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Panorama-do-Cinema-Baiano

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POR ANDRÉ SETAROpanorama<strong>do</strong> cinemabaiano


Barravento,1962Acervo <strong>Cinema</strong>tecaBrasileira


11panorama <strong>do</strong> cinema baiano


Bahia deTo<strong>do</strong>s os Santos,1960Acervo <strong>Cinema</strong>tecaBrasileira


22panorama <strong>do</strong> cinema baianoporciona ao público baiano a visão de filmes curtoscomo Carnaval em Veneza, Briga de mulheres semcoragem, Uma reunião de amigos e Em divertimentojogan<strong>do</strong> uma partida de cartas, além de outros sibilantestítulos. Alguns especta<strong>do</strong>res, inclusive, chegama se assustar quan<strong>do</strong> um trem chega à estação, pensan<strong>do</strong>,talvez, que o veículo fosse transpor a tela e osmassacrar na plateia.Assim, entre 1897, data da chegada <strong>do</strong> cinema emSalva<strong>do</strong>r, até 1909, não há instalação permanentepara a exibição de filmes, o que significa dizer: nãoexistem casas de espetáculos construídas como cinemas.Há projeções ambulantes, ocasionais, como a deNicolas Parente e outros, que alugam antigos sobra<strong>do</strong>se barrocos casarões para tal fim. Em 1909, noentanto, é inaugura<strong>do</strong> o cinema Bahia, localiza<strong>do</strong> naRua Chile e, com isso, o registro de uma sala especialmentededicada à projeção de filmes. Data significativa,1909 é um ano no qual os comerciantes começama se entusiasmar com a perspectiva de desenvolvimentode um circuito exibi<strong>do</strong>r. Não mais cinemasambulantes de feiras e casarios, mas salas instaladase projetadas para a veiculação de fitas diversas.A Lenda <strong>do</strong> PaiInácio, 1987


DIOMEDES GRAMACHOSe 1909 é um ano importante no terreno da exibição,também o é no da produção de filmes, com a iniciativade Diomedes Gramacho e José Dias da Costa, quecomeçam a filmar em Salva<strong>do</strong>r, aproveitan<strong>do</strong> materialde origem francesa. Gramacho aprende técnica defotografia e a de filmagem com um alemão que atendepelo nome de Lindemann, que trouxe da Europaalguns equipamentos. Alguns anos depois, Gramacho,juntamente com Dias da Costa, se torna proprietárioda empresa de seu antigo mestre, a PhotographiaLindemann. Ainda em 1909, com os rudimentos <strong>do</strong>aprendiza<strong>do</strong>, põe-se Gramacho a filmar “vistas epaisagens” e, no ano seguinte, registra com êxito umtorneio de regatas tradicional que, exibi<strong>do</strong> o filmecom o nome de Regatas da Bahia, alcança grandesucesso. Há quem diga que o primeiro registro empelículas deste precursor tenha si<strong>do</strong> Segunda-feira <strong>do</strong>Bonfim, mas não resta dúvida de que Regatas é, dequalquer forma, uma obra mais acabada <strong>do</strong> ponto devista cinematográfico. Em seu laboratório, Gramachocumpre todas as etapas da realização fílmica, <strong>do</strong>negativo ao positivo, e, durante quatro anos, exerceum trabalho intenso e continua<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong>, também,um pioneiro das atualidades, quan<strong>do</strong> registra osdiversos eventos que ocorrem na cidade, desde asfestas folclóricas, torneios e exposições aos fatospolíticos, anteceden<strong>do</strong>, com isso, Alexandre Robatto,Filho.Toman<strong>do</strong> conhecimento das atividades de Gramacho,um rico senhor da terra, o Coronel Rubem PinheiroGuimarães, que é o arrendatário <strong>do</strong> Teatro São João,encomenda-lhe atualidades – espécie de cine-jornais– com a duração, cada uma, de meia hora, para oregistro <strong>do</strong>s fatos importantes que acontecem emSalva<strong>do</strong>r. O Coronel tem o hábito de reunir os amigos,em sua casa na Rua Chile, para passar os filmesde Gramacho. Neste particular, poder-se-ia dizer queRubem Pinheiro Guimarães é o primeiro produtorcinematográfico da Bahia.Walter da Silveira, pesquisan<strong>do</strong> os primórdios <strong>do</strong>cinema baiano, chega a conhecer DiomedesGramacho. Sobre Gramacho, escreve em A história<strong>do</strong> cinema vista da província (2): “... já octogenário,porém, lúci<strong>do</strong>, não obstante sur<strong>do</strong>, tivemos a melhorverdade sobre a sua experiência de primitivos. Porquesó o seu depoimento seria ainda possível: a PhotoLindemann perdera os arquivos em conseqüência deuma penhora e os filmes ele jogara ao mar em 1920,desespera<strong>do</strong> com um incêndio no atelier à Praça daPiedade.”O desespero de Diomedes Gramacho com seu atotreslouca<strong>do</strong> de jogar fora to<strong>do</strong>s os seus registros cinematográficosimpede, como bem se refere Walter daSilveira, o conhecimento das fitas pioneiras <strong>do</strong> cinemabaiano. Consegue o ensaísta tirar muito pouco <strong>do</strong>depoente, que, já velho, desmemoria<strong>do</strong>, não tem, naocasião, oportunidade de revelar o seu passa<strong>do</strong>, mas,de qualquer maneira, o que aqui está registra<strong>do</strong> sedeve às vagas lembranças de Diomedes Gramacho aWalter da Silveira.23panorama <strong>do</strong> cinema baiano


24panorama <strong>do</strong> cinema baianoBOCCANERALivro edita<strong>do</strong> em 1919, e impresso pela TipografiaBaiana de Cincinato Melquíades, Os cinemasda Bahia: 1897-1918, de Sílio Boccanera Júnior(1863-1928), é uma crônica que aborda aspectosparticulares da história da exibição cinematográfica.Nenhum outro escritor brasileiro, antes dele,preocupa-se em fixar essa época primitiva e tãofascinante, atribuin<strong>do</strong> ao cinema uma relevânciaque, então, se tem como injustificável. Deste mo<strong>do</strong>,talvez, é daqui que se iniciam os estu<strong>do</strong>s sobrecinema no Brasil. Dificilmente há outra obra publicadano mesmo perío<strong>do</strong> com a preocupação <strong>do</strong> registrode particularidades relativas ao cinema, revelan<strong>do</strong>seSílio Boccanera Júnior como um pioneiro nestecampo, o <strong>do</strong> registro escrito.A Bahia, portanto, ainda distante <strong>do</strong> eixo Rio-SãoPaulo, com as comunicações difíceis da época,província isolada, tem surpreendentemente um fatopioneiro na área <strong>do</strong> cinema, como se está por ver.No campo das publicações, vale registrar que a partirde 12 de outubro de 1920, o pioneirismo baianoinaugura outra experiência: uma revista semanaldedicada ao cinema, a Artes e Artistas, editadapor Fonseca & Filhos, que, estimula<strong>do</strong>s pela boareceptividade, leva <strong>do</strong>is anos até a sua liquidação,quan<strong>do</strong>, em 9 de abril de 1922, por dificuldadesfinanceiras, tem seu derradeiro número, o 72. Não sepode, porém, deixar de ressaltar que o surgimento deuma revista de cinema na Bahia ainda no despontarda década de 20 é um acontecimento singular nopanorama brasileiro, com bem observou Walter daSilveira: “Quem leia hoje Artes e Artistas, sobretu<strong>do</strong>saben<strong>do</strong> que somente na mesma fase se organizavame definiam, na Europa, a crítica cinematográfica e asrevistas sobre filmes, não pode deixar de reconhecerque, malgra<strong>do</strong> muitas ingenuidades, se encontranas suas páginas uma enorme fonte de revelaçõessobre o que representava, na ocasião, o cinemacomo fenômeno estético e econômico.” Ambas asmanifestações culturais, a de Boccanera e a <strong>do</strong>sFonseca, entretanto, não têm segui<strong>do</strong>res e Salva<strong>do</strong>r,até hoje, no segun<strong>do</strong> milênio, não possui uma revistaespecializada no assunto.As pesquisas sobre os primórdios <strong>do</strong> cinemabaiano ficam, portanto, condicionadas e restritasà investigação em jornais e publicações da época,sen<strong>do</strong> difícil o conhecimento da maioria <strong>do</strong>material filma<strong>do</strong>, pois boa parte deste é destruí<strong>do</strong>.O trabalho se torna um trabalho de arqueólogo,mas, ainda assim, sempre é possível se encontraralguma coisa referente às décadas de 10 e 20.Na conversa de Walter da Silveira com DiomedesGramacho, já no ocaso de sua existência, esterevela ao crítico conhecer um realiza<strong>do</strong>r que filmana Bahia e que se chama Luxar<strong>do</strong>. As investigações,no entanto, ainda estão por ser acionadas. O quese dá aqui nestas notas iniciais, chamadas deprimórdios <strong>do</strong> cinema baiano, se configura comoa pré-história desta cinematografia. A históriapropriamente dita tem início com AlexandreRobatto, Filho, que começa a filmar a partir dadécada de 1930 e cujo material foi recupera<strong>do</strong> pelaFundação Cultural <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> da Bahia. Vadiação, 1962


ALEXANDRE ROBATTO, FILHO25Na década de 1930, encontran<strong>do</strong> uma terra arrasadaem termos de produção cinematográfica, emerge afigura de Alexandre Robatto, Filho (3), que começa afilmar uma série de fitas curtas que focalizam aspectosimportantes da paisagem e <strong>do</strong>s costumes da cidadede Salva<strong>do</strong>r. Robatto surge sozinho neste cenárioonde inexistem condições de se desenvolver qualquertrabalho cinematográfico, dada a ausência de laboratórioscapazes de revelar o negativo e, mesmo lojasque o vendam. A persistência, a tenacidade, a vontadedesse realiza<strong>do</strong>r, no entanto, conseguem vencerto<strong>do</strong>s os obstáculos e, muni<strong>do</strong> de uma câmera, iniciaa sua obra, que sinaliza a paciência de um apaixona<strong>do</strong>pelas imagens em movimento, pois estas, aqui tomadas,tinham que ser mandadas ao Rio para revelaçãoe, depois, enviadas de volta num processo longo deespera. A paciência de Robatto, de Jó, determinou-lheo itinerário, a trajetória que se cristaliza por perto de40 anos de labuta no ofício de cineasta <strong>do</strong>cumentarista.panorama <strong>do</strong> cinema baianoCirurgião dentista, Alexandre Robatto, Filho, é o quese poderia chamar de cineasta de fim de semana,pois a sua sobrevivência vem de sua profissão. Começaa filmar na bitola de 8mm com um filme sobre aaplicação da vacina contra a tuberculose. O sucessodesta pequena fita, entretanto, surpreende Robatto,porque vários cientistas que aqui estão para um congressode medicina, ven<strong>do</strong>-a, solicitam a seu autorvárias cópias dela. O interesse aqui, claro está, é ape-


26panorama <strong>do</strong> cinema baianonas científico, longe, portanto, de qualquer pretensãoestética. Filma também, nesta época, os equipamentosde fornecimento de água para a cidade.No Instituto de Pecuária da Bahia, onde tem umemprego, cria, já na bitola de 16mm, uma linha de<strong>do</strong>cumentários sobre zootécnica, com um méto<strong>do</strong>particular de registro. Primeiro filma to<strong>do</strong>s os grandesreprodutores e espera que se dê a reprodução, registran<strong>do</strong>a evolução <strong>do</strong>s descendentes com o objetivode apurar, por meio das imagens, a qualidade degenares <strong>do</strong> reprodutor. O realiza<strong>do</strong>r ainda voltaria àcaptação <strong>do</strong> sistema de águas, quan<strong>do</strong> é implanta<strong>do</strong>em Salva<strong>do</strong>r um moderníssimo, que tem as instalaçõespostas a seco. Desta vez consegue uma câmarade 35mm e o filme causa surpresa, principalmenteporque, através dele, pode-se contemplar os defeitosporventura existentes <strong>do</strong> trabalho de engenharia.Como de fato vem a ocorrer.O cinema sempre convive com Alexandre Robatto, Filho,pois desde tenra idade, por causa de um cinemade propriedade de seu pai, em Alagoinhas, está acostuma<strong>do</strong>ao ritmo frenético das imagens em movimento.Numa conversa com o realiza<strong>do</strong>r (4), em 1976,Robatto disse: “O grosso de meu trabalho, a rigor, foito<strong>do</strong> concentra<strong>do</strong> na bitola de 35mm e muito devo,neste senti<strong>do</strong>, à Cooperativa de Pecuária da Bahia. Ofilme técnico sempre me fascinou. Por exemplo: fizum <strong>do</strong>cumentário sobre a plantação de fumo, desdea semente até o charuto, o produto final. Levava,mais ou menos, <strong>do</strong>is anos até a conclusão <strong>do</strong> filme.Entre os muitos que fiz, destaco o da eletrificação daRede Ferroviária da Leste Brasileira. Também aqui háo registro de to<strong>do</strong> o processo: da primeira estação atéo trem inaugural. Lauro de Freitas me acompanhava eme deu muito apoio.” O méto<strong>do</strong> robattiano de registro,portanto, se caracteriza pela rodagem de todas asfases da construção. Como ele próprio diz: “Ia rodan<strong>do</strong>aos pedacinhos”.Com muita dificuldade, Robatto consegue mandarvir <strong>do</strong> Rio uma duplica<strong>do</strong>ra e, com ela, realiza a copiagemde um filme de 35mm para duas cópias em16mm com quatro pistas sonoras, o que dá impulsoà melhoria da reprodução sonora. Robatto contaque no seu primeiro trabalho em 35mm, para fazera conversão para 16mm, copia até o som por meioeletrônico. Ten<strong>do</strong> por base um contratipo, não conseguecopiar opticamente a pista. Segun<strong>do</strong> seu relatona conversa, “um trabalho feito na base <strong>do</strong> vale tu<strong>do</strong>,em situações precárias”. As condições são completamenteopostas às de hoje, quan<strong>do</strong> já se tem na Bahiaequipamentos de última geração capazes de permitira montagem de um filme.A fase mais produtiva de Robatto está na década de1940, quan<strong>do</strong> realiza vários <strong>do</strong>cumentários de considerávelvalor histórico, registran<strong>do</strong> fatos importantese eventos marcantes, como o grande desfile comemorativo<strong>do</strong>s 400 anos de Salva<strong>do</strong>r, a chegada <strong>do</strong>corpo de Rui Barbosa em 1949 para ser enterra<strong>do</strong> nofórum de mesmo nome situa<strong>do</strong> no Campo da Pólvora,os bailes carnavalescos <strong>do</strong> aristocrático ClubeBahiano de Tênis etc.Quatro séculos em desfile é, hoje, a título de exem-


plo, um <strong>do</strong>cumento de grande valor histórico, poisregistra a grande parada idealizada por Chianca deGarcia. Neste acontecimento, a sociedade baiana participafazen<strong>do</strong> figurações de personagens. Por causadisso, conta Robatto, to<strong>do</strong>s lhe pedem uma cópia <strong>do</strong>filme e, assim, consegue vender mais de uma centena.Aconteceu na Bahia número 1 é outro <strong>do</strong>cumentáriomarcante, que focaliza a procissão de NossoSenhor <strong>do</strong>s Navegantes. Robatto recebe tambémencomendas, que realiza em 16mm e entrega, depoisde montadas, aos <strong>do</strong>nos e, com isso, perde muitosfilmes, pois não fica com nenhuma dessas cópias encomendadas.O registro de Robatto é imenso: a visitade Getúlio Vargas ao poço pioneiro da Petrobras, avinda de Eurico Gaspar Dutra inaugurar a Refinaria deMataripe, as chamadas festas de largo, a Lavagem <strong>do</strong>Bonfim.Algumas pistas, no entanto, são localizadas na conversa,como a lembrança que, de repente, Robatto temde um laboratório bem monta<strong>do</strong> – “com copiadeira etu<strong>do</strong>” – de propriedade <strong>do</strong> Sr. Barradas, <strong>do</strong>no de umcinema chama<strong>do</strong> Glória, que seria, reforma<strong>do</strong>, transforma<strong>do</strong>no Tamoio em início da década de 1960. Quefica à Rua 21 de Abril.Robatto Filho, segun<strong>do</strong> palavras de Walter da Silveira,por seu prolonga<strong>do</strong> amor à técnica cinematográfica,durante largo perío<strong>do</strong>, cultivou o gosto de produzircurtas metragens de natureza <strong>do</strong>cumentária, comuma visão somente às vezes acertada <strong>do</strong>s problemasfílmicos, mas, sempre, com um honesto desejo semse comercializar.Se nos anos 30 e 40 os filmes de Robatto revelammais uma preocupação <strong>do</strong>cumentária – A marcha dasboiadas, por exemplo, os registros das exposições pecuárias,os eventos políticos, sociais, festeiros –, em1952, porém, com Entre o mar e o tendal, há já umsenti<strong>do</strong> estético na captação <strong>do</strong> <strong>do</strong>cumento. Entre omar e o tendal é o mais bem acaba<strong>do</strong> filme de Robatto,a sua obra-prima, por assim dizer, cujas imagensse refletem para a posteridade. Focalizan<strong>do</strong> a pesca<strong>do</strong> xaréu, o <strong>do</strong>cumentário é filma<strong>do</strong> nas praias deChega-Nêgo e Carimbamba. É um texto ilustra<strong>do</strong> queconta o processo de transformação das armações debaleia em redes de xaréu e, com isso, a evolução queprovoca entre os pesca<strong>do</strong>res da região. Do materialcapta<strong>do</strong>, Robatto tem <strong>do</strong>is filmes: um, mais elabora<strong>do</strong>,que é Entre o mar e o tendal, onde se percebeuma preocupação estética na fluência das imagensem movimento, que contam, inclusive, com os cânticosoriginais <strong>do</strong>s tira<strong>do</strong>res Nezinho, Marcos e o corode Carimbamba. A partitura musical é mais trabalhada,e elaborada pelo maestro Paulo Jatobá, que seinspira nos cânticos originais praieiros para compora trilha sonora, participan<strong>do</strong>, também, <strong>do</strong> trabalhomusical, D. Semírades Seixas e o Coral Siciliano. Domesmo material, mas em esta<strong>do</strong> bruto, monta Xaréu.Ainda na primeira metade <strong>do</strong>s anos 50, Robatto filmaVadiação, <strong>do</strong>cumentário sobre capoeira, que se inspiranuma trilha sonora. “É um filme sobre capoeira,é, a meu ver, ‘um musical’, revela Robatto na mesmaentrevista. Feito em cima de storyboards desenha<strong>do</strong>,plano a plano, pelo artista plástico Carybé, Vadiaçãopode ser considera<strong>do</strong> um <strong>do</strong>s mais importantes filmes<strong>do</strong> cineasta pioneiro <strong>do</strong> cinema baiano.27panorama <strong>do</strong> cinema baiano


Walter da SilveiraA PRESENÇA DE WALTER DA SILVEIRAA liderança cineclubista de Walter da Silveira temimportância fundamental na formação de cineastase críticos baianos que viriam a se manifestar emmeio a eclosão <strong>do</strong> boom cinematográfico que aquise verifica a partir de 1959 com o lançamento <strong>do</strong>primeiro longa-metragem baiano, Redenção, deRoberto Pires. Walter da Silveira à frente <strong>do</strong> Clubede <strong>Cinema</strong> da Bahia forma e informa uma plateiaque desconhece outras cinematografias que não aamericana. É através da atividade cineclubista, nadécada de 50, que os baianos tomam conhecimento<strong>do</strong> neorrealismo italiano, <strong>do</strong> expressionismo alemão,da escola soviética liderada por Sergei M. Eisensteine Pu<strong>do</strong>vkin e <strong>do</strong> realismo poético francês. Limita<strong>do</strong>sà produção de Hollywood, que <strong>do</strong>mina o circuitoexibi<strong>do</strong>r, os habitantes da província apenas têm noClube a única janela para a percepção da estéticacinematográfica, influin<strong>do</strong>, decisivamente, em muitosde seus frequenta<strong>do</strong>res, que começam então a teruma compreensão mais ampla da arte <strong>do</strong> filme.Funda<strong>do</strong> em 27 de junho de 1950, no auditório daSecretaria de Educação, o Clube de <strong>Cinema</strong> da Bahiadá início às suas atividades culturais projetan<strong>do</strong>,num velho aparelho quase sem uso, com perigo dequeimar a fita, Os visitantes da noite (Les visiteurs dusoir), de Marcel Carné. Segun<strong>do</strong> Walter da Silveira(5), “existia uma cena de dança medieval em que, porum processo de técnica cinematográfica, os gestose os sons se tornavam crescentemente lentos atévir a imobilidade total <strong>do</strong>s atores. O público pensounum defeito <strong>do</strong> projetor, exprimin<strong>do</strong> seu desencantopor ver interrompida a estória num momento detamanha beleza, mas logo depois sorria dele próprioante o prosseguimento dramático. E se tratava deum público da mais alta qualidade, começan<strong>do</strong> porAnísio Teixeira, que, Secretário de Educação, cedera oauditório ao Clube, prestigian<strong>do</strong>-lhe a fundação.”A plateia e balcão <strong>do</strong> Guarany estão lota<strong>do</strong>s. Sába<strong>do</strong>de manhã de 1965. A maioria <strong>do</strong>s especta<strong>do</strong>resconstituída de estudantes <strong>do</strong> Central, que, filan<strong>do</strong>aulas – sába<strong>do</strong>, naquele tempo, também tinha aula–, adquire o conhecimento <strong>do</strong> filme como arte.Uma turma, porém, de capadócios, que está ali,naquela sessão, apenas para perturbar, grita, ri eassobia diante <strong>do</strong>s passos poéticos de Hiroshima,mon amour, de Alain Resnais. Num determina<strong>do</strong>momento, Walter da Silveira, temperamentalcomo era, levanta-se e solicita que a projeção sejainterrompida e as luzes da sala se acendam. Dianteda plateia, que fica silenciosa, Walter dá tremendareprimenda nos jovens assanha<strong>do</strong>s, fazen<strong>do</strong>-os verque Hiroshima é uma obra de arte e merece to<strong>do</strong> orespeito e to<strong>do</strong> o silêncio.Walter da Silveira não admitia que alguém saísseno meio de um filme. Ficava aborreci<strong>do</strong> e o peca<strong>do</strong>rrestava, depois, sem moral com o mestre. Qualquerconversinha lateral também era reprovada pelosolhos de Walter da Silveira. Quem quisesse conversarque fosse para a sala de espera ou saísse <strong>do</strong> cinema.A importância <strong>do</strong> Clube de <strong>Cinema</strong> da Bahia, na29panorama <strong>do</strong> cinema baiano


30panorama <strong>do</strong> cinema baianoformação de plateias, na deflagração <strong>do</strong> próprio Ciclo<strong>Baiano</strong> (entre 1959 e 1963, filmes genuinamentebaianos são realiza<strong>do</strong>s: Redenção, A Grande Feira,Tocaia no Asfalto etc.) e como centro difusor dacultura cinematográfica é inquestionável. A liderançade Walter proporciona a muitos interessa<strong>do</strong>spela sétima arte uma espécie de descoberta daimportância <strong>do</strong> cinema como veículo de expressãoartística.Vive-se, nos anos 50, na urbis soteropolitana, sobinfluência <strong>do</strong> espetáculo norte-americano, queimpõe uma linguagem e uma forma de ver o discursonarrativo. Vive-se, portanto, sem a possibilidade decontemplação de outras conquistas da linguagemcinematográfica, porque o merca<strong>do</strong>, <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> pelascompanhias americanas, não oferece outra opçãoque não seja o espetáculo narrativo tradicional,imperan<strong>do</strong> o star system, a i<strong>do</strong>latria, o consumodesenfrea<strong>do</strong>. Nunca, no entanto, como o consumismoselvagem da contemporaneidade.Com o Clube de <strong>Cinema</strong> da Bahia, Walter da Silveirapossibilita aos baianos o conhecimento <strong>do</strong>s filmesneorrealistas italianos (Roma Cidade Aberta, Paisà,ambos de Roberto Rossellini, Ladrão de Bicicletas,Umberto D, Milagre em Milão, to<strong>do</strong>s de Vittorio DeSica), <strong>do</strong> realismo poético francês (Les enfants duparadis, de Marcel Carné), <strong>do</strong> cinema de Jean Renoir,da cinematografia soviética e <strong>do</strong>s discursos estéticosde um Serguei Eisenstein (O Encouraça<strong>do</strong> Potenkim,Outubro, Ivan o terrível etc). A contribuição primordialde Walter neste perío<strong>do</strong> está em ter desperta<strong>do</strong>muitos cinéfilos para a descoberta <strong>do</strong> cinema comouma linguagem autônoma, como um verdadeiro epoderoso veículo de expressão artística. Dentre osvários alunos que tem, um destaca-se sobremaneira:Glauber Rocha, que, conforme o mesmo confessa emalguns de seus escritos, “aprendeu cinema com Dr.Walter da Silveira”.Segun<strong>do</strong> recordações de Walter, quan<strong>do</strong> dainauguração <strong>do</strong> Clube em 1950, o auditório épequeno para os especta<strong>do</strong>res que, à porta, seinscrevem como sócios. Cerca de duzentos parauma sala de cem. “Não havia imagina<strong>do</strong> este êxito,Carlos Coqueijo da Costa e eu, quan<strong>do</strong> fundamos ocineclube, seguin<strong>do</strong> os modelos franceses da época.Sabíamos que nossa cidade poderia classificar-seentre as mais atrasadas cinematograficamente<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, desconhecen<strong>do</strong> sobretu<strong>do</strong> o cinemaeuropeu, mas não supúnhamos que tanta genteestivesse, como nós, à procura <strong>do</strong> tempo perdi<strong>do</strong>.”A segunda sessão teve de ser numa sala comercial: oGloria (que virou Tamoio). No primeiro <strong>do</strong>mingo dejulho. De manhã. Até aquela data nenhum exibi<strong>do</strong>rpensara em matinais, o Clube de <strong>Cinema</strong> criavaum novo horário. E às 10 horas todas as cadeirasestavam ocupadas para a projeção de Desencanto(Brief-encounter), o extraordinário filme inglês deDavid Lean. O cineclubismo entrava para a vida dacidade. O público de todas as manhãs de <strong>do</strong>mingo,além de versátil, compunha-se das figuras maisrepresentativas da cultura baiana, escritores, artistas,professores, universitários, advoga<strong>do</strong>s, médicos eestudantes.


Com menos de um ano, em abril de 1951, o Clube de<strong>Cinema</strong> da Bahia realizou um Festival Internacional<strong>do</strong> Filme de Curta-Metragem, com a participação de<strong>do</strong>ze países. Até então, no Brasil, nada se fizera maisorganiza<strong>do</strong>. Um júri de alto nível foi eleito e suasvotações tiveram um caráter tão polêmico quanto asdiscussões que tratavam na plateia sobre as fitas quedeviam ser premiadas.Como conferencistas convida<strong>do</strong>s vieram AlbertoCavalcanti, Vinicius de Moraes, Alex Viany, SalvyanoCavalcanti de Paiva e Luís Alípio de Barros. Suaspalavras, ditas no palco <strong>do</strong> Guarany, tambémse tornaram polêmicas, com o jogo cruza<strong>do</strong> deperguntas e respostas a propósito de to<strong>do</strong>s os temascinematográficos. Walter da Silveira contou: “Tenhouma carta de Cavalcanti que releio sempre comorgulho, embora me entristeça recordar como essegrande homem de cinema, tão admira<strong>do</strong> por to<strong>do</strong>sos historia<strong>do</strong>res mundiais por sua contribuição parao cinema francês <strong>do</strong>s anos 1920 e para o cinemainglês <strong>do</strong>s anos 30 e 40, foi praticamente bani<strong>do</strong>no Brasil; nessa carta, Cavalcanti fala <strong>do</strong> públicodaquele festival como <strong>do</strong>s melhores que conheceuem toda parte. E igualmente Vinicius: mais <strong>do</strong> que osfilmes, não obstante os clássicos, julgou que a plateiamerecera o prêmio, pela quantidade e qualidade<strong>do</strong>s especta<strong>do</strong>res. Em tão pouco tempo, o Clube de<strong>Cinema</strong> formara um tipo de público para dez diassegui<strong>do</strong>s somente de curtas metragens”.Nos anos 60, o Clube passa a funcionar aos sába<strong>do</strong>s,de manhã, no Cine Liceu. Depois, em 65, muda-separa o Cine Guarany, também aos sába<strong>do</strong>s, fazen<strong>do</strong>confluir, para suas sessões, cinéfilos e estudantes,universitários e secundaristas, os quais, após osespetáculos, servem-se <strong>do</strong> Restaurante e Bar Cacique(ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> cinema) para um bate-papo em torno<strong>do</strong>s filmes apresenta<strong>do</strong>s, numa época em que aindase pode transitar pelo centro da cidade, quan<strong>do</strong> aBahia ainda oferece a oportunidade de se “tê-la”característica e provinciana.Dois anos depois, reforman<strong>do</strong>-se o antigo Popular(na Rua da Oração, paralela à Saldanha da Gama,onde fica o Cine Liceu), Walter concentra asatividades cineclubistas nesta sala exibi<strong>do</strong>ra,inauguran<strong>do</strong> a programação em junho de 1967,com Terra em Transe, de Glauber Rocha, numahomenagem ao dileto cineclubista que atinge, então,dimensão internacional. As projeções tornam-seininterruptas, com sessões contínuas, modelan<strong>do</strong>-seWalter no esquema programático <strong>do</strong> Cine Paissandu,<strong>do</strong> Rio de Janeiro. A experiência, por causa dasinjunções <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> exibi<strong>do</strong>r, não dá certo.Em 1968, o Clube de <strong>Cinema</strong> da Bahia transfere-separa a Reitoria, com projeções semanais, aos sába<strong>do</strong>spela noite. Neste mesmo ano acontece, por iniciativade Walter, um Curso Livre de <strong>Cinema</strong>, que se estendepor to<strong>do</strong> o ano, com aulas duas vezes por semana.O patrocínio é da Universidade Federal da Bahia.Walter da Silveira realiza seu sonho de dar um cursocompleto sobre a história e a estética da “sétimaarte”. Além de um estilista admirável, irrepreensívelnas suas construções linguísticas e na manipulação31panorama <strong>do</strong> cinema baiano


