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Design, Arte, Moda e Tecnologia / Organização - Universidade ...

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DESIGN ARTE MODA E TECNOLOGIA<br />

<strong>Organização</strong><br />

Gisela Belluzzo<br />

Jofre Silva


D172<br />

DAMT: <strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong><br />

<strong>Organização</strong><br />

Gisela Belluzzo<br />

Jofre Silva<br />

Concepção Projetual e Produção Digital<br />

Magda Martins<br />

Jorge Paiva<br />

Leandro Fanelli<br />

Mayra Mártyres<br />

Promoção<br />

<strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />

Pontifícia <strong>Universidade</strong> Católica do Rio de Janeiro<br />

<strong>Universidade</strong> Estadual Paulista -UNESP/Bauru<br />

DAMT: <strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong> / <strong>Organização</strong> Gisela Belluzzo e<br />

Jofre Silva. – São Paulo: Edições Rosari, 2010.<br />

Vários autores.<br />

ISBN 978-85-8050-006-6<br />

1. <strong>Design</strong>. 2. <strong>Design</strong> gráfico. 3. <strong>Design</strong> - <strong>Tecnologia</strong>.<br />

4. <strong>Arte</strong> e design. 5. <strong>Design</strong> e moda. I. Belluzzo, Gisela.<br />

II. Silva, Jofre. III. Título.<br />

CDD 741.6<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 2


SuMáRIO<br />

Apresentação, 5<br />

Conselho Científico, 6<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Tecnologia</strong> e Linguagem: Interfaces<br />

<strong>Design</strong> e naturalismo: Filosofia naturalista, biônica e ecodesign, 7<br />

Ângela Ribas Cleve Costa, Juliane Vargas Nunes, Márcia Melo Bortolato, Richard Perassi Luiz de Sousa<br />

Video game: análise ergonômica do jogador de Playstation,17<br />

Carolina Poll, Marcelo Almeida<br />

As tendências e o design: metodologia de projeto do mobiliário orientada para o futuro, 37<br />

Aline Teixeira de Souza, Marizilda Santos de Menezes<br />

A inovação através da relação da gestão de design com os princípios do <strong>Design</strong><br />

Thinking, 46<br />

Diego Daniel Casas, Eugenio Andrés Díaz Merino<br />

Diálogo entre design e emergência: O metadesign como estratégia projetual para problemas da alta<br />

complexidade na área de design, 55<br />

Rui Alão<br />

um estudo sobre a linguagem da ilustração e o design gráfico, 67<br />

Jorge Paiva<br />

Analisando o MECOTipo, 87<br />

Leonardo A. Costa Buggy<br />

O reaproveitamento de ideias e materiais no design de joias: origem, intertextualidade e sustentabilidade,<br />

104<br />

Viviane Nogueira de Moraes<br />

O <strong>Design</strong> e a Publicidade dos Anúncios Kolynos na Revista O Cruzeiro entre os anos 1950 e 1960, 117<br />

Leandro Ferretti Fanelli<br />

Classificação e escolha de um sistema de impressão, 126<br />

Leonardo A. Costa Buggy, Lia Alcântara Rodrigues<br />

Transparências e fragrâncias: materialidades simbólicas nas embalagens de perfume, 149<br />

Maureen Schaefer França, Marilda Lopes Pinheiro Queluz<br />

As experiências do design finlandês: reflexões para ações do design, 173<br />

Maria Carolina Medeiros, Mariano Lopes de Andrade Neto, Lívia Flávia de Albuquerque Campos, Paula da Cruz Landim<br />

Investigações metodológicas: aproximação entre design e tecnologia, 186<br />

Deborah Kemmer<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 3


<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong> e <strong>Moda</strong>: Inter-relações<br />

Cecília Meireles: defensora da Educação Moderna, das <strong>Arte</strong>s e do Cinema na Educação, 201<br />

Ana Mae Barbosa<br />

As interações entre moda e música na constituição de identidades: uma análise das influências da<br />

Black Music, 221<br />

Rita Aparecida da Conceição Ribeiro<br />

Ilustração digital na moda, 244<br />

Gabriela Coutinho Pinheiro, Adriana Leiria Barreto Matos<br />

<strong>Moda</strong> e música: afinidade declarada, 262<br />

Renata Santiag Freire, Adriana Leiria Barreto Matos<br />

Conexões conceituais entre moda, vestuário, design e arte, 277<br />

Maria Alice Vasconcelos Rocha<br />

Considerações éticas na pesquisa em design de moda, 290<br />

Luciane do Prado Carneiro, Danilo Corrêa Silva, Marizilda dos Santos Menezes, Luis Carlos Paschoarelli,<br />

José Carlos Plácido da Silva<br />

Calçados desejáveis para mulheres portadoras de deficiência física: um desafio desejável para os<br />

designers de calçados, 308<br />

Mariana Rachel Roncoletta<br />

Aspectos do diálogo entre design, arte e moda a partir de uma análise dos calçados do<br />

século XX, 325<br />

Natalie Rodrigues Alves Ferreira, Cristiane Mesquita<br />

Inovação em design na história do underwear masculino, 339<br />

Taísa Vieira-Sena<br />

O terno: questões e reflexões, 358<br />

Luisa de Almeida Magalhães Simão, Cristiane Mesquita<br />

Profissão: designer de moda, 367<br />

Lívia Marsari Pereira, Maria Carolina Medeiros, Paula Hatadani, Raquel Rabelo Andrade, José Carlos Plácido da Silva<br />

<strong>Design</strong>ers: entre céticos e dogmáticos, 378<br />

Diego Daniel Casas, Ricardo Goulart Tredezini Straioto, Richard Perassi Luiz de Sousa<br />

Avaliação da percepção de conforto pelas usuárias de calcinhas, 389<br />

Marina A. Giongo, Daiane P. Heinrich<br />

<strong>Design</strong> cênico: técnica, processo & criação na identidade urbana, 398<br />

Ary Scapin Júnior<br />

O que faço com os meus diários de campo? Inquietações de uma antropóloga no <strong>Design</strong> e<br />

na <strong>Moda</strong>, 408<br />

Márcia Merlo<br />

O design da marca Colcci: história e construção, 420<br />

Alvaro de Melo Filho, Márcia Merlo<br />

Flávio Império: cenógrafo, arquiteto e artista, 443<br />

Gisela Belluzzo de Campos, Tereza Grimaldi Avellar Campos<br />

<strong>Design</strong>er artesão ou artesão designer? uma questão contemporânea. As aproximações por meio das<br />

intervenções de design no artesanato, 456<br />

Savana Leão Fachone, Márcia Merlo<br />

Estudar com <strong>Design</strong> – uma reflexão sobre o espaço universitário, 463<br />

Fabíola Marialva Marques<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 4


APRESENTAçãO<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong> (DAMT) busca contribuir<br />

com a discussão em design, por meio de artigos resultantes<br />

de estudos e de pesquisas de conceitos, de materiais, de<br />

procedimentos, de formas e de produtos culturais. Por ser uma<br />

área em franca e acelerada expansão no Brasil, a diversidade de<br />

temas, enfoques e análises reflete a efervescência da produção<br />

acadêmica em design que, em sua essência, já comporta um<br />

caráter múltiplo e interdisciplinar.<br />

A presente edição dá continuidade ao projeto editorial<br />

intitulado <strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong> e <strong>Tecnologia</strong>, iniciado em 2005, com o intuito<br />

de fortalecer o diálogo entre estes campos do conhecimento.<br />

Entretanto, com o envolvimento crescente de pesquisadores<br />

interessados nas interfaces entre o <strong>Design</strong> e a <strong>Moda</strong>, a coletânea<br />

amplia sua proposta original e inicia uma nova fase. Assim, ao<br />

integrar a <strong>Moda</strong> em seu título, procura não apenas reconhecer<br />

a valiosa colaboração já existente; mas também tratar a letra M<br />

como uma marca do momento de movimentar, mexer e modificar<br />

para mesclar, melhorar e motivar mudanças.<br />

DAMT mantém o perfil conceitual das coletâneas<br />

anteriores, reunindo trabalhos desenvolvidos por professores,<br />

alunos, pesquisadores e profissionais da área. O sucesso do<br />

projeto resulta da integração entre os Programas de Pós-<br />

Graduação em <strong>Design</strong> da Anhembi Morumbi, da PUC-Rio e<br />

da UNESP-Bauru; bem como do apoio da Edições Rosari. A<br />

publicação conta, desde a sua quarta edição, em 2008, com um<br />

Conselho Científico, para acompanhar a sua organização.<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 5


CONSELhO CIENTíFICO<br />

Ana Mae Barbosa, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />

Cristiane Mesquita, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />

Daniela Kutschat Hanns, SENAC-SP, FAU-USP<br />

Denise Portinari, PUC-Rio<br />

Gisela Belluzzo, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />

Giselle Beiguelman, PUC-SP<br />

Jofre Silva, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />

José Carlos Plácido da Silva UNESP-Bauru<br />

Kathia Castilho, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />

Luisa Paraguai, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />

Luis Antonio Coelho, PUC-Rio<br />

Luis Carlos Paschoarelli, UNESP- Bauru<br />

Márcia Merlo, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />

Marcus Bastos, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />

Marizilda Menezes, UNESP-Bauru<br />

Miriam Cristina Carlos Silva, <strong>Universidade</strong> de Sorocaba<br />

Rachel Zuanon, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />

Rejane Spitz, PUC-Rio<br />

Rita Couto, PUC-Rio<br />

Rosane Preciosa, UFJF-MG<br />

Silvia Laurentz , ECA-USP<br />

Suzete Venturelli, UNB<br />

Vicente Gosciola, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 6


DESIGN E NATuRALISMO: FILOSOFIA NATuRALISTA, BIôNICA E<br />

ECODESIGN<br />

Ângela Ribas Cleve Costa; Mestranda em <strong>Design</strong> e Expressão Gráfi ca: UFSC;<br />

Professora da Univali - Unidade Florianópolis - angelacleve@uol.com.br<br />

Juliane Vargas Nunes; Mestranda em <strong>Design</strong> e Expressão Gráfi ca: UFSC;<br />

bolsista pelo FNDE no mesmo Programa - julivn@gmail.com<br />

Márcia Melo Bortolato; Mestranda em <strong>Design</strong> e Expressão Gráfi ca: UFSC;<br />

marcia.ead.ufsc@hotmail.com<br />

Richard Perassi Luiz de Souza; Doutor em Comunicação e Semiótica: PUC/SP;<br />

Professor do Pós- <strong>Design</strong>/ EGR/CCE: UFSC - perassi@cce.ufsc.br<br />

Resumo<br />

A corrente filosófica “Naturalismo” considera o desenvolvimento<br />

do processo cognitivo como decorrência evolutiva da natureza<br />

que, também, é proposta como modelo evolutivo para a cultura.<br />

“<strong>Design</strong>” é área de estudos e campo de atividades, cujo princípio<br />

motivador fundamental de atuação é a solução de problemas.<br />

A perspectiva naturalista em <strong>Design</strong> revela sua fundamentação<br />

teórica e proposição metodológica na observação e na apropriação<br />

de soluções dos sistemas naturais, para equacionar aspectos do<br />

projeto, sejam tecnológicos, econômicos, estéticos, ergonômicos<br />

ou ecológicos. Os estudos de <strong>Design</strong> investem em pesquisas na<br />

área de Biônica, cujos objetos de interesse são formas, funções e<br />

materiais dos sistemas naturais. Esses estudos são aplicados na<br />

proposição de soluções projetivas, em diversas áreas de atuação<br />

do design, inclusive no Ecodesign. A aplicação da Biônica à<br />

metodologia de <strong>Design</strong> propõe soluções simples e econômicas,<br />

com base nas concepções naturalistas, na elaboração de produtos<br />

ecoeficientes, objeto de estudo do Ecodesign. Há, portanto, uma<br />

interação fecunda e promissora entre <strong>Design</strong> e Naturalismo que é<br />

mediada por analogias entre sistemas culturais e sistemas naturais.<br />

Palavras-Chave: design naturalista; sistemas naturais;<br />

soluções naturais; sustentabilidade<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 7


<strong>Design</strong> e naturalismo: filosofia naturalista, biônica e ecodesign<br />

Introdução<br />

No período artesanal, que antecedeu ao período histórico-industrial, não havia<br />

uma separação clara entre as áreas de <strong>Arte</strong> e de <strong>Design</strong>. No processo artístico-artesanal,<br />

as atividades de projeto e execução eram praticamente indissociáveis, como também se<br />

sobrepunham as histórias de <strong>Arte</strong> e de <strong>Design</strong>. Havia um diálogo ou uma interatividade<br />

continuada entre as instâncias do pensamento e da produção. Os resultados eram produtos<br />

particulares, praticamente únicos, mesmo quando se buscava a produção de diversos<br />

exemplares semelhantes. Porém, o princípio que determinou a Revolução Industrial foi de<br />

“serialização”. Primeiramente, houve a produção manufaturada em série, como consequência<br />

da especialização dos artesãos, em que cada um era especializado para fabricar em série<br />

uma parte do produto. Assim, cada parte seguia o padrão de sua série, sendo compatível<br />

com quaisquer outras partes componentes do mesmo tipo de produto. Posteriormente, os<br />

artesãos foram sendo substituídos por máquinas na fabricação das partes dos produtos.<br />

Como consequência da fabricação por máquinas, as formas das partes dos produtos<br />

foram geometricamente simplificadas, para que fossem mecanicamente fabricadas. A<br />

industrialização separou radicalmente as instâncias de planejamento dos produtos e de<br />

produção. Portanto, separou-se o processo de projeto e o processo de produção. Os rígidos<br />

limites da mecanização exigiram a adoção dos princípios de idealização geométrica e o<br />

desenvolvimento de uma razão metódica, para os processos de projeto e de gestão, com<br />

base em procedimentos científico-tecnológicos.<br />

A sistemática de criação e de gestão de projetos fundou e caracteriza a área de <strong>Design</strong>,<br />

como campo de estudos aplicados nas atividades de projeto, que definem a profissão de<br />

<strong>Design</strong>er.<br />

A serialização da produção e a separação da atividade projetivo-ideal da produção<br />

mecanizada assinalam a intervenção idealista no processo de fabricação de bens<br />

manufaturados. Isso é mais evidente em comparação com os processos naturais, nos quais o<br />

desenvolvimento de cada criatura é continuado e individualizado. A defesa do trabalho manual<br />

foi resgatada por movimentos de arte aplicada, o mais proeminente foi Arts and Crafts, que<br />

propôs o trabalho manual como fonte de recuperação da dimensão estética dos objetos,<br />

em oposição à esterilidade dos objetos industrializados. A valorização do trabalho manual<br />

retomou a perspectiva naturalista, porque priorizava a relação natural, entendendo o objeto<br />

como extensão do homem e como parte da natureza.<br />

O percurso histórico modernista, porém, confirmou o afastamento entre os campos<br />

de <strong>Design</strong> e de <strong>Arte</strong>sanato e ambos se distanciaram do campo da <strong>Arte</strong>. Isso ratificou a<br />

racionalidade lógico-idealista como característica de <strong>Design</strong>.<br />

A partir disso, foi amplamente desenvolvida no campo de <strong>Design</strong> uma concepção<br />

funcionalista, de acordo com a premissa “a forma segue a função”, a qual exerce influência<br />

sobre as atividades projetivas até os dias de hoje, mesmo que de forma menos central. Essa<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 8


<strong>Design</strong> e naturalismo: filosofia naturalista, biônica e ecodesign<br />

visão, de uma maneira geral, prioriza fatores racionais da relação entre homem e objeto, com<br />

relação aos aspectos de caráter sensorial.<br />

Por outro lado, a extinção dos recursos naturais e a degradação do meio ambiente<br />

requerem a reaproximação entre o homem e os elementos da natureza, como partes<br />

integrantes de um mesmo ecossistema, cujo funcionamento interfere e compete a todos<br />

os seus componentes, mesmo que de forma diversa. No campo de <strong>Design</strong>, as pesquisas<br />

relacionadas à área de Biônica observam os sistemas naturais para a proposição de soluções<br />

em projetos de diversos produtos como, automóveis e joias e exercendo influência também<br />

sobre a área do Ecodesign. A consciência ecológica exige novos estilos e padrões de consumo<br />

sustentável, implicando em projetos de <strong>Design</strong> coerentes com essa nova realidade.<br />

Conforme Villas-Boas (2000, p.45), <strong>Design</strong> é uma palavra inglesa originária de designo<br />

(as-are-avi-tum), que em latim significa designar, indicar, representar, marcar, ordenar. O<br />

sentido de design lembra o mesmo que, em português, tem designo: projeto, plano, propósito<br />

(Ferreira, 1975).<br />

Embora a etimologia do termo <strong>Design</strong> seja ampla, a atividade projetiva caracteriza o<br />

campo de estudos e de atuação aqui configurado. O desenvolvimento de um projeto, por<br />

sua vez, surge de uma necessidade a ser suprida, que se apresenta como um problema<br />

(MUNARI, 2008). Entendendo o problema como a situação que motiva a elaboração de um<br />

projeto de <strong>Design</strong>, mostra-se necessário considerar um método adequado, de acordo com a<br />

investigação do problema, que é a primeira etapa do desenvolvimento projetual. Munari (2008)<br />

destaca que, na maioria das vezes o problema é identificado pelo cliente. Mas, em alguns<br />

casos, o designer detecta e apresenta o problema ao cliente, a partir das considerações<br />

propostas no processo de brienfing.<br />

Entre as metodologias e abordagens de pesquisa, que podem ser assumidas de<br />

acordo com concepções e objetivos propostos, a abordagem naturalista pode e deve ser<br />

considerada, buscando soluções que aproximem os objetos de design dos sistemas naturais,<br />

concebendo-os como uma extensão do ser humano e parte integrante do ambiente natural<br />

(PATARRNA, 2003).<br />

Entendemos que <strong>Design</strong> associado a Naturalismo é capaz de cumprir seu designo,<br />

equacionando fatores ecológicos, ergonômicos, tecnológicos e econômicos, na concepção<br />

de elementos e sistemas para atender necessidades humanas e promover o desenvolvimento.<br />

Através de soluções conceituais e práticas <strong>Design</strong> Naturalista proporciona uma concepção<br />

de projetos e objetos ecoeficientes, com base nos estudos de Biônica e nos princípios de<br />

Ecodesign.<br />

Naturalismo Filosófico<br />

Conforme o descrito em Dicionário Básico de Filosofia (JAPIASSÚ e MARCONDES,<br />

2001), Naturalismo é uma concepção filosófica que não admite a existência de nada que seja<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 9


<strong>Design</strong> e naturalismo: filosofia naturalista, biônica e ecodesign<br />

exterior à natureza, reduzindo o conceito de realidade à experimentação do mundo natural.<br />

O pensamento naturalista recusa, portanto, qualquer elemento sobrenatural ou princípio<br />

transcendente. Assim, mesmo a moral deve basear-se nos princípios que regem a natureza,<br />

tomados como fundamentos das regras e dos preceitos de conduta.<br />

De acordo com Dutra (2005 p.83), o pensamento naturalista propõe como crença<br />

verdadeira que somos capazes de representar mentalmente o mundo a nossa volta, sejam<br />

coisas, processos ou acontecimentos. Enfim, o estado das coisas em geral. Segundo Hume, há<br />

três maneiras pelas quais associamos nossas ideias: (1) por semelhança, (2) por contiguidade<br />

(de tempo ou de lugar) e (3) por relação de causa e efeito (DUTRA, 2005). Aproximar Filosofia,<br />

Ciência e Técnica é o tema principal dos naturalistas. Por isso, os pressupostos naturalistas<br />

estão na fundação da moderna teorização cientifica. Referências a moral ou propósitos<br />

divinos não encontram lugar na Ciência, que se limita a explicar os fenômenos empíricos<br />

sem referência a forças, poderes, ou influências sobrenaturais. Nessa perspectiva, a Ciência<br />

Moderna é essencialmente naturalística.<br />

Empirismo e Naturalismo<br />

O pensamento naturalista, que defende o conhecimento como decorrência de causas<br />

naturais, é reforçado pela crítica dos cético-empiristas sobre a impossibilidade da razão explicar<br />

logicamente a causalidade do conhecimento. Entre os empiristas, há os que se destacaram<br />

como representantes da vertente naturalista. Um desses empírico-naturalistas é o filósofo e<br />

lógico norte-americano Willard Quine (1908-2000) que, influenciado por Rudolf Carnap (1891-<br />

1970), apresentou-se como defensor do empirismo no pensamento do século XX. No seu<br />

trabalho, Quine questionou a diferença entre os dados sensoriais percebidos e o conhecimento<br />

proposto, indicando a existência de um processo complexo de mediação entre a percepção<br />

e a compreensão. Assim, desenvolveu um argumento mostrando a fragilidade dos critérios<br />

em que se baseia a distinção entre os termos analítico e sintético, mostrando a fragilidade<br />

dos critérios em que se baseia esta distinção, a partir da reflexão sobre as informações que<br />

entram e saem do cérebro (JAPIASSÚ e MARCONDES, 2001).<br />

Muito antes de Quine, entretanto, o filósofo escocês David Hume (1711-1776) influenciou<br />

cientistas e filósofos que o sucederam, com sua ideia de que Filosofia era a ciência da natureza<br />

humana fundada no “indutivismo” e no “experimentalismo”. Para Hume, o processo cognitivo<br />

ocorre a partir da observação da natureza, que é seguida das associações de ideias sobre o<br />

que observamos. Essa questão envolve o “princípio do Hábito”, decorrente das crenças que<br />

desenvolvemos a partir da repetição de observações. Esse princípio faz parte da natureza<br />

humana e, ainda, de toda a natureza, já que os animais também apresentam essa característica.<br />

Assim, a abordagem para avaliar e discutir o conhecimento humano deve ser semelhante a<br />

nossa abordagem para compreender outros processos naturais. Hume apresenta em sua<br />

obra as seguintes questões fundamentais: a) não é possível nenhuma teoria geral da realidade:<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 10


<strong>Design</strong> e naturalismo: filosofia naturalista, biônica e ecodesign<br />

o homem não pode criar ideias, pois está inteiramente submetido aos sentidos; todos os<br />

nossos conhecimentos vêm dos sentidos; b) a ciência só consegue atingir certezas morais:<br />

suas verdades são da ordem da probabilidade; c) não há causalidade objetiva, pois nem<br />

sempre as mesmas causas produzem os mesmos efeitos; d) convém que substituamos toda<br />

certeza pela probabilidade (JAPIASSU e MARCONDES, 2001).<br />

Biônica<br />

Hume pregava que todo conhecimento humano provem da observação do mundo a sua<br />

volta, sendo o próprio pensamento algo natural do ser humano. O pensamento se processa<br />

por associação de ideias, “que utilizamos em todas as nossas conclusões sobre questões<br />

de fato e, portanto, ele é o princípio do qual dependem todas as nossas crenças factuais<br />

ou causais sobre o mundo em que vivemos” (DUTRA, 2005, p. 87). Isso pressupõe que, em<br />

última instância, o homem não determina seu conhecimento, porque esse é decorrente de<br />

um processo natural do qual ele próprio é um sistema determinado. Essa consideração indica<br />

a natureza como responsável, inclusive, pela produção cultural, que se desenvolveu pelas<br />

mentes e mãos dos homens. Portanto, assumir os sistemas naturais como modelos para as<br />

produções culturais é propor um processo de aproximação entre duas etapas de um mesmo<br />

processo evolutivo.<br />

Por volta de 1960, o major americano Jack Steele definiu Biônica como “ciência dos<br />

sistemas cujo funcionamento foi copiado de sistemas naturais, que apresentam características<br />

específicas de sistemas naturais ou ainda que lhes sejam análogos”. Mas, ao longo da história,<br />

os seres humanos sempre adotaram a natureza como fonte inspiradora, para a criação de<br />

ferramentas e soluções para os problemas do seu dia a dia. Por exemplo, Leonardo da Vinci<br />

partiu das observações de uma libélula, um inseto que paira no ar, para projetar um artefato<br />

semelhante ao helicóptero moderno. Assim, podemos considerar que o fundamento básico da<br />

biônica é praticado pelo homem de forma espontânea, para extrair da natureza as soluções para<br />

os problemas cotidianos. Esse processo de observação da natureza, coletando informações<br />

para, posteriormente, solucionar problemas práticos ou teóricos implica na complexidade do<br />

sistema cognitivo humano. Isso configura a questão que intrigava Quine, uma vez que o ser<br />

humano é capaz de apreender os processos naturais e adaptá-los aos projetos culturais,<br />

sendo que...<br />

a entrada de dados sensoriais não é suficiente para o conhecimento humano.<br />

Ao contrário, ele enfatiza o fato de que deve haver uma mediação importante<br />

entre a tal entrada e a saída. [...] a diferença entre a riqueza dessa saída e a<br />

pobreza daquela entrada de dados sensoriais é tão impressionante que pede<br />

uma explicação (DUTRA, 2005, p. 92).<br />

Biônica é, portanto, uma área que se organizou a partir de uma possibilidade difícil<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 11


<strong>Design</strong> e naturalismo: filosofia naturalista, biônica e ecodesign<br />

de ser explicada, ou seja, a possibilidade experimentada pelos seres humanos de conhecer<br />

os sistemas naturais e aplicar esse conhecimento no avanço dos processos culturais. Para<br />

Munari (2008, p. 330),<br />

Biônica estuda os sistemas vivos, ou semelhantes aos vivos, para descobrir<br />

processos, técnicas e novos princípios aplicáveis a tecnologia. Examina os<br />

princípios, as características e os sistemas com transposição de matéria,<br />

com extensão de comandos, com transferência de energia e de informação.<br />

Toma-se como ponto de partida um fenômeno natural e, a partir daí, pode-se<br />

desenvolver uma solução de projeto.<br />

Na perspectiva do movimento filosófico Naturalismo, como sistema vivo, o próprio<br />

ser humano é regido pela natureza e o conhecimento decorre de um processo complexo, e<br />

igualmente natural, que não pode ser explicado pela lógica idealista. Atualmente, a abordagem<br />

evolucionista e os estudos de Neurociência buscam esclarecer a questão proposta por Quine,<br />

sobre a complexidade da mediação mental, por meio de pesquisas biológicas e neurológicas.<br />

Por outro lado, a metodologia de <strong>Design</strong> proposta sob uma abordagem Biônica apresenta<br />

duas formas de desenvolvimento. Na primeira, podemos partir de um problema e buscar<br />

suas soluções, com base na observação da dinâmica dos sistemas naturais, como plantas e<br />

animais (fig. 1A). A outra forma, entretanto, propõe o caminho inverso, ou seja, observamos a<br />

natureza e, a partir das soluções que ela apresenta em determinado sistema animal ou vegetal,<br />

buscamos a criação de um artefato, cuja utilidade será definida posteriormente (fig. 1B).<br />

A<br />

Metodologia da Biônica a partir do Problema<br />

B<br />

Metodologia da Biônica a partir da Observação de Soluções<br />

Figura 1<br />

Os projetos de design com metodologia Biônica vão além da simples cópia dos<br />

elementos da natureza, porque partem da observação dos sistemas naturais, mas requerem a<br />

interpretação e a adaptação das estruturas e das dinâmicas desses sistemas. Isso é aplicado<br />

na composição de analogias eficientes que relacionam formas, funções ou comportamentos,<br />

visando solucionar problemas existentes ou desenvolver artefatos inovadores. Através desses<br />

projetos, buscamos alternativas mais econômicas, mais viáveis ou sustentáveis, já que a<br />

natureza é sábia em desenvolver soluções simples e eficazes, para manter-se em equilíbrio.<br />

O método de buscar analogias na natureza é o que mais aproxima a biônica da filosofia<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

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<strong>Design</strong> e naturalismo: filosofia naturalista, biônica e ecodesign<br />

naturalista, já que essa corrente propõe, especialmente com Hume, que o conhecimento<br />

é construído por associação de ideias, seja por semelhança, por relação de causa e efeito<br />

ou por contiguidade de tempo ou de lugar. O sistema “velcro”, como solução de <strong>Design</strong>, é<br />

decorrente de uma associação de causa e efeito porque, na natureza, duas superfícies com<br />

um determinado tipo de textura tendem a aderir uma na outra. Por outro lado, as formas<br />

naturais apresentam funções específicas, como as formas aerodinâmicas que serviram de<br />

modelo para o carro conceito “Biônico” da marca Mercedes-Benz, que foi projetado a partir<br />

de associações por semelhança. O design básico de um helicóptero, com relação ao animal<br />

libélula, decorre de uma associação por contiguidade, porque houve a adaptação direta de<br />

um sistema natural para um produto cultural, que é percebida na analogia com as formas das<br />

asas e, mais especificamente, na reprodução de sua capacidade de voar em espiral, devido<br />

ao funcionamento de hélices.<br />

A metodologia de <strong>Design</strong> contextualizada na área de Biônica é relativamente recente,<br />

todavia, diversos produtos de destaque na cultura contemporânea foram propostos a partir<br />

desta perspectiva. Como foi citado anteriormente, o sistema velcro é um desses produtos,<br />

que foi desenvolvido, em 1948, pelo engenheiro suíço Georges de Mestral, como um sistema<br />

de aderência inspirado na estrutura funcional de pequenas sementes, os carrapichos, que<br />

ficavam presos em suas roupas, durante as caminhadas no campo. Intrigado com esse<br />

fenômeno, Mestral observou no microscópio que as superfícies das sementes eram cobertas<br />

por minúsculos ganchos aderentes a quaisquer superfícies que fizessem laços, como fios de<br />

cabelo ou fibras de tecidos.<br />

Em fase experimental, há um outro sistema bastante original que, também, é inspirado<br />

na funcionalidade da natureza e aplicado na composição de uma malha para nadadores, a<br />

qual reproduz propriedades da pele dos tubarões. Além disso, há projetos de carros, cujo<br />

design segue a estrutura de determinado peixe e projetos de móveis ou de outros objetos que,<br />

também, são inspirados em soluções encontradas na natureza.<br />

Os estudos que estão sendo desenvolvidos indicam a abordagem biônica como muito<br />

fértil, porque o número de soluções naturais e projetos potencialmente inteligentes são quase<br />

ilimitados. Por exemplo, o biólogo Andrew Parker, da <strong>Universidade</strong> de Oxford, estudou um<br />

besouro que vive no calor extremo do deserto. A parte das costas do besouro é recoberta<br />

por uma película que, alternadamente, é cerosa e não-cerosa. Isso promove a formação<br />

de gotículas de água que o besouro bebe. Diante disso, é possível considerarmos que “a<br />

produção comercial de um material semelhante poderia ajudar a coletar água em condições<br />

áridas”. (HOOPER, 2004, p. 02).<br />

Ocorreu outro exemplo na <strong>Universidade</strong> de Penn State, onde pesquisadores<br />

desenvolvem um projeto inspirado nos pássaros chamado “morphing airplane wings” (cuja<br />

tradução livre é “avião com asas morfológicas”). Trata-se de uma aeronave cujas asas<br />

mudam de formato, de acordo com a velocidade e a duração do voo. A inspiração vem da<br />

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<strong>Design</strong> e naturalismo: filosofia naturalista, biônica e ecodesign<br />

constatação de que pássaros de diferentes espécies possuem asas de formatos diferentes,<br />

em função da velocidade com que cada espécie voa. Mas, a proposta inicial implica em<br />

outro problema, porque se a estrutura interna da asa pode mudar durante o voo, também, a<br />

camada externa que recobre essa estrutura deveria ter a capacidade de se alterar. Para tanto,<br />

os pesquisadores encontraram a solução nos peixes, porque usaram escamas para cobrir as<br />

asas de maneira que umas deslizam sobre as outras. Assim, os estudos na área de Biônica<br />

combinam soluções encontradas em diferentes espécies ou sistemas naturais para resolver<br />

problemas de um mesmo projeto de <strong>Design</strong> (HOOPER, 2004, p. 02).<br />

Ecodesign<br />

A evolução dos processos de produção exigiu a exploração dos recursos naturais em<br />

proporções alarmantes, preocupando os defensores do meio ambiente e a sociedade em<br />

geral. Na década de 1960, houve a proposta de redução da produção, diante da falta de<br />

sustentabilidade do planeta, durante uma reunião do clube de Roma com profissionais de<br />

diversos países. Porém, essa proposta não foi aceita dentro de um contexto capitalista em que<br />

produção e consumo compõem o grande motor econômico do mundo. Em 1972, houve uma<br />

conferência das Nações Unidas, em Estocolmo, sobre o meio ambiente, na qual foi defendida<br />

a ideia de que não era necessário consumir menos, mas consumir melhor. Portanto, devemos<br />

aproveitar melhor os recursos naturais, para reduzir a extração e racionalizar os processos<br />

produtivos, visando redução de resíduos. Isso determinou o conceito de “desenvolvimento<br />

sustentável”, que inclui desenvolvimento e uso de recursos renováveis e a preservação de<br />

recursos não renováveis..<br />

No contexto cultural de sustentabilidade foi desenvolvido, também, o conceito de<br />

Ecodesign, aplicado aos projetos e processos que contemplam aspectos ambientais em todas<br />

as etapas de produção de um produto de design. O principal objetivo é a redução do impacto<br />

ambiental, durante o ciclo de vida do produto. Ecodesign é uma concepção ou abordagem da<br />

área de <strong>Design</strong>, que associa o que é tecnicamente possível no campo das tecnologias limpas,<br />

com aquilo que é culturalmente desejado no campo da consciência ambiental. Ecodesign<br />

elabora produtos denominados ecoeficientes, aliando eficiência dos recursos, que determina<br />

produtividade e lucratividade, com responsabilidade ambiental.<br />

Assim como a área de Biônica, a concepção Ecodesign prioriza as condições naturais<br />

em oposição às concepções ideais, expressando o primado naturalista do movimento<br />

Naturalismo, sobre a idealização de uma ordem sobrenatural ou artificial da realidade.<br />

Ecodesign não se caracteriza pela apropriação de formas, sistemas e processos<br />

naturais. Porém, toma por base a preservação ambiental e a sustentabilidade, reconsiderando<br />

as relações entre homem e natureza, a partir de critérios de respeito e de conservação<br />

ambiental. O desenvolvimento de projetos ecoeficientes considera a interdependência entre<br />

homem e natureza, sendo que o primeiro é um sistema estruturado e abrigado pelo segundo<br />

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que é seu ecossistema de emergência. Assim, os elementos naturais, o homem e os produtos<br />

culturais como extensões do homem são unidades de um mesmo ecossistema.<br />

Salvador (2003) indica os estudos de Biônica como ferramentas de Ecodesign, buscando<br />

na natureza soluções como: a diminuição da poluição; a redução do descarte de materiais; a<br />

diminuição do uso de insumos, como materiais e energia; a redução do tempo de fabricação,<br />

entre outros. Assim o <strong>Design</strong>, como área que trata diretamente com questões ligadas à forma<br />

e à função, pode apropriar-se das soluções presentes na natureza, que resultam de milhões<br />

de anos de evolução e, muitas vezes, oferecem respostas mais econômicas e sintéticas para<br />

os sistemas culturais mais complexos. Por exemplo, uma solução eficiente de encaixe ou<br />

de empilhamento pode ser inspirada em sistemas de seres vivos, como as abelhas que são<br />

exímias estoquistas. Uma solução desse tipo pode diminuir o volume de transporte e reduzir o<br />

consumo de combustível.<br />

Considerações finais<br />

A aproximação entre Naturalismo e <strong>Design</strong>, tendo em vista a interação evolutiva entre<br />

natureza e cultura, aponta caminhos para a elaboração de soluções projetivas ecologicamente<br />

sustentáveis ou inspiradas em sistemas naturais.<br />

Por meio dos estudos de Biônica, as soluções propostas nos sistemas naturais são<br />

aplicadas aos projetos e produtos de <strong>Design</strong>. Por sua vez, os princípios de Ecodesign propõem<br />

que os produtos sejam ecoeficientes, combinando eficiência e sustentabilidade. A síntese<br />

dessas duas concepções propõe projetos e produtos de <strong>Design</strong> inspirados na natureza e<br />

integrados no esforço de preservação e conservação da natureza.<br />

O contrário dessas premissas foi expresso nas tentativas históricas de idealização e<br />

controle da natureza, por meio de projetos idealistas e artificiais, tanto no campo do pensamento<br />

quanto na prática. Com relação ao conhecimento, a crítica naturalista de Hume desconsiderou<br />

a prioridade idealista sobre o aprendizado empirista. Além disso, alertou os simplistas sobre<br />

a complexidade dos processos naturais, uma vez que a aquisição do conhecimento não era<br />

decorrência direta das sensações. Isso foi especialmente ouvido por Quine, que reforçou a<br />

crítica, assinalando a complexa mediação entre as percepções e os conhecimentos.<br />

Com relação aos aspectos de produtividade e de lucratividade, os projetos baseados em<br />

abordagens metodológicas de Biônica indicam soluções mais simples e econômicas, a partir<br />

da apropriação das qualidades presentes nos sistemas naturais. Por sua vez, os princípios<br />

de Ecodesign propõem refletirmos sobre a relação entre o homem e a natureza, diante<br />

dos problemas provocados pelo descontrole dos processos produtivos e da consequente<br />

degradação do meio ambiente.<br />

O entendimento de que o homem é um sistema cujo ecossistema é a natureza, sendo<br />

essa diretamente responsável por sua vida e por sua produção mental e material, estabelece<br />

o sistema e o processo cognitivo humano como decorrentes da evolução natural. Isso indica<br />

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<strong>Design</strong> e naturalismo: filosofia naturalista, biônica e ecodesign<br />

que sistemas e processos humanos de percepção, cognição e produção descendem das<br />

funções naturais.<br />

Essa perspectiva subjuga o homem ao ecossistema natural, estimulando a observação<br />

dos processos naturais, como influência e decorrência nas atividades projetivas de <strong>Design</strong>.<br />

Pois, a natureza é fonte de inspiração para os estudos de Biônica e, também, é objeto de<br />

preocupação e dedicação nos projetos ecoeficientes de Ecodesign.<br />

Referências<br />

DUTRA, Luiz Henrique de Araújo. Oposições Filosóficas. Florianópolis: Editora da UFSC,<br />

2005.<br />

JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. Rio de Janeiro,<br />

2001<br />

HOOPER, Rowan. Ideas Stolen Right From Nature. Disponível em: http://www.wired.com.<br />

Acessado em: 11/06/2010.<br />

MUNARI, Bruno. Das Coisas Nascem Coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2008.<br />

NIEMEYER, Lucy. <strong>Design</strong> no Brasil: origens e instalação. 3 ed. Rio de Janeiro, 2AB Editora,<br />

2002.<br />

PATARRANA, Manuel. <strong>Design</strong> sustentável. In: BCSD. Portugal, n. 10, Março, 2007. Disponível<br />

em: http://www.bcsdportugal.org/files/1022.pdf. Acessado em: 23/06/2010.<br />

ROYO, Javier. <strong>Design</strong> digital. In: Fundamentos do <strong>Design</strong>. São Paulo: Edições Rosari, 2008.<br />

SALVADOR, Roner José. Metodologia Biônica em dobradiças de móveis. Porto Alegre,<br />

RS: UFRGS, 2003 (dissertação de mestrado).<br />

VANDEN BROECK, Fabrício. <strong>Design</strong> e biônica. Disponível em: www.carlosrighi.com.br.<br />

Acessado em: 05/06/2010.<br />

WITTMANN, Karin et al. Conceito e histórico do Ecodesign. Disponível em: www.gueto.<br />

com.br/ecodesign.asp?id=12. Acessado em: 03/06/2010.<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

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VIDEO GAME: ANáLISE ERGONôMICA DO JOGADOR DE PLAySTATION<br />

Carolina Poll: <strong>Universidade</strong> Federal do Rio Grande do Sul<br />

poll.carolina@gmail.com<br />

Marcelo Almeida: <strong>Universidade</strong> Federal do Rio Grande do Sul<br />

marcelotkd@gmail.com<br />

Resumo<br />

O objetivo deste estudo é analisar o uso de video games não<br />

portáteis, focando o estudo no console Playstation. A partir deste<br />

estudo foi possível identificar quais os principais usuários, além dos<br />

efeitos fisiológicos resultantes da prática constante e excessiva do<br />

manejo dos controles (joystick).<br />

Palavras-Chave: ergonomia; design; video game; joystick<br />

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Video game: análise ergonômica do jogador de Playstation<br />

Introdução<br />

Este artigo objetiva analisar o comportamento dos usuários de video games em relação<br />

à sua posição e seu modo de manejo do controle durante a execução da atividade, buscando<br />

gerar alternativas para melhorias nas condições de uso do objeto.<br />

A escolha do tema se baseou na observação das atividades usuais do dia a dia das<br />

pessoas em suas casas, que mesmo parecendo simples, possuem implicações que, com o<br />

tempo, poderão causar problemas físicos. A análise do video game como objeto de estudo<br />

foi selecionada pela relevância do design de produto no planejamento da atividade. A partir<br />

da observação de relação do usuário com o produto, é possível estabelecer alguns critérios e<br />

limites projetuais que visam evitar possíveis danos à saúde dos usuários.<br />

história<br />

O primeiro video game foi criado na década de 1970 (Odissey) e desde aquela época<br />

vem seguindo a evolução gráfica computacional e de tecnologias de interação com os seres<br />

humanos. Inicialmente, os video games, na época chamados de “tele-jogos”, eram direcionados<br />

ao público infantil e juvenil, dos 4 aos 9 anos. Com a evolução dos equipamentos, a atenção<br />

dos produtores passou a abranger um público cada vez maior, percebendo que o mercado<br />

de video games era adaptável a diversos gostos da população, além de contínuo, pois grande<br />

parte dos usuários permanecia consumindo o produto ao longo da vida. Hoje eles fazem<br />

parte da vida de um grande número de pessoas, e mesmo ainda tendo como maior público<br />

as crianças e jovens, já possui direcionamentos específicos inclusive para usuários da terceira<br />

idade¹.<br />

A tendência de desenvolvimento concomitante dos estímulos visuais, através dos<br />

gráficos e dos estímulos táteis com os periféricos dos consoles, pode ser traçada desde as<br />

primeiras experiências de Ralph Baer com consoles domésticos, no final da década de 1960,<br />

até o seu ápice, na metade da década de 1980, com a adoção de diferentes dispositivos<br />

de utilização dos video games domésticos. A SEGA, criadora do console Master System,<br />

desenvolveu acessórios como óculos 3D e pistolas de luz, e a Nintendo incrementou as<br />

capacidades do seu Famicom (ou NES, como ficou conhecido nos Estados Unidos), com os<br />

acessórios NES Zapper (pistola de luz), Power Pad (tapete sensível ao toque), Power Glove<br />

(luva que buscava simular, na tela, os movimentos reais do jogador) e NES Satellite (adaptador<br />

para remover os fios do controle).<br />

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Video game: análise ergonômica do jogador de Playstation<br />

Figura 1 - Evolução dos controles. Fonte: Lopez et al<br />

Somente na década de 1990, a partir da geração dos consoles 16-bits (Mega Drive<br />

da SEGA e SuperNES da Nintendo), é que a elaboração de novas possibilidades de fruição<br />

táteis dos videogames ficou aparentemente estagnada, em detrimento do desenvolvimento de<br />

gráficos tridimensionais e uma busca pelo realismo fotográfico nos jogos. O joystick (também<br />

chamado de gamepad) se tornou onipresente no cenário dos games domésticos, já que era<br />

praticamente a única interface de interação usuário-máquina oferecida pelos consoles (Lopez,<br />

2007). Desde então, o usuário o utiliza para efetuar os comandos do jogo, tais como andar,<br />

pular, dar socos e pontapés ou até mesmo voar: o controle. Ele vem sendo adaptado de<br />

acordo com as necessidades dos consoles e também às necessidades de adaptação às<br />

mãos dos usuários. Os tamanhos são variados, e o número de botões possui tendência a<br />

aumentar, forçando o usuário a obter ainda mais destreza no manejo dos mesmos (Perani e<br />

Bressan, 2009).<br />

Manejo dos controles, má posição e esforço repetitivo<br />

De acordo com Iida (2005), a forma de manipulação dos controles de video<br />

games é chamada de “manejo”, que é uma forma particular de controle, onde há predomínio<br />

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Video game: análise ergonômica do jogador de Playstation<br />

dos dedos e da palma das mãos, pegando, prendendo ou manipulando alguma coisa. Dentre<br />

as classificações do manejo, este pode se encaixar em manejo fino, pois é predominantemente<br />

executado com a ponta dos dedos, também chamado de manejo de precisão, enquanto a<br />

palma da mão e o punho permanecem relativamente estáticos.<br />

Durante o jogo, o usuário pode se colocar em diversas posições, seja sentado ou em<br />

pé, acarretando diferentes efeitos fisiológicos sobre o jogador. Pinto e López consideram boa<br />

postura como sendo o “estado de equilíbrio muscular e esquelético que protege as estruturas<br />

de suporte do corpo contra lesões ou deformidades progressivas independente da atitude nas<br />

quais estas estruturas estão trabalhando ou repousando”.<br />

Segundo Adams (1985), com uma postura deficiente as diversas partes do corpo ficam<br />

em desarranjo, causando um aumento do esforço para manter o equilíbrio de toda a estrutura<br />

corporal. Muitos são os fatores externos que influenciam este equilíbrio, entre eles os hábitos<br />

sedentares, o modelo dos móveis, o modismo e até o grau de luminosidade e a temperatura<br />

do ambiente. Na escola estes fatores estão muito presentes no dia a dia.<br />

Outro fator interveniente é o fato de os jovens ficarem numa mesma posição por tempo<br />

prolongado. A má postura e os hábitos incorretos do dia a dia podem levar ao aparecimento<br />

dos vícios de postura. Estas anomalias podem ocorrer em todos os segmentos do corpo.<br />

Uma pesquisa realizada através da análise postural de pessoas em frente a televisores indica<br />

que 81% costumam assistir à programação em posições consideradas prejudiciais, e em<br />

torno de 38% passam mais de 3 horas sem mudar a posição.<br />

Os computadores e video games têm sido, frequentemente, utilizados na faixa etária<br />

pediátrica. Nos Estados Unidos da América, Roberts et al (1999) evidenciou que 70% das<br />

famílias possuíam video games e mais de dois terços tinham computador em seu domicílio. Na<br />

Europa, dois estudos (Livingstone e Johnsson, 1998) realizados em sete países demonstraram<br />

que entre 41 e 85% das crianças e adolescentes de 6 a 17 anos tinham computador na sua<br />

residência, e entre 12 e 20% possuíam o aparelho em seu quarto. Nestes estudos, o tempo<br />

diário de uso de computador e jogos eletrônicos dos usuários destas tecnologias variou de 44<br />

a 89 minutos.<br />

Os computadores e video games estão presentes, também, na realidade de crianças e<br />

adolescentes brasileiros. As escolas, inclusive da rede pública estadual e municipal de algumas<br />

cidades brasileiras, têm disponibilidade de computadores para uso dos alunos (Gazeta, 1999).<br />

Inúmeros problemas têm sido associados ao uso de computadores e video games<br />

por crianças e adolescentes, tais como diminuição da atividade física e prática de esportes,<br />

obesidade, dor torácica, dor abdominal, fadiga, anorexia, ansiedade, cefaleia (Tazawa, Soukalo,<br />

Okada e Takada, 1997), comportamentos agressivos, convulsões por fotoestimulação e,<br />

particularmente, as dores musculoesqueléticas localizadas ou difusas (Emes, 1997).<br />

D.O.R.T. (Distúrbio Osteomuscular Relacionado ao Trabalho), denominação utilizada para<br />

as dores e lesões musculoesqueléticas associadas aos computadores, podem atingir qualquer<br />

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Video game: análise ergonômica do jogador de Playstation<br />

pessoa que exerça atividades que exijam esforços acima de sua capacidade física. Consiste<br />

em um conjunto de afecções do aparelho musculoesquelético que acometem músculos,<br />

tendões, ênteses, ligamentos, articulações, nervos e, mais raramente, vasos sanguíneos e<br />

tegumentos. Este distúrbio é consequência da realização de movimentos contínuos, posturas<br />

inadequadas e estresses emocionais por um período de tempo variado e pode se manifestar<br />

em qualquer parte do corpo, principalmente membros superiores (punho, antebraço, mão),<br />

coluna cervical e lombar (Yeng, Teixeira, Barbosa e Hsing, 1997)<br />

O D.O.R.T. pode acometer todas as idades e qualquer atividade ocupacional,<br />

principalmente entre 18 e 35 anos, e tem notável predominância no sexo feminino, sendo<br />

mais frequente em áreas como indústria metalúrgica, de alimentos, químicas, têxteis, serviços<br />

de telefonia e de computação. O uso de computadores é apontado como a principal razão<br />

para o crescimento do número de casos (Nicolleti, 1996). Atualmente, crianças pré-escolares,<br />

escolares e adolescentes vêm apresentando sintomas similares aos do D.O.R.T. de adultos e<br />

adolescentes em regime de trabalho (Silva, 2005).<br />

A utilização contínua e frequente de computadores e video games por crianças e<br />

adolescentes pode resultar em dores musculoesqueléticas, edemas, fadiga e incapacitação<br />

funcional. Estes sinais/sintomas aparecem após períodos variáveis da exposição aos fatores<br />

traumáticos (dias ou até anos). A dor pode ser como queimação ou peso, podendo ser<br />

acompanhada de formigamento e choques nas extremidades dos dedos. Na infância, é mais<br />

comum a presença de lesões inflamatórias (tendinites, artrites, bursites e entesites) ao invés de<br />

lesões neurológicas (hérnia de disco e síndrome do túnel do carpo) (Silva, 1998).<br />

Silva (2006), destaca a importância de se aprofundar o estudo das dores, síndromes e<br />

lesões do D.O.R.T. e seus possíveis fatores de risco em jovens. A melhor forma de prevenção<br />

das lesões, particularmente no adolescente em regime de trabalho, é a utilização da ergonomia<br />

adequada com flexibilidade corporal (exercícios de alongamento e relaxamento dos braços,<br />

punhos, mãos e coluna) em média 10 minutos a cada hora, e postura correta em frente<br />

aos computadores. As crianças e os adolescentes deveriam permanecer, no máximo, duas<br />

horas por dia em frente aos computadores e video games, e em caso de dores e lesões<br />

musculoesqueléticas, devem evitar o uso destes. A maior parte destas lesões tem cura, desde<br />

que o diagnóstico e a terapêutica sejam instituídos precocemente (Yeng, Teixeira, Barbosa e<br />

Hsing, 1997).<br />

Materiais e Métodos<br />

O estudo se dividiu em três etapas. Primeiramente, foi feita uma pesquisa com perguntas<br />

abertas e fechadas com 105 usuários ou ex-usuários de video games com idade entre 10 e 35<br />

anos – esta é a geração em que os video games se popularizaram, e usuários de mais idade<br />

acompanharam a evolução dos jogos, podendo relatar alguns efeitos desta atividade – com o<br />

objetivo de realizar um levantamento a respeito da divisão por sexo dos usuários, idade, horas<br />

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em função do jogo, acesso aos consoles, preferências e problemas relacionados à atividade.<br />

Os dados, então, foram cruzados para análise da relação entre os mesmos.<br />

A partir dos dados obtidos com a pesquisa, foi realizada uma filmagem, devidamente<br />

autorizada, com dois usuários do console Playstation, considerado o mais popular e mais<br />

confortável de acordo com a enquete, para análise da postura e da interação das mãos com<br />

os controles. Para tal, foi solicitado que estes usuários escolhessem três gêneros de jogos que<br />

considerassem possuir diferentes formas de interação com o controle. Os gêneros escolhidos<br />

foram aventura, luta e futebol. Para cada jogo foi feita uma análise dos níveis de atenção,<br />

variações posturais e maneiras de interação com o controle.<br />

Por fim, foi realizada uma análise postural utilizando o método RULA (explicado adiante),<br />

por se tratar de uma atividade estática sem ação dos membros inferiores.<br />

Resultados<br />

Pesquisa<br />

A pesquisa foi a principal fonte de informação a respeito dos usuários de video games.<br />

Foi realizada via internet para possuir maior abrangência geográfica, utilizando redes sociais<br />

como Orkut e Facebook, e e-mail para divulgação, permanecendo aberta durante quatro dias<br />

para as respostas. A pesquisa conteve cinco perguntas fechadas e duas abertas, com o<br />

propósito de conhecer o usuário sem tomar muito tempo do mesmo, para que este não<br />

desistisse de responder. A temática, por se tratar de uma atividade de lazer, foi muito bem<br />

recebida pelo público alvo, o que gerou um feedback bastante relevante por fora da enquete,<br />

auxiliando na análise dos usuários.<br />

A pesquisa visava ao esclarecimento dos seguintes itens:<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

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Video game: análise ergonômica do jogador de Playstation<br />

Perguntas Opções oferecidas<br />

a. Sexo Masculino;<br />

Feminino;<br />

b.Idade<br />

c.Possui video game? Sim;<br />

Não;<br />

d. Quantidade média de horas semanais que você costuma ou costumava<br />

jogar.<br />

e. Quais consoles (aparelhos de video game) você já teve a oportunidade<br />

de jogar?<br />

1h;<br />

Entre 2 e 4h;<br />

Entre 5 e 10h;<br />

Entre 11 e 19h;<br />

Mais de 20h;<br />

Playstation;<br />

Wii;<br />

Nintendo 64;<br />

Xbox;<br />

Dreamcast;<br />

Game Cube;<br />

Mega Drive;<br />

Master System;<br />

Super NES;<br />

Sega Saturn;<br />

Outros;<br />

f. Na sua opinião, qual o console possui o melhor controle (joystick)?<br />

g. Você já sentiu algum tipo de desconforto relacionado a esta atividade? Nunca;<br />

Nos dedos;<br />

Nas mãos;<br />

Nas costas;<br />

Nos braços;<br />

Nos antebraços;<br />

No pescoço;<br />

Nos olhos;<br />

Na cabeça;<br />

Outros;<br />

Tabela 1 - Pesquisa com o usuário<br />

As duas primeiras perguntas tiveram como intuito conhecer o perfil do usuário<br />

entrevistado, observando que, dos entrevistados, aproximadamente 23% eram mulheres, o<br />

que é importante ser levado em consideração por se tratar de um público com necessidades<br />

ergonômicas diferenciadas. A idade dos entrevistados esteve entre 10 e 35 anos e foi dividida<br />

em quatro áreas, menores de 19 anos, 19 a 24 anos, 25 a 30 anos e maiores de 30 anos.<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

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Video game: análise ergonômica do jogador de Playstation<br />

Figura 2 - Pergunta “a”: sexo dos usuários<br />

Figura 3 - Relação de idade entre os usuários<br />

Os usuários entre 19 e 24 anos foram considerados os mais relevantes, pois além de<br />

comporem a maior parcela dos entrevistados, fazem parte de uma geração do Brasil que<br />

vivenciou a ascensão dos video games no país conhecendo, desta forma, todos os consoles<br />

citados na pesquisa.<br />

A terceira pergunta procurou verificar o acesso dos usuários aos video games na própria<br />

residência. Muitos usuários relataram que possuem acesso através de amigos ou lojas para<br />

aluguel, pois preferem não possuir ou não têm condições de obter um aparelho no momento.<br />

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Video game: análise ergonômica do jogador de Playstation<br />

Figura 4 - Acesso dos usuários a video games em casa<br />

A quarta pergunta questionou os usuários sobre a quantidade de horas semanais que,<br />

em média, costuma ou costumava se dedicar a esta atividade. Esta pergunta é relevante para<br />

relacionar o número de horas de atividade frente ao console com os sintomas decorrentes<br />

disto. Muitos usuários comentaram que este cálculo depende de algumas variantes como<br />

novidade do jogo e tempo disponível, pois muitas vezes esse tempo poderia chegar até a 60<br />

horas semanais, mas durante um curto espaço de tempo, voltando à normalidade logo após<br />

esse período.<br />

Figura 5 - Relação de tempo gasto semanalmente com a atividade de jogar video game<br />

O público feminino entrevistado constou, principalmente, nas áreas entre 5 e 10 horas<br />

e 11 e 19 horas, chegando até relatar mais de 20 horas de jogo semanal.<br />

As duas perguntas seguintes propuseram relacionar o conhecimento dos usuários<br />

sobre o funcionamento dos consoles com a preferência pelo tipo de controle (joystick). Uma<br />

relação interessante encontrada foi a de que os usuários se adaptam melhor ao controle de<br />

Playstation, que também foi considerado como o console mais popular, mesmo a maioria<br />

tendo conhecido controles como o do console Wii, que possui liberdade de movimento e<br />

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Video game: análise ergonômica do jogador de Playstation<br />

procura interagir mais com o usuário.<br />

As opções oferecidas se basearam nos principais video games dos últimos 20 anos,<br />

sem especificar a versão do mesmo. Outros consoles indicados foram do Atari, Odissey, Neo<br />

Geo, que pela falta de popularidade não foram considerados na pesquisa.<br />

Figura 6 - Relação de popularidade dos consoles de acordo com o acesso que os usuários obtiveram aos<br />

mesmos<br />

A preferência pelos controles não contemplou grande parte dos consoles apresentados<br />

na pergunta anterior, e apareceram duas novas opções, o Atari – video game que possuia uma<br />

alavanca como controle – e o teclado de computador. O controle de Playstation foi o mais<br />

votado principalmente pela boa organização dos botões e facilidade de pega.<br />

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Video game: análise ergonômica do jogador de Playstation<br />

Figura 7 - Preferência dos usuários em relação ao controle (joystick)<br />

Figura 8 - Relação de controles de acordo com a preferência dos usuários: Playstation, Wii, Nintendo 64, Xbox,<br />

Super Nintendo e Game Cube<br />

A última pergunta questionava se o usuário, dentro das opções oferecidas, já sentiu<br />

algum tipo de desconforto relacionado à atividade. Problemas com mãos, costas e pescoço<br />

foram os principais relacionados. Este resultado confirmou as expectativas de que o número<br />

de horas gasto semanalmente na atividade é diretamente proporcional aos desconfortos<br />

causados pela mesma, apesar de alguns usuários relatarem nunca ter sentido desconforto ao<br />

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Video game: análise ergonômica do jogador de Playstation<br />

ficarem várias horas jogando.<br />

Filmagem<br />

Figura 9 - Relação de desconforto relacionado à atividade<br />

Com os resultados da pesquisa, o console Playstation foi selecionado como base para<br />

o estudo, por ser o mais popular e o que possui melhores condições de jogo de acordo<br />

com os usuários entrevistados. Foram selecionados, então, dois usuários do console para<br />

colaborar com a análise através de filmagem e tomada fotográfica previamente autorizadas.<br />

Foi aberta uma discussão com os jogadores para saber que tipo de jogos teriam<br />

diferentes tipos de interação com o controle, e foram selecionados três gêneros de acordo<br />

com o relato dos mesmos: aventura, esporte (futebol) e luta. As filmagens e observações<br />

duraram cerca de duas horas e foram realizadas da seguinte forma:<br />

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Video game: análise ergonômica do jogador de Playstation<br />

Figura 10 - Relação controle e áreas de interação<br />

O primeiro jogo analisado foi “O Senhor dos Anéis: o Retorno do Rei”, do gênero aventura.<br />

Foram realizadas duas filmagens da posição dos jogadores em dois momentos distintos,<br />

juntamente com uma tomada fotográfica a partir de outra câmera para, posteriormente, ser<br />

realizada uma análise de posição através do método RULA. Em seguida, foram realizados<br />

outros dois vídeos da interação dos usuários com o controle, em que foi observada uma<br />

interação quase total das mãos no manejo do mesmo. Os movimentos dos dedos são<br />

frequentes e vigorosos em alguns momentos, principalmente os polegares, que comandam a<br />

área principal do controle com dez botões disponíveis. Em outros momentos os movimentos<br />

são suaves e calmos.<br />

O segundo jogo foi o “Winning Eleven 9”, do gênero esporte. Novamente foram realizadas<br />

duas filmagens e tiragem de fotos para análise de posição. Uma observação relevante que<br />

surgiu durante esta análise foi que os jogadores piscavam os olhos em média de duas a três<br />

vezes por minuto, intercalando com piscadas consecutivas após um período de tempo, o<br />

que de acordo com Lavezzo (2007), é considerado o número mínimo de movimentos das<br />

pálpebras por minuto em pessoas adultas, podendo causar ressecamento do globo ocular se<br />

mantido por longos períodos de tempo.<br />

Este jogo exigia maior atenção dos usuários, fazendo com que eles intercalassem as<br />

posições de acordo com o nível de atenção necessário, diferentemente do anterior, no qual<br />

mantinham a posição por longos períodos de maneira relaxada. O manejo por sua vez, utilizava<br />

mais botões que o jogo anterior, e a interação com os botões era mais suave e duradoura,<br />

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Video game: análise ergonômica do jogador de Playstation<br />

com algumas variações de frequencia de movimento de acordo com a necessidade do jogo.<br />

“Tekken 5” foi o terceiro jogo observado, do gênero luta. Apenas uma filmagem foi<br />

realizada para a análise de posição, e foi notada a constante troca de posição, variando<br />

entre relaxamento total e altos níveis de atenção. O manejo do controle variou entre os dois<br />

jogadores, pois o jogo exigia apenas a utilização dos botões frontais de ação. Enquanto um<br />

utilizou o polegar, o outro usou o dedo médio e o indicador para possuir maior liberdade com<br />

as mãos. Os movimentos são intensos durante todo o período das lutas no jogo, e a tensão<br />

nas mãos e braços é aparente, forçando os jogadores a alongarem e “estalarem” as juntas dos<br />

dedos e mãos constantemente após certo tempo de jogo.<br />

O quarto jogo foi o “Mortal Kombat Armaggedon”, também do gênero luta. O interesse<br />

pelo movimento das mãos neste gênero fez com que fosse escolhido um novo jogo, que os<br />

usuários considerassem diferente do último, para uma nova filmagem apenas do manejo.<br />

O ponto mais interessante desta análise foi que não houve diferenças relevantes quanto à<br />

tensão, movimento, frequencia, mas um detalhe foi crucial: o jogo utilizava todos os botões do<br />

controle, obrigando os jogadores a manterem as mãos em posição mais neutra e confortável<br />

durante a atividade.<br />

Método RuLA<br />

O método RULA, ou Rapid Upper Limb Assessment, é um método ergonômico que<br />

avalia a exposição de indivíduos a posturas, forças e atividades musculares que possam<br />

contribuir para o surgimento de LER (Lesão por Esforço Repetitivo). Baseia-se na observação<br />

das posturas adotadas das extremidades superiores durante a execução de uma determinada<br />

atividade. O método consiste em uma tabela de escores onde são avaliados braço, antebraço,<br />

punho, estática, força, pescoço, tronco e pernas. O valor resultante vai variar entre 1 e 7,<br />

sendo que as pontuações mais altas são indicações de que aparentemente há um risco mais<br />

elevado.<br />

Primeira posição avaliada: escore 2. Esta pode ser considerada a posição mais<br />

confortável segundo o método de avaliação, pois, aparentemente, não possui sérios riscos à<br />

saúde do indivíduo (figura 11).<br />

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Figura 11 - Análise de posição segundo método RULA<br />

Segunda posição avaliada: escore 5. Esta posição requer um pouco de atenção devido<br />

ao posicionamento da cabeça, tensão nos ombros e inclinação de tronco, podendo ser danosa<br />

se mantida por longos períodos (figura 12).<br />

Figura 12 - Análise de posição segundo método RULA<br />

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Terceira posição avaliada: escore 3. Esta posição, aparentemente normal, esconde<br />

alguns problemas como giro e tensão de pescoço e apoio do peso nas costas (figura 13).<br />

Figura 13 - Análise de posição segundo método RULA<br />

Avaliar as posições dos jogadores, até o momento, serve apenas como uma orientação,<br />

pois não há como exigir um modo correto de se praticar esta atividade. A evolução dos jogos<br />

eletrônicos no futuro, assim como tem sido apresentado em feiras mundiais de games, trará<br />

novas formas de interação com o usuário, fazendo com que o mesmo seja obrigado a se utilizar<br />

do próprio corpo e próprias experiências para jogar, fazendo com que haja mais controle sobre<br />

as ações do jogador, evitando que este acabe prejudicando a si, mesmo sem saber.<br />

Conclusão<br />

Os resultados desta pesquisa se dividem em quatro conclusões sobre pontos<br />

específicos do estudo, uma sobre posição e atenção do jogador, e três sobre manejo e projeto<br />

ergonômico do controle.<br />

A posição do jogador durante a execução da tarefa é praticamente impossível de<br />

ser padronizada quando o usuário está em sua própria casa, pois muitas variantes estão<br />

envolvidas como posição do aparelho de televisão, local para sentar, nível de atenção do<br />

jogador. O que se observa neste ponto, é que jogos que exigem diferentes níveis de atenção,<br />

fazem com que o jogador mude constantemente de posição, enquanto outros que mantêm<br />

um nível constante de atenção exigida no roteiro, fazem com que o usuário permaneça na<br />

mesma posição durante muito tempo, prejudicando, desta forma, algumas partes do corpo<br />

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exigidas na mesma, como ombros tensionados, pescoço “pendurado” ou braços erguidos.<br />

A segunda conclusão obtida com a pesquisa foi que os controles convencionais não<br />

exigem uma interação equilibrada de todos os dedos, pois em 95% do tempo os polegares<br />

estão em movimento nas áreas de ação e movimento principais (figura 14), enquanto os outros<br />

dedos permanecem na mesma posição. Uma maior distribuição de carga de trabalho dos<br />

dedos poderia tornar a atividade menos prejudicial, diminuindo, assim, a probabilidade de<br />

surgimento de lesões por esforço repetitivo.<br />

Figura 14 - Áreas de interação dos polegares<br />

A ocupação dos dedos também é um fator muito importante, observado principalmente<br />

na relação entre os dois jogos do gênero luta. Enquanto um exigia que todos os dedos<br />

estivessem em suas posições para cumprir suas tarefas específicas, o outro ocupava apenas<br />

os polegares, dando liberdade ao jogador para utilizar o controle da maneira como achasse<br />

mais conveniente para cumprir a tarefa. Neste segundo, como foi observado, um dos jogadores<br />

manteve a pega em apenas uma das mãos e manejou de forma aparentemente prejudicial os<br />

botões de ação com os dedos da mão direita. É importante, então, ressaltar que um jogo<br />

que utiliza todo o potencial do controle evita que o jogador invente maneiras que não foram<br />

pensadas para jogar.<br />

Figura 15 - Área de ocupação dos dedos<br />

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Video game: análise ergonômica do jogador de Playstation<br />

Por fim, anatomicamente a posição dos botões e pegas poderia ser ajustável de<br />

acordo com a necessidade e conforto do usuário, pois algumas posições de botões são<br />

desconfortáveis para quem possui mãos maiores ou menores do que as definidas como<br />

padrão para a criação do produto, causando muita contração ou alongamento dos dedos de<br />

maneira desnecessária (figuras 16 e 17).<br />

Figura 16 - Possibilidade de intervenção ergonômica<br />

Figura 17 - Dedos contraídos para alcançar as extremidades do controle<br />

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Video game: análise ergonômica do jogador de Playstation<br />

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AS TENDêNCIAS E O DESIGN: METODOLOGIA DE PROJETO DO<br />

MOBILIáRIO ORIENTADA PARA O FuTuRO<br />

Aline Teixeira de Souza; Profª Me. em Desenho Industrial: Faculdade de Arquitetura e Urbanismo<br />

e <strong>Design</strong>, <strong>Universidade</strong> Federal de Uberlândia<br />

Marizilda Santos de Menezes; Profª Dra. em Arquitetura e Urbanismo: PPG em <strong>Design</strong>, Faculdade<br />

de Arquitetura, <strong>Arte</strong>s e Comunicação, <strong>Universidade</strong> Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”<br />

Resumo<br />

As constantes transformações sociais, culturais e políticas<br />

influenciam diretamente a vida das pessoas e delimitam suas<br />

necessidades e gostos. As tendências têm o papel de sinalizar por<br />

meio desses fatos as preferências das pessoas em relação aos<br />

objetos, podendo ser, portanto, grandes aliadas do design, já que<br />

este trabalha com projeto que é uma atividade de planejamento<br />

do futuro. Esse trabalho traz resultados de um estudo sobre as<br />

tendências e o desenvolvimento de móveis residenciais no Brasil e<br />

tem como principal objetivo apresentar os benefícios da utilização<br />

das tendências como ferramenta para o projeto de mobiliário.<br />

Palavras-Chave: design de mobiliário; tendências; diretrizes<br />

projetuais<br />

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As tendências e o design: metodologia de projeto do mobiliário orientada para o futuro<br />

Apresentação<br />

A cada mudança de ano, novas formas, cores, materiais e funções configuram o<br />

mobiliário utilizado nas residências brasileiras. Essas mudanças obedecem a um ciclo e são<br />

direcionadas por tendências de consumo e comportamento. Dessa forma, as mudanças<br />

adquirem uma importância especial na vida das pessoas que passam a seguir padrões de<br />

consumo e a considerar menos importante o que não pertence a esse conjunto.<br />

Nesse contexto, por ser um objeto de uso particular na vida das pessoas, revelando o<br />

que as mesmas são ou pretendem ser, modelando a casa para o uso ou apoiando recordações<br />

e objetos pelos quais se tem afeto, tem-se a hipótese de que o mobiliário seja um produto que<br />

tem valor distinto no que se diz respeito às tendências.<br />

No entanto, o conceito de tendências associado ao desenvolvimento de mobiliário<br />

é muitas vezes equivocado. Ao invés das informações que trazem a respeito do futuro do<br />

consumidor serem convertidas em móveis que satisfaçam as necessidades físicas e psicológicas<br />

das pessoas, são utilizadas superficialmente por meio de configurações puramente estéticas<br />

com o objetivo de aumentar as vendas. Além do que, em alguns casos, a tendência é entendida<br />

como a cópia de móveis estrangeiros ou então imposta por fornecedores de matéria-prima<br />

que acabam por decidir cores, acabamentos, materiais e acessórios.<br />

É possível integrar a esses fatos a necessidade de requerer o cultivo de uma metodologia<br />

de desenvolvimento de móveis em que as mudanças de comportamento e consumo não<br />

sejam vistas como causalidade, mas como um instrumento de transformação de dados em<br />

informações projetuais.<br />

Esse trabalho traz resultados de um estudo sobre as tendências e o desenvolvimento<br />

de móveis residenciais no Brasil e tem como principal objetivo apresentar os benefícios da<br />

utilização das tendências como ferramenta de projeto para o designer de móveis.<br />

Tendências: conceituação<br />

A compreensão do conceito de tendência pode ser confusa para a maioria das pessoas.<br />

Principalmente, pelo fato do termo ter ganhado muitos sentidos nos dias atuais. Para Caldas<br />

(2004) fala-se sobre tendências para quase tudo: no setor tecnológico, na atmosfera social,<br />

na área da saúde, entre outros meios bem distintos entre si. Assim, a banalização do conceito<br />

fez com que no entendimento popular, as tendências estejam relacionadas à construção do<br />

futuro.<br />

De acordo com o mesmo autor, a origem da palavra tendência vem do latim tendentia,<br />

proveniente do verbo tendere, que tem por significado “tender para”, “inclinar-se para” ou “ser<br />

atraído por”. De forma que sua existência possa ser entendida a partir da atração exercida por<br />

um objeto, seja por movimento ou por abrangência. Assim, tendência é uma manifestação,<br />

na esfera do comportamento, do consumo ou do “espírito do tempo”, de uma sensibilidade<br />

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As tendências e o design: metodologia de projeto do mobiliário orientada para o futuro<br />

anunciada por sinais.<br />

Destes vocábulos se sintetizam os seguintes sentidos: uma propensão, disposição,<br />

aptidão, envergadura, de forma que cause oscilação intencional.<br />

Conforme Campos (2007) as tendências sinalizam uma convergência periódica de<br />

escolhas, que apontam o que deve ser seguido e apreciado. A cada determinado período,<br />

acrescentam-se, renovam-se ou confirmam-se estilos. Para a autora “Pensar em tendências<br />

é pensar em futuro, ou melhor, em possibilidades de futuros – alguns mais distantes e outros<br />

bem próximos.”<br />

Sobre a afinidade das tendências com o futuro, Oliveira (2006) diz que compreender<br />

as tendências é preocupar-se com o futuro por estas se encontrarem neste estado temporal<br />

e definirem características do mesmo. Para ela, os estudos que abordam as análises de<br />

tendências buscam a identificação e precipitação de comportamentos e características<br />

futuras dos consumidores. Possibilita visualizar indicadores econômicos, sociais, tecnológicos,<br />

políticos e geográficos, com fundamento em uma metodologia e não em previsões.<br />

É comum o emprego do conceito de tendência em um contexto que está acontecendo<br />

em um dado momento, como: “a exposição servirá de vitrine para as últimas tendências em<br />

mobiliário”. No entanto, é importante esclarecer que, as tendências tratam do que está por vir,<br />

do que não aconteceu, elas dão vestígios, sinais e indícios do que vai surgir, ou seja, do futuro,<br />

como abordam os autores.<br />

Novik (2005) acredita que a pré-configuração de cenários futuros é matéria de trabalho<br />

do design, moda e do marketing, mas em cada caso, a medida do futuro é diferente de acordo<br />

com o produto e o serviço, seu tempo de desenvolvimento e difusão.<br />

No caso do design, Heeman e Pereira (2008) dizem que as tendências podem<br />

ser encaradas como sinais em manifestação, percebidos no cotidiano humano, em seu<br />

comportamento e no que apreciam consumir na época. Estes sinais anunciam ou prenunciam<br />

um estado em formação: o futuro. Assim, é possível fazer uso das tendências como ferramenta<br />

metodológica, como uma atitude preventiva, porém sem o caráter determinista.<br />

As tendências têm o poder de dar sinais prévios de hábitos, gostos, desejos,<br />

possibilitando a identificação de formas, funções ou cores. Mas, elas não surgem do acaso.<br />

Ao abordar a origem das tendências Montaña (2005, p.1) afirma que “elas não são capricho<br />

dos modistas. São determinadas pela percepção dos acontecimentos da sociedade”.<br />

É comum nos veículos de informação que as tendências sejam empregadas como<br />

o aproveitamento de cores e formas ditadas por centros de moda, mas segundo o autor,<br />

as tendências provêm das manifestações, sensações e sentimentos que se montam com<br />

o agrupamento humano ao longo de sua evolução. Assim é possível afirmar que elas se<br />

estabelecem a partir de fatos e acontecimentos, movimentos e ideologias, sensações e<br />

necessidades psicológicas, estilos de vida, idade, influências de outras culturas e de modos<br />

de vida.<br />

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As tendências e o design: metodologia de projeto do mobiliário orientada para o futuro<br />

Metodologia de projeto do mobiliário<br />

Os projetos de design podem ser entendidos como uma série de procedimentos<br />

ordenados que visam buscar uma solução que atenda às necessidades dos usuários e às<br />

restrições industriais. À seqüência lógica de execução desses procedimentos se dá o nome de<br />

método. O planejamento e o cumprimento de etapas estabelecidas tornam o desenvolvimento<br />

do projeto mais produtivo em menos tempo. As fases de operações do método de projeto são<br />

formadas por instrumentos que ajudam os designers a organizar e planejar o que será feito.<br />

Apesar de se encontrar um grande número de bibliografia sobre metodologia do projeto, o<br />

método de design não é absoluto, nem definitivo, ele pode ser modificado de acordo com a<br />

necessidade.<br />

As propostas de metodologia de projeto de Baxter (1998), Löbach (2001) e Munari<br />

(1998), mais comumente recomendadas para projetos gerais, e, portanto, aplicáveis ao projeto<br />

de móveis possuem algumas diferenças básicas, de seqüência das ações e de nomenclatura.<br />

No entanto, essencialmente, elas são constituídas por quatro fases fundamentais:<br />

1 - Levantamento de dados<br />

2 - Geração de propostas<br />

3 - Avaliação das propostas<br />

4 - Realização e implementação do produto<br />

Essas etapas são formadas por ferramentas e técnicas de pesquisa e projeto, que<br />

podem ser adaptadas conforme a demanda do produto a ser desenvolvido.<br />

Merege (2001 apud Venâncio, 2002) propõe uma metodologia de projeto específica ao<br />

setor moveleiro que pode ser dividida em quatro etapas:<br />

- A de levantamento na qual são levantadas informações sobre a concorrência, os<br />

materiais e os processos produtivos que fazem parte do contexto da empresa ou<br />

aqueles em que se pode investir;<br />

- A análise dos dados levantados que dá origem a uma lista dos limites do projeto, a<br />

partir da qual é formulado um briefing, tendo como base os limites de compatibilização,<br />

a avaliação comercial, industrial, de custos e a cultura setorial;<br />

- A de desenvolvimento, em que é realizado um brainstorming quantificando e qualificando<br />

soluções, são gerados esboços iniciais, elaboradas representações tridimensionais das<br />

melhores idéias para testes e é realizada a definição cromática e dos acabamentos;<br />

- E a de implantação que consiste na complementação projetual e avaliação do projeto<br />

por meio do acompanhamento da execução do protótipo, adequação a custos e<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

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As tendências e o design: metodologia de projeto do mobiliário orientada para o futuro<br />

prazos, acompanhamento do material gráfico, desenvolvimento da embalagem e<br />

acompanhamento do lote piloto.<br />

A vantagem do emprego desta metodologia é que ao longo de todo o processo existe<br />

a intervenção do design, diminuindo riscos de posteriores correções. No entanto, o fato de<br />

existirem metodologias de projeto mais abrangentes ou mais específicas para o design de<br />

móveis, não significa que as mesmas sejam utilizadas nas indústrias moveleiras. A verdade<br />

é que em muitas indústrias não existe nenhum setor de design ou sequer um designer<br />

trabalhando, e conseqüentemente, o mesmo acontece em relação à metodologia de projeto.<br />

Tendências: projeto de mobiliário orientado para o futuro<br />

As informações apresentadas reforçam a importância da atividade projetual no<br />

desenvolvimento do mobiliário e, principalmente, do levantamento de dados sobre o usuário<br />

do produto, já que o móvel é um objeto que envolve aspectos físicos e sensoriais. Por meio<br />

do levantamento de informações é possível entender o usuário, seus anseios e necessidades<br />

físicas e psicológicas. Nesse contexto, as informações que as tendências carregam, ganham<br />

a mesma importância, já que elas antecipam essas necessidades.<br />

Heemann e Pereira (2008) explicam que a abordagem do futuro na metodologia de<br />

design é importante, pois os designers concebem produtos que serão lançados no mercado<br />

meses ou anos depois da atividade projetual. Acrescentam que a postura antecipatória é<br />

proeminente porque produtos concebidos de modo inadequado a determinado período<br />

causam transtornos irreparáveis à sociedade. A implantação de um planejamento sistemático<br />

do futuro, então, serviria para a antecipação de eventualidades, preparação de contingências<br />

e exploração de novas escolhas.<br />

Oliveira (2006) acredita que nas sociedades em desenvolvimento, dialogar com o futuro<br />

por meio das tendências de comportamento ou outros focos de interesse é uma necessidade<br />

fundamental para sua organização, segundo a autora somente as sociedades desorganizadas<br />

tomam medidas sem planejamento.<br />

Esse conhecimento pode ser extraído no design de móveis a fim de organizar o processo<br />

produtivo. Pois, é melhor fazer uso de uma postura pró-ativa que pensar em uma reação às<br />

situações indesejáveis, já que a mesma pode ser mais cara e improdutiva.<br />

Heeman e Pereira (2008) dizem que a fase informacional do projeto é ideal para a<br />

formação de uma base de dados antecipatórios para que as ações dos designers repercutam<br />

em benefícios por meio de produtos. No processo que contempla o futuro, segundo os autores,<br />

além das ações habituais:<br />

- o contexto futuro no qual o produto será inserido deve ser compreendido;<br />

- os produtos concorrentes e similares devem ser analisados em relação ao futuro;<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

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As tendências e o design: metodologia de projeto do mobiliário orientada para o futuro<br />

- o ciclo de vida do produto deve ser modelado de acordo com clientes futuros para<br />

cada uma das fases do ciclo;<br />

- as necessidades futuras de todos os clientes devem ser consideradas.<br />

Dantas (2005) propôs um instrumento projetual para o design de objetos que parte da<br />

análise de tendências sócio-culturais e tecnológicas, tendo como fator central do projeto o<br />

usuário. O objetivo da proposta é auxiliar o designer a compreender o perfil e as necessidades<br />

do usuário, dentro do cenário contemporâneo. A autora explica que na sociedade pósindustrial,<br />

o foco do projeto se transferiu da produção para o usuário e suas ações, assim, o<br />

objeto material passou a ser um elemento capaz de permitir a execução dessas ações, um<br />

prolongamento dos sentidos humanos, deixando de ser pensado como fonte de lucros, mas<br />

como um elemento de ligação entre o cliente e a marca.<br />

O instrumento projetual proposto por Dantas, chama-se SCENARIO (Sistema de<br />

Concepção Especulativo de Novos Ambientes Relacionados ao Individuo e ao Objeto). De<br />

modo resumido, contempla as fases de execução demonstradas na Tabela 1:<br />

Etapa Preliminar<br />

Antecede as etapas propostas no instrumento e tem como objetivo definir algumas abordagens<br />

importantes para o projeto. Assim, são estabelecidos parâmetros denominados Norteadores do<br />

Problema (NP) onde são definidos mais claramente os objetivos do projeto.<br />

Etapa 1 – A construção do Personagem e seu Cenário<br />

É determinado um perfil de personagem e o cenário para o qual o objeto será projetado. Para tal, são<br />

aplicadas técnicas específicas para a identificação das necessidades e padrões comportamentais. É<br />

a fase mais longa, pois envolve os dois elementos mais complexos da proposta: o personagem e o<br />

cenário. A autora sugere que o perfil profissional dessa etapa seja uma equipe multidisciplinar.<br />

Etapa 2 – Projeções e Simulações<br />

Esta é uma fase mais simples, pois consiste na aplicação dos dados já coletados na fase anterior. Ela<br />

tem como objetivo criar cenários de projeção e simulações, que possam incluir o novo objeto, para<br />

que o entendimento da relação deste com o personagem e o entorno seja facilitada.<br />

Etapa 3 – uma história Possível: a descrição do novo cotidiano<br />

Esta última etapa tem por objetivo a elaboração de um material de consulta facilitada que consiga<br />

descrever um novo cotidiano, a partir da junção dos três elementos que o edificam: personagem,<br />

cenário e objetos.<br />

Tabela 1 Descrição das fases do instrumento projetual SCENARIO<br />

Segundo a autora, o principal problema a ser eliminado com o instrumento projetual<br />

sugerido é a propensão que o designer tem de realizar “auto-projeto” e a principal vantagem é<br />

a possibilidade de um afastamento do projeto dando espaço a uma visão mais crítica. Sobre<br />

a projeção de cenários futuros para o desenvolvimento de objetos, a autora explica que ao<br />

analisar o fundamento do “projetar” entende-se que se trata de uma ação para o futuro, como<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

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As tendências e o design: metodologia de projeto do mobiliário orientada para o futuro<br />

uma previsão, intenção ou planejamento, o que reforça a idéia da utilização das informações<br />

das tendências na atividade projetual.<br />

Desse modo, é possível que se pense que as tendências ditarão um único caminho a<br />

ser seguido em se tratando da configuração do produto. No entanto, Caldas (2004) explica<br />

que:<br />

O resultado pretendido da prospecção de tendências não é provar que ‘só<br />

existe uma direção a seguir e que ela é a certa’, à maneira positivista, mas, bem<br />

ao contrário, abrir um leque de condições possíveis e plausíveis com relação<br />

ao futuro e, a partir dos sinais recolhidos no presente, construir narrativas<br />

grávidas de sentido. (p.93).<br />

A pesquisa de tendências pode, assim, contribuir para o design de mobiliário<br />

com inúmeras informações que abrangem tanto aspectos objetivos para a especificação do<br />

produto, como pela criação de sentido para valores subjetivos.<br />

Para Bürdek (2006, p. 52), as tendências são “uma forma de dar à empresa sugestões<br />

de curto prazo, de como a forma de vida e o estilo do usuário se modificam, e a que padrões<br />

ele se orienta para tirar conclusões atuais”.<br />

Considerações Finais<br />

A sociedade está em constante transformação e essas transformações estão ocorrendo<br />

de forma acelerada devido à globalização e as novas tecnologias. O projeto que por uma<br />

questão etimológica aborda uma atividade futura deve ser tratado como um trabalho de<br />

planejamento que inclui o futuro em todos os sentidos.<br />

As indústrias de móveis, por meio de seus representantes, precisam entender que para<br />

sua sobrevivência e ampliação no mercado, é necessário apresentar inovações e contemplar<br />

essas mudanças em seus produtos. Isso porque as necessidades das pessoas se modificam<br />

com o tempo e com as circunstâncias.<br />

Sobre a questão do conceito de tendências ser usado de maneira equivocada e ser<br />

amplamente confundido com aqueles que dizem respeito à moda, recomenda-se o ensino do<br />

termo e seus aproveitamentos nas disciplinas de projeto nas escolas de design.<br />

Considerando a identificação de novas variáveis ao longo do trabalho, sugere-se para<br />

a realização de novas pesquisas:<br />

- Elaboração de modelos de pesquisa de tendências específicos para o setor moveleiro;<br />

- Estudos de ferramentas para identificação de tendências;<br />

- Pesquisas sobre a viabilidade de formação de profissionais especialistas em<br />

identificação de tendências;<br />

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As tendências e o design: metodologia de projeto do mobiliário orientada para o futuro<br />

- Estudo comportamentais de pessoas de diferentes níveis sociais e culturais, regiões<br />

geográficas, entre outros, para a projeção de cenários futuros.<br />

Referências<br />

BAXTER, Mike. Projeto de Produto: Guia prático para o design de novos produtos. São<br />

Paulo: Edgard Blücher, 1998.<br />

BÜRDEK, Bernhard. <strong>Design</strong>: história, teoria e prática do design de produtos. São Paulo:<br />

Edgard Blücher, 2006.<br />

CALDAS, Dario. Observatório de Sinais: Teoria e prática da pesquisa de tendências. 2<br />

ed. Rio de Janeiro: SENAC/RIO, 2004.<br />

CAMPOS, Maria Aparecida Siqueira. A pesquisa de tendências: uma orientação<br />

estratégica no design de jóias. Dissertação apresentada à Pontifícia <strong>Universidade</strong> Católica<br />

do Rio de Janeiro para obtenção do título de Mestre em <strong>Arte</strong>s e <strong>Design</strong>. Rio de Janeiro, 2007.<br />

DANTAS, Denise. <strong>Design</strong> orientado para o futuro, centrado no usuário e na análise de<br />

tendências. Tese apresentada à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da <strong>Universidade</strong> de<br />

São Paulo, para obtenção do título de Doutor em Arquitetura e Urbanismo. São Paulo, 2005.<br />

HEEEMAN, Adriano. PEREIRA, Juliana Chags. O futuro sob a ótica do design de produtos:<br />

tendência de sustentabilidade e responsabilidade social. In: MIG – Revista Científica<br />

de <strong>Design</strong>. Abril 2008, nº 2. Edição especial ENSUS 2008 (Encontro de Sustentabilidade),<br />

Balneário de Camboriú, 2008.<br />

LÖBACH, Bernd. <strong>Design</strong> industrial: bases para a configuração dos produtos industriais.<br />

São Paulo: Edgard Blücher, 2001.<br />

MONTAÑA, Jorge. De onde vêm as tendências. Seção de Artigos, Rede <strong>Design</strong> Brasil.<br />

2005. Acesso em: 17 de Julho de 2008. Disponível em: http://www.designbrasil.org.br/portal/<br />

opiniao/exibir.jhtml?idArtigo=132<br />

MUNARI, Bruno. Das coisas nascem coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1998.<br />

NOVIK, Laura. Preparados para el futuro: <strong>Moda</strong>, diseño e tendencias. ACTO, Revista de<br />

Diseño Industrial, volume 4, No 1, Editada pela Facultad de <strong>Arte</strong>s, Universitad Nacional Del<br />

Colombia, Novembro de 2005.<br />

OLIVEIRA, Ana Sofia Carreço. O estudo das tendências para o processo de design.<br />

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à <strong>Universidade</strong> do Estado de Santa Catarina<br />

para obtenção do título de Bacharel em <strong>Design</strong> Industrial. Florianópolis, 2006.<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

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As tendências e o design: metodologia de projeto do mobiliário orientada para o futuro<br />

VENÂNCIO. Sarah da Rocha. Estudo da Inserção do <strong>Design</strong> na Inovação de Produtos na<br />

Indústria Moveleira do Paraná: o caso do Pólo de Arapongas. Dissertação apresentada<br />

ao Centro Federal de Educação Tecnológica do Paraná para obtenção do título de Mestre em<br />

<strong>Tecnologia</strong>. Curitiba, 2002.<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

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A INOVAçãO ATRAVéS DA RELAçãO DA GESTãO DE DESIGN<br />

COM OS PRINCíPIOS DO DESIGN ThINKING<br />

Diego Daniel Casas; Mestrando em <strong>Design</strong> Gráfi co: UFSC<br />

diegodcasas@gmail.com<br />

Eugenio Andrés Díaz Merino; Dr. Engenharia de Produção: UFSC<br />

merino@cce.ufsc.br<br />

Resumo<br />

Na busca por diferenciar-se perante as concorrentes e obter lugar<br />

de destaque no mercado, as empresas utilizam de diferentes<br />

estratégias para manterem-se competitivas. O design e o modo que<br />

é gerenciado são fatores importantes nas empresas que buscam<br />

a inovação. Este artigo estabelece um paralelo entre inovação<br />

e gestão de design para então focar no objetivo principal que é<br />

relacionar a gestão de design com princípios do design thinking.<br />

Como metodologia para alcançar o objetivo foi utilizada uma<br />

pesquisa exploratória e bibliográfica. Os resultados alcançados<br />

mostram que a gestão de design está estreitamente relacionada<br />

com os princípios do design thinking (inspiração, ideação e<br />

implementação) e que estabelecer esta relação é importante para<br />

empresas que tenham como objetivo a inovação.<br />

Palavras-Chave: gestão de design; Inovação; design thinking<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

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A inovação através da relação da gestão de design com os princípios do <strong>Design</strong> Thinking<br />

Introdução<br />

Um fator determinante para a competitividade é o grau de inovação e, empresas<br />

inovadoras tendem a atingir maior lucratividade, conforme afirma Serafim (2008). E de acordo<br />

com Gurgel:<br />

[...] a abertura econômica, o processo de privatização e de internacionalização<br />

das empresas fez com que fatores como a capacitação tecnológica, a atividade<br />

de Pesquisa & Desenvolvimento (P&D) e o grau de inovação tecnológica se<br />

tornassem essenciais para as empresas que quisessem competir no mercado<br />

globalizado. (GURGEL, 2006, p.68)<br />

O design, que segundo Lobach (2001) pode ser compreendido no sentido amplo como<br />

a concretização de uma idéia em forma de projetos, tem seu papel neste contexto, pois é peça<br />

participante do sistema de produção e consumo das corporações. Sendo assim, também é<br />

importante a forma como é conduzida a gestão de design neste meio. Esta é definida por<br />

Gimeno (2000, p.25) como o “conjunto de técnicas de gestão empresarial dirigida a maximizar,<br />

ao menor custo possível, a competitividade que obtém a empresa pela incorporação e utilização<br />

do design como instrumento de sua estratégia empresarial”.<br />

Por sua vez, o design thinking propõe a incorporação dos métodos de solução de<br />

problemas e de geração de idéias dos designers à organização tradicional visando ampliar<br />

horizontes e incentivar uma orientação mais inovadora (BROWN, 2010).<br />

No presente artigo, para tanto, é estabelecido um paralelo entre inovação e gestão de<br />

design para chegar ao objetivo central do artigo, que é relacionar a gestão de design com<br />

princípios do design thinking.<br />

Como metodologia será tomada como base a taxonomia proposta por Gil (2002)<br />

que separa a classificação das pesquisas em dois grupos: quanto aos objetivos e quanto<br />

os procedimentos técnicos utilizados. Inicialmente foi realizada uma pesquisa exploratória<br />

para definir os objetivos e em seguida, como procedimento técnico realizou-se pesquisa<br />

bibliográfica. Nortearem esta pesquisa artigos e livros da área de gestão de design e design<br />

thinking.<br />

Fundamentação teórica<br />

Inovação & gestão de design<br />

Segundo Gurgel (2006), atualmente os fatores de produção tradicionais – trabalho,<br />

capital e recursos naturais – já não são suficientes para assegurar o progresso. Cada vez mais,<br />

o conhecimento e a tecnologia assumem papel estratégico no processo de desenvolvimento<br />

econômico. Contudo apenas o acúmulo de conhecimento também não é suficiente. É<br />

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A inovação através da relação da gestão de design com os princípios do <strong>Design</strong> Thinking<br />

necessária a sua aplicação, que ele se torne tangível, ou em última instância, é preciso inovar,<br />

aplicar o conhecimento na solução de problemas concretos.<br />

De acordo com o mesmo autor, a capacidade de inovar se tornou um dos fatores mais<br />

relevantes na determinação da competitividade das empresas e da economia em geral. E<br />

os problemas que essas empresas e economias vêm enfrentando envolvem cada vez mais<br />

transformações, tomadas de decisões e desenvolvimento de soluções que nem sempre podem<br />

ser embasadas em experiências anteriores, o que torna a inovação fator preponderante.<br />

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) define inovação como “(...) a<br />

implementação de produtos (bens ou serviços) ou processos tecnologicamente novos ou<br />

substancialmente aprimorados. A implementação da inovação ocorre quando o produto é<br />

introduzido no mercado ou quando o processo passa a ser operado pela empresa.” (IBGE,<br />

2003: p.18)<br />

Para Schumpeter (1988) a inovação é um conjunto de novas funções evolutivas que<br />

alteram os métodos de produção, criando novas formas de organização do trabalho e, ao<br />

produzir novas mercadorias, possibilita a abertura de novos mercados através da criação de<br />

novos usos e consumos.<br />

Segundo o mesmo autor, a inovação pressupõe a entrada de cinco novos fatores: a<br />

introdução de um novo produto, a introdução de um novo método de produção, a abertura de<br />

um novo mercado (ou oceanos azuis, segundo Kim e Mauborgne, 2005), a conquista de uma<br />

nova fonte de fornecimento de matéria, e a consumação de uma nova forma de organização<br />

de uma indústria.<br />

Por sua vez, Robertson (1967 apud Wylant, 2008) propõe três tipos de inovação:<br />

- Contínua: é uma melhoria pequena sobre algo que já exista, como um novo sabor<br />

de goma de mascar.<br />

- Dinamicamente contínua: é uma grande melhoria em alguma funcionalidade já<br />

existente, como a introdução dos monitores LCD sobre os monitores de tubo.<br />

- Descontínua: é a introdução de uma significante nova tecnologia que leva a novos<br />

usos e funcionalidades, como a introdução da internet no meio da tecnologia de<br />

informação.<br />

De acordo com Gurgel (2006) o melhor aproveitamento das políticas de apoio à inovação<br />

depende de um processo interno da empresa: o processo de gestão da inovação. A gestão<br />

da inovação envolve desde as idéias das pessoas, até modelos de negócio das empresas:<br />

é uma atividade multidisciplinar e multifuncional que abrange tanto P&D, quanto produção e<br />

operações, marketing e desenvolvimento organizacional.<br />

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A inovação através da relação da gestão de design com os princípios do <strong>Design</strong> Thinking<br />

O Manual de Gestão de <strong>Design</strong> (1997) acrescenta que as atividades de uma empresa<br />

só podem ser eficazes se forem constantemente renovadas, de modo a gerar-se um conflito<br />

entre a gestão que deve ter em conta as operações atuais e a necessidade de inovação. É<br />

preciso estabelecer um fio condutor que ligue a inovação ao mundo da empresa que, do ponto<br />

de vista da sua organização e economia, é incapaz de absorver muitas das transformações<br />

que surgem.<br />

Um dos fios condutores é o design e por meio de sua gestão pode se viabilizar a<br />

ligação entre a organização (e suas estratégias) à inovação. Isto porque, segundo Phillips<br />

(2008), através da gestão de design, o designer participa na construção da visão, estratégia e<br />

vantagens competitivas da corporação.<br />

Com a mesma terminologia – gestão de design –, é possível encontrar referências a<br />

diferentes níveis. O Manual de Gestão de <strong>Design</strong> (1997) aborda dois níveis: operacional e<br />

estratégico.<br />

O nível operacional se encontra intimamente relacionado com a concepção do projeto,<br />

ou seja, com as atividades que se realizam durante o processo de transformação de uma<br />

idéia num produto físico. Já o nível estratégico, integra o design na estratégia da organização<br />

e pressupõe a aceitação e compromisso desta em dotar o design de recursos, meios e<br />

organização suficientes para desenvolvimento de projetos (MANUAL DE GESTÃO DE DESIGN,<br />

1997).<br />

Para Martins e Merino (2008, p.157), os processos operacionais “referem-se à realização<br />

efetiva do projeto e são constantemente verificados pelos processos estratégicos, que por sua<br />

vez, devem considerar o estabelecimento dos objetivos”.<br />

Em ambos os níveis, a inovação é produto do processo de gestão de design, seja no<br />

nível operacional (lançamento de novos produtos) seja no nível estratégico (novas formas de<br />

transmitir a identidade de empresa ao consumidor). E uma abordagem atual, que visa corroborar<br />

com a idéia de que a gestão de design é fundamental para a inovação das organizações é o<br />

conceito de design thinking.<br />

<strong>Design</strong> thinking<br />

Para Lockwood (2010), o objetivo do design thinking é envolver consumidores, designers<br />

e empresários num processo integrativo que pode ser aplicado ao produto, ao serviço e até ao<br />

projeto do negócio. Segundo o autor, é uma ferramenta para imaginar estados futuros e para<br />

conduzir produtos, serviços e experiências ao mercado.<br />

Como abordagem, o design thinking foca em capacidades que todos têm, mas são<br />

ignoradas por práticas mais convencionais na resolução de problemas. De acordo com Brown<br />

e Wyatt (2007) esta abordagem se baseia na habilidade do ser humano de reconhecer padrões<br />

e de construir idéias que têm significados tanto emocionais quanto funcionais.<br />

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A inovação através da relação da gestão de design com os princípios do <strong>Design</strong> Thinking<br />

De acordo com Brown (2010), o design thinking é mais bem compreendido como<br />

um sistema de sobreposição de espaços ao invés de uma seqüência ordenada de etapas.<br />

Segundo o autor, este sistema é dividido em “três espaços de inovação”: inspiração, ideação e<br />

implementação. Estas três etapas assemelham-se de maneira conceitual às três engrenagens<br />

de gestão de design propostas por Lockwood (2010) e ao funil do conhecimento de Martin<br />

(2009).<br />

Na inspiração há a coleta de insights para compreensão de como as pessoas<br />

experimentam o mundo física, cognitiva e emocionalmente, e como funcionam grupos sociais<br />

e culturas. Isto requer que o gestor-designer se exponha ao mundo e dele participe. Para Fraser<br />

(2010), é necessário entendimento profundo do consumidor. O primeiro passo é entendê-lo<br />

de maneira profunda e ampla assim como os stakeholders que fazem parte do processo.<br />

Isso ajuda a recompor o desafio do negócio inteiramente através dos olhos do usuário final<br />

definitivo e estabelecer um contexto humano de inovação e criação de valor. Patnaik (2009)<br />

acrescenta que as organizações prosperam quando aprendem a visualizar fora de si mesmas e<br />

conectam-se aos seus clientes, sendo que a melhor maneira para fazer isto é, essencialmente,<br />

imaginar o mundo da perspectiva destes.<br />

No segundo espaço do processo do design thinking, a ideação, é feita a síntese das<br />

informações obtidas durante a etapa de inspiração e geradas idéias para o projeto. Para<br />

Fraser (2010), com a descoberta das necessidades latentes durante a primeira etapa do<br />

processo, deve haver ampla exploração de possibilidades através de múltiplos protótipos e<br />

enriquecimento do conceito, de preferência com usuários. Nesta etapa também é importante<br />

um grupo de pessoas diversas e multidisciplinares envolvidas no processo. Assim, arquitetos,<br />

psicólogos, engenheiros com seus pensamentos e visões divergentes podem contribuir de<br />

maneira efetiva ao processo.<br />

Na implementação há a criação e desenvolvimento dos protótipos do projeto. Eles são<br />

fundamentais para testar e refinar as idéias geradas no espaço da ideação. Fraser (2010), diz<br />

que protótipos rápidos e simples ajudam a chegar numa ideia potencial bem antes que muitos<br />

recursos sejam gastos em desenvolvimento. Depois de finalizados deve ser desenvolvida<br />

também a estratégia de comunicação para explicar as idéias. Neste sentido, Neumeier (2009)<br />

pontua que histórias e apresentações são técnicas mais envolventes do que programas de<br />

apresentação de slides quando se quer contar com a adesão das pessoas de fato.<br />

Retomando a idéia de que não é necessário ser designer de formação para ser<br />

considerado design thinker, Brown (2008) enumera algumas características do perfil deste tipo<br />

de profissional:<br />

Empatia: vêem o mundo de múltiplas perspectivas, conseguindo se imaginar como<br />

clientes, colegas e usuários finais;<br />

Pensamento integrado: têm capacidade de ver todos os aspectos dos problemas e<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

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A inovação através da relação da gestão de design com os princípios do <strong>Design</strong> Thinking<br />

conseguem gerar soluções que vão além das alternativas existentes.<br />

Otimismo: estes profissionais assumem que não importa as limitações do problema<br />

em questão, deve existir uma solução que é melhor que as alternativas já existentes.<br />

Experimentalismo: assumem que inovações significativas não vêm de ajustes<br />

incrementais e sim de explorar opções em direções totalmente novas.<br />

Colaboração: possuem experiência em mais de uma área; engenheiros também<br />

arquitetos, designers industriais também atropólogos.<br />

Para o design thinking fazer parte do exercício da inovação, Brown (2008) pontua<br />

diversas sugestões, entre as quais:<br />

Começar pelo começo: envolver os design thinkers desde o início do processo de<br />

inovação.<br />

Adotar uma abordagem centrada no homem: junto às considerações tecnológicas<br />

e do negócio deve-se analisar o comportamento humano, suas necessidades e<br />

preferências.<br />

Testar cedo e freqüentemente: incentivar início da prototipagem e experimentação<br />

o quanto antes.<br />

Procurar ajuda externa: expandir o ecossistema de inovação, procurando<br />

oportunidades para co-criar com clientes e consumidores.<br />

Misturar projetos grandes e pequenos: gerir uma carteira de inovação que se<br />

estende desde as idéias incrementais de curto-prazo às revolucionárias de longo-prazo.<br />

Na prática, o design thinking já foi incorporado ao processo de várias organizações.<br />

A japonesa Shimano, em 2007, criou um novo tipo de bicicletas de passeio que multiplicou<br />

suas vendas. A indiana Aravind, de tratamentos oftalmológicos, desenvolveu um sistema de<br />

diagnóstico de doenças oculares que atingiu áreas remotas da Índia. A finlandesa Nokia, por<br />

sua vez, fez com que seus celulares tornassem-se plataformas de diversos serviços. E o<br />

americano, Bank of America, finalmente, desenvolveu um serviço que facilitou o troco das<br />

compras de seus usuários (BROWN, 2009).<br />

Segundo Cooper, Junginger e Lockwood (2010) o crescimento do design thinking<br />

tem ajudado a promover a sensibilização para a gestão de design em diferentes níveis da<br />

organização e com isso contribuído para uma imagem mais clara desta.<br />

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A inovação através da relação da gestão de design com os princípios do <strong>Design</strong> Thinking<br />

Clark e Smith (2010) acreditam que quanto mais o design thinking é usado para inovar<br />

e resolver problemas em várias profissões, mais o design em si será utilizado em decisões<br />

significativas que moldam o futuro coletivo no mundo dos negócios.<br />

Considerações finais<br />

Com o presente artigo pode se perceber inicialmente a contribuição que pode ter a<br />

gestão de design para que as empresas alcancem soluções inovadoras, uma vez que através<br />

desta gestão, o design viabiliza a ligação entre a organização (e suas estratégias) à inovação.<br />

No que tange à abordagem do design thinking, é objetivo do artigo entender como os<br />

princípios de cada uma das três etapas abordadas relacionam-se com a gestão de design.<br />

Na etapa inicial, da inspiração, a gestão opera em nível predominantemente estratégico,<br />

uma vez que são analisados padrões, tendências e comportamentos que possam inspirar as<br />

soluções para o projeto em questão. O gestor-designer deve, portanto, estar atento ao mundo<br />

ao seu redor, já que diferentes situações – às vezes até análogas – podem proporcionar insights<br />

para solução do problema de projeto.<br />

Na etapa seguinte da ideação, o nível que predomina na gestão é operacional, já que<br />

nesta etapa são sintetizadas as idéias da etapa anterior e os times multidisciplinares, de visões<br />

divergentes partem para a geração de idéias convergentes para o projeto.<br />

Na implementação, terceira etapa do sistema, a gestão opera de maneira equivalente<br />

em ambos os níveis. Em nível operacional há a criação e desenvolvimento dos protótipos do<br />

projeto e, em nível estratégico, há o desenvolvimento da estratégia de comunicação das idéias<br />

desenvolvidas.<br />

Pôde ser percebido que ambos os níveis de gestão de design estão presentes nos<br />

princípios propostos pelo design thinking e, da mesma forma que empresas enxergam a inovação<br />

como uma das principais fontes de diferenciação e vantagem competitiva, seria interessante<br />

a elas incorporar o conceito de design thinking em seu processo organizacional. Isto, além<br />

de mostrar novos caminhos para as empresas, facilitaria com que estas compreendessem a<br />

importância da gestão de design no âmbito organizacional que é ser uma ferramenta facilitadora<br />

para atingir soluções competitivas, eficientes e inovadoras.<br />

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DIáLOGO ENTRE DESIGN E EMERGêNCIA<br />

O METADESIGN COMO ESTRATéGIA PROJETuAL PARA PROBLEMAS DA ALTA<br />

COMPLEXIDADE NA áREA DE DESIGN<br />

Rui Alão; Prof. Me.: <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />

ruialao@gmail.com<br />

Resumo<br />

Este artigo visa colocar algumas possibilidades de abordagem<br />

dos fenômenos emergentes no contexto da pesquisa e da prática<br />

do design, trazendo um conceito de projeto que valoriza as<br />

abordagens bottom-up em conjunto com as técnicas projetuais<br />

tradicionais, caracteristicamente top-down. As propostas da<br />

aplicação de técnicas de metadesign são tratadas e colocadas<br />

como possibilidade de estratégia na abordagem de problemas de<br />

alta complexidade na área do design.<br />

Palavras-Chave: design, emergência, metadesign<br />

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Diálogo entre design e emergência<br />

O metadesign como estratégia projetual para problemas da alta complexidade na área de design<br />

Vaga-lumes e amebas<br />

O viajante que se aventurar pelas florestas do sudeste da Ásia tem boa chance de<br />

assistir a um grande espetáculo noturno: a dança de luzes emitidas por dezenas de milhares<br />

de vaga-lumes. O interessante é que, embora os flashes emitidos pelos vaga-lumes comecem<br />

de forma desordenada, aos poucos entram em sincronia perfeita e assim ficam por longos<br />

períodos. O mecanismo que efetua a sincronia, no entanto, permaneceu misterioso por muito<br />

tempo.<br />

O matermático Steven Strogatz (2003, p. 11) relata que, no começo do século XX<br />

foram levantadas muitas hipóteses disparatadas sobre o assunto. Alguns atribuíam a sincronia<br />

a condições específicas da atmosfera, outros a desqualificavam como simples coincidência.<br />

Havia muitas teorias sobre o assunto, mas nenhum estudo científico conduzido com um<br />

mínimo de rigor. A opinião que conseguia angariar mais apoio era a de que havia um vagalume<br />

chefe que funcionava como maestro do espetáculo, regendo o resto do grupo.<br />

Em meados da década de 60, o biólogo John Buck e sua esposa viajaram para a<br />

Tailândia com a intenção de estudar o fenômeno. Eles coletaram um boa quantidade de vagalumes<br />

dos bancos dos rios de Bangkok e os soltaram à noite no quarto do hotel. No início, os<br />

insetos se debateram de encontro às paredes e ao teto. Assim que se aquietaram, começaram<br />

a emitir os flashes de forma desencontrada. Aos poucos, grupos de dois ou três ganhavam<br />

sincronia mútua. Mais tarde, os grupos entravam em sincronia entre si e, com o tempo, todos<br />

estavam piscando juntos.<br />

Mais tarde, através de experiências em laboratório, Buck descobriu duas coisas:<br />

primeiro, que os vaga-lumes tinham um ritmo interno de pulsar, isto é, que não só entravam<br />

em sincronia, mas também que havia um pulso relativamente constante entre os flashes, e<br />

segundo, que este pulso não era absoluto e podia ser influenciado por outro pulsar. Emitindo<br />

estímulos luminosos sobre alguns vaga-lumes, Buck conseguiu fazer com que mudassem<br />

de ritmo. Eles entravam em fase com os estímulos emitidos no ambiente: aceleravam ou<br />

desaceleravam conforme fosse mais fácil para entrar em ritmo com o estímulo externo.<br />

Num agrupamento de vaga-lumes, cada um está emitindo e recebendo sinais<br />

continuamente, mudando o ritmo dos outros e tendo o seu próprio ritmo<br />

também modificado em resposta. Em meio ao burburinho generalizado, a<br />

sincronia emerge de algum modo espontaneamente. Assim, somos levados a<br />

aceitar uma explicação que seria impensável há apenas algumas décadas —<br />

os vaga-lumes organizam-se mutuamente. (STROGATZ, 2003, p. 13)<br />

No livro citado, Strogatz investiga outros exemplos de sincronias que emergem<br />

espontaneamente. Cada um deles são também exemplos do fenômeno emergente em<br />

sistemas complexos, o mesmo fenômeno investigado por Steven Johnson (2003).<br />

As histórias dos dois autores apresentam vários pontos de conexão.<br />

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Diálogo entre design e emergência<br />

O metadesign como estratégia projetual para problemas da alta complexidade na área de design<br />

Para abordar o tema da emergência, Johnson nos conta sobre o comportamento de<br />

um tipo de ameba chamada de Dictyostelium discoideum. Ela oscila entre um comportamento<br />

unicelular e multicelular, conforme haja ou não abundância de alimento no ambiente. Quando<br />

em forma multicelular, o organismo segue em busca de alimento e movimenta-se de forma<br />

orgânica e gregária, aparentando ser um único organismo rastejante. Quando em forma<br />

unicelular, ele “desaparece”, dispersando-se em várias células independentes e sendo<br />

virtualmente indetectável.<br />

No estudo destas amebas, e da mesma forma que com os vaga-lumes, a dúvida<br />

recaía sobre o mecanismo que faz com que o discoideum oscile de comportamento e,<br />

principalmente, como consegue comportar-se coerentemente, ou seja, ter uma estratégia<br />

eficiente de sobrevivência.<br />

As primeiras hipóteses, como no caso anterior, também reivindicavam a existência de<br />

células mestras:<br />

[...] a crença geral era de que as agregações de discoideum se formavam<br />

pelo comando de células líderes, que ordenavam que as outras células<br />

começassem a se agregar. [...] Nós estamos naturalmente predispostos a<br />

pensar em termos de líderes, quer falemos de fungos, sistemas políticos ou<br />

nossos próprios corpos. Nossas ações parecem ser governadas, na maior<br />

parte dos casos, por células-líder em nossos cérebros e, durante milênios,<br />

fomentamos elaboradas células-líder em nossas organizações sociais, seja na<br />

forma de reis ou ditadores, ou até de vereadores. (JOHNSON, 2003, p. 11)<br />

E novamente, como no caso anterior dos vaga-lumes, estas suposições estavam<br />

erradas: nunca foram encontradas as células-líder, para desespero de muitos pesquisadores.<br />

Descobriu-se que as células individuais do discoideum se comunicam através de sinais<br />

químicos que disparam padrões de comportamento diferentes. O interessante, porém, é que<br />

não há um comando central, mas sim um fenômeno emergente, isto é, um comportamento<br />

que surge a partir da interação de inúmeras partes independentes e muito simples. Estas<br />

partes só se comunincam com os seus vizinhos imediatos e não tem percepção ou controle<br />

sobre o fenômeno como um todo.<br />

As duas histórias que apresentamos têm em comum o surgimento de um padrão de<br />

comportamento complexo a partir de uma negociação entre inúmeras partes: a sincronia<br />

espontânea dos vaga-lumes ou os padrões de agrupamento das amebas. Em ambos os<br />

casos nos chamam a atenção a organização espontânea e a falta total de uma estrutura<br />

hierárquica de comando: é a partir de cada agente (no caso, cada indivíduo) que o padrão<br />

surge e se estabiliza. O surgimento de padrões através de processos emergentes se dá de<br />

forma bottom-up, isto é, de baixo para cima: surge no nível da ocorrência e se manifesta no<br />

todo do sistema.<br />

Os processos emergentes, no entanto, não se restringem a fazer surgir sincronias entre<br />

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Diálogo entre design e emergência<br />

O metadesign como estratégia projetual para problemas da alta complexidade na área de design<br />

vários agentes. Eles fazem surgir padrões a partir da troca de informações entre inúmeras<br />

partes de um mesmo sistema. O ambiente ou contexto no qual estes padrões surgem são<br />

chamados de sistemas complexos. São exemplos de sistemas complexos colônias de<br />

formigas, sistemas de distribuição de mercadorias em cidades, a economia de mercado, e<br />

o próprio cérebro humano. Estes sistemas têm em comum o fato de agregarem inúmeros<br />

agentes que, de alguma forma, interagem constantemente, de modo que o estado do sistema<br />

num dado momento é resultante destas interações. Uma de suas características é a robustez.<br />

Para usar os exemplos dados acima, uma falha de distribuição de uma mercadoria numa<br />

cidade, por exemplo, raramente causa uma crise na escala da cidade. Esta mercadoria<br />

pode ser substituida por outra, ou sua raridade pode fazer seu preço subir por algum tempo.<br />

A cidade, no entanto, continua funcionando. A morte de um grupo de formigas não afeta<br />

decisivamente o formigueiro e a queda das ações de uma empresa não põe em cheque toda<br />

a economia de mercado. Todos os dias alguns de nossos neurônios morrem, e nem porisso<br />

temos nossas atividades cerebrais comprometidas. Os sitemas complexos têm uma série<br />

de mecanismos de feedback negativo, que fazem com que, ao ocorrer uma perturbação no<br />

sistema, este encontre um novo ponto de equilíbrio. Esta característica é que chamamos de<br />

robustez dos sistemas complexos: eles estão sempre se adaptando e procurando novos<br />

pontos de equilíbrio.<br />

Assim, as propostas top-down raramente surtem efeito quando o problema é complexo<br />

o bastante, pois esbarram na robustez característica dos sitemas complexos. Nós podemos,<br />

no entanto, tentar atuar sobre o sistema de modo a ativar alguns de seus mecanismos de<br />

feedback de forma a disparar algumas respostas. As proposições do metadesign — e são<br />

muitos os seus formatos e abordagens — tentam fazer exatamente isto. A seguir, explicitaremos<br />

a relação entre os fenômenos emergentes e o metadesign enquanto proposta projetual.<br />

Metadesign e emergência<br />

Bem, os problemas de design vêm se tornando mais dinâmicos e mais complexos,<br />

envolvendo cada vez mais elementos. Christopher Alexander, famoso arquiteto austríaco,<br />

antecipa, já em 1964, a questão dos novos problemas de projeto nos seguintes termos:<br />

- os problemas de projeto se tornaram por demais complexos.<br />

- a quantidade de informações necessárias para a resolução de problemas<br />

de projeto elevou-se de tal forma que o designer por si só não as consegue<br />

coletar nem manipular.<br />

- a quantidade de problemas de projeto aumentou rapidamente.<br />

- a espécie de problemas de projeto, comparada a épocas anteriores, vem se<br />

modificando em ritmo acelerado, de forma que se torna cada vez mais raro<br />

poder se valer de experiências anteriores. (ALEXANDER, 1964 apud BÜRDEK,<br />

2006, p. 251)<br />

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Diálogo entre design e emergência<br />

O metadesign como estratégia projetual para problemas da alta complexidade na área de design<br />

A questão é retomada trinta anos mais tarde por John Chris Jones, designer galês<br />

preocupado com as questões metodológicas do design, que segue na mesma linha, afirmando<br />

que as causas da necessidade de um novo paradigma de projeto é a complexidade crescente,<br />

diferenciando dois tipos: a que deriva da formulação do próprio problema e a que deriva das<br />

negociações entre os ‘atores’ do processo. Para encaminhar a questão, Jones formula quatro<br />

perguntas:<br />

1. Como os designers lidam com a complexidade?<br />

2. De que forma os problemas modernos de design são mais complicados que<br />

os tradicionais?<br />

3. Quais são os obstáculos interpessoais na solução de problemas de design?<br />

4. Por que os novos tipos de complexidade ficam fora do escopo do processo<br />

tradicional de design? (JONES, 1992, p. 27)<br />

Duas características parecem estar presentes nas duas listas: o aumento da<br />

complexidade e o surgimento de novos tipos de problemas.<br />

Na verdade, a noção de projeto é, de certa forma, a de planejar uma modificação da<br />

realidade, a de impor-se sobre ela. Ao contrário da noção de emergência, a noção de projeto,<br />

fundamental para a área de design, é essencialmente top-down, isto é, de cima para baixo.<br />

Nos últimos trinta anos, no entanto, tem havido quem queira elaborar algum tipo de<br />

diálogo entre estes aparentes opostos: o design e os processos emergentes.<br />

Elisa Giaccardi, pesquisadora e webartist, escreveu vários artigos em parceria com<br />

Gerhard Fischer, diretor do Center for Lifelong Learning and <strong>Design</strong> na <strong>Universidade</strong> do Colorado,<br />

sobre o tema do metadesign, além de sua tese de doutorado. Ela entende o metadesign como<br />

uma cultura emergente de design e rejeita a noção de metadesign como uma abordagem<br />

de design já estabelecida e incorporada pela cultura. Para ela, teorias e práticas de design<br />

vêm usando a abordagem do metadesign a partir dos anos 80 em vários campos diferentes:<br />

design gráfico, industrial, engenharia de software, design de informação e de interação, design<br />

biotecnológico, arte, arquitetura, etc. (GIACCARDI, 2003).<br />

Metadesign é um ambiente conceitual emergente direcionado para a definição<br />

e criação de infraestruturas sociais e técnicas nas quais novas formas de design<br />

colaborativo podem surgir. Ele estende a noção tradicional de design de sistema<br />

para além do desenvolvimento original para incluir um processo coadaptativo<br />

entre usuários e o sistema, onde os usuários se tornam codesenvolvedores ou<br />

codesigners. (GIACCARDI e FISCHER, 2004, online).<br />

Nessa perspectiva, como se vê acima, dá-se a inclusão dos usuários como participantes<br />

da fase projetual. O metadesign se insere ainda no contexto das estratégias de design<br />

contemporâneas que lidam com a falta de previsibilidade da dinâmica dos problemas a serem<br />

enfrentados pelo projeto de design. Para uma adequada resposta a esta característica a autora<br />

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Diálogo entre design e emergência<br />

O metadesign como estratégia projetual para problemas da alta complexidade na área de design<br />

prega a incorporação dos fenômenos de emergência.<br />

Num mundo que não é previsível, improvisação e inovação são mais do que<br />

um luxo, são uma necessidade. O desafio do design não é uma questão de se<br />

desvencilhar da emergência, mas de incluí-la e fazer dela uma oportunidade<br />

para soluções mais criativas e adequadas. (GIACCARDI e FISCHER, 2004,<br />

online).<br />

Em um de seus artigos, a autora confronta os paradigmas projetuais tradicionais e o<br />

metadesign:<br />

design tradicional metadesign<br />

regras exceções e negociações<br />

representação construção<br />

conteúdo contexto<br />

objeto processo<br />

perspectiva imersão<br />

certeza contingência<br />

planejamento emergência<br />

top-down bottom-up<br />

sistema completo semear (seeding)<br />

criação autônoma cocriação<br />

mente autônoma mente distribuída<br />

soluções específicas espaços de solução<br />

design como instrumental design como adaptativo<br />

responsabilidade, decisão racional modelo afetivo, interacionismo incorporado<br />

Tabela 1: Tabela comparativa entre características do design tradicional e do metadesign<br />

(Fonte: adaptado de GIACCARDI, 2004, online)<br />

Os binômios colocados no quadro acima evidenciam a mudança de paradigma proposto<br />

pela abordagem do metadesign, principalmente no que tange à questão do poder: emergência<br />

em contraste com planejamento, bottom-up em contraste com top-down, cocriação em<br />

contraste com criação autônoma, contingência em contraste com certeza. O metadesign<br />

abre, portanto, um espaço para que outros atores, ou stakeholders — para usar a expressão<br />

de Krippendorf (2000) — possam tomar seu lugar num cenário de projeto de design mais<br />

aberto à colaboração. É através desta perspectiva que encaramos o uso da emergência para<br />

elaboração de novos modelos de interação entre stakeholders no projeto de design.<br />

Outros defensores da incorporação dos fenômenos emergentes na dinâmica de projeto<br />

de design são os pesquisadores Gregory Van Alstyne e Robert Logan, ambos professores<br />

do Ontario College of Art and <strong>Design</strong> no Canadá. Eles publicaram há pouco tempo um artigo<br />

conjunto no qual tentam elaborar um manifesto do design inovador. Num primeiro momento,<br />

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Diálogo entre design e emergência<br />

O metadesign como estratégia projetual para problemas da alta complexidade na área de design<br />

constatam o que acabamos de afirmar: a natureza top-down do design em contraste com a<br />

bottom-up dos processos emergentes:<br />

Emergência é um processo da natureza que não implica em intervenção ou<br />

intenção humana, enquanto que o design é caracterizado pela intenção,<br />

cognição e conceituação humanas. Como tal, design é caracteristicamente<br />

um processo top-down no qual o designer, trabalhando como um artista,<br />

começa com os efeitos e resultados e procura pelas causas que trarão<br />

estes à tona. Em contraste, emergência é um processo bottom-up no qual<br />

os componentes do sistema se auto-organizam através de suas interações<br />

umas com as outras sem uma intenção singular e abarcante. O designer está<br />

tipicamente no controle do processo de design, enquanto na emergência os<br />

componentes do sistema não controlam o resultado — eles simplesmente o<br />

influenciam através de suas interações mútuas. (VAN ALSTYNE e LOGAN,<br />

online, p. 12).<br />

A seguir, os autores estabelecem semelhanças e diferenças entre os processos de<br />

design e processos emergentes, como mostra a tabela abaixo, transcrita a partir do artigo.<br />

design emergência<br />

Caracterizado pela intencionalidade<br />

do designer<br />

Caracterizada pela autonomia de agentes<br />

massivamente múltiplos<br />

Cognitivo e conceitual A-cognitivo e a-conceitual<br />

Top-down Bottom-up<br />

Controlador Influenciador<br />

Fixação de relacionamentos Manutenção de relacionamentos<br />

Define contornos Explora e testa contornos<br />

Tabela 2: Tabela comparativa entre design e emergência<br />

(transcrito de ALSTYNE e LOGAN, online, p. 6)<br />

Na tabela de Alstyne e Logan podemos lembrar a de Giaccardi presente na página<br />

anterior deste trabalho, que compara design tradicional e metadesign.<br />

Nela, sua autora relaciona o paradigma do design tradicional à procura de “soluções<br />

específicas” e o metadesign (este que incorpora fenômenos emergentes), a “espaços de<br />

solução”. Vê-se desde a posição de Giaccardi um alargamento das possibilidades de solução<br />

e uma abertura para negociações entre os vários níveis de um sistema para que uma solução<br />

surja. Não existe, portanto, uma só solução, mas todo um espaço de soluções, o qual deve<br />

ser explorado no sentido de proporcionar relevância aos interessados.<br />

Em seu artigo, no entanto, Van Alstyne e Logan comparam diretamente design<br />

e emergência — não existe, para eles, um processo de design que incorpora fenômenos<br />

emergentes, mas sim o próprio processo emergente como equivalente do processo de design.<br />

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Diálogo entre design e emergência<br />

O metadesign como estratégia projetual para problemas da alta complexidade na área de design<br />

Em nossa opinião, a comparação se justifica na medida em que design e emergência<br />

são ambos processos que geram ordem a partir da desordem; o design o faz por meio de um<br />

projeto (que é, ele mesmo, a expressão desta ordem) e a emergência através de processos<br />

de feedback e auto-organização. A articulação desta ordem seria, portanto, comum aos dois<br />

processos, uma espécie de ponte, a qual, segundo os autores, deve ser transposta a fim de<br />

que o design incorpore elementos emergentes.<br />

A partir desta constatação, os autores lançam algumas hipóteses. A primeira é a de<br />

que “um design inovador é um design emergente” e a de que “uma relação homeostática<br />

entre design e emergência é condição requerida para inovação” (ALSTYNE e LOGAN, online,<br />

p. 8 e 9). Em resumo, há que se encontrar um equilíbrio dinâmico entre processos top-down<br />

e bottom-up para que inovações relevantes socialmente possam ocorrer.<br />

Para que a inovação possa emergir com sucesso (uma ‘inovação por design’),<br />

as atividades intencionais por trás dela devem buscar incorporar tanto design<br />

quanto emergência, cada um com seu respectivo papel. (VAN ALSTYNE e<br />

LOGAN, online, p. 8)<br />

O ponto-chave para que os processos emergentes possam ser despertados é, ainda<br />

segundo Van Alstyne e Logan, a participação ativa da comunidade. Seria fundamental “projetar<br />

com” a comunidade. E sendo o próprio design uma face da sociedade e da cultura, porque<br />

não incorporar as características emergentes destas instâncias? Assim, cria-se a perspectiva<br />

de um design que pode evoluir em conjunto com seu contexto social. Ora, ao fazer isso, isto<br />

é, ao tornar o processo projetual algo que permeia todos os envolvidos nos contextos do<br />

problema enfrentado pelo projeto, faz-se do processo de design uma instância social e política,<br />

onde diferentes papéis são então remodelados para servir ao binômio problema-solução. Ao<br />

envolver novos stakeholders nos mecanismos decisórios do processo projetual, este se torna<br />

uma instância de alta relevância social, na medida em que as decisões, antes tomadas pelo<br />

designer em nome de clientes, usuários, produtores, distribuidores, interatores, redatores e<br />

outros tantos papéis, podem ser agora tomadas em conjunto com aqueles que vão usufruir<br />

do produto de design.<br />

Constatando que a própria cultura é um fenômeno emergente, fica claro, segundo os<br />

autores mencionados, que o projeto que atende aos seus anseios deve ter, igualmente, uma<br />

natureza emergente. (VAN ALSTYNE e LOGAN, online, p. 19)<br />

Abrir o processo de design à comunidade interessada é assumir que os problemas<br />

que são enfrentados pelo designer são, de alguma forma, imprevisíveis e que o designer,<br />

individualmente, tem limites na capacidade de antecipá-los completamente. Giaccardi e<br />

Fischer também apontam para este problema:<br />

Faz parte das premissas básicas que usos e problemas futuros não podem ser<br />

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Diálogo entre design e emergência<br />

O metadesign como estratégia projetual para problemas da alta complexidade na área de design<br />

completamente antecipados no momento do design, quando um sistema é<br />

desenvolvido. Usuários, no momento do uso, descobrirão descompassos entre<br />

suas necessidades e o suporte que um dado sistema pode fornecer. Estes<br />

descompassos podem levar a colapsos que servirão como fonte potencial de<br />

novos insights, novos conhecimentos e novos entendimentos. (GIACCARDI e<br />

FISCHER, 2004, online)<br />

A incorporação de processos emergentes pode fazer com que os problemas sejam<br />

resolvidos enquanto estão sendo formados, como acontece frequentemente com os processos<br />

de programação open source, nos quais vários programadores espalhados pelo mundo se<br />

dedicam de forma mais ou menos independente, a um projeto específico. Como há um certo<br />

teor de auto-organização, muitas vezes problemas que surgem enquanto o desenvolvimento<br />

está ocorrendo são revolvidos quase que simultanemente ao seu surgimento.<br />

Ou seja, com a incorporação de processos emergentes e a inserção da comunidade<br />

no processo de design, forças bottom-up e top-down podem, em conjunto, gerar soluções<br />

inovadoras e que incluem, desde sua gênese, a possibilidade de construir soluções projetuais<br />

que englobam o mecanismo do próprio problema e que, portanto, podem evoluir junto com<br />

ele.<br />

O designer que pensa os sistemas<br />

No contexto contemporâneo, é importante, em nossa opinião, que o design possa ter<br />

um modo operativo que consiga lidar com problemas sistêmicos, isto é, problemas que se<br />

localizam menos em instâncias isoladas e mais nas relações existentes entre estas instâncias.<br />

Bürdek já apontava para esta necessidade:<br />

Um mundo cada vez mais complexo não pode ser mais dominado pelo<br />

designer individualmente. A teoria dos sistemas foi reconhecida como disciplina<br />

importante e que poderia ser útil para o design. Ela ganha hoje uma nova<br />

atualidade, quando se procura [...] pensar o design sistematicamente, quer<br />

dizer, de forma integral e em rede. (BÜRDEK, 2006, p. 256)<br />

O fato que mencionamos anteriormente neste artigo, a crescente complexidade dos<br />

problemas de design aponta, de um lado, para as limitações do designer enquanto indivíduo,<br />

de abarcar e prever todos os fatores importantes para a proposição de soluções viáveis e<br />

eficientes para problemas complexos. De outro, aponta para um outro tipo de abordagem,<br />

na qual o designer pode se voltar para o próprio sistema enquanto instância de colocação e<br />

articulação das variáveis do problema.<br />

Tentaremos, através de um exemplo, explicitar esta hipótese.<br />

Num certo momento histórico, o problema da rapidez do deslocamento humano pôde<br />

ser abordado pela criação de um artefato que nos levasse mais rapidamente de um ponto a<br />

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Diálogo entre design e emergência<br />

O metadesign como estratégia projetual para problemas da alta complexidade na área de design<br />

outro: o automóvel.<br />

Na medida em que o automóvel se inseriu na malha viária urbana, o problema do<br />

deslocamento humano começou a tomar outra dimensão: deixou de ser o do artefato e<br />

passou a ser do sistema onde ele se insere. Obviamente, outras variáveis passaram a fazer<br />

parte do problema: a largura das vias e as conexões entre elas, as diferentes áreas da cidade<br />

com diferentes densidades populacionais e diferentes tendências de uso (algumas voltadas<br />

para a moradia, outras, para a indústria ou para o comércio), os diferentes tipos de veículo,<br />

as interfaces entre os vários tipos de transporte e mesmo o comportamento dos motoristas.<br />

Hoje, não se trata mais de desenvolver um outro artefato, um outro automóvel — mais<br />

rápido, mais potente — que resolva o deslocamento nas grandes cidades, pois o problema do<br />

deslocamento não está mais no artefato, está no sistema. Um automóvel de corrida se move<br />

com a mesma desenvoltura de um carro popular num dia de trânsito justamente porque o<br />

problema não pode ser mais resolvido no nível do artefato, ou seja, do automóvel. O problema<br />

do deslocamento foi se revestindo de uma complexidade tão grande que sua solução migrou<br />

do artefato para o ambiente onde ele atua. Projetar um novo automóvel que seja menor,<br />

menos poluente, que consuma menos combustível, é lógico, é um objetivo legítimo, mas para<br />

aumentar a velocidade de deslocamento nas grandes metrópoles temos que abordar outro<br />

problema e este vai muito além do artefato em si. Temos que ter — e aprender a ter, já que não<br />

fomos formados com este paradigma em mente — uma visão sistêmica do problema.<br />

Pensar e projetar no nível dos sistemas é, assim, fundamental. Sem a familiaridade com<br />

este tipo de problema — e acreditamos que os problemas sistêmicos se configuram como<br />

um tipo de problema muito diferente daquele solucionável pelo projeto de um novo objeto —<br />

estaremos condenados a pensar o objeto como solução e, muitas vezes, a continuar focando<br />

nossos esforços naquilo que não tem mais relevância quanto ao problema real a ser resolvido.<br />

Ora, se o problema pode ser caracterizado como sistêmico e, como sabemos, os<br />

fenômenos emergentes são uma forma de fomentar ordem dentro de um sistema complexo,<br />

partir de uma concepção de projeto que possa lidar com esta complexidade — sem reduzi-la<br />

ou evitá-la — é de importância fundamental.<br />

Se olharmos para a área do planejamento urbano, por exemplo, que trata de problemas<br />

de grande complexidade, aplicar uma abordagem bottom-up pura equivaleria a deixar a<br />

cidade se autogerir, sem instâncias decisórias que possam articular a pluralidade urbana. Ora,<br />

