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A morte Guarani

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Ele foi encontrado em um caminho de terra batida, limitado pela mata, que conduzia à sua casa. A árvore era pequena,quase do seu tamanho, e os pés não chegaram a ficar suspensos. Quase sentado na terra, seu corpo já não tinha vida.O cadáver pendia de uma corda, a ferramenta que encontrou para emudecer o desespero. Calou-se, era o silêncio demais uma alma.Esse era Daniel Romero, índio da etnia guarani-kaiowá que se suicidou, há dois anos, na aldeia Jaguapiré, no sul de MatoGrosso do Sul. Uma semana antes de seu suicídio, Romero chorava a <strong>morte</strong> de um de seus melhores amigos. O velório foitriste, e as lágrimas que caíam eram não só pelo colega, mas por ele mesmo.Tudo parecia confuso: ideias e sentimentos de dor, mágoa e tristeza se misturavam à perda de um grande amigo. O companheirohavia se enforcado, o motivo ninguém sabia ao certo. Esse também seria o destino de Romero.A esposa deixara Romero para viver com outro. Ele voltou a morar com a mãe, Lurdes Ortiz, que já não sabia mais lidar comsuas bebedeiras. Naquela manhã, chegou de uma longa noite de baile com amigos. Estava triste e bêbado. Logo depois,dirigiu-se à casa da família do amigo morto para a cerimônia de sétimo dia. Romero carregou a cruz até o cemitério, choroumais um pouco e voltou para casa. A mãe conta que ele parecia atordoado e faminto. Apressou-se para preparar umacomida. Quando o reencontrou, Romero atirava roupas e objetos para o alto e gritava: “Eu não sei o que está acontecendo!”.Inquieta, Lurdes saiu para colher mandioca. Ao voltar, o filho já não estava lá. Nervosa, sua primeira atitude foi procurar acorda, que não encontrou mais em cima do armário.Romero caminhou alguns metros e resolveu que aquela era a hora. Com a frieza de quem realmente sabe o que quer, escolheuuma árvore, amarrou a corda e colocou-a ao redor do pescoço. O galho baixo abria espaço para a desistência. Masele não iria ceder. Decidido, soltou as pernas e morreu sentado.Quando percebeu sua ausência, Lurdes pegou um dos netos e saiu em busca do filho. Encontrou o corpo e arrancou acorda do pescoço. Romero preferiu o silêncio. Escolheu se enforcar ao invés de perder de vez o que tinha de mais preciosodiante de sua cultura: a alma.O silêncio do jejuvyO método que usou é o mesmo adotado pela maioria dos índios kaoiwá: o enforcamento, conhecido entre elescomo jejuvy, palavra que pode ser traduzida como ”aperto na garganta, sufocação”. Cordão do short, pedaço depano, cadarço, alça de sacola de nylon e camiseta são alguns dos chocantes instrumentos usados pelos indígenaspara cometer suicídio.“O jejuvy é um ato complexo, um ato individual, individualizante, mas que obedece a uma forte motivação cultural”, explicao antropólogo Miguel Vicente Foti. Ele destaca que o suicídio assume uma postura silenciosa, já que poucos anunciam oato antes de morrer. Trata-se de uma afirmação da própria individualidade por meio da negação extrema do individual.Aspectos culturais estão na base de tantos suicídios entre os guaranis-kaiowás. Isso acontece porque os guaranis sãoconhecidos pela alma-palavra, o ayvu – isto é, pessoa cuja morada é a garganta. Falar e manter-se ereto são as duas principaiscaracterísticas de seu povo. São elas que os índios matam quando, num ato de desespero, se enforcam. O jejuvy seriaentão uma forma de calar, ou sufocar, a alma. O suicídio é uma maneira de responder culturalmente à situação em quevivem. A <strong>morte</strong> de Daniel Romero é um número a mais na assustadora estatística de suicídios entre os guaranis-kaiowásem Mato Grosso do Sul. Segundo levantamento do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), em 2007 ocorreram 19 casosde suicídio, em uma população de aproximadamente 20 mil índios. Em 2006 foi ainda pior: 56 casos, número muito acimada média brasileira.