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O ocaso da vitima

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Suely Rolnik*O OCASO DA VÍTIMAPara além <strong>da</strong> cafetinagem <strong>da</strong> criaçãoe de sua separação <strong>da</strong> resistência **Subjetivi<strong>da</strong>de paradoxalA subjetivi<strong>da</strong>de é o laboratório vivo onde universos se criam e outrosse dissolvem. Muitas são as políticas de subjetivação e os modos de relação coma alteri<strong>da</strong>de do mundo que elas implicam, combinatórias varia<strong>da</strong>s e variáveis dedois modos de apreensão do mundo enquanto matéria – como desenho de umaforma ou como campo de forças –, os quais por sua vez dependem <strong>da</strong> ativaçãode diferentes potências <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong>de.Conhecer o mundo como matéria-forma convoca a percepção, opera<strong>da</strong>pelos órgãos dos sentidos; já conhecer o mundo como matéria-força convocaa sensação, engendra<strong>da</strong> no encontro entre o corpo e as forças do mundo queo afetam. Aquilo que do corpo é afetável por estas forças não depende de suacondição de orgânico, de sensível ou sensorial, de erógeno, nem de emocional,mas de sua condição de carne percorri<strong>da</strong> por on<strong>da</strong> nervosa: um “corpo vibrátil”(ou corpo intensivo). A percepção do outro traz sua existência formal à subjetivi<strong>da</strong>de,sua representação; enquanto que a sensação lhe traz sua presençaviva. Entre estes dois modos de apreensão do mundo reside um paradoxoirresolúvel: de um lado, os novos blocos de sensações que pulsam na subjetivi<strong>da</strong>de,na medi<strong>da</strong> em que vai sendo afeta<strong>da</strong> por novos universos; de outro, as formasatravés <strong>da</strong>s quais a subjetivi<strong>da</strong>de se reconhece e se orienta no presente.Dispari<strong>da</strong>de inelutável que acaba por colocar as formas atuais em xeque, poisestas se tornam um obstáculo para integrar as novas conexões com a alteri<strong>da</strong>dedo mundo que provocaram a emergência de um novo bloco de sensações e, comisso, deixam de ser condutoras de processo, esvaziam-se de vitali<strong>da</strong>de, perdemsentido. Instaura-se na subjetivi<strong>da</strong>de uma crise que pressiona e causa desconforto.Para responder a essa pressão, mobiliza-se no homem a vi<strong>da</strong> enquantopotência de resistência e de criação – vale dizer: o desconforto força a criaruma nova configuração <strong>da</strong> existência, uma nova figuração de si, do mundo e<strong>da</strong>s relações entre ambos; força igualmente a lutar pela incorporação dos novoscontornos, a lutar para trazê-los à existência.É a associação do exercício <strong>da</strong>s duas forças que garante a continui<strong>da</strong>de<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, sua expansão. As múltiplas transformações moleculares que <strong>da</strong>í resultamvão se acumulando e acabam precipitando novas formas de socie<strong>da</strong>de –uma obra aberta e em processo, cuja criação é portanto necessariamente coletiva.O paradoxo na subjetivi<strong>da</strong>de e a crise que ele provoca são assim constitutivosdo processo de individuação em seu constante devir outro, eles são seusdisparadores. Isto faz de todo e qualquer modo de subjetivação, uma configuraçãoefêmera em equilíbrio instável.Praticar ou não estes dois modos de conhecimento e o lugar que ca<strong>da</strong>um deles ocupa na relação com o mundo, definem modos de subjetivação queimplicam políticas de relação com a alteri<strong>da</strong>de cujos efeitos não são neutros:Mario Ramiro,“Os prisioneiros”, 2003 (foto Luisa Meyer)Rolnik 79


