da contribuição salarial.Com a organização de trabalhadores industriais, aumentam as reivindicaçõespor proteção social sem, no entanto, abrangerem os riscos sociais(doença, morte, acidentes) como responsabilidades do Estado. Em 24 deJaneiro de 1923 a assistência médica passa a ser a base fundamental de55


Gina Ferreiraproteção social, através da aprovação da Lei Eloy Chaves– Decreto nº 4.682, 2 , que regulamenta as Caixasde Aposentadoria e Pensões (CAPs) em cada uma dasempresas de estradas de ferro no país para os respectivosempregados, incluindo direito à assistência médica,descontos nos preços de medicamentos, aposentadoriase pensões 3 . A iniciativa legal, através do Decreto acima,confere ao Estado Republicano a responsabilidade naregulação de benefícios, principalmente da assistênciamédica. No entanto, o custo deste benefício era mantidocom 3% dos vencimentos dos servidores e 1% da rendabruta da empresa e de consumidores de seus produtos(Cordeiro, 2004).Posteriormente, já a partir de 1930, a regulação dasrelações de trabalho, comparece como um dos marcos napolítica de saúde na era desenvolvimentista de Vargas 4 . Emseu governo são criados — através do Decreto n° 22.872, de29 de junho de 1933, os Institutos de Pensão e Aposentadoriade acordo com cada categoria trabalhista (bancários, comerciários,marítimos) e entre os quais, de forma progressiva, sãoincluídas as CAPS.Os benefícios concedidos além da aposentadoria para osassociados dos Institutos incluíam pensão, em caso de morte, amembros da família, mas também, em alguns casos, concedia-seinternação e ajuda hospitalar por trinta dias além de socorros farmacêuticos,como por exemplo, aos associados à Caixa de Pensãodos Marítimos. Nesse Decreto a contribuição de cotas era chamadatripartite, ou seja, compreendia empregador-empregado-governo.Pode-se dizer que, por estas medidas, se concretiza a previdênciasocial no Brasil.O sistema de proteção social é consolidado sob a forma deseguro dos trabalhadores, garantido em Lei pelo Decreto nº 72, de21 de novembro de 1966, período da ditadura militar (1964-1984).Este reuniu os Institutos de Pensionistas e Aposentados no InstitutoNacional de Previdência Social (INPS). Através desse sistema, consolida-sea exclusão social dos indivíduos fora do mercado formal detrabalho. Tem-se por esta medida o sistema de cidadania regulada tãobem conceituada por Santos (1979), em que a falta de universalização2O presidente na ocasião era Arthur Bernardes, que governou de 15.11.1922 à 15.11.1926 (Fonte: http://www.planalto.gov.br/Infger_07/presidentes/gale.htm), acesso em 20/11/2009).3Já havia, anteriormente, as Caixas de Auxílio organizadas por servidores de diversas empresas, cujos benefícioseram derivados de cotas de contribuição dos trabalhadores voltadas para assistência em casos de doençase invalidez4Getúlio Vargas foi presidente do Brasil de 1930 a 1934 nomeado por uma junta militar e de 1934 a 1945através do voto indireto (parlamentar). Eleito em 1951 por voto direto, permanece no governo até sua morte em1954. Fez mudanças sociais e econômicas, criando os sindicatos de trabalhadores e os Ministérios do Trabalho,Indústria, Comércio, Educação e Saúde, ao criar um modelo centralizado de Estado.56


Direitos Humanos na Cidade dos Excluídos: Estratégia de cidadaniada assistência médica hospitalar aos desempregadose/ou trabalhadores informais cria uma cisão social: aassistência à saúde voltada somente para aqueles quepertencem ao mercado formal de trabalho e aos outros,a caridade a cargo de entidades religiosas e filantrópicascomo as Santas Casas de Misericórdia.Nesta mesma época (1964/1984) ocorre uma pretensamodernização institucional e financeira, mascarandoas deficiências nas áreas da saúde, educação e saneamentobásico. O Estado privilegiava políticas públicas firmadasna centralização das decisões do executivo federal, na diminuiçãogradativa dos recursos destinados à área social,na fragmentação institucional e na privatização do espaçopúblico. Estas ações, enquanto geradoras de crescimento naoferta de bens e serviços, representaram um retrocesso naspolíticas sociais. Na área da Saúde, este retrocesso ganhaforça durante a década de setenta, pelo domínio financeiroprevidenciário com a criação do INPS e pelo incentivo ao setorprivado, que resulta no mercantilismo da saúde.No entanto, no final do período ditatorial (fins da décadade 70 e meados década de 80), a crescente reivindicação pordireitos sociais faz eclodirem movimentos organizados, quetransformam as questões de ordem social em acontecimentospolíticos concretos, produzindo demandas para a efetivação deuma política social pautada pelo sistema democrático, desejadopara a vida pública do país.Redefinição do Setor de Saúde como PolíticaSocialEm 1985, com o fim do regime militar, configura-se o iníciode uma promessa de redemocratização, com expressiva proposta detransformação no campo da política social de saúde, prosseguindo-seatravés da 8ª Conferência Nacional da Saúde em 1986. A intençãodo evento era promover a saúde, tomando por base a melhoria dascondições da qualidade de vida da população através do reordenamentode políticas sociais como educação, moradia, alimentação, bem comoo direito à liberdade, cabendo ao Estado o papel de facilitador dessascondições. Reivindicava-se a criação do Sistema Único de Saúde (SUS)com a separação do Ministério da Saúde e o da Previdência Social. Estesistema estabelece diretrizes que permitiriam construir as bases essenciaisdas reformas sanitária e psiquiátrica, promovendo de maneira objetiva,a reformulação do setor de saúde com propostas efetivas de redefiniçãodas demais políticas sociais. O lema defendido é “a saúde como um direitode todos” e são adotados os seguintes princípios básicos: Universalidade;Descentralização e o Controle Social.57


Gina FerreiraA partir da 8ª Conferência foi elaborado um ProjetoConstitucional para ser apresentado na AssembleiaConstituinte (Neto, E. Rodrigues: 1988), que resultou naconcepção da saúde como direito universal e na criaçãodo Sistema Único de Saúde, condizente com os princípiosdemocráticos de descentralização e participação popular.Também foi estabelecida para o setor privado umapolítica que garantia a obediência às normas do PoderPúblico, conforme a Constituição Nacional aprovada em1988. A Lei Federal nº 8080 que criou os Sistemas Únicosde Saúde foi promulgada em 19 de setembro de 1990.A Constituição de 88 dá consistência legal aos DireitosSociais em seu artigo 6º que estabelece como direitosgarantia para todos “à educação, à saúde, ao trabalho, aolazer, à segurança, à previdência social, à previdência a maternidade,à infância” (2002). Estabelece também o saláriomínimo unificado e a vinculação deste ao piso dos benefíciosprevidenciários, não podendo o benefício ser inferior ao saláriomínimo ou substituir o rendimento do trabalho do segurado.É importante destacar a relevância da 8ª Conferência Nacionalde Saúde, para o estabelecimento dos fundamentos queembasaram a 1ª Conferência Nacional de Saúde Mental, realizadaem 1987. No encontro são apresentadas denúncias da violênciae dos maus tratos a que estão expostos os internos dos hospitaispsiquiátricos. Exige-se a Reforma Psiquiátrica. Para tanto se indicampropostas, que implicam na inversão do modelo hospitalarcustodial, através da progressiva diminuição de leitos hospitalares.Em 1990, a Organização Panamericana de Saúde promove aConferência Regional voltada para a reestruturação da psiquiátricana América Latina, qual resultou a Declaração de Caracas destacandoforte crítica ao papel hegemônico do hospital psiquiátrico eexigindo a preservação da dignidade pessoal e os direitos humanose civis nos recursos oferecidos (...) (OPAS, 1994).Com os resultados dessa conferência e substanciada no SUS,a política de saúde mental em 1990 inicia a Reforma da AssistênciaPsiquiátrica em direção a construção de novas formas de pensar efazer saúde. No entanto, é a partir de 1992 que a Reforma Psiquiátricaganha características mais definidas no campo sócio-político. Istose faz evidente durante a 2ª Conferência, quando há uma expressivapresença de representação popular, composta por usuários dos serviçosem saúde mental, que questionam o saber psiquiátrico e o dispositivotecnicista, frente a uma realidade que só eles conhecem. Pedem o fimdo manicômio através da criação de equipamentos e implementação de58


Direitos Humanos na Cidade dos Excluídos: Estratégia de cidadaniarecursos não manicomiais como centros de atençãodiária, residências terapêuticas, e cooperativas de trabalho,como dispositivos da rede pública de assistênciaà saúde mental.Apresentam-se então os princípios fundadoresda Reforma Psiquiátrica, expressos pelo desafio ético,presente em todos os domínios da vida. Fortalecidospelo contexto político-ideológico das novas propostas, semultiplicam as denúncias sobre a péssima qualidade daassistência prestada nos hospitais psiquiátricos, exigindo-seo fechamento dos macro-hospitais, ao mesmo tempo emque se inicia a planificação do novo modelo de assistência.Este seria norteado pela construção de novos dispositivosterapêuticos, priorizando a inclusão social e permitindo visualizara desconstrução dos manicômios. O processo estratégicopara o desmonte da cultura institucional fundamenta-se noconceito estratégico da desinstitucionalização 5 . Em 2001 há aaprovação da Lei Federal nº. 10.216, de 6 de abril, instituindoa reorientação do modelo assistencial e regulamentandoa internação psiquiátrica compulsória. O espírito da ReformaPsiquiátrica se expressa forma clara nesta Lei:“II – Ser tratada com humanidade e respeito e nointeresse exclusivo de beneficiar sua saúde, visandoalcançar sua recuperação pela inserção na família,no trabalho e na comunidade;”A breve exposição do contexto histórico político, criou as premissasnecessárias para a apreensão da proposta deste trabalho —relatar experiência de intervenção social, constituída como suporteà desistitucionalização de pacientes psiquiátricos, com histórico delonga internação, durante processo de fechamento do maior hospitalpsiquiátrico do país, localizado no município de Paracambi.A cidade e o manicômioO município de Paracambi tem 43.011 habitantes distribuídosem área de 186,8 Km 2 . Localizado na região metropolitana do Estadodo Rio de Janeiro, dispõe de poucos recursos orçamentários, tendo sofridocom a falência, quase que simultânea, das grandes empresas quemovimentavam a economia local, com maior relevância para a FábricaBrasil Industrial, fundada em 1874. Esta era responsável pela canalizaçãoda água, pela luz elétrica e mais tarde pela construção de escola,5Rotelli (2001, p.29) sintetiza como o processo de desinstitucionalização: “(...) um trabalho prático de transformaçãoque, a começar pelo manicômio, desmonta a solução institucional existente para montar e desmontar (epara superar) ou o problema. (...) a terapia não é compreendida mais que o como a perseguição da solução--cura, mas como um conjunto complexo, e também cotidiano e elementar, das estratégias indiretas e imediatasque enfrentam o problema na questão através de um percurso crítico nas maneiras de ser do tratamento dopróprio”.59


Gina Ferreiraclubes e usina elétrica. Outras indústrias localizadasno município utilizavam 1250 operários. No total,o município possuía quatro indústrias que geraramdesenvolvimento e emancipação político-econômica esocial, em 1960 (GULJOR, VIDAL: 2008).Com a falência industrial no Município, coincidentementesurge o grande manicômio, considerado omaior asilo hospitalar da rede privada, na América Latina(Casa de Saúde Dr. Eiras). A entidade passa a ser o póloempregador do município e se institui no imaginário popularcomo centro de convergência da economia local. Éprocurado tanto pelos que buscam empregos quanto pelosque buscam no diagnóstico psiquiátrico, a possibilidade debenefícios. Chegou a gerar 800 vagas de emprego e ocuparo lugar de maior contribuinte tributário, comparecendo com35% da receita municipal. Instaura-se no município uma culturaasilar, cimentada no sofrimento humano. A cidade perdeseu instrumento de poder social transferindo o seu centro depoder. As festas cívicas e culturais da localidade passarama ser realizadas no espaço interno da Casa de Saúde e nãomais em praças públicas, ao mesmo tempo em que os quatrocinemas locais, equipamentos usados como fonte de lazer, nãoconseguem subsistir, indo à falência até seu fechamento.A Casa de Saúde Dr. Eiras passa a nortear o modo de vidada cidade imprimindo um outro olhar sobre si própria e sobre:o hospício, que passa a ser o seu retrato abstrato. Este fato podeser apreendido pelo conceito de estrutura, semelhante à que MaxWeber chama de “cidade principado” (1979), ou seja, uma cidadeonde a capacidade produtiva de seus habitantes depende diretaou indiretamente do poder aquisitivo da grande propriedade dopríncipe. No caso aqui analisado, o município depende direta ouindiretamente do grande manicômio. A Casa de Saúde Dr. Eiras deParacambi é um macro hospital psiquiátrico conveniado com o SUS,chegando a abrigar 2.500 pacientes na década de 80.Pelas condições degradantes que oferecia aos internos foi decretadaintervenção técnica e gerencial na Instituição por exigênciado Ministério Público, em 17 de junho de 2004, praticamente trêsdécadas depois de sua implantação. A medida contou com o apoio ea articulação das três instâncias executivas do Sistema Único de Saúde— Município, Estado e União.Segundo relatório técnico da equipe que fez parte do processo deintervenção, apresentado em dezembro de 2004, a situação encontrada aochegarem à Casa de Saúde Dr. Eiras de Paracambi, ultrapassava o limite donão humano. A parte física do manicômio continha habitações sem janelas,60


Direitos Humanos na Cidade dos Excluídos: Estratégia de cidadaniamal ventiladas, refeitórios escuros e com estruturas emcimento aparente, pátios internos estreitos com piso emdeclive direcionados a uma canaleta central destinadaao escoamento de excrementos, depositados rotineiramenteno chão. Os colchões e roupas de cama eramem menor número do que o contingente de pacientes.Os internos estavam em sua maioria com desnutriçãonutricional, em péssimas condições de higiene e sanitáriasque agravavam o curso endêmico de infecções. Tambémse apresentavam despidos e com marcas corporais reveladorasda extrema violência das práticas institucionais(Levcovitz ). Este quadro de horrores, foi revelado tambémpela mídia nacional, a sociedade brasileira exigiu uma posiçãomais urgente do Governo. Já se encontrava em curso,através de gestores do Sistema Único de Saúde assim como derepresentantes do Ministério Público, medidas implementadaspara executar a intervenção técnica e gerencial.Intervenção ComunitáriaPara além das medidas internas ao processo de fechamentoda Casa de Saúde, viu-se a necessidade de ampliar oolhar da desinstitucionalização, extramuros. Seria fundamentalenvolver todos os atores locais, para que tivessem um compromissoreal e fossem partícipes da nova situação.Uma vez que o retorno à sociedade é a orientação daspolíticas públicas em saúde mental, o manicômio em Paracambi,atualmente, está sendo gradativamente desocupado e substituídopor uma rede de serviços independentes, como por exemplo, aconstrução de 21 residências terapêuticas. Essa nova perspectivade vida, que implica em construir novos espaços e devolver aosantigos moradores da Casa de Saúde uma participação integradana cidade, exige compromissos e posições que enfrentem os desafiostrazidos pela reconstrução do novo paradigma da assistênciapsiquiátrica e de sua planificação.A cidade, com seus territórios e comunidades, passa a ser entendidacomo recurso terapêutico e como referência imprescindívelna construção das relações sociais. Atividades que permitam maiortrânsito dos antigos moradores da Dr. Eiras, no espaço urbano, fazemda cidade um importante protagonista no processo de reabilitaçãopretendido e na recuperação das condições de cidadania.Segundo a reflexão de Garcia, durante a Primeira Jornada sobreDireitos Humanos e Saúde, o tema sobre os direitos dos grupos com maiorprecariedade social é visto com indiferença pelos mais privilegiados pornão se identificarem com essa realidade. Para uma eficaz estratégia de61


Gina Ferreirapolítica de integração social, seria indispensável umaintervenção na comunidade que toque/transforme oimaginário social, para que as reivindicações possamser assumidas como compromisso por todos, estabelecendo-seassim uma pauta de condutas públicas marcadapela cidadania. A cidadania implica na relação decompromisso com a cidade; implica na forma pela qualela se desenvolve. Uma cidade pode ser consideradahumanizada quando esse desenvolvimento correspondeàs necessidades reais de seus habitantes (Veciana, I. &Olivé, R.: 2002).O contexto social da cidade de Paracambi, sofreu pordécadas influência de um poder negativo propiciando a produçãode doenças e desajustes sociais tanto no real quantono simbólico das representações da comunidade sobre acidade e sobre si próprios.O fechamento e quebra financeira sucessiva das unidadesfabris, que fortaleciam o poder social e mantinhamrelações sócio-afetivas no cotidiano da comunidade, criou umperfil de passividade entre os moradores, sem questionamentoou reflexão crítica, frente aos problemas sociais. Kelly e outros(in Sanchez: 2007) “define a intervenção comunitária como influênciana vida de um grupo, organização ou comunidade paraprevenir ou reduzir a desorganização social e pessoal e promover obem estar da comunidade” 6 . Considerando essa definição tornou--se importante uma abordagem de mediações na comunidadeonde se conjugam multiplicidade de ações, com potencialidadepara resgatar habilidades e superar adversidades, propiciando aconquista de direitos. Em Paracambi a falência das fábricas traz aconcentração do desemprego, causando o desequilíbrio econômicoe social, e a única alternativa possível passa a ser um grande manicômiotanto na oferta de trabalho quanto na seguridade social. Nãohouve efetividade na promoção da qualidade de vida da população,tanto do ponto de vista econômico, social ou emocional.Uma abordagem sistêmica trabalharia a reintegração de formaglobal sem fragmentação dos grupos societários. Segundo Camarotti(2005) a concepção sistêmica percebe o mundo através de relações eintegração, valoriza o todo e as relações com as partes que o constituem.Sendo assim o todo é o resultado de uma relação com seus constituintese não com a soma deles.A utilização de estratégias de empoderamento na intervenção comunitáriatorna-se importante, uma vez que atinge o ponto crucial de6Tradução da autora.62


Direitos Humanos na Cidade dos Excluídos: Estratégia de cidadaniatransformação, ou seja, o desenvolvimento da autonomia.Esta significa a capacidade dos indivíduose grupos poderem decidir sobre as questões que lhesão próprias, seja através do campo político, culturalou econômico. Dessa forma, empoderar, nesta concepção,significa também abrir canais de participação davida institucional em espaço público e distribuir forçasde poder, dos mais fortes para os menos favorecidos.Nesse sentido qualquer ação emancipatória deve estarjunto às demandas sociais, seja através dos sujeitos, oudas organizações, significando resistência à dominação econtribuindo para a equidade social.O projeto: Cinema na PraçaEm 2004, época em que se inicia a intervenção na Casade Saúde Dr. Eiras e frente a nova contingência da retiradagradativa dos pacientes da instituição para habitarem casaspopulares alugadas pela prefeitura do município, verificou-sea importância de se construir projeto de inclusão ao convíviosocial. Este projeto é voltado para os pacientes internados,em processo de alta, e também deveria motivar a reflexão epossibilitar o esclarecimento sobre as condições de vida dosportadores de sofrimento psíquico, como forma de transformar amaneira como a sociedade lida com a loucura e com as pessoasvinculadas ao manicômio.Utilizando o cinema como instrumento de intervenção paramodificar o imaginário social sobre a loucura e sobre os meiosde tratamento excludentes, o projeto busca trazer a inclusão socialpara um grupo duplamente excluído – pelos longos anos deasilamento forçado, cronificados por uma prática de total afastamentodo convívio social e também vitimados pelo preconceito quea desinformação sobre o sofrimento psíquico provoca na sociedade.O projeto está no momento em sua terceira e última fase derealização, A primeira edição consistiu em se exibir mensalmente,uma seleção de filmes brasileiros, escolhidos por uma competentecuradoria, na principal praça da cidade de Paracambi. Equipamentosde ótimo nível garantem uma projeção de qualidade, que funcionacomo catalisador para o encontro entre a população local e os usuáriosda Casa de Saúde Dr. Eiras, portadores de sofrimento psíquico. Nesseespaço de convívio em torno de uma atividade cultural, da qual a regiãoé carente, a interação entre esses dois grupos, separados por décadas,propicia uma transformação que vem de encontro à valorização da cidadania,sob a forma de aceitação e solidariedade. Também desejávamosque a conexão entre intervenção e cinema, proporcionasse outros efeitos eque a experiência vivida construísse o dialogo com o mundo, o ser humano63


Gina Ferreirae a natureza. Para isso seria importante que os nossosobjetivos não fossem totalmente restritos, mas que sedeixassem seguir livremente, sem fronteiras e sem fim,como o conceito imagem definido por Cabrera (2006).Este conceito concerne em viver uma experiência “semcontornos totalmente nítidos e definitivos, uma espéciede encaminhamento no sentido de, “pôr-se a caminho”numa direção compreensiva, mas sem fechá-la, e que aexperiência vivida levasse a um impacto emocional”.As sessões foram realizadas em um sábado por mês,durante doze meses. Percorríamos os pavilhões da Casade Saúde Dr. Eiras e reuníamos os pacientes previamenteescolhidos pelos coordenadores. Um dos critérios de participaçãono projeto, definido pela equipe da instituição, eraque seriam participantes das sessões, os pacientes que nãoestivessem em crise e desejassem ir ao cinema, incluindoaqueles de difícil locomoção. Nosso contato com os pacientes,antes das sessões de cinema, tinha a finalidade de estabelecervínculos com o grupo, conversando sobre o filme para facilitara compreensão. Também era importante que soubessem quea nossa responsabilidade de levá-los ao evento, seria compartilhadacom eles de forma natural e dentro das possibilidadesde cada um. Em seguida, eram conduzidos pelos cuidadores ouauxiliares de enfermagem (dois encarregados para cada oitopacientes) à portaria da instituição, onde um ônibus contratadopelo projeto os aguardava. Ao mesmo tempo uma Kombi percorriaos pavilhões onde existiam pacientes com deficiências físicas maisseveras, e os levava à praça. Esta estava adequadamente arrumadapela equipe técnica do núcleo de projeção, para comportarestes pacientes,As ações do projeto se completam nesta fase, como dito anteriormente,com uma curadoria 7 de cinema tendo como objetivo aseleção criteriosa dos filmes. As sessões, fotografadas em tecnologiadigital, para documentação ao longo do processo, geraram uma exposição8 para tornar público todo o processo do evento fotográfico.Para avaliar o impacto das exibições no imaginário social da comunidadelocal sobre a loucura e sobre a presença dos internados navida da cidade, foi estruturada uma pesquisa de opinião pública 9 , quecomentaremos mais adiante.7Cineduc-- filmes brasileiros escolhidos considerando o critério de qualidade.8Exposição “O Hospício é Deus” no Museu Bispo do Rosário, fotografias de Freddy Koester, curadoria WilsonLázaro, Flávia Corpas e Ricardo Aquino.9Núcleo de Opinião Pública, coordenação: Flávia Ferreira, publicitária especialista em Opinião Pública pelaUERJ.64


Direitos Humanos na Cidade dos Excluídos: Estratégia de cidadaniaEfeitos do cinemaO cinema além de seu caráter específico demeio de comunicação, é considerado por vários teóricoscomo um forte instrumento de ação política. ParaCarrière (1994), os filmes não existem apenas na tela eno instante de sua projeção. Eles se mesclam às nossasvidas, influem na nossa maneira de ver o mundo, consolidamafetos, estreitam laços, tecem cumplicidade. Marina,durante seu longo tempo de internação, frequentementeapresentava sintomas de auto e hetero agressão, talvezmovida pela angústia de não sentir o próprio corpo. Ainda,levada pelo desespero de sentir a vida dolorosamentevazia ou mesmo ausente, batia a cabeça sobre as paredesou pedia às companheiras que fosse ferida com uma pedra.Certamente não era nunca escolhida pela equipe deseu pavilhão para ir ao cinema. Em uma das vezes em quepercorríamos o pavilhão ao passar por ela reparamos queestava bem vestida, aguardando para ir ao cinema. No entanto,fomos prevenidos pela equipe que por seu comportamentonão era aconselhável sua inclusão no grupo de expectadores.Retiramos-nos e ao longe, escutávamos os gritos de Marina :“Cinema, cinema, quero cinema”. Esta atitude parecia algo maisque mera imitação de comportamento, repetição de palavrasditas por outras companheiras ou mesmo um simples desejode sair da enfermaria, mas parecia sim, nos pedir cumplicidadepara crer em direitos, igualdade, humanidade e vida. Decidimosbuscá-la e assumir a responsabilidade frente à equipe dopavilhão. Durante a sessão Marina assistiu silenciosamente, e, deforma gentil, ofereceu pipoca às companheiras próximas dela. Foisolidária, foi humana, foi cúmplice. Não faltou mais a nenhumasessão de cinema.Se para o projeto de intervenção comunitária utilizamos o cinemacomo instrumento, obtemos como recurso, a força das imagensexpostas na tela. Isso ficou patente na reação de uma paciente naapresentação do filme “Deus é Brasileiro” de Cacá Diegues. Durantea cena em que caía forte pancada de chuva, a paciente que acompanhavao filme com grande atenção, num “gesto de fidelidade àimagem” 10 , deixou uma de suas mãos deslizar ao lado da cadeira atéalcançar o interior da bolsa apoiada no chão. Dali, retirou o guardachuva e o abriu, permanecendo abrigada, quase imóvel, até que numdado momento a cena se transforma e o céu aparece límpido na tela.A paciente/expectadora fechou o guarda chuva e o guardou novamentena bolsa, voltando o olhar, tranquilo e fiel à imagem na tela. Quando,10Comentário de Wladimir Dias-Pino à autora, sobre o relato da cena durante um encontro casual na Galeriado lago do Museu da República (2006)65


Gina Ferreiraencerrado o filme, a paciente foi indagada, por umacolega de equipe, sobre o motivo de seu gesto - “Vocêabriu o guarda chuva porque estava chovendo?” – “Masa chuva era dentro ou fora do filme?”. Ela respondeu comar perplexo: ”No filme é claro!” A imagem foi tão forte,que antecedeu a palavra tornando-se a sua metáfora.Reconhecido como arte em movimento por Júlio Cabrera(2006), plateia e personagem interagem e contracenamsilenciosamente.A Opinião da Cidade: avaliaçãoA pesquisa de opinião pública foi realizada em trêsetapas, uma antes da primeira sessão de cinema, umalogo no início do projeto e outra logo após o 12º mês, paraavaliar o resultado dessa interação e sua influência sobrea representação da loucura no imaginário popular. Para olevantamento de dados foi realizada pesquisa quantitativa,através de questionário estruturado, contendo perguntasabertas e fechadas. O universo da pesquisa foram moradoresde Paracambi, totalizando 800 entrevistas,( 20% da populaçãototal) realizadas em pontos de fluxo, segmentadas por idade enúmero de habitantes por região pesquisada, o que possibilitou95,5% de coeficiência nos resultados. Vale ressaltar que os entrevistados(homens e mulheres) possuíam mais de 20 anos deidade, sendo todos moradores do município de Paracambi e nãoapresentavam vínculo empregatício nem com a Prefeitura Municipale nem com a Casa de Saúde Dr. Eiras. Foram segmentadosconforme o Censo IBGE 11 2000. Apresentamos abaixo, a tabelade perfil dos entrevistados:11Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas.66


Direitos Humanos na Cidade dos Excluídos: Estratégia de cidadaniaRegiãoEntrevistadosLages 302Amapá 16Cascata 8Capinheira/Raia/Quilombo 32Zona Rural 16Bom Jardim 8Jardim Nova Era 32Guarajuba 64BNH 40Sabugo/F. Sabugo/Vila Nova 80Centro/Cope/Fábrica/Barreira 202Total 800Antes da realização efetiva do trabalho de campo queresultou nos dados obtidos, foi feito um pré-teste para verificara adequação do instrumento de coleta de dados. Depois de realizadoesse processo de aplicação dos questionários no pré–teste,algumas perguntas foram inseridas e/ou modificadas. Todo otrabalho foi supervisionado por equipe especializada, tanto emcampo, quanto, posteriormente também no escritório, na análisedos resultados obtidos. O objetivo era eliminar qualquer errocontido na coleta de dados, uma vez que o questionário deve sereferir à amostra, ser legível, perfeito, coerente e claro. Uma vezconcluído o trabalho de coleta de dados e avaliação crítica de todo omaterial obtido, 20% da amostra, por região territorial, foi analisado,antes que os resultados fossem codificados e houvesse a digitaçãodos questionários.Pessoas consideradas anormais pela sociedadepoderiam frequentar a comunidadePara ajudar o tratamento deveriam realizar atividadescomo pintar, estudar, plantar e etcConsideraram que o doente mental tem o direito defrequentar o lazer comunitário como praças, shows,exibição de filmes89%96%95%Os loucos são agressivos 32%Os loucos são capazes de trabalhar 45%Consideraram péssima a Casa de Saúde Dr. Eirasjustificada por descuido e maus tratos aos pacientesConsideram as residências terapêuticas equipamentosde qualidade para o tratamento psiquiátrico70%85%67


Gina FerreiraConcordam com o fechamento da Dr. Eiras e atransferência dos pacientes para as residênciasterapêuticas63%Conhecem o projeto Cinema na Praça 94%Consideram o projeto Cinema na Praça muitoimportante89%48% por considerar que a convivência com a populaçãoajuda no tratamento e ficam mais sociáveis41% por considerar o Cinema lazer, cultura dando aeles o mesmo direito que o resto da populaçãoOpinaram sobre a intervenção e chegaram a conclusãoque a palavra fechamento é forte e significativa84%Dos dados colhidos obtivemos os seguintes resultados:Pode-se verificar que há um consenso sobre a inserçãodos pacientes nas atividades propostas e sobre o projeto.Ressalte-se que 32 % ainda consideram os “loucos” agressivos,mas estão dentre os 90% que aceitam a integração dospacientes em várias atividades comunitárias.Do Principado ao Estado de Direito.A palavra “fechamento” para a cidade de Paracambi trazà memória a exclusão e, como consequência a marginalizaçãosocial, vivida pela população do município, como resultado do“fechamento” das fábricas e o sofrimento pela ausência de mercadode trabalho dinâmico na localidade aqui citada.Considerado este indicador, foi realizado junto à equipe desaúde coletiva, um diagnóstico situacional nas regiões de maiorprecariedade socioeconômico cultural do município: Constatou-senos resultados a presença de altos índices, índice de diabetes, dehipertensão arterial, de abuso de álcool e outras drogas, de casos deviolência doméstica e abuso sexual infantil, alta demanda de buscapor benefícios, negligência no uso da medicação com propósito deobtenção de benefícios sociais de aposentadoria, causando incidênciade óbitos por AVC. Tornou-se fundamental a construção de uma redede recursos internos e externos ao município que pudesse conduzirprocessos de mudança na qualidade de vida do conjunto da populaçãode Paracambi.Na segunda fase do projeto ficou evidente para a equipe, a necessidadede trabalhar para reconstrução de identidade comunitária, e, portanto,seria importante a realização de ações coletivas, que permitissemum processo de conscientização frente à realidade vivida pela populaçãocom o desemprego aumentando pelas mudanças no manicômio, e suas68


Direitos Humanos na Cidade dos Excluídos: Estratégia de cidadaniaconsequências adversas.A segunda edição do projeto, então, passa a terabrangência ampla com o objetivo de:• Contribuir para formação de identidades de atoressingulares facilitando uma identificação coletiva.•Aumentar o cooperativismo intra-social através deparcerias internas e parcerias externas no município parapropiciar a formação de uma teia organizadora;•Incentivar a população a ocupar os espaços públicospara assuntos de interesse coletivo objetivando a emancipação.Nesta fase a preocupação constitui-se em estabelecercompromissos entre as ações coletivas e os principais atoresque pertencem à comunidade:- inclusão de ações de poder aglutinante - oficinas de vídeonas escolas públicas, como forma de desenvolver nos jovensestudantes o senso crítico necessário à participação mais efetivana vida comunitária;- oficinas de reciclagem de papel em praça pública, comreflexões sobre o meio ambiente e sua preservação, ênfase numaação positiva do ser humano em relação à natureza, buscandoreforçar o sentido de pertencer àquela localidade, ao país e aoplaneta, e o aumento da autoestima;- performances teatrais que, por seu caráter lúdico e inusitado,vão possibilitar uma abordagem mais efetiva no que diz respeitoà diversidade cultural, ponto-chave que leva a uma compreensãomaior sobre o outro, sobre a alteridade, sobre a diferença, o quenos remete ao ponto de partida do projeto;- Criação de um programa de rádio para informações sócio--educativas e abertura de canais para participação interativa do público69


Gina FerreiraCria-se um ciclo de atividades que se reforçammutuamente.As novas ações criadas pelo projeto induziram anovos interesses da população quanto ao fechamentodo hospital psiquiátrico, desvelando-se a possibilidadede desapropriação do terreno da Dr. Eiras, e sua transformaçãoem um bem público, iniciando-se com esseobjetivo uma campanha ainda lenta. Esta conquistatambém depende do interesse e da participação de outrosníveis do governo, para sua concretização.As parcerias do projeto foram ampliadas para atenderàs solicitações de um posto de saúde em área de grandecomplexidade social, com o acolhimento ao grupo de mulheresvítimas de violência doméstica.Através de rodas de discussão com profissionais da áreade saúde mental, percebe-se o interesse maior do públicopelas ações do projeto.Também são realizadas filmagens com personalidadesda cidade a respeito de: espaços históricos e eventos locais. Ainiciativa de editar o vídeo e apresentá-lo antes da exibição decinema tem como objetivo aguçar a auto-estima da população,fortalecendo a importância da cidadania e do vínculo com acidade.O projeto tem provocado interesse dos comerciantes dacidade, na utilização do espaço no entorno do local dos eventos.Eles têm se disponibilizado em usar camisetas com a logomarca doprojeto, nos dias da exibição dos filmes, demonstrando interessepor uma participação ativa no evento.Com a relação de confiança que se inicia junto à população,amplia-se a dinâmica de atuação, incrementando a parceria firmadacom as instâncias do poder público. É promovida a organização eapresentação de debates de profissionais, abertos à população, sobreabuso sexual infantil e outros agravos contra as crianças e adolescentes,detectados no diagnóstico e que necessitam a presença de uma redede entidades e ações voltadas para a proteção da infância.Dessa forma, nos setores da educação, no do meio ambiente, no decultura e turismo e no desenvolvimento social entre outros, são organizadasações com participação popular, com temas que permitam, através de discussãoe publicização, conscientizar os participantes e mudar a realidade domunicípio. A múltipla produção de instrumentos de intervenção comunitáriadesperta maior dinâmica social e constrói estímulos para agilizar mudanças.70


