11.07.2015 Views

Issue No 2. November 2007 - Institute of Latin American Studies

Issue No 2. November 2007 - Institute of Latin American Studies

Issue No 2. November 2007 - Institute of Latin American Studies

SHOW MORE
SHOW LESS
  • No tags were found...

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Going beyond Limits? Media and Transgression – Brazilian CasesPassando dos limites? Mídia e transgressão – Casos brasileirostransvestite Tieta Presley. Originally a fictive charactercreated by a journalist, Tieta existed first onlyas a voice on a radio program. Her growing popularitycaused the materialization <strong>of</strong> the character inthe body <strong>of</strong> her own creator. <strong>No</strong>wadays Tieta holdsshows, emcees balls, and participates in severalkinds <strong>of</strong> promotional events.Starting from a detailed description <strong>of</strong> Tieta andher radio program, Nair Prata examines the blurring<strong>of</strong> limits between fiction and reality, creatorand character, transvestite and heterosexual man,humor and seriousness. The author identifies severallevels <strong>of</strong> transgression in the specific case <strong>of</strong>Tieta Presley: the surrendering <strong>of</strong> the radio and itslisteners to the charms <strong>of</strong> a transvestite, the personalityand humor <strong>of</strong> the character, and the creationand maintenance <strong>of</strong> an illusion about the existence<strong>of</strong> Tieta Presley.While in the case <strong>of</strong> Tieta Presley it is throughher voice that everything originally started, MárciaMaria da Cruz’s article discusses how cyberspacemight work as a locus for the mediation <strong>of</strong> otherkinds <strong>of</strong> voices and identities. The author examineshow the use <strong>of</strong> new technologies (in this case, theInternet) appears as a political strategy in the production<strong>of</strong> representations and identities. In focusare the people living in two major slum areas (favelas)in the city <strong>of</strong> Belo Horizonte, capital <strong>of</strong> MinasGerais, and the project Ocupar Espaços [OccupyingSpaces], whose objective is to mediate interactionsamong people living in different favelas andamong favela dwellers and people who do not livein slums.The author points out that the existence <strong>of</strong> slumareas in Brazil is, per se, an act <strong>of</strong> transgression sincethese places are the result <strong>of</strong> the persistent efforts<strong>of</strong> a certain part <strong>of</strong> a marginalized population toestablish themselves as citizens. Favelas and faveladwellers are a frequently discussed topic in Brazilianmedia. Favela dwellers are generally representedfrom an external point <strong>of</strong> view that tends to portraythem as either dangerous or exotic “others.”The right to make one’s voice heard, and the rightto make it heard and circulated through the media,is a recurrent metaphor used by favela dwellers engagedin social issues. In this article, Márcia Mariada Cruz argues that the representations <strong>of</strong> faveladwellers that appear in the cyberspace (throughprojects such as Ocupar Espaços) are a step towardsnew kinds <strong>of</strong> political transgression.As pointed out in the beginning <strong>of</strong> this introduction,the contributions presented here initiate a fascinatingdiscussion about the endless relationshipsbetween media and transgression. May the conversationcontinue!Thaïs Machado-BorgesStockholm, March 08, <strong>2007</strong>.ReferencesJenks, Chris (2003) Transgression. Key Ideas. New York andLondon: Routledge.Jervis, John (1999) Transgressing the Modern: Explorationsin the Western Experience <strong>of</strong> Otherness. Oxford: Blackwell.Stallybrass, Peter and Allon White (1986) The Politics andPoetics <strong>of</strong> Transgression. London: Methuen.URL SourcesYoutube: http://www.youtube.com/watch?v=KkrLRaXF0_AFolhaOnline: ‘Leia íntegra do depoimento polêmico exibidoem Páginas da Vida.’ 07/17/2006. In http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u62534.shtmlStockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>


Going beyond Limits? Media and Transgression – Brazilian CasesPassando dos limites? Mídia e transgressão – Casos brasileirosPassando dos limites? Mídia e transgressão – Casos brasileirosTransgredir é ultrapassar as marcas ou limites impostos por umcomando, uma lei, ou uma convenção. Transgredir é violar, infringir.Mas transgredir é também mais do que isso. Transgredir é anunciar oumesmo aclamar o comando, a lei, ou a convenção. Transgressão é umato pr<strong>of</strong>undamente reflexivo de negação e de afirmação. (Jenks, 2003:2– Tradução nossa).Estava assistindo um capítulo da novela Páginas da Vida (Globo,2006) na companhia de duas conhecidas. Durante o capítulo exibidono dia 15/07/06, Susana (60 anos, funcionária pública em um órgãoestadual) e Dona Vera (75 anos, tia de Susana) discutiam animadamentesobre os mais diversos assuntos sem prestar muita atenção aosacontecimentos na telinha. Como já tínhamos aprendido, cada finalde capítulo desta nova telenovela era seguido por um depoimento deuma pessoa real, que, de alguma forma, relacionava-se com os temasabordados no capítulo do dia.“Gosto desses depoimentos” disse Susana interrompendo a conversacom sua tia para ouvir o que seria dito.Naquela noite, o depoimento foi feito por uma senhora de 68anos que contou sobre seu primeiro orgasmo, aos 45 anos de idade,provocado com masturbação. O depoimento desta senhora terminacom a seguinte frase:“Moral da história: eu sou uma pessoa com 68 anos que o homempara mim não faz falta. Eu mesma dou o meu jeito.”Susana e Dona Vera permaneceram caladas enquanto o texto comos nomes dos integrantes da telenovela passava na tela. Foi DonaVera quem quebrou o silêncio com uma pergunta: “O que foi que elafalou? ‘Eu mesma dou um jeito?’”“É, tia, o negócio tá assim hoje em dia!” Susana respondeu laconicamentee encerrou a conversa com um “Vamos dormir!”Eu mesma, há anos dedicada a estudar telenovelas e mídia brasileira,fiquei fascinada com o depoimento. Tive a sensação de estarpresenciando um momento importante na história da televisãobrasileira, quando uma senhora, de 68 anos, cuja performance nã<strong>of</strong>azia lembrar àquelas de socialites e starlets que freqüentemente falamde suas vidas privadas na mídia brasileira, proclama que “homempara mim não faz falta. Eu mesma dou o meu jeito”. [Para vero depoimento em sua totalidade acesse: http://www.youtube.com/watch?v=KkrLRaXF0_A]Quais seriam as implicações de tal depoimento? Que significânciaele teria no que diz respeito às representações que a mídia faz sobrea sexualidade feminina?<strong>No</strong>s dias que seguiram o depoimento, pude ler na imprensa queStockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>


Going beyond Limits? Media and Transgression – Brazilian CasesPassando dos limites? Mídia e transgressão – Casos brasileirosros, usada para atrair a atenção do leitor/espectador/consumidorsão também examinados no artigode minha autoria (Machado-Borges). O meio decomunicação aqui examinado é a televisão. Partindoda transgressão de gêneros entre telenovelas ecomerciais, chego a um outro tipo de movimentotransgressivo, a saber: a quebra de limites entre arealidade e a ficção.Argumento que quando amalgamados, telenovelase comerciais transgridem os limites entre ficção erealidade a fim de interpelar o espectador como umconsumidor em potencial. Uma análise das transgressõesde limites entre ficção e realidade, entreespectador e consumidor contrasta implicitamente“a vida como ela é” (experimentada e vivida no cotidianodas pessoas) e “a vida como ela poderia ser”(idealizada, caracterizada por sonhos de consumo ereproduzida em comerciais e telenovelas com finaisfelizes). Tal contraste possibilita a identificação deaspectos polêmicos e conflituosos da própria sociedadebrasileira.As transgressões entre comercial e telenovela,realidade e ficção são usadas no caso da telenovela/comercial como estratégias de sedução. Porém, aoexaminarmos os limites do que é considerado sera regra ou o ideal de vida ou de comportamento,estamos também mapeamento fronteiras que podem,um dia, vir a ser transgredidas ou pelo menosquestionadas.Vale à pena ressaltar que o argumento desenvolvidoneste artigo diz respeito à interseção entre telenovelae comercial. O exemplo com o qual inicio apresente introdução revela que existem outros tiposde elementos transgressivos dentro das tramas dediversas telenovelas, como foi o caso do depoimentoda senhora de 68 anos em Páginas da Vida. Ofato de a telenovela ser um produto comercial evocanovamente a delicada relação entre regras e transgressões.A telenovela, tal que produto comercial,permite certos tipos de transgressão ao mesmo tempoem que refuta outras tentativas transgressivas,por receio em perder a sua audiência.Os limites que demarcam o que pode ser dito,como pode ser dito e para quem pode ser dito sãoparte central do artigo de Emília Mendes. A autoraapresenta diversas vertentes transgressivas nos depoimentosprestados pelo político Roberto Jefferson(ex-deputado do PDT/RJ cujo mandato foi cassadoem 2005) perante a Câmara dos Deputados, afim de evitar a cassação de seu mandato. Exibidospela TV Senado e TV Câmara (canais do Poder LegislativoBrasileiro), os depoimentos de Roberto Jeffersonobtiveram uma audiência comparável à doscanais comerciais.Emília Mendes identifica três níveis de transgressõesno caso analisado: o debate sobre a corrupçãoengatilhado por Roberto Jefferson torna-se, por suaexibição em canais de televisão, uma opção de lazer.Ciente de sua possível audiência, o discurso dedefesa do ex-deputado é feito tendo em alvo doispúblicos: o cidadão comum e os parlamentares eimplica num uso de linguagem que transgride oslimites entre o formal e o informal, o privado e opúblico. Finalmente, há uma transgressão a níveldo gênero “discurso de defesa”. Como a autora demonstra,o discurso de Roberto Jefferson não é estruturadode maneira argumentativa, mas narrativa.Sua defesa se torna uma acusação. Neste últimocaso, a transgressão funciona como um efeito, umrecurso de superfície usado para mascarar o desejode manutenção de uma certa política. Transgressão,como Jervis (1999:4) aponta e como Emília Mendesilustra, não é, per se, subversão. Transgressão nãodesafia necessariamente o status quo.Os quatro primeiros artigos aqui apresentadosbaseiam-se em análises do conteúdo de certostextos e discursos. Todos eles deixam claro que astransgressões encontradas em produtos específicosda mídia brasileira são geralmente usadas como umrecurso de superfície bastante eficaz, que conseguefascinar e seduzir sem por isso implicar necessariamenteem uma mudança ou progressão política(veja também Stallybrass e White 1986).Os dois artigos restantes investigam respectivamente,a questão da transgressão na produção de umprograma de rádio e na criação de sites na Internet.Nair Prata apresenta o programa de rádio dotravesti Tieta Presley. Personagem fictício de enormecarisma, criado pelo jornalista Rodrigo Rocha,Tieta Presley existia originariamente somente comoStockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>


Going beyond Limits? Media and Transgression – Brazilian CasesPassando dos limites? Mídia e transgressão – Casos brasileirosvoz em um programa de rádio. Sua crescente popularidadejunto aos ouvintes causou a materializaçãodo personagem no corpo de seu próprio criador.Atualmente Tieta faz shows, anima bailes e participade vários eventos promocionais.A partir de uma descrição detalhada sobre oprograma de Tieta Presley, Nair Prata examina oslimites entre ficção e realidade; criador e criatura;humor e seriedade. A autora conclui que, no casode Tieta Presley, a transgressão se dá em várias vertentes:na rendição da rádio e seus ouvintes ao encantode um travesti; na personalidade e humor dapersonagem; e na criação e manutenção da ilusãosobre a existência de Tieta Presley.Enquanto, no caso de Tieta Presley é originariamentepela voz que tudo acontece, o artigo deMárcia Maria da Cruz mostra como o ciberespaçopode servir de lócus mediador de outros tiposde vozes e identidades. A autora examina como ouso de novas tecnologias (no caso a Internet) surgecomo uma estratégia política na produção de representaçõesidentitárias. Em foco estão os moradoresde duas grandes favelas na região metropolitana deBelo Horizonte (Minas Gerais) e o projeto OcuparEspaços, cujo intuito é mediar a interação entre osmoradores de diferentes favelas e entre os moradorese não-moradores de favela.A autora aponta que a existência de favelas noBrasil é, per se, um ato de transgressão à medidaque, as favelas são o resultado da persistência deuma parcela da população (colocada à margem dasociedade) para se estabelecerem como cidadãos. Aconstrução de sentidos sobre as favelas e sobre osmoradores de favelas é sempre mediada por diversosprodutos da mídia brasileira que geralmente,partem de uma posição externa e representam osmoradores de favelas como perigosos ou exóticos“outros”. O direito à voz, principalmente a mediadapelos meios de comunicação é, como a autoraexplica, metáfora recorrente entre os moradores defavelas engajados em questões sociais. Neste artigoMárcia Maria da Cruz argumenta que as representaçõesque surgem no ciberespaço (através de projetoscomo o Ocupar Espaços) são um passo a caminhode novos tipos de transgressão política.Como afirmei no começo desta introdução, ascontribuições aqui apresentadas dão início a umainstigante discussão sobre as inúmeras relações entremídia e transgressão. Que a conversa continue!Boa leitura!Thaïs Machado-BorgesEstocolmo, 08 de março <strong>2007</strong>.Referências BibliográficasJenks, Chris (2003) Transgression. Key Ideas. New York andLondon: Routledge.Jervis, John (1999) Transgressing the Modern: Explorationsin the Western Experience <strong>of</strong> Otherness. Oxford: Blackwell.Stallybrass, Peter and Allon White (1986) The Politics andPoetics <strong>of</strong> Transgression. London: Methuen.Referências URLDepoimento Páginas da Vida no Youtube: http://www.youtube.com/watch?v=KkrLRaXF0_AFolhaOnline – ‘Leia íntegra do depoimento polêmico exibidoem Páginas da Vida’ 17/07/2006 – http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u62534.shtml10Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>


STOCKHOLM REVIEW OF LATIN AMERICAN STUDIES<strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>2Transgressão de gêneros em textosde publicidade e propaganda no BrasilGláucia Muniz Proença LaraGlaucia Muniz Proença Lara épr<strong>of</strong>essora de Língua Portuguesa eLingüística da Faculdade de Letrasda Universidade Federal de MinasGerais (UFMG). Com doutorado emSemiótica e Lingüística Geral pelaUniversidade de São Paulo (USP) epós-doutorado em Semiótica, juntoao Centre de Recherches Sémiotiques(Paris), é autora de diversosartigos e das obras Autocorreção eauto-avaliação na produção de textosescolares: relato crítico de umaexperiência (1999), O que dizemda língua os que ensinam a língua:uma análise semiótica do discursodo pr<strong>of</strong>essor de português (2004),e organizadora de Língua(gem),texto, discurso: entre a reflexão e aprática – vol. I (2006).gmplara@gmail.comÀ luz da concepção de gêneros do discurso de MikhailBakhtin, acrescida das contribuições de estudiosos da áreade análise do discurso, examinamos, no presente artigo, trêstextos da mídia (impressa) brasileira, de diferentes gêneros(dois anúncios publicitários e uma propaganda), procurandoenfocá-los do ponto de vista da transgressão, tomada comouma quebra de expectativa ou uma ruptura (desvio, deslocamento)de algum componente do conjunto de restrições – oude regularidades – inerentes a um dado gênero. <strong>No</strong>ssa análisemostra que o domínio em estudo, que vive do seu poder deinfluenciar o outro (leitor/consumidor), é um dos mais propíciospara a intertextualidade inter-gêneros.Palavras-chave: gênero, transgressão, publicidade, contrato comunicativoGláucia Muniz Proença Lara teachesPortuguese and Linguistics at theDepartment <strong>of</strong> Language and Literature,Universidade Federal de MinasGerais (UFMG). She has a Ph.D. inSemiotics and Linguistics from theUniversidade de São Paulo (USP)and has conducted post-doctoralstudies at the Centre de RecherchesSémiotiques in Paris. She is the author<strong>of</strong> Autocorreção e auto-avaliaçãona produção de textos escolares:relato crítico de uma experiência(1999), O que dizem da língua osque ensinam a língua: uma análisesemiótica do discurso do pr<strong>of</strong>essorde português (2004) and the organizer<strong>of</strong> Língua(gem), texto, discurso:entre a reflexão e a prática – vol.I (2006).gmplara@gmail.comInformed by Bakhtin’s writings on discourse genres, and bymore recent contributions <strong>of</strong> scholars researching on discourseanalysis, this article examines three texts found in Brazilianprinted media (two commercial advertisements and oneinformative, non-commercial advertisement) with a particularfocus on the issue <strong>of</strong> transgression. Taking transgression to bea break, rupture, and detour or repositioning <strong>of</strong> any component<strong>of</strong> the total restrictions or regularities <strong>of</strong> a certain genre,this article shows that advertisements, whose main objectiveis to influence their readers/consumers, are one <strong>of</strong> the mostfavorable domains for intertextuality between genres.Keywords: genre, transgression, coercion, advertisement, communicative contractStockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong> 11


Transgressão de gêneros em textos de publicidade e propaganda no BrasilGláucia Muniz Proença Laraa não ser por meio de textos, entendidos como arealização ou a materialização de discursos em situaçõesinstitucionais, históricas, sociais e ideológicas(Marcuschi, 2002:22-24).Na mesma direção de Marcuschi (2002), Rastier(1998:106-107) propõe o gênero como o princípioorganizador de um texto, ou seja, somente no interiorde um gênero é possível caracterizar e analisarum texto. <strong>No</strong> seu entender, as práticas de linguagemganham significação e estabilidade no gênero, estabilidadeessa garantida por uma normatividade. Éela que permite que determinados textos circulemcom regularidade e sejam reconhecidos como instrumentosde regulação das práticas de convivênciasocial. Assim, todo texto, tendo em vista seu gênero,situa-se numa prática e é nessa prática que ele é“reconhecido”.<strong>No</strong> entanto, é preciso admitir (como, aliás, já <strong>of</strong>izemos) que os gêneros, dada a sua plasticidade,estão, ao mesmo tempo, submetidos aos movimentosdinâmicos das sociedades em que circulam e dossujeitos, que os colocam constantemente em transformação.É por aí que se insinua a já citada noçãode transgressão ou de desvio.Para Charaudeau (2004:32-33), na transgressãode gêneros, isto é, quando percebemos índices dereconhecimento de dado gênero, mas, ao mesmotempo, detectamos formas que não são esperadas,a questão que se coloca é saber o que é “desrespeitado”:as restrições situacionais (responsáveispelo contrato de comunicação entre os parceiros);as restrições discursivas (que incidem, por exemplo,sobre a tematização e a semiologização – verbale/ou visual); ou as restrições formais (relacionadasaos diferentes aspectos de organização textual). Há,pois, diferentes tipos de transgressão, cuja incidênciaentre os três níveis de restrições é variável.Souza (2004:197), por sua vez, admitindo queé a partir do contrato comunicacional que haveráuma regularidade dos gêneros discursivos (já queos gêneros são determinados pela articulação dasrestrições impostas ao ato de comunicação), entendea transgressão como “a quebra desse contratocomunicacional”, quebra essa que infringe uma dasrestrições do contrato, mas preserva a maior parteda estrutura do gênero. É isso, segundo ele, que permiteque o gênero transgredido seja reconhecido epreservado no ato comunicacional.Marcuschi (2002:30-31), finalmente, na esteirade Fix (1997), fala não de transgressão, mas de “intertextualidadeinter-gêneros” quando ocorre umahibridização ou uma mescla de gêneros em que umassume a função ou a forma de outro (por exemplo,um artigo de opinião no formato de um poema).Publicidade/propaganda brasileira:um “espaço” de transgressão?Da mesma forma que os já citados Bakhtin e Maingueneau,Marcuschi (2002:32) destaca que há gênerosmais propensos do que outros a uma intertextualidadeinter-gêneros, como é o caso da publicidade,que busca, na subversão da ordem instituída, umnovo enquadramento. E a publicidade brasileira(impressa, no caso deste trabalho) não foge à regra.Trata-se de um dos domínios onde mais se verifica aintertextualidade inter-gêneros: aparecem, com freqüência,textos híbridos que, buscando criar efeitosde sentido de inovação, surpresa, humor, “transformam”o anúncio publicitário num outro gênero, recorrendo,sobretudo, à alteração de forma, já que,como veremos, a função primeira (por exemplo, ade convencer o outro a consumir um dado produtoou a utilizar um determinado serviço) tende a semanter – e ser reconhecida pelo enunciatário.É exatamente desse domínio que vêm os doistextos que analisaremos inicialmente, ambos publicadosna Veja, revista semanal de grande prestígiono cenário brasileiro: o primeiro de uma instituiçã<strong>of</strong>inanceira, o Banco Rural (publicado em21/12/2005); o outro da Gradiente, empresa deaparelhos eletrônicos e multimídia (publicado em18/12/2002). O texto 3, por sua vez, insere-se numdomínio afim: o da propaganda. Trata-se do textode uma campanha de erradicação da dengue, veiculado pela Prefeitura Municipal de Belo Hori- Segundo o <strong>No</strong>vo Dicionário da Língua Portuguesa (1986:535),trata-se de uma “doença infecciosa produzida por vírus, transmitidapelo mosquito Aedes aegypti (...) Incide, em caráter epidêmicoou de modo esporádico, na Índia, Japão, Sul do Pacífico,Caribe e América do Sul, principalmente ao norte.”Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>15


Transgressão de gêneros em textos de publicidade e propaganda no BrasilGláucia Muniz Proença Larazonte, capital do Estado de Minas Gerais, e pelaUNIMED, cooperativa de médicos, criada em 1967,que é hoje o maior sistema de assistência médica dopaís. A propaganda, nesse caso, filia-se à unidadesediada em Belo Horizonte.<strong>No</strong> que tange à relação entre publicidade e propaganda,tomamos aqui a distinção proposta porMachado (2006), para quem “a propaganda é algoligado a uma campanha que tenta influenciar comportamentosno seio de uma coletividade ou de umgrupo social; ela não visa especificamente venderou fazer conhecer um determinado produto de umadeterminada marca, como é o caso da publicidade;a propaganda visa alertar, chamar a atenção parauma ação a ser empreendida no âmbito do social”(grifos da autora).Lembramos que, na acepção de Maingueneau(2004), os anúncios publicitários – e, acrescentamos,os textos de propaganda (a partir da distinçãoque estamos acolhendo no presente trabalho) – seenquadrariam nos gêneros instituídos no modo III,ou seja, aqueles cuja natureza é incitar a inovação.A transgressão nos textos selecionadosA idéia de transgressão (ou de intertextualidadeinter-gêneros) passa, na perspectiva dos autorescitados (vide seção 2), por uma “quebra de expectativa”ou pela ruptura (desvio, deslocamento) dealgum componente do conjunto de restrições – oude regularidades – inerentes a um dado gênero. Vejamos,pois, como ela se manifesta nos textos brasileirosde publicidade e propaganda que escolhemospara este trabalho.A transgressão na publicidadeO texto 1 (vide anexo) é um anúncio publicitário doBanco Rural sob a forma de uma fábula: a históriade uma águia que empurra seus filhotes do alto deum pico rochoso para obrigá-los a voar. Segundo o<strong>No</strong>vo Dicionário da Língua Portuguesa (1986:749),a fábula pode ser definida como “uma narraçãobreve, de caráter alegórico, em verso ou em prosa,destinada a ilustrar um preceito.” Já Plyia (1994: 8-9), atestando a necessidade do espírito humano dese exprimir com a ajuda de imagens concretas, mostrao parentesco existente entre a fábula e o contodidático. Nesse sentido, a fábula comporta sempreuma parte narrativa importante – o “corpo” da história– e “anuncia um exemplo que põe em ação umprincípio ou preceito moral, insistindo sobre o bomou mau efeito que decorre de sua aplicação ou desua transgressão.” Segundo o autor, a anedota e amoral são dois elementos constitutivos da fábula,ao passo que no conto, no qual a narração é maisrica, deixa-se a moralidade por conta da livre inspiraçãodo leitor ou ouvinte. Essa é uma distinção importanteentre os dois gêneros. De qualquer forma,a originalidade da fábula é a de “colocar em cenaanimais ou homens para dar uma instrução sob aforma dissimulada da alegoria de uma ação.” Vejamos, então, a fábula do Banco Rural:Bem do alto de um pico rochoso, a águia empurravaseus filhotes para a beirada do ninho. Ao sentir aresistência dos bichinhos seu coração se acelerou. Porque a emoção de voar tem que começar com o medode cair? Apesar de tudo a águia sabia que aquele era omomento. Enquanto os filhotes não descobrirem suasasas não haverá propósito para a vida deles. Enquantonão aprenderem a voar não compreenderão o privilégioque é nascer águia.A águia encheu-se de coragem. O empurrão era omaior presente que ela podia <strong>of</strong>erecer-lhes. Era seu supremoato de amor. Então, uma a um, ela os precipitoupara o abismo e eles voaram.Às vezes, em nossa vida, as circunstâncias fazemo papel de águia. São elas que nos empurram para odesconhecido. E são elas que nos fazem descobrir quetemos asas para voar.Percebemos claramente duas partes. A primeira (1 oe 2 o parágrafos) traz uma história com princípio,meio e fim. Trata-se, pois, de um texto narrativo(em que aparecem também seqüências tipológicas<strong>No</strong>ssa tradução de [la fable] “énoncé un exemple qui met an actionun principe ou un précepte moral en insistant sur l’effet bonou mauvais qui découle de son application ou de sa transgression.”<strong>No</strong>ssa tradução de [l’originalité de la fable], ”c’est de mettre enscéne des animaux ou des hommes pour donner une instructiondéguisée sous l’allégorie d’une action”.16Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>


Transgressão de gêneros em textos de publicidade e propaganda no BrasilGláucia Muniz Proença Laradescritivas – que apresentam o “pano de fundo”para o desenrolar da ação – e argumentativas – quetrazem as razões para justificar os fatos narrados) em 3ª pessoa. Lembrando a distinção proposta porBenveniste (1991:262-263) entre os dois planos deenunciação – discurso e história –, diríamos que,nesse caso, é como se os fatos se apresentassem sozinhos,sem nenhuma interferência do locutor nanarrativa, o que, somado à presença de um grandenúmero de verbos no pretérito perfeito e no imperfeito,caracteriza a enunciação histórica.Em seguida vem a moral – segunda parte (últimoparágrafo) –, em que se traduz para o universo humanoa “lição” apresentada na primeira parte:Às vezes, em nossa vida, as circunstâncias fazem opapel de águia. São elas que nos empurram para odesconhecido. E são elas que nos fazem descobrir quetemos asas para voar.Como afirma Fiorin (1989: 82), a fábula servepara pôr a nu certos comportamentos humanos.Assim, no texto em exame (e em grande parte dasfábulas), é a presença do traço /humano/ na açãoou no comportamento da(s) personagem(ns) – queapresenta(m) o traço /não-humano/ – que permitepassar da isotopia animal à isotopia humana. <strong>No</strong>anúncio do Banco Rural, a águia é antropomorfizada:ela pensa, pondera, tem sentimentos.A moral, como vimos acima, reitera a passagemde uma isotopia à outra, através de elementos comparativos:a águia (na isotopia animal) representa-Embora o texto do Banco Rural mantenha aspectos comunscom a fábula, distancia-se desse gênero literário no que tange aessa “mescla” de seqüências tipológicas (narrativas, descritivase argumentativas). Como vimos nas definições apresentadas, afábula concentra-se na narração como tipo textual e – acrescentamos– serve-se, muitas vezes, do discurso direto (diálogo entreas personagens) para defender um preceito ou princípio moral.Diríamos, então, que se trata de uma “fábula estilizada”, entendendo“estilização”, de forma simplificada, como o ato ou efeitode “modificar, suprimindo, substituindo e/ou acrescentando,elementos para obter determinado(s) efeito(s) estético(s)” (cf.<strong>No</strong>vo Dicionário da Língua Portuguesa, 1986:721).Oriunda da física, a noção de isotopia é reutilizada no quadro dasemiótica francesa para significar a redundância de um efeito desentido, sob a responsabilidade do enunciador. Trata-se, portanto,de uma espécie de “plano de leitura”, responsável pela coerênciatextual.ria as circunstâncias da vida do homem (isotopiahumana), que “empurram para o desconhecido”e, com isso, o fazem descobrir que tem “asas paravoar”, ou seja, que tem competência para vencerdificuldades e medos. É interessante observar o empregodo “nós misto” (= nós, seres humanos), indicandoque a situação se aplica a qualquer um.Como se trata de um texto sincrético, em que semesclam duas linguagens: a verbal e a não-verbal(visual), logo abaixo da moral, vem a figura de umaáguia, com as asas estendidas em procedimento devôo. E, na seqüência, o slogan: “Em 2006, descubrasuas possibilidades”, seguido do logotipo do BancoRural.É nesse momento que se recupera, com clareza,o caráter de “anúncio publicitário” do texto (atravésdas coerções desse gênero, como a presença deum slogan e da marca do anunciante). O gênero emquestão assumiu, portanto, a forma de um outro:a fábula. Mantém-se, porém, a função do gêneroprimeiro: a de convencer o leitor a se valer da ajudado Banco Rural para descobrir suas possibilidades(suas “asas para voar”) em 2006.O enunciatário, que, no geral, esperaria encontrarum anúncio da singularidade dos serviços <strong>of</strong>erecidospelo banco e/ou os resultados benéficos desua utilização (por exemplo, agilidade, segurança,novos investimentos), surpreende-se com a formanada convencional de uma fábula. <strong>No</strong> entanto, autilização de um texto com função estética (a fábula)em lugar de um texto com função utilitária(informe sobre os serviços que o Rural <strong>of</strong>erece), éuma estratégia do enunciador no seu fazer-persuasivo-discursivo:é como se o enunciador-banco deixassede lado, por alguns momentos, seus interessesfinanceiros mais imediatos para se solidarizar como enunciatário (leitor), mostrando, assim, uma atitudemenos tensa, menos comprometida com questõescomo lucro, taxas, cobranças etc, o que pareceser reforçado pelo uso da 3ª pessoa e dos verbos nopretérito (enunciação histórica) no corpo do texto.Lembremos que o anúncio foi publicado próximodo Natal (mais exatamente, no dia 21 de dezembro),período festivo em que as pessoas se mostrammais propensas a demonstrar seus sentimentos eStockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>17


Transgressão de gêneros em textos de publicidade e propaganda no BrasilGláucia Muniz Proença Laraafetos (de amor, de amizade, de solidariedade), aomesmo tempo em que renovam suas esperançaspara o Ano <strong>No</strong>vo. Naturalmente, o Banco Rural láestará, em 2006, para auxiliar seus clientes (reais oupotenciais) a “descobrir suas possibilidades.”Houve, pois, numa certa medida, a quebra docontrato comunicacional entre o enunciador (instânciaprodutora da publicidade) e o enunciatário(instância consumidora) que, embora preservando afunção do gênero publicidade – caracterizado poruma “visada” dominante de incitação, construídaduplamente por um “fazer/dever acreditar”, no dizerde Charaudeau (2004: 23) – infringe uma de suasrestrições: a forma ou a configuração textual. 10Assim, a subversão da ordem genérica instituída,dando ao Banco Rural um novo enfoque – ele deixade ser uma instituição convencional, que prestaserviços e cobra por isso, para se transformar numaliado, quase um amigo do cliente (seja ele real oupotencial) –, seduz o leitor, mas, ao mesmo tempo,não o impede de reconhecer no gênero transgressor(a fábula) o gênero transgredido (o anúncio de umbanco), uma vez que as restrições situacionais e discursivassão, no geral, mantidas. 11 A própria “mistura”de gêneros torna-se, pois, uma estratégia ou manobraargumentativa num discurso que (sobre)vivedo seu poder de interpelar e influenciar o outro (leitor/espectador),como é o caso da publicidade. As visadas correspondem a uma intencionalidade psico-sócio-discursivaque determina a expectativa da troca linguageira. Na visadade incitação, o eu quer “mandar fazer”, mas, como não estáem posição de autoridade, deve “fazer-acreditar” (por persuasãoou sedução) ao tu que ele será o beneficiário de seu próprio ato.O tu está, pois, em posição de “dever acreditar” que, se ele age, épara o seu bem (cf. Charaudeau, 2004:23).10 Como, para Marcuschi (2002:31), o predomínio da função superaa forma na determinação do gênero, a “mescla” de gêneros,nesse caso, não <strong>of</strong>erece maiores dificuldades de interpretaçãopara o leitor, que tende a reconhecer o texto como um anúnciopublicitário, apesar da forma um tanto inusitada.11 É claro que podemos pensar numa alteração do tipo textualdominante, já que ocorre a passagem de um discurso preponderantementeargumentativo (anúncio publicitário convencional,em que se destacam as qualidades de um dado produto/serviço)para um discurso – pelo menos em tese – predominantementenarrativo (conta-se uma história). Se pensarmos, por outro lado,na identidade dos parceiros (anunciante e consumidor/cliente), nopropósito (agir sobre o outro) ou nas circunstâncias que precisamas condições materiais de comunicação (imprensa), vemos queessas restrições praticamente não se alteram na passagem de umgênero para o outro.Paulino et alii (2001: 43) comentam que a publicidadeapropria-se, com freqüência, do textoliterário e “brinca” com ele, retirando-o do domíniosagrado em que, na maioria das vezes, é posto.Propõe, dessa forma, um novo pacto de leitura. Éexatamente o que ocorre na fábula do Banco Rural:as expectativas do leitor são deslocadas; suas hipóteses,subvertidas. Ao mesmo tempo, o texto literário,ao ser colocado num suporte como a Veja, umarevista de cunho informativo, ganha o espaço damídia e se dessacraliza. É claro que o novo suportenão é escolhido aleatoriamente: trata-se de uma revistaque pressupõe um público mais elitizado, e, aomenos em tese, mais culto (isto é, melhor escolarizado,mais familiarizado com textos literários); logo,mais propenso a apreciar manifestações artísticas.Dificilmente a fábula do Banco Rural “funcionaria”num jornal sensacionalista.O texto 2 12 (vide anexo), por sua vez, focalizaum aparelho multimídia – o computador OZ Gradiente–, integrando, nesse sentido, um anúnciopublicitário de 14 páginas – 6 duplas e 2 simples– feito para divulgar os principais produtos daGradiente no Natal de 200<strong>2.</strong> Conforme pode serobservado, o anúncio possui a forma de uma cartapessoal. Trata-se de uma carta escrita por um(a)jovem/adolescente ao Papai <strong>No</strong>el. É possível chegara essa conclusão observando as “marcas” da linguagemempregada e o assunto focalizado no anúncio:linguagem informal e descontraída, assunto de interessedessa faixa etária, assim como a utilização doemoticon, ou seja, uma forma natural de expressarsentimentos, usando apenas os caracteres do tecladoque configuram uma carinha sorridente, ao ladoda saudação e do vocativo, o que produz um efeitode sentido de alegria. Vejamos o texto (que apareceem página dupla, sendo complementado pela fotodo computador anunciado).12 A análise do texto 2 contou com a colaboração de EdnaPagliari Brun, aluna do Mestrado em Estudos de Linguagensda Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (Campus deCampo Grande), a partir de uma comunicação individual por elaapresentada no 54º Encontro do Grupo de Estudos Lingüísticosde São Paulo (GEL), em julho de 2006.18Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>


Transgressão de gêneros em textos de publicidade e propaganda no BrasilGláucia Muniz Proença LaraOlá Papai <strong>No</strong>el:Em primeiro lugar já está mais do que na hora de vcter um e-mail, não existe nada mais antigo que mandaruma carta.Mas vamos lá: estou precisando de um upgrade nomeu home-<strong>of</strong>fice. Por isso, neste Natal eu quero OZGradiente.Talvez uma pessoa que nem website tem não saibao que é isso. OZ é DVD, TV, CD, MP3, FM, internet ecomputador ao mesmo tempo.Imagine se eu tivesse pedido tudo isso separado, opeso que seria no seu saco.Tks,_____________ (Grifo nosso).O gênero epistolar tem uma forma típica de composição,que apresenta, via de regra, os seguinteselementos dispostos em seqüência: indicação delocal e data; explicitação do destinatário (presenteno vocativo de abertura); exposição do tema;e, finalmente, assinatura do remetente. <strong>No</strong> textoanalisado, a parte inicial (local e data) é omitida,porém, mesmo assim, ele continua sendo uma carta,já que os demais elementos estão presentes. Écomum a carta pessoal apresentar uma variedadede seqüências tipológicas, sendo predominantes adescritiva, cujo efeito é o de fazer o enunciatário verem pormenor os elementos do objeto do discurso, ea expositiva, que objetiva fazer-saber a relação queo enunciador tem com o objeto do discurso. Contrariamente,no texto analisado, o predomínio é deseqüências injuntivas e argumentativas. Enquantoas injunções são enunciados que chamam a atençãodo enunciatário e o mobilizam a praticar uma ação,as argumentações expõem um ponto de vista e tentamconvencer o outro a concordar com essa visão.Essa predominância, no texto em questão, explica-sepelo fato de ele ser, conforme já dissemos, umanúncio publicitário (sob a forma de uma carta),pois, a proposta da publicidade, além de valorizar amarca em questão e estabelecer conceitos, tem comocoerção genérica o dever-vender determinado produto(ou idéia) para determinado consumidor em umdeterminado tempo e num dado espaço. Para isso,“na publicidade, o leitor é exacerbadamente seduzido,tentado, provocado, intimidado, com a finalidadeespecífica de ser convencido a consumir” (Discini,2005:364), portanto, nada mais apropriado do quea utilização de injunções e argumentações.<strong>No</strong> que se refere à enunciação, temos um “eu”(o/a adolescente) – marcado, no texto, pelos pronomespessoais (eu, me), pelo possessivo (meu) epela desinência número-pessoal dos verbos (estou,quero) – que, apropriando-se da língua com a “intençãode influenciar o outro de alguma maneira”(Koch, 2003:13), dirige-se a um “tu” (o Papai <strong>No</strong>el)–distinguido pelos traços lingüísticos dos pronomesde tratamento (vc, senhor), do possessivo (seu), doverbo no imperativo (imagine) e do vocativo deabertura (Papai <strong>No</strong>el).Constrói-se, assim, um efeito de sentido de subjetividade– já presente no uso da 1ª pessoa (com<strong>of</strong>oi assinalado acima) e complementado pelo empregode verbos no presente do indicativo –, o quecaracteriza o plano de enunciação do discurso (Benveniste,1991), implicando o engajamento, o comprometimentodo enunciador (o/a adolescente quedeseja ganhar o presente) com o seu discurso. Essase outras “marcas” já apontadas permitem projetar,na modalidade escrita, um simulacro de conversa,num clima de descontração comum nas relações familiares.Observe-se, por outro lado, o emprego desiglas (DVD, TV, CD, MP3, FM) e de termos técnicosem inglês (upgrade, home-<strong>of</strong>fice, website), o quedemonstra da parte do(a) autor(a) da carta plenodomínio das tecnologias modernas (informática,multimídia) e de sua(s) linguagem(ns). 13Também aqui ocorre a transgressão de gêneros– ou a intertextualidade inter-gêneros – visto quetemos um gênero funcional (anúncio publicitário)com o formato de outro (uma carta pessoal). Tratase,como já observamos, de desenquadrar o produto(no caso, um computador) do seu enquadre normal,para distingui-lo de outros do mesmo tipo, com <strong>of</strong>im último de seduzir o outro (leitor/consumidor).13 Como a linguagem da informática/multimídia contém muitosanglicismos (como mostram, por exemplo, os termos upgrade,home-<strong>of</strong>fice, website), talvez isso explique o tks (thanks) final, emlugar de “obrigado(a)”, o que seria de esperar, tendo em vista quea carta é escrita por um(a) adolescente brasileiro(a).Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>19