1. “Capitalismo mundialintegrado” (CMI) é onome que, já no final dosanos 1970, Félix Guattaripropôs para designar ocapitalismo contemporâneocomo alternativa à“globalização”, termo pordemais genérico e quevela o sentido fun<strong>da</strong>mentalmenteeconômico, emais precisamente capitalistae neoliberal do fenômeno<strong>da</strong> mundializaçãoem sua atuali<strong>da</strong>de. Naspalavras de Guattari: “Ocapitalismo é mundial eintegrado porque potencialmentecolonizou oconjunto do planeta,porque atualmente viveem simbiose com paísesque historicamente pareciamter escapado dele (ospaíses do bloco soviético, aChina) e porque tende afazer com que nenhumaativi<strong>da</strong>de humana,nenhum setor de produçãofique de fora de seu controle”.GUATTARI, Félix.“O Capitalismo MundialIntegrado e a RevoluçãoMolecular”. In ROLNIK,Suely (org.). RevoluçãoMolecular. Pulsaçõespolíticas dodesejo. Brasiliense,São Paulo, 1981.tais políticas favorecem ou, ao contrário, constrangem a processuali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>vi<strong>da</strong>, sua expansão enquanto potência de diferenciação – potência que depende<strong>da</strong> força de invenção que decompõe mundos e compõe outros e, indissociavelmente,<strong>da</strong> força de resistência que garante a mu<strong>da</strong>nça. Em outras palavras:diferentes políticas de relação com o outro favorecem ou constrangem a potência<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Como problematizar nestes termos a política de subjetivação dominanteno contexto atual do “capitalismo mundial integrado” 1 ?Invenção seqüestra<strong>da</strong>Alguns autores contemporâneos, especialmente no entorno de ToniNegri, afirmam que a partir dos anos 1970 ou 80, o capitalismo vem fazendo<strong>da</strong> força de invenção sua principal fonte de valor e o motor mesmo <strong>da</strong> economia,no lugar <strong>da</strong> força de trabalho mecânica dos operários. Como pensar estefenômeno do ponto de vista <strong>da</strong> política de subjetivação que ele envolve?Dois aspectos se destacam e se entrechocam: por um lado, o conhecimentodo mundo como matéria-força tende a ser desacreditado, o que temcomo efeito sua desativação; por outro, intensifica-se brutalmente o paradoxoentre os blocos virtuais de sensações e as formas de vi<strong>da</strong> atuais, o que intensificaigualmente a tensão e a mobilização <strong>da</strong> força de criação que essa dissonânciaprovoca.Muitas são as causas <strong>da</strong> intensificação dessa dissonância. Para ficarapenas em duas <strong>da</strong>s mais evidentes nos ateremos primeiramente ao fato de quea existência urbana e globaliza<strong>da</strong> que instaura-se com o capitalismo, implicaque os mundos a que está exposta a subjetivi<strong>da</strong>de em qualquer ponto do planetamultiplicam-se ca<strong>da</strong> vez mais e variam numa veloci<strong>da</strong>de ca<strong>da</strong> vez mais vertiginosa,o que faz com que a subjetivi<strong>da</strong>de seja continuamente afeta<strong>da</strong> por umturbilhão de forças de to<strong>da</strong> espécie. Em segundo lugar, nos ateremos ao fato deque a necessi<strong>da</strong>de de estarem sendo constantemente cria<strong>da</strong>s novas esferas demercado – necessi<strong>da</strong>de inerente à lógica capitalista –, implica que tenham queser produzi<strong>da</strong>s novas formas de vi<strong>da</strong> que lhe dêem consistência existencial,enquanto outras sejam varri<strong>da</strong>s de cena, junto com setores inteiros <strong>da</strong> economiaque se desativam. A associação destes dois fatores, entre outros, reduz oprazo de vali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s formas em uso, as quais tornam-se obsoletas antesmesmo que se tenha tido tempo de absorvê-las; além disso, tal associaçãoimpõe a obrigação de reformatar-se rapi<strong>da</strong>mente, antes mesmo que se tenhatido tempo de inteirar-se <strong>da</strong>s sensações que a mu<strong>da</strong>nça suscita. Vive-se em estadode tensão permanente, à beira <strong>da</strong> exasperação, o que faz com que a força deinvenção seja muito freqüentemente convoca<strong>da</strong>.Para agravar a