Direitos Humanos na Cidade dos Excluídos: Estratégia de cidadaniaConsiderações FinaisNo processo histórico-político do Município deParacambi a ausência de trabalho como princípio básico– para a qualidade de vida da população residente —produz na comunidade a incapacidade de se autogerirfrente as necessidades essenciais para viver de formadigna . Esta situação cria focos de tensão no meio social,provoca a sua desorganização e desenvolve uma culturaassentada na exclusão dos menos favorecidos em qualqueraspecto: físico, financeiro, etário, étnico e de gênero.Motivos suficientes para justificar, segundo Sanchez(2007)a intervenção comunitária, com a intenção de resgatarperdas sociais e diminuir a desigualdade, antagônicasao princípio essencial dos Direitos Humanos.No entanto, para vencer a resistência simbólica de umacultura de exclusão é necessário transformar a lógica emque essa cultura foi produzida. Muitas vezes na intervençãocomunitária é necessário usar artifícios de mediação, comoa imagem cinematográfica, no projeto aqui apresentado,considerando como fundamental: a construção coletiva da autoestima,do sentimento de pertencimento da comunidade e aparticipação social que permite resgatar o contrato social e restabelecero Estado de Direito do qual a população fora privada.Na terceira e atual edição o projeto manteve o cinema empraça pública como marca original, mas foi acrescida uma novaação que desse possibilidade de multiplicar a ideologia para umacidadania ampla e a sua sustentabilidade quando não houver maisa presença do projeto, prevista no final desta terceira edição: acriação de agentes comunitários que devem atuar como atores naconstrução de equipamentos e ações de tecnologia social voltadospara o desenvolvimento humano do município, aliando o projeto auma dimensão maior na construção de políticas públicas.Não sabemos ainda o que encontraremos ao final do projeto,quando outra pesquisa de opinião pública será realizada. Mas, desejamosconseguir ao menos, durante as sessões de cinema, que apopulação ali sentada, ao lado daqueles anteriormente reconhecidoscomo pacientes psiquiátricos e, tomados pela imagem da tela, ajamcomo se as duas cenas (dentro e fora), se integrassem numa única experiência,plena e universal, construindo uma memória duradoura queterá por função mesclar a arte com a vida, a loucura com a cidadania, adiferença com a igualdade.71


Gina FerreiraNota: As opiniões expressas neste artigo são dainteira responsabilidade da autora.Referências BibliográficasCabrera, J. (2006): O Cinema Pensa: Uma Introdução àFilosofia Através dos Filmes, Rio de Janeiro, Rocco.Camarotti, M.H.; Silva, F.R.S.; Medeiros, D.; Lins, R.A.;Barros, P.M.; Camarotti, J.; Rodrigues, (2005) A. Instituição:Movimento Integrado de Saúde Mental Comunitária do DF(MISMEC-DF) Terapia Comunitária: Relato da Experiênciade Implantação em Brasília – Distrito FederalCarrière, J. C. (2006): A Linguagem Secreta do Cinema, Ríode Janeiro, Nova Fronteira.Constituição da República Federativa do Brasil, (2002).Org.Claudio Brandão de Oliveira -10ª Ed. RJ – DP&ACordeiro, H. O Instituto de Medicina Social e a luta pela reformasanitária: contribuição à história do SUS. Physis, [periódicoon-line], n. 14, v. 2, p. 343-362, 2004. Disponível em: . Acesso em:11 nov. 2009.Levcovitz S. (2004) – Sumário Executivo - Relato Técnico – DireçãoClínica (mímeo) ,RJGarcía, J. (2002): “Taula Rodona: Drets Humans i Salut Mental”,ponencia presentada en las Primeres Jornades sobre Drets Humansi Salut mental, Barcelona, Ayutament de Barcelona.Guljor, A. & Vidal, C. (2008): Centro de Atenção Psicossocial VilaEsperança-uma estratégia de suporte a desinstitucionalização, Rio deJaneiro, (mimeo).Kelly, J.G., Snowden, L.R. Muñoz, R.F. (1997): Social and community interventions.Annnual Review of Psycology, 28. in A. Sánchez Vidal (2007)LeI Federal 1º 10.216 www.saude.gov.br/biblio/texto integralMesquita, J., Paiva, A., Filho, A. & Martins, R. (2007): Seguridade Social eo Financiamento do Sistema Único de Saúde no Brasil, Brasilia, Ministérioda Saúde.72


Direitos Humanos na Cidade dos Excluídos: Estratégia de cidadaniaOrganización Panamericana de Salud (OPAS) (1994):“Reestructuración de la atención psiquiátrica en AméricaLatina”, Boletín Informativo, nº 4.Rodriguez Neto, E .(1988) Saúde: promessas e limitesda Constituição., (Tese de Doutoramento — Faculdadede Medicina da USP). São PauloRotelli, F. (2001) Desistitucionalização: uma outra via.A Reforma psiquiátrica Italiana no contexto da EuropaOcidental e dos “países avançados”. in F. Nicácio, Desistitucionalização,São Paulo, Hucitec PP 17-59.Sánchez Vidal, A. (2007): pp 226 Manual de Psicología Comunitária.Un enfoque integrado, Madrid, Pirámide.Santos, W. (1979): Cidadania e justiça, Río de Janeiro, Campos.Veciana, I. & Olivé, R. (2002): “Discurs D´Inauguració”, ponenciapresentada en las Primeres Jornades sobre Drets Humans iSalut Mental, Barcelona Ayutament de Barcelona.Weber, M.(1921): “Conceito e Categorias da Cidade”, traduçãode Peixoto, A.C. in Velho, O.G.: (1979) “Conceitos e Categoriasda Cidade”, Río de Janeiro.73


ArtigoPRIMEIRA INFÂNCIA EM MO-ÇAMBIQUE, CONSTATAÇÕES E DE-SAFIOSCarla Ladeira** Gestora de Projectos de Apoio Psicossocial e DesenvolvimentoComunitário na Organização Não GovernamentalDouleurs sans Frontières em Moçambique.Com formação especializada em terapia da fala e arteterapia, é assessora pedagógica no Instituto Superior deCiências da Saúde em Moçambique.carla.ladeira@gmail.comResumo: O presente artigo tem como objectivo explorara questão do atendimento à criança na Primeira Infância,em especial na condição de vulnerabilidade, considerandobases teóricas, constatações locais e a família como elementopilar de qualquer intervenção. Pretende uma análise histórico--cultural do contexto moçambicano e da prática desenvolvidaem centros de reabilitação infantil na província de Gaza.Palavras Chave: Criança, Família, Vulnerabilidade, Deficiência,Educação, Perspectiva Sistêmica, Intervenção Precoce,Rede de Apoios, Análise Relacional DialógicaEARLY CHILDHOOD IN MOZAMBIQUE: FIN-DINGS AND CHALLENGESAbstract: This paper aims to explore the issue of child care inearly childhood, especially children in vulnerable condition, consideringtheoretical basis, local findings, and family as a mainstay ofany intervention. Also, it intends an analysis of the historical-culturalcontext of Mozambique and of the practice in children rehabilitationcenters in the Province of Gaza.Keywords: Child, family, vulnerability, disability, education,systemic perspective, early intervention, support network, dialogicrelational analysis.75


Carla LadeiraIntroduçãoAs sociedades evoluem e com elas novas dimensõesdo saber. O peso entre a evolução e o legado culturalnem sempre beneficia com uma balança equilibradacom equidade. O ser humano existe porque comunica enum contexto histórico-cultural, desenha a sua identidadee afirma os seus valores.No âmbito da deficiência, condição com que algumaspessoas nascem ou adquirem, a sociedade tem debatido eimplementado novas políticas e abordagens. Em sociedadesmenos desenvolvidas encontramos uma mentalidadefortalecida por crenças e valores ancestrais que por vezes,revelam grandes dificuldades em aceitar a condição da diferençana deficiência. Em Moçambique, encontramos um meiourbano pequeno que começa a questionar e a movimentarmudanças políticas, como aconteceu em 2010 com a ratificaçãoda Convenção dos Direitos da Pessoa com Deficiência.No entanto, o Moçambique rural está marcado por crençase atitudes que geram discriminações e atentados aos direitoshumanos. O estigma está muito relacionado com a falta deoportunidades e enquadramento das pessoas com deficiênciana sociedade, o que gera exclusão e baixas expectativas quantoao futuro destas pessoas. Mas se por um lado as famílias nãotêm acesso a informação para poderem compreender a deficiênciade uma outra maneira, por outro lado os profissionais dosserviços básicos, como educação, saúde e acção social, tambémnão estão formados em especialidade e perpetuam este ciclo denegação e exclusão.Na análise das dinâmicas familiares, a tônica tem sido colocadanuma perspectiva do défice, dos problemas e ainda que sejaatravés de análises sistêmicas, muitas vezes não se valorizam ascompetências das famílias vulneráveis. A vulnerabilidade condicionaa possibilidade de resultados positivos perante situações de risco. Apobreza não é por si só uma condição de vulnerabilidade. Na actualidade,são já estudados padrões de vulnerabilidade em famíliasde estratos sociais mais elevados. No entanto, a pobreza condicionao funcionamento familiar, assim como o nascimento de uma criançacom deficiência. Se os serviços de apoio (formais ou informais) mantiveremesta análise sobre o problema e uma compreensão deficitáriada própria condição de deficiência bem como das políticas sociais deapoio, não estarão presentes elementos externos catalizadores parauma mudança no padrão das famílias. Os técnicos, além da formação einformação, devem desenvolver uma ressonância relacional e empática,com as famílias e crianças que apoiam.76


Primeira infância em Moçambique, constatações e desafiosSeguindo uma análise relacional dialógica, o“Eu” do ser humano é entendido como entidade psico--socio-histórica e o sentido da vida é construído nointercâmbio entre as dimensões “bio-psico-social” decada ser, sendo a relação criança/cuidador aquela quetem o sentido primordial na construção do “Eu”. Assim,quando é rejeitada uma criança que nasce com deficiência,de forma consciente e programada ou de formainconsciente por o cuidador não saber pegar, alimentarou comunicar com a criança, o seu “eu” começa desdelogo uma autoconstrução condicionada por essa vivência(Leal, 1999). Assim, se o “Eu” se define na interacçãocom o “Outro” podemos acreditar que a oportunidade deinteracções diversas com interlocutores diferenciados podeproporcionar novos modelos de referência à criança, mastambém aos cuidadores.Este pressuposto valoriza o potencial de uma terapia,reabilitação ou ensino. Acreditar no potencial de uma criançacom deficiência pode ser determinante para a qualidade dassuas interacções, construção do seu “Eu”, atitude dos seuscuidadores e em última análise dos contextos e da sociedade.Moçambique, além do empenho que entregou na ratificaçãoda Convenção dos Direitos da Pessoa com Deficiênciae no desenho de medidas para a implementar com a criaçãode políticas nacionais de protecção da pessoa com deficiência,pode ver o sucesso dessas políticas maximizado se valorizar opressuposto da importância da comunicação e da interacção relacionalcomo forma de construir mudança efectiva, no seio dascomunidades, nos cuidadores destas pessoas e nas relações queestabelecem entre si.Esta análise conjugada com pressupostos sistémicos, vemreforçar a importância do contexto social no desenvolvimento doindivíduo, mas também a importância das emoções e seus significadosna regulação da vida emocional, presente no começo da vidainterior da relação mãe-criança, que assegura a primeira estruturaçãoda mente, o “EU” (Rio, 2001).De uma forma geral na cultura moçambicana encontramos umasociedade de imagem patriarcal com funcionamento matriarcal. Estaresponsabilização feminina tem raízes precoces, pela incumbência decuidar dos irmãos mais novos e das tarefas domésticas. São as mães,“mamãs” que carregam gerações às costas, enquanto cuidam da machamba(horta), do espaço habitacional e de alguma outra ocupaçãoque possa gerar rendimento. As crianças são cuidadas perto das mães.77


Carla LadeiraUma proximidade física e emocional, muito emboracom padrões de relação diferenciados dos hábitosocidentais. Em Moçambique e na África de modo geral,as mães carregam os filhos às costas, seguros porpanos (capulanas), que permitem uma liberdade demovimentos para trabalhar e sustentar a família. Destemodo as trocas oculares, “eye gaze” desenvolvem-se porcurtos períodos de tempo, associados à amamentação oubrincadeira. Com isto não se questiona a qualidade davinculação. Apenas se pretende um enquadramento social,onde fracas políticas de protecção social na maternidade,a elevada taxa de emigração dos homens em algumas provínciase a grande percentagem de famílias vivendo abaixodo limiar da pobreza, são factos reais.O processo dinâmico relacional, aparece centrado nasemoções e nos seus significados, procurando compreendere “definir” a emoção como um fenômeno mental, gerador eorganizador de todos os outros processos mentais, incluindo opensar, a linguagem e a actividade simbólica, afirma Leal (1995).As emoções, ou antes, os processos emocionais são elementosque a par da interação social com outros pares, interferemno desenvolvimento neuroanatômico dos recursos cerebrais.Assim, temos uma vivência social que interfere concomitantementecom o estado de saúde e bem-estar de cada indivíduo.Uma criança privada destas vivências entra num estado disruptivo,tanto psicológica como comportamental.A cultura moçambicana, assim como as demais no resto domundo, apresentam ritos e tradições que reflectem a importânciaatribuída à convivência social. Neste contexto o nascimento é umdos momentos de celebração da vida, para o qual uma família seprepara, desde que tudo corra bem. O estigma está por isso bemenraizado numa cultura de celebração da vida e da força que temdificuldade em a reconhecer numa criança que nasça com uma deficiênciamotora visualmente reconhecida. Perante esta frustração e comas ameaças que uma criança deficiente pode trazer à subsistência deuma família, assim se desenvolveram práticas de isolamento e rituaisque, aos olhos da sociedade ocidental são barbaridades contra os direitosfundamentais do ser humano.Nas primeiras fases de vida, o contacto com a pele materna tranquilizao bebê, que aos poucos vai desenvolvendo um mecanismo de autorregulação,onde traços da evolução da espécie asseguram que ao longodo tempo o ser humano privilegiou a conexão social e a cooperação como78


Primeira infância em Moçambique, constatações e desafiosferramentas de sobrevivência. Assim se valorizam asemoções na primeira infância, pois elas conseguemde facto exercer efeitos fisiológicos profundos, comoexplica Antonio Damásio.Sabemos que uma lógica evolucionista, atravésde mecanismos de selecção natural, conferiu aos bebéscaracterísticas faciais e vocais apelativas, promovendo aconexão social e garantindo a proximidade de cuidadoresnessa fase de vulnerabilidade e dependência da vida humana.A reprodução genética depende da sobrevivênciadas crias, assegurada pelos cuidadores. Na presença deuma deficiência física à nascença, todo este laço e mecanismoauto programado fica abalado e em perigo. É portantode suma necessidade um apoio externo que ajude estespais/cuidadores a reajustar as suas reacções e padrões derelação, de modo a transmitirem sensação de protecção eestabelecerem um vínculo securizante com a criança.Uma análise macrossistêmica revela a necessidadede se repensarem os mecanismos de protecção social, mastambém os serviços de saúde e educação para a primeira infância.Um sistema sem recursos ao nível da rede de serviços,infraestruturas, materiais e qualificações técnicas agrava aindamais a situação, quer social, quer na medida da esperança desobrevivência e integração social destas crianças.Analisando as expectativas que a nação coloca para queas novas gerações conduzam o país a um futuro promissor, percebemosque é necessário intensificar medidas de apoio numaanálise transversal aos vários sectores, desde política, formaçãoacadêmica, infra-estruturas e uma rede de prestação de serviçosem proximidade. Repensar o sistema de ensino e de formação dosprofissionais de saúde, educação e acção social, mas também apolítica da educação para a primeira infância.O Relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNI-CEF) em Moçambique sobre a Pobreza Infantil e Disparidades em2010 refere que 12% das crianças nunca frequentaram a escola e quea frequência líquida na escola primária e secundária têm aumentadocom equidade de gênero entre 2003 e 2008 (IDS 2003 e MICS 2008).A Educação é um investimento no futuro, que não é valorizadona maioria das famílias que não conseguem ter as suas necessidadesbásicas asseguradas e a taxa de conclusão do ensino primária é, porisso, baixa, situando-se nos 15%, com uma grande disparidade entre omeio rural e urbano (7% contra 30% em 2008). O relatório supracitado,79


Carla Ladeirarefere como barreiras à participação na educação, oscustos directos com a educação, a existência de outrasprioridades para as famílias pobres, tradições e cultura,impacto da violência e abuso nas escolas, a qualidadeda educação e a falta de professores que na generalidadetêm turmas muito numerosas.A questão linguística é outra barreira na aprendizagem,pois não existindo uma rede de educação pré-escolar,as crianças têm, na sua maioria, o primeiro contacto coma Língua Oficial, na entrada para a escola primária. Todasestas questões pesam numa balança desequilibrada quegera barreiras à plena realização dos direitos fundamentaisa 10 milhões de crianças moçambicanas.Os dados de 2006 para o ensino superior, apontam16860 alunos matriculados em cursos superiores públicos daárea da educação, dos quais 5625 seriam mulheres e 530 eminstituições privados, dos quais 165 mulheres (MEC, 2006).Num contexto de pluralidade linguística, a Língua assumeuma promíscua relação com a cultura e a história do país.Para Vygotsky “o desenvolvimento psicológico dos homensé parte do desenvolvimento histórico geral da espécie e assimdeve ser entendido”. Vygotski (1998), estudou a linguagemenquanto função psíquica superior, que é primeiramente social,resultado da relação entre as pessoas (criança e os adultos),para depois ser interiorizada, como resultado da ação do próprioindivíduo, transformando-se num instrumento regulador do comportamento.Igualmente, para Marková & Foppa (1990), a linguagem éresultado de um sistema simbólico, concebido como mediador dastrocas do sujeito com o mundo social e físico que o envolve. Este sistemade mediação simbólica (Mead, 1934; Vygotsky, 1978; Vygotsky& Luria, 1994), que resultou da história cultural da humanidade,constitui o sujeito psicológico humano.A análise sócio cultural indica-nos que o bem-estar é afectadopela qualidade da ligação estabelecida com os outros, onde a evoluçãohumana privilegiou o estabelecimento de laços humanos fortes. Estaligação é determinante, não apenas pela sensação de bem-estar queproporciona, mas acima de tudo porque contribui para sentimentos de(in)segurança em crianças com vivências de solidão ou abandono. Nestascondições, estão mais susceptíveis a uma regulação deficiente com umacognição social distorcida, que os torna menos aptos para reconhecer as80


Primeira infância em Moçambique, constatações e desafiosperspectivas dos outros. No contacto com as criançasmoçambicanas sentimos uma presença de padrões derelação insegura, traços de timidez que se repetemapós gerações de incompreensão da infância comouma fase de vida essencial ao desenvolvimento do Eu.A cultura moçambicana, e africana de forma geral, estárepleta de tradições e rituais de transição para as diferentesfases de vida, sendo o nascimento, a puberdadevs adultez, o casamento e a morte, as mais importantes.A Infância tem estado assim diluída, sendo uma idade detrabalho e contribuição para a sustentabilidade do lar. Àscrianças, resultado de uma visão meramente procriadora,se exigia que contribuíssem para a sua sobrevivência, recolhendoalimentos, tomando conta dos irmãos mais novos,vendendo ou pedindo esmolas.Numa análise ao desenvolvimento humano aparece aquestão do peso entre a educação, o ambiente e os genes.Basicamente a interacção dos genes com o ambiente, os aspectosintrínsecos e extrínsecos compreendem mais do queuma mera soma de influências.Vygotsky & Luria (1994), descrevem o desenvolvimentocomo um processo dinâmico e utilizando o conceito de Zonade Desenvolvimento Proximal (ZDP), Vygotsky (1988) refereque existe um nível de desenvolvimento real e uma zona dedesenvolvimento proximal correspondente às actividades que osujeito ainda não consegue realizar sozinho, mas consegue coma ajuda de outra pessoa. Essa pessoa pode ser representada porum cuidador, professor, educador ou terapeuta.Estas evidências sustentam estratégias educativas e de reabilitaçãode crianças com problemas de desenvolvimento, sendo opadrão de relação adulto-criança o responsável pela qualidade dasexperiências que determinam as respostas das crianças.Estas referências, assim como os pressupostos da abordagemsistémica e a valorização de uma intervenção orientada para a famíliaconstituem o núcleo da intervenção realizada nos Centros de ReabilitaçãoInfantil (CRIs) nos distritos de Chókwè e Chibuto, província deGaza, Moçambique.Estes centros foram lançados pela Organização Não GovernamentalDouleurs sans Frontières (DSF) que actua em Moçambique desde1996, com a missão de « contribuir para o bem-estar, para o tratamentoda dor e para o alívio do sofrimento das populações em dificuldade, atravésdo reforço das competências dos atores institucionais e da sociedade civil,81


Carla Ladeirabem como do reforço dos mecanismos da coordenaçãoentre eles».O CRI de Chókwè entrou em funcionamento em2001 e os seus resultados promissores inspiraram paraa abertura de um outro CRI em Chibuto no ano de 2007.Os CRIs funcionam com uma equipe composta de8 Educadores de Reabilitação Infantil, 1 psicólogo e 2técnicos de psiquiatria que trabalham também nas comunidadesenvolventes.Ao longo de 2010 os CRIs registaram 11.163 frequênciasmensais de crianças em situação de vulnerabilidade(7572 rapazes e 3591 raparigas) sendo 9093 crianças emChókwè e 2070 em Chibuto. Nesta população atendida, 234crianças apresentavam problemas de desenvolvimento, comodemonstra a tabela seguinte:Tipos de Casos AtendidosPerturbações Comportamentais 50Atraso Mental 20Deficiência Motora 36Dificuldades de Aprendizagem 80Dificuldades na fala, linguagem ecomunicaçãoTotal de casos atendidos 234Tabela 1: Tipologia de problemas de desenvolvimento nas criançasatendidas48Conjugado com estes problemas muitas crianças apresentamperturbações psicológicas por sequelas de epilepsia, maláriae outras doenças como o HIV/SIDA cuja prevalência é de 26% naprovíncia de Gaza.O acompanhamento dessas crianças, nos distritos referidos,teve como base os CRIs com uma equipe especialmente formada noatendimento à criança com necessidades especiais (por deficiência,traumas, malnutrição, pobreza extrema) e uma rede de 256 Agentesde Cuidados Domiciliários (ACDs) para um apoio de proximidade aosistema familiar dessas crianças e rede de referência aos serviços deeducação, saúde e acção social.Estes profissionais verificam que muitas crianças nestas condiçõesde vulnerabilidade precisam de actividades de socialização e de cuidadosdomiciliários associados a actividades de reabilitação psicológica. Oproblema reveste-se de uma dimensão intrínseca, de vulnerabilidade nacondição de saúde, de ânimo psíquico e de uma dimensão extrínseca pelo82


Primeira infância em Moçambique, constatações e desafiosestigma social e atitudes dos pares e adultos. A metodologiade cuidados deve desenvolver-se de formasistémica, intervindo nos factores internos e externos,ou seja: cuidar do bem-estar clínico da criança e intervirno ambiente que a envolve, para que este seja o maisprotector possível. Desta forma é muito importante a sensibilizaçãoe a mudança de atitudes e comportamentosface à condição de vulnerabilidade, de modo a garantirperspectivas positivas para um futuro destas crianças emsociedade. Esta rede de resposta de proximidade, atravésdos ACDs conseguiu, em 2010, apoiar 2744 crianças emsituação de vulnerabilidade, não só através de uma abordagemde cuidado psicossocial directo com a criança e suafamília, mas também activando os processos de referenciaçãopara os CRIs e serviços públicos necessários.Este modelo tem recolhido evidências de influênciaspositivas nas comunidades locais, sendo hoje possível encontrarfamílias mais fortalecidas que não escondem as suascrianças e procuram defender os seus direitos, nomeadamenteno acesso a cuidados de saúde, protecção social e acesso àeducação.O bem-estar emocional e físico destas crianças é um direitoe é fundamental para a sua participação e contributo parauma sociedade mais justa e tolerante. Para a concretização desteprincípio é essencial a participação do Estado e das estruturashierárquicas em níveis diferenciados, quer ao nível da reabilitaçãoquer ao nível da educação e resposta social.A acção dos técnicos dos CRIs sustenta-se numa perspectivasistêmica que valoriza a intervenção familiar e o desenvolvimentode competências pessoais e profissionais nos interlocutores dereferência para a defesa dos direitos das crianças com deficiência:famílias, terapeutas, representantes comunitários, professores, coordenadorese outras crianças. São pequenos passos acreditando numaReabilitação Biopsicossocial e Integração das crianças vulneráveispela condição de deficiência ou problemas de desenvolvimento e suasfamílias na comunidade envolvente, através da melhoria do seu bemestar emocional e físico, pela integração na escola e pela reabilitaçãoterapêutica numa Rede Integrada de Cuidados Inclusivos.O atendimento à criança vulnerável, nomeadamente pela condiçãode deficiência e outros problemas de desenvolvimento resultantes deviolências, violações, malnutrição e pobreza extrema, trouxe evidênciasda necessidade de reforçar as acções com uma forte componente técnicaespecializada em reabilitação infantil e educação especial.83


Carla LadeiraO Plano Quinquenal do Governo Moçambicano(PQG) 2010-2014 tem como objectivo, o combate àpobreza para melhorar as condições de vida do povoe a política da Educação preconiza o acesso à educaçãopara todos, com intenção de melhorar a qualidade doensino moçambicano. O projecto das Escolas Inclusivasjá vem sendo assumido no país desde 1998, com passosinseguros e com muitas fragilidades ao nível da formaçãotécnica especializada e recursos adaptados às necessidadesindividuais de cada grupo ou aluno.No processo de educação, numa perspectiva inclusivaé determinante a visão de uma intervenção precoce, precedidade uma identificação das crianças com necessidadeseducativas especiais (NEEs) o mais atempadamente possível.Um segundo critério de sucesso, é uma sensibilizaçãoe formação especializada aos diversos agentes educativos,desde a família, comunidade e escola. Só pela compreensãoe informação se pode conceber a aceitação e o combate àdiscriminação, de forma a garantir igualdade de acesso eoportunidades às crianças com deficiência, nomeadamentenos serviços básicos de Educação, Saúde, Participação Social.No Boletim da República I Série, nº 41, uma das estratégiaspara a inclusão nas crianças com NEEs é a formaçãode professores, fornecimento de materiais de ensino, equipamentoe concepção de planos educativos flexíveis para estascrianças. Para que tal seja uma realidade, é necessário envolveras estruturas governamentais, que igualmente necessitam deformação, as estruturas regionais e locais da Educação. Envolveras famílias e as comunidades e intervir directamente na reabilitaçãodas crianças, fortalecendo os actores distritais institucionaise da sociedade civil a fim de acompanhar o processo de descentralizaçãoem curso. Uma perspectiva ecológico-sistêmica ajuda acompreender a necessidade de uma acção tripartida, valorizandoos aspectos contextuais da cultura local, com traços de resistênciamuito específicos na questão da deficiência, os aspectos das relaçõese estimulação ambiental da família e escola e os aspectosintrínsecos do indivíduo que necessitam da aplicação de técnicas emetodologias de reabilitação específicas.Nos CRIs, o caminho percorrido na área do atendimento à criançarecolheu, ao longo do tempo, a evidência da necessidade de valorizarcada vez mais a participação activa das famílias, como beneficiários participativos,envolvidos nos mecanismos de ajuda, informados e capacitadospara melhor protegerem as suas crianças.84


Primeira infância em Moçambique, constatações e desafiosAssim, os CRIs apoiaram a criação de Unidadesde Pais e intervêm na formação dos actores sociais(educadores, ACDs, professores, técnicos de AcçãoSocial e da Saúde, praticantes de medicina tradicional)numa perspectiva sistêmica de abordagem familiare não individual a dado problema. Esta perspectivaajuda, não só a um fortalecimento da estrutura familiarem si, mas também das estruturas alargadas de apoio àcriança, como sejam as comunidades e serviços públicos.A partir do momento que um ACD entra numa casa ondeuma criança vulnerável foi identificada e olha o problemacomo sendo da família e não apenas da criança, conseguegarantir mais possibilidades de implicar a família numa acçãode mudança e de evolução positiva. A mudança de ummodelo de cuidado meramente assistencialista é importante.A visão social actual assim o exige e a experiência da cooperaçãotambém. Deste modo encontram-se exemplos claros deque as famílias informadas e apoiadas para cuidar das suascrianças, conseguem prolongar os efeitos da ajuda recebida.No mesmo sentido, o trabalho realizado na capacitaçãoe envolvência dos parceiros institucionais (Saúde, Acção Sociale Educação) e locais (Associações Comunitárias) muito temcontribuído para que hoje, nos distritos de Chókwè e Chibutoos mecanismos de protecção e apoio às crianças vulneráveisfuncionem em rede e numa resposta mais rápida.Presentemente, o percurso das crianças entre os serviçosde atendimento públicos e privados é fluído e os processos nãose perdem nos mecanismos de referenciação, pois existe umacomunicação entre os serviços de atendimento públicos e serviçosprivados como o caso dos CRIs.Considerações FinaisA evolução requer tempo e atenção. Neste momento está emcurso, em Moçambique, uma reflexão histórica sobre os modelos eestruturas de atendimento à criança e em específico os modelos deprotecção social e o modelo de escola inclusiva. Conjugados esforçose evidências será possível, passo a passo, construir um modelo próprioe ajustado ao contexto do país, sua cultura e suas gentes.A importância de um modelo holístico é uma evidência e o percursoda educação, saúde e acção social em Moçambique nos últimos anos têmcontribuído para uma reflexão pertinente sobre a importância de umaintervenção atempada, o mais precoce possível e em cumprimento dosdireitos fundamentais das crianças. Um modelo de intervenção centradana família, com bases comunitárias e apoio de técnicos com formação de85


Carla Ladeiraqualidade, são factores chave para um desenvolvimentoqualitativo nos mecanismos de protecção da criançana primeira infância e em especial quando em situaçãode vulnerabilidade.Nota: As opiniões expressas neste artigo são dainteira responsabilidade da autora.Referências BibliográficasCacioppo, John T.; Patrick, W. (2008). Abrir a Porta, aimportância do afecto e da sociabilidade na nossa vida,Alfragide, Estrela PolarDamásio, A. (). O Sentimento de Si, Publicações EuropaAméricaFirmino, Gregório (2005). A “Questão Linguística” na ÁfricaPós-Colonial – O caso do Português e das Línguas Autóctonesem Moçambique, Maputo, Texto EditoresFrancisco, A.A. (2010). Desenvolvimento comunitário emMoçambique, contribuição para a sua compreensão crítica,Maputo, Livraria EscolarIssá, A. (2010). Lei de Bases de Protecção da Criança, Lei nº7/2008, Maputo, UTRELLeal, M.R.M. (2003). Introdução aos processos de socializaçãoprecoce da criança, São Paulo, IPAFLEAL, M.R.M.; Garcia, R.M.B. (1997). O Processo de Hominização.Bios transforma-se em Psyche. Lisboa, Associação de PedagogiaInfantil, Escola Superior de Educadores da Infância.Sousa, L.; Hespanha, P.; Rodrigues, S.; Grilo, P. (2007). Famílias Pobres:Desafios à Intervenção Social, Lisboa, Climepsi EditoresVIGOTSKI, L.S. (1998). A formação social da mente. São Paulo, MartinsFontes86


ArtigoDIREITOS HUMANOS E SAÚDE:POSSIBILIDADES E DESAFIOS.Miriam Ventura **Professora do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva(IESC) [WINDOWS-1252?]– UFRJ, Advogada, Doutoraem Saúde Pública pela ENSP-FIOCRUZ.Resumo: O artigo apresenta as principais característicasdo sistema de direitos humanos e do direito à saúdecom um direito humano. Aponta os principais desafios paraa efetivação desses direitos, e algumas críticas ao modelode organização política fundada na cultura dos direitos humanos.Ao final defende a relevância dos direitos humanose as inúmeras possibilidades deste modelo na formulaçãoconceitual e aplicação do direito à saúde.Palavras: Direitos humanos, direito à saúde, judicializaçãoda saúde.The article presents the main features of the system of humanrights and the right to health with a human right. Addressesthe key challenges for the realization of these rights, and somecriticisms of the model of political organization founded in humanrights culture. At the end defends the relevance of humanrights and the many possibilities of this model in the conceptualformulation and implementation of the right to health.Keywords: Human rights, health rights, judicialization ofhealth.Recebido em: 201087


Miriam VenturaIntroduçãoO significado dos direitos humanos transcende aideia de direitos legais; é um parâmetro ético universalde agir, que deve ser seguido por governos, instituiçõese indivíduos. O reconhecimento desses direitos pela comunidadeinternacional decorre de uma exigência moralinscrita na máxima do respeito universal devido a todos osseres humanos. Seus princípios e normas devem garantira “satisfação das condições mínimas para a realização deuma vida digna”. Uma vida digna é aquela que o indivíduopossa ter suas necessidades básicas atendidas, respeitar asi mesmo (auto-estima) e aos outros (Dias, 2010).A partir da segunda metade do século XX esta noçãode direitos humanos foi sendo ampliada, reconhecendo-se,além dos direitos civis e políticos, um rol de direitos sociais,econômicos e culturais, como complementares e necessáriospara a efetivação dos primeiros (Lafer, 1998; Patarra et al,2004 ). No ano de 1966 são firmados os dois principais PactosInternacionais: os de Direitos Civis e Políticos e os de DireitosEconômicos, Sociais e Culturais. Esses direitos são admitidoscomo universais e indivisíveis. Universais porque a condição depessoa deve ser o único e exclusivo requisito para titularidadedesses direitos, sendo a dignidade da pessoa humana o fundamentode toda e qualquer medida. Indivisíveis porque os direitoscivis e políticos devem ser conjugados aos direitos econômicos,sociais e culturais, de forma que possibilite o exercício da liberdadee da convivência com justiça social, eliminando os obstáculosnormalmente estabelecidos pelo tratamento desassociado dessesdireitos e a sua complementaridade obrigatória. A indivisibilidadedas dimensões individual e social dos direitos humanos é expressanas Convenções específicas: sobre a eliminação da discriminação racial(1965), sobre a discriminação da mulher (1979), sobre os direitosda criança (1989), e mais recentemente, sobre direitos das pessoascom deficiências (2006). Essas Convenções ratificam os princípios enormas contidas nos dois grandes Pactos genéricos, e especificam suaaplicabilidade para os sujeitos de direitos destacados.O princípio da dignidade da pessoa humana é regente e norteadorde todo sistema de direitos humanos, no sentido de que estes devempropiciar o desenvolvimento da personalidade de cada um, nos diferentescontextos sociais. O princípio da igualdade deve garantir o igualrespeito e consideração moral, social e jurídica aos projetos pessoais ecoletivos de vida de todas as pessoas, limitando a realização, tão somente,daqueles projetos que violem a dignidade das outras pessoas. O princípioda liberdade deve garantir a todos as condições objetivas para realizaçãode escolhas pessoais, legítimas e justas, e, assim, o exercício desses direi-88