Transgressão de gêneros em textos de publicidade e propaganda no BrasilGláucia Muniz Proença LaraAssim como na fábula do Banco Rural, a escolhado gênero transgressor (carta) não é aleatória: considerandoque a Veja é uma revista que privilegiaassuntos ditos “sérios” como política e economia, aescolha de um texto divertido, que trabalha com olúdico, 14 com o irreverente, com o bom humor, tendea suavizar a leitura, tornando-a mais agradável(pelo menos em alguns momentos). Em outras palavras:numa revista cujo tom característico tende aser mais sisudo, mais circunspeto, esse efeito divertidoprovoca uma quebra de expectativas, surpreendeo leitor, dando-lhe um momento de descanso,como um intervalo na sua leitura de assuntos maissérios, portanto, mais tensos. Como analisamos, acarta tem um tom familiar, subjetivo, de proximidade.É essa a imagem que o enunciador da publicidade,a Gradiente, deseja que seus enunciatários – osleitores de Veja, potenciais consumidores do produtoanunciado (uma vez que os leitores dessa revistasão de uma classe socioeconomicante privilegiada)– tenham dele. Quer demonstrar que, apesar de oassunto tratado ser o moderno, o prático, presentena tecnologia representada por uma máquina, elenão deixou de ser emotivo e até divertido, tendo emvista o tom bem humorado do anúncio (o destinatárioda carta é o Papai <strong>No</strong>el!).Desse modo, mais uma vez, o texto analisado,embora preservando a função do gênero publicidade,infringe uma de suas restrições: a forma ou aconfiguração textual. Por outro lado, como no textoanterior, a maior parte do conjunto de coerçõesdo gênero transgredido foi mantida: 15 dever-venderdeterminado produto, ou melhor, o conceito neleinvestido para determinado consumidor em determinadotempo e num dado espaço, o caráter depersuasão, a descrição do produto e de suas quali-14 <strong>No</strong> texto publicado na revista Veja, há uma marca de picote(tracejado) do lado direito da página para o leitor recortar e umalinha destinada a sua assinatura para ele brincar de mandar cartapara o Papai <strong>No</strong>el.15 Como já observamos, há, na carta analisada, o predomínio deseqüências tipológicas injuntivas e argumentativas, o que destoa,de certa forma, do “modelo canônico” de carta, em que se privilegiamas seqüências descritivas e expositivas. Faltam também olocal e a data, o que parece ser uma manobra argumentativa paramostrar que o produto em foco transcende um lugar e um tempoespecíficos.dades, as estratégias para convencer o enunciatáriode que, se ele consumir, estará agindo para o seupróprio bem.A transgressão na propaganda<strong>No</strong> texto 3 (vide anexo), produzido e veiculadopelo governo (Prefeitura de Belo Horizonte) e pelaUNIMED BH, ocorre novamente uma mescla degêneros: de uma propaganda (texto de uma campanhade erradicação da dengue) para um sinal detrânsito. Assim como nos textos 1 e 2, temos umtexto sincrético, em que se articulam o verbal e onão-verbal, cada um deles complementando e reforçandoo outro.O sinal de trânsito é um gênero bastante padronizado(situa-se no modo I, proposto por Maingueneau,que inclui os gêneros instituídos que não estão– ou estão pouco – sujeitos à variação). Concisoe objetivo, dispensa as palavras e apresenta umalinguagem visual chamativa, uma vez que deve ser“lido” (decodificado) rapidamente por pessoas emmovimento (em geral, motoristas). Por isso, tornaseum gênero propício para veicular a propagandade uma campanha de erradicação da dengue quetem como suporte um cartaz (similar, nesse sentido,à placa que serve de suporte ao sinal de trânsito) aser afixado em murais à vista dos passantes, pessoasque, assim como os motoristas, também nãodispõem de muito tempo para ler textos com altoteor informativo. 16A mensagem verbal: “Dengue. Proibido retornar.”explora a ambigüidade do verbo “retornar”,que tanto pode significar “fazer o retorno” (no casodo trânsito) quanto “ocorrer de novo” (no discursomédico/governamental, referente à doença). A setacortada (símbolo da proibição no trânsito) vementremeada à figura do mosquito Aedes aegypti,causador da dengue, transferindo, pois, para este aproibição expressa.Ao mesmo tempo, a modalidade deôntica daproibição (eixo da conduta) reforça o empenho do16 A propaganda em questão foi obtida numa academia de ginástica,onde estava afixada a um mural, juntamente com anúnciosdiversos.20Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>


Transgressão de gêneros em textos de publicidade e propaganda no BrasilGláucia Muniz Proença Laragoverno e da instituição médica em resolver o problema,ou seja, erradicar, de vez, a dengue, o quevem reforçado pelos logotipos (da Prefeitura deBelo Horizonte e da UNIMED BH), na parte de baixoda página. Uma espécie de carimbo, estampadosobre a figura do sinal/mosquito, incita a populaçãoa colaborar com as autoridades, de forma a atingirplenamente a meta proposta. Esses elementos permitem“resgatar” o caráter de propaganda do texto(as coerções desse gênero):ATENÇÃOSE VOCÊ SUSPEITAR DE FOCODO MOSQUITO DA DENGUE EM SUARESIDÊNCIA, LIGUE 3277-4900.O leitor que esperaria encontrar um texto informativo(apresentando, por exemplo, as causas e/ouconseqüências da doença ou indicando as formasde prevenção, o que seria normal numa campanha),encontra, na verdade, o simulacro de um sinal detrânsito, 17 com um elemento visual apelativo – opróprio mosquito da dengue entremeado ao sinalde proibição – que é reforçado pela mensagem verbal:“Dengue. Proibido retornar.”Os efeitos de sentido da propaganda são, pois,re-significados num outro gênero. Mantém-se, noentanto, como nos textos anteriormente examinados,a função do gênero primeiro: tenta influenciarcomportamentos no seio de uma coletividade; ouainda, alertar, chamar a atenção para uma ação aser empreendida no âmbito do social.A transgressão se dá novamente sobre os elementosformais. O contrato de comunicação entreos parceiros (autoridades/população) e o propósitomaior (agir sobre a coletividade) se mantêm, apesardo desvio ou da quebra de expectativa, representa-17 Lembremos que os sinais de trânsito, dispostos nas ruas/estradas,em sua grande maioria, se compõem apenas de elementosvisuais, prescindindo de palavras para incitar (ou não) à ação.Nesse sentido, diríamos que a propaganda recupera o gênero emquestão tal como ele se apresenta na legislação, em que o textonão-verbal (o sinal) vem descrito pelo texto verbal (o enunciadocorrespondente). Essa articulação entre o verbal e o não-verbal,longe de saturar o dito, contribui para reforçá-lo, ou mesmo paratorná-lo irrefutável.da pela passagem do gênero propaganda para o gênerosinal de trânsito. Assim como no caso dos doisanúncios publicitários (textos 1 e 2) já examinados,também aqui a escolha do gênero transgressor nãoé aleatória: o suporte – um cartaz a ser afixado nummural para ser “decodificado” rapidamente pelospassantes – implica um alerta geral sobre uma situação-problema.Portanto, precisa ser claro, sucinto,objetivo, o que é exatamente o caso.Em última análise, os três textos analisados sãoexemplos de transgressão de gêneros – ou de intertextualidadeinter-gêneros – visto que temos um gêner<strong>of</strong>uncional (anúncio publicitário, propaganda)com o formato de outros (uma fábula, uma carta eum sinal de trânsito). Trata-se, como já afirmamos,de desenquadrar produtos/comportamentos do seuenquadre normal, para, sob um novo enfoque, levaro leitor a distingui-los, de forma mais nítida, no marde <strong>of</strong>ertas de produtos e de informações que noscercam no dia-a-dia.Considerações finaisOs gêneros do discurso, não sendo fruto de invençõesindividuais, mas “formas socialmente maturadasem práticas comunicativas”, funcionam comogeradores de expectativas de compreensão mútua(Marcuschi, 2002:35). Não são, no entanto, algopronto e acabado, mas conjuntos de regularidadesdiscursivas que, como tais, se prestam a deslocamentos,desvios e rupturas. Essas possibilidades detransgressão foram, como dissemos, previstas pelopróprio Bakhtin, que, ao propor os gêneros comotipos relativamente estáveis de enunciados, elaboradospelas diferentes esferas de utilização da língua,previa uma margem possível de manobra na construçãodesses “artefatos”.É claro que o nível de coerção varia de gêneropara gênero, indo desde os mais normatizados(gêneros instituídos de modo I, como a correspondênciacomercial e <strong>of</strong>icial, o catálogo telefônico ouregistros de cartório) até os que <strong>of</strong>erecem mais liberdadepara a emergência da criatividade (gênerosinstituídos de modo IV, como os textos literários,em geral).Os três textos que analisamos, em princípio, seStockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>21


Transgressão de gêneros em textos de publicidade e propaganda no BrasilGláucia Muniz Proença Larainscreveriam no modo III – gêneros que incitam àinovação, não apresentando uma cenografia preferencial–; porém, na medida em que implicam umsujeito-autor, que trabalha estrategicamente com esobre as regularidades convencionais, subvertendoas,em função da produção de efeitos de sentido intencionais,caminhariam já para o modo IV (gênerospropriamente autorais). Afinal de contas, os textossão dinâmicos, e os limites entre os gêneros podemser mais tênues e complexos do que supomos.Retomamos, pois, a questão fundamental expressana introdução deste trabalho: a busca porum ponto de equilíbrio entre as coerções genéricase o espaço de “liberdade” do sujeito/enunciador.Como afirma Charaudeau (2004:19), “aceitar queexistem gêneros é reconhecer que a produção linguageiraé submetida a restrições. Mas em que nívelestas restrições intervêm?” Por meio das reflexõese análises apresentadas, este artigo tentou ser umaresposta – ainda que parcial – para essa questão.Fica o tema em aberto para futuras e mais pr<strong>of</strong>undasinvestigações.Referências BibliográficasBakhtin, Mikhail ([1929]1990) Marxismo e filos<strong>of</strong>ia dalinguagem. São Paulo: Hucitec.—. ([1979] 2000) Estética da criação verbal. 3ª ed. SãoPaulo: Martins Fontes.Benveniste, Émile ([1966]1991) Problemas de lingüísticageral I. Campinas: Pontes/Ed. UNICAMP.Brandão, Helena N. (2000) ‘Texto, gêneros do discurso e ensino’.In: Brandão, Helena N. (coord.). Gêneros do discursona escola (Vol. 5: 17-45). São Paulo: Cortez.Charaudeau, Patrick (2004) ‘Visadas discursivas, gênerossituacionais e construção textual’. In: Machado, Ida Lúcia eRenato de Mello (Org.). Gêneros: reflexões em análise dodiscurso. Belo Horizonte: NAD/POSLIN/FALE-UFMG.Dionísio, Ângela P.; Anna Rachel Machado e M. AuxiliadoraBezerra, (orgs.). (2002) Gêneros textuais e ensino. Rio deJaneiro: Lucerna.Discini, <strong>No</strong>rma (2005) Comunicação nos textos: leitura,produção, exercícios. São Paulo: Contexto.Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda (1986) <strong>No</strong>vodicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: <strong>No</strong>vaFronteira.Fiorin, José Luiz (1989) Elementos de análise do discurso.São Paulo: Contexto.Fix, Ulla (1997) ‘Kanon und Auflösung des Kanons.. TypologischeIntertextualität – ein “postmodernes” Stilmittel?’ In:Antos, Gerd e Heike Tietz. Die Zukunft der Textlinguistik. Traditionen,Transformationen, Trends. Pp. 96–108. Tübingen:Max Niemeyer Verlag.Koch, Ingedore G. V. (2003) A inter-ação pela linguagem. 8ªEd. São Paulo: Contexto.Machado, Ida Lúcia (2006) ‘Análise do discurso & textoparódico: um encontro marcado’. In: Lara, Glaucia M. P.Lingua(gem), texto, discurso: entre a reflexão e a prática.Vol.1. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: FALE-UFMG/Lucerna.Maingueneau, Dominique (2004) ‘Diversidade dos gênerosde discurso’. In: Machado, Ida Lúcia e Renato de Mello (org.).Gêneros: reflexões em análise do discurso. Belo Horizonte:NAD/POSLIN/FALE-UFMG.Marcuschi, Luiz Antônio (2002) ‘Gêneros textuais: definiçãoe funcionalidade’. In: Dionísio, Ângela P., Anna RachelMachado e M. Auxiliadora Bezerra (org.) Gêneros textuais eensino. Rio de Janeiro: Lucerna.Mari, Hugo e José Carlos C. Silveira (2004) ‘Sobre a importânciados gêneros discursivos’. In: Machado, Ida Lúciae Renato de Mello (org.). Gêneros: reflexões em análise dodiscurso. Belo Horizonte: NAD/POSLIN/FALE-UFMG.Paulino, Graça; Ivete Walti; Maria N. Fonseca e Maria Z.Cury (2001) Tipos de textos, modos de leitura. Belo Horizonte:Formato Editorial.Plyia, Jean (1994) ‘Introduction’. Fables choisies de La Fontaine.Saint Maure: Éd. Sépia.Rastier, François (1998) ‘Le problème épistémologique ducontexte et le statut de l’interprétation dans les sciences dulangage’. In: Langages (Nr.129:97–111).Souza, João Marcos C. de (2004) ‘O lapso na conversaçãocomo transgressão de gênero’. In: Machado, Ida Lúcia eRenato de Mello (org.). Gêneros: reflexões em análise dodiscurso. Belo Horizonte: NAD/POSLIN/FALE-UFMG.Staiger, Emil (1996) Conceptos fundamentales de poetica.Madrid: Ed. Rialp S.A.22Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>


Transgressão de gêneros em textos de publicidade e propaganda no BrasilGláucia Muniz Proença LaraANEXOSStockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>23


Transgressão de gêneros em textos de publicidade e propaganda no BrasilGláucia Muniz Proença Lara24Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>


STOCKHOLM REVIEW OF LATIN AMERICAN STUDIES<strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>3A Construção e a desconstrução deestereótipos pela publicidade brasileiraDylia Lysardo-DiasDylia Lysardo-Dias é Mestre emEstudos Hispânicos pela Universidadede Toulouse, França eDoutora em Estudos Lingüísticospela Universidade Federal deMinas Gerais, Brasil. É pr<strong>of</strong>essorada Universidade Federalde São João Del-Rei (UFSJ) e integrao corpo docente do Mestradoem Letras: Teoria Literáriae Crítica da Cultura, atuandona linha Discurso e RepresentaçãoSocial. Suas pesquisastêm se voltado para o discursoda mídia, mais especificamentepara o discurso publicitário,abordando questões relativasaos processos de estereotipia.dylia@ufsj.edu.brEste texto apresenta algumas reflexões sobre o modo como apublicidade brasileira mobiliza estereótipos, tanto no sentido dereforçá-los quanto no intuito de transgredi-los. Ao propor a desconstruçãodos estereótipos, como no caso da campanha publicitáriados produtos Dove, a publicidade assume uma dimensãocultural, pois viola certas premissas culturais e questiona evidênciassociais já naturalizadas.Palavras-chave: publicidade, estereótipo, transgressão, representações sociaisDylia Lisardo-Dias has a master’sdegree in Hispanic <strong>Studies</strong>from the Université de Toulose,France, and a Ph.D. in Linguistic<strong>Studies</strong> from the UniversidadeFederal de Minas Gerais. Sheteaches at the Universidade Federalde São João Del-Rei (UFSJ)and is a member <strong>of</strong> the Master’sProgram on Literary Theory andCultural Critique working particularlyin the area <strong>of</strong> Discourseand Social Representation. Sheresearches on media, advertisement,discourse analysis andprocesses <strong>of</strong> stereotyping.dylia@ufsj.edu.brThis text presents some reflections on the way Brazilian advertisementmobilizes stereotypes reinforcing and sometimes transgressingthem. When advertisements attempt to deconstructstereotypes, like the advertising campaign for Dove products examinedhere, it assumes a cultural dimension, because it breakswith certain cultural premises and questions social evidences alreadynaturalized.Keywords: advertisement, stereotype, transgression, social representationsStockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong> 25


A Construção e a desconstrução de estereótipos pela publicidade brasileiraDylia Lysardo-DiasToda atividade comunicativa mobiliza, de algumaforma, representações estereotipadas que instauramum espaço de aproximação e de reconhecimentoatravés da evocação desse domínio referencial marcadopela convencionalidade. Na sua dimensão deevidência anteriormente estabelecida que pré-existeao acontecimento discursivo, o estereótipo funcionacomo um discurso social amplamente difundidoque é renovado, atualizado e solidificado a cada situaçãode uso.A publicidade, na sua finalidade de transformaro consumidor do texto publicitário em consumidorefetivo do produto que anuncia, faz uso tanto deestereótipos verbais quanto de estereótipos visuaisno intuito de realizar seu projeto interacional. Masa legibilidade e a eficácia argumentativa da páginapublicitária dependem do reconhecimento do sistemade estereotipia que ela utiliza; é a partir doreconhecimento que uma série de efeitos de sentidoserão percebidos e atuarão junto ao público alvo.O objetivo deste texto é apresentar algumas reflexõessobre os modos como a publicidade mobilizaos estereótipos, mais especificamente, a publicidadebrasileira. Certamente, ela os emprega comouma estratégia argumentativa capaz de instauraruniversos comuns de referência que correspondema valores socialmente instituídos e partilhados.Mas, se inseridos em uma perspectiva discursiva,concebermos o estereótipo como um saber préviopartilhado socialmente, constataremos que é a partirdele que a mensagem publicitária é produzida einterpretada. Logo, ele é a “engrenagem” que gera ainteração, seja quando ele é reforçado, seja quandoele é subvertido.Isso significa que a publicidade contribui tantopara a manutenção quanto para desconstrução deestereótipos através de procedimentos os mais diversos,sempre modulados pelo suporte utilizado epelo público que é visado. Cada vez que um estereótipoé rompido, pode haver uma transgressão seconsiderarmos que transgredir é fugir daquilo queé a “norma comum”, é desobedecer aos padrõespreviamente determinados. Por mais que a publicidadeatue sem nenhuma pretensão política e emconformidade com os padrões comerciais e as leisde mercado que lhe são inerentes, ela pode assumirum caráter transgressor quando sugere algumamudança na ordem social pré-estabelecida; quandopropõe uma estética outra que não aquela convencional;quando, sobretudo, subverte algum tipo deestereótipo.A noção de estereótipoO termo “estereótipo” denomina, inicialmente, aplaca gravada sobre o metal para a impressão deimagens e textos por meio de prensa tipográfica. Seaté o início do século XX a composição era feitaatravés de caracteres móveis, a partir dessa data surgeum novo processo de reprodução em massa noqual o clichê ou estereótipo utiliza um modelo fixo.Etimologicamente, a palavra vem do stereos que,em greco, quer dizer “sólido”. Portanto, o termocomporta em si uma referência ao que foi pré-determinadoe encontra-se fixado, cristalizado. O fatode ele ser tomado como uma idéia que foi se solidificandoao longo do tempo e, por isso, possa ter sedistanciado da “realidade”, fez com que fosse entendidocomo elemento falseador e pernicioso paraas relações sociais. Assim, o termo estereótipo assumeuma conotação pejorativa já que remete a umconceito falso (na origem inclusive de preconceitossociais), uma crença desprovida de qualquer sensocrítico que encerrava uma simplificação ou uma generalizaçãosem fundamento. Isso permite explicar aaura negativa que reveste o estereótipo, assim comouma certa resistência por parte de vários estudiososem concebê-lo como elemento imprescindível paraa interação por integrar as produções verbais. Épreciso, pois considerar que a noção de estereótipopode variar consideravelmente em função do pontode vista adotado.Na perspectiva da psicologia social, Moscovici(1972) trata do conceito de representações sociaiscujo estudo se justifica como forma de analisar asrelações e as interações sociais e está associado àsquestões relativas à origem e ao impacto dos preconceitos.Sob esse ângulo, o estereótipo tem a vercom as imagens preconcebidas que se cristalizam emum grupo social e que interferem na maneira comoos membros desse grupo gerenciam a convivência.26Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>


A Construção e a desconstrução de estereótipos pela publicidade brasileiraDylia Lysardo-DiasEsse enfoque é voltado para a categorização, a generalizaçãoe a previsão que o estereótipo opera,mecanismos que estão na origem da discriminação.Portanto, o interesse do estudo dos estereótiposé identificar suas funções e seus efeitos sociais deforma a compreender seu papel na organização dotecido social.<strong>No</strong> âmbito da sociologia, a partir do conceitode representações coletivas proposto por Durkheim(1898), o estereótipo é definido como uma imagemmental coletiva que determina formas de pensar,agir e mesmo sentir do indivíduo. Essas imagenssão responsáveis pela coesão do grupo e geram umsentimento de pertença dos indivíduos em relaçãoàquela comunidade. Assim, os estereótipos garantemrelativa homogeneidade já que os membros deum grupo se reconhecem por compartilharem umavisão de mundo. Sob essa ótica, o estereótipo temuma função construtiva já que, ao partilhar crençase valores, um determinado grupo social tem suaunidade consolidada através de “modelos” que assume.Isso quer dizer que o indivíduo se sente integradoa uma comunidade.Dentro de uma perspectiva discursiva, a noçãode estereótipo pode ser associada à noção de préconstruído,noção elaborada inicialmente por Henry(1975) e desenvolvida por Pêcheux (1975), quea introduziu no âmbito da Análise do Discurso.Instituindo uma oposição entre aquilo que é produzidono decorrer do processo enunciativo e o queé mobilizado como conhecimento prévio e anterior,a noção de pré-construído pode assumir duas dimensões:a primeira seria a de saber sobre o qual seapóia a asserção do enunciador, ou seja, a dimensãode pressuposto. A segunda seria a de elemento discursivoanterior à enunciação, aquilo que foi ditoou elaborado. Dessa maneira, se opera uma distinçãoentre aquilo que está inscrito no enunciado eaquilo sobre o qual ele se apóia em termos de idéias,valores e crenças.Em ambos os casos, o pré-construído pode representarconteúdos coletivamente aceitos por umacomunidade, tais como preconceitos, estereótipose lugares comuns e diz respeito aos conhecimentossob os quais se assentam os enunciados, mas quenão se encontram explicitados na superfície textual.Trata-se daquilo que, ao contrário do que é elaboradodurante e através do processo enunciativo,é mobilizado como uma evidência anteriormenteestabelecida. Mais que um saber pressuposto ouimplícito, o pré-construído pode ser definido emtermos de domínio referencial que preexiste aoacontecimento discursivo e indispensável para a inter-compreensão.Nessa ótica discursiva, o estereótipo é entendidocomo um elemento agregador que tende a instaurarum espaço de aproximação e de reconhecimentoatravés da mobilização desse domínio referencial deexistência notória. Consolidado pelo uso e marcadopela convencionalidade, ele é uma representação fixadae partilhada por uma coletividade que dependedele para interagir verbalmente e para gerenciaras relações sociais. Portanto, falar em estereótipo éconsiderar a premência de um dizer anterior inevitávelna elaboração de “novos” dizeres; é uma questãode entendimento prévio que viabilize e garantauma compreensão mínima entre sujeitos historicamenteinstanciados.Todas essas formas de apreensão do estereótipotêm em comum o fato de considerá-lo um modo deconhecimento e uma forma de identificação social.Cada vez que é acionado, ele é, de alguma forma,atualizado porque inserido em um contexto efetivode comunicação e de interação social que o retoma,seja para reforçá-lo, seja para questioná-lo.Outro aspecto igualmente contemplado é o fato deque cada época tem seus estereótipos, assim comocada grupo social constrói coletivamente toda umagama de saberes comuns. Isso significa considerálouniversal para uma coletividade, que, ao longode sua história, pode preservar aqueles mais antigose tradicionais ou instituir outros estereótipos queacompanhem o seu desenvolvimento.Assim sendo, por mais que se possa associar oestereótipo àquilo que já está previamente definido,ele não é estático dentro do tecido social do qualfaz parte integrante: ele pode ser renovado e ganharnovos contornos, assim como pode ser modificado,acompanhando a dinâmica da vida em sociedade esuas novas demandas.Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>27


A Construção e a desconstrução de estereótipos pela publicidade brasileiraDylia Lysardo-DiasO Processo de estereotipiaA partir dessas diferentes perspectivas, propomosconsiderar que a elaboração de estereótipos correspondea processos de conceituação e generalizaçãoque fabricam as imagens mentais através das quaisos membros de uma comunidade apreendem, ou passama apreender, a realidade e se sentem pertencentesa um grupo social homogêneo. Acreditamos queno processo de socialização a que estamos expostosno dia-a-dia, interiorizamos as representações coletivasque circulam e que são transmitidas ao longodo tempo aos membros de uma comunidade.Ou seja, modelos culturais já existentes vão sendoretomados e novos modelos vão sendo difundidos/criados.Assim, nossa relação com o mund<strong>of</strong>ica condicionada por essa visão partilhada, isto é,por modelos socialmente legitimados que instauramuma percepção homogeneizada do mundo. Nessesentido, o processo de estereotipia corresponde a umprocesso de generalização que fabrica imagens mentaisuniformizadas e impõe formas de se relacionar.Os estereótipos são o resultado de uma vivênciacoletivizada através do contato entre os indivíduospor meio das interações sociais, sem que o eu prevaleçasobre o nós. Ao contrário, é a força do coletivoque se manifesta, estabelecendo sentidos comuns econvicções coletivas que, sendo de domínio público,interferem no comportamento social. Portanto,o estereótipo não advém da experiência do indivíduo,mas do seu contato com os outros membrosda sua coletividade. Por isso, Amossy (1991) sugereque se estabeleça uma distinção entre a prática doestereótipo e sua consciência: a prática se refere aoato mental de tomar o singular como uma categoriageral dotada de atributos fixos; a consciênciacorresponde à percepção que temos dessa atividadegeneralizante.Os estereótipos circulam e são transmitidos pelasfontes as mais diversas: família, amigos, escolae mídia, são alguns dos agentes que atuam naconsolidação, assim como na possível alteração dosestereótipos. Por isso a linguagem tem um papel importanteporque é através dela que o processo deestereotipia se materializa, é ela que está na base doprocesso de estereotipia.<strong>No</strong> caso da publicidade, há todo um trabalho nosentido de retomar aqueles estereótipos tidos comomais “populares” tendo em vista a necessidade deutilizar referências partilhadas por um público omais extenso possível. Ao retomar os estereótiposvigentes, ela acaba por atualizá-los e difundi-los,dando muitas vezes a impressão de que ela é a responsávelpor tais representações convencionais.O estereótipo na mídiaA mídia articula discursos que dialogam com diferentesdomínios da produção humana e que participamda rede intertextual que caracteriza a vidasocial. Esse diálogo promove não apenas a interaçãoentre discursos, mas também a interação entreos sujeitos. Trata-se do princípio dialógico propostopor Bakhtin (1979), para quem a enunciação é umfazer coletivo já que os enunciados estão repletosdas palavras dos outros, que são absorvidas, elaboradas,reestruturadas. Para Bakhtin, um dos maisimportantes filós<strong>of</strong>os da linguagem do século XX,o dialogismo é o princípio fundador da linguagem,pois a palavra é um fenômeno ideológico por excelência,que se constitui como uma arena onde seconfrontam valores sociais contraditórios. <strong>No</strong> seuentender, ela é o modo mais puro de relação social.Dessa forma, as práticas discursivas são práticassociais e implicam a mobilização de uma base comumsobre as percepções de mundo dos sujeitos.Toda a produção cultural se baseia em representaçõescoletivas que circulam na sociedade e que,de alguma forma, estão relacionadas ao imagináriode uma época. Sob esse viés da interdiscursividade,todo discurso é compreendido como resultado deum movimento de articulação de outros discursosque lhe são anteriores, discursos sociais atravessadospor dizeres coletivamente instituídos.Pela sua própria natureza, a mídia incorporanão apenas seqüências textuais como também materialvisual de outros domínios de conhecimento.A apropriação desses outros discursos visa criaruma identificação entre os interlocutores: quantomais conhecida for a referência lingüística ou icônica,maior a garantia de reconhecimento dela e,consequentemente, mais eficaz será o procedimento28Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>


A Construção e a desconstrução de estereótipos pela publicidade brasileiraDylia Lysardo-Diasde incorporação daquele discurso citado em termosde captação e persuasão do público a que se dirige.As referências serão mais eficientes a medida queforem mais familiares, pois o reconhecimento sedará de maneira mais rápida por demandar menoresforço cognitivo.Seguindo a proposta desenvolvida por Charaudeau(2006), postulamos que a mídia corresponde,por um lado, a um tipo de produção discursivainserida em uma lógica comercial de obtenção delucros, por outro, ela assume uma dimensão simbólica,pois o universo material que utiliza é associadoa valores culturalmente determinados. Assim, asmensagens que a mídia produz e faz circular remetema comportamentos partilhados e reconhecidossocialmente de forma a propor dada outra ordemsocial ou valorizar aquela já existente.É nesse sentido que a mídia pode contribuir paraa atualização das tradições ou pode favorecer oestabelecimento de novos padrões de pensamentoe de conduta. Em ambos os casos, ela depende depressupostos sociais que orientam formas de atuaçãodos membros de uma coletividade. Tais pressupostosfuncionam como uma espécie de elementoque desencadeia a aceitação e promove a estabilidadede saberes coletivamente instituídos e podem serdefinidos em termos de estereótipo ao se considerarque tais saberes atuam como um pré-concebido amplamenteestabilizado a partir do qual as mensagenssão propostas e interpretadas. Consequentemente, amídia se inscreve não apenas em um circuito de comunicaçã<strong>of</strong>undado nas interações mediadas, comotambém em um jogo de imagens e representaçõesvoltadas para ampliar sua confiabilidade e alcancejunto aos sujeitos receptores.Dessa maneira, os produtos midiáticos pautamsena evocação de idéias e comportamentos preexistentesconvertidos em senso comum, evocação queproduz diferentes efeitos de sentido, mas que fundaseem um único princípio: aproximar a instância deprodução e a instância de recepção de forma que asegunda se identifique com a primeira e possa teracesso e aceitar o que lhe é proposto.Segundo Croll (1999) os estereótipos apresentamtrês funções na mídia. A primeira, seria umafunção cognitiva, já que ele é um instrumento mobilizadono tratamento da informação. Uma segundafunção é de natureza social: o estereótipo é umaforma de apropriação cultural do real. Uma últimafunção é a função comunicativa, pois o estereótipoinstaura uma relação entre saberes e entre sujeitos.Ora, de acordo com a proposta e a necessidadeda mídia de buscar ampliar cada vez mais sua audiência,da qual depende para sobreviver em ummercado extremamente competitivo, o estereótipoatua como elemento polifuncional. Ele tanto favorecea percepção do conhecimento que é propostoem termos informacionais, quanto apresenta uma“leitura” já assimilada do real, além de aproximaros sujeitos interlocutores que se sentem familiarizadospor partilharem de antemão uma visão demundo ou valores comuns. De uma forma ou deoutra, a mídia se serve de estereótipos cuja eficáciadepende da maneira como são mobilizados e dopoder de sedução que exercem junto ao público aque ela se destina.Modos de funcionamento doestereótipo na publicidade brasileiraA publicidade é uma atividade econômica que envolveinvestimentos de alto valor e que se faz presenteem suportes de veiculação os mais diversos,tais como televisão, rádio e jornal. Buscando inserir-seno cotidiano do indivíduo, ela tende a ocuparo maior número possível de espaços da vida socialsem que, muitas vezes, fiquem explícitas sua presençae sua finalidade comercial de promover a vendade um determinado bem de consumo ou serviço.Mas a publicidade não se restringe aos aspectosmateriais e à função utilitária desse produto. SegundoSoulages (1996:150), ela coloca em cena “umasérie de representações do mundo e de seus seres”que correspondem a diferentes universos de referênciae sistemas de valores. Daí a dimensão culturalda publicidade: ela mobiliza o imaginário coletivo ereconstrói saberes e crenças legitimados socialmente.Isso significa que a publicidade recorre às normassociais interiorizadas pelos indivíduos, normasaceitas pelo grupo e que apresentam instruções decomportamentos esperados.Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>29


A Construção e a desconstrução de estereótipos pela publicidade brasileiraDylia Lysardo-DiasÉ nesse sentido que a publicidade trabalha dentrode um movimento dialógico (Bakhtin, 1979)marcado pela imbricação e o cruzamento de dizeresque circulam em uma comunidade, dizeres queconferem uma identidade a esse grupo. Como todaatividade verbal, a publicidade tem um caráter interdiscursivo,pois indivíduo e sociedade estão emconstante interatividade já que a dimensão históricaé inerente às práticas discursivas.Assim, quando a comunicação publicitária buscaestabelecer uma relação de proximidade entre o sujeitoanunciante e o público alvo e uma relação deidentificação entre esse público e o dizer que lhe éapresentado, ela evoca esse sistema de pressupostossociais. A eficácia comunicacional da publicidadeestá diretamente relacionada à maneira como essepré-construído encontra-se inserido na estratégiaargumentativa proposta e como ele será percebidopela instância de recepção da mensagem. Quantomais convencional forem as crenças e valores,quanto mais de domínio público forem as referênciasutilizadas, maior será a possibilidade de captar,seduzir e convencer o público alvo. É para isso queservem os estereótipos: para atrair o consumidor depublicidade e para persuadi-lo a se tornar um consumidordo bem ou serviço anunciado.As publicidades brasileiras atuais endereçadasao público feminino têm explorado basicamentedois estereótipos que se relacionam: o primeiroestereótipo é relativo ao padrão de beleza: mulherbonita é mulher magra, ainda que a moda atual sejater seios fartos e volumosos. O outro estereótiporefere-se à juventude: é preciso ser/parecer jovempara ser feliz.<strong>No</strong> caso do estereótipo da beleza, as publicidadesnão apenas apresentam os mais variados produtospara cuidar da aparência como também abusam defotos de mulheres esguias e com o corpo bem torneado.A tirania desse padrão de beleza é, ao mesmotempo, mostrada e desencadeada pelas publicidades,que estão em consonância com as matérias jornalísticasveiculadas pela mídia feminina. Em umamesma revista há, por exemplo, publicidades decosméticos e de alimentos que promovem o emagrecimento,fotos de modelos magras para ilustraremas publicidades e matérias, reportagens sobre dietas,ginástica e “truques” de beleza e depoimentos demulheres que se submeteram com êxito a tratamentosestéticos os mais diversos e que por isso agoraestão mais felizes. Segundo Lipovetsky (2000:132),“os periódicos femininos são cada vez mais invadidospor guias de magreza, por seções que expõemos méritos de uma alimentação equilibrada e leve, eexercícios de manutenção e modelagem do corpo.”A preocupação com a saúde e o bem estar fica atreladaà questão estética.Assim, o que a publicidade veicula está inseridoem um contexto maior, pois o discurso publicitárioé um dos discursos que compõe a máquinamidiática, também do ponto de vista ideológico.Ela dialoga com outros domínios, estando inseridaem uma “cultura da magreza” que firma-se comoum pressuposto social: ser belo é ser magro. Dessamaneira é que se justifica toda uma gama de produtosanunciados visando eliminar da maneira maisrápida e eficaz o suposto excesso de adiposidade.Aliás, deve-se ressaltar que presença mesmo destetipo de produto já sinaliza uma valorização socialda aparência física.As revistas femininas brasileiras veiculam majoritariamentepublicidades de produtos de belezapara a mulher, mesmo aquelas revistas cuja propostaeditorial é atender os anseios da mulher pr<strong>of</strong>issionalmenteativa. O padrão estético vigente é amulher magra, daí os produtos para combater ostais “quilinhos a mais” .Um dado relevante é a expansão do mercadoeditorial brasileiro no que se refere às revistas voltadaspara a aparência física, tais como Boa Forma,Corpo e Dieta Já. Todas elas são muito mais endereçadasàs mulheres que aos homens, o que é umdado cultural importante: a valorização social dabeleza feminina.Mas a valorização do belo não fica restrita à sociedadebrasileira: o economista Markus Mobius etal (2004) apresentou, sob o título Why Beauty Matters,um estudo realizado em dezenas de empresasamericanas sobre a questão da beleza. Segundo ele,as pessoas mais bonitas ganham mais porque belezaevoca confiança, o que é valorizado por um salário30Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>