É verdade que há muito tempo os kaiowás praticam o jejuvy. “Antes, índio não tinha roupa nem corda, então se enforcavacom o cipó”, afirma dona Emília Romero, a mulher mais velha da aldeia Jaguapiré. Contudo, ela acrescenta, os casos nãoeram tão comuns quanto hoje e ocorriam de forma maisesporádica. Mesmo sendo uma prática antiga, o suicídio éencarado, hoje, como uma reação autodestrutiva. A <strong>morte</strong>voluntária surge em meio ao conflito entre a culturanão-índia e a tradição de sua etnia. É o resultado da perdade um de seus bens mais preciosos: a terra.A perda do teokáTeoká (teko = modo de ser; e ha = lugar onde) é a palavraque representa o local em que vivem os kaiowás.Terra que é muito mais do que um espaço, significandouma fusão entre território, relações sociais, subsistênciae manifestações religiosas. Além da perda do teoká,esses índios estão sujeitos ao “aculturamento” impostopela população não-índia. Os danos se manifestam norompimento dos laços familiares e no esquecimentode rezas e danças.Cordão de short,pano, cadarço,alça de sacolae camiseta sãoinstrumentosusados pelosindígenas paracometer suicídioAs aldeias ficam, geralmente, na periferia das cidades.Sem transporte, saneamento básico ou recolhimento delixo, os índios sobrevivem do subemprego e do auxíliodo governo. A chegada de drogas e álcool e a proliferaçãodas igrejas neopentecostais desfiguram as aldeias. Autilização dos índios como mão-de-obra nas usinas decana agrava, ainda mais, o problema. São fatores que sesomam, aumentando o número de suicídios, resposta silenciosaa uma situação muito complexa.Além dos suicídios, a <strong>morte</strong> de crianças por desnutriçãoe as brigas e os assassinatos entre os próprios índios sãosintomas de que algo está errado com a etnia. Nesse cenárioadverso, a cultura guarani-kaiowá se deteriora. Emalgumas aldeias, as crianças já não falam guarani e nemsequer conhecem as danças tradicionais. Sem as antigasreferências, os conflitos se tornam cada vez mais frequentes.As aldeias, hoje, estão cheias de jovens perdidos, queaspiram ao modo de vida dos brancos e não se reconhecemmais como kaiowás.A adolescência guaraniQuando lhe perguntam o que é ser uma índia, a adolescentede 15 anos Aviane Arévalo abaixa a cabeça e responde:“Não sei”. Abandonada muito cedo pelos pais, elafrequenta hoje uma igreja evangélica e já não conheceas rezas e as danças de sua cultura. Aviane foi criada porparentes com quem, aparentemente, não tem muita intimidade.Diante da repórter, permanece distante, sempalavras ou movimentos expressivos. As característicasfísicas e a timidez são traços reconhecidamente guaranis.Aviane permanece, quase imóvel, sentada em uma pedrano quintal. Olha para o lago e tem uma árvore comomoldura. É uma adolescente dividida entre o mundo dobranco e a cultura indígena.Em intenso conflito interior vivia, também, o jovemCláudio Fernandes. Aos 15 anos, ele parou de estudarpor falta de dinheiro. Acabara de se casar com uma meninade apenas 12 anos e, diante da falta de perspectivas,encontrou na bebida alcoólica o alívio de que precisava.Depois, na <strong>morte</strong>, o silêncio que tanto queria.Em uma tarde, a mãe de Cláudio, Sunciona Fernandes, lavavaroupas em um açude próximo de casa, enquanto ofilho dormia. Parecia um dia normal. Até que, sem chamara atenção da família, o rapaz se levantou da cama e, semdar explicações a ninguém, caminhou em direção à matavizinha. Durante dez dias, a família o procurou inutilmente.No décimo dia, a avó Avelina Hara percebeu uma estranhamovimentação de urubus em uma área um poucodistante da aldeia. Mostrou ao marido, que foi investigar.Ele logo reconheceu o corpo do neto, caído em uma valapor onde escorria um pequeno riacho. A camiseta queCláudio usara para se enforcar, muito frágil, se rompera.Não foi a primeira vez que Cláudio planejou se matar. Pelomenos em três outras vezes, diz a mãe, o adolescente játentara acabar com a vida. Em todas elas, o avô chegou a34 35

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