Direitos Humanos e Saúde: possibilidades e desafiostos. O princípio da equidade, enquanto princípio quebusca conjugar igualdade e justiça, ganha destaqueno sistema de direitos humanos, no sentido que devegarantir a simetria necessária nas relações e das condiçõesde pessoas e/ou grupos, para que todos possam,de fato, vivenciar os direitos afirmados, considerando-seas desigualdades sociais e pessoais estejam presentesnos diversos contextos sociais.As democracias contemporâneas se fundamentamnesta “cultura dos direitos humanos e de políticas públicasconsolidadas neste campo de atuação política”. Algunsaspectos procedimentais desta nova organização políticasão relevantes para a efetivação dos direitos humanos. Oprimeiro é o “resgate do papel do Estado, e dos organismose redes internacionais de proteção dos direitos humanos, nosentido de assegurar o acesso das populações” aos direitosreconhecidos, de forma integral e progressiva, (Patarra etal, 2004).Outro aspecto é a relevância e a reformulação do papeldo direito e da figura da lei, que passam a expressar não sóos limites para a atuação do Estado, mas também as imposiçõesde atuação e de realização. Há uma clara aproximaçãoda esfera pública e privada, e o fortalecimento dos sujeitos dedireitos em face de seus governos, sob a égide da lei, que passaa receber uma conotação política destacada (Leal, 2006). OPoder Judiciário é expandido tanto em sua função de prestaçãoda justiça comum, quanto de poder político, cabendo a este Poderdeterminar a adequação e/ou implementação das políticas públicaspara a efetivação de direitos. Desta forma, busca-se reduzir adiscricionariedade dos governos no âmbito das políticas públicas,e aumentar a proteção e o controle social neste âmbito, para alémdos instrumentos comuns da democracia representativa.Além do fortalecimento dos sistemas nacionais de justiça, éconstituído um sistema internacional de justiça com Comissões, Comitêse Cortes Internacionais e Regionais de Direitos Humanos para o monitoramentodo cumprimento desses direitos pelos países, admitindo-sedenúncias de cidadãos e organizações contra os Estados-nacionais. Apartir dos anos 90, com o ciclo de Conferência das Nações Unidas, háum esforço de se estabelecer metas para a efetivação desses direitos,e um expressivo fortalecimento das Cortes Internacionais, firmando-seprotocolos adicionais nos quais os países signatários reconhecem o poderjudicial dessas instâncias, aceitando acatar as decisões dessas Cortessobre possíveis denúncias de descumprimento das leis internacionais dedireitos humanos.89


Miriam VenturaNo contexto brasileiro, a Constituição Federal Brasileira(1988) incorporou todos os princípios, normas emecanismos contemporâneos de efetivação dos direitoshumanos, e tem se utilizado esta perspectiva para pautaras discussões sobre a atuação governamental, político--partidária e das organizações e grupos sociais (Patarra etal, 2004; Ventura et al, 2003, Piovesan, 1997).Pode-se afirmar que há um relativo consenso sobre aimportância dos direitos humanos para os avanços políticose a melhoria das condições pessoais e sociais, em especial,de grupos historicamente discriminados e vulneráveis àsviolações de direitos básicos – negros, mulheres, crianças.Também há consenso sobre a importância das leis e políticaspúblicas nacionais e internacionais como instrumentos necessáriospara a efetivação desses direitos. Mas são muitasas dificuldades no momento de se estabelecer os acordosnecessários em relação ao conteúdo dessas leis e políticas, esua aplicação ou operacionalização, de forma que atendam atodas as pessoas, de forma satisfatória, nos diversos contextossociais e políticos.Mas há críticas ao modelo atual de organização políticacentrada no discurso dos direitos humanos e nas novas formasde representação coletiva. Sorj (2004) considera que este modelovem enfraquecendo o papel ideológico e funcional do Estado comoelaborador das estratégias sociais, resultando em um paradoxodo mundo contemporâneo “cada vez mais democrático e cada vezmais desigual” consequência da fragmentação da representaçãopolítica e da própria linguagem abstrata e geral dos direitos humanos.Esta crise do papel ideológico e funcional do Estado é aguçadapelo crescente fortalecimento e a proeminência da atuação judicialnas questões de políticas públicas, que desloca para o Judiciárioas demandas sociais, e provoca um esvaziamento da representaçãopolítica nas instâncias do Legislativo e Executivo, que devemexpressar as reivindicações coletivas. O efeito desta transformaçãode linguagem e de instância política de discussão dos direitos é um“(des)ajuste entre o ritmo da expansão das demandas sociais em faceda capacidade do sistema político e dos recursos disponíveis pelo Estadopara processá-la” (Sorj, 2004:52), resultando em sérios problemas degovernabilidade. Neste sentido, defende a necessidade urgente de quesejam desenvolvidos novos mecanismos sociais e institucionais de justiçasocial, que reúnam de forma criativa, direitos individuais e coletivos,direitos-liberdade e direitos-credores, que fortaleçam o Estado comoinstrumento democrático de planejamento, regulação e controle social.O direito à saúde é reconhecido formalmente como um direito humanovoltado à preservação da vida e dignidade humana. Pode-se dizer90


Direitos Humanos e Saúde: possibilidades e desafiosque, nesse aspecto, há absoluta concordância entre odireito vigente, nas leis internacionais e nacionais, e amoralidade comum. Por isso, crê-se que o respeito e aproteção ao direito à vida e à saúde sejam obrigaçõesmorais e legais simples de serem cumpridas. Todavia,“ao contrário, é terrivelmente complicado [pois] o consensogeral quanto [aos direitos humanos] induz a crerque tenham um valor absoluto” (Bobbio, 1992:4), que,de fato, não tem. A expressão tão genérica, abrangentee heterogênea desses direitos permite uma relativizaçãoque traz dificuldades no momento de sua realização, dediversas ordens: filosóficas, políticas, jurídicas, sociais,econômicas, culturais e técnico-científicas. Além disso, éimportante lembrar que a efetivação do direito à saúde estáintimamente dependente com a realização de outros direitoshumanos, que abrangem outras dimensões da vida humana.As dificuldades de se articular esses elementos essenciaisdo direito à saúde, sobre o conteúdo e o modo de garanti--los, tal qual nos direitos humanos em geral, tem resultado nodistanciamento entre o direito vigente na lei e o direito vividona prática por milhões de pessoas, em todo o mundo (Bobbio,1992), e, neste sentido, as críticas apontadas anteriormentedevem ser consideradas em nossa análise específica, mesmodefendendo-se a pertinência do modelo de direitos humanospara a melhoria das condições de vida das pessoas e populações,inclusive relacionada à saúde.Este artigo tem o objetivo de apresentar os principais aspectosressaltados no âmbito internacional dos direitos humanos sobreo direito à saúde, e apontar a relevância e possibilidades de setrabalhar a implementação deste direito, a partir desta perspectivados direitos humanos.Saúde como um Direito Humano: definiçõese estruturaA ideia de direito à saúde aparece na Declaração Universal dosDireitos Humanos (1948) em seu art. 25 quando afirma que “todapessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar, a si e a suafamília, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação,cuidados médicos...”. Posteriormente, no ano de 1966, o Pacto Internacionalsobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais reafirma a ideia,e dispõe em seu art. 12 que os Estados-partes reconhecem o direito detoda pessoa de desfrutar o mais elevado nível de saúde física e mental,trazendo indicações mais precisas sobre as medidas a serem adotadaspara assegurar o direito à saúde, como “a prevenção e o tratamento dasdoenças epidêmicas, endêmicas, profissionais e outras, bem como a luta91


Miriam Venturacontra essas doenças” e a “criação de condições queassegurem a todos assistência médica e serviços médicosem caso de enfermidade”.Também nas Convenções Internacionais específicas,como nas convenções sobre a eliminação da discriminaçãoracial (art. 5.º, letra e, IV), discriminação contraa mulher (art. 12) , convenção dos direitos da criança(art. 25), e sobre o direito dos povos indígenas e tribaisem países independentes (art. 25), o direito à saúde é reafirmado,adicionando-se recomendações específicas decuidado para cada um desses segmentos, visando garantirassistência adequada às suas especificidades e ao acessoaos serviços de saúde sem discriminação.Inicialmente, como referido, a proteção dos direitoshumanos foi marcada pela tônica da proteção geral, genéricae abstrata, com base na igualdade formal, expressa nosPactos de Direitos Civis e Políticos e no de Direitos Sociais,Econômicos e Culturais. Posteriormente, surge a necessidadede se considerar os sujeitos de direito em suas peculiaridadese particularidades, ou seja, de se produzir uma igualdade quereconheça as diferenças entre os sujeitos e de uma diferençaque não produza, alimente ou reproduza as desigualdades. Éneste contexto que surge a afirmação e o reconhecimento dodireito à diferença ao lado do direito à igualdade, que permiteconsolidar o caráter bidimensional da justiça como instrumentode redistribuição e como reconhecimento de identidades (Fraser,2002). Exemplo deste processo de especificação do sujeito de direitos,no plano global, são as convenções referidas sobre eliminaçãode todas as formas de discriminação racial (1965), discriminaçãocontra as mulheres (1979), direitos das crianças (1989), direitosdos povos indígenas e tribais em países independentes (1989), emais recentemente, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas comDeficiência (2006).Constata-se que o direito à saúde deve ser garantido pelosEstados aos seus cidadãos, por meio de políticas e ações públicasque permitam o acesso de todos aos meios adequados para o seubem-estar. Sua realização se dá por meio de prestações positivas, incluindoa disponibilização de serviços e insumos de assistência à saúde,tendo, portanto, a natureza de um direito social, que comporta umadimensão individual e outra coletiva em sua realização. A trajetória doreconhecimento do direito à saúde como relativo à dignidade humanae, consequentemente, sua incorporação nas leis, políticas públicas e jurisprudências,espelham as tensões sobre como alcançar este bem-estar,e quais os direitos e responsabilidades dos cidadãos e dos Estados.92


Direitos Humanos e Saúde: possibilidades e desafiosA dimensão individual do direito à saúde podeser descrita como aquela que visa garantir o direitode agir ou não agir sem constrangimento, exigindoque o Estado não promova ações, leis ou políticas queinvadam ou limitem de forma injustificada a autonomiapessoal, e garanta e/ou previna que não ocorra aviolação, dispondo de mecanismos legais que coíbamseu descumprimento. Um exemplo ilustrativo é a discussãosobre se o teste compulsório para o HIV constituiuma limitação justa e razoável à autonomia pessoal,considerando-se as implicações para a saúde pública.O entendimento das instâncias internacionais de direitoshumanos firmou-se no sentido de que o teste compulsórioconstitui uma violação de direitos, pois não é eficaz eabsolutamente necessário para a prevenção e promoçãoda saúde individual ou coletiva, considerando-se as característicasde transmissão do HIV/Aids; sendo justificada aobrigatoriedade do teste, tão somente, em algumas situações,como nas doações de sangue ou de órgãos, que devemser realizadas de forma voluntária. O principal argumento éque as restrições à autonomia pessoal, ao contrário do queas medidas compulsórias pretendem, afastam as pessoas dosserviços de saúde por receio de constrangimentos à sua liberdadee discriminação, dificultando à prevenção, promoção erecuperação da saúde (Tomasevski, 1992). O exemplo apontaclaramente para a forte inter-relação e possíveis conflitos entredireitos individuais e coletivos, no ambiente da saúde.A dimensão social é aquela operacionalizada coletivamentee devem garantir as condições necessárias para o alcance dasaúde e bem-estar geral de todos. Aqui reside uma das maioresdificuldades atuais para a realização do direito à saúde, que é ode se estabelecer um rol de obrigações estatais relacionadas a estedireito. É exemplar das dificuldades a discussão no Judiciário e CortesInternacionais de Direitos Humanos sobre o direito de determinadosgrupos e indivíduos ao acesso a determinado medicamento para oseu tratamento de saúde (p.ex. portadores do HIV/Aids, e outras patologias),em decorrência das limitações estabelecidas pelos sistemaspúblicos de saúde de diversos países.As instâncias internacionais de direitos humanos têm exigido arealização imediata dos direitos individuais; mas admitem que o cumprimentodos direitos sociais se dê de forma progressiva, por exigir recursospúblicos significativos para sua operacionalização. Neste sentido,buscam ressaltar o cumprimento pelos governos de um rol de obrigaçõesmínimas, essenciais ou indispensáveis à satisfação de necessidades individuaisdo titular de cada direito. Pode-se aplicar esta mesma lógica93


Miriam Venturana aplicação do direito à saúde, exigindo-se imediatasuspensão de qualquer medida constritiva à liberdadeindividual, porém, nem sempre é possível se garantiruma medida que implique na oferta de determinadotratamento, por exemplo, considerando-se que os recursosde saúde são limitados, necessitando estabelecercritérios para o seu acesso.Com o intuito de dirimir controvérsias em torno doconteúdo e da aplicação do direito à saúde pelos países,os Comitês de Direitos Humanos no sistema global vêmexpedindo recomendações específicas onde estabelecemcritérios objetivos de interpretação, dentre elas, destacam--se as Recomendações Gerais n.º 4, de 2003, do Comitêde Direitos da Criança, a de n.º 14 do Comitê de DireitosSócio-Econômicos e Culturais, do ano 2000, e a de n.º 24do Comitê sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminaçãocontra as Mulheres (CEDAW), do ano de 1999.Entendem esses Comitês que a obrigação de implementaro direito à saúde abrange a obrigação de facilitar, prover epromover o exercício de direitos. Isso significa adotar medidasapropriadas não apenas de caráter legislativo, como tambémde caráter administrativo, orçamentário e econômico, no limitemáximo dos recursos disponíveis.O Comitê de Direitos Sociais, Econômicos e Sociais fixa osseguintes elementos essenciais para exata aplicação do direitoà saúde: a) disponibilidade: os serviços e programas de saúdedevem ser disponíveis em quantidade suficiente para todos; b)acessibilidade: envolve quatro dimensões – o princípio da não--discriminação (a saúde deve ser acessível a todos, especialmenteaos grupos mais vulneráveis); a acessibilidade física; a acessibilidadeeconômica e a acessibilidade de informação; d) aceitabilidade: osserviços e programas de saúde devem respeitar a ética médica edevem ser culturalmente apropriados, sensíveis, ainda, à questão degênero e geracional; e) Qualidade: os programas e serviços de saúdedevem ser apropriados para atender a demanda da população, baseadosem evidências científicas e devem buscar incorporar os avançoscientíficos e tecnológicos; f) Integralidade: envolve o oferecimento deum conjunto articulado e contínuo de ações e serviços preventivos ecurativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos osníveis de complexidade e devem ser prestados durante todo o ciclo vitalde homens e mulheres.Em relação à progressividade para a realização do direito à saúde,afirma o mesmo Comitê que a expressão “realização progressiva”constitui o reconhecimento de que a plena aplicação dos direitos sociais,94


Direitos Humanos e Saúde: possibilidades e desafioseconômicos e culturais não pode ser alcançada em umcurto período de tempo. Porém, esta expressão deveser interpretada à luz de seu objetivo central, que é estabelecerclaras obrigações dos governos no sentido deadotarem medidas, tão rapidamente quanto possível,sendo vedado qualquer recuo ou retrocesso, ressaltandoa responsabilidade dos governos garantirem o mínimoessencial concernente a cada direito (“minimum coreobligation”) social. Acrescenta ainda que a expressãopromover a progressiva realização dos direitos sociais no“máximo de recursos disponíveis” refere-se não apenasaos recursos existentes em um determinado Estado, mastambém aos recursos disponíveis na comunidade internacional,mediante assistência e cooperação internacional.As reivindicações relacionadas ao direito à saúdetem sido objeto de demanda judicial no âmbito nacionale internacional. O entendimento predominante das CortesConstitucionais e de Direitos Humanos é que os governosdevem preservar o núcleo essencial do direito à saúde, que éa vida, e, portanto, fornecer todo o tratamento que atenda asnecessidades do indivíduo, ainda que a regulamentação estatalnão tenha previsão desta cobertura; em especial, àqueles quenão possuem capacidade econômica para arcar com os gastosde seu próprio tratamento (Gilardi et al 2007).A discussão brasileira sobre o crescimento das demandasjudiciais sobre o direito à saúde, que reivindicam o fornecimentode medicamentos e procedimentos de saúde não previstos nasregulamentações do sistema público, e as dificuldades este tipode demanda tem trazido para os governos darem cumprimentoàs ordens judiciais que, em geral, concedem os pedidos dos demandantes(Messeder et al 2005, Vieira et al 2007, Marques et al2007, Andrade et al 2008, Chieffi et al 2009, Pepe et al 2010), naesteira do entendimento das Cortes Constitucionais e das Comissõese Cortes Internacionais de Direitos Humanos de outros países, comojá referido.Apesar dos esforços dos Comitês no sentido de estabelecer elementosessenciais para a efetivação do direito à saúde, é ainda umtema bastante controverso, pois exige prestações positivas do Estadoque viabilizem o direito devido a todos, e a melhoria das condições devida de grupos menos favorecidos, sempre dependente de contingênciassociais e econômicas de cada país. As instâncias judiciais tem se limitadoa considerar a perspectiva individual deste direito sem problematizaroutros elementos importantes nesta deliberação, como a distribuiçãoinjusta dos recursos de saúde, as limitações orçamentárias dos governos95


Miriam Venturapara a aquisição de produtos de saúde disponíveis nomercado, dentre outros aspectos. De fato, como afirmaDowrkin (2005:434) a questão tem sido enfrentadacom base em um princípio intuitivo e bastante antigo,que denomina de princípio do resgate. Este princípioconsidera que qualquer outro bem deve ser sacrificadoem favor da vida e saúde, e que não se deve negar aninguém o tratamento de saúde que se precisa. A adoçãodeste princípio na atualidade, com inúmeros novos tratamentosproduzidos pelo mercado de saúde, muitos destespouco efetivos para recuperação da saúde dos indivíduos,e objeto de forte lobby de seus produtores (Angell, 2007),tem revelado a necessidade de se problematizar os pedidosjudiciais de novos tratamentos, de forma que os sistemas desaúde dos países possam viabilizar o tratamento adequadoe necessário para cada caso, sem perder de vista as demaisnecessidades de saúde.Fortalecer a promoção e reforçar as obrigações dos paísesrelacionadas aos direitos humanos no âmbito da saúdeé, sem dúvida, uma estratégia central para a plena eficácia euniversalização do direito à saúde. A Organização Mundial deSaúde - OMS vem trabalhando para integrar a abordagem dosdireitos humanos no contexto da saúde. Esse trabalho envolvenão só incorporar a saúde na agenda externa dos direitos humanos,mas também incorporar os direitos humanos no trabalho dosetor da saúde e de justiça, integrando seus princípios, normas epadrões nas políticas e programas de saúde e na jurisprudência,de forma que se possa apreender e direcionar os problemas desaúde nesta perspectiva que vem sendo entendida como adequadapelas instâncias do sistema internacional de direitos humanos.Considerações FinaisO caráter geral com que são expressos os direitos humanospermite uma ampliação e adequação constante do conteúdo dessesdireitos, e que sejam aplicados para proteger diferentes interesses(das pessoas com HIV/Aids, deficientes, mulheres, crianças, etc) emdiferentes esferas (na saúde, na relação de trabalho, na relação familiaretc). O desafio é, de fato, traduzir e identificar, a partir das convençõesinternacionais, o alcance desses direitos e como devem instrumentalizaras políticas públicas.A concepção inovadora do direito internacional dos direitos humanostrouxe duas consequências de extrema importância para o campodo direito e da política. A primeira é a revisão da noção tradicional desoberania absoluta do Estado, que passa admitir intervenções no planonacional, em prol da proteção dos direitos humanos, e formas de moni-96


Direitos Humanos e Saúde: possibilidades e desafiostoramento e responsabilização internacional, quandoesses direitos forem violados pelos países. A segundaé o reconhecimento de que os indivíduos têm direitosprotegidos na esfera internacional como sujeitos dedireitos contra seus próprios países ou qualquer outroque viole direito fundamental. Estas duas consequênciaspermitem ampliar as possibilidades políticas de criaçãode novos instrumentos democráticos internacionais deplanejamento, que busquem uma equidade entre asnações, construindo-se uma sociedade global mais justae igualitária.O Estado contemporâneo na perspectiva dos direitoshumanos é o centro de uma organização política mais vasta,que vai além das instâncias formais e tradicionais internasde discussão política (Sousa Santos, 1998). O novo modelode organização política re-significa o próprio conceito dedireitos humanos e de liberdade política, incorporando novosmecanismos e instrumentos de garantia de direitos, como:a ampliação da normatização de direitos, especialmente, osdifusos e coletivos, no âmbito da lei internacional e nacional;a especificação dos sujeitos de direitos, visando alcançar ossegmentos mais vulneráveis às violações de direitos – mulher,criança e adolescente, idosos, portadores de deficiência, etc –;a ampliação e o fortalecimento de novas formas de participaçãoe representação coletiva da sociedade civil nos governos; e aampliação e fortalecimento e dos sistemas de justiça nacional einternacional, como reforço da lógica democrática (Citatino, 2002).O modelo de democracia contemporânea revela uma ampliaçãodas instâncias de discussão e decisão política, e certo declíniodo poder discricionário dos governos, de decidir e escolhero conteúdo das políticas públicas. Até então os governos agiamquando e como melhor lhes convinham. A cidadania estava reduzidaà participação política formal, por meio dos tradicionais canaispolítico-institucionais, que se revelam insuficientes para responderàs demandas sociais. Houve, portanto, um aperfeiçoamento da democraciae não um enfraquecimento do Estado, que tem seu papelfuncional e ideológico preservado e ampliado. As instâncias político--institucionais e as prerrogativas estatais de legislar, interpretar eaplicar as leis foram mantidas.Se as demandas estão fragmentadas, como de fato se constata, asrespostas governamentais devem ser dadas de forma integral. A tarefagovernamental é a de buscar soluções inclusivas, interna e externamente,de forma que permitam o compartilhamento de valores com o resto dasociedade, sem se descuidar do atendimento às especificidades e diferen-97


Miriam Venturaças dos sujeitos capazes de produzirem desigualdades.São árduas as tarefas de coordenação e articulação deinteresses divergentes e, por vezes, contraditórios, noâmbito do governo e da gestão pública.O fenômeno da cidadania ativa alterou a posiçãodos cidadãos, até então, objeto das políticas, para colocá--los como sujeitos de direitos. A alteração é significativae atinge como aponta Colliot-Thélène, o próprio poder deescolha e de decisão do Estado, impondo desafios na redefiniçãode novas funções e responsabilização dos agentespúblicos e privados no novo padrão de governabilidade(Clad, 2000). Estimular valores como o da solidariedadee da participação social, inscritos no ideário dos direitoshumanos, se revela fundamental na busca destas soluções.Os desafios e as questões problemáticas colocadas peloscríticos são pertinentes e verdadeiras. Novas linguagens e novasmaneiras de se pensar a política e as relações entre estado,sociedade e gestão pública se fazem necessárias. Mas não sedeve desprezar o construído social e histórico que representa omarco ético-jurídico dos direitos humanos. É certo que o direitotem uma limitada capacidade de agir, e sua promoção deve seorientar no sentido de expressar adequadamente os marcosjurídicos e institucionais existentes, sob pena de provocar sériosdesajustes, inclusive aprofundar desigualdades.Nota: As opiniões expressas neste artigo são da inteira responsabilidadeda autora.Referências BibliográficasAndrade, EIG. A judicialização da saúde e a Política Nacional deAssistência Farmacêutica no Brasil: gestão da clínica e medicalizaçãoda justiça. Rev Med Minas Gerais 2008; 18(4 Supl 4): S46-S50.Angell M. A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos. Como somosenganados e o que podemos fazer a respeito. Rio de Janeiro: EditoraRecord; 2007.Arendt, H. Origens do totalitarismo, Cia. Das Letras, 1989, p.335.Bobbio, N. A era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.Chieffi AL, Barata RB. Judicialização da política pública de assistênciafarmacêutica e equidade. Cad. Saúde Pública 2009, 25(8): 1839-49.98


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Artigo“DE QUEM É A RESPONSABILI-DADE DO CUIDADO?” O PAPEL DASMULHERES NO PROCESSO DE DESINS-TITUCIONALIZAÇÃO DA PESSOA EMSOFRIMENTO PSÍQUICO.Rachel Gouveia Passos** Docente da Faculdade Paulista de Serviço Social (FAPSS/SP); Mestre em Política Social pela UFF, Especialista emSaúde Mental e Atenção Psicossocial pela ENSP/FIOCRUZ.Resumo: Buscou-se debater os entraves e os desafiosno provimento do cuidado e a sobrecarga dispensada àsmulheres no cuidado da pessoa em sofrimento psíquico. Adivisão do trabalho repercute nas diferenças de gênero umavez que as responsabilidades associadas ao sexo masculinoe feminino estão presentes nas interações sociais e na objectivaçãodas coisas. Neste cenário, encontramos as obrigaçõesdomésticas nas quais a mulher se destaca como provedora,cuidadora e à ela cabe, no espaço da casa, o cuidar dos filhos,idosos e em particular daqueles(as) em sofrimento psíquico queo objecto central de nossa análise.Palavras-chave: saúde mental, reforma psiquiátrica, mulher,cuidado e gêneroAbstract: The discussions about the obstacles and challengesin providing care and the women’s overheadpaid role as a caregiver,where debated. The division of labor is reflected in genderdifferences since the responsibilities associated with male and femaleare presented in social interactions and the objectification ofthings. In this scenario, we find domestic obligations in which womanstands out as a provider, caregiver and also in child and elderly care,particularly those in psychological distress that are the central objectof our analysis.Keywords: mental health, psychiatric reform, women, care andgender101


Rachel Gouveia PassosIntroduçãoNa Constituição de 1988, denominada de ConstituiçãoCidadã, a família é sujeito de direitos e o Estadobrasileiro assumiu para com ela responsabilidadesbem definidas de proteção social. Entretanto, tambémcomo dispositivo constitucional, a proteção social não sevai limitar às ações do Estado, mas, sim, partilhada pormuitos sujeitos, inclusive pela família, contingência quefavorece a invenção ou a reinvenção das diversas formasprotecionistas de cuidado. Muitas dessas formas estão naspráticas sociais de todos os dias e correspondem a processosde longa duração histórica:As famílias extensas (ao lado da nuclear), asrelações de compadrio, as formas asilares deproteção dos velhos e dos órfãos nessas mesmasfamílias, as tias ‘solteironas’ e as avós, nabase de protecionismo familiar, são revelaçõesde processos de históricos da maior importânciapara o reconhecimento das questões peculiares àproteção social no Brasil (Costa, 1995:129).Nos diversos arranjos familiares, ocorrem múltiplas estratégiasde proteção em relação àqueles sujeitos que precisamde “tutela”. Para Costa (2002:301), “em certas conjunturas essaspautas reafirmam obrigações femininas nas casas, múltiplaspráticas de proteção social de crianças, adultos, doentes mentais”(grifo meu). De fato, as práticas de proteção primária acabamsendo delimitadas pelas mulheres, naturalizadas pela família epela sociedade, cabendo ao homem o lugar do público. Tal divisãodo trabalho e das responsabilidades dos sexos vai estar presenteem muitas práticas sociais e incorporada, culturalmente, às ações,às percepções, aos pensamentos, enfim, à objetivação das coisas.Este trabalho pretende apontar as possíveis formas de opressão,contidas nas obrigações das famílias, em especial das mulheres,engendradas culturalmente pelo processo de desinstitucionalizaçãoda pessoa em sofrimento psíquico. De acordo com Freitas (2002:81),na construção histórica das funções sociais, coube às mulheres o papeldos cuidados, ou seja, o trato dos filhos, dos idosos e dos doentesmentais, restringindo-se a elas o espaço privado, o lugar da casa. Mashá ainda outras opções: é possível transferir esses cuidados para outrasmulheres ou instituições, assumi-los parcialmente, decidindo sobre usosde tempo que compatibilizem esses cuidados diante de outros projetospessoais e profissionais.Ao retornar para suas famílias, os sujeitos em sofrimento psíquicoe sob o processo de desinstitucionalização estarão vivenciando a tradiçãoque transfere às mulheres os cuidados dos doentes, pois se reafirma aí o102


“De quem é a responsabilidade do cuidado?” O papel das mulheres no processo dedesinstitucionalização da pessoa em sofrimento psíquico.papel social dos usuários como incapazes e tutelados,negando, assim, a cidadania desses sujeitos, definindoas famílias como responsáveis pelos seus cuidados.São muitas as contingências que tornam essa medidauma forma de “cuidado opressor”.Na marcha da cidadania no Brasil, um paradoxoestá no fato de que, com base em transtornos mentais,e com eles, na perda de autonomia, os sujeitos se habilitamà proteção do Estado, com direito à assistência e atratamentos. Essa proteção é regida por um estatuto quese perpetua na noção de “discernimento para os atos davida civil” (Código Civil, 2002, Artigos 1767 a 1783). Assim,o processo de exclusão social dos sujeitos em sofrimentopsíquico experimenta a perda dos seus direitos civis porlei, ou seja, a lei os destitui da sua cidadania. Esses sujeitospassam a ser vistos como pessoas que não têm condições decuidar de sua vida civil, já que não se ajustam à racionalidadecorrespondente ao modelo de “normalidade” preestabelecida.Cabe ressaltar as reflexões de Foucault (1984): ao loucoé negada a razão, sendo esta a base da ordem normativasocietária e do condicionamento social. A exclusão da loucurado corpo social assenta-se, ainda, em processos de organizaçãoda sociedade da ordem econômica burguesa que institueme incentivam o princípio exclusivo do homem produtivo comoparâmetro de normalidade e de humanização.A cidadania dos loucos é sempre restringida pelo estatutoda tutela, um mecanismo destinado a proteger pessoas que nãotêm autonomia para exercitar os seus direitos ou para transitarde forma “adequada” na cidade humana. Segundo Delgado(2006:209), “a ideia de estar fora da razão faz parte do discursosobre a cidadania especial do louco, que encontrará, no registroda tutela, um mecanismo fundamental de proteção peculiar”. Issogera uma participação condicionada, gerenciada e substituída peloEstado, através do manicômio. Embora a tutela tivesse o propósitoinicial de proteger, caminha inversamente ao princípio da autonomiae, assim, ao oposto da participação desses indivíduos como sujeitossociais e políticos plenos.Tomando a questão do louco apenas como um pretexto,o que pode fazer avançar o debate a respeito dos direitose da cidadania não são grandes mudanças conceituais oulegislativas, mas sim os casos particulares, onde se faz umesforço de normatização, buscando promover uma certaequidade, promover justiça em virtude de diferenças quefuncionam como desvantagens para determinadas pessoas(Delgado, 2006:214).103


Rachel Gouveia PassosAssim, com o processo de Reforma PsiquiátricaBrasileira (RPB), os sujeitos outrora no manicômio –mesmo nos casos de abandono de muitos anos porsuas famílias – em tese, vão ser acompanhados poruma equipe multidisciplinar em um dos dispositivossubstitutivos, para poder “retomar” à sua cidadania,outrora colocada de lado e transferida para o Estado,considerando que esses sujeitos desprovidos de razãoestão impedidos de responder por si. Para Amarante eGuljor (2005:70), a desinstitucionalização vai implicar no“‘retorno’ dos sujeitos em sofrimento psíquico ao espaçode convívio social como parte integrante dessa sociedadee da construção de seu status de cidadão”.Entretanto, ao analisar o processo de cuidados, vejo,em muitos casos, a reprodução de outras formas de opressão,quando a garantia de sua proteção social é atribuídaàs famílias 1 . Além disso, mesmo diante dos diversos arranjosfamiliares na contemporaneidade, por usos e costumes, oresponsável pelo papel de cuidador será, com raras exceções,seu membro do sexo feminino. Não é tão somente no processode desinstitucionalização que as mulheres assumem essepapel: sua presença de cuidadora é reproduzida também nasinternações provisórias, nos centros de atenção psicossocial eem outros espaços de cuidados. As mulheres serão sempre contactadaspara responderem ao acompanhamento como familiardo usuário do serviço de saúde mental. O mesmo se dá com oscuidados das crianças na escola, dos idosos nos tratamentos desaúde, dos adultos que adoecem, ou seja, segundo Costa (2002),as práticas de proteção primária, em grande parte, ficam a cargodas mulheres, tornam-se naturais no âmbito das famílias e dosgrupos de convívio e se tornam ocultas. Nessas observações, nãoestou sendo contrária ao processo de desinstitucionalização ou àReforma Psiquiátrica, entretanto, estou procurando refletir sobrecostumes e práticas sociais que recriam clássicas formas de opressãofeminina nos hábitos de cuidados. Nessa experiência, dentre outras,acabamos atualizando essas formas, acreditando que estamos noslibertando delas. Claro que existem exemplos bem-sucedidos de cuidados.Mas, em geral, estamos diante de ocorrências que nos fazemperguntar: que cuidados são esses que desresponsabilizam o Estadoe que se transferem para as famílias, em tantos casos, também delesdependentes? E mais, se os cuidados dos doentes são transferidos paraas famílias, não estaríamos desresponsabilizando os indivíduos, e afirmandoa sua incapacidade? Não estaríamos, assim, adotando uma noção1Vasconcelos (2002) conceitua as práticas multidisciplinares como sendo a “gama de campos de saber que propomossimultaneamente, mas sem fazer parecer as relações existentes entre eles”, ou seja, são ações realizadasa partir de uma equipe composta de profissionais de múltiplas disciplinas, que constroem ações conjuntas apartir dos respectivos campos de saber.104


