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Marcel Duchamp e o fim do gosto - Departamento de Artes Plásticas

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Arthur C. Danto<strong>Marcel</strong> <strong>Duchamp</strong> e o <strong>fim</strong> <strong>do</strong> <strong>gosto</strong>:uma <strong>de</strong>fesa da arte contemporânea*para Kippy StroudJean Clair, diretor <strong>do</strong> Museu Picasso em Paris, e em tempos recentes,crítico feroz da art contemporain, foi durante os anos setenta um importanteintérprete da obra <strong>de</strong> <strong>Marcel</strong> <strong>Duchamp</strong>. Ele organizou a gran<strong>de</strong> retrospectiva<strong>de</strong> <strong>Duchamp</strong> em 1975 – a exposição inaugural no Centre Pompi<strong>do</strong>u – e escreveuo catalogue raisonné da sua obra. Mas surpreen<strong>de</strong>ntemente, a <strong>de</strong>speito <strong>de</strong>sse envolvimentoinicial, ele passou a consi<strong>de</strong>rar esse artista, em larga medida, responsávelpelo que consi<strong>de</strong>ra “a condição <strong>de</strong>plorável da arte contemporânea”. Recentemente,reuniu seus escritos sobre <strong>Duchamp</strong> sob o título <strong>Marcel</strong> <strong>Duchamp</strong> et la fin <strong>de</strong> l’art 1e fica claro no ensaio <strong>de</strong>nunciatório “The Muses Decomposed” 2 que ele i<strong>de</strong>ntificaintimamente la fin <strong>de</strong>l’art com o que aí <strong>de</strong>screve como a arte fin <strong>de</strong> siècle <strong>do</strong>século vinte. Marcada, como observa Jean Clair, pela ascendência <strong>de</strong> uma “novacategoria estética” composta <strong>de</strong> “repugnância, abjeção, horror e repulsa/ nojo”.Repulsa é “um traço comum, uma semelhança <strong>de</strong> família” da arte produzida hoje“não só na América e na Europa, mas ainda nos países da Europa central querecentemente se abriram à mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> oci<strong>de</strong>ntal”. A língua francesa, contu<strong>do</strong>,permite um jogo <strong>de</strong> palavras entre goût (<strong>gosto</strong>) e <strong>de</strong>goût (repulsa/ nojo) <strong>de</strong> que nãodispomos no inglês, já que aí não encontramos nenhum nexo <strong>de</strong> morfemas emtaste e disgust. Isso nos permite parafrasear a visão <strong>do</strong> <strong>fim</strong> da arte (la fin <strong>de</strong> l’art)<strong>de</strong> Jean Clair como o <strong>fim</strong> <strong>do</strong> <strong>gosto</strong> – um esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> coisas em que o repulsivo passaa tomar a posição antes ocupada pelo <strong>gosto</strong>. De fato, como percebe Jean Clair,isso expressa o triste <strong>de</strong>clínio da arte através <strong>do</strong>s últimos séculos: “Do <strong>gosto</strong>... nóspassamos ao repulsivo/ nojo”.É bem verda<strong>de</strong> que o <strong>gosto</strong>, como conceito normativo, foi a categoria regula<strong>do</strong>ra<strong>do</strong> século <strong>de</strong>zoito, quan<strong>do</strong> a disciplina da Estética era <strong>do</strong>minante. O <strong>gosto</strong> eraessencialmente conecta<strong>do</strong> com o conceito <strong>de</strong> prazer, e o próprio prazer era entendi<strong>do</strong>como uma sensação subordinada a graus <strong>de</strong> refinamento. Havia padrões <strong>do</strong> <strong>gosto</strong>e, com efeito, um curriculum <strong>de</strong> educação estética. O <strong>gosto</strong> não era meramente apreferência <strong>de</strong>sta ou daquela pessoa diante das mesmas coisas, mas o que qualquerpessoa, indistintamente, <strong>de</strong>veria preferir. Ora, o que as pessoas realmente preferemvaria <strong>de</strong> indivíduo para indivíduo, mas o que elas <strong>de</strong>vem preferir é i<strong>de</strong>almente umaquestão <strong>de</strong> consenso universal. Essa era a posição <strong>de</strong> Kant em sua notável Crítica<strong>do</strong> Juízo, a obra que coroa a estética <strong>do</strong> Iluminismo. Kant argumentava que o juízo<strong>de</strong> que algo é belo não equivale a prejulgar que to<strong>do</strong>s os <strong>de</strong>mais pensarão a mesma1. CLAIR, Jean.<strong>Marcel</strong> <strong>Duchamp</strong>et la fin <strong>de</strong> l’art.Paris: Galimard,2000.2. Apresenta<strong>do</strong> naConferência Nexus,em Tilberg, PaísesBaixos, em 21 <strong>de</strong>maio <strong>de</strong> 2000.Retrato <strong>de</strong> Arthur C. Danto.Danto15


3. KANT, Immanuel.Crítica <strong>do</strong> Juízo, § 48.4. A própria condição<strong>de</strong> <strong>de</strong>composiçãoatribuída às “Musas”hoje, na imagemputrefeita segun<strong>do</strong>Jean Clair.5. As pinturas <strong>de</strong>vanitas <strong>do</strong>s séculosXVI e XVII abjuraram<strong>do</strong> repulsivo em favor<strong>de</strong> representaçõessimbólicas comocaveiras e can<strong>de</strong>labros.O esforço eraclaramente o <strong>de</strong>estetizar a morte.coisa, mas simplesmente asserir que to<strong>do</strong>s <strong>de</strong>vem julgar assim. Há, portanto, umgrau <strong>de</strong> parida<strong>de</strong> lógica entre o juízo estético e o juízo moral, uma vez que o primeirotambém acarreta a universalização como condição <strong>de</strong> sua valida<strong>de</strong>.O repulsivo, curiosamente, foi consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> por Kant como modalida<strong>de</strong>da feiúra refratário ao tipo <strong>de</strong> prazer que até mesmo as coisas menos