é fácil perceber que, conforme cresce a complexidade de uma cidade, a auto-organização<br />

não dá conta de lidar com os problemas que surgem. Uma cidade pode lidar muito bem<br />

com um sistema viário “natural” se a sua complexidade for mínima, se tiver, digamos, alguns<br />

poucos milhares de habitantes. A partir do momento em que esta complexidade cresce, que<br />

a ocupação fica mais densa, as ruas são mais utilizadas e chegam a um ponto de saturação.<br />

Um sistema viário não tem uma capacidade infinita de dar vazão ao tráfego, pelo contrário,<br />

é preciso de lideranças, gerenciamento, organização, ou seja, de projeto. Mas um projeto<br />

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O metadesign como estratégia projetual para problemas da alta complexidade na área de design<br />

que não se articule exclusivamente pelo viés top-down, um que tenha em conta a dinâmica<br />

do problema e as comunidades envolvidas e saiba aprender com elas, um que saiba fazer o<br />

cidadão — o agente do sistema — se inserir no problema.<br />

É preciso encarar o fato de que um certo teor de poder centralizado é necessário para<br />

um bom planejamento, pois nem toda concentração de poder é ruim, castradora e deletéria.<br />

Ao mesmo tempo, e esta é a nossa hipótese, parece haver um estágio de complexidade<br />

onde a abordagem puramente top-down de um problema complexo também entra em<br />

colapso, pois a visão do todo é tão generalizante e tem que levar em conta tantas variáveis<br />

que simplesmente não dá conta de solucionar todas as facetas do problema. O projeto topdown<br />

tem a forte tendência de simplificar o problema para poder solucioná-lo. E, em termos<br />

de sistemas complexos, simplificar o problema é fugir deste mesmo problema.<br />

Acreditamos, finalmente, que o próprio discurso do design tem um caráter emergente,<br />

pois além de podermos pensar soluções emergentes para problemas do design, podemos<br />

também fazer com que o design — enquanto saber e enquanto prática — seja pensado de<br />

forma emergente.<br />

Em outras palavras: se até agora defendemos um modo de fazer com que o design se<br />

utilize de fenômenos emergentes para chegar a soluções de problemas complexos, podemos<br />

também fazer com que os fenômenos emergentes — como a linguagem e os discursos —<br />

se utilizem do design para elaborar a si mesmos. Ou seja: podemos tentar imaginar como a<br />

emergência pode pensar o design.<br />

Afinal, tratamos aqui de uma forma de fazer com que certos problemas apresentados<br />

ao designer sejam tratáveis através de métodos ligados aos sistemas complexos. Ora, nos<br />

esquecemos que a rede de discursos na qual nos emaranhamos é, ela também, um sistema<br />

complexo, com seus próprios agentes, suas próprias dinâmicas e que cria, de tempos em<br />

tempos, seus padrões, seus grandes discursos, suas tendências e escolas de pensamento.<br />

Assim, acreditamos que tanto o design pode se debruçar sobre fenômenos emergentes<br />

quanto o contrário.<br />

Se aceitarmos o que diz Krippendorff quando afirma que o “design deve continuamente<br />

reprojetar seu próprio discurso e ele próprio” (2000, p. 93), talvez o discurso do design também<br />

possa ser pensado não apenas como uma multiplicidade, mas como um sistema complexo,<br />

que gera, de vez em quando, alguns padrões dos quais nos apropriamos para pensar nossos<br />

projetos e também a dinâmica dos projetos de design. Nestes termos, esperamos que este<br />

artigo tenha, de alguma forma, contribuído para esta dinâmica.<br />

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Diálogo entre design e emergência<br />

O metadesign como estratégia projetual para problemas da alta complexidade na área de design<br />

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STROGATZ, Steven. SYNC: How order emerges from chaos in the universe, nature and<br />

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uM ESTuDO SOBRE A LINGuAGEM DA ILuSTRAçãO E O DESIGN<br />

GRáFICO<br />

Jorge Paiva; Mestrando em <strong>Design</strong>: <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />

jorgeapaiva@hotmail.com<br />

Resumo<br />

O presente artigo estuda a relação entre a ilustração e o design<br />

gráfico no projeto gráfico de um livro ilustrado, a discussão<br />

acontece através de um estudo de caso do livro de Fernando<br />

Vilela, Lancelote e o Lampião. O estudo é desenvolvido utilizando<br />

como ferramenta de análise a semiótica Peirciana lida pelo livro<br />

Matrizes da Linguagem e pensamento da autora Lúcia Santaella e<br />

o objetivo é compreender através do estudo de linguagem algumas<br />

relações entre o ilustrador e o designer na construção do signo<br />

das páginas do livro.<br />

Palavras-Chave: ilustração; inguagem; design gráfico<br />

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Um estudo sobre a linguagem da ilustração e o design gráfico<br />

Há um consenso entre os autores LOOMIS (1947), DONDIS (2007) e ZEEGEN (2009)<br />

de que ilustrar é transmitir uma mensagem através de imagens e, é a partir deste pensamento<br />

que comumente a ilustração é definida como uma arte figurativa. O objeto de estudo deste<br />

artigo é a ilustração narrativa, este termo é empregado por autores reconhecidos, como por<br />

exemplo, E. H. Gombrich no livro <strong>Arte</strong> e Ilusão. Embora o autor, não Forneça uma definição<br />

do termo, fica claro que ele refere-se à obras que contam uma história através de imagens. O<br />

mesmo termo, ilustração narrativa, foi definido pelo brasileiro Rui de Oliveira como um gênero<br />

da ilustração:<br />

A ilustração narrativa está sempre associada a um texto, que pode ser literário<br />

ou musical, como é o caso das ilustrações para capa de CDs e DVDs. No<br />

entanto, o que fundamentalmente caracteriza esse gênero são o narrar e<br />

o descrever histórias através de imagens, o que não significa em hipótese<br />

alguma uma tradução visual do texto. A ilustração começa no ponto em que o<br />

alcance literário do texto termina, e vice-versa (Oliveira, 2008, p.44).<br />

Os livros infantis são o tema da linha de pesquisa de Rui de Oliveira, e a ilustração<br />

narrativa que ele se refere é a ilustração que tem o intuito de contar uma história, de narrar<br />

uma cena, para Oliveira “Ilustrar é a arte de sugerir narrativas” (Oliveira, 2008, p.60). Outros<br />

gêneros de ilustração foram definidos por Rui, como a ilustração informativa e a ilustração<br />

persuasiva. A ilustração informativa é típica dos livros de medicina e botânica e a ilustração<br />

persuasiva utilizada pela publicidade. Evitando reducionismos, vale colocar as palavras de Rui<br />

quanto ao caráter híbridos destes gêneros, “As três divisões tem acima de tudo um aspecto<br />

didático, uma vez que esses gêneros agem muitas vezes ao mesmo tempo, influenciando-se<br />

mutuamente. No entanto, do ponto de vista formal, em termos conceituais, comportam-se<br />

de maneira distinta” (Rui de Oliveira, 2008, p.44). Portanto, as ilustrações em geral possuem<br />

níveis diferenciados de informatividade, persuasão e narrativa.<br />

Toda esta responsabilidade de expressar um pensamento ou contar uma história<br />

sem dizer uma única palavra requer que o ilustrador tenha um conhecimento específico de<br />

articulação da linguagem visual. Durante seu processo de formação o ilustrador aprende a<br />

trabalhar com o ponto, linha, plano, composição, ritmo visual, teoria das cores, dramatização e<br />

caracterização dos personagens, cenários e diversos outros conceitos específicos à profissão.<br />

Quando a ilustração é inserida em um projeto gráfico a responsabilidade do designer não é<br />

menor.<br />

Embora a linguagem visual seja um eixo comum entre o ilustrador e o designer, o<br />

pensamento em articular a linguagem ou as linguagens é diferenciado, independente se o<br />

ilustrador e o designer são ou não o mesmo individuo. Podemos configurar uma linha de<br />

pensamento através da autora Lúcia Santaella, que alicerçada por Décio Pignatari compara a<br />

poesia ao design: “Por aí se vê por que o poeta é um configurador de mensagens, um designer<br />

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Um estudo sobre a linguagem da ilustração e o design gráfico<br />

da linguagem, no dizer de Jakobson e a poesia um diagrama de sentidos e ressonâncias que<br />

acabam por se assemelhar à aquilo que conotam” (Santaella, 2009B, p.302). Deste ponto<br />

de vista, uma vez que ilustrar é comunicar uma mensagem através de imagens, poderíamos<br />

comparar o ilustrador ao poeta como alguém que configura a mensagem de uma imagem.<br />

Parece assim, mais justo separar as diferenças entre as profissões do designer e do ilustrador<br />

por meio da forma como é pensada ou articulada a linguagem visual em cada profissão.<br />

Através desta definição de que o ilustrador é articulador da mensagem, e designer articulador<br />

das linguagens, que surge o argumento de que ambos os de processos trabalho caminham<br />

indissociáveis na formação da mensagem visual.<br />

Antes de iniciarmos a análise, cabe introduzir brevemente a semiótica Peirciana que<br />

conheci através do livro Matrizes da linguagem e Pensamento da pesquisadora Lucia Santaella.<br />

Digo brevemente, pois seria inviável em um artigo descrever todo modelo de matrizes híbridas<br />

de Lúcia Santaella e todo seu embasamento na semiótica de Charles S. Peirce. Portanto,<br />

a introdução dos conceitos serve muito mais como uma guia para o leitor buscar maiores<br />

informações, do que uma literatura esclarecedora do tema. Lúcia Santaella definiu que “o<br />

estudo da imagem é, assim, um empreendimento interdisciplinar” (Santaella, 2009A, p.13).<br />

Com a ilustração, de modo específico, isso não é diferente. Há uma vasta bibliografia sobre<br />

linguagem visual, história da arte e estudo da imagem pronta para ser acessada pelos<br />

estudantes e interessados em ilustração. A busca pela semiótica Peirciana como ferramenta<br />

para um estudo de linguagem da ilustração é proveniente da necessidade de empregar uma<br />

metodologia de análise. Além disso, a pesquisa de Santaella sobre linguagem visual dentro<br />

das matrizes fornece uma espinha dorsal para análise da ilustração e um modo de organizar<br />

a leitura da imagem, o que auxilia no pensar e repensar a ilustração. A lógica de análise<br />

de Santaella nos fornece um panorama das possibilidades, decompondo uma imagem em<br />

diferentes nichos de análise, e compondo assim, um pensamento fluído e ao mesmo tempo<br />

estruturado.<br />

Peirce definiu a semiótica como a teoria geral dos signos, ele “dedicou toda a sua vida<br />

ao desenvolvimento da lógica entendida como teoria geral, formal e abstrata dos métodos de<br />

investigação utilizados nas mais diversas ciências” (Santaella, 2002, p.XII). É importante dizer<br />

que o estudo dos signos é muito antigo, e sua história poderia ser aqui reconstruída desde o<br />

mundo grego até o século XX quando a semiótica ficou conhecida como ciência dos signos. A<br />

semiótica não é uma ciência com objeto de estudo delimitado, e é apenas uma das disciplinas<br />

que compõem a extensa obra de Charles S. Peirce, e ainda existem outras correntes da<br />

semiótica que não serão abordadas aqui.<br />

A lógica de análise de Peirce é anticartesiana, partindo do princípio de que a lógica<br />

deve estabelecer uma tabela formal e universal de categorias a partir da mais radical análise de<br />

todas as experiências possíveis. Este pensamento surgiu a partir da insatisfação de Peirce dos<br />

modelos de categorias aristotélicas, consideradas mais gramaticais que lógica, e também com<br />

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Um estudo sobre a linguagem da ilustração e o design gráfico<br />

as teorias kantianas e hegelianas. Peirce dedicou-se intensamente à elaboração de categorias<br />

universais à todos os fenômenos. Na base da teoria analítica de Peirce está o Signo, o Objeto<br />

e o Interpretante. O Signo é determinado pelo objeto, e é o que representa o objeto para um<br />

interpretante, por isso mesmo é signo. O Objeto não é sinônimo de coisa, mas, é o que se<br />

presentifica ao interpretante graças á mediação do signo. O interpretante não é o sinônimo<br />

de interpretação, mas o processo inteiro de geração de interpretantes. Assim fica claro na<br />

semiótica Peirciana que é impossível falar de signo sem que haja objeto e interpretante. Existem<br />

ainda, nas categorias de Peirce outra tríade que foram usadas pra distinguir três espécies de<br />

signos ou representações: Ícone, índice e símbolo. O ícone é um signo capaz de representar<br />

seu objeto meramente em função de qualidades que possui, independente da existência ou<br />

não do objeto. O índice é um signo que está existencialmente conectado com um objeto que<br />

é maior do que ele. O símbolo é um signo que funciona como tal objeto, porque é estabelecido<br />

por convenção, usado e entendido como representado. Outra tríade na obra de Peirce referese<br />

ao interpretante como remático, dicente e o interpretante como argumento, que não serão<br />

abordadas aqui. Peirce definiu ainda muitas outras tríades que partem para decomposições<br />

cada vez mais refinadas. Estas classificações são fluídas, sobrepondo-se uma as outras e as<br />

rápidas definições aqui são mais um modo de refrescar a memória de alguns, sendo ideal um<br />

conhecimento prévio para uma compreensão mais profunda dos conceitos.<br />

Foi embasada na semiótica de Peirce que Lúcia Santaella desenvolveu seu modelo de<br />

matrizes híbridas. Segundo seu modelo existem três matrizes da linguagem e do pensamento,<br />

a matriz sonora, a visual e a verbal, sendo elas híbridas. A lógica da matriz verbal por exemplo<br />

não necessariamente precisa estar manifesta em palavras, assim como a lógica da matriz<br />

sonora não necessariamente deva estar manifesta como som. Assim sendo Santaella enfatiza<br />

que:<br />

Quando se trata de linguagens existentes, manifestas, a constatação imediata<br />

é a de que todas as linguagens, uma vez corporificadas, são híbridas. A<br />

lógica das três matrizes e suas 27 modalidades, desdobradas em 81, nos<br />

permite inteligir os processos de hibridização de que as linguagens se<br />

constituem. Na realidade, cada linguagem existente nasce do cruzamento<br />

de algumas submodalidades de uma mesma matriz ou do cruzamento entre<br />

submodalidades de duas ou três matrizes. Quanto mais cruzamentos se<br />

processarem dentro de uma mesma linguagem, mais híbrida ela será. Desse<br />

modo, por exemplo, a linguagem verbal oral, a fala, apresenta fortes traços de<br />

hibridização tanto com a linguagem sonora quanto com a linguagem visual na<br />

gestualidade que a acompanha. (Santaella, 2009B, p.379)<br />

A hibridização acontece de diversas maneiras nas matrizes. No caso da ilustração<br />

inserida na matriz da linguagem visual, podemos pensar na fala de Santaella “A visualidade,<br />

mesmo nas imagens fixas, também é tátil, além de que absorve a lógica da sintaxe, que vem<br />

do domínio sonoro. A verbal é a mais misturada de todas as linguagens, pois absorve a sintaxe<br />

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Um estudo sobre a linguagem da ilustração e o design gráfico<br />

do domínio sonoro e a forma do domínio visual” (Santaella, 2009B, p.371).<br />

A lógica das três matrizes e suas modalidades engendradas por Santaella tem como<br />

objetivo criar um “patamar intermediário entre os conceitos Peircianos e as linguagens<br />

manifestas, de modo que as modalidades verbal, visual e sonoro possam servir de mediação<br />

entre a teoria Peirciana e a semiótica aplicada” (Santaella, 2009B, p.29) uma vez que o nível de<br />

abstração dos conceitos de Peirce é muito elevada e dificulta à aplicação direta dos conceitos<br />

nas linguagens manifestas ou processos concretos de signos. Cada uma das três matrizes,<br />

como vimos, foram divididas em 27 modalidades que podem ser usadas como uma espécie<br />

de mapa guia de uma análise. Evidentemente não vou comentar cada uma delas aqui, mas,<br />

estas serão abordadas durante à análise de forma explicativa, cabe ainda adicionar alguns<br />

critérios de Lúcia Santaella quanto ao caráter híbridos destas modalidades:<br />

A classificação é uma espécie de rede para ser utilizada na elucidação<br />

das formas visuais. Evidentemente, essas formas, quando manifestas,<br />

dificilmente apresentam como casos puros de cada uma das modalidades<br />

ou submodalidades. Ao contrário, a maior parte das formas de representação<br />

visuais nasce da mistura e da intersecção de algumas das submodalidades.<br />

Isso significa que a classificação não deve funcionar como uma itemização<br />

estática e monovalente, mas como focos da inteligibilidade que sejam capazes<br />

de despertar o olhar e de funcionar como bússolas de orientação para leitura<br />

dos princípios lógicos que comandam as configurações da linguagem visual<br />

(Santaella, 2009B, p.260).<br />

Assim, a utilização da classificação das matrizes funcionam mais como uma guia da<br />

lógica abstrata que deve atentar mais à manifestação do objeto do que na classificação pura<br />

e simples, sendo assim um processo flexível para apoio.<br />

A matriz da linguagem visual no modelo de Santaella está alicerçada na forma, assunto<br />

que foi desenvolvido amplamente pela Gestalt, ou, teoria da forma que surgiu na Alemanha<br />

no princípio do século XX. A autora deixa claro que os estudos da Gestalt contribuíram para<br />

formulação de seu modelo. Santaella dividiu as formas visuais em três modalidades, as formas<br />

não-representativas, as formas figurativas e as formas representativas. Definindo as formas<br />

não-representativas da seguinte forma:<br />

dizem respeito à redução da declaração visual a elementos puros: tons, cores,<br />

manchas, brilhos, contornos, formas, movimentos, ritmos, concentrações<br />

de energia, textura, massas, proporções, dimensão, volume, etc (Santaella,<br />

2009B, p.210).<br />

As formas figurativas foram explicadas da seguinte maneira:<br />

Assim sendo, formas figurativas dizem respeito às imagens que basicamente<br />

funcionam como duplos, isto é, transpõem para o plano bidimensional ou<br />

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Um estudo sobre a linguagem da ilustração e o design gráfico<br />

criam no espaço tridimensional réplicas de objetos preexistentes e, o mais<br />

das vezes, visíveis no mundo externo. São formas referenciais que, de um<br />

modo ou de outro, com maior ou menor ambigüidade, apontam para objetos<br />

ou situações em maior ou menor medida reconhecíveis fora daquela imagem.<br />

Por isso mesmo, nas formas figurativas, é grande o papel desempenhado<br />

pelo reconhecimento e pela identificação que pressupõem a memória e a<br />

antecipação no processo perceptivo. Nessas formas, que buscam reproduzir<br />

o aspecto exterior das coisas, os elementos visuais são postos a serviço da<br />

vocação mimética, ou seja, produzir a ilusão de que a imagem figurada é igual<br />

ou semelhante ao objeto real (Santaella, 2009B, p.227).<br />

E por último as formas representativas:<br />

As formas representativas, também chamadas de simbólicas, são aquelas que,<br />

mesmo quando reproduzem a aparência das coisas visíveis, essa aparência é<br />

utilizada apenas como meio para representar algo que não está visivelmente<br />

acessível e que, via de regra, tem um caráter abstrato geral” (Santaella, 2009B,<br />

p.246).<br />

Segmentei meu processo de análise em três partes, a imagem, o diagrama e a mensagem.<br />

Esta divisão foi inspirada na divisão de Peirce, dos signos icônicos em imagem, diagrama e<br />

metáfora. Na separação de Peirce “A imagem estabelece uma relação de semelhança com<br />

objeto puramente no nível da aparência” (Santaella, 2002, p.18), “O diagrama representa<br />

seu objeto por similaridade entre relações internas que o signo exibe e as relações internas<br />

do objeto que o signo visa representar” (Santaella, 2002, p.18) e por último, “A metáfora<br />

representa o objeto por similaridade no significado do representante e no representado. Ao<br />

aproximar o significado de duas coisas distintas, a metáfora produz uma faísca de sentido que<br />

nasce de uma identidade posta à mostra” (Santaella, 2002, p.18)<br />

A estrutura e motivos da minha classificação diferem dos motivos Peirce,<br />

consequentemente o sentido do uso das palavras, imagem e diagrama não devem ser utilizados<br />

em comparativos a semiótica Peirciana. Na minha organização de análise a mensagem é a<br />

parte do processo que vou relacionar a mensagem da ilustração ao texto ou contexto ao<br />

qual ela se refere. É um primeiro contato com a ilustração, como um vôo de reconhecimento<br />

do terreno. O diagrama, visa descrever a hierarquia, o significado e a relação dos elementos<br />

diagramados na página e também a concepção do projeto gráfico e sua influência visual na<br />

ilustração. A imagem, é a ilustração em si, neste ponto do processo a análise foca-se em<br />

estudar as formas não-representativas, as formas figurativas e as formas representativas na<br />

ilustração e sua relação com o diagrama. Como as tríades de Peirce o meu modelo é fluído,<br />

sendo que Imagem, Diagrama e Mensagem influenciam-se entre si.<br />

Após a descrição prévia do método de análise, vamos ao objeto de estudo. O livro<br />

Lancelote e o Lampião de Fernando Vilela que recebeu menção honrosa no Prêmio Bolonha<br />

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Um estudo sobre a linguagem da ilustração e o design gráfico<br />

Ragazzi em 2007. O livro foi escolhido devido a sua linguagem que valoriza a relação entre o<br />

projeto gráfico e a ilustração.<br />

Figura 1. Esta é a capa do livro de Fernando Vilela, as cores metálicas foram feitas através do processo de hot<br />

stamping. Vilela (2006)<br />

A mensagem<br />

Tendo em vista o argumento apresentado acima – do designer como configurador<br />

das linguagens – é necessário agora apresentar o termo designer da linguagem, do autor<br />

Décio Pignatari. O <strong>Design</strong>er da Linguagem é descrito por Pignatari como: “aquele capaz de<br />

perceber e/ou criar novas relações e estruturas de signos” (Pignatari, 2002, p.18). O designer<br />

da linguagem está inserido na sociedade contemporânea, onde as diferentes mídias entram<br />

em atrito, contaminação, interferência e mesclam umas às outras interferindo de modo global<br />

no comportamento da comunidade:<br />

Daí que o nosso século é o século do planejamento, do design e dos designers:<br />

o desenho industrial e a arquitetura passam a ser estudados e projetados como<br />

mensagens e como linguagens; escritores, poetas, jornalistas, publicitários,<br />

músicos, fotógrafos, cineastas, produtores de rádio e televisão, desenhistas,<br />

pintores e escultores começam a ganhar consciência de designers, forjadores<br />

de novas linguagens (Pignatari, 2002, p,18).<br />

Neste processo de inovar as linguagens insiro também os ilustradores, que através<br />

da necessidade de expressar uma idéia visualmente, nas últimas décadas utilizam-se cada<br />

vez mais de diferentes materiais, técnicas mistas, e recebem influências de outras mídias e<br />

suportes. Tomemos como exemplo, o caso de Fernando Vilela, ilustrador e escritor do livro<br />

Lancelote e o Lampião. A narrativa do livro parte do possível encontro entre Lancelote, o<br />

guerreiro dos contos da Távola Redonda do Rei Arthur e Lampião o famoso cangaceiro do<br />

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sertão nordestino. No texto do livro existem duas referências de linguagem que caracterizam<br />

cada um dos dois personagens. A narrativa em prosa e em tom épico evocam e refere-se à<br />

Lancelote. As estrofes compostas em sextilha – ou seja seis versos – referem-se à Lampião,<br />

sendo a estrutura de sextilha típica da literatura de cordel que é famosa na terra natal do<br />

cangaceiro. O embate entre os dois guerreiros é também um embate cultural, de quem faz o<br />

melhor repente. Nas ilustrações a hibridização de linguagens continua, entretanto vamos nos<br />

aprofundar neste efeito no tópico da imagem.<br />

Figura 2. Páginas seis e sete do livro de Lancelote e o Lampião. Vilela (2006)<br />

Definido o universo macroscópico do livro, vamos focar nossa análise em um universo<br />

microscópio na página seis e sete do livro. Por fins didáticos, foi escolhida uma ilustração do<br />

livro para análise. Uma vez que, a relação entre a ilustração e o projeto gráfico é continua ao<br />

longo de todo o livro, qualquer ilustração do livro poderia ter sido escolhida. Embora o artigo<br />

não tenha a pretensão de formular uma análise semiótica do texto é interessante ressaltar<br />

algumas relações importantes. O texto que acompanha a imagem é uma poesia, encaixase<br />

na modalidade de descrição qualitativa da matriz verbal de Santaella. “As palavras aí não<br />

representam, elas são aquilo que querem dizer, são aquilo de que falam”(Santaella, 2009B,<br />

p.298). No primeiro parágrafo há uma qualidade metafórica, “Viviane a grande flor”. A metáfora,<br />

para Aristóteles, consiste em transportar para uma coisa o nome de outra. Os três parágrafos<br />

seguintes estão nos domínios da qualidade imagética, que se refere à imagem mental que<br />

temos a partir dos estímulos do texto. Estes estímulos que vemos no texto tornam a relação<br />

de texto e imagem muito mais interessante, uma vez que as imagens mentais se misturam à<br />

imagem da ilustração criando uma fluída sensação de imersão. Temos nas imagens mentais<br />

invocadas pelo texto a alma do cavaleiro da ilustração, sua história, sua aura. No ponto que as<br />

imagens mentais mesclam-se a imagem da ilustração é como se o personagem da ilustração<br />

ganhasse vida através do estímulo do texto sobre um interpretante.<br />

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Figura 3. Zoom no texto de Fernando Vilela (2006).<br />

No texto da página sete não é dito que o herói anunciado pelo texto é o personagem<br />

Lancelote da lenda do rei Arthur, mas, o leitor que seguir a sequência desde as primeiras<br />

páginas terá lido esta informação anteriormente, ou mesmo na capa do livro. Abaixo estão as<br />

duas primeiras páginas duplas, e o padrão de páginas duplas acontece todo o livro. O livro<br />

fechado tem um tamanho de 35x24 centímetros, e aberto o livro chega a ter 70 centímetros.<br />

Figura 4. Páginas dois e três. Vilela (2006)<br />

Figura 5. Páginas quatro e cinco. Vilela (2006)<br />

Aprofundando-se nas camadas da relação texto e imagem, abordaremos agora<br />

classificações de dois autores. O primeiro deles é um autor teórico e prático da ilustração<br />

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americana, Andrew Loomis. Conhecido por sua série de livros sobre ilustração Loomis seguiu<br />

os passos do famoso ilustrador Norman Rockwell. Em seu livro Creative Illustration (1947)<br />

Loomis define três gêneros de ilustração:<br />

O primeiro tipo é a ilustração que conta uma história por completo, sem um<br />

título, texto, ou qualquer mensagem escrita para ajuda. Este tipo é encontrado<br />

em capas, cartazes, ou calendários.<br />

O segundo tipo é aquele que ilustra o título, ou, o que visualiza e leva adiante<br />

uma linha, um slogan, ou alguma mensagem escrita usada em junção com a<br />

imagem. Esta função emprega força à mensagem. Neste grupo são comuns<br />

temas que levam um curto tempo para serem lidos, como cartazes, displays<br />

e anúncios de revistas. A história e a imagem funcionam juntas com unidade.<br />

O terceiro tipo é aquele que a história da imagem é incompleta, é obviamente<br />

intencional, aguçando a curiosidade, intrigando o leitor a achar a resposta no<br />

texto. O terceiro tipo é a ilustração que poderia dizer “vem aqui” ou “advinha<br />

o que”. Muitos anúncios são construídos neste plano, para assegurar a<br />

compreensão do leitor. Caso a história fosse completamente contada o<br />

propósito seria um fracasso, e o texto poderia facilmente passar despercebido.<br />

(Loomis, 1947, p.178)<br />

Estas classificações poderiam ser cruzadas com os conceitos de Redundância,<br />

informatividade e complementaridade, abordados por Santaella, que se alicerça de<br />

Kalverkämper:<br />

As formas de relação imagem-texto aqui comentadas caracterizam os dois<br />

pólos extremos de um contínuo que vai da redundância à informatividade.<br />

Kalverkamper (1993: 207) diferencia, nessa escala, três casos: (1) a imagem é<br />

inferior ao texto e simplesmente o complementa, sendo, portanto, redundante.<br />

Ilustrações em livros preenchem ocasionalmente essa função, quando, por<br />

exemplo, existe o mesmo livro em uma outra edição sem ilustrações. (2) A<br />

imagem é superior ao texto e, portanto, domina, já que ela é mais informativa do<br />

que ele. Exemplificações enciclopédicas são frequentemente deste tipo: sem a<br />

imagem, uma concepção do objeto é muito difícil de ser obtida. (3) Imagem e<br />

texto têm a mesma importância. A imagem é, nesse caso, integrada ao texto.<br />

A relação texto-imagem se encontra aqui entre redundância e informatividade.<br />

(Santaella, 1997, p.54)<br />

A classificação abordada por Santaella parece ser melhor reconhecível pelas<br />

nominações, já as definições de Loomis são mais familiares à ilustração. No fundo as duas<br />

classificações estão apontando para as mesmas relações entre palavra e imagem e podemos<br />

utilizar ambas como guia de análise. “O caso da equivalência entre texto e imagem é descrito<br />

como complementaridade” (Santaella, 1997, p.54). É o que acontece na ilustração de Fernando<br />

Vilela, texto e imagem estão interagindo juntas como uma unidade. Assim durante a leitura é<br />

como se texto e imagem se completassem como amalgama na mente do interpretante.<br />

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O diagrama<br />

Podemos iniciar este tópico com a definição da designer e escritora Ellen Lupton:<br />

Um diagrama é a representação gráfica de uma estrutura, situação ou<br />

processo. Os diagramas podem descrever a anatomia de uma criatura,<br />

a hierarquia de uma corporação ou um fluxo de idéias. Eles nos permitem<br />

enxergar relações que não viriam à tona numa lista convencional de números,<br />

nem numa descrição verbal” (Lupton, 2008, p.199).<br />

A citação de Lupton define bem o que é um diagrama. Casualmente o termo diagramação<br />

remete ao designer gráfico e aos menos entendidos pode parecer que o designer gráfico é o<br />

profissional que organiza o texto na página, porém o designer da linguagem vai muito além.<br />

Lupton diz que em um diagrama “Marcas gráficas e relações visuais adquirem significados<br />

específicos, codificados no diagrama para representar aumentos numéricos, tamanho relativo,<br />

mudança temporal, ligações estruturais e outras circunstâncias” (Lupton, 2008, p.199). Criar<br />

marcas gráficas e relações visuais são os recursos utilizados pelo designer da linguagem para<br />

expressar idéias, organização ou desorganização, sinestesias e sentimentos.<br />

Neste tópico a preocupação da análise é identificar as relações existentes entre texto<br />

e imagem e dos elementos gráficos dentro de um diagrama, é perceber na configuração dos<br />

espaços, a hierarquia, a função e das forças perceptivas, no ritmo, e nas marcas gráficas<br />

o valor agregado ao signo. Enfim compreender a configuração das linguagens em prol de<br />

identificar o trabalho do designer das linguagens. Vamos então, retomar a relação de texto<br />

e imagem por outro ponto de vista. A relação entre texto e imagem no espaço da página foi<br />

abordada por Lúcia Santaella e chamada de relação no plano de expressão:<br />

Ao contrário das relações entre texto e imagem até aqui discutidas, que se<br />

referem, em primeiro lugar, ao plano de conteúdo, Kibédi-Varga(1989: 39-42)<br />

sugere uma tipologia das relações entre a palavra e a imagem que se relaciona<br />

mais com a forma de expressão visual comum à linguagem (na forma escrita) e<br />

à imagem. Seus três tipos são: (1) Coexistência: palavra e escritura aparecerem<br />

numa moldura comum; a palavra está inscrita na imagem. (2) Interferência:<br />

a palavra escrita e a imagem estão separadas uma da outra espacialmente,<br />

mas aparecem na mesma página (por exemplo, em ilustrações de textos<br />

como comentários textuais). (3) Co-referência: palavra e imagem aparecem na<br />

mesma página, mas se referem ao mundo uma independente da outra. Como<br />

uma outra possibilidade da relação espacial entre texto e imagem, devemos<br />

acrescentar a esta tipologia o caso da auto-referencialidade, como ela é<br />

conhecida na poesia visual. Como exemplo, temos o poema de Robert Herrick<br />

sobre o altar, que é impresso tipograficamente em uma figura mostrando o<br />

esboço de um altar. (Santaella, 1997, p.56)<br />

No caso da ilustração de Fernando Vilela, texto e imagem estão em uma relação de<br />

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Um estudo sobre a linguagem da ilustração e o design gráfico<br />

coexistência no plano de expressão, ou seja, o texto está sobrepondo o fundo da imagem,<br />

interferindo no espaço pictórico. A relação sugere que o texto está saltando ou inserido no<br />

universo representado na ilustração. A relação de texto e imagem transmuta-se em uma relação<br />

entre imagem e imagem, falo da relação da ilustração com os blocos de texto. Entramos nos<br />

domínios das formas representativas.<br />

Há um outro conceito que poderia corroborar nessa relação de texto e imagem no<br />

plano de expressão, me refiro ao texto lido como imagem que foi abordado por Will Eisner.<br />

Embora o autor fale sobre a narrativa nos quadrinhos o comentário é pertinente a ilustração:<br />

“O letreiramento, tratado “graficamente” e a serviço da história, funciona como extensão da<br />

imagem. Neste contexto, ele fornece o clima emocional, uma ponte narrativa, e a sugestão de<br />

som” (Eisner, 1999, p.10). Ainda nesta questão de empregar sonoridade a palavra impressa,<br />

Richard Hollis fornece algumas informações importantes:<br />

As palavras e imagens normalmente são utilizadas em conjunto; pode ser que<br />

um dos dois – texto ou imagem – predomine, ou que o significado de cada um<br />

seja determinado pelo outro. Alguns dos exemplos mais sofisticados de design<br />

gráfico recorrem à precisão das palavras para dar sentido exato a imagens<br />

ambíguas.<br />

A palavra, quando impressa, na forma de registro da fala, perde uma extensa<br />

variedade de expressões e inflexões. Os designers gráficos contemporâneos<br />

(especialmente seus precursores, os futuristas) têm tentado romper essa<br />

limitação. Ampliando ou reduzindo os tamanhos, os pesos e a posição das<br />

letras, seu tipografismo consegue dar voz ao texto. Instintivamente, existe<br />

um anseio não só de transmitir a mensagem, mas também de dar a ela uma<br />

expressão única. (Hollis, 2005,p.1)<br />

Na intenção de transpor para um suporte impresso a sonoridade, na diagramação<br />

da página do livro de Fernando Vilela há alternância da altura e inclinação na disposição das<br />

caixas de texto, que sugerem instabilidade, dão ritmo sonoro ao texto e sugerem passagem<br />

de tempo, impregnando o texto impresso com a mímica da linguagem falada. Esta mímica da<br />

visualidade evoca na imaginação do interpretante que sente a sinestesia dos sons e caracterizese<br />

na modalidade representação imitativa. Neste caso a representação imitativa evoca não<br />

apenas os tons da sonoridade no texto, mas, também se refere à visualidade do movimento<br />

do galope do cavalo que o herói está montado. A sinestesia do galope do cavalo, embora,<br />

sugerido em outros elementos na ilustração da pagina sete – que serão abordados mais<br />

especificamente no próximo tópico – pode ser melhor compreendida quando o leitor estiver<br />

seguindo a sequência do livro, uma vez que só podemos visualizar um pequeno pedaço do<br />

pescoço do cavalo no canto inferior direito da página. Assim podemos ver que é um efeito que<br />

depende do encadeamento das imagens. O leitor aqui poderá voltar e rever as figuras 5 e 6.<br />

Quando falamos de perceber o galope do cavalo na ilustração através dos indícios<br />

rítmicos sugeridos pelos elementos visuais, estamos falando das formas representativas, na<br />

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sub-modalidade cifra de relações existenciais onde “Fragmentos, recortes visuais de situações<br />

vividas são deslocados de seu contexto habitual para fazerem parte de uma nova sintaxe<br />

engendrada” (Santaella, 2009B, p.255). Assim podemos perceber que antes que estes<br />

fragmentos de memória visuais sejam ativados eles devem existir como referência, vivência<br />

armazenada e repertório na mente do interpretante para que ele relacione o galope do cavalo<br />

ao estímulo recebido pelo ritmo visual da ilustração. Assim, vemos que a ilustração comumente<br />

dependente da experiência humana armazenada para ser interpretada.<br />

O fato de perceber o movimento em si através da configuração das formas e objetos<br />

de uma ilustração está no domínio das formas não-representativas, assim percebemos que<br />

mesmo que o leitor esteja ciente do movimento do cavalo, envolvido pelo encadeamento das<br />

páginas, e já tenha percebido a relação dos elementos gráficos com este movimento, esta<br />

percepção só é acessada no momento que a distinção entre o real e a cópia desaparece.<br />

Esta característica existe na relação entre o movimento sugerido das formas abstratas e o<br />

momento de presentificação da imagem na imaginação do leitor. Santaella caracteriza este<br />

tipo de acontecimento entre as formas não-representativas, a qualidade como possibilidade.<br />

A tipografia exerce primeiramente uma questão de leitura, é serifada e preenche sua<br />

forma no branco do papel, sobre um fundo preto. É relevante colocar a citação de Donis A.<br />

Dondis sobre a relação de cores que aparece nas caixas de texto do livro de Vilela, “Elementos<br />

claros sobre fundo escuro parecem expandir-se, ao passo que elementos escuros sobre fundo<br />

claro parecem contrair-se (Dondis, 2007, p.49). Este tipo de relação presente na cor, está nas<br />

formas não representativas, e é caracterizada por Santaella como a qualidade materializada:<br />

É uma simples presença, presentidade ou qualidade de presença, anterior a<br />

qualquer representação ou referência, anterior até mesmo a qualquer relação<br />

de similaridade, pois a pura qualidade do vermelho, ou do amarelo, ou<br />

qualquer que seja a cor, não se assemelha a nada em particular ou definitivo,<br />

pelo simples fato de que pode se assemelhar a todas as coisas vermelhas ou<br />

amarelas do mundo (Santaella, 2009B, p.214).<br />

Neste tópico vimos o quão a relação de coexistência de texto e imagem contribuem na<br />

construção e na leitura do signo, mesclando o ritmo sonoro do texto e da imagem em uma<br />

sensação única, imantadas uma à outra elas tornam-se parte de um mesmo universo dentro<br />

da mente do leitor. Antes de nos precipitarmos em maiores conclusões vamos analisar melhor<br />

a ilustração.<br />

A imagem<br />

As hibridizações de linguagens que caracterizam os designers da linguagem, não se<br />

restringem apenas ao texto, como vimos no tópico sobre a mensagem. O estilo visual de<br />

Fernando Vilela como ilustrador provém de seu trabalho com matrizes móveis e independentes,<br />

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feitas de borracha plástica, que funcionam como carimbos. Seu estilo tem sido característico em<br />

diversos livros infantis ilustrados pelo autor, como Eros e Psiquê e Desafios de Cordel. No final<br />

do livro Lancelote e o Lampião há uma descrição sobre as referências de Vilela para compor as<br />

ilustrações de Lancelote, que envolvem desde iluminuras medievais, pinturas renascentistas,<br />

além de armas e armaduras de época. Para compor o personagem Lampião as referências<br />

foram a xilogravura popular, e as fotografias da época do cangaceiro, além de cenas de filmes<br />

brasileiros como Deus e o diabo na terra do sol (1963) de Glauber Rocha. Em relação às cores<br />

da ilustração, há duas cores especiais que separam, caracterizam, identificam e comunicam<br />

com cada uma das personagens. A cor prata para armadura e utensílios metálicos de Lancelote<br />

e a cor cobre para os anéis, espingarda e apetrechos de Lampião. Estas cores contrastam<br />

com o fundo escuro, comuns à quase todas as páginas do livro.<br />

É interessante começarmos a análise da ilustração pela marca qualitativa do gesto que<br />

a ilustração carrega. Esta marca diz respeito aos vestígios derivados do processo de produção<br />

desta imagem. Percebemos, que a ilustração possui elementos que foram carimbados diversas<br />

vezes na página deixando seus vestígios. Entretanto por ser um produto da era industrial não<br />

chegou a nós como uma gravura tradicional, a ilustração foi muito provavelmente escaneada<br />

e tratada no computador. Este processo é mais evidente quando nos deparamos com as<br />

cores da ilustração, temos o preto impresso, o branco da folha de papel preservado, e temos<br />

uma cor especial metálica. Os elementos de cor metálica provavelmente não estavam na<br />

mesma página dos outros elementos quando a gravura foi artesanalmente impressa, afinal a<br />

cor metálica foi uma característica do processo de impressão mecânico e a separação desta<br />

cor muito provavelmente foi feita no computador. Vemos por ai como o processo de trabalho<br />

do ilustrador hibridiza-se com ferramentas manuais e digitais. Quanto às cores especiais é<br />

interessante dizer que na área de agradecimentos do livro Fernando Vilela agradece a um<br />

colaborador – Sérgio Sister – pela pesquisa sobre cores especiais, o que nos mostra uma<br />

visão do processo de criação e de resolução de um projeto gráfico de livro.<br />

A personagem representada na ilustração, Lancelote, carrega em si a figura como<br />

esteriótipo. Esta modalidade é definida por Santaella como “uma imagem tópica extraída do<br />

conjunto de seus estereótipos mentais” (Santaella , 2009B, p.230). Este estereótipo foi retirado<br />

da imaginação do autor “Não é de uma mera impressão visual que o desenhista parte, mas de<br />

uma idéia ou conceito visualmente representável” (Santaella, 2009B, p.230). O conceito, ou,<br />

idéia que o artista expressou foi a sua visão da série de mitos recorrentes dos guerreiros da<br />

Távola redonda. A figura não tem a pretensão de representar o mundo real externo, possuindo<br />

uma lógica própria de representação criada pelo ilustrador para o universo desta ilustração.<br />

Quando falo de figura me refiro às formas figurativas da ilustração, o personagem, o cavalo,<br />

a lança, o elmo, a armadura de placas e a capa, repletas de grafismos medievais. Todos os<br />

objetos e características citadas dentro da linguagem de expressão e representação do artista<br />

formam o estereótipo. O estereótipo comunica através de símbolos gráficos que carrega em<br />

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si a síntese de informações e leis estabelecidas por convenções culturais, evocando assim um<br />

estereótipo reconhecível pelo interpretante.<br />

A figura como estereótipo é uma sub-modalidade das formas figurativas, sendo que,<br />

uma de suas características é que não existe figura sem um fundo. Pensando nisso, a primeira<br />

relação que encontramos entre a figura e o fundo é a relação de coexistência do texto e<br />

imagem evidenciada no outro tópico. O caso dessa coexistência pode ser explicada pela<br />

citação de Andrew Loomis:<br />

O espaço em branco fala mais na página do que o tom. Isto permite que o<br />

desenho da área em branco receba outros desenhos em uma unidade pictórica.<br />

Isto isola o material importante para que possa ser lido com facilidade (Loomis,<br />

1947, p.202)<br />

Na ilustração o espaço em branco – mencionado por Loomis – corresponde ao fundo<br />

preto, que formado de uma cor chapada, libera espaço para o texto e também puxa o foco de<br />

atenção para a figura, uma vez que o olhar é guiado pelos focos de maior complexidade de<br />

informação e pelos contrastes. Enquanto relação figura e fundo, o fundo funciona dentro das<br />

leis naturais das qualidades, ou seja, através das leis que configuram a percepção humana,<br />

o fundo tem o papel de facilitar a organização dos elementos envolvidos e criar uma unidade<br />

entre eles. A cor do fundo é uma qualidade materializada, uma vez que não se assemelha a<br />

nada, ou, assemelha-se à todas as coisas de cor preta do universo. Esta escolha em criar<br />

relações entre a figura, o fundo e o texto – assim como já foi comentado – está no âmbito do<br />

diagrama, nota-se ai que o ilustrador, neste caso, tem papel fundamental na concepção do<br />

diagrama.<br />

Ainda falando das leis naturais das qualidades, podemos incluir nesta relação o ponto<br />

focal e a posição do observador. Andrew Loomis nos adverte que “A posição do observador<br />

irá determinar muito do efeito dramático” (Loomis, 1947, p.179). Na página anterior do livro<br />

temos o herói visto em um plano geral (figura 5 e 6), na página que estamos analisando<br />

(Figura 3), o autor por conveniência dramática do encadeamento da narrativa aproxima a visão<br />

do observador para próximo do rosto do herói, o que faz com que o contato emocional da<br />

personagem para com o leitor aumente. Este objetivo de dramatização buscada pelo ilustrador<br />

pode ser caracterizada como o espírito por trás da imagem. “A imaginação é contagiosa, o<br />

humor é contagioso e o espírito por de trás da imagem é noventa por cento da imagem. Você<br />

deve estar alerta para o drama todo o tempo” (Loomis, 1947, p.200). Corroborando para<br />

as palavras de Loomis, temos a importância do ponto focal para a narrativa, que depende<br />

fundamentalmente da composição da cena, como vemos na fala de Rui de Oliveira:<br />

A finalidade da composição, além de obter o equilíbrio plástico da página, é<br />

favorecer a leitura e a apreensão da narrativa. Portanto, o ato de compor está<br />

vinculado diretamente ao ato de contar histórias visuais (Oliveira, 2008, p.60)<br />

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A composição depende não apenas dos elementos que inserimos na ilustração, mas,<br />

sobre tudo da relação em que os elementos exercem uns sobre os outros, ou seja, uma<br />

linha que guia a estrutura destes elementos direcionando o olhar e hierarquizando as formas.<br />

Acrescentando a citação de Rui de Oliveira, esta é uma estrutura fundamental na construção<br />

da narrativa:<br />

Somente com um olhar interessado percebemos que a linha estrutura a<br />

ilustração, por exemplo, o direcionamento do olhar – um recurso decisivo para<br />

se contar uma história, além de prender a atenção do leitor. Esse caminho visual<br />

conduz à leitura gráfica por meio de uma hierarquia de elementos descritivos<br />

e narrativos conscientemente organizados pelo artista (Oliveira, 2008, p.124).<br />

O ponto focal da ilustração de Vilela está localizado no elmo da personagem, uma vez<br />

que, por sua qualidade figurativa, o elmo exerce uma relação importante de semelhança e de<br />

identificação com o interpretante que toma o olhar do personagem como seu, e como ponto<br />

de equilíbrio dentro da lógica da ilustração. Virtualmente criamos uma linha do horizonte na<br />

altura do olhar do personagem para guiar nossa percepção daquele universo. O nosso olhar<br />

continua sendo guiado por outras forças perceptivas, como o movimento das placas metálicas<br />

da armadura se desprendendo juntamente com os blocos de texto. Na lança encontramos<br />

uma força ascendente que nos guia para fora da página, poética pura, lirismo mimético em<br />

relação à ascensão na invocação do herói pelo texto. Outro efeito que caracteriza o ponto<br />

focal no elmo é que esta é a área com o maior peso visual da ilustração, o branco, neste caso<br />

chama atenção por sua luminosidade em meio ao fundo escuro.<br />

Figura 6. Vilela (2006)<br />

O personagem, seu elmo, a lança e corpo brilham na cor branca que se expandem<br />

sobre o preto que predomina na página e só é quebrado pela cores metálicas. Todas as<br />

formas são preenchidas por cores chapadas e não há profundidade sugerida nas formas<br />

separadamente. Andrew Loomis refere-se a esta organização do espaço: “O senso do<br />

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ilustrador de organização do espaço é a primeira indicação de criatividade” (Loomis, 1947,<br />

p.30). Esta relação da imagem quase sem profundidade de campo, configura um caso de<br />

codificação qualitativa do espaço pictórico, descrita por Santaella:<br />

Quanto mais a superfície do quadro não permite “ver através”, mas se<br />

apresenta a si mesma como superfície à ser preenchida, quanto mais as formas,<br />

destacando-se sobre um fundo neutro, dispõe-se umas ao lado das outras<br />

ou em superposição, em um contexto imaterial, mas sem lacunas, no qual a<br />

alternância rítmica de cores, ou alternâncias rítmica de claro e escuro criam<br />

uma unidade intrínseca apenas colorística ou iluminística, mais a construção<br />

figurativa tende para uma codificação meramente qualitativa (Santaella, 2009B,<br />

p.243).<br />

As formas metálicas, e em alguns casos as formas em preto, são carimbadas diversas<br />

vezes em cima da figura, sobrepondo elementos e agregando uma idéia de profundidade e<br />

movimento no espaço, que se caracteriza como uma lei natural das qualidades, contribuindo<br />

para configuração do espaço e organização dos elementos envolvidos através das leis da<br />

percepção humana.<br />

O movimento das placas de metal da armadura e da capa de Lancelote, funcionam<br />

como uma qualidade como possibilidade, uma vez que se realiza apenas no instante em que<br />

nos perdemos na diferenciação entre o mundo real e o universo da ilustração. O movimento<br />

também é uma representação imitativa, uma vez que imita ritmo e a reação do movimento<br />

do galope do cavalo. Cria também, a sinestesia de placas de metal batendo umas sobre<br />

as outras, neste caso uma cifra de relações existenciais, uma vez que o interpretante só<br />

terá essa sensação sinestésica caso já tenha previamente registrado um determinado tipo<br />

de experiência. Além desta sinestesia de movimento, temos neste caso, da cifra de relação<br />

existências, uma sugestão onírica em que as placas estão se descolando do corpo do herói<br />

em um movimento constante, como se houvessem placas infinitas que se deslocassem para<br />

dar brilho ao herói, para envolver em uma aura mística, sendo que, estas colocações atingem<br />

maior ou menor grau de percepção do interpretante dependendo talvez, de aspectos pessoais<br />

e culturais.<br />

A singularização das convenções, o estilo, é a ultima modalidade das formas figurativas<br />

que vamos abordar aqui, esta modalidade diz respeito ao estilo do artista. A série de<br />

convenções pictóricas repetidas no trabalho do artista que, não são de forma alguma uma<br />

característica do estilo de época, mas sim, a marca do artista. No caso de Fernando Vilela<br />

seu estilo, sua marca é primeiramente relacionado ao modo de produção artesanal aliado à<br />

produção industrial que o permite uma configuração única em seu trabalho. Este híbrido entre<br />

tradicional e contemporâneo são as primeiras impressões em seu estilo, que continuam sendo<br />

construídas pela sua configuração do espaço pictórico, e suas formas repletas de movimento,<br />

sinestesias e evocativas de um universo de sonhos. Todas estas características de articulação<br />

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Um estudo sobre a linguagem da ilustração e o design gráfico<br />

da linguagem, híbrida, pessoais e inovadoras vão de encontro ao pensamento dos designers<br />

da Linguagem.<br />

Conclusão<br />

É evidente no trabalho de Fernando Vilela a relação do hibridismo de linguagens entre o<br />

projeto gráfico, ilustração e texto. As imagens mentais evocadas pelo texto unem se a ilustração<br />

compondo uma imersão imaginativa ao leitor. A linguagem do texto também caracteriza os<br />

personagens confirmando sua procedência e adicionando referência cultural. No diagrama,<br />

texto e imagem dividindo o espaço na página aproximam a linguagem verbal da linguagem<br />

visual. O movimento do texto cria ritmo de leitura criando marcas gráficas que impregnam a<br />

página de sonoridade. O estilo e o estereótipo da ilustração evocam imagens de um repertório<br />

cultural ocidental que dão forma aos estímulos textuais. Assim, vemos o como as linguagens<br />

são por si só híbridas. Vimos também que a escolha das cores especiais no projeto gráfico<br />

adicionou características de linguagem que valorizaram, distinguiram e enriqueceram os<br />

personagens. Assim, vemos que o designer gráfico não é apenas o profissional que cria uma<br />

hierarquia de leitura, mas que criar marcas gráficas que agregam significados à mensagem, são<br />

assim designers da linguagem e inseridos na realidade contemporânea, o ilustrador, também<br />

participa da produção dos designer da linguagem, um pensamento propulsor da inovação.<br />

Figura 7. Páginas vinte e vinte um. Vilela (2006)<br />

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Um estudo sobre a linguagem da ilustração e o design gráfico<br />

Referências<br />

Figura 8. Páginas trinta e trinta e um. Vilela (2006)<br />

Figura 9. Páginas trinta e oito e trinta e nove. Vilela (2006)<br />

Figura 10. Páginas quarenta e dois e quarenta e três. Vilela (2006)<br />

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Um estudo sobre a linguagem da ilustração e o design gráfico<br />

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Paulo: Iluminuras.<br />

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ZEEGEN, Lawrence;Crush (2009). Fundamentos de Ilustração. Porto Alegre: Bookman.<br />

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ANALISANDO O MECOTipo<br />

Leonardo A. Costa Buggy; Me.: <strong>Universidade</strong> Federal de Pernambuco<br />

buggy@tiposdoacaso.com.br<br />

Resumo<br />

Este artigo apresenta o Método de Ensino de Desenho Coletivo<br />

de Caracteres Tipográficos, O MECOTipo, e discute alguns<br />

resultados obtidos com a sua implantação em duas circunstâncias<br />

distintas, uma delas ideal e outra desfavorável. A efetividade do<br />

método é avaliada a partir da análise de projetos de fontes digitais<br />

desenvolvidas entre os anos de 2009 e 2010 por alunos de<br />

cursos de graduação em design. A resultante dessas experiências<br />

e de outras, brevemente narradas no texto, indicam ajustes e<br />

incrementos que podem ser promovidos.<br />

Palavras-Chave: tipografia; desenho; fontes digitais e método<br />

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Analisando o MECOTipo<br />

O desenho de caracteres tipográficos e a coletividade<br />

A composição tipográfica de uma palavra é regulada por uma mecânica cuja dimensão<br />

é assegurada pelos espaços e corpos dos tipos de metal. Essa lógica se estende às linhas<br />

e colunas que caracterizam uma página de texto e relaciona-se com os elementos visíveis<br />

quando impressos.<br />

Nessa condição, o tamanho e a posição desses elementos podem ser especificados<br />

com precisão por meio de um sistema de medidas próprio dos tipos móveis (SMEIJERS,<br />

1996).<br />

A aplicação de tais princípios de funcionamento foi herdada pela tipografia digital,<br />

assegurando-lhe similar relação entre os grafismos dos caracteres e seus espaços.<br />

O enfoque do MECOTipo diz respeito unicamente ao desenho das formas tipográficas<br />

não contemplando sua articulação. As operações referentes ao preparo e geração de arquivos<br />

digitais necessários a instalação das fontes em sistemas operacionais não são compreendidas.<br />

Em outras palavras, a programação que dá ânimo ao sistema de medidas que combina letras,<br />

números e demais sinais usados pela escrita não é abordada.<br />

Todavia, os procedimentos contemplados pelo método consideram fortemente uma<br />

perspectiva humanizada do desenho que conjuga o pensamento de pelo menos três autores<br />

na sua essência.<br />

O primeiro deles, Freinet (1977), entende o desenho como produto de uma habilidade<br />

resultante do processo natural da tentativa experimental no qual o homem busca crescer,<br />

suplantar obstáculos, afirmar sua personalidade e se perpetuar. O segundo, Moreira (1987),<br />

ressalta-o simplesmente como linguagem; a primeira escrita do homem, que o permite lançarse<br />

à frente, projetar-se. Por fim, o último e mais pragmático afirma que: “O desenho é um<br />

processo de criação visual que tem propósito.” (WONG, 1998, p.41).<br />

Ao explorar recursos que incluem tanto os traços gestuais quanto a lógica modular na<br />

concepção de caracteres, o MECOTipo reúne aspectos emotivos e racionais do desenho para<br />

estimular os designers interessados na produção tipográfica contemporânea. Mais que isso,<br />

o método considera o desenho de caracteres tipográficos, ou de tipos, um projeto de design.<br />

Esse tipo de projeto é uma atividade complexa e precisa. É difícil alterar substancialmente<br />

a forma das letras sem prejudicar a sua legibilidade. De qualquer modo, no campo das formas<br />

estabelecidas existem muitas possibilidades de variações estruturais tais como: inclinação do<br />

eixo, serifa, peso, altura de x e contraste (CHENG, 2006).<br />

A amplitude dos dados encerrados nessa atividade assemelha-se a da construção de<br />

um sistema de identidade visual, sinalética ou mesmo embalagem. O desenho de caracteres<br />

tipográficos é tão laborioso quanto qualquer outro plano para resolução de questões imputadas<br />

ao design.<br />

Para entender esse preceito é preciso compreender o status quo de uma vertente do<br />

design em particular. O atual contexto cultural e tecnológico no qual se insere o design gráfico<br />

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Analisando o MECOTipo<br />

permite que um profissional experimente grande quantidade de idéias em um curto espaço<br />

de tempo. Muitas vezes é possível gerar diversas alternativas para a solução de um mesmo<br />

problema.<br />

Essa prerrogativa atua sobre a tipografia interferindo em dois níveis de compreensão<br />

que relacionam-se entre si: a micro-tipografia, que abrange o desenho das letras e os detalhes<br />

de sua conformação, e a macro-tipografia, que abrange a composição de palavras, linhas,<br />

colunas e páginas, justificação, tamanhos, hierarquia de conteúdos, etc. (HEITLINGER, 2006;<br />

WILLBERG; FORSSMAN, 2007).<br />

Assim, numa realidade povoada de opções infindáveis para escolha e uso de uma<br />

fonte, o desafio do designer passa a ser eliminar as piores soluções e achar a mais adequada<br />

sem, contudo, perder-se nas diferentes possibilidades (STOLTZE, 1997).<br />

Muitos editores de grandes publicações buscam diferenciar seus produtos, dentre<br />

outros aspectos, pelo desenho tipográfico. Hendel (2003) chega a afirmar que o tipo da letra<br />

tem tanta influência sobre outras partes da página que, enquanto não definido, interrompe o<br />

fluxo do projeto. Desse modo, a construção de uma fonte digital pode ser interpretada como<br />

um projeto de design que muitas vezes antecede o desenvolvimento de outros, mas que em<br />

nada difere em valor ou grau de complexidade.<br />

Curioso é observar que a multidisciplinaridade e a ação conjunta são prerrogativas<br />

para a atuação de várias equipes de desenvolvimento dentro das empresas de design.<br />

Powell (1998) trata da atividade do design executada de forma coletiva, definindo pelo menos<br />

dois papéis: gerente de design e demais membros de uma equipe. O autor ainda trata de<br />

motivação e adequação de tarefas ao perfil de cada sujeito, discorrendo sobre capacidades<br />

e realizações de grupos de produção nas páginas do seu artigo ‘A organização da gestão de<br />

design’ publicado no <strong>Design</strong> Management Journal durante o final dos anos 1990.<br />

Projetar coletivamente é uma ação comum a prática profissional contemporânea do<br />

design. Ainda assim, sua adoção contraria boa parte do que se tem escrito sobre metodologia<br />

de desenho tipográfico. Fugir do individualismo, discutir abertamente problemas e trabalhar em<br />

comum com outrem no mesmo projeto é uma proposta que permitiu-se ser lançada a conta<br />

de um novo estado de ânimo da tipografia, sobretudo verificado no âmbito nacional. “Assim<br />

como muitas outras áreas do saber, a tipografia, nas últimas décadas parece atravessar um<br />

momento de revisão de valores e redefinição de territórios.” (FARIAS, 2000, p. 13).<br />

Frente a tal ajustamento coloca-se o MECOTipo, uma alternativa metodológica que<br />

não pretende ser única ou mesmo tomada como modelo absoluto. Lembrando o caráter<br />

introdutório de sua obra e revelando sua intenção, Buggy (2007, p. 12) esclarece: “Esse método<br />

pretende apontar um caminho, com algumas possibilidades, e informar o mínimo necessário<br />

para percorrê-lo.”. Do mesmo modo, outros autores também apontam seus caminhos.<br />

Sobre o grau de acerto desses métodos de desenho de caracteres, Cheng (2006) chama<br />

atenção para o fato de não existir um único processo correto para criar fontes. Mas, ao passo<br />

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Analisando o MECOTipo<br />

que reconhece a eficácia e a diversidade das metodologias, a professora da <strong>Universidade</strong> de<br />

Washington também as revela como individuais, únicas e cambiantes em função dos projetos.<br />

Mesmo que contraditórias, as diversas perspectivas do desenho tipográfico são sentidas<br />

como certas por seus proponentes. Todas são igualmente válidas, atestadas pelo sucesso<br />

profissional de cada designer. Essas vozes, recorrentemente conflitantes, são testemunhas<br />

de um simples fato: grande parte dos tipógrafos assimila o processo de desenhar tipos como<br />

uma atividade profundamente pessoal e subjetiva, ainda que nem todos concordem com isso<br />

(EARLS, 2002).<br />

O MECOTipo toma parte nesta recusa e nega a imposição da individualidade e da<br />

subjetividade como recursos únicos do desenho de caracteres. A eles, somam- se coletividade<br />

e objetividade para enriquecer e facilitar o processo de aprendizado.<br />

O MECOTipo<br />

Considerações de ordem pedagógica e técnica estão envolvidas na concepção do<br />

MECOTipo criando condições para a sua reprodução (BUGGY, 2007). Estas considerações<br />

fundamentam os postulados do método, os quais organizam-se em: parâmetros teóricos/<br />

metodológicos e parâmetros práticos.<br />

Os parâmetros teóricos/metodológicos preocupam-se em assegurar as condições<br />

adequadas para a implementação dos parâmetros práticos que sugerem uma seqüência<br />

de experimentos, ou exercícios específicos, na qual à medida em que a complexidade dos<br />

desafios propostos aumenta, os designers em formação envolvidos são levados a produzir<br />

coletivamente.<br />

Para que tais parâmetros funcionem em conjunto há um programa de aulas que<br />

coordena a aquisição do conteúdo teórico e técnico com a seqüência de experimentos. Esse<br />

programa pode ser ajustado, sem perder suas características, adaptando-se aos participantes<br />

e às mudanças ocorridas durante o desenrolar das aulas.<br />

O MECOTipo também possui um sistema de avaliação próprio desenvolvido a partir da<br />

formulação dos postulados que compõem os parâmetros práticos para analisar os resultados<br />

obtidos a partir da sua execução. Projetado para avaliar desenhos de caracteres de fontes<br />

display, esse sistema resulta em afirmações lingüísticas compreensíveis que valorizam e<br />

orientam os designers em formação.<br />

Todo o conteúdo teórico dedicado ao desenho de tipos necessário a uma boa evolução<br />

durante a vivência dos experimentos ainda está contemplado pelo método. Trata-se de um<br />

compêndio a respeito da constituição e percepção das formas de caracteres tipográficos.<br />

Dado a complexidade do sistema de avaliação e o volume do compêndio ambos não<br />

serão apresentados neste trabalho. Apenas o reflexo de suas configurações comporá, mais<br />

a frente, a análise dos resultados apresentados pelo emprego do método e as propostas de<br />

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Analisando o MECOTipo<br />

revisão do mesmo. Caberá a seguir, tão somente, uma descrição paramétrica do MECOTipo.<br />

São quatro os postulados que constituem os parâmetros teóricos/metodológicos<br />

propostos pelo autor do Método de Ensino de Desenho Coletivo de Caracteres Tipográficos.<br />

Postulado 1: Contexto e participação do professor.<br />

Próprio de uma atividade educacional, recomenda-se que tal método seja<br />

implementado em sala de aula em condições habituais do sistema de ensino<br />

superior em design, com carga horária mínima de 48 horas e ideal de 60 horas.<br />

A observação do contexto natural auxilia no entendimento da realidade dos<br />

designers em formação e no seu desenvolvimento pessoal e coletivo. Esse tipo<br />

de observação em grupo, mediada pelo professor, permite avaliar o processo<br />

produtivo por meio de instrumentos educacionais. [...]<br />

Postulado 2: Utilização do compêndio e outros artefatos.<br />

A utilização do compêndio gerado por Buggy auxilia na aquisição de<br />

conhecimento teórico e técnico necessário à atividade do desenho tipográfico.<br />

Esse instrumento de apoio didático se faz necessário visto que reúne um<br />

conjunto de informações que fornecem subsídios para a realização dos<br />

experimentos propostos pelo método. Todavia, conhecimentos introdutórios<br />

ao universo tipo-gráfico, tais como história e ‘anatomia’ são essenciais para a<br />

compreensão da estrutura dos caracteres, arquétipo e suas relações formais,<br />

de maneira que possam caracterizar a idéia de conjunto tipográfico para a<br />

configuração de uma fonte digital.<br />

Outros artefatos podem ser utilizados como apoio ou em substituição ao<br />

compêndio, desde que a integridade de seu conteúdo seja preservada. [...]<br />

Postulado 3: Auto-avaliação do professor.<br />

Para uma compreensão regulatória de todo processo produtivo de desenho<br />

de caracteres tipográficos é recomendado que o professor desenvolva os<br />

exercícios propostos nos parâmetros práticos, para que possa experimentar<br />

todas as fases do método. Esta etapa, considerada de auto-avaliação do<br />

professor, o torna apto para todos os níveis de complexidade inerentes ao<br />

desenho de caracteres tipográficos. [...]<br />

Postulado 4: Avaliação dos designers em formação.<br />

Todos os procedimentos devem contar com a colaboração ativa dos designers<br />

em formação, sempre que possível, e estar subordinados a produção e<br />

participação dos mesmos em sala de aula.<br />

A produção deve concentrar-se no alcance dos objetivos propostos pelos<br />

postulados que constituem os parâmetros práticos do MECOTipo. O alcance<br />

de tais objetivos deve levar em conta aspectos pré-determinados a serem<br />

analisados, bem como seus respectivos critérios. Cada critério implica em uma<br />

pergunta que pode ser respondida através de uma afirmativa ou uma negativa.<br />

Uma afirmativa obtida implica em um peso próprio que terá uma expressão<br />

numérica refletida para cada objetivo. Esta expressão posicionará um objetivo<br />

em uma escala de pontos constituída por faixas de valores associadas a<br />

conceitos que reunidos expressarão a avaliação de cada exercício.<br />

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Analisando o MECOTipo<br />

A participação deve ser verificada através da consulta ao diário de classe que<br />

deve refletir o monitoramento diário das atividades e da lista de freqüência.<br />

(BUGGY, 2007, p. 19-21).<br />

Os parâmetros práticos do MECOTipo também são formados por quatro postulados.<br />

Cada um deles diz respeito a um exercício a ser realizado individualmente ou de forma coletiva.<br />

Postulado 1: O desenho individual de um ‘a’ numa folha de papel A4.<br />

Os designers em formação devem desenhar a mão livre uma letra ‘a’ caixabaixa<br />

em uma folha de A4. Papel, lápis grafite, borracha e canetas hidrográficas<br />

de várias espessuras de ponta devem ser distribuídos em quantidade suficiente<br />

para todos. Nenhuma restrição de tempo, forma, tamanho ou de qualquer<br />

outra natureza deve ser apresentada para execução deste desenho.<br />

Após a conclusão, cada trabalho deve ser identificado com o nome de seu<br />

autor. [...]<br />

Postulado 2: O desenho individual de letras caixas-baixas, letras caixas-altas<br />

e de números através de módulos pré-determinados.<br />

Neste experimento se faz necessário que os designers em formação desenhem<br />

individualmente 62 caracteres para uma mesma fonte display. Números, letras<br />

caixas-altas e caixas-baixas devem resultar da composição de até 3 módulos<br />

distintos atrelada a uma malha de construção formada por um conjunto de<br />

retas perpendiculares.<br />

Esses módulos são projetados sob a orientação do professor para combinar-se<br />

de modo a solucionar a caracterização de traços retos, curvos e em diagonal<br />

dos caracteres. Por sua vez, a malha de construção deve conter um sistema<br />

de linhas guia capaz de alinhar os caracteres, fornecendo-lhes, ao mesmo<br />

tempo, proporções semelhantes para ascendentes, descendentes, altura de<br />

‘x’ e altura das caixas-altas.<br />

O MECOTipo adota um sistema de derivação de arquétipos tipográficos que<br />

considera caracteres-chave a partir dos quais outros se originam para orientar<br />

a produção dos desenhos solicitados.<br />

O desenho individual de letras caixas-baixas, letras caixas-altas e de números<br />

através de módulos pré-determinados pelos designers em formação pode ser<br />

realizado manualmente com o auxílio de réguas e dos mesmos instrumentos<br />

de desenho utilizados durante o primeiro experimento. Contudo, recomendase<br />

o uso de computadores equipados com softwares para manipulação de<br />

vetores e digitalização de imagem. [...]<br />

Postulado 3: O desenho coletivo de ‘n’, ‘o’, ‘H’ e ‘O’ caracteres de uma fonte<br />

de acordo com um tema predefinido.<br />

Para o terceiro experimento os designers em formação devem ser arranjados<br />

em grupos de até 5 indivíduos. Cada grupo terá que definir um tema capaz<br />

de fornecer aspectos que influenciem o estabelecimento de valores para peso<br />

de hastes, largura de letras retangulares, largura de letras redondas, altura de<br />

caixa-alta e altura de caixa-baixa. Essa influência também deve estender-se<br />

à configuração das junções de curvas com retas e acabamento de hastes<br />

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Analisando o MECOTipo<br />

verticais para o desenho de 4 caracteres específicos, ‘n’, ‘o’, ‘H’ e ‘O’.<br />

Os temas que fornecerão os aspectos a serem explorados no desenho dos<br />

caracteres devem ser obtidos da seguinte forma: os designers em formação<br />

são convidados a enumerar, individualmente, 10 temas de interesse pessoal<br />

em uma folha de papel. Uma vez concluídas essas listas, os grupos devem ser<br />

reunidos para que seus membros possam confrontar suas sugestões, buscando<br />

recorrências e/ou semelhanças até a obtenção de listas menores compostas<br />

por 5 temas de interesse comum. Cada grupo terá uma lista através da qual<br />

elegerá um único tema a ser trabalhado. Os grupos promoverão ‘recortes’ de<br />

seus temas e redigirão breves textos descritivos, que irão permitir o destaque<br />

dos aspectos mais relevantes da visão particular desses designers a respeito<br />

dos temas escolhidos.<br />

Do mesmo modo que no segundo experimento, uma malha de construção<br />

deve ser utilizada para auxiliar na manutenção da largura e espessura de hastes<br />

dos caracteres e determinar o posicionamento da linha de topo, linha média,<br />

linha de base, linha de fundo e, quando desejado, linha de versal. Neste caso,<br />

é sugerido para todos uma malha única constituída a partir da segmentação<br />

em 72 unidades do quadratim.<br />

A execução manual dessas atividades é desaconselhada, sob pena de prejuízo<br />

ao programa de aula originalmente adotado pelo MECOTipo. [...]<br />

Postulado 4: O desenho coletivo de 100 caracteres de uma fonte de acordo<br />

com um tema predefinido.<br />

O último experimento consiste numa expansão do terceiro experimento<br />

realizada com o apoio do sistema de derivação de arquétipos tipográficos<br />

utilizado durante o segundo experimento.<br />

Novos grupos devem ser formados para que desenhem conjuntos de 100<br />

caracteres através de novos temas. O processo de obtenção desses temas,<br />

caracterização dos atributos de correlação e adoção da malha de construção<br />

do quadratim é o mesmo do terceiro exercício e os caracteres ‘n’, ‘o’, ‘H’ e ‘O’<br />

devem ser produzidos inicialmente seguidos por ‘p’, ‘h’, ‘a’. ‘e’, ‘c’, ‘j’, ‘v’ e ‘k’,<br />

nesta seqüência.<br />

O desenho de sinais de pontuação, acentos e outros tipos de caracteres<br />

presentes no conjunto solicitado deve ser realizado mediante a observação de<br />

similares encontrados em fontes já publicadas por autores consagrados.<br />

Do mesmo modo que no terceiro experimento, a execução manual dessas<br />

atividades é desaconselhada. (BUGGY, 2007, p. 30-42).<br />

Em função de sua natureza, esses postulados ainda enumeram e descrevem objetivos<br />

para melhor formular os desafios propostos pelo método. O quadro a seguir esclarece essa<br />

relação:<br />

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Analisando o MECOTipo<br />

Postulados Objetivos<br />

O desenho individual de um ‘a’<br />

numa folha de papel A4.<br />

O desenho individual de letras<br />

caixas-baixas, letras caixas-altas<br />

e de números através de módulos<br />

pré-determinados.<br />

O desenho coletivo de ‘n’, ‘o’, ‘H’<br />

e ‘O’ caracteres de uma fonte de<br />

acordo com um tema predefinido.<br />

O desenho coletivo de 100<br />

caracteres de uma fonte de acordo<br />

com um tema predefinido.<br />

• Estabelecer um contato inicial com o desenho de caracteres<br />

sob um ponto de vista prático;<br />

• Explorar o potencial da força de trabalho;<br />

• Gerar uma primeira reflexão acerca do desenho de caracteres.<br />

• Estabelecer um segundo contato, mais intenso e complexo,<br />

com o desenho de caracteres sob um ponto de vista prático;<br />

• Verificar a produtividade frente ao desafio proposto;<br />

• Proporcionar a compreensão das possibilidades das relações<br />

de semelhança e diferença entre os desenhos dos caracteres de<br />

uma fonte, em especial as letras;<br />

• Exercitar a geração de soluções para traços retos, curvos e<br />

em diagonal;<br />

• Proporcionar a compreensão da proporção do peso das hastes<br />

dos caracteres de uma fonte.<br />

• Desenvolver coletivamente um tema capaz de fornecer<br />

aspectos que orientem a composição das características do<br />

desenho de uma fonte;<br />

• Desenhar coletivamente ‘n’, ‘o’, ‘H’ e ‘O’ a partir do tema<br />

gerado;<br />

• Explorar a equalização visual da espessura dos traços dos<br />

caracteres desenhados;<br />

• Explorar a uniformização do desenho das extremidades dos<br />

traços dos caracteres;<br />

• Explorar a uniformização das proporções entre altura e largura<br />

dos caracteres.<br />

• Desenvolver coletivamente um tema capaz de fornecer<br />

aspectos que orientem a composição das características do<br />

desenho de uma fonte;<br />

• Desenhar coletivamente um conjunto de 100 caracteres a<br />

partir do tema gerado;<br />

• Explorar a equalização visual da espessura dos traços dos<br />

caracteres desenhados;<br />

• Explorar a uniformização do desenho das extremidades dos<br />

traços dos caracteres (serifas, esporas, terminais, incisões, etc.);<br />

• Explorar a uniformização das proporções entre altura e largura<br />

dos caracteres;<br />

• Explorar a uniformização da largura dos espaços internos e<br />

intervalos dos caracteres.<br />

Quadro 1: Postulados que definem os parâmetros práticos do MECOTipo e seus respectivos objetivos.<br />

Cabe destacar que para cada um dos objetivos acima listados o método aponta<br />

aspectos que devem ser verificados para aferir seu alcance. Do mesmo modo, cada aspecto<br />

está ligado a critérios de avaliação específicos.<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

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Analisando o MECOTipo<br />

Alguns resultados<br />

Dois conjuntos de desenhos para fontes obtidos pelo Prof. Me. Leonardo A. Costa<br />

Buggy entre 2009 e 2010 através da execução do MECOTipo serão apresentados e discutidos.<br />

O primeiro conjunto é resultado da disciplina Tipografia 2 ministrada aos alunos do Curso<br />

de Graduação em <strong>Design</strong> Gráfico da Faculdades Integradas Barros Melo durante o primeiro<br />

semestre de 2009. Essa introdução ao desenho tipográfico realizou-se em 38 horas/aula<br />

regularmente integralizadas na matriz curricular do citado curso.<br />

O segundo conjunto também é formado pelos últimos trabalhos apresentados na<br />

disciplina Desenho Tipográfico ministrada aos alunos de graduação do Curso de <strong>Design</strong> do<br />

Centro Acadêmico do Agreste da UFPE durante o primeiro semestre de 2010. Diferente do que<br />

ocorreu na primeira circunstância, a segunda contou com 60 horas, condição ideal prevista<br />

para a reprodução do programa de aulas do método.<br />

Desse modo, é importante destacar que o primeiro postulado dos parâmetros teóricos/<br />

metodológicos foi infringido na disciplina Tipografia 2.<br />

Próprio de uma atividade educacional, recomenda-se que tal método seja<br />

implementado em sala de aula em condições habituais do sistema de ensino<br />

superior em design, com carga horária mínima de 48 horas e ideal de 60 horas.<br />

(BUGGY, 2007, p. 19).<br />

Não houve como fugir da imposição da carga horária definida pela estrutura do<br />

curso da instituição particular de ensino e o déficit de 10 horas/aula foi compensado com<br />

acompanhamento online via e-mails e orientações informais.<br />

De toda sorte, o método adequou-se àquela realidade adversa. Os exercícios aplicados<br />

em separado no ano de 2007 atestaram valer a pena investir na experiência transgressora.<br />

A despeito das diferenças entre as condições de convivência e tempo verificadas em<br />

cada instrução, seus resultados serão apresentados neste artigo conforme entregues por seus<br />

autores.<br />

Todos os conjuntos de desenhos serão tratados daqui por diante como fontes e<br />

identificados através de um número que sucederá uma sigla usada para identificar a instituição<br />

na qual o trabalho foi desenvolvido. A ordem numérica adotada expressa um juízo qualitativo.<br />

Ela relaciona as fontes de forma decrescente quanto a obtenção de conceitos positivos<br />

segundo o sistema de avaliação proposto pelo método.<br />

Trabalhos que atingiram o mesmo conceito serão identificados com o mesmo número,<br />

diferenciando-se apenas pela adição de letras ao final de suas nomenclaturas. Ao contrário<br />

dos números, a atribuição dessas letras é aleatória e não expressa qualquer valor.<br />

A sigla FIBAM será adotada para designar os trabalhos realizados na Faculdades<br />

Integradas Barros Melo e a UFPE para os realizados na <strong>Universidade</strong> federal de Pernambuco.<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

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Analisando o MECOTipo<br />

identificação Fonte<br />

FIBAM 01<br />

FIBAM 02<br />

FIBAM 03<br />

FIBAM 04a<br />

FIBAM 04b<br />

Quadro 2: Fontes desenvolvidas na Faculdades Integradas Barros Melo.<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

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Analisando o MECOTipo<br />

identificação Fonte<br />

UFPE 01a<br />

UFPE 01b<br />

UFPE 02<br />

Quadro 3: Fontes desenvolvidas na <strong>Universidade</strong> Federal de Pernambuco.<br />

Breves comentários sobre os resultados apresentados<br />

A Fonte FIBAM 04b foi projetada por um grupo de 03 (três) indivíduos, as demais fontes<br />

do primeiro conjunto, desenvolvido na Faculdades Integradas Barros Melo, foram projetadas<br />

por grupos que utilizaram 05 (cinco) participantes, o limite sugerido pelo MECOTipo.<br />

Acredita-se que esta diferença tenha afetado significativamente o projeto dessa fonte,<br />

sobretudo pela condição adversa de tempo em que se deram as aulas do método.<br />

Mesmo sob essas condições pôde-se observar a produção da Fonte FIBAM 01, um<br />

projeto que atingiu conceito máximo.<br />

Alertados sobre o nível de dificuldade do projeto pretendido, o grupo responsável pela<br />

Fonte FIBAM 02 assumiu os riscos e decidiu levar a cabo seus caracteres sem serifa com<br />

contraste de eixo inclinado. Apesar de inconstante, o resultado lhes garantiu a segunda melhor<br />

avaliação na turma.<br />

A maior parte dos problemas da Fonte FIBAM 03 concentrou-se na não observação da<br />

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Analisando o MECOTipo<br />

descendência das formas dos caracteres.<br />

Os problemas da Fonte FIBAM 04a associaram-se em grande parte ao não uso de<br />

traços diagonais no projeto.<br />

Tanto a Fonte FIBAM 03 quanto a Fonte FIBAM 04a utilizaram fortemente o processo<br />

modular proposto no Postulado 2 dos parâmetros práticos do MECOTipo, fugindo do cerne do<br />

Postulado 4. Todavia, esta adoção desvirtuou o projeto da Fonte FIBAM 04a. O abandono de<br />

curvas e diagonais imposto pelos módulos usados interferiu profundamente nos arquétipos de<br />

letras como ‘D’, ‘O’, ‘G’, ‘B’, ‘A’, ‘M’, N’ e ‘X’, só para citar algumas maiúsculas. A construção<br />

dos caracteres também prendeu-se com rigor as possíveis combinações de módulos sugerida<br />

pela derivação de formas indicada pelo método para o desenho individual de letras caixasbaixas,<br />

letras caixas-altas e de números através de módulos pré-determinados.<br />

Além de apresentar sérios problemas de compatibilização de largura entre os caracteres,<br />

aspecto também verificado em menor intensidade na Fonte FIBAM 03, a Fonte FIBAM 04b<br />

apresentou uma grande distorção de peso entre os traços de caixas altas e baixas acentuada<br />

pela proporção mal planejada entre as dimensões dos dois alfabetos. As junções de curvas<br />

com retas também mostraram-se deficientes de modo evidente nesta última fonte.<br />

Ao contrário do que ocorreu na experiência realizada em 2009 o menor grupo constituído<br />

para o trabalho final da disciplina Desenho Tipográfico realizou o melhor trabalho dentre<br />

todos os apresentados em 2010. A Fonte UFPE 01a foi projetada por um grupo de 02 (dois)<br />

indivíduos. Originalmente composto por 05 (cinco) alunos o grupo sofreu com a desistência<br />

de 03 (três) membros na reta final do semestre letivo. Mesmo assim, conseguiu desenvolver<br />

um bom projeto.<br />

A carga horária máxima de aulas prevista pelo MECOTipo pode ter suprido a deficiência<br />

desse grupo, que pôde ser acompanhado presencialmente pelo docente mais do que o grupo<br />

desfalcado de 2009.<br />

A Fonte UFPE 01b apresentou mais problemas na constância do peso de seus<br />

caracteres e combinações de curvas com retas. Não se pode deixar de observar a acentuada<br />

falta de harmonia na definição das larguras dos caracteres caixas altas desse projeto.<br />

Deficiências na constância do peso e combinações de curvas com retas também foram<br />

observadas na Fonte UFPE 02. Neste projeto elas mostraram-se bastante acentuadas.<br />

O projeto de muitas das fontes apresentadas revelou fugas dos arquétipos de diversos<br />

caracteres. As condições mais recorrentes foram: a completa substituição de arquétipos de<br />

letras maiúsculas por arquétipos de minúsculas para definição das formas dos desenhos; a<br />

adoção de arquétipo de letras manuscritas; a deformação de arquétipos circulares aproximandoos<br />

de retângulos; o não uso de diagonais e o estreitamento de formas.<br />

Esse último efeito, em particular, pode ser claramente evitado com o apuro do conteúdo<br />

a respeito de proporções dos caracteres. Os demais estão relacionados a decisões de projeto<br />

e/ou equívocos cometidos pelos participantes dos grupos que não se relacionam a deficiências<br />

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Analisando o MECOTipo<br />

no conteúdo transmitido.<br />

As relações horizontais entre os arquétipos podem ser melhor explicitadas no compêndio<br />

e durante as aulas do método. Desse modo, novos aspectos podem ser incorporados para<br />

aferir o alcance do sexto objetivo do quarto postulado prático do MECOTipo (explorar a<br />

uniformização da largura dos espaços internos e intervalos dos caracteres). Atualmente apenas<br />

o equilíbrio entre os espaços internos e externos dos caracteres desenhados é considerado. É<br />

possível adotar-se também dois aspectos sugeridos por Cabarga (2004). Consistência, ritmo<br />

e regularidade na disposição das hastes é um deles e o equilíbrio e consistência entre a<br />

largura das letras outro. O primeiro associa-se mais indiretamente ao objetivo, o segundo está<br />

intimamente ligado a ele.<br />

De modo geral, as fontes em análise foram assim avaliadas:<br />

Projeto Conceito geral de avaliação obtido<br />

Fonte FIBAM 01 Superou o objetivo<br />

Fonte FIBAM 02 Alcançou o objetivo<br />

Fonte FIBAM 03 Alcançou com ressalvas o objetivo<br />

Fonte FIBAM 04a Não alcançou o objetivo<br />

Fonte FIBAM 04b Não alcançou o objetivo<br />

Fonte UFPE 01a Alcançou o objetivo<br />

Fonte UFPE 01b Alcançou o objetivo<br />

Fonte UFPE 02 Alcançou com ressalvas o objetivo<br />

Quadro 4: Avaliação das fontes analisadas.<br />

Os conceitos gerais de avaliação uniformizam o desempenho no alcance dos objetivos<br />

propostos pelos experimentos do MECOTipo, reunindo-os em um só objetivo que pode ser<br />

superado, alcançado, alcançado com ressalvas ou não alcançado (BUGGY, 2007). Assim,<br />

dos 08 (oito) projetos avaliados, 01 (um) superou o objetivo do quarto experimento, 03 (três)<br />

alcançaram o objetivo, 02 (dois) alcançaram com ressalvas o objetivo e outros 02 (dois) não<br />

alcançaram o objetivo.<br />

Em condições ideais de execução do método 66,666% dos trabalhos finais apresentados<br />

obtiveram êxito. Os 33,333% restantes o fizeram com ressalvas.<br />

Já em condições adversas, ainda que 20% tenham mostrado resultados que superaram<br />

as expectativas, apenas 40% obtiveram êxito livre de ressalvas ao desenhar coletivamente 100<br />

caracteres de uma fonte de acordo com um tema predefinido. Outros 20% dos trabalhos finais<br />

apresentados com a implantação de um programa de aulas com 38 horas obtiveram êxito<br />

parcial.<br />

Independente da carga horária de aulas ministradas e do modo como as fontes<br />

desenhadas atingiram seu objetivo, o MECOTipo revelou um índice de 75% de sucesso<br />

quando observado o desempenho dos trabalhos finais realizados nos primeiros semestres de<br />

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Analisando o MECOTipo<br />

2009 e 2010 em diferentes instituições de ensino superior de design.<br />

Considerações finais<br />

O MECOTipo é produto de um ciclo de dez anos de pesquisa, iniciado em 1996 e<br />

concluído em 2006, no programa de mestrado em design da UFPE. Ao longo deste trajeto<br />

excelentes resultados foram computados pelo método. Desde 2003 a sua competência vem<br />

sendo atestada de forma científica. Os primeiros testes realizados para a dissertação do Prof.<br />

Me. Leonardo A. Costa Buggy confirmaram a eficácia do método. O caráter coletivo inovador<br />

desse conjunto de meios para desenhar fontes tipográficas é responsável em grande parte<br />

por seu sucesso.<br />

Após três anos de implantação da atual configuração do Método de Ensino de<br />

Desenho Coletivo de Caracteres Tipográficos mostra-se adequado revisar tanto o conteúdo<br />

do compêndio utilizado em sala, como seus parâmetros práticos. Essa revisão deve-se na<br />

medida em que os estudos para o incremento e melhoria do método não foram cessados e<br />

têm revelado boas perspectivas para o ensino tipográfico.<br />

Experiências realizadas em duas circunstâncias correlatas às que produziram os<br />

resultados apresentados e discutidos neste artigo sugerem que ampliar a quantidade de<br />

exercícios pode ser uma boa opção para dar início a essa revisão.<br />

Durante o segundo semestre de 2008 o pesquisador ministrou 38 horas/aula de<br />

macro-tipografia e história a alunos do Curso de Graduação em <strong>Design</strong> Gráfico da Faculdades<br />

Integradas Barros Melo. Na ocasião foram adotados jogos de desafio para promover a fixação<br />

do conteúdo teórico exposto sobre aspectos da micro-tipografia relevantes a macro-tipografia,<br />

tais como: contraste, dimensão do olho e estilos.<br />

Um ano mais tarde, no segundo semestre de 2009, o mesmo ocorreu durante 60<br />

horas/aula sobre o mesmo assunto ministradas a alunos de graduação do Curso de <strong>Design</strong><br />

do Centro Acadêmico do Agreste da UFPE.<br />

Os resultados obtidos foram promissores na medida em que a seleção de atividades<br />

conquistou grande simpatia do alunado e de fato contribuiu para a apreensão dos conteúdos.<br />

Assim, preservar os exercícios já propostos e incluir mais atividades de menor complexidade<br />

e caráter lúdico deve trazer um significativo incremento ao MECOTipo.<br />

Uma certa inconstância pode ser observada ao analisar-se os produtos finais de cada<br />

oportunidade de execução do método apresentada neste trabalho. A aptidão dos designers<br />

em formação é um fator que a princípio diferencia os desenhos de caracteres tipográficos.<br />

Pode-se reconhecer isso após apreciar o desenvolvimento de certos grupos de alunos ao<br />

longo do período em que foram ministradas as aulas em questão.<br />

As diferenças observadas entre os resultados obtidos por alunos mais desenvoltos<br />

e talentosos e outros menos podem ser minimizadas mediante a exploração do sentimento<br />

verificado durante a implantação do segundo parâmetro prático. A alegria desencadeada pelo<br />

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Analisando o MECOTipo<br />

desafio de compor letras e números com módulos orientados por uma malha é semelhante<br />

a observada durante um jogo de tabuleiro. Logo, acredita-se que divertimentos nos quais<br />

os alunos façam prova da sua habilidade devem contribuir para a efetividade do método<br />

otimizando e equalizando seus resultados.<br />

Pequenos jogos de desafio pessoal que disponham de recursos estimulantes e<br />

recreativos podem ser incorporados ajudando a fixar conceitos como contraste, tamanho<br />

do corpo, altura de x e peso. O entendimento desses conceitos permite uma maior fixação<br />

de outros como fonte, estilo e família tipográfica, o que assegura uma melhor atuação dos<br />

membros de um grupo quando postos para atuar coletivamente.<br />

Os exercícios individuais propostos por Darricau (2005) que estimulam a associação e<br />

a hierarquização de formas tipográficas através do estabelecimento de conexões gráficas por<br />

meio de círculos e traços, ou ordenação numérica são bons exemplos de breves atividades<br />

com esse espírito. Eles contribuem para o aprendizado de conceitos ligados a tipografia e<br />

podem ser adotados pelo MECOTipo sem descaracterizar sua estrutura, encaixando-se nos<br />

intervalos da seqüência dos exercícios já propostos.<br />

Também o uso de jogos coletivos pode ser estimulado como recurso didático. O baralho<br />

Type Trumps desenvolvido por Banks (2008) é um bom exemplo. Cartas contendo imagens e<br />

informações sobre fontes bem difundidas ao longo da história são divididas igualmente entre<br />

jogadores que passam a competir entre si através dos valores atribuídos às características de<br />

cada uma. Aquele que possuir o maior valor relativo a característica escolhida para competir<br />

a cada rodada ganha as cartas dos demais. O objetivo é conquistar todo o baralho. O Type<br />

Trumps funciona conforme as regras do jogo que conhecemos como Super Trunfo. Trata-se<br />

de uma adaptação para o universo tipográfico.<br />

Explorar aspectos da anatomia dos caracteres em jogos dessa natureza pode prestarse<br />

bem ao alcance dos fins pretendidos pelo MECOTipo. Preservar o bom estado de ânimo e<br />

a ação conjunta dos envolvidos no processo de aprendizado é fundamental para que se possa<br />

motivá-los a concluir os projetos tipográficos coletivamente.<br />

Rever os parâmetros práticos certamente impactará os teórico/metodológicos e o<br />

sistema de avaliação. A inclusão de jogos educativos e de desafio corresponde a adoção de<br />

uma nova perspectiva conceitual que terá reflexos na formulação dos postulados que regem<br />

as condições necessárias a implantação do método.<br />

Todavia, para promover essas melhorias é preciso testar os jogos ou outros recursos<br />

equivalentes durante a execução do método. O preparo desse experimento implica, entre<br />

outras coisas, na remodelação do sistema de avaliação para tornar mensurável os resultados<br />

e compará-los com os já obtidos com a última versão do MECOTipo.<br />

Reconhece-se uma excelente oportunidade para simplificar e tabular em meio eletrônico<br />

esse sistema que tem-se mostrado de difícil uso. Devido à sua complexidade muito tempo é<br />

consumido na avaliação do desempenho dos participantes. O docente tem de comprometer-<br />

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Analisando o MECOTipo<br />

se gravemente com o processo de ensino quando fora de sala para assegurar a integridade<br />

dos conceitos que indicam o alcance de metas. Muitas vezes isto não é possível em virtude de<br />

outros compromissos pedagógicos assumidos nas instituições de ensino superior.<br />

No tocante ao compêndio, muito pode ser melhorado. Talvez esta seja a ação em<br />

prol dos melhoramentos do método que mais demande tempo, a depender da intenção em<br />

preservar ou não seu caráter introdutório. Independente desta possível mudança, diversos<br />

textos merecem ser incorporados atualmente. Tanto de autores já citados como de não citados.<br />

Entre os já citados deve-se reincidência a Adams, Bringhurst, Cheng, Frutiger e Ruder.<br />

Todos podem contribuir para melhor descrição do processo de derivação de formas verificado<br />

entre letras e números, por exemplo.<br />

Já entre os não citados, destacam-se Darricau, Earls, Cabarga, Gill, Lawson, McLean,<br />

Smeijers, Straus, Tracy e Willen. Em linhas gerais esses autores podem contribuir com mais<br />

detalhes sobre espaçamento, pares de kerning, controle de vetores, aspecto dos caracteres e<br />

conceituação de caligrafia, letreiramento e tipografia.<br />

Por fim, após breve análise dos resultados obtidos com o MECOTipo durante o período<br />

de 2007 a 2010 pode-se propor as seguintes recomendações:<br />

- testar a inclusão de parâmetros práticos que gozem de uma prerrogativa didática<br />

lúdica;<br />

- rever e ampliar o compêndio;<br />

- gerar um caderno de exercícios que acompanhe a versão revista e ampliada do<br />

compêndio;<br />

- rever os objetivos dos parâmetros práticos em uso;<br />

- simplificar o sistema de avaliação para melhor integrá-lo ao novo quadro de parâmetros<br />

práticos;<br />

- ajustar os parâmetros teóricos/metodológicos a nova realidade que compreende o<br />

uso de jogos educativos e cargas horárias menores que 48 horas.<br />

Referências<br />

TYPE TRUMPS. Manchester: Rick Banks/Face34, 2008. 1 baralho (30 cartas), preto e vermelho,<br />

em caixa 6,5 cm x 9 cm x 1,5 cm.<br />

BUGGY, L.A.C. O MECOTipo: método de ensino de desenho coletivo de caracteres<br />

tipográficos. Recife: Buggy, 2007. 179 p.<br />

CABARGA, L. Logo, font & lettering bible. Cincinnati: How <strong>Design</strong>, 2004. 240 p.<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

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Analisando o MECOTipo<br />

CHENG, K. <strong>Design</strong>ing typefaces. London: Laurence King, 2006. 232 p.<br />

DARRICAU, S. Le livre en letters. Paris: Pyramyd, 2005 80 p.<br />

EARLS, D. <strong>Design</strong>ing typefaces. Mies: Rotovision, 2002. 160 p.<br />

FARIAS, Priscila Lena. Tipografia Digital. O impacto das novas tecnologias. Rio de Janeiro:<br />

2AB, 2000. 120 p.<br />

FREINET, C. O método natural II: A aprendizagem do desenho. Tradução Franco de Sousa<br />

e Teresa Balté. 2. ed. Lisboa: Estampa, 1977. 387 p. Tradução de: La Méthode Naturelle – II.<br />

L’apprentissage du dessin.<br />

HENDEL, R. O design do livro. Tradução Geraldo Gerson e Lúcio Manfredi. São Paulo: Ateliê<br />

Editorial, 2003. 224 p. Tradução de: On Book <strong>Design</strong>.<br />

HEITLINGER, Paulo. Tipografia: origens, formas e uso das letras. Lisboa: Dinalivro, 2006.<br />

400 p.<br />

MOREIRA, A. A. A. O espaço do desenho: a educação do educador. 2. ed. São Paulo:<br />

Edições Loyola, 1987. 128 p.<br />

SMEIJERS, F. Counter punch: making type in the sixteenth century, designing typefaces now.<br />

London: Hyphen, 1996. 191 p.<br />

POWELL, E. N. A organização da gestão do design. In: PHILLIPS, Peter L. Briefing: a<br />

gestão do projeto de design. Tradução Itiro Iida. Revisão técnica Whang Pontes Teixeira. São<br />

Paulo: Blucher, 2007, 106-113. Tradução de: Creating the perfect design brief.<br />

STOLTZE, C. (Org.). Digital Type. Massachusets: Rockport, 1997. 143 p.<br />

WILLBERG, H. P.; FROSSMAN, F. Primeiros Socorros em Tipografia. São Paulo: Rosari,<br />

2007. 104 p.<br />

WONG, W. Príncipios de Forma e Desenho. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 352 p.<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

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O REAPROVEITAMENTO DE IDEIAS E MATERIAIS NO DESIGN DE<br />

JOIAS: ORIGEM, INTERTEXTuALIDADE E SuSTENTABILIDADE<br />

Viviane Nogueira de Moraes; Mestranda em <strong>Design</strong>: <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />

viviane.moraes@gmail.com<br />

Resumo<br />

Neste texto é apresentado o reaproveitamento de ideias e<br />

materiais como um desafio no design. O método utilizado para<br />

a organização deste estudo apoia-se na pesquisa bibliográfica e<br />

iconográfica, não apenas sobre o design de joias, mas também<br />

em outras manifestações criativas, a fim de que possa ser traçado<br />

um panorama geral sobre o que se entende por reutilização. O<br />

embasamento teórico deste trabalho é extraído da literatura: (1)<br />

sobre design, produzida por CARDOSO, FORTY e DAMASIO;<br />

(2) sobre reaproveitamento os trabalhos, de BENJAMIN,<br />

MCDONOUGH e BRAUNGART e (3) no tocante ao design de<br />

joias, as ideias de GOLA e LLABERIA. As conclusões parciais<br />

apontam para a possibilidade e, por vezes, inevitabilidade do<br />

reconhecimento de processos em que há reutilização de materiais<br />

e ideias, tanto no design de joias quanto em outras espécies de<br />

criação contemporânea, mediante nova atribuição de sentidos às<br />

formas. No último caso, da utilização de ideias, há consequências<br />

jurídicas que devem ser consideradas.<br />

Palavras-Chave: design; joias; reaproveitamento<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

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O reaproveitamento de ideias e materiais no design de joias: origem, intertextualidade e sustentabilidade<br />

Introdução<br />

O reaproveitamento de ideias e materiais pode ser visto como desafio no design. Neste<br />

texto buscaremos reunir elementos para elaborar um quadro sobre o tema do reaproveitamento<br />

material e imaterial na atividade projetual. A relevância deste estudo decorre da própria<br />

conceituação da atividade de design. Para os fins deste trabalho, o design é uma atividade de<br />

projeto de bens materiais (DAMAZIO, 2006: 62) (FORTY: 2007: 12) e imateriais (CARDOSO:<br />

2008: WEB).<br />

Em seu surgimento, o design tem relação com a indústria nascente com demanda<br />

de uma produção cada vez maior e mais mecanizada. Neste momento, foi separado o ato<br />

de projetar do ato de executar, para deliberadamente afastar o “erro” humano da produção.<br />

Embora na origem do design tenha havido uma vinculação desta atividade a projetos de bens<br />

materiais, deve ser incluído, também, dentro deste conceito, o trabalho com o imaterial. A razão<br />

de surgimento do design, então, tem ligação com a utilização de um projeto que aperfeiçoe a<br />

produção de um determinado bem. A discussão neste texto, todavia, situa-se na utilização de<br />

matéria ou ideias anteriormente empregadas em processos de produção.<br />

Desafios específicos ao reaproveitamento material e imaterial<br />

Feitas as devidas ressalvas preliminares, cabe então apresentar que desafios específicos<br />

em design, na atualidade, serão considerados nos próximos títulos deste texto, a saber: (2)<br />

projetos em design que levam em conta o descarte do produto; (3) projetos que utilizam<br />

material descartado, (3.1) aproveitamento do lixo físico, (3.2) reaproveitamento de ideias<br />

produzidas por outras pessoas.<br />

Projetos em design que levam em conta o descarte do produto<br />

Embora o design tenda a tornar-se imaterial, vislumbramos dois papéis do profissional<br />

da área, a saber: (1) ser agente de transformação; e (2) promover a proteção ao meio ambiente.<br />

A ideia de sustentabilidade, em sua radicalidade, consiste em pensar em todas as<br />

etapas da criação do produto, a fim de que seja possível uma integração dos resíduos gerados<br />

a partir do processo de produção. Aqui a ideia não se restringe apenas à reciclagem, mas sim<br />

à proposta de pensar o ciclo de produção do berço ao berço. Esta ideia de sustentabilidade<br />

com o conceito “do berço ao berço” é tratada por William McDonough e Michael Braungart,<br />

que apresentam um manifesto, o qual exige uma transformação da indústria humana por<br />

meio de um design ecologicamente inteligente. Pensamos que este seja, talvez, um dos<br />

maiores desafios do design e dos designers na contemporaneidade, porque experimentamos<br />

uma escassez de recursos naturais do planeta, que é finito. Diante da impossibilidade, neste<br />

início de século XXI, de concretizar este ideal de design pensando o descarte do produto<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

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O reaproveitamento de ideias e materiais no design de joias: origem, intertextualidade e sustentabilidade<br />

criado, devemos agora abordar algumas possibilidades sobre o aproveitamento de material<br />

descartado.<br />

Projetos em design que utilizam material descartado<br />

Aproveitamento do lixo físico no design de joias<br />

O design sustentável pode ser desenvolvido a partir do aproveitamento do lixo físico em<br />

processos de reciclagem. Inúmeros exemplos podem ser trazidos neste ponto, aplicando-se<br />

à seleção de trabalhos o conceito de design adotado na introdução deste artigo. Escolhemos<br />

tratar de dois exemplos concernentes à criação de uma “joalheria” com materiais que não são<br />

nobres (ouro e prata).<br />

O primeiro exemplo é trazido por Engracia Costa Llaberia (2009:59) que analisa o trabalho<br />

do Studio Hobo, “que apresenta como proposta a reutilização de materiais descartados, em<br />

montagens com outros como contas plásticas, tendo como discurso a preocupação ambiental.<br />

procurando tocar o senso comum, criando uma “joalheria” de uso cotidiano”.<br />

Figura 1<br />

HOBO- http://www.blog.iwantmyhobo.com/<br />

Symphony II<br />

O segundo exemplo é o trabalho de Naná Hayne, brasileira, paulista, artista plástica<br />

e artesã; e nas suas próprias palavras se diz disposta a colaborar com o meio ambiente. Há<br />

sete anos trabalha com o lixo disponível e abundante no planeta, a saber: o lixo eletrônico.<br />

Esta artista cria acessórios de moda por meio de utilização de placas mãe, circuitos, etc.<br />

Seu trabalho busca transformar o lixo eletrônico em algo útil e belo. Veja na imagem abaixo a<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

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O reaproveitamento de ideias e materiais no design de joias: origem, intertextualidade e sustentabilidade<br />

iniciativa de sustentabilidade na criação do bracelete, em que são combinados uma base de<br />

couro sintético, elos, resina e fecho.<br />

Figura 2<br />

http://nanahayne.wordpress.com/2010/05/28/braceletes/5-4/<br />

Aproveitamento de ideias produzidas por outras pessoas: exemplos extraídos da<br />

literatura, do audiovisual e do design de joias<br />

Tratamos aqui sobre o reaproveitamento no design. Todavia, para compreendermos tal<br />

prática de reutilização de ideias, é indispensável realizar um breve desvio sobre as vanguardas<br />

na arte do fim do século XIX, ou seja, retomar como surge a ideia de reaproveitamento e sob<br />

que argumentos.<br />

Mudança de paradigmas na arte: a apropriação e a reprodutibilidade<br />

Desde o final do século XIX, vem sendo questionado o modo de fazer da arte. Podese<br />

afirmar que a partir de Manet, podemos perceber que as estruturas de representação<br />

formadas desde Giotto serão destruídas parte por parte: o tema, a técnica, a aura. Por isso,<br />

cada vez mais se torna pertinente a questão sobre a natureza da arte, isto é, não está mais<br />

tão claro o que é a arte. Nesta senda, é relevante notar que no início do século passado<br />

(1912), por meio do trabalho de Georges Braque e Pablo Picasso, tem-se o início da utilização<br />

de colagem como técnica artística. Devemos acrescentar, também, o trabalho posterior de<br />

Marcel Duchamp e Kurt Schwitters.<br />

Após tais trabalhos, houve entre os anos de 1950 e 1960, uma intensificação do uso da<br />

apropriação na arte por meio da assemblage, com a incorporação de qualquer trabalho à obra<br />

de arte. De acordo com a enciclopédia digital do Itaú Cultural, quando trata do termo colagem,<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

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O reaproveitamento de ideias e materiais no design de joias: origem, intertextualidade e sustentabilidade<br />

“a ideia forte que ancora as assemblages diz respeito à concepção de que os objetos díspares<br />

reunidos na obra, ainda que produzam um conjunto outro, não perdem seu sentido primeiro.”<br />

Aproximaremos neste ponto do presente artigo, duas ideias que se complementam:<br />

(a) apropriação e (b) reprodutibilidade. Tais ideias serão aproximadas numa tentativa de<br />

compreender uma consequência destas ideias, a saber: a autoria, uma vez que vem sendo<br />

construída de forma diversa desde o século passado.<br />

O termo apropriação é “empregado pela história e pela crítica de arte para indicar a<br />

incorporação de objetos extra-artísticos, e algumas vezes de outras obras, nos trabalhos de<br />

arte” (Enciclopédia Itaú-Cultural – web). A construção das obras não se dá apenas por meio<br />

de ideias totalmente inovadoras, mas também pela incorporação de outros materiais e ideias<br />

na obra.<br />

Se a obra de arte foi criada tendo por base a apropriação, então, a aferição de<br />

autenticidade fica alterada. Isto porque se desloca a verificação da autenticidade apenas da<br />

matéria empregada, para que se torne relevante a consideração sobre a organização dos<br />

elementos de modo inovador.<br />

Diante disso, o próximo passo é repensar conceitos de autenticidade, autoria e<br />

originalidade na obra de arte, porque se a arte adota elementos do cotidiano, questiona-se o<br />

que é necessário para que uma obra seja considerada como arte. Deixa de ser tão importante<br />

uma técnica específica ou o manejo de materiais típicos da arte (suporte e materiais), ou seja,<br />

a partir da colagem há uma diluição das fronteiras entre pintura e escultura, sendo certo que<br />

a representação passa a ser aceita também por meio do rearranjo de objetos estranhos à<br />

tradicional prática artística até então existente.<br />

Além da apropriação na arte, efetuada pelas vanguardas históricas, há alteração do<br />

modo de produção de imagem a partir da fotografia. Pode-se afirmar que a fotografia libertou<br />

o artista plástico da obrigação com a verossimilhança, permitindo que este explorasse outros<br />

aspectos no trabalho estético.<br />

O termo reprodutibilidade tem ligação com a cópia de algo que foi novo e é analisado<br />

por Walter Benjamin, segundo quem a reprodutibilidade é a possibilidade de reprodução de<br />

uma dada peça. No texto clássico que aborda a obra de arte na era de reprodutibilidade<br />

técnica, o crítico Walter Benjamin (1936-1955) aborda o modo em que a linguagem fotográfica<br />

atinge a obra de arte tradicional. No artigo mencionado, Benjamin defende que obra de arte<br />

sempre foi reprodutível, ou seja, era sempre possível a imitação (BENJAMIN: 1936-1955: 166).<br />

O teórico antes mencionado demonstra, então, que por meio da reprodutibilidade<br />

permitida pela fotografia é perdida a aura da obra de arte, porque não importa mais saber<br />

qual é o original e qual é a cópia, uma vez que é inerente à produção fotográfica a realização<br />

da reprodutibilidade técnica, perdendo a obra a sua aura. Aura para Walter Benjamin “é uma<br />

figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa<br />

distante, por mais perto que ela esteja”. (BENJAMIN: 1936-1955: 166)<br />

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O reaproveitamento de ideias e materiais no design de joias: origem, intertextualidade e sustentabilidade<br />

Temos então dois “golpes” verificados pela crítica: (1) a apropriação permite que sejam<br />

utilizados quaisquer elementos para a composição de uma obra de arte; (2) a reprodutibilidade<br />

técnica promove uma quebra da aura da obra de arte.<br />

Criações audiovisuais na internet: reaproveitamento imaterial de criações<br />

próprias e alheias<br />

É após os rompimentos verificados nesses cenários que surgem as novas criações,<br />

cuja divulgação encontra na internet um crescimento nunca antes visto. As criações sempre<br />

existiram na sociedade por meio de criação de conteúdo novo ou recriação a partir de<br />

conteúdos anteriormente existente (v.g. paródia e paráfrase); vimos, porém, que a apropriação<br />

abre novas possibilidades aos artistas que passam a utilizar-se como matéria criativa tanto de<br />

suportes ou materiais inusitados, bem como de outras obras de arte.<br />

Esta criação por meio de apropriação de conteúdos outrora abordados pode<br />

ser exemplificada com a linguagem cinematográfica, na qual percebemos o constante<br />

reaproveitamento de temas já explorados. Valendo-se da utilização de novas formas são<br />

retomados assuntos, obras, sob a ótica da atualidade, por exemplo: as refilmagens inúmeras<br />

de ‘Romeu e Julieta’.<br />

O texto “Romeu e Julieta” é uma tragédia escrita entre 1591 e 1595 por William<br />

Shakespeare. O argumento central da peça trata do amor impossível de dois jovens nascidos<br />

no seio de famílias inimigas, que ao desafiar o mundo para manter o seu amor recíproco, são<br />

traídos pelas artimanhas por eles mesmos criadas, cujo desfecho trágico é o duplo suicídio<br />

dos amantes. A ideia do amor impossível já foi tratada no cinema em produções que respeitam<br />

toda a trama trazida por Shakespeare, tais como o dirigido por Franco Zeffirelli em 1968; mas<br />

também há produções nas quais há uma utilização do argumento com uma atualização da<br />

história que pode ser vista no “Romeo + Juliet” – 1996 (EUA) – direção de Baz Luhrmann, bem<br />

como por “Romeu tem que morrer” dirigido por Andrzej Bartkowiak em 2000 nos EUA.<br />

O que pode ser apreciado nos dias atuais, todavia, vai além da utilização de um argumento<br />

para criação de um novo trabalho artístico. A utilização de elementos de vídeo preexistentes<br />

torna-se possível à um número maior de pessoas e não somente por grandes estúdios. Isto<br />

porque a popularização das ferramentas eletrônicas permite a produção de conteúdo por<br />

qualquer usuário. Veja-se que aqui existe uma radicalização da ideia de colagem criada em<br />

1912 por Picasso e Braque, levada adiante nas vanguardas dadaístas. A apropriação, como<br />

vimos, não é nova; a novidade reside na popularização das ferramentas para produção de<br />

uma colagem de elementos imateriais: colagem de bits.<br />

A derivação das vanguardas artísticas dadaístas encontrará aplicação inovadora no<br />

trabalho do escritor William S. Burroughs, que em 1960 por meio da reorganização de seus<br />

próprios filmes cria a técnica cut up, que corresponde a uma edição de imagens, criadas<br />

anteriormente pelo próprio Burroughs, em transição vertiginosa. O trabalho “The Cut-ups”<br />

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O reaproveitamento de ideias e materiais no design de joias: origem, intertextualidade e sustentabilidade<br />

pode ser entendido, desta forma, como precursor de outros na área de vídeo, cujo objetivo é<br />

a apresentação de ideias por meio de destruição de narrativas anteriormente existentes.<br />

Nos dias atuais é possível realizar o denominado “remix” (rearranjo ou reorganização<br />

de ideias) com sons e imagens e fazer a divulgação do conteúdo “remixado” pela internet.<br />

Este trabalho apoiado nas ferramentas tecnológicas disponíveis permite a utilização por meio<br />

de recorte de sons e imagens produzidos por outros, a fim de criar obra nova. Não se trata<br />

de interpretação de um argumento literário, por exemplo, com produção por meio de outra<br />

linguagem, mas sim, a utilização da técnica da colagem de sons e imagens anteriormente<br />

existentes para criação de novos significados.<br />

William S. Burroughs no cut up, trabalhou com as suas próprias imagens. Mais tarde,<br />

desde 1980, o grupo Negativland produziu vídeos em que foi feita a edição de imagem e<br />

textos apropriados, ou seja, havia um reaproveitamento de ideias criadas por outras pessoas.<br />

Um dos trabalhos deste grupo Negativland é o vídeo “Gimme The Mermaid” postado<br />

no Youtube. Trata-se de criação realizada a partir de elementos recortados da animação “A<br />

pequena sereia” (em inglês: The Little Mermaid) que é o 28º filme longa-metragem de animação<br />

dos estúdios Disney, lançado em 1989, criado pela adaptação do conto homônimo do escritor<br />

dinamarquês Hans Christian Andersen (autor de “O patinho feio”).<br />

O grupo Negativland poderia ter utilizado apenas o argumento de “A pequena sereia” –<br />

que trata da pequena Ariel filha do rei Tritão que se apaixona por um humano, mas não o fez.<br />

A problemática desta construção artística do grupo mencionado encontra entrave na própria<br />

ideia de apropriação, porque – ousamos repetir – “objetos díspares reunidos na obra, ainda<br />

que produzam um conjunto outro, não perdem seu sentido primeiro”. Por tal razão, os adeptos<br />

de tal técnica de criação podem ser impedidos de se expressar por força de barreiras legais<br />

de proteção de propriedade intelectual, por se tratar de obras derivadas que dependem da<br />

autorização do detentor dos direitos da obra original.<br />

No vídeo “Gimme The Mermaid” vê-se que, no remix, mais importante que a narrativa<br />

são os processos de criação visual. Assim, são deliberadamente afastados os 12 princípios<br />

que a Disney utiliza na animação, a saber: (1) apertar e esticar; (2) antecipação; (3) encenação;<br />

(4) ação contínua quadro a quadro; (5) seguir através de sobreposição e ação; (6) acelerar e<br />

desacelerar; (7) arcos; (8) ação secundária; (9) timing (momento certo de cada ato); (10) exagero;<br />

(11) desenho sólido; (12) carisma. Na verdade, conforme apresentaremos a seguir, muitos<br />

dos princípios foram utilizados de forma reversa para o fim de desconstruir propositadamente<br />

aquela narrativa.<br />

No vídeo indicado, o processo de produção e seu resultado demonstram o afastamento<br />

das regras narrativas. O objetivo no vídeo é construir um novo sentido por meio da apropriação<br />

de outras ideias, desconstruindo uma narrativa preexistente.<br />

O argumento do vídeo se apoia na discussão dos direitos autorais fundados no direito<br />

de propriedade. Questiona-se o valor da propriedade e o controle da propriedade intelectual<br />

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O reaproveitamento de ideias e materiais no design de joias: origem, intertextualidade e sustentabilidade<br />

por seu detentor, bem como a necessidade de aparato jurídico para a proteção do direito de<br />

autor. Aponta-se, ainda, o medo dentro da indústria de ser copiado.<br />

O som faz parte da narrativa. Se em “A pequena sereia” é possível ser levado com<br />

suavidade pela música que além do conteúdo da letra conduz o espectador a um estágio<br />

emocional de envolvimento com a história narrada pela personagem e seu entorno, no vídeo<br />

“Gimme the Mermaid” a condução do espectador acontece pela combinação de ruídos,<br />

teclados, guitarras e um pedaço da canção “Part Of Your World” (Parte do seu mundo).<br />

A letra da canção “Part of your world” (Parte do seu mundo) trata do desejo de Ariel,<br />

a pequena sereia, de ser humana e estar no mundo. Ela deseja “estar onde o povo está” e<br />

“poder andar, poder correr”, ou seja, ela não quer ser uma sereia do mar.<br />

O grupo Negativland atende ao desejo da sereia Ariel e a coloca dentro da discussão<br />

sobre autoria e propriedade intelectual.<br />

No trabalho analisado, utiliza-se a imagem da “pequena sereia” com narrações que<br />

nada tem a ver com o original uso do desenho. Além disso, são feitas combinações de imagens<br />

de gatos, imagens indianas, a sereia distorcida, caveirinhas dançantes, entre outras imagens.<br />

Este arranjo inesperado apresenta o vídeo “Gimme the Mermaid” que nada lembra a produção<br />

da Disney. Existe a criação de uma obra totalmente nova.<br />

Percebe-se, deste modo, que a mensagem é transmitida por meio da transgressão<br />

deliberada da ideia representada pela Disney na animação “A pequena sereia”.<br />

Diante das análises propostas, é possível retomar o questionamento sobre o uso das<br />

ideias de outras pessoas para a construção do pensamento próprio. E, mais uma vez, frisamos<br />

a origem da apropriação, que não é criação deste século, mas existe entre nós desde o início<br />

do século passado e foi aceita como uma forma legítima de criação artística.<br />

Ademais, deve-se reconhecer neste reaproveitamento de outras criações o condão de<br />

possibilitar a libertação do pensamento por meio de uma expressão criativa advinda da própria<br />

característica humana de transformar a realidade. Neste sentido ensina MUNARI (2002:316):<br />

“observando não apenas as características formais de cada objeto, mas também materiais,<br />

cromáticas, táteis e outras, pode-se pensar em transformá-lo em qualquer outra coisa”.<br />

<strong>Design</strong> de joias: nova atribuição de sentidos às formas<br />

Saindo um pouco deste universo do vídeo, para o fim de nos aproximar do design de<br />

joia, que é nosso objeto de pesquisa, abordaremos exemplos que podem ser vistos como<br />

apropriação de ideias pensando em uma espécie específica de objeto: o bracelete.<br />

Eliana Gola, no seu trabalho sobre a história da joia, permite que compreendamos<br />

a apropriação de um modo mais amplo, construindo o novo pela utilização de formas<br />

anteriormente existentes, alterando-se significações, “pela apreensão crítica, reincorporando<br />

e modificando, à procura de uma identidade que defina o intuito de criar formas e conteúdo,<br />

aparência e significado”. (GOLA: 2008: 161)<br />

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O reaproveitamento de ideias e materiais no design de joias: origem, intertextualidade e sustentabilidade<br />

Os dois exemplos finais deste trabalho têm a forma de braceletes. Utilizamos os<br />

braceletes pelo seu significado não apenas como adorno, mas também a memória deste<br />

objeto. Há interessante visão de Lulu Smith que compara os braceletes a adorno e armadura,<br />

da seguinte forma:<br />

Diferente de anéis e colares, que tradicionalmente são usados para marcar<br />

passagens ou rituais, braceletes são ornamentos e armadura. Meu bracelete<br />

de punhos (pulseira) é adorno para fortalecer os braços com um simples realce<br />

da forma e uso de cor, cada qual explorando uma diferente gama de cor.<br />

(LEVAN: 2005: 22)<br />

Figura 3 (in: LEVAN: 2005)<br />

Bracelete - Punho de bola em terras calmas (Lulu Smith)<br />

Neste bracelete o artista compõe, com respeito a uma forma adequada ao uso nos<br />

pulsos, por se tratar de um bracelete. A criação respeita o critério de ergonomia, mas há um<br />

trabalho com a ideia das bolhas formadas em prata combinada ao uso de pigmento e resina.<br />

O segundo exemplo que nos propusemos a trazer consiste em tentar aproximar o<br />

design de um bracelete na animação Final Fantasy ao projeto Skinput (tecnologia bioacústica).<br />

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O reaproveitamento de ideias e materiais no design de joias: origem, intertextualidade e sustentabilidade<br />

Figura 4<br />

Final Fantasy (2001 - The Spirits Within)<br />

Figura 5<br />

Skinput: Appropriating the Body as an Input Surface (CHI 2010)<br />

http://www.youtube.com/watch?v=g3XPUdW9Ryg<br />

http://www.chrisharrison.net/projects/skinput/<br />

Deve-se deixar claro que a aproximação tentada não tem fundamento em uma<br />

constatação científica de uma ligação projetual entre os dois objetos, todavia, a leitura das<br />

imagens possibilita a relação apresentada. Isto porque, tanto na animação quanto no projeto<br />

de Chris Harrison, percebemos o uso de um artefato que se utiliza no braço e que tem como<br />

aspecto visual comum a utilização da luz que permite apresentar ao usuário uma funcionalidade<br />

a este artefato. Assim, além de ser acessório, é agregada outra funcionalidade.<br />

Acrescente-se, ainda, que o trabalho com a luz em acessórios não se insere apenas<br />

quando o criador quer atribuir uma funcionalidade à peça. Há trabalhos em que se pensa na<br />

experiência de quem usa e das pessoas no seu entorno. Um exemplo que encontramos na<br />

internet é o trabalho do designer Wei-Chieh Shih, de Taiwan, no portifólio online http://www.<br />

behance.net/dontmarryme. Veja a amostra do traje de laser e o próprio traje de laser abaixo:<br />

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O reaproveitamento de ideias e materiais no design de joias: origem, intertextualidade e sustentabilidade<br />

Figuras 6, 7 e 8<br />

Laser suit sample e Laser suit<br />

http://www.behance.net/dontmarryme<br />

Nos trabalhos do traje de laser e da amostra deste traje são claras as experimentações<br />

do designer com a luz, o que nos remete a ideia de Rafael Cardoso, segundo quem o design<br />

tende a ser cada vez mais imaterial. Assim, percebemos que se projeta não apenas o objeto<br />

em si, mas também a experiência. A diferença do exemplo do designer de Taiwan para os<br />

anteriormente citados reside na funcionalidade das peças. Neste exemplo, não há comandos<br />

ou funcionalidades que possam ser utilizadas pelo usuário, mas sim, um artefato que emite<br />

luz, criando uma experiência incrível.<br />

Considerações finais<br />

Por fim, o que quisemos trazer com os exemplos escolhidos, da literatura, audiovisual<br />

e design de joias, foi que a criação no design aproveita os passos anteriormente seguidos por<br />

outros criadores.<br />

A apropriação e a reprodutibilidade técnica não são invenções contemporâneas, ou seja,<br />

desta década de 2010. Todavia, percebemos que a possibilidade de criar com fundamento<br />

nestas técnicas já conhecidas da arte, esbarra em limitações legais que protegem a criação<br />

de um autor anterior. Questionamos, porém, se há reais invenções nos dias de hoje ou se o<br />

nosso papel não seria o de ler o passado e apresentar nossa versão.<br />

Atualmente, o reaproveitamento de ideias e materiais, no design, não concerne à<br />

pura experimentação artística, como a existente nas vanguardas históricas. O trabalho com<br />

materiais e ideias já existentes tem relação também com: (1) a sustentabilidade ambiental e<br />

(2) a nova atribuição de sentidos às formas criadas por outras pessoas. Ousamos defender<br />

que estes são desafios do design porque há normas jurídicas que podem engessar a criação,<br />

acaso não seja pensado o ato de projeto no design. Isto porque, pela lei, a proteção é dada<br />

ao resultado final (obra, desenho, etc.) e não a processos ou a ideias. A questão do direito<br />

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O reaproveitamento de ideias e materiais no design de joias: origem, intertextualidade e sustentabilidade<br />

autoral e do registro do desenho industrial ante as práticas de reaproveitamento está sendo<br />

aprofundada na pesquisa acadêmica e será apresentada em uma próxima publicação.<br />

Referências<br />

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (1936-1955). In.:<br />

Magia e técnica, arte e política: ensaios. São Paulo: Editora: Brasiliense. 10ª reimpressão,<br />

1996.<br />

CARDOSO, Rafael. Uma Introdução à História do <strong>Design</strong>. São Paulo: Edgard Blücher,<br />

2000.<br />

________________ Web: Itaú Cultural: 2008 http://www.itaucultural.org.br:80/index.cfm?cd_<br />

pagina=2720&cd_materia=450 (acesso 15/06/2010)<br />

DAMAZIO, Vera. Sobre “PPD-CV Conclusão” Hoje. In. COELHO, Luiz Antonio L. (org.). <strong>Design</strong><br />

Método. 1. edição, Ed. PUC-RIO. Teresópolis: Novas Idéias, 2006. p. 62<br />

ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL ARTES VISUAIS - http://www.itaucultural.org.br/<br />

aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=termos_texto&cd_verbete=3182<br />

(Atualizado em 24/07/2009) – acesso em 10/06/2010.<br />

Final Fantasy – the spirits within. http://www.youtube.com/watch?v=GEp0bU3ZoP8 (acesso<br />

em 29/11/2010)<br />

FORTY, Adrian. Objetos do Desejo. <strong>Design</strong> e sociedade desde 1750. Tradução: Pedro Maia<br />

Soares. São Paulo: Cosac Naify, 2007.<br />

GOLA, Eliana. A jóia – história e design. São Paulo: Senac, 2008.<br />

HAYNE, Naná. http://nanahaynearte.blogspot.com/ (acesso 1/6/2010)<br />

____________. http://www.flickr.com/photos/nana_hayne/ (acesso 1/6/2010)<br />

____________.<br />

1/6/2010)<br />

http://nanahayne.wordpress.com/2010/05/28/braceletes/5-4/ (acesso<br />

LEVAN, Marthe. 500 bracelets: an inspiring collection of extraordinary designs. New York/<br />

London: Lark Books, 2005.<br />

LLABERIA, Engracia Costa. <strong>Design</strong> de jóias: desafios contemporâneos. Dissertação de<br />

Mestrado, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, 2009. http://www.anhembi.br/mestradodesign/<br />

pdfs/engracia.pdf (acesso em 31/08/2010)<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 115


O reaproveitamento de ideias e materiais no design de joias: origem, intertextualidade e sustentabilidade<br />

MCDONOUGH, William; BRAUNGART, Michael. Cradell to Cradell. http://www.mcdonough.<br />

com/cradle_to_cradle.htm (acesso em 1/6/2010)<br />

MUNARI, Bruno. Das coisas nascem coisas. Ed. Martins Fontes. São Paulo: 2002, p. 316.<br />

NEGATIVLAND. “Gimme The Mermaid”. http://www.youtube.com/watch?v=TTrHwH2gEY8 -<br />

acesso em 27/04/2010; 23:00<br />

______________. http://www.negativland.com/<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 116


O DESIGN E A PuBLICIDADE DOS ANúNCIOS KOLyNOS NA REVISTA<br />

O CRuzEIRO ENTRE OS ANOS 1950 E 1960<br />

Leandro Ferretti Fanelli; Mestrando em design: <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />

leandrofanelli@hotmail.com<br />

Resumo<br />

Este artigo tem como objetivo compreender e analisar as mudanças<br />

ocorridas no design gráfico e na redação publicitária dos anúncios<br />

do creme dental Kolynos da revista O Cruzeiro entre os anos 50 e<br />

60.<br />

Este período ficou marcado não apenas pelas turbulências<br />

políticas e econômicas vividas em nosso país, mas por conflitos<br />

internacionais que contagiaram as pessoas na época e as gerações<br />

que vieram posteriormente.<br />

No Brasil, podemos destacar o início da ditadura militar em 1964,<br />

o milagre econômico em 1968, a instituição do AI-5 no mesmo<br />

ano e a popularização da televisão. Além disso, grandes nomes<br />

surgiram neste período não apenas no design e na propaganda,<br />

mas em diversas áreas de atuação.<br />

Procuraremos demonstrar as diferenças entre dois anúncios neste<br />

período, tendo vista as mudanças do design gráfico e da redação<br />

publicitária brasileira.<br />

Palavras-Chave: anúncios; design gráfico; revista O Cruzeiro<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

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O <strong>Design</strong> e a Publicidade dos Anúncios Kolynos na Revista O Cruzeiro entre os anos 1950 e 1960<br />

Anos 60 – uma década marcada por conflitos<br />

A década de 1960 representou um período de conflitos e transformações. EUA e a Antiga<br />

União Soviética viviam um momento de grande tensão. Disputavam influências econômicas<br />

e bélicas na chamada Guerra Fria. Os soviéticos enviaram os primeiros homens ao espaço<br />

enquanto os norte-americanos enviaram o homem à Lua. A guerra entre norte-americanos e<br />

vietnamitas sacrificou aproximadamente dois milhões de vidas entre 1964 e 1975.<br />

No Brasil, Jânio Quadros foi eleito presidente da República em outubro de 1960 e<br />

renunciou ao cargo em 25 de agosto de 1961. João Goulart assumiu a presidência da república<br />

até o golpe militar que aconteceu em 31 de março de 1964, levando ao poder o Marechal<br />

Humberto de Alencar Castelo Branco.<br />

Marcada como a década dos extremos, podemos observar o conservadorismo contra<br />

rebeldia e o protesto contra repressão. Entre outros conflitos cabe a nós pesquisadores a<br />

seguinte pergunta: Como o <strong>Design</strong> e a Publicidade se comportavam neste período de grandes<br />

mudanças da sociedade brasileira?<br />

Visando dar possíveis respostas e esta pergunta, selecionamos duas peças publicitárias<br />

do creme dental Kolynos publicadas na revista O Cruzeiro entre os anos 1950 e 1960, para<br />

analisar não apenas sua estrutura enquanto anúncio publicitário, mas também o design<br />

gráfico dos materiais, o que trará às vistas como eram pensadas e produzidas as criações<br />

publicitárias na época. Também ficarão mais claras as características do processo criativo<br />

para a propaganda e para o design. Outra questão a ser revelada é: quais eram os anseios e<br />

desejos do público leitor da revista O Cruzeiro, quando se tratavam de cremes dentais.<br />

Para MELO (2008:29), a propaganda serve como termômetro para definirmos as<br />

mudanças da cultura visual dos anos 50 e 60 do grande público. Ele fala que o progresso<br />

das propagandas do final dos anos 60 soa familiar, pois, foram produzidas com os mesmos<br />

princípios que regem a linguagem visual dos dias atuais. Indo além, acrescenta que tais<br />

mudanças foram mais marcantes ao longo dos anos 60 do que quarenta anos seguintes da<br />

propaganda no Brasil.<br />

Grandes nomes do design surgem neste período, entre eles Alexandre Wollner, Rubens<br />

Martins, Cauduro Martino e Aloisio Magalhães, artistas influenciados pelos princípios da<br />

Bauhaus e da Escola de Ulm.<br />

MELO (2009:55) diz que durante a década de 60, ocorreu uma grande influência<br />

do psicodelismo no design gráfico e nas propagandas impressas, o que segundo o autor<br />

traduziu com grande força a cultura dos anos 60. Além disso, a influência da televisão também<br />

atingiu aos jovens que viveram aquele momento, destruindo a ideia de totalidade tida até este<br />

período. Segundo MELO, a cultura do fragmento tornou-se a segunda natureza da população<br />

influenciada entre outros motivos pela televisão.<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

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O <strong>Design</strong> e a Publicidade dos Anúncios Kolynos na Revista O Cruzeiro entre os anos 1950 e 1960<br />

A Revista o Cruzeiro<br />

Para SANT’ANNA (2002, 209), a revista, de modo geral, é o meio de comunicação mais<br />

seletivo que existe, pois o apelo destinado a elas permite uma maior segmentação enquanto<br />

sexo, classe social e vocação do leitor, tornado-a especialmente adequada para as campanhas<br />

de marca. Além disso, destaca as seguintes vantagens em relação aos jornais: possui melhor<br />

reprodução dos anúncios impressos, a vida útil da revista é mais longa, são lidas mais devagar,<br />

tem circulação maior que a tiragem e são mais seletivas que os jornais.<br />

Segundo BARBOSA (2002), a revista O Cruzeiro, pertencia a um conglomerado de<br />

imprensa fundado por Assis Chateaubriand chamado Diários Associados. A primeira edição<br />

da revista é datada de 10 de novembro de 1928 e trazia em sua capa o desenho realista<br />

de uma mulher melindrosa, com diversidade de cores e as estrelas do Cruzeiro do Sul, que<br />

inspirou o nome da revista.<br />

Logo abaixo do nome da Revista, aparece o principal diferencial do periódico em<br />

relação às demais publicações da época. Isso foi um dos grandes motivos do sucesso da<br />

revista: Revista Semanal Ilustrada<br />

Figura1: Capa da primeira edição da Revista Cruzeiro<br />

Fonte: http://www.almanaquedacomunicacao.com.br<br />

Acesso em: 25/08/2010<br />

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O <strong>Design</strong> e a Publicidade dos Anúncios Kolynos na Revista O Cruzeiro entre os anos 1950 e 1960<br />

Conforme BARBOSA (2002), o diferencial da revista Cruzeiro para as demais publicações<br />

da época é o fato do leitor não ler apenas os textos, mas também as imagens que ilustravam<br />

as páginas da revista facilitando a compreensão das matérias publicadas.<br />

Apesar de não ter sido o primeiro periódico a utilizar ilustrações associados às matérias,<br />

a Revista Cruzeiro foi um grande divisor de águas das publicações no Brasil.<br />

Entre outros diferenciais, destaca-se o fato da redação do periódico possuir agentes em<br />

todas as cidades do Brasil e representantes em diversos países, como por exemplo, Lisboa,<br />