A Construção e a desconstrução de estereótipos pela publicidade brasileiraDylia Lysardo-Diasmelhor. Entretanto, o que é marcante nas publicidadesbrasileiras é a associação da beleza como umatributo eminentemente feminino, como se todamulher tivesse a obrigação de ser bonita e magra.A argumentação publicitária mobiliza não apenasessa cultura da magreza na sua dimensão de saberprévio, como utiliza com freqüência atrizes, modelose “celebridades” bonitas, com corpos esbeltose rostos “perfeitos”. Trata-se de um procedimentovisando “personificar” esse ideal de beleza, pois apersonalidade apresentada encarna o estereótipode forma a corporificá-lo. Aquilo que está no nívelde uma imagem mental socialmente partilhada passaa ser projetado de forma concreta. Por isso, aspublicidades brasileiras pagam cachês milionáriosa artistas, que emprestam seus dotes físicos a produtosque prometem justamente obter aquilo queé valorizado pela sociedade: um corpo esbelto. Osprodutos Nívea, por exemplo, têm como “garotapropaganda”Gisele Bündchen, top model internacionaltida como uma das mulheres mais bonitas domundo. Ela ilustra desde as publicidades de protetorsolar até aquelas de creme hidratante. Na revistafeminina Cláudia de dezembro de 2005, ela apareceao lado da sua irmã gêmea em uma publicidade dodesodorante da Nívea, cujo texto é o seguinte:publicidade bem convencional, cujo apelo maiorfica por conta da representação visual.Um outro estereótipo recorrente nas publicidadesbrasileiras é a valorização da juventude. Na verdade,beleza e juventude são dois mitos que se relacionamentre si. As revistas femininas brasileiras veiculamuma gama enorme de publicidades sobre produtosque prometem retardar ou disfarçar a ação do tempo:cremes, sobretudo anti-rugas, e cosméticos são osque mais aparecem, perfazendo em algumas publicaçõesmais de 80 % dos produtos anunciados.Nesse sentido, a publicidade, através das estratégiasque utiliza, pressupõe uma insatisfação damulher em relação a certas imperfeições estéticas ea necessidade de corrigi-las para forjar a juventude.O produto anunciado é apresentado como capaz deeliminar tais imperfeições e garantir à consumidoraas mudanças de que supostamente precisa.Um bom exemplo seria a publicidade de umalinha de produtos da fabricante VitaDerm. O anúncio,em página simples, mostra o rosto de umamulher branca, de longos cabelos negros no alto e,abaixo, apresenta o texto seguinte:A Linha Antitempo Vita Derm ficou ainda maiscompleta:Como todas as irmãs gêmeas, elas têm muito emcomum. Inclusive a proteção. <strong>No</strong>vo desodorante NíveaAerosol.Agora com uma nova embalagem e fórmula aindamais eficiente, para garantir proteção e cuidado suave24 horas por dia.Cápsulas com DMAE 5% e CeramidasAção nutritiva, hidratante e revitalizante com toqueseco e suave.Ideal para atenuar e prevenir as rugas dopescoço, colo e mãos, podendo também ser aplicadaem todo rosto. A dose certa para minimizar a ação dotempo.Nívea. A marca que mais entende de pele no mundoA presença das irmãs Bündchen reforça a valorizaçãoda beleza, que é apresentada em “dose dupla”.A página publicitária é ocupada em torno de 20% pelo texto, no alto da página, sendo o restantepreenchido pela imagem das irmãs, que aparecemabraçadas, cada uma segurando uma embalagemdo produto anunciado, nas suas duas versões (desodorantefresh e desodorante dry). Trata-se de umaO fato de a fabricante apresentar toda uma linha“antitempo” reflete a importância que é dada paraa manutenção da juventude: o produto previne asrugas vindouras e minimiza as já existentes, ou seja,atende a qualquer tipo de mulher, em qualquer idade,para que ela esteja em conformidade com os padrõesvigentes da nossa cultura ocidental.Em termos visuais, a página publicitária nãoapresenta nenhum traço inovador: há uma divisãoequilibrada entre o espaço destinado à ilustração eStockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>31


A Construção e a desconstrução de estereótipos pela publicidade brasileiraDylia Lysardo-Diasà argumentação verbal; a modelo enquadra-se a ummodelo de beleza idealizado pela mídia e o textoretoma os aspectos tradicionalmente valorizados norosto de uma mulher.Ao fazer uso de qualquer estereótipo que seja,a publicidade remete a um discurso pré-existenteposto como consensual, pela própria natureza doestereótipo, discurso que funciona, a nosso ver,como uma espécie de código social e que seduz pelaidentificação que promove entre os interlocutores:eles se sentem próximos por partilharem um mesmouniverso. Logo, o estereótipo instaura um espaç<strong>of</strong>amiliar por meio do reconhecimento de uma culturacomum, o que vai captar a atenção justamentepor causa dessa ligação de proximidade com aquiloque já é conhecido e já foi incorporado. Como apublicidade busca interpelar os sujeitos destinatários,convocando-os a fazerem parte do universode discurso que ela cria e postula como legítimo,ela articula modelos culturais e comportamentossociais valorizados ou tidos como desejáveis paraum determinado grupo social: ao evocar o que ésupostamente partilhado por uma coletividade, apublicidade seduz pelo reconhecimento e pela familiaridadedo déjà-vu.Esse status de consenso prévio inicial do estereótipoé imprescindível para a publicidade instaurar onovo a que se propõe, pois ela insere esse “novo dizer”que propõe em um sistema de relações convencionalizadas.Esse sistema atua como um quadro dereferência capaz de criar uma relação de pertinênciapara esse “novo dizer”, que assim será mais facilmenteassimilado.Sendo comum a um grupo de indivíduos, o estereótipo(seja ele verbal ou visual) funciona comouma referência partilhada, um esquema pré-estabelecidode percepção da “realidade” dentro do quala mensagem publicitária será projetada. Dessa maneira,ele favorece a compreensão do mundo porquefunciona como uma espécie de filtro através doqual o conhecimento é elaborado e organizado.Sob esse aspecto, o estereótipo é, como nos sugereDufays (1994), uma construção de leitura, já queela se processa a partir de um denominador culturalmínimo, que é o sistema de estereotipia (conjuntocoerente de estereótipo). Ele é que garante a legibilidadedo texto, sendo o primeiro instrumento deconstrução de sentido. Como a leitura é dependentedas referências sócio-culturais pressupostas porcada situação de interação verbal, um texto se enquadranão apenas em sistematicidades formais eorganizacionais, mas também em esquemas referenciaise relacionais já estabilizados. Logo, um textosó existe em relação a outros textos, seja em conformidadeseja em oposição a um já-dito e encontra-seinscrito em um horizonte de expectativas a partirdas crenças e saberes coletivamente partilhados. Aprevisibilidade e o reconhecimento de um texto têma ver com essas crenças e saberes.Um caso de transgressão deestereótipos na publicidade brasileiraMas a publicidade retoma os estereótipos não apenaspara reforçá-los e reafirmá-los. A partir dosestudos que temos desenvolvido, postulamos queela, para diferenciar o produto que anuncia dosconcorrentes, para singularizar sua mensagem, propõe,algumas vezes, o rompimento e a subversãode certos estereótipos. Assim, os modelos culturaispré-existentes são objeto de um tratamento no qualos valores consensuais que os fundamentam sãosubstituídos por outros de forma a romper com osautomatismos culturais. Trata-se de uma estratégiautilizada para captar o público alvo através do estranhamentoque chama a atenção pela presença doinusitado, pelo choque causado por aquilo que fogeàs expectativas impostas pelos padrões vigentes.Dessa maneira, a reprodução que garante a existênciado estereótipo é substituída pela sua desconstrução;em outros termos, a imagem já consagradae amplamente difundida é reformulada, dando origema uma descaracterização do convencional, quenão perde alguns de seus traços sob pena de não serreconhecido. Trata-se de um caso de heterogeneidadediscursiva porque a publicidade estabelece umdiálogo entre um dizer convencional e consensual eo novo dizer que ela propõe, que é fruto da subversãodo primeiro.Essa subversão caracteriza-se como um tipo detransgressão no qual uma norma social é de alguma32Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>


A Construção e a desconstrução de estereótipos pela publicidade brasileiraDylia Lysardo-Diasmaneira violada ou desobedecida, visando o objetivocomercial que funda a publicidade. Mais do queuma estratégia voltada para a imagem do produto,que é associado a uma outra/nova forma de pensar/agir, a transgressão impõe, ou pelo menos sugere,um olhar diferenciado que se opõe aquele habitual.Um caso de transgressão na publicidade brasileiraatual é a campanha dos produtos de beleza damarca Dove intitulada Verão sem vergonha . Talcampanha é composta de várias peças publicitáriasnas quais as modelos são mulheres que fogem aopadrão estético vigente de esbeltez: são mulherescom relativo sobrepeso, ou seja, mulheres tidascomo “gordinhas” ou “fora de forma”. Em meio auma infinidade de publicidades que exibem corposesguios, essa campanha propõe um outro modelo demulher, a mulher “de verdade”, aquela com a qualas consumidoras de publicidade podem se identificarcom maior facilidade e mais prontamente.Todas as modelos expostas nos diferentes anúnciosdessa campanha são anônimas, mulheres comunse “normais”, representantes de diferentes tiposfísicos (louras, morenas, ruivas), assim como é asociedade brasileira. Todas elas estão usando lingerie,ainda que as mais gordas usem peças um poucomaiores. O princípio comum a todos os anúnciosé que essas mulheres têm “curvas de verdade”, segundoo texto, e elas não devem ter vergonha desuas medidas. Portanto, ao invés de apresentar,como de costume, mulheres com corpos bem definidose moldados, as publicidades desta campanhadesconstroem a encenação publicitária por mostraremmulheres “reais”. Mesmo que os anúncios sejamplasticamente bem elaborados, existe um certorealismo na sua composição, um compromisso deexpor o cotidiano.A publicidade da loção firmadora para o corpoda Dove, por exemplo, mostra sete mulheres quemesmo estando fora do padrão de esbeltez usamlingeries brancas. Assim, rompe-se com o preceitode usar a cor preta para parecer mais magra, precei-Essa campanha da Dove foi realizada também em outros países,o que sugere a existência de um estereótipo feminino mais amplo,que perpassa várias culturas.to segundo o qual o preto seria uma cor favorávelpara criar o efeito de um corpo alongado. O branco,ao contrário, é tido como uma cor que cria um efeitode volume. Portanto, a publicidade não apenasmostra mulheres “gordinhas”, como faz questãode salientar essas formas, o que é uma maneira depropor a aceitação e a valorização de corpos menosesbeltos.Já a publicidade dos produtos Dove para o verão(filtro solar, creme hidratante e sabonete paramanter o bronzeado) coloca em cena uma mulheralém daquelas da publicidade da loção firmadora:essa oitava mulher é uma mulher negra. Mesmo estandomais escondida, é possível considerar que asua inclusão representa uma ruptura em termos depadrões brasileiros: historicamente os negros nãose fazem presentes nas diferentes mídias e a publicidadesó agora começa a se dirigir a eles. Apesarde índios e negros, juntamente com os brancos,fazerem parte da constituição daquilo que hoje sepode definir como sendo o povo brasileiro, muitorecentemente e de maneira ainda tímida é que elestêm ocupado espaço em anúncios publicitários. Opadrão de beleza difundido pela publicidade até entãose restringe àquele relativo à mulher branca emais frequentemente loira.É inquestionável que o compromisso maior dapublicidade é com o lucro que ela pode proporcionarao anunciante. Mas não se pode deixar de considerarque há um caráter transgressor neste tipode publicidade já que ela ousa apresentar um outropadrão de estética, diferente daquele já amplamenteaceito e difundido. Em termos ideológicos, essadesconstrução de modelos pré-existentes representao questionamento dos automatismos culturais ede crenças e valores naturalizados. A estabilidadeforjada pelos estereótipos é, de alguma forma, desobedecidapela publicidade em favor de um deslocamentointencional pautado na instauração deuma outra normatização. Como a publicidade atuapropondo novas identidades, ela reforça esse papelquando sua mensagem de objetivo eminentementecomercial tem um forte impacto no espaço cultural.Assim, o questionamento de um estereótipo representaa quebra de uma estrutura referencial consoli-Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>33


A Construção e a desconstrução de estereótipos pela publicidade brasileiraDylia Lysardo-Diasdada em favor do inesperado e do inabitual que desestabilizaa autoridade do coletivo confrontando-ocom uma visão particularizada.Nesse sentido, a campanha dos produtos Dove“Curvas reais” abandona a imagem idealizada demulher em favor de “gente de verdade”, que nãocorresponde ao universo idílico proposto pela publicidadede cosméticos femininos. Ao colocar “mulheresreais” para anunciar seus produtos, a Doverompe com aquele padrão de beleza intangível esurpreende com um outro conceito de mulher bonitacom o qual um número mais amplo de consumidoraspoderá se identificar. Além de marcar umcrescimento significativo das vendas, essa campanhagerou mídia espontânea e tornou-se objeto de debatetanto na imprensa quanto no âmbito acadêmico.Isso mostra que a “campanha pela beleza real” deflagroudiscussão sobre o padrão estético vigente esua tirania e mobilizou a atenção das pessoas peloque ela representa em termos de ruptura.Entretanto, cabe observar que o nível de transgressãoda campanha Dove acaba restrito ao corpoidealizado que a mídia expõe e difunde. <strong>No</strong> que dizrespeito àquilo que as mulheres devem fazer em termosde cuidado com a aparência, há uma reafirmaçãodaquilo que já está culturalmente estabelecido:a mulher deve fazer uso de produtos de beleza edeve combater a flacidez.A aparente transgressão visual que causa impactoe que seduz pela novidade que comporta, de algumaforma dilui o caráter conservador da propostada Dove, até porque todas as mulheres expostaspela campanha têm um rosto que corresponde aopadrão de beleza vigente e já difundido pela mídia.Considerações finaisSendo o estereótipo uma convicção compartilhadasocialmente, ele atua como preconizador de valorese comportamentos coletivos que garantem uma certahomogeneidade e coesão dos grupos.Se a vida em sociedade depende de um mínimode acordo social, é preciso considerar que esse acordopode significar a eliminação da diversidade, diversidadedo pensamento coletivo que é moldadopor convicções supostamente inquestionáveis peloseu status de verdade social. A naturalização dessasconvicções incide sobre a dimensão ideológica dasrepresentações sociais.Se, para muitos, a mídia representa um poderparalelo, a publicidade poderia reforçar essa tese sefor analisada como um mecanismo capaz de questionara ordem vigente. Entretanto, ela o faz como único intuito de ampliar sua audiência e garantiro poder argumentativo e persuasivo de sua mensagem,pois todos os mecanismos utilizados só visamum objetivo final: incrementar a compra/venda deprodutos e serviços para garantir o lucro de umaempresa comercial.Ao transgredir, a publicidade assume uma dimensãocultural já que propõe uma inovação quepode gerar um impacto e incidir sobre os indivíduosatravés da proposição de algo que contesta umparadigma já estabelecido. A familiaridade de umdiscurso já incorporado é substituída pelo inesperadode uma nova representação que é proposta e quedemanda uma mudança nas normas de percepçãodo indivíduo.Mas, essa transgressão pode ficar restrita a umdeterminado nível, sem que haja a proposta de umasubversão efetiva de valores e comportamentos.Nesse caso, haveria apenas um redirecionamentodas informações mobilizadas, sem que os “sistemasde convicção coletivos” (Stangor e Schaller, 1996)fossem alterados. Se transgredir significa infringirou desobedecer, uma publicidade transgressoraé aquela que viola as premissas culturais e as evidênciassociais já naturalizadas e impõe uma novavisão de mundo, aquela capaz de gerar uma outraleitura do tecido social.De qualquer maneira, quando a publicidade desconstróium estereótipo, ela não se distancia completamentedo modelo rompido, pois preserva elementosque permitem ver um através do outro.34Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>


A Construção e a desconstrução de estereótipos pela publicidade brasileiraDylia Lysardo-DiasReferências BibliográficasAmossy, Ruth (1991) Les idées reçues: semiologie du stéréotype.Paris: Nathan.Bakhtin, Mikhail (1979) Marxismo e Filos<strong>of</strong>ia da Linguagem.São Paulo: Hucitec.Charaudeau, Patrick (2006) Discurso das mídias. TraduçãoAngela S. M. Corrêa. São Paulo: Contexto.Croll, Anne (1999) Le rôle des stéréotypes dans les processusde génération et de traitement de l’information médiatique.Paris: Mimeo.Dufays, Jean-Louis (1994) Stéréotypes et lecture. Liège:Mardaga.Durkheim, Émile (1898) Représentations individuelles er représentationscollectives. In: Sociologie et philosophie. Paris: PUF.Henry, Paul (1975) ‘Constructions relatives et articulationsdiscursives’. In: Langages, <strong>No</strong>. 37:81–89.Lipovetsky, Gilles (2000) A terceira mulher: permanência erevolução do feminino. São Paulo: Companhia das Letras.Mobius, Markus et al. (2004) ‘Why Beauty Matters.’ Manuscript,Wesleyan University.Moscovici, Serge (1972) Introduction à la psychologiesociale, 1. Paris: Larousse.Pêcheux, Michel (1975) Les vérités de la Palice. Linguistique,sémantique, philosophie. Paris: Maspero.Soulages, Jean-Claude (1996) ‘Discurso e mensagens publicitárias.’In: Carneiro, A.D. (Org.). O Discurso da Mídia.Pp.142–154. Rio de Janeiro: Oficina do Autor.Stangor, Charles e Mark Schaller (1996) ‘Stereotypes asIndividual and Collective Representations’. In : Macrae, C.Neil, Charles Stangor, e Miles Hewstone (Org.). Stereotypesand Stereotyping. Pp.04–37. New York, London: The GuilfordPress.Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>35


STOCKHOLM REVIEW OF LATIN AMERICAN STUDIES<strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>4“Ah, se eu tivesse um par de sapatos Scarlett!“– Transgredindo os limites entre telenovela e comercial,realidade e ficção, espectador e consumidorThaïs Machado-BorgesThaïs Machado-Borges é doutoraem antropologia pelo departamentode Antropologia Social da Universidadede Estocolmo e pesquisadorado Instituto de Estudos <strong>Latin</strong>o-<strong>American</strong>os,Universidade de Estocolmo,Suécia. Entre seus interesses acadêmicosestão o estudo da mídia,cultura popular, consumo, estudosde gênero e estudos sobre o corpo.Thaïs Machado-Borges é autora dolivro Only for You! Brazilians andthe Telenovela Flow (Almqvist &Wiksell International, 2003) e pesquisaatualmente sobre o tema dadesigualdade social, corpo e intervençõesfísicas entre mulheres dediferentes classes socio-econômicasna cidade de Belo Horizonte, Brasil.machado_t@lai.su.seO presente artigo analisa a interseção de dois gêneros recorrentesna televisão brasileira: a telenovela e o comercial.Argumenta-se aqui que, quando intersectados, estes dois gênerostransgridem os limites entre a ficção e a realidade parainterpelar o espectador como um consumidor em potencial.Tais transgressões exploram, por sua vez, aspectos polêmicose conflituosos da sociedade brasileira, contrastando implicitamente“a vida como ela é” e “a vida como ela poderia ser”.Palavras-chave: telenovela, comercial, realidade, ficção, consumoThaïs Machado-Borges has a Ph.D.in Social Anthropology (StockholmUniversity) and is a researcher atthe <strong>Institute</strong> <strong>of</strong> <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong>,Stockholm University, Sweden.Her main research interests are thestudy <strong>of</strong> media, Brazilian telenovelas,popular culture, consumption, genderstudies and studies on the body.She is the author <strong>of</strong> Only for You!Brazilians and the Telenovela Flow(Almqvist & Wiksell International,2003) and is currently researchingon the theme <strong>of</strong> social inequality,bodies and physical interventionsamong lower-income and middleclasswomen in Brazil.machado_t@lai.su.seThis article analyzes the intersections between two recurrentgenres in Brazilian television: the telenovela (prime-time, Braziliansoap operas) and commercials. It is argued here thatwhen they intersect, these two genres transgress the boundariesbetween fiction and reality in order to interpellate theviewer as a potential consumer. Such transgressions explore,in their turn, certain polemic and conflictuous aspects <strong>of</strong> theBrazilian society, implicitly contrasting “life as it is” and “lifeas it could be.”Keywords: telenovela, commercial, reality, fiction, consumptionStockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong> 37


“Ah, se eu tivesse um par de sapatos Scarlett!“– Transgredindo os limites entre telenovela e comercial, realidade e ficção,espectador e consumidorThaïs Machado-Borges“Ah, se eu tivesse um par de sapatos Scarlett!“– Transgredindo os limites entre telenovela e comercial,realidade e ficção, espectador e consumidorAs novelas brasileiras atraem espectadores mostrandotudo que eles queriam ver, ter ou ser. (Julia, estudanteuniversitária, 20 anos)Quem é que, ao ver na televisão um corpo perfeito, saradoe bem treinado não pára imediatamente de comeraquela caixa de bombons ou aquela taça de sorvete ecorre para fazer uma bicicleta ou alguma outra coisaque, pelo menos por alguns instantes, o faça parecercom seu ator favorito? (Márcio, estudante universitário,27 anos)O presente artigo põe em foco uma pequena fraçãodo que discuti previamente em minha tese de doutoradoem antropologia social sobre a recepção dastelenovelas brasileiras (Machado-Borges, 2003). Influenciada por uma abordagem antropológicada mídia (Abu-Lughod 2002, 2005; Hirsch eSilverstone 1992; Ginsburg 1998, 2002; Radway1988; Spitulnik 1993) que leva em conta o modocomo um determinado programa está integrado eimplicado com outros meios de comunicação e comeventos do dia-a-dia, comecei a examinar como aspessoas incorporavam as telenovelas em seus hábitose práticas diárias.Resolvi abordar as telenovelas não como narrativascircunscritas e finalizadas sobre a vida e o des- Fiz o meu trabalho de campo em etapas, entre 1997 e 2000,no estado de Minas Gerais, parte da região sudeste do Brasil.Entrevistei e participei do dia-a-dia de várias pessoas (a maioriadelas do sexo feminino) de diferentes classes socio-econômicas, etentei entender como estas pessoas se relacionavam e incorporavam(ou não) esse tipo de programa no seu dia-a-dia. Obtive umtotal de 45 informantes – 38 mulheres e sete homens. A maioriadeles, i.e., 32 pessoas tinham idades entre 14 e 30 anos. 13 delestinham uma renda mensal baixa (menos de 100 reais por mês),três vinham de famílias de baixa renda que tinham ascendidosocialmente, e 29 pessoas tinham rendas mensais e nível de educaçãomais alto. Compensei a predominância feminina entre osinformantes através da análise de 183 redações sobre o tema detelenovelas escritas por estudantes universitários em Comunicação,no seu primeiro ano de estudo. Destas 183 pessoas, 107eram mulheres e 76 homens, todos com idades entre 17 e 40 anos(a maioria entre 18 e 22 anos), vindos de diferentes classes socioeconômicas.tino de diversos personagens, mas como produtosculturais dinâmicos, cuja acessibilidade transgrideos limites da própria televisão.Mais precisamente, decidi investigar quando,como e por que temas relacionados às telenovelasapareciam espontaneamente em situações diversasdo cotidiano. Ao adotar tal posição divergi minhaatenção dos momentos em que as pessoas assistiamtelevisão (ou, em outras palavras, momentosde recepção imediata) e redirecionei-a para as ruas,festas, comemorações, conversas e interações dodia-a-dia.O foco em processos receptivos não-imediatosme fez perceber que comentários e referências àstelenovelas vinham fragmentados, misturados eassociados aos mais diversos assuntos: as telenovelasfuncionavam como um catálogo de imagens,paisagens, personagens, nomes e pessoas que podiaser usado para comentar acontecimentos, lugares epessoas reais. E, também ao inverso, acontecimentosdo dia-a-dia podiam levar a associações sobrepersonagens e situações fictícias.<strong>No</strong>tei ainda que as pessoas não somente conversavamsobre as intrigas de uma ou várias telenovelas,mas também discutiam detalhadamente sobrea vida de seus atores, suas dietas, seus spas, suascomidas, seus programas de ginástica, suas modase suas cirurgias plásticas. Meus informantes nãose relacionavam simplesmente com um programaou texto bem circunscrito e delimitado – ou seja,os capítulos de uma telenovela – mas com as interseçõese interrelações que estas têm com outrosprogramas, outros meios de comunicação e outrasesferas sociais. A estas conexões dialógicas dei onome de “fluxo de telenovelas”. Essa expressão foiusada em meu estudo como um modo de descrevere captar parte da experiência receptiva de meus informantes.O fluxo de telenovelas engloba todos os comentáriosna mídia (programas de televisão, comerciais,artigos de revistas e jornais) e todos os produtosque, de alguma forma, interceptam com as intrigas,O termo informante é usado para designar as pessoas que participamda pesquisa antropológica.38Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>


“Ah, se eu tivesse um par de sapatos Scarlett!“– Transgredindo os limites entre telenovela e comercial, realidade e ficção,espectador e consumidorThaïs Machado-Borgesos personagens e os atores de telenovelas. Intermesclados,intrigas, comerciais, revistas e produtos setornam parte da experiência das pessoas sobre oque é “seguir uma novela”. Os citados com os quaiscomeço o artigo ilustram como alguns de meusinformantes se relacionavam e interpretavam estefluxo.O objetivo do presente artigo é analisar dois momentosespecíficos deste fluxo. Trata-se de dois comerciaismostrados durante os intervalos da telenovelaA Indomada (Globo, 1997). Argumento aquique, quando amalgamados, telenovelas e comerciaistransgridem os limites entre a ficção e a realidade afim de interpelar o espectador como um consumidorem potencial. Uma análise das transgressões delimites entre a ficção e a realidade, entre o espectadore o consumidor contrasta implicitamente a“vida como ela é” e a “vida como ela poderia ser”,permitindo-nos identificar aspectos polêmicos econflituosos da sociedade brasileira.Ah, se eu tivesse um par de sapatos Scarlett!Passo à análise do primeiro comercial, exibido incialmentedurante um capítulo de “A Indomada”(1997, Globo) – uma telenovela que combinavaaspectos de realismo mágico, problemas contemporâneosbrasileiros e temas universais como amor,ciúmes e traições. A trama da telenovela se passavaem Greenville, uma cidadezinha situada no interiordo nordeste brasileiro, colonizada por ingleses noinício do século passado. Nesta cidadezinha viviampersonagens diversos tais como um político corrupto,sua mulher submissa, um prefeito sem caráter ecom sonhos de grandeza, uma juíza incorruptível,um misterioso comerciante de origens egípcias, umajovem mulher determinada a vingar a honra de seuspais. Como em toda telenovela, os personagens deA Indomada estavam articulados entre si através deum emaranhado de relacionamentos.Em Greenville vivia também a personagem Scar-Este exemplo foi obtido durante o período mais extenso do meutrabalho de campo em 1997. Apesar dos exemplos usados nestetexto datarem de 1997 – a análise do conteúdo e implicações desteainda se aplicam com acuidade ao atual fluxo de telenovelasbrasileiras.let, filha do político mais corrupto da cidade e casadacom o atual prefeito. Scarlet era uma personagemsecundária na trama inicial da telenovela que foigradualmente ganhando maior importância à medidaque a telenovela se desenvolvia. Na telenovela,Scarlet era obcecada por duas coisas: moda e sexo.E é através da moda, sexo e sedução que a personagemexerce uma grande influência sobre as pessoascom quem encontra. A personagem Scarlet e a atrizque a interpreta (Luiza Tomé) conquistaram, com opassar dos capítulos, um espaço cada vez maior n<strong>of</strong>luxo de telenovelas. Na época, a atriz Luiza Toméfoi convidada especial de uma série de programastelevisivos, deu várias entrevistas a revistas e jornaise participou de uma série de comerciais dentro efora da televisão. É um destes comerciais que seráanalisado aqui.Trata-se de um comercial de sapatos (os sapatosScarlett – com dois “t”s), exibido durante os intervalosda telenovela A Indomada.Nele, a atriz Luiza Tomé, ou a personagem Scarlet(o comercial não elabora esta distinção) entranum quarto carregando três sacolas estampadascom a marca Scarlett. O quarto é mobiliado comuma cama e duas poltronas cobertas com tecidosimitando a pele de animais selvagens.A atriz/personagem abre um guarda-roupa e vê acoleção de sapatos Scarlett, todos colocados numaestante. Ao mesmo tempo, ouve-se a voz da atriz/personagem em <strong>of</strong>f: “Scarlet – acompanha todos osmeus momentos, me deixando sempre na moda!”Ela escolhe um par de botas e as calça.Próxima cena: Scarlet/Luiza Tomé na passarela,apresentando a nova coleção de sapatos. Vozmasculina, em over: “Na passarela, a nova coleçãoScarlett….” Cinco pares de sapatos são rapidamentemostrados.Ainda na passarela, Scarlet/Luiza Tomé dá umameia volta e olha para a câmera. Ao girar seu cabelocai delicadamente sobre o ombro. E ela diz:“Provoque de-se-jos! Use você também a coleçãoScar-lett!”, pisca para a câmera e sorri. Sua bocapermanece aberta, com um sorriso, até o comercialacabar.O comercial acima não dura mais do que 25Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>39


“Ah, se eu tivesse um par de sapatos Scarlett!“– Transgredindo os limites entre telenovela e comercial, realidade e ficção,espectador e consumidorThaïs Machado-Borgessegundos. Ele tira proveito da trama da telenovelae da personagem Scarlet, e consegue transmitiruma mensagem com um conteúdo muito mais ricoe forte do que geralmente se consegue fazer em 25segundos de transmissão.Esse comercial transgride, de vários modos, oslimites entre a ficção e a realidade. Nunca fica clarose a protagonista fala como sendo a atriz LuizaTomé ou como sendo a personagem Scarlet. Asroupas e acessórios que aparecem no comercial sãoparecidos com as roupas e acessórios usados pelapersonagem na telenovela. Além do mais, o quartoonde parte do comercial é filmado é mobiliado demodo a lembrar o estilo de vida de Scarlet: a cama,as poltronas com estampados de animais selvagenstrazem associações aos encontros eróticos entreScarlet e seu marido. Acrescente-se aqui ainda acoincidência entre o nome da personagem (Scarlet)e o nome da marca de sapatos (Scarlett).A transgressão entre realidade e ficção tambémpode ser identificada, quando se examina o quea protagonista diz no comercial. A primeira fala“Scarlett – acompanha todos os meus momentos,me deixando sempre na moda!”, poderia ser vistacomo uma afirmativa: a personagem Scarlet acompanhaLuiza Tomé em todas as ocasiões. Porém estafala também traz associações diretas com a personagemScarlet e sua obsessão por moda.Um diálogo entre os personagem Scarlet e Teobaldo(o misterioso e elegante comerciante de origemegípcia) ocorrido durante a ocasião de umafesta de noivado, ilustra claramente as característicase preferências dessa personagem. Scarlet entrano salão de festas e chama a atenção de todos. Aocumprimentar os convidados conversa com Teobaldoque a elogia:Teobaldo: ”A senhora realmente merece o título de amais bem vestida de Greenville.”Scarlet: ”Muito agradecida. Eu sou assim mesmo,Senhor Teobaldo: eu gosto de estar muito bem vestidaou completamente despida. Eu não me preocupo commeio termos…”Durante toda a intriga de A Indomada, Scarletaconselha outras mulheres sobre a arte de seduzir,prepara bebidas afrodisíacas, ameaça seu maridoem fazer greves de sexo, inventa um verbo especial– ”nhanhar” – que significa fazer amor, e ficacompletamente alucinada de desejo quando é noitede lua cheia ou melhor, lua dupla cheia – um misterios<strong>of</strong>enômeno que só acontece em Greenville. Asegunda fala do comercial de sapatos, dita na passarela– “Provoque desejos! Use você também a novacoleção Scarlett” – é também uma referência diretaà personagem da telenovela e às coisas por ela ditasdurante toda a intriga.As transgressões entre ficção e realidade nãoparam por aí. É interessante notar como a frase– “Provoque desejos! Use você também a novacoleção Scarlett” é iterada. Ao pronunciar “vocêtambém”, Scarlet/Luiza Tomé ergue suas sombrancelhas,se aproxima da câmera, começa a sorrirolhando para um ponto fixo (olhando para estemesmo você) e termina a sua frase com uma piscadinhae um sorriso.O que temos aqui é uma sequência de chamadosou interpelações (Althusser 1971; Butler 1993,1997) que conectam a protagonista com um vocêde verdade, situado do outro lado da telinha. Atransgressão entre ficção e realidade é, nesse sentido,manifestada pelo fato de que uma personagemou uma atriz está se dirigindo a você atravésde suas falas e de sua linguagem corporal (as sombrancelhas,o passo de aproximação, o sorriso e apiscadinha). Expressões faciais como sorrisos oumovimentos de sombrancelha indicam a presençaou a interação com alguém. <strong>No</strong> comercial, a protagonistaestá interagindo e olhando para alguém. Jáque olha diretamente para a câmera, dá a impressãopara quem quer que esteja do outro lado da telaque está olhando para ele/ela/eles. Sua piscadinhafunciona como uma intonação extra, chamando aatenção dos espectadores e marcando uma palavraespecífica – o nome da loja de sapatos Scarlett.Piscadinhas são também um jeito de compartilharalguma coisa com alguém (Geertz 1973). Piscaros olhos pode ser visto como um modo antiquadode se flertar, ou pode indicar cumplicidade entre40Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>


“Ah, se eu tivesse um par de sapatos Scarlett!“– Transgredindo os limites entre telenovela e comercial, realidade e ficção,espectador e consumidorThaïs Machado-Borgesa pessoa que pisca e a pessoa que vê a piscadinha.A piscadinha de Scarlet/Luiza Tomé é interessanteporque ela evoca, simultanemante, todas essas possibilidades:ela poderia estar flertando com o espectador,ou ela poderia estar se relacionando com vocêcomo um(a) amigo(a), compartilhando um segredo,ou combinando algo. Uma outra interpretação possívelé que ela poderia estar comentando sobre asua própria performance, como se estivesse dizendo“Eu sei que você sabe que eu sou uma atriz fazendoum comercial” ou “Eu sei que eu estou fazendo opapel de uma personagem fictícia.”O comercial de sapatos Scarlett ilustra a transgressãode limites entre telenovela e comercial, realidadee ficção tanto através da justaposição personagem/atriz,como também através das interpelaçõesnele usadas onde você é chamado e convidado paraentrar e participar do fluxo de telenovelas.Existe ainda um outro tipo de transgressão entrea realidade e a ficção a ser examinado: o produtoexibido – sapatos Scarlett (um produto que podiaser adquirido na vida real) – materializa discursossobre sedução, desejo, feminilidade e classe social.Uma análise dos enunciados deste comercial ilustracomo esta materialização se dá:”Provoque de-se-jos! Use você também a coleçãoScar-lett!”: esta fala pode indicar que o queestá sendo mostrado – seja a coleção de sapatosScarlett, ou a atriz Luiza Tomé, ou a personagemScarlet, ou os produtos que aparecem no comercial– é capaz de provocar desejos.Esta fala também revela questões de classe, gênero,sexualidade e modernidade: andar na modapode ser uma indicação de que você pertence a umacerta classe social. Andar na moda também pode serassociado à ideía de que você se mantém informadocom as mudanças que ocorrem no mundo moderno.A vontade de provocar desejos pode por sua vez serligada a uma certa imagem de feminilidade e a umacerta representação do conceito de mulher: umaimagem que descreve mulheres como consumidorasincansáveis, ou uma imagem que prende a idéia dafeminilidade dentro de uma comodidade – o par desapatos – que pode ser comprado e que transformavocê em uma mulher sedutora.Ao ligar a moda com a capacidade de provocardesejos, o comercial apaga a questão da raça ou dacor da pele como um assunto a ser discutido. O fatode Luiza Tomé/Scarlet ser uma mulher branca queconta para você como provocar desejos é neutralizadopelo que ela mesma sugere: é uma comodidade,um produto, e não uma certa cor de pele quevai lhe ajudar a provocar desejos. Existem porémoutras associações que levam à questão da cor.Scarlet (com um ou dois “t”s) é um nome ligadoa uma personagem clássica de Hollywood, ScarlettO’ Hara/Vivian Leigh, personagem esta que incorporaa questão da cor branca, por estar situadadentro do contexto da Guerra Civil americana eda questão da abolição da escravatura nos EstadosUnidos. Além disso, o nome da marca de sapatos eda personagem da telenovela – Scarlett, é um nomeque soa inglês nas orelhas de brasileiros, e que traz,por sua vez, associações com coisas vindas de forado Brasil, coisas vindas, como se diz no Brasil, “doprimeiro mundo”.Durante os anos 80 e 90, um grande número debrasileiros emigraram para outros países, procurandomelhores oportunidades de vida. Os EstadosUnidos foi um destino muito popular para milharesde brasileiros. Scarlet, a personagem, e Greenville, acidade onde ela vivia, trazem associações para umBrasil que vê coisas anglosaxas como sendo indicadorasde desenvolvimento e riqueza. Os sapatosScarlett e mesmo a personagem Scarlet trazem associaçõesa fluxos transnacionais de pessoas e bens,que, por sua vez, estão diretamente ligados com aquestão de classe, já que nem todos têm o podereconômico para viajar para o exterior ou para comprarprodutos importados.O que a primeira vista parecia ser um simplescomercial de sapatos, está repleto de vozes que levantamquestões sobre gênero, sexualidade, classe,fluxos transnacionais e raça. Esta heteroglossia(Bakhtin 1970) que articula sedução, desejo, feminilidade,representações do conceito de mulher,produtos que podem ser usados para se agir socialmente– é dirigida a você, no mundo real.E assim, você decide comprar tal produto porquedeseja ser como Scarlet/Luíza Tomé, a mulher queStockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>41