situação, esse processo se dá numa subjetivi<strong>da</strong>de cegaàs forças <strong>da</strong> alteri<strong>da</strong>de do mundo, dissocia<strong>da</strong> do corpo vibrátil e, conseqüentemente,sem acesso aos novos blocos de sensações que mobilizam sua potênciade invenção; corpo-bússola que orienta a criação de territórios, para fazê-losfuncionar como atualização existencial de tais sensações. Um manancial deforça de invenção é então liberado sem que se possa dele apropriar-se para aconstrução de mundos singulares em consonância com o que pede o processovital. É este manancial de força de criação “livre” que o capitalismo contem-porâneo descobre como uma mina virgem, poderosa fonte de valor a ser explora<strong>da</strong>,fenômeno que Toni Negri e seus colaboradores detectaram e circunscreveram.Para extrair <strong>da</strong> força de invenção sua máxima rentabili<strong>da</strong>de, o capitalismoirá fomentá-la mais ain<strong>da</strong> do que já a mobiliza por sua própria lógicainterna, para fazer dela um uso mais perverso: cafetiná-la a serviço <strong>da</strong> acumulaçãode mais-valia, aproveitando e, com isso, reiterando sua alienação emrelação ao processo vital que a engendrou, alienação que a separa <strong>da</strong> força deresistência. Força de invenção turbina<strong>da</strong> e libera<strong>da</strong> de sua relação com aresistência, de um lado, e de outro, tensão agrava<strong>da</strong>, no contexto de uma abor<strong>da</strong>gem<strong>da</strong> alteri<strong>da</strong>de do mundo dissocia<strong>da</strong> de sua apreensão como matéria-forçapelo corpo vibrátil: estes são os dois vetores que definem o modo de subjetivaçãodo capitalismo em sua atuali<strong>da</strong>de.A potência de invenção turbina<strong>da</strong> e libera<strong>da</strong> de sua associação com aresistência, o capital a captura a serviço <strong>da</strong> criação de territórios-stan<strong>da</strong>rd paraconfigurar os tipos de subjetivi<strong>da</strong>de adequados para ca<strong>da</strong> nova esfera que seinventa. São territórios de existência homogeneizados cuja formação tem comoprincípio organizador a produção de mais-valia, princípio que se sobrepõe aoprocesso e o sobrecodifica. Ver<strong>da</strong>deiras “identi<strong>da</strong>des prêt-à-porter” facilmenteassimiláveis, acompanha<strong>da</strong>s de uma poderosa operação de marketing que cabeà mídia fabricar e veicular de modo a fazer acreditar que identificar-se com tãoestúpi<strong>da</strong>s imagens e consumi-las é imprescindível para conseguir reconfigurarum território, e mais do que isso, que este é o canal para pertencer ao disputadíssimoterritório de uma “subjetivi<strong>da</strong>de-luxo”. Isto não é pouca coisa, poisfora desse território corre-se o risco de morte social por exclusão, humilhação,miséria, quando não o de morrer literalmente – o risco de cair na cloaca <strong>da</strong>s“subjetivi<strong>da</strong>des-lixo”, com seus cenários de horror feitos de guerra, favela, tráfico,seqüestro, fila de hospital, criança desnutri<strong>da</strong>, gente sem teto, sem terra,sem camisa, sem documento, gente “sem” –, um território que se avoluma aca<strong>da</strong> dia. Mas se a subjetivi<strong>da</strong>de-lixo vive permanentemente o desconforto <strong>da</strong>humilhação de uma existência sem valor, já a subjetivi<strong>da</strong>de-luxo vive permanentementea ameaça de cair para fora, no território-esgoto, que<strong>da</strong> que podeser irremediável, cuja ameaça a assombra e a deixa agita<strong>da</strong> e ansiosa numabusca desespera<strong>da</strong> por reconhecimento.O processo se completa beneficiando-se do agravamento <strong>da</strong> tensão quecria um ambiente propício para o assédio <strong>da</strong> mídia, que vende promessa deapaziguamento garantido pela reconfiguração instantânea que o consumo deseus territórios-padrão mercantilizados supostamente propicia. Operação queinjeta