Design, Arte, Moda e Tecnologia / Organização - Universidade ...
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DESIGN ARTE MODA E TECNOLOGIA<br />
<strong>Organização</strong><br />
Gisela Belluzzo<br />
Jofre Silva
D172<br />
DAMT: <strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong><br />
<strong>Organização</strong><br />
Gisela Belluzzo<br />
Jofre Silva<br />
Concepção Projetual e Produção Digital<br />
Magda Martins<br />
Jorge Paiva<br />
Leandro Fanelli<br />
Mayra Mártyres<br />
Promoção<br />
<strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />
Pontifícia <strong>Universidade</strong> Católica do Rio de Janeiro<br />
<strong>Universidade</strong> Estadual Paulista -UNESP/Bauru<br />
DAMT: <strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong> / <strong>Organização</strong> Gisela Belluzzo e<br />
Jofre Silva. – São Paulo: Edições Rosari, 2010.<br />
Vários autores.<br />
ISBN 978-85-8050-006-6<br />
1. <strong>Design</strong>. 2. <strong>Design</strong> gráfico. 3. <strong>Design</strong> - <strong>Tecnologia</strong>.<br />
4. <strong>Arte</strong> e design. 5. <strong>Design</strong> e moda. I. Belluzzo, Gisela.<br />
II. Silva, Jofre. III. Título.<br />
CDD 741.6<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 2
SuMáRIO<br />
Apresentação, 5<br />
Conselho Científico, 6<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Tecnologia</strong> e Linguagem: Interfaces<br />
<strong>Design</strong> e naturalismo: Filosofia naturalista, biônica e ecodesign, 7<br />
Ângela Ribas Cleve Costa, Juliane Vargas Nunes, Márcia Melo Bortolato, Richard Perassi Luiz de Sousa<br />
Video game: análise ergonômica do jogador de Playstation,17<br />
Carolina Poll, Marcelo Almeida<br />
As tendências e o design: metodologia de projeto do mobiliário orientada para o futuro, 37<br />
Aline Teixeira de Souza, Marizilda Santos de Menezes<br />
A inovação através da relação da gestão de design com os princípios do <strong>Design</strong><br />
Thinking, 46<br />
Diego Daniel Casas, Eugenio Andrés Díaz Merino<br />
Diálogo entre design e emergência: O metadesign como estratégia projetual para problemas da alta<br />
complexidade na área de design, 55<br />
Rui Alão<br />
um estudo sobre a linguagem da ilustração e o design gráfico, 67<br />
Jorge Paiva<br />
Analisando o MECOTipo, 87<br />
Leonardo A. Costa Buggy<br />
O reaproveitamento de ideias e materiais no design de joias: origem, intertextualidade e sustentabilidade,<br />
104<br />
Viviane Nogueira de Moraes<br />
O <strong>Design</strong> e a Publicidade dos Anúncios Kolynos na Revista O Cruzeiro entre os anos 1950 e 1960, 117<br />
Leandro Ferretti Fanelli<br />
Classificação e escolha de um sistema de impressão, 126<br />
Leonardo A. Costa Buggy, Lia Alcântara Rodrigues<br />
Transparências e fragrâncias: materialidades simbólicas nas embalagens de perfume, 149<br />
Maureen Schaefer França, Marilda Lopes Pinheiro Queluz<br />
As experiências do design finlandês: reflexões para ações do design, 173<br />
Maria Carolina Medeiros, Mariano Lopes de Andrade Neto, Lívia Flávia de Albuquerque Campos, Paula da Cruz Landim<br />
Investigações metodológicas: aproximação entre design e tecnologia, 186<br />
Deborah Kemmer<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 3
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong> e <strong>Moda</strong>: Inter-relações<br />
Cecília Meireles: defensora da Educação Moderna, das <strong>Arte</strong>s e do Cinema na Educação, 201<br />
Ana Mae Barbosa<br />
As interações entre moda e música na constituição de identidades: uma análise das influências da<br />
Black Music, 221<br />
Rita Aparecida da Conceição Ribeiro<br />
Ilustração digital na moda, 244<br />
Gabriela Coutinho Pinheiro, Adriana Leiria Barreto Matos<br />
<strong>Moda</strong> e música: afinidade declarada, 262<br />
Renata Santiag Freire, Adriana Leiria Barreto Matos<br />
Conexões conceituais entre moda, vestuário, design e arte, 277<br />
Maria Alice Vasconcelos Rocha<br />
Considerações éticas na pesquisa em design de moda, 290<br />
Luciane do Prado Carneiro, Danilo Corrêa Silva, Marizilda dos Santos Menezes, Luis Carlos Paschoarelli,<br />
José Carlos Plácido da Silva<br />
Calçados desejáveis para mulheres portadoras de deficiência física: um desafio desejável para os<br />
designers de calçados, 308<br />
Mariana Rachel Roncoletta<br />
Aspectos do diálogo entre design, arte e moda a partir de uma análise dos calçados do<br />
século XX, 325<br />
Natalie Rodrigues Alves Ferreira, Cristiane Mesquita<br />
Inovação em design na história do underwear masculino, 339<br />
Taísa Vieira-Sena<br />
O terno: questões e reflexões, 358<br />
Luisa de Almeida Magalhães Simão, Cristiane Mesquita<br />
Profissão: designer de moda, 367<br />
Lívia Marsari Pereira, Maria Carolina Medeiros, Paula Hatadani, Raquel Rabelo Andrade, José Carlos Plácido da Silva<br />
<strong>Design</strong>ers: entre céticos e dogmáticos, 378<br />
Diego Daniel Casas, Ricardo Goulart Tredezini Straioto, Richard Perassi Luiz de Sousa<br />
Avaliação da percepção de conforto pelas usuárias de calcinhas, 389<br />
Marina A. Giongo, Daiane P. Heinrich<br />
<strong>Design</strong> cênico: técnica, processo & criação na identidade urbana, 398<br />
Ary Scapin Júnior<br />
O que faço com os meus diários de campo? Inquietações de uma antropóloga no <strong>Design</strong> e<br />
na <strong>Moda</strong>, 408<br />
Márcia Merlo<br />
O design da marca Colcci: história e construção, 420<br />
Alvaro de Melo Filho, Márcia Merlo<br />
Flávio Império: cenógrafo, arquiteto e artista, 443<br />
Gisela Belluzzo de Campos, Tereza Grimaldi Avellar Campos<br />
<strong>Design</strong>er artesão ou artesão designer? uma questão contemporânea. As aproximações por meio das<br />
intervenções de design no artesanato, 456<br />
Savana Leão Fachone, Márcia Merlo<br />
Estudar com <strong>Design</strong> – uma reflexão sobre o espaço universitário, 463<br />
Fabíola Marialva Marques<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 4
APRESENTAçãO<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong> (DAMT) busca contribuir<br />
com a discussão em design, por meio de artigos resultantes<br />
de estudos e de pesquisas de conceitos, de materiais, de<br />
procedimentos, de formas e de produtos culturais. Por ser uma<br />
área em franca e acelerada expansão no Brasil, a diversidade de<br />
temas, enfoques e análises reflete a efervescência da produção<br />
acadêmica em design que, em sua essência, já comporta um<br />
caráter múltiplo e interdisciplinar.<br />
A presente edição dá continuidade ao projeto editorial<br />
intitulado <strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong> e <strong>Tecnologia</strong>, iniciado em 2005, com o intuito<br />
de fortalecer o diálogo entre estes campos do conhecimento.<br />
Entretanto, com o envolvimento crescente de pesquisadores<br />
interessados nas interfaces entre o <strong>Design</strong> e a <strong>Moda</strong>, a coletânea<br />
amplia sua proposta original e inicia uma nova fase. Assim, ao<br />
integrar a <strong>Moda</strong> em seu título, procura não apenas reconhecer<br />
a valiosa colaboração já existente; mas também tratar a letra M<br />
como uma marca do momento de movimentar, mexer e modificar<br />
para mesclar, melhorar e motivar mudanças.<br />
DAMT mantém o perfil conceitual das coletâneas<br />
anteriores, reunindo trabalhos desenvolvidos por professores,<br />
alunos, pesquisadores e profissionais da área. O sucesso do<br />
projeto resulta da integração entre os Programas de Pós-<br />
Graduação em <strong>Design</strong> da Anhembi Morumbi, da PUC-Rio e<br />
da UNESP-Bauru; bem como do apoio da Edições Rosari. A<br />
publicação conta, desde a sua quarta edição, em 2008, com um<br />
Conselho Científico, para acompanhar a sua organização.<br />
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São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 5
CONSELhO CIENTíFICO<br />
Ana Mae Barbosa, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />
Cristiane Mesquita, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />
Daniela Kutschat Hanns, SENAC-SP, FAU-USP<br />
Denise Portinari, PUC-Rio<br />
Gisela Belluzzo, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />
Giselle Beiguelman, PUC-SP<br />
Jofre Silva, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />
José Carlos Plácido da Silva UNESP-Bauru<br />
Kathia Castilho, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />
Luisa Paraguai, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />
Luis Antonio Coelho, PUC-Rio<br />
Luis Carlos Paschoarelli, UNESP- Bauru<br />
Márcia Merlo, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />
Marcus Bastos, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />
Marizilda Menezes, UNESP-Bauru<br />
Miriam Cristina Carlos Silva, <strong>Universidade</strong> de Sorocaba<br />
Rachel Zuanon, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />
Rejane Spitz, PUC-Rio<br />
Rita Couto, PUC-Rio<br />
Rosane Preciosa, UFJF-MG<br />
Silvia Laurentz , ECA-USP<br />
Suzete Venturelli, UNB<br />
Vicente Gosciola, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 6
DESIGN E NATuRALISMO: FILOSOFIA NATuRALISTA, BIôNICA E<br />
ECODESIGN<br />
Ângela Ribas Cleve Costa; Mestranda em <strong>Design</strong> e Expressão Gráfi ca: UFSC;<br />
Professora da Univali - Unidade Florianópolis - angelacleve@uol.com.br<br />
Juliane Vargas Nunes; Mestranda em <strong>Design</strong> e Expressão Gráfi ca: UFSC;<br />
bolsista pelo FNDE no mesmo Programa - julivn@gmail.com<br />
Márcia Melo Bortolato; Mestranda em <strong>Design</strong> e Expressão Gráfi ca: UFSC;<br />
marcia.ead.ufsc@hotmail.com<br />
Richard Perassi Luiz de Souza; Doutor em Comunicação e Semiótica: PUC/SP;<br />
Professor do Pós- <strong>Design</strong>/ EGR/CCE: UFSC - perassi@cce.ufsc.br<br />
Resumo<br />
A corrente filosófica “Naturalismo” considera o desenvolvimento<br />
do processo cognitivo como decorrência evolutiva da natureza<br />
que, também, é proposta como modelo evolutivo para a cultura.<br />
“<strong>Design</strong>” é área de estudos e campo de atividades, cujo princípio<br />
motivador fundamental de atuação é a solução de problemas.<br />
A perspectiva naturalista em <strong>Design</strong> revela sua fundamentação<br />
teórica e proposição metodológica na observação e na apropriação<br />
de soluções dos sistemas naturais, para equacionar aspectos do<br />
projeto, sejam tecnológicos, econômicos, estéticos, ergonômicos<br />
ou ecológicos. Os estudos de <strong>Design</strong> investem em pesquisas na<br />
área de Biônica, cujos objetos de interesse são formas, funções e<br />
materiais dos sistemas naturais. Esses estudos são aplicados na<br />
proposição de soluções projetivas, em diversas áreas de atuação<br />
do design, inclusive no Ecodesign. A aplicação da Biônica à<br />
metodologia de <strong>Design</strong> propõe soluções simples e econômicas,<br />
com base nas concepções naturalistas, na elaboração de produtos<br />
ecoeficientes, objeto de estudo do Ecodesign. Há, portanto, uma<br />
interação fecunda e promissora entre <strong>Design</strong> e Naturalismo que é<br />
mediada por analogias entre sistemas culturais e sistemas naturais.<br />
Palavras-Chave: design naturalista; sistemas naturais;<br />
soluções naturais; sustentabilidade<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 7
<strong>Design</strong> e naturalismo: filosofia naturalista, biônica e ecodesign<br />
Introdução<br />
No período artesanal, que antecedeu ao período histórico-industrial, não havia<br />
uma separação clara entre as áreas de <strong>Arte</strong> e de <strong>Design</strong>. No processo artístico-artesanal,<br />
as atividades de projeto e execução eram praticamente indissociáveis, como também se<br />
sobrepunham as histórias de <strong>Arte</strong> e de <strong>Design</strong>. Havia um diálogo ou uma interatividade<br />
continuada entre as instâncias do pensamento e da produção. Os resultados eram produtos<br />
particulares, praticamente únicos, mesmo quando se buscava a produção de diversos<br />
exemplares semelhantes. Porém, o princípio que determinou a Revolução Industrial foi de<br />
“serialização”. Primeiramente, houve a produção manufaturada em série, como consequência<br />
da especialização dos artesãos, em que cada um era especializado para fabricar em série<br />
uma parte do produto. Assim, cada parte seguia o padrão de sua série, sendo compatível<br />
com quaisquer outras partes componentes do mesmo tipo de produto. Posteriormente, os<br />
artesãos foram sendo substituídos por máquinas na fabricação das partes dos produtos.<br />
Como consequência da fabricação por máquinas, as formas das partes dos produtos<br />
foram geometricamente simplificadas, para que fossem mecanicamente fabricadas. A<br />
industrialização separou radicalmente as instâncias de planejamento dos produtos e de<br />
produção. Portanto, separou-se o processo de projeto e o processo de produção. Os rígidos<br />
limites da mecanização exigiram a adoção dos princípios de idealização geométrica e o<br />
desenvolvimento de uma razão metódica, para os processos de projeto e de gestão, com<br />
base em procedimentos científico-tecnológicos.<br />
A sistemática de criação e de gestão de projetos fundou e caracteriza a área de <strong>Design</strong>,<br />
como campo de estudos aplicados nas atividades de projeto, que definem a profissão de<br />
<strong>Design</strong>er.<br />
A serialização da produção e a separação da atividade projetivo-ideal da produção<br />
mecanizada assinalam a intervenção idealista no processo de fabricação de bens<br />
manufaturados. Isso é mais evidente em comparação com os processos naturais, nos quais o<br />
desenvolvimento de cada criatura é continuado e individualizado. A defesa do trabalho manual<br />
foi resgatada por movimentos de arte aplicada, o mais proeminente foi Arts and Crafts, que<br />
propôs o trabalho manual como fonte de recuperação da dimensão estética dos objetos,<br />
em oposição à esterilidade dos objetos industrializados. A valorização do trabalho manual<br />
retomou a perspectiva naturalista, porque priorizava a relação natural, entendendo o objeto<br />
como extensão do homem e como parte da natureza.<br />
O percurso histórico modernista, porém, confirmou o afastamento entre os campos<br />
de <strong>Design</strong> e de <strong>Arte</strong>sanato e ambos se distanciaram do campo da <strong>Arte</strong>. Isso ratificou a<br />
racionalidade lógico-idealista como característica de <strong>Design</strong>.<br />
A partir disso, foi amplamente desenvolvida no campo de <strong>Design</strong> uma concepção<br />
funcionalista, de acordo com a premissa “a forma segue a função”, a qual exerce influência<br />
sobre as atividades projetivas até os dias de hoje, mesmo que de forma menos central. Essa<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 8
<strong>Design</strong> e naturalismo: filosofia naturalista, biônica e ecodesign<br />
visão, de uma maneira geral, prioriza fatores racionais da relação entre homem e objeto, com<br />
relação aos aspectos de caráter sensorial.<br />
Por outro lado, a extinção dos recursos naturais e a degradação do meio ambiente<br />
requerem a reaproximação entre o homem e os elementos da natureza, como partes<br />
integrantes de um mesmo ecossistema, cujo funcionamento interfere e compete a todos<br />
os seus componentes, mesmo que de forma diversa. No campo de <strong>Design</strong>, as pesquisas<br />
relacionadas à área de Biônica observam os sistemas naturais para a proposição de soluções<br />
em projetos de diversos produtos como, automóveis e joias e exercendo influência também<br />
sobre a área do Ecodesign. A consciência ecológica exige novos estilos e padrões de consumo<br />
sustentável, implicando em projetos de <strong>Design</strong> coerentes com essa nova realidade.<br />
Conforme Villas-Boas (2000, p.45), <strong>Design</strong> é uma palavra inglesa originária de designo<br />
(as-are-avi-tum), que em latim significa designar, indicar, representar, marcar, ordenar. O<br />
sentido de design lembra o mesmo que, em português, tem designo: projeto, plano, propósito<br />
(Ferreira, 1975).<br />
Embora a etimologia do termo <strong>Design</strong> seja ampla, a atividade projetiva caracteriza o<br />
campo de estudos e de atuação aqui configurado. O desenvolvimento de um projeto, por<br />
sua vez, surge de uma necessidade a ser suprida, que se apresenta como um problema<br />
(MUNARI, 2008). Entendendo o problema como a situação que motiva a elaboração de um<br />
projeto de <strong>Design</strong>, mostra-se necessário considerar um método adequado, de acordo com a<br />
investigação do problema, que é a primeira etapa do desenvolvimento projetual. Munari (2008)<br />
destaca que, na maioria das vezes o problema é identificado pelo cliente. Mas, em alguns<br />
casos, o designer detecta e apresenta o problema ao cliente, a partir das considerações<br />
propostas no processo de brienfing.<br />
Entre as metodologias e abordagens de pesquisa, que podem ser assumidas de<br />
acordo com concepções e objetivos propostos, a abordagem naturalista pode e deve ser<br />
considerada, buscando soluções que aproximem os objetos de design dos sistemas naturais,<br />
concebendo-os como uma extensão do ser humano e parte integrante do ambiente natural<br />
(PATARRNA, 2003).<br />
Entendemos que <strong>Design</strong> associado a Naturalismo é capaz de cumprir seu designo,<br />
equacionando fatores ecológicos, ergonômicos, tecnológicos e econômicos, na concepção<br />
de elementos e sistemas para atender necessidades humanas e promover o desenvolvimento.<br />
Através de soluções conceituais e práticas <strong>Design</strong> Naturalista proporciona uma concepção<br />
de projetos e objetos ecoeficientes, com base nos estudos de Biônica e nos princípios de<br />
Ecodesign.<br />
Naturalismo Filosófico<br />
Conforme o descrito em Dicionário Básico de Filosofia (JAPIASSÚ e MARCONDES,<br />
2001), Naturalismo é uma concepção filosófica que não admite a existência de nada que seja<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 9
<strong>Design</strong> e naturalismo: filosofia naturalista, biônica e ecodesign<br />
exterior à natureza, reduzindo o conceito de realidade à experimentação do mundo natural.<br />
O pensamento naturalista recusa, portanto, qualquer elemento sobrenatural ou princípio<br />
transcendente. Assim, mesmo a moral deve basear-se nos princípios que regem a natureza,<br />
tomados como fundamentos das regras e dos preceitos de conduta.<br />
De acordo com Dutra (2005 p.83), o pensamento naturalista propõe como crença<br />
verdadeira que somos capazes de representar mentalmente o mundo a nossa volta, sejam<br />
coisas, processos ou acontecimentos. Enfim, o estado das coisas em geral. Segundo Hume, há<br />
três maneiras pelas quais associamos nossas ideias: (1) por semelhança, (2) por contiguidade<br />
(de tempo ou de lugar) e (3) por relação de causa e efeito (DUTRA, 2005). Aproximar Filosofia,<br />
Ciência e Técnica é o tema principal dos naturalistas. Por isso, os pressupostos naturalistas<br />
estão na fundação da moderna teorização cientifica. Referências a moral ou propósitos<br />
divinos não encontram lugar na Ciência, que se limita a explicar os fenômenos empíricos<br />
sem referência a forças, poderes, ou influências sobrenaturais. Nessa perspectiva, a Ciência<br />
Moderna é essencialmente naturalística.<br />
Empirismo e Naturalismo<br />
O pensamento naturalista, que defende o conhecimento como decorrência de causas<br />
naturais, é reforçado pela crítica dos cético-empiristas sobre a impossibilidade da razão explicar<br />
logicamente a causalidade do conhecimento. Entre os empiristas, há os que se destacaram<br />
como representantes da vertente naturalista. Um desses empírico-naturalistas é o filósofo e<br />
lógico norte-americano Willard Quine (1908-2000) que, influenciado por Rudolf Carnap (1891-<br />
1970), apresentou-se como defensor do empirismo no pensamento do século XX. No seu<br />
trabalho, Quine questionou a diferença entre os dados sensoriais percebidos e o conhecimento<br />
proposto, indicando a existência de um processo complexo de mediação entre a percepção<br />
e a compreensão. Assim, desenvolveu um argumento mostrando a fragilidade dos critérios<br />
em que se baseia a distinção entre os termos analítico e sintético, mostrando a fragilidade<br />
dos critérios em que se baseia esta distinção, a partir da reflexão sobre as informações que<br />
entram e saem do cérebro (JAPIASSÚ e MARCONDES, 2001).<br />
Muito antes de Quine, entretanto, o filósofo escocês David Hume (1711-1776) influenciou<br />
cientistas e filósofos que o sucederam, com sua ideia de que Filosofia era a ciência da natureza<br />
humana fundada no “indutivismo” e no “experimentalismo”. Para Hume, o processo cognitivo<br />
ocorre a partir da observação da natureza, que é seguida das associações de ideias sobre o<br />
que observamos. Essa questão envolve o “princípio do Hábito”, decorrente das crenças que<br />
desenvolvemos a partir da repetição de observações. Esse princípio faz parte da natureza<br />
humana e, ainda, de toda a natureza, já que os animais também apresentam essa característica.<br />
Assim, a abordagem para avaliar e discutir o conhecimento humano deve ser semelhante a<br />
nossa abordagem para compreender outros processos naturais. Hume apresenta em sua<br />
obra as seguintes questões fundamentais: a) não é possível nenhuma teoria geral da realidade:<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 10
<strong>Design</strong> e naturalismo: filosofia naturalista, biônica e ecodesign<br />
o homem não pode criar ideias, pois está inteiramente submetido aos sentidos; todos os<br />
nossos conhecimentos vêm dos sentidos; b) a ciência só consegue atingir certezas morais:<br />
suas verdades são da ordem da probabilidade; c) não há causalidade objetiva, pois nem<br />
sempre as mesmas causas produzem os mesmos efeitos; d) convém que substituamos toda<br />
certeza pela probabilidade (JAPIASSU e MARCONDES, 2001).<br />
Biônica<br />
Hume pregava que todo conhecimento humano provem da observação do mundo a sua<br />
volta, sendo o próprio pensamento algo natural do ser humano. O pensamento se processa<br />
por associação de ideias, “que utilizamos em todas as nossas conclusões sobre questões<br />
de fato e, portanto, ele é o princípio do qual dependem todas as nossas crenças factuais<br />
ou causais sobre o mundo em que vivemos” (DUTRA, 2005, p. 87). Isso pressupõe que, em<br />
última instância, o homem não determina seu conhecimento, porque esse é decorrente de<br />
um processo natural do qual ele próprio é um sistema determinado. Essa consideração indica<br />
a natureza como responsável, inclusive, pela produção cultural, que se desenvolveu pelas<br />
mentes e mãos dos homens. Portanto, assumir os sistemas naturais como modelos para as<br />
produções culturais é propor um processo de aproximação entre duas etapas de um mesmo<br />
processo evolutivo.<br />
Por volta de 1960, o major americano Jack Steele definiu Biônica como “ciência dos<br />
sistemas cujo funcionamento foi copiado de sistemas naturais, que apresentam características<br />
específicas de sistemas naturais ou ainda que lhes sejam análogos”. Mas, ao longo da história,<br />
os seres humanos sempre adotaram a natureza como fonte inspiradora, para a criação de<br />
ferramentas e soluções para os problemas do seu dia a dia. Por exemplo, Leonardo da Vinci<br />
partiu das observações de uma libélula, um inseto que paira no ar, para projetar um artefato<br />
semelhante ao helicóptero moderno. Assim, podemos considerar que o fundamento básico da<br />
biônica é praticado pelo homem de forma espontânea, para extrair da natureza as soluções para<br />
os problemas cotidianos. Esse processo de observação da natureza, coletando informações<br />
para, posteriormente, solucionar problemas práticos ou teóricos implica na complexidade do<br />
sistema cognitivo humano. Isso configura a questão que intrigava Quine, uma vez que o ser<br />
humano é capaz de apreender os processos naturais e adaptá-los aos projetos culturais,<br />
sendo que...<br />
a entrada de dados sensoriais não é suficiente para o conhecimento humano.<br />
Ao contrário, ele enfatiza o fato de que deve haver uma mediação importante<br />
entre a tal entrada e a saída. [...] a diferença entre a riqueza dessa saída e a<br />
pobreza daquela entrada de dados sensoriais é tão impressionante que pede<br />
uma explicação (DUTRA, 2005, p. 92).<br />
Biônica é, portanto, uma área que se organizou a partir de uma possibilidade difícil<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 11
<strong>Design</strong> e naturalismo: filosofia naturalista, biônica e ecodesign<br />
de ser explicada, ou seja, a possibilidade experimentada pelos seres humanos de conhecer<br />
os sistemas naturais e aplicar esse conhecimento no avanço dos processos culturais. Para<br />
Munari (2008, p. 330),<br />
Biônica estuda os sistemas vivos, ou semelhantes aos vivos, para descobrir<br />
processos, técnicas e novos princípios aplicáveis a tecnologia. Examina os<br />
princípios, as características e os sistemas com transposição de matéria,<br />
com extensão de comandos, com transferência de energia e de informação.<br />
Toma-se como ponto de partida um fenômeno natural e, a partir daí, pode-se<br />
desenvolver uma solução de projeto.<br />
Na perspectiva do movimento filosófico Naturalismo, como sistema vivo, o próprio<br />
ser humano é regido pela natureza e o conhecimento decorre de um processo complexo, e<br />
igualmente natural, que não pode ser explicado pela lógica idealista. Atualmente, a abordagem<br />
evolucionista e os estudos de Neurociência buscam esclarecer a questão proposta por Quine,<br />
sobre a complexidade da mediação mental, por meio de pesquisas biológicas e neurológicas.<br />
Por outro lado, a metodologia de <strong>Design</strong> proposta sob uma abordagem Biônica apresenta<br />
duas formas de desenvolvimento. Na primeira, podemos partir de um problema e buscar<br />
suas soluções, com base na observação da dinâmica dos sistemas naturais, como plantas e<br />
animais (fig. 1A). A outra forma, entretanto, propõe o caminho inverso, ou seja, observamos a<br />
natureza e, a partir das soluções que ela apresenta em determinado sistema animal ou vegetal,<br />
buscamos a criação de um artefato, cuja utilidade será definida posteriormente (fig. 1B).<br />
A<br />
Metodologia da Biônica a partir do Problema<br />
B<br />
Metodologia da Biônica a partir da Observação de Soluções<br />
Figura 1<br />
Os projetos de design com metodologia Biônica vão além da simples cópia dos<br />
elementos da natureza, porque partem da observação dos sistemas naturais, mas requerem a<br />
interpretação e a adaptação das estruturas e das dinâmicas desses sistemas. Isso é aplicado<br />
na composição de analogias eficientes que relacionam formas, funções ou comportamentos,<br />
visando solucionar problemas existentes ou desenvolver artefatos inovadores. Através desses<br />
projetos, buscamos alternativas mais econômicas, mais viáveis ou sustentáveis, já que a<br />
natureza é sábia em desenvolver soluções simples e eficazes, para manter-se em equilíbrio.<br />
O método de buscar analogias na natureza é o que mais aproxima a biônica da filosofia<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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<strong>Design</strong> e naturalismo: filosofia naturalista, biônica e ecodesign<br />
naturalista, já que essa corrente propõe, especialmente com Hume, que o conhecimento<br />
é construído por associação de ideias, seja por semelhança, por relação de causa e efeito<br />
ou por contiguidade de tempo ou de lugar. O sistema “velcro”, como solução de <strong>Design</strong>, é<br />
decorrente de uma associação de causa e efeito porque, na natureza, duas superfícies com<br />
um determinado tipo de textura tendem a aderir uma na outra. Por outro lado, as formas<br />
naturais apresentam funções específicas, como as formas aerodinâmicas que serviram de<br />
modelo para o carro conceito “Biônico” da marca Mercedes-Benz, que foi projetado a partir<br />
de associações por semelhança. O design básico de um helicóptero, com relação ao animal<br />
libélula, decorre de uma associação por contiguidade, porque houve a adaptação direta de<br />
um sistema natural para um produto cultural, que é percebida na analogia com as formas das<br />
asas e, mais especificamente, na reprodução de sua capacidade de voar em espiral, devido<br />
ao funcionamento de hélices.<br />
A metodologia de <strong>Design</strong> contextualizada na área de Biônica é relativamente recente,<br />
todavia, diversos produtos de destaque na cultura contemporânea foram propostos a partir<br />
desta perspectiva. Como foi citado anteriormente, o sistema velcro é um desses produtos,<br />
que foi desenvolvido, em 1948, pelo engenheiro suíço Georges de Mestral, como um sistema<br />
de aderência inspirado na estrutura funcional de pequenas sementes, os carrapichos, que<br />
ficavam presos em suas roupas, durante as caminhadas no campo. Intrigado com esse<br />
fenômeno, Mestral observou no microscópio que as superfícies das sementes eram cobertas<br />
por minúsculos ganchos aderentes a quaisquer superfícies que fizessem laços, como fios de<br />
cabelo ou fibras de tecidos.<br />
Em fase experimental, há um outro sistema bastante original que, também, é inspirado<br />
na funcionalidade da natureza e aplicado na composição de uma malha para nadadores, a<br />
qual reproduz propriedades da pele dos tubarões. Além disso, há projetos de carros, cujo<br />
design segue a estrutura de determinado peixe e projetos de móveis ou de outros objetos que,<br />
também, são inspirados em soluções encontradas na natureza.<br />
Os estudos que estão sendo desenvolvidos indicam a abordagem biônica como muito<br />
fértil, porque o número de soluções naturais e projetos potencialmente inteligentes são quase<br />
ilimitados. Por exemplo, o biólogo Andrew Parker, da <strong>Universidade</strong> de Oxford, estudou um<br />
besouro que vive no calor extremo do deserto. A parte das costas do besouro é recoberta<br />
por uma película que, alternadamente, é cerosa e não-cerosa. Isso promove a formação<br />
de gotículas de água que o besouro bebe. Diante disso, é possível considerarmos que “a<br />
produção comercial de um material semelhante poderia ajudar a coletar água em condições<br />
áridas”. (HOOPER, 2004, p. 02).<br />
Ocorreu outro exemplo na <strong>Universidade</strong> de Penn State, onde pesquisadores<br />
desenvolvem um projeto inspirado nos pássaros chamado “morphing airplane wings” (cuja<br />
tradução livre é “avião com asas morfológicas”). Trata-se de uma aeronave cujas asas<br />
mudam de formato, de acordo com a velocidade e a duração do voo. A inspiração vem da<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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<strong>Design</strong> e naturalismo: filosofia naturalista, biônica e ecodesign<br />
constatação de que pássaros de diferentes espécies possuem asas de formatos diferentes,<br />
em função da velocidade com que cada espécie voa. Mas, a proposta inicial implica em<br />
outro problema, porque se a estrutura interna da asa pode mudar durante o voo, também, a<br />
camada externa que recobre essa estrutura deveria ter a capacidade de se alterar. Para tanto,<br />
os pesquisadores encontraram a solução nos peixes, porque usaram escamas para cobrir as<br />
asas de maneira que umas deslizam sobre as outras. Assim, os estudos na área de Biônica<br />
combinam soluções encontradas em diferentes espécies ou sistemas naturais para resolver<br />
problemas de um mesmo projeto de <strong>Design</strong> (HOOPER, 2004, p. 02).<br />
Ecodesign<br />
A evolução dos processos de produção exigiu a exploração dos recursos naturais em<br />
proporções alarmantes, preocupando os defensores do meio ambiente e a sociedade em<br />
geral. Na década de 1960, houve a proposta de redução da produção, diante da falta de<br />
sustentabilidade do planeta, durante uma reunião do clube de Roma com profissionais de<br />
diversos países. Porém, essa proposta não foi aceita dentro de um contexto capitalista em que<br />
produção e consumo compõem o grande motor econômico do mundo. Em 1972, houve uma<br />
conferência das Nações Unidas, em Estocolmo, sobre o meio ambiente, na qual foi defendida<br />
a ideia de que não era necessário consumir menos, mas consumir melhor. Portanto, devemos<br />
aproveitar melhor os recursos naturais, para reduzir a extração e racionalizar os processos<br />
produtivos, visando redução de resíduos. Isso determinou o conceito de “desenvolvimento<br />
sustentável”, que inclui desenvolvimento e uso de recursos renováveis e a preservação de<br />
recursos não renováveis..<br />
No contexto cultural de sustentabilidade foi desenvolvido, também, o conceito de<br />
Ecodesign, aplicado aos projetos e processos que contemplam aspectos ambientais em todas<br />
as etapas de produção de um produto de design. O principal objetivo é a redução do impacto<br />
ambiental, durante o ciclo de vida do produto. Ecodesign é uma concepção ou abordagem da<br />
área de <strong>Design</strong>, que associa o que é tecnicamente possível no campo das tecnologias limpas,<br />
com aquilo que é culturalmente desejado no campo da consciência ambiental. Ecodesign<br />
elabora produtos denominados ecoeficientes, aliando eficiência dos recursos, que determina<br />
produtividade e lucratividade, com responsabilidade ambiental.<br />
Assim como a área de Biônica, a concepção Ecodesign prioriza as condições naturais<br />
em oposição às concepções ideais, expressando o primado naturalista do movimento<br />
Naturalismo, sobre a idealização de uma ordem sobrenatural ou artificial da realidade.<br />
Ecodesign não se caracteriza pela apropriação de formas, sistemas e processos<br />
naturais. Porém, toma por base a preservação ambiental e a sustentabilidade, reconsiderando<br />
as relações entre homem e natureza, a partir de critérios de respeito e de conservação<br />
ambiental. O desenvolvimento de projetos ecoeficientes considera a interdependência entre<br />
homem e natureza, sendo que o primeiro é um sistema estruturado e abrigado pelo segundo<br />
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que é seu ecossistema de emergência. Assim, os elementos naturais, o homem e os produtos<br />
culturais como extensões do homem são unidades de um mesmo ecossistema.<br />
Salvador (2003) indica os estudos de Biônica como ferramentas de Ecodesign, buscando<br />
na natureza soluções como: a diminuição da poluição; a redução do descarte de materiais; a<br />
diminuição do uso de insumos, como materiais e energia; a redução do tempo de fabricação,<br />
entre outros. Assim o <strong>Design</strong>, como área que trata diretamente com questões ligadas à forma<br />
e à função, pode apropriar-se das soluções presentes na natureza, que resultam de milhões<br />
de anos de evolução e, muitas vezes, oferecem respostas mais econômicas e sintéticas para<br />
os sistemas culturais mais complexos. Por exemplo, uma solução eficiente de encaixe ou<br />
de empilhamento pode ser inspirada em sistemas de seres vivos, como as abelhas que são<br />
exímias estoquistas. Uma solução desse tipo pode diminuir o volume de transporte e reduzir o<br />
consumo de combustível.<br />
Considerações finais<br />
A aproximação entre Naturalismo e <strong>Design</strong>, tendo em vista a interação evolutiva entre<br />
natureza e cultura, aponta caminhos para a elaboração de soluções projetivas ecologicamente<br />
sustentáveis ou inspiradas em sistemas naturais.<br />
Por meio dos estudos de Biônica, as soluções propostas nos sistemas naturais são<br />
aplicadas aos projetos e produtos de <strong>Design</strong>. Por sua vez, os princípios de Ecodesign propõem<br />
que os produtos sejam ecoeficientes, combinando eficiência e sustentabilidade. A síntese<br />
dessas duas concepções propõe projetos e produtos de <strong>Design</strong> inspirados na natureza e<br />
integrados no esforço de preservação e conservação da natureza.<br />
O contrário dessas premissas foi expresso nas tentativas históricas de idealização e<br />
controle da natureza, por meio de projetos idealistas e artificiais, tanto no campo do pensamento<br />
quanto na prática. Com relação ao conhecimento, a crítica naturalista de Hume desconsiderou<br />
a prioridade idealista sobre o aprendizado empirista. Além disso, alertou os simplistas sobre<br />
a complexidade dos processos naturais, uma vez que a aquisição do conhecimento não era<br />
decorrência direta das sensações. Isso foi especialmente ouvido por Quine, que reforçou a<br />
crítica, assinalando a complexa mediação entre as percepções e os conhecimentos.<br />
Com relação aos aspectos de produtividade e de lucratividade, os projetos baseados em<br />
abordagens metodológicas de Biônica indicam soluções mais simples e econômicas, a partir<br />
da apropriação das qualidades presentes nos sistemas naturais. Por sua vez, os princípios<br />
de Ecodesign propõem refletirmos sobre a relação entre o homem e a natureza, diante<br />
dos problemas provocados pelo descontrole dos processos produtivos e da consequente<br />
degradação do meio ambiente.<br />
O entendimento de que o homem é um sistema cujo ecossistema é a natureza, sendo<br />
essa diretamente responsável por sua vida e por sua produção mental e material, estabelece<br />
o sistema e o processo cognitivo humano como decorrentes da evolução natural. Isso indica<br />
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<strong>Design</strong> e naturalismo: filosofia naturalista, biônica e ecodesign<br />
que sistemas e processos humanos de percepção, cognição e produção descendem das<br />
funções naturais.<br />
Essa perspectiva subjuga o homem ao ecossistema natural, estimulando a observação<br />
dos processos naturais, como influência e decorrência nas atividades projetivas de <strong>Design</strong>.<br />
Pois, a natureza é fonte de inspiração para os estudos de Biônica e, também, é objeto de<br />
preocupação e dedicação nos projetos ecoeficientes de Ecodesign.<br />
Referências<br />
DUTRA, Luiz Henrique de Araújo. Oposições Filosóficas. Florianópolis: Editora da UFSC,<br />
2005.<br />
JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. Rio de Janeiro,<br />
2001<br />
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Acessado em: 11/06/2010.<br />
MUNARI, Bruno. Das Coisas Nascem Coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2008.<br />
NIEMEYER, Lucy. <strong>Design</strong> no Brasil: origens e instalação. 3 ed. Rio de Janeiro, 2AB Editora,<br />
2002.<br />
PATARRANA, Manuel. <strong>Design</strong> sustentável. In: BCSD. Portugal, n. 10, Março, 2007. Disponível<br />
em: http://www.bcsdportugal.org/files/1022.pdf. Acessado em: 23/06/2010.<br />
ROYO, Javier. <strong>Design</strong> digital. In: Fundamentos do <strong>Design</strong>. São Paulo: Edições Rosari, 2008.<br />
SALVADOR, Roner José. Metodologia Biônica em dobradiças de móveis. Porto Alegre,<br />
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VANDEN BROECK, Fabrício. <strong>Design</strong> e biônica. Disponível em: www.carlosrighi.com.br.<br />
Acessado em: 05/06/2010.<br />
WITTMANN, Karin et al. Conceito e histórico do Ecodesign. Disponível em: www.gueto.<br />
com.br/ecodesign.asp?id=12. Acessado em: 03/06/2010.<br />
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VIDEO GAME: ANáLISE ERGONôMICA DO JOGADOR DE PLAySTATION<br />
Carolina Poll: <strong>Universidade</strong> Federal do Rio Grande do Sul<br />
poll.carolina@gmail.com<br />
Marcelo Almeida: <strong>Universidade</strong> Federal do Rio Grande do Sul<br />
marcelotkd@gmail.com<br />
Resumo<br />
O objetivo deste estudo é analisar o uso de video games não<br />
portáteis, focando o estudo no console Playstation. A partir deste<br />
estudo foi possível identificar quais os principais usuários, além dos<br />
efeitos fisiológicos resultantes da prática constante e excessiva do<br />
manejo dos controles (joystick).<br />
Palavras-Chave: ergonomia; design; video game; joystick<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Video game: análise ergonômica do jogador de Playstation<br />
Introdução<br />
Este artigo objetiva analisar o comportamento dos usuários de video games em relação<br />
à sua posição e seu modo de manejo do controle durante a execução da atividade, buscando<br />
gerar alternativas para melhorias nas condições de uso do objeto.<br />
A escolha do tema se baseou na observação das atividades usuais do dia a dia das<br />
pessoas em suas casas, que mesmo parecendo simples, possuem implicações que, com o<br />
tempo, poderão causar problemas físicos. A análise do video game como objeto de estudo<br />
foi selecionada pela relevância do design de produto no planejamento da atividade. A partir<br />
da observação de relação do usuário com o produto, é possível estabelecer alguns critérios e<br />
limites projetuais que visam evitar possíveis danos à saúde dos usuários.<br />
história<br />
O primeiro video game foi criado na década de 1970 (Odissey) e desde aquela época<br />
vem seguindo a evolução gráfica computacional e de tecnologias de interação com os seres<br />
humanos. Inicialmente, os video games, na época chamados de “tele-jogos”, eram direcionados<br />
ao público infantil e juvenil, dos 4 aos 9 anos. Com a evolução dos equipamentos, a atenção<br />
dos produtores passou a abranger um público cada vez maior, percebendo que o mercado<br />
de video games era adaptável a diversos gostos da população, além de contínuo, pois grande<br />
parte dos usuários permanecia consumindo o produto ao longo da vida. Hoje eles fazem<br />
parte da vida de um grande número de pessoas, e mesmo ainda tendo como maior público<br />
as crianças e jovens, já possui direcionamentos específicos inclusive para usuários da terceira<br />
idade¹.<br />
A tendência de desenvolvimento concomitante dos estímulos visuais, através dos<br />
gráficos e dos estímulos táteis com os periféricos dos consoles, pode ser traçada desde as<br />
primeiras experiências de Ralph Baer com consoles domésticos, no final da década de 1960,<br />
até o seu ápice, na metade da década de 1980, com a adoção de diferentes dispositivos<br />
de utilização dos video games domésticos. A SEGA, criadora do console Master System,<br />
desenvolveu acessórios como óculos 3D e pistolas de luz, e a Nintendo incrementou as<br />
capacidades do seu Famicom (ou NES, como ficou conhecido nos Estados Unidos), com os<br />
acessórios NES Zapper (pistola de luz), Power Pad (tapete sensível ao toque), Power Glove<br />
(luva que buscava simular, na tela, os movimentos reais do jogador) e NES Satellite (adaptador<br />
para remover os fios do controle).<br />
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Video game: análise ergonômica do jogador de Playstation<br />
Figura 1 - Evolução dos controles. Fonte: Lopez et al<br />
Somente na década de 1990, a partir da geração dos consoles 16-bits (Mega Drive<br />
da SEGA e SuperNES da Nintendo), é que a elaboração de novas possibilidades de fruição<br />
táteis dos videogames ficou aparentemente estagnada, em detrimento do desenvolvimento de<br />
gráficos tridimensionais e uma busca pelo realismo fotográfico nos jogos. O joystick (também<br />
chamado de gamepad) se tornou onipresente no cenário dos games domésticos, já que era<br />
praticamente a única interface de interação usuário-máquina oferecida pelos consoles (Lopez,<br />
2007). Desde então, o usuário o utiliza para efetuar os comandos do jogo, tais como andar,<br />
pular, dar socos e pontapés ou até mesmo voar: o controle. Ele vem sendo adaptado de<br />
acordo com as necessidades dos consoles e também às necessidades de adaptação às<br />
mãos dos usuários. Os tamanhos são variados, e o número de botões possui tendência a<br />
aumentar, forçando o usuário a obter ainda mais destreza no manejo dos mesmos (Perani e<br />
Bressan, 2009).<br />
Manejo dos controles, má posição e esforço repetitivo<br />
De acordo com Iida (2005), a forma de manipulação dos controles de video<br />
games é chamada de “manejo”, que é uma forma particular de controle, onde há predomínio<br />
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Video game: análise ergonômica do jogador de Playstation<br />
dos dedos e da palma das mãos, pegando, prendendo ou manipulando alguma coisa. Dentre<br />
as classificações do manejo, este pode se encaixar em manejo fino, pois é predominantemente<br />
executado com a ponta dos dedos, também chamado de manejo de precisão, enquanto a<br />
palma da mão e o punho permanecem relativamente estáticos.<br />
Durante o jogo, o usuário pode se colocar em diversas posições, seja sentado ou em<br />
pé, acarretando diferentes efeitos fisiológicos sobre o jogador. Pinto e López consideram boa<br />
postura como sendo o “estado de equilíbrio muscular e esquelético que protege as estruturas<br />
de suporte do corpo contra lesões ou deformidades progressivas independente da atitude nas<br />
quais estas estruturas estão trabalhando ou repousando”.<br />
Segundo Adams (1985), com uma postura deficiente as diversas partes do corpo ficam<br />
em desarranjo, causando um aumento do esforço para manter o equilíbrio de toda a estrutura<br />
corporal. Muitos são os fatores externos que influenciam este equilíbrio, entre eles os hábitos<br />
sedentares, o modelo dos móveis, o modismo e até o grau de luminosidade e a temperatura<br />
do ambiente. Na escola estes fatores estão muito presentes no dia a dia.<br />
Outro fator interveniente é o fato de os jovens ficarem numa mesma posição por tempo<br />
prolongado. A má postura e os hábitos incorretos do dia a dia podem levar ao aparecimento<br />
dos vícios de postura. Estas anomalias podem ocorrer em todos os segmentos do corpo.<br />
Uma pesquisa realizada através da análise postural de pessoas em frente a televisores indica<br />
que 81% costumam assistir à programação em posições consideradas prejudiciais, e em<br />
torno de 38% passam mais de 3 horas sem mudar a posição.<br />
Os computadores e video games têm sido, frequentemente, utilizados na faixa etária<br />
pediátrica. Nos Estados Unidos da América, Roberts et al (1999) evidenciou que 70% das<br />
famílias possuíam video games e mais de dois terços tinham computador em seu domicílio. Na<br />
Europa, dois estudos (Livingstone e Johnsson, 1998) realizados em sete países demonstraram<br />
que entre 41 e 85% das crianças e adolescentes de 6 a 17 anos tinham computador na sua<br />
residência, e entre 12 e 20% possuíam o aparelho em seu quarto. Nestes estudos, o tempo<br />
diário de uso de computador e jogos eletrônicos dos usuários destas tecnologias variou de 44<br />
a 89 minutos.<br />
Os computadores e video games estão presentes, também, na realidade de crianças e<br />
adolescentes brasileiros. As escolas, inclusive da rede pública estadual e municipal de algumas<br />
cidades brasileiras, têm disponibilidade de computadores para uso dos alunos (Gazeta, 1999).<br />
Inúmeros problemas têm sido associados ao uso de computadores e video games<br />
por crianças e adolescentes, tais como diminuição da atividade física e prática de esportes,<br />
obesidade, dor torácica, dor abdominal, fadiga, anorexia, ansiedade, cefaleia (Tazawa, Soukalo,<br />
Okada e Takada, 1997), comportamentos agressivos, convulsões por fotoestimulação e,<br />
particularmente, as dores musculoesqueléticas localizadas ou difusas (Emes, 1997).<br />
D.O.R.T. (Distúrbio Osteomuscular Relacionado ao Trabalho), denominação utilizada para<br />
as dores e lesões musculoesqueléticas associadas aos computadores, podem atingir qualquer<br />
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Video game: análise ergonômica do jogador de Playstation<br />
pessoa que exerça atividades que exijam esforços acima de sua capacidade física. Consiste<br />
em um conjunto de afecções do aparelho musculoesquelético que acometem músculos,<br />
tendões, ênteses, ligamentos, articulações, nervos e, mais raramente, vasos sanguíneos e<br />
tegumentos. Este distúrbio é consequência da realização de movimentos contínuos, posturas<br />
inadequadas e estresses emocionais por um período de tempo variado e pode se manifestar<br />
em qualquer parte do corpo, principalmente membros superiores (punho, antebraço, mão),<br />
coluna cervical e lombar (Yeng, Teixeira, Barbosa e Hsing, 1997)<br />
O D.O.R.T. pode acometer todas as idades e qualquer atividade ocupacional,<br />
principalmente entre 18 e 35 anos, e tem notável predominância no sexo feminino, sendo<br />
mais frequente em áreas como indústria metalúrgica, de alimentos, químicas, têxteis, serviços<br />
de telefonia e de computação. O uso de computadores é apontado como a principal razão<br />
para o crescimento do número de casos (Nicolleti, 1996). Atualmente, crianças pré-escolares,<br />
escolares e adolescentes vêm apresentando sintomas similares aos do D.O.R.T. de adultos e<br />
adolescentes em regime de trabalho (Silva, 2005).<br />
A utilização contínua e frequente de computadores e video games por crianças e<br />
adolescentes pode resultar em dores musculoesqueléticas, edemas, fadiga e incapacitação<br />
funcional. Estes sinais/sintomas aparecem após períodos variáveis da exposição aos fatores<br />
traumáticos (dias ou até anos). A dor pode ser como queimação ou peso, podendo ser<br />
acompanhada de formigamento e choques nas extremidades dos dedos. Na infância, é mais<br />
comum a presença de lesões inflamatórias (tendinites, artrites, bursites e entesites) ao invés de<br />
lesões neurológicas (hérnia de disco e síndrome do túnel do carpo) (Silva, 1998).<br />
Silva (2006), destaca a importância de se aprofundar o estudo das dores, síndromes e<br />
lesões do D.O.R.T. e seus possíveis fatores de risco em jovens. A melhor forma de prevenção<br />
das lesões, particularmente no adolescente em regime de trabalho, é a utilização da ergonomia<br />
adequada com flexibilidade corporal (exercícios de alongamento e relaxamento dos braços,<br />
punhos, mãos e coluna) em média 10 minutos a cada hora, e postura correta em frente<br />
aos computadores. As crianças e os adolescentes deveriam permanecer, no máximo, duas<br />
horas por dia em frente aos computadores e video games, e em caso de dores e lesões<br />
musculoesqueléticas, devem evitar o uso destes. A maior parte destas lesões tem cura, desde<br />
que o diagnóstico e a terapêutica sejam instituídos precocemente (Yeng, Teixeira, Barbosa e<br />
Hsing, 1997).<br />
Materiais e Métodos<br />
O estudo se dividiu em três etapas. Primeiramente, foi feita uma pesquisa com perguntas<br />
abertas e fechadas com 105 usuários ou ex-usuários de video games com idade entre 10 e 35<br />
anos – esta é a geração em que os video games se popularizaram, e usuários de mais idade<br />
acompanharam a evolução dos jogos, podendo relatar alguns efeitos desta atividade – com o<br />
objetivo de realizar um levantamento a respeito da divisão por sexo dos usuários, idade, horas<br />
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em função do jogo, acesso aos consoles, preferências e problemas relacionados à atividade.<br />
Os dados, então, foram cruzados para análise da relação entre os mesmos.<br />
A partir dos dados obtidos com a pesquisa, foi realizada uma filmagem, devidamente<br />
autorizada, com dois usuários do console Playstation, considerado o mais popular e mais<br />
confortável de acordo com a enquete, para análise da postura e da interação das mãos com<br />
os controles. Para tal, foi solicitado que estes usuários escolhessem três gêneros de jogos que<br />
considerassem possuir diferentes formas de interação com o controle. Os gêneros escolhidos<br />
foram aventura, luta e futebol. Para cada jogo foi feita uma análise dos níveis de atenção,<br />
variações posturais e maneiras de interação com o controle.<br />
Por fim, foi realizada uma análise postural utilizando o método RULA (explicado adiante),<br />
por se tratar de uma atividade estática sem ação dos membros inferiores.<br />
Resultados<br />
Pesquisa<br />
A pesquisa foi a principal fonte de informação a respeito dos usuários de video games.<br />
Foi realizada via internet para possuir maior abrangência geográfica, utilizando redes sociais<br />
como Orkut e Facebook, e e-mail para divulgação, permanecendo aberta durante quatro dias<br />
para as respostas. A pesquisa conteve cinco perguntas fechadas e duas abertas, com o<br />
propósito de conhecer o usuário sem tomar muito tempo do mesmo, para que este não<br />
desistisse de responder. A temática, por se tratar de uma atividade de lazer, foi muito bem<br />
recebida pelo público alvo, o que gerou um feedback bastante relevante por fora da enquete,<br />
auxiliando na análise dos usuários.<br />
A pesquisa visava ao esclarecimento dos seguintes itens:<br />
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Perguntas Opções oferecidas<br />
a. Sexo Masculino;<br />
Feminino;<br />
b.Idade<br />
c.Possui video game? Sim;<br />
Não;<br />
d. Quantidade média de horas semanais que você costuma ou costumava<br />
jogar.<br />
e. Quais consoles (aparelhos de video game) você já teve a oportunidade<br />
de jogar?<br />
1h;<br />
Entre 2 e 4h;<br />
Entre 5 e 10h;<br />
Entre 11 e 19h;<br />
Mais de 20h;<br />
Playstation;<br />
Wii;<br />
Nintendo 64;<br />
Xbox;<br />
Dreamcast;<br />
Game Cube;<br />
Mega Drive;<br />
Master System;<br />
Super NES;<br />
Sega Saturn;<br />
Outros;<br />
f. Na sua opinião, qual o console possui o melhor controle (joystick)?<br />
g. Você já sentiu algum tipo de desconforto relacionado a esta atividade? Nunca;<br />
Nos dedos;<br />
Nas mãos;<br />
Nas costas;<br />
Nos braços;<br />
Nos antebraços;<br />
No pescoço;<br />
Nos olhos;<br />
Na cabeça;<br />
Outros;<br />
Tabela 1 - Pesquisa com o usuário<br />
As duas primeiras perguntas tiveram como intuito conhecer o perfil do usuário<br />
entrevistado, observando que, dos entrevistados, aproximadamente 23% eram mulheres, o<br />
que é importante ser levado em consideração por se tratar de um público com necessidades<br />
ergonômicas diferenciadas. A idade dos entrevistados esteve entre 10 e 35 anos e foi dividida<br />
em quatro áreas, menores de 19 anos, 19 a 24 anos, 25 a 30 anos e maiores de 30 anos.<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Video game: análise ergonômica do jogador de Playstation<br />
Figura 2 - Pergunta “a”: sexo dos usuários<br />
Figura 3 - Relação de idade entre os usuários<br />
Os usuários entre 19 e 24 anos foram considerados os mais relevantes, pois além de<br />
comporem a maior parcela dos entrevistados, fazem parte de uma geração do Brasil que<br />
vivenciou a ascensão dos video games no país conhecendo, desta forma, todos os consoles<br />
citados na pesquisa.<br />
A terceira pergunta procurou verificar o acesso dos usuários aos video games na própria<br />
residência. Muitos usuários relataram que possuem acesso através de amigos ou lojas para<br />
aluguel, pois preferem não possuir ou não têm condições de obter um aparelho no momento.<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Video game: análise ergonômica do jogador de Playstation<br />
Figura 4 - Acesso dos usuários a video games em casa<br />
A quarta pergunta questionou os usuários sobre a quantidade de horas semanais que,<br />
em média, costuma ou costumava se dedicar a esta atividade. Esta pergunta é relevante para<br />
relacionar o número de horas de atividade frente ao console com os sintomas decorrentes<br />
disto. Muitos usuários comentaram que este cálculo depende de algumas variantes como<br />
novidade do jogo e tempo disponível, pois muitas vezes esse tempo poderia chegar até a 60<br />
horas semanais, mas durante um curto espaço de tempo, voltando à normalidade logo após<br />
esse período.<br />
Figura 5 - Relação de tempo gasto semanalmente com a atividade de jogar video game<br />
O público feminino entrevistado constou, principalmente, nas áreas entre 5 e 10 horas<br />
e 11 e 19 horas, chegando até relatar mais de 20 horas de jogo semanal.<br />
As duas perguntas seguintes propuseram relacionar o conhecimento dos usuários<br />
sobre o funcionamento dos consoles com a preferência pelo tipo de controle (joystick). Uma<br />
relação interessante encontrada foi a de que os usuários se adaptam melhor ao controle de<br />
Playstation, que também foi considerado como o console mais popular, mesmo a maioria<br />
tendo conhecido controles como o do console Wii, que possui liberdade de movimento e<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Video game: análise ergonômica do jogador de Playstation<br />
procura interagir mais com o usuário.<br />
As opções oferecidas se basearam nos principais video games dos últimos 20 anos,<br />
sem especificar a versão do mesmo. Outros consoles indicados foram do Atari, Odissey, Neo<br />
Geo, que pela falta de popularidade não foram considerados na pesquisa.<br />
Figura 6 - Relação de popularidade dos consoles de acordo com o acesso que os usuários obtiveram aos<br />
mesmos<br />
A preferência pelos controles não contemplou grande parte dos consoles apresentados<br />
na pergunta anterior, e apareceram duas novas opções, o Atari – video game que possuia uma<br />
alavanca como controle – e o teclado de computador. O controle de Playstation foi o mais<br />
votado principalmente pela boa organização dos botões e facilidade de pega.<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Video game: análise ergonômica do jogador de Playstation<br />
Figura 7 - Preferência dos usuários em relação ao controle (joystick)<br />
Figura 8 - Relação de controles de acordo com a preferência dos usuários: Playstation, Wii, Nintendo 64, Xbox,<br />
Super Nintendo e Game Cube<br />
A última pergunta questionava se o usuário, dentro das opções oferecidas, já sentiu<br />
algum tipo de desconforto relacionado à atividade. Problemas com mãos, costas e pescoço<br />
foram os principais relacionados. Este resultado confirmou as expectativas de que o número<br />
de horas gasto semanalmente na atividade é diretamente proporcional aos desconfortos<br />
causados pela mesma, apesar de alguns usuários relatarem nunca ter sentido desconforto ao<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Video game: análise ergonômica do jogador de Playstation<br />
ficarem várias horas jogando.<br />
Filmagem<br />
Figura 9 - Relação de desconforto relacionado à atividade<br />
Com os resultados da pesquisa, o console Playstation foi selecionado como base para<br />
o estudo, por ser o mais popular e o que possui melhores condições de jogo de acordo<br />
com os usuários entrevistados. Foram selecionados, então, dois usuários do console para<br />
colaborar com a análise através de filmagem e tomada fotográfica previamente autorizadas.<br />
Foi aberta uma discussão com os jogadores para saber que tipo de jogos teriam<br />
diferentes tipos de interação com o controle, e foram selecionados três gêneros de acordo<br />
com o relato dos mesmos: aventura, esporte (futebol) e luta. As filmagens e observações<br />
duraram cerca de duas horas e foram realizadas da seguinte forma:<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Video game: análise ergonômica do jogador de Playstation<br />
Figura 10 - Relação controle e áreas de interação<br />
O primeiro jogo analisado foi “O Senhor dos Anéis: o Retorno do Rei”, do gênero aventura.<br />
Foram realizadas duas filmagens da posição dos jogadores em dois momentos distintos,<br />
juntamente com uma tomada fotográfica a partir de outra câmera para, posteriormente, ser<br />
realizada uma análise de posição através do método RULA. Em seguida, foram realizados<br />
outros dois vídeos da interação dos usuários com o controle, em que foi observada uma<br />
interação quase total das mãos no manejo do mesmo. Os movimentos dos dedos são<br />
frequentes e vigorosos em alguns momentos, principalmente os polegares, que comandam a<br />
área principal do controle com dez botões disponíveis. Em outros momentos os movimentos<br />
são suaves e calmos.<br />
O segundo jogo foi o “Winning Eleven 9”, do gênero esporte. Novamente foram realizadas<br />
duas filmagens e tiragem de fotos para análise de posição. Uma observação relevante que<br />
surgiu durante esta análise foi que os jogadores piscavam os olhos em média de duas a três<br />
vezes por minuto, intercalando com piscadas consecutivas após um período de tempo, o<br />
que de acordo com Lavezzo (2007), é considerado o número mínimo de movimentos das<br />
pálpebras por minuto em pessoas adultas, podendo causar ressecamento do globo ocular se<br />
mantido por longos períodos de tempo.<br />
Este jogo exigia maior atenção dos usuários, fazendo com que eles intercalassem as<br />
posições de acordo com o nível de atenção necessário, diferentemente do anterior, no qual<br />
mantinham a posição por longos períodos de maneira relaxada. O manejo por sua vez, utilizava<br />
mais botões que o jogo anterior, e a interação com os botões era mais suave e duradoura,<br />
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Video game: análise ergonômica do jogador de Playstation<br />
com algumas variações de frequencia de movimento de acordo com a necessidade do jogo.<br />
“Tekken 5” foi o terceiro jogo observado, do gênero luta. Apenas uma filmagem foi<br />
realizada para a análise de posição, e foi notada a constante troca de posição, variando<br />
entre relaxamento total e altos níveis de atenção. O manejo do controle variou entre os dois<br />
jogadores, pois o jogo exigia apenas a utilização dos botões frontais de ação. Enquanto um<br />
utilizou o polegar, o outro usou o dedo médio e o indicador para possuir maior liberdade com<br />
as mãos. Os movimentos são intensos durante todo o período das lutas no jogo, e a tensão<br />
nas mãos e braços é aparente, forçando os jogadores a alongarem e “estalarem” as juntas dos<br />
dedos e mãos constantemente após certo tempo de jogo.<br />
O quarto jogo foi o “Mortal Kombat Armaggedon”, também do gênero luta. O interesse<br />
pelo movimento das mãos neste gênero fez com que fosse escolhido um novo jogo, que os<br />
usuários considerassem diferente do último, para uma nova filmagem apenas do manejo.<br />
O ponto mais interessante desta análise foi que não houve diferenças relevantes quanto à<br />
tensão, movimento, frequencia, mas um detalhe foi crucial: o jogo utilizava todos os botões do<br />
controle, obrigando os jogadores a manterem as mãos em posição mais neutra e confortável<br />
durante a atividade.<br />
Método RuLA<br />
O método RULA, ou Rapid Upper Limb Assessment, é um método ergonômico que<br />
avalia a exposição de indivíduos a posturas, forças e atividades musculares que possam<br />
contribuir para o surgimento de LER (Lesão por Esforço Repetitivo). Baseia-se na observação<br />
das posturas adotadas das extremidades superiores durante a execução de uma determinada<br />
atividade. O método consiste em uma tabela de escores onde são avaliados braço, antebraço,<br />
punho, estática, força, pescoço, tronco e pernas. O valor resultante vai variar entre 1 e 7,<br />
sendo que as pontuações mais altas são indicações de que aparentemente há um risco mais<br />
elevado.<br />
Primeira posição avaliada: escore 2. Esta pode ser considerada a posição mais<br />
confortável segundo o método de avaliação, pois, aparentemente, não possui sérios riscos à<br />
saúde do indivíduo (figura 11).<br />
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Video game: análise ergonômica do jogador de Playstation<br />
Figura 11 - Análise de posição segundo método RULA<br />
Segunda posição avaliada: escore 5. Esta posição requer um pouco de atenção devido<br />
ao posicionamento da cabeça, tensão nos ombros e inclinação de tronco, podendo ser danosa<br />
se mantida por longos períodos (figura 12).<br />
Figura 12 - Análise de posição segundo método RULA<br />
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Video game: análise ergonômica do jogador de Playstation<br />
Terceira posição avaliada: escore 3. Esta posição, aparentemente normal, esconde<br />
alguns problemas como giro e tensão de pescoço e apoio do peso nas costas (figura 13).<br />
Figura 13 - Análise de posição segundo método RULA<br />
Avaliar as posições dos jogadores, até o momento, serve apenas como uma orientação,<br />
pois não há como exigir um modo correto de se praticar esta atividade. A evolução dos jogos<br />
eletrônicos no futuro, assim como tem sido apresentado em feiras mundiais de games, trará<br />
novas formas de interação com o usuário, fazendo com que o mesmo seja obrigado a se utilizar<br />
do próprio corpo e próprias experiências para jogar, fazendo com que haja mais controle sobre<br />
as ações do jogador, evitando que este acabe prejudicando a si, mesmo sem saber.<br />
Conclusão<br />
Os resultados desta pesquisa se dividem em quatro conclusões sobre pontos<br />
específicos do estudo, uma sobre posição e atenção do jogador, e três sobre manejo e projeto<br />
ergonômico do controle.<br />
A posição do jogador durante a execução da tarefa é praticamente impossível de<br />
ser padronizada quando o usuário está em sua própria casa, pois muitas variantes estão<br />
envolvidas como posição do aparelho de televisão, local para sentar, nível de atenção do<br />
jogador. O que se observa neste ponto, é que jogos que exigem diferentes níveis de atenção,<br />
fazem com que o jogador mude constantemente de posição, enquanto outros que mantêm<br />
um nível constante de atenção exigida no roteiro, fazem com que o usuário permaneça na<br />
mesma posição durante muito tempo, prejudicando, desta forma, algumas partes do corpo<br />
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Video game: análise ergonômica do jogador de Playstation<br />
exigidas na mesma, como ombros tensionados, pescoço “pendurado” ou braços erguidos.<br />
A segunda conclusão obtida com a pesquisa foi que os controles convencionais não<br />
exigem uma interação equilibrada de todos os dedos, pois em 95% do tempo os polegares<br />
estão em movimento nas áreas de ação e movimento principais (figura 14), enquanto os outros<br />
dedos permanecem na mesma posição. Uma maior distribuição de carga de trabalho dos<br />
dedos poderia tornar a atividade menos prejudicial, diminuindo, assim, a probabilidade de<br />
surgimento de lesões por esforço repetitivo.<br />
Figura 14 - Áreas de interação dos polegares<br />
A ocupação dos dedos também é um fator muito importante, observado principalmente<br />
na relação entre os dois jogos do gênero luta. Enquanto um exigia que todos os dedos<br />
estivessem em suas posições para cumprir suas tarefas específicas, o outro ocupava apenas<br />
os polegares, dando liberdade ao jogador para utilizar o controle da maneira como achasse<br />
mais conveniente para cumprir a tarefa. Neste segundo, como foi observado, um dos jogadores<br />
manteve a pega em apenas uma das mãos e manejou de forma aparentemente prejudicial os<br />
botões de ação com os dedos da mão direita. É importante, então, ressaltar que um jogo<br />
que utiliza todo o potencial do controle evita que o jogador invente maneiras que não foram<br />
pensadas para jogar.<br />
Figura 15 - Área de ocupação dos dedos<br />
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Video game: análise ergonômica do jogador de Playstation<br />
Por fim, anatomicamente a posição dos botões e pegas poderia ser ajustável de<br />
acordo com a necessidade e conforto do usuário, pois algumas posições de botões são<br />
desconfortáveis para quem possui mãos maiores ou menores do que as definidas como<br />
padrão para a criação do produto, causando muita contração ou alongamento dos dedos de<br />
maneira desnecessária (figuras 16 e 17).<br />
Figura 16 - Possibilidade de intervenção ergonômica<br />
Figura 17 - Dedos contraídos para alcançar as extremidades do controle<br />
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Video game: análise ergonômica do jogador de Playstation<br />
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AS TENDêNCIAS E O DESIGN: METODOLOGIA DE PROJETO DO<br />
MOBILIáRIO ORIENTADA PARA O FuTuRO<br />
Aline Teixeira de Souza; Profª Me. em Desenho Industrial: Faculdade de Arquitetura e Urbanismo<br />
e <strong>Design</strong>, <strong>Universidade</strong> Federal de Uberlândia<br />
Marizilda Santos de Menezes; Profª Dra. em Arquitetura e Urbanismo: PPG em <strong>Design</strong>, Faculdade<br />
de Arquitetura, <strong>Arte</strong>s e Comunicação, <strong>Universidade</strong> Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”<br />
Resumo<br />
As constantes transformações sociais, culturais e políticas<br />
influenciam diretamente a vida das pessoas e delimitam suas<br />
necessidades e gostos. As tendências têm o papel de sinalizar por<br />
meio desses fatos as preferências das pessoas em relação aos<br />
objetos, podendo ser, portanto, grandes aliadas do design, já que<br />
este trabalha com projeto que é uma atividade de planejamento<br />
do futuro. Esse trabalho traz resultados de um estudo sobre as<br />
tendências e o desenvolvimento de móveis residenciais no Brasil e<br />
tem como principal objetivo apresentar os benefícios da utilização<br />
das tendências como ferramenta para o projeto de mobiliário.<br />
Palavras-Chave: design de mobiliário; tendências; diretrizes<br />
projetuais<br />
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As tendências e o design: metodologia de projeto do mobiliário orientada para o futuro<br />
Apresentação<br />
A cada mudança de ano, novas formas, cores, materiais e funções configuram o<br />
mobiliário utilizado nas residências brasileiras. Essas mudanças obedecem a um ciclo e são<br />
direcionadas por tendências de consumo e comportamento. Dessa forma, as mudanças<br />
adquirem uma importância especial na vida das pessoas que passam a seguir padrões de<br />
consumo e a considerar menos importante o que não pertence a esse conjunto.<br />
Nesse contexto, por ser um objeto de uso particular na vida das pessoas, revelando o<br />
que as mesmas são ou pretendem ser, modelando a casa para o uso ou apoiando recordações<br />
e objetos pelos quais se tem afeto, tem-se a hipótese de que o mobiliário seja um produto que<br />
tem valor distinto no que se diz respeito às tendências.<br />
No entanto, o conceito de tendências associado ao desenvolvimento de mobiliário<br />
é muitas vezes equivocado. Ao invés das informações que trazem a respeito do futuro do<br />
consumidor serem convertidas em móveis que satisfaçam as necessidades físicas e psicológicas<br />
das pessoas, são utilizadas superficialmente por meio de configurações puramente estéticas<br />
com o objetivo de aumentar as vendas. Além do que, em alguns casos, a tendência é entendida<br />
como a cópia de móveis estrangeiros ou então imposta por fornecedores de matéria-prima<br />
que acabam por decidir cores, acabamentos, materiais e acessórios.<br />
É possível integrar a esses fatos a necessidade de requerer o cultivo de uma metodologia<br />
de desenvolvimento de móveis em que as mudanças de comportamento e consumo não<br />
sejam vistas como causalidade, mas como um instrumento de transformação de dados em<br />
informações projetuais.<br />
Esse trabalho traz resultados de um estudo sobre as tendências e o desenvolvimento<br />
de móveis residenciais no Brasil e tem como principal objetivo apresentar os benefícios da<br />
utilização das tendências como ferramenta de projeto para o designer de móveis.<br />
Tendências: conceituação<br />
A compreensão do conceito de tendência pode ser confusa para a maioria das pessoas.<br />
Principalmente, pelo fato do termo ter ganhado muitos sentidos nos dias atuais. Para Caldas<br />
(2004) fala-se sobre tendências para quase tudo: no setor tecnológico, na atmosfera social,<br />
na área da saúde, entre outros meios bem distintos entre si. Assim, a banalização do conceito<br />
fez com que no entendimento popular, as tendências estejam relacionadas à construção do<br />
futuro.<br />
De acordo com o mesmo autor, a origem da palavra tendência vem do latim tendentia,<br />
proveniente do verbo tendere, que tem por significado “tender para”, “inclinar-se para” ou “ser<br />
atraído por”. De forma que sua existência possa ser entendida a partir da atração exercida por<br />
um objeto, seja por movimento ou por abrangência. Assim, tendência é uma manifestação,<br />
na esfera do comportamento, do consumo ou do “espírito do tempo”, de uma sensibilidade<br />
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As tendências e o design: metodologia de projeto do mobiliário orientada para o futuro<br />
anunciada por sinais.<br />
Destes vocábulos se sintetizam os seguintes sentidos: uma propensão, disposição,<br />
aptidão, envergadura, de forma que cause oscilação intencional.<br />
Conforme Campos (2007) as tendências sinalizam uma convergência periódica de<br />
escolhas, que apontam o que deve ser seguido e apreciado. A cada determinado período,<br />
acrescentam-se, renovam-se ou confirmam-se estilos. Para a autora “Pensar em tendências<br />
é pensar em futuro, ou melhor, em possibilidades de futuros – alguns mais distantes e outros<br />
bem próximos.”<br />
Sobre a afinidade das tendências com o futuro, Oliveira (2006) diz que compreender<br />
as tendências é preocupar-se com o futuro por estas se encontrarem neste estado temporal<br />
e definirem características do mesmo. Para ela, os estudos que abordam as análises de<br />
tendências buscam a identificação e precipitação de comportamentos e características<br />
futuras dos consumidores. Possibilita visualizar indicadores econômicos, sociais, tecnológicos,<br />
políticos e geográficos, com fundamento em uma metodologia e não em previsões.<br />
É comum o emprego do conceito de tendência em um contexto que está acontecendo<br />
em um dado momento, como: “a exposição servirá de vitrine para as últimas tendências em<br />
mobiliário”. No entanto, é importante esclarecer que, as tendências tratam do que está por vir,<br />
do que não aconteceu, elas dão vestígios, sinais e indícios do que vai surgir, ou seja, do futuro,<br />
como abordam os autores.<br />
Novik (2005) acredita que a pré-configuração de cenários futuros é matéria de trabalho<br />
do design, moda e do marketing, mas em cada caso, a medida do futuro é diferente de acordo<br />
com o produto e o serviço, seu tempo de desenvolvimento e difusão.<br />
No caso do design, Heeman e Pereira (2008) dizem que as tendências podem<br />
ser encaradas como sinais em manifestação, percebidos no cotidiano humano, em seu<br />
comportamento e no que apreciam consumir na época. Estes sinais anunciam ou prenunciam<br />
um estado em formação: o futuro. Assim, é possível fazer uso das tendências como ferramenta<br />
metodológica, como uma atitude preventiva, porém sem o caráter determinista.<br />
As tendências têm o poder de dar sinais prévios de hábitos, gostos, desejos,<br />
possibilitando a identificação de formas, funções ou cores. Mas, elas não surgem do acaso.<br />
Ao abordar a origem das tendências Montaña (2005, p.1) afirma que “elas não são capricho<br />
dos modistas. São determinadas pela percepção dos acontecimentos da sociedade”.<br />
É comum nos veículos de informação que as tendências sejam empregadas como<br />
o aproveitamento de cores e formas ditadas por centros de moda, mas segundo o autor,<br />
as tendências provêm das manifestações, sensações e sentimentos que se montam com<br />
o agrupamento humano ao longo de sua evolução. Assim é possível afirmar que elas se<br />
estabelecem a partir de fatos e acontecimentos, movimentos e ideologias, sensações e<br />
necessidades psicológicas, estilos de vida, idade, influências de outras culturas e de modos<br />
de vida.<br />
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As tendências e o design: metodologia de projeto do mobiliário orientada para o futuro<br />
Metodologia de projeto do mobiliário<br />
Os projetos de design podem ser entendidos como uma série de procedimentos<br />
ordenados que visam buscar uma solução que atenda às necessidades dos usuários e às<br />
restrições industriais. À seqüência lógica de execução desses procedimentos se dá o nome de<br />
método. O planejamento e o cumprimento de etapas estabelecidas tornam o desenvolvimento<br />
do projeto mais produtivo em menos tempo. As fases de operações do método de projeto são<br />
formadas por instrumentos que ajudam os designers a organizar e planejar o que será feito.<br />
Apesar de se encontrar um grande número de bibliografia sobre metodologia do projeto, o<br />
método de design não é absoluto, nem definitivo, ele pode ser modificado de acordo com a<br />
necessidade.<br />
As propostas de metodologia de projeto de Baxter (1998), Löbach (2001) e Munari<br />
(1998), mais comumente recomendadas para projetos gerais, e, portanto, aplicáveis ao projeto<br />
de móveis possuem algumas diferenças básicas, de seqüência das ações e de nomenclatura.<br />
No entanto, essencialmente, elas são constituídas por quatro fases fundamentais:<br />
1 - Levantamento de dados<br />
2 - Geração de propostas<br />
3 - Avaliação das propostas<br />
4 - Realização e implementação do produto<br />
Essas etapas são formadas por ferramentas e técnicas de pesquisa e projeto, que<br />
podem ser adaptadas conforme a demanda do produto a ser desenvolvido.<br />
Merege (2001 apud Venâncio, 2002) propõe uma metodologia de projeto específica ao<br />
setor moveleiro que pode ser dividida em quatro etapas:<br />
- A de levantamento na qual são levantadas informações sobre a concorrência, os<br />
materiais e os processos produtivos que fazem parte do contexto da empresa ou<br />
aqueles em que se pode investir;<br />
- A análise dos dados levantados que dá origem a uma lista dos limites do projeto, a<br />
partir da qual é formulado um briefing, tendo como base os limites de compatibilização,<br />
a avaliação comercial, industrial, de custos e a cultura setorial;<br />
- A de desenvolvimento, em que é realizado um brainstorming quantificando e qualificando<br />
soluções, são gerados esboços iniciais, elaboradas representações tridimensionais das<br />
melhores idéias para testes e é realizada a definição cromática e dos acabamentos;<br />
- E a de implantação que consiste na complementação projetual e avaliação do projeto<br />
por meio do acompanhamento da execução do protótipo, adequação a custos e<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 40
As tendências e o design: metodologia de projeto do mobiliário orientada para o futuro<br />
prazos, acompanhamento do material gráfico, desenvolvimento da embalagem e<br />
acompanhamento do lote piloto.<br />
A vantagem do emprego desta metodologia é que ao longo de todo o processo existe<br />
a intervenção do design, diminuindo riscos de posteriores correções. No entanto, o fato de<br />
existirem metodologias de projeto mais abrangentes ou mais específicas para o design de<br />
móveis, não significa que as mesmas sejam utilizadas nas indústrias moveleiras. A verdade<br />
é que em muitas indústrias não existe nenhum setor de design ou sequer um designer<br />
trabalhando, e conseqüentemente, o mesmo acontece em relação à metodologia de projeto.<br />
Tendências: projeto de mobiliário orientado para o futuro<br />
As informações apresentadas reforçam a importância da atividade projetual no<br />
desenvolvimento do mobiliário e, principalmente, do levantamento de dados sobre o usuário<br />
do produto, já que o móvel é um objeto que envolve aspectos físicos e sensoriais. Por meio<br />
do levantamento de informações é possível entender o usuário, seus anseios e necessidades<br />
físicas e psicológicas. Nesse contexto, as informações que as tendências carregam, ganham<br />
a mesma importância, já que elas antecipam essas necessidades.<br />
Heemann e Pereira (2008) explicam que a abordagem do futuro na metodologia de<br />
design é importante, pois os designers concebem produtos que serão lançados no mercado<br />
meses ou anos depois da atividade projetual. Acrescentam que a postura antecipatória é<br />
proeminente porque produtos concebidos de modo inadequado a determinado período<br />
causam transtornos irreparáveis à sociedade. A implantação de um planejamento sistemático<br />
do futuro, então, serviria para a antecipação de eventualidades, preparação de contingências<br />
e exploração de novas escolhas.<br />
Oliveira (2006) acredita que nas sociedades em desenvolvimento, dialogar com o futuro<br />
por meio das tendências de comportamento ou outros focos de interesse é uma necessidade<br />
fundamental para sua organização, segundo a autora somente as sociedades desorganizadas<br />
tomam medidas sem planejamento.<br />
Esse conhecimento pode ser extraído no design de móveis a fim de organizar o processo<br />
produtivo. Pois, é melhor fazer uso de uma postura pró-ativa que pensar em uma reação às<br />
situações indesejáveis, já que a mesma pode ser mais cara e improdutiva.<br />
Heeman e Pereira (2008) dizem que a fase informacional do projeto é ideal para a<br />
formação de uma base de dados antecipatórios para que as ações dos designers repercutam<br />
em benefícios por meio de produtos. No processo que contempla o futuro, segundo os autores,<br />
além das ações habituais:<br />
- o contexto futuro no qual o produto será inserido deve ser compreendido;<br />
- os produtos concorrentes e similares devem ser analisados em relação ao futuro;<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 41
As tendências e o design: metodologia de projeto do mobiliário orientada para o futuro<br />
- o ciclo de vida do produto deve ser modelado de acordo com clientes futuros para<br />
cada uma das fases do ciclo;<br />
- as necessidades futuras de todos os clientes devem ser consideradas.<br />
Dantas (2005) propôs um instrumento projetual para o design de objetos que parte da<br />
análise de tendências sócio-culturais e tecnológicas, tendo como fator central do projeto o<br />
usuário. O objetivo da proposta é auxiliar o designer a compreender o perfil e as necessidades<br />
do usuário, dentro do cenário contemporâneo. A autora explica que na sociedade pósindustrial,<br />
o foco do projeto se transferiu da produção para o usuário e suas ações, assim, o<br />
objeto material passou a ser um elemento capaz de permitir a execução dessas ações, um<br />
prolongamento dos sentidos humanos, deixando de ser pensado como fonte de lucros, mas<br />
como um elemento de ligação entre o cliente e a marca.<br />
O instrumento projetual proposto por Dantas, chama-se SCENARIO (Sistema de<br />
Concepção Especulativo de Novos Ambientes Relacionados ao Individuo e ao Objeto). De<br />
modo resumido, contempla as fases de execução demonstradas na Tabela 1:<br />
Etapa Preliminar<br />
Antecede as etapas propostas no instrumento e tem como objetivo definir algumas abordagens<br />
importantes para o projeto. Assim, são estabelecidos parâmetros denominados Norteadores do<br />
Problema (NP) onde são definidos mais claramente os objetivos do projeto.<br />
Etapa 1 – A construção do Personagem e seu Cenário<br />
É determinado um perfil de personagem e o cenário para o qual o objeto será projetado. Para tal, são<br />
aplicadas técnicas específicas para a identificação das necessidades e padrões comportamentais. É<br />
a fase mais longa, pois envolve os dois elementos mais complexos da proposta: o personagem e o<br />
cenário. A autora sugere que o perfil profissional dessa etapa seja uma equipe multidisciplinar.<br />
Etapa 2 – Projeções e Simulações<br />
Esta é uma fase mais simples, pois consiste na aplicação dos dados já coletados na fase anterior. Ela<br />
tem como objetivo criar cenários de projeção e simulações, que possam incluir o novo objeto, para<br />
que o entendimento da relação deste com o personagem e o entorno seja facilitada.<br />
Etapa 3 – uma história Possível: a descrição do novo cotidiano<br />
Esta última etapa tem por objetivo a elaboração de um material de consulta facilitada que consiga<br />
descrever um novo cotidiano, a partir da junção dos três elementos que o edificam: personagem,<br />
cenário e objetos.<br />
Tabela 1 Descrição das fases do instrumento projetual SCENARIO<br />
Segundo a autora, o principal problema a ser eliminado com o instrumento projetual<br />
sugerido é a propensão que o designer tem de realizar “auto-projeto” e a principal vantagem é<br />
a possibilidade de um afastamento do projeto dando espaço a uma visão mais crítica. Sobre<br />
a projeção de cenários futuros para o desenvolvimento de objetos, a autora explica que ao<br />
analisar o fundamento do “projetar” entende-se que se trata de uma ação para o futuro, como<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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As tendências e o design: metodologia de projeto do mobiliário orientada para o futuro<br />
uma previsão, intenção ou planejamento, o que reforça a idéia da utilização das informações<br />
das tendências na atividade projetual.<br />
Desse modo, é possível que se pense que as tendências ditarão um único caminho a<br />
ser seguido em se tratando da configuração do produto. No entanto, Caldas (2004) explica<br />
que:<br />
O resultado pretendido da prospecção de tendências não é provar que ‘só<br />
existe uma direção a seguir e que ela é a certa’, à maneira positivista, mas, bem<br />
ao contrário, abrir um leque de condições possíveis e plausíveis com relação<br />
ao futuro e, a partir dos sinais recolhidos no presente, construir narrativas<br />
grávidas de sentido. (p.93).<br />
A pesquisa de tendências pode, assim, contribuir para o design de mobiliário<br />
com inúmeras informações que abrangem tanto aspectos objetivos para a especificação do<br />
produto, como pela criação de sentido para valores subjetivos.<br />
Para Bürdek (2006, p. 52), as tendências são “uma forma de dar à empresa sugestões<br />
de curto prazo, de como a forma de vida e o estilo do usuário se modificam, e a que padrões<br />
ele se orienta para tirar conclusões atuais”.<br />
Considerações Finais<br />
A sociedade está em constante transformação e essas transformações estão ocorrendo<br />
de forma acelerada devido à globalização e as novas tecnologias. O projeto que por uma<br />
questão etimológica aborda uma atividade futura deve ser tratado como um trabalho de<br />
planejamento que inclui o futuro em todos os sentidos.<br />
As indústrias de móveis, por meio de seus representantes, precisam entender que para<br />
sua sobrevivência e ampliação no mercado, é necessário apresentar inovações e contemplar<br />
essas mudanças em seus produtos. Isso porque as necessidades das pessoas se modificam<br />
com o tempo e com as circunstâncias.<br />
Sobre a questão do conceito de tendências ser usado de maneira equivocada e ser<br />
amplamente confundido com aqueles que dizem respeito à moda, recomenda-se o ensino do<br />
termo e seus aproveitamentos nas disciplinas de projeto nas escolas de design.<br />
Considerando a identificação de novas variáveis ao longo do trabalho, sugere-se para<br />
a realização de novas pesquisas:<br />
- Elaboração de modelos de pesquisa de tendências específicos para o setor moveleiro;<br />
- Estudos de ferramentas para identificação de tendências;<br />
- Pesquisas sobre a viabilidade de formação de profissionais especialistas em<br />
identificação de tendências;<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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As tendências e o design: metodologia de projeto do mobiliário orientada para o futuro<br />
- Estudo comportamentais de pessoas de diferentes níveis sociais e culturais, regiões<br />
geográficas, entre outros, para a projeção de cenários futuros.<br />
Referências<br />
BAXTER, Mike. Projeto de Produto: Guia prático para o design de novos produtos. São<br />
Paulo: Edgard Blücher, 1998.<br />
BÜRDEK, Bernhard. <strong>Design</strong>: história, teoria e prática do design de produtos. São Paulo:<br />
Edgard Blücher, 2006.<br />
CALDAS, Dario. Observatório de Sinais: Teoria e prática da pesquisa de tendências. 2<br />
ed. Rio de Janeiro: SENAC/RIO, 2004.<br />
CAMPOS, Maria Aparecida Siqueira. A pesquisa de tendências: uma orientação<br />
estratégica no design de jóias. Dissertação apresentada à Pontifícia <strong>Universidade</strong> Católica<br />
do Rio de Janeiro para obtenção do título de Mestre em <strong>Arte</strong>s e <strong>Design</strong>. Rio de Janeiro, 2007.<br />
DANTAS, Denise. <strong>Design</strong> orientado para o futuro, centrado no usuário e na análise de<br />
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São Paulo, para obtenção do título de Doutor em Arquitetura e Urbanismo. São Paulo, 2005.<br />
HEEEMAN, Adriano. PEREIRA, Juliana Chags. O futuro sob a ótica do design de produtos:<br />
tendência de sustentabilidade e responsabilidade social. In: MIG – Revista Científica<br />
de <strong>Design</strong>. Abril 2008, nº 2. Edição especial ENSUS 2008 (Encontro de Sustentabilidade),<br />
Balneário de Camboriú, 2008.<br />
LÖBACH, Bernd. <strong>Design</strong> industrial: bases para a configuração dos produtos industriais.<br />
São Paulo: Edgard Blücher, 2001.<br />
MONTAÑA, Jorge. De onde vêm as tendências. Seção de Artigos, Rede <strong>Design</strong> Brasil.<br />
2005. Acesso em: 17 de Julho de 2008. Disponível em: http://www.designbrasil.org.br/portal/<br />
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MUNARI, Bruno. Das coisas nascem coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1998.<br />
NOVIK, Laura. Preparados para el futuro: <strong>Moda</strong>, diseño e tendencias. ACTO, Revista de<br />
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Colombia, Novembro de 2005.<br />
OLIVEIRA, Ana Sofia Carreço. O estudo das tendências para o processo de design.<br />
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à <strong>Universidade</strong> do Estado de Santa Catarina<br />
para obtenção do título de Bacharel em <strong>Design</strong> Industrial. Florianópolis, 2006.<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 44
As tendências e o design: metodologia de projeto do mobiliário orientada para o futuro<br />
VENÂNCIO. Sarah da Rocha. Estudo da Inserção do <strong>Design</strong> na Inovação de Produtos na<br />
Indústria Moveleira do Paraná: o caso do Pólo de Arapongas. Dissertação apresentada<br />
ao Centro Federal de Educação Tecnológica do Paraná para obtenção do título de Mestre em<br />
<strong>Tecnologia</strong>. Curitiba, 2002.<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 45
A INOVAçãO ATRAVéS DA RELAçãO DA GESTãO DE DESIGN<br />
COM OS PRINCíPIOS DO DESIGN ThINKING<br />
Diego Daniel Casas; Mestrando em <strong>Design</strong> Gráfi co: UFSC<br />
diegodcasas@gmail.com<br />
Eugenio Andrés Díaz Merino; Dr. Engenharia de Produção: UFSC<br />
merino@cce.ufsc.br<br />
Resumo<br />
Na busca por diferenciar-se perante as concorrentes e obter lugar<br />
de destaque no mercado, as empresas utilizam de diferentes<br />
estratégias para manterem-se competitivas. O design e o modo que<br />
é gerenciado são fatores importantes nas empresas que buscam<br />
a inovação. Este artigo estabelece um paralelo entre inovação<br />
e gestão de design para então focar no objetivo principal que é<br />
relacionar a gestão de design com princípios do design thinking.<br />
Como metodologia para alcançar o objetivo foi utilizada uma<br />
pesquisa exploratória e bibliográfica. Os resultados alcançados<br />
mostram que a gestão de design está estreitamente relacionada<br />
com os princípios do design thinking (inspiração, ideação e<br />
implementação) e que estabelecer esta relação é importante para<br />
empresas que tenham como objetivo a inovação.<br />
Palavras-Chave: gestão de design; Inovação; design thinking<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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A inovação através da relação da gestão de design com os princípios do <strong>Design</strong> Thinking<br />
Introdução<br />
Um fator determinante para a competitividade é o grau de inovação e, empresas<br />
inovadoras tendem a atingir maior lucratividade, conforme afirma Serafim (2008). E de acordo<br />
com Gurgel:<br />
[...] a abertura econômica, o processo de privatização e de internacionalização<br />
das empresas fez com que fatores como a capacitação tecnológica, a atividade<br />
de Pesquisa & Desenvolvimento (P&D) e o grau de inovação tecnológica se<br />
tornassem essenciais para as empresas que quisessem competir no mercado<br />
globalizado. (GURGEL, 2006, p.68)<br />
O design, que segundo Lobach (2001) pode ser compreendido no sentido amplo como<br />
a concretização de uma idéia em forma de projetos, tem seu papel neste contexto, pois é peça<br />
participante do sistema de produção e consumo das corporações. Sendo assim, também é<br />
importante a forma como é conduzida a gestão de design neste meio. Esta é definida por<br />
Gimeno (2000, p.25) como o “conjunto de técnicas de gestão empresarial dirigida a maximizar,<br />
ao menor custo possível, a competitividade que obtém a empresa pela incorporação e utilização<br />
do design como instrumento de sua estratégia empresarial”.<br />
Por sua vez, o design thinking propõe a incorporação dos métodos de solução de<br />
problemas e de geração de idéias dos designers à organização tradicional visando ampliar<br />
horizontes e incentivar uma orientação mais inovadora (BROWN, 2010).<br />
No presente artigo, para tanto, é estabelecido um paralelo entre inovação e gestão de<br />
design para chegar ao objetivo central do artigo, que é relacionar a gestão de design com<br />
princípios do design thinking.<br />
Como metodologia será tomada como base a taxonomia proposta por Gil (2002)<br />
que separa a classificação das pesquisas em dois grupos: quanto aos objetivos e quanto<br />
os procedimentos técnicos utilizados. Inicialmente foi realizada uma pesquisa exploratória<br />
para definir os objetivos e em seguida, como procedimento técnico realizou-se pesquisa<br />
bibliográfica. Nortearem esta pesquisa artigos e livros da área de gestão de design e design<br />
thinking.<br />
Fundamentação teórica<br />
Inovação & gestão de design<br />
Segundo Gurgel (2006), atualmente os fatores de produção tradicionais – trabalho,<br />
capital e recursos naturais – já não são suficientes para assegurar o progresso. Cada vez mais,<br />
o conhecimento e a tecnologia assumem papel estratégico no processo de desenvolvimento<br />
econômico. Contudo apenas o acúmulo de conhecimento também não é suficiente. É<br />
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São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 47
A inovação através da relação da gestão de design com os princípios do <strong>Design</strong> Thinking<br />
necessária a sua aplicação, que ele se torne tangível, ou em última instância, é preciso inovar,<br />
aplicar o conhecimento na solução de problemas concretos.<br />
De acordo com o mesmo autor, a capacidade de inovar se tornou um dos fatores mais<br />
relevantes na determinação da competitividade das empresas e da economia em geral. E<br />
os problemas que essas empresas e economias vêm enfrentando envolvem cada vez mais<br />
transformações, tomadas de decisões e desenvolvimento de soluções que nem sempre podem<br />
ser embasadas em experiências anteriores, o que torna a inovação fator preponderante.<br />
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) define inovação como “(...) a<br />
implementação de produtos (bens ou serviços) ou processos tecnologicamente novos ou<br />
substancialmente aprimorados. A implementação da inovação ocorre quando o produto é<br />
introduzido no mercado ou quando o processo passa a ser operado pela empresa.” (IBGE,<br />
2003: p.18)<br />
Para Schumpeter (1988) a inovação é um conjunto de novas funções evolutivas que<br />
alteram os métodos de produção, criando novas formas de organização do trabalho e, ao<br />
produzir novas mercadorias, possibilita a abertura de novos mercados através da criação de<br />
novos usos e consumos.<br />
Segundo o mesmo autor, a inovação pressupõe a entrada de cinco novos fatores: a<br />
introdução de um novo produto, a introdução de um novo método de produção, a abertura de<br />
um novo mercado (ou oceanos azuis, segundo Kim e Mauborgne, 2005), a conquista de uma<br />
nova fonte de fornecimento de matéria, e a consumação de uma nova forma de organização<br />
de uma indústria.<br />
Por sua vez, Robertson (1967 apud Wylant, 2008) propõe três tipos de inovação:<br />
- Contínua: é uma melhoria pequena sobre algo que já exista, como um novo sabor<br />
de goma de mascar.<br />
- Dinamicamente contínua: é uma grande melhoria em alguma funcionalidade já<br />
existente, como a introdução dos monitores LCD sobre os monitores de tubo.<br />
- Descontínua: é a introdução de uma significante nova tecnologia que leva a novos<br />
usos e funcionalidades, como a introdução da internet no meio da tecnologia de<br />
informação.<br />
De acordo com Gurgel (2006) o melhor aproveitamento das políticas de apoio à inovação<br />
depende de um processo interno da empresa: o processo de gestão da inovação. A gestão<br />
da inovação envolve desde as idéias das pessoas, até modelos de negócio das empresas:<br />
é uma atividade multidisciplinar e multifuncional que abrange tanto P&D, quanto produção e<br />
operações, marketing e desenvolvimento organizacional.<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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A inovação através da relação da gestão de design com os princípios do <strong>Design</strong> Thinking<br />
O Manual de Gestão de <strong>Design</strong> (1997) acrescenta que as atividades de uma empresa<br />
só podem ser eficazes se forem constantemente renovadas, de modo a gerar-se um conflito<br />
entre a gestão que deve ter em conta as operações atuais e a necessidade de inovação. É<br />
preciso estabelecer um fio condutor que ligue a inovação ao mundo da empresa que, do ponto<br />
de vista da sua organização e economia, é incapaz de absorver muitas das transformações<br />
que surgem.<br />
Um dos fios condutores é o design e por meio de sua gestão pode se viabilizar a<br />
ligação entre a organização (e suas estratégias) à inovação. Isto porque, segundo Phillips<br />
(2008), através da gestão de design, o designer participa na construção da visão, estratégia e<br />
vantagens competitivas da corporação.<br />
Com a mesma terminologia – gestão de design –, é possível encontrar referências a<br />
diferentes níveis. O Manual de Gestão de <strong>Design</strong> (1997) aborda dois níveis: operacional e<br />
estratégico.<br />
O nível operacional se encontra intimamente relacionado com a concepção do projeto,<br />
ou seja, com as atividades que se realizam durante o processo de transformação de uma<br />
idéia num produto físico. Já o nível estratégico, integra o design na estratégia da organização<br />
e pressupõe a aceitação e compromisso desta em dotar o design de recursos, meios e<br />
organização suficientes para desenvolvimento de projetos (MANUAL DE GESTÃO DE DESIGN,<br />
1997).<br />
Para Martins e Merino (2008, p.157), os processos operacionais “referem-se à realização<br />
efetiva do projeto e são constantemente verificados pelos processos estratégicos, que por sua<br />
vez, devem considerar o estabelecimento dos objetivos”.<br />
Em ambos os níveis, a inovação é produto do processo de gestão de design, seja no<br />
nível operacional (lançamento de novos produtos) seja no nível estratégico (novas formas de<br />
transmitir a identidade de empresa ao consumidor). E uma abordagem atual, que visa corroborar<br />
com a idéia de que a gestão de design é fundamental para a inovação das organizações é o<br />
conceito de design thinking.<br />
<strong>Design</strong> thinking<br />
Para Lockwood (2010), o objetivo do design thinking é envolver consumidores, designers<br />
e empresários num processo integrativo que pode ser aplicado ao produto, ao serviço e até ao<br />
projeto do negócio. Segundo o autor, é uma ferramenta para imaginar estados futuros e para<br />
conduzir produtos, serviços e experiências ao mercado.<br />
Como abordagem, o design thinking foca em capacidades que todos têm, mas são<br />
ignoradas por práticas mais convencionais na resolução de problemas. De acordo com Brown<br />
e Wyatt (2007) esta abordagem se baseia na habilidade do ser humano de reconhecer padrões<br />
e de construir idéias que têm significados tanto emocionais quanto funcionais.<br />
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A inovação através da relação da gestão de design com os princípios do <strong>Design</strong> Thinking<br />
De acordo com Brown (2010), o design thinking é mais bem compreendido como<br />
um sistema de sobreposição de espaços ao invés de uma seqüência ordenada de etapas.<br />
Segundo o autor, este sistema é dividido em “três espaços de inovação”: inspiração, ideação e<br />
implementação. Estas três etapas assemelham-se de maneira conceitual às três engrenagens<br />
de gestão de design propostas por Lockwood (2010) e ao funil do conhecimento de Martin<br />
(2009).<br />
Na inspiração há a coleta de insights para compreensão de como as pessoas<br />
experimentam o mundo física, cognitiva e emocionalmente, e como funcionam grupos sociais<br />
e culturas. Isto requer que o gestor-designer se exponha ao mundo e dele participe. Para Fraser<br />
(2010), é necessário entendimento profundo do consumidor. O primeiro passo é entendê-lo<br />
de maneira profunda e ampla assim como os stakeholders que fazem parte do processo.<br />
Isso ajuda a recompor o desafio do negócio inteiramente através dos olhos do usuário final<br />
definitivo e estabelecer um contexto humano de inovação e criação de valor. Patnaik (2009)<br />
acrescenta que as organizações prosperam quando aprendem a visualizar fora de si mesmas e<br />
conectam-se aos seus clientes, sendo que a melhor maneira para fazer isto é, essencialmente,<br />
imaginar o mundo da perspectiva destes.<br />
No segundo espaço do processo do design thinking, a ideação, é feita a síntese das<br />
informações obtidas durante a etapa de inspiração e geradas idéias para o projeto. Para<br />
Fraser (2010), com a descoberta das necessidades latentes durante a primeira etapa do<br />
processo, deve haver ampla exploração de possibilidades através de múltiplos protótipos e<br />
enriquecimento do conceito, de preferência com usuários. Nesta etapa também é importante<br />
um grupo de pessoas diversas e multidisciplinares envolvidas no processo. Assim, arquitetos,<br />
psicólogos, engenheiros com seus pensamentos e visões divergentes podem contribuir de<br />
maneira efetiva ao processo.<br />
Na implementação há a criação e desenvolvimento dos protótipos do projeto. Eles são<br />
fundamentais para testar e refinar as idéias geradas no espaço da ideação. Fraser (2010), diz<br />
que protótipos rápidos e simples ajudam a chegar numa ideia potencial bem antes que muitos<br />
recursos sejam gastos em desenvolvimento. Depois de finalizados deve ser desenvolvida<br />
também a estratégia de comunicação para explicar as idéias. Neste sentido, Neumeier (2009)<br />
pontua que histórias e apresentações são técnicas mais envolventes do que programas de<br />
apresentação de slides quando se quer contar com a adesão das pessoas de fato.<br />
Retomando a idéia de que não é necessário ser designer de formação para ser<br />
considerado design thinker, Brown (2008) enumera algumas características do perfil deste tipo<br />
de profissional:<br />
Empatia: vêem o mundo de múltiplas perspectivas, conseguindo se imaginar como<br />
clientes, colegas e usuários finais;<br />
Pensamento integrado: têm capacidade de ver todos os aspectos dos problemas e<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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A inovação através da relação da gestão de design com os princípios do <strong>Design</strong> Thinking<br />
conseguem gerar soluções que vão além das alternativas existentes.<br />
Otimismo: estes profissionais assumem que não importa as limitações do problema<br />
em questão, deve existir uma solução que é melhor que as alternativas já existentes.<br />
Experimentalismo: assumem que inovações significativas não vêm de ajustes<br />
incrementais e sim de explorar opções em direções totalmente novas.<br />
Colaboração: possuem experiência em mais de uma área; engenheiros também<br />
arquitetos, designers industriais também atropólogos.<br />
Para o design thinking fazer parte do exercício da inovação, Brown (2008) pontua<br />
diversas sugestões, entre as quais:<br />
Começar pelo começo: envolver os design thinkers desde o início do processo de<br />
inovação.<br />
Adotar uma abordagem centrada no homem: junto às considerações tecnológicas<br />
e do negócio deve-se analisar o comportamento humano, suas necessidades e<br />
preferências.<br />
Testar cedo e freqüentemente: incentivar início da prototipagem e experimentação<br />
o quanto antes.<br />
Procurar ajuda externa: expandir o ecossistema de inovação, procurando<br />
oportunidades para co-criar com clientes e consumidores.<br />
Misturar projetos grandes e pequenos: gerir uma carteira de inovação que se<br />
estende desde as idéias incrementais de curto-prazo às revolucionárias de longo-prazo.<br />
Na prática, o design thinking já foi incorporado ao processo de várias organizações.<br />
A japonesa Shimano, em 2007, criou um novo tipo de bicicletas de passeio que multiplicou<br />
suas vendas. A indiana Aravind, de tratamentos oftalmológicos, desenvolveu um sistema de<br />
diagnóstico de doenças oculares que atingiu áreas remotas da Índia. A finlandesa Nokia, por<br />
sua vez, fez com que seus celulares tornassem-se plataformas de diversos serviços. E o<br />
americano, Bank of America, finalmente, desenvolveu um serviço que facilitou o troco das<br />
compras de seus usuários (BROWN, 2009).<br />
Segundo Cooper, Junginger e Lockwood (2010) o crescimento do design thinking<br />
tem ajudado a promover a sensibilização para a gestão de design em diferentes níveis da<br />
organização e com isso contribuído para uma imagem mais clara desta.<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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A inovação através da relação da gestão de design com os princípios do <strong>Design</strong> Thinking<br />
Clark e Smith (2010) acreditam que quanto mais o design thinking é usado para inovar<br />
e resolver problemas em várias profissões, mais o design em si será utilizado em decisões<br />
significativas que moldam o futuro coletivo no mundo dos negócios.<br />
Considerações finais<br />
Com o presente artigo pode se perceber inicialmente a contribuição que pode ter a<br />
gestão de design para que as empresas alcancem soluções inovadoras, uma vez que através<br />
desta gestão, o design viabiliza a ligação entre a organização (e suas estratégias) à inovação.<br />
No que tange à abordagem do design thinking, é objetivo do artigo entender como os<br />
princípios de cada uma das três etapas abordadas relacionam-se com a gestão de design.<br />
Na etapa inicial, da inspiração, a gestão opera em nível predominantemente estratégico,<br />
uma vez que são analisados padrões, tendências e comportamentos que possam inspirar as<br />
soluções para o projeto em questão. O gestor-designer deve, portanto, estar atento ao mundo<br />
ao seu redor, já que diferentes situações – às vezes até análogas – podem proporcionar insights<br />
para solução do problema de projeto.<br />
Na etapa seguinte da ideação, o nível que predomina na gestão é operacional, já que<br />
nesta etapa são sintetizadas as idéias da etapa anterior e os times multidisciplinares, de visões<br />
divergentes partem para a geração de idéias convergentes para o projeto.<br />
Na implementação, terceira etapa do sistema, a gestão opera de maneira equivalente<br />
em ambos os níveis. Em nível operacional há a criação e desenvolvimento dos protótipos do<br />
projeto e, em nível estratégico, há o desenvolvimento da estratégia de comunicação das idéias<br />
desenvolvidas.<br />
Pôde ser percebido que ambos os níveis de gestão de design estão presentes nos<br />
princípios propostos pelo design thinking e, da mesma forma que empresas enxergam a inovação<br />
como uma das principais fontes de diferenciação e vantagem competitiva, seria interessante<br />
a elas incorporar o conceito de design thinking em seu processo organizacional. Isto, além<br />
de mostrar novos caminhos para as empresas, facilitaria com que estas compreendessem a<br />
importância da gestão de design no âmbito organizacional que é ser uma ferramenta facilitadora<br />
para atingir soluções competitivas, eficientes e inovadoras.<br />
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DIáLOGO ENTRE DESIGN E EMERGêNCIA<br />
O METADESIGN COMO ESTRATéGIA PROJETuAL PARA PROBLEMAS DA ALTA<br />
COMPLEXIDADE NA áREA DE DESIGN<br />
Rui Alão; Prof. Me.: <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />
ruialao@gmail.com<br />
Resumo<br />
Este artigo visa colocar algumas possibilidades de abordagem<br />
dos fenômenos emergentes no contexto da pesquisa e da prática<br />
do design, trazendo um conceito de projeto que valoriza as<br />
abordagens bottom-up em conjunto com as técnicas projetuais<br />
tradicionais, caracteristicamente top-down. As propostas da<br />
aplicação de técnicas de metadesign são tratadas e colocadas<br />
como possibilidade de estratégia na abordagem de problemas de<br />
alta complexidade na área do design.<br />
Palavras-Chave: design, emergência, metadesign<br />
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Diálogo entre design e emergência<br />
O metadesign como estratégia projetual para problemas da alta complexidade na área de design<br />
Vaga-lumes e amebas<br />
O viajante que se aventurar pelas florestas do sudeste da Ásia tem boa chance de<br />
assistir a um grande espetáculo noturno: a dança de luzes emitidas por dezenas de milhares<br />
de vaga-lumes. O interessante é que, embora os flashes emitidos pelos vaga-lumes comecem<br />
de forma desordenada, aos poucos entram em sincronia perfeita e assim ficam por longos<br />
períodos. O mecanismo que efetua a sincronia, no entanto, permaneceu misterioso por muito<br />
tempo.<br />
O matermático Steven Strogatz (2003, p. 11) relata que, no começo do século XX<br />
foram levantadas muitas hipóteses disparatadas sobre o assunto. Alguns atribuíam a sincronia<br />
a condições específicas da atmosfera, outros a desqualificavam como simples coincidência.<br />
Havia muitas teorias sobre o assunto, mas nenhum estudo científico conduzido com um<br />
mínimo de rigor. A opinião que conseguia angariar mais apoio era a de que havia um vagalume<br />
chefe que funcionava como maestro do espetáculo, regendo o resto do grupo.<br />
Em meados da década de 60, o biólogo John Buck e sua esposa viajaram para a<br />
Tailândia com a intenção de estudar o fenômeno. Eles coletaram um boa quantidade de vagalumes<br />
dos bancos dos rios de Bangkok e os soltaram à noite no quarto do hotel. No início, os<br />
insetos se debateram de encontro às paredes e ao teto. Assim que se aquietaram, começaram<br />
a emitir os flashes de forma desencontrada. Aos poucos, grupos de dois ou três ganhavam<br />
sincronia mútua. Mais tarde, os grupos entravam em sincronia entre si e, com o tempo, todos<br />
estavam piscando juntos.<br />
Mais tarde, através de experiências em laboratório, Buck descobriu duas coisas:<br />
primeiro, que os vaga-lumes tinham um ritmo interno de pulsar, isto é, que não só entravam<br />
em sincronia, mas também que havia um pulso relativamente constante entre os flashes, e<br />
segundo, que este pulso não era absoluto e podia ser influenciado por outro pulsar. Emitindo<br />
estímulos luminosos sobre alguns vaga-lumes, Buck conseguiu fazer com que mudassem<br />
de ritmo. Eles entravam em fase com os estímulos emitidos no ambiente: aceleravam ou<br />
desaceleravam conforme fosse mais fácil para entrar em ritmo com o estímulo externo.<br />
Num agrupamento de vaga-lumes, cada um está emitindo e recebendo sinais<br />
continuamente, mudando o ritmo dos outros e tendo o seu próprio ritmo<br />
também modificado em resposta. Em meio ao burburinho generalizado, a<br />
sincronia emerge de algum modo espontaneamente. Assim, somos levados a<br />
aceitar uma explicação que seria impensável há apenas algumas décadas —<br />
os vaga-lumes organizam-se mutuamente. (STROGATZ, 2003, p. 13)<br />
No livro citado, Strogatz investiga outros exemplos de sincronias que emergem<br />
espontaneamente. Cada um deles são também exemplos do fenômeno emergente em<br />
sistemas complexos, o mesmo fenômeno investigado por Steven Johnson (2003).<br />
As histórias dos dois autores apresentam vários pontos de conexão.<br />
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Diálogo entre design e emergência<br />
O metadesign como estratégia projetual para problemas da alta complexidade na área de design<br />
Para abordar o tema da emergência, Johnson nos conta sobre o comportamento de<br />
um tipo de ameba chamada de Dictyostelium discoideum. Ela oscila entre um comportamento<br />
unicelular e multicelular, conforme haja ou não abundância de alimento no ambiente. Quando<br />
em forma multicelular, o organismo segue em busca de alimento e movimenta-se de forma<br />
orgânica e gregária, aparentando ser um único organismo rastejante. Quando em forma<br />
unicelular, ele “desaparece”, dispersando-se em várias células independentes e sendo<br />
virtualmente indetectável.<br />
No estudo destas amebas, e da mesma forma que com os vaga-lumes, a dúvida<br />
recaía sobre o mecanismo que faz com que o discoideum oscile de comportamento e,<br />
principalmente, como consegue comportar-se coerentemente, ou seja, ter uma estratégia<br />
eficiente de sobrevivência.<br />
As primeiras hipóteses, como no caso anterior, também reivindicavam a existência de<br />
células mestras:<br />
[...] a crença geral era de que as agregações de discoideum se formavam<br />
pelo comando de células líderes, que ordenavam que as outras células<br />
começassem a se agregar. [...] Nós estamos naturalmente predispostos a<br />
pensar em termos de líderes, quer falemos de fungos, sistemas políticos ou<br />
nossos próprios corpos. Nossas ações parecem ser governadas, na maior<br />
parte dos casos, por células-líder em nossos cérebros e, durante milênios,<br />
fomentamos elaboradas células-líder em nossas organizações sociais, seja na<br />
forma de reis ou ditadores, ou até de vereadores. (JOHNSON, 2003, p. 11)<br />
E novamente, como no caso anterior dos vaga-lumes, estas suposições estavam<br />
erradas: nunca foram encontradas as células-líder, para desespero de muitos pesquisadores.<br />
Descobriu-se que as células individuais do discoideum se comunicam através de sinais<br />
químicos que disparam padrões de comportamento diferentes. O interessante, porém, é que<br />
não há um comando central, mas sim um fenômeno emergente, isto é, um comportamento<br />
que surge a partir da interação de inúmeras partes independentes e muito simples. Estas<br />
partes só se comunincam com os seus vizinhos imediatos e não tem percepção ou controle<br />
sobre o fenômeno como um todo.<br />
As duas histórias que apresentamos têm em comum o surgimento de um padrão de<br />
comportamento complexo a partir de uma negociação entre inúmeras partes: a sincronia<br />
espontânea dos vaga-lumes ou os padrões de agrupamento das amebas. Em ambos os<br />
casos nos chamam a atenção a organização espontânea e a falta total de uma estrutura<br />
hierárquica de comando: é a partir de cada agente (no caso, cada indivíduo) que o padrão<br />
surge e se estabiliza. O surgimento de padrões através de processos emergentes se dá de<br />
forma bottom-up, isto é, de baixo para cima: surge no nível da ocorrência e se manifesta no<br />
todo do sistema.<br />
Os processos emergentes, no entanto, não se restringem a fazer surgir sincronias entre<br />
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Diálogo entre design e emergência<br />
O metadesign como estratégia projetual para problemas da alta complexidade na área de design<br />
vários agentes. Eles fazem surgir padrões a partir da troca de informações entre inúmeras<br />
partes de um mesmo sistema. O ambiente ou contexto no qual estes padrões surgem são<br />
chamados de sistemas complexos. São exemplos de sistemas complexos colônias de<br />
formigas, sistemas de distribuição de mercadorias em cidades, a economia de mercado, e<br />
o próprio cérebro humano. Estes sistemas têm em comum o fato de agregarem inúmeros<br />
agentes que, de alguma forma, interagem constantemente, de modo que o estado do sistema<br />
num dado momento é resultante destas interações. Uma de suas características é a robustez.<br />
Para usar os exemplos dados acima, uma falha de distribuição de uma mercadoria numa<br />
cidade, por exemplo, raramente causa uma crise na escala da cidade. Esta mercadoria<br />
pode ser substituida por outra, ou sua raridade pode fazer seu preço subir por algum tempo.<br />
A cidade, no entanto, continua funcionando. A morte de um grupo de formigas não afeta<br />
decisivamente o formigueiro e a queda das ações de uma empresa não põe em cheque toda<br />
a economia de mercado. Todos os dias alguns de nossos neurônios morrem, e nem porisso<br />
temos nossas atividades cerebrais comprometidas. Os sitemas complexos têm uma série<br />
de mecanismos de feedback negativo, que fazem com que, ao ocorrer uma perturbação no<br />
sistema, este encontre um novo ponto de equilíbrio. Esta característica é que chamamos de<br />
robustez dos sistemas complexos: eles estão sempre se adaptando e procurando novos<br />
pontos de equilíbrio.<br />
Assim, as propostas top-down raramente surtem efeito quando o problema é complexo<br />
o bastante, pois esbarram na robustez característica dos sitemas complexos. Nós podemos,<br />
no entanto, tentar atuar sobre o sistema de modo a ativar alguns de seus mecanismos de<br />
feedback de forma a disparar algumas respostas. As proposições do metadesign — e são<br />
muitos os seus formatos e abordagens — tentam fazer exatamente isto. A seguir, explicitaremos<br />
a relação entre os fenômenos emergentes e o metadesign enquanto proposta projetual.<br />
Metadesign e emergência<br />
Bem, os problemas de design vêm se tornando mais dinâmicos e mais complexos,<br />
envolvendo cada vez mais elementos. Christopher Alexander, famoso arquiteto austríaco,<br />
antecipa, já em 1964, a questão dos novos problemas de projeto nos seguintes termos:<br />
- os problemas de projeto se tornaram por demais complexos.<br />
- a quantidade de informações necessárias para a resolução de problemas<br />
de projeto elevou-se de tal forma que o designer por si só não as consegue<br />
coletar nem manipular.<br />
- a quantidade de problemas de projeto aumentou rapidamente.<br />
- a espécie de problemas de projeto, comparada a épocas anteriores, vem se<br />
modificando em ritmo acelerado, de forma que se torna cada vez mais raro<br />
poder se valer de experiências anteriores. (ALEXANDER, 1964 apud BÜRDEK,<br />
2006, p. 251)<br />
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Diálogo entre design e emergência<br />
O metadesign como estratégia projetual para problemas da alta complexidade na área de design<br />
A questão é retomada trinta anos mais tarde por John Chris Jones, designer galês<br />
preocupado com as questões metodológicas do design, que segue na mesma linha, afirmando<br />
que as causas da necessidade de um novo paradigma de projeto é a complexidade crescente,<br />
diferenciando dois tipos: a que deriva da formulação do próprio problema e a que deriva das<br />
negociações entre os ‘atores’ do processo. Para encaminhar a questão, Jones formula quatro<br />
perguntas:<br />
1. Como os designers lidam com a complexidade?<br />
2. De que forma os problemas modernos de design são mais complicados que<br />
os tradicionais?<br />
3. Quais são os obstáculos interpessoais na solução de problemas de design?<br />
4. Por que os novos tipos de complexidade ficam fora do escopo do processo<br />
tradicional de design? (JONES, 1992, p. 27)<br />
Duas características parecem estar presentes nas duas listas: o aumento da<br />
complexidade e o surgimento de novos tipos de problemas.<br />
Na verdade, a noção de projeto é, de certa forma, a de planejar uma modificação da<br />
realidade, a de impor-se sobre ela. Ao contrário da noção de emergência, a noção de projeto,<br />
fundamental para a área de design, é essencialmente top-down, isto é, de cima para baixo.<br />
Nos últimos trinta anos, no entanto, tem havido quem queira elaborar algum tipo de<br />
diálogo entre estes aparentes opostos: o design e os processos emergentes.<br />
Elisa Giaccardi, pesquisadora e webartist, escreveu vários artigos em parceria com<br />
Gerhard Fischer, diretor do Center for Lifelong Learning and <strong>Design</strong> na <strong>Universidade</strong> do Colorado,<br />
sobre o tema do metadesign, além de sua tese de doutorado. Ela entende o metadesign como<br />
uma cultura emergente de design e rejeita a noção de metadesign como uma abordagem<br />
de design já estabelecida e incorporada pela cultura. Para ela, teorias e práticas de design<br />
vêm usando a abordagem do metadesign a partir dos anos 80 em vários campos diferentes:<br />
design gráfico, industrial, engenharia de software, design de informação e de interação, design<br />
biotecnológico, arte, arquitetura, etc. (GIACCARDI, 2003).<br />
Metadesign é um ambiente conceitual emergente direcionado para a definição<br />
e criação de infraestruturas sociais e técnicas nas quais novas formas de design<br />
colaborativo podem surgir. Ele estende a noção tradicional de design de sistema<br />
para além do desenvolvimento original para incluir um processo coadaptativo<br />
entre usuários e o sistema, onde os usuários se tornam codesenvolvedores ou<br />
codesigners. (GIACCARDI e FISCHER, 2004, online).<br />
Nessa perspectiva, como se vê acima, dá-se a inclusão dos usuários como participantes<br />
da fase projetual. O metadesign se insere ainda no contexto das estratégias de design<br />
contemporâneas que lidam com a falta de previsibilidade da dinâmica dos problemas a serem<br />
enfrentados pelo projeto de design. Para uma adequada resposta a esta característica a autora<br />
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Diálogo entre design e emergência<br />
O metadesign como estratégia projetual para problemas da alta complexidade na área de design<br />
prega a incorporação dos fenômenos de emergência.<br />
Num mundo que não é previsível, improvisação e inovação são mais do que<br />
um luxo, são uma necessidade. O desafio do design não é uma questão de se<br />
desvencilhar da emergência, mas de incluí-la e fazer dela uma oportunidade<br />
para soluções mais criativas e adequadas. (GIACCARDI e FISCHER, 2004,<br />
online).<br />
Em um de seus artigos, a autora confronta os paradigmas projetuais tradicionais e o<br />
metadesign:<br />
design tradicional metadesign<br />
regras exceções e negociações<br />
representação construção<br />
conteúdo contexto<br />
objeto processo<br />
perspectiva imersão<br />
certeza contingência<br />
planejamento emergência<br />
top-down bottom-up<br />
sistema completo semear (seeding)<br />
criação autônoma cocriação<br />
mente autônoma mente distribuída<br />
soluções específicas espaços de solução<br />
design como instrumental design como adaptativo<br />
responsabilidade, decisão racional modelo afetivo, interacionismo incorporado<br />
Tabela 1: Tabela comparativa entre características do design tradicional e do metadesign<br />
(Fonte: adaptado de GIACCARDI, 2004, online)<br />
Os binômios colocados no quadro acima evidenciam a mudança de paradigma proposto<br />
pela abordagem do metadesign, principalmente no que tange à questão do poder: emergência<br />
em contraste com planejamento, bottom-up em contraste com top-down, cocriação em<br />
contraste com criação autônoma, contingência em contraste com certeza. O metadesign<br />
abre, portanto, um espaço para que outros atores, ou stakeholders — para usar a expressão<br />
de Krippendorf (2000) — possam tomar seu lugar num cenário de projeto de design mais<br />
aberto à colaboração. É através desta perspectiva que encaramos o uso da emergência para<br />
elaboração de novos modelos de interação entre stakeholders no projeto de design.<br />
Outros defensores da incorporação dos fenômenos emergentes na dinâmica de projeto<br />
de design são os pesquisadores Gregory Van Alstyne e Robert Logan, ambos professores<br />
do Ontario College of Art and <strong>Design</strong> no Canadá. Eles publicaram há pouco tempo um artigo<br />
conjunto no qual tentam elaborar um manifesto do design inovador. Num primeiro momento,<br />
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Diálogo entre design e emergência<br />
O metadesign como estratégia projetual para problemas da alta complexidade na área de design<br />
constatam o que acabamos de afirmar: a natureza top-down do design em contraste com a<br />
bottom-up dos processos emergentes:<br />
Emergência é um processo da natureza que não implica em intervenção ou<br />
intenção humana, enquanto que o design é caracterizado pela intenção,<br />
cognição e conceituação humanas. Como tal, design é caracteristicamente<br />
um processo top-down no qual o designer, trabalhando como um artista,<br />
começa com os efeitos e resultados e procura pelas causas que trarão<br />
estes à tona. Em contraste, emergência é um processo bottom-up no qual<br />
os componentes do sistema se auto-organizam através de suas interações<br />
umas com as outras sem uma intenção singular e abarcante. O designer está<br />
tipicamente no controle do processo de design, enquanto na emergência os<br />
componentes do sistema não controlam o resultado — eles simplesmente o<br />
influenciam através de suas interações mútuas. (VAN ALSTYNE e LOGAN,<br />
online, p. 12).<br />
A seguir, os autores estabelecem semelhanças e diferenças entre os processos de<br />
design e processos emergentes, como mostra a tabela abaixo, transcrita a partir do artigo.<br />
design emergência<br />
Caracterizado pela intencionalidade<br />
do designer<br />
Caracterizada pela autonomia de agentes<br />
massivamente múltiplos<br />
Cognitivo e conceitual A-cognitivo e a-conceitual<br />
Top-down Bottom-up<br />
Controlador Influenciador<br />
Fixação de relacionamentos Manutenção de relacionamentos<br />
Define contornos Explora e testa contornos<br />
Tabela 2: Tabela comparativa entre design e emergência<br />
(transcrito de ALSTYNE e LOGAN, online, p. 6)<br />
Na tabela de Alstyne e Logan podemos lembrar a de Giaccardi presente na página<br />
anterior deste trabalho, que compara design tradicional e metadesign.<br />
Nela, sua autora relaciona o paradigma do design tradicional à procura de “soluções<br />
específicas” e o metadesign (este que incorpora fenômenos emergentes), a “espaços de<br />
solução”. Vê-se desde a posição de Giaccardi um alargamento das possibilidades de solução<br />
e uma abertura para negociações entre os vários níveis de um sistema para que uma solução<br />
surja. Não existe, portanto, uma só solução, mas todo um espaço de soluções, o qual deve<br />
ser explorado no sentido de proporcionar relevância aos interessados.<br />
Em seu artigo, no entanto, Van Alstyne e Logan comparam diretamente design<br />
e emergência — não existe, para eles, um processo de design que incorpora fenômenos<br />
emergentes, mas sim o próprio processo emergente como equivalente do processo de design.<br />
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Diálogo entre design e emergência<br />
O metadesign como estratégia projetual para problemas da alta complexidade na área de design<br />
Em nossa opinião, a comparação se justifica na medida em que design e emergência<br />
são ambos processos que geram ordem a partir da desordem; o design o faz por meio de um<br />
projeto (que é, ele mesmo, a expressão desta ordem) e a emergência através de processos<br />
de feedback e auto-organização. A articulação desta ordem seria, portanto, comum aos dois<br />
processos, uma espécie de ponte, a qual, segundo os autores, deve ser transposta a fim de<br />
que o design incorpore elementos emergentes.<br />
A partir desta constatação, os autores lançam algumas hipóteses. A primeira é a de<br />
que “um design inovador é um design emergente” e a de que “uma relação homeostática<br />
entre design e emergência é condição requerida para inovação” (ALSTYNE e LOGAN, online,<br />
p. 8 e 9). Em resumo, há que se encontrar um equilíbrio dinâmico entre processos top-down<br />
e bottom-up para que inovações relevantes socialmente possam ocorrer.<br />
Para que a inovação possa emergir com sucesso (uma ‘inovação por design’),<br />
as atividades intencionais por trás dela devem buscar incorporar tanto design<br />
quanto emergência, cada um com seu respectivo papel. (VAN ALSTYNE e<br />
LOGAN, online, p. 8)<br />
O ponto-chave para que os processos emergentes possam ser despertados é, ainda<br />
segundo Van Alstyne e Logan, a participação ativa da comunidade. Seria fundamental “projetar<br />
com” a comunidade. E sendo o próprio design uma face da sociedade e da cultura, porque<br />
não incorporar as características emergentes destas instâncias? Assim, cria-se a perspectiva<br />
de um design que pode evoluir em conjunto com seu contexto social. Ora, ao fazer isso, isto<br />
é, ao tornar o processo projetual algo que permeia todos os envolvidos nos contextos do<br />
problema enfrentado pelo projeto, faz-se do processo de design uma instância social e política,<br />
onde diferentes papéis são então remodelados para servir ao binômio problema-solução. Ao<br />
envolver novos stakeholders nos mecanismos decisórios do processo projetual, este se torna<br />
uma instância de alta relevância social, na medida em que as decisões, antes tomadas pelo<br />
designer em nome de clientes, usuários, produtores, distribuidores, interatores, redatores e<br />
outros tantos papéis, podem ser agora tomadas em conjunto com aqueles que vão usufruir<br />
do produto de design.<br />
Constatando que a própria cultura é um fenômeno emergente, fica claro, segundo os<br />
autores mencionados, que o projeto que atende aos seus anseios deve ter, igualmente, uma<br />
natureza emergente. (VAN ALSTYNE e LOGAN, online, p. 19)<br />
Abrir o processo de design à comunidade interessada é assumir que os problemas<br />
que são enfrentados pelo designer são, de alguma forma, imprevisíveis e que o designer,<br />
individualmente, tem limites na capacidade de antecipá-los completamente. Giaccardi e<br />
Fischer também apontam para este problema:<br />
Faz parte das premissas básicas que usos e problemas futuros não podem ser<br />
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completamente antecipados no momento do design, quando um sistema é<br />
desenvolvido. Usuários, no momento do uso, descobrirão descompassos entre<br />
suas necessidades e o suporte que um dado sistema pode fornecer. Estes<br />
descompassos podem levar a colapsos que servirão como fonte potencial de<br />
novos insights, novos conhecimentos e novos entendimentos. (GIACCARDI e<br />
FISCHER, 2004, online)<br />
A incorporação de processos emergentes pode fazer com que os problemas sejam<br />
resolvidos enquanto estão sendo formados, como acontece frequentemente com os processos<br />
de programação open source, nos quais vários programadores espalhados pelo mundo se<br />
dedicam de forma mais ou menos independente, a um projeto específico. Como há um certo<br />
teor de auto-organização, muitas vezes problemas que surgem enquanto o desenvolvimento<br />
está ocorrendo são revolvidos quase que simultanemente ao seu surgimento.<br />
Ou seja, com a incorporação de processos emergentes e a inserção da comunidade<br />
no processo de design, forças bottom-up e top-down podem, em conjunto, gerar soluções<br />
inovadoras e que incluem, desde sua gênese, a possibilidade de construir soluções projetuais<br />
que englobam o mecanismo do próprio problema e que, portanto, podem evoluir junto com<br />
ele.<br />
O designer que pensa os sistemas<br />
No contexto contemporâneo, é importante, em nossa opinião, que o design possa ter<br />
um modo operativo que consiga lidar com problemas sistêmicos, isto é, problemas que se<br />
localizam menos em instâncias isoladas e mais nas relações existentes entre estas instâncias.<br />
Bürdek já apontava para esta necessidade:<br />
Um mundo cada vez mais complexo não pode ser mais dominado pelo<br />
designer individualmente. A teoria dos sistemas foi reconhecida como disciplina<br />
importante e que poderia ser útil para o design. Ela ganha hoje uma nova<br />
atualidade, quando se procura [...] pensar o design sistematicamente, quer<br />
dizer, de forma integral e em rede. (BÜRDEK, 2006, p. 256)<br />
O fato que mencionamos anteriormente neste artigo, a crescente complexidade dos<br />
problemas de design aponta, de um lado, para as limitações do designer enquanto indivíduo,<br />
de abarcar e prever todos os fatores importantes para a proposição de soluções viáveis e<br />
eficientes para problemas complexos. De outro, aponta para um outro tipo de abordagem,<br />
na qual o designer pode se voltar para o próprio sistema enquanto instância de colocação e<br />
articulação das variáveis do problema.<br />
Tentaremos, através de um exemplo, explicitar esta hipótese.<br />
Num certo momento histórico, o problema da rapidez do deslocamento humano pôde<br />
ser abordado pela criação de um artefato que nos levasse mais rapidamente de um ponto a<br />
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Diálogo entre design e emergência<br />
O metadesign como estratégia projetual para problemas da alta complexidade na área de design<br />
outro: o automóvel.<br />
Na medida em que o automóvel se inseriu na malha viária urbana, o problema do<br />