Roma, Paris, Londres e Nova York.<br />

O Discurso Publicitário<br />

SANT’ANNA (2002:75) coloca que a publicidade deriva de público, ou seja, designa<br />

a qualidade do que se torna público, seja um fato ou uma ideia. Já a propaganda, tem sua<br />

origem do Latim e deriva de Propagare. Este termo foi introduzido pelo Papa Clemente VII, em<br />

1579 ao criar a Congregação da Propaganda, que tinha o objetivo de propagar a fé católica<br />

pelo mundo.<br />

SANT’ANNA define comercialmente a propaganda como: “Implantar na mente da<br />

massa uma ideia sobre o produto ou serviço.” (2002:76)<br />

CARRASCOZZA (1999:17), diz que existem dois tipos de discurso, o primeiro visa<br />

convencer e o segundo deseja persuadir. Para o autor, a diferença entre convencer e persuadir<br />

é que o primeiro é dirigido à razão, ou seja, direciona-se ao raciocínio lógico do indivíduo<br />

e precisa de provas objetivas para uma conclusão positiva do interlocutor. Já o discurso<br />

persuasivo possui um caráter ideológico, subjetivo, e visa atingir o sentimento e a vontade<br />

através de argumentos plausíveis ou verossímeis.<br />

Para CARRASCOZZA (1999:18), o discurso publicitário é um discurso persuasivo,<br />

porque sua intenção é chamar a atenção do consumidor para as qualidades do produto ou<br />

do serviço anunciado. Analisando o discurso publicitário de maneira abrangente, as peças<br />

publicitárias esforçam-se para alcançar alto grau de persuasão, porque devem desencadear<br />

uma ação futura do consumidor.<br />

Complementando Carrascozza, SANT’ANNA (2002:78), diz que existem cinco níveis<br />

de comunicação:<br />

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Desconhecimento<br />

Menor nível de conhecimento, o consumidor jamais ouviu falar do produto ou da empresa.<br />

Conhecimento<br />

Exige um pequeno esforço do consumidor para conseguir reconhecer a marca ou o produto.<br />

Compreensão<br />

O consumidor tem conhecimento do produto ou serviço e também da marca; reconhece a embalagem<br />

e sabe para que serve o produto.<br />

Convicção<br />

Além dos fatores racionais, a preferência do produto se dá por motivos emocionais.<br />

Ação<br />

Realização de movimentos premeditados para realizar a compra do produto.<br />

Tabela 1: Níveis de Comunicação<br />

Ainda segundo CARRASCOZZA (1999:32), a partir dos anos 60 o discurso publicitário<br />

adotou a estrutura circular para a elaboração dos textos, fazendo com que o arranjo semântico<br />

seja estruturado de tal maneira que induz o leitor a uma conclusão definitiva sobre o assunto.<br />

CARRASCOZZA (2009:106) coloca que apesar das condições políticas que o país vivia<br />

nos anos 60, a publicidade nacional vivenciava uma revolução em sua linguagem. Segundo<br />

o autor, é possível ver que as propagandas passaram a ter apoio em ideias e agregavam<br />

um diferencial maior aos produtos anunciados, aglutinando texto e layout em uma única<br />

unidade criativa. Desta maneira, eliminou-se splashs e rodapés, normalmente utilizados para<br />

atrair a atenção do consumidor. Tais recursos tornavam as peças publicitárias poluídas<br />

e dispersavam a atenção do consumidor. Neste período, o uso de fotografias produzidas<br />

especialmente para as campanhas superou o número de ilustrações comuns à época.<br />

CARRASCOZZA (2009:107) acrescenta que nos anos 60, o tom da publicidade passa<br />

a ser menos formal, estabelecendo um diálogo com o leitor, sendo esta o maior avanço da<br />

publicidade no período:<br />

O advento desse novo padrão dado às peças de mídia impressa é a<br />

maior conquista da propaganda brasileira nos anos 60, que continuava<br />

convocando personalidade do show business - Roberto Carlos, Chacrinha,<br />

Hebe Camargo - ou do mundo dos esportes como Pelé para testemunhar a<br />

favor dos produtos.<br />

As propagandas da revista O Cruzeiro, ocupavam praticamente metade das 64<br />

páginas do periódico. Entre os anunciantes, podemos encontrar produtos como: lâminas<br />

de barbear, lojas de departamento, cremes dentais, remédios e unguentos, lâmpadas,<br />

sabonetes, sapatos masculinos e femininos, chicletes e até automóveis.<br />

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O <strong>Design</strong> e a Publicidade dos Anúncios Kolynos na Revista O Cruzeiro entre os anos 1950 e 1960<br />

Estudo de Casos<br />

Para MELO (2008:29) as mudanças que aconteceram na linguagem visual das<br />

propagandas produzidas entre 1957 e 1969 são mais representativas do que todas as<br />

mudanças que temos nos dias atuais, porque ao nos depararmos com as peças publicitárias<br />

da década de 1950 e 1960, torna-se claro a mudança do comportamento das agências de<br />

propaganda no período. Como exemplo, temos duas peças publicadas na revista O Cruzeiro<br />

do Creme Dental Kolynos entre início da década de 1950 e final dos anos 1960:<br />

Figura 2: anúncio do Creme Dental Kolynos<br />

da década de 1950. S/D<br />

Fonte: http://www.netpropaganda.com.br<br />

Acesso em 28/08/2010<br />

Figura 3: anuncio do Creme Dental Kolynos<br />

da década de 1960. S/D<br />

Fonte: http://www.nublog.com.br<br />

Acesso em 28/08/2010<br />

Nas peças acima, podemos observar que a figura 2 possui um discurso formal, na qual<br />

a intenção é informar ao público a importância da escovação dos dentes de leite, o título diz<br />

“Conservando os primeiros dentes... os segundos serão mais fortes!”<br />

O design gráfico da peça nos mostra uma arte aerografada de uma criança, porém não<br />

aparece o corpo. Logo abaixo vem o título da peça publicitária, e temos um pequeno boneco<br />

segurando a escova de dente e apontando para a boca da criança. Neste ponto, podemos<br />

identificar uma prosopopéia, que é uma figura de linguagem, muito utilizada nas campanhas<br />

publicitárias. Segundo ANDRÉ, prosopopéia é:”a atribuição de qualidades humanas a seres<br />

inanimados, irracionais ou mesmo abstratos.” (1982:350)<br />

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O <strong>Design</strong> e a Publicidade dos Anúncios Kolynos na Revista O Cruzeiro entre os anos 1950 e 1960<br />

Podemos identificar o pequeno boneco como a pasta dental que pelo formato criado<br />

remete à letra “K” de Kolynos. Abaixo temos o tubo de pasta de dentes, ocupando mais da<br />

metade da largura da página. Ao lado temos o texto da peça com a seguinte informação<br />

transcrita conforme anúncio “Graças à espuma de Ação Anti-Enzimático, o Creme Dental<br />

KOLYNOS lhe oferece uma proteção salvo contra os caries, uma sensação extra de frescor.”<br />

Abaixo do tubo de pasta de dentes, há também uma informação sobre os tamanhos<br />

disponíveis dos tubos “Agora também em tamanhos GIGANTE e FAMÍLIA” SANTAELLA<br />

(2009:54), coloca que para Barthes a imagem pode ter três formas de relação com o texto.<br />

No primeiro caso, a imagem seria inferior, portanto apenas complementaria as informações da<br />

escrita. Na segunda definição, a imagem seria superior ao texto e o dominaria, uma vez que<br />

a linguagem imagética é mais informativa que a escrita. E no terceiro caso, texto e imagem<br />

possuem a mesma importância e estão integrados. Neste caso, a relação texto-imagem se<br />

encontra em redundância e informatividade.<br />

No caso da figura 2, podemos considerar que a relação imagética e textual do anúncio<br />

não está com a mesma importância, tendo vista que se olharmos apenas a imagem do anúncio<br />

não passará uma informação precisa sobre o produto ou seus benefícios.<br />

A figura 3, criada na década de 1960, possui uma linguagem diferente da figura 2,<br />

nesta propaganda o público alvo é o jovem, coloca o creme dental como um “companheiro”,<br />

que ajuda a solucionar os problemas, por exemplo, o ato de flertar uma garota.<br />

O grande diferencial da peça é a composição da criação, que tem uma sobreposição<br />

de texto e imagem. A expressão “AH!”, tem o objetivo de induzir o consumidor à sensação de<br />

frescor, e é aplicado com fotografias de vários momentos do casal, ficando clara a intenção do<br />

rapaz em conquistar a moça.<br />

Há cinco momentos nesta primeira parte da peça: na primeira os personagens<br />

aparecem em uma biblioteca, onde a modelo está escolhendo alguns livros e o homem está<br />

conversando com ela.<br />

Abaixo ele está sorrindo com um livro nas mãos e a jovem está com aparência de<br />

desconforto ao lado do rapaz.<br />

Na terceira cena, aparece a jovem em primeiro plano como se estivesse ignorando a<br />

presença dele.<br />

Na quarta cena temos a imagem da modelo caminhando, como se estivesse indo<br />

embora e apenas uma mão masculina se aproximando das flores que estão no jardim.<br />

Na quinta cena temos as flores em close e uma mão apanhando um botão de Rosas.<br />

Abaixo do conjunto de imagens, aparece o texto publicitário conforme transcrito abaixo:<br />

Se você tem um problema...<br />

Vá com jeito e aquêle seu sorriso<br />

Sorriso de quem sabe e pode sorrir.<br />

Com Kolynos. Ah! que delícia a espuma refrescante de Kolynos.<br />

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O <strong>Design</strong> e a Publicidade dos Anúncios Kolynos na Revista O Cruzeiro entre os anos 1950 e 1960<br />

Kolynos faz dentes brancos e brilhantes dá hálito puro e saudável.<br />

Esplendido Kolynos<br />

Abaixo do texto há um tubo de pasta de dentes e a assinatura “... melhor do que<br />

nunca.”<br />

Além disso, temos um pequeno splash ao lado esquerdo da página, novamente com<br />

a expressão “AH!”, reforçando a sensação de frescor causada pela pasta de dentes, do lado<br />

direito temos o casal sorrindo com a flor que o rapaz colheu no jardim, dando a entender que<br />

ele conquistou a moça.<br />

A estrutura das fotos nos remete às fotonovelas, que foi um grande sucesso de venda<br />

entre os anos de 1950 e 1970.<br />

SANTAELLA (2009:57), define que as imagens podem determinar a interpretação de<br />

uma imagem de duas maneiras, através da contiguidade ou da disposição sequencial.<br />

Na disposição sequencial existe o argumento que no caso das imagens dispostas<br />

lado a lado, há uma sequência, formando uma relação semântica pela lógica da implicação,<br />

porque a ordem tem o efeito e a impressão de uma relação casual. Este estudo demonstra<br />

que o contexto da imagem não precisa necessariamente do conteúdo verbal, pois as imagens<br />

funcionam como conceito de imagem.<br />

Neste anúncio podemos verificar a existência de um contexto aplicado à história e que<br />

não é preciso conteúdo verbal para seduzir o leitor a adquirir o produto.<br />

Porém, como descrevemos anteriormente, a estrutura circular faz com que a peça<br />

publicitária se torne completa, associando texto, (título, texto e slogan) e imagens, tornando a<br />

mensagem publicitária mais forte e consistente no inconsciente do consumidor.<br />

Considerações Finais<br />

Podemos concluir que entre o começo dos anos 1950 e final dos anos 1960, a<br />

propaganda brasileira, teve grande evolução de texto e imagem. Os anúncios publicitários<br />

deixaram de ser apenas informativos e se aproximaram dos consumidores.<br />

Estes métodos criativos ajudaram a alavancar as vendas de produtos e ajudou as<br />

indústrias instaladas no Brasil e o país entre os anos de 1968 e 1972. Período marcado como<br />

o período do milagre econômico, onde o PIB da nossa economia chegou a atingir 12% ao ano<br />

com média de crescimento no período de 10% ao ano.<br />

As novas estruturas adotadas pelas agências de design e de propaganda, estão<br />

presentes até os dias de hoje e faz da propaganda e do design brasileiro um dos maiores e<br />

melhores mercados do mundo tratando-se de criatividade.<br />

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O <strong>Design</strong> e a Publicidade dos Anúncios Kolynos na Revista O Cruzeiro entre os anos 1950 e 1960<br />

Referências<br />

BARBOSA, Marialva; O Cruzeiro: uma revista síntese de uma época da história da<br />

imprensa brasileira; nº7, 2002. Disponível em http://www.uff.br/mestcii/marial6.htm. Acesso<br />

em 27 ago. 2010.<br />

CARRASCOZZA, João A.; A Evolução do Texto Publicitário: a associação de palavras<br />

como elemento de Sedução na Publicidade; 2ªed. São Paulo: Futura, 1999.<br />

FAUSTO, Boris; História do Brasil; 6ª ed. São Paulo: Edusp, 1999.<br />

MELO, Chico Homem de; <strong>Design</strong> Gráfico Brasileiro: Anos 60; 2ª ed. São Paulo: Cosac<br />

Naify, 2008.<br />

SANTAELLA, Lúcia; Imagem: Cognição Semiótica e Mídia, 1ªed. São Paulo: Iluminuras,<br />

2009.<br />

SANT’ANNA, Armando; Propaganda: Teoria, Técnica e Prática, 7ªed. São Paulo: Pioneira<br />

Thompson Learning, 2002.<br />

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CLASSIFICAçãO E ESCOLhA DE uM SISTEMA DE IMPRESSãO<br />

Leonardo A. Costa Buggy; Me.: <strong>Universidade</strong> Federal de Pernambuco<br />

buggy@tiposdoacaso.com.br<br />

Lia Alcântara Rodrigues; Mestranda: <strong>Universidade</strong> Federal de Pernambuco<br />

liaalcantara@yahoo.com<br />

Resumo<br />

Dividido em seis partes, o presente artigo tem início na discussão<br />

acerca das definições de sistema de impressão em face da<br />

dualidade pré-digital e digital. Expostos alguns dos sistemas<br />

de impressão mais utilizados percebe-se a necessidade de<br />

uma classificação dos mesmos. Nesta etapa são revistas as<br />

classificações dos principais autores da área para então tornar-se<br />

possível a consolidação de uma nova proposta, mais completa e<br />

que facilita o processo de escolha de um sistema de impressão.<br />

A sugestão de avaliação dos sistemas de Villas-Boas (2008) é<br />

revista e acrescida do critério da sustentabilidade, novo paradigma<br />

do design. Conclui-se então que a inclusão de critérios não só<br />

tecnológicos, mas também sociais e ambientais no debate sobre<br />

classificação e escolha dos sistemas de impressão é fundamental<br />

para nortear as decisões dos designers contemporâneos.<br />

Palavras-Chave: classificação; escolha; sistema de impressão e<br />

sustentabilidade<br />

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Classificação e escolha de um sistema de impressão<br />

Objetivos<br />

- Atualizar o conceito de impressão diante da dualidade pré-digital e digital;<br />

- Realizar uma revisão no modo de classificação das tecnologias de impressão mais<br />

utilizadas no cotidiano dos designers gráficos;<br />

- Propor uma nova classificação dos sistemas de impressão;<br />

- Inserir o conceito de sustentabilidade na avaliação dos sistemas de impressão;<br />

- Contribuir para a tomada de decisão dos designers ao selecionar um sistema de<br />

impressão.<br />

O que é sistema de impressão?<br />

As definições mais ortodoxas do termo impressão estão associadas diretamente ao ato<br />

ou efeito de encontrar dois corpos, de modo que um transporte um grafismo qualquer para<br />

o outro. Ribeiro (2003) o define melhor como arte ou processo de reproduzir pela pressão<br />

dizeres ou imagens em papel, pano, couro, folha de flandres e outros materiais mediante<br />

uso de prensa ou prelo de qualquer sistema. Já Baer (2005), mais objetivo, o caracteriza<br />

simplesmente como uma reprodução mecânica repetitiva de grafismos sobre suportes, por<br />

meio de fôrmas de impressão.<br />

Ribeiro (3002) destaca o equipamento que promoverá a transferência dos grafismos<br />

por meio de pressão e Baer (2005) a matriz ou fôrma que será pressionada contra o suporte<br />

permitindo a reprodução. Tais definições mostram-se complementares e intimamente ligadas<br />

a dois elementos fundamentais para a sua caracterização, mesmo que sub-entendidos,<br />

matriz e suporte de impressão. Todavia, no decorrer da obra dos citados autores observase<br />

claramente a conversão dessa dupla em tríade, tendo em vista a recorrência da tinta no<br />

discurso de ambos enquanto condutor dos grafismos a serem reproduzidos.<br />

Segundo McMurtrie (1965) uma antiga prática chinesa dos séculos V e VI da era cristã<br />

de se estampar carimbos com tinta no papel já envolvia esses elementos de modo semelhante<br />

ao que seria aplicado pela histórica invenção de Gutenberg, séculos mais tarde. Assim, a<br />

tipografia e algumas tecnologias antecessoras à imprensa implicam definitivamente tinta,<br />

matriz e suporte na conceituação primária do termo impressão. Contudo, os incrementos<br />

digitais que sucederam à entrada do setor gráfico na era da informática – inúmeras gerações<br />

após o primeiro uso dos tipos móveis – comprometem a integridade de algumas definições<br />

ainda hoje adotadas por uma série de autores.<br />

A ausência de um corpo material para ocupar o lugar da matriz de impressão em muitos<br />

sistemas digitais reforça o conceito de reprodução presente no contexto da impressão, abalando<br />

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Classificação e escolha de um sistema de impressão<br />

significativamente a prerrogativa da pressão entre corpos anteriormente imprescindível. Com<br />

isso, toda uma corrente de pensamento teórico concentrada em torno da produção gráfica<br />

vê-se diante de uma quebra abrupta de paradigma e convidada a repensar vários de seus<br />

conceitos.<br />

Em acordo com essas perspectivas digitais Fernandes (2003) entende a impressão<br />

como um processo de reprodução de imagens sobre uma ou mais superfícies, desprendendo<br />

do conceito o elemento matriz. Collaro (2005) segue a mesma linha de pensamento mas,<br />

enaltece o aspecto industrial inerente ao tema ao afirmar que impressão é a transferência<br />

de grafismos para suportes por meio de processos que os transformam em cópias seriadas<br />

idênticas. Sobretudo para ele o enfoque da multiplicação em série é claro e independente do<br />

aspecto mecânico abordado por Baer (2005), mérito de um pensamento contemporâneo que<br />

não deve passar despercebido.<br />

Uma abordagem mais extremista e pragmática é adotada pela Adobe (2009) –<br />

importante desenvolvedor de softwares para o meio gráfico – que separa absolutamente a<br />

impressão de seu conceito primário. A documentação de ajuda ao usuário do Photoshop<br />

CS3, seu principal produto, a define como processo de enviar imagens para dispositivos de<br />

saída, numa clara alusão ao ato de controlar as ações de um hardware periférico via software.<br />

Essa simplificação demasiada do termo restringe sua aplicação ao universo digital e pode<br />

sujeita-lo a uma crescente diversificação da natureza dos dispositivos de saída de dados, nem<br />

sempre projetados para reproduzir grafismos em superfícies.<br />

Visto que processo e resultado se confundem na maioria das definições de impressão<br />

abordadas é prudente destacar as denotações processuais como melhor referidas ao termo<br />

sistema de impressão e as de resultado ao termo impresso. Isto posto, é possível constatar que<br />

as definições unicamente baseadas nas tecnologias dos sistemas de impressão anteriores aos<br />

digitais tendem a enfocar matriz e suporte como pilares conceituais e os posteriores, grafismo<br />

e suporte. Ambas, contudo, compreendem a tinta como condutor recorrente do grafismo para<br />

o suporte em várias circunstâncias.<br />

Como a matriz cumpre a função de guardar o grafismo e este está presente em<br />

qualquer sistema de impressão, a perspectiva digital moderada, por assim dizer, pode ser<br />

assumida na atualidade sem maiores prejuízos ao entendimento contemporâneo do termo. É<br />

importante que o fator mecânico enfatizado por alguns autores seja suprimido afim de se evitar<br />

confrontos infrutíferos frente ao fotoquímico, elétrico, eletrônico, entre outros. Já o caráter de<br />

reprodução em série deve ser observado enquanto potencial e sua realização deve submeterse<br />

a alguns critérios, como os de escolha do sistema de impressão indicados por Villas-Boas<br />

(2008): deficiências e vantagens apresentadas pelo processo; tiragem; custo; suporte; oferta<br />

e operacionalidade de fornecedores; conhecimento prévio do processo e usabilidade.<br />

De modo geral, a persistência no uso de conceitos pré-digitais pode originar estranhos<br />

conflitos, como o questionamento da legitimidade de uma página obtida através de um sistema<br />

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Classificação e escolha de um sistema de impressão<br />

jato de tinta enquanto impresso, já que a mesma não implica na geração de uma matriz de<br />

corpo físico.<br />

Alguns dos sistemas de impressão mais utilizados<br />

Em linhas gerais, uma série de autores concorda que os designers utilizam com mais<br />

freqüência alguns sistemas de impressão específicos no seu cotidiano, seja para produção ou<br />

acabamento de suas peças gráficas. Tipografia, flexografia, offset, rotogravura, tampografia,<br />

serigrafia, jato de tinta e laser são alguns desses sistemas que recebem maior atenção. Desse<br />

modo, o preparo da suas matrizes e mecânica de funcionamento serão descritos a seguir para<br />

qualificá-los de forma adequada.<br />

As principais características dos impressos resultantes de cada sistema e algumas<br />

outras informações relevantes também serão apresentadas.<br />

Tipografia<br />

A invenção da prensa para o uso de tipos móveis proposta por Gutenberg em 1450 foi<br />

uma inovação tecnológica revolucionária sem precedentes na historia gráfica (FRIEDL; OTT;<br />

STEIN; 1998). Apesar dos chineses já utilizarem tipos móveis de cerâmica, madeira ou mesmo<br />

bronze, cerca de quatro séculos antes, o uso da prensa adequado ao alfabeto latino provocou<br />

grande impacto na produção editorial mundial (RIBEIRO, 2003). A simplicidade do sistema<br />

de escrita ocidental combinada a tecnologia originária da xilogravura foi a chave para o seu<br />

sucesso.<br />

Responsável pelo surgimento da imprensa como entendemos foi o único processo<br />

industrial de impressão durante séculos e o principal até bem pouco tempo, aproximadamente<br />

1950 (Fernandes 2003: 131).<br />

Primariamente a tipografia implica na composição manual de textos através da<br />

combinação de tipos feitos com uma liga de chumbo, antimônio e estanho organizados em<br />

bandejas metálicas, galés, com o auxilio de instrumentos que definem a largura das colunas,<br />

componedores. Madeira e linóleo também são utilizados para a confecção de tipos de corpos<br />

maiores.<br />

Depois de organizados linha a linha esse tipos são presos a um quadro de perfil metálico,<br />

rama, com o auxílio de barras de ferro, cotaços, que são pressionadas contra as paredes<br />

internas da rama através da ação de alargadores, cunhos. Somente então a matriz, presa a<br />

rama, será fixada a impressora (CRAIG, 1996: 16).<br />

Os tipos possuem caracteres que encontram-se em relevo – 23,566mm no sistema<br />

francês, mais usado no Brasil, e 23,317mmno sistema anglo-americano – para serem entintados<br />

sem permitir que a área ao seu redor, sendo mais baixa em média 1mm, receba tinta e portanto<br />

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Classificação e escolha de um sistema de impressão<br />

imprima. Após depositada na superfície alta dos tipos por meio de rolos flexíveis – operados<br />

manual ou mecanicamente – a tinta pastosa é transferida diretamente para o suporte por meio<br />

de pressão, semelhante ao que se faz com um carimbo (CRAIG, 1996: 80).<br />

Todavia, o arranjo puramente de tipos móveis não é a única possibilidade de obtenção<br />

de matriz tipográfica. O uso de clichês para a representação de ilustrações a traço e retículas<br />

combinado aos tipos é muito comum nesse sistema.<br />

Há três tipos básicos de impressoras tipográficas: de platina, plano-cilíndricas e rotativas.<br />

Na de platina duas superfícies planas se juntam para imprimir, uma contém a matriz e<br />

a outra, chamada de platina, proporciona a pressão necessária ao processo. Há dois tipos de<br />

maquinas de platina: a de cofre plano, utilizada por Gutenberg, e a vertical, conhecida como<br />

Minerva ou Boca de Sapo.<br />

A plano-cilíndrica consiste num cofre plano, que sustenta a matriz e um cilindro que<br />

substitui a platina. A primeira impressora plano-cilíndrica foi fabricada por Friederich Koenig,<br />

em 1811 (CRAIG, 1996: 82).<br />

Por fim, a cilíndrica, diferente das outras, possui matriz curva, que se encaixa no<br />

cilindro ou o envolve completamente. Este cilindro da matriz recebe pressão de um outro<br />

cilindro para realizar sua tarefa atingindo velocidades mais altas que as outras impressoras<br />

tipográficas. Uma evolução da plano-cilíndrica utilizada pela primeira vez em 1814 pelo jornal<br />

Times (HEITLINGER, 2006).<br />

Atualmente a tipografia é utilizada pelos designers em pequenas e até médias tiragens<br />

de projetos especiais e/ou para acabamento de impressos. As impressoras de platina resistem<br />

em várias gráficas atuais que as utilizam para realizar a numeração de talonários e aplicação de<br />

relevo seco, sendo muitas vezes adaptadas para corte&vinco e hot-stamping.<br />

Flexografia<br />

De acordo com a Flexographic Technical Association (2009) a flexografia é originalmente<br />

um sistema de impressão tipográfico total que utiliza clichês de borracha e tintas líquidas de<br />

rápida secagem. Uma adaptação das impressoras tipográficas cilíndricas para produções de<br />

baixo custo com anilina criada por volta de 1860 nos Estados Unidos.<br />

Atualmente a flexografia utiliza matrizes de fotopolímeros que são entintadas por<br />

um cilindro dotado de sulcos conhecido como anilox. De modo geral, a tinta é depositada<br />

nesse cilindro de superfície metálica ou cerâmica e transportada do tinteiro para a matriz.<br />

Todavia Fernandes (2003: 140) afirma que a matriz de flexo é entintada diretamente por um<br />

rolo revestido de moletom que funciona como se fosse uma almofada umedecida flexível –<br />

mecânica somente verificada nas impressoras mais antigas.<br />

Um entendimento mais claro do avanços tecnológicos é apresentado por Villas-Boas<br />

(2008: 92-95) que divide as impressoras flexográficas em três tipos: rudimentar, convencional<br />

e de ultima geração.<br />

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Classificação e escolha de um sistema de impressão<br />

As rudimentares funcionam conforme Fernandes (2003) indica.<br />

As convencionais já funcionam com o cilindro do tinteiro em contato com o anilox<br />

para intermediar a distribuição de tinta a base de álcool ou água na matriz. As máquinas<br />

são equipadas para impressão simultânea de seis a doze tintas diferentes. Suas fôrmas<br />

relevográficas planas flexíveis ao curvarem-se para fixação no cilindro da matriz, chamado<br />

cilindro da borracha, deformam-se comprometendo a qualidade da impressão.<br />

Por fim, as de última geração implicam em quatro inovações básicas que permitem<br />

explorar retículas impressas com qualidade próxima as do offset: o uso de sistema CTP para<br />

moldar a laser os grafismos das matrizes, o uso de tintas UV, o uso de matrizes cilíndricas de<br />

fotopolímeros – as chamadas camisas – e o contato direto do anilox com o tinteiro. Sobretudo<br />

a compensação da deformidade provocada pela curvatura das matrizes planas ocorrida nas<br />

camisas e a maior qualidade e durabilidade das tintas permitem meios-tons mais definidos.<br />

Muitas impressoras de flexografia possuem sistemas de acabamento e montagem<br />

de embalagens acoplados, realizando tarefas além da impressão, tais como: corte, dobra,<br />

colagem, selagem plástica, grampeamento, etc.<br />

Comum, até bem pouco tempo, no setor de embalagens apenas para a produção de<br />

caixas e sacolas plásticas de baixa qualidade a flexografia hoje é utilizada na confecção de<br />

embalagens de biscoitos, laticínios, chocolates e produtos de higiene.<br />

Offset<br />

O offset é um sistema de impressão baseado na litografia, uma técnica de gravura<br />

inventada em 1798 na Alemanha, por Alois Senenfelder. O principio básico da litografia é a<br />

incompatibilidade recíproca entre água e substâncias gordurosas.<br />

Mais de um século após a invenção da litografia o offset surge em 1903, por obra do<br />

americano Washington Rubel. O mesmo princípio foi utilizado no offset, as zonas de impressão<br />

das matrizes, chapas de impressão, são lipófilas e atraem a tinta gordurosa, repelindo a água.<br />

Por sua vez, as zonas não impressoras são hidrófilas e atraem a água repelindo a tinta.<br />

Dois avanços da litografia foram determinantes para o desenvolvimento da impressão<br />

offset: a invenção da fotolitografia, impressão litográfica baseada nas propriedades da<br />

albumina bicromatada, e a substituição das matrizes de pedra por lâminas metálicas de zinco<br />

ou alumínio (BAER, 2005: 187-188).<br />

Hoje, esse sistema é capaz de reproduzir grafismos de várias cores em diversos suportes<br />

em uma escala industrial. A maioria das impressoras offset são fabricadas para funcionar com<br />

uma, duas ou quatro tintas diferentes. Cada tipo de impressora dá naturalmente suporte a um<br />

tipo de trabalho. As projetadas para operar com uma tinta por vez suportam a monocromia,<br />

as com duas tintas suportam a bicromia e as com quatro suportam a policromia. Todavia,<br />

esta relação não é estanque. É possível, por exemplo, realizar com sucesso trabalhos de<br />

bicromia em impressoras concebidas para operar com monocromias. Basta imprimir o papel<br />

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Classificação e escolha de um sistema de impressão<br />

duas vezes, carregando a máquina com uma tinta diferente a cada vez. Do mesmo modo, os<br />

outros equipamentos podem adequar-se a soluções desta natureza ou simplesmente ignorar<br />

a possibilidade de uso de uma tinta.<br />

Muito do que é preciso saber para entender a mecânica de funcionamento da impressão<br />

offset está ligado a dois aspectos: o funcionamento de um castelo de impressão e os tipos de<br />

impressoras.<br />

Castelo de impressão é o nome dado ao conjunto de cilindros, ou módulo impressor, que<br />

compõem o mecanismos de funcionamento básico das impressoras offset. Toda impressora<br />

desta natureza possui ao menos três cilindros que irão agir em rotação: cilindro da chapa,<br />

cilindro de borracha e cilindro de impressão.<br />

O cilindro da chapa é envolvido com a matriz de impressão e recebe a aplicação direta<br />

de tinta, pela ação dos cilindro entintadores, e solução de molhagem (normalmente composta<br />

por água e ácido fosfórico), pela ação dos cilindros molhadores.<br />

O cilindro de borracha, também chamado blanqueta ou caucho, toca o cilindro da<br />

chapa e recebe a imagem que é transferida para sua superfície neste momento. É o caucho<br />

quem toca a superfície do papel. A matriz de impressão nunca toca diretamente o papel<br />

caracterizando o processo offset de impressão como indireto.<br />

O cilindro de impressão desempenha a função de pressionar o papel contra o caucho<br />

para permitir a transferência da tinta ao papel.<br />

A qualidade da impressão offset se deve em grande parte a transferência indireta da<br />

imagem ao suporte. O excesso de tinta e sobretudo de água eliminado pela blanqueta poderia<br />

comprometer a resistência do papel. Também a dureza da superfície da matriz em contato<br />

com o suporte não permitiria que a tinta fosse depositada adequadamente. Mesmo que<br />

praticamente microscópicas, as imperfeições da superfície dos papeis devem ser cobertas<br />

de tinta em seus altos e baixos relevos para que não haja falhas nos grafismos resultantes,<br />

operação impossível para o duro metal da chapa.<br />

Cada cor de seleção ou especial utilizada em um trabalho determina na prática uma<br />

impressão diferente, uma entrada em máquina e cada entrada demanda um castelo. Assim,<br />

uma máquina própria para monocromia possui apenas um castelo, uma própria para bicromia,<br />

dois e uma para policromia, quatro. Todos dispostos em seqüencia linear.<br />

Cada castelo recebe apenas uma chapa de impressão por vez e por conseqüência é<br />

carregado com uma tinta para cada entrada de máquina.<br />

Uma curiosidade comum ao offset que pode influenciar no resultado das impressões<br />

é o ganho de ponto das impressoras. Trata-se de uma característica praticamente única de<br />

cada equipamento que aumenta ou diminui ligeiramente a dimensão dos pontos gravados<br />

nas chapas. Também por conta desta característica as matrizes devem apresentar todos os<br />

dispositivos gráficos de controle de cor presentes nos arquivos finalizados e nos fotolitos.<br />

Planas e rotativas são os tipos mais comuns de impressoras offset.<br />

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Classificação e escolha de um sistema de impressão<br />

As planas são alimentadas por folhas de papel e podem ser grandes, médias e de<br />

pequeno porte. O dimensionamento desses portes está diretamente relacionado ao tamanho<br />

das folhas com as quais alimenta-se essas máquinas.<br />

As menores utilizam formatos próximos aos de uso caseiro, como A4, ofício, A3 e até<br />

duplo ofício. As de médio porte utilizam-se de formatos baseados no chamado corte industrial,<br />

fabricado para atender as demandas da industria gráfica. Os formatos mais comuns partem<br />

do BB. As impressoras de médio porte são alimentadas com papéis a partir de formato 4, ou<br />

seja ¼ de folha BB, até formato 2, ½ de folha BB, ou simplesmente B. Por fim, as impressoras<br />

de grande porte trabalham com formatos acima de B, quase sempre com folhas inteiras.<br />

Apesar das impressoras de menor formato terem caído em dês-uso o tamanho das<br />

impressoras não reflete atualmente a tecnologia que elas possuem, nem tão pouco sua<br />

qualidade. Impressoras de médio porte tem sido fabricadas com altíssima tecnologia.<br />

As rotativas são alimentadas por bobinas de papel e normalmente apresentam reversão.<br />

Reversão é o recurso que permite com que esses equipamentos imprimam as duas faces do<br />

papel ao mesmo tempo. São muito utilizadas nos parque gráficos de jornais e algumas grandes<br />

gráficas que necessitam de prazos curtos para impressão e acabamento. Em muitos casos<br />

as rotativas possuem equipamentos de dobra, refile e encadernação de alta performance<br />

acoplados a sua estrutura, o que acarreta ganho significativo de tempo na realização de vários<br />

trabalhos (BUGGY, 2009: 16-18).<br />

Rotogravura<br />

Segundo Craig (1996) e Fernandes (2003) a rotogravura tem origem nos processos<br />

de gravura em metal encavográficos de pressão plana, como ponta seca, talho-doce e água<br />

forte. Curiosamente, Villas-Boas (2008) atribui esta origem a industria têxtil do século XIX.<br />

É sabido que uma série de impressões, normalmente monocromáticas, foi desenvolvida na<br />

Europa naquela época através da ação de rolos gravados (GINZBURG, 1993). A pressão linear<br />

desses sistemas de impressão têxteis e a forma de suas matrizes faz plausível essa teoria,<br />

apesar da mesma não encontrar eco na obra de outros autores da produção gráfica. De toda<br />

sorte, o uso de matriz metálica com áreas de grafismo gravadas em baixo relevo para conter<br />

tinta é comum às duas origens mencionadas.<br />

A impressão rotográfica se realiza da seguinte forma: um cilindro de superfície metálica<br />

e/ou cerâmica é imerso dentro do tinteiro e girado para ser completamente coberto pela tinta.<br />

Este cilindro possui todas as informações do grafismo registradas em reticulas de pontos<br />

côncavos. Para evitar excesso de tinta no contato com o suporte, a matriz é raspada por uma<br />

espécie de rodo metálico, a racla, fazendo com que a tinta fique depositada nas cavidades do<br />

cilindro. Após esta operação a matriz toca o suporte pressionado por um cilindro de impressão<br />

(FERNANDES, 2003: 139). Desse modo, o suporte busca a tinta que se aloja nas pequenas<br />

perfurações da superfície da matriz, os alvéolos.<br />

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Classificação e escolha de um sistema de impressão<br />

O uso de tintas líquidas a base de solventes fortes e voláteis, como o thinner, é imposto<br />

pela velocidade da rotogravura e pela dimensão minúscula dos alvéolos.<br />

As impressoras de rotogravura são normalmente equipamentos de grande porte<br />

dimensionados para execução de altas e altíssimas tiragens com grande qualidade (RIBEIRO,<br />

2003). Os suportes podem ser os mais diversos. Papel, papelão, plásticos, tecidos, metal,<br />

etc. Em geral, o acabamento é realizado in line (processos acoplados às impressoras)<br />

como na flexografia, incluindo plastificação e aplicação de vernizes. É muito comum que<br />

essas impressoras de alta performance trabalhem simultaneamente com seis a oito tintas<br />

possibilitando impressão simultânea de cores de seleção e cores especiais (VILLAS-BOAS,<br />

2008: 100).<br />

Pode-se citar como impressos do processo de impressão de rotogravura os miolos de<br />

revistas de grande tiragem, maços de cigarros e as embalagens flexíveis de produtos como<br />

biscoito, café, etc. (FERNANDES, 2003: 139).<br />

Tampografia<br />

Inventado recentemente, por volta de 1970, a tampografia segundo Fernandes (2003)<br />

é uma resposta para atender às necessidades de impressão no interior de objetos côncavos.<br />

Todavia, superfícies de objetos convexos também podem ser impressas pelo mesmo processo.<br />

Existem dois tipos elementares de impressoras tampográficas: a de tinteiro enclausurado<br />

e a de tinteiro aberto.<br />

Nas impressoras de tinteiro aberto um clichê encavográfico é percorrido por um bico<br />

distribuidor de tinta, para que, a seguir uma racla remova a tinta das áreas de contragrafismo,<br />

forçando também a entrada da mesma nas áreas de grafismo. Na seqüência, uma peça de<br />

silicone muito flexível, o tampão, é pressionada sobre a matriz, a tinta adere a essa peça e é<br />

por ela transferida para o suporte, que deve estar acomodado em um gabarito (FERNANDES,<br />

2003: 144).<br />

O componente mais sensível do processo tampográfico, o tampão, é um elastômero<br />

inalterável com alto poder de transferência basicamente constituído por uma mistura de<br />

borracha de silicone, óleo e catalisador, todos cuidadosamente dosados. Sua forma e dureza<br />

são determinantes para a qualidade e velocidade da impressão.<br />

Muito utilizada no setor de brindes para impressão de objetos tridimensionais a<br />

tampografia utiliza tintas líquidas e coloidais para a produção de pequenas e médias tiragens<br />

(FERNANDES, 2003: 144).<br />

Serigrafia<br />

Segundo Fernandes (2003: 141) o processo de impressão serigráfico foi inventado na<br />

China há alguns séculos. Dov Kruman (2000) editor do jornal O Serigráfico – importante veículo<br />

do mercado nacional especializado – indica a mesma origem datando-a, contudo, 3.000 anos<br />

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Classificação e escolha de um sistema de impressão<br />

antes da era cristã. O primeiro registro desta impressão seria um selo real com o qual as<br />

monarquias imperiais da Ásia Menor davam valor de documento a um escrito. Já Baer (2003)<br />

acredita que sua origem esteja no Japão.<br />

Séculos ou milênios, China ou Japão? Independente da idade e origem, este sistema<br />

consiste em uma evolução mais de perspectiva do que de tecnologia de um método de<br />

gravura, classificado por Fajardo (1999: 70) como gravura a estampilha, para um sistema de<br />

impressão comercialmente aceito.<br />

É fato que, recentemente, a serigrafia ganhou uma série de incrementos e passou<br />

a atender tiragens de volumes sensivelmente ampliados em relação a impressão plana<br />

convencional (VILLAS-BOAS, 2008).<br />

Segundo Ribeiro (2003: 134) a serigrafia baseia-se num principio muito simples, consiste<br />

no resultado da compressão de tintas líquidas ou coloidais, com uma espátula normalmente<br />

de borracha, o rodo, através de um estêncil elaborado numa tela de fios tramados, sobre a<br />

superfície que se quer imprimir.<br />

De modo geral as impressoras serigráficas dividem-se hoje em dois grandes grupos:<br />

planas e rotativas.<br />

As planas podem ser manuais, semi-automáticas ou mesmo automáticas e utilizam o<br />

mesmo tipo de matriz confeccionada a partir de um bastidor de madeira ou metal no qual é<br />

tencionada uma tela de seda, náilon ou metal. As áreas de contragrafismo são impermeabilizadas<br />

para inibir a passagem da tinta (FERNANDES, 2003: 141-142).<br />

As rotativas partem do mesmo principio de permeabilidade, mas suas matrizes são<br />

cilíndricas e proporcionam uma pressão linear. Esses cilindros são formados por telas metálicas<br />

com malha de níquel confeccionadas por processo galvânico. A tinta é localizada dentro da<br />

matriz e transferida para o suporte a partir da pressão de raclas que se localizam do seu<br />

interior (VILLAS-BOAS, 2008: 89-90).<br />

A serigrafia é um sistema extremamente versátil que permite a impressão não só sobre<br />

papel e tecido, mas também sobre laminados plásticos, plásticos rígidos, tecidos, lonas,<br />

suportes tridimensionais, metais, vidros, cerâmica e uma infinidade de materiais, inclusive em<br />

superfícies convexas (VILLAS-BOAS, 2008: 85). Fernandes (2003) também inclui superfícies<br />

de pouca concavidade nessa lista de possibilidades.<br />

Se por um lado o desenvolvimento de sistemas digitais comprometeu o emprego da<br />

serigrafia na área da sinalização – placas, banners, faixas, entre outros outrora eram quase que<br />

exclusivamente produzidos serigraficamente – e o desenvolvimento da flexografia comprometeu<br />

seu emprego no setor de embalagens, por outro a indústria de eletrodomésticos e placas de<br />

circuito abriu uma nova seara para o desenvolvimento desse processo de impressão.<br />

Jato de Tinta<br />

Processo empregado pelas impressoras pessoais mais bem aceitas hoje no mercado<br />

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Classificação e escolha de um sistema de impressão<br />

o jato de tinta é o sistema digital de mais baixo custo de aquisição (VILLAS-BOAS, 2008:<br />

p.110). Possui boa precisão e qualidade de impressão, com fácil manuseio e manutenção<br />

(FERNANDES, 2003: 151). Nesta condição, é muito utilizado pelos designers para geração de<br />

provas durante a concepção dos projetos gráficos.<br />

A Hewlett-Parkard, inventora do sistema, desenvolveu a primeira impressora jato de<br />

tinta em 1976, todavia ela somente tornou-se um produto de consumo doméstico em 1988.<br />

De modo geral, suas impressoras funcionam conectadas a um sistema digital de<br />

tratamento de imagens e operam a partir do controle por arquivos de pulsos eletrônicos, como<br />

qualquer outro sistema digital. Considerados por muito autores como matrizes não-físicas<br />

esses arquivos impossibilitam o contato entre matriz e suporte. Toda informação de grafismo<br />

contida neles é decodificada para a compreensão das impressoras através de uma linguagem<br />

de descrição de página que irá controlar os cabeçotes de impressão.<br />

Os cabeçotes, ou cabeças, são peças chave na tecnologia jato de tinta. São<br />

responsáveis pela aspersão de jatos de tinta, geralmente líquida e a base de água, desferidos<br />

quase sempre sob demanda contra os suportes (FERNANDES, 2003: 149-151). Além da tinta<br />

líquida algumas impressoras utilizam tintas sólidas.<br />

Segundo Baer (2005: 125) as impressoras jato de tinta dividem-se em dois tipos: as<br />

que trabalham com tinta, cujo jato funciona sob demanda (drop on demand) e as de jato<br />

contínuo (contunuous flow).<br />

As impressoras sob demanda funcionam por meio de vaporização de gotículas de tinta,<br />

as bubble jet (jato de bolhas), ou pela ação de bombeamento, as piezoelétricas (VILLAS-BOAS<br />

2008: 110). Esta classificação é muito bem aceita pelos principais fabricantes de impressoras<br />

jato de tinta, HP, Epson e Canon.<br />

As impressoras bubble jet aquecem a tinta líquida no interior de pequenos reservatórios,<br />

os cartuchos de impressão, através de uma resistência, formando pequenas bolhas de ar que<br />

fazem a tinta espirrar contra o suporte orientadas por micro dutos presentes nas cabeças<br />

de impressão. Cabe frisar que a tinta empregada neste sistema não encontra-se vaporizada<br />

dentro dos cartuchos, apenas entra em ebulição no momento da impressão.<br />

Por sua vez, as piezoelétricas funcionam como uma bomba microscópica, borrifando<br />

tinta sobre o suporte. Neste caso, as cabeças de impressão possuem um pequeno canal<br />

dentro do qual posiciona-se um cristal. Ao receber eletricidade este cristal vibra, fazendo com<br />

que gotículas de tinta sejam expelidas para fora do cartucho (EPSON DO BRASIL, 2009).<br />

Villas-Boas (2008) ainda chama atenção para uma terceira espécie de impressora jato<br />

de tinta sob demanda, a de troca de estado. Essas impressoras que utilizam-se da mudança<br />

de fase da tinta trabalham com lâminas de sólidas que são derretidas e borrifadas contra<br />

os suportes onde tornam a solidificar-se com o auxílio de cilindros, agentes de pressão e<br />

resfriamento.<br />

Nas impressoras de jato contínuo a tinta não é lançada de modo intermitente. Nelas<br />

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Classificação e escolha de um sistema de impressão<br />

mecanismos lançam a tinta de maneira constante dirigindo eletroestaticamente os jatos contra<br />

o suporte (BAER, 2005: 125).<br />

Empregada em pequenos formatos a impressão jato de tinta contempla sobretudo<br />

papeis. Em formatos maiores possibilitam a impressão em lonas, películas auto-adesivas de<br />

vinil, tecidos, papeis e uma serie de filmes gráficos (FERNANDES, 2003: 152).<br />

Independente do tamanho e do tipo de tinta todas as impressoras jato de tinta utilizamse<br />

de retículas estocásticas. Desde 1993 essa alternativa para simulação de meios-tons ganha<br />

espaço na industria gráfica. A retícula estocástica reproduz tons não por pontos organizados<br />

geometricamente numa pequena rede – como no caso das reticulas de ponto comuns a<br />

maioria dos sistemas de impressão – mas, por uma distribuição aparentemente aleatória de<br />

respingos microscópicos de tinta (07 a 40 milésimos de milímetro) distribuídos em áreas de<br />

maior ou menor concentração (VILLAS-BOAS, 2008: 47, 110).<br />

Laser<br />

Em termos genéricos, Baer (2005: 205) afirma existir pelo menos três sistemas<br />

eletrográficos amplamente reconhecidos: a xerografia ou eletrofotografia indireta, a<br />

eletrofotografia e a impressão eletroestática. Villas-Boas (2008) compartilha dessa lógica,<br />

todavia, não há consenso claro entre os principais autores contemporâneos da produção<br />

gráfica nacional a respeito desta divisão.<br />

Baer (2005) se refere a impressão laser como xerográfica, Villas-Boas (2008), por sua<br />

vez, como digital e Fernandes (2003), como eletroestática. Essas diferenças podem suscitar<br />

dúvidas a respeito dos conceitos envoltos nesta classificação de sistema de impressão.<br />

Apesar dos conflitos conceituais, parece sensato crer que o sistema laser é resultado<br />

da evolução da xerografia, de sistema convencional para digital, conforme indica Fernandes<br />

(2003: 152).<br />

Elaborada por Carlson em 1938 e aperfeiçoada no Battelle Memorial Institute, nos<br />

Estados Unidos, a xerografia foi associada ao laser em 1960 originando a copiadora Xerox<br />

914 (XEROX DO BRASIL, 2009). Em 1989 a mesma empresa lança a impressora DocuThec,<br />

um marco na transição do uso de eletricidade estática na impressão. Esse equipamento foi<br />

criado para funcionar simultaneamente como copiadora e impressora digital (VILLAS-BOAS,<br />

2008: 84).<br />

Segundo Fernandes (2003: 152) originalmente as copiadoras trabalhavam apenas com<br />

matrizes físicas – um original que servia de padrão para reprodução de cópias. Com a adição<br />

da capacidade de comando por sistemas digitais operado a partir de arquivos os princípios do<br />

processo laser xerográfico não foram alterados.<br />

O funcionamento desse tipo de impressão se dá, inicialmente, pela ação de feixes<br />

de laser que carregam eletroestaticamente um cilindro revestido de selênio nas áreas que<br />

correspondem ao que será impresso. Simultaneamente, o toner recebe um carga eleroestática<br />

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Classificação e escolha de um sistema de impressão<br />

de sinal oposto ao do cilindro. Desta forma, a eletricidade estática do cilindro, concentrada nas<br />

áreas que formam a imagem que será reproduzida, atrai o toner, que adere então ao cilindro<br />

e, em seguida, é transferido para o suporte, que recebeu carga elétrica de maior intensidade.<br />

Finalmente, a imagem formada pelo toner é fixada no suporte por calor e pressão ou somente<br />

por calor, etapa denominada de polimerização.<br />

Toner é uma tinta não condutora, geralmente em forma de pó seco, algumas vezes<br />

disperso em liquido, cujas partículas plásticas são carregadas eletroestaticamente e transferidas<br />

para o suporte (BAER, 2005: 205).<br />

Vale lembrar que o cilindro funciona como uma espécie de suporte para a matriz que<br />

é virtual. Uma vez finda a impressão, ele se regenera para construir uma nova matriz. O uso<br />

dessas matrizes virtuais permite ajustes e customização de impressos em qualquer tiragem<br />

(VILLAS-BOAS, 2008: 80).<br />

Atualmente a chamada impressão laser é muito utilizada para pequenas tiragens, pois<br />

não possui custo de partida – custo fixo associado a chapas, fotolitos e acerto de máquina.<br />

Porém, o custo unitário da impressão laser é maior se comparado ao offset e a outros sistemas<br />

convencionais acima de tiragens médias.<br />

Para pequenos formatos as opções de suportes são limitadas, normalmente reduzida<br />

aos papeis indicados e/ou produzidos pelos fabricantes das impressoras. Já para grandes<br />

formatos, utilizados no mercado de sinalização, as opções são mais variadas passando por<br />

tecidos, lonas, películas auto-adesivas de vinil, filmes gráficos e papeis (VILLAS-BOAS, 2008:<br />

80-83). Uma lógica de uso muito semelhante ao encontrado no segmento do jato de tinta.<br />

Outros processos<br />

Alguns processos de menor popularidade merecem certa atenção dos designers. Apesar<br />

de pouco difundidos ocupam espaços específicos no mercado de impressão revelando-se<br />

muitas vezes opções interessantes. Tratam-se de adaptações e/ou inovações dos demais<br />

processos já vistos neste relato.<br />

Di-litho é uma evolução da litografia originaria dos anos 1970. Um processo simples<br />

que consiste no uso de chapas offset em maquinas tipográficas. Seu resultado é superior a<br />

impressão tipográfica e inferior a offset.<br />

Letterset foi durante muito tempo conhecido como offset seco, título hoje ostentado<br />

pelo sistema Indigo. Também originário dos anos 1970, é um processo misto, com matrizes em<br />

relevo de fotopolímero adaptadas a impressoras offset. Os grafismos em relevo são entintados<br />

e transferidos para uma blanqueta de borracha para enfim chegar ao suporte.<br />

O Indigo é conhecido como o offset digital. Um processo que alia uma matriz típica da<br />

eletrografia, virtual e determinada por fenômenos eletroestáticos, com uma impressão indireta<br />

por meio de blanqueta, característica comum ao offset convencional.<br />

Sob a ação de um laser, direcionado pelos dados digitais fornecidos por arquivos<br />

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Classificação e escolha de um sistema de impressão<br />

informatizados, as imagens que serão impressas são definidas eletroestaticamente num<br />

cilindro fotocondutor orgânico. A energia eletroestatica atrai a tinta, a electroink, para essas<br />

áreas. Para impressos com mais de uma cor esta operação ocorre mais de uma vez antes<br />

da tinta ser transferida para uma blanqueta também eletroestática revestida de teflon. Da<br />

blanqueta todas as tintas são transferidas simultaneamente para o suporte.<br />

Este é um dos raros processos em que apenas uma impressão ocorre durante o uso<br />

de tintas de cores diferentes. Normalmente as impressoras Índigo são equipadas para operar<br />

com até seis cores ao mesmo tempo nas duas faces do suporte.<br />

Routers são plotters de corte dotados de facas de grande resistência, capazes de<br />

cortar, esculpir ou cavar madeira, alumínio, poliuretano e outros suportes rígidos (VILLAS-<br />

BOAS, 2008: 104-109).<br />

A transferência térmica se dá a partir da passagem de pigmentos que tem como veículos<br />

cera ou plástico, geralmente em forma de fita, para o suporte. Sua impressão é superior ao<br />

jato de tinta e laser, todavia não muito popular em nosso país.<br />

A sublimação, ou dye sublimation, utiliza tintas solidas em forma de filme, que<br />

são transferidas para o suporte por meio de cabeçotes via pressão e/ou ação térmica. A<br />

transferência de pigmentos obedece ao nível de calor determinado pelo cabeçote: quanto<br />

mais quente, mais pigmento é transferido. Seus pontos possuem tamanho fixo, mas variam<br />

em densidade do centro para as bordas. São equipamentos de altíssima precisão e suas<br />

impressões reproduzem meios tons com incomparável qualidade. Alguns birôs de préimpressão<br />

chegam a utilizar essas impressoras como impressoras de prova, mesmo este<br />

procedimento não sendo plenamente recomendado.<br />

Embora não seja um processo de impressão Villas-Boas (2008: 108) considera que o<br />

corte eletrônico deve ser abordado por tratar-se de um processo de reprodução largamente<br />

empregado pelos designers.<br />

Para entender melhor este sistema digital de reprodução de grafismos é importante<br />

conhecer previamente o conceito de plotter.<br />

O termo plotter hoje reúne uma enorme variedade de processos diferenciados que<br />

pouco ou nada têm a ver entre si. Originalmente associado a equipamentos de reprodução<br />

de imagens em grandes formatos voltados a cartografia e engenharia a partir de 1990 passou<br />

a ser referir a impressoras jato de tinta alimentadas por papéis de largura superior a 50 cm.<br />

Atualmente os plotters também abrangem equipamentos de grandes formatos que utilizam as<br />

tecnologias laser e de corte eletrônico.<br />

Os plotters de corte eletrônico, ou simplesmente de corte, são equipados com pequenas<br />

facas de precisão dedicadas à determinação das imagens a partir do recorte do suporte,<br />

normalmente lâminas de vinil adesivo em bobinas. Dos mesmo modo que as impressoras<br />

jato de tinta e laser, os plotters de corte são controlados por arquivos digitais que orientam as<br />

cabeças de corte na descrição dos grafismos desejados.<br />

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Classificação e escolha de um sistema de impressão<br />

Esse equipamentos são capazes de reproduzir apenas imagens a traço. Uma vez<br />

ajustados os arquivos a esta condição cada película auto-adesiva de vinil é recortada de forma<br />

que a profundidade desses cortes não alcance a base de papel que protege o adesivo e que<br />

mantém unida toda a superfície do suporte mesmo após a ação das lâminas.<br />

Efetuando o processo no número de lâminas condizente com o número de cores<br />

desejado, elas são afixadas de modo que uma se sobreponha à outra, formando o layout<br />

desejado.<br />

Muito utilizado no setor de sinalização para viabilizar a produção de banners e placas<br />

os plotters de recorte podem auxiliar no acabamento de pequenas tiragens de impressos<br />

oriundas de sistemas de impressão digitais ou mesmo convencionais (BUGGY, 2009).<br />

Nova proposta de classificação dos sistemas de impressão<br />

A decisão pelo uso de definições mais ou menos ortodoxas do termo impressão interfere<br />

diretamente na classificação dos tipos de sistemas.<br />

Segundo Villas-Boas (2008: 57) a forma e o tipo de funcionamento da matriz que<br />

cada sistema utiliza sugerem uma das maneiras mais eficientes de classificá-los. Assim,<br />

se considerarmos uma visão contemporânea para analisar a forma das matrizes podemos<br />

identificar sete grandes tipos de sistemas de impressão:<br />

• Relevográficos. Sistemas que utilizam matriz em alto-relevo. Neles os grafismos que<br />

serão impressos ficam em relevo na matriz e são entintados para serem impressos no<br />

suporte mediante pressão. Trata-se do mesmo princípio utilizado nos carimbos;<br />

• Encavográficos. Sistemas que utilizam o mecanismo inverso ao dos relevográficos,<br />

baseiam-se numa matriz em baixo-relevo. Os elementos que serão impressos são<br />

formados por áreas em baixo-relevo na matriz, que armazenam a tinta para ser<br />

transferida ao suporte mediante pressão;<br />

• Planográficos. Sistemas nos quais não há qualquer relevo para determinar a impressão.<br />

Neles a matriz é sempre plana e fenômenos físico-químicos de repulsão e atração<br />

fazem com que a tinta se aloje nas áreas de grafismo para que sua reprodução no<br />

suporte ocorra;<br />

• Permeográficos. Sistemas que utilizam matriz permeável. Os grafismos são<br />

determinados por áreas permeáveis ou perfuradas da matriz que permitem a passagem<br />

da tinta de modo que atinja o suporte conforme planejado;<br />

• Eletrográficos. Nesses sistemas a matriz é plana como nos planográficos, porém<br />

os grafismos são determinados, seja na matriz ou no próprio suporte, a partir de<br />

fenômenos eletrostáticos – e não físico-químicos. A terminologia para esses processos<br />

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Classificação e escolha de um sistema de impressão<br />

ainda não está consolidada e muitas vezes eles são mencionados como processos<br />

digitais, processos eletrônicos, etc. devido ao fato de que os originais se constituírem<br />

em dados informatizados;<br />

• Digitais. Sistemas que utilizam matriz virtual formada por impulsos elétricos originários<br />

de um sistema informatizado. Como também se caracterizam pelo fato de o original<br />

ter a forma de dados informatizados, muitas vezes são erroneamente associados aos<br />

eletrográficos. São sistemas muito diferenciados entre si, em geral adequados a tiragens<br />

únicas, como provas de impressos que serão produzidos em médias ou altas tiragens;<br />

• Híbridos. São aqueles que envolvem componentes diferentes, como a matriz própria<br />

de um sistema aplicada à impressão própria de outro, por exemplo. Em geral referemse<br />

a equipamentos ou tecnologias muito específicos, quase sempre patenteados por<br />

fabricantes do meio gráfico.<br />

Por outro lado, se considerarmos o tipo de funcionamento dessas matrizes, levando em<br />

conta sua interação com os suportes – conforme indicam Baer (2005: 63), Fernandes (2003:<br />

128) e Ribeiro (2003: 129) – os sistemas podem ser divididos em apenas dois grandes grupos:<br />

• De impressão direta. Também chamados de diretos, são sistemas nos quais ocorre<br />

o contato direto entre a matriz e o suporte impresso (tipografia, flexografia, rotogravura,<br />

serigrafia, etc.);<br />

• De impressão indireta. Também chamados de indiretos, são sistemas nos quais há a<br />

presença de um elemento intermediário usado para transferir o grafismo da matriz para<br />

o suporte (offset, letterset, driografia, etc.).<br />

A utilização dessas duas perspectivas combinadas é simpática a vários autores, tais<br />

como Craig (1996), Collaro (2005), Rossi Filho (1999) e mesmo os já citados Villas-Boas<br />

(2008), Baer (2005), Fernandes (2003) e Ribeiro (2003) que no decorrer de suas obras acabam<br />

adotando ambas em suas definições para muitos casos.<br />

Ribeiro (2003) ainda considera uma terceira perspectiva para classificar os sistemas,<br />

na qual a impressão pode ocorrer mediante pressão plana, ou pressão linear. Pressão plana,<br />

quando toda a superfície da matriz toma contato com toda a superfície do suporte. Pressão<br />

linear, quando só uma parte da matriz toma contato com uma parte da superfície do suporte<br />

(exemplo: impressão plano-cilíndrica).<br />

As propostas de todos esses autores são complementares e podem ser utilizadas<br />

juntas para classificar melhor os sistemas de impressão. Porém, algumas inclusões de classe<br />

devem ser promovidas para atender a nova ótica. Essas acomodações serão mais sentidas<br />

nas categorias da classificação quanto ao tipo de pressão exercida pela matriz no suporte.<br />

Levando em conta sistemas como a tampografia, jato de tinta e laser é necessário<br />

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Classificação e escolha de um sistema de impressão<br />

acrescentar algumas novas categorias para adequar a definição da pressão exercida pela<br />

matriz no suporte nesses casos. São elas:<br />

• Pressão côncava. Ocorre quando toda a superfície da matriz côncava ou de um<br />

elemento côncavo intermediário usado para transferir o grafismo toma contato com<br />

toda a superfície convexa do suporte;<br />

• Pressão convexa. Ocorre quando toda a superfície da matriz convexa ou de um<br />

elemento convexo intermediário usado para transferir o grafismo toma contato com<br />

toda a superfície côncava do suporte;<br />

• Sem pressão. Alguns sistemas não prescindem do exercício de pressão para realizar<br />

a transferência de grafismos da matriz para o suporte. Nesses casos esta nomenclatura<br />

deve ser adotada.<br />

Assim, as definições de Ribeiro (2003) para pressão plana e linear devem ser ajustadas<br />

da seguinte forma:<br />

• Pressão plana. Ocorre quando toda a superfície da matriz plana toma contato com<br />

toda a superfície plana do suporte ao mesmo tempo;<br />

• Pressão linear. Ocorre quando só uma parte da matriz toma contato com uma parte<br />

da superfície do suporte por vez.<br />

Sistemas de impressão<br />

Classificação quanto<br />

ao funcionamento da<br />

matriz<br />

Classificação quanto<br />

a interação da matriz<br />

com o suporte<br />

Classificação quanto<br />

ao tipo de pressão<br />

exercida pela matriz<br />

no suporte<br />

Tipografia Relevográfico Direto Plana ou Linear<br />

Flexografia Relevográfico Direto Plana ou Linear<br />

Offset Planográfico Indireto Linear<br />

Rotogravura Encavográfico Direto Linear<br />

Tampografia Encavográfico Indireto ----<br />

Serigrafia Permeográfico Direto Plana ou Linear<br />

Jato De Tinta Digital Indireto ----<br />

Laser Eletrográfico ou Digital ---- ----<br />

Tabela 1: Quadro-resumo de classificações existentes dos sistemas de impressão<br />

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Classificação e escolha de um sistema de impressão<br />

Sistemas de impressão Classificação Proposta<br />

Tipografia Relevográfico direto plano ou linear<br />

Flexografia Relevográfico direto plano ou linear<br />

Offset Planográfico indireto linear<br />

Rotogravura Encavográfico direto linear<br />

Tampografia Encavográfico indireto convexo<br />

Serigrafia Permeográfico direto plano ou linear<br />

Jato de Tinta Digital indireto sem pressão<br />

Laser Eletrográfico ou Digital direto sem pressão<br />

Aplicando a nova proposta<br />

Tabela 2: Proposta de classificação dos sistemas de impressão<br />

Inicialmente, apresenta-se um quadro-resumo das classificações discutidas no item<br />

anterior. Esta compilação abriga as classificações segundo Craig (1996), Collaro (2005), Rossi<br />

Filho (1999), Villas-Boas (2008), Baer (2005), Fernandes (2003) e Ribeiro (2003).<br />

A proposta aqui apresentada utiliza os dados acima de forma sistemática e acrescenta<br />

informações pertinentes a classificação quanto ao tipo de pressão exercida pela matriz no<br />

suporte a fim de tornar este critério mais claro para sistemas como tampografia, jato de tinta<br />

e laser.<br />

Escolha de um sistema de impressão<br />

A escolha do sistema de impressão não é um processo automático que tem como<br />

resposta o offset para toda e qualquer circunstância. Para definir o processo de reprodução,<br />

Villas-Boas (2008) considera parâmetros que envolvem não apenas a qualidade final do<br />

impresso requerida pela situação do projeto, mas também custos, prazos e operacionalidade<br />

da produção. Assim, o autor acredita que devem ser levados em conta os 07 (sete) seguintes<br />

aspectos:<br />

• Deficiências e vantagens apresentadas pelo processo. Neste sentido a capacidade de<br />

reproduzir determinados tipos de grafismos pesa na escolha do sistema de impressão;<br />

• Tiragem, a quantidade de impressos reproduzidos em uma encomenda (FERNANDES,<br />

2003). Alguns sistemas de impressão são viáveis apenas a partir de certas tiragens<br />

(pequenas ‘unidades a centenas de exemplares’, médias ‘milhares de exemplares’,<br />

altas ‘dezenas a centenas de milhares de exemplares’ e altíssimas ‘acima de centenas<br />

de milhares de exemplares’);<br />

• Custo. Determinados processos apresentam significativo custo fixo que só se justifica<br />

em médias ou altas tiragens;<br />

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Classificação e escolha de um sistema de impressão<br />

• Suporte. Nem todos os sistemas adéquam-se a qualquer tipo de suporte desejado. É<br />

preciso compreender as afinidades e indisposições de cada sistema;<br />

• Oferta e operacionalidade de fornecedores. A disponibilidade de tecnologia combinada<br />

a logística e ao preço praticado pelos mercados pode favorecer ou inviabilizar o uso de<br />

um dado sistema;<br />

• Conhecimento prévio do processo. A adequação prematura de um projeto, ainda<br />

em fase de criação, ao sistema de produção é determinante para um uso eficiente de<br />

recursos;<br />

• Usabilidade. É preciso levar em conta se o produto será adequado ao uso que se<br />

pretende dele. Cada sistema de impressão infere características próprias a seu resultado.<br />

Após uma breve análise é possível verificar com facilidade que esses aspectos levados<br />

em conta por Villas-Boas (2008) na escolha de um sistema de impressão não consideram<br />

dimensões sociais, nem tão pouco ambientais. Dimensões essas contempladas em qualquer<br />

perspectiva elementar de design contemporâneo. Assim, introduzir a sustentabilidade como<br />

um oitavo aspecto a ser contemplado é uma proposta a ser considerada.<br />

Determinados sistemas de impressão, suportes e acabamentos podem comprometer<br />

a capacidade das futuras gerações em satisfazer suas próprias necessidades. A manipulação<br />

de material com alto risco poluente, a geração de produtos de difícil reciclagem e/ou bio<br />

degradação e o abuso de matérias primas devem ser considerados na escolha de um sistema<br />

de impressão.<br />

Segundo Jedlicka (2009), as considerações acerca da sustentabilidade para impressos<br />

são as mesmas aplicadas a qualquer projeto de design. Inicialmente, deve-se definir o problema<br />

a ser resolvido para em seguida planejar o ciclo de vida do impresso. Um impresso de vida<br />

breve como um folheto de promoções do dia de um supermercado não deve mobilizar os<br />

mesmos recursos de um livro, um bem muito mais permanente. Recursos como a laminação<br />

e a reserva de verniz dificultam a reciclagem do suporte mais utilizado pela indústria gráfica,<br />

o papel. A etapa de concepção do projeto gráfico deve considerar a vida útil do produto final<br />

para a seleção do suporte e do sistema de impressão a ser adotado. A compreensão destes<br />

aspectos tem impacto direto na primeira etapa do ciclo de vida: a pré-produção, fase que<br />

se refere à aquisição de recursos, ao transporte dos mesmos até o local de produção e à<br />

transformação destes em materiais e energia (MANZINI; VEZZOLI, 2005).<br />

Cada projeto tem demandas específicas, mas, de modo geral, pode-se optar por<br />

matéria-prima reciclada ou reciclável, atentando-se para a real possibilidade de reciclagem<br />

na comunidade em que se está inserido e sua viabilidade. Cuidados como utilizar papel livre<br />

de cloro e usar tintas à base de óleo vegetal facilitam a reciclagem dos produtos finais do<br />

processo de impressão. Deve-se ainda evitar tintas que possuam metais pesados em sua<br />

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Classificação e escolha de um sistema de impressão<br />

composição, visto que estes elementos são tóxicos e podem causar sérios danos aos seres<br />

vivos (JEDLICKA, 2009).<br />

Durante a fase de produção, deve-se buscar empresas responsáveis socialmente,<br />

que utilizem tecnologias limpas e que estejam próximas ao consumidor final, minimizando<br />

o impacto ambiental gerado pelo transporte. No Brasil, apenas 7% das gráficas possuem<br />

certificação ISO 14000, que contempla os critérios de sustentabilidade. Este fato dificulta a<br />

opção por empresas certificadas, mas o SEBRAE e a ABIGRAF apontam que este número<br />

deve dobrar até 2014 (BRITO, 2009).<br />

Além disso, pode-se reduzir o impacto ambiental negativo da impressão offset através<br />

de processos como a dryography (que não utiliza água), computer-to-plate (CTP) e direct<br />

imaging (DI) (JEDLICKA, 2009). Os principais contaminantes gerados pelas empresas gráficas<br />

advêm dos banhos necessários em vários processos, que geram efluentes líquidos que podem<br />

conter metais pesados, óleos e graxas, solventes, soluções ácidas e alcalinas, reveladores e<br />

fixadores (FIRJAN, 2006).<br />

Fernandes, (2003: 128) acredita que a escolha do processo de impressão correto<br />

para cada situação é facilitada pela classificação dos sistemas de impressão. De fato, o<br />

estabelecimento de conexões entre os aspectos acima apresentados e as classificações<br />

anteriormente comentadas, sobretudo as que dizem respeito a forma das matrizes de<br />

impressão, auxilia na obtenção de respostas eficientes, tendo em vista as considerações<br />

provocadas pelo inevitável cruzamento de dados.<br />

Conclusão<br />

A impossibilidade de uma matriz que não tenha corpo físico exercer pressão sobre um<br />

suporte ou qualquer elemento intermediário e o crescente abandono de recursos puramente<br />

mecânicos na configuração dos sistemas são os principais fatores que contribuíram para<br />

a revisão do conceito de impressão feita no início deste artigo. Ao fazê-lo observou-se a<br />

necessidade revisão no modo de classificação das tecnologias de impressão mais utilizadas<br />

no cotidiano dos designers gráficos.<br />

A complementaridade das tipologias de classificação verificada na literatura disponível<br />

em língua portuguesa indicou a possibilidade de sua aglutinação em favor de um melhor<br />

entendimento das diferenças e semelhanças entre os sistemas.<br />

O estudo aqui apresentado promoveu os ajustes demandados pelo uso em paralelo das<br />

formas de agrupamento vigentes propondo classes complementares e adequando a definição<br />

de outras a nova realidade. Os critérios de seleção indicados por Villas-Boas (2008) também<br />

foram apreciados e sua ampliação recomendada.<br />

Essas propostas trazem um novo ânimo à produção gráfica, renovando a discussão<br />

a seu respeito – a qual comumente se dá no âmbito tecnológico. Ciência e humanidade são<br />

dimensões tocadas durante o debate sobre classificação e escolha dos sistemas de impressão<br />

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Classificação e escolha de um sistema de impressão<br />

promovidos ao longo deste trabalho.<br />

A introdução de um novo paradigma presente em muitas das recentes pesquisas<br />

desenvolvidas na área do design nos critérios de seleção adotados para decidir o uso de<br />

um sistema de impressão é uma significativa contribuição deste trabalho. A sustentabilidade<br />

é, atualmente, uma prerrogativa básica de qualquer projeto de design, dada a crescente<br />

preocupação das pessoas com as alterações no meio ambiente e suas conseqüências que<br />

apontam para um problema ainda maior: a insustentabilidade do estilo de vida do homem<br />

contemporâneo. O design sustentável se apresenta como um importante agente destas<br />

transformações, visto que a produção de artefatos pela indústria é norteada por seus princípios.<br />

Através do design sustentável pode-se propor uma série de medidas condizentes com esta<br />

nova demanda social e cultural.<br />

De modo geral, o estudo da produção gráfica não dispensa a constante observação<br />

conjunta da arte, tecnologia, humanidade e ciência. Refletir sobre esta perspectiva e praticála<br />

no dia-a-dia conduz ao desenvolvimento de projetos de design eficientes e adequados a<br />

realidade contemporânea. Saber, por exemplo, qual grafismo, papel e corte usar numa peça<br />

gráfica para obter determinada resposta de um público específico não é suficiente se o seu<br />

destino for desconhecido após o descarte. Esse impresso pode retornar em forma de problema<br />

ao seu contratante e projetista, como lixo responsável por impactos ambientais negativos<br />

e desperdício de matéria prima. Deve-se considerar, inclusive, a possibilidade de prejuízo<br />

financeiro para o contratante decorrente do desgaste de sua imagem, pois a sociedade está<br />

cada vez mais atenta a estas questões.<br />

Neste artigo, preconiza-se a análise de todas as etapas do ciclo de vida dos impressos<br />

como fator norteador nas tomadas de decisão de projeto, porém pesquisas mais aprofundadas<br />

acerca do impacto ambiental dos insumos, produtos finais e descarte dos sistemas de<br />

impressão abordados se fazem necessárias.<br />

Uma análise mais pragmática revela que a produção gráfica conjuga saberes de outras<br />

disciplinas do design para reunir diretrizes que servem ao cotidiano de quase todo profissional.<br />

Ela viabiliza, a priori, projetos editoriais, sistemas de identidade visual, sistemas de sinalização,<br />

embalagens e toda sorte de impressos de baixa complexidade revelando-se verdadeiramente<br />

indispensável na formação de um designer.<br />

Cotidianamente os designers, no exercício da produção gráfica, avaliam a pontualidade<br />

e os custos de fornecedores para contratar serviços e materiais necessários a produção de<br />

projetos de design. É praxe que se realize uma breve concorrência entre, pelo menos, três<br />

fornecedores compatíveis entre si para viabilizar a tiragem ao menor custo possível. Uma vez<br />

contratado o processo de produção é preciso acompanhar e revisar os trabalhos de préimpressão,<br />

impressão e pós-impressão.<br />

Muitas vezes os mesmos designers também criam e finalizam os arquivos das<br />

peças gráficas, o que gera um imenso comprometimento do profissional com o projeto a<br />

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Classificação e escolha de um sistema de impressão<br />

ser executado. Esse desempenho multitarefa acaba beneficiando os designers, do ponto de<br />

vista da produção gráfica, pois enquanto produtor é preciso que se conheça a natureza e<br />

a seqüência necessárias para transformar um projeto de design em impresso acabado. As<br />

atualizações propostas neste artigo contribuem para a agilidade e precisão deste processo.<br />

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2009.<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

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TRANSPARêNCIAS E FRAGRâNCIAS: MATERIALIDADES SIMBóLICAS<br />

NAS EMBALAGENS DE PERFuME<br />

Maureen Schaefer França; Mestranda em <strong>Tecnologia</strong> e Sociedade: UTFPR<br />

maureen.schaefer@gmail.com<br />

Marilda Lopes Pinheiro Queluz; Doutora em Comunicação e Semiótica: PUC-SP;<br />

PPGTE da UTFPR - pqueluz@gmail.com<br />

Resumo<br />

A proposta deste texto é analisar como os conceitos de estilos<br />

de vida e perfis, associados às fragrâncias, são traduzidos<br />

plasticamente para os frascos de perfume, refletindo e refratando<br />

elementos das relações sócio-culturais. Investiga como o design<br />

destas embalagens, em suas dimensões técnicas, estéticas<br />

e simbólicas, dá visibilidade aos valores culturais, reiterando<br />

significados capazes de marcar a posição social, o perfil, o estilo de<br />

vida e os processos tecnológicos de uma dada sociedade. O estudo<br />

foi feito a partir dos produtos citados pelos Guias de Perfumes de<br />

2009 e de 2010. Buscou-se, com isso, ampliar as possibilidades<br />

de leitura dos artefatos, considerando as sensações, sentimentos e<br />

usos sugeridos a partir das embalagens, ressaltando a construção<br />

social da cultura material. Os frascos de perfume comunicam a<br />

diversidade e complexidade dos conceitos que existem sobre o<br />

mundo, num determinado período e lugar.<br />

Palavras-Chave: frascos de perfume; cultura material;<br />

design de embalagem<br />

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Transparências e fragrâncias: materialidades simbólicas nas embalagens de perfume<br />

Os artefatos, além de suas funções previstas, carregam valores culturais, rearticulando<br />

significados capazes de marcar a posição social, o perfil, o estilo de vida e os processos<br />

tecnológicos de uma dada sociedade. Os frascos de perfume, assim como outros artefatos,<br />

possuem biografias econômicas, técnicas, sociais e físicas. As mutações de cor, forma,<br />

textura, material e elementos decorativos, ao longo da história dos destinatários dos fragrantes,<br />

indicam os processos tecnológicos e os recursos disponíveis de uma época e de um lugar,<br />

delineando: o estado físico do conteúdo – líquido, pastoso ou sólido; a maneira de utilizar e<br />

servir o produto; os sonhos e desejos de consumo de uma sociedade.<br />

Até o final do século XIX, os perfumes eram vendidos pelos fabricantes (perfumeurs)<br />

de forma bastante personalizada: o cliente poderia escolher tanto a fragrância quanto a<br />

embalagem. Mas, a partir do século XX, a garrafa anônima se tornou insuficiente e desenhistas<br />

como René Lalique, pintores como Salvador Dalí e costureiros como Paul Poiret começaram<br />

a engendrar invólucros ostentatórios que, para além da estética, traduzissem os aromas para<br />

a linguagem tátil e visual. O frasco passou a dar vida ao perfume, exteriorizando a expressão<br />

e os significados da sua composição olfativa através do empréstimo de suas cores, formas,<br />

texturas e materiais. Ao mesmo tempo assumiu as conotações de um estilo de vida, de um<br />

grupo social. Assim, os atributos sintáticos e semânticos passam a convidar e seduzir o<br />

consumidor, antecipando, reinventando o efeito do perfume.<br />

O objetivo deste texto é discutir as relações entre design e cultura materializadas<br />

nas embalagens de perfume, especialmente a partir dos produtos citados pelos Guias de<br />

Perfumes de 2009 e de 2010 – referentes à segunda e à terceira edição da revista - que<br />

servem de referência para perfumistas, designers, lojistas, consumidores e etc. Os Guias<br />

abrangem perfumes que vão do início do século XX ao final do ano de 2009 e que se destacam<br />

comercialmente no cenário nacional e internacional. Essas reflexões implicam um breve olhar<br />

sobre o conceito de cultura material, identidade e consumo.<br />

Os significados sociais dos bens e o uso das coisas mapeiam, representam, reproduzem<br />

e ajudam a constituir as complexas redes das relações sociais. O consumo de artigos funciona<br />

como um meio de classificação social, sendo capaz de tornar divisões e categorias culturais<br />

visíveis. O estudo das embalagens pode contribuir para a compreensão das diversas instâncias<br />

da cultura material, no sentido proposto por Rede:<br />

Não se poderia falar dos aspectos materiais da cultura (ou da cultura material)<br />

sem falar simultaneamente da imaterialidade que lhes confere existência<br />

(sistemas classificatórios; organização simbólica; relações sociais; conflitos de<br />

interesse, etc.). (...) Prática e representação são tomadas como dimensões<br />

inextricáveis da vida cultural, alimentando-se mutuamente, sem que as seja<br />

possível compartimentar. (REDE, 1996, p. 273).<br />

O universo dos objetos não se situa fora do fenômeno social, mas, o compõe, como<br />

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Transparências e fragrâncias: materialidades simbólicas nas embalagens de perfume<br />

uma de suas dimensões de expressão:<br />

O mundo das coisas é realmente a cultura em sua forma objetiva, é a forma<br />

que os seres humanos deram ao mundo através de suas práticas mentais e<br />

materiais; ao mesmo tempo, as próprias necessidades humanas evoluem e<br />

tomam forma através dos tipos de coisas de que dispõem (SLATER, 2002,<br />

p.104)<br />

Para Rede (1996), não existem significados culturais internalizados na consciência<br />

do indivíduo ou da coletividade que sejam produzidos em uma matriz que dispense a<br />

materialidade. A cultura material funciona, por excelência, como um local que medeia relações<br />

humanas, sendo capaz também de proporcionar uma herança cultural palpável às sociedades,<br />

contextualizada em determinado período e lugar.<br />

Segundo Slater (2002), o consumo é uma questão de como os sujeitos sociais se<br />

relacionam com as coisas do mundo (bens, serviços, experiências materiais e simbólicas)<br />

que buscam satisfazer suas necessidades. Portanto, o consumo é uma prática cotidiana que<br />

vai muito além do ato da compra, abrangendo não somente os usos dos artefatos no dia-adia,<br />

mas também suas reinterpretações, modificações e transgressões, utilizadas de modo a<br />

questionar ou reproduzir as ordens sociais.<br />

A indústria da perfumaria tem investido cada vez mais na ideia de que os fragrantes<br />

funcionam como um prolongamento da pele ou como uma roupa que a reveste, refletindo a<br />

personalidade e o estilo de vida do usuário. Os frascos de perfume criam efeitos de sentido<br />

simulando as experiências que o perfume pode provocar no usuário. Procuram causar<br />

sensações, suscitar desejos e fantasias, estimular atitudes, alterar o estado de humor.<br />

Constrói-se um “usuário imaginado”, um consumidor potencial que supostamente usa<br />

determinado produto. Utilizam-se marcadores identitários que funcionam como um discurso<br />

para persuadir os consumidores de que eles se assemelham ou tem algo em comum com os<br />

usuários imaginados dos perfumes.<br />

A estratégia de identificação entre o consumidor e o usuário potencial, geralmente,<br />

apoia-se em perfis pré-estabelecidos, atravessados por valores culturais, sugerindo padrões<br />

de comportamento, ideologias de gênero, cortes geracionais, modos de estilos de vida, por<br />

exemplo. As próprias fragrâncias tornam-se representações dos discursos culturais, sendo<br />

passíveis, portanto, de identificação. A representação de tais marcadores nos fragrantes e<br />

frascos de perfume costuma estar em consonância com os conceitos que a grife divulga ou<br />

deseja explorar.<br />

As identidades e as representações são práticas sociais, pois se constroem e se<br />

reconstroem constantemente no interior das relações individuais e coletivas; as posições de<br />

sujeito acabam por se tornar pontos de apego temporário (HALL, 2007).<br />

As identidades e diferenças adquirem sentido então por meio da linguagem - ela<br />

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Transparências e fragrâncias: materialidades simbólicas nas embalagens de perfume<br />

própria um sistema de diferença (SCOTT, 1991) - e dos sistemas simbólicos pelos quais são<br />

representadas. Ou seja, através de textos literários, telenovelas, publicidade, moda, design<br />

entre outras entidades que “delimitam espaços, estabelecem fronteiras por meio das quais<br />

são marcadas as diferenças em relação a outras possibilidades de identificação” (SANTOS,<br />

2008, p. 40).<br />

Nesta direção, segundo Medeiros e Queluz (2008), todo e qualquer artefato produz e<br />

está associado a uma identidade, tanto tecnicamente quanto culturalmente, para atingir os<br />

consumidores que irão comprar e usar este produto, que supostamente o identificará para<br />

sociedade. O sujeito constrói suas identidades e subjetividades através, mas não somente, de<br />

produtos de design, ancorando-se nas imagens e nos significados simbólicos que os objetos<br />

projetam; o consumo torna-se uma forma de comunicação.<br />

A “discussão sobre ‘estilos de vida’ (‘lifestyle’) passou a ser um condutor principal do<br />

design nos anos 90, não só na teoria como na prática” (BÜRDEK, 2006, p. 329). Entende-se<br />

que o estilo de vida é projetado a partir de um conjunto de produtos, roupas, cortes de cabelo,<br />

posturas corporais, experiências e etc. escolhidas e adequadas para externar a individualidade<br />

de uma pessoa, aproximando ou diferenciando-o de sujeitos e grupos sociais.<br />

O estilo de vida pode ser compreendido como “um conjunto mais ou menos integrado<br />

de práticas que um indivíduo abraça, não só porque essas práticas preenchem necessidades<br />

utilitárias, mas porque dão forma material a uma narrativa particular da auto-identidade”<br />

(GIDDENS, 2002, p. 79).<br />

Paul Poiret inaugurou o conceito de fragrância de estilista no início do século 20,<br />

conectando o perfume à moda, uma ligação que desde então jamais foi desfeita. O perfume,<br />

assim como a roupa, tornou-se parte integrante da personalidade do indivíduo, envolvendo<br />

diversos discursos tais como o estilo de vida.<br />

As propagandas sobre perfumes costumam explorar signos de estilo de vida, que<br />

acabam por contaminar os modos de percepção dos frascos de perfume, pois estes não<br />

existem por si só, fazendo parte de um entorno composto por mídias e mediações, que<br />

influenciam a imaginação dos consumidores.<br />

Em consonância com as propagandas, os frascos de perfumes são como mídias de<br />

estilo que, de acordo com Santos (2010), favorecem a circulação de valores que afetam a<br />

constituição, reformulação ou rompimento das identificações individuais e coletivas no interior<br />

da cultura de consumo.<br />

As funções dos frascos de perfume nas construções de identidade<br />

A embalagem é um instrumento comunicativo, composta por signos que transmitem<br />

mensagens quanto ao uso, à identificação, ao significado e ao valor do produto para o<br />

consumidor. Para Löbach (2001), os objetos têm três funções - prática, estética e simbólica –<br />

que possibilitam a satisfação, embora não permanente, de certas necessidades.<br />

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Transparências e fragrâncias: materialidades simbólicas nas embalagens de perfume<br />

Para Negrão e Camargo (2008), a dimensão prática das embalagens caracterizase<br />

pela objetividade, englobando funções como acondicionar, proteger, conferir conforto e<br />

facilitar o uso do produto e etc. A função estética relaciona-se à aparência e à configuração<br />

dos elementos da linguagem tátil e visual como cor, forma, textura entre outros componentes,<br />

possibilitando a identificação do usuário com o ambiente artificial. A função simbólica refere-se<br />

à ideia de humanizar as coisas, atribuindo culturalmente significados de caráter intangível aos<br />

artefatos. Estes sentidos são estimulados pela percepção do objeto, ao estabelecer ligações<br />

com os pensamentos e experiências culturais do indivíduo. As funções estéticas e simbólicas<br />

são interdependentes entre si, como afirma Löbach (2001). Todas estas funções interagem<br />

com as construções culturais de identidade.<br />

Um bom exemplo é o fragrante Burberry Brit, de 2004, da Burberry, destinado ao<br />

homem “Brit” (britânico), definido como um homem moderno, cool, urbano e dono de elegância<br />

extrema (GUIA DE PERFUMES, 2010). O estilo brit beira a algo próximo do modo de viver<br />

“elegantemente descolado”. O marcador é reforçado pela propaganda do fragrante (fig. 1) na<br />

qual um jovem usando terno senta-se de modo despojado sobre um chão de pedras. Na sua<br />

frente há uma tampa de bueiro e atrás, um Mini Cooper – ícone do design britânico. O plano<br />

de fundo da imagem coloca edifícios baixos em perspectiva, dando maior destaque à ação<br />

humana.<br />

Fig. 1: Propaganda do perfume Burberry Brit, de 2004, da Burberry.. Disponível em: < http://www.okibox.com/<br />

upload/useruploads/images/burberry_brit_for_men_2.jpg>. Acesso em: 03/05/2010.<br />

O uso do terno e da gravata skinny parece fazer referência à cultura mod (modernist),<br />

surgida em Londres no início da década de 1960, em oposição aos Teddy Boys. Os mods,<br />

jovens ingleses da classe média, adotaram uma maneira clássica e comportada de se vestir,<br />

diferentemente do estilo rebelde e roqueiro dos Teddy (VINIL, 2008). Eles costumavam vestir<br />

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Transparências e fragrâncias: materialidades simbólicas nas embalagens de perfume<br />

ternos italianos bem ajustados para parecerem sofisticados, desfilar em suas lambretas<br />

conhecidas como “vespas” e beber na fonte da música afroamericana como o R&B, jazz e<br />

soul (INDIE BLOG, 2010).<br />

O homem brit do anúncio parece ser uma releitura cool do jovem mod. Apesar de<br />

ser elegante, ele é mais irreverente, tanto no cabelo como na postura corporal. A vespa é<br />

substituída pelo famoso Mini Cooper, produzido na década de 50 e que ainda mantém suas<br />

características conceituais, evocando noções de independência e liberdade assim como a<br />

preferência por produtos da moda com apelo vintage.<br />

O conceito do fragrante Burberry Brit, mediado pela propaganda, manifesta o estilo de<br />

vida do homem brit: sua maneira de viver mais urbana e cosmopolita, suas preferências pela<br />

música, arte e produtos da moda. O frasco de linhas retas do Burberry Brit (fig. 2) estampa<br />

o famoso xadrez da grife - símbolo de elegância na Inglaterra – em tons acinzentados. A<br />

distância entre as linhas torna o conjunto pouco discreto, conferindo certa casualidade a ele.<br />

Reforça a um só tempo, através de suas características plásticas, as ideias de tradição e de<br />

modernidade. A escolha da embalagem revela a preferência por artigos da moda e um modo<br />

brit de levar a vida.<br />

Figura 2: Burberry Brit, de 2004, da Burberry. Fonte: Guia de Perfumes, 2010.<br />

Outra forma de construção de identidade é evocar algumas situações de uso. Do<br />

mesmo modo como acontece com o vestuário, investe-se na proposição de que para<br />

cada conjuntura de tempo, lugar e atividade há uma fragrância adequada, trabalhando-se a<br />

noção de combinar os perfumes com os compromissos do dia-a-dia. Há fragrantes que são<br />

lançados para serem usados de dia, à noite, no verão, na praia, no trabalho, na balada e etc.<br />

Tal construção cultural parece estar atrelada aos efeitos sensoriais que o perfume provoca no<br />

corpo, se ele é refrescante, quente, leve ou intenso, por exemplo.<br />

O fragrante feminino DKNY Delicious Night (2008) da DKNY é “marcante e sensual,<br />

(...) perfeito para a noite” (BUNY, 2009) e para “cair na balada” (BELLINO, 2003). O comercial<br />

televisivoi explora o cenário frenético e iluminado de Nova Iorque, onde uma moça jovem e<br />

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Transparências e fragrâncias: materialidades simbólicas nas embalagens de perfume<br />

sensual seduz todos aqueles que a observam. As cores, púrpura e preta, do frasco (fig. 3)<br />

fazem alusão à noite, quando desejos e emoções parecem libertar-se das algemas da razão.<br />

Figura 3: DKNY Delicious Night (2008) da DKNY. Disponível em: . Acesso em: 26/06/2010.<br />

Bellino (2003), baseada nas opiniões de leitoras, da editora e de especialistas em<br />

fragrâncias, sugere ainda perfumes frescos e leves para: relaxar em casa, parecer que saiu do<br />

banho, viajar para a praia ou para malhar. As sugestões parecem orientar o modo pelo qual<br />

se deve usar o perfume, indicando como consumi-lo. Classificam-se os aromas que evocam<br />

a sensação de conforto, bem-estar, frescor e corpo asseado, quase sempre associados a<br />

representações de gênero. A tabela 01 traz algumas das embalagens de perfumes femininos<br />

escolhidos para essas ocasiões:<br />

usar na academia Viajar para a praia Relaxar em casa Parecer que saiu do<br />

banho<br />

I’m going: Puma (2007) My Voyage: Nautica<br />

(2007)<br />

Acqua di Colonia Floral:<br />

O Boticário (2008)<br />

Tuscan Soul: Salvatore<br />

Ferragamo (2008)<br />

Tab. 01: Perfumes para usar na academia, na praia e em casa. Fonte: Bellino (2003).<br />

A indústria da perfumaria aproveita-se também das estações do ano para lançar<br />

fragrantes sazonais. Os frascos das fragrâncias G, Love, Lil’Angel, Music e Baby da linha<br />

standard da grife Harajuku Lovers, da cantora pop Gwen Stefani, variam de acordo com a<br />

estação do ano (EMBALAGEM MARCA, 2010).<br />

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Transparências e fragrâncias: materialidades simbólicas nas embalagens de perfume<br />

Inspirados na cantora e nas suas dançarinas nipônicas, os “frascos-bonequinha”<br />

ganharam uma nova coleção de roupas (fig. 4): para o verão, biquínis e óculos de sol; e para o<br />

inverno, botas, cachecóis, casacos e luvas. Para Gwen Stefani “assim como as garotas fashion<br />

renovam seu guarda-roupa, as bonecas também estão sempre atualizadas” (EMBALAGEM<br />

MARCA, 2010).<br />

Figura 4: Linha Verão da grife Harajuku Lovers. Da esquerda para direita: Love, Lil’Angel, G, Music, Baby.<br />

Disponível em: . Acesso em:<br />

22/02/2010. & Linha Inverno da grife Harajuku Lovers. Da esquerda para direita: Love, Lil’Angel, G, Music,<br />

Baby. Disponível em: . Acesso em:<br />

22/02/2010.<br />

Os fragrantes e seus envoltórios costumam ser desenvolvidos em torno de universos<br />

temáticos que podem estar impressos no próprio nome do perfume como no exemplo de<br />

Coffee Man (2009) de O Boticário, que é obtido segundo o processo de infusão de grãos de<br />

café (Guia de Perfumes, 2010). As linhas temáticas encontram-se também materializadas nos<br />

frascos de perfume, através de suas formas, cores e texturas.<br />

Algumas vezes, a configuração do frasco de perfume constrói-se de modo mais abstrato<br />

e subjetivo. O perfume feminino Calandre de Paco Rabanne, lançado em 1969, mas ainda<br />

hoje no mercado, por exemplo, foi engarrafado em um frasco prismático e de linhas retas com<br />

autoria de Pierre Dinand. O envoltório representa a grade frontal de um Rolls-Royce (DINAND,<br />

2010), mostrando que mesmo as formas abstratas estão ligadas ao mundo concreto.<br />

Observando-se os guias de perfume, é possível perceber que os temas que costumam<br />

inspirar a criação de frascos de perfume referem-se à natureza; ao corpo humano; aos artefatos<br />

e sistemas do cotidiano; às produções culturais; aos elementos místicos e abstratos.<br />

A natureza em frascos<br />

O processo de definição de estilos de vida incorpora, frequentemente, elementos<br />

centrais da visão hegemônica do sociedade capitalista-liberal. Neste sentido, em uma<br />

sociedade globalizada que apresenta fortes processos de padronização e instrumentalização<br />

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Transparências e fragrâncias: materialidades simbólicas nas embalagens de perfume<br />

de comportamentos e pensamentos e que tende a dissolver espaços locais em um distópico<br />

lugar-mundo, a valorização de elementos do ideário liberal como a liberdade de ação e o<br />

nostálgico apelo à organicidade, cada vez mais distante, com a natureza, torna-se fundamental.<br />

A construção da sensação de liberdade, portanto, alia-se às tentativas de retorno<br />

à natureza ou de embalar os fenômenos e as forças naturais, trazendo-os para perto da<br />

intimidade do corpo. Cria-se um efeito de sentido de domínio e troca com elementos como<br />

a fauna, a flora, os minerais, os quatro elementos, os mares, os astros (lua, estrelas, sol) e<br />

etc. Os frascos procuram transmitir ideias de pureza, essência, força, dinamismo, equilíbrio,<br />

valorização da natureza, sustentabilidade e de um estilo de vida simples e aventureiro, entre<br />

outras.<br />

A embalagem esverdeada do perfume feminino Arbo (2004) de O Boticário (fig. 5), por<br />

exemplo, ganha os contornos de uma folha, simbolizando o contato com a natureza e com<br />

tudo aquilo que é essencial. Já o frasco do fragrante masculino Uzon (2008) da Jequiti (fig. 5)<br />

representa o contraste entre o quente e o frio, fazendo menção à caldeira vulcânica Uzon da<br />

península Kamtchaka na Sibéria, região russa de baixas temperaturas (GUIA DE PERFUMES,<br />

2010).<br />

Figura 5: Da esquerda para direita: Arbo (2004) de O Boticário e Uzon (2008) da Jequiti. Fonte: Guia de<br />

Perfumes (2010).<br />

O frasco do fragrante feminino Fleur Du Corail (2008) da Lolita Lempicka (fig. 6)<br />

homenageia o mundo marinho, traduzindo-o através do acabamento fosco do vidro, da sua<br />

cor azulada e dos pingentes em forma de estrela e coral presos ao pescoço da embalagem. A<br />

embalagem do perfume masculino KenzoAir (2003) da Kenzo lembra um bloco de vidro que<br />

contém uma porção de ar. Em sintonia com a natureza, o envoltório é apresentado como um<br />

hino ao vento e à liberdade (Guia de Perfumes, 2010).<br />

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Transparências e fragrâncias: materialidades simbólicas nas embalagens de perfume<br />

Figura 6: Da esquerda para direita: Fleur Du Corail (2008) da Lolita Lempicka e KenzoAir (2003) da Kenzo.<br />

Fonte: Guia de Perfumes (2010).<br />

O envoltório do perfume feminino Amethyste (2007) da Lalique (fig. 7) faz referência à<br />

pedra ametista, frequentemente usada por Rene Lalique em suas criações. Traz a conotação<br />

de preciosidade, riqueza e luxo, associando a embalagem a uma jóia da natureza. Em muitos<br />

casos, os temas da natureza são usados como assinatura e identificação de uma grife ou de<br />

seu criador. Os frascos dos fragrantes Serpentine (2006) de Roberto Cavalli e Ice Men (2007)<br />

de Thierry Mugler (fig. 7), refletem a fascinação dos estilistas, respectivamente, por serpentes<br />

e estrelas.<br />

Figura 7: Da esquerda para direita: Amethyste (2007) da Lalique, Serpentine (2006) de Roberto Cavalli e Ice<br />

Men (2007) de Thierry Mugler. Fonte: Guia de Perfumes (2010).<br />

A estrela na lateral da embalagem de Ice Men também conecta-se à ideia de rompimento<br />

de uma superfície congelada. Segundo o Guia de Perfumes (2010), o fragrante é composto<br />

por acordes de energia polar revigorante como coquetel cítrico, gim, vodca e zimbro .<br />

A sedução dos corpos<br />

No início do século XX, a preocupação com a racionalização do cotidiano, tem uma<br />

das suas expressões, no desenvolvimento e disseminação das técnicas de higiene. O cinema,<br />

amparado pela moda, divulgava técnicas dos cuidados do corpo, mostrando à sua audiência<br />

maneiras de se perfumar. Estas se referiam às partes do corpo que deveriam ser perfumadas<br />

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Transparências e fragrâncias: materialidades simbólicas nas embalagens de perfume<br />

(pulsos, nuca, colo e etc.), à postura corporal, ao modo de segurar o frasco de perfume e<br />

de borrifar o seu conteúdo. No cinema, estas técnicas aliaram-se à roupa (vestido, robe,<br />

lingerie), ao cenário (quartos, suítes, banheiros) e ao mobiliário, especialmente às charmosas<br />

penteadeiras, manifestando ideias de luxo, elegância e sensualidade.<br />

Este aparato – roupa, mobiliário, cenário - acabou por ampliar as técnicas de perfumar<br />

o corpo, suscitando modos de se portar, de se sentar, de se olhar no espelho, resultando em<br />

um rico sistema de servir o corpo. Este conjunto de técnicas parecia fazer parte de um ritual<br />

mágico de conquista e sedução do ser amado.<br />

O uso do corpo humano ou de partes dele é bastante recorrente no design de frascos de<br />

perfume. Geralmente, o uso de tal referência visa manifestar efeitos de sedução, sensualidade,<br />

sexualidade, beleza, juventude, virilidade e etc. O frasco Shocking (fig. 8), de 1936, de Elza<br />

Schiaparelli, foi o primeiro dos chamados perfumes comerciais (fragrantes de marca) a moldar<br />

o formato a partir de um corpo de mulher, refletindo o estilo moderno e excêntrico da estilista:<br />

O shocking pink tornou-se famoso, o rosa brilhante que utilizava para<br />

embrulhos, para bâtons e até para capas ricamente bordadas. Ela queria<br />

chocar a qualquer preço e, assim, a sua última coleção chamava-se Shocking<br />

Elegance e a sua biografia de 1945 Shocking Life (SEELING, 2000, p. 154).<br />

Figura 8: À esquerda, frasco do perfume Shocking de 1936, de Schiaparelli. À direira, edição posterior com<br />

embalagem de papel em rosa shocking. Disponível em: <br />

e .<br />

Acesso em: 22/03/2010.<br />

O frasco do fragrante Le Classique Jean Paul Gaultier – ícone da perfumaria desde<br />

1993 – representa uma mulher muito sexy. Criada por Jacques Cavallier, a embalagem é<br />

inspirada no busto da cantora Madonna e no envoltório Shocking, de Schiaparelli. O torso<br />

feminino, que dá forma à embalagem (fig. 9), é revestido por um espartilho, uma peça de<br />

roupa com forte conotação sexual. O espartilho faz lembrar o figurino criado pelo estilista,<br />

na década de 1990, para a Blond Ambition Tour da cantora Madonna. Le Classique não<br />

apresenta os famosos cones, embora mantenha a cor rosada da peça original. Entretanto, é<br />

possível encontrar exemplares de frascos de perfume que exibam o famoso sutiã (TOUTEN<br />

PARFUM, 2010).<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

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Transparências e fragrâncias: materialidades simbólicas nas embalagens de perfume<br />

Figura 9: Da esquerda para direita: Frasco de Le Classique Jean Paul Gautier (1993), edição limitada (sem data)<br />

e figurino de Madonna criado por Gaultier. Disponível em: , e . Acesso em: 27/06/2010.<br />

Há situações em que as representações do corpo humano materializam-se de modo<br />

mais estilizado como nas embalagens da figura 10.<br />

Figura 10: Da esquerda para direita: Glow After Dark (Jennifer Lopez, 2007) Bond Girl (Avon, 2008).<br />

Fonte: Guia de Perfumes Officiel (2009).<br />

O envoltório do perfume Bond Girl (2008) da Avon evoca a silhueta curvilínea das bond<br />

girls, em homenagem aos filmes de ação e aventura de James Bond. A tampa da embalagem<br />

faz menção ao pino de uma granada, suscitando ideias de perigo e aventura.<br />

Em outros casos, o frasco, que à primeira vista parece lembrar simples formas<br />

geométricas, ganha fortes conotações sexuais ao ser apresentado pela mídia impressa e/ou<br />

televisiva. A publicidade do fragrante Tom Ford for men (2007), do estilista de mesmo nome,<br />

tem um apelo sexual muito explícito. A localização do frasco de perfume no corpo da mulher,<br />

aliada ao formato cilíndrico da tampa da embalagem, acaba por provocar a associação entre<br />

as formas do envoltório e o órgão sexual masculino, com o intuito de suscitar o desejo sexual<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 160


Transparências e fragrâncias: materialidades simbólicas nas embalagens de perfume<br />

nos transeuntes. A analogia é tão pregnante que contamina a embalagem (fig. 11).<br />

Figura 11: Frasco e anúncio do perfume Tom Ford for men (2007). Disponível em: e . Acesso em:<br />

22/06/2010.<br />

Nestes exemplos encontram-se presentes as questões de gênero, as noções<br />

construídas do que é feminino e masculino, as situações, papéis e performances esperados de<br />

homens e mulheres. Na configuração dos jogos de sedução, o corpo da mulher é evidenciado,<br />

associado diretamente ao objeto de consumo e de fetiche.<br />

<strong>Arte</strong>fatos e objetos do cotidiano<br />

Algumas embalagens são inspiradas em artefatos que medeiam as relações das<br />

pessoas com o mundo, as formas de apropriação e ressemantização do cotidiano. Considerase<br />

que os artefatos aludem aos objetos produzidos pela atividade humana, em contraposição<br />

aos fenômenos naturais concretos (MILLER, 1998). Esses frascos revelam a importância das<br />

coisas nas experiências vividas individual e coletivamente.<br />

A embalagem do fragrante masculino Paul Smith Story (fig. 12), de 2006, inspira-se na<br />

paixão do estilista britânico pelos livros. As formas geométricas e as ranhuras na lateral direita<br />

do frasco simulam as páginas de um livro. Já o frasco do perfume masculino Play, de 2008, da<br />

Givenchy, inspira-se no mp3 player (GUIA DE PERFUMES, 2010), evocando ideias de diversão,<br />

modernidade e avanço tecnológico. A configuração do seu envoltório (fig. 12) baseia-se nos<br />

traços retilíneos e nos cantos arredondados de um mp3. Simula ainda os comandos play,<br />

forward e reward do artefato eletrônico.<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

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Transparências e fragrâncias: materialidades simbólicas nas embalagens de perfume<br />

Figura 12: Paul Smith Story, de 2006, de Paul Smith; Play EDT, de 2008, da Givenchy.<br />

Fonte: Guia de Perfumes, 2010.<br />

A embalagem do perfume F by Ferragamo evoca o universo feminino, ao estilizar a<br />

imagem de um sapato feminino. A base do frasco (fig. 13) faz lembrar a curva de um sapato<br />

com salto enquanto a tampa alude à alça do calçado que se prende ao corpo da mulher. As<br />

formas do envoltório (fig. 13) I loewe tonight (2009) da Loewe referem-se às bolas de espelho<br />

usadas nas danceterias e casas noturnas para refletir as luzes frenéticas e coloridas (GUIA DE<br />

PERFUMES, 2010). Simboliza a música, a noite e a diversão, indicando por sinal, a ocasião de<br />

uso do perfume.<br />

Figura 13: Embalagem do perfume F by Ferragamo, de 2007, da Ferragamo e de I Loewe tonight, de 2009, da<br />

Loewe. Fonte: Guia de Perfumes, 2010.<br />

A embalagem de A Mi Aire, de 2005, da Loewe alude a uma janela arredondada, um<br />

artefato que compõe um sistema mais complexo, o avião. Evoca a sensação de liberdade<br />

e de bem-estar (Guia de Perfumes, 2010). Já a embalagem do fragrante Echo, de 2003, da<br />

Davidoff, refere-se aos sistemas do cotidiano. Inspira-se na atmosfera das grandes metrópoles<br />

(Guia de Perfumes, 2010), utilizando o aço e o vidro - materiais amplamente empregados nas<br />

construções dos grandes edifícios - como referências na sua configuração formal.<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

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Transparências e fragrâncias: materialidades simbólicas nas embalagens de perfume<br />

A arte ao alcance da pele<br />

Alguns frascos são inspirados em: arte, artesanato, música, literatura, cinema, desenho<br />

animado, história em quadrinhos, grafitti. O design deste tipo de embalagem de perfume acaba<br />

por apropriar-se da notoriedade que tais referências desfrutam na mídia.<br />

Neste sentido, as embalagens parecem assemelhar-se aos souvenires e objetos<br />

colecionáveis, portando fortes relações de afeto com os consumidores. Constroem o efeito de<br />

proximidade da arte, colocando réplicas dos objetos de admiração ao alcance do indivíduo,<br />

disponível nas vitrines e nas casas comerciais. Em alguns casos, as formas figurativas da<br />

embalagem acabam por dificultar seu manuseio.<br />

O Boticário costuma buscar inspiração em obras artísticas nacionais como uma forma<br />

de associar a marca à valorização da cultura do Brasil (COSMETIC NOW, 2010). O frasco do<br />

perfume feminino Tarsila (fig. 14), de 2002, por exemplo, homenageia a obra “Manacá” da<br />

artista Tarsila do Amaral, um dos ícones do movimento modernista.<br />

O frasco serve como um suporte para onde a obra é transportada. A transposição<br />

inicia-se na parte inferior do frasco, através da estampa das folhas e do caule crescendo em<br />

direção à tampa. Por sua vez, a tampa ganha os contornos e os volumes das flores da árvore<br />

manacá, representada pela artista em sua obra.<br />

Figura 14: Frasco do perfume Tarsila, de 2002, de O Boticário; e obra Manacá de Tarsila do Amaral (1927).<br />

Disponível em: e . Acesso: 05/05/2010.<br />

O fragrante feminino “Quizás, quizás, quizás” (2007) da marca espanhola Loewe faz<br />

menção à canção de mesmo nome, de autoria de Oswaldo Farrés (Cuba, 1947). O frasco<br />

(fig. 15), de traços abstratos, foi desenhado por Pablo Reinoso e se baseia na tira criada pelo<br />

matemático alemão August Moebius, em 1858 (OLIVEIRA, 2010).<br />

Esta consiste em uma superfície de duas dimensões com um lado só; um espaço<br />

obtido pela colagem das duas extremidades de uma fita, após efetuar meia volta em uma<br />

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Transparências e fragrâncias: materialidades simbólicas nas embalagens de perfume<br />

delas (PERSISTÊNCIA DA MEMÓRIA, 2010). Assim como a fita de Moebius, o entrelaçamento<br />

das fitas de vidro ao redor do frasco tem a intenção de suscitar dúvidas e confusões no leitor<br />

realçando o teor da palavra quizás, “talvez” em espanhol.<br />

Figura 15: Frasco do perfume Quizás, quizás, quizás, de 2007, da Loewe; e obra Moebius Strip II, de Escher<br />

(1963). Disponível em: e . Acesso: 05/05/2010.<br />

O estilista italiano Franco Moschino (1950-1994) era tão apaixonado pela figura<br />

engraçada e esquálida de Olivia Palito, que resolveu inspirar-se na personagem para criar as<br />

embalagens para suas fragrâncias. Moschino pretendia mostrar o seu lado bem humorado a<br />

partir das formas estilizadas e bem coloridas dos seus frascos de perfume.<br />

Em 1996, surgia então a primeira embalagem - o frasco de Cheap and Chic (fig. 16) –<br />

em formas curvas e orgânicas e nas cores preto, vermelho e branco - as cores do cabelo e da<br />

roupa da personagem. A inspiração tem sido revisitada ao longo dos últimos anos, variando<br />

em cores e texturas como no envoltório de Hippy Fizz (fig. 16), de 2008 (MAISQUEPERFUME,<br />

2010).<br />

Figura 16: Frasco do perfume Cheap and Chic (1996) e Hippy Fizz (2008) da Moschino.<br />

Disponível em: . Acesso em: 05/05/2010.<br />

A Diesel, grife do estilista italiano Renzo Rosso (1955-), aproveitou o lançamento do<br />

filme “Homem de Ferro 2” para uma edição limitada do perfume Only the Brave (fig. 17).<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

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Transparências e fragrâncias: materialidades simbólicas nas embalagens de perfume<br />

O frasco de vidro incolor de Only the Brave Iron Man (fig. 17) ganha as cores vermelha e<br />

dourada da armadura do herói Tony Stark. A embalagem de papel cartão é impressa com os<br />

quadrinhos do personagem.<br />

Figura 17: Frascos Only the Brave e Only the Brave Iron Man da Diesel. Disponível em: e . Acesso em: 05/05/2010.<br />

Já Isabela Capeto (1975-), estilista brasileira, inspirou-se na toy art para criar o frasco<br />

(fig. 18) de seu primeiro fragrante lançado pela Perfumaria Phebo, em 2007. A embalagem,<br />

configurada segundo as formas do ícone da grife, pode ser customizada com canetas hidrocor,<br />

propondo a interação como modo de criar um objeto único.<br />

Figura 18: Frasco do fragrante Isabela Capeto II (2008) da Phebo. Disponível em: .<br />

Acesso em: 27/06/2010.<br />

A literatura também atravessa a construção de frascos de perfume. O frasco do<br />

fragrante Féerie (2008) da Van Cleef & Arpels inspira-se no conto de Shakespeare, “Sonhos de<br />

uma Noite de Verão”, que aborda a relação entre o mundo real e o mundo imaginário. O frasco<br />

de vidro azulado (fig. 19) é todo lapidado fazendo lembrar uma pedra preciosa. Sua tampa,<br />

que mais lembra uma escultura, representa uma fada sentada sobre um galho em referência<br />

aos personagens do conto.<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

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Transparências e fragrâncias: materialidades simbólicas nas embalagens de perfume<br />

Figura 19: Frasco do perfume Féerie, de 2008, da Van Cleef & Arpels.<br />

Fonte: Guia de Perfumes, 2010.<br />

De acordo com Balro (2007), evocar o imaginário é uma tendência da perfumaria.<br />

Grandes marcas buscam inspiração em fábulas e contos. Usar o perfume, possuir a embalagem<br />

é um pouco como fazer parte do mundo da ficção.<br />

Crenças e religiosidade<br />

Dialogando com a tradição histórica dos perfumes como trânsito entre a concretude<br />

da vida e a transcendência espiritual, as referências religiosas e crenças também são<br />

materializadas nos frascos de perfume. O envoltório Boss Orange (2009) da Hugo Boss evoca<br />

os setes chacras do corpo humano (GUIA DE PERFUMES, 2010), que foram mencionados<br />

primeiramente nos Vedas, textos sânscritos que formam a base da religião hindu.<br />

Os setes chacras representam “locais onde as essências atuam como metáfora da<br />

energia que flui desses pontos” (GUIA DE PERFUMES, 2010, p. 48). O frasco (fig. 20) do perfume<br />

foi concebido como um suporte para sete pedras preciosas. Estas alinham-se verticalmente<br />

umas sobre as outras, apoiando-se na moldura de metal da embalagem (OLIVEIRA, 2010).<br />

Figura 20: BossOrange, de 2009, da Hugo Boss. Fonte: Guia de Perfumes, 2010.<br />

Em 2009, a Shiseido, empresa japonesa de cosméticos e perfumaria, lançou o fragrante<br />

Zen. O perfume foi criado especialmente com ingredientes terapêuticos como a flor de lótus,<br />

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Transparências e fragrâncias: materialidades simbólicas nas embalagens de perfume<br />

que aliviam o estresse (SHISEIDO, 2010). A flor de lótus, considerada sagrada em muitos<br />

países asiáticos, simboliza elevação e expansão espiritual no budismo (VILA ASTRAL, 2010).<br />

Assim como ela, o frasco visa manifestar a sensação de expansão e libertação do eu interior.<br />

Sua transparência permite a passagem da luz, evocando uma fragrância com energia radiante<br />

e cheia de vida. (SHISEIDO, 2010).<br />

Figura 21: Zen (2009) da Shiseido. Disponível em: . Acesso em: 27/06/2010.<br />

Referências de tempo e lugar<br />

Na busca da construção de identidade, há perfumes que criam alusões a regiões<br />

geográficas específicas e referências culturais, tais como obras arquitetônicas, monumentos<br />

históricos, artefatos típicos, símbolos e ícones locais e etc.<br />

O perfume Be Delicious, de 2004, da Donna Karan, realça o aroma da maçã em sua<br />

composição. A fruta, usada como inspiração no design da embalagem, faz referência ao termo<br />

Big Apple – apelido de Nova York, traduzindo o ritmo vibrante da moderna cidade (BATH AND<br />

BODY COLLECTOR, 2010).<br />

A embalagem do perfume feminino Palazzo (fig. 22), de 2007, da Fendi, estampa a<br />

imagem do edifício da boutique da grife. Construído no final do século XVIII, na cidade de<br />

Roma, o edifício traz a marca do estilo neoclássico de Gaetano Koch, um dos mais famosos<br />

arquitetos romanos do seu tempo (FRAGRANTICA, 2010). O termo Palazzo, estampado na<br />

parte inferior do envoltório, evidencia a referência à localidade italiana.<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

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Transparências e fragrâncias: materialidades simbólicas nas embalagens de perfume<br />

Figura 22: Frasco do perfume Palazzo, de 2007, da Fendi; fachada do Palazzo Fendi, em Roma.<br />

Disponível em: e .<br />

Acesso em: 06/05/2010.<br />

A embalagem do fragrante Swiss Unlimited (fig. 23), de 2009, da empresa de cutelaria<br />

Victorinox, deixa clara a sua alusão à Suíça, não somente pelo seu nome, mas também por<br />

outras referências simbólicas. São elas: a cruz, a cor vermelha e o mosquetão. A primeira e a<br />

segunda fazem parte da configuração da bandeira do país, enquanto a terceira – o mosquetão<br />

- simboliza a atividade de montanhismo, referenciando os Alpes Suíços.<br />

Figura 23: Frasco do fragrante Swiss Unlimited, de 2009, da Victorinox. Disponível em: . Acesso em: 06/05/2010.<br />

Elementos das tradições populares e artesanais também são usados como modos<br />

de instaurar relações de tempo e espaço nos frascos de perfume. Recentemente, a grife<br />

japonesa Kenzo recorreu aos souvenirs russos, lançando estojos inspirados nas Matrioskas<br />

(fig. 24) para guardar as embalagens dos perfumes KenzoAmour e Flower by Kenzo (PRESS<br />

COMUNICAÇÃO, 2010).<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

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Transparências e fragrâncias: materialidades simbólicas nas embalagens de perfume<br />

Figura 24: Estojo Matrioska da Kenzo. Disponível em: .<br />

Acesso em: 30/03/2010.<br />

A designer Filomena Padron inspirou-se em artefatos típicos do Brasil artesanato<br />

brasileiro para desenvolver a embalagem da Água de Banho para Natura (fig. 25). Seu desenho<br />

curvilíneo e retorcido remete às formas das cabaças e das moringas. A designer conta que a<br />

ideia “veio da lembrança de que em diversas regiões do Brasil há o costume de se transportar<br />

e de se guardar água nesses objetos” (EMBALAGEM MARCA, 2010).<br />

Figura 25: Cabaça (porongo), moringa e frasco da Água de Banho Breu Branco (2006) da Natura. Disponível<br />

em: , e . Acesso em: 27/06/2010.<br />

De modo geral, os frascos de perfume contextuais recuperam “uma identidade nacional<br />

que se encontra harmoniosamente fixada no nível do imaginário” (ORTIZ, 1985, p. 78) dos<br />

consumidores. Eles caracterizam-se pelas ideias de cópia de um original segundo técnicas de<br />

simulação e de mini ou maximização de suas proporções.<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

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Transparências e fragrâncias: materialidades simbólicas nas embalagens de perfume<br />

Algumas considerações<br />

A escolha de conceitos e de elementos materiais pelo designer não é neutra. Algumas<br />

matérias-primas (vidro, couro, metal, tecido) e configurações formais também são apropriadas<br />

para manifestar ideologias, identidades e valores culturais. Neste universo, destacam-se<br />

as atribuições de gênero, exprimindo conotações como fragilidade, dureza, maleabilidade,<br />

delicadeza, transparência, sensualidade, frescor, que transitam entre o masculino e o feminino.<br />

Por exemplo, os termos doçura, beleza, fertilidade e delicadeza costumam estar associados<br />

ao universo das mulheres. Estes conceitos são traduzidos para os frascos femininos a partir de<br />

cores pastéis, que conotam delicadeza; do uso de referências da natureza como pássaros e<br />

flores; e de outros elementos simbólicos como laços e corações. De acordo com as imagens<br />

de frascos de perfumes analisados, pode-se concluir que a grande maioria reflete modelos<br />

tradicionais e hegemônicos do feminino e do masculino.<br />

Para Partington (1996), a masculinização e a feminização de perfumes tem sido<br />

construída e reforçada através do design de embalagens. Deste modo, as ideologias de<br />

gênero, que prescrevem características e comportamentos aceitáveis para homens e mulheres<br />

são reiterados nos componentes simbólicos na construção dos envoltórios.<br />

Os frascos simulam personalidades e estilos de vida: priorizam as funções<br />

simbólicas, realçam os valores semânticos, propondo formas de se portar, instaurando marcas<br />

de construções de subjetividades. São simulacros que reinventam os corpos, as percepções<br />

do entorno, das crenças, da arte e dos objetos cotidianos. Provocam efeitos sinestésicos que<br />

colocam em conjunção os estereótipos e as representações das práticas sociais.<br />

Notas<br />

i Disponível em: . Acesso em: 26/06/2010.<br />

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AS EXPERIêNCIAS DO DESIGN FINLANDêS: REFLEXõES PARA AçõES<br />

DO DESIGN<br />

Maria Carolina Medeiros; Mestranda em <strong>Design</strong>: PPGD – NUPECAM/FAAC/UNESP<br />

mcarolmedeiros@hotmail.com<br />

Mariano Lopes de Andrade Neto; Mestrando em <strong>Design</strong>: PPGD – NUPECAM/FAAC/UNESP<br />

mlaneto@gmail.com<br />

Lívia Flávia de Albuquerque Campos; Doutoranda em <strong>Design</strong>: PPGD – LEI/FAAC/UNESP<br />

liviafl avia@gmail.com<br />

Paula da Cruz Landim; Professora Adjunto: NUPECAM/FAAC/UNESP<br />

paula@faac.unesp.br<br />

Resumo<br />

O trabalho traça um breve panorama do estabelecimento do<br />

design na Finlândia, pautado na contextualização histórica, e<br />

principalmente, no comportamento dos atores envolvidos neste<br />

cenário: designers, indústrias e governo. Para tanto realizou-se<br />

um levantamento teórico exploratório baseado nas investigações<br />

do curso “Políticas em <strong>Design</strong> na Finlândia” do Programa Pós<br />

Graduação em <strong>Design</strong> da UNESP, ministrado pelo professor Pekka<br />

Korvenmaa da University of Art and <strong>Design</strong> Helsinki. Esse relato<br />

aponta reflexões e críticas sobre o design brasileiro, tendo em<br />

vista que a bem sucedida experiência na Finlândia pode fornecer<br />

subsídios para futuras análises do design do Brasil.<br />

Palavras-Chave: design de produto; design na Finlândia;<br />

políticas em design<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

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As experiências do design finlandês: reflexões para ações do design<br />

Introdução<br />

A Finlândia se desenvolveu a partir de uma nação predominantemente agrícola e pobre,<br />

à margem da Europa. Evoluiu para um Estado bem industrializado e com um alto padrão de<br />

vida. O design não só está presente nessa realidade, como pode ser apontado como um dos<br />

atores na construção do sucesso internacional da indústria finlandesa.<br />

Pautado no princípio básico do Funcionalismo – ou seja, nas necessidades práticas de<br />

uso – o design desenvolvido na Finlândia acabou por se tornar um modelo internacional. Ao<br />

conservar traços e identidade finlandeses em projetos com funcionalidade estética e pureza<br />

formal, desenvolveu uma linguagem universal.<br />

Nesse país a implantação da indústria e a institucionalização do design, ocorreram de<br />

forma integrada, com a interação e o planejamento necessários dos três principais sistemas<br />

envolvidos – Governo, Indústrias e Instituições de Ensino.<br />

Portanto, esta pesquisa exploratória observou a evolução destes três sistemas e<br />

seus reflexos para o design finlandês, a fim de conhecer como se deu o desenvolvimento de<br />

um design de prestígio internacional e discutir algumas sugestões que poderão auxiliar no<br />

aprimoramento da área no Brasil, provocando reflexões para implantação de futuras ações<br />

no país. Para isso, realizou-se um estudo descritivo amparado por meios bibliográficos de<br />

investigação, baseados em métodos descritos por Marconi e Lakatos (2000). O levantamento<br />

teórico do trabalho resulta das investigações realizadas na disciplina “Políticas em <strong>Design</strong> na<br />

Finlândia” fornecida ao Programa de Pós-Graduação em <strong>Design</strong> da UNESP/Bauru, ministrada<br />

pelos professores Paula da Cruz Landim (UNESP) e Pekka Korvenmaa (University of Art and<br />

<strong>Design</strong> Helsinki).<br />

Referencial teórico<br />

A consolidação da indústria na Finlândia e sua relação com o design<br />

O movimento modernista, surgido na primeira década após 1917, ano da independência<br />

do país, propiciou a aproximação da indústria com artistas locais, gerando soluções atrativas<br />

para os problemas da sociedade moderna emergente. O novo estado precisava de novos<br />

edifícios, objetos e símbolos que refletissem a necessidade de uma identidade nacional;<br />

momento esse que culminou em um discurso progressista do design e um incentivo a sua<br />

prática no país.<br />

O crescimento do design sofreu com os efeitos da depressão em 1930. Os problemas<br />

de urbanização e a industrialização descontrolada levaram os designers a refletir sobre o<br />

funcionalismo, o significado do setor industrial enquanto força social e cultural, e a mudança<br />

dos meios de produção de uma sociedade baseada no artesanato para uma manufatureira;<br />

provocando uma busca de soluções para as transformações vividas na Finlândia.<br />

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As experiências do design finlandês: reflexões para ações do design<br />

O rápido desenvolvimento do design na Finlândia, é claro, não veio do<br />

nada. O trabalho preparatório começou na década de 1930 quando foi<br />

dado ao Modernismo uma interpretação nórdica, chamada Funcionalismo<br />

(KORVENMAA, 2009, p. 15, tradução nossa).<br />

Mais a frente, as décadas de 1950 e 1960 representaram o sucesso internacional<br />

do design finlandês. Produtos que se destacavam principalmente por suas características<br />

intrínsecas – autenticidade, essencialidade exótica e qualidade –, eram acessíveis a muitos<br />

lares finlandeses. Grandes grupos de consumidores domésticos foram alcançados; jogos de<br />

jantar e/ou chá/café de cerâmica, objetos de vidro e várias peças de mobiliário, premiados<br />

internacionalmente, estavam disponíveis aos consumidores da classe média.<br />

O design moderno foi um importante ingrediente na atualização de processos<br />

em vários níveis [...] equalizando racionalidade, democracia e emancipação [...]<br />

Equilibrar qualidade é o que chamamos hoje em dia de valor da marca, seja<br />

de móveis, vidros, cerâmicas e produtos têxteis. Sua penetração no mercado<br />

internacional ocorreu de forma fácil e as receitas trazidas ao país cresceram<br />

significativamente (KORVENMAA, 2009, p. 15, tradução nossa).<br />

Arabia e Iittala são marcas tradicionais de vidro e cerâmica da empresa Hackmann<br />

<strong>Design</strong>or, o maior produtor de louça da Finlândia. Surgida em meados de 1890, essa empresa<br />

ampliou sua linha de produtos domésticos ao longo dos anos, oferecendo desde facas e<br />

objetos de cutelaria até jogos de jantar em cerâmica ou vidro. Durante a década de 1960,<br />

as importações baratas da Ásia chegaram à costa da Escandinávia e, para manter sua<br />

posição no mercado, a Hackman foi forçada a modernizar seus produtos. A tarefa foi dada a<br />

designers estabelecidos, tais como Kaj Franck, Babel e Adolf Gardberg Bertel. Essa medida<br />

de aproximação da indústria com o design pode ser observada ao longo dos anos e em vários<br />

setores industriais.<br />

Um exemplo recente da continuidade e dos resultados da aproximação desses setores<br />

são os processos avançados de desenvolvimento de produtos criados na Hackmann, razão<br />

pela qual ela se situa dentre as mais reconhecidas empresas cerâmicas do design internacional.<br />

Suas marcas Arabia e Iittala oferecem também uma série de produtos, chamada Pro <strong>Arte</strong>, de<br />

objetos com design exclusivos (Figura 01) resultados da referida parceria.<br />

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Figura 01 – Copo Iittala HotCool. Fonte: Iittala (2010)<br />

Retomando os aspectos históricos, a indústria finlandesa aposta no potencial da<br />

contribuição do design como fator de competitividade internacional há mais de 60 anos. E,<br />

na década de 1950, investia em design de destaque, ou seja, em indivíduos cujos produtos<br />

comercializados eram associados com a aura artística de seus famosos nomes em design<br />

com reputação internacional.<br />

A indústria finlandesa se desenvolveu rapidamente a partir da Segunda Guerra<br />

Mundial, especialmente a indústria metalúrgica que criou uma gama de produtos<br />

onde um novo tipo de habilidade de design era necessário – por exemplo,<br />

no desenvolvimento de equipamentos de transporte, eletrodomésticos e<br />

aparelhos eletrônicos (KORVENMAA, 2009, p. 17, tradução nossa).<br />

Um outro exemplo, no caso de transportes, trata-se das largas tradições de construção<br />

naval na Finlândia, por ser um país muito ligado ao mar. A associação do amplo conhecimento<br />

adquirido com a longa experiência do setor aliado às novas tecnologias propostas pelo design<br />

gerou resultados de excelência. Os quebra-gelos finlandeses (Figura 02), um dos produtos<br />

mais conhecidos da sua indústria, têm como valor atribuído a navegabilidade do mar durante<br />

todo o ano. A AkerYards (Aker Finnyards), que tem estaleiros em Helsínqui e em Turku, produz<br />

25% das embarcações de cruzeiro no mundo, afirma Peltonen (2008).<br />

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Figura 02 – Unidade de propulsão Azipod de tecnologia finlandesa utilizada em navios luxo. Fonte: ABB (2010)<br />

A década de 1960, marcada pelo grande status do design finlandês, também ficou<br />

conhecida pela crítica ao culto da personalidade que se desenvolveu em torno dos designers<br />

individuais. Conforme Landim (2009, p. 76),<br />

Isto correspondeu a uma crise difundida nas artes aplicadas finlandesas.<br />

Com a recessão global, a indústria não podia mais fornecer emprego para<br />

todos os novos designers por muito tempo. Essas considerações figuraram<br />

na discussão internacional e foram debatidas, mas ofuscadas pelo foco no<br />

design individual na Finlândia, apesar da extensa discussão sobre o papel do<br />

design industrial.<br />

Mesmo em momentos de revisão de postura, os bons resultados da proximidade dos<br />

dois setores permaneciam. Como no caso das tesouras laranja da Fiskars. Desenvolvidas<br />

em 1967, tornaram-se um dos produtos mais conhecidos do design finlandês e um ícone<br />

mundial. Sua cor laranja surgiu, em parte, por acaso, pois seu protótipo foi criado com uma<br />

resina laranja que sobrou na máquina de molde usada para produzir um espremedor de laranja<br />

(FISKARS, 2009), ilustrado na Figura 03.<br />

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Figura 03 – Tesoura laranja fabricada com material de sobra do espremedor de laranja. Fonte: Fiskars (2009)<br />

Na década de 1970 surgiu o interesse pela ergonomia, semiótica, valores simbólicos,<br />

e a ênfase social como sinônimo de bom design. Este período caracterizou-se como um<br />

momento de transição e de autocrítica, com debates frequentes, tendo originado um cenário<br />

no qual o culto ao designer individual era considerado inapropriado e o design anônimo seria o<br />

novo discurso. Um exemplo dos reflexos dessa nova postura é visível no design de mobiliário,<br />

pautado agora em princípios do funcionalismo e ergonômicos, tornando-se um processo<br />

projetual lógico e científico, baseado na pesquisa.<br />

O próximo período, década de 1980, caracterizou-se pela maturidade em design<br />

na Finlândia. Momento em que a ergonomia e o meio-ambiente tornaram-se um assunto<br />

recorrente e os designers transformaram o principio da “forma segue a função” em “forma<br />

segue função e fantasia”. A liberdade e fantasia refletiram-se no design de mobiliário finlandês,<br />

influenciados pelo pós-modernismo na primeira metade da década.<br />

Também, nesse período, os atributos estéticos dos projetos avançaram<br />

consideravelmente, alcançando nível internacional. O conforto e aparência de um utensílio<br />

doméstico recebiam a mesma atenção dispensada a um carro de luxo. Depois do êxito<br />

das tesouras, a Fiskars criou uma série de ferramentas manuais tradicionais (Figura 04),<br />

como machados, pás, enxadas, e ferramentas para jardinagem, cujo novo design melhorou<br />

radicalmente as suas vendas (PELTONEN, 2008).<br />

Figura 04 – Produtos Fiskars. Fonte: Fiskars (2010)<br />

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O cenário econômico finlandês mudou rapidamente no começo dos anos 1990, levando<br />

o país a sua pior crise com o ápice da recessão entre 1992 e 1994. Neste período evidenciou-se<br />

a fragilidade da infra-estrutura da indústria nacional, gerando um consenso sobre a importância<br />

de se redirecionar a indústria do país para áreas maciçamente tecnológicas, assim como para<br />

informação tecnológica.<br />

Os primeiros anos da década de 1990 trouxeram à Finlândia uma crise<br />

financeira muito mais severa que a da Grande Depressão dos Anos 30. Isto<br />

significou uma abrupta interrupção ao florescimento de uma sociedade de<br />

bem-estar, assim como aos mecanismos que apoiaram o design – e aos quais<br />

o design serviu como ferramenta (KORVENMAA, 2009, p.16, tradução nossa).<br />

O cenário do design finlandês mudou significativamente a partir do final dos anos 90,<br />

aumentou-se a intensidade de atividades de pesquisa e desenvolvimento (P&D), tanto nos<br />

projetos de produtos como no nível estratégico geral. A década de 1990 viu o colapso da<br />

supremacia dos antigos moldes de design e o aumento do design tecnológico, motivado pelas<br />

ferramentas digitais. A atenção a essas mudanças ocasionaram a retomada econômica da<br />

indústria e do design.<br />

Novamente as ações resultantes da associação dos três setores viabilizam a retomada<br />

do crescimento econômico. Como exemplo tem-se a companhia finlandesa Nokia Mobile<br />