nessa subjetivi<strong>da</strong>de fragiliza<strong>da</strong> doses ca<strong>da</strong> vez maiores de ilusão de que atensão pode acalmar-se e a mantém aliena<strong>da</strong> <strong>da</strong>s forças do mundo que pedempassagem.Na vertigem desse processo que se acelera ca<strong>da</strong> vez mais, sobram ca<strong>da</strong>vez menos chances de conhecer/ressoar a reali<strong>da</strong>de viva do mundo comomatéria-força, de escapar dessa dissociação. Não dá para parar de entregar-seao assédio non-stop dos estímulos sob pena de deixar de existir e cair na vala<strong>da</strong>s subjetivi<strong>da</strong>des-lixo. O medo passa a coman<strong>da</strong>r a cena.No entanto, como também nos assinalam os que trabalham no entorno80RolnikRolnik 81


de Negri, se o capitalismo contemporâneo atiçou a força de invenção paracafetiná-la, em seu avesso, a mobilização dessa força no conjunto <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> socialcriou as condições para um poder de resistência <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> como potência de variação,provavelmente sem medi<strong>da</strong> de comparação com outros períodos <strong>da</strong>história do Ocidente – uma ambigüi<strong>da</strong>de constitutiva do capitalismo, seu pontovulnerável. Pela brecha dessa vulnerabili<strong>da</strong>de vem se avolumando a construçãode outras cenas, regi<strong>da</strong>s por outros princípios.Que estratégias de subjetivação são essas que desobstruem o acesso aocorpo vibrátil, religam o poder de criação ao poder de resistência e o liberam deseu cafetão? Responder a esta pergunta, depende de nos colocarmos numa zonaonde política e arte se misturam, afetam-se mutuamente as forças de resistência<strong>da</strong> política e as forças de criação <strong>da</strong> arte e tornam-se indiscerníveis suasfronteiras. Proponho que experimentemos nos situar nesta zona de hibri<strong>da</strong>ção- primeiro do lado <strong>da</strong> política contamina<strong>da</strong> por sua vizinhança com a arte, edepois do lado <strong>da</strong> arte contamina<strong>da</strong> por sua vizinhança com a política -, paravislumbrarmos estratégias desse tipo.Políticas <strong>da</strong> resistência: “o acontecimento Lula”Tomarei a recente vitória de Lula nas eleições presidenciais do Brasilcomo exemplo de estratégias que, no âmbito <strong>da</strong> política, tendem a liberar aforça de criação de sua cafetinagem e a reconectá-la com a força de resistência.Para além do fato tangível <strong>da</strong> eleição, um ver<strong>da</strong>deiro “acontecimento”parece ter se produzido ao longo <strong>da</strong> campanha eleitoral: a figura de Lula encarnaa dissolução de uma subjetivi<strong>da</strong>de-lixo em sua versão brasileira, resultantede 500 anos de uma política de subjetivação colonial, escravocrata, ditatorial ecapitalista; herança histórica em que se sobrepõem regimes diversos deexclusão e segmentação, que têm posicionado o país no topo do ranking mundial<strong>da</strong> desigual<strong>da</strong>de social. O acontecimento Lula é a deserção do lugar <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong>de-lixoe de sua posição de vítima.A figura <strong>da</strong> vítima pertence a uma política de relação com a cruel<strong>da</strong>deque consiste em denegá-la. A cruel<strong>da</strong>de, condição trágica <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, se impõecomo necessi<strong>da</strong>de vital em função <strong>da</strong>quela dispari<strong>da</strong>de entre a apreensão domundo como matéria-forma e sua apreensão como matéria-força: quando taldispari<strong>da</strong>de atinge um limiar, a cruel<strong>da</strong>de tem que se exercer para que se desfaçaum mundo que já não tem sentido; ela é este caráter inexorável do movimentovital, sua “violência positiva” ou “ativa”. Seu exercício se faz através <strong>da</strong>potência de criação que inventa