“De quem é a responsabilidade do cuidado?” O papel das mulheres no processo dedesinstitucionalização da pessoa em sofrimento psíquico.de cuidados que é reprodutora da lógica manicomial?E onde entraria a proteção para esses indivíduos quecompõem a família? Essas são algumas questões quequero levantar.Na Reforma Psiquiátrica Brasileira ganha forçae corrobora-se a estratégia voltada para o processode desinstitucionalização dos usuários nos últimos 20anos. A RPB ocorre em um contexto de reivindicações emudanças no país, agregando-se, assim, ao processo dedemocratização em marcha, mas também retraduzindosuas contradições.No Brasil, esse processo foi inspirado em movimentossociais similares de outros países, principalmente no daexperiência italiana. Na Reforma Psiquiátrica Italiana, FrancaBasaglia 2 foi uma das precursoras do movimento. Cabedestacar que ela foi também uma referência no movimentofeminista nos anos 80 2 . No Brasil, não encontramos nenhumaliteratura ou referência sobre essa discussão na formação domovimento da RPB. Há por fazer pesquisas que situem, naquelemomento, se a centralidade das mulheres nos cuidados teriaassumido algum destaque ou interesse no conjunto de debatesfeministas da segunda onda.A partir da década de 70, no mundo ocidental, os métodosde tratamento psiquiátrico vão sendo questionados, assim comoo poder médico: surgiram projetos diversos que se propunham atornar desnecessária a existência de hospícios. Trata-se da procurapor formas de tratamento mais humanas, pensadas como capazesde produzirem maior liberdade, autonomia e evitar a formaçãode novos casos crônicos.Entende-se a Reforma Psiquiátrica como uma práticademocrática, uma vez que a democracia se constróiquando se ampliam os canais de participação e se distribuemas forças entre classes e sociedade civil em favor dobem comum, dotando o político de significado. Portanto,a Reforma Psiquiátrica se torna democrática ao definircomo campo de atuação o espaço público, atribuindo-seuma categoria política social, principalmente por levar ocoletivo à discussão sobre os conflitos de sua cotidianidade(Ferreira, 2007:217).2A matéria está na Lei n. 10.216, de 2001, garantia de sua proteção atribuída pelo Estado, estabelecida pelaConstituição de 1988, no Capítulo VII, art.226, inciso 8°.2Franca Ongaro Basaglia foi uma das precursoras do movimento de reforma psiquiátrica na Itália durante osanos 1960 e 1980. Foi uma das feministas de destaque nos anos 80, publicando dois livros, que contribuírampara o pensamento teórico sobre gênero, Mujer, Locura y Sociedade e Uma voz. Notícia publicada acerca dofalecimento de Franca Ongaro Basaglia e sua luta política. Disponível em . Acesso em 10/01/2010.105


Rachel Gouveia PassosCom isso, vão sendo construídas redes de serviçoscom o objetivo de evitar que as pessoas cheguema precisar de internação: a proposta é definir diversasestratégias e formas de serviços diversos para os cuidadosdos usuários da saúde mental. Os projetos quetentam produzir mudanças substanciais na vida dos quejá estão cronificados nas instituições têm mais dificuldadede ir adiante.No campo prático, passa-se a privilegiar a discussãoe a adoção de experiências de desinstitucionalização 3 , oque vai exigir não apenas um processo de desospitalização 4 ,mas de criação de novas práticas e novos espaços assistenciais.Propõe-se também um processo de desconstrução dosconceitos e das práticas psiquiátricas tradicionais.Nesse processo de transformação do modelo dominante,que era o hospício, a RPB, além de abordar a transformaçãode serviços assistenciais, também destaca a desconstrução doparadigma clássico da psiquiatria, ou seja, um novo olhar sobreo modelo conceitual e assistencial acerca da loucura, agorapropõe a construção de uma ciência social crítica, que vise àtransformação do lugar social do louco. Com a transformaçãodo objeto de intervenção, o processo de desinstitucionalizaçãoredefine referências e vê-se diante da complexidade do objeto,não mais se limitando ao processo de “cura”, mas, tão logo,segundo Rotelli et al. (1999:30), do processo de “invenção desaúde” e de “reprodução social do paciente”. Afirmam eles:Mas se o objeto ao invés de ser ‘a doença’ torna-se a‘existência-sofrimento dos pacientes’ e a sua relaçãocom o corpo social, então desinstitucionalização será oprocesso crítico-prático para a reorientação de todos oselementos constitutivos da instituição para este objetobastante diferente do anterior.Com a mudança de paradigma, buscam-se estratégias e novasformas de cuidados com vista à inserção social dos usuários institucionalizados.Segundo a III Conferência Nacional de Saúde Mental,realizada em 2001, foram aprovadas quatro diretrizes para o processode desinstitucionalização, que garantem a assistência integral e dequalidade, de acordo com a Lei n. 10.216/01. Destacamos três delas:• Superação do modelo asilar: a efetiva superação do modelo asilarexige a implantação de uma política de desospitalização/substituiçãoprogressiva dos leitos em hospitais psiquiátricos, com a concomitante3É um processo contínuo de invenção de novas formas sociais no lidar com a loucura, a diferença e o sofrimentohumano, de forma positiva e concreta, ou seja, com a criação de serviços responsáveis pelo cuidado no territóriode moradia, sem gerar negligência social.4A desospitalização é a alta hospitalar de usuários internados há longos períodos nos hospitais psiquiátricos.106


“De quem é a responsabilidade do cuidado?” O papel das mulheres no processo dedesinstitucionalização da pessoa em sofrimento psíquico.construção de uma rede substitutiva que assegureassistência integral e de qualidade;• Organização e produção da rede e dos serviçossubstitutivos: a implementação de uma rede de serviçosde saúde mental substitutiva ao hospital psiquiátrico,capaz de oferecer atenção integral aos usuários de saúdemental e a seus familiares, em todas as suas necessidades,nas 24 h, durante os 7 dias da semana, fortalecendo adiversidade de ações e a desinstitucionalização;• Serviços Residenciais Terapêuticos: o desenvolvimentode programas de desinstitucionalização das pessoashá longo tempo internadas, que visem os processos deautonomia, de construção dos direitos de cidadania e denovas possibilidades de vida para todos, e que garantamo acesso, o acolhimento, a responsabilização e a produçãode novas formas de cuidado do sofrimento.Diante do novo paradigma e das diretrizes tomadas,os cuidados ofertados aos usuários de saúde mental e à suafamília assumem crescente relevância na agenda de debates.São propostas transformações na estrutura de cuidados oferecidospelo Estado e nada se questiona acerca da organizaçãofamiliar e dos familiares/cuidadores. Cabe destacar que a redede serviços substitutivos, em alguns municípios, deixa muito adesejar, já que não tem oferecido a quantidade de serviços suficientespara atender à demanda de usuários do local. Com isso,fortifica-se uma opressão aos familiares/cuidadores que, em suamaior parte, são pobres. Sua pobreza se agrava, pois muitos cuidadoresacabam sendo impedidos de trabalhar, ou negligenciamo cuidado para poderem ter o que comer.Nesse contexto, ganha relevo uma nova forma de opressãodas mulheres, já que cabe a elas a função de maternar, ou seja, decuidar dos membros que carecem de proteção. Trata-se de acionar a“vocação” feminina (Badinter, 1985:222), aquela em que ela, “maisuma vez, nesse papel, se afirma como a ‘rainha do lar’”, glorificaçãorecebida por ser responsável pela casa. Essa vocação e essa função,segundo Badinter (1985), são um lugar construído socialmente; nele,a maternidade atualiza seu papel gratificante e, sob a condição decuidadora, agora ganha significados impregnados de um novo ideal;serve a um projeto civilizador do Estado Protetor, como em outrasexperiências (Freire, 2009). Nem é preciso explicitar: os atributos deum cuidador/familiar na saúde mental, naturalmente, em sua maioria,convergem e se assentam na figura feminina.Esse desejo pousa sobre ela por regras societárias que regulampapéis e fazeres masculinos e femininos: eles “resultam da incorporação107


Rachel Gouveia Passosde classificações, assim naturalizadas, de que seu sersocial é produto” (Bourdieu, 1999:47).O cuidar na saúde mental: a cogestãodo cuidadoSegundo o dispositivo legal, é(...) responsabilidade do Estado, o desenvolvimentoda política de saúde mental, aassistência e a promoção de ações de saúdeaos portadores de transtornos mentais, com adevida participação da sociedade e da família,a qual será prestada em estabelecimento desaúde mental, assim entendidas as instituiçõesou unidades que ofereçam assistência em saúdeaos portadores de transtornos mentais (Lein. 10.216/01, Artigo 3°).A Lei n. 10.216/01 destaca que os cuidados dos usuáriosem sofrimento psíquico devem ser efetivados de modo compartilhadona saúde mental, ou seja, nem são cuidados meramenterestritos ao Estado, nem são atribuídos simplesmente àfamília. Trata-se de um conjunto de cuidados compartilhados,que denomino cogestão.Para o sucesso desse modo de prescrição de cuidados, oimportante não é restringir-se meramente a questões legislativase conceituais, porém pensar na construção da integralidade doscuidados que não podem ser restritos ou abandonados por nenhumadas partes, a família ou o Estado. Alves e Guljor (2004:227)vão destacar algumas premissas em relação aos cuidados na saúdemental. São elas:• “Liberdade em negação ao isolamento: esse cuidado implicainvestir na capacidade do sujeito para operar suas própriasescolhas, seu potencial de estabelecer suas próprias normatizações,pautadas em sua história e de forma singularizada;• Integralidade: o cuidado abarca a construção de projetos devida, em contraposição ao reducionismo de uma intervenção voltadapara a remissão de sintomas;• Direito sobre a noção de reparo: o direito de serem assistidasde maneira digna, de terem respeitada sua expressão diferente danorma;• Singularidade em relação a cada caso;• Incorporação permanente do papel do agenciador: a equipe decuidado e o serviço precisam estar prontos para acompanhar a trajetóriado sujeito em sofrimento, sem compartimentá-lo por especifici-108


“De quem é a responsabilidade do cuidado?” O papel das mulheres no processo dedesinstitucionalização da pessoa em sofrimento psíquico.dades de demanda ou ‘repassá-lo’, ao se depararcom a complexidade das questões” (grifos meus).Para esses autores, o conceito de cuidados vaiestar vinculado às diferentes complexidades sociaisvividas pelos usuários de saúde mental, não limitandoos sujeitos como pessoas desligadas do corpo social.Entretanto, sabe-se que é sempre aquele membroda família que, diariamente, reside, acorda e convive como usuário de saúde mental. Mesmo com todas as estratégiasque se têm criado, é o familiar aquele que convivee sofre todos os impactos da desospitalização, sejam elespositivos e/ou negativos. A partir dessas referências, cabeanalisar os impactos dos cuidados sobre as famílias, já queelas fazem parte da cogestão do cuidado. Para Alves (2001),o cuidado integral só pode ser concretizado no contexto dosnovos paradigmas da atenção em saúde mental, ou seja, nomomento em que se construa e se atinja a integralidade daassistência prevista. Essa estratégia de cuidados rompe coma concepção do modelo assistencial tradicional, deslocando aideia reducionista de que os usuários são meros “pacientes”,pessoas simplesmente passivas diante dos cuidados preconizados.Ao visar, assim, a construção da cidadania, pretende queos cuidados viabilizem formas de proteção para além de sinaise sintomas psicopatológicos (Guljor e Vidal, 2006:81). Assimsendo, na perspectiva em foco, a produção de saúde não é só aextinção de doenças, mas a produção de sujeitos. Haveria, então,o compartilhamento da responsabilização do cuidado dos usuáriosentre as equipes de serviços de saúde mental, atenção básica,assistência social e outros dispositivos, e os familiares procurandoconstruir a rede social de cuidados.Na pesquisa realizada por Campos e Soares (2005:222),destaca-se que as famílias são um forte aliado no enfrentamento ena construção dos cuidados do usuário de saúde mental. Entretanto,os autores vão destacar a sobrecarga doméstica/parental em relaçãoao provimento desse cuidado, que pode ser potencializada por diversosfatores, inclusive pelo estresse emocional e econômico, aos quais asfamílias se submetem. A presença dos usuários vai afetar as diferentesformas de organização do núcleo familiar, inclusive no caso de ser umapessoa que não tenha vínculos diretos com os membros da família. Issose agrava quando a rede de assistência em saúde mental, ou seja, arede secundária (Castel, 1998) não funciona, já que as estratégias doscuidados são construídas em conjunto, não se limitando às famílias.109


Rachel Gouveia PassosA clientela que está em processo de saída de umainstituição psiquiátrica não experimentaria, pois, umúnico espaço de intervenção, mas muitos outros, concebidoscomo uma rede social com a responsabilidadede construção dos seus projetos de vida, individual ecoletivamente. Essa concepção torna necessária a saídada equipe multidisciplinar dos limites institucionais, e ummovimento de busca em conjunto com a rede primária(Ibidem), daí a intervenção junto ao território e à comunidade,modo de viabilizar a conjunção da integralidade eda intersetorialidade. A responsabilidade dessas ações estávoltada, pois, para os novos serviços abertos e comunitários.A falta de investimento na rede assistencial, entretanto,fragiliza o atendimento e o acompanhamento adequados dodoente; não dá atenção a necessidades assistenciais maisprementes; as famílias, isoladas diante dessa realidade,por diversas vezes, têm, como único caminho, a internaçãode seu ente adoecido. Isso nos mostra a fragilização com aimplantação da RPB, que vem sendo feita.Rosa (2009:187) observa:Embora a família seja entendida como um grupo aser protegido, no atual quadro de crise da materialidadedas políticas sociais (ausência ou limitação realde crise da material para as políticas e programas),permeia um forte risco de devolução de muitas funções,até então tidas como dever do Estado, para ogrupo de origem do indivíduo. A devolução de certasfunções para a família, frequentemente, emerge demaneira camuflada na própria precariedade e baixaqualidade dos serviços prestados.Com isso, as famílias tornam-se solitárias na prestação decuidados, que deveria ser compartilhada com a rede secundária,vivendo a dura responsabilidade de praticar atendimentos limitadose sofríveis. Cabe destacar que as propostas de desinstitucionalizaçãoexpressam uma retórica direcionada para princípios como liberdade,igualdade, inclusão social, provisão de cuidados sociais e em saúdeno território e na comunidade, prevendo, com isso, a produção doresgate da cidadania. Entretanto, na experiência em curso, verifica--se que as restrições são maiores do que a viabilização desse projetode cidadania. Nesses termos, passa a negá-la e, assim, a representara reprodução da lógica opressora manicomial, pois os cuidados quedeveriam ser exercidos em cogestão são uma sobrecarga para apenasuma das partes. O conjunto dos cuidados exercidos, desse modo, torna--se opressor, tanto para o usuário quanto para a família, restaurando,assim, a tutela ao invés da cidadania.110


“De quem é a responsabilidade do cuidado?” O papel das mulheres no processo dedesinstitucionalização da pessoa em sofrimento psíquico.Há também as dificuldades encontradas na atuaçãodos profissionais em relação à construção dessescuidados. Segundo Campos e Dominiti (2007:405),pretende-se que cuidados compartilhados sejam oresultado de uma ação derivada da tomada conjuntade decisões sobre a resolubilidade dos casos. Para osautores, “é comum o profissional construir identidadee segurança, apegando-se à identidade do seu núcleoprofissional, o que dificulta a abertura da interaçãoinevitável em espaços interdisciplinares”. Figueiredo eOnocko (2009:133) vão destacar que há profissionais desaúde mental que tendem a transferir a responsabilidadepara outros serviços, e vice-versa. Esse deslocamento dolugar de comodidade torna-se um trabalho espinhoso, jáque práticas opressoras e manicomiais estão também emserviços substitutivos e comunitários.Vale destacar, neste trabalho, outro questionamento,levantado por Alves (2001), sobre a questão da “psicologizaçãodo cotidiano”. Na avaliação do autor, ao entrar nas casase no cotidiano familiar, encontrar-se-ão diversas situações equestões próprias dos arranjos familiares daqueles sujeitos,problemas que o autor chama de “problemas menores”. Sãoproblemas que não vão ser resolvidos através de saberes instituídos,como a psicanálise, a farmacologia e outros, mas só nocotidiano vivido por esses sujeitos, eles encontrarão soluções, jáque isso faz parte da lógica das relações sociais.Falando das mulheres de Acari, em busca dos corpos desaparecidosde seus filhos, Freitas (2002:90) observa que cuidarsignifica “não apenas proteger, maternar, educar, mas também serresponsável em lutar pela memória do filho, por um enterro digno,por uma sociedade mais justa (...)”. Nesse e em tantos outros casos,em diferentes séculos e lugares, um atributo sempre associado àimagem feminina é o da luta pela vida dos filhos. E isso se faz atravésde um longo aprendizado, sempre de mulheres em rede.Diaz, em sua tese de doutorado (2008), vai entrevistar algunspersonagens da luta antimanicomial, e um desses é Lídia Morena, familiarde usuários de saúde mental. Nesse caso, a construção de redede solidariedade se dá a partir da experiência familiar vivida por Lídia,e da ausência da prestação de cuidados a Fátima por parte de sua família,o que move Lídia a oferecer o cuidado que falta à sua amiga. Masa minha experiência mais marcante, onde eu aprendi tudo, não era nemda família. Foi a Fátima, uma amiga, uma pessoa que eu conheci, queestava passando um aperto, o marido dela trabalhou para mim. Na época,ela fazia uns trabalhos manuais e me lembro que falei: ‘Nossa, você é tãointeligente!’ Na segunda vez que a vi, ela me abraçou e falou: ‘Você acha111


Rachel Gouveia Passosque eu sou inteligente?’ ‘Não deixa nunca de vir aquiem casa.’ Eu achei uma coisa assim um pouco primária,sabe? Depois, o marido dela parou de trabalhar comigoe eu fiquei sabendo que ela estava doente lá no DoutorEiras de Paracambi. Aí, num Dia das Mães, há mais oumenos uns 9 anos, eu pedi de presente ao meu maridoque eu queria passar o Dia das Mães em Paracambi coma Fátima. Foram uns quinze dias direto indo para Paracambi,levando comida para a Fátima, para ver se elaficava melhor. Fizemos uma reunião com os vizinhos paraapostarmos na melhora, porque as crianças dela estavamsofrendo muito (...). Tirei a Fátima sob termo da Casa deSaúde Doutor Eiras junto com o marido, os vizinhos ajudaramfinanceiramente e eu a levei para o Hospital Dia ali no CPRJ,durante meses e nós conseguimos que os filhos dela tambémnão fossem para o orfanato. Tínhamos essa preocupação comas crianças (Diaz, 2008:145).Neste exemplo, notam-se práticas de “maternidadetransferida”, devido à ausência temporária da prestação decuidados a Fátima por sua família. Essa situação vai acarretarconsequências para a família, como, por exemplo, a quaseperda da guarda das crianças, a falta de dinheiro para pagaras contas e outras situações que fazem Lídia mover-se em proldo cuidado com Fátima e sua família. Nessa experiência, a proteçãoprimária se expressa em práticas, em geral ocultas, quese deslocam das relações familiares próximas para pessoas degrupos de convívio (Costa, 2002:302), que também naturalizamformas de cuidados.Outra personagem e precursora do Movimento da Luta Antimanicomial(MNLA) é Iracema Polidoro. A construção dos cuidados éparte das sociabilidades femininas, e as tarefas aí compreendidas sãoaprendidas nas relações sempre bastante complexas entre mulheres.Então era uma família. Eu tinha uma família dentro doFranco da Rocha. Quando elas me viam, todo mundo corriaatrás de mim. Eu sempre cuidando dela, dos piolhos,porque piolho, ela pegava piolho escandalosamente. ‘Euestou com piolho’. Eu trazia remédio. E um belo dia eufui domingo ela falou: ‘Ih, eu não estou bem.’ Uma gripeforte que deu numa época. ‘Ah, eu estou com uma gripe,estou com febre, estou com isso, estou com aquilo’. Aí eucatei lá um chá de... Por ali, arrumei umas folhas, fizemosum chá para ela, ela tomou e tal. Aí liguei, aí a menina:‘Ih, a Jenice ainda está meio febril’. Eu falei: ‘Puxa, tomouo chá...’ Quando foi na terça-feira de manhã aí recebo umtelefonema para ir urgente na Colônia que estava tendo umproblema e eu tinha que estar lá. Aí quando eu chego naColônia, eu entro no portão vem uma paciente. Agarrou-me echorou. Eu falei: ‘O que houve?’ ‘A Jenice está morta em cima112


“De quem é a responsabilidade do cuidado?” O papel das mulheres no processo dedesinstitucionalização da pessoa em sofrimento psíquico.da cama.’ Eu falei: ‘Que é isso?!’ Chegueilá estava o corpo dela em cima dacama. E as pacientes, todas em volta.Quando eu entrei na enfermaria, eu viaquele corpinho, que ela era baixinha,esticadinha assim, o rostinho de lado. Euparei e a Mercedes virou para mim e falouassim: ‘Ih, a Jenice morreu, o que vai serda gente agora? Quem vai limpar, quemvai cuidar da gente? A Jenice morreu, Iracema.’Aquilo ficou gravado. Eu falei paraela: ‘Olha, a minha bandeira vai continuarestiada. Enquanto eu tiver vida e força vocêpode crer que eu vou estar lutando por vocês’.Cheguei perto da cama... Foi duro. Viu?(chorando) Mas uma perda que eu tive, e consegui.Fiz o enterro dela, saí dali, liguei paracasa, avisei. As outras irmãs nunca ligarampara ela. Nem vieram ao enterro. Sempre eraeu. Fiz o enterro com poucas pessoas. Na horado sepultamento eu falei: ‘Jenice, vou continuarna luta. Você não alcançou a mudança, masoutros alcançarão’. Enterrei minha tia, ela temquatro anos de morta. Ela fez aniversário em 5de fevereiro, morreu dia 10 de maio. E eu estouaí, na luta (Diaz, 2008:116).Assim, as mulheres, mesmo não podendo oferecer cuidadosàs famílias, deslocarão esse encargo para outras, o quetambém não significa que tenham abandonado os “atos de amor”(Rosa, 2009:188). Para Costa (2002:396), “essas práticas protecionistas,com pouco apoio do setor público, consolidaram extensasredes de proteção e dependências, armadas na intimidade dascasas”. Multiplicam-se, assim, encargos destinados a mulheres emdupla e tripla jornadas de trabalho. A naturalização do cuidado emsuas casas, por sua vez, não teria reconhecimento como trabalho,ou seja, “em sua essência já estaria inscrita a condição de cuidadora,por isso mesmo não haveria o mérito de remuneração” (Rosa,2009:189). Todavia, entre nós, no Brasil, as mulheres estendem essasfunções de cuidadoras fora de suas casas, para que outras trabalhem.No artigo de Campos e Soares (2005), diagnosticou-se, napesquisa realizada, que as mulheres estão em maior número comocuidadoras diretas dos usuários de saúde mental. Cabe destacar,como fator significante nesse estudo, que tais mulheres/ cuidadoraspossuem renda de até dois salários mínimos, o que agrava a situaçãoda continuidade dos cuidados junto ao serviço substitutivo e do sustentodessa família. Isso tem como consequência a sobrecarga familiar e oaumento do sofrimento psicológico das cuidadoras.(...) outro lado da dimensão de gênero parece indicar que ossujeitos do sexo masculino, que acompanham pacientes tambémdo sexo masculino, são mais afetados pela sobrecarga financeirae pela alteração nas rotinas da interação familiar. O homemnormalmente se ocupa das questões da esfera pública, social,113


Rachel Gouveia Passosdeixando a cargo da mulher se ocupardas questões do âmbito privado, familiar,e,portanto, ele não sofre as mesmas consequênciasda sobrecarga emocional, poispassa grande parte do tempo fora de casa(Campos e Soares, 2005:231).Dessa forma, mesmo com a participação de homensnos cuidados, em geral são as mulheres que se ocupamcom as questões da esfera privada; por isso, caber-lhes-áa responsabilidade pelo sujeito com transtorno mental. Talsobrecarga se agrava com as dificuldades de participaçãoda rede secundária, já retratadas neste trabalho, e quereforçam práticas e ideologias associadas à distinção dospapéis sociais masculinos e femininos.Um exemplo de destrato está no caso de Lurdes 5 , apartir da experiência profissional que tivemos no projetoSOS-Direitos dos Pacientes Psiquiátricos 6. Lurdes reside coma família, depois de ter vivido alguns anos numa instituiçãopsiquiátrica. É uma pessoa preservada em relação às suascondições psíquicas e apresenta certo grau de autonomia. Seutratamento é realizado em um serviço de referência da zona norteda cidade, informação dada por seu tio José. Entretanto, chegaa nós uma denúncia de maus–tratos por parte desse mesmo tio,alegando que a mãe de Lurdes a tranca em um quarto dos fundos,sem nenhuma condição de higiene, não a alimenta e a proíbe deir ao Instituto para realizar seu tratamento. José também relataque Lurdes não vai há mais de três meses ao Instituto, alegandoque não está bem por se ausentar de seu tratamento. Partimos eue a coordenadora do projeto para uma visita, juntamente com ocoordenador do CAPS de referência do bairro em que Lurdes reside.Chegando ao local, encontramos o Sr. José, que nos levou até acasa da mãe de Lurdes, que nos atende, relatando que a filha nãose encontra, que tinha ido ao Instituto para a consulta. Solicitamos anossa entrada. A Sr.a Mercedes, como se chamava, se incomodou comnossa presença, pedindo que fôssemos breves, pois ela teria que sair.Levou-nos ao quarto em que Lurdes dorme. Era o quarto dos fundosda casa, fechado com cadeado e corrente de ferro. Tinha muitas cascasde banana no chão e sujeira, cheirava a mofo e era muito úmido. Haviaum colchão velho, alguns lençóis sujos e apenas uma janelinha pequenacom o vidro quebrado. A Sr.a Mercedes relatou que Lurdes é muitoviolenta e que ficava naquele quarto porque a família não aguentavasua presença. Após nossa saída da casa, o Sr. José diz que era mentira:5Nome fictício para preservar identidade da usuária e de familiares. Os demais nomes aqui destacados tambémserão fictícios.6O projeto SOS – Direitos dos Pacientes Psiquiátricos é um serviço oferecido aos usuários, aos familiares e àrede de saúde mental e assistência para auxílio e acompanhamento jurídico, assistencial, social. É um projetodo Instituto Franco Basaglia, sendo pioneiro em todo o Brasil como balcão de atendimento. Atuei no projetoprimeiramente como estagiária/bolsista e, depois, como assistente social.114


“De quem é a responsabilidade do cuidado?” O papel das mulheres no processo dedesinstitucionalização da pessoa em sofrimento psíquico.“Lurdes teria ido ao Instituto e, diante da descoberta denossa visita ao local, haviam-na retirado de lá”. Para seutio, Lurdes não é violenta, e ele se coloca à disposiçãodo cuidado da mesma. Como já destacado, a sobrecargaexiste no seio dessa família, que não tem como ofereceros cuidados necessários ao seu ente com transtorno mental.Questiono a ausência da instituição de cuidados deLurdes. A essa mãe caberia oferecer à filha tais cuidados?Para as famílias pobres, intensifica-se a problemática doscuidados, já que todos os membros necessitam trabalhar,inclusive as mulheres. Além disso, cabe-lhes exercer outrasfunções que lhes são atribuídas. Essa ausência de cuidado oumaltrato pode estar sinalizando a sobrecarga das mulheresnas funções de cuidados. A que ponto teria chegado a faltade opção, para que essa mãe tivesse que colocar a própriafilha em cárcere privado? Não estamos defendendo a atitudetomada, entretanto, o quanto essa circunstância se relacionaà ausência de proteção do Estado e à falta de investimento nosserviços de saúde mental?Diante de comportamentos femininos que sugerem manifestaçõesda ausência de amor materno”, eles são indícios de crimepor atitudes impensáveis e passíveis de repressão. Distanciam-sedos códigos que reafirmam uma dada “essência” natural de sermãe. Se mulheres pobres, intensificam-se ainda mais as exigênciasdas responsabilidades maternas. Para isso as instituições colocam--se de prontidão para apontar suas falhas e, assim, repudiá-lase fiscalizá-las e, assim, puni-las por não cumprirem seu papel decuidadoras, ou de se apresentarem como “mães más”.Com Badinter (1985:271), podemos perceber como o papelde cuidadoras foi representado ao longo dos tempos, construindoa noção de que as mulheres devem sacrificar-se pela prole, numarepresentação do que seja a “boa mãe”. Nessa representação, ofilho “(...) será o sinal e o critério da sua virtude, ou de seu vício, desua vitória e de seu fracasso. A boa mãe será recompensada e a máserá punida (...)”, segundo suas condutas para com seus filhos. Comisso, poderia essa mãe ser tida como culpada pelo transtorno mentalde sua filha? Essa filha tem culpa pela ausência do sentimento de maternidadedessa mãe? As mulheres, dentro da história da humanidade,foram submetidas a pressões ideológicas, que as levaram a incorporaro desejo de serem mães, sacrificando suas vontades e projetos em nomede significados do que seria “o bem” das famílias, encontrando neles suafelicidade e realização.Se estavam todos de acordo em santificar a mãe admirável, estavamtambém em fustigara a que fracassava em sua missão sagrada.Da responsabilidade à culpa havia apenas um passo, que115


Rachel Gouveia Passoslevava diretamente à condenação. É porisso que todos os autores que se dirigiramàs mães acompanharam suas palavrasde homenagens e de ameaças. Durantetodo o século XIX, lançaram-se anátemasàs mães más. Desgraçada a mulher quenão ama seus filhos, exclama Brochard.Desgraçada aquela que não o amamenta,continua o doutor Gerard: ‘ela condena todasua descendência a males horríveis, cujasconsequências terríveis podemos apenasentrever: enfermidades incuráveis, como atuberculose, a epilepsia, o câncer e a loucura,sem contar todas as horríveis neuroses que tãocruelmente afligem a humanidade’.Pela sobrecarga dos cuidados em relação aos usuáriosde saúde mental, entende-se que as responsabilidades que“cabem” ao ideal da boa mãe e cuidadora poderão deixarde ser atendidas e, por isso, deslocá-la para o de “mãemá”. Não cumprir, pois, o papel idealizado de mãe significaculpabilizá-la por qualquer ação que possa gerar descuidosa um/a usuário/a; essa é uma forma de repressão à mesma.Nesse caso, ainda que a negligência em relação à cogestãodo cuidado por parte do Estado seja manifesta, afirma-se odescuido pelo fato de essa mulher ser uma mãe má; saem daítodos os embaraços seguintes. São muitos os indícios de que,nessas ações, o Estado segue tradições que culpabilizam a famíliae localizam, nas mulheres, a fragilidade da cogestão doscuidados como previsto em lei.Outro exemplo, porém distinto do anterior, é o caso de Ruth 7que, hoje, além de profissional de saúde, é militante da luta antimanicomial.Alguns meses depois de seu nascimento, sua mãe foiinternada em um hospital psiquiátrico. A causa foi relatada por umavizinha como tentativa de assassinato da filha, já que a mãe apresentavasensação de perseguição, delirium, agitação psicomotora. Era aprimeira vez que Odete fora internada, iniciando, assim, sua trajetóriapsiquiátrica. Negava-se a realizar o tratamento, o que cronificou seuquadro psíquico, prejudicando não só sua saúde mental, mas tambémsua vida social. A relação com a vizinhança era dura, já que era internadapelo menos duas vezes por mês. Foram longos anos convivendo com essaquestão, sendo Ruth a irmã mais velha de duas. O marido de Odete nãoaguentava por muito tempo esse sofrimento, o que fazia com que saíssede casa e deixasse as crianças com a mãe em crise. Ruth cresceu vendo amãe ser internada nos diversos hospitais do Rio de Janeiro. Era dolorosoe incompreensível para ela entender aquela situação que vivenciava. Porser a filha mais velha, foi pressionada pela família de Odete que, depoisde algum tempo, nem mesmo quis ter mais notícia dela, levando Ruth a7Nome fictício para preservar identidade da usuária e dos familiares. Os demais nomes aqui destacados tambémserão fictícios.116


“De quem é a responsabilidade do cuidado?” O papel das mulheres no processo dedesinstitucionalização da pessoa em sofrimento psíquico.responsabilizar-se pela mãe, já que o pai tambémnão mais conseguia sustentar o quadro psiquiátrico deOdete. Era Ruth quem cuidava das responsabilidades damãe quando esta era internada; aos cinco anos, já ia aobanco efetuar pagamentos. E, assim, cresceu, assumindoa responsabilidade da organização da casa. Coube a ela,diversas vezes, organizar a vida financeira da mãe, já quea mesma, em várias ocasiões, embaraçava-se pela sucessãode crises psíquicas. Nos momentos em que se sentiasenhora de si, encontrava organizada a vida. Era Odetequem cuidava de Ruth e de sua outra filha, exercendo seupapel de cuidadora e de mãe, papel de que se orgulhavae a fazia feliz. Entretanto, quando tomada pelas crises, eraRuth quem exercia o papel de cuidadora, quem tentava cuidardela, tendo, muitas vezes, na sua infância e adolescência,que internar Odete para que fosse cuidada, já que a mãe senegava a submeter-se a tratamento e cuidado. Diversas vezes,Ruth teve que contar com o auxílio do corpo de bombeiros e/ouda polícia para poder levar a mãe para internação, já que nãodispunha do auxilio de mais ninguém, e Odete negava-se a irpara o hospital. Situações complicadas como essa se repetiramem várias ocasiões. Apenas uma vez, houve um suporte paraOdete de um psicólogo, profissional de referência no HospitalManfredini, o que não durou muito tempo, vendo-se a família sozinhacom esse cuidado. Assim sendo, durante 26 anos da vida deRuth, não houve nenhum acompanhamento familiar por parte dosserviços de saúde mental para Odete, ficando o cuidado à mercê,inúmeras vezes, da criança de outrora, agora uma jovem mulher.Tais circunstâncias só começam a alterar-se a partir do momentoem que Ruth ingressa na universidade e inicia o estágio. O primeirofoi na antiga Colônia Juliano Moreira, onde passara quase a vidainteira, vivenciando as internações de sua mãe; esse vai ser no iníciode sua carreira profissional e, nesse mesmo lugar, enxergará a loucurade outra forma. Então, aprofunda-se em estudos acerca da loucura,compreendendo o que ela e sua identidade social, incorporando aquestão do transtorno mental, tanto em sua luta ideológica, como nasua carreira acadêmica e na sua militância. Ruth, nessa experiência,encontrará saídas para o cuidado de sua mãe, que, aos poucos, iniciaseu tratamento ambulatorial, não passando mais por internações. Numanova construção da rede familiar, todos os seus membros se conscientizamda necessidade do tratamento com medicação; isso se faz e fortalece ocuidado com Odete.Odete deixa de ser cuidadora por ser louca? Nesse caso, a loucuraa distancia, por períodos de sua vida, para oferecer cuidado à suas filhasainda crianças. Embora para tentar manter uma organização familiar,a filha mais velha vá procurar assumir, nas fases em que essa mãe fica“ausente”, pelas crises, das responsabilidades maternas.117