Phones, uma das maiores produtoras de celulares no mundo, com exportações para 130<br />

países (PELTONEN, 2008). A Benefon é outro produtor finlandês de celulares e telefones para<br />

segurança com dispositivos de rastreamento. Um bom exemplo é TWIG Protector (Figura 05),<br />

um dispositivo de segurança portátil planejado para os trabalhadores solitários e pessoas que<br />

possam estar em risco.<br />

Figura 05 – Dispositivo de segurança portátil TWIG Protector. Fonte: Benefon (2010)<br />

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O resultado do sucesso de ambas as companhias reside em um design atualizado, com<br />

ênfase sobre a ergonomia, facilidade de utilização e comunicação visual. O design finlandês<br />

novamente é alvo de um considerável interesse internacional. Como afirma Peltonen (2008,<br />

n.p):<br />

Os produtos de sucesso são fruto de um design inovador, capaz de abrir as<br />

portas do mercado mundial. [...] A construção naval, os transportes públicos, a<br />

segurança laboral, a saúde, as atividades de lazer, os desportos, a comunicação<br />

e a eletrônica, são áreas que demonstram a atenção dada pelas empresas<br />

ao design, é a chave da produção de sucesso e da atenção internacional<br />

crescente.<br />

A histórica proximidade entre o design e indústria na Finlândia permitiu um<br />

desenvolvimento “simbiótico”, cuja relação ganhou profundidade e complexidade ao longo dos<br />

anos. No entanto, seu alto desenvolvimento tecnológico resulta da participação de mais outros<br />

dois agentes, o governo e as instituições de ensino. Como relatado a seguir, o planejamento e<br />

os investimentos derivados de ações políticas incentivam as atividades de P&D realizadas nas<br />

instituições em parceria com a indústria local, alimentando essa aproximação.<br />

O ensino e institucionalização do design finlandês<br />

A institucionalização do design na Finlândia tem início em 1875 com a fundação da<br />

“Sociedade Finlandesa de <strong>Arte</strong>s e Ofícios”, cujo intuito era promover as artes industriais. Esta<br />

escola se solidificou ao longo dos anos e se tornou um importante centro educacional. Em 1965<br />

passou a ser administrada pelo Estado Finlandês, e em 1973 a ser denominada <strong>Universidade</strong><br />

de <strong>Arte</strong>s e <strong>Design</strong> de Helsinki, responsável por todo ensino de design no país.<br />

Dentre as muitas transformações que o ensino passou desde seu estabelecimento, um<br />

de seus principais marcos acontece após a II Guerra Mundial, momento em que as reformas<br />

direcionaram esse ensino para a indústria. A crescente demanda e diversificação do mercado,<br />

bem como o crescimento da indústria nos anos pós-guerra, aumentaram a carência por<br />

profissionais qualificados e preparados para atender as necessidades da sociedade:<br />

Educação em design, prática profissional e indústria utilizando isso, eram todos<br />

influenciados pela rápida industrialização da nação, e de um modo mais geral<br />

pela concepção de indústria baseada no progresso tecnológico como um dos<br />

principais fatores determinantes da sociedade e cultura (LANDIM, 2009, p.75).<br />

O momento propício para investimentos no ensino em design do país também<br />

possibilitou mudanças em outras instituições. Na década de 1960, a Ornamo se estabeleceu<br />

como a associação central de designers, a Associação Finlandesa de <strong>Design</strong>ers, com suborganizações<br />

e associações, dentre eles: designers de moda (1965) e designers industriais<br />

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(1966), os quais se uniram às associações já existentes para arquitetos de interiores (1949) e<br />

designers têxteis (1956). Esta instituição passou a receber anualmente suporte financeiro do<br />

Ministério da Educação para cobrir as despesas de expansão das ações e atividades relativas<br />

ao ensino e prática do design.<br />

A experiência do envolvimento dos três setores apresentou resultados significativos na<br />

educação em design. Esses resultados geraram reconhecimento fora do país, e a partir de<br />

1987 uma série de conferências internacionais em colaboração com líderes do cenário em<br />

design de vários países discutiram a educação e a pesquisa em design. Estabeleceu-se assim o<br />

<strong>Design</strong> Forum Finland, cujo objetivo é promover o design gerando oportunidades na economia<br />

e nos negócios, aumentando a competitividade nas indústrias do país e capacitando-as para<br />

a exportação de produtos com design (DESIGN FORUM FINLAND, 2009).<br />

Raulik et. al (2009) afirmam que essas ações trouxeram à Finlândia a liderança, como um<br />

dos mais competitivos países no Fórum Econômico Mundial. A atribuição de poder decisório e<br />

verbas a um órgão consciente da importância da participação efetiva dos setores envolvidos<br />

permitiu o estabelecimento de metas coletivas. Como no caso da inclusão do design como<br />

parte essencial do planejamento de investimentos em longo prazo, priorizando o setor de P&D.<br />

Ações surgidas desse movimento acabaram por originar programas de política em design.<br />

Programas estes que dentre seus objetivos, visavam transferir inovação de natureza tecnológica<br />

dos projetos desenvolvidos na <strong>Universidade</strong> para possíveis utilizações pela indústria, criando<br />

um centro para design como parte dessa política: a <strong>Design</strong>ium (LANDIM, 2009).<br />

O centro de inovação é composto pela <strong>Universidade</strong> de <strong>Arte</strong> e <strong>Design</strong> de Helsinque,<br />

a <strong>Universidade</strong> da Lapônia, <strong>Universidade</strong> de <strong>Tecnologia</strong> de Helsinque (HUT) e a Escola de<br />

Economia de Helsinque (HSE), em estreita colaboração entre elas, e conta ainda com a<br />

cooperação de outras universidades, empresas e organizações públicas.<br />

Esse conjunto de fatores explica a forte presença de instituições ligadas à P&D, uma<br />

característica única não encontrada em outros países, de acordo com Raulik et. al (2009).<br />

Aliada a outro fator importante na promoção do design, a mobilidade dos estudantes - seja de<br />

estrangeiros para a Finlândia ou vice-versa – permite a troca e expansão de conhecimentos e<br />

estimula inovações.<br />

Atualmente se vê a penetração do design em universidades de tecnologia e economia,<br />

gerando transferência de conhecimento e potencializando abordagens multidisciplinares.<br />

Destaca-se também a forma como a política em design se desenrola no país, com a participação<br />

de representantes da indústria, educação, designers e o setor público como meio de gerar<br />

iniciativas para as instituições decisórias, tanto públicas como privadas. Como observa Landim<br />

(2009), a UIAH (<strong>Universidade</strong> de <strong>Arte</strong> e <strong>Design</strong> de Helsinque) tem participado ativamente em<br />

várias ações e iniciativas, de forma que ela não se mantém apenas concentrada em educação<br />

e pesquisa, mas também em colaboração com a política em design.<br />

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Ações do governo e o design na Finlândia<br />

Com a crise finlandesa no começo dos anos 90, o cenário econômico mudou<br />

rapidamente, levando o país à recessão, com ápice entre 1992 e 1994. Momento caracterizado<br />

por crise bancária, alta taxa de desemprego, inflação, entre outros fatores. Como fator<br />

agravante, o colapso da União Soviética, principal mercado exportador da Finlândia, produziu<br />

um impacto negativo enorme no setor industrial. Assim, se evidenciou a fragilidade da infraestrutura<br />

da indústria nacional, gerando um consenso sobre a importância de se redirecionar<br />

e atualizar as indústrias do país para áreas tecnológicas.<br />

A necessidade de investimentos significativos, para melhorar o patamar de<br />

desenvolvimento tecnológico, tornou o sistema nacional de inovação um conceito “guardachuva”.<br />

Que de acordo com Landim (2009) passou a abrigar toda e qualquer ação de melhoria<br />

econômica e social.<br />

Assim, em 1996, o Fundo Nacional Finlandês para Pesquisa e Desenvolvimento convidou<br />

um grupo de representantes da área de design para discutir como o design poderia contribuir<br />

para a inovação industrial e desenvolvimento econômico da Finlândia. Estabelecendo-se um<br />

sistema nacional de design e um plano de políticas chamado “<strong>Design</strong> 2005!”.<br />

Esse programa de política denominado “Government Decisions in Principle on Finnish<br />

<strong>Design</strong> Policy” é uma ação governamental consistente e de efetivo esforço para se introduzir<br />

o design de modo mais eficiente a serviço da indústria, do comércio e da cultura. E, apesar<br />

da política nacional em design não ser novidade na Finlândia, ele diferenciava-se por seus<br />

três principais objetivos: melhorar a qualidade do design, promover o uso do design com<br />

foco para alavancar a competitividade e emprego, e ainda aumentar o nível de qualidade,<br />

promovendo uma cultura genuinamente nacional. Ações que complementam a já estabelecida<br />

política industrial, que valoriza o papel do design como agente de competitividade para as<br />

exportações da indústria.<br />

O plano de política finlandesa começou a se desenrolar antes mesmo de ter sido<br />

oficialmente lançado. De acordo com Korvenmaa (2009), em 2000, os ministros da Cultura e o<br />

da Indústria e Comércio juntamente com representantes de altos escalões das organizações –<br />

os grandes empregadores –, assinaram um acordo para tornar a nova política de fato real. Isto<br />

ocorreu em um cenário de retomada econômica e pela percepção global do valor do design<br />

na criação de valor em mercados altamente saturados e competitivos.<br />

Korvenmaa (2009) ainda afirma que a importância fundamental para a compreensão<br />

do papel do design na política foi o fato de que ela foi realizada pelas mesmas pessoas e<br />

instituições que a escreveram. Ou seja, a própria comunidade do design e seus parceiros mais<br />

importantes foram os que fizeram as perguntas e deram as sugestões, fazendo com que o<br />

processo se desenvolvesse de baixo para cima e com as reais preocupações e vivências dos<br />

profissionais do meio.<br />

A figura 06, a seguir, ilustra como é composto o Sistema Nacional de <strong>Design</strong> Finlandês,<br />

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com os ministérios envolvidos, os conselhos, fundações e empresas finlandesas – como fontes<br />

de financiamento; o Comitê de <strong>Design</strong> e o Centro <strong>Design</strong>um – representando a política; e os<br />

Centros de educação, promoção, P&D, suporte e associações profissionais. Em um sistema<br />

que envolve o público e o privado, de forma abrangente e consistente.<br />

Figura 06 – Sistema Nacional de <strong>Design</strong> na Finlândia. Fonte: Raulik et. al (2009)<br />

Essa estrutura organizacional, que prevê ações e o envolvimento de todos os agentes,<br />

permite o desenvolvimento da política nacional em design e a internacionalização do design<br />

finlandês. São iniciativas que promovem a transferência dos novos conhecimentos e aptidões<br />

em design das instituições para o setor empresarial e em contrapartida leva as necessidades<br />

e também o apoio das indústrias até o ensino.<br />

Discussões e Considerações finais<br />

Este estudo é um relato de uma experiência bem sucedida e não uma análise crítica<br />

do design brasileiro, por conseqüência busca trazer subsídios para futuras ações na política<br />

nacional do design.<br />

Os constantes avanços tecnológicos e a fácil circulação de mercadorias no comércio<br />

mundial causaram profundos impactos nas economias dos países, ocasionando uma<br />

competitividade interna e externa cada vez maior. Nesse cenário o <strong>Design</strong> recebe o papel de<br />

importante agente de valorização e de identificação, motivos que tornam as ações para sua<br />

promoção e suporte, estratégicas para países, governos e empresas.<br />

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Amplamente discutida, essa função atribuída ao <strong>Design</strong> é cada vez mais compartilhada<br />

em experiências por todo o mundo. No caso da Finlândia, o reconhecimento global, chama os<br />

olhares para o seu sucesso e a história de seu desenvolvimento.<br />

Com a tradição do design agindo junto às indústrias e refletindo diretamente na economia<br />

do país, a Finlândia não só alavancou a competitividade de suas empresas como também<br />

proporcionou bem-estar aos seus cidadãos. Como visto, as histórias da industrialização e do<br />

design no país estão ligadas, e desde a década de 1930, essa relação é uma força social e<br />

cultural. O perfil da população e a cultura finlandesa foram fatores cruciais para o sucesso das<br />

políticas de design finlandesas.<br />

O reconhecimento e qualidade internacional, gerando produtos acessíveis à sociedade,<br />

e a proximidade com a indústria, fizeram do design finlandês um modelo. Porém, sem o<br />

envolvimento do governo por todo esse percurso, com os planejamentos e ações efetivas, não<br />

teria como resultado o surpreendente crescimento econômico do país. São ações que ainda<br />

promovem investimentos em P&D, sempre contando com aproximação das empresas com as<br />

universidades, ou seja, despertando interesses em comum que primam pela inovação.<br />

Visto por esse ângulo, as ligações entre inovação, design e tecnologia ainda são raras<br />

na política brasileira. Suas ações costumam ser pontuais, em centros de projetos regionais<br />

que eventualmente se associam aos institutos de tecnologia.<br />

Em muitos casos os centros geram resultados bem sucedidos, entretanto ainda não<br />

contam com uma política nacional clara e de longo prazo para tais iniciativas. Na Finlândia,<br />

estas ações são continuadas ou foram substituídas por novas estratégias aprimorando seus<br />

resultados ao longo dos anos. Diferença que parece estar relacionada à estabilidade política<br />

do país, visto que o apoio do governo não se alterou devido às sucessões políticas e sim pela<br />

evolução do cenário econômico.<br />

Ainda hoje, o design e a indústria caminham em paralelo, e as políticas governamentais<br />

se mostram desconexas e insuficientes. Portanto, respeitando os contrates na história do<br />

design do Brasil e da Finlândia, é preciso reconhecer que sem o envolvimento da indústria, do<br />

governo e das instituições de ensino, como na experiência finlandesa, a indefinição no design<br />

brasileiro permanecerá. O investimento em educação e políticas de inserção do design, a<br />

exemplo da finlandesa, de forma a unir tecnologia, design e empresas, é fundamental para<br />

que o país consiga aumentar a qualidade, a competitividade e principalmente, a inovação de<br />

seus produtos.<br />

Este estudo não propõe soluções específicas, mas espera que com a divulgação<br />

da experiência da Finlândia se amplie as perspectivas sobre as possíveis ações de design<br />

no Brasil, já que a realidade multi-étnica e pluri-regional do país permite explorar os mais<br />

variados atributos locais, diversificando ainda mais a produção nacional. Como por exemplo<br />

o crescimento sustentável, grande desafio da indústria brasileira, momento em que os<br />

programas de design podem fornecer as bases para esse desenvolvimento. Buscando, no<br />

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entanto, envolver as indústrias, universidades, e principalmente, as ações do governo em<br />

interesses comuns. E para tanto, observou-se a necessidade da aproximação de todos esses<br />

setores para um planejamento global que estabeleça as bases de ações e permita adaptações<br />

às várias peculiaridades dos meios de produção locais que integram a economia nacional.<br />

Referências<br />

ABB. Azipod Propulsion, 2010. Disponível em: . Acesso em: 20 jan. 2010.<br />

BENEFON. Intelinfon/Twig, 2010. Disponível em: . Acesso em: 23 jan. 2010.<br />

FISKARS. Company/Heritage, 2009. Disponível em: . Acesso em: 19 jan. 2010.<br />

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LANDIM, P. C. <strong>Design</strong>/Empresa/Sociedade. Bauru: UNESP, 2009. Tese apresentada à<br />

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Livre-Docente.<br />

MARCONI, M.; LAKATOS, E. Metodologia Científica. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2000.<br />

PELTONEN, Jarno. <strong>Design</strong> Finlandês no Novo Milénio. Disponível em: . Acesso em: 20 dez. 2009.<br />

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2008, 16-19 July 2008, Sheffield, UK : Sheffield Hallam University, 2009.<br />

Agradecimentos<br />

Este trabalho foi desenvolvido com o apoio da FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do<br />

Estado de São Paulo (Proc. 2009/02991-9 e 2009/02125-0).<br />

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INVESTIGAçõES METODOLóGICAS: APROXIMAçãO ENTRE DESIGN E<br />

TECNOLOGIA<br />

Deborah Kemmer; Mestranda em <strong>Design</strong>: <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />

d.kemmer@hotmail.com<br />

Resumo<br />

A base deste artigo é explorar metodologias que levem a uma<br />

abordagem teórica para entender o design emergente enquanto<br />

um método de intervenção educacional por meio tecnológico.<br />

Entender a tecnologia digital e a administração do método é<br />

a forma de compreender o design emergente. Por meio das<br />

ferramentas computacionais os aprendizes realizam um processo<br />

de design e de construção e, assim, generalizam as formas de<br />

conhecimento que possuem e ganham conhecimentos para<br />

outras áreas e interesses. O potencial de aprendizagem por meio<br />

coletivo é um método apontado no artigo que vem desenvolver<br />

ações pedagógicas inovadoras com recursos computacionais,<br />

visando apropriação criativa, por meio de dejetos computacionais,<br />

desenvolvendo metodologias voltadas a uma forma de design<br />

emergente de reapropriação tecnológica para transformação<br />

social.<br />

Palavras-Chave: design; emergente; educação<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

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Investigações metodológicas: aproximação entre design e tecnologia<br />

Introdução<br />

Palavras representam conceitos, por isso neste artigo partiremos do entendimento de<br />

palavras-chaves que aprofundem nossas reflexões.<br />

Estamos vivendo uma revolução industrial tecnológica que decorre também do<br />

computador em sua conexão com as telecomunicações.<br />

A revolução da informática que trouxe a globalização como resultado foi também a<br />

responsável pela sociedade da informação ao qual vivemos, onde conforme se lê em Peter<br />

Drucker a informação é seu instrumento mais precioso e mais necessárioi .<br />

Contudo o que se nota é que sob o “império” da tecnologia, existe um grande risco<br />

de se perder o humanismo, ou seja, as artes, a literatura, as humanidades estão em segundo<br />

plano e até mesmo a ciência fica obscurecida pela tecnologia.<br />

No bojo desta questão a criação humana aparece cada vez mais como algo que<br />

a sociedade tem de reincorporar o seu rol de prioridades, uma vez que o fator humano é<br />

fundamental e do homem partem – filosoficamente falando – as realidades.<br />

Explorando em terreno teórico<br />

Palavras representam conceitos.<br />

A leitura de qualquer texto depende do entendimento que se dá às palavras que<br />

expressam idéias e, em ultima análise, da interpretação do que tais idéias significam.<br />

Por isso no inicio deste artigo faz-se necessário entender o que significa a palavra<br />

design em conjunto com a palavra emergente e o significado que se constituí em torno delas,<br />

estruturando nosso pensamento.<br />

Conforme Bonfim, “[...] <strong>Design</strong> entende-se como objeto, qualquer artefato que resulte<br />

da aplicação da vontade do sujeito, consubstanciada no processo de conformação da matéria.”<br />

(BOMFIM, 1997, p. 10).<br />

Palavra que obedece às normas objetivas, o termo design não se esgota neste único<br />

sentido, uma vez que sua prática amplia o leque de interpretações.<br />

Eis porque esta palavra proveniente da língua inglesa pode se compreendida como<br />

parte de “um tecido que enreda o designer, o usuário, o desejo, a forma, o modo de ser e<br />

estar no mundo de cada um de nós” (COUTO, 1999, p. 9). <strong>Design</strong> à elaboração, à concepção<br />

específica de um artefato.<br />

Partindo desta visão, o <strong>Design</strong> elaborado com desejo, forma, modo de representar o<br />

mundo, abre-se a possibilidade de entender a palavra emergente, que pelo nome, nos faz<br />

pensar em certa emergência, ou seja, “pressa” no sentido de emergir.<br />

Emergir significa “que vem de fora”. Unindo então as duas palavras “<strong>Design</strong> e Emergente”<br />

podemos resumir da seguinte maneira: “[...] vontade do sujeito emergindo” (BUENO, 2009,<br />

p. 102). A terminologia “<strong>Design</strong> Emergente” inaugura uma nova forma de produzir a partir da<br />

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Investigações metodológicas: aproximação entre design e tecnologia<br />

vontade, da intencionalidade do sujeito diante do que deseja conquistar.<br />

Hoje, a liberdade tanto pode ser um elemento da natureza como uma condição intriseca<br />

do homem ao seu estado emocional. Pensadores como filósofos, historiadores, sociólogos,<br />

ou seja, pessoas que influenciaram na história, acabaram definindo a liberdade de múltiplas<br />

formas, mas todos mantiveram um denominador comum.<br />

A liberdade para o homem está na dependência de sua própria vontade. Um exemplo<br />

desta questão é o que os filósofos Santo Agostinho e Descartes, teorizaram a respeito da<br />

vontade e liberdade, e que por fim, concluiram que são a mesma coisa. A partir de leituras sobre<br />

esse assunto, percebemos o consenso ao qual eles, dizendo que o fato de nós seres humanos,<br />

possuirmos vontade, nos coloca como responsáveis pelas nossas decisões e ações.<br />

<strong>Design</strong> emergente, educaçao e tecnologia.<br />

Vejamos então, diante dessas questões levantadas, qual pode ser a relação entre<br />

design emergente, educação e tecnologia.<br />

Um autor que possui uma postura muito clara sobre essa questão do design, como<br />

um método de intervenção educacional, trabalhando por meio da coletividade, a tecnologia, e<br />

assim, instaurando um método, é David Cavallo, quando alega a importância do computador<br />

na vida do sujeito:<br />

“O papel do computador neste processo é o de catalisar um conjunto de<br />

habilidades que possa ser transferido para um contexto diferente. Por meio das<br />

ferramentas computacionais os aprendizes realizam um processo de design e<br />

de construção e, assim, generalizam as formas de conhecimento que possuem.<br />

O desenvolvimento da fluência em tecnologia permite que as pessoas se<br />

libertem do contexto específico e passem a representar seus conhecimentos<br />

de diferentes formas, de modo a aplicá-los em várias situações.” (CAVALLO,<br />

D. 2000, p.22).<br />

Essa citação nos revela que, por meio da tecnologia, o ensino ganha um novo formato<br />

de representação e um novo processo de design e construção, onde em que a liberdade e<br />

o contexto do sujeito, passam a ser o fator essencial para o desenvolvimento humano. O<br />

mesmo autor, ainda complementa dizendo:<br />

“A análise de questões relacionadas ao design tem levado à formulação de<br />

uma abordagem teórica - “<strong>Design</strong> Emergente” - É um método de intervenção<br />

educacional; o argumento é geral, contudo, nele há estratégia que é apropriada<br />

para cenários em que a tecnologia possa facilitar mudança de paradigma.<br />

A abordagem teórica está voltada à investigação de como a escolha<br />

da metodologia de design contribui para o sucesso ou não de reformas<br />

educacionais”. (CAVALLO, 2000, s/p.)<br />

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Investigações metodológicas: aproximação entre design e tecnologia<br />

Essa metodologia apontada, que envolve sistemas educacionais por meio de tecnologia,<br />

faz com que aprendizes ganhem conhecimentos para outras áreas e interesses. O papel do<br />

computador nesse processo permite que as pessoas se libertem e passem a representar o<br />

conhecimento de diferentes formas, de modo a aplicá-los em várias situações como afirma<br />

ainda David Cavallo: “[...] Desenvolve-se, assim, uma prática de “antropologia epistemológica<br />

aplicada” que consiste no levantamento de habilidades e conhecimentos existentes em uma<br />

dada comunidade e a sua utilização como “ponte” para novos conteúdos” “[...]. Através do<br />

“<strong>Design</strong> Emergente” é possível encontrar um balanço entre a tecnologia digital e o método<br />

de administrar a organização e de transformação da organização que se torna consciente da<br />

existência da tecnologia. (CAVALLO, 2000, s/p).<br />

O design emergente visa o humanismo.<br />

Esse balanço entre a tecnologia digital e a administração do método que fala o autor, torna<br />

essencial para o sucesso ou não do processo. Colocamos essa dúvida perante o resultado, pois<br />

se não dosado e bem organizado o projeto, o resultado pode não ser o ideal. Segundo David<br />

Cavallo: “É necessário atenção à tentação de usar só a tecnologia ou só a administração, o que<br />

pode propiciar à falha do projeto. Por outro lado, a combinação de ambas oferece uma visão<br />

otimista para o futuro da Educação.” (CAVALLO, 2000, s/p). Essa união entre a tecnologia e a<br />

administração, pode possibilitar um desenvolvimento de aprendizagem mais eficaz.<br />

“É a junção destes dois produtos da era digital em sinergia com as bases teóricas<br />

dos pensadores da era pré-digital que são o suporte adequado para realizar o<br />

que os pensadores sabiam o que e como fazer, mas não tinham meios para<br />

fazê-lo. Entre eles destaca-se Paulo Freire, mas também, estão representados<br />

John Dewey e Jean Piaget, embora este último não tenha focado seu trabalho na<br />

educação.” (CAVALLO, 2000, s/p).<br />

Quando citamos a idéia de David Cavallo de que, a “antropologia epistemológica<br />

aplicada”, consiste no levantamento de habilidades e conhecimentos existentes em uma dada<br />

comunidade, pensamos que a sua utilização serve como “ponte” para novos conteúdos.<br />

Dessa forma, podemos refletir que o autor está advertindo as pessoas, os interesses<br />

da comunidade e a vontade desses sujeitos que têm um fator essencial e primordial, quando<br />

pensado em forma de projeto educacional. Buscar essas vontades a partir da liberdade de<br />

exposição do sujeito diante do problema é considerado design emergente segundo o autor.<br />

Trabalhando com temas geradores como Paulo Freire.<br />

Ensinantes e ensinados.<br />

Estamos falando que o indivíduo deve partir de seus conhecimentos ao aprender, como<br />

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Investigações metodológicas: aproximação entre design e tecnologia<br />

lembra David Cavallo. Este também cita o educador Paulo Freire, que representa muito bem<br />

essa questão, cremos que, a carta redigida aos professores, em que Freire relata o ensino e a<br />

forma de aprendizagem como essencial ao ser humano, vem constatar essa questão:<br />

“O aprendizado do ensinante ao ensinar não se dá necessariamente através<br />

da retificação que o aprendiz lhe faça de erros cometidos. O aprendizado<br />

do ensinante ao ensinar se verifica à medida em que o ensinante, humilde,<br />

aberto, se ache permanentemente disponível a repensar o pensado, rever-se<br />

em suas posições; em que procura envolver-se com a curiosidade dos alunos<br />

e dos diferentes caminhos e veredas, que ela os faz percorrer. Alguns desses<br />

caminhos e algumas dessas veredas, que a curiosidade às vezes quase<br />

virgem dos alunos percorre, estão grávidas de sugestões, de perguntas que<br />

não foram percebidas antes pelo ensinante”. (FREIRE, 1997, p.19).<br />

Percebemos que o educador Paulo Freire tinha em mente a importância de partir do<br />

conhecimento e do contexto experimentado pelo aluno para desenvolver sua metodologia<br />

na educação, ou seja, permitindo ao aluno, ou ao aprendiz expressar seus conhecimentos e<br />

experiências. Dessa forma, o educando é valorizado pelo educador. Esse modo de pensar<br />

do autor tem uma característica organizacional e metodológica, assim como David Cavallo,<br />

afirma que o fato de unir tecnologia e administração para alcançar sucesso, também é uma<br />

alternativa de usar “metodologia”.<br />

Se pensarmos como Paulo Freire, perceberemos que não devemos subestimar o<br />

conhecimento dos alunos, e sim nos utilizarmos de seu aprendizado, valorizando o campo<br />

de referência deles. Esse fator se pensado dessa maneira, instaura uma metodologia, e essa<br />

vem emergir e racionalizar ações com o conhecimento previamente aprendido pelos sujeitos.<br />

Sociedades humanas são diferentes<br />

Citando a pesquisa de Gordon sobre sistemas complexos autocoordenados, podemos<br />

entender melhor essa questão. Steven Johnson (2003), ao analisar a pesquisa de Deborah<br />

Gordon, relata que a autora estudou colônias de formigas que se auto-organizam e, assim,<br />

constituem um comportamento emergente coordenado, ou seja, uma forma de agir coletiva<br />

sem um líder para ditar ordens.<br />

Segundo a pesquisadora, a formiga-rainha não assume diante das outras formigas,<br />

um papel de autoridade, como se costuma pensar. Ela não comanda as ações das operárias.<br />

Ao contrário. “As colônias estudadas por Gordon mostram um dos mais impressionantes<br />

comportamentos descentralizados da natureza: inteligência, personalidade e aprendizado<br />

emergem de baixo para cima, bottom-up. (JOHNSON apud GORDON , 2003, p. 23).<br />

Segundo Steven Johnson, nenhuma das formigas é responsável pela “operação<br />

global”, elas se auto-organizam e conseguem um alto grau de coordenação. Esse exemplo<br />

das formigas são “comportamentos emergentes” em que as interações são colaterais e se<br />

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presta atenção nos “seus vizinhos mais próximos” em vez de ficar “esperando por ordens<br />

superiores”. As formigas agem localmente, mas a “[...] ação coletiva produz comportamento<br />

global”. (JOHNSON, 2003, p. 54).<br />

Há uma questão que deve ser levantada. As formigas podem ser comparadas com<br />

relação à ação coletiva que faz acontecer um comportamento global, mas é inegável que os<br />

seres humanos produzam cultura, e as formigas não, ou seja, o padrão biológico pode explicar<br />

parte do nosso tipo de sociabilidade e as formigas podem nos ajudar nesta compreensão,<br />

mas não abarcará os aspectos culturais e psíquicos do homem.<br />

O autor Paulo Freire tem uma frase que relata bem essa questão: “Ninguém educa<br />

ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo<br />

mundo.” Assim como os homens dotados de conhecimento e cultura, as formigas também<br />

de uma forma organizada aprendem não no sentido cultural, mas na vivência, umas com<br />

as outras, vivendo a coletividade assim como o homem. Essa teoria de Deborah Gordon se<br />

encaixa perfeitamente com as idéias de Paulo Freire (1997).<br />

Segundo Freire, entendemos, portanto, que o termo bottom-up citado por Steven<br />

Johnson, leva a incessante tarefa de trabalhar a coletividade, começando de baixo para<br />

cima. Isto é, a partir do conhecimento dos alunos, “que vem de baixo”, dos seus problemas,<br />

angústias ou desejos, aproveitando a fala e as informações do aprendiz podemos fazer a<br />

diferença e trazer para “cima” as questões a serem resolvidas.<br />

Para Steven Johnson, “[...] A cristalização de um fenômeno bottom-up que se mantém<br />

no tempo” é uma das principais “leis da emergência”. Um sistema emergente é capaz de<br />

socializar, ficando mais inteligente com o tempo e com o conhecimento isso possibilita a<br />

integração entre pessoas. A cidade é outro exemplo citado por ele, além da pesquisa de<br />

Deborah Gordon das formigas.<br />

Segundo ele: “[...] as pessoas se auto organizam em sua vivência na cidade, vivem em<br />

partes diferentes, portanto, trocam experiências, prestando atenção umas nas outras”. Assim<br />

segundo o autor, a cidade se torna “[...] mais esperta, mais útil para seus habitantes”. Ainda<br />

relata que, “[...] esse processo acontece sem que as pessoas percebam. “[...]. “E aqui, outra<br />

vez, a coisa mais extraordinária é que esse aprendizado emerge sem que ninguém tenha<br />

conhecimento dele.” ( JOHNSON, 2003, p. 79).<br />

Nesse sentido, o autor aponta a cidade como um formigueiro, como um fenômeno<br />

emergente que tem em seu interior praças, pessoas que interagem e possuem sempre um<br />

vizinho para se comunicar. Sendo assim, Johnson afirma que é um mundo de interconexões<br />

“[...] conduzindo à ordem global, componentes especializados, criando uma inteligência não<br />

especializada, comunidades de indivíduos solucionando problemas sem que nenhum deles<br />

saiba disto. (JOHNSON, 2003, p. 69).<br />

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Investigações metodológicas: aproximação entre design e tecnologia<br />

Sintetizando com os pensadores<br />

Sistematizando o que falamos até aqui e todas essas práticas citadas recorremos<br />

novamente a David Cavallo, que afirma ser por meio da tecnologia, que o ensino permite que<br />

as pessoas se libertem do contexto específico, passando a representar seus conhecimentos<br />

de diferentes formas.<br />

Mais uma vez citamos Paulo Freire o qual reforça essa idéia, e destaca que o aprendizado<br />

deve repensar o já pensado. E ainda completando nosso raciocínio, temos os exemplos que<br />

Steven Johnson citando Deborah Gordon, quando indica que é por meio de experiências<br />

como o das formigas, que procuram a coletividade, que se torna possível alcançar objetivos.<br />

Partem da ação conjunta, em busca de seus interesses.<br />

Todos esses exemplos citados são de grande valia para a vida do homem. Provam que<br />

o trabalho em conjunto, pode facilitar ou melhorar questões sociais, políticas e econômicas do<br />

bairro ou cidade que vivemos. Por meio da internet, redes sociais também podem estabelecer<br />

conexões interativas de coletividade, entre vários estados e porque não falar no mundo,<br />

essa é uma forma de interação coletiva atualíssima. O trabalho coletivo só tem a acrescentar<br />

progressos individuais a qualquer objetivo que se queira alcançar.<br />

Nesse sentido, fazemos aqui uma analogia com as cidades e sua população, que<br />

estabelecem conexões. Isso nos faz refletir que tudo tem um início e uma metodologia. Todos<br />

esses exemplos, no momento da ação, não procuraram estabelecer relações, não existe um<br />

líder, mas sem perceber, indivíduos ou formigas se auto-organizam, partem do problema para<br />

resolver seus objetivos. É notado então, que em todos esses processos foi utilizado uma<br />

metodologia, e que a todos esses exemplos podemos dar o nome de <strong>Design</strong> Emergente.<br />

Essas formas de organização, como os das formigas citado como exemplo, vêm da<br />

coletividade sempre com um foco específico que nos faz lembrar ações ativistas. Os ativistas<br />

parecem ter sempre uma atividade em prol de uma causa política, cultural ou social. Eles se<br />

organizam por uma causa na qual acreditam e por ela lutam. O coletivo MetaReciclagem é<br />

um exemplo disso. É uma rede colaborativa que partilha informações e requer livre circulação.<br />

Seus participantes buscam conhecimentos livres, adaptados, transformados e reformulados,<br />

conforme suas descobertas e aspirações.<br />

Esses participantes, que podemos chamar de ativistas são pessoas de diferentes<br />

estados brasileiros que se comunicam e trocam suas experiências por meio de um site, onde<br />

postam seus conhecimentos tecnológicos de aproveitamento de peças computacionais,<br />

desenvolvimento de softwares, e outras conquistas tecnológicas, desenvolvendo então, uma<br />

nova experiência em suas vidas e em sua educação, pois trocam experiências e discutem<br />

questões diversas.<br />

Para entender melhor esse coletivo que surgiu com o nome MetaReciclagem, vejamos<br />

as informações coletadas por Tavares no site .oxossi.metareciclagem.org por meio de uma<br />

entrevista feita com Felipe Fonseca, um dos fundadores e ativistas comprometido com o<br />

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Investigações metodológicas: aproximação entre design e tecnologia<br />

MetaReciclagem.<br />

“Eu usava internet, desde 95, 96 quando eu entrei na faculdade no Sul, mas<br />

era limitada, não tinha intimidade, nem paciência, gostava mais de pegar a<br />

chave de fenda e desmontar o computador, mas aí quando veio a banda<br />

larga eu comecei a explorar comunidades, fórum, lista de discussão coisas<br />

assim e de repente eu descobri um mundo totalmente diferente, comecei<br />

a descobrir pessoas com que eu podia conversar, comecei a me identificar<br />

com um grupo de pessoas que não necessariamente eram do meu cotidiano,<br />

experiência direta, muitas delas eu não conhecia, algumas delas eu acabei<br />

não conhecendo ao longo dos anos e tem muita gente com quem eu ainda<br />

converso e não conheço presencialmente, mas aquilo me deu uma visão do<br />

que poderia ser feito através da internet, como uma ferramenta para encontrar<br />

pessoas”. (FONSECA, F. apud TAVARES, Dissertação de Mestrado PUC/São<br />

Paulo, entrevista no SESC Paulista, 2007).<br />

Essa visão de encontrar pessoas, possibilidade de trocar experiências, conforme<br />

relato de Felipe Fonseca ainda em 1995 e 1996 permitiu, assim como para ele, à milhares de<br />

pessoas a se interconectarem e estabelecerem contato, como fazem até hoje. Na atualidade<br />

acontece um aumento na velocidade de conexões, um avanço na taxa de navegação na<br />

internet e blogs, como também, youtube, facebook, twitter e tantas outras formas inventadas<br />

de comércio ou não, no decorrer desses tempos. Mas sabemos que houve uma evolução das<br />

formas utilizadas, assim como Felipe Fonseca continua relatando sua experiência:<br />

“A partir de 99 começava uma movimentação interessante, começaram os<br />

blogs, apareceu “O Manifesto Cluetrain” 2 que foi meio que um tapa na cara<br />

falando que internet não é comércio, são pessoas falando com pessoas, que o<br />

hiperlink subverte a hierarquia e uma série de afirmações, todas elas mostrando<br />

ou dando sinais desse novo paradigma que eu acho que é a internet ser<br />

usada como ferramentas para juntar pessoas. De repente já tinha uma certa<br />

movimentação de pessoas interessadas na idéia de copy left e software livre<br />

que, como eu, não necessariamente eram programadores. Eu adorava a idéia<br />

de software livre, mas naquela época em 2000, 2001, 2002 as possibilidades<br />

ainda eram limitadas. Já tinha uma certa movimentação de blogs, eram poucos<br />

blogs no Brasil e fora que estavam preocupados nessa outra maneira de ver<br />

a produção de conhecimento” (FONSECA, F. apud TAVARES, Dissertação de<br />

Mestrado PUC/São Paulo, entrevista no SESC Paulista, 2007).<br />

Essa outra maneira de ver a produção de conhecimento que Fonseca revela, mostra<br />

a indignação do autor, em ver que pessoas também utilizavam a internet para comercializar<br />

e ganhar dinheiro e não estavam interessadas em trocar conhecimentos, experiências ou<br />

diálogos. Ele relatou sobre uma palestra que presenciou e o irritou profundamente, como<br />

ainda revela na mesma entrevista:<br />

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Investigações metodológicas: aproximação entre design e tecnologia<br />

“ [...]. e teve uma noite que eu fui junto com uma das pessoas que estava<br />

também nesse ciclo de blogs e listas de discussão que é o Hernani de<br />

Matos. Nós fomos a uma palestra sobre comunicação móvel patrocinada<br />

por essas operadoras de telefone celular e a palestra foi uma imbecilidade.<br />

Os caras ficaram mostrando e querendo provar que celulares, comunicação<br />

móvel era uma boa maneira de ganhar dinheiro. Não estavam nem um pouco<br />

preocupados e interessados nas questões da produção de conhecimento,<br />

de mobilização de pessoas conversando com pessoas e todas as questões<br />

referentes aos aspectos mais coletivos e mais colaborativos da rede que nós<br />

estávamos tentando começar a entender. Então, saímos daquela palestra<br />

totalmente frustrados com o que seria do futuro de tecnologia móvel no<br />

Brasil e um pouco dessa frustração resultou no desejo de fazer, de ter uma<br />

série de discussões de ter um espaço, de ter um ambiente para conversar<br />

sobre outras possibilidades da tecnologia com quem quisesse entrar e aí no<br />

dia seguinte a gente criou uma lista de discussão com o nome de Projeto<br />

Metáfora. (FONSECA, F. apud TAVARES, Dissertação de Mestrado PUC/São<br />

Paulo, entrevista no SESC Paulista, 2007).<br />

Exemplificando para melhor entendimento<br />

Essa rede criada com o nome Projeto Metáfora que Felipe Fonseca comenta, veio<br />

de uma série de discussões que previa a possibilidade de inserir uma rede sem fio com<br />

placas wireless feita com máquinas recicladas, que permitisse aos usuários trabalhar de forma<br />

interligada, ou seja, numa rede em que uma poderia acessar a outra.<br />

Foi desta série de discussões que surgiu outras idéias, como a de montar uma<br />

ONG para distribuir computadores, ensinar tecnologia aberta à sociedade e fomentar um<br />

debate sobre conhecimentos livres. Essas idéias surgiram, mas a ONG nunca chegou a se<br />

concretizar, pois o grupo que formava o Metáfora, ou seja, pessoas que trocavam idéias pela<br />

internet, discutiam também outros temas, como batalhar doações de computadores usados<br />

e cada pessoa lutaria em busca de doações em sua cidade, montando uma lista de contatos<br />

para futuro uso, quando o projeto estivesse mais estruturado.<br />

Resolveram assim com o passar do tempo, a não criar uma ONG, afinal, tudo teria<br />

que acontecer a partir das experiências e atitudes de cada um. Desta forma foram criando<br />

metodologias aplicáveis coletivas, com trocas de experiências por meio de uma rede organizada<br />

chamada MetaReciclagem, que podemos encontrar no site http://rede.metareciclagem.org/.<br />

As atitudes desse grupo e de outros, que da mesma forma se organizam e trocam<br />

experiências, são além de ativistas, emergentes e também, estão voltadas à dinâmica de<br />

inclusão digital.<br />

Os discursos levantados pelo Metáfora, como a distribuição de computadores, mostra<br />

a vertente para um projeto direcionado à inclusão de pessoas, ou seja, de sustentabilidade.<br />

Este coletivo organizou-se desta forma, se consolidando como MetaReciclagem, mas existem<br />

outras formas de grupos que se organizam, embora sempre com uma metodologia vigente, e<br />

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Investigações metodológicas: aproximação entre design e tecnologia<br />

damos como exemplo o Atelier Lab, de Etiene Delacroix que, segundo Bastos (2009),<br />

“Partindo de uma visão ampla da passagem de um paradigma redutivo, que foi<br />

típico da modernidade, para um paradigma generativo, típico do contemporâneo,<br />

Delacroix coleta resultados de uma prática itinerante, na forma de laboratórios<br />

artesanais criados com equipamentos de segunda mão. Ele recria estes<br />

componentes geralmente tidos como inúteis, em oficinas onde também ensina<br />

aos participantes os fundamentos de seu funcionamento. O trabalho de Delacroix<br />

lida com as figuras mínimas de linguagem digital, dissolvendo a distancia entre<br />

hardware e software, em abordagem que desafia os estereótipos mais simplistas<br />

sobre as formas de difusão do conhecimento na era da tecnologia”. (BASTOS,<br />

2009, p. 29)<br />

O Professor Etienne Delacroix, físico e pesquisador belga, desenvolve ações<br />

pedagógicas inovadoras com recursos computacionais, visando apropriação criativa por<br />

crianças e adolescentes, por meio de dejetos computacionais, desmistificando a linguagem<br />

eletrônica. Bastos relata que práticas desse tipo tornaram-se comuns. Ele cita, Rob Van<br />

Kranemburg, em The Internet of Things no qual descreve: “[...] o termo Bricolab foi cunhado<br />

pelo coletivo estilingue como parte de uma idéia de MetaReciclagem, sendo implementada no<br />

Brasil, com o nome Bricolabs. Este termo vem descrever uma narrativa colaborativa que pode<br />

ser escrita por muitas vozes, a minha sendo uma apenas”.<br />

Segundo Bastos, “[...] são experiências que serviram, como inspiração para a<br />

política de criação de pontos de cultura do governo brasileiro, tornando-se parte<br />

da equação uma demanda quantitativa que se descontextualiza dos debates<br />

propostos originalmente em recomendações como o Atelier Lab ou Bricolabs.<br />

(BASTOS, 2009, p. 29).<br />

Ações como essas de ativismo, inclusão e sustentabilidade trabalhadas e criadas<br />

por coletivos, são tipos de metodologias voltadas a uma forma de design emergente de<br />

reapropriação tecnológica para transformação social. Como afirmam os autores Bronac Ferran<br />

e Felipe Fonseca no site Desvio, o Brasil criou pontos de cultura quando implantou, na época<br />

do ministro Gilberto Gil, entre 2003 a 2007 um programa chamado Cultura Digital.<br />

O programa chamou atenção internacional é o que veremos a seguir com os autores<br />

Ferran e Fonseca, no site Desvio. Disponível em: weblab.tk/pub/mapeamento.br<br />

“ [...] foi uma iniciativa engajada em movimentos sociais e culturais dentro do<br />

país, entre eles a aliança de ativistas de software livre e de código aberto e<br />

hackers com um ministro e sua equipe que estavam engajados não apenas<br />

com a retórica, mas também com a realidade da abertura de recursos de mídias<br />

digitais para jovens do Brasil desenvolveram protagonismo, independência e<br />

autonomia. “[...]” A transformação começa quando crianças nas comunidades<br />

reconhecem os dispositivos de tecnologias digitais como ferramentas de<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 195


Investigações metodológicas: aproximação entre design e tecnologia<br />

performance cultural, como fonte de referências diversas, como plataformas<br />

para criação estética e ressimbolização de suas experiências. Em outras<br />

palavras, a transformação social inicia quando elas entendem o ciberespaço<br />

como um território delas próprias, quando entendem o upload antes mesmo<br />

de ouvir sobre download, quando começam a publicar. Este é o momento<br />

exato em que o empoderamento acontece. Pura magia!” . (Disponível em:<br />

desvio.weblab.tk/pub/mapeamentobr – dom, 14/06/2009 - 18:17 - acesso<br />

06/06/2006.<br />

Reciclagem, uma junção de vantagens.<br />

A idéia de recuperar computadores de segunda mão, nos trás várias terminologias<br />

com a mesma finalidade como: a reciclagem, MetaReciclagem, Bricolab ou qualquer outra<br />

denominação que surja nos remete, além de uma questão educacional inclusiva, a uma<br />

consciência ecológica. Os computadores, no seu reuso por práticas e métodos como aqui<br />

citados, evita que peças de computadores sejam jogadas no lixo e impede que aconteça uma<br />

série de complicações ambientais. Essas novas máquinas feitas de sucata tecnológica ficam à<br />

margem do mundo dos negócios, como é o caso da MetaReciclagem, por exemplo. Segundo<br />

Tavares, a indústria provoca essa sobra de equipamentos com a grande produção de modelos<br />

novos, tornando os usados em baixo ou nenhum custo.<br />

“[...] por conta da falsa obsolescência incentivada pela indústria, e que,<br />

conseqüentemente, possui valor comercial baixo ou praticamente nulo. Com a<br />

sucata, novos computadores são construídos, as máquinas passam a pertencer<br />

àqueles que as reciclaram (e não mais “ao projeto”), permitindo abrir os<br />

computadores, examinar minúcias, construir conhecimento a partir dos meios<br />

de evolução da tecnologia”. Como meio de operar essas máquinas e permitir<br />

também o efetivo domínio da tecnologia do software, é utilizado o software livre,<br />

que também permite a adaptação de códigos e uma distribuição legalizada dos<br />

computadores e dos sistemas utilizados. (TAVARES, 2007, p.12).<br />

Segundo os autores William McDonough e Michael Braungart ao citar Bastos, 2007,<br />

reciclar apenas dejetos não é suficiente, é necessário remodelar o conjunto de metodologias<br />

em voga, para que se alcancem soluções nas quais haja total aproveitamento dos materiais,<br />

ou seja, dessa forma não haverá dejetos. Nesse sentido, a reciclagem deve passar por um<br />

novo paradigma, “[...] um ciclo virtuoso de reaproveitamento<br />

A Reciclagem recebe também outro adjetivo, ganha mais uma terminologia, a<br />

“Gambiarra”, que Ricardo Rosas, (2001) cita Meggs. Philip, e Purvis, Alston,<br />

diz ser utilizada por artistas e ativistas por meio de alterações, modificações,<br />

recriações de máquinas para novos usos. Porém, o que existe até o momento<br />

não trás nenhuma novidade, pois a metodologia de reciclagem já era utilizada,<br />

desde longa data, por artistas e ativistas que tinham sua mente povoada de<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 196


Investigações metodológicas: aproximação entre design e tecnologia<br />

imaginação. Sua interpretação sobre gambiarra fica clara na citação a seguir:<br />

em que não há restos ou sobras”. “[...] A gambiarra, é sem dúvida uma<br />

política.” (BASTOS, M. 2007 p. 6 ).<br />

Tal política pode se dar não apenas enquanto ativismo (ou ferramenta de suporte para<br />

ele) mas porque a própria prática da gambiarra implica uma ação política. E, consciente ou<br />

não, em muitos momentos a gambiarra pode negar uma lógica produtiva capitalista, sanar uma<br />

falta, uma deficiência, uma precariedade, reinventar a produção, utopicamente vislumbrar um<br />

novo mundo, uma revolução, ou simplesmente tentar curar certas feridas abertas no sistema,<br />

trazer conforto ou voz a quem são negados. A gambiarra é ela mesma uma voz, um grito<br />

de liberdade, de protesto ou, simplesmente, de existência, de afirmação de uma criatividade<br />

inata”. (ROSAS, apud MEGGS e ALSTON, 2001, p. 47).<br />

<strong>Tecnologia</strong> e arte podem se unir<br />

Compreendemos que a gambiarra também surge de aproveitamento de materiais que<br />

pode ser utilizado como forma de arte pela reciclagem de produtos obsoletos. Essa pode ser<br />

uma boa solução ecológica até que não seja implantado outras formas de reaproveitamento da<br />

matéria prima. Ribeiro (2009) descreve a idéia dos autores McDonough e Braungart, quando<br />

afirmam que se por parte da indústria tivesse outra visão na hora da concepção do produto,<br />

talvez não houvesse tanta obsolescência e problemas ambientais.<br />

“A minimização de impactos pode passar pela adoção da visão, “Berço ao<br />

Berço” (em Cradle to cradle), que tem como base, a idéia de que resíduos<br />

de um determinado produto possam ser as matérias primas deste mesmo<br />

produto ou de outro, ou seja, a aplicação de um bom design não só na parte<br />

da concepção do desenho mas também na escolha de materiais permitindo<br />

que o produto se recicle (os seus materiais e componentes) não existindo um<br />

tumulto de materiais”. (MACDONOUGHM e BRAUNGART, 2009, p.19 apud<br />

RIBEIRO, 2002).<br />

Quem sabe um projeto de design bem elaborado no momento da fabricação do produto,<br />

ainda na indústria, poderia ser a solução. Uma reflexão mais apurada dos meios responsáveis<br />

poderia criar a possibilidade de uma nova cultura de mudança quando da concepção do<br />

produto, como também, levar a entender de onde e como surgiu a necessidade de criar ações<br />

de reciclagem com lixo computacional, desenvolvendo com isso, um percurso histórico.<br />

Percebemos que a realidade que se apresenta hoje é uma grande quantidade de lixo<br />

computacional no mercado e o contato com o computador coloca a arte como um valor<br />

metodológico aplicado em coletivos, como afirma Hernani Dimantas.<br />

“A arte tem um valor didático. Explorar o computador não é apenas uma relação<br />

de dedos e teclados. Explorar o computador é um processo de destruir e<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

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Investigações metodológicas: aproximação entre design e tecnologia<br />

aglutinar. Filosofia e tecnologia se juntam para desvendar o mistério do mundo.<br />

Vamos pensar na inteligência coletiva, ou na catalização do conhecimento<br />

através da colaboração entre pessoas. Pensar na inteligência coletiva é se<br />

colocar para fora do ser. Pensar na máquina é levar o conhecimento para fora<br />

da caixa cinza. Nas redes oferecemos múltiplas experiências”. (DIMANTAS, H.<br />

2009, p.06).<br />

Essa pode vir a ser uma saída para resolver a sobra de lixo computacional, caso um<br />

dia seja implantada a idéia desses autores que acreditam que existem alternativas mais<br />

eficientes do que a reciclagem. Eles sustentam que a reciclagem está atrelada a um ciclo de<br />

industrialização problemática, na medida em que estimula a obsolescência, e defendem que<br />

é preciso pensar outras maneiras de industrialização mudando, desta forma, o funcionamento<br />

e a mentalidade da empresa.<br />

Portanto, podemos pensar a reciclagem ou qualquer outra terminologia usada para a<br />

mesma finalidade, como fator educativo, para isso é necessário a inclusão digital nas escolas,<br />

formando alunos com possibilidades de ver o mundo com outros olhos. A Fundação Intel<br />

investiu, entre 1989 e 2002, US$ 700 milhões em educação por meio de suas subsidiárias,<br />

inclusive no Brasil. Conforme o artigo “Giz”, caderno e Multimidia, da Revista Inclusão<br />

Digital editado pela São Paulo Plano de Negócios, existe no Brasil a Fundação para o Futuro,<br />

patrocinada pela Clubhouse.<br />

Ela apresenta uma iniciativa que proporciona a jovens de comunidades carentes,<br />

acesso a equipamento de alta tecnologia, software profissional e monitores adultos para<br />

ajudá-los a desenvolverem a autoconfiança, as habilidades e o entusiasmo pelo aprendizado,<br />

necessários para gerar novas oportunidades e novos futuros. Atualmente, existem mais de 60<br />

Intel Computer Clubhouses em 10 países, sendo que no Brasil as duas unidades do programa<br />

encontram-se no Estado de São Paulo.<br />

Nesse sentido, percebemos a preocupação dos autores dos textos encontrados no<br />

livro “Inclusão Digital”, é de ajudarem aos professores a inserirem em seus planos de aula o<br />

aprendizado da informática, para que os aprendizes possam mais tarde, chegar ao mercado<br />

de trabalho mais preparados, e qualificados como nos mostra na citação a seguir,<br />

“[...] O objetivo é ajudar os educadores a incorporarem as ferramentas e<br />

os recursos tecnológicos em seus planos de aula “[...] ,“[...] o projeto não<br />

é um curso de informática, nem de tecnologia, mas uma metodologia de<br />

ensino. O professor tem o conhecimento básico da informática, que se<br />

soma ao conhecimento específico de sua disciplina e da sua didática.<br />

A idéia é juntar esses dois componentes para desenvolver atividades<br />

pedagógicas”. (Com a palavra a sociedade. Inclusão Digital. São Paulo<br />

Plano de negócios, 2003 s/p).<br />

Todos esses processos coletivos de design emergente citados, objetivam a geração de<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

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Investigações metodológicas: aproximação entre design e tecnologia<br />

renda e a inclusão digital por meio de autonomia tecnológica. Essas redes colaborativas, com ações<br />

baseadas em princípios da reciclagem e do software livre, abrem canais de geração de trabalho<br />

e renda com base nos produtos desse processo, possibilitando obter não apenas o acesso à<br />

tecnologia, à educação, mas à sua efetiva apropriação como meio de desenvolvimento e criação.<br />

Considerações finais.<br />

O artigo aponta para uma conclusão de que o potencial de aprendizagem desenvolvido<br />

por meio do <strong>Design</strong> emergente enquanto método de intervenção educacional obtém não<br />

apenas o acesso à tecnologia, mas proporciona ações coletivas de aprendizagem, estabelece<br />

interações a serem construídas entre os pares, desenvolve apropriação por meio criativo.<br />

Notas<br />

i DRUCKER, Peter Ferdinani. A sociedade pós-capitalista. Tradução de Jr. MONTINGELLI. 21ª.<br />

Editora Cortez São Paulo. 2000.<br />

Referências<br />

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em Percurso: sobre <strong>Arte</strong>, <strong>Tecnologia</strong> e Meio Ambiente, 2009. Disponível em: http://issuu.<br />

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BOMFIM, A G. Fundamentos de uma Teoria Transdiciplinar do design. Disponível em:<br />

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BUENO, S. Mini dicionário da Língua Portuguesa. (Revisado conforme Acordo Ortográfico)<br />

– Silveira Bueno – Editora FTD : 2009.<br />

CAVALLO, D. O <strong>Design</strong> Emergente em Ambiente de Aprendizagem: Descobrindo<br />

e Construindo a partir do Conhecimento Indígena. http://web.media.mit.edu/~cavallo/<br />

Projetoemergente.pdf acesso 29/05/2010.<br />

CAVALLO, D. O <strong>Design</strong> Emergente em Ambiente de Aprendizagem: Descobrindo<br />

e Construindo a partir do Conhecimento Indígena. http://web.media.mit.edu/~cavallo/<br />

Projetoemergente.pdf acesso 29/05/2010.<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 199


Investigações metodológicas: aproximação entre design e tecnologia<br />

COUTO, R. M. S. (Org.), OLIVEIRA, A. J. (Org.). Formas do <strong>Design</strong> - Por uma metodologia<br />

interdisciplinar. Rio de Janeiro: 2AB :1999. v. 1. 191.<br />

DRUCKER, Peter Ferdinani. A sociedade pós-capitalista. Tradução de Jr. MONTINGELLI<br />

21ª. Editora Cortez São Paulo. 2000.<br />

FONSECA, F. Mutirão da Gambiarra História da MetaReciclagem, Histórias de<br />

MetaReciclagem. 1ª Edição Editora Felipe Fonseca, Disponível em:<br />

http://www.mutirao.metareciclagem.org São Paulo Janeiro: 2009. Acessado em 03/2010.<br />

FONSECA F. apud TAVARES . E. L. Conhecimentos livres e novas dinâmicas Políticas: O<br />

Significado do Coletivo Metareciclagem Tese de Mestrado – PUC/São Paulo Belo Horizonte<br />

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acesso 06/06/2010.<br />

FONSECA, F. ; Ferran, B. Cartografia de Novas Mídias e Cultura Digital no Brasil.<br />

Disponível em: http://desvio.weblab.tk/pub/mapeamentobr :14/06/2009.<br />

FREIRE, Paulo. Professora sim, tia não, cartas a quem ousem ensinar. Olho D’agua São<br />

Paulo: 1997.<br />

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido.17ª ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra: 1987.<br />

INCLUSÃO DIGITAL, Com a Palavra a Sociedade. Coordenação Geral I Lia Ribeiro Dias. II<br />

FIGUEROA, Pio. São Paulo Plano de Negócios: 2003. (Vários Colaboradores).<br />

JOHNSON, S. Emergência: a vida integrada de formigas, cérebros, cidades e softwares.<br />

Tradução: Maria Carmelita Pádua Dias. Rio de Janeiro, Jorge Zahar : 2003. (Interface)<br />

McDONOUGH. W e BRAUNGGART. M. Cradle to Cradle Nort Point Press : 2002.<br />

RIBEIRO, M. M. Pedro. Desenvolvimento de mobiliário infantil de exterior numa óptica<br />

de ecodesign. Dissertação (Engenharia do ambiente) - Faculdade de Ciências e <strong>Tecnologia</strong><br />

da <strong>Universidade</strong> Nova de Lisboa: 2009.<br />

ROSAS, Ricardo. Gambiarra apud MEGGS E ALSTON Rio de Janeiro Ed. Objetiva: 2001.<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 200


CECíLIA MEIRELES: DEFENSORA DA EDuCAçãO MODERNA, DAS<br />

ARTES E DO CINEMA NA EDuCAçãO<br />

Ana Mae Barbosa; Professora Dra. do PPG em <strong>Design</strong>: <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />

Resumo<br />

Este texto contextualiza alguns escritos de jornal de Cecília<br />

Meireles que não foram incluídos em suas obras completas .São<br />

textos que visavam a modernização da Educação e do ensino das<br />

artes e do Cinema no Brasil. Outro objetivo de Cecília Meireles era<br />

a internacionalização do dialogo educacional.<br />

Palavras-Chave: cinema; artes visuais; educação<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

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Cecília Meireles: defensora da Educação Moderna, das <strong>Arte</strong>s e do Cinema na Educação<br />

Muito se tem escrito sobre a atuação de Cecília Meireles na área da educação. A reunião<br />

de seus escritos de jornal sobre o assunto no quinto volume da edição de suas obras completas<br />

contribuiu largamente para o entendimento da história da educação nos primeiros anos do<br />

Estado Novo que ela ousa criticar muitas vezes de maneira sutil, como obrigava a situação de<br />

censura e perseguição a educadores, jornalistas e intelectuais. Na crônica de 6 de setembro<br />

de 1941 no jornal A Manhã do Rio de Janeiro ela escreveu: “Estes dez anos diferentes que<br />

o Brasil tem vivido aconteceu coincidirem agora com uns anos bem diferentes para o resto<br />

do mundo. Sejam quais forem os resultados finais destes graves dias, o indiscutível é que o<br />

homem não está humanizado”. Palavras proféticas pois o nazismo estava em plena ascensão<br />

na Alemanha e a perseguição aos judeus e comunistas, também em toda a Europa Ocidental.<br />

Ela termina a crônica dizendo:<br />

Qual é esta educação que tornará o homem bom sem ser débil, forte sem ser<br />

monstruoso, livre de todos os excessos e fanatismo e equilibrado ao mesmo<br />

tempo no universo a que pertence, na sociedade em que vive e no indivíduo<br />

que é? i (MEIRELLES, 2001:38)<br />

Como a obra educadora de Cecília Meireles vem sendo muito estudada vou me restringir<br />

aqui ao aspecto internacionalista de sua atividade de publicista da educação, especialmente<br />

seu esforço para interrelacionar a cultura da América Latina e a sua grande paixão pelo cinema,<br />

tendo chegado a ser sub-Diretora Técnica da Instrução encarregada justamente do cinema.<br />

Farei isto através de duas entrevistas uma feita com ela e outra feita por ela com um educador<br />

uruguaio que viera ao Rio para a inauguração da Escola Uruguai, de volta de uma viagem de<br />

estudos à Europa e aos Estados Unidos para visitar especialmente o Teachers College da<br />

Columbia University, meca também dos escola novistas do Brasil.<br />

No Diário de Notícias de 10/7/1930 em sua página de educação Cecília Meireles anuncia<br />

conferência do reitor da <strong>Universidade</strong> de Montevidéu:<br />

As linhas gerais do ensino secundário no uruguai<br />

O Dr. José Pedro Segundo, professor uruguaio e reitor da <strong>Universidade</strong> de<br />

Montevidéu, que se acha no Rio, como já noticiou o DIÁRIO DE NOTÍCIAS, em missão de<br />

intercâmbio intelectual com o seu colega Dr. Dardo Regules, fez ontem na Associação<br />

Brasileira de Educação, uma interessante conferência que foi presidida pelo Dr. Cícero<br />

Peregrino, reitor da <strong>Universidade</strong> do Rio de Janeiro, e teve a presença de muitos<br />

professores dos nossos estabelecimentos de ensino.<br />

Dissertando sobre as linhas gerais do ensino secundário no Uruguai, o<br />

reitor da <strong>Universidade</strong> de Montevidéu apresentou ao auditório um quadro exato do<br />

desenvolvimento lançado pelo seu país nesse ramo de instituição.”<br />

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Cecília Meireles: defensora da Educação Moderna, das <strong>Arte</strong>s e do Cinema na Educação<br />

A imagem, que ilustra esta nota, é um aspecto da mesa tomado quando o professor<br />

José Pedro Segundo fazia a sua conferência que não consegui recuperar tão bem como a<br />

caricatura que ilustra a entrevista que se segue, com Crescencio Cóccaro:<br />

Figura 1 - Desenho de Correia Dias para o Diário de Notícias em 10/07/1930<br />

Conversando com o inspetor Crescencio Cóccaro<br />

Os problemas da educação em várias partes do mundo<br />

CECILIA MEIRELES<br />

(Especial para o Diário de Notícias)<br />

Preliminarmente, devo declarar que todos os discursos que se pronunciaram por<br />

ocasião da inauguração da Escola Uruguai, foram excelentes. Dito isso, permitam-me<br />

acrescentar, agora que, de todos, o que mais me interessou foi o do inspetor Crescencio<br />

Cóccaro.<br />

Por que?<br />

Vejam por que: todas as pessoas, que falaram, tiveram, mutuamente, palavras<br />

de admiração por alguns grandes vultos do Uruguai e do Brasil; todos fizeram votos<br />

por uma perene amizade entre esses dois povos; e, se uns diziam que o Uruguai não se<br />

detinha na sua fronteira e se prolongava pelo território brasileiro, outros, por sua vez,<br />

afirmavam, com a mais sincera e comovedora convicção, que o Brasil se continuava<br />

pelo Uruguai abaixo, atraído pela simpatia da república oriental. E assim se esforçaram<br />

todos por demonstrar este afeto real, este parentesco amistoso que aproxima as terras<br />

de Artigas e de Rio Branco.<br />

O Sr. Crescencio Cóccaro, porém, lembrou-se de dizer uma coisa ainda mais<br />

interessante que essas. Parece impossível, não é? Pois escutem; o Sr. Crescencio<br />

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Cecília Meireles: defensora da Educação Moderna, das <strong>Arte</strong>s e do Cinema na Educação<br />

Cóccaro disse que, no seu país, se cuidava da revisão dos textos escolares, a fim de<br />

que não ficasse, em nenhum deles, uma linha que pudesse lembrar, de qualquer modo,<br />

qualquer luta que haja existido entre o Uruguai e outros povos...<br />

Isto significa o seguinte: que, além de amizades presentes e futuras, evidentes<br />

e insofismáveis, o Sr. Crescencio Cóccaro ofereceu a oportunidade de nos revelar<br />

um Uruguai que reabilita algum tempo passado que, por desgraça não tinha sido de<br />

completa cordialidade; mostra-nos um povo que, não só quer ser irmão, nas horas de<br />

paz, como deseja remediar as desavenças antigas.<br />

Essa pequena informação, no meio de um discurso, fez-me ver claramente as<br />

qualidades de educador que possui o inspetor Cóccaro. E desde ai não mais o perdi de<br />

vista.<br />

uMA APRESENTAçãO<br />

Eu já estava resolvida a pedir-lhe uma entrevista. Mas, para proceder por um<br />

método gradativo, comecei por pedir-lhe o discurso. O Sr. Crescencio Cóccaro,<br />

entretanto, não m’o quis dar. E sabem por quê? Simplesmente porque o inspetor nunca<br />

publicou escrito algum. E, com aquele seu ar de generosidade sem limites, simples,<br />

cordial, feliz, disse-me, sorrindo:<br />

_ “Nós somos professorezinhos... apenas... nada mais...”<br />

_ Por isso mesmo é tanto...<br />

Ainda que, depois disto, eu não tivesse trocado mais nenhuma palavra com Sr.<br />

Cóccaro, a minha opinião a seu respeito já estaria devidamente consolidada. Toda a sua<br />

personalidade de educação estava naquela frase do discurso e nesta da apresentação.<br />

Feliz aquele que pode dizer: “Sou apenas um professor, e não desejo ser nada mais!”<br />

Depois, voltando à cidade com a delegação uruguaia, tive ocasião de saber que,<br />

além da sua visão pessoal em educação é preciso atender com especial cuidado à sua<br />

formação, para manter de pé os ideais acordados.<br />

Foi por ai, justamente, que começou a nossa palestra.<br />

NOTAS SOBRE O MAGISTéRIO NO uRuGuAI<br />

O Curso Normal no Uruguai é de 6 anos, sendo 4 de ensino secundário e os dois<br />

últimos de metodologia, prática escolar etc. Terminado o curso, o normalista ainda faz<br />

um concurso, a fim de poder ser nomeado.<br />

_ “Mas, em matéria de questões de educação, tinha o ilustre inspetor uruguaio<br />

um vasto conhecimento dos problemas pedagógicos contemporâneos, acabando de<br />

realizar uma viagem pela Europa e América, em missão do seu país, justamente para<br />

observar o que, nesses assuntos, se vai realizando pelo mundo.<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

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Cecília Meireles: defensora da Educação Moderna, das <strong>Arte</strong>s e do Cinema na Educação<br />

Com grande alegria, portanto, marcamos a palestra do dia seguinte, tanto mais<br />

que o Sr. Cóccaro me punha inteiramente à vontade dizendo:<br />

_ “As coisas que interessam não se pedem nem se concedem por favor. É um<br />

direito. E nem ao menos terá de me agradecer.<br />

“(Vamos concordar que seja realmente um direito, Sr. Inspetor. Deixe-me, porém,<br />

também ter esse de lhe oferecer todos os meus agradecimentos!)<br />

A ENTREVISTA<br />

O Sr. Crecencio Cóccaro é uma dessas criaturas em que já exteriormente se vê a<br />

natureza dadivosa e exuberante que possuem. Alto, forte, simples, com uma expressão<br />

de quem está acostumado a pousar as mãos carinhosamente na cabeça das crianças.<br />

Sem dúvida nenhuma, quando se trata da nova orientação educacional, o<br />

problema principal que nos aparece é o da formação do professor, porque, se do<br />

professor depende esta nova era, concursos e exames, disse-nos o inspetor Cóccaro,<br />

o nosso ponto de vista é sempre este: reprovar o menos possível.<br />

“(Ficamos pensando nos conceitos de Eisntein sobre a maneira comum de<br />

examinar, em que os professores, em geral, se esforçam por fazer o aluno mostrar o<br />

que não sabe, quando justamente se deviam esforçar por fazerem-no revelar o que<br />

conhece...)<br />

_ “Além disso, continuava ele, os concursos não provam nada... Moças com<br />

um curso belíssimo, e cuja capacidade ninguém ignora, podem fracassar, por várias<br />

circunstâncias, disputando um lugar que outras facilmente conquistam, com menos<br />

aptidões embora, com mais serenidade...<br />

“(Nesse ponto ocorreu-nos a força irresistível de pistolão. Mas, não tivemos<br />

coragem para perguntar nada sobre isso, porque estamos em dúvida se é privilégio<br />

nacional...)<br />

Quanto à prática escolar, faz-se em diversas escolas uruguaias, e não numa,<br />

apenas, como aqui.<br />

Há em particular cuidado na promoção dos professores. Os preferidos são os<br />

que mais se dedicam à escola.<br />

“Aqueles, dizia-nos o inspetor Cóccaro, que, nas quintas-feiras ficam preparando<br />

planos, jogos, brinquedos para os seus alunos”.<br />

Atualmente, pretende-se a unificação das classes. Parece que a opinião do nosso<br />

interlocutor não é favorável a esse respeito.<br />

IMPRESSõES DOS ESTADOS uNIDOS<br />

De tudo quanto viu nas suas viagens, parece que são as impressões dos Estados<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

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Cecília Meireles: defensora da Educação Moderna, das <strong>Arte</strong>s e do Cinema na Educação<br />

Unidos as que mais acentuadamente se fixaram no interesse do professor Crescencio<br />

Cóccaro.<br />

Notas sobre a organização escolar. Sobre as edificações e o aparecimento das<br />

escolas. Sobre o sentido social da educação americana.<br />

Depois de uma referência a High School da Philadelfia a conversa se encaminha<br />

para o “Teacher’s College” da Unuiversidade de Columbia.<br />

O “Teacher’s College” dá acesso central a duas instituições. Uma, a “Lincoln<br />

School, em que se experimentam todos os métodos, sem distinção de proveniência.<br />

As classes são reduzidíssimas. Verdadeiros laboratórios pedagógicos. Em cada sala<br />

um piano ... Compõem-se poesias.... E o inspetor Cóccaro, descreve-nos a aula,<br />

a professora sentada com os alunos; uma outras professora tocando ao piano uma<br />

música. A primeira canta com as crianças a letra correspondente à música tocada.<br />

Depois vai substituindo as palavras, isto é, compondo outra cantiga, que se sustenta<br />

sobre arcabouço da primeira musica.<br />

As classes têm vinte e dois alunos.<br />

E, nesse ponto, o inspetor uruguaio nos manifesta a sua opinião: acha que as<br />

classes devem ser mais numerosas. Se é preciso pôr a criança em contato com a vida,<br />

fornecer-lhe inúmeras experiências, convém acostumá-la ao ambiente mais aproximado<br />

daquele em que terá de viver, isto é, o mundo, com toda a sua população...<br />

Em seguida, fala-nos das classes de aperfeiçoamento magisterial. Umas de 2<br />

anos, outras de 3, tentando estas últimas a prevalecer. Vão a essas classes, nos Estados<br />

Unidos, os professores que não saem da “High School”.<br />

Refere-se, com entusiasmo, às chamadas Escolas de Continuação (Continuation<br />

Schools) ii , destinadas às pessoas que, pertencendo a uma profissão qualquer, mas<br />

desejando ingressar noutra, fazem os estudos necessários, auxiliadas pelos patrões,<br />

que assim sentem favorecer um futuro bom operário, vendo nisso um proveito nacional.<br />

Tem duas palavras para apreciar as aulas de costura com umas cento e cinquenta<br />

máquinas elétricas, as aulas de datilografia, com certeza de duzentas máquinas de<br />

escrever, e os Institutos de Beleza, sempre repletos de estudantes, que, assim que se<br />

diplomam, logo encontram colocação. As Escolas de <strong>Moda</strong> são, a seu ver, um triunfo<br />

americano sobre o velho prestígio francês. Rapidamente nos descreve uma das suas<br />

classes, em que as aprendizes projetam modelos de vestidos segundo um certo tipo.<br />

Ou dadas certas condições.<br />

E fala-nos, retrocedendo à fase inicial da escola, aos Jardins de Infância<br />

americanos.<br />

_”Em todas as Escolas dos Estados Unidos _ diz,_ há uma classe para crianças<br />

de cinco anos.<br />

As crianças de cinco anos têm uma grande importância, para o inspetor Cóccaro.<br />

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Parece-lhe que possuem capacidades particulares, nessa idade.<br />

E, antes que ele nos dissesse, já tínhamos visto que, se alguma coisa o pudesse<br />

interessar mais particularmente, dentro dos assuntos educacionais, seria o problema<br />

do Jardim da Infância.<br />

JARDINS DA INFâNCIA<br />

Deixaram-lhe muito boa impressão os Jardins da Infância, de Hamburgo. Mas<br />

não teve tempo de nos pormenorizar as razões, porque logo lhe acudiu o problema<br />

uruguaio: ainda não há, na sua terra, Jardins desses em todas as escolas. E isso<br />

certamente interessa, porque insiste, com amor, nas aptidões das crianças de cinco<br />

anos, e conta-nos o seguinte:<br />

Fez-se uma representação da história de Chapeuzinho Vermelho, com as crianças<br />

dessa idade. Não se ensinou como representar. Contou-se a história, e deixou-se a<br />

interpretação correr por conta dos pequeninos atores. Imagine-se o que aconteceu:<br />

a criança que fazia o lobo, depois do sacrifício da avozinha, escondeu atrás de uma<br />

árvore a criança que representava esse último personagem, a fim de figurar, por meio<br />

dessa ausência, que a tinha devorado.<br />

Parece-lhe admirável, esse rasgo de inteligência. E concordamos, convictamente.<br />

Até reagindo contra a lição-modelo, existe a Escola de Tirocínio.<br />

_ “E como se adapta o professor que só assistiu ao Jardim da Infância, tendo de<br />

enfrentar o curso primário?”<br />

_ “Isso mesmo nos perguntávamos nós, explicou o inspetor Cóccaro. Mas é<br />

que daí, passam para o primeiro ano, seguem com o segundo, e, depois disso, então<br />

habilitados para trabalhar com qualquer classe.<br />

No Uruguai há certa dificuldade em tirar do Jardim da Infância o professor que a<br />

ele se acostumou.”<br />

E como ainda se falasse na Itália, o nosso interlocutor disse:<br />

_ Há mais uma coisa interessante na Itália. Em Roma e Florença, o Instituto Superior<br />

do Magistério prepara especialmente diretores de escola, inspetores e professores para<br />

a Escola Normal”.<br />

(Ai está uma boa sugestão, pensamos nós. Mas logo em seguida refletimos que<br />

não se pode, por enquanto, pensar em coisas tão transcendentes. E..... o inspetor<br />

Cóccaro também parece um pouco séptico com os resultados...)<br />

O DóLAR<br />

Não sabemos como se insinuou o dólar na nossa conversa. Mas o certo é que o Sr.<br />

Cóccaro me falou em 106 dólares, vencimento do professor americano, e no projetado<br />

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aumento de vencimentos do professor uruguaio.<br />

Fiquei um pouco pensativa. Mas não tanto que prejudicasse a atenção com o que<br />

seguia a conversa. E, precisamente nesse instante, o inspetor Cóccaro nos contava o<br />

seguinte:<br />

_ “Em Boston, os homens ganham mais que as mulheres. É muito justo, porque,<br />

em regra, são os responsáveis pela família”.<br />

Por questão de solidariedade feminina, não concordamos integralmente.<br />

_ “Pois sabe o que fizeram as mulheres em Boston? Declararam que só dariam<br />

seu voto para deputado ao cidadão que se comprometesse a igualar os vencimentos...”<br />

Como se vê, nem exemplo podemos aproveitar...<br />

EDuCAçãO ESTéTICA<br />

Já vimos como na “Lincoln School” se estuda canto e música ao mesmo tempo<br />

que se compõem pequenos trechos de verso.<br />

Na “Junior High School”, diz-nos o Sr. Crescencio Cóccaro, há cursos de<br />

interpretação musical em que se traduzem os sons em coros. Quer dizer, já não é,<br />

apenas, o ritmo, traduzido em linhas, aplicado a motivos de decoração – mas a impressão<br />

sonora transformada em impressão visual.<br />

Falando em grande respeito da cultura musical dos alemães, e dos cursos de<br />

descrição oral das passagens de certas músicas, antes da sua execução, tem ainda<br />

referência para a Escola Profissional que funciona, na Áustria, onde foi a célebre Escola<br />

de Cavalaria, escola em que as crianças aprendem a esculpir utilizando um sabão<br />

especial para esse fim, e onde a gravura em madeira é tratada com particular carinho,<br />

bem como a arte tipográfica, e a da publicidade, na parte referente a cartazes.<br />

MuSEuS<br />

As suas últimas palavras são para os museus.<br />

Fala-nos dos museus de animais vivos de Berlim. E ambos nos concentramos,<br />

um pouco emocionados sobre um pensamento comum:<br />

_ “Os museus de animais conservados são detestáveis. Ensinam a morte. Ensinam<br />

a matar.”<br />

E eu, recordando Tagore, pude concluir apenas:<br />

_ “Um pássaro empalhado não tem nada a ver com o pássaro que a natureza<br />

nos oferece. A sua personalidade não está na disposição das penas. O feitio do bico,<br />

no tamanho das patas. O pássaro é o seu movimento, o seu vôo, o seu canto, as suas<br />

expressões...”<br />

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TERMINANDO<br />

Ao terminar a palestra, quis o Sr. Cóccaro, por extrema gentileza, fornecer-nos<br />

alguns dados sobre a situação do ensino no seu país. E disse-nos:<br />

_ “Pela lei de 26 de outubro de 1926, foram votados cem milhões de pesos para<br />

edificações escolares: 50 mil pesos para mobiliário etc.; 45 mil para livros de leitura<br />

(porque o governo uruguaio adquire as edições para as escolas); 130 mil para material<br />

escolar; 25 mil para o material científico; 10 mil para bibliotecas; 5 mil para a aquisição<br />

de lanternas de projeção; 26 mil destinados, unicamente, ao serviço de varrer a escola...<br />

Não se pagam materiais para exame. Há 27 mil pesos destinados aos examinadores; 26<br />

mil para excursões; 200 mil para copos de leite, cantinas etc. Mas, nessa obra, gastamse<br />

600 mil pesos. A diferença é fornecida pelas comissões de pais. Para roupa e calçado,<br />

há uma verba de 30 mil pesos..<br />

Mas há um projeto para elevar esses algarismos. Não nos lembramos bem se os<br />

pretendem duplicar ou triplicar, mas é qualquer coisa assim grandiosa.<br />

IMPRESSãO FINAL<br />

O Professor Crescencio Cóccaro mostrou-se, em toda a palestra como o<br />

advinharamos pelo discurso.<br />

Disse-nos coisas assim:<br />

_ “Nos Estados Unidos ensinam a criança a significação da vida. Ela sabe lidar<br />

com dinheiro, desde pequena... Compra o seu “copo de leite”. Nós achamos que a<br />

criança, pelo próprio fato de ser criança, deve viver isenta dessa preocupação. Tem<br />

direito à sua infância...”<br />

Não é uma opinião digna de respeito?<br />

Mais adiante:<br />

_ “Mas, os Estados Unidos têm esta coisa excelente: são ecléticos, em métodos.<br />

Estudam tudo. E procuram dar a todas as crianças as mesmas possibilidades.”<br />

Sobre métodos, ainda, observou:<br />

_ “Na minha opinião não há método melhor que o professor perfeito. Quando se<br />

sai da aula, sentindo o contato com a alma da criança, pode-se ter certeza de que ela<br />

também ficou sentindo o contato da nossa alma...<br />

23/07/1930<br />

Cecília Meireles deu sempre grande ênfase a necessidade de estabelecermos relações<br />

com nossos colegas da América Latina. Convidou para escrever e prestigiou Gerardo<br />

Seguel,chileno, arte/educador e poeta na sua página de educação do Diário de Notícias e não<br />

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poupava espaço no jornal para elogiar os colegas desta parte do mundo em que vivemos.<br />

Vejamos o que escreveu sobre Gabriella Mistral, também como Seguel, chilena, poeta,<br />

educadora que veio posteriormente a receber o Premio Nobel.<br />

Gabriella Mistral e o Cinema Educativo<br />

Gabriella é um nome que pertence a toda a América.<br />

A poetisa de tão humano sentir que tem repartido o seu coração em cada verso e<br />

pensadora que tem sido nos lábios tanta palavra de fé nos destinos humanos formaram,<br />

juntas, a educadora que, de olhos fitos no futuro do mundo, calcula com exatidão<br />

toda a responsabilidade que nós, os adultos, temos na formação da infância, dessa<br />

infância cujos direitos ela tão bem interpretou por ocasião de uma das Convenções de<br />

Professores americanos.<br />

Dessa notável mulher, que na Liga das Nações representa com elevação o seu<br />

país, oferecemos hoje aos nossos leitores esta opinião sobre o ensino da geografia por<br />

meio do cinema:<br />

“o mapa só fala ao geógrafo. A criança – e os adultos que ainda têm a mesma<br />

sensibilidade da infância – sente pela carta geográfica uma antipatia que eu conheci em<br />

dez anos desse ramos do ensino. Não se poderia ter inventado coisa mais inerte e mais<br />

estranha para dar a conhecer o concreto e o vital. A maravilha da ilha se transforma<br />

em grão de mostarda; o fjord, um arranhão azul; a linha das montanhas, uma cobrinha<br />

escura sem nenhuma sugestão. O mapa fica mais longe da criatura de dez anos que um<br />

problema teológico.<br />

Este mapa pedante e paralítico vai se transformar, tomar corpo e viver ao lado do<br />

cinema, ofertador de paisagens viventes. Vai dar voz ao desenho dos rios; vai colorir as<br />

massas oceânicas; vai reviver, galvanizada, a serpente morta e enroscada das grandes<br />

cidades”.<br />

Diário de Noticias – 19/10/30<br />

O entusiasmo de Cecília Meireles pela América Latina e pelas relações com a Iberoamérica<br />

foram muito estimuladas por seu contato com Alfonso Reyes quando foi embaixador do<br />

México no Brasil (1930 a 1938). Ele já era um intelectual importante quando veio para o Brasil<br />

. Desenvolveu uma relação muito fecunda para a aproximação intelectual dos dois países.<br />

É interessante notar que editava um correio literário, Monterrey, através do qual difundiu a<br />

cultura mexicana no Brasil dando chance a alguns poucos escritores brasileiros se fazerem<br />

conhecer no México. A tarefa de intercambio cultural era desequilibrada . Na realidade a função<br />

diplomática de fazer o México conhecido no Brasil prevaleceu. Mas, ele exerceu influencia<br />

estimuladora entre políticos , como o jovem Carlos Lacerda e muito maior entre intelectuais<br />

brasileiros que se tornaram seus amigos como Manuel Bandeira ,Ribeiro Couto, Ronald de<br />

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Carvalho e Cecília Meireles que se correspondeu com ele de 1931 até mais ou menos 1940<br />

.Segundo Regina Aída Crespo , Reyes forneceu a Cecília Meireles “livros e revistas mexicanos<br />

sobre educação e cultura popular” (CRESPO, 2003:207) , assuntos com os quais ela estava<br />

muito engajada .<br />

Como Gabriella Mistral, Cecília Meireles dentre as <strong>Arte</strong>s além da Literatura valorizava<br />

especialmente o cinema, mas nos deixou várias crônicas sobre <strong>Arte</strong> na educação de um ponto<br />

de vista geral e nas <strong>Arte</strong>s Plásticas e no Teatro em especial. Somente no Jornal A Manhã<br />

escreveu 9 artigos sobre o assunto entre agosto 1941 e janeiro de 1942 e acredito que<br />

escreveu muito mais entre 1929 e 1931 no Diário de Notícias.<br />

A interrelação dos arte/educadores dos países Latino Americanos ainda está para ser<br />

construída apesar do Mercosul e principalmente da Bienal do Mercosul que tem uma influencia<br />

muito positiva restrita principalmente ao Rio Grande do Sul<br />

Houve uma extraordinária tentativa como o FLAAC (Festival Latino Americano de <strong>Arte</strong><br />

e Cultura) idealizado por Laís Aderne com a colaboração dos professores da UNB em Brasília<br />

na década de 80. Mais de mil Latino Americanos de todas as Áreas de <strong>Arte</strong>, de fora do Brasil<br />

se reuniram em Brasília para celebrar nossa união. Laís Aderne , poucos anos depois ,quando<br />

era Secretaria de Cultura de Brasília ,organizou outro Festival Latino Americano que não teve a<br />

importância do primeiro, pois imperaram as intrigas políticas e os boicotes contra ela. Nos anos<br />

setenta um Congresso no Rio de Janeiro organizado pela mulher de um político da ditadura<br />

e dono de jornais ,também grandioso, em nada resultou pois era mais uma demonstração<br />

de poder da organizadora que desempoderou os arte/educadores pois convidou para as<br />

palestras principais apenas pessoas famosas e seus amigos. Restou apenas os anais graças<br />

ao trabalho dedicado de Cecília Jucá, que foi além de sua tarefa de designer.<br />

A criação do CLEA, Comitê Latinoamericano de Educação pela <strong>Arte</strong> foi criado em 1984<br />

no Rio de Janeiro. Trata-se do comitê da INSEA que representa a América Latina. Muitos<br />

membros criadores deste Comitê continuam até hoje lutando por intercomunicação e ações<br />

conjuntas, mas não temos dinheiro para estas operações. Apesar disto conseguimos realizar<br />

muitos Encontros e Congressos.<br />

Um livro sobre a História do Ensino da <strong>Arte</strong> na América Latina foi organizado por Manuel<br />

Pantigoso membro fundador e representante do Peru que também tem Myriam Nemes como<br />

sócia fundadora .<br />

Os membros fundadores Victor Kon, na Argentina, Salomon Azar no Uruguai e Dora<br />

Aguila no Chile permanecem como os baluartes do CLEA. Perdemos em 2008 um dos<br />

membros fundadores, a artista e educadora Olga Blinder do Paraguai. Luís Errazuriz do<br />

Chile e eu também somos membros fundadores, contudo nos dedicamos mais a INSEA, da<br />

qual fui presidente do que propriamente ao CLEA. Só nos últimos 14 anos, depois de minha<br />

aposentadoria da USP é que tenho dado maior atenção ao CLEA. Olga Olaya que se juntou<br />

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ao grupo nos anos 90 foi uma força motriz da instituição e trouxe com ela seu orientador de<br />

doutorado Ramon Cabrera de Cuba. Pela primeira vez, nos seus 25 anos de existência, a<br />

Secretaria do CLEA (equivale a presidência) esteve no Brasil, nas mãos competentes de Lucia<br />

Pimentel de 2006 a 2010. Lúcia Pimentel organizou um Congresso em 2009 na <strong>Universidade</strong><br />

Federal de Minas Gerais que juntou o CLEA e a Federação de <strong>Arte</strong> Educadores do Brasil.<br />

A partir de 2008 encontramos na OEI, <strong>Organização</strong> dos Estados Iberoamericanos uma<br />

aliada para intercâmbios e ações comuns que tem organizado e patrocinado encontros e<br />

publicou em 2009 um livro, “Educação artística cultura e cidadania”, organizado por Lucina<br />

Jimenez, Imanol Aguirre e Lucia Pimentel.<br />

Ainda há muito que fazer pelo entendimento Latino Americano em <strong>Arte</strong>/Educação.<br />

Vamos ao outro tópico que apaixonou Cecília Meireles e nos interessa especificamente,<br />

o Cinema, que muitos arte/educadores esquecem que é <strong>Arte</strong>.<br />

A Cultura Visual vem conferindo importância ao Cinema na Educação, mas para não<br />

mediocrizar a escolha e a recepção dos filmes é preciso pensarmos que Cinema é Cultura<br />

Visual mas antes disto é Cinema, como se depreende dos escritos de Alice Martins, uma das<br />

pesquisadoras de cinema na educação mais atuantes do Brasil.<br />

Segue-se uma entrevista concedida por Cecília Meirelles sobre a Cinematografia<br />

Educativa.<br />

A CINEMATOGRAFIA EDuCATIVA<br />

A Sr.ª Cecilia Meirelles, entrevistada pelo O JORNAL, fala sobre a próxima<br />

exposição e relata os resultados obtidos com a sua modesta “empresa” da Escola de<br />

Aplicação.<br />

A sub-Diretora técnica da Instrução, tomando a iniciativa de promover uma<br />

exposição de cinema educativo, que será inaugurada na próxima semana, ocupando<br />

várias salas da Escola “José de Alencar”, no largo do Machado, pôs em foco um dos<br />

problemas mais interessantes dos novos métodos de ensino e educação, cujo emprego,<br />

entretanto, por motivos mais de ordem econômica, não tem sido ainda, mesmo na<br />

Europa e nos Estados Unidos, desenvolvido na amplitude permitida pelo atual progresso<br />

da cinematografia.<br />

A exposição, promovida pelo Sr. Jonathas Serrano, além de reunir elementos de<br />

todas as procedências de serem observados pelo professorado, vai também proporcionar<br />

ao público uma oportunidade para compreender a importância desse poderoso<br />

instrumento educativo que já está sendo introduzido, com vantajosos resultados nas<br />

escolas primárias cariocas, apesar da escassez de recursos da municipalidade.<br />

O JORNAL, completando as informações que já tem publicado a respeito desse<br />

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certâmen, entrevistou ontem a senhora Cecília Meirelles, professora da Escola de<br />

Aplicação e membro da comissão encarregada da propaganda da exposição.<br />

_ “A reforma Fernando de Azevedo – disse, de início, a professora – empresta<br />

ao Distrito Federal o prestígio de poder colocar-se ao lado dos países evoluídos que,<br />

vendo na criança o valor da civilização futura, fazem a sua renovação social, cultural,<br />

filosófica, por intermédio e antecipação do processo educativo.<br />

Esta reforma não é, internacionalmente, uma reforma de métodos. É uma<br />

reforma daquilo que, no ensino, é a própria essência. Como, porém, os métodos são<br />

os caminhos que conduzem a essa alta finalidade, é natural que esses caminhos sejam<br />

também diferentes dos das rotinas antigas, como o obriga o ambiente de constantes<br />

atualidade que a reforma espontaneamente requer”.<br />

uM NOVO LEMA<br />

_ “Um dos elementos de mais imediata importância nas escolas de hoje –<br />

continuou a Sr.ª Cecilia Meirelles – é o cinema educativo. Ao lado do “learning by doing”<br />

das escolas americanas, poder-se-ia inscrever também o “learning by seeing”. Porque,<br />

na verdade, nós, e as crianças, também aprendemos vendo. Há uma generalizada<br />

cultura popular que em grande parte se deve a essa difusão de conhecimento que o<br />

cinema-diversão insensível, mas progressivamente faz.<br />

O cinema nos mostra paisagens de todas as zonas, animais de todas as faunas,<br />

costumes de todos os tempos e regiões. O espírito das épocas e das raças se faz<br />

evidente através dos filmes históricos. E os tempos atuais, com os mais recentes<br />

inventos, com as mais arrojadas aventuras, podem ser vividos e compreendidos em<br />

toda a sua intensidade dentro de poucos minutos sobre uma tela próxima”.<br />

Além de instrutivo, o cinema pode ser considerado até curativo, quando projeta<br />

um Buster Keaton, e filosófico, quando apresenta Chaplin.<br />

Mas o que interessa ao professor, em primeiro lugar, é que a criança, como o<br />

adulto, ou mais que ele, aprecia via mente o cinema. Isso e não mais, seria suficiente<br />

para afirmar que o cinema é uma necessidade das escolas.<br />

Todos que já tiveram oportunidade de fazer uma projeção luminosa numa escola,<br />

qualquer que fosse o assunto, hão de ter observado o seguinte: que o simples fato de<br />

pôr ao alcance da criança (??) cidade: que o cinema ou a simples projeção fixa tem<br />

para a criança uma realidade tão grande que as menorzinhas tentam pegar com as<br />

mãos as figuras projetadas: que, após uma projeção, a lembrança das imagens vistas<br />

é mais nítida e mais duradoura que a das mesmas imagens oferecidas por meio de<br />

uma lição falada, e mesmo pela simples apresentação de figuras. Chego a crer que as<br />

coisas vistas por esse meio sejam mais bem observadas que na natureza quer porque<br />

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a atenção esteja limitada ao campo da tela, quer porque as condições de obscuridade,<br />

a (?) coletiva e outros fatores (???). ?? para que as aquisições se façam com mais<br />

facilidade e proveito.<br />

E um dos fatores básicos é talvez que a criança vai para a sala de projeções com<br />

alegria. E a alegria é uma condição favorável para aprender bem, porque é um estado<br />

orgânico de superatividade em que, com todas as energias elevadas ao mais alto grau<br />

o indivíduo fica com a sua capacidade elevada também ao máximo”.<br />

NECESSIDADE NATuRAL<br />

Justificando as vantagens do novo instrumento de ensino, prosseguiu a professora:<br />

_ “A introdução do cinema nas escolas não obedece, pois, a um capricho da<br />

moda ou a qualquer intenção apenas decorativa. Obedece a uma necessidade natural<br />

a que as circunstâncias do progresso humano podem atender.<br />

Se a nossa vida se resumisse no lugar que habitamos e nas coisas que estão<br />

mais perto de nós, seria tão fácil... ... _ conduzir a criança até essas coisas. Mas a vida<br />

se desenvolve em campos mais vastos. Nós temos de conhecer todo o mundo, e todos<br />

os homens, para compreendermos certas coisas universais. E o cinema, o cinema<br />

bem orientado, bem organizado e bem dirigido (orientado nas seleções, organizado de<br />

acordo com as capacidades a que se destina, e dirigido conforme as oportunidades,<br />

pode ser como um grande livro ilustrado, que a criança interessadamente lê, metade nas<br />

legendas, metade nas figuras. Sem esquecer que o cinema falando completará ainda<br />

mais o ideal pedagógico transportando a criança, como num sonho, para ambientes,<br />

como se o fizesse realmente, dentro da vida.”<br />

O QuE há ENTRE NóS<br />

Interrogada sobre o que, nesse sentido, há feito entre nós a Sr.ª Cecília<br />

Meirelles informou que algumas escolas do Distrito Federal já possuem aparelhos de<br />

cinematografia, ou, pelo menos, lanterna de projeção fixa. E acrescentou:<br />

_ “Se tudo ainda não está resolvido em matéria de filmes adequados, alguma<br />

coisa já se tem feito nesse particular. E não é possível exigir mais, em tão pouco tempo.<br />

Agora, para que fique o professorado a par do que existe em matéria de aparelhos<br />

cinematográficos, bem como do seu funcionamento, conservação etc., a Diretora de<br />

Instrução resolveu organizar, na Segunda quinzena deste mês, uma exposição relativa<br />

ao assunto. A escola “José de Alencar” no Largo do Machado, onde se começa a<br />

preparar o futuro Museu Central, foi o local escolhido para essa exposição. Nela os<br />

inspetores escolares apresentarão: os aparelhos existentes nas escolas primárias,<br />

fotografias de escolas, aspectos de aulas, reuniões de Circuito de Pais, sopa escolar,<br />

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copo de leite, gabinetes médico e dentário, enfim, todos os melhoramentos que, em<br />

benefício das crianças, foram e estão sendo introduzidos nas escolas. Além disso,<br />

deverão os inspetores apresentar gráficos estatísticos ou informações sugestivas de<br />

qualquer obra de iniciativa do distrito.”<br />

DETALhES DA EXPOSIçãO<br />

Continuando, detalhou a Sr.ª Cecilia Meirelles:<br />

- “Como a exposição se realiza no local em que se inicia a obra do Museu<br />

Pedagógico Central, haverá uma sala em que ficarão as realizações desse Museu. Em<br />

outras salas serão expostos exemplares dos decretos da reforma (lei e regulamento),<br />

programas dos vários cursos (primário, complementar anexo, profissional e normal),<br />

modelos de uniformes , plantas, maquetes e fotografias dos prédios escolares já<br />

concluídos ou em construção etc., etc.<br />

Já aderiram à exposição prometendo enviar aparelhos e demais artigos de que<br />

são importadores ou fabricantes, as seguintes firmas: Theodor Wille & Cia., Casa Lohner<br />

S.A, John Jurges & Cia., Fox Film, Meister Irmãos, Botelho Film, Pathé Baby, A .E. B.<br />

Kodak.<br />

Ofereceram também apoio, pondo à disposição da comissão organizadora<br />

valiosos donativos das respectivas especialidades os seguintes estabelecimentos:<br />

Villas Boas & Cia., Vasco Ortigão & Cia. (Parc Royal), Papelaria Americana, Casa Mattos,<br />

Cardinale & Cia., Marcenaria Brasil, Papelaria União e Casa Pratt.<br />

A Urania Film apresentará os tipos de aparelhos de projeção mais modernos, de<br />

medida Universal, contentando-se a fazer correr filmes instrutivos.<br />

A General Electric iluminará todo o recinto da exposição, sendo que uma parte<br />

pelo moderno sistema de luz sem sombras. Instalará também um aparelho de rádio do<br />

tipo mais moderno e, dando o seu completo apoio a essa iniciativa pedagógica fará<br />

distribuir sorvetes preparados nos seus aparelhos de refrigeração.<br />

Os floristas do Mercado Municipal se ofereceram para ornamentar diariamente a<br />

exposição.<br />

Como todos os dias chegam novas adesões de amigos do cinema Educativo, tudo<br />

faz prever que o certame terá uma repercussão excepcional. Durante todo o tempo que<br />

funcionar a exposição haverá demonstrações do manejo de qualquer dos aparelhos<br />

expostos.<br />

É de esperar que não só o professorado, que constitui, por assim dizer, a parte<br />

diretamente interessada pelo assunto, como todas as famílias que têm filhos nas<br />

escolas, e todas as pessoas que se interessam realmente pelo progresso do seu país,<br />

visitem essa próxima exposição.<br />

Agora, mais que nunca a escola deseja ser um lar, para as crianças. Os que<br />

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sentirem a grandeza desse desejo, devem procurar saber como a escola se esforça<br />

para o realizar”.<br />

VANTAGENS DAS PROJEçõES<br />

Insistindo sobre a importância pedagógica do cinema, frisou a Sr.ª Cecilia<br />

Meirelles as vantagens das projeções:<br />

_ “Animadas: muita coisa, senão quase tudo, pode ser aprendido só pelo cinema.<br />

É uma opinião um pouco ilimitada, mas sincera: observação do crescimento das<br />

plantas, da vida de todos os animais (e os insetos: formigas, abelhas, e os peixes no<br />

seu ambiente submarino), com todos os detalhes mínimos como se consegue em filmes<br />

pacientemente elaborados.<br />

E os exemplos morais. E a vida higiênica etc. Sem esquecer filmes que se<br />

organizam mostrando a vida das crianças de hoje, as suas escolas, o seu trabalho, para<br />

efeitos de solidariedade etc. Mas isso é longo e não se consegue de uma hora para.<br />

Não conheço os filmes que sei que há, no estrangeiro, dedicados a essa especialidade”.<br />

Referindo-se depois às projeções fixas, explicou a professora:<br />

“Tem a vantagem de uma fácil organização. Podem servir de atração aos centros<br />

de interesse da classe e, em muitos casos, serem produzidos pelos próprios alunos.<br />

Podem ser de interesse geral, quer sobre assuntos históricos (comemoração das datas<br />

realmente importantes), quer sobre fatos atuais: febre amarela, a campanha contra<br />

a tuberculose e outras propagandas. Podem também revestir-se de um caráter mais<br />

divertido e serem, então pequenas histórias em quadros, inclusive desenhadas pelos<br />

primeiros alunos e acompanhadas de legendas escritas por eles, ou sem legendas,<br />

para que eles as imaginem, isto é, propriamente, já o problema da “interpretação” da<br />

projeção. Problema vasto: qualquer projeção pode servir de pretexto a qualquer lição,<br />

e, portanto, dar origem a que se reproduza a coisa projetada ou que com ela se tenha<br />

revelações: uma composição, uma representação etc.”<br />

O Jornal do Comércio<br />

20/08/1929<br />

O cinema escolar não se iniciou em 28, com a Reforma Fernando Azevedo, mas foi<br />

esta reforma que deu ao cinema na escola um desenvolvimento que até então não se tinha<br />

visto .Entre 1916 e 1918 houve o projeto Cinema Escolar criado pelos Inspetores Escolares do<br />

Distrito Federal(Rio de Janeiro) José Venerando da Graça Sobrinho e Fábio Lopes dos Santos<br />

Luz.(FERREIRA:2004) Eles produziam os scripts e contratavam alguém para filmar, pois não<br />

dominavam a tecnologia. Produziram vários filmes e eu tive a curiosidade de ver um deles no<br />

acervo da CENP da Secretaria de Estado da Educação em 1983, época em que trabalhei<br />

lá por seis meses mas fui obrigada a me demitir, depois de fazer o Festival de Inverno de<br />

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Campos de Jordão com Claudia Toni e Gláucia Amaral por não agüentar o cerceamento de<br />

ações justamente no início da segunda democratização do Brasil, depois da segunda ditadura<br />

que sofremos. Imaginem que em uma reunião me ofereci para convidar Paulo Freire para<br />

conversar conosco e não aceitaram. Perguntei por que, pois imaginava que todos tivessem<br />

estado como ele e como eu contra a ditadura. A resposta foi – Porque se a gente deixar você<br />

domina tudo aqui. Confesso que neste dia me convenci que a <strong>Universidade</strong> era mais aberta<br />

pois não me cerceava desde que eu trabalhasse sem dinheiro, o que fiz quase a vida toda.<br />

Havia também no acervo da CENP muitos filmes produzidos por Humberto Mauro, ícone<br />

da historia do cinema brasileiro, que também junto com Roquete Pinto ajudou a construir a<br />

história do cinema na educação.<br />

Cecília Meireles se empenhava nas relações internacionais com a América Latina e<br />

com a Europa também, como demonstra este artigo abaixo que escreveu sobre a Maison des<br />

Petits, escola de aplicação do Instituto Jean Jacques Rousseau em Genévè dirigido na época<br />

por Claparede<br />

A Dra Helena Antipof assistente de Claparede no Instituto Jean Jacques Rousseau<br />

(IJJR) já se encontrava trabalhando no Brasil, quando Cecília Meireles publicou no Diário de<br />

Notícias este artigo sobre a Maison des Petits, laboratório teórico/prático do IJJR. De certa<br />

forma já estava preparando a visita de Claparede ao Brasil que como sabemos chegou ao Rio<br />

de Janeiro dois meses depois , em setembro de 1930 Nesta época no IJJR trabalhava Piaget,<br />

que posteriormente mudou o nome do Instituto, ou pior fechou-o para no seu lugar criar uma<br />

Faculdade de Ciências Pedagógicas onde realizou toda sua obra.<br />

A FORMAçãO DA JOVEM EDuCADORA<br />

Como se trabalha na Suíça, na Maison des Petits<br />

A Maison des Petits, essa casa em que se aprende a respeitar a criança e a conduzila,<br />

pelo amor esclarecido à descoberta e ao desenvolvimento de suas possibilidades,<br />

representa na Suíça, um laboratório, da infância, onde futuras professoras ensaiam as<br />

suas aptidões observando e experimentando alunos e métodos:<br />

Com o fim de divulgar a finalidade e as realizações da Maisson des Petits,<br />

suas diretoras, as senhoras Audemars e Lafendeliii publicaram um pequeno livro<br />

interessantíssimo para os pais, os professores, e todos os que se interessam por<br />

compreender a alma infantil e os processos atuais de educação.<br />

É dessa obra que extraímos a seguinte passagem, que encerra algumas<br />

observações e conselhos dignos de atenção pela autoridade de quem os escreveu.<br />

O Instituto JJ Rousseau, criado em Genebra em 1912, escola de ciência<br />

em educação e ao mesmo tempo laboratório de investigação, sentiu inicialmente a<br />

necessidade de constituir um meio educativo, onde se pudesse fazer a verificação<br />

prática dos aperfeiçoamentos e reformas sugeridas pelo conhecimento mais profundo<br />

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da psicologia da criança. Com esse fim fundou em 1913 a casa da criança.<br />

As alunas que pensam dedicar-se especialmente à educação das crianças<br />

menores, praticam nela durante 1, 2, 3 anos segundo o fim que pretendem alcançar.<br />

O programa do trabalho infantil que acabamos de trabalhar indica muito<br />

claramente o das jovens educadoras.<br />

Enfrentando desde o primeiro momento os problemas práticos, iniciam-se elas<br />

no trabalho pessoal. Durante o tempo de que dispões (3 manhãs por semana) as alunas<br />

do primeiro ano se repartem, desde o começo, pelos cinco grupos do primeiro plano.<br />

Cada uma delas sucessivamente consagra mais ou menos um mês aos estudos<br />

das diferentes atividades; no fim do mês apresenta um resumo das suas observações,<br />

das dificuldades que surgiram, dos problemas que tiveram que resolver.<br />

Impõe-se uma colaboração incessante: a aluna que estudou e colecionou os<br />

desenhos de uma criança deve conhecer as manifestações desta mesma criança,<br />

suas diversas atividades; para isso, pede informações às companheiras que estão<br />

encarregadas de outros grupos: construção, modelagem, cálculo, línguas, etc, e assim<br />

pode conhecer com certeza o desenvolvimento da criança e traçar sua monografia.<br />

Estuda-se, pois praticamente, toda a evolução das atividades infantis, servindo<br />

o quadro dos períodos de desenvolvimento como guia precioso para precisar as<br />

observações.<br />

No decorrer das suas ocupações a criança multiplica as suas perguntas,<br />

colocando a educadora na obrigação de responder.<br />

Assim por exemplo: na aula da construção: Porque se sustentam os barcos na<br />

água? (François). Como é que o funicular pode subir o morro? Na aula de línguas, como<br />

que sai o carvão da terra? (Louis) Na aula de modelagem, Daniel examina sua mão e ao<br />

fechá-la apertando o barro, exclama, recordando as dobradiças de uma porta: meus<br />

dedos fazem como as portas. E assim por diante.<br />

Este é um dos problemas mais interessante para o educador: Conhecidas as<br />

necessidades da criança, saber alimentar e estimular seu espírito de curiosidade. É<br />

preciso estar-se disposto a dar informações sobre todos os assuntos que lhes interessam.<br />

Para isso é necessário documentação.<br />

Possuímos uma biblioteca bem provida que está à disposição das alunas que tem<br />

de por-se em condições de saber fazer e alimentar a curiosidade científica no período<br />

do conhecimento.<br />

As lacunas do segundo ano, que aspiram ao diploma da casa da criança,<br />

encarregam de assumir a responsabilidade de pequenos grupos de criança de 6 a 7<br />

anos. Também estudam um tema particular que elas mesmo escolhem; este ano uma<br />

delas escolheu o ensino da leitura e se iniciou no método Decroly; outra escolheu a<br />

iniciação matemática, e a terceira especializou-se principalmente para informar as<br />

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Cecília Meireles: defensora da Educação Moderna, das <strong>Arte</strong>s e do Cinema na Educação<br />

crianças sobre a origem da navegação. Com este fim organizou uma série de ilustrações<br />

outra de uma série de narrações e construiu pequenas máquinas destinadas a fazer<br />

com que a criança compreenda a força e o papel do vapor.<br />

Toda organização e o ambiente da casa às conduz a esta lei pedagógica: uma<br />

lição deve ser uma resposta (Dr. Claparede).<br />

Cada dia de trabalho dá lugar a palestras, discussões, induz o aluno a novas<br />

investigações, e estimula o desejo de aperfeiçoar-se. Reúne-se uma vez por semana<br />

um curso de 2 horas, com cada grupo de alunas (primeiro e segundo ano). As alunas<br />

adiantadas apresentam trabalhos pessoais relativos aos seus ensaios de prática; todas<br />

juntas estudam o material empregado com a criança, os diferentes métodos de ensino<br />

Froebel, Montessori, Dewey, Decroly, etc....<br />

A aluna que quiser pode iniciar-se praticamente nestes métodos, reservando-se<br />

uma pequena sala para esse fim. O material completo está a sua disposição e pode<br />

organizar um ensaio com um pequeno grupo de crianças.<br />

Reservam algumas horas por semana para preparação do material de ensino,<br />

jogos educativos de toda espécie, por exemplo: Tendo uma aluna notado um defeito<br />

qualquer de linguagem em uma criança, estudou para preparar por meio de ilustrações<br />

exercícios próprios que o corrigissem.<br />

Tem também de aprender a conhecer a guiar a criança nos seus brinquedos ao ar<br />

livre, no trabalho de jardinagem, nos seus passeios, visitas aos museus, oficinas, etc...<br />

O campo e experiências é muito grande. Só podemos falar aqui do trabalho feito<br />

sob a nossa direção e é necessário consultar o programa do Instituto Rousseau para<br />

inteirar-se da grande quantidade de cursos e ensinamentos que se oferecem às alunas.<br />

A educadora digna deste nome deve ser viva, entusiasta, livre de interesses<br />

pessoais e de idéias fragmentárias e pré concebidas. Deve possuir as qualidades<br />

indispensáveis de espírito curioso, investigador, experimentador, e se deixará sempre<br />

levar pelo amor e pela dedicação à criança. Sem se deixar dominar ou encadear por<br />

nenhum método procurará não unir se à letra que mata, mas ao espírito que vivifica.<br />

As leis de psicologia da criança ditar-lhe-ão as leis da psicologia do professor. Ai<br />

estão algumas delas deduzidas da nossa prática diária e formuladas com nossas alunas<br />

no decorrer de nossas palestras.<br />

Diário de Notícias 09/07/30<br />

Despretenciosamente, como verdadeira educadora Cecília Meirelles se interessava<br />

muito pelo ensino nos Jardins da Infância. Daí se justificar a escolha de centrar a entrevista<br />

com Crescente Coccaro sobre o tema dos Jardins de Infância e de preparar o publico leitor do<br />

Diário de Notícias para a chegada de Claparede escrevendo justamente acerca do Jardim de<br />

Infância do Instituto Jean Jacques Rousseau,<br />

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Cecília Meireles: defensora da Educação Moderna, das <strong>Arte</strong>s e do Cinema na Educação<br />

O modernismo em <strong>Arte</strong> e Educação teve uma escritora como Cecília Meireles escrevendo<br />

nos jornais para convencer o público da necessidade do “aprender fazendo”. A virada pósmoderna<br />

que acrescentou a necessidade do ver além do fazer <strong>Arte</strong> e a necessidade de<br />

ampliar a visão da Escola para além de seus muros tomando em consideração a cultura dos<br />

alunos , a cultura do meio, a cultura historicamente organizada e a cultura contemporânea,<br />

não encontrou nenhum apoio nos meios de comunicação.<br />

Notas<br />

i Os artigos e entrevista de Cecília Meireles apresentados neste artigo são inéditos e portanto não<br />

fazem parte das coletâneas publicadas.<br />

ii Agora no Brasil chamamos educação continuada.<br />

iii Trata-se do livro AUDEMARS, Mina e LAFENDEL,Louise.La Maison dês Petits de l’Institute Jean<br />

Jacques Rousseau.Neuchatel:Delachaux et Niestle S.A.sem data<br />

Referências<br />

DIÁRIO DE NOTÍCIAS. Rio de Janeiro, 9 jul. 1930.<br />

DIÁRIO DE NOTÍCIAS. Rio de Janeiro, 23 jul. 1930.<br />

DIÁRIO DE NOTÍCIAS. Rio de Janeiro, 19 out. 1930.<br />

O JORNAL DO COMÉRCIO. Rio Grande do Sul, 20 ago. 1929.<br />

MEIRELES, Cecília.”Historia da Educação no Brasil” In Obra em Prosa: Crônicas de Educação.<br />

Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira/MINC, Fundação Biblioteca Nacional,2001.<br />

MENDONÇA, Amélia da Motta. O cinema escolar na história da educação brasileira:<br />

a sua ressignificação através da análise de discurso. Dissertação de mestrado apresentada<br />

ao Programa de Educação da <strong>Universidade</strong> Federal Fluminense. Orientadora Clarice Nunes.<br />

Niteroi, 2004.<br />

NEVES, Margarida de Souza, LÔBO, Yolanda Lima, MIGNOT, Ana Chrystina Venâncio. Cecília<br />

Meireles: a poética da educação. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio: Loyola, 2001.<br />

PIMENTA, Jussara S. Fora do outono certo nem as aspirações amadurecem: Cecília<br />

Meireles e a criação da biblioteca infantil do Pavilhão Mourisco (1934-1937). Dissertação de<br />

Mestrado.Departamento de Educação/PUC-RJ, 2001.<br />

CRESPO, Regina Aida. Cultura e política : José Vasconcelos e Alfonso Reyes no Brasil (1922-<br />

1938). Revista de História, São Paulo, ANPUH. v. 23, n.45 , 2003 p.187-207.<br />

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AS INTERAçõES ENTRE MODA E MúSICA NA CONSTITuIçãO DE<br />

IDENTIDADES: uMA ANáLISE DAS INFLuêNCIAS DA BLACK MuSIC<br />

Rita Aparecida da Conceição Ribeiro; Dra. em Geografi a; Profª PPG <strong>Design</strong>: UEMG<br />

rita_ribeiro@uol.com.br<br />

Resumo<br />

Esse trabalho analisa a interface entre a moda e a música a partir<br />

da perspectiva de análise da constituição de modelos identitários<br />

por ela disseminados. Tomamos como objeto empírico a Black<br />

Music que surge nos anos 60 nos Estados Unidos, dando origem<br />

ao movimento soul, em seus reflexos na moda e na constituição<br />

de um ideal de identidade e orgulho negros. Entendemos que<br />

a moda black surgida a partir dos anos 60 do século passado,<br />

ainda hoje é um determinante na constituição da identidade de<br />

determinados grupos sociais, como a tribo hip-hop e, sendo um<br />

fenômeno duradouro e com características políticas marcantes,<br />

merece uma análise mais apurada.<br />

Palavras-Chave: moda; black music; identidade<br />

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As interações entre moda e música na constituição de identidades: uma análise das influências da Black Music<br />

A moda e a música - a construção de um referencial identitário<br />

A moda diz respeito a uma questão essencial para nossos contemporâneos,<br />

talvez a mais essencial de todas: a de sua identidade. Sendo assim, interpretar<br />

esse fenômeno como um sinal suplementar do materialismo do Ocidente<br />

apenas leva a torná-lo incompreensível (ERNER, 2005, p. 219).<br />

Os fenômenos que povoam o universo da moda, ainda que muito discutidos, ganham<br />

perspectiva acadêmica somente a partir do final do século passado. Desde a antiguidade<br />

os trajes já eram considerados elementos de diferenciação social. Nobres distinguiam-se de<br />

plebeus, trabalhadores rurais do homem citadino. Distinções acerca da etnia e da religiosidade<br />

revelavam-se pelos trajes usados. No transcorrer do século XX, principalmente no período pós<br />

Segunda-Guerra, a moda começa a ser disseminada em grande escala, com o advento do<br />

prêt-a-porter, com os modelos prontos, que podiam ser adquiridos nos magazines em todo o<br />

mundo. No final dos anos 50, a geração baby-boom busca nos tipos sociais estereotipados<br />

no cinema e na música os modelos de filiação e de afirmação de sua identidade. A grande<br />

revolução na vestimenta começa a partir desse momento.<br />

Para compreender como os novos significados são conferidos a itens de<br />

vestuário, e o papel da cultura popular nesse processo, lançarei mão de teorias<br />

segundo as quais alguns itens da cultura popular, entre eles o vestuário, são<br />

‘abertos’, pois são frequentemente redefinidos tanto pelos criadores de cultura<br />

como pelos consumidores. O cinema e a música são elementos importantes<br />

nesse processo. Ao associar imagens de destaque a peças de roupas<br />

específicas, ambos alteram o significado dessas peças e seu poder simbólico<br />

para o público (CRANE, 2006, p. 339).<br />

A moda, assim como a música, que começa a surgir a partir do final dos anos 50 tem<br />

nos jovens seu público alvo e principais disseminadores das novas tendências. A moda para<br />

os jovens começa a representar uma primeira forma de diferenciação e identificação dentro de<br />

seu grupo social.<br />

Entretanto, essas tendências, populares particularmente entre os jovens,<br />

mostram mais uma vez que a moda é antes de tudo uma maneira de elaborar<br />

a identidade. Pela aparência que assume, um indivíduo se situa em relação aos<br />

outros, como também em relação a si mesmo. Nessas condições, a moda é<br />

um dos meios que ele utiliza para se tornar ele mesmo (ERNER, 2005, p. 220).<br />

Esse trabalho pretende discutir a influência da música na moda, a partir da constituição<br />

de modelos identitários por ela disseminados. Tomamos como objeto empírico a Black Music<br />

que surge nos anos 60 nos Estados Unidos, dando origem ao movimento soul, em seus<br />

reflexos na moda e na constituição de um ideal de identidade e orgulho negros. A escolha<br />

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As interações entre moda e música na constituição de identidades: uma análise das influências da Black Music<br />

do objeto é parte da pesquisa desenvolvida no doutorado que gerou a tese Identidade e<br />

Resistência no Urbano: O Quarteirão do Soul em Belo Horizontei Entendemos que a moda<br />

black surgida a partir dos anos 60 ainda hoje é um determinante na constituição da identidade<br />

de determinados grupos sociais, como a tribo hip-hop e, sendo um fenômeno duradouro e<br />

com características políticas marcantes, merece uma análise mais apurada.<br />

A indumentária derivada da influência de cantores é claramente percebida ao longo dos<br />

anos. Basta pensar no visual rebelde de Elvis Presley, nos modelos de “bons rapazes” dos<br />

Beatles no início de sua carreira e do visual hippie que marcou o momento de sua separação.<br />

A moda grunge disseminada pelos grupos de Seatle, até o visual rebelde-retrô da cantora<br />

Amy Winehouse. No entanto, a moda black, não apenas influenciou na construção visual de<br />

determinado grupo social, mas foi principalmente uma declaração de identidade e de princípios<br />

políticos, bandeiras que hoje a moda carrega com propriedade, mas que, até então, não era<br />

algo habitual.<br />

Buscamos assim entender as origens da moda black, sua influência no movimento soul<br />

e mais especificamente no movimento soul no Brasil e perceber a moda, principalmente a moda<br />

black, como um fator de identificação social que ainda hoje é referência para determinados<br />

grupos.<br />

A roupa faz o homem<br />

Crane observa que a atenção com o visual já fazia parte das preocupações da<br />

comunidade negra nos Estados Unidos desde o final do século XIX. Ela ressalta que parte<br />

desse cuidado diz respeito ao fato destas pessoas sentirem necessidade de se apresentar<br />

bem nos eventos sociais (igreja, passeios).<br />

Desde o final do século XIX, as roupas têm tido um significado especial na<br />

cultura negra americana, em parte por causa da importância atribuída por<br />

homens e mulheres à apresentação pessoal nas ruas de bairros negros e em<br />

igrejas. Uma importante fonte de entretenimento para ambos os sexos era<br />

andar pelo bairro exibindo as próprias roupas e observando as dos outros. Os<br />

rapazes, particularmente, orgulhavam-se bastante de se vestir elegantemente.<br />

(CRANE, 2006, p. 379-380).<br />

Essa preocupação com o visual diz respeito, em primeiro lugar, aos momentos de lazer.<br />

A autora apresenta uma discussão da separação entre a vestimenta de trabalho e do lazer,<br />

como forma de diferenciação social. Enquanto a roupa de trabalho revela o status econômico<br />

e social, essa distinção deixa de existir na roupa de lazer. As atividades de lazer criam uma<br />

outra esfera de inserção social, que não a da estratificação econômica.<br />

[...] As sociedades contemporâneas são caracterizadas por uma disjunção<br />

entre economia e cultura, entre trabalho e lazer. Isso sugere que, com base em<br />

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As interações entre moda e música na constituição de identidades: uma análise das influências da Black Music<br />

ocupações e profissões, a população é diferenciada em classes sociais distintas<br />

cujos membros devem exibir identidades marcadas por tipos de atitude e<br />

comportamento característicos no local de trabalho. Fora da esfera econômica,<br />

as bases de estratificação são configurações culturais fundamentadas em estilo<br />

de vida, valores e conceitos de identidade pessoal e de gênero. As atividades<br />

de lazer, entre elas o consumo, moldam as percepções que os indivíduos têm<br />

de si mesmos e, para muitos, são mais significativas que o trabalho. (CRANE,<br />

2006, p. 44).<br />

A construção da imagem social do indivíduo nos momentos de lazer diferencia-o das<br />

atividades cotidianas. Novos papéis podem ser assumidos, em momentos específicos, sem<br />

que haja o comprometimento da identidade do indivíduo, que alterna seus papéis sociais.<br />

Assim o indivíduo pode se apresentar sobriamente em seu ambiente de trabalho e assumir seu<br />

lado glamouroso nas noites de sábado na pista de dança.<br />

Os indivíduos são tão mais lúcidos em relação às suas escolhas de vestuário<br />

que doravante se tornam superinformados sobre os significados dos looks.<br />

Além disso, a uniformização das aparências não resulta da imitação de um<br />

modelo sugerido pelas classes dominantes. Nossa sociedade se caracteriza<br />

por sua reflexividade, sua capacidade de decifrar os símbolos sociais que são<br />

as roupas ou as marcas. Esses símbolos podem informar sobre a posição<br />

social de um indivíduo, às vezes também sobre seu nível de renda. Contudo,<br />

são sobretudo instrutivos a respeito da imagem que este último quer refletir.<br />

(ERNER, 2005, p. 226).<br />

A escolha da roupa hoje reflete muito mais a opção de apresentar-se ao outro e demarcar<br />

questões de identidade, do que a simples imitação de um modelo sugerido pelas instâncias de<br />

formação de opinião, surgidas geralmente a partir dos apelos midiáticos. A escolha da roupa,<br />

muitas vezes, reflete a maneira do indivíduo perceber-se no mundo.<br />

A variedade de opções de estilos de vida disponíveis na sociedade<br />

contemporânea liberta o indivíduo da tradição e lhe permite fazer escolhas<br />

que criem uma auto-identidade significativa. A construção e a apresentação<br />

do eu tornam-se preocupações importantes na medida em que uma pessoa<br />

reavalia continuamente a importância de eventos e compromissos passados<br />

e presentes. O indivíduo constrói um senso de identidade pessoal ao criar<br />

‘narrativas próprias’ que contenham sua compreensão do próprio passado,<br />

presente e futuro. (CRANE, 2006, p. 37).<br />

Essa identidade se constrói a partir da vestimenta, traz os elementos que refletem a<br />

forma como o indivíduo quer se inserir, e principalmente, a forma como este quer ser percebido<br />

pelo grupo. No depoimento do cantor Gerson King Combo, uma das personagens centrais da<br />

soul music nos anos 70 no Brasil já está estampada a preocupação da mensagem que deveria<br />

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As interações entre moda e música na constituição de identidades: uma análise das influências da Black Music<br />

ser percebida pelos fãs:<br />

Aí nós criamos aquela imagem de uma pessoa forte, bem nutrida, pobre da<br />

periferia, mas com saúde. Mostrar que a gente não vivia sob aquele [...] não<br />

era tudo crioulo que era tudo maluco, como é que falavam: ‘esse negão aí’.<br />

Então a gente botou aquela imagem. Minha falecida esposa, Angélica Maria,<br />

criou a grife, criou a imagem. Ela me vestia dos pés a cabeça, mandava fazer<br />

as botas, quer dizer, ela criou a imagem da pessoa, do King. King o forte,<br />

gordo, bem nutrido, come bem. Eu adorei porque as pessoas me curtem até<br />

hoje. E o que acontece no soul? Eu não posso me apresentar assim, sem<br />

aquela vestimenta porque parece que, eu estou disfarçado, eu ando na rua<br />

quase ninguém me conhece. Se eu botar certa touca, aí na mesma hora. Quer<br />

dizer, ficou a imagem. (Gerson King Combo, 02 jul. 2007).<br />

O surgimento do movimento soul e a ascensão da cultura juvenil<br />

Foto 01 - James Brown - o ícone da Black Music<br />

Fonte: Ribeiro, 2008.<br />

A trajetória da black music no século XX começa a ter seu papel escrito a partir do blues.<br />

Atribui-se sua origem ao lamento dos escravos trazidos para os campos dos Estados Unidos. De<br />

suas origens africanas, os negros trouxeram os chamados hollersii gritos de entonações fortes<br />

e diferentes que identificavam seus emissores. Eram, a princípio, uma forma de comunicação<br />

nos campos do sul do país, mas também podiam ser ouvidos nas grandes cidades, nas<br />

vozes de vendedores que anunciavam seus produtos de maneira peculiar. Grande parte dos<br />

pesquisadores atribui o desenvolvimento do blues às work-songs, canções que objetivavam<br />

organizar o trabalho escravo, conferindo-lhes ritmo e cadência. O spirituals, hinos religiosos<br />

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As interações entre moda e música na constituição de identidades: uma análise das influências da Black Music<br />

criados pelos negros a partir de histórias da Bíblia, também exercem uma grande influência no<br />

surgimento do blues, pois os seus acordes básicos são derivados da harmonia européia das<br />

canções religiosas. A difusão massiva da música nos Estados Unidos ocorre com o advento<br />

do rádio e da evolução da indústria fonográfica, que percebe nas diversas variantes do blues e<br />

em seus consumidores espalhados por todo o país, um mercado potencial e em crescimento.<br />

O período pós Segunda-Guerra, marcado por uma atmosfera de otimismo e prosperidade<br />

econômica, alavanca a indústria dos gadgets, incluídos aí os toca-discos proporcionando<br />

um aumento de público para os produtos musicais e a incorporação de uma nova massa<br />

de consumidores: os jovens. A incorporação dos estilos musicais vindos dos guetos, a<br />

crescente indústria de consumo de massa cada vez mais voltada para o público jovem e o<br />

desenvolvimento acelerado dos veículos de comunicação tendo em primeiro lugar o rádio e<br />

posteriormente a televisão, possibilita a difusão dos gêneros musicais e sua assimilação por<br />

camadas cada vez maiores de jovens, ávidos pela identificação com os novos ídolos que<br />

começam a surgir.<br />

A novidade da década de 1950 foi que os jovens das classes alta e média, pelo<br />

menos no mundo anglo-saxônico, que cada vez mais dava a tônica global,<br />

começaram a aceitar a música, as roupas e até a linguagem das classes baixas<br />

urbanas, ou o que tomavam por tais como modelo. O rock foi o exemplo mais<br />

espantoso. Em meados da década de 1950, subitamente irrompeu do gueto<br />

de catálogos de ‘Raça’ ou ‘Rhythm and blues’ das gravadoras americanas,<br />

dirigidos aos negros pobres dos EUA, para tornar-se o idioma universal dos<br />

jovens, e notadamente dos jovens brancos. (HOBSBAWM, 1999, p. 324).<br />

O rock passa a ditar comportamentos que rapidamente são incorporados pela indústria<br />

do entretenimento, a partir da criação dos novos grupos e artistas brancos, que incorporam os<br />

elementos da black music abrindo espaço para o consumo de seus produtos.<br />

A mudança mais importante (para o blues) foi a emergência de músicos e de<br />

orquestras brancas de blues [...] esse desenvolvimento reflete a utilização do<br />

blues enquanto componente da cultura juvenil [...] o blues passa, assim, de<br />

uma música puramente negra a uma música substancialmente internacional [...]<br />

Certamente trata-se do desenvolvimento mais inesperado, mas ele aconteceu.<br />

(OLIVIER apud HERZHAFT, 1989, p. 108).<br />

Enquanto no final dos anos 50 o quadro de efervescência política se acentua,<br />

principalmente nos Estados Unidos, surgindo com mais força os movimentos pela igualdade<br />

dos direitos civis, a música negra, cada vez mais aceita pelos brancos, vive uma outra fase.<br />

Progressiva e implicitamente, era toda a atitude dos negros no passado<br />

que denunciavam vozes cada vez mais numerosas. O blues, que tinha sido<br />

a principal expressão cultural dos negros mais pobres e mais explorados,<br />

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aparecia como que ligado a uma condição degradante, da qual não se queria<br />

mais ouvir falar. Em contrapartida, a Igreja conduzia a luta de libertação dos<br />

negros e sua tradição musical - o gospel - ainda ganhava consideração.<br />

(HERZHAFT, 1989, p. 113).<br />

Ao associar-se o rhythm and blues (música profana) ao gospel (música protestante<br />

negra eletrificada descendente dos spirituals) temos o surgimento do Soul. O soul visava o<br />

resgate para os negros de um ritmo autenticamente negro. Herzhaft chama a atenção para o<br />

fato:<br />

Os críticos e historiadores em geral saudaram com bastante justiça o papel<br />

incomparável e bem concreto de ponte entre as raças que desempenhou a<br />

música negro-americana. É verdade que os artistas negros mais ecléticos<br />

obtiveram sucesso junto ao público branco. O que, entretanto, não notaram<br />

a maior parte do tempo é que, à medida que as formas de música negra<br />

tornaram-se populares entre os brancos, deixaram de sê-lo entre os negros,<br />

que, em contrapartida, criaram novas expressões musicais, procurando em<br />

um movimento espontâneo de desafio conservar a especificidade e a alma<br />

(soul) do povo negro-americano. (HERZHAFT, 1989, p. 99).<br />

A soul music, portanto, demarca os “limites com a América branca” ao utilizarem uma<br />

linguagem específica denominando-se “irmãos” - brothers e “irmãs” - sisters, “que reunia-se<br />

em uma comunidade solidária e fraternal que brilhava pela alma (soul)”. A pobreza, associada à<br />

discriminação racial, somada ao fervor religioso desencadeado pelo gospel foram os elementos<br />

que nutriram a cultura que no final dos anos 60 seria sinônimo de reação aos maus-tratos,<br />

da busca da igualdade entre os homens e do orgulho racial - a soul music, tanto nos Estados<br />

Unidos, como posteriormente em outras partes do mundo, inclusive no Brasil.<br />

A soul music no Brasil: dos bailes Black aos festivais<br />

Foto 02 - Tony Tornado no V FIC<br />

Fonte: Disponível em: .<br />

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As interações entre moda e música na constituição de identidades: uma análise das influências da Black Music<br />

A chegada do movimento soul em nosso país coincide com o auge da ditadura militar.<br />

No final dos anos 60 e início dos 70 começam a despontar os primeiros bailes no Rio de<br />

Janeiro. Em pouco tempo surgem várias equipes de som que promovem bailes por toda<br />

a cidade. Em alguns bailes são apresentados filmes que exaltam o orgulho racial. Por essa<br />

mesma razão, são fortemente controlados pelas forças policiais.<br />

Nesse período, fortemente marcado pela repressão política, surgem os festivais de<br />

música, promovidos pelas redes de televisão com o apoio, e até mesmo patrocínio, em alguns<br />

casos, do governo militar.<br />

Nesse período a Record contratou Solano Ribeiro, que realizara o I Festival<br />

de Música Popular Brasileira na Excelsior em 1965 e trouxe a estrutura de<br />

competição dos festivais para a Record. Ribeiro se inspirou no modelo italiano<br />

dos festivais de San Remo. Após o I Festival de Música Popular Brasileira,<br />

seguiram-se outros, começando o período da Era dos Festivais, que durou<br />

até 1972, um dos momentos mais expressivos de produção musical. [...] O<br />

sucesso artístico e de público do empreendimento da Record levou a Globo<br />

a realizar os Festivais Internacionais da Canção, que duraram até o início dos<br />

anos 70, atraindo grandes nomes da música brasileira e estrangeira. (ROCHA,<br />

2007, p. 142).<br />

Os festivais da canção tornaram-se uma ferramenta de propaganda do governo brasileiro<br />

ao apresentarem um clima de alegria, estimulado também pelas campanhas capitaneadas<br />

pelo sucesso de Dom & Ravel “eu te amo meu Brasil”, ou pelos versos que comoviam “90<br />

milhões” saudando a seleção brasileira, tricampeã mundial em 1970, compostos por Miguel<br />

Gustavo. Os Festivais Internacionais da Canção (FIC), realizados em 07 edições (de 1966 a<br />