deslocamento humano começou a tomar outra dimensão: deixou de ser o do artefato e<br />
passou a ser do sistema onde ele se insere. Obviamente, outras variáveis passaram a fazer<br />
parte do problema: a largura das vias e as conexões entre elas, as diferentes áreas da cidade<br />
com diferentes densidades populacionais e diferentes tendências de uso (algumas voltadas<br />
para a moradia, outras, para a indústria ou para o comércio), os diferentes tipos de veículo,<br />
as interfaces entre os vários tipos de transporte e mesmo o comportamento dos motoristas.<br />
Hoje, não se trata mais de desenvolver um outro artefato, um outro automóvel — mais<br />
rápido, mais potente — que resolva o deslocamento nas grandes cidades, pois o problema do<br />
deslocamento não está mais no artefato, está no sistema. Um automóvel de corrida se move<br />
com a mesma desenvoltura de um carro popular num dia de trânsito justamente porque o<br />
problema não pode ser mais resolvido no nível do artefato, ou seja, do automóvel. O problema<br />
do deslocamento foi se revestindo de uma complexidade tão grande que sua solução migrou<br />
do artefato para o ambiente onde ele atua. Projetar um novo automóvel que seja menor,<br />
menos poluente, que consuma menos combustível, é lógico, é um objetivo legítimo, mas para<br />
aumentar a velocidade de deslocamento nas grandes metrópoles temos que abordar outro<br />
problema e este vai muito além do artefato em si. Temos que ter — e aprender a ter, já que não<br />
fomos formados com este paradigma em mente — uma visão sistêmica do problema.<br />
Pensar e projetar no nível dos sistemas é, assim, fundamental. Sem a familiaridade com<br />
este tipo de problema — e acreditamos que os problemas sistêmicos se configuram como<br />
um tipo de problema muito diferente daquele solucionável pelo projeto de um novo objeto —<br />
estaremos condenados a pensar o objeto como solução e, muitas vezes, a continuar focando<br />
nossos esforços naquilo que não tem mais relevância quanto ao problema real a ser resolvido.<br />
Ora, se o problema pode ser caracterizado como sistêmico e, como sabemos, os<br />
fenômenos emergentes são uma forma de fomentar ordem dentro de um sistema complexo,<br />
partir de uma concepção de projeto que possa lidar com esta complexidade — sem reduzi-la<br />
ou evitá-la — é de importância fundamental.<br />
Se olharmos para a área do planejamento urbano, por exemplo, que trata de problemas<br />
de grande complexidade, aplicar uma abordagem bottom-up pura equivaleria a deixar a<br />
cidade se autogerir, sem instâncias decisórias que possam articular a pluralidade urbana. Ora,<br />
é fácil perceber que, conforme cresce a complexidade de uma cidade, a auto-organização<br />
não dá conta de lidar com os problemas que surgem. Uma cidade pode lidar muito bem<br />
com um sistema viário “natural” se a sua complexidade for mínima, se tiver, digamos, alguns<br />
poucos milhares de habitantes. A partir do momento em que esta complexidade cresce, que<br />
a ocupação fica mais densa, as ruas são mais utilizadas e chegam a um ponto de saturação.<br />
Um sistema viário não tem uma capacidade infinita de dar vazão ao tráfego, pelo contrário,<br />
é preciso de lideranças, gerenciamento, organização, ou seja, de projeto. Mas um projeto<br />
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Diálogo entre design e emergência<br />
O metadesign como estratégia projetual para problemas da alta complexidade na área de design<br />
que não se articule exclusivamente pelo viés top-down, um que tenha em conta a dinâmica<br />
do problema e as comunidades envolvidas e saiba aprender com elas, um que saiba fazer o<br />
cidadão — o agente do sistema — se inserir no problema.<br />
É preciso encarar o fato de que um certo teor de poder centralizado é necessário para<br />
um bom planejamento, pois nem toda concentração de poder é ruim, castradora e deletéria.<br />
Ao mesmo tempo, e esta é a nossa hipótese, parece haver um estágio de complexidade<br />
onde a abordagem puramente top-down de um problema complexo também entra em<br />
colapso, pois a visão do todo é tão generalizante e tem que levar em conta tantas variáveis<br />
que simplesmente não dá conta de solucionar todas as facetas do problema. O projeto topdown<br />
tem a forte tendência de simplificar o problema para poder solucioná-lo. E, em termos<br />
de sistemas complexos, simplificar o problema é fugir deste mesmo problema.<br />
Acreditamos, finalmente, que o próprio discurso do design tem um caráter emergente,<br />
pois além de podermos pensar soluções emergentes para problemas do design, podemos<br />
também fazer com que o design — enquanto saber e enquanto prática — seja pensado de<br />
forma emergente.<br />
Em outras palavras: se até agora defendemos um modo de fazer com que o design se<br />
utilize de fenômenos emergentes para chegar a soluções de problemas complexos, podemos<br />
também fazer com que os fenômenos emergentes — como a linguagem e os discursos —<br />
se utilizem do design para elaborar a si mesmos. Ou seja: podemos tentar imaginar como a<br />
emergência pode pensar o design.<br />
Afinal, tratamos aqui de uma forma de fazer com que certos problemas apresentados<br />
ao designer sejam tratáveis através de métodos ligados aos sistemas complexos. Ora, nos<br />
esquecemos que a rede de discursos na qual nos emaranhamos é, ela também, um sistema<br />
complexo, com seus próprios agentes, suas próprias dinâmicas e que cria, de tempos em<br />
tempos, seus padrões, seus grandes discursos, suas tendências e escolas de pensamento.<br />
Assim, acreditamos que tanto o design pode se debruçar sobre fenômenos emergentes<br />
quanto o contrário.<br />
Se aceitarmos o que diz Krippendorff quando afirma que o “design deve continuamente<br />
reprojetar seu próprio discurso e ele próprio” (2000, p. 93), talvez o discurso do design também<br />
possa ser pensado não apenas como uma multiplicidade, mas como um sistema complexo,<br />
que gera, de vez em quando, alguns padrões dos quais nos apropriamos para pensar nossos<br />
projetos e também a dinâmica dos projetos de design. Nestes termos, esperamos que este<br />
artigo tenha, de alguma forma, contribuído para esta dinâmica.<br />
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Diálogo entre design e emergência<br />
O metadesign como estratégia projetual para problemas da alta complexidade na área de design<br />
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uM ESTuDO SOBRE A LINGuAGEM DA ILuSTRAçãO E O DESIGN<br />
GRáFICO<br />
Jorge Paiva; Mestrando em <strong>Design</strong>: <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />
jorgeapaiva@hotmail.com<br />
Resumo<br />
O presente artigo estuda a relação entre a ilustração e o design<br />
gráfico no projeto gráfico de um livro ilustrado, a discussão<br />
acontece através de um estudo de caso do livro de Fernando<br />
Vilela, Lancelote e o Lampião. O estudo é desenvolvido utilizando<br />
como ferramenta de análise a semiótica Peirciana lida pelo livro<br />
Matrizes da Linguagem e pensamento da autora Lúcia Santaella e<br />
o objetivo é compreender através do estudo de linguagem algumas<br />
relações entre o ilustrador e o designer na construção do signo<br />
das páginas do livro.<br />
Palavras-Chave: ilustração; inguagem; design gráfico<br />
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Um estudo sobre a linguagem da ilustração e o design gráfico<br />
Há um consenso entre os autores LOOMIS (1947), DONDIS (2007) e ZEEGEN (2009)<br />
de que ilustrar é transmitir uma mensagem através de imagens e, é a partir deste pensamento<br />
que comumente a ilustração é definida como uma arte figurativa. O objeto de estudo deste<br />
artigo é a ilustração narrativa, este termo é empregado por autores reconhecidos, como por<br />
exemplo, E. H. Gombrich no livro <strong>Arte</strong> e Ilusão. Embora o autor, não Forneça uma definição<br />
do termo, fica claro que ele refere-se à obras que contam uma história através de imagens. O<br />
mesmo termo, ilustração narrativa, foi definido pelo brasileiro Rui de Oliveira como um gênero<br />
da ilustração:<br />
A ilustração narrativa está sempre associada a um texto, que pode ser literário<br />
ou musical, como é o caso das ilustrações para capa de CDs e DVDs. No<br />
entanto, o que fundamentalmente caracteriza esse gênero são o narrar e<br />
o descrever histórias através de imagens, o que não significa em hipótese<br />
alguma uma tradução visual do texto. A ilustração começa no ponto em que o<br />
alcance literário do texto termina, e vice-versa (Oliveira, 2008, p.44).<br />
Os livros infantis são o tema da linha de pesquisa de Rui de Oliveira, e a ilustração<br />
narrativa que ele se refere é a ilustração que tem o intuito de contar uma história, de narrar<br />
uma cena, para Oliveira “Ilustrar é a arte de sugerir narrativas” (Oliveira, 2008, p.60). Outros<br />
gêneros de ilustração foram definidos por Rui, como a ilustração informativa e a ilustração<br />
persuasiva. A ilustração informativa é típica dos livros de medicina e botânica e a ilustração<br />
persuasiva utilizada pela publicidade. Evitando reducionismos, vale colocar as palavras de Rui<br />
quanto ao caráter híbridos destes gêneros, “As três divisões tem acima de tudo um aspecto<br />
didático, uma vez que esses gêneros agem muitas vezes ao mesmo tempo, influenciando-se<br />
mutuamente. No entanto, do ponto de vista formal, em termos conceituais, comportam-se<br />
de maneira distinta” (Rui de Oliveira, 2008, p.44). Portanto, as ilustrações em geral possuem<br />
níveis diferenciados de informatividade, persuasão e narrativa.<br />
Toda esta responsabilidade de expressar um pensamento ou contar uma história<br />
sem dizer uma única palavra requer que o ilustrador tenha um conhecimento específico de<br />
articulação da linguagem visual. Durante seu processo de formação o ilustrador aprende a<br />
trabalhar com o ponto, linha, plano, composição, ritmo visual, teoria das cores, dramatização e<br />
caracterização dos personagens, cenários e diversos outros conceitos específicos à profissão.<br />
Quando a ilustração é inserida em um projeto gráfico a responsabilidade do designer não é<br />
menor.<br />
Embora a linguagem visual seja um eixo comum entre o ilustrador e o designer, o<br />
pensamento em articular a linguagem ou as linguagens é diferenciado, independente se o<br />
ilustrador e o designer são ou não o mesmo individuo. Podemos configurar uma linha de<br />
pensamento através da autora Lúcia Santaella, que alicerçada por Décio Pignatari compara a<br />
poesia ao design: “Por aí se vê por que o poeta é um configurador de mensagens, um designer<br />
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Um estudo sobre a linguagem da ilustração e o design gráfico<br />
da linguagem, no dizer de Jakobson e a poesia um diagrama de sentidos e ressonâncias que<br />
acabam por se assemelhar à aquilo que conotam” (Santaella, 2009B, p.302). Deste ponto<br />
de vista, uma vez que ilustrar é comunicar uma mensagem através de imagens, poderíamos<br />
comparar o ilustrador ao poeta como alguém que configura a mensagem de uma imagem.<br />
Parece assim, mais justo separar as diferenças entre as profissões do designer e do ilustrador<br />
por meio da forma como é pensada ou articulada a linguagem visual em cada profissão.<br />
Através desta definição de que o ilustrador é articulador da mensagem, e designer articulador<br />
das linguagens, que surge o argumento de que ambos os de processos trabalho caminham<br />
indissociáveis na formação da mensagem visual.<br />
Antes de iniciarmos a análise, cabe introduzir brevemente a semiótica Peirciana que<br />
conheci através do livro Matrizes da linguagem e Pensamento da pesquisadora Lucia Santaella.<br />
Digo brevemente, pois seria inviável em um artigo descrever todo modelo de matrizes híbridas<br />
de Lúcia Santaella e todo seu embasamento na semiótica de Charles S. Peirce. Portanto,<br />
a introdução dos conceitos serve muito mais como uma guia para o leitor buscar maiores<br />
informações, do que uma literatura esclarecedora do tema. Lúcia Santaella definiu que “o<br />
estudo da imagem é, assim, um empreendimento interdisciplinar” (Santaella, 2009A, p.13).<br />
Com a ilustração, de modo específico, isso não é diferente. Há uma vasta bibliografia sobre<br />
linguagem visual, história da arte e estudo da imagem pronta para ser acessada pelos<br />
estudantes e interessados em ilustração. A busca pela semiótica Peirciana como ferramenta<br />
para um estudo de linguagem da ilustração é proveniente da necessidade de empregar uma<br />
metodologia de análise. Além disso, a pesquisa de Santaella sobre linguagem visual dentro<br />
das matrizes fornece uma espinha dorsal para análise da ilustração e um modo de organizar<br />
a leitura da imagem, o que auxilia no pensar e repensar a ilustração. A lógica de análise<br />
de Santaella nos fornece um panorama das possibilidades, decompondo uma imagem em<br />
diferentes nichos de análise, e compondo assim, um pensamento fluído e ao mesmo tempo<br />
estruturado.<br />
Peirce definiu a semiótica como a teoria geral dos signos, ele “dedicou toda a sua vida<br />
ao desenvolvimento da lógica entendida como teoria geral, formal e abstrata dos métodos de<br />
investigação utilizados nas mais diversas ciências” (Santaella, 2002, p.XII). É importante dizer<br />
que o estudo dos signos é muito antigo, e sua história poderia ser aqui reconstruída desde o<br />
mundo grego até o século XX quando a semiótica ficou conhecida como ciência dos signos. A<br />
semiótica não é uma ciência com objeto de estudo delimitado, e é apenas uma das disciplinas<br />
que compõem a extensa obra de Charles S. Peirce, e ainda existem outras correntes da<br />
semiótica que não serão abordadas aqui.<br />
A lógica de análise de Peirce é anticartesiana, partindo do princípio de que a lógica<br />
deve estabelecer uma tabela formal e universal de categorias a partir da mais radical análise de<br />
todas as experiências possíveis. Este pensamento surgiu a partir da insatisfação de Peirce dos<br />
modelos de categorias aristotélicas, consideradas mais gramaticais que lógica, e também com<br />
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Um estudo sobre a linguagem da ilustração e o design gráfico<br />
as teorias kantianas e hegelianas. Peirce dedicou-se intensamente à elaboração de categorias<br />
universais à todos os fenômenos. Na base da teoria analítica de Peirce está o Signo, o Objeto<br />
e o Interpretante. O Signo é determinado pelo objeto, e é o que representa o objeto para um<br />
interpretante, por isso mesmo é signo. O Objeto não é sinônimo de coisa, mas, é o que se<br />
presentifica ao interpretante graças á mediação do signo. O interpretante não é o sinônimo<br />
de interpretação, mas o processo inteiro de geração de interpretantes. Assim fica claro na<br />
semiótica Peirciana que é impossível falar de signo sem que haja objeto e interpretante. Existem<br />
ainda, nas categorias de Peirce outra tríade que foram usadas pra distinguir três espécies de<br />
signos ou representações: Ícone, índice e símbolo. O ícone é um signo capaz de representar<br />
seu objeto meramente em função de qualidades que possui, independente da existência ou<br />
não do objeto. O índice é um signo que está existencialmente conectado com um objeto que<br />
é maior do que ele. O símbolo é um signo que funciona como tal objeto, porque é estabelecido<br />
por convenção, usado e entendido como representado. Outra tríade na obra de Peirce referese<br />
ao interpretante como remático, dicente e o interpretante como argumento, que não serão<br />
abordadas aqui. Peirce definiu ainda muitas outras tríades que partem para decomposições<br />
cada vez mais refinadas. Estas classificações são fluídas, sobrepondo-se uma as outras e as<br />
rápidas definições aqui são mais um modo de refrescar a memória de alguns, sendo ideal um<br />
conhecimento prévio para uma compreensão mais profunda dos conceitos.<br />
Foi embasada na semiótica de Peirce que Lúcia Santaella desenvolveu seu modelo de<br />
matrizes híbridas. Segundo seu modelo existem três matrizes da linguagem e do pensamento,<br />
a matriz sonora, a visual e a verbal, sendo elas híbridas. A lógica da matriz verbal por exemplo<br />
não necessariamente precisa estar manifesta em palavras, assim como a lógica da matriz<br />
sonora não necessariamente deva estar manifesta como som. Assim sendo Santaella enfatiza<br />
que:<br />
Quando se trata de linguagens existentes, manifestas, a constatação imediata<br />
é a de que todas as linguagens, uma vez corporificadas, são híbridas. A<br />
lógica das três matrizes e suas 27 modalidades, desdobradas em 81, nos<br />
permite inteligir os processos de hibridização de que as linguagens se<br />
constituem. Na realidade, cada linguagem existente nasce do cruzamento<br />
de algumas submodalidades de uma mesma matriz ou do cruzamento entre<br />
submodalidades de duas ou três matrizes. Quanto mais cruzamentos se<br />
processarem dentro de uma mesma linguagem, mais híbrida ela será. Desse<br />
modo, por exemplo, a linguagem verbal oral, a fala, apresenta fortes traços de<br />
hibridização tanto com a linguagem sonora quanto com a linguagem visual na<br />
gestualidade que a acompanha. (Santaella, 2009B, p.379)<br />
A hibridização acontece de diversas maneiras nas matrizes. No caso da ilustração<br />
inserida na matriz da linguagem visual, podemos pensar na fala de Santaella “A visualidade,<br />
mesmo nas imagens fixas, também é tátil, além de que absorve a lógica da sintaxe, que vem<br />
do domínio sonoro. A verbal é a mais misturada de todas as linguagens, pois absorve a sintaxe<br />
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Um estudo sobre a linguagem da ilustração e o design gráfico<br />
do domínio sonoro e a forma do domínio visual” (Santaella, 2009B, p.371).<br />
A lógica das três matrizes e suas modalidades engendradas por Santaella tem como<br />
objetivo criar um “patamar intermediário entre os conceitos Peircianos e as linguagens<br />
manifestas, de modo que as modalidades verbal, visual e sonoro possam servir de mediação<br />
entre a teoria Peirciana e a semiótica aplicada” (Santaella, 2009B, p.29) uma vez que o nível de<br />
abstração dos conceitos de Peirce é muito elevada e dificulta à aplicação direta dos conceitos<br />
nas linguagens manifestas ou processos concretos de signos. Cada uma das três matrizes,<br />
como vimos, foram divididas em 27 modalidades que podem ser usadas como uma espécie<br />
de mapa guia de uma análise. Evidentemente não vou comentar cada uma delas aqui, mas,<br />
estas serão abordadas durante à análise de forma explicativa, cabe ainda adicionar alguns<br />
critérios de Lúcia Santaella quanto ao caráter híbridos destas modalidades:<br />
A classificação é uma espécie de rede para ser utilizada na elucidação<br />
das formas visuais. Evidentemente, essas formas, quando manifestas,<br />
dificilmente apresentam como casos puros de cada uma das modalidades<br />
ou submodalidades. Ao contrário, a maior parte das formas de representação<br />
visuais nasce da mistura e da intersecção de algumas das submodalidades.<br />
Isso significa que a classificação não deve funcionar como uma itemização<br />
estática e monovalente, mas como focos da inteligibilidade que sejam capazes<br />
de despertar o olhar e de funcionar como bússolas de orientação para leitura<br />
dos princípios lógicos que comandam as configurações da linguagem visual<br />
(Santaella, 2009B, p.260).<br />
Assim, a utilização da classificação das matrizes funcionam mais como uma guia da<br />
lógica abstrata que deve atentar mais à manifestação do objeto do que na classificação pura<br />
e simples, sendo assim um processo flexível para apoio.<br />
A matriz da linguagem visual no modelo de Santaella está alicerçada na forma, assunto<br />
que foi desenvolvido amplamente pela Gestalt, ou, teoria da forma que surgiu na Alemanha<br />
no princípio do século XX. A autora deixa claro que os estudos da Gestalt contribuíram para<br />
formulação de seu modelo. Santaella dividiu as formas visuais em três modalidades, as formas<br />
não-representativas, as formas figurativas e as formas representativas. Definindo as formas<br />
não-representativas da seguinte forma:<br />
dizem respeito à redução da declaração visual a elementos puros: tons, cores,<br />
manchas, brilhos, contornos, formas, movimentos, ritmos, concentrações<br />
de energia, textura, massas, proporções, dimensão, volume, etc (Santaella,<br />
2009B, p.210).<br />
As formas figurativas foram explicadas da seguinte maneira:<br />
Assim sendo, formas figurativas dizem respeito às imagens que basicamente<br />
funcionam como duplos, isto é, transpõem para o plano bidimensional ou<br />
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Um estudo sobre a linguagem da ilustração e o design gráfico<br />
criam no espaço tridimensional réplicas de objetos preexistentes e, o mais<br />
das vezes, visíveis no mundo externo. São formas referenciais que, de um<br />
modo ou de outro, com maior ou menor ambigüidade, apontam para objetos<br />
ou situações em maior ou menor medida reconhecíveis fora daquela imagem.<br />
Por isso mesmo, nas formas figurativas, é grande o papel desempenhado<br />
pelo reconhecimento e pela identificação que pressupõem a memória e a<br />
antecipação no processo perceptivo. Nessas formas, que buscam reproduzir<br />
o aspecto exterior das coisas, os elementos visuais são postos a serviço da<br />
vocação mimética, ou seja, produzir a ilusão de que a imagem figurada é igual<br />
ou semelhante ao objeto real (Santaella, 2009B, p.227).<br />
E por último as formas representativas:<br />
As formas representativas, também chamadas de simbólicas, são aquelas que,<br />
mesmo quando reproduzem a aparência das coisas visíveis, essa aparência é<br />
utilizada apenas como meio para representar algo que não está visivelmente<br />
acessível e que, via de regra, tem um caráter abstrato geral” (Santaella, 2009B,<br />
p.246).<br />
Segmentei meu processo de análise em três partes, a imagem, o diagrama e a mensagem.<br />
Esta divisão foi inspirada na divisão de Peirce, dos signos icônicos em imagem, diagrama e<br />
metáfora. Na separação de Peirce “A imagem estabelece uma relação de semelhança com<br />
objeto puramente no nível da aparência” (Santaella, 2002, p.18), “O diagrama representa<br />
seu objeto por similaridade entre relações internas que o signo exibe e as relações internas<br />
do objeto que o signo visa representar” (Santaella, 2002, p.18) e por último, “A metáfora<br />
representa o objeto por similaridade no significado do representante e no representado. Ao<br />
aproximar o significado de duas coisas distintas, a metáfora produz uma faísca de sentido que<br />
nasce de uma identidade posta à mostra” (Santaella, 2002, p.18)<br />
A estrutura e motivos da minha classificação diferem dos motivos Peirce,<br />
consequentemente o sentido do uso das palavras, imagem e diagrama não devem ser utilizados<br />
em comparativos a semiótica Peirciana. Na minha organização de análise a mensagem é a<br />
parte do processo que vou relacionar a mensagem da ilustração ao texto ou contexto ao<br />
qual ela se refere. É um primeiro contato com a ilustração, como um vôo de reconhecimento<br />
do terreno. O diagrama, visa descrever a hierarquia, o significado e a relação dos elementos<br />
diagramados na página e também a concepção do projeto gráfico e sua influência visual na<br />
ilustração. A imagem, é a ilustração em si, neste ponto do processo a análise foca-se em<br />
estudar as formas não-representativas, as formas figurativas e as formas representativas na<br />
ilustração e sua relação com o diagrama. Como as tríades de Peirce o meu modelo é fluído,<br />
sendo que Imagem, Diagrama e Mensagem influenciam-se entre si.<br />
Após a descrição prévia do método de análise, vamos ao objeto de estudo. O livro<br />
Lancelote e o Lampião de Fernando Vilela que recebeu menção honrosa no Prêmio Bolonha<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Um estudo sobre a linguagem da ilustração e o design gráfico<br />
Ragazzi em 2007. O livro foi escolhido devido a sua linguagem que valoriza a relação entre o<br />
projeto gráfico e a ilustração.<br />
Figura 1. Esta é a capa do livro de Fernando Vilela, as cores metálicas foram feitas através do processo de hot<br />
stamping. Vilela (2006)<br />
A mensagem<br />
Tendo em vista o argumento apresentado acima – do designer como configurador<br />
das linguagens – é necessário agora apresentar o termo designer da linguagem, do autor<br />
Décio Pignatari. O <strong>Design</strong>er da Linguagem é descrito por Pignatari como: “aquele capaz de<br />
perceber e/ou criar novas relações e estruturas de signos” (Pignatari, 2002, p.18). O designer<br />
da linguagem está inserido na sociedade contemporânea, onde as diferentes mídias entram<br />
em atrito, contaminação, interferência e mesclam umas às outras interferindo de modo global<br />
no comportamento da comunidade:<br />
Daí que o nosso século é o século do planejamento, do design e dos designers:<br />
o desenho industrial e a arquitetura passam a ser estudados e projetados como<br />
mensagens e como linguagens; escritores, poetas, jornalistas, publicitários,<br />
músicos, fotógrafos, cineastas, produtores de rádio e televisão, desenhistas,<br />
pintores e escultores começam a ganhar consciência de designers, forjadores<br />
de novas linguagens (Pignatari, 2002, p,18).<br />
Neste processo de inovar as linguagens insiro também os ilustradores, que através<br />
da necessidade de expressar uma idéia visualmente, nas últimas décadas utilizam-se cada<br />
vez mais de diferentes materiais, técnicas mistas, e recebem influências de outras mídias e<br />
suportes. Tomemos como exemplo, o caso de Fernando Vilela, ilustrador e escritor do livro<br />
Lancelote e o Lampião. A narrativa do livro parte do possível encontro entre Lancelote, o<br />
guerreiro dos contos da Távola Redonda do Rei Arthur e Lampião o famoso cangaceiro do<br />
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sertão nordestino. No texto do livro existem duas referências de linguagem que caracterizam<br />
cada um dos dois personagens. A narrativa em prosa e em tom épico evocam e refere-se à<br />
Lancelote. As estrofes compostas em sextilha – ou seja seis versos – referem-se à Lampião,<br />
sendo a estrutura de sextilha típica da literatura de cordel que é famosa na terra natal do<br />
cangaceiro. O embate entre os dois guerreiros é também um embate cultural, de quem faz o<br />
melhor repente. Nas ilustrações a hibridização de linguagens continua, entretanto vamos nos<br />
aprofundar neste efeito no tópico da imagem.<br />
Figura 2. Páginas seis e sete do livro de Lancelote e o Lampião. Vilela (2006)<br />
Definido o universo macroscópico do livro, vamos focar nossa análise em um universo<br />
microscópio na página seis e sete do livro. Por fins didáticos, foi escolhida uma ilustração do<br />
livro para análise. Uma vez que, a relação entre a ilustração e o projeto gráfico é continua ao<br />
longo de todo o livro, qualquer ilustração do livro poderia ter sido escolhida. Embora o artigo<br />
não tenha a pretensão de formular uma análise semiótica do texto é interessante ressaltar<br />
algumas relações importantes. O texto que acompanha a imagem é uma poesia, encaixase<br />
na modalidade de descrição qualitativa da matriz verbal de Santaella. “As palavras aí não<br />
representam, elas são aquilo que querem dizer, são aquilo de que falam”(Santaella, 2009B,<br />
p.298). No primeiro parágrafo há uma qualidade metafórica, “Viviane a grande flor”. A metáfora,<br />
para Aristóteles, consiste em transportar para uma coisa o nome de outra. Os três parágrafos<br />
seguintes estão nos domínios da qualidade imagética, que se refere à imagem mental que<br />
temos a partir dos estímulos do texto. Estes estímulos que vemos no texto tornam a relação<br />
de texto e imagem muito mais interessante, uma vez que as imagens mentais se misturam à<br />
imagem da ilustração criando uma fluída sensação de imersão. Temos nas imagens mentais<br />
invocadas pelo texto a alma do cavaleiro da ilustração, sua história, sua aura. No ponto que as<br />
imagens mentais mesclam-se a imagem da ilustração é como se o personagem da ilustração<br />
ganhasse vida através do estímulo do texto sobre um interpretante.<br />
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Figura 3. Zoom no texto de Fernando Vilela (2006).<br />
No texto da página sete não é dito que o herói anunciado pelo texto é o personagem<br />
Lancelote da lenda do rei Arthur, mas, o leitor que seguir a sequência desde as primeiras<br />
páginas terá lido esta informação anteriormente, ou mesmo na capa do livro. Abaixo estão as<br />
duas primeiras páginas duplas, e o padrão de páginas duplas acontece todo o livro. O livro<br />
fechado tem um tamanho de 35x24 centímetros, e aberto o livro chega a ter 70 centímetros.<br />
Figura 4. Páginas dois e três. Vilela (2006)<br />
Figura 5. Páginas quatro e cinco. Vilela (2006)<br />
Aprofundando-se nas camadas da relação texto e imagem, abordaremos agora<br />
classificações de dois autores. O primeiro deles é um autor teórico e prático da ilustração<br />
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americana, Andrew Loomis. Conhecido por sua série de livros sobre ilustração Loomis seguiu<br />
os passos do famoso ilustrador Norman Rockwell. Em seu livro Creative Illustration (1947)<br />
Loomis define três gêneros de ilustração:<br />
O primeiro tipo é a ilustração que conta uma história por completo, sem um<br />
título, texto, ou qualquer mensagem escrita para ajuda. Este tipo é encontrado<br />
em capas, cartazes, ou calendários.<br />
O segundo tipo é aquele que ilustra o título, ou, o que visualiza e leva adiante<br />
uma linha, um slogan, ou alguma mensagem escrita usada em junção com a<br />
imagem. Esta função emprega força à mensagem. Neste grupo são comuns<br />
temas que levam um curto tempo para serem lidos, como cartazes, displays<br />
e anúncios de revistas. A história e a imagem funcionam juntas com unidade.<br />
O terceiro tipo é aquele que a história da imagem é incompleta, é obviamente<br />
intencional, aguçando a curiosidade, intrigando o leitor a achar a resposta no<br />
texto. O terceiro tipo é a ilustração que poderia dizer “vem aqui” ou “advinha<br />
o que”. Muitos anúncios são construídos neste plano, para assegurar a<br />
compreensão do leitor. Caso a história fosse completamente contada o<br />
propósito seria um fracasso, e o texto poderia facilmente passar despercebido.<br />
(Loomis, 1947, p.178)<br />
Estas classificações poderiam ser cruzadas com os conceitos de Redundância,<br />
informatividade e complementaridade, abordados por Santaella, que se alicerça de<br />
Kalverkämper:<br />
As formas de relação imagem-texto aqui comentadas caracterizam os dois<br />
pólos extremos de um contínuo que vai da redundância à informatividade.<br />
Kalverkamper (1993: 207) diferencia, nessa escala, três casos: (1) a imagem é<br />
inferior ao texto e simplesmente o complementa, sendo, portanto, redundante.<br />
Ilustrações em livros preenchem ocasionalmente essa função, quando, por<br />
exemplo, existe o mesmo livro em uma outra edição sem ilustrações. (2) A<br />
imagem é superior ao texto e, portanto, domina, já que ela é mais informativa do<br />
que ele. Exemplificações enciclopédicas são frequentemente deste tipo: sem a<br />
imagem, uma concepção do objeto é muito difícil de ser obtida. (3) Imagem e<br />
texto têm a mesma importância. A imagem é, nesse caso, integrada ao texto.<br />
A relação texto-imagem se encontra aqui entre redundância e informatividade.<br />
(Santaella, 1997, p.54)<br />
A classificação abordada por Santaella parece ser melhor reconhecível pelas<br />
nominações, já as definições de Loomis são mais familiares à ilustração. No fundo as duas<br />
classificações estão apontando para as mesmas relações entre palavra e imagem e podemos<br />
utilizar ambas como guia de análise. “O caso da equivalência entre texto e imagem é descrito<br />
como complementaridade” (Santaella, 1997, p.54). É o que acontece na ilustração de Fernando<br />
Vilela, texto e imagem estão interagindo juntas como uma unidade. Assim durante a leitura é<br />
como se texto e imagem se completassem como amalgama na mente do interpretante.<br />
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O diagrama<br />
Podemos iniciar este tópico com a definição da designer e escritora Ellen Lupton:<br />
Um diagrama é a representação gráfica de uma estrutura, situação ou<br />
processo. Os diagramas podem descrever a anatomia de uma criatura,<br />
a hierarquia de uma corporação ou um fluxo de idéias. Eles nos permitem<br />
enxergar relações que não viriam à tona numa lista convencional de números,<br />
nem numa descrição verbal” (Lupton, 2008, p.199).<br />
A citação de Lupton define bem o que é um diagrama. Casualmente o termo diagramação<br />
remete ao designer gráfico e aos menos entendidos pode parecer que o designer gráfico é o<br />
profissional que organiza o texto na página, porém o designer da linguagem vai muito além.<br />
Lupton diz que em um diagrama “Marcas gráficas e relações visuais adquirem significados<br />
específicos, codificados no diagrama para representar aumentos numéricos, tamanho relativo,<br />
mudança temporal, ligações estruturais e outras circunstâncias” (Lupton, 2008, p.199). Criar<br />
marcas gráficas e relações visuais são os recursos utilizados pelo designer da linguagem para<br />
expressar idéias, organização ou desorganização, sinestesias e sentimentos.<br />
Neste tópico a preocupação da análise é identificar as relações existentes entre texto<br />
e imagem e dos elementos gráficos dentro de um diagrama, é perceber na configuração dos<br />
espaços, a hierarquia, a função e das forças perceptivas, no ritmo, e nas marcas gráficas<br />
o valor agregado ao signo. Enfim compreender a configuração das linguagens em prol de<br />
identificar o trabalho do designer das linguagens. Vamos então, retomar a relação de texto<br />
e imagem por outro ponto de vista. A relação entre texto e imagem no espaço da página foi<br />
abordada por Lúcia Santaella e chamada de relação no plano de expressão:<br />
Ao contrário das relações entre texto e imagem até aqui discutidas, que se<br />
referem, em primeiro lugar, ao plano de conteúdo, Kibédi-Varga(1989: 39-42)<br />
sugere uma tipologia das relações entre a palavra e a imagem que se relaciona<br />
mais com a forma de expressão visual comum à linguagem (na forma escrita) e<br />
à imagem. Seus três tipos são: (1) Coexistência: palavra e escritura aparecerem<br />
numa moldura comum; a palavra está inscrita na imagem. (2) Interferência:<br />
a palavra escrita e a imagem estão separadas uma da outra espacialmente,<br />
mas aparecem na mesma página (por exemplo, em ilustrações de textos<br />
como comentários textuais). (3) Co-referência: palavra e imagem aparecem na<br />
mesma página, mas se referem ao mundo uma independente da outra. Como<br />
uma outra possibilidade da relação espacial entre texto e imagem, devemos<br />
acrescentar a esta tipologia o caso da auto-referencialidade, como ela é<br />
conhecida na poesia visual. Como exemplo, temos o poema de Robert Herrick<br />
sobre o altar, que é impresso tipograficamente em uma figura mostrando o<br />
esboço de um altar. (Santaella, 1997, p.56)<br />
No caso da ilustração de Fernando Vilela, texto e imagem estão em uma relação de<br />
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coexistência no plano de expressão, ou seja, o texto está sobrepondo o fundo da imagem,<br />
interferindo no espaço pictórico. A relação sugere que o texto está saltando ou inserido no<br />
universo representado na ilustração. A relação de texto e imagem transmuta-se em uma relação<br />
entre imagem e imagem, falo da relação da ilustração com os blocos de texto. Entramos nos<br />
domínios das formas representativas.<br />
Há um outro conceito que poderia corroborar nessa relação de texto e imagem no<br />
plano de expressão, me refiro ao texto lido como imagem que foi abordado por Will Eisner.<br />
Embora o autor fale sobre a narrativa nos quadrinhos o comentário é pertinente a ilustração:<br />
“O letreiramento, tratado “graficamente” e a serviço da história, funciona como extensão da<br />
imagem. Neste contexto, ele fornece o clima emocional, uma ponte narrativa, e a sugestão de<br />
som” (Eisner, 1999, p.10). Ainda nesta questão de empregar sonoridade a palavra impressa,<br />
Richard Hollis fornece algumas informações importantes:<br />
As palavras e imagens normalmente são utilizadas em conjunto; pode ser que<br />
um dos dois – texto ou imagem – predomine, ou que o significado de cada um<br />
seja determinado pelo outro. Alguns dos exemplos mais sofisticados de design<br />
gráfico recorrem à precisão das palavras para dar sentido exato a imagens<br />
ambíguas.<br />
A palavra, quando impressa, na forma de registro da fala, perde uma extensa<br />
variedade de expressões e inflexões. Os designers gráficos contemporâneos<br />
(especialmente seus precursores, os futuristas) têm tentado romper essa<br />
limitação. Ampliando ou reduzindo os tamanhos, os pesos e a posição das<br />
letras, seu tipografismo consegue dar voz ao texto. Instintivamente, existe<br />
um anseio não só de transmitir a mensagem, mas também de dar a ela uma<br />
expressão única. (Hollis, 2005,p.1)<br />
Na intenção de transpor para um suporte impresso a sonoridade, na diagramação<br />
da página do livro de Fernando Vilela há alternância da altura e inclinação na disposição das<br />
caixas de texto, que sugerem instabilidade, dão ritmo sonoro ao texto e sugerem passagem<br />
de tempo, impregnando o texto impresso com a mímica da linguagem falada. Esta mímica da<br />
visualidade evoca na imaginação do interpretante que sente a sinestesia dos sons e caracterizese<br />
na modalidade representação imitativa. Neste caso a representação imitativa evoca não<br />
apenas os tons da sonoridade no texto, mas, também se refere à visualidade do movimento<br />
do galope do cavalo que o herói está montado. A sinestesia do galope do cavalo, embora,<br />
sugerido em outros elementos na ilustração da pagina sete – que serão abordados mais<br />
especificamente no próximo tópico – pode ser melhor compreendida quando o leitor estiver<br />
seguindo a sequência do livro, uma vez que só podemos visualizar um pequeno pedaço do<br />
pescoço do cavalo no canto inferior direito da página. Assim podemos ver que é um efeito que<br />
depende do encadeamento das imagens. O leitor aqui poderá voltar e rever as figuras 5 e 6.<br />
Quando falamos de perceber o galope do cavalo na ilustração através dos indícios<br />
rítmicos sugeridos pelos elementos visuais, estamos falando das formas representativas, na<br />
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sub-modalidade cifra de relações existenciais onde “Fragmentos, recortes visuais de situações<br />
vividas são deslocados de seu contexto habitual para fazerem parte de uma nova sintaxe<br />
engendrada” (Santaella, 2009B, p.255). Assim podemos perceber que antes que estes<br />
fragmentos de memória visuais sejam ativados eles devem existir como referência, vivência<br />
armazenada e repertório na mente do interpretante para que ele relacione o galope do cavalo<br />
ao estímulo recebido pelo ritmo visual da ilustração. Assim, vemos que a ilustração comumente<br />
dependente da experiência humana armazenada para ser interpretada.<br />
O fato de perceber o movimento em si através da configuração das formas e objetos<br />
de uma ilustração está no domínio das formas não-representativas, assim percebemos que<br />
mesmo que o leitor esteja ciente do movimento do cavalo, envolvido pelo encadeamento das<br />
páginas, e já tenha percebido a relação dos elementos gráficos com este movimento, esta<br />
percepção só é acessada no momento que a distinção entre o real e a cópia desaparece.<br />
Esta característica existe na relação entre o movimento sugerido das formas abstratas e o<br />
momento de presentificação da imagem na imaginação do leitor. Santaella caracteriza este<br />
tipo de acontecimento entre as formas não-representativas, a qualidade como possibilidade.<br />
A tipografia exerce primeiramente uma questão de leitura, é serifada e preenche sua<br />
forma no branco do papel, sobre um fundo preto. É relevante colocar a citação de Donis A.<br />
Dondis sobre a relação de cores que aparece nas caixas de texto do livro de Vilela, “Elementos<br />
claros sobre fundo escuro parecem expandir-se, ao passo que elementos escuros sobre fundo<br />
claro parecem contrair-se (Dondis, 2007, p.49). Este tipo de relação presente na cor, está nas<br />
formas não representativas, e é caracterizada por Santaella como a qualidade materializada:<br />
É uma simples presença, presentidade ou qualidade de presença, anterior a<br />
qualquer representação ou referência, anterior até mesmo a qualquer relação<br />
de similaridade, pois a pura qualidade do vermelho, ou do amarelo, ou<br />
qualquer que seja a cor, não se assemelha a nada em particular ou definitivo,<br />
pelo simples fato de que pode se assemelhar a todas as coisas vermelhas ou<br />
amarelas do mundo (Santaella, 2009B, p.214).<br />
Neste tópico vimos o quão a relação de coexistência de texto e imagem contribuem na<br />
construção e na leitura do signo, mesclando o ritmo sonoro do texto e da imagem em uma<br />
sensação única, imantadas uma à outra elas tornam-se parte de um mesmo universo dentro<br />
da mente do leitor. Antes de nos precipitarmos em maiores conclusões vamos analisar melhor<br />
a ilustração.<br />
A imagem<br />
As hibridizações de linguagens que caracterizam os designers da linguagem, não se<br />
restringem apenas ao texto, como vimos no tópico sobre a mensagem. O estilo visual de<br />
Fernando Vilela como ilustrador provém de seu trabalho com matrizes móveis e independentes,<br />
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feitas de borracha plástica, que funcionam como carimbos. Seu estilo tem sido característico em<br />
diversos livros infantis ilustrados pelo autor, como Eros e Psiquê e Desafios de Cordel. No final<br />
do livro Lancelote e o Lampião há uma descrição sobre as referências de Vilela para compor as<br />
ilustrações de Lancelote, que envolvem desde iluminuras medievais, pinturas renascentistas,<br />
além de armas e armaduras de época. Para compor o personagem Lampião as referências<br />
foram a xilogravura popular, e as fotografias da época do cangaceiro, além de cenas de filmes<br />
brasileiros como Deus e o diabo na terra do sol (1963) de Glauber Rocha. Em relação às cores<br />
da ilustração, há duas cores especiais que separam, caracterizam, identificam e comunicam<br />
com cada uma das personagens. A cor prata para armadura e utensílios metálicos de Lancelote<br />
e a cor cobre para os anéis, espingarda e apetrechos de Lampião. Estas cores contrastam<br />
com o fundo escuro, comuns à quase todas as páginas do livro.<br />
É interessante começarmos a análise da ilustração pela marca qualitativa do gesto que<br />
a ilustração carrega. Esta marca diz respeito aos vestígios derivados do processo de produção<br />
desta imagem. Percebemos, que a ilustração possui elementos que foram carimbados diversas<br />
vezes na página deixando seus vestígios. Entretanto por ser um produto da era industrial não<br />
chegou a nós como uma gravura tradicional, a ilustração foi muito provavelmente escaneada<br />
e tratada no computador. Este processo é mais evidente quando nos deparamos com as<br />
cores da ilustração, temos o preto impresso, o branco da folha de papel preservado, e temos<br />
uma cor especial metálica. Os elementos de cor metálica provavelmente não estavam na<br />
mesma página dos outros elementos quando a gravura foi artesanalmente impressa, afinal a<br />
cor metálica foi uma característica do processo de impressão mecânico e a separação desta<br />
cor muito provavelmente foi feita no computador. Vemos por ai como o processo de trabalho<br />
do ilustrador hibridiza-se com ferramentas manuais e digitais. Quanto às cores especiais é<br />
interessante dizer que na área de agradecimentos do livro Fernando Vilela agradece a um<br />
colaborador – Sérgio Sister – pela pesquisa sobre cores especiais, o que nos mostra uma<br />
visão do processo de criação e de resolução de um projeto gráfico de livro.<br />
A personagem representada na ilustração, Lancelote, carrega em si a figura como<br />
esteriótipo. Esta modalidade é definida por Santaella como “uma imagem tópica extraída do<br />
conjunto de seus estereótipos mentais” (Santaella , 2009B, p.230). Este estereótipo foi retirado<br />
da imaginação do autor “Não é de uma mera impressão visual que o desenhista parte, mas de<br />
uma idéia ou conceito visualmente representável” (Santaella, 2009B, p.230). O conceito, ou,<br />
idéia que o artista expressou foi a sua visão da série de mitos recorrentes dos guerreiros da<br />
Távola redonda. A figura não tem a pretensão de representar o mundo real externo, possuindo<br />
uma lógica própria de representação criada pelo ilustrador para o universo desta ilustração.<br />
Quando falo de figura me refiro às formas figurativas da ilustração, o personagem, o cavalo,<br />
a lança, o elmo, a armadura de placas e a capa, repletas de grafismos medievais. Todos os<br />
objetos e características citadas dentro da linguagem de expressão e representação do artista<br />
formam o estereótipo. O estereótipo comunica através de símbolos gráficos que carrega em<br />
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si a síntese de informações e leis estabelecidas por convenções culturais, evocando assim um<br />
estereótipo reconhecível pelo interpretante.<br />
A figura como estereótipo é uma sub-modalidade das formas figurativas, sendo que,<br />
uma de suas características é que não existe figura sem um fundo. Pensando nisso, a primeira<br />
relação que encontramos entre a figura e o fundo é a relação de coexistência do texto e<br />
imagem evidenciada no outro tópico. O caso dessa coexistência pode ser explicada pela<br />
citação de Andrew Loomis:<br />
O espaço em branco fala mais na página do que o tom. Isto permite que o<br />
desenho da área em branco receba outros desenhos em uma unidade pictórica.<br />
Isto isola o material importante para que possa ser lido com facilidade (Loomis,<br />
1947, p.202)<br />
Na ilustração o espaço em branco – mencionado por Loomis – corresponde ao fundo<br />
preto, que formado de uma cor chapada, libera espaço para o texto e também puxa o foco de<br />
atenção para a figura, uma vez que o olhar é guiado pelos focos de maior complexidade de<br />
informação e pelos contrastes. Enquanto relação figura e fundo, o fundo funciona dentro das<br />
leis naturais das qualidades, ou seja, através das leis que configuram a percepção humana,<br />
o fundo tem o papel de facilitar a organização dos elementos envolvidos e criar uma unidade<br />
entre eles. A cor do fundo é uma qualidade materializada, uma vez que não se assemelha a<br />
nada, ou, assemelha-se à todas as coisas de cor preta do universo. Esta escolha em criar<br />
relações entre a figura, o fundo e o texto – assim como já foi comentado – está no âmbito do<br />
diagrama, nota-se ai que o ilustrador, neste caso, tem papel fundamental na concepção do<br />
diagrama.<br />
Ainda falando das leis naturais das qualidades, podemos incluir nesta relação o ponto<br />
focal e a posição do observador. Andrew Loomis nos adverte que “A posição do observador<br />
irá determinar muito do efeito dramático” (Loomis, 1947, p.179). Na página anterior do livro<br />
temos o herói visto em um plano geral (figura 5 e 6), na página que estamos analisando<br />
(Figura 3), o autor por conveniência dramática do encadeamento da narrativa aproxima a visão<br />
do observador para próximo do rosto do herói, o que faz com que o contato emocional da<br />
personagem para com o leitor aumente. Este objetivo de dramatização buscada pelo ilustrador<br />
pode ser caracterizada como o espírito por trás da imagem. “A imaginação é contagiosa, o<br />
humor é contagioso e o espírito por de trás da imagem é noventa por cento da imagem. Você<br />
deve estar alerta para o drama todo o tempo” (Loomis, 1947, p.200). Corroborando para<br />
as palavras de Loomis, temos a importância do ponto focal para a narrativa, que depende<br />
fundamentalmente da composição da cena, como vemos na fala de Rui de Oliveira:<br />
A finalidade da composição, além de obter o equilíbrio plástico da página, é<br />
favorecer a leitura e a apreensão da narrativa. Portanto, o ato de compor está<br />
vinculado diretamente ao ato de contar histórias visuais (Oliveira, 2008, p.60)<br />
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A composição depende não apenas dos elementos que inserimos na ilustração, mas,<br />
sobre tudo da relação em que os elementos exercem uns sobre os outros, ou seja, uma<br />
linha que guia a estrutura destes elementos direcionando o olhar e hierarquizando as formas.<br />
Acrescentando a citação de Rui de Oliveira, esta é uma estrutura fundamental na construção<br />
da narrativa:<br />
Somente com um olhar interessado percebemos que a linha estrutura a<br />
ilustração, por exemplo, o direcionamento do olhar – um recurso decisivo para<br />
se contar uma história, além de prender a atenção do leitor. Esse caminho visual<br />
conduz à leitura gráfica por meio de uma hierarquia de elementos descritivos<br />
e narrativos conscientemente organizados pelo artista (Oliveira, 2008, p.124).<br />
O ponto focal da ilustração de Vilela está localizado no elmo da personagem, uma vez<br />
que, por sua qualidade figurativa, o elmo exerce uma relação importante de semelhança e de<br />
identificação com o interpretante que toma o olhar do personagem como seu, e como ponto<br />
de equilíbrio dentro da lógica da ilustração. Virtualmente criamos uma linha do horizonte na<br />
altura do olhar do personagem para guiar nossa percepção daquele universo. O nosso olhar<br />
continua sendo guiado por outras forças perceptivas, como o movimento das placas metálicas<br />
da armadura se desprendendo juntamente com os blocos de texto. Na lança encontramos<br />
uma força ascendente que nos guia para fora da página, poética pura, lirismo mimético em<br />
relação à ascensão na invocação do herói pelo texto. Outro efeito que caracteriza o ponto<br />
focal no elmo é que esta é a área com o maior peso visual da ilustração, o branco, neste caso<br />
chama atenção por sua luminosidade em meio ao fundo escuro.<br />
Figura 6. Vilela (2006)<br />
O personagem, seu elmo, a lança e corpo brilham na cor branca que se expandem<br />
sobre o preto que predomina na página e só é quebrado pela cores metálicas. Todas as<br />
formas são preenchidas por cores chapadas e não há profundidade sugerida nas formas<br />
separadamente. Andrew Loomis refere-se a esta organização do espaço: “O senso do<br />
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ilustrador de organização do espaço é a primeira indicação de criatividade” (Loomis, 1947,<br />
p.30). Esta relação da imagem quase sem profundidade de campo, configura um caso de<br />
codificação qualitativa do espaço pictórico, descrita por Santaella:<br />
Quanto mais a superfície do quadro não permite “ver através”, mas se<br />
apresenta a si mesma como superfície à ser preenchida, quanto mais as formas,<br />
destacando-se sobre um fundo neutro, dispõe-se umas ao lado das outras<br />
ou em superposição, em um contexto imaterial, mas sem lacunas, no qual a<br />
alternância rítmica de cores, ou alternâncias rítmica de claro e escuro criam<br />
uma unidade intrínseca apenas colorística ou iluminística, mais a construção<br />
figurativa tende para uma codificação meramente qualitativa (Santaella, 2009B,<br />
p.243).<br />
As formas metálicas, e em alguns casos as formas em preto, são carimbadas diversas<br />
vezes em cima da figura, sobrepondo elementos e agregando uma idéia de profundidade e<br />
movimento no espaço, que se caracteriza como uma lei natural das qualidades, contribuindo<br />
para configuração do espaço e organização dos elementos envolvidos através das leis da<br />
percepção humana.<br />
O movimento das placas de metal da armadura e da capa de Lancelote, funcionam<br />
como uma qualidade como possibilidade, uma vez que se realiza apenas no instante em que<br />
nos perdemos na diferenciação entre o mundo real e o universo da ilustração. O movimento<br />
também é uma representação imitativa, uma vez que imita ritmo e a reação do movimento<br />
do galope do cavalo. Cria também, a sinestesia de placas de metal batendo umas sobre<br />
as outras, neste caso uma cifra de relações existenciais, uma vez que o interpretante só<br />
terá essa sensação sinestésica caso já tenha previamente registrado um determinado tipo<br />
de experiência. Além desta sinestesia de movimento, temos neste caso, da cifra de relação<br />
existências, uma sugestão onírica em que as placas estão se descolando do corpo do herói<br />
em um movimento constante, como se houvessem placas infinitas que se deslocassem para<br />
dar brilho ao herói, para envolver em uma aura mística, sendo que, estas colocações atingem<br />
maior ou menor grau de percepção do interpretante dependendo talvez, de aspectos pessoais<br />
e culturais.<br />
A singularização das convenções, o estilo, é a ultima modalidade das formas figurativas<br />
que vamos abordar aqui, esta modalidade diz respeito ao estilo do artista. A série de<br />
convenções pictóricas repetidas no trabalho do artista que, não são de forma alguma uma<br />
característica do estilo de época, mas sim, a marca do artista. No caso de Fernando Vilela<br />
seu estilo, sua marca é primeiramente relacionado ao modo de produção artesanal aliado à<br />
produção industrial que o permite uma configuração única em seu trabalho. Este híbrido entre<br />
tradicional e contemporâneo são as primeiras impressões em seu estilo, que continuam sendo<br />
construídas pela sua configuração do espaço pictórico, e suas formas repletas de movimento,<br />
sinestesias e evocativas de um universo de sonhos. Todas estas características de articulação<br />
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Um estudo sobre a linguagem da ilustração e o design gráfico<br />
da linguagem, híbrida, pessoais e inovadoras vão de encontro ao pensamento dos designers<br />
da Linguagem.<br />
Conclusão<br />
É evidente no trabalho de Fernando Vilela a relação do hibridismo de linguagens entre o<br />
projeto gráfico, ilustração e texto. As imagens mentais evocadas pelo texto unem se a ilustração<br />
compondo uma imersão imaginativa ao leitor. A linguagem do texto também caracteriza os<br />
personagens confirmando sua procedência e adicionando referência cultural. No diagrama,<br />
texto e imagem dividindo o espaço na página aproximam a linguagem verbal da linguagem<br />
visual. O movimento do texto cria ritmo de leitura criando marcas gráficas que impregnam a<br />
página de sonoridade. O estilo e o estereótipo da ilustração evocam imagens de um repertório<br />
cultural ocidental que dão forma aos estímulos textuais. Assim, vemos o como as linguagens<br />
são por si só híbridas. Vimos também que a escolha das cores especiais no projeto gráfico<br />
adicionou características de linguagem que valorizaram, distinguiram e enriqueceram os<br />
personagens. Assim, vemos que o designer gráfico não é apenas o profissional que cria uma<br />
hierarquia de leitura, mas que criar marcas gráficas que agregam significados à mensagem, são<br />
assim designers da linguagem e inseridos na realidade contemporânea, o ilustrador, também<br />
participa da produção dos designer da linguagem, um pensamento propulsor da inovação.<br />
Figura 7. Páginas vinte e vinte um. Vilela (2006)<br />
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Um estudo sobre a linguagem da ilustração e o design gráfico<br />
Referências<br />
Figura 8. Páginas trinta e trinta e um. Vilela (2006)<br />
Figura 9. Páginas trinta e oito e trinta e nove. Vilela (2006)<br />
Figura 10. Páginas quarenta e dois e quarenta e três. Vilela (2006)<br />
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Um estudo sobre a linguagem da ilustração e o design gráfico<br />
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ANALISANDO O MECOTipo<br />
Leonardo A. Costa Buggy; Me.: <strong>Universidade</strong> Federal de Pernambuco<br />
buggy@tiposdoacaso.com.br<br />
Resumo<br />
Este artigo apresenta o Método de Ensino de Desenho Coletivo<br />
de Caracteres Tipográficos, O MECOTipo, e discute alguns<br />
resultados obtidos com a sua implantação em duas circunstâncias<br />
distintas, uma delas ideal e outra desfavorável. A efetividade do<br />
método é avaliada a partir da análise de projetos de fontes digitais<br />
desenvolvidas entre os anos de 2009 e 2010 por alunos de<br />
cursos de graduação em design. A resultante dessas experiências<br />
e de outras, brevemente narradas no texto, indicam ajustes e<br />
incrementos que podem ser promovidos.<br />
Palavras-Chave: tipografia; desenho; fontes digitais e método<br />
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Analisando o MECOTipo<br />
O desenho de caracteres tipográficos e a coletividade<br />
A composição tipográfica de uma palavra é regulada por uma mecânica cuja dimensão<br />
é assegurada pelos espaços e corpos dos tipos de metal. Essa lógica se estende às linhas<br />
e colunas que caracterizam uma página de texto e relaciona-se com os elementos visíveis<br />
quando impressos.<br />
Nessa condição, o tamanho e a posição desses elementos podem ser especificados<br />
com precisão por meio de um sistema de medidas próprio dos tipos móveis (SMEIJERS,<br />
1996).<br />
A aplicação de tais princípios de funcionamento foi herdada pela tipografia digital,<br />
assegurando-lhe similar relação entre os grafismos dos caracteres e seus espaços.<br />
O enfoque do MECOTipo diz respeito unicamente ao desenho das formas tipográficas<br />
não contemplando sua articulação. As operações referentes ao preparo e geração de arquivos<br />
digitais necessários a instalação das fontes em sistemas operacionais não são compreendidas.<br />
Em outras palavras, a programação que dá ânimo ao sistema de medidas que combina letras,<br />
números e demais sinais usados pela escrita não é abordada.<br />
Todavia, os procedimentos contemplados pelo método consideram fortemente uma<br />
perspectiva humanizada do desenho que conjuga o pensamento de pelo menos três autores<br />
na sua essência.<br />
O primeiro deles, Freinet (1977), entende o desenho como produto de uma habilidade<br />
resultante do processo natural da tentativa experimental no qual o homem busca crescer,<br />
suplantar obstáculos, afirmar sua personalidade e se perpetuar. O segundo, Moreira (1987),<br />
ressalta-o simplesmente como linguagem; a primeira escrita do homem, que o permite lançarse<br />
à frente, projetar-se. Por fim, o último e mais pragmático afirma que: “O desenho é um<br />
processo de criação visual que tem propósito.” (WONG, 1998, p.41).<br />
Ao explorar recursos que incluem tanto os traços gestuais quanto a lógica modular na<br />
concepção de caracteres, o MECOTipo reúne aspectos emotivos e racionais do desenho para<br />
estimular os designers interessados na produção tipográfica contemporânea. Mais que isso,<br />
o método considera o desenho de caracteres tipográficos, ou de tipos, um projeto de design.<br />
Esse tipo de projeto é uma atividade complexa e precisa. É difícil alterar substancialmente<br />
a forma das letras sem prejudicar a sua legibilidade. De qualquer modo, no campo das formas<br />
estabelecidas existem muitas possibilidades de variações estruturais tais como: inclinação do<br />
eixo, serifa, peso, altura de x e contraste (CHENG, 2006).<br />
A amplitude dos dados encerrados nessa atividade assemelha-se a da construção de<br />
um sistema de identidade visual, sinalética ou mesmo embalagem. O desenho de caracteres<br />
tipográficos é tão laborioso quanto qualquer outro plano para resolução de questões imputadas<br />
ao design.<br />
Para entender esse preceito é preciso compreender o status quo de uma vertente do<br />
design em particular. O atual contexto cultural e tecnológico no qual se insere o design gráfico<br />
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Analisando o MECOTipo<br />
permite que um profissional experimente grande quantidade de idéias em um curto espaço<br />
de tempo. Muitas vezes é possível gerar diversas alternativas para a solução de um mesmo<br />
problema.<br />
Essa prerrogativa atua sobre a tipografia interferindo em dois níveis de compreensão<br />
que relacionam-se entre si: a micro-tipografia, que abrange o desenho das letras e os detalhes<br />
de sua conformação, e a macro-tipografia, que abrange a composição de palavras, linhas,<br />
colunas e páginas, justificação, tamanhos, hierarquia de conteúdos, etc. (HEITLINGER, 2006;<br />
WILLBERG; FORSSMAN, 2007).<br />
Assim, numa realidade povoada de opções infindáveis para escolha e uso de uma<br />
fonte, o desafio do designer passa a ser eliminar as piores soluções e achar a mais adequada<br />
sem, contudo, perder-se nas diferentes possibilidades (STOLTZE, 1997).<br />
Muitos editores de grandes publicações buscam diferenciar seus produtos, dentre<br />
outros aspectos, pelo desenho tipográfico. Hendel (2003) chega a afirmar que o tipo da letra<br />
tem tanta influência sobre outras partes da página que, enquanto não definido, interrompe o<br />
fluxo do projeto. Desse modo, a construção de uma fonte digital pode ser interpretada como<br />
um projeto de design que muitas vezes antecede o desenvolvimento de outros, mas que em<br />
nada difere em valor ou grau de complexidade.<br />
Curioso é observar que a multidisciplinaridade e a ação conjunta são prerrogativas<br />
para a atuação de várias equipes de desenvolvimento dentro das empresas de design.<br />
Powell (1998) trata da atividade do design executada de forma coletiva, definindo pelo menos<br />
dois papéis: gerente de design e demais membros de uma equipe. O autor ainda trata de<br />
motivação e adequação de tarefas ao perfil de cada sujeito, discorrendo sobre capacidades<br />
e realizações de grupos de produção nas páginas do seu artigo ‘A organização da gestão de<br />
design’ publicado no <strong>Design</strong> Management Journal durante o final dos anos 1990.<br />
Projetar coletivamente é uma ação comum a prática profissional contemporânea do<br />
design. Ainda assim, sua adoção contraria boa parte do que se tem escrito sobre metodologia<br />
de desenho tipográfico. Fugir do individualismo, discutir abertamente problemas e trabalhar em<br />
comum com outrem no mesmo projeto é uma proposta que permitiu-se ser lançada a conta<br />
de um novo estado de ânimo da tipografia, sobretudo verificado no âmbito nacional. “Assim<br />
como muitas outras áreas do saber, a tipografia, nas últimas décadas parece atravessar um<br />
momento de revisão de valores e redefinição de territórios.” (FARIAS, 2000, p. 13).<br />
Frente a tal ajustamento coloca-se o MECOTipo, uma alternativa metodológica que<br />
não pretende ser única ou mesmo tomada como modelo absoluto. Lembrando o caráter<br />
introdutório de sua obra e revelando sua intenção, Buggy (2007, p. 12) esclarece: “Esse método<br />
pretende apontar um caminho, com algumas possibilidades, e informar o mínimo necessário<br />
para percorrê-lo.”. Do mesmo modo, outros autores também apontam seus caminhos.<br />
Sobre o grau de acerto desses métodos de desenho de caracteres, Cheng (2006) chama<br />
atenção para o fato de não existir um único processo correto para criar fontes. Mas, ao passo<br />
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Analisando o MECOTipo<br />
que reconhece a eficácia e a diversidade das metodologias, a professora da <strong>Universidade</strong> de<br />
Washington também as revela como individuais, únicas e cambiantes em função dos projetos.<br />
Mesmo que contraditórias, as diversas perspectivas do desenho tipográfico são sentidas<br />
como certas por seus proponentes. Todas são igualmente válidas, atestadas pelo sucesso<br />
profissional de cada designer. Essas vozes, recorrentemente conflitantes, são testemunhas<br />
de um simples fato: grande parte dos tipógrafos assimila o processo de desenhar tipos como<br />
uma atividade profundamente pessoal e subjetiva, ainda que nem todos concordem com isso<br />
(EARLS, 2002).<br />
O MECOTipo toma parte nesta recusa e nega a imposição da individualidade e da<br />
subjetividade como recursos únicos do desenho de caracteres. A eles, somam- se coletividade<br />
e objetividade para enriquecer e facilitar o processo de aprendizado.<br />
O MECOTipo<br />
Considerações de ordem pedagógica e técnica estão envolvidas na concepção do<br />
MECOTipo criando condições para a sua reprodução (BUGGY, 2007). Estas considerações<br />
fundamentam os postulados do método, os quais organizam-se em: parâmetros teóricos/<br />
metodológicos e parâmetros práticos.<br />
Os parâmetros teóricos/metodológicos preocupam-se em assegurar as condições<br />
adequadas para a implementação dos parâmetros práticos que sugerem uma seqüência<br />
de experimentos, ou exercícios específicos, na qual à medida em que a complexidade dos<br />
desafios propostos aumenta, os designers em formação envolvidos são levados a produzir<br />
coletivamente.<br />
Para que tais parâmetros funcionem em conjunto há um programa de aulas que<br />
coordena a aquisição do conteúdo teórico e técnico com a seqüência de experimentos. Esse<br />
programa pode ser ajustado, sem perder suas características, adaptando-se aos participantes<br />
e às mudanças ocorridas durante o desenrolar das aulas.<br />
O MECOTipo também possui um sistema de avaliação próprio desenvolvido a partir da<br />
formulação dos postulados que compõem os parâmetros práticos para analisar os resultados<br />
obtidos a partir da sua execução. Projetado para avaliar desenhos de caracteres de fontes<br />
display, esse sistema resulta em afirmações lingüísticas compreensíveis que valorizam e<br />
orientam os designers em formação.<br />
Todo o conteúdo teórico dedicado ao desenho de tipos necessário a uma boa evolução<br />
durante a vivência dos experimentos ainda está contemplado pelo método. Trata-se de um<br />
compêndio a respeito da constituição e percepção das formas de caracteres tipográficos.<br />
Dado a complexidade do sistema de avaliação e o volume do compêndio ambos não<br />
serão apresentados neste trabalho. Apenas o reflexo de suas configurações comporá, mais<br />
a frente, a análise dos resultados apresentados pelo emprego do método e as propostas de<br />
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Analisando o MECOTipo<br />
revisão do mesmo. Caberá a seguir, tão somente, uma descrição paramétrica do MECOTipo.<br />
São quatro os postulados que constituem os parâmetros teóricos/metodológicos<br />
propostos pelo autor do Método de Ensino de Desenho Coletivo de Caracteres Tipográficos.<br />
Postulado 1: Contexto e participação do professor.<br />
Próprio de uma atividade educacional, recomenda-se que tal método seja<br />
implementado em sala de aula em condições habituais do sistema de ensino<br />
superior em design, com carga horária mínima de 48 horas e ideal de 60 horas.<br />
A observação do contexto natural auxilia no entendimento da realidade dos<br />
designers em formação e no seu desenvolvimento pessoal e coletivo. Esse tipo<br />
de observação em grupo, mediada pelo professor, permite avaliar o processo<br />
produtivo por meio de instrumentos educacionais. [...]<br />
Postulado 2: Utilização do compêndio e outros artefatos.<br />
A utilização do compêndio gerado por Buggy auxilia na aquisição de<br />
conhecimento teórico e técnico necessário à atividade do desenho tipográfico.<br />
Esse instrumento de apoio didático se faz necessário visto que reúne um<br />
conjunto de informações que fornecem subsídios para a realização dos<br />
experimentos propostos pelo método. Todavia, conhecimentos introdutórios<br />
ao universo tipo-gráfico, tais como história e ‘anatomia’ são essenciais para a<br />
compreensão da estrutura dos caracteres, arquétipo e suas relações formais,<br />
de maneira que possam caracterizar a idéia de conjunto tipográfico para a<br />
configuração de uma fonte digital.<br />
Outros artefatos podem ser utilizados como apoio ou em substituição ao<br />
compêndio, desde que a integridade de seu conteúdo seja preservada. [...]<br />
Postulado 3: Auto-avaliação do professor.<br />
Para uma compreensão regulatória de todo processo produtivo de desenho<br />
de caracteres tipográficos é recomendado que o professor desenvolva os<br />
exercícios propostos nos parâmetros práticos, para que possa experimentar<br />
todas as fases do método. Esta etapa, considerada de auto-avaliação do<br />
professor, o torna apto para todos os níveis de complexidade inerentes ao<br />
desenho de caracteres tipográficos. [...]<br />
Postulado 4: Avaliação dos designers em formação.<br />
Todos os procedimentos devem contar com a colaboração ativa dos designers<br />
em formação, sempre que possível, e estar subordinados a produção e<br />
participação dos mesmos em sala de aula.<br />
A produção deve concentrar-se no alcance dos objetivos propostos pelos<br />
postulados que constituem os parâmetros práticos do MECOTipo. O alcance<br />
de tais objetivos deve levar em conta aspectos pré-determinados a serem<br />
analisados, bem como seus respectivos critérios. Cada critério implica em uma<br />
pergunta que pode ser respondida através de uma afirmativa ou uma negativa.<br />
Uma afirmativa obtida implica em um peso próprio que terá uma expressão<br />
numérica refletida para cada objetivo. Esta expressão posicionará um objetivo<br />
em uma escala de pontos constituída por faixas de valores associadas a<br />
conceitos que reunidos expressarão a avaliação de cada exercício.<br />
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A participação deve ser verificada através da consulta ao diário de classe que<br />
deve refletir o monitoramento diário das atividades e da lista de freqüência.<br />
(BUGGY, 2007, p. 19-21).<br />
Os parâmetros práticos do MECOTipo também são formados por quatro postulados.<br />
Cada um deles diz respeito a um exercício a ser realizado individualmente ou de forma coletiva.<br />
Postulado 1: O desenho individual de um ‘a’ numa folha de papel A4.<br />
Os designers em formação devem desenhar a mão livre uma letra ‘a’ caixabaixa<br />
em uma folha de A4. Papel, lápis grafite, borracha e canetas hidrográficas<br />
de várias espessuras de ponta devem ser distribuídos em quantidade suficiente<br />
para todos. Nenhuma restrição de tempo, forma, tamanho ou de qualquer<br />
outra natureza deve ser apresentada para execução deste desenho.<br />
Após a conclusão, cada trabalho deve ser identificado com o nome de seu<br />
autor. [...]<br />
Postulado 2: O desenho individual de letras caixas-baixas, letras caixas-altas<br />
e de números através de módulos pré-determinados.<br />
Neste experimento se faz necessário que os designers em formação desenhem<br />
individualmente 62 caracteres para uma mesma fonte display. Números, letras<br />
caixas-altas e caixas-baixas devem resultar da composição de até 3 módulos<br />
distintos atrelada a uma malha de construção formada por um conjunto de<br />
retas perpendiculares.<br />
Esses módulos são projetados sob a orientação do professor para combinar-se<br />
de modo a solucionar a caracterização de traços retos, curvos e em diagonal<br />
dos caracteres. Por sua vez, a malha de construção deve conter um sistema<br />
de linhas guia capaz de alinhar os caracteres, fornecendo-lhes, ao mesmo<br />
tempo, proporções semelhantes para ascendentes, descendentes, altura de<br />
‘x’ e altura das caixas-altas.<br />
O MECOTipo adota um sistema de derivação de arquétipos tipográficos que<br />
considera caracteres-chave a partir dos quais outros se originam para orientar<br />
a produção dos desenhos solicitados.<br />
O desenho individual de letras caixas-baixas, letras caixas-altas e de números<br />
através de módulos pré-determinados pelos designers em formação pode ser<br />
realizado manualmente com o auxílio de réguas e dos mesmos instrumentos<br />
de desenho utilizados durante o primeiro experimento. Contudo, recomendase<br />
o uso de computadores equipados com softwares para manipulação de<br />
vetores e digitalização de imagem. [...]<br />
Postulado 3: O desenho coletivo de ‘n’, ‘o’, ‘H’ e ‘O’ caracteres de uma fonte<br />
de acordo com um tema predefinido.<br />
Para o terceiro experimento os designers em formação devem ser arranjados<br />
em grupos de até 5 indivíduos. Cada grupo terá que definir um tema capaz<br />
de fornecer aspectos que influenciem o estabelecimento de valores para peso<br />
de hastes, largura de letras retangulares, largura de letras redondas, altura de<br />
caixa-alta e altura de caixa-baixa. Essa influência também deve estender-se<br />
à configuração das junções de curvas com retas e acabamento de hastes<br />
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Analisando o MECOTipo<br />
verticais para o desenho de 4 caracteres específicos, ‘n’, ‘o’, ‘H’ e ‘O’.<br />
Os temas que fornecerão os aspectos a serem explorados no desenho dos<br />
caracteres devem ser obtidos da seguinte forma: os designers em formação<br />
são convidados a enumerar, individualmente, 10 temas de interesse pessoal<br />
em uma folha de papel. Uma vez concluídas essas listas, os grupos devem ser<br />
reunidos para que seus membros possam confrontar suas sugestões, buscando<br />
recorrências e/ou semelhanças até a obtenção de listas menores compostas<br />
por 5 temas de interesse comum. Cada grupo terá uma lista através da qual<br />
elegerá um único tema a ser trabalhado. Os grupos promoverão ‘recortes’ de<br />
seus temas e redigirão breves textos descritivos, que irão permitir o destaque<br />
dos aspectos mais relevantes da visão particular desses designers a respeito<br />
dos temas escolhidos.<br />
Do mesmo modo que no segundo experimento, uma malha de construção<br />
deve ser utilizada para auxiliar na manutenção da largura e espessura de hastes<br />
dos caracteres e determinar o posicionamento da linha de topo, linha média,<br />
linha de base, linha de fundo e, quando desejado, linha de versal. Neste caso,<br />
é sugerido para todos uma malha única constituída a partir da segmentação<br />
em 72 unidades do quadratim.<br />
A execução manual dessas atividades é desaconselhada, sob pena de prejuízo<br />
ao programa de aula originalmente adotado pelo MECOTipo. [...]<br />
Postulado 4: O desenho coletivo de 100 caracteres de uma fonte de acordo<br />
com um tema predefinido.<br />
O último experimento consiste numa expansão do terceiro experimento<br />
realizada com o apoio do sistema de derivação de arquétipos tipográficos<br />
utilizado durante o segundo experimento.<br />
Novos grupos devem ser formados para que desenhem conjuntos de 100<br />
caracteres através de novos temas. O processo de obtenção desses temas,<br />
caracterização dos atributos de correlação e adoção da malha de construção<br />
do quadratim é o mesmo do terceiro exercício e os caracteres ‘n’, ‘o’, ‘H’ e ‘O’<br />
devem ser produzidos inicialmente seguidos por ‘p’, ‘h’, ‘a’. ‘e’, ‘c’, ‘j’, ‘v’ e ‘k’,<br />
nesta seqüência.<br />
O desenho de sinais de pontuação, acentos e outros tipos de caracteres<br />
presentes no conjunto solicitado deve ser realizado mediante a observação de<br />
similares encontrados em fontes já publicadas por autores consagrados.<br />
Do mesmo modo que no terceiro experimento, a execução manual dessas<br />
atividades é desaconselhada. (BUGGY, 2007, p. 30-42).<br />
Em função de sua natureza, esses postulados ainda enumeram e descrevem objetivos<br />
para melhor formular os desafios propostos pelo método. O quadro a seguir esclarece essa<br />
relação:<br />
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Analisando o MECOTipo<br />
Postulados Objetivos<br />
O desenho individual de um ‘a’<br />
numa folha de papel A4.<br />
O desenho individual de letras<br />
caixas-baixas, letras caixas-altas<br />
e de números através de módulos<br />
pré-determinados.<br />
O desenho coletivo de ‘n’, ‘o’, ‘H’<br />
e ‘O’ caracteres de uma fonte de<br />
acordo com um tema predefinido.<br />
O desenho coletivo de 100<br />
caracteres de uma fonte de acordo<br />
com um tema predefinido.<br />
• Estabelecer um contato inicial com o desenho de caracteres<br />
sob um ponto de vista prático;<br />
• Explorar o potencial da força de trabalho;<br />
• Gerar uma primeira reflexão acerca do desenho de caracteres.<br />
• Estabelecer um segundo contato, mais intenso e complexo,<br />
com o desenho de caracteres sob um ponto de vista prático;<br />
• Verificar a produtividade frente ao desafio proposto;<br />
• Proporcionar a compreensão das possibilidades das relações<br />
de semelhança e diferença entre os desenhos dos caracteres de<br />
uma fonte, em especial as letras;<br />
• Exercitar a geração de soluções para traços retos, curvos e<br />
em diagonal;<br />
• Proporcionar a compreensão da proporção do peso das hastes<br />
dos caracteres de uma fonte.<br />
• Desenvolver coletivamente um tema capaz de fornecer<br />
aspectos que orientem a composição das características do<br />
desenho de uma fonte;<br />
• Desenhar coletivamente ‘n’, ‘o’, ‘H’ e ‘O’ a partir do tema<br />
gerado;<br />
• Explorar a equalização visual da espessura dos traços dos<br />
caracteres desenhados;<br />
• Explorar a uniformização do desenho das extremidades dos<br />
traços dos caracteres;<br />
• Explorar a uniformização das proporções entre altura e largura<br />
dos caracteres.<br />
• Desenvolver coletivamente um tema capaz de fornecer<br />
aspectos que orientem a composição das características do<br />
desenho de uma fonte;<br />
• Desenhar coletivamente um conjunto de 100 caracteres a<br />
partir do tema gerado;<br />
• Explorar a equalização visual da espessura dos traços dos<br />
caracteres desenhados;<br />
• Explorar a uniformização do desenho das extremidades dos<br />
traços dos caracteres (serifas, esporas, terminais, incisões, etc.);<br />
• Explorar a uniformização das proporções entre altura e largura<br />
dos caracteres;<br />
• Explorar a uniformização da largura dos espaços internos e<br />
intervalos dos caracteres.<br />
Quadro 1: Postulados que definem os parâmetros práticos do MECOTipo e seus respectivos objetivos.<br />
Cabe destacar que para cada um dos objetivos acima listados o método aponta<br />
aspectos que devem ser verificados para aferir seu alcance. Do mesmo modo, cada aspecto<br />
está ligado a critérios de avaliação específicos.<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 94
Analisando o MECOTipo<br />
Alguns resultados<br />
Dois conjuntos de desenhos para fontes obtidos pelo Prof. Me. Leonardo A. Costa<br />
Buggy entre 2009 e 2010 através da execução do MECOTipo serão apresentados e discutidos.<br />
O primeiro conjunto é resultado da disciplina Tipografia 2 ministrada aos alunos do Curso<br />
de Graduação em <strong>Design</strong> Gráfico da Faculdades Integradas Barros Melo durante o primeiro<br />
semestre de 2009. Essa introdução ao desenho tipográfico realizou-se em 38 horas/aula<br />
regularmente integralizadas na matriz curricular do citado curso.<br />
O segundo conjunto também é formado pelos últimos trabalhos apresentados na<br />
disciplina Desenho Tipográfico ministrada aos alunos de graduação do Curso de <strong>Design</strong> do<br />
Centro Acadêmico do Agreste da UFPE durante o primeiro semestre de 2010. Diferente do que<br />
ocorreu na primeira circunstância, a segunda contou com 60 horas, condição ideal prevista<br />
para a reprodução do programa de aulas do método.<br />
Desse modo, é importante destacar que o primeiro postulado dos parâmetros teóricos/<br />
metodológicos foi infringido na disciplina Tipografia 2.<br />
Próprio de uma atividade educacional, recomenda-se que tal método seja<br />
implementado em sala de aula em condições habituais do sistema de ensino<br />
superior em design, com carga horária mínima de 48 horas e ideal de 60 horas.<br />
(BUGGY, 2007, p. 19).<br />
Não houve como fugir da imposição da carga horária definida pela estrutura do<br />
curso da instituição particular de ensino e o déficit de 10 horas/aula foi compensado com<br />
acompanhamento online via e-mails e orientações informais.<br />
De toda sorte, o método adequou-se àquela realidade adversa. Os exercícios aplicados<br />
em separado no ano de 2007 atestaram valer a pena investir na experiência transgressora.<br />
A despeito das diferenças entre as condições de convivência e tempo verificadas em<br />
cada instrução, seus resultados serão apresentados neste artigo conforme entregues por seus<br />
autores.<br />
Todos os conjuntos de desenhos serão tratados daqui por diante como fontes e<br />
identificados através de um número que sucederá uma sigla usada para identificar a instituição<br />
na qual o trabalho foi desenvolvido. A ordem numérica adotada expressa um juízo qualitativo.<br />
Ela relaciona as fontes de forma decrescente quanto a obtenção de conceitos positivos<br />
segundo o sistema de avaliação proposto pelo método.<br />
Trabalhos que atingiram o mesmo conceito serão identificados com o mesmo número,<br />
diferenciando-se apenas pela adição de letras ao final de suas nomenclaturas. Ao contrário<br />
dos números, a atribuição dessas letras é aleatória e não expressa qualquer valor.<br />
A sigla FIBAM será adotada para designar os trabalhos realizados na Faculdades<br />
Integradas Barros Melo e a UFPE para os realizados na <strong>Universidade</strong> federal de Pernambuco.<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Analisando o MECOTipo<br />
identificação Fonte<br />
FIBAM 01<br />
FIBAM 02<br />
FIBAM 03<br />
FIBAM 04a<br />
FIBAM 04b<br />
Quadro 2: Fontes desenvolvidas na Faculdades Integradas Barros Melo.<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Analisando o MECOTipo<br />
identificação Fonte<br />
UFPE 01a<br />
UFPE 01b<br />
UFPE 02<br />
Quadro 3: Fontes desenvolvidas na <strong>Universidade</strong> Federal de Pernambuco.<br />
Breves comentários sobre os resultados apresentados<br />
A Fonte FIBAM 04b foi projetada por um grupo de 03 (três) indivíduos, as demais fontes<br />
do primeiro conjunto, desenvolvido na Faculdades Integradas Barros Melo, foram projetadas<br />
por grupos que utilizaram 05 (cinco) participantes, o limite sugerido pelo MECOTipo.<br />
Acredita-se que esta diferença tenha afetado significativamente o projeto dessa fonte,<br />
sobretudo pela condição adversa de tempo em que se deram as aulas do método.<br />
Mesmo sob essas condições pôde-se observar a produção da Fonte FIBAM 01, um<br />
projeto que atingiu conceito máximo.<br />
Alertados sobre o nível de dificuldade do projeto pretendido, o grupo responsável pela<br />
Fonte FIBAM 02 assumiu os riscos e decidiu levar a cabo seus caracteres sem serifa com<br />
contraste de eixo inclinado. Apesar de inconstante, o resultado lhes garantiu a segunda melhor<br />
avaliação na turma.<br />
A maior parte dos problemas da Fonte FIBAM 03 concentrou-se na não observação da<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Analisando o MECOTipo<br />
descendência das formas dos caracteres.<br />
Os problemas da Fonte FIBAM 04a associaram-se em grande parte ao não uso de<br />
traços diagonais no projeto.<br />
Tanto a Fonte FIBAM 03 quanto a Fonte FIBAM 04a utilizaram fortemente o processo<br />
modular proposto no Postulado 2 dos parâmetros práticos do MECOTipo, fugindo do cerne do<br />
Postulado 4. Todavia, esta adoção desvirtuou o projeto da Fonte FIBAM 04a. O abandono de<br />
curvas e diagonais imposto pelos módulos usados interferiu profundamente nos arquétipos de<br />
letras como ‘D’, ‘O’, ‘G’, ‘B’, ‘A’, ‘M’, N’ e ‘X’, só para citar algumas maiúsculas. A construção<br />
dos caracteres também prendeu-se com rigor as possíveis combinações de módulos sugerida<br />
pela derivação de formas indicada pelo método para o desenho individual de letras caixasbaixas,<br />
letras caixas-altas e de números através de módulos pré-determinados.<br />
Além de apresentar sérios problemas de compatibilização de largura entre os caracteres,<br />
aspecto também verificado em menor intensidade na Fonte FIBAM 03, a Fonte FIBAM 04b<br />
apresentou uma grande distorção de peso entre os traços de caixas altas e baixas acentuada<br />
pela proporção mal planejada entre as dimensões dos dois alfabetos. As junções de curvas<br />
com retas também mostraram-se deficientes de modo evidente nesta última fonte.<br />
Ao contrário do que ocorreu na experiência realizada em 2009 o menor grupo constituído<br />
para o trabalho final da disciplina Desenho Tipográfico realizou o melhor trabalho dentre<br />
todos os apresentados em 2010. A Fonte UFPE 01a foi projetada por um grupo de 02 (dois)<br />
indivíduos. Originalmente composto por 05 (cinco) alunos o grupo sofreu com a desistência<br />
de 03 (três) membros na reta final do semestre letivo. Mesmo assim, conseguiu desenvolver<br />
um bom projeto.<br />
A carga horária máxima de aulas prevista pelo MECOTipo pode ter suprido a deficiência<br />
desse grupo, que pôde ser acompanhado presencialmente pelo docente mais do que o grupo<br />
desfalcado de 2009.<br />
A Fonte UFPE 01b apresentou mais problemas na constância do peso de seus<br />
caracteres e combinações de curvas com retas. Não se pode deixar de observar a acentuada<br />
falta de harmonia na definição das larguras dos caracteres caixas altas desse projeto.<br />
Deficiências na constância do peso e combinações de curvas com retas também foram<br />
observadas na Fonte UFPE 02. Neste projeto elas mostraram-se bastante acentuadas.<br />
O projeto de muitas das fontes apresentadas revelou fugas dos arquétipos de diversos<br />
caracteres. As condições mais recorrentes foram: a completa substituição de arquétipos de<br />
letras maiúsculas por arquétipos de minúsculas para definição das formas dos desenhos; a<br />
adoção de arquétipo de letras manuscritas; a deformação de arquétipos circulares aproximandoos<br />
de retângulos; o não uso de diagonais e o estreitamento de formas.<br />
Esse último efeito, em particular, pode ser claramente evitado com o apuro do conteúdo<br />
a respeito de proporções dos caracteres. Os demais estão relacionados a decisões de projeto<br />
e/ou equívocos cometidos pelos participantes dos grupos que não se relacionam a deficiências<br />
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Analisando o MECOTipo<br />
no conteúdo transmitido.<br />
As relações horizontais entre os arquétipos podem ser melhor explicitadas no compêndio<br />
e durante as aulas do método. Desse modo, novos aspectos podem ser incorporados para<br />
aferir o alcance do sexto objetivo do quarto postulado prático do MECOTipo (explorar a<br />
uniformização da largura dos espaços internos e intervalos dos caracteres). Atualmente apenas<br />
o equilíbrio entre os espaços internos e externos dos caracteres desenhados é considerado. É<br />
possível adotar-se também dois aspectos sugeridos por Cabarga (2004). Consistência, ritmo<br />
e regularidade na disposição das hastes é um deles e o equilíbrio e consistência entre a<br />
largura das letras outro. O primeiro associa-se mais indiretamente ao objetivo, o segundo está<br />
intimamente ligado a ele.<br />
De modo geral, as fontes em análise foram assim avaliadas:<br />
Projeto Conceito geral de avaliação obtido<br />
Fonte FIBAM 01 Superou o objetivo<br />
Fonte FIBAM 02 Alcançou o objetivo<br />
Fonte FIBAM 03 Alcançou com ressalvas o objetivo<br />
Fonte FIBAM 04a Não alcançou o objetivo<br />
Fonte FIBAM 04b Não alcançou o objetivo<br />
Fonte UFPE 01a Alcançou o objetivo<br />
Fonte UFPE 01b Alcançou o objetivo<br />
Fonte UFPE 02 Alcançou com ressalvas o objetivo<br />
Quadro 4: Avaliação das fontes analisadas.<br />
Os conceitos gerais de avaliação uniformizam o desempenho no alcance dos objetivos<br />
propostos pelos experimentos do MECOTipo, reunindo-os em um só objetivo que pode ser<br />
superado, alcançado, alcançado com ressalvas ou não alcançado (BUGGY, 2007). Assim,<br />
dos 08 (oito) projetos avaliados, 01 (um) superou o objetivo do quarto experimento, 03 (três)<br />
alcançaram o objetivo, 02 (dois) alcançaram com ressalvas o objetivo e outros 02 (dois) não<br />
alcançaram o objetivo.<br />
Em condições ideais de execução do método 66,666% dos trabalhos finais apresentados<br />
obtiveram êxito. Os 33,333% restantes o fizeram com ressalvas.<br />
Já em condições adversas, ainda que 20% tenham mostrado resultados que superaram<br />
as expectativas, apenas 40% obtiveram êxito livre de ressalvas ao desenhar coletivamente 100<br />
caracteres de uma fonte de acordo com um tema predefinido. Outros 20% dos trabalhos finais<br />
apresentados com a implantação de um programa de aulas com 38 horas obtiveram êxito<br />
parcial.<br />
Independente da carga horária de aulas ministradas e do modo como as fontes<br />
desenhadas atingiram seu objetivo, o MECOTipo revelou um índice de 75% de sucesso<br />
quando observado o desempenho dos trabalhos finais realizados nos primeiros semestres de<br />
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Analisando o MECOTipo<br />
2009 e 2010 em diferentes instituições de ensino superior de design.<br />
Considerações finais<br />
O MECOTipo é produto de um ciclo de dez anos de pesquisa, iniciado em 1996 e<br />
concluído em 2006, no programa de mestrado em design da UFPE. Ao longo deste trajeto<br />
excelentes resultados foram computados pelo método. Desde 2003 a sua competência vem<br />
sendo atestada de forma científica. Os primeiros testes realizados para a dissertação do Prof.<br />
Me. Leonardo A. Costa Buggy confirmaram a eficácia do método. O caráter coletivo inovador<br />
desse conjunto de meios para desenhar fontes tipográficas é responsável em grande parte<br />
por seu sucesso.<br />
Após três anos de implantação da atual configuração do Método de Ensino de<br />
Desenho Coletivo de Caracteres Tipográficos mostra-se adequado revisar tanto o conteúdo<br />
do compêndio utilizado em sala, como seus parâmetros práticos. Essa revisão deve-se na<br />
medida em que os estudos para o incremento e melhoria do método não foram cessados e<br />
têm revelado boas perspectivas para o ensino tipográfico.<br />
Experiências realizadas em duas circunstâncias correlatas às que produziram os<br />
resultados apresentados e discutidos neste artigo sugerem que ampliar a quantidade de<br />
exercícios pode ser uma boa opção para dar início a essa revisão.<br />
Durante o segundo semestre de 2008 o pesquisador ministrou 38 horas/aula de<br />
macro-tipografia e história a alunos do Curso de Graduação em <strong>Design</strong> Gráfico da Faculdades<br />
Integradas Barros Melo. Na ocasião foram adotados jogos de desafio para promover a fixação<br />
do conteúdo teórico exposto sobre aspectos da micro-tipografia relevantes a macro-tipografia,<br />
tais como: contraste, dimensão do olho e estilos.<br />
Um ano mais tarde, no segundo semestre de 2009, o mesmo ocorreu durante 60<br />
horas/aula sobre o mesmo assunto ministradas a alunos de graduação do Curso de <strong>Design</strong><br />
do Centro Acadêmico do Agreste da UFPE.<br />
Os resultados obtidos foram promissores na medida em que a seleção de atividades<br />
conquistou grande simpatia do alunado e de fato contribuiu para a apreensão dos conteúdos.<br />
Assim, preservar os exercícios já propostos e incluir mais atividades de menor complexidade<br />
e caráter lúdico deve trazer um significativo incremento ao MECOTipo.<br />
Uma certa inconstância pode ser observada ao analisar-se os produtos finais de cada<br />
oportunidade de execução do método apresentada neste trabalho. A aptidão dos designers<br />
em formação é um fator que a princípio diferencia os desenhos de caracteres tipográficos.<br />
Pode-se reconhecer isso após apreciar o desenvolvimento de certos grupos de alunos ao<br />
longo do período em que foram ministradas as aulas em questão.<br />
As diferenças observadas entre os resultados obtidos por alunos mais desenvoltos<br />
e talentosos e outros menos podem ser minimizadas mediante a exploração do sentimento<br />
verificado durante a implantação do segundo parâmetro prático. A alegria desencadeada pelo<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Analisando o MECOTipo<br />
desafio de compor letras e números com módulos orientados por uma malha é semelhante<br />
a observada durante um jogo de tabuleiro. Logo, acredita-se que divertimentos nos quais<br />
os alunos façam prova da sua habilidade devem contribuir para a efetividade do método<br />
otimizando e equalizando seus resultados.<br />
Pequenos jogos de desafio pessoal que disponham de recursos estimulantes e<br />
recreativos podem ser incorporados ajudando a fixar conceitos como contraste, tamanho<br />
do corpo, altura de x e peso. O entendimento desses conceitos permite uma maior fixação<br />
de outros como fonte, estilo e família tipográfica, o que assegura uma melhor atuação dos<br />
membros de um grupo quando postos para atuar coletivamente.<br />
Os exercícios individuais propostos por Darricau (2005) que estimulam a associação e<br />
a hierarquização de formas tipográficas através do estabelecimento de conexões gráficas por<br />
meio de círculos e traços, ou ordenação numérica são bons exemplos de breves atividades<br />
com esse espírito. Eles contribuem para o aprendizado de conceitos ligados a tipografia e<br />
podem ser adotados pelo MECOTipo sem descaracterizar sua estrutura, encaixando-se nos<br />
intervalos da seqüência dos exercícios já propostos.<br />
Também o uso de jogos coletivos pode ser estimulado como recurso didático. O baralho<br />
Type Trumps desenvolvido por Banks (2008) é um bom exemplo. Cartas contendo imagens e<br />
informações sobre fontes bem difundidas ao longo da história são divididas igualmente entre<br />
jogadores que passam a competir entre si através dos valores atribuídos às características de<br />
cada uma. Aquele que possuir o maior valor relativo a característica escolhida para competir<br />
a cada rodada ganha as cartas dos demais. O objetivo é conquistar todo o baralho. O Type<br />
Trumps funciona conforme as regras do jogo que conhecemos como Super Trunfo. Trata-se<br />
de uma adaptação para o universo tipográfico.<br />
Explorar aspectos da anatomia dos caracteres em jogos dessa natureza pode prestarse<br />
bem ao alcance dos fins pretendidos pelo MECOTipo. Preservar o bom estado de ânimo e<br />
a ação conjunta dos envolvidos no processo de aprendizado é fundamental para que se possa<br />
motivá-los a concluir os projetos tipográficos coletivamente.<br />
Rever os parâmetros práticos certamente impactará os teórico/metodológicos e o<br />
sistema de avaliação. A inclusão de jogos educativos e de desafio corresponde a adoção de<br />
uma nova perspectiva conceitual que terá reflexos na formulação dos postulados que regem<br />
as condições necessárias a implantação do método.<br />
Todavia, para promover essas melhorias é preciso testar os jogos ou outros recursos<br />
equivalentes durante a execução do método. O preparo desse experimento implica, entre<br />
outras coisas, na remodelação do sistema de avaliação para tornar mensurável os resultados<br />
e compará-los com os já obtidos com a última versão do MECOTipo.<br />
Reconhece-se uma excelente oportunidade para simplificar e tabular em meio eletrônico<br />
esse sistema que tem-se mostrado de difícil uso. Devido à sua complexidade muito tempo é<br />
consumido na avaliação do desempenho dos participantes. O docente tem de comprometer-<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 101
Analisando o MECOTipo<br />
se gravemente com o processo de ensino quando fora de sala para assegurar a integridade<br />
dos conceitos que indicam o alcance de metas. Muitas vezes isto não é possível em virtude de<br />
outros compromissos pedagógicos assumidos nas instituições de ensino superior.<br />
No tocante ao compêndio, muito pode ser melhorado. Talvez esta seja a ação em<br />
prol dos melhoramentos do método que mais demande tempo, a depender da intenção em<br />
preservar ou não seu caráter introdutório. Independente desta possível mudança, diversos<br />
textos merecem ser incorporados atualmente. Tanto de autores já citados como de não citados.<br />
Entre os já citados deve-se reincidência a Adams, Bringhurst, Cheng, Frutiger e Ruder.<br />
Todos podem contribuir para melhor descrição do processo de derivação de formas verificado<br />
entre letras e números, por exemplo.<br />
Já entre os não citados, destacam-se Darricau, Earls, Cabarga, Gill, Lawson, McLean,<br />
Smeijers, Straus, Tracy e Willen. Em linhas gerais esses autores podem contribuir com mais<br />
detalhes sobre espaçamento, pares de kerning, controle de vetores, aspecto dos caracteres e<br />
conceituação de caligrafia, letreiramento e tipografia.<br />
Por fim, após breve análise dos resultados obtidos com o MECOTipo durante o período<br />
de 2007 a 2010 pode-se propor as seguintes recomendações:<br />
- testar a inclusão de parâmetros práticos que gozem de uma prerrogativa didática<br />
lúdica;<br />
- rever e ampliar o compêndio;<br />
- gerar um caderno de exercícios que acompanhe a versão revista e ampliada do<br />
compêndio;<br />
- rever os objetivos dos parâmetros práticos em uso;<br />
- simplificar o sistema de avaliação para melhor integrá-lo ao novo quadro de parâmetros<br />
práticos;<br />
- ajustar os parâmetros teóricos/metodológicos a nova realidade que compreende o<br />
uso de jogos educativos e cargas horárias menores que 48 horas.<br />
Referências<br />
TYPE TRUMPS. Manchester: Rick Banks/Face34, 2008. 1 baralho (30 cartas), preto e vermelho,<br />
em caixa 6,5 cm x 9 cm x 1,5 cm.<br />
BUGGY, L.A.C. O MECOTipo: método de ensino de desenho coletivo de caracteres<br />
tipográficos. Recife: Buggy, 2007. 179 p.<br />
CABARGA, L. Logo, font & lettering bible. Cincinnati: How <strong>Design</strong>, 2004. 240 p.<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 102
Analisando o MECOTipo<br />
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L’apprentissage du dessin.<br />
HENDEL, R. O design do livro. Tradução Geraldo Gerson e Lúcio Manfredi. São Paulo: Ateliê<br />
Editorial, 2003. 224 p. Tradução de: On Book <strong>Design</strong>.<br />
HEITLINGER, Paulo. Tipografia: origens, formas e uso das letras. Lisboa: Dinalivro, 2006.<br />
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POWELL, E. N. A organização da gestão do design. In: PHILLIPS, Peter L. Briefing: a<br />
gestão do projeto de design. Tradução Itiro Iida. Revisão técnica Whang Pontes Teixeira. São<br />
Paulo: Blucher, 2007, 106-113. Tradução de: Creating the perfect design brief.<br />
STOLTZE, C. (Org.). Digital Type. Massachusets: Rockport, 1997. 143 p.<br />
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<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 103
O REAPROVEITAMENTO DE IDEIAS E MATERIAIS NO DESIGN DE<br />
JOIAS: ORIGEM, INTERTEXTuALIDADE E SuSTENTABILIDADE<br />
Viviane Nogueira de Moraes; Mestranda em <strong>Design</strong>: <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />
viviane.moraes@gmail.com<br />
Resumo<br />
Neste texto é apresentado o reaproveitamento de ideias e<br />
materiais como um desafio no design. O método utilizado para<br />
a organização deste estudo apoia-se na pesquisa bibliográfica e<br />
iconográfica, não apenas sobre o design de joias, mas também<br />
em outras manifestações criativas, a fim de que possa ser traçado<br />
um panorama geral sobre o que se entende por reutilização. O<br />
embasamento teórico deste trabalho é extraído da literatura: (1)<br />
sobre design, produzida por CARDOSO, FORTY e DAMASIO;<br />
(2) sobre reaproveitamento os trabalhos, de BENJAMIN,<br />
MCDONOUGH e BRAUNGART e (3) no tocante ao design de<br />
joias, as ideias de GOLA e LLABERIA. As conclusões parciais<br />
apontam para a possibilidade e, por vezes, inevitabilidade do<br />
reconhecimento de processos em que há reutilização de materiais<br />
e ideias, tanto no design de joias quanto em outras espécies de<br />
criação contemporânea, mediante nova atribuição de sentidos às<br />
formas. No último caso, da utilização de ideias, há consequências<br />
jurídicas que devem ser consideradas.<br />
Palavras-Chave: design; joias; reaproveitamento<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 104
O reaproveitamento de ideias e materiais no design de joias: origem, intertextualidade e sustentabilidade<br />
Introdução<br />
O reaproveitamento de ideias e materiais pode ser visto como desafio no design. Neste<br />
texto buscaremos reunir elementos para elaborar um quadro sobre o tema do reaproveitamento<br />
material e imaterial na atividade projetual. A relevância deste estudo decorre da própria<br />
conceituação da atividade de design. Para os fins deste trabalho, o design é uma atividade de<br />
projeto de bens materiais (DAMAZIO, 2006: 62) (FORTY: 2007: 12) e imateriais (CARDOSO:<br />
2008: WEB).<br />
Em seu surgimento, o design tem relação com a indústria nascente com demanda<br />
de uma produção cada vez maior e mais mecanizada. Neste momento, foi separado o ato<br />
de projetar do ato de executar, para deliberadamente afastar o “erro” humano da produção.<br />
Embora na origem do design tenha havido uma vinculação desta atividade a projetos de bens<br />
materiais, deve ser incluído, também, dentro deste conceito, o trabalho com o imaterial. A razão<br />
de surgimento do design, então, tem ligação com a utilização de um projeto que aperfeiçoe a<br />
produção de um determinado bem. A discussão neste texto, todavia, situa-se na utilização de<br />
matéria ou ideias anteriormente empregadas em processos de produção.<br />
Desafios específicos ao reaproveitamento material e imaterial<br />
Feitas as devidas ressalvas preliminares, cabe então apresentar que desafios específicos<br />
em design, na atualidade, serão considerados nos próximos títulos deste texto, a saber: (2)<br />
projetos em design que levam em conta o descarte do produto; (3) projetos que utilizam<br />
material descartado, (3.1) aproveitamento do lixo físico, (3.2) reaproveitamento de ideias<br />
produzidas por outras pessoas.<br />
Projetos em design que levam em conta o descarte do produto<br />
Embora o design tenda a tornar-se imaterial, vislumbramos dois papéis do profissional<br />
da área, a saber: (1) ser agente de transformação; e (2) promover a proteção ao meio ambiente.<br />
A ideia de sustentabilidade, em sua radicalidade, consiste em pensar em todas as<br />
etapas da criação do produto, a fim de que seja possível uma integração dos resíduos gerados<br />
a partir do processo de produção. Aqui a ideia não se restringe apenas à reciclagem, mas sim<br />
à proposta de pensar o ciclo de produção do berço ao berço. Esta ideia de sustentabilidade<br />
com o conceito “do berço ao berço” é tratada por William McDonough e Michael Braungart,<br />
que apresentam um manifesto, o qual exige uma transformação da indústria humana por<br />
meio de um design ecologicamente inteligente. Pensamos que este seja, talvez, um dos<br />
maiores desafios do design e dos designers na contemporaneidade, porque experimentamos<br />
uma escassez de recursos naturais do planeta, que é finito. Diante da impossibilidade, neste<br />
início de século XXI, de concretizar este ideal de design pensando o descarte do produto<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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O reaproveitamento de ideias e materiais no design de joias: origem, intertextualidade e sustentabilidade<br />
criado, devemos agora abordar algumas possibilidades sobre o aproveitamento de material<br />
descartado.<br />
Projetos em design que utilizam material descartado<br />
Aproveitamento do lixo físico no design de joias<br />
O design sustentável pode ser desenvolvido a partir do aproveitamento do lixo físico em<br />
processos de reciclagem. Inúmeros exemplos podem ser trazidos neste ponto, aplicando-se<br />
à seleção de trabalhos o conceito de design adotado na introdução deste artigo. Escolhemos<br />
tratar de dois exemplos concernentes à criação de uma “joalheria” com materiais que não são<br />
nobres (ouro e prata).<br />
O primeiro exemplo é trazido por Engracia Costa Llaberia (2009:59) que analisa o trabalho<br />
do Studio Hobo, “que apresenta como proposta a reutilização de materiais descartados, em<br />
montagens com outros como contas plásticas, tendo como discurso a preocupação ambiental.<br />
procurando tocar o senso comum, criando uma “joalheria” de uso cotidiano”.<br />
Figura 1<br />
HOBO- http://www.blog.iwantmyhobo.com/<br />
Symphony II<br />
O segundo exemplo é o trabalho de Naná Hayne, brasileira, paulista, artista plástica<br />
e artesã; e nas suas próprias palavras se diz disposta a colaborar com o meio ambiente. Há<br />
sete anos trabalha com o lixo disponível e abundante no planeta, a saber: o lixo eletrônico.<br />
Esta artista cria acessórios de moda por meio de utilização de placas mãe, circuitos, etc.<br />
Seu trabalho busca transformar o lixo eletrônico em algo útil e belo. Veja na imagem abaixo a<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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O reaproveitamento de ideias e materiais no design de joias: origem, intertextualidade e sustentabilidade<br />
iniciativa de sustentabilidade na criação do bracelete, em que são combinados uma base de<br />
couro sintético, elos, resina e fecho.<br />
Figura 2<br />
http://nanahayne.wordpress.com/2010/05/28/braceletes/5-4/<br />
Aproveitamento de ideias produzidas por outras pessoas: exemplos extraídos da<br />
literatura, do audiovisual e do design de joias<br />
Tratamos aqui sobre o reaproveitamento no design. Todavia, para compreendermos tal<br />
prática de reutilização de ideias, é indispensável realizar um breve desvio sobre as vanguardas<br />
na arte do fim do século XIX, ou seja, retomar como surge a ideia de reaproveitamento e sob<br />
que argumentos.<br />
Mudança de paradigmas na arte: a apropriação e a reprodutibilidade<br />
Desde o final do século XIX, vem sendo questionado o modo de fazer da arte. Podese<br />
afirmar que a partir de Manet, podemos perceber que as estruturas de representação<br />
formadas desde Giotto serão destruídas parte por parte: o tema, a técnica, a aura. Por isso,<br />
cada vez mais se torna pertinente a questão sobre a natureza da arte, isto é, não está mais<br />
tão claro o que é a arte. Nesta senda, é relevante notar que no início do século passado<br />
(1912), por meio do trabalho de Georges Braque e Pablo Picasso, tem-se o início da utilização<br />
de colagem como técnica artística. Devemos acrescentar, também, o trabalho posterior de<br />
Marcel Duchamp e Kurt Schwitters.<br />
Após tais trabalhos, houve entre os anos de 1950 e 1960, uma intensificação do uso da<br />
apropriação na arte por meio da assemblage, com a incorporação de qualquer trabalho à obra<br />
de arte. De acordo com a enciclopédia digital do Itaú Cultural, quando trata do termo colagem,<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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O reaproveitamento de ideias e materiais no design de joias: origem, intertextualidade e sustentabilidade<br />
“a ideia forte que ancora as assemblages diz respeito à concepção de que os objetos díspares<br />
reunidos na obra, ainda que produzam um conjunto outro, não perdem seu sentido primeiro.”<br />
Aproximaremos neste ponto do presente artigo, duas ideias que se complementam:<br />
(a) apropriação e (b) reprodutibilidade. Tais ideias serão aproximadas numa tentativa de<br />
compreender uma consequência destas ideias, a saber: a autoria, uma vez que vem sendo<br />
construída de forma diversa desde o século passado.<br />
O termo apropriação é “empregado pela história e pela crítica de arte para indicar a<br />
incorporação de objetos extra-artísticos, e algumas vezes de outras obras, nos trabalhos de<br />
arte” (Enciclopédia Itaú-Cultural – web). A construção das obras não se dá apenas por meio<br />
de ideias totalmente inovadoras, mas também pela incorporação de outros materiais e ideias<br />
na obra.<br />
Se a obra de arte foi criada tendo por base a apropriação, então, a aferição de<br />
autenticidade fica alterada. Isto porque se desloca a verificação da autenticidade apenas da<br />
matéria empregada, para que se torne relevante a consideração sobre a organização dos<br />
elementos de modo inovador.<br />
Diante disso, o próximo passo é repensar conceitos de autenticidade, autoria e<br />
originalidade na obra de arte, porque se a arte adota elementos do cotidiano, questiona-se o<br />
que é necessário para que uma obra seja considerada como arte. Deixa de ser tão importante<br />
uma técnica específica ou o manejo de materiais típicos da arte (suporte e materiais), ou seja,<br />
a partir da colagem há uma diluição das fronteiras entre pintura e escultura, sendo certo que<br />
a representação passa a ser aceita também por meio do rearranjo de objetos estranhos à<br />
tradicional prática artística até então existente.<br />
Além da apropriação na arte, efetuada pelas vanguardas históricas, há alteração do<br />
modo de produção de imagem a partir da fotografia. Pode-se afirmar que a fotografia libertou<br />
o artista plástico da obrigação com a verossimilhança, permitindo que este explorasse outros<br />
aspectos no trabalho estético.<br />
O termo reprodutibilidade tem ligação com a cópia de algo que foi novo e é analisado<br />
por Walter Benjamin, segundo quem a reprodutibilidade é a possibilidade de reprodução de<br />
uma dada peça. No texto clássico que aborda a obra de arte na era de reprodutibilidade<br />
técnica, o crítico Walter Benjamin (1936-1955) aborda o modo em que a linguagem fotográfica<br />
atinge a obra de arte tradicional. No artigo mencionado, Benjamin defende que obra de arte<br />
sempre foi reprodutível, ou seja, era sempre possível a imitação (BENJAMIN: 1936-1955: 166).<br />
O teórico antes mencionado demonstra, então, que por meio da reprodutibilidade<br />
permitida pela fotografia é perdida a aura da obra de arte, porque não importa mais saber<br />
qual é o original e qual é a cópia, uma vez que é inerente à produção fotográfica a realização<br />
da reprodutibilidade técnica, perdendo a obra a sua aura. Aura para Walter Benjamin “é uma<br />
figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa<br />
distante, por mais perto que ela esteja”. (BENJAMIN: 1936-1955: 166)<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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O reaproveitamento de ideias e materiais no design de joias: origem, intertextualidade e sustentabilidade<br />
Temos então dois “golpes” verificados pela crítica: (1) a apropriação permite que sejam<br />
utilizados quaisquer elementos para a composição de uma obra de arte; (2) a reprodutibilidade<br />
técnica promove uma quebra da aura da obra de arte.<br />
Criações audiovisuais na internet: reaproveitamento imaterial de criações<br />
próprias e alheias<br />
É após os rompimentos verificados nesses cenários que surgem as novas criações,<br />
cuja divulgação encontra na internet um crescimento nunca antes visto. As criações sempre<br />
existiram na sociedade por meio de criação de conteúdo novo ou recriação a partir de<br />
conteúdos anteriormente existente (v.g. paródia e paráfrase); vimos, porém, que a apropriação<br />
abre novas possibilidades aos artistas que passam a utilizar-se como matéria criativa tanto de<br />
suportes ou materiais inusitados, bem como de outras obras de arte.<br />
Esta criação por meio de apropriação de conteúdos outrora abordados pode<br />
ser exemplificada com a linguagem cinematográfica, na qual percebemos o constante<br />
reaproveitamento de temas já explorados. Valendo-se da utilização de novas formas são<br />
retomados assuntos, obras, sob a ótica da atualidade, por exemplo: as refilmagens inúmeras<br />
de ‘Romeu e Julieta’.<br />
O texto “Romeu e Julieta” é uma tragédia escrita entre 1591 e 1595 por William<br />
Shakespeare. O argumento central da peça trata do amor impossível de dois jovens nascidos<br />
no seio de famílias inimigas, que ao desafiar o mundo para manter o seu amor recíproco, são<br />
traídos pelas artimanhas por eles mesmos criadas, cujo desfecho trágico é o duplo suicídio<br />
dos amantes. A ideia do amor impossível já foi tratada no cinema em produções que respeitam<br />
toda a trama trazida por Shakespeare, tais como o dirigido por Franco Zeffirelli em 1968; mas<br />
também há produções nas quais há uma utilização do argumento com uma atualização da<br />
história que pode ser vista no “Romeo + Juliet” – 1996 (EUA) – direção de Baz Luhrmann, bem<br />
como por “Romeu tem que morrer” dirigido por Andrzej Bartkowiak em 2000 nos EUA.<br />
O que pode ser apreciado nos dias atuais, todavia, vai além da utilização de um argumento<br />
para criação de um novo trabalho artístico. A utilização de elementos de vídeo preexistentes<br />
torna-se possível à um número maior de pessoas e não somente por grandes estúdios. Isto<br />
porque a popularização das ferramentas eletrônicas permite a produção de conteúdo por<br />
qualquer usuário. Veja-se que aqui existe uma radicalização da ideia de colagem criada em<br />
1912 por Picasso e Braque, levada adiante nas vanguardas dadaístas. A apropriação, como<br />
vimos, não é nova; a novidade reside na popularização das ferramentas para produção de<br />
uma colagem de elementos imateriais: colagem de bits.<br />
A derivação das vanguardas artísticas dadaístas encontrará aplicação inovadora no<br />
trabalho do escritor William S. Burroughs, que em 1960 por meio da reorganização de seus<br />
próprios filmes cria a técnica cut up, que corresponde a uma edição de imagens, criadas<br />
anteriormente pelo próprio Burroughs, em transição vertiginosa. O trabalho “The Cut-ups”<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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O reaproveitamento de ideias e materiais no design de joias: origem, intertextualidade e sustentabilidade<br />
pode ser entendido, desta forma, como precursor de outros na área de vídeo, cujo objetivo é<br />
a apresentação de ideias por meio de destruição de narrativas anteriormente existentes.<br />
Nos dias atuais é possível realizar o denominado “remix” (rearranjo ou reorganização<br />
de ideias) com sons e imagens e fazer a divulgação do conteúdo “remixado” pela internet.<br />
Este trabalho apoiado nas ferramentas tecnológicas disponíveis permite a utilização por meio<br />
de recorte de sons e imagens produzidos por outros, a fim de criar obra nova. Não se trata<br />
de interpretação de um argumento literário, por exemplo, com produção por meio de outra<br />
linguagem, mas sim, a utilização da técnica da colagem de sons e imagens anteriormente<br />
existentes para criação de novos significados.<br />
William S. Burroughs no cut up, trabalhou com as suas próprias imagens. Mais tarde,<br />
desde 1980, o grupo Negativland produziu vídeos em que foi feita a edição de imagem e<br />
textos apropriados, ou seja, havia um reaproveitamento de ideias criadas por outras pessoas.<br />
Um dos trabalhos deste grupo Negativland é o vídeo “Gimme The Mermaid” postado<br />
no Youtube. Trata-se de criação realizada a partir de elementos recortados da animação “A<br />
pequena sereia” (em inglês: The Little Mermaid) que é o 28º filme longa-metragem de animação<br />
dos estúdios Disney, lançado em 1989, criado pela adaptação do conto homônimo do escritor<br />
dinamarquês Hans Christian Andersen (autor de “O patinho feio”).<br />
O grupo Negativland poderia ter utilizado apenas o argumento de “A pequena sereia” –<br />
que trata da pequena Ariel filha do rei Tritão que se apaixona por um humano, mas não o fez.<br />
A problemática desta construção artística do grupo mencionado encontra entrave na própria<br />
ideia de apropriação, porque – ousamos repetir – “objetos díspares reunidos na obra, ainda<br />
que produzam um conjunto outro, não perdem seu sentido primeiro”. Por tal razão, os adeptos<br />
de tal técnica de criação podem ser impedidos de se expressar por força de barreiras legais<br />
de proteção de propriedade intelectual, por se tratar de obras derivadas que dependem da<br />
autorização do detentor dos direitos da obra original.<br />
No vídeo “Gimme The Mermaid” vê-se que, no remix, mais importante que a narrativa<br />
são os processos de criação visual. Assim, são deliberadamente afastados os 12 princípios<br />
que a Disney utiliza na animação, a saber: (1) apertar e esticar; (2) antecipação; (3) encenação;<br />
(4) ação contínua quadro a quadro; (5) seguir através de sobreposição e ação; (6) acelerar e<br />
desacelerar; (7) arcos; (8) ação secundária; (9) timing (momento certo de cada ato); (10) exagero;<br />
(11) desenho sólido; (12) carisma. Na verdade, conforme apresentaremos a seguir, muitos<br />
dos princípios foram utilizados de forma reversa para o fim de desconstruir propositadamente<br />
aquela narrativa.<br />
No vídeo indicado, o processo de produção e seu resultado demonstram o afastamento<br />
das regras narrativas. O objetivo no vídeo é construir um novo sentido por meio da apropriação<br />
de outras ideias, desconstruindo uma narrativa preexistente.<br />
O argumento do vídeo se apoia na discussão dos direitos autorais fundados no direito<br />
de propriedade. Questiona-se o valor da propriedade e o controle da propriedade intelectual<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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O reaproveitamento de ideias e materiais no design de joias: origem, intertextualidade e sustentabilidade<br />
por seu detentor, bem como a necessidade de aparato jurídico para a proteção do direito de<br />
autor. Aponta-se, ainda, o medo dentro da indústria de ser copiado.<br />
O som faz parte da narrativa. Se em “A pequena sereia” é possível ser levado com<br />
suavidade pela música que além do conteúdo da letra conduz o espectador a um estágio<br />
emocional de envolvimento com a história narrada pela personagem e seu entorno, no vídeo<br />
“Gimme the Mermaid” a condução do espectador acontece pela combinação de ruídos,<br />
teclados, guitarras e um pedaço da canção “Part Of Your World” (Parte do seu mundo).<br />
A letra da canção “Part of your world” (Parte do seu mundo) trata do desejo de Ariel,<br />
a pequena sereia, de ser humana e estar no mundo. Ela deseja “estar onde o povo está” e<br />
“poder andar, poder correr”, ou seja, ela não quer ser uma sereia do mar.<br />
O grupo Negativland atende ao desejo da sereia Ariel e a coloca dentro da discussão<br />
sobre autoria e propriedade intelectual.<br />
No trabalho analisado, utiliza-se a imagem da “pequena sereia” com narrações que<br />
nada tem a ver com o original uso do desenho. Além disso, são feitas combinações de imagens<br />
de gatos, imagens indianas, a sereia distorcida, caveirinhas dançantes, entre outras imagens.<br />
Este arranjo inesperado apresenta o vídeo “Gimme the Mermaid” que nada lembra a produção<br />
da Disney. Existe a criação de uma obra totalmente nova.<br />
Percebe-se, deste modo, que a mensagem é transmitida por meio da transgressão<br />
deliberada da ideia representada pela Disney na animação “A pequena sereia”.<br />
Diante das análises propostas, é possível retomar o questionamento sobre o uso das<br />
ideias de outras pessoas para a construção do pensamento próprio. E, mais uma vez, frisamos<br />
a origem da apropriação, que não é criação deste século, mas existe entre nós desde o início<br />
do século passado e foi aceita como uma forma legítima de criação artística.<br />
Ademais, deve-se reconhecer neste reaproveitamento de outras criações o condão de<br />
possibilitar a libertação do pensamento por meio de uma expressão criativa advinda da própria<br />
característica humana de transformar a realidade. Neste sentido ensina MUNARI (2002:316):<br />
“observando não apenas as características formais de cada objeto, mas também materiais,<br />
cromáticas, táteis e outras, pode-se pensar em transformá-lo em qualquer outra coisa”.<br />
<strong>Design</strong> de joias: nova atribuição de sentidos às formas<br />
Saindo um pouco deste universo do vídeo, para o fim de nos aproximar do design de<br />
joia, que é nosso objeto de pesquisa, abordaremos exemplos que podem ser vistos como<br />
apropriação de ideias pensando em uma espécie específica de objeto: o bracelete.<br />
Eliana Gola, no seu trabalho sobre a história da joia, permite que compreendamos<br />
a apropriação de um modo mais amplo, construindo o novo pela utilização de formas<br />
anteriormente existentes, alterando-se significações, “pela apreensão crítica, reincorporando<br />
e modificando, à procura de uma identidade que defina o intuito de criar formas e conteúdo,<br />
aparência e significado”. (GOLA: 2008: 161)<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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O reaproveitamento de ideias e materiais no design de joias: origem, intertextualidade e sustentabilidade<br />
Os dois exemplos finais deste trabalho têm a forma de braceletes. Utilizamos os<br />
braceletes pelo seu significado não apenas como adorno, mas também a memória deste<br />
objeto. Há interessante visão de Lulu Smith que compara os braceletes a adorno e armadura,<br />
da seguinte forma:<br />
Diferente de anéis e colares, que tradicionalmente são usados para marcar<br />
passagens ou rituais, braceletes são ornamentos e armadura. Meu bracelete<br />
de punhos (pulseira) é adorno para fortalecer os braços com um simples realce<br />
da forma e uso de cor, cada qual explorando uma diferente gama de cor.<br />
(LEVAN: 2005: 22)<br />
Figura 3 (in: LEVAN: 2005)<br />
Bracelete - Punho de bola em terras calmas (Lulu Smith)<br />
Neste bracelete o artista compõe, com respeito a uma forma adequada ao uso nos<br />
pulsos, por se tratar de um bracelete. A criação respeita o critério de ergonomia, mas há um<br />
trabalho com a ideia das bolhas formadas em prata combinada ao uso de pigmento e resina.<br />
O segundo exemplo que nos propusemos a trazer consiste em tentar aproximar o<br />
design de um bracelete na animação Final Fantasy ao projeto Skinput (tecnologia bioacústica).<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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O reaproveitamento de ideias e materiais no design de joias: origem, intertextualidade e sustentabilidade<br />
Figura 4<br />
Final Fantasy (2001 - The Spirits Within)<br />
Figura 5<br />
Skinput: Appropriating the Body as an Input Surface (CHI 2010)<br />
http://www.youtube.com/watch?v=g3XPUdW9Ryg<br />
http://www.chrisharrison.net/projects/skinput/<br />
Deve-se deixar claro que a aproximação tentada não tem fundamento em uma<br />
constatação científica de uma ligação projetual entre os dois objetos, todavia, a leitura das<br />
imagens possibilita a relação apresentada. Isto porque, tanto na animação quanto no projeto<br />
de Chris Harrison, percebemos o uso de um artefato que se utiliza no braço e que tem como<br />
aspecto visual comum a utilização da luz que permite apresentar ao usuário uma funcionalidade<br />
a este artefato. Assim, além de ser acessório, é agregada outra funcionalidade.<br />
Acrescente-se, ainda, que o trabalho com a luz em acessórios não se insere apenas<br />
quando o criador quer atribuir uma funcionalidade à peça. Há trabalhos em que se pensa na<br />
experiência de quem usa e das pessoas no seu entorno. Um exemplo que encontramos na<br />
internet é o trabalho do designer Wei-Chieh Shih, de Taiwan, no portifólio online http://www.<br />
behance.net/dontmarryme. Veja a amostra do traje de laser e o próprio traje de laser abaixo:<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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O reaproveitamento de ideias e materiais no design de joias: origem, intertextualidade e sustentabilidade<br />
Figuras 6, 7 e 8<br />
Laser suit sample e Laser suit<br />
http://www.behance.net/dontmarryme<br />
Nos trabalhos do traje de laser e da amostra deste traje são claras as experimentações<br />
do designer com a luz, o que nos remete a ideia de Rafael Cardoso, segundo quem o design<br />
tende a ser cada vez mais imaterial. Assim, percebemos que se projeta não apenas o objeto<br />
em si, mas também a experiência. A diferença do exemplo do designer de Taiwan para os<br />
anteriormente citados reside na funcionalidade das peças. Neste exemplo, não há comandos<br />
ou funcionalidades que possam ser utilizadas pelo usuário, mas sim, um artefato que emite<br />
luz, criando uma experiência incrível.<br />
Considerações finais<br />
Por fim, o que quisemos trazer com os exemplos escolhidos, da literatura, audiovisual<br />
e design de joias, foi que a criação no design aproveita os passos anteriormente seguidos por<br />
outros criadores.<br />
A apropriação e a reprodutibilidade técnica não são invenções contemporâneas, ou seja,<br />
desta década de 2010. Todavia, percebemos que a possibilidade de criar com fundamento<br />
nestas técnicas já conhecidas da arte, esbarra em limitações legais que protegem a criação<br />
de um autor anterior. Questionamos, porém, se há reais invenções nos dias de hoje ou se o<br />
nosso papel não seria o de ler o passado e apresentar nossa versão.<br />
Atualmente, o reaproveitamento de ideias e materiais, no design, não concerne à<br />
pura experimentação artística, como a existente nas vanguardas históricas. O trabalho com<br />
materiais e ideias já existentes tem relação também com: (1) a sustentabilidade ambiental e<br />
(2) a nova atribuição de sentidos às formas criadas por outras pessoas. Ousamos defender<br />
que estes são desafios do design porque há normas jurídicas que podem engessar a criação,<br />
acaso não seja pensado o ato de projeto no design. Isto porque, pela lei, a proteção é dada<br />
ao resultado final (obra, desenho, etc.) e não a processos ou a ideias. A questão do direito<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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O reaproveitamento de ideias e materiais no design de joias: origem, intertextualidade e sustentabilidade<br />
autoral e do registro do desenho industrial ante as práticas de reaproveitamento está sendo<br />
aprofundada na pesquisa acadêmica e será apresentada em uma próxima publicação.<br />
Referências<br />
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Magia e técnica, arte e política: ensaios. São Paulo: Editora: Brasiliense. 10ª reimpressão,<br />
1996.<br />
CARDOSO, Rafael. Uma Introdução à História do <strong>Design</strong>. São Paulo: Edgard Blücher,<br />
2000.<br />
________________ Web: Itaú Cultural: 2008 http://www.itaucultural.org.br:80/index.cfm?cd_<br />
pagina=2720&cd_materia=450 (acesso 15/06/2010)<br />
DAMAZIO, Vera. Sobre “PPD-CV Conclusão” Hoje. In. COELHO, Luiz Antonio L. (org.). <strong>Design</strong><br />
Método. 1. edição, Ed. PUC-RIO. Teresópolis: Novas Idéias, 2006. p. 62<br />
ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL ARTES VISUAIS - http://www.itaucultural.org.br/<br />
aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=termos_texto&cd_verbete=3182<br />
(Atualizado em 24/07/2009) – acesso em 10/06/2010.<br />
Final Fantasy – the spirits within. http://www.youtube.com/watch?v=GEp0bU3ZoP8 (acesso<br />
em 29/11/2010)<br />
FORTY, Adrian. Objetos do Desejo. <strong>Design</strong> e sociedade desde 1750. Tradução: Pedro Maia<br />
Soares. São Paulo: Cosac Naify, 2007.<br />
GOLA, Eliana. A jóia – história e design. São Paulo: Senac, 2008.<br />
HAYNE, Naná. http://nanahaynearte.blogspot.com/ (acesso 1/6/2010)<br />
____________. http://www.flickr.com/photos/nana_hayne/ (acesso 1/6/2010)<br />
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1/6/2010)<br />
http://nanahayne.wordpress.com/2010/05/28/braceletes/5-4/ (acesso<br />
LEVAN, Marthe. 500 bracelets: an inspiring collection of extraordinary designs. New York/<br />
London: Lark Books, 2005.<br />
LLABERIA, Engracia Costa. <strong>Design</strong> de jóias: desafios contemporâneos. Dissertação de<br />
Mestrado, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, 2009. http://www.anhembi.br/mestradodesign/<br />
pdfs/engracia.pdf (acesso em 31/08/2010)<br />
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O reaproveitamento de ideias e materiais no design de joias: origem, intertextualidade e sustentabilidade<br />
MCDONOUGH, William; BRAUNGART, Michael. Cradell to Cradell. http://www.mcdonough.<br />
com/cradle_to_cradle.htm (acesso em 1/6/2010)<br />
MUNARI, Bruno. Das coisas nascem coisas. Ed. Martins Fontes. São Paulo: 2002, p. 316.<br />
NEGATIVLAND. “Gimme The Mermaid”. http://www.youtube.com/watch?v=TTrHwH2gEY8 -<br />
acesso em 27/04/2010; 23:00<br />
______________. http://www.negativland.com/<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 116
O DESIGN E A PuBLICIDADE DOS ANúNCIOS KOLyNOS NA REVISTA<br />
O CRuzEIRO ENTRE OS ANOS 1950 E 1960<br />
Leandro Ferretti Fanelli; Mestrando em design: <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />
leandrofanelli@hotmail.com<br />
Resumo<br />
Este artigo tem como objetivo compreender e analisar as mudanças<br />
ocorridas no design gráfico e na redação publicitária dos anúncios<br />
do creme dental Kolynos da revista O Cruzeiro entre os anos 50 e<br />
60.<br />
Este período ficou marcado não apenas pelas turbulências<br />
políticas e econômicas vividas em nosso país, mas por conflitos<br />
internacionais que contagiaram as pessoas na época e as gerações<br />
que vieram posteriormente.<br />
No Brasil, podemos destacar o início da ditadura militar em 1964,<br />
o milagre econômico em 1968, a instituição do AI-5 no mesmo<br />
ano e a popularização da televisão. Além disso, grandes nomes<br />
surgiram neste período não apenas no design e na propaganda,<br />
mas em diversas áreas de atuação.<br />
Procuraremos demonstrar as diferenças entre dois anúncios neste<br />
período, tendo vista as mudanças do design gráfico e da redação<br />
publicitária brasileira.<br />
Palavras-Chave: anúncios; design gráfico; revista O Cruzeiro<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 117
O <strong>Design</strong> e a Publicidade dos Anúncios Kolynos na Revista O Cruzeiro entre os anos 1950 e 1960<br />
Anos 60 – uma década marcada por conflitos<br />
A década de 1960 representou um período de conflitos e transformações. EUA e a Antiga<br />
União Soviética viviam um momento de grande tensão. Disputavam influências econômicas<br />
e bélicas na chamada Guerra Fria. Os soviéticos enviaram os primeiros homens ao espaço<br />
enquanto os norte-americanos enviaram o homem à Lua. A guerra entre norte-americanos e<br />
vietnamitas sacrificou aproximadamente dois milhões de vidas entre 1964 e 1975.<br />
No Brasil, Jânio Quadros foi eleito presidente da República em outubro de 1960 e<br />
renunciou ao cargo em 25 de agosto de 1961. João Goulart assumiu a presidência da república<br />
até o golpe militar que aconteceu em 31 de março de 1964, levando ao poder o Marechal<br />
Humberto de Alencar Castelo Branco.<br />
Marcada como a década dos extremos, podemos observar o conservadorismo contra<br />
rebeldia e o protesto contra repressão. Entre outros conflitos cabe a nós pesquisadores a<br />
seguinte pergunta: Como o <strong>Design</strong> e a Publicidade se comportavam neste período de grandes<br />
mudanças da sociedade brasileira?<br />
Visando dar possíveis respostas e esta pergunta, selecionamos duas peças publicitárias<br />
do creme dental Kolynos publicadas na revista O Cruzeiro entre os anos 1950 e 1960, para<br />
analisar não apenas sua estrutura enquanto anúncio publicitário, mas também o design<br />
gráfico dos materiais, o que trará às vistas como eram pensadas e produzidas as criações<br />
publicitárias na época. Também ficarão mais claras as características do processo criativo<br />
para a propaganda e para o design. Outra questão a ser revelada é: quais eram os anseios e<br />
desejos do público leitor da revista O Cruzeiro, quando se tratavam de cremes dentais.<br />
Para MELO (2008:29), a propaganda serve como termômetro para definirmos as<br />
mudanças da cultura visual dos anos 50 e 60 do grande público. Ele fala que o progresso<br />
das propagandas do final dos anos 60 soa familiar, pois, foram produzidas com os mesmos<br />
princípios que regem a linguagem visual dos dias atuais. Indo além, acrescenta que tais<br />
mudanças foram mais marcantes ao longo dos anos 60 do que quarenta anos seguintes da<br />
propaganda no Brasil.<br />
Grandes nomes do design surgem neste período, entre eles Alexandre Wollner, Rubens<br />
Martins, Cauduro Martino e Aloisio Magalhães, artistas influenciados pelos princípios da<br />
Bauhaus e da Escola de Ulm.<br />
MELO (2009:55) diz que durante a década de 60, ocorreu uma grande influência<br />
do psicodelismo no design gráfico e nas propagandas impressas, o que segundo o autor<br />
traduziu com grande força a cultura dos anos 60. Além disso, a influência da televisão também<br />
atingiu aos jovens que viveram aquele momento, destruindo a ideia de totalidade tida até este<br />
período. Segundo MELO, a cultura do fragmento tornou-se a segunda natureza da população<br />
influenciada entre outros motivos pela televisão.<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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O <strong>Design</strong> e a Publicidade dos Anúncios Kolynos na Revista O Cruzeiro entre os anos 1950 e 1960<br />
A Revista o Cruzeiro<br />
Para SANT’ANNA (2002, 209), a revista, de modo geral, é o meio de comunicação mais<br />
seletivo que existe, pois o apelo destinado a elas permite uma maior segmentação enquanto<br />