Rachel Gouveia PassosE sempre que retorna das internações, a mãeassume seu papel de cuidadora, e a filha volta a seupapel de filha a ser cuidada. Como o anseio pelo cuidadofez com que esta família se reorganizasse, a fimde delegar a cada membro o desvelo que fosse possível?Isso se deu assim porque, talvez, fosse a única alternativade sobrevivência grupal. E, dando-se dessa forma,talvez já não houvesse outra maneira. Nessa experiência,a filha mais nova era quem cuidava da casa, enquantoa mais velha organizava as responsabilidades de rua damãe, no período das internações, traduzindo que essa delegaçãode cuidados efetivava a maternidade transferida,modo de cobrir a deficiência dessas estruturas assistenciais(Costa, 2002:206). O caso de Ruth traduz uma regularidadede práticas sociais de longa duração histórica. As ações dedesinstitucionalização têm recriado a tradição dos cuidadosfemininos, e são muitos os exemplos existentes no país.Por tudo isso, reafirmo que a rede de saúde mental temdeixado muito a desejar, quando fixa responsabilidades parafamílias e, principalmente, para mulheres, por vezes ainda crianças,não importa em que situações de precariedades existenciais,quando restringe prestação de cuidados ou mesmo se exime deprestá-los. Ampliam-se, assim, os sofrimentos dos doentes e dosfamiliares pela ausência de cuidados e tratamento dos usuáriosde saúde mental. Deixo aqui indagações iniciais para pensar aimportância da avaliação do processo de implantação da RPB,nas circunstâncias que estabelecem tanto a ausência de investimentopor parte do Estado em serviços substitutivos e comunitáriose de profissionais capacitados, como também a falta de cuidadosao familiares/cuidadores e a sobrecarga subsequente. Além disso,desvenda-se, nessa experiência, a atualização de novas formas deopressão das mulheres.Nota: As opiniões expressas neste artigo são da inteira responsabilidadeda autora.Referências BibliográficasALVES, Domingos Sávio. Integralidade nas Políticas de Saúde Mental.In: PINHEIRO, R. e MATTOS, R. A. (orgs.) Os sentidos da integralidadena atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: UERJ, IMS/ABRASCO,2001.________ e GULJOR, Ana Paula. O Cuidado em Saúde Mental. In: PINHEI-RO, R. e MATTOS, R. A. (orgs.) Cuidado: as fronteiras da integralidade.Rio de Janeiro: Hucitec/ABRASCO, 2004.118


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ArtigoA CONSTRUÇÃO DAS INTERVEN-ÇÕES EDUCATIVAS EM SAÚDE JUNTOÀ POBREZAJoão Vinicius dos Santos Dias 1Jaqueline Ferreira 21Especialista e Mestrando em Saúde Coletiva do Institutode Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio deJaneiro (IESC/UFRJ).2Doutora em Antropologia Social e Professora Adjunta doInstituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal doRio de Janeiro (IESC/UFRJ)Resumo: O objetivo deste artigo é apresentar umabreve retrospectiva histórica das ideias e discursos sobre apobreza que influenciaram as intervenções educativas emsaúde no Brasil. As segmentações sucessivas que marcaram ahistória e a produção da pobreza trouxeram uma multiplicidadede discursos e a perspectiva do que constitui a boa intervençãoeducativa na saúde: o reconhecimento de certas populaçõescomo vulneráveis e aos problemas que ultrapassam o domíniodo simples registro médico para o âmbito moral.Palavras-chave: pobreza, pobres urbanos, educação emsaúdeTHE ELABORATION OF EDUCATIONAL IN-TERVENTIONS IN HEALTH UNDER POVERTYAbstract: The aim of this paper is to introduce a brief historicalretrospective of the ideas and discourses on poverty that have influencedthe educational interventions in health in Brazil. The successivesegmentations that marked the history and the production of povertybrought on a multiplicity of discourses, and the perspective of whatconstitutes the good educational intervention in health: the recognitionof certain populations as vulnerable ones, and the problems that overstepthe domain of the simple medical record towards the moral scope.Key words: poverty, urban impoverished people, health education123


João Vinicius dos Santos Dias e Jaqueline FerreiraA pobreza no Brasil é um fenômeno conhecidodesde o período colonial e passou por mudançasimportantes do ponto de vista social na passagemdos séculos XIX e XX em virtude da passagem de umasociedade escravista para capitalista. Com as transformaçõesocorridas no mercado de trabalho urbano ecom a inserção espacial/residencial da população pobrenas cidades que surgem uma multiplicidade de discursos(sanitarista, econômico, político e jurídico) sobre a mesma(Valladares, 1991).No princípio do século XX o discurso sobre a higienecom a ênfase no cortiço abriu caminho para os sanitaristasrealizarem intervenções sobre o corpo, comportamentose moradia do pobre. O Brasil deste período apresentava,mesmo em suas maiores e principais cidades (Rio, São Paulo,Recife, Salvador, etc), uma estrutura urbana antiga, herdadado período colonial o que dificultava o estabelecimento deuma dinâmica capitalista na economia do país, o que já vinhaacontecendo a partir da Revolução Industrial nos paísesocidentais industrializados da Europa e nos Estados Unidos(Silva, 2006).Nesse contexto, principalmente no Rio de Janeiro, aquestão da habitação e da pobreza passa a se configurar comoproblemática central no debate sobre a modernização da cidade:a existência de cortiços que abrigavam milhares de pessoascom condições extremamente precárias de existência saltava aosolhos da população e se revelava antagônica com a imagem decidade limpa, organizada e higienizada que se pretendia construir.Nesse ambiente proliferavam muitas doenças, como tuberculose,sarampo, tifo, hanseníase. Alastravam-se grandes epidemias defebre amarela, varíola e peste bubônica. (Valladares, 2005). Alémdo medo do contágio das doenças da pobreza, os sanitaristas argumentavamcomo as habitações coletivas eram focos de irradiação devícios de todos os tipos, tanto os biológicos, quanto os morais. Assim,predomina a noção de “pobres perigosos”, visão preponderante nopanorama mundial do século XIX (Bresciani, 1982).Aliavam-se a isso necessidades econômicas, pois o país vivia odesenvolvimento do modelo agroexportador como um dos pilares da economiaonde o saneamento dos portos e espaços públicos tornava-se umaprioridade para a consolidação deste modelo. (Smeke & Oliveira, 2001).Neste contexto, seriam necessárias não só intervenções no sentidode limpar a cidade e imunizar a população das doenças, mas tambémum tratamento moral onde a educação seria uma forma de garantir a124


A construção das intervenções educativas em saúde junto à pobrezaadoção de hábitos mais condizentes com os de umacidade limpa e moderna. Ciente desta necessidade oentão presidente Rodrigues Alves designa OswaldoCruz, biólogo e sanitarista, para ser chefe do DepartamentoNacional de Saúde Pública, que juntamentecom o prefeito Pereira Passos, seriam os responsáveispela reforma da cidade: se Pereira Passos foi o símboloda transformação urbana, Osvaldo Cruz pode ser consideradoo principal responsável pela reforma sanitáriadesencadeada na cidade (Smeke & Oliveira, 2001. p.118).No entanto, estas intervenções coercitivas e autoritáriasatuando sobre os corpos e sobre a moral doscidadãos, geravam um alto grau de descontentamento napopulação que incentivada pela participação de imigranteseuropeus portadores de ideologias libertárias e anarquistascompunham uma cultura avessamente sensível às práticas dedominação e exploração, fortalecendo movimentos de resistênciacomo a Revolta da Vacina (Smeke & Oliveira, 2001). Éimportante salientar como a oligarquia paulista apoiada peloscadetes da Praia Vermelha buscaram canalizar o movimentopara a derrocada do governo republicano (Sevcenko, 1993;Chalhoub, 1996; Maihy e Bertolli Filho, 1995).A Revolta da Vacina tornou-se emblemática da intervençãoautoritária do Estado na saúde e intimidade dos cidadãos. A metáforado corpo orgânico para falar da sociedade circula entre osmédicos sanitaristas de forma que a medicalização da sociedadeserviria para criação de condições ambientais que favorecessem aformação de corpos e mentes sadias condizentes com uma naçãopróspera e civilizada (Rago, 1985).Conforme apontam Valla & Stotz (1994) as reformas urbanase sanitárias empreendidas na cidade do Rio de Janeiro no início doséculo XX emergiram da necessidade capitalista de disciplinar corpose espaços, garantindo a acumulação, tanto de condições favoráveispara a produção e circulação de mercadorias, quanto para a formaçãode uma forma de trabalho disciplinada, controlada e sadia.Nas décadas seguintes, principalmente a partir dos anos 50, aação estatal na saúde se volta para a construção de um sistema previdenciáriopara as categorias profissionais mais organizadas e commaior peso econômico e político através das Caixas de Aposentadoria(Faveret Filho e Oliveira, 1990). Dois movimentos estão presentes nestemomento: as ações em saúde de caráter coletivo são esvaziadas em favorda expansão da assistência médica individual e a desresponsabilizaçãodo Estado e das políticas públicas no que se refere a intervenções nos125


João Vinicius dos Santos Dias e Jaqueline Ferreiradeterminantes sociais da saúde da população, comoa educação, o saneamento, a moradia, etc. As açõeseducativas em saúde ficam restritas a programas eserviços destinados a populações à margem do jogopolítico central, continuando a priorizar o combate dasdoenças infecciosas e parasitárias (Vasconcelos, 2001).Também nesse período se fortalece no país a mitificaçãoda ciência como discurso dominante sobre osfenômenos da saúde/doença em detrimento da visãoreligiosa e dos saberes populares que passam a assumirlugares cada vez mais marginais. A ideia de que as condiçõesde vida e principalmente de higiene tem grandeinfluência nas condições de saúde da população, culminamcom a responsabilização dos indivíduos da sua condição demiséria e consequentemente de insalubridade.Assim, a partir da década de 1960, fortaleceu-se aideia da educação em saúde como forma de extinguir comportamentosde risco e adoção de hábitos saudáveis (práticashigiênicas, aceitar vacinação, fazer exames, etc).Paradoxalmente à ditadura militar em meados da décadade 60, há espaço para a emergência de uma série de experiênciasinovadoras no campo da educação em saúde. O incrementodas desigualdades sociais, do esvaziamento de partidos e sindicatose da omissão do Estado na garantia de direitos básicoslevou ao fortalecimento de movimentos sociais e comunitáriosque engendraram novas formas de resistências que se refletiramigualmente campo da saúde. (Smeke & Oliveira, 2001).Assim uma série de iniciativas e movimentos que impulsionarama participação da população como associações de moradores,o movimento operário, as experiências das Comunidades Eclesiaisde Base (CEB’s), etc;Nessa época, a política de saúde se voltava para a expansãodos serviços médicos privados, especialmente hospitais e policlínicasconveniadas, nos quais as ações educativas não tinham espaço significativo.O esforço médico, em geral, corre paralelo, dessincronizado eaté mesmo em oposição ao esforço popular de combate aos problemasde saúde, investindo em tecnologias, maquinários e medicamentos queatuam apenas no campo biológico deixando o contexto sócio-culturalem segundo plano, quando não, desconsiderando-o por completo. Muitosprofissionais, intelectuais e acadêmicos, insatisfeitos com as práticasmercantilizadas e rotinizadas dos serviços de saúde se aproximaram dadinâmica de luta e resistência das classes populares e engajam-se no processode formação de uma nova organização política da saúde: no vazio126


A construção das intervenções educativas em saúde junto à pobrezado descaso do Estado com os problemas populares,vão configurando-se iniciativas de busca de soluçõestécnicas construídas com base no diálogo entre o saberpopular e o saber acadêmico (Vasconcelos, 2001).A pobreza é então reconhecida como questãosocial e o novo porta-voz da pobreza passa a ser ocientista social, dentre eles os educadores. É nessa épocaque as primeiras experiências de Educação Popularproposta por Paulo Freire ganham espaço no campo dasaúde. A principal proposta da mesma é a valorizaçãodos múltiplos saberes existentes para além das fronteirase delimitações do saber formal ou acadêmico. Para Freire(1996) há necessidade do reconhecimento e valorizaçãodas potencialidades das diversas populações e não só dosseus aspectos negativos. Freire acreditava na educaçãocomo instrumento transformador da sociedade defendendoa docência como instrumento de liberdade respeitando o conhecimentotrazido pelos educandos e ao senso comum, emresposta ao autoritarismo muitas vezes presente nas práticaspedagógicas tradicionais.Nos anos 70 com o regime militar, a questão da pobrezapassa a ser considerada antagônica ao projeto de Brasil comoo país do futuro e com a imagem de desenvolvimento aceleradoque se procurava construir, sendo o debate da pobreza colocadoà margem e o seu maior símbolo, as favelas, voltaram a ser alvosde políticas de controle e remoções (Valla, 1986). Os movimentossociais ligados a saúde se fortalecem e passam a fomentar experiênciasde ações e serviços comunitários em saúde desvinculadasdo Estado e integradas a dinâmica social das localidades onde sedesenvolveram (Stotz, 2005).Nos anos 80 com a abertura política do país, movimentos populares,que já tinham avançado na discussão das questões de saúde,passam a reivindicar serviços públicos locais e a exigir participaçãono controle de serviços e unidades já existentes.Dos anos 90 até os dias atuais verifica-se uma aproximação devariados atores e instituições como universidades e ONG’s, tanto daquestão da pobreza, quanto das favelas como campo de pesquisa eintervenção. As experiências de educação popular tem se desenvolvidoem sua grande maioria em nível local, muitas vezes atreladas a projetose instituições do terceiro setor como organizações não-governamentais(ONG’s), organizações sociais (OS’s), organizações da sociedade civil deinteresse público (OSCIP’s), etc. muitas vezes baseadas no discurso deineficiência ou mesmo da falência do Estado, quando não da necessidadeda filantropia.127


João Vinicius dos Santos Dias e Jaqueline FerreiraNesta perspectiva algumas críticas são feitas.Valla (1999), por exemplo, aponta a necessidadeimprescindível de um exercício crítico aponta sobre aambiguidade na avaliação das propostas de educaçãopopular. Segundo o autor, se por um lado as mesmaspodem ser vistas como formas de organização e politizaçãoda população incitando a mobilizações frente àineficácia de políticas públicas e inoperância do Estado,de outro podem ser consideradas como formas de substituiro Estado desresponsabilizando-o de suas atribuiçõese pactuando com a redução de gastos e investimentos naspolíticas públicas sociais.Numa conjuntura histórica, política e econômica ondea lógica do direito passa cada vez mais a ser substituída pelalógica da assistência social e pela regulação do mercado.Há de se atentar para o risco de que a expansão da esferaprivada no campo da responsabilidade do Estado altere otratamento político das necessidades sociais.A visão de carência tanto física como moral da populaçãopobre, ainda hoje sobrevive e se manifesta na grande maioriados programas compensatórios desenvolvidos em favelas. Noentanto, como aponta Vasconcelos (2001b) ainda são poucos osestudos a respeito de como as classes populares estão entendendo,elaborando e se apropriando das mensagens e saberestransmitidos nas ações oficiais de saúde (Vasconcelos, 2001b)Devemos pensar a educação como processo contínuo, permanentenas trajetórias de vida dos sujeitos, indo além da pedagogiaclássica, mas estando presente nas pequenas dimensões docotidiano, no processo de apreensão e ressignificação do mundo,portanto, processo ativo de construção e desconstrução onde o sujeitoa todo tempo imprime seu olhar à realidade transformando-ade acordo com sua história.Nota: As opiniões expressas neste artigo são da inteira responsabilidadedo(a) autor(a).Referências BibliográficasBRASIL. Caderno de educação popular e saúde. Ministério da Saúde,Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa, Departamento de Apoioà Gestão Participativa. - Brasília: Ministério da Saúde, 2007.BRESCIANI, M. E. Londres e Paris no século XIX. O espetáculo da pobreza,São Paulo, Brasiliense, 1982.128


A construção das intervenções educativas em saúde junto à pobrezaCHALHOUB, S. Cidade Febril. Cortiços e Epidemias naCorte Imperial. São Paulo, Ed. Companhia das Letras,1996.FAVERET FILHO, P; OLIVEIRA, P.J., 1990, “A UniversalizaçãoExcludente: Reflexões sobre as Tendências doSistema de Saúde”, Dados - Revista de Ciências Sociais,33, 2:257-283.FREIRE, P. Política e Educação. Indaiatuba – SP: Villa dasLetras, 2007._______ Pedagogia da autonomia: saberes necessários àprática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996._______ Conscientização. Teoria e Prática da liberdade. UmaIntrodução ao. Pensamento de Paulo Freire. 3ªed. S.P, EditoraMoraes,. ______. (1980).MEIHY, J.C.; BERTOLLI FILHO, C. Revolta da Vacina. São Paulo,Ática, 1995.SEVCENKO, N. A Revolta da Vacina. São Paulo, Ed. Scipione, 1993.SILVA, C. R. R.. Maré: a invenção de um bairro. Dissertação (Mestradoprofissionalizante em Bens Culturais e Projetos Sociais)– Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2006.RAGO, M. Do Cabaré ao Lar. A Utopia da Cidade Disciplinar. Riode Janeiro, 1985.SILVA, C. R. R.; Maré: a invenção de um bairro. Dissertação (Mestradoprofissionalizante em Bens Culturais e Projetos Sociais) –Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2006.SMEKE, E de L. M. e OLIVEIRA, N. L. S. Educação em saúde e concepçõesde sujeito. In VASCONCELOS,E.M.(org). A Saúde na Palavrase nos Gestos: Reflexões da Rede Educação Popular e Saúde. São Paulo:HUCITEC, 2001.STOTZ, E. “ A educação popular nos movimentos sociais da saúde:uma análise das experiências nas décadas de 1970 e 1980”. TrabalhoEducação e Saúde. vol 3, n.1, p.9-30, 2005.VALLA, V.V. Educação e Favela. Petrópolis, Vozes, 1986.------------------ Educação popular, saúde comunitária e apoio social numaconjuntura de globalização. Cad. Saúde Pública, n.15, supl.2, p.7-14, 1999.129


João Vinicius dos Santos Dias e Jaqueline FerreiraVALLA, V.V.; STOTZ, E.N.; ALGEBAILE, E. (Orgs.). Paracompreender a pobreza no Brasil. Rio de Janeiro: Contraponto/Escolade Governo em Saúde-ENSP, 2005.VALLADARES, L. D; Cem anos pensando a pobreza (urbana)no Brasil. In: BOSCHI, R. (org.) Corporativismo edesigualdade: a construção do espaço público no Brasil.Rio de Janeiro, IUPERJ, Rio Fundo, 1991. p.81-112.VALLADARES, L. D; A invenção da favela: do mito de origema favela.com – Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005.VARELLA, D; BERTAZZO, I; JAQUES, P, B. Maré, vida na favela.– Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002.VASCONCELOS, E. M. Educação popular e a atenção à saúdeda família. São Paulo: HUCITEC, 2001.130


ArtigoCOMUNIDADES LOCAIS NA PRO-MOÇÃO DA SAÚDE: REFLEXÕES EMTORNO DA IMPLEMENTAÇÃO DE MEDI-DAS DE DESCENTRALIZAÇÃO NO SEC-TOR RURAL DE ÁGUAS E SANEAMENTOEM MOÇAMBIQUERehana Dauto Capurchande** Mestre em Análise e Gestão do Desenvolvimento Económicoe Social em África pelo Instituto Superior deCiências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), Lisboa, Portugal.Socióloga, docente e investigadora na UniversidadeEduardo Mondlane (UEM), Maputo, Moçambique. E-mail:rehana.capurchande@uem.mzResumo: O presente artigo tem como objecto de análisea participação das comunidades locais na implementaçãodas medidas e processos de descentralização do sector deabastecimento de águas e saneamento no meio rural de Moçambique.Por um lado, questiona as formas de organizaçãoe funcionamento dos Fórum Locais na implementação dos programasde abastecimento de água e, por outro lado, interrogase a forma de participação das comunidades locais permite umempoderamento das mesmas e um maior envolvimento nas acçõesde promoção da saúde. Com base na análise bibliográficae, de algumas experiências de campo, procuramos discutir asformas de implementação dos projectos de água e saneamentonum período atravessado pela promoção dos direitos humanosbem como o da promoção da saúde na comunidade.Palavras-chave: promoção da saúde, poder decisório, mudançade mentalidade, comunidades locaisLOCAL COMMUNITIES IN HEALTH PROMO-TION: REFLECTIONS ON THE IMPLEMENTATIONOF DECENTRALIZATION MEASURES IN THE WATERAND SANITATION RURAL SECTOR IN MOZAMBIQUEAbstract: In this article, we examine the participation of localcommunities at implementing the measures and procedures for decentralizationof the water supply and sanitation sector in Mozambiquerural area. On the one hand, we question local forums organization andoperation in the implementation of programs for water supply; and, onthe other hand, we question whether the participation of local communities131


Rehana Dauto Capurchandeallows their empowerment and a greater involvementin health promotion. Based on literature review andon some field experiments, we discuss ways of implementingwater and sanitation projects over a periodtraversed by human rights promotion, as well as by thepromotion of community’s health.Keywords: Health promotion, decision-makingpower, change of mind, local communities132


Comunidades locais na Promoção da Saúde: reflexões em torno da implementação de medidas dedescentralização no sector rural de águas e saneamento em MoçambiqueIntroduçãoO acesso à água potável e saneamento básiconas zonas rurais de Moçambique constitui uma dasquestões sociais centrais nos debates das arenas políticae científica. Se, por um lado, coloca-se em questão aexclusão e a violação dos direitos humanos no que concerneà satisfação das necessidades básicas, por outrolado, questiona-se o consumo da água imprópria e seuimpacto na qualidade de vida dos membros das comunidades,sobretudo num período atravessado pelos debatessobre a promoção do exercício dos direitos humanos bemcomo o da promoção de saúde 1 .Desde o reconhecimento do Relatório Lalonde nadécada 70, da contribuição da Conferência de Alma Ata nadécada 90 e da promulgação da Carta de Ottawa na década80 2 , ao nível internacional, ampliou-se o conceito de promoçãoda saúde através da incorporação dos determinantessociais, culturais e políticos no campo da saúde.Em Moçambique, a promoção da saúde como campoconceptual e prático tem vindo a ganhar relevo nas últimasdécadas. O tema tem suscitado debates políticos e científicospropiciando quer diferentes abordagens sobre os problemasque afectam as populações, quer ainda sob diversas iniciativasque permitem adicionar a qualidade de vida das colectividades.Assim, a evolução dos actuais debates tem colocado em causa nãosomente os determinantes sociais, culturais e económicos da saúdemas também a necessidade de políticas públicas e empoderamentodas comunidades locais. Para tal, uma das medidas tomadas noPlano Económico e Social 3 (PES) de 2009, no campo da promoçãoda saúde, consiste no reforço do envolvimento comunitário para asaúde e na ênfase no saneamento do meio e promoção da higiene 4 .1Nos últimos tempos, a promoção da saúde tornou-se um tema de interesse em várias arenas. As discussõestêm se polarizado em termos de desafios que se colocam sobretudo no campo das políticas públicas e o daparticipação social.2De referir que a Carta de Ottawa promulgada em 1986 define a Promoção da saúde como processo de capacitaçãoda comunidade para actuar na melhoria da sua qualidade de vida e saúde. A mesma dá ênfase doimpacto a nível económico, social, cultural e político sobre os fenómenos de saúde e propõe um conjunto deestratégias, a saber, a criação de políticas públicas para a promoção de saúde, reorientação dos serviços desaúde e ao reforço das acções comunitárias em prol da melhoria da qualidade de vida, (WHO, 1984).3O Plano Económico e Social é um documento produzido anualmente pelo Governo de Moçambique paracada sector de intervenção cujo objectivo é implementar intervenções que visam alcançar metas definidas peloPrograma Quinquenal do Governo (PQG) e Metas do Desenvolvimento do Milénio. Assim, o PES materializapara além do PQG e das Metas do Desenvolvimento do Milénio, o Plano Estratégico de cada um dos sectores,podendo estes ser, o da saúde, água e saneamento, agricultura, entre outros.4Para além destas acções foram definidas como prioridades, melhorar a capacidade de análise de águas e oreforço da segurança de alimentos. Estas acções são complementadas pelo reforço da capacidade do ServiçoNacional de Saúde com atenção especial para o desenvolvimento de recursos humanos, de infra-estruturas erespectivo apetrechamento, (PES, 2009).133


Rehana Dauto CapurchandeÉ deste modo que a preocupação central doGoverno de Moçambique na área de Saúde centra-seem “promover a saúde e o bem-estar dos moçambicanos,com especial atenção para os grupos vulneráveisatravés de intervenções inovativas e prestar cuidadosde Saúde de boa qualidade e sustentáveis, tornando-osgradualmente acessíveis a todos os moçambicanos comequidade e eficiência”. (PES, 2009).Se, por um lado, é dever do Estado promover ascondições indispensáveis ao exercício dos direitos do cidadãoà saúde, por outro, não se excluem os deveres dascomunidades locais e da sociedade civil de participaçãoem acções sustentáveis e tomada de responsabilidades nodesenvolvimento local. Com efeito, desde o início da década90 que o Governo de Moçambique e seus parceiros internacionaistem vindo a implementar programas no âmbito daGovernação, Água e Saneamento. Uma das medidas tomadascomo prioridade, consistiu na recuperação dos serviços básicosde água, em particular, o abastecimento de água em todas asregiões do país: rurais, urbanas, peri-urbanas.Em particular nas zonas rurais, e como resultado dasreformas e medidas de descentralização em vigor no país,foi introduzido o Princípio da Procura com vista a assegurar asustentabilidade dos sistemas novos ou reabilitados. De acordocom este princípio, na planificação das actividades definidas noâmbito dos projectos de abastecimento de águas, as comunidadeslocais solicitam a fonte e acompanham os custos de investimentocomo forma de garantir a sustentabilidade das infra-estruturas,(MOPH, 2001).Paralelamente, o Governo de Moçambique definiu como prioridadesas acções de mobilização e de envolvimento das comunidadesna promoção e defesa da sua saúde. É neste contexto que o presenteartigo se debruça, sobre o envolvimento das comunidades locais naimplementação dos programas e das medidas de descentralização dosector de águas e saneamento básico na comunidade questionandoem que medida a participação das comunidades locais permite umempoderamento das mesmas e um envolvimento nas acções de promoçãoda saúde.O Distrito como Pólo de DesenvolvimentoO Governo de Moçambique tem vindo a implementar desde o iníciodos anos 90 um conjunto de programas e reformas incluindo a Reformado Sector Público cujo objectivo é reestruturar o funcionamento dos sectorescom vista a melhorar a oferta de serviços através da descentralização134


Comunidades locais na Promoção da Saúde: reflexões em torno da implementação de medidas dedescentralização no sector rural de águas e saneamento em Moçambiquee simplificação de procedimentos. Deste modo, em2003 foi aprovada a Lei no 8/2003 5 , Lei dos ÓrgãosLocais do Estado (LOLE) onde foram estabelecidos osprincípios e normas de organização, competências efuncionamento dos Órgãos Locais do Estado nos escalõesde Província, Distrito, Posto Administrativo e deLocalidade. Por sua vez, o Decreto no11/2005, concebeprincípios de organização e funcionamento dos ÓrgãosLocais do Estado, nomeadamente a desconcentração ea desburocratização administrativas que visa o descongestionamentodo escalão central e a aproximação dosserviços públicos à população. De referir ainda, que o mesmoDecreto consagra o distrito como a unidade territorialprincipal da organização e funcionamento da administraçãolocal do Estado e base de planificação e de desenvolvimentoeconómico, social e cultural.Deste modo, na função atribuída ao Distrito se enquadraa participação dos cidadãos, das comunidades locais, dasassociações e de outras formas de organização, que tenhampor objectivo a defesa dos seus interesses, na formação dasdecisões que lhes dizem respeito, (Título 8, Artigo 99 da LOLE).Mais adiante, o artigo 109 define as formas de organizaçãocomunitária em Conselho Local, Fórum Local, Comités Comunitáriose Fundos Comunitários.É neste contexto que surgem os Comités de Gestão de Águae Saúde nas comunidades que são chamados a desempenhar e aassumir um papel relevante na responsabilização pela facilitação,planeamento, gestão dos fundos de investimento e supervisão deactividades no sector de águas e saneamento do meio. De referirque o Manual de Implementação de Projectos de Abastecimentode Água Rural (MIPAAR, 2008) reforça o envolvimento das comunidadesem todo o processo de provisão do abastecimento deágua rural como sendo determinante para a sustentabilidade dasinfra-estruturas. Ademais, a participação da comunidade na tomadade decisões é considerada fundamental para garantir o sucessodos projectos e estimular o desenvolvimento local. Assim, torna-serelevante questionar: em que medida as reformas, estratégias e programasque se têm vindo a implementar de forma a expandir a redede acesso à água e saneamento se articulam com as acções locais quevisam promover a saúde da comunidade? Não menos importante, deque depende a eficácia da implementação das iniciativas de promoçãoda saúde da comunidade? Partimos do pressuposto de que a percepção5Neste cenário, o distrito é definido como unidade de planificação orçamental e se propõem um conjunto deacções visando estabelecer a capacidade institucional dos Governos locais. No que se refere ao campo da promoçãode saúde pública, foram criados os comités de gestão de água e saneamento bem como os comités desaúde nas comunidades locais.135


Rehana Dauto Capurchandeque as elites locais 6 têm sobre a necessidade e viabilidadedas iniciativas de implementação das medidasde descentralização no sector de águas é importantepara a eficácia das actividades de promoção da saúdee exercício dos direitos humanos em particular os docampo social. Pois, as elites locais controlam recursos eocupam lugares de comando e destaque e são salientesna influência de processos de formulação e implementaçãode políticas públicas ao nível da base. No casoespecífico, são as estruturas locais administrativas (asfiguras de Administrador do Distrito, Secretário Permanente,membros da Equipa Técnica Distrital); membros dosConselhos Consultivos Locais, as autoridades tradicionais,e todos os indivíduos influentes na comunidade, quer sejamno campo económico, cultural e político. Trata-se de actoreschave que exercem influências, detêm o poder simbólico 7e intervêm na formulação e implementação de actividadesde promoção da saúde.O Acesso à Água no meio Rural: desafios,oportunidadesCom a promulgação da Lei de Águas em 1995 e da PolíticaNacional de Águas (PNA) estabelece-se o quadro legal nosector de águas em Moçambique. De referir que ambos mecanismoslegais realçam o princípio de procura para o abastecimentode água às populações rurais bem como propiciam umaabordagem integrada de água e saneamento rural. As acçõesem torno da PNA priorizam a satisfação das necessidades básicasde abastecimento de água para o consumo, de forma consistentecom os Objectivos do Milénio, até 2015, que consistem em reduzirpara metade a proporção da população que não têm acesso àágua potável e saneamento adequado 8 . Por conseguinte, no que serefere ao acesso à água nas zonas rurais constitui como objectivo,alcançar uma cobertura de 70%, o que corresponde a servir cerca de11 milhões de pessoas de um total de aproximadamente 17 milhões6Entendidas como um grupo de pessoas que controlam recursos e ocupam lugares de comando e destaque eque são salientes na influência de processos de formulação e implementação de políticas ao nível loca. Trata--se de actores chave na formulação e implementação dessas mesmas políticas, sendo no caso específico, as dedescentralização de água e saneamento.7Entenda-se o poder simbólico na perspectiva de Bourdieu (1989), como um poder quase mágico que permiteobter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou económica) graças ao efeito específico de mobilizaçãoque se exerce se for reconhecido. O poder simbólico se define numa relação determinada, entre os queexercem o poder e os que lhe estão sujeitos dentro da própria estrutura do campo em que se produz e se reproduza crença. O poder simbólico pressupõe, tal como as outras formas de poder, a existência de assimetriassociais, as quais ele acentua e, sobretudo, através das quais ele se desenvolve.8Fazem parte ainda os seguintes objectivos da PNA: (i) assegurar a sustentabilidade dos sistemas de água rural;(ii) garantir a adopção de práticas de higiene adequadas ao nível das famílias, comunidades e escolas; (iii)garantir a médio prazo que as comunidades servidas por um sistema de abastecimento de água seguro e fiáveltêm uma infraestrutura de saneamento adequada em cada casa; (iv) garantir a longo prazo o acesso universala um abastecimento de água seguro e fiável e um aumento do nível mínimo de serviço, bem como a coberturauniversal por soluções adequadas de saneamento rural, (Plano Estratégico do Sector de águas Rural- Água eSaneamento Rural, PESAR-ASR, 2007).136