1972) no Maracanãzinho, no Rio de Janeiro tiveram o apoio da Rede Globoiii , emissora que<br />

teve um crescimento vertiginoso a partir do governo militar.<br />

Gradualmente o festival se transformava numa grande janela escancarada para<br />

mostrar a felicidade do povo brasileiro. As odiosas vaias de cunho político eram<br />

coisa do passado. […] A liberdade manifesta na assistência do Maracanãzinho<br />

era um símbolo vivo, talvez até mais valioso e eficaz que as ações da AERP<br />

(Assessoria Especial de Relações Públicas) promovidas no governo anterior.<br />

Claro, liberdade desde que não ofendesse a família brasileira (MELLO, 2003,<br />

p. 368-369).<br />

A realização do V FIC em 1970, precedido pela conquista do tricampeonato mundial no<br />

futebol, trazia um clima de euforia. Trazia também entre os concorrentes uma forte influência<br />

da soul music, já demonstrada na apresentação da primeira concorrente da noite, em 15 de<br />

outubro.<br />

No novo palco os títulos das canções, autores e intérpretes apareciam em<br />

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três círculos iluminados acima das folhas de três portas giratórias por onde<br />

surgiam os cantores. Os dois primeiros eram Mariá (revelação de cantora no<br />

FIC anterior) e Luís Antônio (também premiado em outros festivais) à frente do<br />

grupo com seis músicos - todos negros vestindo batas africanas coloridas,<br />

liderados pelo pianista Dom Salvador ao órgão, para interpretar ‘Abolição<br />

1860-1980’, dele e Arnoldo Medeiros, gênero spiritual. ‘Não, não se pode falar<br />

em Black Power ou coisa assim’, declarou a cantora quando indagada se a<br />

música tinha caráter político no tocante a racismo. ‘Tem grande vinculação<br />

com a raça, raízes negras [...] mas sem intenções racistas, só musicais’. A<br />

apresentação da primeira concorrente, bastante aplaudida, dava a pista do<br />

que seria a tônica desse ano, a produção cênica das canções alimentada pela<br />

soul music. Sendo artistas negros então, as chances eram maiores (MELLO,<br />

2003, p. 373).<br />

Nesse festival, dominado pelos ritmos da black music que esteve presente em várias<br />

composições, dois nomes causaram sensação em suas apresentações: o maestro Erlon<br />

Chaves, que com a composição Eu Só Quero Mocotó desafiava a plateia ao ser beijado e<br />

reverenciado por mulheres brancas. E no estilo James Brown e do Harlem novaiorquino surge<br />

Toni Tornado, com cabelo, dança e gestos do movimento black power, cantando BR-3. As<br />

reações às apresentações de ambos levaram a plateia ao delírio, mas desagradaram muitos<br />

setores da conservadora sociedade brasileira. Os problemas e perseguições acarretados<br />

aos dois intérpretes serão mais um episódio lamentável de nossa história. No entanto, sua<br />

participação alavancou o movimento soul em todo o país.<br />

Mello (2003, p. 390) afirma que o “V FIC deixou um rastro de racismo, uma marca<br />

de preconceito contra artistas da raça negra”. No entanto, se por um lado a repressão nos<br />

bastidores aconteceu com tanta força, por outro, o que foi visto por milhares de negros foi<br />

outra. O V FIC foi uma demonstração do poderio do negro, de seu talento e orgulho da<br />

raça. A revolução da black music no país já estava em marcha, em um processo que parecia<br />

irreversível.<br />

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A moda black como declaração de identidade: do Black Rio ao<br />

Quarteirão do Soul em Belo horizonte<br />

Foto 03 - Sapatos bicolores - marca da identidade black<br />

Fonte: Ribeiro, 2008.<br />

Percebe-se que a partir dos anos 60, com a ascensão dos movimentos pela igualdade<br />

racial, sexual, movimento feminista, movimento hippie e o movimento estudantil, entre outros, a<br />

moda passa a ter características políticas. O vestir torna-se uma declaração político-ideológica.<br />

A moda black representa o movimento de afirmação da identidade negra.<br />

Pode-se afirmar que a moda soul iv , como toda moda, mantém uma relação<br />

direta e ininterrupta com o costume. Mas, por seu compromisso específico<br />

com um grupo étnico em condição minoritária, o diálogo estabelecido é duplo<br />

ou, se se prefere, referido a dois diferentes costumes ou tradições. De um lado,<br />

a moda soul dialoga com o costume dominante na sociedade envolvente,<br />

tomando-o como referência a partir da qual procura se distanciar e diferenciar.<br />

De outro lado, ela evoca - e dialoga - com o costume e a tradição nos quais<br />

o grupo vai buscar resgatar sua originalidade e o que seria sua autenticidade<br />

(GIACOMINI, 2006, p. 201).<br />

A moda black, principalmente aquela surgida no Rio de Janeiro, a partir do movimento<br />

denominado Black Rio, alternava-se entre a extravagância das vestimentas coloridas e da<br />

influência afro e a elegância composta pelos ternos, possibilitando uma alternativa em relação<br />

à moda tradicional vigente, e carregava na escolha a peculiaridade dos grupos de filiação,<br />

como apresenta o DJ da época Mr. Funky Santos:<br />

Porque a partir de determinado momento a gente começou a criar a nossa<br />

própria maneira de vestir. Que era muito elegante. Porque era uma roupa que<br />

batia com a gente. Diferente de você chegar ali e comprar uma roupa numa<br />

butique. Era diferente você comprar uma roupa numa loja. Você fazia a sua<br />

roupa. A calça vinha na sua medida, o sapato vinha na sua medida, os sapatos<br />

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eram umas obras de arte porque eram sapatos com tom sobre tom que eles<br />

chamavam de salada de frutas. (Mr. Funky Santos, 03 jul. 2007).<br />

A moda black foi, nesse momento, um determinante para a afirmação da identidade<br />

negra.<br />

A importância é o seguinte, é a identificação porque existia um provérbio<br />

antigo que assim, pelo que você está vestido, pelo que você tem você mostra<br />

a tua personalidade. O carioca era muito galhofeiro. Eles não andavam bem<br />

vestidos, eles andavam mais esbugalhados. O carioca arrumava cada sapato<br />

de 3 andares e não sei o quê, mas era bonito, era coisa bonita, mas só que<br />

por um lado, eu fazia aquele negro bem vestido, com tipo. Fazia justamente<br />

para eles copiarem. Alguns copiaram, mas a maioria da periferia já andava<br />

com uma galhofa. Cada um que pintasse mais coisa viesse mais colorido,<br />

era mais olhado pelas meninas. Em 1975 quando estava aflorando o Black<br />

Rio existia até desfile, o mais bonito negro, a mais bonita, o mais dançarino,<br />

o casal mais dançarino. Então as roupas influenciavam muito até por questão<br />

deles se identificarem no grupo. Aquele grupo, aquele é da gravatinha, aquele<br />

é paletó e fazia paletó, terno, gravata. Eles se sentiam gente, se sentiam<br />

maravilhosamente gente, porque nunca se usou terno e gravata, não tinha<br />

oportunidade. (Gerson King Combo, 02 jul. 2007).<br />

Os trajes alternavam os elementos da cultura convencional, ou seja, terno e gravata, ou<br />

usavam variações da moda também convencional, mas adaptando-as à sua visão de mundo e<br />

aos apelos da identidade black. Eram comuns camisetas com desenhos de capas de discos,<br />

frases de exaltação do soul power, ou do black power. Mas o principal, como revela a fala de<br />

King Combo é o fato de a moda demarcar um sentimento de valorização, de auto-estima, em<br />

suas palavras “de se sentir maravilhosamente gente”.<br />

Sendo um amálgama de materiais extraídos de diversas fontes, os estilos de<br />

roupas têm significados diferentes para diferentes grupos sociais. Assim como<br />

alguns gêneros de música e literatura populares, os estilos de roupas são<br />

significativos para os grupos sociais em que se originam ou para aqueles aos<br />

quais são dirigidos, mas frequentemente incompreensíveis para os que estão<br />

fora desses contextos sociais (CRANE, 2006, p. 47).<br />

A distinção entre os grupos era fortemente marcada pelas visões políticas com as quais<br />

se identificavam no momento, e passava ao largo de outros setores da sociedade que não<br />

tinham (ou ainda hoje não têm) afinidade com o estilo dos blacks. Existiam basicamente dois<br />

grupos: o que se identificava com os ideais africanos e aquele mais próximo ao poder negro<br />

do Black Panther. Dom Filó, responsável pelos mais prestigiados bailes no Rio e pela equipe<br />

de som Soul Grand Prix, era adepto deste último e explica a distinção:<br />

Você tinha aqueles que eram apaixonados pela África, usavam aquelas calças<br />

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coloridas, o cabelo também era afro ou trançado. Na época não era muito<br />

trançado era mais afro porque não tinha ainda a leitura das tranças, mas já<br />

tinham os coquinhos que eram feitos em casa, que ganharam publicamente<br />

a rua com aqueles barbantes coloridos. E as batas que eram características<br />

daquele jovem, o consciente. (Dom Filó, 03 jul. 2007).<br />

Foto 04 - O cantor Stevie Wonder e o modelo afro<br />

Fonte: Disponível em: <br />

Convivendo com o modelo afro, o visual Black, inspirado no grupo político norteamericano<br />

Black Panthers, que era mais agressivo.<br />

E por outro lado tinha aquele que já fazia o visual diferente que era o black, o<br />

visual que começamos a assumir. Você tinha na época, muito pouca opção<br />

de roupa. Não tinha silk screen, não tinha nada. Você tinha camisas que eram<br />

pintadas pelos próprios blacks e eles tiravam, alguns especialistas pintavam,<br />

das próprias capas dos discos que geralmente eram da Soul Grand Prix, de<br />

James Brown. Eles pintavam aquelas camisas coladas no corpo que eram<br />

malha Hering mais baratas, mas sempre calça jeans que na verdade deixou<br />

de ser Alpargatas para ser a calça Lee que começaram a ser compradas<br />

no câmbio negro, geralmente nas zonas de cais do porto. Então você tinha<br />

algumas coisas que eram praxe, as calças jeans que vinham largas e eram<br />

todas apertadas no contexto Black e os sapatos eram todos característicos<br />

porque eles eram plataformas que tinham dois andares, coloridos, tinham todo<br />

um outro traçado. Você tinha, além disso, o visual. Então o visual do cabelo<br />

começa a ser o seguinte, quanto maior mais lindo, mais bonito, mais maneiro,<br />

mais formoso. (Dom Filó, 03 jul. 2007).<br />

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Foto 05 - Os Panteras Negras<br />

Fonte: Disponível em: .<br />

Assim, outro elemento fundamental na composição do visual black era o cabelo, que<br />

pela primeira vez era usado ao natural, sem alisar e em tamanho maior. No auge do movimento<br />

soul, no final dos anos 60, a maioria dos cantores aderiu ao visual black power, de James<br />

Brown a Toni Tornado.<br />

O penteado soul é um exemplo desse duplo diálogo: o volume, a textura e a<br />

produção do penteado expressam, ao mesmo tempo, o compromisso com o<br />

que se representa como sendo o costume ancestral e marcam a diferença face<br />

ao rejeitado penteado do padrão eurocêntrico. (GIACOMINI, 2006, p. 201).<br />

A rejeição ao modelo tradicional dos cabelos, quase raspados para os homens ou<br />

alisados para as mulheres revela também uma rejeição ao padrão de comportamento da<br />

geração anterior e um inconformismo com as regras estabelecidas:<br />

Para falar a verdade naquela época você tinha dois cortes, ou esse que era<br />

o meu e de alguns adeptos, o black-power, e aqueles que usavam o Príncipe<br />

Danilo que era rapadinho do lado e só uma cuia na cabeça. Até dentro de casa<br />

a gente tinha uma pressão da mamãe, do papai, eles diziam: ‘não vai cortar<br />

esse cabelo, tá parecendo macaco’. Então a gente já tinha no subconsciente<br />

que não podia passar de um centímetro o cabelo, ou melhor, meio centímetro.<br />

Então, isso aí fez com que alguns começassem a discutir essa questão da<br />

discriminação. (Dom Filó, 03 jul. 2007).<br />

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As interações entre moda e música na constituição de identidades: uma análise das influências da Black Music<br />

Foto 06 - Cabelos black power (Aretha Franklin)<br />

Fonte: Disponível em: .<br />

Foto 07 - Cabelos black power (Michael Jackson)<br />

Fonte: Disponível em: .<br />

Ao atrelamento às raízes africanas, soma-se o orgulho negro nos penteados. Quanto<br />

maior era o cabelo, mais bonito e “black”. De acordo com Mestre Tito, dançarino da atual<br />

equipe Brother Soul em Belo Horizonte:<br />

Importante também era a questão do cabelo, tinha uns caras com o cabelo<br />

desse tamanho igual um repolho. E às vezes chegava com um ouriçador que<br />

era uma madeira com 5 grampinhos assim de ferro para ouriçar o cabelo. Ficar<br />

com cabelo redondão e ir para os bailes, aquilo era impressionante. (Mestre<br />

Tito, 12 fev. 2006).<br />

O orgulho negro revelava-se nos cabelos, que também eram um incômodo para<br />

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as instituições de vigilância. Mesmo porque as vestimentas eram usadas em momentos<br />

específicos, mas o cabelo acompanhava as pessoas onde quer que fossem. Temos relatos,<br />

como já foi visto, de vários blacks em Belo Horizonte que tiveram a cabeça raspada pela<br />

polícia.<br />

O cabelo também é visto como marca ou sinal que melhor e mais decididamente<br />

que qualquer outro, expressariam - ou negariam - o orgulho negro. Trata-se<br />

de um ato de politização do cabelo, a generalização de uma leitura política<br />

do penteado: o penteado transformado em manifesto. (GIACOMINI, 2006, p.<br />

203).<br />

A vestimenta como manifesto de identidade já era uma característica usada pelos<br />

negros americanos nas décadas de 30 e 40, com o chamado terno “zoot”.<br />

Segundo Martin e Koda, ‘o terno zoot [...] normalmente era composto de um<br />

paletó na altura dos joelhos, com ombros largos e retangulares e ombreiras,<br />

calça afunilada, larga na altura dos joelhos e justa na bainha’. Confeccionado<br />

em cores fortes (como azul-celeste), com chapéu combinando, usado com<br />

uma longa corrente dourada e um cinto com um monograma, o terno zoot<br />

imediatamente identificava quem o vestia como parte de uma cultura diversa<br />

da branca, pois era oferecido apenas em bairros negros e usado somente por<br />

negros e hispânicos. O traje era uma afirmação contundente da identidade<br />

negra; representava uma ‘recusa subversiva a ser subserviente’. (CRANE,<br />

2006, p. 361-362).<br />

Um aspecto curioso, é o fato de as calças do terno zoot terem a cintura bem alta, como<br />

pode ser percebido nas fotos abaixo. Esta é uma característica também da indumentária dos<br />

blacks do movimento soul em Belo Horizonte, ainda hoje.<br />

Foto 08 - Terno Zoot<br />

Fonte: Crane, 2006, p. 363.<br />

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Ouriçador, suspensório, a calça era muito alta a calça pegava aqui (no meio<br />

do peito). Inclusive a minha calça pegava aqui (no meio do peito) com dois<br />

suspensórios e uma camisinha por dentro. Era uma coisa impressionante na<br />

época dos blacks mesmo, essa coisa do James Brown estava tocando em<br />

todas as casas de BH. (Mestre Tito, 12 fev. 2006).<br />

O terno zoot, assim como o chapéu, os suspensórios, as correntes e a bengala foram<br />

adaptados ao vestuário dos blacks, principalmente daqueles de Belo Horizonte. Em parte por<br />

que:<br />

O terno zoot [...] codificava uma cultura que exaltava uma identidade específica<br />

de raça, de classe, de gênero e de geração. Os habitantes da costa leste<br />

que o usavam durante a guerra eram basicamente jovens negros e latinos, da<br />

classe operária, cujos locais de vida e círculo social limitavam-se aos guetos da<br />

região noroeste, e o terno refletia uma luta pela negociação dessas identidades<br />

múltiplas em oposição à cultura dominante. (MARTIN; KODA v apud CRANE,<br />

2006, p. 362).<br />

Outra explicação surge na fala dos frequentadores do movimento, ainda que, no fundo,<br />

ela tenha o mesmo sentido da utilização do zoot. Os blacks de Belo Horizonte optaram pelos<br />

trajes “formais”, entendidos como os ternos, em função da discriminação feita pela polícia.<br />

Então é o que acontece: nós criamos, nós pensamos assim, nós temos que<br />

mudar a cara a personalidade desse baile. Porque quem usa terno tem uma<br />

visão diferente. Você pode ver se você colocar um cara bem vestido assim<br />

desse estilo (mostra sua roupa, um terno). E pegar um outro com um bermudão<br />

no meio da canela caindo, cheio de correntes e de tatuagem, assim tem uma<br />

suspeitazinha. Então o que nós começamos a fazer? A ir para o baile de terno,<br />

de paletó, você representando um cidadão. Nós usamos terno. Então esta<br />

coisa está até hoje, porque o black em Belo Horizonte ele usa terno, roupa<br />

social, sapato. (Ronaldo Black, 16 jun. 2007).<br />

Na fala do dançarino, que ainda hoje participa do movimento soul, revela-se o sentimento<br />

de exclusão e a tentativa, pela vestimenta, de se inserir na vida social: “você representando<br />

um cidadão”. O sentimento de cidadania, de fazer parte da cidade não existia entre os blacks<br />

naquele momento. Como completa Lourinho, outro dançarino que viveu a época, o terno seria<br />

uma forma de “melhorar” sua situação frente à polícia:<br />

O pessoal achou ‘na feira hippie dá muita batida’ então a polícia está dando<br />

batida demais, aí o pessoal falou assim: ‘oh gente, pra melhorar, vamos usar<br />

terno’. Isso já foi na caída de 77 pra 78. Então a gente dançava lá e começou a<br />

usar terno porque estava dando muita batida, eu mesmo fui pra conversar com<br />

o delegado umas seis vezes porque sem documento antigamente, menor tinha<br />

que andar com documento, a maioria trabalhava e tal, mas a gente, negro [...]<br />

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As interações entre moda e música na constituição de identidades: uma análise das influências da Black Music<br />

né igual hoje não. (Lourinho, 16 jun. 2007).<br />

A sensação de melhoria poderia também ser entendida como o aumento da autoestima,<br />

o orgulho da cor e de estar numa posição socialmente reconhecida, dentro do seu<br />

meio.<br />

Então mexeu com uma geração de pessoas. Mexeu profundamente dentro<br />

do ego dessas pessoas que eles passaram a se vestir melhor, deixou de ser<br />

aquele negro vagabundo barbudo sabe, andava muito de malandragem.<br />

Quer dizer, até no modo de falar, a cultura foi tão boa, você via os negros<br />

falando, sabe quem é que levantou um pouquinho? Naquela década de 70, o<br />

Renascença. O Renascença começou a expandir certa classe de negros que<br />

trabalhavam em banco e outros lugares, já foi melhorando a coisa. Aí você<br />

entrava no Renascença, mas dava gosto de você ir: ‘oh, meu Deus do céu, até<br />

que a classe tá melhorando’. Você vê aquelas pessoas bem vestidas, bonitas,<br />

sorrindo, conversando, falando sobre a Bolsa de Valores, tudo certo. Aquilo<br />

era um orgulho nosso. Então a nossa cultura acendeu e reativou uma coisa<br />

que eles tinham guardada dentro de si que não mexiam por medo de qualquer<br />

coisa, de ser preso. (Gerson King Combo, 02 jul. 2007).<br />

Nos bailes os trajes tinham toda uma concepção voltada para a dança. A calça, os<br />

acessórios, sapatos, tudo fazia parte de uma encenação de um determinado ideal de beleza.<br />

Os modelos variavam desde aqueles que se identificavam com o personagem principal do<br />

filme Shaft, até os que seguiam o cantor James Brown, ou os modelos dos gangsters dos anos<br />

30/40, de clara inspiração na vestimenta zoot. O terno caracterizaria uma forma de inserção<br />

dentro de um modelo aceito socialmente, mas não deixando de afirmar a sua identidade,<br />

pelos acessórios a ele atrelados, como os sapatos. Os sapatos, ainda hoje, constituem o foco<br />

da atenção dos dançarinos. Os modelos de plataforma dos anos 70 foram substituídos, em<br />

Belo Horizonte, pelos sapatos bicolores, símbolo de elegância retrô.<br />

Foto 09 - Sapatos bicolores - marca da identidade black<br />

Fonte: Ribeiro, 2008, p. 168.<br />

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As interações entre moda e música na constituição de identidades: uma análise das influências da Black Music<br />

Pode-se observar que a roupa, na maioria das vezes é mais simples, tecidos mais<br />

baratos. Mas os sapatos são sempre caros. Em Belo Horizonte os dançarinos do soul<br />

podem adquirir os modelos bicolores mais simples em apenas uma sapataria. Os modelos<br />

mais sofisticados, ainda hoje, são produzidos e personalizados, por uma única loja - Vivaldo<br />

Sapatos. Eles não custam menos de R$200,00, um custo bastante elevado para a maioria<br />

dos frequentadores dos bailes e do Quarteirão do Soul, espaço que desde 2004 reúne os<br />

blacks da velha guarda e muitos jovens, aos sábados na região central de Belo Horizonte, que<br />

também não abrem mão dos sapatos.<br />

Esse flutuar você usava as mãos pra se equilibrar. Então, por isso se usava luva<br />

porque você mostrava mais a parte e as luzes que faziam efeito, geralmente<br />

com a bengala, por que era ousado. Por que o sapato era brilhoso? Porque<br />

a parte mais importante do black era o sapato. Era o ‘tchan’. Não existia tênis<br />

na época. Ninguém ia de tênis. Então você tinha que fazer um sapato. Ele era<br />

feito sob medida, duas cores, três cores e, geralmente, em verniz. Com isso<br />

se criou uma identidade. O visual do Black tem todo um sentido. E por que a<br />

calça era apertada? Exatamente para aparecer o sapato. Sendo boca sino era<br />

apertada, era difícil de colocar, pois era uma calça muito justa para passar o<br />

movimento das pernas, para mostrar o brilho das pernas. Ali você identificava<br />

o dançarino e na hora de dar o ‘espaguete’ que é quando você abre as pernas<br />

e dá o ‘espaguete’, tem todo um contexto, na dança e na expressão da roupa.<br />

(Dom Filó, 03 jul. 2007).<br />

A composição do traje no soul é pensada de forma a revelar o porte e a elegância dos<br />

dançarinos. Na pista eles deixam seus papéis tradicionais e encarnam os personagens mais<br />

variados.<br />

Foto 10 - Trajes black (James Brown)<br />

Fonte: Disponível em: .; e .<br />

O traje, ele é muito importante na dança Soul, porque o dançarino de Soul<br />

tem que ter charme, tem que ter elegância, então realmente tem que se trajar<br />

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As interações entre moda e música na constituição de identidades: uma análise das influências da Black Music<br />

elegantemente. Não existe nenhum traje mais elegante que um traje social, um<br />

sapato bicolor, então tudo faz parte da dança. Às vezes você vê um dançarino<br />

de nariz em pé e tudo é porque ali ele incorpora um personagem e ali ele<br />

começa a soltar aquilo ali, tem uns que fazem uma postura de mafioso e tudo<br />

porque o mafioso também ele traja bem, são impecáveis os trajes dele, então<br />

é por isso que o traje é uma parte do Soul Music, não tem condições do<br />

camarada de esporte fazer os passos de Soul, fica uma coisa ridícula, é a<br />

mesma coisa que jogar futebol de calça esporte. (Stevie, 16 jun. 2007).<br />

Os papéis incorporados pelos dançarinos do soul, na maioria das vezes diferenciavamse<br />

de sua real condição financeira, o que não era impeditivo para sua participação nos bailes.<br />

Sair arrumado de casa impecável e a pé. Sem nenhum centavo no bolso.<br />

Acontecia muito isso. Chegava lá e contava com a colaboração do colega,<br />

para entrar no som. Às vezes acabava o som, faltava meia hora para acabar<br />

e aí a gente conseguia entrar. Dançava três músicas e ficava feliz da vida.<br />

(Adenauer, 12 fev. 2006).<br />

A composição das roupas, os adereços criados para impressionar as mulheres. A<br />

postura dos blacks nos bailes segue todo um ritual, ou como preferem os frequentadores - os<br />

mandamentos black.<br />

A gente ia com uma roupa e já deixava outra roupa pronta, aí você dançava.<br />

Porque um dos mandamentos blacks que a gente tem é que nunca você<br />

dança a primeira música lenta com a dama porque normalmente você está<br />

todo molhado de suor. Então você pode ver o black sempre tem um lencinho<br />

no bolso. Por exemplo, se pintar que você tem que dançar com uma menina,<br />

pelo menos você disfarça o suor. Como a gente morava perto o que a gente<br />

fazia? Ia com uma roupa, mas já pensava em outra e colocava em cima da<br />

cama. Colocava em cima da cama, pois na hora da lenta você ia para a casa<br />

rapidinho e trocava de roupa e já vinha com outro visual. Para você não levar<br />

sacola. E a gente dançava até o som acabar. A gente também colocava graxa<br />

atrás do salto do sapato de um jeito que se andasse não prejudicasse. Aí<br />

chegava no som você pegava com um palito espalhava aquela cera no chão<br />

para você deslizar melhor. Outra coisa é o pessoal que fumava: eles colocavam<br />

aquela caixa de fósforos porosa que acende o palito, colocava na sola do<br />

sapato, ali perto do salto. Aí ele estava dançando, riscava e parecia que ele<br />

tinha feito uma mágica, aí ficava aquele glamour. (Eduardo, 16 jun. 2007).<br />

Todos os códigos da moda black que ainda hoje permanecem no imaginário, não<br />

apenas dos seguidores do movimento, mas das novas gerações que se identificam com a<br />

postura do orgulho negro e da afirmação da identidade. A utilização de todos esses elementos<br />

simbólicos proporciona a identificação e revela sua alteridade.<br />

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Considerações Finais<br />

Foto 11 - Os blacks no Quarteirão do Soul em Belo Horizonte<br />

Fonte: Ribeiro, 2008.<br />

Foto 12 - A elegância Black no Quarteirão do Soul em Belo Horizonte<br />

Fonte: Ribeiro, 2008.<br />

A identidade black hoje encontra outras variações: existem os que se identificam<br />

com o movimento hip-hop, aqueles do movimento funk, entre outros ritmos. O que todos<br />

esses grupos sociais têm em comum é a busca de uma identidade social que se afirma pela<br />

identificação com a música e com os elementos visuais que compõem a moda dos músicos<br />

de cada universo. Seja encarando uma postura mais politizada como os adeptos do hip-hop,<br />

ou mais sexualizada como os do funk é a partir da moda que esses grupos se percebem e<br />

afirmam as diversas identidades que povoam as ruas da cidade.<br />

A moda é constituída a partir da reflexividade social. Portanto, as mais diversas interações<br />

e mediações promovidas pelos meios de comunicação e pela cultura de massas refletem-se,<br />

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As interações entre moda e música na constituição de identidades: uma análise das influências da Black Music<br />

não apenas na produção da moda, mas também nos diversos consumos e grupos sociais que<br />

se identificam com seus signos.<br />

Compreender assim as relações sociais que permeiam a constituição desses<br />

signos possibilita, não apenas aos pesquisadores, mas também aos produtores de moda,<br />

compreender um pouco como variáveis, às vezes desconsideradas, podem ser fundamentais<br />

na identificação do consumidor e nas diversas significações que tais produtos podem assumir<br />

em suas vidas.<br />

A moda Black pode ser um bom exemplo de como essas identidades se constituem<br />

a partir dos produtos da mídia, como no caso a música e, como sua identificação com ela<br />

pode ser um reflexo dos modos de vida e da postura político-social do indivíduo. Podemos<br />

também, a partir de sua análise, compreender as transições inerentes aos processos sociais:<br />

da valorização da identidade negra do soul, até pensarmos na afirmação do eu pelo hip-hop.<br />

A roupa comunica ao mundo a identidade desses indivíduos.<br />

A moda no século XXI pode ser entendida como uma das principais formas que o<br />

indivíduo tem de demonstrar, de maneira mais explícita, o seu estar no mundo. A vestimenta é<br />

hoje, muito mais que um acessório, mas uma declaração de identidade do indivíduo. Portanto,<br />

conhecer as influências que perpassam esse universo é estar em sintonia com as diversas<br />

variantes que compõem o corpo social e perceber, por vezes antecipadamente, as tendências<br />

que contribuirão para a transformação desta sociedade e na afirmação da alteridade dos<br />

indivíduos, mesmo em meio a tanta padronização.<br />

Foto 13 - O hip-hop visita a “velha guarda” do soul<br />

Fonte: Ribeiro, 2008.<br />

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As interações entre moda e música na constituição de identidades: uma análise das influências da Black Music<br />

Notas<br />

i RIBEIRO, Rita Aparecida da Conceição. Identidade e resistência no urbano: o Quarteirão do Soul em<br />

Belo Horizonte. 2008. 192 f. Tese (Doutorado em Geografia) - Instituto de Geociências da UFMG, Belo<br />

Horizonte.<br />

ii De acordo com Herzhaft (1989), estes chamados também poderiam se chamar hoolies ou arhoolies.<br />

iii Apenas o primeiro deles (I FIC), realizado em 1966, foi transmitido pela TV Rio.<br />

iv Giacomini refere-se à moda surgida nesse período como moda soul. Preferimos optar pela<br />

denominação moda black por ser mais abrangente e mais característica da identidade dos seguidores<br />

do movimento que, na maioria das vezes, se autodenominam Blacks.<br />

v MARTIN, Richard; KODA, Harold. Jocks and nerds. New York: Rizzoli, 1989. p. 209.<br />

Referências<br />

CRANE, Diana. A moda e seu papel social: classe, gênero e identidade das roupas. São<br />

Paulo: Ed. Senac-SP, 2006.<br />

ERNER, Guillaume. Vítimas da moda?. São Paulo: Ed. Senac-SP, 2005.<br />

GIACOMINI, Sonia Maria. A alma da festa: família, etnicidade e projetos num clube<br />

social da Zona Norte do Rio de Janeiro - o Renascença Clube. Belo Horizonte: Ed.<br />

UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2006.<br />

HERZHAFT, Gerard. Blues. Campinas: Papirus, 1989.<br />

HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo:<br />

Companhia das Letras, 1999.<br />

MELLO, Zuza Homem de. A era dos festivais. São Paulo: Ed. 34, 2003.<br />

MUGGIATI, Roberto. Blues: da lama à fama. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995.<br />

RIBEIRO, Rita Aparecida da Conceição. Identidade e resistência no urbano: o Quarteirão<br />

do Soul em Belo Horizonte. 2008. 192 f. Tese (Doutorado em Geografia) - Instituto de<br />

Geociências da UFMG, Belo Horizonte.<br />

Relação dos entrevistados<br />

Adenauer (Adenauer Marques da Silva) comerciário, integrante do grupo de dança Brother<br />

Soul e colecionador de discos de vinil.<br />

Dom Filó (Asfilófilo de Oliveira Filho) engenheiro coordena a ONG LUB, Liga Urbana de<br />

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As interações entre moda e música na constituição de identidades: uma análise das influências da Black Music<br />

Basquete, com projetos voltados para o desenvolvimento e o resgate da auto-estima dos<br />

jovens negros. Eventualmente toca nos bailes black do Rio.<br />

Gerson King Combo (Gerson Côrtes) cantor carioca, considerado o James Brown brasileiro.<br />

Teve 03 discos solo lançados: Gerson King Combo (1977), Gerson King Combo II (1978)<br />

e Mensageiro da Paz (2001), além de diversas participações em coletâneas e trabalhos de<br />

outros intérpretes. Atualmente trabalha para a Prefeitura do Rio de Janeiro em uma creche<br />

comunitária em Vila Isabel, mas continua se apresentando em bailes black.<br />

Lourinho (José Maria Gonçalves de Carvalho) pintor de automóveis frequenta o Quarteirão<br />

do Soul sempre acompanhado pela mulher Cida, que vende salgados e bebidas no espaço, e<br />

também é uma Dama do Soul.<br />

Mestre Tito (José Antônio Tito) vigilante bancário desenvolve um trabalho social voltado para<br />

capoeira. É integrante do grupo Brother Soul.<br />

Mr. Funky Santos (Oséias Moura dos Santos) autônomo, agora faz participações nas<br />

apresentações da Soul, Baby, Soul e do Club do Soul.<br />

Ronaldo Black (Ronaldo Bernardo Soares) taxista faz parte do grupo de dança BH Soul.<br />

Geralmente vai ao Quarteirão acompanhado do filho Ronaldinho, que já segue os passos do<br />

pai na dança.<br />

Stevie (Aloísio) dançarino do grupo BH Soul.<br />

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ILuSTRAçãO DIGITAL NA MODA<br />

Gabriela Coutinho Pinheiro; Graduanda de <strong>Design</strong> de <strong>Moda</strong>: UFC<br />

gabrielapinheiro@gmail.com<br />

Adriana Leiria Barreto Matos; Docente do Curso de <strong>Design</strong> de <strong>Moda</strong>: UFC<br />

adriana.leiria@ufc.br<br />

Resumo<br />

O presente artigo tem o propósito de apresentar um estudo sobre<br />

Ilustração Digital em <strong>Moda</strong>. Para isto, o artigo se inicia fazendo<br />

um levantamento sobre a história da Ilustração em si, chegando<br />

a um conceito de Ilustração de <strong>Moda</strong>, fazendo um paralelo com<br />

a criação do próprio computador pessoal. Em seguida, foram<br />

apresentados os principais softwares utilizados no processo<br />

criativo de Ilustrações de <strong>Moda</strong>, como o CorelDRAW®, o Adobe<br />

Photoshop® e o Illustrator®, visando expor as suas principais<br />

aplicações. Após abordar os principais softwares, por fim serão<br />

discutidas as técnicas fundamentais usadas por Ilustradores,<br />

relacionando-as com os softwares, expondo as suas características<br />

e aplicações. Espera-se assim contribuir com essa área de estudo<br />

na formação de ilustradores de moda.<br />

Palavras-Chave: ilustração; moda; digital<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

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Ilustração digital na moda<br />

Introdução<br />

O presente artigo aborda o tema Ilustração Digital em <strong>Moda</strong>, visando esclarecer a<br />

importância dos recursos disponíveis para esse campo e também expor as técnicas que os<br />

ilustradores profissionais utilizam a partir destes programas. A ilustração digital teve o seu início<br />

recentemente, a partir dos anos 1990, portanto ainda carece de maiores investigações a seu<br />

respeito.<br />

Buscou-se levantar informações quanto à origem da Ilustração Digital de <strong>Moda</strong>, visando<br />

compreender a sua importância para as ilustrações criadas hoje. Também foi analisada a<br />

utilização das novas tecnologias em comunhão com os procedimentos tradicionais, assim<br />

como buscou-se estudar a influência do uso desses aparatos no resultado final do processo<br />

de criação de ilustrações.<br />

Breve história da ilustração de moda<br />

A história da ilustração de confunde com a própria história da escrita, já que as primeiras<br />

formas de manifestação de comunicação humana deram-se através de figuras rupestres. Mais<br />

tarde, no Egito antigo, surge a primeira versão do que viria a ser um livro ilustrado – o Rev Nu<br />

Pert Em Hru, ou Livro dos Mortos. Inicialmente, os escribas dividiam o espaço do papiro para<br />

fazer a narrativa em hieróglifos, deixando espaços em branco a serem futuramente preenchidos<br />

pelos artistas. Gradativamente, as ilustrações passaram a ter mais importância, e coube aos<br />

artistas iniciarem a produção, invertendo o processo e deixando espaços pequenos para os<br />

escribas preencherem.<br />

Por volta de 1450, surgem os primeiros impressos, denominados de “Manuscritos<br />

Iluminados”. Profissionais adornavam esses manuscritos, contribuindo para a riqueza e<br />

iluminação das páginas folheadas a ouro. Daí surgiu o termo ilustrador – ou iluminador.<br />

A ilustração de moda teve a sua primeira manifestação no século XVII, com as gravuras<br />

detalhadas de Wenceslaus Hollar, um artista inglês que produzia também gravuras de formas<br />

arquitetônicas e plantas de edifícios e igrejas na Londres de 1600. Até então, a percepção de<br />

moda só era possível através das pinturas e esculturas. De acordo com Gragnato: “quando<br />

olhamos para a história da moda, percebemos que seus registros estão atrelados à história da<br />

arte, principalmente em pinturas, esculturas e gravuras” (2009, p.32)<br />

No século XVIII, a moda passou a ser disseminada em diversos jornais e revistas, e<br />

então surgiram os primeiros fashion platesi – ilustrações que mostravam o que havia de novo<br />

na moda, e usado como referência pelas mulheres interessadas (Figura 1).<br />

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Ilustração digital na moda<br />

De acordo com Lever,<br />

Figura 1<br />

“Evening and Walking dress”, 1827.<br />

Originalmente publicado por J. B. Whittaker, Londres.<br />

The Lady’s Magazine começou a publicá-los [os fashion plates] a partir de 1770.<br />

E, de repente, figurinos semelhantes estavam sendo publicados em toda a<br />

Europa. Para nós, acostumados às ilustrações de moda, é difícil compreender<br />

que, antes da invenção do fashion plate, obter informações sobre a última<br />

moda era [...] trabalhoso. (1989, p. 147)<br />

Durante toda a evolução dos desenhos de moda, as técnicas se aperfeiçoaram desde<br />

as gravuras, passando por técnicas mais tradicionais como guache e aquarela. As ilustrações<br />

continuaram evoluindo nos anos 1920, e nas décadas 1960 e 1970 se intensificou a utilização<br />

da estilização do traço, e a ilustração seguiu a sua história até o princípio dos anos 1990 –<br />

época em que a ilustração digital entrou em cena. Com ela, tornou-se possível alcançar um<br />

nível maior de realismo nas criações.<br />

Uma ilustração de moda, ao contrário de um desenho de moda ou de um desenho<br />

técnico, tem a preocupação de mostrar mais do que somente uma roupa. Como cita Esteves<br />

(2009), “Ilustrações podem mostrar o ambiente no qual o produto será usado e sua interação<br />

com o usuário”. Então, mais do que representar graficamente a criação de um estilista, a<br />

ilustração de moda deve transmitir um conceito.<br />

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Ilustração digital na moda<br />

O ilustrador, na maioria das vezes, tem que se comunicar com o público leigo,<br />

provavelmente o usuário do produto. Por isso, a imagem criada tem que ser<br />

facilmente interpretada e ter um grande apelo visual, não importando detalhes<br />

de um desenho (ESTEVES, 2009) ii .<br />

Nas ilustrações, a representação real da forma deixa de ser crucial, e não é necessária<br />

a sua reprodução fiel para que o produto em questão tenha o seu destaque. De acordo com<br />

Carvalho (2010, p.31): “O ilustrador é, antes de tudo, um leitor e sua ilustração dá visibilidade<br />

à sua interpretação”. Cabe ao ilustrador projetar as suas impressões, interpretá-las de acordo<br />

com a sua visão.<br />

Cardeal e Pedrini (2007) contribuem para essa linha de pensamento, e acrescentam<br />

que, com as facilidades tecnológicas, a ilustração tornou-se uma forma eficaz e rápida de<br />

comunicar, de expor uma ideia. Para Dawber (2003, p. 08) a ilustração proporciona uma<br />

expressão artística que “apela mais ao coração que ao cérebro”.<br />

A ilustração de moda obteve notoriedade nos últimos anos devido à sua utilização na<br />

mídia, em campanhas publicitárias e lançamentos de produtos ilustrados. Nos anos 1990,<br />

surge um dos artistas ilustradores contemporâneos mais importantes: Jason Brooks (Figura<br />

2). Suas ilustrações lhe renderam o prêmio Vogue/Sotheby’s Cecil Beaton por ilustração de<br />

moda ainda na mesma década, e suas criações estabeleceram um novo conceito a respeito da<br />

ilustração vetorizada, antes tomada por rígida e desprovida de vivacidade. O artista produziu<br />

várias ilustrações computadorizadas em flyers para casas de entretenimento.<br />

Outro artista notório da época foi Graham Rounthwaite, que produziu uma série de<br />

outdoors para a marca jeans Levi’s, o que voltou os olhos do público para a ilustração digital.<br />

Figura 2<br />

Ilustração de Jason Brooks<br />

Fonte: Portfolio Online, disponível em: http://www.jason-brooks.com<br />

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Ilustração digital na moda<br />

O interesse atual por ilustração digital de moda se deve, em parte, à popularização de<br />

softwares como o Adobe Photoshop®, Adobe Illustrator® e CorelDRAW®. A internet causou<br />

reconhecimento do público em relação a esses programas, e até mesmo quem não possui<br />

informações técnicas sobre o referido assunto já tomou conhecimento da existência dos<br />

softwares de edição de imagem, como o Adobe Photoshop®.<br />

As proporções nos desenvolvimentos tecnológicos sociais e globais são reflexo<br />

da contemporaneidade que vivemos. A rapidez de informações, a efemeridade<br />

de comportamentos sociais, necessita de uma expressão artística que<br />

envolva os elementos atuais de subjetividade comportamentais; a ilustração<br />

acompanha essa mutação em que se encerra a sociedade atual. Por isso ela<br />

é um campo que atua com grande requisito em propagandas, livros, cartazes,<br />

revistas, todos os meios midiáticos massivos em que ela possa se destacar.<br />

(FREITAS, 2009, p. 3)<br />

Hoje, com acesso à internet, pode-se encontrar com facilidade referências e conteúdos<br />

que orientam o manuseio desses programas, compondo uma verdadeira biblioteca de efeitos,<br />

recursos e imagens. Torna-se possível para um ilustrador aperfeiçoar as suas habilidades<br />

técnicas e expressividade plástica através do compartilhamento de informações que a rede<br />

mundial de computadores disponibiliza, constituindo-se no que Gomes (2010, p.52) chama de<br />

“um vasto arquivo poético visual e objectual”.<br />

O avanço tecnológico expandiu as possibilidades da ilustração. Com o auxilio de<br />

computadores e de softwares especializados, tornou-se viável adicionar texturas e movimentos<br />

com mais realidade e praticidade. Para o ilustrador, isso também significou o contato direto<br />

e imediato com o público. Entretanto, após o surgimento e rápida propagação dessas novas<br />

tecnologias, os ilustradores que antes trabalhavam com técnicas tradicionais tiveram que<br />

adaptar-se:<br />

O ilustrador encontra tantas facilidades técnicas que acaba tendo esvaziado<br />

seu esforço frente a enorme concorrência com os ilustradores insurgentes,<br />

apoiados sobre as facilidades dos atuais softwares de criação gráfica<br />

(a máquina é a artista, o engenheiro, o médico e assim por diante). Nesse<br />

maravilhoso novo mundo, o computador criou, principalmente, a possibilidade<br />

de experimentar. (MILAGRE, 2008) iii<br />

Um dos maiores desafios do ilustrador que presenciou a transição da arte tradicional<br />

para a arte digital, mas que também é uma questão pertinente para os ilustradores iniciantes,<br />

é o de compreender a transformação gerada pela revolução tecnológica sobre a produção<br />

imagética. Com o decorrer do tempo, o repertório tecnológico amplia-se, assim como a<br />

diversidade de informações proeminentes do mundo inteiro, que são compartilhadas a todo<br />

instante numa rede de cooperação:<br />

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Ilustração digital na moda<br />

Alguns ilustradores, vencido o impacto inicial, mantiveram a calma e compraram<br />

computadores para utilizá-los sempre que necessário sem jamais dispensar<br />

o lápis, o guache, o papel e outros materiais tradicionais. Há, também, a<br />

nova geração de ilustradores que, deslumbrados com o computador, estão<br />

esquecendo de aprimorar a parte artística. (NAKATA, 2010, p. 41)<br />

Continuando o raciocínio de Nakata (2010), torna-se imprescindível para um bom<br />

ilustrador associar as técnicas nas quais tenha maior segurança com as crescentes inovações<br />

tecnológicas, procurando expressar-se e mostrar a sua individualidade. Veremos como alguns<br />

ilustradores fazem esse tipo de associação a seguir, mas antes se torna necessário introduzir<br />

as ferramentas e softwares mais difundidos para a ilustração de moda.<br />

Ferramentas utilizadas para ilustrar<br />

A ilustração de moda pode ser produzida com técnicas que vão desde aquelas<br />

com materiais artísticos como aquarela, giz, carvão, pastel, nanquim, tintas,<br />

canetas, grafites, até as consideradas mais sofisticadas em função do uso de<br />

softwares como Photoshop® e CorelDRAW®. Pode-se ainda mesclar essas<br />

técnicas (manuais e digitais) buscando enriquecer e personalizar ainda mais o<br />

resultado final do desenho. (AMORIM, 2008, p. 01)<br />

A ilustração digital teve a oportunidade de surgir com o advento de computadores a<br />

preços mais acessíveis. Nos anos 1980 já existiam os personal computers, ou PCs, mas a<br />

criação do mouse incorporou a gestualidade do artista aos processos digitais.<br />

De acordo com Tallon (2008, p. 12), um ilustrador precisa de instrumentos digitais para<br />

desenho e pintura, a exemplo da mesa digitalizadora, ou pen tablet. Este recurso possibilita<br />

a digitalização imediata do traço composto diretamente sobre uma superfície plana com tela<br />

sensível (a tablet, ou mesa digitalizadora propriamente dita) e uma caneta ótica. Em algumas<br />

marcas, a tecnologia que transmite o desenho para a tela do computador está situada na<br />

caneta; entretanto, a tecnologia em que a superfície da tela é sensível permite um melhor<br />

desempenho. A tablet possibilita uma pintura digital superior à obtida com o mouse, por sua<br />

precisão e pela capacidade de alteração de pressão. Com ela, pode-se também desenhar<br />

diretamente na tela do computador, sem a necessidade de um rascunho prévio digitalizado.<br />

Outra inovação que viabilizou digitalizar esboços foi o scanner, imprescindível para<br />

a transposição do desenho traçado com instrumentos tradicionais para o computador. Um<br />

ilustrador também necessita de métodos de captura de imagens. Tallon (2008, p.12) frisa que<br />

se deve dispor de um scanner de qualidade, que servirá para as possíveis digitalizações no<br />

dia-a-dia.<br />

Um dado bastante significativo em relação à introdução do computador como<br />

ferramenta nas editorias de arte, a partir da década de 90, diz respeito ao<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

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Ilustração digital na moda<br />

formato dos originais dos desenhos. [...] Os desenhos realizados na década de<br />

80 são de diferentes tamanhos e materiais. Eram fotografados no estúdio do<br />

jornal, sem impedimento de dimensões. Desde a década de 90 as redações<br />

ou os estúdios dos ilustradores dispõem de escaners tamanho A-4 (o tamanho<br />

maior é muito caro), o que acarreta numa limitação evidente em termos de<br />

gestualidade e textura. (GUIRALDO, 2006, p. 10)<br />

Um scanner de alta qualidade detém um custo elevado, então, caso o artista necessite<br />

de uma qualidade superior, é mais viável terceirizar as digitalizações em gráficas especializadas.<br />

Outros recursos disponíveis são as câmeras digitais, tanto para composições quanto para<br />

eventuais aquisições de imagens que irão compor o banco de imagens do ilustrador com a<br />

finalidade nortear futuros trabalhos.<br />

Softwares utilizados<br />

Pode-se considerar que as imagens no meio digital podem ser classificadas em vetoriais<br />

ou bitmaps. Imagens vetoriais são compostas de linhas e pontos, objetos matemáticos,<br />

definidos por vetores. Já a imagem no formato de bitmap (mapa de bits) é constituída por uma<br />

sequência de bits que formam uma figura que consiste em centenas de linhas e colunas de<br />

pequenos elementos, chamados pixelsiv . Dependendo da quantidade de ampliação da imagem<br />

trabalhada, o pixel não pode ser visualizado individualmente, resultando em uma percepção<br />

da imagem em suaves gradações de cor.<br />

A imagem vetorial, por sua vez mantém a sua nitidez quando redimensionada, ao<br />

contrário das imagens em bitmap, que necessitam de um número considerável de pixels para<br />

obter uma imagem nítida. Alguns softwares só produzem imagens vetoriais, como é o caso<br />

do CorelDRAW® que por definição de Canto (2002, p. 5), são desenhos matematicamente<br />

ligados por vários pontos unidos por linhas. Dessa forma, é possível alterar o tamanho e o<br />

formato de um objeto vetorial sem que ele perca as suas definições – ao redimensioná-lo, ele<br />

é recalculado matematicamente para o novo formato, sem que haja perda na qualidade final.<br />

No tocante à edição de imagem, a criação de softwares como Adobe Photoshop®<br />

e CorelDRAW® coincidiram com a criação de máquinas capazes de executá-los. Em 1988<br />

foi lançada a primeira versão do programa CorelDRAW®, mas apenas em 1995 surgiu a<br />

primeira versão do programa em 32 bits, ou seja, em cores. Este programa facilitou em muito<br />

a criação de desenhos técnicos de moda, que é a expressão gráfica primordial do ambiente<br />

industrial, sendo assim de significativa importância. Além da maior rapidez com que as peças<br />

são desenhadas, a utilização desse software possibilita uma imagem perfeitamente simétrica,<br />

dentre outros padrões de exigência específicos da representação técnica, que costumavam<br />

requerer mais tempo e atenção para serem atingidos com ferramentas tradicionais.<br />

Houve uma evolução gradativa em que as ferramentas vetoriais do CorelDRAW®<br />

passassem a ser utilizadas não somente para desenhos técnicos, mas também para desenhos<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

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Ilustração digital na moda<br />

estilizados e ilustrações. Para isso, torna-se necessário não somente dominar as principais<br />

ferramentas do programa, como também possuir conhecimento também sobre o desenho<br />

de moda. Além de linhas retas e desenhos planificados, o CorelDRAW® também permite a<br />

criação de traços mais fluidos, transparências e outros efeitos que auxiliam na suavização da<br />

imagem.<br />

Outro programa da Corel Corporation é o Corel® PHOTO-PAINT, um software voltado<br />

para edições de imagens em bitmap. Através dele é possível aplicar efeitos em imagens, como<br />

alterar seu brilho e contraste, redimensioná-las e, assim, aprimorar o seu feitio. Também há<br />

o Corel® Paint Shop Pro®, criado em 1991, inicialmente apenas para auxiliar usuários de<br />

computador a modificar o formato das imagens, com alterações básicas na cor e algumas<br />

manipulações, como alterações em brilho e contraste das imagens.<br />

O CorelTRACE®, por sua vez, permitia converter bitmaps em gráficos vetoriais. O<br />

programa transforma uma imagem escaneada num vetor, que pode ser editado futuramente no<br />

CorelDRAW®, viabilizando assim o processo de vetorização de imagem. Hoje o programa foi<br />

incorporado como ferramenta dentro do CorelDRAW®, sob o nome de Corel PowerTRACE®.<br />

Também desenvolvido pela Corel Corporation o programa Corel Painter® destaca-se<br />

na ilustração digital, especialmente no quesito de pintura. De acordo com Grossman (2010,<br />

p. 11): “O Painter foi o primeiro programa de emulação de mídias naturais, criado por artistas<br />

para artistas”. Ele tem a capacidade de imitar virtualmente qualquer técnica tradicional, e<br />

possui uma vasta quantidade de estilos de ferramentas que permitem uma pintura digital<br />

com muitos atributos. Grossman (2010) compara o programa com o Adobe Photoshop®,<br />

que também é voltado para imagens com pixels, declarando que enquanto o Photoshop®<br />

é ideal para manipulação de imagens, o Painter é mais completo em termos de ferramentas<br />

para a pintura digital; ainda de acordo com Grossman(2010), com o passar dos anos, os dois<br />

programas têm se tornado cada vez mais compatíveis, tornando-se assim possível criar uma<br />

imagem utilizando os melhores recursos dos dois programas.<br />

O Adobe Photoshop® surgiu há mais de 20 anos, e tem o seu uso geralmente ligado à<br />

edição e retoques de imagens. Com ele torna-se possível alterar cores, ajustar a luz, adicionar<br />

texturas e estampas e mais uma infinidade de ferramentas. Com o auxílio de um scanner e a<br />

ajuda de uma mesa digitalizadora, pode-se finalizar um croqui feito à mão, adicionando cor<br />

e aperfeiçoando o traço. Também é possível criar uma ilustração ou desenho de moda sem<br />

a necessidade de um esboço inicial digitalizado: na sua área de trabalho é possível a criação<br />

espontânea, com ajuda dos recursos do programa e da tablet:<br />

O programa oferece inúmeras facilidades para designer e produtores gráficos<br />

criarem imagens sofisticadas, que poderão ser impressas ou colocadas na Web.<br />

[...] Apresenta diversas ferramentas específicas para alterar brilho, contraste e<br />

cores de uma imagem; preparar uma foto para ser utilizada por um software<br />

de paginação, como o In<strong>Design</strong>, ou de ilustração digital, como o Illustrator®;<br />

otimizar uma imagem para a Web, a ser utilizada em um programa como o<br />

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Ilustração digital na moda<br />

Dreamweaver; realizar um gerenciamento avançado de camadas; ferramentas<br />

de desenho vetorizado; entre outras funções. (ANDRADE, 2007, p. 11)<br />

Todas as imagens produzidas no Adobe Illustrator® são criadas em vetor, incluindo as<br />

fontes. Uma imagem vetorial, como já foi dito antes, é feita através da união de pontos unidos<br />

por retas – isso faz com que a sua resolução seja independente, tornando a imagem capaz de<br />

ser redimensionada para qualquer tamanho e impressa em qualquer mídia. Isso faz com que<br />

gráficos vetoriais, de acordo com Centner e Vereker (2007), possam ser considerados como o<br />

formato ideal para criar desenhos técnicos detalhados e ilustrações de moda.<br />

A Adobe não batizou o seu produto como Illustrator® sem razão. Artistas<br />

podem criar ilustrações para livros infantis, capas de revistas e artigos e uma<br />

enorme variedade de produtos, e eles utilizam o Illustrator® para aproveitar<br />

a alta qualidade e precisão disponíveis no programa. Uma variedade de<br />

instrumentos, [...] permitem que os ilustradores possam traduzir as imagens<br />

que vêem em suas mentes para a realidade. (GOLDING, 2009, pág. 17)<br />

No universo da moda também são utilizados outros softwares, de cunho mais<br />

especializado e integrado com o ambiente fabril, a exemplo dos programas de CAD ou CAM<br />

(Computer-Aided <strong>Design</strong> e Computer-Aided Manufacturing), como o Audaces. O CAD / CAM<br />

foi introduzido na indústria da moda na década de 1980 como um sistema autônomo. Ele foi<br />

originalmente desenvolvido para a Indústria Têxtil e de Vestuário, no âmbito do processo de<br />

fabricação e produção, que incluiu a criação de produtos têxteis, a elaboração e classificação<br />

de modelagens.<br />

Há uma série de softwares de moda e desenho especificamente para<br />

as pequenas empresas e designer freelancer, mas as grandes empresas<br />

de vestuário são mais propensas a usar o poderoso CAD para vestuário e<br />

programas têxteis produzidos pela Lectra e Gerber. Estes programas têm sido<br />

desenvolvidos para integrar todas as áreas do processo de vestuário e design<br />

têxtil, fazendo modelagens, classificações, e criação de vestuário através<br />

do merchandising e gerenciamento de dados. Consequentemente, estes<br />

programas são caros, mas permitem que as empresas grandes possam obter<br />

economias de escala. (BURKE, 2006, p. 157)<br />

Há também o Lectra Kaledo, um software recomendado para a área de criação; e ainda<br />

programas como o Digital Fashion Pro, My Label 3D, Fashion Tool Box e Virtual Fashion. Este<br />

último é o primeiro programa em 3D voltado especialmente para a moda, destacando-se dos<br />

demais por suas várias possibilidades e efeitos. Nele, torna-se possível criar modelos com<br />

mais veracidade, alcançados com os recursos disponíveis para a representação automática<br />

de textura e de caimento de tecidos.<br />

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Ilustração digital na moda<br />

Técnicas e ilustradores<br />

No campo da ilustração digital, constata-se que, apesar de inúmeras possibilidades de<br />

ferramentas e efeitos que podem ser criados com o auxilio de softwares, algumas técnicas se<br />

destacam.<br />

A técnica mais utilizada pelos ilustradores é a de fazer um esboço a lápis, escaneá-lo<br />

e então aperfeiçoá-lo em softwares específicos. A artista espanhola Carmen Garcia Huerta é<br />

adepta a esse método: ela produz um rascunho a lápis e o digitaliza, então faz o traçado da<br />

imagem inteira no Adobe Illustrator®. Neste ponto, são escolhidas as cores que virá a utilizar,<br />

e então utiliza o Photoshop® para adicionar volumes, luzes, suavizar a pele (Figura 3).<br />

Figura 3:<br />

Ilustração de Carmen Garcia Huerta<br />

Fonte: Portfolio Online, disponível em: http://www.cghuerta.blogspot.com/<br />

A ilustradora Yuko Shimizu utiliza o Adobe Photoshop® como “uma máquina<br />

computadorizada de silk-screen” (MORRIS, 2009, p. 117): após fazer a ilustração à mão com<br />

tinta nanquim, utilizando pincéis de bambu, ela então digitaliza o desenho final e somente<br />

adiciona a cor por intermédio dos recursos digitais. (Figura 4)<br />

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Ilustração digital na moda<br />

Figura 4<br />

Ilustração de Yuko Shimizu<br />

Disponível em: http://koikoikoi.com<br />

O trabalho de Miles Donovan (Figura 5) se destaca por ser digital, mas ao mesmo aliado<br />

a recursos tradicionais, como a fotografia e a colagem. Inicialmente ele utiliza uma foto, que<br />

é escaneada e manipulada no Adobe Photoshop®. A partir da imagem manipulada, utiliza<br />

então o Illustrator® para separar as cores da imagemv , criando estênceis individuais, que serão<br />

impressos. Os estênceis são cortados e pintados com spray em imagens individuais, que<br />

serão mais uma vez digitalizadas e montadas em camadas no Photoshop®. É um processo<br />

longo e trabalhoso, mas que garante que o artista possua controle absoluto nas formas e nas<br />

cores de todos os elementos de seu trabalho.<br />

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Ilustração digital na moda<br />

Figura 5:<br />

Ilustração de Miles Donovan<br />

Fonte: Portfolio Online, disponível em: http://www.milesdonovan.co.uk/<br />

Já Stephen Campbell (Figura 6) cria as suas ilustrações diretamente no Adobe<br />

Illustrator®, sem um rascunho prévio. Ele utiliza o mouse para criar linhas grossas que lembram<br />

marcadores permanentes, e aprecia o momento de “brincar com as cores durante o processo<br />

criativo” (MORRIS, 2009, p. 132). O ilustrador Marcos Chin também cria diretamente na área<br />

de trabalho do Adobe Illustrator®, mas se diferencia de Stephen Campbell por planejar a sua<br />

ilustração com papel e lápis antes, e usá-la como guia durante todo o seu processo.<br />

Figura 6:<br />

Ilustração de Stephen Campbell<br />

Fonte: Portfolio Online, disponível em: http://www.art-dept.com/illustration/campbell/index.html<br />

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Ilustração digital na moda<br />

Nice Lopes é uma ilustradora brasileira que recentemente teve seu trabalho publicado<br />

no livro Illustration Now, vol. 2 (TASCHEN, 2007). Ela utiliza o CorelDRAW® em conjunto com<br />

o Adobe Photoshop® para criar as suas ilustrações vetorizadas (Figura 7). A argentina Evelyna<br />

Callegari também produz as suas ilustrações utilizando o CorelDRAW®, criando bonecas<br />

estilizadas e com um ar infantil, além de também produzir ilustrações mais complexas que<br />

retratam a mulher moderna. Já o designer de moda praia e ilustrador Roger Hahn também<br />

utiliza o CorelDRAW® para compor as suas ilustrações vetorizadas, utilizando as ferramentas<br />

dos programas para alterar as cores dos trajes de banho das modelos com maior facilidade e<br />

fidelidade ao modelo original.<br />

Discussão<br />

Figura 7:<br />

Ilustração de Nice Lopes<br />

Fonte: Portfolio Online,<br />

disponível em: http://nicelopes.blogspot.com<br />

A despeito da vasta produção imagética de nosso país, no que diz respeito<br />

à formação visual ainda persistem valores românticos como “ter ou não ter<br />

talento”, “saber ou não saber desenhar”, descuida-se da necessidade de<br />

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Ilustração digital na moda<br />

educação para a linguagem visual e de um entendimento menos obscuro<br />

acerca da elaboração mental envolvida na produção de imagens. (GUIRALDO,<br />

2006, p. 01)<br />

Mesmo depois de discussões referentes ao surgimento da Ilustração de <strong>Moda</strong>, e o<br />

momento da sua união com a era dos computadores, gerando assim a Ilustração Digital, ainda<br />

existem dúvidas pertinentes ao tema. A primeira é a diferenciação de uma Ilustração de <strong>Moda</strong><br />

e de um desenho de moda.<br />

Como comenta Gragnato:<br />

Entendida aqui também como linguagem de representação visual, a ilustração<br />

de moda traz elementos próprios deste universo e vai mais além, incorporando<br />

e interpretando elementos culturais e sociais. Isto significa dizer que a ilustração<br />

de moda traz o “pulsar do tempo”, pois carrega traços desse tempo, valores<br />

e comportamentos, mudanças e oscilações, que influenciam a percepção e a<br />

concepção de novas estéticas, bem como análise e interpretação do espírito<br />

do tempo, da época em que ela foi realizada. Por isso mesmo, a diferença<br />

entre desenho e ilustração é muito sutil e suas nuances se entrelaçam e se<br />

misturam, dificultando a percepção de limites (2008, p. 63)<br />

Um dos maiores obstáculos de um ilustrador de moda é diferenciar o seu trabalho de<br />

um desenho de moda comum; atribuir a ele significados subjetivos, passar sensações e criar<br />

um contexto dê destaque a ilustração. Gomes (2010, p.54) menciona que Couchot considera<br />

o computador e suas funcionalidades detentores de vantagens no que diz respeito à recepção<br />

do expectador ao objeto de visual. Ou seja, a transformação tecnológica na produção imagética<br />

não se restringe somente aos métodos de trabalho do ilustrador, mas também a quem aprecia<br />

e experimenta o processo de fruição dessas imagens.<br />

Sobre a importância das ilustrações, Freitas discorre que:<br />

Talvez por ser uma expressão artística mais midiática e popular, tenha sido<br />

excluída do campo artístico durante muito tempo e hoje ela faça parte do<br />

campo de artes visuais. Esteticamente ela se compõe de vários elementos<br />

significativos que colaboram com o resultado final. (2009, p. 2)<br />

Outro questionamento pertinente é que, até pouco tempo atrás, se considerava a<br />

Ilustração Digital como uma forma de ilustração menor, atribuída a imagens rígidas e sem a<br />

vivacidade conferida às artes tradicionais; hoje, cabe ao ilustrador e aos pesquisadores do<br />

assunto quebrar esses paradigmas. Gomes (2010, p.53) justifica que “[...]‘um novo’ paradigma<br />

no desenvolvimento dessas imagens [...]” torna-se objeto de investigação e análise sob o<br />

ponto de vista técnico-científico. Percebe-se que, a Ilustração Digital amplia as possibilidades<br />

de criação e representação plástica de objetos, contextos e tendências socioculturais através<br />

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Ilustração digital na moda<br />

de seus inúmeros recursos. Para isso, o ilustrador pode ampliar o seu repertório expressivo<br />

através da utilização dos softwares, para assim poder aplicá-los em seus trabalhos da melhor<br />

forma possível. Entretanto, torna-se necessário ressaltar a importância de um conhecimento<br />

prévio em estilos e técnicas de representação tradicionais, para que a utilização dos meios<br />

digitais sirva para aperfeiçoar todo o processo de composição das ilustrações.<br />

Conclusão<br />

Com a utilização de softwares e demais recursos digitais, torna-se possível criar<br />

ilustrações com um grau de complexidade que só seria alcançada no desenho tradicional<br />

através de muita habilidade técnica e detalhamento. Com o auxilio desses programas, podese<br />

retocar, alterar e colorir as ilustrações digitalizadas, atribuindo tanto mais vivacidade quanto<br />

mais uniformidade ao desenho. Também se podem incorporar tecidos e texturas, sobrepondoas<br />

ao traço, e também representar estampas com mais precisão.<br />

O universo dos recursos digitais enriquece o trabalho, valorizando o traço manual.<br />

Existem inúmeras possibilidades de utilização, tanto na criação direta da ilustração quanto na<br />

combinação entre o desenho digital e outras técnicas tradicionais. Torna-se assim necessário<br />

deter conhecimento abrangente a respeito das ferramentas e programas existentes, assim como<br />

adquirir referências para compor o processo. Todas essas ferramentas auxiliam na elaboração<br />

de uma ilustração autoral, com significação e impacto, diferindo-se dos desenhos de moda.<br />

Uma ilustração que seja capaz de refletir a contemporaneidade, atingindo o expectador por<br />

meio da sensibilidade e da experimentação:<br />

Um possível ponto de referência que permite a diferenciação entre o desenho<br />

e ilustração é a própria idéia de comunicação do produto de moda. Se em<br />

ambos há a representação gráfica de peças de roupa ou acessório, o desenho<br />

ou croqui preocupa-se com seu detalhamento e características envolvidas em<br />

sua fabricação e na ilustração concentra-se na mensagem de moda intrínseca<br />

a este produto. A partir dessa perspectiva, podemos entender que a ilustração<br />

de moda está no campo experimental: novas estéticas, conceitos e técnicas<br />

de comunicação tanto de moda como de estilos de vida (GRAGNATO, 2008,<br />

p. 63)<br />

A popularização dos computadores e criação de novos softwares, aliados à enorme<br />

quantidade de informações encontradas na internet, livrarias, grupos de estudo e de discussão,<br />

eventos e encontros, fez com que hoje a quantidade de designers e ilustradores expondo o<br />

seu trabalho aumentasse consideravelmente. A disseminação de bons trabalhos através de<br />

portfólios online e websites pessoais tornaram-se um desafio para o ilustrador iniciante. Agora,<br />

cada artista pode digitalizar seus trabalhos e expô-los em sites especializados ou pessoais.<br />

Assim, não somente todo o público pode apreciar, como também amplia-se a visibilidade e,<br />

assim, há uma maior difusão da produção de ilustrações.<br />

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Ilustração digital na moda<br />

Não obstante possuir domínio das mídias artísticas tradicionais, como também<br />

conhecimento abrangente sobre as ferramentas disponíveis dos softwares, o ilustrador<br />

possui o desafio também de se diferenciar dos demais. A inclusão digital permite que muitos<br />

outros artistas exponham o seu trabalho, gerando assim uma rede vasta de ilustrações,<br />

ilustradores e imagens. Pode-se considerar que um dos maiores obstáculos para o ilustrador<br />

na contemporaneidade é atingir a identidade visual de sua produção imagética.<br />

Por outro lado, é exatamente o caráter personalizado e diversificado da ilustração que<br />

têm lhe conferido o prestígio perdido para a fotografia. As imagens de moda retratadas através<br />

dos ilustradores refletem além das inovações digitais, uma longa tradição pictórica, aliada ao<br />

seu poder de comunicação. As ilustrações digitais fazem parte de nosso contexto cultural e<br />

unem arte e tecnologia na busca da representação da expressividade contemporânea.<br />

Notas<br />

i Termo em inglês que significa, em tradução livre, tela de moda. As fashion plates eram imagens<br />

que circulavam em revistas especializadas e através de costureiras, expondo o que havia de novo no<br />

mundo da moda em forma de ilustração.<br />

ii Disponível em: http://www.cadesign.com.br/artigos/comunicacao-entre-o-projetista-e-o-ilustrador.<br />

html<br />

iii Disponível em: http://www.webartigos.com/articles/3892/1/Cefetinho---A-Ilustracao-Pedagogica/<br />

pagina1.html#ixzz16mcCZnn1<br />

iv Pixel: abreviatura de picture element - elemento da imagem.<br />

v As imagens na tela do computador são formadas por camadas de cores sobrepostas, chamadas de<br />

RGB (a abreviatura do sistema de cores aditivas formado por Vermelho - Red, Verde - Green e Azul -<br />

Blue). A união dessas camadas dá a cor da foto.<br />

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<strong>Moda</strong> e tendências de produtos para a Fábrica de Tecidos Renaux. 2007. Disponível<br />

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TALLON, Kevin. Digital Fashion Illustration with Photoshop and Illustrator. London:<br />

Bastford, 2008.<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

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MODA E MúSICA: AFINIDADE DECLARADA<br />

Renata Santiago Freire; Graduanda de <strong>Design</strong> de <strong>Moda</strong>: UFC<br />

renatasantiagof@hotmail.com<br />

Adriana Leiria Barreto Matos; Docente do Curso de <strong>Design</strong> de <strong>Moda</strong>: UFC<br />

adriana.leiria@ufc.br<br />

Resumo<br />

O presente artigo tem o objetivo de analisar e compreender<br />

algumas relações possíveis entre moda e música ao longo<br />

do séc. XX e início do século XXI. Analisa-se a importância e<br />

influência da moda e da música na construção da subjetividade<br />

do indivíduo assim como na construção de grupos e tribos sociais<br />

e culturais. Assim, são conceituadas moda e música, citando<br />

as suas principais semelhanças e lógicas enquanto sistemas,<br />

assim como os principais movimentos históricos em que ambas<br />

enunciam a mesma estética de comportamento. Por fim, situase<br />

a ligação e materialização da união entre moda e música na<br />

contemporaneidade. Almeja-se assim contribuir com essa área<br />

de estudo na formação de estudiosos de moda, música e afins,<br />

considerando que pouco foi pesquisado sobre esse assunto tão<br />

importante devido ao seu rico caráter cultural e interdisciplinar.<br />

Palavras-Chave: moda; música; cultura<br />

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<strong>Moda</strong> e música: afinidade declarada<br />

Introdução<br />

Realizou-se uma pesquisa com o objetivo de analisar e compreender a relação entre<br />

moda e música ao longo do séc. XX e início do século XXI. O séc. XX é o ponto de partida deste<br />

artigo, já que foi a partir dele que observamos o surgimento denovas mídias e tecnologias de<br />

gravação, o rádio foi popularizado, a música tornou-se portátil e a moda se transformou em<br />

um meio poderoso de expressão e criação de valores da sociedade.<br />

Com a finalidade de comprovar as possíveis relações de afinidade entre moda e música,<br />

é necessário observar as manifestações sociais e movimentos criados no interior dessas duas<br />

representações artísticas que tanto revelam o indivíduo, o espaço e o tempo a que se referem<br />

em determinada época histórica.<br />

Com o advento do séc. XX, a figura da mulher ganhou mais autonomia dentro da<br />

sociedade, que passou a se desenvolver em prol dos valores do consumo e da juventude<br />

(LIPOVETSKY, 1989).Pollini (2007) diz: “Durante a Primeira Guerra, as mulheres tiveram de<br />

assumir trabalhos que antes eram exclusivamente desempenhados por homens, o que<br />

impulsionou de certa forma uma nova postura da mulher” (pág.45). Para Braga (2007) o<br />

“conturbado” e “empolgante” séc. XX fez com que os interesses da moda passassem a ser<br />

outros como as atividades de trabalho, o esporte e o divertimento, especialmente a dança.<br />

Assim, as roupas iam se adaptando às novas necessidades.<br />

Busca-se descobrir qual o papel da música no nascimento e difusão de um estilo de<br />

moda assim como a influência da moda na propagação e fama de determinado estilo musical.<br />

Descrevendo as primeiras décadas do século XX e constatando a união entre a moda e a<br />

música, Braga (2007) articula que: “A diversão fazia parte da vida das pessoas e um dos<br />

valores muito em voga nesse período foi a dança e, por incrível que pareça, contribuiu para as<br />

mudanças da moda”.<br />

Com tantas semelhanças em suas lógicas e conceitos, é necessário refletirmos acerca<br />

da ligação forte entre duas correntes que exploram os sentidos e funcionam como poderosos<br />

meios de comunicação a nível individual e social. E finalmente, são mencionados os movimentos<br />

históricos mais importantes a fim de clarificar a interrelação da moda e da música em nossa<br />

contemporaneidade.<br />

Observa-se que a moda está presente no figurino dos ícones da música, que por sua<br />

vez, inspiram e influenciam a criação dos estilistas, assim como cada vez mais a moda vende<br />

e apropria-se das tendências e ideias criadas pela música.<br />

<strong>Moda</strong> e música: afinidade declarada<br />

<strong>Moda</strong> é um poderoso meio de expressão, reflexão e apropriação dos sentidos. É um<br />

sistema amplo que envolve fatores econômicos, sociais, culturais, e ajuda na construção de<br />

nossa identidade através dos inúmeros códigos simbólicos aos quais disponibiliza. Segundo<br />

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<strong>Moda</strong> e música: afinidade declarada<br />

Polhemus (1994), vestuário e ornamentos são utilizados há milhões de anos com o intuito de<br />

comunicar as suas necessidades, fossem elas pessoas, tradição ou autenticidade.<br />

A moda é um fenômeno peculiar aos seres marcados pela linguagem, representa as<br />

atitudes que o sujeito adota, seja na escolha de uma peça do vestuário ou na preferência<br />

de determinado estilo musical. Para Baldini (2006), a roupa fala e geralmente transmite<br />

informações ambíguas, pois utilizamos o vestuário com o intuito de satisfazer necessidades<br />

pessoais, sociais ou simplesmente pelo simples prazer estético.<br />

A moda cria uma identidade mutável, simplesmente por pregar posições que o sujeito<br />

deve ou não adotar. Através da sua linguagem visual, tão carregada de significações nos<br />

mostra características de um indivíduo assim como as transformações de uma sociedade.<br />

De acordo com Pearson:<br />

A moda não visa exclusivamente homenagear a beleza e a estética - cujos<br />

ideais são variáveis - propondo uma simbologia visual que transmita a idéia ou<br />

sensação que o usuário deseja, naquele instante comunicar ao expectador.<br />

Por esta razão, a <strong>Moda</strong> se modifica de acordo com os fundamentos culturais<br />

de cada época vivenciada pela história da humanidade. (1994, pág.33)<br />

Ou seja, a linguagem da moda nos possibilita o conhecimento da trajetória do homem<br />

através do estudo e decodificação de seus símbolos. Possui uma historicidade valiosa, sendo<br />

capaz de caracterizar determinada época por ser dotada de um objeto concreto e visível: o<br />

vestuário.<br />

Existem várias definições para a música, assim como muitas possibilidades para<br />

sua classificação segundo gêneros, estilos e formas. Tais classificações podem servir como<br />

uma referência para agrupar obras musicais distintas sob uma mesma vertente a partir da<br />

comparação entre elementos musicais como melodia, harmonia, ritmo, dinâmica e timbre.<br />

Jourdain (1998) defende a idéia de que a música oferece meios para experimentarmos relações<br />

muito mais profundas do que as encontradas por nós no cotidiano.<br />

A relação entre a música e os sentidos se aprimorou ainda mais com a criação dos<br />

primeiros videoclipes já na década de 1950 e também com as cenas de Gene Kelly no filme<br />

Cantando na Chuva de 1952 e Elvis Presley no filme Jailhouse Rock de 1957.<br />

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<strong>Moda</strong> e música: afinidade declarada<br />

Figura01:Elvis Presley Jailhouse Rock, 1957 Fonte: Website http://www.iill.net/tag/presley<br />

Aliando som, letra e imagem, os videoclipes se tornaram cada vez mais difusores de<br />

moda a partir da década de 1980, quando estrelas do pop como Madonna e Michael Jackson<br />

exibiam seus figurinos bem elaborados através de uma música forte e envolvente. Segundo<br />

Braga (2007, pág. 100): “Ídolos musicais foram grandes formadores de opinião na identificação<br />

de moda jovem. Prince, Madonna e Michael Jackson deixaram suas contribuições na moda,<br />

não só norte-americana, como também na de todo o mundo.<br />

Hoje, não muito diferente do passado, verifica-se as mesmas<br />

influênciascomportamentais geradas por algum determinado estilo musical<br />

que é respondidoem forma de aceitação ou rejeição à cultura. Esse tipo de<br />

exemplo pode ser vistoao observar que em algumas décadas, como as de 60<br />

e 70, os jovens brasileirosutilizaram a música como forma de protesto contra<br />

a dependência cultural e ainfluência estrangeira. (MOUTINHO & VALENÇA,<br />

2005, pág. 225).<br />

Os movimentos que criam estilos musicais geralmente são ditados e difundidos pela<br />

juventude. E é aí que a música se une à moda, mesclando símbolos e criando códigos de<br />

identificação. A escolha de determinada moda ou música funciona como uma espécie de<br />

veículo de comunicação do eu, pois ambas possuem caracterizações específicas que definem<br />

o indivíduo de acordo com seus gostos, aquisições e preferências. Assim, moda e música<br />

possuem uma linguagem própria, são dois ricos meios de expressão, e estão em constante<br />

mutação ao longo de suas evoluções enquanto manifestações históricas. Agem criando<br />

desejos, aspirações e ídolos a serem cultuados e imitados. Ferron discorre acerca da interação<br />

dinâmica de cada indivíduo com o coletivo e o meio no qual ele está inserido, instaurando um<br />

processo que ele chama de percepção inventiva:<br />

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<strong>Moda</strong> e música: afinidade declarada<br />

As necessidades de “pertencer”, de “fazer parte” de um determinado grupo<br />

em um determinado momento duelam com as necessidades de “surpreender,<br />

de ter destaque, ser notado” pelos outros que cada indivíduo projeta. E a<br />

moda como linguagem e os trajes como suporte registram e animam essa<br />

expressão, dando forma, criando produtos e sonhos. (1994, pág. 7)<br />

<strong>Moda</strong> e música são fenômenos culturais que se influenciam e fundem-se, dotados de<br />

carga histórica e emocional. Observa-se durante o século passado que os movimentos de<br />

juventude representam de acordo com suas especificidades, os fatos sociais, as manifestações<br />

culturais de uma época e não raro estão relacionados à determinada moda ou música.<br />

Analisando os principais movimentos comportamentais do séc. XX, se pode constatar<br />

a constante união entre moda e música. Aliança essa que auxilia na formação dos conceitos e<br />

definições e no reforço da identidade de tais movimentos perante os seus seguidores.<br />

O início do séc. XX é caracterizado musicalmente pelo surgimento do Jazz que tinha<br />

o apelido pejorativo de “música dos pretos”, por ter sido criado e tocado em sua maioria por<br />

negros. Música essa que nasceu nos EUA, nas proximidades da cidade de Nova Orleans,<br />

e se transformou no símbolo de um novo e mais intenso estilo de vida. Braga (2007, pág.<br />

73) cita que: “Os ritmos mais em evidência foram o charleston, o foxtrot e o jazz.” O jazz<br />

foi fundamental para a expressão e desenvolvimento cultural de seus artistas que utilizavam<br />

referências afro-americanas com notas de blues e swing.<br />

E ainda, o Jazz, o Charleston e as novas descobertas cientificas (que<br />

encorajavam a prática de esportes e passeios ao ar livre) contribuíram para, de<br />

repente, a moda dar um pulo: subitamente, a silhueta mudou, o cabelo mudou,<br />

a altura das saias mudou, os costumes mudaram. (POLLINI, 2007, pág. 45)<br />

Nos anos 1920, o ritmo musical do jazz era compatível com as mudanças aceleradas<br />

que o séc.XX trazia para todos. Segundo Braga (2007) eram os chamados “anos loucos” e<br />

as mudanças foram tantas e tão marcantes que fica difícil desvincular a palavra “novo” dessa<br />

década. Foi um período que vivenciou prosperidade e foi ilustrado pela figura das melindrosas,<br />

que eram as mulheres mais modernas da época, por frequentarem os salões de dança e<br />

traduzirem através de seu comportamento, e modo de vestir, o sentimento e o espírito da Era<br />

do Jazz.<br />

A dança pedia movimento e o vestuário ofereceu o padrão: vestidos curtos com franjas,<br />

costas de fora e longos colares. Com o embalo da música, os padrões de moda da época são<br />

rompidos e as mulheres passam a mostrar mais o corpo e a conquistar aos poucos cada vez<br />

mais autonomia.<br />

As décadas de 1930 e 1940 foram marcadas pela crise financeira mundial, originada<br />

pela queda da Bolsa de Valores de Nova York, em 1929 e pela eclosão da Segunda Guerra<br />

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<strong>Moda</strong> e música: afinidade declarada<br />

Mundial, respectivamente. Porém, Braga (2007, pág.75) afirma que: “Paradoxalmente à crise<br />

econômica, a moda refletiu um momento de grande sofisticação, luxo e esplendor.” Nessa<br />

época, o cinema passa a ter destaque e refletia-se no comportamento de moda. A música<br />

popular passa a ser um fenômeno de proporções continentais e de massa. Para Canellas<br />

(2008), o estilo musical em ascensão, em meados dos anos 1930 era o swing, estilo de jazz<br />

próprio para dançar e adotado fortemente pela mídia com o intuito de estimular e entreter a<br />

população.<br />

O rock and roll, por exemplo, embalou e caracterizou o novo mercado jovem dos anos<br />

1950. O vestuário passa a representar um verdadeiro símbolo de pertencimento a um grupo,<br />

atribuindo papéis e reconhecimento entre pessoas que acreditam em uma mesma atitude<br />

perante o mundo. Segundo Pearson (1994, pág.5): “a cultura rock, evolução de um estilo<br />

musical (rock and roll) para um movimento mundial foi, talvez a primeira fórmula criativa dos<br />

jovens que influenciou a moda entre 1955 e 1965, aproximadamente.”<br />

Nos anos 1960, a moda era questionar o sistema vigente. É nesse momento histórico<br />

que surge a figura dos beatniks e a febre chamada Beatles. O espírito de contestação é a<br />

bandeira dos beatniks. O termo beat, origina o nome Beatles, mania de toda uma geração.<br />

Esses jovens vivem a certeza e o conforto da sociedade de consumo. Evitam luxo e brilho,<br />

usam calças caquis, suéteres longos e sandálias. Possuíam uma imagem doce, amável e<br />

pacífica.<br />

Figura02:The Beatles, 1960Fonte: WebsiteGetty Images<br />

Já a moda disco teve origem em 1976 e nasceu nas discotecas, através de uma música<br />

dita “comercial” e de ritmo simplificado. As discotecas eram o palco principal para a exibição<br />

de uma moda sexy que exalta corpos e com conteúdo musical desprovido de contestação<br />

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<strong>Moda</strong> e música: afinidade declarada<br />

política ou social. As divas da dance music como Donna Summer, Grace Jones e Gloria Gaynor<br />

influenciaram o comportamento da época. Braga (2007, pág. 92) fala acerca da ligação entre<br />

moda e música da época: “(...) surgiu uma proposta muito excêntrica para a moda jovem<br />

associada aos grupos musicais em alta, em que a palavra de ordem era o “glamour”.”.<br />

Enquanto na Inglaterra nascia o movimento punk, nos EUA a voz de Barry White e os<br />

grupos Shirley andCo. e The Hues Corporation retratam o estilo da era Disco, que foi levada<br />

aos clubes noturnos cheios de fumaças e luzes coloridas, virando uma mania entre os jovens.<br />

Conhecida por celebrar o amor, a alegria e a dança, a música disco é eletrônica, e se utiliza<br />

de sintetizadores e guitarras. É praticamente uma música dita negra, composta por notas de<br />

soul e blues, pois:<br />

O movimento negro, muito em alta no anos 1970, especialmente nos Estados<br />

Unidos, fez-se presente em ideologia como, por exemplo, a onda “Black<br />

isBeautiful”, privilegiando as raízes afro, a cultura caribenha e também o ritmo<br />

“soul”. (Braga, 2007, pág. 93)<br />

A descoberta da AIDS e Off the Wall, o primeiro disco solo de Michael Jackson, são<br />

acontecimentos responsáveis por retratar o fim do movimento disco, que em 1980, já era quase<br />

que por completo inexistente, com muitos de seus artistas e estilos caindo no anonimato.<br />

Com a crise econômica dos anos 1970, muitos movimentos perderam a força. Porém, a<br />

própria crise inspirou o surgimento do expressivo movimento dos punks, cujo lema “No Future”,<br />

falava justamente da dificuldade de viver com a violência e agressividade presente em todos<br />

os lados da vida moderna. A cultura punk defende a autonomia individual e a simplicidade no<br />

viver. Provocativa e contestadora em sua essência, a música punk é considerada uma vertente<br />

do rock: é composta, em sua grande maioria, por letras rebeldes, sarcásticas, politizadas, e<br />

cheias de subversão à cultura vigente.<br />

A primeira manifestação do estilo punk-rock surge nos Estados Unidos com a banda<br />

The Ramones, em 1974. É caracterizado pela combinação do revivalismo da cultura rock and<br />

roll (com suas músicas curtas, simples e dançantes) e do estilo rocker/greaser (jaquetas de<br />

couro estilo motociclista, camiseta branca, calça jeans, tênis e o culto a juventude, diversão e<br />

rebeldia).<br />

O estilo punk expressava-se a respeito da crise econômica, o desemprego, a falta de<br />

opções e perspectivas; e defendia a total insanidade, ou seja, nada de sonhar ou planejar<br />

demais a vida, o importante é viver o hoje com muita rebeldia, se possível. Seus trajes remetem<br />

a uma linguagem, inusitada, diferente etransgressora (Braga, 2007): couro, tatuagens, botas,<br />

correntes, taxas, óculos escuros, corpos sujos e suados. O movimento punk surgiu em 1977<br />

na Inglaterra. A estilista Vivienne Westwood e o seu então marido, Malcon McLaren, músico<br />

e líder do grupo “Sex Pistols” exemplificaram a afinidade entre moda e música do movimento<br />

punk:<br />

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<strong>Moda</strong> e música: afinidade declarada<br />

Juntaram ali as vontades de ambos os lados, uns satisfazendo os outros e, com<br />

isso, Vivienne Westwood, uma estilista já renomada, acabou intelectualizando o<br />

movimento e criando roupas para esses jovens contestadores, que cresceram<br />

em número de adeptos ao estilo. (Braga, 2007, pág. 93)<br />

Figura03:Banda The Ramones, 1974.Fonte: Website Getty images<br />

Já em 1978 surge a estética chamada New Wave. Surgindo após a era Disco, o<br />

movimento New Wave é mais intelectual, possui caráter dançante e é conduzida musicalmente<br />

por sintetizadores. O destaque vai para o clube GBGB, localizado no bairro de Manhattan, em<br />

Nova Yorque, onde as bandas do momento se apresentavam, como Elvis Costello, Blondie e<br />

Television.<br />

A imagem visual é alinhada, com roupas bem cortadas, cores fortes, brilho, ombreiras<br />

e caracterizada por uma variada mistura de tendências. Vale ressaltar que estamos falando<br />

do início da década de 1980, contexto marcado pela extrema valorização do trabalho e da<br />

riqueza pessoal. Bandas como Duran Duran e Spandau Ballet, com um pop neo-romântico,<br />

ou grupos como The Police, que possuía um viés musical mais punk, são ícones da época.<br />

A irreverência também é uma característica forte do movimento New Wave. The B52´S<br />

representa essa vertente que é ilustrada por cores cítricas, tecidos tecnológicos, perucas e<br />

meias coloridas.<br />

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<strong>Moda</strong> e música: afinidade declarada<br />

Figura04:The B52´s, 1979.Fonte: Website http://www.filesbay.net/file/1522616-b52.html<br />

Nos anos 1980 começamos a nos deparar com uma explosão e variedade de imagens<br />

e sons que no começo do século XXI servem de referência ao trabalho de moda e música. A<br />

noção de identidade se torna mais fragmentada diante da variedade de códigos e significados<br />

escondidos em simples escolhas do cotidiano.<br />

Os anos de 1980 trouxeram-nos uma verdadeira profusão de influências e<br />

contrastes, em que os opostos começaram a conviver em harmonia e ambos<br />

sendo aspectos de moda. Essa característica antagônica foi, como ainda o<br />

é hoje, início do século XXI, uma das referências da moda contemporânea.<br />

(Braga, 2007, pág. 95)<br />

Os cultos ao êxito pessoal, financeiro e, ao corpo, assumem grandes proporções. A<br />

moda é globalizada e se consagra como uma linguagem universal, onde mensagens são<br />

enviadas e circulam por todos os países do mundo em uma velocidade rápida onde as<br />

mudanças frenéticas de conceitos e de consumo regem comportamentos.<br />

Segundo M. FILHO (1994, pág.17): “A cultura underground tem um peso essencial nos<br />

anos 80. Grupos ligados geralmente a um determinado tipo de música proliferam, assim como<br />

revivais de movimentos já existentes (neo-hippies, new-romantics).”<br />

O estilo que caracterizou os anos 1980 é basicamente formado pela mistura e a citação<br />

de outras épocas, dando início ao revivalismo na moda. Elementos passados são incorporados<br />

com humor resultando em formas novas e únicas em seu estilo. A moda e a música da época<br />

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<strong>Moda</strong> e música: afinidade declarada<br />

são caracterizadas pela coexistência de estilos e tendências.<br />

Em 1981 surge a MTV, revolucionando e ligando ainda mais os universos da moda e<br />

da música, aliando som e imagem. Os vídeos clipes popularizam e consagram os estilos da<br />

juventude. É nesse momento que a moda faz uma aliança definitiva com a música jovem.<br />

Surge o estilo streetwear e as roupas unissex. A influência pop foi ricamente representada por<br />

Madonna e Michael Jackson. Ambos fizeram a cabeça da juventude com os seus figurinos<br />

extravagantes, muitas vezes assinados por grandes estilistas, e desenvolveram suas músicas<br />

embaladas por danças com movimentos rápidos e batidas fortes.<br />

Madonna é o ícone feminino da década de 1980. Mudando sempre de imagem e<br />

explorando tabus e preconceitos sociais, representava o exemplo perfeito da ambição feminina,<br />

poder e da importância do trabalho árduo. Em seu primeiro álbum (1983), Madonna adotou<br />

o estilo “bad girl” com referências ao punk e ao fetichismo e explorou a combinação entre<br />

moda, música e movimento. Depois, Madonna deu ênfase ao corpo e ao estilo mais sexy com<br />

a adesão aos tecidos elásticos. Podemos citar como exemplo de peça marcante do figurino<br />

da cantora, o corpete criado pelo estilista Jean Paul Gaultier para a turnê BlondAmbition Tour<br />

em 1990, apresentado na figura 05.<br />

Figura 05Madonna 1990. Fonte: Antenna Web<br />

Ao contrário das mulheres, os cantores exibiam uma imagem suave e carregada de<br />

androginia. As vozes agudas, o forte uso da maquiagem e o vestuário justo e adornado faziam<br />

de Prince, Boy George e Michael Jackson ícones da época.<br />

Observa-se que a década de 1990 contempla uma grande liberdade de se expressar<br />

visualmente. Segundo Braga (2007, pág. 101): “(...) entraram em evidência clubbers,<br />

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<strong>Moda</strong> e música: afinidade declarada<br />

dragqueens, cybers, ravers, dentre outros grupos, e a ordem foi a moda jovem, ousada e<br />

irreverente.”<br />

A roupa e a música servem mais do que nunca como retratos do estilo de vida de<br />

cada um. Polhemus (1994) defende que a geração atual parece às vezes ser tão absorvida<br />

pelo passado que chega a ser difícil discernir o seu presente e muito menos o seu futuro.<br />

Observamos a mistura e a ligação entre o mundo real e a realidade virtual. Há também uma<br />

variação de estilos e silhuetas já existentes e uma relativa falta de novidade. Para Lipovetsky<br />

(1989):<br />

(...) o importante não é estar o mais próximo possível dos últimoscânones da<br />

moda, menos ainda exibir uma excelência social, masvalorizar a si mesmo,<br />

agradar, surpreender, perturbar, parecerjovem.(pág.122)<br />

O estilo grunge, nascido em Seatle, marcou toda uma juventude inconformada e<br />

questionadora. Ele possui um caráter juvenil, individualista e que se opõe às normas sociais.<br />

O unifome grunge é basicamente composto por bermudões, padronagem xadrez, o jeans,<br />

a camisa de malha, flanela e tênis. A banda Nirvana foi a mais famosa difusora desseestilo<br />

musical e de moda, transformado o grunge em um forte movimento juvenil.<br />

O estilo hip hop também explodiu nos anos 1990, aliando dança, música e indumentária<br />

em uma mesma linguagem.<br />

No contexto cultural contemporâneo, as celebridades da música se transformaram em<br />

verdadeiros ícones de moda. Fazem o papel de modelo para marcas poderosas, transformando<br />

os seus figurinos em verdadeiros objetos de desejo.<br />

Figura 06Lady Gaga, 2010.Fonte: Websitehttp://resumododia.wordpress.com/2010/02/20/lady-gaga-nobrasil-2010/<br />

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<strong>Moda</strong> e música: afinidade declarada<br />

Polhemus (1994) defende que assim como na música pop, a tendência predominante<br />

hoje em estilo de aparência é regida por misturas diversas, ecléticas e muitas vezes<br />

contraditórias. E acredita que é justamente nessa mistura que encontraremos a nossa própria<br />

realidade. Baseado nesse pensamento, a cantora Lady Gaga desponta como o nome mais<br />

expressivo da contemporaneidade onde moda e música são explorados. Em suas músicas,<br />

fala de temas atuais com humor, irreverência e personalidade. Fazendo dos padrões de beleza<br />

e comportamento ditados pela sociedade, suas obras primas.<br />

Ironizando atitudes através de suas letras provocantes e ambíguas, ou com seu figurino<br />

extravagante e assinado por grandes estilistas, Lady Gaga mostra que não só utiliza a última<br />

moda, como a lança de uma forma ousada e bastante particular.<br />

Discussão<br />

Mais do que um mero produto cultural dentre tantos outros, moda e música representam<br />

conceitos, são manifestações que expressam a própria definição do homem ao longo da<br />

história.<br />

Antes de ser signo da desrazão vaidosa, a moda testemunha o poder dos<br />

homens para mudar e inventar sua maneira de aparecer; é uma das faces<br />

do artificialismo moderno, do empreendimento dos homens para se tornarem<br />

senhores de sua condição de existência. (LIPOVETSKY, 1989, pág. 34)<br />

Através de seus ícones, a música acaba por criar e difundir um estilo de moda. Em<br />

contrapartida, a moda se utiliza da música oferecendo fortes significados simbólicos, que<br />

definam determinado estilo musical para os seus seguidores. Segundo Moraes:<br />

Na pré-história considerava-se a música como um ato instintivo e impulsivo do<br />

homem. Ao perceber os sons que o cercava, o homem pré-histórico detectou<br />

a necessidade de tocar instrumentos musicais e cantar. Ou seja, a música, a<br />

dança e o canto eram ferramentas utilizadas como meio de manifestar seus<br />

sentimentos. (1983, pág. 81)<br />

Nota-se que um figurino bem elaborado é responsável pela construção visual da melodia<br />

de uma música. Assim, acabará por ser apoderado por aqueles que se identificam e seguem<br />

determinado estilo musical.<br />

Em um ambiente repleto de símbolos, gêneros e códigos, tanto a moda quanto a<br />

música se apropriam desses elementos a fim de contar uma narrativa, expressar uma idéia<br />

ou comportamento social. Para M. FILHO (1994, pág. 17): “As tribos são agrupamentos com<br />

um idioma claro no que diz respeito à linguagem, incluindo aí atitudes, fala, gostos, hábitos e<br />

gestos.”A dificuldade de se definir os limites dos movimentos da juventude, que expressam<br />

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<strong>Moda</strong> e música: afinidade declarada<br />

através da moda e da música o que pensam de si e o que sentem do mundo é evidente. Há<br />

uma verdadeira mistura e apropriação de todos. O contexto atual é marcado pela era das<br />

releituras que nada mais fazem do que agir fixando conceitos já existentes e alimentando a<br />

nossa sociedade efêmera e de consumo.<br />

Segundo Polhemus (1994), vivemos num contexto chamado “supermercado de estilos”,<br />

ou seja, a sensação vigente é de que todos os períodos existentes existem e aparecem como<br />

latas de sopa disponíveis ao nosso alcance em prateleiras de supermercado.<br />

Assim sendo, não se fala mais em movimentos sociais, divisões de classe, idade ou<br />

gênero, e sim em estilos individuais de vida baseados em escolhas diversas de comportamento<br />

e atitude.<br />

Conclusão<br />

Pode-se observar o quanto as tendências e novidades musicais assim como as<br />

tendências de moda são fortes formadoras de opiniões, comportamentos e atitudes para o<br />

indivíduo. São instrumentos utilizados com o objetivo de comunicar e expressar. A música,<br />

através da letra e melodia; e a moda, através do vestuário, são capazes de traduzir e transmitir<br />

sentimentos e desejos.<br />

As revistas de moda e os clipes musicais são ótimos exemplos em que moda e música<br />

se transformam em meios difusores de tendências de comportamento e por consequência,<br />

meios poderosos de comunicação. Originando assim o surgimento e formação de tribos<br />

sociais que são organizadas de acordo com a aceitação ou não do conjunto de códigos<br />

lançados a cada novidade que aparece no mercado cultural midiático<br />

Observa-se que moda e música representam universossemelhantes, com expressões<br />

e denominações que se complementam e até se fundem. Uma agrega valor à outra. A moda<br />

determina o visual de determinado estilo musical e a música embala a fama de qualquer estilo<br />

de moda. A música costuma dizer o que queremos ouvir, enquanto a moda aponta o que<br />

desejamos ver e vestir.<br />

A moda está presente no figurino dos ícones da música, que por sua vez, inspiram e<br />

influenciam a criação dos estilistas. É notório: cada vez mais a moda vende e se apropria das<br />

tendências e ideias criadas pela música.<br />

Há artistas da música que criam suas próprias marcas de roupas, aonde elaboram e<br />

vendem ainda mais a imagem que querem passar. Assim como também existe um fenômeno<br />

recente aonde os profissionais da moda invadem os palcos, atuando como DJ ou formando<br />

suas próprias bandas.<br />

Assim, observa-se que influências e inspirações musicais sempre ditaram e continuam<br />

ditando e também reeditando, através das releituras, verdadeiros estilos de moda. Uma arte<br />

necessita da outra para criar o novo ou simplesmente evocar estilos do passado já consagrados<br />

como caminho seguro para não fracassar no mercado.<br />

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<strong>Moda</strong> e música: afinidade declarada<br />

Modelos criam bandas de rock. Músicas embalam comerciais de moda. Os melhores<br />

desfiles são aqueles que têm banda ao vivo. Músicos criam suas próprias grifes, codificando<br />

visualmente e reforçando ainda mais a sua mensagem.<br />

Clarifica-se a intensa ligação que os universos, da moda e da música, manifestações<br />

autênticas, possuem entre si. Ambas sensibilizam nossos sentidos, constituem nossas<br />

memórias e constroem imaginários e identidades.<br />

Música é atitude, moda também. Se a música transmite uma mensagem sonora, a<br />

moda sacramenta uma linguagem visual. Se a moda representa um estilo, a música difunde<br />

sua fama. Ambos criam ícones que marcam a cultura do homem. Certamente, moda e música,<br />

ainda farão infinitas combinações para marcar o ritmo e mostrar a forma da juventude, das<br />

individualidades de cada um, dos anos que virão e da história que se fará.<br />

Referências<br />

BALDINI, Massimo. A Invenção da <strong>Moda</strong> - As Teorias, os Estilistas, a História ,2006.<br />

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LIPOVETSKY, Gilles – O Império do Efêmero: a moda e seu destino nas sociedades<br />

modernas / Tradução: Maria Lucia Machado – São Paulo: Companhia das Letras, 1989.<br />

M. FILHO, Rocha - <strong>Universidade</strong> Aberta/5 Fascículo nº 1 - Texto 31. Fortaleza, Fundação<br />

Demócrito Rocha, 1994.<br />

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CONEXõES CONCEITuAIS ENTRE MODA, VESTuáRIO, DESIGN E ARTE<br />

Maria Alice Vasconcelos Rocha; PhD em <strong>Design</strong> de <strong>Moda</strong>: University of Kent (UK);<br />

Professora do Departamento de Ciências Domésticas: UFRPE - modalice@dcd.ufrpe.br<br />

Resumo<br />

Este estudo discute a complexidade da moda, promovendo a<br />

reflexão de algumas interfaces possíveis entre campos do saber.<br />

Diversas teorias se conectam buscando um alinhamento conceitual<br />

que dê suporte à promoção de conhecimento relacionando a moda<br />

ao vestuário, ao design e à arte sem, no entanto, confundir seus<br />

limites. Por fim, a explanação dos motivos que levam o consumidor<br />

a procurar um produto-roupa que contenha elementos de moda,<br />

de certo colabora para a evolução do pensamento sobre o tema.<br />

Palavras-Chave: teoria de moda; design de vestuário;<br />

complexidade<br />

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Conexões conceituais entre moda, vestuário, design e arte<br />

Introdução<br />

É certo que não há unanimidade na definição do que é moda. Ao longo da história, a<br />

moda pode ser entendida como um jogo de distinção da classe dominante (BARNARD, 2002).<br />

Já de acordo com Lauwaert (2006), “o vestuário não é um meio de representação, mas um<br />

meio de apresentação. O vestuário não define, ele posiciona. É pragmático, não é semântico.<br />

O vestuário não mente, mas irrevogavelmente denuncia você” i<br />

Hoeks e Post (2006) dizem que o aspecto complementar que une moda e vestuário<br />

fica claro com as estações do ano: a moda, para ser moda precisa estar em voga mas o que<br />

materializa as mudanças fica óbvio por meio das roupas. Ainda de acordo com os autores,<br />

enquanto a indústria do vestuário vende produtos, a indústria da moda não comercializa<br />

objetos e sim significados. E é esta combinação que garante a satisfação das necessidades<br />

dos consumidores.<br />

Ao mesmo tempo, tanto a moda quanto o vestuário são as commodities mais<br />

fetichizadas produzidas e consumidas na sociedade capitalista. ...<strong>Moda</strong> e vestuário talvez seja<br />

a maneira mais significativa na qual as relações sociais são construídas, experimentadas e<br />

compreendidasii .<br />

Sabe-se que os consumidores e consumidoras tem necessidade de ser sociedade e<br />

indivíduo simultâneamente, e a combinação entre moda e vestuário parece ser uma boa maneira<br />

de negociar essa complexidade humana. Campos do saber como Estética, Ciências Sociais,<br />

Estudos Culturais, Psicologia, Antropologia, Gestão, Economia, Marketing, Comunicação,<br />

<strong>Design</strong> e Produção possuem inter-relações em cada nível que se investiga a combinação<br />

entre moda e vestuário.<br />

Como a moda e o vestuário englobam uma diversidade de disciplinas, cada uma<br />

delas deve ser considerada quando da análise do conceito moda-vestuário. Além disso,<br />

cada disciplina procura encontrar uma maneira específica de explicar a moda e o vestuário<br />

usando termos precisos e as análises teóricas necessárias. O desafio posto é combinar tudo<br />

como normalmente o consumidor vê e experimenta todos estes conceitos em conjunto.<br />

Considerando isso, o conceito do pensamento complexo desenvolvida por Morin (2003)<br />

parece ser uma base adequada para se examinar a questão.<br />

Morin (2000) explica que o conhecimento científico, por razões metodológicas, é<br />

fragmentado. Estas divisões facilitam uma compreensão profunda do fenômeno, mas a forma<br />

ocidental do pensamento científico tem ensinado os pesquisadores a submergir em campos<br />

separados, e há uma falta de movimento no sentido de re-envolver esses campos um com o<br />

outro. O autor afirma que “as coisas” separadas são ligadas, são distintas e são necessárias<br />

para o desenvolvimento da sociedade.<br />

Os indivíduos, as sociedades e todas as “espécimes” são entidades distintas e não<br />

podem ser isolados por conta de sua função cooperativa na compreensão da humanidade.<br />

Assim, o pensamento complexo se baseia na distinção (não separação) e na ligação; não é<br />

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Conexões conceituais entre moda, vestuário, design e arte<br />

composto apenas pela ciência ou apenas pela filosofia, mas permite a comunicação entre<br />

os campos dos saberes, atuando como uma ponte. O paradigma da complexidade deve ser<br />

considerado como aquele que une enquanto distingue.<br />

Seguindo a abordagem do Pensamento Complexo, um diagrama foi desenvolvido a fim<br />

de identificar alguns dos fatores que tornam a combinação moda-vestuário em um tema da<br />

complexidade atual. As abordagens relacionam um conjunto de elementos, tais como o ciclo<br />

de vida do produto, o meio ambiente, a individualidade, a inclusão social, a adequação física<br />

e estratégia para influenciar ou promover a satisfação do consumidor.<br />

O ato de consumir é composto por sete fases: (1) reconhecimento da necessidade, (2)<br />

procura, (3) pré-compra, (4) compra, (5) consumo, (6) avaliação pós-consumo e (7) descarte,<br />

que são afetadas por influências ambientais e diferenças individuais (BLACKWELL ET AL.,<br />

2002). Por outro lado, o sistema de moda é baseado nas fases da difusão que são influenciadas<br />

pelas culturas e ambientes locais e globais.<br />

Frequentemente, o consumo de moda é dividido em dois tipos distintos “universos”<br />

que devem ser devidamente equacionados: primeiramente aquele que poderia ser chamado<br />

de “tendências, estilo ou comportamento “e, em segundo lugar, aquele outro responsável pelo<br />

desenvolvimento das roupas. O primeiro é mais provável em receber a atenção das áreas de<br />

Psicologia, Sociologia, Comunicação e Antropologia enquanto que o último é mais plenamente<br />

analisado através de Ergonomia, Antropometria e Fisiologia Humana.<br />

É a aproximação das tendências com as roupas que cria o produto moda-vestuário,<br />

objeto desta pesquisa. Esta abordagem permite que o negócio seja adicionado à equação<br />

reforçando a complexidade da compreensão do consumo.<br />

Vale lembrar que o ciclo de consumo, quando concluído, gera satisfação ou insatisfação<br />

do consumidor, e este resultado influencia os próximos ciclos do consumo, num movimento<br />

contínuo de retroalimentação do sistema.<br />

Todos os elementos presentes na discussão foram extraídos de teorias ou representam<br />

um insight a partir de uma teoria já existente. Como essas teorias são provenientes de campos<br />

muito diversos, estão classificados nas áreas-chave de investigação que compõem o diagrama<br />

do sistema moda-vestuário.<br />

Citando Barnard (2002), este trabalho é sobre “todas estas coisas: é sobre moda,<br />

roupa, vestimenta, adorno e estilo.” iii . Este estudo foi concebido para fornecer rumo a um<br />

modo holístico de visualizar o fenômeno e onde o leitor encontrará conceitos e reflexões que<br />

ajudam a esclarecer a complexidade da moda.<br />

Por razões metodológicas e respeitando os objetivos da pesquisa, todas as explicações<br />

relacionadas com produtos de moda se referem a peças de roupas com valor de moda,<br />

excluindo os acessórios, sapatos, bolsas, mobiliário, equipamentos, automóveis, etc., mas<br />

incluindo as marcas de moda-vestuário no contexto. A Figura 1 ilustra a área de produtos que<br />

esta pesquisa investiga (em amarelo).<br />

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Conexões conceituais entre moda, vestuário, design e arte<br />

Figura 1 – A interconexão Proposta (ilustração da autora)<br />

É importante afirmar que a moda é um sistema extremamente complexo em<br />

relacionamentos. As teorias relacionadas à <strong>Moda</strong>, como campo de pesquisa são extremamente<br />

relevantes, mas ainda não exploradas o bastante para abarcar todas as direções que a<br />

envolvem. Por isso, nas subseções a seguir serão apresentadas algumas teorias que podem<br />

auxiliar na reflexão dos relaciomentos entre <strong>Moda</strong> & Vestuário, <strong>Moda</strong> & <strong>Design</strong> e <strong>Moda</strong> & <strong>Arte</strong>.<br />

Essas áreas possuem uma relação direta com a prática no desenvolvimento projetual, embora<br />

elas também possam influenciar os consumidores ou impactar nas decisões empresariais.<br />

<strong>Moda</strong> & Vestuário<br />

A forma mais própria e direta para que se possa observar o fenômeno de moda é por<br />

meio das roupas. O vestuário é um artigo essencial na vida humana e guarda uma ligação<br />

importante com os profissionais de projeto e de produção. Não são freqüentes os estudos<br />

acerca do vestuário com valor de moda, ou seja, moda tangível, se comparados com os de<br />

moda intangível. Os primeiros, quando ocorrem estão mais relacionadas com a funcionalidade,<br />

a ergonomia e as demandas específicas do corpo.<br />

Porém, do ponto de vista do consumidor, as roupas se tornaram a maneira mais fácil<br />

de representar a moda. Além disso, como Lipovetsky (2002) afirma, peças de vestuário são<br />

o meio mais popular para as empresas estimular o consumo de moda. Apesar da existência<br />

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Conexões conceituais entre moda, vestuário, design e arte<br />

de vários trabalhos que creditam à sazonalidade como o principal catalisador do curto ciclo<br />

de vida das roupas, a subseção a seguir apresenta um dos mais conhecidos e reconhecidos<br />

estudos relacionados à motivação para estar vestido.<br />

Como este estudo se preocupa diretamente com vestuário é importante introduzir a<br />

obra de Flügel (1930), difundida na década de 30 do século passado. Tal como definido por<br />

Flügel proteção, enfeite e pudor são a base, as motivações originais para o surgimento das<br />

roupas. A forma com o autor discute a passagem do nu para o vestido implica numa viagem<br />

que se inicia com a natureza e finda na cultura (CARTER 2003).<br />

De acordo com o conceito de Flügel (1930) a proteção do corpo contra a sensação<br />

desagradável de frio no período pré-histórico, e posteriormente contra qualquer elemento ou<br />

organismo nocivo à saúde, é uma das razões fundamentais para se vestir. Devido à evolução<br />

científica, as considerações sobre higiene mudaram e o vestuário tende a ter uma ligação forte<br />

tanto física quanto psicológica com a proteção. Assim, as roupas possam ser utilizadas como:<br />

[...] a proteção contra a hostilidade geral do mundo no seu conjunto ou, de<br />

forma mais psicológica, uma garantia contra a falta de amor. Se estivermos<br />

numa atmosfera hostil, quer seja humana ou natural, tenderemos, por assim<br />

dizer, a nos abotoar, trazendo nossas vestes mais perto de nós. iv<br />

(FLÜGEL, 1930:77)<br />

Em civilizações tropicais, a função original de enfeite ou adorno, descrita por Flügel está<br />

relacionada com a sua finalidade essencial de distinguir a aparência física a fim de atrair os<br />

olhares de admiração dos outros. O autor cita habitantes indígenas para explicar os instintos<br />

exibicionistas natural da Humanidade embora o trabalho mostre alguma das realidades<br />

contemporâneas de enfeite como exposição sexual, rivalidade política, traje cerimonial e<br />

condição social entre outras.<br />

A função de pudor, de acordo com Flügel (1930), é ocultar as características físicas,<br />

geralmente afetando o destaque de uma pessoa dentro de um grupo, podendo ser no sentido<br />

de permissão ou proibição. Flügel explica o pudor como algo que não é geneticamente<br />

determinado e varia entre as sociedades.<br />

Ainda de acordo com Flügel, nas sociedades “‘civilizadas”, a proteção, o enfeite e o<br />

pudor desempenham seus papéis simultaneamente, embora os antagonismos entre enfeite<br />

e pudor seja uma importante questão defendida pelo autor como um “conceito da condição<br />

da vida humana”. É interessante fazer referência ao fato que no mundo natural, os animais<br />

já carregam todos esses atributos. Segundo Carter (2003, p.84), Flügel identifica diferentes<br />

atitudes para roupa:<br />

Alguns vêem as roupas como equivalentes à camada mais exterior de si e<br />

assim as incorpora na sua vida com pouca dificuldade. Outros consideram<br />

suas roupas quase inteiramente relacionadas ao ambiente externo, o vestuário<br />

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Conexões conceituais entre moda, vestuário, design e arte<br />

é “o outro” no seu senso de si. (CARTER, 2003:84) v<br />

Baudrillard (1998) introduz o conceito da sociedade de consumo e analisa a relação<br />

entre o objeto de consumo e a sua utilidade, então a necessidade de um produto perpassa do<br />

foco utilitarista para o simbólico.<br />

Em um estudo recente, Kawamura (2005) classifica a moda como um produto simbólico<br />

que não tem substância física e a considera separadamente dos produtos de vestuário por<br />

serem objetos concretos. Mais que isso, para a autora, “A moda não é roupa visível, mas é os<br />

elementos invisíveis que o vestuário carrega.”<br />

Como o desafio deste estudo é manter os elementos simbólicos e utilitários associados,<br />

visto que ambos são importantes e não passivamente dissociados pelos consumidores, outros<br />

modelos teóricos entram na discussão.<br />

Vários estudos consideram os fatores funcionais, ergonômicos e estéticos como<br />

questões distintas e oferecem visões limitadas que os vinculam de forma limitada a dimensões<br />

psicológicas, sociais e culturais quando no desenvolvimento de produtos com valor de<br />

moda para o mercados específicos, como o esportivo ou o maduro (LAMB E KALLAL 1992;<br />

BENKTZON ET AL. 2003) .<br />

Ballin (1885), no seu estudo inicial sobre a ciência vestimentar estava ciente dos prejuízos<br />

que a roupa pode trazer para um organismo saudável e descreve recomendações para uma<br />

roupa ideal: “Elas devem ser leves e quentes de forma a permitir a transpiração natural, ou em<br />

outras palavras, ventilar bem, não exercer qualquer pressão sobre qualquer parte do corpo, e<br />

devem ser livres de todas as partículas tóxicas, seja de sujeira ou de corantevi . (BALLIN 1885<br />

IN JOHNSON 2003)<br />

Outro estudo de Barr (1934) observa atitudes fundamentais na psicologia da escolha<br />

vestimentar: (1) o desejo de se portar conforme dentro de um grupo; (2) o desejo de conforto<br />

em termos de temperatura e sensações tácteis; (3) pudor, resistência a uma nova moda;<br />

(4) o desejo da economia, quando e o que comprar e (5) o impulso estético, o desejo de<br />

estar bonita. Aliás, Barr (1934) explica a fundo o desejo de auto-expressão: uma mistura de<br />

consciência do seu físico, expressão de personalidade, o desejo de parecer distinta, digna ou<br />

jovem, e o desejo de parecer competente ou próspera (BARR 1934 IN JOHNSON 2003).<br />

Considerando a adequação do modelo de motivação para o vestuário de Flügel,<br />

é necessário acrescentar mais variáveis à equação pois os indivíduos diferem em suas<br />

características físicas e psicológicas. A subseção seguinte é dedicada à discussão das<br />

alterações do corpo humano e suas implicações para o vestuário.<br />

<strong>Moda</strong> & <strong>Design</strong><br />

A atividade do designer é crucial para alimentar a criatividade no sistema da moda.<br />

Existem dois diferentes aspectos a considerar quando se analisa o design de produto com<br />

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Conexões conceituais entre moda, vestuário, design e arte<br />

valor de moda: o primeiro, intangível, que compreende as tendências, atitudes, valores e estilos<br />

de vida (SOLOMON E RABOLT 2004) e o segundo, o tangível, que se preocupa com o corpo,<br />

a sua forma, os materiais e os fatores sensoriais (COOPER E PRESS 1995). Nota-se que há<br />

uma tendência dentro da indústria de moda para minimizar os aspectos tangíveis.<br />

Mas, o produto de moda - vestuário - atua sobre o corpo como uma segunda pele<br />

e deve ter um desempenho compatível com o formato do corpo do consumidor. Uma das<br />

variáveis mais ignorada na concepção dos produtos da moda é o formato do corpo devido às<br />

tendências ditatoriais do padrão “alta e magra” e a forma do corpo pode não variar somente<br />

por fatores genéticos, mas também é determinada pela dieta, estilo de vida, nível de aptidão<br />

física e idade (LI 2003).<br />

Segundo Pheasant (2006), o produto deverá coincidir com características do usuário,<br />

sendo necessário levar em conta os seguintes critérios para um bom caimento: eficiência<br />

funcional, facilidade de utilização, conforto, qualidade de vida no trabalho e na saúde e segurança.<br />

Na área de design, os produtos de moda-vestuário são um dos poucos desenvolvimentos<br />

nos quais é possível (e necessária) adotar uma abordagem verdadeiramente sob medida,<br />

utilizando tabelas de tamanhos, diferentemente de produtos como automóveis ou cadeiras.<br />

Nesse sentido, o uso da antropometria é relevante, principalmente devido às variações<br />

do corpo, que se altera primeiramente entre os sexos e origens raciais e, de forma contínua,<br />

devido ao envelhecimento. Essas mudanças afetam não apenas a identidade visual do<br />

consumidor, mas seu comportamento e atitudes e, certamente, determinadas diferenças no<br />

formato do corpo têm implicações para o consumo de moda.<br />

Rasband (2002) recomenda muita atenção no ajuste ao vestir uma roupa, pois ela deve:<br />

(1) realçar a aparência e a atratividade; (2) contribuir para a auto-confiança; (3) cair suavemente<br />

sobre a figura; (4) melhorar a relação entre o vestuário e o formato corporal; (5) enfatizar<br />

as áreas mais atraentes do corpo; (6) tirar a atenção das imperfeições físicas (7); se ajustar<br />

naturalmente no corpo em movimento (8) dar suporte a uma vida ativa.<br />

Ainda segundo Rasband (2002), a forma do corpo pode variar devido a seis<br />

características: estatura (baixa, média e alta), estrutura óssea (delgada, média e graúda), peso<br />

(há uma proporção ideal entre peso, estatura e estrutura óssea), áreas do corpo proporcional<br />

(um diagrama do conjunto de medidas), tipo de figura (o polígono formado por seus ombros,<br />

cintura e quadris) e postura (o alinhamento de partes do corpo em relação a outras).<br />

Sheldon (1940) introduziu o conceito de somatotipo, derivado da antropologia física,<br />

definindo três classificações diferentes para os tipos de corpo, numa combinação de<br />

tamanho, peso e formato: endomorfos, mesomorfos e ectomorfos. Embora seja raro que um<br />

indivíduo se encaixe inteiramente dentro uma classificação é possível identificar características<br />

preponderantes em cada pessoa, visto que a classificação é baseada em medidas físicas<br />

utilizando uma escala de um a sete para cada um dos tipos, resultando numa combinação<br />

relacionada a uma das três opções.<br />

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Conexões conceituais entre moda, vestuário, design e arte<br />

O tipo físico endomorfo é caracterizada por ombros estreitos, quadris largos, cabeça<br />

grande e uma tendência a gordura corporal, principalmente em braços e pernas. O corpo<br />

mesomorfo apresenta ombros amplos, quadris estreitos, cabeça quadrada, baixo acúmulo<br />

de gordura e braços e pernas musculosas. O tipo de corpo ectomofo compreende ombros<br />

e quadris estreitos, pouca gordura corporal e músculos pouco desenvolvidos, rosto, braços e<br />

pernas finas.<br />

Considerando o exposto, os consumidores e consumidoras freqüentemente enfrentam<br />

problemas de dimensionamento no tamanho das roupas. Faust et al. (2006) adiciona<br />

mais uma variável à complexidade do design de vestuário: a imprecisão das empresas no<br />

dimensionamento de seus produtos. Os autores analisam a variação dos tamanhos de roupa<br />

no mercado do Canadá e as dificuldades que os consumidores enfrentam para encontrar<br />

peças adequadas. Segundo eles, o problema comporta, entre outras coisas, a falta de<br />

padronização no dimensionamento de tamanhos e falhas nos procedimentos de controle<br />

relativos às especificações. Como a especificação é uma ação diretamente vinculada à<br />

atividade de design, apresenta-se a seguir conceitos e teorias que podem apoiar o argumento<br />

deste trabalho.<br />

Segundo Cooper e Press (1995), “o design se localiza entre os mundos da cultura e do<br />

comércio, entre a paixão e o lucro” (p. 4) e nas palavras do designer de moda japonês Issey<br />

Miyake, “sonhamos entre dois mundos”. Walker (1990) sugere uma falta de atenção analítica<br />

para a prazerabilidade no ato de consumir, partindo da noção de Marx sobre o fetichismo da<br />

mercadoria para justificar o aumento do consumo na pós-modernidade e identificando cinco<br />

fontes de satisfação do ato de consumo: o desejo, a aquisição, o objeto, o uso e a percepção<br />

de terceiros.<br />

De acordo com Jones (1992), os objetivos do designer estão menos relacionados<br />

com os próprios produtos e mais relacionados para a realização bem sucedida de previsões<br />

interrelacionadas e especificações em resposta a um briefing. Esta hipótese introduz a<br />

complexidade no processo de desenvolvimento de produtos onde existem pelo menos três<br />

atores: a empresa (o ordenador), o designer (o mediador) e o usuário (o receptor). Nesta<br />

seara há ainda um conceito a acrescentar: a autoria, e o equilíbrio entre a racionalidade e<br />

subjetividade é uma questão central para essa relação. A sub-secção seguinte introduz a<br />

questão da subjetividade do designer.<br />

<strong>Moda</strong> & <strong>Arte</strong><br />

A arte, assim como a moda, tem um conteúdo estético que se materializa na prática do<br />

design, embora por muito tempo, a ligação entre moda e arte tenha se limitado à capacidade<br />

do artista em fornecer informação valiosa sobre as roupas usadas pelas elites (MACKRELL<br />

2005) visto que o artesão que usou suas habilidades para criar a roupa era anônimo. O<br />

segundo link entre moda e arte veio por meio dos ilustradores de moda do século XIX, quando<br />

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São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 284


Conexões conceituais entre moda, vestuário, design e arte<br />

jornais e revistas passaram a influenciar o consumo e o início da divulgação de tendências se<br />

consolidou como conseqüência.<br />

Os primeiros sinais de identidade de moda com a literatura e a pintura surgiram com<br />

escritores e poetas, ao descreverem os personagens de suas histórias e seus retratos, seja<br />

por meio escrito ou figurativo. O primeiro registro de um monopólio vestimentar autoral é<br />

atribuído a Charles Frederick Worth (1825-1895) que considerava seus vestidos como obras<br />

de arte e usava extensivamente a história da arte como uma fonte de inspiração para suas<br />

criações (MACKRELL 2005).<br />

Em 1883, enquanto Emile Zola, escritor realista francês, escrevia Au Bonheur des<br />

Dames (O Paraíso das Damas), uma história clássica sobre a efervescência do consumo de<br />

moda por mulheres, Edouard Degas, pintor impressionista, registrava a emoção de clientes<br />

consumindo naquela mesma época. Em Londres, a famosa loja de departamentos Liberty,<br />

instituiu em 1884 uma seção de traje, destinada à direção de arte e moda, criando uma marca<br />

de estilo reconhecido até os dias de hoje.<br />

Uma das grandes transformações da indústria da moda no início do século 20 foi a<br />

invenção do “estilista”, uma profissão que tem sua identidade compreendida entre o comércio<br />

e o artista da vez (MacKrell 2005).<br />

No período intermediário entre a duas Guerras Mundiais, a moda francesa consolidou a<br />

liderança com o “Pavilhão da Elegância”, no qual os estilistas tinham um importante papel no<br />

meio artístico, como MacKrell (2005) descreve o “l’air du temps”:<br />

Milhões de americanos e europeus e centenas de fabricantes internacionais<br />

visitaram o exposição que tem sido chamado de o ‘paraíso dos compradores.<br />

As lojas de departamento francesas (“museus para pessoas”) e a “rua das<br />

butiques” junto à Ponte Alexandre III (“centros de compras para mulheres<br />

modernas”) representaram, com cuidadosa orquestração, vitrines que<br />

pretendiam destacar a posição de Paris como o centro do mundo para<br />

compras vii . (MACKRELL, 2005:128)<br />

Do surrealismo ao pós-modernismo, diversos períodos da arte moderna têm sido<br />

associados à moda. Artistas estiveram envolvidos com a concepção de vestuário, designers<br />

de moda se inspiraram em obras de arte, e a fronteira entre o costureiro e o artista se tornou<br />

mais tênue. A compreensão pessoal e a interpretação de realidade se tornou uma obrigação<br />

para designers de moda e o espetáculo efêmero do desfile de moda se tornou algo como uma<br />

obra de arte propriamente dita. Uma recente exposição em Paris, apresentou a quantidade de<br />

trabalho e profissionais envolvidos antes, durante e depois de um desfile de moda, estimulando<br />

um novo campo de investigação própriaviii .<br />

Os anos 80 trouxeram o reconhecimento oficial da moda como “forma digna de<br />

expressão cultural” (MACKRELL 2005, P.153). A exposição retrospectiva de Yves Saint Laurent<br />

no Metropolitan Museum of Art de Nova York em 1983-84 confirmou a importância moda em<br />

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Conexões conceituais entre moda, vestuário, design e arte<br />

museus. Muitas iniciativas se seguiram, incluindo a exposição Biennale di Firenze - Il Tempo<br />

e la <strong>Moda</strong> de 1996, que definitivamente ligou a arte com a moda. A exposição de obras de<br />

designers de moda em museus agora é comum e há um número crescente de artistas plásticos<br />

contemporâneos que usam materiais têxteis e elementos de moda como temas fundamentais<br />

em suas criações. De acordo com Taylor (2005, p.448), as divisões entre o artista e o designer<br />

de moda poderiam ser consideradas como desnecessárias neste clima de criatividade, no<br />

qual os limites foram ultrapassados em outras áreas de produção.<br />

O currículo de cursos de design de moda hoje em dia tem mais de conteúdos<br />

relacionados à curadoria do que a modelagem e costura. Segundo Müller (2000 p. 15)<br />

“o vocabulário da moda adotou a linguagem da arte e passou a incluir expressões como<br />

“conceitos”,”happenings” e “instalações”. Como consequência, os designers tendem a se<br />

afastar do consumidor de roupa e se aproximar do expectador de moda.<br />

Outro aspecto dessa relação dialética entre a arte e o design é o fato de que a moda<br />

é um estado efêmero em comparação com um artefato de arte (LIPOVETSKY 2002; TAYLOR<br />

2005). A produção em massa que caracteriza o declínio de uma moda é algo que deve ser<br />

parâmetro para separar ”moda arte” de “simplesmente moda”. Mas a tendência vintage dentro<br />

da moda responde a esta inquietação, já que vintage é uma palavra da enologia para designar<br />

a melhor seleção de vinhos de cada estação, e aquilo que poderia ser considerado “antiquado”<br />

em moda pode ser vestido, colecionado e desejado.<br />

Considerações Finais<br />

Este estudo procurou demonstrar a complexidade do sistema moda e as diferentes<br />

formas de ver e tratar algumas das variáveis que divergem em campos do saber mas convergem<br />

no processo de desenvolvimento de produtos com valor de moda, e especificamente, na<br />

indústria do vestuário. Por outro lado, as reflexões apresentadas procuraram demonstrar suas<br />

influências no ambiente de escolha do consumidor. Neste trabalho é possível perceber que,<br />

apesar da moda ser cada vez mais estudada, por meio de diversos pontos de vista, há ainda<br />

lacunas na literatura referenciada acima a serem preenchidas no que tange suas inter-relações,<br />

determinações e mediações.<br />

Neste sentido, buscou-se a inclusão de autores comumente não considerados na<br />

discussão sobre os temas desenvolvidos, visando especialmente a possibilidade de influenciar<br />

estudos posteriores. Procurou-se ainda trazer ao debate algumas relações de causalidade<br />

vinculadas à realidade concreta e mediar reflexões a respeito de vínculos possíveis entre dois<br />

ou mais elementos distintos no sentido de contribuir, principalmente, para a solução de conflitos<br />

de interesse entre campos do saber. Em particular, o fenômeno da moda foi analisado sob<br />

uma perspectiva ontológica, considerando os aspectos psicossociais e envolvendo também a<br />

contribuição de aspectos da anatomia e da fisiologia nas atitudes dos consumidores. Desta forma,<br />

vislumbra-se a possibilidade de uma moda cada vez mais inclusiva e de estudos mais plurais.<br />

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Conexões conceituais entre moda, vestuário, design e arte<br />

Notas<br />

iTradução livre da autora do trecho original: ‘clothing does not represent, it presents. Clothing does not<br />

define, it positions. Clothing is pragmatic, not semantic. Clothing does not lie, but irrevocably betrays<br />

you.’ (p.17).<br />

ii Tradução livre da autora do trecho original: ‘At the same time, fashion and clothing are the most<br />

fetishised commodities produced and consumed within capitalist society. …Fashion and clothing may<br />

be the most significant ways in which social relations between people are constructed, experienced and<br />

understood.’ (Barnard, 2002, pp.8-9).<br />

iii Tradução livre da autora do trecho original: ‘all these things: it is about fashion, clothing, dress,<br />

adornment and style.’ (Barnard 2002, p.9).<br />

iv Tradução livre da autora do trecho original: … a protection against the general unfriendliness of the<br />

world as a whole; or, expressed more psychologically, a reassurance against a lack of love. If we are<br />

in unfriendly surroundings, whether human or natural, we tend, as it were, to button up, to draw our<br />

garments closely round us. (Flugel 1930, p.77).<br />

v Tradução livre da autora do trecho original: Some see clothes as equivalent to the outmost layer of<br />

their selves and so incorporate them into their life-world with little difficulty. Others locate their clothing<br />

almost wholly within the external environment; clothing is “other” to their sense of themselves. Carter<br />

(2003, p.84).<br />

vi Tradução livre da autora do trecho original: ‘They should be light, warm, permit free transpiration, or,<br />

in other words, ventilate well; they should exert no pressure on any part, and they should be free from<br />

all poisonous particles, whether of dirt or of dye.’ (Ballin 1885 in Johnson 2003)<br />

vii Tradução livre da autora do trecho original: Millions of Americans and Europeans and hundreds of<br />

international manufacturers visited the Exposition, which has often been called a ‘shoppers’s paradise’.<br />

French department stores (‘museums for people’) and a ‘rue des Boutiques’ (‘shopping centres for<br />

modern women’) along the Pont Alexandre III were represented, with carefully orchestrated window<br />

displays intended to underline Paris’s position as a world centre for shopping. (Mackrell 2005, p.128).<br />

viii Showtime, le défilé de mode, exposição realizada no período de 4 de Março a 30de Julho de 2006<br />

no Palais Galliera - Musée de la Mode la Ville de Paris.<br />

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Conexões conceituais entre moda, vestuário, design e arte<br />

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CONSIDERAçõES éTICAS NA PESQuISA EM DESIGN DE MODA<br />

Luciane do Prado Carneiro; Mestranda em <strong>Design</strong>: PPG <strong>Design</strong> UNESP/Bauru<br />

luciane@unipar.br<br />

Danilo Corrêa Silva; Mestrando em <strong>Design</strong>: PPG <strong>Design</strong> UNESP/Bauru<br />

danilo@idemdesign.net<br />

Marizilda dos Santos Menezes; Prof. Dr.: PPG <strong>Design</strong> UNESP/Bauru<br />

marizil@faac.unesp.br<br />

Luis Carlos Paschoarelli; Livre docente: PPG<strong>Design</strong> UNESP/Bauru<br />

paschoarelli@faac.unesp.br<br />

José Carlos Plácido da Silva; Titular: PPG<strong>Design</strong> UNESP/Bauru<br />

placido@faac.unesp.br<br />

Resumo<br />

A moda é uma especialidade que nos últimos anos se apropriou<br />

de metodologias do design para sistematizar a sua atuação e<br />

adequar-se às necessidades do mercado. Assim também ocorreu<br />

com a pesquisa científica em design de moda, que atualmente está<br />

em acentuada expansão. No entanto, tal como no design, grande<br />

parte dessas pesquisas envolvem abordagens junto a usuários,<br />

consumidores ou agentes do processo produtivo, o que requer a<br />

observação de aspectos éticos em seus materiais e métodos. O<br />

objetivo desse estudo foi avaliar quantitativamente a consideração<br />

desses critérios na produção científica em design de moda nos<br />

principais eventos científicos/acadêmicos brasileiros da área.<br />

Palavras-Chave: pesquisa cientifica; moda; ética.<br />

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Considerações éticas na pesquisa em design de moda<br />

Introdução<br />

Atualmente, constata-se uma acentuada convergência entre a moda e o design,<br />

com múltiplas interações, seja na busca de referências visuais ou estéticas, ou na busca<br />

de metodologias que permitam sistematizar e integrar processos produtivos. O design,<br />

que em suas origens se associou à racionalidade e à função, passou a buscar elementos<br />

inspiradores, como formas, cores e estampas no universo da moda. Por outro lado, a moda<br />

busca no design o embasamento metodológico projetual,e/ou científico, visando se adequar<br />

às exigências produtivas do mundo globalizado. Dessa união surgem diversos aspectos que<br />

podem e devem ser analisados para um desenvolvimento progressivo não só da área da<br />

moda, mas também do design em suas diversas especialidades.<br />

Como regra geral o designer atua no projeto das interações dos produtos com os seres<br />

humanos, tornando a utilização dos produtos mais efetiva, eficiente e confortável, melhorando<br />

assim a qualidade de vida dos usuários. Assim também atua o designer de moda, gerando<br />

produtos que interagem diretamente com o ser humano, como o vestuário ou acessórios<br />