32panorama <strong>do</strong> cinema baianoda sintaxe (como tão bem atestam seus escritos),Walter da Silveira possui o <strong>do</strong>m da oratória. Antes decada filme, discorria sobre o cineasta e a importânciada obra fílmica, envolven<strong>do</strong> a plateia com a suaoralidade transparente e vivaz. 1970 surge como umano fatídico, pois vem a falecer em novembro.Walter da Silveira é o introdutor da arte <strong>do</strong> filme naBahia para soteropolitanos estupefatos, entre osquais Glauber Rocha que, confessa, aprende cinemacom o Clube de <strong>Cinema</strong> em artigo publica<strong>do</strong> noJornal da Bahia logo após o falecimento <strong>do</strong> mestreem novembro de 1970. Mas o ensaísta, sobre serum escritor de escol, de estilística admirável, talvezpela luta pela sobrevivência – advoga<strong>do</strong> trabalhistacom mulher e sete filhos para sustentar –, deixaapenas, publica<strong>do</strong>s, <strong>do</strong>is livros: Fronteiras <strong>do</strong> cinema(1966), pela editora Tempo Brasileiro e Imagem eroteiro de Charles Chaplin (1970), pela editora baianaMensageiro da Fé, que já não mais existe. Em 1979,organiza<strong>do</strong> por José Umberto, a Fundação Cultural<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> resolve publicar A história <strong>do</strong> cinema vistada província, obra póstuma. Os escritos valiosos deWalter da Silveira são reuni<strong>do</strong>s em livro e lança<strong>do</strong>sem quatro grossos volumes em dezembro de 2006sob o título O eterno e o efêmero (que nomeia odiscurso de posse <strong>do</strong> autor na Academia Baiana deLetras em 1968). A organização, primorosa, ficou acargo de José Umberto Dias, escritor, pesquisa<strong>do</strong>r ecineasta, que, apesar de tê-la concluí<strong>do</strong> muito antes,precisa esperar, para ver os volumes publica<strong>do</strong>s,mais de dez anos pelas injunções inerentes àburocracia governamental. Os livros são publica<strong>do</strong>spelo Governo <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> da Bahia (Editora Oiti), masficam entulha<strong>do</strong>s pela ausência de um mecanismo dedistribuição adequa<strong>do</strong>.Walter da Silveira é um ensaísta – muito mais <strong>do</strong>que um crítico cinematográfico. O que pode serobserva<strong>do</strong> em Fronteiras <strong>do</strong> cinema, síntese desua paixão pelo cinema e uma reunião de ensaiosdefinitivos sobre a chamada sétima arte. Um ensaístaem pé de igualdade, diga-se logo, aos grandes <strong>do</strong> sul<strong>do</strong> país como Paulo Emílio Salles Gomes, AntonioMoniz Vianna, Francisco Luiz de Almeida Salles, entreoutros.Contan<strong>do</strong> dezenove ensaios, Fronteiras <strong>do</strong> <strong>Cinema</strong>contém os escritos publica<strong>do</strong>s em diferentes ocasiõesna imprensa baiana. Walter selecionou-os e resolveureuni-los, em livro, ten<strong>do</strong> em vista que “a críticacinematográfica tem certamente uma efemeridademaior <strong>do</strong> que as outras e a dimensão <strong>do</strong> livro éuma tentativa de permanência”. Destacam-se, emFronteiras <strong>do</strong> <strong>Cinema</strong>, <strong>do</strong>is momentos fundamentaispara a compreensão <strong>do</strong> pensamento <strong>do</strong> autor emrelação ao processo de criação no cinema: Crítica eContracrítica, o primeiro ensaio, que abre o livro –um severo artigo sobre a responsabilidade daqueleque julga a obra-de-arte, “esta responsabilidadehumana e social” – e O instrumento <strong>do</strong> humanismo,o derradeiro, um bra<strong>do</strong> retumbante sobre anecessidade de o veículo cinematográfico ter sempreem vista, como elemento essencial, a figura humana.Tem-se, em Fronteiras <strong>do</strong> <strong>Cinema</strong>, um <strong>do</strong>ssiê analíticoacerca das mais variadas vertentes da estilística


cinematográfica, passan<strong>do</strong> pela entrevisão deIngmar Bergman, ao ressaltar nesta a renovação danatureza unanimista <strong>do</strong> cinema, às discussões entreas fronteiras <strong>do</strong> cinema e da literatura (Dostoievskiou Visconti?), às noites de um Federico Fellini, atéatingir um ensaio que indaga sobre a contribuição <strong>do</strong>cinemascope para a estética <strong>do</strong> cinema e desmistificare dimensionar a real importância de filmes comoFantasia, de Walt Disney, e Orfeu <strong>do</strong> Carnaval, deMarcel Camus. O livro, entretanto, não para por aqui.Contém mais e muito mais.Do “mestre <strong>do</strong> suspense”, Walter não per<strong>do</strong>a suasvertigens, sua aparente exterioridade, no únicoensaio, a nosso ver, infeliz, <strong>do</strong> grande ensaísta, postoque em Hitchcock o argumento é concessão enquantoque a mise-en-scéne, mensagem. Até que pontoa arte cinematográfica é capaz de transportar astorrentes verbais <strong>do</strong> texto shakespeariano? Eis outroartigo fundamental <strong>do</strong> mestre Walter, o qual nãodescuida também <strong>do</strong>s voos poéticos e da irreverência<strong>do</strong> solitário Monsieur Hulot, personagem <strong>do</strong>comediante francês Jacques Tati. Ou da efemeridade<strong>do</strong>s sentimentos <strong>do</strong> cinema de MichelangeloAntonioni. Ou da poética de Jean Cocteau. Ou daoralidade em Alain Resnais.E o cinema brasileiro? Que Walter da Silveirademonstra tanto interesse, durante a sua trajetóriade crítico, poden<strong>do</strong>-se mesmo afirmar que foraum grande anima<strong>do</strong>r de cinematografia nacional?O cinema brasileiro viria em publicação especial,que a fatalidade <strong>do</strong> destino não permitiu. Mas,em 1978, com a mencionada edição póstuma deHistória <strong>do</strong> <strong>Cinema</strong> Visto da Província, resgata-se,para a permanência em livro, um pouco da pesquisafeita através <strong>do</strong> tempo, num trabalho de verdadeiroarqueólogo da arte fílmica, <strong>do</strong>s primórdios <strong>do</strong> cinemana Bahia. E, sob a ótica de um bom provinciano,Walter descobre, aos poucos, o cinema internacional,que vai despontan<strong>do</strong> na cidade <strong>do</strong> Salva<strong>do</strong>r. Também,poder-se-ia perguntar: e Charles Chaplin, a quemWalter tanto amara? Carlitos, ainda em tempo devida <strong>do</strong> crítico, é objeto de um estu<strong>do</strong> definitivosobre a sua filmografia em Imagem e Roteiro deCharles Chaplin, que Walter lança, em agosto de1970 – pouco antes de morrer – no Cine Bahia, comuma exibição especial de O Garoto (The Kid) em suahomenagem. A cópia vem especialmente para estaprojeção numa reverência ao ensaísta <strong>do</strong> Museu deArte Moderna <strong>do</strong> Rio de Janeiro.O apogeu criativo <strong>do</strong> cinema moderno, entretanto,Walter presenciara, pois este se dá la<strong>do</strong> a la<strong>do</strong>com a formação cultural <strong>do</strong> grande ensaísta. Aindamenino, Walter conhece a figura de Carlitos, assisteà transformação da estética da arte muda parao cinema fala<strong>do</strong>, acompanha o desenvolvimentonarrativo de um Orson Welles (Cidadão Kane), de umSergei Eisenstein, contempla a nova postura éticada cinematografia com a eclosão <strong>do</strong> neorrealismoitaliano. E as revoluções sintáticas, inaugura<strong>do</strong>rasde uma nova sintaxe, com Michelangelo Antonioni,Alain Resnais e Jean-Luc Godard. Porque, nasci<strong>do</strong>na segunda década <strong>do</strong> século XX (1915/1970),Walter da Silveira tem o privilégio de ser quasecontemporâneo das transformações estilísticas quemarcam a arte <strong>do</strong> filme.33panorama <strong>do</strong> cinema baiano


34panorama <strong>do</strong> cinema baianoHá críticos e críticos. No prefácio de Fronteiras<strong>do</strong> <strong>Cinema</strong>, diz Jorge Ama<strong>do</strong>: “Não farei a Walterda Silveira a injustiça de chamá-lo de crítico decinema de tal maneira a expressão se tornou uminsulto, um nome feio. Estamos ante um ensaístade cinema, com estatura de historia<strong>do</strong>r de cinema– e o caminho da história da arte cinematográficacertamente será por ele palmilhada. Umgrande ensaísta de cinema pela seriedade <strong>do</strong>conhecimento, pela decência de sua posição feitade amor, pela criação <strong>do</strong> homem no plano dacinematografia, por seu livre pensamento, pelaintransigência de seus pontos de vista que são, aomesmo tempo, resulta<strong>do</strong> de uma visão maleávele flexível, conten<strong>do</strong> uma realidade de experiênciavivida (‘a crítica que não refletir essas vivências dedesespero’ – escreve ele sobre o drama <strong>do</strong> cinema –arrisca-se a parcial e injusta’)”.Pelo muito que Walter da Silveira estu<strong>do</strong>u, viu,contemplou, degustou e usufruiu <strong>do</strong> prazerestético-cinematográfico, pode dizer-se que poucodeixou em termos de bibliografia sobre sua artepredileta. A maior parte de seus escritos encontrase,entretanto, espalhada pelos jornais baianos nosquais colaborava com relativa intensidade, enquantonão se encontrava, como advoga<strong>do</strong> trabalhista,atuan<strong>do</strong> em defesa <strong>do</strong>s pobres e oprimi<strong>do</strong>s. Assim,este dublê de advoga<strong>do</strong> e ensaísta de arte, paide prole numerosa, bastante devota<strong>do</strong> à família,havia de des<strong>do</strong>brar-se para, nos intervalos das lidesjudiciais, refletir sobre a natureza da arte <strong>do</strong> filme,sobre o específico cinemático.É de Paulo Emílio Salles Gomes o trecho aquitranscrito (6): “Na conjuntura salva<strong>do</strong>riana, aexpressão <strong>Cinema</strong> <strong>Baiano</strong> é ampla e envolve,num só movimento, cultura, crítica e produçãocinematográfica. Essa situação dá aos acontecimentosda Bahia uma singularidade que provoca o interesse,conquista a cumplicidade e acaba mergulhan<strong>do</strong> oobserva<strong>do</strong>r numa tensa esperança. No quadro geral<strong>do</strong> grande cinema brasileiro, que, certamente, iráeclodir na década em que vivemos, a participaçãobaiana será eminente, e os estudiosos irão umdia pesquisar o seu nascimento. Ficará então,definitivamente registra<strong>do</strong> o papel histórico <strong>do</strong>pensamento e da ação de Walter da Silveira.”Paulo Emílio escreve em 1962, é bom que se note,quan<strong>do</strong> aqui, em Salva<strong>do</strong>r, acontece o Ciclo <strong>Baiano</strong>,quan<strong>do</strong> a efervescência cria<strong>do</strong>ra toma conta de várioscineastas que se aventuram na conquista das imagensem movimento. E não somente no cinema comonas outras artes – a Escola de Teatro, com MartimGonçalves à frente, Lina Bo Bardi convidada paraagitar o Museu de Arte Moderna etc. Do ciclo surgemnomes como Rex Schindler (um <strong>do</strong>s responsáveispela eclosão <strong>do</strong> ciclo, pois é o produtor, aquele queinveste recursos num filme), Roberto Pires (diretorde Redenção, A Grande Feira e Tocaia no Asfalto).Oscar Santana (O Caipora), Olney São Paulo (O Gritoda Terra), Palma Neto (Sol Sobre a Lama), DavidSinger, Braga Neto e muitos, muitos outros. Sem falarem Glauber Rocha, o revolucionário metteur-enscènede Deus e o Diabo na Terra <strong>do</strong> Sol. Walter daSilveira, neste cenário cultural, tem uma importância


fundamental, como bem demonstram as palavrasde Paulo Emílio no mesmo artigo cita<strong>do</strong> : “Quantomais o conheço, mais gosto dele. Comparei-o umdia, numa alusão improvisada, a Francisco Luiz deAlmeida Salles, Paulo Fontoura Gastal e Jacques <strong>do</strong>Pra<strong>do</strong> Brandão.”“Vejo cada vez com maior nitidez a semelhança dafunção social e intelectual exercidas pelo baiano,pelo paulista, pelo gaúcho e pelo mineiro. Nenhumé membro da corporação cinematográfica, mas, emsuas vidas, cinema não é passatempo.A ele já dedicaram 10, 15 ou 20 anos de contínuaspreocupações. Porém, não são maníacos. Em seusuniversos artísticos, intelectuais e sociais, o cinemaé parte integrada a um to<strong>do</strong> maior <strong>do</strong> romance,pintura, poesia, música, ciência e sociologia, ondepulsam os dramas das classes, da nação e <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.”E ainda Paulo Emílio no mesmo artigo: “Para Walterda Silveira, Almeida Salles, P.F. Gastal ou Jacques<strong>do</strong> Pra<strong>do</strong> Brandão, a ação cinematográfica nãoé, finalmente, compensação psicológica para amediocridade <strong>do</strong> existir. São to<strong>do</strong>s homens realiza<strong>do</strong>sprofissionalmente, intelectualmente, socialmente,cerca<strong>do</strong>s de prestígio em suas comunidades.Dão muito mais ao cinema <strong>do</strong> que este lhes dá.”O Grito da Terra,196435panorama <strong>do</strong> cinema baiano


os jovens entusiastas37Abrigo Nuclear,1981EFERVESCÊNCIA CULTURALNos anos 1950, a cidade de Salva<strong>do</strong>r efervesceculturalmente, sacudin<strong>do</strong> a Velha Bahia com espetáculosrenova<strong>do</strong>res, propostas de vanguarda. Noplano secundarista, o Colégio Estadual da Bahia (oCentral) oferece teatralizações de textos poéticos emavançadas concepções de mise-en-scène. É a Jogralesca,onde pontificavam as figuras de Glauber Rocha,Paulo Gil Soares, João Carlos Teixeira Gomes, CalazansNeto, Fernan<strong>do</strong> da Rocha Peres, entre outros,nomes que mais tarde viriam a se situar no panoramacultural com obras de destaque. Decisivo é o apoioda<strong>do</strong> pelo reitor Edgard Santos à Universidade daBahia, que chama personalidades importantes <strong>do</strong> sul<strong>do</strong> país para orientar, dirigir unidades universitárias afim de impulsionar as artes na Bahia. Assim, MartimGonçalves na Escola de Teatro faz projetar a cidadecomo forma<strong>do</strong>ra <strong>do</strong>s melhores talentos na área, funcionan<strong>do</strong>como um verdadeiro gera<strong>do</strong>r de diretorese intérpretes da mais alta categoria, com peças atéhoje rememoráveis pela audácia na concepção, peloprofissionalismo, pelo sopro renova<strong>do</strong>r. Poder-se-ia,inclusive, dizer que Martim Gonçalves forma umaverdadeira “escola” de teatro. Que ainda nos diasatuais dá mostras de sua passagem. Mas não somenteo teatro, mas a música, a dança etc. Na Faculdadede Direito, a revista Ângulos discute temas jurídicos efilosóficos da maior importância, a revelar talentos eescrevinha<strong>do</strong>res <strong>do</strong>s mais perspicazes (A.L. Macha<strong>do</strong>Neto, entre outros). Outra revista, esta diversificada,a Mapa, tem um apogeu e representa muito emtermos de contribuição cultural. E o cinema? Este sefaz nos princípios <strong>do</strong>s anos 50, com a continuidade <strong>do</strong>trabalho de Alexandre Robatto, Filho e o estímulo queo Clube de <strong>Cinema</strong> da Bahia proporciona, incentivan<strong>do</strong>seus frequenta<strong>do</strong>res à práxis cinemática.Durante o perío<strong>do</strong> de Hélio Macha<strong>do</strong> à frente da Prefeiturade Salva<strong>do</strong>r, uma turma de jovens se esforçapara realizar filmes e lança o slogan: “Você acreditaem cinema na Bahia?”. Aí, o verdadeiro voo de Ícaro.Muitas batalhas, muitos obstáculos, quase a desistência.Mas o pessoal não desiste, pessoal forma<strong>do</strong> porGlauber Rocha, Frederico Souza Castro, Nilton Rocha,José Telles de Magalhães etc, que, inflexível, decidefundar uma produtora, a Yemanjá, ou, mais precisamente,a Sociedade Cooperativa Yemanjá de ResponsabilidadeLimitada. O grupo, o que faz? Vende rifas,bate de porta em porta pedin<strong>do</strong> financiamento, oferecen<strong>do</strong>bilhetes a troco de alguns centavos, pedin<strong>do</strong>panorama <strong>do</strong> cinema baiano


38panorama <strong>do</strong> cinema baianoapoio da imprensa. José Telles de Magalhães e GlauberRocha invadem a Rádio Excelsior com um manifestopedin<strong>do</strong> ajuda à Prefeitura. É então que o líderda Câmara de Verea<strong>do</strong>res resolve atender a súplica eoferece Cr$ 50.000,00 (cinquenta mil cruzeiros antigos– antes da reforma monetária de 1967). O grupo,entretanto, se desentende e as disputas intestinasfazem com que se dissolva. Nada se realiza <strong>do</strong> pontode vista prático. Glauber, sozinho, resolve realizar umcurta e, com uma câmera de 35mm, manipulada pelofotógrafo José Ribamar de Almeida, o qual lhe dá dicaspreciosas sobre fotografia em cinema, realiza, em1959, O pátio, com as sobras <strong>do</strong>s negativos de Redenção.Os efeitos formais consegui<strong>do</strong>s não satisfazemo estreante: uma experiência fílmica com ritmo e aplástica da linguagem cinematográfica. Um casal burguês(Helena Ignez e Solon Barreto) sobe uma escada,abraça<strong>do</strong>, e, num pátio, obten<strong>do</strong> os efeitos plásticos<strong>do</strong> mosaico em cores, transcorre toda a película.Os namora<strong>do</strong>s, deita<strong>do</strong>s, fazem amor ali mesmo. Ela,rolan<strong>do</strong> pelo xadrez, plena de desejo, e ele, no ato<strong>do</strong> êxtase. Um acha<strong>do</strong> simbólico coroa a película: ela,descansan<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> momento catártico, atira um sapatilhaque vai cair dentro de outra. Ao término de 15minutos, o ator se afasta da companheira, embrenhasepor uns matos “e realiza um festival de espumas”.O pátio é apresenta<strong>do</strong> em março de 1959 no Clubede <strong>Cinema</strong> da Bahia.Outros curtas, no entanto, são roda<strong>do</strong>s em Salva<strong>do</strong>r,<strong>do</strong>cumentários com a tônica da preocupação social.Um <strong>do</strong>s mais famosos é Um dia na rampa, de LuizPaulino <strong>do</strong>s Santos (1956), que focaliza um dia de trabalhona rampa <strong>do</strong> Merca<strong>do</strong> Modelo (o antigo, antes<strong>do</strong> incêndio). Em Feira de Santana, Olney São Paulorealiza Um crime na rua, no mesmo ano (56), umahistória policial com “informação cultural”. RobertoPires experimenta nos curtas O sonho e Calcanharde Aquiles. E estrangeiros, ávi<strong>do</strong>s pelo décor natural,pela paisagem exuberante, filmam em Salva<strong>do</strong>rMaria Madalena, feito por um argentino e inspira<strong>do</strong>na vida de Cristo; Sob o céu da Bahia, Mulher defogo, o desconheci<strong>do</strong> Moema, que nunca chegou aser visto e narra a busca de uma jovem que, nadan<strong>do</strong>pela Baía de To<strong>do</strong>s os Santos, procura o ama<strong>do</strong>, quepartira numa embarcação.O segun<strong>do</strong> curta de Glauber Rocha, Cruz na Praça,nunca é monta<strong>do</strong>. Roda<strong>do</strong> em torno de uma cruzexistente na praça <strong>do</strong> Terreiro de Jesus, próxima àIgreja de São Francisco, é basea<strong>do</strong> num conto (A Retretana Praça) publica<strong>do</strong> por Glauber no <strong>Panorama</strong><strong>do</strong> Conto <strong>Baiano</strong>, lança<strong>do</strong> em 1959 por VasconcelosMaia e Nelson Araújo. Entre os atores, Luiz CarlosMaciel (que, na época, ensina na Escola de Teatro)e Anatólio Oliveira. O tema, ao que parece, gira emtorno <strong>do</strong> homossexualismo masculino.São de Glauber as seguintes palavras, publicadas emRevisão crítica <strong>do</strong> cinema brasileiro que retratam bemo panorama cultural da Bahia de então: “A tradiçãoliterária da Bahia é retórica. As novas gerações deescritores e artistas surgidas, inicialmente, em 1945,no grupo Caderno da Bahia, e, mais tarde em Ângulose Mapa, sempre foram violentamente combatidasao passa<strong>do</strong> de Castro Alves e Ruy Barbosa; contu<strong>do</strong>,o improviso, o romantismo e o discurso descritivocontinuam marcan<strong>do</strong>, e mal, a expressão artísticada Bahia. Jorge Ama<strong>do</strong>, carregan<strong>do</strong> a força ficcionalde seu contexto, é um escritor sem a disciplina que


caracteriza Graciliano Ramos e João Cabral de MelloNeto. Os melhores poetas modernos da Bahia, CarvalhoFilho, Jair Gramacho e Florisval<strong>do</strong> Mattos, sãoainda sensualistas em conflito com a razão; a mesmacircunstância-crise caracteriza a obra literária deNelson de Araújo, Luis Henrique, Flávio Costa, SadalaMaron, José Pedreira, Arioval<strong>do</strong> Mattos, VasconcelosMaia; a escultura de Mario Cravo e a pintura de JennerAugusto. Entre os mais jovens, geração de vinteanos, aconteceu o esquecimento inicial da temáticaanterior; aos ficcionistas surgi<strong>do</strong>s em Reunião (1961),Sônia Coutinho, João Ubal<strong>do</strong> Ribeiro, Noênio Spínolae David Salles, revelaram extremo <strong>do</strong>mínio da técnicae da linguagem, mas estavam, quase sempre, nopuro exercício artesanal. O teatro de Paulo Gil Soares,a gravura de Sante e as artes gráficas de Calazans Netto,presos à realidade, lutam também entre o sensualismoe a razão, como no caso <strong>do</strong>s poetas cita<strong>do</strong>s”.Assim Glauber, nesta sua revisão, nos primeiros anos<strong>do</strong>s esfuziantes 60, sente o clima cultural da Bahia.Esta luta permanente entre o sensualismo e a razão,que <strong>do</strong>mina, inclusive, os melhores cineastas <strong>do</strong> Ciclo<strong>Baiano</strong>, principalmente Rex Schindler, homem de milinstrumentos, acumulan<strong>do</strong> as funções de produtor,argumentista, roteirista etc. No panorama cinematográfico,Salva<strong>do</strong>r, além <strong>do</strong> Clube de <strong>Cinema</strong>, contacom alguns comentaristas que pontificam em jornais:José Augusto Berbert de Castro com seus comentáriosimpressionistas em A Tarde; Jerônimo Almeida,pseudônimo de José Gorender no Jornal da Bahia,que sucede, mais ou menos em 65, a Fausto Ferreira,pseudônimo de Orlan<strong>do</strong> Senna, o qual, por suavez, sucede a Glauber Rocha, que pontifica na críticacinematográfica por quatro ou cinco anos: de 1958a 1962; Hamilton Correia é o titular da coluna decinema <strong>do</strong> Diário de Notícias, jornal que conta comum Suplemento Literário aos <strong>do</strong>mingos, cuja páginade cinema editada por Correia, é, no entanto, controladapor Walter da Silveira. Uma página inteira, ondecolaboram com críticas Caetano Veloso, Alberto Silva,entre outros. Outros nomes que exercem, bissextamente,a crítica na Bahia: Geral<strong>do</strong> Portela, LázaroTorres, Jamil Bagded, José Telles de Magalhães.A importância <strong>do</strong>s suplementos literários não somentese configura na Bahia, mas em to<strong>do</strong> Brasil. Famosossão os suplementos de O Esta<strong>do</strong> de São Paulo,com Paulo Emílio Salles Gomes falan<strong>do</strong> de cinema, o<strong>do</strong> Jornal <strong>do</strong> Brasil, que Glauber começa a colaborardan<strong>do</strong> o ponto de partida ao <strong>Cinema</strong> Novo, a proclamaruma nova era para a cinematografia nacional.Mas como diz Glauber no seu cita<strong>do</strong> livro, “A Bahia é– na síntese – o barroco português, o misticismo eróticoda África, e a tragédia despojada <strong>do</strong>s sertões: suaexpressão artística, até então inferior às expressõesde Minas e Pernambuco, tende, para muito ce<strong>do</strong>, ainserir uma corrente nova nas artes brasileiras. Osque primeiro compreenderam este clima complexoe rico foram Martim Gonçalves e Lina Bo Bardi, que,em quatro anos, instalaram raízes significativas noambiente cultural da província. O exercício <strong>do</strong> estu<strong>do</strong>social – que tem em A.L. Macha<strong>do</strong> Neto e CarlosNelson Coutinho os melhores exemplos – será outrofator a contribuir no processo”.39panorama <strong>do</strong> cinema baiano


Redenção,1959redenção,de Roberto PiresPRIMEIRO LONGA-METRAGEMA história de Redenção começa em 1957. RobertoPires, cineasta ama<strong>do</strong>r, que já tinha incursiona<strong>do</strong> porexperiências em fitas 8mm e 16mm, trabalhan<strong>do</strong> naótica de seu pai, e fanático por cinema, resolve construiruma lente anamórfica, como o processo cinemascope.Roberto decide então escrever um roteiroinspira<strong>do</strong> no modelo <strong>do</strong> thriller americano, <strong>do</strong> qualo cineasta se sente bastante atraí<strong>do</strong>. Com o amigoOscar Santana, elabora a decupagem e as filmagenscomeçam, a princípio em fins de semana, e váriasvezes são interrompidas. Falta dinheiro. Até queentra na produção, vin<strong>do</strong> de Ilhéus, Élio Moreno deLima, que dá injeção para que as filmagens possamprosseguir. Roberto, Oscar, Helio Silva na fotografia,Braga Neto e Élio então partem decidi<strong>do</strong>s a concluiro filme de qualquer maneira. Dois anos de trabalho,de 1957 a 1959, quan<strong>do</strong> o grupo consegue finalizarRedenção e apresentá-lo, em avant-première de gala,to<strong>do</strong>s os presentes em black-tie, no cine Guarany, nodia 6 de março de 1959, data histórica. Um longametragemfeito na Bahia? Muita gente não acreditava.Mas Redenção tornou-se uma realidade e sesitua desde então como obra pioneira, muito emboraa sua construção artesanal revelasse ama<strong>do</strong>rismo, comum argumento diluí<strong>do</strong>, falho, com um ritmo desigual.Ficou, entretanto, a força de vontade de construir enarrar um filme, to<strong>do</strong> feito com recursos da terra. Asimples exposição cinematográfica, o fluir fotogramático,já tornava a empreitada num resulta<strong>do</strong> delirante.Era a semente lançada, obra pioneira, ponto de partidapara o surgimento <strong>do</strong> chama<strong>do</strong> Ciclo <strong>Baiano</strong>, muitoembora Redenção ainda não possuísse as característicasda Escola Baiana de <strong>Cinema</strong>, com sua preocupação<strong>do</strong>minante de enfoque da realidade, da problemáticasocial sob um prisma baianizante. Redenção é, a rigor,um mero thriller sem substância conteudística, comum fio condutor tênue, a explorar, aqui e ali, algumaspaisagens <strong>do</strong> décor natural soteropolitano. Como dizWalter da Silveira no Diário de Notícias, logo depois deRedenção ser apresenta<strong>do</strong> ao público baiano: “Pode-sedescobrir em Redenção mais defeitos <strong>do</strong> que qualidades,mais inocência <strong>do</strong> que lucidez. Mas, quem negaráque, na história <strong>do</strong> cinema brasileiro, ele ingressacomo o primeiro filme baiano? Pode-se afirmar que,haven<strong>do</strong> dura<strong>do</strong> três anos de trabalho, Redençãodeveria apresentar uma exatidão técnica maior, umadesigualdade formal menor’’.41panorama <strong>do</strong> cinema baiano


42panorama <strong>do</strong> cinema baianoMas, quem contestará que, não fora a perseverança<strong>do</strong>s seus jovens realiza<strong>do</strong>res, jamais chegaria ao fim atarefa de produzi-lo, sem equipamento e sem experiênciaanterior?A câmera é de Oscar Santana e a iluminação, <strong>do</strong> já veteranoHelio Silva. No elenco, Geral<strong>do</strong> D´El Rey, BragaNeto, Maria Caldas, Fred Júnior, Milton Gaúcho, CostaJúnior, Leonor Barros, Raimun<strong>do</strong> Andrade, Jorge Cravo,Normand Moura, Kiaus Kiaus, Jackson Lemos, JoséMelo, Orlan<strong>do</strong> Rego, Cléo Meireles, Alberto Barreto eoutros.O pioneirismo de Roberto Pires vem a desembocarna efervescência cinematográfica. Um pioneirismoregistra<strong>do</strong> por Glauber Rocha de maneira enfática,quan<strong>do</strong> diz: “Quem inventou o cinema na Bahia foiRoberto Pires. Acredito que teria inventa<strong>do</strong> as máquinasde filmar se, por acaso, aos onze anos de idade,não lhe chegasse às mãos um deficiente aparelho de16mm, com o qual filmou O sonho. Liga<strong>do</strong> a OscarSantana, Roberto Pires faz o <strong>do</strong>cumentário Bahia –e sonoro, porque inventou o grava<strong>do</strong>r; da mesmaforma colocaria legendas em O calcanhar de Aquiles.Resolven<strong>do</strong>-se, aos vinte anos, a fazer Redenção, emcinemascope, construiu a lente especial em seis mesesde pesquisa e trabalho exaustivos. Neste episódio,financia<strong>do</strong> por Élio Moreno Lima, entra a terceirapeça, Braga Netto, que se associou definitivamente aRex Schindler na atual Polígono Filmes”.ROBERTO PIRESCineasta e InventorRedenção, sobre ser uma obra de pioneiro, dedesbrava<strong>do</strong>r, tem uma singular importância para aeclosão <strong>do</strong> Ciclo <strong>Baiano</strong> de <strong>Cinema</strong>. O filme é umexemplo, uma espécie de prova da possibilidade daexistência de um cinema nestas plagas. Quem viua avant-première, no cine Guarany, em 1959, nãoesquece o entusiasmo de to<strong>do</strong>s. É ven<strong>do</strong> Redençãoque Glauber Rocha sente que, de fato, seria possívelse desenvolver, aqui, uma indústria cinematográfica.Encontran<strong>do</strong>, por acaso, Rex Schindler, no escritóriode Leão Rosemberg, Glauber inicia uma amizade comRex que vem a resultar no projeto <strong>do</strong> cinema baiano.Redenção, no entanto, não pode ser incluso dentro<strong>do</strong>s postula<strong>do</strong>s cinemanovistas, pois um thriller,um policial com acentos ama<strong>do</strong>rísticos. Mas,como acontece com a projeção em 1895 – data <strong>do</strong>nascimento <strong>do</strong> cinema – da chegada <strong>do</strong> trem <strong>do</strong>sIrmãos Lumière, apenas o fato de se ver, na tela,imagens de pessoas participan<strong>do</strong> de uma história emmovimento, Redenção se torna uma lenda. O orgulhoé imenso, e, naquela época, aquele que participa,numa pontinha, <strong>do</strong> filme de Roberto Pires, fazquestão de dizer: “Eu trabalhei em Redenção”.Quan<strong>do</strong> se pensou estarem as latas <strong>do</strong>s negativosde Redenção completamente destruídas, o filhode Roberto Pires, Petrus, é avisa<strong>do</strong> por um antigoexibi<strong>do</strong>r pernambucano da existência de uma cópia<strong>do</strong> filme em 16mm. E após muita luta e perseverança,Redenção, afinal, é restaura<strong>do</strong>, fotograma por


fotograma, e apresenta<strong>do</strong> em sessão especial noEspaço Unibanco Glauber Rocha em junho de 2010.Rex Schindler e Braga Neto, após o êxito de bilheteria<strong>do</strong> filme estreante de Pires, resolvem bancarBarravento, de Glauber Rocha, dan<strong>do</strong> início ao quese chama a Escola Baiana de <strong>Cinema</strong>. Glauber, críticode cinema <strong>do</strong> então recém-funda<strong>do</strong> Jornal da Bahia,entra no meio das filmagens de Barravento, dan<strong>do</strong>um golpe que afasta o seu diretor Luis Paulino <strong>do</strong>sSantos, e remodela o roteiro, idealizan<strong>do</strong>-o à suaimagem e semelhança. Schindler, Glauber, BragaNeto e outros têm um projeto para a instalação deuma indústria de filmes – Glauber como mentorintelectual da turma. Dá-se início às filmagens de AGrande Feira (1961), com argumento de Rex, roteirodeste e de Pires e com direção <strong>do</strong> último. A artesania,que Pires demonstra na construção da mise-enscène,habilita-o como cineasta neste drama sobre aFeira de Água de Meninos com acentos cordelísticose brechtinianos. Sucesso estron<strong>do</strong>so em Salva<strong>do</strong>r,anima os produtores a partir para Tocaia no Asfalto(1962), que seria dirigi<strong>do</strong> – segun<strong>do</strong> o esquemade rodízio estipula<strong>do</strong> – por Glauber, mas este, jádetonan<strong>do</strong> o <strong>Cinema</strong> Novo no SDJB – o célebreSuplemento Dominical <strong>do</strong> Jornal <strong>do</strong> Brasil edita<strong>do</strong> porReynal<strong>do</strong> Jardim – e preparan<strong>do</strong>, no Rio, a produçãode Deus e o Diabo na Terra <strong>do</strong> Sol, indica RobertoPires. Tocaia no Asfalto tem um tema atual, pois tratada corrupção, da tentativa de se instalar uma CPI afim de apurá-la entre os políticos e <strong>do</strong> pistoleirismo.A sua estrutura narrativa é de um thriller, bemao gosto de seu diretor, e há momentos de purocinema: a perseguição de Agil<strong>do</strong> Ribeiro, o pistoleiro,para matar um político no interior da Igreja de SãoFrancisco, e o tiroteio no cemitério <strong>do</strong> Campo Santo.O que se denomina de Escola Baiana de <strong>Cinema</strong>se restringe aos filmes idealiza<strong>do</strong>s pelo grupo deRex, Glauber, Pires e Braga Neto e David Singer –Barravento, A Grande Feira, Tocaia no Asfalto, mas,nesta época, de imenso burburinho, a Bahia vive ocinema, com produtores <strong>do</strong> sul e até <strong>do</strong> estrangeiro(O Santo Módico, de Jacques Viot), além de outrosbaianos, que conseguem se estabelecer comproduções de outras empresas – como a WinstonCarvalho que banca O Caipora, de Oscar Santana;como a Tapira, de Palma Netto, que tenta dar umaresposta ao problema feirante através de um outrofilme, Sol Sobre a Lama, que é dirigi<strong>do</strong> pelo cariocaAlex Viany, mas produção genuinamente baiana;como Ciro de Carvalho Leite, que financia O Grito daTerra, de Olney São Paulo, em Feira de Santana. OCiclo <strong>Baiano</strong> de <strong>Cinema</strong> reúne to<strong>do</strong>s os filmes que sãorealiza<strong>do</strong>s na Bahia entre 1959 e 1963, inclusive os daEscola Baiana.Roberto Pires é muito liga<strong>do</strong> à Iglu Filmes – quetem este nome por causa de um bar na Praça daSé, onde os cineastas costumam se reunir. Faz-se,neste perío<strong>do</strong>, até atualidades como A Bahia na Tela,um cine-jornal cuja estampa é o cartão postal <strong>do</strong>Eleva<strong>do</strong>r Lacerda.Pires tem um senti<strong>do</strong>, diga-se assim, intuitivo daconstrução de uma mise-en-scène, tem, aliás,como poucos brasileiros, um faro excepcional para43panorama <strong>do</strong> cinema baiano