“Ah, se eu tivesse um par de sapatos Scarlett!“– Transgredindo os limites entre telenovela e comercial, realidade e ficção,espectador e consumidorThaïs Machado-Borges“provoca desejos”, e que “está sempre na moda”;ou você compra os sapatos porque quer provocardesejos e os sapatos são um meio para se tornardesejável; ou você compra os sapatos porque querpossuir Scarlet/Scarlett; ou você não compra os sapatosporque não se identificou com nenhuma daschamadas do comercial; ou porque simplesmentenão tem dinheiro para comprá-los. O produto para emagracer:pessoas ricas falam com você!Duas atrizes e um ator aparecem neste comercial.Carolina Ferraz e Silvia Pfeiffer são duas atrizes decor branca e com aproximadamente 30-40 anos deidade que geralmente fazem papéis de mulheres ricase s<strong>of</strong>isticadas nas telenovelas. O ator é José Mayer,um homem também branco, com uns 40-50 anos deidade, que interpretava o papel do misterioso comerciantede origem egípcia – Teobaldo – na telenovela“A Indomada”. Em 1995-6 Mayer interpretara, emuma outra telenovela, o personagem de um médico,casado com uma mulher rica e mimada (CarolinaFerraz). Em todas as duas telenovelas os personagensde José Mayer eram homens elegantes e ricos.Estes três atores se reunem no comercial de umproduto dietético – um adoçante de nome Zero-Cal. Faço aqui uma descrição e análise deste materialtendo em vista continuar a ilustração dosmodos pelos quais o fluxo de telenovelas transgrideos limites entre o comercial e a telenovela, entre aficção e o real:Cena 1: Carolina Ferraz é filmada da cinturapara cima. Ela está assentada numa cadeira, emfrente a uma mesa coberta com uma toalha branca.O local onde a cena se passa é também claro e branco.Atrás da atriz pode-se ver uma grande janela eUma última observação antes de passar para o segundo exemploa ser discutido. A loja de sapatos Scarlett não era um produtoda novela A Indomada. Esta loja já existia e ainda existe hoje,indenpendentemente de a telenovela ter acabado. Desde então,outras atrizes de telenovelas e celebridades brasileiras já foramconvidadas para fazer comerciais para esta marca de sapatos. Em1999, a conexão entre os sapatos e a personagem Scarlet já tinhadesaparecido. Era agora a vez de Adriana Galisteu (uma estrelada mídia brasileira que se tornou famosa por ter sido a namoradade um famoso piloto de Formula I, Airton Senna, morto numacidente) calçar os sapatos Scarlett.um fundo verde, fora de foco. Este local poderia serum spa, ou mesmo a casa da própria atriz. Carolinaestá vestindo uma blusa branca, seu cabelo presoem um rabo de cavalo. Ela segura uma taça de sorveteem uma mão, e uma colher na outra. Olha paraa câmera e diz:“Você deve estar pensando: a Carolina é tão magriii-nha,como é que ela come tudo isso?”Cena 2 – A atriz Silvia Pfeiffer é filmada da cinturapara cima, assentada numa cadeira, em frentea uma mesa coberta com toalha branca. O fundodesta imagem também está fora de foco, mas sugerea atmosfera de um restaurante. Silvia Pfeiffer temcabelos curtos, usa brincos de pérola e um vestidoou blusa branca. Ela olha calmamente para a câmerae responde à pergunta de Carolina Ferraz:”Ela usa Zero-cal!”Cena 3 – Carolina Ferraz no mesmo ambienteque na primeira cena. Carolina completa a explicaçãode Silvia com um sorriso. Fala lentamente mascom um tom determinado, fazendo uma pausa entreas coisas que enumera:”Com Zero-cal eu corto as calorias do meu suco,do meu cafe-zinho, da minha sobre-mesa…”Cena 4 – O ator José Mayer, em pé, vestindouma camisa branca aberta e um t-shirt branco porbaixo. O fundo desta cena também não está nítidomas é predominantemente claro e branco, como nasoutras cenas. José Mayer olha para a câmera e diz:”Não é bom poder cortar calorias com coisasgostosas?”Ele está praticamente suspirando quando pronunciaas duas últimas palavras da frase ao mesmotempo que ergue suas sombrancelhas, levanta suaxícara (que também é branca) como se estivessebrindando com a câmera, toma um gole de café eolha novamente para a câmera.Cena 5 – Silvia Pfeiffer em close:“Você [aponta comas mãos para a câmera] queruma dica? Zero-cal tem quase zero calorias [mostrao produto].”Cena 6 – José Mayer em extremo close:“Ninguém [pisca para a câmera] precisa cortaro sa-bor [ergue as sombrancelhas] para cortar calorias.”42Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>


“Ah, se eu tivesse um par de sapatos Scarlett!“– Transgredindo os limites entre telenovela e comercial, realidade e ficção,espectador e consumidorThaïs Machado-BorgesCena 7 – Silvia Pfeiffer em extremo close:“E tem outra coisa: com Zero-cal, o cafezinho ficamuito mais gostoso” [pisca e sorri para a câmera].Última cena: Carolina Ferraz em close:“Tudo fica mais gostoso com Zero-cal.”O ambiente s<strong>of</strong>isticado do comercial de Zero-calé parcialmente obtido graças à presença destes trêsatores de telenovela, todos eles, como já foi observadoacima, interpretam geralmente personagensricos e s<strong>of</strong>isticados.Enquanto que no comercial de sapatos Scarlettexiste uma justaposição entre a atriz e a sua persongem,neste comercial fica claro que os protagonistassão atores e não personagens de telenovela.Carolina Ferraz refere a si mesma usando o nome“Carolina”.Existe porém neste segundo comercial, umajustaposição entre a realidade e a ficção, no sentidode que caracterísiticas de personagens fictícios(tais como s<strong>of</strong>isticação, riqueza, bom gosto) sãotranspostas e apresentadas como sendo característicaspessoais do ator e atrizes em questão. Há umasérie de pontos de interseção entre este comerciale o modo através do qual as telenovelas representamclasses médias e classes médias altas. Roupas emobília em cores claras e brancas são geralmenteusadas nas telenovelas para representar um meiorico e afluente. As pessoas ricas e s<strong>of</strong>isticadas docomercial usam o mesmo tipo de roupas, penteadose jóias que as pessoas ricas e s<strong>of</strong>isticadas dastelenovelas. As protagonistas do comercial usampouca maquiagem, têm cabelos lisos e bem penteados,são esbeltas, só usam jóias discretas e roupassem excessos. O mesmo pode ser dito sobre o protagonistaJosé Mayer. Seu cabelo é meticulosamentepenteado, suas roupas são brancas e discretas e seucorpo está em boa forma. Finalmente, riqueza nastelenovelas é também representada linguisticamenteatravés de uma fala pausada, calma, e às vezes atémesmo distante. Carolina Ferraz ilustra bem estemodo de falar quando pausa para enumerar as coisasque gosta de consumir: “meu su-co, meu ca-fé,minha so-bre-me-sa”. O uso do pronome possessivo“meu” também reforça a idéia de que a atriz temum forte poder de consumo.O presente comercial não somente usa protagonistaspegos de diferentes telenovelas, mas tambémutiliza as mesmas técnicas de representação de riquezae bom gosto que são usadas nesses programas:a ênfase na cor branca, nas roupas discretas,nos cabelos lisos, nos ambientes claros (que trazemassociações a ambientes ricos, espaçosos tais comorestaurantes, spas ou clínicas) e nas pessoas confiantes,bem-articuladas, com falas pausadas, gestosdelicados e corpos bem treinados. Os traços fictíciosde personagens das telenovelas são transpostospara os atores que incarnam estas personagens (eaqui nós temos uma relação dialógica entre as vozesde personagens fictícios e as vozes dos atores).Representações de bom gosto e s<strong>of</strong>isticação são recicladasdas telenovelas para o comercial e assimcriam uma atmosfera de luxo e riqueza (transposiçãode representações da telenovela para representaçõesno dia-a-dia).Produtos dietéticos e dietas são também em simarcas de uma certa posição social. Um adoçantecomo o do comercial, custa mais do que açúcar. Estecomercial está estruturado em torno da idéia de quevocê (desde que tenha dinheiro) poderá tomar o seucafé, comer a sua sobremesa e beber o seu suco semengordar. Num país como o Brasil, onde milhões depessoas lutam diariamente para conseguir algo paracomer, a preocupação em evitar calorias é definitivamenteligada à certas classes sociais.Além de prometer efeitos milagrosos “ComZero-cal eu elimino as calorias do meu suco, domeu café, da minha sobremesa” este produto, atravésdo comercial, parece estar <strong>of</strong>erecendo a seuseventuais consumidores uma experiência sensual:“Tudo fica muito mais gostoso com Zero-cal.” Esteproduto <strong>of</strong>erece a você, o consumidor, a oportunidadede seguir os conselhos de pessoas ricas, s<strong>of</strong>isticadas(tanto na vida real como na ficção), convidando-lhea experimentar o doce gosto das classesprivilegiadas.Finalmente, este comercial também apresenta uminteressante aspecto sobre gênero. Vaidade e preocupaçãocom a aparência são apresentadas comoquestões que interessam tanto a homens quanto amulheres. Ao piscar, erguer as sombrancelhas e qua-Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>43


“Ah, se eu tivesse um par de sapatos Scarlett!“– Transgredindo os limites entre telenovela e comercial, realidade e ficção,espectador e consumidorThaïs Machado-Borgesse suspirar o quão bom pode ser “cortar caloriascom coisas gostosas?” o ator José Mayer contrabalançaa sua preocupação com a aparência física coma imagem de um homem sedutor. Em português doBrasil, adjetivos e verbos usados em conexão como consumo de comida tais como gostoso, saboroso,delicioso, e comer – podem ser relacionados comexperiências sexuais e sensuais. Pode-se dizer quealguém “come alguém”, quer dizer, tem relaçõessexuais com uma pessoa, e a pessoa que alguém“come” pode ser descrita como “gostosa/o”, “deliciosa/o”.A preocupação de José Mayer com a suaforma física contem então o subtexto de um convitesensual: “Não é bom poder cortar calorias com coisasgostosas?””A vida como ela é” e ”a vida como ela poderia ser…”Situados em uma zona de interseção entre a telenovelae o comercial, os dois casos aqui estudadosilustram diversos aspectos da transgressão de limitesentre a realidade e a ficção. Telenovela e comercialse entrelaçam numa relação simbiótica: o comercialutiliza elementos da telenovela para acrescentarsignificância ao produto que exibe; a telenovela beneficiado comercial aumentando sua circulação evisibilidade na mídia.Ainda dentro deste espaço de transgressão, osprotagonistas dos comerciais acima estudados se dirigemao espectador como consumidor, dando-lhe,através desta interpelação, a impressão de que qualquerpessoa possa participar, de alguma forma, nomundo da mídia e no fluxo de telenovelas. A transgressãode limites entre ficção e realidade, e entreespectador e consumidor contrasta implicitamentea vida como ela é experenciada e vivida no cotidianodas pessoas e a vida idealizada, caracterizadapor sonhos de consumo e reproduzida em comerciaise telenovelas com finais felizes. Tal contrastepossibilita a identificação de aspectos polêmicos econflituosos da sociedade brasileira.Como mostrei, os comerciais aqui estudados (estaobservação se aplica a todo o fluxo de telenovelas)estão constantemente convidando você a dialogare interagir com o mundo da mídia e do consumo.Seu corpo e os produtos que ele precisa ou que eledeseja (porque eles trazem dentro de si certas vozessobre gênero, classe, raça, etc) são apresentadoscomo a chave para você se tornar alguém. O corpoe os produtos que esse consome são apresentadosnesses comerciais (e no fluxo de telenovelas em geral)como um meio de transcender diferenças naturalizadase renegociar hierarquias sociais.Proponho voltar mais uma vez aos dois citadoscom os quais inicio o presente artigo:As novelas brasileiras atraem espectadores mostrandotudo que eles queriam ver, ter ou ser. (Julia, estudanteuniversitária, 20 anos)Quem é que, ao ver na televisão um corpo perfeito, saradoe bem treinado não pára imediatamente de comeraquela caixa de bombons ou aquela taça de sorvete ecorre para fazer uma bicicleta ou alguma outra coisaque, pelo menos por alguns instantes, o faça parecercom seu ator favorito? (Márcio, estudante universitário,27 anos)Ficam aqui explícitas a sutíl diferença entre ”avida como ela é” e ”a vida como ela poderia ser”,a transgressão entre o espectador e o consumidore a promessa de que com o bom par de sapatos,ou o bom produto dietético, você pode “provocardesejos”, ou mostrar que é uma pessoa que tem opoder econômico para tomar o seu suco e comer asua sobremesa tran-qui-la-men-te.44Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>


“Ah, se eu tivesse um par de sapatos Scarlett!“– Transgredindo os limites entre telenovela e comercial, realidade e ficção,espectador e consumidorThaïs Machado-BorgesReferências BibliográficasAbu-Lughod, Lila (2002) ’Egyptian Melodrama. Technology <strong>of</strong>the Modern Subject?’ In Lila Abu-Lughod, Faye Ginsburg andDavid Larkin (eds.) Media Worlds. Anthropology on New Terrain.Berkeley and Los Angeles: University <strong>of</strong> California Press.—. (2005) Dramas <strong>of</strong> Nationhood: The Politics <strong>of</strong> Televisionin Egypt. Chicago: University <strong>of</strong> Chicago Press.Althusser, Louis (1971) ‘Ideology and Ideological State Apparatuses.’In L. Althusser Lenin and Philosophy and OtherEssays. New York and London: Monthly Review Press.Bakhtin, Mikhail. ([1963, 1929]1970) La Poétique de Dostoïesvski.Paris: Seuil.Butler Judith (1993) Bodies that Matter. London and NewYork: Routledge.—. (1997) Excitable Speech: A Politics <strong>of</strong> the Performative.London and NewYork: Routledge.Geertz, Clifford (1973) The Interpretation <strong>of</strong> Cultures. NewYork: Basic Books.Ginsburg, Faye (1998) ‘Institutionalizing the Unruly: Chartinga Future for Visual Anthropology.’ In Ethnos 63(2).173–201.—. (2002) ‘Screen Memories: Resignifying the Traditional inIndigenous Media.’ In Lila Abu-Lughod, Faye Ginsburg andDavid Larkin (Eds.). Media Worlds. Anthropology on NewTerrain. Berkeley and Los Angeles: University <strong>of</strong> CaliforniaPress.Hirsch, Eric and Roger Silverstone (Eds.) (1992) ConsumingTechnologies: Media and Information in Domestic Spaces.London: Routledge.Machado-Borges, Thaïs (2003) Only for You! Brazilians andthe Telenovela Flow. SSAG. Stockholm: Almqvist & WiksellInternational.Radway, Janice (1988) ‘Reception Study. Ethnography and theProblems <strong>of</strong> Dispersed Audiences and <strong>No</strong>madic Subjects.’ InCultural <strong>Studies</strong> 2 (3): 359–376.Spitulnik, Debra (1993) ‘Anthropology and Mass Media.’ InAnnual Review <strong>of</strong> Anthropology. 22:293–315.Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>45


STOCKHOLM REVIEW OF LATIN AMERICAN STUDIES<strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>5A vida privada na defesa da vida pública:o caso de Roberto JeffersonEmília MendesEmília Mendes é doutora emAnálise do Discurso pela Faculdadede Letras/UFMG (2004).Atua como pesquisadora nestamesma universidade na qualidadede bolsista do Programade apoio a projetos institucionaiscom a participação derecém-doutores PRODOC/CA-PES. Desenvolve pesquisa sobreo conceito de ficcionalidade eseus modos de ocorrência nosmais diversos discursos.emilia_ml20@yahoo.comO objetivo do presente estudo é discutir as formas de transgressãooperadas no Escândalo do Mensalão, em 2005. O corpusdesta pesquisa é o discurso de defesa pr<strong>of</strong>erido pelo então deputad<strong>of</strong>ederal Roberto Jefferson para evitar a sua própria cassação.Observamos três níveis de transgressão: (a) o debate sobrea corrupção tornou-se uma opção de lazer, um espetáculo; (b)Jefferson faz seu discurso de defesa de cassação para dois públicos-alvo,o cidadão comum e os parlamentares, instaurando opapel da vida privada na vida pública e (c) o discurso de defesanão é estruturado de maneira argumentativa, mas narrativa, estaforma de organização discursiva colabora para que em lugar dese valer do gênero discursivo “defesa”, Jefferson continue a fazeracusação, denúncia. Concluímos que embora existam transgressões,elas estão em uma esfera superficial, pois o debate de fundoseria a manutenção de um sistema político conservador.Palavras-chave: Roberto Jefferson, política brasileira, vida pública e vida privada, Análise dediscursoEmília Mendes has a Ph.D. inDiscourse Analysis from theUniversidade Federal de MinasGerais. She is currently workingon a post-doctoral researchproject sponsored by the PRO-DOC/CAPES on the theme <strong>of</strong>discourses and fictionality.emilia_ml20@yahoo.comThis article discusses some forms <strong>of</strong> transgression that appearedwithin a major debate on corruption among Brazilian politicians in2005. The material analyzed here is the defense speech uttered bythe then-deputy Roberto Jefferson in order to avoid the cassation<strong>of</strong> his mandate. Three levels <strong>of</strong> transgression appear: a) televisionbroadcast debates about corruption became a leisure alternative,a spectacle; b) Jefferson’s speeches address two audiences: ordinarycitizens and members <strong>of</strong> parliament; c) Jefferson’s defensespeech is not structured in an argumentative way but is rather anarrative that blends private and public life and transforms a defensespeech into an accusation. It is shown that transgressions arehere used as a superficial strategy, as a means to maintain (andnot question) a conservative political system.Keywords: Roberto Jefferson, Brazilian politics, public and private life, Discourse AnalysisStockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong> 47


A vida privada na defesa da vida pública: o caso de Roberto JeffersonEmília MendesRoberto Jefferson, deputado federal (2003–2005,PDT/RJ, 6º mandato), para aqueles que não estãoa par, no dia 6 de junho de 2005 denunciou para aimprensa nacional, mais especificamente no jornalFolha de São Paulo, o que foi por ele definido comomensalão. Tratava-se de um esquema que previapagamento de R$ 30 mil reais mensais a deputadosfederais para que votassem a favor dos projetos dogoverno.<strong>No</strong> desenrolar do “escândalo do mensalão”, várias autoridades perderam seus cargos e instaurou-seno país o que imprensa denominou “Crise dogoverno Lula”. <strong>No</strong> decorrer desta crise, o supracitadodeputado teve seu mandato cassado em 14 desetembro de 2005 por não ter conseguido provar aexistência dos pagamentos por ele mencionados.Roberto Jefferson (RJ) pode ter sido uma daspessoas mais irônicas e um dos retóricos mais bemequiparados da política brasileira. Seus depoimentosà Comissão de Ética fizeram com que a TV Senadoe TV Câmara, canais do poder Legislativo brasileiro,obtivessem recordes de audiência comparáveisaos canais comerciais, fato inédito até então na históriado país. Como orador, RJ usou de todos osrecursos de que dispunha para fazer a mise-en-scènede seu discurso, ou como preferem alguns, fazer seushow: dramaticidade na fala, entonações e pausasestratégicas, citações, tratamentos mais formais, informais,expressões faciais, gestos, dentre outros.Na tentativa de demonstrar algumas das característicasdo que representou o fenômeno midiático“Roberto Jefferson”, gostaríamos de analisar o discursode defesa feito por este político para tentarevitar a sua cassação. Trata-se do discurso pr<strong>of</strong>eridoem 14 de setembro de 2005, sessão 246.3.5<strong>2.</strong>0. Oreferido discurso foi exibido ao vivo em cadeia nacional,tanto por canais do poder legislativo, quantopor canais da TV aberta. Para efeito de análise,nos ateremos aqui ao estudo da transcrição da fala A elaboração desta pesquisa foi possível graças ao apoio dadopelo PRODOC/CAPES – Brasil, através da modalidade defomento: bolsista recém-doutor. Para maiores informações, consultar: http://pt.wikipedia.org/wiki/Mensal%C3%A3o, http://en.wikipedia.org/wiki/Mensalao http://www.camara.gov.br, acesso em 16/05/2006.de RJ, assim sendo, não nos valeremos da análisedas imagens.As vias da transgressãoPodemos ver a existência de transgressões no casoanalisado em três níveis: (a) o debate sobre a corrupçãotorna-se uma opção de lazer, um espetáculo;(b) RJ faz seu discurso de defesa de cassação paradois públicos-alvos – o cidadão comum e os parlamentarescriando a coexistência de uma linguageminformal e uma linguagem formal (privado x público)e (c) o discurso de defesa não é estruturado demaneira argumentativa, mas narrativa, esta formade organização discursiva colabora para que emlugar de fazer uma defesa, RJ continue a fazer acusação,denúncia.<strong>No</strong> primeiro, temos o sentido de “passar além”,quando depoimentos a uma comissão de ética ediscursos no plenário da Câmara dos Deputadostornaram-se um assunto cult. De alguma maneira,para muitos brasileiros, assistir a “depoimentos” e“discursos” tornou-se uma das opções na programaçãoda TV. Este fato, de certa forma, dessacralizao próprio Poder Legislativo.Naquele momento, para a sociedade brasileira,parecia mais interessante saber o que RJ tinha a dizere a sua maneira de fazê-lo na vida real do queassistir às querelas entre megeras, bandidos e heróisque desfilam nas telenovelas, na ficção, fato poucocomum em nosso país. <strong>No</strong> entanto, parece-nos corretoafirmar que, para o público em geral, não estavaem jogo o que seus representantes discutiam ourevelavam sobre o país, ou a iminência de uma criseque poderia destruir o primeiro governo de esquerdado Brasil. O que contava era a maneira comoRJ fazia as suas denúncias, respondia às questõesque lhe eram colocadas ou, mais exatamente, comoatingia seus adversários com sua metralhadora oratória.Havia uma expectativa do gênero: “o queacontecerá nas cenas do próximo capítulo?” Nãodispomos de uma pesquisa quantitativa sobre o assunto,mas não seria exagero dizer que acompanharos depoimentos de RJ constitui-se uma das maioresmobilizações nacionais relacionada ao mundo dapolítica brasileira dos últimos tempos.48Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>


A vida privada na defesa da vida pública: o caso de Roberto JeffersonEmília Mendes<strong>No</strong> entanto, não se tratava de uma mobilizaçãovisando a um bem político comum ou uma indignaçãocontra a corrupção, trava-se, sim, da diversãodo espetáculo do uso estratégico da retórica, da encenação,do cálculo das palavras e ações. Poderíamosdizer que houve uma carnavalização do valorda instância política: em lugar de ser vista comouma instância que representa e é responsável pelosdireitos dos cidadãos, ela torna-se uma fonte de espetáculoe diversão, chegando até mesmo a competircom a audiência das telenovelas.Num segundo nível, já se tratando do caso específicodo corpus, temos o que pode parecer umatransgressão em relação à instância de recepção dodiscurso. Ciente de sua possível audiência, RJ nãoescreve sua defesa somente em função dos deputadosque poderiam votar a favor ou contra a sua cassação,ele também o faz em função da audiência popular.Assim, observamos a instância da vida privada (oscidadãos e a figura da família e seus valores) marcadapor uma linguagem informal e a instância da vidapública (os deputados), marcada por uma linguagemformal, com jargões relativos ao discurso político.Como exemplo de linguagem coloquial, com oobjetivo de alcançar um público mais amplo, temos:“Na Schincariol, mete a algema; em O Globo,o rabo entre as pernas”; “(...)Isso não é papel dehomem(...)”; “(...)Estou vendo que o Zé está começandoa ser escanteado pelo jornal, que já percebeuque ele não é mais poder.(...)”; “o meu conceito dopresidente Lula é que ele é malandro, preguiçoso”;dentre outros (sessão 246.3.5<strong>2.</strong>0 – 2005). Empregatambém formas que causariam espécie: “Ratomagro. Quem nunca comeu mel quando come selambuza. Rato magro.”; “Não vi, não li. Se assinei,não sei.”; “Temos que puxar a barba do bode paramostrar onde está o DNA da corrupção que desgastoua imagem do Congresso Nacional” (sessão246.3.5<strong>2.</strong>0 – 2005). Temos aqui o uso de formasproverbiais (por vezes mantidas, por vezes adaptadas)que representam uma vox populi que RJ parecequerer atingir. Vale dizer também que o provérbio,no seio da família, tem a função de ensinamento, depalavra de sabedoria, quem o pr<strong>of</strong>ere, de algumamaneira, está numa posição de aconselhamento eorientação em relação aos outros membros do grup<strong>of</strong>amiliar.De outro lado, como exemplo de linguagem formal,temos o emprego do pronome de tratamento“Senhor” para as pessoas que o locutor julga merecerrespeito ou que não são próximas a ele; vocábulosespecíficos “libelo”, “boquirroto”, “homúnculo”,“Rufião”, “valhacouto”, “proxenetas”, dentreoutros.Este oscilar entre linguagem da vida privada elinguagem da vida pública o auxilia na construçãode dois éthé discursivos: o ethos do homem de famíliax o ethos do homem de estado, bacharel emDireito. <strong>No</strong> entanto, embora pareçam transgressivosde um ponto de vista dos procedimentos protocolaresideais do discurso político, chama-nos aatenção o fato de que estes éthé são, na verdade, arepresentação – sem dúvida, dicotômica - de nossasociedade brasileira. <strong>No</strong> célebre Raízes do Brasil,Holanda (2006 [1936]: 159) aponta para o predomínioda influência da vida familiar na vida públicabrasileira desde as priscas eras de nossa existência:(...) É possível acompanhar, ao longo de nossa história,o predomínio constante das vontades particulares queencontram seu ambiente próprio em círculos fechadose poucos acessíveis a uma ordenação impessoal. Dentreestes círculos, foi sem dúvidas o da família aquele quese exprimiu com mais força e desenvoltura em nossasociedade. E um dos efeitos decisivos da supremaciaincontestável, absorvente, do núcleo familiar – a esfera,por excelência dos “contatos primários” dos laçosde sangue e coração– está em que as relações que secriam na vida doméstica sempre forneceram o modeloobrigatório de qualquer composição social entre nós.Isso ocorre mesmo onde as instituições democráticas,fundadas em princípios neutros e abstratos, pretendemassentar a sociedade em normas antiparticularistas.Lembramos que “DNA” é também o nome de uma das empresasde Marcos Valério, acusado de ser o responsável financeiro domensalão.Assim, observamos que um dos principais pilares dodiscurso de RJ é justamente a sustentação de que eleStockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>49


A vida privada na defesa da vida pública: o caso de Roberto JeffersonEmília Mendesfaz parte de uma família e que valoriza a pertençaa esta instituição. <strong>No</strong> decorrer de nossa exposição,mostraremos a importância desse tipo de relação.A sua popularidade midiática também pode tersido responsável pelo tempo que lhe foi concedidopara fazer sua defesa, podemos observar no discursoaqui analisado a interferência do Presidente da mesaconcedendo-lhe mais tempo para que continuasse afalar. Observamos que na transcrição estão sinalizadasa aceitação do público presente e sua aprovaçãocom palmas: “O Sr. Presidente (José Thomaz <strong>No</strong>nô)- A Presidência prorroga o tempo de V.Exa. por 10minutos. A Casa quer ouvi-lo. [Palmas]” ; “O Sr.Presidente (José Thomaz <strong>No</strong>nô) - <strong>No</strong>bre DeputadoRoberto Jefferson, o momento é grave e a Mesa jáconcedeu a V.Exa. 39 minutos. Peço que conclua.”(Sessão 246.3.5<strong>2.</strong>0 – 2005)A nosso ver, um terceiro nível de transgressãose relacionaria ao gênero “discurso de defesa”: emlugar de fazer um discurso com o predomínio domodo de organização argumentativo, com apresentaçãode provas e testemunhos, o que seria previsívelpara este tipo de situação, RJ constrói um discursorepleto de referências a índices de narratividade.É possível observar a narração como uma estratégiade captação do público: contar uma históriaparece ser mais sedutor do que argumentar sobreteses. A narração é também uma das formas deorganização do discurso ficcional e se analisarmosbreve e superficialmente o cardápio de programasda televisão brasileira, visualizamos uma <strong>of</strong>ertaconsiderável de programas cujo estatuto é ficcional.Somente a Rede Globo, canal de maior audiênciada TV aberta, exibe cotidianamente, além de filmese seriados, quatro telenovelas. E qual é a essênciadelas? Grosso modo: é a busca empreendida por umherói (ou heroína) para suplantar traições, obstáculos,conflitos sociais e familiares, para, no fim, casar-se,em geral em uma cerimônia católica, com asua heroína (seu herói). Assim, escolher referênciasnarrativas para compor a sua defesa é uma estratégiapara se aproximar do grande público.Em uma formulação superficial, é possível dizerque os expectadores das novelas vêem, atravésdeste gênero, a legitimação de alguns valores comoa lealdade, a religião e a família, valores estes que,como veremos mais adiante, são defendidos porRoberto Jefferson. Em seu discurso, ele passa poralguém que reafirma na vida real o que é mostradocomo modelo de comportamento na ficção. Nanossa opinião, houve uma identificação por partedo público que pode ter sido seduzido por efeitosde familiaridade e intimidade criados pelo oradorem questão.O conflito como índice de narratividade, no discursode RJ, se dá entre duas instâncias clássicas:“o bem” (o lar e a família, a lealdade) e o “mal” (oscorruptos do PT (definidos como ‘os sem amor esem coração’) e a mídia, mais especificamente o jornalO Globo). Imagens como “fratricídio”, “Guerrade Tróia”, “lar X prostíbulo” também contribuempara a caracterização do conflito entre a vida privadae a vida pública. Temos também desenhadasduas figuras: a do vilão (ligado a traições, deslealdade,falta de amor, corrupção) e a do autoproclamadoherói (o próprio RJ).Holanda (2006 [1936]) nos brindou com o conceitode “homem cordial”, segundo o qual o agir“cordialmente”, com o coração, estaria no cerne dasociedade brasileira. Levando-se em consideraçãoeste pensamento, seria possível fazer uma leituraum pouco mais estilizada do conflito narrativo pornós apontado. Ao mencionar que o “PT não tem coração”,na verdade, há constatação de que os políticospertencentes a este partido não são brasileiroslegítimos em sua essência – não são cordiais, nãotêm coração. Em termos familiares, pode-se deduzir,de maneira bastante livre, que o PT seja um filhoilegítimo – portanto bastardo, sem cordialidade eamor, que surge para provocar a ruína deste Estadoque preserva a família tão arraigada em seu seio. Aspalavras do próprio Jefferson podem ilustrar o queacabamos de dizer:Não creiam que o PT faz isso porque o PT não temamor. Só tem da cabeça para cima. Não tem solidariedade,fraternidade, amizade. Não sabe o que éisso. Usam-nos como uma laranja: chupam o caldo eescarram o bagaço.Aliás, sempre disse isso ao meu partido. É que fui50Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>


A vida privada na defesa da vida pública: o caso de Roberto JeffersonEmília Mendesvoto vencido. Disse sempre à minha bancada: “Nãovamos confiar nessa gente. Essa gente não merecenossa confiança, nem nossa consideração. Essa gentenão tem afeto, nem amor. Essa gente não ama o serhumano. Eles amam uma abstração jurídica, que éum Estado ideal que eles sonham, e odeiam todo serhumano que se conflita com esse ideal de Estado quenutrem no seu coração e embalam.” (Grifos nossos.Sessão 246.3.5<strong>2.</strong>0 – 2005)Há um outro fator que aproxima seu discurso dosgêneros ficcionais como romance ou conto. Trata-sedo emprego do discurso reportado. Transcrevemosaqui alguns exemplos:Quarta acusação que me faz o relatório: ter-se omitidoe não revelar o mensalão assim que soube. O Relatorestá de brincadeira. Fiz peregrinação. Ao José Dirceu,como Ministro-Chefe da Casa Civil, falei isso umas10 vezes. Falei ao Ciro. Depois nós descobrimos queo Márcio, Secretário-Executivo do Ministério, tinharecebido do Marcos Valério 500 mil reais para saldarcontas de campanha. Mas falei ao Ciro, com lealdade.Ele disse: “Eu não acredito nisso.” Falei ao MinistroMiro Teixeira. Estava acompanhado do José Múcio.Conversei com eles: “Isso vai dar zebra.” Falei com oPresidente da República. O que queriam de mim? OLula na descendente, o PT se desmanchando, estouaqui para ser cassado. Imaginem no início do anopassado, quando O Globo dizia que o Lula era omaior Presidente do mundo. Qual era a condição queeu tinha de denunciar isso?Eu busquei, pela via do entendimento, tentar colocarum ponto final nisso. Disse ao próprio Presidente:“Presidente, o Delúbio vai botar uma bomba debaixoda sua cadeira. Esse mensalão é um escândalo.” Eununca vi uma coisa igual na minha história parlamentar.Se o Relator fica <strong>of</strong>endido com a palavra mensalão,seus ouvidos pios se <strong>of</strong>endem, chame do que quiser,bimensalão, trimestralão, mas essas transferênciasconstantes de recursos para alugar os partidos da basealiada tinham de acabar. (...)(...)Eu disse a ele: “Isso não é papel de homem.Vocês não agem corretamente. Vocês jogam fora oscompanheiros de aliança como se fossem bagaço delaranja de que vocês já chuparam o caldo. Isso não épapel de homem, José Dirceu.”Ele falou: “Roberto, olha, não fui eu, não. Vocême conhece. Sou um cara de enfrentar a briga de pé enão tenho nenhuma ascendência sobre o Ministro daJustiça.” (Grifos nossos. Sessão 246.3.5<strong>2.</strong>0 – 2005)Observamos que RJ se posiciona como um narradore reporta as falas de outras pessoas e também assuas. Ele é também um narrador que se posiciona,marca os vilões e os mocinhos: aqueles a quem nãoacusa, demonstra intimidade tratando-os somentepelo primeiro nome; aqueles que são definidos comoculpados, demonstra distanciamento, nomeando-ospelo nome completo. A nosso ver, o “ato de narrar”mostrando o bem e o mal gera proximidade com opúblico, que se identifica com um narrador “amigo/conselheiro” que parece querer “salvar a pátria”.Parece-nos correto afirmar que estabelecer umadefesa em forma de narração seria se aproximardos gêneros empregados pela própria televisão brasileira.Certamente, a narração pode estar presentetambém em gêneros factuais, como as reportagensexibidas em telejornais: há um repórter-narradorque reporta a atualidade de um fato e que articulapersonagens-testemunhos. Dessa maneira, no espaçoda programação televisiva temos: (a) a narraçãousada no gênero ficcional da telenovela – e de outrosgêneros - que tem a função de divertir e (b) anarração factual empregada nas reportagens tem afunção de informar. Vale ressaltar também o fato deque a narração é usada na conversação cotidiana.Ou seja: a narração é um tipo de organização dodiscurso que é mais íntimo, mais próximo da realidadediscursiva brasileira além de permitir um jogoentre o real e o ficcional.Seguindo este pensamento, podemos dizer queestruturar um discurso de maneira argumentativa,exigiria, do ouvinte, uma percepção da relação decausa/conseqüência/oposição, conhecimento de técnicase procedimentos específicos do discurso jurídico,dentre outros. Este fato criaria um distanciamento,pois estas formas não tão difundidas quantoaquelas da narração.Com o enfoque até aqui desenvolvido, a perspec-Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>51


A vida privada na defesa da vida pública: o caso de Roberto JeffersonEmília Mendestiva que pretendemos sustentar em nossa discussãoé a seguinte: para se defender na vida pública, RJse vale de sua vida privada pelo viés da narração, oque, a nosso ver, seria uma transgressão do gênero“discurso de defesa”.De acordo com Charaudeau (2004), os gênerosde discurso obedecem a contratos que são estabelecidosem dimensões psicossocias e linguageiras.Todo contrato é composto por restrições e estratégias,ou seja: os gêneros de discurso possuem deum lado, normas de procedimentos que os regulame de outro, um espaço de liberdade para a criaçãode novas formas.Nesta perspectiva, o contrato do discurso de defesapoderia ser assim descrito: o acusado, atravésde uma instância defensora (um advogado, ou opróprio acusado), deve expor provas e argumentosque convençam a um júri da inocência do acusadoem questão. O defensor deve seguir regras, maspossui um espaço para aplicar as mais diversas estratégias.Os gêneros do discurso também são passíveis detransgressões. Isso se dá quando há uma mudançano contrato de comunicação. De acordo comCharaudeau (2004), este seria o processo de funcionamentodessa infração contratual: contrato 1apple individualização apple transgressão ou variante applecontrato <strong>2.</strong>Parece-nos que é este o processo s<strong>of</strong>rido pelodiscurso de defesa aqui analisado. RJ é acusadode ter denunciado o mensalão sem ter provas. Emseu discurso de defesa não são apresentados argumentosnem provas que justifiquem a sua inocência.Em lugar de mostrar documentos ou testemunhos,começa seu discurso com uma longa lista de agradecimentos.Num primeiro momento, enumera e destacaqualidades de várias mulheres que diz fazeremparte de sua vida; num segundo momento, executao mesmo procedimento com os homens. Num terceiromomento, encena uma refutação das acusações,mas trata-se somente de um efeito, pois, nãoapresenta nada que possa ser julgado substancialou caracterizado como prova. Até mesmo ridicularizaas acusações: “Duas CPMIs foram instaladas:a CPMI dos Correios e a CPMI do Mensalão. Eo Relator do Conselho de Ética diz que não existemensalão. Devo dizer ao Relator que essa só contarampara você.” (Grifos nossos). Vale-se aqui deuma expressão coloquial “essa piada só contarampara você” para se defender. Rj também afirma: “ORelator está de brincadeira.” Num quarto momento,começa a repetir as mesmas denúncias que jáhavia feito no decorrer do processo.Dessa maneira, parece-nos que o seu discursoé de “denúncia” e não de “defesa”. Assim, se estabeleceriaum outro contrato: acusar alguém porcrimes cometidos. Nesse caso, pode-se pensar quea transgressão tenha sido uma estratégia diante daimpossibilidade de se obter uma prova concreta. RJé advogado, portanto conhecedor de tais procedimentos.A Guerra de Tróia ou a Guerra de Jefferson?A epopéia também é usada para florear o seu discurso.Além de índice de narração e ficcionalidade,a epopéia traz aqui alguns valores como a origemnobre dos heróis e a tentativa de preservação de determinadosvalores sociais – no caso em questão, afamília. São feitas referências explícitas à Ilíada deHomero, eis as palavras de Jefferson:Ao ler hoje o primeiro capítulo de A Guerra de Tróia,lembrei de Éris, a Deusa da Discórdia. O Governo fezisso com a base aliada. Foi ao pomar, escreveu numpomo, numa maçã “À mais bela” e jogou-a entre nós,os partidos. E fez aqui na Casa o conflito, como se fôssemosvalhacouto de corruptos. Estamos numa guerrafratricida entre nós quando a corrupção está na praçado lado de lá. De lá partiu a corrupção. De lá! (Grifosnossos. Sessão 246.3.5<strong>2.</strong>0 – 2005)<strong>No</strong> nosso entender, a referência à Ilíada é uma alegoriapara demonstrar a crise entre a família -os“cordiais” – e sua relação com o Estado, ou seja, oestado implantado pelo PT está destruindo as concepçõesde círculos familiares fechados (a “Casa”)em nosso país. A corrupção está do lado de lá (localizaçãodo Palácio do Planalto - sede do govern<strong>of</strong>ederal- em relação à localização do Congresso Nacional),ou seja, não pertence ao ambiente do lar,52Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>