outras formas de existência e, coextensivamente,<strong>da</strong> potência de resistência, de luta pela construção e defesa destes novosmundos, sem o que a vi<strong>da</strong> não vinga.Em se tratando de uma subjetivi<strong>da</strong>de cindi<strong>da</strong> <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de viva domundo enquanto matéria-força – como acontece no capitalismo hoje –, vimosque as potências de resistência e de criação se dissociam. A subjetivi<strong>da</strong>de nãotem como reconhecer a cruel<strong>da</strong>de <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> como causa de seu assombro; estetransforma-se então em medo e desamparo. Estando restrita ao conhecimentodo mundo como matéria-forma e, portanto, ao mapa <strong>da</strong> forma vigente com suasfiguras e seus conflitos de interesse, para encontrar uma explicação e aliviar-se,a subjetivi<strong>da</strong>de projeta no outro a causa de seu medo e lhe atribui a autoria <strong>da</strong>cruel<strong>da</strong>de. Mobiliza<strong>da</strong> pela experiência <strong>da</strong> cruel<strong>da</strong>de passa<strong>da</strong> pelo crivo destainterpretação, a força de resistência, ao invés se dirigir-se à afirmação e defesade novas formas de vi<strong>da</strong> que se fazem necessárias, será neste caso dirigi<strong>da</strong> “contra”o outro. Tal força é então captura<strong>da</strong> pela matriz dialética, como luta entreopostos, subjetivi<strong>da</strong>des reifica<strong>da</strong>s em figuras identitárias, cuja luta gira exclusivamenteem torno do poder. No entanto, seja qual for o vencedor, em termosde política de desejo, o que vence neste caso é a força do conservadorismo quedefende a forma vigente: resistência negativa que denega o germe de diferençaque pede passagem e breca a criação de uma forma de vi<strong>da</strong> na qual o germeganhe corpo e se atualize.Nesta política <strong>da</strong> resistência reativa, a multiplici<strong>da</strong>de de forças emjogo é silencia<strong>da</strong> e enquadra<strong>da</strong> em apenas duas figuras subjetivas: a vítima e/ouo algoz, avessos especulares de uma mesma lógica. Para o algoz a luta visa submetero outro para que, tomado como objeto, possa ser instrumentalizado aserviço <strong>da</strong> conservação do opressor e de sua expansão enquanto tal. Políticaperversa do exercício <strong>da</strong> resistência na versão reativa, que toma a forma <strong>da</strong> mal<strong>da</strong>dee com ela se confunde. É a violência em seu exercício reativo: desde a violênciaexplícita, física ou moral, até a violência implícita de uma forma “pacífica”,que consiste no respeito politicamente correto pelo outro regado à pie<strong>da</strong>de,que o fixa num lugar identitário. Se para o algoz a “violência negativa” é explicitamenteassumi<strong>da</strong>, já para a vítima ela se justifica como reação à violência dooutro, o qual é confinado na figura do “inimigo”. Ela se exerce seja implicitamenteno estilo queixoso, sob a forma ressenti<strong>da</strong> e/ou de autocomiseraçãomelancólica, que detona o outro através <strong>da</strong> culpa; seja explicitamente no estiloraivoso, sob a forma vingativa e/ou paranóica. Ressentimento e vingança: políticasde resistência <strong>da</strong> vítima que respondem em espelho àquilo mesmo que pretendemcombater – a lógica <strong>da</strong> mal<strong>da</strong>de, violência reativa que tais políticas alimentamvoluptuosamente.Esta lógica <strong>da</strong> resistência reativa é hegemônica em nossa contemporanei<strong>da</strong>de:a violência tende a ser sempre reduzi<strong>da</strong> à sua versão negativa, concepçãoamplamente propaga<strong>da</strong> pelo capitalismo mundial integrado que dela seutiliza para cultivar o medo e o desamparo e, através deles, alimentar o modode subjetivação que lhe dá consistência existencial. A mídia é o principal veículodesta propagação, cujas estratégias têm se tornado