(calçados, joias e ornamentos). Com a incorporação de metodologias do design à produção<br />

desses itens, também são adquiridos métodos de análise e pesquisa científica, que geram os<br />

parâmetros para a produção desses produtos.<br />

Grande parte das pesquisas científicas em design envolve a participação direta de<br />

indivíduos, seja por meio de entrevistas, questionários ou experimentos laboratoriais; e esta<br />

participação é motivo para o questionamento ético das abordagens, uma vez que é reguladopor<br />

códigos de ética ou resoluções normativas, mas nem sempre considerado.<br />

Este estudo teve como propósito identificar se a produção científica em design de<br />

moda compartilha dessa característica da pesquisa em design no Brasil, e se os aspectos<br />

éticos da participação de seres humanos estão sendo observados. É importante destacar<br />

que não cabe a esse artigo julgar os métodos dos pesquisadores, o intuito é, por outro lado,<br />

divulgar e fortalecer esse aspecto no meio científico do design.<br />

O design de moda no Brasil<br />

O design é uma profissão relativamente recente no Brasil, tendo suas raízes em meados<br />

do século 20 e que, ainda hoje, tem suas fronteiras, áreas de atuação e corpo de conhecimento<br />

prático e científico pouco definido. Também recente é a passagem da tradicional dualidade<br />

entre design gráfico ou de produto, para uma infinidade de novas especializações, demandadas<br />

pelo mercado globalizado, seguindo tendências adotadas nos países desenvolvidos, dando<br />

margem ao surgimento de campos como o design de interiores, design de joias, design de<br />

móveis, design de calçados, gestão do design, e também o design de moda. O design de<br />

moda, portanto, é um dos ramos do design, o qual tem como objetivo o desenvolvimento de<br />

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Considerações éticas na pesquisa em design de moda<br />

vestuários ou acessórios para o ser humano, respeitando as características culturais, técnicas,<br />

mercadológicas e de moda ou tendências.<br />

Segundo Magnus et al. (2006), até meados da década de 1980, quem desejasse<br />

estudar ou aperfeiçoar-se em moda não tinha alternativa senão ir ao exterior. Destacam que<br />

até então os estilistas eram leigos e autodidatas, ou apenas dotados de talento artístico e que<br />

tinham como fundamento o aprender pela prática. Diante disso, a moda não era vista como<br />

uma área que se valia de conhecimentos científicos. A partir da segunda metade da década de<br />

1970, na França, a moda alcançou legitimação acadêmica, com publicações de Bourdieu, em<br />

1974, Baudrillard, em 1976,eLipovetsky, em 1987. No Brasil, a primeira dissertação tratando<br />

do assunto é “O espírito das roupas”, escrita em 1950 por Gilda de Mello, mas publicada<br />

apenas em 1987.<br />

Esses acontecimentos coincidem com dois momentos de grande importância<br />

do cenário da moda. O primeiro se refere ao fim da década de 1950, quando houve uma<br />

alteração significativa no processo produtivo da moda no Brasil, a partir da qual se observou<br />

uma expansão da indústria têxtil e do comércio. Na década de 1980, essa demanda produtiva<br />

levou à necessidade de profissionais com conhecimentos mais estruturados, culminando com<br />

o surgimentodos primeiros cursos profissionalizantes no eixo Rio/São Paulo e em Minas Gerais<br />

(PORTINARI et al., 2002).<br />

A história da moda no Brasil é rica, e já foi alvo de diversos estudos, incluindo o de<br />

Gilberto Freyre, Modos de homem & <strong>Moda</strong>s de mulher, publicado primeiramente em 1987.<br />

Sociólogo famoso por suas análises críticas da formação e costumes da sociedade brasileira,<br />

o autor equaciona em sua obra as raízes e influências dos costumes do povo brasileiro<br />

em paralelo com outras sociedades do mundo. Cabe aqui ressaltar que um estudo mais<br />

aprofundado sobre a história e os desenvolvimentos do design de moda merece estudos<br />

muito mais aprofundados e que fogem ao escopo desse trabalho. Com isso, o objetivo aqui<br />

é apenas traçar um panorama do desenvolvimento da área e, principalmente, da evolução<br />

acadêmica e científica do design de moda.<br />

Na questão do ensino formal da área, o primeiro curso superior em Desenho de <strong>Moda</strong><br />

começou a funcionar em 1988, tendo suas origens na disciplina homônima, introduzida em<br />

1967 nos cursos de bacharelado e licenciatura em Desenho e Plástica da Faculdade Santa<br />

Marcelina, em São Paulo. Na década de 1990 houve uma grande expansão na oferta de<br />

cursos de graduação na área, instalados em locais onde a produção têxtil ou de confecção<br />

encontrava-se consolidada, e sua população comprometida com esse processo, com<br />

destaque para:<br />

• São Paulo (SP), com a Faculdade Anhembi Morumbi (UAM – 1990);<br />

• São Paulo (SP),<strong>Universidade</strong> Paulista (UNIP - 1990);<br />

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Considerações éticas na pesquisa em design de moda<br />

• Caxias do Sul (RS), com a <strong>Universidade</strong> de Caxias do Sul (1993);<br />

• Fortaleza (CE), na <strong>Universidade</strong> Federal do Ceará (1994);<br />

• Rio de Janeiro, na <strong>Universidade</strong> Veiga de Almeida (1995);<br />

• Londrina (PR), <strong>Universidade</strong> Estadual de Londrina (1997);<br />

• Curitiba (PR), <strong>Universidade</strong> Tuiutí do Paraná (1997);<br />

• Blumenau (SC), <strong>Universidade</strong> Regional de Blumenau (1997);<br />

• São Paulo (SP), Centro de Educação em <strong>Moda</strong> (SENAC - <strong>Moda</strong> - 1998); e<br />

• Maringá (PR), Centro de Educação Superior de Maringá (1999), entre outros.<br />

Atualmente, a oferta de cursos de graduação em design de moda se expandiu<br />

consideravelmente, sendo que algumas instituições oferecem pós-graduação lato sensu na<br />

área. Esses cursos normalmente se agregaram às faculdades de artes ou design, queem 1999<br />

receberamreformulação curricular, passando a incluir estudos demoda em suas habilitações.<br />

Com a expansão na oferta de cursos, houve uma ampliação da produção acadêmica, como<br />

evidenciado por Portinari et al. (2002). Essas autoras também destacam que os estudos<br />

e pesquisas na modaabordam áreas diversas,como a linguística, história, comunicação,<br />

engenharia de materiais, administração, psicologia, artes, design, entre outras.<br />

O design de moda também compartilha de alguns pressupostos do design, como o<br />

desenvolvimento de produtos para melhorar a qualidade de vida do ser humano. Portanto é<br />

inquestionável a necessidade de produção bibliográfica especializada pertinente e de caráter<br />

científico, que além de dar suporte ao desenvolvimento tecnológico do setor, ainda auxiliará<br />

na formação de discentes e docentes. É focado nessa pequena parcela de atuação que o<br />

presente estudo terá a sua área de análise.<br />

Estudos realizados em qualquer área do conhecimento devem observar alguns<br />

princípios metodológicos específicos, que são ainda desconhecidos ou ignorados por boa<br />

parte da comunidade científica, principalmente quando se trata da participação de seres<br />

humanos. A ética na atuação profissional do designer já foi alvo de alguns questionamentos,<br />

porém a ética na pesquisa científica em design ainda é um princípio raramente contemplado<br />

(PASCHOARELLI et al., 2008).<br />

Princípios éticos e morais<br />

Ética e moral são dois termos adjacentes, que comumente não conduzem a uma<br />

definição consensual. Isso se deve principalmente às variações inerentes aos aspectos culturais<br />

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Considerações éticas na pesquisa em design de moda<br />

e filosóficos de cada comunidade. Do ponto de vista etimológico, o termo ética tem origem<br />

do grego ethiké (ou ethos), que significa “costume”, apresentando como objeto de estudo os<br />

valores oujuízos valorativos daquilo que se considera“certo” ou “errado” na conduta humana.<br />

Da mesma forma, o termo moral (do latim mores) também significa “costume” e se caracteriza<br />

pelo aspecto subjetivo da ação reconhecida pelo sujeito praticante (LADRIÈRE, 1994).<br />

La Taille 2006) afirma que os termos contém o mesmo significado, variando apenas<br />

na sua origem etimológica (grega e latina). Paim (1992) trata sobretudo da evolução histórica<br />

do tema, indicando que os princípios da ética grega estão relacionados à virtude humana e<br />

associada ao saber. Posteriormente, na Idade Média, os preceitos gregos foram associados<br />

à teologia, criando um vínculo entre moral e religião. Durante o século 20, houve um esforço<br />

por dissociar novamente a ética da religião, e diversos pensadores ora atribuíram soluções<br />

racionais (Kant), ora puseram por terra a possibilidade de uma sociedade racional (Weber).<br />

De qualquer maneira, o código moral ocidental é de origem judaico-cristã, e tem o<br />

pressuposto de universalidade. O principal aspecto do modelo ético atual é o ideal de pessoa<br />

humana, que representa o seu núcleo e fonte de inspiração de grande parte dos preceitos<br />

abrangidos pela moralidade. A moral, portanto, deve ser interiorizada e incorporada à vivência<br />

individual, o que exige um diálogo contínuo sobre a universalidade da cultura. Assim, se conclui<br />

que a moral é o acordo entre a consciência individual e os preceitos consagrados, sendo a<br />

primeira o juiz das atitudes (PAIM, 1992).<br />

Porém, o mesmo autor afirma que alguns homens tendem a desviar-se dos<br />

comportamentos morais, o que fez surgir uma nova instância apta a agir de forma preventiva<br />

ou punitiva: o direito. As relações entre moralidade e lei jurídica geralmente são, ao menos<br />

nas sociedades democráticas ocidentais, apoiadas pela comunidade, sendo justamente esse<br />

o traço que as distingue do totalitarismo. Portanto, as considerações de natureza moral (ou<br />

ética), por serem amplamente adotadas pela comunidade, transitam para a esfera do direito<br />

(legislação).<br />

Existem amplas discussões de cunho filosófico sobre o assunto, normalmente em livros<br />

específicos da área, não cabendo a esse artigo se aprofundar demasiadamente no tema.<br />

Para esse estudo, foi adotada a diferenciação por fronteiras utilizada em Paschoarelli et al.<br />

(2008), que possui caráter menos agressivo. O termo “ética” é comumente adotado quando<br />

o julgamento realizado se limita ao grupo no qual se insere o praticante, num âmbito mais<br />

específico. Como exemplo, podem ser citadosdiversos Comitês de Ética responsáveispor<br />

regular o comportamento de determinada categoria e, com isso, manter a integridade do<br />

grupo diante da população. Já o termo moral é adotado num contexto amplo, ou seja, como<br />

a ação pontual de um praticante é avaliada por umindivíduo externo a esse grupo.<br />

Os aspectos éticos e morais são variáveis segundo o tempo e o espaço (PASCHOARELLI<br />

et al., 2008), o que requer uma constante revisão dos códigos que regem as condutas de<br />

determinados grupos. Esses códigos são comumente baseados em comportamentos que<br />

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Considerações éticas na pesquisa em design de moda<br />

devem ser evitados ou proibidos, embora também possam ser utilizados aquelesconsiderados<br />

virtuosos, éticos ou socialmente responsáveis. McKinneyet al. (2010) ressalta que o<br />

desenvolvimento moral de um indivíduo se caracterizaria por este ter o comportamento ético<br />

como um objetivo, visto que teria consciência de que é o “certo a se fazer”.<br />

Segundo Lau (2010), o primeiro passo no processo de decisão ética é reconhecer a<br />

natureza moral da situação. Uma decisão ou ação pode afetar interesses, expectativas ou o<br />

bem estar alheio, de modo conflitante com um ou mais aspectos éticos. O comportamento<br />

ético pressupõe um questionamento a priori, que segundo Ladrière (1994), se caracteriza<br />

por“[...]uma reflexão sobre a ação”, na ocasião em que é evidente “[...]um apelo à iniciativa do<br />

homem, enquanto essa iniciativa não é condicionada (inteiramente em todoo caso) pelo curso<br />

das coisas, pela necessidade natural” (p. 29).Portanto, as questões éticas se caracterizam<br />

como um dos aspectos metodológicos da pesquisa científica, devendo considerar uma ação<br />

equânime dos indivíduos e as suas possíveis consequências (PASCHOARELLI et al., 2008).<br />

Considerações éticas na pesquisa científica<br />

O desenvolvimento científico e tecnológico tem como metas teóricas e básicas a<br />

melhoria das condições de vida humana. Portanto, seria lógico afirmar que toda pesquisa<br />

deve considerar o bem estar do ser humano, assegurando que “... ninguém seja prejudicado<br />

ou sofra consequências adversas devido às atividades de pesquisa” (COOPER; SCHINDLER,<br />

2003, p. 110). Entretanto, no decorrer da história humana podem ser encontradas diversas<br />

situações onde esses princípios.<br />

As considerações sobre ética na pesquisa são relativamente recentes em todos os<br />

campos do saber científico (PAIVA, 2005). Embora as práticas médicas utilizassem o código<br />

de Hipócrates desde a Antiguidade, apenas na segunda metade do século 20 as pesquisas<br />

envolvendo seres humanos começaram a ser controladas, principalmente devido aos<br />

experimentos médicos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. Grande parte desses<br />

questionamentos teve o seu ápice na série de julgamentos de crimes de guerra nazistas,<br />

conhecidos como Julgamentos de Nuremberg. Daí resultou o código homônimo, que<br />

estabelecia a participação voluntária dos indivíduos (ROBINSON, 2010).<br />

Entretanto, nem sempre esse código era respeitado. Como resultado dessas violações,<br />

a Associação Médica Mundial (World Medical Association) criou, em 1964, a Declaração de<br />

Helsinque, cuja versão revisada ainda é um padrão mundialmente aceito para pesquisas<br />

biomédicas envolvendo seres humanos (FADARE; PORTERI, 2010). Também na década de<br />

1960, o Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos (NationalInstituteof Health) começou<br />

a exigir que toda pesquisa envolvendo participação humana e desenvolvida com seu apoio<br />

financeiro fosse submetida a uma revisão ética. Nessa ocasião, cada instituição deveria revisar<br />

seus protocolos de pesquisa caso quisessem fundos federais para seus projetos.<br />

Em 1979, o Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos da América criou o<br />

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Considerações éticas na pesquisa em design de moda<br />

Relatório de Belmont (BelmontReport), no qual havia a exigência de três princípios básicos<br />

para pesquisas envolvendo humanos: o respeito às pessoas; beneficência; justiça. Estas<br />

exigências eram possíveis por meio do consentimento esclarecido, uma avaliação de riscos e<br />

benefícios e uma seleção “justa” dos participantes (ROSSet al., 2010).<br />

O consentimento esclarecido é um requisito básico da conduta ética em pesquisa<br />

envolvendo seres humanos. O Council for InternationalOrganizationsof Medical Sciences<br />

define consentimento esclarecido como uma “decisão de participar em uma pesquisa realizada<br />

por um indivíduo competente que recebeu as informações necessárias; compreendeu<br />

adequadamente essas informações; e após considerá-las, chegou a uma conclusão sem<br />

coerção, influência imprópria, indução ou intimidação”. O consentimento é deve ser tomado,<br />

preferivelmente, na forma documental, escrita (FADARE; PORTERI, 2010).<br />

Essas exigências resultaram na criação dos Conselhos Institucionais de Revisão<br />

(InstitutionalReviewBoards - IRB),nos Estados Unidos. Atualmente, esses IRB se expandiram<br />

para cobrir virtualmente todas as instituições de pesquisa desse país (ROBINSON, 2010).<br />

Muitos outros países possuem conselhos como esses, como os ResearchEthicsCommittees na<br />

Inglaterra e os Comitês de Ética em Pesquisa (CEP), no Brasil. Ainda assim, as determinações<br />

e exigências desses comitês possam variar segundo essas localidades, sendo que em alguns<br />

casos sua atuação se limita às áreas biomédicas.<br />

No Brasil, a regulamentação sobre a participação de seres humanos em pesquisa<br />

científica está pautada na Resolução Nº 196, de 10 de outubro de 1996, do Conselho Nacional<br />

de Saúde. Esta resolução fundamenta-se em alguns tratados anteriores, a saber:<br />

• Código de Nuremberg, de 1947;<br />

• Declaração dos Direitos do Homem, de 1948;<br />

• Declaração de Helsinque de 1964, e suas revisões de 1975, 1983 e 1989;<br />

• Acordo Internacional Direitos Civis e Políticos da <strong>Organização</strong> das Nações Unidas<br />

(ONU) de 1966;<br />

• Diretrizes Éticas Internacionais para Pesquisas Biomédicas Envolvendo Seres<br />

Humanos, do CIOMS / World Health Organization (WHO), de 1982 e 1993;<br />

• Diretrizes Internacionais para Revisão Ética de Estudos Epidemiológicos (CIOMS /<br />

WHO), de 1991.<br />

Além disso, cumpre as disposições da Constituição da República Federativa do Brasil<br />

(1988); do Código de Direitos do Consumidor; Código Civil e Penal; do Estatuto da Criança e<br />

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Considerações éticas na pesquisa em design de moda<br />

do Adolescente; e outros elementos legais.Segundo a Resolução No 196/1996, a “eticidade”<br />

em pesquisa implica em quatro princípios básicos:<br />

• Autonomia, ou consentimento livre e esclarecido dos indivíduos e proteção dos grupos<br />

vulneráveis e legalmente incapazes;<br />

• Beneficência, ou ponderação entre riscos/benefícios, atuais e potenciais, individuais<br />

e coletivos, objetivando o aumento nos benefícios e a minimização extrema dos riscos;<br />

• Não Maleficência, ou plena garantia de que danos previsíveis serão evitados; e<br />

• Justição e Equidade, ou relevância social da pesquisa com vantagens significativas<br />

para os sujeitos, com igual consideração dos interesses.<br />

Segundo essa resolução, as pesquisas que envolvem seres humanos, individual ou<br />

coletivamente, direta ou indiretamente, em sua totalidade ou partes do indivíduo, incluindo a<br />

manipulação de informações ou materiais, devem ter seus projetos submetidos aos Comitês de<br />

Ética em Pesquisa (CEP). Ou seja, mesmo entrevistas, aplicações de questionários, utilizações<br />

de banco de dados ou revisões de prontuários, e que, independente do nível da pesquisa<br />

(iniciação científica, graduação, mestrado ou doutorado, de interesse aplicado ou científico)<br />

devem ser submetidas à avaliação dos CEP, então caracterizados como:<br />

“[...] colegiados interdisciplinares e independentes, com “munus público”, de<br />

caráter consultivo, deliberativo e educativo, criados para defender os interesses<br />

dos sujeitos da pesquisa em sua integridade e dignidade e para contribuir<br />

no desenvolvimento da pesquisa dentro de padrões éticos” (CONSELHO<br />

NACIONAL DE SAÚDE, 1996).<br />

Na prática, os CEP registrados no Conselho Nacional de Ética em Pesquisa possuem<br />

diversas exigências para a aprovação de um projeto, entretanto podemos destacar a aplicação<br />

do “Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)”, uma vez que:<br />

Objetivo<br />

“[...]o respeito devido à dignidade humana exige que toda pesquisa se processe<br />

após consentimento livre e esclarecido dos sujeitos, indivíduos ou grupos<br />

que por si e/ou por seus representantes legais manifestem a sua anuência à<br />

participação na pesquisa” (CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE, 1996).<br />

O objetivo deste estudo foi mensurar quantitativamente o relato de quaisquer<br />

preocupações éticas na pesquisa envolvendo seres humanos no design de moda, por meio<br />

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Considerações éticas na pesquisa em design de moda<br />

de análise bibliométrica de alguns dos principais meios de divulgação científica em design no<br />

país.<br />

Metodologia<br />

Objeto de estudo<br />

Foram analisados 5883 artigos científicos, nos anais dos seguintes eventos:<br />

• Colóquio de <strong>Moda</strong> – 2005 a 2009;<br />

• ABERGO - Congresso Brasileiro de Ergonomia, nas edições de 1999 a 2008;<br />

• P&D <strong>Design</strong> - Congresso Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em <strong>Design</strong>, nas<br />

edições de 2000 a 2008;<br />

• CIPED - Congresso Internacional de Pesquisa em <strong>Design</strong> – Brasil, nas edições de<br />

2003 a 2009;<br />

• ERGODESIGN - Congresso Internacional de Ergonomia e Usabilidade<br />

deInterfacesHumano-tecnologia: Produtos, Informação, Ambiente Construído,<br />

Transporte, nas edições de 2002 a 2010;<br />

A escolha por esses bancos de dados (anais de eventos) se deu pela representatividade<br />

e expressividade com que são caracterizados na área do conhecimento do design.<br />

Critérios avaliados<br />

sendo:<br />

Os critérios analisados foram semelhantes aos descritos em Paschoarelli et al. (2008),<br />

• Participação de sujeitos;<br />

• Preocupação relativa a qualquer aspecto ético (consentimento informal ou TCLE);<br />

• Submissão a um CEP;<br />

Procedimentos<br />

Tanto para os anais impressos (anais do P&D <strong>Design</strong> até a edição de 2002), quanto<br />

para os anais em formato digital, recorreu-se a leitura integral dos artigos envolvendo a área<br />

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Considerações éticas na pesquisa em design de moda<br />

da moda, agrupados em diversas classificações, como ergonomia, gestão do design, design<br />

de produto, etc. Buscou-se identificar qualquer interação com voluntários, seja entrevista,<br />

questionário, ou participação ativa, como experimentação laboratorial, pesquisa de campo ou<br />

teste de produtos.<br />

Os dados coletados se referem ao título do artigo, o evento no qual foi publicado e<br />

a observância dos critérios descritos no item 4.2 deste trabalho. Essas informações foram<br />

tabuladas em planilha eletrônica do Microsoft Office Excel 2007®, onde foram efetuadas<br />

análises estatísticas básicas e geração de gráficos.<br />

Resultados<br />

Colóquio de <strong>Moda</strong><br />

O Colóquio de <strong>Moda</strong> é o maior congresso científico em moda no Brasil. Reúne<br />

pesquisadores de diversos locais e especialidades, caracterizando-se por sua diversidade. A<br />

análise bibliométrica de suas cinco edições permitiu a contagem de 688 artigos (Figura 01).<br />

Figura01: Infográfico da produção científica no Colóquio de <strong>Moda</strong>.<br />

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Considerações éticas na pesquisa em design de moda<br />

Como visto na Figura 01, a produção científica é crescente nesse evento. Em 61 dos<br />

artigos analisados foi possível identificar a participação de seres humanos, o que representa<br />

8,9% do total, e apenas em um dos artigos houve atendimento às questões éticas (na edição<br />

de 2005). Nesse único caso, o projeto foi também submetido e aprovado por um CEP. No<br />

entanto, todas as demais publicações não mencionaram nenhum tipo de atenção aos aspectos<br />

éticos.<br />

ABERGO<br />

O Congresso Brasileiro de Ergonomia ocorre a cada dois anos, reúne pesquisadores<br />

e especialistas do país todo, bem como do exterior, sendo um dos principais congressos em<br />

ergonomia e design do Brasil. A análise bibliométrica permitiu identificar 56 artigos relacionados<br />

à moda ao longo de todas as edições, o que representa 3,6% da produção total (Figura 02).<br />

Também é possível notar o crescimento do número de publicações, tanto em outras áreas<br />

quanto especificamente para a moda.<br />

Figura02: Infográfico da produção em moda por edição daAbergo.<br />

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Considerações éticas na pesquisa em design de moda<br />

Como visto na Figura 02, é notável a participação de seres humanos na pesquisa em<br />

design de moda, somando 46 publicações, das quais apenas duas mencionaram algum critério<br />

ético: em 2002 um artigo garantiu o sigilo das informações; e em 2008 houve a utilização de<br />

um TCLE.<br />

P&D <strong>Design</strong><br />

O Congresso Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento em <strong>Design</strong> – P&D <strong>Design</strong> é o<br />

maior congresso em design do Brasil. Esse evento é realizado a cada dois anos, reunindo<br />

pesquisadores das mais diversas especialidades. A participação do design de moda ao<br />

longo das edições tem crescido consideravelmente, representando cerca de 7% do total da<br />

produção total do evento (Figura 03).<br />

Figura03: Infográfico da produção em moda no P&D <strong>Design</strong> por edição do P&D <strong>Design</strong>.<br />

Como visto na Figura 03, a produção científica em design de moda é crescente nesse<br />

evento. Ressalta-se aqui que,dos 146 artigos analisados, 56 foram realizados com participação<br />

de voluntários, e nenhum desses mencionou qualquer critério ético.<br />

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Considerações éticas na pesquisa em design de moda<br />

CIPED<br />

O Congresso Internacional de Pesquisa em <strong>Design</strong> – CIPED conta com a participação<br />

de pesquisadores de diversas áreas do design, em nível internacional. A análise bibliométrica<br />

permitiu identificar 95 artigos relacionados à moda ao longo das edições de 2003 a 2009, o<br />

que representa 10,4% da produção total (Figura 04).<br />

Figura04: Infográfico da produção em moda por edição do CIPED.<br />

Nota-se um crescimento vertiginoso das publicações em moda nesse evento. A<br />

participação de voluntários se deu em 33 dos 95 estudos publicados e, em apenas um deles,<br />

na edição de 2009, foi identificada a adoção de critérios éticos, com a utilização simultânea de<br />

um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e submissão do projeto de pesquisa<br />

a um Comitê de Ética em Pesquisa (CEP).<br />

Ergodesign<br />

O Congresso Internacional de Ergonomia e Usabilidade de InterfacesHumano-tecnologia<br />

– Ergodesign surgiu por iniciativa da pesquisadora Anamaria de Moraes e colaboradores, no<br />

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Considerações éticas na pesquisa em design de moda<br />

Rio de Janeiro, em 2001. Éum dos principais congressos em ergonomia e design do Brasil,<br />

reunindo pesquisadores de diversas regiões e áreas temáticas.A análise bibliométrica permitiu<br />

identificar 36 artigos relacionados à moda ao longo de todas as edições, o que representa<br />

5,2% da produção total (Figura 05).<br />

Figura05: Infográfico da produção de artigos em moda, por edição do Ergodesign.<br />

Como visto na Figura 05, a produção científica em design de moda está num patamar<br />

relativamente estável nesse evento. A participação de voluntários se deu em 24 dos 36 estudos<br />

publicados, com a menção a questões éticas em apenas dois deles, ambos na edição de<br />

2009. No entanto, embora tenham utilizado o TCLE, apenas um deles relatou a aprovação dos<br />

procedimentos por um CEP.<br />

Considerações finais<br />

O presente estudo propôs contextualizar a pesquisa em design de moda no Brasil,<br />

sob o ponto de vista dos critérios éticos envolvidos nos estudos científicos que envolvem a<br />

participação de seres humanos. É importante destacar que o caráter desse artigo é meramente<br />

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Considerações éticas na pesquisa em design de moda<br />

informativo, com o intuito principal de ressaltar a importância da discussão e consideração<br />

dessa necessidade na metodologia de pesquisa científica. Também não se trata de questionar<br />

a validade ou imperfeições da norma, cuja análise merece ser discutida em profundidade em<br />

outra ocasião.<br />

Diante do proposto foi traçado um breve panorama dos conceitos intimamente<br />

relacionados: moral e ética. Embora essa questão remonte a Antiguidade, com o código de<br />

Hipócrates, apenas a partir da Segunda Guerra Mundial foi esboçado um regimento com<br />

amplitude normativa. No Brasil, a Resolução Nº 196/1996 do Conselho Nacional de Saúde<br />

tem quase a mesma longevidade do P&D <strong>Design</strong>, no entanto são recentes e raros os artigos<br />

científicos que mencionaram preocupações do seu escopo e, muito mais raros os que de fato<br />

a atendem.<br />

Destaca-se que, de maneira geral, esse deve ser um questionamento inerente da<br />

pesquisa em design, pois o mesmo se utiliza de metodologias advindas de diversas outras<br />

áreas do conhecimento, como a Antropologia, a Sociologia e até mesmo Ciências da Saúde<br />

e que, comumente, envolvem participação humana. Para á especialidade do design de moda<br />

não é diferente, por isso buscou-se primeiramente, realizar uma breve abordagem histórica e<br />

teórica da área, demonstrando seu imenso potencial de crescimento.<br />

A moda lida com valores sociais e culturais, e por tratar de produtos em contato tão<br />

próximo com o ser humano, parece se utilizar de abordagens a indivíduos como meio de<br />

obter parâmetros projetuais ou desvendar questões teóricas. Essa “ferramenta” metodológica<br />

proporciona resultados mais confiáveis para compreender as questões que envolvem o design<br />

de moda e sua interferência social, tecnológica e cultural.<br />

Como pôde ser observado, em todos os eventos analisados no presente estudo, houve<br />

uma expansão na pesquisa em design de moda. Os números demonstram um amadurecimento<br />

do setor, com importante participação junto a outras áreas do design. No entanto, assim<br />

como em todas as outras especificidades do design, há de se considerar um constante<br />

aprimoramento e rigor metodológico, sobretudo no que trata a participação humana em seus<br />

procedimentos e, nesse aspecto, a preocupação ética ainda parece incipiente.<br />

Destaca-se que os eventos analisados pareceram não exigir dos participantes (autores /<br />

coautores) quaisquer tipos de considerações quanto aos tópicos descritos no presente estudo.<br />

Nesse sentido é importante destacar que o presente estudo não questiona o mérito dos comitês<br />

científicos e tampouco os seus procedimentos de análise, seleção e aceite para publicação<br />

dos artigos analisados. Pelo contrário, apenas procura demonstrar uma particularidade de<br />

uma determinada área do conhecimento científico, que como qualquer outranecessita de uma<br />

ampla abordagem e discussão, já que o tema não deixa de ser polêmico e complexo.<br />

O presente artigo também não teve a pretensão de discutir a validade ou aplicabilidade<br />

da Resolução Nº 196/1996do CNS em estudos na área do design de moda, em toda a sua<br />

diversidade de abordagens existentes. Pretendeu apenas verificar se há um questionamento ou<br />

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Considerações éticas na pesquisa em design de moda<br />

uma preocupação no que concerne à participação humana nesses estudos. Como exemplo,<br />

foi citado um estudo onde foi garantido aos participantes o sigilo de suas informações. Assim,<br />

mesmo não atendendo plenamente aos critérios éticos normativos, foi demonstrada uma<br />

preocupação com a integridade dos participantes.<br />

Os resultados desse estudo são relativos a 1021 artigos em design de moda, nos<br />

diversos eventos analisados. Os dados corroboram aqueles obtidos por Paschoarelli et al.<br />

(2008), pois foi encontrada uma expressiva taxa de participação de voluntários nas pesquisas<br />

científicas, representando um total de 216 artigos (21,15% do total). Considerações a critérios<br />

éticosainda são escassas, ocorrendo em apenas 6 artigos e, dentre esses, a submissão<br />

a um CEP foi relatada em apenas 3 casos (0,3% do total). É importante destacar que os<br />

resultados verificados no presente estudo, não indicam necessariamente o não cumprimento<br />

das exigências éticas, mas sim que, não foram mencionados tais procedimentos de pesquisa<br />

quando da descrição da metodologia empregada.<br />

Nesse aspecto, é importante destacar que os dados levantados referem-se apenas a<br />

uma das especialidades do design (a moda), no entanto, partiu de uma inferência a partir de<br />

estudo mais amplo e que, portanto, as ressalvas realizadas aqui reafirmam as anteriores e se<br />

aplicam a qualquer domínio do design. De maneira geral, a pesquisa em design de moda já<br />

conta com iniciativas quanto aos aspectos éticos, demonstrados em alguns poucos estudos,<br />

os quais já relatam preocupações com consentimento dos participantes ou quanto ao uso das<br />

informações obtidas.<br />

Um aspecto notável é que, embora fossem encontrados indícios de participação<br />

de sujeitos em vários estudos, muitos deles não expuseram os resultados dessa interação<br />

diretamente. Dessa forma, vários artigos parecem deixar claro que a abordagem a um indivíduo<br />

foi meramente para coletar informações a respeito do mercado, das necessidades do usuário<br />

ou simplesmente para auxiliar na geração de ideias, o que não os exime de acatar os princípios<br />

éticos da pesquisa científica.<br />

Também foi notado que grande parte das fotografias utilizadas na produção dos<br />

artigos analisados (quer abordem humanos ou não) permite a identificação do sujeito. Embora<br />

possivelmente tenham sido publicadas com autorização do indivíduo, pode ser interessante<br />

uma postura mais segura do pesquisador, como desfocar os rostos nas imagens, o que não<br />

abriria margem para questionamentos futuros.<br />

De qualquer forma, discussões sobre os conceitos de ética e moral são muito vastos<br />

e ainda serão alvo de muitas publicações, não se pretendendo aqui elucidar todos os seus<br />

termos e particularidades. Quanto à história da moda, omissões possivelmente foram feitas,<br />

mas como resultado de síntese de um ponto de vista que buscou apenas posicionar e entender<br />

a importância da área junto ao conjunto de especialidades do design,bem como outras áreas<br />

do conhecimento.<br />

Os resultados demonstram que é necessária uma ampla discussão sobre o assunto, quer<br />

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Considerações éticas na pesquisa em design de moda<br />

seja pela adoção dos critérios, quer seja pela sua menção quando da publicação das pesquisas<br />

da área. Nesse sentido, destaca-se que ainda há muito espaço para aperfeiçoamentosno<br />

desenvolvimento de estudos de caráter científico na área do design de moda, o que pode ser<br />

considerado inerente a uma área do conhecimento recente e que ainda traça os caminhos<br />

para sua consolidação.<br />

Referências<br />

CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. Resolução Nº 196, de 10 de outubro de 1996. Disponível<br />

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CALçADOS DESEJáVEIS PARA MuLhERES PORTADORAS DE<br />

DEFICIêNCIA FíSICA:<br />

uM DESAFIO DESEJáVEL PARA OS DESIGNERS DE CALçADOS<br />

Mariana Rachel Roncoletta; Doutoranda: FAU/USP; Docente: <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />

mariana_rachel@roncoletta.com<br />

Resumo<br />

Este artigo discute as funções estéticas e simbólicas do design<br />

de calçados para mulheres portadoras de deficiência física.<br />

Combinamos os estudos fenomenológico e de caso conforme o<br />

Código de Ética de Pesquisa da CONEP – Resolução 196/96 para<br />

realizar entrevistas semi-estruturadas que apresentou imagens<br />

e produtos. As usuárias revelaram os desejos por calçados<br />

que remetam à sensualidade e à feminilidade como diretrizes<br />

fundamentais da pesquisa projetual do design de calçados para<br />

mulheres com necessidades especiais. Concluímos que a adoção<br />

destas diretrizes conceituais no desenvolvimento de calçados<br />

podem aprimorar a qualidade de vida de nossas usuárias com<br />

relação ao bem estar social.<br />

Palavras-Chave: design de calçados; deficiente físico; imagem<br />

pessoal<br />

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Calçados desejáveis para mulheres portadoras de deficiência física: um desafio desejável para os designers de calçados<br />

Introdução<br />

O presente artigo possui como objetivo descrever os desejos e anseios das usuárias<br />

portadoras de deficiência física do aparelho locomotor com diferença de membros inferiores<br />

entre 2 a 5 cm com relação ao objeto de design de moda - calçados. Este estudo inicia-se<br />

com a vivência das usuárias entrevistadas.<br />

“Nem coisa, nem ideia, o corpo está associado à motricidade, à percepção, à<br />

sexualidade, à linguagem, ao mito. À experiência vivida, à poesia, ao sensível<br />

e ao invisível, apresentando-se como um fenômeno que não se reduz à<br />

perspectiva de objeto...”. Merleau-Ponty i (1994) apud Nóbrega (2000, p. 101).<br />

Observamos o corpo que se movimenta na passarela da vida, o corpo do outro. Este<br />

corpo que manca, ao subir e ao descer dos movimentos de seus quadris, aquele que rebola<br />

e pisa pelas pontas dos pés. Corpo este que balança o próprio olhar, num sobe e desce<br />

sinuoso, e que, claro, atrai o nosso olhar.<br />

Corpo meu, corpo seu, corpo do outro encontram lugar de destaque na obra<br />

Fenomenologia da Percepção, de Merleau-Ponty, que privilegia o mundo das experiências<br />

vividas como primeiro plano da configuração do ser humano e do conhecimento pela<br />

percepção. A percepção fenomenológica é dotada de significação, tem sentido na nossa<br />

história de vida e faz parte da nossa experiência, depende da nossa vivência corporal, das<br />

situações de nossos corpos. É a forma de comunicação que estabelecemos com os outros e<br />

com as coisas, envolve nossa personalidade, desejos e paixões, “é a maneira fundamental dos<br />

seres humanos estarem no mundo”, complementa Chauí (2000, p. 157).<br />

Neste projeto observou-se as relações destes corpos portadores de deficiência física<br />

do aparelho locomotor com o objeto calçado por intermédio do relato das entrevistadas. Suas<br />

falas percorrem todo o artigo com foco nas necessidades físicas, estéticas e simbólicasii do<br />

design de calçados revelando seus desejos e anseios associados ao seu contexto sociocultural<br />

e as suas experiências.<br />

O desejo, na área do design, é compreendido como ato de querer do “sujeito desejante”<br />

nos níveis consciente ou inconscientes. Segundo Portinari in Coelho (2008, p. 70), o desejo<br />

é um hiato, “condicionado à possibilidade de simbolização da falta, depende da ordem da<br />

linguagem”, ou seja, o ato de desejar está relacionado diretamente a querer aquilo que nos<br />

falta como indivíduos socioculturais.<br />

O poder dos calçados para o público feminino<br />

Os sapatos são as peças mais importante do guarda-roupa feminino, segundo uma<br />

pesquisa realizada pelo site brasileiro Chiciii de Gloria Kalil, em 2007. A pesquisa teve o<br />

objetivo de identificar entre calças, blusas, vestidos e sapatos, qual era o item indispensável<br />

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Calçados desejáveis para mulheres portadoras de deficiência física: um desafio desejável para os designers de calçados<br />

na composição do look feminino. Das 1.291 voluntárias, 53% consideraram os sapatos a peça<br />

principal. Para Garcia e Miranda (2005) entende-se por look uma organização na construção<br />

de determinadas roupas, associadas à postura corporal, à atitude, ao cabelo, à maquiagem<br />

e etc. Nossos calçados foram identificados com significativa importância na composição de<br />

nossos guarda-roupas e por consequência de nossos looks.<br />

Podemos ser atraídos primeiro pelas qualidades estéticas de um determinado produto,<br />

como a cor vibrante do calçado, ou sua textura macia ou até mesmo a forma sinuosa e sensual<br />

de um salto fino que nos remete historicamente ao poder e fetiche dos calçados. Fetichismo<br />

entendido como adoração a objetos animados ou inanimados produzidos pelo homem. Steele<br />

in Riello e McNell (2006) afirma que os saltos altos exercem um charme poderoso para muitas<br />

pessoas, são os substitutos dos corselets da Belle Époque, e estão associado à feminilidade<br />

e sensualidade da mulher do século XX.<br />

Os calçados são ferramentas protéticas poderosas no sentido de ampliar os valores<br />

simbólicos de nossos corpos, reforçam identidades pessoais ou coletivas. Argumento<br />

reforçado por Castilho e Martins (2005) ao comentar que a moda é um sistema de linguagem,<br />

um discurso de ideias transformadas em produtos, e que estes, por sua vez, refletem os<br />

valores e preocupações socioculturais pela interpretação subjetiva de seu criador.<br />

Relembramos que os produtos de moda utilizam-se dos fatores emocionais<br />

intensamente, estes por sua vez são associados à estética, segundo Norman (2000). São<br />

objetos lúdicos, capazes de satisfazer o usuário através da estimulação sensorial de seus<br />

sentidos. O design de moda é um território de sonhos e desejos, adquirir um par de sapatos<br />

novos, provavelmente não o será para suprir as necessidades básicas do indivíduo, mais sim<br />

desejo, o mesmo vale para não nos desfazermos dos mesmos.<br />

O design com foco na emoção tenta desvendar estas relações entre usuário e produto:<br />

o porquê do calçado, em vez da blusa, o porquê deste sapato específico, daquela marca,<br />

daquele modelo. As teorias de Jordan (2000) com enfoque no prazer são comumente citadas<br />

pelos pesquisadores do design e emoção.<br />

O prazer, construto abstrato, encontra-se na relação entre o usuário, os produtos e o<br />

ambiente onde tais produtos são usados. Os objetos podem ser vistos como objetos vivos<br />

com os quais o ser humano se relaciona, podem nos deixar alegres, tristes, seguros, ansiosos,<br />

etc. “É necessário não somente ter compreensão sobre como as pessoas usam os produtos,<br />

mas também o papel que tais produtos têm na vida das pessoas.” iv afirma Jordan (2000). O<br />

autor apresenta os quatro tipos de prazer: físico, social, psicológico e ideológico. Sua teoria<br />

está baseada nos estudos antropológicos do canadense Lionel Tiger.<br />

O físico é derivado da relação do objeto com os órgãos sensoriais. O prazer social<br />

é a interação entre várias pessoas proporcionada por um objeto. Já o psicológico está<br />

associado às reações emocionais e cognitivas das pessoas em relação ao produto. Referese<br />

ao prazer da mente em realizar tarefas relacionadas à usabilidade e compatibilidade dos<br />

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Calçados desejáveis para mulheres portadoras de deficiência física: um desafio desejável para os designers de calçados<br />

produtos considerados amigáveis. O prazer ideológico está associado aos valores estéticos e<br />

éticos de uma determinada cultura, geração ou indivíduo. Encontram-se aqui os valores ecossustentáveis,<br />

responsabilidade social, política e moral.<br />

Sob esta perspectiva, o conforto é abordado tanto como uma relação física entre<br />

usuários e objetos como uma relação social por meio dos objetos. Na segunda, os modismos<br />

podem mais uma vez inserir ou excluir um grupo de indivíduos. Aqueles que não possuem<br />

o último lançamento da Apple podem se sentir constrangidos (desconfortáveis) em relação<br />

àqueles que possuem. Segundo nossas entrevistas as telenovelas brasileiras possuem forte<br />

influência social, ou seja, a informação e cultura de moda que é transmitida para as usuárias é<br />

por intermédio dos canais de comunicação que massificam os modismos e não pelas imagens<br />

das publicidades de moda significando, portanto, que os desejos por calçados sejam aqueles<br />

que as telenovelas demonstram “estar na moda”.<br />

Ao questionarmos nossas entrevistadas sobre conforto dos calçados, as respostas<br />

foram em relação às funções de uso diretamente relacionadas às questões físicas e fisiológicas,<br />

como “este sapato me machuca, faz bolhas, calos”, ou ainda “este outro é muito quente”,<br />

“este aqui aperta meus dedos”, ou “este é o único que consigo usar”. E ainda, “este tem salto,<br />

mas parece que estou descalça”.<br />

O conforto depende, em grande parte, da percepção da pessoa que está experimentando<br />

a situação, não existindo uma definição universalmente aceita. (Lueder, 1983; Slater, 1985;<br />

Zhang, 1991). Recentemente, alguns pesquisadores sugeriram que o conforto está relacionado<br />

com o prazer, o que apresenta fronteiras mal definidas com a usabilidade e a funcionalidade<br />

(Slater, 1995; Jordan, 2000). Simultaneamente, outra corrente assume que o conforto e o<br />

desconforto estão em duas dimensões: o conforto associado a sentimentos de relaxamento e<br />

bem estar, e o desconforto ligado a fatores biomecânicos e à fadiga (Zhang, 1992; Zhang, et<br />

all, 1996; Goonetilleke, 1999). Apesar da falta de consenso acadêmico sobre o tema, nossas<br />

usuárias consideram o conforto um aspecto importante relacionado diretamente ao uso do<br />

objeto, relacionados, portanto, à usabilidade e funcionalidade do produto e ao prazer físico.<br />

No Brasil existe uma análise biomecânica dos calçados realizado pelo Instituto Brasileiro<br />

de <strong>Tecnologia</strong> do Couro, <strong>Arte</strong>fatos e Calçados (IBTeC), responsável pelo “Selo Conforto”. Seus<br />

critérios incluem: a qualidade das costuras, da cola, a resistência dos materiais utilizados,<br />

a espessura da palmilha, os pontos de apoio da alma de aço, os pontos de pressão da<br />

modelagem. Os testes biomecânicos são realizados simulando a marcha normal do corpo<br />

humano, durante determinado tempo. São fundamentais para verificar o conforto físico e<br />

fisiológico dos calçados.<br />

A usabilidade (neologismo traduzido do inglês usability) é definida como “efetividade,<br />

eficiência e satisfação com as quais os usuários específicos atingem metas específicas em<br />

ambientes particulares”, segundo a ISOv apud Jordan (2000, p. 07). Não depende das<br />

características do produto, mas da interação entre usuário, produto e ambiente. O importante<br />

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é como usar um produto para fazer alguma coisa. A usabilidade tende a ser limitada, defende<br />

o autor, os critérios de avaliação tendem a enxergar os produtos como ferramentas das quais<br />

os usuários realizam tarefas.<br />

Martins (2006) acrescenta que a usabilidade representa a interface que possibilita a<br />

utilização eficaz dos produtos, tornando-os amigáveis e prazerosos. A autora desenvolveu<br />

a Oikos, metodologia de avaliação de usabilidade e conforto de vestuário: são estudados as<br />

tarefas de vestir e desvestir; a facilidade de manutenção, assimilação, manuseio, os índices<br />

de conforto e os riscos de segurança, ao considerar os aspectos psicofisiológicos do usuário.<br />

Sobre funcionalidade, Silveira (2008, p. 21-39) argumenta: não é uma característica do<br />

objeto em si, “mas uma série de relacionamentos complexos entre hábitos e usos, técnicas<br />

de fabricação e significados simbólicos.” A autora observa a funcionalidade sob o prisma da<br />

linguagem, com foco na semiótica por intermédio de Bürdek (2005), esta é indissociável das<br />

funções estéticas e simbólicas do design de produtos.<br />

Neste sentido, podemos entender que a usabilidade e a funcionalidade estão<br />

relacionadas diretamente ao uso do objeto e suas funções práticas. Correlacionam-se também<br />

com as questões estético-simbólicas do mesmo, ou seja, o uso do objeto depende também<br />

de sua comunicação, do contexto do usuário, de seu repertório de experiências anteriores,<br />

aspectos estes subjetivos.<br />

Muitos produtos desenvolvidos para pessoas com necessidades especiais possuem<br />

uma estética médica ou clínica facilmente reconhecida por meio da aparência destes aspectos.<br />

As aparências de tais produtos comunicam as restrições de seus usuários contribuindo para a<br />

exclusão social, e não para inclusão. Uma situação social de desprazer e desconforto para o<br />

usuário, caso dos sapatos para diabéticos que, por sua aparência, denunciam a restrição do<br />

usuário, um benefício emocional de valor negativo, acrescenta Roncoletta (2009a).<br />

Devemos acrescentar que muitas mulheres sacrificam a saúde de seus corpos pelo<br />

poder mágico destes aspectos estéticos e simbólicos. As nossas entrevistadas não o fazem<br />

mais, admitem que já sacrificaram seus corpos, mas atualmente procuram artefatos mais<br />

equilibrados entre suas funções. Devido às suas restrições físicasvi elas necessitam de<br />

calçados seguros e desejam calçados sensuais. Encontrar estes dois conceitos no mesmo<br />

par de calçados é uma tarefa praticamente impossível e extenuante, acrescenta Karin, uma de<br />

nossas entrevistadas.<br />

Personal Styling, uma ferramenta de comunicação do indivíduo<br />

A palavra styling, no campo do design, deriva do style (estilo), introduzido nos EUA<br />

entre os anos de 1930-40, segundo Coelho (2008), para estimular o consumismo por meio da<br />

maquiagem estética de produtos antigos.<br />

O estilo pode ser representado pela repetição dos aspectos formais encontrados em<br />

determinado produto até que o mesmo seja identificado por tais características atribuídas à<br />

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Calçados desejáveis para mulheres portadoras de deficiência física: um desafio desejável para os designers de calçados<br />

autoria do produto ou à época. Para o autor, a palavra estilo ainda pode ser empregada para<br />

representar valores socioculturais atribuídos a determinado produto.<br />

Na área de moda, segundo Roncoletta (2009b) o styling é considerado a maneira de<br />

comunicação do conceito de uma marca, editorial ou indivíduo. Ferramenta de comunicação<br />

simbólica, é a criação do conceito da imagem de moda: o como a imagem é elaborada envolve<br />

a seleção do suporte (casting vivo ou inanimado), ambientação cenográfica, edição dos looks<br />

(roupas, acessórios, cabelo, maquiagem), atitude (coreografia) e, inclusive, trilha sonora<br />

inseridas num determinado contexto. Estes elementos compõem o conceito da imagem, que,<br />

na moda, tende a ser valorizado. Nos desfiles, representa o conceito da marca; nos editoriais<br />

das revistas, a interpretação daquele título sobre determinado assunto; já na esfera pessoal,<br />

representa a forma de comunicação do indivíduo. Esta pesquisa explora a comunicação do<br />

indivíduo, conhecido na área de moda pelo termo em inglês: personal styling.<br />

Relembramos que, na pós-modernidadevii , a comunicação pessoal não está<br />

necessariamente relacionada a um único estilo: podemos querer ser um determinado<br />

personagem num dia, e vestir outro personagem em outra ocasião. O antropólogo Ted Polhemus<br />

(1994) cunhou o termo Supermercado de Estilos que já apontava para estas possibilidades.<br />

Representamos diversos personagens durante nossas vidas, não pertencemos a um único<br />

grupo social, ou a um único estilo de representação visual. Neste sentido, o styling, forma<br />

de comunicação imagética, representa nossas imagens variáveis de acordo com diferentes<br />

contextos em diferentes situações.<br />

Nelly, outra de nossas entrevistadas, inicia nossa conversa comentando: “Nós somos<br />

um sem roupa nenhuma, sem sapato nenhum, mas nós somos outro, um ser social que quer<br />

acertar sua própria imagem.” Acertar sua própria imagem, comunicar através do look aquilo<br />

que o indivíduo gostaria de comunicar é entendido na área de moda como styling.<br />

O calçado faz parte da composição do conceito do look. Solicitar que nossas usuárias<br />

usassem botas ortopédicas no baile de formatura, ou durante seu próprio casamento, ou até<br />

mesmo numa reunião de negócios é NÃO permitir que elas possam assumir os personagens<br />

que queiram. É admitir que os portadores de deficiências físicas não podem construir<br />

imagens lúdicas e poéticas de si mesmos. É negar-lhes o poder de construir suas próprias<br />

representações simbólicas de acordo com seus valores estéticos, sociais, políticos e morais<br />

e, portanto, de acertar sua própria imagem social. Neste sentido, a moda por intermédio do<br />

styling pessoal, pode ser positiva, proporcionando prazer social, psicológico e ideológico/<br />

intelectual ao construir personagens.<br />

Materiais e métodos<br />

Estudo fenomenológico com enfoque nas experiências e vivências das usuárias com<br />

relação as funções práticas dos calçados combinado com pesquisa de campo. Utilizamos<br />

imagens, produtos e entrevistas semi-estruturadas com foco nos aspectos subjetivos –<br />

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Calçados desejáveis para mulheres portadoras de deficiência física: um desafio desejável para os designers de calçados<br />

estéticos e simbólicos do design de calçado com o objetivo de identificar os valores, desejos<br />

e anseios das usuárias em potencial.<br />

Realizamos as entrevistas nas casas das usuárias, para que assim pudéssemos conhecer<br />

alguns valores subjetivos. Visitamos seus guarda-roupas no intuito de registrar as adaptações<br />

dos calçados realizadas pelas mesmas. As usuárias foram indicadasviii pelos ortopedistas e<br />

fisioterapeutas parceiros desta pesquisa nos aspectos físicos, clínicos e ergonômicos dos<br />

calçados. Foram selecionadas participantes que possuíssem diferença de membros inferiores<br />

entre 2 a 5 cm, independente de suas patologias, uma vez que, precisavam de compensações<br />

nos calçados para equilibrar a diferença entre seus membros inferiores.<br />

Solicitamos que as entrevistadas assinassem o “Termo de Consentimento Informado”,<br />

conforme a Resolução 196/96 do Código de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do<br />

Conepix , que nos permite utilizar seus nomes, publicar os depoimentos com fotos de seus<br />

pertences e elementos audiovisuais. Alguns detalhes das entrevistas foram omitidos por<br />

solicitação dos participantes desta pesquisa. Todos os sujeitos da pesquisa obtiveram um<br />

retorno da pesquisadora para que aprovassem a publicação do material e também para que<br />

conhecessem os resultados desta pesquisa.<br />

A pesquisa estruturou-se de maneira a permitir que o usuário fizesse seus comentários<br />

com relação às dificuldades e os benefícios encontrados nos calçados, requisitos físicos,<br />

comentasse seus desejos e vontades, demonstrasse seus calçados e soluções de adaptações.<br />

Falassem sobre marcas, formas, cores, ou ainda atributos estéticos que lhes fossem desejáveis.<br />

Por último, solicitamos que opinassem livremente sobre os calçados transformáveis das figuras<br />

1 a 6 e sobre as experiências da autora das figuras 7 e 8.<br />

Fig. 1: Sheila’s Heels –<br />

desenvolvido em 2005 por uma<br />

seguradora de carros inglesa,<br />

possui variação de 2 alturas, é<br />

comercializado na Inglaterra. Custo<br />

aproximado de 300 libras o par.<br />

Fonte: site Sheila’Insurece.<br />

Fig. 2: Footloose – patente de<br />

Marte den Hollander, estudante<br />

de <strong>Design</strong> Industrial em Delf –<br />

Holanda, desenvolvido em 2006.<br />

Ainda não foi comercializado.<br />

Fonte: site Virtual Shoes Museum.<br />

Fig. 3: 38degrees – desenvolvido<br />

em 2004 pelo estudante de pósgraduação<br />

Wei-Chieh Tus,do<br />

Brooklyn Institute, varia em 6<br />

alturas de salto apertando o botão<br />

cinza. Não está à venda. Fonte:<br />

site NY Times<br />

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Calçados desejáveis para mulheres portadoras de deficiência física: um desafio desejável para os designers de calçados<br />

Fig. 4: Sophie Cox – trabalho de graduação em design de produtos da australiana em 2004. Fonte: blog<br />

GizMag.<br />

Fig. 5: Hilo Shoes - projeto iniciado em 2000, comandado pela designer de moda Rosemary Wallin, recebeu<br />

recentemente 500.000 libras para o desenvolvimento industrial do produto. Fonte: site Britsh Council.<br />

Fig. 6: Camileon - desenvolvidos por Donna e David Handel, existem em vários modelos e são comercializados<br />

desde 2004 nos EUA. Custam de US$ 210, 00 a 350,00. Fonte: site Camileon Heels.<br />

Com o auxílio destas imagens, verificamos alguns aspectos relacionados aos quesitos<br />

estéticos do objeto, como cores, formas e materiais de confecção. A adaptação do calçado<br />

Mercadal (fig. 7), utilizada como objeto tridimensional em conjunto com o protótipo (fig. 8),<br />

construído pela autora durante o curso de extensão de design de calçados da FASM, são<br />

indispensáveis para percepções táteis de materiais, construções de formas e análise de<br />

composição cromática, além dos requisitos ergonômicos utilizados na construção deste<br />

calçado. Estes objetos permitiram, também observações relacionadas às questões de prazer<br />

social.<br />

Vale ressaltar que, devido às diferenças de tamanho nas numerações de pés e de<br />

membros inferiores, as entrevistadas não puderam usar os calçados: esta é uma limitação do<br />

método de nossa pesquisa. Os aspectos levantados nesta pesquisa com relação às funções<br />

de uso do objeto vieram de depoimentos relacionados às suas próprias experiências com<br />

calçados anteriores. Alguns aspectos subjetivos também foram levantados através destas<br />

experiências.<br />

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Calçados desejáveis para mulheres portadoras de deficiência física: um desafio desejável para os designers de calçados<br />

Fig. 7: A vista frontal dos sapatos adaptados<br />

simulando o movimento da macha. Fonte: a<br />

autora.<br />

Discussão: A voz das usuárias<br />

Fig. 8: Calçado construído pela autora de couro macio,<br />

com salto de madeira e solado antiderrapante; possui a<br />

diferença de altura de 3cm, sendo 1cm na planta e 2cm<br />

de salto. Fonte: a autora.<br />

Nossas entrevistadas relatam a dificuldade de fazer as adaptações sugeridas pelos<br />

ortopedistas nas casas ortopédicas. O procedimento costuma acontecer da seguinte maneira:<br />

de posse da receita médica, elas procuram as casas ortopédicas que cobram por centímetro,<br />

acrescenta Nelly, e confeccionam o produto sem a menor preocupação estética. “... E além do<br />

mais, jamais consegui usar o produto, era feio e me machucava e ainda paguei uma fortuna”.<br />

Estas afirmações nos remetem à importância de investigar holisticamente a relação entre um<br />

objeto de design e seu usuário para conhecer seus anseios, desejos e vontades é até mesmo<br />

suas decepções.<br />

Para Nelly não poder variar de calçados para acompanhar suas próprias roupas e,<br />

assim, escolher o personagem do dia-a-dia, era inconcebível. Ela nos conta que sua relação<br />

com os calçados iniciaram-se na infância:<br />

Quando tinha 7 anos de idade sua família foi expulsa do Egito e não podiam retirar<br />

muitas coisas: “Meu pai mandou fazer 2 pares: um vermelho, para passear, e um marrom, para<br />

ir para a escola... o sapateiro fez uma botina, um coturno de exército com fivela lateral que ia<br />

durar 3 gerações: somos em 3 meninas. Eu os usei por muito tempo... não suportava mais<br />

aquilo... na época, as minhas colegas já usavam sapatinho de boneca, de verniz... era lindo.<br />

Eu era apaixonada por aqueles sapatos tão femininos. Eu tentava acabar com os meus mais<br />

rápido, os arrastava no chão, e eles não gastavam nunca: eu os molhava para estragar. Meu<br />

pai comentava: não se preocupe, minha filha. Vou secá-lo no forno. Até que um dia molhei os<br />

dois, e fui de Alpargatas para a escola; meu pai os esqueceu no forno e os 2 pares torraram.<br />

Ele chorava, e eu ria, e ria... Então, meu amor pelos sapatos começou aí,... Economizei o<br />

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Calçados desejáveis para mulheres portadoras de deficiência física: um desafio desejável para os designers de calçados<br />

dinheiro do sorvete para comprar meu primeiro sapatinho vermelho de alcinha e botão. Era<br />

macio, tinha um cheiro delicioso, e eu dormia tão feliz do lado do sapato.”<br />

Podemos observar que os sapatos têm um valor especial na vida de Nelly; ela<br />

necessitava solucioná-los depois da fatalidade de seu acidente. Seu armário possui 42 pares<br />

de calçados adaptados, até nossos encontros. Suas primeiras experiências foram com tênis<br />

de cano alto; por serem mais fechados, davam suporte à nova movimentação de seu corpo,<br />

protegendo os tornozelos e diminuindo a probabilidade de virar os pés para o lado. Ela já<br />

tinha resolvido as questões físicas com o tênis de cano alto, mas sua paixão por calçados,<br />

associada a diversas situações sociais, como festas, casamentos, ou até mesmo caminhadas,<br />

exigiam outras soluções. As figuras 9, 10, 11 e 12 demonstram algumas destas adaptações<br />

realizadas pela entrevistada.<br />

Fig. 9: Acima à esquerda, sua primeira sandália.<br />

Fig. 10: Acima à direita, a Birkenstock.<br />

Fig. 11: Do lado esquerdo, a sandália de<br />

casamentos e para dançar. Fig. 12: Bota adaptada.<br />

Fonte: a autora.<br />

Todo o seu depoimento é relatado por vontade e desejo de ter diversos pares de<br />

calçados: às vezes, sandálias de salto alto ou tênis para caminhar, ou ainda um determinado<br />

modelo para ir a uma festa, ou aquele desejo por plataformas, ou a vontade por determinadas<br />

cores - preto e vermelho são suas preferidas. O depoimento de Nelly reforça os aspectos<br />

subjetivos relacionados ao prazer como premissas básicas do desenvolvimento projetual. Para<br />

ela, um sapato é uma maneira de se expressar, um vínculo emocional que lhe traz satisfação,<br />

bem estar, apreciação, dentre outros valores atribuídos pela entrevistada. Nelly está preocupada<br />

com segurança e usabilidade, mas não são estes aspectos que a fazem procurar um calçado<br />

e, sim, a elegância das formas, a fluidez das linhas, o desejo por diversas cores de alguns para<br />

determinadas ocasiões, ou ainda vontade de ter um determinada forma, ou a necessidade<br />

de possuir uma bota apropriada, seja ela para inverno ou para caminhada. Seu fetiche por<br />

calçados é evidente, e suas aquisições são baseadas no desejo.<br />

Vanessa só é vista como portadora de restrições físicas pelo movimento de seu corpo.<br />

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Calçados desejáveis para mulheres portadoras de deficiência física: um desafio desejável para os designers de calçados<br />

Durante sua marcha, ela manca um pouco e seu corpo se projeta para os lados; outras marcas<br />

reconhecíveis pelo outro seriam através de suas cicatrizes. Não existe mais uma aparência física<br />

que possa denunciá-la como deficiente física, conforme a fig. 13. Suas limitações encontramse<br />

no movimento de seu corpo, e talvez seja por isso que estas questões são fundamentais<br />

para ela.<br />

Fig. 13 e 14: Na imagem da esquerda podemos observar a bota feita sob medida com plataforma de 14<br />

cm utilizada na perna arqueada de Vanessa. Na imagem 71 da direita, observamos a solução realizada com<br />

sobreposições de solas de Havaianas da mesma cor de seu vestido de festa. Fonte: doação da entrevistada.<br />

Com relação aos aspectos estéticos, podemos observar o cuidado com as cores<br />

selecionadas pela usuária ao adaptar sua Havaiana em tons de verde e branco que se<br />

harmonizam com seu vestido de festa na fig. 14. A composição do styling do look para esta<br />

ocasião especial demonstra o cuidado da usuária com sua aparência: maquiagem, vestido<br />

e chinelos estão cuidadosamente elaborados para simbolizar harmonia e vaidade, para<br />

comunicar o cuidado com sua aparência independente do aparelho Ilizarovx .<br />

Aos aspectos socioculturais, podemos acrescentar ainda o ambiente em que vivia<br />

quando as entrevistas foram realizadas. Vanessa é formada em biomédicas com TCC que<br />

discute a acessibilidade em trilhas para portadores de restrições físicas. Em seu ambiente<br />

de estudo, “professores doutores e alunos são largados [se refere à preocupação com a<br />

aparência deles] usam bermuda e Havaianas”, ainda acrescenta que o melhor calçado pra ela<br />

são as Havaianas, que permitem movimento e ainda são leves, o peso dos sapatos também<br />

é uma grande preocupação.<br />

Seu critério de escolha é muito claro: o calçado precisa proporcionar segurança<br />

e equilíbrio, em primeiro lugar. As experiências de seu próprio corpo remontam às suas<br />

preocupações com os aspectos de funcionalidade e usabilidade de qualquer produto<br />

associados ao prazer físico e ao conforto.<br />

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Calçados desejáveis para mulheres portadoras de deficiência física: um desafio desejável para os designers de calçados<br />

Jacqueline, outra jovem entrevistada argumenta que as botas ortopédicas são<br />

vergonhosas. Ela não utiliza calçados ortopédicos e nem faz adaptações. Durante sua<br />

formatura procurou incansavelmente uma sandália que a deixasse segura e que ao mesmo<br />

tempo fosse delicada e sensual. Como uma garota romântica como Jacqueline poderia sentirse<br />

uma princesa de botinha ortopédica na sua noite de formatura? Ela prefere passar por outra<br />

cirurgia do que usar botas ortopédicas: “são vergonhosas”, diz, indignada.<br />

Não podemos ser hipócritas, temos que assumir a nossa parcela de culpa dentre<br />

aqueles que fazem moda e sugerem para garotas como Jacque que só se sintam bem em<br />

ocasiões especiais, nas alturas do salto alto e fino. A indústria cultural do modismo é cruel.<br />

Nós culturalmente impulsionamos este desejo, principalmente nestas ocasiões especiais. As<br />

campanhas e desfiles de moda, as cerimônias do Oscar, diversos filmes e seriados de TV,<br />

inclusive telenovelas brasileiras mostram mulheres usando saltos altos e muitas vezes finos.<br />

Os saltos finos e bicudos representam poder e sedução neste imenso universo midiático que<br />

faz com que garotas como Jacqueline só se sintam poderosas nas alturas de um salto alto.<br />

Encontrar um par de calçados que proporcione um equilibro entre as funções é uma<br />

tarefa praticamente impossível e extenuante. Karin, outra entrevistada comenta: “...Imagina,<br />

você vai com o marido, roda e ele lhe pergunta, não é possível que você não achou um par<br />

de sapatos? Como você tem que comprar 2 pares? Aquilo vira o drama e você perde toda<br />

vontade, já é duro achar um que não seja duro, não tenha abinha atrás, que não me aperte,<br />

que segure... então vira um drama. O drama do sapato.”<br />

Após a dificuldade de escolher e adquirir um par de sapatos, a maioria das usuárias<br />

ainda precisam transformá-los - levar ao sapateiro para realizar as modificações necessárias,<br />

as mais comuns são: acrescentar solado antiderrapante, acrescentar tornozeleiras para<br />

proporcionar maior sensação de segurança e ainda fazer modificações nos saltos (trocá-los)<br />

por saltos mais estáveis e de diferentes tamanhos, conforme as diferenças entre membros<br />

inferiores.<br />

O ato de escolher, comprar e usar calçados são negativos para Karin, sob a perspectiva<br />

do prazer psicológico, que afetam não somente a usuária mas também sua família. Os aspectos<br />

do conforto físico são mencionados pela entrevistada como fator essencial que proporcionem<br />

segurança, porém, podemos perceber em seu discurso que a sensualidade dos calçados é<br />

um fator tão importante quanto o conforto físico, ela acrescenta: “Ah, o salto. A mulher não<br />

vive sem”, comenta sorrindo. “Eu adoraria usar um salto, não precisa ser muito alto... aqueles<br />

sapatos bem bicudos. Aquele que eu ia falar humm, ai que lindo! É o clássico, o preto. Eu<br />

tenho um guardado, da Franziska Hübner, só pra me lembrar...é o meu conceito de sapato<br />

lindo”. O scarpin de salto alto é representante simbólico de um personagem que Karin não<br />

pode e não quer abandonar, mesmo sem poder usar seu scarpin, ela não se desfaz.<br />

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Calçados desejáveis para mulheres portadoras de deficiência física: um desafio desejável para os designers de calçados<br />

Considerações finais: a procura de calçados poéticos<br />

As nossas usuárias identificaram que os sapatos devem ser fáceis de calçar e descalçar,<br />

e fáceis de limpar; confeccionados em materiais macios, que permitam a transpiração, e<br />

que suas costuras não as machuquem. Devem também proporcionar segurança, isto é, os<br />

calçados devem estar firmes em seus pés, bem presos pelo cabedal , seus saltos devem<br />

proporcionar estabilidade ao marchar com sola antiderrapante, não provocando a sensação<br />

que podem virar o pé, e, por último, seria agradável poder sentir o chão, acrescentam.<br />

Durante nossas entrevistas, verificamos que o contexto do portador de deficiência<br />

física está muito aquém dos universos do design ou da moda. Encontramos ainda muito<br />

preconceito social. As vozes das usuárias relataram diferentes preocupações que as rodeiam<br />

constantemente, são elas: inserção sociocultural, inclusão no mercado de trabalho, preconceito,<br />

mobilidade, possibilidade de educação, acesso e falta de informação.<br />

Esta pesquisa possui como foco as relações entre usuárias e seus calçados, isto é,<br />

como as mulheres se relacionam com o objeto calçado e porque eles são tão importantes em<br />

suas vidas. O estudo fenomenológico utilizado trouxe-nos a abrangência acima citada como<br />

variáveis inesperadas, porém fundamentais na reflexão central deste estudo.<br />

Nossas entrevistadas reforçam a vontade de “se sentir bem no meio social”, o que,<br />

para elas, significa poder construir o styling pessoal, valorizado principalmente em ocasiões<br />

especiais, como as festas, formaturas e casamentos. Elas desejam e necessitam de sonhos<br />

em suas vidas. Sentir-se sensual e feminina é essencial para as usuárias, nestes momentos<br />

de destaque.<br />

O design de moda, representado aqui pelo design de calçados, é uma das ferramentas<br />

que permite construir imagens sociais. A composição de seus looks pode transformá-las na<br />

princesa romântica, essencial para Jacque, ou na rainha do baile, indispensável para Nelly,<br />

ou ainda na empresária poderosa, ressaltada por Karin. Os calçados fazem parte destas<br />

transições de personagens dos quais vivemos. A falta de artigos, combinada com a dificuldade<br />

de encontrá-los ou adaptá-los, é a negação desta possibilidade de se construir personagens;<br />

é abrir portas para a depressão, como Nelly relatou.<br />

Nossas entrevistas apontam para necessidades e desejos completamente distintos,<br />

com relação aos sapatos. O único ponto em comum é a necessidade de conforto físico<br />

proporcionado pelos calçados seguros que não as machuquem. Em relação às necessidades<br />

corporais, os requisitos levantados são muito díspares: diferentes tamanhos de pé (largura<br />

e comprimento) das próprias entrevistadas e entre elas; diferenças de membros inferiores<br />

distintas, ou em pernas distintas e grau de sensibilidade. São corpos únicos, percebidos de<br />

maneiras diferentes.<br />

As questões relacionadas à segurança e à diversificação corporal que foram trabalhadas<br />

na abrangência desta pesquisa já eram requisitos essenciais previsto por nós. As características<br />

de sensual e feminino atribuídas aos calçados, foram extraídas dos depoimentos de nossas<br />

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Calçados desejáveis para mulheres portadoras de deficiência física: um desafio desejável para os designers de calçados<br />

entrevistadas. A sensualidade se encontra no poder de seduzir o outro e de nos auto seduzir<br />

através da excitação dos sentidos. O visual e o tátil são os mais utilizados na área do design<br />

de moda. Materiais macios e suaves, como o couro de ovelha, literalmente acariciam a<br />

sensibilidade tátil de nossos corpos.<br />

O objeto, ou melhor, o calçado com características sensuais e femininas é aquele que<br />

faz com que a usuária se sinta confiante, incluída em relação ao meio social, isto é, que<br />

lhe proporcione benefícios emocionais, prazer social e psicológico, conforme o contexto da<br />

situação. No dia-a-dia, nossas usuárias estão razoavelmente satisfeitas com os modelos<br />

de tênis, sapatilhas e anabelas, se os mesmos permitirem a construção do styling pessoal.<br />

Vale relembrar que estes calçados devem ser adaptados aos seus corpos. Já em ocasiões<br />

especiais, pressionadas, muitas vezes pela indústria cultural, os calçados tipo scarpin ou<br />

sandália de salto alto (mais de 6 cm) ou médio (aproximadamente 4 cm), foram apontados por<br />

nossas usuárias como modelos capazes de transmitir esta confiança, relacionada diretamente<br />

ao poder de sedução feminino. São nestes momentos especiais que elas querem encantar e<br />

fascinar o outro. São estes instantes de estrelas da passarela da vida que as preocupam.<br />

Satisfazer suas necessidades básicas não basta; se fosse assim, ficariam com as botas<br />

ortopédicas. O calçado é um objeto de design de moda que precisa ser variável conforme os<br />

sonhos, vontades e desejos do indivíduo que o utiliza em situações diversificadas.<br />

A possibilidade de possuir alguns pares de calçados para se harmonizarem com<br />

suas roupas e com as ocasiões nas quais se encontram colocam o styling num patamar<br />

de significativa importância. Não é qualquer sapato, mas um sapato de festa, não é uma<br />

preocupação estética, mas uma preocupação com a comunicação de seus look relacionado à<br />

ocasião que se encontra, associada ainda ao e seu estilos de vida e personalidade.<br />

Concluímos que as funções estético-simbólicas dos calçados podem aprimorar a<br />

qualidade de vida de nossas usuárias. Qualidade de vida significa mais do que ser saudável<br />

no aspecto físico, mas, também, no sentido de “se sentir bem”. O bem estar está relacionado<br />

com a possibilidade de se construir imagens pessoais de acordo com nossas vontades,<br />

influenciadas também pela indústria cultural. Poder, sedução e feminilidade são os principais<br />

valores simbólicos atribuídos por nossas entrevistadas aos calçados desejáveis. Os sapatos<br />

fazem com que as mulheres se sintam bem socialmente, proporcionando melhor qualidade de<br />

vida, aprimorando o bem estar.<br />

Encontrar um equilíbrio entre sedução, como melhoria de qualidade de vida social<br />

e recomendações ergonômicas, como melhoria de qualidade de vida através da saúde, é<br />

projetar calçados seguros e sensuais baseado no prazer físico, social, psicológico e intelectual.<br />

Oferecer uma gama de produtos as usuárias deficientes físicas que possa ser utilizada para<br />

comunicar seus desejos e não suas restrições físicas nos parece, sim, fazer design de moda<br />

com responsabilidade.<br />

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Calçados desejáveis para mulheres portadoras de deficiência física: um desafio desejável para os designers de calçados<br />

Notas<br />

i A obra Phénoménologie de la Perception foi publicada originalmente em 1945 pelo filósofo francês<br />

Maurice Merleau-Ponty.<br />

ii Para Löbach (2001), os produtos possuem três funções: a) a função prática – relações entre o<br />

produto e seus usuários no nível fisiológico de uso; b) a função estética – relação entre o produto e o<br />

usuário no nível dos processos sensoriais, um aspecto psicológico da percepção sensorial durante o<br />

uso; e c) função simbólica – determinada pela capacidade psíquica e social de fazer conexões entre a<br />

aparência percebida sensorialmente e a capacidade mental de associação de ideias (símbolos).<br />

iii CHIC, disponível em: http://chic.ig.com.br/materias/444501-445000/444935/444935_1.html.<br />

Acesso em agosto de 2007 a setembro de 2008.<br />

iv “It’s necessary not only to have understanding of how people use products, but also of the wider role<br />

that products play in people’s life” Jordan (2000, p.08) Tradução da autora.<br />

v Referindo-se a ISO DIS 9241-11. ISO – International Standards Organization.<br />

vi Todas as nossas entrevistadas passaram por diversas cirurgias devidos às suas restrições físicas.<br />

Além das cirurgias ortopédicas, são necessários anos de tratamento fisioterapêutico para recuperarem<br />

ou aprimorarem o máximo possível do potencial de força, resistência e equilíbrio muscular. Ainda<br />

são recomendados tratamentos como acupuntura, para alívio de dores, e re-conexões dos eixos<br />

energéticos do corpo; tratamentos como pilates e RPG, para redescobrirem o alinhamento corporal,<br />

e até mesmo a conscientização postural, um tratamento que alia corpo e mente, e refaz as sinapses<br />

cerebrais. São anos de dedicação, que também envolve alto custo financeiro.<br />

vii A sociedade pós-industrial descreve a rápida queda entre o número de operários, a partir<br />

da década de 1970, e o avanço do setor de serviços. “O termo pós-moderno mostra ser um<br />

campo minado de noções conflitantes. Embora de caráter controvertido, consegue porém<br />

caracterizar, melhor do que outros, a cena cultural atual. A predominância de seu emprego<br />

talvez explique porque expressa adequadamente o clima de mudança cultural em que vivemos.<br />

Mas há quem prefira chamar a era atual de modernidade tardia (Ulric Beck), neomoderno<br />

(Rouanet), hipermodernidade (Lipovetsky) ou – para se contrapor à rigidez da modernidade<br />

de outrora denominada sólida – modernidade liquida (Bauman)”. O autor ainda acrescenta: “A<br />

produção [de artefatos] é feita segundo o gosto do consumidor, adaptada aos seus desejos<br />

e necessidades muito específicos, em estado constante de alteração.” Carmo (2007, p. 179).<br />

viii Neste projeto, unimos as opiniões dos sujeitos do Instituto do Pé do Hospital das Clínicas da<br />

Faculdade de Medicina da <strong>Universidade</strong> de São Paulo (HC), da Clínica de Ortopedia e Fisioterapia<br />

(COF), ambas na cidade de São Paulo, e da Clínica Nivaldo Baldo (CNB) - especialista em<br />

fisioterapia para atletas, da cidade de Campinas. Ele trabalha com diferenciação de membros<br />

inferiores desde 1978. O termo sujeito é utilizado pela Comissão de Ética em Pesquisa para<br />

descrever todos os envolvidos, sejam eles usuários, ortopedistas, fisioterapeutas ou designers.<br />

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Calçados desejáveis para mulheres portadoras de deficiência física: um desafio desejável para os designers de calçados<br />

ix Conselho Nacional de Ética em Pesquisa<br />

x Método russo utilizado em alongamento e calcificação ósseas.<br />

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Acesso entre maio de 2007 a maio de 2008.<br />

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LÖBACH, Bernard. <strong>Design</strong> industrial – base para a configuração dos produtos<br />

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Metodologia para avaliação de usabilidade e conforto no vestuário. Florianópolis, 2005.<br />

Tese (Doutorado em Engenharia de Produção) – Programa de Doutorado em Engenharia de<br />

Produção da <strong>Universidade</strong> Federal de Santa Catarina – UFSC.<br />

MERLEAU-PONTY apud NÓBREGA, Terezinha Petrúcia.: “O corpo como obra de arte”.<br />

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<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

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São Paulo, 2009. Dissertação (Mestrado em <strong>Design</strong>) – Programa de Pós-Graduação Stricto<br />

Sensu Mestrado em <strong>Design</strong> da <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi – UAM.<br />

______________ Ser Styling e Ter Estilo: encontros e desencontros entre design e<br />

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SILVEIRA, Icléia. Usabilidade do vestuário: fatores técnicos e funcionais. Revista <strong>Moda</strong><br />

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Nova York: Berg, 2006.<br />

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ASPECTOS DO DIáLOGO ENTRE DESIGN, ARTE E MODA A PARTIR DE<br />

uMA ANáLISE DOS CALçADOS DO SéCuLO XX<br />

Natalie Rodrigues Alves Ferreira; Mestranda em <strong>Design</strong>: <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />

nativolpe@yahoo.com.br<br />

Cristiane Mesquita; Professora Dra. do PPG em <strong>Design</strong>: <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />

cfmesquita@anhembi.br<br />

Resumo<br />

A partir de uma breve análise da produção em design de calçados,<br />

assim como do uso deste artefato em obras de arte no período<br />

Moderno e na contemporaneidade, este artigo investiga possíveis<br />

diálogos e interseções entre os campos do design, da arte e da<br />

moda ao longo do século XX, apoiada nas ideias de GRANDI,<br />

LIPOVETSKY, McDOWELL e O’KEEFFE.<br />

Palavras-Chave: design de moda; arte; calçados<br />

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Aspectos do diálogo entre design, arte e moda a partir de uma análise dos calçados do século XX<br />

Introdução<br />

Uma análise do artefato calçado, em determinado período da história do século XX e do<br />

início do século XXI, é capaz de nos fazer visualizar contágios e cruzamento de fronteiras entre<br />

linguagens e conceitos de arte, moda e design. Este diálogo é frequente a partir do surgimento<br />

de movimentos artísticos de vanguarda, por meio de criações de moda de costureiros e<br />

sapateiros no início do século, além de estilistas e designers no século XX.<br />

Segundo GUMBRECHT (1998), as primeiras décadas do século XX — denominada<br />

de “Alta Modernidade” — são períodos produtivos na história ocidental, incluindo as artes<br />

com experimentos audaciosos tais como o cubismo, o surrealismo e o dadaísmo, com<br />

manifestações artísticas que rompem com a representação.<br />

Não existe uma definição que imponha limites à arte e seus conceitos são contraditórios<br />

em alguns momentos. Para os modernistas, a arte seria produto de um esforço individual,<br />

enquanto o design seria produto de empreendimento coletivo típico da sociedade industrial.<br />

Em definições mais reducionistas, a arte é considerada “atividade específica que visa<br />

produzir objeto — em geral, de caráter simultaneamente material e visual — capazes de<br />

suscitar uma resposta estética em espectadores através de sua contemplação e fruição” —<br />

podendo ser produzido através de processo artesanal, industrial ou outro qualquer (COELHO,<br />

p.18, 2008).<br />

Para MOURA (2008), a arte tem servido como fonte de pesquisa e referência para a<br />

criação e o desenvolvimento de projetos e produtos na esfera da moda e do design. Vários<br />

artistas na história da arte desenvolveram objetos de moda ou design e talvez utilizem os dois<br />

campos como referência ou foram despertados pelo objeto utilitário para a criação de obras<br />

artísticas.<br />

A criação é livre em todas as direções, tanto na arte como na moda. As relações entre a<br />

moda e design são estreitas, ligadas pelo mundo dos projetos, pelos desejos e estilos de vida<br />

dos usuários. Ambos compartilham da novidade como motivação (MOURA in PIRES, 2008).<br />

Na contemporaneidade, os artefatos e objetos são projetados por designers que os<br />

atribuem diversos significados, que testemunham suas subjetividades e também vínculos<br />

estéticos, culturais e sociais como afirma PRECIOSA (2007).<br />

FIORINI (2008, p.71), descreve que “o design é em sua essência um processo criativo<br />

e inovador, provedor de soluções para problemas de importância fundamental para as esferas<br />

produtivas, tecnológicas, econômicas, sociais, ambientais e culturais”. Em seu termo, estão<br />

vinculadas questões expressivas, simbólicas e estéticas e não somente questões produtivas<br />

e técnicas.<br />

Os conceitos de design podem ser baseados no objeto ou no processo. Porém,<br />

não é apenas a união entre estas duas formas a maneira mais coerente de analisar suas<br />

atividades, pois é importante considerar que os produtos desenvolvidos por um determinado<br />

processo podem conter significados não percebidos de forma clara. O objeto pode adquirir<br />

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Aspectos do diálogo entre design, arte e moda a partir de uma análise dos calçados do século XX<br />

além de questões funcionais e estruturais, diversos significados provenientes de necessidades<br />

subjetivas, como os desejos, anseios e expectativas do consumidor. Portanto, estes objetos,<br />

se “inserem no tempo e no espaço, vão perdendo sentidos e adquirindo novos” (FIORINI,<br />

2008, p.34).<br />

As influências da arte moderna na criação do calçado<br />

Em determinados períodos da História da <strong>Arte</strong>, os calçados, assim como outros<br />

componentes da indumentária, eram apenas retratados nas obras de arte. Era o início de um<br />

flerte entre o objeto e a arte. Um exemplo é a pintura “Old Boots”, de 1886, do pintor holandês<br />

Van Gogh (1853-1890). Antes do século XX, pintores se atentavam aos detalhes, mas desde<br />

essa época os calçados eram considerados partes da personalidade humana (McDOWELL,<br />

1989).<br />

A arte se aproxima da moda e a moda da arte em diversos períodos do século XX,<br />

especialmente naqueles momentos em que estão acentuados seus conceitos e criações,<br />

questões do cotidiano e da subjetividade. LIPOVETSKY (1989, p.78), em passagem do livro<br />

“O Império do Efêmero” afirma que não se pode ignorar a influência da arte moderna nas<br />

transformações da moda no início do século XX. As estéticas modernistas, que recusavam o<br />

decorativo e pregavam as linhas puras também influenciam a moda.<br />

No design de calçados, as influências da arte na moda podem ser percebidas de<br />

modo bastante claro. Um dos muitos exemplos são os calçados criados no final década de<br />

1920 e início da década de 1930. São calçados de formas simples e recortes geométricos,<br />

demonstrando inicialmente uma influência do movimento Art Decói . Costureiros e grandes<br />

sapateiros admiravam e homenageavam frequentemente os artistas modernos. Os maiores<br />

exemplos são o costureiro francês Paul Poiret (1879 -1944), a francesa Gabrielle (Coco) Chanel<br />

(1883 -1971), a italiana Elsa Schiaparelli (1880-1973) e o estilista francês Yves Saint Laurent<br />

(1996 - 2008) que, por meio de suas criações, dialogam com grandes artistas e movimentos<br />

de arte, pois “a moda aproximou-se ao mesmo tempo da lógica da arte moderna, de sua<br />

experimentação multidirecional, de sua ausência de regras estéticas comuns” (LIPOVETSKY,<br />

1989, p.125).<br />

Um designer pode confeccionar calçados recorrendo a variados e excêntricos materiais,<br />

utilizando referências culturais e históricas. Duas importantes correntes de vanguarda do início<br />

do século XX influenciaram e dialogaram em diversos momentos com o design e a moda<br />

calçadista. São eles o cubismo e o surrealismo. O cubismo tinha como princípio enfatizar<br />

os aspectos geométricos dos objetos, desviando de uma plástica “realista”. As estruturas<br />

poderiam ser reduzidas a alguns componentes fundamentais, os sólidos geométricos. Alguns<br />

artistas integrantes deste movimento, tais como o artista espanhol Pablo Picasso (1881-1973)<br />

e o francês Georges Braque (1882-1963), argumentavam que seus trabalhos buscavam<br />

múltiplos pontos de vista (AGRA, 2006).<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

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Aspectos do diálogo entre design, arte e moda a partir de uma análise dos calçados do século XX<br />

Um dos designers de calçados que mais se destacou em criações de calçados que<br />

dialogam com o universo da arte foi o francês André Perugia, nascido em 1893 em Nice, na<br />

França, filho de sapateiro. Aos dezesseis anos abriu sua primeira sapataria e em pouco tempo<br />

inventava novas formas de saltos e cabedaisii com qualidades artísticas e características<br />

ousadas. As senhoras da sociedade, frequentadoras da Riviera Francesa, logo se encantam<br />

com seu trabalho elegante e seu sucesso se firma na parceria com o famoso costureiro Paul<br />

Poiret. André Perugia foi considerado um gênio por suas criações excêntricas e referências<br />

à arte como suas duas sandálias inspiradas (Figura 1 e 2 ) nas obras dos cubistas Picasso e<br />

Braque.<br />

Figura 1: Sapato “Peixe” em homenagem ao cubista Braque, André Perugia, 1931.<br />

Fonte: O’KEEFFE, 1996.<br />

Figura 2: Sandália cubista em homenagem a Picasso, André Perugia, 1950.<br />

Fonte: O’KEEFFE, 1996.<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

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Aspectos do diálogo entre design, arte e moda a partir de uma análise dos calçados do século XX<br />

O Surrealismo e a <strong>Moda</strong><br />

Figura 3: Sapato “sem salto”, André Perugia, 1937.<br />

Fonte: O’KEEFFE, 1996.<br />

Um dos movimentos das chamadas “vanguardas históricas”, o Surrealismo, apresentou<br />

traços da associação da arte com o comportamento, trazendo a grande novidade de libertação<br />

do inconsciente e negação da própria razão. “Enquanto Salvador Dali explora o inconsciente a<br />

todo custo, sem muita preocupação além de fazê-lo aflorar por imagens, René Magritte (Figura<br />

4) o faz pelo caminho da discussão dos próprios estatutos simbólicos” (AGRA, 2006, p.124).<br />

Figura 4: “O modelo vermelho”, René Magritte, 1937.<br />

Fonte: McDOWELL, 1989.<br />

Para McDOWELL (1989), o Surrealismo é um movimento de arte com senso de humor<br />

particular. Desta forma, não surpreende que os artistas surrealistas da década de 1920 e 1930<br />

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Aspectos do diálogo entre design, arte e moda a partir de uma análise dos calçados do século XX<br />

respondessem muito rapidamente aos absurdos da moda e os utilizassem para declarações<br />

com atitudes modernas. As principais características da abordagem surrealista são o choque<br />

e a surpresa causados pelas justaposições inesperadas dos objetos do cotidiano.<br />

Além de Schiaparelli, o estilista Pierre Cardin (1922), a artista Regina Martino e o designer<br />

espanhol de calçados femininos Manolo Blahnik (1942) dialogaram com o movimento. Cardin<br />

criou um par de sapatos em formato de pés (Figura 5), Martino criou um sapato-árvore e<br />

Manolo criou sapatos-fantasia, como os sapatos-luvas (Figura 6) e os sapatos siameses.<br />

Figura 5: “Men’s Shoes” (1986) de Pierre Cardin.<br />

Fonte: McDOWELL, 1989.<br />

Figura 6: Esboço de “sapato-luva”, Manolo Blahnik, 1982.<br />

Fonte: McDOWELL, 1989.<br />

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Aspectos do diálogo entre design, arte e moda a partir de uma análise dos calçados do século XX<br />

Outro exemplo — talvez o mais conhecido de interseção entre a arte e a moda —<br />

foi a parceria entre a costureira italiana Elza Schiaparelli e o artista do movimento surrealista<br />

Salvador Dalí, que também desenvolveu peças de design como o “telefone lagosta” iii e<br />

“sofá de lábios” iv . Dali desenvolveu e desenhou, além de roupas, acessórios como o famoso<br />

“chapéu-sapato” (Figura 7) e a “bolsa-telefone” para a coleção de outono-inverno de Schiaparelli<br />

de 1937/1938.<br />

O inventor do solado “anabela” — um solado no estilo da plataforma, com salto alto<br />

e sola, porém é uma peça única — e da alma de aço — suporte que se instala no interior da<br />

palmilha para sustentar os saltos femininos — foi Salvatore Ferragamo. O italiano, um dos mais<br />

importantes designers de calçados do século XX, também firmou parceria com Schiaparelli na<br />

década de 1930: “Perugia dava asas a imaginação. O primeiro par do conhecido “sapatosstrech”<br />

surgiu assim. Para eliminar o uso de botões ou fechos que Schiaparelli odiava, ele<br />

simplesmente construiu tiras de camurça lado a lado com tiras plásticas, tão engenhoso<br />

quanto o famoso “chapéu-sapato” (CHAVES in BARROS, 1991, p.22). Schiaparelli também<br />

desenvolveu parcerias com Perugia e Ferragamo, que confeccionou a famosa “monkey-boots”<br />

(Figura 8), em 1938.<br />

Figura 7: Ilustração de Marcel Vertes do “chapéu-sapato” de Elsa Schiaparelli, 1937.<br />

Fonte: McDOWELL, 1989.<br />

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Aspectos do diálogo entre design, arte e moda a partir de uma análise dos calçados do século XX<br />

Figura 8: “monkey-boots”, Elsa Schiaparelli, 1938.<br />

Fonte: http://plasticbox.wordpress.com/2009/05/13/mop-top/, acesso em 16/05/2010.<br />

Um outro exemplo de diálogo é a obra “Original Sin” (Figura 9), pintado por Salvador<br />

Dalí em 1941, apresenta-nos uma mensagem complexa. As botas (velhas e desgastadas, mas<br />

bem cuidadas) foram retiradas às pressas e os pés estão envolvidos pela cobra. Dalí contrasta<br />

o exótico e monótono, levando as botas e os pés descalços como paradigmas do cotidiano<br />

de trabalho do homem, ligado à terra e<br />

às mulheres livres e desembaraçadas, prontas para decolar em mundos exóticos e<br />

românticos (McDOWELL, 1989).<br />

Figura 9: Original Sin, Salvador Dali, 1941.<br />

Fonte: McDOWELL, 1989.<br />

O´KEEFFE (1996) destaca a importância dos calçados dizendo que estes sempre<br />

refletiram o estatuto social e a situação econômica de quem os calça, porém não refletem só<br />

a história social, mas também através do calçado encontramos um registro pessoal através<br />

de memórias.<br />

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Aspectos do diálogo entre design, arte e moda a partir de uma análise dos calçados do século XX<br />

Exemplos de diálogos entre o design, arte e moda na pósmodernidade<br />

Além de artistas que adentraram nos campos do design e moda como Salvador<br />

Dalí, designers como Beth Levine (1914-2006) enveredam pelo campo das artes, criando<br />

sapatos únicos. Alguns sapateiros demonstravam estar dispostos a “fazer arte”, com modelos<br />

excêntricos como os saltos vírgula e bola, extremamente criativos, concebidos pelo sapateiro<br />

francês Roger Vivier, parceiro do costureiro Christian Dior.<br />

A americana Beth Levine desejava, desde muito jovem, desenhar calçados. Casouse<br />

com Hebert Levine, um empresário e em 1948 fundaram sua empresa de calçados.<br />

Frequentavam seu estúdio desde criadores de moda como Halston até famosos como Bette<br />

Davis e Liza Minnelli. Levine não teve formação técnica, mas através da prática na indústria e<br />

senso estético permitem-na lançar modelos ousados. Ela foi pioneira em cobrir sapatos com<br />

pedras falsas e a criação da bota strech de vinil, no inicio da década de 1950, uma década<br />

antes das botas se tornarem tendência pelo mundo todo. Utilizava materiais inusitados como<br />

madeira de mobiliários e acrílicos para a confecção de saltos e materiais como o vinil e lurex<br />

no cabedal.<br />

Para criar o seu sapato “Topless”, uma das suas fantasias mais divertidas, cobriu<br />

uma sola acolchoada com cetim vermelho e, nos pontos onde o calcanhar e<br />

o meio do pé tocavam a palmilha, colocou pequenas esponjas embebidas da<br />

cola usada nas barbas falsas. As esponjas colavam-se à sola do pé e o salto<br />

parecia ser uma extensão do calcanhar. (O´KEEFFE, 1996, p.478 e 479)<br />

O curador do The Metropolitan Museam of Art’s Costume Institute, Harold KODA (2010)<br />

descreve que Beth explorava uma variedade de vertentes do modernismo, exotismo oriental e<br />

pop arte, influenciada pelo estilo de vida americano.<br />

Figura 10: Sapato “Topless”, 1959 de Beth Levine. Fonte: http://www.virtualshoemuseum.com/vsm/o.<br />

php?id=1031&col=person&sub=185, acesso em 17/05/2010.<br />

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Aspectos do diálogo entre design, arte e moda a partir de uma análise dos calçados do século XX<br />

Outro exemplo do diálogo entre as três áreas do design, arte e moda são algumas<br />

obras do artista americano pop Andy Warhol (1928-1987), uma das figuras mais conhecidas<br />

e publicizadas da atualidade. O artista, no início, ilustrador comercial, desenhava sapatos, um<br />

fetiche cultuado e amado, desde 1949, para anúncios da indústria de calçados americana<br />

I.Miller, um dos primeiros fabricantes de calçados dos Estados Unidos.<br />

Segundo GRANDI (2008), a Pop Art abriu um diálogo com a linguagem do design e<br />

a comunicação de massa, estabelecendo uma horizontalidade entre as artes e a produção<br />

visual e gráfica dos fenômenos de consumo.<br />

Na década de 1980, Warhol volta ao tema e cria uma obra impressa chamada “Shoes”,<br />

onde mostravam imagens de calçados de saltos coloridos em fundo preto, que foi comentada<br />

da seguinte maneira por SCHMIDT (2003):<br />

Ele transformou os sapatos em objetos de desejo, assim como ele fez com<br />

Marilyn Monroe e Jacqueline Kennedy. Também é intrigante que os sapatos<br />

não são mostrados em pares, como se de propósito Warhol destaca-se em<br />

cada sapato propriedades únicas, dando a cada um uma identidade.<br />

Esta impressão particular realmente mostra o passado de Warhol como ilustrador<br />

comercial, pois os calçados não mostram sinais de desgaste e poderiam ser usados facilmente<br />

em uma propaganda comercial.<br />

O papel de Warhol no mundo da arte e da moda é reconhecido por tratar como<br />

mercadorias mesmo as criações que são ou foram consideradas artísticas, e também propor<br />

um encontro feliz e menos superficial de quanto é afirmado pelo próprio artista, entre arte e<br />

moda, entre notoriedade e imaginação (DORFLES, 1988).<br />

Figura 11 e 12: “Shoes, Shoes, Shoes”, 1955 e “Diamond Dust Shoe”, 1980-81, Andy Warhol.<br />

Fonte: http://www.artesdoispontos.com/cvs.php?tb=cvs&id=6, acessado em 23/05/2010.<br />

Para BARNARD (1996), este é o momento quando paradigmas são questionados. A<br />

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Aspectos do diálogo entre design, arte e moda a partir de uma análise dos calçados do século XX<br />

identidade e a cultura são as idéias centrais. É a era da produção dos significados, que se<br />

refletem por meio das três áreas analisadas. Questões urgentes relacionadas ao cotidiano<br />

são intensificadas nos conceitos artísticos a partir da década de 1960, época de reviravoltas<br />

ligadas à política e à cultura, mudando intensamente os paradigmas vigentes.<br />

Desde os movimentos de vanguarda, grupos de arte procuram aproximar a arte da<br />

vida. Artistas e designers — inclusive designers de moda — presenciam uma mudança<br />

significativa de ordem material e sensível, como afirmam PRECIOSA e BELLUZZO (2008).<br />

Para estas autoras, as esferas, situadas entre estética e o consumo, como a moda e o design,<br />

costumam absorver das artes seus conceitos, atitudes e padrões, que posteriormente se<br />

tornam linguagens acessíveis a um grande público.<br />

Neste momento, a realidade não será apenas representada, surgem movimentos<br />

valorizando “o comum”, o cotidiano e principalmente o individualismo. Segundo LYPOVETSKY<br />

(1989, p.12) “A moda está nos comandos de nossas sociedades; a sedução e o efêmero<br />

tornam-se, em menos de meio século, os princípios organizadores da vida coletiva moderna;<br />

vivemos em sociedades de dominante frívola, último elo da plurissecular aventura capitalistademocrática-individualista”.<br />

As áreas da arte e a da indústria influenciam o design com seus valores característicos,<br />

o que demonstra que as criações de moda de calçados, assim como no vestuário, possuem<br />

influência dos dois campos na construção de seus discursos e significados. No final da<br />

década de 1980 e na de 1990, diversos artistas criaram sapatos como obras de arte. Alguns<br />

exemplos destas criações são os da artista Yone Levine, nascida em Israel, que concebeu<br />

com minúsculas contas de vidros antigas, presos à estrutura de arame, um sapato e a artista<br />

Gaza Bowen, que confeccionou uma série de sapatos com materiais do cotidiano, como<br />

esfregões, esponjas e escovinhas, elaborando uma crítica feminista ao questionado papel<br />

tradicional feminino (O’KEEFFE, 1996).<br />

Neste contexto, um olhar que explore tais diálogos poderá perceber que também no<br />

campo do design de moda essas relações se complexificam. Podemos visualizar tais relações<br />

a partir de criações de calçados contemporâneos de estilistas como Alexander McQueen e de<br />

grifes como Dolce & Gabanna e Prada trilham novos caminhos para a linguagem artística e de<br />

significados na dos trajes urbanos. Para MARINHO (2006, p.5):<br />

Seria possível afirmar que criar constitui, por si, só um fenômeno apropriativo,<br />

seja para o designer ou para o artista. Essa apropriação, contudo, como jogo<br />

de linguagem, explicita-se quando o artista, e também o designer, deslocando<br />

elementos do seu contexto, deixa nas formas finais, do projeto ou da obra, os<br />

rastros que revelam o modo como foram apreendidas as informações e sua<br />

origem.<br />

Para GRANDI (2008, p.91) o estilista é considerado um “gênio criativo”, e em determinados<br />

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Aspectos do diálogo entre design, arte e moda a partir de uma análise dos calçados do século XX<br />

momentos, pode “... concorrer com o artista no setor da pesquisa e da experimentação visual,<br />

que por seu maior poder comunicativo e de imagem, quer por seu inegável poder econômico,<br />

que, ao contrário, falta ao produtor de arte”.<br />

Figuras 13, 14 e 15: Alexander McQueen primavera-verão 2010, Marc Jacobs primavera-verão 2008 e Prada<br />

primavera-verão 2008. Fonte: www.style.com, acesso em 02/06/2010.<br />

Segundo GRANDI (2008) moda e arte devem ser analisadas como repositórios culturais<br />

que participam das mudanças dos modos de vida, de pensamento, de sintonia com o próprio<br />

tempo, pois juntas, assim como o design, atravessam um período de intenso intercâmbio,<br />

como em diversas áreas da produção material e ideacional, envolvidos nas mudanças sócioeconômicas<br />

e tecnológicas que contribuíram para mudar o nosso panorama de referência<br />

global.<br />

Considerações Finais<br />

Desde a década de 1990, tornam-se cada vez menos evidentes as fronteiras entre a<br />

arte e a moda pois, para GRANDI (2008), estas duas áreas, assim como outras relacionadas<br />

à cultura, estética e criatividade, mesclaram suas modalidades expressivas e comunicativas,<br />

perdendo em alguns momentos, sua especificidade de linguagem, facilitando o fenômeno de<br />

sobreposição de uma área sobre a outra, dificultando a percepção do que pertence a uma<br />

área ou a outra. O vocabulário da moda passa a utilizar com frequência termos da arte como<br />

“instalação” v e “concept” vi .<br />

Um exemplo que contribui para a visualização dessas conexões é o trabalho da artista<br />

performática italiana Vanessa Beecroft (1969), que participou da 25°Bienal Internacional de<br />

São Paulo. Suas obras de arte desconstroem a delimitação da arte e da moda, demonstrando<br />

a existência de um contágio entre estas áreas em suas performances nas quais se utilizam<br />

modelos nuas com características bastante parecidas, calçadas com sapatos de grifes famosas<br />

como Gucci, Prada e Helmut Lang. Beecroft é aficionada por calçados de grife e diz apreciar<br />

a combinação entre a consciência feminista e o clichê da mulher- objeto (ALZUGARAI, 2005).<br />

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Aspectos do diálogo entre design, arte e moda a partir de uma análise dos calçados do século XX<br />

Figura 16: Performance “VB 45”: as modelos vestem apenas botas de Helmut Lang.<br />

Fonte: http://www.terra.com.br/istoegente/138/reportagens/vanessa_beecroft.htm, acesso em: 03/06/2010<br />

Desta forma, podemos então refletir que a arte, os artistas contemporâneos, estilistas<br />

e designers possuem diversos pontos de contato enriquecedores em suas atividades,<br />

apropriando-se da moda e seus meios de difusão, com suas estratégias comunicativas e<br />

promocionais e seu aparato glamoroso para atingir uma visibilidade, como argumenta GRANDI<br />

(2008). Desta forma, os conceitos de áreas como a da arte, design e moda estão em constante<br />

diálogo, propiciando a interdisciplinaridade, através de relações complexas e criativas.<br />

Este diálogo se desenvolve também por meio de criações de calçados, com suas<br />

formas, volumes, proporções, detalhes, cores e significados, assim como na concepção de<br />

uma obra de arte, representando uma época, pois notamos o crescente desejo de autonomia<br />

entre os consumidores, que abrem espaço para o desejo de peças autênticas e inovadoras<br />

em conexão com a cultura e a sensibilidade.<br />

Notas<br />

i A Art Decó foi um movimento internacional de design decorativo dos períodos da década de 1920<br />

a 1930.<br />

ii O cabedal é termo calçadista que significa parte superior do calçado.<br />

iii O “telefone lagosta”, criado em 1938 foi realizado com as técnicas de metal pintado, gesso, borracha<br />

e papel.<br />

iv O “sofá de lábios” de Mae West foi construído com armação de madeira e coberta por cetim rosa,<br />

realizado nos anos de 1936-37.<br />

v Na arte contemporânea, obra tridimensional concebida e montada para ocupar uma área num<br />

determinado recinto, e cujos diversos elementos ou dispositivos agem sobre o imaginário do expectador.<br />

Sua exposição é temporária e a obra desmontada, subsiste através de registros fotográficos.<br />

vi <strong>Arte</strong> Conceitual.<br />

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Aspectos do diálogo entre design, arte e moda a partir de uma análise dos calçados do século XX<br />

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INOVAçãO EM DESIGN NA hISTóRIA DO unDerweAr MASCuLINO<br />

Taísa Vieira-Sena; Mestranda em <strong>Design</strong>: <strong>Universidade</strong> Anembi Morumbi<br />

taisavieira13@gmail.com<br />

Resumo<br />

O presente artigo tem como objetivo estudar a evolução do<br />

underwear masculino com ênfase no período do século XX aos<br />

dias atuais, identificando aspectos inovadores de design e sua<br />

relação com o contexto sócio-cultural.<br />

Palavras-Chave: underwear masculino; design; inovação<br />

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Inovação em design na história do underwear masculino<br />

Introdução<br />

A palavra underwear é entendida hoje, dentro do contexto atual da moda, como<br />

conceito que extrapola o sinônimo de cueca ou roupa de baixo. Dentro do sistema de moda<br />

o underwear está ligado a elementos e significados que remetem a um estilo de vida. Porém,<br />

este conceito foi instituído na década de 1980, até então encontrávamos produtos com foco<br />

na função de uso.<br />

Com exceção às camisolas ou túnicas usadas por homens e mulheres como roupa<br />

interior, a diferença na anatomia ditou variações básicas das peças íntimas masculinas e<br />

femininas. O underwear feminino tem um maior apelo voltado para a estética e a sexualidade<br />

ao invés de praticidade. Já com as peças masculinas a primeira preocupação foi por muito<br />

tempo apenas funcional, confeccionadas de acordo com a forma do corpo, em materiais<br />

resistentes e na cor branca.<br />

O que chamamos de roupa íntima ou roupa de baixo, enquanto produto de design,<br />

passou por inúmeras inovações incrementais, tecnológicas e até sustentáveis para chegar aos<br />

produtos que encontramos no mercado atualmente.<br />

Inovações no <strong>Design</strong> do underwear Masculino<br />

As cuecas, como conhecemos hoje, foram criadas no século XX, até então havia<br />

peças que compunham a roupa interior. No entanto, as tangas já eram usadas na pré-história.<br />

Segundo Benson & Esten (1996), em 1991 montanhistas encontraram nos Alpes Tiroleses, os<br />

restos congelados de um homem que viveu cerca de 3300 a.C. Ele usava uma tanga de couro<br />

sob a capa, fornecendo a documentação mais antiga de underwear masculino.<br />

Depois da invenção da energia hidráulica, das máquinas de fiação e do descaroçador de<br />

algodão durante a Revolução Industrial, o underwear poderia, pela primeira vez, ser produzido<br />

em massa, o que causou uma reestruturação dos processos e do consumo. As pessoas<br />

começaram a comprar suas roupas íntimas nas lojas em vez de fazê-los em casa, o que podia<br />

levar até três dias.<br />

A roupa de baixo padrão deste período para homens, mulheres e crianças foi os “union<br />

suits”. Uma espécie de macacão, geralmente feito em malha, que cobria desde os tornozelos<br />

até os punhos, possuía uma abertura na parte superior na frente fechada por botões, e uma<br />

abertura na parte de trás inferior de vestir e facilitando os atos de vestir e ir ao banheiro. Em<br />

1895 o catálogo Montgomery Ward (figura 1) oferecia peças em “lã de cor natural, cinza e<br />

vermelho, que se tornou muito popular.<br />

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Inovação em design na história do underwear masculino<br />

Figura 1: Catalogo Montgomery Ward de 1895<br />

Destacamos o uso da cor vermelha como um indício de outras inovações tecnológicas<br />

no desenvolvimento da roupa de baixo. Pois, indicava o domínio da técnica de tingimento da<br />

lã em vermelho, uma cor forte e que precisava de uma boa fixação para não descolorir. Thales<br />

de Andrade (2004), entende por inovação tecnológica alterações e/ou criações tecnológicas<br />

significativas em produtos e processos. A inovação tecnológica pode ser considerada como a<br />

transformação de uma idéia em um produto ou processo novo para utilização na indústria, no<br />

comércio, na ciência ou em uma nova leitura de um serviço social.<br />

No século XX, a historia do underwear masculino, parece ser uma história americana,<br />

as maiores empresas e os grandes investimentos estavam nos Estados Unidos. Havia também<br />

empresas francesas que se destacavam na produção de roupas íntimas mas, os lançamentos<br />

e inovações geralmente ocorriam primeiro na América.<br />

Joe Boxer (1995) observa que como muitos produtos importantes, roupa interior foi<br />

melhorada significativamente pela guerra. Durante a Primeira Guerra Mundial, foi confeccionado<br />

o primeiro bermudão com botões (figuras 2 e 3), como underwear de verão para os soldados<br />

da infantaria. As peças tiveram tão boa aceitação, que os homens insistiram em usá-las quando<br />

eles voltaram para casa.<br />

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Figura 2: Bermuda usada na I Guerra Mundial Figura 3: Detalhe dos botões<br />

Os esportes e as guerras tiveram forte influência no uso da roupa interior, e com o<br />

surgimento do bermudão com botões, vemos uma importante inovação incremental na roupa<br />

de baixo. De acordo com Fontanini & Carvalho (2005) dentro de um processo de inovação, as<br />

inovações incrementais estão inseridas em um contexto peculiar de investimentos (tempo e<br />

necessidades) em que gradualmente a empresa promove melhorias e aperfeiçoamentos em<br />

seus produtos, equipamentos e métodos de fabricação. A inovação incremental é aquela em<br />

que o novo produto ou processo incorpora alguns novos elementos em relação ao anterior,<br />

sem que, no entanto, sejam alteradas as funções básicas. Neste caso, ocorre a separação do<br />

union suit em camisa e bermuda, mas estas peças continuaram a desempenhar papel de roupa<br />

interior. Estas modificações no produto acarretaram também modificações os processos, de<br />

forma incremental.<br />

Segundo Blackman (2009) a tecnologia e modernização das cidades trazem novos estilos<br />

de vida, assim, quando o homem tornou-se mais ativo e sua roupa interior começou a ser mais<br />

leve, mais fina e confortável. Os esportes tornaram-se parte do lazer vigente, trazendo com<br />

ele a necessidade de liberdade de movimentos. Na década de 1920 as empresas americanas<br />

investiram em diversas tecnologias e usavam os anúncios publicitários para divulgar a patente<br />

de seus novos projetos. Os avanços tecnológicos nos materiais ganharam destaque, entre<br />

eles estavam os tecidos pré-encolhidos e com propriedades de isolamento térmico, como o<br />

Duofoldi (figura 4); e Keepkool (figura 5), que tratava-se de underwear feito em ribana elástica<br />

e porosa que oferecia conforto e frescor.<br />

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Figura 4: Anúncio de undewear com Duofold Figura 5: Anúncio de undewear Keepkool<br />

As inovações em modelagem também causaram grande impacto e melhorias na<br />

usabilidade da roupa interior. A empresa Swiss American lançou o Navycltohh (figura 6), um<br />

modelo de union suit curto e com peces nas costas para dar melhor ajuste ao corpo. Já a<br />

marca Hatchway criou um modelo em malha com transpasse frontal, que dispensava o uso<br />

de botões (figura 7).<br />

Figura 6: Anúncio de undewear Navicloth Figura 7: Anúncio de undewear Hatchway<br />

Os “shorts íntimos” foram a novidade que chegou com o século XX. De acordo com John<br />

de Greef (1989), duas invenções na década de 1930 modificaram o conceito de underwear,<br />

aproximando-o das peças que conhecemos hoje. A primeira foi quando Jacob Golomb, o<br />

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fundador da marca Everlast, aplicou um cós elástico nos calções íntimos, deixando-o com<br />

a aparência do short de pugilista, esta peça ficou conhecida como boxerii e a segunda foi a<br />

criação do Jockey Breif ® iii ou slip Jockey (figura 8).<br />

A cueca slip Jockey foi criada em 1934 por Arthur Kneibler, um executivo e designer da<br />

Cooper Inc. A inspiração para o modelo veio de cartão-postal da Riviera Francesa, mostrando<br />

um homem em um maiô estilo biquíni. Depois de algumas experiências, Kneibler introduziu<br />

um novo tipo de roupa interior, confortável sem pernas, com uma sobreposição em Y invertido<br />

parte da frente. Tal formato trazia benefícios funcionais, oferecendo aos seus usuários mais<br />

conforto e suporte do que as outras roupas íntimas masculinas disponíveis no momento.<br />

Figura 8: Modelo Slip Jockey (1935)<br />

Com certeza este dois produtos revolucionaram o mercado de roupa íntima na década<br />

de 1930, mas discordamos de John de Greef quando ele afirma que a concepção da cueca<br />

boxer é uma invenção, trata-se sim de mais uma inovação incremental nesta linha de produtos.<br />

Já o modelo de cueca slip, pode ser considerado uma invenção, que conforme Gomes (2001)<br />

apresenta-se como um produto novo, desenvolvido a partir da manifestação da criatividade<br />

utilizada com foco no incremento funcional do mesmo. Um invento dotado de novidade,<br />

atividade inventiva e utilidade industrial, torna-se suscetível de concessão de patentes. O que<br />

aconteceu com a Jockey Breif ®, patenteada no mesmo ano de sua invenção.<br />

Conforme Bernhard Roetzel (2000), o modelo slip tornou-se “uma cueca verdadeiramente<br />

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revolucionaria”. Sua modelagem apresentava a vantagem de proporcionar mais su¬porte e<br />

de não marcar ou fazer volume sob as calças leves. Seu corte particular¬mente confortável,<br />

oferecia suporte e um perfeito encaixe, e sobretudo era confeccionada em material de<br />

excelente qualidade. A fita elástica intro¬duzida na parte abaixo da virilha, apenas ajustava a<br />

parte exterior da coxa de forma a não prejudicar a circulação do sangue. Para o autor, o êxito<br />

das cuecas justas da marca Jockey também teve conseqüências no restan¬te roupa, pois<br />

permitiu que as calças fossem confeccionadas com cortes mais ajustados. “Em combinação<br />

com as cuecas Jockey, adaptadas à anatomia do ho¬mem, as calças modernas ajustavam-se<br />

pro-gressivamente mais.” (ROETZEL, 2000 p. 46).<br />

Mais tarde, em 1944, outra marca americana, a Munsingwear, modificou a contronstrução<br />

da parte frontal da cueca slip, tranzendo um bolso horizontal amplo e aberto. E chamou o<br />

produto de Slip Kanguru, devido a relação com a bolsa do marsupial (figuras 9 e 10).<br />

Figura 9: Anúncio da marca Munsingwear 1945 Figura 10: Ilustração do modelo slip Kanguru<br />

O sucesso da slip Jockey não eliminou o modelo boxer. Seu uso passou a ser uma<br />

questão de escolha, pois por mais conforto que a slip pudesse oferecer, para os adeptos da<br />

boxer, ela era sempre apertada. As boxers tinham a vantagem de poder ser feitas sob medida<br />

por um alfaiate, o que simbolizava uma questão de status.<br />

De acordo com John de Greef (1989), nos anos de 1930, o raiom foi introduzido na<br />

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produção de cuecas, uma novidade vendida sob a denominação de seda artificial. Outro<br />

marco importante, foi a introdução dos Fasteners Gripper, um pequeno fixador de pressão.<br />

A publicidade da Scovill Manufacturing Companyiv divulgada na Publication Unknown em<br />

1937 (figura 11), anunciava as vantagem destes fixadores sobre os botões. Para isto usava<br />

o depoimento de Ralph Guldohl e Sam Snead, dois jogadores premiados de golf, sobre a<br />

facilidade dos fixadores na prática de esporte, pois estes ficavam embutidos, não faziam volume<br />

e não machucavam. E de donas de casa, que destacavam que os grippers não quebravam, o<br />

que acontecia constantemente com os botões comuns durante o uso ou a lavagem da peça.<br />

A anúncio destacava ainda, marcas de underwear que usam seus Fasteners Gripper.<br />

Figura 11: Anúncio da Scovill Manufacturing Company 1937.<br />

A revista Life abriu uma nova era de foto jornalismo em 23 de novembro de 1936. Logo<br />

Jockey, Scovill, Quickees entre outras empresas estavam utilizando fotografias em vez de linha<br />

de desenhos em anúncios de suas roupas íntimas, como observado na figura acima.<br />

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Na primeira metade da década de 1940 a inovação no underwear masculino permaneceu<br />

estática. Benson & Esten (1996), destacam que isto ocorreu porque toda a energia americana<br />

estava voltada para o esforço de guerra. A escassez causada pela guerra estava declarada<br />

em um anuncio da marca Jockey que dizia: “Tio Sam precisa de borracha por isso o cós da<br />

Jockey não é mais de elástico”. Neste momento viu-se o retorno do cós de tecido com dois<br />

botões laterais. Mas a guerra também trouxe uma novidade à roupa íntima, a introdução do<br />

conceito de cor. Para uma melhor camuflagem os soldados usavam cuecas verde-oliva, pois<br />

observaram que as peças brancas chamavam a atenção do inimigo quando estavam para<br />

secar. Em 1944 marca Zorba, entrou no mercado nacional e virou sinônimo de cuecas no<br />

Brasil.<br />

Após a guerra, a Cluett, Peabody & Co. Inc, desenvolveu e patenteou o “Sanforized”,<br />

um novo processo de pré-lavagem que impede os tecidos de encolherem. Passam a<br />

ser comercializadas cuecas com o tecido cortado em viés, que se adaptavam a todos os<br />

movimentos. As inovações foram imediatamente adotadas pelos produtores mais importantes,<br />

cada empresa buscava o seu reconhecimento de marca própria.<br />

Segundo Joe Boxer (1995) o conceito de modernidade estava cada vez mais presente.<br />

A revolução das cuecas começou em 1950, quando os fabricantes começaram a confeccionar<br />

underwear estampados e coloridos. Depois de anos de roupas íntimas, simples e brancas, os<br />

homens foram finalmente apresentados a opções variadas quando como mostra o anúncio da<br />

marca Jockey na Look Magazine, como mostra a figura 12.<br />

Figura 12: Anúncio de underwear estampado na década de 1950<br />

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As inovações não se restringiram às cores, novos materiais como raiom, dracon, nylon,<br />

lycra e o spandex entraram no mercado, mas o algodão ainda era o material mais usado. Já nos<br />

anos de 1960 a busca por novos e melhores estilos de roupas íntimas causou uma propulsão<br />

nas empresas de produtos químicos para aprimorar as fibras sintéticas, tornando popular<br />

as cuecas em malha de nylon, ou poliamida. John de Greef (1989), afirma que a Du pont e<br />

designers italianos criam novos produtos e as cuecas se tornam mais elásticas e menores.<br />

Quanto às formas, a tangav e o fio dentalvi foram introduzidos como uma opção entre uma<br />

nova geração de jovens determinados a desafiar o sistema. Também foram foi introduzidas<br />

estampas de leopardo, tigre e estampas de zebra. Havia no mercado uma grande variedade<br />

de produtos, oferecidos em materiais, modelagens, cores e estampas diferenciadas (figura<br />

13), possibilitando que a escolha do underwear figurasse como uma expressão da identidade<br />

de cada homem. Conforme Dario Caldas (1997) no final dos anos 1960, a maior parte dos<br />

homens que seguiam um pouco as tendências de moda começaram a efetuar mudanças em<br />

seu modo de se comunicar através da roupa e do corpo. Ainda na década de 1960 a marca<br />

Zorba introduz o modelo slip no Brasil.<br />

Figura 13: Anúncio Jockey Underwear da década de 1960.<br />

Na década de 1960 ocorrem importantes modificações não apenas peças, mas<br />

também na sua aprensentação ao consuminor. Expondo o corpo masculino de forma mais<br />

explícita, sem que isto maculasse sua masculinidade, isto graças as mudanças sócio culturais<br />

em curso. De acordo com Fernando de Barros (1997) o sentido de juvenilização e a cultura<br />

jovem foram o fio condutor para as primeiras mudanças do masculino na década de 1960,<br />

assimiladas principalmente pela moda, que quebra a visão conservadora de homem, que<br />

começa a passar por transformações.<br />

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Faz-se importante lembrar que qualquer relação estabelecida entre um grupo social<br />

e os padrões estéticos que o identificam ocorra, é preciso que tais padrões sejam aceitos e<br />

compartilhados pelos integrantes do grupo, mesmo se considerarmos que essa estética foi<br />

forjada pela indústria da moda e imposta através da mídia. Assim, vemos que estas primeiras<br />

mudanças no padrão de masculinidade foram possíveis por que estavam em sintonia com os<br />

acontecimentos sócio-culturais vigentes, com destaque para cultura jovem.<br />

Para Marco Sabino (2007) a clássica cueca samba-canção, com altura no meio das<br />

coxas, nunca deixou de ser consumida, mas, nos anos 1970, passou a ser sinônimo de<br />

“caretice” e uma peça adotada por pessoas mais tradicionais. Nesta época ganharam espaço<br />

propagandas enfatizando a sexualidade do underwear, relacionando-o com a revolução sexual<br />

em curso, o corpo masculino passou a ser mostrado de forma mais descontraída e jovial.<br />

“Como nunca antes, os homens eram adorados como símbolos sexuais e, muitas vezes<br />

expressava sua sexualidade recém-descoberta em boates popular conhecido como “discos”.”<br />

(BOXER, 1995, p. 27). Quebraram-se tabus na representação masculina (figura 14), o homem<br />

conservador, provedor da família e com foco no sucesso, pode ser substituído por um jovem,<br />

alegre e sem muitas preocupações, que se permite tomar café em uma caneca tão colorida<br />

quanto sua cuecavii . Parte do corpo da mulher vestindo uma camisola de seda e renda, que<br />

aparece de costas, sugere que a felicidade no jovem também pode estar relacionada a suas<br />

atividades sexuais, porém de forma muito sutil. Como o próprio titulo, “a great understatement<br />

by Jockey” (um grande eufemismo por Jockey) indica. A figura feminina, mesmo que colocada<br />

de forma secundária na imagem, auxilia no equilíbrio da publicidade, para que este homem<br />

não seja percebido como gay.<br />

Figura 14: Anúncio Jockey Underwear da década de 1970.<br />

Há uma mudança significativa na tônica dos discursos que venda, os produtos além<br />

de conforto passam a vender estilo, diversão, juventude, sensualidade e uma diversidade de<br />

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modelos (formas, cores e materiais) criando diferentes opções e possibilidades de construções<br />

visuais masculinas. Segundo Fernando de Barros (1997), na década de 1970 a palavra moda<br />

passou a ser natural para os homens, que passam a escolher novas formas de identificação<br />

a partir do vestuário. O autor afirma ainda que das mudanças introduzidas pela moda nesta<br />

época, a variedade de cores e materiais foi a mais bem aceita na construção dos discursos<br />

sobre o corpo masculino. “A “política do corpo” destacava-se como um dos símbolos de um<br />

novo comportamento. “Permitir, liberar, experimentar” valia também para a moda.” (BAROS,<br />

1997. p. 152)<br />

Conforme Benson & Esten (1996), na década de 1980 a roupa íntima tornou-se<br />

um produto de moda, com peças lançadas em coleções. Quase todas as marcas usavam<br />

publicidade de atração “sexy”, com corpos masculinos e pouca roupa como seu principal<br />

chamariz. Marco Sabino (2007), complementa que a Calvin Klein acabou entrando para a<br />

História da <strong>Moda</strong> quando exibiu, em um outdoor em plena Times Square, Nova York, o atleta<br />

olímpico Tom Hintnaus de torso nu e ana¬tomia perfeita vestindo apenas uma cueca (figuras<br />

15 e 16).<br />

Figura 15: Outdoor Calvin Klein na Times Square - NY 1982. Figura 16: Imagem aproximada<br />

Observamos que a cultura de massa impulsionou novas representações do corpo, novas<br />

concepções de masculinidade, além de novas lógicas sociais de compartilhamento coletivo,<br />

de aparência, de prazer e de estética, como algo que se faz experimentar e compartilhar com<br />

os outros. Conforme Semprini (2010), a “redescoberta” do corpo se dá a partir da década<br />

de 1960, mas é de 1980 em diante que o corpo se tornou o protagonista da cena social e do<br />

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consumo. A sua liberação progressiva de exigência e de censuras lhe permitiu se fazer notar<br />

e reivindicar uma atenção cada vez maior. A dimensão do corpo também está associada às<br />

lógicas das marcas, tornado-o suporte de múltiplas questões simbólicas. E essa dimensão<br />

simbólica é ainda mais dominante nos territórios do adorno, da beleza e do erotismo, que<br />

fazem do corpo um verdadeiro instrumento de socialização.<br />

Toda esta ênfase no underwear masculino, fez com que o valor destas peças aumentasse<br />

no mercado. Desde então, a Calvin Klein tem dominado o mercado da publicidade cuecas<br />

com modelos como o Mark Wahlberg, ex-jogador de futebol Freddie Ljungberg, o ator africano<br />

Djimon Hounsou, entre outros. Nos anos 1980, uma época em que o espírito lúdico tornou-se<br />

tendência, a cueca samba-canção reapareceu como produto de moda, trazendo estampas<br />

de bichinhos, personagens de Walt Disney e dos desenhos de Hanna Barbera. Este retorno<br />

de formas amplas no underwear, influenciou também na roupa exterior, com o volume das<br />

cuecas, as calças com pregas voltaram a moda. Em 1980 a marca Mash é lançada no Brasil.<br />

Joe Boxer (1995), diz que nos 1990 o fenômeno “cueca de grife” tornou-se ainda mais<br />

forte, e mais uma vez a marca Calvin Klein sai na frente, estampando seu nome no cós de<br />

elástico das peças. Este ato transformou a relação do homem com seu underwear novamente,<br />

a cueca passou de uma peça do vestuário que se escondia sob as calças para um produto<br />

de moda, uma escolha de estilo de vida. Astros pop passaram a exibir o cós grifado de suas<br />

cuecas e adolescentes passaram a optar por calças largas no quadril, estilo conhecido como<br />

grungeviii (figura 17).<br />

Figura 17: Anúncio da Calvin Klein Jeans mostrando o cós da cueca com a marca.<br />

Também nesta época, a lojas de varejo começaram a vender cuecas tipo short mais<br />

ajustados, conhecida nos Estados Unidos como boxer briefs ou midle boxers. Aqui no<br />

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Brasil estas peças são o que chamamos de cueca boxer. Em 1991 a marca Lupo lança<br />

uma linha íntima masculina no mercado nacional. Nos anos 1990 a lingerie masculina evoluiu,<br />

principalmente no que diz respeito aos materiais e técnicas de produção. As inovações das<br />

malhas, naturais e químicas, possibilitaram o desenvolvimento de produtos voltados para usos<br />

específicos, inclusive para diferentes práticas de esporte. O maior destaque ficou com as<br />

peças em microfibra e com costuras invisíveis.<br />

No século XXI, as inovações continuaram com foco nos materiais e acabamentos,<br />

buscando cada vez mais, unir beleza e conforto. As peças sem costura ganharam uma boa fatia<br />

do mercado. A partir dos anos 2000 vemos um número crescente de inovações no mercado<br />

nacional, as empresas brasileiras investem em tecnologia para produzir novos produtos e se<br />

tornam lançadoras de tendências para o mercado mundial. Segundo Márcia Mariano (2006),<br />

a marca gaúcha Upmanix foi a primeira marca a lançar uma cueca em fibra de bambu, com<br />

propriedades bactericidas e anti-odor, além de modelos dupla face e peças perfumadas no<br />

Salão da Lingerie em São Paulo, em agosto de 2006.<br />

O status de artigo fashion e moderno do underwear masculino de hoje, levou a uma<br />

série de modismos. Seguindo as tendências de moda a Zorbax , lançou em 2009 quatro novos<br />

modelos de cuecas, voltados para diferentes públicos. A Boxer Silver dirigida aos jovens, com<br />

elástico mais largo, de 40 mm de largura para ser exibido por fora da calça. ZBoxer Extreme<br />

Action, confeccionada em microfibra, tecido que facilita a transpiração e tem secagem rápida,<br />

além de proporcionar ajuste perfeito ao corpo; Boxer Extreme Nitro com predominância do<br />

algodão, resultando em um produto com ênfase no conforto; e Slip Seamless Algodão, que<br />

utiliza a tecnologia sem costura, proporcionando muito mais liberdade de movimento no diaa-dia.<br />

Outra novidade foi o lançamento da Zorba Orgânica, desenvolvida especialmente para<br />

os consumidores preocupados com a preservação do meio ambiente.<br />

As tendências mundiais alertam para necessidade de preservação do ambiente. Além<br />

dos teóricos da área, vemos esta informação começa a ser disseminada também para o<br />

público em geral. E o design é apontado como um dos grandes possíveis mediadores da<br />

sustentabilidade. Mas para que isto aconteça é necessário que haja mudanças também nas<br />

formas de compreender, ensinar e fazer design. Para Silva & Santos (2009) a sustentabilidade<br />

mediada pelo design, depende de uma abordagem ampla e integrada das competências<br />

do designer, passando pela modificação projetos voltados para os produtos para projetos<br />

sistêmicos, que valorizem requisitos ambientais, sociais, culturais e, sobretudo éticos. Atentas<br />

às novas tendências, as empresas estão buscando desenvolver produtos a partir de processos<br />

e materiais mais limpos.<br />

Dentre as inovações sustentáveis podemos destacar ainda, a cueca de malha PET da<br />

marca D’Uomoxi , que utiliza onze garrafas PET de dois litros para produzir um quilo de malha<br />

PET, suficiente para criar dezesseis cuecas, figura 18.<br />

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Figura18:Anúncios da cueca de malha PET da marca D’Uomo.<br />

E a cueca feita de fibra de bananeira lançada pela marca australiana Aussiebumxii (figuras 19 e 20). Os produtos são confeccionados com uma malha composta de 27% fibra<br />

de banana, 64% algodão e 9% elastano, para garantir ao consumidor conforto e flexibilidade.<br />

Preocupada com os consumidores cada vez mais exigentes e que também levam em conta a<br />

sustentabilidade ecológica e econômica, a empresa garante que as peças da linha “Banana”<br />

são extremamente macias, maleáveis, leves e têm grande poder de absorção de água. Além<br />

da utilização de tecido tecnológico que evita o uso de outros materiais que são normalmente<br />

empregados na confecção de roupa íntima e que agridem o meio-ambiente. Pois, a fibra de<br />

banana tem um bom brilho, é leve, resistente, tem ótima absorção de umidade e é considerada<br />

uma das mais ecologicamente corretas. E as cuecas de fibra de bananeira, não requerem<br />

cuidados diferentes da maioria das roupas íntimas, devem ser lavadas em água fria, sem<br />

alvejantes, seco à sombra e passadas com ferro frio.<br />

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Figura 19: Foto do desfile Figura 20: destaque da cueca da linha “Banana” – Aussiebum<br />

Mas o investimento em tecnologia para underwear mais inovador é o aplique de GPS<br />

às roupas íntimas. A marca Lindelucyxiii desenvolveu uma cueca em algodão, no modelo boxer,<br />

com recortes e bolsos e o GPS é um acessório que acompanha a cueca, figuras 21 e 22.<br />

Figura 21: Foto do desfile Figura 22: destaque da cueca com GPS - Lindelucy<br />

O aparelho tem a função de rastreamento, através de satélite, isso se o usuário desejar<br />

ser encontrado, caso contrário ele também poderá ser desligado. O GPS traz também o botão<br />

de pânico, que pode ser acionado em caso de qualquer emergência ou eventualidade.<br />

Conclusão<br />

Acreditamos que o homem burguês voltou seu primeiro pensamento para roupas<br />

íntimas quando viu em seu acumulo um valor simbólico, uma forma de diferenciação e de<br />

status. Mas, os aspectos funcionais foram pela maior parte do tempo, no decorrer da história<br />

da roupa íntima, o fator principal da modificação das formas e dos materiais destes produtos,<br />

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Inovação em design na história do underwear masculino<br />

visando a usabilidade e o conforto, porém estas não são mais as únicas preocupações do<br />

mercado.<br />

Atualmente existem diversas marcas que comercializam roupa interior masculina de<br />

grande qualidade, unindo aspectos de funcionalidade às tendências da moda e à qualidade<br />

do design. São utilizados na confecção desta peças diversos tecidos, padrões e modelagens<br />

anatômicas. <strong>Tecnologia</strong>s modernas na confecção foram agregadas ao produto final, permitindo<br />

uma sensação de maciez, toque suave e elasticidade na medida certa. Mas, acima de tudo a<br />

partir dos anos de 1960, e com maior ênfase no anos 1980, observamos início de uma forma<br />

de apresentação do underwear e da representação do corpo masculino, buscando introduzir<br />

elementos simbólicos contidos no discurso da moda que passa a vender um estilo de vida e<br />

não uma peça de roupa do vestuário.<br />

Cada vez mais presente, em maior quantidade e variedade de modelos, no guardaroupa<br />

masculino, as cuecas evoluíram com o tempo e ganharam adeptos que antes não se<br />

preocupavam com o que vestiam por baixo de suas roupas. Hoje, o homem está mais atento<br />

aos produtos que o deixam mais bonito e confortável, e autoconfiante.<br />

Constantes inovações e elementos de design foram agregados à roupa íntima no<br />

século XX. Destacando primeiro, as questões de usabilidade e conforto, dando ênfase à<br />

função prática do produto. E chegamos ao século XXI com peças diferenciadas, bonitas,<br />

tecnológicas, versáteis e confortáveis. Neste processo foram atribuídas as funçõesxiv estéticas<br />

e simbólicas, tornando o underwear um verdadeiro produto de design e de moda.<br />