A vida privada na defesa da vida pública: o caso de Roberto JeffersonEmília Mendesda casa, das famílias e suas linhagens – leia-se aquinobreza e aristocracia.Consideramos um detalhe intrigante na aberturado discurso em questão: a caracterização das mulheres.RJ faz uma longa lista de agradecimentos endereçadaa várias mulheres, sejam elas ascendentesou descendentes de sua estirpe, sejam elas pessoascom as quais trabalhou. Podemos resumir os epítetosdados a essas mulheres em basicamente: lealdade,constância, fé e dedicação/amizade.Não nos parece que a escolha da Ilíada comoalegoria seja algo sem pr<strong>of</strong>undas intenções no discursode RJ. <strong>No</strong> caso da obra de Homero, é possíveldestacar três personagens femininas importantes:Andrômaca, Cassandra e Hécuba. A característicacomum a todas elas é a lealdade a seus familiares,aos valores sociais e à Tróia. Por outro lado, haveriaa traição por parte da grega, portanto estrangeira/não familiar, Helena. É seu rapto que causa a guerrae toda a destruição da família real troiana.Assim, o referido clássico da literatura grega sepresta a endossar os valores e a importância que afamília tem no Estado, segundo a concepção de RJ.Parece-nos que a função da mulher para este exdeputadoseria aquela de servir e apoiar os empreendimentosmasculinos e conservar os valores docasamento (maternidade/lealdade) e da sociedade.As outras que não se prestam a essa serventia, são“Helenas”, são as que estão do lado lá, as alheiasà família.Considerando toda a questão aqui envolvida eo fato de haver uma tradição de governos de oligarquiasno Brasil, ao analisar este discurso, umaquestão se impõe de forma veemente: Que sentidopossui a palavra “corrupção” para o que Jeffersondefendeu naquele momento? Será que se trata decondenar a corrupção dos bens do Estado – umatransgressão moral, ou se trata de condenar a“corrupção” ou a falência da influência das famílias/oligarquiasno poder político brasileiro – umatransgressão nas hierarquias do poder? Talvez, paraas elites brasileiras, esta última alternativa tenha seconcretizado com a ascensão do PT ao poder.Certamente, não poderíamos tirar muitas conclusõesa partir do corpus analisado, mas algunspontos podem ser discutidos. É consenso entre historiadoresdo Brasil que a corrupção em nosso paísse inicia no momento do Descobrimento/Achamentode nosso país. É lugar comum a afirmação “acorrupção no Brasil é sistêmica.” <strong>No</strong> entanto, nãonos parece que RJ esteja interessado em combateresta corrupção. Em todo o seu discurso, é possívelperceber a importância que é dada à presença da famíliano Estado, como o demonstramos. <strong>No</strong> nossoentender, o que denuncia é o possível fim da influênciada elite no poder, daí a idéia da “maçã” corruptoraque está destruindo a “Casa”. As própriaspalavras de Jefferson abaixo transcritas são a provade que não se trata de denunciar ou combater acorrupção dos bens do Estado, mas de denunciar a“lamentável” corrupção/destruição das oligarquias(Maluf, Severino etc.), evidentemente, do ponto devista do grupo ao qual ele pertence:Cumpri minha missão. Não arredo uma vírgula do quedisse, nem mudo uma palavra do que já falei. Querodizer aos meus companheiros e às minhas companheirasque essa luta, de maneira sórdida, foi colocadaentre nós. Queima o Severino, o Maluf, o Roberto Jefferson,o Janene, o Pedro Corrêa (...). (Grifos nossos.Sessão 246.3.5<strong>2.</strong>0 – 2005)A imagem de fratricídio, tão recorrente em seu discurso,seria, na nossa opinião o símbolo da guerrade Jefferson. Não uma guerra revolucionária parauma sociedade mais igualitária, mas uma guerra deresistência conservadora, para preservar a manutençãode uma sociedade desigual e preservadorade privilégios para determinadas classes.ConclusãoEmbora tenhamos apontado aqui os vários índicesde transgressão e os efeitos midiáticos que cercaramo affaire Roberto Jefferson, é possível notar que nãose trata de uma proposta de mudança política, combateà corrupção ou melhoria social. Ao contrário,a transgressão é somente um efeito, um recurso desuperfície, para mascarar o desejo de uma manutençãode uma política conservadora e particularista.Na nossa opinião, o caso RJ demonstra clara-Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>53


A vida privada na defesa da vida pública: o caso de Roberto JeffersonEmília Mendesmente as práticas sociais brasileiras: pseudo-transgressorase incoerentes por natureza. Mostram-setransgressivas na superfície para mascarar um conservadorismoconstituinte de nossa sociedade. Somosainda “periferia sem centro” como afirmava opróprio Sérgio Buarque de Holanda (2006 [1936]).Referências BibliográficasCharaudeau, Patrick (2004) ‘Visadas discursivas, gênerossituacionais e construção textual’. In: Ida L Machado e Renatode Mello (Eds) Gêneros: Reflexões em Análise do Discurso(pp. 13 – 41). Belo Horizonte: NAD/FALE/UFMG.Holanda, Sérgio Buarque ([1936]2006). Raízes do Brasil. SãoPaulo: Companhia das Letras (Ed. Comemorativa 70 anos).Homero (1989) Ilíada. Trad. Carlos Alberto Nunes. Rio deJaneiro: Ediouro.54Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>


A vida privada na defesa da vida pública: o caso de Roberto JeffersonEmília MendesApêndiceDiscurso Roberto Jefferson,14 de setembro de 2005, sessão 246.3.5<strong>2.</strong>0O SR. ROBERTO JEFFERSON(PTB-RJ. Sem revisão do orador.)– Obrigado, Sr. Presidente.Exmo. Sr. Presidente, Srs. Deputados, Sras. Deputadas,cidadão do Brasil que me ouve, cidadã do Brasil queme ouve, começo percorrendo esta defesa em causaprópria por uma via não muito comum aqui na Casa.Confesso a dificuldade de fazê-lo, viu, Laurinha? Soubom advogado para os outros. Para mim...Quero agradecer, em princípio, às mulheres queme permitiram chegar a este momento importante quevivo hoje na minha vida. A minha avó Petiza, forçavital. Um jequitibá. Não quebrava, não vergava.Perdeu, precocemente, 2 filhos, o marido, mas nãocedeu. Não caiu. A minha mãe, Neusa, com sua féinabalável em Deus, sua força espiritual paraenfrentar adversidades. A Ecila, mãe de meus filhos eavó de meus netos, amiga, guerreira, conselheira. Foipai e mãe de meus filhos. Deu-me a retaguarda para irà luta, porque a luta política faz isso conosco, nostransforma em pais ausentes. A Cristiane, minha filha- fisicamente, a mãe, mas o espírito é meu. Sonheipara você, meu amor, a carreira da magistratura. Pediaté a sua pr<strong>of</strong>essora, Juíza Denise Frossard, que ainfluenciasse, para que você persistisse na escola demagistratura e fosse uma juíza. Mas a Laurinha, nossairmã e amiga, conversando com você, convenceu-a aseguir a vida pública. Sucesso, meu amor! Agradeço avocê pelos meus 2 netos: Christian e Catarina. AFabiana, minha filha. Parece comigo fisicamente, masherdou da mãe a doçura. Já me deu 3 netos: o Vítor, oArtur e o Bernardo. A Mary Land, minha queridaprima, que, lá adiante, sempre costura a união entre afamília.Eu quero agradecer às mulheres que trabalharamcomigo. Não tenho preconceito contra homem - queroque este Plenário, de maioria masculina, entenda isso,ouviu, Capixaba, ouviu, Presidente? -, mas a minhaassessoria sempre foi feminina, e isso sempre mepermitiu o sucesso.Quero agradecer, primeiro, às minhas colegasDeputadas: Elaine, Edna e Kelly. Obrigado a vocês,queridas.Quero agradecer a uma amiga querida lá do RioGrande do Sul, gaúcha, a maior oradora feminina queconheço: Sônia Santos, minha amiga.Quero agradecer a 2 pessoas especiais que tiverammarca na minha vida, a Heloísa e a Nádia, naComissão de Seguridade Social. Hoje, elas estão emLideranças, no Conselho de Ética, mas construíram osucesso dos meus 2 mandatos de Presidente naComissão de Seguridade Social.Quero agradecer a Carla, minha companheira,Secretária do PTB, e a todos os companheiros da sededo partido. A Marli Guaraciaba, Chefe de Gabinete daLiderança do PTB - fez uma Liderança fraterna,querida, leal. Ela e todas as meninas que compõem anossa Liderança. Obrigado, Marli e todas as companheirasda Liderança do PTB. A Ana Crivelaro, minhaSecretária no Rio de Janeiro, silenciosa, observadora,mas amiga e leal. A Denise Conde, minha Secretáriaaqui, no meu gabinete em Brasília, mulher despachada,diligente, incansável. A Solange Beiró. Vinte e três anoscomigo no meu gabinete. Vinte e três! Quando entreino gabinete, já encontrei a Solange lá. Vinte e três anosdo meu lado. Ela tem mais convivência comigo do queminha família. Amiga, leal, correta, companheiraquerida.Agradeço às minhas 3 assessoras de imprensa. AÍris Campos, a sua lealdade, a sua estratégia - quepessoa especial! - e o apoio que me deu nesses 90 diasmais difíceis da minha vida. A Luíza Pastor. Oimpressionante na Luíza é o foco. Ela pode ler todosos jornais e revistas e dizer: "O foco é este, o resto éencheção de lingüiça". A Maria Tereza, nossa Tetê, suacapacidade de pesquisa, a redação que tem e o carinhocom que trata todos os colegas de imprensa queprocuram pela gente.Agradeço a Verinha, da New Vision, minhacompanheira de PTB. Fé, lealdade, parceria. Agradeçoa Denise Tavares e a Kátia Almeida, minhas pr<strong>of</strong>essorasde canto e de música, todas duas. Elas sãoresponsáveis pelas manhãs mais felizes que venhovivendo neste último ano de minha vida. Obrigado àsduas. Elas me ensinaram que cantar é abrir o peito, éStockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>55


A vida privada na defesa da vida pública: o caso de Roberto JeffersonEmília Mendesabrir o coração, é uma doação que a gente faz doespírito, é uma doação que a gente faz da alma.Agradeço a Ana Lúcia, minha companheira, suameiguice, ternura, doçura, paciência, serenidade e oamor que me devota.Agradeço à minha cidade de Petrópolis o apoio e asolidariedade. Ao meu amigo Padre Jac, confortoespiritual. Agradeço aos amigos Joenes, RonaldoMedeiros, Vereador Vadinho, meu irmão, VereadorCanela, que aqui está, lá de Paraíba do Sul, meu irmão.Agradeço ao meu avô Ibrahim, já falecido. Foi ele oresponsável na família pela veia poética, a observaçãoda vida e o desprendimento.Esse meu avô Ibrahim, naturalizado brasileiro,chegou do Líbano no início do século passado. Ele liao jornal e dizia assim para a gente: "Meu neto, atrás detoda manchetona escandalosa tem um interesse maiore mais escandaloso".O jornal que vive de manchete escandalosa, delibelos, quer acertar sempre com o Governo. Quantomais panfletária é a manchete, maior é o cheque quevão sacar no banco <strong>of</strong>icial.Refiro-me a O Globo. Na área econômica, na áreacultural, na área de esporte, não tenho nada a dizer deO Globo. Mas, politicamente, é um jornal amoral.Falido, fiou-se sempre nos c<strong>of</strong>res públicos, nas contasdo povo do Brasil. O povo do Brasil paga as contas deO Globo.Eu vi o empresário da Schincariol ser preso por 1bilhão e 200 milhões, algemado, imprensa. Arrombarama casa. Iam botar uma bomba na porta. Mas só deINSS O Globo deve mais de 1 bilhão e 200 milhões -está lá na Superintendência da Polícia Federal oprocesso por apropriação indébita, porque é da partedo trabalhador -, e a Polícia Federal não prendeninguém de lá. Na Schincariol, mete a algema; em OGlobo, o rabo entre as pernas. Não consigo entenderpor quê. Será que à espera de elogios no JornalNacional ou daquela coleção olímpica de grandesintelectuais que assinam coluna no jornal O Globo?Dois bilhões e oitocentos milhões já levou doBNDES, à custa do Brasil, para não fechar. Porquesacou 2 bilhões de dólares à época do GovernoFernando Henrique, quando o dólar era um por um, ehoje deve o que não pode pagar. Mas vende amanchete política, caderno econômico, e tenta calartodos aqui no Congresso Nacional.Vovô Ibrahim, você sempre teve razão nisto, meuvelho: quanto mais panfletária é a manchete, maisamoral é a direção e a redação política do jornal.Agradeço ao meu avô Djalma pelo patriotismocom que me inspirou e pelo espírito de aventura quecolocou no meu coração. A meu pai, RobertoFrancisco, a coragem moral e a disposição para otrabalho. A meu filho, Roberto Jefferson Filho, oexemplo de vida, a força para viver, a superação dador, do medo, a superação de intempéries. A MarcusVinícius, meu genro, jovem de 30 anos, casado comFabiana, que já meu deu 3 netos. Marcos Vinícius,agradeço a você por sua lealdade, por sua coragem epor sua serenidade. Você foi testado, passou pormomentos difíceis na CPI, o que não é fácil, poistentaram atingir a mim. E você se saiu muito bem, comequilíbrio, com bom senso, com serenidade.Agradeço ao Líder José Múcio, que tem sido umgigante em minha defesa. Meu amigo, obrigado a você,você tem se desdobrado, tem sido correto, parceiro,leal. Agradeço ao Fleury, ao Marquezelli, ao ArnaldoFaria de Sá, ao Eduardo Seabra e a nossa caboclaJurema. Ao meu irmão Capixaba, amigo querido,presente todo o tempo, ao Dunga, ao Silas Câmara, atodos os meus companheiros e minhas companheirasdo PTB.Agradeço aos meus advogados Luiz FranciscoBarbosa, do PTB do Rio Grande do Sul, companheirode partido, e Itapuã Messias, do PTB do DistritoFederal, companheiro de partido. Agradeço aoPresidente do PTB, Flávio Martinez, em memória aomeu amigo José Carlos Martinez, que foi Presidente doPTB.Agradeço aos amigos - alguns estão aqui - Lino,Viviane, Marco Antônio Miranda e Bia, Seu Walter, daLiderança; Ari, meu amigo especial da Liderança;Henrique, de Aquidauana; Totó Queiroz, meu irmão,de Paraíba do Sul; Tatão Paiva, Buck Jones, dePetrópolis; Anésio, meu companheiro há 23 anos,pensa como eu, tem a mesma vibração da inteligência;Murilo Rampinis, Mané Rampinis, <strong>No</strong>rberto, Edu -Edu é meu motorista há 25 anos, meu filho mais novoou mais velho, testado; Pedro Henrique, Pedrão,56Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>


A vida privada na defesa da vida pública: o caso de Roberto JeffersonEmília MendesMarco Aurélio, meu companheiro de gabinete há 16anos aqui na Câmara dos Deputados.Hoje, quando me preparava para este momento -volto a dizer não é simples a defesa em causa própria,Landim, meu amigo -, encontrei uma passagem deBerryer, advogado francês que disse diante do tribunalrevolucionário: "Trouxe aqui minha cabeça e minhapalavra. Vocês poderão dispor da primeira após ouvira segunda". É assim o começo da minha defesa noPlenário da Câmara dos Deputados.Ouvi pacientemente o Relator do Conselho deÉtica. O relatório funda-se em 5 pontos.Primeiro, não comprovou o mensalão. O povo doBrasil que julgue, em especial o povo da Bahia, orelatório daquele moço que diz que o mensalão não écomprovado. Veja se o relatório dele condiz com osentimento do povo do Brasil, da mídia nacional, doque está dito hoje aqui no Congresso.Duas CPMIs foram instaladas: a CPMI dosCorreios e a CPMI do Mensalão. E o Relator doConselho de Ética diz que não existe mensalão. Devodizer ao Relator que essa só contaram para você.Segundo, ter feito as denúncias para tirar de simesmo o foco das acusações. Mesquinha a colocação,pequena, da altura de um homúnculo.Tentaram colocar no meu colo, plantaram umcrime que eu não cometi na minha vida, uma relaçãoespúria com o Sr. Maurício Marinho lá nos Correios, etentaram a partir do momento em que 2 vezesconsecutivas eu falei ao Presidente Lula sobre aexistência do mensalão.O Sr. Lange, da ABIN, que gerou até uma crise,quando o Diretor da ABIN disse que a CPI era debestas-feras, disse que foi mandado para a CPI parainvestigar o PTB lá nos Correios. Não encontrou nada,a não ser um boquirroto chamado Maurício Marinho,que, sem poder algum, ficava pegando 3 mil, 2 mil, 5mil, como ele confessa à Polícia Federal, num total de20 mil reais. E quando foi para a área de operações,onde estava o PT, com o Sr. Silvinho Pereira, e foi paraa área de informática, onde estavam o Sr. Silvinho e oSr. Delúbio, recebeu ordens do Palácio para parar. Iss<strong>of</strong>oi dito na CPMI dos Correios.Tentaram plantar na minha vida uma relação quenunca tive com o Sr. Maurício Marinho. Tentei a via danegociação, até num discurso que fiz nesta Casa logo apartir da matéria. Se não me engano, a matéria foi emmeados de maio. <strong>No</strong> dia 16 de maio, estive nestatribuna e dei cabal explicação. Trouxe o depoimentodo Sr. Maurício desmentindo a matéria. O depoimentorepetiu-se, a matéria foi desmentida, mas passou aprevalecer como verdade ele ter recebido, em meunome, 3 mil reais lá nos Correios.Não posso evitar que alguém, abusando daconfiança ou não, ou de uma relação que não existe,peça dinheiro em meu nome. E nenhum de vocês podeevitar que isso aconteça.O Sr. Rogério Buratti fez isso com o MinistroPalocci, traiu a confiança dele, pegou dinheiro dizendoque era em nome do Ministro Palocci. Sabemos quenão. O Ministro tinha o Buratti como amigo, recebia-oem casa de madrugada, o Buratti foi seu Secretário deGoverno por 4 anos. E eu não sou amigo do Sr.Maurício Marinho, ele não é do PTB, não tenhorelação com ele.Para o Buratti, em relação ao Ministro Palocci, éum julgamento; para o Sr. Maurício Marinho, emrelação a mim, é outra coisa.Tenho visto neste famoso jornal O Globo, queescreve com letrinha miudinha essas coisas. Só para aPresidência dos Correios, o Marcos Valério ligou maisde 155 vezes. O Delúbio, também. Quem coordenavaaquilo tudo era Delúbio Soares. E Marcos Valério.Tentaram colocar no colo do PTB os escândalospraticados e cometidos nos Correios. E o Relator temcoragem de dizer que eu quis tirar o foco de cima demim. Oh! Relator, tive uma árdua tarefa, conversei,está ali o Líder do Governo, Deputado ArlindoChinaglia, que esteve comigo lá em casa e me pediuque eu assumisse. Um delegado diligente faria uminquérito independente, e encerraríamos a situaçãopolítica. Não pediu em nome do Governo, mas emnome pessoal. E eu disse: "Chinaglia, não possoacreditar no Governo, porque o Governo não tempalavra. Em você eu creio, mas no Governo, não".Quando estiveram lá em casa, de manhã cedo, oMinistro Aldo Rebelo - na véspera de o PTB decidir seassinava aquela CPI, logo no princípio de junho, não,final de maio -, o Ministro José Dirceu e o MinistroPalocci (já disse isto aqui, da tribuna), o José DirceuStockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>57


A vida privada na defesa da vida pública: o caso de Roberto JeffersonEmília Mendesafirmou 2 coisas que para mim são importantes,porque eu bati duro nele.Eu disse a ele: "Isso não é papel de homem. Vocêsnão agem corretamente. Vocês jogam fora os companheirosde aliança como se fossem bagaço de laranjade que vocês já chuparam o caldo. Isso não é papel dehomem, José Dirceu".Ele falou: "Roberto, olha, não fui eu, não. Você meconhece. Sou um cara de enfrentar a briga de pé e nãotenho nenhuma ascendência sobre o Ministro daJustiça".Estava lá que o Ministro iria fazer um pronunciamentoà Nação no dia 6, segunda-feira, para falar dacorrupção que a Polícia Federal estava desvendando noIRB, nos Correios e na ELETRONORTE, colocandono colo do PTB, para enterrar a CPI na Comissão deJustiça e o meu partido ser sacrificado no escândalo deum crime que não praticou. E nisso José Dirceu foicorreto comigo. Passei a pensar: quem é que temascendência sobre o Ministro da Justiça? Quem?Outra coisa que o José Dirceu me falou - mas estouvendo que ele está perdendo, agora que deixou de serMinistro - é que, em O Globo, ele acertava por cima.Estou vendo que o Zé está começando a ser escanteadopelo jornal, que já percebeu que ele não é maispoder.Quarta acusação que me faz o relatório: ter-se omitidoe não revelar o mensalão assim que soube. ORelator está de brincadeira. Fiz peregrinação. Ao JoséDirceu, como Ministro-Chefe da Casa Civil, falei issouma 10 vezes. Falei ao Ciro. Depois nós descobrimosque o Márcio, Secretário-Executivo do Ministério,tinha recebido do Marcos Valério 500 mil reais parasaldar contas de campanha. Mas falei ao Ciro, comlealdade. Ele disse: "Eu não acredito nisso". Falei aoMinistro Miro Teixeira. Estava acompanhado do JoséMúcio. Conversei com eles: "Isso vai dar zebra". Faleicom o Presidente da República. O que queriam demim? O Lula na descendente, o PT se desmanchando,estou aqui para ser cassado. Imaginem no início doano passado, quando O Globo dizia que o Lula era omaior Presidente do mundo. Qual era a condição queeu tinha de denunciar isso?Eu busquei, pela via do entendimento, tentarcolocar um ponto final nisso. Disse ao próprioPresidente: "Presidente, o Delúbio vai botar umabomba debaixo da sua cadeira. Esse mensalão é umescândalo". Eu nunca vi uma coisa igual na minhahistória parlamentar. Se o Relator fica <strong>of</strong>endido com apalavra mensalão, seus ouvidos pios se <strong>of</strong>endem,chame do que quiser, bimensalão, trimestralão, masessas transferências constantes de recursos para alugaros partidos da base aliada tinham de acabar.Última acusação do honrado Relator baiano, ocampeão da ética, o primo da D. Carmen. Já que ele éo campeão da ética, permito-me contar aqui certapassagem. Seu Carneiro não vai zangar se eu contar.Ele, numa só noite, deu uma canetada, quando Chefeda Casa Civil do Governo João Durval, e contratou 16mil pessoas, entre elas a prima da D. Carmen, umacabo eleitoral dele em Feira de Santana, na Bahia. Eleescreveu isso no papel, e o jornalista do Diário Oficial,que devia ser do PT, espírito de porco, publicou.Então, ele ficou conhecido na Bahia como o primoda D. Carmen. E vem aqui com essa conversa de ético.Dezesseis mil numa canetada só, um assalto aos c<strong>of</strong>resda Bahia, mas se vestiu com aquela capa de cordeiro.A alma é do lobo - sheep, em inglês; wolf, em alemão.(Risos.) Só que ele deveria ter pesquisado, porquequem manda no IRB é a turma da Interbrasil.O SR. PRESIDENTE (José Thomaz <strong>No</strong>nô) - APresidência prorroga o tempo de V.Exa. por 10minutos. A Casa quer ouvi-lo. (Palmas.)O SR. ROBERTO JEFFERSON - O DeputadoJairo Carneiro deveria ter visto que os interesses doIRB não são do PTB. Quando o ex-Presidente do IRBprocurou o Sr. José Carlos Martinez, Presidente dopartido, <strong>of</strong>ereceu formar um grupo de brokers paraajudar por dentro o meu partido. Confesso isso porquefoi algo legal, não foi caixa 2 da Interbrasil paraeleição de Goiânia, como está sendo denunciado hoje eque o Relator não sabia. Foi algo correto, e o ex-Presidente do IRB já falou à Polícia Federal, aoMinistério Público. Em momento nenhum, ele afirmater sido chantageado ou pressionado pelo PTB parapraticar irregularidade à frente daquele órgão.O Relator, vendo que seu relatório se desmanchavacomo uma pilha de açúcar em que se joga um jarro deágua, tentou apelar para todos os lados para tersustentação, fugindo da denúncia que me moveu o58Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>


A vida privada na defesa da vida pública: o caso de Roberto JeffersonEmília MendesPresidente do PL, Deputado Valdemar Costa Neto. Eledisse que eu menti quando denunciei o mensalão. Oresto das acusações que não constavam da denúncia...E eu falo para um Parlamento que faz leis, o que não éda denúncia não é competência do julgamento. Ele foiaditando, sem abrir prazo à defesa, e ainda achou quepodia ficar zangado quando o Dr. Barbosa lhe disseque era um atitude fascista. É fascista e indigna dademocracia.Sr. Presidente, Srs. Deputados, o Governo doPresidente Lula promoveu - e este é o Governo maiscorrupto que testemunhei nos meus 23 anos demandato - o mais escandaloso processo de aluguel deParlamentar. Escolheu o Ministro José Dirceu comouma espécie de Jeane Mary Corner (risos), o rufião doPlanalto, para alugar prostitutas, o que ele entendiapoder fazer na Câmara dos Deputados. Tratou estaCasa como se fosse um prostíbulo. Aliás, sempreconversou nesse sentido. As conversas com ele semprecomeçavam nesse nível, as festas, para depois ficar naante-sala do Presidente, do jeito que ele queriaconduzir, de maneira anti-republicana.Não acuso o Presidente Lula de participar dedesonestidade. Ele é como José Genoíno. Ontem,assisti ao José Genoíno na CPMI. Ele assinou contratode empréstimo de 17 milhões de reais, outro de 2milhões de reais, mas não leu. (Risos.) Houve o acordopolítico-financeiro com todos os partidos da base - omeu, em especial, tratei com ele diretamente -, mas elenão se lembra e não fez. O Presidente Lula é umaespécie de Genoíno na Presidência da República, nãosabe o que lê, não sabe o que assina, não sabe o quefaz. Ele é o Genoíno do Planalto, e deu a mãoserradas, a Luiz Gushiken e José Dirceu, a confiançaque o povo do Brasil depositou nele. Errou.O meu conceito do Presidente Lula é que ele émalandro, preguiçoso. Não sei se já chegou daGuatemala. O negócio dele é passear de avião. Degovernar que é bom, ele não gosta. E delegou. E essacúpula... Esconderam debaixo da saia da Chefe daCasa Civil o Gushiken, o José Dirceu já mandarampara cá. Essa cúpula desonrou a confiança que lhe foidepositada pelo Presidente Lula. Se ele não praticou ocrime por ação, pelo menos por omissão.Ao ler hoje o primeiro capítulo de A Guerra deTróia, lembrei de Éris, a Deusa da Discórdia. OGoverno fez isso com a base aliada. Foi ao pomar,escreveu num pomo, numa maçã "À mais bela" ejogou-a entre nós, os partidos. E fez aqui na Casa oconflito, como se fôssemos valhacouto de corruptos.Estamos numa guerra fratricida entre nós quando acorrupção está na praça do lado de lá. De lá partiu acorrupção. De lá! (Palmas e apupos nas galerias.)O SR. PRESIDENTE (José Thomaz <strong>No</strong>nô) - APresidência determina à segurança que, na próximaintervenção, faça esvaziar as galerias.Tem V.Exa. a palavra, nobre Deputado RobertoJefferson.O SR. ROBERTO JEFFERSON - A corrupçãopartiu de lá. As ligações do Sr. Marcos Valério são parao gabinete do Presidente também: 111. Ontem, esteveaqui a D. Katia, Presidente do Banco Rural. Foi levadapelo Marcos Valério 3 vezes à presença do Sr. JoséDirceu. O Sr. José Dirceu levou os empresáriosportugueses do Banco do Espírito Santo, da PortugalTelecom, e mandou para lá o Marcos Valério comoembaixador do Governo brasileiro junto a essesinteresses em Portugal.Sr. Presidente, jamais fiz - e aqui tenho velhoscompanheiros ao meu lado - desta tribuna a tribunado libelo. Deixei sempre isso para o PT. Nunca fizescada na desgraça alheia para poder crescer comoParlamentar. Não sou como o Genoíno, que visustentando aqui libelos gravíssimos contra oscompanheiros e que ontem, de rabinho entre as pernas,disse: "Não vi, não li. Se assinei, não sei". Mentiudescaradamente ao Brasil lá na CPMI.O PT não tem projeto de governo. Quero dizer oPT nesse Campo Majoritário e essa cúpula queassaltou o Brasil. Rato magro. Quem nunca comeumel quando come se lambuza. Rato magro. PC Fariasé aprendiz de feiticeiro ante essa gente que assaltou oBrasil. Rato magro. Mas nunca bati no peito para dizerque sou o paladino da ética e o campeão olímpico damoralidade.Os que vituperavam isso do lado de lá hoje nãotêm coragem de olhar nos olhos da Nação porquetodo fariseu, todo farsante impreca culpa ao adversáriocomo se fosse um biombo para esconder seusdefeitos.Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>59


A vida privada na defesa da vida pública: o caso de Roberto JeffersonEmília MendesE o PT fez isso a vida inteira. Recordo-me dosódios que vivíamos no plenário, quase as vias de fato,contra a política econômica do Malan, do FernandoHenrique. Hoje, a política é a mesma. Ou maisortodoxa.Rasgaram o discurso da política econômica, e aúnica coisa que o nosso Presidente Lula sustenta é quea política econômica está dando certo. E a social queos proxenetas de partido, os rufiões de sonhos, oscafetões da dignidade do Congresso <strong>of</strong>ereceram aopovo do Brasil? Onde está? Ética, moralidade, o PTnão rouba e não deixa roubar. Ouvi isso da cúpula dopartido. Rouba, mas rouba sozinho. E rouba muito.O rei está ficando sozinho no tabuleiro. Jáqueimou os peões, está perdendo a base, estáqueimando as torres, os cavalos, os bispos. Nãoduvido da mão do Governo empurrando para opelotão de fuzilamento o Severino, porque nãoacredite o PP que o PT, quando elogia, está dando amão. Vivi esse processo lá em casa: o Presidente Lulame elogiando e o Zé Dirceu cravando a faca nasminhas costas. Um me alisava e o outro me espancava.Não creiam que o PT faz isso porque o PT não temamor. Só tem da cabeça para cima. Não tem solidariedade,fraternidade, amizade. Não sabe o que é isso.Usam-nos como uma laranja: chupam o caldo eescarram o bagaço.Aliás, sempre disse isso ao meu partido. É que fuivoto vencido. Disse sempre à minha bancada: "Nãovamos confiar nessa gente. Essa gente não merecenossa confiança, nem nossa consideração. Essa gentenão tem afeto, nem amor. Essa gente não ama o serhumano. Eles amam uma abstração jurídica, que é umEstado ideal que eles sonham, e odeiam todo serhumano que se conflita com esse ideal de Estado quenutrem no seu coração e embalam".Rufiões da Pátria! Proxenetas do Parlamento!Rolaram entre nós a maçã envenenada, e estamos aqui.Ontem, vi todo o mundo de braço dado dizendo:"Vamos destroçar o Severino". Amanhã, "vamosdestroçar o Roberto Freire". Depois, "vamos destroçaro Gabeira".A coisa está assim entre nós. E a turma quefinanciou isso vai ficar de fora? Tem Ministro querecebeu mensalão. Crime administrativo claro. Elesnão vêm depor na CPMI, não são pesquisados, nãosão confrontados, e a culpa é só nossa. Somos a Genido Brasil.O Marcos Valério era empregado da Câmara?Trabalhava para nós? Trabalhava para os Parlamentares?Não. Coagia em nome do Governo e do partidodo Governo.Sr. Presidente, temos que atravessar a Praça. Temosque ir ao Palácio do Planalto fazer a investigação queprecisa ser feita. Essa é a resposta que o povo do Brasilquer de nós.Por que sacrificar mandato parlamentar? Já vitantas vezes isso! É sempre um esquema. Quem vamoscassar? É como são essas CPIs aqui. Vamos fazer umacordão aqui, vamos pegar uma cabeça grande, vamosdar o Roberto Jefferson, o Zé Dirceu, vamos ver porbaixo quem a gente dá. Foram sempre assim as CPIsnesta Casa. E a gente encerra.Mas o Parlamento não pode sair de joelhos disso.Quando fui eleito Deputado Federal, ganhava líqüido11 mil dólares, em torno de 30 mil reais por mês. Issoem 198<strong>2.</strong> Hoje, um Deputado ganha 8 mil reais. Trintamil é a diferença do mensalão. E essa elite que paga amídia nos coloca de joelhos para isto: para que nãotenhamos independência para votar contra eles.Lembro-me dos discursos contra os decretos-lei daditadura militar. Jesus, nem os generais ousaram tantocom o decreto-lei como fazem com a medidaprovisória.O SR. PRESIDENTE (José Thomaz <strong>No</strong>nô) -<strong>No</strong>bre Deputado Roberto Jefferson, o momento égrave e a Mesa já concedeu a V.Exa. 39 minutos. Peçoque conclua.O SR. ROBERTO JEFFERSON - Sr. Presidente, amedida provisória desmoraliza a Casa. O que fazemostodo dia é referendar medida provisória. O processolegislativo não nos pertence mais. Vivemos o humordos técnicos do Ministério da Fazenda ou do BancoCentral. Todos os dias, chega medida provisória nestaCasa, que está se ajoelhando, que está se agachando.Pegamos a maça envenenada que o Governocolocou no meio da mesa dos deuses, porque aqui nãotem índio, só tem cacique, e estamos vivendo uma horafratricida.60Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>


A vida privada na defesa da vida pública: o caso de Roberto JeffersonEmília MendesCumpri minha missão. Não arredo uma vírgula do quedisse, nem mudo uma palavra do que já falei. Querodizer aos meus companheiros e às minhas companheirasque essa luta, de maneira sórdida, foi colocadaentre nós. Queima o Severino, o Maluf, o RobertoJefferson, o Janene, o Pedro Corrêa. Vamos queimando,mas não estamos puxando a barba do bode. Temosque puxar a barba do bode para mostrar onde estáo DNA da corrupção que desgastou a imagem doCongresso Nacional.Encerro, Sr. Presidente, agradecendo a V.Exa. aoportunidade que me deu, à Mesa, aos companheirosde partido.Entrego meu mandato nas mãos de V.Exas. Há 23anos, sou Deputado Federal. Confesso que estou umpouco cansado. Mas honrei o Parlamento. Todos osdias, investigam minha vida e não conseguem colocarnada nos jornais que possa ferir minha honra. Não tenhoconta no exterior, não tenho patrimônio acima daminha renda. Todos os dias, eles me investigam e nãoconseguem fazer uma acusação contra minha honra eminha dignidade.Se tiver de sair daqui, saio de cabeça erguida, como sentimento da missão cumprida, Laurinha.Tirei a roupa do rei, mostrei ao Brasil quem sãoesses fariseus (palmas), mostrei ao Brasil o que é oGoverno Lula, mostrei ao Brasil o que é o CampoMajoritário do PT.Muito obrigado aos senhores pela paciência de meouvir. (Palmas prolongadas.)http://www.camara.gov.br/Internet/Deputado/dep_Detalhe.asp?id=522373http://www.camara.gov.brStockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>61


STOCKHOLM REVIEW OF LATIN AMERICAN STUDIES<strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>6O rádio mineiro rende-se aos encantos de umtravesti: o discurso, o humor e o mito na vidae na obra de Tieta PresleyNair PrataNair Prata é jornalista, pr<strong>of</strong>essorado curso de Jornalismo ecoordenadora do curso de pósgraduaçãolato sensu Criação eProdução em Mídia Eletrônica –Rádio e TV do Centro Universitáriode Belo Horizonte – Uni-BH.Mestre em Comunicação pelaUniversidade São Marcos (SP),foi vencedora do Prêmio Intercom2001 de Melhor Dissertaçãode Mestrado do Ano – CategoriaRádio e TV, com o trabalhosobre o tema “A fidelidade doouvinte de rádio: um estudo dosprincipais fatores determinantesda audiência fiel”. Doutorandaem Lingüística pela UniversidadeFederal de Minas Gerais preparatese sobre o tema “Webradio:novos gêneros, novas formas deinteração”.naiprata@uol.com.brUm travesti é um dos comunicadores de destaque no rádio mineiro.Tieta Presley é um personagem criado pelo radialista Rodrigo Rocha,apresentador da Rádio Liberdade FM. Além do trabalho no rádio,Tieta faz shows, anima bailes e atrai mul¬tidões por onde passa. <strong>No</strong>rádio, é amada pelos ouvintes, que recorrem a ela a fim de fazertodo tipo de pedidos. O objetivo do artigo é sistematizar argumentosacerca de três temáticas que fundamentam o programa de Tieta: odiscurso, o humor e o mito. A partir da análise desses tópicos e desuas vertentes transgressivas, discute-se a trajetória do personagem esua recepção junto aos ouvintes.Palavras-chave: rádio, discurso, humor, mito, realidadeNair Prata is a journalist,teacher <strong>of</strong> journalism and coordinator<strong>of</strong> the Post-GraduateProgram on Electronic Mediaat the Centro Universitário deBelo Horizonte – Uni-BH. Shehas a master’s degree in Communication<strong>Studies</strong> from theUniversidade São Marcos (SãoPaulo) and wrote her thesis onthe construction <strong>of</strong> faithful radioaudiences. Currently a Ph.D.student, her research is aboutWebradio, new genres, andnew forms <strong>of</strong> interaction.nairprata@uol.com.brA transvestite called Tieta Presley is the host <strong>of</strong> a popular programon radio station in the state <strong>of</strong> Minas Gerais. Tieta Presleyis a character created by broadcaster Rodrigo Rocha, anchor <strong>of</strong>Radio Liberdade FM. In addition to working on the radio, Tietaholds shows, is the mistress <strong>of</strong> ceremonies at dances, and drawscrowds wherever she goes. On the radio, she is adored by thelisteners, who ask her all kinds <strong>of</strong> questions. The article aims atsystematizing arguments on three themes that are the basis <strong>of</strong> theradio program: discourse, humor and myth. The analysis <strong>of</strong> thesetopics and <strong>of</strong> their transgressive elements leads to a discussion <strong>of</strong>Tieta Presley’s work and the way it is received by her listeners.Keywords: radio, discourse, humor, myth, realityStockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong> 63