ca<strong>da</strong> vez mais refina<strong>da</strong>s,mais hábeis e mais eficientes. Hoje a representação de uma guerra do porte <strong>da</strong>do Iraque, passa por um só filtro mundial, a CNN, que ignora a violência negativado agressor, – no caso os USA e as forças alia<strong>da</strong>s do capitalismo mundialintegrado. Desta violência nenhuma imagem é transmiti<strong>da</strong> e a guerra é interpreta<strong>da</strong>como revide contra a suposta violência negativa do outro, no caso “oárabe”. No Brasil, essa micropolítica do capitalismo instalou-se com a ditaduramilitar e continua até hoje.Vítima e algoz sustentam-se na crença nas figuras <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong>deluxoe subjetivi<strong>da</strong>de-lixo, na hierarquia que marca sua relação e, portanto, novalor superior <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong>de-luxo, referência ideal para ambas. Na vítima, asubjetivi<strong>da</strong>de-luxo mobiliza admiração, identificação e inveja, aquilo que a psicanálisequalifica como “identificação com o agressor”. Por baixo tanto de sua82RolnikRolnik 83


ação não mais encontra-se confinado na arte, como uma esfera específica deativi<strong>da</strong>de humana. Esta situação coloca para a arte novos problemas e exigedela novas estratégias. Por meio de que estratégias as práticas artísticas estariamoperando sua função crítica em nossa atuali<strong>da</strong>de? Como estariam elas promovendoa reconexão <strong>da</strong>s potências de criação e de resistência, dos afetosestético e político?Permanecer simplesmente no gueto <strong>da</strong> “arte” enquanto esfera separa<strong>da</strong>onde confinava-se a potência de criação no regime anterior é correr o riscode mantê-la dissocia<strong>da</strong> <strong>da</strong> potência de resistência e limitar-se a ser fonte devalor para a cafetinagem do capital. Risco de se ver reduzido enquanto artistaà função de fornecedor de droga pesa<strong>da</strong> de identi<strong>da</strong>des prêt-à-porter com seuslotes de cartografias de sentido impregna<strong>da</strong>s de glamour, para serem comercializa<strong>da</strong>spelos dealers de plantão no mercado em ascensão de subjetivi<strong>da</strong>desem síndrome de abstinência de sentido e de contorno de si. Leva<strong>da</strong> ao limite,essa posição desemboca no cinismo de alguns artistas cuja criação é orienta<strong>da</strong>pelo desejo de pertencimento a esta cena glamouriza<strong>da</strong> e que se oferecemvoluptuosamente para a cafetinagem.No entanto, tampouco se trata de insistir na cantilena <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>dede religar arte e vi<strong>da</strong>, em todo caso não do mesmo modo como esta questãocolocava-se na moderni<strong>da</strong>de, pois se arte e vi<strong>da</strong> continuam a estar dissocia<strong>da</strong>s,já não é pela desativação <strong>da</strong> criação no conjunto <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> social e seu confinamentono gueto <strong>da</strong> arte: esta situação já foi resolvi<strong>da</strong> pelo capitalismo antes emais eficazmente do que pela arte. Se existe uma dissociação – e é evidente queela existe – ela certamente deslocou-se, tornando-se ao mesmo tempo maissutil e mais perversa. Trata-se de uma operação de grande complexi<strong>da</strong>de e quepode incidir sobre diferentes etapas do processo de criação e não só sobre suaetapa final. Sua incidência sobre esta etapa é apenas a mais evidente pois équando a dissociação se faz sentir nos produtos, reificando-os, o que ocorre dedois modos: seja os transformando em “objetos de arte” separados do processovital em função do qual a criação se fez, seja os tratando como fonte de maisvaliade glamour a ser associado ao logotipo de empresas e até de municipali<strong>da</strong>des(como Bilbao, com seu Museu Guggenheim). O glamour, neste caso,incrementa o poder de sedução do logotipo