aprazíveiscomo “fúrias, <strong>do</strong>enças e <strong>de</strong>vastações da guerra” são capazes <strong>de</strong> suscitar quan<strong>do</strong>representadas como belas por obras <strong>de</strong> arte. “Aquilo que suscita repulsa/asco[Ekel]”, diz Kant, “não po<strong>de</strong> ser representa<strong>do</strong> em conformida<strong>de</strong> com anatureza sem <strong>de</strong>struir to<strong>do</strong> o prazer estético” 3 . A representação <strong>de</strong> uma coisa ousubstância repulsiva tem sobre nós o mesmo efeito que a apresentação da própriacoisa ou substância repulsiva teria. Visto que o propósito da arte <strong>de</strong>ve ser aprodução <strong>de</strong> prazer (o que <strong>Duchamp</strong> mais tar<strong>de</strong> <strong>de</strong>screveria como “prazer retiniano”)no especta<strong>do</strong>r, somente o mais perverso <strong>do</strong>s artistas se disporia a representar orepulsivo, o qual não po<strong>de</strong> “em conformida<strong>de</strong> com a natureza” suscitar prazer emespecta<strong>do</strong>res normais.Certamente, há os que extraem um prazer perverso ao experimentar oque normalmente se consi<strong>de</strong>ra repugnante: aqueles que têm, po<strong>de</strong>mos assimdizer, “<strong>gosto</strong>s especiais”. Contu<strong>do</strong>, os artistas que Jean Clair tem em mente nãoteriam esse público especial em vista. O seu objetivo é precisamente causar através<strong>de</strong> sua arte sensações que, na frase <strong>de</strong> Kant, “nós resistimos com toda nossa força”.Kant não po<strong>de</strong>ria senão consi<strong>de</strong>rar isso, como efetivamente Jean Clair o faz, comoa perversão da arte. Seria irrelevante para os artistas em questão que o <strong>gosto</strong>pelo repulsivo fosse normaliza<strong>do</strong>. É essencial para seus objetivos que o repulsivopermaneça sen<strong>do</strong> repulsivo, e não que o público aprenda a sentir prazer nele ouconsi<strong>de</strong>rá-lo sob algum aspecto belo. É difícil saber que tipo <strong>de</strong> arte Kant tinhaem mente ao tomar obras como repulsivas, sobretu<strong>do</strong> porque é difícil imaginaralgum exemplo real com o qual se <strong>de</strong>parasse.Eu vi algumas esculturas <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> gótico tardio, em que uma figuraque parece atraente e vigorosa quan<strong>do</strong> vista <strong>de</strong> frente, é exibida em esta<strong>do</strong> <strong>de</strong><strong>de</strong>composição quan<strong>do</strong> vista <strong>de</strong> trás: o corpo é mostra<strong>do</strong> assim como estaria seestivesse se <strong>de</strong>compon<strong>do</strong> no túmulo 4 . Essas ‘visões’ certamente explicam porqueefetivamente enterramos os mortos. A intenção é que sejam vistas como repugnantespor especta<strong>do</strong>res normais, e não cabe a questão da intenção oblíqua <strong>de</strong>exibir a <strong>de</strong>cadência física por meio da habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um escultor <strong>de</strong> pedra <strong>de</strong>Nüremberg. Simplesmente não se trata <strong>de</strong> proporcionar prazer ao especta<strong>do</strong>r,mas antes produzir repulsa, e ao fazê-lo, atuar como uma vanitas 5 lembran<strong>do</strong>-nosatravés <strong>de</strong>ssa apresentação que a carne é corruptível e seus prazeres, merasdistrações <strong>de</strong> aspirações mais elevadas, qual sejam, atingir a bem-aventurançaescapan<strong>do</strong> da con<strong>de</strong>nação eterna.Exibir o corpo humano como repulsivo é certamente violar o bom <strong>gosto</strong>,mas os artistas cristãos estavam prepara<strong>do</strong>s para pagar esse preço ten<strong>do</strong> em vista o16 Danto


que consi<strong>de</strong>ravam como supremo <strong>fim</strong> moral. Há um magnífico texto crítico <strong>de</strong> RogerFry sobre a “Ma<strong>do</strong>na com Filho” <strong>de</strong> Mantegna: “A face ressequida, a tez rugosae macerada <strong>do</strong> bebê recém nasci<strong>do</strong>... toda a punição, humilhação, esquali<strong>de</strong>zque se seguiam <strong>de</strong> ter-se ‘feito carne’ estavam assim marcadas”. Fiz uma vez umcomentário sobre essa passagem <strong>do</strong> seguinte mo<strong>do</strong>: “Deus terá que assumir asparticularida<strong>de</strong>s <strong>do</strong>s gêneros, e sujeitar-se à <strong>do</strong>r passan<strong>do</strong> pelas agonias re<strong>de</strong>ntorasda narrativa cristã: como encarna<strong>do</strong> ele <strong>de</strong>ve começar tão <strong>de</strong>sampara<strong>do</strong> como to<strong>do</strong>snós quan<strong>do</strong> nascemos – famintos, molha<strong>do</strong>s, sujos, confusos, contorci<strong>do</strong>s <strong>de</strong>cólica, choran<strong>do</strong>, balbucian<strong>do</strong>, baban<strong>do</strong>, e totalmente <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes” 6 . Ora, comas <strong>de</strong>vidas qualificações, e só raramente no espírito da vanitas cristã, os artistasque recorrem ao que Jean Clair estigmatiza como repulsivo hoje, o fazem, sobretu<strong>do</strong>,no interesse <strong>de</strong> um propósito moral mais eleva<strong>do</strong>, raramente se preocupamcom o repugnante por si mesmo.O fato da idéia da arte servir a um propósito mais eleva<strong>do</strong> que a produçãoda beleza não constituir parte <strong>de</strong> sua explicação, mostra o grau em que mesmo Kantera uma criatura <strong>do</strong> seu próprio momento cultural. Ele parece inteiramente