sexo, classe social e vocação do leitor, tornado-a especialmente adequada para as campanhas<br />
de marca. Além disso, destaca as seguintes vantagens em relação aos jornais: possui melhor<br />
reprodução dos anúncios impressos, a vida útil da revista é mais longa, são lidas mais devagar,<br />
tem circulação maior que a tiragem e são mais seletivas que os jornais.<br />
Segundo BARBOSA (2002), a revista O Cruzeiro, pertencia a um conglomerado de<br />
imprensa fundado por Assis Chateaubriand chamado Diários Associados. A primeira edição<br />
da revista é datada de 10 de novembro de 1928 e trazia em sua capa o desenho realista<br />
de uma mulher melindrosa, com diversidade de cores e as estrelas do Cruzeiro do Sul, que<br />
inspirou o nome da revista.<br />
Logo abaixo do nome da Revista, aparece o principal diferencial do periódico em<br />
relação às demais publicações da época. Isso foi um dos grandes motivos do sucesso da<br />
revista: Revista Semanal Ilustrada<br />
Figura1: Capa da primeira edição da Revista Cruzeiro<br />
Fonte: http://www.almanaquedacomunicacao.com.br<br />
Acesso em: 25/08/2010<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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O <strong>Design</strong> e a Publicidade dos Anúncios Kolynos na Revista O Cruzeiro entre os anos 1950 e 1960<br />
Conforme BARBOSA (2002), o diferencial da revista Cruzeiro para as demais publicações<br />
da época é o fato do leitor não ler apenas os textos, mas também as imagens que ilustravam<br />
as páginas da revista facilitando a compreensão das matérias publicadas.<br />
Apesar de não ter sido o primeiro periódico a utilizar ilustrações associados às matérias,<br />
a Revista Cruzeiro foi um grande divisor de águas das publicações no Brasil.<br />
Entre outros diferenciais, destaca-se o fato da redação do periódico possuir agentes em<br />
todas as cidades do Brasil e representantes em diversos países, como por exemplo, Lisboa,<br />
Roma, Paris, Londres e Nova York.<br />
O Discurso Publicitário<br />
SANT’ANNA (2002:75) coloca que a publicidade deriva de público, ou seja, designa<br />
a qualidade do que se torna público, seja um fato ou uma ideia. Já a propaganda, tem sua<br />
origem do Latim e deriva de Propagare. Este termo foi introduzido pelo Papa Clemente VII, em<br />
1579 ao criar a Congregação da Propaganda, que tinha o objetivo de propagar a fé católica<br />
pelo mundo.<br />
SANT’ANNA define comercialmente a propaganda como: “Implantar na mente da<br />
massa uma ideia sobre o produto ou serviço.” (2002:76)<br />
CARRASCOZZA (1999:17), diz que existem dois tipos de discurso, o primeiro visa<br />
convencer e o segundo deseja persuadir. Para o autor, a diferença entre convencer e persuadir<br />
é que o primeiro é dirigido à razão, ou seja, direciona-se ao raciocínio lógico do indivíduo<br />
e precisa de provas objetivas para uma conclusão positiva do interlocutor. Já o discurso<br />
persuasivo possui um caráter ideológico, subjetivo, e visa atingir o sentimento e a vontade<br />
através de argumentos plausíveis ou verossímeis.<br />
Para CARRASCOZZA (1999:18), o discurso publicitário é um discurso persuasivo,<br />
porque sua intenção é chamar a atenção do consumidor para as qualidades do produto ou<br />
do serviço anunciado. Analisando o discurso publicitário de maneira abrangente, as peças<br />
publicitárias esforçam-se para alcançar alto grau de persuasão, porque devem desencadear<br />
uma ação futura do consumidor.<br />
Complementando Carrascozza, SANT’ANNA (2002:78), diz que existem cinco níveis<br />
de comunicação:<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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O <strong>Design</strong> e a Publicidade dos Anúncios Kolynos na Revista O Cruzeiro entre os anos 1950 e 1960<br />
Desconhecimento<br />
Menor nível de conhecimento, o consumidor jamais ouviu falar do produto ou da empresa.<br />
Conhecimento<br />
Exige um pequeno esforço do consumidor para conseguir reconhecer a marca ou o produto.<br />
Compreensão<br />
O consumidor tem conhecimento do produto ou serviço e também da marca; reconhece a embalagem<br />
e sabe para que serve o produto.<br />
Convicção<br />
Além dos fatores racionais, a preferência do produto se dá por motivos emocionais.<br />
Ação<br />
Realização de movimentos premeditados para realizar a compra do produto.<br />
Tabela 1: Níveis de Comunicação<br />
Ainda segundo CARRASCOZZA (1999:32), a partir dos anos 60 o discurso publicitário<br />
adotou a estrutura circular para a elaboração dos textos, fazendo com que o arranjo semântico<br />
seja estruturado de tal maneira que induz o leitor a uma conclusão definitiva sobre o assunto.<br />
CARRASCOZZA (2009:106) coloca que apesar das condições políticas que o país vivia<br />
nos anos 60, a publicidade nacional vivenciava uma revolução em sua linguagem. Segundo<br />
o autor, é possível ver que as propagandas passaram a ter apoio em ideias e agregavam<br />
um diferencial maior aos produtos anunciados, aglutinando texto e layout em uma única<br />
unidade criativa. Desta maneira, eliminou-se splashs e rodapés, normalmente utilizados para<br />
atrair a atenção do consumidor. Tais recursos tornavam as peças publicitárias poluídas<br />
e dispersavam a atenção do consumidor. Neste período, o uso de fotografias produzidas<br />
especialmente para as campanhas superou o número de ilustrações comuns à época.<br />
CARRASCOZZA (2009:107) acrescenta que nos anos 60, o tom da publicidade passa<br />
a ser menos formal, estabelecendo um diálogo com o leitor, sendo esta o maior avanço da<br />
publicidade no período:<br />
O advento desse novo padrão dado às peças de mídia impressa é a<br />
maior conquista da propaganda brasileira nos anos 60, que continuava<br />
convocando personalidade do show business - Roberto Carlos, Chacrinha,<br />
Hebe Camargo - ou do mundo dos esportes como Pelé para testemunhar a<br />
favor dos produtos.<br />
As propagandas da revista O Cruzeiro, ocupavam praticamente metade das 64<br />
páginas do periódico. Entre os anunciantes, podemos encontrar produtos como: lâminas<br />
de barbear, lojas de departamento, cremes dentais, remédios e unguentos, lâmpadas,<br />
sabonetes, sapatos masculinos e femininos, chicletes e até automóveis.<br />
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O <strong>Design</strong> e a Publicidade dos Anúncios Kolynos na Revista O Cruzeiro entre os anos 1950 e 1960<br />
Estudo de Casos<br />
Para MELO (2008:29) as mudanças que aconteceram na linguagem visual das<br />
propagandas produzidas entre 1957 e 1969 são mais representativas do que todas as<br />
mudanças que temos nos dias atuais, porque ao nos depararmos com as peças publicitárias<br />
da década de 1950 e 1960, torna-se claro a mudança do comportamento das agências de<br />
propaganda no período. Como exemplo, temos duas peças publicadas na revista O Cruzeiro<br />
do Creme Dental Kolynos entre início da década de 1950 e final dos anos 1960:<br />
Figura 2: anúncio do Creme Dental Kolynos<br />
da década de 1950. S/D<br />
Fonte: http://www.netpropaganda.com.br<br />
Acesso em 28/08/2010<br />
Figura 3: anuncio do Creme Dental Kolynos<br />
da década de 1960. S/D<br />
Fonte: http://www.nublog.com.br<br />
Acesso em 28/08/2010<br />
Nas peças acima, podemos observar que a figura 2 possui um discurso formal, na qual<br />
a intenção é informar ao público a importância da escovação dos dentes de leite, o título diz<br />
“Conservando os primeiros dentes... os segundos serão mais fortes!”<br />
O design gráfico da peça nos mostra uma arte aerografada de uma criança, porém não<br />
aparece o corpo. Logo abaixo vem o título da peça publicitária, e temos um pequeno boneco<br />
segurando a escova de dente e apontando para a boca da criança. Neste ponto, podemos<br />
identificar uma prosopopéia, que é uma figura de linguagem, muito utilizada nas campanhas<br />
publicitárias. Segundo ANDRÉ, prosopopéia é:”a atribuição de qualidades humanas a seres<br />
inanimados, irracionais ou mesmo abstratos.” (1982:350)<br />
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O <strong>Design</strong> e a Publicidade dos Anúncios Kolynos na Revista O Cruzeiro entre os anos 1950 e 1960<br />
Podemos identificar o pequeno boneco como a pasta dental que pelo formato criado<br />
remete à letra “K” de Kolynos. Abaixo temos o tubo de pasta de dentes, ocupando mais da<br />
metade da largura da página. Ao lado temos o texto da peça com a seguinte informação<br />
transcrita conforme anúncio “Graças à espuma de Ação Anti-Enzimático, o Creme Dental<br />
KOLYNOS lhe oferece uma proteção salvo contra os caries, uma sensação extra de frescor.”<br />
Abaixo do tubo de pasta de dentes, há também uma informação sobre os tamanhos<br />
disponíveis dos tubos “Agora também em tamanhos GIGANTE e FAMÍLIA” SANTAELLA<br />
(2009:54), coloca que para Barthes a imagem pode ter três formas de relação com o texto.<br />
No primeiro caso, a imagem seria inferior, portanto apenas complementaria as informações da<br />
escrita. Na segunda definição, a imagem seria superior ao texto e o dominaria, uma vez que<br />
a linguagem imagética é mais informativa que a escrita. E no terceiro caso, texto e imagem<br />
possuem a mesma importância e estão integrados. Neste caso, a relação texto-imagem se<br />
encontra em redundância e informatividade.<br />
No caso da figura 2, podemos considerar que a relação imagética e textual do anúncio<br />
não está com a mesma importância, tendo vista que se olharmos apenas a imagem do anúncio<br />
não passará uma informação precisa sobre o produto ou seus benefícios.<br />
A figura 3, criada na década de 1960, possui uma linguagem diferente da figura 2,<br />
nesta propaganda o público alvo é o jovem, coloca o creme dental como um “companheiro”,<br />
que ajuda a solucionar os problemas, por exemplo, o ato de flertar uma garota.<br />
O grande diferencial da peça é a composição da criação, que tem uma sobreposição<br />
de texto e imagem. A expressão “AH!”, tem o objetivo de induzir o consumidor à sensação de<br />
frescor, e é aplicado com fotografias de vários momentos do casal, ficando clara a intenção do<br />
rapaz em conquistar a moça.<br />
Há cinco momentos nesta primeira parte da peça: na primeira os personagens<br />
aparecem em uma biblioteca, onde a modelo está escolhendo alguns livros e o homem está<br />
conversando com ela.<br />
Abaixo ele está sorrindo com um livro nas mãos e a jovem está com aparência de<br />
desconforto ao lado do rapaz.<br />
Na terceira cena, aparece a jovem em primeiro plano como se estivesse ignorando a<br />
presença dele.<br />
Na quarta cena temos a imagem da modelo caminhando, como se estivesse indo<br />
embora e apenas uma mão masculina se aproximando das flores que estão no jardim.<br />
Na quinta cena temos as flores em close e uma mão apanhando um botão de Rosas.<br />
Abaixo do conjunto de imagens, aparece o texto publicitário conforme transcrito abaixo:<br />
Se você tem um problema...<br />
Vá com jeito e aquêle seu sorriso<br />
Sorriso de quem sabe e pode sorrir.<br />
Com Kolynos. Ah! que delícia a espuma refrescante de Kolynos.<br />
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O <strong>Design</strong> e a Publicidade dos Anúncios Kolynos na Revista O Cruzeiro entre os anos 1950 e 1960<br />
Kolynos faz dentes brancos e brilhantes dá hálito puro e saudável.<br />
Esplendido Kolynos<br />
Abaixo do texto há um tubo de pasta de dentes e a assinatura “... melhor do que<br />
nunca.”<br />
Além disso, temos um pequeno splash ao lado esquerdo da página, novamente com<br />
a expressão “AH!”, reforçando a sensação de frescor causada pela pasta de dentes, do lado<br />
direito temos o casal sorrindo com a flor que o rapaz colheu no jardim, dando a entender que<br />
ele conquistou a moça.<br />
A estrutura das fotos nos remete às fotonovelas, que foi um grande sucesso de venda<br />
entre os anos de 1950 e 1970.<br />
SANTAELLA (2009:57), define que as imagens podem determinar a interpretação de<br />
uma imagem de duas maneiras, através da contiguidade ou da disposição sequencial.<br />
Na disposição sequencial existe o argumento que no caso das imagens dispostas<br />
lado a lado, há uma sequência, formando uma relação semântica pela lógica da implicação,<br />
porque a ordem tem o efeito e a impressão de uma relação casual. Este estudo demonstra<br />
que o contexto da imagem não precisa necessariamente do conteúdo verbal, pois as imagens<br />
funcionam como conceito de imagem.<br />
Neste anúncio podemos verificar a existência de um contexto aplicado à história e que<br />
não é preciso conteúdo verbal para seduzir o leitor a adquirir o produto.<br />
Porém, como descrevemos anteriormente, a estrutura circular faz com que a peça<br />
publicitária se torne completa, associando texto, (título, texto e slogan) e imagens, tornando a<br />
mensagem publicitária mais forte e consistente no inconsciente do consumidor.<br />
Considerações Finais<br />
Podemos concluir que entre o começo dos anos 1950 e final dos anos 1960, a<br />
propaganda brasileira, teve grande evolução de texto e imagem. Os anúncios publicitários<br />
deixaram de ser apenas informativos e se aproximaram dos consumidores.<br />
Estes métodos criativos ajudaram a alavancar as vendas de produtos e ajudou as<br />
indústrias instaladas no Brasil e o país entre os anos de 1968 e 1972. Período marcado como<br />
o período do milagre econômico, onde o PIB da nossa economia chegou a atingir 12% ao ano<br />
com média de crescimento no período de 10% ao ano.<br />
As novas estruturas adotadas pelas agências de design e de propaganda, estão<br />
presentes até os dias de hoje e faz da propaganda e do design brasileiro um dos maiores e<br />
melhores mercados do mundo tratando-se de criatividade.<br />
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O <strong>Design</strong> e a Publicidade dos Anúncios Kolynos na Revista O Cruzeiro entre os anos 1950 e 1960<br />
Referências<br />
BARBOSA, Marialva; O Cruzeiro: uma revista síntese de uma época da história da<br />
imprensa brasileira; nº7, 2002. Disponível em http://www.uff.br/mestcii/marial6.htm. Acesso<br />
em 27 ago. 2010.<br />
CARRASCOZZA, João A.; A Evolução do Texto Publicitário: a associação de palavras<br />
como elemento de Sedução na Publicidade; 2ªed. São Paulo: Futura, 1999.<br />
FAUSTO, Boris; História do Brasil; 6ª ed. São Paulo: Edusp, 1999.<br />
MELO, Chico Homem de; <strong>Design</strong> Gráfico Brasileiro: Anos 60; 2ª ed. São Paulo: Cosac<br />
Naify, 2008.<br />
SANTAELLA, Lúcia; Imagem: Cognição Semiótica e Mídia, 1ªed. São Paulo: Iluminuras,<br />
2009.<br />
SANT’ANNA, Armando; Propaganda: Teoria, Técnica e Prática, 7ªed. São Paulo: Pioneira<br />
Thompson Learning, 2002.<br />
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CLASSIFICAçãO E ESCOLhA DE uM SISTEMA DE IMPRESSãO<br />
Leonardo A. Costa Buggy; Me.: <strong>Universidade</strong> Federal de Pernambuco<br />
buggy@tiposdoacaso.com.br<br />
Lia Alcântara Rodrigues; Mestranda: <strong>Universidade</strong> Federal de Pernambuco<br />
liaalcantara@yahoo.com<br />
Resumo<br />
Dividido em seis partes, o presente artigo tem início na discussão<br />
acerca das definições de sistema de impressão em face da<br />
dualidade pré-digital e digital. Expostos alguns dos sistemas<br />
de impressão mais utilizados percebe-se a necessidade de<br />
uma classificação dos mesmos. Nesta etapa são revistas as<br />
classificações dos principais autores da área para então tornar-se<br />
possível a consolidação de uma nova proposta, mais completa e<br />
que facilita o processo de escolha de um sistema de impressão.<br />
A sugestão de avaliação dos sistemas de Villas-Boas (2008) é<br />
revista e acrescida do critério da sustentabilidade, novo paradigma<br />
do design. Conclui-se então que a inclusão de critérios não só<br />
tecnológicos, mas também sociais e ambientais no debate sobre<br />
classificação e escolha dos sistemas de impressão é fundamental<br />
para nortear as decisões dos designers contemporâneos.<br />
Palavras-Chave: classificação; escolha; sistema de impressão e<br />
sustentabilidade<br />
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Classificação e escolha de um sistema de impressão<br />
Objetivos<br />
- Atualizar o conceito de impressão diante da dualidade pré-digital e digital;<br />
- Realizar uma revisão no modo de classificação das tecnologias de impressão mais<br />
utilizadas no cotidiano dos designers gráficos;<br />
- Propor uma nova classificação dos sistemas de impressão;<br />
- Inserir o conceito de sustentabilidade na avaliação dos sistemas de impressão;<br />
- Contribuir para a tomada de decisão dos designers ao selecionar um sistema de<br />
impressão.<br />
O que é sistema de impressão?<br />
As definições mais ortodoxas do termo impressão estão associadas diretamente ao ato<br />
ou efeito de encontrar dois corpos, de modo que um transporte um grafismo qualquer para<br />
o outro. Ribeiro (2003) o define melhor como arte ou processo de reproduzir pela pressão<br />
dizeres ou imagens em papel, pano, couro, folha de flandres e outros materiais mediante<br />
uso de prensa ou prelo de qualquer sistema. Já Baer (2005), mais objetivo, o caracteriza<br />
simplesmente como uma reprodução mecânica repetitiva de grafismos sobre suportes, por<br />
meio de fôrmas de impressão.<br />
Ribeiro (3002) destaca o equipamento que promoverá a transferência dos grafismos<br />
por meio de pressão e Baer (2005) a matriz ou fôrma que será pressionada contra o suporte<br />
permitindo a reprodução. Tais definições mostram-se complementares e intimamente ligadas<br />
a dois elementos fundamentais para a sua caracterização, mesmo que sub-entendidos,<br />
matriz e suporte de impressão. Todavia, no decorrer da obra dos citados autores observase<br />
claramente a conversão dessa dupla em tríade, tendo em vista a recorrência da tinta no<br />
discurso de ambos enquanto condutor dos grafismos a serem reproduzidos.<br />
Segundo McMurtrie (1965) uma antiga prática chinesa dos séculos V e VI da era cristã<br />
de se estampar carimbos com tinta no papel já envolvia esses elementos de modo semelhante<br />
ao que seria aplicado pela histórica invenção de Gutenberg, séculos mais tarde. Assim, a<br />
tipografia e algumas tecnologias antecessoras à imprensa implicam definitivamente tinta,<br />
matriz e suporte na conceituação primária do termo impressão. Contudo, os incrementos<br />
digitais que sucederam à entrada do setor gráfico na era da informática – inúmeras gerações<br />
após o primeiro uso dos tipos móveis – comprometem a integridade de algumas definições<br />
ainda hoje adotadas por uma série de autores.<br />
A ausência de um corpo material para ocupar o lugar da matriz de impressão em muitos<br />
sistemas digitais reforça o conceito de reprodução presente no contexto da impressão, abalando<br />
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Classificação e escolha de um sistema de impressão<br />
significativamente a prerrogativa da pressão entre corpos anteriormente imprescindível. Com<br />
isso, toda uma corrente de pensamento teórico concentrada em torno da produção gráfica<br />
vê-se diante de uma quebra abrupta de paradigma e convidada a repensar vários de seus<br />
conceitos.<br />
Em acordo com essas perspectivas digitais Fernandes (2003) entende a impressão<br />
como um processo de reprodução de imagens sobre uma ou mais superfícies, desprendendo<br />
do conceito o elemento matriz. Collaro (2005) segue a mesma linha de pensamento mas,<br />
enaltece o aspecto industrial inerente ao tema ao afirmar que impressão é a transferência<br />
de grafismos para suportes por meio de processos que os transformam em cópias seriadas<br />
idênticas. Sobretudo para ele o enfoque da multiplicação em série é claro e independente do<br />
aspecto mecânico abordado por Baer (2005), mérito de um pensamento contemporâneo que<br />
não deve passar despercebido.<br />
Uma abordagem mais extremista e pragmática é adotada pela Adobe (2009) –<br />
importante desenvolvedor de softwares para o meio gráfico – que separa absolutamente a<br />
impressão de seu conceito primário. A documentação de ajuda ao usuário do Photoshop<br />
CS3, seu principal produto, a define como processo de enviar imagens para dispositivos de<br />
saída, numa clara alusão ao ato de controlar as ações de um hardware periférico via software.<br />
Essa simplificação demasiada do termo restringe sua aplicação ao universo digital e pode<br />
sujeita-lo a uma crescente diversificação da natureza dos dispositivos de saída de dados, nem<br />
sempre projetados para reproduzir grafismos em superfícies.<br />
Visto que processo e resultado se confundem na maioria das definições de impressão<br />
abordadas é prudente destacar as denotações processuais como melhor referidas ao termo<br />
sistema de impressão e as de resultado ao termo impresso. Isto posto, é possível constatar que<br />
as definições unicamente baseadas nas tecnologias dos sistemas de impressão anteriores aos<br />
digitais tendem a enfocar matriz e suporte como pilares conceituais e os posteriores, grafismo<br />
e suporte. Ambas, contudo, compreendem a tinta como condutor recorrente do grafismo para<br />
o suporte em várias circunstâncias.<br />
Como a matriz cumpre a função de guardar o grafismo e este está presente em<br />
qualquer sistema de impressão, a perspectiva digital moderada, por assim dizer, pode ser<br />
assumida na atualidade sem maiores prejuízos ao entendimento contemporâneo do termo. É<br />
importante que o fator mecânico enfatizado por alguns autores seja suprimido afim de se evitar<br />
confrontos infrutíferos frente ao fotoquímico, elétrico, eletrônico, entre outros. Já o caráter de<br />
reprodução em série deve ser observado enquanto potencial e sua realização deve submeterse<br />
a alguns critérios, como os de escolha do sistema de impressão indicados por Villas-Boas<br />
(2008): deficiências e vantagens apresentadas pelo processo; tiragem; custo; suporte; oferta<br />
e operacionalidade de fornecedores; conhecimento prévio do processo e usabilidade.<br />
De modo geral, a persistência no uso de conceitos pré-digitais pode originar estranhos<br />
conflitos, como o questionamento da legitimidade de uma página obtida através de um sistema<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Classificação e escolha de um sistema de impressão<br />
jato de tinta enquanto impresso, já que a mesma não implica na geração de uma matriz de<br />
corpo físico.<br />
Alguns dos sistemas de impressão mais utilizados<br />
Em linhas gerais, uma série de autores concorda que os designers utilizam com mais<br />
freqüência alguns sistemas de impressão específicos no seu cotidiano, seja para produção ou<br />
acabamento de suas peças gráficas. Tipografia, flexografia, offset, rotogravura, tampografia,<br />
serigrafia, jato de tinta e laser são alguns desses sistemas que recebem maior atenção. Desse<br />
modo, o preparo da suas matrizes e mecânica de funcionamento serão descritos a seguir para<br />
qualificá-los de forma adequada.<br />
As principais características dos impressos resultantes de cada sistema e algumas<br />
outras informações relevantes também serão apresentadas.<br />
Tipografia<br />
A invenção da prensa para o uso de tipos móveis proposta por Gutenberg em 1450 foi<br />
uma inovação tecnológica revolucionária sem precedentes na historia gráfica (FRIEDL; OTT;<br />
STEIN; 1998). Apesar dos chineses já utilizarem tipos móveis de cerâmica, madeira ou mesmo<br />
bronze, cerca de quatro séculos antes, o uso da prensa adequado ao alfabeto latino provocou<br />
grande impacto na produção editorial mundial (RIBEIRO, 2003). A simplicidade do sistema<br />
de escrita ocidental combinada a tecnologia originária da xilogravura foi a chave para o seu<br />
sucesso.<br />
Responsável pelo surgimento da imprensa como entendemos foi o único processo<br />
industrial de impressão durante séculos e o principal até bem pouco tempo, aproximadamente<br />
1950 (Fernandes 2003: 131).<br />
Primariamente a tipografia implica na composição manual de textos através da<br />
combinação de tipos feitos com uma liga de chumbo, antimônio e estanho organizados em<br />
bandejas metálicas, galés, com o auxilio de instrumentos que definem a largura das colunas,<br />
componedores. Madeira e linóleo também são utilizados para a confecção de tipos de corpos<br />
maiores.<br />
Depois de organizados linha a linha esse tipos são presos a um quadro de perfil metálico,<br />
rama, com o auxílio de barras de ferro, cotaços, que são pressionadas contra as paredes<br />
internas da rama através da ação de alargadores, cunhos. Somente então a matriz, presa a<br />
rama, será fixada a impressora (CRAIG, 1996: 16).<br />
Os tipos possuem caracteres que encontram-se em relevo – 23,566mm no sistema<br />
francês, mais usado no Brasil, e 23,317mmno sistema anglo-americano – para serem entintados<br />
sem permitir que a área ao seu redor, sendo mais baixa em média 1mm, receba tinta e portanto<br />
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Classificação e escolha de um sistema de impressão<br />
imprima. Após depositada na superfície alta dos tipos por meio de rolos flexíveis – operados<br />
manual ou mecanicamente – a tinta pastosa é transferida diretamente para o suporte por meio<br />
de pressão, semelhante ao que se faz com um carimbo (CRAIG, 1996: 80).<br />
Todavia, o arranjo puramente de tipos móveis não é a única possibilidade de obtenção<br />
de matriz tipográfica. O uso de clichês para a representação de ilustrações a traço e retículas<br />
combinado aos tipos é muito comum nesse sistema.<br />
Há três tipos básicos de impressoras tipográficas: de platina, plano-cilíndricas e rotativas.<br />
Na de platina duas superfícies planas se juntam para imprimir, uma contém a matriz e<br />
a outra, chamada de platina, proporciona a pressão necessária ao processo. Há dois tipos de<br />
maquinas de platina: a de cofre plano, utilizada por Gutenberg, e a vertical, conhecida como<br />
Minerva ou Boca de Sapo.<br />
A plano-cilíndrica consiste num cofre plano, que sustenta a matriz e um cilindro que<br />
substitui a platina. A primeira impressora plano-cilíndrica foi fabricada por Friederich Koenig,<br />
em 1811 (CRAIG, 1996: 82).<br />
Por fim, a cilíndrica, diferente das outras, possui matriz curva, que se encaixa no<br />
cilindro ou o envolve completamente. Este cilindro da matriz recebe pressão de um outro<br />
cilindro para realizar sua tarefa atingindo velocidades mais altas que as outras impressoras<br />
tipográficas. Uma evolução da plano-cilíndrica utilizada pela primeira vez em 1814 pelo jornal<br />
Times (HEITLINGER, 2006).<br />
Atualmente a tipografia é utilizada pelos designers em pequenas e até médias tiragens<br />
de projetos especiais e/ou para acabamento de impressos. As impressoras de platina resistem<br />
em várias gráficas atuais que as utilizam para realizar a numeração de talonários e aplicação de<br />
relevo seco, sendo muitas vezes adaptadas para corte&vinco e hot-stamping.<br />
Flexografia<br />
De acordo com a Flexographic Technical Association (2009) a flexografia é originalmente<br />
um sistema de impressão tipográfico total que utiliza clichês de borracha e tintas líquidas de<br />
rápida secagem. Uma adaptação das impressoras tipográficas cilíndricas para produções de<br />
baixo custo com anilina criada por volta de 1860 nos Estados Unidos.<br />
Atualmente a flexografia utiliza matrizes de fotopolímeros que são entintadas por<br />
um cilindro dotado de sulcos conhecido como anilox. De modo geral, a tinta é depositada<br />
nesse cilindro de superfície metálica ou cerâmica e transportada do tinteiro para a matriz.<br />
Todavia Fernandes (2003: 140) afirma que a matriz de flexo é entintada diretamente por um<br />
rolo revestido de moletom que funciona como se fosse uma almofada umedecida flexível –<br />
mecânica somente verificada nas impressoras mais antigas.<br />
Um entendimento mais claro do avanços tecnológicos é apresentado por Villas-Boas<br />
(2008: 92-95) que divide as impressoras flexográficas em três tipos: rudimentar, convencional<br />
e de ultima geração.<br />
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Classificação e escolha de um sistema de impressão<br />
As rudimentares funcionam conforme Fernandes (2003) indica.<br />
As convencionais já funcionam com o cilindro do tinteiro em contato com o anilox<br />
para intermediar a distribuição de tinta a base de álcool ou água na matriz. As máquinas<br />
são equipadas para impressão simultânea de seis a doze tintas diferentes. Suas fôrmas<br />
relevográficas planas flexíveis ao curvarem-se para fixação no cilindro da matriz, chamado<br />
cilindro da borracha, deformam-se comprometendo a qualidade da impressão.<br />
Por fim, as de última geração implicam em quatro inovações básicas que permitem<br />
explorar retículas impressas com qualidade próxima as do offset: o uso de sistema CTP para<br />
moldar a laser os grafismos das matrizes, o uso de tintas UV, o uso de matrizes cilíndricas de<br />
fotopolímeros – as chamadas camisas – e o contato direto do anilox com o tinteiro. Sobretudo<br />
a compensação da deformidade provocada pela curvatura das matrizes planas ocorrida nas<br />
camisas e a maior qualidade e durabilidade das tintas permitem meios-tons mais definidos.<br />
Muitas impressoras de flexografia possuem sistemas de acabamento e montagem<br />
de embalagens acoplados, realizando tarefas além da impressão, tais como: corte, dobra,<br />
colagem, selagem plástica, grampeamento, etc.<br />
Comum, até bem pouco tempo, no setor de embalagens apenas para a produção de<br />
caixas e sacolas plásticas de baixa qualidade a flexografia hoje é utilizada na confecção de<br />
embalagens de biscoitos, laticínios, chocolates e produtos de higiene.<br />
Offset<br />
O offset é um sistema de impressão baseado na litografia, uma técnica de gravura<br />
inventada em 1798 na Alemanha, por Alois Senenfelder. O principio básico da litografia é a<br />
incompatibilidade recíproca entre água e substâncias gordurosas.<br />
Mais de um século após a invenção da litografia o offset surge em 1903, por obra do<br />
americano Washington Rubel. O mesmo princípio foi utilizado no offset, as zonas de impressão<br />
das matrizes, chapas de impressão, são lipófilas e atraem a tinta gordurosa, repelindo a água.<br />
Por sua vez, as zonas não impressoras são hidrófilas e atraem a água repelindo a tinta.<br />
Dois avanços da litografia foram determinantes para o desenvolvimento da impressão<br />
offset: a invenção da fotolitografia, impressão litográfica baseada nas propriedades da<br />
albumina bicromatada, e a substituição das matrizes de pedra por lâminas metálicas de zinco<br />
ou alumínio (BAER, 2005: 187-188).<br />
Hoje, esse sistema é capaz de reproduzir grafismos de várias cores em diversos suportes<br />
em uma escala industrial. A maioria das impressoras offset são fabricadas para funcionar com<br />
uma, duas ou quatro tintas diferentes. Cada tipo de impressora dá naturalmente suporte a um<br />
tipo de trabalho. As projetadas para operar com uma tinta por vez suportam a monocromia,<br />
as com duas tintas suportam a bicromia e as com quatro suportam a policromia. Todavia,<br />
esta relação não é estanque. É possível, por exemplo, realizar com sucesso trabalhos de<br />
bicromia em impressoras concebidas para operar com monocromias. Basta imprimir o papel<br />
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Classificação e escolha de um sistema de impressão<br />
duas vezes, carregando a máquina com uma tinta diferente a cada vez. Do mesmo modo, os<br />
outros equipamentos podem adequar-se a soluções desta natureza ou simplesmente ignorar<br />
a possibilidade de uso de uma tinta.<br />
Muito do que é preciso saber para entender a mecânica de funcionamento da impressão<br />
offset está ligado a dois aspectos: o funcionamento de um castelo de impressão e os tipos de<br />
impressoras.<br />
Castelo de impressão é o nome dado ao conjunto de cilindros, ou módulo impressor, que<br />
compõem o mecanismos de funcionamento básico das impressoras offset. Toda impressora<br />
desta natureza possui ao menos três cilindros que irão agir em rotação: cilindro da chapa,<br />
cilindro de borracha e cilindro de impressão.<br />
O cilindro da chapa é envolvido com a matriz de impressão e recebe a aplicação direta<br />
de tinta, pela ação dos cilindro entintadores, e solução de molhagem (normalmente composta<br />
por água e ácido fosfórico), pela ação dos cilindros molhadores.<br />
O cilindro de borracha, também chamado blanqueta ou caucho, toca o cilindro da<br />
chapa e recebe a imagem que é transferida para sua superfície neste momento. É o caucho<br />
quem toca a superfície do papel. A matriz de impressão nunca toca diretamente o papel<br />
caracterizando o processo offset de impressão como indireto.<br />
O cilindro de impressão desempenha a função de pressionar o papel contra o caucho<br />
para permitir a transferência da tinta ao papel.<br />
A qualidade da impressão offset se deve em grande parte a transferência indireta da<br />
imagem ao suporte. O excesso de tinta e sobretudo de água eliminado pela blanqueta poderia<br />
comprometer a resistência do papel. Também a dureza da superfície da matriz em contato<br />
com o suporte não permitiria que a tinta fosse depositada adequadamente. Mesmo que<br />
praticamente microscópicas, as imperfeições da superfície dos papeis devem ser cobertas<br />
de tinta em seus altos e baixos relevos para que não haja falhas nos grafismos resultantes,<br />
operação impossível para o duro metal da chapa.<br />
Cada cor de seleção ou especial utilizada em um trabalho determina na prática uma<br />
impressão diferente, uma entrada em máquina e cada entrada demanda um castelo. Assim,<br />
uma máquina própria para monocromia possui apenas um castelo, uma própria para bicromia,<br />
dois e uma para policromia, quatro. Todos dispostos em seqüencia linear.<br />
Cada castelo recebe apenas uma chapa de impressão por vez e por conseqüência é<br />
carregado com uma tinta para cada entrada de máquina.<br />
Uma curiosidade comum ao offset que pode influenciar no resultado das impressões<br />
é o ganho de ponto das impressoras. Trata-se de uma característica praticamente única de<br />
cada equipamento que aumenta ou diminui ligeiramente a dimensão dos pontos gravados<br />
nas chapas. Também por conta desta característica as matrizes devem apresentar todos os<br />
dispositivos gráficos de controle de cor presentes nos arquivos finalizados e nos fotolitos.<br />
Planas e rotativas são os tipos mais comuns de impressoras offset.<br />
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Classificação e escolha de um sistema de impressão<br />
As planas são alimentadas por folhas de papel e podem ser grandes, médias e de<br />
pequeno porte. O dimensionamento desses portes está diretamente relacionado ao tamanho<br />
das folhas com as quais alimenta-se essas máquinas.<br />
As menores utilizam formatos próximos aos de uso caseiro, como A4, ofício, A3 e até<br />
duplo ofício. As de médio porte utilizam-se de formatos baseados no chamado corte industrial,<br />
fabricado para atender as demandas da industria gráfica. Os formatos mais comuns partem<br />
do BB. As impressoras de médio porte são alimentadas com papéis a partir de formato 4, ou<br />
seja ¼ de folha BB, até formato 2, ½ de folha BB, ou simplesmente B. Por fim, as impressoras<br />
de grande porte trabalham com formatos acima de B, quase sempre com folhas inteiras.<br />
Apesar das impressoras de menor formato terem caído em dês-uso o tamanho das<br />
impressoras não reflete atualmente a tecnologia que elas possuem, nem tão pouco sua<br />
qualidade. Impressoras de médio porte tem sido fabricadas com altíssima tecnologia.<br />
As rotativas são alimentadas por bobinas de papel e normalmente apresentam reversão.<br />
Reversão é o recurso que permite com que esses equipamentos imprimam as duas faces do<br />
papel ao mesmo tempo. São muito utilizadas nos parque gráficos de jornais e algumas grandes<br />
gráficas que necessitam de prazos curtos para impressão e acabamento. Em muitos casos<br />
as rotativas possuem equipamentos de dobra, refile e encadernação de alta performance<br />
acoplados a sua estrutura, o que acarreta ganho significativo de tempo na realização de vários<br />
trabalhos (BUGGY, 2009: 16-18).<br />
Rotogravura<br />
Segundo Craig (1996) e Fernandes (2003) a rotogravura tem origem nos processos<br />
de gravura em metal encavográficos de pressão plana, como ponta seca, talho-doce e água<br />
forte. Curiosamente, Villas-Boas (2008) atribui esta origem a industria têxtil do século XIX.<br />
É sabido que uma série de impressões, normalmente monocromáticas, foi desenvolvida na<br />
Europa naquela época através da ação de rolos gravados (GINZBURG, 1993). A pressão linear<br />
desses sistemas de impressão têxteis e a forma de suas matrizes faz plausível essa teoria,<br />
apesar da mesma não encontrar eco na obra de outros autores da produção gráfica. De toda<br />
sorte, o uso de matriz metálica com áreas de grafismo gravadas em baixo relevo para conter<br />
tinta é comum às duas origens mencionadas.<br />
A impressão rotográfica se realiza da seguinte forma: um cilindro de superfície metálica<br />
e/ou cerâmica é imerso dentro do tinteiro e girado para ser completamente coberto pela tinta.<br />
Este cilindro possui todas as informações do grafismo registradas em reticulas de pontos<br />
côncavos. Para evitar excesso de tinta no contato com o suporte, a matriz é raspada por uma<br />
espécie de rodo metálico, a racla, fazendo com que a tinta fique depositada nas cavidades do<br />
cilindro. Após esta operação a matriz toca o suporte pressionado por um cilindro de impressão<br />
(FERNANDES, 2003: 139). Desse modo, o suporte busca a tinta que se aloja nas pequenas<br />
perfurações da superfície da matriz, os alvéolos.<br />
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Classificação e escolha de um sistema de impressão<br />
O uso de tintas líquidas a base de solventes fortes e voláteis, como o thinner, é imposto<br />
pela velocidade da rotogravura e pela dimensão minúscula dos alvéolos.<br />
As impressoras de rotogravura são normalmente equipamentos de grande porte<br />
dimensionados para execução de altas e altíssimas tiragens com grande qualidade (RIBEIRO,<br />
2003). Os suportes podem ser os mais diversos. Papel, papelão, plásticos, tecidos, metal,<br />
etc. Em geral, o acabamento é realizado in line (processos acoplados às impressoras)<br />
como na flexografia, incluindo plastificação e aplicação de vernizes. É muito comum que<br />
essas impressoras de alta performance trabalhem simultaneamente com seis a oito tintas<br />
possibilitando impressão simultânea de cores de seleção e cores especiais (VILLAS-BOAS,<br />
2008: 100).<br />
Pode-se citar como impressos do processo de impressão de rotogravura os miolos de<br />
revistas de grande tiragem, maços de cigarros e as embalagens flexíveis de produtos como<br />
biscoito, café, etc. (FERNANDES, 2003: 139).<br />
Tampografia<br />
Inventado recentemente, por volta de 1970, a tampografia segundo Fernandes (2003)<br />
é uma resposta para atender às necessidades de impressão no interior de objetos côncavos.<br />
Todavia, superfícies de objetos convexos também podem ser impressas pelo mesmo processo.<br />
Existem dois tipos elementares de impressoras tampográficas: a de tinteiro enclausurado<br />
e a de tinteiro aberto.<br />
Nas impressoras de tinteiro aberto um clichê encavográfico é percorrido por um bico<br />
distribuidor de tinta, para que, a seguir uma racla remova a tinta das áreas de contragrafismo,<br />
forçando também a entrada da mesma nas áreas de grafismo. Na seqüência, uma peça de<br />
silicone muito flexível, o tampão, é pressionada sobre a matriz, a tinta adere a essa peça e é<br />
por ela transferida para o suporte, que deve estar acomodado em um gabarito (FERNANDES,<br />
2003: 144).<br />
O componente mais sensível do processo tampográfico, o tampão, é um elastômero<br />
inalterável com alto poder de transferência basicamente constituído por uma mistura de<br />
borracha de silicone, óleo e catalisador, todos cuidadosamente dosados. Sua forma e dureza<br />
são determinantes para a qualidade e velocidade da impressão.<br />
Muito utilizada no setor de brindes para impressão de objetos tridimensionais a<br />
tampografia utiliza tintas líquidas e coloidais para a produção de pequenas e médias tiragens<br />
(FERNANDES, 2003: 144).<br />
Serigrafia<br />
Segundo Fernandes (2003: 141) o processo de impressão serigráfico foi inventado na<br />
China há alguns séculos. Dov Kruman (2000) editor do jornal O Serigráfico – importante veículo<br />
do mercado nacional especializado – indica a mesma origem datando-a, contudo, 3.000 anos<br />
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Classificação e escolha de um sistema de impressão<br />
antes da era cristã. O primeiro registro desta impressão seria um selo real com o qual as<br />
monarquias imperiais da Ásia Menor davam valor de documento a um escrito. Já Baer (2003)<br />
acredita que sua origem esteja no Japão.<br />
Séculos ou milênios, China ou Japão? Independente da idade e origem, este sistema<br />
consiste em uma evolução mais de perspectiva do que de tecnologia de um método de<br />
gravura, classificado por Fajardo (1999: 70) como gravura a estampilha, para um sistema de<br />
impressão comercialmente aceito.<br />
É fato que, recentemente, a serigrafia ganhou uma série de incrementos e passou<br />
a atender tiragens de volumes sensivelmente ampliados em relação a impressão plana<br />
convencional (VILLAS-BOAS, 2008).<br />
Segundo Ribeiro (2003: 134) a serigrafia baseia-se num principio muito simples, consiste<br />
no resultado da compressão de tintas líquidas ou coloidais, com uma espátula normalmente<br />
de borracha, o rodo, através de um estêncil elaborado numa tela de fios tramados, sobre a<br />
superfície que se quer imprimir.<br />
De modo geral as impressoras serigráficas dividem-se hoje em dois grandes grupos:<br />
planas e rotativas.<br />
As planas podem ser manuais, semi-automáticas ou mesmo automáticas e utilizam o<br />
mesmo tipo de matriz confeccionada a partir de um bastidor de madeira ou metal no qual é<br />
tencionada uma tela de seda, náilon ou metal. As áreas de contragrafismo são impermeabilizadas<br />
para inibir a passagem da tinta (FERNANDES, 2003: 141-142).<br />
As rotativas partem do mesmo principio de permeabilidade, mas suas matrizes são<br />
cilíndricas e proporcionam uma pressão linear. Esses cilindros são formados por telas metálicas<br />
com malha de níquel confeccionadas por processo galvânico. A tinta é localizada dentro da<br />
matriz e transferida para o suporte a partir da pressão de raclas que se localizam do seu<br />
interior (VILLAS-BOAS, 2008: 89-90).<br />
A serigrafia é um sistema extremamente versátil que permite a impressão não só sobre<br />
papel e tecido, mas também sobre laminados plásticos, plásticos rígidos, tecidos, lonas,<br />
suportes tridimensionais, metais, vidros, cerâmica e uma infinidade de materiais, inclusive em<br />
superfícies convexas (VILLAS-BOAS, 2008: 85). Fernandes (2003) também inclui superfícies<br />
de pouca concavidade nessa lista de possibilidades.<br />
Se por um lado o desenvolvimento de sistemas digitais comprometeu o emprego da<br />
serigrafia na área da sinalização – placas, banners, faixas, entre outros outrora eram quase que<br />
exclusivamente produzidos serigraficamente – e o desenvolvimento da flexografia comprometeu<br />
seu emprego no setor de embalagens, por outro a indústria de eletrodomésticos e placas de<br />
circuito abriu uma nova seara para o desenvolvimento desse processo de impressão.<br />
Jato de Tinta<br />
Processo empregado pelas impressoras pessoais mais bem aceitas hoje no mercado<br />
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Classificação e escolha de um sistema de impressão<br />
o jato de tinta é o sistema digital de mais baixo custo de aquisição (VILLAS-BOAS, 2008:<br />
p.110). Possui boa precisão e qualidade de impressão, com fácil manuseio e manutenção<br />
(FERNANDES, 2003: 151). Nesta condição, é muito utilizado pelos designers para geração de<br />
provas durante a concepção dos projetos gráficos.<br />
A Hewlett-Parkard, inventora do sistema, desenvolveu a primeira impressora jato de<br />
tinta em 1976, todavia ela somente tornou-se um produto de consumo doméstico em 1988.<br />
De modo geral, suas impressoras funcionam conectadas a um sistema digital de<br />
tratamento de imagens e operam a partir do controle por arquivos de pulsos eletrônicos, como<br />
qualquer outro sistema digital. Considerados por muito autores como matrizes não-físicas<br />
esses arquivos impossibilitam o contato entre matriz e suporte. Toda informação de grafismo<br />
contida neles é decodificada para a compreensão das impressoras através de uma linguagem<br />
de descrição de página que irá controlar os cabeçotes de impressão.<br />
Os cabeçotes, ou cabeças, são peças chave na tecnologia jato de tinta. São<br />
responsáveis pela aspersão de jatos de tinta, geralmente líquida e a base de água, desferidos<br />
quase sempre sob demanda contra os suportes (FERNANDES, 2003: 149-151). Além da tinta<br />
líquida algumas impressoras utilizam tintas sólidas.<br />
Segundo Baer (2005: 125) as impressoras jato de tinta dividem-se em dois tipos: as<br />
que trabalham com tinta, cujo jato funciona sob demanda (drop on demand) e as de jato<br />
contínuo (contunuous flow).<br />
As impressoras sob demanda funcionam por meio de vaporização de gotículas de tinta,<br />
as bubble jet (jato de bolhas), ou pela ação de bombeamento, as piezoelétricas (VILLAS-BOAS<br />
2008: 110). Esta classificação é muito bem aceita pelos principais fabricantes de impressoras<br />
jato de tinta, HP, Epson e Canon.<br />
As impressoras bubble jet aquecem a tinta líquida no interior de pequenos reservatórios,<br />
os cartuchos de impressão, através de uma resistência, formando pequenas bolhas de ar que<br />
fazem a tinta espirrar contra o suporte orientadas por micro dutos presentes nas cabeças<br />
de impressão. Cabe frisar que a tinta empregada neste sistema não encontra-se vaporizada<br />
dentro dos cartuchos, apenas entra em ebulição no momento da impressão.<br />
Por sua vez, as piezoelétricas funcionam como uma bomba microscópica, borrifando<br />
tinta sobre o suporte. Neste caso, as cabeças de impressão possuem um pequeno canal<br />
dentro do qual posiciona-se um cristal. Ao receber eletricidade este cristal vibra, fazendo com<br />
que gotículas de tinta sejam expelidas para fora do cartucho (EPSON DO BRASIL, 2009).<br />
Villas-Boas (2008) ainda chama atenção para uma terceira espécie de impressora jato<br />
de tinta sob demanda, a de troca de estado. Essas impressoras que utilizam-se da mudança<br />
de fase da tinta trabalham com lâminas de sólidas que são derretidas e borrifadas contra<br />
os suportes onde tornam a solidificar-se com o auxílio de cilindros, agentes de pressão e<br />
resfriamento.<br />
Nas impressoras de jato contínuo a tinta não é lançada de modo intermitente. Nelas<br />
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Classificação e escolha de um sistema de impressão<br />
mecanismos lançam a tinta de maneira constante dirigindo eletroestaticamente os jatos contra<br />
o suporte (BAER, 2005: 125).<br />
Empregada em pequenos formatos a impressão jato de tinta contempla sobretudo<br />
papeis. Em formatos maiores possibilitam a impressão em lonas, películas auto-adesivas de<br />
vinil, tecidos, papeis e uma serie de filmes gráficos (FERNANDES, 2003: 152).<br />
Independente do tamanho e do tipo de tinta todas as impressoras jato de tinta utilizamse<br />
de retículas estocásticas. Desde 1993 essa alternativa para simulação de meios-tons ganha<br />
espaço na industria gráfica. A retícula estocástica reproduz tons não por pontos organizados<br />
geometricamente numa pequena rede – como no caso das reticulas de ponto comuns a<br />
maioria dos sistemas de impressão – mas, por uma distribuição aparentemente aleatória de<br />
respingos microscópicos de tinta (07 a 40 milésimos de milímetro) distribuídos em áreas de<br />
maior ou menor concentração (VILLAS-BOAS, 2008: 47, 110).<br />
Laser<br />
Em termos genéricos, Baer (2005: 205) afirma existir pelo menos três sistemas<br />
eletrográficos amplamente reconhecidos: a xerografia ou eletrofotografia indireta, a<br />
eletrofotografia e a impressão eletroestática. Villas-Boas (2008) compartilha dessa lógica,<br />
todavia, não há consenso claro entre os principais autores contemporâneos da produção<br />
gráfica nacional a respeito desta divisão.<br />
Baer (2005) se refere a impressão laser como xerográfica, Villas-Boas (2008), por sua<br />
vez, como digital e Fernandes (2003), como eletroestática. Essas diferenças podem suscitar<br />
dúvidas a respeito dos conceitos envoltos nesta classificação de sistema de impressão.<br />
Apesar dos conflitos conceituais, parece sensato crer que o sistema laser é resultado<br />
da evolução da xerografia, de sistema convencional para digital, conforme indica Fernandes<br />
(2003: 152).<br />
Elaborada por Carlson em 1938 e aperfeiçoada no Battelle Memorial Institute, nos<br />
Estados Unidos, a xerografia foi associada ao laser em 1960 originando a copiadora Xerox<br />
914 (XEROX DO BRASIL, 2009). Em 1989 a mesma empresa lança a impressora DocuThec,<br />
um marco na transição do uso de eletricidade estática na impressão. Esse equipamento foi<br />
criado para funcionar simultaneamente como copiadora e impressora digital (VILLAS-BOAS,<br />
2008: 84).<br />
Segundo Fernandes (2003: 152) originalmente as copiadoras trabalhavam apenas com<br />
matrizes físicas – um original que servia de padrão para reprodução de cópias. Com a adição<br />
da capacidade de comando por sistemas digitais operado a partir de arquivos os princípios do<br />
processo laser xerográfico não foram alterados.<br />
O funcionamento desse tipo de impressão se dá, inicialmente, pela ação de feixes<br />
de laser que carregam eletroestaticamente um cilindro revestido de selênio nas áreas que<br />
correspondem ao que será impresso. Simultaneamente, o toner recebe um carga eleroestática<br />
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Classificação e escolha de um sistema de impressão<br />
de sinal oposto ao do cilindro. Desta forma, a eletricidade estática do cilindro, concentrada nas<br />
áreas que formam a imagem que será reproduzida, atrai o toner, que adere então ao cilindro<br />
e, em seguida, é transferido para o suporte, que recebeu carga elétrica de maior intensidade.<br />
Finalmente, a imagem formada pelo toner é fixada no suporte por calor e pressão ou somente<br />
por calor, etapa denominada de polimerização.<br />
Toner é uma tinta não condutora, geralmente em forma de pó seco, algumas vezes<br />
disperso em liquido, cujas partículas plásticas são carregadas eletroestaticamente e transferidas<br />
para o suporte (BAER, 2005: 205).<br />
Vale lembrar que o cilindro funciona como uma espécie de suporte para a matriz que<br />
é virtual. Uma vez finda a impressão, ele se regenera para construir uma nova matriz. O uso<br />
dessas matrizes virtuais permite ajustes e customização de impressos em qualquer tiragem<br />
(VILLAS-BOAS, 2008: 80).<br />
Atualmente a chamada impressão laser é muito utilizada para pequenas tiragens, pois<br />
não possui custo de partida – custo fixo associado a chapas, fotolitos e acerto de máquina.<br />
Porém, o custo unitário da impressão laser é maior se comparado ao offset e a outros sistemas<br />
convencionais acima de tiragens médias.<br />
Para pequenos formatos as opções de suportes são limitadas, normalmente reduzida<br />
aos papeis indicados e/ou produzidos pelos fabricantes das impressoras. Já para grandes<br />
formatos, utilizados no mercado de sinalização, as opções são mais variadas passando por<br />
tecidos, lonas, películas auto-adesivas de vinil, filmes gráficos e papeis (VILLAS-BOAS, 2008:<br />
80-83). Uma lógica de uso muito semelhante ao encontrado no segmento do jato de tinta.<br />
Outros processos<br />
Alguns processos de menor popularidade merecem certa atenção dos designers. Apesar<br />
de pouco difundidos ocupam espaços específicos no mercado de impressão revelando-se<br />
muitas vezes opções interessantes. Tratam-se de adaptações e/ou inovações dos demais<br />
processos já vistos neste relato.<br />
Di-litho é uma evolução da litografia originaria dos anos 1970. Um processo simples<br />
que consiste no uso de chapas offset em maquinas tipográficas. Seu resultado é superior a<br />
impressão tipográfica e inferior a offset.<br />
Letterset foi durante muito tempo conhecido como offset seco, título hoje ostentado<br />
pelo sistema Indigo. Também originário dos anos 1970, é um processo misto, com matrizes em<br />
relevo de fotopolímero adaptadas a impressoras offset. Os grafismos em relevo são entintados<br />
e transferidos para uma blanqueta de borracha para enfim chegar ao suporte.<br />
O Indigo é conhecido como o offset digital. Um processo que alia uma matriz típica da<br />
eletrografia, virtual e determinada por fenômenos eletroestáticos, com uma impressão indireta<br />
por meio de blanqueta, característica comum ao offset convencional.<br />
Sob a ação de um laser, direcionado pelos dados digitais fornecidos por arquivos<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Classificação e escolha de um sistema de impressão<br />
informatizados, as imagens que serão impressas são definidas eletroestaticamente num<br />
cilindro fotocondutor orgânico. A energia eletroestatica atrai a tinta, a electroink, para essas<br />
áreas. Para impressos com mais de uma cor esta operação ocorre mais de uma vez antes<br />
da tinta ser transferida para uma blanqueta também eletroestática revestida de teflon. Da<br />
blanqueta todas as tintas são transferidas simultaneamente para o suporte.<br />
Este é um dos raros processos em que apenas uma impressão ocorre durante o uso<br />
de tintas de cores diferentes. Normalmente as impressoras Índigo são equipadas para operar<br />
com até seis cores ao mesmo tempo nas duas faces do suporte.<br />
Routers são plotters de corte dotados de facas de grande resistência, capazes de<br />
cortar, esculpir ou cavar madeira, alumínio, poliuretano e outros suportes rígidos (VILLAS-<br />
BOAS, 2008: 104-109).<br />
A transferência térmica se dá a partir da passagem de pigmentos que tem como veículos<br />
cera ou plástico, geralmente em forma de fita, para o suporte. Sua impressão é superior ao<br />
jato de tinta e laser, todavia não muito popular em nosso país.<br />
A sublimação, ou dye sublimation, utiliza tintas solidas em forma de filme, que<br />
são transferidas para o suporte por meio de cabeçotes via pressão e/ou ação térmica. A<br />
transferência de pigmentos obedece ao nível de calor determinado pelo cabeçote: quanto<br />
mais quente, mais pigmento é transferido. Seus pontos possuem tamanho fixo, mas variam<br />
em densidade do centro para as bordas. São equipamentos de altíssima precisão e suas<br />
impressões reproduzem meios tons com incomparável qualidade. Alguns birôs de préimpressão<br />
chegam a utilizar essas impressoras como impressoras de prova, mesmo este<br />
procedimento não sendo plenamente recomendado.<br />
Embora não seja um processo de impressão Villas-Boas (2008: 108) considera que o<br />
corte eletrônico deve ser abordado por tratar-se de um processo de reprodução largamente<br />
empregado pelos designers.<br />
Para entender melhor este sistema digital de reprodução de grafismos é importante<br />
conhecer previamente o conceito de plotter.<br />
O termo plotter hoje reúne uma enorme variedade de processos diferenciados que<br />
pouco ou nada têm a ver entre si. Originalmente associado a equipamentos de reprodução<br />
de imagens em grandes formatos voltados a cartografia e engenharia a partir de 1990 passou<br />
a ser referir a impressoras jato de tinta alimentadas por papéis de largura superior a 50 cm.<br />
Atualmente os plotters também abrangem equipamentos de grandes formatos que utilizam as<br />
tecnologias laser e de corte eletrônico.<br />
Os plotters de corte eletrônico, ou simplesmente de corte, são equipados com pequenas<br />
facas de precisão dedicadas à determinação das imagens a partir do recorte do suporte,<br />
normalmente lâminas de vinil adesivo em bobinas. Dos mesmo modo que as impressoras<br />
jato de tinta e laser, os plotters de corte são controlados por arquivos digitais que orientam as<br />
cabeças de corte na descrição dos grafismos desejados.<br />
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Classificação e escolha de um sistema de impressão<br />
Esse equipamentos são capazes de reproduzir apenas imagens a traço. Uma vez<br />
ajustados os arquivos a esta condição cada película auto-adesiva de vinil é recortada de forma<br />
que a profundidade desses cortes não alcance a base de papel que protege o adesivo e que<br />
mantém unida toda a superfície do suporte mesmo após a ação das lâminas.<br />
Efetuando o processo no número de lâminas condizente com o número de cores<br />
desejado, elas são afixadas de modo que uma se sobreponha à outra, formando o layout<br />
desejado.<br />
Muito utilizado no setor de sinalização para viabilizar a produção de banners e placas<br />
os plotters de recorte podem auxiliar no acabamento de pequenas tiragens de impressos<br />
oriundas de sistemas de impressão digitais ou mesmo convencionais (BUGGY, 2009).<br />
Nova proposta de classificação dos sistemas de impressão<br />
A decisão pelo uso de definições mais ou menos ortodoxas do termo impressão interfere<br />
diretamente na classificação dos tipos de sistemas.<br />
Segundo Villas-Boas (2008: 57) a forma e o tipo de funcionamento da matriz que<br />
cada sistema utiliza sugerem uma das maneiras mais eficientes de classificá-los. Assim,<br />
se considerarmos uma visão contemporânea para analisar a forma das matrizes podemos<br />
identificar sete grandes tipos de sistemas de impressão:<br />
• Relevográficos. Sistemas que utilizam matriz em alto-relevo. Neles os grafismos que<br />
serão impressos ficam em relevo na matriz e são entintados para serem impressos no<br />
suporte mediante pressão. Trata-se do mesmo princípio utilizado nos carimbos;<br />
• Encavográficos. Sistemas que utilizam o mecanismo inverso ao dos relevográficos,<br />
baseiam-se numa matriz em baixo-relevo. Os elementos que serão impressos são<br />
formados por áreas em baixo-relevo na matriz, que armazenam a tinta para ser<br />
transferida ao suporte mediante pressão;<br />
• Planográficos. Sistemas nos quais não há qualquer relevo para determinar a impressão.<br />
Neles a matriz é sempre plana e fenômenos físico-químicos de repulsão e atração<br />
fazem com que a tinta se aloje nas áreas de grafismo para que sua reprodução no<br />
suporte ocorra;<br />
• Permeográficos. Sistemas que utilizam matriz permeável. Os grafismos são<br />
determinados por áreas permeáveis ou perfuradas da matriz que permitem a passagem<br />
da tinta de modo que atinja o suporte conforme planejado;<br />
• Eletrográficos. Nesses sistemas a matriz é plana como nos planográficos, porém<br />
os grafismos são determinados, seja na matriz ou no próprio suporte, a partir de<br />
fenômenos eletrostáticos – e não físico-químicos. A terminologia para esses processos<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Classificação e escolha de um sistema de impressão<br />
ainda não está consolidada e muitas vezes eles são mencionados como processos<br />
digitais, processos eletrônicos, etc. devido ao fato de que os originais se constituírem<br />
em dados informatizados;<br />
• Digitais. Sistemas que utilizam matriz virtual formada por impulsos elétricos originários<br />
de um sistema informatizado. Como também se caracterizam pelo fato de o original<br />
ter a forma de dados informatizados, muitas vezes são erroneamente associados aos<br />
eletrográficos. São sistemas muito diferenciados entre si, em geral adequados a tiragens<br />
únicas, como provas de impressos que serão produzidos em médias ou altas tiragens;<br />
• Híbridos. São aqueles que envolvem componentes diferentes, como a matriz própria<br />
de um sistema aplicada à impressão própria de outro, por exemplo. Em geral referemse<br />
a equipamentos ou tecnologias muito específicos, quase sempre patenteados por<br />
fabricantes do meio gráfico.<br />
Por outro lado, se considerarmos o tipo de funcionamento dessas matrizes, levando em<br />
conta sua interação com os suportes – conforme indicam Baer (2005: 63), Fernandes (2003:<br />
128) e Ribeiro (2003: 129) – os sistemas podem ser divididos em apenas dois grandes grupos:<br />
• De impressão direta. Também chamados de diretos, são sistemas nos quais ocorre<br />
o contato direto entre a matriz e o suporte impresso (tipografia, flexografia, rotogravura,<br />
serigrafia, etc.);<br />
• De impressão indireta. Também chamados de indiretos, são sistemas nos quais há a<br />
presença de um elemento intermediário usado para transferir o grafismo da matriz para<br />
o suporte (offset, letterset, driografia, etc.).<br />
A utilização dessas duas perspectivas combinadas é simpática a vários autores, tais<br />
como Craig (1996), Collaro (2005), Rossi Filho (1999) e mesmo os já citados Villas-Boas<br />
(2008), Baer (2005), Fernandes (2003) e Ribeiro (2003) que no decorrer de suas obras acabam<br />
adotando ambas em suas definições para muitos casos.<br />
Ribeiro (2003) ainda considera uma terceira perspectiva para classificar os sistemas,<br />
na qual a impressão pode ocorrer mediante pressão plana, ou pressão linear. Pressão plana,<br />
quando toda a superfície da matriz toma contato com toda a superfície do suporte. Pressão<br />
linear, quando só uma parte da matriz toma contato com uma parte da superfície do suporte<br />
(exemplo: impressão plano-cilíndrica).<br />
As propostas de todos esses autores são complementares e podem ser utilizadas<br />
juntas para classificar melhor os sistemas de impressão. Porém, algumas inclusões de classe<br />
devem ser promovidas para atender a nova ótica. Essas acomodações serão mais sentidas<br />
nas categorias da classificação quanto ao tipo de pressão exercida pela matriz no suporte.<br />
Levando em conta sistemas como a tampografia, jato de tinta e laser é necessário<br />
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Classificação e escolha de um sistema de impressão<br />
acrescentar algumas novas categorias para adequar a definição da pressão exercida pela<br />
matriz no suporte nesses casos. São elas:<br />
• Pressão côncava. Ocorre quando toda a superfície da matriz côncava ou de um<br />
elemento côncavo intermediário usado para transferir o grafismo toma contato com<br />
toda a superfície convexa do suporte;<br />
• Pressão convexa. Ocorre quando toda a superfície da matriz convexa ou de um<br />
elemento convexo intermediário usado para transferir o grafismo toma contato com<br />
toda a superfície côncava do suporte;<br />
• Sem pressão. Alguns sistemas não prescindem do exercício de pressão para realizar<br />
a transferência de grafismos da matriz para o suporte. Nesses casos esta nomenclatura<br />
deve ser adotada.<br />
Assim, as definições de Ribeiro (2003) para pressão plana e linear devem ser ajustadas<br />
da seguinte forma:<br />
• Pressão plana. Ocorre quando toda a superfície da matriz plana toma contato com<br />
toda a superfície plana do suporte ao mesmo tempo;<br />
• Pressão linear. Ocorre quando só uma parte da matriz toma contato com uma parte<br />
da superfície do suporte por vez.<br />
Sistemas de impressão<br />
Classificação quanto<br />
ao funcionamento da<br />
matriz<br />
Classificação quanto<br />
a interação da matriz<br />
com o suporte<br />
Classificação quanto<br />
ao tipo de pressão<br />
exercida pela matriz<br />
no suporte<br />
Tipografia Relevográfico Direto Plana ou Linear<br />
Flexografia Relevográfico Direto Plana ou Linear<br />
Offset Planográfico Indireto Linear<br />
Rotogravura Encavográfico Direto Linear<br />
Tampografia Encavográfico Indireto ----<br />
Serigrafia Permeográfico Direto Plana ou Linear<br />
Jato De Tinta Digital Indireto ----<br />
Laser Eletrográfico ou Digital ---- ----<br />
Tabela 1: Quadro-resumo de classificações existentes dos sistemas de impressão<br />
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Classificação e escolha de um sistema de impressão<br />
Sistemas de impressão Classificação Proposta<br />
Tipografia Relevográfico direto plano ou linear<br />
Flexografia Relevográfico direto plano ou linear<br />
Offset Planográfico indireto linear<br />
Rotogravura Encavográfico direto linear<br />
Tampografia Encavográfico indireto convexo<br />
Serigrafia Permeográfico direto plano ou linear<br />
Jato de Tinta Digital indireto sem pressão<br />
Laser Eletrográfico ou Digital direto sem pressão<br />
Aplicando a nova proposta<br />
Tabela 2: Proposta de classificação dos sistemas de impressão<br />
Inicialmente, apresenta-se um quadro-resumo das classificações discutidas no item<br />
anterior. Esta compilação abriga as classificações segundo Craig (1996), Collaro (2005), Rossi<br />
Filho (1999), Villas-Boas (2008), Baer (2005), Fernandes (2003) e Ribeiro (2003).<br />
A proposta aqui apresentada utiliza os dados acima de forma sistemática e acrescenta<br />
informações pertinentes a classificação quanto ao tipo de pressão exercida pela matriz no<br />
suporte a fim de tornar este critério mais claro para sistemas como tampografia, jato de tinta<br />
e laser.<br />
Escolha de um sistema de impressão<br />
A escolha do sistema de impressão não é um processo automático que tem como<br />
resposta o offset para toda e qualquer circunstância. Para definir o processo de reprodução,<br />
Villas-Boas (2008) considera parâmetros que envolvem não apenas a qualidade final do<br />
impresso requerida pela situação do projeto, mas também custos, prazos e operacionalidade<br />
da produção. Assim, o autor acredita que devem ser levados em conta os 07 (sete) seguintes<br />
aspectos:<br />
• Deficiências e vantagens apresentadas pelo processo. Neste sentido a capacidade de<br />
reproduzir determinados tipos de grafismos pesa na escolha do sistema de impressão;<br />
• Tiragem, a quantidade de impressos reproduzidos em uma encomenda (FERNANDES,<br />
2003). Alguns sistemas de impressão são viáveis apenas a partir de certas tiragens<br />
(pequenas ‘unidades a centenas de exemplares’, médias ‘milhares de exemplares’,<br />
altas ‘dezenas a centenas de milhares de exemplares’ e altíssimas ‘acima de centenas<br />
de milhares de exemplares’);<br />
• Custo. Determinados processos apresentam significativo custo fixo que só se justifica<br />
em médias ou altas tiragens;<br />
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Classificação e escolha de um sistema de impressão<br />
• Suporte. Nem todos os sistemas adéquam-se a qualquer tipo de suporte desejado. É<br />
preciso compreender as afinidades e indisposições de cada sistema;<br />
• Oferta e operacionalidade de fornecedores. A disponibilidade de tecnologia combinada<br />
a logística e ao preço praticado pelos mercados pode favorecer ou inviabilizar o uso de<br />
um dado sistema;<br />
• Conhecimento prévio do processo. A adequação prematura de um projeto, ainda<br />
em fase de criação, ao sistema de produção é determinante para um uso eficiente de<br />
recursos;<br />
• Usabilidade. É preciso levar em conta se o produto será adequado ao uso que se<br />
pretende dele. Cada sistema de impressão infere características próprias a seu resultado.<br />
Após uma breve análise é possível verificar com facilidade que esses aspectos levados<br />
em conta por Villas-Boas (2008) na escolha de um sistema de impressão não consideram<br />
dimensões sociais, nem tão pouco ambientais. Dimensões essas contempladas em qualquer<br />
perspectiva elementar de design contemporâneo. Assim, introduzir a sustentabilidade como<br />
um oitavo aspecto a ser contemplado é uma proposta a ser considerada.<br />
Determinados sistemas de impressão, suportes e acabamentos podem comprometer<br />
a capacidade das futuras gerações em satisfazer suas próprias necessidades. A manipulação<br />
de material com alto risco poluente, a geração de produtos de difícil reciclagem e/ou bio<br />
degradação e o abuso de matérias primas devem ser considerados na escolha de um sistema<br />
de impressão.<br />
Segundo Jedlicka (2009), as considerações acerca da sustentabilidade para impressos<br />
são as mesmas aplicadas a qualquer projeto de design. Inicialmente, deve-se definir o problema<br />
a ser resolvido para em seguida planejar o ciclo de vida do impresso. Um impresso de vida<br />
breve como um folheto de promoções do dia de um supermercado não deve mobilizar os<br />
mesmos recursos de um livro, um bem muito mais permanente. Recursos como a laminação<br />
e a reserva de verniz dificultam a reciclagem do suporte mais utilizado pela indústria gráfica,<br />
o papel. A etapa de concepção do projeto gráfico deve considerar a vida útil do produto final<br />
para a seleção do suporte e do sistema de impressão a ser adotado. A compreensão destes<br />
aspectos tem impacto direto na primeira etapa do ciclo de vida: a pré-produção, fase que<br />
se refere à aquisição de recursos, ao transporte dos mesmos até o local de produção e à<br />
transformação destes em materiais e energia (MANZINI; VEZZOLI, 2005).<br />
Cada projeto tem demandas específicas, mas, de modo geral, pode-se optar por<br />
matéria-prima reciclada ou reciclável, atentando-se para a real possibilidade de reciclagem<br />
na comunidade em que se está inserido e sua viabilidade. Cuidados como utilizar papel livre<br />
de cloro e usar tintas à base de óleo vegetal facilitam a reciclagem dos produtos finais do<br />
processo de impressão. Deve-se ainda evitar tintas que possuam metais pesados em sua<br />
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Classificação e escolha de um sistema de impressão<br />
composição, visto que estes elementos são tóxicos e podem causar sérios danos aos seres<br />
vivos (JEDLICKA, 2009).<br />
Durante a fase de produção, deve-se buscar empresas responsáveis socialmente,<br />
que utilizem tecnologias limpas e que estejam próximas ao consumidor final, minimizando<br />
o impacto ambiental gerado pelo transporte. No Brasil, apenas 7% das gráficas possuem<br />
certificação ISO 14000, que contempla os critérios de sustentabilidade. Este fato dificulta a<br />
opção por empresas certificadas, mas o SEBRAE e a ABIGRAF apontam que este número<br />
deve dobrar até 2014 (BRITO, 2009).<br />
Além disso, pode-se reduzir o impacto ambiental negativo da impressão offset através<br />
de processos como a dryography (que não utiliza água), computer-to-plate (CTP) e direct<br />
imaging (DI) (JEDLICKA, 2009). Os principais contaminantes gerados pelas empresas gráficas<br />
advêm dos banhos necessários em vários processos, que geram efluentes líquidos que podem<br />
conter metais pesados, óleos e graxas, solventes, soluções ácidas e alcalinas, reveladores e<br />
fixadores (FIRJAN, 2006).<br />
Fernandes, (2003: 128) acredita que a escolha do processo de impressão correto<br />
para cada situação é facilitada pela classificação dos sistemas de impressão. De fato, o<br />
estabelecimento de conexões entre os aspectos acima apresentados e as classificações<br />
anteriormente comentadas, sobretudo as que dizem respeito a forma das matrizes de<br />
impressão, auxilia na obtenção de respostas eficientes, tendo em vista as considerações<br />
provocadas pelo inevitável cruzamento de dados.<br />
Conclusão<br />
A impossibilidade de uma matriz que não tenha corpo físico exercer pressão sobre um<br />
suporte ou qualquer elemento intermediário e o crescente abandono de recursos puramente<br />
mecânicos na configuração dos sistemas são os principais fatores que contribuíram para<br />
a revisão do conceito de impressão feita no início deste artigo. Ao fazê-lo observou-se a<br />
necessidade revisão no modo de classificação das tecnologias de impressão mais utilizadas<br />
no cotidiano dos designers gráficos.<br />
A complementaridade das tipologias de classificação verificada na literatura disponível<br />
em língua portuguesa indicou a possibilidade de sua aglutinação em favor de um melhor<br />
entendimento das diferenças e semelhanças entre os sistemas.<br />
O estudo aqui apresentado promoveu os ajustes demandados pelo uso em paralelo das<br />
formas de agrupamento vigentes propondo classes complementares e adequando a definição<br />
de outras a nova realidade. Os critérios de seleção indicados por Villas-Boas (2008) também<br />
foram apreciados e sua ampliação recomendada.<br />
Essas propostas trazem um novo ânimo à produção gráfica, renovando a discussão<br />
a seu respeito – a qual comumente se dá no âmbito tecnológico. Ciência e humanidade são<br />
dimensões tocadas durante o debate sobre classificação e escolha dos sistemas de impressão<br />
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Classificação e escolha de um sistema de impressão<br />
promovidos ao longo deste trabalho.<br />
A introdução de um novo paradigma presente em muitas das recentes pesquisas<br />
desenvolvidas na área do design nos critérios de seleção adotados para decidir o uso de<br />
um sistema de impressão é uma significativa contribuição deste trabalho. A sustentabilidade<br />
é, atualmente, uma prerrogativa básica de qualquer projeto de design, dada a crescente<br />
preocupação das pessoas com as alterações no meio ambiente e suas conseqüências que<br />
apontam para um problema ainda maior: a insustentabilidade do estilo de vida do homem<br />
contemporâneo. O design sustentável se apresenta como um importante agente destas<br />
transformações, visto que a produção de artefatos pela indústria é norteada por seus princípios.<br />
Através do design sustentável pode-se propor uma série de medidas condizentes com esta<br />
nova demanda social e cultural.<br />
De modo geral, o estudo da produção gráfica não dispensa a constante observação<br />
conjunta da arte, tecnologia, humanidade e ciência. Refletir sobre esta perspectiva e praticála<br />
no dia-a-dia conduz ao desenvolvimento de projetos de design eficientes e adequados a<br />
realidade contemporânea. Saber, por exemplo, qual grafismo, papel e corte usar numa peça<br />
gráfica para obter determinada resposta de um público específico não é suficiente se o seu<br />
destino for desconhecido após o descarte. Esse impresso pode retornar em forma de problema<br />
ao seu contratante e projetista, como lixo responsável por impactos ambientais negativos<br />
e desperdício de matéria prima. Deve-se considerar, inclusive, a possibilidade de prejuízo<br />
financeiro para o contratante decorrente do desgaste de sua imagem, pois a sociedade está<br />
cada vez mais atenta a estas questões.<br />
Neste artigo, preconiza-se a análise de todas as etapas do ciclo de vida dos impressos<br />
como fator norteador nas tomadas de decisão de projeto, porém pesquisas mais aprofundadas<br />
acerca do impacto ambiental dos insumos, produtos finais e descarte dos sistemas de<br />
impressão abordados se fazem necessárias.<br />
Uma análise mais pragmática revela que a produção gráfica conjuga saberes de outras<br />
disciplinas do design para reunir diretrizes que servem ao cotidiano de quase todo profissional.<br />
Ela viabiliza, a priori, projetos editoriais, sistemas de identidade visual, sistemas de sinalização,<br />
embalagens e toda sorte de impressos de baixa complexidade revelando-se verdadeiramente<br />
indispensável na formação de um designer.<br />
Cotidianamente os designers, no exercício da produção gráfica, avaliam a pontualidade<br />
e os custos de fornecedores para contratar serviços e materiais necessários a produção de<br />
projetos de design. É praxe que se realize uma breve concorrência entre, pelo menos, três<br />
fornecedores compatíveis entre si para viabilizar a tiragem ao menor custo possível. Uma vez<br />
contratado o processo de produção é preciso acompanhar e revisar os trabalhos de préimpressão,<br />
impressão e pós-impressão.<br />
Muitas vezes os mesmos designers também criam e finalizam os arquivos das<br />
peças gráficas, o que gera um imenso comprometimento do profissional com o projeto a<br />
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Classificação e escolha de um sistema de impressão<br />
ser executado. Esse desempenho multitarefa acaba beneficiando os designers, do ponto de<br />
vista da produção gráfica, pois enquanto produtor é preciso que se conheça a natureza e<br />
a seqüência necessárias para transformar um projeto de design em impresso acabado. As<br />
atualizações propostas neste artigo contribuem para a agilidade e precisão deste processo.<br />
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2009.<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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TRANSPARêNCIAS E FRAGRâNCIAS: MATERIALIDADES SIMBóLICAS<br />
NAS EMBALAGENS DE PERFuME<br />
Maureen Schaefer França; Mestranda em <strong>Tecnologia</strong> e Sociedade: UTFPR<br />
maureen.schaefer@gmail.com<br />
Marilda Lopes Pinheiro Queluz; Doutora em Comunicação e Semiótica: PUC-SP;<br />
PPGTE da UTFPR - pqueluz@gmail.com<br />
Resumo<br />
A proposta deste texto é analisar como os conceitos de estilos<br />
de vida e perfis, associados às fragrâncias, são traduzidos<br />
plasticamente para os frascos de perfume, refletindo e refratando<br />
elementos das relações sócio-culturais. Investiga como o design<br />
destas embalagens, em suas dimensões técnicas, estéticas<br />
e simbólicas, dá visibilidade aos valores culturais, reiterando<br />
significados capazes de marcar a posição social, o perfil, o estilo de<br />
vida e os processos tecnológicos de uma dada sociedade. O estudo<br />
foi feito a partir dos produtos citados pelos Guias de Perfumes de<br />
2009 e de 2010. Buscou-se, com isso, ampliar as possibilidades<br />
de leitura dos artefatos, considerando as sensações, sentimentos e<br />
usos sugeridos a partir das embalagens, ressaltando a construção<br />
social da cultura material. Os frascos de perfume comunicam a<br />
diversidade e complexidade dos conceitos que existem sobre o<br />
mundo, num determinado período e lugar.<br />
Palavras-Chave: frascos de perfume; cultura material;<br />
design de embalagem<br />
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Transparências e fragrâncias: materialidades simbólicas nas embalagens de perfume<br />
Os artefatos, além de suas funções previstas, carregam valores culturais, rearticulando<br />
significados capazes de marcar a posição social, o perfil, o estilo de vida e os processos<br />
tecnológicos de uma dada sociedade. Os frascos de perfume, assim como outros artefatos,<br />
possuem biografias econômicas, técnicas, sociais e físicas. As mutações de cor, forma,<br />
textura, material e elementos decorativos, ao longo da história dos destinatários dos fragrantes,<br />
indicam os processos tecnológicos e os recursos disponíveis de uma época e de um lugar,<br />
delineando: o estado físico do conteúdo – líquido, pastoso ou sólido; a maneira de utilizar e<br />
servir o produto; os sonhos e desejos de consumo de uma sociedade.<br />
Até o final do século XIX, os perfumes eram vendidos pelos fabricantes (perfumeurs)<br />
de forma bastante personalizada: o cliente poderia escolher tanto a fragrância quanto a<br />
embalagem. Mas, a partir do século XX, a garrafa anônima se tornou insuficiente e desenhistas<br />
como René Lalique, pintores como Salvador Dalí e costureiros como Paul Poiret começaram<br />
a engendrar invólucros ostentatórios que, para além da estética, traduzissem os aromas para<br />
a linguagem tátil e visual. O frasco passou a dar vida ao perfume, exteriorizando a expressão<br />
e os significados da sua composição olfativa através do empréstimo de suas cores, formas,<br />
texturas e materiais. Ao mesmo tempo assumiu as conotações de um estilo de vida, de um<br />
grupo social. Assim, os atributos sintáticos e semânticos passam a convidar e seduzir o<br />
consumidor, antecipando, reinventando o efeito do perfume.<br />
O objetivo deste texto é discutir as relações entre design e cultura materializadas<br />
nas embalagens de perfume, especialmente a partir dos produtos citados pelos Guias de<br />
Perfumes de 2009 e de 2010 – referentes à segunda e à terceira edição da revista - que<br />
servem de referência para perfumistas, designers, lojistas, consumidores e etc. Os Guias<br />
abrangem perfumes que vão do início do século XX ao final do ano de 2009 e que se destacam<br />
comercialmente no cenário nacional e internacional. Essas reflexões implicam um breve olhar<br />
sobre o conceito de cultura material, identidade e consumo.<br />
Os significados sociais dos bens e o uso das coisas mapeiam, representam, reproduzem<br />
e ajudam a constituir as complexas redes das relações sociais. O consumo de artigos funciona<br />
como um meio de classificação social, sendo capaz de tornar divisões e categorias culturais<br />
visíveis. O estudo das embalagens pode contribuir para a compreensão das diversas instâncias<br />
da cultura material, no sentido proposto por Rede:<br />
Não se poderia falar dos aspectos materiais da cultura (ou da cultura material)<br />
sem falar simultaneamente da imaterialidade que lhes confere existência<br />
(sistemas classificatórios; organização simbólica; relações sociais; conflitos de<br />
interesse, etc.). (...) Prática e representação são tomadas como dimensões<br />
inextricáveis da vida cultural, alimentando-se mutuamente, sem que as seja<br />
possível compartimentar. (REDE, 1996, p. 273).<br />
O universo dos objetos não se situa fora do fenômeno social, mas, o compõe, como<br />
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Transparências e fragrâncias: materialidades simbólicas nas embalagens de perfume<br />
uma de suas dimensões de expressão:<br />
O mundo das coisas é realmente a cultura em sua forma objetiva, é a forma<br />
que os seres humanos deram ao mundo através de suas práticas mentais e<br />
materiais; ao mesmo tempo, as próprias necessidades humanas evoluem e<br />
tomam forma através dos tipos de coisas de que dispõem (SLATER, 2002,<br />
p.104)<br />
Para Rede (1996), não existem significados culturais internalizados na consciência<br />
do indivíduo ou da coletividade que sejam produzidos em uma matriz que dispense a<br />
materialidade. A cultura material funciona, por excelência, como um local que medeia relações<br />
humanas, sendo capaz também de proporcionar uma herança cultural palpável às sociedades,<br />
contextualizada em determinado período e lugar.<br />
Segundo Slater (2002), o consumo é uma questão de como os sujeitos sociais se<br />
relacionam com as coisas do mundo (bens, serviços, experiências materiais e simbólicas)<br />
que buscam satisfazer suas necessidades. Portanto, o consumo é uma prática cotidiana que<br />
vai muito além do ato da compra, abrangendo não somente os usos dos artefatos no dia-adia,<br />
mas também suas reinterpretações, modificações e transgressões, utilizadas de modo a<br />
questionar ou reproduzir as ordens sociais.<br />
A indústria da perfumaria tem investido cada vez mais na ideia de que os fragrantes<br />
funcionam como um prolongamento da pele ou como uma roupa que a reveste, refletindo a<br />
personalidade e o estilo de vida do usuário. Os frascos de perfume criam efeitos de sentido<br />
simulando as experiências que o perfume pode provocar no usuário. Procuram causar<br />
sensações, suscitar desejos e fantasias, estimular atitudes, alterar o estado de humor.<br />
Constrói-se um “usuário imaginado”, um consumidor potencial que supostamente usa<br />
determinado produto. Utilizam-se marcadores identitários que funcionam como um discurso<br />
para persuadir os consumidores de que eles se assemelham ou tem algo em comum com os<br />
usuários imaginados dos perfumes.<br />
A estratégia de identificação entre o consumidor e o usuário potencial, geralmente,<br />
apoia-se em perfis pré-estabelecidos, atravessados por valores culturais, sugerindo padrões<br />
de comportamento, ideologias de gênero, cortes geracionais, modos de estilos de vida, por<br />
exemplo. As próprias fragrâncias tornam-se representações dos discursos culturais, sendo<br />
passíveis, portanto, de identificação. A representação de tais marcadores nos fragrantes e<br />
frascos de perfume costuma estar em consonância com os conceitos que a grife divulga ou<br />
deseja explorar.<br />
As identidades e as representações são práticas sociais, pois se constroem e se<br />
reconstroem constantemente no interior das relações individuais e coletivas; as posições de<br />
sujeito acabam por se tornar pontos de apego temporário (HALL, 2007).<br />
As identidades e diferenças adquirem sentido então por meio da linguagem - ela<br />
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Transparências e fragrâncias: materialidades simbólicas nas embalagens de perfume<br />
própria um sistema de diferença (SCOTT, 1991) - e dos sistemas simbólicos pelos quais são<br />
representadas. Ou seja, através de textos literários, telenovelas, publicidade, moda, design<br />
entre outras entidades que “delimitam espaços, estabelecem fronteiras por meio das quais<br />
são marcadas as diferenças em relação a outras possibilidades de identificação” (SANTOS,<br />
2008, p. 40).<br />
Nesta direção, segundo Medeiros e Queluz (2008), todo e qualquer artefato produz e<br />
está associado a uma identidade, tanto tecnicamente quanto culturalmente, para atingir os<br />
consumidores que irão comprar e usar este produto, que supostamente o identificará para<br />
sociedade. O sujeito constrói suas identidades e subjetividades através, mas não somente, de<br />
produtos de design, ancorando-se nas imagens e nos significados simbólicos que os objetos<br />
projetam; o consumo torna-se uma forma de comunicação.<br />
A “discussão sobre ‘estilos de vida’ (‘lifestyle’) passou a ser um condutor principal do<br />
design nos anos 90, não só na teoria como na prática” (BÜRDEK, 2006, p. 329). Entende-se<br />
que o estilo de vida é projetado a partir de um conjunto de produtos, roupas, cortes de cabelo,<br />
posturas corporais, experiências e etc. escolhidas e adequadas para externar a individualidade<br />
de uma pessoa, aproximando ou diferenciando-o de sujeitos e grupos sociais.<br />
O estilo de vida pode ser compreendido como “um conjunto mais ou menos integrado<br />
de práticas que um indivíduo abraça, não só porque essas práticas preenchem necessidades<br />
utilitárias, mas porque dão forma material a uma narrativa particular da auto-identidade”<br />
(GIDDENS, 2002, p. 79).<br />
Paul Poiret inaugurou o conceito de fragrância de estilista no início do século 20,<br />
conectando o perfume à moda, uma ligação que desde então jamais foi desfeita. O perfume,<br />
assim como a roupa, tornou-se parte integrante da personalidade do indivíduo, envolvendo<br />
diversos discursos tais como o estilo de vida.<br />
As propagandas sobre perfumes costumam explorar signos de estilo de vida, que<br />
acabam por contaminar os modos de percepção dos frascos de perfume, pois estes não<br />
existem por si só, fazendo parte de um entorno composto por mídias e mediações, que<br />
influenciam a imaginação dos consumidores.<br />
Em consonância com as propagandas, os frascos de perfumes são como mídias de<br />
estilo que, de acordo com Santos (2010), favorecem a circulação de valores que afetam a<br />
constituição, reformulação ou rompimento das identificações individuais e coletivas no interior<br />
da cultura de consumo.<br />
As funções dos frascos de perfume nas construções de identidade<br />
A embalagem é um instrumento comunicativo, composta por signos que transmitem<br />
mensagens quanto ao uso, à identificação, ao significado e ao valor do produto para o<br />
consumidor. Para Löbach (2001), os objetos têm três funções - prática, estética e simbólica –<br />
que possibilitam a satisfação, embora não permanente, de certas necessidades.<br />
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Transparências e fragrâncias: materialidades simbólicas nas embalagens de perfume<br />
Para Negrão e Camargo (2008), a dimensão prática das embalagens caracterizase<br />
pela objetividade, englobando funções como acondicionar, proteger, conferir conforto e<br />
facilitar o uso do produto e etc. A função estética relaciona-se à aparência e à configuração<br />
dos elementos da linguagem tátil e visual como cor, forma, textura entre outros componentes,<br />
possibilitando a identificação do usuário com o ambiente artificial. A função simbólica refere-se<br />
à ideia de humanizar as coisas, atribuindo culturalmente significados de caráter intangível aos<br />
artefatos. Estes sentidos são estimulados pela percepção do objeto, ao estabelecer ligações<br />
com os pensamentos e experiências culturais do indivíduo. As funções estéticas e simbólicas<br />
são interdependentes entre si, como afirma Löbach (2001). Todas estas funções interagem<br />
com as construções culturais de identidade.<br />
Um bom exemplo é o fragrante Burberry Brit, de 2004, da Burberry, destinado ao<br />
homem “Brit” (britânico), definido como um homem moderno, cool, urbano e dono de elegância<br />
extrema (GUIA DE PERFUMES, 2010). O estilo brit beira a algo próximo do modo de viver<br />
“elegantemente descolado”. O marcador é reforçado pela propaganda do fragrante (fig. 1) na<br />
qual um jovem usando terno senta-se de modo despojado sobre um chão de pedras. Na sua<br />
frente há uma tampa de bueiro e atrás, um Mini Cooper – ícone do design britânico. O plano<br />
de fundo da imagem coloca edifícios baixos em perspectiva, dando maior destaque à ação<br />
humana.<br />
Fig. 1: Propaganda do perfume Burberry Brit, de 2004, da Burberry.. Disponível em: < http://www.okibox.com/<br />
upload/useruploads/images/burberry_brit_for_men_2.jpg>. Acesso em: 03/05/2010.<br />
O uso do terno e da gravata skinny parece fazer referência à cultura mod (modernist),<br />
surgida em Londres no início da década de 1960, em oposição aos Teddy Boys. Os mods,<br />
jovens ingleses da classe média, adotaram uma maneira clássica e comportada de se vestir,<br />
diferentemente do estilo rebelde e roqueiro dos Teddy (VINIL, 2008). Eles costumavam vestir<br />
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Transparências e fragrâncias: materialidades simbólicas nas embalagens de perfume<br />
ternos italianos bem ajustados para parecerem sofisticados, desfilar em suas lambretas<br />
conhecidas como “vespas” e beber na fonte da música afroamericana como o R&B, jazz e<br />
soul (INDIE BLOG, 2010).<br />
O homem brit do anúncio parece ser uma releitura cool do jovem mod. Apesar de<br />
ser elegante, ele é mais irreverente, tanto no cabelo como na postura corporal. A vespa é<br />
substituída pelo famoso Mini Cooper, produzido na década de 50 e que ainda mantém suas<br />
características conceituais, evocando noções de independência e liberdade assim como a<br />
preferência por produtos da moda com apelo vintage.<br />
O conceito do fragrante Burberry Brit, mediado pela propaganda, manifesta o estilo de<br />
vida do homem brit: sua maneira de viver mais urbana e cosmopolita, suas preferências pela<br />
música, arte e produtos da moda. O frasco de linhas retas do Burberry Brit (fig. 2) estampa<br />
o famoso xadrez da grife - símbolo de elegância na Inglaterra – em tons acinzentados. A<br />
distância entre as linhas torna o conjunto pouco discreto, conferindo certa casualidade a ele.<br />
Reforça a um só tempo, através de suas características plásticas, as ideias de tradição e de<br />
modernidade. A escolha da embalagem revela a preferência por artigos da moda e um modo<br />
brit de levar a vida.<br />
Figura 2: Burberry Brit, de 2004, da Burberry. Fonte: Guia de Perfumes, 2010.<br />
Outra forma de construção de identidade é evocar algumas situações de uso. Do<br />
mesmo modo como acontece com o vestuário, investe-se na proposição de que para<br />
cada conjuntura de tempo, lugar e atividade há uma fragrância adequada, trabalhando-se a<br />
noção de combinar os perfumes com os compromissos do dia-a-dia. Há fragrantes que são<br />
lançados para serem usados de dia, à noite, no verão, na praia, no trabalho, na balada e etc.<br />
Tal construção cultural parece estar atrelada aos efeitos sensoriais que o perfume provoca no<br />
corpo, se ele é refrescante, quente, leve ou intenso, por exemplo.<br />
O fragrante feminino DKNY Delicious Night (2008) da DKNY é “marcante e sensual,<br />
(...) perfeito para a noite” (BUNY, 2009) e para “cair na balada” (BELLINO, 2003). O comercial<br />
televisivoi explora o cenário frenético e iluminado de Nova Iorque, onde uma moça jovem e<br />
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Transparências e fragrâncias: materialidades simbólicas nas embalagens de perfume<br />
sensual seduz todos aqueles que a observam. As cores, púrpura e preta, do frasco (fig. 3)<br />
fazem alusão à noite, quando desejos e emoções parecem libertar-se das algemas da razão.<br />
Figura 3: DKNY Delicious Night (2008) da DKNY. Disponível em: . Acesso em: 26/06/2010.<br />
Bellino (2003), baseada nas opiniões de leitoras, da editora e de especialistas em<br />
fragrâncias, sugere ainda perfumes frescos e leves para: relaxar em casa, parecer que saiu do<br />
banho, viajar para a praia ou para malhar. As sugestões parecem orientar o modo pelo qual<br />
se deve usar o perfume, indicando como consumi-lo. Classificam-se os aromas que evocam<br />
a sensação de conforto, bem-estar, frescor e corpo asseado, quase sempre associados a<br />
representações de gênero. A tabela 01 traz algumas das embalagens de perfumes femininos<br />
escolhidos para essas ocasiões:<br />
usar na academia Viajar para a praia Relaxar em casa Parecer que saiu do<br />
banho<br />
I’m going: Puma (2007) My Voyage: Nautica<br />
(2007)<br />
Acqua di Colonia Floral:<br />
O Boticário (2008)<br />
Tuscan Soul: Salvatore<br />
Ferragamo (2008)<br />
Tab. 01: Perfumes para usar na academia, na praia e em casa. Fonte: Bellino (2003).<br />
A indústria da perfumaria aproveita-se também das estações do ano para lançar<br />
fragrantes sazonais. Os frascos das fragrâncias G, Love, Lil’Angel, Music e Baby da linha<br />
standard da grife Harajuku Lovers, da cantora pop Gwen Stefani, variam de acordo com a<br />
estação do ano (EMBALAGEM MARCA, 2010).<br />
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Transparências e fragrâncias: materialidades simbólicas nas embalagens de perfume<br />
Inspirados na cantora e nas suas dançarinas nipônicas, os “frascos-bonequinha”<br />
ganharam uma nova coleção de roupas (fig. 4): para o verão, biquínis e óculos de sol; e para o<br />
inverno, botas, cachecóis, casacos e luvas. Para Gwen Stefani “assim como as garotas fashion<br />
renovam seu guarda-roupa, as bonecas também estão sempre atualizadas” (EMBALAGEM<br />
MARCA, 2010).<br />
Figura 4: Linha Verão da grife Harajuku Lovers. Da esquerda para direita: Love, Lil’Angel, G, Music, Baby.<br />
Disponível em: . Acesso em:<br />
22/02/2010. & Linha Inverno da grife Harajuku Lovers. Da esquerda para direita: Love, Lil’Angel, G, Music,<br />
Baby. Disponível em: . Acesso em:<br />
22/02/2010.<br />
Os fragrantes e seus envoltórios costumam ser desenvolvidos em torno de universos<br />
temáticos que podem estar impressos no próprio nome do perfume como no exemplo de<br />
Coffee Man (2009) de O Boticário, que é obtido segundo o processo de infusão de grãos de<br />
café (Guia de Perfumes, 2010). As linhas temáticas encontram-se também materializadas nos<br />
frascos de perfume, através de suas formas, cores e texturas.<br />
Algumas vezes, a configuração do frasco de perfume constrói-se de modo mais abstrato<br />
e subjetivo. O perfume feminino Calandre de Paco Rabanne, lançado em 1969, mas ainda<br />
hoje no mercado, por exemplo, foi engarrafado em um frasco prismático e de linhas retas com<br />
autoria de Pierre Dinand. O envoltório representa a grade frontal de um Rolls-Royce (DINAND,<br />
2010), mostrando que mesmo as formas abstratas estão ligadas ao mundo concreto.<br />
Observando-se os guias de perfume, é possível perceber que os temas que costumam<br />
inspirar a criação de frascos de perfume referem-se à natureza; ao corpo humano; aos artefatos<br />
e sistemas do cotidiano; às produções culturais; aos elementos místicos e abstratos.<br />
A natureza em frascos<br />
O processo de definição de estilos de vida incorpora, frequentemente, elementos<br />
centrais da visão hegemônica do sociedade capitalista-liberal. Neste sentido, em uma<br />
sociedade globalizada que apresenta fortes processos de padronização e instrumentalização<br />
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Transparências e fragrâncias: materialidades simbólicas nas embalagens de perfume<br />
de comportamentos e pensamentos e que tende a dissolver espaços locais em um distópico<br />
lugar-mundo, a valorização de elementos do ideário liberal como a liberdade de ação e o<br />
nostálgico apelo à organicidade, cada vez mais distante, com a natureza, torna-se fundamental.<br />
A construção da sensação de liberdade, portanto, alia-se às tentativas de retorno<br />
à natureza ou de embalar os fenômenos e as forças naturais, trazendo-os para perto da<br />
intimidade do corpo. Cria-se um efeito de sentido de domínio e troca com elementos como<br />
a fauna, a flora, os minerais, os quatro elementos, os mares, os astros (lua, estrelas, sol) e<br />
etc. Os frascos procuram transmitir ideias de pureza, essência, força, dinamismo, equilíbrio,<br />
valorização da natureza, sustentabilidade e de um estilo de vida simples e aventureiro, entre<br />
outras.<br />
A embalagem esverdeada do perfume feminino Arbo (2004) de O Boticário (fig. 5), por<br />
exemplo, ganha os contornos de uma folha, simbolizando o contato com a natureza e com<br />
tudo aquilo que é essencial. Já o frasco do fragrante masculino Uzon (2008) da Jequiti (fig. 5)<br />
representa o contraste entre o quente e o frio, fazendo menção à caldeira vulcânica Uzon da<br />
península Kamtchaka na Sibéria, região russa de baixas temperaturas (GUIA DE PERFUMES,<br />
2010).<br />
Figura 5: Da esquerda para direita: Arbo (2004) de O Boticário e Uzon (2008) da Jequiti. Fonte: Guia de<br />
Perfumes (2010).<br />
O frasco do fragrante feminino Fleur Du Corail (2008) da Lolita Lempicka (fig. 6)<br />
homenageia o mundo marinho, traduzindo-o através do acabamento fosco do vidro, da sua<br />
cor azulada e dos pingentes em forma de estrela e coral presos ao pescoço da embalagem. A<br />
embalagem do perfume masculino KenzoAir (2003) da Kenzo lembra um bloco de vidro que<br />
contém uma porção de ar. Em sintonia com a natureza, o envoltório é apresentado como um<br />
hino ao vento e à liberdade (Guia de Perfumes, 2010).<br />
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Transparências e fragrâncias: materialidades simbólicas nas embalagens de perfume<br />
Figura 6: Da esquerda para direita: Fleur Du Corail (2008) da Lolita Lempicka e KenzoAir (2003) da Kenzo.<br />
Fonte: Guia de Perfumes (2010).<br />
O envoltório do perfume feminino Amethyste (2007) da Lalique (fig. 7) faz referência à<br />
pedra ametista, frequentemente usada por Rene Lalique em suas criações. Traz a conotação<br />
de preciosidade, riqueza e luxo, associando a embalagem a uma jóia da natureza. Em muitos<br />
casos, os temas da natureza são usados como assinatura e identificação de uma grife ou de<br />
seu criador. Os frascos dos fragrantes Serpentine (2006) de Roberto Cavalli e Ice Men (2007)<br />
de Thierry Mugler (fig. 7), refletem a fascinação dos estilistas, respectivamente, por serpentes<br />
e estrelas.<br />
Figura 7: Da esquerda para direita: Amethyste (2007) da Lalique, Serpentine (2006) de Roberto Cavalli e Ice<br />
Men (2007) de Thierry Mugler. Fonte: Guia de Perfumes (2010).<br />
A estrela na lateral da embalagem de Ice Men também conecta-se à ideia de rompimento<br />
de uma superfície congelada. Segundo o Guia de Perfumes (2010), o fragrante é composto<br />
por acordes de energia polar revigorante como coquetel cítrico, gim, vodca e zimbro .<br />
A sedução dos corpos<br />
No início do século XX, a preocupação com a racionalização do cotidiano, tem uma<br />
das suas expressões, no desenvolvimento e disseminação das técnicas de higiene. O cinema,<br />
amparado pela moda, divulgava técnicas dos cuidados do corpo, mostrando à sua audiência<br />
maneiras de se perfumar. Estas se referiam às partes do corpo que deveriam ser perfumadas<br />
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Transparências e fragrâncias: materialidades simbólicas nas embalagens de perfume<br />
(pulsos, nuca, colo e etc.), à postura corporal, ao modo de segurar o frasco de perfume e<br />
de borrifar o seu conteúdo. No cinema, estas técnicas aliaram-se à roupa (vestido, robe,<br />
lingerie), ao cenário (quartos, suítes, banheiros) e ao mobiliário, especialmente às charmosas<br />
penteadeiras, manifestando ideias de luxo, elegância e sensualidade.<br />
Este aparato – roupa, mobiliário, cenário - acabou por ampliar as técnicas de perfumar<br />
o corpo, suscitando modos de se portar, de se sentar, de se olhar no espelho, resultando em<br />
um rico sistema de servir o corpo. Este conjunto de técnicas parecia fazer parte de um ritual<br />
mágico de conquista e sedução do ser amado.<br />
O uso do corpo humano ou de partes dele é bastante recorrente no design de frascos de<br />
perfume. Geralmente, o uso de tal referência visa manifestar efeitos de sedução, sensualidade,<br />
sexualidade, beleza, juventude, virilidade e etc. O frasco Shocking (fig. 8), de 1936, de Elza<br />
Schiaparelli, foi o primeiro dos chamados perfumes comerciais (fragrantes de marca) a moldar<br />
o formato a partir de um corpo de mulher, refletindo o estilo moderno e excêntrico da estilista:<br />
O shocking pink tornou-se famoso, o rosa brilhante que utilizava para<br />
embrulhos, para bâtons e até para capas ricamente bordadas. Ela queria<br />
chocar a qualquer preço e, assim, a sua última coleção chamava-se Shocking<br />
Elegance e a sua biografia de 1945 Shocking Life (SEELING, 2000, p. 154).<br />
Figura 8: À esquerda, frasco do perfume Shocking de 1936, de Schiaparelli. À direira, edição posterior com<br />
embalagem de papel em rosa shocking. Disponível em: <br />
e .<br />
Acesso em: 22/03/2010.<br />
O frasco do fragrante Le Classique Jean Paul Gaultier – ícone da perfumaria desde<br />
1993 – representa uma mulher muito sexy. Criada por Jacques Cavallier, a embalagem é<br />
inspirada no busto da cantora Madonna e no envoltório Shocking, de Schiaparelli. O torso<br />
feminino, que dá forma à embalagem (fig. 9), é revestido por um espartilho, uma peça de<br />
roupa com forte conotação sexual. O espartilho faz lembrar o figurino criado pelo estilista,<br />
na década de 1990, para a Blond Ambition Tour da cantora Madonna. Le Classique não<br />
apresenta os famosos cones, embora mantenha a cor rosada da peça original. Entretanto, é<br />
possível encontrar exemplares de frascos de perfume que exibam o famoso sutiã (TOUTEN<br />
PARFUM, 2010).<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Transparências e fragrâncias: materialidades simbólicas nas embalagens de perfume<br />
Figura 9: Da esquerda para direita: Frasco de Le Classique Jean Paul Gautier (1993), edição limitada (sem data)<br />
e figurino de Madonna criado por Gaultier. Disponível em: , e . Acesso em: 27/06/2010.<br />
Há situações em que as representações do corpo humano materializam-se de modo<br />
mais estilizado como nas embalagens da figura 10.<br />
Figura 10: Da esquerda para direita: Glow After Dark (Jennifer Lopez, 2007) Bond Girl (Avon, 2008).<br />
Fonte: Guia de Perfumes Officiel (2009).<br />
O envoltório do perfume Bond Girl (2008) da Avon evoca a silhueta curvilínea das bond<br />
girls, em homenagem aos filmes de ação e aventura de James Bond. A tampa da embalagem<br />
faz menção ao pino de uma granada, suscitando ideias de perigo e aventura.<br />
Em outros casos, o frasco, que à primeira vista parece lembrar simples formas<br />
geométricas, ganha fortes conotações sexuais ao ser apresentado pela mídia impressa e/ou<br />
televisiva. A publicidade do fragrante Tom Ford for men (2007), do estilista de mesmo nome,<br />
tem um apelo sexual muito explícito. A localização do frasco de perfume no corpo da mulher,<br />
aliada ao formato cilíndrico da tampa da embalagem, acaba por provocar a associação entre<br />
as formas do envoltório e o órgão sexual masculino, com o intuito de suscitar o desejo sexual<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 160
Transparências e fragrâncias: materialidades simbólicas nas embalagens de perfume<br />
nos transeuntes. A analogia é tão pregnante que contamina a embalagem (fig. 11).<br />
Figura 11: Frasco e anúncio do perfume Tom Ford for men (2007). Disponível em: e . Acesso em:<br />
22/06/2010.<br />
Nestes exemplos encontram-se presentes as questões de gênero, as noções<br />
construídas do que é feminino e masculino, as situações, papéis e performances esperados de<br />
homens e mulheres. Na configuração dos jogos de sedução, o corpo da mulher é evidenciado,<br />
associado diretamente ao objeto de consumo e de fetiche.<br />
<strong>Arte</strong>fatos e objetos do cotidiano<br />
Algumas embalagens são inspiradas em artefatos que medeiam as relações das<br />
pessoas com o mundo, as formas de apropriação e ressemantização do cotidiano. Considerase<br />
que os artefatos aludem aos objetos produzidos pela atividade humana, em contraposição<br />
aos fenômenos naturais concretos (MILLER, 1998). Esses frascos revelam a importância das<br />
coisas nas experiências vividas individual e coletivamente.<br />
A embalagem do fragrante masculino Paul Smith Story (fig. 12), de 2006, inspira-se na<br />
paixão do estilista britânico pelos livros. As formas geométricas e as ranhuras na lateral direita<br />
do frasco simulam as páginas de um livro. Já o frasco do perfume masculino Play, de 2008, da<br />
Givenchy, inspira-se no mp3 player (GUIA DE PERFUMES, 2010), evocando ideias de diversão,<br />
modernidade e avanço tecnológico. A configuração do seu envoltório (fig. 12) baseia-se nos<br />
traços retilíneos e nos cantos arredondados de um mp3. Simula ainda os comandos play,<br />
forward e reward do artefato eletrônico.<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Transparências e fragrâncias: materialidades simbólicas nas embalagens de perfume<br />
Figura 12: Paul Smith Story, de 2006, de Paul Smith; Play EDT, de 2008, da Givenchy.<br />
Fonte: Guia de Perfumes, 2010.<br />
A embalagem do perfume F by Ferragamo evoca o universo feminino, ao estilizar a<br />
imagem de um sapato feminino. A base do frasco (fig. 13) faz lembrar a curva de um sapato<br />
com salto enquanto a tampa alude à alça do calçado que se prende ao corpo da mulher. As<br />
formas do envoltório (fig. 13) I loewe tonight (2009) da Loewe referem-se às bolas de espelho<br />
usadas nas danceterias e casas noturnas para refletir as luzes frenéticas e coloridas (GUIA DE<br />
PERFUMES, 2010). Simboliza a música, a noite e a diversão, indicando por sinal, a ocasião de<br />
uso do perfume.<br />
Figura 13: Embalagem do perfume F by Ferragamo, de 2007, da Ferragamo e de I Loewe tonight, de 2009, da<br />
Loewe. Fonte: Guia de Perfumes, 2010.<br />
A embalagem de A Mi Aire, de 2005, da Loewe alude a uma janela arredondada, um<br />
artefato que compõe um sistema mais complexo, o avião. Evoca a sensação de liberdade<br />
e de bem-estar (Guia de Perfumes, 2010). Já a embalagem do fragrante Echo, de 2003, da<br />
Davidoff, refere-se aos sistemas do cotidiano. Inspira-se na atmosfera das grandes metrópoles<br />
(Guia de Perfumes, 2010), utilizando o aço e o vidro - materiais amplamente empregados nas<br />
construções dos grandes edifícios - como referências na sua configuração formal.<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Transparências e fragrâncias: materialidades simbólicas nas embalagens de perfume<br />
A arte ao alcance da pele<br />
Alguns frascos são inspirados em: arte, artesanato, música, literatura, cinema, desenho<br />
animado, história em quadrinhos, grafitti. O design deste tipo de embalagem de perfume acaba<br />
por apropriar-se da notoriedade que tais referências desfrutam na mídia.<br />
Neste sentido, as embalagens parecem assemelhar-se aos souvenires e objetos<br />
colecionáveis, portando fortes relações de afeto com os consumidores. Constroem o efeito de<br />
proximidade da arte, colocando réplicas dos objetos de admiração ao alcance do indivíduo,<br />
disponível nas vitrines e nas casas comerciais. Em alguns casos, as formas figurativas da<br />
embalagem acabam por dificultar seu manuseio.<br />
O Boticário costuma buscar inspiração em obras artísticas nacionais como uma forma<br />
de associar a marca à valorização da cultura do Brasil (COSMETIC NOW, 2010). O frasco do<br />
perfume feminino Tarsila (fig. 14), de 2002, por exemplo, homenageia a obra “Manacá” da<br />
artista Tarsila do Amaral, um dos ícones do movimento modernista.<br />
O frasco serve como um suporte para onde a obra é transportada. A transposição<br />
inicia-se na parte inferior do frasco, através da estampa das folhas e do caule crescendo em<br />
direção à tampa. Por sua vez, a tampa ganha os contornos e os volumes das flores da árvore<br />
manacá, representada pela artista em sua obra.<br />
Figura 14: Frasco do perfume Tarsila, de 2002, de O Boticário; e obra Manacá de Tarsila do Amaral (1927).<br />
Disponível em: e . Acesso: 05/05/2010.<br />
O fragrante feminino “Quizás, quizás, quizás” (2007) da marca espanhola Loewe faz<br />
menção à canção de mesmo nome, de autoria de Oswaldo Farrés (Cuba, 1947). O frasco<br />
(fig. 15), de traços abstratos, foi desenhado por Pablo Reinoso e se baseia na tira criada pelo<br />
matemático alemão August Moebius, em 1858 (OLIVEIRA, 2010).<br />
Esta consiste em uma superfície de duas dimensões com um lado só; um espaço<br />
obtido pela colagem das duas extremidades de uma fita, após efetuar meia volta em uma<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Transparências e fragrâncias: materialidades simbólicas nas embalagens de perfume<br />
delas (PERSISTÊNCIA DA MEMÓRIA, 2010). Assim como a fita de Moebius, o entrelaçamento<br />
das fitas de vidro ao redor do frasco tem a intenção de suscitar dúvidas e confusões no leitor<br />
realçando o teor da palavra quizás, “talvez” em espanhol.<br />
Figura 15: Frasco do perfume Quizás, quizás, quizás, de 2007, da Loewe; e obra Moebius Strip II, de Escher<br />
(1963). Disponível em: e . Acesso: 05/05/2010.<br />
O estilista italiano Franco Moschino (1950-1994) era tão apaixonado pela figura<br />
engraçada e esquálida de Olivia Palito, que resolveu inspirar-se na personagem para criar as<br />
embalagens para suas fragrâncias. Moschino pretendia mostrar o seu lado bem humorado a<br />
partir das formas estilizadas e bem coloridas dos seus frascos de perfume.<br />
Em 1996, surgia então a primeira embalagem - o frasco de Cheap and Chic (fig. 16) –<br />
em formas curvas e orgânicas e nas cores preto, vermelho e branco - as cores do cabelo e da<br />
roupa da personagem. A inspiração tem sido revisitada ao longo dos últimos anos, variando<br />
em cores e texturas como no envoltório de Hippy Fizz (fig. 16), de 2008 (MAISQUEPERFUME,<br />
2010).<br />
Figura 16: Frasco do perfume Cheap and Chic (1996) e Hippy Fizz (2008) da Moschino.<br />
Disponível em: . Acesso em: 05/05/2010.<br />
A Diesel, grife do estilista italiano Renzo Rosso (1955-), aproveitou o lançamento do<br />
filme “Homem de Ferro 2” para uma edição limitada do perfume Only the Brave (fig. 17).<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Transparências e fragrâncias: materialidades simbólicas nas embalagens de perfume<br />
O frasco de vidro incolor de Only the Brave Iron Man (fig. 17) ganha as cores vermelha e<br />
dourada da armadura do herói Tony Stark. A embalagem de papel cartão é impressa com os<br />
quadrinhos do personagem.<br />
Figura 17: Frascos Only the Brave e Only the Brave Iron Man da Diesel. Disponível em: e . Acesso em: 05/05/2010.<br />
Já Isabela Capeto (1975-), estilista brasileira, inspirou-se na toy art para criar o frasco<br />
(fig. 18) de seu primeiro fragrante lançado pela Perfumaria Phebo, em 2007. A embalagem,<br />
configurada segundo as formas do ícone da grife, pode ser customizada com canetas hidrocor,<br />
propondo a interação como modo de criar um objeto único.<br />
Figura 18: Frasco do fragrante Isabela Capeto II (2008) da Phebo. Disponível em: .<br />
Acesso em: 27/06/2010.<br />
A literatura também atravessa a construção de frascos de perfume. O frasco do<br />
fragrante Féerie (2008) da Van Cleef & Arpels inspira-se no conto de Shakespeare, “Sonhos de<br />
uma Noite de Verão”, que aborda a relação entre o mundo real e o mundo imaginário. O frasco<br />
de vidro azulado (fig. 19) é todo lapidado fazendo lembrar uma pedra preciosa. Sua tampa,<br />
que mais lembra uma escultura, representa uma fada sentada sobre um galho em referência<br />
aos personagens do conto.<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Transparências e fragrâncias: materialidades simbólicas nas embalagens de perfume<br />
Figura 19: Frasco do perfume Féerie, de 2008, da Van Cleef & Arpels.<br />
Fonte: Guia de Perfumes, 2010.<br />
De acordo com Balro (2007), evocar o imaginário é uma tendência da perfumaria.<br />
Grandes marcas buscam inspiração em fábulas e contos. Usar o perfume, possuir a embalagem<br />
é um pouco como fazer parte do mundo da ficção.<br />
Crenças e religiosidade<br />
Dialogando com a tradição histórica dos perfumes como trânsito entre a concretude<br />
da vida e a transcendência espiritual, as referências religiosas e crenças também são<br />
materializadas nos frascos de perfume. O envoltório Boss Orange (2009) da Hugo Boss evoca<br />
os setes chacras do corpo humano (GUIA DE PERFUMES, 2010), que foram mencionados<br />
primeiramente nos Vedas, textos sânscritos que formam a base da religião hindu.<br />
Os setes chacras representam “locais onde as essências atuam como metáfora da<br />
energia que flui desses pontos” (GUIA DE PERFUMES, 2010, p. 48). O frasco (fig. 20) do perfume<br />
foi concebido como um suporte para sete pedras preciosas. Estas alinham-se verticalmente<br />
umas sobre as outras, apoiando-se na moldura de metal da embalagem (OLIVEIRA, 2010).<br />
Figura 20: BossOrange, de 2009, da Hugo Boss. Fonte: Guia de Perfumes, 2010.<br />
Em 2009, a Shiseido, empresa japonesa de cosméticos e perfumaria, lançou o fragrante<br />
Zen. O perfume foi criado especialmente com ingredientes terapêuticos como a flor de lótus,<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 166
Transparências e fragrâncias: materialidades simbólicas nas embalagens de perfume<br />
que aliviam o estresse (SHISEIDO, 2010). A flor de lótus, considerada sagrada em muitos<br />
países asiáticos, simboliza elevação e expansão espiritual no budismo (VILA ASTRAL, 2010).<br />
Assim como ela, o frasco visa manifestar a sensação de expansão e libertação do eu interior.<br />
Sua transparência permite a passagem da luz, evocando uma fragrância com energia radiante<br />
e cheia de vida. (SHISEIDO, 2010).<br />
Figura 21: Zen (2009) da Shiseido. Disponível em: . Acesso em: 27/06/2010.<br />
Referências de tempo e lugar<br />
Na busca da construção de identidade, há perfumes que criam alusões a regiões<br />
geográficas específicas e referências culturais, tais como obras arquitetônicas, monumentos<br />
históricos, artefatos típicos, símbolos e ícones locais e etc.<br />
O perfume Be Delicious, de 2004, da Donna Karan, realça o aroma da maçã em sua<br />
composição. A fruta, usada como inspiração no design da embalagem, faz referência ao termo<br />
Big Apple – apelido de Nova York, traduzindo o ritmo vibrante da moderna cidade (BATH AND<br />
BODY COLLECTOR, 2010).<br />
A embalagem do perfume feminino Palazzo (fig. 22), de 2007, da Fendi, estampa a<br />
imagem do edifício da boutique da grife. Construído no final do século XVIII, na cidade de<br />
Roma, o edifício traz a marca do estilo neoclássico de Gaetano Koch, um dos mais famosos<br />
arquitetos romanos do seu tempo (FRAGRANTICA, 2010). O termo Palazzo, estampado na<br />
parte inferior do envoltório, evidencia a referência à localidade italiana.<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Transparências e fragrâncias: materialidades simbólicas nas embalagens de perfume<br />
Figura 22: Frasco do perfume Palazzo, de 2007, da Fendi; fachada do Palazzo Fendi, em Roma.<br />
Disponível em: e .<br />
Acesso em: 06/05/2010.<br />
A embalagem do fragrante Swiss Unlimited (fig. 23), de 2009, da empresa de cutelaria<br />
Victorinox, deixa clara a sua alusão à Suíça, não somente pelo seu nome, mas também por<br />
outras referências simbólicas. São elas: a cruz, a cor vermelha e o mosquetão. A primeira e a<br />
segunda fazem parte da configuração da bandeira do país, enquanto a terceira – o mosquetão<br />
- simboliza a atividade de montanhismo, referenciando os Alpes Suíços.<br />
Figura 23: Frasco do fragrante Swiss Unlimited, de 2009, da Victorinox. Disponível em: . Acesso em: 06/05/2010.<br />
Elementos das tradições populares e artesanais também são usados como modos<br />
de instaurar relações de tempo e espaço nos frascos de perfume. Recentemente, a grife<br />
japonesa Kenzo recorreu aos souvenirs russos, lançando estojos inspirados nas Matrioskas<br />
(fig. 24) para guardar as embalagens dos perfumes KenzoAmour e Flower by Kenzo (PRESS<br />
COMUNICAÇÃO, 2010).<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 168
Transparências e fragrâncias: materialidades simbólicas nas embalagens de perfume<br />
Figura 24: Estojo Matrioska da Kenzo. Disponível em: .<br />
Acesso em: 30/03/2010.<br />
A designer Filomena Padron inspirou-se em artefatos típicos do Brasil artesanato<br />
brasileiro para desenvolver a embalagem da Água de Banho para Natura (fig. 25). Seu desenho<br />
curvilíneo e retorcido remete às formas das cabaças e das moringas. A designer conta que a<br />
ideia “veio da lembrança de que em diversas regiões do Brasil há o costume de se transportar<br />
e de se guardar água nesses objetos” (EMBALAGEM MARCA, 2010).<br />
Figura 25: Cabaça (porongo), moringa e frasco da Água de Banho Breu Branco (2006) da Natura. Disponível<br />
em: , e . Acesso em: 27/06/2010.<br />
De modo geral, os frascos de perfume contextuais recuperam “uma identidade nacional<br />
que se encontra harmoniosamente fixada no nível do imaginário” (ORTIZ, 1985, p. 78) dos<br />
consumidores. Eles caracterizam-se pelas ideias de cópia de um original segundo técnicas de<br />
simulação e de mini ou maximização de suas proporções.<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 169
Transparências e fragrâncias: materialidades simbólicas nas embalagens de perfume<br />
Algumas considerações<br />
A escolha de conceitos e de elementos materiais pelo designer não é neutra. Algumas<br />
matérias-primas (vidro, couro, metal, tecido) e configurações formais também são apropriadas<br />
para manifestar ideologias, identidades e valores culturais. Neste universo, destacam-se<br />
as atribuições de gênero, exprimindo conotações como fragilidade, dureza, maleabilidade,<br />
delicadeza, transparência, sensualidade, frescor, que transitam entre o masculino e o feminino.<br />
Por exemplo, os termos doçura, beleza, fertilidade e delicadeza costumam estar associados<br />
ao universo das mulheres. Estes conceitos são traduzidos para os frascos femininos a partir de<br />
cores pastéis, que conotam delicadeza; do uso de referências da natureza como pássaros e<br />
flores; e de outros elementos simbólicos como laços e corações. De acordo com as imagens<br />
de frascos de perfumes analisados, pode-se concluir que a grande maioria reflete modelos<br />
tradicionais e hegemônicos do feminino e do masculino.<br />
Para Partington (1996), a masculinização e a feminização de perfumes tem sido<br />
construída e reforçada através do design de embalagens. Deste modo, as ideologias de<br />
gênero, que prescrevem características e comportamentos aceitáveis para homens e mulheres<br />
são reiterados nos componentes simbólicos na construção dos envoltórios.<br />
Os frascos simulam personalidades e estilos de vida: priorizam as funções<br />
simbólicas, realçam os valores semânticos, propondo formas de se portar, instaurando marcas<br />
de construções de subjetividades. São simulacros que reinventam os corpos, as percepções<br />
do entorno, das crenças, da arte e dos objetos cotidianos. Provocam efeitos sinestésicos que<br />
colocam em conjunção os estereótipos e as representações das práticas sociais.<br />
Notas<br />
i Disponível em: . Acesso em: 26/06/2010.<br />
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São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 172
AS EXPERIêNCIAS DO DESIGN FINLANDêS: REFLEXõES PARA AçõES<br />
DO DESIGN<br />
Maria Carolina Medeiros; Mestranda em <strong>Design</strong>: PPGD – NUPECAM/FAAC/UNESP<br />
mcarolmedeiros@hotmail.com<br />
Mariano Lopes de Andrade Neto; Mestrando em <strong>Design</strong>: PPGD – NUPECAM/FAAC/UNESP<br />
mlaneto@gmail.com<br />
Lívia Flávia de Albuquerque Campos; Doutoranda em <strong>Design</strong>: PPGD – LEI/FAAC/UNESP<br />
liviafl avia@gmail.com<br />
Paula da Cruz Landim; Professora Adjunto: NUPECAM/FAAC/UNESP<br />
paula@faac.unesp.br<br />
Resumo<br />
O trabalho traça um breve panorama do estabelecimento do<br />
design na Finlândia, pautado na contextualização histórica, e<br />
principalmente, no comportamento dos atores envolvidos neste<br />
cenário: designers, indústrias e governo. Para tanto realizou-se<br />
um levantamento teórico exploratório baseado nas investigações<br />
do curso “Políticas em <strong>Design</strong> na Finlândia” do Programa Pós<br />
Graduação em <strong>Design</strong> da UNESP, ministrado pelo professor Pekka<br />
Korvenmaa da University of Art and <strong>Design</strong> Helsinki. Esse relato<br />
aponta reflexões e críticas sobre o design brasileiro, tendo em<br />
vista que a bem sucedida experiência na Finlândia pode fornecer<br />
subsídios para futuras análises do design do Brasil.<br />
Palavras-Chave: design de produto; design na Finlândia;<br />
políticas em design<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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As experiências do design finlandês: reflexões para ações do design<br />
Introdução<br />
A Finlândia se desenvolveu a partir de uma nação predominantemente agrícola e pobre,<br />
à margem da Europa. Evoluiu para um Estado bem industrializado e com um alto padrão de<br />
vida. O design não só está presente nessa realidade, como pode ser apontado como um dos<br />
atores na construção do sucesso internacional da indústria finlandesa.<br />
Pautado no princípio básico do Funcionalismo – ou seja, nas necessidades práticas de<br />
uso – o design desenvolvido na Finlândia acabou por se tornar um modelo internacional. Ao<br />
conservar traços e identidade finlandeses em projetos com funcionalidade estética e pureza<br />
formal, desenvolveu uma linguagem universal.<br />
Nesse país a implantação da indústria e a institucionalização do design, ocorreram de<br />
forma integrada, com a interação e o planejamento necessários dos três principais sistemas<br />
envolvidos – Governo, Indústrias e Instituições de Ensino.<br />
Portanto, esta pesquisa exploratória observou a evolução destes três sistemas e<br />
seus reflexos para o design finlandês, a fim de conhecer como se deu o desenvolvimento de<br />
um design de prestígio internacional e discutir algumas sugestões que poderão auxiliar no<br />
aprimoramento da área no Brasil, provocando reflexões para implantação de futuras ações<br />
no país. Para isso, realizou-se um estudo descritivo amparado por meios bibliográficos de<br />
investigação, baseados em métodos descritos por Marconi e Lakatos (2000). O levantamento<br />
teórico do trabalho resulta das investigações realizadas na disciplina “Políticas em <strong>Design</strong> na<br />
Finlândia” fornecida ao Programa de Pós-Graduação em <strong>Design</strong> da UNESP/Bauru, ministrada<br />
pelos professores Paula da Cruz Landim (UNESP) e Pekka Korvenmaa (University of Art and<br />
<strong>Design</strong> Helsinki).<br />
Referencial teórico<br />
A consolidação da indústria na Finlândia e sua relação com o design<br />
O movimento modernista, surgido na primeira década após 1917, ano da independência<br />
do país, propiciou a aproximação da indústria com artistas locais, gerando soluções atrativas<br />
para os problemas da sociedade moderna emergente. O novo estado precisava de novos<br />
edifícios, objetos e símbolos que refletissem a necessidade de uma identidade nacional;<br />
momento esse que culminou em um discurso progressista do design e um incentivo a sua<br />
prática no país.<br />
O crescimento do design sofreu com os efeitos da depressão em 1930. Os problemas<br />
de urbanização e a industrialização descontrolada levaram os designers a refletir sobre o<br />
funcionalismo, o significado do setor industrial enquanto força social e cultural, e a mudança<br />
dos meios de produção de uma sociedade baseada no artesanato para uma manufatureira;<br />
provocando uma busca de soluções para as transformações vividas na Finlândia.<br />
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O rápido desenvolvimento do design na Finlândia, é claro, não veio do<br />
nada. O trabalho preparatório começou na década de 1930 quando foi<br />
dado ao Modernismo uma interpretação nórdica, chamada Funcionalismo<br />
(KORVENMAA, 2009, p. 15, tradução nossa).<br />
Mais a frente, as décadas de 1950 e 1960 representaram o sucesso internacional<br />
do design finlandês. Produtos que se destacavam principalmente por suas características<br />
intrínsecas – autenticidade, essencialidade exótica e qualidade –, eram acessíveis a muitos<br />
lares finlandeses. Grandes grupos de consumidores domésticos foram alcançados; jogos de<br />
jantar e/ou chá/café de cerâmica, objetos de vidro e várias peças de mobiliário, premiados<br />
internacionalmente, estavam disponíveis aos consumidores da classe média.<br />
O design moderno foi um importante ingrediente na atualização de processos<br />
em vários níveis [...] equalizando racionalidade, democracia e emancipação [...]<br />
Equilibrar qualidade é o que chamamos hoje em dia de valor da marca, seja<br />
de móveis, vidros, cerâmicas e produtos têxteis. Sua penetração no mercado<br />
internacional ocorreu de forma fácil e as receitas trazidas ao país cresceram<br />
significativamente (KORVENMAA, 2009, p. 15, tradução nossa).<br />
Arabia e Iittala são marcas tradicionais de vidro e cerâmica da empresa Hackmann<br />
<strong>Design</strong>or, o maior produtor de louça da Finlândia. Surgida em meados de 1890, essa empresa<br />
ampliou sua linha de produtos domésticos ao longo dos anos, oferecendo desde facas e<br />
objetos de cutelaria até jogos de jantar em cerâmica ou vidro. Durante a década de 1960,<br />
as importações baratas da Ásia chegaram à costa da Escandinávia e, para manter sua<br />
posição no mercado, a Hackman foi forçada a modernizar seus produtos. A tarefa foi dada a<br />
designers estabelecidos, tais como Kaj Franck, Babel e Adolf Gardberg Bertel. Essa medida<br />
de aproximação da indústria com o design pode ser observada ao longo dos anos e em vários<br />
setores industriais.<br />
Um exemplo recente da continuidade e dos resultados da aproximação desses setores<br />
são os processos avançados de desenvolvimento de produtos criados na Hackmann, razão<br />
pela qual ela se situa dentre as mais reconhecidas empresas cerâmicas do design internacional.<br />
Suas marcas Arabia e Iittala oferecem também uma série de produtos, chamada Pro <strong>Arte</strong>, de<br />
objetos com design exclusivos (Figura 01) resultados da referida parceria.<br />
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Figura 01 – Copo Iittala HotCool. Fonte: Iittala (2010)<br />
Retomando os aspectos históricos, a indústria finlandesa aposta no potencial da<br />
contribuição do design como fator de competitividade internacional há mais de 60 anos. E,<br />
na década de 1950, investia em design de destaque, ou seja, em indivíduos cujos produtos<br />
comercializados eram associados com a aura artística de seus famosos nomes em design<br />
com reputação internacional.<br />
A indústria finlandesa se desenvolveu rapidamente a partir da Segunda Guerra<br />
Mundial, especialmente a indústria metalúrgica que criou uma gama de produtos<br />
onde um novo tipo de habilidade de design era necessário – por exemplo,<br />
no desenvolvimento de equipamentos de transporte, eletrodomésticos e<br />
aparelhos eletrônicos (KORVENMAA, 2009, p. 17, tradução nossa).<br />
Um outro exemplo, no caso de transportes, trata-se das largas tradições de construção<br />
naval na Finlândia, por ser um país muito ligado ao mar. A associação do amplo conhecimento<br />
adquirido com a longa experiência do setor aliado às novas tecnologias propostas pelo design<br />
gerou resultados de excelência. Os quebra-gelos finlandeses (Figura 02), um dos produtos<br />
mais conhecidos da sua indústria, têm como valor atribuído a navegabilidade do mar durante<br />
todo o ano. A AkerYards (Aker Finnyards), que tem estaleiros em Helsínqui e em Turku, produz<br />
25% das embarcações de cruzeiro no mundo, afirma Peltonen (2008).<br />
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Figura 02 – Unidade de propulsão Azipod de tecnologia finlandesa utilizada em navios luxo. Fonte: ABB (2010)<br />
A década de 1960, marcada pelo grande status do design finlandês, também ficou<br />
conhecida pela crítica ao culto da personalidade que se desenvolveu em torno dos designers<br />
individuais. Conforme Landim (2009, p. 76),<br />
Isto correspondeu a uma crise difundida nas artes aplicadas finlandesas.<br />
Com a recessão global, a indústria não podia mais fornecer emprego para<br />
todos os novos designers por muito tempo. Essas considerações figuraram<br />
na discussão internacional e foram debatidas, mas ofuscadas pelo foco no<br />
design individual na Finlândia, apesar da extensa discussão sobre o papel do<br />
design industrial.<br />
Mesmo em momentos de revisão de postura, os bons resultados da proximidade dos<br />
dois setores permaneciam. Como no caso das tesouras laranja da Fiskars. Desenvolvidas<br />
em 1967, tornaram-se um dos produtos mais conhecidos do design finlandês e um ícone<br />
mundial. Sua cor laranja surgiu, em parte, por acaso, pois seu protótipo foi criado com uma<br />
resina laranja que sobrou na máquina de molde usada para produzir um espremedor de laranja<br />
(FISKARS, 2009), ilustrado na Figura 03.<br />
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Figura 03 – Tesoura laranja fabricada com material de sobra do espremedor de laranja. Fonte: Fiskars (2009)<br />
Na década de 1970 surgiu o interesse pela ergonomia, semiótica, valores simbólicos,<br />
e a ênfase social como sinônimo de bom design. Este período caracterizou-se como um<br />
momento de transição e de autocrítica, com debates frequentes, tendo originado um cenário<br />
no qual o culto ao designer individual era considerado inapropriado e o design anônimo seria o<br />
novo discurso. Um exemplo dos reflexos dessa nova postura é visível no design de mobiliário,<br />
pautado agora em princípios do funcionalismo e ergonômicos, tornando-se um processo<br />
projetual lógico e científico, baseado na pesquisa.<br />
O próximo período, década de 1980, caracterizou-se pela maturidade em design<br />
na Finlândia. Momento em que a ergonomia e o meio-ambiente tornaram-se um assunto<br />
recorrente e os designers transformaram o principio da “forma segue a função” em “forma<br />
segue função e fantasia”. A liberdade e fantasia refletiram-se no design de mobiliário finlandês,<br />
influenciados pelo pós-modernismo na primeira metade da década.<br />
Também, nesse período, os atributos estéticos dos projetos avançaram<br />
consideravelmente, alcançando nível internacional. O conforto e aparência de um utensílio<br />
doméstico recebiam a mesma atenção dispensada a um carro de luxo. Depois do êxito<br />
das tesouras, a Fiskars criou uma série de ferramentas manuais tradicionais (Figura 04),<br />
como machados, pás, enxadas, e ferramentas para jardinagem, cujo novo design melhorou<br />
radicalmente as suas vendas (PELTONEN, 2008).<br />
Figura 04 – Produtos Fiskars. Fonte: Fiskars (2010)<br />
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O cenário econômico finlandês mudou rapidamente no começo dos anos 1990, levando<br />
o país a sua pior crise com o ápice da recessão entre 1992 e 1994. Neste período evidenciou-se<br />
a fragilidade da infra-estrutura da indústria nacional, gerando um consenso sobre a importância<br />
de se redirecionar a indústria do país para áreas maciçamente tecnológicas, assim como para<br />
informação tecnológica.<br />
Os primeiros anos da década de 1990 trouxeram à Finlândia uma crise<br />
financeira muito mais severa que a da Grande Depressão dos Anos 30. Isto<br />
significou uma abrupta interrupção ao florescimento de uma sociedade de<br />
bem-estar, assim como aos mecanismos que apoiaram o design – e aos quais<br />
o design serviu como ferramenta (KORVENMAA, 2009, p.16, tradução nossa).<br />
O cenário do design finlandês mudou significativamente a partir do final dos anos 90,<br />
aumentou-se a intensidade de atividades de pesquisa e desenvolvimento (P&D), tanto nos<br />
projetos de produtos como no nível estratégico geral. A década de 1990 viu o colapso da<br />
supremacia dos antigos moldes de design e o aumento do design tecnológico, motivado pelas<br />
ferramentas digitais. A atenção a essas mudanças ocasionaram a retomada econômica da<br />