44panorama <strong>do</strong> cinema baianotrabalhar com o específico fílmico, com a linguagemcinematográfica. Se Redenção é um rascunho, AGrande Feira e Tocaia no Asfalto são exemplossignificativos da artesania <strong>do</strong> cineasta, de suaposta-em-cena. Ainda que seguin<strong>do</strong> os cânonesde uma estrutura narrativa clássica – e, de certaforma, acadêmica, Pires possui o que muitos nãotêm: o engenho e a arte de saber se articular pormeio de elementos puramente cinematográficos.Seus melhores filmes (Feira, Tocaia) mostram umrealiza<strong>do</strong>r em plena consciência de seu ofício. Mas éum cineasta que precisa <strong>do</strong> apoio de um argumentoe de um roteiro sóli<strong>do</strong>s. É, nesse ponto, mais umexecutor <strong>do</strong> que um autor, um artesão que sabe, commaestria, desenvolver um argumento alheio. E deartesãos como Pires é que o cinema brasileiro precisapara conquistar o merca<strong>do</strong>, envolver o público,cativar o cinéfilo.Com a derrocada <strong>do</strong> Ciclo <strong>Baiano</strong> de <strong>Cinema</strong> – porconta <strong>do</strong> velho problema de distribuição –, Pires vaitentar a vida no Rio de Janeiro e realiza, em 1963,Crime no Sacopã, filme que, desapareci<strong>do</strong>, precisa,urgentemente, de uma revisão. Montan<strong>do</strong> filmesalheios para sustentar a família, enquanto aguardao próximo longa, o cineasta, em 1967, realiza umpolicial na medida certa <strong>do</strong> seu talento: A Máscara daTraição, com Tarcísio Meira, Glória Menezes e CláudioMarzo, então atores globais em alta. O filme conta aexecução de um grande assalto aos cofres <strong>do</strong> estádio<strong>do</strong> Maracanã em dia de jogo decisivo.Convida<strong>do</strong> por produtor americano para realizarum thriller à brasileira, recusa o convite e indicaAlberto Pieralisi, que dirige Missão Matar, comTarcísio Meira na pele de um James Bond <strong>do</strong>strópicos. Uma experiência em 16mm, para posteriorampliação em 35mm e exibição nos cinemas, é umfracasso em 1970: Em Busca <strong>do</strong> Su$exo, com CláudioMarzo, Eulina Rosa, Sílvio Lamenha. Filma<strong>do</strong> no Rio,aproveita atores globais, mas não se vê, neste filme,o metteur-en-scène tão proclama<strong>do</strong>. A seguir umostracismo de dez anos até que arranja produção,monta um estúdio na Boca <strong>do</strong> Rio e se aplica numascience-fiction: Abrigo Nuclear. Para dar certo, noentanto, precisaria de uma infraestrutura que Piresnão consegue arranjar. O resulta<strong>do</strong> é outro fracasso.Anos depois, faz, em Goiânia e Brasília, um filmesobre o acidente <strong>do</strong> césio, que recebe elogios, masnão consegue a circulação merecida.Assistente de Glauber Rocha em A Idade da Terra,participa também de Di Cavalcanti. O seu grandemomento, todavia, se encontra nos anos 60.Esperava-se, de Pires, um nova longa: Nasce o Sol a 2de Julho, cujo argumento é de Rex Schindler.O maior cineasta baiano, Roberto Pires. Claro,há Glauber Rocha, mas este é universal e não secompara. Separa-se.Pires morre por causa de um câncer contraí<strong>do</strong>durante as filmagens <strong>do</strong> filme sobre o césio. Tinhajá da<strong>do</strong> início a alguns planos de Nasce o Sol a2 de Julho, que Schindler sonha em completar,mas, porque filme de época, tem orçamento alto,tornan<strong>do</strong>-se, assim, inexequível e inviável.


ciclo baiano de cinemaNesta época, 1959, princípios <strong>do</strong>s anos 60, décadarenova<strong>do</strong>ra, como se encontra o cinema brasileiro?Vive-se a época desenvolvimentista com JuscelinoKubitschek à frente da Presidência da República.Respira-se a democracia. O cinema nacional é a chanchadacom Oscarito, Ankito, Grande Otelo, RenataFronzi etc, poucos filmes mais engaja<strong>do</strong>s ou atuantes.A chanchada dá lucro ao cinema brasileiro, os exibi<strong>do</strong>res,sem lei de obrigatoriedade, fazem questãode exibi-la. Os críticos, entretanto, destratam-nas,julgan<strong>do</strong> as fitas como “ligeiras”, destituídas “de arte”.Até mesmo o próprio vocábulo, chanchada, assumesenti<strong>do</strong> pejorativo. Nos anos 50, o cinema <strong>do</strong> Brasildesponta no cenário internacional com O cangaceiro(1953), de Lima Barreto, nordestern, na feliz expressãode Salvyano Cavalcanti de Paiva. Em São Paulo,industriais pretendem criar, em São Bernar<strong>do</strong> <strong>do</strong>Campo, uma mini-Hollywood, com a Vera Cruz, produzin<strong>do</strong>filmes intimistas, requinta<strong>do</strong>s na aparência,mas profundamente influencia<strong>do</strong>s pelo cinema europeu(Floradas na serra, Sinhá Moça, Uma pulga nabalança, Simão, o caolho...). A Vera Cruz não dá certo,talvez porque o Brasil não possuísse um sistema dedistribuição eficiente, estan<strong>do</strong> seu merca<strong>do</strong> <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>pelas companhias americanas. Procura-se, então,uma linguagem brasileira para o cinema brasileiro. Osfilmes da Vera Cruz “falam” uma linguagem europeiae mesmo O Cangaceiro, apesar de seu tema, de suagente, <strong>do</strong> cangaço bem brasileiro, tem estruturalmenteuma narrativa calcada na tradição <strong>do</strong> western americano.E esta procura da “brasilidade” que determinaNelson Pereira <strong>do</strong>s Santos, influencia<strong>do</strong> pelo exemploneorrealista italiano, a, em 1954, realizar Rio quarentagraus, um filme, afinal, com uma linguagem maispróxima <strong>do</strong> povo, de seus anseios. É um retrato maisacerta<strong>do</strong>. Humano e sincero. Há, também, o exemplo<strong>do</strong> veterano Humberto Mauro, que, embrenha<strong>do</strong> emCataguazes, interior de Minas, consegue, nos anos20, se exprimir cinematograficamente captan<strong>do</strong> apaisagem e o sentimento brasileiros. Outro filme quefala desta brasilidade é O grande momento (58), deRoberto Santos, paulista, com um sentimento bemneorrealista. Estas películas são, por assim dizer, assementes, que germinariam no movimento cinemanovista.Redenção, entretanto, segue outro esquema,outra preocupação.A obra de arte em função da cultura local, o registroda baianidade numa perspectiva de imprimir nocelulóide o “espírito de brasilidade”, via Bahia, sua45panorama <strong>do</strong> cinema baiano


A Grande Feira,1961terra e seu povo. Assim, a chamada Escola Baiana de<strong>Cinema</strong>, cujas diretrizes são traçadas por Glauber Rocha,Roberto Pires (diretor e roteirista), Rex Schindler(argumentista e produtor), Braga Netto, Oscar Santana,entre outros, sen<strong>do</strong> que a programação culturalse localiza mais nos três primeiros, principalmenteGlauber, deflagra<strong>do</strong>r <strong>do</strong> próprio cinema novo, que secaracteriza por essa busca da realidade social, ten<strong>do</strong>influência marcante <strong>do</strong> neorrealismo.Para se fazer cinema há necessidade de dinheiro, e apresença de Rex Schindler como produtor é de fundamentalimportância na eclosão <strong>do</strong> cinema baiano.Rex, médico, escritor, pintor diletante, homem denegócios, <strong>do</strong>no de loteamentos, fascina<strong>do</strong> pela culturabaiana, resolve financiar os filmes baianos, ten<strong>do</strong>participação não somente como o “homem <strong>do</strong> dinheiro”,mas uma influência marcante, pois autor deargumentos e, ao invés de preocupa<strong>do</strong> com o retorno<strong>do</strong> capital tão-somente, investe e dá margem à criatividade.Como diz Paulo Emílio no “Suplemento <strong>do</strong>Literário <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> de São Paulo”, em 24 de março de1962: “Esse nome cosmopolita de produtor internacionalé o de um baiano completo no espírito, na falae na cara. Completo e extraordinariamente completo.Será necessário um dia, conforme declara ao própriointeressa<strong>do</strong>, um pouco inquieto, proceder à análiseespectral de Rex Schindler. A posição central que ocupanos acontecimentos fará com que suas qualidades,contradições e eventuais defeitos, assumam umrelevo de conseqüências defini<strong>do</strong>ras para o cinemada Bahia (...). É bastante saborosa a íntima associaçãoque se estabeleceu entre esse liberal cético e no fun<strong>do</strong>bastante conserva<strong>do</strong>r e jovens devora<strong>do</strong>res peloar<strong>do</strong>r revolucionário”.Segun<strong>do</strong> Rex, o movimento cultural desencadea<strong>do</strong>durante o reina<strong>do</strong> de Edgard Santos à frente daReitoria da Universidade da Bahia, com a criação dasescolas de Teatro, Música e Dança, atinge as artes deum mo<strong>do</strong> geral. Há, portanto, uma atmosfera propíciaao desenvolvimento artístico. Poder-se-ia dizer, emresumo, que a eclosão <strong>do</strong> Ciclo <strong>Baiano</strong> se deve aosseguintes fatores:1) A presença de Rex Schindler como produtor eincentiva<strong>do</strong>r, possibilitan<strong>do</strong>, com o capital, a feiturade longas.2) O incentivo <strong>do</strong> reitor Edgard Santos promoven<strong>do</strong>as artes da Universidade da Bahia.3) A liderança de Walter da Silveira no Clube de <strong>Cinema</strong>da Bahia.4) A tempestuosa influência de Glauber Rocha, artistacria<strong>do</strong>r e líder.5) O movimento cultural efervescente da Bahia deentão, no Teatro, na Literatura, nas Artes Plásticas.47panorama <strong>do</strong> cinema baiano


Barravento,1959Acervo <strong>Cinema</strong>tecaBrasileirabarravento, can<strong>do</strong>mblée misticismoQuan<strong>do</strong> entra Glauber Rocha na históriaAs filmagens de Barravento, cujo argumento é de LuizPaulino <strong>do</strong>s Santos, começam em 1959 sob direçãodeste e produção de Rex Schindler e Iglu Filmes.Glauber funciona, a princípio, como produtor executivo.Este, que iria se tornar o primeiro longa <strong>do</strong> autorde Deus e o Diabo na Terra <strong>do</strong> Sol, tem como diretorLuiz Paulino <strong>do</strong>s Santos, o qual, enamora<strong>do</strong> de umabela garota, e aproveitan<strong>do</strong>-a também como atriz, fazcom que as filmagens, em Buraquinho, andem bastantedevagar. Segun<strong>do</strong> conta Oscar Santana, Glauberjá sabe que, mais ce<strong>do</strong> ou mais tarde, assumiriao coman<strong>do</strong>, pois está ciente, desde o começo, queLuiz Paulino “excessivamente enamora<strong>do</strong> estava maispreocupa<strong>do</strong> com a amada <strong>do</strong> que com o filme”. Umbelo dia, com a equipe desgastada com o atraso dasfilmagens, Glauber “dá o golpe” e assume a direçãode Barravento, com o apoio logístico <strong>do</strong>s produtores,inclusive Rex Schindler. É interessante conhecer ahistória de Barravento segun<strong>do</strong> as palavras <strong>do</strong> próprioGlauber Rocha: “Larguei o jornal pra produzirBarravento. Rex e a Iglu me passaram algum dinheiro.Fiquei colaboran<strong>do</strong> no Suplemento Literário. Começamosa procurar atores. Paulino descobriu LuizaMaranhão que estava com Zé Kéti fazen<strong>do</strong> showspelo norte. Fui com Roberto pra contratar em SãoPaulo o fotógrafo Tony Rabatony e ajudar no lançamentode Redenção na Bahia. Redigi um panfletopublicitário insolente que foi distribuí<strong>do</strong> ao públicona Cinelândia e mereceu desagravos de Pedro Lima eLuiz Alípio de Barros nas colunas especializadas. ComLuiza Maranhão, Lídio Silva, Antonio Pitanga, Al<strong>do</strong>Teixeira, Lucy Carvalho, Carlos da Silva, João Gama eoutros negros o filme começava. A índia Flora está noelenco e era continuísta. José Telles de Magalhães,diretor de produção. Eu, produtor executivo. Roberto,Rex, Braga, Elio e Oscar produtores. Mas foi Robertoe Rex que botaram o filme para rodar. Eu controlavato<strong>do</strong>s os setores econômicos, técnicos e artísticos.Importei de Belo Horizonte <strong>do</strong>is assistentes estagiários,Flávio Pinto Vieira e Schubert Magalhães. Queriasatisfazer os desejos <strong>do</strong>s jovens cineastas mineirospromoven<strong>do</strong> encontros culturais interprovincianosque seriam úteis na fixação dum núcleo produtivoem Minas. Descobri Al<strong>do</strong> Teixeira pro papel de Aruan.Clo<strong>do</strong>al<strong>do</strong> Teixeira da Guarda era solda<strong>do</strong> daPolícia Estadual. Um Cosme e Damião. Da Escola deTeatro entrou Alair Luguori. Paulino locou o filme napraia de Buraquinho, além de Itapoan (…) Alugamostrês casas de pesca<strong>do</strong>res em Itapoan e a equipe searranchou. Waldemar Lima era assistente de Tony49panorama <strong>do</strong> cinema baiano


50panorama <strong>do</strong> cinema baianoRabatony e Álvaro Guimarães, assistente de direção.Tínhamos um caminhão pra transportar o materiale a equipe e mais um jipe e um carro de produção.Elio Moreno Lima controlava o dinheiro e a comida.(…) Nos três primeiros dias não fui pra filmagem a fimde que minha presença não perturbasse Paulino. Noquarto, Telles veio dizer que Paulino e Sônia estavamfoden<strong>do</strong> o filme. Que Sônia bancava de vedete. QueTony e Paulino não se entendiam. Que os assistentesmineiros conspiravam contra mim. Que Paulinoia vender a produção a Gibault, produtor executivode Sacha Gordine que produzia O santo módico naBahia. Alvinho completou informações. Um complô<strong>do</strong>s mineiros com Sônia, Paulino, Tony Rabatony nomeio. Barravento. O filme parou. Roberto Pires, Rex,Braga, Elio, Oscar demandaram expulsão de Sônia.Executei. Paulino reagiu. Nomeei Telles diretor. Tellesnão aceitou. Propus convidar Roberto Santos, RobertoFarias, Roberto Pires recusou e me pressionou praaceitar. Paguei cem contos a Paulino pelo roteiro. Elepensara em me dar um tiro. Roberto Pires e BragaNeto descobriram Lucy Carvalho pra interpretar Nayna.Eu assumia a direção, mas Helena Ignez não subiaao estrelato. Derrubamos Paulino e Sônia mas eu nãoexporia Helena a uma crítica pública. Preservei suadignidade. Estaria sen<strong>do</strong> sórdi<strong>do</strong>? Alguns acusavammede haver deposto Paulino. Mas foi Paulino quemse depôs. Fiz tu<strong>do</strong> para que ele continuasse mas ele,mesmo ten<strong>do</strong> sacrifica<strong>do</strong> Sônia, não podia continuaro filme sem ela. Estava arrasa<strong>do</strong>. Sônia o exilara.Xingou-me na praia. Mas eu não deixaria o barcoafundar. A jangada atravessaria as ondas mesmo solitária.Perdi o amigo, ganhei o filme. No final perderiaHelena. Com a queda de Paulino abri o roteiro e acheiuma merda. Parti para reescrever na câmera escurada Iglu e Rabatony começou a pedir a planta baixa.Em quase duas semanas refiz o roteiro, diálogos edecupagem ajuda<strong>do</strong> por Telles. Aproveitei algunscopiões de Paulino, cortan<strong>do</strong> Sônia. Alguns esplen<strong>do</strong>resde Pitanga com Sônia na praia. O filme cheiravafresco. Antonionesco. Esteticista. Sublimação de umamor Paulino Pitanga por Sônia Yemanjá apaixonadapor um pesca<strong>do</strong>r. Último samba-de-roda na Bahia.Transformei Nayna numa marginal branca alienadapelo can<strong>do</strong>mblé, uma mãe afogada e um pai cego,apaixonada por um pesca<strong>do</strong>r virgem filho de Yemanjácritica<strong>do</strong> por um negro subversivo que esculhambavaa submissão <strong>do</strong>s pesca<strong>do</strong>res ao can<strong>do</strong>mblé e <strong>do</strong> mestreLídio Silva ao <strong>do</strong>no da rede. Firmino rasga a redeque os pesca<strong>do</strong>res costuram pra continuar a pescaria.A polícia vem buscar a rede. Famintos, os pesca<strong>do</strong>restêm barravento pra pescar. Aruan se arriscaria, se nãofosse encanta<strong>do</strong>. Firmino o desmistificaria através derituais de sexo e violência. Firmino sobe. Nayna vaipra camarinha. O Mestre perde Aruan, que vai paraa cidade, em busca de superar a fome por uma redenova, e voltar pra libertar Nayna <strong>do</strong> castelo macumbeiro”.Esta narrativa glauberiana é bastante elucidativa parase compreender a gênese de Barravento. Luiz Paulinotem uma visão romântica, se tivesse completa<strong>do</strong> ofilme, o resulta<strong>do</strong>, logicamente, seria outro. ComoGlauber ressalta no texto supra: uma visão “antonionesca,esteticista”. Glauber aplica Eisenstein, aconcepção de montagem dialética, tenta fazer uma


obra revolucionária, contra o can<strong>do</strong>mblé, acusan<strong>do</strong>o misticismo como um fator de atraso, de alienação,postura que Glauber revisaria no final da trajetória(e que Nelson Pereira <strong>do</strong>s Santos em O amuleto deOgum desmistifica ao respeitar as crendices populares).Mas voltan<strong>do</strong> a Glauber e ao mesmo texto, parafinalizar o affair Barravento: “Tinha seis mil metrosde negativo preto e branco, uma velha Arry-Flex comchassis de 60 metros, sem zoom. Um tripé, algunspraticáveis, velhos rebate<strong>do</strong>res, sem roupas prosatores seminus. Sem maquilagem e sem guia. Muitasvezes sem claquete. Sozinho em Buraquinho semanasa fio e Helena em Salva<strong>do</strong>r. Excluída <strong>do</strong> ritual criativo.Sentia-me infeliz e amargura<strong>do</strong> com os conflitosde Paulino e as fofocas histéricas da equipe. Brigasgerais. Grilo com Alvinho. Expulso. Delírio. Larguei oroteiro e me aventurava em materializações arbitrárias.Reorganizava a mitologia negra segun<strong>do</strong> umadialética religião/economia. Religião opium <strong>do</strong> povo.Abaixo o Pai. Abaixo o folclore. Abaixo a Macumba.Viva o homem que pesca com a rede, tarrafa, comas mãos. Abaixo a reza. Abaixo o misticismo. AtaqueiDeus e o Diabo. Macumbeiro de Buraquinho, semnunca ter entra<strong>do</strong> numa camarinha, fui refilman<strong>do</strong>segun<strong>do</strong> as verdadeiras leis da antropologia materialista.<strong>Cinema</strong> Novo. Durante as filmagens ligueipara Genaro de Carvalho e Luiz Carlos Barreto foime visitar. Fotografou para capa colorida <strong>do</strong> CruzeiroHelena e Luiza Maranhão. Conversamos. Expus meuprojeto de um cinema nacional, popular, revolucionáriomundial. Absolutamente. Luiz Carlos fotometrou.O diálogo frutificaria uma revolução cinematográficanaquelas três horas da tarde <strong>do</strong>minicais em Buraqui-Barravento,1959Acervo <strong>Cinema</strong>tecaBrasileira


52panorama <strong>do</strong> cinema baianonho. Helena estava linda. Voltamos para um Domingoalegre. Ela seria a estrela de A ira de Deus, em cores ecinemascope. Pra pagar o casamento escrevera paraElio Moreno Lima o roteiro duma chanchada colorescópica,Aconteceu na Bahia, basea<strong>do</strong> nas viagens <strong>do</strong>playboy Baby Pignatari na Bahia. Eles esculhambaramcom tu<strong>do</strong> (...)”.Apesar de inicia<strong>do</strong> em 1959, Barravento somente foilança<strong>do</strong> em 1962, sen<strong>do</strong> que a montagem é de autoriade Nelson Pereira <strong>do</strong>s Santos. A avant-premièreacontece no cine Capri no dia 28 de maio de 1962.Também simultâneo com o Jandaia.Barravento,1959Acervo <strong>Cinema</strong>tecaBrasileira


o esquema de rodízioForma-se uma EscolaImbuí<strong>do</strong>s de uma concepção de cinema engaja<strong>do</strong>,os filmes seguintes a Barravento se caracterizam poruma certa homogeneidade na escolha <strong>do</strong>s temas,to<strong>do</strong>s liga<strong>do</strong>s a problemáticas sociais, que tratamaspectos da realidade baiana e brasileira. Ten<strong>do</strong> Rex,Braga e outros como produtores, os filmes da EscolaBaiana de <strong>Cinema</strong> se caracterizam, portanto, poreste caráter de comprometimento com a busca detemas populares. E há, também, a destacar o espritdu corps, a solidariedade entre os integrantes daequipe e a concepção de trabalho coletivo. Assim, Agrande feira, etapa seguinte, tem sua direção entreguea Roberto Pires porque, sen<strong>do</strong> filme <strong>do</strong>s mesmosprodutores, obedece-se ao esquema de rodízio. É arazão de Roberto ter assumi<strong>do</strong> a mise-en-scène de Agrande feira, inicia<strong>do</strong> em 1960, com cenário concebi<strong>do</strong>por Roberto e construí<strong>do</strong> no mesmo lugar ondeMartim montara a Ópera <strong>do</strong>s três vinténs, de Brecht.Transformou-se o Teatro Castro Alves (ainda sofren<strong>do</strong>as consequências <strong>do</strong> terrível incêndio que o condenouà paralisação por quase uma década logo nainauguração em 1958) em novo projeto da Vera Cruzcom apoio de Martim Gonçalves, de Lina Bo Bardi, deJuracy Magalhães (então governa<strong>do</strong>r da Bahia), <strong>do</strong>reitor Edgard Santos etc.53panorama <strong>do</strong> cinema baiano


54panorama <strong>do</strong> cinema baianobahia: meca <strong>do</strong> cinemaAproveitan<strong>do</strong> o décor naturalHá uma eclosão de filmes, uma efervescência, ummovimento ininterrupto de cineastas baianos, cariocas,paulistas e estrangeiros que, de repente,descobrem a Bahia como cenário ideal para se fazercinema, aproveitan<strong>do</strong> ao máximo o seu décor natural.Assim, além <strong>do</strong>s filmes genuinamente baianos,observa-se, em Salva<strong>do</strong>r, no princípio <strong>do</strong>s anos 1960,uma verdadeira euforia cinematográfica. O primeiro<strong>do</strong>s cineastas a sentir a aplicação cinemático-baianaé Trigueirinho Neto, o qual, em 1959, realiza Bahia deTo<strong>do</strong>s os Santos, filme que carrega na sua temáticaum espírito neorrealista, haven<strong>do</strong>, por conseguinte,bastante afinidade com as propostas da Escola Baianade <strong>Cinema</strong>. Sacha Gordine, francês, arma um cenáriona colina <strong>do</strong> Bonfim para filmar O santo módico emcores e cinemascope. Aurélio Teixeira, em 1962, rodaTrês cabras de Lampião. Anselmo Duarte, com produçãode Oswal<strong>do</strong> Massaini, de São Paulo, resolve situara peça de Dias Gomes, O paga<strong>do</strong>r de promessas, naescadaria da Igreja <strong>do</strong> Paço (o resulta<strong>do</strong> é uma Palmade Ouro em Cannes 62). Nelson Pereira <strong>do</strong>s Santos,voltan<strong>do</strong> das Alagoas, onde ia filmar Vidas Secas,basea<strong>do</strong> em Graciliano Ramos (projeto que executariaem 63), para não perder a viagem e o embalo, seembrenha pelo sertão baiano, com equipe daqui, e,em Juazeiro, faz um nordestern chama<strong>do</strong> MandacaruVermelho; Nelson não filma Graciliano neste perío<strong>do</strong>porque chove demais em Alagoas, descaracterizan<strong>do</strong>sea paisagem árida e seca requerida pelo livro e peloroteiro. Aécio Florentino Andrade, misturan<strong>do</strong> ação,violência e sexo, com toques de “análise social”,comete O tropeiro, que não alcança nenhumarepercussão, porque ruim demais. Ruy Guerra, em63, em Milagres (onde Glauber, em 68, filmariaO dragão da maldade contra o santo guerreiro),executa o “esteticismo da miséria”, mas com vigor


inexcedível, em Os fuzis, com fotografia brilhante,uma iluminação de fazer sensação aos estetas,ten<strong>do</strong>, contu<strong>do</strong>, como cenário, a fome, o aban<strong>do</strong>noabsoluto <strong>do</strong> ser. Há ainda Senhor <strong>do</strong>s Navegantes,de Aloísio T. de Carvalho; e até mesmo um portuguêsse aventura por Cachoeira, pela paisagemsertaneja e comete outro nordestern (expressãocunhada pelo crítico carioca Salvyano Cavalcanti dePaiva, a mistura nordeste com western, o cinemaamericano por excelência, como queria o críticofrancês André Bazin), A montanha <strong>do</strong>s sete ecos,com Milton Morais, entre outros.Os filmes roda<strong>do</strong>s por cineastas <strong>do</strong> sul <strong>do</strong> país e osestrangeiros fazem parte <strong>do</strong> Ciclo <strong>Baiano</strong> de <strong>Cinema</strong>mas não da Escola Baiana de <strong>Cinema</strong>. Como severá a seguir.Bahia deTo<strong>do</strong>s os Santos,1959Acervo <strong>Cinema</strong>tecaBrasileira


56panorama <strong>do</strong> cinema baiano


O Paga<strong>do</strong>r dePromessas, 1962ciclo baiano e escolabaiana de cinemaAs diferençasNo denomina<strong>do</strong> Ciclo <strong>Baiano</strong> de <strong>Cinema</strong>, estãoinclusos os filmes realiza<strong>do</strong>s na Bahia influencia<strong>do</strong>spela nossa cultura e realiza<strong>do</strong>s por diversos diretores.Os filmes que fazem parte <strong>do</strong> cita<strong>do</strong> ciclo são to<strong>do</strong>saqueles feitos aqui entre, mais ou menos, 1959 e1964, no perío<strong>do</strong> em que se observa a eclosão devárias películas que aparecem por causa <strong>do</strong> boomcinematográfico verifica<strong>do</strong> em Salva<strong>do</strong>r e nas cidadesinterioranas da Bahia. Assim, um filme comoO paga<strong>do</strong>r de promessas, de Anselmo Duarte, apesarde produção paulista (Oswal<strong>do</strong> Massaini), é uma obraque se situa no contexto <strong>do</strong> ciclo, posto que realizadana eclosão <strong>do</strong> boom, na efervescência <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> emque vários cineastas se sentiram motiva<strong>do</strong>s a “filmarna Bahia”, aproveitan<strong>do</strong> ao máximo seu décor natural.E assim como O paga<strong>do</strong>r de promessas, muitosoutros, como Três cabras de Lampião, de AurélioTeixeira, produção carioca, Mandacaru Vermelho, deNelson Pereira <strong>do</strong>s Santos, produção também <strong>do</strong> Rio,Senhor <strong>do</strong>s Navegantes, de Aloísio T. de Carvalho, Amontanha <strong>do</strong>s sete ecos, de Arman<strong>do</strong> Miranda e, atémesmo, o francês O santo módico. E dentro <strong>do</strong> ciclose incluem to<strong>do</strong>s os filmes genuinamente baianoscomo Barravento, A grande feira, O caipora etc. Parapertencer ao ciclo, portanto, a condição é que tenhasi<strong>do</strong> realiza<strong>do</strong> na Bahia no perío<strong>do</strong> cita<strong>do</strong> e contenha,no seu contexto, uma busca de apreensão da “baianidade”.Já a Escola Baiana de <strong>Cinema</strong> se caracteriza pelofator gera<strong>do</strong>r de sua produção, isto é, os filmes quetenham si<strong>do</strong> aqui “gera<strong>do</strong>s” e produzi<strong>do</strong>s por pessoasou empresas genuinamente baianas. Quan<strong>do</strong> sefala, por conseguinte, em fato gera<strong>do</strong>r, entenda-secom isso o capital investi<strong>do</strong>. Este há de ser baiano.É o caso de Rex Schindler, por exemplo. Profissionalliberal, pintor diletante, médico, imobiliário, estehomem apaixona<strong>do</strong> pela cultura baiana se interessapelo cinema e decide investir na cinematografia baiana,crian<strong>do</strong>, com isso, a possibilidade de uma perspectivade criação infraestrutural de produção. Maspara pertencer à Escola Baiana o filme precisa conterfortes elementos de “baianidade” e pertencer a umesquema ideário na sua proposta ideológica. Filmespreocupa<strong>do</strong>s na apreensão da problemática regional,filmes de denúncia, que seguem uma, pode-se dizer,“escola”. Assim, a rigor, quan<strong>do</strong> Rex entra na produçãode Barravento, de Glauber Rocha, e a seguirproduz A grande feira, de Roberto Pires, no esquemade rodízio, to<strong>do</strong>s os filmes são guia<strong>do</strong>s pela proposta57panorama <strong>do</strong> cinema baiano