satisfeitoem ter mostra<strong>do</strong> um paralelo lógico entre o juízo moral e o estético, sem se preocuparmuito se, e em que grau a produção da beleza serve a fins morais mais eleva<strong>do</strong>s. Écomo se a beleza fosse seu próprio <strong>fim</strong>, justifican<strong>do</strong> a prática da arte somente pela suaexistência. Kant nunca indaga qual po<strong>de</strong>ria ser o propósito <strong>do</strong> repulsivo na arte, ouporque o <strong>de</strong>sprezo da beleza não po<strong>de</strong>ria ser um meio <strong>de</strong> expressão moral. Eu suponhoque ele não po<strong>de</strong>ria ter visto as obras que <strong>de</strong>screvi, pois a iconoclastia que varreu aEuropa no século <strong>de</strong>zesseis talvez tenha lhe rouba<strong>do</strong> os exemplos. Na verda<strong>de</strong>, Kantsó pô<strong>de</strong> ver tais imagens enquanto <strong>de</strong>corações. “Po<strong>de</strong>mos adicionar muita coisa a umedifício”, escreve Kant, “que imediatamente comprazeriam o olhar, se não fosse emuma igreja” 7 . O fato <strong>de</strong> ser uma igreja em Königsberg impõe limites à ornamentação,como se ornamentos fossem inconsistentes com a importância da casa <strong>de</strong> Deus, eDeus, ele próprio, fosse um minimalista.Significativamente muita pouca atenção tem si<strong>do</strong> dada ao repulsivo nahistória da estética <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Kant até Jean Clair. Isso mostra que por mais sangrentaque a história da Europa tenha si<strong>do</strong>, particularmente no século vinte, nós aindapermanecemos muito como homens e mulheres <strong>do</strong> Iluminismo em nossas filosofiasda arte. A própria estética tem si<strong>do</strong> consi<strong>de</strong>rada como parte <strong>do</strong> que Santayana<strong>de</strong>signa como a Tradição Gentil (Genteel Tradition) na qual o repulsivo, consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>indizível (unmentionable), não era sequer menciona<strong>do</strong>, e a arte era logicamenteincapaz <strong>de</strong> ser ofensiva: se ofen<strong>de</strong>sse não era absolutamente arte. Assim a própriaarte continuava a conformar-se aos imperativos <strong>do</strong> Iluminismo <strong>de</strong>dica<strong>do</strong> àprodução da beleza.O que inicialmente era repulsivo aos especta<strong>do</strong>res da arte mo<strong>de</strong>rna,quan<strong>do</strong> quer que tenha começa<strong>do</strong>, é que ela própria era ofensiva, não querepresentasse coisas ofensivas. No que diz respeito ao assunto, o Mo<strong>de</strong>rnismo era6. DANTO, Arthur.Beyond the Brillo Box.Nova Iorque: FarrarStraus and Giroux,1992, p. 61.7. KANT, Immanuel.Op. cit., § 16.Danto17


8. PROUST, <strong>Marcel</strong>.The Germantes Way(In Search of LostTime). Nova Iorque:Mo<strong>de</strong>rn Library,1998, p. 575.9. HEGEL, G.W.F..Aesthetics. Oxford/Nova Iorque: OxfordUP, 1975, p. 34.10. I<strong>de</strong>m, p. 10.. Lat. 11 Phillippica,discurso violento einjurioso que lembraos <strong>de</strong> Demóstenescontra Felipe daMacedônia[N. da T.].bastante conserva<strong>do</strong>r: mostrava rostos, paisagens, naturezas mortas e estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong>figuras – a garota na janela ou em pé no jardim – motivos que <strong>de</strong>finiram o cânonedas beaux arts tão logo a pintura histórica <strong>de</strong>spencou <strong>do</strong> seu pináculo na hierarquiaacadêmica, e os artistas tornaram-se mais <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes das vendas que <strong>de</strong>encomendas. Foi em parte <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> a isso que os apologistas <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>rnismo presumiramque, uma vez que a estranheza fosse assimilada, o novo trabalho – Cubista,Fauve ou Futurista - seria, afinal, consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> belo, como se a gratificação <strong>do</strong><strong>gosto</strong> fosse o <strong>de</strong>stino da arte, por mais revolucionários que fossem seus meios.No “Caminho <strong>de</strong> Germantes”, Proust escreve sobre o mo<strong>do</strong> como “oinalcançável golfo que separa o que consi<strong>de</strong>ravam uma obra prima <strong>de</strong> Ingres e oque supunham que <strong>de</strong>veria permanecer para sempre um ‘horror’(a “Olímpia” <strong>de</strong>Manet, por exemplo) encolheu até que as duas telas parecessem gêmeas” 8 . Assim,é unicamente no contraponto da tese <strong>de</strong> que o propósito da arte é gratificar o<strong>gosto</strong> (goût) que uma arte visan<strong>do</strong> ao contrário, suscitar repulsa (<strong>de</strong>goût), seráconsi<strong>de</strong>rada estranha a si mesma. Essa tese dificilmente inclui as esculturas<strong>de</strong> vanitas, como há pouco <strong>de</strong>screvi, cujo interesse não é nos dar prazer, maslembrar-nos <strong>de</strong> corrigir nossa conduta antes que seja tar<strong>de</strong> <strong>de</strong>mais. Encontrarprazer, seja na arte ou em qualquer outra coisa, seria uma distração <strong>do</strong> nosso<strong>de</strong>ver cristão, e o belo corpo uma armadilha. Ora, isso em parte servia para atenuaro far<strong>do</strong> que a atitu<strong>de</strong> típica <strong>do</strong> Iluminismo exigia, incluin<strong>do</strong> aqui a própria atitu<strong>de</strong>estética. Assim, não menos na prática artística que na filosofia da arte, há umatradição praticamente ininterrupta, <strong>de</strong> Baumgarten através <strong>de</strong> Santayana até osformalistas <strong>do</strong> grupo Bloomsbury, bem como Roger Fry e Clive Bell, que conectaarte com <strong>gosto</strong>, beleza com prazer, num conciso pacote conceitual.Contu<strong>do</strong>, existem importantes dissi<strong>de</strong>ntes. Hegel por exemplo, foiconsi<strong>de</strong>ravelmente evasivo com relação ao conceito <strong>de</strong> <strong>gosto</strong>. “O <strong>gosto</strong> é dirigi<strong>do</strong>somente à superfície externa em que jogam os sentimentos”, escreveu. E ainda:“O assim chama<strong>do</strong> ‘bom <strong>gosto</strong>’ teme os efeitos profun<strong>do</strong>s da arte e silencia quan<strong>do</strong>as exteriorida<strong>de</strong>s e os inci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong>saparecem” 9 . Além disso, Hegel consi<strong>de</strong>raque a arte, nos seus mais eleva<strong>do</strong>s momentos, é parte <strong>do</strong> que chama EspíritoAbsoluto. A Arte, com efeito, torna-se uma questão <strong>do</strong> Espírito Absoluto quan<strong>do</strong>,in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> outros papéis que possa ter, oferece assim como a religião e afilosofia, “um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> trazer à mente e expressar o Divino, os mais profun<strong>do</strong>sinteresses da humanida<strong>de</strong> e as mais abrangentes verda<strong>de</strong>s <strong>do</strong> espírito” 10 . Parecebastante claro que aquelas esculturas <strong>de</strong> vanitas pertencem à arte consi<strong>de</strong>rada<strong>de</strong>sse mo<strong>do</strong>, assim como boa parte da arte à qual Jean Clair dirigiu suas filípicas 11como argumento a seguir. É verda<strong>de</strong> que para Hegel, a arte é um momentosupera<strong>do</strong> <strong>do</strong> Espírito Absoluto e nesse senti<strong>do</strong> proclama o aclama<strong>do</strong> <strong>fim</strong> da arte.Ainda, sua missão no sistema <strong>de</strong> Hegel é ser <strong>do</strong>minada pela metafísica. De mo<strong>do</strong>menos enfático – que tem a ver com a evocação <strong>do</strong> prazer – Hegel conce<strong>de</strong> quea arte continuará a “disseminar suas formas aprazíveis em todas as coisas, <strong>de</strong>s<strong>de</strong>18 Danto


Mas exercer essa opção é inteiramente uma questão <strong>do</strong> que o artista preten<strong>de</strong>transmitir com isso. Po<strong>de</strong>ria ser acrescenta<strong>do</strong> que é uma opção antes que umimperativo, induzir ao tipo <strong>de</strong> prazer associa<strong>do</strong> à beleza. Isso também po<strong>de</strong> seruma escolha <strong>do</strong>s artistas para os quais o uso da beleza tem um significa<strong>do</strong>. Masnão era uma opção que <strong>Duchamp</strong> escolheu seguir porque estava engaja<strong>do</strong> com a<strong>de</strong>posição <strong>do</strong> <strong>gosto</strong> como um imperativo artístico. Todavia o mau <strong>gosto</strong> (disgust)é um efeito muito forte associa<strong>do</strong> em algum grau com a obra <strong>de</strong> <strong>Duchamp</strong>, pormais inexpressivo que possa ter si<strong>do</strong> na ocasião.Essa superação <strong>do</strong> <strong>gosto</strong> foi um efeito <strong>do</strong>s seus ready-ma<strong>de</strong>s <strong>de</strong> 1915-1917, <strong>de</strong>stina<strong>do</strong>s a exemplificar a mais radical dissociação entre estética e arte:19. Fala proferida noMuseum of Mo<strong>de</strong>rnArt, Nova Iorque, em19 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong>1961. Reimpresso emSANOUILLET,Michel & SELLER,Salt (Eds.). NovaIorque: Oxford UP,1973.20. Cartas <strong>de</strong><strong>Duchamp</strong> a HansRichter, 1962. In:Robert Motherwell,Dada Painters andPoets: An Antlogy.Nova Iorque:Wittenborn, 1952.21. CABANNE,Pierre. Dialogues with<strong>Marcel</strong> <strong>Duchamp</strong>,p.68Uma questão que quero muito estabelecer é que a escolha <strong>de</strong>sses ready-ma<strong>de</strong>s nunca foiditada pelo prazer estético”, escreveu <strong>Duchamp</strong>, retrospectivamente em 1961. “A escolhaera baseada em uma reação <strong>de</strong> indiferença visual e ao mesmo tempo ausência total <strong>de</strong> bomou mau <strong>gosto</strong>... na verda<strong>de</strong>, uma completa anestesia 19 .Em 1924, <strong>Duchamp</strong> <strong>de</strong>ixou claro que encontrar um objeto com nenhumaqualida<strong>de</strong> estética estava longe <strong>de</strong> ser fácil, mas sua intenção faz senti<strong>do</strong> seconsi<strong>de</strong>ramos seu “Pente” (1916) – um simples pente <strong>de</strong> metal <strong>do</strong> tipo usa<strong>do</strong> porproprietários <strong>de</strong> cachorros para tratar seus bichos <strong>de</strong> estimação. Ninguém po<strong>de</strong>ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> como ten<strong>do</strong> bom <strong>gosto</strong> em matéria <strong>de</strong>sses pentes <strong>de</strong> metal! Elesexemplificam o princípio <strong>do</strong> ready-ma<strong>de</strong> mediante o fato que não há “nenhumabeleza, nenhuma feiúra, nada particularmente estético sobre isso”, e <strong>de</strong>ssaperspectiva um é tão bom quanto o outro. Po<strong>de</strong>mos assim ver quão pouco os maisíntimos asseclas <strong>de</strong> <strong>Duchamp</strong> enten<strong>de</strong>ram sua agenda pelo fato <strong>de</strong> que seu protetorWalter Arensberg, imaginou que a intenção <strong>do</strong> artista ao enviar o urinol era chamaratenção para sua “forma a<strong>do</strong>rável”, bem como aos paralelos formais entre essaspeças <strong>de</strong> encanamento industrial e a escultura <strong>de</strong> Constantin Brancusi! Não eraabsolutamente a intenção <strong>de</strong> <strong>Duchamp</strong> ter o urinol subsumi<strong>do</strong> sob a percepçãoestética, e aprecia<strong>do</strong> como algo, afinal, belo – algo para o qual tínhamos permaneci<strong>do</strong>até então cegos: “Eu joguei o urinol nas suas caras como um <strong>de</strong>safio, e agoraeles o admiram por sua beleza estética” 20 . Sua beleza, se é que há beleza, não estánem aqui, nem lá. Ele o estava envian<strong>do</strong> como uma obra <strong>de</strong> arte, não algo calcula<strong>do</strong>para induzir o que ele <strong>de</strong>scartava como “excitação da retina” 21 .