indústria e do design.<br />
Novamente as ações resultantes da associação dos três setores viabilizam a retomada<br />
do crescimento econômico. Como exemplo tem-se a companhia finlandesa Nokia Mobile<br />
Phones, uma das maiores produtoras de celulares no mundo, com exportações para 130<br />
países (PELTONEN, 2008). A Benefon é outro produtor finlandês de celulares e telefones para<br />
segurança com dispositivos de rastreamento. Um bom exemplo é TWIG Protector (Figura 05),<br />
um dispositivo de segurança portátil planejado para os trabalhadores solitários e pessoas que<br />
possam estar em risco.<br />
Figura 05 – Dispositivo de segurança portátil TWIG Protector. Fonte: Benefon (2010)<br />
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O resultado do sucesso de ambas as companhias reside em um design atualizado, com<br />
ênfase sobre a ergonomia, facilidade de utilização e comunicação visual. O design finlandês<br />
novamente é alvo de um considerável interesse internacional. Como afirma Peltonen (2008,<br />
n.p):<br />
Os produtos de sucesso são fruto de um design inovador, capaz de abrir as<br />
portas do mercado mundial. [...] A construção naval, os transportes públicos, a<br />
segurança laboral, a saúde, as atividades de lazer, os desportos, a comunicação<br />
e a eletrônica, são áreas que demonstram a atenção dada pelas empresas<br />
ao design, é a chave da produção de sucesso e da atenção internacional<br />
crescente.<br />
A histórica proximidade entre o design e indústria na Finlândia permitiu um<br />
desenvolvimento “simbiótico”, cuja relação ganhou profundidade e complexidade ao longo dos<br />
anos. No entanto, seu alto desenvolvimento tecnológico resulta da participação de mais outros<br />
dois agentes, o governo e as instituições de ensino. Como relatado a seguir, o planejamento e<br />
os investimentos derivados de ações políticas incentivam as atividades de P&D realizadas nas<br />
instituições em parceria com a indústria local, alimentando essa aproximação.<br />
O ensino e institucionalização do design finlandês<br />
A institucionalização do design na Finlândia tem início em 1875 com a fundação da<br />
“Sociedade Finlandesa de <strong>Arte</strong>s e Ofícios”, cujo intuito era promover as artes industriais. Esta<br />
escola se solidificou ao longo dos anos e se tornou um importante centro educacional. Em 1965<br />
passou a ser administrada pelo Estado Finlandês, e em 1973 a ser denominada <strong>Universidade</strong><br />
de <strong>Arte</strong>s e <strong>Design</strong> de Helsinki, responsável por todo ensino de design no país.<br />
Dentre as muitas transformações que o ensino passou desde seu estabelecimento, um<br />
de seus principais marcos acontece após a II Guerra Mundial, momento em que as reformas<br />
direcionaram esse ensino para a indústria. A crescente demanda e diversificação do mercado,<br />
bem como o crescimento da indústria nos anos pós-guerra, aumentaram a carência por<br />
profissionais qualificados e preparados para atender as necessidades da sociedade:<br />
Educação em design, prática profissional e indústria utilizando isso, eram todos<br />
influenciados pela rápida industrialização da nação, e de um modo mais geral<br />
pela concepção de indústria baseada no progresso tecnológico como um dos<br />
principais fatores determinantes da sociedade e cultura (LANDIM, 2009, p.75).<br />
O momento propício para investimentos no ensino em design do país também<br />
possibilitou mudanças em outras instituições. Na década de 1960, a Ornamo se estabeleceu<br />
como a associação central de designers, a Associação Finlandesa de <strong>Design</strong>ers, com suborganizações<br />
e associações, dentre eles: designers de moda (1965) e designers industriais<br />
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(1966), os quais se uniram às associações já existentes para arquitetos de interiores (1949) e<br />
designers têxteis (1956). Esta instituição passou a receber anualmente suporte financeiro do<br />
Ministério da Educação para cobrir as despesas de expansão das ações e atividades relativas<br />
ao ensino e prática do design.<br />
A experiência do envolvimento dos três setores apresentou resultados significativos na<br />
educação em design. Esses resultados geraram reconhecimento fora do país, e a partir de<br />
1987 uma série de conferências internacionais em colaboração com líderes do cenário em<br />
design de vários países discutiram a educação e a pesquisa em design. Estabeleceu-se assim o<br />
<strong>Design</strong> Forum Finland, cujo objetivo é promover o design gerando oportunidades na economia<br />
e nos negócios, aumentando a competitividade nas indústrias do país e capacitando-as para<br />
a exportação de produtos com design (DESIGN FORUM FINLAND, 2009).<br />
Raulik et. al (2009) afirmam que essas ações trouxeram à Finlândia a liderança, como um<br />
dos mais competitivos países no Fórum Econômico Mundial. A atribuição de poder decisório e<br />
verbas a um órgão consciente da importância da participação efetiva dos setores envolvidos<br />
permitiu o estabelecimento de metas coletivas. Como no caso da inclusão do design como<br />
parte essencial do planejamento de investimentos em longo prazo, priorizando o setor de P&D.<br />
Ações surgidas desse movimento acabaram por originar programas de política em design.<br />
Programas estes que dentre seus objetivos, visavam transferir inovação de natureza tecnológica<br />
dos projetos desenvolvidos na <strong>Universidade</strong> para possíveis utilizações pela indústria, criando<br />
um centro para design como parte dessa política: a <strong>Design</strong>ium (LANDIM, 2009).<br />
O centro de inovação é composto pela <strong>Universidade</strong> de <strong>Arte</strong> e <strong>Design</strong> de Helsinque,<br />
a <strong>Universidade</strong> da Lapônia, <strong>Universidade</strong> de <strong>Tecnologia</strong> de Helsinque (HUT) e a Escola de<br />
Economia de Helsinque (HSE), em estreita colaboração entre elas, e conta ainda com a<br />
cooperação de outras universidades, empresas e organizações públicas.<br />
Esse conjunto de fatores explica a forte presença de instituições ligadas à P&D, uma<br />
característica única não encontrada em outros países, de acordo com Raulik et. al (2009).<br />
Aliada a outro fator importante na promoção do design, a mobilidade dos estudantes - seja de<br />
estrangeiros para a Finlândia ou vice-versa – permite a troca e expansão de conhecimentos e<br />
estimula inovações.<br />
Atualmente se vê a penetração do design em universidades de tecnologia e economia,<br />
gerando transferência de conhecimento e potencializando abordagens multidisciplinares.<br />
Destaca-se também a forma como a política em design se desenrola no país, com a participação<br />
de representantes da indústria, educação, designers e o setor público como meio de gerar<br />
iniciativas para as instituições decisórias, tanto públicas como privadas. Como observa Landim<br />
(2009), a UIAH (<strong>Universidade</strong> de <strong>Arte</strong> e <strong>Design</strong> de Helsinque) tem participado ativamente em<br />
várias ações e iniciativas, de forma que ela não se mantém apenas concentrada em educação<br />
e pesquisa, mas também em colaboração com a política em design.<br />
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Ações do governo e o design na Finlândia<br />
Com a crise finlandesa no começo dos anos 90, o cenário econômico mudou<br />
rapidamente, levando o país à recessão, com ápice entre 1992 e 1994. Momento caracterizado<br />
por crise bancária, alta taxa de desemprego, inflação, entre outros fatores. Como fator<br />
agravante, o colapso da União Soviética, principal mercado exportador da Finlândia, produziu<br />
um impacto negativo enorme no setor industrial. Assim, se evidenciou a fragilidade da infraestrutura<br />
da indústria nacional, gerando um consenso sobre a importância de se redirecionar<br />
e atualizar as indústrias do país para áreas tecnológicas.<br />
A necessidade de investimentos significativos, para melhorar o patamar de<br />
desenvolvimento tecnológico, tornou o sistema nacional de inovação um conceito “guardachuva”.<br />
Que de acordo com Landim (2009) passou a abrigar toda e qualquer ação de melhoria<br />
econômica e social.<br />
Assim, em 1996, o Fundo Nacional Finlandês para Pesquisa e Desenvolvimento convidou<br />
um grupo de representantes da área de design para discutir como o design poderia contribuir<br />
para a inovação industrial e desenvolvimento econômico da Finlândia. Estabelecendo-se um<br />
sistema nacional de design e um plano de políticas chamado “<strong>Design</strong> 2005!”.<br />
Esse programa de política denominado “Government Decisions in Principle on Finnish<br />
<strong>Design</strong> Policy” é uma ação governamental consistente e de efetivo esforço para se introduzir<br />
o design de modo mais eficiente a serviço da indústria, do comércio e da cultura. E, apesar<br />
da política nacional em design não ser novidade na Finlândia, ele diferenciava-se por seus<br />
três principais objetivos: melhorar a qualidade do design, promover o uso do design com<br />
foco para alavancar a competitividade e emprego, e ainda aumentar o nível de qualidade,<br />
promovendo uma cultura genuinamente nacional. Ações que complementam a já estabelecida<br />
política industrial, que valoriza o papel do design como agente de competitividade para as<br />
exportações da indústria.<br />
O plano de política finlandesa começou a se desenrolar antes mesmo de ter sido<br />
oficialmente lançado. De acordo com Korvenmaa (2009), em 2000, os ministros da Cultura e o<br />
da Indústria e Comércio juntamente com representantes de altos escalões das organizações –<br />
os grandes empregadores –, assinaram um acordo para tornar a nova política de fato real. Isto<br />
ocorreu em um cenário de retomada econômica e pela percepção global do valor do design<br />
na criação de valor em mercados altamente saturados e competitivos.<br />
Korvenmaa (2009) ainda afirma que a importância fundamental para a compreensão<br />
do papel do design na política foi o fato de que ela foi realizada pelas mesmas pessoas e<br />
instituições que a escreveram. Ou seja, a própria comunidade do design e seus parceiros mais<br />
importantes foram os que fizeram as perguntas e deram as sugestões, fazendo com que o<br />
processo se desenvolvesse de baixo para cima e com as reais preocupações e vivências dos<br />
profissionais do meio.<br />
A figura 06, a seguir, ilustra como é composto o Sistema Nacional de <strong>Design</strong> Finlandês,<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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As experiências do design finlandês: reflexões para ações do design<br />
com os ministérios envolvidos, os conselhos, fundações e empresas finlandesas – como fontes<br />
de financiamento; o Comitê de <strong>Design</strong> e o Centro <strong>Design</strong>um – representando a política; e os<br />
Centros de educação, promoção, P&D, suporte e associações profissionais. Em um sistema<br />
que envolve o público e o privado, de forma abrangente e consistente.<br />
Figura 06 – Sistema Nacional de <strong>Design</strong> na Finlândia. Fonte: Raulik et. al (2009)<br />
Essa estrutura organizacional, que prevê ações e o envolvimento de todos os agentes,<br />
permite o desenvolvimento da política nacional em design e a internacionalização do design<br />
finlandês. São iniciativas que promovem a transferência dos novos conhecimentos e aptidões<br />
em design das instituições para o setor empresarial e em contrapartida leva as necessidades<br />
e também o apoio das indústrias até o ensino.<br />
Discussões e Considerações finais<br />
Este estudo é um relato de uma experiência bem sucedida e não uma análise crítica<br />
do design brasileiro, por conseqüência busca trazer subsídios para futuras ações na política<br />
nacional do design.<br />
Os constantes avanços tecnológicos e a fácil circulação de mercadorias no comércio<br />
mundial causaram profundos impactos nas economias dos países, ocasionando uma<br />
competitividade interna e externa cada vez maior. Nesse cenário o <strong>Design</strong> recebe o papel de<br />
importante agente de valorização e de identificação, motivos que tornam as ações para sua<br />
promoção e suporte, estratégicas para países, governos e empresas.<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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As experiências do design finlandês: reflexões para ações do design<br />
Amplamente discutida, essa função atribuída ao <strong>Design</strong> é cada vez mais compartilhada<br />
em experiências por todo o mundo. No caso da Finlândia, o reconhecimento global, chama os<br />
olhares para o seu sucesso e a história de seu desenvolvimento.<br />
Com a tradição do design agindo junto às indústrias e refletindo diretamente na economia<br />
do país, a Finlândia não só alavancou a competitividade de suas empresas como também<br />
proporcionou bem-estar aos seus cidadãos. Como visto, as histórias da industrialização e do<br />
design no país estão ligadas, e desde a década de 1930, essa relação é uma força social e<br />
cultural. O perfil da população e a cultura finlandesa foram fatores cruciais para o sucesso das<br />
políticas de design finlandesas.<br />
O reconhecimento e qualidade internacional, gerando produtos acessíveis à sociedade,<br />
e a proximidade com a indústria, fizeram do design finlandês um modelo. Porém, sem o<br />
envolvimento do governo por todo esse percurso, com os planejamentos e ações efetivas, não<br />
teria como resultado o surpreendente crescimento econômico do país. São ações que ainda<br />
promovem investimentos em P&D, sempre contando com aproximação das empresas com as<br />
universidades, ou seja, despertando interesses em comum que primam pela inovação.<br />
Visto por esse ângulo, as ligações entre inovação, design e tecnologia ainda são raras<br />
na política brasileira. Suas ações costumam ser pontuais, em centros de projetos regionais<br />
que eventualmente se associam aos institutos de tecnologia.<br />
Em muitos casos os centros geram resultados bem sucedidos, entretanto ainda não<br />
contam com uma política nacional clara e de longo prazo para tais iniciativas. Na Finlândia,<br />
estas ações são continuadas ou foram substituídas por novas estratégias aprimorando seus<br />
resultados ao longo dos anos. Diferença que parece estar relacionada à estabilidade política<br />
do país, visto que o apoio do governo não se alterou devido às sucessões políticas e sim pela<br />
evolução do cenário econômico.<br />
Ainda hoje, o design e a indústria caminham em paralelo, e as políticas governamentais<br />
se mostram desconexas e insuficientes. Portanto, respeitando os contrates na história do<br />
design do Brasil e da Finlândia, é preciso reconhecer que sem o envolvimento da indústria, do<br />
governo e das instituições de ensino, como na experiência finlandesa, a indefinição no design<br />
brasileiro permanecerá. O investimento em educação e políticas de inserção do design, a<br />
exemplo da finlandesa, de forma a unir tecnologia, design e empresas, é fundamental para<br />
que o país consiga aumentar a qualidade, a competitividade e principalmente, a inovação de<br />
seus produtos.<br />
Este estudo não propõe soluções específicas, mas espera que com a divulgação<br />
da experiência da Finlândia se amplie as perspectivas sobre as possíveis ações de design<br />
no Brasil, já que a realidade multi-étnica e pluri-regional do país permite explorar os mais<br />
variados atributos locais, diversificando ainda mais a produção nacional. Como por exemplo<br />
o crescimento sustentável, grande desafio da indústria brasileira, momento em que os<br />
programas de design podem fornecer as bases para esse desenvolvimento. Buscando, no<br />
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As experiências do design finlandês: reflexões para ações do design<br />
entanto, envolver as indústrias, universidades, e principalmente, as ações do governo em<br />
interesses comuns. E para tanto, observou-se a necessidade da aproximação de todos esses<br />
setores para um planejamento global que estabeleça as bases de ações e permita adaptações<br />
às várias peculiaridades dos meios de produção locais que integram a economia nacional.<br />
Referências<br />
ABB. Azipod Propulsion, 2010. Disponível em: . Acesso em: 20 jan. 2010.<br />
BENEFON. Intelinfon/Twig, 2010. Disponível em: . Acesso em: 23 jan. 2010.<br />
FISKARS. Company/Heritage, 2009. Disponível em: . Acesso em: 19 jan. 2010.<br />
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LANDIM, P. C. <strong>Design</strong>/Empresa/Sociedade. Bauru: UNESP, 2009. Tese apresentada à<br />
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Livre-Docente.<br />
MARCONI, M.; LAKATOS, E. Metodologia Científica. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2000.<br />
PELTONEN, Jarno. <strong>Design</strong> Finlandês no Novo Milénio. Disponível em: . Acesso em: 20 dez. 2009.<br />
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2008, 16-19 July 2008, Sheffield, UK : Sheffield Hallam University, 2009.<br />
Agradecimentos<br />
Este trabalho foi desenvolvido com o apoio da FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do<br />
Estado de São Paulo (Proc. 2009/02991-9 e 2009/02125-0).<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 185
INVESTIGAçõES METODOLóGICAS: APROXIMAçãO ENTRE DESIGN E<br />
TECNOLOGIA<br />
Deborah Kemmer; Mestranda em <strong>Design</strong>: <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />
d.kemmer@hotmail.com<br />
Resumo<br />
A base deste artigo é explorar metodologias que levem a uma<br />
abordagem teórica para entender o design emergente enquanto<br />
um método de intervenção educacional por meio tecnológico.<br />
Entender a tecnologia digital e a administração do método é<br />
a forma de compreender o design emergente. Por meio das<br />
ferramentas computacionais os aprendizes realizam um processo<br />
de design e de construção e, assim, generalizam as formas de<br />
conhecimento que possuem e ganham conhecimentos para<br />
outras áreas e interesses. O potencial de aprendizagem por meio<br />
coletivo é um método apontado no artigo que vem desenvolver<br />
ações pedagógicas inovadoras com recursos computacionais,<br />
visando apropriação criativa, por meio de dejetos computacionais,<br />
desenvolvendo metodologias voltadas a uma forma de design<br />
emergente de reapropriação tecnológica para transformação<br />
social.<br />
Palavras-Chave: design; emergente; educação<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Investigações metodológicas: aproximação entre design e tecnologia<br />
Introdução<br />
Palavras representam conceitos, por isso neste artigo partiremos do entendimento de<br />
palavras-chaves que aprofundem nossas reflexões.<br />
Estamos vivendo uma revolução industrial tecnológica que decorre também do<br />
computador em sua conexão com as telecomunicações.<br />
A revolução da informática que trouxe a globalização como resultado foi também a<br />
responsável pela sociedade da informação ao qual vivemos, onde conforme se lê em Peter<br />
Drucker a informação é seu instrumento mais precioso e mais necessárioi .<br />
Contudo o que se nota é que sob o “império” da tecnologia, existe um grande risco<br />
de se perder o humanismo, ou seja, as artes, a literatura, as humanidades estão em segundo<br />
plano e até mesmo a ciência fica obscurecida pela tecnologia.<br />
No bojo desta questão a criação humana aparece cada vez mais como algo que<br />
a sociedade tem de reincorporar o seu rol de prioridades, uma vez que o fator humano é<br />
fundamental e do homem partem – filosoficamente falando – as realidades.<br />
Explorando em terreno teórico<br />
Palavras representam conceitos.<br />
A leitura de qualquer texto depende do entendimento que se dá às palavras que<br />
expressam idéias e, em ultima análise, da interpretação do que tais idéias significam.<br />
Por isso no inicio deste artigo faz-se necessário entender o que significa a palavra<br />
design em conjunto com a palavra emergente e o significado que se constituí em torno delas,<br />
estruturando nosso pensamento.<br />
Conforme Bonfim, “[...] <strong>Design</strong> entende-se como objeto, qualquer artefato que resulte<br />
da aplicação da vontade do sujeito, consubstanciada no processo de conformação da matéria.”<br />
(BOMFIM, 1997, p. 10).<br />
Palavra que obedece às normas objetivas, o termo design não se esgota neste único<br />
sentido, uma vez que sua prática amplia o leque de interpretações.<br />
Eis porque esta palavra proveniente da língua inglesa pode se compreendida como<br />
parte de “um tecido que enreda o designer, o usuário, o desejo, a forma, o modo de ser e<br />
estar no mundo de cada um de nós” (COUTO, 1999, p. 9). <strong>Design</strong> à elaboração, à concepção<br />
específica de um artefato.<br />
Partindo desta visão, o <strong>Design</strong> elaborado com desejo, forma, modo de representar o<br />
mundo, abre-se a possibilidade de entender a palavra emergente, que pelo nome, nos faz<br />
pensar em certa emergência, ou seja, “pressa” no sentido de emergir.<br />
Emergir significa “que vem de fora”. Unindo então as duas palavras “<strong>Design</strong> e Emergente”<br />
podemos resumir da seguinte maneira: “[...] vontade do sujeito emergindo” (BUENO, 2009,<br />
p. 102). A terminologia “<strong>Design</strong> Emergente” inaugura uma nova forma de produzir a partir da<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Investigações metodológicas: aproximação entre design e tecnologia<br />
vontade, da intencionalidade do sujeito diante do que deseja conquistar.<br />
Hoje, a liberdade tanto pode ser um elemento da natureza como uma condição intriseca<br />
do homem ao seu estado emocional. Pensadores como filósofos, historiadores, sociólogos,<br />
ou seja, pessoas que influenciaram na história, acabaram definindo a liberdade de múltiplas<br />
formas, mas todos mantiveram um denominador comum.<br />
A liberdade para o homem está na dependência de sua própria vontade. Um exemplo<br />
desta questão é o que os filósofos Santo Agostinho e Descartes, teorizaram a respeito da<br />
vontade e liberdade, e que por fim, concluiram que são a mesma coisa. A partir de leituras sobre<br />
esse assunto, percebemos o consenso ao qual eles, dizendo que o fato de nós seres humanos,<br />
possuirmos vontade, nos coloca como responsáveis pelas nossas decisões e ações.<br />
<strong>Design</strong> emergente, educaçao e tecnologia.<br />
Vejamos então, diante dessas questões levantadas, qual pode ser a relação entre<br />
design emergente, educação e tecnologia.<br />
Um autor que possui uma postura muito clara sobre essa questão do design, como<br />
um método de intervenção educacional, trabalhando por meio da coletividade, a tecnologia, e<br />
assim, instaurando um método, é David Cavallo, quando alega a importância do computador<br />
na vida do sujeito:<br />
“O papel do computador neste processo é o de catalisar um conjunto de<br />
habilidades que possa ser transferido para um contexto diferente. Por meio das<br />
ferramentas computacionais os aprendizes realizam um processo de design e<br />
de construção e, assim, generalizam as formas de conhecimento que possuem.<br />
O desenvolvimento da fluência em tecnologia permite que as pessoas se<br />
libertem do contexto específico e passem a representar seus conhecimentos<br />
de diferentes formas, de modo a aplicá-los em várias situações.” (CAVALLO,<br />
D. 2000, p.22).<br />
Essa citação nos revela que, por meio da tecnologia, o ensino ganha um novo formato<br />
de representação e um novo processo de design e construção, onde em que a liberdade e<br />
o contexto do sujeito, passam a ser o fator essencial para o desenvolvimento humano. O<br />
mesmo autor, ainda complementa dizendo:<br />
“A análise de questões relacionadas ao design tem levado à formulação de<br />
uma abordagem teórica - “<strong>Design</strong> Emergente” - É um método de intervenção<br />
educacional; o argumento é geral, contudo, nele há estratégia que é apropriada<br />
para cenários em que a tecnologia possa facilitar mudança de paradigma.<br />
A abordagem teórica está voltada à investigação de como a escolha<br />
da metodologia de design contribui para o sucesso ou não de reformas<br />
educacionais”. (CAVALLO, 2000, s/p.)<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Investigações metodológicas: aproximação entre design e tecnologia<br />
Essa metodologia apontada, que envolve sistemas educacionais por meio de tecnologia,<br />
faz com que aprendizes ganhem conhecimentos para outras áreas e interesses. O papel do<br />
computador nesse processo permite que as pessoas se libertem e passem a representar o<br />
conhecimento de diferentes formas, de modo a aplicá-los em várias situações como afirma<br />
ainda David Cavallo: “[...] Desenvolve-se, assim, uma prática de “antropologia epistemológica<br />
aplicada” que consiste no levantamento de habilidades e conhecimentos existentes em uma<br />
dada comunidade e a sua utilização como “ponte” para novos conteúdos” “[...]. Através do<br />
“<strong>Design</strong> Emergente” é possível encontrar um balanço entre a tecnologia digital e o método<br />
de administrar a organização e de transformação da organização que se torna consciente da<br />
existência da tecnologia. (CAVALLO, 2000, s/p).<br />
O design emergente visa o humanismo.<br />
Esse balanço entre a tecnologia digital e a administração do método que fala o autor, torna<br />
essencial para o sucesso ou não do processo. Colocamos essa dúvida perante o resultado, pois<br />
se não dosado e bem organizado o projeto, o resultado pode não ser o ideal. Segundo David<br />
Cavallo: “É necessário atenção à tentação de usar só a tecnologia ou só a administração, o que<br />
pode propiciar à falha do projeto. Por outro lado, a combinação de ambas oferece uma visão<br />
otimista para o futuro da Educação.” (CAVALLO, 2000, s/p). Essa união entre a tecnologia e a<br />
administração, pode possibilitar um desenvolvimento de aprendizagem mais eficaz.<br />
“É a junção destes dois produtos da era digital em sinergia com as bases teóricas<br />
dos pensadores da era pré-digital que são o suporte adequado para realizar o<br />
que os pensadores sabiam o que e como fazer, mas não tinham meios para<br />
fazê-lo. Entre eles destaca-se Paulo Freire, mas também, estão representados<br />
John Dewey e Jean Piaget, embora este último não tenha focado seu trabalho na<br />
educação.” (CAVALLO, 2000, s/p).<br />
Quando citamos a idéia de David Cavallo de que, a “antropologia epistemológica<br />
aplicada”, consiste no levantamento de habilidades e conhecimentos existentes em uma dada<br />
comunidade, pensamos que a sua utilização serve como “ponte” para novos conteúdos.<br />
Dessa forma, podemos refletir que o autor está advertindo as pessoas, os interesses<br />
da comunidade e a vontade desses sujeitos que têm um fator essencial e primordial, quando<br />
pensado em forma de projeto educacional. Buscar essas vontades a partir da liberdade de<br />
exposição do sujeito diante do problema é considerado design emergente segundo o autor.<br />
Trabalhando com temas geradores como Paulo Freire.<br />
Ensinantes e ensinados.<br />
Estamos falando que o indivíduo deve partir de seus conhecimentos ao aprender, como<br />
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Investigações metodológicas: aproximação entre design e tecnologia<br />
lembra David Cavallo. Este também cita o educador Paulo Freire, que representa muito bem<br />
essa questão, cremos que, a carta redigida aos professores, em que Freire relata o ensino e a<br />
forma de aprendizagem como essencial ao ser humano, vem constatar essa questão:<br />
“O aprendizado do ensinante ao ensinar não se dá necessariamente através<br />
da retificação que o aprendiz lhe faça de erros cometidos. O aprendizado<br />
do ensinante ao ensinar se verifica à medida em que o ensinante, humilde,<br />
aberto, se ache permanentemente disponível a repensar o pensado, rever-se<br />
em suas posições; em que procura envolver-se com a curiosidade dos alunos<br />
e dos diferentes caminhos e veredas, que ela os faz percorrer. Alguns desses<br />
caminhos e algumas dessas veredas, que a curiosidade às vezes quase<br />
virgem dos alunos percorre, estão grávidas de sugestões, de perguntas que<br />
não foram percebidas antes pelo ensinante”. (FREIRE, 1997, p.19).<br />
Percebemos que o educador Paulo Freire tinha em mente a importância de partir do<br />
conhecimento e do contexto experimentado pelo aluno para desenvolver sua metodologia<br />
na educação, ou seja, permitindo ao aluno, ou ao aprendiz expressar seus conhecimentos e<br />
experiências. Dessa forma, o educando é valorizado pelo educador. Esse modo de pensar<br />
do autor tem uma característica organizacional e metodológica, assim como David Cavallo,<br />
afirma que o fato de unir tecnologia e administração para alcançar sucesso, também é uma<br />
alternativa de usar “metodologia”.<br />
Se pensarmos como Paulo Freire, perceberemos que não devemos subestimar o<br />
conhecimento dos alunos, e sim nos utilizarmos de seu aprendizado, valorizando o campo<br />
de referência deles. Esse fator se pensado dessa maneira, instaura uma metodologia, e essa<br />
vem emergir e racionalizar ações com o conhecimento previamente aprendido pelos sujeitos.<br />
Sociedades humanas são diferentes<br />
Citando a pesquisa de Gordon sobre sistemas complexos autocoordenados, podemos<br />
entender melhor essa questão. Steven Johnson (2003), ao analisar a pesquisa de Deborah<br />
Gordon, relata que a autora estudou colônias de formigas que se auto-organizam e, assim,<br />
constituem um comportamento emergente coordenado, ou seja, uma forma de agir coletiva<br />
sem um líder para ditar ordens.<br />
Segundo a pesquisadora, a formiga-rainha não assume diante das outras formigas,<br />
um papel de autoridade, como se costuma pensar. Ela não comanda as ações das operárias.<br />
Ao contrário. “As colônias estudadas por Gordon mostram um dos mais impressionantes<br />
comportamentos descentralizados da natureza: inteligência, personalidade e aprendizado<br />
emergem de baixo para cima, bottom-up. (JOHNSON apud GORDON , 2003, p. 23).<br />
Segundo Steven Johnson, nenhuma das formigas é responsável pela “operação<br />
global”, elas se auto-organizam e conseguem um alto grau de coordenação. Esse exemplo<br />
das formigas são “comportamentos emergentes” em que as interações são colaterais e se<br />
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Investigações metodológicas: aproximação entre design e tecnologia<br />
presta atenção nos “seus vizinhos mais próximos” em vez de ficar “esperando por ordens<br />
superiores”. As formigas agem localmente, mas a “[...] ação coletiva produz comportamento<br />
global”. (JOHNSON, 2003, p. 54).<br />
Há uma questão que deve ser levantada. As formigas podem ser comparadas com<br />
relação à ação coletiva que faz acontecer um comportamento global, mas é inegável que os<br />
seres humanos produzam cultura, e as formigas não, ou seja, o padrão biológico pode explicar<br />
parte do nosso tipo de sociabilidade e as formigas podem nos ajudar nesta compreensão,<br />
mas não abarcará os aspectos culturais e psíquicos do homem.<br />
O autor Paulo Freire tem uma frase que relata bem essa questão: “Ninguém educa<br />
ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo<br />
mundo.” Assim como os homens dotados de conhecimento e cultura, as formigas também<br />
de uma forma organizada aprendem não no sentido cultural, mas na vivência, umas com<br />
as outras, vivendo a coletividade assim como o homem. Essa teoria de Deborah Gordon se<br />
encaixa perfeitamente com as idéias de Paulo Freire (1997).<br />
Segundo Freire, entendemos, portanto, que o termo bottom-up citado por Steven<br />
Johnson, leva a incessante tarefa de trabalhar a coletividade, começando de baixo para<br />
cima. Isto é, a partir do conhecimento dos alunos, “que vem de baixo”, dos seus problemas,<br />
angústias ou desejos, aproveitando a fala e as informações do aprendiz podemos fazer a<br />
diferença e trazer para “cima” as questões a serem resolvidas.<br />
Para Steven Johnson, “[...] A cristalização de um fenômeno bottom-up que se mantém<br />
no tempo” é uma das principais “leis da emergência”. Um sistema emergente é capaz de<br />
socializar, ficando mais inteligente com o tempo e com o conhecimento isso possibilita a<br />
integração entre pessoas. A cidade é outro exemplo citado por ele, além da pesquisa de<br />
Deborah Gordon das formigas.<br />
Segundo ele: “[...] as pessoas se auto organizam em sua vivência na cidade, vivem em<br />
partes diferentes, portanto, trocam experiências, prestando atenção umas nas outras”. Assim<br />
segundo o autor, a cidade se torna “[...] mais esperta, mais útil para seus habitantes”. Ainda<br />
relata que, “[...] esse processo acontece sem que as pessoas percebam. “[...]. “E aqui, outra<br />
vez, a coisa mais extraordinária é que esse aprendizado emerge sem que ninguém tenha<br />
conhecimento dele.” ( JOHNSON, 2003, p. 79).<br />
Nesse sentido, o autor aponta a cidade como um formigueiro, como um fenômeno<br />
emergente que tem em seu interior praças, pessoas que interagem e possuem sempre um<br />
vizinho para se comunicar. Sendo assim, Johnson afirma que é um mundo de interconexões<br />
“[...] conduzindo à ordem global, componentes especializados, criando uma inteligência não<br />
especializada, comunidades de indivíduos solucionando problemas sem que nenhum deles<br />
saiba disto. (JOHNSON, 2003, p. 69).<br />
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Investigações metodológicas: aproximação entre design e tecnologia<br />
Sintetizando com os pensadores<br />
Sistematizando o que falamos até aqui e todas essas práticas citadas recorremos<br />
novamente a David Cavallo, que afirma ser por meio da tecnologia, que o ensino permite que<br />
as pessoas se libertem do contexto específico, passando a representar seus conhecimentos<br />
de diferentes formas.<br />
Mais uma vez citamos Paulo Freire o qual reforça essa idéia, e destaca que o aprendizado<br />
deve repensar o já pensado. E ainda completando nosso raciocínio, temos os exemplos que<br />
Steven Johnson citando Deborah Gordon, quando indica que é por meio de experiências<br />
como o das formigas, que procuram a coletividade, que se torna possível alcançar objetivos.<br />
Partem da ação conjunta, em busca de seus interesses.<br />
Todos esses exemplos citados são de grande valia para a vida do homem. Provam que<br />
o trabalho em conjunto, pode facilitar ou melhorar questões sociais, políticas e econômicas do<br />
bairro ou cidade que vivemos. Por meio da internet, redes sociais também podem estabelecer<br />
conexões interativas de coletividade, entre vários estados e porque não falar no mundo,<br />
essa é uma forma de interação coletiva atualíssima. O trabalho coletivo só tem a acrescentar<br />
progressos individuais a qualquer objetivo que se queira alcançar.<br />
Nesse sentido, fazemos aqui uma analogia com as cidades e sua população, que<br />
estabelecem conexões. Isso nos faz refletir que tudo tem um início e uma metodologia. Todos<br />
esses exemplos, no momento da ação, não procuraram estabelecer relações, não existe um<br />
líder, mas sem perceber, indivíduos ou formigas se auto-organizam, partem do problema para<br />
resolver seus objetivos. É notado então, que em todos esses processos foi utilizado uma<br />
metodologia, e que a todos esses exemplos podemos dar o nome de <strong>Design</strong> Emergente.<br />
Essas formas de organização, como os das formigas citado como exemplo, vêm da<br />
coletividade sempre com um foco específico que nos faz lembrar ações ativistas. Os ativistas<br />
parecem ter sempre uma atividade em prol de uma causa política, cultural ou social. Eles se<br />
organizam por uma causa na qual acreditam e por ela lutam. O coletivo MetaReciclagem é<br />
um exemplo disso. É uma rede colaborativa que partilha informações e requer livre circulação.<br />
Seus participantes buscam conhecimentos livres, adaptados, transformados e reformulados,<br />
conforme suas descobertas e aspirações.<br />
Esses participantes, que podemos chamar de ativistas são pessoas de diferentes<br />
estados brasileiros que se comunicam e trocam suas experiências por meio de um site, onde<br />
postam seus conhecimentos tecnológicos de aproveitamento de peças computacionais,<br />
desenvolvimento de softwares, e outras conquistas tecnológicas, desenvolvendo então, uma<br />
nova experiência em suas vidas e em sua educação, pois trocam experiências e discutem<br />
questões diversas.<br />
Para entender melhor esse coletivo que surgiu com o nome MetaReciclagem, vejamos<br />
as informações coletadas por Tavares no site .oxossi.metareciclagem.org por meio de uma<br />
entrevista feita com Felipe Fonseca, um dos fundadores e ativistas comprometido com o<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Investigações metodológicas: aproximação entre design e tecnologia<br />
MetaReciclagem.<br />
“Eu usava internet, desde 95, 96 quando eu entrei na faculdade no Sul, mas<br />
era limitada, não tinha intimidade, nem paciência, gostava mais de pegar a<br />
chave de fenda e desmontar o computador, mas aí quando veio a banda<br />
larga eu comecei a explorar comunidades, fórum, lista de discussão coisas<br />
assim e de repente eu descobri um mundo totalmente diferente, comecei<br />
a descobrir pessoas com que eu podia conversar, comecei a me identificar<br />
com um grupo de pessoas que não necessariamente eram do meu cotidiano,<br />
experiência direta, muitas delas eu não conhecia, algumas delas eu acabei<br />
não conhecendo ao longo dos anos e tem muita gente com quem eu ainda<br />
converso e não conheço presencialmente, mas aquilo me deu uma visão do<br />
que poderia ser feito através da internet, como uma ferramenta para encontrar<br />
pessoas”. (FONSECA, F. apud TAVARES, Dissertação de Mestrado PUC/São<br />
Paulo, entrevista no SESC Paulista, 2007).<br />
Essa visão de encontrar pessoas, possibilidade de trocar experiências, conforme<br />
relato de Felipe Fonseca ainda em 1995 e 1996 permitiu, assim como para ele, à milhares de<br />
pessoas a se interconectarem e estabelecerem contato, como fazem até hoje. Na atualidade<br />
acontece um aumento na velocidade de conexões, um avanço na taxa de navegação na<br />
internet e blogs, como também, youtube, facebook, twitter e tantas outras formas inventadas<br />
de comércio ou não, no decorrer desses tempos. Mas sabemos que houve uma evolução das<br />
formas utilizadas, assim como Felipe Fonseca continua relatando sua experiência:<br />
“A partir de 99 começava uma movimentação interessante, começaram os<br />
blogs, apareceu “O Manifesto Cluetrain” 2 que foi meio que um tapa na cara<br />
falando que internet não é comércio, são pessoas falando com pessoas, que o<br />
hiperlink subverte a hierarquia e uma série de afirmações, todas elas mostrando<br />
ou dando sinais desse novo paradigma que eu acho que é a internet ser<br />
usada como ferramentas para juntar pessoas. De repente já tinha uma certa<br />
movimentação de pessoas interessadas na idéia de copy left e software livre<br />
que, como eu, não necessariamente eram programadores. Eu adorava a idéia<br />
de software livre, mas naquela época em 2000, 2001, 2002 as possibilidades<br />
ainda eram limitadas. Já tinha uma certa movimentação de blogs, eram poucos<br />
blogs no Brasil e fora que estavam preocupados nessa outra maneira de ver<br />
a produção de conhecimento” (FONSECA, F. apud TAVARES, Dissertação de<br />
Mestrado PUC/São Paulo, entrevista no SESC Paulista, 2007).<br />
Essa outra maneira de ver a produção de conhecimento que Fonseca revela, mostra<br />
a indignação do autor, em ver que pessoas também utilizavam a internet para comercializar<br />
e ganhar dinheiro e não estavam interessadas em trocar conhecimentos, experiências ou<br />
diálogos. Ele relatou sobre uma palestra que presenciou e o irritou profundamente, como<br />
ainda revela na mesma entrevista:<br />
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Investigações metodológicas: aproximação entre design e tecnologia<br />
“ [...]. e teve uma noite que eu fui junto com uma das pessoas que estava<br />
também nesse ciclo de blogs e listas de discussão que é o Hernani de<br />
Matos. Nós fomos a uma palestra sobre comunicação móvel patrocinada<br />
por essas operadoras de telefone celular e a palestra foi uma imbecilidade.<br />
Os caras ficaram mostrando e querendo provar que celulares, comunicação<br />
móvel era uma boa maneira de ganhar dinheiro. Não estavam nem um pouco<br />
preocupados e interessados nas questões da produção de conhecimento,<br />
de mobilização de pessoas conversando com pessoas e todas as questões<br />
referentes aos aspectos mais coletivos e mais colaborativos da rede que nós<br />
estávamos tentando começar a entender. Então, saímos daquela palestra<br />
totalmente frustrados com o que seria do futuro de tecnologia móvel no<br />
Brasil e um pouco dessa frustração resultou no desejo de fazer, de ter uma<br />
série de discussões de ter um espaço, de ter um ambiente para conversar<br />
sobre outras possibilidades da tecnologia com quem quisesse entrar e aí no<br />
dia seguinte a gente criou uma lista de discussão com o nome de Projeto<br />
Metáfora. (FONSECA, F. apud TAVARES, Dissertação de Mestrado PUC/São<br />
Paulo, entrevista no SESC Paulista, 2007).<br />
Exemplificando para melhor entendimento<br />
Essa rede criada com o nome Projeto Metáfora que Felipe Fonseca comenta, veio<br />
de uma série de discussões que previa a possibilidade de inserir uma rede sem fio com<br />
placas wireless feita com máquinas recicladas, que permitisse aos usuários trabalhar de forma<br />
interligada, ou seja, numa rede em que uma poderia acessar a outra.<br />
Foi desta série de discussões que surgiu outras idéias, como a de montar uma<br />
ONG para distribuir computadores, ensinar tecnologia aberta à sociedade e fomentar um<br />
debate sobre conhecimentos livres. Essas idéias surgiram, mas a ONG nunca chegou a se<br />
concretizar, pois o grupo que formava o Metáfora, ou seja, pessoas que trocavam idéias pela<br />
internet, discutiam também outros temas, como batalhar doações de computadores usados<br />
e cada pessoa lutaria em busca de doações em sua cidade, montando uma lista de contatos<br />
para futuro uso, quando o projeto estivesse mais estruturado.<br />
Resolveram assim com o passar do tempo, a não criar uma ONG, afinal, tudo teria<br />
que acontecer a partir das experiências e atitudes de cada um. Desta forma foram criando<br />
metodologias aplicáveis coletivas, com trocas de experiências por meio de uma rede organizada<br />
chamada MetaReciclagem, que podemos encontrar no site http://rede.metareciclagem.org/.<br />
As atitudes desse grupo e de outros, que da mesma forma se organizam e trocam<br />
experiências, são além de ativistas, emergentes e também, estão voltadas à dinâmica de<br />
inclusão digital.<br />
Os discursos levantados pelo Metáfora, como a distribuição de computadores, mostra<br />
a vertente para um projeto direcionado à inclusão de pessoas, ou seja, de sustentabilidade.<br />
Este coletivo organizou-se desta forma, se consolidando como MetaReciclagem, mas existem<br />
outras formas de grupos que se organizam, embora sempre com uma metodologia vigente, e<br />
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São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 194
Investigações metodológicas: aproximação entre design e tecnologia<br />
damos como exemplo o Atelier Lab, de Etiene Delacroix que, segundo Bastos (2009),<br />
“Partindo de uma visão ampla da passagem de um paradigma redutivo, que foi<br />
típico da modernidade, para um paradigma generativo, típico do contemporâneo,<br />
Delacroix coleta resultados de uma prática itinerante, na forma de laboratórios<br />
artesanais criados com equipamentos de segunda mão. Ele recria estes<br />
componentes geralmente tidos como inúteis, em oficinas onde também ensina<br />
aos participantes os fundamentos de seu funcionamento. O trabalho de Delacroix<br />
lida com as figuras mínimas de linguagem digital, dissolvendo a distancia entre<br />
hardware e software, em abordagem que desafia os estereótipos mais simplistas<br />
sobre as formas de difusão do conhecimento na era da tecnologia”. (BASTOS,<br />
2009, p. 29)<br />
O Professor Etienne Delacroix, físico e pesquisador belga, desenvolve ações<br />
pedagógicas inovadoras com recursos computacionais, visando apropriação criativa por<br />
crianças e adolescentes, por meio de dejetos computacionais, desmistificando a linguagem<br />
eletrônica. Bastos relata que práticas desse tipo tornaram-se comuns. Ele cita, Rob Van<br />
Kranemburg, em The Internet of Things no qual descreve: “[...] o termo Bricolab foi cunhado<br />
pelo coletivo estilingue como parte de uma idéia de MetaReciclagem, sendo implementada no<br />
Brasil, com o nome Bricolabs. Este termo vem descrever uma narrativa colaborativa que pode<br />
ser escrita por muitas vozes, a minha sendo uma apenas”.<br />
Segundo Bastos, “[...] são experiências que serviram, como inspiração para a<br />
política de criação de pontos de cultura do governo brasileiro, tornando-se parte<br />
da equação uma demanda quantitativa que se descontextualiza dos debates<br />
propostos originalmente em recomendações como o Atelier Lab ou Bricolabs.<br />
(BASTOS, 2009, p. 29).<br />
Ações como essas de ativismo, inclusão e sustentabilidade trabalhadas e criadas<br />
por coletivos, são tipos de metodologias voltadas a uma forma de design emergente de<br />
reapropriação tecnológica para transformação social. Como afirmam os autores Bronac Ferran<br />
e Felipe Fonseca no site Desvio, o Brasil criou pontos de cultura quando implantou, na época<br />
do ministro Gilberto Gil, entre 2003 a 2007 um programa chamado Cultura Digital.<br />
O programa chamou atenção internacional é o que veremos a seguir com os autores<br />
Ferran e Fonseca, no site Desvio. Disponível em: weblab.tk/pub/mapeamento.br<br />
“ [...] foi uma iniciativa engajada em movimentos sociais e culturais dentro do<br />
país, entre eles a aliança de ativistas de software livre e de código aberto e<br />
hackers com um ministro e sua equipe que estavam engajados não apenas<br />
com a retórica, mas também com a realidade da abertura de recursos de mídias<br />
digitais para jovens do Brasil desenvolveram protagonismo, independência e<br />
autonomia. “[...]” A transformação começa quando crianças nas comunidades<br />
reconhecem os dispositivos de tecnologias digitais como ferramentas de<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 195
Investigações metodológicas: aproximação entre design e tecnologia<br />
performance cultural, como fonte de referências diversas, como plataformas<br />
para criação estética e ressimbolização de suas experiências. Em outras<br />
palavras, a transformação social inicia quando elas entendem o ciberespaço<br />
como um território delas próprias, quando entendem o upload antes mesmo<br />
de ouvir sobre download, quando começam a publicar. Este é o momento<br />
exato em que o empoderamento acontece. Pura magia!” . (Disponível em:<br />
desvio.weblab.tk/pub/mapeamentobr – dom, 14/06/2009 - 18:17 - acesso<br />
06/06/2006.<br />
Reciclagem, uma junção de vantagens.<br />
A idéia de recuperar computadores de segunda mão, nos trás várias terminologias<br />
com a mesma finalidade como: a reciclagem, MetaReciclagem, Bricolab ou qualquer outra<br />
denominação que surja nos remete, além de uma questão educacional inclusiva, a uma<br />
consciência ecológica. Os computadores, no seu reuso por práticas e métodos como aqui<br />
citados, evita que peças de computadores sejam jogadas no lixo e impede que aconteça uma<br />
série de complicações ambientais. Essas novas máquinas feitas de sucata tecnológica ficam à<br />
margem do mundo dos negócios, como é o caso da MetaReciclagem, por exemplo. Segundo<br />
Tavares, a indústria provoca essa sobra de equipamentos com a grande produção de modelos<br />
novos, tornando os usados em baixo ou nenhum custo.<br />
“[...] por conta da falsa obsolescência incentivada pela indústria, e que,<br />
conseqüentemente, possui valor comercial baixo ou praticamente nulo. Com a<br />
sucata, novos computadores são construídos, as máquinas passam a pertencer<br />
àqueles que as reciclaram (e não mais “ao projeto”), permitindo abrir os<br />
computadores, examinar minúcias, construir conhecimento a partir dos meios<br />
de evolução da tecnologia”. Como meio de operar essas máquinas e permitir<br />
também o efetivo domínio da tecnologia do software, é utilizado o software livre,<br />
que também permite a adaptação de códigos e uma distribuição legalizada dos<br />
computadores e dos sistemas utilizados. (TAVARES, 2007, p.12).<br />
Segundo os autores William McDonough e Michael Braungart ao citar Bastos, 2007,<br />
reciclar apenas dejetos não é suficiente, é necessário remodelar o conjunto de metodologias<br />
em voga, para que se alcancem soluções nas quais haja total aproveitamento dos materiais,<br />
ou seja, dessa forma não haverá dejetos. Nesse sentido, a reciclagem deve passar por um<br />
novo paradigma, “[...] um ciclo virtuoso de reaproveitamento<br />
A Reciclagem recebe também outro adjetivo, ganha mais uma terminologia, a<br />
“Gambiarra”, que Ricardo Rosas, (2001) cita Meggs. Philip, e Purvis, Alston,<br />
diz ser utilizada por artistas e ativistas por meio de alterações, modificações,<br />
recriações de máquinas para novos usos. Porém, o que existe até o momento<br />
não trás nenhuma novidade, pois a metodologia de reciclagem já era utilizada,<br />
desde longa data, por artistas e ativistas que tinham sua mente povoada de<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 196
Investigações metodológicas: aproximação entre design e tecnologia<br />
imaginação. Sua interpretação sobre gambiarra fica clara na citação a seguir:<br />
em que não há restos ou sobras”. “[...] A gambiarra, é sem dúvida uma<br />
política.” (BASTOS, M. 2007 p. 6 ).<br />
Tal política pode se dar não apenas enquanto ativismo (ou ferramenta de suporte para<br />
ele) mas porque a própria prática da gambiarra implica uma ação política. E, consciente ou<br />
não, em muitos momentos a gambiarra pode negar uma lógica produtiva capitalista, sanar uma<br />
falta, uma deficiência, uma precariedade, reinventar a produção, utopicamente vislumbrar um<br />
novo mundo, uma revolução, ou simplesmente tentar curar certas feridas abertas no sistema,<br />
trazer conforto ou voz a quem são negados. A gambiarra é ela mesma uma voz, um grito<br />
de liberdade, de protesto ou, simplesmente, de existência, de afirmação de uma criatividade<br />
inata”. (ROSAS, apud MEGGS e ALSTON, 2001, p. 47).<br />
<strong>Tecnologia</strong> e arte podem se unir<br />
Compreendemos que a gambiarra também surge de aproveitamento de materiais que<br />
pode ser utilizado como forma de arte pela reciclagem de produtos obsoletos. Essa pode ser<br />
uma boa solução ecológica até que não seja implantado outras formas de reaproveitamento da<br />
matéria prima. Ribeiro (2009) descreve a idéia dos autores McDonough e Braungart, quando<br />
afirmam que se por parte da indústria tivesse outra visão na hora da concepção do produto,<br />
talvez não houvesse tanta obsolescência e problemas ambientais.<br />
“A minimização de impactos pode passar pela adoção da visão, “Berço ao<br />
Berço” (em Cradle to cradle), que tem como base, a idéia de que resíduos<br />
de um determinado produto possam ser as matérias primas deste mesmo<br />
produto ou de outro, ou seja, a aplicação de um bom design não só na parte<br />
da concepção do desenho mas também na escolha de materiais permitindo<br />
que o produto se recicle (os seus materiais e componentes) não existindo um<br />
tumulto de materiais”. (MACDONOUGHM e BRAUNGART, 2009, p.19 apud<br />
RIBEIRO, 2002).<br />
Quem sabe um projeto de design bem elaborado no momento da fabricação do produto,<br />
ainda na indústria, poderia ser a solução. Uma reflexão mais apurada dos meios responsáveis<br />
poderia criar a possibilidade de uma nova cultura de mudança quando da concepção do<br />
produto, como também, levar a entender de onde e como surgiu a necessidade de criar ações<br />
de reciclagem com lixo computacional, desenvolvendo com isso, um percurso histórico.<br />
Percebemos que a realidade que se apresenta hoje é uma grande quantidade de lixo<br />
computacional no mercado e o contato com o computador coloca a arte como um valor<br />
metodológico aplicado em coletivos, como afirma Hernani Dimantas.<br />
“A arte tem um valor didático. Explorar o computador não é apenas uma relação<br />
de dedos e teclados. Explorar o computador é um processo de destruir e<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 197
Investigações metodológicas: aproximação entre design e tecnologia<br />
aglutinar. Filosofia e tecnologia se juntam para desvendar o mistério do mundo.<br />
Vamos pensar na inteligência coletiva, ou na catalização do conhecimento<br />
através da colaboração entre pessoas. Pensar na inteligência coletiva é se<br />
colocar para fora do ser. Pensar na máquina é levar o conhecimento para fora<br />
da caixa cinza. Nas redes oferecemos múltiplas experiências”. (DIMANTAS, H.<br />
2009, p.06).<br />
Essa pode vir a ser uma saída para resolver a sobra de lixo computacional, caso um<br />
dia seja implantada a idéia desses autores que acreditam que existem alternativas mais<br />
eficientes do que a reciclagem. Eles sustentam que a reciclagem está atrelada a um ciclo de<br />
industrialização problemática, na medida em que estimula a obsolescência, e defendem que<br />
é preciso pensar outras maneiras de industrialização mudando, desta forma, o funcionamento<br />
e a mentalidade da empresa.<br />
Portanto, podemos pensar a reciclagem ou qualquer outra terminologia usada para a<br />
mesma finalidade, como fator educativo, para isso é necessário a inclusão digital nas escolas,<br />
formando alunos com possibilidades de ver o mundo com outros olhos. A Fundação Intel<br />
investiu, entre 1989 e 2002, US$ 700 milhões em educação por meio de suas subsidiárias,<br />
inclusive no Brasil. Conforme o artigo “Giz”, caderno e Multimidia, da Revista Inclusão<br />
Digital editado pela São Paulo Plano de Negócios, existe no Brasil a Fundação para o Futuro,<br />
patrocinada pela Clubhouse.<br />
Ela apresenta uma iniciativa que proporciona a jovens de comunidades carentes,<br />
acesso a equipamento de alta tecnologia, software profissional e monitores adultos para<br />
ajudá-los a desenvolverem a autoconfiança, as habilidades e o entusiasmo pelo aprendizado,<br />
necessários para gerar novas oportunidades e novos futuros. Atualmente, existem mais de 60<br />
Intel Computer Clubhouses em 10 países, sendo que no Brasil as duas unidades do programa<br />
encontram-se no Estado de São Paulo.<br />
Nesse sentido, percebemos a preocupação dos autores dos textos encontrados no<br />
livro “Inclusão Digital”, é de ajudarem aos professores a inserirem em seus planos de aula o<br />
aprendizado da informática, para que os aprendizes possam mais tarde, chegar ao mercado<br />
de trabalho mais preparados, e qualificados como nos mostra na citação a seguir,<br />
“[...] O objetivo é ajudar os educadores a incorporarem as ferramentas e<br />
os recursos tecnológicos em seus planos de aula “[...] ,“[...] o projeto não<br />
é um curso de informática, nem de tecnologia, mas uma metodologia de<br />
ensino. O professor tem o conhecimento básico da informática, que se<br />
soma ao conhecimento específico de sua disciplina e da sua didática.<br />
A idéia é juntar esses dois componentes para desenvolver atividades<br />
pedagógicas”. (Com a palavra a sociedade. Inclusão Digital. São Paulo<br />
Plano de negócios, 2003 s/p).<br />
Todos esses processos coletivos de design emergente citados, objetivam a geração de<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 198
Investigações metodológicas: aproximação entre design e tecnologia<br />
renda e a inclusão digital por meio de autonomia tecnológica. Essas redes colaborativas, com ações<br />
baseadas em princípios da reciclagem e do software livre, abrem canais de geração de trabalho<br />
e renda com base nos produtos desse processo, possibilitando obter não apenas o acesso à<br />
tecnologia, à educação, mas à sua efetiva apropriação como meio de desenvolvimento e criação.<br />
Considerações finais.<br />
O artigo aponta para uma conclusão de que o potencial de aprendizagem desenvolvido<br />
por meio do <strong>Design</strong> emergente enquanto método de intervenção educacional obtém não<br />
apenas o acesso à tecnologia, mas proporciona ações coletivas de aprendizagem, estabelece<br />
interações a serem construídas entre os pares, desenvolve apropriação por meio criativo.<br />
Notas<br />
i DRUCKER, Peter Ferdinani. A sociedade pós-capitalista. Tradução de Jr. MONTINGELLI. 21ª.<br />
Editora Cortez São Paulo. 2000.<br />
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– Silveira Bueno – Editora FTD : 2009.<br />
CAVALLO, D. O <strong>Design</strong> Emergente em Ambiente de Aprendizagem: Descobrindo<br />
e Construindo a partir do Conhecimento Indígena. http://web.media.mit.edu/~cavallo/<br />
Projetoemergente.pdf acesso 29/05/2010.<br />
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e Construindo a partir do Conhecimento Indígena. http://web.media.mit.edu/~cavallo/<br />
Projetoemergente.pdf acesso 29/05/2010.<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 199
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COUTO, R. M. S. (Org.), OLIVEIRA, A. J. (Org.). Formas do <strong>Design</strong> - Por uma metodologia<br />
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21ª. Editora Cortez São Paulo. 2000.<br />
FONSECA, F. Mutirão da Gambiarra História da MetaReciclagem, Histórias de<br />
MetaReciclagem. 1ª Edição Editora Felipe Fonseca, Disponível em:<br />
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FONSECA F. apud TAVARES . E. L. Conhecimentos livres e novas dinâmicas Políticas: O<br />
Significado do Coletivo Metareciclagem Tese de Mestrado – PUC/São Paulo Belo Horizonte<br />
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FREIRE, Paulo. Professora sim, tia não, cartas a quem ousem ensinar. Olho D’agua São<br />
Paulo: 1997.<br />
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido.17ª ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra: 1987.<br />
INCLUSÃO DIGITAL, Com a Palavra a Sociedade. Coordenação Geral I Lia Ribeiro Dias. II<br />
FIGUEROA, Pio. São Paulo Plano de Negócios: 2003. (Vários Colaboradores).<br />
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Tradução: Maria Carmelita Pádua Dias. Rio de Janeiro, Jorge Zahar : 2003. (Interface)<br />
McDONOUGH. W e BRAUNGGART. M. Cradle to Cradle Nort Point Press : 2002.<br />
RIBEIRO, M. M. Pedro. Desenvolvimento de mobiliário infantil de exterior numa óptica<br />
de ecodesign. Dissertação (Engenharia do ambiente) - Faculdade de Ciências e <strong>Tecnologia</strong><br />
da <strong>Universidade</strong> Nova de Lisboa: 2009.<br />
ROSAS, Ricardo. Gambiarra apud MEGGS E ALSTON Rio de Janeiro Ed. Objetiva: 2001.<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 200
CECíLIA MEIRELES: DEFENSORA DA EDuCAçãO MODERNA, DAS<br />
ARTES E DO CINEMA NA EDuCAçãO<br />
Ana Mae Barbosa; Professora Dra. do PPG em <strong>Design</strong>: <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />
Resumo<br />
Este texto contextualiza alguns escritos de jornal de Cecília<br />
Meireles que não foram incluídos em suas obras completas .São<br />
textos que visavam a modernização da Educação e do ensino das<br />
artes e do Cinema no Brasil. Outro objetivo de Cecília Meireles era<br />
a internacionalização do dialogo educacional.<br />
Palavras-Chave: cinema; artes visuais; educação<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 201
Cecília Meireles: defensora da Educação Moderna, das <strong>Arte</strong>s e do Cinema na Educação<br />
Muito se tem escrito sobre a atuação de Cecília Meireles na área da educação. A reunião<br />
de seus escritos de jornal sobre o assunto no quinto volume da edição de suas obras completas<br />
contribuiu largamente para o entendimento da história da educação nos primeiros anos do<br />
Estado Novo que ela ousa criticar muitas vezes de maneira sutil, como obrigava a situação de<br />
censura e perseguição a educadores, jornalistas e intelectuais. Na crônica de 6 de setembro<br />
de 1941 no jornal A Manhã do Rio de Janeiro ela escreveu: “Estes dez anos diferentes que<br />
o Brasil tem vivido aconteceu coincidirem agora com uns anos bem diferentes para o resto<br />
do mundo. Sejam quais forem os resultados finais destes graves dias, o indiscutível é que o<br />
homem não está humanizado”. Palavras proféticas pois o nazismo estava em plena ascensão<br />
na Alemanha e a perseguição aos judeus e comunistas, também em toda a Europa Ocidental.<br />
Ela termina a crônica dizendo:<br />
Qual é esta educação que tornará o homem bom sem ser débil, forte sem ser<br />
monstruoso, livre de todos os excessos e fanatismo e equilibrado ao mesmo<br />
tempo no universo a que pertence, na sociedade em que vive e no indivíduo<br />
que é? i (MEIRELLES, 2001:38)<br />
Como a obra educadora de Cecília Meireles vem sendo muito estudada vou me restringir<br />
aqui ao aspecto internacionalista de sua atividade de publicista da educação, especialmente<br />
seu esforço para interrelacionar a cultura da América Latina e a sua grande paixão pelo cinema,<br />
tendo chegado a ser sub-Diretora Técnica da Instrução encarregada justamente do cinema.<br />
Farei isto através de duas entrevistas uma feita com ela e outra feita por ela com um educador<br />
uruguaio que viera ao Rio para a inauguração da Escola Uruguai, de volta de uma viagem de<br />
estudos à Europa e aos Estados Unidos para visitar especialmente o Teachers College da<br />
Columbia University, meca também dos escola novistas do Brasil.<br />
No Diário de Notícias de 10/7/1930 em sua página de educação Cecília Meireles anuncia<br />
conferência do reitor da <strong>Universidade</strong> de Montevidéu:<br />
As linhas gerais do ensino secundário no uruguai<br />
O Dr. José Pedro Segundo, professor uruguaio e reitor da <strong>Universidade</strong> de<br />
Montevidéu, que se acha no Rio, como já noticiou o DIÁRIO DE NOTÍCIAS, em missão de<br />
intercâmbio intelectual com o seu colega Dr. Dardo Regules, fez ontem na Associação<br />
Brasileira de Educação, uma interessante conferência que foi presidida pelo Dr. Cícero<br />
Peregrino, reitor da <strong>Universidade</strong> do Rio de Janeiro, e teve a presença de muitos<br />
professores dos nossos estabelecimentos de ensino.<br />
Dissertando sobre as linhas gerais do ensino secundário no Uruguai, o<br />
reitor da <strong>Universidade</strong> de Montevidéu apresentou ao auditório um quadro exato do<br />
desenvolvimento lançado pelo seu país nesse ramo de instituição.”<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 202
Cecília Meireles: defensora da Educação Moderna, das <strong>Arte</strong>s e do Cinema na Educação<br />
A imagem, que ilustra esta nota, é um aspecto da mesa tomado quando o professor<br />
José Pedro Segundo fazia a sua conferência que não consegui recuperar tão bem como a<br />
caricatura que ilustra a entrevista que se segue, com Crescencio Cóccaro:<br />
Figura 1 - Desenho de Correia Dias para o Diário de Notícias em 10/07/1930<br />
Conversando com o inspetor Crescencio Cóccaro<br />
Os problemas da educação em várias partes do mundo<br />
CECILIA MEIRELES<br />
(Especial para o Diário de Notícias)<br />
Preliminarmente, devo declarar que todos os discursos que se pronunciaram por<br />
ocasião da inauguração da Escola Uruguai, foram excelentes. Dito isso, permitam-me<br />
acrescentar, agora que, de todos, o que mais me interessou foi o do inspetor Crescencio<br />
Cóccaro.<br />
Por que?<br />
Vejam por que: todas as pessoas, que falaram, tiveram, mutuamente, palavras<br />
de admiração por alguns grandes vultos do Uruguai e do Brasil; todos fizeram votos<br />
por uma perene amizade entre esses dois povos; e, se uns diziam que o Uruguai não se<br />
detinha na sua fronteira e se prolongava pelo território brasileiro, outros, por sua vez,<br />
afirmavam, com a mais sincera e comovedora convicção, que o Brasil se continuava<br />
pelo Uruguai abaixo, atraído pela simpatia da república oriental. E assim se esforçaram<br />
todos por demonstrar este afeto real, este parentesco amistoso que aproxima as terras<br />
de Artigas e de Rio Branco.<br />
O Sr. Crescencio Cóccaro, porém, lembrou-se de dizer uma coisa ainda mais<br />
interessante que essas. Parece impossível, não é? Pois escutem; o Sr. Crescencio<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Cecília Meireles: defensora da Educação Moderna, das <strong>Arte</strong>s e do Cinema na Educação<br />
Cóccaro disse que, no seu país, se cuidava da revisão dos textos escolares, a fim de<br />
que não ficasse, em nenhum deles, uma linha que pudesse lembrar, de qualquer modo,<br />
qualquer luta que haja existido entre o Uruguai e outros povos...<br />
Isto significa o seguinte: que, além de amizades presentes e futuras, evidentes<br />
e insofismáveis, o Sr. Crescencio Cóccaro ofereceu a oportunidade de nos revelar<br />
um Uruguai que reabilita algum tempo passado que, por desgraça não tinha sido de<br />
completa cordialidade; mostra-nos um povo que, não só quer ser irmão, nas horas de<br />
paz, como deseja remediar as desavenças antigas.<br />
Essa pequena informação, no meio de um discurso, fez-me ver claramente as<br />
qualidades de educador que possui o inspetor Cóccaro. E desde ai não mais o perdi de<br />
vista.<br />
uMA APRESENTAçãO<br />
Eu já estava resolvida a pedir-lhe uma entrevista. Mas, para proceder por um<br />
método gradativo, comecei por pedir-lhe o discurso. O Sr. Crescencio Cóccaro,<br />
entretanto, não m’o quis dar. E sabem por quê? Simplesmente porque o inspetor nunca<br />
publicou escrito algum. E, com aquele seu ar de generosidade sem limites, simples,<br />
cordial, feliz, disse-me, sorrindo:<br />
_ “Nós somos professorezinhos... apenas... nada mais...”<br />
_ Por isso mesmo é tanto...<br />
Ainda que, depois disto, eu não tivesse trocado mais nenhuma palavra com Sr.<br />
Cóccaro, a minha opinião a seu respeito já estaria devidamente consolidada. Toda a sua<br />
personalidade de educação estava naquela frase do discurso e nesta da apresentação.<br />
Feliz aquele que pode dizer: “Sou apenas um professor, e não desejo ser nada mais!”<br />
Depois, voltando à cidade com a delegação uruguaia, tive ocasião de saber que,<br />
além da sua visão pessoal em educação é preciso atender com especial cuidado à sua<br />
formação, para manter de pé os ideais acordados.<br />
Foi por ai, justamente, que começou a nossa palestra.<br />
NOTAS SOBRE O MAGISTéRIO NO uRuGuAI<br />
O Curso Normal no Uruguai é de 6 anos, sendo 4 de ensino secundário e os dois<br />
últimos de metodologia, prática escolar etc. Terminado o curso, o normalista ainda faz<br />
um concurso, a fim de poder ser nomeado.<br />
_ “Mas, em matéria de questões de educação, tinha o ilustre inspetor uruguaio<br />
um vasto conhecimento dos problemas pedagógicos contemporâneos, acabando de<br />
realizar uma viagem pela Europa e América, em missão do seu país, justamente para<br />
observar o que, nesses assuntos, se vai realizando pelo mundo.<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 204
Cecília Meireles: defensora da Educação Moderna, das <strong>Arte</strong>s e do Cinema na Educação<br />
Com grande alegria, portanto, marcamos a palestra do dia seguinte, tanto mais<br />
que o Sr. Cóccaro me punha inteiramente à vontade dizendo:<br />
_ “As coisas que interessam não se pedem nem se concedem por favor. É um<br />
direito. E nem ao menos terá de me agradecer.<br />
“(Vamos concordar que seja realmente um direito, Sr. Inspetor. Deixe-me, porém,<br />
também ter esse de lhe oferecer todos os meus agradecimentos!)<br />
A ENTREVISTA<br />
O Sr. Crecencio Cóccaro é uma dessas criaturas em que já exteriormente se vê a<br />
natureza dadivosa e exuberante que possuem. Alto, forte, simples, com uma expressão<br />
de quem está acostumado a pousar as mãos carinhosamente na cabeça das crianças.<br />
Sem dúvida nenhuma, quando se trata da nova orientação educacional, o<br />
problema principal que nos aparece é o da formação do professor, porque, se do<br />
professor depende esta nova era, concursos e exames, disse-nos o inspetor Cóccaro,<br />
o nosso ponto de vista é sempre este: reprovar o menos possível.<br />
“(Ficamos pensando nos conceitos de Eisntein sobre a maneira comum de<br />
examinar, em que os professores, em geral, se esforçam por fazer o aluno mostrar o<br />
que não sabe, quando justamente se deviam esforçar por fazerem-no revelar o que<br />
conhece...)<br />
_ “Além disso, continuava ele, os concursos não provam nada... Moças com<br />
um curso belíssimo, e cuja capacidade ninguém ignora, podem fracassar, por várias<br />
circunstâncias, disputando um lugar que outras facilmente conquistam, com menos<br />
aptidões embora, com mais serenidade...<br />
“(Nesse ponto ocorreu-nos a força irresistível de pistolão. Mas, não tivemos<br />
coragem para perguntar nada sobre isso, porque estamos em dúvida se é privilégio<br />
nacional...)<br />
Quanto à prática escolar, faz-se em diversas escolas uruguaias, e não numa,<br />
apenas, como aqui.<br />
Há em particular cuidado na promoção dos professores. Os preferidos são os<br />
que mais se dedicam à escola.<br />
“Aqueles, dizia-nos o inspetor Cóccaro, que, nas quintas-feiras ficam preparando<br />
planos, jogos, brinquedos para os seus alunos”.<br />
Atualmente, pretende-se a unificação das classes. Parece que a opinião do nosso<br />
interlocutor não é favorável a esse respeito.<br />
IMPRESSõES DOS ESTADOS uNIDOS<br />
De tudo quanto viu nas suas viagens, parece que são as impressões dos Estados<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Cecília Meireles: defensora da Educação Moderna, das <strong>Arte</strong>s e do Cinema na Educação<br />
Unidos as que mais acentuadamente se fixaram no interesse do professor Crescencio<br />
Cóccaro.<br />
Notas sobre a organização escolar. Sobre as edificações e o aparecimento das<br />
escolas. Sobre o sentido social da educação americana.<br />
Depois de uma referência a High School da Philadelfia a conversa se encaminha<br />
para o “Teacher’s College” da Unuiversidade de Columbia.<br />
O “Teacher’s College” dá acesso central a duas instituições. Uma, a “Lincoln<br />
School, em que se experimentam todos os métodos, sem distinção de proveniência.<br />
As classes são reduzidíssimas. Verdadeiros laboratórios pedagógicos. Em cada sala<br />
um piano ... Compõem-se poesias.... E o inspetor Cóccaro, descreve-nos a aula,<br />
a professora sentada com os alunos; uma outras professora tocando ao piano uma<br />
música. A primeira canta com as crianças a letra correspondente à música tocada.<br />
Depois vai substituindo as palavras, isto é, compondo outra cantiga, que se sustenta<br />
sobre arcabouço da primeira musica.<br />
As classes têm vinte e dois alunos.<br />
E, nesse ponto, o inspetor uruguaio nos manifesta a sua opinião: acha que as<br />
classes devem ser mais numerosas. Se é preciso pôr a criança em contato com a vida,<br />
fornecer-lhe inúmeras experiências, convém acostumá-la ao ambiente mais aproximado<br />
daquele em que terá de viver, isto é, o mundo, com toda a sua população...<br />
Em seguida, fala-nos das classes de aperfeiçoamento magisterial. Umas de 2<br />
anos, outras de 3, tentando estas últimas a prevalecer. Vão a essas classes, nos Estados<br />
Unidos, os professores que não saem da “High School”.<br />
Refere-se, com entusiasmo, às chamadas Escolas de Continuação (Continuation<br />
Schools) ii , destinadas às pessoas que, pertencendo a uma profissão qualquer, mas<br />
desejando ingressar noutra, fazem os estudos necessários, auxiliadas pelos patrões,<br />
que assim sentem favorecer um futuro bom operário, vendo nisso um proveito nacional.<br />
Tem duas palavras para apreciar as aulas de costura com umas cento e cinquenta<br />
máquinas elétricas, as aulas de datilografia, com certeza de duzentas máquinas de<br />
escrever, e os Institutos de Beleza, sempre repletos de estudantes, que, assim que se<br />
diplomam, logo encontram colocação. As Escolas de <strong>Moda</strong> são, a seu ver, um triunfo<br />
americano sobre o velho prestígio francês. Rapidamente nos descreve uma das suas<br />
classes, em que as aprendizes projetam modelos de vestidos segundo um certo tipo.<br />
Ou dadas certas condições.<br />
E fala-nos, retrocedendo à fase inicial da escola, aos Jardins de Infância<br />
americanos.<br />
_”Em todas as Escolas dos Estados Unidos _ diz,_ há uma classe para crianças<br />
de cinco anos.<br />
As crianças de cinco anos têm uma grande importância, para o inspetor Cóccaro.<br />
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Parece-lhe que possuem capacidades particulares, nessa idade.<br />
E, antes que ele nos dissesse, já tínhamos visto que, se alguma coisa o pudesse<br />
interessar mais particularmente, dentro dos assuntos educacionais, seria o problema<br />
do Jardim da Infância.<br />
JARDINS DA INFâNCIA<br />
Deixaram-lhe muito boa impressão os Jardins da Infância, de Hamburgo. Mas<br />
não teve tempo de nos pormenorizar as razões, porque logo lhe acudiu o problema<br />
uruguaio: ainda não há, na sua terra, Jardins desses em todas as escolas. E isso<br />
certamente interessa, porque insiste, com amor, nas aptidões das crianças de cinco<br />
anos, e conta-nos o seguinte:<br />
Fez-se uma representação da história de Chapeuzinho Vermelho, com as crianças<br />
dessa idade. Não se ensinou como representar. Contou-se a história, e deixou-se a<br />
interpretação correr por conta dos pequeninos atores. Imagine-se o que aconteceu:<br />
a criança que fazia o lobo, depois do sacrifício da avozinha, escondeu atrás de uma<br />
árvore a criança que representava esse último personagem, a fim de figurar, por meio<br />
dessa ausência, que a tinha devorado.<br />
Parece-lhe admirável, esse rasgo de inteligência. E concordamos, convictamente.<br />
Até reagindo contra a lição-modelo, existe a Escola de Tirocínio.<br />
_ “E como se adapta o professor que só assistiu ao Jardim da Infância, tendo de<br />
enfrentar o curso primário?”<br />
_ “Isso mesmo nos perguntávamos nós, explicou o inspetor Cóccaro. Mas é<br />
que daí, passam para o primeiro ano, seguem com o segundo, e, depois disso, então<br />
habilitados para trabalhar com qualquer classe.<br />
No Uruguai há certa dificuldade em tirar do Jardim da Infância o professor que a<br />
ele se acostumou.”<br />
E como ainda se falasse na Itália, o nosso interlocutor disse:<br />
_ Há mais uma coisa interessante na Itália. Em Roma e Florença, o Instituto Superior<br />
do Magistério prepara especialmente diretores de escola, inspetores e professores para<br />
a Escola Normal”.<br />
(Ai está uma boa sugestão, pensamos nós. Mas logo em seguida refletimos que<br />
não se pode, por enquanto, pensar em coisas tão transcendentes. E..... o inspetor<br />
Cóccaro também parece um pouco séptico com os resultados...)<br />
O DóLAR<br />
Não sabemos como se insinuou o dólar na nossa conversa. Mas o certo é que o Sr.<br />
Cóccaro me falou em 106 dólares, vencimento do professor americano, e no projetado<br />
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aumento de vencimentos do professor uruguaio.<br />
Fiquei um pouco pensativa. Mas não tanto que prejudicasse a atenção com o que<br />
seguia a conversa. E, precisamente nesse instante, o inspetor Cóccaro nos contava o<br />
seguinte:<br />
_ “Em Boston, os homens ganham mais que as mulheres. É muito justo, porque,<br />
em regra, são os responsáveis pela família”.<br />
Por questão de solidariedade feminina, não concordamos integralmente.<br />
_ “Pois sabe o que fizeram as mulheres em Boston? Declararam que só dariam<br />
seu voto para deputado ao cidadão que se comprometesse a igualar os vencimentos...”<br />
Como se vê, nem exemplo podemos aproveitar...<br />
EDuCAçãO ESTéTICA<br />
Já vimos como na “Lincoln School” se estuda canto e música ao mesmo tempo<br />
que se compõem pequenos trechos de verso.<br />
Na “Junior High School”, diz-nos o Sr. Crescencio Cóccaro, há cursos de<br />
interpretação musical em que se traduzem os sons em coros. Quer dizer, já não é,<br />
apenas, o ritmo, traduzido em linhas, aplicado a motivos de decoração – mas a impressão<br />
sonora transformada em impressão visual.<br />
Falando em grande respeito da cultura musical dos alemães, e dos cursos de<br />
descrição oral das passagens de certas músicas, antes da sua execução, tem ainda<br />
referência para a Escola Profissional que funciona, na Áustria, onde foi a célebre Escola<br />
de Cavalaria, escola em que as crianças aprendem a esculpir utilizando um sabão<br />
especial para esse fim, e onde a gravura em madeira é tratada com particular carinho,<br />
bem como a arte tipográfica, e a da publicidade, na parte referente a cartazes.<br />
MuSEuS<br />
As suas últimas palavras são para os museus.<br />
Fala-nos dos museus de animais vivos de Berlim. E ambos nos concentramos,<br />
um pouco emocionados sobre um pensamento comum:<br />
_ “Os museus de animais conservados são detestáveis. Ensinam a morte. Ensinam<br />
a matar.”<br />
E eu, recordando Tagore, pude concluir apenas:<br />
_ “Um pássaro empalhado não tem nada a ver com o pássaro que a natureza<br />
nos oferece. A sua personalidade não está na disposição das penas. O feitio do bico,<br />
no tamanho das patas. O pássaro é o seu movimento, o seu vôo, o seu canto, as suas<br />
expressões...”<br />
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TERMINANDO<br />
Ao terminar a palestra, quis o Sr. Cóccaro, por extrema gentileza, fornecer-nos<br />
alguns dados sobre a situação do ensino no seu país. E disse-nos:<br />
_ “Pela lei de 26 de outubro de 1926, foram votados cem milhões de pesos para<br />
edificações escolares: 50 mil pesos para mobiliário etc.; 45 mil para livros de leitura<br />
(porque o governo uruguaio adquire as edições para as escolas); 130 mil para material<br />
escolar; 25 mil para o material científico; 10 mil para bibliotecas; 5 mil para a aquisição<br />
de lanternas de projeção; 26 mil destinados, unicamente, ao serviço de varrer a escola...<br />
Não se pagam materiais para exame. Há 27 mil pesos destinados aos examinadores; 26<br />
mil para excursões; 200 mil para copos de leite, cantinas etc. Mas, nessa obra, gastamse<br />
600 mil pesos. A diferença é fornecida pelas comissões de pais. Para roupa e calçado,<br />
há uma verba de 30 mil pesos..<br />
Mas há um projeto para elevar esses algarismos. Não nos lembramos bem se os<br />
pretendem duplicar ou triplicar, mas é qualquer coisa assim grandiosa.<br />
IMPRESSãO FINAL<br />
O Professor Crescencio Cóccaro mostrou-se, em toda a palestra como o<br />
advinharamos pelo discurso.<br />
Disse-nos coisas assim:<br />
_ “Nos Estados Unidos ensinam a criança a significação da vida. Ela sabe lidar<br />
com dinheiro, desde pequena... Compra o seu “copo de leite”. Nós achamos que a<br />
criança, pelo próprio fato de ser criança, deve viver isenta dessa preocupação. Tem<br />
direito à sua infância...”<br />
Não é uma opinião digna de respeito?<br />
Mais adiante:<br />
_ “Mas, os Estados Unidos têm esta coisa excelente: são ecléticos, em métodos.<br />
Estudam tudo. E procuram dar a todas as crianças as mesmas possibilidades.”<br />
Sobre métodos, ainda, observou:<br />
_ “Na minha opinião não há método melhor que o professor perfeito. Quando se<br />
sai da aula, sentindo o contato com a alma da criança, pode-se ter certeza de que ela<br />
também ficou sentindo o contato da nossa alma...<br />
23/07/1930<br />
Cecília Meireles deu sempre grande ênfase a necessidade de estabelecermos relações<br />
com nossos colegas da América Latina. Convidou para escrever e prestigiou Gerardo<br />
Seguel,chileno, arte/educador e poeta na sua página de educação do Diário de Notícias e não<br />
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poupava espaço no jornal para elogiar os colegas desta parte do mundo em que vivemos.<br />
Vejamos o que escreveu sobre Gabriella Mistral, também como Seguel, chilena, poeta,<br />
educadora que veio posteriormente a receber o Premio Nobel.<br />
Gabriella Mistral e o Cinema Educativo<br />
Gabriella é um nome que pertence a toda a América.<br />
A poetisa de tão humano sentir que tem repartido o seu coração em cada verso e<br />
pensadora que tem sido nos lábios tanta palavra de fé nos destinos humanos formaram,<br />
juntas, a educadora que, de olhos fitos no futuro do mundo, calcula com exatidão<br />
toda a responsabilidade que nós, os adultos, temos na formação da infância, dessa<br />
infância cujos direitos ela tão bem interpretou por ocasião de uma das Convenções de<br />
Professores americanos.<br />
Dessa notável mulher, que na Liga das Nações representa com elevação o seu<br />
país, oferecemos hoje aos nossos leitores esta opinião sobre o ensino da geografia por<br />
meio do cinema:<br />
“o mapa só fala ao geógrafo. A criança – e os adultos que ainda têm a mesma<br />
sensibilidade da infância – sente pela carta geográfica uma antipatia que eu conheci em<br />
dez anos desse ramos do ensino. Não se poderia ter inventado coisa mais inerte e mais<br />
estranha para dar a conhecer o concreto e o vital. A maravilha da ilha se transforma<br />
em grão de mostarda; o fjord, um arranhão azul; a linha das montanhas, uma cobrinha<br />
escura sem nenhuma sugestão. O mapa fica mais longe da criatura de dez anos que um<br />
problema teológico.<br />
Este mapa pedante e paralítico vai se transformar, tomar corpo e viver ao lado do<br />
cinema, ofertador de paisagens viventes. Vai dar voz ao desenho dos rios; vai colorir as<br />
massas oceânicas; vai reviver, galvanizada, a serpente morta e enroscada das grandes<br />
cidades”.<br />
Diário de Noticias – 19/10/30<br />
O entusiasmo de Cecília Meireles pela América Latina e pelas relações com a Iberoamérica<br />
foram muito estimuladas por seu contato com Alfonso Reyes quando foi embaixador do<br />
México no Brasil (1930 a 1938). Ele já era um intelectual importante quando veio para o Brasil<br />
. Desenvolveu uma relação muito fecunda para a aproximação intelectual dos dois países.<br />
É interessante notar que editava um correio literário, Monterrey, através do qual difundiu a<br />
cultura mexicana no Brasil dando chance a alguns poucos escritores brasileiros se fazerem<br />
conhecer no México. A tarefa de intercambio cultural era desequilibrada . Na realidade a função<br />
diplomática de fazer o México conhecido no Brasil prevaleceu. Mas, ele exerceu influencia<br />
estimuladora entre políticos , como o jovem Carlos Lacerda e muito maior entre intelectuais<br />
brasileiros que se tornaram seus amigos como Manuel Bandeira ,Ribeiro Couto, Ronald de<br />
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Carvalho e Cecília Meireles que se correspondeu com ele de 1931 até mais ou menos 1940<br />
.Segundo Regina Aída Crespo , Reyes forneceu a Cecília Meireles “livros e revistas mexicanos<br />
sobre educação e cultura popular” (CRESPO, 2003:207) , assuntos com os quais ela estava<br />
muito engajada .<br />
Como Gabriella Mistral, Cecília Meireles dentre as <strong>Arte</strong>s além da Literatura valorizava<br />
especialmente o cinema, mas nos deixou várias crônicas sobre <strong>Arte</strong> na educação de um ponto<br />
de vista geral e nas <strong>Arte</strong>s Plásticas e no Teatro em especial. Somente no Jornal A Manhã<br />
escreveu 9 artigos sobre o assunto entre agosto 1941 e janeiro de 1942 e acredito que<br />
escreveu muito mais entre 1929 e 1931 no Diário de Notícias.<br />
A interrelação dos arte/educadores dos países Latino Americanos ainda está para ser<br />
construída apesar do Mercosul e principalmente da Bienal do Mercosul que tem uma influencia<br />
muito positiva restrita principalmente ao Rio Grande do Sul<br />
Houve uma extraordinária tentativa como o FLAAC (Festival Latino Americano de <strong>Arte</strong><br />
e Cultura) idealizado por Laís Aderne com a colaboração dos professores da UNB em Brasília<br />
na década de 80. Mais de mil Latino Americanos de todas as Áreas de <strong>Arte</strong>, de fora do Brasil<br />
se reuniram em Brasília para celebrar nossa união. Laís Aderne , poucos anos depois ,quando<br />
era Secretaria de Cultura de Brasília ,organizou outro Festival Latino Americano que não teve a<br />
importância do primeiro, pois imperaram as intrigas políticas e os boicotes contra ela. Nos anos<br />
setenta um Congresso no Rio de Janeiro organizado pela mulher de um político da ditadura<br />
e dono de jornais ,também grandioso, em nada resultou pois era mais uma demonstração<br />
de poder da organizadora que desempoderou os arte/educadores pois convidou para as<br />
palestras principais apenas pessoas famosas e seus amigos. Restou apenas os anais graças<br />
ao trabalho dedicado de Cecília Jucá, que foi além de sua tarefa de designer.<br />
A criação do CLEA, Comitê Latinoamericano de Educação pela <strong>Arte</strong> foi criado em 1984<br />
no Rio de Janeiro. Trata-se do comitê da INSEA que representa a América Latina. Muitos<br />
membros criadores deste Comitê continuam até hoje lutando por intercomunicação e ações<br />
conjuntas, mas não temos dinheiro para estas operações. Apesar disto conseguimos realizar<br />
muitos Encontros e Congressos.<br />
Um livro sobre a História do Ensino da <strong>Arte</strong> na América Latina foi organizado por Manuel<br />
Pantigoso membro fundador e representante do Peru que também tem Myriam Nemes como<br />
sócia fundadora .<br />
Os membros fundadores Victor Kon, na Argentina, Salomon Azar no Uruguai e Dora<br />
Aguila no Chile permanecem como os baluartes do CLEA. Perdemos em 2008 um dos<br />
membros fundadores, a artista e educadora Olga Blinder do Paraguai. Luís Errazuriz do<br />
Chile e eu também somos membros fundadores, contudo nos dedicamos mais a INSEA, da<br />
qual fui presidente do que propriamente ao CLEA. Só nos últimos 14 anos, depois de minha<br />
aposentadoria da USP é que tenho dado maior atenção ao CLEA. Olga Olaya que se juntou<br />
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Cecília Meireles: defensora da Educação Moderna, das <strong>Arte</strong>s e do Cinema na Educação<br />
ao grupo nos anos 90 foi uma força motriz da instituição e trouxe com ela seu orientador de<br />
doutorado Ramon Cabrera de Cuba. Pela primeira vez, nos seus 25 anos de existência, a<br />
Secretaria do CLEA (equivale a presidência) esteve no Brasil, nas mãos competentes de Lucia<br />
Pimentel de 2006 a 2010. Lúcia Pimentel organizou um Congresso em 2009 na <strong>Universidade</strong><br />
Federal de Minas Gerais que juntou o CLEA e a Federação de <strong>Arte</strong> Educadores do Brasil.<br />
A partir de 2008 encontramos na OEI, <strong>Organização</strong> dos Estados Iberoamericanos uma<br />
aliada para intercâmbios e ações comuns que tem organizado e patrocinado encontros e<br />
publicou em 2009 um livro, “Educação artística cultura e cidadania”, organizado por Lucina<br />
Jimenez, Imanol Aguirre e Lucia Pimentel.<br />
Ainda há muito que fazer pelo entendimento Latino Americano em <strong>Arte</strong>/Educação.<br />
Vamos ao outro tópico que apaixonou Cecília Meireles e nos interessa especificamente,<br />
o Cinema, que muitos arte/educadores esquecem que é <strong>Arte</strong>.<br />
A Cultura Visual vem conferindo importância ao Cinema na Educação, mas para não<br />
mediocrizar a escolha e a recepção dos filmes é preciso pensarmos que Cinema é Cultura<br />
Visual mas antes disto é Cinema, como se depreende dos escritos de Alice Martins, uma das<br />
pesquisadoras de cinema na educação mais atuantes do Brasil.<br />
Segue-se uma entrevista concedida por Cecília Meirelles sobre a Cinematografia<br />
Educativa.<br />
A CINEMATOGRAFIA EDuCATIVA<br />
A Sr.ª Cecilia Meirelles, entrevistada pelo O JORNAL, fala sobre a próxima<br />
exposição e relata os resultados obtidos com a sua modesta “empresa” da Escola de<br />
Aplicação.<br />
A sub-Diretora técnica da Instrução, tomando a iniciativa de promover uma<br />
exposição de cinema educativo, que será inaugurada na próxima semana, ocupando<br />
várias salas da Escola “José de Alencar”, no largo do Machado, pôs em foco um dos<br />
problemas mais interessantes dos novos métodos de ensino e educação, cujo emprego,<br />
entretanto, por motivos mais de ordem econômica, não tem sido ainda, mesmo na<br />
Europa e nos Estados Unidos, desenvolvido na amplitude permitida pelo atual progresso<br />
da cinematografia.<br />
A exposição, promovida pelo Sr. Jonathas Serrano, além de reunir elementos de<br />
todas as procedências de serem observados pelo professorado, vai também proporcionar<br />
ao público uma oportunidade para compreender a importância desse poderoso<br />
instrumento educativo que já está sendo introduzido, com vantajosos resultados nas<br />
escolas primárias cariocas, apesar da escassez de recursos da municipalidade.<br />
O JORNAL, completando as informações que já tem publicado a respeito desse<br />
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certâmen, entrevistou ontem a senhora Cecília Meirelles, professora da Escola de<br />
Aplicação e membro da comissão encarregada da propaganda da exposição.<br />
_ “A reforma Fernando de Azevedo – disse, de início, a professora – empresta<br />
ao Distrito Federal o prestígio de poder colocar-se ao lado dos países evoluídos que,<br />
vendo na criança o valor da civilização futura, fazem a sua renovação social, cultural,<br />
filosófica, por intermédio e antecipação do processo educativo.<br />
Esta reforma não é, internacionalmente, uma reforma de métodos. É uma<br />
reforma daquilo que, no ensino, é a própria essência. Como, porém, os métodos são<br />
os caminhos que conduzem a essa alta finalidade, é natural que esses caminhos sejam<br />
também diferentes dos das rotinas antigas, como o obriga o ambiente de constantes<br />
atualidade que a reforma espontaneamente requer”.<br />
uM NOVO LEMA<br />
_ “Um dos elementos de mais imediata importância nas escolas de hoje –<br />
continuou a Sr.ª Cecilia Meirelles – é o cinema educativo. Ao lado do “learning by doing”<br />
das escolas americanas, poder-se-ia inscrever também o “learning by seeing”. Porque,<br />
na verdade, nós, e as crianças, também aprendemos vendo. Há uma generalizada<br />
cultura popular que em grande parte se deve a essa difusão de conhecimento que o<br />
cinema-diversão insensível, mas progressivamente faz.<br />
O cinema nos mostra paisagens de todas as zonas, animais de todas as faunas,<br />
costumes de todos os tempos e regiões. O espírito das épocas e das raças se faz<br />
evidente através dos filmes históricos. E os tempos atuais, com os mais recentes<br />
inventos, com as mais arrojadas aventuras, podem ser vividos e compreendidos em<br />
toda a sua intensidade dentro de poucos minutos sobre uma tela próxima”.<br />
Além de instrutivo, o cinema pode ser considerado até curativo, quando projeta<br />
um Buster Keaton, e filosófico, quando apresenta Chaplin.<br />
Mas o que interessa ao professor, em primeiro lugar, é que a criança, como o<br />
adulto, ou mais que ele, aprecia via mente o cinema. Isso e não mais, seria suficiente<br />
para afirmar que o cinema é uma necessidade das escolas.<br />
Todos que já tiveram oportunidade de fazer uma projeção luminosa numa escola,<br />
qualquer que fosse o assunto, hão de ter observado o seguinte: que o simples fato de<br />
pôr ao alcance da criança (??) cidade: que o cinema ou a simples projeção fixa tem<br />
para a criança uma realidade tão grande que as menorzinhas tentam pegar com as<br />
mãos as figuras projetadas: que, após uma projeção, a lembrança das imagens vistas<br />
é mais nítida e mais duradoura que a das mesmas imagens oferecidas por meio de<br />
uma lição falada, e mesmo pela simples apresentação de figuras. Chego a crer que as<br />
coisas vistas por esse meio sejam mais bem observadas que na natureza quer porque<br />
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Cecília Meireles: defensora da Educação Moderna, das <strong>Arte</strong>s e do Cinema na Educação<br />
a atenção esteja limitada ao campo da tela, quer porque as condições de obscuridade,<br />
a (?) coletiva e outros fatores (???). ?? para que as aquisições se façam com mais<br />
facilidade e proveito.<br />
E um dos fatores básicos é talvez que a criança vai para a sala de projeções com<br />
alegria. E a alegria é uma condição favorável para aprender bem, porque é um estado<br />
orgânico de superatividade em que, com todas as energias elevadas ao mais alto grau<br />
o indivíduo fica com a sua capacidade elevada também ao máximo”.<br />
NECESSIDADE NATuRAL<br />
Justificando as vantagens do novo instrumento de ensino, prosseguiu a professora:<br />
_ “A introdução do cinema nas escolas não obedece, pois, a um capricho da<br />
moda ou a qualquer intenção apenas decorativa. Obedece a uma necessidade natural<br />
a que as circunstâncias do progresso humano podem atender.<br />
Se a nossa vida se resumisse no lugar que habitamos e nas coisas que estão<br />
mais perto de nós, seria tão fácil... ... _ conduzir a criança até essas coisas. Mas a vida<br />
se desenvolve em campos mais vastos. Nós temos de conhecer todo o mundo, e todos<br />
os homens, para compreendermos certas coisas universais. E o cinema, o cinema<br />
bem orientado, bem organizado e bem dirigido (orientado nas seleções, organizado de<br />
acordo com as capacidades a que se destina, e dirigido conforme as oportunidades,<br />
pode ser como um grande livro ilustrado, que a criança interessadamente lê, metade nas<br />
legendas, metade nas figuras. Sem esquecer que o cinema falando completará ainda<br />
mais o ideal pedagógico transportando a criança, como num sonho, para ambientes,<br />
como se o fizesse realmente, dentro da vida.”<br />
O QuE há ENTRE NóS<br />
Interrogada sobre o que, nesse sentido, há feito entre nós a Sr.ª Cecília<br />
Meirelles informou que algumas escolas do Distrito Federal já possuem aparelhos de<br />
cinematografia, ou, pelo menos, lanterna de projeção fixa. E acrescentou:<br />
_ “Se tudo ainda não está resolvido em matéria de filmes adequados, alguma<br />
coisa já se tem feito nesse particular. E não é possível exigir mais, em tão pouco tempo.<br />
Agora, para que fique o professorado a par do que existe em matéria de aparelhos<br />
cinematográficos, bem como do seu funcionamento, conservação etc., a Diretora de<br />
Instrução resolveu organizar, na Segunda quinzena deste mês, uma exposição relativa<br />
ao assunto. A escola “José de Alencar” no Largo do Machado, onde se começa a<br />
preparar o futuro Museu Central, foi o local escolhido para essa exposição. Nela os<br />
inspetores escolares apresentarão: os aparelhos existentes nas escolas primárias,<br />
fotografias de escolas, aspectos de aulas, reuniões de Circuito de Pais, sopa escolar,<br />
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Cecília Meireles: defensora da Educação Moderna, das <strong>Arte</strong>s e do Cinema na Educação<br />
copo de leite, gabinetes médico e dentário, enfim, todos os melhoramentos que, em<br />
benefício das crianças, foram e estão sendo introduzidos nas escolas. Além disso,<br />
deverão os inspetores apresentar gráficos estatísticos ou informações sugestivas de<br />
qualquer obra de iniciativa do distrito.”<br />
DETALhES DA EXPOSIçãO<br />
Continuando, detalhou a Sr.ª Cecilia Meirelles:<br />
- “Como a exposição se realiza no local em que se inicia a obra do Museu<br />
Pedagógico Central, haverá uma sala em que ficarão as realizações desse Museu. Em<br />
outras salas serão expostos exemplares dos decretos da reforma (lei e regulamento),<br />
programas dos vários cursos (primário, complementar anexo, profissional e normal),<br />
modelos de uniformes , plantas, maquetes e fotografias dos prédios escolares já<br />
concluídos ou em construção etc., etc.<br />
Já aderiram à exposição prometendo enviar aparelhos e demais artigos de que<br />
são importadores ou fabricantes, as seguintes firmas: Theodor Wille & Cia., Casa Lohner<br />
S.A, John Jurges & Cia., Fox Film, Meister Irmãos, Botelho Film, Pathé Baby, A .E. B.<br />
Kodak.<br />
Ofereceram também apoio, pondo à disposição da comissão organizadora<br />
valiosos donativos das respectivas especialidades os seguintes estabelecimentos:<br />
Villas Boas & Cia., Vasco Ortigão & Cia. (Parc Royal), Papelaria Americana, Casa Mattos,<br />
Cardinale & Cia., Marcenaria Brasil, Papelaria União e Casa Pratt.<br />
A Urania Film apresentará os tipos de aparelhos de projeção mais modernos, de<br />
medida Universal, contentando-se a fazer correr filmes instrutivos.<br />
A General Electric iluminará todo o recinto da exposição, sendo que uma parte<br />
pelo moderno sistema de luz sem sombras. Instalará também um aparelho de rádio do<br />
tipo mais moderno e, dando o seu completo apoio a essa iniciativa pedagógica fará<br />
distribuir sorvetes preparados nos seus aparelhos de refrigeração.<br />
Os floristas do Mercado Municipal se ofereceram para ornamentar diariamente a<br />
exposição.<br />
Como todos os dias chegam novas adesões de amigos do cinema Educativo, tudo<br />
faz prever que o certame terá uma repercussão excepcional. Durante todo o tempo que<br />
funcionar a exposição haverá demonstrações do manejo de qualquer dos aparelhos<br />
expostos.<br />
É de esperar que não só o professorado, que constitui, por assim dizer, a parte<br />
diretamente interessada pelo assunto, como todas as famílias que têm filhos nas<br />
escolas, e todas as pessoas que se interessam realmente pelo progresso do seu país,<br />
visitem essa próxima exposição.<br />
Agora, mais que nunca a escola deseja ser um lar, para as crianças. Os que<br />
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Cecília Meireles: defensora da Educação Moderna, das <strong>Arte</strong>s e do Cinema na Educação<br />
sentirem a grandeza desse desejo, devem procurar saber como a escola se esforça<br />
para o realizar”.<br />
VANTAGENS DAS PROJEçõES<br />
Insistindo sobre a importância pedagógica do cinema, frisou a Sr.ª Cecilia<br />
Meirelles as vantagens das projeções:<br />
_ “Animadas: muita coisa, senão quase tudo, pode ser aprendido só pelo cinema.<br />
É uma opinião um pouco ilimitada, mas sincera: observação do crescimento das<br />
plantas, da vida de todos os animais (e os insetos: formigas, abelhas, e os peixes no<br />
seu ambiente submarino), com todos os detalhes mínimos como se consegue em filmes<br />
pacientemente elaborados.<br />
E os exemplos morais. E a vida higiênica etc. Sem esquecer filmes que se<br />
organizam mostrando a vida das crianças de hoje, as suas escolas, o seu trabalho, para<br />
efeitos de solidariedade etc. Mas isso é longo e não se consegue de uma hora para.<br />
Não conheço os filmes que sei que há, no estrangeiro, dedicados a essa especialidade”.<br />
Referindo-se depois às projeções fixas, explicou a professora:<br />
“Tem a vantagem de uma fácil organização. Podem servir de atração aos centros<br />
de interesse da classe e, em muitos casos, serem produzidos pelos próprios alunos.<br />
Podem ser de interesse geral, quer sobre assuntos históricos (comemoração das datas<br />
realmente importantes), quer sobre fatos atuais: febre amarela, a campanha contra<br />
a tuberculose e outras propagandas. Podem também revestir-se de um caráter mais<br />
divertido e serem, então pequenas histórias em quadros, inclusive desenhadas pelos<br />
primeiros alunos e acompanhadas de legendas escritas por eles, ou sem legendas,<br />
para que eles as imaginem, isto é, propriamente, já o problema da “interpretação” da<br />
projeção. Problema vasto: qualquer projeção pode servir de pretexto a qualquer lição,<br />
e, portanto, dar origem a que se reproduza a coisa projetada ou que com ela se tenha<br />
revelações: uma composição, uma representação etc.”<br />
O Jornal do Comércio<br />
20/08/1929<br />
O cinema escolar não se iniciou em 28, com a Reforma Fernando Azevedo, mas foi<br />
esta reforma que deu ao cinema na escola um desenvolvimento que até então não se tinha<br />
visto .Entre 1916 e 1918 houve o projeto Cinema Escolar criado pelos Inspetores Escolares do<br />
Distrito Federal(Rio de Janeiro) José Venerando da Graça Sobrinho e Fábio Lopes dos Santos<br />
Luz.(FERREIRA:2004) Eles produziam os scripts e contratavam alguém para filmar, pois não<br />
dominavam a tecnologia. Produziram vários filmes e eu tive a curiosidade de ver um deles no<br />
acervo da CENP da Secretaria de Estado da Educação em 1983, época em que trabalhei<br />
lá por seis meses mas fui obrigada a me demitir, depois de fazer o Festival de Inverno de<br />
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Campos de Jordão com Claudia Toni e Gláucia Amaral por não agüentar o cerceamento de<br />
ações justamente no início da segunda democratização do Brasil, depois da segunda ditadura<br />
que sofremos. Imaginem que em uma reunião me ofereci para convidar Paulo Freire para<br />
conversar conosco e não aceitaram. Perguntei por que, pois imaginava que todos tivessem<br />
estado como ele e como eu contra a ditadura. A resposta foi – Porque se a gente deixar você<br />
domina tudo aqui. Confesso que neste dia me convenci que a <strong>Universidade</strong> era mais aberta<br />
pois não me cerceava desde que eu trabalhasse sem dinheiro, o que fiz quase a vida toda.<br />
Havia também no acervo da CENP muitos filmes produzidos por Humberto Mauro, ícone<br />
da historia do cinema brasileiro, que também junto com Roquete Pinto ajudou a construir a<br />
história do cinema na educação.<br />
Cecília Meireles se empenhava nas relações internacionais com a América Latina e<br />
com a Europa também, como demonstra este artigo abaixo que escreveu sobre a Maison des<br />
Petits, escola de aplicação do Instituto Jean Jacques Rousseau em Genévè dirigido na época<br />
por Claparede<br />
A Dra Helena Antipof assistente de Claparede no Instituto Jean Jacques Rousseau<br />
(IJJR) já se encontrava trabalhando no Brasil, quando Cecília Meireles publicou no Diário de<br />
Notícias este artigo sobre a Maison des Petits, laboratório teórico/prático do IJJR. De certa<br />
forma já estava preparando a visita de Claparede ao Brasil que como sabemos chegou ao Rio<br />
de Janeiro dois meses depois , em setembro de 1930 Nesta época no IJJR trabalhava Piaget,<br />
que posteriormente mudou o nome do Instituto, ou pior fechou-o para no seu lugar criar uma<br />
Faculdade de Ciências Pedagógicas onde realizou toda sua obra.<br />
A FORMAçãO DA JOVEM EDuCADORA<br />
Como se trabalha na Suíça, na Maison des Petits<br />
A Maison des Petits, essa casa em que se aprende a respeitar a criança e a conduzila,<br />
pelo amor esclarecido à descoberta e ao desenvolvimento de suas possibilidades,<br />
representa na Suíça, um laboratório, da infância, onde futuras professoras ensaiam as<br />
suas aptidões observando e experimentando alunos e métodos:<br />
Com o fim de divulgar a finalidade e as realizações da Maisson des Petits,<br />
suas diretoras, as senhoras Audemars e Lafendeliii publicaram um pequeno livro<br />
interessantíssimo para os pais, os professores, e todos os que se interessam por<br />
compreender a alma infantil e os processos atuais de educação.<br />
É dessa obra que extraímos a seguinte passagem, que encerra algumas<br />
observações e conselhos dignos de atenção pela autoridade de quem os escreveu.<br />
O Instituto JJ Rousseau, criado em Genebra em 1912, escola de ciência<br />
em educação e ao mesmo tempo laboratório de investigação, sentiu inicialmente a<br />
necessidade de constituir um meio educativo, onde se pudesse fazer a verificação<br />
prática dos aperfeiçoamentos e reformas sugeridas pelo conhecimento mais profundo<br />
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Cecília Meireles: defensora da Educação Moderna, das <strong>Arte</strong>s e do Cinema na Educação<br />
da psicologia da criança. Com esse fim fundou em 1913 a casa da criança.<br />
As alunas que pensam dedicar-se especialmente à educação das crianças<br />
menores, praticam nela durante 1, 2, 3 anos segundo o fim que pretendem alcançar.<br />
O programa do trabalho infantil que acabamos de trabalhar indica muito<br />
claramente o das jovens educadoras.<br />
Enfrentando desde o primeiro momento os problemas práticos, iniciam-se elas<br />
no trabalho pessoal. Durante o tempo de que dispões (3 manhãs por semana) as alunas<br />
do primeiro ano se repartem, desde o começo, pelos cinco grupos do primeiro plano.<br />
Cada uma delas sucessivamente consagra mais ou menos um mês aos estudos<br />
das diferentes atividades; no fim do mês apresenta um resumo das suas observações,<br />
das dificuldades que surgiram, dos problemas que tiveram que resolver.<br />
Impõe-se uma colaboração incessante: a aluna que estudou e colecionou os<br />
desenhos de uma criança deve conhecer as manifestações desta mesma criança,<br />
suas diversas atividades; para isso, pede informações às companheiras que estão<br />
encarregadas de outros grupos: construção, modelagem, cálculo, línguas, etc, e assim<br />
pode conhecer com certeza o desenvolvimento da criança e traçar sua monografia.<br />
Estuda-se, pois praticamente, toda a evolução das atividades infantis, servindo<br />
o quadro dos períodos de desenvolvimento como guia precioso para precisar as<br />
observações.<br />
No decorrer das suas ocupações a criança multiplica as suas perguntas,<br />
colocando a educadora na obrigação de responder.<br />
Assim por exemplo: na aula da construção: Porque se sustentam os barcos na<br />
água? (François). Como é que o funicular pode subir o morro? Na aula de línguas, como<br />
que sai o carvão da terra? (Louis) Na aula de modelagem, Daniel examina sua mão e ao<br />
fechá-la apertando o barro, exclama, recordando as dobradiças de uma porta: meus<br />
dedos fazem como as portas. E assim por diante.<br />
Este é um dos problemas mais interessante para o educador: Conhecidas as<br />
necessidades da criança, saber alimentar e estimular seu espírito de curiosidade. É<br />
preciso estar-se disposto a dar informações sobre todos os assuntos que lhes interessam.<br />
Para isso é necessário documentação.<br />
Possuímos uma biblioteca bem provida que está à disposição das alunas que tem<br />
de por-se em condições de saber fazer e alimentar a curiosidade científica no período<br />
do conhecimento.<br />
As lacunas do segundo ano, que aspiram ao diploma da casa da criança,<br />
encarregam de assumir a responsabilidade de pequenos grupos de criança de 6 a 7<br />
anos. Também estudam um tema particular que elas mesmo escolhem; este ano uma<br />
delas escolheu o ensino da leitura e se iniciou no método Decroly; outra escolheu a<br />
iniciação matemática, e a terceira especializou-se principalmente para informar as<br />
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crianças sobre a origem da navegação. Com este fim organizou uma série de ilustrações<br />
outra de uma série de narrações e construiu pequenas máquinas destinadas a fazer<br />
com que a criança compreenda a força e o papel do vapor.<br />
Toda organização e o ambiente da casa às conduz a esta lei pedagógica: uma<br />
lição deve ser uma resposta (Dr. Claparede).<br />
Cada dia de trabalho dá lugar a palestras, discussões, induz o aluno a novas<br />
investigações, e estimula o desejo de aperfeiçoar-se. Reúne-se uma vez por semana<br />
um curso de 2 horas, com cada grupo de alunas (primeiro e segundo ano). As alunas<br />
adiantadas apresentam trabalhos pessoais relativos aos seus ensaios de prática; todas<br />
juntas estudam o material empregado com a criança, os diferentes métodos de ensino<br />
Froebel, Montessori, Dewey, Decroly, etc....<br />
A aluna que quiser pode iniciar-se praticamente nestes métodos, reservando-se<br />
uma pequena sala para esse fim. O material completo está a sua disposição e pode<br />
organizar um ensaio com um pequeno grupo de crianças.<br />
Reservam algumas horas por semana para preparação do material de ensino,<br />
jogos educativos de toda espécie, por exemplo: Tendo uma aluna notado um defeito<br />
qualquer de linguagem em uma criança, estudou para preparar por meio de ilustrações<br />
exercícios próprios que o corrigissem.<br />
Tem também de aprender a conhecer a guiar a criança nos seus brinquedos ao ar<br />
livre, no trabalho de jardinagem, nos seus passeios, visitas aos museus, oficinas, etc...<br />
O campo e experiências é muito grande. Só podemos falar aqui do trabalho feito<br />
sob a nossa direção e é necessário consultar o programa do Instituto Rousseau para<br />
inteirar-se da grande quantidade de cursos e ensinamentos que se oferecem às alunas.<br />
A educadora digna deste nome deve ser viva, entusiasta, livre de interesses<br />
pessoais e de idéias fragmentárias e pré concebidas. Deve possuir as qualidades<br />
indispensáveis de espírito curioso, investigador, experimentador, e se deixará sempre<br />
levar pelo amor e pela dedicação à criança. Sem se deixar dominar ou encadear por<br />
nenhum método procurará não unir se à letra que mata, mas ao espírito que vivifica.<br />
As leis de psicologia da criança ditar-lhe-ão as leis da psicologia do professor. Ai<br />
estão algumas delas deduzidas da nossa prática diária e formuladas com nossas alunas<br />
no decorrer de nossas palestras.<br />
Diário de Notícias 09/07/30<br />
Despretenciosamente, como verdadeira educadora Cecília Meirelles se interessava<br />
muito pelo ensino nos Jardins da Infância. Daí se justificar a escolha de centrar a entrevista<br />
com Crescente Coccaro sobre o tema dos Jardins de Infância e de preparar o publico leitor do<br />
Diário de Notícias para a chegada de Claparede escrevendo justamente acerca do Jardim de<br />
Infância do Instituto Jean Jacques Rousseau,<br />
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Cecília Meireles: defensora da Educação Moderna, das <strong>Arte</strong>s e do Cinema na Educação<br />
O modernismo em <strong>Arte</strong> e Educação teve uma escritora como Cecília Meireles escrevendo<br />
nos jornais para convencer o público da necessidade do “aprender fazendo”. A virada pósmoderna<br />
que acrescentou a necessidade do ver além do fazer <strong>Arte</strong> e a necessidade de<br />
ampliar a visão da Escola para além de seus muros tomando em consideração a cultura dos<br />
alunos , a cultura do meio, a cultura historicamente organizada e a cultura contemporânea,<br />
não encontrou nenhum apoio nos meios de comunicação.<br />
Notas<br />
i Os artigos e entrevista de Cecília Meireles apresentados neste artigo são inéditos e portanto não<br />
fazem parte das coletâneas publicadas.<br />
ii Agora no Brasil chamamos educação continuada.<br />
iii Trata-se do livro AUDEMARS, Mina e LAFENDEL,Louise.La Maison dês Petits de l’Institute Jean<br />
Jacques Rousseau.Neuchatel:Delachaux et Niestle S.A.sem data<br />
Referências<br />
DIÁRIO DE NOTÍCIAS. Rio de Janeiro, 9 jul. 1930.<br />
DIÁRIO DE NOTÍCIAS. Rio de Janeiro, 23 jul. 1930.<br />
DIÁRIO DE NOTÍCIAS. Rio de Janeiro, 19 out. 1930.<br />
O JORNAL DO COMÉRCIO. Rio Grande do Sul, 20 ago. 1929.<br />
MEIRELES, Cecília.”Historia da Educação no Brasil” In Obra em Prosa: Crônicas de Educação.<br />
Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira/MINC, Fundação Biblioteca Nacional,2001.<br />
MENDONÇA, Amélia da Motta. O cinema escolar na história da educação brasileira:<br />
a sua ressignificação através da análise de discurso. Dissertação de mestrado apresentada<br />
ao Programa de Educação da <strong>Universidade</strong> Federal Fluminense. Orientadora Clarice Nunes.<br />
Niteroi, 2004.<br />
NEVES, Margarida de Souza, LÔBO, Yolanda Lima, MIGNOT, Ana Chrystina Venâncio. Cecília<br />
Meireles: a poética da educação. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio: Loyola, 2001.<br />
PIMENTA, Jussara S. Fora do outono certo nem as aspirações amadurecem: Cecília<br />
Meireles e a criação da biblioteca infantil do Pavilhão Mourisco (1934-1937). Dissertação de<br />
Mestrado.Departamento de Educação/PUC-RJ, 2001.<br />
CRESPO, Regina Aida. Cultura e política : José Vasconcelos e Alfonso Reyes no Brasil (1922-<br />
1938). Revista de História, São Paulo, ANPUH. v. 23, n.45 , 2003 p.187-207.<br />
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AS INTERAçõES ENTRE MODA E MúSICA NA CONSTITuIçãO DE<br />
IDENTIDADES: uMA ANáLISE DAS INFLuêNCIAS DA BLACK MuSIC<br />
Rita Aparecida da Conceição Ribeiro; Dra. em Geografi a; Profª PPG <strong>Design</strong>: UEMG<br />
rita_ribeiro@uol.com.br<br />
Resumo<br />
Esse trabalho analisa a interface entre a moda e a música a partir<br />
da perspectiva de análise da constituição de modelos identitários<br />
por ela disseminados. Tomamos como objeto empírico a Black<br />
Music que surge nos anos 60 nos Estados Unidos, dando origem<br />
ao movimento soul, em seus reflexos na moda e na constituição<br />
de um ideal de identidade e orgulho negros. Entendemos que<br />
a moda black surgida a partir dos anos 60 do século passado,<br />
ainda hoje é um determinante na constituição da identidade de<br />
determinados grupos sociais, como a tribo hip-hop e, sendo um<br />
fenômeno duradouro e com características políticas marcantes,<br />
merece uma análise mais apurada.<br />
Palavras-Chave: moda; black music; identidade<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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As interações entre moda e música na constituição de identidades: uma análise das influências da Black Music<br />
A moda e a música - a construção de um referencial identitário<br />
A moda diz respeito a uma questão essencial para nossos contemporâneos,<br />
talvez a mais essencial de todas: a de sua identidade. Sendo assim, interpretar<br />
esse fenômeno como um sinal suplementar do materialismo do Ocidente<br />
apenas leva a torná-lo incompreensível (ERNER, 2005, p. 219).<br />
Os fenômenos que povoam o universo da moda, ainda que muito discutidos, ganham<br />
perspectiva acadêmica somente a partir do final do século passado. Desde a antiguidade<br />
os trajes já eram considerados elementos de diferenciação social. Nobres distinguiam-se de<br />
plebeus, trabalhadores rurais do homem citadino. Distinções acerca da etnia e da religiosidade<br />
revelavam-se pelos trajes usados. No transcorrer do século XX, principalmente no período pós<br />
Segunda-Guerra, a moda começa a ser disseminada em grande escala, com o advento do<br />
prêt-a-porter, com os modelos prontos, que podiam ser adquiridos nos magazines em todo o<br />
mundo. No final dos anos 50, a geração baby-boom busca nos tipos sociais estereotipados<br />
no cinema e na música os modelos de filiação e de afirmação de sua identidade. A grande<br />
revolução na vestimenta começa a partir desse momento.<br />
Para compreender como os novos significados são conferidos a itens de<br />
vestuário, e o papel da cultura popular nesse processo, lançarei mão de teorias<br />
segundo as quais alguns itens da cultura popular, entre eles o vestuário, são<br />
‘abertos’, pois são frequentemente redefinidos tanto pelos criadores de cultura<br />
como pelos consumidores. O cinema e a música são elementos importantes<br />
nesse processo. Ao associar imagens de destaque a peças de roupas<br />
específicas, ambos alteram o significado dessas peças e seu poder simbólico<br />
para o público (CRANE, 2006, p. 339).<br />
A moda, assim como a música, que começa a surgir a partir do final dos anos 50 tem<br />
nos jovens seu público alvo e principais disseminadores das novas tendências. A moda para<br />
os jovens começa a representar uma primeira forma de diferenciação e identificação dentro de<br />
seu grupo social.<br />
Entretanto, essas tendências, populares particularmente entre os jovens,<br />
mostram mais uma vez que a moda é antes de tudo uma maneira de elaborar<br />
a identidade. Pela aparência que assume, um indivíduo se situa em relação aos<br />
outros, como também em relação a si mesmo. Nessas condições, a moda é<br />
um dos meios que ele utiliza para se tornar ele mesmo (ERNER, 2005, p. 220).<br />
Esse trabalho pretende discutir a influência da música na moda, a partir da constituição<br />
de modelos identitários por ela disseminados. Tomamos como objeto empírico a Black Music<br />
que surge nos anos 60 nos Estados Unidos, dando origem ao movimento soul, em seus<br />
reflexos na moda e na constituição de um ideal de identidade e orgulho negros. A escolha<br />
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As interações entre moda e música na constituição de identidades: uma análise das influências da Black Music<br />
do objeto é parte da pesquisa desenvolvida no doutorado que gerou a tese Identidade e<br />
Resistência no Urbano: O Quarteirão do Soul em Belo Horizontei Entendemos que a moda<br />
black surgida a partir dos anos 60 ainda hoje é um determinante na constituição da identidade<br />
de determinados grupos sociais, como a tribo hip-hop e, sendo um fenômeno duradouro e<br />
com características políticas marcantes, merece uma análise mais apurada.<br />
A indumentária derivada da influência de cantores é claramente percebida ao longo dos<br />
anos. Basta pensar no visual rebelde de Elvis Presley, nos modelos de “bons rapazes” dos<br />
Beatles no início de sua carreira e do visual hippie que marcou o momento de sua separação.<br />
A moda grunge disseminada pelos grupos de Seatle, até o visual rebelde-retrô da cantora<br />
Amy Winehouse. No entanto, a moda black, não apenas influenciou na construção visual de<br />
determinado grupo social, mas foi principalmente uma declaração de identidade e de princípios<br />
políticos, bandeiras que hoje a moda carrega com propriedade, mas que, até então, não era<br />
algo habitual.<br />
Buscamos assim entender as origens da moda black, sua influência no movimento soul<br />
e mais especificamente no movimento soul no Brasil e perceber a moda, principalmente a moda<br />
black, como um fator de identificação social que ainda hoje é referência para determinados<br />
grupos.<br />
A roupa faz o homem<br />
Crane observa que a atenção com o visual já fazia parte das preocupações da<br />
comunidade negra nos Estados Unidos desde o final do século XIX. Ela ressalta que parte<br />
desse cuidado diz respeito ao fato destas pessoas sentirem necessidade de se apresentar<br />
bem nos eventos sociais (igreja, passeios).<br />
Desde o final do século XIX, as roupas têm tido um significado especial na<br />
cultura negra americana, em parte por causa da importância atribuída por<br />
homens e mulheres à apresentação pessoal nas ruas de bairros negros e em<br />
igrejas. Uma importante fonte de entretenimento para ambos os sexos era<br />
andar pelo bairro exibindo as próprias roupas e observando as dos outros. Os<br />
rapazes, particularmente, orgulhavam-se bastante de se vestir elegantemente.<br />
(CRANE, 2006, p. 379-380).<br />
Essa preocupação com o visual diz respeito, em primeiro lugar, aos momentos de lazer.<br />
A autora apresenta uma discussão da separação entre a vestimenta de trabalho e do lazer,<br />
como forma de diferenciação social. Enquanto a roupa de trabalho revela o status econômico<br />
e social, essa distinção deixa de existir na roupa de lazer. As atividades de lazer criam uma<br />
outra esfera de inserção social, que não a da estratificação econômica.<br />
[...] As sociedades contemporâneas são caracterizadas por uma disjunção<br />
entre economia e cultura, entre trabalho e lazer. Isso sugere que, com base em<br />
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As interações entre moda e música na constituição de identidades: uma análise das influências da Black Music<br />
ocupações e profissões, a população é diferenciada em classes sociais distintas<br />
cujos membros devem exibir identidades marcadas por tipos de atitude e<br />
comportamento característicos no local de trabalho. Fora da esfera econômica,<br />
as bases de estratificação são configurações culturais fundamentadas em estilo<br />
de vida, valores e conceitos de identidade pessoal e de gênero. As atividades<br />
de lazer, entre elas o consumo, moldam as percepções que os indivíduos têm<br />
de si mesmos e, para muitos, são mais significativas que o trabalho. (CRANE,<br />
2006, p. 44).<br />
A construção da imagem social do indivíduo nos momentos de lazer diferencia-o das<br />
atividades cotidianas. Novos papéis podem ser assumidos, em momentos específicos, sem<br />
que haja o comprometimento da identidade do indivíduo, que alterna seus papéis sociais.<br />
Assim o indivíduo pode se apresentar sobriamente em seu ambiente de trabalho e assumir seu<br />
lado glamouroso nas noites de sábado na pista de dança.<br />
Os indivíduos são tão mais lúcidos em relação às suas escolhas de vestuário<br />
que doravante se tornam superinformados sobre os significados dos looks.<br />
Além disso, a uniformização das aparências não resulta da imitação de um<br />
modelo sugerido pelas classes dominantes. Nossa sociedade se caracteriza<br />
por sua reflexividade, sua capacidade de decifrar os símbolos sociais que são<br />
as roupas ou as marcas. Esses símbolos podem informar sobre a posição<br />
social de um indivíduo, às vezes também sobre seu nível de renda. Contudo,<br />
são sobretudo instrutivos a respeito da imagem que este último quer refletir.<br />
(ERNER, 2005, p. 226).<br />
A escolha da roupa hoje reflete muito mais a opção de apresentar-se ao outro e demarcar<br />
questões de identidade, do que a simples imitação de um modelo sugerido pelas instâncias de<br />
formação de opinião, surgidas geralmente a partir dos apelos midiáticos. A escolha da roupa,<br />
muitas vezes, reflete a maneira do indivíduo perceber-se no mundo.<br />
A variedade de opções de estilos de vida disponíveis na sociedade<br />
contemporânea liberta o indivíduo da tradição e lhe permite fazer escolhas<br />
que criem uma auto-identidade significativa. A construção e a apresentação<br />
do eu tornam-se preocupações importantes na medida em que uma pessoa<br />
reavalia continuamente a importância de eventos e compromissos passados<br />
e presentes. O indivíduo constrói um senso de identidade pessoal ao criar<br />
‘narrativas próprias’ que contenham sua compreensão do próprio passado,<br />
presente e futuro. (CRANE, 2006, p. 37).<br />
Essa identidade se constrói a partir da vestimenta, traz os elementos que refletem a<br />
forma como o indivíduo quer se inserir, e principalmente, a forma como este quer ser percebido<br />
pelo grupo. No depoimento do cantor Gerson King Combo, uma das personagens centrais da<br />
soul music nos anos 70 no Brasil já está estampada a preocupação da mensagem que deveria<br />
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As interações entre moda e música na constituição de identidades: uma análise das influências da Black Music<br />
ser percebida pelos fãs:<br />
Aí nós criamos aquela imagem de uma pessoa forte, bem nutrida, pobre da<br />
periferia, mas com saúde. Mostrar que a gente não vivia sob aquele [...] não<br />
era tudo crioulo que era tudo maluco, como é que falavam: ‘esse negão aí’.<br />
Então a gente botou aquela imagem. Minha falecida esposa, Angélica Maria,<br />
criou a grife, criou a imagem. Ela me vestia dos pés a cabeça, mandava fazer<br />
as botas, quer dizer, ela criou a imagem da pessoa, do King. King o forte,<br />
gordo, bem nutrido, come bem. Eu adorei porque as pessoas me curtem até<br />
hoje. E o que acontece no soul? Eu não posso me apresentar assim, sem<br />
aquela vestimenta porque parece que, eu estou disfarçado, eu ando na rua<br />
quase ninguém me conhece. Se eu botar certa touca, aí na mesma hora. Quer<br />
dizer, ficou a imagem. (Gerson King Combo, 02 jul. 2007).<br />
O surgimento do movimento soul e a ascensão da cultura juvenil<br />
Foto 01 - James Brown - o ícone da Black Music<br />
Fonte: Ribeiro, 2008.<br />
A trajetória da black music no século XX começa a ter seu papel escrito a partir do blues.<br />
Atribui-se sua origem ao lamento dos escravos trazidos para os campos dos Estados Unidos. De<br />
suas origens africanas, os negros trouxeram os chamados hollersii gritos de entonações fortes<br />
e diferentes que identificavam seus emissores. Eram, a princípio, uma forma de comunicação<br />
nos campos do sul do país, mas também podiam ser ouvidos nas grandes cidades, nas<br />
vozes de vendedores que anunciavam seus produtos de maneira peculiar. Grande parte dos<br />
pesquisadores atribui o desenvolvimento do blues às work-songs, canções que objetivavam<br />
organizar o trabalho escravo, conferindo-lhes ritmo e cadência. O spirituals, hinos religiosos<br />
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As interações entre moda e música na constituição de identidades: uma análise das influências da Black Music<br />
criados pelos negros a partir de histórias da Bíblia, também exercem uma grande influência no<br />
surgimento do blues, pois os seus acordes básicos são derivados da harmonia européia das<br />
canções religiosas. A difusão massiva da música nos Estados Unidos ocorre com o advento<br />
do rádio e da evolução da indústria fonográfica, que percebe nas diversas variantes do blues e<br />
em seus consumidores espalhados por todo o país, um mercado potencial e em crescimento.<br />
O período pós Segunda-Guerra, marcado por uma atmosfera de otimismo e prosperidade<br />
econômica, alavanca a indústria dos gadgets, incluídos aí os toca-discos proporcionando<br />
um aumento de público para os produtos musicais e a incorporação de uma nova massa<br />
de consumidores: os jovens. A incorporação dos estilos musicais vindos dos guetos, a<br />
crescente indústria de consumo de massa cada vez mais voltada para o público jovem e o<br />
desenvolvimento acelerado dos veículos de comunicação tendo em primeiro lugar o rádio e<br />
posteriormente a televisão, possibilita a difusão dos gêneros musicais e sua assimilação por<br />
camadas cada vez maiores de jovens, ávidos pela identificação com os novos ídolos que<br />
começam a surgir.<br />
A novidade da década de 1950 foi que os jovens das classes alta e média, pelo<br />
menos no mundo anglo-saxônico, que cada vez mais dava a tônica global,<br />
começaram a aceitar a música, as roupas e até a linguagem das classes baixas<br />
urbanas, ou o que tomavam por tais como modelo. O rock foi o exemplo mais<br />
espantoso. Em meados da década de 1950, subitamente irrompeu do gueto<br />
de catálogos de ‘Raça’ ou ‘Rhythm and blues’ das gravadoras americanas,<br />
dirigidos aos negros pobres dos EUA, para tornar-se o idioma universal dos<br />
jovens, e notadamente dos jovens brancos. (HOBSBAWM, 1999, p. 324).<br />
O rock passa a ditar comportamentos que rapidamente são incorporados pela indústria<br />
do entretenimento, a partir da criação dos novos grupos e artistas brancos, que incorporam os<br />
elementos da black music abrindo espaço para o consumo de seus produtos.<br />
A mudança mais importante (para o blues) foi a emergência de músicos e de<br />
orquestras brancas de blues [...] esse desenvolvimento reflete a utilização do<br />
blues enquanto componente da cultura juvenil [...] o blues passa, assim, de<br />
uma música puramente negra a uma música substancialmente internacional [...]<br />
Certamente trata-se do desenvolvimento mais inesperado, mas ele aconteceu.<br />
(OLIVIER apud HERZHAFT, 1989, p. 108).<br />
Enquanto no final dos anos 50 o quadro de efervescência política se acentua,<br />
principalmente nos Estados Unidos, surgindo com mais força os movimentos pela igualdade<br />
dos direitos civis, a música negra, cada vez mais aceita pelos brancos, vive uma outra fase.<br />
Progressiva e implicitamente, era toda a atitude dos negros no passado<br />
que denunciavam vozes cada vez mais numerosas. O blues, que tinha sido<br />
a principal expressão cultural dos negros mais pobres e mais explorados,<br />
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aparecia como que ligado a uma condição degradante, da qual não se queria<br />
mais ouvir falar. Em contrapartida, a Igreja conduzia a luta de libertação dos<br />
negros e sua tradição musical - o gospel - ainda ganhava consideração.<br />
(HERZHAFT, 1989, p. 113).<br />
Ao associar-se o rhythm and blues (música profana) ao gospel (música protestante<br />
negra eletrificada descendente dos spirituals) temos o surgimento do Soul. O soul visava o<br />
resgate para os negros de um ritmo autenticamente negro. Herzhaft chama a atenção para o<br />
fato:<br />
Os críticos e historiadores em geral saudaram com bastante justiça o papel<br />
incomparável e bem concreto de ponte entre as raças que desempenhou a<br />
música negro-americana. É verdade que os artistas negros mais ecléticos<br />
obtiveram sucesso junto ao público branco. O que, entretanto, não notaram<br />
a maior parte do tempo é que, à medida que as formas de música negra<br />
tornaram-se populares entre os brancos, deixaram de sê-lo entre os negros,<br />
que, em contrapartida, criaram novas expressões musicais, procurando em<br />
um movimento espontâneo de desafio conservar a especificidade e a alma<br />
(soul) do povo negro-americano. (HERZHAFT, 1989, p. 99).<br />
A soul music, portanto, demarca os “limites com a América branca” ao utilizarem uma<br />
linguagem específica denominando-se “irmãos” - brothers e “irmãs” - sisters, “que reunia-se<br />
em uma comunidade solidária e fraternal que brilhava pela alma (soul)”. A pobreza, associada à<br />
discriminação racial, somada ao fervor religioso desencadeado pelo gospel foram os elementos<br />
que nutriram a cultura que no final dos anos 60 seria sinônimo de reação aos maus-tratos,<br />
da busca da igualdade entre os homens e do orgulho racial - a soul music, tanto nos Estados<br />
Unidos, como posteriormente em outras partes do mundo, inclusive no Brasil.<br />
A soul music no Brasil: dos bailes Black aos festivais<br />
Foto 02 - Tony Tornado no V FIC<br />
Fonte: Disponível em: .<br />
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As interações entre moda e música na constituição de identidades: uma análise das influências da Black Music<br />
A chegada do movimento soul em nosso país coincide com o auge da ditadura militar.<br />
No final dos anos 60 e início dos 70 começam a despontar os primeiros bailes no Rio de<br />
Janeiro. Em pouco tempo surgem várias equipes de som que promovem bailes por toda<br />
a cidade. Em alguns bailes são apresentados filmes que exaltam o orgulho racial. Por essa<br />
mesma razão, são fortemente controlados pelas forças policiais.<br />
Nesse período, fortemente marcado pela repressão política, surgem os festivais de<br />
música, promovidos pelas redes de televisão com o apoio, e até mesmo patrocínio, em alguns<br />
casos, do governo militar.<br />
Nesse período a Record contratou Solano Ribeiro, que realizara o I Festival<br />
de Música Popular Brasileira na Excelsior em 1965 e trouxe a estrutura de<br />
competição dos festivais para a Record. Ribeiro se inspirou no modelo italiano<br />
dos festivais de San Remo. Após o I Festival de Música Popular Brasileira,<br />
seguiram-se outros, começando o período da Era dos Festivais, que durou<br />
até 1972, um dos momentos mais expressivos de produção musical. [...] O<br />
sucesso artístico e de público do empreendimento da Record levou a Globo<br />
a realizar os Festivais Internacionais da Canção, que duraram até o início dos<br />
anos 70, atraindo grandes nomes da música brasileira e estrangeira. (ROCHA,<br />
2007, p. 142).<br />
Os festivais da canção tornaram-se uma ferramenta de propaganda do governo brasileiro<br />
ao apresentarem um clima de alegria, estimulado também pelas campanhas capitaneadas<br />
pelo sucesso de Dom & Ravel “eu te amo meu Brasil”, ou pelos versos que comoviam “90<br />
milhões” saudando a seleção brasileira, tricampeã mundial em 1970, compostos por Miguel<br />
Gustavo. Os Festivais Internacionais da Canção (FIC), realizados em 07 edições (de 1966 a<br />
1972) no Maracanãzinho, no Rio de Janeiro tiveram o apoio da Rede Globoiii , emissora que<br />
teve um crescimento vertiginoso a partir do governo militar.<br />
Gradualmente o festival se transformava numa grande janela escancarada para<br />
mostrar a felicidade do povo brasileiro. As odiosas vaias de cunho político eram<br />
coisa do passado. […] A liberdade manifesta na assistência do Maracanãzinho<br />
era um símbolo vivo, talvez até mais valioso e eficaz que as ações da AERP<br />
(Assessoria Especial de Relações Públicas) promovidas no governo anterior.<br />
Claro, liberdade desde que não ofendesse a família brasileira (MELLO, 2003,<br />
p. 368-369).<br />
A realização do V FIC em 1970, precedido pela conquista do tricampeonato mundial no<br />
futebol, trazia um clima de euforia. Trazia também entre os concorrentes uma forte influência<br />
da soul music, já demonstrada na apresentação da primeira concorrente da noite, em 15 de<br />
outubro.<br />
No novo palco os títulos das canções, autores e intérpretes apareciam em<br />
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As interações entre moda e música na constituição de identidades: uma análise das influências da Black Music<br />
três círculos iluminados acima das folhas de três portas giratórias por onde<br />
surgiam os cantores. Os dois primeiros eram Mariá (revelação de cantora no<br />
FIC anterior) e Luís Antônio (também premiado em outros festivais) à frente do<br />
grupo com seis músicos - todos negros vestindo batas africanas coloridas,<br />
liderados pelo pianista Dom Salvador ao órgão, para interpretar ‘Abolição<br />