O rádio mineiro rende-se aos encantos de um travesti:o discurso, o humor e o mito na vida e na obra de Tieta PresleyNair PrataIntroduçãoTradicionalmente, o rádio tem sido um canal em quehá sempre espaço para a criatividade de locutores,produtores e comunicadores. Em busca incessantepor audiência, emissoras mudam sua programação,investem em novos valores, copiam quem está àfrente na preferência dos ouvintes. Nessa luta, algunsprogramas se destacam e outros se perdem emmeio à mediocridade.McLeish (2001) sugere sete qualidades para umbom programa: humor que agrade; originalidadeinteressante; pertinência; caráter inteligente quepossa ser entendido; conteúdo musical; simplicidadee boa qualidade sonora. Salomão (2003) fala dabusca de uma nova programação, numa aposta emum rádio mais “vivo”.Um programa, transmitido pela Rádio Liberdade,com sede em Betim, cidade da Região Metropolitanade Belo Horizonte, abandonou seu estilotradicional e, com grande repercussão junto ao públicomineiro, apresenta um personagem inusitado:um travesti, chamado Tieta Presley. O objetivo desteartigo é sistematizar argumentos teóricos acerca detrês temáticas que fundamentam o programa TietaPresley: o discurso, o humor e o mito e, a partirdesses tópicos, analisar a trajetória do personageme sua recepção junto aos ouvintes.O programa Tieta PresleyO programa Tieta Presley é apresentado pelo radialistaRodrigo Rocha todos os domingos, das 11 às13 horas, na Rádio Liberdade FM, na freqüência92,9. Durante a semana, são duas inserções diárias,de cinco minutos cada. Tieta – personagem criadopor Rodrigo – é um travesti que tem grande empatiacom seu público. O programa nasceu, na realidade,na Rádio Extra FM, onde fez enorme sucesso.Quando a emissora mudou sua programação, oprograma foi levado para a Rádio Liberdade, queestá, há cinco anos, à frente do ranking geral deaudiência na Região Metropolitana de Belo Horizonte.O programa não tem produção e é feito semprede improviso. Durante a semana, Tieta contapiadas e f<strong>of</strong>ocas da vida de artistas. Uma das basesdo programa é o humor e o programa é alegre,divertido e cheio de brincadeiras. Tieta tem sempreuma piada nova e sua forma de contá-las arrancarisos de qualquer ouvinte. <strong>No</strong> domingo, abreo programa com um tema principal, como “Quala melhor cantada que você já recebeu?”, “Qual olugar mais exótico onde você já fez amor?”, “Vocêacredita em amor à primeira vista?”, etc. Depois deexplicar o tema, Tieta vai colocando os ouvintes noar e conversando com eles. Quando é uma mulherque participa do programa, Tieta sempre faz umabrincadeira e trata o público feminino com doçurae bom humor. Já quando é um homem que falacom ela ao telefone, Tieta faz gracejos, propostas,pergunta sobre suas qualidades físicas e atributossexuais. Tieta trata seu público masculino como“amor”, “f<strong>of</strong>o”, “lindinho”, entre outros nomes.Mas é interessante observar que, pela audição doprograma, percebe-se uma predominância de ouvintesheterossexuais.O criador de Tieta PresleyO radialista Rodrigo Rocha , criador de Tieta Presleye de muitos outros personagens humorísticos,desde menino revelou seu talento para imitações.Nasceu em Belo Horizonte, no dia oito de março de1972 e não chegou a terminar o Ensino Médio. Aos15 anos, Rodrigo fez uma prova para entrar na RádioCultura de Sete Lagoas e escolheu a coberturaesportiva, sua grande paixão até hoje. Aos 18 anosfoi contratado pela Rádio Eldorado de Sete Lagoascomo narrador esportivo e ganhou um programana TV local. Logo depois, foi descoberto pela RádioItatiaia, líder no esporte em Minas e, em 1994, foicontratado pela emissora.Além da dedicação ao esporte, evidenciou-sea veia cômica de Rodrigo. Rapidamente, ganhouuma participação diária na Rádio Extra, empresado mesmo grupo da Itatiaia. Para o programa Grafite,Rodrigo levou o personagem Tieta Presley, quenascera em Sete Lagoas. Foi tão grande o sucesso deTieta que a direção da emissora criou só para ela,Depoimento concedido à autora em 09/03/2004, especialmentepara este trabalho.64Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>


O rádio mineiro rende-se aos encantos de um travesti:o discurso, o humor e o mito na vida e na obra de Tieta PresleyNair Pratano horário nobre da rádio – das dez da manhã aomeio-dia – um programa de nome Silicone.O programa ficou no ar de 1996 a 1999. Quandoa Rádio Extra mudou sua programação, RodrigoRocha foi contratado pela Rádio Liberdade,onde hoje desempenha duas funções: é responsávelpelo noticiário do futebol e esportes em geral e pelapersonagem Tieta Presley. Às vezes, criador e criaturaencontram-se no ar: Rodrigo Rocha e TietaPresley dialogam, principalmente quando há notíciasdo esporte para serem veiculadas no programade domingo.A vida e a obra de Tieta PresleyTieta Presley foi criado por Rodrigo Rocha, em 1992,em Sete Lagoas, no programa Roleta Russa, que eraconduzido da seguinte forma: o repórter UbiratanSilva ia para a rua, cobrir um determinado fatojornalístico, geralmente na área policial. RodrigoRocha ficava no estúdio e, a cada notícia, fazia umcomentário na pele de uma pessoa famosa. Assim,eram comuns as “participações” de Sílvio Santos,Pelé, Gil Gomes, Maguila, etc. Certa vez, o repórterfoi fazer uma matéria na zona boêmia de Sete Lagoase, no estúdio, Rodrigo não sabia qual personageminserir naquela situação, por isso resolveu inventaruma coisa nova e, assim, nasceu Tieta Presley. A partirdeste dia, os ouvintes começaram a ligar para arádio, pedindo a volta do personagem, que acaboutendo participação freqüente na emissora.O nome do personagem surgiu por causa da novelaTieta do Agreste, que estava sendo exibida pelaTV Globo. O sobrenome é uma homenagem a ElvisPresley, pois na época havia uma acirrada polêmicasobre a veracidade da morte do cantor e algumaspessoas acreditavam que ele estivesse vivo.O programa Silicone, apresentado por TietaPresley na Rádio Extra, fez enorme sucesso desdeque entrou no ar. Começaram a surgir convites parashows, animação de festas e aparições públicas. Ocabeleireiro Fernando Montenegro foi contratadopela direção da rádio para, durante três meses, ensinara Rodrigo Rocha falas, trejeitos, posturas e expressõesmais utilizadas pelos travestis. Essa práticalaboratorial incluiu até a preparação de um glossáriocom as principais gírias usadas pelos travestis. Aemissora também teve de contratar um pr<strong>of</strong>issionalpara cuidar do figurino e da maquiagem de RodrigoRocha para a sua transformação visual em TietaPresley.<strong>No</strong> início, Rodrigo montou um show apenascom voz e violão. Depois, a demanda cresceu e umabanda passou a se apresentar junto com Tieta, quecanta, dança e brinca com o público. <strong>No</strong>s primeirostempos, não havia a preocupação de esconder aidentidade de Tieta Presley. Depois, a direção daRádio Extra percebeu que seria melhor manter aseparação entre Rodrigo Rocha – que passou a seidentificar apenas como produtor do Silicone – eTieta Presley. Rodrigo Rocha diz que o personagemTieta Presley só lhe trouxe alegrias até hoje euma das maiores ocorreu quando a Tieta foi participarde uma promoção num shopping da cidadede Contagem, na Grande Belo Horizonte, e três milpessoas se espremeram para ganhar um autógrafo.Até a polícia precisou ser chamada para acalmaros ânimos.Rodrigo diz que são poucos os problemas geradospor seu personagem. Um deles é como contara cada nova namorada que ele é a Tieta Presley dorádio, no entanto o radialista ressalta que isso nãochega a ser grave, pois a Tieta é muito amada e asmulheres acabam gostando da coincidência. Tambémenfrenta dificuldades quando vai comprar roupasou maquiagem para Tieta, mas acaba dando umjeito ou pedindo ajuda a alguém. Um outro problemaé quando Tieta faz promoções em boates gays,pois sempre aparece alguém querendo agarrá-la. Aíos seguranças entram em ação.Afinal de contas, quem é Tieta Presley?Rodrigo Rocha explica que Tieta Presley nasceuRoberval de Oliveira Santos, na cidade de Itaquaquecetuba,interior de São Paulo. Ela nasceu nomesmo ano do seu criador – 1972 – só que Rodrigoé do dia oito de março e Tieta, do dia 24 de março.Roberval passou a infância e a juventude com afamília em Itaquaquecetuba. Aos 18 anos, serviu oExército e, depois das experiências vividas lá, transformou-senum travesti.Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>65


O rádio mineiro rende-se aos encantos de um travesti:o discurso, o humor e o mito na vida e na obra de Tieta PresleyNair PrataA partir daí, deixou a família e foi para a Capital,onde se projetou na área de moda e estilismo,trabalhando nas principais feiras do gênero, comoa São Paulo Fashion Week, entre outras. Lá em SãoPaulo, já com o nome de Tieta Presley, foi descobertapela Rádio Extra de Belo Horizonte, e convidadaa fazer um programa de rádio na capital mineira. Oprograma fez grande sucesso e passou a ser enormeo entusiasmo dos ouvintes. Quando a Rádio Extramudou o seu perfil de programação, Tieta foi convidadaa assinar contrato com a Rádio Liberdade.Por onde passa, Tieta é assediada por seu público.Faz shows em clubes, boates, shoppings, bailes,sempre acompanhada por uma equipe constituídapor seguranças, cabeleireiro, maquiador, produtore empresário. Às vezes, alguns fãs mais histéricostentam agarrar Tieta e ela é obrigada a se protegerpara não se machucar.Na Rádio Liberdade, Tieta conversa com seusouvintes como uma grande amiga e partilha comeles seus sonhos e realizações. Ela conta que é primade Elvis Presley e que de três em três meses temque ir aos Estados Unidos para se encontrar comele, mas não revela – em hipótese alguma – ondeo cantor está escondido. Tieta também fala de seusex-namorados: Bill Clinton, Tom Cruise, Brad Pitt,geralmente artistas internacionais, pois ela morouum bom tempo em Beverly Hills e chegou a receberconvites para trabalhar em cinema, mas Tieta explicapara seus ouvintes que não gosta dos hol<strong>of</strong>otesda mídia, pois prefere o rádio.O grande sonho de Tieta Presley – e ela não secansa de dizer isso aos seus milhares de ouvintes – éser operada e transformar-se em mulher. Aliás, o Dr.Ivo Pitangui teria tentado fazer a intervenção, masnão teria sido possível realizá-la por causa de umarejeição. Essa preparação para a cirurgia de Tietamostrou, na realidade, como é grande a popularidadedela. Os ouvintes faziam orações no ar, enviavamsantinhos e crucifixos para protegê-la no hospitale, nos dias que antecederam a cirurgia, muitos foramà rádio prestar pessoalmente sua solidariedade.Um ouvinte chegou a levar uma imensa imagem de<strong>No</strong>ssa Senhora, com o objetivo de proteger Tieta namesa de operação. Um outro propôs que todos fizessemuma grande corrente de oração pelo sucessoda cirurgia.<strong>No</strong> dia marcado para a cirurgia quem apresentouo programa foi o produtor de Tieta, o radialistaRodrigo Rocha. Ele começou dando bom diaaos ouvintes, sério como sempre, e pediu que todosrezassem por Tieta Presley, pois naquele dia ela estariarealizando o grande sonho de sua vida. <strong>No</strong>primeiro programa depois da frustrada tentativa dese transformar em mulher, Tieta abriu o micr<strong>of</strong>onechorando copiosamente por vários minutos seguidos.Entre lágrimas, explicou aos ouvintes o quetinha acontecido e falou de sua vontade em continuarperseguindo seu sonho. Tieta recebeu inúmerasmanifestações de apoio do seu público, além demuitas orações.Mas ela diz que ainda quer realizar este sonho.Enquanto isso, mora em São Paulo e enfrenta aponte aérea toda semana para Belo Horizonte, ondefica hospedada num hotel cujo nome é mantido sobsigilo. Continua trabalhando com moda, namorandoe sendo amada pelos seus ouvintes da Rádio Liberdade.<strong>No</strong> programa, Tieta é alegre, alto astral, feliz, realizada,cheia de energia. Em momento algum mostratristeza e convida sempre seus ouvintes a nãoabaixar a cabeça diante dos problemas, mas enfrentartudo o que a vida <strong>of</strong>erece. Tieta é uma espécie de“mãezona” para seu público: escuta relatos, dá conselhos,liga para quem está com problemas. Quantomais ela se comporta assim, mais atrai a simpatia eo amor dos ouvintes, que escrevem cartas, mandame-mails ou telefonam, em busca de ajuda.Tieta gosta de veicular campanhas educativasem seu programa. A mais antiga delas é contra aAids. Ela explica aos ouvintes os cuidados que devemser tomados para evitar a doença e, ao mesmotempo, pede proteção e carinho para os soropositivos.Outra campanha importante de Tieta Presley:o uso do preservativo. Nessas horas, ela fica bravaao explicar os problemas que podem surgir sem aprevenção nas relações sexuais. Tieta também alerta,por exemplo, para o perigo das estradas, pedeaos motoristas que façam uma revisão segura emseus carros antes de viajar e diz aos seus ouvintes66Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>


O rádio mineiro rende-se aos encantos de um travesti:o discurso, o humor e o mito na vida e na obra de Tieta PresleyNair Prataque bebida e volante não combinam. Uma campanhainteressante e que atinge particularmente osjovens é a que condena o uso de drogas. Tieta, umapessoa vivida, explica tudo o que pode acontecerquando alguém resolve enveredar por esse caminho.Além disso, ela se preocupa com as pessoasque lhe fazem pedidos e, embora muitas vezes nãoseja possível atendê-los, pois solicitam desde materialde construção, material escolar, exames, empregoe até dinheiro, Tieta liga para cada um paraexplicar que não pode ajudar e transmitir palavrasde consolo.Tieta Presley sabe contar casos como ninguéme é impossível deixar de rir diante de suas piadas,seus trejeitos e suas observações. É impagável quandoelogia um homem e deixa qualquer um de bomhumor ao falar dos atributos masculinos. Ela estárealizando a Campanha Nacional da Piada SemGraça e os ouvintes devem ligar e participar: ganhamprêmios os que conseguem atingir o objetivoda promoção. A cada piada sem graça contada porum ouvinte, Tieta toma uma atitude diferente: orari muito, ora chora, ora fala que vai embora da rádioou até fica muda por vários segundos. Todasessas atitudes acabam arrancando intensas gargalhadasdo público em geral. Tieta Presley atende osouvintes da rádio por telefone, carta ou pelo e-mail:tieta@radioliberdade.com.br.Tieta Presley e o relacionamento com os ouvintesTieta Presley é assediada tanto por homens, quantopor mulheres. Rodrigo Rocha diz que Tieta é tratadacomo se fosse um mito, com pessoas à beirado palco chorando, fã-clube organizado e ouvintesindo à rádio só para ver uma fotografia dela. Rodrigoconta um destes casos de assédio:Uma vez uma menina chegou na Extra e mandouchamar a Tieta. Eu, Rodrigo, desci como produtor, eera uma garota maravilhosa, lindíssima, que me entregouuma carta e pediu que eu a entregasse à Tieta. Amenina disse: Mas eu estou aqui embaixo esperando aresposta. Fui lá em cima, abri a carta e li e ela queriafazer amor com a Tieta na hora do programa, na mesada rádio. A menina tinha 18 anos. A Tieta respondeuque não seria possível atender ao desejo da garota.(Entrevista com Rodrigo Rocha)Já o assédio dos homens é mais sutil, geralmentepor escrito. Rodrigo conta que já recebeu cartasde soldados propondo um romance. Também presidiáriosencantam-se com Tieta. Um deles chegoua escrever uma carta, falando de sua tristeza, poisseu rádio havia quebrado e ele não poderia maisescutar o programa. Rodrigo comprou um rádio e,em nome de Tieta Presley, mandou fazer a entregana penitenciária.Rodrigo Rocha explica que Tieta Presley usa ohumor como instrumento para ajudar as pessoas,gente que está com depressão, com problema emcasa ou no trabalho. Ele explica:Eu me coloco como se fosse da família deles, que aTieta é uma mãe, uma irmã, uma amiga, uma pessoapróxima, que não pode estar presente fisicamente, masque está presente pelo rádio. As pessoas enviam cadacarta... Às vezes são problemas tão sérios que eu nemconsigo ler até o fim. As pessoas relatam os problemase depois pedem ajuda à Tieta. As cartas não são lidasno ar. Se eu ler estas cartas no ar acabou o Brasil,não posso não. Aí eu vou dar margem para o pessoalmandar e pedir mais. Não posso. Quando mandamtelefone eu entro em contato e converso com a pessoa.Rodrigo Rocha revela que já recebeu uma propostapara se candidatar a vereador, só que na pele deTieta Presley. Ele fala sobre esta proposta:Eu não quero me envolver com política. Imaginase a Tieta ganha? Eu vou ter que viver 24 horas emfunção da Tieta, não é a minha realidade, aí eu vou metransformar no meu personagem, não posso fazer umacoisa dessas. Fico imaginando a repercussão de umacoisa assim... Eu vejo que a Tieta do bem, do bom humor,que gosta de resolver os problemas das pessoas,sou eu mesmo. Mas eu não posso transformar a minhavida na vida da Tieta.Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>67


O rádio mineiro rende-se aos encantos de um travesti:o discurso, o humor e o mito na vida e na obra de Tieta PresleyNair PrataAs cartas para Tieta PresleyTieta Presley recebe muitos e-mails e cartas de seusouvintes, uma das quais Rodrigo guarda com carinhoespecial. Trata-se de uma carta-rolo, enviadapor uma ouvinte, que escreveu 3<strong>2.</strong>500 vezes a fraseEu Te Amo. Na Rádio Liberdade, principalmente,as cartas quase sempre vêm acompanhadas de umpedido. A seguir, são transcritos trechos de algumasdelas, enviadas a Tieta Presley no mês de março de2004. Foram selecionados apenas os trechos representativospara este artigo, sem qualquer correçãono texto dos remetentes, cujo anonimato foi preservado.Querida Tieta. Confesso-lhe tanto carinho, satisfação,alegria, agradecimento por espalhar amor, dedicaçãoaos ouvintes da Liberdade. Tenho problemas, mas éimpressionante como você alivia nossa tristeza (minhatristeza). Não é demagogia, mas Amo você. Sua doçurasimpatia contagia, contamina com solidariedade, comentusiasmo. Seu amor é a maior dádiva para os ouvintes,para o Rádio. Aliás, como todos meus pesadelosmorro de rir aos domingos. É uma injeção de ânimo,amor. É Dom de Deus. Precisamos de pessoas comovocê para não morrer em angústia. Não imagina oquanto nós amamos Tieta. As crianças. Que gracinha!Elas morre por você! Sabe, não tem explicação. Vocêtem muito fã criança. E você sabe o quanto são sinceras.Te Amo. Você é super-sensacional.Olá, querida Tieta Presley. Que Deus envolva desolidariedade ainda mais seu coração para que vocêpossa com as graças de Deus e com a Liberdade FM,me ajudar. Preciso muito da sua atenção, humanidadee acima de tudo, da sua compreensão. Ajude-me.Sabe Tieta, tenho 29 anos e vivo um drama, umatragédia desde os 12 anos. Já não sei mais o que fazer.Estou completamente desesperada, vivo angustiada,deprimida. Minha vida é chorar o tempo todo. Tenhomedo de voltar a ter depressão, pois já tive e chegueiao ponto de tentar colocar um ponto final na própriavida. É meu sonho poder estudar. Nada posso. Tudo éimpossível. Acontece Tieta, que infelizmente não tenhoonde morar. Vivo de favor num lugar aos pedaços e àsvezes não tem as coisas.Oi Tieta. Em primeiro lugar gostaria de parabenizarvocê pelo seu enorme sucesso, eu adoro você comtodo o carinho deste mundo. Tieta por favor leia comatenção e tente com todo o carinho mim ajudar... peçoum emprego procuro em todo lugar mas todos pedemcursos e infelizmente sou pobre e não tenho condiçãode pagar algum curso que eles pedem.Tieta. Volto a lhe escrever... enquanto não tiver a oportunidadede reunir minha família com sua presença,é claro, pois todos te adoram, eu não vou sossegar seisso for possível pois sei que você é uma pessoa superocupada. As portas da minha casa estaram sempreabertas pra você, basta querer somos pessoas simplesmas com o coração cheio de carinho por você.Marques de Melo (1985) identifica a carta do leitorcomo um gênero jornalístico. Chaparro (1992) dizque, como gênero jornalístico, a carta é a manifestaçãoopinativa, reivindicatória, cultural ou emocionaldo leitor. <strong>No</strong> caso do texto impresso, podemser classificados em quatro grupos os leitores queescrevem ao jornal (Marques de Melo, 1985: 131):1) As autoridades: que procuram louvar ou retificardeterminadas informações ou conceitos publicados;2) Os perfeccionistas: leitores que não deixam passarequívocos, erros ou omissões do jornal e exigemas necessárias retificações; 3) Os lesados: aquelesque, considerando-se prejudicados ou injustiçadospelas instituições, desabafam seu descontentamentoatravés de denúncias, admoestações ou lamúrias; 4)Os anônimos: pessoas que, sem coragem de assumirposições, valem-se de mil subterfúgios para ver publicadassuas opiniões.Uma avaliação das cartas enviadas a Tieta Presleypelos ouvintes permite a observação de que algunselementos se repetem. Alguns itens principais aparecemnas colocações: as queixas, elogios e sugestões;o respeito, a amizade, a seriedade da rádio; a idéiade família e de pertencimento que a rádio transmite;a identificação dos ouvintes com a linha de trabalhoda rádio; a alegria e alto astral da emissora; a defesados direitos das pessoas mais humildes; a programaçãoda rádio funcionando como companhia das68Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>


O rádio mineiro rende-se aos encantos de um travesti:o discurso, o humor e o mito na vida e na obra de Tieta PresleyNair Pratapessoas; o imaginário diante da voz de quem fala norádio; a definição de Tieta Presley como uma pessoaque pode resolver os mais diversos problemas.DiscursoFoucault apud Maingueneau (2000) explica que discursoé um conjunto de enunciados que dependemda mesma formação discursiva. Dada sua amplitude,é sempre difícil traçar um recorte, como afirmaMari (2000:13): “por onde devemos começar:pela tipologia de sua organização, pelo recorte devozes nele presente, pela proeminência de algumaorientação temática, por algum tipo de jogo interlocutivo?”Neste artigo abordaremos apenas três aspectosdo discurso do programa Tieta Presley: o discursodo personagem, a voz do locutor e o encontro entreTieta Presley e seu criador, Rodrigo Rocha.O discurso do personagemTieta Presley é um produto de mídia. Trata-se de personagemque atua duplamente: está presente juntoaos ouvintes de domingo a sexta-feira no programade rádio e faz aparições públicas em eventos em geral.Segundo Silva (2001), as mídias de informaçã<strong>of</strong>uncionam segundo uma dupla lógica de ação, fatordeterminante na transmissão de informações: 1)Econômica – o órgão de informação é uma empresae como tal tem por finalidade a fabricação de umproduto competitivo no mercado; 2) Semiológica– todo órgão de informação deve ser consideradouma máquina produtora de signos (formas e sentidos).O discurso de Tieta Presley, como práticamidiática, passa, certamente, por essas duas vias, aeconômica e a semiológica. É importante destacarque, diferentemente de outras práticas sociais, aspráticas midiáticas são essencialmente constituídaspor discursos (Burger, 2002).O discurso de Tieta Presley é fundamentado na caricatura,é certo, mas sua linguagem tem como objetivocentral a troca entre emissor e receptor. Lochard(2002:255) explica que o vocabulário dos pr<strong>of</strong>issionaisda mídia não é estanque e que estes fenômenosde troca operam em duas direções: a) empréstimosde termos de origem técnica, mobilizados para finspuramente descritivos e b) processos de apropriaçãoe reciclagem de noções teóricas tais como “conotação”,“espaço público”, “elo social”, realizadas nosmeios pr<strong>of</strong>issionais, nas duas últimas décadas.Uma questão importante no discurso de TietaPresley é o paradoxo verdade/mentira, tendocomo base o segredo de sua verdadeira identidade.O programa parte da premissa de que os ouvintesacreditam na existência de Tieta Presley e que ninguémsabe que ela é apenas um personagem criadopelo radialista Rodrigo Rocha. Toda a linguagemdo travesti é fundamentada na pressuposição de suaexistência real, com vida, personalidade e trabalhopróprios.Numa perspectiva sociológica, é possível recorrera Georg Simmel (1858-1918), ensaísta queescreveu sobre os mais variados campos das ciênciashumanas e considerado um dos fundadores daSociologia. <strong>No</strong> livro Estudios sobre las formas desocialización (1986), reservou um capítulo sobre ateorização do segredo. Para Simmel, a forma materializa-seem conteúdos diferentes, nas relações sociaise, o segredo pode ser entendido sob essa ótica:pode ser facilmente reconhecido como dialética empermanente tensão, ultrapassando o poder de manobrados indivíduos.Simmel (1986:385) observa que o segredo podeagir como patrimônio e valor que enaltece a personalidade,o que, no entanto, pode gerar uma contradição:“o que se reserva e esconde aos demais,adquire justamente na consciência dos outros umaimportância particular, pois o sujeito se destaca justamentepor aquilo que oculta”.Para o autor, toda relação entre pessoas faz nascerem cada uma a imagem da outra, imagem queestá evidentemente em ação recíproca com aquelarelação real. À medida que progride a adaptaçãocultural, vão sendo tornados mais públicos os assuntosda generalidade e mais secretos os dos indivíduos.Outra questão importante acerca do discurso é acaracterização do gênero. Borelli (1995:79) conceituagênero como “modelos dinâmicos, com repertóriovariado de estruturas, que resultam da conexãoentre um ou mais gêneros e da relação entre formasStockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>69


O rádio mineiro rende-se aos encantos de um travesti:o discurso, o humor e o mito na vida e na obra de Tieta PresleyNair Prataoriginais e elementares, com novos recursos que,introduzidos, transformam e recriam padrões maisou menos acabados.” Para Bakhtin (1992:262) sãoinfinitas a riqueza e a diversidade dos gêneros dodiscurso porque são inesgotáveis as possibilidadesda multiforme atividade humana.<strong>No</strong> estudo do programa Tieta Presley, recorremosao modelo de categorização de gênero, proposto porHoward et al (1994). Para a programação no rádio:a) formatos baseados em música; b) formatos baseadosem informação (modelos “all news”, “talkradio”ou “news-talk”) e c) formatos especiais. Oprograma Tieta Presley apresenta um formato baseadoem informação, perfil “news-talk” que, segundoHoward, é um modelo híbrido, combinando a forçado “all news” com o “talk-radio”. É um formato quemistura entrevista, informação, participação de ouvintespelo telefone e tema do dia, tudo isso veiculadoem longos períodos de transmissão.A voz do locutorO trabalho de Tieta Presley no rádio pode serenquadrado na categoria, proposta por César(1990:88), de locutor apresentador-animador, tipode pr<strong>of</strong>issional que “apresenta e anuncia programasde rádio e televisão, realizando entrevistas e promovendojogos e brincadeiras, competições e perguntasinerentes ao programa em auditório, rádioou televisão.”É importante lembrar que a relação de Tieta comseus ouvintes se dá efetivamente pela voz do personagem:uma fala caricaturada de um travesti, masrevestida de carinho, doçura e grande dose de bomhumor. Barthes (1982:226) afirma que “toda a relaçãocom uma voz é forçosamente amorosa,” poispela voz de quem fala no rádio o ouvinte idealiza,cria imagens e fabrica diálogos mentais.Paiva (1997:554) sugere que existe um sentimentode identificação entre o ouvinte e a voz da pessoado rádio, com a fala substituindo os olhos paraaquele que a escuta, pois “a relação rádio-ouvinteconstrói no emocional um compartilhamento, umespaço singular de relações”. Assim, o rádio atingeos ouvintes em sua intimidade e “permite falarde um ato comunicativo de natureza relacional noqual o radialista e o ouvinte compartilham um mesmouniverso de sentido.” É o que a autora chamade um sentir comum, “por uma proximidade quedesigna uma forma de intimidade”.Nunes (1993:25) fala da existência de um universosignificante moldado a partir da voz: “a voz ea palavra constroem textos escritos/oralizados queveiculam signos míticos aptos a ritualizar a escutaradi<strong>of</strong>ônica.”Charaudeau apud Carvalho (2000:159) diz quea magia particular do rádio se deve à ausência deencarnação e à onipresença de uma voz pura. Segundoo autor, “a voz – timbre, entonação, intenção– revela o estado de espírito daquele que fala.Assim, ele poderá parecer forte ou fraco, autoritárioou submisso, emotivo ou controlado, frio ou emocionado,tudo isso com que jogam os políticos epr<strong>of</strong>issionais da mídia.”<strong>No</strong> caso de Tieta Presley, o personagem no rádioé construído essencialmente pela voz. Nas outrasinstâncias em que o personagem aparece – shows,bailes, boates – as roupas, a maquiagem, acessóriosfemininos e os trejeitos dão suporte e veracidade àvoz. <strong>No</strong> rádio, porém, é pela voz que Tieta se constrói,se mostra e se torna real para os ouvintes. Épela voz que Tieta é reconhecida pelo seu público, eseus ouvintes percebem nela a alegria, o alto-astral,a solidariedade, o bom humor, a indignação e, emalguns casos, a tristeza diante das misérias. Comoafirma Charaudeau apud Carvalho (2000:159), “avoz no rádio instaura uma relação muito particularentre a instância midiática e o receptor na qual avoz revela a quem escuta, atento ou inconsciente,os movimentos de afeto, sentimentos favoráveis oudesfavoráveis, os tremores das emoções.”Este tópico pode ser encerrado com um belo textodo locutor mineiro Eduardo Lima (1998) publicadono livro de crônicas Além da Voz:Foi culpa de minha voz, a perdição. A cada ditongomeu, a cada vogal flexionada, faziam festa. E eu meperdi, escravo de minha voz, feito se perdem do cantoos passarinhos. Falei nos bares, falei nos bailes de gala,falei nas pompas, falei no acaso das noites. Falei natribuna, falei na lacuna, falei nos cantos escuros. Subi70Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>


O rádio mineiro rende-se aos encantos de um travesti:o discurso, o humor e o mito na vida e na obra de Tieta PresleyNair Pratanos postes, gravei acetato, fui carro volante. Saí na TVe, numa noite de lua cheia, uivei de prazer. Fui confundido,fui destemido, fui consumido. Virei detergentee, num instante de luz, fiz um pequeno milagre nocoração da debutante. Vieram cartas de longe e, numcerto dia de maio, uma viúva provecta mostrou-mea calcinha molhada. Ternura, nem sustos, faltaram.(Lima, 1998:200-201)O encontro entre Tieta Presley e seu criador,Rodrigo RochaSomente a credibilidade pode explicar a percepçãodos ouvintes diante do encontro entre Tieta Presleye seu criador, Rodrigo Rocha. Estes diálogos acontecemesporadicamente, principalmente quandoRodrigo participa do programa de Tieta para veicularalguma notícia esportiva, mas são extremamentericos do ponto de vista da linguagem e da comunicação,pois mostram as infinitas possibilidadesda voz. Para Paiva (1995), a credibilidade aparececomo uma espécie de crença que dá suporte à relaçãoentre o ouvinte e o emissor. A autora explicaque, “para os ouvintes, essa legitimidade conferidaao rádio nasce através da restituição da dignidadeque o veículo faz questão de atribuir à vida cotidianados homens comuns” (Paiva, 1995:23).A singularidade do encontro de Tieta e Rodrigo– e do discurso utilizado por ambos – remete aoque Jakobson (1971:24) afirma: “como sabemosmuito bem, uma das tarefas essenciais da linguagemé vencer o espaço, abolir a distância, criar umacontinuidade espacial, encontrar e estabelecer umalinguagem comum através das ondas.”Outra questão importante a ser avaliada nesseencontro no rádio é a dualidade do comunicadorRodrigo Rocha. Uma única pessoa desdobra-se emduas e os ouvintes acreditam na existência materialdas duas vozes que são transmitidas pelo rádio. Paraclarear esta análise, pode-se tomar por empréstimoa avaliação de Umberto Eco (2000), quando ele escrevesobre o Superman, que tem superpoderes, masé terráqueo e frágil ao mesmo tempo. Seria este ocaso de Tieta Presley e Rodrigo Rocha?Quando se fala nesta dualidade, a questão dotravestismo não pode ser deixada de lado, ainda quenuma análise bastante superficial, devido à complexidadedo tema. Barbosa (1984:141) diz que “o debatesobre a homossexualidade sempre foi travadodentro dos seguintes parâmetros: ou era pecado, oucrime, ou doença ou sem-vergonhice, quando nãotodos”. Assim, por mais paradoxal que possa parecerà tradicional família mineira, as qualificaçõesdadas pelo público a Tieta Presley não se enquadramnesses termos que remetem a pecado, crime,doença ou sem-vergonhice. Em entrevista concedidaa este trabalho, Rodrigo Rocha disse que Tieta écomo uma “mãezona” para seus ouvintes. A fundamentaçãoteórica para esta relação pode ser buscadana fala de Goldin (1989:117), quando ele explica,com base em Freud, que “as relações homossexuaisfreqüentemente não reproduzem uma relação homem-mulher;mas sim uma relação mãe-filho; emgeral um deles é o protetor e o outro protegido; umé mãe (ou pai) e o outro, completamente, filho.”Desta forma, poderia ser traçada a configuração darelação entre Tieta e seu público: uma “mãezona”que cuida de seus filhos e os protege.Em outro trecho da entrevista, Rodrigo explicaque, quando Tieta tenta ajudar as pessoas, no fundoé ele mesmo, Rodrigo, quem é assim. Pode-se concluirque é apenas Rodrigo que usa a roupagem deTieta para ser um comunicador do bem, mantendoa sua personalidade original. Goldin (1989:117) dizque, no caso dos travestis, nem mesmo as cirurgiase os hormônios podem mudar a essência de umapessoa, que preserva sempre a sua originalidade.Assim, pode-se afirmar que Tieta Presley é, no finaldas contas, Rodrigo Rocha. Aliás, Rodrigo mesmoconfessa isso, que não há mentiras em Tieta, não háfarsas. É ele quem está ali, ao micr<strong>of</strong>one, encantandoe seduzindo o público, só que numa outra roupagem,na pela de um personagem de voz feminina.A psicóloga clínica Cláudia Natividade explica que“se observarmos bem as falas, o posicionamento,os julgamentos de Tieta Presley podemos analisarque ela também segue um padrão tradicionalmentemasculino – entendendo-se aqui o estereótipo mas-Depoimento concedido à autora em 07/05/2004, especialmente paraeste trabalho.Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>71


O rádio mineiro rende-se aos encantos de um travesti:o discurso, o humor e o mito na vida e na obra de Tieta PresleyNair Prataculino socialmente construído e reforçado”. Segundoela, este padrão “contempla um jogo de poderquando o locutor diz verdades a seus ouvintes, convocaas pessoas a fazerem coisas, julga o que é certoe o que é errado, adquirindo o status da comunicaçãohegemônica masculina de sucesso”.HumorPara Hartmann e Muller (1998:85) não é corretoconsiderar o rádio somente como instrumento deeducação, conscientização, informação e prestaçãode serviços. Segundo os autores, o rádio “é tambémimportante meio de entretenimento, em que o humorpassa a ter um espaço privilegiado. O humor é,na verdade, um dos grandes recursos radi<strong>of</strong>ônicos,mesmo para educar e evangelizar”.McLeish (2001:104) diz que todos nós gostamosde rir e, no caso do rádio há, segundo o autor, umaligação perfeitamente lógica entre gostarmos de umanúncio porque ele nos fez rir e gostar do produtoque está sendo promovido: “a marca passa a ganhara nossa estima ao se associar com algo que éespirituoso e divertido”. Hartmann e Muller (1998)relacionam nove estratégias para alavancar a programaçãode uma emissora de rádio. Uma delas éo que os autores chamam de “dê largas à fantasia”– explicada como um escape à dura realidade – umacaracterística intensamente presente no programaTieta Presley.Num trabalho com ouvintes da Rádio Farroupilha,em Porto Alegre, Grisa (1999) traça dezpossíveis sentidos da escuta do rádio de audiênciapopular. O primeiro sentido, o lúdico, significa diversão,alegria, lazer, entretenimento, riso, prazer.O autor explica que o lúdico posiciona a rádiocomo instrumento promotor da alegria, do lazere da diversão.<strong>No</strong> livro A alegre história do humor no Brasil,Jota Rui (1979) traça um amplo panorama sobrea presença do humor nos mais variados camposda sociedade brasileira ao longo de 500 anos. <strong>No</strong>rádio, o humor sempre esteve presente. Siqueira(2001:167) explica que, além da música e do drama,o riso, sob o aspecto de produto cultural, teveatuação representativa na mídia. Segundo a autora,“os programas de rádio de humor caracterizaramsepela diversidade de personagens, pelas situaçõescaricaturadas, pela visão humorística do dia-a-diadas famílias, pelas sátiras sociais e políticas”.Num trabalho sobre a história da radi<strong>of</strong>oniabrasileira, Calabre (2002:46) diz que o rádio levoua sério sua função de divertir. Segundo a autora,“os programas humorísticos radi<strong>of</strong>ônicos alcançavamaltos índices de audiência, concorrendo com osprogramas de música e com as radionovelas pelotítulo de campeão de popularidade”. Costa e <strong>No</strong>leto(1997) lembram que, entre os programas humorísticosno rádio, os de maior sucesso em âmbitonacional foram: PRK-30, comédias que imitavamos principais programas da Rádio Nacional; Jararacae Ratinho, dupla caipira que cantava com humoros acontecimentos e as figuras de destaque dapolítica brasileira; Balança mas não cai, programacom grande elenco de cantores e rádio-atores queinterpretavam histórias engraçadas.Martins (2000) distingue nove formas de humor:facécia, chiste, piada, zombaria, gracejo, ironia, sátira,ironia pesada e anedota em formação. <strong>No</strong> casoespecífico do programa Tieta Presley, é pertinenteafirmar que estão presentes a piada, o gracejo, aironia e a sátira.Além das piadas contadas pelos ouvintes e pelaprópria Tieta, são inúmeras as brincadeiras de duplosentido, geralmente envolvendo questões ligadasà sexualidade. Certa vez, por exemplo, um ouvintedisse a Tieta, no ar, pelo telefone, que se preparavapara viajar. Tieta, então, lhe perguntou: “E qual otamanho da sua mala?”. O ouvinte, sem pestanejar,respondeu: “É bem pequenininha, só gosto de malapequena.” Tieta começou a rir e disse que só gostavade malas grandes. A palavra “mala” é uma gíria,muito utilizada no universo dos travestis, para sereferir ao membro sexual masculino. Outro exemplodestas brincadeiras: uma ouvinte disse a Tieta,ao ser perguntada sobre sua pr<strong>of</strong>issão, que costuravapara fora. Tieta perguntou se ela fazia todo tipode serviço e a ouvinte disse que sim. A partir daí, foise desenrolando um diálogo de duplo sentido, poiscada uma falava de um contexto diferente. A ouvintefalava do seu <strong>of</strong>ício de costurar e Tieta abordava72Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>