É também não compreen<strong>de</strong>r <strong>Duchamp</strong> supor que o urinol era uma espécie<strong>de</strong> cavalo <strong>de</strong> Tróia estético, como, com efeito, propõe Jean Clair preten<strong>de</strong>n<strong>do</strong>insinuar o repulsivo na esfera da arte sob o disfarce <strong>de</strong> um inconfundível artigo <strong>de</strong>encanamento. Isso porque, como sabemos, <strong>Duchamp</strong> era um gran<strong>de</strong> entusiasta<strong>do</strong> sistema <strong>de</strong> encanamentos americano. Mas mais importante era seu esforço emconseguir ir além <strong>de</strong> escopo <strong>do</strong> <strong>gosto</strong> na produção e apreciação da arte. Numaentrevista que <strong>de</strong>u em 1915, <strong>Duchamp</strong> <strong>de</strong>clarou:22 Danto


As capitais <strong>do</strong> velho mun<strong>do</strong> têm trabalha<strong>do</strong> por centenas <strong>de</strong> anos para encontrar aquilo queconstitui o bom <strong>gosto</strong>, e po<strong>de</strong>-se dizer que elas alcançaram o zênite <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então. Mas porque as pessoas não enten<strong>de</strong>m quão aborreci<strong>do</strong> é isso? [...] Se a América compreen<strong>de</strong>sse quea arte da Europa está acabada – morta – e que a América é o país da arte <strong>do</strong> futuro... Olheos arranha-céus! A Europa tem algo mais belo que isso para mostrar? Nova Iorque mesmoé uma obra <strong>de</strong> arte, uma completa obra <strong>de</strong> arte 22 .Um aspecto forte <strong>do</strong> gesto <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> <strong>de</strong> submeter o urinol era‘<strong>de</strong>seuropeizar’ a arte americana – fazer com que os americanos apreciassem suaspróprias realizações artísticas. Mas isso significava que os Americanos tinhamque ver um artigo <strong>de</strong> encanamento como arte, mas não necessariamente comobelo <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> como obras <strong>de</strong> arte têm convencionalmente si<strong>do</strong> vistas. Quan<strong>do</strong> ocomitê recusou receber a obra, ele o fez com base em que não era arte. Minhapercepção é que eles teriam rejeita<strong>do</strong> uma pia ou uma banheira, se <strong>Duchamp</strong> ostivesse envia<strong>do</strong>. Mas é bem possível que uma das funções <strong>de</strong> usar um urinol é suaassociação com o excitamento infantil vincula<strong>do</strong> com o ato <strong>de</strong> expelir. O propósitonão é trazer o repulsivo ao lugar da arte, mas <strong>de</strong>slocar o <strong>gosto</strong> como critério daarte e usar a associação com necessida<strong>de</strong>s corporais como um meio. A disjunçãoentre arte e equipamentos da eliminação tem si<strong>do</strong> um tropos estabeleci<strong>do</strong><strong>do</strong> pensamento estético francês visto que Theophile Gauthier em seu prefácio à“Ma<strong>de</strong>moiselle <strong>de</strong> Maupin” que a arte não serve nenhum <strong>fim</strong>: “tu<strong>do</strong> que é útil éfeio, porque é a expressão <strong>de</strong> alguma necessida<strong>de</strong>... o lugar mais usa<strong>do</strong> em umacasa é a latrina” 23 .É surpreen<strong>de</strong>nte como muito <strong>do</strong> que po<strong>de</strong>ríamos chamar clássicos <strong>do</strong>sready-ma<strong>de</strong>s, em sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> pré-transfigurada, estão relaciona<strong>do</strong>s como utensíliosa várias necessida<strong>de</strong>s humanas – secar garrafas, limpar a neve, tirar o emaranha<strong>do</strong><strong>do</strong> pelo <strong>do</strong> cachorros etc. O urinol é um ready-ma<strong>de</strong> especial em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> suasassociações com o ato <strong>de</strong> expelir e os gêneros, que tiveram sempre um papelno humor e na arte <strong>de</strong> <strong>Duchamp</strong>. A minha impressão é que ao vincular isso àcategoria elevada da arte, <strong>Duchamp</strong> fazia uma piada ardilosa, mais sofisticadaque <strong>do</strong> camponês no afresco <strong>de</strong> Tuchlauben, mas <strong>do</strong> mesmo gênero. Seu objetivonão era simples travessura, a piada era intelectual <strong>de</strong>mais para isso. Era, como sedizia, para trazer ao nível da consciência o grau em que a estética <strong>do</strong> <strong>gosto</strong> tinha<strong>de</strong>fini<strong>do</strong> a essência da arte. Era o momento <strong>do</strong>s artistas americanos romperem sua<strong>de</strong>pendência conceitual com a Europa, e afirmarem suas verda<strong>de</strong>iras realizaçõescomo americanos. Seu esforço residia em restabelecer os vínculos