1860-1980’, dele e Arnoldo Medeiros, gênero spiritual. ‘Não, não se pode falar<br />
em Black Power ou coisa assim’, declarou a cantora quando indagada se a<br />
música tinha caráter político no tocante a racismo. ‘Tem grande vinculação<br />
com a raça, raízes negras [...] mas sem intenções racistas, só musicais’. A<br />
apresentação da primeira concorrente, bastante aplaudida, dava a pista do<br />
que seria a tônica desse ano, a produção cênica das canções alimentada pela<br />
soul music. Sendo artistas negros então, as chances eram maiores (MELLO,<br />
2003, p. 373).<br />
Nesse festival, dominado pelos ritmos da black music que esteve presente em várias<br />
composições, dois nomes causaram sensação em suas apresentações: o maestro Erlon<br />
Chaves, que com a composição Eu Só Quero Mocotó desafiava a plateia ao ser beijado e<br />
reverenciado por mulheres brancas. E no estilo James Brown e do Harlem novaiorquino surge<br />
Toni Tornado, com cabelo, dança e gestos do movimento black power, cantando BR-3. As<br />
reações às apresentações de ambos levaram a plateia ao delírio, mas desagradaram muitos<br />
setores da conservadora sociedade brasileira. Os problemas e perseguições acarretados<br />
aos dois intérpretes serão mais um episódio lamentável de nossa história. No entanto, sua<br />
participação alavancou o movimento soul em todo o país.<br />
Mello (2003, p. 390) afirma que o “V FIC deixou um rastro de racismo, uma marca<br />
de preconceito contra artistas da raça negra”. No entanto, se por um lado a repressão nos<br />
bastidores aconteceu com tanta força, por outro, o que foi visto por milhares de negros foi<br />
outra. O V FIC foi uma demonstração do poderio do negro, de seu talento e orgulho da<br />
raça. A revolução da black music no país já estava em marcha, em um processo que parecia<br />
irreversível.<br />
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A moda black como declaração de identidade: do Black Rio ao<br />
Quarteirão do Soul em Belo horizonte<br />
Foto 03 - Sapatos bicolores - marca da identidade black<br />
Fonte: Ribeiro, 2008.<br />
Percebe-se que a partir dos anos 60, com a ascensão dos movimentos pela igualdade<br />
racial, sexual, movimento feminista, movimento hippie e o movimento estudantil, entre outros, a<br />
moda passa a ter características políticas. O vestir torna-se uma declaração político-ideológica.<br />
A moda black representa o movimento de afirmação da identidade negra.<br />
Pode-se afirmar que a moda soul iv , como toda moda, mantém uma relação<br />
direta e ininterrupta com o costume. Mas, por seu compromisso específico<br />
com um grupo étnico em condição minoritária, o diálogo estabelecido é duplo<br />
ou, se se prefere, referido a dois diferentes costumes ou tradições. De um lado,<br />
a moda soul dialoga com o costume dominante na sociedade envolvente,<br />
tomando-o como referência a partir da qual procura se distanciar e diferenciar.<br />
De outro lado, ela evoca - e dialoga - com o costume e a tradição nos quais<br />
o grupo vai buscar resgatar sua originalidade e o que seria sua autenticidade<br />
(GIACOMINI, 2006, p. 201).<br />
A moda black, principalmente aquela surgida no Rio de Janeiro, a partir do movimento<br />
denominado Black Rio, alternava-se entre a extravagância das vestimentas coloridas e da<br />
influência afro e a elegância composta pelos ternos, possibilitando uma alternativa em relação<br />
à moda tradicional vigente, e carregava na escolha a peculiaridade dos grupos de filiação,<br />
como apresenta o DJ da época Mr. Funky Santos:<br />
Porque a partir de determinado momento a gente começou a criar a nossa<br />
própria maneira de vestir. Que era muito elegante. Porque era uma roupa que<br />
batia com a gente. Diferente de você chegar ali e comprar uma roupa numa<br />
butique. Era diferente você comprar uma roupa numa loja. Você fazia a sua<br />
roupa. A calça vinha na sua medida, o sapato vinha na sua medida, os sapatos<br />
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As interações entre moda e música na constituição de identidades: uma análise das influências da Black Music<br />
eram umas obras de arte porque eram sapatos com tom sobre tom que eles<br />
chamavam de salada de frutas. (Mr. Funky Santos, 03 jul. 2007).<br />
A moda black foi, nesse momento, um determinante para a afirmação da identidade<br />
negra.<br />
A importância é o seguinte, é a identificação porque existia um provérbio<br />
antigo que assim, pelo que você está vestido, pelo que você tem você mostra<br />
a tua personalidade. O carioca era muito galhofeiro. Eles não andavam bem<br />
vestidos, eles andavam mais esbugalhados. O carioca arrumava cada sapato<br />
de 3 andares e não sei o quê, mas era bonito, era coisa bonita, mas só que<br />
por um lado, eu fazia aquele negro bem vestido, com tipo. Fazia justamente<br />
para eles copiarem. Alguns copiaram, mas a maioria da periferia já andava<br />
com uma galhofa. Cada um que pintasse mais coisa viesse mais colorido,<br />
era mais olhado pelas meninas. Em 1975 quando estava aflorando o Black<br />
Rio existia até desfile, o mais bonito negro, a mais bonita, o mais dançarino,<br />
o casal mais dançarino. Então as roupas influenciavam muito até por questão<br />
deles se identificarem no grupo. Aquele grupo, aquele é da gravatinha, aquele<br />
é paletó e fazia paletó, terno, gravata. Eles se sentiam gente, se sentiam<br />
maravilhosamente gente, porque nunca se usou terno e gravata, não tinha<br />
oportunidade. (Gerson King Combo, 02 jul. 2007).<br />
Os trajes alternavam os elementos da cultura convencional, ou seja, terno e gravata, ou<br />
usavam variações da moda também convencional, mas adaptando-as à sua visão de mundo e<br />
aos apelos da identidade black. Eram comuns camisetas com desenhos de capas de discos,<br />
frases de exaltação do soul power, ou do black power. Mas o principal, como revela a fala de<br />
King Combo é o fato de a moda demarcar um sentimento de valorização, de auto-estima, em<br />
suas palavras “de se sentir maravilhosamente gente”.<br />
Sendo um amálgama de materiais extraídos de diversas fontes, os estilos de<br />
roupas têm significados diferentes para diferentes grupos sociais. Assim como<br />
alguns gêneros de música e literatura populares, os estilos de roupas são<br />
significativos para os grupos sociais em que se originam ou para aqueles aos<br />
quais são dirigidos, mas frequentemente incompreensíveis para os que estão<br />
fora desses contextos sociais (CRANE, 2006, p. 47).<br />
A distinção entre os grupos era fortemente marcada pelas visões políticas com as quais<br />
se identificavam no momento, e passava ao largo de outros setores da sociedade que não<br />
tinham (ou ainda hoje não têm) afinidade com o estilo dos blacks. Existiam basicamente dois<br />
grupos: o que se identificava com os ideais africanos e aquele mais próximo ao poder negro<br />
do Black Panther. Dom Filó, responsável pelos mais prestigiados bailes no Rio e pela equipe<br />
de som Soul Grand Prix, era adepto deste último e explica a distinção:<br />
Você tinha aqueles que eram apaixonados pela África, usavam aquelas calças<br />
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coloridas, o cabelo também era afro ou trançado. Na época não era muito<br />
trançado era mais afro porque não tinha ainda a leitura das tranças, mas já<br />
tinham os coquinhos que eram feitos em casa, que ganharam publicamente<br />
a rua com aqueles barbantes coloridos. E as batas que eram características<br />
daquele jovem, o consciente. (Dom Filó, 03 jul. 2007).<br />
Foto 04 - O cantor Stevie Wonder e o modelo afro<br />
Fonte: Disponível em: <br />
Convivendo com o modelo afro, o visual Black, inspirado no grupo político norteamericano<br />
Black Panthers, que era mais agressivo.<br />
E por outro lado tinha aquele que já fazia o visual diferente que era o black, o<br />
visual que começamos a assumir. Você tinha na época, muito pouca opção<br />
de roupa. Não tinha silk screen, não tinha nada. Você tinha camisas que eram<br />
pintadas pelos próprios blacks e eles tiravam, alguns especialistas pintavam,<br />
das próprias capas dos discos que geralmente eram da Soul Grand Prix, de<br />
James Brown. Eles pintavam aquelas camisas coladas no corpo que eram<br />
malha Hering mais baratas, mas sempre calça jeans que na verdade deixou<br />
de ser Alpargatas para ser a calça Lee que começaram a ser compradas<br />
no câmbio negro, geralmente nas zonas de cais do porto. Então você tinha<br />
algumas coisas que eram praxe, as calças jeans que vinham largas e eram<br />
todas apertadas no contexto Black e os sapatos eram todos característicos<br />
porque eles eram plataformas que tinham dois andares, coloridos, tinham todo<br />
um outro traçado. Você tinha, além disso, o visual. Então o visual do cabelo<br />
começa a ser o seguinte, quanto maior mais lindo, mais bonito, mais maneiro,<br />
mais formoso. (Dom Filó, 03 jul. 2007).<br />
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Foto 05 - Os Panteras Negras<br />
Fonte: Disponível em: .<br />
Assim, outro elemento fundamental na composição do visual black era o cabelo, que<br />
pela primeira vez era usado ao natural, sem alisar e em tamanho maior. No auge do movimento<br />
soul, no final dos anos 60, a maioria dos cantores aderiu ao visual black power, de James<br />
Brown a Toni Tornado.<br />
O penteado soul é um exemplo desse duplo diálogo: o volume, a textura e a<br />
produção do penteado expressam, ao mesmo tempo, o compromisso com o<br />
que se representa como sendo o costume ancestral e marcam a diferença face<br />
ao rejeitado penteado do padrão eurocêntrico. (GIACOMINI, 2006, p. 201).<br />
A rejeição ao modelo tradicional dos cabelos, quase raspados para os homens ou<br />
alisados para as mulheres revela também uma rejeição ao padrão de comportamento da<br />
geração anterior e um inconformismo com as regras estabelecidas:<br />
Para falar a verdade naquela época você tinha dois cortes, ou esse que era<br />
o meu e de alguns adeptos, o black-power, e aqueles que usavam o Príncipe<br />
Danilo que era rapadinho do lado e só uma cuia na cabeça. Até dentro de casa<br />
a gente tinha uma pressão da mamãe, do papai, eles diziam: ‘não vai cortar<br />
esse cabelo, tá parecendo macaco’. Então a gente já tinha no subconsciente<br />
que não podia passar de um centímetro o cabelo, ou melhor, meio centímetro.<br />
Então, isso aí fez com que alguns começassem a discutir essa questão da<br />
discriminação. (Dom Filó, 03 jul. 2007).<br />
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As interações entre moda e música na constituição de identidades: uma análise das influências da Black Music<br />
Foto 06 - Cabelos black power (Aretha Franklin)<br />
Fonte: Disponível em: .<br />
Foto 07 - Cabelos black power (Michael Jackson)<br />
Fonte: Disponível em: .<br />
Ao atrelamento às raízes africanas, soma-se o orgulho negro nos penteados. Quanto<br />
maior era o cabelo, mais bonito e “black”. De acordo com Mestre Tito, dançarino da atual<br />
equipe Brother Soul em Belo Horizonte:<br />
Importante também era a questão do cabelo, tinha uns caras com o cabelo<br />
desse tamanho igual um repolho. E às vezes chegava com um ouriçador que<br />
era uma madeira com 5 grampinhos assim de ferro para ouriçar o cabelo. Ficar<br />
com cabelo redondão e ir para os bailes, aquilo era impressionante. (Mestre<br />
Tito, 12 fev. 2006).<br />
O orgulho negro revelava-se nos cabelos, que também eram um incômodo para<br />
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As interações entre moda e música na constituição de identidades: uma análise das influências da Black Music<br />
as instituições de vigilância. Mesmo porque as vestimentas eram usadas em momentos<br />
específicos, mas o cabelo acompanhava as pessoas onde quer que fossem. Temos relatos,<br />
como já foi visto, de vários blacks em Belo Horizonte que tiveram a cabeça raspada pela<br />
polícia.<br />
O cabelo também é visto como marca ou sinal que melhor e mais decididamente<br />
que qualquer outro, expressariam - ou negariam - o orgulho negro. Trata-se<br />
de um ato de politização do cabelo, a generalização de uma leitura política<br />
do penteado: o penteado transformado em manifesto. (GIACOMINI, 2006, p.<br />
203).<br />
A vestimenta como manifesto de identidade já era uma característica usada pelos<br />
negros americanos nas décadas de 30 e 40, com o chamado terno “zoot”.<br />
Segundo Martin e Koda, ‘o terno zoot [...] normalmente era composto de um<br />
paletó na altura dos joelhos, com ombros largos e retangulares e ombreiras,<br />
calça afunilada, larga na altura dos joelhos e justa na bainha’. Confeccionado<br />
em cores fortes (como azul-celeste), com chapéu combinando, usado com<br />
uma longa corrente dourada e um cinto com um monograma, o terno zoot<br />
imediatamente identificava quem o vestia como parte de uma cultura diversa<br />
da branca, pois era oferecido apenas em bairros negros e usado somente por<br />
negros e hispânicos. O traje era uma afirmação contundente da identidade<br />
negra; representava uma ‘recusa subversiva a ser subserviente’. (CRANE,<br />
2006, p. 361-362).<br />
Um aspecto curioso, é o fato de as calças do terno zoot terem a cintura bem alta, como<br />
pode ser percebido nas fotos abaixo. Esta é uma característica também da indumentária dos<br />
blacks do movimento soul em Belo Horizonte, ainda hoje.<br />
Foto 08 - Terno Zoot<br />
Fonte: Crane, 2006, p. 363.<br />
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As interações entre moda e música na constituição de identidades: uma análise das influências da Black Music<br />
Ouriçador, suspensório, a calça era muito alta a calça pegava aqui (no meio<br />
do peito). Inclusive a minha calça pegava aqui (no meio do peito) com dois<br />
suspensórios e uma camisinha por dentro. Era uma coisa impressionante na<br />
época dos blacks mesmo, essa coisa do James Brown estava tocando em<br />
todas as casas de BH. (Mestre Tito, 12 fev. 2006).<br />
O terno zoot, assim como o chapéu, os suspensórios, as correntes e a bengala foram<br />
adaptados ao vestuário dos blacks, principalmente daqueles de Belo Horizonte. Em parte por<br />
que:<br />
O terno zoot [...] codificava uma cultura que exaltava uma identidade específica<br />
de raça, de classe, de gênero e de geração. Os habitantes da costa leste<br />
que o usavam durante a guerra eram basicamente jovens negros e latinos, da<br />
classe operária, cujos locais de vida e círculo social limitavam-se aos guetos da<br />
região noroeste, e o terno refletia uma luta pela negociação dessas identidades<br />
múltiplas em oposição à cultura dominante. (MARTIN; KODA v apud CRANE,<br />
2006, p. 362).<br />
Outra explicação surge na fala dos frequentadores do movimento, ainda que, no fundo,<br />
ela tenha o mesmo sentido da utilização do zoot. Os blacks de Belo Horizonte optaram pelos<br />
trajes “formais”, entendidos como os ternos, em função da discriminação feita pela polícia.<br />
Então é o que acontece: nós criamos, nós pensamos assim, nós temos que<br />
mudar a cara a personalidade desse baile. Porque quem usa terno tem uma<br />
visão diferente. Você pode ver se você colocar um cara bem vestido assim<br />
desse estilo (mostra sua roupa, um terno). E pegar um outro com um bermudão<br />
no meio da canela caindo, cheio de correntes e de tatuagem, assim tem uma<br />
suspeitazinha. Então o que nós começamos a fazer? A ir para o baile de terno,<br />
de paletó, você representando um cidadão. Nós usamos terno. Então esta<br />
coisa está até hoje, porque o black em Belo Horizonte ele usa terno, roupa<br />
social, sapato. (Ronaldo Black, 16 jun. 2007).<br />
Na fala do dançarino, que ainda hoje participa do movimento soul, revela-se o sentimento<br />
de exclusão e a tentativa, pela vestimenta, de se inserir na vida social: “você representando<br />
um cidadão”. O sentimento de cidadania, de fazer parte da cidade não existia entre os blacks<br />
naquele momento. Como completa Lourinho, outro dançarino que viveu a época, o terno seria<br />
uma forma de “melhorar” sua situação frente à polícia:<br />
O pessoal achou ‘na feira hippie dá muita batida’ então a polícia está dando<br />
batida demais, aí o pessoal falou assim: ‘oh gente, pra melhorar, vamos usar<br />
terno’. Isso já foi na caída de 77 pra 78. Então a gente dançava lá e começou a<br />
usar terno porque estava dando muita batida, eu mesmo fui pra conversar com<br />
o delegado umas seis vezes porque sem documento antigamente, menor tinha<br />
que andar com documento, a maioria trabalhava e tal, mas a gente, negro [...]<br />
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As interações entre moda e música na constituição de identidades: uma análise das influências da Black Music<br />
né igual hoje não. (Lourinho, 16 jun. 2007).<br />
A sensação de melhoria poderia também ser entendida como o aumento da autoestima,<br />
o orgulho da cor e de estar numa posição socialmente reconhecida, dentro do seu<br />
meio.<br />
Então mexeu com uma geração de pessoas. Mexeu profundamente dentro<br />
do ego dessas pessoas que eles passaram a se vestir melhor, deixou de ser<br />
aquele negro vagabundo barbudo sabe, andava muito de malandragem.<br />
Quer dizer, até no modo de falar, a cultura foi tão boa, você via os negros<br />
falando, sabe quem é que levantou um pouquinho? Naquela década de 70, o<br />
Renascença. O Renascença começou a expandir certa classe de negros que<br />
trabalhavam em banco e outros lugares, já foi melhorando a coisa. Aí você<br />
entrava no Renascença, mas dava gosto de você ir: ‘oh, meu Deus do céu, até<br />
que a classe tá melhorando’. Você vê aquelas pessoas bem vestidas, bonitas,<br />
sorrindo, conversando, falando sobre a Bolsa de Valores, tudo certo. Aquilo<br />
era um orgulho nosso. Então a nossa cultura acendeu e reativou uma coisa<br />
que eles tinham guardada dentro de si que não mexiam por medo de qualquer<br />
coisa, de ser preso. (Gerson King Combo, 02 jul. 2007).<br />
Nos bailes os trajes tinham toda uma concepção voltada para a dança. A calça, os<br />
acessórios, sapatos, tudo fazia parte de uma encenação de um determinado ideal de beleza.<br />
Os modelos variavam desde aqueles que se identificavam com o personagem principal do<br />
filme Shaft, até os que seguiam o cantor James Brown, ou os modelos dos gangsters dos anos<br />
30/40, de clara inspiração na vestimenta zoot. O terno caracterizaria uma forma de inserção<br />
dentro de um modelo aceito socialmente, mas não deixando de afirmar a sua identidade,<br />
pelos acessórios a ele atrelados, como os sapatos. Os sapatos, ainda hoje, constituem o foco<br />
da atenção dos dançarinos. Os modelos de plataforma dos anos 70 foram substituídos, em<br />
Belo Horizonte, pelos sapatos bicolores, símbolo de elegância retrô.<br />
Foto 09 - Sapatos bicolores - marca da identidade black<br />
Fonte: Ribeiro, 2008, p. 168.<br />
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As interações entre moda e música na constituição de identidades: uma análise das influências da Black Music<br />
Pode-se observar que a roupa, na maioria das vezes é mais simples, tecidos mais<br />
baratos. Mas os sapatos são sempre caros. Em Belo Horizonte os dançarinos do soul<br />
podem adquirir os modelos bicolores mais simples em apenas uma sapataria. Os modelos<br />
mais sofisticados, ainda hoje, são produzidos e personalizados, por uma única loja - Vivaldo<br />
Sapatos. Eles não custam menos de R$200,00, um custo bastante elevado para a maioria<br />
dos frequentadores dos bailes e do Quarteirão do Soul, espaço que desde 2004 reúne os<br />
blacks da velha guarda e muitos jovens, aos sábados na região central de Belo Horizonte, que<br />
também não abrem mão dos sapatos.<br />
Esse flutuar você usava as mãos pra se equilibrar. Então, por isso se usava luva<br />
porque você mostrava mais a parte e as luzes que faziam efeito, geralmente<br />
com a bengala, por que era ousado. Por que o sapato era brilhoso? Porque<br />
a parte mais importante do black era o sapato. Era o ‘tchan’. Não existia tênis<br />
na época. Ninguém ia de tênis. Então você tinha que fazer um sapato. Ele era<br />
feito sob medida, duas cores, três cores e, geralmente, em verniz. Com isso<br />
se criou uma identidade. O visual do Black tem todo um sentido. E por que a<br />
calça era apertada? Exatamente para aparecer o sapato. Sendo boca sino era<br />
apertada, era difícil de colocar, pois era uma calça muito justa para passar o<br />
movimento das pernas, para mostrar o brilho das pernas. Ali você identificava<br />
o dançarino e na hora de dar o ‘espaguete’ que é quando você abre as pernas<br />
e dá o ‘espaguete’, tem todo um contexto, na dança e na expressão da roupa.<br />
(Dom Filó, 03 jul. 2007).<br />
A composição do traje no soul é pensada de forma a revelar o porte e a elegância dos<br />
dançarinos. Na pista eles deixam seus papéis tradicionais e encarnam os personagens mais<br />
variados.<br />
Foto 10 - Trajes black (James Brown)<br />
Fonte: Disponível em: .; e .<br />
O traje, ele é muito importante na dança Soul, porque o dançarino de Soul<br />
tem que ter charme, tem que ter elegância, então realmente tem que se trajar<br />
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As interações entre moda e música na constituição de identidades: uma análise das influências da Black Music<br />
elegantemente. Não existe nenhum traje mais elegante que um traje social, um<br />
sapato bicolor, então tudo faz parte da dança. Às vezes você vê um dançarino<br />
de nariz em pé e tudo é porque ali ele incorpora um personagem e ali ele<br />
começa a soltar aquilo ali, tem uns que fazem uma postura de mafioso e tudo<br />
porque o mafioso também ele traja bem, são impecáveis os trajes dele, então<br />
é por isso que o traje é uma parte do Soul Music, não tem condições do<br />
camarada de esporte fazer os passos de Soul, fica uma coisa ridícula, é a<br />
mesma coisa que jogar futebol de calça esporte. (Stevie, 16 jun. 2007).<br />
Os papéis incorporados pelos dançarinos do soul, na maioria das vezes diferenciavamse<br />
de sua real condição financeira, o que não era impeditivo para sua participação nos bailes.<br />
Sair arrumado de casa impecável e a pé. Sem nenhum centavo no bolso.<br />
Acontecia muito isso. Chegava lá e contava com a colaboração do colega,<br />
para entrar no som. Às vezes acabava o som, faltava meia hora para acabar<br />
e aí a gente conseguia entrar. Dançava três músicas e ficava feliz da vida.<br />
(Adenauer, 12 fev. 2006).<br />
A composição das roupas, os adereços criados para impressionar as mulheres. A<br />
postura dos blacks nos bailes segue todo um ritual, ou como preferem os frequentadores - os<br />
mandamentos black.<br />
A gente ia com uma roupa e já deixava outra roupa pronta, aí você dançava.<br />
Porque um dos mandamentos blacks que a gente tem é que nunca você<br />
dança a primeira música lenta com a dama porque normalmente você está<br />
todo molhado de suor. Então você pode ver o black sempre tem um lencinho<br />
no bolso. Por exemplo, se pintar que você tem que dançar com uma menina,<br />
pelo menos você disfarça o suor. Como a gente morava perto o que a gente<br />
fazia? Ia com uma roupa, mas já pensava em outra e colocava em cima da<br />
cama. Colocava em cima da cama, pois na hora da lenta você ia para a casa<br />
rapidinho e trocava de roupa e já vinha com outro visual. Para você não levar<br />
sacola. E a gente dançava até o som acabar. A gente também colocava graxa<br />
atrás do salto do sapato de um jeito que se andasse não prejudicasse. Aí<br />
chegava no som você pegava com um palito espalhava aquela cera no chão<br />
para você deslizar melhor. Outra coisa é o pessoal que fumava: eles colocavam<br />
aquela caixa de fósforos porosa que acende o palito, colocava na sola do<br />
sapato, ali perto do salto. Aí ele estava dançando, riscava e parecia que ele<br />
tinha feito uma mágica, aí ficava aquele glamour. (Eduardo, 16 jun. 2007).<br />
Todos os códigos da moda black que ainda hoje permanecem no imaginário, não<br />
apenas dos seguidores do movimento, mas das novas gerações que se identificam com a<br />
postura do orgulho negro e da afirmação da identidade. A utilização de todos esses elementos<br />
simbólicos proporciona a identificação e revela sua alteridade.<br />
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As interações entre moda e música na constituição de identidades: uma análise das influências da Black Music<br />
Considerações Finais<br />
Foto 11 - Os blacks no Quarteirão do Soul em Belo Horizonte<br />
Fonte: Ribeiro, 2008.<br />
Foto 12 - A elegância Black no Quarteirão do Soul em Belo Horizonte<br />
Fonte: Ribeiro, 2008.<br />
A identidade black hoje encontra outras variações: existem os que se identificam<br />
com o movimento hip-hop, aqueles do movimento funk, entre outros ritmos. O que todos<br />
esses grupos sociais têm em comum é a busca de uma identidade social que se afirma pela<br />
identificação com a música e com os elementos visuais que compõem a moda dos músicos<br />
de cada universo. Seja encarando uma postura mais politizada como os adeptos do hip-hop,<br />
ou mais sexualizada como os do funk é a partir da moda que esses grupos se percebem e<br />
afirmam as diversas identidades que povoam as ruas da cidade.<br />
A moda é constituída a partir da reflexividade social. Portanto, as mais diversas interações<br />
e mediações promovidas pelos meios de comunicação e pela cultura de massas refletem-se,<br />
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As interações entre moda e música na constituição de identidades: uma análise das influências da Black Music<br />
não apenas na produção da moda, mas também nos diversos consumos e grupos sociais que<br />
se identificam com seus signos.<br />
Compreender assim as relações sociais que permeiam a constituição desses<br />
signos possibilita, não apenas aos pesquisadores, mas também aos produtores de moda,<br />
compreender um pouco como variáveis, às vezes desconsideradas, podem ser fundamentais<br />
na identificação do consumidor e nas diversas significações que tais produtos podem assumir<br />
em suas vidas.<br />
A moda Black pode ser um bom exemplo de como essas identidades se constituem<br />
a partir dos produtos da mídia, como no caso a música e, como sua identificação com ela<br />
pode ser um reflexo dos modos de vida e da postura político-social do indivíduo. Podemos<br />
também, a partir de sua análise, compreender as transições inerentes aos processos sociais:<br />
da valorização da identidade negra do soul, até pensarmos na afirmação do eu pelo hip-hop.<br />
A roupa comunica ao mundo a identidade desses indivíduos.<br />
A moda no século XXI pode ser entendida como uma das principais formas que o<br />
indivíduo tem de demonstrar, de maneira mais explícita, o seu estar no mundo. A vestimenta é<br />
hoje, muito mais que um acessório, mas uma declaração de identidade do indivíduo. Portanto,<br />
conhecer as influências que perpassam esse universo é estar em sintonia com as diversas<br />
variantes que compõem o corpo social e perceber, por vezes antecipadamente, as tendências<br />
que contribuirão para a transformação desta sociedade e na afirmação da alteridade dos<br />
indivíduos, mesmo em meio a tanta padronização.<br />
Foto 13 - O hip-hop visita a “velha guarda” do soul<br />
Fonte: Ribeiro, 2008.<br />
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As interações entre moda e música na constituição de identidades: uma análise das influências da Black Music<br />
Notas<br />
i RIBEIRO, Rita Aparecida da Conceição. Identidade e resistência no urbano: o Quarteirão do Soul em<br />
Belo Horizonte. 2008. 192 f. Tese (Doutorado em Geografia) - Instituto de Geociências da UFMG, Belo<br />
Horizonte.<br />
ii De acordo com Herzhaft (1989), estes chamados também poderiam se chamar hoolies ou arhoolies.<br />
iii Apenas o primeiro deles (I FIC), realizado em 1966, foi transmitido pela TV Rio.<br />
iv Giacomini refere-se à moda surgida nesse período como moda soul. Preferimos optar pela<br />
denominação moda black por ser mais abrangente e mais característica da identidade dos seguidores<br />
do movimento que, na maioria das vezes, se autodenominam Blacks.<br />
v MARTIN, Richard; KODA, Harold. Jocks and nerds. New York: Rizzoli, 1989. p. 209.<br />
Referências<br />
CRANE, Diana. A moda e seu papel social: classe, gênero e identidade das roupas. São<br />
Paulo: Ed. Senac-SP, 2006.<br />
ERNER, Guillaume. Vítimas da moda?. São Paulo: Ed. Senac-SP, 2005.<br />
GIACOMINI, Sonia Maria. A alma da festa: família, etnicidade e projetos num clube<br />
social da Zona Norte do Rio de Janeiro - o Renascença Clube. Belo Horizonte: Ed.<br />
UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2006.<br />
HERZHAFT, Gerard. Blues. Campinas: Papirus, 1989.<br />
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo:<br />
Companhia das Letras, 1999.<br />
MELLO, Zuza Homem de. A era dos festivais. São Paulo: Ed. 34, 2003.<br />
MUGGIATI, Roberto. Blues: da lama à fama. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995.<br />
RIBEIRO, Rita Aparecida da Conceição. Identidade e resistência no urbano: o Quarteirão<br />
do Soul em Belo Horizonte. 2008. 192 f. Tese (Doutorado em Geografia) - Instituto de<br />
Geociências da UFMG, Belo Horizonte.<br />
Relação dos entrevistados<br />
Adenauer (Adenauer Marques da Silva) comerciário, integrante do grupo de dança Brother<br />
Soul e colecionador de discos de vinil.<br />
Dom Filó (Asfilófilo de Oliveira Filho) engenheiro coordena a ONG LUB, Liga Urbana de<br />
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As interações entre moda e música na constituição de identidades: uma análise das influências da Black Music<br />
Basquete, com projetos voltados para o desenvolvimento e o resgate da auto-estima dos<br />
jovens negros. Eventualmente toca nos bailes black do Rio.<br />
Gerson King Combo (Gerson Côrtes) cantor carioca, considerado o James Brown brasileiro.<br />
Teve 03 discos solo lançados: Gerson King Combo (1977), Gerson King Combo II (1978)<br />
e Mensageiro da Paz (2001), além de diversas participações em coletâneas e trabalhos de<br />
outros intérpretes. Atualmente trabalha para a Prefeitura do Rio de Janeiro em uma creche<br />
comunitária em Vila Isabel, mas continua se apresentando em bailes black.<br />
Lourinho (José Maria Gonçalves de Carvalho) pintor de automóveis frequenta o Quarteirão<br />
do Soul sempre acompanhado pela mulher Cida, que vende salgados e bebidas no espaço, e<br />
também é uma Dama do Soul.<br />
Mestre Tito (José Antônio Tito) vigilante bancário desenvolve um trabalho social voltado para<br />
capoeira. É integrante do grupo Brother Soul.<br />
Mr. Funky Santos (Oséias Moura dos Santos) autônomo, agora faz participações nas<br />
apresentações da Soul, Baby, Soul e do Club do Soul.<br />
Ronaldo Black (Ronaldo Bernardo Soares) taxista faz parte do grupo de dança BH Soul.<br />
Geralmente vai ao Quarteirão acompanhado do filho Ronaldinho, que já segue os passos do<br />
pai na dança.<br />
Stevie (Aloísio) dançarino do grupo BH Soul.<br />
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ILuSTRAçãO DIGITAL NA MODA<br />
Gabriela Coutinho Pinheiro; Graduanda de <strong>Design</strong> de <strong>Moda</strong>: UFC<br />
gabrielapinheiro@gmail.com<br />
Adriana Leiria Barreto Matos; Docente do Curso de <strong>Design</strong> de <strong>Moda</strong>: UFC<br />
adriana.leiria@ufc.br<br />
Resumo<br />
O presente artigo tem o propósito de apresentar um estudo sobre<br />
Ilustração Digital em <strong>Moda</strong>. Para isto, o artigo se inicia fazendo<br />
um levantamento sobre a história da Ilustração em si, chegando<br />
a um conceito de Ilustração de <strong>Moda</strong>, fazendo um paralelo com<br />
a criação do próprio computador pessoal. Em seguida, foram<br />
apresentados os principais softwares utilizados no processo<br />
criativo de Ilustrações de <strong>Moda</strong>, como o CorelDRAW®, o Adobe<br />
Photoshop® e o Illustrator®, visando expor as suas principais<br />
aplicações. Após abordar os principais softwares, por fim serão<br />
discutidas as técnicas fundamentais usadas por Ilustradores,<br />
relacionando-as com os softwares, expondo as suas características<br />
e aplicações. Espera-se assim contribuir com essa área de estudo<br />
na formação de ilustradores de moda.<br />
Palavras-Chave: ilustração; moda; digital<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Ilustração digital na moda<br />
Introdução<br />
O presente artigo aborda o tema Ilustração Digital em <strong>Moda</strong>, visando esclarecer a<br />
importância dos recursos disponíveis para esse campo e também expor as técnicas que os<br />
ilustradores profissionais utilizam a partir destes programas. A ilustração digital teve o seu início<br />
recentemente, a partir dos anos 1990, portanto ainda carece de maiores investigações a seu<br />
respeito.<br />
Buscou-se levantar informações quanto à origem da Ilustração Digital de <strong>Moda</strong>, visando<br />
compreender a sua importância para as ilustrações criadas hoje. Também foi analisada a<br />
utilização das novas tecnologias em comunhão com os procedimentos tradicionais, assim<br />
como buscou-se estudar a influência do uso desses aparatos no resultado final do processo<br />
de criação de ilustrações.<br />
Breve história da ilustração de moda<br />
A história da ilustração de confunde com a própria história da escrita, já que as primeiras<br />
formas de manifestação de comunicação humana deram-se através de figuras rupestres. Mais<br />
tarde, no Egito antigo, surge a primeira versão do que viria a ser um livro ilustrado – o Rev Nu<br />
Pert Em Hru, ou Livro dos Mortos. Inicialmente, os escribas dividiam o espaço do papiro para<br />
fazer a narrativa em hieróglifos, deixando espaços em branco a serem futuramente preenchidos<br />
pelos artistas. Gradativamente, as ilustrações passaram a ter mais importância, e coube aos<br />
artistas iniciarem a produção, invertendo o processo e deixando espaços pequenos para os<br />
escribas preencherem.<br />
Por volta de 1450, surgem os primeiros impressos, denominados de “Manuscritos<br />
Iluminados”. Profissionais adornavam esses manuscritos, contribuindo para a riqueza e<br />
iluminação das páginas folheadas a ouro. Daí surgiu o termo ilustrador – ou iluminador.<br />
A ilustração de moda teve a sua primeira manifestação no século XVII, com as gravuras<br />
detalhadas de Wenceslaus Hollar, um artista inglês que produzia também gravuras de formas<br />
arquitetônicas e plantas de edifícios e igrejas na Londres de 1600. Até então, a percepção de<br />
moda só era possível através das pinturas e esculturas. De acordo com Gragnato: “quando<br />
olhamos para a história da moda, percebemos que seus registros estão atrelados à história da<br />
arte, principalmente em pinturas, esculturas e gravuras” (2009, p.32)<br />
No século XVIII, a moda passou a ser disseminada em diversos jornais e revistas, e<br />
então surgiram os primeiros fashion platesi – ilustrações que mostravam o que havia de novo<br />
na moda, e usado como referência pelas mulheres interessadas (Figura 1).<br />
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Ilustração digital na moda<br />
De acordo com Lever,<br />
Figura 1<br />
“Evening and Walking dress”, 1827.<br />
Originalmente publicado por J. B. Whittaker, Londres.<br />
The Lady’s Magazine começou a publicá-los [os fashion plates] a partir de 1770.<br />
E, de repente, figurinos semelhantes estavam sendo publicados em toda a<br />
Europa. Para nós, acostumados às ilustrações de moda, é difícil compreender<br />
que, antes da invenção do fashion plate, obter informações sobre a última<br />
moda era [...] trabalhoso. (1989, p. 147)<br />
Durante toda a evolução dos desenhos de moda, as técnicas se aperfeiçoaram desde<br />
as gravuras, passando por técnicas mais tradicionais como guache e aquarela. As ilustrações<br />
continuaram evoluindo nos anos 1920, e nas décadas 1960 e 1970 se intensificou a utilização<br />
da estilização do traço, e a ilustração seguiu a sua história até o princípio dos anos 1990 –<br />
época em que a ilustração digital entrou em cena. Com ela, tornou-se possível alcançar um<br />
nível maior de realismo nas criações.<br />
Uma ilustração de moda, ao contrário de um desenho de moda ou de um desenho<br />
técnico, tem a preocupação de mostrar mais do que somente uma roupa. Como cita Esteves<br />
(2009), “Ilustrações podem mostrar o ambiente no qual o produto será usado e sua interação<br />
com o usuário”. Então, mais do que representar graficamente a criação de um estilista, a<br />
ilustração de moda deve transmitir um conceito.<br />
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Ilustração digital na moda<br />
O ilustrador, na maioria das vezes, tem que se comunicar com o público leigo,<br />
provavelmente o usuário do produto. Por isso, a imagem criada tem que ser<br />
facilmente interpretada e ter um grande apelo visual, não importando detalhes<br />
de um desenho (ESTEVES, 2009) ii .<br />
Nas ilustrações, a representação real da forma deixa de ser crucial, e não é necessária<br />
a sua reprodução fiel para que o produto em questão tenha o seu destaque. De acordo com<br />
Carvalho (2010, p.31): “O ilustrador é, antes de tudo, um leitor e sua ilustração dá visibilidade<br />
à sua interpretação”. Cabe ao ilustrador projetar as suas impressões, interpretá-las de acordo<br />
com a sua visão.<br />
Cardeal e Pedrini (2007) contribuem para essa linha de pensamento, e acrescentam<br />
que, com as facilidades tecnológicas, a ilustração tornou-se uma forma eficaz e rápida de<br />
comunicar, de expor uma ideia. Para Dawber (2003, p. 08) a ilustração proporciona uma<br />
expressão artística que “apela mais ao coração que ao cérebro”.<br />
A ilustração de moda obteve notoriedade nos últimos anos devido à sua utilização na<br />
mídia, em campanhas publicitárias e lançamentos de produtos ilustrados. Nos anos 1990,<br />
surge um dos artistas ilustradores contemporâneos mais importantes: Jason Brooks (Figura<br />
2). Suas ilustrações lhe renderam o prêmio Vogue/Sotheby’s Cecil Beaton por ilustração de<br />
moda ainda na mesma década, e suas criações estabeleceram um novo conceito a respeito da<br />
ilustração vetorizada, antes tomada por rígida e desprovida de vivacidade. O artista produziu<br />
várias ilustrações computadorizadas em flyers para casas de entretenimento.<br />
Outro artista notório da época foi Graham Rounthwaite, que produziu uma série de<br />
outdoors para a marca jeans Levi’s, o que voltou os olhos do público para a ilustração digital.<br />
Figura 2<br />
Ilustração de Jason Brooks<br />
Fonte: Portfolio Online, disponível em: http://www.jason-brooks.com<br />
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Ilustração digital na moda<br />
O interesse atual por ilustração digital de moda se deve, em parte, à popularização de<br />
softwares como o Adobe Photoshop®, Adobe Illustrator® e CorelDRAW®. A internet causou<br />
reconhecimento do público em relação a esses programas, e até mesmo quem não possui<br />
informações técnicas sobre o referido assunto já tomou conhecimento da existência dos<br />
softwares de edição de imagem, como o Adobe Photoshop®.<br />
As proporções nos desenvolvimentos tecnológicos sociais e globais são reflexo<br />
da contemporaneidade que vivemos. A rapidez de informações, a efemeridade<br />
de comportamentos sociais, necessita de uma expressão artística que<br />
envolva os elementos atuais de subjetividade comportamentais; a ilustração<br />
acompanha essa mutação em que se encerra a sociedade atual. Por isso ela<br />
é um campo que atua com grande requisito em propagandas, livros, cartazes,<br />
revistas, todos os meios midiáticos massivos em que ela possa se destacar.<br />
(FREITAS, 2009, p. 3)<br />
Hoje, com acesso à internet, pode-se encontrar com facilidade referências e conteúdos<br />
que orientam o manuseio desses programas, compondo uma verdadeira biblioteca de efeitos,<br />
recursos e imagens. Torna-se possível para um ilustrador aperfeiçoar as suas habilidades<br />
técnicas e expressividade plástica através do compartilhamento de informações que a rede<br />
mundial de computadores disponibiliza, constituindo-se no que Gomes (2010, p.52) chama de<br />
“um vasto arquivo poético visual e objectual”.<br />
O avanço tecnológico expandiu as possibilidades da ilustração. Com o auxilio de<br />
computadores e de softwares especializados, tornou-se viável adicionar texturas e movimentos<br />
com mais realidade e praticidade. Para o ilustrador, isso também significou o contato direto<br />
e imediato com o público. Entretanto, após o surgimento e rápida propagação dessas novas<br />
tecnologias, os ilustradores que antes trabalhavam com técnicas tradicionais tiveram que<br />
adaptar-se:<br />
O ilustrador encontra tantas facilidades técnicas que acaba tendo esvaziado<br />
seu esforço frente a enorme concorrência com os ilustradores insurgentes,<br />
apoiados sobre as facilidades dos atuais softwares de criação gráfica<br />
(a máquina é a artista, o engenheiro, o médico e assim por diante). Nesse<br />
maravilhoso novo mundo, o computador criou, principalmente, a possibilidade<br />
de experimentar. (MILAGRE, 2008) iii<br />
Um dos maiores desafios do ilustrador que presenciou a transição da arte tradicional<br />
para a arte digital, mas que também é uma questão pertinente para os ilustradores iniciantes,<br />
é o de compreender a transformação gerada pela revolução tecnológica sobre a produção<br />
imagética. Com o decorrer do tempo, o repertório tecnológico amplia-se, assim como a<br />
diversidade de informações proeminentes do mundo inteiro, que são compartilhadas a todo<br />
instante numa rede de cooperação:<br />
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Ilustração digital na moda<br />
Alguns ilustradores, vencido o impacto inicial, mantiveram a calma e compraram<br />
computadores para utilizá-los sempre que necessário sem jamais dispensar<br />
o lápis, o guache, o papel e outros materiais tradicionais. Há, também, a<br />
nova geração de ilustradores que, deslumbrados com o computador, estão<br />
esquecendo de aprimorar a parte artística. (NAKATA, 2010, p. 41)<br />
Continuando o raciocínio de Nakata (2010), torna-se imprescindível para um bom<br />
ilustrador associar as técnicas nas quais tenha maior segurança com as crescentes inovações<br />
tecnológicas, procurando expressar-se e mostrar a sua individualidade. Veremos como alguns<br />
ilustradores fazem esse tipo de associação a seguir, mas antes se torna necessário introduzir<br />
as ferramentas e softwares mais difundidos para a ilustração de moda.<br />
Ferramentas utilizadas para ilustrar<br />
A ilustração de moda pode ser produzida com técnicas que vão desde aquelas<br />
com materiais artísticos como aquarela, giz, carvão, pastel, nanquim, tintas,<br />
canetas, grafites, até as consideradas mais sofisticadas em função do uso de<br />
softwares como Photoshop® e CorelDRAW®. Pode-se ainda mesclar essas<br />
técnicas (manuais e digitais) buscando enriquecer e personalizar ainda mais o<br />
resultado final do desenho. (AMORIM, 2008, p. 01)<br />
A ilustração digital teve a oportunidade de surgir com o advento de computadores a<br />
preços mais acessíveis. Nos anos 1980 já existiam os personal computers, ou PCs, mas a<br />
criação do mouse incorporou a gestualidade do artista aos processos digitais.<br />
De acordo com Tallon (2008, p. 12), um ilustrador precisa de instrumentos digitais para<br />
desenho e pintura, a exemplo da mesa digitalizadora, ou pen tablet. Este recurso possibilita<br />
a digitalização imediata do traço composto diretamente sobre uma superfície plana com tela<br />
sensível (a tablet, ou mesa digitalizadora propriamente dita) e uma caneta ótica. Em algumas<br />
marcas, a tecnologia que transmite o desenho para a tela do computador está situada na<br />
caneta; entretanto, a tecnologia em que a superfície da tela é sensível permite um melhor<br />
desempenho. A tablet possibilita uma pintura digital superior à obtida com o mouse, por sua<br />
precisão e pela capacidade de alteração de pressão. Com ela, pode-se também desenhar<br />
diretamente na tela do computador, sem a necessidade de um rascunho prévio digitalizado.<br />
Outra inovação que viabilizou digitalizar esboços foi o scanner, imprescindível para<br />
a transposição do desenho traçado com instrumentos tradicionais para o computador. Um<br />
ilustrador também necessita de métodos de captura de imagens. Tallon (2008, p.12) frisa que<br />
se deve dispor de um scanner de qualidade, que servirá para as possíveis digitalizações no<br />
dia-a-dia.<br />
Um dado bastante significativo em relação à introdução do computador como<br />
ferramenta nas editorias de arte, a partir da década de 90, diz respeito ao<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 249
Ilustração digital na moda<br />
formato dos originais dos desenhos. [...] Os desenhos realizados na década de<br />
80 são de diferentes tamanhos e materiais. Eram fotografados no estúdio do<br />
jornal, sem impedimento de dimensões. Desde a década de 90 as redações<br />
ou os estúdios dos ilustradores dispõem de escaners tamanho A-4 (o tamanho<br />
maior é muito caro), o que acarreta numa limitação evidente em termos de<br />
gestualidade e textura. (GUIRALDO, 2006, p. 10)<br />
Um scanner de alta qualidade detém um custo elevado, então, caso o artista necessite<br />
de uma qualidade superior, é mais viável terceirizar as digitalizações em gráficas especializadas.<br />
Outros recursos disponíveis são as câmeras digitais, tanto para composições quanto para<br />
eventuais aquisições de imagens que irão compor o banco de imagens do ilustrador com a<br />
finalidade nortear futuros trabalhos.<br />
Softwares utilizados<br />
Pode-se considerar que as imagens no meio digital podem ser classificadas em vetoriais<br />
ou bitmaps. Imagens vetoriais são compostas de linhas e pontos, objetos matemáticos,<br />
definidos por vetores. Já a imagem no formato de bitmap (mapa de bits) é constituída por uma<br />
sequência de bits que formam uma figura que consiste em centenas de linhas e colunas de<br />
pequenos elementos, chamados pixelsiv . Dependendo da quantidade de ampliação da imagem<br />
trabalhada, o pixel não pode ser visualizado individualmente, resultando em uma percepção<br />
da imagem em suaves gradações de cor.<br />
A imagem vetorial, por sua vez mantém a sua nitidez quando redimensionada, ao<br />
contrário das imagens em bitmap, que necessitam de um número considerável de pixels para<br />
obter uma imagem nítida. Alguns softwares só produzem imagens vetoriais, como é o caso<br />
do CorelDRAW® que por definição de Canto (2002, p. 5), são desenhos matematicamente<br />
ligados por vários pontos unidos por linhas. Dessa forma, é possível alterar o tamanho e o<br />
formato de um objeto vetorial sem que ele perca as suas definições – ao redimensioná-lo, ele<br />
é recalculado matematicamente para o novo formato, sem que haja perda na qualidade final.<br />
No tocante à edição de imagem, a criação de softwares como Adobe Photoshop®<br />
e CorelDRAW® coincidiram com a criação de máquinas capazes de executá-los. Em 1988<br />
foi lançada a primeira versão do programa CorelDRAW®, mas apenas em 1995 surgiu a<br />
primeira versão do programa em 32 bits, ou seja, em cores. Este programa facilitou em muito<br />
a criação de desenhos técnicos de moda, que é a expressão gráfica primordial do ambiente<br />
industrial, sendo assim de significativa importância. Além da maior rapidez com que as peças<br />
são desenhadas, a utilização desse software possibilita uma imagem perfeitamente simétrica,<br />
dentre outros padrões de exigência específicos da representação técnica, que costumavam<br />
requerer mais tempo e atenção para serem atingidos com ferramentas tradicionais.<br />
Houve uma evolução gradativa em que as ferramentas vetoriais do CorelDRAW®<br />
passassem a ser utilizadas não somente para desenhos técnicos, mas também para desenhos<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 250
Ilustração digital na moda<br />
estilizados e ilustrações. Para isso, torna-se necessário não somente dominar as principais<br />
ferramentas do programa, como também possuir conhecimento também sobre o desenho<br />
de moda. Além de linhas retas e desenhos planificados, o CorelDRAW® também permite a<br />
criação de traços mais fluidos, transparências e outros efeitos que auxiliam na suavização da<br />
imagem.<br />
Outro programa da Corel Corporation é o Corel® PHOTO-PAINT, um software voltado<br />
para edições de imagens em bitmap. Através dele é possível aplicar efeitos em imagens, como<br />
alterar seu brilho e contraste, redimensioná-las e, assim, aprimorar o seu feitio. Também há<br />
o Corel® Paint Shop Pro®, criado em 1991, inicialmente apenas para auxiliar usuários de<br />
computador a modificar o formato das imagens, com alterações básicas na cor e algumas<br />
manipulações, como alterações em brilho e contraste das imagens.<br />
O CorelTRACE®, por sua vez, permitia converter bitmaps em gráficos vetoriais. O<br />
programa transforma uma imagem escaneada num vetor, que pode ser editado futuramente no<br />
CorelDRAW®, viabilizando assim o processo de vetorização de imagem. Hoje o programa foi<br />
incorporado como ferramenta dentro do CorelDRAW®, sob o nome de Corel PowerTRACE®.<br />
Também desenvolvido pela Corel Corporation o programa Corel Painter® destaca-se<br />
na ilustração digital, especialmente no quesito de pintura. De acordo com Grossman (2010,<br />
p. 11): “O Painter foi o primeiro programa de emulação de mídias naturais, criado por artistas<br />
para artistas”. Ele tem a capacidade de imitar virtualmente qualquer técnica tradicional, e<br />
possui uma vasta quantidade de estilos de ferramentas que permitem uma pintura digital<br />
com muitos atributos. Grossman (2010) compara o programa com o Adobe Photoshop®,<br />
que também é voltado para imagens com pixels, declarando que enquanto o Photoshop®<br />
é ideal para manipulação de imagens, o Painter é mais completo em termos de ferramentas<br />
para a pintura digital; ainda de acordo com Grossman(2010), com o passar dos anos, os dois<br />
programas têm se tornado cada vez mais compatíveis, tornando-se assim possível criar uma<br />
imagem utilizando os melhores recursos dos dois programas.<br />
O Adobe Photoshop® surgiu há mais de 20 anos, e tem o seu uso geralmente ligado à<br />
edição e retoques de imagens. Com ele torna-se possível alterar cores, ajustar a luz, adicionar<br />
texturas e estampas e mais uma infinidade de ferramentas. Com o auxílio de um scanner e a<br />
ajuda de uma mesa digitalizadora, pode-se finalizar um croqui feito à mão, adicionando cor<br />
e aperfeiçoando o traço. Também é possível criar uma ilustração ou desenho de moda sem<br />
a necessidade de um esboço inicial digitalizado: na sua área de trabalho é possível a criação<br />
espontânea, com ajuda dos recursos do programa e da tablet:<br />
O programa oferece inúmeras facilidades para designer e produtores gráficos<br />
criarem imagens sofisticadas, que poderão ser impressas ou colocadas na Web.<br />
[...] Apresenta diversas ferramentas específicas para alterar brilho, contraste e<br />
cores de uma imagem; preparar uma foto para ser utilizada por um software<br />
de paginação, como o In<strong>Design</strong>, ou de ilustração digital, como o Illustrator®;<br />
otimizar uma imagem para a Web, a ser utilizada em um programa como o<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Ilustração digital na moda<br />
Dreamweaver; realizar um gerenciamento avançado de camadas; ferramentas<br />
de desenho vetorizado; entre outras funções. (ANDRADE, 2007, p. 11)<br />
Todas as imagens produzidas no Adobe Illustrator® são criadas em vetor, incluindo as<br />
fontes. Uma imagem vetorial, como já foi dito antes, é feita através da união de pontos unidos<br />
por retas – isso faz com que a sua resolução seja independente, tornando a imagem capaz de<br />
ser redimensionada para qualquer tamanho e impressa em qualquer mídia. Isso faz com que<br />
gráficos vetoriais, de acordo com Centner e Vereker (2007), possam ser considerados como o<br />
formato ideal para criar desenhos técnicos detalhados e ilustrações de moda.<br />
A Adobe não batizou o seu produto como Illustrator® sem razão. Artistas<br />
podem criar ilustrações para livros infantis, capas de revistas e artigos e uma<br />
enorme variedade de produtos, e eles utilizam o Illustrator® para aproveitar<br />
a alta qualidade e precisão disponíveis no programa. Uma variedade de<br />
instrumentos, [...] permitem que os ilustradores possam traduzir as imagens<br />
que vêem em suas mentes para a realidade. (GOLDING, 2009, pág. 17)<br />
No universo da moda também são utilizados outros softwares, de cunho mais<br />
especializado e integrado com o ambiente fabril, a exemplo dos programas de CAD ou CAM<br />
(Computer-Aided <strong>Design</strong> e Computer-Aided Manufacturing), como o Audaces. O CAD / CAM<br />
foi introduzido na indústria da moda na década de 1980 como um sistema autônomo. Ele foi<br />
originalmente desenvolvido para a Indústria Têxtil e de Vestuário, no âmbito do processo de<br />
fabricação e produção, que incluiu a criação de produtos têxteis, a elaboração e classificação<br />
de modelagens.<br />
Há uma série de softwares de moda e desenho especificamente para<br />
as pequenas empresas e designer freelancer, mas as grandes empresas<br />
de vestuário são mais propensas a usar o poderoso CAD para vestuário e<br />
programas têxteis produzidos pela Lectra e Gerber. Estes programas têm sido<br />
desenvolvidos para integrar todas as áreas do processo de vestuário e design<br />
têxtil, fazendo modelagens, classificações, e criação de vestuário através<br />
do merchandising e gerenciamento de dados. Consequentemente, estes<br />
programas são caros, mas permitem que as empresas grandes possam obter<br />
economias de escala. (BURKE, 2006, p. 157)<br />
Há também o Lectra Kaledo, um software recomendado para a área de criação; e ainda<br />
programas como o Digital Fashion Pro, My Label 3D, Fashion Tool Box e Virtual Fashion. Este<br />
último é o primeiro programa em 3D voltado especialmente para a moda, destacando-se dos<br />
demais por suas várias possibilidades e efeitos. Nele, torna-se possível criar modelos com<br />
mais veracidade, alcançados com os recursos disponíveis para a representação automática<br />
de textura e de caimento de tecidos.<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Ilustração digital na moda<br />
Técnicas e ilustradores<br />
No campo da ilustração digital, constata-se que, apesar de inúmeras possibilidades de<br />
ferramentas e efeitos que podem ser criados com o auxilio de softwares, algumas técnicas se<br />
destacam.<br />
A técnica mais utilizada pelos ilustradores é a de fazer um esboço a lápis, escaneá-lo<br />
e então aperfeiçoá-lo em softwares específicos. A artista espanhola Carmen Garcia Huerta é<br />
adepta a esse método: ela produz um rascunho a lápis e o digitaliza, então faz o traçado da<br />
imagem inteira no Adobe Illustrator®. Neste ponto, são escolhidas as cores que virá a utilizar,<br />
e então utiliza o Photoshop® para adicionar volumes, luzes, suavizar a pele (Figura 3).<br />
Figura 3:<br />
Ilustração de Carmen Garcia Huerta<br />
Fonte: Portfolio Online, disponível em: http://www.cghuerta.blogspot.com/<br />
A ilustradora Yuko Shimizu utiliza o Adobe Photoshop® como “uma máquina<br />
computadorizada de silk-screen” (MORRIS, 2009, p. 117): após fazer a ilustração à mão com<br />
tinta nanquim, utilizando pincéis de bambu, ela então digitaliza o desenho final e somente<br />
adiciona a cor por intermédio dos recursos digitais. (Figura 4)<br />
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Ilustração digital na moda<br />
Figura 4<br />
Ilustração de Yuko Shimizu<br />
Disponível em: http://koikoikoi.com<br />
O trabalho de Miles Donovan (Figura 5) se destaca por ser digital, mas ao mesmo aliado<br />
a recursos tradicionais, como a fotografia e a colagem. Inicialmente ele utiliza uma foto, que<br />
é escaneada e manipulada no Adobe Photoshop®. A partir da imagem manipulada, utiliza<br />
então o Illustrator® para separar as cores da imagemv , criando estênceis individuais, que serão<br />
impressos. Os estênceis são cortados e pintados com spray em imagens individuais, que<br />
serão mais uma vez digitalizadas e montadas em camadas no Photoshop®. É um processo<br />
longo e trabalhoso, mas que garante que o artista possua controle absoluto nas formas e nas<br />
cores de todos os elementos de seu trabalho.<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Ilustração digital na moda<br />
Figura 5:<br />
Ilustração de Miles Donovan<br />
Fonte: Portfolio Online, disponível em: http://www.milesdonovan.co.uk/<br />
Já Stephen Campbell (Figura 6) cria as suas ilustrações diretamente no Adobe<br />
Illustrator®, sem um rascunho prévio. Ele utiliza o mouse para criar linhas grossas que lembram<br />
marcadores permanentes, e aprecia o momento de “brincar com as cores durante o processo<br />
criativo” (MORRIS, 2009, p. 132). O ilustrador Marcos Chin também cria diretamente na área<br />
de trabalho do Adobe Illustrator®, mas se diferencia de Stephen Campbell por planejar a sua<br />
ilustração com papel e lápis antes, e usá-la como guia durante todo o seu processo.<br />
Figura 6:<br />
Ilustração de Stephen Campbell<br />
Fonte: Portfolio Online, disponível em: http://www.art-dept.com/illustration/campbell/index.html<br />
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Ilustração digital na moda<br />
Nice Lopes é uma ilustradora brasileira que recentemente teve seu trabalho publicado<br />
no livro Illustration Now, vol. 2 (TASCHEN, 2007). Ela utiliza o CorelDRAW® em conjunto com<br />
o Adobe Photoshop® para criar as suas ilustrações vetorizadas (Figura 7). A argentina Evelyna<br />
Callegari também produz as suas ilustrações utilizando o CorelDRAW®, criando bonecas<br />
estilizadas e com um ar infantil, além de também produzir ilustrações mais complexas que<br />
retratam a mulher moderna. Já o designer de moda praia e ilustrador Roger Hahn também<br />
utiliza o CorelDRAW® para compor as suas ilustrações vetorizadas, utilizando as ferramentas<br />
dos programas para alterar as cores dos trajes de banho das modelos com maior facilidade e<br />
fidelidade ao modelo original.<br />
Discussão<br />
Figura 7:<br />
Ilustração de Nice Lopes<br />
Fonte: Portfolio Online,<br />
disponível em: http://nicelopes.blogspot.com<br />
A despeito da vasta produção imagética de nosso país, no que diz respeito<br />
à formação visual ainda persistem valores românticos como “ter ou não ter<br />
talento”, “saber ou não saber desenhar”, descuida-se da necessidade de<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Ilustração digital na moda<br />
educação para a linguagem visual e de um entendimento menos obscuro<br />
acerca da elaboração mental envolvida na produção de imagens. (GUIRALDO,<br />
2006, p. 01)<br />
Mesmo depois de discussões referentes ao surgimento da Ilustração de <strong>Moda</strong>, e o<br />
momento da sua união com a era dos computadores, gerando assim a Ilustração Digital, ainda<br />
existem dúvidas pertinentes ao tema. A primeira é a diferenciação de uma Ilustração de <strong>Moda</strong><br />
e de um desenho de moda.<br />
Como comenta Gragnato:<br />
Entendida aqui também como linguagem de representação visual, a ilustração<br />
de moda traz elementos próprios deste universo e vai mais além, incorporando<br />
e interpretando elementos culturais e sociais. Isto significa dizer que a ilustração<br />
de moda traz o “pulsar do tempo”, pois carrega traços desse tempo, valores<br />
e comportamentos, mudanças e oscilações, que influenciam a percepção e a<br />
concepção de novas estéticas, bem como análise e interpretação do espírito<br />
do tempo, da época em que ela foi realizada. Por isso mesmo, a diferença<br />
entre desenho e ilustração é muito sutil e suas nuances se entrelaçam e se<br />
misturam, dificultando a percepção de limites (2008, p. 63)<br />
Um dos maiores obstáculos de um ilustrador de moda é diferenciar o seu trabalho de<br />
um desenho de moda comum; atribuir a ele significados subjetivos, passar sensações e criar<br />
um contexto dê destaque a ilustração. Gomes (2010, p.54) menciona que Couchot considera<br />
o computador e suas funcionalidades detentores de vantagens no que diz respeito à recepção<br />
do expectador ao objeto de visual. Ou seja, a transformação tecnológica na produção imagética<br />
não se restringe somente aos métodos de trabalho do ilustrador, mas também a quem aprecia<br />
e experimenta o processo de fruição dessas imagens.<br />
Sobre a importância das ilustrações, Freitas discorre que:<br />
Talvez por ser uma expressão artística mais midiática e popular, tenha sido<br />
excluída do campo artístico durante muito tempo e hoje ela faça parte do<br />
campo de artes visuais. Esteticamente ela se compõe de vários elementos<br />
significativos que colaboram com o resultado final. (2009, p. 2)<br />
Outro questionamento pertinente é que, até pouco tempo atrás, se considerava a<br />
Ilustração Digital como uma forma de ilustração menor, atribuída a imagens rígidas e sem a<br />
vivacidade conferida às artes tradicionais; hoje, cabe ao ilustrador e aos pesquisadores do<br />
assunto quebrar esses paradigmas. Gomes (2010, p.53) justifica que “[...]‘um novo’ paradigma<br />
no desenvolvimento dessas imagens [...]” torna-se objeto de investigação e análise sob o<br />
ponto de vista técnico-científico. Percebe-se que, a Ilustração Digital amplia as possibilidades<br />
de criação e representação plástica de objetos, contextos e tendências socioculturais através<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Ilustração digital na moda<br />
de seus inúmeros recursos. Para isso, o ilustrador pode ampliar o seu repertório expressivo<br />
através da utilização dos softwares, para assim poder aplicá-los em seus trabalhos da melhor<br />
forma possível. Entretanto, torna-se necessário ressaltar a importância de um conhecimento<br />
prévio em estilos e técnicas de representação tradicionais, para que a utilização dos meios<br />
digitais sirva para aperfeiçoar todo o processo de composição das ilustrações.<br />
Conclusão<br />
Com a utilização de softwares e demais recursos digitais, torna-se possível criar<br />
ilustrações com um grau de complexidade que só seria alcançada no desenho tradicional<br />
através de muita habilidade técnica e detalhamento. Com o auxilio desses programas, podese<br />
retocar, alterar e colorir as ilustrações digitalizadas, atribuindo tanto mais vivacidade quanto<br />
mais uniformidade ao desenho. Também se podem incorporar tecidos e texturas, sobrepondoas<br />
ao traço, e também representar estampas com mais precisão.<br />
O universo dos recursos digitais enriquece o trabalho, valorizando o traço manual.<br />
Existem inúmeras possibilidades de utilização, tanto na criação direta da ilustração quanto na<br />
combinação entre o desenho digital e outras técnicas tradicionais. Torna-se assim necessário<br />
deter conhecimento abrangente a respeito das ferramentas e programas existentes, assim como<br />
adquirir referências para compor o processo. Todas essas ferramentas auxiliam na elaboração<br />
de uma ilustração autoral, com significação e impacto, diferindo-se dos desenhos de moda.<br />
Uma ilustração que seja capaz de refletir a contemporaneidade, atingindo o expectador por<br />
meio da sensibilidade e da experimentação:<br />
Um possível ponto de referência que permite a diferenciação entre o desenho<br />
e ilustração é a própria idéia de comunicação do produto de moda. Se em<br />
ambos há a representação gráfica de peças de roupa ou acessório, o desenho<br />
ou croqui preocupa-se com seu detalhamento e características envolvidas em<br />
sua fabricação e na ilustração concentra-se na mensagem de moda intrínseca<br />
a este produto. A partir dessa perspectiva, podemos entender que a ilustração<br />
de moda está no campo experimental: novas estéticas, conceitos e técnicas<br />
de comunicação tanto de moda como de estilos de vida (GRAGNATO, 2008,<br />
p. 63)<br />
A popularização dos computadores e criação de novos softwares, aliados à enorme<br />
quantidade de informações encontradas na internet, livrarias, grupos de estudo e de discussão,<br />
eventos e encontros, fez com que hoje a quantidade de designers e ilustradores expondo o<br />
seu trabalho aumentasse consideravelmente. A disseminação de bons trabalhos através de<br />
portfólios online e websites pessoais tornaram-se um desafio para o ilustrador iniciante. Agora,<br />
cada artista pode digitalizar seus trabalhos e expô-los em sites especializados ou pessoais.<br />
Assim, não somente todo o público pode apreciar, como também amplia-se a visibilidade e,<br />
assim, há uma maior difusão da produção de ilustrações.<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Ilustração digital na moda<br />
Não obstante possuir domínio das mídias artísticas tradicionais, como também<br />
conhecimento abrangente sobre as ferramentas disponíveis dos softwares, o ilustrador<br />
possui o desafio também de se diferenciar dos demais. A inclusão digital permite que muitos<br />
outros artistas exponham o seu trabalho, gerando assim uma rede vasta de ilustrações,<br />
ilustradores e imagens. Pode-se considerar que um dos maiores obstáculos para o ilustrador<br />
na contemporaneidade é atingir a identidade visual de sua produção imagética.<br />
Por outro lado, é exatamente o caráter personalizado e diversificado da ilustração que<br />
têm lhe conferido o prestígio perdido para a fotografia. As imagens de moda retratadas através<br />
dos ilustradores refletem além das inovações digitais, uma longa tradição pictórica, aliada ao<br />
seu poder de comunicação. As ilustrações digitais fazem parte de nosso contexto cultural e<br />
unem arte e tecnologia na busca da representação da expressividade contemporânea.<br />
Notas<br />
i Termo em inglês que significa, em tradução livre, tela de moda. As fashion plates eram imagens<br />
que circulavam em revistas especializadas e através de costureiras, expondo o que havia de novo no<br />
mundo da moda em forma de ilustração.<br />
ii Disponível em: http://www.cadesign.com.br/artigos/comunicacao-entre-o-projetista-e-o-ilustrador.<br />
html<br />
iii Disponível em: http://www.webartigos.com/articles/3892/1/Cefetinho---A-Ilustracao-Pedagogica/<br />
pagina1.html#ixzz16mcCZnn1<br />
iv Pixel: abreviatura de picture element - elemento da imagem.<br />
v As imagens na tela do computador são formadas por camadas de cores sobrepostas, chamadas de<br />
RGB (a abreviatura do sistema de cores aditivas formado por Vermelho - Red, Verde - Green e Azul -<br />
Blue). A união dessas camadas dá a cor da foto.<br />
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<strong>Moda</strong> e tendências de produtos para a Fábrica de Tecidos Renaux. 2007. Disponível<br />
em: http://www.assevim.edu.br/agathos/4edicao/sara.pdf (Acesso em: 27/11/2010)<br />
TALLON, Kevin. Digital Fashion Illustration with Photoshop and Illustrator. London:<br />
Bastford, 2008.<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 261
MODA E MúSICA: AFINIDADE DECLARADA<br />
Renata Santiago Freire; Graduanda de <strong>Design</strong> de <strong>Moda</strong>: UFC<br />
renatasantiagof@hotmail.com<br />
Adriana Leiria Barreto Matos; Docente do Curso de <strong>Design</strong> de <strong>Moda</strong>: UFC<br />
adriana.leiria@ufc.br<br />
Resumo<br />
O presente artigo tem o objetivo de analisar e compreender<br />
algumas relações possíveis entre moda e música ao longo<br />
do séc. XX e início do século XXI. Analisa-se a importância e<br />
influência da moda e da música na construção da subjetividade<br />
do indivíduo assim como na construção de grupos e tribos sociais<br />
e culturais. Assim, são conceituadas moda e música, citando<br />
as suas principais semelhanças e lógicas enquanto sistemas,<br />
assim como os principais movimentos históricos em que ambas<br />
enunciam a mesma estética de comportamento. Por fim, situase<br />
a ligação e materialização da união entre moda e música na<br />
contemporaneidade. Almeja-se assim contribuir com essa área<br />
de estudo na formação de estudiosos de moda, música e afins,<br />
considerando que pouco foi pesquisado sobre esse assunto tão<br />
importante devido ao seu rico caráter cultural e interdisciplinar.<br />
Palavras-Chave: moda; música; cultura<br />
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<strong>Moda</strong> e música: afinidade declarada<br />
Introdução<br />
Realizou-se uma pesquisa com o objetivo de analisar e compreender a relação entre<br />
moda e música ao longo do séc. XX e início do século XXI. O séc. XX é o ponto de partida deste<br />
artigo, já que foi a partir dele que observamos o surgimento denovas mídias e tecnologias de<br />
gravação, o rádio foi popularizado, a música tornou-se portátil e a moda se transformou em<br />
um meio poderoso de expressão e criação de valores da sociedade.<br />
Com a finalidade de comprovar as possíveis relações de afinidade entre moda e música,<br />
é necessário observar as manifestações sociais e movimentos criados no interior dessas duas<br />
representações artísticas que tanto revelam o indivíduo, o espaço e o tempo a que se referem<br />
em determinada época histórica.<br />
Com o advento do séc. XX, a figura da mulher ganhou mais autonomia dentro da<br />
sociedade, que passou a se desenvolver em prol dos valores do consumo e da juventude<br />
(LIPOVETSKY, 1989).Pollini (2007) diz: “Durante a Primeira Guerra, as mulheres tiveram de<br />
assumir trabalhos que antes eram exclusivamente desempenhados por homens, o que<br />
impulsionou de certa forma uma nova postura da mulher” (pág.45). Para Braga (2007) o<br />
“conturbado” e “empolgante” séc. XX fez com que os interesses da moda passassem a ser<br />
outros como as atividades de trabalho, o esporte e o divertimento, especialmente a dança.<br />
Assim, as roupas iam se adaptando às novas necessidades.<br />
Busca-se descobrir qual o papel da música no nascimento e difusão de um estilo de<br />
moda assim como a influência da moda na propagação e fama de determinado estilo musical.<br />
Descrevendo as primeiras décadas do século XX e constatando a união entre a moda e a<br />
música, Braga (2007) articula que: “A diversão fazia parte da vida das pessoas e um dos<br />
valores muito em voga nesse período foi a dança e, por incrível que pareça, contribuiu para as<br />
mudanças da moda”.<br />
Com tantas semelhanças em suas lógicas e conceitos, é necessário refletirmos acerca<br />
da ligação forte entre duas correntes que exploram os sentidos e funcionam como poderosos<br />
meios de comunicação a nível individual e social. E finalmente, são mencionados os movimentos<br />
históricos mais importantes a fim de clarificar a interrelação da moda e da música em nossa<br />
contemporaneidade.<br />
Observa-se que a moda está presente no figurino dos ícones da música, que por sua<br />
vez, inspiram e influenciam a criação dos estilistas, assim como cada vez mais a moda vende<br />
e apropria-se das tendências e ideias criadas pela música.<br />
<strong>Moda</strong> e música: afinidade declarada<br />
<strong>Moda</strong> é um poderoso meio de expressão, reflexão e apropriação dos sentidos. É um<br />
sistema amplo que envolve fatores econômicos, sociais, culturais, e ajuda na construção de<br />
nossa identidade através dos inúmeros códigos simbólicos aos quais disponibiliza. Segundo<br />
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Polhemus (1994), vestuário e ornamentos são utilizados há milhões de anos com o intuito de<br />
comunicar as suas necessidades, fossem elas pessoas, tradição ou autenticidade.<br />
A moda é um fenômeno peculiar aos seres marcados pela linguagem, representa as<br />
atitudes que o sujeito adota, seja na escolha de uma peça do vestuário ou na preferência<br />
de determinado estilo musical. Para Baldini (2006), a roupa fala e geralmente transmite<br />
informações ambíguas, pois utilizamos o vestuário com o intuito de satisfazer necessidades<br />
pessoais, sociais ou simplesmente pelo simples prazer estético.<br />
A moda cria uma identidade mutável, simplesmente por pregar posições que o sujeito<br />
deve ou não adotar. Através da sua linguagem visual, tão carregada de significações nos<br />
mostra características de um indivíduo assim como as transformações de uma sociedade.<br />
De acordo com Pearson:<br />
A moda não visa exclusivamente homenagear a beleza e a estética - cujos<br />
ideais são variáveis - propondo uma simbologia visual que transmita a idéia ou<br />
sensação que o usuário deseja, naquele instante comunicar ao expectador.<br />
Por esta razão, a <strong>Moda</strong> se modifica de acordo com os fundamentos culturais<br />
de cada época vivenciada pela história da humanidade. (1994, pág.33)<br />
Ou seja, a linguagem da moda nos possibilita o conhecimento da trajetória do homem<br />
através do estudo e decodificação de seus símbolos. Possui uma historicidade valiosa, sendo<br />
capaz de caracterizar determinada época por ser dotada de um objeto concreto e visível: o<br />
vestuário.<br />
Existem várias definições para a música, assim como muitas possibilidades para<br />
sua classificação segundo gêneros, estilos e formas. Tais classificações podem servir como<br />
uma referência para agrupar obras musicais distintas sob uma mesma vertente a partir da<br />
comparação entre elementos musicais como melodia, harmonia, ritmo, dinâmica e timbre.<br />
Jourdain (1998) defende a idéia de que a música oferece meios para experimentarmos relações<br />
muito mais profundas do que as encontradas por nós no cotidiano.<br />
A relação entre a música e os sentidos se aprimorou ainda mais com a criação dos<br />
primeiros videoclipes já na década de 1950 e também com as cenas de Gene Kelly no filme<br />
Cantando na Chuva de 1952 e Elvis Presley no filme Jailhouse Rock de 1957.<br />
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<strong>Moda</strong> e música: afinidade declarada<br />
Figura01:Elvis Presley Jailhouse Rock, 1957 Fonte: Website http://www.iill.net/tag/presley<br />
Aliando som, letra e imagem, os videoclipes se tornaram cada vez mais difusores de<br />
moda a partir da década de 1980, quando estrelas do pop como Madonna e Michael Jackson<br />
exibiam seus figurinos bem elaborados através de uma música forte e envolvente. Segundo<br />
Braga (2007, pág. 100): “Ídolos musicais foram grandes formadores de opinião na identificação<br />
de moda jovem. Prince, Madonna e Michael Jackson deixaram suas contribuições na moda,<br />
não só norte-americana, como também na de todo o mundo.<br />
Hoje, não muito diferente do passado, verifica-se as mesmas<br />
influênciascomportamentais geradas por algum determinado estilo musical<br />
que é respondidoem forma de aceitação ou rejeição à cultura. Esse tipo de<br />
exemplo pode ser vistoao observar que em algumas décadas, como as de 60<br />
e 70, os jovens brasileirosutilizaram a música como forma de protesto contra<br />
a dependência cultural e ainfluência estrangeira. (MOUTINHO & VALENÇA,<br />
2005, pág. 225).<br />
Os movimentos que criam estilos musicais geralmente são ditados e difundidos pela<br />
juventude. E é aí que a música se une à moda, mesclando símbolos e criando códigos de<br />
identificação. A escolha de determinada moda ou música funciona como uma espécie de<br />
veículo de comunicação do eu, pois ambas possuem caracterizações específicas que definem<br />
o indivíduo de acordo com seus gostos, aquisições e preferências. Assim, moda e música<br />
possuem uma linguagem própria, são dois ricos meios de expressão, e estão em constante<br />
mutação ao longo de suas evoluções enquanto manifestações históricas. Agem criando<br />
desejos, aspirações e ídolos a serem cultuados e imitados. Ferron discorre acerca da interação<br />
dinâmica de cada indivíduo com o coletivo e o meio no qual ele está inserido, instaurando um<br />
processo que ele chama de percepção inventiva:<br />
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<strong>Moda</strong> e música: afinidade declarada<br />
As necessidades de “pertencer”, de “fazer parte” de um determinado grupo<br />
em um determinado momento duelam com as necessidades de “surpreender,<br />
de ter destaque, ser notado” pelos outros que cada indivíduo projeta. E a<br />
moda como linguagem e os trajes como suporte registram e animam essa<br />
expressão, dando forma, criando produtos e sonhos. (1994, pág. 7)<br />
<strong>Moda</strong> e música são fenômenos culturais que se influenciam e fundem-se, dotados de<br />
carga histórica e emocional. Observa-se durante o século passado que os movimentos de<br />
juventude representam de acordo com suas especificidades, os fatos sociais, as manifestações<br />
culturais de uma época e não raro estão relacionados à determinada moda ou música.<br />
Analisando os principais movimentos comportamentais do séc. XX, se pode constatar<br />
a constante união entre moda e música. Aliança essa que auxilia na formação dos conceitos e<br />
definições e no reforço da identidade de tais movimentos perante os seus seguidores.<br />
O início do séc. XX é caracterizado musicalmente pelo surgimento do Jazz que tinha<br />
o apelido pejorativo de “música dos pretos”, por ter sido criado e tocado em sua maioria por<br />
negros. Música essa que nasceu nos EUA, nas proximidades da cidade de Nova Orleans,<br />
e se transformou no símbolo de um novo e mais intenso estilo de vida. Braga (2007, pág.<br />
73) cita que: “Os ritmos mais em evidência foram o charleston, o foxtrot e o jazz.” O jazz<br />
foi fundamental para a expressão e desenvolvimento cultural de seus artistas que utilizavam<br />
referências afro-americanas com notas de blues e swing.<br />
E ainda, o Jazz, o Charleston e as novas descobertas cientificas (que<br />
encorajavam a prática de esportes e passeios ao ar livre) contribuíram para, de<br />
repente, a moda dar um pulo: subitamente, a silhueta mudou, o cabelo mudou,<br />
a altura das saias mudou, os costumes mudaram. (POLLINI, 2007, pág. 45)<br />
Nos anos 1920, o ritmo musical do jazz era compatível com as mudanças aceleradas<br />
que o séc.XX trazia para todos. Segundo Braga (2007) eram os chamados “anos loucos” e<br />
as mudanças foram tantas e tão marcantes que fica difícil desvincular a palavra “novo” dessa<br />
década. Foi um período que vivenciou prosperidade e foi ilustrado pela figura das melindrosas,<br />
que eram as mulheres mais modernas da época, por frequentarem os salões de dança e<br />
traduzirem através de seu comportamento, e modo de vestir, o sentimento e o espírito da Era<br />
do Jazz.<br />
A dança pedia movimento e o vestuário ofereceu o padrão: vestidos curtos com franjas,<br />
costas de fora e longos colares. Com o embalo da música, os padrões de moda da época são<br />
rompidos e as mulheres passam a mostrar mais o corpo e a conquistar aos poucos cada vez<br />
mais autonomia.<br />
As décadas de 1930 e 1940 foram marcadas pela crise financeira mundial, originada<br />
pela queda da Bolsa de Valores de Nova York, em 1929 e pela eclosão da Segunda Guerra<br />
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Mundial, respectivamente. Porém, Braga (2007, pág.75) afirma que: “Paradoxalmente à crise<br />
econômica, a moda refletiu um momento de grande sofisticação, luxo e esplendor.” Nessa<br />
época, o cinema passa a ter destaque e refletia-se no comportamento de moda. A música<br />
popular passa a ser um fenômeno de proporções continentais e de massa. Para Canellas<br />
(2008), o estilo musical em ascensão, em meados dos anos 1930 era o swing, estilo de jazz<br />
próprio para dançar e adotado fortemente pela mídia com o intuito de estimular e entreter a<br />
população.<br />
O rock and roll, por exemplo, embalou e caracterizou o novo mercado jovem dos anos<br />
1950. O vestuário passa a representar um verdadeiro símbolo de pertencimento a um grupo,<br />
atribuindo papéis e reconhecimento entre pessoas que acreditam em uma mesma atitude<br />
perante o mundo. Segundo Pearson (1994, pág.5): “a cultura rock, evolução de um estilo<br />
musical (rock and roll) para um movimento mundial foi, talvez a primeira fórmula criativa dos<br />
jovens que influenciou a moda entre 1955 e 1965, aproximadamente.”<br />
Nos anos 1960, a moda era questionar o sistema vigente. É nesse momento histórico<br />
que surge a figura dos beatniks e a febre chamada Beatles. O espírito de contestação é a<br />
bandeira dos beatniks. O termo beat, origina o nome Beatles, mania de toda uma geração.<br />
Esses jovens vivem a certeza e o conforto da sociedade de consumo. Evitam luxo e brilho,<br />
usam calças caquis, suéteres longos e sandálias. Possuíam uma imagem doce, amável e<br />
pacífica.<br />
Figura02:The Beatles, 1960Fonte: WebsiteGetty Images<br />
Já a moda disco teve origem em 1976 e nasceu nas discotecas, através de uma música<br />
dita “comercial” e de ritmo simplificado. As discotecas eram o palco principal para a exibição<br />
de uma moda sexy que exalta corpos e com conteúdo musical desprovido de contestação<br />
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política ou social. As divas da dance music como Donna Summer, Grace Jones e Gloria Gaynor<br />
influenciaram o comportamento da época. Braga (2007, pág. 92) fala acerca da ligação entre<br />
moda e música da época: “(...) surgiu uma proposta muito excêntrica para a moda jovem<br />
associada aos grupos musicais em alta, em que a palavra de ordem era o “glamour”.”.<br />
Enquanto na Inglaterra nascia o movimento punk, nos EUA a voz de Barry White e os<br />
grupos Shirley andCo. e The Hues Corporation retratam o estilo da era Disco, que foi levada<br />
aos clubes noturnos cheios de fumaças e luzes coloridas, virando uma mania entre os jovens.<br />
Conhecida por celebrar o amor, a alegria e a dança, a música disco é eletrônica, e se utiliza<br />
de sintetizadores e guitarras. É praticamente uma música dita negra, composta por notas de<br />
soul e blues, pois:<br />
O movimento negro, muito em alta no anos 1970, especialmente nos Estados<br />
Unidos, fez-se presente em ideologia como, por exemplo, a onda “Black<br />
isBeautiful”, privilegiando as raízes afro, a cultura caribenha e também o ritmo<br />
“soul”. (Braga, 2007, pág. 93)<br />
A descoberta da AIDS e Off the Wall, o primeiro disco solo de Michael Jackson, são<br />
acontecimentos responsáveis por retratar o fim do movimento disco, que em 1980, já era quase<br />
que por completo inexistente, com muitos de seus artistas e estilos caindo no anonimato.<br />
Com a crise econômica dos anos 1970, muitos movimentos perderam a força. Porém, a<br />
própria crise inspirou o surgimento do expressivo movimento dos punks, cujo lema “No Future”,<br />
falava justamente da dificuldade de viver com a violência e agressividade presente em todos<br />
os lados da vida moderna. A cultura punk defende a autonomia individual e a simplicidade no<br />
viver. Provocativa e contestadora em sua essência, a música punk é considerada uma vertente<br />
do rock: é composta, em sua grande maioria, por letras rebeldes, sarcásticas, politizadas, e<br />
cheias de subversão à cultura vigente.<br />
A primeira manifestação do estilo punk-rock surge nos Estados Unidos com a banda<br />
The Ramones, em 1974. É caracterizado pela combinação do revivalismo da cultura rock and<br />
roll (com suas músicas curtas, simples e dançantes) e do estilo rocker/greaser (jaquetas de<br />
couro estilo motociclista, camiseta branca, calça jeans, tênis e o culto a juventude, diversão e<br />
rebeldia).<br />
O estilo punk expressava-se a respeito da crise econômica, o desemprego, a falta de<br />
opções e perspectivas; e defendia a total insanidade, ou seja, nada de sonhar ou planejar<br />
demais a vida, o importante é viver o hoje com muita rebeldia, se possível. Seus trajes remetem<br />
a uma linguagem, inusitada, diferente etransgressora (Braga, 2007): couro, tatuagens, botas,<br />
correntes, taxas, óculos escuros, corpos sujos e suados. O movimento punk surgiu em 1977<br />
na Inglaterra. A estilista Vivienne Westwood e o seu então marido, Malcon McLaren, músico<br />
e líder do grupo “Sex Pistols” exemplificaram a afinidade entre moda e música do movimento<br />
punk:<br />
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Juntaram ali as vontades de ambos os lados, uns satisfazendo os outros e, com<br />
isso, Vivienne Westwood, uma estilista já renomada, acabou intelectualizando o<br />
movimento e criando roupas para esses jovens contestadores, que cresceram<br />
em número de adeptos ao estilo. (Braga, 2007, pág. 93)<br />
Figura03:Banda The Ramones, 1974.Fonte: Website Getty images<br />
Já em 1978 surge a estética chamada New Wave. Surgindo após a era Disco, o<br />
movimento New Wave é mais intelectual, possui caráter dançante e é conduzida musicalmente<br />
por sintetizadores. O destaque vai para o clube GBGB, localizado no bairro de Manhattan, em<br />
Nova Yorque, onde as bandas do momento se apresentavam, como Elvis Costello, Blondie e<br />
Television.<br />
A imagem visual é alinhada, com roupas bem cortadas, cores fortes, brilho, ombreiras<br />
e caracterizada por uma variada mistura de tendências. Vale ressaltar que estamos falando<br />
do início da década de 1980, contexto marcado pela extrema valorização do trabalho e da<br />
riqueza pessoal. Bandas como Duran Duran e Spandau Ballet, com um pop neo-romântico,<br />
ou grupos como The Police, que possuía um viés musical mais punk, são ícones da época.<br />
A irreverência também é uma característica forte do movimento New Wave. The B52´S<br />
representa essa vertente que é ilustrada por cores cítricas, tecidos tecnológicos, perucas e<br />
meias coloridas.<br />
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Figura04:The B52´s, 1979.Fonte: Website http://www.filesbay.net/file/1522616-b52.html<br />
Nos anos 1980 começamos a nos deparar com uma explosão e variedade de imagens<br />
e sons que no começo do século XXI servem de referência ao trabalho de moda e música. A<br />
noção de identidade se torna mais fragmentada diante da variedade de códigos e significados<br />
escondidos em simples escolhas do cotidiano.<br />
Os anos de 1980 trouxeram-nos uma verdadeira profusão de influências e<br />
contrastes, em que os opostos começaram a conviver em harmonia e ambos<br />
sendo aspectos de moda. Essa característica antagônica foi, como ainda o<br />
é hoje, início do século XXI, uma das referências da moda contemporânea.<br />
(Braga, 2007, pág. 95)<br />
Os cultos ao êxito pessoal, financeiro e, ao corpo, assumem grandes proporções. A<br />
moda é globalizada e se consagra como uma linguagem universal, onde mensagens são<br />
enviadas e circulam por todos os países do mundo em uma velocidade rápida onde as<br />
mudanças frenéticas de conceitos e de consumo regem comportamentos.<br />
Segundo M. FILHO (1994, pág.17): “A cultura underground tem um peso essencial nos<br />
anos 80. Grupos ligados geralmente a um determinado tipo de música proliferam, assim como<br />
revivais de movimentos já existentes (neo-hippies, new-romantics).”<br />
O estilo que caracterizou os anos 1980 é basicamente formado pela mistura e a citação<br />
de outras épocas, dando início ao revivalismo na moda. Elementos passados são incorporados<br />
com humor resultando em formas novas e únicas em seu estilo. A moda e a música da época<br />
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são caracterizadas pela coexistência de estilos e tendências.<br />
Em 1981 surge a MTV, revolucionando e ligando ainda mais os universos da moda e<br />
da música, aliando som e imagem. Os vídeos clipes popularizam e consagram os estilos da<br />
juventude. É nesse momento que a moda faz uma aliança definitiva com a música jovem.<br />
Surge o estilo streetwear e as roupas unissex. A influência pop foi ricamente representada por<br />
Madonna e Michael Jackson. Ambos fizeram a cabeça da juventude com os seus figurinos<br />
extravagantes, muitas vezes assinados por grandes estilistas, e desenvolveram suas músicas<br />
embaladas por danças com movimentos rápidos e batidas fortes.<br />
Madonna é o ícone feminino da década de 1980. Mudando sempre de imagem e<br />
explorando tabus e preconceitos sociais, representava o exemplo perfeito da ambição feminina,<br />
poder e da importância do trabalho árduo. Em seu primeiro álbum (1983), Madonna adotou<br />
o estilo “bad girl” com referências ao punk e ao fetichismo e explorou a combinação entre<br />
moda, música e movimento. Depois, Madonna deu ênfase ao corpo e ao estilo mais sexy com<br />
a adesão aos tecidos elásticos. Podemos citar como exemplo de peça marcante do figurino<br />
da cantora, o corpete criado pelo estilista Jean Paul Gaultier para a turnê BlondAmbition Tour<br />
em 1990, apresentado na figura 05.<br />
Figura 05Madonna 1990. Fonte: Antenna Web<br />
Ao contrário das mulheres, os cantores exibiam uma imagem suave e carregada de<br />
androginia. As vozes agudas, o forte uso da maquiagem e o vestuário justo e adornado faziam<br />
de Prince, Boy George e Michael Jackson ícones da época.<br />
Observa-se que a década de 1990 contempla uma grande liberdade de se expressar<br />
visualmente. Segundo Braga (2007, pág. 101): “(...) entraram em evidência clubbers,<br />
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dragqueens, cybers, ravers, dentre outros grupos, e a ordem foi a moda jovem, ousada e<br />
irreverente.”<br />
A roupa e a música servem mais do que nunca como retratos do estilo de vida de<br />
cada um. Polhemus (1994) defende que a geração atual parece às vezes ser tão absorvida<br />
pelo passado que chega a ser difícil discernir o seu presente e muito menos o seu futuro.<br />
Observamos a mistura e a ligação entre o mundo real e a realidade virtual. Há também uma<br />
variação de estilos e silhuetas já existentes e uma relativa falta de novidade. Para Lipovetsky<br />
(1989):<br />
(...) o importante não é estar o mais próximo possível dos últimoscânones da<br />
moda, menos ainda exibir uma excelência social, masvalorizar a si mesmo,<br />
agradar, surpreender, perturbar, parecerjovem.(pág.122)<br />
O estilo grunge, nascido em Seatle, marcou toda uma juventude inconformada e<br />
questionadora. Ele possui um caráter juvenil, individualista e que se opõe às normas sociais.<br />
O unifome grunge é basicamente composto por bermudões, padronagem xadrez, o jeans,<br />
a camisa de malha, flanela e tênis. A banda Nirvana foi a mais famosa difusora desseestilo<br />
musical e de moda, transformado o grunge em um forte movimento juvenil.<br />
O estilo hip hop também explodiu nos anos 1990, aliando dança, música e indumentária<br />
em uma mesma linguagem.<br />
No contexto cultural contemporâneo, as celebridades da música se transformaram em<br />
verdadeiros ícones de moda. Fazem o papel de modelo para marcas poderosas, transformando<br />
os seus figurinos em verdadeiros objetos de desejo.<br />
Figura 06Lady Gaga, 2010.Fonte: Websitehttp://resumododia.wordpress.com/2010/02/20/lady-gaga-nobrasil-2010/<br />
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<strong>Moda</strong> e música: afinidade declarada<br />
Polhemus (1994) defende que assim como na música pop, a tendência predominante<br />
hoje em estilo de aparência é regida por misturas diversas, ecléticas e muitas vezes<br />
contraditórias. E acredita que é justamente nessa mistura que encontraremos a nossa própria<br />
realidade. Baseado nesse pensamento, a cantora Lady Gaga desponta como o nome mais<br />
expressivo da contemporaneidade onde moda e música são explorados. Em suas músicas,<br />
fala de temas atuais com humor, irreverência e personalidade. Fazendo dos padrões de beleza<br />
e comportamento ditados pela sociedade, suas obras primas.<br />
Ironizando atitudes através de suas letras provocantes e ambíguas, ou com seu figurino<br />
extravagante e assinado por grandes estilistas, Lady Gaga mostra que não só utiliza a última<br />
moda, como a lança de uma forma ousada e bastante particular.<br />
Discussão<br />
Mais do que um mero produto cultural dentre tantos outros, moda e música representam<br />
conceitos, são manifestações que expressam a própria definição do homem ao longo da<br />
história.<br />
Antes de ser signo da desrazão vaidosa, a moda testemunha o poder dos<br />
homens para mudar e inventar sua maneira de aparecer; é uma das faces<br />
do artificialismo moderno, do empreendimento dos homens para se tornarem<br />
senhores de sua condição de existência. (LIPOVETSKY, 1989, pág. 34)<br />
Através de seus ícones, a música acaba por criar e difundir um estilo de moda. Em<br />
contrapartida, a moda se utiliza da música oferecendo fortes significados simbólicos, que<br />
definam determinado estilo musical para os seus seguidores. Segundo Moraes:<br />
Na pré-história considerava-se a música como um ato instintivo e impulsivo do<br />
homem. Ao perceber os sons que o cercava, o homem pré-histórico detectou<br />
a necessidade de tocar instrumentos musicais e cantar. Ou seja, a música, a<br />
dança e o canto eram ferramentas utilizadas como meio de manifestar seus<br />
sentimentos. (1983, pág. 81)<br />
Nota-se que um figurino bem elaborado é responsável pela construção visual da melodia<br />
de uma música. Assim, acabará por ser apoderado por aqueles que se identificam e seguem<br />
determinado estilo musical.<br />
Em um ambiente repleto de símbolos, gêneros e códigos, tanto a moda quanto a<br />
música se apropriam desses elementos a fim de contar uma narrativa, expressar uma idéia<br />
ou comportamento social. Para M. FILHO (1994, pág. 17): “As tribos são agrupamentos com<br />
um idioma claro no que diz respeito à linguagem, incluindo aí atitudes, fala, gostos, hábitos e<br />
gestos.”A dificuldade de se definir os limites dos movimentos da juventude, que expressam<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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<strong>Moda</strong> e música: afinidade declarada<br />
através da moda e da música o que pensam de si e o que sentem do mundo é evidente. Há<br />
uma verdadeira mistura e apropriação de todos. O contexto atual é marcado pela era das<br />
releituras que nada mais fazem do que agir fixando conceitos já existentes e alimentando a<br />
nossa sociedade efêmera e de consumo.<br />
Segundo Polhemus (1994), vivemos num contexto chamado “supermercado de estilos”,<br />
ou seja, a sensação vigente é de que todos os períodos existentes existem e aparecem como<br />
latas de sopa disponíveis ao nosso alcance em prateleiras de supermercado.<br />
Assim sendo, não se fala mais em movimentos sociais, divisões de classe, idade ou<br />
gênero, e sim em estilos individuais de vida baseados em escolhas diversas de comportamento<br />
e atitude.<br />
Conclusão<br />
Pode-se observar o quanto as tendências e novidades musicais assim como as<br />
tendências de moda são fortes formadoras de opiniões, comportamentos e atitudes para o<br />
indivíduo. São instrumentos utilizados com o objetivo de comunicar e expressar. A música,<br />
através da letra e melodia; e a moda, através do vestuário, são capazes de traduzir e transmitir<br />
sentimentos e desejos.<br />
As revistas de moda e os clipes musicais são ótimos exemplos em que moda e música<br />
se transformam em meios difusores de tendências de comportamento e por consequência,<br />
meios poderosos de comunicação. Originando assim o surgimento e formação de tribos<br />
sociais que são organizadas de acordo com a aceitação ou não do conjunto de códigos<br />
lançados a cada novidade que aparece no mercado cultural midiático<br />
Observa-se que moda e música representam universossemelhantes, com expressões<br />
e denominações que se complementam e até se fundem. Uma agrega valor à outra. A moda<br />
determina o visual de determinado estilo musical e a música embala a fama de qualquer estilo<br />
de moda. A música costuma dizer o que queremos ouvir, enquanto a moda aponta o que<br />
desejamos ver e vestir.<br />
A moda está presente no figurino dos ícones da música, que por sua vez, inspiram e<br />
influenciam a criação dos estilistas. É notório: cada vez mais a moda vende e se apropria das<br />
tendências e ideias criadas pela música.<br />
Há artistas da música que criam suas próprias marcas de roupas, aonde elaboram e<br />
vendem ainda mais a imagem que querem passar. Assim como também existe um fenômeno<br />
recente aonde os profissionais da moda invadem os palcos, atuando como DJ ou formando<br />
suas próprias bandas.<br />
Assim, observa-se que influências e inspirações musicais sempre ditaram e continuam<br />
ditando e também reeditando, através das releituras, verdadeiros estilos de moda. Uma arte<br />
necessita da outra para criar o novo ou simplesmente evocar estilos do passado já consagrados<br />
como caminho seguro para não fracassar no mercado.<br />
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<strong>Moda</strong> e música: afinidade declarada<br />
Modelos criam bandas de rock. Músicas embalam comerciais de moda. Os melhores<br />
desfiles são aqueles que têm banda ao vivo. Músicos criam suas próprias grifes, codificando<br />
visualmente e reforçando ainda mais a sua mensagem.<br />
Clarifica-se a intensa ligação que os universos, da moda e da música, manifestações<br />
autênticas, possuem entre si. Ambas sensibilizam nossos sentidos, constituem nossas<br />
memórias e constroem imaginários e identidades.<br />
Música é atitude, moda também. Se a música transmite uma mensagem sonora, a<br />
moda sacramenta uma linguagem visual. Se a moda representa um estilo, a música difunde<br />
sua fama. Ambos criam ícones que marcam a cultura do homem. Certamente, moda e música,<br />
ainda farão infinitas combinações para marcar o ritmo e mostrar a forma da juventude, das<br />
individualidades de cada um, dos anos que virão e da história que se fará.<br />
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CONEXõES CONCEITuAIS ENTRE MODA, VESTuáRIO, DESIGN E ARTE<br />
Maria Alice Vasconcelos Rocha; PhD em <strong>Design</strong> de <strong>Moda</strong>: University of Kent (UK);<br />
Professora do Departamento de Ciências Domésticas: UFRPE - modalice@dcd.ufrpe.br<br />
Resumo<br />
Este estudo discute a complexidade da moda, promovendo a<br />
reflexão de algumas interfaces possíveis entre campos do saber.<br />
Diversas teorias se conectam buscando um alinhamento conceitual<br />
que dê suporte à promoção de conhecimento relacionando a moda<br />
ao vestuário, ao design e à arte sem, no entanto, confundir seus<br />
limites. Por fim, a explanação dos motivos que levam o consumidor<br />
a procurar um produto-roupa que contenha elementos de moda,<br />
de certo colabora para a evolução do pensamento sobre o tema.<br />
Palavras-Chave: teoria de moda; design de vestuário;<br />
complexidade<br />
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Conexões conceituais entre moda, vestuário, design e arte<br />
Introdução<br />
É certo que não há unanimidade na definição do que é moda. Ao longo da história, a<br />
moda pode ser entendida como um jogo de distinção da classe dominante (BARNARD, 2002).<br />
Já de acordo com Lauwaert (2006), “o vestuário não é um meio de representação, mas um<br />
meio de apresentação. O vestuário não define, ele posiciona. É pragmático, não é semântico.<br />
O vestuário não mente, mas irrevogavelmente denuncia você” i<br />
Hoeks e Post (2006) dizem que o aspecto complementar que une moda e vestuário<br />
fica claro com as estações do ano: a moda, para ser moda precisa estar em voga mas o que<br />
materializa as mudanças fica óbvio por meio das roupas. Ainda de acordo com os autores,<br />
enquanto a indústria do vestuário vende produtos, a indústria da moda não comercializa<br />
objetos e sim significados. E é esta combinação que garante a satisfação das necessidades<br />
dos consumidores.<br />
Ao mesmo tempo, tanto a moda quanto o vestuário são as commodities mais<br />
fetichizadas produzidas e consumidas na sociedade capitalista. ...<strong>Moda</strong> e vestuário talvez seja<br />
a maneira mais significativa na qual as relações sociais são construídas, experimentadas e<br />
compreendidasii .<br />
Sabe-se que os consumidores e consumidoras tem necessidade de ser sociedade e<br />
indivíduo simultâneamente, e a combinação entre moda e vestuário parece ser uma boa maneira<br />
de negociar essa complexidade humana. Campos do saber como Estética, Ciências Sociais,<br />
Estudos Culturais, Psicologia, Antropologia, Gestão, Economia, Marketing, Comunicação,<br />
<strong>Design</strong> e Produção possuem inter-relações em cada nível que se investiga a combinação<br />
entre moda e vestuário.<br />
Como a moda e o vestuário englobam uma diversidade de disciplinas, cada uma<br />
delas deve ser considerada quando da análise do conceito moda-vestuário. Além disso,<br />
cada disciplina procura encontrar uma maneira específica de explicar a moda e o vestuário<br />
usando termos precisos e as análises teóricas necessárias. O desafio posto é combinar tudo<br />
como normalmente o consumidor vê e experimenta todos estes conceitos em conjunto.<br />
Considerando isso, o conceito do pensamento complexo desenvolvida por Morin (2003)<br />
parece ser uma base adequada para se examinar a questão.<br />
Morin (2000) explica que o conhecimento científico, por razões metodológicas, é<br />
fragmentado. Estas divisões facilitam uma compreensão profunda do fenômeno, mas a forma<br />
ocidental do pensamento científico tem ensinado os pesquisadores a submergir em campos<br />
separados, e há uma falta de movimento no sentido de re-envolver esses campos um com o<br />
outro. O autor afirma que “as coisas” separadas são ligadas, são distintas e são necessárias<br />
para o desenvolvimento da sociedade.<br />
Os indivíduos, as sociedades e todas as “espécimes” são entidades distintas e não<br />
podem ser isolados por conta de sua função cooperativa na compreensão da humanidade.<br />
Assim, o pensamento complexo se baseia na distinção (não separação) e na ligação; não é<br />
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Conexões conceituais entre moda, vestuário, design e arte<br />
composto apenas pela ciência ou apenas pela filosofia, mas permite a comunicação entre<br />
os campos dos saberes, atuando como uma ponte. O paradigma da complexidade deve ser<br />
considerado como aquele que une enquanto distingue.<br />
Seguindo a abordagem do Pensamento Complexo, um diagrama foi desenvolvido a fim<br />
de identificar alguns dos fatores que tornam a combinação moda-vestuário em um tema da<br />
complexidade atual. As abordagens relacionam um conjunto de elementos, tais como o ciclo<br />
de vida do produto, o meio ambiente, a individualidade, a inclusão social, a adequação física<br />
e estratégia para influenciar ou promover a satisfação do consumidor.<br />
O ato de consumir é composto por sete fases: (1) reconhecimento da necessidade, (2)<br />
procura, (3) pré-compra, (4) compra, (5) consumo, (6) avaliação pós-consumo e (7) descarte,<br />
que são afetadas por influências ambientais e diferenças individuais (BLACKWELL ET AL.,<br />
2002). Por outro lado, o sistema de moda é baseado nas fases da difusão que são influenciadas<br />
pelas culturas e ambientes locais e globais.<br />
Frequentemente, o consumo de moda é dividido em dois tipos distintos “universos”<br />
que devem ser devidamente equacionados: primeiramente aquele que poderia ser chamado<br />
de “tendências, estilo ou comportamento “e, em segundo lugar, aquele outro responsável pelo<br />
desenvolvimento das roupas. O primeiro é mais provável em receber a atenção das áreas de<br />
Psicologia, Sociologia, Comunicação e Antropologia enquanto que o último é mais plenamente<br />
analisado através de Ergonomia, Antropometria e Fisiologia Humana.<br />
É a aproximação das tendências com as roupas que cria o produto moda-vestuário,<br />
objeto desta pesquisa. Esta abordagem permite que o negócio seja adicionado à equação<br />
reforçando a complexidade da compreensão do consumo.<br />
Vale lembrar que o ciclo de consumo, quando concluído, gera satisfação ou insatisfação<br />
do consumidor, e este resultado influencia os próximos ciclos do consumo, num movimento<br />
contínuo de retroalimentação do sistema.<br />
Todos os elementos presentes na discussão foram extraídos de teorias ou representam<br />
um insight a partir de uma teoria já existente. Como essas teorias são provenientes de campos<br />
muito diversos, estão classificados nas áreas-chave de investigação que compõem o diagrama<br />
do sistema moda-vestuário.<br />
Citando Barnard (2002), este trabalho é sobre “todas estas coisas: é sobre moda,<br />
roupa, vestimenta, adorno e estilo.” iii . Este estudo foi concebido para fornecer rumo a um<br />
modo holístico de visualizar o fenômeno e onde o leitor encontrará conceitos e reflexões que<br />
ajudam a esclarecer a complexidade da moda.<br />
Por razões metodológicas e respeitando os objetivos da pesquisa, todas as explicações<br />
relacionadas com produtos de moda se referem a peças de roupas com valor de moda,<br />
excluindo os acessórios, sapatos, bolsas, mobiliário, equipamentos, automóveis, etc., mas<br />
incluindo as marcas de moda-vestuário no contexto. A Figura 1 ilustra a área de produtos que<br />
esta pesquisa investiga (em amarelo).<br />
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Conexões conceituais entre moda, vestuário, design e arte<br />
Figura 1 – A interconexão Proposta (ilustração da autora)<br />
É importante afirmar que a moda é um sistema extremamente complexo em<br />
relacionamentos. As teorias relacionadas à <strong>Moda</strong>, como campo de pesquisa são extremamente<br />
relevantes, mas ainda não exploradas o bastante para abarcar todas as direções que a<br />
envolvem. Por isso, nas subseções a seguir serão apresentadas algumas teorias que podem<br />
auxiliar na reflexão dos relaciomentos entre <strong>Moda</strong> & Vestuário, <strong>Moda</strong> & <strong>Design</strong> e <strong>Moda</strong> & <strong>Arte</strong>.<br />
Essas áreas possuem uma relação direta com a prática no desenvolvimento projetual, embora<br />
elas também possam influenciar os consumidores ou impactar nas decisões empresariais.<br />
<strong>Moda</strong> & Vestuário<br />
A forma mais própria e direta para que se possa observar o fenômeno de moda é por<br />
meio das roupas. O vestuário é um artigo essencial na vida humana e guarda uma ligação<br />
importante com os profissionais de projeto e de produção. Não são freqüentes os estudos<br />
acerca do vestuário com valor de moda, ou seja, moda tangível, se comparados com os de<br />
moda intangível. Os primeiros, quando ocorrem estão mais relacionadas com a funcionalidade,<br />
a ergonomia e as demandas específicas do corpo.<br />
Porém, do ponto de vista do consumidor, as roupas se tornaram a maneira mais fácil<br />
de representar a moda. Além disso, como Lipovetsky (2002) afirma, peças de vestuário são<br />
o meio mais popular para as empresas estimular o consumo de moda. Apesar da existência<br />
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Conexões conceituais entre moda, vestuário, design e arte<br />
de vários trabalhos que creditam à sazonalidade como o principal catalisador do curto ciclo<br />
de vida das roupas, a subseção a seguir apresenta um dos mais conhecidos e reconhecidos<br />
estudos relacionados à motivação para estar vestido.<br />
Como este estudo se preocupa diretamente com vestuário é importante introduzir a<br />
obra de Flügel (1930), difundida na década de 30 do século passado. Tal como definido por<br />
Flügel proteção, enfeite e pudor são a base, as motivações originais para o surgimento das<br />
roupas. A forma com o autor discute a passagem do nu para o vestido implica numa viagem<br />
que se inicia com a natureza e finda na cultura (CARTER 2003).<br />
De acordo com o conceito de Flügel (1930) a proteção do corpo contra a sensação<br />
desagradável de frio no período pré-histórico, e posteriormente contra qualquer elemento ou<br />
organismo nocivo à saúde, é uma das razões fundamentais para se vestir. Devido à evolução<br />
científica, as considerações sobre higiene mudaram e o vestuário tende a ter uma ligação forte<br />
tanto física quanto psicológica com a proteção. Assim, as roupas possam ser utilizadas como:<br />
[...] a proteção contra a hostilidade geral do mundo no seu conjunto ou, de<br />
forma mais psicológica, uma garantia contra a falta de amor. Se estivermos<br />
numa atmosfera hostil, quer seja humana ou natural, tenderemos, por assim<br />
dizer, a nos abotoar, trazendo nossas vestes mais perto de nós. iv<br />
(FLÜGEL, 1930:77)<br />
Em civilizações tropicais, a função original de enfeite ou adorno, descrita por Flügel está<br />
relacionada com a sua finalidade essencial de distinguir a aparência física a fim de atrair os<br />
olhares de admiração dos outros. O autor cita habitantes indígenas para explicar os instintos<br />
exibicionistas natural da Humanidade embora o trabalho mostre alguma das realidades<br />
contemporâneas de enfeite como exposição sexual, rivalidade política, traje cerimonial e<br />
condição social entre outras.<br />
A função de pudor, de acordo com Flügel (1930), é ocultar as características físicas,<br />
geralmente afetando o destaque de uma pessoa dentro de um grupo, podendo ser no sentido<br />
de permissão ou proibição. Flügel explica o pudor como algo que não é geneticamente<br />
determinado e varia entre as sociedades.<br />
Ainda de acordo com Flügel, nas sociedades “‘civilizadas”, a proteção, o enfeite e o<br />
pudor desempenham seus papéis simultaneamente, embora os antagonismos entre enfeite<br />
e pudor seja uma importante questão defendida pelo autor como um “conceito da condição<br />
da vida humana”. É interessante fazer referência ao fato que no mundo natural, os animais<br />
já carregam todos esses atributos. Segundo Carter (2003, p.84), Flügel identifica diferentes<br />
atitudes para roupa:<br />
Alguns vêem as roupas como equivalentes à camada mais exterior de si e<br />
assim as incorpora na sua vida com pouca dificuldade. Outros consideram<br />
suas roupas quase inteiramente relacionadas ao ambiente externo, o vestuário<br />
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Conexões conceituais entre moda, vestuário, design e arte<br />
é “o outro” no seu senso de si. (CARTER, 2003:84) v<br />
Baudrillard (1998) introduz o conceito da sociedade de consumo e analisa a relação<br />
entre o objeto de consumo e a sua utilidade, então a necessidade de um produto perpassa do<br />
foco utilitarista para o simbólico.<br />
Em um estudo recente, Kawamura (2005) classifica a moda como um produto simbólico<br />
que não tem substância física e a considera separadamente dos produtos de vestuário por<br />
serem objetos concretos. Mais que isso, para a autora, “A moda não é roupa visível, mas é os<br />
elementos invisíveis que o vestuário carrega.”<br />
Como o desafio deste estudo é manter os elementos simbólicos e utilitários associados,<br />
visto que ambos são importantes e não passivamente dissociados pelos consumidores, outros<br />
modelos teóricos entram na discussão.<br />
Vários estudos consideram os fatores funcionais, ergonômicos e estéticos como<br />
questões distintas e oferecem visões limitadas que os vinculam de forma limitada a dimensões<br />
psicológicas, sociais e culturais quando no desenvolvimento de produtos com valor de<br />
moda para o mercados específicos, como o esportivo ou o maduro (LAMB E KALLAL 1992;<br />
BENKTZON ET AL. 2003) .<br />
Ballin (1885), no seu estudo inicial sobre a ciência vestimentar estava ciente dos prejuízos<br />
que a roupa pode trazer para um organismo saudável e descreve recomendações para uma<br />
roupa ideal: “Elas devem ser leves e quentes de forma a permitir a transpiração natural, ou em<br />
outras palavras, ventilar bem, não exercer qualquer pressão sobre qualquer parte do corpo, e<br />
devem ser livres de todas as partículas tóxicas, seja de sujeira ou de corantevi . (BALLIN 1885<br />
IN JOHNSON 2003)<br />
Outro estudo de Barr (1934) observa atitudes fundamentais na psicologia da escolha<br />
vestimentar: (1) o desejo de se portar conforme dentro de um grupo; (2) o desejo de conforto<br />
em termos de temperatura e sensações tácteis; (3) pudor, resistência a uma nova moda;<br />
(4) o desejo da economia, quando e o que comprar e (5) o impulso estético, o desejo de<br />
estar bonita. Aliás, Barr (1934) explica a fundo o desejo de auto-expressão: uma mistura de<br />
consciência do seu físico, expressão de personalidade, o desejo de parecer distinta, digna ou<br />
jovem, e o desejo de parecer competente ou próspera (BARR 1934 IN JOHNSON 2003).<br />
Considerando a adequação do modelo de motivação para o vestuário de Flügel,<br />
é necessário acrescentar mais variáveis à equação pois os indivíduos diferem em suas<br />
características físicas e psicológicas. A subseção seguinte é dedicada à discussão das<br />
alterações do corpo humano e suas implicações para o vestuário.<br />
<strong>Moda</strong> & <strong>Design</strong><br />
A atividade do designer é crucial para alimentar a criatividade no sistema da moda.<br />
Existem dois diferentes aspectos a considerar quando se analisa o design de produto com<br />
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Conexões conceituais entre moda, vestuário, design e arte<br />
valor de moda: o primeiro, intangível, que compreende as tendências, atitudes, valores e estilos<br />
de vida (SOLOMON E RABOLT 2004) e o segundo, o tangível, que se preocupa com o corpo,<br />
a sua forma, os materiais e os fatores sensoriais (COOPER E PRESS 1995). Nota-se que há<br />
uma tendência dentro da indústria de moda para minimizar os aspectos tangíveis.<br />
Mas, o produto de moda - vestuário - atua sobre o corpo como uma segunda pele<br />
e deve ter um desempenho compatível com o formato do corpo do consumidor. Uma das<br />
variáveis mais ignorada na concepção dos produtos da moda é o formato do corpo devido às<br />
tendências ditatoriais do padrão “alta e magra” e a forma do corpo pode não variar somente<br />
por fatores genéticos, mas também é determinada pela dieta, estilo de vida, nível de aptidão<br />
física e idade (LI 2003).<br />
Segundo Pheasant (2006), o produto deverá coincidir com características do usuário,<br />
sendo necessário levar em conta os seguintes critérios para um bom caimento: eficiência<br />
funcional, facilidade de utilização, conforto, qualidade de vida no trabalho e na saúde e segurança.<br />
Na área de design, os produtos de moda-vestuário são um dos poucos desenvolvimentos<br />
nos quais é possível (e necessária) adotar uma abordagem verdadeiramente sob medida,<br />
utilizando tabelas de tamanhos, diferentemente de produtos como automóveis ou cadeiras.<br />
Nesse sentido, o uso da antropometria é relevante, principalmente devido às variações<br />
do corpo, que se altera primeiramente entre os sexos e origens raciais e, de forma contínua,<br />
devido ao envelhecimento. Essas mudanças afetam não apenas a identidade visual do<br />
consumidor, mas seu comportamento e atitudes e, certamente, determinadas diferenças no<br />
formato do corpo têm implicações para o consumo de moda.<br />
Rasband (2002) recomenda muita atenção no ajuste ao vestir uma roupa, pois ela deve:<br />
(1) realçar a aparência e a atratividade; (2) contribuir para a auto-confiança; (3) cair suavemente<br />
sobre a figura; (4) melhorar a relação entre o vestuário e o formato corporal; (5) enfatizar<br />
as áreas mais atraentes do corpo; (6) tirar a atenção das imperfeições físicas (7); se ajustar<br />
naturalmente no corpo em movimento (8) dar suporte a uma vida ativa.<br />
Ainda segundo Rasband (2002), a forma do corpo pode variar devido a seis<br />
características: estatura (baixa, média e alta), estrutura óssea (delgada, média e graúda), peso<br />
(há uma proporção ideal entre peso, estatura e estrutura óssea), áreas do corpo proporcional<br />
(um diagrama do conjunto de medidas), tipo de figura (o polígono formado por seus ombros,<br />
cintura e quadris) e postura (o alinhamento de partes do corpo em relação a outras).<br />
Sheldon (1940) introduziu o conceito de somatotipo, derivado da antropologia física,<br />
definindo três classificações diferentes para os tipos de corpo, numa combinação de<br />
tamanho, peso e formato: endomorfos, mesomorfos e ectomorfos. Embora seja raro que um<br />
indivíduo se encaixe inteiramente dentro uma classificação é possível identificar características<br />
preponderantes em cada pessoa, visto que a classificação é baseada em medidas físicas<br />
utilizando uma escala de um a sete para cada um dos tipos, resultando numa combinação<br />
relacionada a uma das três opções.<br />
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Conexões conceituais entre moda, vestuário, design e arte<br />
O tipo físico endomorfo é caracterizada por ombros estreitos, quadris largos, cabeça<br />
grande e uma tendência a gordura corporal, principalmente em braços e pernas. O corpo<br />
mesomorfo apresenta ombros amplos, quadris estreitos, cabeça quadrada, baixo acúmulo<br />
de gordura e braços e pernas musculosas. O tipo de corpo ectomofo compreende ombros<br />
e quadris estreitos, pouca gordura corporal e músculos pouco desenvolvidos, rosto, braços e<br />
pernas finas.<br />
Considerando o exposto, os consumidores e consumidoras freqüentemente enfrentam<br />
problemas de dimensionamento no tamanho das roupas. Faust et al. (2006) adiciona<br />
mais uma variável à complexidade do design de vestuário: a imprecisão das empresas no<br />
dimensionamento de seus produtos. Os autores analisam a variação dos tamanhos de roupa<br />
no mercado do Canadá e as dificuldades que os consumidores enfrentam para encontrar<br />
peças adequadas. Segundo eles, o problema comporta, entre outras coisas, a falta de<br />
padronização no dimensionamento de tamanhos e falhas nos procedimentos de controle<br />
relativos às especificações. Como a especificação é uma ação diretamente vinculada à<br />
atividade de design, apresenta-se a seguir conceitos e teorias que podem apoiar o argumento<br />
deste trabalho.<br />
Segundo Cooper e Press (1995), “o design se localiza entre os mundos da cultura e do<br />
comércio, entre a paixão e o lucro” (p. 4) e nas palavras do designer de moda japonês Issey<br />
Miyake, “sonhamos entre dois mundos”. Walker (1990) sugere uma falta de atenção analítica<br />
para a prazerabilidade no ato de consumir, partindo da noção de Marx sobre o fetichismo da<br />
mercadoria para justificar o aumento do consumo na pós-modernidade e identificando cinco<br />
fontes de satisfação do ato de consumo: o desejo, a aquisição, o objeto, o uso e a percepção<br />
de terceiros.<br />
De acordo com Jones (1992), os objetivos do designer estão menos relacionados<br />
com os próprios produtos e mais relacionados para a realização bem sucedida de previsões<br />
interrelacionadas e especificações em resposta a um briefing. Esta hipótese introduz a<br />
complexidade no processo de desenvolvimento de produtos onde existem pelo menos três<br />
atores: a empresa (o ordenador), o designer (o mediador) e o usuário (o receptor). Nesta<br />
seara há ainda um conceito a acrescentar: a autoria, e o equilíbrio entre a racionalidade e<br />
subjetividade é uma questão central para essa relação. A sub-secção seguinte introduz a<br />
questão da subjetividade do designer.<br />
<strong>Moda</strong> & <strong>Arte</strong><br />
A arte, assim como a moda, tem um conteúdo estético que se materializa na prática do<br />
design, embora por muito tempo, a ligação entre moda e arte tenha se limitado à capacidade<br />
do artista em fornecer informação valiosa sobre as roupas usadas pelas elites (MACKRELL<br />
2005) visto que o artesão que usou suas habilidades para criar a roupa era anônimo. O<br />
segundo link entre moda e arte veio por meio dos ilustradores de moda do século XIX, quando<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 284
Conexões conceituais entre moda, vestuário, design e arte<br />
jornais e revistas passaram a influenciar o consumo e o início da divulgação de tendências se<br />
consolidou como conseqüência.<br />
Os primeiros sinais de identidade de moda com a literatura e a pintura surgiram com<br />
escritores e poetas, ao descreverem os personagens de suas histórias e seus retratos, seja<br />
por meio escrito ou figurativo. O primeiro registro de um monopólio vestimentar autoral é<br />
atribuído a Charles Frederick Worth (1825-1895) que considerava seus vestidos como obras<br />
de arte e usava extensivamente a história da arte como uma fonte de inspiração para suas<br />
criações (MACKRELL 2005).<br />
Em 1883, enquanto Emile Zola, escritor realista francês, escrevia Au Bonheur des<br />
Dames (O Paraíso das Damas), uma história clássica sobre a efervescência do consumo de<br />
moda por mulheres, Edouard Degas, pintor impressionista, registrava a emoção de clientes<br />
consumindo naquela mesma época. Em Londres, a famosa loja de departamentos Liberty,<br />
instituiu em 1884 uma seção de traje, destinada à direção de arte e moda, criando uma marca<br />
de estilo reconhecido até os dias de hoje.<br />
Uma das grandes transformações da indústria da moda no início do século 20 foi a<br />
invenção do “estilista”, uma profissão que tem sua identidade compreendida entre o comércio<br />
e o artista da vez (MacKrell 2005).<br />
No período intermediário entre a duas Guerras Mundiais, a moda francesa consolidou a<br />
liderança com o “Pavilhão da Elegância”, no qual os estilistas tinham um importante papel no<br />
meio artístico, como MacKrell (2005) descreve o “l’air du temps”:<br />
Milhões de americanos e europeus e centenas de fabricantes internacionais<br />
visitaram o exposição que tem sido chamado de o ‘paraíso dos compradores.<br />
As lojas de departamento francesas (“museus para pessoas”) e a “rua das<br />
butiques” junto à Ponte Alexandre III (“centros de compras para mulheres<br />
modernas”) representaram, com cuidadosa orquestração, vitrines que<br />
pretendiam destacar a posição de Paris como o centro do mundo para<br />
compras vii . (MACKRELL, 2005:128)<br />
Do surrealismo ao pós-modernismo, diversos períodos da arte moderna têm sido<br />
associados à moda. Artistas estiveram envolvidos com a concepção de vestuário, designers<br />
de moda se inspiraram em obras de arte, e a fronteira entre o costureiro e o artista se tornou<br />
mais tênue. A compreensão pessoal e a interpretação de realidade se tornou uma obrigação<br />
para designers de moda e o espetáculo efêmero do desfile de moda se tornou algo como uma<br />
obra de arte propriamente dita. Uma recente exposição em Paris, apresentou a quantidade de<br />
trabalho e profissionais envolvidos antes, durante e depois de um desfile de moda, estimulando<br />
um novo campo de investigação própriaviii .<br />
Os anos 80 trouxeram o reconhecimento oficial da moda como “forma digna de<br />
expressão cultural” (MACKRELL 2005, P.153). A exposição retrospectiva de Yves Saint Laurent<br />
no Metropolitan Museum of Art de Nova York em 1983-84 confirmou a importância moda em<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 285
Conexões conceituais entre moda, vestuário, design e arte<br />
museus. Muitas iniciativas se seguiram, incluindo a exposição Biennale di Firenze - Il Tempo<br />
e la <strong>Moda</strong> de 1996, que definitivamente ligou a arte com a moda. A exposição de obras de<br />
designers de moda em museus agora é comum e há um número crescente de artistas plásticos<br />
contemporâneos que usam materiais têxteis e elementos de moda como temas fundamentais<br />
em suas criações. De acordo com Taylor (2005, p.448), as divisões entre o artista e o designer<br />
de moda poderiam ser consideradas como desnecessárias neste clima de criatividade, no<br />
qual os limites foram ultrapassados em outras áreas de produção.<br />
O currículo de cursos de design de moda hoje em dia tem mais de conteúdos<br />
relacionados à curadoria do que a modelagem e costura. Segundo Müller (2000 p. 15)<br />
“o vocabulário da moda adotou a linguagem da arte e passou a incluir expressões como<br />
“conceitos”,”happenings” e “instalações”. Como consequência, os designers tendem a se<br />
afastar do consumidor de roupa e se aproximar do expectador de moda.<br />
Outro aspecto dessa relação dialética entre a arte e o design é o fato de que a moda<br />
é um estado efêmero em comparação com um artefato de arte (LIPOVETSKY 2002; TAYLOR<br />
2005). A produção em massa que caracteriza o declínio de uma moda é algo que deve ser<br />
parâmetro para separar ”moda arte” de “simplesmente moda”. Mas a tendência vintage dentro<br />
da moda responde a esta inquietação, já que vintage é uma palavra da enologia para designar<br />
a melhor seleção de vinhos de cada estação, e aquilo que poderia ser considerado “antiquado”<br />
em moda pode ser vestido, colecionado e desejado.<br />
Considerações Finais<br />
Este estudo procurou demonstrar a complexidade do sistema moda e as diferentes<br />
formas de ver e tratar algumas das variáveis que divergem em campos do saber mas convergem<br />
no processo de desenvolvimento de produtos com valor de moda, e especificamente, na<br />
indústria do vestuário. Por outro lado, as reflexões apresentadas procuraram demonstrar suas<br />
influências no ambiente de escolha do consumidor. Neste trabalho é possível perceber que,<br />
apesar da moda ser cada vez mais estudada, por meio de diversos pontos de vista, há ainda<br />
lacunas na literatura referenciada acima a serem preenchidas no que tange suas inter-relações,<br />
determinações e mediações.<br />
Neste sentido, buscou-se a inclusão de autores comumente não considerados na<br />
discussão sobre os temas desenvolvidos, visando especialmente a possibilidade de influenciar<br />
estudos posteriores. Procurou-se ainda trazer ao debate algumas relações de causalidade<br />
vinculadas à realidade concreta e mediar reflexões a respeito de vínculos possíveis entre dois<br />
ou mais elementos distintos no sentido de contribuir, principalmente, para a solução de conflitos<br />
de interesse entre campos do saber. Em particular, o fenômeno da moda foi analisado sob<br />
uma perspectiva ontológica, considerando os aspectos psicossociais e envolvendo também a<br />
contribuição de aspectos da anatomia e da fisiologia nas atitudes dos consumidores. Desta forma,<br />
vislumbra-se a possibilidade de uma moda cada vez mais inclusiva e de estudos mais plurais.<br />
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Conexões conceituais entre moda, vestuário, design e arte<br />
Notas<br />
iTradução livre da autora do trecho original: ‘clothing does not represent, it presents. Clothing does not<br />
define, it positions. Clothing is pragmatic, not semantic. Clothing does not lie, but irrevocably betrays<br />
you.’ (p.17).<br />
ii Tradução livre da autora do trecho original: ‘At the same time, fashion and clothing are the most<br />
fetishised commodities produced and consumed within capitalist society. …Fashion and clothing may<br />
be the most significant ways in which social relations between people are constructed, experienced and<br />
understood.’ (Barnard, 2002, pp.8-9).<br />
iii Tradução livre da autora do trecho original: ‘all these things: it is about fashion, clothing, dress,<br />
adornment and style.’ (Barnard 2002, p.9).<br />
iv Tradução livre da autora do trecho original: … a protection against the general unfriendliness of the<br />
world as a whole; or, expressed more psychologically, a reassurance against a lack of love. If we are<br />
in unfriendly surroundings, whether human or natural, we tend, as it were, to button up, to draw our<br />
garments closely round us. (Flugel 1930, p.77).<br />
v Tradução livre da autora do trecho original: Some see clothes as equivalent to the outmost layer of<br />
their selves and so incorporate them into their life-world with little difficulty. Others locate their clothing<br />
almost wholly within the external environment; clothing is “other” to their sense of themselves. Carter<br />
(2003, p.84).<br />
vi Tradução livre da autora do trecho original: ‘They should be light, warm, permit free transpiration, or,<br />
in other words, ventilate well; they should exert no pressure on any part, and they should be free from<br />
all poisonous particles, whether of dirt or of dye.’ (Ballin 1885 in Johnson 2003)<br />
vii Tradução livre da autora do trecho original: Millions of Americans and Europeans and hundreds of<br />
international manufacturers visited the Exposition, which has often been called a ‘shoppers’s paradise’.<br />
French department stores (‘museums for people’) and a ‘rue des Boutiques’ (‘shopping centres for<br />
modern women’) along the Pont Alexandre III were represented, with carefully orchestrated window<br />
displays intended to underline Paris’s position as a world centre for shopping. (Mackrell 2005, p.128).<br />
viii Showtime, le défilé de mode, exposição realizada no período de 4 de Março a 30de Julho de 2006<br />
no Palais Galliera - Musée de la Mode la Ville de Paris.<br />
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Conexões conceituais entre moda, vestuário, design e arte<br />
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CONSIDERAçõES éTICAS NA PESQuISA EM DESIGN DE MODA<br />
Luciane do Prado Carneiro; Mestranda em <strong>Design</strong>: PPG <strong>Design</strong> UNESP/Bauru<br />
luciane@unipar.br<br />
Danilo Corrêa Silva; Mestrando em <strong>Design</strong>: PPG <strong>Design</strong> UNESP/Bauru<br />
danilo@idemdesign.net<br />
Marizilda dos Santos Menezes; Prof. Dr.: PPG <strong>Design</strong> UNESP/Bauru<br />
marizil@faac.unesp.br<br />
Luis Carlos Paschoarelli; Livre docente: PPG<strong>Design</strong> UNESP/Bauru<br />
paschoarelli@faac.unesp.br<br />
José Carlos Plácido da Silva; Titular: PPG<strong>Design</strong> UNESP/Bauru<br />
placido@faac.unesp.br<br />
Resumo<br />
A moda é uma especialidade que nos últimos anos se apropriou<br />
de metodologias do design para sistematizar a sua atuação e<br />
adequar-se às necessidades do mercado. Assim também ocorreu<br />
com a pesquisa científica em design de moda, que atualmente está<br />
em acentuada expansão. No entanto, tal como no design, grande<br />
parte dessas pesquisas envolvem abordagens junto a usuários,<br />
consumidores ou agentes do processo produtivo, o que requer a<br />
observação de aspectos éticos em seus materiais e métodos. O<br />
objetivo desse estudo foi avaliar quantitativamente a consideração<br />
desses critérios na produção científica em design de moda nos<br />
principais eventos científicos/acadêmicos brasileiros da área.<br />
Palavras-Chave: pesquisa cientifica; moda; ética.<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 290
Considerações éticas na pesquisa em design de moda<br />
Introdução<br />
Atualmente, constata-se uma acentuada convergência entre a moda e o design,<br />
com múltiplas interações, seja na busca de referências visuais ou estéticas, ou na busca<br />
de metodologias que permitam sistematizar e integrar processos produtivos. O design,<br />
que em suas origens se associou à racionalidade e à função, passou a buscar elementos<br />
inspiradores, como formas, cores e estampas no universo da moda. Por outro lado, a moda<br />
busca no design o embasamento metodológico projetual,e/ou científico, visando se adequar<br />
às exigências produtivas do mundo globalizado. Dessa união surgem diversos aspectos que<br />
podem e devem ser analisados para um desenvolvimento progressivo não só da área da<br />
moda, mas também do design em suas diversas especialidades.<br />
Como regra geral o designer atua no projeto das interações dos produtos com os seres<br />
humanos, tornando a utilização dos produtos mais efetiva, eficiente e confortável, melhorando<br />
assim a qualidade de vida dos usuários. Assim também atua o designer de moda, gerando<br />
produtos que interagem diretamente com o ser humano, como o vestuário ou acessórios<br />
(calçados, joias e ornamentos). Com a incorporação de metodologias do design à produção<br />
desses itens, também são adquiridos métodos de análise e pesquisa científica, que geram os<br />
parâmetros para a produção desses produtos.<br />
Grande parte das pesquisas científicas em design envolve a participação direta de<br />
indivíduos, seja por meio de entrevistas, questionários ou experimentos laboratoriais; e esta<br />
participação é motivo para o questionamento ético das abordagens, uma vez que é reguladopor<br />
códigos de ética ou resoluções normativas, mas nem sempre considerado.<br />
Este estudo teve como propósito identificar se a produção científica em design de<br />
moda compartilha dessa característica da pesquisa em design no Brasil, e se os aspectos<br />
éticos da participação de seres humanos estão sendo observados. É importante destacar<br />
que não cabe a esse artigo julgar os métodos dos pesquisadores, o intuito é, por outro lado,<br />
divulgar e fortalecer esse aspecto no meio científico do design.<br />
O design de moda no Brasil<br />
O design é uma profissão relativamente recente no Brasil, tendo suas raízes em meados<br />
do século 20 e que, ainda hoje, tem suas fronteiras, áreas de atuação e corpo de conhecimento<br />
prático e científico pouco definido. Também recente é a passagem da tradicional dualidade<br />
entre design gráfico ou de produto, para uma infinidade de novas especializações, demandadas<br />
pelo mercado globalizado, seguindo tendências adotadas nos países desenvolvidos, dando<br />
margem ao surgimento de campos como o design de interiores, design de joias, design de<br />
móveis, design de calçados, gestão do design, e também o design de moda. O design de<br />