58panorama <strong>do</strong> cinema baianode “apreensão da realidade” e da denúncia social, e,com isso, tem-se início a Escola Baiana de <strong>Cinema</strong>,que, a rigor, começa com a fita de Glauber, prossegue,e nisto há uma dimensão de grupo, de “trabalhoquase coletivo”, em A grande feira (que poderia,inclusive, ter si<strong>do</strong> dirigi<strong>do</strong> por Glauber, mas não o foiporque este já dirigira Barravento), Tocaia no Asfalto(Roberto foi tão bem sucedi<strong>do</strong> em A grande feira queretoma, com Glauber, o grande mentor intelectual daescola, já se distancian<strong>do</strong> um pouco e investin<strong>do</strong> naglobalidade <strong>do</strong> cinemanovismo), O caipora, de OscarSantana (1963), Sol sobre a lama, produção de PalmaNetto (daqui, portanto) e direção de Alex Viany, umquase remake de A grande feira.Oscar Santana, um <strong>do</strong>s mais ativos realiza<strong>do</strong>res dafase de ouro <strong>do</strong> cinema baiano, conta aqui, em discursofeito na Assembleia Legislativa quan<strong>do</strong> da comemoraçãopela passagem <strong>do</strong>s 50 anos de Redenção,a sua trajetória e a da cinematografia de sua terra.“(...) nossa inquietação, principalmente a minha e<strong>do</strong> Roberto, a nossa ansiedade em reinventar, conscientemente,coisas e processos já inventa<strong>do</strong>s, eramdesculpas reais, para a nossa incapacidade materialde comprar prontas, as nossas ferramentas de trabalho.Foi desse jeito, teimoso, desacredita<strong>do</strong> de fazero impossível, que produzimos o ingênuo O Calcanharde Aquiles, com certeza, o primeiro trabalho ficcional<strong>do</strong> cinema baiano. Um policial silencioso, com algumaslegendas postas sobre a imagem, diretamentena hora da filmagem. Neste filme, por absoluta faltade crença em nosso trabalho, de alguns improvisa<strong>do</strong>satores, tive que interpretar um <strong>do</strong>s papéis <strong>do</strong> filme,sen<strong>do</strong> eu, também o câmera. Disparava a câmeraKeystone ainda de corda, e corria para frente dela,para interpretar o meu personagem, sob a direçãoainda vacilante de Roberto Pires.Depois desta experiência ficcional e sob mais umaforte influência tecnológica <strong>do</strong> cinema americano,produzimos o <strong>do</strong>cumentário A Bahia - em Visão Natural,que era, na verdade, o primeiro teste de maisuma recriação nossa, agora no campo da tecnologia,o embrionário Igluscope.(...)Alguns fotogramas, retira<strong>do</strong>s clandestinamente peloopera<strong>do</strong>r <strong>do</strong> antigo cinema Guarany, depois GlauberRocha e hoje Espaço Unibanco, foi a única informaçãoque obtivemos para perceber como fabricar, aindaque de forma artesanal, a nossa lente anamórfica,designação oficial para o recém-cria<strong>do</strong> processo deregistro de imagens.Diante <strong>do</strong>s cinco fotogramas que obtivemos dapelícula O Manto Sagra<strong>do</strong>, notamos que as imagenseram comprimidas no senti<strong>do</strong> longitudinal, dentro<strong>do</strong> mesmo espaço <strong>do</strong> fotograma convencional de 35milímetros, <strong>do</strong>s filmes de tela plana.Depois de oito meses de trabalho, muitas experiênciastestadas sem resulta<strong>do</strong> satisfatório, no auditórioda Associação <strong>do</strong>s Emprega<strong>do</strong>s no Comércio da Bahiana Rua Chile, telas retangulares gigantes, feitas demadeira e pano branco, assustavam o velho Tourinho,administra<strong>do</strong>r da Associação. Ele nos permitia taisexperiências, mas ressaltava sempre a sua preocupaçãocom nossa geringonça, a tela gigante, que umdia poderia fazer ruir o teto <strong>do</strong> salão nobre <strong>do</strong> velho


sobradão, onde fixávamos a tela. E mesmo sob aexpectativa dessa possibilidade real, continuávamostestan<strong>do</strong> ansiosamente o novo processo.Certo dia, depois de testa<strong>do</strong>s 22 pares de lentes, nasoficinas da antiga ótima Mozart, <strong>do</strong> pai de Roberto,com o teto <strong>do</strong> salão nobre da Associação, ainda nolugar, obtivemos o resulta<strong>do</strong> deseja<strong>do</strong>.(...)Com as novas lentes rodamos Redenção, o primeirofilme baiano de longa-metragem, com a participaçãofinanceira de Elio Moreno Lima, filho de um cacauicultor.Muitos anos antes, é claro, da contaminaçãoda lavoura, pela vassoura de bruxa!(...)Sempre que falamos sobre o cinema baiano, nosfazem a natural pergunta: por que a nossa primeiraprodutora chamava-se Iglu Filmes? A resposta é umahistória curiosa, de ordem sentimental.Quan<strong>do</strong> ainda na fase embrionária de nossa pesquisade imagem e som, porque também recriamos umsistema de som magnético próprio, o Magnisom,varávamos noites no prédio onde morava o Roberto,no bairro <strong>do</strong> Garcia, fazen<strong>do</strong> experiências. Quan<strong>do</strong>,interrompíamos as nossas incursões cinematográficas,quase sempre às duas da madrugada, somentese encontrava aberta para um lanche a LanchoneteIglu, na Praça da Sé, onde nos reuníamos antes edepois das experiências.Eu morava no bairro de Roma, na Cidade Baixa, eestudava na Faculdade de Ciências Econômicas naPiedade. Roberto morava no bairro <strong>do</strong> Garcia. APraça da Sé era um meio de caminho onde os paposcontinuavam, depois que eu saía da Faculdade e dasexperiências.Como a produção de cinema na Bahia era uma grandenovidade na época, essa novidade e a nossa obstinaçãocativaram o <strong>do</strong>no da lanchonete e percebemosque, muitas vezes, ele mantinha a casa aberta atéa nossa chegada, depois <strong>do</strong>s trabalhos noturnos depesquisa. E ainda “dependurava” as nossas contas atétermos condições de pagá-las no final de cada mês.Desse gesto de tolerância, boa vontade e incentivo,vin<strong>do</strong>s de um simples comerciante da Praça da Sé <strong>do</strong>sanos 50, decidimos dar o nome da sua lanchonete àjovem e pioneira empresa de cinema. Assim nasceu aIglu Filmes.O visionário exibi<strong>do</strong>r Francisco Pithon, emprestan<strong>do</strong>o cinema Guarany para exibirmos os nossos copiões,nos permitia avaliar o resulta<strong>do</strong> de nossas experiênciascinematográficas, principalmente as que seseguiram depois, já contan<strong>do</strong> com os parceiros RexSchindler e Braga Neto, como coprodutores.Desde os tempos da minha dupla com Roberto, eramvisíveis os diferentes conceitos que tínhamos, parauma mesma paixão, o <strong>Cinema</strong>. Roberto era um cineastaartesão, intuitivo, inventivo, muito preocupa<strong>do</strong>com a forma, o jeito de filmar.Eu me articulava dentro da mesma arte, com um sentimentomais volta<strong>do</strong> para o conteú<strong>do</strong>, <strong>do</strong> que filmávamos.As discussões sobre forma e conteú<strong>do</strong> eramconstantes, e por isto mesmo, ferramentas importan-59panorama <strong>do</strong> cinema baiano


60panorama <strong>do</strong> cinema baianotes na composição <strong>do</strong>s trabalhos da Iglu Filmes.(...)Durante to<strong>do</strong> esse tempo, tivemos a contribuição deum personagem curioso e experiente de um Diretorde Produção que nos ajudava a to<strong>do</strong> instante, resolven<strong>do</strong>questões aparentemente insolúveis de produção.Neste particular, Walter Webb era um mágico.(...)Nós, cineastas da época, no conjunto, conseguimosproduzir, durante o ciclo inicia<strong>do</strong> em 1959, um lega<strong>do</strong>de 18 filmes de longa-metragem, como Redenção,Barravento, A Grande Feira, Tocaia no Asfalto, Solsobre a lama, Bahia – Por exemplo, O Caipora, Deuse o Diabo na Terra <strong>do</strong> Sol, O Grito da Terra, Akipalô,Meteorango Kid, Caveira my friend, Boi Aruá, O AnjoNegro, O Pistoleiro, Abrigo Nuclear, Yawar Mayu e oO Mágico e o Delega<strong>do</strong>, por mim produzi<strong>do</strong> em 1984,quan<strong>do</strong> se interrompeu, por absoluta falta de recursose não de talentos, o ciclo de produção cinematográficana Bahia.Foi com a nova empresa, a Sani Filmes, já em 1961,depois que deixei a Iglu Filmes, que pude exercitarcom mais desenvoltura as minhas propostas de conteú<strong>do</strong>social no cinema.Quan<strong>do</strong> fiz O Caipora, compus um roteiro queevidenciasse a importância de se libertar o homembrasileiro, principalmente o nordestino, das amarrasconceituais <strong>do</strong> destino traça<strong>do</strong>. Aquela sequênciade atos e fatos que serão religiosamente cumpri<strong>do</strong>spelo ser humano, durante a sua vida, à luzde uma determinação divina, em conjunção com asforças da natureza.(...)Em O Pistoleiro, outro roteiro que escrevi e dirigi,mais uma vez preocupa<strong>do</strong> com as questões sociais<strong>do</strong> momento, procurei salientar que a inteligência circunstanciadapela ignorância talvez seja a maior fontede degradação <strong>do</strong> caráter humano.(...)Ligan<strong>do</strong>-se a temática de O Caipora à temática de OPistoleiro, encontramos um ponto comum, onde ohomem, na circunstância da maior ou menor sabe<strong>do</strong>ria,escreve o seu próprio destino.Vale salientar que a identificação cultural entre asdiversas artes na Bahia <strong>do</strong>s anos 50 e 60 era tão intensa,que a maioria <strong>do</strong>s filmes daquela época, alémde atores como Geral<strong>do</strong> Del Rey, Helena Inês, AntonioPitanga, Milton Gaúcho, Braga Neto, Fred Jr., CarlosPetrovich, Maria da Conceição, Maria Adélia, tinha aparticipação de artistas plásticos como Sante Scaldaferrie Calazans Neto; escritores como Jorge Ama<strong>do</strong> eLuiz Henrique Dias Tavares e críticos de cinema comoWalter da Silveira, que atuavam em nossos filmes, àsvezes como personagens importantes, outras vezescomo simples figurantes. Já no Rio, Roberto fez algumtempo depois: O crime no Sacopã, Máscara da Traiçãoe Em busca <strong>do</strong> Sussexo.Novamente na Bahia e comigo como parceiro, fezAbrigo Nuclear. Depois em Goiânia, fez Césio 137,que em minha opinião lhe custou a vida, pela via dacontaminação.


Glauber Rocha, nosso embaixa<strong>do</strong>r maior, pode semearmun<strong>do</strong> afora, a sua genialidade comprovada, emBarravento, Deus e o Diabo na Terra <strong>do</strong> Sol, O Dragãoda Maldade e Terra em Transe, entre outros filmes,no que observara e sentira, nos campos férteis planta<strong>do</strong>spelos chama<strong>do</strong>s “meninos da Iglu”.Soma<strong>do</strong>s, os filmes realiza<strong>do</strong>s na Bahia, durante esteciclo, representam um investimento priva<strong>do</strong>, na suamaioria, <strong>do</strong>s próprios cineastas e produtores locais,da ordem de 54 milhões de reais, se considerarmosa média modesta, apenas atualizada, de três milhõesde reais por filme.61panorama <strong>do</strong> cinema baianoMais recentemente, foram realiza<strong>do</strong>s alguns filmes,já com a ajuda displicente <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, que disponibilizaanualmente, e já faz muito tempo isto, apenas,um milhão e duzentos mil reais, disputa<strong>do</strong>s a tapas ebeijos, por to<strong>do</strong>s os cineastas baianos entre si.Enquanto isto, o Município de Paulínia no Esta<strong>do</strong> deSão Paulo, ao criar, mais que de repente, um núcleode produção de filmes de longa-metragem, deixoude ser um símbolo de poluição para ser a Hollywoodbrasileira, sem qualquer tradição de cinema como aSalva<strong>do</strong>r da Bahia tem. Disponibilizou, só em 2008,vinte milhões de reais, <strong>do</strong>is e meio por cento <strong>do</strong>orçamento municipal para 20 filmes que lá foram roda<strong>do</strong>snaquele ano. Em 2009 muitos <strong>do</strong>s sucessos <strong>do</strong>cinema nacional foram ali roda<strong>do</strong>s. Em 2010 outroslongas continuam a serem roda<strong>do</strong>s lá.Para os filmes que são roda<strong>do</strong>s no município, opercentual de contribuição depende apenas <strong>do</strong> per-Deus e o Diabo na Terra <strong>do</strong> Sol, 1964Acervo <strong>Cinema</strong>teca Brasileira


62panorama <strong>do</strong> cinema baianocentual de cenas rodadas no local e vai até 100% <strong>do</strong>orçamento de cada filme.Brasilianas que tem 100% de suas cenas a seremrodadas em Salva<strong>do</strong>r, mais exatamente no Largo <strong>do</strong>Carmo, ainda não conta com um centavo sequer, nem<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> nem <strong>do</strong> Município.Mesmo assim, filmes de longa-metragem de boa qualidade,mas não competitivos, pela pobreza orçamentária,como Três Histórias da Bahia, com produção deMoisés Augusto e direção de Edyala Yglesias, SérgioMacha<strong>do</strong> e José Araripe, foram produzi<strong>do</strong>s.Da nova safra, temos os longas-metragens Eu me lembro,de Edgard Navarro, Esses moços, de José Araripe,Cascalho, de Tuna Espinheira, e o recente Pau Brasil,de Fernan<strong>do</strong> Bélens. Outros estão sen<strong>do</strong> concluí<strong>do</strong>scom a ajuda de recursos externos, como O Jardim dasFolhas Sagradas, de Pola Ribeiro.Dentre estes trabalhos salientamos também os pontuaismédias-metragens Superoutro, de Edgard Navarro,A Lenda <strong>do</strong> Pai Inácio, de Pola Ribeiro, Anil, deFernan<strong>do</strong> Bélens, e mais recentemente, No Coraçãode Shirley, produzi<strong>do</strong> e dirigi<strong>do</strong> por Edyala Yglesias,to<strong>do</strong>s produzi<strong>do</strong>s com apoio da Sani Filmes.o quanto perdemos de honestidade, sinceridade esolidariedade, ao longo desses anos.(...)Afinal o Brasil precisa sorrir. O mun<strong>do</strong> precisa sorrir,para respirar melhor. Afinal, repito, não são os pessimistasque constroem um mun<strong>do</strong> melhor. Pareceque, para o cineasta brasileiro, o otimismo temático éum peca<strong>do</strong> mortal.(...)Nos trópicos baianos <strong>do</strong> quase ontem, no continentesul-americano, Glauber Rocha, Roberto Pires, Agnal<strong>do</strong>Siri Azeve<strong>do</strong>, Olney São Paulo, José Teles de Magalhães,Vito Diniz, Fernan<strong>do</strong> Coni Campos, laurea<strong>do</strong>scineastas baianos, (...) morreram ainda jovens.To<strong>do</strong>s, com o mesmo sonho cinematográfico, de cantaremao máximo a sua aldeia.E eu, Oscar Santana, um <strong>do</strong>s remanescentes dessepunha<strong>do</strong> de jovens obstina<strong>do</strong>s, crentes, de quesua terra é o melhor lugar <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> para se convivere recriar, em nome deles e no meu próprio,apelo em alta voz.Eu estou voltan<strong>do</strong> ao longa-metragem depois de maisde 800 <strong>do</strong>cumentários realiza<strong>do</strong>s, com o filme Brasilianas,uma comédia de costumes ambientada nosdias atuais, mas com sentimentos de 50 anos atrás,onde, no espaço mágico de 24 horas, pode-se notarAnil, 1990


as empresas65Eu me Lembro,2005Com eclosão verificada, com o verdadeiro boomcinematográfico que aqui se instalou, várias empresasforam formadas. No primeiro lustro da décadade 60, nada menos que seis: Guaripa Filmes Ltda.(Palma Netto, produtor de Sol sobre a lama, e emparceria com Álvaro Queiroz), Iglu Filmes (RobertoPires, Braga Neto, entre outros), Polígono Filmes (deRex Schindler), Santana Filmes Ltda. (a produtora deO grito da terra, de Olney São Paulo), Sani Filmes (deOscar Santana, especializada em <strong>do</strong>cumentários ecine-jornais, como o famoso jornal de atualidades daSani, que veio a substituir o Bahia na Tela), WinstonCine Produções Ltda. (que produz O caipora de OscarSantana). A Winston, que financiou a fita de Oscar,sugere a união deste a Moacyr Carvalho. É a efervescência<strong>do</strong> perío<strong>do</strong>, tanto que O caipora é realiza<strong>do</strong>com recursos de produção acima da média de umapelícula brasileira da época, contan<strong>do</strong> com um verdadeiroestúdio, em 1963, construí<strong>do</strong> nas imediações<strong>do</strong> Bonfim, e a dispor de moviolas, câmeras, enfim,toda a aparelhagem indispensável à elaboração deum filme de longa-metragem. Este estúdio, que ficana Cidade Baixa, apareceu não para somente servir aO caipora, mas porque o seu idealiza<strong>do</strong>r, Moacyr Carvalho,tem em mente dar prosseguimento à produçãocinematográfica em Salva<strong>do</strong>r. Acredita no cinemabaiano, e nunca teria pensa<strong>do</strong> na paralisação, queviria a ocorrer logo depois que Olney São Paulo finalizaO grito da terra, o canto de cisne, por assim dizer,<strong>do</strong> chama<strong>do</strong> Ciclo <strong>Baiano</strong>. Lança<strong>do</strong> O caipora, capitalinvesti<strong>do</strong> precisan<strong>do</strong> de retorno e da consequente circulaçãono território brasileiro (o êxito na Bahia nãodava para pagar os custos eleva<strong>do</strong>s), o filme de Oscarfica muito aquém, em nível de bilheteria, <strong>do</strong> que seinveste. Assim, o resulta<strong>do</strong> é um estron<strong>do</strong>so prejuízo.Desiludi<strong>do</strong>, Moacyr Carvalho resolve vender toda aaparelhagem e fechar o estúdio. No caso da Guapira,de Sol sobre a lama, Palma Netto fica bastanteinsatisfeito com a direção de Alex Viany, que deturpacompletamente o que o produtor idealizara como umfilme-resposta à A grande feira. Alex monta o filme“de uma maneira” enquanto que Palma o queria de“outra”. Os <strong>do</strong>is acabam na Justiça. O lançamento deSol sobre a lama, contu<strong>do</strong>, no cine Guarani, em 24 deoutubro de 1963, acontece com a cópia imaginadana moviola por Alex Viany. Anos depois, Palma Netto,vencen<strong>do</strong> na Justiça, remonta a fita, desfiguran<strong>do</strong> asua concepção original. A Guapira ainda tenta, em1965, produzir mais um filme, Onde a terra começa,<strong>do</strong> carioca Ruy Santos, filma<strong>do</strong> em Arembepe, companorama <strong>do</strong> cinema baiano


66panorama <strong>do</strong> cinema baianoLuigi Picchi e Irma Alvarez, segun<strong>do</strong> um conto deMaximo Gorki. Depois, o fim. Rex, com sua Polígono,tenta, estimula<strong>do</strong> pelos incentivos da Sudene, reunircapital para montar um estúdio com aparelhagemcompleta, mas não consegue as verbas necessáriase desiste da empreitada. Com os contínuos fracassosfinanceiros, o Ciclo <strong>Baiano</strong> é desmancha<strong>do</strong>. O problemamaior: retorno <strong>do</strong> capital investi<strong>do</strong>. O nó górdio<strong>do</strong> cinema brasileiro que continua até os dias atuais:o tripé produção/distribuição/exibição.O Anjo Daltônico,1964


de repente tu<strong>do</strong> parouO grito da terra, produção da Santana Filmes, dirigi<strong>do</strong>por Olney São Paulo, é o canto de cisne, como já sedisse, <strong>do</strong> Ciclo <strong>Baiano</strong>. Data<strong>do</strong> de 1964, e lança<strong>do</strong> noano seguinte, O grito da terra possui temática rural,abordan<strong>do</strong> a exploração, nos latifúndios, <strong>do</strong> homempelo homem, com temática engajada, portanto, bemao gosto <strong>do</strong>s postula<strong>do</strong>s da Escola Baiana de <strong>Cinema</strong>.Esta, entretanto, na sua essência, se resume a trêsfilmes, quais sejam: Barravento, de Glauber Rocha(1959/1962), A grande feira e Tocaia no Asfalto,ambos de Roberto Pires, porque estes fazem parte <strong>do</strong>projeto cinematográfico idealiza<strong>do</strong> por Rex Schindler,Glauber e Roberto Pires. Em senti<strong>do</strong> amplo, todavia,poder-se-ia incluir, por extensão e pela familiaridade<strong>do</strong> tema, O caipora, de Oscar Santana, Sol sobre alama, de Alex Viany, Deus e o Diabo na Terra <strong>do</strong> Sol,de Glauber Rocha (produção carioca de Jarbas Barbosa),O grito da terra, de Olney São Paulo. Mas ainclusão que se deve fazer é em relação ao Ciclo <strong>Baiano</strong>e não à Escola Baiana de <strong>Cinema</strong>, circunscrita aostrês filmes cita<strong>do</strong>s. Rex Schindler tem em mente umgrande projeto cinematográfico basea<strong>do</strong> no esquemade rodízio (cada filme seria dirigi<strong>do</strong> por um integrante<strong>do</strong> grupo), mas as coisas não dão certo como esperava.A estocada <strong>do</strong> Ciclo <strong>Baiano</strong> e, principalmente,da Escola Baiana de <strong>Cinema</strong> se deve, em primeirolugar, a problemas de merca<strong>do</strong>logia cinematográfica,ao problema <strong>do</strong> capital investi<strong>do</strong> que não retorna, acontento, e em tempo hábil, às mãos <strong>do</strong>s produtores.O cinema baiano é vítima <strong>do</strong> próprio mecanismode poder <strong>do</strong> cinema brasileiro. Há um exemplo bemmarcante, que situa o problema. Oswal<strong>do</strong> Massaini,produtor paulista, que proporciona a Anselmo Duartefilmar O paga<strong>do</strong>r de promessas nas escadarias daIgreja <strong>do</strong> Paço, filme basea<strong>do</strong> em peça teatral de DiasGomes, realiza<strong>do</strong> em 1961, quan<strong>do</strong> recebe a Palmade Ouro <strong>do</strong> Festival de Cannes em 1962, faz tu<strong>do</strong>para impedir o lançamento em São Paulo de A grandefeira, que já está pronto muito antes e já encomenda<strong>do</strong>para uma estreia impactual na capital paulista. Oque faz Massaini? “Segura” o filme de Rex Schindler eRoberto Pires a fim de que A grande feira não “estragasse”o lançamento de O paga<strong>do</strong>r de promessas.Assim, quan<strong>do</strong> resolve colocar A grande feira no merca<strong>do</strong>exibi<strong>do</strong>r, este não tem mais impacto, posto queé absorvi<strong>do</strong> pela fita de Anselmo, cheia de glórias,de palmas e <strong>do</strong> triunfo na Europa. E como A grandefeira, outros também têm a mesma sorte (ou azar).As injunções merca<strong>do</strong>lógicas são as principais forçasque impedem o prosseguimento <strong>do</strong> cinema baiano67panorama <strong>do</strong> cinema baiano


68panorama <strong>do</strong> cinema baianona força e no ritmo que vinha demonstran<strong>do</strong>. Outracausa bem marcante é a evasão de talentos. Glauber,depois que realizou Deus e o Diabo, sucesso absoluto,vai tentar a sorte no Rio. Também Roberto Pires.Desmantela-se o arcabouço, a equipe eficiente.


A Grande Feira,1961a grande feiraHá graus de narratividade que procuram o específicofílmico na transmissão <strong>do</strong> aspecto fabulístico ou, sese quiser, na ilustração da história. E estes graus denarratividade podem ser conferi<strong>do</strong>s em algumas sequências:aquela em que Rony, in<strong>do</strong> procurar Maria,após ser ameaça<strong>do</strong> com a navalha, rompe o vesti<strong>do</strong>dela; o passeio turístico de Rony e Helena e, principalmente,a dinâmica da sequência com a lancha e ospersonagens dentro dela; o momento no qual ChicoDiabo vai tocar fogo nos tanques com o dinamitee o realiza<strong>do</strong>r desenvolve uma montagem paralelabasea<strong>do</strong> na lei de progressão dramática griffthiana da“corrida contra o tempo”; o prólogo, com a partiturade Remo Usai; o plano geral que antecede o epílogo,com campo visual aberto onde, no quadro fílmico, vêseo cais <strong>do</strong> porto em toda a sua dimensão e, pequenos,os <strong>do</strong>is protagonistas (o mari<strong>do</strong> que, com a porta<strong>do</strong> carro aberta, espera a esposa arrependida) etc.Em outros momentos, o realiza<strong>do</strong>r apoia a sua condiçãofílmica nos diálogos, pouco desenvolven<strong>do</strong>a capacidade de articulação cinematográfica. Sãoexemplos desses momentos: as diversas sequênciasno bar de Pedro, onde, nota-se, flagrante, a ausênciade um maior desenvolvimento no que tange a umamelhor ritmação especificamente cinematográfica,69panorama <strong>do</strong> cinema baiano


70panorama <strong>do</strong> cinema baianopre<strong>do</strong>minan<strong>do</strong> um níti<strong>do</strong> confinamento <strong>do</strong>s protagonistasnum espaço asfixia<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> o realiza<strong>do</strong>rpoderia ter dimensiona<strong>do</strong> este mesmo espaço emtermos de uma maior flexibilidade de ação geométricapara a câmera. Aqui, neste caso, valeria maisusar, por exemplo, o campo e o campo contrário ou,melhor, o campo e o contracampo. Há, também, umabuso virtuosístico que, ao contrário de abrilhantar anarrativa, fá-la apenas decorativa, enfeitada: os ângulosinusita<strong>do</strong>s e insólitos da sequência na qual Ronydança com Maria no cabaré de Zazá.No cômputo geral, existe um desequilíbrio no campoda mise en scéne de A grande feira, causa<strong>do</strong>, talvez,pela falta de recursos da produção. Roberto Pires,vale ressaltar, neste seu segun<strong>do</strong> longa-metragem,revela, por outro la<strong>do</strong>, uma artesania bastante apreciávele uma ideia de cinema capaz de fazê-lo umcineasta de voos mais altos no plano narrativo. Nãoé, entretanto, um autor, ou, mesmo, um estilista, masaquilo que se pode chamar de um artesão cinematográfico,pois tem capacidade de articular as margense de contar uma história.Se a fábula original, o argumento, a história, é de RexSchindler, a narrativa, porém, é de responsabilidadede Roberto Pires. Na transferência de signos – atransfer, o que é literatura, símbolos, passa-se parauma outra especificidade, qual seja a linguagemcinematográfica. Daí se dizer que a adaptação de umaobra literária para o cinema é impossível na medidaem que a narrativa literária se destrói na transfer paraa narrativa cinematográfica, fican<strong>do</strong>, apenas, a intriga,as personagens, as situações, a ideia central.É verdade que Rex Schindler, ao escrever a história deA grande feira, pensou em termos imagéticos, poisseu propósito era o de desenvolver uma história paraser filmada. Mas enquanto a pon<strong>do</strong> no papel, com ouso de um referencial simbólico (letras articuladas emfrases e, estas, em orações e perío<strong>do</strong>s), faz literaturae não cinema. O cinema começa a partir <strong>do</strong> momentoem que Roberto Pires escreve o roteiro, fixan<strong>do</strong>,neste, os elementos determinantes e componentesda linguagem cinematográfica.Quanto à abrangência <strong>do</strong> poder narrativo de RobertoPires, limita<strong>do</strong>, como se vê, mas talentoso, deve-seconsiderar que, haven<strong>do</strong>, a grosso mo<strong>do</strong>, duas espéciesde cineastas, um cerebral e conceptual, outrosensorial e intuitivo, o realiza<strong>do</strong>r de A grande feirase insere no segun<strong>do</strong> grupo, aquele <strong>do</strong>s sensoriaise intuitivos. Como diferenciar, no entanto, os <strong>do</strong>istipos? Os cerebrais e conceituais reconstróem omun<strong>do</strong> em função de sua visão pessoal, acentuan<strong>do</strong>a imagem como meio essencial de conceptualizar oseu universo fílmico. Não parece ser, este, o caso deRoberto Pires. Já os sensoriais e intuitivos, ao contrário,procuram, antes, subtrair-se diante da realidade,fazen<strong>do</strong> surgir da representação direta da realidade asignificação que querem obter. Assim, Roberto Pires,por sensorial e intuitivo, faz surgir, em A GrandeFeira, a representação direta e objetiva <strong>do</strong> drama daFeira de Água de Meninos, a significação pretendida.Para ele, o trabalho de elaboração da imagem temmenos importância – não descuidan<strong>do</strong>, porém, é


claro, da mise-en-scéne – que sua função natural defiguração <strong>do</strong> real. O seu virtuosismo – como no casoda cena que Rony e Maria dançam em ângulos insólitos– está em função dessa figuração <strong>do</strong> real, sen<strong>do</strong>um cineasta, nesse particular, realista. Ao contráriode um expressionista – que deforma o real, retorcen<strong>do</strong>segun<strong>do</strong> a sua visão, ou de um surrealista – quejunta a realidade exterior e a interior, ou, mesmo, umintimista – que filtra, da realidade, alguns aspectosdesta que é exaltada.Cineastas conceptuais e cerebrais são Serguei Einsenstein(Outubro), Orson Welles (Cidadão Kane),Jean-Luc Godard (Acossa<strong>do</strong>), Alain Resnais (O anopassa<strong>do</strong> em Marienbad, Hiroshima, mon amour), entretantos outros, que tendem a reconstruir o mun<strong>do</strong>em função de sua visão pessoal. Neles a narrativa tempre<strong>do</strong>minância absoluta sobre a fábula, confundin<strong>do</strong>secom esta ou, mesmo, o conteú<strong>do</strong>, se se pode falarassim, nestes cineastas, é a forma.Um outro exemplo de cineasta conceptual e cerebralé Alfred Hitchcock. O conteú<strong>do</strong> de seus filmes estácondiciona<strong>do</strong> pela forma. Inventor de fórmulas, cria<strong>do</strong>r,Hitchcock não se incomoda – nem se preocupa– com a figuração <strong>do</strong> real, mas de seu real, pois autorcompleto. Ainda que, em relação a Roberto Pires, nãose possa compará-lo a estes monstros sagra<strong>do</strong>s dasétima arte, o fato é que, sen<strong>do</strong> sensorial e intuitivo,aproximan<strong>do</strong>-se de outros, ainda que sem a forçaimagética destes, Pires é um realiza<strong>do</strong>r cuja intuiçãoda imagem leva-o ao espírito griffthiano da narrativa,à uma concepção mais trabalhada em termos <strong>do</strong>desenvolvimento da imagem in crescen<strong>do</strong>. É maisum administra<strong>do</strong>r da imagem <strong>do</strong> que um cria<strong>do</strong>r daimagem.Toman<strong>do</strong> a palavra emprestada a Walter da Silveira:“O roteirista-diretor-monta<strong>do</strong>r quis, com várioscortes, violentos e inespera<strong>do</strong>s, criar ou renovaro interesse pelo relato, quebran<strong>do</strong> no especta<strong>do</strong>raquela acomodação subjetiva produzida pela acomodaçãoótica. Mas o efeito obti<strong>do</strong>, longe de representaro choque físico e espiritual deseja<strong>do</strong>, às vezes nãopassou de uma agressão visual, insólita e <strong>do</strong>lorosa,sem fim estético ou dramático. Nenhum exemplomais tangível <strong>do</strong> que a transposição <strong>do</strong> plano longo<strong>do</strong> automóvel distancian<strong>do</strong>-se no porto para o primeiroplano de Cuíca de Santo Amaro, gritan<strong>do</strong> ofinal. Roberto Pires deve ter pensa<strong>do</strong> que montage,na gramática moderna <strong>do</strong> cinema, equivale a umrompimento <strong>do</strong> convencional. Seria simples demais.Pode-se tentar uma nova ordem para o ritmo cinematográfico,jamais destruí-lo. Usar o corte imprevistoseguidamente termina numa academização, portantoem outro convencionalismo, sem a certeza de que oresulta<strong>do</strong> artístico supere o tradicional. A única opçãojusta seria a de entender que um estilo de continuidade,de montage, acompanha e traduz o senti<strong>do</strong> <strong>do</strong>roteiro, assim como o estilo <strong>do</strong> verso, a sua brevidadeou alongamento, traduz e acompanha o senti<strong>do</strong> interno<strong>do</strong> poema. Esse entendimento, como totalidade,foi cumpri<strong>do</strong> em A grande feira: nas suas particularidades,faz crer, porém, que Roberto Pires transformeem sistema o que apenas tinha validade para a naturezaepisódica de seu segun<strong>do</strong> filme”.71panorama <strong>do</strong> cinema baiano