entre vida earte, e isso foi seu lega<strong>do</strong> ao avant-gar<strong>de</strong>.Jean Clair insiste que o papel simbólico <strong>do</strong> urinol “não é elevar o objetomanufatura<strong>do</strong> ao status <strong>de</strong> arte, [mas] subscrever a sacralização arcaica <strong>do</strong>s <strong>de</strong>jetoshumanos e a a<strong>do</strong>ração infantil das próprias fezes”. Isso contu<strong>do</strong> não significa queo urinol inflectiu/ <strong>de</strong>sviou a direção da arte. Juntamente com os ready-ma<strong>de</strong>, elesubscreve a tese <strong>de</strong> que o útil po<strong>de</strong> ser arte e que a arte po<strong>de</strong> até se tornar útil aoser transformada em “ready-ma<strong>de</strong> inverti<strong>do</strong>”, como por exemplo usar uma pintura22. TOMKINS,Calvin. <strong>Duchamp</strong>:Uma biografia. NovaIorque: Henry Holt,1996, p.131.23. GAUTHIER,Theophile. Prefácio<strong>de</strong> Ma<strong>de</strong>moiselles <strong>de</strong>Maupin.Danto23


<strong>de</strong> Rembrandt como tábua <strong>de</strong> passar. Após <strong>Duchamp</strong>, po<strong>de</strong>ria-se em princípiofazer arte <strong>de</strong> qualquer coisa. A era da terebentina e <strong>do</strong> <strong>gosto</strong> tinha chega<strong>do</strong> ao<strong>fim</strong>. A era <strong>de</strong> encontrar uma <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> arte para substituir a baseada no prazerestético tinha começa<strong>do</strong>.Historia<strong>do</strong>res <strong>de</strong> arte incluin<strong>do</strong> o próprio Jean Clair em seu primeiro emais simpático texto, <strong>Marcel</strong> <strong>Duchamp</strong>: le grand fictive (1974), concordarão quea forma que o avant-gar<strong>de</strong> tomou após a segunda guerra mundial, especialmentena América, <strong>de</strong>via-se a John Cage, com seu seminário sobre composição na NewYork School. “Eu tive que fazer algo” escreveu John Cage,24. CAGE, John.Forword. M: Writings67-72. Middletown,Conn: WesleyanUniversity Press,1973.para fazer uma música que consistia apenas em sons, sons livres <strong>de</strong> juízos sobre o que era‘musical’ ou não”. Porque a teoria da música convencional é um conjunto <strong>de</strong> leis referidasexclusivamente a sons ‘musicais’, não ten<strong>do</strong> nada a dizer sobre o barulho, sobre a nãolegalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> barulho. Ten<strong>do</strong> feito essa música anárquica, nós éramos capazes <strong>de</strong> incluirmais tar<strong>de</strong>, na sua execução, os assim chama<strong>do</strong>s sons musicais. Os próximos passos eramsociais, e ainda estavam sen<strong>do</strong> da<strong>do</strong>s. Precisamos antes <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma música em que nãoapenas os sons são sons, mas em que pessoas são só pessoas, não sujeitas a leis estabelecidaspor uma <strong>de</strong>las, mesmo que seja o ‘compositor’ ou o ‘maestro’. Finalmente nós precisamos<strong>de</strong> uma música que não mais provoque <strong>de</strong>bates <strong>de</strong> participação <strong>do</strong> público, porque nela adivisão entre músicos (performers) e público não mais existe: uma música feita por to<strong>do</strong>s. Oque precisamos é <strong>de</strong> uma música que não requeira nenhum ensaio 24 .A emancipação para fins musicais <strong>do</strong>s sons, fora <strong>do</strong> âmbito <strong>do</strong>s sonsmusicais, que propõe Cage criou a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> re<strong>de</strong>finição da música. Umesforço paralelo <strong>de</strong> abrir toda a extensão <strong>de</strong> movimentos corporais como possíveiscandidatos à dança foi leva<strong>do</strong> adiante por Merce Cunningham, Paul Taylor,Yvonne Rainer, e o Judson Dance Group. O grupo <strong>de</strong> artistas que se i<strong>de</strong>ntificoucomo Fluxus no começo <strong>do</strong>s anos sessenta, foi inspira<strong>do</strong> por compositores,performers e artistas visuais a dissolver complemente as barreiras entre arte evida. Mas, absolutamente, eles não eram os únicos, por mais singular que fosseseu trabalho. Preencher a lacuna entre arte e vida era um projeto compartilha<strong>do</strong>por um vasto número <strong>de</strong> movimentos, uni<strong>do</strong>s pela mesma <strong>de</strong>sconfiança face aosrequisitos da alta arte, como seitas <strong>de</strong> uma nova revelação relativa a qual setorda realida<strong>de</strong> comum <strong>de</strong>via ser redimi<strong>do</strong>. A Pop arte recusava-se a apoiar adistinção entre artes plásticas e arte comercial, ou entre alta e baixa arte. Osminimalistas fizeram arte a partir <strong>de</strong> materiais industriais – compensa<strong>do</strong>, vidrolamina<strong>do</strong>, secções <strong>de</strong> casas pré-fabricadas. Realistas como George Segal e ClaesOl<strong>de</strong>nberg se estimulavam com o extraordinário que o ordinário po<strong>de</strong> ser: nadaque um artista pu<strong>de</strong>sse fazer carregava significa<strong>do</strong>s mais profun<strong>do</strong>s que aquelesinvoca<strong>do</strong>s por vestimentas diárias, fast food, pedaços <strong>de</strong> carros, sinais <strong>de</strong> trânsito.Cada um <strong>de</strong>sses esforços visava trazer a arte à realida<strong>de</strong>, transfiguran<strong>do</strong>, pormeio da consciência estética, o que to<strong>do</strong>s já conhecem. Em algum momento <strong>do</strong>século <strong>de</strong>zenove, profetas como John Ruskin e William Morris con<strong>de</strong>naram a vidamo<strong>de</strong>rna e apontaram momentos históricos anteriores como um i<strong>de</strong>al em relaçãoao qual <strong>de</strong>veríamos nos empenhar para retornar. Os artistas <strong>do</strong>s anos cinqüenta e24 Danto