O rádio mineiro rende-se aos encantos de um travesti:o discurso, o humor e o mito na vida e na obra de Tieta PresleyNair Prataum outro lado da questão, advinda da expressão“costurar para fora”, que quer dizer trair o marido,ser infiel, buscar outros companheiros.Martins (2000:170) explica que, no âmbito dosestudos de linguagem, “o discurso do humor é umaprodução interativa e interdiscursiva que incorporaas tensões sociais, interesses ideológicos e o inconscientecoletivo”. O humor no trabalho de TietaPresley, através de sua ambigüidade, incorpora deforma lúdica diversos problemas sociais e dessa formaatrai e fideliza seus ouvintes. Um bom exemploé quando Tieta trata questões sérias de forma bemhumorada. Certa vez, por exemplo, um ouvinte lhecontava sobre o relacionamento que tivera comuma mulher. Tieta lhe perguntou se ele se lembrarade usar camisinha. O ouvinte lhe disse, então, quena pressa, se esquecera de colocar o preservativo.Tieta ficou furiosa e contou vários casos em que, aose relacionar com seus namorados famosos, mesmocom pressa, eles não se esqueceram de usar a camisinha.Por fim, disse ao ouvinte que, se algum diaquisesse sair com ela, não poderia deixar de lado opreservativo. Numa outra oportunidade, Tieta conversavacom uma ouvinte, que explicou ser donade uma confecção de roupas femininas, principalmentede lingeries. Tieta pediu, então, que a mulherfizesse um conjunto de calcinha e sutiã para ela e,pelo rádio, foi descrevendo seus atributos físicos deforma que a ouvinte entendesse sua numeração. E,enquanto se descrevia, Tieta falava que não fumava,não bebia, tinha alimentação controlada e, por isso,possuía um corpo magro e esbelto.O MitoNa definição de Homero, “mythos” quer dizer “palavra”,“discurso”. Segundo Kujawski (1994:77),“não se trata da palavra falada, mas da palavrafalante; a palavra como auto-revelação do ser”. Afunção do mito está em ampliar nossa consciência,de modo a nos colocar em plena harmonia intelectuale vital com a realidade (Kujawski, 1994: 9).Veyne (1984:57) explica que a essência de um mitonão é a de ser conhecido por todos, “mas de ser consideradocomo se o fosse, e digno de sê-lo”. A programaçãodo rádio desenvolve seu trabalho a partirda instância mítica. O endeusamento, o sucesso ea fama de seus comunicadores são pilares na construçãoda audiência, nem que para isso seja precisocriar personagens. <strong>No</strong> livro A experiência da fama,Maria Cláudia Coelho (1999:50) explica: “a famapermite a criação de uma espécie de personagempermanente. O ídolo precisa ter certas característicasque o distanciam dos simples mortais. Ele temque ser alguém com habilidades extraordinárias”.Segundo Tognolli , uma das piores perdas para amídia em geral e para o jornalismo, em particular,é o processo de massificação do mito. De acordocom o autor, “mitifica-se tudo e todos: como notavaBaudelaire, uma das feições mais insinuantesdesse mundo ‘moderno’ era a presença do eternono instante”.A teoria reforça a questão da ambigüidade domito, um fator determinante no caso de Tieta Presley.Kujawski (1994:41) diz: “nunca é demais insistirna ambigüidade do sagrado”. Veyne (1984) achaimpossível que um mito seja inteiramente mítico efala da dicotomia falso/ verdadeiro.<strong>No</strong> caso deste trabalho, é pertinente o resgatedo conceito de “olimpiano” proposto por Morin(1982). Segundo o autor, olimpianos não são apenasos astros de cinemas, mas também os príncipes,os campeões, os reis, os playboys, os artistas célebres.Eles têm dupla natureza – divina e humanae, por meio dela, efetuam a circulação permanenteentre o mundo da projeção e o mundo da identificação.De acordo com Morin (1982:104), os olimpianos“realizam os fantasmas que os mortais nãopodem realizar”. Assim, os ouvintes se realizamcom o sucesso, o glamour, o charme, o bom humore com a agitada vida amorosa de Tieta Presley. E,como nem todo mito é inteiramente perfeito – poistem dupla natureza divina e humana – o públicotambém chora com Tieta, pois ela não conseguerealizar seu grande desejo de ser verdadeiramenteuma mulher. Assim, à frente do micr<strong>of</strong>one da RádioLiberdade, Tieta Presley é revestida de um poder di-Cláudio Júlio Tognolli. Disponível em .Data deacesso: 11/09/2003.Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>73


O rádio mineiro rende-se aos encantos de um travesti:o discurso, o humor e o mito na vida e na obra de Tieta PresleyNair Pratafícil de ser dimensionado, pois é divina e humanaao mesmo tempo (seria como o Superman?). Erbolato(1984:81) diz: “O locutor é um semipoderosopr<strong>of</strong>issional, cuja voz chega às populações e passaa orientá-las”.O mito vive como no romance 1984, de GeorgeOrwell, onde havia um Big Brother que tudo observava,que tudo vigiava. Bucci (2000:151) diz que“a cultura atual é marcada pela invasão da arenapública por assuntos privados. A dimensão clássicado homem público se esvanece, consumida pelasua intimidade exposta”. O mito é constantementeobservado, pois é visto como um bem público.Os ouvintes de Tieta Presley acompanharam, porexemplo, todos os lances envolvendo a frustradatentativa de cirurgia para mudança de sexo e hojepartilham com ela o sonho de uma nova operação.TransgressãoA questão da transgressão (no sentido de ultrapassaros valores sociais ou normas pré-estabelecidas)é um forte aspecto que deve ser levado em contana vida e no trabalho de Tieta. Podemos tomar porempréstimo a fala de Azevedo (2000:74), ao avaliara escrita de Mário Cesariny, para o caso de Tieta:“afigura-se globalmente condicionada por um duplodesejo: por um lado, um desejo de comunicação– fundamento básico de qualquer possibilidade deinteração subjetiva – e, por outro, um desejo de intervençãono ‘status quo’ institucionalmente vigente”.Talvez a instância mítica de Tieta se deva justamenteao paradoxo formado por este duplo desejode se comunicar pelo rádio, enquanto questiona osparadigmas vigentes de uma sociedade heterossexuale machista.Peixoto Júnior (2004) fala, inclusive, não apenasno sentido negativo da transgressão, mas numaconcepção de transgressão criadora ou positiva, baseadana afirmação da diferença. O trabalho de Tietano rádio, e mesmo sua vida encarnada em showse apresentações, pode ser enquadrado como essavariedade de transgressão positiva e criadora, poiso objetivo não é chocar ou ultrapassar as normassociais, mas interagir com o público.O exemplo prototípico de um comunicador desucesso no rádio é preferencialmente homem, heterossexuale com uma bela voz que encanta o públic<strong>of</strong>eminino. Tieta não é nada disso e, desta forma,transgride as noções pré-estabelecidas e as normasdominantes do status quo. Assim, podemos afirmarque a transgressão de Tieta Presley se dá em váriasvertentes: na rendição da Rádio Liberdade e de seusouvintes aos encantos de um travesti; na seleção deum travesti para apresentar um programa de rádio;na personalidade e nas atitudes de Tieta; no discursohumorístico de Tieta; na criação e manutençãoda ilusão sobre a existência de Tieta Presley.Considerações FinaisTieta Presley resgata plenamente as funções do rádiocomo companheiro, amigo e prestador de serviço,além de trazer de volta o humor. Ao aliar o discursode proteção ao humor, Tieta Presley encarna,para os ouvintes, o exemplo prototípico do mito.Considerando os três recortes deste texto – discurso,humor, mito (e suas vertentes transgressivas)– o programa Tieta Presley apresenta, indiscutivelmente,características marcantes da transmissãoradi<strong>of</strong>ônica: é pela voz que tudo acontece, desde aconstrução do personagem até sua inserção na realidade,através do cotidiano dos ouvintes. TietaPresley só tem significação no rádio. As apariçõespúblicas do personagem alicerçam-se na existênciada voz transmitida pelas ondas hertzianas, a partirdaí, essa voz pode eventualmente ganhar um corporeal, mas sempre a partir de um corpo idealizadopela sensorialidade.74Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>


O rádio mineiro rende-se aos encantos de um travesti:o discurso, o humor e o mito na vida e na obra de Tieta PresleyNair PrataReferências BibliográficasAzevedo, Fernando José Fraga de (2000) ‘Transgressão emarginalidade em Mário Cesariny: a escrita como testemunhode um desejo de superação’. In Isabel Allegro Magalhães etal. Literatura e Pluralidade Cultural. Actas do 3º CongressoNacional da Associação Portuguesa de Literatura Comparada.Lisboa: Colibri.Bakhtin, Mikhail ([1979]1992) Estética da criação verbal.São Paulo: Martins Fontes.Barbosa, Júlio César T. (1984) Homossexualismo e Literatura:uma leitura do Aléxis. In: Barbosa, Júlio César; Erbolato,Mário L. Comunicação e Cotidiano. Campinas: Papirus.Barthes, Roland (1982) O óbvio e o obtuso. Lisboa: Edições70.Borelli, Silvia Helena Simões (1995) ‘Gêneros ficcionais: materialidade,cotidiano, imaginário’. In Mauro Wilton Souza (Ed.)Sujeito, o lado oculto do receptor. São Paulo: Brasiliense.Bucci, Eugênio (2000) Sobre Ética e Imprensa. São Paulo:Companhia das Letras.Burger, Marcel (2002) ‘Encenações discursivas na mídia: ocaso do debate-espetáculo’. In Ida Lúcia Machado et al. (org.).Ensaios em Análise do Discurso. Belo Horizonte: Faculdadede Letras da UFMG.Calabre, Lia (2002) A era do rádio. Rio de Janeiro: JorgeZahar Ed.Carvalho, Woodson Fiorini (2000) ‘Análise comparativados discursos de Hamilton de Castro e Vânia Turce duranteprograma ‘Hamilton de Castro: seu amigo da madrugada’’. InCategorias e práticas de análise do discurso. Belo Horizonte:Faculdade de Letras da UFMG.César, Cyro (1990) Como falar no rádio. Prática de locuçãoAM e FM. Dicas e Toques. São Paulo: IBRASA.Chaparro, Manuel Carlos da Conceição (1992) ‘Carta’. InJosé Marques de Melo (Ed.). Gêneros jornalísticos na Folhade S. Paulo. São Paulo: FTD.Coelho, Maria Cláudia (1999) A experiência da fama. Riode Janeiro: FGV.Costa, Gilberto e Pedro <strong>No</strong>leto (1997) Chamada à ação– manual do radialista que cobre educação. Brasília: Projeto<strong>No</strong>rdeste/Unicef.Eco, Umberto (2000) Apocalípticos e Integrados. São Paulo:Perspectiva.Erbolato, Mário L. e Júlio César T. Barbosa (1984) Comunicaçãoe Cotidiano. Campinas: Papirus.Goldin, Alberto (1989) Freud explica ... Como compreendere superar alguns medos e dificuldades do homem moderno.Rio de Janeiro: <strong>No</strong>va Fronteira.Grisa, Jairo Ângelo (1999) Os Sentidos Culturais da Escuta:Rádio e Audiência Popular. Dissertação de Mestrado. PortoAlegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Mimeo.Hartmann, Frei Jorge e Frei Nélson Mueller (org.) (1998) Acomunicação pelo micr<strong>of</strong>one. Rio de Janeiro: EditoraVozes.Howard, Herbert H. et al. (1994) Radio, TV, and CableProgramming. Tenessee: Iwo State University Press.Jakobson, Roman (1971) Lingüística e Comunicação. SãoPaulo: Cultrix.Kujawski, Gilberto de Mello (1994) O sagrado existe. SãoPaulo: Ática.Lima, Eduardo (1998) Além da voz. Belo Horizonte: Armazémde Idéias.Lochard, Guy. 200<strong>2.</strong> Percursos de um conceito nos estudostelevisuais: trajetórias e modos de emprego. In: Ida LuciaMachado et al. (org.). Ensaios em Análise do Discurso. BeloHorizonte: Faculdade de Letras da UFMG.Maingueneau, Dominique (2000) Termos-chave da Análisedo Discurso. Belo Horizonte: Editora UFMG.Mari, Hugo et al. (2000) ‘Análise do discurso e ensino: aimportância de se repensar o trabalho com a língua’. In HugoMari (Ed.) Categorias e Práticas de Análise do Discurso.Belo Horizonte: Núcleo de Análise do Discurso/ FALE/ UFMG.Marques de Melo, José (1985) A opinião no jornalismobrasileiro. Petrópolis: Vozes.—. (1992) Gêneros jornalísticos na Folha de S. Paulo. SãoPaulo: FTD.Martins, João Batista (2000) Estratégias discursivas na construçãodo humor. Dissertação de Mestrado. Belo Horizonte:Universidade Federal de Minas Gerais, Mimeo.McLeish, Robert (2001) Produção de Rádio – Um guia abrangentede produção radi<strong>of</strong>ônica. São Paulo: Summus.Morin, Edgar (1982) Cultura de massa no século XX. Rio deJaneiro: Forense.Nunes, Mônica Ferrari (1993) O mito no rádio: a voz e ossignos de renovação periódica. São Paulo: Annablume.Paiva, Vanessa (1995) ‘Uma comunidade de ouvintes: asociabilidade proporcionada pelo rádio’. In Revista Geraes,Departamento de Comunicação Social FAFICH/UFMG, n. 47,1o semestre/1995.—. (1997) ‘A mensagem radi<strong>of</strong>ônica: o acontecimento(re)significado’. In Sérgio Dayrell Porto (org.). O Jornal.Brasília: Paralelo 15.Peixoto Júnior, Carlos Augusto (2004) ‘A Lei do Desejo eo Desejo Produtivo: Transgressão da Ordem ou Afirmaçãoda Diferença?’ In Revista Physis – Saúde Coletiva. Rio deJaneiro.Rui, Jota (1979) A alegre história do humor no Brasil. Rio deJaneiro: Expressão e Cultura.Salomão, Mozahir (2003) Jornalismo radi<strong>of</strong>ônico e vinculaçãosocial. São Paulo: Annablume.Silva, Renato Caixeta (2001) ‘Discutindo a interação emsala de aula via Internet: análise de interações por correioeletrônico’. In Vera Menezes Interação e Aprendizagem emambiente virtual. Belo Horizonte: FALE/UFMG.Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>75


O rádio mineiro rende-se aos encantos de um travesti:o discurso, o humor e o mito na vida e na obra de Tieta PresleyNair PrataSimmel, Georg (1986) Estudios sobre las formas de socialización.v. 1, Madrid: Alianza Editorial.Siqueira, Wanir Terezinha Campelo Araújo (2001) Das ondasdo rádio à tela da TV – o som e a imagem na cidade dasalterosas (1900–1950). Dissertação de Mestrado. São Paulo:Universidade São Marcos, Mimeo.Veyne, Paul (1984) Acreditavam os deuses em seus mitos?São Paulo: Brasiliense.Referências EletrônicasTognolli, Cláudio Júlio. Disponível em .Datade acesso: 11/09/2003.76Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>


STOCKHOLM REVIEW OF LATIN AMERICAN STUDIES<strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>7Vozes da favela: representação, identidadee disputas discursivas no ciberespaçoMárcia Maria da CruzMárcia Maria da Cruz é jornalistae Mestre pelo Programa dePós-Graduação Comunicaçãoe Sociabilidade, departamentode Comunicação da UniversidadeFederal de Minas Gerais(UFMG), em missão de estudosno Programa de Pós-GraduaçãoComunicação e CulturaContemporânea da UniversidadeFederal da Bahia (UFBA).Membro do grupo de pesquisaMídia e Esfera Pública (EME) eComunicação e Democracia.Bolsista da Capes e do Procad,sua tese de Mestrado teve comotema as representações identitáriasno Ciberespaço.mmcruzz@yahoo.com.brO artigo analisa como a convergência de novas tecnologias relaciona-secom a construção de identidades dos moradores defavelas (grupo social sob o qual costumam recair olhares preconceituosose estigmatizantes), resultando na inserção de novasvozes na esfera pública. A partir da experiência do projeto OcuparEspaços, desenvolvido pela ONG Oficina de Imagens emparceria com grupos culturais de dois dos principais conjuntosde favelas de Belo Horizonte (Aglomerado Serra e AglomeradoSanta Lúcia), o artigo sugere que o uso de novas tecnologias surgecomo uma estratégia política de transgressão na produção deidentidades e representações sobre os moradores de favelas.Palavras-chave: favela, mídia, vozes, representaçõesMárcia Maria da Cruz is a journalistwith a master's degree atthe Communication and SociabilityGraduate Program <strong>of</strong> theCommunication Department atthe Universidade Federal de MinasGerais (UFMG). She is alsoa member <strong>of</strong> the research groupMedia and the Public Sphere(UFMG) and participates in theCommunication and ContemporaryCulture Graduate Program<strong>of</strong> the Universidade Federal daBahia (UFBA). The theme <strong>of</strong> hermaster’s thesis was the mediationand construction <strong>of</strong> representationsand identities throughcyberspace.mmcruzz@yahoo.com.brThis article analyzes the relationship between new technologiesand the construction <strong>of</strong> representations and identities <strong>of</strong> slum/favela-dwellers (a social group generally represented in stigmatizedand stereotyped ways) resulting in the insertion <strong>of</strong> new voicesin the public sphere. Analyzing the project Ocupar Espaços,developed by the NGO Oficina de Imagens in collaborationwith cultural groups from two <strong>of</strong> the main favela areas in the city<strong>of</strong> Belo Horizonte (the Aglomerado Serra and the AglomeradoSanta Lúcia), this article suggests that these new technologies areused as a political strategy <strong>of</strong> transgression in the production <strong>of</strong>identities and representations about favela-dwellers.Keywords: Internet, favela/slum, media, voices, representationsStockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong> 77


Vozes da favela: representação, identidade e disputas discursivas no ciberespaçoMárcia Maria da CruzIntroduçãoAo longo dos pouco mais de cem anos do processode favelização no Brasil, as representações dessesespaços e de seus moradores têm sido alvo de umadisputa simbólica constante. O que é uma favela?Quem são seus moradores? As respostas a essasperguntas pontuam as interações sociais entre osmoradores de favelas e os não-moradores nos aspectosda vida cotidiana, das relações de trabalho,nos momentos de sociabilidade e em todas as situaçõesem que esses indivíduos interagem.A existência das favelas no Brasil per se é umato de transgressão à medida que, para os moradores,elas são a alternativa para uma vida nas cidadese metrópoles brasileiras, a despeito do descaso dopoder público que, por um longo período, sempretentou removê-las. As favelas são o resultado dapersistência de uma parcela da população colocadaà margem da sociedade para se estabelecer comocidadãos: no sentido estrito da palavra, como habitantesda cidade e, no sentido lato, como parteestimada de uma coletividade e de uma comunidadepolítica com direitos e deveres. <strong>No</strong> entanto,nem sempre o morador de favela pode exercer edesfrutar plenamente de sua cidadania. Muitas vezesé negado a ele o direito de falar por si, emborauma das prerrogativas da cidadania seja ter voz nacoletividade.Associadas à restrição da autonomia do moradorde favela, constroem-se, muitas vezes, representaçõesequivocadas sobre eles. A denegação aodireito à voz aliada à construção de representaçõesestigmatizantes criam um quadro desfavorável aoO termo favelização é amplamente utilizado pela imprensacarioca, também é usado de forma recorrente por pesquisadoresque estudam o fenômeno no Rio de Janeiro. Não se trata, no entanto,de um termo de uso corrente quando se fala em favelas emBelo Horizonte. Vamos adotá-lo, no entanto, por considerar quedesigna, em nosso entendimento, um processo que se intensificacada vez mais nas cidades brasileiras e que por isso merece serpensado em toda sua abrangência como um fenômeno social. Aonos referirmos à favelização estamos nomeando tanto o processode criação de novas favelas, quanto a ampliação das já existentesdo ponto de vista de expansão territorial e do aumento de habitantes.A Organização das Nações Unidas (ONU) informou que52,3 milhões de pessoas viviam em favelas brasileiras em 2005,28% da população do país. As informações constam do documentoO Estado das Cidades do Mundo 2006 – <strong>2007</strong>, elaboradopelo programa Habitat (ONU).morador de favela que se vê impelido a lutar porsua estima social. O caminho encontrado para seempreender essa luta é o combate aos estereótipos apartir da construção de representações mais plurais.A construção dos sentidos sobre as favelas e sobreseus moradores sempre foi mediada através dosmeios de comunicação: do cinema à TV, passandopelos jornais impressos e pela música. Pelo menoscinco diferentes discursos sobre a favela emergem ecompetem entre si na esfera pública, entendida porDrysek (2004) como uma constelação de discursos.Estes podem ser classificados em: 1) discurso daviolência e do tráfico, 2) discurso da chaga social,3) discurso da falta e da carência, 4) discurso doidílio e 5) discurso da diversidade. Esses discursossão ampliados pela mídia, que funciona como umacaixa de ressonância na esfera pública.Em alguns momentos, no entanto, a relação damídia com as favelas é marcada por equívocos. Nã<strong>of</strong>altam exemplos de como se constroem olhares estigmatizantessobre as favelas e seus moradores(Silva, 2002, 2005). Para nos determos em apenasum, retomamos a cobertura feita por uma emissorade televisão de Minas Gerais cuja intenção era elaboraruma reportagem positiva sobre as favelas. Arepórter, no entanto, cogitou a possibilidade de sefazer a matéria sem que fosse necessário seu ingressona favela. Ela se recusava a entrar porque estavaconvencida de que o local era perigoso, e mesmo aafirmação de lideranças da comunidade de que nãohavia perigo, não a fizeram mudar de idéia. Comouma matéria feita por uma repórter que contemplavao local sob o estigma da violência poderia serpositiva para a imagem das favelas? A estima social é um dos três âmbitos propostos por Axel Honneth(2003) quando fala da participação de indivíduos e gruposna sociedade de forma justa. A estima social aponta que as inovaçõese transformações da sociedade ocorrem à medida que ossujeitos exercem plenamente sua autonomia nas relações sociais.A estima social está diretamente relacionada à possibilidade dosindivíduos alcançarem auto-estima e desfrutarem dos direitos defalarem por si e serem ouvidos no coletivo.Vale ressaltar que há pr<strong>of</strong>issionais da imprensa que se empenhamem produzir matérias sobre os moradores de favelas que nãosejam estigmatizantes. Em geral, a mídia mantém uma série derestrições para seu ingresso nas favelas, mas não podemos deixarde mencionar a existência de pr<strong>of</strong>issionais que tentam mudar essasituação.78Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>


Vozes da favela: representação, identidade e disputas discursivas no ciberespaçoMárcia Maria da CruzPor esses e outros exemplos a relação entre moradoresde favelas e a mídia em geral costuma ser,constantemente, tensa e marcada por discordâncias.Os dois discursos [o discurso da violência/tráfico eo discurso da carência] muito comuns nos meios decomunicação, ignoram a multiplicidade e diversidadede ações objetivas, encaminhadas por diferentesatores dos espaços populares no processo de enfrentamentodos limites sociais e pessoais de suas existências.(Silva, 2005)Como Silva afirma, os moradores de favelas nãovêem apenas os aspectos negativos das favelas, “eleslevam em conta também os aspectos afirmativos, integrantesde sua cotidianidade (Silva, 2005).” Desdeo início do século XX, quando as favelas começarama surgir no Brasil, os moradores lutam pelodireito de falarem por si. Em uma sociedade quedialoga fortemente com os meios de comunicação,os moradores de favelas, desde o início do processode favelização, perceberam que era imprescindívelparticipar da disputa de sentidos travada na mídia.O direito à voz, principalmente a mediada pelosmeios de comunicação, é metáfora recorrente entreos moradores de favelas que se engajam em projetosde intervenção social, principalmente na área cultural.Podemos citar os exemplos da Rádio Favela,em Belo Horizonte, da Central Única das Favelas(CUFA) ou os projetos do Observatório de Favelasno Rio de Janeiro que adotam como premissa desuas ações o protagonismo do morador de favela.Recentemente, com a disseminação de um discursodas potencialidades da Internet, organizaçõesnão-governamentais passaram a utilizar desses dispositivospara que os moradores de favelas possamparticipar da construção de sentidos sobre eles mesmos.Neste artigo, analisamos uma dessas experiências:o projeto Ocupar Espaços, desenvolvido pelaONG Oficina de Imagens, em Belo Horizonte, capitalde Minas Gerais. O uso das novas tecnologiassurge, neste contexto, como uma estratégia políticade transgressão na produção de representações sobreos moradores de favelas. O projeto transgridepor desenvolver uma convergência de linguagens ede suportes para uma intervenção estético-política, epor produzir informações sobre as favelas integrandoatores de diferentes grupos sociais – pr<strong>of</strong>issionaisde comunicação de uma organização não-governamentale moradores de favelas engajados emgrupos culturais. Nesse sentido, investigamos comoas novas tecnologias estão sendo utilizadas paraapresentar diferentes discursos sobre o morador defavelas: quais representações têm emergido? Apresento neste artigo, com certeza, meu olharde jornalista e moradora do Aglomerado Santa Lúcia.Esse lugar híbrido que ocupo sempre me possibilitouum olhar atento sobre a relação entre mídiae favelas. Neste artigo, procuro conectar o conhecimentoadvindo dessa vivência a uma reflexão sistematizadaque a academia me possibilitou. O artigoseguirá o seguinte percurso argumentativo: caracterizaçãodos discursos sobre as favelas, apresentaçãodo projeto Ocupar Espaços, discussão da formaçãoidentitária dos moradores de favelas conjugada àsreflexões sobre a metáfora da voz, análise das falasque emergem nos vídeos produzidos pelos moradoresdos Aglomerados da Serra e Aglomerado SantaLúcia difundidos pela Internet.O Aglomerado Santa Lúcia e o Aglomerado daSerra são conjuntos de favelas localizados na regiãoCentro-Sul de Belo Horizonte, entre os bairros maisnobres da cidade. Com cerca de 30 mil habitantes, oAglomerado Santa Lúcia é dividido em quatro vilas:Vila Estrela, Vila Santa Rita de Cássia, BarragemSanta Lúcia e Vila Esperança. O Aglomerado daSerra é considerado o maior complexo de favelasde Belo Horizonte com uma população em torno de130 mil habitantes. O aglomerado se divide em setevilas situadas na encosta da Serra do Curral – Cafezal,Marçola, <strong>No</strong>ssa Senhora Aparecida, <strong>No</strong>ssaSenhora da Conceição, <strong>No</strong>ssa Senhora de Fátima,<strong>No</strong>vo São Lucas e Fazendinha.Os discursos sobre as favelasAs favelas não são apenas o resultado das ocupaçõesde espaços nas cidades, elas são também o conjun-Gostaria de agradecer a minha orientadora, a pr<strong>of</strong>essora RousileyCeli Moreira Maia por me apresentar o arcabouço teórico queembasa minha pesquisa, à Paula Kimo e toda a equipe da Oficinade Imagens e aos moradores dos Aglomerados da Serra e SantaLúcia.Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>79


Vozes da favela: representação, identidade e disputas discursivas no ciberespaçoMárcia Maria da Cruzto dos sentidos que lhes foram atribuídos ao longodo processo de favelização. Não há dúvidas que asfavelas são conseqüência de processos de ocupaçãourbana que trazem peculiaridades arquitetônicas eurbanísticas, devido ao fato de a ocupação ter sidoprojetada pelos próprios moradores com posterioresintervenções do poder público. <strong>No</strong> entanto, nãopodemos perder de vista que as favelas são tambémum construto social, pois sua dimensão materialestá fortemente relacionada com a dimensão simbólica,com as representações que foram sendo criadase recriadas sobre esses espaços.As significações e re-significações desses espaçosemergem nos cinco discursos sobre as favelas. Ascategorias de discursos propostas neste artigo – discursoda violência e do tráfico, discurso da chagasocial, discurso da falta e da carência, discurso doidílio e discurso da diversidade – são derivações dasanálises de Silva (2005) e Bentes (2002) por nósadaptadas e re-trabalhadas. Os discursos se cruzame se interpenetram, embora aqueles que ressaltamos aspectos negativos das favelas apareçam comohegemônicos:O Discurso da violência e do tráficoO crime e o tráfico ganham uma supervalorizaçãonessa perspectiva, de forma que as favelas são vistasapenas como o lugar da desordem. Esse discurso,em alguma medida, alimenta visões estereotipadasque sempre relacionam o morador da favela ao crimee à ilegalidade. O crime e o tráfico aparecemcomo tendo a tutela dos moradores. As favelas sãoapresentadas como zonas de guerra, onde há toquede recolher e onde os não-moradores de favelas nãosão bem-vindos.O Discurso da chaga socialAs favelas são apresentadas como um problemasocial, urbanisticamente confusas – um desvio derota arquitetônico. Um mal que atinge o conjuntoda cidade que deve ser eliminado, resolvido, paraque se restabeleça a normalidade da cidade. Nessaperspectiva, emerge a preocupação das favelasavançando sobre as cidades, sobre os bairros. A favelaé apresentada como elemento de desvalorizaçãoimobiliária, algo totalmente inaceitável arquitetonicamente.O Discurso da falta e da carênciaAs favelas são os locais da falta, da carência. É o espaçoda ilegalidade, um território sem lei onde tudoé possível. São espaços onde os moradores não pagamimpostos e onde ocorre um crescimento desordenado.Faltam boas escolas, os moradores não sãoescolarizados. Há carência econômica, as pessoasestão desempregadas, vivem abaixo da linha da miséria.É o local que necessita de intervenções sociais.É o local da carência por excelência. Se a pessoa émoradora de favela, logo é carente.O Discurso do idílioAlgumas tentativas de se criar discursos positivossobre as favelas podem cair no extremo oposto dodiscurso acima mencionado. Neste caso as favelassão pintadas como lugares quase perfeitos. A favelaé apresentada de forma romantizada; aparece comoo espaço da solidariedade. <strong>No</strong>s espaços de favelas,a relação entre os moradores é mais próxima, aspessoas se conhecem e se ajudam. Esse discursoenfatiza as peculiaridades das favelas de forma tãoextrema que se aproxima do exotismo. <strong>No</strong> cinema,por exemplo, encontramos filmes em que as favelassão representadas de forma romantizada: OrfeuNegro, Favela dos Meus Amores, Rio Zona <strong>No</strong>rte(Bentes, 2002).A arte, a cultura popular, o carnaval e o samba,aparecem como a única saída e alternativa àmiséria.É certo que tanto os discursos que só ressaltamos aspectos negativos das favelas quanto os que asapresentam como lugares sem problemas são nocivos,pois criam representações equivocadas sobreesses espaços. Neste sentido, há o desejo de se construirum discurso ampliado que não se fixe apenasnos aspectos negativos da favela, mas que dê contade apresentar os pontos positivos desses espaços. Éo que denominamos de discurso da diversidade:Discurso da diversidadeAtravés dessa perspectiva, as favelas aparecem80Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>


Vozes da favela: representação, identidade e disputas discursivas no ciberespaçoMárcia Maria da Cruzcomo espaço social, cultural e economicamente diversificado.Elas também são apontadas como umespaço singular, criativo, onde são empreendidasações para inovações. As saídas para os problemasdas favelas resultam da interação entre diferentesatores sociais. A arte e a cultura, ao longo doscerca de cem anos do processo de favelização noBrasil, têm sido um importante meio para que seusmoradores façam uma reflexão sobre esse espaçosocial. Mais recentemente, o aumento do númerode universitários oriundos de favelas também tempossibilitado a elaboração desse discurso. O projetoOcupar Espaços é um exemplo disso.Ocupar EspaçosO Ocupar Espaços é um projeto realizado pelaONG Oficina de Imagens – Comunicação e Educação,desde fevereiro de 2006. A ONG desenvolveu“um processo criativo” para a realização de “CircuitosAudiovisuais Interativos.” A idéia é de estimularos moradores do Aglomerado Santa Lúcia eAglomerado da Serra a trocarem informações emáudio e vídeo por meio da Internet. A ONG estabeleceuparcerias com grupos que desenvolvem açõesnas duas comunidades para implementar o projeto:no Aglomerado Santa Lúcia, o Projeto Memória,composto por representantes da Associação dosUniversitários do Morro, Grupo do Beco e programaConexões dos Saberes. <strong>No</strong> Aglomerado daSerra, existe uma parceria com o Criarte que reúnediversos grupos culturais. O projeto contou com aparticipação dos moradores dos aglomerados emdiferentes níveis de envolvimento. Os membros dosgrupos parceiros participaram de <strong>of</strong>icinas de produção(áudio e vídeo), além de terem freqüentado asreuniões conceituais para a definição da proposta.Esse grupo tinha entre três e quatro representantesde cada um dos aglomerados. Um outro tipo departicipação envolveu moradores que fizeram as filmagensou captaram as histórias em áudio. Por fim,um grupo de moradores foi filmado e entrevistado.O Ocupar Espaços também se propôs a ampliar“o acesso das pessoas residentes em favelas às tecnologiasdigitais de informação e de comunicação,utilizadas como meio para a construção do processode criação artística e intervenção estético-urbana”. Adultos, crianças, jovens e idosos foram convidadosa registrar imagens da sua comunidade ou de outras.Essas imagens captadas pelos moradores foramapresentadas nos eventos denominados de “TVsde Rua”, quando os vídeos foram exibidos para ascomunidades, permitindo a apresentação e o intercâmbiode grupos culturais. As imagens foram projetadasem praças, ruas, paredes, muros e quadrasdas diversas vilas dos dois aglomerados. A programação,além dos vídeos feitos no Ocupar Espaços,consistiu em produções realizadas pelos própriosmoradores ou por documentaristas que retrataramas comunidades.Outra atividade do projeto foi o dispositivo Assaltode Imagens que resultou em um vídeo comesse mesmo nome. Durante os laboratórios de criaçãocoletiva, câmeras digitais foram cedidas paraque moradores dos Aglomerados da Serra e SantaLúcia filmassem o espaço das comunidades. <strong>No</strong>Assalto de Imagens, as pessoas filmavam livrementeas imagens que desejassem. Enquanto isso, outracâmara registrava as falas e as reações do moradorcinegrafista.<strong>No</strong> vídeo disponível no site, o espectadoracompanha a filmagem do morador simultaneamentecom suas reações.O objetivo do dispositivo Assalto de Imagens foiprovocar um ato político dos moradores que, comas câmeras nas mãos, tornariam visíveis suas comunidades,contrabalançando a imagem negativa quecircula na mídia acerca da vida na periferia. A intençãoera, a partir da experiência, propiciar acessoàs tecnologias digitais e dar visibilidade a uma paisagemda vida ordinária, a partir dos olhares dospróprios moradores.A instalação do Ocupar Espaços aconteceu nanoite do dia 26 de agosto de 2006 na praça de esportesdo Aglomerado Santa Lúcia e na praça BelaVista, no Aglomerado da Serra. A estrutura para oevento contou com oito projeções de imagens divididasentre os espaços. Também foram montadasduas cabines de áudio em cada comunidade para areprodução de sonemas (pequenas trilhas editadasVer em http://www.ocupar.org.brStockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>81