moda, portanto, é um dos ramos do design, o qual tem como objetivo o desenvolvimento de<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 291
Considerações éticas na pesquisa em design de moda<br />
vestuários ou acessórios para o ser humano, respeitando as características culturais, técnicas,<br />
mercadológicas e de moda ou tendências.<br />
Segundo Magnus et al. (2006), até meados da década de 1980, quem desejasse<br />
estudar ou aperfeiçoar-se em moda não tinha alternativa senão ir ao exterior. Destacam que<br />
até então os estilistas eram leigos e autodidatas, ou apenas dotados de talento artístico e que<br />
tinham como fundamento o aprender pela prática. Diante disso, a moda não era vista como<br />
uma área que se valia de conhecimentos científicos. A partir da segunda metade da década de<br />
1970, na França, a moda alcançou legitimação acadêmica, com publicações de Bourdieu, em<br />
1974, Baudrillard, em 1976,eLipovetsky, em 1987. No Brasil, a primeira dissertação tratando<br />
do assunto é “O espírito das roupas”, escrita em 1950 por Gilda de Mello, mas publicada<br />
apenas em 1987.<br />
Esses acontecimentos coincidem com dois momentos de grande importância<br />
do cenário da moda. O primeiro se refere ao fim da década de 1950, quando houve uma<br />
alteração significativa no processo produtivo da moda no Brasil, a partir da qual se observou<br />
uma expansão da indústria têxtil e do comércio. Na década de 1980, essa demanda produtiva<br />
levou à necessidade de profissionais com conhecimentos mais estruturados, culminando com<br />
o surgimentodos primeiros cursos profissionalizantes no eixo Rio/São Paulo e em Minas Gerais<br />
(PORTINARI et al., 2002).<br />
A história da moda no Brasil é rica, e já foi alvo de diversos estudos, incluindo o de<br />
Gilberto Freyre, Modos de homem & <strong>Moda</strong>s de mulher, publicado primeiramente em 1987.<br />
Sociólogo famoso por suas análises críticas da formação e costumes da sociedade brasileira,<br />
o autor equaciona em sua obra as raízes e influências dos costumes do povo brasileiro<br />
em paralelo com outras sociedades do mundo. Cabe aqui ressaltar que um estudo mais<br />
aprofundado sobre a história e os desenvolvimentos do design de moda merece estudos<br />
muito mais aprofundados e que fogem ao escopo desse trabalho. Com isso, o objetivo aqui<br />
é apenas traçar um panorama do desenvolvimento da área e, principalmente, da evolução<br />
acadêmica e científica do design de moda.<br />
Na questão do ensino formal da área, o primeiro curso superior em Desenho de <strong>Moda</strong><br />
começou a funcionar em 1988, tendo suas origens na disciplina homônima, introduzida em<br />
1967 nos cursos de bacharelado e licenciatura em Desenho e Plástica da Faculdade Santa<br />
Marcelina, em São Paulo. Na década de 1990 houve uma grande expansão na oferta de<br />
cursos de graduação na área, instalados em locais onde a produção têxtil ou de confecção<br />
encontrava-se consolidada, e sua população comprometida com esse processo, com<br />
destaque para:<br />
• São Paulo (SP), com a Faculdade Anhembi Morumbi (UAM – 1990);<br />
• São Paulo (SP),<strong>Universidade</strong> Paulista (UNIP - 1990);<br />
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São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 292
Considerações éticas na pesquisa em design de moda<br />
• Caxias do Sul (RS), com a <strong>Universidade</strong> de Caxias do Sul (1993);<br />
• Fortaleza (CE), na <strong>Universidade</strong> Federal do Ceará (1994);<br />
• Rio de Janeiro, na <strong>Universidade</strong> Veiga de Almeida (1995);<br />
• Londrina (PR), <strong>Universidade</strong> Estadual de Londrina (1997);<br />
• Curitiba (PR), <strong>Universidade</strong> Tuiutí do Paraná (1997);<br />
• Blumenau (SC), <strong>Universidade</strong> Regional de Blumenau (1997);<br />
• São Paulo (SP), Centro de Educação em <strong>Moda</strong> (SENAC - <strong>Moda</strong> - 1998); e<br />
• Maringá (PR), Centro de Educação Superior de Maringá (1999), entre outros.<br />
Atualmente, a oferta de cursos de graduação em design de moda se expandiu<br />
consideravelmente, sendo que algumas instituições oferecem pós-graduação lato sensu na<br />
área. Esses cursos normalmente se agregaram às faculdades de artes ou design, queem 1999<br />
receberamreformulação curricular, passando a incluir estudos demoda em suas habilitações.<br />
Com a expansão na oferta de cursos, houve uma ampliação da produção acadêmica, como<br />
evidenciado por Portinari et al. (2002). Essas autoras também destacam que os estudos<br />
e pesquisas na modaabordam áreas diversas,como a linguística, história, comunicação,<br />
engenharia de materiais, administração, psicologia, artes, design, entre outras.<br />
O design de moda também compartilha de alguns pressupostos do design, como o<br />
desenvolvimento de produtos para melhorar a qualidade de vida do ser humano. Portanto é<br />
inquestionável a necessidade de produção bibliográfica especializada pertinente e de caráter<br />
científico, que além de dar suporte ao desenvolvimento tecnológico do setor, ainda auxiliará<br />
na formação de discentes e docentes. É focado nessa pequena parcela de atuação que o<br />
presente estudo terá a sua área de análise.<br />
Estudos realizados em qualquer área do conhecimento devem observar alguns<br />
princípios metodológicos específicos, que são ainda desconhecidos ou ignorados por boa<br />
parte da comunidade científica, principalmente quando se trata da participação de seres<br />
humanos. A ética na atuação profissional do designer já foi alvo de alguns questionamentos,<br />
porém a ética na pesquisa científica em design ainda é um princípio raramente contemplado<br />
(PASCHOARELLI et al., 2008).<br />
Princípios éticos e morais<br />
Ética e moral são dois termos adjacentes, que comumente não conduzem a uma<br />
definição consensual. Isso se deve principalmente às variações inerentes aos aspectos culturais<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Considerações éticas na pesquisa em design de moda<br />
e filosóficos de cada comunidade. Do ponto de vista etimológico, o termo ética tem origem<br />
do grego ethiké (ou ethos), que significa “costume”, apresentando como objeto de estudo os<br />
valores oujuízos valorativos daquilo que se considera“certo” ou “errado” na conduta humana.<br />
Da mesma forma, o termo moral (do latim mores) também significa “costume” e se caracteriza<br />
pelo aspecto subjetivo da ação reconhecida pelo sujeito praticante (LADRIÈRE, 1994).<br />
La Taille 2006) afirma que os termos contém o mesmo significado, variando apenas<br />
na sua origem etimológica (grega e latina). Paim (1992) trata sobretudo da evolução histórica<br />
do tema, indicando que os princípios da ética grega estão relacionados à virtude humana e<br />
associada ao saber. Posteriormente, na Idade Média, os preceitos gregos foram associados<br />
à teologia, criando um vínculo entre moral e religião. Durante o século 20, houve um esforço<br />
por dissociar novamente a ética da religião, e diversos pensadores ora atribuíram soluções<br />
racionais (Kant), ora puseram por terra a possibilidade de uma sociedade racional (Weber).<br />
De qualquer maneira, o código moral ocidental é de origem judaico-cristã, e tem o<br />
pressuposto de universalidade. O principal aspecto do modelo ético atual é o ideal de pessoa<br />
humana, que representa o seu núcleo e fonte de inspiração de grande parte dos preceitos<br />
abrangidos pela moralidade. A moral, portanto, deve ser interiorizada e incorporada à vivência<br />
individual, o que exige um diálogo contínuo sobre a universalidade da cultura. Assim, se conclui<br />
que a moral é o acordo entre a consciência individual e os preceitos consagrados, sendo a<br />
primeira o juiz das atitudes (PAIM, 1992).<br />
Porém, o mesmo autor afirma que alguns homens tendem a desviar-se dos<br />
comportamentos morais, o que fez surgir uma nova instância apta a agir de forma preventiva<br />
ou punitiva: o direito. As relações entre moralidade e lei jurídica geralmente são, ao menos<br />
nas sociedades democráticas ocidentais, apoiadas pela comunidade, sendo justamente esse<br />
o traço que as distingue do totalitarismo. Portanto, as considerações de natureza moral (ou<br />
ética), por serem amplamente adotadas pela comunidade, transitam para a esfera do direito<br />
(legislação).<br />
Existem amplas discussões de cunho filosófico sobre o assunto, normalmente em livros<br />
específicos da área, não cabendo a esse artigo se aprofundar demasiadamente no tema.<br />
Para esse estudo, foi adotada a diferenciação por fronteiras utilizada em Paschoarelli et al.<br />
(2008), que possui caráter menos agressivo. O termo “ética” é comumente adotado quando<br />
o julgamento realizado se limita ao grupo no qual se insere o praticante, num âmbito mais<br />
específico. Como exemplo, podem ser citadosdiversos Comitês de Ética responsáveispor<br />
regular o comportamento de determinada categoria e, com isso, manter a integridade do<br />
grupo diante da população. Já o termo moral é adotado num contexto amplo, ou seja, como<br />
a ação pontual de um praticante é avaliada por umindivíduo externo a esse grupo.<br />
Os aspectos éticos e morais são variáveis segundo o tempo e o espaço (PASCHOARELLI<br />
et al., 2008), o que requer uma constante revisão dos códigos que regem as condutas de<br />
determinados grupos. Esses códigos são comumente baseados em comportamentos que<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 294
Considerações éticas na pesquisa em design de moda<br />
devem ser evitados ou proibidos, embora também possam ser utilizados aquelesconsiderados<br />
virtuosos, éticos ou socialmente responsáveis. McKinneyet al. (2010) ressalta que o<br />
desenvolvimento moral de um indivíduo se caracterizaria por este ter o comportamento ético<br />
como um objetivo, visto que teria consciência de que é o “certo a se fazer”.<br />
Segundo Lau (2010), o primeiro passo no processo de decisão ética é reconhecer a<br />
natureza moral da situação. Uma decisão ou ação pode afetar interesses, expectativas ou o<br />
bem estar alheio, de modo conflitante com um ou mais aspectos éticos. O comportamento<br />
ético pressupõe um questionamento a priori, que segundo Ladrière (1994), se caracteriza<br />
por“[...]uma reflexão sobre a ação”, na ocasião em que é evidente “[...]um apelo à iniciativa do<br />
homem, enquanto essa iniciativa não é condicionada (inteiramente em todoo caso) pelo curso<br />
das coisas, pela necessidade natural” (p. 29).Portanto, as questões éticas se caracterizam<br />
como um dos aspectos metodológicos da pesquisa científica, devendo considerar uma ação<br />
equânime dos indivíduos e as suas possíveis consequências (PASCHOARELLI et al., 2008).<br />
Considerações éticas na pesquisa científica<br />
O desenvolvimento científico e tecnológico tem como metas teóricas e básicas a<br />
melhoria das condições de vida humana. Portanto, seria lógico afirmar que toda pesquisa<br />
deve considerar o bem estar do ser humano, assegurando que “... ninguém seja prejudicado<br />
ou sofra consequências adversas devido às atividades de pesquisa” (COOPER; SCHINDLER,<br />
2003, p. 110). Entretanto, no decorrer da história humana podem ser encontradas diversas<br />
situações onde esses princípios.<br />
As considerações sobre ética na pesquisa são relativamente recentes em todos os<br />
campos do saber científico (PAIVA, 2005). Embora as práticas médicas utilizassem o código<br />
de Hipócrates desde a Antiguidade, apenas na segunda metade do século 20 as pesquisas<br />
envolvendo seres humanos começaram a ser controladas, principalmente devido aos<br />
experimentos médicos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. Grande parte desses<br />
questionamentos teve o seu ápice na série de julgamentos de crimes de guerra nazistas,<br />
conhecidos como Julgamentos de Nuremberg. Daí resultou o código homônimo, que<br />
estabelecia a participação voluntária dos indivíduos (ROBINSON, 2010).<br />
Entretanto, nem sempre esse código era respeitado. Como resultado dessas violações,<br />
a Associação Médica Mundial (World Medical Association) criou, em 1964, a Declaração de<br />
Helsinque, cuja versão revisada ainda é um padrão mundialmente aceito para pesquisas<br />
biomédicas envolvendo seres humanos (FADARE; PORTERI, 2010). Também na década de<br />
1960, o Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos (NationalInstituteof Health) começou<br />
a exigir que toda pesquisa envolvendo participação humana e desenvolvida com seu apoio<br />
financeiro fosse submetida a uma revisão ética. Nessa ocasião, cada instituição deveria revisar<br />
seus protocolos de pesquisa caso quisessem fundos federais para seus projetos.<br />
Em 1979, o Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos da América criou o<br />
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Considerações éticas na pesquisa em design de moda<br />
Relatório de Belmont (BelmontReport), no qual havia a exigência de três princípios básicos<br />
para pesquisas envolvendo humanos: o respeito às pessoas; beneficência; justiça. Estas<br />
exigências eram possíveis por meio do consentimento esclarecido, uma avaliação de riscos e<br />
benefícios e uma seleção “justa” dos participantes (ROSSet al., 2010).<br />
O consentimento esclarecido é um requisito básico da conduta ética em pesquisa<br />
envolvendo seres humanos. O Council for InternationalOrganizationsof Medical Sciences<br />
define consentimento esclarecido como uma “decisão de participar em uma pesquisa realizada<br />
por um indivíduo competente que recebeu as informações necessárias; compreendeu<br />
adequadamente essas informações; e após considerá-las, chegou a uma conclusão sem<br />
coerção, influência imprópria, indução ou intimidação”. O consentimento é deve ser tomado,<br />
preferivelmente, na forma documental, escrita (FADARE; PORTERI, 2010).<br />
Essas exigências resultaram na criação dos Conselhos Institucionais de Revisão<br />
(InstitutionalReviewBoards - IRB),nos Estados Unidos. Atualmente, esses IRB se expandiram<br />
para cobrir virtualmente todas as instituições de pesquisa desse país (ROBINSON, 2010).<br />
Muitos outros países possuem conselhos como esses, como os ResearchEthicsCommittees na<br />
Inglaterra e os Comitês de Ética em Pesquisa (CEP), no Brasil. Ainda assim, as determinações<br />
e exigências desses comitês possam variar segundo essas localidades, sendo que em alguns<br />
casos sua atuação se limita às áreas biomédicas.<br />
No Brasil, a regulamentação sobre a participação de seres humanos em pesquisa<br />
científica está pautada na Resolução Nº 196, de 10 de outubro de 1996, do Conselho Nacional<br />
de Saúde. Esta resolução fundamenta-se em alguns tratados anteriores, a saber:<br />
• Código de Nuremberg, de 1947;<br />
• Declaração dos Direitos do Homem, de 1948;<br />
• Declaração de Helsinque de 1964, e suas revisões de 1975, 1983 e 1989;<br />
• Acordo Internacional Direitos Civis e Políticos da <strong>Organização</strong> das Nações Unidas<br />
(ONU) de 1966;<br />
• Diretrizes Éticas Internacionais para Pesquisas Biomédicas Envolvendo Seres<br />
Humanos, do CIOMS / World Health Organization (WHO), de 1982 e 1993;<br />
• Diretrizes Internacionais para Revisão Ética de Estudos Epidemiológicos (CIOMS /<br />
WHO), de 1991.<br />
Além disso, cumpre as disposições da Constituição da República Federativa do Brasil<br />
(1988); do Código de Direitos do Consumidor; Código Civil e Penal; do Estatuto da Criança e<br />
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Considerações éticas na pesquisa em design de moda<br />
do Adolescente; e outros elementos legais.Segundo a Resolução No 196/1996, a “eticidade”<br />
em pesquisa implica em quatro princípios básicos:<br />
• Autonomia, ou consentimento livre e esclarecido dos indivíduos e proteção dos grupos<br />
vulneráveis e legalmente incapazes;<br />
• Beneficência, ou ponderação entre riscos/benefícios, atuais e potenciais, individuais<br />
e coletivos, objetivando o aumento nos benefícios e a minimização extrema dos riscos;<br />
• Não Maleficência, ou plena garantia de que danos previsíveis serão evitados; e<br />
• Justição e Equidade, ou relevância social da pesquisa com vantagens significativas<br />
para os sujeitos, com igual consideração dos interesses.<br />
Segundo essa resolução, as pesquisas que envolvem seres humanos, individual ou<br />
coletivamente, direta ou indiretamente, em sua totalidade ou partes do indivíduo, incluindo a<br />
manipulação de informações ou materiais, devem ter seus projetos submetidos aos Comitês de<br />
Ética em Pesquisa (CEP). Ou seja, mesmo entrevistas, aplicações de questionários, utilizações<br />
de banco de dados ou revisões de prontuários, e que, independente do nível da pesquisa<br />
(iniciação científica, graduação, mestrado ou doutorado, de interesse aplicado ou científico)<br />
devem ser submetidas à avaliação dos CEP, então caracterizados como:<br />
“[...] colegiados interdisciplinares e independentes, com “munus público”, de<br />
caráter consultivo, deliberativo e educativo, criados para defender os interesses<br />
dos sujeitos da pesquisa em sua integridade e dignidade e para contribuir<br />
no desenvolvimento da pesquisa dentro de padrões éticos” (CONSELHO<br />
NACIONAL DE SAÚDE, 1996).<br />
Na prática, os CEP registrados no Conselho Nacional de Ética em Pesquisa possuem<br />
diversas exigências para a aprovação de um projeto, entretanto podemos destacar a aplicação<br />
do “Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)”, uma vez que:<br />
Objetivo<br />
“[...]o respeito devido à dignidade humana exige que toda pesquisa se processe<br />
após consentimento livre e esclarecido dos sujeitos, indivíduos ou grupos<br />
que por si e/ou por seus representantes legais manifestem a sua anuência à<br />
participação na pesquisa” (CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE, 1996).<br />
O objetivo deste estudo foi mensurar quantitativamente o relato de quaisquer<br />
preocupações éticas na pesquisa envolvendo seres humanos no design de moda, por meio<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Considerações éticas na pesquisa em design de moda<br />
de análise bibliométrica de alguns dos principais meios de divulgação científica em design no<br />
país.<br />
Metodologia<br />
Objeto de estudo<br />
Foram analisados 5883 artigos científicos, nos anais dos seguintes eventos:<br />
• Colóquio de <strong>Moda</strong> – 2005 a 2009;<br />
• ABERGO - Congresso Brasileiro de Ergonomia, nas edições de 1999 a 2008;<br />
• P&D <strong>Design</strong> - Congresso Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em <strong>Design</strong>, nas<br />
edições de 2000 a 2008;<br />
• CIPED - Congresso Internacional de Pesquisa em <strong>Design</strong> – Brasil, nas edições de<br />
2003 a 2009;<br />
• ERGODESIGN - Congresso Internacional de Ergonomia e Usabilidade<br />
deInterfacesHumano-tecnologia: Produtos, Informação, Ambiente Construído,<br />
Transporte, nas edições de 2002 a 2010;<br />
A escolha por esses bancos de dados (anais de eventos) se deu pela representatividade<br />
e expressividade com que são caracterizados na área do conhecimento do design.<br />
Critérios avaliados<br />
sendo:<br />
Os critérios analisados foram semelhantes aos descritos em Paschoarelli et al. (2008),<br />
• Participação de sujeitos;<br />
• Preocupação relativa a qualquer aspecto ético (consentimento informal ou TCLE);<br />
• Submissão a um CEP;<br />
Procedimentos<br />
Tanto para os anais impressos (anais do P&D <strong>Design</strong> até a edição de 2002), quanto<br />
para os anais em formato digital, recorreu-se a leitura integral dos artigos envolvendo a área<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Considerações éticas na pesquisa em design de moda<br />
da moda, agrupados em diversas classificações, como ergonomia, gestão do design, design<br />
de produto, etc. Buscou-se identificar qualquer interação com voluntários, seja entrevista,<br />
questionário, ou participação ativa, como experimentação laboratorial, pesquisa de campo ou<br />
teste de produtos.<br />
Os dados coletados se referem ao título do artigo, o evento no qual foi publicado e<br />
a observância dos critérios descritos no item 4.2 deste trabalho. Essas informações foram<br />
tabuladas em planilha eletrônica do Microsoft Office Excel 2007®, onde foram efetuadas<br />
análises estatísticas básicas e geração de gráficos.<br />
Resultados<br />
Colóquio de <strong>Moda</strong><br />
O Colóquio de <strong>Moda</strong> é o maior congresso científico em moda no Brasil. Reúne<br />
pesquisadores de diversos locais e especialidades, caracterizando-se por sua diversidade. A<br />
análise bibliométrica de suas cinco edições permitiu a contagem de 688 artigos (Figura 01).<br />
Figura01: Infográfico da produção científica no Colóquio de <strong>Moda</strong>.<br />
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Considerações éticas na pesquisa em design de moda<br />
Como visto na Figura 01, a produção científica é crescente nesse evento. Em 61 dos<br />
artigos analisados foi possível identificar a participação de seres humanos, o que representa<br />
8,9% do total, e apenas em um dos artigos houve atendimento às questões éticas (na edição<br />
de 2005). Nesse único caso, o projeto foi também submetido e aprovado por um CEP. No<br />
entanto, todas as demais publicações não mencionaram nenhum tipo de atenção aos aspectos<br />
éticos.<br />
ABERGO<br />
O Congresso Brasileiro de Ergonomia ocorre a cada dois anos, reúne pesquisadores<br />
e especialistas do país todo, bem como do exterior, sendo um dos principais congressos em<br />
ergonomia e design do Brasil. A análise bibliométrica permitiu identificar 56 artigos relacionados<br />
à moda ao longo de todas as edições, o que representa 3,6% da produção total (Figura 02).<br />
Também é possível notar o crescimento do número de publicações, tanto em outras áreas<br />
quanto especificamente para a moda.<br />
Figura02: Infográfico da produção em moda por edição daAbergo.<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Considerações éticas na pesquisa em design de moda<br />
Como visto na Figura 02, é notável a participação de seres humanos na pesquisa em<br />
design de moda, somando 46 publicações, das quais apenas duas mencionaram algum critério<br />
ético: em 2002 um artigo garantiu o sigilo das informações; e em 2008 houve a utilização de<br />
um TCLE.<br />
P&D <strong>Design</strong><br />
O Congresso Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento em <strong>Design</strong> – P&D <strong>Design</strong> é o<br />
maior congresso em design do Brasil. Esse evento é realizado a cada dois anos, reunindo<br />
pesquisadores das mais diversas especialidades. A participação do design de moda ao<br />
longo das edições tem crescido consideravelmente, representando cerca de 7% do total da<br />
produção total do evento (Figura 03).<br />
Figura03: Infográfico da produção em moda no P&D <strong>Design</strong> por edição do P&D <strong>Design</strong>.<br />
Como visto na Figura 03, a produção científica em design de moda é crescente nesse<br />
evento. Ressalta-se aqui que,dos 146 artigos analisados, 56 foram realizados com participação<br />
de voluntários, e nenhum desses mencionou qualquer critério ético.<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Considerações éticas na pesquisa em design de moda<br />
CIPED<br />
O Congresso Internacional de Pesquisa em <strong>Design</strong> – CIPED conta com a participação<br />
de pesquisadores de diversas áreas do design, em nível internacional. A análise bibliométrica<br />
permitiu identificar 95 artigos relacionados à moda ao longo das edições de 2003 a 2009, o<br />
que representa 10,4% da produção total (Figura 04).<br />
Figura04: Infográfico da produção em moda por edição do CIPED.<br />
Nota-se um crescimento vertiginoso das publicações em moda nesse evento. A<br />
participação de voluntários se deu em 33 dos 95 estudos publicados e, em apenas um deles,<br />
na edição de 2009, foi identificada a adoção de critérios éticos, com a utilização simultânea de<br />
um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e submissão do projeto de pesquisa<br />
a um Comitê de Ética em Pesquisa (CEP).<br />
Ergodesign<br />
O Congresso Internacional de Ergonomia e Usabilidade de InterfacesHumano-tecnologia<br />
– Ergodesign surgiu por iniciativa da pesquisadora Anamaria de Moraes e colaboradores, no<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 302
Considerações éticas na pesquisa em design de moda<br />
Rio de Janeiro, em 2001. Éum dos principais congressos em ergonomia e design do Brasil,<br />
reunindo pesquisadores de diversas regiões e áreas temáticas.A análise bibliométrica permitiu<br />
identificar 36 artigos relacionados à moda ao longo de todas as edições, o que representa<br />
5,2% da produção total (Figura 05).<br />
Figura05: Infográfico da produção de artigos em moda, por edição do Ergodesign.<br />
Como visto na Figura 05, a produção científica em design de moda está num patamar<br />
relativamente estável nesse evento. A participação de voluntários se deu em 24 dos 36 estudos<br />
publicados, com a menção a questões éticas em apenas dois deles, ambos na edição de<br />
2009. No entanto, embora tenham utilizado o TCLE, apenas um deles relatou a aprovação dos<br />
procedimentos por um CEP.<br />
Considerações finais<br />
O presente estudo propôs contextualizar a pesquisa em design de moda no Brasil,<br />
sob o ponto de vista dos critérios éticos envolvidos nos estudos científicos que envolvem a<br />
participação de seres humanos. É importante destacar que o caráter desse artigo é meramente<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Considerações éticas na pesquisa em design de moda<br />
informativo, com o intuito principal de ressaltar a importância da discussão e consideração<br />
dessa necessidade na metodologia de pesquisa científica. Também não se trata de questionar<br />
a validade ou imperfeições da norma, cuja análise merece ser discutida em profundidade em<br />
outra ocasião.<br />
Diante do proposto foi traçado um breve panorama dos conceitos intimamente<br />
relacionados: moral e ética. Embora essa questão remonte a Antiguidade, com o código de<br />
Hipócrates, apenas a partir da Segunda Guerra Mundial foi esboçado um regimento com<br />
amplitude normativa. No Brasil, a Resolução Nº 196/1996 do Conselho Nacional de Saúde<br />
tem quase a mesma longevidade do P&D <strong>Design</strong>, no entanto são recentes e raros os artigos<br />
científicos que mencionaram preocupações do seu escopo e, muito mais raros os que de fato<br />
a atendem.<br />
Destaca-se que, de maneira geral, esse deve ser um questionamento inerente da<br />
pesquisa em design, pois o mesmo se utiliza de metodologias advindas de diversas outras<br />
áreas do conhecimento, como a Antropologia, a Sociologia e até mesmo Ciências da Saúde<br />
e que, comumente, envolvem participação humana. Para á especialidade do design de moda<br />
não é diferente, por isso buscou-se primeiramente, realizar uma breve abordagem histórica e<br />
teórica da área, demonstrando seu imenso potencial de crescimento.<br />
A moda lida com valores sociais e culturais, e por tratar de produtos em contato tão<br />
próximo com o ser humano, parece se utilizar de abordagens a indivíduos como meio de<br />
obter parâmetros projetuais ou desvendar questões teóricas. Essa “ferramenta” metodológica<br />
proporciona resultados mais confiáveis para compreender as questões que envolvem o design<br />
de moda e sua interferência social, tecnológica e cultural.<br />
Como pôde ser observado, em todos os eventos analisados no presente estudo, houve<br />
uma expansão na pesquisa em design de moda. Os números demonstram um amadurecimento<br />
do setor, com importante participação junto a outras áreas do design. No entanto, assim<br />
como em todas as outras especificidades do design, há de se considerar um constante<br />
aprimoramento e rigor metodológico, sobretudo no que trata a participação humana em seus<br />
procedimentos e, nesse aspecto, a preocupação ética ainda parece incipiente.<br />
Destaca-se que os eventos analisados pareceram não exigir dos participantes (autores /<br />
coautores) quaisquer tipos de considerações quanto aos tópicos descritos no presente estudo.<br />
Nesse sentido é importante destacar que o presente estudo não questiona o mérito dos comitês<br />
científicos e tampouco os seus procedimentos de análise, seleção e aceite para publicação<br />
dos artigos analisados. Pelo contrário, apenas procura demonstrar uma particularidade de<br />
uma determinada área do conhecimento científico, que como qualquer outranecessita de uma<br />
ampla abordagem e discussão, já que o tema não deixa de ser polêmico e complexo.<br />
O presente artigo também não teve a pretensão de discutir a validade ou aplicabilidade<br />
da Resolução Nº 196/1996do CNS em estudos na área do design de moda, em toda a sua<br />
diversidade de abordagens existentes. Pretendeu apenas verificar se há um questionamento ou<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Considerações éticas na pesquisa em design de moda<br />
uma preocupação no que concerne à participação humana nesses estudos. Como exemplo,<br />
foi citado um estudo onde foi garantido aos participantes o sigilo de suas informações. Assim,<br />
mesmo não atendendo plenamente aos critérios éticos normativos, foi demonstrada uma<br />
preocupação com a integridade dos participantes.<br />
Os resultados desse estudo são relativos a 1021 artigos em design de moda, nos<br />
diversos eventos analisados. Os dados corroboram aqueles obtidos por Paschoarelli et al.<br />
(2008), pois foi encontrada uma expressiva taxa de participação de voluntários nas pesquisas<br />
científicas, representando um total de 216 artigos (21,15% do total). Considerações a critérios<br />
éticosainda são escassas, ocorrendo em apenas 6 artigos e, dentre esses, a submissão<br />
a um CEP foi relatada em apenas 3 casos (0,3% do total). É importante destacar que os<br />
resultados verificados no presente estudo, não indicam necessariamente o não cumprimento<br />
das exigências éticas, mas sim que, não foram mencionados tais procedimentos de pesquisa<br />
quando da descrição da metodologia empregada.<br />
Nesse aspecto, é importante destacar que os dados levantados referem-se apenas a<br />
uma das especialidades do design (a moda), no entanto, partiu de uma inferência a partir de<br />
estudo mais amplo e que, portanto, as ressalvas realizadas aqui reafirmam as anteriores e se<br />
aplicam a qualquer domínio do design. De maneira geral, a pesquisa em design de moda já<br />
conta com iniciativas quanto aos aspectos éticos, demonstrados em alguns poucos estudos,<br />
os quais já relatam preocupações com consentimento dos participantes ou quanto ao uso das<br />
informações obtidas.<br />
Um aspecto notável é que, embora fossem encontrados indícios de participação<br />
de sujeitos em vários estudos, muitos deles não expuseram os resultados dessa interação<br />
diretamente. Dessa forma, vários artigos parecem deixar claro que a abordagem a um indivíduo<br />
foi meramente para coletar informações a respeito do mercado, das necessidades do usuário<br />
ou simplesmente para auxiliar na geração de ideias, o que não os exime de acatar os princípios<br />
éticos da pesquisa científica.<br />
Também foi notado que grande parte das fotografias utilizadas na produção dos<br />
artigos analisados (quer abordem humanos ou não) permite a identificação do sujeito. Embora<br />
possivelmente tenham sido publicadas com autorização do indivíduo, pode ser interessante<br />
uma postura mais segura do pesquisador, como desfocar os rostos nas imagens, o que não<br />
abriria margem para questionamentos futuros.<br />
De qualquer forma, discussões sobre os conceitos de ética e moral são muito vastos<br />
e ainda serão alvo de muitas publicações, não se pretendendo aqui elucidar todos os seus<br />
termos e particularidades. Quanto à história da moda, omissões possivelmente foram feitas,<br />
mas como resultado de síntese de um ponto de vista que buscou apenas posicionar e entender<br />
a importância da área junto ao conjunto de especialidades do design,bem como outras áreas<br />
do conhecimento.<br />
Os resultados demonstram que é necessária uma ampla discussão sobre o assunto, quer<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Considerações éticas na pesquisa em design de moda<br />
seja pela adoção dos critérios, quer seja pela sua menção quando da publicação das pesquisas<br />
da área. Nesse sentido, destaca-se que ainda há muito espaço para aperfeiçoamentosno<br />
desenvolvimento de estudos de caráter científico na área do design de moda, o que pode ser<br />
considerado inerente a uma área do conhecimento recente e que ainda traça os caminhos<br />
para sua consolidação.<br />
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CALçADOS DESEJáVEIS PARA MuLhERES PORTADORAS DE<br />
DEFICIêNCIA FíSICA:<br />
uM DESAFIO DESEJáVEL PARA OS DESIGNERS DE CALçADOS<br />
Mariana Rachel Roncoletta; Doutoranda: FAU/USP; Docente: <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />
mariana_rachel@roncoletta.com<br />
Resumo<br />
Este artigo discute as funções estéticas e simbólicas do design<br />
de calçados para mulheres portadoras de deficiência física.<br />
Combinamos os estudos fenomenológico e de caso conforme o<br />
Código de Ética de Pesquisa da CONEP – Resolução 196/96 para<br />
realizar entrevistas semi-estruturadas que apresentou imagens<br />
e produtos. As usuárias revelaram os desejos por calçados<br />
que remetam à sensualidade e à feminilidade como diretrizes<br />
fundamentais da pesquisa projetual do design de calçados para<br />
mulheres com necessidades especiais. Concluímos que a adoção<br />
destas diretrizes conceituais no desenvolvimento de calçados<br />
podem aprimorar a qualidade de vida de nossas usuárias com<br />
relação ao bem estar social.<br />
Palavras-Chave: design de calçados; deficiente físico; imagem<br />
pessoal<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Calçados desejáveis para mulheres portadoras de deficiência física: um desafio desejável para os designers de calçados<br />
Introdução<br />
O presente artigo possui como objetivo descrever os desejos e anseios das usuárias<br />
portadoras de deficiência física do aparelho locomotor com diferença de membros inferiores<br />
entre 2 a 5 cm com relação ao objeto de design de moda - calçados. Este estudo inicia-se<br />
com a vivência das usuárias entrevistadas.<br />
“Nem coisa, nem ideia, o corpo está associado à motricidade, à percepção, à<br />
sexualidade, à linguagem, ao mito. À experiência vivida, à poesia, ao sensível<br />
e ao invisível, apresentando-se como um fenômeno que não se reduz à<br />
perspectiva de objeto...”. Merleau-Ponty i (1994) apud Nóbrega (2000, p. 101).<br />
Observamos o corpo que se movimenta na passarela da vida, o corpo do outro. Este<br />
corpo que manca, ao subir e ao descer dos movimentos de seus quadris, aquele que rebola<br />
e pisa pelas pontas dos pés. Corpo este que balança o próprio olhar, num sobe e desce<br />
sinuoso, e que, claro, atrai o nosso olhar.<br />
Corpo meu, corpo seu, corpo do outro encontram lugar de destaque na obra<br />
Fenomenologia da Percepção, de Merleau-Ponty, que privilegia o mundo das experiências<br />
vividas como primeiro plano da configuração do ser humano e do conhecimento pela<br />
percepção. A percepção fenomenológica é dotada de significação, tem sentido na nossa<br />
história de vida e faz parte da nossa experiência, depende da nossa vivência corporal, das<br />
situações de nossos corpos. É a forma de comunicação que estabelecemos com os outros e<br />
com as coisas, envolve nossa personalidade, desejos e paixões, “é a maneira fundamental dos<br />
seres humanos estarem no mundo”, complementa Chauí (2000, p. 157).<br />
Neste projeto observou-se as relações destes corpos portadores de deficiência física<br />
do aparelho locomotor com o objeto calçado por intermédio do relato das entrevistadas. Suas<br />
falas percorrem todo o artigo com foco nas necessidades físicas, estéticas e simbólicasii do<br />
design de calçados revelando seus desejos e anseios associados ao seu contexto sociocultural<br />
e as suas experiências.<br />
O desejo, na área do design, é compreendido como ato de querer do “sujeito desejante”<br />
nos níveis consciente ou inconscientes. Segundo Portinari in Coelho (2008, p. 70), o desejo<br />
é um hiato, “condicionado à possibilidade de simbolização da falta, depende da ordem da<br />
linguagem”, ou seja, o ato de desejar está relacionado diretamente a querer aquilo que nos<br />
falta como indivíduos socioculturais.<br />
O poder dos calçados para o público feminino<br />
Os sapatos são as peças mais importante do guarda-roupa feminino, segundo uma<br />
pesquisa realizada pelo site brasileiro Chiciii de Gloria Kalil, em 2007. A pesquisa teve o<br />
objetivo de identificar entre calças, blusas, vestidos e sapatos, qual era o item indispensável<br />
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Calçados desejáveis para mulheres portadoras de deficiência física: um desafio desejável para os designers de calçados<br />
na composição do look feminino. Das 1.291 voluntárias, 53% consideraram os sapatos a peça<br />
principal. Para Garcia e Miranda (2005) entende-se por look uma organização na construção<br />
de determinadas roupas, associadas à postura corporal, à atitude, ao cabelo, à maquiagem<br />
e etc. Nossos calçados foram identificados com significativa importância na composição de<br />
nossos guarda-roupas e por consequência de nossos looks.<br />
Podemos ser atraídos primeiro pelas qualidades estéticas de um determinado produto,<br />
como a cor vibrante do calçado, ou sua textura macia ou até mesmo a forma sinuosa e sensual<br />
de um salto fino que nos remete historicamente ao poder e fetiche dos calçados. Fetichismo<br />
entendido como adoração a objetos animados ou inanimados produzidos pelo homem. Steele<br />
in Riello e McNell (2006) afirma que os saltos altos exercem um charme poderoso para muitas<br />
pessoas, são os substitutos dos corselets da Belle Époque, e estão associado à feminilidade<br />
e sensualidade da mulher do século XX.<br />
Os calçados são ferramentas protéticas poderosas no sentido de ampliar os valores<br />
simbólicos de nossos corpos, reforçam identidades pessoais ou coletivas. Argumento<br />
reforçado por Castilho e Martins (2005) ao comentar que a moda é um sistema de linguagem,<br />
um discurso de ideias transformadas em produtos, e que estes, por sua vez, refletem os<br />
valores e preocupações socioculturais pela interpretação subjetiva de seu criador.<br />
Relembramos que os produtos de moda utilizam-se dos fatores emocionais<br />
intensamente, estes por sua vez são associados à estética, segundo Norman (2000). São<br />
objetos lúdicos, capazes de satisfazer o usuário através da estimulação sensorial de seus<br />
sentidos. O design de moda é um território de sonhos e desejos, adquirir um par de sapatos<br />
novos, provavelmente não o será para suprir as necessidades básicas do indivíduo, mais sim<br />
desejo, o mesmo vale para não nos desfazermos dos mesmos.<br />
O design com foco na emoção tenta desvendar estas relações entre usuário e produto:<br />
o porquê do calçado, em vez da blusa, o porquê deste sapato específico, daquela marca,<br />
daquele modelo. As teorias de Jordan (2000) com enfoque no prazer são comumente citadas<br />
pelos pesquisadores do design e emoção.<br />
O prazer, construto abstrato, encontra-se na relação entre o usuário, os produtos e o<br />
ambiente onde tais produtos são usados. Os objetos podem ser vistos como objetos vivos<br />
com os quais o ser humano se relaciona, podem nos deixar alegres, tristes, seguros, ansiosos,<br />
etc. “É necessário não somente ter compreensão sobre como as pessoas usam os produtos,<br />
mas também o papel que tais produtos têm na vida das pessoas.” iv afirma Jordan (2000). O<br />
autor apresenta os quatro tipos de prazer: físico, social, psicológico e ideológico. Sua teoria<br />
está baseada nos estudos antropológicos do canadense Lionel Tiger.<br />
O físico é derivado da relação do objeto com os órgãos sensoriais. O prazer social<br />
é a interação entre várias pessoas proporcionada por um objeto. Já o psicológico está<br />
associado às reações emocionais e cognitivas das pessoas em relação ao produto. Referese<br />
ao prazer da mente em realizar tarefas relacionadas à usabilidade e compatibilidade dos<br />
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produtos considerados amigáveis. O prazer ideológico está associado aos valores estéticos e<br />
éticos de uma determinada cultura, geração ou indivíduo. Encontram-se aqui os valores ecossustentáveis,<br />
responsabilidade social, política e moral.<br />
Sob esta perspectiva, o conforto é abordado tanto como uma relação física entre<br />
usuários e objetos como uma relação social por meio dos objetos. Na segunda, os modismos<br />
podem mais uma vez inserir ou excluir um grupo de indivíduos. Aqueles que não possuem<br />
o último lançamento da Apple podem se sentir constrangidos (desconfortáveis) em relação<br />
àqueles que possuem. Segundo nossas entrevistas as telenovelas brasileiras possuem forte<br />
influência social, ou seja, a informação e cultura de moda que é transmitida para as usuárias é<br />
por intermédio dos canais de comunicação que massificam os modismos e não pelas imagens<br />
das publicidades de moda significando, portanto, que os desejos por calçados sejam aqueles<br />
que as telenovelas demonstram “estar na moda”.<br />
Ao questionarmos nossas entrevistadas sobre conforto dos calçados, as respostas<br />
foram em relação às funções de uso diretamente relacionadas às questões físicas e fisiológicas,<br />
como “este sapato me machuca, faz bolhas, calos”, ou ainda “este outro é muito quente”,<br />
“este aqui aperta meus dedos”, ou “este é o único que consigo usar”. E ainda, “este tem salto,<br />
mas parece que estou descalça”.<br />
O conforto depende, em grande parte, da percepção da pessoa que está experimentando<br />
a situação, não existindo uma definição universalmente aceita. (Lueder, 1983; Slater, 1985;<br />
Zhang, 1991). Recentemente, alguns pesquisadores sugeriram que o conforto está relacionado<br />
com o prazer, o que apresenta fronteiras mal definidas com a usabilidade e a funcionalidade<br />
(Slater, 1995; Jordan, 2000). Simultaneamente, outra corrente assume que o conforto e o<br />
desconforto estão em duas dimensões: o conforto associado a sentimentos de relaxamento e<br />
bem estar, e o desconforto ligado a fatores biomecânicos e à fadiga (Zhang, 1992; Zhang, et<br />
all, 1996; Goonetilleke, 1999). Apesar da falta de consenso acadêmico sobre o tema, nossas<br />
usuárias consideram o conforto um aspecto importante relacionado diretamente ao uso do<br />
objeto, relacionados, portanto, à usabilidade e funcionalidade do produto e ao prazer físico.<br />
No Brasil existe uma análise biomecânica dos calçados realizado pelo Instituto Brasileiro<br />
de <strong>Tecnologia</strong> do Couro, <strong>Arte</strong>fatos e Calçados (IBTeC), responsável pelo “Selo Conforto”. Seus<br />
critérios incluem: a qualidade das costuras, da cola, a resistência dos materiais utilizados,<br />
a espessura da palmilha, os pontos de apoio da alma de aço, os pontos de pressão da<br />
modelagem. Os testes biomecânicos são realizados simulando a marcha normal do corpo<br />
humano, durante determinado tempo. São fundamentais para verificar o conforto físico e<br />
fisiológico dos calçados.<br />
A usabilidade (neologismo traduzido do inglês usability) é definida como “efetividade,<br />
eficiência e satisfação com as quais os usuários específicos atingem metas específicas em<br />
ambientes particulares”, segundo a ISOv apud Jordan (2000, p. 07). Não depende das<br />
características do produto, mas da interação entre usuário, produto e ambiente. O importante<br />
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Calçados desejáveis para mulheres portadoras de deficiência física: um desafio desejável para os designers de calçados<br />
é como usar um produto para fazer alguma coisa. A usabilidade tende a ser limitada, defende<br />
o autor, os critérios de avaliação tendem a enxergar os produtos como ferramentas das quais<br />
os usuários realizam tarefas.<br />
Martins (2006) acrescenta que a usabilidade representa a interface que possibilita a<br />
utilização eficaz dos produtos, tornando-os amigáveis e prazerosos. A autora desenvolveu<br />
a Oikos, metodologia de avaliação de usabilidade e conforto de vestuário: são estudados as<br />
tarefas de vestir e desvestir; a facilidade de manutenção, assimilação, manuseio, os índices<br />
de conforto e os riscos de segurança, ao considerar os aspectos psicofisiológicos do usuário.<br />
Sobre funcionalidade, Silveira (2008, p. 21-39) argumenta: não é uma característica do<br />
objeto em si, “mas uma série de relacionamentos complexos entre hábitos e usos, técnicas<br />
de fabricação e significados simbólicos.” A autora observa a funcionalidade sob o prisma da<br />
linguagem, com foco na semiótica por intermédio de Bürdek (2005), esta é indissociável das<br />
funções estéticas e simbólicas do design de produtos.<br />
Neste sentido, podemos entender que a usabilidade e a funcionalidade estão<br />
relacionadas diretamente ao uso do objeto e suas funções práticas. Correlacionam-se também<br />
com as questões estético-simbólicas do mesmo, ou seja, o uso do objeto depende também<br />
de sua comunicação, do contexto do usuário, de seu repertório de experiências anteriores,<br />
aspectos estes subjetivos.<br />
Muitos produtos desenvolvidos para pessoas com necessidades especiais possuem<br />
uma estética médica ou clínica facilmente reconhecida por meio da aparência destes aspectos.<br />
As aparências de tais produtos comunicam as restrições de seus usuários contribuindo para a<br />
exclusão social, e não para inclusão. Uma situação social de desprazer e desconforto para o<br />
usuário, caso dos sapatos para diabéticos que, por sua aparência, denunciam a restrição do<br />
usuário, um benefício emocional de valor negativo, acrescenta Roncoletta (2009a).<br />
Devemos acrescentar que muitas mulheres sacrificam a saúde de seus corpos pelo<br />
poder mágico destes aspectos estéticos e simbólicos. As nossas entrevistadas não o fazem<br />
mais, admitem que já sacrificaram seus corpos, mas atualmente procuram artefatos mais<br />
equilibrados entre suas funções. Devido às suas restrições físicasvi elas necessitam de<br />
calçados seguros e desejam calçados sensuais. Encontrar estes dois conceitos no mesmo<br />
par de calçados é uma tarefa praticamente impossível e extenuante, acrescenta Karin, uma de<br />
nossas entrevistadas.<br />
Personal Styling, uma ferramenta de comunicação do indivíduo<br />
A palavra styling, no campo do design, deriva do style (estilo), introduzido nos EUA<br />
entre os anos de 1930-40, segundo Coelho (2008), para estimular o consumismo por meio da<br />
maquiagem estética de produtos antigos.<br />
O estilo pode ser representado pela repetição dos aspectos formais encontrados em<br />
determinado produto até que o mesmo seja identificado por tais características atribuídas à<br />
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Calçados desejáveis para mulheres portadoras de deficiência física: um desafio desejável para os designers de calçados<br />
autoria do produto ou à época. Para o autor, a palavra estilo ainda pode ser empregada para<br />
representar valores socioculturais atribuídos a determinado produto.<br />
Na área de moda, segundo Roncoletta (2009b) o styling é considerado a maneira de<br />
comunicação do conceito de uma marca, editorial ou indivíduo. Ferramenta de comunicação<br />
simbólica, é a criação do conceito da imagem de moda: o como a imagem é elaborada envolve<br />
a seleção do suporte (casting vivo ou inanimado), ambientação cenográfica, edição dos looks<br />
(roupas, acessórios, cabelo, maquiagem), atitude (coreografia) e, inclusive, trilha sonora<br />
inseridas num determinado contexto. Estes elementos compõem o conceito da imagem, que,<br />
na moda, tende a ser valorizado. Nos desfiles, representa o conceito da marca; nos editoriais<br />
das revistas, a interpretação daquele título sobre determinado assunto; já na esfera pessoal,<br />
representa a forma de comunicação do indivíduo. Esta pesquisa explora a comunicação do<br />
indivíduo, conhecido na área de moda pelo termo em inglês: personal styling.<br />
Relembramos que, na pós-modernidadevii , a comunicação pessoal não está<br />
necessariamente relacionada a um único estilo: podemos querer ser um determinado<br />
personagem num dia, e vestir outro personagem em outra ocasião. O antropólogo Ted Polhemus<br />
(1994) cunhou o termo Supermercado de Estilos que já apontava para estas possibilidades.<br />
Representamos diversos personagens durante nossas vidas, não pertencemos a um único<br />
grupo social, ou a um único estilo de representação visual. Neste sentido, o styling, forma<br />
de comunicação imagética, representa nossas imagens variáveis de acordo com diferentes<br />
contextos em diferentes situações.<br />
Nelly, outra de nossas entrevistadas, inicia nossa conversa comentando: “Nós somos<br />
um sem roupa nenhuma, sem sapato nenhum, mas nós somos outro, um ser social que quer<br />
acertar sua própria imagem.” Acertar sua própria imagem, comunicar através do look aquilo<br />
que o indivíduo gostaria de comunicar é entendido na área de moda como styling.<br />
O calçado faz parte da composição do conceito do look. Solicitar que nossas usuárias<br />
usassem botas ortopédicas no baile de formatura, ou durante seu próprio casamento, ou até<br />
mesmo numa reunião de negócios é NÃO permitir que elas possam assumir os personagens<br />
que queiram. É admitir que os portadores de deficiências físicas não podem construir<br />
imagens lúdicas e poéticas de si mesmos. É negar-lhes o poder de construir suas próprias<br />
representações simbólicas de acordo com seus valores estéticos, sociais, políticos e morais<br />
e, portanto, de acertar sua própria imagem social. Neste sentido, a moda por intermédio do<br />
styling pessoal, pode ser positiva, proporcionando prazer social, psicológico e ideológico/<br />
intelectual ao construir personagens.<br />
Materiais e métodos<br />
Estudo fenomenológico com enfoque nas experiências e vivências das usuárias com<br />
relação as funções práticas dos calçados combinado com pesquisa de campo. Utilizamos<br />
imagens, produtos e entrevistas semi-estruturadas com foco nos aspectos subjetivos –<br />
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estéticos e simbólicos do design de calçado com o objetivo de identificar os valores, desejos<br />
e anseios das usuárias em potencial.<br />
Realizamos as entrevistas nas casas das usuárias, para que assim pudéssemos conhecer<br />
alguns valores subjetivos. Visitamos seus guarda-roupas no intuito de registrar as adaptações<br />
dos calçados realizadas pelas mesmas. As usuárias foram indicadasviii pelos ortopedistas e<br />
fisioterapeutas parceiros desta pesquisa nos aspectos físicos, clínicos e ergonômicos dos<br />
calçados. Foram selecionadas participantes que possuíssem diferença de membros inferiores<br />
entre 2 a 5 cm, independente de suas patologias, uma vez que, precisavam de compensações<br />
nos calçados para equilibrar a diferença entre seus membros inferiores.<br />
Solicitamos que as entrevistadas assinassem o “Termo de Consentimento Informado”,<br />
conforme a Resolução 196/96 do Código de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do<br />
Conepix , que nos permite utilizar seus nomes, publicar os depoimentos com fotos de seus<br />
pertences e elementos audiovisuais. Alguns detalhes das entrevistas foram omitidos por<br />
solicitação dos participantes desta pesquisa. Todos os sujeitos da pesquisa obtiveram um<br />
retorno da pesquisadora para que aprovassem a publicação do material e também para que<br />
conhecessem os resultados desta pesquisa.<br />
A pesquisa estruturou-se de maneira a permitir que o usuário fizesse seus comentários<br />
com relação às dificuldades e os benefícios encontrados nos calçados, requisitos físicos,<br />
comentasse seus desejos e vontades, demonstrasse seus calçados e soluções de adaptações.<br />
Falassem sobre marcas, formas, cores, ou ainda atributos estéticos que lhes fossem desejáveis.<br />
Por último, solicitamos que opinassem livremente sobre os calçados transformáveis das figuras<br />
1 a 6 e sobre as experiências da autora das figuras 7 e 8.<br />
Fig. 1: Sheila’s Heels –<br />
desenvolvido em 2005 por uma<br />
seguradora de carros inglesa,<br />
possui variação de 2 alturas, é<br />
comercializado na Inglaterra. Custo<br />
aproximado de 300 libras o par.<br />
Fonte: site Sheila’Insurece.<br />
Fig. 2: Footloose – patente de<br />
Marte den Hollander, estudante<br />
de <strong>Design</strong> Industrial em Delf –<br />
Holanda, desenvolvido em 2006.<br />
Ainda não foi comercializado.<br />
Fonte: site Virtual Shoes Museum.<br />
Fig. 3: 38degrees – desenvolvido<br />
em 2004 pelo estudante de pósgraduação<br />
Wei-Chieh Tus,do<br />
Brooklyn Institute, varia em 6<br />
alturas de salto apertando o botão<br />
cinza. Não está à venda. Fonte:<br />
site NY Times<br />
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Calçados desejáveis para mulheres portadoras de deficiência física: um desafio desejável para os designers de calçados<br />
Fig. 4: Sophie Cox – trabalho de graduação em design de produtos da australiana em 2004. Fonte: blog<br />
GizMag.<br />
Fig. 5: Hilo Shoes - projeto iniciado em 2000, comandado pela designer de moda Rosemary Wallin, recebeu<br />
recentemente 500.000 libras para o desenvolvimento industrial do produto. Fonte: site Britsh Council.<br />
Fig. 6: Camileon - desenvolvidos por Donna e David Handel, existem em vários modelos e são comercializados<br />
desde 2004 nos EUA. Custam de US$ 210, 00 a 350,00. Fonte: site Camileon Heels.<br />
Com o auxílio destas imagens, verificamos alguns aspectos relacionados aos quesitos<br />
estéticos do objeto, como cores, formas e materiais de confecção. A adaptação do calçado<br />
Mercadal (fig. 7), utilizada como objeto tridimensional em conjunto com o protótipo (fig. 8),<br />
construído pela autora durante o curso de extensão de design de calçados da FASM, são<br />
indispensáveis para percepções táteis de materiais, construções de formas e análise de<br />
composição cromática, além dos requisitos ergonômicos utilizados na construção deste<br />
calçado. Estes objetos permitiram, também observações relacionadas às questões de prazer<br />
social.<br />
Vale ressaltar que, devido às diferenças de tamanho nas numerações de pés e de<br />
membros inferiores, as entrevistadas não puderam usar os calçados: esta é uma limitação do<br />
método de nossa pesquisa. Os aspectos levantados nesta pesquisa com relação às funções<br />
de uso do objeto vieram de depoimentos relacionados às suas próprias experiências com<br />
calçados anteriores. Alguns aspectos subjetivos também foram levantados através destas<br />
experiências.<br />
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Calçados desejáveis para mulheres portadoras de deficiência física: um desafio desejável para os designers de calçados<br />
Fig. 7: A vista frontal dos sapatos adaptados<br />
simulando o movimento da macha. Fonte: a<br />
autora.<br />
Discussão: A voz das usuárias<br />
Fig. 8: Calçado construído pela autora de couro macio,<br />
com salto de madeira e solado antiderrapante; possui a<br />
diferença de altura de 3cm, sendo 1cm na planta e 2cm<br />
de salto. Fonte: a autora.<br />
Nossas entrevistadas relatam a dificuldade de fazer as adaptações sugeridas pelos<br />
ortopedistas nas casas ortopédicas. O procedimento costuma acontecer da seguinte maneira:<br />
de posse da receita médica, elas procuram as casas ortopédicas que cobram por centímetro,<br />
acrescenta Nelly, e confeccionam o produto sem a menor preocupação estética. “... E além do<br />
mais, jamais consegui usar o produto, era feio e me machucava e ainda paguei uma fortuna”.<br />
Estas afirmações nos remetem à importância de investigar holisticamente a relação entre um<br />
objeto de design e seu usuário para conhecer seus anseios, desejos e vontades é até mesmo<br />
suas decepções.<br />
Para Nelly não poder variar de calçados para acompanhar suas próprias roupas e,<br />
assim, escolher o personagem do dia-a-dia, era inconcebível. Ela nos conta que sua relação<br />
com os calçados iniciaram-se na infância:<br />
Quando tinha 7 anos de idade sua família foi expulsa do Egito e não podiam retirar<br />
muitas coisas: “Meu pai mandou fazer 2 pares: um vermelho, para passear, e um marrom, para<br />
ir para a escola... o sapateiro fez uma botina, um coturno de exército com fivela lateral que ia<br />
durar 3 gerações: somos em 3 meninas. Eu os usei por muito tempo... não suportava mais<br />
aquilo... na época, as minhas colegas já usavam sapatinho de boneca, de verniz... era lindo.<br />
Eu era apaixonada por aqueles sapatos tão femininos. Eu tentava acabar com os meus mais<br />
rápido, os arrastava no chão, e eles não gastavam nunca: eu os molhava para estragar. Meu<br />
pai comentava: não se preocupe, minha filha. Vou secá-lo no forno. Até que um dia molhei os<br />
dois, e fui de Alpargatas para a escola; meu pai os esqueceu no forno e os 2 pares torraram.<br />
Ele chorava, e eu ria, e ria... Então, meu amor pelos sapatos começou aí,... Economizei o<br />
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Calçados desejáveis para mulheres portadoras de deficiência física: um desafio desejável para os designers de calçados<br />
dinheiro do sorvete para comprar meu primeiro sapatinho vermelho de alcinha e botão. Era<br />
macio, tinha um cheiro delicioso, e eu dormia tão feliz do lado do sapato.”<br />
Podemos observar que os sapatos têm um valor especial na vida de Nelly; ela<br />
necessitava solucioná-los depois da fatalidade de seu acidente. Seu armário possui 42 pares<br />
de calçados adaptados, até nossos encontros. Suas primeiras experiências foram com tênis<br />
de cano alto; por serem mais fechados, davam suporte à nova movimentação de seu corpo,<br />
protegendo os tornozelos e diminuindo a probabilidade de virar os pés para o lado. Ela já<br />
tinha resolvido as questões físicas com o tênis de cano alto, mas sua paixão por calçados,<br />
associada a diversas situações sociais, como festas, casamentos, ou até mesmo caminhadas,<br />
exigiam outras soluções. As figuras 9, 10, 11 e 12 demonstram algumas destas adaptações<br />
realizadas pela entrevistada.<br />
Fig. 9: Acima à esquerda, sua primeira sandália.<br />
Fig. 10: Acima à direita, a Birkenstock.<br />
Fig. 11: Do lado esquerdo, a sandália de<br />
casamentos e para dançar. Fig. 12: Bota adaptada.<br />
Fonte: a autora.<br />
Todo o seu depoimento é relatado por vontade e desejo de ter diversos pares de<br />
calçados: às vezes, sandálias de salto alto ou tênis para caminhar, ou ainda um determinado<br />
modelo para ir a uma festa, ou aquele desejo por plataformas, ou a vontade por determinadas<br />
cores - preto e vermelho são suas preferidas. O depoimento de Nelly reforça os aspectos<br />
subjetivos relacionados ao prazer como premissas básicas do desenvolvimento projetual. Para<br />
ela, um sapato é uma maneira de se expressar, um vínculo emocional que lhe traz satisfação,<br />
bem estar, apreciação, dentre outros valores atribuídos pela entrevistada. Nelly está preocupada<br />
com segurança e usabilidade, mas não são estes aspectos que a fazem procurar um calçado<br />
e, sim, a elegância das formas, a fluidez das linhas, o desejo por diversas cores de alguns para<br />
determinadas ocasiões, ou ainda vontade de ter um determinada forma, ou a necessidade<br />
de possuir uma bota apropriada, seja ela para inverno ou para caminhada. Seu fetiche por<br />
calçados é evidente, e suas aquisições são baseadas no desejo.<br />
Vanessa só é vista como portadora de restrições físicas pelo movimento de seu corpo.<br />
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Calçados desejáveis para mulheres portadoras de deficiência física: um desafio desejável para os designers de calçados<br />
Durante sua marcha, ela manca um pouco e seu corpo se projeta para os lados; outras marcas<br />
reconhecíveis pelo outro seriam através de suas cicatrizes. Não existe mais uma aparência física<br />
que possa denunciá-la como deficiente física, conforme a fig. 13. Suas limitações encontramse<br />
no movimento de seu corpo, e talvez seja por isso que estas questões são fundamentais<br />
para ela.<br />
Fig. 13 e 14: Na imagem da esquerda podemos observar a bota feita sob medida com plataforma de 14<br />
cm utilizada na perna arqueada de Vanessa. Na imagem 71 da direita, observamos a solução realizada com<br />
sobreposições de solas de Havaianas da mesma cor de seu vestido de festa. Fonte: doação da entrevistada.<br />
Com relação aos aspectos estéticos, podemos observar o cuidado com as cores<br />
selecionadas pela usuária ao adaptar sua Havaiana em tons de verde e branco que se<br />
harmonizam com seu vestido de festa na fig. 14. A composição do styling do look para esta<br />
ocasião especial demonstra o cuidado da usuária com sua aparência: maquiagem, vestido<br />
e chinelos estão cuidadosamente elaborados para simbolizar harmonia e vaidade, para<br />
comunicar o cuidado com sua aparência independente do aparelho Ilizarovx .<br />
Aos aspectos socioculturais, podemos acrescentar ainda o ambiente em que vivia<br />
quando as entrevistas foram realizadas. Vanessa é formada em biomédicas com TCC que<br />
discute a acessibilidade em trilhas para portadores de restrições físicas. Em seu ambiente<br />
de estudo, “professores doutores e alunos são largados [se refere à preocupação com a<br />
aparência deles] usam bermuda e Havaianas”, ainda acrescenta que o melhor calçado pra ela<br />
são as Havaianas, que permitem movimento e ainda são leves, o peso dos sapatos também<br />
é uma grande preocupação.<br />
Seu critério de escolha é muito claro: o calçado precisa proporcionar segurança<br />
e equilíbrio, em primeiro lugar. As experiências de seu próprio corpo remontam às suas<br />
preocupações com os aspectos de funcionalidade e usabilidade de qualquer produto<br />
associados ao prazer físico e ao conforto.<br />
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Calçados desejáveis para mulheres portadoras de deficiência física: um desafio desejável para os designers de calçados<br />
Jacqueline, outra jovem entrevistada argumenta que as botas ortopédicas são<br />
vergonhosas. Ela não utiliza calçados ortopédicos e nem faz adaptações. Durante sua<br />
formatura procurou incansavelmente uma sandália que a deixasse segura e que ao mesmo<br />
tempo fosse delicada e sensual. Como uma garota romântica como Jacqueline poderia sentirse<br />
uma princesa de botinha ortopédica na sua noite de formatura? Ela prefere passar por outra<br />
cirurgia do que usar botas ortopédicas: “são vergonhosas”, diz, indignada.<br />
Não podemos ser hipócritas, temos que assumir a nossa parcela de culpa dentre<br />
aqueles que fazem moda e sugerem para garotas como Jacque que só se sintam bem em<br />
ocasiões especiais, nas alturas do salto alto e fino. A indústria cultural do modismo é cruel.<br />
Nós culturalmente impulsionamos este desejo, principalmente nestas ocasiões especiais. As<br />
campanhas e desfiles de moda, as cerimônias do Oscar, diversos filmes e seriados de TV,<br />
inclusive telenovelas brasileiras mostram mulheres usando saltos altos e muitas vezes finos.<br />
Os saltos finos e bicudos representam poder e sedução neste imenso universo midiático que<br />
faz com que garotas como Jacqueline só se sintam poderosas nas alturas de um salto alto.<br />
Encontrar um par de calçados que proporcione um equilibro entre as funções é uma<br />
tarefa praticamente impossível e extenuante. Karin, outra entrevistada comenta: “...Imagina,<br />
você vai com o marido, roda e ele lhe pergunta, não é possível que você não achou um par<br />
de sapatos? Como você tem que comprar 2 pares? Aquilo vira o drama e você perde toda<br />
vontade, já é duro achar um que não seja duro, não tenha abinha atrás, que não me aperte,<br />
que segure... então vira um drama. O drama do sapato.”<br />
Após a dificuldade de escolher e adquirir um par de sapatos, a maioria das usuárias<br />
ainda precisam transformá-los - levar ao sapateiro para realizar as modificações necessárias,<br />
as mais comuns são: acrescentar solado antiderrapante, acrescentar tornozeleiras para<br />
proporcionar maior sensação de segurança e ainda fazer modificações nos saltos (trocá-los)<br />
por saltos mais estáveis e de diferentes tamanhos, conforme as diferenças entre membros<br />
inferiores.<br />
O ato de escolher, comprar e usar calçados são negativos para Karin, sob a perspectiva<br />
do prazer psicológico, que afetam não somente a usuária mas também sua família. Os aspectos<br />
do conforto físico são mencionados pela entrevistada como fator essencial que proporcionem<br />
segurança, porém, podemos perceber em seu discurso que a sensualidade dos calçados é<br />
um fator tão importante quanto o conforto físico, ela acrescenta: “Ah, o salto. A mulher não<br />
vive sem”, comenta sorrindo. “Eu adoraria usar um salto, não precisa ser muito alto... aqueles<br />
sapatos bem bicudos. Aquele que eu ia falar humm, ai que lindo! É o clássico, o preto. Eu<br />
tenho um guardado, da Franziska Hübner, só pra me lembrar...é o meu conceito de sapato<br />
lindo”. O scarpin de salto alto é representante simbólico de um personagem que Karin não<br />
pode e não quer abandonar, mesmo sem poder usar seu scarpin, ela não se desfaz.<br />
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Calçados desejáveis para mulheres portadoras de deficiência física: um desafio desejável para os designers de calçados<br />
Considerações finais: a procura de calçados poéticos<br />
As nossas usuárias identificaram que os sapatos devem ser fáceis de calçar e descalçar,<br />
e fáceis de limpar; confeccionados em materiais macios, que permitam a transpiração, e<br />
que suas costuras não as machuquem. Devem também proporcionar segurança, isto é, os<br />
calçados devem estar firmes em seus pés, bem presos pelo cabedal , seus saltos devem<br />
proporcionar estabilidade ao marchar com sola antiderrapante, não provocando a sensação<br />
que podem virar o pé, e, por último, seria agradável poder sentir o chão, acrescentam.<br />
Durante nossas entrevistas, verificamos que o contexto do portador de deficiência<br />
física está muito aquém dos universos do design ou da moda. Encontramos ainda muito<br />
preconceito social. As vozes das usuárias relataram diferentes preocupações que as rodeiam<br />
constantemente, são elas: inserção sociocultural, inclusão no mercado de trabalho, preconceito,<br />
mobilidade, possibilidade de educação, acesso e falta de informação.<br />
Esta pesquisa possui como foco as relações entre usuárias e seus calçados, isto é,<br />
como as mulheres se relacionam com o objeto calçado e porque eles são tão importantes em<br />
suas vidas. O estudo fenomenológico utilizado trouxe-nos a abrangência acima citada como<br />
variáveis inesperadas, porém fundamentais na reflexão central deste estudo.<br />
Nossas entrevistadas reforçam a vontade de “se sentir bem no meio social”, o que,<br />
para elas, significa poder construir o styling pessoal, valorizado principalmente em ocasiões<br />
especiais, como as festas, formaturas e casamentos. Elas desejam e necessitam de sonhos<br />
em suas vidas. Sentir-se sensual e feminina é essencial para as usuárias, nestes momentos<br />
de destaque.<br />
O design de moda, representado aqui pelo design de calçados, é uma das ferramentas<br />
que permite construir imagens sociais. A composição de seus looks pode transformá-las na<br />
princesa romântica, essencial para Jacque, ou na rainha do baile, indispensável para Nelly,<br />
ou ainda na empresária poderosa, ressaltada por Karin. Os calçados fazem parte destas<br />
transições de personagens dos quais vivemos. A falta de artigos, combinada com a dificuldade<br />
de encontrá-los ou adaptá-los, é a negação desta possibilidade de se construir personagens;<br />
é abrir portas para a depressão, como Nelly relatou.<br />
Nossas entrevistas apontam para necessidades e desejos completamente distintos,<br />
com relação aos sapatos. O único ponto em comum é a necessidade de conforto físico<br />
proporcionado pelos calçados seguros que não as machuquem. Em relação às necessidades<br />
corporais, os requisitos levantados são muito díspares: diferentes tamanhos de pé (largura<br />
e comprimento) das próprias entrevistadas e entre elas; diferenças de membros inferiores<br />
distintas, ou em pernas distintas e grau de sensibilidade. São corpos únicos, percebidos de<br />
maneiras diferentes.<br />
As questões relacionadas à segurança e à diversificação corporal que foram trabalhadas<br />
na abrangência desta pesquisa já eram requisitos essenciais previsto por nós. As características<br />
de sensual e feminino atribuídas aos calçados, foram extraídas dos depoimentos de nossas<br />
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Calçados desejáveis para mulheres portadoras de deficiência física: um desafio desejável para os designers de calçados<br />
entrevistadas. A sensualidade se encontra no poder de seduzir o outro e de nos auto seduzir<br />
através da excitação dos sentidos. O visual e o tátil são os mais utilizados na área do design<br />
de moda. Materiais macios e suaves, como o couro de ovelha, literalmente acariciam a<br />
sensibilidade tátil de nossos corpos.<br />
O objeto, ou melhor, o calçado com características sensuais e femininas é aquele que<br />
faz com que a usuária se sinta confiante, incluída em relação ao meio social, isto é, que<br />
lhe proporcione benefícios emocionais, prazer social e psicológico, conforme o contexto da<br />
situação. No dia-a-dia, nossas usuárias estão razoavelmente satisfeitas com os modelos<br />
de tênis, sapatilhas e anabelas, se os mesmos permitirem a construção do styling pessoal.<br />
Vale relembrar que estes calçados devem ser adaptados aos seus corpos. Já em ocasiões<br />
especiais, pressionadas, muitas vezes pela indústria cultural, os calçados tipo scarpin ou<br />
sandália de salto alto (mais de 6 cm) ou médio (aproximadamente 4 cm), foram apontados por<br />
nossas usuárias como modelos capazes de transmitir esta confiança, relacionada diretamente<br />
ao poder de sedução feminino. São nestes momentos especiais que elas querem encantar e<br />
fascinar o outro. São estes instantes de estrelas da passarela da vida que as preocupam.<br />
Satisfazer suas necessidades básicas não basta; se fosse assim, ficariam com as botas<br />
ortopédicas. O calçado é um objeto de design de moda que precisa ser variável conforme os<br />
sonhos, vontades e desejos do indivíduo que o utiliza em situações diversificadas.<br />
A possibilidade de possuir alguns pares de calçados para se harmonizarem com<br />
suas roupas e com as ocasiões nas quais se encontram colocam o styling num patamar<br />
de significativa importância. Não é qualquer sapato, mas um sapato de festa, não é uma<br />
preocupação estética, mas uma preocupação com a comunicação de seus look relacionado à<br />
ocasião que se encontra, associada ainda ao e seu estilos de vida e personalidade.<br />
Concluímos que as funções estético-simbólicas dos calçados podem aprimorar a<br />
qualidade de vida de nossas usuárias. Qualidade de vida significa mais do que ser saudável<br />
no aspecto físico, mas, também, no sentido de “se sentir bem”. O bem estar está relacionado<br />
com a possibilidade de se construir imagens pessoais de acordo com nossas vontades,<br />
influenciadas também pela indústria cultural. Poder, sedução e feminilidade são os principais<br />
valores simbólicos atribuídos por nossas entrevistadas aos calçados desejáveis. Os sapatos<br />
fazem com que as mulheres se sintam bem socialmente, proporcionando melhor qualidade de<br />
vida, aprimorando o bem estar.<br />
Encontrar um equilíbrio entre sedução, como melhoria de qualidade de vida social<br />
e recomendações ergonômicas, como melhoria de qualidade de vida através da saúde, é<br />
projetar calçados seguros e sensuais baseado no prazer físico, social, psicológico e intelectual.<br />
Oferecer uma gama de produtos as usuárias deficientes físicas que possa ser utilizada para<br />
comunicar seus desejos e não suas restrições físicas nos parece, sim, fazer design de moda<br />
com responsabilidade.<br />
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Calçados desejáveis para mulheres portadoras de deficiência física: um desafio desejável para os designers de calçados<br />
Notas<br />
i A obra Phénoménologie de la Perception foi publicada originalmente em 1945 pelo filósofo francês<br />
Maurice Merleau-Ponty.<br />
ii Para Löbach (2001), os produtos possuem três funções: a) a função prática – relações entre o<br />
produto e seus usuários no nível fisiológico de uso; b) a função estética – relação entre o produto e o<br />
usuário no nível dos processos sensoriais, um aspecto psicológico da percepção sensorial durante o<br />
uso; e c) função simbólica – determinada pela capacidade psíquica e social de fazer conexões entre a<br />
aparência percebida sensorialmente e a capacidade mental de associação de ideias (símbolos).<br />
iii CHIC, disponível em: http://chic.ig.com.br/materias/444501-445000/444935/444935_1.html.<br />
Acesso em agosto de 2007 a setembro de 2008.<br />
iv “It’s necessary not only to have understanding of how people use products, but also of the wider role<br />
that products play in people’s life” Jordan (2000, p.08) Tradução da autora.<br />
v Referindo-se a ISO DIS 9241-11. ISO – International Standards Organization.<br />
vi Todas as nossas entrevistadas passaram por diversas cirurgias devidos às suas restrições físicas.<br />
Além das cirurgias ortopédicas, são necessários anos de tratamento fisioterapêutico para recuperarem<br />
ou aprimorarem o máximo possível do potencial de força, resistência e equilíbrio muscular. Ainda<br />
são recomendados tratamentos como acupuntura, para alívio de dores, e re-conexões dos eixos<br />
energéticos do corpo; tratamentos como pilates e RPG, para redescobrirem o alinhamento corporal,<br />
e até mesmo a conscientização postural, um tratamento que alia corpo e mente, e refaz as sinapses<br />
cerebrais. São anos de dedicação, que também envolve alto custo financeiro.<br />
vii A sociedade pós-industrial descreve a rápida queda entre o número de operários, a partir<br />
da década de 1970, e o avanço do setor de serviços. “O termo pós-moderno mostra ser um<br />
campo minado de noções conflitantes. Embora de caráter controvertido, consegue porém<br />
caracterizar, melhor do que outros, a cena cultural atual. A predominância de seu emprego<br />
talvez explique porque expressa adequadamente o clima de mudança cultural em que vivemos.<br />
Mas há quem prefira chamar a era atual de modernidade tardia (Ulric Beck), neomoderno<br />
(Rouanet), hipermodernidade (Lipovetsky) ou – para se contrapor à rigidez da modernidade<br />
de outrora denominada sólida – modernidade liquida (Bauman)”. O autor ainda acrescenta: “A<br />
produção [de artefatos] é feita segundo o gosto do consumidor, adaptada aos seus desejos<br />
e necessidades muito específicos, em estado constante de alteração.” Carmo (2007, p. 179).<br />
viii Neste projeto, unimos as opiniões dos sujeitos do Instituto do Pé do Hospital das Clínicas da<br />
Faculdade de Medicina da <strong>Universidade</strong> de São Paulo (HC), da Clínica de Ortopedia e Fisioterapia<br />
(COF), ambas na cidade de São Paulo, e da Clínica Nivaldo Baldo (CNB) - especialista em<br />
fisioterapia para atletas, da cidade de Campinas. Ele trabalha com diferenciação de membros<br />
inferiores desde 1978. O termo sujeito é utilizado pela Comissão de Ética em Pesquisa para<br />
descrever todos os envolvidos, sejam eles usuários, ortopedistas, fisioterapeutas ou designers.<br />
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Calçados desejáveis para mulheres portadoras de deficiência física: um desafio desejável para os designers de calçados<br />
ix Conselho Nacional de Ética em Pesquisa<br />
x Método russo utilizado em alongamento e calcificação ósseas.<br />
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Produção da <strong>Universidade</strong> Federal de Santa Catarina – UFSC.<br />
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<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 323
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São Paulo, 2009. Dissertação (Mestrado em <strong>Design</strong>) – Programa de Pós-Graduação Stricto<br />
Sensu Mestrado em <strong>Design</strong> da <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi – UAM.<br />
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SILVEIRA, Icléia. Usabilidade do vestuário: fatores técnicos e funcionais. Revista <strong>Moda</strong><br />
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Nova York: Berg, 2006.<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 324
ASPECTOS DO DIáLOGO ENTRE DESIGN, ARTE E MODA A PARTIR DE<br />
uMA ANáLISE DOS CALçADOS DO SéCuLO XX<br />
Natalie Rodrigues Alves Ferreira; Mestranda em <strong>Design</strong>: <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />
nativolpe@yahoo.com.br<br />
Cristiane Mesquita; Professora Dra. do PPG em <strong>Design</strong>: <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />
cfmesquita@anhembi.br<br />
Resumo<br />
A partir de uma breve análise da produção em design de calçados,<br />
assim como do uso deste artefato em obras de arte no período<br />
Moderno e na contemporaneidade, este artigo investiga possíveis<br />
diálogos e interseções entre os campos do design, da arte e da<br />
moda ao longo do século XX, apoiada nas ideias de GRANDI,<br />
LIPOVETSKY, McDOWELL e O’KEEFFE.<br />
Palavras-Chave: design de moda; arte; calçados<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 325
Aspectos do diálogo entre design, arte e moda a partir de uma análise dos calçados do século XX<br />
Introdução<br />
Uma análise do artefato calçado, em determinado período da história do século XX e do<br />
início do século XXI, é capaz de nos fazer visualizar contágios e cruzamento de fronteiras entre<br />
linguagens e conceitos de arte, moda e design. Este diálogo é frequente a partir do surgimento<br />
de movimentos artísticos de vanguarda, por meio de criações de moda de costureiros e<br />
sapateiros no início do século, além de estilistas e designers no século XX.<br />
Segundo GUMBRECHT (1998), as primeiras décadas do século XX — denominada<br />
de “Alta Modernidade” — são períodos produtivos na história ocidental, incluindo as artes<br />
com experimentos audaciosos tais como o cubismo, o surrealismo e o dadaísmo, com<br />
manifestações artísticas que rompem com a representação.<br />
Não existe uma definição que imponha limites à arte e seus conceitos são contraditórios<br />
em alguns momentos. Para os modernistas, a arte seria produto de um esforço individual,<br />
enquanto o design seria produto de empreendimento coletivo típico da sociedade industrial.<br />
Em definições mais reducionistas, a arte é considerada “atividade específica que visa<br />
produzir objeto — em geral, de caráter simultaneamente material e visual — capazes de<br />
suscitar uma resposta estética em espectadores através de sua contemplação e fruição” —<br />
podendo ser produzido através de processo artesanal, industrial ou outro qualquer (COELHO,<br />
p.18, 2008).<br />
Para MOURA (2008), a arte tem servido como fonte de pesquisa e referência para a<br />
criação e o desenvolvimento de projetos e produtos na esfera da moda e do design. Vários<br />
artistas na história da arte desenvolveram objetos de moda ou design e talvez utilizem os dois<br />
campos como referência ou foram despertados pelo objeto utilitário para a criação de obras<br />
artísticas.<br />
A criação é livre em todas as direções, tanto na arte como na moda. As relações entre a<br />
moda e design são estreitas, ligadas pelo mundo dos projetos, pelos desejos e estilos de vida<br />
dos usuários. Ambos compartilham da novidade como motivação (MOURA in PIRES, 2008).<br />
Na contemporaneidade, os artefatos e objetos são projetados por designers que os<br />
atribuem diversos significados, que testemunham suas subjetividades e também vínculos<br />
estéticos, culturais e sociais como afirma PRECIOSA (2007).<br />
FIORINI (2008, p.71), descreve que “o design é em sua essência um processo criativo<br />
e inovador, provedor de soluções para problemas de importância fundamental para as esferas<br />
produtivas, tecnológicas, econômicas, sociais, ambientais e culturais”. Em seu termo, estão<br />
vinculadas questões expressivas, simbólicas e estéticas e não somente questões produtivas<br />
e técnicas.<br />
Os conceitos de design podem ser baseados no objeto ou no processo. Porém,<br />
não é apenas a união entre estas duas formas a maneira mais coerente de analisar suas<br />
atividades, pois é importante considerar que os produtos desenvolvidos por um determinado<br />
processo podem conter significados não percebidos de forma clara. O objeto pode adquirir<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 326
Aspectos do diálogo entre design, arte e moda a partir de uma análise dos calçados do século XX<br />
além de questões funcionais e estruturais, diversos significados provenientes de necessidades<br />
subjetivas, como os desejos, anseios e expectativas do consumidor. Portanto, estes objetos,<br />
se “inserem no tempo e no espaço, vão perdendo sentidos e adquirindo novos” (FIORINI,<br />
2008, p.34).<br />
As influências da arte moderna na criação do calçado<br />
Em determinados períodos da História da <strong>Arte</strong>, os calçados, assim como outros<br />
componentes da indumentária, eram apenas retratados nas obras de arte. Era o início de um<br />
flerte entre o objeto e a arte. Um exemplo é a pintura “Old Boots”, de 1886, do pintor holandês<br />
Van Gogh (1853-1890). Antes do século XX, pintores se atentavam aos detalhes, mas desde<br />
essa época os calçados eram considerados partes da personalidade humana (McDOWELL,<br />
1989).<br />
A arte se aproxima da moda e a moda da arte em diversos períodos do século XX,<br />
especialmente naqueles momentos em que estão acentuados seus conceitos e criações,<br />
questões do cotidiano e da subjetividade. LIPOVETSKY (1989, p.78), em passagem do livro<br />
“O Império do Efêmero” afirma que não se pode ignorar a influência da arte moderna nas<br />
transformações da moda no início do século XX. As estéticas modernistas, que recusavam o<br />
decorativo e pregavam as linhas puras também influenciam a moda.<br />
No design de calçados, as influências da arte na moda podem ser percebidas de<br />
modo bastante claro. Um dos muitos exemplos são os calçados criados no final década de<br />
1920 e início da década de 1930. São calçados de formas simples e recortes geométricos,<br />
demonstrando inicialmente uma influência do movimento Art Decói . Costureiros e grandes<br />
sapateiros admiravam e homenageavam frequentemente os artistas modernos. Os maiores<br />
exemplos são o costureiro francês Paul Poiret (1879 -1944), a francesa Gabrielle (Coco) Chanel<br />
(1883 -1971), a italiana Elsa Schiaparelli (1880-1973) e o estilista francês Yves Saint Laurent<br />
(1996 - 2008) que, por meio de suas criações, dialogam com grandes artistas e movimentos<br />
de arte, pois “a moda aproximou-se ao mesmo tempo da lógica da arte moderna, de sua<br />
experimentação multidirecional, de sua ausência de regras estéticas comuns” (LIPOVETSKY,<br />
1989, p.125).<br />
Um designer pode confeccionar calçados recorrendo a variados e excêntricos materiais,<br />
utilizando referências culturais e históricas. Duas importantes correntes de vanguarda do início<br />
do século XX influenciaram e dialogaram em diversos momentos com o design e a moda<br />
calçadista. São eles o cubismo e o surrealismo. O cubismo tinha como princípio enfatizar<br />
os aspectos geométricos dos objetos, desviando de uma plástica “realista”. As estruturas<br />
poderiam ser reduzidas a alguns componentes fundamentais, os sólidos geométricos. Alguns<br />
artistas integrantes deste movimento, tais como o artista espanhol Pablo Picasso (1881-1973)<br />
e o francês Georges Braque (1882-1963), argumentavam que seus trabalhos buscavam<br />
múltiplos pontos de vista (AGRA, 2006).<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Aspectos do diálogo entre design, arte e moda a partir de uma análise dos calçados do século XX<br />
Um dos designers de calçados que mais se destacou em criações de calçados que<br />
dialogam com o universo da arte foi o francês André Perugia, nascido em 1893 em Nice, na<br />
França, filho de sapateiro. Aos dezesseis anos abriu sua primeira sapataria e em pouco tempo<br />
inventava novas formas de saltos e cabedaisii com qualidades artísticas e características<br />
ousadas. As senhoras da sociedade, frequentadoras da Riviera Francesa, logo se encantam<br />
com seu trabalho elegante e seu sucesso se firma na parceria com o famoso costureiro Paul<br />
Poiret. André Perugia foi considerado um gênio por suas criações excêntricas e referências<br />
à arte como suas duas sandálias inspiradas (Figura 1 e 2 ) nas obras dos cubistas Picasso e<br />
Braque.<br />
Figura 1: Sapato “Peixe” em homenagem ao cubista Braque, André Perugia, 1931.<br />
Fonte: O’KEEFFE, 1996.<br />
Figura 2: Sandália cubista em homenagem a Picasso, André Perugia, 1950.<br />
Fonte: O’KEEFFE, 1996.<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Aspectos do diálogo entre design, arte e moda a partir de uma análise dos calçados do século XX<br />
O Surrealismo e a <strong>Moda</strong><br />
Figura 3: Sapato “sem salto”, André Perugia, 1937.<br />
Fonte: O’KEEFFE, 1996.<br />
Um dos movimentos das chamadas “vanguardas históricas”, o Surrealismo, apresentou<br />
traços da associação da arte com o comportamento, trazendo a grande novidade de libertação<br />
do inconsciente e negação da própria razão. “Enquanto Salvador Dali explora o inconsciente a<br />
todo custo, sem muita preocupação além de fazê-lo aflorar por imagens, René Magritte (Figura<br />
4) o faz pelo caminho da discussão dos próprios estatutos simbólicos” (AGRA, 2006, p.124).<br />
Figura 4: “O modelo vermelho”, René Magritte, 1937.<br />
Fonte: McDOWELL, 1989.<br />
Para McDOWELL (1989), o Surrealismo é um movimento de arte com senso de humor<br />
particular. Desta forma, não surpreende que os artistas surrealistas da década de 1920 e 1930<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Aspectos do diálogo entre design, arte e moda a partir de uma análise dos calçados do século XX<br />
respondessem muito rapidamente aos absurdos da moda e os utilizassem para declarações<br />
com atitudes modernas. As principais características da abordagem surrealista são o choque<br />
e a surpresa causados pelas justaposições inesperadas dos objetos do cotidiano.<br />
Além de Schiaparelli, o estilista Pierre Cardin (1922), a artista Regina Martino e o designer<br />
espanhol de calçados femininos Manolo Blahnik (1942) dialogaram com o movimento. Cardin<br />
criou um par de sapatos em formato de pés (Figura 5), Martino criou um sapato-árvore e<br />
Manolo criou sapatos-fantasia, como os sapatos-luvas (Figura 6) e os sapatos siameses.<br />
Figura 5: “Men’s Shoes” (1986) de Pierre Cardin.<br />
Fonte: McDOWELL, 1989.<br />
Figura 6: Esboço de “sapato-luva”, Manolo Blahnik, 1982.<br />
Fonte: McDOWELL, 1989.<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Aspectos do diálogo entre design, arte e moda a partir de uma análise dos calçados do século XX<br />
Outro exemplo — talvez o mais conhecido de interseção entre a arte e a moda —<br />
foi a parceria entre a costureira italiana Elza Schiaparelli e o artista do movimento surrealista<br />
Salvador Dalí, que também desenvolveu peças de design como o “telefone lagosta” iii e<br />
“sofá de lábios” iv . Dali desenvolveu e desenhou, além de roupas, acessórios como o famoso<br />
“chapéu-sapato” (Figura 7) e a “bolsa-telefone” para a coleção de outono-inverno de Schiaparelli<br />
de 1937/1938.<br />
O inventor do solado “anabela” — um solado no estilo da plataforma, com salto alto<br />
e sola, porém é uma peça única — e da alma de aço — suporte que se instala no interior da<br />
palmilha para sustentar os saltos femininos — foi Salvatore Ferragamo. O italiano, um dos mais<br />
importantes designers de calçados do século XX, também firmou parceria com Schiaparelli na<br />
década de 1930: “Perugia dava asas a imaginação. O primeiro par do conhecido “sapatosstrech”<br />
surgiu assim. Para eliminar o uso de botões ou fechos que Schiaparelli odiava, ele<br />
simplesmente construiu tiras de camurça lado a lado com tiras plásticas, tão engenhoso<br />
quanto o famoso “chapéu-sapato” (CHAVES in BARROS, 1991, p.22). Schiaparelli também<br />
desenvolveu parcerias com Perugia e Ferragamo, que confeccionou a famosa “monkey-boots”<br />
(Figura 8), em 1938.<br />
Figura 7: Ilustração de Marcel Vertes do “chapéu-sapato” de Elsa Schiaparelli, 1937.<br />
Fonte: McDOWELL, 1989.<br />
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Aspectos do diálogo entre design, arte e moda a partir de uma análise dos calçados do século XX<br />
Figura 8: “monkey-boots”, Elsa Schiaparelli, 1938.<br />
Fonte: http://plasticbox.wordpress.com/2009/05/13/mop-top/, acesso em 16/05/2010.<br />
Um outro exemplo de diálogo é a obra “Original Sin” (Figura 9), pintado por Salvador<br />
Dalí em 1941, apresenta-nos uma mensagem complexa. As botas (velhas e desgastadas, mas<br />
bem cuidadas) foram retiradas às pressas e os pés estão envolvidos pela cobra. Dalí contrasta<br />
o exótico e monótono, levando as botas e os pés descalços como paradigmas do cotidiano<br />
de trabalho do homem, ligado à terra e<br />
às mulheres livres e desembaraçadas, prontas para decolar em mundos exóticos e<br />
românticos (McDOWELL, 1989).<br />
Figura 9: Original Sin, Salvador Dali, 1941.<br />
Fonte: McDOWELL, 1989.<br />
O´KEEFFE (1996) destaca a importância dos calçados dizendo que estes sempre<br />
refletiram o estatuto social e a situação econômica de quem os calça, porém não refletem só<br />
a história social, mas também através do calçado encontramos um registro pessoal através<br />
de memórias.<br />
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Aspectos do diálogo entre design, arte e moda a partir de uma análise dos calçados do século XX<br />
Exemplos de diálogos entre o design, arte e moda na pósmodernidade<br />
Além de artistas que adentraram nos campos do design e moda como Salvador<br />
Dalí, designers como Beth Levine (1914-2006) enveredam pelo campo das artes, criando<br />
sapatos únicos. Alguns sapateiros demonstravam estar dispostos a “fazer arte”, com modelos<br />
excêntricos como os saltos vírgula e bola, extremamente criativos, concebidos pelo sapateiro<br />
francês Roger Vivier, parceiro do costureiro Christian Dior.<br />
A americana Beth Levine desejava, desde muito jovem, desenhar calçados. Casouse<br />
com Hebert Levine, um empresário e em 1948 fundaram sua empresa de calçados.<br />
Frequentavam seu estúdio desde criadores de moda como Halston até famosos como Bette<br />
Davis e Liza Minnelli. Levine não teve formação técnica, mas através da prática na indústria e<br />
senso estético permitem-na lançar modelos ousados. Ela foi pioneira em cobrir sapatos com<br />
pedras falsas e a criação da bota strech de vinil, no inicio da década de 1950, uma década<br />
antes das botas se tornarem tendência pelo mundo todo. Utilizava materiais inusitados como<br />
madeira de mobiliários e acrílicos para a confecção de saltos e materiais como o vinil e lurex<br />
no cabedal.<br />
Para criar o seu sapato “Topless”, uma das suas fantasias mais divertidas, cobriu<br />
uma sola acolchoada com cetim vermelho e, nos pontos onde o calcanhar e<br />
o meio do pé tocavam a palmilha, colocou pequenas esponjas embebidas da<br />
cola usada nas barbas falsas. As esponjas colavam-se à sola do pé e o salto<br />
parecia ser uma extensão do calcanhar. (O´KEEFFE, 1996, p.478 e 479)<br />
O curador do The Metropolitan Museam of Art’s Costume Institute, Harold KODA (2010)<br />
descreve que Beth explorava uma variedade de vertentes do modernismo, exotismo oriental e<br />
pop arte, influenciada pelo estilo de vida americano.<br />
Figura 10: Sapato “Topless”, 1959 de Beth Levine. Fonte: http://www.virtualshoemuseum.com/vsm/o.<br />
php?id=1031&col=person&sub=185, acesso em 17/05/2010.<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Aspectos do diálogo entre design, arte e moda a partir de uma análise dos calçados do século XX<br />
Outro exemplo do diálogo entre as três áreas do design, arte e moda são algumas<br />
obras do artista americano pop Andy Warhol (1928-1987), uma das figuras mais conhecidas<br />
e publicizadas da atualidade. O artista, no início, ilustrador comercial, desenhava sapatos, um<br />
fetiche cultuado e amado, desde 1949, para anúncios da indústria de calçados americana<br />
I.Miller, um dos primeiros fabricantes de calçados dos Estados Unidos.<br />
Segundo GRANDI (2008), a Pop Art abriu um diálogo com a linguagem do design e<br />
a comunicação de massa, estabelecendo uma horizontalidade entre as artes e a produção<br />
visual e gráfica dos fenômenos de consumo.<br />
Na década de 1980, Warhol volta ao tema e cria uma obra impressa chamada “Shoes”,<br />
onde mostravam imagens de calçados de saltos coloridos em fundo preto, que foi comentada<br />
da seguinte maneira por SCHMIDT (2003):<br />
Ele transformou os sapatos em objetos de desejo, assim como ele fez com<br />
Marilyn Monroe e Jacqueline Kennedy. Também é intrigante que os sapatos<br />
não são mostrados em pares, como se de propósito Warhol destaca-se em<br />
cada sapato propriedades únicas, dando a cada um uma identidade.<br />
Esta impressão particular realmente mostra o passado de Warhol como ilustrador<br />
comercial, pois os calçados não mostram sinais de desgaste e poderiam ser usados facilmente<br />
em uma propaganda comercial.<br />
O papel de Warhol no mundo da arte e da moda é reconhecido por tratar como<br />
mercadorias mesmo as criações que são ou foram consideradas artísticas, e também propor<br />
um encontro feliz e menos superficial de quanto é afirmado pelo próprio artista, entre arte e<br />
moda, entre notoriedade e imaginação (DORFLES, 1988).<br />
Figura 11 e 12: “Shoes, Shoes, Shoes”, 1955 e “Diamond Dust Shoe”, 1980-81, Andy Warhol.<br />
Fonte: http://www.artesdoispontos.com/cvs.php?tb=cvs&id=6, acessado em 23/05/2010.<br />
Para BARNARD (1996), este é o momento quando paradigmas são questionados. A<br />
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Aspectos do diálogo entre design, arte e moda a partir de uma análise dos calçados do século XX<br />
identidade e a cultura são as idéias centrais. É a era da produção dos significados, que se<br />
refletem por meio das três áreas analisadas. Questões urgentes relacionadas ao cotidiano<br />
são intensificadas nos conceitos artísticos a partir da década de 1960, época de reviravoltas<br />
ligadas à política e à cultura, mudando intensamente os paradigmas vigentes.<br />
Desde os movimentos de vanguarda, grupos de arte procuram aproximar a arte da<br />
vida. Artistas e designers — inclusive designers de moda — presenciam uma mudança<br />
significativa de ordem material e sensível, como afirmam PRECIOSA e BELLUZZO (2008).<br />
Para estas autoras, as esferas, situadas entre estética e o consumo, como a moda e o design,<br />
costumam absorver das artes seus conceitos, atitudes e padrões, que posteriormente se<br />
tornam linguagens acessíveis a um grande público.<br />
Neste momento, a realidade não será apenas representada, surgem movimentos<br />
valorizando “o comum”, o cotidiano e principalmente o individualismo. Segundo LYPOVETSKY<br />
(1989, p.12) “A moda está nos comandos de nossas sociedades; a sedução e o efêmero<br />
tornam-se, em menos de meio século, os princípios organizadores da vida coletiva moderna;<br />
vivemos em sociedades de dominante frívola, último elo da plurissecular aventura capitalistademocrática-individualista”.<br />
As áreas da arte e a da indústria influenciam o design com seus valores característicos,<br />
o que demonstra que as criações de moda de calçados, assim como no vestuário, possuem<br />
influência dos dois campos na construção de seus discursos e significados. No final da<br />
década de 1980 e na de 1990, diversos artistas criaram sapatos como obras de arte. Alguns<br />
exemplos destas criações são os da artista Yone Levine, nascida em Israel, que concebeu<br />
com minúsculas contas de vidros antigas, presos à estrutura de arame, um sapato e a artista<br />
Gaza Bowen, que confeccionou uma série de sapatos com materiais do cotidiano, como<br />
esfregões, esponjas e escovinhas, elaborando uma crítica feminista ao questionado papel<br />
tradicional feminino (O’KEEFFE, 1996).<br />
Neste contexto, um olhar que explore tais diálogos poderá perceber que também no<br />
campo do design de moda essas relações se complexificam. Podemos visualizar tais relações<br />
a partir de criações de calçados contemporâneos de estilistas como Alexander McQueen e de<br />
grifes como Dolce & Gabanna e Prada trilham novos caminhos para a linguagem artística e de<br />
significados na dos trajes urbanos. Para MARINHO (2006, p.5):<br />
Seria possível afirmar que criar constitui, por si, só um fenômeno apropriativo,<br />
seja para o designer ou para o artista. Essa apropriação, contudo, como jogo<br />
de linguagem, explicita-se quando o artista, e também o designer, deslocando<br />
elementos do seu contexto, deixa nas formas finais, do projeto ou da obra, os<br />
rastros que revelam o modo como foram apreendidas as informações e sua<br />
origem.<br />
Para GRANDI (2008, p.91) o estilista é considerado um “gênio criativo”, e em determinados<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Aspectos do diálogo entre design, arte e moda a partir de uma análise dos calçados do século XX<br />
momentos, pode “... concorrer com o artista no setor da pesquisa e da experimentação visual,<br />
que por seu maior poder comunicativo e de imagem, quer por seu inegável poder econômico,<br />
que, ao contrário, falta ao produtor de arte”.<br />
Figuras 13, 14 e 15: Alexander McQueen primavera-verão 2010, Marc Jacobs primavera-verão 2008 e Prada<br />
primavera-verão 2008. Fonte: www.style.com, acesso em 02/06/2010.<br />
Segundo GRANDI (2008) moda e arte devem ser analisadas como repositórios culturais<br />
que participam das mudanças dos modos de vida, de pensamento, de sintonia com o próprio<br />
tempo, pois juntas, assim como o design, atravessam um período de intenso intercâmbio,<br />
como em diversas áreas da produção material e ideacional, envolvidos nas mudanças sócioeconômicas<br />
e tecnológicas que contribuíram para mudar o nosso panorama de referência<br />
global.<br />
Considerações Finais<br />
Desde a década de 1990, tornam-se cada vez menos evidentes as fronteiras entre a<br />
arte e a moda pois, para GRANDI (2008), estas duas áreas, assim como outras relacionadas<br />
à cultura, estética e criatividade, mesclaram suas modalidades expressivas e comunicativas,<br />
perdendo em alguns momentos, sua especificidade de linguagem, facilitando o fenômeno de<br />
sobreposição de uma área sobre a outra, dificultando a percepção do que pertence a uma<br />
área ou a outra. O vocabulário da moda passa a utilizar com frequência termos da arte como<br />
“instalação” v e “concept” vi .<br />
Um exemplo que contribui para a visualização dessas conexões é o trabalho da artista<br />
performática italiana Vanessa Beecroft (1969), que participou da 25°Bienal Internacional de<br />
São Paulo. Suas obras de arte desconstroem a delimitação da arte e da moda, demonstrando<br />
a existência de um contágio entre estas áreas em suas performances nas quais se utilizam<br />
modelos nuas com características bastante parecidas, calçadas com sapatos de grifes famosas<br />
como Gucci, Prada e Helmut Lang. Beecroft é aficionada por calçados de grife e diz apreciar<br />
a combinação entre a consciência feminista e o clichê da mulher- objeto (ALZUGARAI, 2005).<br />
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Aspectos do diálogo entre design, arte e moda a partir de uma análise dos calçados do século XX<br />
Figura 16: Performance “VB 45”: as modelos vestem apenas botas de Helmut Lang.<br />
Fonte: http://www.terra.com.br/istoegente/138/reportagens/vanessa_beecroft.htm, acesso em: 03/06/2010<br />
Desta forma, podemos então refletir que a arte, os artistas contemporâneos, estilistas<br />
e designers possuem diversos pontos de contato enriquecedores em suas atividades,<br />
apropriando-se da moda e seus meios de difusão, com suas estratégias comunicativas e<br />
promocionais e seu aparato glamoroso para atingir uma visibilidade, como argumenta GRANDI<br />
(2008). Desta forma, os conceitos de áreas como a da arte, design e moda estão em constante<br />
diálogo, propiciando a interdisciplinaridade, através de relações complexas e criativas.<br />
Este diálogo se desenvolve também por meio de criações de calçados, com suas<br />
formas, volumes, proporções, detalhes, cores e significados, assim como na concepção de<br />
uma obra de arte, representando uma época, pois notamos o crescente desejo de autonomia<br />
entre os consumidores, que abrem espaço para o desejo de peças autênticas e inovadoras<br />
em conexão com a cultura e a sensibilidade.<br />
Notas<br />
i A Art Decó foi um movimento internacional de design decorativo dos períodos da década de 1920<br />
a 1930.<br />
ii O cabedal é termo calçadista que significa parte superior do calçado.<br />
iii O “telefone lagosta”, criado em 1938 foi realizado com as técnicas de metal pintado, gesso, borracha<br />
e papel.<br />
iv O “sofá de lábios” de Mae West foi construído com armação de madeira e coberta por cetim rosa,<br />
realizado nos anos de 1936-37.<br />
v Na arte contemporânea, obra tridimensional concebida e montada para ocupar uma área num<br />
determinado recinto, e cujos diversos elementos ou dispositivos agem sobre o imaginário do expectador.<br />
Sua exposição é temporária e a obra desmontada, subsiste através de registros fotográficos.<br />
vi <strong>Arte</strong> Conceitual.<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Aspectos do diálogo entre design, arte e moda a partir de uma análise dos calçados do século XX<br />
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INOVAçãO EM DESIGN NA hISTóRIA DO unDerweAr MASCuLINO<br />
Taísa Vieira-Sena; Mestranda em <strong>Design</strong>: <strong>Universidade</strong> Anembi Morumbi<br />
taisavieira13@gmail.com<br />
Resumo<br />
O presente artigo tem como objetivo estudar a evolução do<br />
underwear masculino com ênfase no período do século XX aos<br />
dias atuais, identificando aspectos inovadores de design e sua<br />
relação com o contexto sócio-cultural.<br />
Palavras-Chave: underwear masculino; design; inovação<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Inovação em design na história do underwear masculino<br />
Introdução<br />
A palavra underwear é entendida hoje, dentro do contexto atual da moda, como<br />
conceito que extrapola o sinônimo de cueca ou roupa de baixo. Dentro do sistema de moda<br />
o underwear está ligado a elementos e significados que remetem a um estilo de vida. Porém,<br />
este conceito foi instituído na década de 1980, até então encontrávamos produtos com foco<br />
na função de uso.<br />
Com exceção às camisolas ou túnicas usadas por homens e mulheres como roupa<br />
interior, a diferença na anatomia ditou variações básicas das peças íntimas masculinas e<br />
femininas. O underwear feminino tem um maior apelo voltado para a estética e a sexualidade<br />
ao invés de praticidade. Já com as peças masculinas a primeira preocupação foi por muito<br />
tempo apenas funcional, confeccionadas de acordo com a forma do corpo, em materiais<br />
resistentes e na cor branca.<br />
O que chamamos de roupa íntima ou roupa de baixo, enquanto produto de design,<br />
passou por inúmeras inovações incrementais, tecnológicas e até sustentáveis para chegar aos<br />
produtos que encontramos no mercado atualmente.<br />
Inovações no <strong>Design</strong> do underwear Masculino<br />
As cuecas, como conhecemos hoje, foram criadas no século XX, até então havia<br />
peças que compunham a roupa interior. No entanto, as tangas já eram usadas na pré-história.<br />
Segundo Benson & Esten (1996), em 1991 montanhistas encontraram nos Alpes Tiroleses, os<br />
restos congelados de um homem que viveu cerca de 3300 a.C. Ele usava uma tanga de couro<br />
sob a capa, fornecendo a documentação mais antiga de underwear masculino.<br />
Depois da invenção da energia hidráulica, das máquinas de fiação e do descaroçador de<br />
algodão durante a Revolução Industrial, o underwear poderia, pela primeira vez, ser produzido<br />
em massa, o que causou uma reestruturação dos processos e do consumo. As pessoas<br />
começaram a comprar suas roupas íntimas nas lojas em vez de fazê-los em casa, o que podia<br />
levar até três dias.<br />
A roupa de baixo padrão deste período para homens, mulheres e crianças foi os “union<br />
suits”. Uma espécie de macacão, geralmente feito em malha, que cobria desde os tornozelos<br />
até os punhos, possuía uma abertura na parte superior na frente fechada por botões, e uma<br />
abertura na parte de trás inferior de vestir e facilitando os atos de vestir e ir ao banheiro. Em<br />
1895 o catálogo Montgomery Ward (figura 1) oferecia peças em “lã de cor natural, cinza e<br />
vermelho, que se tornou muito popular.<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Inovação em design na história do underwear masculino<br />
Figura 1: Catalogo Montgomery Ward de 1895<br />
Destacamos o uso da cor vermelha como um indício de outras inovações tecnológicas<br />
no desenvolvimento da roupa de baixo. Pois, indicava o domínio da técnica de tingimento da<br />
lã em vermelho, uma cor forte e que precisava de uma boa fixação para não descolorir. Thales<br />
de Andrade (2004), entende por inovação tecnológica alterações e/ou criações tecnológicas<br />
significativas em produtos e processos. A inovação tecnológica pode ser considerada como a<br />
transformação de uma idéia em um produto ou processo novo para utilização na indústria, no<br />
comércio, na ciência ou em uma nova leitura de um serviço social.<br />
No século XX, a historia do underwear masculino, parece ser uma história americana,<br />
as maiores empresas e os grandes investimentos estavam nos Estados Unidos. Havia também<br />
empresas francesas que se destacavam na produção de roupas íntimas mas, os lançamentos<br />
e inovações geralmente ocorriam primeiro na América.<br />
Joe Boxer (1995) observa que como muitos produtos importantes, roupa interior foi<br />
melhorada significativamente pela guerra. Durante a Primeira Guerra Mundial, foi confeccionado<br />
o primeiro bermudão com botões (figuras 2 e 3), como underwear de verão para os soldados<br />
da infantaria. As peças tiveram tão boa aceitação, que os homens insistiram em usá-las quando<br />
eles voltaram para casa.<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Figura 2: Bermuda usada na I Guerra Mundial Figura 3: Detalhe dos botões<br />
Os esportes e as guerras tiveram forte influência no uso da roupa interior, e com o<br />
surgimento do bermudão com botões, vemos uma importante inovação incremental na roupa<br />
de baixo. De acordo com Fontanini & Carvalho (2005) dentro de um processo de inovação, as<br />
inovações incrementais estão inseridas em um contexto peculiar de investimentos (tempo e<br />
necessidades) em que gradualmente a empresa promove melhorias e aperfeiçoamentos em<br />
seus produtos, equipamentos e métodos de fabricação. A inovação incremental é aquela em<br />
que o novo produto ou processo incorpora alguns novos elementos em relação ao anterior,<br />
sem que, no entanto, sejam alteradas as funções básicas. Neste caso, ocorre a separação do<br />
union suit em camisa e bermuda, mas estas peças continuaram a desempenhar papel de roupa<br />
interior. Estas modificações no produto acarretaram também modificações os processos, de<br />
forma incremental.<br />
Segundo Blackman (2009) a tecnologia e modernização das cidades trazem novos estilos<br />
de vida, assim, quando o homem tornou-se mais ativo e sua roupa interior começou a ser mais<br />
leve, mais fina e confortável. Os esportes tornaram-se parte do lazer vigente, trazendo com<br />
ele a necessidade de liberdade de movimentos. Na década de 1920 as empresas americanas<br />
investiram em diversas tecnologias e usavam os anúncios publicitários para divulgar a patente<br />
de seus novos projetos. Os avanços tecnológicos nos materiais ganharam destaque, entre<br />
eles estavam os tecidos pré-encolhidos e com propriedades de isolamento térmico, como o<br />
Duofoldi (figura 4); e Keepkool (figura 5), que tratava-se de underwear feito em ribana elástica<br />
e porosa que oferecia conforto e frescor.<br />
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Figura 4: Anúncio de undewear com Duofold Figura 5: Anúncio de undewear Keepkool<br />
As inovações em modelagem também causaram grande impacto e melhorias na<br />
usabilidade da roupa interior. A empresa Swiss American lançou o Navycltohh (figura 6), um<br />
modelo de union suit curto e com peces nas costas para dar melhor ajuste ao corpo. Já a<br />
marca Hatchway criou um modelo em malha com transpasse frontal, que dispensava o uso<br />
de botões (figura 7).<br />
Figura 6: Anúncio de undewear Navicloth Figura 7: Anúncio de undewear Hatchway<br />
Os “shorts íntimos” foram a novidade que chegou com o século XX. De acordo com John<br />
de Greef (1989), duas invenções na década de 1930 modificaram o conceito de underwear,<br />
aproximando-o das peças que conhecemos hoje. A primeira foi quando Jacob Golomb, o<br />
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fundador da marca Everlast, aplicou um cós elástico nos calções íntimos, deixando-o com<br />
a aparência do short de pugilista, esta peça ficou conhecida como boxerii e a segunda foi a<br />
criação do Jockey Breif ® iii ou slip Jockey (figura 8).<br />
A cueca slip Jockey foi criada em 1934 por Arthur Kneibler, um executivo e designer da<br />
Cooper Inc. A inspiração para o modelo veio de cartão-postal da Riviera Francesa, mostrando<br />
um homem em um maiô estilo biquíni. Depois de algumas experiências, Kneibler introduziu<br />
um novo tipo de roupa interior, confortável sem pernas, com uma sobreposição em Y invertido<br />
parte da frente. Tal formato trazia benefícios funcionais, oferecendo aos seus usuários mais<br />
conforto e suporte do que as outras roupas íntimas masculinas disponíveis no momento.<br />
Figura 8: Modelo Slip Jockey (1935)<br />
Com certeza este dois produtos revolucionaram o mercado de roupa íntima na década<br />
de 1930, mas discordamos de John de Greef quando ele afirma que a concepção da cueca<br />
boxer é uma invenção, trata-se sim de mais uma inovação incremental nesta linha de produtos.<br />
Já o modelo de cueca slip, pode ser considerado uma invenção, que conforme Gomes (2001)<br />
apresenta-se como um produto novo, desenvolvido a partir da manifestação da criatividade<br />
utilizada com foco no incremento funcional do mesmo. Um invento dotado de novidade,<br />
atividade inventiva e utilidade industrial, torna-se suscetível de concessão de patentes. O que<br />
aconteceu com a Jockey Breif ®, patenteada no mesmo ano de sua invenção.<br />
Conforme Bernhard Roetzel (2000), o modelo slip tornou-se “uma cueca verdadeiramente<br />
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revolucionaria”. Sua modelagem apresentava a vantagem de proporcionar mais su¬porte e<br />
de não marcar ou fazer volume sob as calças leves. Seu corte particular¬mente confortável,<br />
oferecia suporte e um perfeito encaixe, e sobretudo era confeccionada em material de<br />
excelente qualidade. A fita elástica intro¬duzida na parte abaixo da virilha, apenas ajustava a<br />
parte exterior da coxa de forma a não prejudicar a circulação do sangue. Para o autor, o êxito<br />
das cuecas justas da marca Jockey também teve conseqüências no restan¬te roupa, pois<br />
permitiu que as calças fossem confeccionadas com cortes mais ajustados. “Em combinação<br />
com as cuecas Jockey, adaptadas à anatomia do ho¬mem, as calças modernas ajustavam-se<br />
pro-gressivamente mais.” (ROETZEL, 2000 p. 46).<br />
Mais tarde, em 1944, outra marca americana, a Munsingwear, modificou a contronstrução<br />
da parte frontal da cueca slip, tranzendo um bolso horizontal amplo e aberto. E chamou o<br />
produto de Slip Kanguru, devido a relação com a bolsa do marsupial (figuras 9 e 10).<br />
Figura 9: Anúncio da marca Munsingwear 1945 Figura 10: Ilustração do modelo slip Kanguru<br />
O sucesso da slip Jockey não eliminou o modelo boxer. Seu uso passou a ser uma<br />
questão de escolha, pois por mais conforto que a slip pudesse oferecer, para os adeptos da<br />
boxer, ela era sempre apertada. As boxers tinham a vantagem de poder ser feitas sob medida<br />
por um alfaiate, o que simbolizava uma questão de status.<br />
De acordo com John de Greef (1989), nos anos de 1930, o raiom foi introduzido na<br />
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produção de cuecas, uma novidade vendida sob a denominação de seda artificial. Outro<br />
marco importante, foi a introdução dos Fasteners Gripper, um pequeno fixador de pressão.<br />
A publicidade da Scovill Manufacturing Companyiv divulgada na Publication Unknown em<br />
1937 (figura 11), anunciava as vantagem destes fixadores sobre os botões. Para isto usava<br />
o depoimento de Ralph Guldohl e Sam Snead, dois jogadores premiados de golf, sobre a<br />
facilidade dos fixadores na prática de esporte, pois estes ficavam embutidos, não faziam volume<br />
e não machucavam. E de donas de casa, que destacavam que os grippers não quebravam, o<br />
que acontecia constantemente com os botões comuns durante o uso ou a lavagem da peça.<br />
A anúncio destacava ainda, marcas de underwear que usam seus Fasteners Gripper.<br />
Figura 11: Anúncio da Scovill Manufacturing Company 1937.<br />
A revista Life abriu uma nova era de foto jornalismo em 23 de novembro de 1936. Logo<br />
Jockey, Scovill, Quickees entre outras empresas estavam utilizando fotografias em vez de linha<br />
de desenhos em anúncios de suas roupas íntimas, como observado na figura acima.<br />
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Na primeira metade da década de 1940 a inovação no underwear masculino permaneceu<br />
estática. Benson & Esten (1996), destacam que isto ocorreu porque toda a energia americana<br />
estava voltada para o esforço de guerra. A escassez causada pela guerra estava declarada<br />
em um anuncio da marca Jockey que dizia: “Tio Sam precisa de borracha por isso o cós da<br />
Jockey não é mais de elástico”. Neste momento viu-se o retorno do cós de tecido com dois<br />
botões laterais. Mas a guerra também trouxe uma novidade à roupa íntima, a introdução do<br />
conceito de cor. Para uma melhor camuflagem os soldados usavam cuecas verde-oliva, pois<br />
observaram que as peças brancas chamavam a atenção do inimigo quando estavam para<br />
secar. Em 1944 marca Zorba, entrou no mercado nacional e virou sinônimo de cuecas no<br />
Brasil.<br />
Após a guerra, a Cluett, Peabody & Co. Inc, desenvolveu e patenteou o “Sanforized”,<br />
um novo processo de pré-lavagem que impede os tecidos de encolherem. Passam a<br />
ser comercializadas cuecas com o tecido cortado em viés, que se adaptavam a todos os<br />
movimentos. As inovações foram imediatamente adotadas pelos produtores mais importantes,<br />
cada empresa buscava o seu reconhecimento de marca própria.<br />
Segundo Joe Boxer (1995) o conceito de modernidade estava cada vez mais presente.<br />
A revolução das cuecas começou em 1950, quando os fabricantes começaram a confeccionar<br />
underwear estampados e coloridos. Depois de anos de roupas íntimas, simples e brancas, os<br />
homens foram finalmente apresentados a opções variadas quando como mostra o anúncio da<br />
marca Jockey na Look Magazine, como mostra a figura 12.<br />
Figura 12: Anúncio de underwear estampado na década de 1950<br />
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As inovações não se restringiram às cores, novos materiais como raiom, dracon, nylon,<br />
lycra e o spandex entraram no mercado, mas o algodão ainda era o material mais usado. Já nos<br />
anos de 1960 a busca por novos e melhores estilos de roupas íntimas causou uma propulsão<br />
nas empresas de produtos químicos para aprimorar as fibras sintéticas, tornando popular<br />
as cuecas em malha de nylon, ou poliamida. John de Greef (1989), afirma que a Du pont e<br />
designers italianos criam novos produtos e as cuecas se tornam mais elásticas e menores.<br />
Quanto às formas, a tangav e o fio dentalvi foram introduzidos como uma opção entre uma<br />
nova geração de jovens determinados a desafiar o sistema. Também foram foi introduzidas<br />
estampas de leopardo, tigre e estampas de zebra. Havia no mercado uma grande variedade<br />
de produtos, oferecidos em materiais, modelagens, cores e estampas diferenciadas (figura<br />
13), possibilitando que a escolha do underwear figurasse como uma expressão da identidade<br />
de cada homem. Conforme Dario Caldas (1997) no final dos anos 1960, a maior parte dos<br />
homens que seguiam um pouco as tendências de moda começaram a efetuar mudanças em<br />
seu modo de se comunicar através da roupa e do corpo. Ainda na década de 1960 a marca<br />
Zorba introduz o modelo slip no Brasil.<br />
Figura 13: Anúncio Jockey Underwear da década de 1960.<br />
Na década de 1960 ocorrem importantes modificações não apenas peças, mas<br />
também na sua aprensentação ao consuminor. Expondo o corpo masculino de forma mais<br />
explícita, sem que isto maculasse sua masculinidade, isto graças as mudanças sócio culturais<br />
em curso. De acordo com Fernando de Barros (1997) o sentido de juvenilização e a cultura<br />
jovem foram o fio condutor para as primeiras mudanças do masculino na década de 1960,<br />
assimiladas principalmente pela moda, que quebra a visão conservadora de homem, que<br />
começa a passar por transformações.<br />
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Faz-se importante lembrar que qualquer relação estabelecida entre um grupo social<br />
e os padrões estéticos que o identificam ocorra, é preciso que tais padrões sejam aceitos e<br />
compartilhados pelos integrantes do grupo, mesmo se considerarmos que essa estética foi<br />
forjada pela indústria da moda e imposta através da mídia. Assim, vemos que estas primeiras<br />
mudanças no padrão de masculinidade foram possíveis por que estavam em sintonia com os<br />
acontecimentos sócio-culturais vigentes, com destaque para cultura jovem.<br />
Para Marco Sabino (2007) a clássica cueca samba-canção, com altura no meio das<br />
coxas, nunca deixou de ser consumida, mas, nos anos 1970, passou a ser sinônimo de<br />
“caretice” e uma peça adotada por pessoas mais tradicionais. Nesta época ganharam espaço<br />
propagandas enfatizando a sexualidade do underwear, relacionando-o com a revolução sexual<br />
em curso, o corpo masculino passou a ser mostrado de forma mais descontraída e jovial.<br />
“Como nunca antes, os homens eram adorados como símbolos sexuais e, muitas vezes<br />
expressava sua sexualidade recém-descoberta em boates popular conhecido como “discos”.”<br />
(BOXER, 1995, p. 27). Quebraram-se tabus na representação masculina (figura 14), o homem<br />
conservador, provedor da família e com foco no sucesso, pode ser substituído por um jovem,<br />
alegre e sem muitas preocupações, que se permite tomar café em uma caneca tão colorida<br />
quanto sua cuecavii . Parte do corpo da mulher vestindo uma camisola de seda e renda, que<br />
aparece de costas, sugere que a felicidade no jovem também pode estar relacionada a suas<br />
atividades sexuais, porém de forma muito sutil. Como o próprio titulo, “a great understatement<br />
by Jockey” (um grande eufemismo por Jockey) indica. A figura feminina, mesmo que colocada<br />
de forma secundária na imagem, auxilia no equilíbrio da publicidade, para que este homem<br />
não seja percebido como gay.<br />
Figura 14: Anúncio Jockey Underwear da década de 1970.<br />
Há uma mudança significativa na tônica dos discursos que venda, os produtos além<br />
de conforto passam a vender estilo, diversão, juventude, sensualidade e uma diversidade de<br />
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modelos (formas, cores e materiais) criando diferentes opções e possibilidades de construções<br />
visuais masculinas. Segundo Fernando de Barros (1997), na década de 1970 a palavra moda<br />
passou a ser natural para os homens, que passam a escolher novas formas de identificação<br />
a partir do vestuário. O autor afirma ainda que das mudanças introduzidas pela moda nesta<br />
época, a variedade de cores e materiais foi a mais bem aceita na construção dos discursos<br />
sobre o corpo masculino. “A “política do corpo” destacava-se como um dos símbolos de um<br />
novo comportamento. “Permitir, liberar, experimentar” valia também para a moda.” (BAROS,<br />
1997. p. 152)<br />
Conforme Benson & Esten (1996), na década de 1980 a roupa íntima tornou-se<br />
um produto de moda, com peças lançadas em coleções. Quase todas as marcas usavam<br />
publicidade de atração “sexy”, com corpos masculinos e pouca roupa como seu principal<br />
chamariz. Marco Sabino (2007), complementa que a Calvin Klein acabou entrando para a<br />
História da <strong>Moda</strong> quando exibiu, em um outdoor em plena Times Square, Nova York, o atleta<br />
olímpico Tom Hintnaus de torso nu e ana¬tomia perfeita vestindo apenas uma cueca (figuras<br />
15 e 16).<br />
Figura 15: Outdoor Calvin Klein na Times Square - NY 1982. Figura 16: Imagem aproximada<br />
Observamos que a cultura de massa impulsionou novas representações do corpo, novas<br />
concepções de masculinidade, além de novas lógicas sociais de compartilhamento coletivo,<br />
de aparência, de prazer e de estética, como algo que se faz experimentar e compartilhar com<br />
os outros. Conforme Semprini (2010), a “redescoberta” do corpo se dá a partir da década<br />
de 1960, mas é de 1980 em diante que o corpo se tornou o protagonista da cena social e do<br />
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consumo. A sua liberação progressiva de exigência e de censuras lhe permitiu se fazer notar<br />
e reivindicar uma atenção cada vez maior. A dimensão do corpo também está associada às<br />
lógicas das marcas, tornado-o suporte de múltiplas questões simbólicas. E essa dimensão<br />
simbólica é ainda mais dominante nos territórios do adorno, da beleza e do erotismo, que<br />
fazem do corpo um verdadeiro instrumento de socialização.<br />
Toda esta ênfase no underwear masculino, fez com que o valor destas peças aumentasse<br />
no mercado. Desde então, a Calvin Klein tem dominado o mercado da publicidade cuecas<br />
com modelos como o Mark Wahlberg, ex-jogador de futebol Freddie Ljungberg, o ator africano<br />
Djimon Hounsou, entre outros. Nos anos 1980, uma época em que o espírito lúdico tornou-se<br />
tendência, a cueca samba-canção reapareceu como produto de moda, trazendo estampas<br />
de bichinhos, personagens de Walt Disney e dos desenhos de Hanna Barbera. Este retorno<br />
de formas amplas no underwear, influenciou também na roupa exterior, com o volume das<br />
cuecas, as calças com pregas voltaram a moda. Em 1980 a marca Mash é lançada no Brasil.<br />
Joe Boxer (1995), diz que nos 1990 o fenômeno “cueca de grife” tornou-se ainda mais<br />
forte, e mais uma vez a marca Calvin Klein sai na frente, estampando seu nome no cós de<br />
elástico das peças. Este ato transformou a relação do homem com seu underwear novamente,<br />
a cueca passou de uma peça do vestuário que se escondia sob as calças para um produto<br />
de moda, uma escolha de estilo de vida. Astros pop passaram a exibir o cós grifado de suas<br />
cuecas e adolescentes passaram a optar por calças largas no quadril, estilo conhecido como<br />
grungeviii (figura 17).<br />
Figura 17: Anúncio da Calvin Klein Jeans mostrando o cós da cueca com a marca.<br />
Também nesta época, a lojas de varejo começaram a vender cuecas tipo short mais<br />
ajustados, conhecida nos Estados Unidos como boxer briefs ou midle boxers. Aqui no<br />
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Brasil estas peças são o que chamamos de cueca boxer. Em 1991 a marca Lupo lança<br />
uma linha íntima masculina no mercado nacional. Nos anos 1990 a lingerie masculina evoluiu,<br />
principalmente no que diz respeito aos materiais e técnicas de produção. As inovações das<br />
malhas, naturais e químicas, possibilitaram o desenvolvimento de produtos voltados para usos<br />
específicos, inclusive para diferentes práticas de esporte. O maior destaque ficou com as<br />
peças em microfibra e com costuras invisíveis.<br />
No século XXI, as inovações continuaram com foco nos materiais e acabamentos,<br />
buscando cada vez mais, unir beleza e conforto. As peças sem costura ganharam uma boa fatia<br />
do mercado. A partir dos anos 2000 vemos um número crescente de inovações no mercado<br />
nacional, as empresas brasileiras investem em tecnologia para produzir novos produtos e se<br />
tornam lançadoras de tendências para o mercado mundial. Segundo Márcia Mariano (2006),<br />
a marca gaúcha Upmanix foi a primeira marca a lançar uma cueca em fibra de bambu, com<br />
propriedades bactericidas e anti-odor, além de modelos dupla face e peças perfumadas no<br />
Salão da Lingerie em São Paulo, em agosto de 2006.<br />
O status de artigo fashion e moderno do underwear masculino de hoje, levou a uma<br />
série de modismos. Seguindo as tendências de moda a Zorbax , lançou em 2009 quatro novos<br />
modelos de cuecas, voltados para diferentes públicos. A Boxer Silver dirigida aos jovens, com<br />
elástico mais largo, de 40 mm de largura para ser exibido por fora da calça. ZBoxer Extreme<br />
Action, confeccionada em microfibra, tecido que facilita a transpiração e tem secagem rápida,<br />
além de proporcionar ajuste perfeito ao corpo; Boxer Extreme Nitro com predominância do<br />
algodão, resultando em um produto com ênfase no conforto; e Slip Seamless Algodão, que<br />
utiliza a tecnologia sem costura, proporcionando muito mais liberdade de movimento no diaa-dia.<br />
Outra novidade foi o lançamento da Zorba Orgânica, desenvolvida especialmente para<br />
os consumidores preocupados com a preservação do meio ambiente.<br />
As tendências mundiais alertam para necessidade de preservação do ambiente. Além<br />
dos teóricos da área, vemos esta informação começa a ser disseminada também para o<br />
público em geral. E o design é apontado como um dos grandes possíveis mediadores da<br />
sustentabilidade. Mas para que isto aconteça é necessário que haja mudanças também nas<br />
formas de compreender, ensinar e fazer design. Para Silva & Santos (2009) a sustentabilidade<br />
mediada pelo design, depende de uma abordagem ampla e integrada das competências<br />
do designer, passando pela modificação projetos voltados para os produtos para projetos<br />
sistêmicos, que valorizem requisitos ambientais, sociais, culturais e, sobretudo éticos. Atentas<br />
às novas tendências, as empresas estão buscando desenvolver produtos a partir de processos<br />
e materiais mais limpos.<br />
Dentre as inovações sustentáveis podemos destacar ainda, a cueca de malha PET da<br />
marca D’Uomoxi , que utiliza onze garrafas PET de dois litros para produzir um quilo de malha<br />
PET, suficiente para criar dezesseis cuecas, figura 18.<br />
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Figura18:Anúncios da cueca de malha PET da marca D’Uomo.<br />
E a cueca feita de fibra de bananeira lançada pela marca australiana Aussiebumxii (figuras 19 e 20). Os produtos são confeccionados com uma malha composta de 27% fibra<br />
de banana, 64% algodão e 9% elastano, para garantir ao consumidor conforto e flexibilidade.<br />
Preocupada com os consumidores cada vez mais exigentes e que também levam em conta a<br />
sustentabilidade ecológica e econômica, a empresa garante que as peças da linha “Banana”<br />
são extremamente macias, maleáveis, leves e têm grande poder de absorção de água. Além<br />
da utilização de tecido tecnológico que evita o uso de outros materiais que são normalmente<br />
empregados na confecção de roupa íntima e que agridem o meio-ambiente. Pois, a fibra de<br />
banana tem um bom brilho, é leve, resistente, tem ótima absorção de umidade e é considerada<br />
uma das mais ecologicamente corretas. E as cuecas de fibra de bananeira, não requerem<br />
cuidados diferentes da maioria das roupas íntimas, devem ser lavadas em água fria, sem<br />
alvejantes, seco à sombra e passadas com ferro frio.<br />
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Figura 19: Foto do desfile Figura 20: destaque da cueca da linha “Banana” – Aussiebum<br />
Mas o investimento em tecnologia para underwear mais inovador é o aplique de GPS<br />
às roupas íntimas. A marca Lindelucyxiii desenvolveu uma cueca em algodão, no modelo boxer,<br />
com recortes e bolsos e o GPS é um acessório que acompanha a cueca, figuras 21 e 22.<br />
Figura 21: Foto do desfile Figura 22: destaque da cueca com GPS - Lindelucy<br />
O aparelho tem a função de rastreamento, através de satélite, isso se o usuário desejar<br />
ser encontrado, caso contrário ele também poderá ser desligado. O GPS traz também o botão<br />
de pânico, que pode ser acionado em caso de qualquer emergência ou eventualidade.<br />
Conclusão<br />
Acreditamos que o homem burguês voltou seu primeiro pensamento para roupas<br />
íntimas quando viu em seu acumulo um valor simbólico, uma forma de diferenciação e de<br />
status. Mas, os aspectos funcionais foram pela maior parte do tempo, no decorrer da história<br />
da roupa íntima, o fator principal da modificação das formas e dos materiais destes produtos,<br />
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visando a usabilidade e o conforto, porém estas não são mais as únicas preocupações do<br />
mercado.<br />
Atualmente existem diversas marcas que comercializam roupa interior masculina de<br />
grande qualidade, unindo aspectos de funcionalidade às tendências da moda e à qualidade<br />
do design. São utilizados na confecção desta peças diversos tecidos, padrões e modelagens<br />
anatômicas. <strong>Tecnologia</strong>s modernas na confecção foram agregadas ao produto final, permitindo<br />
uma sensação de maciez, toque suave e elasticidade na medida certa. Mas, acima de tudo a<br />
partir dos anos de 1960, e com maior ênfase no anos 1980, observamos início de uma forma<br />
de apresentação do underwear e da representação do corpo masculino, buscando introduzir<br />
elementos simbólicos contidos no discurso da moda que passa a vender um estilo de vida e<br />
não uma peça de roupa do vestuário.<br />
Cada vez mais presente, em maior quantidade e variedade de modelos, no guardaroupa<br />
masculino, as cuecas evoluíram com o tempo e ganharam adeptos que antes não se<br />
preocupavam com o que vestiam por baixo de suas roupas. Hoje, o homem está mais atento<br />
aos produtos que o deixam mais bonito e confortável, e autoconfiante.<br />
Constantes inovações e elementos de design foram agregados à roupa íntima no<br />
século XX. Destacando primeiro, as questões de usabilidade e conforto, dando ênfase à<br />
função prática do produto. E chegamos ao século XXI com peças diferenciadas, bonitas,<br />
tecnológicas, versáteis e confortáveis. Neste processo foram atribuídas as funçõesxiv estéticas<br />
e simbólicas, tornando o underwear um verdadeiro produto de design e de moda.<br />
Notas<br />
i Duofold – tecido feito com duas camadas de lã entrelaçada proporcionando isolamento contra o frio<br />
e separando o suor do corpo.<br />
ii O modelo boxer americano, parece-se com o que conhecemos como samba-canção. Já o que<br />
chamamos de boxer corresponde ao midle-boxer americano.<br />
iii A Jockey Breif ® ou slip Jockey é o modelo que conhecemos como cueca slip.<br />
iv Empresa que criou e patenteou o Fastener Gripper.<br />
v Tanga – modelo de cueca pequena com duas partes de malha unidas na entreprenas são presas a<br />
uma cintura de elástico.<br />
vi Fio dental – modelo de cueca com a parte traseira muito pequena.<br />
vii A frase “que se permite tomar café em uma caneca tão colorida quanto sua cueca” foi escrita para<br />
indicar mais uma quebra de convenções no padrão familiar vigente, onde a família ao acordar se reúne<br />
à mesa para tomarem o café juntos, provavelmente em louças tradicionais. Busca-se mostrar aqui o<br />
rompimento com a forma convencional de ver homem na sociedade patriarcal, em consonância com<br />
os acontecimentos vigentes.<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Inovação em design na história do underwear masculino<br />
viii O estilo grunge aparece nos anos 1990 como um movimento de anti-moda, baseado no estilo<br />
de rock do mesmo nome. Nos anos 80, a moda também se apropriou largamente da anti-modapunk.<br />
A inspiração para a moda grunge era a classe proletária de Seattle, com roupas muito largas<br />
e desleixadas, muitas vezes doadas, um ícone desta moda é camisa xadrez semelhante a usada por<br />
lenhadores.<br />
ix www.upman.com.br<br />
x www.zorba.com.br<br />