sessenta eram também profetas reconcilian<strong>do</strong> homens e mulheres com as vidasque eles já levaram e o mun<strong>do</strong> em que já viveram. Talvez tu<strong>do</strong> isso fosse aexpressão artística <strong>do</strong> vasto abraço da vida comum após os <strong>de</strong>slocamentos maciçosda segunda gran<strong>de</strong> guerra. O que po<strong>de</strong>ria ser mais significativo que materiais <strong>de</strong>construção, produtos enlata<strong>do</strong>s, brinque<strong>do</strong>s <strong>de</strong> criança – ou ainda cozinhas ebanheiros reluzentes – artigos <strong>de</strong> consumo contra os quais a próxima geração iriase voltar com tanta veemência?Qualquer que fosse a explicação, havia algo no ar naqueles anos. Embora nãohouvesse nenhum impacto ao se falar <strong>de</strong> <strong>Duchamp</strong> em filosofia, alguma explicaçãohistórica <strong>de</strong>ve ser dada sobre o fato <strong>de</strong> que os filósofos <strong>de</strong>ixaram <strong>do</strong> idioma high-techda lógica matemática e, sob a influência <strong>de</strong> Wittgenstein, aceitaram a linguagemordinária como perfeitamente a<strong>de</strong>quada à análise filosófica. Nos meus primeirosescritos sobre filosofia da arte – “O mun<strong>do</strong> da arte” <strong>de</strong> 1964 25 – eu via como tarefada Estética mostrar e distinguir obras <strong>de</strong> arte <strong>de</strong> coisas reais, quan<strong>do</strong> não havia maisnenhuma diferença palpável entre elas, como no caso das “Brillo Box” <strong>de</strong> Warhol edas embalagens comuns em supermerca<strong>do</strong>s e <strong>de</strong>pósitos. Mas aquela questão jamaispo<strong>de</strong>ria ter si<strong>do</strong> imaginada se não houvesse a revolução <strong>do</strong> avant-gar<strong>de</strong> baseada einspirada em <strong>Duchamp</strong>. Eu tenho uma satisfação especial em trazer essa questãopara o espaço da filosofia nos anos em que, como Jean Clair reconheceu, a énormeheritage <strong>de</strong> <strong>Duchamp</strong> foi mais vividamente sentida pelos artistas 26 .É uma conseqüência <strong>de</strong>ssa herança que qualquer coisa possa seruma obra <strong>de</strong> arte, naturalmente abrin<strong>do</strong> o caminho para o mais repulsivo <strong>do</strong>smateriais ter um papel artístico na criação <strong>de</strong> novos significa<strong>do</strong>s. Todavia, nãoera para fazer uso <strong>de</strong> materiais transgressivos possíveis que o avant-gar<strong>de</strong> abraçoua lição <strong>de</strong> <strong>Duchamp</strong>, e Jean Clair, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> suas aversões, era mais queninguém ciente <strong>de</strong>sta verda<strong>de</strong>. Nas publicações <strong>de</strong> 1975, que acabo <strong>de</strong> citar, elecompilou um admirável catálogo <strong>de</strong> movimentos pós-guerra que <strong>de</strong>bitam suasagendas a <strong>Duchamp</strong>: Pop e Fluxus, mas também Nouveaux réaliste, Op Arte,Arte Conceitual, Arte & Linguagem etc. Em to<strong>do</strong> aquele perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> trinta anos,vale observar que a arte abjeta não aparece, embora haja no espírito <strong>do</strong> jogo <strong>de</strong><strong>Duchamp</strong>, referências eróticas e mesmo excrementais no Fluxus etc. A maioria<strong>do</strong> que Jean Clair menciona é quase puro em sua intelectualida<strong>de</strong>, <strong>Duchamp</strong> eraadmira<strong>do</strong> por sua sagacida<strong>de</strong> e inteligência, ele era sempre consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> comouma espécie <strong>de</strong> “Monsier Teste”, com um <strong>gosto</strong> por piadas sagazes 27 . Seu esta<strong>do</strong><strong>de</strong> ânimo, longe da abjeção, era o <strong>de</strong>leite/ prazer.Ora, havia, particularmente nos primeiros anos <strong>de</strong> 1990, um movimento<strong>de</strong>signa<strong>do</strong> mais pelos cura<strong>do</strong>res <strong>do</strong> que pelos próprios artistas como Arte Abjeta.Dificilmente era tão epidêmica quanto preten<strong>de</strong> Jean Clair, tampouco central,no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> dar forma à arte contemporânea. Mas acabou sen<strong>do</strong> e, num certograu realmente existe, e <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> oblíquo como antes indiquei, como inúmerasoutras coisas, <strong>de</strong>ve sua possibilida<strong>de</strong> a <strong>Duchamp</strong>. Deve-se a ele, mais uma vez,25. The Artworld.Journal of Philosophy,Nova Iorque, v. 61, n.19, p. 571-584, 1964.26. CLAIR, Jean.<strong>Marcel</strong> <strong>Duchamp</strong> oule grand fictif: Essai <strong>de</strong>Mythanalyse du GrandVerre. Paris: Galilee,1974, p. 12.27. “Le temps semblevenu <strong>de</strong> sustraire<strong>Duchamp</strong> auxpolémiques <strong>de</strong>l’avant-gar<strong>de</strong> et auxconfiscations abusive<strong>de</strong> telle ou telle <strong>de</strong> sesfactions. Le temps estvenu <strong>de</strong> le confronteraux analyses sereines<strong>de</strong> l´histoire. Il nepourrait qu’y gagner”(Ibi<strong>de</strong>m, p. 13).Tomo isso comoevidência <strong>de</strong> que oexcremental não tinhase torna<strong>do</strong> um afetoperceptível na obra <strong>de</strong><strong>Duchamp</strong> antes <strong>de</strong>1974, quan<strong>do</strong> JeanClair escreveu isso.Assim o que explicaessa sua emergência?Danto25