Vozes da favela: representação, identidade e disputas discursivas no ciberespaçoMárcia Maria da Cruza partir de histórias contadas por moradores dasduas comunidades durante as <strong>of</strong>icinas de criação doprojeto).Dois computadores conectados à Internet permitirama comunicação entre o Aglomerado da Serra ea Barragem Santa Lúcia. A imagem dos internautasfoi projetada em um telão. O público também pôdeinteragir de outras formas. O Laboratório Gráficopara o Ensino de Arquitetura da UFMG (Lagear)desenvolveu um dispositivo onde a presença deuma pessoa frente à projeção movimentava a imagemprojetada. Em outra tela, o público pôde interagircom as imagens, interferindo com seu corpoe misturando-se às pessoas que estavam no vídeogravado, criando assim uma interação entre quemestava presente no dia do Circuito e quem esteve nomomento da gravação.Ainda disponibilizou-se de uma área reservadapara a exibição dos vídeos produzidos pelo grupode criação do projeto junto aos moradores das duascomunidades, nos quatro meses que antecederam oevento. Toda essa produção está disponível na Web(http://www.ocupar.org.br), uma convergência dautilização dessas diferentes tecnologias da comunicaçãoe informação. O site se apresenta da seguinteforma:Identidade cultural, criação coletiva, expressãoartística e tecnologia digital aberta e livre fazem partedo projeto Ocupar Espaços cujo processo resulta nacriação de Circuitos Audiovisuais Interativos, ambientesinstalados em praças públicas com projeções deimagens, instalações sonoras e comunicação em temporeal via Internet. A idéia é estabelecer processos deprodução e difusão de informação para intercâmbiossócio-culturais entre grupos étnicos de diferentes comunidades.O principio é a constituição de estruturasautônomas para o exercício do direito universal de expressãoe opinião, acesso à sociedade do conhecimentoatravés das tecnologias digitais. (Em: http://www.ocupar.org.br , acessado em 12 de outubro de 2006)Em nosso trabalho, vamos analisar os discursos queemergem nos vídeos produzidos durante o processode criação das <strong>of</strong>icinas (exibidos no dia do eventoe disponíveis no site http://www.ocupar.org.br. Os15 vídeos com duração de 5 a 6 minutos tratam deações do cotidiano dos moradores desses dois aglomerados.Também nos interessa analisar uma entrevistacom um morador do Aglomerado da Serra,um dos coordenadores do Criarte, Reinaldo Santanaque teve um envolvimento direto com o projetoe participou efetivamente do processo desde a concepçãoaté sua execução.Em grande parte dos vídeos, os moradores falaramespontaneamente sobre as questões que consideraramrelevantes. Interessa-nos investigar comoesses vídeos constituem um espaço para reflexãosobre o que é ser morador de favela e sobre as representaçõesque emergiram dessa produção.Identidade do morador de favela: o “nós” e o“outro”A discussão sobre identidades, principalmenteidentidades coletivas, tem alimentado um amplodebate acadêmico. A despeito da polêmica que envolveo termo, vamos pensar a questão da identidadecomo um processo discursivo de marcação edemarcação de limites entre o “nós” e o “outro”.Limites estes, diluídos em algumas situações e reforçadosem outras.Como França (2002:27) destaca, quando se falaem moradores de favelas “a discussão da identidadeé, no mesmo movimento, a discussão da alteridade,da diferença marcada que se tenta estabelecer entreo ‘nós’ e o ‘outro’.” França (2002) nos aponta a dificuldadeontológica de definir os limites entre o “nós”e o “outro”, dado que são pares indissociáveis.<strong>No</strong> entanto, freqüentemente, o “nós” e o “outro”passam a ser categorias definidas tendo como referênciaapenas localizações geográficas do cidadão:morador do morro e morador do asfalto, moradorda cidade formal e morador da favela. Muitas ve-As interações simultâneas entre os moradores dos dois aglomeradosque ocorreram no dia 26, durante a realização do eventonas duas praças públicas, diferentemente do que os organizadoresesperavam, não trouxeram uma fala política sobre os espaços. Osmoradores aproveitaram o momento para falar de amenidadese para conhecer pessoas novas. As conversas foram triviais,muito próximas às conversas de chats. As conversas também nãoestão disponíveis no site, mas podem ser acessadas no Youtube:http://www.youtube.com/watch?v=De2cIXf0AOw e http://www.youtube.com/watch?v=4D-zIVjJUT482Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>


Vozes da favela: representação, identidade e disputas discursivas no ciberespaçoMárcia Maria da Cruzzes, a diferença é utilizada pelos movimentos sociaiscomo forma de denunciar situações de injustiça oude violação de direitos nas favelas. Ocorre que adiferenciação, em algumas situações, é utilizadapara apresentar a favela como o “não-lugar” e omorador de favela como um “outro” de quem se fazquestão de se diferenciar.<strong>No</strong> outro extremo, o esforço de mostrar que dolado sócio-econômico e sócio-jurídico esses espaçosda cidade se apresentam de modo desigual, pode-secriar uma divisão que só reforça o preconceito entreos moradores e os não-moradores de favelas, poispode causar uma espécie de guetificação.França (2002), no entanto, chama a atençãopara o processo que está por trás da tensão entreesse par:A ‘fala do outro’ – a questão da alteridade – aparecequando ele toma para si o papel de construir seupróprio lugar de representação. A fala do outro é odiscurso da diferença; é a fala que, abandonando asrepresentações sob as quais foi construído, coloca emxeque o próprio sistema de representação e os critériosde inclusão e exclusão (de construção do ‘nós’ e do‘outro’). Ela desvela ou inaugura um outro lugar – e a<strong>of</strong>azer isto, mexe com a própria estrutura e com o jogodos posicionamentos.(França, 2002:42)A perspectiva apontada por França revela o potencialpolítico da formação da identidade, aspectoatravés do qual buscamos entender melhor comoessa relação entre identidade e transformação socialse estabelece. A fala do outro sobre “nós” e sobreeles próprios é fundamental para que pensemosas representações tanto sobre “nós” como sobreo “outro”. Trata-se de um processo dinâmico, emque os valores e os juízos morais estão sempre emtensão nas interações lingüísticas. França (2002:11)aponta alguns aspectos centrais sobre a discussãode identidade: “A identidade se realiza discursivamente:a imagem de si mesmo (bem como a imagemdo outro) se constrói através de discursos (...)de forma a reforçar, nessa prática, a inclusão dosiguais e a convivência com o outro.” Nesse sentido,a identidade nunca é algo acabado; ao contrário,ela é um processo de construção cotidiana, flutuante,discursivo e sempre referenciado no outro. Rocha(2006:4) mostra que os processos de formaçãoidentitária do morador de favelas atravessados porpadrões discursivos “engendra práticas culturais esociais, possibilita uma mobilidade simbólica e odeslocamento de visões preconceituosas.”É importante entendermos que o fortalecimentoda identidade não representa um isolamento dossujeitos. Muito pelo contrário, as identidades sãoconstruídas sempre em diálogo com o outro nasinterações cotidianas. Guimarães (2002:22) chamaatenção para o aspecto político da construção discursivaem torno das imagens sobre a “favela” e o“favelado”.Os moradores de favelas conformam identidadesa partir do confronto com os atributos concedidosàs favelas, que são apropriadas “simbolicamenteem contraste e em confronto com os outros espaçosda cidade e as formas de vida que esta abriga(idem).” A capacidade de enunciação reconfigura aexperiência:[...] A relação entre os modos do fazer, os modos deser e os modos de dizer são que definem a organizaçãosensível da comunidade, as relações entre os espaços eas relações desse fazer entre os sujeitos. [...] Sob essaperspectiva, as diferentes falas em torno do significadodo termo ‘favelado’, para além de uma defesa contraa discriminação ou de uma querela sobre o conteúdoda linguagem, concernem à situação dos seres falantesque reivindicam um mundo comum que ainda nãoexiste, isto é, um mundo comum que deve, a partir deagora, incluir aqueles que dele estavam excluídos, poisestes não eram contemplados pelos termos da linguagemcomum que até então distribuía o que cabia a unse a outros. (Guimarães, 2002:23)Guimarães aponta que para a construção de um“mundo” onde as exclusões sejam superadas, umaação discursiva sobre a realidade é necessária. <strong>No</strong>campo da teoria política, os autores Gutmanne Thompson (2004), Cohen (2000), Habermas(1997), Maia (2004, <strong>2007</strong>) vêm pensando essa açãodiscursiva sobre o “mundo”. Trata-se da perspec-Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>83


Vozes da favela: representação, identidade e disputas discursivas no ciberespaçoMárcia Maria da Cruztiva que entende que as mudanças ocorrem peladeliberação, ou seja, pelo diálogo entre diferentesargumentos e entendimentos sobre uma determinadarealidade.Vozes da Favela: uma competição discursiva<strong>No</strong> modelo de democracia deliberativa, a participaçãose efetiva pela argumentação pública de razõese posicionamentos sobre questões de interessecoletivo. Drysek (2004:48) apresenta a deliberaçãocomo o embate entre diferentes discursos que são“modos compartilhados de se compreender o mundoincrustado na linguagem.”Partimos da premissa que os processos comunicativossão fundamentais para que os cidadãos participemda transformação social. Isso porque taisprocessos podem conferir aos moradores de favelas,atores sociais historicamente excluídos das decisõespúblicas, um lugar no centro dos debates ligados àesfera pública. A esfera pública configura-se como odomínio social da circulação das idéias, o locus dapolítica deliberativa:A legitimidade pode ser buscada na ressonância dedecisões coletivas junto à opinião pública, definida emtermos de um resultado provisório da competição dediscursos na esfera pública conforme transmitido aoEstado ou outras autoridades (como as transnacionais).(Drysek, 2004:58)Para Drysek, as políticas públicas e outras transformaçõessociais que não passam necessariamentepelo campo da política institucional são sempreatravessadas pelos debates na esfera pública. Paraele, a esfera pública caracteriza-se por uma constelaçãode discursos. Um dos grandes dilemas dos estudos sobre democracia deliberativaé como todos os cidadãos podem participar efetivamentedos processos de debate. Drysek apresenta uma importante contribuiçãopara a resolução esse dilema. Não podemos pensar osdiscursos associados diretamente a sujeitos e grupos. É necessárioum entendimento mais fino da questão: “O próprio Habermasagora fala de uma ‘comunicação sem sujeito’ [subjectless communication]dispersada, que gera a opinião pública. De formasemelhante, Benhabib fala de uma ‘conversação pública anônima’[anonymous public conversation] em ‘redes e associações dedeliberação, contestação e argumentação entrelaçadas e sobrepostas’.”(Drysek,2004:48)Consideramos relevante pensarmos a competiçãodiscursiva na esfera pública para entendermos oprocesso de favelização no Brasil. Drysek continua:Um discurso sempre apresentará determinadas assunções,juízos, discordâncias, predisposições e aptidões.Estes termos comuns significam que os aderentes a umdado discurso serão capazes de reconhecer e processarestímulos sensoriais em histórias ou relatos coerentes,os quais, por seu turno, podem ser compartilhados deuma maneira intersubjetivamente significativa. Conseqüentemente,qualquer discurso terá em seu centroum enredo, o qual pode envolver opiniões tanto sobrefatos como valores. (Drysek, 2004:49)Ao admitirmos que os discursos assumem juízos eavaliações morais, é justo que os atores sociais possamparticipar da competição discursiva sobre asrepresentações deles próprios. Nesse sentido, a buscapor estima social ocupa papel relevante entre asreivindicações de moradores de favelas. Os direitosde falar por si, de ser reconhecido como cidadão,de não ser visto como um sujeito de segunda classenorteiam a ação dos movimentos sociais que debatemo processo de favelização. As experiências dosmoradores na elaboração de produtos de comunicação– jornais comunitários, programas em rádioslivres – sempre revelam a importância do direito defalarem por si. A primeira iniciativa que se tem notíciadata de 1935, com a edição do jornal A Vozdo Morro, editado pela escola de samba EstaçãoPrimeira de Mangueira, no Rio de Janeiro. Em BeloHorizonte temos diversos exemplos atuais: RádioFavela (http://www.radi<strong>of</strong>avelafm.com.br) que seapresenta como a “voz da favela”, Morro Informa,um pequeno jornal de um grupo cultural do AglomeradoSanta Lúcia e as músicas de Hip Hop quese apresentam como a voz da periferia.É certo que, no processo de luta por estima social,ter direito à voz é fundamental. Mas como seconstituem efetivamente as vozes dos moradores defavelas? O que significa o direito à voz? Não se trataapenas do ato de falar. Ter voz é expressar um lugarsocial, conforme destaca Bakhtin (2004[1929]).A metáfora da voz é fundamental para entender-84Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>


Vozes da favela: representação, identidade e disputas discursivas no ciberespaçoMárcia Maria da Cruzmos como os moradores de favelas se manifestamno ciberespaço. Para caracterizar o que estamosconsiderando como vozes, buscamos referência emBakhtin (2000, 2004). Vivendo no período de efervescênciada produção marxista, Bakhtin, a partirda filos<strong>of</strong>ia da linguagem, mostra que a palavra é “aarena onde se confrontam os valores sociais contraditórios(Bakhtin, 2004:46).” Se a palavra é a arena,a fala e o discurso são o próprio processo onde seinstauram as disputas. As vozes surgem, portanto,como resultado do que Bakhtin chama de condiçãode sentido do discurso, o dialogismo. O dialogismomostra a interação verbal que se estabelece entre oenunciador e o enunciatário:Em outros termos, concebe-se o dialogismo comoespaço interacional entre o eu e o tu ou entre o eu e ooutro, no texto. Explicam-se as freqüentes referênciasque faz Bakhtin ao papel do ‘outro’ na constituiçãodo sentido ou sua insistência em afirmar que nenhumapalavra é nossa, mas traz em si a perspectiva de outravoz. (Barros, 1999:3)Portanto, a palavra nunca é pura ou unívoca, poistraz a “voz do outro”. Quando um grupo social setorna porta-voz de seu próprio discurso traz em suafala, a fala de outrem sobre ele próprio. A fala trazem si todo o conflito que se instaura em torno deuma determinada questão e de várias formas responde,refuta, compara, referencia-se nas falas deoutrem. Na concepção de Bakhtin, as vozes sãoatravessadas pela intertextualidade, ou seja, os sujeitosfazem continuamente referência a outros textos.O uso da linguagem é dialógico e traz em si oconjunto de relações entre diferentes vozes. Partimos,portanto, da premissa que não há vozes puras,mas que, ao contrário elas são polifônicas. As vozessão sociais:Em todos os domínios da vida e da criação ideológica,nossa fala contém em abundância palavras de outrem,transmitidas com todos os graus variáveis de precisãoe imparcialidade. Quanto mais intensa, diferenciada eelevada for a vida social de uma coletividade falante,tanto mais a palavra do outro, o enunciado do outrocomo objeto de uma comunicação interessada, deuma exegese, de uma discussão, de uma apreciação, euma refutação, de um reforço, de um desenvolvimentoposterior, etc., tem peso específico maior em todos osobjetos do discurso. (Bakhtin, 1998:139)Pietikäinen e Dufva (2006) trabalham a metáforada voz como fundamental para entendermos osprocessos de formação de identidade:As formas individuais de falar são caracterizadas pelamulti-voicedness, ou polifonia e a presença de muitasvozes podem ser constituintes de nossas identidades.(...) A multi-voicedness pode ser compreendida comouma metáfora que descreve a presença de diferentesperspectivas, ou vozes em uma realidade dada. (Pietikäinene Dufva, 2006:210)Mitra (2001), além de fazer a relação entre a metáforada voz e os processos de identidade, procuraidentificar como essa relação se intensifica a partirda mediação no ciberespaço. Segundo Mitra, osdispositivos da Internet possibilitam a inter-relaçãodos processos de construção identitária, a formaçãode comunidades e a emissão de vozes de gruposmarginalizados, além da possibilidade de os sujeitosfalarem por si e de se identificarem em comunidades.Há sempre uma disputa entre o discursoestabelecido sobre uma determinada questão e umdiscurso provocador e crítico. Essa tensão de posiçõese ideologias manifesta-se no discurso. Mitrapropõe que a apropriação da linguagem, juntamentecom dispositivos tecnológicos, permite a grupossubordinados falarem por si. A possibilidade de osusuários responderem às mensagens, a interatividade,faz com que a emissão de vozes na Internet sejaum diferencial em relação a outras mídias:Bakhtin empreende uma análise sobre a filos<strong>of</strong>ia da linguagema partir da literatura, embora as suas reflexões sobre o uso dalinguagem tenham sido referência principalmente para a análisecrítica do discurso e também para os estudos sobre identidade.A tensão entre vozes é algo particularmente significanteno caso da Internet. A Internet tem tornado essatensão palpável porque a fala do outro é acessível paraStockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>85


Vozes da favela: representação, identidade e disputas discursivas no ciberespaçoMárcia Maria da Cruzum grande número de pessoas subordinadas, onde elesagora podem emitir seus persuasivos discursos e esperamentrar em diálogo com o dominante no ciberespaçointerconectado. (Mitra, 2001:32)Um discurso persuasivo pode alcançar uma “audiênciaglobal” tendo em vista que a rede mundialde computadores conecta usuários de todas aspartes do mundo. Mitra conclui que, enquanto namídia tradicional, constrói-se um discurso sobreo outro, na Internet, grupos marginalizados nãosó podem falar por si, como também podem esperarrespostas de seus interlocutores. Essa emissãodifusa da informação, na avaliação de Mitra, potencializaa tensão intrínseca do discurso. Mitradefende que as diversas vias possíveis de seremcriadas nas interações comunicativas no ciberespaçointensificam o dialogismo entre as diferentesfalas dos sujeitos:Essa conceituação da tensão entre vozes torna-se particularmentesignificativo no caso da Internet. A Internettem feito esta tensão palpável porque a formulação(call) do outro é acessível para um grande número depessoas subordinadas onde eles podem agora expressar(voice) seu discurso persuasivo individual e esperarentrar em diálogo com o dominante no interconectadociberespaço. (Mitra, 2001:32)Mitra nos aponta seis aspectos que evidenciam aemissão de vozes de grupos marginalizados na Internet:a) contribuições individuais, os sujeitos falandopor si, de modo a criar uma voz coletiva; b)os assuntos referentes aos grupos marginalizadospodem ser tratados em sites específicos, como tambémpodem estar em outros fóruns, sites e portaisde assuntos variados; c) a organização da informaçãosobre a forma de links e hipertextos possibilitaa formação de uma rede de vozes descentrada; d) ociberespaço possibilita desvincular a relação entrepoder e regiões geográficas. Não é mais necessárioestar em um centro de poder para que a argumentaçãoseja levada em conta; e) os dispositivos daInternet ultrapassam as barreiras de tempo e espaço,sendo possível alcançar um público diferido edifuso e f) as vozes não estão organizadas, são oconjunto de vozes de diferentes usuários.Os discursos sobre a favela no ciberespaçoOptamos em analisar os discursos verbais dos vídeose uma entrevista feita com o coordenador dearticulação do Criarte, Reinaldo Santana. Os vídeosaqui examinados foram, em sua maioria, feitos coma participação de um morador de um dos dois aglomeradose de um não-morador. As filmagens tambémforam feitas dessa forma. A parte técnica dasedições das imagens foi conduzida por não-moradores,acompanhados de um morador que opinavasobre o conteúdo a ser apresentado. <strong>No</strong> site, o usuárioencontra os vídeos dispostos em uma galeria nahorizontal com cenas específicas. Ao clicar sobre ovídeo, aparece a sinopse do documentário. <strong>No</strong> site,há um blog que se constitui como um espaço parainteratividade, mas que não tem sido efetivamenteutilizado pelos usuários. O formato predominante dos vídeos é o de documentáriosproduzidos pelos próprios moradoresdos aglomerados ou por pessoas associadas àsONGs, em colaboração com os moradores. A escolhadas imagens constitui um aspecto relevante natentativa de construção de uma representação nãoestereotipadados moradores de favelas. As cenasfilmadas representam um discurso imagético sobrea favela. Trata-se de um aspecto extremamente importantequando estudamos a produção midiáticasobre essa parcela da população. 10 Em sua maioria,as imagens trazem cenas do cotidiano dos moradoresde favelas: pessoas saindo de uma escola, a movimentaçãonas ruas e nos becos, problemas com oesgoto a céu aberto e a conformação arquitetônicados aglomerados. Mostram-se também momentosde sociabilidade e confraternização: torneios de fu- O site do projeto Ocupar Espaços integra o objeto da minha pesquisade mestrado que compreende também análise dos sites daCufa (http://www.cufa.com.br), Observatório de Favelas (http://www.observatoriodefavelas.org.br), Viva Favela (http://www.vivafavela.com.br),Arautos do Gueto (http://www.arautosdogueto.org.br) e Favela é Isso Aí (http://www.favelaeissoai.com.br).10 <strong>No</strong> entanto, limitamo-nos neste artigo a descrever de forma geralessas imagens, sem, no entanto fazer uma análise mais apr<strong>of</strong>undada,já que requereria um outro aporte teórico que ampliariamuito o nosso objeto de pesquisa.86Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>


Vozes da favela: representação, identidade e disputas discursivas no ciberespaçoMárcia Maria da Cruztebol, aulas de capoeira, encenação do teatro da SemanaSanta. A maior parte das imagens foi gravadadurante o dia em espaços abertos da comunidade,como campos de futebol e praças.Representando uma comunidade:a caminho de uma transgressão política?A idéia de pertencer a uma determinada comunidadeé bastante evidente na fala dos moradores defavelas que prestam depoimentos nos vídeos analisados.Ao falar de comunidade, o morador assumepertencer a um grupo com características supostamentecomuns. Mesmo que de forma implícita, esseposicionamento delimita uma identidade coletiva,pois um dos aspectos que dão unidade à comunidadeé o fato de ela ser composta por pessoas semelhantesa “mim”. Explicitamente, não são mencionadosquais os pontos em comum, mas de algumaforma o termo “comunidade” aparece como sendouma demarcação de um “nós”, de um conjunto noqual a pessoa está inserida. O termo “comunidade”é utilizado de forma recorrente (Ver os vídeosAssalto de Imagens Serra, Assalto de Imagens Barragem,Maria na Serra, Capoeira do Pantera, SpotsTV em http://www.ocupar.org.br), o que nos leva ainterpretar que ao chamar para si esse pertencimento,de alguma forma, os sujeitos estão defendendo,mesmo que inconscientemente, um lugar social defala. Quando o morador de favela declara ser membrode uma comunidade, pressupõem-se um panode fundo. É a partir desse pano de fundo, e de outrosaspectos simbólicos, que o morador de favela secoloca no mundo. O pertencer a uma determinadacomunidade constitui-se numa estratégia política deafirmação. É uma forma de se valorizar como partede uma coletividade. Ao pontuar a necessidade dea comunidade se ver, o morador reclama o direitode ser visto e ao mesmo tempo enfatiza aspectospositivos que deveriam ser mostrados sobre essacomunidade:O Ocupar Espaços é uma boa oportunidade para oCriarte, porque, dentro da sua proposta, desenvolvemosuma atividade junto à comunidade. Na fase atual,estamos realizando Circuitos de TV de Rua dentrode quatro das seis vilas que formam o Aglomeradoda Serra. Nesses circuitos levamos as imagens queproduzimos no Aglomerado, com a participação demoradores. A exibição instaura um processo no quala comunidade pode se enxergar. (Reinaldo Santana/entrevista. Grifo nosso.)A declaração de Reinaldo mostra que há, por partedo grupo do qual ele faz parte, uma reivindicaçãodo direito de falar por si. Ao mesmo tempo evidenciauma tentativa de contraposição às representaçõesestereotipadas sobre as favelas. Na fala deleemerge um discurso articulado sobre a representaçãodo morador de favela:Uma das coisas que chamou muito a atenção foi a autovalorizaçãoda comunidade e a importância das pessoasse verem. Quando você grava uma imagem aquie depois vê o que foi registrado, vê pessoas que vocêconhece, isso tudo move a comunidade na direção desua valorização. (Reinaldo Santana/entrevista)A intenção era justamente essa: tinha um momento,o do ‘assalto de imagens’, em que os moradores seenvolviam na produção. Eles pegavam a câmera efilmavam, com o olhar deles, o que queriam dentroda comunidade, às vezes contavam uma história oufalavam do trabalho que estavam desenvolvendo...Então a comunidade acaba se valorizando, querendomostrar o que existe de positivo dentro dela. (ReinaldoSantana/entrevista)Independente do nível de articulação política, empraticamente todas as falas dos moradores nos vídeosdo Ocupar Espaços, o sentimento de pertencimentoé reincidente: todos se identificam enquantomoradores de determinada comunidade. O localonde se mora é o primeiro aspecto que apresentamao se identificarem.<strong>No</strong> vídeo Assalto de Imagens, antes de ligar oREC da sua câmera, Dona Maria, moradora doAglomerado Santa Lúcia, solicita um espaço: “Podefalar?”, questiona ela. Dona Maria fala de si, explicitasua atuação social e os laços que estabelece nacomunidade:Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>87


Vozes da favela: representação, identidade e disputas discursivas no ciberespaçoMárcia Maria da CruzAgora 5 horas eu sou muito participativa das coisasque eu faço, todo mundo gosta de mim nas reuniõesda comunidade. (Dona Maria, Moradora da BarragemSanta Lúcia/ vídeo Maria na Serra)Ao mesmo tempo em que por parte de alguns moradores– Dona Maria e Reinaldo - há um desejode se pensar o Aglomerado como comunidade, paraos moradores que não estão diretamente ligados agrupos ou associações, há uma certa atitude dúbiaquanto a essa tomada de posição, como vemos nafala de Chiquito:Eu moro no bairro São Pedro. Antigamente, era Morrodo Papagaio. Agora é Vila Santa Rita de Cássia, AltoSão Pedro. (Chiquito – morador do Aglomerado SantaLúcia/ Vídeo Cigano e Chiquito)Outro aspecto que emerge em algumas falas é a necessidadede se repassar para outras pessoas, principalmentepara os mais jovens, as vivências das favelase suas tradições. Esse aspecto demarca a opçãopor uma identidade coletiva no que diz respeito aocompartilhamento simbólico de uma cultura local.DiscursosOs moradores de favelas mostram o desejo demodificar as representações que os colocam comosujeitos inferiores. A partir das falas individuais seproduz um discurso coletivo sobre as favelas no ciberespaço.Não há uma produção coordenada, massim um constante diálogo entre as diferentes falas,que ora se reforçam ora se contrapõem. Os discursosnegativos sobre a favela estão tão demarcados ede alguma forma tão enraizados na sociedade brasileira,que quando o morador de favela tem oportunidadede falar de si próprio, utiliza-se de tais referênciasna tentativa de contrapô-los. É consenso ocombate aos discursos negativos sobre a favela. Seusmoradores desejam mostrar a impropriedade em associaro fato de morar na favela como determinantepara a falta de instrução, má-educação, e a práticade crimes, entre outros conceitos pejorativos.De forma geral, as falas, implícita ou explicitamente,respondem ao discurso do tráfico e da violência,contrapondo-o e, ao mesmo tempo, mostrandoo orgulho de se ser morador de favela a despeitodessa imagem negativa. Porém, embora haja essaintenção, os discursos dos próprios moradores seencontram fortemente influenciados pelo discursosobre a favela pr<strong>of</strong>erido pelo ‘outro’. A fala de Reinaldomostra como o discurso da violência marca aavaliação dos moradores dos dois aglomerados:É, também, um processo para que nós mesmos estejamostirando um pouco daquela energia negativa queum espaço tem em relação ao outro: o pessoal da Serrasempre fala que a Barragem Santa Lúcia é perigosa eo pessoal da Barragem sempre diz o contrário. Então,quando a gente traz essa troca, quando um de lá, daBarragem, vem aqui, ou um de cá, da Serra, vai lá, agente vê que não há diferença. É a mesma coisa: nãotem nada de perigoso, são preconceitos criados dentrodas próprias comunidades. Tem uma frase que falaque o preconceito que assola a própria comunidadeé o mesmo que traz o coquetel da maldade. É aqueleque, às vezes você tem e, por isso, não vai conferir, e,quando você consegue ir e se libertar dessa resistência,vê que não tinha nada daquilo que pensava. Aí vocêvê que é a mesma coisa e que o que eles também estãoprecisando é de articulação entre eles e entre nós,porque vivemos a mesma situação, o mesmo cotidiano.(Reinaldo Santana/ entrevista. Grifo nosso.)Mais uma vez o discurso do tráfico e da violênciamarca a fala do morador que pede para discorrersobre a comunidade enquanto filma os becos, asruas e as pessoas no Aglomerado da Serra. Ao mesmotempo, ele busca uma auto-afirmação:Favela nossa quebrada, periferia. A quebrada que eufui vestido de palhaço. Favela é mil brau, né mano?Tem que filmar a favela. (Doidão)Tô aqui tranqüilo na minha quebrada, aqui na Serra.Lugar tranqüilo. O melhor lugar em Belo Horizonteque se tem para viver. Tamo na quebrada, filmandoaí. <strong>No</strong> Café. Filmando aí. Tudo pela ordem, trocandouma idéia, pá. Os meninos subindo na quebrada aí.Humildaço, sangue bom. (Morador)88Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>


Vozes da favela: representação, identidade e disputas discursivas no ciberespaçoMárcia Maria da CruzA intenção de construir um contraponto ao discursodo tráfico e da violência sobre o Aglomerado daSerra é evidente. O aglomerado, apontado comosendo um dos mais violentos de Belo Horizonte, nafala do morador, aparece como um lugar tranqüilo.O jovem não fala dos aspectos negativos da comunidade,muito pelo contrário, ressalta o aglomeradocomo o melhor local para se viver na cidade.Com a oportunidade de ter a câmera nas mãos, omorador produz um discurso positivo sobre o localem que mora. Também faz questão de ressaltar asqualidades dos jovens que está filmando com doisadjetivos: “humildaço” e “sangue bom”.Ele deseja apresentar para os futuros espectadoresdo vídeo que os jovens moradores de favelasão pessoas do bem, de boa índole. É claramenteuma resposta aos discursos que colocam o jovemde favela como potenciais bandidos. Em outra falatambém se vê a intenção de mostrar o orgulho demorar no aglomerado:tempo, os limites do “nós” são bastante fluídos e flexíveis.Ao apontar as diferenças e semelhanças entreos dois aglomerados, seus moradores combatema idéia de homogeneidade das favelas. Os limitesentre o “nós” e o “outro” são tênues. Em algunsmomentos, eles podem ser diluídos e, em outros,podem ser reforçados:Podemos um dia ir à Serra, na comunidade de lá. Temmuitas diferenças, mas tem muitas semelhanças. Éimportante as pessoas de outras comunidades visitara gente e a gente visitar as pessoas de outras comunidades.Fazer esse intercâmbio entre as classes sociais eclasses de qualquer gênero. (Pantera. Grifo nosso.)Ao mesmo tempo, os aspectos culturais costumamabrigar semelhanças que se pretendem reforçar,como no caso da capoeira. O capoeirista Pantera vêna prática da luta um fator unificador daquilo queele chama de “identidade cultural” da favela.Tenho 25 anos, sou natural de Belo Horizonte. Vou sobrevivendoaté hoje como muitas pessoas sobrevivem,em um mundo que tem diversão, lazer, drogas e muitacriminalidade. Eu sou um DJ, tenho um som. Minhavida praticamente é aqui dentro dessa comunidade.Eu me orgulho bastante de trabalhar aqui. Tenho quepassar as coisas que aprendi na convivência na favela.Desejo de coração que Deus possa estar iluminando osnossos caminhos para que eu possa fazer a felicidadeda comunidade. Uma das coisas que mais me orgulham.(DJ Rei)IdentidadesO processo de formação de identidades pode sermuito positivo quando os sujeitos são capazes deultrapassar os limites estabelecidos para determinadosgrupos e indivíduos. Costuma-se atribuir umaidentidade monolítica aos moradores de favelas. Adiscussão durante a produção dos vídeos possibilitaum processo cognitivo de percepção e interpretaçãodaquilo que unifica os moradores dos dois aglomerados,sem que eles assumam uma identidade a elesatribuída de forma estigmatizante. Como podemosver, há uma identificação entre eles. Mas, ao mesmoComo tive oportunidade de aprender quero passara capoeira para as pessoas. Resgatar a identidadecultural das pessoas. A capoeira consegue fazer vocêter uma autoconfiança. Conhecer, descobrir sua origeme gostar disso, da sua descendência e suas raízes.(Pantera)Ele também faz uma associação da identidade culturalcom sendo parte de uma herança racial. Grandeparte dos moradores do Aglomerado Santa Lúcia,onde Pantera dá aula, é negra ou mestiça. De formageral, os moradores envolvidos diretamente emgrupos organizados identificam-se de maneira maisexplícita como moradores de favelas. A identidadeé assumida, nos termos de Hall (2001:86), levandoseem conta o caráter posicional e conjuntural, ouseja, trata-se de um posicionamento político. Quand<strong>of</strong>alamos de moradores ordinários há uma defesada identidade de morador de favela, mas que não éfeita de forma refletida ou como resultado de umatomada de posição política.Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>89


Vozes da favela: representação, identidade e disputas discursivas no ciberespaçoMárcia Maria da CruzConsiderações finaisOs discursos produzidos sobre os moradores defavelas ainda são fortemente marcados por estereótipos.Pela centralidade que os meios de comunicaçãoocupam na contemporaneidade (Maia, 2004),é imprescindível que novos discursos circulem noespaço de visibilidade midiático. A experiênciado projeto Ocupar Espaços aponta caminhos, nosquais os meios de comunicação podem mediar a interaçãoentre o morador e o não-morador de favela,a fim de construir novas representações.Os moradores buscam afirmar a autonomia e arelevância dessas comunidades. O desejo de falarpor si mostra-nos como há uma urgência entre essaparcela da população em ser ouvida na esfera pública.Sua multiplicidade de falas repleta de pontos devistas diferentes mostra a produção de um discursoalternativo que não se encontra nem pronto nemdeterminado.Os moradores procuram romper com os discursosestigmatizantes. Embora as falas nem semprese organizem na forma de um discurso articuladoe politicamente engajado, elas demonstram que asinterações comunicativas mediadas no site procuramcontrapor os estereótipos sobre o morador defavela. Percebemos que o discurso que emerge aindaestá muito marcado pelo discurso do tráfico e daviolência, que serve como referência ou balizadorda fala dos moradores. Apesar disso, há um desejoexplícito de ultrapassar os limites simbólicos que odiscurso do tráfico e da violência impõe aos moradoresde favelas.O site apresenta-se como locus de construçãoidentitária tanto para os moradores de favelas comotambém para os não-moradores. O exercício de seexpressar para a coletividade é um momento paraas pessoas organizarem suas identidades.Na produção dos vídeos, emerge uma terceirapossibilidade de se pensar a representação sobreo morador de favela: não é a perspectiva de quemmora nas favelas nem tão pouco de quem não mora.É um olhar novo que passa pelo crivo da constantetensão em torno do “nós” e do “outro”, pois é feitoconjuntamente por moradores e não-moradores.Referências BibliográficasBakhtin, Mikhail (1998) Questões de literatura e de estética:A teoria do romance. 4. ed. São Paulo: Ed. da Unesp:Hucitec.1998.—. ([1979] 2000) Estética da Criação Verbal. TraduçãoMaria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo. Ed.MartinsFontes.—. ([1929] 2004) Marxismo e filos<strong>of</strong>ia da linguagem:problemas fundamentais do método na ciência da linguagem.11ª. ed. São Paulo: Hucitec.Barros, Diana Luz Pessoa (1999) ‘Dialogismo, Polifonia eEnunciação’. In Diana Luz Pessoa Barros e José Luiz Fiorin(orgs). Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade em torno deBakhtin. Pp. 1–9. São Paulo: Ed. EduspBentes, Ivana (2002) ‘Favelas: folclore, violência e estéticaPop’. In Catálogo do 6º Festival do Filme Documentário eEtnográfico – Fórum de Antropologia, Cinema e Vídeo / BeloHorizonte – Filmes de Quintal FAFICH – UFMG.Cohen, Joshua (2000) ‘Procedimiento y sustancia en la democraciadeliberativa’. In Metapolítica v.4, n.14: 24–47.Drysek, John S. (2004) ‘Legitimidade e economia na democraciadeliberativa’. In Vera Schattan Coelho e Marcos <strong>No</strong>bre(Org). Participação e Deliberação – Teoria democrática eexperiências institucionais no Brasil contemporâneo. SãoPaulo: Ed. 34.França, Vera (2002) ‘Discurso de identidade, discurso de alteridade:a fala do outro’. In Vera França; Paulo Bernardo Vaz;Regina Helena Silva e César Guimarães. Imagens do Brasil:modos de ver, modos de conviver. Belo Horizonte: Autêntica.Guimarães, César (2002) ‘A imagem e o mundo singular dacomunidade. In: Vera França; Paulo Bernardo Vaz; ReginaHelena Silva e César Guimarães. Imagens do Brasil: modosde ver, modos de conviver. Belo Horizonte: Autêntica.Gutmann, Amy e Thompson, Dennis (2004) Why DeliberativeDemocracy? Princeton, Oxford: Princeton University Press.Habermas, Jürgen (1997) Direito e democracia: entre afaticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.Hall, Stuart (2001) A identidade cultural na pós-modernidade.6ª Ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.Honneth, Axel (2003) Luta por reconhecimento: a gramáticamoral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34.Maia, Rousiley C. Moreira (2004) ‘Dos dilemas da visibilidademidiática para deliberação política’. In André Lemos (Org.).Mídia Br : Livro do XII Compós-2003. Porto Alegre: Sulina.—. (<strong>2007</strong>) ‘Deliberação e Mídia’. In Democracia e Mídia: Dimensõesda Deliberação. Belo Horizonte: Editora Brasiliense(no prelo).Mitra, Ananda (2001) ‘Marginal Voices in Cyberspace.’ InNew Media & Society. Vol. 3, Nr 1:29–48.ONU [Organização das Nações Unidas] (2006) O Estadodas Cidades no Mundo 2006/7. ONU- Habitat.90Stockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>


Vozes da favela: representação, identidade e disputas discursivas no ciberespaçoMárcia Maria da CruzPietikäinen, Sari e Dufva, Hannele (2006) ‘Voices in Discourses:Dialogism, Critical Discourse Analysis and Ethnic Identity.’In Journal <strong>of</strong> Sociolinguistic,10/2 :205–224.Rocha, Simone Maria (2006) ‘Debate público e identidadescoletivas: a representação de moradores de favela na produçãocultural da televisão brasileira’. In Texto, v. 14: 4.Silva, Jailson de Souza e Jorge Luiz Barbosa (2005) Favela:alegria e dor na cidade. Rio de Janeiro: Editora Senac Rio.—. (2002) Um espaço em busca de seu lugar: a favela paraalém dos estereótipos. 200<strong>2.</strong> Disponível em http://www.iets.org.br/biblioteca/Um_espaco_em_busca_de_seu_lugar.PDF.Acesso em 10 de setembro de 2004.Referências URLArautos do Gueto: http://www.arautosdogueto.org.brCentral Única das Favelas (Cufa): http://www.cufa.com.brFavela é Isso Aí: http://www.favelaeissoai.com.brObservatório de Favelas:http://www.observatoriodefavelas.org.brOcupar espaços: http://www.ocupar.org.brRadio Favela: http://www.radi<strong>of</strong>avelafm.com.brRegistro da instalação no Aglomerado da Serra no Youtube:http://www.youtube.com/watch?v=De2cIXf0AOwRegistro da instalação no Aglomerado Santa Lúcia noYoutube: http://www.youtube.com/watch?v=4D-zIVjJUT4Viva Favela: http://www.vivafavela.com.brStockholm REVIEW OF <strong>Latin</strong> <strong>American</strong> <strong>Studies</strong><strong>Issue</strong> <strong>No</strong> <strong>2.</strong> <strong>No</strong>vember <strong>2007</strong>91

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!