Notas<br />

i Duofold – tecido feito com duas camadas de lã entrelaçada proporcionando isolamento contra o frio<br />

e separando o suor do corpo.<br />

ii O modelo boxer americano, parece-se com o que conhecemos como samba-canção. Já o que<br />

chamamos de boxer corresponde ao midle-boxer americano.<br />

iii A Jockey Breif ® ou slip Jockey é o modelo que conhecemos como cueca slip.<br />

iv Empresa que criou e patenteou o Fastener Gripper.<br />

v Tanga – modelo de cueca pequena com duas partes de malha unidas na entreprenas são presas a<br />

uma cintura de elástico.<br />

vi Fio dental – modelo de cueca com a parte traseira muito pequena.<br />

vii A frase “que se permite tomar café em uma caneca tão colorida quanto sua cueca” foi escrita para<br />

indicar mais uma quebra de convenções no padrão familiar vigente, onde a família ao acordar se reúne<br />

à mesa para tomarem o café juntos, provavelmente em louças tradicionais. Busca-se mostrar aqui o<br />

rompimento com a forma convencional de ver homem na sociedade patriarcal, em consonância com<br />

os acontecimentos vigentes.<br />

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Inovação em design na história do underwear masculino<br />

viii O estilo grunge aparece nos anos 1990 como um movimento de anti-moda, baseado no estilo<br />

de rock do mesmo nome. Nos anos 80, a moda também se apropriou largamente da anti-modapunk.<br />

A inspiração para a moda grunge era a classe proletária de Seattle, com roupas muito largas<br />

e desleixadas, muitas vezes doadas, um ícone desta moda é camisa xadrez semelhante a usada por<br />

lenhadores.<br />

ix www.upman.com.br<br />

x www.zorba.com.br<br />

xi www.cuecasduomo.com.br<br />

xii www.aussiebum.com<br />

xiii www.lindelucy.com.br<br />

xiv Löbach (2001), fala que um produto de design apresenta três funções básicas: a função prática,<br />

ligada a finalidade de uso do produto, bem como sua adequação às necessidades fisiológicas de uso<br />

como segurança, conforto e facilidade de uso. A função estética se refere aos aspectos psicológicos da<br />

percepção sensorial durante o uso, tem como principal atributo a fruição da beleza e esta subordinada<br />

a aspectos sócio-culturais e ao repertório de conhecimento do usuário. E a função simbólica, a<br />

mais complexa, de acordo com autor, tem como fundamento o aspecto estético-formal do produto<br />

reforçado pela base conceitual das dimensões semióticas. Envolve fatores sociais, culturais, políticos<br />

e econômicos e, também, associa-se a valores pessoais, sentimentais e emotivos. A função simbólica<br />

revela-se, sobretudo, por meio dos elementos configuracionais de estilo. Para mais informações ver<br />

LÖBACH, Bernard. <strong>Design</strong> industrial: bases para configuração dos produtos industriais. Rio de Janeiro:<br />

Blücher, 2001.<br />

Referências<br />

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BOXER, Joe. A brief history of shorts: the ultimate guide to understanding your underwear.<br />

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CALDAS, Dário. Homens. São Paulo: Ed. SENAC, 1997.<br />

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em processos e seus fatores contribuintes em um ambiente industrial - um estudo de caso. In:<br />

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Subtil de Oliveira (Orgs.). Jundiaí : Editora Fontoura, 2005. Disponível em www.simpep.feb.<br />

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contemporânea. Barueri, SP: Estação das Letras e Cores Editora, 2010.<br />

SIMON, Marie. Les Dessous – les carnets de La mode. Paris: Éditions Du Chêne. 1998<br />

ZORBA. Disponível em www.zorba.com.br. Acesso 3 nov 2009.<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

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O TERNO: QuESTõES E REFLEXõES<br />

Luisa de Almeida Magalhães Simão; Mestranda em <strong>Design</strong>: <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />

luisasimao@live.com<br />

Cristiane Mesquita; Professora Dra. do PPG em <strong>Design</strong>: <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />

cfmesquita@anhembi.br<br />

Resumo<br />

O presente artigo propõe uma reflexão sobre o valor do traje<br />

moderno na herança cultural da moda contemporânea. Através<br />

de um estudo a respeito da existência do terno, há cerca de<br />

dois séculos, bem como dos significados sociais que a ele são<br />

atribuídos, o objetivo deste trabalho é discutir como a moda<br />

contemporânea dialoga com a tradição do terno sob medida e de<br />

que maneira essa tradição se perpetua até os dias de hoje.<br />

Palavras-Chave: valor simbólico; terno; moda; herança cultural<br />

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O terno: questões e reflexões<br />

Introdução<br />

No momento em que o corte masculino clássico, conhecido por alfaiataria, foi criado,<br />

em meados do século XIX, as técnicas manuais e artesanais de produção ainda eram um<br />

dos únicos, senão o único recurso para a construção do vestuário da época. Tal limitação,<br />

considerando as inúmeras possibilidades produtivas advindas da era industrial que hoje nos<br />

são comuns, fez nascer algo que há muito se perdeu, de um valor imensurável, de uma poesia<br />

que agrada aos olhos e ao espírito: a autenticidade.<br />

O que chamamos de “autêntico” está, naturalmente, atrelado à exclusividade. A roupa<br />

feita sob medida, possui características que a determinam como única, e a ela é atribuído um<br />

valor que vai muito além de sua materialidade, um valor que refere-se a sua autenticidade.<br />

A definição de aurai , proposta por Walter Benjamin, facilita a compreensão do que<br />

chamamos de autenticidade. Aqui, esse conceito está relacionado ao objeto único para um<br />

corpo único. O terno entra em cena para ilustrar essa relação entre objeto e corpo, entre<br />

roupa e memória.<br />

Pode resumir-se essa falta no conceito de aura e dizer: o que murcha na era da<br />

reprodutibilidade da obra de arte é a sua aura. O processo é sintomático, o seu<br />

significado ultrapassa o domínio da arte. Poderia caracterizar-se a técnica de<br />

reprodução dizendo que liberta o objeto do domínio da tradição. Ao multiplicar<br />

o reproduzido, coloca no lugar de ocorrência única a ocorrência em massa.<br />

(BENJAMIN, 1992, p. 79)<br />

Nesse sentido, perceber o valor intrínseco inerente ao ternoii sob medida, facilita<br />

a continuidade de nosso estudo para a compreensão dos seus valores simbólicos e dos<br />

significados que lhe foram atribuídos, e que, em grande medida se mantém até os dias de<br />

hoje.<br />

A mudança de valores proveniente da transição da peça única, feita sob medida, para<br />

a peça reproduzida em larga escala, com o advento da reprodutibilidade, gerou uma série<br />

de transformações no comportamento do consumidor e na maneira como ele passa a se<br />

relacionar com as peças de roupa. Compreenderemos quais são os signos que o terno carrega<br />

que nos remetem à sua tradição e origem e que, mesmo diante de suas adaptações, de sua<br />

apropriação pelo vestuário feminino, de seu caráter formal e permanentemente evolutivoiii , se<br />

perpetua e se relaciona tão intimamente com a pluralidade da moda contemporânea e com a<br />

fragmentação de nosso tempo.<br />

Valor simbólico do terno<br />

Foi-se o tempo em que a funcionalidade de um produto bastava para que este fosse<br />

consumido. O design centrado no objeto e voltado única e exclusivamente para atender a<br />

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O terno: questões e reflexões<br />

critérios objetivos de seu consumidor, dá lugar ao design centrado no ser humano, o que<br />

significa grandes mudanças na pós-modernidade. Nasce uma preocupação com a maneira<br />

através da qual vemos, interpretamos e convivemos com os artefatosiv . A materialidade dos<br />

signosv que envolvem o objeto, em especial, o terno, passam a ser de suma importância.<br />

Os símbolos são os instrumentos por excelência da integração social:<br />

enquanto instrumentos de conhecimento e de comunicação, eles tornam<br />

possível o consensus acerca do sentido do mundo social que contribui<br />

fundamentalmente para a reprodução da ordem social: a integração lógica é a<br />

condição da integração moral. (BOURDIEU, 2009, p.10)<br />

Em uma sociedade industrial onde os objetos são programados para serem obsoletos<br />

em um tempo determinado, o terno continua a se afirmar como um objeto clássico, atemporal.<br />

Os artefatos que povoam nossos corpos não o fazem mais pela nossa necessidade e sim,<br />

pelos elementos simbólicos que a eles atribuímos. Além de forma e função, passam a ser<br />

recheados de significados que definem o lugar social do indivíduo. Nossos pertences nos<br />

revelam, são a extensão de nossos desejos e escolhas e, porque não, de nossos corpos,<br />

compondo nossa identidade.<br />

Segundo Cardoso (1998), devemos considerar que os produtos desenvolvidos a partir<br />

de um determinado processo podem ser investidos de significados que não são restritos aos<br />

percebidos através da sua natureza. Os seus produtos não oferecem apenas soluções para<br />

necessidades objetivas dos usuários, já que estes também possuem necessidades subjetivas,<br />

provenientes de seus desejos, anseios e expectativas. Logo, um objeto adquire significados<br />

que vão além de suas questões estruturais e funcionais, e cumpre assim variadas funçõesvi .<br />

O terno apresenta, desde seu nascimento, características simbólicas que até<br />

hoje são vigentes. Expressam masculinidade, mas não restringem o corpo<br />

como a armadura ou gibões da Renascença. Possui caimento fácil e esconde<br />

a superfície do corpo de modo bastante completo, o que o faz ter a reputação<br />

de inexpressivo, em uma época de músculos trabalhados e quase nudez dos<br />

corpos. (HOLLANDER, 1996, p. 144-145)<br />

O terno faz surgir um imaginário que atrai quem o porta e, gradualmente, constitui um<br />

padrão de vestuário civil para o mundo inteiro, sugerindo competência, articulação, prudência e<br />

desprendimento. O traje permanece sexualmente poderoso e com sua força intacta, dividindo<br />

a cena com outras maneiras de vestir, mas permanece como “um espelho da moderna<br />

auto-estima masculina”, nas palavras de Hollander (1996, p. 76). De acordo com a autora, o<br />

terno possui um caráter abstrato e apresenta uma mensagem de continuidade formal que é<br />

profundamente satisfatório no mundo contemporâneo, por isso o seu não desaparecimento e<br />

a mudança do seu campo de atuação também para o universo feminino e casual, o que trouxe<br />

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O terno: questões e reflexões<br />

transformações em seus diversos significados. Para a mesma autora, se trata de um objeto<br />

de circulação social, que transita em espaços e tempos variados e através dele percebemos<br />

as relações que permeiam sua trajetória. Sua longevidade se dá pelo fato de a alfaiataria<br />

masculina mostrar a autoridade, a força simbólica e emocional dos valores de perpetuação,<br />

além de permanecer a mesma enquanto passa por mudanças internas constantes e, diante<br />

deste cenário, em vez de perder força ou aceitação, adquire maior virtude e nova valorização<br />

ao longo de sua vida. Os ternos masculinos feitos nos moldes da alfaiataria provam ser<br />

infinitamente dinâmicos e detentores de um vigor elegante próprio.<br />

A permanência do terno deve-se também ao fato de que as roupas são uma espécie<br />

de memória, uma segunda pele que nos faz reviver sensações, nos faz lembrar, nos remete e<br />

nos representa. O terno foi culturalmente e socialmente moldado, transformando-se quando<br />

necessário, mantendo sua estrutura original por ser essa a principal emissora dos significados<br />

que nele estão impregnados.<br />

O poder particular da roupa para efetivar essas redes está estreitamente<br />

associado a dois aspectos quase contraditórios de sua materialidade: sua<br />

capacidade para ser permeada e transformada tanto pelo fabricante quanto<br />

por quem a veste; e sua capacidade para durar no tempo. (STALLYBRASS,<br />

2000, pg. 65)<br />

Ao terno são atribuídos significados de diversas naturezas. Sabemos que a base estética<br />

que deu origem ao ideal moderno de elegância masculina procurou imitar a elegância e a<br />

eficiência da natureza clássica. De acordo com Richard James, alfaiate inglês de Savile Row,<br />

o homem expressa-se através de seu terno. Por ser a roupa mais masculina que já se viu e<br />

de uma versatilidade significativa, capaz de trazer anonimato e, ao mesmo tempo, visibilidade<br />

àquele que o veste, demonstra respeitabilidade e define, quase sempre, os acessórios que o<br />

acompanham.<br />

Na reflexão de Nicholas Antongiavanni (2006), o terno é para o homem o que sua casa<br />

é para sua vida, ou seja, é, de certa forma, um abrigo, uma proteção para o corpo e uma<br />

armadura diante das relações sociais que se estabelecem. Veste-se um uniforme de batalha,<br />

um uniforme que assemelha e distingue ao mesmo tempo, sempre com o intuito de proteger,<br />

resguardar e ao mesmo tempo, exaltar as características daquele homem.<br />

De fato, há algo no vestuário masculino que o torna mais moderno. Talvez por possuir<br />

uma superioridade estética, uma “maturidade” em seu design extremamente satisfatória. Suas<br />

formas são visivelmente mais avançadas, e estabeleceram, dessa maneira, a permanência<br />

do terno durante tantos anos nos códigos do vestir. Ele é associado, por tais motivos, ao<br />

poder, à capacidade intelectual, à seriedade e ao profissionalismo. Isso pode ser comprovado<br />

pela apropriação feminina do vestuário masculino, quando estas precisam emanar maior<br />

credibilidade e competência profissional. Com maior ou menor deliberação, segundo Simmel,<br />

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O terno: questões e reflexões<br />

“o indivíduo cria, muitas vezes, para si mesmo uma conduta, um estilo que se caracteriza<br />

como moda pelo ritmo de sua manifestação, de seu fazer-se valer e sobressair” (2008, p. 47).<br />

O desejo dos homens de parecerem descontraídos marcou todo o desenvolvimento do<br />

terno. O conceito de “moderno” significava uma forma abstrata sugerindo um envelope que se<br />

ajustava folgadamente ao corpo, demonstrando seu caráter confortável e utilitário. Esse ideal<br />

masculino era feito de partes separadas, dispostas em camadas e destacáveis com braços,<br />

pernas e troncos visivelmente indicados oferecendo grande mobilidade física e ajustando-se<br />

ao corpo estático e em movimento.<br />

Segundo Hollander (1996), desde 1800, as roupas masculinas mostravam-se variáveis<br />

e expressivas, fluidas e criativas. A diferença, no entanto, é que surgem de maneira consistente.<br />

Os detalhes modificam-se constantemente mas sua estrutura se mantém a mesma. O paletó<br />

tradicional, por exemplo, se mantém, o que muda são suas lapelas, seus detalhes como<br />

botões, bolsos, etc.<br />

O itinerário percorrido pela indumentária masculina, de acordo com Gilda de Mello e<br />

Souza, em vez de estar sujeito a ciclos, a um ritmo estético de expansão de um determinado<br />

elemento decorativo levado ao limite máximo, se simplifica progressivamente, tendendo a<br />

cristalizar-se num uniforme (1987, p. 64).<br />

Da era artesanal à era industrial: adaptações<br />

Há dois séculos o terno se faz presente no complexo contexto da moda, se adaptando<br />

como lhe é possível às suas incansáveis mutações e renovações. A alfaiataria, da mesma<br />

maneira, em meados do século XIX, vê-se diante de um novo cenário produtivo proveniente<br />

da Revolução Industrial, passando por inúmeras mudanças que marcariam para sempre<br />

sua história. A invenção da máquina de costura, há mais de 150 anos, marca o início de<br />

um período de transformações, diminuindo consideravelmente o trabalho, para muitos<br />

considerado enfadonho e cansativo, de costurar à mão, gerando maior eficiência produtiva.<br />

Para a alfaiataria, o uso do maquinário representou uma maneira de otimizar o trabalho e<br />

conferir-lhe maior precisão e qualidade, além da possibilidade de se produzir em massa,<br />

gerando maior acessibilidade.<br />

A mecanização do trabalho é o outro grande fator que define a industrialização,<br />

e uma série de inovações tecnológicas entre o final do século 18 e início do<br />

19 foi permitindo o aumento constante da produtividade na indústria têxtil a<br />

custos cada vez menores em função da rapidez da produção e da diminuição<br />

da mão-de-obra. (CARDOSO, 2008: 27)<br />

De acordo com Hollander (1996), ao longo do século XIX, o prestígio da roupa sob<br />

medida se mantinha na Inglaterra e na França, enquanto as roupas prontas para vestir<br />

despontavam nos EUA. A indústria do pronto para vestir desenvolveu-se naturalmente neste<br />

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O terno: questões e reflexões<br />

contexto, melhorando significativamente a sua qualidade. O vestuário sob medida perde a<br />

dimensão de uma arte para a maioria da população, para se circunscrever a uma clientela<br />

cada vez mais selecionada, exigindo uma nova relação entre o alfaiate e o cliente.<br />

A industrialização trouxe novas possibilidades e flexibilidade em relação à novas técnicas<br />

produtivas, como foi dito, à modelagem das peças e à própria execução, além de inaugurar<br />

o nascimento do que entendemos hoje por design. Os trajes produzidos em massa foram<br />

criados com um padrão tão alto de design, que chegaram a ser comparados com aqueles<br />

estabelecidos pela alfaiataria de antes (HOLLANDER, 1996).<br />

As exigidas transformações pelas quais a alfaiataria passou, não se limitam, no entanto,<br />

apenas ao aspecto produtivo. Ocorreram mudanças no comportamento do consumidor.<br />

Houve uma transferência de responsabilidades: o alfaiate que confeccionava a roupa sob<br />

medida tinha um olhar crítico pelo cliente, afinal tinha que manter o status de bom profissional.<br />

A roupa pronta para vestir, por sua vez, passa somente pelo crivo do cliente, que estabelece<br />

seus padrões estéticos pessoais, sendo o único que pode julgar o caimento e a qualidade do<br />

traje que irá adquirir. O ato de comprar se tornou corriqueiro, o acesso aos produtos, muito<br />

mais possível, fazendo com que a experiência de compra do consumidor se tornasse bastante<br />

diferente da antiga experiência, onde esperar semanas ou meses por um traje, era normal e<br />

aceitável.<br />

Como as roupas eram feitas de maneira exclusiva, não pensava-se em um padrão único<br />

de medidas e nem em um design que atendesse a todos. A fita métrica como conhecemos<br />

hoje, dividida em centímetros, foi inventada pelos próprios alfaiates, em 1820, com a finalidade<br />

de se produzir mais de um traje por vez. Antes disso, cada cliente tinha sua própria tira de<br />

medidas, com marcações específicas para seu corpo. Observou-se, no entanto, semelhanças<br />

nas proporções de alguns corpos masculinos, e que, dessa maneira, seria possível produzir<br />

várias peças ao mesmo tempo, para corpos semelhantes (HOLLANDER, 1996, p. 137).<br />

Toda a ostentação que antecedeu a Revolução Francesa foi substituída pela simplicidade<br />

e pelo conforto da era industrial. O vestuário masculino tornou-se mais sóbrio, influenciado por<br />

pela moda inglesa. Essa simplicidade se estende até os dias de hoje. O cenário contemporâneo,<br />

de roupas feitas em larga escala, permitiu que bons ternos, trajes antes restritos a camadas<br />

sociais abastadas, tivessem maior flexibilidade, se adequando às mudanças produtivas e às<br />

exigências de seu público cada vez mais diverso.<br />

Mesmo com as constantes mudanças de gostos e ideais, relativas à moda, as formas<br />

da alfaiataria masculina ganham força e valorização ao longo de sua vida e nos servem até os<br />

dias de hoje, sendo periodicamente remodeladas pela moda.<br />

O advento da industrialização e a incapacidade de competir com a rapidez de produção<br />

e os baixos preços das lojas, tornou o serviço do alfaiate caro e de elite. A roupa pronta para<br />

vestir ganhou visibilidade por ser cada vez mais comum e mais barata. Os avanços tecnológicos<br />

contribuíram para a disseminação do prêt-à-porter, possibilitando um aumento significativo<br />

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O terno: questões e reflexões<br />

no padrão de qualidade das roupas prontas. O resultado: alfaiates antes imprescindíveis na<br />

sociedade, encontravam-se em vias de extinção.<br />

Esses profissionais resistiram por algum tempo por serem ainda necessários nas<br />

fábricas que se formavam. Precisavam ensinar a técnica e os segredos da alfaiataria para<br />

que a confecção em larga escala pudesse acontecer. Mas por volta de 1940, os alfaiates<br />

que monitoravam as fábricas foram substituídos por administradores e, a partir de 1950, as<br />

mudanças trouxeram uma redução no trabalho humano resultando em uma queda no tempo<br />

de produção e na melhoria da qualidade dos produtos (MUSGRAVE, 2009).<br />

A produção em série desencadeou o início da extinção das alfaiatarias, no entanto,<br />

outros fatores têm contribuído igualmente para esse fato. Um dos maiores problemas que<br />

impedem a perpetuação do ofício do alfaiate é a falta de continuadores nos ateliers. A imagem<br />

pouco atrativa que as alfaiatarias foram adquirindo, gerou desinteresse das camadas mais<br />

jovens que possivelmente, garantiriam sua continuidade. Além disso, para agravar ainda mais<br />

o quadro, se trata de uma profissão que exige um longo período de aprendizagem e não<br />

oferece uma estrutura organizada de formação profissional.<br />

A situação descrita, acaba por prolongar uma crise generalizada na atividade. Os<br />

poucos alfaiates qualificados, por serem raros, encontram sempre empregos sem dificuldade,<br />

mas os jovens, cada vez mais desinteressados, preferem atividades relacionadas ao prêt-àporter,<br />

onde são mais restritos, com menos possibilidades de expressão da sua criatividade,<br />

mas também auferem, em geral, melhores salários do mercado de moda. Os jovens querem<br />

estudar ou optam por trabalhar em atividades que lhes pareçam mais atrativas e com mais<br />

possibilidades de progressão. Optam, por exemplo, pela área de estilismo, ao invés da área<br />

de alfaiataria.<br />

A resposta aos desafios que hoje atravessa esta profissão, que se passa pela formação<br />

profissional, não pode ser desligada de uma adequada promoção que restitua antes de mais<br />

nada o seu prestígio, de forma a ser assumida como uma arte entre outras artes.<br />

Considerações finais<br />

Pensar a moda é pensar o corpo e suas possibilidades. O corpo como suporte, dialoga<br />

com o terno desde o seu surgimento, e este constrói sobre aquele variadas formas e sentidos,<br />

gerando significações sociais e culturais na história da moda.<br />

A moda, segundo Hollander, “ao enfatizar a proposta de um corpo individual, ilustra a<br />

idéia de que a sexualidade, com sua dependência da fantasia individual e da memória, governe<br />

a vida de cada pessoa” (1996, p. 51). Para Castilho, “O corpo sempre se oferece como suporte<br />

gerador de significação, articulador de um discurso que permite a ação da plasticidade da<br />

decoração corpórea nas situações de interação, presentificação e representação pelo contato<br />

que determina valores positivos e negativos que podem ser, em linhas gerais, polêmico ou<br />

contratual, implícito ou explícito” (2005, p. 141).<br />

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O terno: questões e reflexões<br />

Nas palavras de Castilho, “quando utilizados pelo grupo masculino, certos trajes<br />

assumiam significados específicos, como a glória na hierarquia militar, civil ou religiosa. No<br />

conjunto, a indumentária masculina conferia aos homens o poder, a grandeza, a riqueza, a<br />

dignidade no contexto de uma determinada coletividade” (2005, p. 115).<br />

O sujeito, assim, constrói um discurso sobre o seu corpo, que lhe dá<br />

competência para protagonizar diferentes programas narrativos que se<br />

manifestam pela composição e articulação das formas constitutivas de sua<br />

proposta de parecer, e, com isso, poderá atuar em diferentes papéis no<br />

contexto social. (CASTILHO, 2004, p. 183)<br />

Em concordância, na reflexão de Simmel: “Este significado da moda é o que a leva a<br />

ser adotada por homens refinados e originais: utilizam-na como máscara. A obediência cega<br />

às normas do geral em tudo o que é exterior é para eles o meio consciente e deliberado de<br />

reservar a sua sensibilidade e os seus gostos pessoais; querem a tal ponto guardar estes para<br />

si que se opõe a uma exibição que os tornaria acessíveis a todos” (2008, p.43).<br />

Vemos, dessa maneira, que, através do diálogo entre a moda e o corpo, o terno é capaz<br />

de gerar inúmeras significações ou re-significações que perpassam aspectos sociais, sexuais,<br />

estéticos, entre outros. O antagonismo de sentidos relacionado à busca pela individualização<br />

e, simultaneamente, pela aceitação social, acompanham a evolução do traje moderno.<br />

NOTAS<br />

i “Manifestação única de uma lonjura, por muito próxima que esteja”. (BENJAMIN, Walter. Sobre <strong>Arte</strong>,<br />

Técnica, Linguagem e Política. Relógio D’Água Editores, 1992. p. 81.)<br />

ii Os termos “terno” ou “traje” são utilizados para nomear o conjunto clássico de paletó, calça e colete,<br />

originado no século XIX.<br />

iii HOLLANDER, Anne. O sexo e as roupas: a evolução do traje moderno. Rio de Janeiro: Rocco,<br />

1996. (p. 14)<br />

iv Palestra proferida pelo Prof. Klaus Krippendorff durante o P&D <strong>Design</strong> 2000 (IV Congresso Brasileiro<br />

de Pesquisa e Desenvolvimento em <strong>Design</strong>), realizado em outubro de 2000, na FEEVALE, Nova<br />

Hamburgo – RS.<br />

v BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Rio de Janeiro: Elfos Ed.; Lisboa: Ed. 70, 1995. (p.<br />

58)<br />

vi DENIS, Rafael Cardoso. <strong>Design</strong>, cultura material e o fetichismo dos objetos. Artigo, 1998.<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 365


O terno: questões e reflexões<br />

Referências<br />

ANTONGIAVANNI, Nicholas. The Suit. NY: HarperCollins Publishers, 2006.<br />

BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Rio de Janeiro: Elfos Ed.; Lisboa: Ed. 70,<br />

1995. (p. 58)<br />

BENJAMIN, Walter. Sobre <strong>Arte</strong>, Técnica, Linguagem e Política. Relógio D’Água Editores,<br />

1992.<br />

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2009.<br />

CASTILHO, Kathia. <strong>Moda</strong> e Linguagem. São Paulo: Editora Anhembi Morumbi, 2004.<br />

Corpo e moda: por uma compreensão do contemporâneo / Ana Claudia de Oliveira,<br />

Kathia Castilho, organizadoras. – Barueri, SP: Estação da Letras e Cores Editora, 2008.<br />

DENIS, Rafael Cardoso. <strong>Design</strong>, cultura material e o fetichismo dos objetos. Artigo, 1998.<br />

HOLLANDER, Anne. O sexo e as roupas: a evolução do traje moderno. Rio de Janeiro:<br />

Rocco, 1996. (p. 14)<br />

LIPOVETSKY, Gilles. O Império do efêmero. A moda e seu destino nas sociedades<br />

modernas. São Paulo, Companhia das Letras, 1989.<br />

SOUZA, Gilda de Mello e. O espírito das roupas: a moda no século dezenove. São Paulo:<br />

Companhia das Letras, 1987.<br />

MUSGRAVE, Eric. Sharp suits. United Kingdom: Pavilion Books, 2009.<br />

PIRES, Dorotéia Baduy (org.). <strong>Design</strong> de <strong>Moda</strong>: olhares diversos. Barueri, SP: Estação das<br />

Letras e Cores Editora, 2008.<br />

SIMMEL, Georg. Filosofia da moda e outros escritos. São Paulo: Edições Texto & Grafia,<br />

2008.<br />

STALLYBRASS, Peter. O casaco de Marx: roupas, memória, dor. Belo Horizonte: Autêntica<br />

Editora, 2008.<br />

Palestra proferida pelo Prof. Klaus Krippendorff durante o P&D <strong>Design</strong> 2000 (IV Congresso<br />

Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em <strong>Design</strong>), realizado em outubro de 2000, na<br />

FEEVALE, Nova Hamburgo – RS.<br />

Artigo publicado pela Revista Dobras. MOTTA, Eduardo. Fevereiro de 2009. Pg. 31.<br />

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PROFISSãO: DESIGNER DE MODA<br />

Lívia Marsari Pereira; Mestre em <strong>Design</strong>: <strong>Universidade</strong> Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho<br />

lilimarsari@hotmail.com<br />

Maria Carolina Medeiros; Mestranda em <strong>Design</strong>: <strong>Universidade</strong> Estadual Paulista<br />

Júlio de Mesquita Filho - mcarolmedeiros@hotmail.com<br />

Paula Hatadani; Mestranda em <strong>Design</strong>: <strong>Universidade</strong> Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho<br />

paulahatadani@yahoo.com.br<br />

Raquel Rabelo Andrade; Mestranda em <strong>Design</strong>: <strong>Universidade</strong> Estadual Paulista<br />

Júlio de Mesquita Filho - raquel_andrade00@yahoo.com.br<br />

José Carlos Plácido da Silva; Doutor: <strong>Universidade</strong> Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho<br />

placido@faac.unesp.br<br />

Resumo<br />

Este estudo é o resultado de uma investigação de natureza<br />

bibliográfica que busca apresentar algumas definições para o<br />

design, retratar a profissão “designer” na atualidade e relatar as<br />

principais vertentes que vem surgindo com a difusão das escolas<br />

de ensino superior nessa área de conhecimento, especialmente o<br />

design de moda.<br />

Palavras-Chave: design; profissão e design de moda<br />

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Profissão: designer de moda<br />

Introdução<br />

A origem do profissional de design remonta ao século passado, influenciado<br />

principalmente pela Revolução Industrial e pela contribuição das vanguardas artísticas que<br />

assumem a estética da máquina, incorporando-a as suas criações.<br />

Dorfles (2002) afirma ser errado defender que o design sempre existiu, pois segundo o<br />

autor, uma das premissas básicas para que um elemento seja pertinente ao design industrial é<br />

que ele seja produzido de modo industrial e mecânico, exclusivamente e, assim, seja passível<br />

de repetição em série, o que não acontecia antes do advento da máquina.<br />

Portanto, podemos considerar o inicio do design em conjunto com o advento da<br />

máquina e na produção de objetos pelo homem.<br />

Ainda na atualidade, descrever uma definição clara e axiomática do design é quase<br />

impossível do ponto de vista de alguns estudiosos. O design é um termo muito citado, porém<br />

ainda não completamente compreendido em relação ao seu conceito. O número infinito de<br />

pensamentos ligados a essa atividade faz dessa profissão uma área incompreendida e sem<br />

definições para grande parte da sociedade.<br />

Ainda falta reconhecimento do design como área e a contribuição específica que ele<br />

tem a dar para a cultura em geral e para a brasileira em particular. Stolarski apud Junior, (2006)<br />

afirma que o problema não é o preconceito, mas sim falta de informação: “o design é muito<br />

comentado e celebrado, mas nunca se sabe direito o que quer dizer a palavra. Assim, o termo<br />

acaba por virar sinônimo de “luxo”, “arte”, “sofisticação”, que estão muito distantes de dar<br />

conta do que a atividade faz”.<br />

Juntamente com esse panorama de desinformação sobre o verdadeiro significado de<br />

design encontra-se uma difusão de novos cursos com diversas abrangências e especialidades<br />

das áreas de atuação do design.<br />

O design de moda é uma dessas áreas que vem destacando-se no panorama atual. O<br />

design de moda cria produtos para produzir experiências significativas nos corpos, em tecidos<br />

e roupas são trabalhadas formas, silhuetas e texturas que produzem experiências sensoriais<br />

e por sua vez criam percepções diversas nas pessoas. Os objetivos e procedimentos da<br />

concepção do vestuário assemelham-se ao processo de desenvolvimento de objetos<br />

de design, pois consideram a importância da metodologia de projeto e da satisfação das<br />

necessidades e anseios dos usuários.<br />

Nesse sentido, Feghali e Dwyer (2001, p.103) definem:<br />

<strong>Design</strong>er de moda é o profissional que define a cara de uma coleção,<br />

independentemente do mercado a ser atingido. Pode ser empregado em<br />

uma empresa ou trabalhar como autônomo. [...] Durante o processo de<br />

criação, ele leva em conta não só os aspectos artísticos e sociais, mas<br />

também a necessidade de atender às tendências de marketing e aos<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

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Profissão: designer de moda<br />

avanços técnicos da indústria, uma vez que a cada estação, ocorrem<br />

mudanças no que se refere às cores, aperfeiçoamento de tecidos, linha<br />

de produção, capacidades e preços.<br />

Desta forma, este artigo tem como objetivo apresentar algumas definições sobre o<br />

design, relatar as principais vertentes que vem surgindo com a difusão das escolas de ensino<br />

superior nessa área de conhecimento, entre elas o design de moda, foco desta pesquisa.<br />

<strong>Design</strong><br />

A raiz da palavra design em inglês tem origem da palavra latina designare, que também<br />

dá origem na nossa língua às palavras desejo, desenho e designo (ARRIVABENE, 2009). Essas<br />

palavras juntas auxiliam na compreensão deste termo. Por desejo, entende-se o potencial que<br />

o design possui de despertar o interesse e de agregar valor. Por desenho, a preocupação<br />

estética, forma, beleza e a comunicação visual. E designo, a funcionalidade, ergonomia,<br />

preocupação com o usuário e principalmente a atividade projetual.<br />

A palavra <strong>Design</strong> tem sido empregada desde o ano 1580, mas sua primeira acepção<br />

foi documentada em 1588 no Oxford English Dictionary, que o definia como “um plano ou<br />

um esboço concebido pelo homem para algo que se há de se realizar, um primeiro esboço<br />

desenhado para uma obra de arte ou um objeto de arte aplicada, necessário para a sua<br />

execução” (PIRES, 2008, p.96).<br />

A partir do século XX, novas definições mais complexas para o termo foram traçadas,<br />

e o design foi sendo configurado, cada vez mais, como um processo projetual. O design<br />

hoje, enquanto uma atividade engloba inúmeras áreas de trabalho e pesquisa, que tiveram,<br />

inclusive, percursos históricos diferentes, os quais só cruzaram-se quando o perfil do design<br />

como uma atividade multidisciplinar foi traçado.<br />

As definições atuais para o termo situam as atividades do design num patamar ainda<br />

mais abrangente. Diversos autores, entre eles Niemeyer (2000), Pires (2008) e Cardoso (2004),<br />

entende-se o design como sendo o conjunto de atividades teóricas e práticas que objetivam<br />

o desenvolvimento de projetos industriais, que por sua vez, têm como finalidade a realização<br />

de produtos ou serviços que buscam suprir as necessidades humanas. Lobach (2000, p.22)<br />

define design como “o processo de adaptação do ambiente artificial às necessidades físicas<br />

e psíquicas dos homens na sociedade”. Sendo assim, o design deve estar relacionado com<br />

todas as dimensões do produto, sejam elas funcionais, estéticas ou simbólicas.<br />

O design também deve atuar em todo o ciclo de vida do produto e não apenas na sua<br />

concepção - desde a sua criação, até a fabricação, distribuição, uso e descarte. Segundo<br />

definição do International Council <strong>Design</strong> of Societies of Industrial <strong>Design</strong> (ICSID, 2008) o<br />

design é uma atividade criativa cuja finalidade é estabelecer as qualidades multifacetadas de<br />

objetos, processos, serviços e seus sistemas, compreendendo todo o seu ciclo de vida.<br />

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Profissão: designer de moda<br />

Assim, hoje o design pode ser entendido como uma atividade multi e interdisciplinar,<br />

que permeia todo o processo destinado à reprodução industrial realizando a manipulação de<br />

um conjunto de conhecimento e informações de ordem técnica, ergonômica, psicológica,<br />

mercadológica, estética, econômica e cultural, gerando alternativas, até o encontro de uma<br />

solução final para o produto. É um trabalho de caráter multidisciplinar, onde diversas áreas do<br />

conhecimento relacionam-se, de acordo com a natureza do projeto, contribuindo para uma<br />

solução final em termos de produto.<br />

A profissão<br />

No Brasil, a profissão designer não é regulamentada, embora ela conste no Catálogo<br />

Geral de Profissões do Ministério do Trabalho (ESCOREL, 1999). Existem, no entanto,<br />

associações profissionais, de caráter cultural e representativo.<br />

Cursos especializados têm sido abertos todos os anos, o que gera um aumento<br />

significativo da oferta de mão-de-obra. “O aumento da porcentagem de profissionais formados,<br />

por sua vez, coincidiu com a chegada do computador que revolucionou a maneira de projetar<br />

e produzir, acarretando, entre outras coisas, uma redução substancial dos preços cobrados”<br />

(ESCOREL, 1999, p.92).<br />

O avanço da tecnologia e da informação facilitou o acesso ao uso de certas ferramentas<br />

do design, e neste panorama surgiram os famosos “micreiros” – profissionais capazes de<br />

operar os softwares, porém sem formação suficiente para realmente aplicar a tecnologia,<br />

usando-a muitas vezes de forma aleatória.<br />

Muitas pessoas e empresas contratam este “designer” para desenvolver seus trabalhos,<br />

pelo valor que normalmente é cobrado por esse profissional – abaixo do custo real – ou<br />

pelos prazos ou pelas facilidades que eles oferecem ao cliente. “Por vezes, estes clientes<br />

relatam posteriormente que o gasto foi ainda maior que se tivessem realmente contratado<br />

um profissional da área, ou que o trabalho desenvolvido não atingiu a qualidade esperada”<br />

(ALBUQUERQUE, 2008, p.2).<br />

Neste sentido, apesar de todas as tentativas realizadas por profissionais e teóricos<br />

para estabelecer o real significado e abrangência da profissão “designer”, esta ainda é vista,<br />

pela sociedade em geral, como uma atividade meramente empírica, que preocupa-se apenas<br />

com questões estéticas. Tal visão obviamente traduz de forma errônea e simplificada os<br />

aspectos da profissão, pois, segundo Whiteley (1998), cabe aos designers considerar não<br />

apenas as questões artísticas, mas também as questões sociais, econômicas, políticas, éticas,<br />

tecnológicas, ecológicas e ambientais de seus projetos.<br />

Entre os próprios designers, pode-se encontrar duas vertentes mais comuns: aqueles<br />

que acreditam no potencial artístico do design e aqueles que defendem um maior tecnicismo<br />

e formalismo do design, baseados principalmente nas duas maiores escolas de design do<br />

século XX, a Bauhaus (Alemanha 1919-1933) e Escola de Ulm (Alemanha 1953-1968). Whiteley<br />

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Profissão: designer de moda<br />

(1998) aborda de forma mais detalhada este tema, classificando em seis os diferentes tipos<br />

de designers existentes: o designer formalizado, o designer teorizado, o designer politizado,<br />

o designer consumista, o designer tecnológico e, por fim, o designer valorizado, sendo este<br />

último uma proposta do próprio autor, considerada ideal, pois define um profissional mais<br />

completo, que une de forma coerente a teoria e a prática.<br />

Todos os anos surgem novos profissionais de design, e a cada ano são criados novos<br />

espaços e abrangências. Segundo Albuquerque (2008) atualmente existe mais de seis difusões,<br />

que ramificam-se, tais como o design gráfico, design de produto, design editorial, design de<br />

embalagem, design de multimídia e/ou mídia eletrônica, design ambiental e design de moda.<br />

Nesse sentido, Gomes Filho (2006, p.15) explica que “o campo do design se fraciona<br />

cada vez mais em diversas especialidades ditadas pelo mercado”. As particularidades das<br />

áreas de atuação do design encontram-se amplamente subdivididas, como mostra a Tabela 1.<br />

O que acaba por resultar em certa confusão na medida em que determinadas especialidades<br />

se desdobram e se sobrepõe, quando na verdade possuem significados muito próximos.<br />

Contexto internacional Equivalência aproximada Contexto nacional<br />

Industrial <strong>Design</strong><br />

<strong>Design</strong> Industrial<br />

Object <strong>Design</strong><br />

<strong>Design</strong> do Objeto<br />

Furniture <strong>Design</strong><br />

<strong>Design</strong> de Equipamentos Urbanos<br />

Automobile <strong>Design</strong><br />

<strong>Design</strong> de Mobiliário<br />

Computer <strong>Design</strong><br />

<strong>Design</strong> Automobilístico<br />

Hardware <strong>Design</strong><br />

<strong>Design</strong> de Computador<br />

Packging <strong>Design</strong><br />

<strong>Design</strong> de Máquinas e Equipamentos <strong>Design</strong> de produto<br />

Food <strong>Design</strong><br />

<strong>Design</strong> de Embalagens<br />

Jeweley <strong>Design</strong><br />

<strong>Design</strong> de Alimentos<br />

Sound <strong>Design</strong><br />

<strong>Design</strong> de Jóias<br />

Lighting <strong>Design</strong><br />

<strong>Design</strong> de Sistemas de Som<br />

Textile <strong>Design</strong><br />

<strong>Design</strong> de Sistemas de Iluminação<br />

<strong>Design</strong> Têxtil<br />

Communications <strong>Design</strong> <strong>Design</strong> de Sistemas Comunicativos<br />

Commercial <strong>Design</strong><br />

<strong>Design</strong> gráfico<br />

Corporate <strong>Design</strong><br />

<strong>Design</strong> de Identidade Corporativa<br />

Information <strong>Design</strong><br />

Tabletop <strong>Design</strong><br />

<strong>Design</strong> de Sistemas de Informação<br />

<strong>Design</strong> de Editoração<br />

<strong>Design</strong> Gráfico<br />

Media <strong>Design</strong><br />

<strong>Design</strong> de Meios de Comunicação<br />

Software <strong>Design</strong><br />

<strong>Design</strong> de Programas<br />

Fashion <strong>Design</strong> <strong>Design</strong> de <strong>Moda</strong> <strong>Design</strong> de <strong>Moda</strong><br />

Interior <strong>Design</strong> <strong>Design</strong> de Interiores <strong>Design</strong> de Ambientes<br />

Re-<strong>Design</strong> Redesign Redesign<br />

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Profissão: designer de moda<br />

Conceptual <strong>Design</strong><br />

Counterdesign<br />

Antidesign<br />

Radicaldesign<br />

Avant-Garde <strong>Design</strong><br />

Bio-<strong>Design</strong><br />

Eco-<strong>Design</strong><br />

Universal <strong>Design</strong><br />

<strong>Design</strong> Conceitual<br />

Counterdesign<br />

Antidesign<br />

Radicaldesign<br />

Avant-Garde <strong>Design</strong><br />

Bio-<strong>Design</strong><br />

Eco-<strong>Design</strong><br />

Universal <strong>Design</strong><br />

<strong>Design</strong> Conceitual<br />

Interface <strong>Design</strong> <strong>Design</strong> de Interfaces <strong>Design</strong> de Interfaces<br />

Fonte: Haufle, 1996 apud Gomes Filho, 2006<br />

Na pesquisa científica podemos encontrar o design também subdividido em suas<br />

difusões de conhecimento como mostra a Figura 2, que representa as diversas áreas de<br />

abrangência de artigos no P&D no ano de 2006.<br />

Figura 2 – As diversas áreas do <strong>Design</strong> (distribuição de artigos por área no P&D 2006)<br />

Fonte: Amstel 2006<br />

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Profissão: designer de moda<br />

Percebe-se que o <strong>Design</strong> de <strong>Moda</strong> é citado em todas as classificações de especialidades<br />

de atuação do design, sendo, em comparação, uma área mais nova. Gomes Filho (2006, p.29)<br />

descreve o design de moda como “especialidade ou área de atuação que envolve a criação,<br />

o desenvolvimento e a confecção de produtos da moda e atinge diversos segmentos de<br />

utilização, relacionados com o uso de objetos diretamente sobre o corpo”.<br />

<strong>Design</strong> de <strong>Moda</strong><br />

As pesquisas na área do design voltam-se cada vez mais para o universo da moda.<br />

Essa aproximação não está somente marcada pela inserção da palavra designer para nomear<br />

o profissional de moda, mas sim a partir de seu conceito, que passou a participar e conduzir<br />

os processos da moda.<br />

Segundo Palomino (2003), o termo moda surgiu por volta dos séculos XIV e XV, na Europa<br />

Ocidental e atingiu sua plenitude com os processos industriais de produção e aprimoramento<br />

dos aspectos estéticos e técnicos dos produtos industrializados.<br />

O fenômeno moda serviu de alicerce para manutenção de tradições, elementos<br />

distintivos entre classes, funções sociais, simbolismos, suporte para informações a respeito do<br />

individuo e de grupos a que pertence. O vestuário tornou-se, em grande parte por seu caráter<br />

simbólico, a primeira materialização do fenômeno moda.<br />

A moda possui significado abrangente por estar presente nos mais diversos produtos e<br />

como fenômeno social. Rech (2002, p.29) a define pelas “mudanças sociológicas, psicológicas<br />

e estéticas, intrínsecas à arquitetura, às artes visuais, a musica, à religião, à política, à literatura,<br />

à perspectiva filosófica, à decoração e ao vestuário”.<br />

O vestuário inserido no sistema de moda tem por finalidade, além de vestir o corpo,<br />

outras associações como satisfação de necessidades emocionais do consumidor-usuário.<br />

Produtos destinados ao consumo como as roupas denotam aspectos sociais, econômicos,<br />

ambientais e mercadológicos. Diante dessa premissa Montemezzo (2003, p.34) afirma:<br />

Se a concepção destes produtos envolve a articulação de fatores sociais,<br />

antropológicos, ecológicos, ergonômicos, tecnológicos e econômicos,<br />

em coerência às necessidades e desejos de um mercado consumidor, é<br />

pertinente afirmar que tal processo se encaixa perfeitamente na conduta<br />

criativa da resolução de problemas de design.<br />

Ao longo dos tempos surgiram diversas perspectivas de abordagem ao conceito de<br />

design na tentativa de encontrar uma definição completa para este conceito. Assim, o design<br />

é compreendido como metodologia de trabalho e a sua preocupação com a forma, a estética<br />

e a função do objeto.<br />

Desta forma, percebe-se que os objetivos e procedimentos da concepção do vestuário<br />

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Profissão: designer de moda<br />

assemelham-se ao processo de desenvolvimento de objetos de design ao considerar que<br />

os dois métodos participam de um mesmo ponto de vista da metodologia de projeto e da<br />

satisfação das necessidades e anseios dos usuários.<br />

Assim, design e moda encaixam-se na condução do processo criativo e agregam-se<br />

no conjunto de desenvolvimento do produto. A partir desta afirmativa, Pires (2004) explica que<br />

fazer design é designar aspectos de formas, silhuetas, texturas, cores, materiais, emoções<br />

associando-se a ergonomia na ampliação de benefícios, voltada para soluções estéticas,<br />

funcionais e confortáveis.<br />

Desta forma, o design de moda é a concepção de produtos representados em geral,<br />

por peças, aviamentos, acessórios e roupas que mantém interfaces com o design gráfico e,<br />

principalmente, com o design do produto no que se refere aos acessórios em geral (GOMES<br />

FILHO, 2006).<br />

O vestuário como resultado de um processo de design é denominado produto de moda,<br />

cujo princípio é atender as necessidades de determinado público consumidor, conforme o seu<br />

estilo de vida. De acordo com Rech (2002, p.37) o produto de moda pode ser conceituado<br />

como:<br />

[...] qualquer elemento ou serviço que conjugue as propriedades de<br />

criação (design e tendências de moda), qualidade (conceitual e física),<br />

vestibilidade, aparência (apresentação) e preço a partir das vontades e<br />

anseios do segmento de mercado ao qual o produto se destina.<br />

O processo de design do vestuário deve então, conciliar as características materiais e<br />

tecnológicas adequadas ao ponto de vista do grupo social em questão, agregando valores<br />

estilísticos, estudando a produção, o consumo e os valores de concorrência dos bens<br />

produzidos.<br />

Emerenciano e Waechter (2006) acreditam que ao abordar o produto vestuário pelo<br />

enfoque do design propicia-se uma apreciação abrangente de sua situação de uso seja ela<br />

de consumo ou utilização propriamente dita e ainda possibilita otimização de processos e<br />

utilização de materiais que garantem à diferenciação e exclusividade desses produtos.<br />

Considerações Finais<br />

A atividade do designer fortaleceu-se com o surgimento das indústrias e escolas de<br />

design, já que por meios destas, grande parte dos objetivos da área tornaram-se mais claros<br />

e definidos, como o foco de produção com um fim social.<br />

Ainda que não regulamentada, a profissão vem sendo delineada e continua modificadose<br />

e adquirindo novas ramificações atreladas à inovação e ao comportamento humano e suas<br />

necessidades, as quais também evoluem e alteram-se todos os dias.<br />

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Profissão: designer de moda<br />

Mais do que nunca, os produtos de design representam a cultura mundial e influenciam<br />

a qualidade do nosso ambiente e do nosso cotidiano. Desta forma, o designer necessita refletir<br />

sobre seus atos e projetos para assim encontrar novos caminhos para ajudar as empresas a<br />

promover uma real melhoria na condição de vida das pessoas, sem deixar de lado questões<br />

relativamente novas, mas que tornaram-se primordiais para a prática do design.<br />

Os projetos de design em geral devem responder às necessidades técnicas, funcionais<br />

e culturais da sociedade, propondo soluções inovadoras que comuniquem significado e<br />

emoção, que transcendam idealmente as suas formas, estrutura e fabrico. É necessário ainda<br />

que o profissional do design possua destreza, capacidade interpretativa, racionalidade efetiva,<br />

preocupação social e ética, para que as novas tecnologias aliadas ao design possam propor<br />

objetos inteligentes, resultando trocas físicas e psíquicas em resposta às nossas necessidades<br />

e ao nosso tempo.<br />

Especificamente o designer de moda é um profissional diretamente ligado a questões<br />

que têm como objetivo a concepção, criação e acompanhamento de peças do vestuário e<br />

acessórios, sempre preocupado-se com o mercado, ou seja, com foco principal na satisfação<br />

das necessidades e desejos do consumidor.<br />

O designer de moda deve, além de criar, estar atento a todo o processo de gestão de<br />

produto, desde a sua concepção, até sua distribuição, estando atento aos diversos setores<br />

pelos quais o seu produto passa até chegar ao consumidor.<br />

A formação desse profissional no Brasil é recente e está em processo de evolução.<br />

Segundo Hoffmann (2009) até o ano de 2007 o Brasil possuía 81 cursos de graduação na área<br />

de <strong>Moda</strong> distribuídos em 52 cidades em 17 estados. Dos 81 cursos voltados à moda no Brasil,<br />

58 foram criados a partir de 2000 e o mais antigo foi autorizado pelo Ministério da Educação e<br />

Cultura (MEC) em 1989. Ou seja, são cursos novos e percebe-se que nos últimos anos houve<br />

um grande volume de cursos em implantação. A pós-graduação, também ainda é pouco<br />

difundida, com poucos cursos disponíveis e abrangendo poucas áreas de atuação da moda.<br />

Sabe-se porem quem nem todos os cursos na área da moda são concebidos a partir<br />

da metodologia do design. Realidade essa, que é motivo de grandes discussões e possíveis<br />

mudanças, devido à grande importância da aplicação dos conhecimentos do design no<br />

desenvolvimento de produtos moda.<br />

Sousa et al (2010) explica que a formação em moda oferecida pela maioria das instituições<br />

superiores brasileiras passou a ser norteada pelas Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso<br />

de Graduação em <strong>Design</strong>, consolidadas na Resolução CNE/CES nº 05, de 8 de março de<br />

2004. Este documento influenciou diretamente a conformação dos projetos pedagógicos da<br />

área, levando ainda a um processo de ajuste dos cursos criados anteriormente, de modo a<br />

manterem o direito de funcionar e conquistarem reconhecimento social.<br />

Tais diretrizes têm permeado a cultura de ensino de moda no Brasil com conhecimentos<br />

e práticas do campo do design que passaram a conviver com o campo da moda.<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

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Profissão: designer de moda<br />

Para o profissional designer de moda existe o desafio de conferir serenidade e conteúdo<br />

ao campo da moda, o que somente será conquistado com investimentos em pesquisa,<br />

qualificação e capacitação dos profissionais.<br />

Referências<br />

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DESIGNERS: ENTRE CéTICOS E DOGMáTICOS<br />

Diego Daniel Casas; Mestrando em <strong>Design</strong> Gráfi co: UFSC<br />

Ricardo Goulart Tredezini Straioto; Mestrando em <strong>Design</strong> Gráfi co: UFSC<br />

Richard Perassi Luiz de Sousa; Prof. Dr. do Departamento de Expressão Gráfi ca: UFSC<br />

Resumo<br />

Ao longo dos anos, o design passou por transformações que<br />

alteraram seu discurso e objetivo inicial, o que, em certa medida,<br />

reflete seu amadurecimento e seu reconhecimento social,<br />

principalmente ao deixar de ser uma vanguarda, ou um projeto<br />

alternativo, e passar a ser absorvido pela empresas e pela<br />

sociedade, através da consolidação de um mercado de design. E<br />

apesar de aparentarem certo distanciamento, o pensamento cético<br />

e o design possuem relação estreita. Este artigo objetiva confrontar<br />

o design e algumas de suas perspectivas com o pensamento<br />

cético, no intuito de constituir uma relação entre as abordagens<br />

de design e suas possíveis bases epistemológicas. Como<br />

metodologia para alcançar o objetivo foi utilizada uma pesquisa<br />

exploratória e bibliográfica. Os resultados alcançados ressaltam<br />

que a divisão entre as abordagens de design é, em certa medida,<br />

artificial, como se elas pudessem representar categorias distintas<br />

e grupos exclusivos de indivíduos. É possível também notar que<br />

o pensamento cético e o design possuem íntima relação e tanto<br />

a abordagem de design, como a postura cética ou dogmática em<br />

relação a tal abordagem, devem, ambas, ser fruto reflexão dos<br />

designers.<br />

Palavras-Chave: design; ceticismo; epistemologia<br />

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<strong>Design</strong>ers: entre céticos e dogmáticos<br />

Introdução<br />

Mesmo aparentemente distantes, o pensamento cético e o design possuem uma<br />

relação estreita. De modo que o ceticismo e seu oposto, o dogmatismo, estão presentes<br />

cotidianamente no modo de agir e pensar dos profissionais ligados a atividade de design.<br />

A proposta do artigo é confrontar o design, em suas principais perspectivas, com as<br />

bases do pensamento cético, a fim de estabelecer uma relação entre as abordagens de design<br />

e suas possíveis bases epistemológicas.<br />

Com o passar dos anos, desde sua fundação, o design passou por transformações que<br />

alteraram seu discurso e objetivo inicial, que, em certa medida, reflete seu amadurecimento<br />

e seu reconhecimento social, principalmente ao deixar de ser uma vanguarda, ou um projeto<br />

alternativo, e passar a ser absorvido pela empresas e pela sociedade, através da consolidação<br />

de um mercado de design.<br />

Essa discussão tem como embasamento a análise de Nuno Portas (1993), sobre as<br />

três principais correntes ou tendências em <strong>Design</strong>, que, segundo ele, norteiam a formação e<br />

a visão da maioria dos profissionais da área sobre a atividade e, conseqüentemente, as ações<br />

projetuais e as políticas desenvolvidas pelos mesmos.<br />

Como suporte e complementação a abordagem de Portas, utilizaremos a reflexão<br />

crítica de Norberto Chaves (2001) sobre os discursos assumidos pelo design no decorrer<br />

de sua trajetória, polarizados e contrastados como discurso dos fundadores e discurso do<br />

mercado, mas também se referindo a uma terceira corrente pós-moderna, que nesse ponto se<br />

diferencia de Portas, e assim expande as perspectivas sobre os rumos da atividade de design.<br />

O pensamento cético, em síntese, pode ser encarado como a suspensão do juízo,<br />

sem aceitar ou negar uma teoria, o que demonstra seu caráter de investigação permanente.<br />

O cético pirrônico, conforme Sexto Empírico, também pode propor teorias, mas, no entanto,<br />

a diferença entre ele e o dogmático, é que o cético suspende o juízo e continua investigando.<br />

Conforme o Dicionário Básico de Filosofia (JAPIASSÚ, 1990), por oposição ao ceticismo, o<br />

dogmatismo é a atitude que consiste em admitir a possibilidade, para a razão humana, de<br />

chegar a verdades absolutamente certas e seguras. Na concepção cética geral, portanto, a<br />

especulação filosófica daria lugar ao senso comum e à vida prática.<br />

Considerando apenas o que é aceito no senso comum entre os autores de design<br />

utilizados que, como vimos, é uma das essências do pensamento cético, a ênfase se dará,<br />

então, na abordagem funcionalista relacionada com o discurso dos fundadores da teoria do<br />

design, e a abordagem do Styling adotada pelos agentes do mercado. Essa duas abordagens<br />

são aproximadas do pensamento cético, através de seus principais expoentes - como<br />

Sexto Empírico, Descartes, Hume, Kant entre outros, e assim, buscar estabelecer relações<br />

epistemológicas das duas principais correntes de design. As outras perspectivas também<br />

são indicadas no texto, como concepção sistêmica ou ecológica (Portas) e a pós-moderna<br />

(Chaves), porém sem o mesmo destaque das duas anteriores por não serem consensuais<br />

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<strong>Design</strong>ers: entre céticos e dogmáticos<br />

entre os autores.<br />

Em suma, o presente estudo aborda também a transformação do design no decorrer<br />

dos tempos, de sua origem até a atualidade, traçando um paralelo com o pensamento<br />

cético. Busca contrastar as principais correntes de design, desde a origem funcionalista e<br />

mais dogmática, passando pelo Styling e pelo pragmatismo em relação ao êxito de mercado.<br />

Encerra-se com as correntes mais recentes, como a pós-moderna e o design sistêmico,<br />

que de certa forma se caracterizam, respectivamente, como uma postura mais cética e mais<br />

dogmática em relação ao design.<br />

Os pensamentos cético e dogmático no design<br />

Para Lobach (2001), o design pode ser compreendido, no sentido amplo, como a<br />

concretização de uma ideia em forma de projetos. Para o cético, o conhecimento do real é<br />

impossível à razão humana, portanto o homem deve renunciar à certeza, suspender seu juízo<br />

sobre as coisas e submeter toda afirmação a uma dúvida constante. E ser dogmático, consiste<br />

em admitir a possibilidade, para a razão humana, de chegar a verdades absolutamente certas<br />

e seguras.<br />

Uma aplicação rápida dos pensamentos acima, em relação aos projetos do design, é<br />

o exemplo do walkman, representado pela Figura 01. Ele demonstra o potencial do design no<br />

surgimento de novos produtos, utilizando-se do ceticismo metodológico para refutar propostas<br />

de produtos que não “resolvem o problema”. Como resultado desse processo tem-se um<br />

produto que resistiu a todas as dúvidas impostas sobre suas qualidades, sobre o atendimento<br />

das necessidades do usuário, aos aspectos técnicos de sua produção e comercialização e,<br />

mais recentemente, até mesmo sobre o seu descarte.<br />

Figura 01 - Evolução players<br />

Fonte: arquivo dos autores.<br />

De certa forma, portanto, o designer é cético com relação ao fato de ter alcançado<br />

definitivamente a melhor forma para uma determinada função. Pois, como no exemplo anterior<br />

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<strong>Design</strong>ers: entre céticos e dogmáticos<br />

(fig.01), os produtos sempre se transformam para atender uma mesma função, quando não é<br />

a própria a função que se altera. Por outro lado, o designer também precisa ser pontualmente<br />

dogmático, porque cada produto é uma espécie de teoria, ou enunciado, que corresponde a<br />

uma resposta considerada verdadeira com relação ao atendimento da necessidade proposta.<br />

Nesse sentido, em certos casos, o designer assume o pragmatismo dos céticos, considerando<br />

certos procedimentos e produtos úteis, apesar de não serem necessariamente “verdadeiros”.<br />

Em outros casos, entretanto, assume o dogmatismo ao mostrar-se convencido de que design<br />

é ciência capaz de encontrar a verdade.<br />

Conforme Burdek (1999), todo objeto de design há de ser entendido como resultado<br />

de um processo de desenvolvimento que sempre reflete nas condições sob as quais surgiu:<br />

o contexto histórico, social e cultural, as limitações da técnica e da produção, os requisitos<br />

ergonômicos, ecológicos, os interesses econômicos, políticos e até as aspirações artísticas.<br />

A partir disso, podemos considerar as constantes mudanças sócio-culturais que, com<br />

o passar dos anos, mudam as necessidades, gerando demandas por novas funções para<br />

produtos já existentes e, também, por novos produtos. O designer, como atuante fundamental<br />

no sistema de produção e consumo, deve estar atento às mudanças, visando aprimorar e<br />

adequar o sistema sócio-produtivo.<br />

Relações entre design e ceticismo<br />

O ceticismo inspira a atitude crítica e questionadora da filosofia contemporânea, como<br />

a relatividade do conhecimento e dos limites da razão e da ciência, que a epistemologia<br />

atual trata. Desde a antiguidade, existem os filósofos céticos e os filósofos dogmáticos. Os<br />

primeiros se recusam a crer nas verdades estabelecidas, enquanto os segundos defendem<br />

as verdades de sua “escola”. No <strong>Design</strong>, dentro das suas diversas abordagens e “escolas”, a<br />

atitude cética e a dogmática pode ser utilizada como extremos de uma escala para posicionar<br />

o comportamento, ou mesmo o discurso dos profissionais da área. Como vimos, a relação<br />

entre design e ceticismo é clara ao observarmos o desenvolvimento dos produtos, mas, a<br />

partir de agora, passaremos a confrontar as diversas “escolas de pensamento” ou “discursos”<br />

de design com o pensamento cético e a epistemologia.<br />

O <strong>Design</strong>er Funcionalista e o discurso dos fundadores<br />

Azevedo (1998) afirma que, para compreender melhor a atividade do design é preciso<br />

observar os movimentos que, ao passar do tempo, incentivaram o homem na busca por<br />

novas formas, materiais e métodos. Mas, em essência, a idéia de design surge no mundo<br />

quando o homem começa fazer suas ferramentas e objetos. Principalmente antes do século<br />

XX, a confecção de um objeto era função do artesão. Mas com o surgimento da indústria,<br />

tornou-se necessário aproximar a atividade do artesão e da máquina, pois era preciso adaptar<br />

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<strong>Design</strong>ers: entre céticos e dogmáticos<br />

o processo de construção do objeto de modo a facilitar sua produção pela máquina. Assim,<br />

a partir do modelo industrial de produção, o processo de concepção do objeto passou a ser<br />

entendido como design, ou mesmo, como desenho industrial.<br />

Com origens histórica na Europa Central do primeiro pós-guerra, sobretudo, lançado<br />

pela escola alemã Bauhaus, o design assumia um discurso essencialmente funcionalista, na<br />

medida em que a criação da forma dos produtos deveria traduzir a constituição lógica da<br />

produção do objeto e, sobretudo, a lógica da sua função – da utilidade, do uso – a que se<br />

destinava. O que levou ao desenvolvimento de múltiplos estudos – como a ergonomia - da<br />

adaptação dos utensílios e espaços ao homem (PORTAS, 1993).<br />

Isso porque, segundo Portas (1993), o designer honestamente funcionalista deve<br />

racionalizar a concepção do produto para, sobretudo, torná-lo mais útil e adaptado, melhor<br />

manipulável pelo usuário, cujas atividades ou necessidades se vão conhecendo pela via<br />

científica e não por questões de marketing. Preocupando-se principalmente com o uso<br />

imediato do objeto e em melhorar sua utilidade dentro das condições econômicas e técnicas<br />

aceitáveis pela indústria. (grifo nosso)<br />

Conforme Chaves (2001), este é o estágio inicial da emergência do design, aparecendo<br />

como uma alternativa a todas as formas prévias de definição da forma dos produtos de uso<br />

e do habitat. Em seguida o design foi englobando praticamente a totalidade da produção<br />

material. Dessa forma, o design veio ser a linguagem e a expressão da própria revolução<br />

industrial.<br />

Ainda segundo Chaves (2001) o discurso funcionalista, não somente segue vivo,<br />

como em alguns casos é o único possível, pois para certos problemas possui uma eficácia<br />

incontestável. Porém, a relação imaginária que os designers estabeleciam com o usuário, como<br />

este sendo uma espécie de ser supremo dotado de necessidades objetivas, imaginado a partir<br />

de um modelo de “usuário” concebido como imagem e semelhança da utopia intelectual do<br />

setor. Este usuário era um ente anatômico e fisiológico carregado de necessidades práticas,<br />

privado de história e pré-disposições culturais socialmente adquiridas, que não coincidia com<br />

nenhum setor concreto da população.<br />

De certo modo, este corrente ou escola de design, é que mais se aproxima da postura<br />

puramente dogmática, com fortes influências epistemológicas do Racionalismo e do Positivismo.<br />

Isso porque a ênfase na racionalização do produto e até mesmo do próprio usuário aproxima-se<br />

do Racionalismo, que tem na razão o fundamento de todo o conhecimento possível, e, portanto<br />

somente ela é capaz de conhecer o real. Nesse ponto, em relação ao pensamento cético, a<br />

perspectiva funcionalista do design aproxima-se do ceticismo metodológico de Descartes,<br />

que, segundo Dutra (2005) é voltado para a compreensão do ceticismo como atitude de<br />

duvidar de nossas opiniões - Cogito, ergo sum -, confiando que aquelas que realmente forem<br />

expressão da “verdade” irão resistir a qualquer dúvida, e assim, defender opiniões, teorias e<br />

teses ou, conforme os céticos, estabelecer dogmas.<br />

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<strong>Design</strong>ers: entre céticos e dogmáticos<br />

A preferência pela via científica de aquisição de informações corresponde à abordagem<br />

Positivista, que pregava a cientifização do pensamento e dos estudos humanos, para obter<br />

resultados verdadeiros: claros, objetivos e completamente corretos. O fundador desse<br />

movimento, Auguste Comte (1798-1857), acreditava num ideal de neutralidade, isto é, na<br />

separação entre o pesquisador/autor e seu objeto de pesquisa. A ciência retrataria de forma<br />

neutra e clara uma dada realidade a partir de seus fatos, sem recorrer a opiniões e julgamentos<br />

do pesquisador.<br />

Styling no discurso do mercado<br />

Conforme a análise de Chaves (2001), com o tempo o design torna-se um instrumento<br />

indispensável da sociedade contemporânea, deixa de ser uma proposta e torna-se uma cultura<br />

efetiva, com um mercado concreto de design, onde existem produtores, distribuidores e<br />

consumidores de design. Este metabolismo social da disciplina definiu uma estrutura e conteúdos<br />

bastante distintos dos iniciais. Enquanto no inicio, os agentes eram a própria vanguarda<br />

da arquitetura e do design, como agentes econômicos diretos, posteriormente, o design é<br />

desenvolvido por empresas, corporações e organismos vinculados com o desenvolvimento<br />

dos mercados. Então, o discurso do design passa das mãos das vanguardas às mãos das<br />

empresas e, logo, surgem novas razões, novos princípios e novos sentidos para a disciplina.<br />

Este novo discurso de design, segundo Portas (1993) ficou na história com o nome de<br />

Styling, com origem na América do Norte no período entre guerras e, no pós-guerra na Europa<br />

e no Japão, e corresponde à imagem mais comum que se tem de design na atualidade, que<br />

é “a do embelezamento de um dado produto para o tonar mais atrativo em termos de venda,<br />

ou seja, como fator adicional de competitividade comercial” (PORTAS, 1993, p.233).<br />

O discurso do Styling quase não tem nenhuma palavra em comum com o discurso inicial.<br />

Segundo Chaves (2001), neste contexto a sociedade virou “mercado”, o usuário tornouse<br />

“consumidor”, a qualidade de design tornou-se “valor agregado”, produto é “mercadoria”,<br />

satisfação de necessidades de uso é “motivação de compra”, racionalidade é “competitividade”.<br />

O racional é aquilo que consegue resolver o problema de ingressar no mercado, está é a<br />

racionalidade da sociedade atual.<br />

O racional não é produzir algo intrinsecamente bom, mas produzir algo que funcione<br />

na lógica do mercado. É o discurso da gestão empresarial do design, o discurso do marketing,<br />

o discurso promocional das instituições de apoio e desenvolvimento da competitividade<br />

das empresas. É o que Chaves (2001) chamou de “razão pragmática”, em contraste com os<br />

fundadores, cuja razão foi rotulada por ele como “razão ingênua”, em virtude de excesso de<br />

crença na razão e na neutralidade da ciência.<br />

Sendo que o Pragmatismo considera o conhecimento humano com um caráter utilitário<br />

e operacional, o que conduz ao tema da ação, de nossa atuação no mundo, das consequências<br />

que ela produz e sua relação com o próprio conhecimento. De forma geral, o Pragma-<br />

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<strong>Design</strong>ers: entre céticos e dogmáticos<br />

tismo americano, principalmente de Dewey, se concentra na tese de que o significado de um<br />

conceito reside em sua consequências, e não na forma como o idealizamos (DUTRA, 2005).<br />

Esse pragmatismo, de certo modo, aproxima-se do ceticismo pirrônico, que consiste<br />

em seguir as manifestações da natureza, os costumes da sociedade em que se vive, isso<br />

conduz também a adotar o significado comum dos termos, sem inquirir a todo o momento<br />

sobre o significado real dos termos. O significado que interessa é aquele que é eficiente na<br />

comunicação e entendimento dos falantes. (DUTRA, 2005, p.36-37)<br />

Sob o ponto de vista do Styling, o design “é o instrumento não da substituição de um<br />

produto por outro substancialmente melhor, mas sim da persuasão do consumidor para substituir<br />

os produtos que usa por outros, apenas porque o aspecto é diferente” (PORTAS, 1993,<br />

p.234).<br />

Volta-se a atenção, portanto, para parâmetros psicológicos principalmente através de<br />

estudos sobre o comportamento do consumidor. Isso propõe no campo filosófico uma retomada<br />

do ceticismo de David Hume (1711-1776), para quem nossas crenças ou opiniões sobre<br />

relações de causa e efeito não são legítimas no sentido de possuírem força de argumento,<br />

mas são inevitáveis em virtude de nossa constituição psicológica (DUTRA, 2005, p.34).<br />

É preciso destacar, ainda, as correntes antagonicas do behavorismo e do mentalismo‏.<br />

Para o Behavorismo o comportamento do humano é regido pelo ambiente, seja esse natural<br />

ou social, que abriga os indivíduos humanos ou animais. O Mentalismo, em oposição, propõe<br />

o comportamento do homem como produto dos processos mentais prévios à ação e internos<br />

ao indivíduo, como defende a psicologia cognitiva contemporânea (DUTRA, 2005).<br />

O Mentalismo apóia-se em pontos do ceticismo filosófico, ou melhor, na corrente intelectualista,<br />

como na filosofia de Kant, que reconhecia a possibilidade de existência dos objetos<br />

ou da coisa-em-si, mas considerava que nós apenas alcançamos o “fenômeno”, ou seja, o<br />

objeto da nossa experiência, decorrente da relação da coisa-em-si com a nossa estrutura de<br />

sensibilidade.<br />

A restrição do objeto ao fenômeno reforça o ceticismo grego, com Agripa e, principalmente,<br />

com Enesidemo, que “esforçaram-se para mostrar que os sentidos somente nos<br />

revelam a aparência e não a essência dos objetos, em outros termos, que as qualidade sensíveis<br />

não pertencem propriamente ao objeto, mas apenas impressões sentidas pelo sujeito”<br />

(VERDAN, 1998, p.97).<br />

O Styling, como corrente de design, apresenta em suas bases pontos de convergência<br />

com o pensamento cético e o pragmatismo, a partir do momento que desloca a atenção do<br />

objeto em si, para o fenômeno do consumo, ou seja, seu interesse principal não é configurar o<br />

melhor produto, mais sim, aquilo que apresenta os melhores resultados em termos de vendas<br />

no mercado.<br />

Conforme Chaves (2001, p.27), compreende-se que o empresário deve ser mais que<br />

um mero “fabricante”, porque precisa ser um excelente comunicador. Deve vender, indepen-<br />

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<strong>Design</strong>ers: entre céticos e dogmáticos<br />

dente do que e onde, pois o produto, como objeto concreto, tende a ter sua importância<br />

econômica diminuída em relação ao universo imaginário que o rodeia. Nessas condições, os<br />

designers tornam-se as “estrelas”, definindo-se pela sua capacidade de inovação estética e<br />

simbólica, porque o que vale agora é a incorporação de um elemento de inovação, que proponha<br />

um acontecimento atraente para o mercado, sem necessariamente buscar a solução<br />

de problemas relacionados às necessidades objetivas do usuário.<br />

Terceiras vias: o <strong>Design</strong>er Sistêmico e o Pós-moderno<br />

Nuno Portas (1993) apresenta a corrente do design sistêmico - ou ecológico - como<br />

terceira principal corrente de pensamento em design. Assim, diverge da análise crítica feita por<br />

Noberto Chaves (2001), que indica como alternativa a corrente pós-moderna em design que,<br />

segundo ele, representa o estágio atual do desenvolvimento cultural do Ocidente.<br />

Para Chaves (2001), o design pós-moderno combina valores das elites culturais com<br />

demandas irrenunciáveis do mercado, retendo os valores “universais” da disciplina articulados<br />

com a cultura do consumo. Para o autor, há uma “razão cínica”, com atributos como irracionalismo,<br />

formalismo, amoralismo, apoliticismo, individualismo, narcisismo, oportunismo outros.<br />

Isso provocou a hipertrofia da inovação formal que, geralmente, é observada nas áreas lentas<br />

ou paralisadas do mercado, onde não é mais possível introduzir inovações radicais.<br />

De certa forma, o design pós-moderno tem grande proximidade com a corrente Styling<br />

e, consequentemente, tende a se posicionar mais próxima da atitude cética, do que a corrente<br />

do design sistêmico. Segundo Portas (1993), o design sistêmico resulta do alargamento<br />

da visão do designer funcionalista. Desse modo, reconecta o design a uma perspectiva que<br />

transcende a lógica do produtor e do consumidor ou usuário, pois não se limita ao objeto em<br />

si, repensado-o como componente de sistemas mais vastos.<br />

Nessa linha, Manzini (2005) argumenta que o design assume uma abordagem sistêmica<br />

quando a tarefa de desenvolvimento de um novo produto torna-se o ato de projetar o ciclo<br />

de vida inteiro do sistema-produto, o que inclui a pré-produção, produção, distribuição, uso e<br />

descarte.<br />

Em última análise, entretanto, a corrente do design sistêmico tem uma proximidade<br />

maior com a atitude dogmática e, assim como o design funcionalista, apresenta uma argumentação<br />

baseada na racionalização do objeto, mesmo reconhecendo que “a simples racionalização<br />

tecnológica e formal pode ter na base uma irracionalidade de necessidades do<br />

ponto de vista da economia do país, dos interesses reais (não fictícios) dos consumidores ou<br />

do equilíbrio ecológico ou ambiental” (PORTAS, 1993, p.238).<br />

A Teoria Geral de Sistemas, uma das principais bases científicas da corrente do design<br />

sistêmico, propõe um programa ao mesmo tempo científico e filosófico que sem abandonar o<br />

rigor das ciências clássicas, exige a criação ou o aperfeiçoamento de uma linguagem própria,<br />

com esquemas teóricos particulares e, até mesmo, de uma particular “visão do mundo”.<br />

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<strong>Design</strong>ers: entre céticos e dogmáticos<br />

Neste ponto, cabe destacar outra contribuição do ceticismo de David Hume para a<br />

filosofia e para a ciência, considerando também sua contribuição para o design, cujo objetivo<br />

é determinar os limites da razão lógica e definir o domínio que lhe é próprio, a fim de evitar que<br />

ela se perca em problemas insolúveis (VERDAN, 2005). Essa é uma contribuição fundamental,<br />

principalmente, para a abordagem sistêmica, no que consiste em definir os limites do sistemaproduto.<br />

Pois, em última instância um produto se relaciona com praticamente todos os outros<br />

sistemas existentes.<br />

Considerações Finais<br />

A tradição do design clássico-positivista é incompatível com o ceticismo moral ou filosófico,<br />

porque é alinhada ao dogmatismo científico-positivista. A origem teórica do design<br />

é idealista/racionalista e sua prática é funcionalista, como decorrência direta da Revolução<br />

Industrial, que foi um fenômeno material e social decorrente da matriz ideológica positivista.<br />

Na cultura ocidental, entretanto, o positivismo foi superado pelo liberalismo, promovendo<br />

a superação do racionalismo pelo pragmatismo, que uma das expressões possíveis do<br />

ceticismo. O percurso que destituiu o racionalismo dando lugar ao pragmatismo foi expresso<br />

e percebido na evolução do design no Ocidente.<br />

O imediatismo pragmático, contudo, está sob suspeição, na medida em que o consumo<br />

desenfreado provoca o desperdício dos recursos materiais não renováveis em função<br />

da necessidade de renovação simbólica como estratégia de renovação do próprio consumo.<br />

Essa situação de calamidade eminente propôs o discurso da sustentabilidade ambiental que<br />

envolve o reaproveitamento de matéria prima e a suspensão do abuso sobre os recursos naturais.<br />

O design sistêmico que prevê o planejamento de todo ciclo do produto, da concepção<br />

ao descarte, apresenta-se como a solução possível para garantir a renovação dos recursos de<br />

produção e a renovação dos ciclos de consumo, ampliando a esfera do consumo simbólico e<br />

restringindo o desperdício de recursos não renováveis.<br />

A divisão entre as abordagens do design é, portanto, em certa medida, artificial, porque<br />

não representam realidades ou categorias totalmente distintas. Essas abordagens diferenciadas<br />

assinalam a própria evolução da cultura industrial e pós-industrial com relação:<br />

1- A necessidade primeira de atendimento à grande demanda reprimida de consumo<br />

de bens industrializados, que vinha como herança da era artesanal;<br />

2- A necessidade posterior de ampliação do consumo, diante da demanda por<br />

ampliação dos postos de trabalho e a consequente necessidade de ampliação dos<br />

setores produtivos;<br />

3- A necessidade de manutenção e ampliação do consumo e dos postos de trabalho<br />

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<strong>Design</strong>ers: entre céticos e dogmáticos<br />

nos setores produtivos, mas sem colocar ainda mais em risco a vida no planeta terra.<br />

O idealismo positivista/racionalista da abordagem original foi uma resposta dada à<br />

necessidade de se criar uma sociedade industrial que, até então, era inexistente e, portanto,<br />

inacessível à experiência, sendo alcançável apenas idealmente ou racionalmente.<br />

O pragmatismo cético com relação à verdade precedente do projeto sobre a realidade<br />

do mercado, como o conjunto de distribuidores e consumidores, decorreu da constatação de<br />

que nem tudo que fosse oferecido seria prontamente aceito por uma sociedade já praticamente<br />

saciada, com relação às demandas objetivas.<br />

A visão sistêmica também instaura, por fim, o ceticismo, com relação à capacidade da<br />

razão clássica em garantir o futuro da sociedade, da cultura e do planeta.<br />

No percurso evolutivo do design, o ceticismo e o dogmatismo expressos entre os profissionais<br />

da área pode ser entendido, segundo a perspectiva neopirrônica do pensamento<br />

cético que considera ambas as atitudes como comportamento de investigação possíveis, corroborando<br />

o ponto de vista mais pragmático, ou seja, adotando a atitude que alcance melhores<br />

resultados conforme o contexto (DUTRA, 2005), de acordo com os aspectos econômicos,<br />

sociais, culturais e ecológicos do momento.<br />

REFERêNCIAS<br />

AZEVEDO, Wilton; O que é <strong>Design</strong> - São Paulo: Brasiliense, 1998.<br />

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Tradução Freddy Van Camp. São Paulo: Editora Blucher, 2001.<br />

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<strong>Design</strong>ers: entre céticos e dogmáticos<br />

de Astrid de Carvalho. 1ed. 1reimpr. São Paulo: Editora da <strong>Universidade</strong> de São Paulo, 2005.<br />

PORTAS, Nuno; <strong>Design</strong>: política e formação in <strong>Design</strong> em aberto: uma antologia. Centro<br />

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VERDAN, André. O ceticismo filosófico; tradução Jaimir Conte,- Florianópolis: Ed. da UFSC,<br />

1998.<br />

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AVALIAçãO DA PERCEPçãO DE CONFORTO PELAS uSuáRIAS DE<br />

CALCINhAS<br />

Marina A. Giongo; Graduanda: <strong>Universidade</strong> Feevale<br />

marinagiongo@gmail.com<br />

Daiane P. Heinrich; PhD: <strong>Universidade</strong> do Minho<br />

daiaph@feevale.br<br />

Resumo<br />

Este artigo apresenta alguns tópicos da pesquisa realizada no<br />

trabalho de conclusão de curso como requisito para graduação<br />

em <strong>Design</strong> de <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong> da <strong>Universidade</strong> Feevale. São<br />

apresentados conceitos de conforto e risco, bem como parâmetros<br />

associados a eles. A pesquisa observacional descritiva realizada<br />

através de conceitos da ergonomia investigou a percepção das<br />

usuárias quanto ao conforto de modelos pré-definidos de calcinha.<br />

Como resultado, o conforto psicológico se sobrepõe ao conforto<br />

físico, quando se trata deste tipo de vestimenta.<br />

Palavras-Chave: conforto do vestuário; percepção de conforto e<br />

risco; egonomia<br />

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Avaliação da percepção de conforto pelas usuárias de calcinhas<br />

Introdução<br />

Este trabalho tem como tema a ergonomia aplicada ao vestuário para avaliação de<br />

conforto e risco no uso de calcinhas. Através da percepção do comportamento das usuárias,<br />

surgiu o problema de pesquisa: como a usuária de moda feminina percebe o conforto no uso<br />

de calcinhas? Como hipótese infere-se que o conforto físico é preterido quando o modelo de<br />

calcinha representa conforto psicológico para a usuária.<br />

Os projetos de design do vestuário que são desenvolvidos industrialmente, a partir<br />

de tabelas de medidas (antropometria estática), possuem um alcance restritivo em relação<br />

ao consumidor. Segundo Rosa e Moraes (2009), destacam-se como limitações: a íntima<br />

relação entre o produto e o corpo humano, a diversidade de estilos e segmentos do mercado<br />

consumidor e, o lançamento da maioria das peças sem testes de aceitação do consumidor,<br />

visto que se trata de um processo de alto custo, além da conseqüente facilidade com que uma<br />

nova idéia pode ser imitada ou copiada.<br />

Segundo Baxter (2003), o projeto de novos produtos envolve riscos e é preciso gerir<br />

estes riscos com competência. Sendo a calcinha um produto de moda, de característica<br />

efêmera, pode ser aplicado a esse conceito. É preciso, dentre outros tantos aspectos, garantir<br />

a qualidade dos produtos, com ferramentas de design que sejam efetivas. Pois, segundo o<br />

mesmo autor, os projetos de produtos que são aplicados de forma eficiente nas indústrias<br />

minimizam as perdas em relação à conquista e satisfação do consumidor final.<br />

Conforme Iida (2003), todos os produtos destinam-se a satisfazer necessidades<br />

humanas e, para tanto, entram em contato com o homem. Desta forma, possuem características<br />

desejáveis de qualidade. O autor coloca três características, que são: qualidade técnica, que<br />

considera a eficiência com a qual o produto executa sua função; qualidade ergonômica,<br />

que leva em conta itens de conforto e segurança como facilidade de manuseio, adaptação<br />

antropométrica e compatibilidade de movimentos; e qualidade estética, que atende a<br />

combinação de formas, cores, materiais e texturas para que os produtos sejam visualmente<br />

agradáveis.<br />

Moraes e Mont’alvão discorrem sobre a importância de projetar o produto adequado<br />

ao usuário:<br />

A abordagem ergonômica em relação ao design pode ser resumida como: ‘o<br />

principio do design centrado no usuário – se um objeto, um sistema ou um<br />

ambiente é projetado para uso humano, então seu design deve se basear nas<br />

características físicas e mentais do seu usuário humano. [...] (Pheasant, 1997,<br />

p. 12 apud Moraes e Mont’alvão, 2003, p.33).<br />

Na busca de mensurar o comportamento da consumidora frente ao uso de lingerie, é<br />

preciso identificar quais os elementos presentes no uso do produto que podem interferir na<br />

percepção de conforto e, consequentemente, no seu comportamento de compra.<br />

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Avaliação da percepção de conforto pelas usuárias de calcinhas<br />

O valor desta pesquisa está na busca de qualidade, visto que o conforto no vestuário,<br />

dentro da área da ergonomia, é ainda pouco explorado no meio acadêmico brasileiro e não<br />

existem pesquisas quantitativas em relação à percepção de conforto no uso do produto de<br />

vestuário. O objetivo da pesquisa é identificar a percepção de conforto pelas usuárias de<br />

calcinha.<br />

Para avaliar a percepção do usuário, foi feita uma pesquisa observacional-descritiva<br />

qualitativa e quantitativa, baseada na metodologia de LINDEN (2004). Nesta pesquisa, foi<br />

realizada uma entrevista com referências verbais e de imagem para ilustrar pontos de risco<br />

relacionados ao uso do produto, bem como para identificar quais os modelos de lingerie<br />

mais utilizados pelas participantes da pesquisa. Após a entrevista, foi realizada com cada<br />

participante uma fotogrametria para identificar pontos de interferência na silhueta.<br />

Conforto<br />

O conforto, segundo Heinrich (2009) é um elemento-chave para o sucesso de<br />

produtos de vestuário. Segundo a autora “é precisamente no que diz respeito aos aspectos<br />

do conforto do vestuário que a Ergonomia desempenha um papel crucial e ao mesmo tempo<br />

muito peculiar” (Ibidem, p.2), pois o conforto percebido depende da interação ente o usuário<br />

e a roupa. “Assim, se os produtos não apresentarem as características técnicas mínimas<br />

capazes de propiciar o conforto físico isto pode causar, para além da incômoda sensação de<br />

desconforto, implicações sobre a saúde e o bem-estar do indivíduo” (Ibidem, p.3).<br />

Conforme Senthilkumar & Dasaradan (2007), o conforto é uma das características<br />

desejáveis nos produtos de moda. Para os autores, conforto não é uma propriedade têxtil, mas<br />

sim um sentimento humano, uma condição de tranqüilidade e bem-estar, que é influenciado<br />

por muitos fatores, incluindo propriedades têxteis. <strong>Design</strong>ers de vestuário podem cuidar dos<br />

aspectos físicos e psicológicos de conforto por meio da seleção adequada de cores, texturas,<br />

estilo, modelagem, entre outros fatores.<br />

Linden reconhece a natureza multidimensional do conforto como resultantes das<br />

dimensões física, psicológica e fisiológica. O atendimento das três dimensões é indicação<br />

de harmonia. O autor afirma que o conforto psicológico está relacionado a questões como<br />

autoimagem, relacionamento com outras pessoas e privacidade. Os aspectos fisiológicos têm<br />

relação com o funcionamento do corpo humano que envolve ações de regulação involuntárias.<br />

Já o conforto físico corresponde à interação com a natureza e aos efeitos nas dimensões<br />

psicológica e fisiológica. (LINDEN, 2004).<br />

Broega (2007, p.3), também concorda com Hertzberg, ao passo que traz em seu<br />

trabalho o conceito de Slater, para quem o conforto é “a ausência de dor e de desconforto em<br />

estado neutro”. A autora também afirma que o conforto total do vestuário se divide em quatro<br />

aspectos fundamentais:<br />

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Avaliação da percepção de conforto pelas usuárias de calcinhas<br />

– Conforto Termo fisiológico – estado térmico e de umidade confortável à superfície da<br />

pele, que envolve a transferência de calor e de vapor de água através dos materiais<br />

têxteis ou do vestuário;<br />

– Conforto Sensorial de “toque” – conjunto de várias sensações neurais, quando um<br />

têxtil entra em contato direto com a pele;<br />

– Conforto Ergonômico – capacidade que uma peça de vestuário tem de “vestir bem”<br />

e de permitir a liberdade dos movimentos do corpo;<br />

– Conforto Psico-Estético – percepção subjetiva da avaliação estética, com base na<br />

visão, toque, audição e olfato, que contribuem para o bem-estar total do portador.<br />

(SLATER, 1997 apud BROEGA, 2007, p.3).<br />

Para diversos autores, a sensação de conforto tem extrema ligação com emoções de<br />

valência prazerosa, entretanto é menos intenso que uma emoção. Ainda assim, as dimensões<br />

de intensidade, qualidade, tempo e a dimensão hedônica devem aparecer. Ao afirmar que o<br />

conforto é uma experiência mental, o autor defende que a aparência incide sobre o desconforto,<br />

A não ser que a experiência de sentir-se desconfortável apresente-se no ponto<br />

de valência hedônica nula (indiferença), que é previsto para essa dimensão.<br />

Contudo, embora teoricamente possa ser defendida, essa possibilidade não<br />

corresponde ao senso comum. Considerando que, normalmente, situações<br />

de desconforto e sentimentos de desconforto são tidas como essencialmente<br />

prazerosas, espera-se que o desconforto seja acompanhado ou ativado<br />

por estímulos com valência negativa na dimensão hedônica. Dessa forma,<br />

a aparência pode afetar positiva ou negativamente o desconforto, de forma<br />

inversa aos seus efeitos no conforto. (LINDEN, 2004, p. 91)<br />

Dessa forma, para o autor “o desconforto decorre de uma ativação negativa, de natureza<br />

fisiológica ou física” (LINDEN, idem, p.90), o que implica em um sentimento de carga hedônica<br />

negativa.<br />

É difícil descrever o conforto de forma positiva, mas o desconforto pode ser facilmente<br />

descrito, em termos como: pinica, coceira, quente e frio. Portanto, uma definição amplamente<br />

aceita para o conforto é liberdade da dor e do desconforto como um estado neutro (Senthilkumar<br />

& Dasaradan, 2007). Os autores ainda destacam algumas definições para o conforto sensorial,<br />

que é percebido através de várias sensações quando um tecido entra em contato com a<br />

pele, para o conforto de movimento, que é a capacidade de um tecido de permitir liberdade<br />

de movimento e moldar o corpo, conforme a exigência, e para o apelo estético, que inclui os<br />

cinco sentidos ativados pela roupa e contribui para o bem-estar do usuário.<br />

Para este estudo relativo à percepção de conforto no uso de calcinhas, somente serão<br />

analisadas as percepções de conforto físico e psicológico e não será enfoque o conforto<br />

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Avaliação da percepção de conforto pelas usuárias de calcinhas<br />

fisiológico. Neste contexto, serão considerados aspectos de conforto psicológico o prazer, a<br />

imagem corporal e o bem-estar emocional, que têm relação com o uso de lingerie; e aspectos<br />

de conforto físico as interferências corporais identificadas na silhueta bem como sensação<br />

de desconforto, provocadas pelo atrito e pressão no contato da roupa íntima com o corpo.<br />

Destaca-se que estes últimos são fatores influenciadores do conforto fisiológico (LINDEN, 2004,<br />

p.80), porém, novamente, aqui se considera o conforto físico, por conta das conseqüências<br />

identificadas na silhueta corporal.<br />

Figura 1 - Imagem corporal<br />

Modelo para Avaliação da Percepção de Conforto<br />

Conforme o método proposto por Linden (2004, p. 257), “a avaliação de conforto no<br />

uso de produtos é mediada pelos valores pessoais, de acordo com a valência hedônica da<br />

experiência e com os seus potenciais efeitos sobre a integridade pessoal”.<br />

O comportamento de uso e não uso é explicado pela dimensão hedônica e pelos quatro<br />

tipos de prazer determinados por Tiger (1992, apud LINDEN, 2004): prazer físico, psicológico,<br />

social e ideológico. Assim, usar uma calcinha que proporciona desconforto aparente pode<br />

estar relacionado com o prazer psicológico. Não usar o mesmo modelo de calcinha por sentir<br />

desconforto no uso pode estar relacionado ao prazer físico.<br />

Na figura 2, modelo proposto por Linden (2004), em que a percepção do risco está<br />

ligada a aparência e a percepção da usabilidade e da funcionalidade, que são modelos mentais<br />

decorrentes da experiência de uso. Já na figura 3, está representado o modelo para percepção<br />

de conforto apresentado por Linden.<br />

Figura 2 - modelo para relação do conforto no uso do produto de acordo com as necessidades do consumidor<br />

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Avaliação da percepção de conforto pelas usuárias de calcinhas<br />

Fonte: LINDEN, 2004, p.260.<br />

Conforme o modelo de avaliação de conforto e risco no uso de produtos sugerido por<br />

Linden, a avaliação se dá a partir de características do produto, fórmula de estímulo e referência<br />

dominante para o usuário. A avaliação pode ocorrer em diferentes níveis de processamento<br />

e gera, afinal, respostas afetivas que podem ser emoções prazerosas, desprazerosas ou<br />

sentimento de indiferença.<br />

Figura 3 - modelo para percepção de conforto e risco<br />

Fonte: LINDEN, 2004, p. 261<br />

Linden (2004) supõe que o uso do calçado de salto alto e fino e bico fino é motivado<br />

pela aparência. Além disto, apenas 10% das mulheres consideram que este tipo de calçado é<br />

seguro e confortável, além de ter boa aparência, o que corrobora com a suposição do autor.<br />

Supõe-se que para o uso de calcinhas, este comportamento seja semelhante, visto que<br />

lingerie e calçados femininos são elementos da moda que são ícones do imaginário fetichista<br />

e sensual, o que pode justificar um resultado semelhante a esta pesquisa.<br />

Métodos e Técnicas aplicadas<br />

A metodologia utilizada para esta pesquisa consistiu em revisão bibliográfica e aplicação<br />

em campo de ferramentas para avaliação da percepção de conforto. Tais ferramentas foram<br />

aplicadas a partir dos métodos de Marconi e Lakatos (1999) e Linden (2004) para a entrevista<br />

e AREZES et Al (2006) para a fotogrametria.<br />

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Avaliação da percepção de conforto pelas usuárias de calcinhas<br />

Os participantes desta pesquisa foram recrutados seguindo o tipo de amostra não<br />

probabilística. Este tipo de amostra foi eleito por enquadrar-se nas limitações inerentes a esta<br />

pesquisa, tais como tempo e métodos de pesquisa. Foram avaliadas 40 voluntárias na etapa<br />

de aplicação em campo. Este número de participantes está de acordo com o proposto por<br />

Iida (2005, p. 113), que afirma ser uma amostra representativa em pesquisas de design um<br />

número de 30 a 50 indivíduos.<br />

Participaram apenas alunas do Curso de <strong>Design</strong> de <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong> da <strong>Universidade</strong><br />

Feevale com idade entre 18 e 28 anos, considerado o ano de nascimento (1982 a 1992);<br />

altura entre 1,55m e 1,80m e massa entre 45 kg e 75 kg, dentro das faixas de Índice de<br />

Massa Corpórea (IMC) consideradas abaixo do peso e peso normal. Parâmetros de peso e<br />

altura foram considerados apenas os declarados pelas entrevistadas, não foram aferidas as<br />

medidas e massas. Estes parâmetros visaram garantir que as participantes da pesquisa não<br />

estivessem acima do peso, com base no IMC, o que poderia afetar as condições de avaliação<br />

de interferência na silhueta.<br />

Para avaliar a percepção das usuárias de calcinhas quanto ao conforto e o risco no uso<br />

do produto, foi proposta a execução de fotogrametria como método para verificar, através da<br />

imagem, a ocorrência de interferência corporal na silhueta das entrevistadas e, desta forma,<br />

confrontar com a percepção declarada pelas usuárias.<br />

Resultados e Discussões<br />

A hipótese do trabalho foi parcialmente confirmada. Isto porque a usuária percebe o<br />

risco apresentado – interferência na silhueta –, porém o conforto físico é de fato preterido em<br />

função do conforto psicológico. Das 40 participantes da pesquisa, 30 afirmaram que trocariam<br />

o modelo de calcinha para evitar formação de marca na silhueta.<br />

Entretanto, a figura 4 mostra um comparativo entre uso e percepção de conforto das<br />

usuárias, que revela que o modelo percebido como mais confortável é o menos utilizado e que<br />

o modelo percebido como o maior causador de marca na silhueta é o segundo mais utilizado.<br />

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Avaliação da percepção de conforto pelas usuárias de calcinhas<br />

Figura 4 - comparativo entre uso e percepção de conforto<br />

Fonte: executada pelo autor.<br />

Além disso, o conforto é item recorrente nos critérios de escolha, entretanto a estética<br />

tem valor praticamente igual. Este resultado vai ao encontro do estudo da semântica de<br />

produtos que afirma que o ser humano responde ao que as coisas significam para ele, não as<br />

qualidades físicas destas, conforme Linden e Kunzler (2001).<br />

É válido ressaltar que esta pesquisa poderia ser mais aprofundada com o uso de<br />

software específico para sobrepor e cruzar as imagens obtidas, o que geraria dados mais<br />

concretos para a avaliação da interferência corporal. Aqui se observou, a princípio, apenas a<br />

percepção das usuárias, porém há a perspectiva de continuar o desenvolvimento deste tipo<br />

de investigação acerca do conforto de vestuário, principalmente de moda íntima, que é um<br />

dos setores industriais mais produtivos do Brasil. Para tanto, é preciso gerar conhecimento<br />

e novas tecnologias para a indústria de vestuário e é pertinente o questionamento: Como<br />

agregar conforto físico e psicológico ao design de produto de moda íntima?<br />

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DESIGN CêNICO: TéCNICA, PROCESSO & CRIAçãO NA IDENTIDADE<br />

uRBANA<br />

Ary Scapin Júnior; Mestrando em <strong>Design</strong>: <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />

Resumo<br />

Este artigo versa sobre design e arte quando inseridos no universo<br />

urbano, na interação com a urgência, a inovação e a criatividade.<br />

Busca discutir as possibilidades destes campos nas ruas e, mais<br />

precisamente, no diálogo com as artes cênicas. Propõe um olhar<br />

apurado para o processo projetual da cena e dos espetáculos de<br />

rua, dando a esse processo a denominação de “design cênico”.<br />

Palavras-Chave: design; artes cênicas; arte na rua;<br />

plasticidade cênica; processo projetual; design cênico<br />

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<strong>Design</strong> cênico: técnica, processo & criação na identidade urbana<br />

Introdução<br />

No mundo contemporâneo, o ato inovador é volátil – envelhece rápido, perde o<br />

encantamento e produz a necessidade de algo mais moderno, mais criativo e mais inovador<br />

ainda. É assim nas ciências, no cotidiano das pessoas, no mundo corporativo e também nas<br />

artes. O tempo se renova constantemente, e com ele muitas coisas também se renovam. O<br />

que é hoje, certamente não o será amanhã. As culturas, as tradições, os usos e costumes,<br />

por mais tradicionais que sejam, por mais salvaguardados que possam estar, passam por<br />

processos de transformação, não porque não exista quem os preserve, mas sim por que os<br />

sentidos das coisas mudam.<br />

O tempo na contemporaneidade é fatalizado pela ordem das urgências que significa<br />

uma oscilação na razão instrumental, o culto dos meios e esquecimento dos fins. Ele é o reino<br />

das revoluções tecnológicas do progresso (MATOS, 2009, p. 93).<br />

Este preâmbulo serve para iniciarmos um diálogo sobre a urgência urbana e as inquietudes<br />

dos artistas que se inserem nas questões referentes às artes que acontecem nas ruas. Todas<br />

as expressões de arte podem entender a rua como mais um ponto para o escoamento de suas<br />

produções: o graffite, o cinema, a música, a pintura, entre tantas outras formas, encontram<br />

nela um espaço alternativo de troca. Neste canal de comunicação, os artistas, em sua obra,<br />

devem levar em conta as pessoas às quais ela se destina, considerando o ambiente público<br />

composto sempre de indivíduos (PALLAMIM, 2002). Dá se o espetáculo, a cena, e recebe-se em<br />

contrapartida a admiração, os aplausos, a compreensão, ou o inverso disso.<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

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<strong>Design</strong> cênico: técnica, processo & criação na identidade urbana<br />

Uma forma de arte a ser assimilada em público e que representa sobretudo<br />

o próprio cidadão no espaço público parece ser uma das funções mais<br />

importantes da arte pública numa democracia. Muitos(as) artistas que<br />

enfrentam, esse desafio executam seu trabalho num campo experimental<br />

situado entre a participação ativa de parte da sociedade, colocações artísticas<br />

e documentação do real. Praticamente todos esses trabalhos estão como que<br />

à procura de uma oportunidade que lhes dê a chance de contribuir de maneira<br />

concreta à vida da sociedade, à vivência e à comunicação. As tentativas vão<br />

desde a abordagem direta de eventuais parceiros, passando pela elaboração<br />

artística das contribuições, até à oferta de participar da criação de novas<br />

estruturas de percepção (PALLAMIN, 2002, p. 85).<br />

As ruas e praças das cidades, da mesma maneira que as galerias de arte, os teatros ou<br />

as salas de espetáculos, constituem uma dinâmica específica e têm características próprias. Os<br />

espaços de artes, projetados para receber produções artísticas variadas, apresentam diversas<br />

formas de adequação e customização aos interesses de uma determinada obra. Há, portanto,<br />

a possibilidade de interferências no projeto original da estrutura física, momento propício à<br />

atuação de um cenógrafo, de um iluminador, de um sonorizador e de outros profissionais<br />

intimamente ligados às propostas do artista, concretizando a obra de arte de acordo com<br />

sua concepção. Em contraponto às possibilidades mutáveis dos “templos das artes”, as ruas<br />

e as praças dos centros urbanos não se adaptam à obra de arte, mas sim às urgências do<br />

cotidiano das pessoas que se utilizam deles. Esta mesma urgência pode ser o mote para o<br />

diálogo criativo e inovador entre o artista e seu público.<br />

Como exemplo, olhando para a obra do artista Flávio de Carvalho, encontramos em seu<br />

manifesto “A cidade do homem nu”, de 1930, um exercício de observação crítica às cidades<br />

e seus espaços urbanos, apontando um descontentamento com os rumos estabelecidos pelo<br />

status quo da sociedade da qual fazia parte e afirmando que o homem caminhava para um<br />

processo destrutivo em função do organismo doentio destas cidades. A proposição de sua<br />

arte, nos parece, instigava as pessoas à criatividade e às mudanças:<br />

A cidade do homem nu é a habilitação do pensamento; o homem produz<br />

idéias que são orientadas e aproveitadas na melhoria da raça e no caminhar<br />

do progresso.<br />

É uma grande máquina de idéias para calcular o meio de progredir sempre,<br />

calcular um processo de constante renovação mental (conforme CARVALHO,<br />

1930 apud CARVALHO, 2010, pp. 28, 29).<br />

Flávio, há setenta anos, apontava para as questões da inovação e da transformação<br />

necessária para a existência humana. Isto sugere especial atenção à sua credulidade em<br />

relação à utilização de proposições modernas – fossem elas reais ou lúdicas – para a solução<br />

de problemas.<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

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<strong>Design</strong> cênico: técnica, processo & criação na identidade urbana<br />

<strong>Arte</strong> e design na rua<br />

Os preceitos de arte e design interagem. Palavras próximas orbitam os mesmos universos<br />

e caracterizam-se como agentes transformadores. No universo urbano, as divergências de<br />

conceitos parecem irrelevantes, não importando o que é arte ou o que é design, mas apenas o<br />

efeito proporcionado. Deste modo, não serão foco deste artigo as questões de ordem política<br />

relacionadas ao plano diretor de uma cidade, documento que discute, entre outras coisas, a<br />

criação de áreas urbanas específicas para determinados fins – por exemplo, áreas específicas<br />

para atividades comerciais, para atividades financeiras, entre outras, que podem constituir<br />

áreas híbridas –, bem como a definição de instalação de equipamentos e mobiliários de rua, a<br />

visão do espaço e a atribuição da paisagem (BARBOSA, 2008). Focaremos o entretenimento<br />

e suas múltiplas formas de expressão junto aos transeuntes dos centros urbanos.<br />

Para falarmos de design, arte e tecnologia, cabe aqui referenciar a palavra design, a fim<br />

de que possamos equalizar o conhecimento.<br />

A cultura moderna, burguesa, fez uma separação brusca entre o mundo das<br />

artes e o mundo da técnica e das máquinas, de modo que a cultura se dividiu<br />

em dois ramos estranhos entre si: por um lado, o ramo científico, quantificável,<br />

“duro”, e por outro ramo estético, qualificador, “brando”. Essa separação<br />

desastrosa começou a se tornar insustentável no final do século XIX. A Palavra<br />

design entrou nessa brecha como uma espécie de ponte entre esses dois<br />

mundos (FLUSSER, 2008, p. 183).<br />

Em sua análise, Flusser norteia a discussão sobre design deste artigo. Nos parece que,<br />

com essa afirmação, arte e técnica, apesar de possuírem conceitos distintos, podem e devem<br />

coexistir harmonicamente. Isto nos remete aos diferentes tipos e formações das pessoas que<br />

circulam pelas ruas das cidades, que, diferentes entre si, convivem e se relacionam.<br />

Ainda tendo Flusser como referência, encontramos em sua análise fundamentos para<br />

a questão da diversidade de significados da palavra design, e acreditamos que ele aponta<br />

evidencias para o que será entendido por nós como premissa para o estudo do design cênico,<br />

ou seja, para o significado de planejamento, de projeto, que nos remete ao processo projetual.<br />

Em inglês, a palavra design funciona como substantivo e também como verbo<br />

(circunstância que caracteriza muito bem o espírito da língua inglesa). Como<br />

substantivo, significa, entre outras coisas, “propósito”, “plano”, “intenção”,<br />

“meta”, ”esquema maligno”, “conspiração”, “forma”, “estrutura básica”, e todos<br />

esses e outros significados estão relacionados a “astúcia” e a “fraude”. Como<br />

verbo – to design –, significa, entre outras coisas, “tramar algo”, “simular”,<br />

“projetar”, “esquematizar”, “configurar’, “proceder de modo estratégico<br />

(FLUSSER, 2008, p. 181).<br />

O design, entendido como um processo projetual, atribui ao seu projetista a possibilidade<br />

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<strong>Design</strong> cênico: técnica, processo & criação na identidade urbana<br />

de criação, de inovação e de inserção de avanços tecnológicos que, nesse processo, viabilizem<br />

a sua produção. Tal qual a arte, o design pode e deve ser provocador, instigante e questionador.<br />

Artistas e designers podem compartilhar de um mesmo ideal: o de proporcionar mudanças,<br />

as quais, como abordado anteriormente neste texto, são inerentes ao tempo em que vivemos.<br />

Victor Papanek – designer, autor de pesquisas sobre design e com argumentação<br />

filosófica em relação a sustentabilidade – considera o design uma poderosa ferramenta para<br />

moldar as ações de preservação ambiental. Seu conceito de design é provocador, porém de<br />

fácil associação aos princípios da inovação, da criatividade e da liberdade de expressão que<br />

se assemelham aos preceitos das artes, ampliando as possibilidades de forma definitiva e<br />

abrindo espaço para o inusitado.<br />

<strong>Design</strong> cênico<br />

Todos os homens são designers. Tudo o que fazemos quase todo o tempo<br />

é design. O design é básico em todas as atividades humanas. Planejar e<br />

programar qualquer ato, visando a um fim específico, desejado e previsto,<br />

isto constitui um processo de design [...] design é compor um poema épico,<br />

executar um mural, pintar uma obra de arte, escrever um concerto. Mas design<br />

também é limpar e organizar uma escrivaninha, arrancar um dente quebrado,<br />

fazer uma torta de maçã, escolher os lados de um campo de futebol e educar<br />

uma criança (conforme PAPANEK,1995 apud BOMFIN, 2002, p. 9).<br />

Partimos do princípio do ato projetual. <strong>Design</strong> é projeto. É pesquisa. É experimentação.<br />

Assemelha-se à criação de uma cena em um espetáculo de artes cênicas, que necessita do<br />

desenvolvimento de um projeto que a viabilize e que a transforme em realidade. A integração de<br />

diversos elementos, tais como treinamento e preparação, planejamento e criação, coordenação<br />

e cooperação (HEWARD e BACON, 2006), possibilitam a concretização do objetivo final, ou<br />

seja, o alcance de uma plasticidade cênica capaz de transmitir ao público exatamente o que<br />

foi elaborado dentro da mente do encenador do espetáculo.<br />

Mas como fazer do espetáculo essa unicidade estética e orgânica?<br />

Contrariamente às outras formas de arte, a encenação aparece em primeiro<br />

lugar como uma justaposição ou imbricação de elementos autônomos: cenário<br />

e figurino, iluminação e música, trabalho de ator. [...] Por conseguinte, uma<br />

vontade soberana deve impor-se aos diversos técnicos do espetáculo. Essa<br />

vontade conferirá à encenação a unidade orgânica e estética que lhe falta, mas<br />

também a originalidade que resulta de uma intenção criadora (ROUBINE,1998,<br />

p. 42).<br />

As artes cênicas, em geral, constituem o meio de comunicação mais eficaz entre artistas<br />

e público no que se refere à troca de sensações e experiências que levam ao aprendizado<br />

mútuo e ao trânsito entre a formação e as informações. Nos espetáculos de rua, o artista, ou<br />

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<strong>Design</strong> cênico: técnica, processo & criação na identidade urbana<br />

grupo de artistas, tem a intenção de passar uma mensagem ou um recado ao público, e para<br />

que isso ocorra a cena, seja de circo, de teatro ou de dança, passa por um processo projetual.<br />

Focando nossa atenção nas artes circenses realizadas em ruas e praças, nos remetemos<br />

aos artistas denominados “saltimbancos” i , que percorriam as ruas das cidades européias<br />

levando às populações espetáculos de malabarismo, de equitação e pantomimas. Havia,<br />

mesmo que de forma inconsciente, um planejamento. Não havia tecnologia a ser aplicada<br />

às artes desses artistas, porém havia um planejamento referente ao vestuário utilizado, aos<br />

gestos aplicados às personagens e às mascaras. Não se usava um figurino qualquer, mas sim<br />

vestimentas pensadas para garantir um diferencial, assim como eram igualmente pensadas as<br />

gesticulações, as pinturas no rosto e as cores. Todos os componentes dos personagens eram<br />

elaborados a fim criar um ambiente lúdico, mágico, com o intuito de diversão e crítica social.<br />

Circo Sells-Floto e sua trupe de saltimbancos – Início do século XX. (Foto: Dave Leach)<br />

Planejar uma cena ou um espetáculo de artes cênicas para a rua requer um projeto<br />

especial. Não se trata apenas de fazer a transposição do espetáculo que é realizado em um<br />

palco ou em galpão. A rua exige um olhar diferenciado, dinâmico, urgente como os passos<br />

dos transeuntes, uma vez que tanto o artista quanto sua mensagem serão expostos ao acaso,<br />

a um público indeterminado, não segmentado e, portanto, imprevisível em suas reações.<br />

A rua é o imponderável<br />

Inúmeros exemplos poderiam ser analisados neste artigo, mas concentramos nossa<br />

atenção em uma apresentação artística, realizada em São Paulo em junho de 2002, a qual<br />

podemos considerar como um marco, por ter se configurado como a perfeita harmonia entre<br />

o meio ambiente urbano e as artes cênicas.<br />

O Vale do Anhangabaú, na cidade de São Paulo, SP, é um espaço aberto, rodeado<br />

por prédios gigantescos. De um lado, é cortado pelo Viaduto do Chá; do outro, pelo Viaduto<br />

Santa Ifigênia; e uma de suas laterais dialoga com a Praça Ramos de Azevedo, com vista<br />

para a imponente edificação do Teatro Municipal de São Paulo. Trata-se de um local público,<br />

central e nobre, com fluxo incessante de pessoas que transitam pelo seu calçadão em direção<br />

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<strong>Design</strong> cênico: técnica, processo & criação na identidade urbana<br />

ao trabalho, à escola, às compras e a demais afazeres. A maioria desses transeuntes, de<br />

características heterogêneas, não se dá conta da beleza desse espaço público; porém, é<br />

nesse local que acontecem intervenções artísticas nacionais e internacionais.<br />

Vale do Anhangabaú – São Paulo/SP. (Foto: Sérgio Savaresi)<br />

Em pleno Vale do Anhangabaú, hastes flexíveis, de design e tecnologia exclusivos da<br />

companhia australiana Strange Fruit, suportam artistas em seu topo, paramentados com<br />

figurinos planejados e adequados aos movimentos e ao tema do espetáculo. Luzes coloridas<br />

estrategicamente posicionadas dão um tom especial e, com o cair da tarde, assumem um<br />

grande destaque na cena. O som estudado com precisão compõe o espetáculo, que funde<br />

diversos estilos de artes cênicas, como teatro, dança e circo. E, como costumeiramente<br />

acontece na companhia, o espetáculo era composto por expressões artísticas ligadas a temas<br />

universais, como amor, conflitos, nascimento, morte, trabalho e lazer.<br />

Strange Fruit – www.strangefruit.net.au, acessado em 21/Jun/2010. (Foto: Strange Fruit)<br />

Como descrito antes, propomos observar que tanto o espaço (Vale do Anhangabaú)<br />

quanto a companhia (Strange Fruit) se inseriam no universo do design e vice-versa, criando um<br />

ambiente propício ao design cênico. Quando esta interação se dá, qualquer que seja a ocasião,<br />

a essência da cena, idealizada, planejada e projetada pelos seus criadores, se concretiza e<br />

cumpre a função de levar encantamento aos espectadores, no caso, aos transeuntes das ruas.<br />

Como um produto de design sofisticado, esta produção imaterial passa a compor o repertório<br />

de cada um dos presentes no ato de espetáculo, e esse encantamento é reprodutível na<br />

mente desses espectadores pela quantidade de vezes que eles quiserem.<br />

Strange Fruit – www.strangefruit.net.au, acessado em 21/Jun/2010 (Foto: Strange Fruit)<br />

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<strong>Design</strong> cênico: técnica, processo & criação na identidade urbana<br />

Na apresentação do Vale do Anhangabaú, o idealizador dos espetáculos da Strange<br />

Fruit tinha por objetivo compartilhar uma imagem com o público, e essa imagem era a de um<br />

campo de trigo balançando ao vento. Cabe a cada espectador a interpretação do espetáculo;<br />

porém, tomando por base o que vem sendo exposto até então, podemos imaginar o impacto<br />

coletivo que essa metáfora causou em meio ao grande público!<br />

Encenado em espaços urbanos cercados por edificações (prédios, viadutos, torres), em<br />

meio a trânsito (de automóveis e de pessoas), sons diversificados (buzinas, gritos), natureza<br />

espremida pelo concreto (flora e fauna) e a correria do dia a dia, os espetáculos do Strange<br />

Fruit remetem ao lúdico, proporcionando sentimentos e sensações especiais em cada um dos<br />

espectadores.<br />

Considerações finais<br />

Com um repertório de renome mundial devido à natureza do diálogo livre, a<br />

companhia celebra uma grande variedade de temas e histórias o que a fez<br />

alcançar um status especial em quase todos os continentes ao redor do<br />

mundo. Os espetáculos, sublimes e hipnóticos, são verdadeiramente notáveis,<br />

e é preciso estar atento para apreciar o seu pleno efeito (MICHELLE WILD,<br />

2010).<br />

A cena artística só poderá cristalizar-se na mente dos transeuntes das ruas e praças<br />

das cidades se houver verdadeira interatividade entre o discurso da arte e o urbano. A arte<br />

encenada nesses espaços serve de contraponto entre o lúdico e o real, entre as possibilidades<br />

e a concretude, entre o presente e o futuro acontecendo simultaneamente na urgência das<br />

ruas. Cabe ao idealizador do espetáculo a função de organizar o fluxo produtivo da obra,<br />

tendo por base o processo projetual que converterá idéias em realidade. Retornando ao texto<br />

de Flusser, temos:<br />

[...] e isso foi possível porque essa palavra [design] exprime a conexão interna<br />

entre técnica e arte. E por isso design significa aproximadamente aquele<br />

lugar em que arte e técnica (e, conseqüentemente, pensamentos, valorativo e<br />

científico) caminham juntas, com pesos equivalentes, tornando possível uma<br />

nova forma de cultura (FLUSSER, 2008, pp.183, 184).<br />

A plasticidade cênica, fruto de um processo projetual, nos parece ser um caminho<br />

possível para o início de um diálogo entre técnica e arte, tanto nos espaços públicos quanto<br />

nos privados especialmente destinados a apresentações artísticas. Mais ainda: nos remete<br />

diretamente ao idealizador da cena, colocando-o como uma ferramenta de extrema importância<br />

na tradução dos anseios humanos.<br />

Os espetáculos, assim como as cenas, configuram-se como resultantes do apurado<br />

olhar de um profissional inovador e criativo, que, valendo-se de sua sensibilidade pessoal e da<br />

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<strong>Design</strong> cênico: técnica, processo & criação na identidade urbana<br />

leitura da sensibilidade coletiva, desenha o que propomos chamar de design cênico.<br />

Notas<br />

Strange Fruit – www.strangefruit.net.au, acessado em 21/Jun/2010. (Foto: Strange Fruit)<br />

i CUNHA, 2003, pp. 584, 585.<br />

Referências<br />

BACON, John U.; HEWARD, Lyn. Cirque du Soleil: a reinvenção do espetáculo. Rio de<br />

Janeiro: Elsevier, 2006.<br />

BARBOSA, A. C. M. A. <strong>Design</strong> na cidade: relação conceitual entre o design e o espaço<br />

urbano. São Paulo: 8º Congresso Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em <strong>Design</strong>, 2008.<br />

BOMFIM, Gustavo Amarante. Seminário de Estudo e Pesquisa em <strong>Design</strong>. São Paulo:<br />

<strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, 2002.<br />

CARVALHO, Flávio de. “A cidade do homem nu”. São Paulo: Publicação original no Diário da<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

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<strong>Design</strong> cênico: técnica, processo & criação na identidade urbana<br />

Noite, 1º/Jun/1930 in catálogo da exposição A Cidade do Homem Nu, MAM. São Paulo,<br />

2010.<br />

CUNHA, Newton; Dicionário SESC: a linguagem da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2003.<br />

FLUSSER, Vilém. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São<br />

Paulo: Cosac Naify, 2008.<br />

MATOS, Olgária. Contemporaneidades. São Paulo: Lazuli, 2009.<br />

PALLAMIN, Vera M.. Cidade e cultura: esfera pública e transformação urbana. São Paulo:<br />

Editora Estação Liberdade, 2002.<br />

PAPANEK, Victor. “O que é design?” In: Revista Arquitetura, n. 5, ano 1. 1995<br />

ROUBINE, Jean Jacques. A linguagem da encenação teatral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,<br />

1998.<br />

SIEBRA, Leonardo. O designer como agente transformador in http://www.dad.puc-rio.br/<br />

dad07/index.php?pag=down. Acessado em 21/Jun/2010.<br />

WILD, Michelle. Companhia Australiana de Teatro de Rua Strange Fruit in http://www.<br />

strangefruit.net.au/. Acessado em 21/Jun/2010.<br />

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O QuE FAçO COM OS MEuS DIáRIOS DE CAMPO?<br />

INQuIETAçõES DE uMA ANTROPóLOGA NO DESIGN E NA MODA.<br />

Márcia Merlo; Profª Dra.; PPG Mestrado em <strong>Design</strong>: <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />

mmerlo@anhembi.br<br />

Resumo<br />

Este artigo discute a utilização da observação participante no <strong>Design</strong><br />

e na <strong>Moda</strong>. Além do debate em torno do método etnográfico,<br />

também se propõe a problematizar acerca do manuseio e<br />

conservação do material coletado, compreendido aqui como<br />

documentos de processo e registro de reflexões, que guardam<br />

suas particularidades tanto na coleta quanto na conservação e<br />

no manuseio. Desta forma, o texto objetiva repensar formas de<br />

reintegrar o conteúdo do material coletado por meio do registro<br />

de fontes orais e visuais, da observação participante no cotidiano,<br />

associados à riqueza encontrada no universo multifacetado por<br />

meio da memória dos interlocutores da pesquisa e à necessidade<br />

de apresentar resultados, também, em formato de texto acadêmico.<br />

Palavras-Chave: design; moda; antropologia<br />

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O que faço com os meus diários de campo? Inquietações de uma antropóloga no <strong>Design</strong> e na <strong>Moda</strong>.<br />

Introdução<br />

Começo com uma pequena apresentação para depois compartilhar uma inquietação.<br />

Tenho trabalhado há alguns anos na docência em cursos de <strong>Moda</strong> – <strong>Design</strong> e Negócios.<br />

Atualmente faço parte do corpo docente do Programa de Mestrado em <strong>Design</strong> da Anhembi-<br />

Morumbi. Apresentada minha inserção neste universo que não é o da minha formação, já que<br />

venho da Antropologia, inicio o que me proponho neste artigo – discutir as aproximações entre<br />

áreas que, guardadas suas particularidades, partilham de uma substanciação comum – o<br />

humano.<br />

Trabalhar com a observação participante, a primeira vista, parece muito sedutor. No<br />

entanto, trata-se de uma escolha de muita responsabilidade e desafios, que ultrapassa, por<br />

vezes, o próprio método. O que significa isto? Quero dizer, que independe da boa vontade<br />

do (a) pesquisador (a) e igualmente de uma aplicação muito técnica de um conjunto de<br />

procedimentos metodológicos. De fato, entrar nesta questão é discutir a construção de<br />

conhecimento por meio de religação de saberes.<br />

Formada em História pela PUCSP, minha inserção na Antropologia aconteceu com<br />

populações nativas de São Sebastião, Ilhabela e Ubatuba, o que resultou em uma dissertação<br />

de mestrado, uma tese de doutorado, dois livros, alguns artigos científicos, matérias jornalísticas<br />

em imprensa local e, muitas questões acerca do que pude aprofundar e compreender do<br />

presenciado, do que consegui captar, desvelar, desvendar do que me foi revelado e do que<br />

meus olhos, coração e mente observaram e discerniram. Digo isto porque optei em trabalhar<br />

com narrações livres por meio de coleta de histórias orais, depoimentos e histórias de vida;<br />

assim, trabalhando com a memória dos antigos moradores pude registrar como pensavam a<br />

história de seu lugar perpassando a sua própria história.<br />

Para deixar mais claro, o recorte de minha pesquisa de campo durante uma década<br />

abriu a possibilidade de conhecer outras faces e ouvir outras vozes destes lugares. Deparei<br />

com o universo caiçara negro, aprofundei os estudos em relação às transformações ocorridas<br />

com o turismo na região e como os antigos moradores rememoraram sua existência. Percebi<br />

que da memória afro-brasileira pouco se evidenciava como uma possível contribuição a esse<br />

universo, mesmo quando perguntava, a um caiçara negro participante da congada, acerca da<br />

presença negra no lugar. Ao indagar sobre o negro, os depoimentos logo caíam na justificativa<br />

de que em Ilhabela não existia racismo, e, às vezes, mesmo nas narrações livres, esta versão<br />

era explicitada entre negros e brancos. Ao longo da pesquisa e convivência, ao criarmos laços<br />

de amizade e confiabilidade, no entanto, outras verdades começaram a surgir trazendo a tona<br />

o racismo sofrido e vivido por tais populações, revelando por intermédio do trabalho com a<br />

Memória, outra história local refletindo as relações raciais no seio da nação brasileira.<br />

Além desse aprendizado humano, compreendi o quanto o trabalho com abordagens<br />

teórico-metodológicas em torno da Memória, utilizando-se da observação participante,<br />

é oneroso, inquietante e exige uma postura ética do (a) pesquisador (a). Ao tratarmos da<br />

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O que faço com os meus diários de campo? Inquietações de uma antropóloga no <strong>Design</strong> e na <strong>Moda</strong>.<br />

observação participante dentro do desenvolvimento do método etnográfico construído ao<br />

longo da História da Antropologia evidencia-se que é uma ação de profunda inserção do<br />

pesquisador no meio escolhido e de longa duração e extensão.<br />

Em outras palavras, ao optar pelas narrações livres, inicia-se a busca pelos antigos<br />

contadores de histórias, senhores da tradição ou quem puder contar ou lembrar algo que<br />

remeta a “origem” i e a alguma forma de permanência das antigas tradições de caráter popular,<br />

seja por meio de manifestações culturais existentes, seja por meio da memória. Sendo assim,<br />

o fio da memória dá o tom ao texto. E constata-se que ainda se tece enquanto se conta e ouve<br />

histórias, mas também se percebe que o velho narrador com suas narrativas dá lugar a novas<br />

informações. O antigo território agora tem novos donos e novas relações...<br />

Dito isto, enfatiza-se que não só os elementos culturais interessam a uma pesquisa<br />

dessa natureza, mas também seus produtores. Esses produtores são encarados como<br />

interlocutores, uma vez que se compartilha do pensamento de Geertz (1989) quando se<br />

refere ao objeto de estudo da Antropologia dizendo que “o objetivo maior desta ciência é<br />

o alargamento do discurso humano” (p. 32). Partindo desse pressuposto teórico, a relação<br />

estabelecida entre o pesquisador e o pesquisado é de este último tornar-se interlocutor, o que<br />

propicia outra qualidade ao estudo.<br />

Desta forma, indaga-se em como podemos desenvolver mergulhos deste gênero em<br />

outras áreas do conhecimento humano? A seguir apresentarei algumas inquietações que<br />

estão me direcionando a um caminho interessante no <strong>Design</strong>.<br />

ITINERáRIOS: caminhos tortuosos, resultados incríveis...<br />

Um caminho –<br />

A idéia central é trazer para o universo da pesquisa em <strong>Design</strong> e <strong>Moda</strong>, as teorias e<br />

métodos da ciência antropológica, por meio das Teorias da Memória e do uso da observação<br />

participante. Parte-se da constatação de que há muitas lacunas encontradas nas fontes<br />

escritas, por isto pretende-se obter respostas nas fontes orais. Também ao adentrarmos o<br />

universo do <strong>Design</strong> e da <strong>Moda</strong>, os objetos e seus produtores permeiam nosso olhar e se<br />

tornam objetos de nosso estudo.<br />

Um dos teóricos da Memória, Michel Pollak, retrata a linha tênue que une/separa a<br />

história oral dos documentos:<br />

A multiplicação dos objetos que podem interessar à história, produzidos pela<br />

história oral, implica indiretamente aquilo que eu chamaria de uma sensibilidade<br />

epistemológica específica, aguçada. Por isso mesmo acredito que a história<br />

oral obriga a levar ainda mais a sério a crítica das fontes. E, na medida em que,<br />

através da história oral, a crítica das fontes torna-se imperiosa e aumenta a<br />

exigência técnica e metodológica, acredito que somos levados a perder, além<br />

da ingenuidade positivista, a ambição e as condições de possibilidade de uma<br />

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história vista como ciência de síntese para todas as outras ciências humanas<br />

e sociais (POLLAK, 1992, p. 208).<br />

Como Pollak, também, acredita-se neste projeto que fazer um trabalho de memória<br />

apoiado nas fontes escritas e nas orais é trazer para dentro do universo científico “um discurso<br />

sensível à pluralidade das realidades. Temos uma possibilidade não de objetividade, mas de<br />

objetivação, que leva em conta a pluralidade das realidades e dos atos” (ibidem, p. 211).<br />

Ao ouvir as histórias de uns e de outros, assim como ao olhar para os objetos/artefatos<br />

que permeiam a vida social, o pesquisador percebe-se compondo um mosaico em que os<br />

pedacinhos (fragmentos) das lembranças/histórias de um vão se encostando aos de outros,<br />

formando uma paisagem do passado baseada no presente vivido. A lembrança é também o<br />

momento da revisão. O que a movimenta é o presente, que ao sinalizar o vivido direciona o<br />

rememorar aos processos vividos, assim como aos não-ditos, silenciados, clandestinos, de<br />

acordo com o que se objetiva neste ato.<br />

Pollak ao constatar o silêncio, o não-dito, nos faz pensar na memória subterrânea e<br />

sobre os processos silenciados no cotidiano de nossas existências. O autor, ao nos esclarecer<br />

o porquê dos não-ditos, aponta para um possível motivo do silenciamento das memórias e<br />

também o porquê de, em alguns momentos, quando se tem uma escuta e uma situaçãolimite,<br />

emergirem lembranças, rompendo os silêncios:<br />

(...) há uma permanente interação entre o vivido e o aprendido, o vivido e<br />

o transmitido. E essas constatações se aplicam a toda forma de memória,<br />

individual e coletiva, familiar, nacional e de pequenos grupos. O problema que<br />

se coloca a longo prazo para as memórias clandestinas e inaudíveis é o de sua<br />

transmissão intacta até o dia em que elas possam aproveitar uma ocasião para<br />

invadir o espaço público e passar do ‘não-dito’ à contestação e à reivindicação;<br />

o problema de toda memória oficial é o de sua credibilidade, de sua aceitação<br />

e também de sua organização (POLLAK, 1989, p. 9).<br />

Percebe-se que “o que está em jogo na memória é também o sentido da identidade<br />

individual e do grupo” (ibidem, p. 10). Nesse sentido, entende-se que as narrativas servem<br />

para historiar o cotidiano vivido, levando-se em conta até onde o raio da memória consegue<br />

alcançar. Também o pesquisador presencia na relação com o objeto da pesquisa, que no<br />

caso é o próprio sujeito da história narrada, sutilezas que direcionam o desenrolar do trabalho.<br />

Algo que se presentifica ao conhecermos as narrativas dos sujeitos que vivem o lugarii cotidianamente. Nas palavras de Ecléa Bosi:<br />

A veracidade do narrador não nos preocupou: com certeza seus erros e lapsos<br />

são menos graves em suas conseqüências que as omissões da história oficial.<br />

Nosso interesse está no que foi lembrado, no que foi escolhido para perpetuarse<br />

na história de sua vida (BOSI, 1979, p. 1).<br />

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Complementando a idéia desenvolvida por Bosi, ao esclarecer o objetivo da antropologia<br />

interpretativa, Geertz traduz, em parte, a preocupação que permeia este estudo:<br />

Olhar as dimensões simbólicas da ação social – arte, religião, ideologia, ciência,<br />

lei, moralidade, senso comum – não é afastar-se dos dilemas existenciais da<br />

vida em favor de algum domínio empírico de formas não-emocionalizadas; é<br />

mergulhar no meio delas. A vocação essencial da antropologia interpretativa<br />

não é responder às nossas questões mais profundas, mas colocar à nossa<br />

disposição as respostas que outros deram (...) e assim incluí-las no registro de<br />

consultas sobre o que o homem falou (GEERTZ, 1989, p. 40-1).<br />

Mesmo conscientes de que escutamos e vivenciamos reflexões sobre a própria<br />

existência de quem narra a sua história para o ouvinte, no caso, o antropólogo e os designerspesquisadores,<br />

o que percebemos é que nem sempre o nós e os outros estão tão distantes<br />

quanto aparecem, e, muitas das questões subjetivas “deles” são as do próprio pesquisador.<br />

Em pesquisas desta natureza, é possível constatar-se que nem sempre o nós e os outros<br />

estão tão distantes quanto aparecem, ou quanto queremos afastar, e muitas das questões<br />

subjetivas “deles” são as do próprio pesquisador e tudo isto pode auxiliar a pensar e ampliar a<br />

atuação pessoal e profissional em qualquer área em que estejamos inseridos, pois em nossa<br />

volta estamos nós mesmos.<br />

Dito isto, mais uma questão se coloca em uma pesquisa que tem como pressuposto a<br />

utilização da observação participante e do recurso da memória. Aliás, ao se tratar de memória<br />

viva, não dá para se abrir mão da vivência com o grupo pesquisado. Trabalhar com a história<br />

oral e de vida, requer perceber nuances do próprio ato de rememorar, ou seja, a observação<br />

minuciosa e participante de tudo o que envolve o pesquisado e de seu entorno. Sendo assim,<br />

nos apoiamos no trabalho etnográfico, tão caro à Antropologia. Também, neste caso, é<br />

preciso estar atento e consciente de que escutamos e vivenciamos reflexões sobre a própria<br />

existência de quem narra a sua história para o ouvinte. Cabe, também, ao pesquisador ter um<br />

distanciamento necessário para analisar o observado e vivido, mas não estamos dizendo com<br />

isto que acreditamos em imparcialidade, o que afirmamos é que a prática em questão exige<br />

uma postura consciente e ética do pesquisador.<br />

A Memória diz respeito ao que permanece entre o feito e dito de um indivíduo e seu<br />

grupo, assim como o que não é dito, ou melhor, aquilo que se silencia e cai no esquecimento.<br />

Podemos dizer que há tantas memórias quantos grupos existirem, no entanto, também<br />

podemos afirmar que há lembranças subterrâneas, clandestinas que escondem outras<br />