Comunidades locais na Promoção da Saúde: reflexões em torno da implementação de medidas dedescentralização no sector rural de águas e saneamento em Moçambiquea viver em áreas rurais, para um nível mínimo deserviço de 500 pessoas/fonte dispersa de água, comvista a atingir os objectivos definidos pelo Governobem como as Metas de Desenvolvimento do Milénio amédio prazo (2015) e; garantir a sustentabilidade dossistemas de abastecimento de água, (Política Nacionalde Águas, 2005:11)Para o efeito, há uma proliferação de um conjuntode programas de Governação Água e Saneamento e asatisfação das necessidades básicas em termos de abastecimentode água fiável e as condições de saneamentoadequadas são consideradas como prioridades na lutacontra a pobreza absoluta, na promoção da saúde dacomunidade e no desenvolvimento social.Todavia, colocam-se desafios que podem ser analisadosa partir de um duplo ponto de vista: (i) do empoderamento 9 dascomunidades partindo das formas de organização e participaçãoactiva nos processos de consulta e tomada de decisão parao melhoramento do processo de planificação e implementaçãodas actividades no sector de água e saneamento e, (ii) da prestaçãode serviços a partir do Governo Distrital, as comunidadese outros intervenientes que fornecem e gerem serviços de águae saneamento onde, neste processo, assumem responsabilidadesna operação, manutenção e expansão de serviços.O quadro legal no sector de águas trouxe alguns avançossignificativos em termos de desenvolvimento do quadro institucionalcom vista ao melhoramento da provisão dos serviços de água;construção e reabilitação de infraestruturas de água e acesso àágua a população rural. Contudo, os objectivos traçados pelo Governoe suas Metas dos Objectivos do Milénio anteriormente referidasainda se revelam críticos. Se, por um lado, colocam-se comolimitações a necessidade de reforço da incorporação da abordagemque integre a provisão de água com a dos meios de saneamento e aeducação sanitária, por outro lado, a existência de fontes e furos deágua inoperáveis colocam em questão o alcance das metas definidascom vista a melhorar a qualidade de vida da população através doconsumo da água potável. Á medida que se aumenta a abertura de novosfuros de água, em simultâneo aumenta-se o número das fontes nãooperacionais. Estará na base deste constrangimento a ideia segundo aqual as comunidades por si só estão capacitadas para enfrentar os custos9No campo da promoção da saúde a palavra empoderamento tem sido utilizada para se referir ao processopelo qual há um aumento de poder e autonomia pessoal e colectiva de indivíduos e grupos nas relações interpessoaise institucionais. Importa referir que o mesmo termo tem sido incorporado nos debates sobre equidadeem saúde e promoção da saúde. A questão do empoderamento focaliza as oportunidades que as pessoas têm aseu favor bem como o acesso às oportunidades de diferentes formas de participação. Para mais detalhes vide,Ciências & Saúde Coletiva, 2004.137


Rehana Dauto Capurchandeoperacionais e de manutenção das fontes sem teremsido criadas as condições locais em termos materiais ede recursos de forma a garantir a sustentabilidade dosprojectos? Ou, estará em questão o papel desempenhadopelas elites locais na implementação de actividadesde promoção da saúde? Com efeito, as experiências decampo revelam alguns indícios que levam a considerarde forma afirmativa os questionamentos colocados.Os Comités de Gestão de Água naPromoção da Saúde ComunitáriaEm quase todas as zonas rurais de Moçambique existemacções de mobilização e de envolvimento das comunidadespara a promoção e defesa da própria saúde. Paratal, no âmbito do Plano Estratégico de Saneamento e ÁguaRural (PESAR) foram definidas como prioridades acções quevisam mobilizar e empoderar as comunidades em actividadesde promoção da saúde, nomeadamente: (i) mobilizar ascomunidades para a adopção de estilos de vida saudáveis; (ii)reforçar as actividades de educação para a saúde e; (iv) utilizaros meios de comunicação social para a difusão das mensagensde saúde na comunidade, (PESAR-ASR, 2007).Deste modo, pretende-se incentivar as comunidades adiscutirem, cada vez mais, os seus problemas e a encontraremsoluções para os mesmos. No contexto da implementação dasmedidas de descentralização do sector de águas, enfatiza-se aparticipação das comunidades e utentes da água, com ênfase nopapel da mulher no planeamento, implementação, gestão, utilizaçãoe manutenção das infraestruturas de água e saneamento.A inclusão das comunidades no processo de decisão ao nívellocal constitui também um dos fundamentos da institucionalizaçãodas Instituições de Participação e Consulta Comunitária (IPCC). Resumidamente,de acordo com os dispositivos legais é responsabilidadea nível da comunidade eleger os elementos que compõem o comitéde água com as seguintes responsabilidades:• Organizar a comunidade para participar em todas as fases dociclo do projecto;• Recolher a contribuição da comunidade para a provisão doabastecimento de água rural;• Recolher as contribuições para a criação de fundos de operação,manutenção, reparação, reposição e organizar a sua gestão;• Organizar a comunidade para eleger os gestores do fundo e definira modalidade e formas de gestão e de prestação regular de contas;138


Comunidades locais na Promoção da Saúde: reflexões em torno da implementação de medidas dedescentralização no sector rural de águas e saneamento em Moçambique• Organizar a eleição pela comunidade do grupode manutenção que se deve ocupar da operaçãoe operações das infraestruturas;• Servir de facilitador das actividades, controle emonitoria das actividades dos grupos de manutenção;• Informar regularmente às autoridades distritaissobre a situação de abastecimento de água, (MOPH,2001:9).Com a aprovação da Lei dos Órgãos Locais doEstado e o seu regulamento em 2003 e 2005, as Instituiçõesde Participação e Consulta Comunitária passama ser reconhecidas legalmente. Contudo, na prática asmesmas revelam limitações sob um duplo ponto de vista:o de sua composição e funcionamento e legitimidade.Grande parte das zonas rurais foram criados os Comitésde Água, entretanto, nem todos obedecem as normas decomposição legalmente instituídas não obstante aquandoda sua criação tenham passado por processos e actividadesde promoção, informação prévia e consciencialização deseu papel.Na fase de promoção, as comunidades são chamadas aconhecer a existência dos projectos de abastecimento de águacom ênfase nas oportunidades que este oferece, suas implicaçõese formas de acesso aos serviços. Neste processo, os Comités deGestão de Água tomam decisões sobre o tipo e nível de serviços;sobre a participação dos membros da comunidade na escolhada zona preferida para a instalação da fonte em respeito aos estudosde viabilidade técnica; sobre a contribuição para os custosde investimento correspondente ao nível do serviço escolhido e;pela tomada de responsabilização pela operação, manutenção,reposição e gestão dos sistemas e eleição dos membros do Comitéde Gestão de Água.A maior parte destas actividades (promoção e consciencialização)são fornecidas pelas Organizações não Governamentais. Osreferidos processos baseiam-se em metodologias participativas deintervenção na comunidade. A título de exemplo, a escolha do localpara a abertura dos furos de água tem obedecido a mecanismosque permitem a participação das comunidades bem como o reforçoda coesão social partindo de uma abordagem da base para o topo.Grande parte dos furos de água é aberta em locais apontado pelascomunidades como preferenciais e com respeito aos significados evalores sócio-culturais contextuais. Os estudos de viabilidade técnica,procuram preservar e salvaguardar os significados e valores sociaisatribuídos pela comunidade à esses espaços. De referir que sobretudo139


Rehana Dauto Capurchandeno meio rural a utilização, apropriação e manutençãodas infra-estruturas de água depende em grandemedida dos locais e significados atribuídos aos locaisonde os serviços são instalados.A consciencialização sobre a importância dosprojectos constitui um dos processos relevantes levadosem consideração pelos projectos de água e saneamento.Aquando da implementação dos projectos de abastecimentode água os Forum Locais, os Comités de Desenvolvimentoda Comunidade e os Comités de Água foramcapacitados em matérias sobre a planificação, monitoria,supervisão de fontes de água, manutenção e reparação defontes de água incluindo adopção de práticas saneamentodo meio e de higiene.Contudo, as experiências de campo revelam que naprática, o grau de consciencialização por parte das comunidadesde sua importância no processo de tomada dedecisões que as afectam permanece relativamente baixo.Existe uma discrepância entre os conhecimentos que adquirempor parte das diferentes intervenientes e formas dedisseminação de conhecimentos e as práticas no quotidianono desempenho das actividades de água e saneamento. Oprocesso de tomada de certas responsabilidades, a título deexemplo, operação, reposição e manutenção das fontes deágua está sendo interiorizado de forma lenta. Verifica-se anão colaboração por parte de alguns membros dos Comités deÁgua e os líderes comunitários em assuntos importantes quedizem respeito ao bem-estar de todos membros da comunidade.Constata-se igualmente a não transparência na gestão dos fundosbem como o desinteresse, irresponsabilidade e abandono porparte de alguns dos membros dos Comités de Água. Apesar deconstatado o baixo grau de participação, a sensibilização não estásendo levada a cabo de forma contínua e sistemática, de modo adespertar a comunidade do seu papel no processo decisório bemcomo na tomada de responsabilidades atribuídas à mesma.Concordando com Becker et al (2004), grande parte dos programasque trabalham na perspectiva de empoderamento comunitário,adoptam uma perspectiva institucional, focalizada em questões ligadasà prevenção de doenças e a mudança de comportamentos, na qual oempoderamento é visto apenas como instrumental. No caso específico,as limitações em termos de autoestima, coesão social, fortalecimentodas redes e a fraca participação dos membros pode estar associada aosconflitos de interesses e divergências de opiniões entre as elites locais eas comunidades no processo de tomada de decisões sobre os problemasda comunidade; a fraca articulação entre as autoridades e líderes comu-140


Comunidades locais na Promoção da Saúde: reflexões em torno da implementação de medidas dedescentralização no sector rural de águas e saneamento em Moçambiquenitários 10 e; a não transparência na gestão dos fundosde maneio das actividades de água.No que se refere às actividades relacionadas coma garantia da correcta utilização da fonte, manutençãode rotina da fonte, promoção da limpeza colocam-seainda alguns obstáculos que resultam das atitudes,comportamentos e maneiras de ser e pensar dos actoresintervenientes. A observação permitiu-nos constatar quena maioria das fontes de água, o utilizador não adoptapráticas seguras de promoção de higiene junto às fontesde água. Ademais, nos projectos de água a mulher temsido considerada o actor social principal de forma que seprocura incorporar a sua representatividade e participaçãono planeamento, gestão e manutenção das actividades deágua e promoção da saúde. Em particular no meio ruralos papéis de género encontram-se bem definidos sendo amulher a responsável por percorrer as distâncias que separamo local de residência e as fontes dispersas de água bemcomo pela conservação, limpeza dos utensílios domésticos eos reservatórios de água.Nos projectos de água, não obstante se tenha observadoo princípio de género em termos de representatividade nosComités de Gestão de Água, porém, a participação e envolvimentodas mulheres na tomada de decisões revela-se maisfraca comparativamente à dos homens. As mulheres assumemmais um papel de auscultação e encontram-se menos investidasde poderes de decisão. Constituem-se como principais obstáculosos factores de natureza sócio-cultural que inibem a participaçãona esfera pública e lhes confere um lugar quase que exclusivo naesfera doméstica.Dentro dos Comités de Água não existem mecanismos uniformese institucionalizados de selecção para a representatividade dosmembros dos Órgãos dos Comités de Água. A selecção varia de contexto,sendo mais comum a selecção por voto e na base do consensodos membros da comunidade. Concorrem como critérios a idoneidade,a confiança, o interesse, preocupação e envolvimento activo por partedos actores pelos assuntos que dizem respeito à comunidade.Existem grupos de manutenção das fontes cujos membros eleitosassumem a responsabilidade de operação das fontes de água; reparam10Semelhantes conclusões são referidas no estudo sobre os mecanismos de participação comunitária no contextoda Governação Local em Moçambique. O estudo acrescenta ainda a fraca capacidade de resposta dosgovernos distritais em relação às prioridades definidas pelos conselhos locais; a fraca capacidade de monitoriapor parte dos conselhos locais na execução dos Planos Económicos e Sociais dos distritos, entre outros, (cooperaçãoSuíça, s/d)141


Rehana Dauto Capurchandepequenas avarias tais como, substituição da bomba evaretas; definem modalidades e formas de gestão e deprestação regular das contas e; informam regularmenteàs autoridades distritais sobre a situação de abastecimentode água. Alguns Comités de Água adoptaram comoestratégia para aumentar a receita dos fundos de água,o aumento da taxa de cobrança para um grupo específicode utilizadores, os artesãos locais 11 . Um dos grandesobstáculos enfrentados pelos Comités de Gestão de Água,relaciona-se com a gestão das fontes e transparência nagestão dos fundos. Por um lado, manifestam-se as dificuldadesde reparação das fontes com base em recursos locais emtempo curto e, por outro lado, as limitações do sector privadolocal para responder as demandas: o que tem contribuídopara que membros da comunidade aumentem o percurso dasdistâncias para ter acesso à água.Não obstante as comunidades estejam representadas eparticipem nas diferentes etapas dos projectos de água bemcomo o processo de organização observe o estipulado pelosdispositivos legais que privilegiam uma abordagem da basepara o topo, permanecem zonas de penumbra no que se referea representatividade, participação, funcionamento e legitimidade.Para além dos factores já mencionados, ainda concorrem:o papel desempenhado pelas elites locais na medida em queinfluenciam, apoiam e decidem sob que iniciativas devem sertomadas em consideração; a falta de um diálogo mais abertoque permita aos membros dos Comités de Gestão de Água a seempoderarem de poderes decisórios e; a fraca consciencialização,por parte da comunidade e, reconhecimento de si próprios comoactores principais no desenvolvimento local.Práticas de Saneamento na ComunidadeNos finais da década 70 e início da década 80 houve uma melhoriadas práticas de saneamento nas zonas rurais como resultadodas campanhas de saneamento cujo slogan era “Cada Família umaLatrina”. O desencadear da guerra civil na década 80 12 , que assolousobretudo as zonas rurais constituiu um dos constrangimentos efracassos das campanhas de saneamento: o que levou a redução dosíndices de cobertura de saneamento.11São indivíduos da comunidade que disseminam técnicas de uso de tecnologias rudimentares, com base emmaterial local a ser utilizado nos projetos de água bem como os de contrução de latrinas melhoradas.12Este conflito surge após a guerra de libertação que culminou com independência do País em 1975 marcandoo fim do período de subjugação colonial. A guerra civil cuja duração foi de cerca de 16 anos, opôs a Frentede Libertação de Moçambique (FRELIMO) e a Resistência Nacional de Moçambique (RENAMO). Associado aeste fenómeno, as políticas socializantes do meio rural e os efeitos dos Programas de Ajustamento Estruturalmarcaram profundamente a estrutura social do país. Este cenário levou a que grande parte das famílias fosseforçosamente obrigada a deslocar-se do seu habitat, o que se repercutiu nas estruturas familiares e nas formasde organização social e económica dos diferentes grupos.142


Comunidades locais na Promoção da Saúde: reflexões em torno da implementação de medidas dedescentralização no sector rural de águas e saneamento em MoçambiqueOs actuais desafios no saneamento rural levaramo Governo de Moçambique a definir comoobjectivos: (i) aumentar a cobertura em 2015 paraaproximadamente 60% nas áreas rurais, correspondendoa cerca de 7 milhões de pessoas, de forma aatingir as metas definidas pelo Governo e de suas Metasde Desenvolvimento do Milénio; (ii) garantir que amédio prazo as comunidades servidas por um sistemade abastecimento de água seguro e fiável tenham umainfraestrutura de saneamento adequada ao nível de cadacasa e; (iii) garantir a adopção de práticas de higieneadequadas ao nível da família, (PESAR-ASR, 2007).É em 2008 que se define uma estratégia de saneamentorural baseada numa abordagem integrada 13 (água,saneamento e promoção da higiene), cujos objectivos são:desenvolver campanhas de marketing social e promoção dahigiene (construção de latrinas melhoradas, uso de latrinaspráticas individuais, familiares e comunitárias de higiene) e;incentivar as iniciativas baseadas na comunidade e a participaçãoda mulher na adopção de melhores práticas de higienea nível da família e da comunidade. É deste modo que asactividades de saneamento rural são essencialmente dirigidasàs famílias e comunidades para promover a adopção de práticasseguras de higiene usando materiais locais como forma deacelerar o aumento dos níveis de cobertura.Todavia, em particular em algumas regiões do norte do país,verifica-se ainda a prática do fecalismo a céu aberto. Como formade promover a saúde da comunidade as práticas de saneamentofocalizaram a promoção de latrinas melhoradas (construídas nabase de lajes de betão). Entretanto, esta iniciativa não teve o devidoefeito, (como constrangimentos destacam-se a utilização das lajescomo utensílios doméstico e forte resistência a prática do fecalismoa céu aberto, resistência na mudança de hábitos e costumes eadopção de práticas de boa higiene): o que levou a uma mudançade abordagem virada para a promoção da latrina tradicional atravésdo “Saneamento Total Liderado pela Comunidade”, cuja medida éreforçada pela participação dos artesãos locais. Assim, espera-se quea comunidade organize o material de construção com base nos recursoslocais com vista a melhorar a saúde da comunidade, diminuir asdoenças, tais como, a malária, cólera e diarreia e, melhor a qualidadede vida e conservação ambiental.13No âmbito das reformas político administrativas em vigor no país, foram criados os comités de coordenaçãode saúde ambiental multissectoriais, constituídos pelos Ministérios de Coordenação de Acção Ambiental, Ministériodas Obras Públicas e Habitação, Ministério da Educação, Municípios e Direcções Distritais. Está prevista aelaboração da Estratégia Nacional da Saúde Ambiental. Adicionalmente estão previstas a realizações de feirasde Saúde para a promoção dos Estilos de Vida Saudáveis. Especificamente, a Campanha de Saneamento doMeio e Promoção de Higiene foi lançada em 2008. Para mais detalhes vide: PES 2009.143


Rehana Dauto CapurchandeNão obstante a mudança de abordagem e intervençãosobre o saneamento, permanecem algunsobstáculos relacionados com a resistência à mudançade comportamentos. Face à esta resistência, coloca-se aseguinte questão: o que pode explicar a fraca aderência àspráticas de higiene e saneamento implementadas no contextorural com vista a melhorar a saúde da comunidade?O pressuposto que orienta este reflexão assumeque os constrangimentos podem ser vistos a partir de trêsperspectivas: (i) as metodologias de intervenção na comunidadee; (ii) os valores sócio-culturais e; (iii) a racionalidadelógica do habitat das comunidades.Considerações FinaisPartindo da análise da implementação das medidas dedescentralização do sector de águas e saneamento rural, oartigo procurou compreender as formas de organização dascomunidades e seu processo de empoderamento e envolvimentonas actividades de promoção da saúde da comunidade.Como se pode depreender, a abertura do campo políticoe as reformas legais contribuíram para a institucionalização dosComités de Gestão de Água, Comités de Desenvolvimento daComunidade e os Comités de Saúde bem como criaram oportunidadespara a proliferação e implementação de programas noâmbito da Governação, Água e Saneamento. Estas mudanças,permitiram a recuperar os serviços básicos de água, em particular,o abastecimento de água nas zonas rurais devido a ênfase naabordagem do Princípio da Procura: o que tem permitido assegurara sustentabilidade de alguns sistemas novos ou reabilitados e; criaroportunidades de participação e fortalecimento das comunidades napromoção da saúde comunitária através do aumento do consumoda água potável e redução das doenças.Contudo, permanecem alguns constrangimentos relacionadoscom o envolvimento da comunidade; mudança de comportamentoe um despertar do seu papel no processo de tomada de decisão dosassuntos que lhes dizem respeito. Ademais, há limitações na sustentabilidadedos projectos que pode estar relacionados, por um lado, como fracasso das medidas e estratégias de empoderamento comunitárioe, por outro lado, com os interesses e necessidades definidas pelaselites locais. Estas últimas, podem exercer influências, deterem o poderde decisão sob as iniciativas que devem ser tomadas em consideração,decidirem sob os recursos que devem ser alocado e as prioridades deintervenção, entre outros, com vista à promoção da saúde da comunidade.144


Comunidades locais na Promoção da Saúde: reflexões em torno da implementação de medidas dedescentralização no sector rural de águas e saneamento em MoçambiqueÉ deste modo que as actividades de promoçãoda saúde da comunidade; o alcance dos objectivose estratégias definidas pelo Governo e suas Metasdo Desenvolvimento do Milénio em termos de satisfaçãodas necessidades básicas de consumo da água;o aumento das distâncias percorridas pela populaçãopara ter acesso à água constitui ainda um desafio porenfrentar: o que coloca em causa a violação dos direitoshumanos da população rural de Moçambique.Nota: As opiniões expressas neste artigo são dainteira responsabilidade da autora.Referências BibliográficasBECKER, D. et al. Empowerment e avaliação participativaem um programa de desenvolvimento local e promoção dasaúde. Ciências & saúde colectiva, Rio de Janeiro, v 9, n.10,2004. p. 655-668.BOURDIEU, P. O Poder Simbólico, Rio de Janeiro: Bertrand, 1989.CIÊNCIAS & SAÚDE COLECTIVA. Perspectivas na avaliação empromoção da saúde, Rio de Janeiro, v 9, n.10, 2004.COOPERAÇÃO SUÍÇA. Mecanismos de participação comunitáriano contexto da Governação Local em Moçambique: actores, oportunidadese desafios do processo da criação e funcionamento dasIPCCs, Maputo, (s/d).DIRECÇÃO NACIONAL DE ÁGUAS. Manual de implementação deprojectos de abastecimento de água rural. Maputo: DNA, 2008.___________________.Plano estratégico de águas e saneamento rural-água e saneamento rural (PESAR-ASR) 2006-2015 (roadmapdos ODM), Maputo: DNA, 2007.___________________.Plano económico e social - 2007: reabilitação econstrução de fontes de água e descentralização. Maputo: (s/ed), 2007.POLÍTICA NACIONAL DE ÁGUAS. Revista água do centro de formaçãode águas e saneamento. nº especial 2ª edição, 1999.FARIA, F. CHICHAVA, A. (1999). Descentralização e cooperação descentralizadaem Moçambique. Maputo: (s/ed), 1999.MINISTÉRIO DAS OBRAS PÚBLICAS E HABITAÇÃO. National rural watersupply and sanitation program. Maputo: MOPH, 2009.145


Rehana Dauto Capurchande_________________. Relatório - síntese do encontro detroca de experiências das ONGs, DPOPH/DAS, administradoresdistritais e cooperação suíça (SDC) sobreo processo de descentralização no sector de águas esaneamento - das províncias de Niassa, Nampula eCabo Delgado, Nampula: DPOPH, 2009.GOVERNO DE MOÇAMBIQUE. Plano económico e social.Maputo: (s/ed/), 2008._________________. Plano económico e social. Maputo:Governo de Moçambique, 2007._________________ Plano de acção para a redução da pobrezaabsoluta, 2006-2009 (PARPA II). Maputo: MPF, 2006.__________________Decreto nº 5/2006: atribui aos governadoresprovinciais e aos administradores distritais competênciasno âmbito da gestão dos recursos humanos. Maputo: BR, 2006._________________ Revisão da Lei de águas e da política nacionalde águas. Maputo: DNA, 2005.________________. Decreto nº 11/2005: aprova o regulamentoda LOLE. BR nº23, I Série, 2005.PUBLIC SECTOR REFORM STRATEGY. PSRS - (2001-2011) andphase II of PSRS (2006-2011).RWSN. Myths of the Rural Supply Sector. Perspectives. Nº4, 2009.WORLD HEALTH ORGANIZATION. Health promotion: a discussiondocument on the concept and principles of health. Health promotion,1984. p. 1: 73-78.146


ArtigoIR ALÉM DOS DIREITOS? EMAN-CIPAÇÃO E POLÍTICA NO CAMPO DAINFÂNCIA E JUVENTUDELucia Rabello de Castro** Instituto de PsicologiaUniversidade Federal do Rio de JaneiroCoordenadora Científica do NIPIAC/UFRJ – Núcleo dePesquisa e Intercâmbio para a Infância e AdolescênciaContemporâneasResumo: O artigo analisa a emergência das garantiasde direitos específicos para crianças e jovens no cenáriobrasileiro no tocante: i) às tensões incorporadas nas leis queregulam sobre a convivência entre crianças e adultos; ii) àproblematização do ordenamento jurídico, como a referênciaúltima da ética da convivência social entre gerações. Emprimeiro lugar, discute-se como a particularidade de criançase jovens pode se constituir como prerrogativa para direitosespecíficos. Em segundo lugar, problematiza-se a eficácia dalei de garantias para crianças frente às artimanhas do social emum cenário inalterado de desigualdades em relação a criançase jovens. Finalmente, discute-se a pertinência e o alcance de leisespecíficas frente à necessidade de pactos sociais mais amplospara que se garanta, de fato, ‘a força da lei’.Palavras chave: direitos das crianças e jovens; ética daconvivência; política; pacto socialAbstract: The paper analyses the emergence of specific legalguarantees for children and youth in the Brazilian society as regardsto: i) the tensions about the conviviality between children and adultsthat are incorporated in the legal dispositions; ii) the problematizationof the juridical establishment as the prime reference for an ethics ofsocial conviviality between generations. In the first place, the specificityof children and youth is discussed as the basis for special and compensatoryrights; secondly, the efficacy of legal guarantees for children isproblematized in face of the trickeries of the social in a scenery of deepsocial inequalities affecting children and youth. Finally, it is discussedthe limits and the relevance of specific legal dispositions in face of the* Versão modificada da conferência “Direitos Humanos, Infância e Adolescência: é possível ir além dos direitos?”,apresentada no evento comemorativo de 25 Anos do NUCEPEC, Universidade Federal do Ceará, em 30de setembro de 2009.A autora agradece os recursos obtidos pelas agências, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico eTecnológico (CNPQ), e Fundação Carlos Chagas de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ),que tornaram possível a elaboração deste artigo.147


Lucia Rabello de Castroneed of ampler social pacts to guarantee, in fact, the‘force of law’.Keywords: children’s and youth’s rights; ethics ofconviviality; politics; social pact148


Ir além dos direitos? Emancipação e política no campo da infância e juventudeIntroduçãoComeço com Norberto Bobbio. Nosso tempo caracteriza-secomo um momento histórico distinto, uma‘era dos direitos’. Bobbio (2004) refere-se ao consensoatingido pela ratificação de 171 estados nacionais emtorno da Declaração Universal dos Direitos Humanosem 1948. Consenso que significou um ‘progresso moralda humanidade’, pois, em primeiro lugar, o poder degoverno e dos governantes instituem, não uma relaçãode deveres, tal como sempre aconteceu - representadapelas obrigações dos súditos para com o monarca -, masprerrogativas para os cidadãos. Ou seja, antes de tudo,cada ser humano tem, agora, ‘garantias fundamentais’frente ao arbítrio dos mais poderosos: cada indivíduo é‘sujeito de direitos’. Neste sentido, um outro patamar nasrelações entre homens e mulheres parece ter sido atingidoao se pactuar, em um nível internacional, a primazia dasgarantias individuais sobre qualquer outro aspecto da convivência,seja o bem comum, ou outros valores, como a ordem,a paz ou a união.Mas o consenso atingido pela Convenção não nos livrado terreno movediço em que nos metemos. A ordem dasgarantias, positivizada nas constituições e leis que asseguramos direitos, está longe de poder efetivamente livrar os cidadãosdo arbítrio dos mais fortes e dos mais poderosos. O progressomoral, de que fala Bobbio, se coloca muito mais incompleto einsuficiente do que supomos.Minha proposta, no presente trabalho, será refletir, no que dizrespeito às garantias que crianças e jovens recentemente adquiriram,como tal progresso está crivado por dificuldades e regressões.Vou me deter em duas delas que, a meu ver, são fundamentais asaber: i) as tensões que a própria lei incorpora relativas às práticassociais de convivência entre crianças e adultos; ii) ao questionamentodo estatuto da lei, dentro das sociedades democráticas, comoa referência última da ética da convivência social, como aquilo querepresentaria o momento irretocável de progresso moral de que falaBobbio. Esta análise se refere, sobretudo, aos direitos de crianças eadolescentes hoje no Brasil.Garantias de crianças e jovens: quais diferençaselas supõem articular no direito positivo?A ‘especificação’ de garantias para crianças e jovens pretendeu levarem conta uma diferença desses sujeitos em relação aos demais. Impôs-se,neste sentido, a explicitação e o detalhamento das garantias universais,149


Lucia Rabello de Castrouma vez que a generalidade da garantia universalnão articulava de modo claro e suficiente, a situaçãoparticular de existência de crianças e jovens. Então, porexemplo, mesmo que nos artigos II e III da DeclaraçãoUniversal se preconize o direito à vida e à liberdade dequalquer indivíduo, sem distinção de qualquer espécie,foi necessário explicitar, em que pese a situação específicade crianças e jovens, que esses deveriam ter garantidasua proteção em relação à discriminação, violência, negligênciae exploração. No artigo 5º do Estatuto da Criançae do Adolescente (ECA), Lei Federal no 8.069/1990, sedispõe que nenhuma criança ou adolescente será objetode qualquer forma de negligência, discriminação, exploração,violência, crueldade e opressão. Em princípio, nãohá motivo para se crer que tais situações não devam sercoibidas e punidas juridicamente para qualquer ser humano.No entanto, o ECA traz isso como uma ‘novidade jurídica’.E por que? Na medida em que crianças e jovens são os sujeitosmais governados (Hill, Davis, Prout, Tisdall, 2004), osque mais se encontram historicamente sujeitos ao arbítrio dooutro, principalmente do outro mais forte – aos adultos, foramnecessárias leis que pudessem prever e contemplar garantiastendo em vista essa condição específica.A diferença, que historicamente tem marcado a existênciade crianças e jovens, como sujeitos governados e à mercê do arbítriodo mais forte, justificaria, então, a elaboração de legislaçãoespecífica. Assim, como tem sido observado por diversos autores,crianças e adolescentes se vêem reconhecidos como ‘sujeitos dedireitos’, na medida em que, como coloca Pinheiro (2006), seexplicita o princípio de igualdade de sua condição, em relação aqualquer outro ser humano, e se determina, clara e especificamente,sua inclusão no campo das garantias.Uma outra condição específica relativa a crianças e jovens que oECA, como também a legislação internacional, assume, é de que essessão ‘sujeitos humanos em desenvolvimento’, ou seja, não ‘prontos’do ponto de vista físico, emocional e intelectual. Neste sentido, vivemuma situação específica de incompletude caracterizada por uma maiorvulnerabilidade, cuja sobrevida enfrenta, possivelmente, mais riscos. Alegislação contempla a especificidade por meio da “doutrina de proteçãointegral” (Pinheiro, 2006), cujo objetivo é “facultar o desenvolvimentofísico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade ede dignidade” (Brasil, 1990).O reconhecimento de diferenças e peculiaridades de crianças ejovens, tanto aquelas que foram atribuídas à sua condição de opressão150


Ir além dos direitos? Emancipação e política no campo da infância e juventudehistoricamente produzida, ou aquelas que forampercebidas como imanentes ao seu momento devida, levou ao estabelecimento de garantias jurídicasespecíficas. Significou que a sociedade terá que provere proteger crianças e adolescentes assegurando-lhesoportunidades e facilidades para seu “desenvolvimentosadio e harmonioso”. No entanto, do que se tratao desenvolvimento sadio e harmonioso de crianças eadolescentes não é esclarecido pela lei.Vale observar que proteger representa ganhos eperdas para as crianças e jovens. Proteger enseja práticasde tutela e controle delegando a outros que cuidem daquiloque os indivíduos mesmos ainda não podem cuidar por simesmos. Significa que os adultos – pais, famílias, sociedade,governo – assumam responsabilidades e deveres emfavor dos mais jovens. Como bem ressalta Sinclair (2004),proteger equivale, também, a retirar direitos, impedir queindivíduos ajam por si mesmos, falem em seu nome e estejamem posição de paridade em relação dos demais. Destemodo, assegurar direitos específicos a crianças e jovens, emnome de seu ‘estado peculiar de desenvolvimento’, significoutambém, o encaixe de crianças e jovens em posição de tutelafrente aos adultos e a obliteração de direitos de participação.Portanto, se crianças e adolescentes ganharam ‘proteçãointegral’ pelo fato de serem diferentes dos adultos, essa diferença,tal como foi concebida, os posiciona como tendo ainda queesperar a idade adulta para se apropriarem da cidadania plena,e consequentemente, estarem restringidos de participar amplamenteda vida social.Não é à toa que o ECA é, em geral, omisso em relação àparticipação de crianças: a participação não constitui nem umdireito específico, dentre os nomeados no art. 4º, nem tampouco,inspirará o texto da lei em outros pontos, que se resumirão a umlacônico “direito de expressão e opinião”, e à evocação do direitode participação política conforme estabelecido pela lei. Então, o quequero ressaltar aqui, é que a garantia de direitos específicos a criançase jovens, baseada numa concepção de incompletude desses sujeitos,serve também para regular – de cima para baixo - a vida de criançase jovens, desfavorecendo outros caminhos da emancipação juvenil.Não quero dizer que as crianças não devam ser cuidadas. Noentanto, o que quero assinalar é que a regulação pela lei das garantiasespecíficas que concedem proteção que não se faz sem perdas para essesmesmos sujeitos.151


Lucia Rabello de CastroPor outro lado, o progresso moral que tais leisespecíficas, como a do ECA, expressam - quandorepresentam a vulnerabilidade da criança como umvalor, e portanto, um algo a mais que a sociedadedeva atentar – revela transformações nos imagináriossociais (ou, se querem, nos campos identificatórios) emque a vulnerabilidade adquire valência positiva em vezde negativa. Exemplifico para esclarecer o argumento.Comparemos o momento de hoje com o de, digamos,500 anos atrás, quando da vinda dos portugueses para oBrasil nas grandes viagens marítimas. Naquele momento,em situações de risco de naufrágio, eram as crianças as queem primeiro lugar eram sacrificadas e jogadas em alto-marpara que os homens adultos pudessem se salvar com osrecursos que havia (Ramos, 1999). De seres imprestáveis, ecargas inúteis, sem nenhuma relevância na economia e napolítica no séc. XVI, e, ainda subsequentemente, por longotempo, as crianças, hoje, foram alçadas à condição de importância.Nelas se deposita a promessa do futuro, a esperançano mundo de amanhã. A vulnerabilidade de crianças que astornava sem préstimo na perspectiva dos quinhentos, tanto queeram as primeiras a serem jogadas no mar, hoje é vista comoum valor importante. A vulnerabilidade hoje garante a primaziapara crianças e adolescentes, quando se trata de seu socorro eproteção. No par. único do artigo 4º do ECA tem-se: “a garantiade prioridade compreende, a) primazia de receber proteção e socorroem quaisquer circunstâncias...(meus grifos), estabelecendo,portanto, uma total inversão em relação às práticas quinhentistas.Não foram exatamente as crianças que conseguiram que asociedade mudasse radicalmente o modo de considerar a infância e aadolescência. Crianças e jovens não foram os atores que contestaramsua posição de opressão reivindicando mudanças e garantias. Certamente,outros atores, adultos porta-vozes dos interesses desses segmentos,além de diferentes condições econômicas, culturais e políticasfizeram com que tais transformações acontecessem. Hoje, a proteçãoda criança se insere no quadro de preocupações sobre a continuidadesocietária. Para alguns, por exemplo, da proteção das crianças e doseu desenvolvimento saudável, dependerá a aposentaria e a velhicetranquila de toda uma geração. São eles, as crianças e jovens de hoje,que pagarão a conta, seja dos benefícios do sistema, seja dos gastos edesperdícios não resgatáveis. Por isso mesmo, elas têm que se prepararna escola, e o direito à educação neste viés, torna-se uma obrigação cívica.Wintersberger (2001), parafraseando Marx, ressalta, por exemplo, que semáquinas são vistas como trabalho vivo coagulado, então as qualificaçõesbásicas de adultos ocupados, necessárias à sociedade industrial, nada maissão do que trabalho infantil coagulado. Para este autor, o valor das criançasna sociedade moderna deve-se tanto à segurança existencial da geração152