xi www.cuecasduomo.com.br<br />
xii www.aussiebum.com<br />
xiii www.lindelucy.com.br<br />
xiv Löbach (2001), fala que um produto de design apresenta três funções básicas: a função prática,<br />
ligada a finalidade de uso do produto, bem como sua adequação às necessidades fisiológicas de uso<br />
como segurança, conforto e facilidade de uso. A função estética se refere aos aspectos psicológicos da<br />
percepção sensorial durante o uso, tem como principal atributo a fruição da beleza e esta subordinada<br />
a aspectos sócio-culturais e ao repertório de conhecimento do usuário. E a função simbólica, a<br />
mais complexa, de acordo com autor, tem como fundamento o aspecto estético-formal do produto<br />
reforçado pela base conceitual das dimensões semióticas. Envolve fatores sociais, culturais, políticos<br />
e econômicos e, também, associa-se a valores pessoais, sentimentais e emotivos. A função simbólica<br />
revela-se, sobretudo, por meio dos elementos configuracionais de estilo. Para mais informações ver<br />
LÖBACH, Bernard. <strong>Design</strong> industrial: bases para configuração dos produtos industriais. Rio de Janeiro:<br />
Blücher, 2001.<br />
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contemporânea. Barueri, SP: Estação das Letras e Cores Editora, 2010.<br />
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ZORBA. Disponível em www.zorba.com.br. Acesso 3 nov 2009.<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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O TERNO: QuESTõES E REFLEXõES<br />
Luisa de Almeida Magalhães Simão; Mestranda em <strong>Design</strong>: <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />
luisasimao@live.com<br />
Cristiane Mesquita; Professora Dra. do PPG em <strong>Design</strong>: <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />
cfmesquita@anhembi.br<br />
Resumo<br />
O presente artigo propõe uma reflexão sobre o valor do traje<br />
moderno na herança cultural da moda contemporânea. Através<br />
de um estudo a respeito da existência do terno, há cerca de<br />
dois séculos, bem como dos significados sociais que a ele são<br />
atribuídos, o objetivo deste trabalho é discutir como a moda<br />
contemporânea dialoga com a tradição do terno sob medida e de<br />
que maneira essa tradição se perpetua até os dias de hoje.<br />
Palavras-Chave: valor simbólico; terno; moda; herança cultural<br />
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O terno: questões e reflexões<br />
Introdução<br />
No momento em que o corte masculino clássico, conhecido por alfaiataria, foi criado,<br />
em meados do século XIX, as técnicas manuais e artesanais de produção ainda eram um<br />
dos únicos, senão o único recurso para a construção do vestuário da época. Tal limitação,<br />
considerando as inúmeras possibilidades produtivas advindas da era industrial que hoje nos<br />
são comuns, fez nascer algo que há muito se perdeu, de um valor imensurável, de uma poesia<br />
que agrada aos olhos e ao espírito: a autenticidade.<br />
O que chamamos de “autêntico” está, naturalmente, atrelado à exclusividade. A roupa<br />
feita sob medida, possui características que a determinam como única, e a ela é atribuído um<br />
valor que vai muito além de sua materialidade, um valor que refere-se a sua autenticidade.<br />
A definição de aurai , proposta por Walter Benjamin, facilita a compreensão do que<br />
chamamos de autenticidade. Aqui, esse conceito está relacionado ao objeto único para um<br />
corpo único. O terno entra em cena para ilustrar essa relação entre objeto e corpo, entre<br />
roupa e memória.<br />
Pode resumir-se essa falta no conceito de aura e dizer: o que murcha na era da<br />
reprodutibilidade da obra de arte é a sua aura. O processo é sintomático, o seu<br />
significado ultrapassa o domínio da arte. Poderia caracterizar-se a técnica de<br />
reprodução dizendo que liberta o objeto do domínio da tradição. Ao multiplicar<br />
o reproduzido, coloca no lugar de ocorrência única a ocorrência em massa.<br />
(BENJAMIN, 1992, p. 79)<br />
Nesse sentido, perceber o valor intrínseco inerente ao ternoii sob medida, facilita<br />
a continuidade de nosso estudo para a compreensão dos seus valores simbólicos e dos<br />
significados que lhe foram atribuídos, e que, em grande medida se mantém até os dias de<br />
hoje.<br />
A mudança de valores proveniente da transição da peça única, feita sob medida, para<br />
a peça reproduzida em larga escala, com o advento da reprodutibilidade, gerou uma série<br />
de transformações no comportamento do consumidor e na maneira como ele passa a se<br />
relacionar com as peças de roupa. Compreenderemos quais são os signos que o terno carrega<br />
que nos remetem à sua tradição e origem e que, mesmo diante de suas adaptações, de sua<br />
apropriação pelo vestuário feminino, de seu caráter formal e permanentemente evolutivoiii , se<br />
perpetua e se relaciona tão intimamente com a pluralidade da moda contemporânea e com a<br />
fragmentação de nosso tempo.<br />
Valor simbólico do terno<br />
Foi-se o tempo em que a funcionalidade de um produto bastava para que este fosse<br />
consumido. O design centrado no objeto e voltado única e exclusivamente para atender a<br />
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O terno: questões e reflexões<br />
critérios objetivos de seu consumidor, dá lugar ao design centrado no ser humano, o que<br />
significa grandes mudanças na pós-modernidade. Nasce uma preocupação com a maneira<br />
através da qual vemos, interpretamos e convivemos com os artefatosiv . A materialidade dos<br />
signosv que envolvem o objeto, em especial, o terno, passam a ser de suma importância.<br />
Os símbolos são os instrumentos por excelência da integração social:<br />
enquanto instrumentos de conhecimento e de comunicação, eles tornam<br />
possível o consensus acerca do sentido do mundo social que contribui<br />
fundamentalmente para a reprodução da ordem social: a integração lógica é a<br />
condição da integração moral. (BOURDIEU, 2009, p.10)<br />
Em uma sociedade industrial onde os objetos são programados para serem obsoletos<br />
em um tempo determinado, o terno continua a se afirmar como um objeto clássico, atemporal.<br />
Os artefatos que povoam nossos corpos não o fazem mais pela nossa necessidade e sim,<br />
pelos elementos simbólicos que a eles atribuímos. Além de forma e função, passam a ser<br />
recheados de significados que definem o lugar social do indivíduo. Nossos pertences nos<br />
revelam, são a extensão de nossos desejos e escolhas e, porque não, de nossos corpos,<br />
compondo nossa identidade.<br />
Segundo Cardoso (1998), devemos considerar que os produtos desenvolvidos a partir<br />
de um determinado processo podem ser investidos de significados que não são restritos aos<br />
percebidos através da sua natureza. Os seus produtos não oferecem apenas soluções para<br />
necessidades objetivas dos usuários, já que estes também possuem necessidades subjetivas,<br />
provenientes de seus desejos, anseios e expectativas. Logo, um objeto adquire significados<br />
que vão além de suas questões estruturais e funcionais, e cumpre assim variadas funçõesvi .<br />
O terno apresenta, desde seu nascimento, características simbólicas que até<br />
hoje são vigentes. Expressam masculinidade, mas não restringem o corpo<br />
como a armadura ou gibões da Renascença. Possui caimento fácil e esconde<br />
a superfície do corpo de modo bastante completo, o que o faz ter a reputação<br />
de inexpressivo, em uma época de músculos trabalhados e quase nudez dos<br />
corpos. (HOLLANDER, 1996, p. 144-145)<br />
O terno faz surgir um imaginário que atrai quem o porta e, gradualmente, constitui um<br />
padrão de vestuário civil para o mundo inteiro, sugerindo competência, articulação, prudência e<br />
desprendimento. O traje permanece sexualmente poderoso e com sua força intacta, dividindo<br />
a cena com outras maneiras de vestir, mas permanece como “um espelho da moderna<br />
auto-estima masculina”, nas palavras de Hollander (1996, p. 76). De acordo com a autora, o<br />
terno possui um caráter abstrato e apresenta uma mensagem de continuidade formal que é<br />
profundamente satisfatório no mundo contemporâneo, por isso o seu não desaparecimento e<br />
a mudança do seu campo de atuação também para o universo feminino e casual, o que trouxe<br />
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O terno: questões e reflexões<br />
transformações em seus diversos significados. Para a mesma autora, se trata de um objeto<br />
de circulação social, que transita em espaços e tempos variados e através dele percebemos<br />
as relações que permeiam sua trajetória. Sua longevidade se dá pelo fato de a alfaiataria<br />
masculina mostrar a autoridade, a força simbólica e emocional dos valores de perpetuação,<br />
além de permanecer a mesma enquanto passa por mudanças internas constantes e, diante<br />
deste cenário, em vez de perder força ou aceitação, adquire maior virtude e nova valorização<br />
ao longo de sua vida. Os ternos masculinos feitos nos moldes da alfaiataria provam ser<br />
infinitamente dinâmicos e detentores de um vigor elegante próprio.<br />
A permanência do terno deve-se também ao fato de que as roupas são uma espécie<br />
de memória, uma segunda pele que nos faz reviver sensações, nos faz lembrar, nos remete e<br />
nos representa. O terno foi culturalmente e socialmente moldado, transformando-se quando<br />
necessário, mantendo sua estrutura original por ser essa a principal emissora dos significados<br />
que nele estão impregnados.<br />
O poder particular da roupa para efetivar essas redes está estreitamente<br />
associado a dois aspectos quase contraditórios de sua materialidade: sua<br />
capacidade para ser permeada e transformada tanto pelo fabricante quanto<br />
por quem a veste; e sua capacidade para durar no tempo. (STALLYBRASS,<br />
2000, pg. 65)<br />
Ao terno são atribuídos significados de diversas naturezas. Sabemos que a base estética<br />
que deu origem ao ideal moderno de elegância masculina procurou imitar a elegância e a<br />
eficiência da natureza clássica. De acordo com Richard James, alfaiate inglês de Savile Row,<br />
o homem expressa-se através de seu terno. Por ser a roupa mais masculina que já se viu e<br />
de uma versatilidade significativa, capaz de trazer anonimato e, ao mesmo tempo, visibilidade<br />
àquele que o veste, demonstra respeitabilidade e define, quase sempre, os acessórios que o<br />
acompanham.<br />
Na reflexão de Nicholas Antongiavanni (2006), o terno é para o homem o que sua casa<br />
é para sua vida, ou seja, é, de certa forma, um abrigo, uma proteção para o corpo e uma<br />
armadura diante das relações sociais que se estabelecem. Veste-se um uniforme de batalha,<br />
um uniforme que assemelha e distingue ao mesmo tempo, sempre com o intuito de proteger,<br />
resguardar e ao mesmo tempo, exaltar as características daquele homem.<br />
De fato, há algo no vestuário masculino que o torna mais moderno. Talvez por possuir<br />
uma superioridade estética, uma “maturidade” em seu design extremamente satisfatória. Suas<br />
formas são visivelmente mais avançadas, e estabeleceram, dessa maneira, a permanência<br />
do terno durante tantos anos nos códigos do vestir. Ele é associado, por tais motivos, ao<br />
poder, à capacidade intelectual, à seriedade e ao profissionalismo. Isso pode ser comprovado<br />
pela apropriação feminina do vestuário masculino, quando estas precisam emanar maior<br />
credibilidade e competência profissional. Com maior ou menor deliberação, segundo Simmel,<br />
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O terno: questões e reflexões<br />
“o indivíduo cria, muitas vezes, para si mesmo uma conduta, um estilo que se caracteriza<br />
como moda pelo ritmo de sua manifestação, de seu fazer-se valer e sobressair” (2008, p. 47).<br />
O desejo dos homens de parecerem descontraídos marcou todo o desenvolvimento do<br />
terno. O conceito de “moderno” significava uma forma abstrata sugerindo um envelope que se<br />
ajustava folgadamente ao corpo, demonstrando seu caráter confortável e utilitário. Esse ideal<br />
masculino era feito de partes separadas, dispostas em camadas e destacáveis com braços,<br />
pernas e troncos visivelmente indicados oferecendo grande mobilidade física e ajustando-se<br />
ao corpo estático e em movimento.<br />
Segundo Hollander (1996), desde 1800, as roupas masculinas mostravam-se variáveis<br />
e expressivas, fluidas e criativas. A diferença, no entanto, é que surgem de maneira consistente.<br />
Os detalhes modificam-se constantemente mas sua estrutura se mantém a mesma. O paletó<br />
tradicional, por exemplo, se mantém, o que muda são suas lapelas, seus detalhes como<br />
botões, bolsos, etc.<br />
O itinerário percorrido pela indumentária masculina, de acordo com Gilda de Mello e<br />
Souza, em vez de estar sujeito a ciclos, a um ritmo estético de expansão de um determinado<br />
elemento decorativo levado ao limite máximo, se simplifica progressivamente, tendendo a<br />
cristalizar-se num uniforme (1987, p. 64).<br />
Da era artesanal à era industrial: adaptações<br />
Há dois séculos o terno se faz presente no complexo contexto da moda, se adaptando<br />
como lhe é possível às suas incansáveis mutações e renovações. A alfaiataria, da mesma<br />
maneira, em meados do século XIX, vê-se diante de um novo cenário produtivo proveniente<br />
da Revolução Industrial, passando por inúmeras mudanças que marcariam para sempre<br />
sua história. A invenção da máquina de costura, há mais de 150 anos, marca o início de<br />
um período de transformações, diminuindo consideravelmente o trabalho, para muitos<br />
considerado enfadonho e cansativo, de costurar à mão, gerando maior eficiência produtiva.<br />
Para a alfaiataria, o uso do maquinário representou uma maneira de otimizar o trabalho e<br />
conferir-lhe maior precisão e qualidade, além da possibilidade de se produzir em massa,<br />
gerando maior acessibilidade.<br />
A mecanização do trabalho é o outro grande fator que define a industrialização,<br />
e uma série de inovações tecnológicas entre o final do século 18 e início do<br />
19 foi permitindo o aumento constante da produtividade na indústria têxtil a<br />
custos cada vez menores em função da rapidez da produção e da diminuição<br />
da mão-de-obra. (CARDOSO, 2008: 27)<br />
De acordo com Hollander (1996), ao longo do século XIX, o prestígio da roupa sob<br />
medida se mantinha na Inglaterra e na França, enquanto as roupas prontas para vestir<br />
despontavam nos EUA. A indústria do pronto para vestir desenvolveu-se naturalmente neste<br />
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O terno: questões e reflexões<br />
contexto, melhorando significativamente a sua qualidade. O vestuário sob medida perde a<br />
dimensão de uma arte para a maioria da população, para se circunscrever a uma clientela<br />
cada vez mais selecionada, exigindo uma nova relação entre o alfaiate e o cliente.<br />
A industrialização trouxe novas possibilidades e flexibilidade em relação à novas técnicas<br />
produtivas, como foi dito, à modelagem das peças e à própria execução, além de inaugurar<br />
o nascimento do que entendemos hoje por design. Os trajes produzidos em massa foram<br />
criados com um padrão tão alto de design, que chegaram a ser comparados com aqueles<br />
estabelecidos pela alfaiataria de antes (HOLLANDER, 1996).<br />
As exigidas transformações pelas quais a alfaiataria passou, não se limitam, no entanto,<br />
apenas ao aspecto produtivo. Ocorreram mudanças no comportamento do consumidor.<br />
Houve uma transferência de responsabilidades: o alfaiate que confeccionava a roupa sob<br />
medida tinha um olhar crítico pelo cliente, afinal tinha que manter o status de bom profissional.<br />
A roupa pronta para vestir, por sua vez, passa somente pelo crivo do cliente, que estabelece<br />
seus padrões estéticos pessoais, sendo o único que pode julgar o caimento e a qualidade do<br />
traje que irá adquirir. O ato de comprar se tornou corriqueiro, o acesso aos produtos, muito<br />
mais possível, fazendo com que a experiência de compra do consumidor se tornasse bastante<br />
diferente da antiga experiência, onde esperar semanas ou meses por um traje, era normal e<br />
aceitável.<br />
Como as roupas eram feitas de maneira exclusiva, não pensava-se em um padrão único<br />
de medidas e nem em um design que atendesse a todos. A fita métrica como conhecemos<br />
hoje, dividida em centímetros, foi inventada pelos próprios alfaiates, em 1820, com a finalidade<br />
de se produzir mais de um traje por vez. Antes disso, cada cliente tinha sua própria tira de<br />
medidas, com marcações específicas para seu corpo. Observou-se, no entanto, semelhanças<br />
nas proporções de alguns corpos masculinos, e que, dessa maneira, seria possível produzir<br />
várias peças ao mesmo tempo, para corpos semelhantes (HOLLANDER, 1996, p. 137).<br />
Toda a ostentação que antecedeu a Revolução Francesa foi substituída pela simplicidade<br />
e pelo conforto da era industrial. O vestuário masculino tornou-se mais sóbrio, influenciado por<br />
pela moda inglesa. Essa simplicidade se estende até os dias de hoje. O cenário contemporâneo,<br />
de roupas feitas em larga escala, permitiu que bons ternos, trajes antes restritos a camadas<br />
sociais abastadas, tivessem maior flexibilidade, se adequando às mudanças produtivas e às<br />
exigências de seu público cada vez mais diverso.<br />
Mesmo com as constantes mudanças de gostos e ideais, relativas à moda, as formas<br />
da alfaiataria masculina ganham força e valorização ao longo de sua vida e nos servem até os<br />
dias de hoje, sendo periodicamente remodeladas pela moda.<br />
O advento da industrialização e a incapacidade de competir com a rapidez de produção<br />
e os baixos preços das lojas, tornou o serviço do alfaiate caro e de elite. A roupa pronta para<br />
vestir ganhou visibilidade por ser cada vez mais comum e mais barata. Os avanços tecnológicos<br />
contribuíram para a disseminação do prêt-à-porter, possibilitando um aumento significativo<br />
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O terno: questões e reflexões<br />
no padrão de qualidade das roupas prontas. O resultado: alfaiates antes imprescindíveis na<br />
sociedade, encontravam-se em vias de extinção.<br />
Esses profissionais resistiram por algum tempo por serem ainda necessários nas<br />
fábricas que se formavam. Precisavam ensinar a técnica e os segredos da alfaiataria para<br />
que a confecção em larga escala pudesse acontecer. Mas por volta de 1940, os alfaiates<br />
que monitoravam as fábricas foram substituídos por administradores e, a partir de 1950, as<br />
mudanças trouxeram uma redução no trabalho humano resultando em uma queda no tempo<br />
de produção e na melhoria da qualidade dos produtos (MUSGRAVE, 2009).<br />
A produção em série desencadeou o início da extinção das alfaiatarias, no entanto,<br />
outros fatores têm contribuído igualmente para esse fato. Um dos maiores problemas que<br />
impedem a perpetuação do ofício do alfaiate é a falta de continuadores nos ateliers. A imagem<br />
pouco atrativa que as alfaiatarias foram adquirindo, gerou desinteresse das camadas mais<br />
jovens que possivelmente, garantiriam sua continuidade. Além disso, para agravar ainda mais<br />
o quadro, se trata de uma profissão que exige um longo período de aprendizagem e não<br />
oferece uma estrutura organizada de formação profissional.<br />
A situação descrita, acaba por prolongar uma crise generalizada na atividade. Os<br />
poucos alfaiates qualificados, por serem raros, encontram sempre empregos sem dificuldade,<br />
mas os jovens, cada vez mais desinteressados, preferem atividades relacionadas ao prêt-àporter,<br />
onde são mais restritos, com menos possibilidades de expressão da sua criatividade,<br />
mas também auferem, em geral, melhores salários do mercado de moda. Os jovens querem<br />
estudar ou optam por trabalhar em atividades que lhes pareçam mais atrativas e com mais<br />
possibilidades de progressão. Optam, por exemplo, pela área de estilismo, ao invés da área<br />
de alfaiataria.<br />
A resposta aos desafios que hoje atravessa esta profissão, que se passa pela formação<br />
profissional, não pode ser desligada de uma adequada promoção que restitua antes de mais<br />
nada o seu prestígio, de forma a ser assumida como uma arte entre outras artes.<br />
Considerações finais<br />
Pensar a moda é pensar o corpo e suas possibilidades. O corpo como suporte, dialoga<br />
com o terno desde o seu surgimento, e este constrói sobre aquele variadas formas e sentidos,<br />
gerando significações sociais e culturais na história da moda.<br />
A moda, segundo Hollander, “ao enfatizar a proposta de um corpo individual, ilustra a<br />
idéia de que a sexualidade, com sua dependência da fantasia individual e da memória, governe<br />
a vida de cada pessoa” (1996, p. 51). Para Castilho, “O corpo sempre se oferece como suporte<br />
gerador de significação, articulador de um discurso que permite a ação da plasticidade da<br />
decoração corpórea nas situações de interação, presentificação e representação pelo contato<br />
que determina valores positivos e negativos que podem ser, em linhas gerais, polêmico ou<br />
contratual, implícito ou explícito” (2005, p. 141).<br />
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O terno: questões e reflexões<br />
Nas palavras de Castilho, “quando utilizados pelo grupo masculino, certos trajes<br />
assumiam significados específicos, como a glória na hierarquia militar, civil ou religiosa. No<br />
conjunto, a indumentária masculina conferia aos homens o poder, a grandeza, a riqueza, a<br />
dignidade no contexto de uma determinada coletividade” (2005, p. 115).<br />
O sujeito, assim, constrói um discurso sobre o seu corpo, que lhe dá<br />
competência para protagonizar diferentes programas narrativos que se<br />
manifestam pela composição e articulação das formas constitutivas de sua<br />
proposta de parecer, e, com isso, poderá atuar em diferentes papéis no<br />
contexto social. (CASTILHO, 2004, p. 183)<br />
Em concordância, na reflexão de Simmel: “Este significado da moda é o que a leva a<br />
ser adotada por homens refinados e originais: utilizam-na como máscara. A obediência cega<br />
às normas do geral em tudo o que é exterior é para eles o meio consciente e deliberado de<br />
reservar a sua sensibilidade e os seus gostos pessoais; querem a tal ponto guardar estes para<br />
si que se opõe a uma exibição que os tornaria acessíveis a todos” (2008, p.43).<br />
Vemos, dessa maneira, que, através do diálogo entre a moda e o corpo, o terno é capaz<br />
de gerar inúmeras significações ou re-significações que perpassam aspectos sociais, sexuais,<br />
estéticos, entre outros. O antagonismo de sentidos relacionado à busca pela individualização<br />
e, simultaneamente, pela aceitação social, acompanham a evolução do traje moderno.<br />
NOTAS<br />
i “Manifestação única de uma lonjura, por muito próxima que esteja”. (BENJAMIN, Walter. Sobre <strong>Arte</strong>,<br />
Técnica, Linguagem e Política. Relógio D’Água Editores, 1992. p. 81.)<br />
ii Os termos “terno” ou “traje” são utilizados para nomear o conjunto clássico de paletó, calça e colete,<br />
originado no século XIX.<br />
iii HOLLANDER, Anne. O sexo e as roupas: a evolução do traje moderno. Rio de Janeiro: Rocco,<br />
1996. (p. 14)<br />
iv Palestra proferida pelo Prof. Klaus Krippendorff durante o P&D <strong>Design</strong> 2000 (IV Congresso Brasileiro<br />
de Pesquisa e Desenvolvimento em <strong>Design</strong>), realizado em outubro de 2000, na FEEVALE, Nova<br />
Hamburgo – RS.<br />
v BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Rio de Janeiro: Elfos Ed.; Lisboa: Ed. 70, 1995. (p.<br />
58)<br />
vi DENIS, Rafael Cardoso. <strong>Design</strong>, cultura material e o fetichismo dos objetos. Artigo, 1998.<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 365
O terno: questões e reflexões<br />
Referências<br />
ANTONGIAVANNI, Nicholas. The Suit. NY: HarperCollins Publishers, 2006.<br />
BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Rio de Janeiro: Elfos Ed.; Lisboa: Ed. 70,<br />
1995. (p. 58)<br />
BENJAMIN, Walter. Sobre <strong>Arte</strong>, Técnica, Linguagem e Política. Relógio D’Água Editores,<br />
1992.<br />
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2009.<br />
CASTILHO, Kathia. <strong>Moda</strong> e Linguagem. São Paulo: Editora Anhembi Morumbi, 2004.<br />
Corpo e moda: por uma compreensão do contemporâneo / Ana Claudia de Oliveira,<br />
Kathia Castilho, organizadoras. – Barueri, SP: Estação da Letras e Cores Editora, 2008.<br />
DENIS, Rafael Cardoso. <strong>Design</strong>, cultura material e o fetichismo dos objetos. Artigo, 1998.<br />
HOLLANDER, Anne. O sexo e as roupas: a evolução do traje moderno. Rio de Janeiro:<br />
Rocco, 1996. (p. 14)<br />
LIPOVETSKY, Gilles. O Império do efêmero. A moda e seu destino nas sociedades<br />
modernas. São Paulo, Companhia das Letras, 1989.<br />
SOUZA, Gilda de Mello e. O espírito das roupas: a moda no século dezenove. São Paulo:<br />
Companhia das Letras, 1987.<br />
MUSGRAVE, Eric. Sharp suits. United Kingdom: Pavilion Books, 2009.<br />
PIRES, Dorotéia Baduy (org.). <strong>Design</strong> de <strong>Moda</strong>: olhares diversos. Barueri, SP: Estação das<br />
Letras e Cores Editora, 2008.<br />
SIMMEL, Georg. Filosofia da moda e outros escritos. São Paulo: Edições Texto & Grafia,<br />
2008.<br />
STALLYBRASS, Peter. O casaco de Marx: roupas, memória, dor. Belo Horizonte: Autêntica<br />
Editora, 2008.<br />
Palestra proferida pelo Prof. Klaus Krippendorff durante o P&D <strong>Design</strong> 2000 (IV Congresso<br />
Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em <strong>Design</strong>), realizado em outubro de 2000, na<br />
FEEVALE, Nova Hamburgo – RS.<br />
Artigo publicado pela Revista Dobras. MOTTA, Eduardo. Fevereiro de 2009. Pg. 31.<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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PROFISSãO: DESIGNER DE MODA<br />
Lívia Marsari Pereira; Mestre em <strong>Design</strong>: <strong>Universidade</strong> Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho<br />
lilimarsari@hotmail.com<br />
Maria Carolina Medeiros; Mestranda em <strong>Design</strong>: <strong>Universidade</strong> Estadual Paulista<br />
Júlio de Mesquita Filho - mcarolmedeiros@hotmail.com<br />
Paula Hatadani; Mestranda em <strong>Design</strong>: <strong>Universidade</strong> Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho<br />
paulahatadani@yahoo.com.br<br />
Raquel Rabelo Andrade; Mestranda em <strong>Design</strong>: <strong>Universidade</strong> Estadual Paulista<br />
Júlio de Mesquita Filho - raquel_andrade00@yahoo.com.br<br />
José Carlos Plácido da Silva; Doutor: <strong>Universidade</strong> Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho<br />
placido@faac.unesp.br<br />
Resumo<br />
Este estudo é o resultado de uma investigação de natureza<br />
bibliográfica que busca apresentar algumas definições para o<br />
design, retratar a profissão “designer” na atualidade e relatar as<br />
principais vertentes que vem surgindo com a difusão das escolas<br />
de ensino superior nessa área de conhecimento, especialmente o<br />
design de moda.<br />
Palavras-Chave: design; profissão e design de moda<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Profissão: designer de moda<br />
Introdução<br />
A origem do profissional de design remonta ao século passado, influenciado<br />
principalmente pela Revolução Industrial e pela contribuição das vanguardas artísticas que<br />
assumem a estética da máquina, incorporando-a as suas criações.<br />
Dorfles (2002) afirma ser errado defender que o design sempre existiu, pois segundo o<br />
autor, uma das premissas básicas para que um elemento seja pertinente ao design industrial é<br />
que ele seja produzido de modo industrial e mecânico, exclusivamente e, assim, seja passível<br />
de repetição em série, o que não acontecia antes do advento da máquina.<br />
Portanto, podemos considerar o inicio do design em conjunto com o advento da<br />
máquina e na produção de objetos pelo homem.<br />
Ainda na atualidade, descrever uma definição clara e axiomática do design é quase<br />
impossível do ponto de vista de alguns estudiosos. O design é um termo muito citado, porém<br />
ainda não completamente compreendido em relação ao seu conceito. O número infinito de<br />
pensamentos ligados a essa atividade faz dessa profissão uma área incompreendida e sem<br />
definições para grande parte da sociedade.<br />
Ainda falta reconhecimento do design como área e a contribuição específica que ele<br />
tem a dar para a cultura em geral e para a brasileira em particular. Stolarski apud Junior, (2006)<br />
afirma que o problema não é o preconceito, mas sim falta de informação: “o design é muito<br />
comentado e celebrado, mas nunca se sabe direito o que quer dizer a palavra. Assim, o termo<br />
acaba por virar sinônimo de “luxo”, “arte”, “sofisticação”, que estão muito distantes de dar<br />
conta do que a atividade faz”.<br />
Juntamente com esse panorama de desinformação sobre o verdadeiro significado de<br />
design encontra-se uma difusão de novos cursos com diversas abrangências e especialidades<br />
das áreas de atuação do design.<br />
O design de moda é uma dessas áreas que vem destacando-se no panorama atual. O<br />
design de moda cria produtos para produzir experiências significativas nos corpos, em tecidos<br />
e roupas são trabalhadas formas, silhuetas e texturas que produzem experiências sensoriais<br />
e por sua vez criam percepções diversas nas pessoas. Os objetivos e procedimentos da<br />
concepção do vestuário assemelham-se ao processo de desenvolvimento de objetos<br />
de design, pois consideram a importância da metodologia de projeto e da satisfação das<br />
necessidades e anseios dos usuários.<br />
Nesse sentido, Feghali e Dwyer (2001, p.103) definem:<br />
<strong>Design</strong>er de moda é o profissional que define a cara de uma coleção,<br />
independentemente do mercado a ser atingido. Pode ser empregado em<br />
uma empresa ou trabalhar como autônomo. [...] Durante o processo de<br />
criação, ele leva em conta não só os aspectos artísticos e sociais, mas<br />
também a necessidade de atender às tendências de marketing e aos<br />
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Profissão: designer de moda<br />
avanços técnicos da indústria, uma vez que a cada estação, ocorrem<br />
mudanças no que se refere às cores, aperfeiçoamento de tecidos, linha<br />
de produção, capacidades e preços.<br />
Desta forma, este artigo tem como objetivo apresentar algumas definições sobre o<br />
design, relatar as principais vertentes que vem surgindo com a difusão das escolas de ensino<br />
superior nessa área de conhecimento, entre elas o design de moda, foco desta pesquisa.<br />
<strong>Design</strong><br />
A raiz da palavra design em inglês tem origem da palavra latina designare, que também<br />
dá origem na nossa língua às palavras desejo, desenho e designo (ARRIVABENE, 2009). Essas<br />
palavras juntas auxiliam na compreensão deste termo. Por desejo, entende-se o potencial que<br />
o design possui de despertar o interesse e de agregar valor. Por desenho, a preocupação<br />
estética, forma, beleza e a comunicação visual. E designo, a funcionalidade, ergonomia,<br />
preocupação com o usuário e principalmente a atividade projetual.<br />
A palavra <strong>Design</strong> tem sido empregada desde o ano 1580, mas sua primeira acepção<br />
foi documentada em 1588 no Oxford English Dictionary, que o definia como “um plano ou<br />
um esboço concebido pelo homem para algo que se há de se realizar, um primeiro esboço<br />
desenhado para uma obra de arte ou um objeto de arte aplicada, necessário para a sua<br />
execução” (PIRES, 2008, p.96).<br />
A partir do século XX, novas definições mais complexas para o termo foram traçadas,<br />
e o design foi sendo configurado, cada vez mais, como um processo projetual. O design<br />
hoje, enquanto uma atividade engloba inúmeras áreas de trabalho e pesquisa, que tiveram,<br />
inclusive, percursos históricos diferentes, os quais só cruzaram-se quando o perfil do design<br />
como uma atividade multidisciplinar foi traçado.<br />
As definições atuais para o termo situam as atividades do design num patamar ainda<br />
mais abrangente. Diversos autores, entre eles Niemeyer (2000), Pires (2008) e Cardoso (2004),<br />
entende-se o design como sendo o conjunto de atividades teóricas e práticas que objetivam<br />
o desenvolvimento de projetos industriais, que por sua vez, têm como finalidade a realização<br />
de produtos ou serviços que buscam suprir as necessidades humanas. Lobach (2000, p.22)<br />
define design como “o processo de adaptação do ambiente artificial às necessidades físicas<br />
e psíquicas dos homens na sociedade”. Sendo assim, o design deve estar relacionado com<br />
todas as dimensões do produto, sejam elas funcionais, estéticas ou simbólicas.<br />
O design também deve atuar em todo o ciclo de vida do produto e não apenas na sua<br />
concepção - desde a sua criação, até a fabricação, distribuição, uso e descarte. Segundo<br />
definição do International Council <strong>Design</strong> of Societies of Industrial <strong>Design</strong> (ICSID, 2008) o<br />
design é uma atividade criativa cuja finalidade é estabelecer as qualidades multifacetadas de<br />
objetos, processos, serviços e seus sistemas, compreendendo todo o seu ciclo de vida.<br />
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Profissão: designer de moda<br />
Assim, hoje o design pode ser entendido como uma atividade multi e interdisciplinar,<br />
que permeia todo o processo destinado à reprodução industrial realizando a manipulação de<br />
um conjunto de conhecimento e informações de ordem técnica, ergonômica, psicológica,<br />
mercadológica, estética, econômica e cultural, gerando alternativas, até o encontro de uma<br />
solução final para o produto. É um trabalho de caráter multidisciplinar, onde diversas áreas do<br />
conhecimento relacionam-se, de acordo com a natureza do projeto, contribuindo para uma<br />
solução final em termos de produto.<br />
A profissão<br />
No Brasil, a profissão designer não é regulamentada, embora ela conste no Catálogo<br />
Geral de Profissões do Ministério do Trabalho (ESCOREL, 1999). Existem, no entanto,<br />
associações profissionais, de caráter cultural e representativo.<br />
Cursos especializados têm sido abertos todos os anos, o que gera um aumento<br />
significativo da oferta de mão-de-obra. “O aumento da porcentagem de profissionais formados,<br />
por sua vez, coincidiu com a chegada do computador que revolucionou a maneira de projetar<br />
e produzir, acarretando, entre outras coisas, uma redução substancial dos preços cobrados”<br />
(ESCOREL, 1999, p.92).<br />
O avanço da tecnologia e da informação facilitou o acesso ao uso de certas ferramentas<br />
do design, e neste panorama surgiram os famosos “micreiros” – profissionais capazes de<br />
operar os softwares, porém sem formação suficiente para realmente aplicar a tecnologia,<br />
usando-a muitas vezes de forma aleatória.<br />
Muitas pessoas e empresas contratam este “designer” para desenvolver seus trabalhos,<br />
pelo valor que normalmente é cobrado por esse profissional – abaixo do custo real – ou<br />
pelos prazos ou pelas facilidades que eles oferecem ao cliente. “Por vezes, estes clientes<br />
relatam posteriormente que o gasto foi ainda maior que se tivessem realmente contratado<br />
um profissional da área, ou que o trabalho desenvolvido não atingiu a qualidade esperada”<br />
(ALBUQUERQUE, 2008, p.2).<br />
Neste sentido, apesar de todas as tentativas realizadas por profissionais e teóricos<br />
para estabelecer o real significado e abrangência da profissão “designer”, esta ainda é vista,<br />
pela sociedade em geral, como uma atividade meramente empírica, que preocupa-se apenas<br />
com questões estéticas. Tal visão obviamente traduz de forma errônea e simplificada os<br />
aspectos da profissão, pois, segundo Whiteley (1998), cabe aos designers considerar não<br />
apenas as questões artísticas, mas também as questões sociais, econômicas, políticas, éticas,<br />
tecnológicas, ecológicas e ambientais de seus projetos.<br />
Entre os próprios designers, pode-se encontrar duas vertentes mais comuns: aqueles<br />
que acreditam no potencial artístico do design e aqueles que defendem um maior tecnicismo<br />
e formalismo do design, baseados principalmente nas duas maiores escolas de design do<br />
século XX, a Bauhaus (Alemanha 1919-1933) e Escola de Ulm (Alemanha 1953-1968). Whiteley<br />
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(1998) aborda de forma mais detalhada este tema, classificando em seis os diferentes tipos<br />
de designers existentes: o designer formalizado, o designer teorizado, o designer politizado,<br />
o designer consumista, o designer tecnológico e, por fim, o designer valorizado, sendo este<br />
último uma proposta do próprio autor, considerada ideal, pois define um profissional mais<br />
completo, que une de forma coerente a teoria e a prática.<br />
Todos os anos surgem novos profissionais de design, e a cada ano são criados novos<br />
espaços e abrangências. Segundo Albuquerque (2008) atualmente existe mais de seis difusões,<br />
que ramificam-se, tais como o design gráfico, design de produto, design editorial, design de<br />
embalagem, design de multimídia e/ou mídia eletrônica, design ambiental e design de moda.<br />
Nesse sentido, Gomes Filho (2006, p.15) explica que “o campo do design se fraciona<br />
cada vez mais em diversas especialidades ditadas pelo mercado”. As particularidades das<br />
áreas de atuação do design encontram-se amplamente subdivididas, como mostra a Tabela 1.<br />
O que acaba por resultar em certa confusão na medida em que determinadas especialidades<br />
se desdobram e se sobrepõe, quando na verdade possuem significados muito próximos.<br />
Contexto internacional Equivalência aproximada Contexto nacional<br />
Industrial <strong>Design</strong><br />
<strong>Design</strong> Industrial<br />
Object <strong>Design</strong><br />
<strong>Design</strong> do Objeto<br />
Furniture <strong>Design</strong><br />
<strong>Design</strong> de Equipamentos Urbanos<br />
Automobile <strong>Design</strong><br />
<strong>Design</strong> de Mobiliário<br />
Computer <strong>Design</strong><br />
<strong>Design</strong> Automobilístico<br />
Hardware <strong>Design</strong><br />
<strong>Design</strong> de Computador<br />
Packging <strong>Design</strong><br />
<strong>Design</strong> de Máquinas e Equipamentos <strong>Design</strong> de produto<br />
Food <strong>Design</strong><br />
<strong>Design</strong> de Embalagens<br />
Jeweley <strong>Design</strong><br />
<strong>Design</strong> de Alimentos<br />
Sound <strong>Design</strong><br />
<strong>Design</strong> de Jóias<br />
Lighting <strong>Design</strong><br />
<strong>Design</strong> de Sistemas de Som<br />
Textile <strong>Design</strong><br />
<strong>Design</strong> de Sistemas de Iluminação<br />
<strong>Design</strong> Têxtil<br />
Communications <strong>Design</strong> <strong>Design</strong> de Sistemas Comunicativos<br />
Commercial <strong>Design</strong><br />
<strong>Design</strong> gráfico<br />
Corporate <strong>Design</strong><br />
<strong>Design</strong> de Identidade Corporativa<br />
Information <strong>Design</strong><br />
Tabletop <strong>Design</strong><br />
<strong>Design</strong> de Sistemas de Informação<br />
<strong>Design</strong> de Editoração<br />
<strong>Design</strong> Gráfico<br />
Media <strong>Design</strong><br />
<strong>Design</strong> de Meios de Comunicação<br />
Software <strong>Design</strong><br />
<strong>Design</strong> de Programas<br />
Fashion <strong>Design</strong> <strong>Design</strong> de <strong>Moda</strong> <strong>Design</strong> de <strong>Moda</strong><br />
Interior <strong>Design</strong> <strong>Design</strong> de Interiores <strong>Design</strong> de Ambientes<br />
Re-<strong>Design</strong> Redesign Redesign<br />
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Profissão: designer de moda<br />
Conceptual <strong>Design</strong><br />
Counterdesign<br />
Antidesign<br />
Radicaldesign<br />
Avant-Garde <strong>Design</strong><br />
Bio-<strong>Design</strong><br />
Eco-<strong>Design</strong><br />
Universal <strong>Design</strong><br />
<strong>Design</strong> Conceitual<br />
Counterdesign<br />
Antidesign<br />
Radicaldesign<br />
Avant-Garde <strong>Design</strong><br />
Bio-<strong>Design</strong><br />
Eco-<strong>Design</strong><br />
Universal <strong>Design</strong><br />
<strong>Design</strong> Conceitual<br />
Interface <strong>Design</strong> <strong>Design</strong> de Interfaces <strong>Design</strong> de Interfaces<br />
Fonte: Haufle, 1996 apud Gomes Filho, 2006<br />
Na pesquisa científica podemos encontrar o design também subdividido em suas<br />
difusões de conhecimento como mostra a Figura 2, que representa as diversas áreas de<br />
abrangência de artigos no P&D no ano de 2006.<br />
Figura 2 – As diversas áreas do <strong>Design</strong> (distribuição de artigos por área no P&D 2006)<br />
Fonte: Amstel 2006<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Profissão: designer de moda<br />
Percebe-se que o <strong>Design</strong> de <strong>Moda</strong> é citado em todas as classificações de especialidades<br />
de atuação do design, sendo, em comparação, uma área mais nova. Gomes Filho (2006, p.29)<br />
descreve o design de moda como “especialidade ou área de atuação que envolve a criação,<br />
o desenvolvimento e a confecção de produtos da moda e atinge diversos segmentos de<br />
utilização, relacionados com o uso de objetos diretamente sobre o corpo”.<br />
<strong>Design</strong> de <strong>Moda</strong><br />
As pesquisas na área do design voltam-se cada vez mais para o universo da moda.<br />
Essa aproximação não está somente marcada pela inserção da palavra designer para nomear<br />
o profissional de moda, mas sim a partir de seu conceito, que passou a participar e conduzir<br />
os processos da moda.<br />
Segundo Palomino (2003), o termo moda surgiu por volta dos séculos XIV e XV, na Europa<br />
Ocidental e atingiu sua plenitude com os processos industriais de produção e aprimoramento<br />
dos aspectos estéticos e técnicos dos produtos industrializados.<br />
O fenômeno moda serviu de alicerce para manutenção de tradições, elementos<br />
distintivos entre classes, funções sociais, simbolismos, suporte para informações a respeito do<br />
individuo e de grupos a que pertence. O vestuário tornou-se, em grande parte por seu caráter<br />
simbólico, a primeira materialização do fenômeno moda.<br />
A moda possui significado abrangente por estar presente nos mais diversos produtos e<br />
como fenômeno social. Rech (2002, p.29) a define pelas “mudanças sociológicas, psicológicas<br />
e estéticas, intrínsecas à arquitetura, às artes visuais, a musica, à religião, à política, à literatura,<br />
à perspectiva filosófica, à decoração e ao vestuário”.<br />
O vestuário inserido no sistema de moda tem por finalidade, além de vestir o corpo,<br />
outras associações como satisfação de necessidades emocionais do consumidor-usuário.<br />
Produtos destinados ao consumo como as roupas denotam aspectos sociais, econômicos,<br />
ambientais e mercadológicos. Diante dessa premissa Montemezzo (2003, p.34) afirma:<br />
Se a concepção destes produtos envolve a articulação de fatores sociais,<br />
antropológicos, ecológicos, ergonômicos, tecnológicos e econômicos,<br />
em coerência às necessidades e desejos de um mercado consumidor, é<br />
pertinente afirmar que tal processo se encaixa perfeitamente na conduta<br />
criativa da resolução de problemas de design.<br />
Ao longo dos tempos surgiram diversas perspectivas de abordagem ao conceito de<br />
design na tentativa de encontrar uma definição completa para este conceito. Assim, o design<br />
é compreendido como metodologia de trabalho e a sua preocupação com a forma, a estética<br />
e a função do objeto.<br />
Desta forma, percebe-se que os objetivos e procedimentos da concepção do vestuário<br />
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Profissão: designer de moda<br />
assemelham-se ao processo de desenvolvimento de objetos de design ao considerar que<br />
os dois métodos participam de um mesmo ponto de vista da metodologia de projeto e da<br />
satisfação das necessidades e anseios dos usuários.<br />
Assim, design e moda encaixam-se na condução do processo criativo e agregam-se<br />
no conjunto de desenvolvimento do produto. A partir desta afirmativa, Pires (2004) explica que<br />
fazer design é designar aspectos de formas, silhuetas, texturas, cores, materiais, emoções<br />
associando-se a ergonomia na ampliação de benefícios, voltada para soluções estéticas,<br />
funcionais e confortáveis.<br />
Desta forma, o design de moda é a concepção de produtos representados em geral,<br />
por peças, aviamentos, acessórios e roupas que mantém interfaces com o design gráfico e,<br />
principalmente, com o design do produto no que se refere aos acessórios em geral (GOMES<br />
FILHO, 2006).<br />
O vestuário como resultado de um processo de design é denominado produto de moda,<br />
cujo princípio é atender as necessidades de determinado público consumidor, conforme o seu<br />
estilo de vida. De acordo com Rech (2002, p.37) o produto de moda pode ser conceituado<br />
como:<br />
[...] qualquer elemento ou serviço que conjugue as propriedades de<br />
criação (design e tendências de moda), qualidade (conceitual e física),<br />
vestibilidade, aparência (apresentação) e preço a partir das vontades e<br />
anseios do segmento de mercado ao qual o produto se destina.<br />
O processo de design do vestuário deve então, conciliar as características materiais e<br />
tecnológicas adequadas ao ponto de vista do grupo social em questão, agregando valores<br />
estilísticos, estudando a produção, o consumo e os valores de concorrência dos bens<br />
produzidos.<br />
Emerenciano e Waechter (2006) acreditam que ao abordar o produto vestuário pelo<br />
enfoque do design propicia-se uma apreciação abrangente de sua situação de uso seja ela<br />
de consumo ou utilização propriamente dita e ainda possibilita otimização de processos e<br />
utilização de materiais que garantem à diferenciação e exclusividade desses produtos.<br />
Considerações Finais<br />
A atividade do designer fortaleceu-se com o surgimento das indústrias e escolas de<br />
design, já que por meios destas, grande parte dos objetivos da área tornaram-se mais claros<br />
e definidos, como o foco de produção com um fim social.<br />
Ainda que não regulamentada, a profissão vem sendo delineada e continua modificadose<br />
e adquirindo novas ramificações atreladas à inovação e ao comportamento humano e suas<br />
necessidades, as quais também evoluem e alteram-se todos os dias.<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Profissão: designer de moda<br />
Mais do que nunca, os produtos de design representam a cultura mundial e influenciam<br />
a qualidade do nosso ambiente e do nosso cotidiano. Desta forma, o designer necessita refletir<br />
sobre seus atos e projetos para assim encontrar novos caminhos para ajudar as empresas a<br />
promover uma real melhoria na condição de vida das pessoas, sem deixar de lado questões<br />
relativamente novas, mas que tornaram-se primordiais para a prática do design.<br />
Os projetos de design em geral devem responder às necessidades técnicas, funcionais<br />
e culturais da sociedade, propondo soluções inovadoras que comuniquem significado e<br />
emoção, que transcendam idealmente as suas formas, estrutura e fabrico. É necessário ainda<br />
que o profissional do design possua destreza, capacidade interpretativa, racionalidade efetiva,<br />
preocupação social e ética, para que as novas tecnologias aliadas ao design possam propor<br />
objetos inteligentes, resultando trocas físicas e psíquicas em resposta às nossas necessidades<br />
e ao nosso tempo.<br />
Especificamente o designer de moda é um profissional diretamente ligado a questões<br />
que têm como objetivo a concepção, criação e acompanhamento de peças do vestuário e<br />
acessórios, sempre preocupado-se com o mercado, ou seja, com foco principal na satisfação<br />
das necessidades e desejos do consumidor.<br />
O designer de moda deve, além de criar, estar atento a todo o processo de gestão de<br />
produto, desde a sua concepção, até sua distribuição, estando atento aos diversos setores<br />
pelos quais o seu produto passa até chegar ao consumidor.<br />
A formação desse profissional no Brasil é recente e está em processo de evolução.<br />
Segundo Hoffmann (2009) até o ano de 2007 o Brasil possuía 81 cursos de graduação na área<br />
de <strong>Moda</strong> distribuídos em 52 cidades em 17 estados. Dos 81 cursos voltados à moda no Brasil,<br />
58 foram criados a partir de 2000 e o mais antigo foi autorizado pelo Ministério da Educação e<br />
Cultura (MEC) em 1989. Ou seja, são cursos novos e percebe-se que nos últimos anos houve<br />
um grande volume de cursos em implantação. A pós-graduação, também ainda é pouco<br />
difundida, com poucos cursos disponíveis e abrangendo poucas áreas de atuação da moda.<br />
Sabe-se porem quem nem todos os cursos na área da moda são concebidos a partir<br />
da metodologia do design. Realidade essa, que é motivo de grandes discussões e possíveis<br />
mudanças, devido à grande importância da aplicação dos conhecimentos do design no<br />
desenvolvimento de produtos moda.<br />
Sousa et al (2010) explica que a formação em moda oferecida pela maioria das instituições<br />
superiores brasileiras passou a ser norteada pelas Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso<br />
de Graduação em <strong>Design</strong>, consolidadas na Resolução CNE/CES nº 05, de 8 de março de<br />
2004. Este documento influenciou diretamente a conformação dos projetos pedagógicos da<br />
área, levando ainda a um processo de ajuste dos cursos criados anteriormente, de modo a<br />
manterem o direito de funcionar e conquistarem reconhecimento social.<br />
Tais diretrizes têm permeado a cultura de ensino de moda no Brasil com conhecimentos<br />
e práticas do campo do design que passaram a conviver com o campo da moda.<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Profissão: designer de moda<br />
Para o profissional designer de moda existe o desafio de conferir serenidade e conteúdo<br />
ao campo da moda, o que somente será conquistado com investimentos em pesquisa,<br />
qualificação e capacitação dos profissionais.<br />
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DESIGNERS: ENTRE CéTICOS E DOGMáTICOS<br />
Diego Daniel Casas; Mestrando em <strong>Design</strong> Gráfi co: UFSC<br />
Ricardo Goulart Tredezini Straioto; Mestrando em <strong>Design</strong> Gráfi co: UFSC<br />
Richard Perassi Luiz de Sousa; Prof. Dr. do Departamento de Expressão Gráfi ca: UFSC<br />
Resumo<br />
Ao longo dos anos, o design passou por transformações que<br />
alteraram seu discurso e objetivo inicial, o que, em certa medida,<br />
reflete seu amadurecimento e seu reconhecimento social,<br />
principalmente ao deixar de ser uma vanguarda, ou um projeto<br />
alternativo, e passar a ser absorvido pela empresas e pela<br />
sociedade, através da consolidação de um mercado de design. E<br />
apesar de aparentarem certo distanciamento, o pensamento cético<br />
e o design possuem relação estreita. Este artigo objetiva confrontar<br />
o design e algumas de suas perspectivas com o pensamento<br />
cético, no intuito de constituir uma relação entre as abordagens<br />
de design e suas possíveis bases epistemológicas. Como<br />
metodologia para alcançar o objetivo foi utilizada uma pesquisa<br />
exploratória e bibliográfica. Os resultados alcançados ressaltam<br />
que a divisão entre as abordagens de design é, em certa medida,<br />
artificial, como se elas pudessem representar categorias distintas<br />
e grupos exclusivos de indivíduos. É possível também notar que<br />
o pensamento cético e o design possuem íntima relação e tanto<br />
a abordagem de design, como a postura cética ou dogmática em<br />
relação a tal abordagem, devem, ambas, ser fruto reflexão dos<br />
designers.<br />
Palavras-Chave: design; ceticismo; epistemologia<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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<strong>Design</strong>ers: entre céticos e dogmáticos<br />
Introdução<br />
Mesmo aparentemente distantes, o pensamento cético e o design possuem uma<br />
relação estreita. De modo que o ceticismo e seu oposto, o dogmatismo, estão presentes<br />
cotidianamente no modo de agir e pensar dos profissionais ligados a atividade de design.<br />
A proposta do artigo é confrontar o design, em suas principais perspectivas, com as<br />
bases do pensamento cético, a fim de estabelecer uma relação entre as abordagens de design<br />
e suas possíveis bases epistemológicas.<br />
Com o passar dos anos, desde sua fundação, o design passou por transformações que<br />
alteraram seu discurso e objetivo inicial, que, em certa medida, reflete seu amadurecimento<br />
e seu reconhecimento social, principalmente ao deixar de ser uma vanguarda, ou um projeto<br />
alternativo, e passar a ser absorvido pela empresas e pela sociedade, através da consolidação<br />
de um mercado de design.<br />
Essa discussão tem como embasamento a análise de Nuno Portas (1993), sobre as<br />
três principais correntes ou tendências em <strong>Design</strong>, que, segundo ele, norteiam a formação e<br />
a visão da maioria dos profissionais da área sobre a atividade e, conseqüentemente, as ações<br />
projetuais e as políticas desenvolvidas pelos mesmos.<br />
Como suporte e complementação a abordagem de Portas, utilizaremos a reflexão<br />
crítica de Norberto Chaves (2001) sobre os discursos assumidos pelo design no decorrer<br />
de sua trajetória, polarizados e contrastados como discurso dos fundadores e discurso do<br />
mercado, mas também se referindo a uma terceira corrente pós-moderna, que nesse ponto se<br />
diferencia de Portas, e assim expande as perspectivas sobre os rumos da atividade de design.<br />
O pensamento cético, em síntese, pode ser encarado como a suspensão do juízo,<br />
sem aceitar ou negar uma teoria, o que demonstra seu caráter de investigação permanente.<br />
O cético pirrônico, conforme Sexto Empírico, também pode propor teorias, mas, no entanto,<br />
a diferença entre ele e o dogmático, é que o cético suspende o juízo e continua investigando.<br />
Conforme o Dicionário Básico de Filosofia (JAPIASSÚ, 1990), por oposição ao ceticismo, o<br />
dogmatismo é a atitude que consiste em admitir a possibilidade, para a razão humana, de<br />
chegar a verdades absolutamente certas e seguras. Na concepção cética geral, portanto, a<br />
especulação filosófica daria lugar ao senso comum e à vida prática.<br />
Considerando apenas o que é aceito no senso comum entre os autores de design<br />
utilizados que, como vimos, é uma das essências do pensamento cético, a ênfase se dará,<br />
então, na abordagem funcionalista relacionada com o discurso dos fundadores da teoria do<br />
design, e a abordagem do Styling adotada pelos agentes do mercado. Essa duas abordagens<br />
são aproximadas do pensamento cético, através de seus principais expoentes - como<br />
Sexto Empírico, Descartes, Hume, Kant entre outros, e assim, buscar estabelecer relações<br />
epistemológicas das duas principais correntes de design. As outras perspectivas também<br />
são indicadas no texto, como concepção sistêmica ou ecológica (Portas) e a pós-moderna<br />
(Chaves), porém sem o mesmo destaque das duas anteriores por não serem consensuais<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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<strong>Design</strong>ers: entre céticos e dogmáticos<br />
entre os autores.<br />
Em suma, o presente estudo aborda também a transformação do design no decorrer<br />
dos tempos, de sua origem até a atualidade, traçando um paralelo com o pensamento<br />
cético. Busca contrastar as principais correntes de design, desde a origem funcionalista e<br />
mais dogmática, passando pelo Styling e pelo pragmatismo em relação ao êxito de mercado.<br />
Encerra-se com as correntes mais recentes, como a pós-moderna e o design sistêmico,<br />
que de certa forma se caracterizam, respectivamente, como uma postura mais cética e mais<br />
dogmática em relação ao design.<br />
Os pensamentos cético e dogmático no design<br />
Para Lobach (2001), o design pode ser compreendido, no sentido amplo, como a<br />
concretização de uma ideia em forma de projetos. Para o cético, o conhecimento do real é<br />
impossível à razão humana, portanto o homem deve renunciar à certeza, suspender seu juízo<br />
sobre as coisas e submeter toda afirmação a uma dúvida constante. E ser dogmático, consiste<br />
em admitir a possibilidade, para a razão humana, de chegar a verdades absolutamente certas<br />
e seguras.<br />
Uma aplicação rápida dos pensamentos acima, em relação aos projetos do design, é<br />
o exemplo do walkman, representado pela Figura 01. Ele demonstra o potencial do design no<br />
surgimento de novos produtos, utilizando-se do ceticismo metodológico para refutar propostas<br />
de produtos que não “resolvem o problema”. Como resultado desse processo tem-se um<br />
produto que resistiu a todas as dúvidas impostas sobre suas qualidades, sobre o atendimento<br />
das necessidades do usuário, aos aspectos técnicos de sua produção e comercialização e,<br />
mais recentemente, até mesmo sobre o seu descarte.<br />
Figura 01 - Evolução players<br />
Fonte: arquivo dos autores.<br />
De certa forma, portanto, o designer é cético com relação ao fato de ter alcançado<br />
definitivamente a melhor forma para uma determinada função. Pois, como no exemplo anterior<br />
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<strong>Design</strong>ers: entre céticos e dogmáticos<br />
(fig.01), os produtos sempre se transformam para atender uma mesma função, quando não é<br />
a própria a função que se altera. Por outro lado, o designer também precisa ser pontualmente<br />
dogmático, porque cada produto é uma espécie de teoria, ou enunciado, que corresponde a<br />
uma resposta considerada verdadeira com relação ao atendimento da necessidade proposta.<br />
Nesse sentido, em certos casos, o designer assume o pragmatismo dos céticos, considerando<br />
certos procedimentos e produtos úteis, apesar de não serem necessariamente “verdadeiros”.<br />
Em outros casos, entretanto, assume o dogmatismo ao mostrar-se convencido de que design<br />
é ciência capaz de encontrar a verdade.<br />
Conforme Burdek (1999), todo objeto de design há de ser entendido como resultado<br />
de um processo de desenvolvimento que sempre reflete nas condições sob as quais surgiu:<br />
o contexto histórico, social e cultural, as limitações da técnica e da produção, os requisitos<br />
ergonômicos, ecológicos, os interesses econômicos, políticos e até as aspirações artísticas.<br />
A partir disso, podemos considerar as constantes mudanças sócio-culturais que, com<br />
o passar dos anos, mudam as necessidades, gerando demandas por novas funções para<br />
produtos já existentes e, também, por novos produtos. O designer, como atuante fundamental<br />
no sistema de produção e consumo, deve estar atento às mudanças, visando aprimorar e<br />
adequar o sistema sócio-produtivo.<br />
Relações entre design e ceticismo<br />
O ceticismo inspira a atitude crítica e questionadora da filosofia contemporânea, como<br />
a relatividade do conhecimento e dos limites da razão e da ciência, que a epistemologia<br />
atual trata. Desde a antiguidade, existem os filósofos céticos e os filósofos dogmáticos. Os<br />
primeiros se recusam a crer nas verdades estabelecidas, enquanto os segundos defendem<br />
as verdades de sua “escola”. No <strong>Design</strong>, dentro das suas diversas abordagens e “escolas”, a<br />
atitude cética e a dogmática pode ser utilizada como extremos de uma escala para posicionar<br />
o comportamento, ou mesmo o discurso dos profissionais da área. Como vimos, a relação<br />
entre design e ceticismo é clara ao observarmos o desenvolvimento dos produtos, mas, a<br />
partir de agora, passaremos a confrontar as diversas “escolas de pensamento” ou “discursos”<br />
de design com o pensamento cético e a epistemologia.<br />
O <strong>Design</strong>er Funcionalista e o discurso dos fundadores<br />
Azevedo (1998) afirma que, para compreender melhor a atividade do design é preciso<br />
observar os movimentos que, ao passar do tempo, incentivaram o homem na busca por<br />
novas formas, materiais e métodos. Mas, em essência, a idéia de design surge no mundo<br />
quando o homem começa fazer suas ferramentas e objetos. Principalmente antes do século<br />
XX, a confecção de um objeto era função do artesão. Mas com o surgimento da indústria,<br />
tornou-se necessário aproximar a atividade do artesão e da máquina, pois era preciso adaptar<br />
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<strong>Design</strong>ers: entre céticos e dogmáticos<br />
o processo de construção do objeto de modo a facilitar sua produção pela máquina. Assim,<br />
a partir do modelo industrial de produção, o processo de concepção do objeto passou a ser<br />
entendido como design, ou mesmo, como desenho industrial.<br />
Com origens histórica na Europa Central do primeiro pós-guerra, sobretudo, lançado<br />
pela escola alemã Bauhaus, o design assumia um discurso essencialmente funcionalista, na<br />
medida em que a criação da forma dos produtos deveria traduzir a constituição lógica da<br />
produção do objeto e, sobretudo, a lógica da sua função – da utilidade, do uso – a que se<br />
destinava. O que levou ao desenvolvimento de múltiplos estudos – como a ergonomia - da<br />
adaptação dos utensílios e espaços ao homem (PORTAS, 1993).<br />
Isso porque, segundo Portas (1993), o designer honestamente funcionalista deve<br />
racionalizar a concepção do produto para, sobretudo, torná-lo mais útil e adaptado, melhor<br />
manipulável pelo usuário, cujas atividades ou necessidades se vão conhecendo pela via<br />
científica e não por questões de marketing. Preocupando-se principalmente com o uso<br />
imediato do objeto e em melhorar sua utilidade dentro das condições econômicas e técnicas<br />
aceitáveis pela indústria. (grifo nosso)<br />
Conforme Chaves (2001), este é o estágio inicial da emergência do design, aparecendo<br />
como uma alternativa a todas as formas prévias de definição da forma dos produtos de uso<br />
e do habitat. Em seguida o design foi englobando praticamente a totalidade da produção<br />
material. Dessa forma, o design veio ser a linguagem e a expressão da própria revolução<br />
industrial.<br />
Ainda segundo Chaves (2001) o discurso funcionalista, não somente segue vivo,<br />
como em alguns casos é o único possível, pois para certos problemas possui uma eficácia<br />
incontestável. Porém, a relação imaginária que os designers estabeleciam com o usuário, como<br />
este sendo uma espécie de ser supremo dotado de necessidades objetivas, imaginado a partir<br />
de um modelo de “usuário” concebido como imagem e semelhança da utopia intelectual do<br />
setor. Este usuário era um ente anatômico e fisiológico carregado de necessidades práticas,<br />
privado de história e pré-disposições culturais socialmente adquiridas, que não coincidia com<br />
nenhum setor concreto da população.<br />
De certo modo, este corrente ou escola de design, é que mais se aproxima da postura<br />
puramente dogmática, com fortes influências epistemológicas do Racionalismo e do Positivismo.<br />
Isso porque a ênfase na racionalização do produto e até mesmo do próprio usuário aproxima-se<br />
do Racionalismo, que tem na razão o fundamento de todo o conhecimento possível, e, portanto<br />
somente ela é capaz de conhecer o real. Nesse ponto, em relação ao pensamento cético, a<br />
perspectiva funcionalista do design aproxima-se do ceticismo metodológico de Descartes,<br />
que, segundo Dutra (2005) é voltado para a compreensão do ceticismo como atitude de<br />
duvidar de nossas opiniões - Cogito, ergo sum -, confiando que aquelas que realmente forem<br />
expressão da “verdade” irão resistir a qualquer dúvida, e assim, defender opiniões, teorias e<br />
teses ou, conforme os céticos, estabelecer dogmas.<br />
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<strong>Design</strong>ers: entre céticos e dogmáticos<br />
A preferência pela via científica de aquisição de informações corresponde à abordagem<br />
Positivista, que pregava a cientifização do pensamento e dos estudos humanos, para obter<br />
resultados verdadeiros: claros, objetivos e completamente corretos. O fundador desse<br />
movimento, Auguste Comte (1798-1857), acreditava num ideal de neutralidade, isto é, na<br />
separação entre o pesquisador/autor e seu objeto de pesquisa. A ciência retrataria de forma<br />
neutra e clara uma dada realidade a partir de seus fatos, sem recorrer a opiniões e julgamentos<br />
do pesquisador.<br />
Styling no discurso do mercado<br />
Conforme a análise de Chaves (2001), com o tempo o design torna-se um instrumento<br />
indispensável da sociedade contemporânea, deixa de ser uma proposta e torna-se uma cultura<br />
efetiva, com um mercado concreto de design, onde existem produtores, distribuidores e<br />
consumidores de design. Este metabolismo social da disciplina definiu uma estrutura e conteúdos<br />
bastante distintos dos iniciais. Enquanto no inicio, os agentes eram a própria vanguarda<br />
da arquitetura e do design, como agentes econômicos diretos, posteriormente, o design é<br />
desenvolvido por empresas, corporações e organismos vinculados com o desenvolvimento<br />
dos mercados. Então, o discurso do design passa das mãos das vanguardas às mãos das<br />
empresas e, logo, surgem novas razões, novos princípios e novos sentidos para a disciplina.<br />
Este novo discurso de design, segundo Portas (1993) ficou na história com o nome de<br />
Styling, com origem na América do Norte no período entre guerras e, no pós-guerra na Europa<br />
e no Japão, e corresponde à imagem mais comum que se tem de design na atualidade, que<br />
é “a do embelezamento de um dado produto para o tonar mais atrativo em termos de venda,<br />
ou seja, como fator adicional de competitividade comercial” (PORTAS, 1993, p.233).<br />
O discurso do Styling quase não tem nenhuma palavra em comum com o discurso inicial.<br />
Segundo Chaves (2001), neste contexto a sociedade virou “mercado”, o usuário tornouse<br />
“consumidor”, a qualidade de design tornou-se “valor agregado”, produto é “mercadoria”,<br />
satisfação de necessidades de uso é “motivação de compra”, racionalidade é “competitividade”.<br />
O racional é aquilo que consegue resolver o problema de ingressar no mercado, está é a<br />
racionalidade da sociedade atual.<br />
O racional não é produzir algo intrinsecamente bom, mas produzir algo que funcione<br />
na lógica do mercado. É o discurso da gestão empresarial do design, o discurso do marketing,<br />
o discurso promocional das instituições de apoio e desenvolvimento da competitividade<br />
das empresas. É o que Chaves (2001) chamou de “razão pragmática”, em contraste com os<br />
fundadores, cuja razão foi rotulada por ele como “razão ingênua”, em virtude de excesso de<br />
crença na razão e na neutralidade da ciência.<br />
Sendo que o Pragmatismo considera o conhecimento humano com um caráter utilitário<br />
e operacional, o que conduz ao tema da ação, de nossa atuação no mundo, das consequências<br />
que ela produz e sua relação com o próprio conhecimento. De forma geral, o Pragma-<br />
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<strong>Design</strong>ers: entre céticos e dogmáticos<br />
tismo americano, principalmente de Dewey, se concentra na tese de que o significado de um<br />
conceito reside em sua consequências, e não na forma como o idealizamos (DUTRA, 2005).<br />
Esse pragmatismo, de certo modo, aproxima-se do ceticismo pirrônico, que consiste<br />
em seguir as manifestações da natureza, os costumes da sociedade em que se vive, isso<br />
conduz também a adotar o significado comum dos termos, sem inquirir a todo o momento<br />
sobre o significado real dos termos. O significado que interessa é aquele que é eficiente na<br />
comunicação e entendimento dos falantes. (DUTRA, 2005, p.36-37)<br />
Sob o ponto de vista do Styling, o design “é o instrumento não da substituição de um<br />
produto por outro substancialmente melhor, mas sim da persuasão do consumidor para substituir<br />
os produtos que usa por outros, apenas porque o aspecto é diferente” (PORTAS, 1993,<br />
p.234).<br />
Volta-se a atenção, portanto, para parâmetros psicológicos principalmente através de<br />
estudos sobre o comportamento do consumidor. Isso propõe no campo filosófico uma retomada<br />
do ceticismo de David Hume (1711-1776), para quem nossas crenças ou opiniões sobre<br />
relações de causa e efeito não são legítimas no sentido de possuírem força de argumento,<br />
mas são inevitáveis em virtude de nossa constituição psicológica (DUTRA, 2005, p.34).<br />
É preciso destacar, ainda, as correntes antagonicas do behavorismo e do mentalismo.<br />
Para o Behavorismo o comportamento do humano é regido pelo ambiente, seja esse natural<br />
ou social, que abriga os indivíduos humanos ou animais. O Mentalismo, em oposição, propõe<br />
o comportamento do homem como produto dos processos mentais prévios à ação e internos<br />
ao indivíduo, como defende a psicologia cognitiva contemporânea (DUTRA, 2005).<br />
O Mentalismo apóia-se em pontos do ceticismo filosófico, ou melhor, na corrente intelectualista,<br />
como na filosofia de Kant, que reconhecia a possibilidade de existência dos objetos<br />
ou da coisa-em-si, mas considerava que nós apenas alcançamos o “fenômeno”, ou seja, o<br />
objeto da nossa experiência, decorrente da relação da coisa-em-si com a nossa estrutura de<br />
sensibilidade.<br />
A restrição do objeto ao fenômeno reforça o ceticismo grego, com Agripa e, principalmente,<br />
com Enesidemo, que “esforçaram-se para mostrar que os sentidos somente nos<br />
revelam a aparência e não a essência dos objetos, em outros termos, que as qualidade sensíveis<br />
não pertencem propriamente ao objeto, mas apenas impressões sentidas pelo sujeito”<br />
(VERDAN, 1998, p.97).<br />
O Styling, como corrente de design, apresenta em suas bases pontos de convergência<br />
com o pensamento cético e o pragmatismo, a partir do momento que desloca a atenção do<br />
objeto em si, para o fenômeno do consumo, ou seja, seu interesse principal não é configurar o<br />
melhor produto, mais sim, aquilo que apresenta os melhores resultados em termos de vendas<br />
no mercado.<br />
Conforme Chaves (2001, p.27), compreende-se que o empresário deve ser mais que<br />
um mero “fabricante”, porque precisa ser um excelente comunicador. Deve vender, indepen-<br />
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<strong>Design</strong>ers: entre céticos e dogmáticos<br />
dente do que e onde, pois o produto, como objeto concreto, tende a ter sua importância<br />
econômica diminuída em relação ao universo imaginário que o rodeia. Nessas condições, os<br />
designers tornam-se as “estrelas”, definindo-se pela sua capacidade de inovação estética e<br />
simbólica, porque o que vale agora é a incorporação de um elemento de inovação, que proponha<br />
um acontecimento atraente para o mercado, sem necessariamente buscar a solução<br />
de problemas relacionados às necessidades objetivas do usuário.<br />
Terceiras vias: o <strong>Design</strong>er Sistêmico e o Pós-moderno<br />
Nuno Portas (1993) apresenta a corrente do design sistêmico - ou ecológico - como<br />
terceira principal corrente de pensamento em design. Assim, diverge da análise crítica feita por<br />
Noberto Chaves (2001), que indica como alternativa a corrente pós-moderna em design que,<br />
segundo ele, representa o estágio atual do desenvolvimento cultural do Ocidente.<br />
Para Chaves (2001), o design pós-moderno combina valores das elites culturais com<br />
demandas irrenunciáveis do mercado, retendo os valores “universais” da disciplina articulados<br />
com a cultura do consumo. Para o autor, há uma “razão cínica”, com atributos como irracionalismo,<br />
formalismo, amoralismo, apoliticismo, individualismo, narcisismo, oportunismo outros.<br />
Isso provocou a hipertrofia da inovação formal que, geralmente, é observada nas áreas lentas<br />
ou paralisadas do mercado, onde não é mais possível introduzir inovações radicais.<br />
De certa forma, o design pós-moderno tem grande proximidade com a corrente Styling<br />
e, consequentemente, tende a se posicionar mais próxima da atitude cética, do que a corrente<br />
do design sistêmico. Segundo Portas (1993), o design sistêmico resulta do alargamento<br />
da visão do designer funcionalista. Desse modo, reconecta o design a uma perspectiva que<br />
transcende a lógica do produtor e do consumidor ou usuário, pois não se limita ao objeto em<br />
si, repensado-o como componente de sistemas mais vastos.<br />
Nessa linha, Manzini (2005) argumenta que o design assume uma abordagem sistêmica<br />
quando a tarefa de desenvolvimento de um novo produto torna-se o ato de projetar o ciclo<br />
de vida inteiro do sistema-produto, o que inclui a pré-produção, produção, distribuição, uso e<br />
descarte.<br />
Em última análise, entretanto, a corrente do design sistêmico tem uma proximidade<br />
maior com a atitude dogmática e, assim como o design funcionalista, apresenta uma argumentação<br />
baseada na racionalização do objeto, mesmo reconhecendo que “a simples racionalização<br />
tecnológica e formal pode ter na base uma irracionalidade de necessidades do<br />
ponto de vista da economia do país, dos interesses reais (não fictícios) dos consumidores ou<br />
do equilíbrio ecológico ou ambiental” (PORTAS, 1993, p.238).<br />
A Teoria Geral de Sistemas, uma das principais bases científicas da corrente do design<br />
sistêmico, propõe um programa ao mesmo tempo científico e filosófico que sem abandonar o<br />
rigor das ciências clássicas, exige a criação ou o aperfeiçoamento de uma linguagem própria,<br />
com esquemas teóricos particulares e, até mesmo, de uma particular “visão do mundo”.<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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<strong>Design</strong>ers: entre céticos e dogmáticos<br />
Neste ponto, cabe destacar outra contribuição do ceticismo de David Hume para a<br />
filosofia e para a ciência, considerando também sua contribuição para o design, cujo objetivo<br />
é determinar os limites da razão lógica e definir o domínio que lhe é próprio, a fim de evitar que<br />
ela se perca em problemas insolúveis (VERDAN, 2005). Essa é uma contribuição fundamental,<br />
principalmente, para a abordagem sistêmica, no que consiste em definir os limites do sistemaproduto.<br />
Pois, em última instância um produto se relaciona com praticamente todos os outros<br />
sistemas existentes.<br />
Considerações Finais<br />
A tradição do design clássico-positivista é incompatível com o ceticismo moral ou filosófico,<br />
porque é alinhada ao dogmatismo científico-positivista. A origem teórica do design<br />
é idealista/racionalista e sua prática é funcionalista, como decorrência direta da Revolução<br />
Industrial, que foi um fenômeno material e social decorrente da matriz ideológica positivista.<br />
Na cultura ocidental, entretanto, o positivismo foi superado pelo liberalismo, promovendo<br />
a superação do racionalismo pelo pragmatismo, que uma das expressões possíveis do<br />
ceticismo. O percurso que destituiu o racionalismo dando lugar ao pragmatismo foi expresso<br />
e percebido na evolução do design no Ocidente.<br />
O imediatismo pragmático, contudo, está sob suspeição, na medida em que o consumo<br />
desenfreado provoca o desperdício dos recursos materiais não renováveis em função<br />
da necessidade de renovação simbólica como estratégia de renovação do próprio consumo.<br />
Essa situação de calamidade eminente propôs o discurso da sustentabilidade ambiental que<br />
envolve o reaproveitamento de matéria prima e a suspensão do abuso sobre os recursos naturais.<br />
O design sistêmico que prevê o planejamento de todo ciclo do produto, da concepção<br />
ao descarte, apresenta-se como a solução possível para garantir a renovação dos recursos de<br />
produção e a renovação dos ciclos de consumo, ampliando a esfera do consumo simbólico e<br />
restringindo o desperdício de recursos não renováveis.<br />
A divisão entre as abordagens do design é, portanto, em certa medida, artificial, porque<br />
não representam realidades ou categorias totalmente distintas. Essas abordagens diferenciadas<br />
assinalam a própria evolução da cultura industrial e pós-industrial com relação:<br />
1- A necessidade primeira de atendimento à grande demanda reprimida de consumo<br />
de bens industrializados, que vinha como herança da era artesanal;<br />
2- A necessidade posterior de ampliação do consumo, diante da demanda por<br />
ampliação dos postos de trabalho e a consequente necessidade de ampliação dos<br />
setores produtivos;<br />
3- A necessidade de manutenção e ampliação do consumo e dos postos de trabalho<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 386
<strong>Design</strong>ers: entre céticos e dogmáticos<br />
nos setores produtivos, mas sem colocar ainda mais em risco a vida no planeta terra.<br />
O idealismo positivista/racionalista da abordagem original foi uma resposta dada à<br />
necessidade de se criar uma sociedade industrial que, até então, era inexistente e, portanto,<br />
inacessível à experiência, sendo alcançável apenas idealmente ou racionalmente.<br />
O pragmatismo cético com relação à verdade precedente do projeto sobre a realidade<br />
do mercado, como o conjunto de distribuidores e consumidores, decorreu da constatação de<br />
que nem tudo que fosse oferecido seria prontamente aceito por uma sociedade já praticamente<br />
saciada, com relação às demandas objetivas.<br />
A visão sistêmica também instaura, por fim, o ceticismo, com relação à capacidade da<br />
razão clássica em garantir o futuro da sociedade, da cultura e do planeta.<br />
No percurso evolutivo do design, o ceticismo e o dogmatismo expressos entre os profissionais<br />
da área pode ser entendido, segundo a perspectiva neopirrônica do pensamento<br />
cético que considera ambas as atitudes como comportamento de investigação possíveis, corroborando<br />
o ponto de vista mais pragmático, ou seja, adotando a atitude que alcance melhores<br />
resultados conforme o contexto (DUTRA, 2005), de acordo com os aspectos econômicos,<br />
sociais, culturais e ecológicos do momento.<br />
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VERDAN, André. O ceticismo filosófico; tradução Jaimir Conte,- Florianópolis: Ed. da UFSC,<br />
1998.<br />
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AVALIAçãO DA PERCEPçãO DE CONFORTO PELAS uSuáRIAS DE<br />
CALCINhAS<br />
Marina A. Giongo; Graduanda: <strong>Universidade</strong> Feevale<br />
marinagiongo@gmail.com<br />
Daiane P. Heinrich; PhD: <strong>Universidade</strong> do Minho<br />
daiaph@feevale.br<br />
Resumo<br />
Este artigo apresenta alguns tópicos da pesquisa realizada no<br />
trabalho de conclusão de curso como requisito para graduação<br />
em <strong>Design</strong> de <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong> da <strong>Universidade</strong> Feevale. São<br />
apresentados conceitos de conforto e risco, bem como parâmetros<br />
associados a eles. A pesquisa observacional descritiva realizada<br />
através de conceitos da ergonomia investigou a percepção das<br />
usuárias quanto ao conforto de modelos pré-definidos de calcinha.<br />
Como resultado, o conforto psicológico se sobrepõe ao conforto<br />
físico, quando se trata deste tipo de vestimenta.<br />
Palavras-Chave: conforto do vestuário; percepção de conforto e<br />
risco; egonomia<br />
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Avaliação da percepção de conforto pelas usuárias de calcinhas<br />
Introdução<br />
Este trabalho tem como tema a ergonomia aplicada ao vestuário para avaliação de<br />
conforto e risco no uso de calcinhas. Através da percepção do comportamento das usuárias,<br />
surgiu o problema de pesquisa: como a usuária de moda feminina percebe o conforto no uso<br />
de calcinhas? Como hipótese infere-se que o conforto físico é preterido quando o modelo de<br />
calcinha representa conforto psicológico para a usuária.<br />
Os projetos de design do vestuário que são desenvolvidos industrialmente, a partir<br />
de tabelas de medidas (antropometria estática), possuem um alcance restritivo em relação<br />
ao consumidor. Segundo Rosa e Moraes (2009), destacam-se como limitações: a íntima<br />
relação entre o produto e o corpo humano, a diversidade de estilos e segmentos do mercado<br />
consumidor e, o lançamento da maioria das peças sem testes de aceitação do consumidor,<br />
visto que se trata de um processo de alto custo, além da conseqüente facilidade com que uma<br />
nova idéia pode ser imitada ou copiada.<br />
Segundo Baxter (2003), o projeto de novos produtos envolve riscos e é preciso gerir<br />
estes riscos com competência. Sendo a calcinha um produto de moda, de característica<br />
efêmera, pode ser aplicado a esse conceito. É preciso, dentre outros tantos aspectos, garantir<br />
a qualidade dos produtos, com ferramentas de design que sejam efetivas. Pois, segundo o<br />
mesmo autor, os projetos de produtos que são aplicados de forma eficiente nas indústrias<br />
minimizam as perdas em relação à conquista e satisfação do consumidor final.<br />
Conforme Iida (2003), todos os produtos destinam-se a satisfazer necessidades<br />
humanas e, para tanto, entram em contato com o homem. Desta forma, possuem características<br />
desejáveis de qualidade. O autor coloca três características, que são: qualidade técnica, que<br />
considera a eficiência com a qual o produto executa sua função; qualidade ergonômica,<br />
que leva em conta itens de conforto e segurança como facilidade de manuseio, adaptação<br />
antropométrica e compatibilidade de movimentos; e qualidade estética, que atende a<br />
combinação de formas, cores, materiais e texturas para que os produtos sejam visualmente<br />
agradáveis.<br />
Moraes e Mont’alvão discorrem sobre a importância de projetar o produto adequado<br />
ao usuário:<br />
A abordagem ergonômica em relação ao design pode ser resumida como: ‘o<br />
principio do design centrado no usuário – se um objeto, um sistema ou um<br />
ambiente é projetado para uso humano, então seu design deve se basear nas<br />
características físicas e mentais do seu usuário humano. [...] (Pheasant, 1997,<br />
p. 12 apud Moraes e Mont’alvão, 2003, p.33).<br />
Na busca de mensurar o comportamento da consumidora frente ao uso de lingerie, é<br />
preciso identificar quais os elementos presentes no uso do produto que podem interferir na<br />
percepção de conforto e, consequentemente, no seu comportamento de compra.<br />
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Avaliação da percepção de conforto pelas usuárias de calcinhas<br />
O valor desta pesquisa está na busca de qualidade, visto que o conforto no vestuário,<br />
dentro da área da ergonomia, é ainda pouco explorado no meio acadêmico brasileiro e não<br />
existem pesquisas quantitativas em relação à percepção de conforto no uso do produto de<br />
vestuário. O objetivo da pesquisa é identificar a percepção de conforto pelas usuárias de<br />
calcinha.<br />
Para avaliar a percepção do usuário, foi feita uma pesquisa observacional-descritiva<br />
qualitativa e quantitativa, baseada na metodologia de LINDEN (2004). Nesta pesquisa, foi<br />
realizada uma entrevista com referências verbais e de imagem para ilustrar pontos de risco<br />
relacionados ao uso do produto, bem como para identificar quais os modelos de lingerie<br />
mais utilizados pelas participantes da pesquisa. Após a entrevista, foi realizada com cada<br />
participante uma fotogrametria para identificar pontos de interferência na silhueta.<br />
Conforto<br />
O conforto, segundo Heinrich (2009) é um elemento-chave para o sucesso de<br />
produtos de vestuário. Segundo a autora “é precisamente no que diz respeito aos aspectos<br />
do conforto do vestuário que a Ergonomia desempenha um papel crucial e ao mesmo tempo<br />
muito peculiar” (Ibidem, p.2), pois o conforto percebido depende da interação ente o usuário<br />
e a roupa. “Assim, se os produtos não apresentarem as características técnicas mínimas<br />
capazes de propiciar o conforto físico isto pode causar, para além da incômoda sensação de<br />
desconforto, implicações sobre a saúde e o bem-estar do indivíduo” (Ibidem, p.3).<br />
Conforme Senthilkumar & Dasaradan (2007), o conforto é uma das características<br />
desejáveis nos produtos de moda. Para os autores, conforto não é uma propriedade têxtil, mas<br />
sim um sentimento humano, uma condição de tranqüilidade e bem-estar, que é influenciado<br />
por muitos fatores, incluindo propriedades têxteis. <strong>Design</strong>ers de vestuário podem cuidar dos<br />
aspectos físicos e psicológicos de conforto por meio da seleção adequada de cores, texturas,<br />
estilo, modelagem, entre outros fatores.<br />
Linden reconhece a natureza multidimensional do conforto como resultantes das<br />
dimensões física, psicológica e fisiológica. O atendimento das três dimensões é indicação<br />
de harmonia. O autor afirma que o conforto psicológico está relacionado a questões como<br />
autoimagem, relacionamento com outras pessoas e privacidade. Os aspectos fisiológicos têm<br />
relação com o funcionamento do corpo humano que envolve ações de regulação involuntárias.<br />
Já o conforto físico corresponde à interação com a natureza e aos efeitos nas dimensões<br />
psicológica e fisiológica. (LINDEN, 2004).<br />
Broega (2007, p.3), também concorda com Hertzberg, ao passo que traz em seu<br />
trabalho o conceito de Slater, para quem o conforto é “a ausência de dor e de desconforto em<br />
estado neutro”. A autora também afirma que o conforto total do vestuário se divide em quatro<br />
aspectos fundamentais:<br />
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Avaliação da percepção de conforto pelas usuárias de calcinhas<br />
– Conforto Termo fisiológico – estado térmico e de umidade confortável à superfície da<br />
pele, que envolve a transferência de calor e de vapor de água através dos materiais<br />
têxteis ou do vestuário;<br />
– Conforto Sensorial de “toque” – conjunto de várias sensações neurais, quando um<br />
têxtil entra em contato direto com a pele;<br />
– Conforto Ergonômico – capacidade que uma peça de vestuário tem de “vestir bem”<br />
e de permitir a liberdade dos movimentos do corpo;<br />
– Conforto Psico-Estético – percepção subjetiva da avaliação estética, com base na<br />
visão, toque, audição e olfato, que contribuem para o bem-estar total do portador.<br />
(SLATER, 1997 apud BROEGA, 2007, p.3).<br />
Para diversos autores, a sensação de conforto tem extrema ligação com emoções de<br />
valência prazerosa, entretanto é menos intenso que uma emoção. Ainda assim, as dimensões<br />
de intensidade, qualidade, tempo e a dimensão hedônica devem aparecer. Ao afirmar que o<br />
conforto é uma experiência mental, o autor defende que a aparência incide sobre o desconforto,<br />
A não ser que a experiência de sentir-se desconfortável apresente-se no ponto<br />
de valência hedônica nula (indiferença), que é previsto para essa dimensão.<br />
Contudo, embora teoricamente possa ser defendida, essa possibilidade não<br />
corresponde ao senso comum. Considerando que, normalmente, situações<br />
de desconforto e sentimentos de desconforto são tidas como essencialmente<br />
prazerosas, espera-se que o desconforto seja acompanhado ou ativado<br />
por estímulos com valência negativa na dimensão hedônica. Dessa forma,<br />
a aparência pode afetar positiva ou negativamente o desconforto, de forma<br />
inversa aos seus efeitos no conforto. (LINDEN, 2004, p. 91)<br />
Dessa forma, para o autor “o desconforto decorre de uma ativação negativa, de natureza<br />
fisiológica ou física” (LINDEN, idem, p.90), o que implica em um sentimento de carga hedônica<br />
negativa.<br />
É difícil descrever o conforto de forma positiva, mas o desconforto pode ser facilmente<br />
descrito, em termos como: pinica, coceira, quente e frio. Portanto, uma definição amplamente<br />
aceita para o conforto é liberdade da dor e do desconforto como um estado neutro (Senthilkumar<br />
& Dasaradan, 2007). Os autores ainda destacam algumas definições para o conforto sensorial,<br />
que é percebido através de várias sensações quando um tecido entra em contato com a<br />
pele, para o conforto de movimento, que é a capacidade de um tecido de permitir liberdade<br />
de movimento e moldar o corpo, conforme a exigência, e para o apelo estético, que inclui os<br />
cinco sentidos ativados pela roupa e contribui para o bem-estar do usuário.<br />
Para este estudo relativo à percepção de conforto no uso de calcinhas, somente serão<br />
analisadas as percepções de conforto físico e psicológico e não será enfoque o conforto<br />
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Avaliação da percepção de conforto pelas usuárias de calcinhas<br />
fisiológico. Neste contexto, serão considerados aspectos de conforto psicológico o prazer, a<br />
imagem corporal e o bem-estar emocional, que têm relação com o uso de lingerie; e aspectos<br />
de conforto físico as interferências corporais identificadas na silhueta bem como sensação<br />
de desconforto, provocadas pelo atrito e pressão no contato da roupa íntima com o corpo.<br />
Destaca-se que estes últimos são fatores influenciadores do conforto fisiológico (LINDEN, 2004,<br />
p.80), porém, novamente, aqui se considera o conforto físico, por conta das conseqüências<br />
identificadas na silhueta corporal.<br />
Figura 1 - Imagem corporal<br />
Modelo para Avaliação da Percepção de Conforto<br />
Conforme o método proposto por Linden (2004, p. 257), “a avaliação de conforto no<br />
uso de produtos é mediada pelos valores pessoais, de acordo com a valência hedônica da<br />
experiência e com os seus potenciais efeitos sobre a integridade pessoal”.<br />
O comportamento de uso e não uso é explicado pela dimensão hedônica e pelos quatro<br />
tipos de prazer determinados por Tiger (1992, apud LINDEN, 2004): prazer físico, psicológico,<br />
social e ideológico. Assim, usar uma calcinha que proporciona desconforto aparente pode<br />
estar relacionado com o prazer psicológico. Não usar o mesmo modelo de calcinha por sentir<br />
desconforto no uso pode estar relacionado ao prazer físico.<br />
Na figura 2, modelo proposto por Linden (2004), em que a percepção do risco está<br />
ligada a aparência e a percepção da usabilidade e da funcionalidade, que são modelos mentais<br />
decorrentes da experiência de uso. Já na figura 3, está representado o modelo para percepção<br />
de conforto apresentado por Linden.<br />
Figura 2 - modelo para relação do conforto no uso do produto de acordo com as necessidades do consumidor<br />
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Avaliação da percepção de conforto pelas usuárias de calcinhas<br />
Fonte: LINDEN, 2004, p.260.<br />
Conforme o modelo de avaliação de conforto e risco no uso de produtos sugerido por<br />
Linden, a avaliação se dá a partir de características do produto, fórmula de estímulo e referência<br />
dominante para o usuário. A avaliação pode ocorrer em diferentes níveis de processamento<br />
e gera, afinal, respostas afetivas que podem ser emoções prazerosas, desprazerosas ou<br />
sentimento de indiferença.<br />
Figura 3 - modelo para percepção de conforto e risco<br />
Fonte: LINDEN, 2004, p. 261<br />
Linden (2004) supõe que o uso do calçado de salto alto e fino e bico fino é motivado<br />
pela aparência. Além disto, apenas 10% das mulheres consideram que este tipo de calçado é<br />
seguro e confortável, além de ter boa aparência, o que corrobora com a suposição do autor.<br />
Supõe-se que para o uso de calcinhas, este comportamento seja semelhante, visto que<br />
lingerie e calçados femininos são elementos da moda que são ícones do imaginário fetichista<br />
e sensual, o que pode justificar um resultado semelhante a esta pesquisa.<br />
Métodos e Técnicas aplicadas<br />
A metodologia utilizada para esta pesquisa consistiu em revisão bibliográfica e aplicação<br />
em campo de ferramentas para avaliação da percepção de conforto. Tais ferramentas foram<br />
aplicadas a partir dos métodos de Marconi e Lakatos (1999) e Linden (2004) para a entrevista<br />
e AREZES et Al (2006) para a fotogrametria.<br />
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Avaliação da percepção de conforto pelas usuárias de calcinhas<br />
Os participantes desta pesquisa foram recrutados seguindo o tipo de amostra não<br />
probabilística. Este tipo de amostra foi eleito por enquadrar-se nas limitações inerentes a esta<br />
pesquisa, tais como tempo e métodos de pesquisa. Foram avaliadas 40 voluntárias na etapa<br />
de aplicação em campo. Este número de participantes está de acordo com o proposto por<br />
Iida (2005, p. 113), que afirma ser uma amostra representativa em pesquisas de design um<br />
número de 30 a 50 indivíduos.<br />
Participaram apenas alunas do Curso de <strong>Design</strong> de <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong> da <strong>Universidade</strong><br />
Feevale com idade entre 18 e 28 anos, considerado o ano de nascimento (1982 a 1992);<br />
altura entre 1,55m e 1,80m e massa entre 45 kg e 75 kg, dentro das faixas de Índice de<br />
Massa Corpórea (IMC) consideradas abaixo do peso e peso normal. Parâmetros de peso e<br />
altura foram considerados apenas os declarados pelas entrevistadas, não foram aferidas as<br />
medidas e massas. Estes parâmetros visaram garantir que as participantes da pesquisa não<br />
estivessem acima do peso, com base no IMC, o que poderia afetar as condições de avaliação<br />
de interferência na silhueta.<br />
Para avaliar a percepção das usuárias de calcinhas quanto ao conforto e o risco no uso<br />
do produto, foi proposta a execução de fotogrametria como método para verificar, através da<br />
imagem, a ocorrência de interferência corporal na silhueta das entrevistadas e, desta forma,<br />
confrontar com a percepção declarada pelas usuárias.<br />
Resultados e Discussões<br />
A hipótese do trabalho foi parcialmente confirmada. Isto porque a usuária percebe o<br />
risco apresentado – interferência na silhueta –, porém o conforto físico é de fato preterido em<br />
função do conforto psicológico. Das 40 participantes da pesquisa, 30 afirmaram que trocariam<br />
o modelo de calcinha para evitar formação de marca na silhueta.<br />
Entretanto, a figura 4 mostra um comparativo entre uso e percepção de conforto das<br />
usuárias, que revela que o modelo percebido como mais confortável é o menos utilizado e que<br />
o modelo percebido como o maior causador de marca na silhueta é o segundo mais utilizado.<br />
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Avaliação da percepção de conforto pelas usuárias de calcinhas<br />
Figura 4 - comparativo entre uso e percepção de conforto<br />
Fonte: executada pelo autor.<br />
Além disso, o conforto é item recorrente nos critérios de escolha, entretanto a estética<br />
tem valor praticamente igual. Este resultado vai ao encontro do estudo da semântica de<br />
produtos que afirma que o ser humano responde ao que as coisas significam para ele, não as<br />
qualidades físicas destas, conforme Linden e Kunzler (2001).<br />
É válido ressaltar que esta pesquisa poderia ser mais aprofundada com o uso de<br />
software específico para sobrepor e cruzar as imagens obtidas, o que geraria dados mais<br />
concretos para a avaliação da interferência corporal. Aqui se observou, a princípio, apenas a<br />
percepção das usuárias, porém há a perspectiva de continuar o desenvolvimento deste tipo<br />
de investigação acerca do conforto de vestuário, principalmente de moda íntima, que é um<br />
dos setores industriais mais produtivos do Brasil. Para tanto, é preciso gerar conhecimento<br />
e novas tecnologias para a indústria de vestuário e é pertinente o questionamento: Como<br />
agregar conforto físico e psicológico ao design de produto de moda íntima?<br />
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DESIGN CêNICO: TéCNICA, PROCESSO & CRIAçãO NA IDENTIDADE<br />
uRBANA<br />
Ary Scapin Júnior; Mestrando em <strong>Design</strong>: <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />
Resumo<br />
Este artigo versa sobre design e arte quando inseridos no universo<br />
urbano, na interação com a urgência, a inovação e a criatividade.<br />
Busca discutir as possibilidades destes campos nas ruas e, mais<br />
precisamente, no diálogo com as artes cênicas. Propõe um olhar<br />
apurado para o processo projetual da cena e dos espetáculos de<br />
rua, dando a esse processo a denominação de “design cênico”.<br />
Palavras-Chave: design; artes cênicas; arte na rua;<br />
plasticidade cênica; processo projetual; design cênico<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 398
<strong>Design</strong> cênico: técnica, processo & criação na identidade urbana<br />
Introdução<br />
No mundo contemporâneo, o ato inovador é volátil – envelhece rápido, perde o<br />
encantamento e produz a necessidade de algo mais moderno, mais criativo e mais inovador<br />
ainda. É assim nas ciências, no cotidiano das pessoas, no mundo corporativo e também nas<br />
artes. O tempo se renova constantemente, e com ele muitas coisas também se renovam. O<br />
que é hoje, certamente não o será amanhã. As culturas, as tradições, os usos e costumes,<br />
por mais tradicionais que sejam, por mais salvaguardados que possam estar, passam por<br />
processos de transformação, não porque não exista quem os preserve, mas sim por que os<br />
sentidos das coisas mudam.<br />
O tempo na contemporaneidade é fatalizado pela ordem das urgências que significa<br />
uma oscilação na razão instrumental, o culto dos meios e esquecimento dos fins. Ele é o reino<br />
das revoluções tecnológicas do progresso (MATOS, 2009, p. 93).<br />
Este preâmbulo serve para iniciarmos um diálogo sobre a urgência urbana e as inquietudes<br />
dos artistas que se inserem nas questões referentes às artes que acontecem nas ruas. Todas<br />
as expressões de arte podem entender a rua como mais um ponto para o escoamento de suas<br />
produções: o graffite, o cinema, a música, a pintura, entre tantas outras formas, encontram<br />
nela um espaço alternativo de troca. Neste canal de comunicação, os artistas, em sua obra,<br />
devem levar em conta as pessoas às quais ela se destina, considerando o ambiente público<br />
composto sempre de indivíduos (PALLAMIM, 2002). Dá se o espetáculo, a cena, e recebe-se em<br />
contrapartida a admiração, os aplausos, a compreensão, ou o inverso disso.<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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<strong>Design</strong> cênico: técnica, processo & criação na identidade urbana<br />
Uma forma de arte a ser assimilada em público e que representa sobretudo<br />
o próprio cidadão no espaço público parece ser uma das funções mais<br />
importantes da arte pública numa democracia. Muitos(as) artistas que<br />
enfrentam, esse desafio executam seu trabalho num campo experimental<br />
situado entre a participação ativa de parte da sociedade, colocações artísticas<br />
e documentação do real. Praticamente todos esses trabalhos estão como que<br />
à procura de uma oportunidade que lhes dê a chance de contribuir de maneira<br />
concreta à vida da sociedade, à vivência e à comunicação. As tentativas vão<br />
desde a abordagem direta de eventuais parceiros, passando pela elaboração<br />
artística das contribuições, até à oferta de participar da criação de novas<br />
estruturas de percepção (PALLAMIN, 2002, p. 85).<br />
As ruas e praças das cidades, da mesma maneira que as galerias de arte, os teatros ou<br />
as salas de espetáculos, constituem uma dinâmica específica e têm características próprias. Os<br />
espaços de artes, projetados para receber produções artísticas variadas, apresentam diversas<br />
formas de adequação e customização aos interesses de uma determinada obra. Há, portanto,<br />
a possibilidade de interferências no projeto original da estrutura física, momento propício à<br />
atuação de um cenógrafo, de um iluminador, de um sonorizador e de outros profissionais<br />
intimamente ligados às propostas do artista, concretizando a obra de arte de acordo com<br />
sua concepção. Em contraponto às possibilidades mutáveis dos “templos das artes”, as ruas<br />
e as praças dos centros urbanos não se adaptam à obra de arte, mas sim às urgências do<br />
cotidiano das pessoas que se utilizam deles. Esta mesma urgência pode ser o mote para o<br />
diálogo criativo e inovador entre o artista e seu público.<br />
Como exemplo, olhando para a obra do artista Flávio de Carvalho, encontramos em seu<br />
manifesto “A cidade do homem nu”, de 1930, um exercício de observação crítica às cidades<br />
e seus espaços urbanos, apontando um descontentamento com os rumos estabelecidos pelo<br />
status quo da sociedade da qual fazia parte e afirmando que o homem caminhava para um<br />
processo destrutivo em função do organismo doentio destas cidades. A proposição de sua<br />
arte, nos parece, instigava as pessoas à criatividade e às mudanças:<br />
A cidade do homem nu é a habilitação do pensamento; o homem produz<br />
idéias que são orientadas e aproveitadas na melhoria da raça e no caminhar<br />
do progresso.<br />
É uma grande máquina de idéias para calcular o meio de progredir sempre,<br />
calcular um processo de constante renovação mental (conforme CARVALHO,<br />
1930 apud CARVALHO, 2010, pp. 28, 29).<br />
Flávio, há setenta anos, apontava para as questões da inovação e da transformação<br />
necessária para a existência humana. Isto sugere especial atenção à sua credulidade em<br />
relação à utilização de proposições modernas – fossem elas reais ou lúdicas – para a solução<br />
de problemas.<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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<strong>Design</strong> cênico: técnica, processo & criação na identidade urbana<br />
<strong>Arte</strong> e design na rua<br />
Os preceitos de arte e design interagem. Palavras próximas orbitam os mesmos universos<br />
e caracterizam-se como agentes transformadores. No universo urbano, as divergências de<br />
conceitos parecem irrelevantes, não importando o que é arte ou o que é design, mas apenas o<br />
efeito proporcionado. Deste modo, não serão foco deste artigo as questões de ordem política<br />
relacionadas ao plano diretor de uma cidade, documento que discute, entre outras coisas, a<br />
criação de áreas urbanas específicas para determinados fins – por exemplo, áreas específicas<br />
para atividades comerciais, para atividades financeiras, entre outras, que podem constituir<br />
áreas híbridas –, bem como a definição de instalação de equipamentos e mobiliários de rua, a<br />
visão do espaço e a atribuição da paisagem (BARBOSA, 2008). Focaremos o entretenimento<br />
e suas múltiplas formas de expressão junto aos transeuntes dos centros urbanos.<br />
Para falarmos de design, arte e tecnologia, cabe aqui referenciar a palavra design, a fim<br />
de que possamos equalizar o conhecimento.<br />
A cultura moderna, burguesa, fez uma separação brusca entre o mundo das<br />
artes e o mundo da técnica e das máquinas, de modo que a cultura se dividiu<br />
em dois ramos estranhos entre si: por um lado, o ramo científico, quantificável,<br />
“duro”, e por outro ramo estético, qualificador, “brando”. Essa separação<br />
desastrosa começou a se tornar insustentável no final do século XIX. A Palavra<br />
design entrou nessa brecha como uma espécie de ponte entre esses dois<br />
mundos (FLUSSER, 2008, p. 183).<br />
Em sua análise, Flusser norteia a discussão sobre design deste artigo. Nos parece que,<br />
com essa afirmação, arte e técnica, apesar de possuírem conceitos distintos, podem e devem<br />
coexistir harmonicamente. Isto nos remete aos diferentes tipos e formações das pessoas que<br />
circulam pelas ruas das cidades, que, diferentes entre si, convivem e se relacionam.<br />
Ainda tendo Flusser como referência, encontramos em sua análise fundamentos para<br />
a questão da diversidade de significados da palavra design, e acreditamos que ele aponta<br />
evidencias para o que será entendido por nós como premissa para o estudo do design cênico,<br />
ou seja, para o significado de planejamento, de projeto, que nos remete ao processo projetual.<br />
Em inglês, a palavra design funciona como substantivo e também como verbo<br />
(circunstância que caracteriza muito bem o espírito da língua inglesa). Como<br />
substantivo, significa, entre outras coisas, “propósito”, “plano”, “intenção”,<br />
“meta”, ”esquema maligno”, “conspiração”, “forma”, “estrutura básica”, e todos<br />
esses e outros significados estão relacionados a “astúcia” e a “fraude”. Como<br />
verbo – to design –, significa, entre outras coisas, “tramar algo”, “simular”,<br />
“projetar”, “esquematizar”, “configurar’, “proceder de modo estratégico<br />
(FLUSSER, 2008, p. 181).<br />
O design, entendido como um processo projetual, atribui ao seu projetista a possibilidade<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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<strong>Design</strong> cênico: técnica, processo & criação na identidade urbana<br />
de criação, de inovação e de inserção de avanços tecnológicos que, nesse processo, viabilizem<br />
a sua produção. Tal qual a arte, o design pode e deve ser provocador, instigante e questionador.<br />
Artistas e designers podem compartilhar de um mesmo ideal: o de proporcionar mudanças,<br />
as quais, como abordado anteriormente neste texto, são inerentes ao tempo em que vivemos.<br />
Victor Papanek – designer, autor de pesquisas sobre design e com argumentação<br />
filosófica em relação a sustentabilidade – considera o design uma poderosa ferramenta para<br />
moldar as ações de preservação ambiental. Seu conceito de design é provocador, porém de<br />
fácil associação aos princípios da inovação, da criatividade e da liberdade de expressão que<br />
se assemelham aos preceitos das artes, ampliando as possibilidades de forma definitiva e<br />
abrindo espaço para o inusitado.<br />
<strong>Design</strong> cênico<br />
Todos os homens são designers. Tudo o que fazemos quase todo o tempo<br />
é design. O design é básico em todas as atividades humanas. Planejar e<br />
programar qualquer ato, visando a um fim específico, desejado e previsto,<br />
isto constitui um processo de design [...] design é compor um poema épico,<br />
executar um mural, pintar uma obra de arte, escrever um concerto. Mas design<br />
também é limpar e organizar uma escrivaninha, arrancar um dente quebrado,<br />
fazer uma torta de maçã, escolher os lados de um campo de futebol e educar<br />
uma criança (conforme PAPANEK,1995 apud BOMFIN, 2002, p. 9).<br />
Partimos do princípio do ato projetual. <strong>Design</strong> é projeto. É pesquisa. É experimentação.<br />
Assemelha-se à criação de uma cena em um espetáculo de artes cênicas, que necessita do<br />
desenvolvimento de um projeto que a viabilize e que a transforme em realidade. A integração de<br />
diversos elementos, tais como treinamento e preparação, planejamento e criação, coordenação<br />
e cooperação (HEWARD e BACON, 2006), possibilitam a concretização do objetivo final, ou<br />
seja, o alcance de uma plasticidade cênica capaz de transmitir ao público exatamente o que<br />
foi elaborado dentro da mente do encenador do espetáculo.<br />
Mas como fazer do espetáculo essa unicidade estética e orgânica?<br />
Contrariamente às outras formas de arte, a encenação aparece em primeiro<br />
lugar como uma justaposição ou imbricação de elementos autônomos: cenário<br />
e figurino, iluminação e música, trabalho de ator. [...] Por conseguinte, uma<br />
vontade soberana deve impor-se aos diversos técnicos do espetáculo. Essa<br />
vontade conferirá à encenação a unidade orgânica e estética que lhe falta, mas<br />
também a originalidade que resulta de uma intenção criadora (ROUBINE,1998,<br />
p. 42).<br />
As artes cênicas, em geral, constituem o meio de comunicação mais eficaz entre artistas<br />
e público no que se refere à troca de sensações e experiências que levam ao aprendizado<br />
mútuo e ao trânsito entre a formação e as informações. Nos espetáculos de rua, o artista, ou<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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<strong>Design</strong> cênico: técnica, processo & criação na identidade urbana<br />
grupo de artistas, tem a intenção de passar uma mensagem ou um recado ao público, e para<br />
que isso ocorra a cena, seja de circo, de teatro ou de dança, passa por um processo projetual.<br />
Focando nossa atenção nas artes circenses realizadas em ruas e praças, nos remetemos<br />
aos artistas denominados “saltimbancos” i , que percorriam as ruas das cidades européias<br />
levando às populações espetáculos de malabarismo, de equitação e pantomimas. Havia,<br />
mesmo que de forma inconsciente, um planejamento. Não havia tecnologia a ser aplicada<br />
às artes desses artistas, porém havia um planejamento referente ao vestuário utilizado, aos<br />
gestos aplicados às personagens e às mascaras. Não se usava um figurino qualquer, mas sim<br />
vestimentas pensadas para garantir um diferencial, assim como eram igualmente pensadas as<br />
gesticulações, as pinturas no rosto e as cores. Todos os componentes dos personagens eram<br />
elaborados a fim criar um ambiente lúdico, mágico, com o intuito de diversão e crítica social.<br />
Circo Sells-Floto e sua trupe de saltimbancos – Início do século XX. (Foto: Dave Leach)<br />
Planejar uma cena ou um espetáculo de artes cênicas para a rua requer um projeto<br />
especial. Não se trata apenas de fazer a transposição do espetáculo que é realizado em um<br />
palco ou em galpão. A rua exige um olhar diferenciado, dinâmico, urgente como os passos<br />
dos transeuntes, uma vez que tanto o artista quanto sua mensagem serão expostos ao acaso,<br />
a um público indeterminado, não segmentado e, portanto, imprevisível em suas reações.<br />
A rua é o imponderável<br />
Inúmeros exemplos poderiam ser analisados neste artigo, mas concentramos nossa<br />
atenção em uma apresentação artística, realizada em São Paulo em junho de 2002, a qual<br />
podemos considerar como um marco, por ter se configurado como a perfeita harmonia entre<br />
o meio ambiente urbano e as artes cênicas.<br />
O Vale do Anhangabaú, na cidade de São Paulo, SP, é um espaço aberto, rodeado<br />
por prédios gigantescos. De um lado, é cortado pelo Viaduto do Chá; do outro, pelo Viaduto<br />
Santa Ifigênia; e uma de suas laterais dialoga com a Praça Ramos de Azevedo, com vista<br />
para a imponente edificação do Teatro Municipal de São Paulo. Trata-se de um local público,<br />
central e nobre, com fluxo incessante de pessoas que transitam pelo seu calçadão em direção<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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<strong>Design</strong> cênico: técnica, processo & criação na identidade urbana<br />
ao trabalho, à escola, às compras e a demais afazeres. A maioria desses transeuntes, de<br />
características heterogêneas, não se dá conta da beleza desse espaço público; porém, é<br />
nesse local que acontecem intervenções artísticas nacionais e internacionais.<br />
Vale do Anhangabaú – São Paulo/SP. (Foto: Sérgio Savaresi)<br />
Em pleno Vale do Anhangabaú, hastes flexíveis, de design e tecnologia exclusivos da<br />
companhia australiana Strange Fruit, suportam artistas em seu topo, paramentados com<br />
figurinos planejados e adequados aos movimentos e ao tema do espetáculo. Luzes coloridas<br />
estrategicamente posicionadas dão um tom especial e, com o cair da tarde, assumem um<br />
grande destaque na cena. O som estudado com precisão compõe o espetáculo, que funde<br />
diversos estilos de artes cênicas, como teatro, dança e circo. E, como costumeiramente<br />
acontece na companhia, o espetáculo era composto por expressões artísticas ligadas a temas<br />
universais, como amor, conflitos, nascimento, morte, trabalho e lazer.<br />
Strange Fruit – www.strangefruit.net.au, acessado em 21/Jun/2010. (Foto: Strange Fruit)<br />
Como descrito antes, propomos observar que tanto o espaço (Vale do Anhangabaú)<br />
quanto a companhia (Strange Fruit) se inseriam no universo do design e vice-versa, criando um<br />
ambiente propício ao design cênico. Quando esta interação se dá, qualquer que seja a ocasião,<br />
a essência da cena, idealizada, planejada e projetada pelos seus criadores, se concretiza e<br />
cumpre a função de levar encantamento aos espectadores, no caso, aos transeuntes das ruas.<br />
Como um produto de design sofisticado, esta produção imaterial passa a compor o repertório<br />
de cada um dos presentes no ato de espetáculo, e esse encantamento é reprodutível na<br />
mente desses espectadores pela quantidade de vezes que eles quiserem.<br />
Strange Fruit – www.strangefruit.net.au, acessado em 21/Jun/2010 (Foto: Strange Fruit)<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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<strong>Design</strong> cênico: técnica, processo & criação na identidade urbana<br />
Na apresentação do Vale do Anhangabaú, o idealizador dos espetáculos da Strange<br />
Fruit tinha por objetivo compartilhar uma imagem com o público, e essa imagem era a de um<br />
campo de trigo balançando ao vento. Cabe a cada espectador a interpretação do espetáculo;<br />
porém, tomando por base o que vem sendo exposto até então, podemos imaginar o impacto<br />
coletivo que essa metáfora causou em meio ao grande público!<br />
Encenado em espaços urbanos cercados por edificações (prédios, viadutos, torres), em<br />
meio a trânsito (de automóveis e de pessoas), sons diversificados (buzinas, gritos), natureza<br />
espremida pelo concreto (flora e fauna) e a correria do dia a dia, os espetáculos do Strange<br />
Fruit remetem ao lúdico, proporcionando sentimentos e sensações especiais em cada um dos<br />
espectadores.<br />
Considerações finais<br />
Com um repertório de renome mundial devido à natureza do diálogo livre, a<br />
companhia celebra uma grande variedade de temas e histórias o que a fez<br />
alcançar um status especial em quase todos os continentes ao redor do<br />
mundo. Os espetáculos, sublimes e hipnóticos, são verdadeiramente notáveis,<br />
e é preciso estar atento para apreciar o seu pleno efeito (MICHELLE WILD,<br />
2010).<br />
A cena artística só poderá cristalizar-se na mente dos transeuntes das ruas e praças<br />
das cidades se houver verdadeira interatividade entre o discurso da arte e o urbano. A arte<br />
encenada nesses espaços serve de contraponto entre o lúdico e o real, entre as possibilidades<br />
e a concretude, entre o presente e o futuro acontecendo simultaneamente na urgência das<br />
ruas. Cabe ao idealizador do espetáculo a função de organizar o fluxo produtivo da obra,<br />
tendo por base o processo projetual que converterá idéias em realidade. Retornando ao texto<br />
de Flusser, temos:<br />
[...] e isso foi possível porque essa palavra [design] exprime a conexão interna<br />
entre técnica e arte. E por isso design significa aproximadamente aquele<br />
lugar em que arte e técnica (e, conseqüentemente, pensamentos, valorativo e<br />
científico) caminham juntas, com pesos equivalentes, tornando possível uma<br />
nova forma de cultura (FLUSSER, 2008, pp.183, 184).<br />
A plasticidade cênica, fruto de um processo projetual, nos parece ser um caminho<br />
possível para o início de um diálogo entre técnica e arte, tanto nos espaços públicos quanto<br />
nos privados especialmente destinados a apresentações artísticas. Mais ainda: nos remete<br />
diretamente ao idealizador da cena, colocando-o como uma ferramenta de extrema importância<br />
na tradução dos anseios humanos.<br />
Os espetáculos, assim como as cenas, configuram-se como resultantes do apurado<br />
olhar de um profissional inovador e criativo, que, valendo-se de sua sensibilidade pessoal e da<br />
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<strong>Design</strong> cênico: técnica, processo & criação na identidade urbana<br />
leitura da sensibilidade coletiva, desenha o que propomos chamar de design cênico.<br />
Notas<br />
Strange Fruit – www.strangefruit.net.au, acessado em 21/Jun/2010. (Foto: Strange Fruit)<br />
i CUNHA, 2003, pp. 584, 585.<br />
Referências<br />
BACON, John U.; HEWARD, Lyn. Cirque du Soleil: a reinvenção do espetáculo. Rio de<br />
Janeiro: Elsevier, 2006.<br />
BARBOSA, A. C. M. A. <strong>Design</strong> na cidade: relação conceitual entre o design e o espaço<br />
urbano. São Paulo: 8º Congresso Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em <strong>Design</strong>, 2008.<br />
BOMFIM, Gustavo Amarante. Seminário de Estudo e Pesquisa em <strong>Design</strong>. São Paulo:<br />
<strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, 2002.<br />
CARVALHO, Flávio de. “A cidade do homem nu”. São Paulo: Publicação original no Diário da<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 406
<strong>Design</strong> cênico: técnica, processo & criação na identidade urbana<br />
Noite, 1º/Jun/1930 in catálogo da exposição A Cidade do Homem Nu, MAM. São Paulo,<br />
2010.<br />
CUNHA, Newton; Dicionário SESC: a linguagem da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2003.<br />
FLUSSER, Vilém. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São<br />
Paulo: Cosac Naify, 2008.<br />
MATOS, Olgária. Contemporaneidades. São Paulo: Lazuli, 2009.<br />
PALLAMIN, Vera M.. Cidade e cultura: esfera pública e transformação urbana. São Paulo:<br />
Editora Estação Liberdade, 2002.<br />
PAPANEK, Victor. “O que é design?” In: Revista Arquitetura, n. 5, ano 1. 1995<br />
ROUBINE, Jean Jacques. A linguagem da encenação teatral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,<br />
1998.<br />
SIEBRA, Leonardo. O designer como agente transformador in http://www.dad.puc-rio.br/<br />
dad07/index.php?pag=down. Acessado em 21/Jun/2010.<br />
WILD, Michelle. Companhia Australiana de Teatro de Rua Strange Fruit in http://www.<br />
strangefruit.net.au/. Acessado em 21/Jun/2010.<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 407
O QuE FAçO COM OS MEuS DIáRIOS DE CAMPO?<br />
INQuIETAçõES DE uMA ANTROPóLOGA NO DESIGN E NA MODA.<br />
Márcia Merlo; Profª Dra.; PPG Mestrado em <strong>Design</strong>: <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />
mmerlo@anhembi.br<br />
Resumo<br />
Este artigo discute a utilização da observação participante no <strong>Design</strong><br />
e na <strong>Moda</strong>. Além do debate em torno do método etnográfico,<br />
também se propõe a problematizar acerca do manuseio e<br />
conservação do material coletado, compreendido aqui como<br />
documentos de processo e registro de reflexões, que guardam<br />
suas particularidades tanto na coleta quanto na conservação e<br />
no manuseio. Desta forma, o texto objetiva repensar formas de<br />
reintegrar o conteúdo do material coletado por meio do registro<br />
de fontes orais e visuais, da observação participante no cotidiano,<br />
associados à riqueza encontrada no universo multifacetado por<br />
meio da memória dos interlocutores da pesquisa e à necessidade<br />
de apresentar resultados, também, em formato de texto acadêmico.<br />
Palavras-Chave: design; moda; antropologia<br />
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São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 408
O que faço com os meus diários de campo? Inquietações de uma antropóloga no <strong>Design</strong> e na <strong>Moda</strong>.<br />
Introdução<br />
Começo com uma pequena apresentação para depois compartilhar uma inquietação.<br />
Tenho trabalhado há alguns anos na docência em cursos de <strong>Moda</strong> – <strong>Design</strong> e Negócios.<br />
Atualmente faço parte do corpo docente do Programa de Mestrado em <strong>Design</strong> da Anhembi-<br />
Morumbi. Apresentada minha inserção neste universo que não é o da minha formação, já que<br />
venho da Antropologia, inicio o que me proponho neste artigo – discutir as aproximações entre<br />
áreas que, guardadas suas particularidades, partilham de uma substanciação comum – o<br />
humano.<br />
Trabalhar com a observação participante, a primeira vista, parece muito sedutor. No<br />
entanto, trata-se de uma escolha de muita responsabilidade e desafios, que ultrapassa, por<br />
vezes, o próprio método. O que significa isto? Quero dizer, que independe da boa vontade<br />
do (a) pesquisador (a) e igualmente de uma aplicação muito técnica de um conjunto de<br />
procedimentos metodológicos. De fato, entrar nesta questão é discutir a construção de<br />
conhecimento por meio de religação de saberes.<br />
Formada em História pela PUCSP, minha inserção na Antropologia aconteceu com<br />
populações nativas de São Sebastião, Ilhabela e Ubatuba, o que resultou em uma dissertação<br />
de mestrado, uma tese de doutorado, dois livros, alguns artigos científicos, matérias jornalísticas<br />
em imprensa local e, muitas questões acerca do que pude aprofundar e compreender do<br />
presenciado, do que consegui captar, desvelar, desvendar do que me foi revelado e do que<br />
meus olhos, coração e mente observaram e discerniram. Digo isto porque optei em trabalhar<br />
com narrações livres por meio de coleta de histórias orais, depoimentos e histórias de vida;<br />
assim, trabalhando com a memória dos antigos moradores pude registrar como pensavam a<br />
história de seu lugar perpassando a sua própria história.<br />
Para deixar mais claro, o recorte de minha pesquisa de campo durante uma década<br />
abriu a possibilidade de conhecer outras faces e ouvir outras vozes destes lugares. Deparei<br />
com o universo caiçara negro, aprofundei os estudos em relação às transformações ocorridas<br />
com o turismo na região e como os antigos moradores rememoraram sua existência. Percebi<br />
que da memória afro-brasileira pouco se evidenciava como uma possível contribuição a esse<br />
universo, mesmo quando perguntava, a um caiçara negro participante da congada, acerca da<br />
presença negra no lugar. Ao indagar sobre o negro, os depoimentos logo caíam na justificativa<br />
de que em Ilhabela não existia racismo, e, às vezes, mesmo nas narrações livres, esta versão<br />
era explicitada entre negros e brancos. Ao longo da pesquisa e convivência, ao criarmos laços<br />
de amizade e confiabilidade, no entanto, outras verdades começaram a surgir trazendo a tona<br />
o racismo sofrido e vivido por tais populações, revelando por intermédio do trabalho com a<br />
Memória, outra história local refletindo as relações raciais no seio da nação brasileira.<br />
Além desse aprendizado humano, compreendi o quanto o trabalho com abordagens<br />
teórico-metodológicas em torno da Memória, utilizando-se da observação participante,<br />
é oneroso, inquietante e exige uma postura ética do (a) pesquisador (a). Ao tratarmos da<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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O que faço com os meus diários de campo? Inquietações de uma antropóloga no <strong>Design</strong> e na <strong>Moda</strong>.<br />
observação participante dentro do desenvolvimento do método etnográfico construído ao<br />
longo da História da Antropologia evidencia-se que é uma ação de profunda inserção do<br />
pesquisador no meio escolhido e de longa duração e extensão.<br />
Em outras palavras, ao optar pelas narrações livres, inicia-se a busca pelos antigos<br />
contadores de histórias, senhores da tradição ou quem puder contar ou lembrar algo que<br />
remeta a “origem” i e a alguma forma de permanência das antigas tradições de caráter popular,<br />
seja por meio de manifestações culturais existentes, seja por meio da memória. Sendo assim,<br />
o fio da memória dá o tom ao texto. E constata-se que ainda se tece enquanto se conta e ouve<br />
histórias, mas também se percebe que o velho narrador com suas narrativas dá lugar a novas<br />
informações. O antigo território agora tem novos donos e novas relações...<br />
Dito isto, enfatiza-se que não só os elementos culturais interessam a uma pesquisa<br />
dessa natureza, mas também seus produtores. Esses produtores são encarados como<br />
interlocutores, uma vez que se compartilha do pensamento de Geertz (1989) quando se<br />
refere ao objeto de estudo da Antropologia dizendo que “o objetivo maior desta ciência é<br />
o alargamento do discurso humano” (p. 32). Partindo desse pressuposto teórico, a relação<br />
estabelecida entre o pesquisador e o pesquisado é de este último tornar-se interlocutor, o que<br />
propicia outra qualidade ao estudo.<br />
Desta forma, indaga-se em como podemos desenvolver mergulhos deste gênero em<br />
outras áreas do conhecimento humano? A seguir apresentarei algumas inquietações que<br />
estão me direcionando a um caminho interessante no <strong>Design</strong>.<br />
ITINERáRIOS: caminhos tortuosos, resultados incríveis...<br />
Um caminho –<br />
A idéia central é trazer para o universo da pesquisa em <strong>Design</strong> e <strong>Moda</strong>, as teorias e<br />
métodos da ciência antropológica, por meio das Teorias da Memória e do uso da observação<br />
participante. Parte-se da constatação de que há muitas lacunas encontradas nas fontes<br />
escritas, por isto pretende-se obter respostas nas fontes orais. Também ao adentrarmos o<br />
universo do <strong>Design</strong> e da <strong>Moda</strong>, os objetos e seus produtores permeiam nosso olhar e se<br />
tornam objetos de nosso estudo.<br />
Um dos teóricos da Memória, Michel Pollak, retrata a linha tênue que une/separa a<br />
história oral dos documentos:<br />
A multiplicação dos objetos que podem interessar à história, produzidos pela<br />
história oral, implica indiretamente aquilo que eu chamaria de uma sensibilidade<br />
epistemológica específica, aguçada. Por isso mesmo acredito que a história<br />
oral obriga a levar ainda mais a sério a crítica das fontes. E, na medida em que,<br />
através da história oral, a crítica das fontes torna-se imperiosa e aumenta a<br />
exigência técnica e metodológica, acredito que somos levados a perder, além<br />
da ingenuidade positivista, a ambição e as condições de possibilidade de uma<br />
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história vista como ciência de síntese para todas as outras ciências humanas<br />
e sociais (POLLAK, 1992, p. 208).<br />
Como Pollak, também, acredita-se neste projeto que fazer um trabalho de memória<br />
apoiado nas fontes escritas e nas orais é trazer para dentro do universo científico “um discurso<br />
sensível à pluralidade das realidades. Temos uma possibilidade não de objetividade, mas de<br />
objetivação, que leva em conta a pluralidade das realidades e dos atos” (ibidem, p. 211).<br />
Ao ouvir as histórias de uns e de outros, assim como ao olhar para os objetos/artefatos<br />
que permeiam a vida social, o pesquisador percebe-se compondo um mosaico em que os<br />
pedacinhos (fragmentos) das lembranças/histórias de um vão se encostando aos de outros,<br />
formando uma paisagem do passado baseada no presente vivido. A lembrança é também o<br />
momento da revisão. O que a movimenta é o presente, que ao sinalizar o vivido direciona o<br />
rememorar aos processos vividos, assim como aos não-ditos, silenciados, clandestinos, de<br />
acordo com o que se objetiva neste ato.<br />
Pollak ao constatar o silêncio, o não-dito, nos faz pensar na memória subterrânea e<br />
sobre os processos silenciados no cotidiano de nossas existências. O autor, ao nos esclarecer<br />
o porquê dos não-ditos, aponta para um possível motivo do silenciamento das memórias e<br />
também o porquê de, em alguns momentos, quando se tem uma escuta e uma situaçãolimite,<br />
emergirem lembranças, rompendo os silêncios:<br />
(...) há uma permanente interação entre o vivido e o aprendido, o vivido e<br />
o transmitido. E essas constatações se aplicam a toda forma de memória,<br />
individual e coletiva, familiar, nacional e de pequenos grupos. O problema que<br />
se coloca a longo prazo para as memórias clandestinas e inaudíveis é o de sua<br />
transmissão intacta até o dia em que elas possam aproveitar uma ocasião para<br />
invadir o espaço público e passar do ‘não-dito’ à contestação e à reivindicação;<br />
o problema de toda memória oficial é o de sua credibilidade, de sua aceitação<br />
e também de sua organização (POLLAK, 1989, p. 9).<br />
Percebe-se que “o que está em jogo na memória é também o sentido da identidade<br />
individual e do grupo” (ibidem, p. 10). Nesse sentido, entende-se que as narrativas servem<br />
para historiar o cotidiano vivido, levando-se em conta até onde o raio da memória consegue<br />
alcançar. Também o pesquisador presencia na relação com o objeto da pesquisa, que no<br />
caso é o próprio sujeito da história narrada, sutilezas que direcionam o desenrolar do trabalho.<br />
Algo que se presentifica ao conhecermos as narrativas dos sujeitos que vivem o lugarii cotidianamente. Nas palavras de Ecléa Bosi:<br />
A veracidade do narrador não nos preocupou: com certeza seus erros e lapsos<br />
são menos graves em suas conseqüências que as omissões da história oficial.<br />
Nosso interesse está no que foi lembrado, no que foi escolhido para perpetuarse<br />
na história de sua vida (BOSI, 1979, p. 1).<br />
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Complementando a idéia desenvolvida por Bosi, ao esclarecer o objetivo da antropologia<br />
interpretativa, Geertz traduz, em parte, a preocupação que permeia este estudo:<br />
Olhar as dimensões simbólicas da ação social – arte, religião, ideologia, ciência,<br />
lei, moralidade, senso comum – não é afastar-se dos dilemas existenciais da<br />
vida em favor de algum domínio empírico de formas não-emocionalizadas; é<br />
mergulhar no meio delas. A vocação essencial da antropologia interpretativa<br />
não é responder às nossas questões mais profundas, mas colocar à nossa<br />
disposição as respostas que outros deram (...) e assim incluí-las no registro de<br />
consultas sobre o que o homem falou (GEERTZ, 1989, p. 40-1).<br />
Mesmo conscientes de que escutamos e vivenciamos reflexões sobre a própria<br />
existência de quem narra a sua história para o ouvinte, no caso, o antropólogo e os designerspesquisadores,<br />
o que percebemos é que nem sempre o nós e os outros estão tão distantes<br />
quanto aparecem, e, muitas das questões subjetivas “deles” são as do próprio pesquisador.<br />
Em pesquisas desta natureza, é possível constatar-se que nem sempre o nós e os outros<br />
estão tão distantes quanto aparecem, ou quanto queremos afastar, e muitas das questões<br />
subjetivas “deles” são as do próprio pesquisador e tudo isto pode auxiliar a pensar e ampliar a<br />
atuação pessoal e profissional em qualquer área em que estejamos inseridos, pois em nossa<br />
volta estamos nós mesmos.<br />
Dito isto, mais uma questão se coloca em uma pesquisa que tem como pressuposto a<br />
utilização da observação participante e do recurso da memória. Aliás, ao se tratar de memória<br />
viva, não dá para se abrir mão da vivência com o grupo pesquisado. Trabalhar com a história<br />
oral e de vida, requer perceber nuances do próprio ato de rememorar, ou seja, a observação<br />
minuciosa e participante de tudo o que envolve o pesquisado e de seu entorno. Sendo assim,<br />
nos apoiamos no trabalho etnográfico, tão caro à Antropologia. Também, neste caso, é<br />
preciso estar atento e consciente de que escutamos e vivenciamos reflexões sobre a própria<br />
existência de quem narra a sua história para o ouvinte. Cabe, também, ao pesquisador ter um<br />
distanciamento necessário para analisar o observado e vivido, mas não estamos dizendo com<br />
isto que acreditamos em imparcialidade, o que afirmamos é que a prática em questão exige<br />
uma postura consciente e ética do pesquisador.<br />
A Memória diz respeito ao que permanece entre o feito e dito de um indivíduo e seu<br />
grupo, assim como o que não é dito, ou melhor, aquilo que se silencia e cai no esquecimento.<br />
Podemos dizer que há tantas memórias quantos grupos existirem, no entanto, também<br />
podemos afirmar que há lembranças subterrâneas, clandestinas que escondem outras<br />
“verdades”. Conhecê-las significa entrarmos em outros “mundos” ou mergulharmos nesses<br />
já tão velhos conhecidos nossos, mas tão pouco pensados no turbilhão em que vivemos,<br />
ou, pensados por outros ângulos, além de nossos conceitos e experiências. Por isto, neste<br />
estudo, os objetos também se tornam “contadores de histórias”, pois carregam (evidenciam)<br />
práticas sociais e culturais diversas. Não só o que se ouve será pensado e trabalhado, mas o<br />
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que se vê, pois se compreende a cultura como um texto que se lê, e, em uma sociedade onde<br />
há o apelo (superexposição) ao visual, o visto será lido e revisto.<br />
Entre as narrativas, estabelece-se a relação entre o narrador e a substância do que<br />
se conta, assim como podemos incluir a “coisa” narrada - o objeto da Memória. Walter<br />
Benjamin em seu texto “O narrador”, expõe uma questão crucial e que nos leva a pensar o<br />
tempo presente contido no desejo de lembrar ou esquecer. O entorno (ou substância) de toda<br />