e, portanto, o poder <strong>da</strong> empresa ou<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de mobilizar identificação e vontade de consumo, o que favorece seusucesso comercial.Algumas práticas artísticas na atuali<strong>da</strong>de parecem li<strong>da</strong>r de modo especialmenteeficaz com o problema acima apontado. Sua estratégia consiste nainserção sutil e precisa em pontos de esgarçamento do tecido <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> social,onde pulsa uma tensão pela pressão de uma nova composição de forças quepedem passagem; um modo de inserção mobilizado pelo desejo de expor-se aooutro e correr o risco dessa exposição, ao invés de optar pela garantia de umarelação politicamente correta que confina o outro numa representação e protegea subjetivi<strong>da</strong>de do risco de contaminação afetiva. A “obra” consiste emtrazer para a existência tais forças e a tensão que elas provocam, o que passapela conexão <strong>da</strong> potência de criação com um pe<strong>da</strong>ço de mundo apreendidocomo matéria-força pelo corpo vibrátil do artista e, coextensivamente, pela ativação<strong>da</strong> potência de resistência. Inventam-se “dispositivos espaço-temporaisde um outro estar-junto” 4 : a presença viva desta atitude encarna<strong>da</strong> numa práticaartística, tem poder de contaminação e propagação nos meios nos quais elase insere, direta ou indiretamente. Já mobiliza<strong>da</strong> neste meio como por to<strong>da</strong>parte, a força de criação, ao ser autoriza<strong>da</strong> a reconectar-se com o mundo comomatéria-força e a exercer-se associa<strong>da</strong> à potência de resistência, ganha umaoportuni<strong>da</strong>de para libertar-se de seu destino perverso que lhe destitui do poderde inventar cartografias singulares que atualizem as mutações em curso nassensações. A obra propriamente dita é este acontecimento.Que outras estratégias artísticas estariam enfrentando os problemasaqui assinalados? Que outros problemas estariam sendo colocados pela dissociaçãoentre resistência e criação no âmbito <strong>da</strong>s práticas artísticas? E no âmbitode outras práticas sociais, como estariam se reativando e se imbricando o afetopolítico e o afeto estético, potências essenciais para uma saúde vital em qualquerativi<strong>da</strong>de humana? Encontrar direções de resposta para estas perguntas étarefa que não pode ser realiza<strong>da</strong> apenas individualmente. Um tal trabalhodepende <strong>da</strong> acumulação de experimentações infinitesimais por to<strong>da</strong> a trama dotecido <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> coletiva.** Conferência proferi<strong>da</strong> em São Paulo S.A. Situação #1 COPAN, com curadoria deCatherine David (São Paulo, novembro de 2002). Publica<strong>da</strong> em espanhol in Zehar. nº 51. SanSebastián, Arteleku, Diputación Foral de Giupuzkoa, 2003 (número dedicado à discussão deste texto,por autores convi<strong>da</strong>dos para este fim) e in Pagina 12. Buenos Aires, 2/3/03. (Ra<strong>da</strong>rlibros); em inglês efrancês, in Parachute Art Contemporain_Contemporary Art. no 110. Montreal, 4-5-6/2003. (Économiesbis); em francês, in Chimères. n° 49. Paris, primavera de 2003. (Désir des marges); em português, emversão menor, in Folha de São Paulo. São Paulo, 02/02/03. (Caderno Mais!).*É psicanalista e professora titular <strong>da</strong> Pontifícia Universi<strong>da</strong>de Católica de São Paulo, onde coordena oNúcleo de Estudos <strong>da</strong> Subjetivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> pós-graduação de psicologia clínica.4. RANCIÈRE, Jacques.“Estética y política. Unvínculo para replantear”.[Estética e política.Uma relação a serrepensa<strong>da</strong>]. Seminárioinédito do autororganizado pelo Museud’Art Contemporani deBarcelona - MACBA(Barcelona, de 13 a 17 demaio de 2002).86RolnikRolnik 87

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