Ir além dos direitos? Emancipação e política no campo da infância e juventudemais velha, como também, à aptidão mais elevadade crianças de se adaptarem às novas condições desociedades que se transformam rapidamente.Enfim, hoje, a proteção da criança é devedora deuma visão reabilitadora da inutilidade da criança, pois,se antes crianças eram desprezíveis, e poderiam serdescartadas, hoje, são elas que vão assegurar a velhicecomo momento de descanso e pós-trabalho. Ou seja, a‘inutilidade’ econômica de uma criança passou a ser atravessadapela perspectiva da ‘promessa’ que ela representa,dentre outros aspectos, como força de trabalho futuro, oque levou a um deslocamento fundamental na maneira dese encarar a posição da criança na sociedade. A coibição,pelo direito positivo, do abuso e da violência contra criançasacompanha, deste modo, a evolução dos costumes garantindoque crianças e jovens sejam protegidos e assistidos ao longode seu processo de desenvolvimento.O ordenamento jurídico frente às artimanhasdo social: a proteção que não protegeSabemos bem, todos nós, que as formas de violênciasutis e declaradas contra a criança estão longe de terminarcomo manda a lei. As crianças continuam como os sujeitos maisoprimidos, mais governados, e mais sujeitos às adversidades detodo o tipo. A pergunta que se coloca, poderia ser: como e porque a lei tem efeito pífio sobre as nossas práticas... Mas gostariade colocar outro tipo de pergunta, por onde a análise pode sermais produtiva, a saber: que outras práticas têm poder regulatórioconcorrendo com a própria lei? Como as relações entre homens emulheres, ou no caso específico, entre adultos e crianças se organizame se entranham no tecido social, a tal ponto que não conseguemser re-organizadas sob outros princípios e outros valores?Vejamos. Voltemos à situação de ‘descartabilidade’ das criançasa que aludi anteriormente. Para a mentalidade dos nossos congêneresdo séc. XVI, qualquer criança, bem ou mal nascida, merecia odestino do afogamento no mar para que se salvassem, em primeirolugar, os homens. Ao longo dos séculos em que se consolidou a naçãobrasileira, uma ferrenha ordenação de lugares sociais foi regida pelasoligarquias (proprietários de terra, representantes do poder, e maistarde, a burguesia industrial) que mantiveram suas prerrogativas sobretodos os demais. Sobretudo, fomos constituídos como nação – cultural,sentimental e politicamente – nas trevas de nossa malignidade explicitadacomo opressão e violência contra os que produziam os alimentos,trabalhavam nas terras, amamentavam as crianças e cuidavam delas – os153


Lucia Rabello de Castroescravos. Nem a nossa república, tal como observamos historiadores e críticos, como Carvalho (1990), Telles(1996), Dagnino (2002) e outros, conseguiu estabeleceraqui um ideário de igualdade e práticas de equidade.Ou seja, nossa república não significou uma ruptura,um corte profundo nas nossas disposições societáriasperversas, injustas, desiguais e violentas. Pelo contrário,demos uma ‘roupagem’ política moderna a práticas antigase iníquas. A título da análise, ainda que esquemáticaque desejo construir, é que ao longo da nossa história,nem pela instauração do sistema político baseado nasgarantias individuais, conseguimos universalizar direitos,e neste sentido, fazer com que todos os brasileiros sejamde fato sujeitos de direitos.Dessa mui sumária esquematização histórica, decorremdois agravos: em primeiro lugar, permanece, em grandemedida, inalterada a situação de desigualdade dos que nãodetêm capital simbólico, cultural e material e possam disporde recursos para reverter sua posição de origem e seu destinosocial; em segundo lugar, para as crianças e jovens origináriasdos segmentos destituídos da sociedade brasileira, a situaçãode desigualdade torna-se pungente, na medida em que, alémda destituição material e simbólica, eles estão completamentesubmetidos e governados pelo poder do Estado e pelo poderparental.Para as crianças e jovens bem nascidos, seu destino socialestava assegurado e garantido pela própria reprodução societária.A continuidade da ordem social e a preservação de privilégiosde classe se asseguravam na medida em que as novas geraçõessubstituíam os mais velhos nas posições sociais desta sociedadeoligárquica. Neste sentido, o destino social das crianças e jovensbem nascidos pôde superar o imaginário da ‘descartabilidade’, umavez que a esse imaginário se sobrepôs o da ‘promessa’. Para essascrianças, então, a ‘promessa’ era de, eventualmente, se prepararpara, eventualmente, assumir a posição social parental assegurandoa divisão social do trabalho, e portanto, a permanência da ordemsocial. Então, gostaria de enfatizar, a ‘descartabilidade’ foi revertidapela promessa apenas em relação àqueles – crianças e jovens – emque se depositava a continuidade e a reprodução da sociedade. Paraesses, a promessa de virem a ser cidadãos futuros se materializou nascondições educacionais e sociais que passaram a usufruir, de modoque atingissem tais objetivos. Para todos os outros, crianças e jovens,o imaginário da ‘promessa’ não golpeou a visão de ‘descartabilidade’,uma vez que poderiam ameaçar a ordem social vigente, aos lhes seremoferecidas oportunidades iguais para concorrerem a outros lugares sociaisdistintos daqueles que marcavam sua posição de origem.154


Ir além dos direitos? Emancipação e política no campo da infância e juventudeA criança pobre brasileira permaneceu e, aindapermanece, o sujeito mais destituído, mais governadoe, sobretudo, mais ‘descartável’ em que pese todo oavanço da ‘era dos direitos’ e sua expansão no Brasil.Assim, a lei – no caso, o ECA – ao visar precipuamente agarantia de direitos das crianças pobres, marginalizadase abandonadas, revertendo a ‘doutrina da situação irregular’em favor da ‘doutrina da proteção integral’, estáapontando, justamente, a situação de ‘descartabilidade’de um segmento enorme da população brasileira, criançase jovens. Essas não usufruem de qualquer direito à vida, àeducação, à saúde, à cultura e à dignidade, como qualquercriança bem nascida, e, portanto, tem seu destino relegadoàs contingências da miséria, da prostituição e da aliciação.Neste sentido, o ECA reitera que ainda no Brasil umgrande contingente de crianças não usufrui de garantiasfundamentais. Existe uma situação dramática de iniquidadeque deve ser reparada a título da universalização de direitosde todo e qualquer indivíduo, inclusive crianças e jovens.Neste sentido, os direitos da criança e do jovem não estariamacima, nem antes, e, nem debaixo, ou depois, dos direitos dequalquer outro grupo ou indivíduo. Mas é, justamente, porquecrianças são crianças, e quando são pobres não assumem valorno imaginário social, que o ECA vem para legislar que a elascabem, sim, garantias de liberdade, vida e dignidade.A situação da criança pobre, e como tal, mais à mercê doarbítrio e desmando, permanece aquém das expectativas estabelecidaspelo ECA, mesmo após seus 20 anos de existência. Atodo o momento, vemos surgir movimentos que pretendem, soba retórica disfarçada da segurança, da ordem pública, ou, até dasgarantias de todos, reiterar o imaginário da ‘descartabilidade’ dacriança e jovens pobres. O projeto de rebaixamento da idade penalexplicita, antes de tudo, a lógica da não equivalência de posições entreos jovens. Para uns, as benesses, a proteção, a educação, enfim...a perspectiva da promessa como construção de futuros e projetos;para outros, a expulsão precoce da escola, o ócio, a falta de oportunidadeseducacionais, culturais e profissionais. Se para esses últimossó lhes resta o opróbrio social que os empurra para as margens daconvivência, então, tal destino se forja no pacto perverso da sociedadeque re-afirma a descartabilidade desses jovens.Quando Bobbio se refere às leis de garantias individuais como expressando‘o progresso moral das sociedades’, sinaliza que essas refletemacordos que se impõem, certamente, por força de lutas e conflitos, masque traduzem novas sensibilidades e novos valores que passam a pautaras relações de determinados grupos sociais. No Brasil, o passo decisivo em155


Lucia Rabello de Castroprol da universalização de direitos ainda não foi dado,tendo em vista que a simples garantia legal de proteção,ainda que estipulada na letra da lei, deixou de explicitaroutros aspectos jurídicos fundamentais, a saber: a) osmeios, os dispositivos, os recursos orçamentários e humanosprevisíveis e necessários para que todas as crianças,de qualquer origem social, possam ter garantidos seusdireitos à educação, saúde, cultura e esportes, de modo queuma igualdade de fato de acesso aos bens culturais possaacontecer; b) dispositivos de controle, pela ação popular,de que as medidas de proteção sejam implementadas; c)dispositivos de punição para governantes que dificultem,impeçam ou se eximam do cumprimento à lei (tal como opai de família que é obrigado à pensão alimentícia, e nãoa cumpre). Sem isso, a situação de desigualdade permaneceinalterada, de modo que o ECA, por mais progressista quepossa consistir como forma da lei, não mobiliza outras lutase reivindicações que possam transformar a realidade social.Como observa Derrida (2005), no seu livro Força da Lei, seespera da lei uma força, e não apenas uma retórica vazia quenão tenha efeito sobre a vida dos sujeitos. Uma lei sem forçanão cumpre o ideal de justiça que a inspira.Ir além dos direitos: emancipação e lutapolítica para a transformação da situação decrianças e jovens brasileirosNesta linha de argumentação, os direitos positivos desenhamum momento incipiente das garantias de crianças e jovensbrasileiros. É preciso ir além. Uma maior igualdade e justiça nãoadvirão de uma pletora de leis e normas que, muitas vezes, não têmo efeito de plasmar a vida social em torno de valores mais justos.Pelo contrário, frequentemente, intensificam a judicialização dasrelações sociais onde os juízes, advogados, e outros operadores dalei se tornam os mais legitimados porta-vozes da ética da convivência,sem que tenha havido delegação para tal.Os caminhos da emancipação e luta contra as opressões e injustiçassão múltiplos, passando, frequentemente, ao largo das verdadesjá objetivadas no direito positivo. Pupavac (2002), eminente estudiosainglesa trabalhando no campo do direito internacional, problematiza seos direitos da criança, estabelecidos pela Convenção Internacional em1989, e elaborados em nível nacional por quase todos os países, realmentetrouxeram uma melhora na vida das crianças. Ela afirma, dentrevários pontos, dois que gostaria de elaborar aqui: i) que a legislaçãosobre crianças as transformou em objetos e não em sujeitos, na medidaem que as tornou ainda mais reguladas pelo poder estatal, como tambémnão propiciou que crianças e jovens se tornassem porta-vozes de seus156


Ir além dos direitos? Emancipação e política no campo da infância e juventudepróprios direitos; ii) que a legislação não induz a umflorescimento da política como campo de contestaçãosobre os valores da vida em comum que possa, então,conduzir a encaminhamentos e decisões éticas de umgrupo social. No que diz respeito ao primeiro ponto, alei que dá garantias específicas, fundada numa lógicade proteção à criança, induz a controvérsias que aindatemos que compreender melhor, uma vez que o estadoatual do conhecimento ainda é falho e insuficiente.Explicando: a lei específica que determina a proteçãoa crianças e jovens alude a uma situação histórica e culturalda vulnerabilidade das crianças, ou se funda em umavisão naturalista e essencialista em que a vulnerabilidadeé parte da ‘natureza de ser criança’? No primeiro caso, seconcebe a vulnerabilidade de crianças como produzida nateia dos embates e conflitos entre os grupos sociais, e nosegundo, como produto inexorável da natureza destinandoos mais jovens a se subordinarem, durante algum tempo, aseus protetores. Conforme concebamos a proteção à infânciae à adolescência, os problemas a que Pupavac alude encontram,ou não, encaminhamento possível. Se a vulnerabilidadedas crianças é atribuível a condições históricas, e não a umanatureza infantil, então, crianças podem ser consideradas, emprincípio, sujeitos agentes que podem falar em seu nome.O outro ponto, com que gostaria de terminar, é em relação ase a questão dos direitos não estaria conduzindo a sociedade paraum consenso de posições, para uma neutralização das discussõesideológicas, como se tudo pudesse ser equacionado por prerrogativasque cada grupo social vai exigindo do quinhão societário.Neste sentido, dar direitos – ao menos contemplados na letra dalei – significa neutralizar as lutas políticas maiores, como por exemplo,de outros projetos societários, de outros pactos sociais onde adescartabilidade de parcelas da população possa ser de vez, banidae extinta. Se por um lado, a infância no Brasil “ganhou direitos”,e isso parece trazer uma certa movimentação e institucionalizaçãoem prol das crianças, por outro lado, as discussões sobre educaçãopública, saúde pública e cultura parecem estar esvaziadas. Ou seja,ao se contemplar um segmento com garantias, se dá a impressão queavançamos na imensa tarefa de diminuir as imensas desigualdadesdeste país. No entanto, tão somente pelas lutas por um outro pacto eprojeto societário poderemos, de fato, dar conta de garantias universaispara todas as crianças e jovens.Ir além dos direitos significa perceber o imperativo dos movimentosmais amplos para a re-organização da sociedade brasileira. Só assim osdireitos da infância, assegurados em leis positivas, terão a chance de se157


Lucia Rabello de Castrotornarem reais como garantias individuais e universaispara qualquer criança.Nota: As opiniões expressas neste artigo são dainteira responsabilidade da autora.Referências BibliográficasBOBBIO, N. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier,2004, 5ª impressão.BRASIL/LEI 8.069. Estatuto da Criança e do Adolescente.Brasília: Conselho Nacional dos Direitos da Criança e doAdolescente, 2005.CARVALHO, J.M. A formação das almas. O imaginário daRepública no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.DAGNINO, E. Sociedade Civil e Espaços Públicos no Brasil.São Paulo: Paz e Terra, 2002.DERRIDA, J. Force de loi. Paris: Galilée, 2005.HILL, M. DAVIS, J. PROUT, A. & TISDALL, K. Moving the ParticipationAgenda Forward. Children and Society 18, 2004, 77-96.PINHEIRO, A. Criança e adolescente no Brasil. Porque o abismoentre a lei e a realidade. Fortaleza: Editora UFC, 2006.PUPAVAC, V. The International Children’s Rights Régime. In: D.CHANDLER (Ed.) Re-thinking Human Rights. Palgrave: BasingStoke, 57-81.RAMOS, F. P. A história trágico-marítima das crianças nas embarcaçõesportuguesas do século XVI. In: DEL PRIORE, M. (Ed.). Históriadas crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 1999, 19-54.SINCLAIR, R. Participation in Practice: Making it Meaningful, Effectiveand Sustainable. Children and Society, 18, 2004, 106-118.TELLES, V. Sociedade civil e construção de espaços públicos. In: E. Dagnino(Ed.). Anos 90 Política e Sociedade no Brasil. São Paulo: Brasiliense,1996, 91-102.WINTERSBERGER, H. Crianças como produtoras e consumidoras: sobreo significado da relevância econômica das atividades das crianças. In:CASTRO, L.R. (Ed.) Crianças e jovens na construção da cultura. Rio deJaneiro: Nau/Faperj, 2001, 93-120.158


ArtigoINSTITUCIONALIZAÇÃO DE CRIAN-ÇAS E ADOLESCENTES COM DEFICIÊN-CIA: ANOTAÇÕES PARA UMA AGENDADE POLÍTICA PÚBLICA.Irene Rizzini*Neli de Almeida 2* Irene Rizzini é professora do Departamento de ServiçoSocial da Pontifícia Universidade Católica do Rio deJaneiro (PUC-Rio) e presidente do Centro Internacionalde Estudos e Pesquisas sobre a Infância (CIESPI).2Neli Maria Castro de Almeida é professora dos cursos deGraduação do Federal de Educação, Ciência e Tecnologiae doutoranda em Serviço Social da PUC-Rio. Neli participoucomo pesquisadora bolsista CNPq na pesquisa naqual este texto se baseia. As autoras agradecem a MarcelloR. de Queiroz, Maria Cristina Ventura Couto, Aline D. S.Leite, Luciene A. M. Naiff e Fábio Azeredo pela importanteparticipação no desenvolvimento da pesquisa.Resumo: Neste texto, as autoras discutem os principaisresultados da pesquisa Do confinamento ao acolhimento: mudandoa prática de institucionalização de crianças e adolescentescom deficiência no Rio de Janeiro, 2 buscando contribuir para ainclusão deste tema no campo das políticas públicas direcionadaspara esta população.Palavras chave: Criança institucionalizada, Institucionalização,Criança e deficiência, Pessoas com deficiência mental,Políticas públicasINSTITUTIONALIZATION OF CHILDREN ANDYOUTH WITH DISABILITIES: NOTES FOR A PUBLICPOLICY AGENDA.Abstract: In this text, the authors discuss the main results ofthe study they carried out entitled From institutionalization to a familysetting: changing the practice of institutionalizing children and youthwith disabilities in Rio de Janeiro. The study aimed at contributing tothe inclusion of this issue in the public policy agenda targeted at thispopulation.2Pesquisa realizada pelo CIESPI – Centro Internacional de Estudos e Pesquisas sobre a Infância, em convêniocom a PUC-Rio, selecionada pelo Edital MCT-CNPq / MS-SCTIE-DECIT / CT-Saúde 07/2005. A pesquisa foi devidamenteaprovada pelo comitê de ética da PUC-Rio.159


Irene Rizzini e Neli de AlmeidaKey-words: Institutionalized children, Institutionalization,Children and disabilities, people with mentaldisabilities, Public policies.160


Institucionalização de crianças e adolescentes com deficiência: anotações para uma agenda de política pública.A institucionalização de criançase adolescentes com deficiênciaEste artigo tem origem na análise dos resultadosda pesquisa intitulada Do confinamento ao acolhimento:mudando a prática de institucionalização de criançase adolescentes com deficiência no Rio de Janeiro. Apesquisa focalizou as crianças e os adolescentes comdeficiência que são assistidos pela rede de abrigos doEstado do Rio de Janeiro, estruturando-se em quatro eixosde análise: 1. Quem são e onde vivem as crianças eos adolescentes abrigados; 2. Processos de produção dalonga permanência nestas instituições; 3. Possibilidadesde reinserção familiar; 4. Processos de encaminhamentode crianças e adolescentes com deficiência.Com base na análise de cada eixo, fez-se uma reflexãosobre a superação das práticas de confinamento 3 , indicando-sealguns caminhos de acolhimento de crianças e adolescentescom deficiências graves, respeitando-se seus direitos.Problematizando o conceito de deficiênciaConsideramos importante registrar a complexidade implicadana conceituação de deficiência. Pode-se considerar queas dificuldades encontradas para a delimitação do conceito dedeficiência estejam associadas aos seguintes fatores: (1) as interfacesda deficiência junto aos saberes e práticas da medicina, dapedagogia, da justiça e da assistência social (Lobo, 1997), configurando-senuma constelação de interesses e apropriações de grandecomplexidade; (2) clivagens teóricas importantes na compreensãoda deficiência, polarizadas, por um lado, entre o modelo médico eo modelo social e, por outro lado, entre o modelo organicista e omodelo não organicista (Medeiros e Diniz, 2004); e (3), em particularno que se refere à deficiência mental, a evolução do conceito aolongo da história, tendo como “ponto de origem” a aproximação como fenômeno da loucura e de sua institucionalização (Foucault, 2006);Para fins do estudo, tomamos como referência o conceito dedeficiência estabelecido pela OMS, em 1981, e aprovado pela ONU,em 1982, por ocasião do lançamento do Programa de Ação Mundialpara Pessoas com Deficiência, qual seja: a deficiência é “toda perdaou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológicaou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade,dentro do padrão considerado normal para o ser humano”. 43Para uma análise detalhada da história da institucionalização de crianças e adolescentes no Brasil, ver Rizzini,2007; Rizzini e Pilotti (org), 2008.4OMS (Organização Mundial de Saúde) e ONU (Organização das Nações Unidas), 1981, 1982.161


Irene Rizzini e Neli de AlmeidaA OMS lançou, em outubro de 2007, a ClassificaçãoInternacional de Funcionalidade, Incapacidade eSaúde em versão para crianças e jovens (CIF – CJ). Estaé uma versão derivada da Classificação Internacionalde Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) desenvolvidapara contemplar as características do desenvolvimentoda criança e da influência dos ambientes que acercam. A CIF – CJ pertence à “família” das classificaçõesinternacionais desenvolvidas pela OMS para aplicação emdiversos aspectos relacionados à saúde.Além destas organizações internacionais, preocupadascom o conceito de deficiência mental, podemos citaroutros importantes documentos voltados à promoção dosdireitos humanos: Declaração Universal dos Direitos Humanos(1948); Convenção sobre os Direitos da Criança; Declaraçãode Salamanca (1994); Declaração de Montreal sobreDeficiência Intelectual (2004); Convenção sobre os Direitosdas Pessoas com Deficiência (2006).Na legislação brasileira, esta definição é adotada pela CoordenadoriaNacional para Integração das Pessoas com Deficiência- CORDE, no Decreto n. 3.298/99 e é referendada na Política Nacionalda Pessoa Portadora de Deficiência, instituída pela Portaria1.060/GM, de 5 de junho de 2002. No conjunto destas políticassão classificados os seguintes tipos de deficiência: motora, auditiva,visual, mental e múltipla (associação de duas ou mais deficiências).É perceptível o aumento de documentos normativos a respeitoda deficiência na última década. Pode-se citar não apenaso esforço de estudiosos acerca da definição da deficiência e dospossíveis caminhos para o diagnóstico, como também destacar osinúmeros documentos que privilegiam a promoção dos direitos humanospara as pessoas com deficiência. Reconhecendo a importânciado investimento na legislação que vem sendo promulgada no país,ressaltamos a importância de maior empenho na implantação dosartigos já incluídos na Constituição Federal de 1988 e das diretrizesde políticas indicadas até o presente, sobretudo no que tange ao apoiodirecionado aos pais, familiares e responsáveis, tendo em vista o direitoà convivência familiar e comunitária das crianças e dos adolescentescom deficiência. Não basta a instituição de dispositivos legais, é precisoimplementá-los através de ações efetivas que promovam o direito daspessoas com deficiência.Dimensionando a deficiênciaPara fins de dimensionamento quantitativo da deficiência na populaçãobrasileira, tomamos como referência o Censo do IBGE de 2000. O162


Institucionalização de crianças e adolescentes com deficiência: anotações para uma agenda de política pública.censo populacional de 2000 introduziu uma concepçãodiferenciada de deficiência, em relação aos censosanteriores, criando um novo desenho da populaçãocom deficiência (Medeiros e Diniz, 2004; Neri, 2003).Os dados do censo de 2000 apontaram que 14,5% dapopulação brasileira 5 têm algum tipo de deficiência,incluindo, por exemplo, alguma dificuldade de enxergar,de caminhar, ou de ouvir.Esta escala de gradação fez com que um maior númerode pessoas fosse incluído na categoria de deficiente,sobretudo do segmento mais idoso da população. Esteaumento do número de pessoas consideradas deficientesproduziu no campo uma importante discussão no sentidode reposicionar a deficiência, não mais no campo da excepcionalidadede um indivíduo ou de um grupo de indivíduos,e sim no próprio processo dos ciclos de vida. Acredita-seque este redimensionamento contribua para criar uma novasensibilidade para a importância de políticas públicas quepossam enfrentar as demandas de cuidado em cada fase davida (Medeiros e Diniz, 2004; Neri, 2003).No caso do Estado do Rio de Janeiro, contabilizou-seuma população total de 14,4 milhões de habitantes. Destes,foram identificadas 2,1 milhões de pessoas com algum tipo dedeficiência. Este número representa um percentual de 14,8%,que é muito próximo ao parâmetro nacional. No que se refere,especificamente, ao segmento infantil e adolescente, registraram--se 189,9 mil (8,9%) crianças e adolescentes com algum tipo dedeficiência, dentre as quais 45,2 mil (17,8%) foram identificadascomo portadoras de deficiência mental permanente (IBGE, 2000).Crianças e adolescentes com deficiência nosabrigos do Estado do Rio de JaneiroComo um primeiro resultado do mapeamento realizado darede de abrigos, identificamos dois tipos de estabelecimento, queconvencionamos chamar de abrigos específicos (destinados exclusivamente6 a crianças e adolescentes com deficiência) e abrigos mistos(destinados a crianças e adolescentes considerados em situação derisco, mas que recebem também aqueles com deficiência).Destacamos alguns aspectos do percurso metodológico empreendidopela equipe de pesquisa para facilitar a compreensão dos resultados doestudo. O processo de identificação dos abrigos mostrou-se difícil. A equipe5Este percentual equivale a 24 milhões, 600 mil e 256 brasileiros.6Embora os abrigos sejam designados para atender exclusivamente crianças e adolescentes, constatamos aexistência de um número significativo de adultos nas instituições mapeadas. É possível que muitos tenham setornado adultos dentro dos próprios abrigos.163


Irene Rizzini e Neli de Almeidanão encontrou quaisquer listagens atualizadas e confiáveiscom a relação dos abrigos existentes ou das criançase dos adolescentes neles abrigados. Optou-se entãopor desenvolver uma série de estratégias para localizaras instituições existentes, como por exemplo, através decontatos que tínhamos com diversos profissionais, atravésde listagens existentes, porém incompletas e pela internet.Construímos uma planilha com os dados que consideramosprioritários e contatamos por telefone cada abrigo localizado.Estas entrevistas iniciais nos permitiram coletar algumasinformações básicas sobre as instituições e seus abrigadoscom deficiência. A partir daí, foram localizadas 106 unidadesassistenciais de abrigo, das quais 13 afirmaram prestar serviçosde atendimento exclusivo para crianças e adolescentescom deficiência (abrigos específicos). As 93 unidades restantesinformaram atender crianças e adolescentes com ou semdeficiência (abrigos mistos). Nas 106 instituições identificadasestimou-se um total de 2088 vagas destinadas ao atendimentode crianças e adolescentes com deficiência no estado 7 .Foram localizados 112 crianças e adolescentes nos abrigosespecíficos. Visitamos todos estes abrigos e trabalhamoscom os prontuários de cada criança ou adolescente, além derealizarmos entrevistas com os dirigentes dos abrigos e diversosprofissionais responsáveis pelo cuidado e tratamento dos abrigados.Quanto aos abrigos mistos, a equipe optou por selecionaruma amostra, pois verificamos que na maioria dos abrigoso número de crianças e adolescentes com deficiência variava deum a dois assistidos. Para que obtivéssemos o maior contingentepossível de indivíduos nesta modalidade de abrigamento e, na impossibilidadede visitarmos todos os abrigos, decidimos selecionaros municípios que apresentavam maior concentração do númerode vagas e, nestes municípios, selecionar os abrigos com o maiornúmero de crianças e adolescentes com deficiência. Com esta decisão,buscávamos obter maior amplitude de casos concentrados emum mesmo território. Foram 9 abrigos contemplados, com um totalde 61 crianças e adolescentes com deficiência.Na caracterização 8 dos dois grupos, verificamos que, em relação aosexo e a idade das crianças e adolescentes com deficiências, observou-se7Dezoito abrigos não informaram o número de vagas. O total que obtivemos é um número aproximado eimpreciso, pois foram entrevistas realizadas por telefone; porém ele nos permite ter uma noção sobre este contingente.Ver, em anexo, a tabela 1 (Número de abrigos que informaram atender crianças e adolescentes com esem deficiência e número de vagas por região do Estado do Rio de Janeiro, 2006/2007).8Para a caracterização da população em estudo, foi aplicado um questionário, enfocando-se cada criança ouadolescente abrigado. Trata-se de um questionário com perguntas fechadas, contendo 5 tipos de variáveis: 1.Dados identificadores; 2. Dados sócio-econômicos; 3. Dados sócio-institucionais; 4. Dados clínicos e 5. Dadosindicadores das condições de autonomia. As tabelas 2 e 3, em anexo, apresentam uma síntese de várias característicasdestas crianças e adolescentes (Distribuição das crianças e adolescentes com deficiências nos abrigosespecíficos e mistos, segundo sexo, idade, cor, escolaridade e fonte de renda)164


Institucionalização de crianças e adolescentes com deficiência: anotações para uma agenda de política pública.a predominância do sexo masculino e da maior presençados adolescentes. Quanto à cor, predominaram ascrianças e adolescentes de cor parda e preta nas duasmodalidades de instituição. A maioria entra no sistemade abrigamento no mesmo município de nascimento,permanecendo um maior número de crianças e adolescentesno primeiro abrigo. Os dados relativos à escolaridadeapontam para um grande percentual de exclusãoda rede formal de ensino. Parte dessa alta percentagemse explica pela gravidade dos casos; uma outra parte, poruma não garantia efetiva da inclusão desse grupo na redeformal de ensino. Para os que vivem na rede de abrigosmistos, os dados parecem indicar um melhor acesso à escola:77% (47 casos) frequentam escola externa 9 .Contrastes e semelhançasSe pudéssemos traçar uma linha divisória entre essesdois grupos, o que os definiria como grupos distintos nãoseria a idade, a cor, a escolaridade, renda ou se recebemvisitas, mas sim a própria deficiência, mais especificamente,o tipo e o grau de comprometimento associados ao quadroda deficiência. Os abrigos específicos atendem crianças comquadros neurológicos e psiquiátricos graves. Nos abrigos mistosencontram-se o que estamos chamando, nesta pesquisa, deum quadro difuso, sem descrições diagnósticas precisas. Umaoutra diferença bem demarcada são os tipos de família destesdois grupos. Nos abrigos específicos, encontram-se crianças eadolescentes com famílias menos numerosas, com menos relatode deficiência e/ou transtorno mental na família e com um númeromenor de filhos abrigados. Destaca-se que são as famílias asprincipais solicitantes do abrigamento e que conduzem seus filhosaos abrigos em idade mais próxima da adolescência. Constatou-seque são famílias que conseguiram manter seus filhos em casa porvários anos e que, por diversos motivos, não puderam mantê-losmais. Um dos principais motivos alegados para o abrigamento foia falta de recursos materiais. Outros motivos importantes foram: afalta de alternativas de tratamento e cuidado às crianças e de apoioàs famílias. Embora não tenhamos enfocado a questão da sobrecargafamiliar, ela certamente está presente e é um fenômeno que precisa sermelhor estudado, tendo em vista o provimento de cuidados adequadosa este grupo fora dos muros de instituições fechadas (Santos, 2003).Nos abrigos mistos, encontramos quadros mais complexos de organizaçãoe funcionamento familiares. Foram identificados crianças e9Este dado se assemelha àqueles relatados em estudos sobre crianças e adolescentes sem deficiência emabrigos ou em situação de rua. Alega-se elevada frequência à escola, porém registram-se baixa escolaridade,elevado número de faltas e grande defasagem escolar (IPEA 2004; Rizzini et al 2003).165


Irene Rizzini e Neli de Almeidaadolescentes com famílias mais numerosas, com maiornúmero de filhos abrigados e com maior número derelatos de deficiência/transtorno mental na família.Nestes casos, os Conselhos Tutelares foram os principaissolicitantes do abrigamento e o principal motivo foi aviolação de direitos das crianças, em especial maus-tratose negligência familiar.A questão dos diagnósticos, grau decomprometimento e indicadores de autonomiaIntegrava o conjunto de itens do questionário aplicadoa cada criança ou adolescente abrigado, um grupode perguntas que investigava a autonomia dos mesmos,com o objetivo de se ter um melhor dimensionamento doseu grau de comprometimento. Vimos que, para os abrigosespecíficos, mais da metade das crianças e dos adolescentespesquisados apresentava os mais baixos indicadoresde autonomia: não se comunicavam, não se locomoviam enem se alimentavam sozinhos e não apresentavam controleesfincteriano. Nestes casos, verificava-se uma dependênciaestreita de terceiros para os hábitos de vida diária. Apenas 10crianças e adolescentes deste grupo (9,0%) apresentavam osmelhores indicadores de autonomia, assim definidos neste estudo:comunicavam-se verbalmente de forma clara e inteligível,andavam sem anormalidades, alimentavam-se com autonomiae adequadamente, tomavam banho com autonomia e conseguiamrealizar uma higiene adequada, tinham total controle dosesfíncteres e faziam uso adequado do vaso sanitário, vestiam-secom autonomia e adequação; apresentavam atitudes cuidadosascom móveis e utensílios do abrigo, participavam espontaneamentedas tarefas domésticas e utilizavam de forma autônoma objetospessoais e utensílios da casa. O quadro revelou-se bastante diferenteem relação às crianças e aos adolescentes com deficiêncianos abrigos mistos. Nestes, a grande maioria apresentava grausmuito satisfatórios de autonomia e não demonstrava dificuldades nalocomoção, na fala, na alimentação, na higiene e no cuidado pessoal,confirmando o comentário apontado sobre algumas diferenças quecaracterizam os dois grupos.Verificou-se que para 56 crianças e adolescentes com deficiênciaassistidos nos abrigos específicos, ou seja, metade deles, não havia qualquerdiagnóstico na ocasião da entrada no sistema de abrigamento 10 .Entre aqueles que tinham algum diagnóstico registrado no prontuário,27 (24,1%) apresentavam “encefalopatia crônica da infância”, aqui clas-10Ver, em anexo, a tabela 4 (Percentual de crianças e adolescentes com deficiência nos abrigos específicos, segundocada diagnóstico mais frequentemente registrado no prontuário. 2007 n=109).166