72panorama <strong>do</strong> cinema baianoA Grande Feira,1961Não se concorda, aqui, com o brilhante crítico eensaísta a respeito <strong>do</strong> corte direto <strong>do</strong> plano longo<strong>do</strong> automóvel esperan<strong>do</strong> no cais para o close up deCuíca de Santo Amaro. Pires, ao contrário <strong>do</strong> que dizo ensaísta, provoca, é verdade, um choque ao sair deum plano geral para um close up e, com isso, nestaconcepção moderna da montagem, não está sen<strong>do</strong>convencional. Se se puder concordar, com Walter, queo excesso de corte estridente na passagem de umasequência a outra (como o golpe desferi<strong>do</strong> no policialque persegue Chico Diabo, o saxofone que dá início àsequência na qual Zazá é morto etc) pode conduzir auma forma de academicismo, no que se refere ao cortefinal, que anuncia o término de A grande feira, oresulta<strong>do</strong> é altamente funcional. Como a sugerir quea fábula <strong>do</strong> filme não passou de uma história de Cuícade Santo Amaro. A tomada demorada, em planogeral, sinaliza um comportamento novo em estilística,a indicar que Roberto Pires está antena<strong>do</strong> com o cinemamais moderno em prática em outros países. Aindaque, se se analisar no geral, o filme não deixa de ser,como diz Walter, acadêmico em sua estrutura narrativa.A ruptura desse cinema academizante (a câmeraem volta da cama de Maria, os ângulos insólitos evirtuosos aponta<strong>do</strong>s, planos se acadêmicos, porém,belíssimos) só viria a se dar em Glauber Rocha, <strong>do</strong>isanos depois, quan<strong>do</strong> este realiza Deus e o diabo naterra <strong>do</strong> sol.Outro crítico, Orlan<strong>do</strong> Senna, em artigo sobre A grandefeira, discorda de Walter da Silveira em relação aoplano longo <strong>do</strong> final, quan<strong>do</strong> escreveu: “O ponto alto<strong>do</strong> filme é a sequência em que Ely (ou Helena), aban-


<strong>do</strong>nada pelo marinheiro, retorna ao conforto <strong>do</strong> seumari<strong>do</strong>: um longo plano, ao fun<strong>do</strong> entre <strong>do</strong>is armazénsdas <strong>do</strong>cas, Ely indecisa, seu mari<strong>do</strong>, o automóvelpróximo: a tomada é longa, parada, sofrida”. MasWalter, a rigor, não discorda <strong>do</strong> plano em si, de sualonga duração, mas da montage, <strong>do</strong> corte ex-abruptoque terminan<strong>do</strong> a sequência <strong>do</strong> cais faz aparecer emexpressivo close up o rosto falante de Cuíca de SantoAmaro.A construção de uma narrativa fílmica, ou o arranjoque o material narrável assume na obra, pode obedecer,como se vê, a diversos critérios. A distinçãomais evidente é entre estruturas simples e estruturascomplexas, sen<strong>do</strong> fato consuma<strong>do</strong> que, neste caso, asimplicidade ou a complexidade são noções exclusivamenteinerentes ao como <strong>do</strong> discurso e não à suacoisa pode haver histórias intricadas, mas de estruturaelementar e, pelo contrário, histórias lineares,mas que se tornam intricadas por uma disposição <strong>do</strong>ssegmentos narrativos.Assim, em A grande feira, consideran<strong>do</strong>-se os váriostipos de estruturas narrativas, pode-se classificá-locomo um filme de estrutura simples e narrativa linear,aquela que é percorrida por um único fio condutor,que se desenvolve de maneira sequêncial <strong>do</strong> princípioao fim sem complicações ou desvios <strong>do</strong> caminhotraça<strong>do</strong>. A narrativa de estrutura linear é a de maisfácil leitura e é concebida de mo<strong>do</strong> a respeitar todasas fases <strong>do</strong> desenvolvimento dramático tradicional.O esquema a que obedece é aproximadamente oseguinte: (a) introdução ambiental; (b) apresentação<strong>do</strong>s personagens; (c) nascimento <strong>do</strong> conflito; (d)consequências <strong>do</strong> conflito; (e) golpe de teatro resolutório.O esquema repete à letra o que era a estruturabase <strong>do</strong> romance naturalista ou psicológico <strong>do</strong> séculoXIX.A grande feira, ainda que filme de mise-en-scéne,com alguns graus de narratividade apreciáveis, temum modelo no qual o elemento poético e metafóricoé reduzi<strong>do</strong> ao mínimo e em que quase to<strong>do</strong>s os motivosde interesse residem na fábula.A Grande Feira, 196173panorama <strong>do</strong> cinema baiano


74panorama <strong>do</strong> cinema baiano


tocaia no asfalto75Tocaia no Asfalto,1962A cópia de Tocaia no asfalto, de Roberto Pires, quese encontrava em vias de extinção no seu negativooriginal, conseguiu ser totalmente restaurada. É umfeito e tanto para a preservação da memória <strong>do</strong> cinemabaiano. Considero este o melhor filme, até hoje,entre as mais de duas dezenas de longas metragensrealiza<strong>do</strong>s na Bahia. Depois dele, na minha opinião,vem A grande feira, <strong>do</strong> mesmo Pires, que foi homenagea<strong>do</strong>em maio de 2009 pela passagem <strong>do</strong>s 50 anosde seu primeiro longa e primeiro <strong>do</strong> cinema baiano:Redenção, de 1959.Thriller genuinamente baiano realiza<strong>do</strong> em 1962, queaborda o relacionamento <strong>do</strong>s políticos com a criminalidadee as idiossincrasias da personalidade de umpistoleiro de aluguel, Tocaia no asfalto, de RobertoPires, produzi<strong>do</strong> logo após A grande feira, é um filmeque pode ser visto em <strong>do</strong>is planos: no plano de suanarrativa e no plano de sua fábula (história). No primeiro,destaca-se sobremaneira a artesania de Pires,o <strong>do</strong>mínio pelo qual articula os elementos da linguagemcinematográfica em função da explicitação temática.Seu trabalho, nesse particular, é de ourivesariae, aqui, em Tocaia no asfalto, tem-se um exemploonde a narrativa suplanta a fábula, ainda que os <strong>do</strong>isplanos sempre devam ser observa<strong>do</strong>s em processode simbiose.Realiza<strong>do</strong> em plena efervescência <strong>do</strong> chama<strong>do</strong> Ciclo<strong>Baiano</strong> de <strong>Cinema</strong> - 1959-1963, Tocaia no asfaltoatesta o seu vigor e a sua atualidade temática. Duassequências podem ser consideradas antológicas edas melhores <strong>do</strong> cinema brasileiro: a tentativa deassassinato frustrada na Igreja de São Francisco, ea <strong>do</strong> cemitério <strong>do</strong> Campo Santo. Pires demonstra oseu apuro, o seu senti<strong>do</strong> de cinema, o timing raro,um faro, por assim dizer, para pensar cinematograficamenteo estabelecimento da mise-en-scène comofator de impacto e de emoção.Ainda que uma obra formatada nos moldes de umalinguagem clássica – o que não lhe tira de mo<strong>do</strong>nenhum a qualidade, que se fundamenta na chavenarrativa da progressão dramática griffithiana, há,no entanto, uma sequência que, sem se ter me<strong>do</strong>de errar, poder-se-ia chamá-la de eisensteiniana. Éaquela na qual Roberto Ferreira tenta se ver livre <strong>do</strong>spresos num caminhão e tenta intimidá-los com umrevólver, ocasionan<strong>do</strong> uma fuga em pleno movimento<strong>do</strong> veículo, quan<strong>do</strong> vem a morrer o irmão <strong>do</strong> perso-panorama <strong>do</strong> cinema baiano


76panorama <strong>do</strong> cinema baianonagem interpreta<strong>do</strong> por Agil<strong>do</strong> Ribeiro. A rapidez comque são expostos os rostos embruteci<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s pobresdiabos que estão no caminhão tem um ritmo quese assemelha a um touch busca<strong>do</strong> na concepção demontagem de Sergei Eisenstein. Esta sequência é umflash-back, quan<strong>do</strong> Agil<strong>do</strong> Ribeiro, dançan<strong>do</strong>, sentesemal e começa a ter pesadelos retroativos.Assim, Tocaia no asfalto se sobressai pela narrativaimpactante que está a serviço <strong>do</strong> argumento, masque pre<strong>do</strong>mina sobre este. Que versa sobre umpistoleiro contrata<strong>do</strong> para matar um político corrupto(Milton Gaúcho), que, chegan<strong>do</strong> <strong>do</strong> interior, vaimorar num prostíbulo e se apaixona por uma mulher(Arassary de Oliveira). Enquanto isso, um jovem políticobem intenciona<strong>do</strong> (Geral<strong>do</strong> D’El Rey) pretendeinstalar uma Comissão Parlamentar de Inquérito parainvestigar as falcatruas <strong>do</strong> grupo <strong>do</strong> político que estána mira <strong>do</strong> assassino. Mas as reviravoltas <strong>do</strong> argumentodeterminam uma contraordem e o pistoleiro,na iminência de matar, é avisa<strong>do</strong> que não mais precisacumprir o trabalho. Apesar de um mata<strong>do</strong>r profissional,tem, porém, seus códigos de honra e prefere iraté o fim naquilo para o qual fora incumbi<strong>do</strong>. LembraSargento Getúlio, de João Ubal<strong>do</strong> Ribeiro.Tocaia no asfalto se desenrola em <strong>do</strong>is ambientes: oambiente burguês da casa <strong>do</strong> político, abrangen<strong>do</strong>as festas, os colóquios e o namoro de sua filha (AngelaBonatti) com o jovem e promissor parlamentar,e o ambiente pobre <strong>do</strong> prostíbulo comanda<strong>do</strong> commão de ferro por Jurema Penna e, no qual, o pistoleiroé hospeda<strong>do</strong>, vin<strong>do</strong> a conhecer uma prostitutapela qual se apaixona. A latere, alguns personagens,como o policial interpreta<strong>do</strong> por Adriano Lisboa, quecircula entre os <strong>do</strong>is ambientes, Antonio Pitanga,outro mata<strong>do</strong>r, contrata<strong>do</strong>, desta vez, para matar ooutro. Pires, em alguns momentos, através da montagemparalela, tenta mostrar os acontecimentos emperspectiva de simultaneísmo, quan<strong>do</strong>, por exemplo,Agil<strong>do</strong> e Arassary conversam no Farol de Itapuã.Notável realiza<strong>do</strong>r, Roberto Pires, responsável peloprimeiro longa feito aqui, Redenção (1956-59), peloseu extrema<strong>do</strong> <strong>do</strong>mínio formal da linguagem, poderiater i<strong>do</strong> longe se trabalhasse no exterior, mas as injunçõesmerca<strong>do</strong>lógicas de um cinema caótico, como obrasileiro, determinaram-lhe, por vezes, um recessoforça<strong>do</strong>. Mas filmes como A grande feira e Tocaia noasfalto bastam para se ter um cineasta.Tocaia no Asfalto,1962


sol sobre a lamaJoão Palma Neto, antigo feirante da Água de Meninos,sindicalista, marinheiro de longo curso, quan<strong>do</strong>vê A grande feira (1961), de Roberto Pires, não gostada maneira pela qual o filme aborda a questão dagigantesca feira e decide bancar um outro filme comoresposta ou réplica. Com o dinheiro de sua poupança(naquela época não há a famigerada captação derecursos), alia-se a Walter Fernandes e Álvaro Queirozpara a produção de Sol sobre a lama. Com eles,funda a Guapira Filmes (Schindller se associa a Iglu,empresa que também faz um cine-jornal, A Bahia naTela, para poder realizar os filmes da Escola Baianade <strong>Cinema</strong>). Corre o ano de 1962 e a ideia de Palma éque a fita seja colorida, e com recursos mais sofistica<strong>do</strong>s.Escreve a história, baseada em suas experiências(diz-se que o personagem Valente, interpreta<strong>do</strong> porGeral<strong>do</strong> D’El Rey, é ele próprio), e confia o roteiroao carioca Alinor Azeve<strong>do</strong> (que tem a assinatura nosroteiros de alguns excelentes filmes como Assalto aotrem paga<strong>do</strong>r e Cidade ameaçada, ambos de RobertoFarias, Um ramo para Luísa, de J.B.Tanko, entre outros).Alinor faz o screenplay de Sol sobre a lama comoutro talentoso roteirista, Miguel Torres, que o cinemabrasileiro perde, pois morre num desastre automobilístico.Ambicioso, pretensioso, João Palma Netoquer fazer o filme definitivo sobre a Feira de Água deMeninos (que, como numa premonição, é incendiada,um verdadeiro inferno na baixada, em 1964, eseus feirantes se mudam para a Feira de São Joaquim,acanhada, embora hoje imensa, se comparada à deMeninos – e com previsão de ser descaracterizadaainda em 2010). Não vê, Palma Neto, nenhum diretorem Salva<strong>do</strong>r capaz de desenvolver as imagensem movimento pré-visualizadas no roteiro de Alinore Miguel. Também, neste ano, Roberto Pires está alançar Tocaia no asfalto, e Glauber Rocha está já noRio, a lançar o <strong>Cinema</strong> Novo e a preparar a produçãode Deus e o diabo na terra <strong>do</strong> sol.Palma chama o conceitua<strong>do</strong> crítico carioca, e tambémcineasta (Rua sem sol, Agulha no palheiro) mediano,Alex Viany, que é, nos anos 40, correspondente darevista O Cruzeiro em Hollywood. De volta ao Brasil,adere de corpo e alma ao cinema nacional, a fazer filmese a escrever nas páginas <strong>do</strong>s jornais. Um crítico,inclusive, chega a taxá-lo de “inimigo número 1 <strong>do</strong>cinema made in Hollywood”, apesar de, nesta meca,ter permaneci<strong>do</strong> por muito tempo a gozar de suasdelícias.77panorama <strong>do</strong> cinema baiano


78panorama <strong>do</strong> cinema baianoA maior obra de Alex Viany é, sem dúvida, a suaextenuante pesquisa que se transforma, em 1959,no livro Introdução ao <strong>Cinema</strong> Brasileiro, edita<strong>do</strong>pelo Instituto Nacional <strong>do</strong> Livro (várias vezes reedita<strong>do</strong>,uma delas pela Alhambra). Mas como cineasta,apesar de Rua sem sol e Agulha no palheiro estejamsob a influência <strong>do</strong> neorrealismo italiano, possuin<strong>do</strong>um certo pioneirismo na abordagem da problemáticasocial brasileira, é fraco como realiza<strong>do</strong>r, não sustentabem uma narrativa. O fiasco total e canto de cisnedesespera<strong>do</strong> estão muitos anos depois, em A noivada cidade, cujo roteiro original é de autoria de HumbertoMauro. O filme, no entanto, um anti-musical, éindefensável.Sol sobrea lama,1964Palma vê Rua sem sol e Agulha no palheiro e achaque Alex Viany é o realiza<strong>do</strong>r ideal para o desenvolvimentoimagético de Sol sobre a lama. Quan<strong>do</strong> chegaa Salva<strong>do</strong>r, Viany, homem genioso, está fascina<strong>do</strong>pelo cinema japonês, e tenta, no coman<strong>do</strong> direcional,dar um tom nipônico <strong>do</strong> ponto de vista cinematográficoà baianidade que se requer de Sol sobre a lama.Realiza<strong>do</strong> em 1963, mas somente lança<strong>do</strong> (em noitede festa) em novembro de 1964 no cine Guarany, oresulta<strong>do</strong> final, contu<strong>do</strong>, não agrada Palma. A brigacom Viany acaba na Justiça. Assim, há duas versõesde Sol sobre a lama. A versão <strong>do</strong> diretor e a versão <strong>do</strong>produtor.O argumento gira em torno da tentativa feita porburgueses gananciosos para acabar com a Feira deÁgua de Meninos. A complicar a situação, e, comisso, apressar o fim da feira, uma draga fecha o seu


ancora<strong>do</strong>uro, a impedir qualquer abastecimento.Os feirantes, desespera<strong>do</strong>s, lutam pela abertura <strong>do</strong>ancora<strong>do</strong>uro para fazer voltar o abastecimento. Doislíderes se apresentam para solucionar o problema.Um açougueiro (Roberto Ferreira/Zé Coió, em grandeinterpretação) propõe a ação violenta (uma espéciede Chico Diabo de A grande feira) <strong>do</strong>s feirantes paraque invadam, na raça, o ancora<strong>do</strong>uro, reabrin<strong>do</strong>-o.Outro líder, no entanto, Valente (Geral<strong>do</strong> D’El Rey,Rony, o marinheiro sueco de A grande feira, e oManoel de Deus e o diabo na terra <strong>do</strong> sol), que vendematerial de construção, é a favor de acertos conciliatórioscom poderosos políticos e a uma campanha naimprensa local em favor da volta à normalidade. Umaação, portanto, junto aos poderes constituí<strong>do</strong>s para aresolução <strong>do</strong> conflito.Jean-Claude Bernardet, em seu clássico estu<strong>do</strong> sociológicosobre cinema brasileiro intitula<strong>do</strong> Brasil emtempo de cinema, ensaio que procura entender a sociedadeatravés de alguns filmes nacionais representativos,dá importância na sua análise a Sol sobre alama e escreve: “Em vez de malha<strong>do</strong> superficialmente,o filme deveria ter si<strong>do</strong> discuti<strong>do</strong> mais abertamente,pois condensa toda uma tática errada, premissassociológicas falsas e idealistas que caracterizam umlongo perío<strong>do</strong> da vida da sociedade brasileira. Sol sobrea lama pode ser considera<strong>do</strong> como um <strong>do</strong>s maissignificativos testemunhos de toda uma política quefracassou.”A fotografia é de Ruy Santos (que <strong>do</strong>is anos depoisviria filmar, em Buraquinho, praia perto de Itapuã,Onde a terra começa, basea<strong>do</strong> em conto de MáximoGorki, com Irma Alvarez). No cast, Othon Bastos, Geral<strong>do</strong>D’El Rey, Roberto Ferreira, Dilma Cunha, MiltonGaúcho, Gessy Gesse, Maria Lígia, Alair Liguori, CarlosLima, Garibal<strong>do</strong> Matos, Doris Monteiro (a cantoraque trabalha com Viany em Agulha no palheiro e, nacerta, chamada por ele), Jurema Penna, Carlos Petrovich,Antonio Pitanga, Tereza Racquel, Glauce Rocha,Lídio Silva. Com música de Pixinguinha e Vinicius deMorais. O teatrólogo João Augusto funciona comodiretor da segunda unidade.79panorama <strong>do</strong> cinema baiano


Meteorango Kid,1969


o surto undergroundRealiza<strong>do</strong> em 1969, ten<strong>do</strong>, neste mesmo ano, noFestival de Brasília, recebi<strong>do</strong> o Prêmio <strong>do</strong> Público ea Margarida de Prata da Central Católica de <strong>Cinema</strong>,Meteorango Kid, o Herói Intergalático, de André LuizOliveira, apesar de lança<strong>do</strong> em circuito baiano em1970, somente <strong>do</strong>is anos depois, em 1972, conseguevaga no circuito <strong>do</strong> eixo Rio-São Paulo.Influencia<strong>do</strong> pelo cinema marginal paulista, cujocarro-chefe é O Bandi<strong>do</strong> da Luz Vermelha (1968),de Rogério Sganzerla, Meteorango, ao contrário <strong>do</strong>soutros filmes <strong>do</strong> Ciclo <strong>Baiano</strong> de <strong>Cinema</strong> – que temuma proposta de retratar o drama <strong>do</strong> homem brasileiro–, é uma obra que procura mostrar a angústiada geração de seu autor, que, antes de completarduas décadas de existência, é marcada pela censura,pela ditadura, pelo total cerceamento da liberdadede expressão no campo social, principalmente apósa eclosão <strong>do</strong> Ato Institucional número 5 no dia 13 dedezembro de 1968. Meteorango é, por conseguinte,um filme à procura de uma saída para a sua geração,que, sufocada, submerge no universo das drogas.O filme encerra a dúvida, o desespero, a incerteza,tu<strong>do</strong>, porém, carrega<strong>do</strong> com humor.No dia de seu aniversário, Lula passa por experiênciasreais e fantásticas: pela manhã transforma-seem batmãe e surra os pais; na escola, assiste a umaassembleia que não o convence; realiza um filme deTarzan e comparece ao enterro de um amigo homossexual,recordan<strong>do</strong>-se dele em vida. E, finalmente,participa de uma sessão barra pesada de maconha e,na rua, é ataca<strong>do</strong> por um vampiro no Pelourinho. Aochegar à sua casa, seus familiares aguardam-no parauma festa. Mas Lula permanece como que crucifica<strong>do</strong>no meio das palmeiras – como no início.A influência de Meteorango é muito forte, principalmentepara os cineastas que aparecem na novageração <strong>do</strong>s anos 70 com a explosão <strong>do</strong> boom superoitista.Edgard Navarro, em Talento Demais, rendehomenagem ao filme de André Luiz Oliveira, consideran<strong>do</strong>-oa sua fonte de inspiração para se tornarcineasta.Walter da Silveira, acompanhan<strong>do</strong> o filme no Festivalde Brasília, envia para a Tribuna da Bahia uma críticaentusiástica. Num trecho <strong>do</strong> copioso artigo, diz o crítico:“Nenhum outro filme em Brasília mereceria real-81panorama <strong>do</strong> cinema baiano


82panorama <strong>do</strong> cinema baianomente o amor <strong>do</strong>s jovens como este. Não porque seuautor tenha 21 anos e tente compor-se fisicamentecomo um hippie. Mas porque Meteorango Kid exprime,em insólito e em audacioso, por instantes em insegurança,os arrebatamentos da juventude. De umasinceridade absoluta, poden<strong>do</strong>-se admitir que nelehaja muito de confessional, espécie de autobiografiainterior, atreve-se a uma série de denúncias que, porsua firme lucidez, não se diriam conscientizadas peloautor tão abstraí<strong>do</strong> <strong>do</strong> real de sua vida aparente, masque, ligadas umas às outras, o definem e marcamcomo um retratista fiel das angústias juvenis, das suascausas e consequências.”Se Meteorango Kid envelhece, Caveira My Friendatualmente é, por assim dizer, apenas uma peça dearqueologia. Álvaro Guimarães, na ânsia de criar algonovo, “arrebentar com as estruturas da linguagem”,consegue dar a Caveira My Friend a sua efemeridadee circunstancialidade. Por outro la<strong>do</strong>, não se podenegar o seu valor de <strong>do</strong>cumento: <strong>do</strong>cumento de umamentalidade, de um estilo de vanguarda, de umavontade de extrapolar os limites aristotélicos dasunidades de lugar, ação e tempo, e explodir colori<strong>do</strong>,como se proclama à época. Há um outro filme, destaépoca, A Construção da Morte, de Orlan<strong>do</strong> Senna,que se pensou inacaba<strong>do</strong>. A publicação de O HomemCaveira My Friend,1970


da Montanha, biografia deste cineasta escrita pelojornalista Hermes Leal, no entanto, revela que o filmefoi, sim, concluí<strong>do</strong>, mas um de seus produtores, BragaNeto, receoso por causa <strong>do</strong> Ato Institucional número5, que então se instaura no país, destrói seus negativos,envian<strong>do</strong>-o a uma porção de pessoas com oreca<strong>do</strong> de pôr fim a eles.Em 1970, José Frazão conhece Deolin<strong>do</strong> Checcucci,diretor de teatro, e, juntos, resolvem fazer um filme:Akpalô, chaman<strong>do</strong> para iluminá-lo o fotógrafo VitoDiniz. Vive-se, neste perío<strong>do</strong>, a efervescência <strong>do</strong>Flower Power, a filosofia da paz e <strong>do</strong> amor, <strong>do</strong> façaamor, mas não a guerra, e o filme de Frazão/Checcuccireflete bem a época e sua mentalidade. Não sequer mais, como no Ciclo <strong>Baiano</strong> de <strong>Cinema</strong> e, por extensão,no <strong>Cinema</strong> Novo, fazer um cinema engaja<strong>do</strong>que reflita os problemas sociais, políticos, os fenômenosda sociedade na sua exterioridade. Esmaga<strong>do</strong>s noprocesso de criação pelo AI-5, os cineastas se encontramproibi<strong>do</strong>s de enfocar a realidade <strong>do</strong> país. Resta,portanto, o escapismo.Assim, Akpalô, visto apenas numa única sessãoespecial no antigo cinema Liceu em 1971, é o reflexodessa turbulência caótica e o filme, a rigor, é uma viagem.Uma espécie esdrúxula de extraterrestre, que secorporifica como homem (Sílvio Varjão), passa 24 horasem Salva<strong>do</strong>r, paqueran<strong>do</strong> garotas, contemplan<strong>do</strong>a natureza, e viajan<strong>do</strong> interiormente pelos efeitos dasdrogas. No elenco, Armin<strong>do</strong> Jorge Bião, Anecy Rocha,entre outros, com iluminação inspirada de Vito Diniz.O filme demonstra a incapacidade de seus autoresexercitar o ritmo cinematográfico, pre<strong>do</strong>minan<strong>do</strong> astomadas longas, demoradas, sem o corte preciso nomomento exato de sua evolução dramatúrgica. MasAkpalô, com o tempo, se perde e os seus negativosdesapareceram.O longa-metragem seguinte <strong>do</strong> surto undergroundé O Anjo Negro (1972), de José Umberto, obra compromissadacom a apologia da cultura negra comoforça mítica que paira solene no patriarca<strong>do</strong> colonialda Bahia. É um filme que no mesmo tempo que tentaum exercício de cinema procura desenvolver o pontoalegórico no qual se insere a negritude como forçaavassala<strong>do</strong>ra que rompe os alicerces de uma famíliade tendências coloniais. Mário Gusmão corporificaesta força, que, como o anjo pasoliniano de Teorema,invade uma célula mater com a virulência de umtsunami.É preciso, porém, ressaltar, um filme undergroundnão devidamente valoriza<strong>do</strong> nos compêndios sobreo chama<strong>do</strong> <strong>Cinema</strong> Marginal, talvez por se tratar deum média-metragem. Trata-se de Voo Interrompi<strong>do</strong>,de José Umberto, que, realiza<strong>do</strong> em 1969, é considera<strong>do</strong>por Álvaro Guimarães, o diretor de Caveira MyFriend, o “primeiro filme realmente underground <strong>do</strong>cinema baiano”. Voo interrompi<strong>do</strong> tem característicasdesse cinema que tenta rasgar a narrativa tradicionalclássica e linear e tratar a escrita fílmica como umpoema na esteira da ideia de Píer Paolo Pasolini aocontrapor um cinema de prosa e um cinema de poesia.O elo sintático de Voo interrompi<strong>do</strong>, isto é, sualinguagem, é que assume pre<strong>do</strong>minância diante de83panorama <strong>do</strong> cinema baiano


84panorama <strong>do</strong> cinema baianosua fabulação. Uma mulher interiorana aban<strong>do</strong>na asua cidade interiorana e vem tentar a sorte na capital,tornan<strong>do</strong>-se uma empregada <strong>do</strong>méstica pela manhãe uma prostituta à noite. Resta-lhe, apenas, depoisde tantos desatinos e sofrimentos, o suicídio. O filme,assim conta<strong>do</strong>, como to<strong>do</strong> filme que se preza, nãopode oferecer uma ideia próxima <strong>do</strong> que realmenteassume quan<strong>do</strong> visto, pois uma obra que é expressãode sua linguagem específica. Aliás, José Umberto fazVoo interrompi<strong>do</strong> logo depois de dirigir, em parceriacom André Luiz Oliveira, um curta que obtém um prêmioimportante no Festival Jornal <strong>do</strong> Brasil/Mesbla: ODoce Amargo (1968).Em O Anjo Negro, Hércules (Raimun<strong>do</strong> Mattos), umjuiz de futebol, sua mulher (Eliana Tosta), <strong>do</strong>is sobrinhosjovens (Roberto Prates Maia e Frida Guttman),o sogro (Eládio de Freitas) e <strong>do</strong>is emprega<strong>do</strong>s moramnuma casa grande de estilo colonial (o MuseuWanderley de Pinho). Em crise em sua profissão e navida conjugal, Hércules vê surgir, de repente, e misteriosamente,Calunga (Mário Gusmão), um emissáriomístico de afinidade com os exus, espontâneo, brincalhão,síntese da cultura africana. Sua força dionisíaca,barroca, carnavalesca, selvagem, profana, sacodeos alicerces da família patriarcal. Estabelecen<strong>do</strong> ocaos, a desordem, o sabbat negro propõe um novomun<strong>do</strong> – aberto à lucidez de cada um – de alegria efelicidade.Na segunda metade <strong>do</strong>s anos 60, dá-se, portanto, naBahia, o surto underground, cujos filmes podem serconsidera<strong>do</strong>s a antítese <strong>do</strong> chama<strong>do</strong> Ciclo <strong>Baiano</strong> de<strong>Cinema</strong> da primeira metade (Barravento, de GlauberRocha, A grande feira e Tocaia no asfalto, ambos deRoberto Pires, O caipora, de Oscar Santana, Sol sobrea lama, de Palma Neto e Alex Viany, O grito da terra,de Olney São Paulo, entre outros). Se o <strong>Cinema</strong> Marginalbrasileiro se situa como uma reação ao <strong>Cinema</strong>Novo e seus postula<strong>do</strong>s, o surto que se verifica naBahia vem influencia<strong>do</strong> pelo espírito da época e,principalmente, pelo carro-chefe, que é, indiscutivelmente,O bandi<strong>do</strong> da luz vermelha (1968), de RogérioSganzerla.Obras radicais nas suas estruturas narrativas, os filmes<strong>do</strong> surto underground são extremamente revela<strong>do</strong>resda angústia de uma geração e da tentativa deinstaurar um cinema mais volta<strong>do</strong> para a expressãopessoal e desvincula<strong>do</strong> <strong>do</strong>s padrões convencionais <strong>do</strong>espetáculo cinematográfico.André Luis Oliveira, baiano de Salva<strong>do</strong>r (1948), começaa se interessar pelas imagens em movimentoquan<strong>do</strong> toma um curso livre de um ano (1968) daUniversidade Federal da Bahia ministra<strong>do</strong> por Walterda Silveira e Gui<strong>do</strong> Araújo. Neste curso, vem aconhecer pessoas idealistas que também têm comosonho a realização cinematográfica. Neste mesmoano, realiza, em parceria com José Umberto, o curtaDoce amargo, que, inscrito no Festival Ama<strong>do</strong>r Jornal<strong>do</strong> Brasil/Mesbla, é premia<strong>do</strong> em segun<strong>do</strong> lugar. Doceamargo é uma tentativa poética de registrar a vidaatormentada de um vende<strong>do</strong>r de pirulitos que passapor várias situações amargas. Já há, aqui, o uso daalegoria, de figuras de linguagem e uma fragmenta-