“verdades”. Conhecê-las significa entrarmos em outros “mundos” ou mergulharmos nesses<br />

já tão velhos conhecidos nossos, mas tão pouco pensados no turbilhão em que vivemos,<br />

ou, pensados por outros ângulos, além de nossos conceitos e experiências. Por isto, neste<br />

estudo, os objetos também se tornam “contadores de histórias”, pois carregam (evidenciam)<br />

práticas sociais e culturais diversas. Não só o que se ouve será pensado e trabalhado, mas o<br />

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que se vê, pois se compreende a cultura como um texto que se lê, e, em uma sociedade onde<br />

há o apelo (superexposição) ao visual, o visto será lido e revisto.<br />

Entre as narrativas, estabelece-se a relação entre o narrador e a substância do que<br />

se conta, assim como podemos incluir a “coisa” narrada - o objeto da Memória. Walter<br />

Benjamin em seu texto “O narrador”, expõe uma questão crucial e que nos leva a pensar o<br />

tempo presente contido no desejo de lembrar ou esquecer. O entorno (ou substância) de toda<br />

memória é o tempo presente, o que se vive, o que se lembra, o que se viveu que não pode<br />

mais ser vivido, mas pode ser lembrado. Assim como, o que não se viveu necessariamente,<br />

mas, de tanto sentido que faz, torna-se algo tão íntimo e seu, que pode ser contado. Neste<br />

sentido, também vejo aproximação entre o <strong>Design</strong> e a Memória dos objetos.<br />

A narrativa (...) é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de<br />

comunicação. Ela não está interessada em transmitir o ‘puro em si’ da coisa<br />

narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida<br />

do narrador para em seguida retirá-la dele. (...) Assim, seus vestígios estão<br />

presentes de muitas maneiras nas coisas narradas, seja na qualidade de quem<br />

as viveu, seja na qualidade de quem as relata. (BENJAMIN, 1985, p. 205)<br />

Portanto, Memória traz o estudo das representações sociais, das identidades e do<br />

imaginário, da cultura. O pesquisador se deleita nas possibilidades de conhecer e interpretar<br />

seu objeto de estudo, além de obrigar-se a buscar caminhos para tal conhecimento se efetivar<br />

e gerar frutos, também sociais e culturais.<br />

Talvez por tudo o que foi exposto até agora é que algo sempre me inquietou em relação<br />

à produção científica como fruto de pesquisa com populações nativas ou de qualquer grupo<br />

humano: o que fazer com o material que recolhemos se precisamos transformar os relatos em<br />

um texto acadêmico que está sujeito às normas e técnicas que nem sempre se referem a uma<br />

“forma” que melhor apresente e/ou represente o que desejamos refletir e transmitir. Por vezes,<br />

vira algo bastante diferente daquilo que foi recolhido das fontes orais, isto para não dizer o que<br />

fazer com as imagens que, na maioria das vezes, são utilizadas para preencher um espaço<br />

vazio ou para ilustrar algo que acaba sem vida no meio de tantas palavras, conceitos, teorias.<br />

Também algumas imagens acabam surtindo o efeito de aliviar a leitura, ou melhor, distrair o<br />

leitor, o que acaba comprometendo outros significados dados no ato do registro na tentativa<br />

de abarcar a “totalidade” das relações em uma busca de captar as intersubjetividades e interrelações<br />

em jogo. Parece que no campo do <strong>Design</strong> e da <strong>Moda</strong>, áreas propícias ao estudo, uso<br />

e abuso de imagens, encontro mais referências para pensar minhas inquietações e também<br />

para torná-las mais instigantes.<br />

Tal desafio já se evidencia de longa data entre os etnólogos e etnógrafos na história<br />

da ciência antropológica. Tanto é que uma das discussões recentes refere-se em abrir os<br />

diários antropológicos para revelar os acertos e os percalços das pesquisas de campo, o que<br />

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também significa explicitação metodológica. Malinowski, já nos apresentava tal inquietação<br />

nas primeiras décadas do século XX ao dizer que a etnografia,<br />

ciência em que o relato honesto de todos os dados é talvez ainda mais<br />

necessário que em outras ciências, infelizmente nem sempre contou no<br />

passado com um grau suficiente deste tipo de generosidade. Muitos dos seus<br />

autores não utilizam plenamente o recurso da sinceridade metodológica ao<br />

manipular os fatos e apresentam-nos ao leitor como que extraídos do nada.<br />

(...) A meu ver, um trabalho etnográfico só terá valor científico irrefutável se nos<br />

permitir distinguir claramente, de um lado, os resultados da observação direta<br />

e das declarações e interpretações nativas e, de outro, as inferências do autor,<br />

baseadas em seu próprio bom-senso e intuição psicológica. (MALINOWSKI,<br />

1976, p.22)<br />

O objeto é o próprio sujeito e o método aquele que mais aproxima a possibilidade<br />

de conhecer seu modo de viver sem reduzi-lo ao que queremos ou podemos perceber. Para<br />

isso a fundamentação teórica sempre esteve lado a lado à observação minuciosa e ao registro<br />

detalhado, com o intuito de captar a materialidade da cultura em questão, assim como sua<br />

dimensão simbólica. Talvez essa seja uma grande pretensão, mas poderia ser diferente?<br />

Então o que fazer com todo o material recolhido, com o que foi observado, sentido, não<br />

compreendido e relatado, às vezes, somente em nossas anotações e diários de campo?<br />

Ainda Malinowski apóia algumas das observações feitas aqui, em relação ao registro<br />

das fontes de informação e a versão final:<br />

Na etnografia, o autor é, ao mesmo tempo, o seu próprio cronista e historiador;<br />

suas fontes de informação são, indubitavelmente, bastante acessíveis, mas<br />

também extremamente enganosas e complexas; não estão incorporadas<br />

a documentos materiais fixos, mas sim ao comportamento e memória de<br />

seres humanos. Na etnografia, é freqüentemente imensa a distância entre<br />

a apresentação final dos resultados da pesquisa e o material bruto das<br />

informações coletadas pelo pesquisador através de suas próprias observações,<br />

das asserções dos nativos, do caleidoscópio da vida tribal. O etnógrafo tem<br />

que percorrer esta distância ao longo dos anos laboriosos que transcorrem<br />

desde o momento em que pela primeira vez pisa numa praia nativa e faz as<br />

primeiras tentativas no sentido de comunicar-se com os habitantes da região,<br />

até à fase final dos seus estudos, quando redige a versão definitiva dos<br />

resultados obtidos. (ibidem, p. 22-3)<br />

Pesquisa de natureza etnográfica ou que utilizam técnicas qualitativas a partir desta<br />

metodologia de pesquisa de campo, geralmente, revelam a problemática do manuseio e<br />

conservação do material, que os críticos genéticos chamam de documentos de reflexão:<br />

diários, anotações, correspondências. O que também ocorre com esboços, croquis, rascunhos,<br />

cadernos de notas, projetos que perpassam o processo criativo dos designers e artistas, que<br />

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nem sempre acabam contemplados ou devidamente armazenados ao ponto de revelar o grau<br />

de importância que tiverem na construção dos objetos/artefatos/histórias que encerram na<br />

materialidade em si. Salles esclarece acerca do trabalho sobre tais documentos de processo<br />

para os artistas e cientistas ao dizer que<br />

Fragmentos podem parecer para um observador desavisado uma cadeia de<br />

ações isoladas. O importante, no entanto, é perceber que os princípios que<br />

norteiam aquele processo aparecem quando o seu observador estabelece<br />

relações entre os gestos: ao longo do trabalho de manuseio de fragmentos,<br />

estes ganham significado na sua relação com o todo.<br />

Este trabalho de estabelecer relações entre índices de uma história na<br />

busca pela compreensão do todo é o mesmo manuseio de rastros feito pelo<br />

arqueólogo, o geólogo e o historiador. (Manuscrítica, no. 7, p.89)<br />

A partir de tal idéia pensei como salvaguardar e ampliar as interpretações de minhas<br />

anotações de viagens, diários de campo, gravações de entrevistas, depoimentos, histórias<br />

de vida, fotografias, filmagens de festas ou do cotidiano desses grupos, que representam,<br />

após anos de coleta, um acervo rico a partir das reais possibilidades de registro. Percebe-se<br />

ao ler alguns textos da Revista Manuscrítica, que a crítica genética, assim como os registros<br />

etnográficos podem oferecer base para tal estudo e análise, principalmente quando Salles<br />

aponta a relevância dos documentos de processo para compreender o momento da criação,<br />

entre outras formas de registro, guardando suas especificidades. Apresenta, a meu ver, uma<br />

possibilidade, assim como uma aproximação com as inquietações antropológicas quanto aos<br />

registros nos cadernos de campo, ao dizer que<br />

Entrevistas, depoimentos e ensaios reflexivos oferecem também dados<br />

importantes para os estudiosos do processo criador; têm, no entanto, caráter<br />

retrospectivo que os colocam fora do momento de criação. (op.cit., p.89)<br />

E indago: É possível uma antropóloga revisitar seus diários de campo, no intuito de<br />

reintegrá-los no processo de construção das idéias que a levou a formatar as pesquisas<br />

realizadas em dissertação, tese e artigos científicos, abrindo outras possibilidades de leitura do<br />

mesmo material? Respondo: com certeza e isto tem sido bastante explorado nas pesquisas<br />

antropológicas. Ainda pergunto: E como registrar, guardar, manusear e demonstrar estes<br />

processos no design de nossas produções acadêmicas e nos processos criativos no design<br />

e na moda? Respondo: acredito que estamos em processo de desenvolvimento destas<br />

linguagens e metodologias. E ainda: O design das teses acadêmicas amplia o universo da<br />

criação do cientista ou o restringe? Em outras palavras, onde colocar as formas, as cores,<br />

os sons apresentados no ato da pesquisa na escritura da tese? Falamos em processos para<br />

quais fins? Respondo: são fontes inesgotáveis de novas pesquisas e reflexões.<br />

Em suma, o que objetivo é uma releitura e um repensar trajetórias e perspectivas que<br />

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porventura e desventuras no fazer antropológico perpassam questões do que está guardado,<br />

do que e como o material etnográfico foi recolhido e registrado, enfim, no processo de coleta<br />

de dados que inclui, além da observação participante, a gravação de depoimentos, histórias<br />

orais, histórias de vida e o registro de imagens. Guardadas as devidas proporções, percebo nos<br />

processos projetuais nas áreas do <strong>Design</strong> e da <strong>Moda</strong> ainda questões bastante semelhantes,<br />

sobretudo quando o processo de construção cede lugar ao produto final e este se silencia, na<br />

maioria das vezes, ao consumidor/usuário final, caindo no esquecimento de quase todos os<br />

envolvidos neste saber/fazer. Também as percepções do uso e descarte dos objetos ficam,<br />

muitas vezes, distantes dos criadores e nem sempre geram reflexão para os seus usuários.<br />

Algo que interessa ao pesquisador que pretende abarcar não só o produto, mas a produção<br />

dos sentidos por meio dele.<br />

Parto, então, do seguinte pressuposto colocado por Cecília A. Salles,<br />

que discutir a morfologia da criação tem como pretensão oferecer mais do<br />

que um simples registro de um estudo, um modo de ação: tirar objetos do<br />

isolamento de análises e reintegrá-los em seu movimento natural. Aponta<br />

a relevância de observar fatos e fenômenos inseridos em seus processos.<br />

(Manuscrítica 8, p.64)<br />

Parece-me, neste caso, bastante salutar colocarmos à disposição de pesquisas desta<br />

natureza e com esta pretensão, o arcabouço teórico-metodológico da Antropologia e os<br />

teóricos da Memória, no sentido de apoiar reflexões, assim como proporcionar uma mediação<br />

para a análise dos processos embutidos em seu desenrolar científico. Desta forma, propõe-se<br />

conhecer alguns caminhos traçados em uma pesquisa qualitativa utilizando-se de recursos do<br />

método etnográfico.<br />

Sobre métodos e técnicas de pesquisa:<br />

Uma vez traçado o caminho a partir da teoria da memória, o recurso técnico é o da<br />

história oral. As técnicas, portanto, são qualitativas. No caso desta pesquisa, a coleta de<br />

histórias de vida pode significar um recurso estratégico, pois nos interessa tanto conhecer<br />

o cotidiano do trabalho e os modos de viver, pensar, sentir e fazer dos pesquisados; quanto<br />

compreender a metodologia utilizada na produção dos artefatos e/ou produtos que realizam.<br />

Isto porque:<br />

A história de vida permite a valorização de contatos informais baseados na<br />

identificação e empatia entre o pesquisador e o pesquisado, o que explora em<br />

profundidade a contextualização das entrevistas, extraindo delas um máximo<br />

de veracidade. Mais do que isso, a história de vida insere o ator, através de<br />

processos sincrônicos e diacrônicos, na rede real das relações sociais que o<br />

localiza dentro do grupo. (CAMARGO, 1981, p. 29).<br />

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O recurso metodológico da história oral possibilita ao pesquisado narrar as experiências<br />

vividas. O movimento da memória não é linear, não segue uma ordem cronológica, é um ire-vir<br />

constantes, em que associações são feitas, iluminando, até mesmo, situações que se<br />

encontravam encobertas. O que se estabelece aqui é a relação aberta entre pesquisador<br />

e pesquisado. Ao pesquisador, cabe esclarecer os objetivos de sua pesquisa, deixando o<br />

pesquisado totalmente livre para contar/revelar o que se quer registrado. Em alguns momentos,<br />

no entanto, o pesquisador interfere para solicitar mais informações sobre passagens da<br />

narração que precisam ser mais aprofundadas ou ficar mais claras. Quando o objeto em<br />

questão é o artefato, procuramos relacionar os processos de sua criação por meio de seu<br />

criador, ou podemos apoiar tal análise em outras fontes que nos propicie contextualizar o<br />

artefato em si, assim como o momento – circunstâncias e condições – de sua criação, se<br />

possível.<br />

Em outras palavras, o levantamento de histórias orais pressupõe a busca, no anonimato<br />

muitas vezes, de uma visão e vivência de mundo a partir de experiências cotidianas e<br />

inovadoras para uma análise sociocultural mais abrangente. É, portanto, necessário livrar-se<br />

de preconceitos e ampliar os horizontes, no sentido de uma credibilidade e colaboração entre<br />

pesquisador e interlocutor. Como diz Paul Thompson:<br />

O historiador oral tem que ser um bom ouvinte, e o informante, um auxiliar<br />

ativo. (THOMPSON, 1992, p. 43).<br />

Quanto ao historiador oral ter de ser um bom ouvinte, é claro, mas o informante torna-se<br />

mais do que um “auxiliar” ativo, pois ele torna-se um interlocutor, já que é visto como produtor<br />

cultural, como foi dito anteriormente. Essa concepção do fazer histórico encontra morada<br />

na literatura, e em José Saramago há uma passagem que demonstra como tudo passa pela<br />

interpretação, até mesmo o não-dito, como afirma Pollak. O literato diz:<br />

O historiador não deve se contentar em repetir o que já foi escrito. Deve<br />

investigar o não-dito e, sobretudo, o oculto. É essa perspectiva da história,<br />

como investigação do oculto, que me interessa. (...) O principal para mim,<br />

como já disse, não é a história, mas a maneira de contar a história. Os fatos que<br />

manipulo não são falsos, apenas podem ser interpretados de outra maneira.<br />

(SARAMAGO, 21/9/96, em uma entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo).<br />

Sendo assim, parece que cabe ao designer tornar-se um observador atento, um bom<br />

ouvinte e, portanto, propor-se vir a ser um pesquisador qualificado.<br />

Nesse processo de trocas encontra-se o dinamismo do fazer histórico e compreendese<br />

a importância da lembrança e do apreendido pelo dito, não-dito, feito e observado, como<br />

uma recriação do vivido:<br />

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(...) um acontecimento vivido é finito, ao passo que o acontecimento lembrado<br />

é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois.<br />

Num outro sentido, é a reminiscência que prescreve, com rigor, o modo da<br />

textura. Ou seja, a unidade do texto está apenas no actus purus da própria<br />

recordação, e não na pessoa do autor, e muito menos na ação (BENJAMIN,<br />

1985, p. 37).<br />

É esse o sentido de se trabalhar com as técnicas qualitativas em uma pesquisa que<br />

prioriza a memória. A busca não é da verdade ou das certezas, conforme o objetivado na<br />

formulação de leis gerais, mas a das lembranças, do vivido, do interpenetrado durante toda<br />

uma existência e que mostra na riqueza simbólica o sentido real e o imaginado do sujeito, que<br />

o faz autor de sua própria trajetória de vida.<br />

Notas<br />

i É importante frisar que ao se colocar origem, não há nenhuma intenção purista na análise, pois<br />

desacreditamos dessa existência, mas o que se quer dizer aqui é como cada um dos interlocutores de<br />

uma pesquisa onde o mote é a lembrança pensa a sua história em relação ao seu meio social. O que<br />

em sua memória ficou interpenetrado da história do seu lugar e do que lhe foi transmitido por gerações<br />

passadas, ou ainda, o que interpenetrou em sua consciência da memória histórica, do ponto de vista<br />

mais oficial e, sobretudo, do como interpreta sua vida e o seu lugar.<br />

ii Aqui se entende lugar de forma amplo. Pode ser a moradia, assim como o lugar profissional e social,<br />

por exemplo. O lugar antropológico é aquele que o sujeito circunscreve sua atuação/ autuação em<br />

múltiplos sentidos.<br />

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______________________. “Diálogo na Crítica Genética” In Manuscrítica no. 5, Centro de<br />

Estudos de Crítica Genética. PUC-SP.<br />

THOMPSON, Paul. A voz do passado. São Paulo: Paz e Terra, 1992.<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

São Paulo: Rosari, <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 419


O DESIGN DA MARCA COLCCI: hISTóRIA E CONSTRuçãO<br />

Alvaro de Melo Filho; Mestre em <strong>Design</strong>: <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />

amelofi lho@terra.com.br<br />

Márcia Merlo; Profª Dra.; PPG Mestrado em <strong>Design</strong>: <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />

mmerlo@anhembi.br<br />

Resumo<br />

Este artigo intenciona identificar e explorar o design de marcas,<br />

tendo como suporte de pesquisa a análise da trajetória de uma<br />

marca brasileira de moda, no caso, a Colcci. Objetiva-se estudar<br />

a procura dessa marca por um design característico que a<br />

propulsione dentro do mercado nacional, que busque estruturar<br />

seu trabalho por meio do relacionamento com o consumidor e<br />

que caminhe rumo a um reconhecimento internacional. Trata-se<br />

de um processo de reflexão que pretende revelar os rumos que<br />

traçaram o design da marca Colcci, anunciando os passos que a<br />

empresa está inclinada a seguir e que poderão levá-la a trabalhar<br />

um redesign, contrariando seu discurso de ser apenas uma moda<br />

jeanswear e não uma grande lançadora de tendências.<br />

Palavras-Chave: design de marcas; moda; Colcci<br />

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O design da marca Colcci: história e construção.<br />

Introdução<br />

Este artigo parte da pesquisa realizada com uma marca brasileira de moda. O propósito<br />

do estudo se concentra em identificar e explorar o design de marcas, tendo como suporte de<br />

pesquisa a análise da trajetória da Colccii .<br />

A reflexão aqui proposta perpassa o projeto de design de marcas na contemporaneidade,<br />

sobretudo em como se configuram seus símbolos, valores, imagem, produtos, pontos de<br />

venda, comunicação, merchandising e o relacionamento com o cliente; tudo convergindo para<br />

a busca de um único objetivo: o de proporcionar os significados, funcionais e emocionais, que<br />

serão traduzidos por um grupo de pessoas que compartilham o mesmo código.<br />

Nota-se que a marca, portanto, fornece mais que a simples identificação de um produto,<br />

serviço ou empresa; ela se constitui em significado simbólico para a experiência do indivíduo<br />

quanto ao consumo de objetos e sistemas.<br />

Os pressupostos estão evidenciados em uma discussão teórica que envolve exposições<br />

de diversos autoresii , fundamentação esta que procurou embasar as análises da marca Colcci.<br />

Nesse sentido, objetiva-se entender a procura dessa marca por um design característico que<br />

a propulsione dentro do mercado nacional, que busque estruturar seu trabalho por meio do<br />

relacionamento com o consumidor e que caminhe rumo a um reconhecimento internacional.<br />

O trabalho apoiou-se em pesquisa qualitativa, utilizando, para as análises da marca,<br />

o modelo comparativo, com base em levantamento bibliográfico. Dentre os procedimentos<br />

técnicos, estão o levantamento e análise de livros, dissertações e teses; publicações em<br />

revistas e jornais; ilustrações e fotografias; e entrevistas com designers, estilistas, gestores de<br />

marca, franqueados e consumidores.<br />

Das informações coletadas delineou-se um percurso histórico que acompanha<br />

mudanças no âmbito mercadológico da empresa, com decisões estratégicas que implicam<br />

reconfigurações de seu designiii relativas à marca e seu objeto de moda. Para melhor<br />

entendimento do processo de análise da marca Colcci e dos resultados obtidos, o trabalho<br />

dividiu-se em três fases, apresentadas a seguir.<br />

COLCCI – O design de uma marca<br />

Inicialmente, grande parte de todo o movimento da marca Colcci esteve calcada nas<br />

propostas de Melo (2005) para o design de marcas. O autor ressalta que entre as décadas de<br />

1960 e 1990 existiu uma cultura empresarial focada na busca da identidade visual, em que<br />

o símbolo da marca (ou logotipo) passava a representar signos de comando utilizados para<br />

identificar produtos e orientar quanto à padronização na aplicação da marca.<br />

Nesse sentido nasce, em 1986, a Colcci, uma malharia que concentrava sua produção<br />

em peças básicas – moletons, camisetas e alguns shortinhos – e almejava, em um primeiro<br />

momento, uma marca que representasse apenas a ideia de uma empresa que oferecia peças<br />

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de qualidade e bons preços.<br />

Seu primeiro logotipo foi apresentado dentro de um molde de negócio inicial, estampava<br />

as etiquetas dos produtos e a fachada do empreendimento. Objetivava informar e nomear o<br />

produto e o estabelecimento. Uma intenção que remete ao exposto por Costa (2008) no<br />

sentido de que a marca, em princípio, tem a função de marcar, traçar, indicar algo. O autor<br />

ainda considera que, a partir do momento em que o usuário entra em contato com o produto,<br />

experimenta e atesta suas características (funcionais, qualitativas e simbólicas), o logotipo<br />

passa a ter um significado.<br />

À primeira vista, a Colcci não possuía um código conhecido por todos, era apenas um<br />

sinal indicativo de objeto de vestuário; porém, dentro das proposições de Costa (2008), em um<br />

segundo estágio, torna-se um símbolo designativo de relação custo/benefício.<br />

Figura 1 – A primeira marca da Colcci, ainda um logotipo. Imagem fornecida pela empresa.<br />

Nesse ponto, além da qualidade das peças, um personagem da marca, Digby, um<br />

cachorrinho estilizado, fazia sucesso entre os consumidores que passavam pela cidade de<br />

Brusque (SC) atrás de peças de roupas básicas, com qualidade e bom preço. O personagem<br />

era estampado em quase todos os produtos e aparecia junto ao nome da marca. Logo Digby<br />

foi adotado como mascoteiv da empresa.<br />

Figura 2 – Digby em sua primeira versão. Arquivo pessoal do pesquisador, 1986 - 1988.<br />

Com base nas colocações de Perez (2004), percebe-se que Digby nasceu como<br />

um mascoteiiii que pretendia, em um primeiro momento, trazer sentimentos de felicidade,<br />

proximidade e afetuosidade aos consumidores que procuravam a marca.<br />

Wheeler (2008, p.116) afirma que “frequentemente, um logotipo é justaposto com um<br />

símbolo em um relacionamento formal.” A procura dos consumidores pelo cachorrinho Digby<br />

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levou os proprietários da empresa, Lila e Jorge Colzani, a vislumbrar que o sentimento agregado<br />

à sua figura poderia chamar mais atenção sobre o logotipo inicial. Foi nesse momento que o<br />

lettering Colcci passou a se apresentar de uma forma diferente, porém, ainda não de maneira<br />

oficial. Essa nova marca aparecia ora em sua primeira versão (apenas como logotipo), ora com<br />

Digby.<br />

Figura 3 – Segunda marca com Digby agregado ao logotipo. Arquivo pessoal do pesquisador, 1986 - 1988.<br />

Ao perceber que, cada vez mais, os consumidores simpatizavam pela figura de Digby,<br />

os fundadores da marca decidem investir na sua imagem e redesenhá-lo. Ele abandona<br />

seus traços livres de rascunho e ganha uma imagem aproximada da personificação de um<br />

cachorrinho.<br />

Figura 4 – Digby mais trabalhado. Registro do pesquisador, 1989 – 1991.<br />

É possível analisar que a intenção, com a imagem do cachorrinho, aconteceu dentro do<br />

contexto de mascote apresentado por Perez (2004). Ainda de acordo com a autora, percebese<br />

que a pretensão é a de que sejam vistos com sentimentos e vida própria, ligados ao<br />

dia a dia do ser humano. A nova roupagem de Digby pretende humanizar o personagem,<br />

aproximando-o do cotidiano dos indivíduos; e continua com o objetivo de proporcionar<br />

felicidade, criar proximidade e estabelecer afetuosidade aos consumidores da marca, visto<br />

que aparece com uma imagem mais afável, dentro dos contextos do desenho, da imagem de<br />

um bicho de estimação.<br />

Um elemento merece destaque nesta análise: Digby aparece vestido com uma camiseta.<br />

Isso chama nossa atenção para duas interpretações: a primeira, condiz com a humanização<br />

do personagem, visto que agrega à imagem do mascote um elemento do universo do homem,<br />

uma peça do vestuário; a segunda, está para o fato desta peça, uma camiseta, ser o principal<br />

objeto de trabalho da marca, respondendo pela quase totalidade de suas vendas.<br />

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O redesign de Digby não foi uma mudança impelida pelo primeiro logotipo, apenas uma<br />

atualização do personagem, que passa a agregar, cada vez mais, a marca inicial da empresa.<br />

Figura 5 – A terceira marca da Colcci. Substitui-se o personagem inicial pelo novo desenho de Digby.<br />

Melo (2009) informa que no início a loja foi aberta em um espaço sem identidade visual<br />

definida. Tudo construído nos moldes de uma loja cujo interesse era apenas oferecer malharia<br />

de qualidade, com preços acessíveis. O personagem da marca era muito explorado em<br />

letreiros retroiluminados, sacolas, embalagens e adesivos. Afinal, Digby conquistava a simpatia<br />

dos consumidores e era um dos grandes responsáveis pela ascensão da marca e das vendas.<br />

Um detalhe, porém, chama a atenção: Digby era, comumente, visto nesses materiais<br />

em orientação vertical, apesar de seu uso na marca ser horizontal, o que leva à seguinte<br />

análise: a Colcci buscava, mesmo que não declaradamente ou ainda de forma desorganizada,<br />

uma identidade visual. O fato reforça o exposto por Melo (2005), anteriormente, sobre a cultura<br />

da identidade visual difundida pelas empresas no período que permeia os anos 1960 até<br />

meados dos anos 1990.<br />

Essa identidade visual ainda não declarada era um trabalho de experimentações,<br />

testavam-se as várias aplicações do personagem e logotipo, buscando um formato ideal que<br />

organizasse a aplicação da marca. A administração da empresa, coordenada por Jorge Colzani,<br />

entendia que em certos materiais de comunicação ou merchandising – como cartões de visita,<br />

etiquetas para presente e adesivos – a orientação vertical poderia proporcionar um melhor<br />

reconhecimento do logotipo e personagem. Porém, ao mesmo tempo, em fachadas, a melhor<br />

aplicação condizia com o horizontal, até mesmo porque era o formato oficial da marca.<br />

Figura 6 – À esquerda, a terceira marca estampada em um letreiro retroiluminado na fachada de uma<br />

das primeiras lojas. Acima, cartão de visita com o logotipo e o personagem dentro de uma orientação vertical.<br />

Foto e imagem do arquivo pessoal do pesquisador, 1992.<br />

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Pode-se verificar, ainda, que essa experimentação se estendia a outros fatores, como,<br />

por exemplo, a cor. Apesar de os materiais de cunho institucional trazerem marca e personagem<br />

dentro das tonalidades amarela e azul (cores padrão da empresa), em outras aplicações Digby<br />

e o logotipo podiam aparecer em cores diferenciadas e alternadas, como é o caso de alguns<br />

adesivos.<br />

Figura 7 – Digby, estampado junto ao logotipo, em adesivo. Orientação vertical, contrária à versão oficial.<br />

Detalhe para a camiseta na cor rosa, destacando o objeto de manufatura principal da fábrica.<br />

Todo esse esforço por acertar o padrão visual na exposição dos produtos, somado à<br />

expansão dos pontos de venda, levou a empresa a buscar também uma identidade visual. E<br />

a Colcci apresenta uma nova marca.<br />

Figura 8 – A quarta marca da Colcci. Imagem cedida pela empresa.<br />

A quarta apresentação oficial mantém o respeito ao padrão de cores – com predominância<br />

do amarelo e azul. Essa versão, entretanto, inaugura a inserção do vermelho, representada<br />

pela camiseta do personagem da marca. Digby ganha novas dimensões, assim como a<br />

relação entre a marca e seus usuários. Daí reiterar a questão da aproximação e afetuosidade<br />

apontadas por Perez (2004) e refletidas nas mudanças da marca Colcci.<br />

Para Ferlauto (2002, p.63), “[...] os designers precisam ‘escrever com clareza’ seus<br />

discursos não verbais, para serem bem entendidos. Isso significa considerar a dinâmica do<br />

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olhar”. O autor amplia a discussão, ao considerar que, nesse sentido, uma das funções do<br />

designer é proporcionar soluções não verbais, comandadas por questões relativas à dimensão,<br />

forma, posição, cores, texturas, etc., o que, particularmente, mostra que essa versão da marca<br />

não apresenta diferenciações relativas apenas à cor: Digby aparece com um desenho ainda<br />

mais trabalhado, com volume e textura emborrachada.<br />

Dondis (1997, p.70) considera ser a textura “[...] o elemento visual que com frequência<br />

serve de substituto para as qualidades de outro sentido, o tato”. Já o volume, para a autora,<br />

é proporcionado por uma ideia de dimensão. Assim, a textura e o volume funcionam como<br />

uma alusão ótica, ao instigar o sentido tátil de querer afagar o personagem, como se ele fosse<br />

tangível, aproximando-o ainda mais de uma humanização e seus sentidos reais.<br />

Sancionando a análise anterior sobre a orientação vertical na aplicação de Digby junto<br />

ao logotipo, a quarta marca da Colcci atesta a condição de relacionamento formal: o logotipo<br />

é apresentado com o símbolo (WHEELER, 2008), resultando no que autores, como Costa<br />

(2008), Melo (2005) e Strunck (2003), adotam como assinatura visual ou marca.<br />

Para Wheeler (2008), a marca com um personagem é criada vislumbrando a incorporação<br />

de atributos e valores que, geralmente, estão vinculados a um produto. A concretização da<br />

inserção de Digby ao logotipo Colcci é a fundamentação para agregar à marca os valores que<br />

foram transmitidos à imagem do personagem e experimentados pelos clientes.<br />

A partir do crescimento com o modelo inicial de franquia, até 1994 foram 50 franquias,<br />

chegando, em 1997 a 200 estabelecimentos em todo o país. “Em 1993, 1994, a Colcci já estava<br />

em uma fábrica maior, com muitos funcionários (de 250 a 300), isso entre administradores,<br />

financeiro, vendas, estilistas, designers, costureiros, empacotadores, produção...” (MELO,<br />

2009, registro gravado).<br />

Figura 9 – Segunda fábrica da Colcci: construída para abrigar sua expansão, com espaço para todos os<br />

departamentos e setores de produção. No detalhe à direita, setor de estamparia, em processo serigráfico.<br />

Arquivo pessoal do pesquisador.<br />

Nesse mesmo período, a Colcci começou a diversificar as peças que oferecia: vestidos<br />

leves, blusinhas, calças jeans, bermudas, jaquetas, jardineiras, bonés, meias, carteiras, bolsas<br />

para viagem, nécessaires, toalhas, agendas, materiais de cunho promocional, como chaveiros,<br />

canetas, lápis e adesivos; foram agregados ao mix de produtos que a marca oferecia. Segundo<br />

Melo (2009), em 1994, já existia uma coleção “devido à variação das peças que estavam<br />

sendo acrescentadas ao que se trabalhava na loja, tínhamos que ir de duas a quatro vezes ao<br />

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ano à fábrica de Brusque para fazer a compra das coleções” (registro gravado).<br />

Figura 10 – Agenda produzida pela Colcci. Arquivo pessoal do pesquisador.<br />

Figura 11 – Meias, parte do mix de produtos que a empresa começava a oferecer, diversificando-se.<br />

Perez (2004), Strunck (2003) e Wheeler (2008) lembram que, apesar de as ideias que<br />

transmitem a personificação de um personagem se mostrarem atemporais e universais,<br />

raramente elas conseguem se manter atualizadas; precisam ser redesenhadas e adaptadas à<br />

cultura da época. Foi pensando assim que a Colcci aprimorou sua marca, para se atualizar. Na<br />

sua quinta versão, Digby volta a ser bidimensionalizado e vetorizado, o que ajuda na aplicação<br />

da marca em materiais gráficos. Com um visual descolado e jovem, o personagem continua a<br />

ser bem explorado em materiais de merchandising e estampas dos produtos, aparecendo em<br />

diversas aventuras que fazem parte do cotidiano dos seus consumidores.<br />

Figura 12 – A quinta marca da Colcci: personagem volta a ser bidimensionalizado e vetorizado.<br />

Percebe-se, pelo percurso das análises apresentadas, que existe uma busca constante<br />

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da marca no sentido de cada vez mais personificar Digby, aproximando-o de uma humanização,<br />

o que é respaldado por Perez (2004).<br />

Nessa quinta versão da marca, isso se comprova pelo movimento que o personagem<br />

adquire (desprendendo-se dos contextos estáticos e com a face voltada para apresentação<br />

frontal), por sua cor alaranjada (mais representativa dos seres humanos, no universo dos<br />

quadrinhos e animação) e, principalmente, pela vestimenta. Esta, que antes compreendia<br />

apenas a camiseta, agora compõe um look com o tênis e a calça (consequência da diversificação<br />

das peças, que começavam a ser confeccionadas pela marca).<br />

O logotipo, por sua vez, é mantido dentro dos contextos originais. Em decorrência<br />

de tantas modificações no personagem, algo precisava ser mantido para que houvesse um<br />

reconhecimento por parte dos consumidores, uma garantia dos valores intrínsecos ao seu<br />

consumo simbólico (MIRANDA, 2008). E é pensando na construção simbólica que a Colcci se<br />

apresenta com um novo projeto.<br />

COLCCI – um design em transição<br />

O ano de 1997 foi de grandes mudanças para a empresa. Lila Colzani (2007) pontua<br />

que, apesar do crescimento da Colcci, nem todo o percurso do trabalho foi marcado por<br />

sucesso e tranquilidade. Segundo a estilista e ex-proprietária da marca, durante o período de<br />

expansão, houve vários empecilhos: franqueados que não entendiam de moda ou de gestão<br />

de negócios; contratos que impediam a Colcci de entrar com lojas multimarcas em regiões<br />

onde houvesse uma franquia. Foram questões que acabaram prejudicando a empresa. A<br />

solução foi reestruturar a marca. Em meados desse mesmo ano, decidiu-se, estrategicamente,<br />

fechar as franquias que não estivessem dentro de um padrão de loja.<br />

Melo (2005) relata que, ao final da década de 1990 e início dos anos 2000, as empresas<br />

começaram a se preocupar mais com o relacionamento entre marca e clientes. O signo de<br />

comando amplia sua função inicial e passa a responder por significados simbólicos atribuídos<br />

aos objetos e marcas, proporcionando a tradução de valores emocionais. Para o autor, o<br />

branding vem aliar ao design de marcas a preocupação com o relacionamento entre as partes<br />

envolvidas no processo de consumo, fato que orienta o turnaround da Colcci em uma nova<br />

fase, de transição, em que mudam os propósitos do trabalho, o objeto produzido e as marcas;<br />

trabalho que, praticamente, relança a Colcci no mercado, exigindo dela um período de<br />

adaptação, para que a empresa possa entender seus novos objetivos e, consequentemente,<br />

amadurecê-los para transmiti-los a seus usuários.<br />

Havia, por parte da estilista Lila Colzani, o desejo de promover o crescimento da moda<br />

da Colcci dentro do universo fashion de marcas brasileiras. Aponta, ainda, que a marca<br />

estava ficando conhecida como especializada em vestuário básico. Foi quando se percebeu<br />

a importância de mudar essa visão, para evitar que a marca se tornasse definitivamente<br />

conhecida como popular, o que, a essa altura, não era o desejo dos proprietários da empresa,<br />

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Lila e Jorge Colzani.<br />

O primeiro passo no processo de mudança da marca Colcci foi tornar seu mascote, o<br />

cachorrinho Digby, exclusivo das coleções infantis. Zanon (2009) diz que, apesar de trabalhar<br />

com vários itens, gradualmente a empresa foi inserindo produtos mais voltados a uma linha<br />

fashion e foi se desligando do personagem.<br />

As camisetas foram surgindo em tonalidades de cores diferenciadas e com tratamento<br />

de lavagem do tecido. As estampas deixaram de ser serigrafadas e passaram a receber<br />

bordados, o que proporcionava uma sofisticação ao objeto. Neste caso, o personagem não<br />

aparecia mais. Também a etiqueta da marca mudou: voltou ao logotipo inicial da Colcci, porém,<br />

nas cores principais de cada peça – uma solução adotada para interferir menos no produto,<br />

uma “invisibilidade” com vistas a transparecer apenas a nova proposta do design da empresa.<br />

Figura 13 – À esquerda, estampa de camiseta que começava a compor a nova coleção da Colcci.<br />

Foto do pesquisador.<br />

Figura 14 – À direita, nova etiqueta: “invisibilidade” que buscava transparecer apenas o design do produto.<br />

Dentro dos novos parâmetros, a Colcci começou um trabalho diferenciado: mudou a<br />

marca, a identidade visual das lojas e até o design de sua moda, como já mencionado. Com<br />

esse novo universo, propor um design que mudasse radicalmente a configuração visual da<br />

marca poderia levá-la, em instantes, à bancarrota. Era preciso manter algo que proporcionasse<br />

reconhecimento de elementos familiares ao consumidor, para não gerar um estranhamento<br />

por parte da clientela fiel e, consequentemente, seu distanciamento.<br />

A sexta marca volta a ser um logotipo, mantendo-se as cores da identidade que deram<br />

origem à empresa. Manter tais elementos visuais de reconhecimento seria importante para<br />

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comunicar ao consumidor as novas propostas. E o objetivo era mostrar que a empresa estava,<br />

gradualmente, adaptando-se a um novo universo.<br />

Figura 15 – A sexta marca volta a ser um logotipo.<br />

As cores amarelo e azul foram mantidas, objetivando o reconhecimento da marca. A<br />

tipografia, porém, não condizia mais com o tempo: muito pesada, seu traço, com intenções<br />

manuscritas, não se revelava contemporâneo para o universo informatizado que, cada dia<br />

mais, estava se fazendo presente na vida dos indivíduos. A tipografia deveria, pois, adaptar-se<br />

à cultura da época, digitalizar-se.<br />

Pode-se dizer que a empresa chega a um resultado de design mais amadurecido<br />

para a marca, com caráter mais sério, formas retas e limpas, indo ao encontro das novas<br />

propostas que a Colcci pretendia transmitir em um símbolo. A nova marca Colcci condensa<br />

informação que comunica um amadurecimento no design de suas coleções, pois rompe com<br />

o universo fantástico e bem-humorado, representado por um personagem humanizado, mas<br />

não real. Traduz esse ideal em formas retangulares e cores que proporcionam reconhecimento<br />

e familiaridade com as marcas anteriores, na intenção de gerar lembrança aos seus propósitos<br />

de qualidade, experimentados pelo consumidor.<br />

Nota-se, porém, que o conceito não seria suficiente para atender ao novo posicionamento:<br />

um novo público que agora não buscava apenas se vestir com qualidade e bons preços, mas<br />

intencionava também transparecer uma identidade particular e construída, dentro do ambiente<br />

de consumo de moda, como exposto por Miranda (2008).<br />

Os diretores da Colcci sabiam, portanto, que o trabalho com a sexta versão seria,<br />

dentro desse contexto, temporário. Contudo, não era uma identidade definida, mas uma fase<br />

de transição.<br />

A sétima marca da Colcci é um logotipo que surge para acompanhar o conceito das<br />

peças em produção, possuidoras de um caráter cada vez mais ligado ao fashion. Opta-se por<br />

retirar as cores azul e amarelo e trabalhar, por algum tempo, uma marca monocromática, até<br />

que se acertasse uma proposta de design.<br />

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O design da marca Colcci: história e construção.<br />

Figura 16 – Sétima marca, um logotipo monocromático.<br />

Avalia-se que a Colcci pretendia trazer elementos que a atualizasse e, consequentemente,<br />

fortalecesse sua imagem. A empresa almejava uma ruptura completa com a antiga identidade,<br />

que, em virtude do amarelo e azul, ainda remetia muito aos tempos em que Digby imperava<br />

no design das coleções. É como se a marca estivesse definitivamente se desvinculando de<br />

qualquer ideal ou significado construído ao longo do tempo pelas cores padrão, que sempre<br />

adotou como identidade.<br />

Zanon (2009) considera que todas as mudanças levaram a Colcci a esse redesign,<br />

modificando a marca frequentemente. Apesar de se mostrar um processo estruturado, a<br />

entrevistada acredita que a movimentação para a reestruturação não tenha sido um trabalho<br />

planejado. “Na verdade, foi uma coisa que foi acontecendo [...] acredito que tenha sido mesmo<br />

uma consequência da evolução do produto que precisava também da evolução do logotipo”<br />

(ZANON, 2009, registro gravado).<br />

Contudo, a sexta e sétima versões da marca Colcci não representavam a concepção<br />

visual de um símbolo que significava os planos da empresa para o futuro. Os logotipos eram<br />

a primeira ideia do que se almejava, concepções transitórias, até que a empresa acertasse<br />

seu ritmo e proporcionasse a solução para um design eficiente, capaz de comunicar as novas<br />

intenções.<br />

Entre o final de 1999 e início de 2000, a Colcci apresenta sua oitava marca oficial, uma<br />

assinatura visual, composta de símbolo e logotipo, que a segue até os dias atuais.<br />

Figura 17 – A oitava, e última, marca da Colcci.<br />

A nova marca da Colcci rompe com todas as propostas anteriores, configurando a<br />

consagração de seu novo trabalho. No que se refere às cores, a empresa desenvolveu uma<br />

tonalidade própria para seu símbolo, derivada da cor laranja. A tipografia segue um design<br />

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exclusivo, fugindo da concepção original, manuscrita.<br />

O símbolo é uma solução de design, resultado visual do espectro sonoro que forma<br />

a palavra Colcci quando pronunciada. Nesse sentido, lê-se verbal e visualmente o nome<br />

da empresa. Uma disposição que, no futuro, pode permitir à marca assinar apenas com o<br />

símbolo ou com o logotipo, alternativa que proporciona maleabilidade na comunicação dos<br />

significados adotados.<br />

Figura 18 – Maleabilidade na aplicação da marca: ora aparece assinatura visual, ora somente símbolo, ora<br />

logotipo.<br />

Zanon (2009) relata que todas as mudanças ocorridas com o logotipo foram<br />

acompanhadas por reformulações internas no layout da loja, além da aplicação da identidade<br />

visual no material dos pontos de vendas, de crescimento em ações de comunicação. Enfim,<br />

sempre houve uma preocupação com design, marketing e comunicação.<br />

Figura 19 – A oitava marca Colcci aplicada em fachada de loja da marca. Fotos do pesquisador.<br />

O trabalho de reposicionamento da marca contribuiu para aumentar o sucesso<br />

da empresa, chamando a atenção para a sua força, atraindo, consequentemente, o olhar<br />

de grandes investidores. Em 2000, o grupo AMC Têxtil compra a marca Colcci. A gestão<br />

administrativa da empresa, que se concentrava na figura do então sócio-proprietário Jorge<br />

Colzani, cede espaço a novos diretores – que seguem o comando da liderança de Alexandre<br />

e Margareth Menegotti, irmãos e sócios-proprietários do grupo que adquiriu a marca. Lila<br />

Colzani, porém, não se desliga da empresa como o marido. Apesar de não mais responder<br />

por decisões administrativas, a estilista continua contratada pelo grupo para comandar o<br />

departamento de design de moda das coleções da Colcci.<br />

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O design da marca Colcci: história e construção.<br />

O processo de compra pelo grupo AMC Têxtil, segundo Zanon (2009), passou por um<br />

período de maturação, necessário para que a empresa se enquadrasse nesse novo universo<br />

para, assim, ter uma visão dos novos rumos a serem seguidos. Uma etapa que levará a novas<br />

oportunidades e, ao longo do tempo, acarretará novas mudanças. Em um processo que vai<br />

definir o design da marca Colcci.<br />

COLCCI – A marca, a moda e a modelo<br />

Chega-se, então, às propostas contemporâneas para o design da marca. Melo (2005)<br />

tece considerações sobre a complexidade da marca, visto que o símbolo, a imagem e o<br />

relacionamento com o cliente estão imbricados em uma atividade única: a de proporcionar<br />

os significados, funcionais e emocionais, a serem traduzidos por um grupo que compartilha o<br />

mesmo código. Um trabalho que se presta ao design da marca Colcci no mercado de moda<br />

brasileiro e que necessitou de um longo planejamento, que vai de 2001 – após a compra pelo<br />

grupo – até janeiro de 2004, ano de maior importância para a Colcci, pois marcou sua primeira<br />

aparição em uma semana de moda brasileira.<br />

Zanon (2009) afirma que em 2003 a rede de franquias já estava melhor estruturada<br />

e desenvolviam-se estratégias de trabalho com as multimarcas; que havia, por parte dos<br />

consumidores, certa cobrança pela não participação em uma semana de moda. Os clientes<br />

precisavam e reclamavam de uma visibilidade que a própria marca não possuía, em nível<br />

desejado, nas capitais. Assim, a Colcci sentiu-se motivada para uma mudança que a elevasse<br />

ao patamar de conhecimento pretendido. Percebeu que tal visibilidade poderia ser obtida com<br />

a participação em eventos, como o São Paulo Fashion Week ou o Fashion Rio. Iniciou-se,<br />

pois, um novo trabalho com o design da marca.<br />

Apresentando a coleção Outono/Inverno 2004, a marca teve sua primeira participação<br />

no Fashion Rio – uma parceria que permaneceria até 2007. “Então começamos de fato, com<br />

força, com visibilidade, em janeiro de 2004. [...] desfilamos com a Paris Hilton. Este foi o<br />

primeiro grande desfile da Colcci” (ZANON, 2009, registro gravado).<br />

A modelo Gisele Bündchen participou, na última hora, dos trabalhos que a empresa<br />

preparava para a segunda metade de 2004. Para Zanon (2009), um dos fatores que contribuíram<br />

para a busca do nome da modelo foi a ideia de uma expansão internacional. Na época a Colcci<br />

possuía uma loja nos Estados Unidos e iniciava suas atividades em outros países; precisava<br />

de um rosto que possuísse visibilidade não só no Brasil, como no exterior. Depois de Paris<br />

Hilton, a marca percebeu que era necessário alguém que representasse todos os valores que<br />

se desejava comunicar.<br />

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O design da marca Colcci: história e construção.<br />

Figura 20 – À esquerda, imagem do primeiro desfile Colcci realizado com Paris Hilton, em janeiro de 2004, no<br />

Fashion Rio. Fotos divulgação cedidas pela Colcci.<br />

Figura 21 – À direita, imagem do primeiro desfile Colcci realizado com Gisele Bündchen, em janeiro de 2005, no<br />

Fashion Rio. A coleção Outono/Inverno 2005 tinha como título/tema “Confidential Hotel”.<br />

Fotos divulgação cedidas pela Colcci.<br />

Para Erner (2005), grandes marcas se consolidaram no mercado graças à habilidade de<br />

seus dirigentes; seus produtos são bem comercializados pelo nome que construíram. Muitas<br />

vezes, as vias que propulsionam um resultado ainda maior tomam caminhos que se utilizam<br />

do que o autor chama de people – vestir celebridades – para garantir certo status. A Colcci é<br />

um exemplo, iniciou com Paris Hilton e seguiu com Gisele Bündchen.<br />

A ideia do people, colocada pelo autor, é reforçada, sob outra perspectiva – a psicológica<br />

–, por Miranda (2008, p.25), ao acrescentar que “o indivíduo possui tendência psicológica à<br />

imitação, esta proporciona a satisfação de não estar sozinho em suas ações. Ao imitar, não só<br />

transfere a atividade criativa, mas também a responsabilidade sobre a ação dele para o outro”.<br />

Logo após o primeiro trabalho com a modelo Gisele Bündchen, a marca abriu lojas em<br />

Barcelona e Madri, na Espanha, e começou uma ação muito forte nos Emirados Árabes. No<br />

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O design da marca Colcci: história e construção.<br />

dia da entrevista com Geane Zanon (23 de outubro de 2009), a Colcci estava abrindo uma loja<br />

franqueada no Chile e organizando sua inauguração com a presença do modelo Jesus Luz, o<br />

que, mais uma vez, alinha as estratégias da marca ao pensamento de Erner (2005), Miranda<br />

(2008) e Perez (2004), reforçando-o.<br />

Em 2007 Jéssica Lengyel assume o design das coleções da Colcci e tem, em janeiro<br />

do mesmo ano, a sua premier, apresentando a coleção Outono/Inverno 2007. Lengyel vem<br />

reforçar a intenção da empresa ao apostar no jeanswear. Porém, a Colcci não esconde – nas<br />

peças desfiladas na passarela – o forte apelo fashion, além da intenção de lançar tendências.<br />

Figura 22 – Peças com design assinado por Lengyel e sua equipe. Coleção Primavera/Verão 2008.<br />

A Colcci satisfeita com o resultado positivo das participações no Fashion Rio, em 2008,<br />

transfere a apresentação das coleções para o São Paulo Fashion Week. Zanon (2009) analisa<br />

positivamente o papel das duas semanas de moda na marca: o Fashion Rio foi uma grande<br />

vitrine para a empresa, colocou sua marca no mercado, chamando atenção para a proposta<br />

inovadora de moda que é trabalhada; em São Paulo, teve-se a oportunidade de consagrar,<br />

de forma institucionalizada, a capacidade da Colcci para fazer moda e mostrar que veio para<br />

lançar tendência no jeanswear.<br />

Em sua primeira participação no São Paulo Fashion Week, a Colcci trouxe um reforço à<br />

imagem de Bündchen nas passarelas. Rodrigo Hilbert vem formar, com Gisele, o casal que a<br />

empresa precisava para consagrar o uso do people – como propõem Erner (2005) e Miranda<br />

(2008).<br />

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O design da marca Colcci: história e construção.<br />

Figura 27 – Colcci em estreia no SPFW. Gisele Bündchen e Rodrigo Hilbert fazendo casal na passarela da<br />

marca. Primavera/Veão 2009.<br />

A empresa também leva a imagem “do casal Colcci” aos materiais de comunicação<br />

– que ganham tratamento e trabalhos especiais, com fotógrafos renomados (nomes como<br />

Gui Paganini e David Sims) e agência de propaganda (PrCom) especializados no universo da<br />

moda.<br />

Figura 28 – Imagens do catálogo Primavera/Verão 2009 Colcci. Consagração para a marca no uso do people.<br />

Com Lengyel, a empresa decide fazer outras alterações no seu trabalho, mudando:<br />

etiquetas das peças, bem como as que possuem função instrutiva e de identificação; materiais<br />

de comunicação, publicidade, merchandising; layout das lojas; e, mais tarde, a semana de<br />

moda da qual participava.<br />

A Colcci percebe que esses materiais são parte do significado que possibilita construir<br />

os valores que a empresa insere no design de sua marca, proporcionando oportunidades de<br />

contato da marca com seus consumidores; permitem ser diferenciados e renovados a cada<br />

coleção, já que acompanham as mudanças de estilo e geralmente são desenhados dentro do<br />

que propõe o tema da estação.<br />

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O design da marca Colcci: história e construção.<br />

Figura 23 – Etiquetas encontradas em peças como calças, camisetas, bolsas e tênis. A cada estação um novo<br />

formato que acompanha o tema/título da coleção. Fotos arquivo pessoal.<br />

Com a nova proposta de trabalho e a crescente expansão internacional, a Colcci muda<br />

o layout de suas lojas. No novo design predominam as cores sóbrias, intercaladas com cores<br />

neon, conceito de ousadia encontrado no design das coleções da marca. Características do<br />

universo jovem, que misturam informações e acabam se harmonizando com o consumidor,<br />

aberto ao novo, às experimentações.<br />

Figura 24 – Layout das lojas Colcci a partir de 2007. Fotos do pesquisador.<br />

Nota-se uma setorização na loja, cuja idealização foi concebida para destacar as<br />

linhas segmentadas da marca. Isso valoriza as linhas dos produtos quanto à exposição e cria<br />

ambientes diferenciados, que permitem ao público, ao misturá-las, experimentar o novo, ousar.<br />

Assim, o consumidor pode compor o seu look de forma particular e assumir as propostas<br />

construídas pela marca.<br />

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O design da marca Colcci: história e construção.<br />

Figura 25 – Existe uma setorização na loja, trabalho que valoriza os produtos. Fotos do pesquisador.<br />

Figura 26 – Novas sacolas, novo acabamento interior e nova aplicação para o endereço eletrônico da marca.<br />

Fotos do pesquisador.<br />

As embalagens dos produtos também recebem novo redesenho. Sacolas e caixas<br />

de presentes ganham elegante acabamento: o logotipo é aplicado em dourado, no centro<br />

dos materiais, optando-se por deixar de fora o símbolo da marca, visto que os filetes que o<br />

compõem poderiam desaparecer sobre o arabesco. Entre as alças encontra-se o símbolo<br />

da empresa, compondo o endereço eletrônico de seu site, o que só reforça o ideal de ler<br />

Colcci, visualmente, com o espectro da vocalização formada pelo nome da marca, ao ser<br />

pronunciada, e retoma a discussão da flexibilidade na sua aplicação.<br />

Vale ressaltar que o endereço eletrônico aplicado nesses materiais vem descrito apenas<br />

com a denominação internacional de sites, o “.com”, sem a aplicação da extensão de sites<br />

brasileiros, o “.br”, o que vem mais uma vez reforçar a intenção da marca quanto a um trabalho<br />

internacional, alinhado a uma linguagem de comunicação única.<br />

Esse novo trabalho com o design de etiquetas e tags, comunicação e merchandising,<br />

desfiles e lojas, mostra a preocupação da Colcci em, junto com as novas propostas da designer<br />

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O design da marca Colcci: história e construção.<br />

contratada, atender a construção dos significados da marca.<br />

Há um discurso, por parte da empresa, de não se intitular uma grande lançadora<br />

de tendências, e para a diretoria nem existe essa pretensão. Segundo Zanon (2009), quem<br />

lança tendência são os designers internacionais de moda, e, hoje, muitos são os brasileiros,<br />

como Ronaldo Fraga, Alexandre Herchcovitch. A entrevistada diz que o projeto da empresa<br />

é ser reconhecida como moda jeanswear; e existe a preocupação de trabalhar tendência<br />

dentro desse segmento; um discurso particularmente diferente do resultado que se vê nas<br />

participações da marca nas semanas de moda.<br />

Na verdade, apesar de a diretora refutar essa ideia, por hora, o discurso da Colcci quanto a iniciar<br />

um trabalho com um produto voltado às grandes tendências de moda, parece estar tomando forma e<br />

pode, em breve, tornar-se realidade. A empresa tem dado mostras de estar trilhando nessa direção.<br />

Hoje a Colcci está presente em, aproximadamente, 35 a 40 países, com 20 estabelecimentos<br />

franqueados e um trabalho de peso com 1500 multimarcas em países estrangeiros. No Brasil, são<br />

100 franqueados e 1300 multimarcas. Os números impressionam, ao todo, existem por volta de<br />

120 lojas franqueadas e 2800 multimarcas trabalhando as coleções da marca em todo o mundo.<br />

Considerações Finais<br />

Algumas constatações levam a uma análise que contesta o contraditório discurso da<br />

marca. A Colcci agora divide Gisele Bündchen com outro rosto internacional, Danny Schwarz<br />

– modelo inglês que tem trabalhos com Calvin Klein, D&G e Pepe Jeans. As fotos foram<br />

clicadas por um fotógrafo de renome internacional no universo da moda, David Sims – que<br />

possui experiência com Gap, Prada, Levi´s, Louis Vuitton, Hugo Boss, Givenchy e Nike. Tais<br />

fatos levam a acreditar que a empresa esteja cada vez mais focada no mercado internacional.<br />

Afinal, existe todo um movimento de internacionalização das linguagens em seus materiais de<br />

comunicação e merchandising, que contam com nomes consagrados do mundo da moda.<br />

Figura 29 – Imagens do catálogo e anúncios da coleção Outono/Inverno 2010 (Viajantes do tempo – Time travelers).<br />

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O design da marca Colcci: história e construção.<br />

Foi inaugurada, em 28 de maio de 2010, a primeira Concept Store da marca Colcci.<br />

Localizada no shopping Cidade Jardim, em São Paulo, a loja pretende oferecer, além das<br />

peças da coleção, produções exclusivas desfiladas nas passarelas do São Paulo Fashion<br />

Week – semana de moda à qual está inserida –, que só serão encontradas por lá. Essa<br />

estratégia é uma das grandes observações quanto ao discurso contraditório da marca. Podese,<br />

aqui, sacramentar o desejo implícito da empresa de, talvez, em um futuro breve, como já<br />

foi apontado, trabalhar definitivamente um caminho que irá consagrá-la dentro do universo<br />

fashion e apresentar a Colcci como uma marca de moda que veio para lançar tendências.<br />

A empresa busca também estabelecer apenas seu nome, com o símbolo da marca<br />

cada vez mais omisso nas suas aplicações, o que revela o próximo passo: o regresso da<br />

Colcci a um logotipo com design específico da sua tipografia, em cor preta, e alinhado com<br />

os grandes lançadores de tendências internacionais, como Calvin Klein, Calvin Klein Jeans,<br />

Diesel, Dolce & Gabbana, etc.<br />

Zanon (2009) afirma que o uso apenas do logotipo é um trabalho específico do material<br />

de comunicação e marketing das coleções, mas sua apresentação completa, com símbolo, é<br />

a marca institucional; aparece em produtos, etiquetas, tags, lojas, etc.<br />

Analisa-se, no entanto, que, dentro das propostas aqui apresentadas com o design<br />

de marcas contemporâneo, todo ponto de contato com o consumidor é uma oportunidade<br />

de relacionamento da marca com a construção de seus valores e, consequentemente, uma<br />

oportunidade para estabelecer os códigos que permitirão a tradução de seus significados no<br />

futuro.<br />

Sendo assim, essa reflexão mostra que a Colcci tem hoje um trabalho bem organizado<br />

e planejado. Há, por parte dos envolvidos com a empresa, uma grande preocupação com<br />

seu futuro no mercado de moda. Afinal, ela traça um histórico que permeia o trabalho de<br />

uma marca que saiu do interior de Santa Catarina, com a produção de peças de roupas<br />

básicas com estampas de um personagem figurativo – humanizado e carregado de símbolos<br />

de afetividade –, para uma empresa que tem modelos internacionais fotografados por nomes<br />

consagrados da moda, produz peças com design assinado e possui lojas espalhadas por<br />

todo o mundo, vendendo a culturas globalizadas objetos que permitem que os indivíduos se<br />

expressem por meio dos significados construídos pelo design de sua marca.<br />

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O design da marca Colcci: história e construção.<br />

Notas<br />

i Esta pesquisa resultou na dissertação intitulada O <strong>Design</strong> da Marca Colcci, elaborada por Alvaro de<br />

Melo Filho, defendida em agosto de 2010, pelo Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em <strong>Design</strong><br />

da Anhembi Morumbi, sob a orientação da Profa. Dra. Márcia Merlo.<br />

ii Cauduro e Martino (2005), Costa (2008), Lupton (2006), Melo (2005), Miranda (2008), Perez (2004)<br />

e Wheeler (2008).<br />

iii Aqui também tratado como redesign.<br />

iv [...] mascote remete à figura de pessoas, animais ou coisas consideradas capazes de trazer ou de<br />

proporcionar sorte e felicidade. [...] o objetivo principal da utilização do mascote é o de humanizar a<br />

marca. Normalmente são animaizinhos (reais ou criados, desenhados) que possuem vida própria, têm<br />

sentimentos e participam do cotidiano humano (PEREZ, 2004, p.94 - 95).<br />

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O design da marca Colcci: história e construção.<br />

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FLáVIO IMPéRIO: CENóGRAFO, ARQuITETO E ARTISTA<br />

Gisela Belluzzo de Campos; Profª Dra. do PPG em <strong>Design</strong>: <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />

giselabelluzzo@uol.com.br<br />

Tereza Grimaldi Avellar Campos; Graduanda do curso de <strong>Arte</strong>s com Habilitação em Audiovisual<br />

e Novas Mídias: <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi - tetegrimaldi@gmail.com<br />

Resumo<br />

Este artigo busca analisar a diversidade da obra de Flávio Império e<br />

identificar suas referências, processos de criação e singularidades<br />

em relação a outros artistas e cenógrafos, bem como entre suas<br />

obras que transitam pelos campos das artes plásticas, cenografia,<br />

figurinos e arquitetura. Buscou-se obter as informações necessárias<br />

por meio de referências em livros, desenhos e documentos de<br />

processo e relatos de pessoas que conviveram e trabalharam com<br />

ele diretamente. Foram eleitas três peças com cenários e figurinos<br />

de sua autoria para estabelecer relações entre seus estilos e<br />

maneiras de criar e produzir.<br />

Palavras-Chave: Flávio Império; cenografia; desenho;<br />

artes plásticas; processo criativo<br />

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Flávio Império: cenógrafo, arquiteto e artista<br />

Introdução<br />

Este artigo é resultado de um projeto de Iniciação Científica sobre o papel e a importância<br />

do desenho no processo de criação e na construção de cenários e figurinos teatrais de Flávio<br />

Império.<br />

Flavio foi um dos maiores cenógrafos brasileiros que produziu entre as décadas de<br />

1950 e 1980, tendo criado cenários e figurinos de peças como Morte e Vida Severina, de João<br />

Cabral de Melo Neto, no Teatro Experimental Cacilda Becker, em 1960; Um Bonde Chamado<br />

Desejo, de Tenessee Williams sob direção de José Celso Martinez Corrêa, no Teatro Oficina,<br />

em 1962; Roda Viva de Chico Buarque de Hollanda, em 1964; criou também a cenografia de<br />

shows como Rosa dos Ventos, de Maria Bethania, no Teatro da Praia, no Rio de Janeiro, em<br />

1971, entre muitos outros.<br />

O artigo busca explicitar, em um primeiro momento, a importância de Flávio Império<br />

no contexto de sua época – um conturbado momento na historia do Brasil, marcado pela<br />

ditadura militar e pela censura acirrada sobre os meios de comunicação e, principalmente,<br />

sobre os artistas. Discorremos também acerca da interdisciplinaridade e do processo criativo<br />

de sua trajetória e, por fim, analisamos três peças afim de identificar elementos desse processo<br />

criativo, enfatizando as singularidades e usos de seu trabalho diante do contexto teatral da<br />

época, especificamente aquela que culminou na criação dos cenários e figurinos das peças<br />

Pano de Boca, Andorra e Noel Rosa: o Poeta da Vila e seus Amores.<br />

A pesquisa foi embasada, principalmente, na análise e na observação de desenhos<br />

realizados para projetos de seus cenários e figurinos. Paralelamente, foram consultados<br />

documentos de projetos tais como fotografias, maquetes e escritos em cadernos pessoais<br />

de Flávio, disponíveis, juntamente com os desenhos, no acervo da Sociedade Cultural Flavio<br />

Império, localizada na casa de sua irmã Amélia Império Hamburger. Um grupo de alunos e<br />

arquitetos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da <strong>Universidade</strong> de São Paulo cuida<br />

da catalogação e reorganização deste acervo, que, segundo Amélia, será doado em breve<br />

para alguma instituição ainda não definida. A pesquisa se apoiou ainda em textos autorais<br />

e informativos de comentadores de sua obra que auxiliaram a desvendar o processo e a<br />

construção de seus trabalhos.<br />

Ao observar todo este material podemos entender um pouco como funcionava seu<br />

pensamento, quais eram suas referências e o que ele buscava com suas obras cenográficas.<br />

“O teatro me ensinou a vida, a arquitetura o espaço, o ensino a sinceridade, a pintura a<br />

solidão.” (IMPÉRIO In HAMBURGER; BENEDETTI, 1997).<br />

Contexto<br />

Arquiteto, artista plástico e professor, Flávio foi um dos cenógrafos mais importantes do<br />

teatro brasileiro. Durante os anos de sua produção, de 1956 a 1985, não se pode pensar a<br />

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Flávio Império: cenógrafo, arquiteto e artista<br />

história do teatro brasileiro sem mencionar Flávio Império. Formado em arquitetura e professor<br />

da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da <strong>Universidade</strong> de São Paulo na década de 1950,<br />

Flávio iniciou sua carreira como cenógrafo e figurinista com um grupo de crianças. A partir daí<br />

ingressou em companhias de teatro como o TBC (Teatro Brasileiro de Comédia) e Teatro de<br />

Arena. Paralelamente exercia uma produção no âmbito das artes plásticas, produzindo telas<br />

muitas vezes contendo críticas sociais e políticas.<br />

Pouco antes de Flávio iniciar sua carreira, no ano de 1948, o teatro paulista passava<br />

por grandes transformações. Neste ano foi fundado o Teatro Brasileiro de Comédia, TBC.<br />

Nesta época havia apenas três teatros em São Paulo, o Boa Vista, o Santana e o Municipal,<br />

cujas agendas eram preenchidas por bailes, festas e temporadas de companhias de teatro<br />

estrangeiras, ou seja, não havia espaço para os grupos locais. Esta situação criava uma<br />

dificuldade para os grupos amadores de São Paulo alugarem o Teatro Municipal, a fim de se<br />

apresentarem.<br />

Diante disto, o industrial italiano Franco Zampari, que se encontrava em boa situação<br />

econômica em São Paulo, como forma de retribuição ao que a cidade havia lhe proporcionado,<br />

reformou uma garagem localizada na Rua Major Diogo e a transformou em um teatro com<br />

365 lugares, ainda simples, que seria melhorado ao longo do tempo – o TBC. Este espaço<br />

era destinado à apresentação destes grupos amadores. Ainda em 1948 os grupos vão se<br />

revezando com diversas montagens no recém criado TBC.<br />

O TBC inaugura o teatro profissional em São Paulo, em 1949, que nesta época, era o<br />

mais homogêneo do Brasil, sendo todo ele pertencente à uma geração que compartilhava os<br />

mesmos princípios estéticos. Em 1954, o TBC ocupa o Teatro Ginástico do Rio de Janeiro. Em<br />

1955, passa a ser considerado parte integrante da identidade de São Paulo, um bem coletivo<br />

que pertence à cidade, do mesmo modo que “o prédio do Banco do Brasil, o viaduto do Chá,<br />

os nossos museus e o Parque do Ibirapuera” (MAGALDI e VARGAS, 2001, p. 219).<br />

Em 1958 um grupo de estudantes de direito do Centro Acadêmico XI de Agosto, no Largo<br />

São Francisco, começa a reunir-se para fazer teatro. Inspirados pelas idéias existencialistas<br />

de pensadores como Jean Paul Sartre, estes amadores tinham ainda em comum o desejo de<br />

fazer um teatro diferente, que fugisse do caráter burguês do TBC e de seu italianismo. Surge<br />

então o Teatro Oficina. José Celso Martinez Corrêa, um de seus fundadores, é o nome mais<br />

expressivo do Oficina, sendo diretor da maioria das peças. Ele tem uma posição bastante<br />

radical em relação ao TBC:<br />

Foi criado um tipo de teatro que fosse a imagem idealizada de onde o<br />

imigrante deve chegar e do que o brasileiro produtor de café, criador de porco<br />

ou construtor de fábrica devia alcançar como “requinte”, tal requinte era a<br />

cultura européia. Criou-se o TBC que se fechou totalmente ao teatro brasileiro<br />

já existente, para eles, a cultura não poderia nascer no Brasil, tinha que vir<br />

necessariamente de algum lugar da Europa ( CORRÊA Apud STAAL, 2000, p.<br />

18).<br />

<strong>Design</strong>, <strong>Arte</strong>, <strong>Moda</strong> e <strong>Tecnologia</strong>.<br />

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Flávio Império: cenógrafo, arquiteto e artista<br />

É importante lembrar que naquele momento o mundo assistia ao auge da Guerra Fria<br />

e o maior receio destes grupos era que o Brasil se inclinasse para o socialismo. O estilo de<br />

governo apresentado por João Goulart causava uma grande preocupação nos EUA que, assim<br />

como os grupos conservadores brasileiros, sentiam-se ameaçados por um golpe comunista.<br />

Este clima de tensão culminou com o golpe político-militar de 1964 que depôs o<br />

presidente João Goulart, obrigando-o a refugiar-se no Uruguai. O general militar Castello Branco<br />

foi eleito pelo Congresso Nacional e, ao contrário do que propunha em seu pronunciamento,<br />

logo que inicia seu governo assume uma postura autoritária que suprimia direitos assegurados<br />

pela Constituição.<br />

O Oficina, assim como toda a classe artística e também os veículos de comunicação, teve<br />

sua liberdade de expressão vigiada pela censura. Intelectuais, estudantes, membros da classe<br />

trabalhadora e todos os que se opunham ao regime militar, eram violentamente reprimidos,<br />

muitas vezes sofrendo perseguição política. Zé Celso e o Oficina tiveram muitas montagens<br />

mutiladas pela censura e, naquele momento, as condições adversas que enfrentavam não os<br />

inibia, ao contrário, fazia com que buscassem expor através de suas montagens sua postura<br />

crítica e insatisfeita com a realidade social em que viviam. Segundo o diretor do Oficina, havia a<br />

necessidade de falar do “aqui e agora”. Flávio era parte desta expressão artística da época, ao<br />

trabalhar em teatros como o Oficina e também o Arena, fundado nos anos 1950, e, ao mesmo<br />

tempo, realizar trabalhos no TBC, o que demonstra sua versatilidade, sua preocupação com<br />

a causa criativa e não apenas política e social.<br />

Produção e processo de criação<br />

Pesquisar a produção de Flávio é uma experiência enriquecedora pela desenvoltura com<br />

que o cenógrafo transita nas diversas áreas e técnicas para construir seus cenários os quais<br />

unem conhecimentos de arquitetura, de artes plásticas e de desenho. O caráter interdisciplinar<br />

do trabalho de Flávio enriquece sua produção e aponta possibilidades de caminhos para<br />

aqueles que a investigam.<br />

Os cenários de Flávio são produções complexas, ricas em experimentações técnicas,<br />

em pesquisas de materiais e de campo. Sua busca por diversas formas de expressão, técnicas<br />

e linguagens faz deste artista, por essência, uma referência nacional nas áreas em que atuou,<br />

principalmente na cenografia.<br />

O desenho é a linguagem comum entre todas as áreas percorridas por Flávio, e, através<br />

dele, pode-se perceber sua diversidade artística. A análise de seus desenhos projetuais para<br />

cenários e figurinos possibilita uma experiência estética que passa pelos campos das artes e<br />

da arquitetura, e atesta que cada cenário seu é fruto da junção da técnica com a sensibilidade.<br />

Na realização dos cenários, Flávio Império é o arquiteto e o mestre de obras. É o<br />

projetista e o executor. Esses trabalhos transcendem o preceito de criação em design, tal<br />

como é identificado na Revolução Industrial com o advento das produções em série, em que<br />

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Flávio Império: cenógrafo, arquiteto e artista<br />

um bom projetista é contratado e, executores, sem a noção de todo do processo, cumprem<br />

apenas suas funções definidas e limitadas. “Ele acompanhava todo o processo, ele desenhava,<br />

projetava, depois de projetar ia aos detalhes, ele virava noites e ia ver com as costureiras, e<br />

bordava, ia com os maquinistas [...] ficava extenuado e entregava aquilo [o cenário e figurinos].”<br />

(CORRÊA, Apud STAAL, 2000, p.46).<br />

Flávio projeta, analisa, busca os materiais e executa o projeto. Seu instrumento de<br />

trabalho mais significativo são suas próprias mãos. A tecnologia advém de suas experiências<br />

com materiais e técnicas. A produção que Flávio realiza no plano, ao pintar suas telas, serve<br />

também como base para suas produções tridimensionais. A sofisticação de seus cenários<br />

não se baseia em técnicas revolucionárias e sim na capacidade que ele possui de, com<br />

uma inteligência espacial adquirida pela prática como arquiteto aliada ao senso estético<br />

e conhecimento material obtidos pela prática como artista plástico, encontrar soluções<br />

esteticamente harmoniosas e engenhosamente inovadoras. Pode-se traçar um paralelo do<br />

trabalho de Flávio ao de um artesão que dedica sua vida à criação, cujo trabalho como um<br />

todo, desde o projeto até a execução final, proporciona intenso prazer. Laura Greenhalger<br />

comenta que Flávio Império tinha “[...] mãos de artesão. Curiosas, impacientes, dispostas,<br />

detalhistas” (GREENHALGER, 1997, p.16). Rocha acentua que é possível notar o peso de sua<br />

mão em seus trabalhos (ROCHA, 1997). Mãos que circulavam pelas mais diversas técnicas,<br />

das mais diversas formas. Flávio então se descobria pesquisador de materiais, reciclador,<br />

experimentalista, não tinha preconceito no uso dos materiais. Flávio comenta sobre as técnicas<br />

e materiais que utiliza: “[...] Às vezes é papel, às vezes é pano, às vezes é madeira, às vezes é<br />

serigrafia, às vezes é desenho com a mão, às vezes é pintura com recorte, às vezes é pintura<br />

com pincel” (IMPÉRIO apud HAMBURGER; BENEDETTI, 1997).<br />

Durante as experiências iniciais de sua carreira surgiram características de modos de<br />

operar que ele levaria por toda sua trajetória profissional tais como o comprometimento com o<br />

grupo, a habilidade de transformar experiências vividas em linguagem e a capacidade de criar<br />

cenários com recursos ínfimos.<br />

É inevitável, observando panoramicamente a obra de Flávio, pensar nos grandes<br />

artífices da Renascença: homens-artistas-artesãos que dominavam um leque<br />

de atividades complexas cuja dimensão era a resultante de um esplêndido<br />

instinto criador aliado à uma intuitiva posição criativa (RATTO, 1997, p. 41).<br />

A técnica usada também varia de acordo com a peça teatral na qual está trabalhando;<br />

as peças de cunho político geralmente demandavam soluções mais simples e criativas devido<br />

à falta de recursos.<br />

Flávio contemplou a diversidade do contexto teatral da época com técnicas e desenhos<br />

com estilos diferentes. Como já foi dito, o desenho é a linguagem comum entre as áreas<br />

exploradas por Flávio: arquitetura, artes plásticas, cenografia e figurino. Os estilos diversos<br />

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Flávio Império: cenógrafo, arquiteto e artista<br />

se confundem e se misturam, porém sua precisão técnica e liberdade criativa estão sempre<br />

presentes. O desenho tem várias funções em suas criações: é a parte lógica da criação, é<br />

o projeto de toda obra final e é também o documento de processo. Segundo Cecília Salles,<br />

os documentos de processo são índices do percurso mental realizado durante a criação. A<br />

materialidade destes índices varia de acordo com o artista (SALLES, 2001). Observando os<br />

desenhos de Flávio podemos entender o caminho mental de sua criação. Alguns deles surgem<br />

em papéis de guardanapo e, depois, são desenvolvidos e se tornam parte de seus projetos.<br />

Como diz Renina Katz, Flávio não tem um estilo, ele tem uma marca (KATZ, 1997).<br />

Não persegue estilisticamente nada, tem sim, uma necessidade de experimentação, por isso<br />

transita por diversas técnicas artísticas e faz uso dos mais variados materiais. Flávio é dotado,<br />

segundo Gianni Ratto, de uma polimorfia estética (RATTO, 1997).<br />

Cenografia<br />

“A cenografia pode ser considerada uma composição em um espaço tridimensional<br />

– o lugar teatral. Utiliza-se elementos básicos, como cor, luz, formas, volumes e linhas”<br />

(MANTOVANI, 1989, p.8).<br />

Segundo Beneh Mendes, em uma montagem teatral o texto é o elo fundamental, ainda<br />

que para negar determinadas criações. O cenógrafo propõe ao diretor um determinado cenário,<br />

e guia-se pelo texto, o que não significa que este seja a regra para a criação do cenógrafo. O<br />

artista da cenografia faz sua re-leitura, uma interpretação da história.<br />

No teatro não há uma fórmula, bem como não havia na criação de Flávio. Para uma<br />

montagem realizada em locais como o SESC, era necessário um projeto mais apurado e<br />

detalhado, por questões de aprovação de orçamento. Já em outros teatros sua criação podia<br />

ser mais livre, a exemplo da peça Pano de Boca. Neste caso, Flávio fazia um desenho com<br />

o intuito de passar a noção do projeto, o qual não precisava ter um caráter didático, pois ele<br />

estava presente durante toda a montagem, “criando os figurinos no corpo dos atores, bem<br />

como esticando tecidos para o cenário e criando objetos com um apuro estético e visual<br />

impressionantes” (MENDES, 2010)<br />

O Flávio tinha amplo conhecimento de marcenaria, funilaria, serralheria, pintura,<br />

escultura, serigrafia e outros processos de impressão; ele participava da<br />

execução de fio-a-pavio, pegando em ferramentas, metendo a mão na massa,<br />

enfim, de forma que os profissionais que trabalhavam ali ficavam seguros e<br />

satisfeitos com o trabalho (PAULO, 2010).<br />

O fato de ele estar presente durante a montagem possibilitava executar mudanças não<br />

planejadas, improvisos criativos que surgiam a partir do acompanhamento do projeto.<br />

Alguns cenógrafos constroem maquetes, para facilitar o entendimento da proposta de<br />

forma tridimensional, Flávio tinha este hábito.<br />

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Flávio Império: cenógrafo, arquiteto e artista<br />

Flávio era um artista por essência, sua formação como arquiteto apurou sua<br />

noção de espaço, proporcionando uma visão do espaço cênico diferenciada.<br />

Ele pensava no todo. Seus cenários eram projetados de modo a facilitar a<br />

marcação do diretor e movimentação dos atores. O desenho da cenografia,<br />

entretanto, não deixa de ser um projeto de arquitetura, porém trata-se de uma<br />

arquitetura efêmera (PAULO, 2010).<br />

Outro aspecto que podemos considerar em relação a diferença entre seus projetos era<br />

a verba disponível em cada montagem.<br />

O cenário pode sofrer alterações durante o processo de construção, adaptações<br />

podem ser necessárias, diferenciando-se, desta forma, do desenho inicial.<br />

Documentos de processo<br />

Ao analisar os cadernos de anotação de Flávio nos deparemos com referências de<br />

todos os tipos, tais como santinhos de campanhas eleitorais, fotos de viagens, cartas de<br />

amigos, desenhos, telegramas, muitas reflexões pessoais, poesias, escritos sobre cenografia<br />

e sobre suas aulas na FAU-USP. A sensibilidade de Flávio se evidencia ao percorrer estas<br />

páginas nas quais é possível se sentir quase em contato com ele. Um de seus escritos em<br />

forma de versos fala sobre seu entendimento sobre a profissão de cenógrafo:<br />

O cenógrafo<br />

Em geral<br />

É pessoa calada<br />

Porque sempre<br />

Tem<br />

Quem<br />

Fale... muito mais,<br />

E,<br />

Antes.<br />

Eu acabei ficando<br />

Com “prisão de boca”<br />

Semelhante a de ventre<br />

Porque,<br />

Ultimamente,<br />

Não tenho ouvido<br />

Nada muito melhor<br />

Do que me vem a cabeça<br />

Flavio Império, São Paulo, 9-9-82.<br />

Optamos por abordar os desenhos relativos aos projetos de cenário e figurino de três<br />

peças criados por Flávio: Andorra, de Max Frisch, encenada no Teatro Oficina em 1964, Pano<br />

de Boca de Fauzi Arap, montada no teatro 13 de maio em 1976 e Noel Rosa, o Poeta da Vila<br />

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e Seus Amores, de Plínio Marcos, montada no Teatro Popular do SESI, em 1977.<br />

A escolha destas peças deve-se às diferenças encontradas entre elas em termos de<br />

estilo de desenho dos projetos, os quais são compostos por toda a pesquisa de Flávio em<br />

relação ao texto, aos materiais, e pelos próprios desenhos. Cada desenho de Flávio é único<br />

e os realizados para os projetos destas três peças exemplificam muito bem esta afirmação.<br />

Andorra<br />

Percebe-se, nos desenhos de Flávio criados para esta peça, a presença do arquiteto<br />

pela precisão técnica. Não há, entretanto, especificações de medidas ou estruturas, evidência<br />

de que Flávio estava sempre presente durante a montagem do projeto. Os croquis dos<br />

figurinos apresentam alguns detalhes coloridos, entretanto, a maior parte deles é feita apenas<br />

com uma caneta esferográfica resultando em desenhos precisos que, ao mesmo tempo, têm<br />

um estilo próprio e característico, nos quais, aparece, então, o artista. Flávio conta que a idéia<br />

desta peça era realizar um teatro próximo do épico, com uma perfeição estética. Em algumas<br />

de suas anotações encontramos as definições de Flávio para o uso de determinadas cores<br />

e sua relação com a história contada, contextualizada na época do nazismo e que trata de<br />

preconceitos e perseguições. “O branco e o preto eram o preconceito. O marrom e o azul<br />

eram o homem no seu universo complexo e incoerente, esbarrando por todos os lados com o<br />

bloqueio dos preconceitos, tanto brancos como pretos” (IMPÉRIO, 1997, p. 89).<br />

Figs.1 e 2. Desenhos para cenário e figurinos da peça Andorra, de Max Frisch, 1964<br />

Fontes: KATZ, Renina e HAMBURGER, Amélia (org). Flávio Império. P. 90. Catálogo da Exposição Flávio<br />

Império em Cena, realizada no Sesc Pompéia em 1977, p. 23<br />

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Pano de Boca<br />

Nos desenhos projetuais da peça Pano de Boca nota-se o contraste estilístico – parecem<br />

até mesmo terem sido realizados por outra pessoa. São esboços menos normatizados, mas<br />

que ainda assim exprimem a desenvoltura técnica de seu criador. Novamente percebemos o<br />

artista presente. Encontramos indicações técnicas em relação a medidas em alguns destes<br />

desenhos. Talvez por serem menos precisos, Flávio sentiu necessidade de colocá-las.<br />

Em meio ao material desta peça, acessível na Sociedade Cultural Flávio Império,<br />

encontram-se folhas de um de seus diversos cadernos de anotações, onde verifica-se a<br />

explicação detalhada de cada etapa da construção dos cenários, bem como listas de compras<br />

de tecidos e materiais para confecção dos figurinos. Tivemos acesso ao texto da peça e a<br />

única referência ao cenário é: “o cenário é um palco cheio de coisas velhas, retalhos de velhos<br />

cenários, roupas jogadas, um baú, muita sujeira”.<br />

Lendo o relato de Flávio entendemos sua interpretação das referências do texto e sua<br />

intenção de fazer com que o palco parecesse um teatro abandonado, situação real do Teatro<br />

13 de Maio quando o cenógrafo o visitou pela primeira vez: “[...] um velho depósito parado,<br />

com um monte de coisa velha, onde se tentava uma nova produção era só uma espécie de<br />

documento do documento” (IMPÉRIO, 1997, p.117). Flávio concebeu elementos cenográficos<br />

com materiais recolhidos em galpões de escola de samba e em depósitos de teatros.<br />

Fig. 3 Desenho de cenário para a peça Pano de Boca, de Fauzi Arap, 1976<br />

Fonte: KATZ, Renina e HAMBURGER, Amélia (org). Flávio Império. P. 120<br />

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Fig. 4 Desenho de cenário para a peça Pano de Boca, de Fauzi Arap, 1976<br />

Fonte: KATZ, Renina e HAMBURGER, Amélia (org). Flávio Império. P. 120<br />

Noel Rosa, o Poeta da Vila e seus Amores<br />

Investigando a terceira peça escolhida – Noel Rosa, o poeta da Vila e seus Amores,<br />

encontramos desenhos nos quais nos deparamos com o arquiteto e o artista em harmonia.<br />

Os desenhos possuem uma perfeição em termos de proporção e espaço. Percebe-se o que<br />

é o projeto de uma construção para o palco, que difere de uma construção real. O espaço<br />

e os materiais são diferentes, o que demonstra a versatilidade do arquiteto ao realizar as<br />

adaptações necessárias. O uso das cores é muito sofisticado, bem como as colagens que<br />

compõem o projeto, conferindo-lhe um aspecto de obra finalizada. A peça, que na verdade é<br />

um musical, conta a história de vida de Noel Rosa, compositor e sambista carioca, que viveu<br />

na década de 1920 no bairro de Vila Isabel, Rio de Janeiro. O cenário de Flávio tem como pano<br />

de fundo painéis com desenhos do bairro e as cores conferem uma característica tropical e<br />

um toque da malandragem característica dos sambistas cariocas. Flávio considera todos os<br />

aspectos para a realização da peça, como por exemplo, o espaço que os atores necessitam:<br />

[...] essa (Noel Rosa, o poeta da Vila e seus Amores) não é uma peça realista.<br />

Isso é um musical. Então tem que encher de música e o espaço tem que ficar<br />

livre porque não tem jeito de atravancar. Então a narrativa ficou sujeita a um<br />

espaço eminentemente livre como se fosse para a dança e para o canto. E cada<br />

elemento que descia só circunstanciava mais ou menos de forma decorativa,<br />

nem era uma coisa realista. Era para dar um fundo (IMPÉRIO, 1997, p. 69).<br />

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Figs. 5 e 6. Desenhos de cenário e figurinos para a peça Noel Rosa, o Poeta da Vila e Seus Amores, de Plínio<br />

Marcos, 1977. Fonte: Catálogo da Exposição Flávio Império em Cena, realizada no Sesc Pompéia em 1977,<br />

pág. 34<br />

Fig. 7. Desenho de cenário e fotografia da peça Noel Rosa, o Poeta da Vila e Seus Amores, de Plínio Marcos,<br />

1977. Fonte: Catálogo da Exposição Flávio Império em Cena, realizada no Sesc Pompéia em<br />

1977, p. 34<br />

Considerações Finais<br />

Os cenários e figurinos criados por Flávio para estas três peças relacionam-se com os<br />

respectivos textos. Entretanto, possuem uma interpretação pessoal, mensagens refinadas de<br />

um entendimento de mundo muito apurado, digno de um verdadeiro artista, no significado<br />

mais profundo desse termo, isto é, uma pessoa com a mente aberta, com um conhecimento<br />

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amplo de técnicas e com maneiras próprias de expressar os significado dos textos teatrais.<br />

Pesquisar os desenhos realizados para a obra cenográfica de Flávio Império é ter a<br />

oportunidade de ampliar a percepção sobre o fazer artístico, de entender a relação constante<br />

entre o conteúdo e a forma – necessárias em uma obra cenográfica – e, ao mesmo tempo,<br />

perceber sua visão de mundo: como se portava diante das dificuldades de uma época de<br />

repressão e censura, período em que uma arte que não fosse política não era considerada<br />

importante. Em sua trajetória, Flávio soube aliar o trabalho direcionado para uma arte social<br />

com produções pessoais, capazes de satisfazer os desejos mais íntimos de um artista, por<br />

exemplo, pinturas sobre telas. Flávio pintava para fugir um pouco do espaço tridimensional do<br />

teatro, para entrar em contato consigo mesmo: “[...] eu pinto toda vez que volto para casa do<br />

palco, e neste caminho de volta do palco para casa é que a minha cabeça vai sintonizando<br />

outra vez o trabalho com a superfície plana, que é muito diferente do trabalho no espaço do<br />

palco.” (IMPÉRIO In HAMBURGER; BENEDETTI, 1997).<br />

Seus cadernos pessoais revelam suas pesquisas, principalmente de materiais, revelando<br />

seu vasto conhecimento – fundamental para seu processo criativo.<br />

Estas características demonstram o caráter interdisciplinar de seu trabalho e o trânsito<br />

entre territórios diversos – característica que se acentua no trabalho de artistas contemporâneos,<br />

bem como a experimentação de novos suportes, técnicas, temas e espaços. Flávio Império<br />

não só transitava pelas mais diversas áreas, como as praticou com perícia, paixão e primor.<br />

“Flávio Império era um homem livre, um artista livre, um criador, como deve ser, como manda<br />

o figurino” (BETHÂNIA, Maria apud HAMBURGER; BENEDETTI, 1997).<br />

Referências<br />

Flávio Império em Cena, Catálogo retrospectiva. Sesc, São Paulo, 1997.<br />

GREENHALGH, Laura. Flávio Império, setembro de 78, in Flávio Império em Cena, Catálogo<br />

retrospectiva. Sesc, São Paulo, 1997<br />

HAMBURGER, Cao. BENEDETTI, Raimo (dir.) Flávio Império Em Tempo. Documentário. São<br />

Paulo: 1977<br />

IMPÉRIO, Flávio. Escritos presentes no livro Flávio Império: Teatro e <strong>Arte</strong>s Plásticas. São Paulo:<br />

Editora da <strong>Universidade</strong> de São Paulo, 1997.<br />

KATZ, Renina e HAMBURGER, Amélia I. (org). Flávio Império: Teatro e <strong>Arte</strong>s Plásticas.<br />

São Paulo: Editora da <strong>Universidade</strong> de São Paulo, 1997.<br />

MAGALDI, Sábato e VARGAS, Maria Thereza. Cem Anos de Teatro em São Paulo. São<br />

Paulo: Editora Senac, 2000.<br />

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Flávio Império: cenógrafo, arquiteto e artista<br />

MANTOVANI, Anna. Cenografia. São Paulo: Ed. Ática, 1989.<br />

MENDES, Beneh. Entrevista concedida em seu escritório a Tereza Grimaldi em 05/02/2010.<br />

PAULO, Augusto Francisco. Entrevista concedida por e-mail a Tereza Grimaldi em 24/02/2010.<br />

RATTO, Giani, Flávio Império um homem de teatro, in Flávio Império em Cena, Catálogo<br />

retrospectiva. Sesc, São Paulo, 1997<br />

ROCHA, Paulo Mendes. Depoimento para o documentário Flávio Império Em Tempo, dir. Cao<br />

Hamburger e Raimo Benedetti, São Paulo, 1997.<br />

SALLES, Almeida Cecília. Gesto Inacabado: processo de criação artística. São Paulo:<br />

Annablume, 2001.<br />

STAAL, Ana Helena Camargo. (Org.). José Celso Martinez Corrêa – Primeiro Ato:<br />

cadernos, depoimentos, entrevistas (1958-1974). São Paulo: Ed. 34,1998.<br />

ZAMBONI, Silvio. Pesquisa em <strong>Arte</strong>: um paralelo entre arte e ciência. Campinas: Autores<br />

Associados, 2006.<br />

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DESIGNER ARTESãO Ou ARTESãO DESIGNER? uMA QuESTãO<br />

CONTEMPORâNEA<br />

AS APROXIMAçõES POR MEIO DAS INTERVENçõES DE DESIGN NO ARTESANATO<br />

Savana Leão Fachone, Mestranda; PPG Mestrado em <strong>Design</strong>: <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />

savanacool@gmail.com<br />

Márcia Merlo; Profª Dra.; PPG Mestrado em <strong>Design</strong>: <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />

mmerlo@anhembi.br<br />

Resumo<br />

A proposta deste artigo é discutir algumas intervenções realizadas<br />

por designers no processo de confecção de artefatos artesanais,<br />

que possam contribuir para uma compreensão dos caminhos de<br />

sua produção na contemporaneidade. Há inúmeros experimentos<br />

relacionando arte, design e artesanato, que se aproximam de<br />

projetos sociais e por meio deles percebe-se, por vezes, que<br />

os papeis do designer e do artesão se misturam. Diante de tal<br />

complexidade, escolhemos apresentar algumas discussões<br />

sobre intervenções, no intuito de introduzir uma reflexão sobre a<br />

importância do papel dos profissionais envolvidos nesse processo<br />

e sobre o objeto em si.<br />

Palavras-Chave: design; artesanato; contemporaneidade<br />

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<strong>Design</strong>er artesão ou artesão designer? Uma questão contemporânea<br />

As aproximações por meio das intervenções de design no artesanato<br />

Introdução<br />

O artesão brasileiro é basicamente um designer em potencial, muito mais do<br />

que propriamente um artesão no sentido clássico.<br />

(Aloísio Magalhães)<br />

Para melhor compreender o artesanato no mundo contemporâneo, em articulação<br />

com a arte e o design, estudamos algumas discussões sobre intervenções realizadas por<br />

designers no artesanato brasileiro. Para o desenvolvimento do estudo proposto foi necessário<br />

determinar um ponto de partida para pensar esse artefato: quem o faz, onde, como, quando e<br />

porque se faz. Além disso, como esse processo se modifica ao longo do tempo, numa cultura<br />

de natureza híbrida, mas, que investe num futuro cada vez mais globalizado (CANCLINI, 1989).<br />

Esse estudo tornou-se necessário na medida em que se observou a escassez de<br />

referenciais teóricos e o aumento das intervenções no artesanato brasileiro. Nossa análise<br />

começa no website da Casa-Museu do Objeto Brasileiro, que tem como objetivo contribuir<br />

para o reconhecimento, valorização e desenvolvimento da produção artesanal, atuando<br />

na mediação de processos culturais no Brasil, que ocorrem na forma de experiências de<br />

intervenções de design em comunidades artesanais pelo país afora. Esses trabalhos nos<br />

mostram a importância de se pensar, não só, os profissionais envolvidos, como, também, o<br />

objeto em si e os caminhos de sua produção na contemporaneidade.<br />

Numa perspectiva de (re) conhecer o artesanato na contemporaneidade, parece-nos<br />

indispensável um retorno à história para entender a importância desta atividade laboral no<br />

cenário atual. Partindo do princípio de que pensar as aproximações é mais enriquecedor que<br />

medir as distâncias, pensamos o artesanato em conexão com o design, independente da<br />

apropriação dos modos de fazer ou da finalidade produtiva, acreditando ser mais interessante<br />

a análise da subjetivação dos significados realizada pelos autores desse processo e sua<br />

materialização em objetosi .<br />

Nas referências bibliográficas e web gráficas consultadas observaram-se algumas<br />

intervenções ligadas a projetos sociais. Nesse processo os papéis do designer e do artesão,<br />

muitas vezes, se confundem. Entretanto, nossa tarefa não é apresentar conceitos e diferenças,<br />

nem nos posicionarmos em relação a uma ou outra definição, até porque no contexto atual,<br />

nos parece impossível. Tomando por base o pensamento de Barbosa (2003), corroboramos<br />

com a idéia de que “Será que pensar as aproximações não seria mais enriquecedor que<br />

medir as distâncias?”. Partindo desta questão, das considerações sobre design de Rafael<br />

Cardoso, e, pesquisas sobre culturas populares e culturas híbridas de Nestor Garcia Canclini,<br />

assim como pensar os interlocutores envolvidos nesta problemática a partir da Antropologia,<br />

seguimos com nossas reflexões.<br />

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<strong>Design</strong>er artesão ou artesão designer? Uma questão contemporânea<br />

As aproximações por meio das intervenções de design no artesanato<br />

<strong>Design</strong>er artesão ou artesão designer?<br />

O artesanato sempre foi negligenciado como campo de atuação do design, e segundo<br />

Aloísio Magalhães, só passaria a ser respeitado quando o próprio designer viesse a agir como<br />

um artesão. Seu papel é muito importante na própria geração da tecnologia e do <strong>Design</strong> e<br />

o artesão pode ser qualificado como produtor de um pré-design. A Bauhaus, uma das mais<br />

importantes escolas de design do mundo, por exemplo, associava o ensino do <strong>Design</strong> com<br />

o artesanato através de oficinas de artes. O objetivo era o conhecimento dos processos de<br />

produção, da matéria prima e das técnicas artesanais (BRAGA, 2002).<br />

Ao artesão é conferido o papel de produtor de tais objetos, assumindo a condição de<br />

construtor do seu cenário cultural, nele imprimindo sua história, a técnica de sua região e a<br />

sua subjetividade. O acesso às maneiras de construir e usar esses objetos possibilita verificar<br />

como se dão as trocas culturais e afetivas entre gerações, entre pais e filhos, entre pares, entre<br />

mestres e aprendizes e, também, entre o artesão e o designer.<br />

O artesanato e sua gênese estão intrinsecamente ligados aos primórdios da humanidade.<br />

Surgiu desde que o ser humano passou a criar e a desenvolver artefatos para garantir sua<br />

sobrevivência e bem-estar produzindo objetos com suas próprias mãos. Estes, por sua vez,<br />

adquiriram diferentes contornos desde sua origem e de acordo com as práticas culturais<br />

produzidas por diferentes sociedades ao longo dos tempos. É preciso imergir na história<br />

humana para conhecer as estratégias de sobrevivência, as formas de dominação e divisão do<br />

trabalho e todos os elementos que emolduraram a produção artesanal.<br />

Com a Revolução Industrial e o conjunto de mudanças tecnológicas, econômicas e<br />

sociais que se seguiram, como a mecanização do trabalho, a rapidez e, consequentemente,<br />

aumento da produção e a diminuição da mão-de-obra, as oficinas artesanais ou transformaramse<br />

em pequenas fábricas comandados pelo inventeurii ou cederam lugar a esses novos<br />

comandos e controles da sociedade industrial. O inventeur concebia o projeto o qual servia<br />

de base para a produção de peças em diversos tamanhos e materiais. Era a primeira divisão<br />

entre projeto e execução (DENIS, 2008)<br />

As transformações fizeram com que esses espaços, conhecidos como oficinas<br />

artesanais, se tornassem importantes unidades de produção especializada, adaptada à<br />

estrutura social e a economia local. A indústria contava com essa estrutura para atender as<br />

pequenas produções, como fabricações de acessórios e até mesmo trabalhos de reparos dos<br />

produtos (CUNHA, 1994). Isso surgiu como uma solução sócio-econômica, que garantia, ao<br />

mesmo tempo, a produção, intensificada pelo aumento da demanda, e o trabalho aos artesãos<br />

que sofreram com as consequências provocadas pelo processo acelerado da industrialização.<br />

O artesanato permanecia, de maneira estratégica, paralelo com o sistema de produção<br />

industrial. Os avanços tecnológicos e a modernidadeiii coexistiam com as tradições. Os<br />

produtos com características híbridasiv , ou seja, artesanal e industrial, se tornaram comuns, mas<br />

o processo de industrialização acarretou mudanças maiores que uma simples transformação<br />

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<strong>Design</strong>er artesão ou artesão designer? Uma questão contemporânea<br />

As aproximações por meio das intervenções de design no artesanato<br />

de métodos produtivos. As grandes fábricas foram tomando o lugar de pequenas oficinas,<br />

isso eliminava a necessidade de empregar trabalhadores com alto grau de capacidade técnica<br />

- no caso, o artesão. Bastava um bom designer, geralmente escolhido por suas habilidades,<br />

um bom gerente e vários operadores de máquinas. A produção em série representava para o<br />

fabricante uma economia de tempo e dinheiro (DENIS, 2008).<br />

Com a introdução de novas tecnologias, crescimento urbano, o aumento de<br />

trabalhadores na indústria, a reorganização e racionalização dos métodos de fabricação, as<br />

atividades dos artesãos especializados tornaram-se obsoletas pelo emprego das máquinas.<br />

O termo artesão também mudou e passou a depender do tipo de relacionamento mantido<br />

com a indústria. De qualquer forma, a realidade era o empobrecimento cultural da tradição<br />

artesanal, visto que o modelo industrial dificultava, até mesmo, o relacionamento mais direto<br />

entre os chefes e seus subordinados, e entre os próprios empregados, diluindo o padrão de<br />

troca e sintonia de valores.<br />

As aproximações do design e do artesanato por meio das intervenções<br />

Nestor Garcia Canclini nos diz que “devemos estudar o artesanato como um processo<br />

e não como um resultado, como produtos inseridos em relações sociais e não como objetos<br />

voltados para si mesmos”. E segue dizendo que:<br />

Interessará repensar e perceber, nesses produtos, chamados de artesanais, a<br />

forma como se reestruturam na atualidade, as oposições clássicas na história<br />

do pensamento antropológico, analisando para isso, as transformações de<br />

significado das culturas populares segundo três dimensões correlacionadas<br />

entre si, isto é, enquanto processos sociais, culturais e econômicos<br />

contemporâneos (1984, p. 51).<br />

Neste processo, tal como afirmou Nestor Canclini, é necessário preocupar-se menos<br />

com o que se extingue do que com o que se transforma. Ou seja, a separação entre o artesanal<br />

e o industrial se mostra como um grande equívoco. Ainda segundo Canclini “o artesanato,<br />

bem como as festas e outras manifestações populares, subsistem e crescem porque<br />

desempenham funções de reprodução social e na divisão do trabalho, necessárias para a<br />

expansão do capitalismo” (CANCLINI, 1983). Podemos complementar essa ideia, dizendo<br />

que as festas assim como o artesanato não precisam, necessariamente, ser entendidos<br />

como meros reprodutores sociais. Ainda que mantendo certa ordem social, podem também<br />

apresentar ricas variáveis no saber-fazer e realizar que contrarie ou diferencia-se do corriqueiro<br />

ou sistematizado. Dito de outra forma, o artesanato, as festas e manifestações da cultura<br />

popular, mais precisamente, seus agentes sociais, são compreendidos aqui como produtores<br />

culturais e reprodutores simbólicos eficazes, já que não se trata simplesmente de uma atividade<br />

mecânica e repetitiva e, sim, de expressões sociais e identitárias fortíssimas.<br />

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<strong>Design</strong>er artesão ou artesão designer? Uma questão contemporânea<br />

As aproximações por meio das intervenções de design no artesanato<br />

Mesmo que o artesão seja visto como o produtor de objetos de utilidade prática e<br />

cotidiana e o artesanato, como a recriação e reprodução de elementos formais, com função<br />

utilitária, ambos estarão sempre presentes na cultura de um grupo ou sociedade. O artesão<br />

precisa de um retorno financeiro imediato, pois não dispõe de tempo ou recursos para investir<br />

em técnicas, estética, qualidade, capacitação e pesquisa ou para esperar que o mercado<br />

reconheça o valor, imaterial, do seu trabalho. Por mais que a estrutura utilizada nessa produção<br />

artesanal balize a escala de produção, o artesão passa a produzir “em série” para sobrevivência.<br />

A tradição contida nesse saber-fazer não é perene, é mutante, revelando de forma impressionante,<br />

por vezes, um saber local e múltiplo altamente inventivo e reinventivo. Tanto é que repensado e<br />

redimensionado nos dias de hoje como indicadores criativos de oportunidades de negócios.<br />

A pesquisa feita pelo SEBRAEv , em 2002, segundo dados do Ministério do<br />

Desenvolvimento, Indústria e Comércio, falou em 8,5 milhões de artesãos, que movimentaram<br />

em 2002, R$ 28 milhões de reais. Hoje esse número deve ser maior, e o artesão tem consciência<br />

de que deve atender as informações econômicas para sustentar a produção artesanal.<br />

Com o aumento dos índices de desigualdades sociais, também aprofundado com o<br />

decréscimo da oferta de empregos, crescem iniciativas de produção artesanal e, talvez até<br />

por falta de escolha, acabam atendendo a finalidade da liberdade econômica tornando-se<br />

exemplo de desenvolvimento diferenciado. Nos últimos anos as intervenções de design no<br />

artesanato começaram a surgir com mais frequência, protegidas por instituições públicas ou<br />

privadas, com a alegação de proteger o patrimônio cultural e ir contra a exacerbação do<br />

consumo de produtos industrializados (BARROSO, 1999).<br />

Ainda não está muito claro que rumos estas práticas discursivas estão tomando. Por<br />

outro lado, famílias artesãs permanecem ganhando a vida com o saber tradicional seja para<br />

vender um ou outro artefato como souvenir para turistas amantes das “coisas” locais, seja<br />

para reproduzir formas aprendidas com as antigas gerações também na geração de alguma<br />

rentabilidade familiar. Também, é possível identificarmos iniciativas públicas e privadas no sentido<br />

de aproximar o fazer artesanal de uma produção sustentável, onde, por vezes, encontramos<br />

alguma atuação do designer como mediador cultural e agente social em parceria com o artesão.<br />

Considerações Finais<br />

Há que se superar qualquer tipo de idéia que coloque, em campos opostos, o designer<br />

e o artesão. Não basta falar das aproximações como qualidade intrínseca dessas áreas. Parece<br />

que tanto ao designer como ao artesão cabe pensar e trabalhar o resgate das vocações<br />

regionais, levando em conta a diversidade, a preservação das culturas locais e a formação de<br />

uma mentalidade empreendedora, por meio da capacitação das organizações e de seus artesãos<br />

para uma sociedade de mercado, se possível e no mínimo, mais equitativa, onde o padrão de<br />

qualidade e a capacidade de produção sejam tão importantes como o respeito à dignidade dos<br />

sujeitos que determinam a aceitação deste produto no mercado interno e externo. Para tanto, o<br />

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<strong>Design</strong>er artesão ou artesão designer? Uma questão contemporânea<br />

As aproximações por meio das intervenções de design no artesanato<br />

diálogo ético faz-se necessário, assim como se coloca o desafio de estabelecer critérios para tal<br />

aproximação entre designer e artesão e estes em relação ao mercado.<br />

Outro ponto a ser pensado do exposto é o do nível de intervenção do designer no<br />

artesanato em si, pois equilibrar esta balança não é tarefa fácil, sobretudo porque requer clareza<br />

e honestidade de intenções, tomando como ponto de partida o conhecimento do artesão e o seu<br />

desejo de compartilhar novas experiências em relação as suas tradições. O que não podemos<br />

deixar de falar é da fragilidade do discurso que utiliza o artesanato como mero objeto exótico de<br />

consumo para turista comprar, pois o que perpassa a relação entre design e artesanato hoje é<br />

muito mais abrangente e merece muito mais da nossa atenção e vontades.<br />

Nesse contexto podemos ver o valor social do artesanato, que funciona como um equilíbrio<br />

diante das relações de produção do mundo globalizado. O modo de produção artesanal persiste<br />

compondo uma estrutura econômica muito particular dentro do sistema capitalista. Assim, o<br />

artesanato se consolida na sociedade pós-industrial como um dispositivo social, fazendo parte<br />

de um sistema produtivo diferenciado que é essencial para a vida humana.<br />

Notas<br />

i Acreditamos que todas as manifestações artísticas e produções criadas pelo povo se enquadram<br />

na cultura popular, e não podem ser separadas diante de outras formas culturais e artísticas, sendo<br />

desnecessário identificá-la a partir de certos objetos ou modelos culturais.<br />

ii De acordo com Cardoso era o termo utilizado nos primórdios da organização industrial para definir<br />

o inventor ou criador das formas a serem fabricadas. Geralmente era o artesão com maior habilidade<br />

e conhecimentos técnicos.<br />

iii Modernidade aqui entendida como a prática dos valores criados pelo Renascimento e consolidados<br />

com o Iluminismo, principalmente no que se refere ao uso da razão, a idéia de progresso e a intervenção<br />

da ciência na realidade.<br />

iv Termo utilizado por Canclini, em sua obra “Culturas Híbridas”, onde ele apresenta suas reflexões<br />

sobre o fenômeno da hibridação cultural nos países latino-americanos, procurando compreender o<br />

intenso diálogo entre a cultura erudita, a popular e a de massas, que nós emprestamos para definir o<br />

objeto concebido nos modos de fazer artesanal dentro da concepção industrial.<br />

v Para saber mais Revista SEBRAE, n.5 julho-agosto 2002.<br />

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<strong>Design</strong>er artesão ou artesão designer? Uma questão contemporânea<br />

As aproximações por meio das intervenções de design no artesanato<br />

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ESTuDAR COM DESIGN – uMA REFLEXãO SOBRE O ESPAçO<br />

uNIVERSITáRIO<br />

Fabíola Marialva Marques; Mestranda em <strong>Design</strong>: <strong>Universidade</strong> Anhembi Morumbi<br />

fabiolamm@gmail.com<br />

Resumo<br />

Este artigo busca refletir sobre a relação do <strong>Design</strong> na Arquitetura<br />

de espaços universitários, partindo da premissa de que o arquiteto,<br />

diante de uma concepção idealizada do que é Instituição, concretiza<br />

sua proposta em um edifício que apresenta signos físicos e<br />

simbólicos; o usuário ao percorrer seu espaço, interage com o<br />

ambiente e reconhecem significados pessoais, isto proporciona<br />

uma leitura particular do lugar. Compreender a influência do <strong>Design</strong><br />

na Arquitetura possibilita refletir sobre a relação entre o partido<br />

arquitetônico e a sociedade com enfoque no repertório cultural e<br />

emocional de quem projeta e de quem usa o espaço.<br />

Palavras-Chave: arquitetura; design; universidade<br />

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Estudar com <strong>Design</strong> – uma reflexão sobre o espaço universitário<br />

O Ensino Superior e a Arquitetura<br />

Em 1 a.C., Vitrúvius escreve uma obra sobre arquitetura, “De Architectura”, para o<br />

então imperador Augusto e fala sobre a importância da educação como verdadeira riqueza<br />

necessária para se governar, através de pensamentos da alma e da inteligência, o governar<br />

seria possível, somente, por aqueles que tiveram pais que ensinaram artesi aos filhos.<br />

Giurgola e Mehta (1994) destacam o pensamento de Kahn sobre a origem da educação<br />

através de encontros e trocas de experiência:<br />

O ensino começou quando um homem, sentado embaixo de uma árvore, se<br />

pôs a discutir, sem saber que era um professor, com jovens que ignoravam<br />

ser estudantes; pensavam simplesmente no que se dizia na companhia de um<br />

homem tão agradável. E desejavam que um dia seus filhos também tivessem<br />

a oportunidade de ouvir um homem igual. Foi assim que nasceu a primeira<br />

escola e nasceu o primeiro pátio de recreio: consequência das aspirações do<br />

homem. (Giurgola e Mehta, 1994, pag. 94-95)<br />

A evolução da educação, provavelmente, se deu a partir da possibilidade de transmissão<br />

de conhecimento. Desde a troca de experiências iniciadas com conversas entre pais e filhos,<br />

passando pela invenção da escrita pelos fenícios, a criação da primeira Escola de Ciências<br />

por Thales, o florescimento da Enciclopédia com Plínio, o questionamento sobre a Educação<br />

Escolástica por Bacon, o surgimento de Academias e Bibliotecas a partir do Humanismo, o<br />

lançamento do primeiro livro impresso por Gutenberg, as primeiras formulações de teorias<br />

para o Ensino até as reformas Educacionais atuais.<br />

Cada um destes fatos históricos proporcionou a construção de espaços que abrigassem<br />

a divulgação do saber, estabelecendo sentido construtivo a partir da cultura predominante do<br />

seu contexto. Em um período de Antiguidade Clássica, o Ensino se dava em ágoras, teatros<br />

e fóruns; na Idade Média em Igrejas; no Renascimento até dos dias de hoje em Academias e<br />

<strong>Universidade</strong>s.<br />

Para Kahn, segundo Giurgola e Mehta (1994), o essencial de um lugar para se aprender<br />

é ter um ambiente apropriado.<br />

A escolha do local apropriado para uma escola estimulará o diretor de um<br />

instituto a sugerir ao arquiteto o que uma escola deveria ser, com o que ele já<br />

definirá um início de programa. (Giurgola e Mehta, 1994, pag. 94-95)<br />

Quando Kahn fala de “início de um programa”, refere-se ao programa de necessidades<br />

que é estabelecido pelo solicitante do projeto arquitetônico, no qual define quais são os<br />

ambientes necessários para a construção do espaço.<br />

Para elaborar um programa de necessidades é preciso, primeiramente, entender o<br />

objetivo do espaço, entender suas exigências formais, funcionais e os estímulos psicológicos e<br />

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Estudar com <strong>Design</strong> – uma reflexão sobre o espaço universitário<br />

seus significados. Para projetar um espaço de educação é preciso entender qual a sua função,<br />

qual o seu público e as expectativas da Instituição.<br />

A <strong>Universidade</strong>, o lugar, que segundo Wanderley (1988), é privilegiado para conhecer a<br />

cultura universal e as várias ciências, cria e divulga o saber com a finalidade da Educação com<br />

base no ensino, na pesquisa e extensão.<br />

Lauanda (1987) posiciona-se frente à questão sobre o que é <strong>Universidade</strong> dizendo que<br />

é preciso voltar-se para o homem tal qual qualquer questão de Filosofia da Educação, isto<br />

porque, acredita que a <strong>Universidade</strong> apoia-se no caráter livre do conhecimento, bem além das<br />

estruturas políticas da instituição.<br />

Já Minogue (1981), acredita que as universidades são capazes “de criar seu próprio<br />

interesse na busca do conhecimento”, sendo que esta busca pode ser influenciada por outros<br />

tipos de excitação; tais como politica, religião, patriotismo entre outros.<br />

Ter consciência do contexto histórico, econômico e político na qual a instituição se<br />

situa, possibilita o entendimento do seu desenvolvimento e como este pode influenciar o<br />

funcionamento e a política de suas estruturas internas. Contudo não deixa de apresentar sua<br />

função primordial que é produzir e difundir conhecimento através de um sistema simples de<br />

ensino e o aprendizado.<br />

Os agentes usuários das Instituições de Ensino, definidos por Wanderley (1988), são os<br />

professores, alunos e funcionários.<br />

É possível, ainda, incluir outros agentes usuários deste espaço, tais como: familiares<br />

dos alunos e convidados externos (palestrantes, auditores, prestadores de serviços e afins).<br />

Este público, que mesmo pequeno e esporádico, tem grande influência na permanência<br />

dos usuários tradicionais deste lugar de conhecimento. O contato possibilita intercâmbio de<br />

ideias e participações construtivas e reforça a ideia de espaço inclusivo e disseminador de<br />

experiências.<br />

Conhecer o usuário da <strong>Universidade</strong> proporciona identificar as peculiaridades de projeto,<br />

os fluxos, acessos, demarcações territoriais de público e privado, administrativo e acadêmico,<br />

dimensionamento de áreas, tipologia de partido, prioridades de espaço e expectativas de<br />

usos.<br />

O Ensino Superior no Brasil<br />

Segundo Charles e Verger (1996), as instituições universitárias transformaram-se<br />

profundamente, o que de certa forma possibilita compreender melhor uma parte da herança<br />

intelectual e do funcionamento das sociedades.<br />

• Numa análise feita por Onusic (2009), o Ensino Superior no Brasil apresenta uma<br />

evolução histórica de quatro fases:<br />

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• Antes de 1930, com predomínio de instituições públicas;<br />

• Entre 1930 a 1964, com a consolidação do ensino privado;<br />

• Entre 1964 a 1980, com a reforma do ensino superior e o predomínio do setor<br />

privado; e<br />

• Entre 1980 a 2002, com o aumento de oferta de vagas do setor privado, o crescimento<br />

de vagas não preenchidas e evasão acadêmica.<br />

Atualmente, das 2.314 IES registradas pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas<br />

Educacionais Anísio Teixeira (INEP), cerca de 90% são privadas (gráfico 1), estando mais<br />

concentrada numa classificação de pequeno porte com até 1.000 alunos (gráfico 2). Podese<br />

notar que a característica da Educação Superior no Brasil está calcada em um modelo<br />

privatizado com ininterrupta expansão.<br />

Gráfico 1 - Evolução do Número de instituições de Educação Superior - Brasil - 2000-2009.<br />

Fonte: Censo da Educação Superior / MEC / Inep / Deed<br />

Gráfico 2 - Distribuição do número de IES por porte da IES na Educação Superior segundo<br />

Categoria Administrativa - Graduação Presencial - Brasil - 2009.<br />

Fonte: Censo da Educação Superior / MEC / Inep / Deed<br />

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Morosini (2005) avalia que a demanda por Educação Superior é responsável pela abertura<br />

da Educação no setor privado, visto que o crescimento da economia do conhecimento, as<br />

mudanças demográficas paralelas as limitações orçamentárias do Estado não conseguem<br />

atender todo o movimento para a educação continuada.<br />

De acordo com Silva Jr e Sguissard (1999), as políticas públicas para a educação<br />

superior brasileira e as reações dos diferentes setores (públicos e privados), promoveram um<br />

reordenamento no espaço social através do fortalecimento de processos mercantilistas, o que<br />

tem acentuado a transformação das identidades das IES particulares.<br />

Este processo pode ser entendido como reflexo da transição do modelo de capitalismo<br />

fordiano para o atual capitalismo pós-moderno vivenciado de forma mundial, contudo não é<br />

foco deste artigo centrar-se nesta questão. O entendimento deste novo contexto, apenas,<br />

sugere, de forma isolada, que num predomínio de IES particulares, que buscam atender a<br />

demanda de mercado, estão cada vez mais modificando sua identidade, profissionalizando as<br />

empresas, racionalizando sua estrutura organizacional interna e buscando atender o seu mais<br />

novo objetivo: o lucro.<br />

Além de transitar pelo entendimento da cultura e sociedade nacional, este contexto<br />

interfere no perfil institucional e, consequentemente, no processo construtivo dos seus espaços<br />

físicos. As IES particulares, numa tentativa de atingir nichos de mercado e diferenciar-se de suas<br />

concorrentes, estabelecem, a partir do seu corpo administrativo, medidas que a individualizem<br />

ou minimizem seus custos como forma de garantir destaque. Desta forma, é comum verificar<br />

instituições sendo amplamente reformadas e instalando materiais de acabamentos luxuosos<br />

como atrativos para alunos de classe A e B, enquanto outras instituições apelam para baixo<br />

investimento em infraestrutura com foco no público de classes inferiores.<br />

O reflexo deste mercantilismo da educação preocupa a Arquitetura, não só na questão<br />

da descaracterização da identidade, mas também na forma como esta política faz com que o<br />

Edifício apresente aspectos de baixa qualidade do espaço físico até a uma apartação social.<br />

Enquanto a escolha e intervenção no tipo de acabamento de um Edifício possam, por<br />

um lado, alterar somente a estética do edifício; por outro, podem indicar uma segregação<br />

de público onde, culturalmente, alguns usuários sintam-se deslocados e excluídos; já a<br />

falta de investimento na construção pode acarretar má qualidade espacial, impossibilitar a<br />

acessibilidade, prejudicando a ergonomia e o conforto ambiental.<br />

Estudar com <strong>Design</strong><br />

Pode-se observar, a partir da análise desenvolvida sobre IES que tanto o sistema<br />

educacional, como os espaços de aprendizagem sempre tiveram que solucionar questões<br />

referentes à renovação da preservação do saber e da integração de seus usuários.<br />

Hoje vemos não só <strong>Universidade</strong> com espaços físicos, mas, também, espaços virtuais<br />

de conhecimento, os chamados ambientes de Educação à Distância (EaD). Dados do INPE<br />

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indicam um aumento de 30,5% de matrículas no EaD, contra o aumento de 12,5% nas<br />

tradicionais matrículas presenciais.<br />

Para Moran (1994), “Educação a Distância é o processo de ensino-aprendizagem<br />

mediado por tecnologias, onde professores e alunos estão separados espacial e/ou<br />

temporalmente.” Desta forma o ensino-aprendizagem ocorre a partir de interligações com<br />

tecnologias, principalmente telemáticas, como a internet, além do correio, rádio, televisão,<br />

vídeo, CD-ROM, telefone, fax ou tecnologias semelhantes.<br />

Segundo Meirelles (2008), a partir do século XXI, vive-se um tempo em que as novas<br />

tecnologias atuam a favor da conectividade, potencializando a interatividade, o que facilita<br />

a ampla circulação de informação. Em um contexto tão fluído e instável, verificou-se a<br />

necessidade de reflexões acerca de conceitos de interatividade e convergência através do<br />

<strong>Design</strong> de Interação. Desta forma, os ambientes educacionais virtuais buscam, nesta área do<br />

<strong>Design</strong>, uma forma de facilitar a relação entre o homem e a máquina, criando ambientes com<br />

linguagens e profusão das mudanças sociais, culturais e tecnológicas vigentes.<br />

Não muito diferente do ambiente físico, o projeto arquitetônico de uma <strong>Universidade</strong><br />

procura resolver um programa de necessidades estabelecido pelas diretrizes do MEC,<br />

evidenciando ambientes de ensino, integração, convivência e desenvolvimento de competências<br />

pelos quais se estabelecem relações de troca de ensino e aprendizagem.<br />

E se um programa atende as necessidades pré-estabelecidas, acompanhando essa<br />

evolução acadêmica, por que é possível encontrar tanta diversidade nos modelos arquitetônicos<br />

das edificações Universitárias?<br />

Para Forty (2009), a diversificação em modelos atende as diferentes categorias de<br />

usos e usuários, correspondendo às noções sobre sociedade e as distinções dentro dela.<br />

Isto porque apresenta uma significação do <strong>Design</strong> dentro da cultura e da dimensão de sua<br />

influência na vida e mente do usuário.<br />

Para Cardoso (2008), o <strong>Design</strong> trata-se de uma atividade que gera projetos, no sentido<br />

de planos, esboços ou modelos, fruto de três grandes processos históricos: industrialização,<br />

urbanização e globalização. Todos estes processos buscam organizar de forma harmoniosa e<br />

dinâmica alguns elementos, tais como: pessoas, veículos, máquinas, moradias, lojas, fábricas,<br />

malhas viárias, estados, legislação, códigos, tratados, entre outros. Sendo a industrialização<br />

como o período que impulsionou o surgimento de propostas de fazer uso do design como<br />

agente de transformação.<br />

Já Ferrara (2002), define <strong>Design</strong> como signo, fenômeno de linguagem que se encontra e<br />

atrita com a arquitetura, a cidade, o desenho industrial, de objeto, gráfico, com a comunicação e<br />

a programação visual; influenciado por sua complexa realidade global como pela multiplicidade<br />

visual da imagem no mundo informatizado. E amplia o conceito escrevendo sobre o design<br />

em espaços, uma realidade fenomênica e epistemológicaii , no qual o elemento de design<br />

apresenta manifestações em forma de signos que permitam a sua legibilidade, passível de<br />

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leitura e interpretação. Ou seja, elementos projetuais do espaço urbano são observados pelo<br />

usuário, concretizando sua imagem e identificando a sua existência; o que resulta em (re)<br />

conhecimento do espaço.<br />

Compreender o <strong>Design</strong> e como está relacionado à Arquitetura sugere reflexões sobre<br />

como a arquitetura apresenta elementos de design em sua concepção, principalmente<br />

vinculado ao conceito de signos.<br />

Kahn (2010) exemplifica bem esta relação entre a Arquitetura e o <strong>Design</strong>, classificando<br />

o <strong>Design</strong> como um ato circunstancial, sendo o “como”; enquanto a Arquitetura é a Forma,<br />

ou seja, o “o quê”. Sendo na harmonia dos espaços que se satisfaz a atividade humana. Ele<br />

escreve:<br />

“Reflita então sobre o que caracteriza, de forma abstrata, a Casa, uma casa,<br />

lar. A Casa é a característica abstrata de espaços bons para se viver. A Casa é<br />

a forma, deveria estar lá sem corpo ou dimensão, na mente do sonhador. Uma<br />

casa é a interpretação condicional desses espaços. Isso é design. Na minha<br />

opinião, a grandeza do arquiteto depende do seu poder de percepção daquilo<br />

que é Casa, em vez de seu design de uma casa, que é um ato circunstancial.<br />

O Lar é a casa e seus ocupantes. O Lar se torna diferente com cada pessoa<br />

que nele vive. (...) Reflita então a respeito do sentido de escola, uma escola,<br />

instituição. A instituição é a autoridade de onde extraímos suas necessidades<br />

de áreas. Uma escola ou um design específico é o que a instituição espera de<br />

nós. Mas a Escola, o espírito escolar, a essência do desejo de existir, é o que o<br />

arquiteto deveria converter em seu design. E eu digo que ele deve, mesmo que<br />

o design não corresponda ao orçamento. O arquiteto, portanto, se distingue<br />

do mero projetista.” (Kahn, 2010, p. 9-11)<br />

Projetar em arquitetura apresenta, em seus elementos e princípios fundamentais, formas<br />

e maneiras de resolver o espaço. Cabe ao arquiteto conseguir traduzir seu conhecimento<br />

para o edifício, resolvendo seu programa de necessidades, a implantação, definindo seus<br />

acessos, a ocupação, a orientação, seus fluxos, as condicionantes de conforto térmico e<br />

acústico e afim. Explorando o design, o campo projetual apresenta diversidade de soluções,<br />

incorporando valores e manifestações culturais e gerando novas possibilidades de partidos<br />

arquitetônicos.<br />

De acordo com Montaner (2007), “a arquitetura depende de uma série de fatores e<br />

deve responder a uma grande quantidade de solicitações de diversas índoles.” Para responder<br />

as solicitações utilizou-se de paradigmas para se legitimar, através de linguagens metafóricas<br />

que sustentassem suas referências iconológicas de cada período, tais como:<br />

• Na tradição clássica, as construções são feitas a partir de ordens, textos de referências,<br />

arquitetura monumental, justificando miticamente as relações harmônicas com o corpo<br />

e a natureza.<br />

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• Arquitetura medieval está ligada aos paradigmas do mundo religioso impregnado<br />

de simbologia em cada elemento e espaço, na constante referência de recriação da<br />

cidade de Deus.<br />

• No Ecletismo, a evolução das formas e os novos modelos construtivos são decorrentes<br />

do ideal renovador da máquina.<br />

• O Modernismo, confiante no novo universo da máquina, apresenta-se em duas fases:<br />

a primeira baseada em uma forma racional de projetar com formas simples e caráter<br />

universal, seguindo o ideal de Le Corbusier de que a planta é geradora de tudo; num<br />

segundo momento, uma corrente influenciada pelos existencialismos e pelo auge das<br />

ciências dos homens, com sensibilidade às culturas locais. “A linguagem metafórica da<br />

máquina é substituída pela linguagem metafórica do orgânico.”<br />

• Já no Pós-modernismo, a evolução da arquitetura acompanha o avanço tecnológico,<br />

as novas condicionantes urbanas, as intervenções dos usuários, suas novas exigências<br />

funcionais, entre outros temas. A arquitetura, efetivamente, passa a transmitir informação.<br />

Okamoto (2002), afirma que o homem sempre planejou e construiu ambientes de<br />

modo que pudessem favorecer suas necessidades vivenciais e sociais. E questiona sobre “de<br />

que forma tais ambientes tem influenciado as pessoas em seu comportamento e como se<br />

processaria essa indução direcionada para uma atuação previsível ou desejada pelo arquiteto?”<br />

Para tanto, é preciso visualizar além da arquitetura, além dos elementos de design<br />

contidos nela; é preciso prestar atenção na forma como estes elementos, traduzido em signos<br />

projetuais que representam a forma com que o edifício, relaciona-se com o entorno. É preciso,<br />

também, compreender como os signos produzidos possibilitam uma identificação junto à<br />

paisagem e oferecem uma leitura pelo usuário. O resultado deste processo, consciente e<br />

intencional, estabelece uma produção e interpretação, fruto de repertório e experiência de<br />

quem projeta e de quem usa o espaço.<br />

Segundo Jung (1977) o homem utiliza uma linguagem cheia de símbolos para se<br />

comunicar. Seja ela um termo, nome ou imagem que se familiariza com o cotidiano e suas<br />

conotações especiais, além do significado evidente e convencional que se pode atribuir a este<br />

símbolo.<br />

Estudos realizados pelo PROARQ/FAU/UFRJ sobre valores e significados atribuídos<br />

aos espaços, constataram que quando um usuário entra em contato com um determinado<br />

espaço, recebe impactos iniciais a partir das impressões que ele visualiza e que geram nele<br />

uma percepção; esta é a primeira etapa de um processo de conhecimento do lugar (processo<br />

cognitivo). Nos próximos passos desta percepção imediata, a possibilidade de discriminar<br />

e classificar os signos do ambiente é garantido pelo domínio que o usuário tem do código<br />

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apresentado, do qual decorre uma percepção mecânica independente das características<br />

contextuais temporais ou espaciais. Em sistemas similares, a percepção desprovida de qualquer<br />

parâmetro codificado, é tensa e profundamente influenciada pelas características espaciais ou<br />

temporais, é, necessariamente, a apreensão do novo como descoberta perceptiva.<br />

A arquitetura, por proporcionar projetos livres e independentes, assume a possibilidade<br />

de gerar novos significados na medida em que é percorrida. No ambiente construído, o usuário<br />

identifica o lugar e tem o poder de transformá-lo. Este espaço, que a princípio é fruto do desejo<br />

do arquiteto, que já percorreu esta trajetória de leitura a interpretação, passa a ser o lugar do<br />

usuário.<br />

A partir da compreensão e reconhecimento do lugar pelo usuário, que faz uma análise<br />

e uso de seus valores impregnados pelos elementos edificados desse espaço, este atribui<br />

o significado que melhor traduz seus anseios inconscientes. Isto porque, ele não observa<br />

somente a função específica do que foi construído, mas também faz a relação dos aspectos<br />

simbólicos do conjunto para com ele.<br />

Assim, um edifício apresenta, em si, forma de se expressar baseado em símbolos<br />

gráficos e elementos representativos do seu conceito arquitetônico. O espaço é entendido não<br />

só pelo que tem de visível, mas da relação com a história cultural, a composição do conjunto<br />

edificado e a forma como quem o desvenda.<br />

Considerações finais<br />

Não se pode negar que para a elaboração de um projeto arquitetônico de IES, o arquiteto<br />

pode modificar o projeto diante de diretrizes, avaliação e aprovação da gestão que administra a<br />

instituição, fazendo, muitas vezes, com que o projeto inicial não seja concretizado. No entanto,<br />

a Instituição deve considerar que, ao solicitar um projeto, existe um olhar proposto para o que<br />

se constrói, pois isso possibilita a compreensão, por meio de uma linguagem simbólica, sobre<br />

o que é o projeto.<br />

Segundo Ferrara (2007), percorrer a construção supõe não só ler os materiais e<br />

competências estruturais existentes, mas também perceber “que a espacialidade cria<br />

uma teoria do espaço enquanto comunicação ideológica da cultura e exige o resgate das<br />

manifestações presentes nas suas constituições históricas.”<br />

Para Okamoto (2002), os arquitetos devem desenvolver projetos que atendam a<br />

permanente necessidade de interação afetiva do homem com o meio ambiente, favorecendo<br />

o crescimento pessoal, a harmonia no relacionamento social e melhorando a qualidade de<br />

vida.<br />

Isto são os elementos de <strong>Design</strong> na Arquitetura, uma linguagem arquitetônica selecionada<br />

pelo arquiteto com intuito de criar ambientes com formas arquetípicas de construção numa<br />

tentativa de humanizar a arquitetura, a partir da inspiração no lugar, no clima, no programa e<br />

no usuário. Estes elementos, quando bem projetados, sugerem ao usuário um sentido ao que<br />

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se vivencia. Ao contrário, ambientes que não tiveram dedicação projetual desagradam pela<br />

rigidez e monotonia, impossibilitando que o usuário se aposse deste lugar.<br />

A partir da compreensão do <strong>Design</strong> na Arquitetura, pode-se refletir em como se pensa<br />

a arquitetura universitária hoje em dia. E em como o espaço universitário tem traduzido a<br />

forma de ensino, a função educadora exercida nos usuários que o vivenciam e experimentam<br />

seu espaço, e se tem sido capaz de transmitir informações, aglutinar pessoas e produzir<br />

sensações que evidencie a identidade da Instituição.<br />

Notas<br />

i Segundo Vitrúvius, a lei ateniense procurava educar através da arte que era exercida através da<br />

aprendizagem da literatura e conhecimento geral de todas as disciplinas, deleitando-se de temas<br />

literários e artísticos, bem como sobre obras em forma de comentários para alimento do espírito e<br />

normas para vida. Tratado de Arquitetura, pag. 290-291.<br />

ii“O design em espaços é, portanto, uma realidade tanto fenomênica como epistemológica. Ou seja,<br />

é flagrado concretamente nas manifestações sígnicas, nas marcas passíveis de serem percebidas e<br />

lidas no espaço, ao mesmo tempo em que as correlações interpretativas desses signos acabam por<br />

gerar um conhecimento do espaço enquanto objeto que tem no design sua dimensão representativa.”<br />

(Ferrara L. D., 2002, p. 7)<br />

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