memória é o tempo presente, o que se vive, o que se lembra, o que se viveu que não pode<br />
mais ser vivido, mas pode ser lembrado. Assim como, o que não se viveu necessariamente,<br />
mas, de tanto sentido que faz, torna-se algo tão íntimo e seu, que pode ser contado. Neste<br />
sentido, também vejo aproximação entre o <strong>Design</strong> e a Memória dos objetos.<br />
A narrativa (...) é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de<br />
comunicação. Ela não está interessada em transmitir o ‘puro em si’ da coisa<br />
narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida<br />
do narrador para em seguida retirá-la dele. (...) Assim, seus vestígios estão<br />
presentes de muitas maneiras nas coisas narradas, seja na qualidade de quem<br />
as viveu, seja na qualidade de quem as relata. (BENJAMIN, 1985, p. 205)<br />
Portanto, Memória traz o estudo das representações sociais, das identidades e do<br />
imaginário, da cultura. O pesquisador se deleita nas possibilidades de conhecer e interpretar<br />
seu objeto de estudo, além de obrigar-se a buscar caminhos para tal conhecimento se efetivar<br />
e gerar frutos, também sociais e culturais.<br />
Talvez por tudo o que foi exposto até agora é que algo sempre me inquietou em relação<br />
à produção científica como fruto de pesquisa com populações nativas ou de qualquer grupo<br />
humano: o que fazer com o material que recolhemos se precisamos transformar os relatos em<br />
um texto acadêmico que está sujeito às normas e técnicas que nem sempre se referem a uma<br />
“forma” que melhor apresente e/ou represente o que desejamos refletir e transmitir. Por vezes,<br />
vira algo bastante diferente daquilo que foi recolhido das fontes orais, isto para não dizer o que<br />
fazer com as imagens que, na maioria das vezes, são utilizadas para preencher um espaço<br />
vazio ou para ilustrar algo que acaba sem vida no meio de tantas palavras, conceitos, teorias.<br />
Também algumas imagens acabam surtindo o efeito de aliviar a leitura, ou melhor, distrair o<br />
leitor, o que acaba comprometendo outros significados dados no ato do registro na tentativa<br />
de abarcar a “totalidade” das relações em uma busca de captar as intersubjetividades e interrelações<br />
em jogo. Parece que no campo do <strong>Design</strong> e da <strong>Moda</strong>, áreas propícias ao estudo, uso<br />
e abuso de imagens, encontro mais referências para pensar minhas inquietações e também<br />
para torná-las mais instigantes.<br />
Tal desafio já se evidencia de longa data entre os etnólogos e etnógrafos na história<br />
da ciência antropológica. Tanto é que uma das discussões recentes refere-se em abrir os<br />
diários antropológicos para revelar os acertos e os percalços das pesquisas de campo, o que<br />
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também significa explicitação metodológica. Malinowski, já nos apresentava tal inquietação<br />
nas primeiras décadas do século XX ao dizer que a etnografia,<br />
ciência em que o relato honesto de todos os dados é talvez ainda mais<br />
necessário que em outras ciências, infelizmente nem sempre contou no<br />
passado com um grau suficiente deste tipo de generosidade. Muitos dos seus<br />
autores não utilizam plenamente o recurso da sinceridade metodológica ao<br />
manipular os fatos e apresentam-nos ao leitor como que extraídos do nada.<br />
(...) A meu ver, um trabalho etnográfico só terá valor científico irrefutável se nos<br />
permitir distinguir claramente, de um lado, os resultados da observação direta<br />
e das declarações e interpretações nativas e, de outro, as inferências do autor,<br />
baseadas em seu próprio bom-senso e intuição psicológica. (MALINOWSKI,<br />
1976, p.22)<br />
O objeto é o próprio sujeito e o método aquele que mais aproxima a possibilidade<br />
de conhecer seu modo de viver sem reduzi-lo ao que queremos ou podemos perceber. Para<br />
isso a fundamentação teórica sempre esteve lado a lado à observação minuciosa e ao registro<br />
detalhado, com o intuito de captar a materialidade da cultura em questão, assim como sua<br />
dimensão simbólica. Talvez essa seja uma grande pretensão, mas poderia ser diferente?<br />
Então o que fazer com todo o material recolhido, com o que foi observado, sentido, não<br />
compreendido e relatado, às vezes, somente em nossas anotações e diários de campo?<br />
Ainda Malinowski apóia algumas das observações feitas aqui, em relação ao registro<br />
das fontes de informação e a versão final:<br />
Na etnografia, o autor é, ao mesmo tempo, o seu próprio cronista e historiador;<br />
suas fontes de informação são, indubitavelmente, bastante acessíveis, mas<br />
também extremamente enganosas e complexas; não estão incorporadas<br />
a documentos materiais fixos, mas sim ao comportamento e memória de<br />
seres humanos. Na etnografia, é freqüentemente imensa a distância entre<br />
a apresentação final dos resultados da pesquisa e o material bruto das<br />
informações coletadas pelo pesquisador através de suas próprias observações,<br />
das asserções dos nativos, do caleidoscópio da vida tribal. O etnógrafo tem<br />
que percorrer esta distância ao longo dos anos laboriosos que transcorrem<br />
desde o momento em que pela primeira vez pisa numa praia nativa e faz as<br />
primeiras tentativas no sentido de comunicar-se com os habitantes da região,<br />
até à fase final dos seus estudos, quando redige a versão definitiva dos<br />
resultados obtidos. (ibidem, p. 22-3)<br />
Pesquisa de natureza etnográfica ou que utilizam técnicas qualitativas a partir desta<br />
metodologia de pesquisa de campo, geralmente, revelam a problemática do manuseio e<br />
conservação do material, que os críticos genéticos chamam de documentos de reflexão:<br />
diários, anotações, correspondências. O que também ocorre com esboços, croquis, rascunhos,<br />
cadernos de notas, projetos que perpassam o processo criativo dos designers e artistas, que<br />
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nem sempre acabam contemplados ou devidamente armazenados ao ponto de revelar o grau<br />
de importância que tiverem na construção dos objetos/artefatos/histórias que encerram na<br />
materialidade em si. Salles esclarece acerca do trabalho sobre tais documentos de processo<br />
para os artistas e cientistas ao dizer que<br />
Fragmentos podem parecer para um observador desavisado uma cadeia de<br />
ações isoladas. O importante, no entanto, é perceber que os princípios que<br />
norteiam aquele processo aparecem quando o seu observador estabelece<br />
relações entre os gestos: ao longo do trabalho de manuseio de fragmentos,<br />
estes ganham significado na sua relação com o todo.<br />
Este trabalho de estabelecer relações entre índices de uma história na<br />
busca pela compreensão do todo é o mesmo manuseio de rastros feito pelo<br />
arqueólogo, o geólogo e o historiador. (Manuscrítica, no. 7, p.89)<br />
A partir de tal idéia pensei como salvaguardar e ampliar as interpretações de minhas<br />
anotações de viagens, diários de campo, gravações de entrevistas, depoimentos, histórias<br />
de vida, fotografias, filmagens de festas ou do cotidiano desses grupos, que representam,<br />
após anos de coleta, um acervo rico a partir das reais possibilidades de registro. Percebe-se<br />
ao ler alguns textos da Revista Manuscrítica, que a crítica genética, assim como os registros<br />
etnográficos podem oferecer base para tal estudo e análise, principalmente quando Salles<br />
aponta a relevância dos documentos de processo para compreender o momento da criação,<br />
entre outras formas de registro, guardando suas especificidades. Apresenta, a meu ver, uma<br />
possibilidade, assim como uma aproximação com as inquietações antropológicas quanto aos<br />
registros nos cadernos de campo, ao dizer que<br />
Entrevistas, depoimentos e ensaios reflexivos oferecem também dados<br />
importantes para os estudiosos do processo criador; têm, no entanto, caráter<br />
retrospectivo que os colocam fora do momento de criação. (op.cit., p.89)<br />
E indago: É possível uma antropóloga revisitar seus diários de campo, no intuito de<br />
reintegrá-los no processo de construção das idéias que a levou a formatar as pesquisas<br />
realizadas em dissertação, tese e artigos científicos, abrindo outras possibilidades de leitura do<br />
mesmo material? Respondo: com certeza e isto tem sido bastante explorado nas pesquisas<br />
antropológicas. Ainda pergunto: E como registrar, guardar, manusear e demonstrar estes<br />
processos no design de nossas produções acadêmicas e nos processos criativos no design<br />
e na moda? Respondo: acredito que estamos em processo de desenvolvimento destas<br />
linguagens e metodologias. E ainda: O design das teses acadêmicas amplia o universo da<br />
criação do cientista ou o restringe? Em outras palavras, onde colocar as formas, as cores,<br />
os sons apresentados no ato da pesquisa na escritura da tese? Falamos em processos para<br />
quais fins? Respondo: são fontes inesgotáveis de novas pesquisas e reflexões.<br />
Em suma, o que objetivo é uma releitura e um repensar trajetórias e perspectivas que<br />
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porventura e desventuras no fazer antropológico perpassam questões do que está guardado,<br />
do que e como o material etnográfico foi recolhido e registrado, enfim, no processo de coleta<br />
de dados que inclui, além da observação participante, a gravação de depoimentos, histórias<br />
orais, histórias de vida e o registro de imagens. Guardadas as devidas proporções, percebo nos<br />
processos projetuais nas áreas do <strong>Design</strong> e da <strong>Moda</strong> ainda questões bastante semelhantes,<br />
sobretudo quando o processo de construção cede lugar ao produto final e este se silencia, na<br />
maioria das vezes, ao consumidor/usuário final, caindo no esquecimento de quase todos os<br />
envolvidos neste saber/fazer. Também as percepções do uso e descarte dos objetos ficam,<br />
muitas vezes, distantes dos criadores e nem sempre geram reflexão para os seus usuários.<br />
Algo que interessa ao pesquisador que pretende abarcar não só o produto, mas a produção<br />
dos sentidos por meio dele.<br />
Parto, então, do seguinte pressuposto colocado por Cecília A. Salles,<br />
que discutir a morfologia da criação tem como pretensão oferecer mais do<br />
que um simples registro de um estudo, um modo de ação: tirar objetos do<br />
isolamento de análises e reintegrá-los em seu movimento natural. Aponta<br />
a relevância de observar fatos e fenômenos inseridos em seus processos.<br />
(Manuscrítica 8, p.64)<br />
Parece-me, neste caso, bastante salutar colocarmos à disposição de pesquisas desta<br />
natureza e com esta pretensão, o arcabouço teórico-metodológico da Antropologia e os<br />
teóricos da Memória, no sentido de apoiar reflexões, assim como proporcionar uma mediação<br />
para a análise dos processos embutidos em seu desenrolar científico. Desta forma, propõe-se<br />
conhecer alguns caminhos traçados em uma pesquisa qualitativa utilizando-se de recursos do<br />
método etnográfico.<br />
Sobre métodos e técnicas de pesquisa:<br />
Uma vez traçado o caminho a partir da teoria da memória, o recurso técnico é o da<br />
história oral. As técnicas, portanto, são qualitativas. No caso desta pesquisa, a coleta de<br />
histórias de vida pode significar um recurso estratégico, pois nos interessa tanto conhecer<br />
o cotidiano do trabalho e os modos de viver, pensar, sentir e fazer dos pesquisados; quanto<br />
compreender a metodologia utilizada na produção dos artefatos e/ou produtos que realizam.<br />
Isto porque:<br />
A história de vida permite a valorização de contatos informais baseados na<br />
identificação e empatia entre o pesquisador e o pesquisado, o que explora em<br />
profundidade a contextualização das entrevistas, extraindo delas um máximo<br />
de veracidade. Mais do que isso, a história de vida insere o ator, através de<br />
processos sincrônicos e diacrônicos, na rede real das relações sociais que o<br />
localiza dentro do grupo. (CAMARGO, 1981, p. 29).<br />
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O recurso metodológico da história oral possibilita ao pesquisado narrar as experiências<br />
vividas. O movimento da memória não é linear, não segue uma ordem cronológica, é um ire-vir<br />
constantes, em que associações são feitas, iluminando, até mesmo, situações que se<br />
encontravam encobertas. O que se estabelece aqui é a relação aberta entre pesquisador<br />
e pesquisado. Ao pesquisador, cabe esclarecer os objetivos de sua pesquisa, deixando o<br />
pesquisado totalmente livre para contar/revelar o que se quer registrado. Em alguns momentos,<br />
no entanto, o pesquisador interfere para solicitar mais informações sobre passagens da<br />
narração que precisam ser mais aprofundadas ou ficar mais claras. Quando o objeto em<br />
questão é o artefato, procuramos relacionar os processos de sua criação por meio de seu<br />
criador, ou podemos apoiar tal análise em outras fontes que nos propicie contextualizar o<br />
artefato em si, assim como o momento – circunstâncias e condições – de sua criação, se<br />
possível.<br />
Em outras palavras, o levantamento de histórias orais pressupõe a busca, no anonimato<br />
muitas vezes, de uma visão e vivência de mundo a partir de experiências cotidianas e<br />
inovadoras para uma análise sociocultural mais abrangente. É, portanto, necessário livrar-se<br />
de preconceitos e ampliar os horizontes, no sentido de uma credibilidade e colaboração entre<br />
pesquisador e interlocutor. Como diz Paul Thompson:<br />
O historiador oral tem que ser um bom ouvinte, e o informante, um auxiliar<br />
ativo. (THOMPSON, 1992, p. 43).<br />
Quanto ao historiador oral ter de ser um bom ouvinte, é claro, mas o informante torna-se<br />
mais do que um “auxiliar” ativo, pois ele torna-se um interlocutor, já que é visto como produtor<br />
cultural, como foi dito anteriormente. Essa concepção do fazer histórico encontra morada<br />
na literatura, e em José Saramago há uma passagem que demonstra como tudo passa pela<br />
interpretação, até mesmo o não-dito, como afirma Pollak. O literato diz:<br />
O historiador não deve se contentar em repetir o que já foi escrito. Deve<br />
investigar o não-dito e, sobretudo, o oculto. É essa perspectiva da história,<br />
como investigação do oculto, que me interessa. (...) O principal para mim,<br />
como já disse, não é a história, mas a maneira de contar a história. Os fatos que<br />
manipulo não são falsos, apenas podem ser interpretados de outra maneira.<br />
(SARAMAGO, 21/9/96, em uma entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo).<br />
Sendo assim, parece que cabe ao designer tornar-se um observador atento, um bom<br />
ouvinte e, portanto, propor-se vir a ser um pesquisador qualificado.<br />
Nesse processo de trocas encontra-se o dinamismo do fazer histórico e compreendese<br />
a importância da lembrança e do apreendido pelo dito, não-dito, feito e observado, como<br />
uma recriação do vivido:<br />
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(...) um acontecimento vivido é finito, ao passo que o acontecimento lembrado<br />
é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois.<br />
Num outro sentido, é a reminiscência que prescreve, com rigor, o modo da<br />
textura. Ou seja, a unidade do texto está apenas no actus purus da própria<br />
recordação, e não na pessoa do autor, e muito menos na ação (BENJAMIN,<br />
1985, p. 37).<br />
É esse o sentido de se trabalhar com as técnicas qualitativas em uma pesquisa que<br />
prioriza a memória. A busca não é da verdade ou das certezas, conforme o objetivado na<br />
formulação de leis gerais, mas a das lembranças, do vivido, do interpenetrado durante toda<br />
uma existência e que mostra na riqueza simbólica o sentido real e o imaginado do sujeito, que<br />
o faz autor de sua própria trajetória de vida.<br />
Notas<br />
i É importante frisar que ao se colocar origem, não há nenhuma intenção purista na análise, pois<br />
desacreditamos dessa existência, mas o que se quer dizer aqui é como cada um dos interlocutores de<br />
uma pesquisa onde o mote é a lembrança pensa a sua história em relação ao seu meio social. O que<br />
em sua memória ficou interpenetrado da história do seu lugar e do que lhe foi transmitido por gerações<br />
passadas, ou ainda, o que interpenetrou em sua consciência da memória histórica, do ponto de vista<br />
mais oficial e, sobretudo, do como interpreta sua vida e o seu lugar.<br />
ii Aqui se entende lugar de forma amplo. Pode ser a moradia, assim como o lugar profissional e social,<br />
por exemplo. O lugar antropológico é aquele que o sujeito circunscreve sua atuação/ autuação em<br />
múltiplos sentidos.<br />
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______________________. “Diálogo na Crítica Genética” In Manuscrítica no. 5, Centro de<br />
Estudos de Crítica Genética. PUC-SP.<br />
THOMPSON, Paul. A voz do passado. São Paulo: Paz e Terra, 1992.<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 419
O DESIGN DA MARCA COLCCI: hISTóRIA E CONSTRuçãO<br />
Alvaro de Melo Filho; Mestre em <strong>Design</strong>: <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />
amelofi lho@terra.com.br<br />
Márcia Merlo; Profª Dra.; PPG Mestrado em <strong>Design</strong>: <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />
mmerlo@anhembi.br<br />
Resumo<br />
Este artigo intenciona identificar e explorar o design de marcas,<br />
tendo como suporte de pesquisa a análise da trajetória de uma<br />
marca brasileira de moda, no caso, a Colcci. Objetiva-se estudar<br />
a procura dessa marca por um design característico que a<br />
propulsione dentro do mercado nacional, que busque estruturar<br />
seu trabalho por meio do relacionamento com o consumidor e<br />
que caminhe rumo a um reconhecimento internacional. Trata-se<br />
de um processo de reflexão que pretende revelar os rumos que<br />
traçaram o design da marca Colcci, anunciando os passos que a<br />
empresa está inclinada a seguir e que poderão levá-la a trabalhar<br />
um redesign, contrariando seu discurso de ser apenas uma moda<br />
jeanswear e não uma grande lançadora de tendências.<br />
Palavras-Chave: design de marcas; moda; Colcci<br />
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O design da marca Colcci: história e construção.<br />
Introdução<br />
Este artigo parte da pesquisa realizada com uma marca brasileira de moda. O propósito<br />
do estudo se concentra em identificar e explorar o design de marcas, tendo como suporte de<br />
pesquisa a análise da trajetória da Colccii .<br />
A reflexão aqui proposta perpassa o projeto de design de marcas na contemporaneidade,<br />
sobretudo em como se configuram seus símbolos, valores, imagem, produtos, pontos de<br />
venda, comunicação, merchandising e o relacionamento com o cliente; tudo convergindo para<br />
a busca de um único objetivo: o de proporcionar os significados, funcionais e emocionais, que<br />
serão traduzidos por um grupo de pessoas que compartilham o mesmo código.<br />
Nota-se que a marca, portanto, fornece mais que a simples identificação de um produto,<br />
serviço ou empresa; ela se constitui em significado simbólico para a experiência do indivíduo<br />
quanto ao consumo de objetos e sistemas.<br />
Os pressupostos estão evidenciados em uma discussão teórica que envolve exposições<br />
de diversos autoresii , fundamentação esta que procurou embasar as análises da marca Colcci.<br />
Nesse sentido, objetiva-se entender a procura dessa marca por um design característico que<br />
a propulsione dentro do mercado nacional, que busque estruturar seu trabalho por meio do<br />
relacionamento com o consumidor e que caminhe rumo a um reconhecimento internacional.<br />
O trabalho apoiou-se em pesquisa qualitativa, utilizando, para as análises da marca,<br />
o modelo comparativo, com base em levantamento bibliográfico. Dentre os procedimentos<br />
técnicos, estão o levantamento e análise de livros, dissertações e teses; publicações em<br />
revistas e jornais; ilustrações e fotografias; e entrevistas com designers, estilistas, gestores de<br />
marca, franqueados e consumidores.<br />
Das informações coletadas delineou-se um percurso histórico que acompanha<br />
mudanças no âmbito mercadológico da empresa, com decisões estratégicas que implicam<br />
reconfigurações de seu designiii relativas à marca e seu objeto de moda. Para melhor<br />
entendimento do processo de análise da marca Colcci e dos resultados obtidos, o trabalho<br />
dividiu-se em três fases, apresentadas a seguir.<br />
COLCCI – O design de uma marca<br />
Inicialmente, grande parte de todo o movimento da marca Colcci esteve calcada nas<br />
propostas de Melo (2005) para o design de marcas. O autor ressalta que entre as décadas de<br />
1960 e 1990 existiu uma cultura empresarial focada na busca da identidade visual, em que<br />
o símbolo da marca (ou logotipo) passava a representar signos de comando utilizados para<br />
identificar produtos e orientar quanto à padronização na aplicação da marca.<br />
Nesse sentido nasce, em 1986, a Colcci, uma malharia que concentrava sua produção<br />
em peças básicas – moletons, camisetas e alguns shortinhos – e almejava, em um primeiro<br />
momento, uma marca que representasse apenas a ideia de uma empresa que oferecia peças<br />
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O design da marca Colcci: história e construção.<br />
de qualidade e bons preços.<br />
Seu primeiro logotipo foi apresentado dentro de um molde de negócio inicial, estampava<br />
as etiquetas dos produtos e a fachada do empreendimento. Objetivava informar e nomear o<br />
produto e o estabelecimento. Uma intenção que remete ao exposto por Costa (2008) no<br />
sentido de que a marca, em princípio, tem a função de marcar, traçar, indicar algo. O autor<br />
ainda considera que, a partir do momento em que o usuário entra em contato com o produto,<br />
experimenta e atesta suas características (funcionais, qualitativas e simbólicas), o logotipo<br />
passa a ter um significado.<br />
À primeira vista, a Colcci não possuía um código conhecido por todos, era apenas um<br />
sinal indicativo de objeto de vestuário; porém, dentro das proposições de Costa (2008), em um<br />
segundo estágio, torna-se um símbolo designativo de relação custo/benefício.<br />
Figura 1 – A primeira marca da Colcci, ainda um logotipo. Imagem fornecida pela empresa.<br />
Nesse ponto, além da qualidade das peças, um personagem da marca, Digby, um<br />
cachorrinho estilizado, fazia sucesso entre os consumidores que passavam pela cidade de<br />
Brusque (SC) atrás de peças de roupas básicas, com qualidade e bom preço. O personagem<br />
era estampado em quase todos os produtos e aparecia junto ao nome da marca. Logo Digby<br />
foi adotado como mascoteiv da empresa.<br />
Figura 2 – Digby em sua primeira versão. Arquivo pessoal do pesquisador, 1986 - 1988.<br />
Com base nas colocações de Perez (2004), percebe-se que Digby nasceu como<br />
um mascoteiiii que pretendia, em um primeiro momento, trazer sentimentos de felicidade,<br />
proximidade e afetuosidade aos consumidores que procuravam a marca.<br />
Wheeler (2008, p.116) afirma que “frequentemente, um logotipo é justaposto com um<br />
símbolo em um relacionamento formal.” A procura dos consumidores pelo cachorrinho Digby<br />
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levou os proprietários da empresa, Lila e Jorge Colzani, a vislumbrar que o sentimento agregado<br />
à sua figura poderia chamar mais atenção sobre o logotipo inicial. Foi nesse momento que o<br />
lettering Colcci passou a se apresentar de uma forma diferente, porém, ainda não de maneira<br />
oficial. Essa nova marca aparecia ora em sua primeira versão (apenas como logotipo), ora com<br />
Digby.<br />
Figura 3 – Segunda marca com Digby agregado ao logotipo. Arquivo pessoal do pesquisador, 1986 - 1988.<br />
Ao perceber que, cada vez mais, os consumidores simpatizavam pela figura de Digby,<br />
os fundadores da marca decidem investir na sua imagem e redesenhá-lo. Ele abandona<br />
seus traços livres de rascunho e ganha uma imagem aproximada da personificação de um<br />
cachorrinho.<br />
Figura 4 – Digby mais trabalhado. Registro do pesquisador, 1989 – 1991.<br />
É possível analisar que a intenção, com a imagem do cachorrinho, aconteceu dentro do<br />
contexto de mascote apresentado por Perez (2004). Ainda de acordo com a autora, percebese<br />
que a pretensão é a de que sejam vistos com sentimentos e vida própria, ligados ao<br />
dia a dia do ser humano. A nova roupagem de Digby pretende humanizar o personagem,<br />
aproximando-o do cotidiano dos indivíduos; e continua com o objetivo de proporcionar<br />
felicidade, criar proximidade e estabelecer afetuosidade aos consumidores da marca, visto<br />
que aparece com uma imagem mais afável, dentro dos contextos do desenho, da imagem de<br />
um bicho de estimação.<br />
Um elemento merece destaque nesta análise: Digby aparece vestido com uma camiseta.<br />
Isso chama nossa atenção para duas interpretações: a primeira, condiz com a humanização<br />
do personagem, visto que agrega à imagem do mascote um elemento do universo do homem,<br />
uma peça do vestuário; a segunda, está para o fato desta peça, uma camiseta, ser o principal<br />
objeto de trabalho da marca, respondendo pela quase totalidade de suas vendas.<br />
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O redesign de Digby não foi uma mudança impelida pelo primeiro logotipo, apenas uma<br />
atualização do personagem, que passa a agregar, cada vez mais, a marca inicial da empresa.<br />
Figura 5 – A terceira marca da Colcci. Substitui-se o personagem inicial pelo novo desenho de Digby.<br />
Melo (2009) informa que no início a loja foi aberta em um espaço sem identidade visual<br />
definida. Tudo construído nos moldes de uma loja cujo interesse era apenas oferecer malharia<br />
de qualidade, com preços acessíveis. O personagem da marca era muito explorado em<br />
letreiros retroiluminados, sacolas, embalagens e adesivos. Afinal, Digby conquistava a simpatia<br />
dos consumidores e era um dos grandes responsáveis pela ascensão da marca e das vendas.<br />
Um detalhe, porém, chama a atenção: Digby era, comumente, visto nesses materiais<br />
em orientação vertical, apesar de seu uso na marca ser horizontal, o que leva à seguinte<br />
análise: a Colcci buscava, mesmo que não declaradamente ou ainda de forma desorganizada,<br />
uma identidade visual. O fato reforça o exposto por Melo (2005), anteriormente, sobre a cultura<br />
da identidade visual difundida pelas empresas no período que permeia os anos 1960 até<br />
meados dos anos 1990.<br />
Essa identidade visual ainda não declarada era um trabalho de experimentações,<br />
testavam-se as várias aplicações do personagem e logotipo, buscando um formato ideal que<br />
organizasse a aplicação da marca. A administração da empresa, coordenada por Jorge Colzani,<br />
entendia que em certos materiais de comunicação ou merchandising – como cartões de visita,<br />
etiquetas para presente e adesivos – a orientação vertical poderia proporcionar um melhor<br />
reconhecimento do logotipo e personagem. Porém, ao mesmo tempo, em fachadas, a melhor<br />
aplicação condizia com o horizontal, até mesmo porque era o formato oficial da marca.<br />
Figura 6 – À esquerda, a terceira marca estampada em um letreiro retroiluminado na fachada de uma<br />
das primeiras lojas. Acima, cartão de visita com o logotipo e o personagem dentro de uma orientação vertical.<br />
Foto e imagem do arquivo pessoal do pesquisador, 1992.<br />
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Pode-se verificar, ainda, que essa experimentação se estendia a outros fatores, como,<br />
por exemplo, a cor. Apesar de os materiais de cunho institucional trazerem marca e personagem<br />
dentro das tonalidades amarela e azul (cores padrão da empresa), em outras aplicações Digby<br />
e o logotipo podiam aparecer em cores diferenciadas e alternadas, como é o caso de alguns<br />
adesivos.<br />
Figura 7 – Digby, estampado junto ao logotipo, em adesivo. Orientação vertical, contrária à versão oficial.<br />
Detalhe para a camiseta na cor rosa, destacando o objeto de manufatura principal da fábrica.<br />
Todo esse esforço por acertar o padrão visual na exposição dos produtos, somado à<br />
expansão dos pontos de venda, levou a empresa a buscar também uma identidade visual. E<br />
a Colcci apresenta uma nova marca.<br />
Figura 8 – A quarta marca da Colcci. Imagem cedida pela empresa.<br />
A quarta apresentação oficial mantém o respeito ao padrão de cores – com predominância<br />
do amarelo e azul. Essa versão, entretanto, inaugura a inserção do vermelho, representada<br />
pela camiseta do personagem da marca. Digby ganha novas dimensões, assim como a<br />
relação entre a marca e seus usuários. Daí reiterar a questão da aproximação e afetuosidade<br />
apontadas por Perez (2004) e refletidas nas mudanças da marca Colcci.<br />
Para Ferlauto (2002, p.63), “[...] os designers precisam ‘escrever com clareza’ seus<br />
discursos não verbais, para serem bem entendidos. Isso significa considerar a dinâmica do<br />
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olhar”. O autor amplia a discussão, ao considerar que, nesse sentido, uma das funções do<br />
designer é proporcionar soluções não verbais, comandadas por questões relativas à dimensão,<br />
forma, posição, cores, texturas, etc., o que, particularmente, mostra que essa versão da marca<br />
não apresenta diferenciações relativas apenas à cor: Digby aparece com um desenho ainda<br />
mais trabalhado, com volume e textura emborrachada.<br />
Dondis (1997, p.70) considera ser a textura “[...] o elemento visual que com frequência<br />
serve de substituto para as qualidades de outro sentido, o tato”. Já o volume, para a autora,<br />
é proporcionado por uma ideia de dimensão. Assim, a textura e o volume funcionam como<br />
uma alusão ótica, ao instigar o sentido tátil de querer afagar o personagem, como se ele fosse<br />
tangível, aproximando-o ainda mais de uma humanização e seus sentidos reais.<br />
Sancionando a análise anterior sobre a orientação vertical na aplicação de Digby junto<br />
ao logotipo, a quarta marca da Colcci atesta a condição de relacionamento formal: o logotipo<br />
é apresentado com o símbolo (WHEELER, 2008), resultando no que autores, como Costa<br />
(2008), Melo (2005) e Strunck (2003), adotam como assinatura visual ou marca.<br />
Para Wheeler (2008), a marca com um personagem é criada vislumbrando a incorporação<br />
de atributos e valores que, geralmente, estão vinculados a um produto. A concretização da<br />
inserção de Digby ao logotipo Colcci é a fundamentação para agregar à marca os valores que<br />
foram transmitidos à imagem do personagem e experimentados pelos clientes.<br />
A partir do crescimento com o modelo inicial de franquia, até 1994 foram 50 franquias,<br />
chegando, em 1997 a 200 estabelecimentos em todo o país. “Em 1993, 1994, a Colcci já estava<br />
em uma fábrica maior, com muitos funcionários (de 250 a 300), isso entre administradores,<br />
financeiro, vendas, estilistas, designers, costureiros, empacotadores, produção...” (MELO,<br />
2009, registro gravado).<br />
Figura 9 – Segunda fábrica da Colcci: construída para abrigar sua expansão, com espaço para todos os<br />
departamentos e setores de produção. No detalhe à direita, setor de estamparia, em processo serigráfico.<br />
Arquivo pessoal do pesquisador.<br />
Nesse mesmo período, a Colcci começou a diversificar as peças que oferecia: vestidos<br />
leves, blusinhas, calças jeans, bermudas, jaquetas, jardineiras, bonés, meias, carteiras, bolsas<br />
para viagem, nécessaires, toalhas, agendas, materiais de cunho promocional, como chaveiros,<br />
canetas, lápis e adesivos; foram agregados ao mix de produtos que a marca oferecia. Segundo<br />
Melo (2009), em 1994, já existia uma coleção “devido à variação das peças que estavam<br />
sendo acrescentadas ao que se trabalhava na loja, tínhamos que ir de duas a quatro vezes ao<br />
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ano à fábrica de Brusque para fazer a compra das coleções” (registro gravado).<br />
Figura 10 – Agenda produzida pela Colcci. Arquivo pessoal do pesquisador.<br />
Figura 11 – Meias, parte do mix de produtos que a empresa começava a oferecer, diversificando-se.<br />
Perez (2004), Strunck (2003) e Wheeler (2008) lembram que, apesar de as ideias que<br />
transmitem a personificação de um personagem se mostrarem atemporais e universais,<br />
raramente elas conseguem se manter atualizadas; precisam ser redesenhadas e adaptadas à<br />
cultura da época. Foi pensando assim que a Colcci aprimorou sua marca, para se atualizar. Na<br />
sua quinta versão, Digby volta a ser bidimensionalizado e vetorizado, o que ajuda na aplicação<br />
da marca em materiais gráficos. Com um visual descolado e jovem, o personagem continua a<br />
ser bem explorado em materiais de merchandising e estampas dos produtos, aparecendo em<br />
diversas aventuras que fazem parte do cotidiano dos seus consumidores.<br />
Figura 12 – A quinta marca da Colcci: personagem volta a ser bidimensionalizado e vetorizado.<br />
Percebe-se, pelo percurso das análises apresentadas, que existe uma busca constante<br />
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da marca no sentido de cada vez mais personificar Digby, aproximando-o de uma humanização,<br />
o que é respaldado por Perez (2004).<br />
Nessa quinta versão da marca, isso se comprova pelo movimento que o personagem<br />
adquire (desprendendo-se dos contextos estáticos e com a face voltada para apresentação<br />
frontal), por sua cor alaranjada (mais representativa dos seres humanos, no universo dos<br />
quadrinhos e animação) e, principalmente, pela vestimenta. Esta, que antes compreendia<br />
apenas a camiseta, agora compõe um look com o tênis e a calça (consequência da diversificação<br />
das peças, que começavam a ser confeccionadas pela marca).<br />
O logotipo, por sua vez, é mantido dentro dos contextos originais. Em decorrência<br />
de tantas modificações no personagem, algo precisava ser mantido para que houvesse um<br />
reconhecimento por parte dos consumidores, uma garantia dos valores intrínsecos ao seu<br />
consumo simbólico (MIRANDA, 2008). E é pensando na construção simbólica que a Colcci se<br />
apresenta com um novo projeto.<br />
COLCCI – um design em transição<br />
O ano de 1997 foi de grandes mudanças para a empresa. Lila Colzani (2007) pontua<br />
que, apesar do crescimento da Colcci, nem todo o percurso do trabalho foi marcado por<br />
sucesso e tranquilidade. Segundo a estilista e ex-proprietária da marca, durante o período de<br />
expansão, houve vários empecilhos: franqueados que não entendiam de moda ou de gestão<br />
de negócios; contratos que impediam a Colcci de entrar com lojas multimarcas em regiões<br />
onde houvesse uma franquia. Foram questões que acabaram prejudicando a empresa. A<br />
solução foi reestruturar a marca. Em meados desse mesmo ano, decidiu-se, estrategicamente,<br />
fechar as franquias que não estivessem dentro de um padrão de loja.<br />
Melo (2005) relata que, ao final da década de 1990 e início dos anos 2000, as empresas<br />
começaram a se preocupar mais com o relacionamento entre marca e clientes. O signo de<br />
comando amplia sua função inicial e passa a responder por significados simbólicos atribuídos<br />
aos objetos e marcas, proporcionando a tradução de valores emocionais. Para o autor, o<br />
branding vem aliar ao design de marcas a preocupação com o relacionamento entre as partes<br />
envolvidas no processo de consumo, fato que orienta o turnaround da Colcci em uma nova<br />
fase, de transição, em que mudam os propósitos do trabalho, o objeto produzido e as marcas;<br />
trabalho que, praticamente, relança a Colcci no mercado, exigindo dela um período de<br />
adaptação, para que a empresa possa entender seus novos objetivos e, consequentemente,<br />
amadurecê-los para transmiti-los a seus usuários.<br />
Havia, por parte da estilista Lila Colzani, o desejo de promover o crescimento da moda<br />
da Colcci dentro do universo fashion de marcas brasileiras. Aponta, ainda, que a marca<br />
estava ficando conhecida como especializada em vestuário básico. Foi quando se percebeu<br />
a importância de mudar essa visão, para evitar que a marca se tornasse definitivamente<br />
conhecida como popular, o que, a essa altura, não era o desejo dos proprietários da empresa,<br />
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Lila e Jorge Colzani.<br />
O primeiro passo no processo de mudança da marca Colcci foi tornar seu mascote, o<br />
cachorrinho Digby, exclusivo das coleções infantis. Zanon (2009) diz que, apesar de trabalhar<br />
com vários itens, gradualmente a empresa foi inserindo produtos mais voltados a uma linha<br />
fashion e foi se desligando do personagem.<br />
As camisetas foram surgindo em tonalidades de cores diferenciadas e com tratamento<br />
de lavagem do tecido. As estampas deixaram de ser serigrafadas e passaram a receber<br />
bordados, o que proporcionava uma sofisticação ao objeto. Neste caso, o personagem não<br />
aparecia mais. Também a etiqueta da marca mudou: voltou ao logotipo inicial da Colcci, porém,<br />
nas cores principais de cada peça – uma solução adotada para interferir menos no produto,<br />
uma “invisibilidade” com vistas a transparecer apenas a nova proposta do design da empresa.<br />
Figura 13 – À esquerda, estampa de camiseta que começava a compor a nova coleção da Colcci.<br />
Foto do pesquisador.<br />
Figura 14 – À direita, nova etiqueta: “invisibilidade” que buscava transparecer apenas o design do produto.<br />
Dentro dos novos parâmetros, a Colcci começou um trabalho diferenciado: mudou a<br />
marca, a identidade visual das lojas e até o design de sua moda, como já mencionado. Com<br />
esse novo universo, propor um design que mudasse radicalmente a configuração visual da<br />
marca poderia levá-la, em instantes, à bancarrota. Era preciso manter algo que proporcionasse<br />
reconhecimento de elementos familiares ao consumidor, para não gerar um estranhamento<br />
por parte da clientela fiel e, consequentemente, seu distanciamento.<br />
A sexta marca volta a ser um logotipo, mantendo-se as cores da identidade que deram<br />
origem à empresa. Manter tais elementos visuais de reconhecimento seria importante para<br />
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comunicar ao consumidor as novas propostas. E o objetivo era mostrar que a empresa estava,<br />
gradualmente, adaptando-se a um novo universo.<br />
Figura 15 – A sexta marca volta a ser um logotipo.<br />
As cores amarelo e azul foram mantidas, objetivando o reconhecimento da marca. A<br />
tipografia, porém, não condizia mais com o tempo: muito pesada, seu traço, com intenções<br />
manuscritas, não se revelava contemporâneo para o universo informatizado que, cada dia<br />
mais, estava se fazendo presente na vida dos indivíduos. A tipografia deveria, pois, adaptar-se<br />
à cultura da época, digitalizar-se.<br />
Pode-se dizer que a empresa chega a um resultado de design mais amadurecido<br />
para a marca, com caráter mais sério, formas retas e limpas, indo ao encontro das novas<br />
propostas que a Colcci pretendia transmitir em um símbolo. A nova marca Colcci condensa<br />
informação que comunica um amadurecimento no design de suas coleções, pois rompe com<br />
o universo fantástico e bem-humorado, representado por um personagem humanizado, mas<br />
não real. Traduz esse ideal em formas retangulares e cores que proporcionam reconhecimento<br />
e familiaridade com as marcas anteriores, na intenção de gerar lembrança aos seus propósitos<br />
de qualidade, experimentados pelo consumidor.<br />
Nota-se, porém, que o conceito não seria suficiente para atender ao novo posicionamento:<br />
um novo público que agora não buscava apenas se vestir com qualidade e bons preços, mas<br />
intencionava também transparecer uma identidade particular e construída, dentro do ambiente<br />
de consumo de moda, como exposto por Miranda (2008).<br />
Os diretores da Colcci sabiam, portanto, que o trabalho com a sexta versão seria,<br />
dentro desse contexto, temporário. Contudo, não era uma identidade definida, mas uma fase<br />
de transição.<br />
A sétima marca da Colcci é um logotipo que surge para acompanhar o conceito das<br />
peças em produção, possuidoras de um caráter cada vez mais ligado ao fashion. Opta-se por<br />
retirar as cores azul e amarelo e trabalhar, por algum tempo, uma marca monocromática, até<br />
que se acertasse uma proposta de design.<br />
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Figura 16 – Sétima marca, um logotipo monocromático.<br />
Avalia-se que a Colcci pretendia trazer elementos que a atualizasse e, consequentemente,<br />
fortalecesse sua imagem. A empresa almejava uma ruptura completa com a antiga identidade,<br />
que, em virtude do amarelo e azul, ainda remetia muito aos tempos em que Digby imperava<br />
no design das coleções. É como se a marca estivesse definitivamente se desvinculando de<br />
qualquer ideal ou significado construído ao longo do tempo pelas cores padrão, que sempre<br />
adotou como identidade.<br />
Zanon (2009) considera que todas as mudanças levaram a Colcci a esse redesign,<br />
modificando a marca frequentemente. Apesar de se mostrar um processo estruturado, a<br />
entrevistada acredita que a movimentação para a reestruturação não tenha sido um trabalho<br />
planejado. “Na verdade, foi uma coisa que foi acontecendo [...] acredito que tenha sido mesmo<br />
uma consequência da evolução do produto que precisava também da evolução do logotipo”<br />
(ZANON, 2009, registro gravado).<br />
Contudo, a sexta e sétima versões da marca Colcci não representavam a concepção<br />
visual de um símbolo que significava os planos da empresa para o futuro. Os logotipos eram<br />
a primeira ideia do que se almejava, concepções transitórias, até que a empresa acertasse<br />
seu ritmo e proporcionasse a solução para um design eficiente, capaz de comunicar as novas<br />
intenções.<br />
Entre o final de 1999 e início de 2000, a Colcci apresenta sua oitava marca oficial, uma<br />
assinatura visual, composta de símbolo e logotipo, que a segue até os dias atuais.<br />
Figura 17 – A oitava, e última, marca da Colcci.<br />
A nova marca da Colcci rompe com todas as propostas anteriores, configurando a<br />
consagração de seu novo trabalho. No que se refere às cores, a empresa desenvolveu uma<br />
tonalidade própria para seu símbolo, derivada da cor laranja. A tipografia segue um design<br />
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exclusivo, fugindo da concepção original, manuscrita.<br />
O símbolo é uma solução de design, resultado visual do espectro sonoro que forma<br />
a palavra Colcci quando pronunciada. Nesse sentido, lê-se verbal e visualmente o nome<br />
da empresa. Uma disposição que, no futuro, pode permitir à marca assinar apenas com o<br />
símbolo ou com o logotipo, alternativa que proporciona maleabilidade na comunicação dos<br />
significados adotados.<br />
Figura 18 – Maleabilidade na aplicação da marca: ora aparece assinatura visual, ora somente símbolo, ora<br />
logotipo.<br />
Zanon (2009) relata que todas as mudanças ocorridas com o logotipo foram<br />
acompanhadas por reformulações internas no layout da loja, além da aplicação da identidade<br />
visual no material dos pontos de vendas, de crescimento em ações de comunicação. Enfim,<br />
sempre houve uma preocupação com design, marketing e comunicação.<br />
Figura 19 – A oitava marca Colcci aplicada em fachada de loja da marca. Fotos do pesquisador.<br />
O trabalho de reposicionamento da marca contribuiu para aumentar o sucesso<br />
da empresa, chamando a atenção para a sua força, atraindo, consequentemente, o olhar<br />
de grandes investidores. Em 2000, o grupo AMC Têxtil compra a marca Colcci. A gestão<br />
administrativa da empresa, que se concentrava na figura do então sócio-proprietário Jorge<br />
Colzani, cede espaço a novos diretores – que seguem o comando da liderança de Alexandre<br />
e Margareth Menegotti, irmãos e sócios-proprietários do grupo que adquiriu a marca. Lila<br />
Colzani, porém, não se desliga da empresa como o marido. Apesar de não mais responder<br />
por decisões administrativas, a estilista continua contratada pelo grupo para comandar o<br />
departamento de design de moda das coleções da Colcci.<br />
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O design da marca Colcci: história e construção.<br />
O processo de compra pelo grupo AMC Têxtil, segundo Zanon (2009), passou por um<br />
período de maturação, necessário para que a empresa se enquadrasse nesse novo universo<br />
para, assim, ter uma visão dos novos rumos a serem seguidos. Uma etapa que levará a novas<br />
oportunidades e, ao longo do tempo, acarretará novas mudanças. Em um processo que vai<br />
definir o design da marca Colcci.<br />
COLCCI – A marca, a moda e a modelo<br />
Chega-se, então, às propostas contemporâneas para o design da marca. Melo (2005)<br />
tece considerações sobre a complexidade da marca, visto que o símbolo, a imagem e o<br />
relacionamento com o cliente estão imbricados em uma atividade única: a de proporcionar<br />
os significados, funcionais e emocionais, a serem traduzidos por um grupo que compartilha o<br />
mesmo código. Um trabalho que se presta ao design da marca Colcci no mercado de moda<br />
brasileiro e que necessitou de um longo planejamento, que vai de 2001 – após a compra pelo<br />
grupo – até janeiro de 2004, ano de maior importância para a Colcci, pois marcou sua primeira<br />
aparição em uma semana de moda brasileira.<br />
Zanon (2009) afirma que em 2003 a rede de franquias já estava melhor estruturada<br />
e desenvolviam-se estratégias de trabalho com as multimarcas; que havia, por parte dos<br />
consumidores, certa cobrança pela não participação em uma semana de moda. Os clientes<br />
precisavam e reclamavam de uma visibilidade que a própria marca não possuía, em nível<br />
desejado, nas capitais. Assim, a Colcci sentiu-se motivada para uma mudança que a elevasse<br />
ao patamar de conhecimento pretendido. Percebeu que tal visibilidade poderia ser obtida com<br />
a participação em eventos, como o São Paulo Fashion Week ou o Fashion Rio. Iniciou-se,<br />
pois, um novo trabalho com o design da marca.<br />
Apresentando a coleção Outono/Inverno 2004, a marca teve sua primeira participação<br />
no Fashion Rio – uma parceria que permaneceria até 2007. “Então começamos de fato, com<br />
força, com visibilidade, em janeiro de 2004. [...] desfilamos com a Paris Hilton. Este foi o<br />
primeiro grande desfile da Colcci” (ZANON, 2009, registro gravado).<br />
A modelo Gisele Bündchen participou, na última hora, dos trabalhos que a empresa<br />
preparava para a segunda metade de 2004. Para Zanon (2009), um dos fatores que contribuíram<br />
para a busca do nome da modelo foi a ideia de uma expansão internacional. Na época a Colcci<br />
possuía uma loja nos Estados Unidos e iniciava suas atividades em outros países; precisava<br />
de um rosto que possuísse visibilidade não só no Brasil, como no exterior. Depois de Paris<br />
Hilton, a marca percebeu que era necessário alguém que representasse todos os valores que<br />
se desejava comunicar.<br />
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Figura 20 – À esquerda, imagem do primeiro desfile Colcci realizado com Paris Hilton, em janeiro de 2004, no<br />
Fashion Rio. Fotos divulgação cedidas pela Colcci.<br />
Figura 21 – À direita, imagem do primeiro desfile Colcci realizado com Gisele Bündchen, em janeiro de 2005, no<br />
Fashion Rio. A coleção Outono/Inverno 2005 tinha como título/tema “Confidential Hotel”.<br />
Fotos divulgação cedidas pela Colcci.<br />
Para Erner (2005), grandes marcas se consolidaram no mercado graças à habilidade de<br />
seus dirigentes; seus produtos são bem comercializados pelo nome que construíram. Muitas<br />
vezes, as vias que propulsionam um resultado ainda maior tomam caminhos que se utilizam<br />
do que o autor chama de people – vestir celebridades – para garantir certo status. A Colcci é<br />
um exemplo, iniciou com Paris Hilton e seguiu com Gisele Bündchen.<br />
A ideia do people, colocada pelo autor, é reforçada, sob outra perspectiva – a psicológica<br />
–, por Miranda (2008, p.25), ao acrescentar que “o indivíduo possui tendência psicológica à<br />
imitação, esta proporciona a satisfação de não estar sozinho em suas ações. Ao imitar, não só<br />
transfere a atividade criativa, mas também a responsabilidade sobre a ação dele para o outro”.<br />
Logo após o primeiro trabalho com a modelo Gisele Bündchen, a marca abriu lojas em<br />
Barcelona e Madri, na Espanha, e começou uma ação muito forte nos Emirados Árabes. No<br />
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dia da entrevista com Geane Zanon (23 de outubro de 2009), a Colcci estava abrindo uma loja<br />
franqueada no Chile e organizando sua inauguração com a presença do modelo Jesus Luz, o<br />
que, mais uma vez, alinha as estratégias da marca ao pensamento de Erner (2005), Miranda<br />
(2008) e Perez (2004), reforçando-o.<br />
Em 2007 Jéssica Lengyel assume o design das coleções da Colcci e tem, em janeiro<br />
do mesmo ano, a sua premier, apresentando a coleção Outono/Inverno 2007. Lengyel vem<br />
reforçar a intenção da empresa ao apostar no jeanswear. Porém, a Colcci não esconde – nas<br />
peças desfiladas na passarela – o forte apelo fashion, além da intenção de lançar tendências.<br />
Figura 22 – Peças com design assinado por Lengyel e sua equipe. Coleção Primavera/Verão 2008.<br />
A Colcci satisfeita com o resultado positivo das participações no Fashion Rio, em 2008,<br />
transfere a apresentação das coleções para o São Paulo Fashion Week. Zanon (2009) analisa<br />
positivamente o papel das duas semanas de moda na marca: o Fashion Rio foi uma grande<br />
vitrine para a empresa, colocou sua marca no mercado, chamando atenção para a proposta<br />
inovadora de moda que é trabalhada; em São Paulo, teve-se a oportunidade de consagrar,<br />
de forma institucionalizada, a capacidade da Colcci para fazer moda e mostrar que veio para<br />
lançar tendência no jeanswear.<br />
Em sua primeira participação no São Paulo Fashion Week, a Colcci trouxe um reforço à<br />
imagem de Bündchen nas passarelas. Rodrigo Hilbert vem formar, com Gisele, o casal que a<br />
empresa precisava para consagrar o uso do people – como propõem Erner (2005) e Miranda<br />
(2008).<br />
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Figura 27 – Colcci em estreia no SPFW. Gisele Bündchen e Rodrigo Hilbert fazendo casal na passarela da<br />
marca. Primavera/Veão 2009.<br />
A empresa também leva a imagem “do casal Colcci” aos materiais de comunicação<br />
– que ganham tratamento e trabalhos especiais, com fotógrafos renomados (nomes como<br />
Gui Paganini e David Sims) e agência de propaganda (PrCom) especializados no universo da<br />
moda.<br />
Figura 28 – Imagens do catálogo Primavera/Verão 2009 Colcci. Consagração para a marca no uso do people.<br />
Com Lengyel, a empresa decide fazer outras alterações no seu trabalho, mudando:<br />
etiquetas das peças, bem como as que possuem função instrutiva e de identificação; materiais<br />
de comunicação, publicidade, merchandising; layout das lojas; e, mais tarde, a semana de<br />
moda da qual participava.<br />
A Colcci percebe que esses materiais são parte do significado que possibilita construir<br />
os valores que a empresa insere no design de sua marca, proporcionando oportunidades de<br />
contato da marca com seus consumidores; permitem ser diferenciados e renovados a cada<br />
coleção, já que acompanham as mudanças de estilo e geralmente são desenhados dentro do<br />
que propõe o tema da estação.<br />
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Figura 23 – Etiquetas encontradas em peças como calças, camisetas, bolsas e tênis. A cada estação um novo<br />
formato que acompanha o tema/título da coleção. Fotos arquivo pessoal.<br />
Com a nova proposta de trabalho e a crescente expansão internacional, a Colcci muda<br />
o layout de suas lojas. No novo design predominam as cores sóbrias, intercaladas com cores<br />
neon, conceito de ousadia encontrado no design das coleções da marca. Características do<br />
universo jovem, que misturam informações e acabam se harmonizando com o consumidor,<br />
aberto ao novo, às experimentações.<br />
Figura 24 – Layout das lojas Colcci a partir de 2007. Fotos do pesquisador.<br />
Nota-se uma setorização na loja, cuja idealização foi concebida para destacar as<br />
linhas segmentadas da marca. Isso valoriza as linhas dos produtos quanto à exposição e cria<br />
ambientes diferenciados, que permitem ao público, ao misturá-las, experimentar o novo, ousar.<br />
Assim, o consumidor pode compor o seu look de forma particular e assumir as propostas<br />
construídas pela marca.<br />
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Figura 25 – Existe uma setorização na loja, trabalho que valoriza os produtos. Fotos do pesquisador.<br />
Figura 26 – Novas sacolas, novo acabamento interior e nova aplicação para o endereço eletrônico da marca.<br />
Fotos do pesquisador.<br />
As embalagens dos produtos também recebem novo redesenho. Sacolas e caixas<br />
de presentes ganham elegante acabamento: o logotipo é aplicado em dourado, no centro<br />
dos materiais, optando-se por deixar de fora o símbolo da marca, visto que os filetes que o<br />
compõem poderiam desaparecer sobre o arabesco. Entre as alças encontra-se o símbolo<br />
da empresa, compondo o endereço eletrônico de seu site, o que só reforça o ideal de ler<br />
Colcci, visualmente, com o espectro da vocalização formada pelo nome da marca, ao ser<br />
pronunciada, e retoma a discussão da flexibilidade na sua aplicação.<br />
Vale ressaltar que o endereço eletrônico aplicado nesses materiais vem descrito apenas<br />
com a denominação internacional de sites, o “.com”, sem a aplicação da extensão de sites<br />
brasileiros, o “.br”, o que vem mais uma vez reforçar a intenção da marca quanto a um trabalho<br />
internacional, alinhado a uma linguagem de comunicação única.<br />
Esse novo trabalho com o design de etiquetas e tags, comunicação e merchandising,<br />
desfiles e lojas, mostra a preocupação da Colcci em, junto com as novas propostas da designer<br />
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O design da marca Colcci: história e construção.<br />
contratada, atender a construção dos significados da marca.<br />
Há um discurso, por parte da empresa, de não se intitular uma grande lançadora<br />
de tendências, e para a diretoria nem existe essa pretensão. Segundo Zanon (2009), quem<br />
lança tendência são os designers internacionais de moda, e, hoje, muitos são os brasileiros,<br />
como Ronaldo Fraga, Alexandre Herchcovitch. A entrevistada diz que o projeto da empresa<br />
é ser reconhecida como moda jeanswear; e existe a preocupação de trabalhar tendência<br />
dentro desse segmento; um discurso particularmente diferente do resultado que se vê nas<br />
participações da marca nas semanas de moda.<br />
Na verdade, apesar de a diretora refutar essa ideia, por hora, o discurso da Colcci quanto a iniciar<br />
um trabalho com um produto voltado às grandes tendências de moda, parece estar tomando forma e<br />
pode, em breve, tornar-se realidade. A empresa tem dado mostras de estar trilhando nessa direção.<br />
Hoje a Colcci está presente em, aproximadamente, 35 a 40 países, com 20 estabelecimentos<br />
franqueados e um trabalho de peso com 1500 multimarcas em países estrangeiros. No Brasil, são<br />
100 franqueados e 1300 multimarcas. Os números impressionam, ao todo, existem por volta de<br />
120 lojas franqueadas e 2800 multimarcas trabalhando as coleções da marca em todo o mundo.<br />
Considerações Finais<br />
Algumas constatações levam a uma análise que contesta o contraditório discurso da<br />
marca. A Colcci agora divide Gisele Bündchen com outro rosto internacional, Danny Schwarz<br />
– modelo inglês que tem trabalhos com Calvin Klein, D&G e Pepe Jeans. As fotos foram<br />
clicadas por um fotógrafo de renome internacional no universo da moda, David Sims – que<br />
possui experiência com Gap, Prada, Levi´s, Louis Vuitton, Hugo Boss, Givenchy e Nike. Tais<br />
fatos levam a acreditar que a empresa esteja cada vez mais focada no mercado internacional.<br />
Afinal, existe todo um movimento de internacionalização das linguagens em seus materiais de<br />
comunicação e merchandising, que contam com nomes consagrados do mundo da moda.<br />
Figura 29 – Imagens do catálogo e anúncios da coleção Outono/Inverno 2010 (Viajantes do tempo – Time travelers).<br />
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O design da marca Colcci: história e construção.<br />
Foi inaugurada, em 28 de maio de 2010, a primeira Concept Store da marca Colcci.<br />
Localizada no shopping Cidade Jardim, em São Paulo, a loja pretende oferecer, além das<br />
peças da coleção, produções exclusivas desfiladas nas passarelas do São Paulo Fashion<br />
Week – semana de moda à qual está inserida –, que só serão encontradas por lá. Essa<br />
estratégia é uma das grandes observações quanto ao discurso contraditório da marca. Podese,<br />
aqui, sacramentar o desejo implícito da empresa de, talvez, em um futuro breve, como já<br />
foi apontado, trabalhar definitivamente um caminho que irá consagrá-la dentro do universo<br />
fashion e apresentar a Colcci como uma marca de moda que veio para lançar tendências.<br />
A empresa busca também estabelecer apenas seu nome, com o símbolo da marca<br />
cada vez mais omisso nas suas aplicações, o que revela o próximo passo: o regresso da<br />
Colcci a um logotipo com design específico da sua tipografia, em cor preta, e alinhado com<br />
os grandes lançadores de tendências internacionais, como Calvin Klein, Calvin Klein Jeans,<br />
Diesel, Dolce & Gabbana, etc.<br />
Zanon (2009) afirma que o uso apenas do logotipo é um trabalho específico do material<br />
de comunicação e marketing das coleções, mas sua apresentação completa, com símbolo, é<br />
a marca institucional; aparece em produtos, etiquetas, tags, lojas, etc.<br />
Analisa-se, no entanto, que, dentro das propostas aqui apresentadas com o design<br />
de marcas contemporâneo, todo ponto de contato com o consumidor é uma oportunidade<br />
de relacionamento da marca com a construção de seus valores e, consequentemente, uma<br />
oportunidade para estabelecer os códigos que permitirão a tradução de seus significados no<br />
futuro.<br />
Sendo assim, essa reflexão mostra que a Colcci tem hoje um trabalho bem organizado<br />
e planejado. Há, por parte dos envolvidos com a empresa, uma grande preocupação com<br />
seu futuro no mercado de moda. Afinal, ela traça um histórico que permeia o trabalho de<br />
uma marca que saiu do interior de Santa Catarina, com a produção de peças de roupas<br />
básicas com estampas de um personagem figurativo – humanizado e carregado de símbolos<br />
de afetividade –, para uma empresa que tem modelos internacionais fotografados por nomes<br />
consagrados da moda, produz peças com design assinado e possui lojas espalhadas por<br />
todo o mundo, vendendo a culturas globalizadas objetos que permitem que os indivíduos se<br />
expressem por meio dos significados construídos pelo design de sua marca.<br />
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O design da marca Colcci: história e construção.<br />
Notas<br />
i Esta pesquisa resultou na dissertação intitulada O <strong>Design</strong> da Marca Colcci, elaborada por Alvaro de<br />
Melo Filho, defendida em agosto de 2010, pelo Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em <strong>Design</strong><br />
da Anhembi Morumbi, sob a orientação da Profa. Dra. Márcia Merlo.<br />
ii Cauduro e Martino (2005), Costa (2008), Lupton (2006), Melo (2005), Miranda (2008), Perez (2004)<br />
e Wheeler (2008).<br />
iii Aqui também tratado como redesign.<br />
iv [...] mascote remete à figura de pessoas, animais ou coisas consideradas capazes de trazer ou de<br />
proporcionar sorte e felicidade. [...] o objetivo principal da utilização do mascote é o de humanizar a<br />
marca. Normalmente são animaizinhos (reais ou criados, desenhados) que possuem vida própria, têm<br />
sentimentos e participam do cotidiano humano (PEREZ, 2004, p.94 - 95).<br />
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São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 442
FLáVIO IMPéRIO: CENóGRAFO, ARQuITETO E ARTISTA<br />
Gisela Belluzzo de Campos; Profª Dra. do PPG em <strong>Design</strong>: <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />
giselabelluzzo@uol.com.br<br />
Tereza Grimaldi Avellar Campos; Graduanda do curso de <strong>Arte</strong>s com Habilitação em Audiovisual<br />
e Novas Mídias: <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi - tetegrimaldi@gmail.com<br />
Resumo<br />
Este artigo busca analisar a diversidade da obra de Flávio Império e<br />
identificar suas referências, processos de criação e singularidades<br />
em relação a outros artistas e cenógrafos, bem como entre suas<br />
obras que transitam pelos campos das artes plásticas, cenografia,<br />
figurinos e arquitetura. Buscou-se obter as informações necessárias<br />
por meio de referências em livros, desenhos e documentos de<br />
processo e relatos de pessoas que conviveram e trabalharam com<br />
ele diretamente. Foram eleitas três peças com cenários e figurinos<br />
de sua autoria para estabelecer relações entre seus estilos e<br />
maneiras de criar e produzir.<br />
Palavras-Chave: Flávio Império; cenografia; desenho;<br />
artes plásticas; processo criativo<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 443
Flávio Império: cenógrafo, arquiteto e artista<br />
Introdução<br />
Este artigo é resultado de um projeto de Iniciação Científica sobre o papel e a importância<br />
do desenho no processo de criação e na construção de cenários e figurinos teatrais de Flávio<br />
Império.<br />
Flavio foi um dos maiores cenógrafos brasileiros que produziu entre as décadas de<br />
1950 e 1980, tendo criado cenários e figurinos de peças como Morte e Vida Severina, de João<br />
Cabral de Melo Neto, no Teatro Experimental Cacilda Becker, em 1960; Um Bonde Chamado<br />
Desejo, de Tenessee Williams sob direção de José Celso Martinez Corrêa, no Teatro Oficina,<br />
em 1962; Roda Viva de Chico Buarque de Hollanda, em 1964; criou também a cenografia de<br />
shows como Rosa dos Ventos, de Maria Bethania, no Teatro da Praia, no Rio de Janeiro, em<br />
1971, entre muitos outros.<br />
O artigo busca explicitar, em um primeiro momento, a importância de Flávio Império<br />
no contexto de sua época – um conturbado momento na historia do Brasil, marcado pela<br />
ditadura militar e pela censura acirrada sobre os meios de comunicação e, principalmente,<br />
sobre os artistas. Discorremos também acerca da interdisciplinaridade e do processo criativo<br />
de sua trajetória e, por fim, analisamos três peças afim de identificar elementos desse processo<br />
criativo, enfatizando as singularidades e usos de seu trabalho diante do contexto teatral da<br />
época, especificamente aquela que culminou na criação dos cenários e figurinos das peças<br />
Pano de Boca, Andorra e Noel Rosa: o Poeta da Vila e seus Amores.<br />
A pesquisa foi embasada, principalmente, na análise e na observação de desenhos<br />
realizados para projetos de seus cenários e figurinos. Paralelamente, foram consultados<br />
documentos de projetos tais como fotografias, maquetes e escritos em cadernos pessoais<br />
de Flávio, disponíveis, juntamente com os desenhos, no acervo da Sociedade Cultural Flavio<br />
Império, localizada na casa de sua irmã Amélia Império Hamburger. Um grupo de alunos e<br />
arquitetos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da <strong>Universidade</strong> de São Paulo cuida<br />
da catalogação e reorganização deste acervo, que, segundo Amélia, será doado em breve<br />
para alguma instituição ainda não definida. A pesquisa se apoiou ainda em textos autorais<br />
e informativos de comentadores de sua obra que auxiliaram a desvendar o processo e a<br />
construção de seus trabalhos.<br />
Ao observar todo este material podemos entender um pouco como funcionava seu<br />
pensamento, quais eram suas referências e o que ele buscava com suas obras cenográficas.<br />
“O teatro me ensinou a vida, a arquitetura o espaço, o ensino a sinceridade, a pintura a<br />
solidão.” (IMPÉRIO In HAMBURGER; BENEDETTI, 1997).<br />
Contexto<br />
Arquiteto, artista plástico e professor, Flávio foi um dos cenógrafos mais importantes do<br />
teatro brasileiro. Durante os anos de sua produção, de 1956 a 1985, não se pode pensar a<br />
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Flávio Império: cenógrafo, arquiteto e artista<br />
história do teatro brasileiro sem mencionar Flávio Império. Formado em arquitetura e professor<br />
da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da <strong>Universidade</strong> de São Paulo na década de 1950,<br />
Flávio iniciou sua carreira como cenógrafo e figurinista com um grupo de crianças. A partir daí<br />
ingressou em companhias de teatro como o TBC (Teatro Brasileiro de Comédia) e Teatro de<br />
Arena. Paralelamente exercia uma produção no âmbito das artes plásticas, produzindo telas<br />
muitas vezes contendo críticas sociais e políticas.<br />
Pouco antes de Flávio iniciar sua carreira, no ano de 1948, o teatro paulista passava<br />
por grandes transformações. Neste ano foi fundado o Teatro Brasileiro de Comédia, TBC.<br />
Nesta época havia apenas três teatros em São Paulo, o Boa Vista, o Santana e o Municipal,<br />
cujas agendas eram preenchidas por bailes, festas e temporadas de companhias de teatro<br />
estrangeiras, ou seja, não havia espaço para os grupos locais. Esta situação criava uma<br />
dificuldade para os grupos amadores de São Paulo alugarem o Teatro Municipal, a fim de se<br />
apresentarem.<br />
Diante disto, o industrial italiano Franco Zampari, que se encontrava em boa situação<br />
econômica em São Paulo, como forma de retribuição ao que a cidade havia lhe proporcionado,<br />
reformou uma garagem localizada na Rua Major Diogo e a transformou em um teatro com<br />
365 lugares, ainda simples, que seria melhorado ao longo do tempo – o TBC. Este espaço<br />
era destinado à apresentação destes grupos amadores. Ainda em 1948 os grupos vão se<br />
revezando com diversas montagens no recém criado TBC.<br />
O TBC inaugura o teatro profissional em São Paulo, em 1949, que nesta época, era o<br />
mais homogêneo do Brasil, sendo todo ele pertencente à uma geração que compartilhava os<br />
mesmos princípios estéticos. Em 1954, o TBC ocupa o Teatro Ginástico do Rio de Janeiro. Em<br />
1955, passa a ser considerado parte integrante da identidade de São Paulo, um bem coletivo<br />
que pertence à cidade, do mesmo modo que “o prédio do Banco do Brasil, o viaduto do Chá,<br />
os nossos museus e o Parque do Ibirapuera” (MAGALDI e VARGAS, 2001, p. 219).<br />
Em 1958 um grupo de estudantes de direito do Centro Acadêmico XI de Agosto, no Largo<br />
São Francisco, começa a reunir-se para fazer teatro. Inspirados pelas idéias existencialistas<br />
de pensadores como Jean Paul Sartre, estes amadores tinham ainda em comum o desejo de<br />
fazer um teatro diferente, que fugisse do caráter burguês do TBC e de seu italianismo. Surge<br />
então o Teatro Oficina. José Celso Martinez Corrêa, um de seus fundadores, é o nome mais<br />
expressivo do Oficina, sendo diretor da maioria das peças. Ele tem uma posição bastante<br />
radical em relação ao TBC:<br />
Foi criado um tipo de teatro que fosse a imagem idealizada de onde o<br />
imigrante deve chegar e do que o brasileiro produtor de café, criador de porco<br />
ou construtor de fábrica devia alcançar como “requinte”, tal requinte era a<br />
cultura européia. Criou-se o TBC que se fechou totalmente ao teatro brasileiro<br />
já existente, para eles, a cultura não poderia nascer no Brasil, tinha que vir<br />
necessariamente de algum lugar da Europa ( CORRÊA Apud STAAL, 2000, p.<br />
18).<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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Flávio Império: cenógrafo, arquiteto e artista<br />
É importante lembrar que naquele momento o mundo assistia ao auge da Guerra Fria<br />
e o maior receio destes grupos era que o Brasil se inclinasse para o socialismo. O estilo de<br />
governo apresentado por João Goulart causava uma grande preocupação nos EUA que, assim<br />
como os grupos conservadores brasileiros, sentiam-se ameaçados por um golpe comunista.<br />
Este clima de tensão culminou com o golpe político-militar de 1964 que depôs o<br />
presidente João Goulart, obrigando-o a refugiar-se no Uruguai. O general militar Castello Branco<br />
foi eleito pelo Congresso Nacional e, ao contrário do que propunha em seu pronunciamento,<br />
logo que inicia seu governo assume uma postura autoritária que suprimia direitos assegurados<br />
pela Constituição.<br />
O Oficina, assim como toda a classe artística e também os veículos de comunicação, teve<br />
sua liberdade de expressão vigiada pela censura. Intelectuais, estudantes, membros da classe<br />
trabalhadora e todos os que se opunham ao regime militar, eram violentamente reprimidos,<br />
muitas vezes sofrendo perseguição política. Zé Celso e o Oficina tiveram muitas montagens<br />
mutiladas pela censura e, naquele momento, as condições adversas que enfrentavam não os<br />
inibia, ao contrário, fazia com que buscassem expor através de suas montagens sua postura<br />
crítica e insatisfeita com a realidade social em que viviam. Segundo o diretor do Oficina, havia a<br />
necessidade de falar do “aqui e agora”. Flávio era parte desta expressão artística da época, ao<br />
trabalhar em teatros como o Oficina e também o Arena, fundado nos anos 1950, e, ao mesmo<br />
tempo, realizar trabalhos no TBC, o que demonstra sua versatilidade, sua preocupação com<br />
a causa criativa e não apenas política e social.<br />
Produção e processo de criação<br />
Pesquisar a produção de Flávio é uma experiência enriquecedora pela desenvoltura com<br />
que o cenógrafo transita nas diversas áreas e técnicas para construir seus cenários os quais<br />
unem conhecimentos de arquitetura, de artes plásticas e de desenho. O caráter interdisciplinar<br />
do trabalho de Flávio enriquece sua produção e aponta possibilidades de caminhos para<br />
aqueles que a investigam.<br />
Os cenários de Flávio são produções complexas, ricas em experimentações técnicas,<br />
em pesquisas de materiais e de campo. Sua busca por diversas formas de expressão, técnicas<br />
e linguagens faz deste artista, por essência, uma referência nacional nas áreas em que atuou,<br />
principalmente na cenografia.<br />
O desenho é a linguagem comum entre todas as áreas percorridas por Flávio, e, através<br />
dele, pode-se perceber sua diversidade artística. A análise de seus desenhos projetuais para<br />
cenários e figurinos possibilita uma experiência estética que passa pelos campos das artes e<br />
da arquitetura, e atesta que cada cenário seu é fruto da junção da técnica com a sensibilidade.<br />
Na realização dos cenários, Flávio Império é o arquiteto e o mestre de obras. É o<br />
projetista e o executor. Esses trabalhos transcendem o preceito de criação em design, tal<br />
como é identificado na Revolução Industrial com o advento das produções em série, em que<br />
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Flávio Império: cenógrafo, arquiteto e artista<br />
um bom projetista é contratado e, executores, sem a noção de todo do processo, cumprem<br />
apenas suas funções definidas e limitadas. “Ele acompanhava todo o processo, ele desenhava,<br />
projetava, depois de projetar ia aos detalhes, ele virava noites e ia ver com as costureiras, e<br />
bordava, ia com os maquinistas [...] ficava extenuado e entregava aquilo [o cenário e figurinos].”<br />
(CORRÊA, Apud STAAL, 2000, p.46).<br />
Flávio projeta, analisa, busca os materiais e executa o projeto. Seu instrumento de<br />
trabalho mais significativo são suas próprias mãos. A tecnologia advém de suas experiências<br />
com materiais e técnicas. A produção que Flávio realiza no plano, ao pintar suas telas, serve<br />
também como base para suas produções tridimensionais. A sofisticação de seus cenários<br />
não se baseia em técnicas revolucionárias e sim na capacidade que ele possui de, com<br />
uma inteligência espacial adquirida pela prática como arquiteto aliada ao senso estético<br />
e conhecimento material obtidos pela prática como artista plástico, encontrar soluções<br />
esteticamente harmoniosas e engenhosamente inovadoras. Pode-se traçar um paralelo do<br />
trabalho de Flávio ao de um artesão que dedica sua vida à criação, cujo trabalho como um<br />
todo, desde o projeto até a execução final, proporciona intenso prazer. Laura Greenhalger<br />
comenta que Flávio Império tinha “[...] mãos de artesão. Curiosas, impacientes, dispostas,<br />
detalhistas” (GREENHALGER, 1997, p.16). Rocha acentua que é possível notar o peso de sua<br />
mão em seus trabalhos (ROCHA, 1997). Mãos que circulavam pelas mais diversas técnicas,<br />
das mais diversas formas. Flávio então se descobria pesquisador de materiais, reciclador,<br />
experimentalista, não tinha preconceito no uso dos materiais. Flávio comenta sobre as técnicas<br />
e materiais que utiliza: “[...] Às vezes é papel, às vezes é pano, às vezes é madeira, às vezes é<br />
serigrafia, às vezes é desenho com a mão, às vezes é pintura com recorte, às vezes é pintura<br />
com pincel” (IMPÉRIO apud HAMBURGER; BENEDETTI, 1997).<br />
Durante as experiências iniciais de sua carreira surgiram características de modos de<br />
operar que ele levaria por toda sua trajetória profissional tais como o comprometimento com o<br />
grupo, a habilidade de transformar experiências vividas em linguagem e a capacidade de criar<br />
cenários com recursos ínfimos.<br />
É inevitável, observando panoramicamente a obra de Flávio, pensar nos grandes<br />
artífices da Renascença: homens-artistas-artesãos que dominavam um leque<br />
de atividades complexas cuja dimensão era a resultante de um esplêndido<br />
instinto criador aliado à uma intuitiva posição criativa (RATTO, 1997, p. 41).<br />
A técnica usada também varia de acordo com a peça teatral na qual está trabalhando;<br />
as peças de cunho político geralmente demandavam soluções mais simples e criativas devido<br />
à falta de recursos.<br />
Flávio contemplou a diversidade do contexto teatral da época com técnicas e desenhos<br />
com estilos diferentes. Como já foi dito, o desenho é a linguagem comum entre as áreas<br />
exploradas por Flávio: arquitetura, artes plásticas, cenografia e figurino. Os estilos diversos<br />
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Flávio Império: cenógrafo, arquiteto e artista<br />
se confundem e se misturam, porém sua precisão técnica e liberdade criativa estão sempre<br />
presentes. O desenho tem várias funções em suas criações: é a parte lógica da criação, é<br />
o projeto de toda obra final e é também o documento de processo. Segundo Cecília Salles,<br />
os documentos de processo são índices do percurso mental realizado durante a criação. A<br />
materialidade destes índices varia de acordo com o artista (SALLES, 2001). Observando os<br />
desenhos de Flávio podemos entender o caminho mental de sua criação. Alguns deles surgem<br />
em papéis de guardanapo e, depois, são desenvolvidos e se tornam parte de seus projetos.<br />
Como diz Renina Katz, Flávio não tem um estilo, ele tem uma marca (KATZ, 1997).<br />
Não persegue estilisticamente nada, tem sim, uma necessidade de experimentação, por isso<br />
transita por diversas técnicas artísticas e faz uso dos mais variados materiais. Flávio é dotado,<br />
segundo Gianni Ratto, de uma polimorfia estética (RATTO, 1997).<br />
Cenografia<br />
“A cenografia pode ser considerada uma composição em um espaço tridimensional<br />
– o lugar teatral. Utiliza-se elementos básicos, como cor, luz, formas, volumes e linhas”<br />
(MANTOVANI, 1989, p.8).<br />
Segundo Beneh Mendes, em uma montagem teatral o texto é o elo fundamental, ainda<br />
que para negar determinadas criações. O cenógrafo propõe ao diretor um determinado cenário,<br />
e guia-se pelo texto, o que não significa que este seja a regra para a criação do cenógrafo. O<br />
artista da cenografia faz sua re-leitura, uma interpretação da história.<br />
No teatro não há uma fórmula, bem como não havia na criação de Flávio. Para uma<br />
montagem realizada em locais como o SESC, era necessário um projeto mais apurado e<br />
detalhado, por questões de aprovação de orçamento. Já em outros teatros sua criação podia<br />
ser mais livre, a exemplo da peça Pano de Boca. Neste caso, Flávio fazia um desenho com<br />
o intuito de passar a noção do projeto, o qual não precisava ter um caráter didático, pois ele<br />
estava presente durante toda a montagem, “criando os figurinos no corpo dos atores, bem<br />
como esticando tecidos para o cenário e criando objetos com um apuro estético e visual<br />
impressionantes” (MENDES, 2010)<br />
O Flávio tinha amplo conhecimento de marcenaria, funilaria, serralheria, pintura,<br />
escultura, serigrafia e outros processos de impressão; ele participava da<br />
execução de fio-a-pavio, pegando em ferramentas, metendo a mão na massa,<br />
enfim, de forma que os profissionais que trabalhavam ali ficavam seguros e<br />
satisfeitos com o trabalho (PAULO, 2010).<br />
O fato de ele estar presente durante a montagem possibilitava executar mudanças não<br />
planejadas, improvisos criativos que surgiam a partir do acompanhamento do projeto.<br />
Alguns cenógrafos constroem maquetes, para facilitar o entendimento da proposta de<br />
forma tridimensional, Flávio tinha este hábito.<br />
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Flávio Império: cenógrafo, arquiteto e artista<br />
Flávio era um artista por essência, sua formação como arquiteto apurou sua<br />
noção de espaço, proporcionando uma visão do espaço cênico diferenciada.<br />
Ele pensava no todo. Seus cenários eram projetados de modo a facilitar a<br />
marcação do diretor e movimentação dos atores. O desenho da cenografia,<br />
entretanto, não deixa de ser um projeto de arquitetura, porém trata-se de uma<br />
arquitetura efêmera (PAULO, 2010).<br />
Outro aspecto que podemos considerar em relação a diferença entre seus projetos era<br />
a verba disponível em cada montagem.<br />
O cenário pode sofrer alterações durante o processo de construção, adaptações<br />
podem ser necessárias, diferenciando-se, desta forma, do desenho inicial.<br />
Documentos de processo<br />
Ao analisar os cadernos de anotação de Flávio nos deparemos com referências de<br />
todos os tipos, tais como santinhos de campanhas eleitorais, fotos de viagens, cartas de<br />
amigos, desenhos, telegramas, muitas reflexões pessoais, poesias, escritos sobre cenografia<br />
e sobre suas aulas na FAU-USP. A sensibilidade de Flávio se evidencia ao percorrer estas<br />
páginas nas quais é possível se sentir quase em contato com ele. Um de seus escritos em<br />
forma de versos fala sobre seu entendimento sobre a profissão de cenógrafo:<br />
O cenógrafo<br />
Em geral<br />
É pessoa calada<br />
Porque sempre<br />
Tem<br />
Quem<br />
Fale... muito mais,<br />
E,<br />
Antes.<br />
Eu acabei ficando<br />
Com “prisão de boca”<br />
Semelhante a de ventre<br />
Porque,<br />
Ultimamente,<br />
Não tenho ouvido<br />
Nada muito melhor<br />
Do que me vem a cabeça<br />
Flavio Império, São Paulo, 9-9-82.<br />
Optamos por abordar os desenhos relativos aos projetos de cenário e figurino de três<br />
peças criados por Flávio: Andorra, de Max Frisch, encenada no Teatro Oficina em 1964, Pano<br />
de Boca de Fauzi Arap, montada no teatro 13 de maio em 1976 e Noel Rosa, o Poeta da Vila<br />
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Flávio Império: cenógrafo, arquiteto e artista<br />
e Seus Amores, de Plínio Marcos, montada no Teatro Popular do SESI, em 1977.<br />
A escolha destas peças deve-se às diferenças encontradas entre elas em termos de<br />
estilo de desenho dos projetos, os quais são compostos por toda a pesquisa de Flávio em<br />
relação ao texto, aos materiais, e pelos próprios desenhos. Cada desenho de Flávio é único<br />
e os realizados para os projetos destas três peças exemplificam muito bem esta afirmação.<br />
Andorra<br />
Percebe-se, nos desenhos de Flávio criados para esta peça, a presença do arquiteto<br />
pela precisão técnica. Não há, entretanto, especificações de medidas ou estruturas, evidência<br />
de que Flávio estava sempre presente durante a montagem do projeto. Os croquis dos<br />
figurinos apresentam alguns detalhes coloridos, entretanto, a maior parte deles é feita apenas<br />
com uma caneta esferográfica resultando em desenhos precisos que, ao mesmo tempo, têm<br />
um estilo próprio e característico, nos quais, aparece, então, o artista. Flávio conta que a idéia<br />
desta peça era realizar um teatro próximo do épico, com uma perfeição estética. Em algumas<br />
de suas anotações encontramos as definições de Flávio para o uso de determinadas cores<br />
e sua relação com a história contada, contextualizada na época do nazismo e que trata de<br />
preconceitos e perseguições. “O branco e o preto eram o preconceito. O marrom e o azul<br />
eram o homem no seu universo complexo e incoerente, esbarrando por todos os lados com o<br />
bloqueio dos preconceitos, tanto brancos como pretos” (IMPÉRIO, 1997, p. 89).<br />
Figs.1 e 2. Desenhos para cenário e figurinos da peça Andorra, de Max Frisch, 1964<br />
Fontes: KATZ, Renina e HAMBURGER, Amélia (org). Flávio Império. P. 90. Catálogo da Exposição Flávio<br />
Império em Cena, realizada no Sesc Pompéia em 1977, p. 23<br />
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Flávio Império: cenógrafo, arquiteto e artista<br />
Pano de Boca<br />
Nos desenhos projetuais da peça Pano de Boca nota-se o contraste estilístico – parecem<br />
até mesmo terem sido realizados por outra pessoa. São esboços menos normatizados, mas<br />
que ainda assim exprimem a desenvoltura técnica de seu criador. Novamente percebemos o<br />
artista presente. Encontramos indicações técnicas em relação a medidas em alguns destes<br />
desenhos. Talvez por serem menos precisos, Flávio sentiu necessidade de colocá-las.<br />
Em meio ao material desta peça, acessível na Sociedade Cultural Flávio Império,<br />
encontram-se folhas de um de seus diversos cadernos de anotações, onde verifica-se a<br />
explicação detalhada de cada etapa da construção dos cenários, bem como listas de compras<br />
de tecidos e materiais para confecção dos figurinos. Tivemos acesso ao texto da peça e a<br />
única referência ao cenário é: “o cenário é um palco cheio de coisas velhas, retalhos de velhos<br />
cenários, roupas jogadas, um baú, muita sujeira”.<br />
Lendo o relato de Flávio entendemos sua interpretação das referências do texto e sua<br />
intenção de fazer com que o palco parecesse um teatro abandonado, situação real do Teatro<br />
13 de Maio quando o cenógrafo o visitou pela primeira vez: “[...] um velho depósito parado,<br />
com um monte de coisa velha, onde se tentava uma nova produção era só uma espécie de<br />
documento do documento” (IMPÉRIO, 1997, p.117). Flávio concebeu elementos cenográficos<br />
com materiais recolhidos em galpões de escola de samba e em depósitos de teatros.<br />
Fig. 3 Desenho de cenário para a peça Pano de Boca, de Fauzi Arap, 1976<br />
Fonte: KATZ, Renina e HAMBURGER, Amélia (org). Flávio Império. P. 120<br />
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Flávio Império: cenógrafo, arquiteto e artista<br />
Fig. 4 Desenho de cenário para a peça Pano de Boca, de Fauzi Arap, 1976<br />
Fonte: KATZ, Renina e HAMBURGER, Amélia (org). Flávio Império. P. 120<br />
Noel Rosa, o Poeta da Vila e seus Amores<br />
Investigando a terceira peça escolhida – Noel Rosa, o poeta da Vila e seus Amores,<br />
encontramos desenhos nos quais nos deparamos com o arquiteto e o artista em harmonia.<br />
Os desenhos possuem uma perfeição em termos de proporção e espaço. Percebe-se o que<br />
é o projeto de uma construção para o palco, que difere de uma construção real. O espaço<br />
e os materiais são diferentes, o que demonstra a versatilidade do arquiteto ao realizar as<br />
adaptações necessárias. O uso das cores é muito sofisticado, bem como as colagens que<br />
compõem o projeto, conferindo-lhe um aspecto de obra finalizada. A peça, que na verdade é<br />
um musical, conta a história de vida de Noel Rosa, compositor e sambista carioca, que viveu<br />
na década de 1920 no bairro de Vila Isabel, Rio de Janeiro. O cenário de Flávio tem como pano<br />
de fundo painéis com desenhos do bairro e as cores conferem uma característica tropical e<br />
um toque da malandragem característica dos sambistas cariocas. Flávio considera todos os<br />
aspectos para a realização da peça, como por exemplo, o espaço que os atores necessitam:<br />
[...] essa (Noel Rosa, o poeta da Vila e seus Amores) não é uma peça realista.<br />
Isso é um musical. Então tem que encher de música e o espaço tem que ficar<br />
livre porque não tem jeito de atravancar. Então a narrativa ficou sujeita a um<br />
espaço eminentemente livre como se fosse para a dança e para o canto. E cada<br />
elemento que descia só circunstanciava mais ou menos de forma decorativa,<br />
nem era uma coisa realista. Era para dar um fundo (IMPÉRIO, 1997, p. 69).<br />
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Flávio Império: cenógrafo, arquiteto e artista<br />
Figs. 5 e 6. Desenhos de cenário e figurinos para a peça Noel Rosa, o Poeta da Vila e Seus Amores, de Plínio<br />
Marcos, 1977. Fonte: Catálogo da Exposição Flávio Império em Cena, realizada no Sesc Pompéia em 1977,<br />
pág. 34<br />
Fig. 7. Desenho de cenário e fotografia da peça Noel Rosa, o Poeta da Vila e Seus Amores, de Plínio Marcos,<br />
1977. Fonte: Catálogo da Exposição Flávio Império em Cena, realizada no Sesc Pompéia em<br />
1977, p. 34<br />
Considerações Finais<br />
Os cenários e figurinos criados por Flávio para estas três peças relacionam-se com os<br />
respectivos textos. Entretanto, possuem uma interpretação pessoal, mensagens refinadas de<br />
um entendimento de mundo muito apurado, digno de um verdadeiro artista, no significado<br />
mais profundo desse termo, isto é, uma pessoa com a mente aberta, com um conhecimento<br />
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Flávio Império: cenógrafo, arquiteto e artista<br />
amplo de técnicas e com maneiras próprias de expressar os significado dos textos teatrais.<br />
Pesquisar os desenhos realizados para a obra cenográfica de Flávio Império é ter a<br />
oportunidade de ampliar a percepção sobre o fazer artístico, de entender a relação constante<br />
entre o conteúdo e a forma – necessárias em uma obra cenográfica – e, ao mesmo tempo,<br />
perceber sua visão de mundo: como se portava diante das dificuldades de uma época de<br />
repressão e censura, período em que uma arte que não fosse política não era considerada<br />
importante. Em sua trajetória, Flávio soube aliar o trabalho direcionado para uma arte social<br />
com produções pessoais, capazes de satisfazer os desejos mais íntimos de um artista, por<br />
exemplo, pinturas sobre telas. Flávio pintava para fugir um pouco do espaço tridimensional do<br />
teatro, para entrar em contato consigo mesmo: “[...] eu pinto toda vez que volto para casa do<br />
palco, e neste caminho de volta do palco para casa é que a minha cabeça vai sintonizando<br />
outra vez o trabalho com a superfície plana, que é muito diferente do trabalho no espaço do<br />
palco.” (IMPÉRIO In HAMBURGER; BENEDETTI, 1997).<br />
Seus cadernos pessoais revelam suas pesquisas, principalmente de materiais, revelando<br />
seu vasto conhecimento – fundamental para seu processo criativo.<br />
Estas características demonstram o caráter interdisciplinar de seu trabalho e o trânsito<br />
entre territórios diversos – característica que se acentua no trabalho de artistas contemporâneos,<br />
bem como a experimentação de novos suportes, técnicas, temas e espaços. Flávio Império<br />
não só transitava pelas mais diversas áreas, como as praticou com perícia, paixão e primor.<br />
“Flávio Império era um homem livre, um artista livre, um criador, como deve ser, como manda<br />
o figurino” (BETHÂNIA, Maria apud HAMBURGER; BENEDETTI, 1997).<br />
Referências<br />
Flávio Império em Cena, Catálogo retrospectiva. Sesc, São Paulo, 1997.<br />
GREENHALGH, Laura. Flávio Império, setembro de 78, in Flávio Império em Cena, Catálogo<br />
retrospectiva. Sesc, São Paulo, 1997<br />
HAMBURGER, Cao. BENEDETTI, Raimo (dir.) Flávio Império Em Tempo. Documentário. São<br />
Paulo: 1977<br />
IMPÉRIO, Flávio. Escritos presentes no livro Flávio Império: Teatro e <strong>Arte</strong>s Plásticas. São Paulo:<br />
Editora da <strong>Universidade</strong> de São Paulo, 1997.<br />
KATZ, Renina e HAMBURGER, Amélia I. (org). Flávio Império: Teatro e <strong>Arte</strong>s Plásticas.<br />
São Paulo: Editora da <strong>Universidade</strong> de São Paulo, 1997.<br />
MAGALDI, Sábato e VARGAS, Maria Thereza. Cem Anos de Teatro em São Paulo. São<br />
Paulo: Editora Senac, 2000.<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 454
Flávio Império: cenógrafo, arquiteto e artista<br />
MANTOVANI, Anna. Cenografia. São Paulo: Ed. Ática, 1989.<br />
MENDES, Beneh. Entrevista concedida em seu escritório a Tereza Grimaldi em 05/02/2010.<br />
PAULO, Augusto Francisco. Entrevista concedida por e-mail a Tereza Grimaldi em 24/02/2010.<br />
RATTO, Giani, Flávio Império um homem de teatro, in Flávio Império em Cena, Catálogo<br />
retrospectiva. Sesc, São Paulo, 1997<br />
ROCHA, Paulo Mendes. Depoimento para o documentário Flávio Império Em Tempo, dir. Cao<br />
Hamburger e Raimo Benedetti, São Paulo, 1997.<br />
SALLES, Almeida Cecília. Gesto Inacabado: processo de criação artística. São Paulo:<br />
Annablume, 2001.<br />
STAAL, Ana Helena Camargo. (Org.). José Celso Martinez Corrêa – Primeiro Ato:<br />
cadernos, depoimentos, entrevistas (1958-1974). São Paulo: Ed. 34,1998.<br />
ZAMBONI, Silvio. Pesquisa em <strong>Arte</strong>: um paralelo entre arte e ciência. Campinas: Autores<br />
Associados, 2006.<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 455
DESIGNER ARTESãO Ou ARTESãO DESIGNER? uMA QuESTãO<br />
CONTEMPORâNEA<br />
AS APROXIMAçõES POR MEIO DAS INTERVENçõES DE DESIGN NO ARTESANATO<br />
Savana Leão Fachone, Mestranda; PPG Mestrado em <strong>Design</strong>: <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />
savanacool@gmail.com<br />
Márcia Merlo; Profª Dra.; PPG Mestrado em <strong>Design</strong>: <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />
mmerlo@anhembi.br<br />
Resumo<br />
A proposta deste artigo é discutir algumas intervenções realizadas<br />
por designers no processo de confecção de artefatos artesanais,<br />
que possam contribuir para uma compreensão dos caminhos de<br />
sua produção na contemporaneidade. Há inúmeros experimentos<br />
relacionando arte, design e artesanato, que se aproximam de<br />
projetos sociais e por meio deles percebe-se, por vezes, que<br />
os papeis do designer e do artesão se misturam. Diante de tal<br />
complexidade, escolhemos apresentar algumas discussões<br />
sobre intervenções, no intuito de introduzir uma reflexão sobre a<br />
importância do papel dos profissionais envolvidos nesse processo<br />
e sobre o objeto em si.<br />
Palavras-Chave: design; artesanato; contemporaneidade<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 456
<strong>Design</strong>er artesão ou artesão designer? Uma questão contemporânea<br />
As aproximações por meio das intervenções de design no artesanato<br />
Introdução<br />
O artesão brasileiro é basicamente um designer em potencial, muito mais do<br />
que propriamente um artesão no sentido clássico.<br />
(Aloísio Magalhães)<br />
Para melhor compreender o artesanato no mundo contemporâneo, em articulação<br />
com a arte e o design, estudamos algumas discussões sobre intervenções realizadas por<br />
designers no artesanato brasileiro. Para o desenvolvimento do estudo proposto foi necessário<br />
determinar um ponto de partida para pensar esse artefato: quem o faz, onde, como, quando e<br />
porque se faz. Além disso, como esse processo se modifica ao longo do tempo, numa cultura<br />
de natureza híbrida, mas, que investe num futuro cada vez mais globalizado (CANCLINI, 1989).<br />
Esse estudo tornou-se necessário na medida em que se observou a escassez de<br />
referenciais teóricos e o aumento das intervenções no artesanato brasileiro. Nossa análise<br />
começa no website da Casa-Museu do Objeto Brasileiro, que tem como objetivo contribuir<br />
para o reconhecimento, valorização e desenvolvimento da produção artesanal, atuando<br />
na mediação de processos culturais no Brasil, que ocorrem na forma de experiências de<br />
intervenções de design em comunidades artesanais pelo país afora. Esses trabalhos nos<br />
mostram a importância de se pensar, não só, os profissionais envolvidos, como, também, o<br />
objeto em si e os caminhos de sua produção na contemporaneidade.<br />
Numa perspectiva de (re) conhecer o artesanato na contemporaneidade, parece-nos<br />
indispensável um retorno à história para entender a importância desta atividade laboral no<br />
cenário atual. Partindo do princípio de que pensar as aproximações é mais enriquecedor que<br />
medir as distâncias, pensamos o artesanato em conexão com o design, independente da<br />
apropriação dos modos de fazer ou da finalidade produtiva, acreditando ser mais interessante<br />
a análise da subjetivação dos significados realizada pelos autores desse processo e sua<br />
materialização em objetosi .<br />
Nas referências bibliográficas e web gráficas consultadas observaram-se algumas<br />
intervenções ligadas a projetos sociais. Nesse processo os papéis do designer e do artesão,<br />
muitas vezes, se confundem. Entretanto, nossa tarefa não é apresentar conceitos e diferenças,<br />
nem nos posicionarmos em relação a uma ou outra definição, até porque no contexto atual,<br />
nos parece impossível. Tomando por base o pensamento de Barbosa (2003), corroboramos<br />
com a idéia de que “Será que pensar as aproximações não seria mais enriquecedor que<br />
medir as distâncias?”. Partindo desta questão, das considerações sobre design de Rafael<br />
Cardoso, e, pesquisas sobre culturas populares e culturas híbridas de Nestor Garcia Canclini,<br />
assim como pensar os interlocutores envolvidos nesta problemática a partir da Antropologia,<br />
seguimos com nossas reflexões.<br />
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<strong>Design</strong>er artesão ou artesão designer? Uma questão contemporânea<br />
As aproximações por meio das intervenções de design no artesanato<br />
<strong>Design</strong>er artesão ou artesão designer?<br />
O artesanato sempre foi negligenciado como campo de atuação do design, e segundo<br />
Aloísio Magalhães, só passaria a ser respeitado quando o próprio designer viesse a agir como<br />
um artesão. Seu papel é muito importante na própria geração da tecnologia e do <strong>Design</strong> e<br />
o artesão pode ser qualificado como produtor de um pré-design. A Bauhaus, uma das mais<br />
importantes escolas de design do mundo, por exemplo, associava o ensino do <strong>Design</strong> com<br />
o artesanato através de oficinas de artes. O objetivo era o conhecimento dos processos de<br />
produção, da matéria prima e das técnicas artesanais (BRAGA, 2002).<br />
Ao artesão é conferido o papel de produtor de tais objetos, assumindo a condição de<br />
construtor do seu cenário cultural, nele imprimindo sua história, a técnica de sua região e a<br />
sua subjetividade. O acesso às maneiras de construir e usar esses objetos possibilita verificar<br />
como se dão as trocas culturais e afetivas entre gerações, entre pais e filhos, entre pares, entre<br />
mestres e aprendizes e, também, entre o artesão e o designer.<br />
O artesanato e sua gênese estão intrinsecamente ligados aos primórdios da humanidade.<br />
Surgiu desde que o ser humano passou a criar e a desenvolver artefatos para garantir sua<br />
sobrevivência e bem-estar produzindo objetos com suas próprias mãos. Estes, por sua vez,<br />
adquiriram diferentes contornos desde sua origem e de acordo com as práticas culturais<br />
produzidas por diferentes sociedades ao longo dos tempos. É preciso imergir na história<br />
humana para conhecer as estratégias de sobrevivência, as formas de dominação e divisão do<br />
trabalho e todos os elementos que emolduraram a produção artesanal.<br />
Com a Revolução Industrial e o conjunto de mudanças tecnológicas, econômicas e<br />
sociais que se seguiram, como a mecanização do trabalho, a rapidez e, consequentemente,<br />
aumento da produção e a diminuição da mão-de-obra, as oficinas artesanais ou transformaramse<br />
em pequenas fábricas comandados pelo inventeurii ou cederam lugar a esses novos<br />
comandos e controles da sociedade industrial. O inventeur concebia o projeto o qual servia<br />
de base para a produção de peças em diversos tamanhos e materiais. Era a primeira divisão<br />
entre projeto e execução (DENIS, 2008)<br />
As transformações fizeram com que esses espaços, conhecidos como oficinas<br />
artesanais, se tornassem importantes unidades de produção especializada, adaptada à<br />
estrutura social e a economia local. A indústria contava com essa estrutura para atender as<br />
pequenas produções, como fabricações de acessórios e até mesmo trabalhos de reparos dos<br />
produtos (CUNHA, 1994). Isso surgiu como uma solução sócio-econômica, que garantia, ao<br />
mesmo tempo, a produção, intensificada pelo aumento da demanda, e o trabalho aos artesãos<br />
que sofreram com as consequências provocadas pelo processo acelerado da industrialização.<br />
O artesanato permanecia, de maneira estratégica, paralelo com o sistema de produção<br />
industrial. Os avanços tecnológicos e a modernidadeiii coexistiam com as tradições. Os<br />
produtos com características híbridasiv , ou seja, artesanal e industrial, se tornaram comuns, mas<br />
o processo de industrialização acarretou mudanças maiores que uma simples transformação<br />
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<strong>Design</strong>er artesão ou artesão designer? Uma questão contemporânea<br />
As aproximações por meio das intervenções de design no artesanato<br />
de métodos produtivos. As grandes fábricas foram tomando o lugar de pequenas oficinas,<br />
isso eliminava a necessidade de empregar trabalhadores com alto grau de capacidade técnica<br />
- no caso, o artesão. Bastava um bom designer, geralmente escolhido por suas habilidades,<br />
um bom gerente e vários operadores de máquinas. A produção em série representava para o<br />
fabricante uma economia de tempo e dinheiro (DENIS, 2008).<br />
Com a introdução de novas tecnologias, crescimento urbano, o aumento de<br />
trabalhadores na indústria, a reorganização e racionalização dos métodos de fabricação, as<br />
atividades dos artesãos especializados tornaram-se obsoletas pelo emprego das máquinas.<br />
O termo artesão também mudou e passou a depender do tipo de relacionamento mantido<br />
com a indústria. De qualquer forma, a realidade era o empobrecimento cultural da tradição<br />
artesanal, visto que o modelo industrial dificultava, até mesmo, o relacionamento mais direto<br />
entre os chefes e seus subordinados, e entre os próprios empregados, diluindo o padrão de<br />
troca e sintonia de valores.<br />
As aproximações do design e do artesanato por meio das intervenções<br />
Nestor Garcia Canclini nos diz que “devemos estudar o artesanato como um processo<br />
e não como um resultado, como produtos inseridos em relações sociais e não como objetos<br />
voltados para si mesmos”. E segue dizendo que:<br />
Interessará repensar e perceber, nesses produtos, chamados de artesanais, a<br />
forma como se reestruturam na atualidade, as oposições clássicas na história<br />
do pensamento antropológico, analisando para isso, as transformações de<br />
significado das culturas populares segundo três dimensões correlacionadas<br />
entre si, isto é, enquanto processos sociais, culturais e econômicos<br />
contemporâneos (1984, p. 51).<br />
Neste processo, tal como afirmou Nestor Canclini, é necessário preocupar-se menos<br />
com o que se extingue do que com o que se transforma. Ou seja, a separação entre o artesanal<br />
e o industrial se mostra como um grande equívoco. Ainda segundo Canclini “o artesanato,<br />
bem como as festas e outras manifestações populares, subsistem e crescem porque<br />
desempenham funções de reprodução social e na divisão do trabalho, necessárias para a<br />
expansão do capitalismo” (CANCLINI, 1983). Podemos complementar essa ideia, dizendo<br />
que as festas assim como o artesanato não precisam, necessariamente, ser entendidos<br />
como meros reprodutores sociais. Ainda que mantendo certa ordem social, podem também<br />
apresentar ricas variáveis no saber-fazer e realizar que contrarie ou diferencia-se do corriqueiro<br />
ou sistematizado. Dito de outra forma, o artesanato, as festas e manifestações da cultura<br />
popular, mais precisamente, seus agentes sociais, são compreendidos aqui como produtores<br />
culturais e reprodutores simbólicos eficazes, já que não se trata simplesmente de uma atividade<br />
mecânica e repetitiva e, sim, de expressões sociais e identitárias fortíssimas.<br />
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<strong>Design</strong>er artesão ou artesão designer? Uma questão contemporânea<br />
As aproximações por meio das intervenções de design no artesanato<br />
Mesmo que o artesão seja visto como o produtor de objetos de utilidade prática e<br />
cotidiana e o artesanato, como a recriação e reprodução de elementos formais, com função<br />
utilitária, ambos estarão sempre presentes na cultura de um grupo ou sociedade. O artesão<br />
precisa de um retorno financeiro imediato, pois não dispõe de tempo ou recursos para investir<br />
em técnicas, estética, qualidade, capacitação e pesquisa ou para esperar que o mercado<br />
reconheça o valor, imaterial, do seu trabalho. Por mais que a estrutura utilizada nessa produção<br />
artesanal balize a escala de produção, o artesão passa a produzir “em série” para sobrevivência.<br />
A tradição contida nesse saber-fazer não é perene, é mutante, revelando de forma impressionante,<br />
por vezes, um saber local e múltiplo altamente inventivo e reinventivo. Tanto é que repensado e<br />
redimensionado nos dias de hoje como indicadores criativos de oportunidades de negócios.<br />
A pesquisa feita pelo SEBRAEv , em 2002, segundo dados do Ministério do<br />
Desenvolvimento, Indústria e Comércio, falou em 8,5 milhões de artesãos, que movimentaram<br />
em 2002, R$ 28 milhões de reais. Hoje esse número deve ser maior, e o artesão tem consciência<br />
de que deve atender as informações econômicas para sustentar a produção artesanal.<br />
Com o aumento dos índices de desigualdades sociais, também aprofundado com o<br />
decréscimo da oferta de empregos, crescem iniciativas de produção artesanal e, talvez até<br />
por falta de escolha, acabam atendendo a finalidade da liberdade econômica tornando-se<br />
exemplo de desenvolvimento diferenciado. Nos últimos anos as intervenções de design no<br />
artesanato começaram a surgir com mais frequência, protegidas por instituições públicas ou<br />
privadas, com a alegação de proteger o patrimônio cultural e ir contra a exacerbação do<br />
consumo de produtos industrializados (BARROSO, 1999).<br />
Ainda não está muito claro que rumos estas práticas discursivas estão tomando. Por<br />
outro lado, famílias artesãs permanecem ganhando a vida com o saber tradicional seja para<br />
vender um ou outro artefato como souvenir para turistas amantes das “coisas” locais, seja<br />
para reproduzir formas aprendidas com as antigas gerações também na geração de alguma<br />
rentabilidade familiar. Também, é possível identificarmos iniciativas públicas e privadas no sentido<br />
de aproximar o fazer artesanal de uma produção sustentável, onde, por vezes, encontramos<br />
alguma atuação do designer como mediador cultural e agente social em parceria com o artesão.<br />
Considerações Finais<br />
Há que se superar qualquer tipo de idéia que coloque, em campos opostos, o designer<br />
e o artesão. Não basta falar das aproximações como qualidade intrínseca dessas áreas. Parece<br />
que tanto ao designer como ao artesão cabe pensar e trabalhar o resgate das vocações<br />
regionais, levando em conta a diversidade, a preservação das culturas locais e a formação de<br />
uma mentalidade empreendedora, por meio da capacitação das organizações e de seus artesãos<br />
para uma sociedade de mercado, se possível e no mínimo, mais equitativa, onde o padrão de<br />
qualidade e a capacidade de produção sejam tão importantes como o respeito à dignidade dos<br />
sujeitos que determinam a aceitação deste produto no mercado interno e externo. Para tanto, o<br />
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As aproximações por meio das intervenções de design no artesanato<br />
diálogo ético faz-se necessário, assim como se coloca o desafio de estabelecer critérios para tal<br />
aproximação entre designer e artesão e estes em relação ao mercado.<br />
Outro ponto a ser pensado do exposto é o do nível de intervenção do designer no<br />
artesanato em si, pois equilibrar esta balança não é tarefa fácil, sobretudo porque requer clareza<br />
e honestidade de intenções, tomando como ponto de partida o conhecimento do artesão e o seu<br />
desejo de compartilhar novas experiências em relação as suas tradições. O que não podemos<br />
deixar de falar é da fragilidade do discurso que utiliza o artesanato como mero objeto exótico de<br />
consumo para turista comprar, pois o que perpassa a relação entre design e artesanato hoje é<br />
muito mais abrangente e merece muito mais da nossa atenção e vontades.<br />
Nesse contexto podemos ver o valor social do artesanato, que funciona como um equilíbrio<br />
diante das relações de produção do mundo globalizado. O modo de produção artesanal persiste<br />
compondo uma estrutura econômica muito particular dentro do sistema capitalista. Assim, o<br />
artesanato se consolida na sociedade pós-industrial como um dispositivo social, fazendo parte<br />
de um sistema produtivo diferenciado que é essencial para a vida humana.<br />
Notas<br />
i Acreditamos que todas as manifestações artísticas e produções criadas pelo povo se enquadram<br />
na cultura popular, e não podem ser separadas diante de outras formas culturais e artísticas, sendo<br />
desnecessário identificá-la a partir de certos objetos ou modelos culturais.<br />
ii De acordo com Cardoso era o termo utilizado nos primórdios da organização industrial para definir<br />
o inventor ou criador das formas a serem fabricadas. Geralmente era o artesão com maior habilidade<br />
e conhecimentos técnicos.<br />
iii Modernidade aqui entendida como a prática dos valores criados pelo Renascimento e consolidados<br />
com o Iluminismo, principalmente no que se refere ao uso da razão, a idéia de progresso e a intervenção<br />
da ciência na realidade.<br />
iv Termo utilizado por Canclini, em sua obra “Culturas Híbridas”, onde ele apresenta suas reflexões<br />
sobre o fenômeno da hibridação cultural nos países latino-americanos, procurando compreender o<br />
intenso diálogo entre a cultura erudita, a popular e a de massas, que nós emprestamos para definir o<br />
objeto concebido nos modos de fazer artesanal dentro da concepção industrial.<br />
v Para saber mais Revista SEBRAE, n.5 julho-agosto 2002.<br />
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<strong>Design</strong>er artesão ou artesão designer? Uma questão contemporânea<br />
As aproximações por meio das intervenções de design no artesanato<br />
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<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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ESTuDAR COM DESIGN – uMA REFLEXãO SOBRE O ESPAçO<br />
uNIVERSITáRIO<br />
Fabíola Marialva Marques; Mestranda em <strong>Design</strong>: <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />
fabiolamm@gmail.com<br />
Resumo<br />
Este artigo busca refletir sobre a relação do <strong>Design</strong> na Arquitetura<br />
de espaços universitários, partindo da premissa de que o arquiteto,<br />
diante de uma concepção idealizada do que é Instituição, concretiza<br />
sua proposta em um edifício que apresenta signos físicos e<br />
simbólicos; o usuário ao percorrer seu espaço, interage com o<br />
ambiente e reconhecem significados pessoais, isto proporciona<br />
uma leitura particular do lugar. Compreender a influência do <strong>Design</strong><br />
na Arquitetura possibilita refletir sobre a relação entre o partido<br />
arquitetônico e a sociedade com enfoque no repertório cultural e<br />
emocional de quem projeta e de quem usa o espaço.<br />
Palavras-Chave: arquitetura; design; universidade<br />
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Estudar com <strong>Design</strong> – uma reflexão sobre o espaço universitário<br />
O Ensino Superior e a Arquitetura<br />
Em 1 a.C., Vitrúvius escreve uma obra sobre arquitetura, “De Architectura”, para o<br />
então imperador Augusto e fala sobre a importância da educação como verdadeira riqueza<br />
necessária para se governar, através de pensamentos da alma e da inteligência, o governar<br />
seria possível, somente, por aqueles que tiveram pais que ensinaram artesi aos filhos.<br />
Giurgola e Mehta (1994) destacam o pensamento de Kahn sobre a origem da educação<br />
através de encontros e trocas de experiência:<br />
O ensino começou quando um homem, sentado embaixo de uma árvore, se<br />
pôs a discutir, sem saber que era um professor, com jovens que ignoravam<br />
ser estudantes; pensavam simplesmente no que se dizia na companhia de um<br />
homem tão agradável. E desejavam que um dia seus filhos também tivessem<br />
a oportunidade de ouvir um homem igual. Foi assim que nasceu a primeira<br />
escola e nasceu o primeiro pátio de recreio: consequência das aspirações do<br />
homem. (Giurgola e Mehta, 1994, pag. 94-95)<br />
A evolução da educação, provavelmente, se deu a partir da possibilidade de transmissão<br />
de conhecimento. Desde a troca de experiências iniciadas com conversas entre pais e filhos,<br />
passando pela invenção da escrita pelos fenícios, a criação da primeira Escola de Ciências<br />
por Thales, o florescimento da Enciclopédia com Plínio, o questionamento sobre a Educação<br />
Escolástica por Bacon, o surgimento de Academias e Bibliotecas a partir do Humanismo, o<br />
lançamento do primeiro livro impresso por Gutenberg, as primeiras formulações de teorias<br />
para o Ensino até as reformas Educacionais atuais.<br />
Cada um destes fatos históricos proporcionou a construção de espaços que abrigassem<br />
a divulgação do saber, estabelecendo sentido construtivo a partir da cultura predominante do<br />
seu contexto. Em um período de Antiguidade Clássica, o Ensino se dava em ágoras, teatros<br />
e fóruns; na Idade Média em Igrejas; no Renascimento até dos dias de hoje em Academias e<br />
<strong>Universidade</strong>s.<br />
Para Kahn, segundo Giurgola e Mehta (1994), o essencial de um lugar para se aprender<br />
é ter um ambiente apropriado.<br />
A escolha do local apropriado para uma escola estimulará o diretor de um<br />
instituto a sugerir ao arquiteto o que uma escola deveria ser, com o que ele já<br />
definirá um início de programa. (Giurgola e Mehta, 1994, pag. 94-95)<br />
Quando Kahn fala de “início de um programa”, refere-se ao programa de necessidades<br />
que é estabelecido pelo solicitante do projeto arquitetônico, no qual define quais são os<br />
ambientes necessários para a construção do espaço.<br />
Para elaborar um programa de necessidades é preciso, primeiramente, entender o<br />
objetivo do espaço, entender suas exigências formais, funcionais e os estímulos psicológicos e<br />
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Estudar com <strong>Design</strong> – uma reflexão sobre o espaço universitário<br />
seus significados. Para projetar um espaço de educação é preciso entender qual a sua função,<br />
qual o seu público e as expectativas da Instituição.<br />
A <strong>Universidade</strong>, o lugar, que segundo Wanderley (1988), é privilegiado para conhecer a<br />
cultura universal e as várias ciências, cria e divulga o saber com a finalidade da Educação com<br />
base no ensino, na pesquisa e extensão.<br />
Lauanda (1987) posiciona-se frente à questão sobre o que é <strong>Universidade</strong> dizendo que<br />
é preciso voltar-se para o homem tal qual qualquer questão de Filosofia da Educação, isto<br />
porque, acredita que a <strong>Universidade</strong> apoia-se no caráter livre do conhecimento, bem além das<br />
estruturas políticas da instituição.<br />
Já Minogue (1981), acredita que as universidades são capazes “de criar seu próprio<br />
interesse na busca do conhecimento”, sendo que esta busca pode ser influenciada por outros<br />
tipos de excitação; tais como politica, religião, patriotismo entre outros.<br />
Ter consciência do contexto histórico, econômico e político na qual a instituição se<br />
situa, possibilita o entendimento do seu desenvolvimento e como este pode influenciar o<br />
funcionamento e a política de suas estruturas internas. Contudo não deixa de apresentar sua<br />
função primordial que é produzir e difundir conhecimento através de um sistema simples de<br />
ensino e o aprendizado.<br />
Os agentes usuários das Instituições de Ensino, definidos por Wanderley (1988), são os<br />
professores, alunos e funcionários.<br />
É possível, ainda, incluir outros agentes usuários deste espaço, tais como: familiares<br />
dos alunos e convidados externos (palestrantes, auditores, prestadores de serviços e afins).<br />
Este público, que mesmo pequeno e esporádico, tem grande influência na permanência<br />
dos usuários tradicionais deste lugar de conhecimento. O contato possibilita intercâmbio de<br />
ideias e participações construtivas e reforça a ideia de espaço inclusivo e disseminador de<br />
experiências.<br />
Conhecer o usuário da <strong>Universidade</strong> proporciona identificar as peculiaridades de projeto,<br />
os fluxos, acessos, demarcações territoriais de público e privado, administrativo e acadêmico,<br />
dimensionamento de áreas, tipologia de partido, prioridades de espaço e expectativas de<br />
usos.<br />
O Ensino Superior no Brasil<br />
Segundo Charles e Verger (1996), as instituições universitárias transformaram-se<br />
profundamente, o que de certa forma possibilita compreender melhor uma parte da herança<br />
intelectual e do funcionamento das sociedades.<br />
• Numa análise feita por Onusic (2009), o Ensino Superior no Brasil apresenta uma<br />
evolução histórica de quatro fases:<br />
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Estudar com <strong>Design</strong> – uma reflexão sobre o espaço universitário<br />
• Antes de 1930, com predomínio de instituições públicas;<br />
• Entre 1930 a 1964, com a consolidação do ensino privado;<br />
• Entre 1964 a 1980, com a reforma do ensino superior e o predomínio do setor<br />
privado; e<br />
• Entre 1980 a 2002, com o aumento de oferta de vagas do setor privado, o crescimento<br />
de vagas não preenchidas e evasão acadêmica.<br />
Atualmente, das 2.314 IES registradas pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas<br />
Educacionais Anísio Teixeira (INEP), cerca de 90% são privadas (gráfico 1), estando mais<br />
concentrada numa classificação de pequeno porte com até 1.000 alunos (gráfico 2). Podese<br />
notar que a característica da Educação Superior no Brasil está calcada em um modelo<br />
privatizado com ininterrupta expansão.<br />
Gráfico 1 - Evolução do Número de instituições de Educação Superior - Brasil - 2000-2009.<br />
Fonte: Censo da Educação Superior / MEC / Inep / Deed<br />
Gráfico 2 - Distribuição do número de IES por porte da IES na Educação Superior segundo<br />
Categoria Administrativa - Graduação Presencial - Brasil - 2009.<br />
Fonte: Censo da Educação Superior / MEC / Inep / Deed<br />
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Estudar com <strong>Design</strong> – uma reflexão sobre o espaço universitário<br />
Morosini (2005) avalia que a demanda por Educação Superior é responsável pela abertura<br />
da Educação no setor privado, visto que o crescimento da economia do conhecimento, as<br />
mudanças demográficas paralelas as limitações orçamentárias do Estado não conseguem<br />
atender todo o movimento para a educação continuada.<br />
De acordo com Silva Jr e Sguissard (1999), as políticas públicas para a educação<br />
superior brasileira e as reações dos diferentes setores (públicos e privados), promoveram um<br />
reordenamento no espaço social através do fortalecimento de processos mercantilistas, o que<br />
tem acentuado a transformação das identidades das IES particulares.<br />
Este processo pode ser entendido como reflexo da transição do modelo de capitalismo<br />
fordiano para o atual capitalismo pós-moderno vivenciado de forma mundial, contudo não é<br />
foco deste artigo centrar-se nesta questão. O entendimento deste novo contexto, apenas,<br />
sugere, de forma isolada, que num predomínio de IES particulares, que buscam atender a<br />
demanda de mercado, estão cada vez mais modificando sua identidade, profissionalizando as<br />
empresas, racionalizando sua estrutura organizacional interna e buscando atender o seu mais<br />
novo objetivo: o lucro.<br />
Além de transitar pelo entendimento da cultura e sociedade nacional, este contexto<br />
interfere no perfil institucional e, consequentemente, no processo construtivo dos seus espaços<br />
físicos. As IES particulares, numa tentativa de atingir nichos de mercado e diferenciar-se de suas<br />
concorrentes, estabelecem, a partir do seu corpo administrativo, medidas que a individualizem<br />
ou minimizem seus custos como forma de garantir destaque. Desta forma, é comum verificar<br />
instituições sendo amplamente reformadas e instalando materiais de acabamentos luxuosos<br />
como atrativos para alunos de classe A e B, enquanto outras instituições apelam para baixo<br />
investimento em infraestrutura com foco no público de classes inferiores.<br />
O reflexo deste mercantilismo da educação preocupa a Arquitetura, não só na questão<br />
da descaracterização da identidade, mas também na forma como esta política faz com que o<br />
Edifício apresente aspectos de baixa qualidade do espaço físico até a uma apartação social.<br />
Enquanto a escolha e intervenção no tipo de acabamento de um Edifício possam, por<br />
um lado, alterar somente a estética do edifício; por outro, podem indicar uma segregação<br />
de público onde, culturalmente, alguns usuários sintam-se deslocados e excluídos; já a<br />
falta de investimento na construção pode acarretar má qualidade espacial, impossibilitar a<br />
acessibilidade, prejudicando a ergonomia e o conforto ambiental.<br />
Estudar com <strong>Design</strong><br />
Pode-se observar, a partir da análise desenvolvida sobre IES que tanto o sistema<br />
educacional, como os espaços de aprendizagem sempre tiveram que solucionar questões<br />
referentes à renovação da preservação do saber e da integração de seus usuários.<br />
Hoje vemos não só <strong>Universidade</strong> com espaços físicos, mas, também, espaços virtuais<br />
de conhecimento, os chamados ambientes de Educação à Distância (EaD). Dados do INPE<br />
<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />
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indicam um aumento de 30,5% de matrículas no EaD, contra o aumento de 12,5% nas<br />
tradicionais matrículas presenciais.<br />
Para Moran (1994), “Educação a Distância é o processo de ensino-aprendizagem<br />
mediado por tecnologias, onde professores e alunos estão separados espacial e/ou<br />
temporalmente.” Desta forma o ensino-aprendizagem ocorre a partir de interligações com<br />
tecnologias, principalmente telemáticas, como a internet, além do correio, rádio, televisão,<br />
vídeo, CD-ROM, telefone, fax ou tecnologias semelhantes.<br />
Segundo Meirelles (2008), a partir do século XXI, vive-se um tempo em que as novas<br />
tecnologias atuam a favor da conectividade, potencializando a interatividade, o que facilita<br />
a ampla circulação de informação. Em um contexto tão fluído e instável, verificou-se a<br />
necessidade de reflexões acerca de conceitos de interatividade e convergência através do<br />
<strong>Design</strong> de Interação. Desta forma, os ambientes educacionais virtuais buscam, nesta área do<br />
<strong>Design</strong>, uma forma de facilitar a relação entre o homem e a máquina, criando ambientes com<br />
linguagens e profusão das mudanças sociais, culturais e tecnológicas vigentes.<br />
Não muito diferente do ambiente físico, o projeto arquitetônico de uma <strong>Universidade</strong><br />
procura resolver um programa de necessidades estabelecido pelas diretrizes do MEC,<br />
evidenciando ambientes de ensino, integração, convivência e desenvolvimento de competências<br />
pelos quais se estabelecem relações de troca de ensino e aprendizagem.<br />
E se um programa atende as necessidades pré-estabelecidas, acompanhando essa<br />
evolução acadêmica, por que é possível encontrar tanta diversidade nos modelos arquitetônicos<br />
das edificações Universitárias?<br />
Para Forty (2009), a diversificação em modelos atende as diferentes categorias de<br />
usos e usuários, correspondendo às noções sobre sociedade e as distinções dentro dela.<br />
Isto porque apresenta uma significação do <strong>Design</strong> dentro da cultura e da dimensão de sua<br />
influência na vida e mente do usuário.<br />
Para Cardoso (2008), o <strong>Design</strong> trata-se de uma atividade que gera projetos, no sentido<br />
de planos, esboços ou modelos, fruto de três grandes processos históricos: industrialização,<br />
urbanização e globalização. Todos estes processos buscam organizar de forma harmoniosa e<br />
dinâmica alguns elementos, tais como: pessoas, veículos, máquinas, moradias, lojas, fábricas,<br />
malhas viárias, estados, legislação, códigos, tratados, entre outros. Sendo a industrialização<br />
como o período que impulsionou o surgimento de propostas de fazer uso do design como<br />
agente de transformação.<br />
Já Ferrara (2002), define <strong>Design</strong> como signo, fenômeno de linguagem que se encontra e<br />
atrita com a arquitetura, a cidade, o desenho industrial, de objeto, gráfico, com a comunicação e<br />
a programação visual; influenciado por sua complexa realidade global como pela multiplicidade<br />
visual da imagem no mundo informatizado. E amplia o conceito escrevendo sobre o design<br />
em espaços, uma realidade fenomênica e epistemológicaii , no qual o elemento de design<br />
apresenta manifestações em forma de signos que permitam a sua legibilidade, passível de<br />
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leitura e interpretação. Ou seja, elementos projetuais do espaço urbano são observados pelo<br />
usuário, concretizando sua imagem e identificando a sua existência; o que resulta em (re)<br />
conhecimento do espaço.<br />
Compreender o <strong>Design</strong> e como está relacionado à Arquitetura sugere reflexões sobre<br />
como a arquitetura apresenta elementos de design em sua concepção, principalmente<br />
vinculado ao conceito de signos.<br />
Kahn (2010) exemplifica bem esta relação entre a Arquitetura e o <strong>Design</strong>, classificando<br />
o <strong>Design</strong> como um ato circunstancial, sendo o “como”; enquanto a Arquitetura é a Forma,<br />
ou seja, o “o quê”. Sendo na harmonia dos espaços que se satisfaz a atividade humana. Ele<br />
escreve:<br />
“Reflita então sobre o que caracteriza, de forma abstrata, a Casa, uma casa,<br />
lar. A Casa é a característica abstrata de espaços bons para se viver. A Casa é<br />
a forma, deveria estar lá sem corpo ou dimensão, na mente do sonhador. Uma<br />
casa é a interpretação condicional desses espaços. Isso é design. Na minha<br />
opinião, a grandeza do arquiteto depende do seu poder de percepção daquilo<br />
que é Casa, em vez de seu design de uma casa, que é um ato circunstancial.<br />
O Lar é a casa e seus ocupantes. O Lar se torna diferente com cada pessoa<br />
que nele vive. (...) Reflita então a respeito do sentido de escola, uma escola,<br />
instituição. A instituição é a autoridade de onde extraímos suas necessidades<br />
de áreas. Uma escola ou um design específico é o que a instituição espera de<br />
nós. Mas a Escola, o espírito escolar, a essência do desejo de existir, é o que o<br />
arquiteto deveria converter em seu design. E eu digo que ele deve, mesmo que<br />
o design não corresponda ao orçamento. O arquiteto, portanto, se distingue<br />
do mero projetista.” (Kahn, 2010, p. 9-11)<br />
Projetar em arquitetura apresenta, em seus elementos e princípios fundamentais, formas<br />
e maneiras de resolver o espaço. Cabe ao arquiteto conseguir traduzir seu conhecimento<br />
para o edifício, resolvendo seu programa de necessidades, a implantação, definindo seus<br />
acessos, a ocupação, a orientação, seus fluxos, as condicionantes de conforto térmico e<br />
acústico e afim. Explorando o design, o campo projetual apresenta diversidade de soluções,<br />
incorporando valores e manifestações culturais e gerando novas possibilidades de partidos<br />
arquitetônicos.<br />
De acordo com Montaner (2007), “a arquitetura depende de uma série de fatores e<br />
deve responder a uma grande quantidade de solicitações de diversas índoles.” Para responder<br />
as solicitações utilizou-se de paradigmas para se legitimar, através de linguagens metafóricas<br />
que sustentassem suas referências iconológicas de cada período, tais como:<br />
• Na tradição clássica, as construções são feitas a partir de ordens, textos de referências,<br />
arquitetura monumental, justificando miticamente as relações harmônicas com o corpo<br />
e a natureza.<br />
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• Arquitetura medieval está ligada aos paradigmas do mundo religioso impregnado<br />
de simbologia em cada elemento e espaço, na constante referência de recriação da<br />
cidade de Deus.<br />
• No Ecletismo, a evolução das formas e os novos modelos construtivos são decorrentes<br />
do ideal renovador da máquina.<br />
• O Modernismo, confiante no novo universo da máquina, apresenta-se em duas fases:<br />
a primeira baseada em uma forma racional de projetar com formas simples e caráter<br />
universal, seguindo o ideal de Le Corbusier de que a planta é geradora de tudo; num<br />
segundo momento, uma corrente influenciada pelos existencialismos e pelo auge das<br />
ciências dos homens, com sensibilidade às culturas locais. “A linguagem metafórica da<br />
máquina é substituída pela linguagem metafórica do orgânico.”<br />
• Já no Pós-modernismo, a evolução da arquitetura acompanha o avanço tecnológico,<br />
as novas condicionantes urbanas, as intervenções dos usuários, suas novas exigências<br />
funcionais, entre outros temas. A arquitetura, efetivamente, passa a transmitir informação.<br />
Okamoto (2002), afirma que o homem sempre planejou e construiu ambientes de<br />
modo que pudessem favorecer suas necessidades vivenciais e sociais. E questiona sobre “de<br />
que forma tais ambientes tem influenciado as pessoas em seu comportamento e como se<br />
processaria essa indução direcionada para uma atuação previsível ou desejada pelo arquiteto?”<br />
Para tanto, é preciso visualizar além da arquitetura, além dos elementos de design<br />
contidos nela; é preciso prestar atenção na forma como estes elementos, traduzido em signos<br />
projetuais que representam a forma com que o edifício, relaciona-se com o entorno. É preciso,<br />
também, compreender como os signos produzidos possibilitam uma identificação junto à<br />
paisagem e oferecem uma leitura pelo usuário. O resultado deste processo, consciente e<br />
intencional, estabelece uma produção e interpretação, fruto de repertório e experiência de<br />
quem projeta e de quem usa o espaço.<br />
Segundo Jung (1977) o homem utiliza uma linguagem cheia de símbolos para se<br />
comunicar. Seja ela um termo, nome ou imagem que se familiariza com o cotidiano e suas<br />
conotações especiais, além do significado evidente e convencional que se pode atribuir a este<br />
símbolo.<br />
Estudos realizados pelo PROARQ/FAU/UFRJ sobre valores e significados atribuídos<br />
aos espaços, constataram que quando um usuário entra em contato com um determinado<br />
espaço, recebe impactos iniciais a partir das impressões que ele visualiza e que geram nele<br />
uma percepção; esta é a primeira etapa de um processo de conhecimento do lugar (processo<br />
cognitivo). Nos próximos passos desta percepção imediata, a possibilidade de discriminar<br />
e classificar os signos do ambiente é garantido pelo domínio que o usuário tem do código<br />
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apresentado, do qual decorre uma percepção mecânica independente das características<br />
contextuais temporais ou espaciais. Em sistemas similares, a percepção desprovida de qualquer<br />
parâmetro codificado, é tensa e profundamente influenciada pelas características espaciais ou<br />
temporais, é, necessariamente, a apreensão do novo como descoberta perceptiva.<br />
A arquitetura, por proporcionar projetos livres e independentes, assume a possibilidade<br />
de gerar novos significados na medida em que é percorrida. No ambiente construído, o usuário<br />
identifica o lugar e tem o poder de transformá-lo. Este espaço, que a princípio é fruto do desejo<br />
do arquiteto, que já percorreu esta trajetória de leitura a interpretação, passa a ser o lugar do<br />
usuário.<br />
A partir da compreensão e reconhecimento do lugar pelo usuário, que faz uma análise<br />
e uso de seus valores impregnados pelos elementos edificados desse espaço, este atribui<br />
o significado que melhor traduz seus anseios inconscientes. Isto porque, ele não observa<br />
somente a função específica do que foi construído, mas também faz a relação dos aspectos<br />
simbólicos do conjunto para com ele.<br />
Assim, um edifício apresenta, em si, forma de se expressar baseado em símbolos<br />
gráficos e elementos representativos do seu conceito arquitetônico. O espaço é entendido não<br />
só pelo que tem de visível, mas da relação com a história cultural, a composição do conjunto<br />
edificado e a forma como quem o desvenda.<br />
Considerações finais<br />
Não se pode negar que para a elaboração de um projeto arquitetônico de IES, o arquiteto<br />
pode modificar o projeto diante de diretrizes, avaliação e aprovação da gestão que administra a<br />
instituição, fazendo, muitas vezes, com que o projeto inicial não seja concretizado. No entanto,<br />
a Instituição deve considerar que, ao solicitar um projeto, existe um olhar proposto para o que<br />
se constrói, pois isso possibilita a compreensão, por meio de uma linguagem simbólica, sobre<br />
o que é o projeto.<br />
Segundo Ferrara (2007), percorrer a construção supõe não só ler os materiais e<br />
competências estruturais existentes, mas também perceber “que a espacialidade cria<br />
uma teoria do espaço enquanto comunicação ideológica da cultura e exige o resgate das<br />
manifestações presentes nas suas constituições históricas.”<br />
Para Okamoto (2002), os arquitetos devem desenvolver projetos que atendam a<br />
permanente necessidade de interação afetiva do homem com o meio ambiente, favorecendo<br />
o crescimento pessoal, a harmonia no relacionamento social e melhorando a qualidade de<br />
vida.<br />
Isto são os elementos de <strong>Design</strong> na Arquitetura, uma linguagem arquitetônica selecionada<br />
pelo arquiteto com intuito de criar ambientes com formas arquetípicas de construção numa<br />
tentativa de humanizar a arquitetura, a partir da inspiração no lugar, no clima, no programa e<br />
no usuário. Estes elementos, quando bem projetados, sugerem ao usuário um sentido ao que<br />
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se vivencia. Ao contrário, ambientes que não tiveram dedicação projetual desagradam pela<br />
rigidez e monotonia, impossibilitando que o usuário se aposse deste lugar.<br />
A partir da compreensão do <strong>Design</strong> na Arquitetura, pode-se refletir em como se pensa<br />
a arquitetura universitária hoje em dia. E em como o espaço universitário tem traduzido a<br />
forma de ensino, a função educadora exercida nos usuários que o vivenciam e experimentam<br />
seu espaço, e se tem sido capaz de transmitir informações, aglutinar pessoas e produzir<br />
sensações que evidencie a identidade da Instituição.<br />
Notas<br />
i Segundo Vitrúvius, a lei ateniense procurava educar através da arte que era exercida através da<br />
aprendizagem da literatura e conhecimento geral de todas as disciplinas, deleitando-se de temas<br />
literários e artísticos, bem como sobre obras em forma de comentários para alimento do espírito e<br />
normas para vida. Tratado de Arquitetura, pag. 290-291.<br />
ii“O design em espaços é, portanto, uma realidade tanto fenomênica como epistemológica. Ou seja,<br />
é flagrado concretamente nas manifestações sígnicas, nas marcas passíveis de serem percebidas e<br />
lidas no espaço, ao mesmo tempo em que as correlações interpretativas desses signos acabam por<br />
gerar um conhecimento do espaço enquanto objeto que tem no design sua dimensão representativa.”<br />
(Ferrara L. D., 2002, p. 7)<br />
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