ção narrativa que iria se acentuar mais em MeteorangoKid, o herói intergalático.Intitula<strong>do</strong> a princípio O mais cruel <strong>do</strong>s dias, e produzi<strong>do</strong>por seu pai, Meteorango é a estreia de André LuizOliveira no longa, que, apresenta<strong>do</strong> no Festival deBrasília, obteve o Prêmio <strong>do</strong> Público e a Margarida dePrata da Central Católica de <strong>Cinema</strong>. Em 1969, como reina<strong>do</strong> <strong>do</strong> Ato 5, a censura está atenta a to<strong>do</strong>s osfilmes da mostra competitiva e disposta a proibir Meteorango.No ano seguinte, em 1970, um outro filmeunderground baiano, Caveira, my friend, de ÁlvaroGuimarães, mostra<strong>do</strong> no mesmo festival num climaasfixiante, tem suas cópias queimadas em plena Praça<strong>do</strong>s 3 poderes – Caveira, my friend leva quase 20 anossem ser visto até que consegue ser encontra<strong>do</strong>.André Luis Oliveira passa mais de cinco anos semfazer outro longa até que, em 1975, resolve realizarA lenda de Ubirajara, adaptação de um romance deJosé de Alencar, que se caracteriza por uma visão românticae nostálgica <strong>do</strong> universo primitivo <strong>do</strong>s índiosbrasileiros. O longa seguinte somente aparece 20anos depois: Louco por cinema, em 1995. Cineastabem bissexto, portanto, que também realiza, nestetempo, curtas (Ladeiras de Salva<strong>do</strong>r, por exemplo).Em Meteorango Kid, o herói intergalático, vale ressaltara iluminação primorosa de Vito Diniz (em películapreta e branca), um <strong>do</strong>s mais capacita<strong>do</strong>s fotógrafos<strong>do</strong> cinema brasileiro, pouco conheci<strong>do</strong> porque nuncaquis sair da velha província, mas responsável pela direçãode fotografia de toda uma geração de cineastasbaianos. No elenco, a figura de destaque é AntonioLuis Martins, que faz Lula. Também estão presentes:Nilda Spencer, Milton Gaúcho, Carlos Bastos, ManoelCosta Junior (Caveirinha), Antonio Vianna, Aidil Linhares,Sonia Dias, Ana Lúcia Oliveira, João Di Sordi.No recente festival V <strong>Panorama</strong> Internacional Coisade <strong>Cinema</strong>, que se realizou em Salva<strong>do</strong>r em marçode 2009, Meteorango Kid foi apresenta<strong>do</strong> em cópiatotalmente restaurada e luminosa. E acaba de serlança<strong>do</strong> em DVD na coleção dedicada por EugênioPuppo ao <strong>Cinema</strong> Marginal.85panorama <strong>do</strong> cinema baiano


86panorama <strong>do</strong> cinema baianoRedenção,1959


a redençãode meteorango emo superoutroTrinta anos separam Redenção (1959), de Roberto Pires,de O Superoutro (1989), de Edgard Navarro, masapenas 10 <strong>do</strong> primeiro em relação a Meteorango Kid,o herói intergalático (1969), de André Luiz de Oliveira.E 20 anos entre este e o filme de Navarro. A distância,se, por um la<strong>do</strong>, revela-se maior entre Oliveirae Navarro, por outro, no entanto, faz ver nela umamaior afinidade temática, apesar das duas décadas,<strong>do</strong> que em relação a Redenção e Meteorango, apenasde uma década.O fato é que os anos 60 transformaram a maneirade ver o cinema com a desdramatização efetuadapor Michelangelo Antonioni e Roberto Rossellini e adesconstrução, por Jean-Luc Godard e segui<strong>do</strong>res. De1959 a 1969, a linguagem cinematográfica deu umsalto de 50 anos na sua evolução. Redenção, primeirolonga-metragem baiano, é uma obra pioneira, mas,tematicamente, um thriller de pouca pretensão a nãoser a de contar uma história policial. O artesanatode Roberto Pires se revela notável nessa tentativa, eRedenção é um marco porque tornou realidade umsonho que parecia impossível: fazer cinema, e delonga- metragem, na Bahia. Se o cinema baiano nãoexistisse, Roberto Pires o teria inventa<strong>do</strong>, escreveuGlauber Rocha em Revisão crítica <strong>do</strong> cinema brasileiro.E se poderia dizer, acrescentan<strong>do</strong>, se Redençãonão viesse a se concretizar em realidade como filme,talvez não tivessem existi<strong>do</strong> Meteorango e O Superoutro.A evolução da linguagem, a revolução <strong>do</strong>s costumes,<strong>do</strong> comportamento, e a liberdade temática quecaracterizam os efervescentes anos 60 determinam osurgimento, no fim desta década, de um surto underground,o chama<strong>do</strong> <strong>Cinema</strong> Marginal, que tem seucarro-chefe em O bandi<strong>do</strong> da luz vermelha (1968), deRogério Sganzerla; e influencia<strong>do</strong>s por este, alguns filmesbaianos, a exemplo de Caveira, my friend (1969),de Álvaro Guimarães, Voo interrompi<strong>do</strong>, de José Umberto,e Meteorango Kid, o herói intergalático.Meteorango Kid é um cinema que não obedece àsleis de progressão dramática anunciadas por DavidWark Griffith e seu discurso é um discurso fragmenta<strong>do</strong>,que inclui, na narrativa, materiais de procedênciasdiversas (signos gráficos, cartazes, fotografias,legendas...). Lula Bom Cabelo posiciona-se como umrapaz que reflete a angústia da geração de seu autor,a geração que deu origem a Maio de 68. Desorienta-87panorama <strong>do</strong> cinema baiano


88panorama <strong>do</strong> cinema baiano<strong>do</strong> e sem perspectivas, acorda, sai para ir ao enterrode um amigo. No meio <strong>do</strong> caminho várias situaçõesse sucedem no campo <strong>do</strong> real (a sequência já antológica<strong>do</strong>s personagens com amigos a fumar maconhanum apartamento) e no campo <strong>do</strong> onírico (a luta nomar entre falsos piratas de guitarra na mão).O personagem de O Superoutro, interpreta<strong>do</strong> porBertrand Duarte, pode ser considera<strong>do</strong> uma extensão<strong>do</strong> personagem de Lula Bom Cabelo. A bem dizer:O Superoutro é filho de Meteorango. Mas se Lulaage ainda no nível da realidade circundante, o heróinavarriano rasga esta em direção da celebração <strong>do</strong>imaginário total. O próprio Navarro já confessouque recebeu um grande impacto quan<strong>do</strong> viu, pelaprimeira vez, Meteorango Kid. A influência deste emO Superoutro é decisiva, ainda que distantes, um<strong>do</strong> outro, 20 anos. Enquanto Redenção possui osliames <strong>do</strong> fazer cinema, distancia-se, porém, apesarde 10 anos de diferença, das constantes estilísticas etemáticas de Meteorango Kid, o herói intergalático. Jáse está, neste, em outra cultura, em outra realidade.MeteorangoKid, 1969


as jornadas baianasAs sementes das jornadas começaram a ser plantadasquan<strong>do</strong> Gui<strong>do</strong> Araújo, egresso da Tchecoslováquia,onde permaneceu por mais de dez anos, em 1967,ingressou na Coordenação de Extensão da UniversidadeFederal da Bahia, que se chamava, na época,Departamento Cultural da UFBA. Walter da Silveira, oilustre ensaísta cinematográfico baiano, sempre desejouque a Universidade tivesse um curso de cinemae, com a presença de Valentin Calderón de la Barca,um entusiasta da ideia, na direção <strong>do</strong> departamento,encampan<strong>do</strong> a sugestão, viu-se idealiza<strong>do</strong> o projetoacalenta<strong>do</strong> por Walter. E, em 1968, estabeleceu-seum Curso Livre de <strong>Cinema</strong> com duração de um anoe uma carga horária de quatro horas semanais, comaulas às terças e às quintas. O ensaísta ensinaria ‘Históriae Estética <strong>do</strong> <strong>Cinema</strong>’ e Gui<strong>do</strong> Araújo, chama<strong>do</strong>para compor o corpo <strong>do</strong>cente <strong>do</strong> curso, ‘Teoria e Prática’.O curso foi um sucesso e dele saíram alguns <strong>do</strong>sprincipais realiza<strong>do</strong>res e críticos futuros <strong>do</strong> cinemabaiano: André Luiz Oliveira – que realizou, ainda em1969, Meteorango Kid, o herói intergalático, clássico<strong>do</strong> chama<strong>do</strong> <strong>Cinema</strong> Marginal, entre outros filmes,José Umberto – que, além de curtas, fez O anjo negro,longa-metragem, em 1972, Carlos VasconcelosDomingues, Geral<strong>do</strong> Macha<strong>do</strong>, José Frazão, autor deum longa baiano desconheci<strong>do</strong> e perdi<strong>do</strong>, Akpalô, em1971 e, no Rio, O mistério <strong>do</strong> Colégio Brasil, O últimoherói <strong>do</strong> gibi..., Ney Negrão – que tem um curtaclássico, O carroceiro, de 1965, entre muitos outros,inclusive este colunista.Walter da Silveira não pôde continuar à frente <strong>do</strong>curso em 1969, por motivos de <strong>do</strong>ença, um câncerque viria a matá-lo em novembro de 1970. Mas Gui<strong>do</strong>Araújo, forman<strong>do</strong> o GEC (Grupo Experimental de<strong>Cinema</strong>), continuou-o por alguns anos. Vale ressaltarque, ainda no primeiro semestre de 69, Walter eGui<strong>do</strong> conseguiram <strong>do</strong> Reitor da UFBa, Dr. RobertoSantos, que o Salão Nobre da Reitoria fosse destina<strong>do</strong>,aos sába<strong>do</strong>s, à exibição de filmes seleciona<strong>do</strong>s,com a distribuição, na porta, de uma análise escritapelo ensaísta. Um feito e tanto, pois significou o reconhecimentopela Universidade da natureza artística<strong>do</strong> cinema, que, a partir de então, se punha em pé deigualdade, perante a academia, às demais artes.O passo seguinte foi a estruturação de um modestofestival, que Gui<strong>do</strong> Araújo, desde logo, insistiuem chamar de Jornada, que teve início nos anos dechumbo da ditadura Médici, em 1972, janeiro, na89panorama <strong>do</strong> cinema baiano


90panorama <strong>do</strong> cinema baianosemana da festa <strong>do</strong> Bonfim e restrita à Bahia. O seuorganiza<strong>do</strong>r, Gui<strong>do</strong> Araújo, ampliou-a para Nordestinano ano seguinte e, em setembro, mês no qual ela seestabeleceu definitivamente. Contou, para isso, comduas ajudas fundamentais: a de Cosme Alves Neto,diretor da <strong>Cinema</strong>teca <strong>do</strong> Museu de Arte Moderna<strong>do</strong> Rio, e a de Roland Schaffner, que, naquela época,tomava posse na direção <strong>do</strong> Instituto Goethe e iriatransformá-lo nos anos 70 num polo aglutina<strong>do</strong>r dasartes na Bahia, fazen<strong>do</strong> história. Apesar de patrocinadapela Universidade Federal da Bahia, esta, comalgumas exceções – como a <strong>do</strong> reitora<strong>do</strong> de GermanoTabacoff e o atual, de Naomar Almeida (2002-2010),nunca deu o apoio financeiro necessário, precisan<strong>do</strong>Gui<strong>do</strong> Araújo captar recursos em outros lugares. Oponto de partida da Jornada, realmente, foi no últimodia da Bahiana, em 1972, quan<strong>do</strong>, depois da entrega<strong>do</strong>s prêmios na Reitoria, Roland Schaffner reuniualguns convida<strong>do</strong>s em seu apartamento na Rua Banco<strong>do</strong>s Ingleses. Foi aí que Gui<strong>do</strong> teve a conversa propulsoracom Cosme e Schaffner, viabilizan<strong>do</strong> um projetoque, a seus olhos, poderia ser exequível e realmenteviável.A inexistência de eventos culturais por causa <strong>do</strong>arrocho ditatorial foi importante para o sucesso daJornada, que se beneficiou enormemente <strong>do</strong> espaçoquase consular <strong>do</strong> Instituto Goethe – também chama<strong>do</strong>de Icba, no Corre<strong>do</strong>r da Vitória. Os melhores anosda Jornada foram na década de 70, quan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> seconcentrava no Goethe. Acolhe<strong>do</strong>r, o lugar tambémservia para que os cineastas de outros esta<strong>do</strong>s pudessemse reunir mais à vontade, discutir seus problemas.Também os cineclubistas desbarata<strong>do</strong>s peladitadura puderam planejar novos rumos para seustrabalhos. A Associação Brasileira de Documentaristas(ABD) foi criada na Jornada, em 1973, e nesta, comfesta e encontros, comemora seus 30 anos. E algunsfilmes, que eram exibi<strong>do</strong>s livremente na Jornada,quan<strong>do</strong> apresenta<strong>do</strong>s em outras capitais, sofriam aintervenção da censura. Tu<strong>do</strong> por causa <strong>do</strong> espaçoicbano que os agentes da ditadura possuíam umaespécie assim de cerimônia em relação a uma intromissãoinvasiva.Os anos 70 viram nascer o boom superoitista e, comele, uma nova geração de cineastas, como EdgardNavarro, Marcos Sergipe (por onde anda?), Fernan<strong>do</strong>Bélens, Pola Ribeiro, Joel de Almeida, José Araripe Jr,entre outros. As discussões eram acaloradas no cineteatro<strong>do</strong> Icba, transforman<strong>do</strong>-se, algumas vezes,em verdadeiros happenings. Fernan<strong>do</strong> Cony Camposbradava em alto e bom som suas diatribes bem construídascom humor e anarquia. E anarquia maior faziaEdgard, o Navarro, que, certa ocasião, para protestar,tirou a roupa e nu, com a mão no bolso, provocoufrenesi numa inesquecível noite da Jornada.Houve também o incentivo, pois os cineastas tinhamseu calendário sui generis estipula<strong>do</strong> entre setembroe setembro. A Jornada os incentivava a filmes, à expressãopelas imagens em movimento. Com o passar<strong>do</strong> tempo, no entanto, a abertura democrática, a descentralização<strong>do</strong>s espaços e o surgimento de outrosfestivais curta-metragistas espalha<strong>do</strong>s pelo país, aJornada perdeu a sua exclusividade, quan<strong>do</strong> reinava,


absoluta – pela, como já se disse, sua característicaconsular, na ditadura como foco de resistência. Se deBaiana passou logo a Nordestina e mais rápida aindaa ter uma dimensão nacional, por outro la<strong>do</strong> esperoumais de uma década para se tornar Internacional, em1985. No itinerário da Jornada houve também sístolese diástoles. Em 1979, transferiu-se para a Paraíba, em83 e 84, para Cachoeira, e quase termina em 89 e 90.Há muito tempo que a Jornada não apresenta a afluênciade público que tinha nos anos 70 e mesmo nos80. Dizem que o estilo concentracionista de Gui<strong>do</strong>Araújo impede a participação da comunidade cinematográfica,que seu modelo de evento está defasa<strong>do</strong>pela passagem <strong>do</strong> tempo, que repisa os mesmostempos, que não aderiu à pós-modernidade – nesteparticular, ainda bem!, que a estrutura de sua administraçãoprecisa ser reformulada, que continua comuma ideia de festival já há muito superada. Que pensaa Jornada nos mesmos moldes <strong>do</strong>s anos 70. Intrigastípicas, entretanto, de uma oposição que se dilui.91panorama <strong>do</strong> cinema baianoMeteorangoKid, 1969


o boom superoitista93Superoutro,1989O advento <strong>do</strong> digital veio a modificar as relações deemissão e recepção no cinema baiano – não somenteneste, mas, a rigor, no cinema feito na maioria <strong>do</strong>spaíses. Pela primeira vez na história da chamadasétima arte, a realização de filmes se democratizou,fican<strong>do</strong> acessível a qualquer pessoa que, por acaso,queira se expressar por meio das imagens emmovimento. Basta dizer que até um celular podeefetuar o registro das imagens em movimento, asquais, montadas devidamente, geram uma obraaudiovisual.A facilidade, porém, hoje encontrada, não se tinhahá pouco tempo atrás, quan<strong>do</strong> fazer cinema eraum assunto restrito a profissionais. A facilitação <strong>do</strong>registro, no entanto, começa a ser uma realidade apartir <strong>do</strong>s anos 70 com a introdução no merca<strong>do</strong> dascâmeras Super 8. Longe se estava, entretanto, dafacilidade que se encontra com o advento <strong>do</strong> digital.Vários <strong>do</strong>s realiza<strong>do</strong>res baianos que atualmentefilmam profissionalmente (Edgard Navarro, JoséAraripe, Pola Ribeiro, Fernan<strong>do</strong> Bélens) tiveram asua hora e vez na expressão audiovisual quan<strong>do</strong>viram a oportunidade de registrarem seus anseiosno Super 8.Estudante de medicina, Fernan<strong>do</strong> Bélens, quan<strong>do</strong>veio a conhecer uma câmera Super 8, decidiu peloregistro e impressão de imagens em movimento.E inscreveu seus pequenos filmes nas jornadasbaianas e, para sua surpresa, ganhan<strong>do</strong> prêmioscom Experiência I, ao qual se seguiram outrasexperiências sarcásticas e demoli<strong>do</strong>ras. Nestaprimeira experiência, uma mulher já com certa idade,meio obesa, se oferece aos olhos <strong>do</strong> especta<strong>do</strong>rem planos fixos que focalizam partes <strong>do</strong> seu corpo.Ela é a escritora Dinorah <strong>do</strong> Valle, que acompanhouo processo evolutivo de Bélens até Pau Brasil, seuprimeiro longa-metragem, que é, a rigor, basea<strong>do</strong> emum livro dela, premia<strong>do</strong> em Cuba.A iconoclastia, o tom anárquico, o deboche, a nonchalance, caracterizavam os chama<strong>do</strong>s superoitistas,sen<strong>do</strong> que o mais radical, nesse senti<strong>do</strong>, era EdgardNavarro, que, se, no seu primeiro filme na bitola,Alice no país das mil novilhas (1976), não chegou acausar frisson, em O rei <strong>do</strong> cagaço (1977), o tiro nãosaiu pela culatra, provocan<strong>do</strong> elogios entusiásticosou retiradas estratégicas da sala de projeção, quan<strong>do</strong>apresenta<strong>do</strong> em um das jornadas em mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong>decurso da década de 70. Os filmes seguintes depanorama <strong>do</strong> cinema baiano


94panorama <strong>do</strong> cinema baianoNavarro saíram da província para se estabeleceremnacionalmente em festivais <strong>do</strong> Super 8, a exemplo deExposed, Lin e Katazan, entre outros.O crítico paulista Jairo Ferreira, autor <strong>do</strong>indispensável <strong>Cinema</strong> de Invenção, escreveu umartigo sobre o que viu num debate no qual EdgardNavarro ameaçou tirar a roupa:Salva<strong>do</strong>r – Durante a mostra “O Horror Nacional”,ocorrida no recente festival de Brasília, o eminentehomem de cultura universal e de cinema brasileiroem particular, Francisco Luis de Almeida Salles,afirmou que “é preciso horrificar as pessoas paraque elas readquiram a visão, pois sem horror não hávisão”. Essa frase lapidar cai como uma luva nesta7ª Jornada Brasileira <strong>do</strong> Curta-Metragem que serealiza aqui em Salva<strong>do</strong>r. A única diferença é a corlocal: parafrasean<strong>do</strong> Almeida Salles, posso dizer queé preciso haver um desnudamento cultural, pois sóassim as pessoas poderão readquirir a visão e vercom olhos livres, como propunha o poeta Oswald deAndrade.Explican<strong>do</strong> melhor: o nível <strong>do</strong>s filmes apresenta<strong>do</strong>sna Jornada está tão baixo que pior é impossível. Umasituação que, evidentemente, reflete-se nos debatesque estão tão insossos, “dirigi<strong>do</strong>s” e repetitivosque chegam a saturar. Inesperadamente, porém,um acontecimento da maior importância sacudiu apoeira da polêmica provinciana, embora ainda nãotenha da<strong>do</strong> a volta por cima: durante um <strong>do</strong>s debatesmais repressivos, o jovem cineasta Edgar Navarrotomou o microfone e disse o seguinte: “Quem tem omicrofone tem o poder. Agora eu vou enrolar vocêsto<strong>do</strong>s com o fio deste microfone, vou tirar toda aminha roupa e espero que vocês aban<strong>do</strong>nem estasala, porque eu quero ficar nu e só aqui. Vocês falammuito em realidade social, mas esquecem que antesé preciso se descobrir a si mesmo”.Tu<strong>do</strong> isso pode parecer exagero, mas não é:aconteceu aqui em Salva<strong>do</strong>r, aliás, o único lugar <strong>do</strong>Brasil onde essas coisas poderiam acontecer. Pareceque o calor escaldante que faz nesta cidade provocaalterações físicas e mentais nas pessoas. Como foique isso aconteceu? Qual era a situação anterior quelevou o cineasta Navarro a tomar essa atitude tãoradical? Bem, na verdade, a maioria das pessoas estáencaran<strong>do</strong> isso como folclore. Por ora é oportuna aopinião <strong>do</strong> diretor da Jornada <strong>do</strong> Curta-Metragem,Gui<strong>do</strong> Araújo:“A Jornada tem uma tradição de liberdade muitogrande, conquistada com muito trabalho e esforçodurante os últimos sete anos. Meu único temoré que atitudes como a de Edgar Navarro possamcomprometer essa mesma liberdade, porque muitaspessoas podem interpretar de forma equivocadae negativa aquele gesto. Sempre lutei para quehouvesse muita alegria neste encontro, mas ocineasta foi longe demais. Minha esperança é queele justifique a sua atitude, fazen<strong>do</strong> dela algo maisconsequente”.No dia em que foi exibi<strong>do</strong> o filme Exposed, de EdgardNavarro, o chama<strong>do</strong> astral baiano estava muito


carrega<strong>do</strong>. Os cineastas foram chama<strong>do</strong>s à mesapelo coordena<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s debates, o crítico José CarlosAvellar e, um por um, foram dizen<strong>do</strong> o que já tinhamfeito em cinema antes <strong>do</strong> filme exibi<strong>do</strong> no dia. Nomomento em que Navarro pegou o microfone,recusou-se a dar prosseguimento àquela chatíssimaexplicação de “curriculum vitae” e recitou em francêsum rápi<strong>do</strong> poema de Marcel Proust, lembran<strong>do</strong> seustempos de escola. Até aí, tu<strong>do</strong> bem. Acontece que,logo depois, houve uma intervenção, ou melhor, umaprovocação de Bernar<strong>do</strong> Vorobov, programa<strong>do</strong>r <strong>do</strong>Museu da Imagem e <strong>do</strong> Som de São Paulo: “Eu achoque, <strong>do</strong>s 15 filmes apresenta<strong>do</strong>s hoje, somente trêsdevem ser debati<strong>do</strong>s aqui”. Foi o suficiente para queNavarro aban<strong>do</strong>nasse a mesa, dizen<strong>do</strong> que tinharecebi<strong>do</strong> um sinal. Foi sentar-se no meio da plateia,humildemente, pois seu filme Exposed, um <strong>do</strong>smais aplaudi<strong>do</strong>s na Jornada até aquele dia, não tinhasi<strong>do</strong> cita<strong>do</strong> entre os três escolhi<strong>do</strong>s por Vorobov, umasituação em parte assumida pelo coordena<strong>do</strong>r <strong>do</strong>sdebates. Dai para o “strip tease”, foi só uma questãode tempo. No dia seguinte, porém, Navarro pegouo microfone (depois de muita batalha) e fez umarespeitável autocrítica:“Eu estava muito triste porque meu filme não podiaficar excluí<strong>do</strong> da discussão. Com a minha atitude nãotive intenção de agredir ninguém, porque me consideroum pacifista. Perdi a minha mãe aos nove anos. Tive queler muito Freud para me manter vivo, para conseguirchegar até aqui. Agressão é o que houve naqueledebate em direção a mim e não da minha parte”.A atitude <strong>do</strong> cineasta, certamente, está muitocoerente com o seu filme Exposed, palavra que vemimpressa no fim <strong>do</strong>s cartuchos de filme Super 8 e quesignifica “exposto”. O que Navarro fez não foi outracoisa: ele expôs o filme e completou o ciclo, expon<strong>do</strong>sea si mesmo física e mentalmente ao público.Comentário <strong>do</strong> cineasta Rogério Duarte:“A partir desse filme, eu começo a respeitar o Edgarcomo um grande cineasta. O filme é sobre ele mesmoe tem momentos de cinema superior: a cena em queaquele fogo queima na tela, com a música cantadapor Caetano, “Coração Materno”, é de arrepiar”.Por enquanto, estou cobrin<strong>do</strong> e descobrin<strong>do</strong> aJornada <strong>do</strong> Curta-Metragem no que ela possa ter decinema, compreendi<strong>do</strong> como invenção e criação, poisé isso o que falta ao atual cinema nacional. Essa nãoé apenas uma opinião pessoal minha: o consenso dagrande maioria <strong>do</strong>s cineastas aqui presentes tambémacha que não adianta nada ter uma lei e um merca<strong>do</strong>de curta-metragem nas mãos e nenhuma ideia nacabeça. Esta é, portanto, uma Jornada que nem Freudexplica. Tu<strong>do</strong> termina amanhã, quan<strong>do</strong> será exibi<strong>do</strong>25 (Vinte e Cinco) de Zé Celso Martinez, que chegouanteontem aqui. Estão presentes também CosmeAlves Neto, da cinemateca <strong>do</strong> Museu de Arte <strong>do</strong>Rio de Janeiro, os críticos Jean-Claude Bernardet eAlberto Silva, cineastas como João Batista de Andradee Thomaz Farkas, além <strong>do</strong> ministro das ComunicaçõesEuclides Quandt de Oliveira, que deverá chegarpara uma mesa re<strong>do</strong>nda. Resta esperar que elesexpliquem o que nem Freud explica.95panorama <strong>do</strong> cinema baiano


96panorama <strong>do</strong> cinema baianoHá também um grupo de superoitistas que sereúne na Rua Carlos Gomes, no prédio <strong>do</strong> antigoClube de Engenharia, capitanea<strong>do</strong> pelo ator baianoMilton Gaúcho: o Grubacin. Dele fazem parte CíceroBathomarco, Carlos Modesto, o médico Paulo SáVieira (que publicou um livro sobre o movimentosuperoitista baiano), entre outros.O boom superoitista que acontece não somente naBahia, mas, também, em to<strong>do</strong> o Brasil, põe o registrodas imagens em movimento ao alcance de to<strong>do</strong>s,que seria, mais tarde, em mais alta definição, com odigital, torna<strong>do</strong> possível o sonho quase utópico deAlexandre Astruc da camera-stylo (câmera-caneta).O fato é que o aparecimento de jovens a empunharsuas câmeras nas jornadas baianas determina aeclosão de uma nova geração de cineastas baianos,a exemplo de Fernan<strong>do</strong> Bélens, Edgard Navarro,José Araripe, Jorge Filipi, Marcos Sergipe, RobinsonRoberto, entre outros. E outros, mais veteranos, jácom registros no 35mm e 16mm, também aderiramà febre superoitista de então, como, para citar algunsapenas, José Umberto (Brabeza, Urubu...), Vito Diniz(Gran Circo Internacional) etc.Marcos Pierry, em sua dissertação de mestra<strong>do</strong>, queanalisa o Super 8 na Bahia, reflete com propriedade:“A eclosão <strong>do</strong> Super 8 funcionou como um fio depólvora que detonou uma vontade coletiva e latente<strong>do</strong> fazer cinema de uma forma descompromissada,e com uma linguagem alternativa desde o fenômenoMeteorango. Veículo para a expressão de senhoresprofissionais liberais empenha<strong>do</strong>s numa práticamais correta, <strong>do</strong> ponto de vista <strong>do</strong>s cânones danarrativa clássica de Hollywood, e território deporosidade máxima que fermentou a combinaçãocom outras possibilidades de linguagem – poesia,artes plásticas, fotografia, teatro, jornalismo –, oSuper 8 permitiu que o cinema baiano chegasse aexperiências únicas. Possibilitou que alguns gruposde cineastas baianos propusessem novos discursos àlinguagem cinematográfica, modifican<strong>do</strong> o conceitode filme produzi<strong>do</strong>, visto e discuti<strong>do</strong> até então nacinematografia local.(…) alguns (realiza<strong>do</strong>res) notavelmente contribuírampara que o rumo das pesquisas mais insólitas eradicais fosse visto não somente como uma picadagenerosa em resulta<strong>do</strong>s isola<strong>do</strong>s, mas como fluxocentral da experiência com a bitola no cinema baiano.(...)Precedi<strong>do</strong> de raros exemplos, como os curtas OPátio (1959), de Glauber Rocha, Invenções (1971), deSilvio Robatto, e um escasso Ciclo Marginal, o filmeexperimental baiano encontra sua ocorrência maisgeneralizada no contexto <strong>do</strong> movimento Super 8, emque propostas de diversas matizes forjaram um quadrovaria<strong>do</strong>.A essa multiplicidade não escapavam os diversoselementos característicos de cinematografiasexperimentais historicamente cristalizadas – baixo(ou nenhum) orçamento; informalismo nas filmagens;inscrição <strong>do</strong> próprio realiza<strong>do</strong>r na obra, apontan<strong>do</strong>para as tendências que conjugavam arte e vida;


interação com outras expressões. Esses elementos,agencia<strong>do</strong>s por certo substrato da cultura marginal(não somente provin<strong>do</strong>s <strong>do</strong> cinema, mas de umaatuante imprensa alternativa, das pichações ede espetáculos rituais no teatro, por exemplo)conjuga<strong>do</strong>s ao flagrante localismo <strong>do</strong> Super 8, e aoquadro de exceção institucional <strong>do</strong> país no perío<strong>do</strong>,apontaram os caminhos da expressão para diversosrealiza<strong>do</strong>res baianos. (…) O caráter dialético <strong>do</strong>evento (a Jornada de <strong>Cinema</strong> da Bahia), ao lidar coma bitola e a suas dilatações (happenings, manifestos,hibridizações etc.), pavimentou o próprio percursoda expressão superoitista, dan<strong>do</strong>-lhe a chancede gritar ainda mais alto o discurso da invençãopoética, transgressiva, por vezes verborrágica,utópica, intimista, humorada e anarco-política. Aproposta de uma mudança radical nas estratégiasda criação cinematográfica no Brasil está enraizadana paisagem, e deve migrar ao espaço de seu justoreconhecimento.”97panorama <strong>do</strong> cinema baianoSuperoutro,1989