Institucionalização de crianças e adolescentes com deficiência: anotações para uma agenda de política pública.sificado, segundo a CID10 11 , como “paralisia cerebralinfantil” (como diagnóstico único ou associado comoutros diagnósticos). O segundo diagnóstico maisfrequentemente encontrado foi o retardo mental nãoespecificado, em 11 casos (9,8%).Nota-se que, ao longo do período de abrigamento,já havia pelo menos um diagnóstico para a maioria dosabrigados (97,3%) e, no momento da pesquisa, somente3 abrigados não tinham qualquer diagnóstico 12 . Entre osdiagnósticos encontrados para 109 abrigados, para osquais havia pelo menos um diagnóstico, destacaram-se,novamente, a paralisia cerebral infantil (encefalopatiacrônica da infância), agora somando 47 casos (43,1% dos109 abrigados), o retardo mental não especificado em 19casos (17,4%) e a epilepsia em 17 casos (15,6%).Nos abrigos mistos, mais da metade das crianças e dosadolescentes abrigados (57,4%) não tinha registro de diagnósticosem seus prontuários. Isso significa que, excluindo--se aqueles para os quais nenhum diagnóstico se aplicava (2casos), somente 24 crianças e adolescentes tinham registrode pelo menos um diagnóstico ao longo de todo o períodode abrigamento. Nesse conjunto de diagnósticos encontrados,destacam-se o retardo mental não especificado (5 casos), otranstorno do desenvolvimento psicológico não especificado (4casos), a epilepsia (4 casos) e a perda de audição por transtornode condução e/ou neuro-sensorial (3 casos). Todos os demaisdiagnósticos foram encontrados para 1 ou 2 abrigados.Em seguida, destacaremos alguns resultados que devem serlevados em consideração na construção de novas propostas depolíticas públicas voltadas para este grupo.Políticas públicas: pontos em destaqueA longa permanência das crianças e dos adolescentesnos abrigosAlguns fatores foram indicados como contribuindo para umalonga permanência das crianças e adolescentes nos abrigos. São eles:a falta de recursos materiais (pois não havendo mudanças nas condiçõesde vida das famílias, as crianças permanecem nos abrigos); o nãoacesso aos benefícios que poderiam funcionar como suporte financeiro11A Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde – CID 10, publicadapela Organização Mundial de Saúde (OMS), fornece códigos relativos à classificação de doenças e de umagrande variedade de sinais, sintomas, aspectos anormais, queixas, circunstâncias socias e causas externas paraferimentos ou doenças.12A eles não se aplicava nenhum diagnóstico de acordo com a CID 10.167


Irene Rizzini e Neli de Almeidapara que as famílias possam manter seus filhos e oafastamento ou perda das referências familiares, àmedida em que o tempo de abrigamento se prolonga.Sabemos que estes fatores não são exclusivos ao grupoque estudamos. Entretanto, por apresentar necessidadesque demandam tratamento e cuidados específicos, torna--se mais fácil justificar a sua entrada e permanência nosistema de abrigamento.Embora o Estatuto da Criança e do Adolescentedetermine que a colocação em abrigo se configure comouma medida provisória e excepcional verificamos que,para grande parcela das crianças e dos adolescentes comdeficiência que se encontra nos abrigos do Estado do Riode Janeiro, essa medida está longe de ser temporária. Umdado a ser destacado é que 42,2% das crianças e dos adolescentesque se encontram em abrigos específicos (42 deles),passaram mais da metade do seu tempo de vida no sistemade abrigamento. Nos abrigos mistos, mais da metade delesse encontra nesta situação (59% ou 36 casos).O benefício a que tem direito as pessoascom deficiência não vem sendo utilizadopelas famílias das crianças e adolescentesabrigadosÉ interessante observarmos que, apesar da falta de recursosmateriais ter sido apontada como um motivo que conduz criançasaos abrigos, em apenas 11 casos nos abrigos específicos (9,8%)e em 4 casos nos abrigos mistos (6,6%) se lançou mão do recursofinanceiro oferecido pelo Benefício de Prestação Continuada – BPC 13 .O benefício poderia ser solicitado, se não para todas, mas paramuitas destas pessoas com deficiência nos abrigos. Uma questãoa ser pesquisada refere-se aos motivos que levam as famílias e osabrigos a não pleitearem esses benefícios.Uma questão a ser pesquisada, mas que foge ao escopo desteestudo, é se o benefício vem contribuindo ou não para manter criançascom deficiência junto aos seus familiares. No caso das crianças eadolescentes que focalizamos, o ponto a destacar é que, ao não utilizareste recurso, perde-se a possibilidade de custear financeiramenteações no sentido de promover a manutenção dos vínculos familiares.Este recurso poderia ser utilizado, por exemplo, para cobrir os gastos devisitas dos familiares ao abrigo e diversas iniciativas que incentivassemo desabrigamento. Este ponto nos leva a discutir outro fator de grande13BRASIL. Lei N. 8.742, de 7 de dezembro de 1993. O BPC - Benefício de Prestação Continuada é garantido peloGoverno Federal e consiste no pagamento mensal de um salário mínimo a idosos e a pessoas com deficiênciapermanentemente incapacitadas para a vida independente e para o trabalho, que comprovem não possuirmeios de prover sua própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispõe a lei.168


Institucionalização de crianças e adolescentes com deficiência: anotações para uma agenda de política pública.relevância neste eixo: com o passar do tempo, comofica o contato das crianças e dos adolescentes com aspessoas ligadas a eles fora do abrigo, sobretudo suasreferências familiares?Com o tempo, as crianças perdemparte de suas referências familiaresNosso estudo revelou que a maior parte das criançase dos adolescentes com deficiência contava com seusfamiliares no momento da entrada no sistema de abrigamento(75,9% nos abrigos específicos e 73,8% nos abrigosmistos). Contudo, para muitos, este elo foi sendo fragilizadoou perdido ao longo de sua trajetória institucional.Nos abrigos específicos para crianças e adolescentescom deficiência, esta proporção se reduziu de forma significativadesde a entrada no sistema até os últimos seis mesesque antecederam a pesquisa. Vejamos o que dizem os dados.Buscamos nos prontuários as indicações de pessoasque faziam parte da vida das crianças e adolescentes aoentrarem no primeiro abrigo, e ao entrarem no abrigo atual,bem como o registro de referências nos últimos seis meses dadata da pesquisa. Nesta ocasião, observamos que 15,2% 14 dascrianças/adolescentes nos abrigos específicos não contavamcom ninguém na época de entrada no sistema de abrigamento.Em seguida, constatamos que este percentual dobrou (30,4%)quando consideramos a entrada no abrigo atual. Essa proporçãosofreu ainda um aumento de cerca de 10% nos últimos seis meses.Isso significa que um terço (33%) das crianças havia perdido asreferências familiares que tinha ao ingressar no sistema de abrigamento.Em essência o que estes dados revelam é que para umterço da população em abrigos específicos, seu universo se reduziaà instituição. Significa também que seu destino vai se firmando comoum candidato ao confinamento institucional perene.Nos abrigos mistos, 10 entre 61 crianças e adolescentes (16,4%)não contavam com ninguém quando da entrada no sistema. Este percentualpassa para 21,3% quando se refere à entrada no abrigo atuale volta a 16,4% em relação aos últimos 6 meses. Cabe acrescentar queo tipo de metodologia empregada e as limitações do estudo não nospermitem analisar qualitativamente os significados destes números.Portanto, outros tipos de estudo se fazem necessários para aprofundar oconhecimento sobre as relações das crianças com seus pais ou responsá-14Este percentual refere-se a 17 casos dentro do total de 112 crianças e adolescentes encontrados nos abrigosespecíficos. Em 4 casos (3,6%) não foi possível obter a informação acerca de com quem estas crianças e estesadolescentes contavam.169


Irene Rizzini e Neli de Almeidaveis, vislumbrando-se opções de cuidado e tratamento,livres do cunho de abandono e de confinamento.As visitas: as referências familiaresque ficamSe, para uma parte da população abrigada identifica--se um desaparecimento das referências familiares, por outrolado um grupo significativo ainda as mantém. Esta afirmaçãoé feita com base no fato de que 56,3% e 68,8% das criançase dos adolescentes que vivem respectivamente em abrigosespecíficos e mistos receberam visita de familiares na instituiçãonos últimos 12 meses. Se incluirmos as visitas de amigos/padrinhos e de outras pessoas, estes percentuais sobem para75% nos abrigos específicos e 78% nos abrigos mistos.Visto por outro ângulo, o dado acima mostra que umquarto deles não foi visitado por ninguém em um ano (25% nosabrigos específicos e 23% nos mistos). Além disso, se considerarmoscom que frequência as visitas se deram, veremos que paraparte dos abrigados elas foram bastante esporádicas. No casodos abrigos específicos, o que predominou foi a visita semestral.Embora, com base nestes dados, nada possamos afirmar sobre anatureza das relações entre os visitantes e as crianças e os adolescentes,fica claro que existem pessoas ligadas a eles, que podem serenvolvidas no processo de busca de melhores formas de cuidado.Estes dados revelam, ainda, que na maior parte dos casos amãe é a principal presença na vida destas crianças e adolescentes.Vimos também que a perda das referências familiares está relacionadaao tempo de abrigamento. Estes indicadores nos levam aconcluir que o momento de entrada no abrigo é o mais indicadopara se começar a agir junto às pessoas relacionadas à criança ouao adolescente, no sentido de se identificar as formas de suporteque poderiam mudar o curso de vida institucional dos mesmos.Ressaltamos aqui a importância de se valorizar as famílias que,a despeito das adversidades, conseguiram preservar o contato e osvínculos afetivos com seus filhos. Elas são essenciais na construção decaminhos que os levem de volta para casa 15 .Reflexões finais: anotações para a construçãode uma agenda de política públicaPodemos sintetizar os dados apresentados em três conjuntos dequestões a serem destacados, tendo em vista a construção de políticas15No âmbito das políticas públicas de Saúde Mental do Ministério da Saúde, encontra-se já implementado,desde 2006, o Programa De Volta para Casa, que consiste em oferecer suporte financeiro e psicossocial parasubsidiar a reinserção familiar de adultos institucionalizados em hospitais psiquiátricos.170


Institucionalização de crianças e adolescentes com deficiência: anotações para uma agenda de política pública.públicas que melhor respondam às necessidadesdeste grupo, respeitando seus direitos.1 - Clareza da definição de deficiência e de seusdiagnósticosIdentifica-se a necessidade de se definir e discutiro próprio conceito de deficiência e de pessoa com deficiência,problematizando junto aos especialistas do campoe aos operadores das práticas institucionais os pressupostosteóricos e conceituais da deficiência. A falta de clarezaacaba por justificar práticas difusas e pouco eficazes, queacabam prejudicando aqueles a quem se destinam.2 - Superar a prática de confinar (como se fosse‘natural’)A naturalização do confinamento (muitas vezes permanente)de crianças e adolescentes com deficiência precisaser superada. Os dados apontam para a longa permanênciainstitucional, apesar de constituir uma violação dos direitosdestas crianças e adolescentes (por exemplo, do direito à convivênciafamiliar e comunitária; Artigo 19, Estatuto da Criançae do Adolescente).3 - Mudança de paradigmas e busca de alternativas. Senão o abrigo, o quê?Aqui se destaca a necessidade de se implementar efetivamentepolíticas públicas que se orientem na concepção destascrianças e adolescentes enquanto “sujeitos de direitos”. É fundamentalbuscar outras práticas que visem o suporte às famílias nocuidado de seus filhos.Esta pesquisa forneceu subsídios para refletirmos sobre algunscaminhos concretos na busca de opções de acolhimento dascrianças e adolescentes com deficiência. Destacaremos alguns dosresultados, a título de ilustração das possibilidades práticas que estesdados nos permitem, sem a pretensão de propor ações ou programasespecíficos 16 .Constatamos que: (a) as crianças e adolescentes com deficiênciasão encaminhados aos abrigos específicos e mistos e lá permanecempor longo período; (b) Mais da metade de suas vidas para muitos deles;(c) Poucos são reinseridos em suas famílias; (D) Alguns dos principaismotivos identificados foram: falta de recursos materiais da família para16Sobretudo, é importante levar em consideração as especificidades de cada criança, adolescente e seus elosfamiliares e comunitários, bem como aquelas características que apontamos no estudo como diferenciando oscasos que são encaminhados aos abrigos específicos e aos abrigos mistos.171


Irene Rizzini e Neli de Almeidaprover cuidados básicos, tratamento e medicação;denúncias de maus-tratos e abuso; os quadros clínicoe psíquico da criança ou adolescente.Vimos que a vida no abrigo leva ao afastamentodas referências familiares: perdem-se elos que não precisariamser perdidos ou fragilizados. Nos abrigos, ascrianças e os adolescentes são “visitados”. É uma visita (namelhor das hipóteses semanal) e não um convívio, o quefavorece a fragilização dos elos. Por outro lado, foi ressaltadoque a maior parte deles recebe visitas. Isso significaque há uma ponte entre eles e o mundo de onde vieram.O fato das crianças e dos adolescentes abrigados terempessoas que permanecem conectadas a eles é um dadoalentador que nos permite vislumbrar diversas possibilidadesde acolhimento fora do contexto do abrigo. Suas trajetóriasinstitucionais e mesmo os motivos que os levaram aos abrigosigualmente fornecem pistas nesta direção. Quais seriam algunsdestes caminhos? O que parece fazer diferença?Análises, diagnósticos e ações articuladas, com vistas aoptar por encaminhamentos que impeçam qualquer forma deconfinamento e separação da criança de seu meio.E sendo impossível evitar a separação da criança de seucontexto familiar e comunitário, adotar medidas que impeçam queo abrigamento (excepcional e provisório) se transforme em institucionalização.Isto pode ser feito por meio de atuação imediata,no próprio ato de abrigamento, junto a todos os atores envolvidos:abrigos, crianças e adolescentes, pais, familiares ou outros responsáveis.Não havendo pessoas de referência, encontrar caminhospara impedir que a criança ou o adolescente entre no circuito do“confinamento perene” e do esquecimento 17 .A falta de recursos materiais não pode constituir ponte para oconfinamento das crianças. É importante prover meios para complementaçãode renda, em níveis adequados para cobrir os gastos comtratamento, medicamento, fisioterapia, etc. A criação de benefícios,como vimos, não basta. É preciso que eles sejam de fácil acesso echeguem com agilidade a quem deles necessitar.Outro ponto a indicar é a melhoria do acesso aos recursos que arede de saúde já dispõe, bem como da qualidade destes serviços. Coisas17Os caminhos e medidas que constituam melhores opções dependem de vários aspectos, como por exemploa idade e as condições físicas e mentais da criança ou do adolescente. Há algumas possibilidades em prática,que podem ser intensificadas, como a adoção e as residências terapêuticas, só para citar dois exemplos. Outrosdispositivos que respeitem a humanidade das pessoas a serem cuidadas precisam ser criados.172


Institucionalização de crianças e adolescentes com deficiência: anotações para uma agenda de política pública.simples, como prover transporte, principalmente paraaqueles com dificuldade de locomoção, podem fazergrande diferença na vida das crianças e das famílias.Ressalta-se a importância de garantir a continuidadedos dispositivos de suporte que visem o bem-estar dascrianças e de suas famílias, pois ainda vigora em nossopaís a prática de implantar e extinguir propostas e programasentre um governo e outro, de forma arbitrária 18 .Reconhecendo as preocupações e responsabilidadesque recaem (a mais) sobre a família, em particular a mãe,estudar outras formas de suporte, tais como: apoio decunho psicológico, orientação no caso de cuidados específicosque diferentes casos possam demandar; programas eprofissionais capacitados para prover cuidados e educaçãoàs crianças e aos adolescentes durante o dia.Em virtude da enorme responsabilidade nas mãos dosprofissionais que encaminham as crianças e adolescentescom deficiência para diferentes tipos de atendimento e osque cuidam deles, enfatiza-se a necessidade de investimentosistemático e contínuo de apoio técnico e de estudo para queestejam bem preparados para desempenharem suas atividades.Se não o abrigo, o quê? É fundamental a criação de espaçosde cuidado, tratamento e escolaridade que preservem oslaços familiares e sociais das crianças e dos adolescentes comdeficiência. Portanto, espaços localizados próximos ao local demoradia, permitindo que os responsáveis possam trabalhar edispor de tempo para outras atividades de cuidados pessoais.Gostaríamos de concluir esta síntese dos resultados da pesquisacom um convite à reflexão e à ação. Estamos cientes de quesão muitos os caminhos a serem trilhados no sentido de superar asideias, os discursos e as práticas que perduraram por tanto tempo.Mas como afirmamos, a pesquisa deve ser vista como um passorumo à superação do olhar e das práticas que confinam e alijam ascrianças e adolescentes com deficiência. Se este passo contribuir paraavançarmos neste caminhar e inspirar outros movimentos e ações,então teremos realizado o que almejamos.18Em pesquisa recente, apontamos que esta descontinuidade ocorre em diversos estados e municípios brasileiros,em geral por interesses políticos, sem qualquer análise de impacto dos programas e desconsiderandoos usuários e profissionais envolvidos. Para uma discussão sobre este ponto ver Rizzini, Rizzini, Naiff e Baptista2007.173


Irene Rizzini e Neli de AlmeidaAnexoTabela 1: Número de abrigos que informaram atender criançase adolescentes com e sem deficiência e número de vagas por região doEstado do Rio de Janeiro, 2006/2007Regiãonº deinstituiçõesTotal de vagasinformadas*Vagas porRegião (%)Região Centro-SulFluminense4 127 6,1Região da Costa Verde 3 83 4,0Região dasBaixadas Litorâneas8 110 5,3Região do Médio Paraíba 10 227 10,9Região Metropolitana 51 926 44,3Região NoroesteFluminense2 70 3,4Região Norte Fluminense 8 255 12,2Região Serrana 20 290 13,9Total 106 2008 100,0* 18 instituições não informaram o número de vagasFonte: Pesquisa “Do confinamento ao acolhimento: mudando a prática de institucionalização decrianças e adolescentes com deficiência no Estado do Rio de Janeiro” CIESPI – CNPq/MS, 2008.Tabela 2: Distribuição das crianças e adolescentes com deficiências nosabrigos específicos, segundo sexo, idade, cor, escolaridade e fonte de renda. 2007n=112SexoCaracterística n %Masculino 67 59,8Feminino 45 40,2Idade2 a 4 anos 6 5,45 a 9 anos 14 12,510 a 14 anos 49 43,715 a 18 anos 43 38,4CorBranca 33 29,5Preta 36 32,1Parda 39 34,8Informação ignorada 4 3,6EscolaridadeAnalfabeto 91 81,3Ensino FundamentalIncompleto12 10,7Outros 7 6,3Informação ignorada 2 1,8RendaNão tem renda 98 87,5Benefício ou pensão 11 9,8Trabalho próprio 2 1,8Benefício ou pensão + rendafamiliar1 0,9Fonte: Pesquisa “Do confinamento ao acolhimento: mudando a prática de institucionalização de crianças e adolescentescom deficiência no Estado do Rio de Janeiro” – CIESPI - CNPq/MS, 2008.174


Institucionalização de crianças e adolescentes com deficiência: anotações para uma agenda de política pública.Tabela 3: Distribuição percentual e absoluta das crianças eadolescentes com deficiências, em abrigos mistos, segundo sexo, idade,cor, escolaridade e fonte de renda. 2007 n=61n %SexoMasculino 34 55,7Feminino 27 44,3Idade2 a 4 anos 2 3,35 a 9 anos 12 19,710 a 14 anos 25 41,015 a 18 anos 21 34,4Informação ignorada 1 1,6CorBranca 18 29,5Preta 14 23,0Parda 27 44,3Informação ignorada 2 3,3EscolaridadeAnalfabeto 20 32,8Sabe ler e escrever 1 1,6Ensino Fundamental incompleto 34 55,7Outros* 6 9,8RendaNão tem renda 53 86,9Beneficio ou pensão 4 6,6Trabalho próprio 1 1,6Informação ignorada 3 4,9* Segundo grau, EJA (Educação para Jovens e Adultos), Pré-escola, Escola especialFonte: Pesquisa “Do confinamento ao acolhimento: mudando a prática de institucionalização de criançase adolescentes com deficiência no Estado do Rio de Janeiro” – CIESPI - CNPq/MS, 2008.TABELA 4: Percentual de crianças e adolescentes com deficiência nos abrigosespecíficos, segundo cada diagnóstico mais frequentemente registrado no prontuário.2007 n=109Diagnósticos principais N %Paralisia cerebral infantil(Encefalopatia crônica da infância)47 43,1Retardo mental não especificado 19 17,4Epilepsia 17 15,6Transtorno do desenvolvimento psicológiconão especificado13 11,9Distúrbios de conduta 13 11,9Hidrocefalia 11 10,1Paraplegia e tetraplegia 10 9,2Retardo mental moderado 10 9,2Retardo mental grave 10 9,2Retardo mental profundo 9 8,3Transtorno específico do desenvolvimento motor 9 8,3Microcefalia 8 7,3Cegueira e visão subnormal 7 6,4Retardo mental leve 6 5,5Fonte: Pesquisa “Do confinamento ao acolhimento: mudando a prática de institucionalização de crianças e adolescentescom deficiência no Estado do Rio de Janeiro” – CIESPI - CNPq/MS, 2008.175


Irene Rizzini e Neli de AlmeidaNota: As opiniões expressas neste artigo são dainteira responsabilidade das autoras.Referências bibliográficasALMEIDA, Neli de Castro; DELGADO, Pedro Gabriel(org.). De volta à cidadania. Políticas públicas paracrianças e adolescentes. Rio de Janeiro: IFB/FUNLAR,2000.FOUCAULT, Michel. Os anormais. São Paulo: Martins Fontes,2006.IBGE. Censo Demográfico de 2000. Rio de Janeiro: IBGE,2000.IPEA/CONANDA. Silva, Enid A. (coord.). O direito à convivênciafamiliar e comunitária: os abrigos para crianças eadolescentes no Brasil. Brasília: IPEA/CONANDA, 2004.LOBO, Lilia F. Os infames da história: pobres, escravos e deficientesno Brasil. Tese de Doutorado apresentada na UniversidadeFederal Fluminense. Rio de Janeiro: UFF, 1997.LOBO, Lilia Ferreira. A criança anormal no Brasil: uma históriagenealógica. In: Rizzini, Irma et all. Crianças desvalidas, indígenase negras no Brasil. Cenas da Colônia, do Império e da República.Rio de Janeiro: CESPI/EDUSU, 2000.MEDEIROS, Marcelo; DINIZ, Débora. A nova maneira de se entendera deficiência e o envelhecimento. Brasília: IPEA, 2004.MEDEIROS, Marcelo; DINIZ, Débora; SQUINCA, Flávia. Transferênciasde renda para a população com deficiência no Brasil: uma análisedo benefício de prestação continuada. Brasília: IPEA, 2006.NÉRI, Marcelo Côrtes (et.al.). Retratos da deficiência no Brasil (PPD).Rio de Janeiro: FGV/IBRE, CPS, 2003.NÉRI, Marcelo Côrtes; SOARES, Wagner Lopes. Idade, incapacidade eo número de pessoas com deficiência. Campinas: Revista Brasileira deEstudos Populacionais, v. 21, n. 2, p. 303-321, jul./dez., 2004.OMS. Declaração de Montreal sobre Deficiência Intelectual, 2004.OMS. Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, 2006.ONU. Declaração de Salamanca, 1994.176


Institucionalização de crianças e adolescentes com deficiência: anotações para uma agenda de política pública.ONU. Convenção sobre os Direitos da Criança, 1989...ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos,1948.RIZZINI, Irene et al. Vida nas ruas: trajetórias de vida decrianças e adolescentes nas ruas. Rio de Janeiro: EditoraPUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2003.RIZZINI, Irene. O século perdido. Raízes históricas daspolíticas sociais para a infância no Brasil. São Paulo: EditoraCortez, 2007.RIZZINI, Irene e Pilotti, Francisco (org). A arte de governarcrianças. São Paulo: Editora Cortez, 2008.RIZZINI, Irene; RIZZINI, Irma; BAPTISTA, Rachel e NAIFF,Luciene. Acolhendo crianças e adolescentes: experiências depromoção do direito à convivência familiar e comunitária noBrasil. São Paulo: Editora Cortez; Brasília: UNICEF, 2007 (2aedição).SANTOS, Rosa Lúcia Cristina dos. Transtorno mental e o cuidadona família. São Paulo: Editora Cortez, 2003.ONU - PROGRAMA DE AÇÃO MUNDIAL PARA AS PESSOASDEFICIENTESResolução ONU n.º 37/52 de 03 de dezembro 1982.177


178A revista Saúde & Direitos Humanos agradece acooperação de Eduardo Navarro Stotz e a FernandoFerreira Pinto Freitas que colaboraram como consultoresad hoc da revista ano 7 nº 7.


INSTRUÇÕES AOS COLABORA-DORES1 - Saúde e Direitos Humanos, aceita trabalhosinéditos para publicação. Os trabalhosdeverão ser de interesse teórico e prático esituar-se no campo dos Direitos Humanose Saúde.2 - Todos os artigos terão sua publicação condicionadaa pareceres dos membros do ConselhoEditorial. Eventuais sugestões de modificaçõesserão previamente acordadas com o autor.3 - Todos os trabalhos devem ser enviados dentrodos seguintes critérios: 10 laudas (1 lauda tem1.400 caracteres com espaço) fonte Times NewRoman, tamanho 12, espaçamento 1,5.4 - Todos os artigos deverão ter resumo com o máximode 700 caracteres (120 palavras), incluindo palavras-chavedescritoras do conteúdo do trabalho.5 - Os limites estabelecidos para os trabalhos podemser excedidos, em casos excepcionais, a critério daeditoria.6 - O encaminhamento do artigo deverá constar do nomecompleto do (os) autor (es), endereço, e-mail, filiaçãoinstitucional e titulação.7 - Ao título, seguir-se-á o nome do autor, ou dos autores,com indicação da instituição de pertencimento do autorprincipal.8 - Em rodapé, menção e auxílios ou quaisquer outros dadosrelativos à produção do artigo e seus autores. Artigos resultadosde pesquisa com financiamento, citar a (s) agência(s) financiadora (s).9 - Os artigos de opinião (textos referentes a trabalhos publicadosna revista ou de interesse nacional e internacional)serão submetidos ao conselho Editorial para a publicação.Devem conter 5 laudas.10 - Os artigos poderão ser aceitos em inglês, francês ou espanhol.Preferivelmente, porém, em português.179


11 - Todos os trabalhos deverão apresentardeclaração do articulista principal de queo texto não contém “conflito de interesses”.12 - Os artigos deverão ser apresentados impressos(2 vias) e em disquete (programa Word forWindows).As referências bibliográficas devem ser apresentadas emordem alfabética ao final dos artigos, obedecendo aoscritérios estabelecidos pela Associação Brasileira de NormasTécnicas (ABNT). Os exemplos aqui utilizados foramretirados da NBR 6023/2002 , que contém as definiçõesnecessárias para publicações periódicas.A veracidade dasinformações contida na lista de referência é de responsabilidadedos autores.• Autor pessoalMACHADO, C. R.; PRADO, V.F. PENA, S. D. J. Aspectos genéticosdo envelhecimento. In: PETROIANU, A.; PIMENTA, L.G. (Ed.).Clínica e cirurgia geriátrica. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan,1999.p.42-27.• Mais de três autoresHESS, Geraldo et al. Engenharia econômica. 4 ed. ver. e ampl. Riode Janeiro: Fórum Ed., 1974.Ou quando a menção dos nomes for indispensável para indicarautoria:DIAS NETO, E.; STEINDEL, M.; PASSOS, L.K.F.; SOUZA, C. P.; ROLLIN-SON, D.; KATZ, N.; ROMANHA, A.J.G. The use of RAPDs for the studyof genetic diversity of Schistosoma and Trypanosoma cruzi. In : PENA,S.D.J. et al (Ed.) DNA Fingerprinting:state of the science.BirkhäuserVerlag,1993.p.331-338.• Autor desconhecidoCATECISMO da Igreja católica. São Paulo: Vozes, 1993.• Entidade como autorROYAL ANTHROPOLOGICAL INSTITUTE OF GREAT BRITAN AND IRELAND.180


Guia prático de antropologia. Preparado por uma comissãodo Real Instituto de Antropologia da Grã-Bretanhae da Irlanda.Tradução de Octavio Mendes Cajado.SãoPaulo: Cultrix, 1971.431 p. Título original: Notesand queries on anthropology.Bibliografia:p.417-431• Monografia como um todoNAGEL, Thomas S. RICHMAN, Paul T. Ensino para competência.7.ed. Porto Alegre: Globo, 1983.• Parte de monografiaAMABIS, José Mariano; MARTHO, Gilberto Rodrigues; MIZU-GUCHI, Yoshito.Os seres vivos. 2. ed. In:______.Biologia. São Paulo: Ed. Moderna, 1978-1979 . V. 2.• Publicação periódica como um todoGEOLOGIA E METALURGIA. São Paulo: Centro Moraes Rego,1945-1978.• Artigo e/ou matéria de revista, boletim, etc.ALABY, Michel Abdo. Direito comunitário do Mercosul.Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, São Paulo, v.5,n.18, p. 238-240, jan./mar. 1997.• Partes de revistas, boletim etc.(volumes, fascículos, númerosespeciais e suplementos, sem títulos próprios)BRASÍLIA 40 ANOS.Uma história que continua sendo escrita.Brasília, D.F : Correio Braziliense, 21 abr.200. 151p. Edição especial• Matéria de jornalCOUTINHO, Sônia. O diário que Graciliano Ramos (não) escreveu.181


O Globo, Rio de Janeiro, 12 Set. 1981. Caderno B, p.9.• Evento como um todo: (atas, anais, resultados,proceedings, dentre outros).BIENNALE ITALO-LATINO AMERICANA DI TECNICHEGRAFICHE,1.,1979, Roma, Itália .1. Biennale italo-latino americanodi tecniche grafiche.Roma: Instituto italo latino americano,1979.• Trabalho apresentado em evento (parte do evento)SANTOS, Maria Irene Ramalho de Sousa. A história , o vagabundoe a armadilha da ficção. In : Congresso ABRALIC,3., 1992, Niterói. Anais...São Paulo: EDUSP: abralic, 1995. P. 317-328.Documentos Jurídicos:• LegislaçãoCONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO (Brasil). Câmara de EducaçãoSuperior. Resolução n. 11, Poder Executivo, Brasília, DF, 9abr 2001. Seção 1 , p. 12-13• Jurisprudência (decisões judiciais, súmulas, enunciados,acórdãos, sentenças)BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Exceção de suspeição de Ministro.Argüição de suspeição n. 10. Ednardo Silva de Araújo e Exmo.Sr. Ministro Aldir Passarinho. Relator: Ministro Moreira Alves. 26 defevereiro de 1986. Revista Trimestral de Jurisprudência, Brasília, DF,v. 117, P. 457-458, ago. 1986.• MonografiaEm meio eletrônico:WINTER,Robert.Multimedia Stravisnsky: na illustrated, interactive musicalexploration. [S.I.]: Microsoft Corporation, c 1993 1 CD-ROM. Windows3.1 ou posterior.182


• Artigo e/ou material de revista, boletim etc.MISSELS, Gilson Wesseler. O princípio da ampla defesae o procedimento de apuração das infrações contraa ordem econômica.Revista de Direito EconômicoInternacional,Florianópolis, n. 4, out. 1998.Disponívelem:http://www.ccj.ufsc.br/~rdei4/michels.html. Acessoem: 21 dez. 2000.• Matéria de jornalA NANTES, la nuit unique pénètre les jardins intimes de l’artde la politique. Le Monde, Paris, 16 fév. 2003.disponível em:http://www.lemonde.fr/article/0,5987,3246---309457-,00.html. Acesso em: 16 fev. 2003.• Evento como um todoCONGRESSO BRASILEIRO DE ECONOMIA E SOCIOLOGIARURAL, 37., 1999. Foz do Iguaçu. Anais... Brasília, DF: SOBER,1999. 1 CD-ROM. Windows 95, 98 ou NT.• Trabalho apresentado em eventoDAHL, Gustavo. A re-politização do cinema brasileiro. In: CON-GRESSO BRASILEIRO DE CINEMA, 3., 2000, Porto Alegre.Artigos.Rio de Janeiro, 2001. Disponível em:http://www.congressocinema.com.br/sumulas/stj39.html. Acessoem 24 abr. 2001• JurisprudênciaBRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula no 39. Prescreve em vinteanos a ação para haver indenização por responsabilidade civil, desociedade de economia mista. Disponível em http://www.jurinforma.com.br/sumulas/stj39.html>. Acesso em: 24 abr. 2001.• LegislaçãoBRASIL. Lei n. 9.995, de 25 de julho de 2000. Dispõe sobre as diretrizespara a elaboração da lei orçamentária de 2001 e dá outras providências.Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 26 de jul.2000. Disponível em http://www.jurinforma.com.br/sumulas/stj39.htmlAcesso em: 24 abr. 2001183


ASSINATURASNome:____________________________________________Endereço:___________________________________________Cidade:______________________________________________Estado:_________________Cep:_________________________País:__________E-mail:_________________________________Tel.:________________________Fax:_______________________Instruções aos colaboradores:1. A revista aceita trabalhos inéditos para publicação. Os trabalhosdeverão ser de interesse teórico e prático e situar-se nocampo dos Direitos Humanos e Saúde.2. Todos os artigos terão a sua publicação condicionada apareceres dos membros do Conselho Editorial. Eventuais sugestõesde modificações serão previamente acordadas com o autor.3. Os limites estabelecidos para os trabalhos podem ser excedidos,em casos excepcionais, a critério da editoria.4. Todos os trabalhos devem ser enviados dentro dos seguintes critérios:cinco laudas (12 mil caracteres, incluindo espaços ), fonteTimes New Roman, tamanho 12, espaçamento 1,5.5. Ao título seguir-se-á o nome do autor, ou dos autores, com indicaçãoda instituição de pertencimento do autor principal. Em rodapé,menção e auxílios ou quaisquer outros dados relativos à produçãodo artigo e seus autores.6. Os artigos serão publicados em português, inglês, francês ou espanhol(preferivelmente, porém, em português).7. Todos os trabalhos deverão apresentar declaração do articulistaprincipal de que o seu texto não tem “conflito de interesses”.8. Todos os artigos deverão ter resumo com o máximo de 700 caracteres(120 palavras), incluindo palavras-chave descritoras do conteúdodo trabalho.9. Referências (normas do Ministério da Saúde).Núcleo de Estudos em Direitos Humanos e SaúdeHelena BessermanEscola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca/ Fiocruz/ Ministério da SaúdeRua Leopoldo Bulhões, 1480, Térreo, Sala N, ManguinhosCep: 21041-210 - Rio de Janeiro/RJE-mail: revistasaudedh@ensp.fiocruz.br184

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