98panorama <strong>do</strong> cinema baiano


O Pai <strong>do</strong>Rock, 2001cinema baianocontemporâneoNa década de 1990, o longa-metragem se ausenta<strong>do</strong> cenário cinematográfico baiano, que fica restritoà produção de curtas. Heteros, a comédia, produzi<strong>do</strong>pela Truq Cine TV e Vídeo (que virá a ser, na décadaseguinte, a produtora mais atuante em Salva<strong>do</strong>r),dirigi<strong>do</strong> por Fernan<strong>do</strong> Bélens em 1994, é uma obrade ficção, que focaliza, em tom irônico e de deboche,a intolerância heterossexual na história de um sisu<strong>do</strong>professor universitário que se transmuta em mulher.Com roteiro escrito por Dinorah <strong>do</strong> Valle e pelo próprioBélens, o filme tem no seu elenco Patrício Bisso,Wilson Mello, Fafá Pimentel, Rita Assemany e BárbaraSuzart. José Araripe realiza <strong>do</strong>is curtas: Mr. Abrakadabra(1996) e Rádio Gogó (1999). O primeiro, comroteiro premia<strong>do</strong> em concurso nacional, e to<strong>do</strong> filma<strong>do</strong>em Cachoeira, cidade histórica da Bahia, é umahomenagem ao cinema mu<strong>do</strong>, utilizan<strong>do</strong> a estética daarte muda, e assinala a derradeira aparição de JofreSoares, que viria, finda a rodagem, a morrer logo emseguida. Ele faz um velho artista que já não conseguefazer suas mágicas, e, desespera<strong>do</strong>, tenta o suicídiovárias vezes, sem, contu<strong>do</strong>, obter êxito. Decidi<strong>do</strong> amorrer a qualquer preço, arquiteta um super suicídio.Porém, algo surpreendente acontece. Além de JofreSoares, Mr. Abrakadabra conta com muitos atoresbaianos: Edval<strong>do</strong> Santos “Bába”, Fernan<strong>do</strong> Marinho,Caco Monteiro, Haydil Linhares, Maria Menezes, Mr.Yesus Moreira, Teresa Araújo, Hebe Alves, Paula Hiroe,Zeca Abreu, Juliana Valente e Zé Ivane. Destaqueespecial para a direção de arte <strong>do</strong> conceitua<strong>do</strong> EwaldHackler. Rádio Gogó trata da paixão de Gogó (CacoMonteiro) por futebol, que não tinha limite. Sua vidaconsiste em narrar partidas de futebol de bairro, nofutebolês, os babas de rua. Sonha em ter sua própriarádio, a Rádio Karioca, mas seu veículo mesmo se reduza uma kombi. Depois de narrar espetacularmentea final da copa de 94, onde o Brasil sagra-se campeão,Gogó revela um segre<strong>do</strong> manti<strong>do</strong> a sete chaves,desde 1970. Demais atores: Isabel Marinho, KarinaSantos, Wagner Moura, Riachão e Manoel Bomfim.To<strong>do</strong>s os curtas cita<strong>do</strong>s são produzi<strong>do</strong>s pela Truq.Jorge Alfre<strong>do</strong>, no site Novíssima Onda Baiana, faz esteinteressante relato:“No verão de 1993 aconteceu um fato muito significativopara o cinema baiano; mesmo sentin<strong>do</strong> as fortesconsequências da interrupção da atividade cinematográficacom o fechamento da Embrafilme, seis realiza<strong>do</strong>resdecidiram se reunir na Ilha de Mar Grandepara, juntos, criarem um roteiro de uma longa me-99panorama <strong>do</strong> cinema baiano


100panorama <strong>do</strong> cinema baianotragem; Moisés Augusto, Fernan<strong>do</strong> Bélens, EdgardNavarro, Pola Ribeiro, José Araripe Jr. e Jorge Alfre<strong>do</strong>.Foram dias intensos e de muita interatividade entrecabeças de diferentes formações em torno de umideal comum; levar para a tela grande as nuances ematizes, trejeitos e esquisitices dessa gente de gingainconfundível <strong>do</strong>s becos e ruas de pedras seculares<strong>do</strong> Pelourinho; ícone da tradição cultural soteropolitana.Desse encontro surgiu o ainda inédito “ViaPelô”, que, no meu entender, desencadeou o movimentode retomada <strong>do</strong> cinema baiano.Infelizmente, nossos superegos e a falta de recursosnão permitiram que o filme fosse produzi<strong>do</strong>, mascreio que a partir desse encontro, to<strong>do</strong>s nós, individualmente,mas sempre com a colaboração afetiva e/ou profissional <strong>do</strong>s outros cinco, intensificamos essedesejo com muita obstinação e conseguimos juntamentecom outros cineastas (Agnal<strong>do</strong> Siri Azeve<strong>do</strong>,José Umberto, Joel de Almeida, Tuna Espinheira,Sérgio Macha<strong>do</strong>, Umbelino Brasil, Lázaro Faria, SofiaFederico, Edyala Yglesias, Lula Oliveira, Fábio Rocha,Bernard Attal, Joselito Crispim, Caó Cruz Alves e ConceiçãoSenna) realizar nesses últimos anos 26 títulosem 35mm, fazen<strong>do</strong> com que a Bahia experimentasseum novo ciclo de produção cinematográfica.Foi também nesse perío<strong>do</strong> que surgiu e se fortaleceuna Bahia a ABCV (Associação Baiana de <strong>Cinema</strong> eVídeo), filiada a ABD (Associação Brasileira de Documentaristas),primeira entidade associativa <strong>do</strong> cinemabrasileiro que hoje agrega associa<strong>do</strong>s de todas asregiões <strong>do</strong> país.Ainda nesse ano de 1993, Fernan<strong>do</strong> Bélens ro<strong>do</strong>uHeteros, a comédia, estrela<strong>do</strong> por Patrício Bisso, atortransformista argentino, com direção de fotografiade Hélio Silva, um nome consagra<strong>do</strong> <strong>do</strong> cinema novo.Foram meses de intensa excitação e muito trabalho.Logo depois estávamos a caminho <strong>do</strong> sertão deCanu<strong>do</strong>s para rodar o episódio Confirmação, umaprodução da ZDF com roteiro meu dirigi<strong>do</strong> por PolaRibeiro, ten<strong>do</strong> Vito Diniz na direção de fotografia. EJoel de Almeida rodava Penitência, outro episódiode Os 7 Sacramentos de Canu<strong>do</strong>s. Também fiz adireção de fotografia de Troca de Cabeças, de SérgioMacha<strong>do</strong>, uma produção com a participação deGrande Otelo, Mário Gusmão, Léa Garcia, DiogoLopes e Haril<strong>do</strong> Deda.Em julho de 94, José Araripe Jr. ganha o PrêmioResgate <strong>do</strong> <strong>Cinema</strong> Nacional <strong>do</strong> MinC com oroteiro Mr. Abrakadabra!. Roda<strong>do</strong> em Cachoeira,esse filme foi um marco na produção baiana emmuitos senti<strong>do</strong>s; trouxemos o mestre René Persinpara fotografar o filme em P&B, pela primeira vezutilizamos o recurso <strong>do</strong> videoassist e efeitos especiaisno set, ten<strong>do</strong> como protagonista <strong>do</strong> filme o sau<strong>do</strong>soJofre Soares.Moisés Augusto (Truq), até então, produziu to<strong>do</strong>sesses projetos. A Bahia novamente respirava cinema.A coisa engrenou e a gente não parou mais deproduzir filmes. Em 2001, conseguimos romperum jejum de 18 anos sem produzir uma longametragem e lançamos 3 Histórias da Bahia, um filmede episódios dirigi<strong>do</strong> por José Araripe Jr., Edyala


Yglesias e Sérgio Macha<strong>do</strong>. Nesse mesmo ano, SérgioMacha<strong>do</strong> realiza o <strong>do</strong>cumentário sobre Mário PeixotoOnde A Terra Acaba, e eu lanço no Festival de Brasíliao <strong>do</strong>cumentário sobre o samba da Bahia SambaRiachão.De lá pra cá, o nosso cinema mantém uma produçãosempre crescente.Em 2002, são produzi<strong>do</strong>s os curtas Catálogo deMeninas, de Caó Cruz Alves, Lua Violada, de JoséUmberto e No Coração de Shirley, de Edyala Yglesias.Em 2003, Hansen Bahia, de Joel de Almeida, CegaSeca, de Sofia Federico e Corneteiro Lopes (LázaroFaria).Em, 2004, mais <strong>do</strong>is longa metragens; Esses Moços,de José Araripe Jr., e Cascalho, de Tuna Espinheira.Até que em 2005 o cinema baiano chega a umaprodução surpreendente; quatro curtas e quatrolongas. Solange Lima (Araçá Azul) se firma comouma grande produtora, Cidade Baixa, de SérgioMacha<strong>do</strong>, ganha o prêmio de melhor filme <strong>do</strong> Festival<strong>do</strong> Rio, e no Festival de Brasília, Eu me Lembro, deEdgard Navarro, ganha sete candangos e confirmadefinitivamente que a terra de Walter da Silveira temvocação para o cinema!Urge, agora, uma revisão crítica dessa produção;Em 2006 foram produzi<strong>do</strong>s os longas Pau Brasil, deFernan<strong>do</strong> Bélens, Jardim das Folhas Sagradas, dePola Ribeiro, Estranhos, de Paulo Alcântara e Revoadade Zé Umberto. O Prêmio Braskem de <strong>Cinema</strong> que jáhavia premia<strong>do</strong> em 2004 O Anjo Daltônico, de FábioRocha, em 2005, dá continuidade com E Aí, Irmão,de Pedro Léo Martins; Joel de Almeida vai rodar Istoé Bom; Nivalda Silva Costa A Incrível História de SeuMané; Bernard Attal já começou a rodar um filmesobre Santa Luzia e eu continuo na captação pararodar Avant Garde.Abordagem poética-sentimental de Dona LúciaRocha, A mãe, de José Umbelino Brasil e Fernan<strong>do</strong>Bélens, é um <strong>do</strong>cumentário no qual a mãe de GlauberRocha fala de sua trajetória e encontra companheirosde vida e de luta no cinema brasileiro, como LuizCarlos Barreto, Waly Salomão, Orlan<strong>do</strong> Senna, JoãoUbal<strong>do</strong> Ribeiro e Nelson Pereira <strong>do</strong>s Santos. PrêmioEspecial <strong>do</strong> Júri <strong>do</strong> Festival de Brasília de 1998, o filmeé monta<strong>do</strong> por Peter Przygodda, responsável pelaedição da maioria <strong>do</strong>s filmes de Wim Wenders e deoutros cineastas <strong>do</strong> Novo <strong>Cinema</strong> Alemão.Cidade Baixa, 2006101panorama <strong>do</strong> cinema baiano


102panorama <strong>do</strong> cinema baianoCom a entrada no terceiro milênio, o cinema baianotoma um grande impulso e produz, no decorrerda década, vários longas-metragens, por causa <strong>do</strong>sconcursos de roteiros patrocina<strong>do</strong>s pelo Governo <strong>do</strong>Esta<strong>do</strong> da Bahia. Os concursos contemplam os roteirospremia<strong>do</strong>s com uma quantia que, ainda que paraprodução de baixo orçamento, permite aos cineastasa realização de um longa. Ressurge, após jejum deduas décadas, o longametragismo na Bahia. Além <strong>do</strong>sconcursos estaduais, o Minc (Ministério da Cultura)também oferece possibilidades para a expressão cinematográficabaiana em filmes de longa duração.Antes da efetivação <strong>do</strong>s concursos, um deles, patrocina<strong>do</strong>pela Fundação Cultural <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> da Bahia,premia três curtas que seriam transforma<strong>do</strong>s no longaTrês Histórias da Bahia. A produção <strong>do</strong> filme levaalguns anos para conseguir levar a cabo o projeto e,em 2001, o filme é lança<strong>do</strong> em circuito comercial.Segun<strong>do</strong> o folheto da produtora (a Truq, novamente,que se responsabiliza com o aporte final de recursos),“três viagens aos subterrâneos da Bahia, três trabalhosde três diretores da nova geração <strong>do</strong> cinemabaiano”: Agora é cinza, de Sérgio Macha<strong>do</strong>, Diário <strong>do</strong>convento, de Edyala Yglesias, e O pai <strong>do</strong> rock, de JoséAraripe.No mesmo ano <strong>do</strong> lançamento de 3 Histórias daBahia, 2001, um <strong>do</strong>cumentário baiano é premia<strong>do</strong>no Festival de Brasília dividin<strong>do</strong> o prêmio de melhorfilme com Lavoura Arcaica, de Luiz Fernan<strong>do</strong> Carvalho.Trata-se de Samba Riachão, de Jorge Alfre<strong>do</strong>,que retrata a história <strong>do</strong> samba como tema centralda Música Popular Brasileira através da trajetória deClementino Rodrigues, o popular sambista baianoRiachão, com seus 80 anos de idade, uma lenda viva<strong>do</strong> samba de rua da velha Bahia. O diretor utiliza a experiênciapessoal <strong>do</strong> sambista Riachão para contar astransformações no merca<strong>do</strong> da música popular e nosmeios de comunicação durante o século XX. Tambémé a Truq que o produz.Também neste ano fica pronto Cascalho, de TunaEspinheira, uma adaptação <strong>do</strong> romance homônimode Herberto Salles, cuja ação se localiza na ChapadaDiamantina na década de 30, quan<strong>do</strong> da corrida aoouro negro. O realiza<strong>do</strong>r, no entanto, precisa esperarmais quatro anos para lançá-lo em 2008, porque,neste tempo, passa a captar mais recursos a fim decolocar o imprescindível Dolby Stereo sem o qual nãose consegue exibição nas salas <strong>do</strong> circuito comercial.Apesar de somente lança<strong>do</strong> em novembro de 2006,Eu me lembro, de Edgard Navarro, fica pronto no anoanterior. Sucesso no Festival de Brasília de 2005, comvários troféus, inclusive o de melhor filme, Eu melembro é o primeiro longa de um cineasta já reconheci<strong>do</strong>por seus instigantes curtas em Super 8, 16mm e35mm, principalmente pelo média Superoutro, com oqual obtém repercussão nacional e chega, inclusive,a ser considera<strong>do</strong>, por parte da crítica, um <strong>do</strong>s melhoresfilmes nacionais <strong>do</strong>s anos 80. Navarro, em Eume lembro, faz o seu amarcord numa obra que tem amemória <strong>do</strong> pretérito como mola propulsora. O estiloiconoclasta, anárquico, é, neste filme, substituí<strong>do</strong>Samba Riachao,2001


103panorama <strong>do</strong> cinema baiano


Diamante Bruto,1977pela necessidade <strong>do</strong> recuer<strong>do</strong> não desprovi<strong>do</strong>, no entanto,de fina ironia e de uma particular observação<strong>do</strong>s comportamentos humanos.2005 também é o ano de Brilhante, de ConceiçãoSenna, que mostra como a cidade baiana de Lençóismu<strong>do</strong>u por causa de um filme: Diamante Bruto,roda<strong>do</strong> em 1977, por seu mari<strong>do</strong>, Orlan<strong>do</strong> Senna. 25anos separam os <strong>do</strong>is filmes. De lá para cá a cidade,arruinada pela decadência <strong>do</strong> garimpo, vira centroturístico; o espaço se transforma, e a relação <strong>do</strong>smora<strong>do</strong>res com seu lugar muda sensivelmente. Paraos habitantes, a transformação tem início com DiamanteBruto. Brilhante conta essa história de amorentre uma cidade e um filme. No mesmo ano, LázaroFaria produz A Cidade das Mulheres, <strong>do</strong>cumentáriosobre a força e a soberania das mulheres <strong>do</strong> can<strong>do</strong>mbléforma<strong>do</strong>ras de uma organização matriarcal. Ofilme apresenta Mãe Estela, Yalorixá <strong>do</strong> terreiro AxéOpó Afonjá — um <strong>do</strong>s mais antigos e conceitua<strong>do</strong>s daBahia —, que conta a história <strong>do</strong> can<strong>do</strong>mblé e de suaprópria vida. Ela discute o matriarca<strong>do</strong>, a energia dasmulheres e o sincretismo no Brasil. Por fim, fala <strong>do</strong>futuro e da esperança que tem na continuidade e naforça <strong>do</strong> can<strong>do</strong>mblé.Pau Brasil, de Fernan<strong>do</strong> Bélens (2008), assinala aestreia <strong>do</strong> veterano diretor de curtas no longa. Filme


Catálogo deMeninas,2002bem realiza<strong>do</strong>, focaliza o conflito entre duas famíliasnum pequeno lugarejo da Bahia. Há, neste filme,uma elaborada mise-en-scène que vem a atestar oamadurecimento <strong>do</strong> cinema baiano em termos delinguagem. A técnica se conjuga com esta para fazerdetonar uma estética. Os filhos de João, <strong>do</strong>cumentáriode Henrique Dantas, ganha prêmios, em 2009, noFestival de Brasília. Nesse ano, Paulo Alcântara lançao seu Estranhos.Entre as produções ainda por vir (ou em fase de finalização),O Jardim das Folhas Sagradas, de Pola Ribeiro,lança<strong>do</strong> no Festival <strong>do</strong> Rio 2010, Revoada, de JoséUmberto, Cuíca de Santo Amaro – Ele, o Tal, de Joelde Almeida e Josias Pires, e Santa Luzia, de BernardAttal.Na década <strong>do</strong>s anos 2000, vários curtas são realiza<strong>do</strong>sna Bahia: Pixaim (2001), de Fernan<strong>do</strong> Bélens,Catálogo de Meninas (2002), de Caó Cruz Alves, LuaViolada (2002), de José Umberto, No coração deShirley (2002), de Edyala Yglesias, Hansen Bahia(2003), de Joel de Almeida, Cega Seca (2003), deSofia Federico, O corneteiro Lopes (2003), de LázaroFaria, O Anjo Daltônico (2004), de Fábio Rocha, 29Polegadas e Ilha <strong>do</strong> Rato (2005), ambos de BernardAttal em parceria com Joselito Crispim, Na Terra <strong>do</strong>Sol (2005), canto agônico sobre os últimos dias deCanu<strong>do</strong>s, de Lula Oliveira, Vermelho Rubro <strong>do</strong> Céu daBoca (2005), de Sofia Federico, E Aí, Irmão? (2006),de Pedro Léo Martins, Noite das Marionetes (2006) ePiruetas (2006), de Harol<strong>do</strong> Borges, Um outro (2008),de Alba Liberato, Cães (2008), de Adler (Kibe) Paze Moacyr Gramacho, Isso é Bom (2009), de Joel deAlmeida, A Incrível História de Seu Mané, de NivaldaSilva Costa, Nego Fugi<strong>do</strong> e Carreto, ambos de CláudioMarques e Marília Hughes (2009), 10 Centavos(2007), de César Fernan<strong>do</strong> de Oliveira, e DagobertoVai ao Paraíso (2008), de Raul Moreira, entre outros.105panorama <strong>do</strong> cinema baiano


O Pai <strong>do</strong>Rock, 2001críticasTRÊS HISTÓRIAS DA BAHIAA realização de um longa-metragem em Salva<strong>do</strong>r é,por si só, um acontecimento que deve ser prestigia<strong>do</strong>,consideran<strong>do</strong> as dificuldades existentes, a quaseimpossibilidade de um filme de longa duração setornar realidade. Os cineastas baianos que se dispõemà aventura <strong>do</strong> cinema são heróis que, conquistan<strong>do</strong>as imagens, se fazem vence<strong>do</strong>res.Principalmente num merca<strong>do</strong> completamente <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>pela cinematografia americana — produçãodistribuição-exibição,quan<strong>do</strong> marcar uma data parao filme nacional é quase impossível, excetuan<strong>do</strong>-seaqueles que são coproduzi<strong>do</strong>s pelas companhiasmultinacionais (Orfeu e Tieta <strong>do</strong> Agreste, de CarlosDiegues, Bossa Nova, de Bruno Barreto...).Além <strong>do</strong>s problemas relaciona<strong>do</strong>s com o nó górdio <strong>do</strong>cinema brasileiro, o tripé produção-distribuição-exibição,há o <strong>do</strong> filme em si, qual seja o de sua viabilidademerca<strong>do</strong>lógica. Neste particular, 3 Histórias daBahia é uma obra tripartite que tem ingredientescapazes de agradar ao público, porque o desenvolvimentode suas histórias promove o envolvimento <strong>do</strong>especta<strong>do</strong>r com temas liga<strong>do</strong>s às suas raízes, à suacultura. Ao contrário das caricaturas tão constantesnas telas globais <strong>do</strong> linguajar baiano, há, em 3 Históriasda Bahia, um falar autêntico, uma identificaçãoque logo se reconhece e se estabelece. E o filme écontemporâneo de suas mazelas, principalmentenos episódios que contemplam a transformação <strong>do</strong>Carnaval e a ingerência <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> fonográfico nacriação musical.Por outro la<strong>do</strong>, não se pode deixar de ver certos problemasestruturais que se encontram no ‘corpus’ dramáticode cada episódio ou, se se quiser, curta metragem.Na verdade, 3 Histórias da Bahia se ressente <strong>do</strong>fator homogeneidade, que deveria permear o que secostuma chamar de longa-metragem. O Carnaval, que‘entra’ nos três filmes, surge mais como uma inserçãogratuita para justificar uma homogeneidade inexistente,porque não é o móvel das histórias — exceçãode Agora é Cinzas, mas, e tão-somente, um ‘insert’para futura acusação de heterogeneidade patente.Um filme de longa metragem em episódios exige estemóvel acima referi<strong>do</strong> - vide Histórias Extraordinárias,de Vadim, Malle e Fellini, Boccaccio 70, de Fellini, Viscontie De Sica, Alta Infidelidade, de vários autores,As Bruxas, etc.ConventoBasea<strong>do</strong> em pesquisas da historia<strong>do</strong>ra baiana AnaMaria Vieira <strong>do</strong> Nascimento, Edyala Iglesias buscou,107panorama <strong>do</strong> cinema baiano


108panorama <strong>do</strong> cinema baianonelas, a inspiração para Diário de um Convento. Umajornalista (Lucélia Santos) vem a Salva<strong>do</strong>r investigarum diário secreto no qual se revela o drama de umafreira enclausurada no convento de Santa Clara <strong>do</strong>Desterro (no século XVII) pela força tirânica <strong>do</strong> pai,ainda que totalmente sem vocação. O ‘calvário’ dessafreira é conta<strong>do</strong> através das imagens paralelas entreo presente e o passa<strong>do</strong>, mas o assunto mereceria umlonga-metragem e o ‘peca<strong>do</strong>’ de Iglesias é tê-lo ‘resumi<strong>do</strong>’num curta. A longa duração se faria necessáriano senti<strong>do</strong> de dar à personagem martirizada umamelhor estruturação psicológica e, por conseguinte,poder de convencimento.Sobre ser um filme de belas imagens — o convento éum ‘décor’ exuberante, falta-lhe, porém, este diapasãotemporal que somente seria possível numa obramais extensa. O plano inicial em contre-plongéedenuncia um trabalho de grande porte que vai seesvain<strong>do</strong> por causa da ‘falta de tempo’ para contar e,como resulta<strong>do</strong>, o filme se funda em sinalizações quenão são concretizadas. Seria indispensável que oespecta<strong>do</strong>r sentisse o ‘calvário’ com intensidade e adireção projetasse os fantasmas recônditos da mártircom uma melhor construção ‘interior’ da personagem.A viagem de volta da jornalista com o Diário <strong>do</strong>convento em branco é uma prova desse desalento. E,sem o querer, um signo mais que perfeito que traduzo próprio filme. Em questão: a condição da mulher nopretérito e na sociedade contemporânea.RockRessente-se O Pai <strong>do</strong> Rock de um maior vigor cinematográfico,pois a sua estrutura narrativa está presaaos grilhões teatrais, dan<strong>do</strong> a impressão, inclusive, deser uma versão cafajestiniana em roupagemTrês Históriasda Bahia, 2001


Três Históriasda Bahia, 2001nova sem o texto consistente da conhecida peça. Poroutro la<strong>do</strong>, como ponto até positivo na ‘intenção’, orealiza<strong>do</strong>r, José Araripe Jr., que vem <strong>do</strong> premia<strong>do</strong> Mr.Abrakadabra, traduz a ‘realidade’ sob o mo<strong>do</strong>caricatural, fugin<strong>do</strong> ao realismo e estabelecen<strong>do</strong> atotal ‘non chalance’. Haveria, contu<strong>do</strong>, a necessidade,para tornar o curta mais fluente, de contenção <strong>do</strong>sexcessos das torrentes verbais — que se repetem —em função de um dinamismo no qual a linguagemfílmica, ao invés de se tornar um receptáculo das diatribes<strong>do</strong> quarteto, assumisse o <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> discursocinematográfico. Mas é o discurso <strong>do</strong>s quatrocomponentes da aloprada banda que pre<strong>do</strong>minasobre o cinema nesta história de um grupo incrementa<strong>do</strong>de rock que, venden<strong>do</strong> a alma a uma espéciefeminil e bela <strong>do</strong> diabo (Ingra Liberato), condiciona<strong>do</strong>pelas injunções <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> fonográfico, acaba poralcançar o êxito em detrimento de sua ‘pureza’ inicial.CinzasInspira<strong>do</strong> em A Última Gargalhada (Der Letze Man,1924), de Friedrich Wilheim Murnau, Agora é Cinzasé, por assim dizer, a mais baiana das histórias, a quefala o baianês. Sérgio Macha<strong>do</strong> dirige o episódio comapuro visual para compor a história de um rei momoque, de repente, vem a perder o seu cetro emdecorrência da ‘modernidade’ e da necessidade de‘renovação’ <strong>do</strong> monarca. A atuação de Sérgio Mambertié o ponto alto <strong>do</strong> filme, principalmente nosmomentos expressionistas, quan<strong>do</strong>, desanima<strong>do</strong>,percebe a sua queda. A máscara e o rosto, o tronoperdi<strong>do</strong> e a desolação refletidas cinematograficamentenas luzes, nas cores e no plano da mão caída,mostram alguma preocupação estilística por parte<strong>do</strong> cineasta. O Carnaval, no entanto, continua e orei sem coroa vê renascer a alegria, contemplan<strong>do</strong>-a(como a personagem de Giulietta Massina no finalde Le Notti di Cabiria).Três curtas emenda<strong>do</strong>s num longa que, juntos,passam a impressão de heterogeneidade. Um nadatem a ver com o outro. A inserção <strong>do</strong> Carnaval épostiça e incapaz de provocar a homogeneidadeque se requer de um longa em episódios. Daí osaco de gatos. Três Histórias da Bahia representouo Esta<strong>do</strong> no Festival de <strong>Cinema</strong> <strong>do</strong> Recife de 2001.Em Salva<strong>do</strong>r, o filme conseguiu um lançamentode sucesso (em salas <strong>do</strong>s complexos Multiplex eAeroclube e, ainda, de quebra, na Sala Walter daSilveira), além de uma pré-estreia de ‘gala’ em <strong>do</strong>zesalas simultâneas à sua disposição.


110panorama <strong>do</strong> cinema baiano


Esses Moços,2004ESSES MOÇOS, de José AraripeEm 2004, José Araripe, após carreira bem sucedidano curtametragismo, consegue finalizar Esses Moços,cuja captação de recursos se dá através <strong>do</strong> supermerca<strong>do</strong>Bom Preço com aporte da Truq. O argumentogira em torno de duas meninas, Darlene e Daiane,que fogem <strong>do</strong> interior e chegam a Salva<strong>do</strong>r. Nestacidade, encontram Diomedes, um senhor i<strong>do</strong>so queestá desmemoria<strong>do</strong>, perdi<strong>do</strong> nas ruas, sem saberquem é nem onde mora. Juntos, os três exploram acidade. Darlene, a menina mais velha, tem a ideia deganhar dinheiro com esmolas, por conta da piedadeque o velho desperta nas pessoas. Ainda assim, ostrês constituem uma espécie de família informal,em que Diomedes é capaz de conduzi-las para seumun<strong>do</strong>, onde afeto e solidariedade têm espaço paraexistir. A jornada que vivem em 48 horas muda suasvidas e abre possibilidades de escolha inesperadaspara os três.Um <strong>do</strong>s trunfos de Esses moços, de José Araripe, é acoragem de ter como propósito contar uma históriade gente humilde tocada pela sensibilidade e pelasingeleza. É difícil se verificar, no panorama contemporâneo<strong>do</strong> cinema brasileiro, a existência de cineastasdesprovi<strong>do</strong>s de arrogância e que tenham comoobjetivo a clareza de um fabulista. A maioria deles,principalmente, na cinematografia nacional, é pedantee com um discurso arrogante, no qual a narrativase estabelece em detrimento da objetividade <strong>do</strong>que se está a contar. O <strong>Cinema</strong> Novo foi pródigo empromover a obscuridade como ‘elipse’ da genialidade,fazen<strong>do</strong> a emergência <strong>do</strong> opaco como índice de predica<strong>do</strong>s.A produção de senti<strong>do</strong>s sempre procuradade maneira enviesada para demonstrar uma escritaa fugir <strong>do</strong>s clichês. Mas os resulta<strong>do</strong>s finais sempre,com as exceções de praxe, desastrosos, reinan<strong>do</strong> aconfusão.Esses moços não tem me<strong>do</strong> de ser simples, objetivo,poético, e direto. Aquele que quiser procurar significa<strong>do</strong>srecônditos pode aban<strong>do</strong>nar logo suas ferramentasde perfuração, porque não vai encontrá-los. Nessesenti<strong>do</strong>, no senti<strong>do</strong> da simplicidade como instrumentode sua condução, Esses moços se mostra uma obra singularnão somente no panorama <strong>do</strong> cinema brasileirocomo no panorama <strong>do</strong> cinema baiano – verdade sejadita, e também se excetuan<strong>do</strong> os de praxe, se quersempre uma autoria que se desvia da objetividadeda história contada em função de uma postulação demetteur-en-scène tupiniquim.Araripe é um poeta, ainda que as suas tentativas idiossincráticasde infernizar o bom-tom quan<strong>do</strong> superoitistade carteirinha nos sau<strong>do</strong>sos anos 70 no jardim <strong>do</strong>Icba. Poder-se-ia dizer, a exemplo <strong>do</strong> que ocorreu nos60 com a Geração Paissandu, que na Bahia, naquelesanos, houve uma Geração Icbana, que viveu sob o império<strong>do</strong> chumbo militar, mas que conseguia, com artee engenho, engenho e arte, provocar pela picardia desuas imagens na pequena bitola <strong>do</strong> Super-8.Duas pivetes encontram, por acaso, com um velho, e,com este, fazem amizade, ainda que aproveitan<strong>do</strong>-111panorama <strong>do</strong> cinema baiano


112panorama <strong>do</strong> cinema baianose dele para que peça esmola já que a idade forçosamentedenuncia, nos outros, maior sentimentode piedade. As meninas sofrem a labuta diária namiséria, mas, mesmo nela, não deixam de demonstraruma certa alegria de viver, ainda que com osassédios, o perigo que as rondam. Mas quem seriaeste homem, perdi<strong>do</strong> pelas ruas e becos da CidadeBaixa soteropolitana? Viajan<strong>do</strong> de trem, cujo acessose dá pela antiga estação da Calçada, os três acabamin<strong>do</strong> parar na casa suburbana <strong>do</strong> filho <strong>do</strong> velho, queé casa<strong>do</strong>, desemprega<strong>do</strong>. Há, na localidade, um casali<strong>do</strong>so, amigo, que recebe a trinca. Sabe-se, então,que o homem de óculos escuros, que se finge decego, está acomoda<strong>do</strong> no Abrigo Dom Pedro II, perto<strong>do</strong> Largo de Roma. Levan<strong>do</strong>-o de volta para o lar <strong>do</strong>si<strong>do</strong>sos, acontece neste uma cerimônia de casamentode gente velha. Na despedida, ele não quer ficar, eas meninas são levadas para o subúrbio pelo casal.Mas não tarda de ele ir atrás. O plano final mostra-osenta<strong>do</strong> num vagão <strong>do</strong> trem suburbano e uma imagemem preto e branco, fotografia antiga, denunciaque fora, na sua mocidade, um músico de orquestrada banda <strong>do</strong>s ferroviários. Esses moços termina comtravellings que descortinam, ten<strong>do</strong> ao fun<strong>do</strong> a bonitamelodia de Lupicínio Rodrigues cantada por GilbertoGil, o cenário suburbano de Salva<strong>do</strong>r.Vê-se problemas estruturais na contemplação deEsses moços, e, neles, uma certa ausência de timing,agilidade narrativa, mas o poder de verdade queemana <strong>do</strong>s personagens é capaz de anular uma críticamais intensa <strong>do</strong> ponto de vista de estrutura narrativa.O que importa, na verdade, em Esses moços, é queo filme se impõe mais pela sua fábula, pelos seuspersonagens, pelo cinema, aqui, em Araripe, comoinstrumento <strong>do</strong> humanismo, tão antípoda <strong>do</strong> lixocultural que <strong>do</strong>mina o circuito na sociedade contemporânea.O humanismo <strong>do</strong> autor, sua delicadezafabular, a extraordinária luz de Hamilton Oliveira, quedá um banho de beleza no feio cenário suburbanodecadente, credenciam Esses moços como uma obraque se estabiliza pela humanidade no equilíbrio entreas vigas de imperfeições porventura observadas.O que se deve exigir de um filme é que ele possa forneceralgum fomento para o imaginário <strong>do</strong> especta<strong>do</strong>r.Se falta a Esses moços uma reinvenção <strong>do</strong> cinemae, mesmo, podem ser notadas, com fartura, algunstropeços na estrutura de sua narrativa, desprovida,como se disse, de um timing mais envolvente, o quefica é a beleza de pequenos gestos e a coragem deincursionar por um mun<strong>do</strong> de marginais, mas marginais,diga-se de passagem, que possuem uma vervepoética. Diomedes não seria uma variação <strong>do</strong> mágicovivi<strong>do</strong> por Jofre Soares em Mister Abrakadabra?Araripe pilota um tipo de cinema que dá preferênciaaos temas simples, varian<strong>do</strong> entre a realidade e amagia. Há, sempre, em seus personagens, um sonho,um desejo de sair de uma realidade para entrar emoutra. Esses moços é um filme neorrealista, que desceàs ruas para contar uma fábula que se situa entre‘moços’ e em plena parte sofrida – mas não desprovidade beleza em sua fealdade, por para<strong>do</strong>xal quepossa parecer – da cidade de Salva<strong>do</strong>r.Eu Me Lembro,2005


EU ME LEMBRO, de Edgard Navarro113Evocação de um pretérito, que se consubstancia, naverdade, no próprio passa<strong>do</strong> <strong>do</strong> autor, retrato de umageração e <strong>do</strong> espírito de uma época, Eu me lembro,de Edgard Navarro, cujo roteiro venceu, por unanimidade,o Prêmio Carlos Vasconcelos Domingues,primeiro de uma série de editais patrocina<strong>do</strong>s pelaSecretaria da Cultura e Turismo <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> da Bahiacomo incentivo à produção de filmes, obra de estreiadesse realiza<strong>do</strong>r no longametragismo, é surpreendentepelo seu vigor poético, que se caracteriza pelaatipicidade em relação à costumeira abordagemtemática daqueles que fazem cinema nestas plagas.panorama <strong>do</strong> cinema baianoA sua singularidade vem, em primeiro lugar, da maneirapela qual Navarro trata o seu tema, mas, também,pelo que diz. Retrato de sua geração, a mesma,aliás, que se angustia e se exaspera em MeteorangoKid, o herói intergalático (1970), de André Luiz deOliveira, Eu me lembro, trinta e quatro anos depoisdeste filme, vem, por assim dizer, fazer um balançoda trajetória tumultuada de uma rebeldia anárquicaque pontificou a partir de mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s anos 60 como chama<strong>do</strong> <strong>Cinema</strong> Marginal. E que tem, na Bahia, oseu apogeu na iconoclastia <strong>do</strong> boom superoitista <strong>do</strong>qual Edgard Navarro é, talvez, o seu mais emblemáticorepresentante, com as dilacerações fílmicas de Orei <strong>do</strong> cagaço, Lyn e Katazan, Exposed, entre outros,e, particularmente, O Superoutro (1980), este ummédia-metragem já anuncia<strong>do</strong>r de um cineasta febrile extremamente agita<strong>do</strong> que, com o passar <strong>do</strong>s anos,


114panorama <strong>do</strong> cinema baianoadquiriria uma certa pacificação para o mergulho emseu amarcord que se cristaliza em Eu me lembro.A verve satírica, o humor, sempre presente a cadafotograma, estão, no entanto, intactos, mas, para<strong>do</strong>xalmente,ocultos por elipse no filme de longa-metragem.Não mais o tumulto interior à flor da pele, a crueldade,imensa, de rir de si próprio – característica, aliás,somente <strong>do</strong>s grandes artistas, a escatologia jogada aoventila<strong>do</strong>r, a imperiosa necessidade de afirmar as suasidiossincrasias diante <strong>do</strong> estar-no-mun<strong>do</strong>, como podemser verifica<strong>do</strong>s na sua filmografia de superoitistaaparentemente perturba<strong>do</strong> pela angústia da existência,mas a assunção da maturidade, a disponibilidadede olhar o seu itinerário com a paciência <strong>do</strong>s sábios, atemperança <strong>do</strong>s que, passa<strong>do</strong> o delírio, conquistam apaz para, assim conseguida, pôr em prática um revivalde sua própria vida.Se o delírio se aquietou, encontra-se, no entanto,potencialmente sugeri<strong>do</strong> nas imagens de Eu melembro. Nasci<strong>do</strong> em mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> século passa<strong>do</strong>,Navarro empreende neste filme uma busca de suaslembranças desde a primeira infância, quan<strong>do</strong> esteveno cais <strong>do</strong> porto para receber um parente e viu umnavio ancora<strong>do</strong>.O resgate memorialístico se faz por meio de suapercepção <strong>do</strong> homem e das coisas desde tenra idade.É, neste ponto de vista, um inventário, um recuer<strong>do</strong>,mas um inventário, diga-se logo, de um artista sensívele exultante, que oscila entre o amargor e a alegria,entre o riso e a tristeza. Eu me lembro, em mãosde um outro cineasta que não as de Edgard Navarro,poderia resultar num amontoa<strong>do</strong> de lembranças pueris,mas o autor soube resgatá-las com halo poéticonão destituí<strong>do</strong>, entretanto, de um olhar irônico muitoacentua<strong>do</strong> e de uma consciência sempre presente datragicidade da existência.Estrutura<strong>do</strong> através de fragmentos de memória, Eume lembro não possui uma narrativa para aquelesque buscam a instalação <strong>do</strong> conflito clássico in progressou páginas de viradas explosivas. Se há conflito,este se instaura no interior <strong>do</strong>s fragmentos e na obracomo um to<strong>do</strong> como o conflito de um realiza<strong>do</strong>r comsuas lembranças.O corpus, portanto, <strong>do</strong> filme de Edgard Navarro, éum corpus pleno de fragmentos, estilhaços <strong>do</strong> que selembra de mais essencial na formação de uma personalidade.Mas o que se possa ver como individualismose espraia numa perspectiva universalista, porquea obra navarriana é, na verdade, o inventário poéticode toda uma geração.Nesse senti<strong>do</strong>, e, aqui, não vai nenhuma alusão ainterferências estéticas, consideran<strong>do</strong> ser o filme deNavarro muito singular e especial, Eu me lembro éfilho de Meteorango, assim como, também, de todauma saga underground que se estabeleceu quan<strong>do</strong> oautor saiu da aborrecência para a consciência de umajuventude sem rumo.A formação <strong>do</strong> cineasta se deu na plenitude de umaépoca na qual poucas eram as saídas, asfixiadas queEu Me Lembro,2005


116panorama <strong>do</strong> cinema baianoestavam por um regime de exceção rigoroso e pelasinfluências vindas <strong>do</strong> exterior: a eclosão <strong>do</strong> hippismo,com sua filosofia <strong>do</strong> flower power, Maio de 68, o cinemasubterrâneo que se tinha notícia, a desconstruçãooperada por Jean-Luc Godard, et caterva.E Edgard, num happening aconteci<strong>do</strong> em mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong>sanos 70, durante uma das jornadas baianas, pôs emprática o dito sganzerliano de O bandi<strong>do</strong> da luz vermelha:“quan<strong>do</strong> a gente não pode fazer nada, a gentese avacalha e se esculhamba”. No meio de um debateestéril, no cine-teatro <strong>do</strong> Icba, fez corar o crítico JoséCarlos Avellar e, constatan<strong>do</strong> que palavras seriaminúteis para o rebate de uma arenga, tirou a roupa, enu, com a mão no bolso, estarreceu os participantes.Uma constante <strong>do</strong> cinema navarriano é o humor,conditio sine qua non para a existência de uma obrade arte, assim é se nos parece. O humor é essencial epode ser aplica<strong>do</strong> mesmo nas situações mais trágicas(vide Shakespeare, Racine, Nelson Rodrigues, LuisBuñuel...). O humor e a consciência da tragicidadeda existência, <strong>do</strong>is elementos fundamentais para asubstancialização de uma visão de mun<strong>do</strong>.Edgard Navarro já mostrou, em seus filmes anteriores,que os possui às escâncaras. Assim, em Eu melembro, cada fragmento <strong>do</strong> seu amarcord é pontua<strong>do</strong>com uma chave irônica, um acento humorístico, umolhar, ora sarcástico, ora cheio de piedade, sobre apobre condição <strong>do</strong> homem na Terra. Filme exemplarnesse senti<strong>do</strong>, pleno de observações perspicazessobre o comportamento humano, acerca das idiossincrasias<strong>do</strong> ser enquanto vivente e navega<strong>do</strong>r e condutorde seu itinerário vivencial.A primeira visão <strong>do</strong> filme pode provocar omissões,pois Eu me lembro foi da<strong>do</strong> a conhecer em única eespecialíssima sessão privé. Impressionante como,contan<strong>do</strong> com poucos recursos – o dinheiro <strong>do</strong> prêmio,insuficiente para a reconstituição de uma décadaprodigiosa ou, mesmo, para a feitura de um longametragem,Navarro conseguiu transmitir o espírito desua época.A direção de arte é excelente e os intérpretes, to<strong>do</strong>satores baianos, constituem tipos extraordinários, adestacar a figura <strong>do</strong> pai, cuja força de convencimentoe poder de verdade são inegáveis. Mas não se poderia,sob pena de violenta omissão, ressaltar a presençatocante de empregada negra, que comove pela suaexpressão, pela sua autenticidade, principalmente nofragmento no qual, já decaída pela idade, pelo passar<strong>do</strong> tempo, entra triste num asilo de i<strong>do</strong>sos.São pequenas coisas que o filme de Navarro possui queconseguem transmitir to<strong>do</strong> um sentimento de mun<strong>do</strong>,toda a angústia <strong>do</strong> fluxo temporário que aniquila, quedestrói as esperanças de outrora e revelam a maldade<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> para com os seus viventes.Mas e a louca que fala impropérios e dita suas diatribes?Crepuscular a sequência quan<strong>do</strong> o jovemEdgard, já entra<strong>do</strong> na juventude, passeia com um


amigo por ruas noturnas e encontra uma maluca adizer coisas aparentemente ensandecidas, mas querevelam verdade e <strong>do</strong>r. O close-up desta personagemenfurecida pela loucura lúcida é de força invulgar.Nenhum filme brasileiro até agora apresentou tãobem o retrato da era hippesca como faz Navarro emEu me lembro. Talvez porque, também, um personagem<strong>do</strong> perío<strong>do</strong> no qual viveu intensamente suasdivagações, curtin<strong>do</strong> a letargia <strong>do</strong> estar e da inação,o fato é que transmite muito bem o que foi aquelaépoca.Se em Meteorango Kid, o herói intergalático, na famosasequência <strong>do</strong> apartamento em que os três personagensfumam maconha, o tom é de desespero, dilaceramento,e explosão, no filme de Navarro reinamuma calmaria, uma letargia, capazes de estabelecer oclima <strong>do</strong> revival <strong>do</strong> próprio filme, com os fantasmas<strong>do</strong> passa<strong>do</strong> a desfilar no grama<strong>do</strong> verde até que opersonagem central, que é o próprio Edgard, decaídasas expectativas, desfeitas as desesperanças, diz quevai comprar uma câmera Super-8.É o embrião que se instaura, o embrião <strong>do</strong> cineasta.Na estrutura <strong>do</strong> discurso cinematográfico navarriano,os fragmentos, que fazem parecer bolhas que sedesmancham no ar da memória em flou, de repente,assumem uma combustão quan<strong>do</strong> <strong>do</strong> sonho agita<strong>do</strong><strong>do</strong> personagem principal. É o próprio filme que sesintetiza como um ensaio memoralístico, revelan<strong>do</strong>a sua estruturação de estilhaços de lembranças e,com isso, fazen<strong>do</strong> lembrar também a necessidadeque to<strong>do</strong>s precisam da memória, a memória comoestabelecimento presente, constituinte <strong>do</strong> próprio serhumano (vide Hiroshima, mon amour, O ano passa<strong>do</strong>em Marienbad, Muriel, to<strong>do</strong>s de Alain Resnais).A herança felliniana é, porém, a que corre no sanguede Navarro no filme em questão. A influência nãosignifica nenhum demérito, pois como disse HaroldBloom, famoso crítico literário, toda a literatura ocidentaldescende de Hamlet, de William Shakespeare,chegan<strong>do</strong>, mesmo, a identificar Bloom em qualquerlivro uma decorrência <strong>do</strong> arquétipo emblemático <strong>do</strong>bar<strong>do</strong>. Fellinianas são as cenas <strong>do</strong>s fantasmas, a damulher gorda que recebe xingamentos <strong>do</strong>s meninos –Sagharina de Oito e meio? – e a belíssima sequência<strong>do</strong> charlatão que se impõe como prestidigita<strong>do</strong>r afazer uma mulher a<strong>do</strong>rmecer sob hipnose.Mas o que importa é que Eu me lembro, de EdgardNavarro, suavizan<strong>do</strong>, aqui, suas diatribes anteriores,sem perder a ironia devasta<strong>do</strong>ra – e que bela e insólitaaquele momento <strong>do</strong> enterro quan<strong>do</strong> um maltrapilhojoga caixões de defunto num amontoa<strong>do</strong> deles, adquirin<strong>do</strong>atmosfera surrealista, é um <strong>do</strong>s melhores filmesjá feitos pelo cinema baiano em to<strong>do</strong>s os tempos. E umexemplo para a cinematografia brasileira.117panorama <strong>do</strong> cinema baiano


118panorama <strong>do</strong> cinema baianoCASCALHO, de Tuna EspinheiraObra de teor realista, baseada em livro homônimo deHerberto Sales, Cascalho, no entanto, tem seu fechonuma dimensão onírica e poética, quan<strong>do</strong> o garimpeiro,que morre no desabamento das minas pelotemporal imprevisto, aparece to<strong>do</strong> galante e fagueiro,a entrar num salão e a festejar uma bela garota coma qual executa uma dança. Tuna Espinheira é feliz nofecho de seu filme, neste desvio de tom, o que fazacrescentar um halo poético numa obra de tonalidadescruas e realísticas. A execução da dita sequênciase faz em câmara lenta, e a iluminação (de LuísAbramo) dá os toques necessários para estabelecer aatmosfera de sonho. Que é favorecida também pelaaplicada direção de arte de Moacyr Gramacho.Vence<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Prêmio Fernan<strong>do</strong> Cony Campos, patrocina<strong>do</strong>pelo Governo <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> da Bahia, queofereceu recursos mínimos para a feitura de umlonga-metragem, Cascalho já está pronto desde 2004,mas somente agora, quatro anos depois, e depois demuita luta, é que Tuna Espinheira preencheu to<strong>do</strong>s osrequisitos para a sua exibição em circuito comercial.Para entrar nas melhores salas <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> exibi<strong>do</strong>r,há a necessidade <strong>do</strong> som Dolby Digital.Documentarista de longo curso, Tuna Espinheira revelaem Cascalho a sua influência no registro realistatão cara ao <strong>do</strong>cumentário. Filma<strong>do</strong> in loco, no esplen<strong>do</strong>r<strong>do</strong> décor de Andaraí, o filme se des<strong>do</strong>bra paracontar uma história de sofrimento e <strong>do</strong>r sob a égideda brutalidade <strong>do</strong>s coronéis, que controlam tu<strong>do</strong> eexploram os que se aventuram no garimpo. Nem ospoderes constituí<strong>do</strong>s, como o juiz e o promotor, podemfazer frente à sua sanha autoritária para subjugara gente humilde.O início de Cascalho, com os garimpeiros a andarpelas imensas pedras em fila indiana, dá a ideia dadimensão e riqueza paisagísticas da região, comose aqueles homens fossem escravos e estivessem aconstruir uma pirâmide. O registro cinematográficode Tuna Espinheira, a revelar sua formação de <strong>do</strong>cumentarista,procura uma fabulação que faz emergira truculência daqueles que a tu<strong>do</strong> controlam e a lutadesesperada <strong>do</strong>s garimpeiros para extrair <strong>do</strong> cascalhouma porção de sobrevivência.A reconstituição de época, consideran<strong>do</strong> que a ação<strong>do</strong> filme se passa na década de 30, ainda que os parcosrecursos disponíveis, é satisfatória, quer <strong>do</strong> pontode vista cenográfico como, também, nos figurinos,principalmente na sequência <strong>do</strong> enterro. Os planosnoturnos que mostram a rotina <strong>do</strong>s garimpeiros tambémconseguem imprimir uma sensação de esmagamentoe ao mesmo tempo de uma poesia da gentesimples com seu linguajar próprio, com a sua maneirade expressar não somente o sentimento como tambéma sua <strong>do</strong>r.A ação se localiza no crepúsculo de uma época deouro, quan<strong>do</strong> em Andaraí se extraía diamantes e carbonatos,a enriquecer os <strong>do</strong>nos <strong>do</strong> poder da região,os coronéis, e a escravizar a população de garimpei-


Cascalho, 2004ros, que, iludi<strong>do</strong>s pela possibilidade de encontrar aspedras preciosas, e mudar de vida, tornavam-se verdadeirosescravos da ganância e da ambição daquelesque controlavam a localidade. O personagem maior<strong>do</strong> filme é, na verdade, o garimpeiro sob a ditadura<strong>do</strong>s coronéis. Herberto Sales, escritor e acadêmico,conhece o drama <strong>do</strong>s garimpeiros e procurou registrá-lono célebre romance <strong>do</strong> qual Tuna Espinheira,em adaptação livre, extraiu o seu filme.Othon Bastos é o coronel que manda em tu<strong>do</strong>, insensívele cruel, assim como seus acólitos, subservientes,os personagens de Wilson Mello (que tosse o tempoto<strong>do</strong> como a expelir o demônio interior) e Haril<strong>do</strong>Dêda. Irving São Paulo, promotor neófito que pensaque pode mudar alguma coisa, e, difama<strong>do</strong>, é posto acorrer da cidade após um diálogo que revela o conformismo<strong>do</strong> juiz interpreta<strong>do</strong> por Fernan<strong>do</strong> Neves.Gildásio Leite (o grande ator <strong>do</strong>s palcos baianos deoutrora - quem se lembra dele em O cão siamês deAlzira Power no Teatro Gamboa?) é um pobre garimpeiro,e Jorge Coutinho, a personagem mais carismáticade Cascalho, é um cruel capataz de Bastos,homem ambíguo e capaz de tu<strong>do</strong>. Outros intérpretes:Caco Monteiro, Dody Só, Lúcio Tranchesi, Júlio Goese, em participação especial, a filha de Tuna, a exuberanteMaria Rosa Espinheira.Esta não é a primeira versão <strong>do</strong> livro de HerbertoSales. Há uma de autoria de um estrangeiro, LeoMarten, um tcheco que após realizar vários filmes emPraga veio ao Brasil para fazer cinema (Vamos cantar,1941, Almas adversas, 1949, Jardim <strong>do</strong> peca<strong>do</strong>, 1946,entre outras insignificâncias). Seu Cascalho é de 1950,e conta no elenco com Sadi Cabral, Sérgio de Oliveira,Jackson de Souza, Modesto de Souza, José Lewgoy.119panorama <strong>do</strong> cinema baianoCascalho, de Tuna Espinheira, representa uma vitóriapara o cinema baiano. Segun<strong>do</strong> José Umberto,cineasta (O anjo negro, Revoada...), “Cascalho é ocinema baiano da gema: lembra-me a tradição de Umdia na rampa – um cinema popular. Eis o eixo: sentimosna imagem o sotaque <strong>do</strong> povo. Não faz nadamal relembrarmos os princípios éticos e poéticos deBrecht. Brecht buscou alento sobretu<strong>do</strong> no teatrocatequista da Idade Média. Uma arte edificante. Quetoma parti<strong>do</strong>: o parti<strong>do</strong> da gente simples, ofendida ehumilhada como as personagens de Dostoievski. Tunaquis ser fiel ao escritor Herberto Sales. E também fiela si mesmo. Não é um filme cínico (tão caro à “globalização”!).Não. É uma fita simples, como a filmo-


120panorama <strong>do</strong> cinema baianografia de Rossellini. Uma arte em defesa da ética. Umdiscurso humanista. Pense no Brasil em 1930. Vemuma geração e desconserta o parnasianismo: Cascalhode Salles, BA, Os Corumbas, Aman<strong>do</strong> Fontes, SE eO Quinze de Racquel de Queirós, CE. Foi uma bomba,rapaz! E teve muitas consequências na cultura brasileira.Tivemos Raízes <strong>do</strong> Brasil de Sérgio Buarque deHolanda, Casa Grande & Senzala de Gilberto Freyre eFormação Econômica <strong>do</strong> Brasil de Caio Pra<strong>do</strong> Júnior.Essas obras montaram a modernidade. Deram sinaispreciosos de interpretação de uma Nação que descobriaa modernidade com uma ditadura tupiniquim.Aprendemos debaixo de porrete. Tuna tem visão.”PAU BRASIL, de Fernan<strong>do</strong> BélensO cinema baiano alcança, com Pau Brasil, de Fernan<strong>do</strong>Bélens, a sua maturidade. Um amadurecimentoque se cristaliza em suas imagens não apenas pelaqualidade técnica que possui, mas, sobretu<strong>do</strong>, pelamaneira com que o realiza<strong>do</strong>r aborda o tema, cujotratamento revela um olhar original sobre a vida dehomens e mulheres, que vivem no sertão. O ponto devista a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> por Belens na descrição de suas existênciasnão é condescendente com elas. Foge, porexemplo, da maneira pela qual os sertanejos são sempretrata<strong>do</strong>s pelo cinema brasileiro, e, nesta sua visãoinsólita e nada complacente, sem piedade, poderse-iadizer, acha-se, durante o desenvolvimento danarrativa, uma espécie de borbulhar que a permeiapara a explosão exorcística final.Pau Brasil é basea<strong>do</strong> no livro homônimo de Dinorah<strong>do</strong> Valle, que recebeu, em Havana, o prêmio Casa delas Americas. A autora participou também da gestação<strong>do</strong> roteiro, mas não pôde vê-lo concretiza<strong>do</strong>porque morreu antes das filmagens. Pode-se observaruma afinidade eletiva entre a escrita de Dinorah<strong>do</strong> Valle e o pensamento belensiano sobre a vida.Impressiona a qualidade técnica de Pau Brasil, suamontagem exata, o senti<strong>do</strong> de duração preciso dastomadas. Não seria exagero dizer que, em Pau Brasil,há uma contenção quase bressoniana na exposiçãodas chagas sociais e existenciais. O cinema baiano,força dizer, nunca tinha alcança<strong>do</strong>, em sua luminosatrajetória, o grau de maturidade temática e estilísticaque se pode encontrar no filme de Fernan<strong>do</strong> Bélens.Em Pau Brasil, a técnica (perfeita) se encontra com alinguagem para fazer emergir uma estética.O senti<strong>do</strong> da duração das tomadas, vale repetir, conjuga-secom o senti<strong>do</strong> <strong>do</strong>s enquadramentos para queo filme se estruture narrativamente em consonânciacom o que se quer dizer. O que está dito, portanto,nas imagens de Pau Brasil, está dito de uma maneiraescritural que permite a associação equilibrada, comoto<strong>do</strong> bom filme que se preze, entre a narrativa e afábula.Autor, porque se vista a sua filmografia há, nela,constantes temáticas e estilísticas, Fernan<strong>do</strong> Bélens,


desde os seus experimentos insólitos em Super 8,já demonstrava uma visão particular <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> queo cerca, um olhar arguto, anárquico por vezes, nãodestituí<strong>do</strong>, no entanto, de originalidade na representação<strong>do</strong> que se chama real.As imagens de Experiência I (e as outras, transformadas),de Anil, de Europa, França e Bahia, de Heteros,a comédia, de Pixaim, entre outros, estão inseridasno corpus de Pau Brasil. O que significa dizer que Bélensé um autor, um realiza<strong>do</strong>r que tem, como queriaFrançois Truffaut, uma visão de cinema e uma visãode mun<strong>do</strong>. Neste particular, faz um cinema dilacerante,cortante, que não admite a compaixão, masque luta pela emergência da perplexidade diante dascontradições da realidade.Uma compaixão que, por exemplo, não existe em relaçãoaos personagens miseráveis <strong>do</strong> filme. InclusiveBélens coloca a intolerância, o preconceito, a hipocrisia,dentro <strong>do</strong> contexto da história, que trata darivalidade entre duas famílias pobres que sobrevivemnum ambiente hostil. A intolerância, para Bélens, nãoé uma questão de classe, como a é para muitos, masuma questão da necessidade de o homem se transformar,uma questão da natureza humana.Duas famílias vivem em casas rudes, toscas, uma emfrente da outra. Numa delas, um homem (BertrandDuarte – sempre inexcedível) mora com uma mulhere a deixa amar qualquer tipo que chegue à sua porta,principalmente caminhoneiros, que são seduzi<strong>do</strong>spela sua maneira fogosa de ser. Mas o personagemnão se importa e é feliz e carinhoso e, ainda, abriga noseu seio familiar um outro homem que aparece numanoite a pedir asilo em sua casa. O casal tem um filho,maltrata<strong>do</strong> pela coletividade, que se tranca em si mesmo.Uma espécie assim de As duas faces da felicidade(Le bonheur, 1966), de Agnes Varda, às avessas. Mas ohomem interpreta<strong>do</strong> por Bertrand guarda um segre<strong>do</strong>,que se revela no final.Do outro la<strong>do</strong> da rua, um outro homem (Oswal<strong>do</strong>Mil), casa<strong>do</strong>, com duas filhas, vive a discursar daporta de sua casa sobre a promiscuidade existentena casa vizinha. Suas duas filhas a<strong>do</strong>lescentes vivemsob o regime <strong>do</strong> chicote, e a mulher, sempre calada,sujeita-se à sua condição. As duas meninas, porém,não possuem a mesma perspectiva de vida. Uma pretendeo gozo da vida, a plenitude carnal, enquanto aoutra prefere o celibato e acaba por entrar no claustrode um convento.Como fio condutor, a exemplo de um personagemde tragédia grega, uma mulher negra, desgrenhada,é o alter ego da coletividade. O filme começa com ogaroto, filho <strong>do</strong> casal da residência dita promíscua, queanda por uma paisagem arenosa. As primeiras imagensde Pau Brasil mostram em seguida uma árvore imensa,o título <strong>do</strong> filme, e a negra que profere palavraspremonitórias, assim como no final, quan<strong>do</strong> caminhasolitária por uma estrada que parece não ter fim.A exposição <strong>do</strong>s personagens e das situações dálugar, a partir de certo momento, a uma explosão deconflitos entre as duas famílias. E é neste conflito que121panorama <strong>do</strong> cinema baiano


122panorama <strong>do</strong> cinema baianose dá o exorcismo, a revelação, e o desfecho exasperantede Pau Brasil. Bélens, neste retrato pungente,mostra com argúcia de bom cineasta que a condiçãohumana é contraditória e complexa.Ponto máximo para a fotografia de Hamilton Oliveira,para a montagem de André Ben<strong>do</strong>cchi Alves, elementosque proporcionam o estabelecimento de umamise-en-scène <strong>do</strong>tada de eficiência dramática e deum ritmo que cativa pela conjugação harmoniosa <strong>do</strong>selementos da fabulação.Pau Brasil, 2009


124NOTASpanorama <strong>do</strong> cinema baiano(1) Os <strong>Cinema</strong>s da Bahia (1897/1917), trabalho pioneirode Sílio Boccanera Junior, tem edição distribuídaem mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s anos 2000 pela Edufba, a editorada Universidade Federal da Bahia.(2) A História <strong>do</strong> <strong>Cinema</strong> vista da Província, edita<strong>do</strong>pela Fundação Cultural <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> da Bahia em 1979,é uma pesquisa de Walter da Silveira, que observa,em suas páginas, a evolução <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> exibi<strong>do</strong>rbaiano através <strong>do</strong>s filmes que foram apresenta<strong>do</strong>s,e, com isso, realiza um panorama histórico <strong>do</strong> cinemamundial sob a ótica de um habitante de sua província.Trata-se de um livro publica<strong>do</strong> após a morte deWalter da Silveira e muito bem organiza<strong>do</strong> por JoséUmberto Dias, que, inclusive, escreve um texto importantenas últimas páginas.de filmes. O cineasta veio a morrer anos depois em1982. A fita, porém, se perdeu no mofo <strong>do</strong>s tempos.(5) Walter da Silveira escreveu um longo artigo depágina inteira no jornal A Tarde sobre a criação <strong>do</strong>Clube de <strong>Cinema</strong> da Bahia em 1967 intitula<strong>do</strong> Origeme fundamento <strong>do</strong> <strong>Cinema</strong> de Arte da Bahia.(6) Paulo Emílio Salles Gomes no Suplemento Literáriode O Esta<strong>do</strong> de São Paulo, em 24 de março de1962.(3) Em parceria com José Umberto Dias, escrevi um catálogointitula<strong>do</strong> Alexandre Robatto, Filho: um pioneiro<strong>do</strong> cinema baiano, que foi edita<strong>do</strong>, em 1992, pelaFundação Cultural <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> da Bahia.(4) Em 1976, realizei uma longa entrevista comAlexandre Robatto, Filho, que, embora já <strong>do</strong>ente,deu-me um relato de suas atividades como realiza<strong>do</strong>r


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ficha técnicaGOVERNADOR DO ESTADO DA BAHIAJaques WagnerSECRETÁRIO DE CULTURA DO ESTADO DA BAHIAAntonio Albino Canelas RubimDIRETORA DA FUNDAÇÃO CULTURALDO ESTADO DA BAHIA - FUNCEBNehle FrankeDIRETORIA DE AUDIOVISUAL – DIMASDiretora:Sofia FedericoAssessor Técnico:Daniel CarneiroTexto:André SetaroDesign Gráfico:La<strong>do</strong> B / Patrícia SimplícioRevisão de texto:Paula BerbertMarcos PierrySofia FedericoPesquisa e digitalização de imagens:Simone LopesLúcio MendesEdivan NevesGerente de Planejamento e Produção:Tatti CarvalhoCoordena<strong>do</strong>ra Administrativo-financeira:Valdélia AlmeidaCoordenação <strong>do</strong> Núcleo de Memória:Simone Lopes


panorama <strong>do</strong>cinema baianoPOR ANDRÉ SETAROApoio Institucional:Realização:

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