28. KOERNER,Joseph Leo. TheAbject of Art History.Res, n. 31, primavera1997, p. 07.29. HEGEL, G.W.F.Op. cit.30. WITTKOWER,Ru<strong>do</strong>lph. Art andArchitecture in Italy:1600-1750. Londres:Pelican History of Art,1958, p. 02.porque abriu para sempre as fronteiras entre arte e vida, e por conseguinte entrearte e arte abjeta como parte da vida. Contu<strong>do</strong>, é simplesmente uma questão <strong>de</strong>peso interpretativo afirmar que os artistas da abjeção <strong>de</strong>rivaram em alguma medidaseu conteú<strong>do</strong> <strong>de</strong> <strong>Duchamp</strong>. É uma característica <strong>do</strong>s historia<strong>do</strong>res da arte imaginarque a arte possa ser explicada unicamente pela arte – que se os artistas <strong>de</strong>vemusar excrementos em seus trabalhos, isso tem que ser explica<strong>do</strong> com referênciaaos artistas pre<strong>de</strong>cessores que assim o fizeram. Mas há explicações na arte quenada tem a ver com a arte prece<strong>de</strong>nte. Não há qualquer narrativa interessante queconecte o escatologista Tuchlauben, através <strong>de</strong> <strong>Duchamp</strong>, a Chris Offili cujo uso <strong>de</strong>excremento <strong>de</strong> elefante provocou a censura da exposição “Sensation” pelo prefeito<strong>de</strong> Nova Iorque. O apelo à abjeção <strong>de</strong>ve-se a uma política <strong>do</strong> corpo que emerge noscentros <strong>de</strong> arte <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, na década em que a abjeção passou a ser tematizada. Oque se po<strong>de</strong> dizer que a conexão com <strong>Duchamp</strong> explica, se é que explicação é aquio conceito apropria<strong>do</strong>, é o fato <strong>de</strong> ter torna<strong>do</strong> artisticamente legítimo o recurso acertos materiais através <strong>do</strong>s quais certos artistas impelem suas intenções.“O abjeto”, insiste o historia<strong>do</strong>r Joseph Koerner, “não é uma novida<strong>de</strong>nem na história da arte, nem na tentativa <strong>de</strong> escrever essa história” 28 . Koerner cita,entre outras fontes, o profun<strong>do</strong> insight <strong>de</strong> Hegel: “A novida<strong>de</strong> da arte cristã eromântica consistia em tomar o abjeto como seu objeto privilegia<strong>do</strong>.Especificamente o Cristo, tortura<strong>do</strong> e crucifica<strong>do</strong>, a mais horrenda das criaturas,em que a beleza divina tornou-se, por meio da malda<strong>de</strong> humana, a mais vil abjeção” 29 .Ru<strong>do</strong>lph Wittkower começa seu excepcional texto sobre arte e arquiteturana Itália após o Concílio <strong>de</strong> Trento 30 recordan<strong>do</strong> a <strong>de</strong>cisão daquele concílio <strong>de</strong> exibiros ferimentos e as agonias <strong>do</strong>s mártires, visan<strong>do</strong>, através <strong>de</strong>ssa exteriorizaçãoda comoção, atrair a simpatia <strong>do</strong>s especta<strong>do</strong>res e reforçar sua fé ameaçada”.“Até mesmo o Cristo <strong>de</strong>ve ser mostra<strong>do</strong> ‘aflito, sangran<strong>do</strong>, abati<strong>do</strong>, com sua pelelacerada, feri<strong>do</strong>, <strong>de</strong>forma<strong>do</strong>, páli<strong>do</strong> e me<strong>do</strong>nho’ se o assunto assim requer”. Atendência da Renascença <strong>de</strong> embelezar o Cristo crucifica<strong>do</strong> era, com efeito, ummovimento no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> classicizar o cristianismo ao converter o corpo tortura<strong>do</strong>em uma espécie <strong>de</strong> graça atlética, negan<strong>do</strong> a mensagem básica <strong>do</strong> ensinamento cristãoque a salvação é obtida através <strong>do</strong> sofrimento abjeto. O esteticismo <strong>do</strong> século <strong>de</strong>zoitoera um corolário <strong>do</strong> racionalismo da religião natural. E foi uma formidável conquista<strong>de</strong> Kant situar a estética na arquitetônica crítica como uma forma <strong>de</strong> juízo, a poucospassos da razão pura. O Romantismo, assim como a filosofia <strong>de</strong> Hegel, era umareafirmação <strong>do</strong>s valores barrocos da Contra-Reforma. O problema da arte, como Hegelo via, residia na sua inerradicável <strong>de</strong>pendência da apresentação sensível/ sensorial.Assim como o sangue, a carne dilacerada, os ossos parti<strong>do</strong>s, o corpo abati<strong>do</strong>, eram aredução da consciência à <strong>do</strong>r e à agonia na representação barroca.Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> que a história <strong>do</strong> sofrimento humano tem si<strong>do</strong> o principalproduto cultural <strong>do</strong> século vinte, é assombroso o quão impassível, racional, distanciadae abstrata a arte <strong>do</strong> século vinte realmente foi. E quão inocente foi26 Danto


o Dada em sua recusa artística <strong>de</strong> satisfazer a sensibilida<strong>de</strong> estética daquelesresponsáveis pela primeira guerra mundial – ao dar-lhes balbucios em lugar<strong>de</strong> beleza, tolices em vez <strong>de</strong> sublimida<strong>de</strong>, ferin<strong>do</strong> a beleza com uma espécie <strong>de</strong>palhaçada punitiva. O que a arte abjeta (tão patética em sua impotência em fazeralgo para <strong>de</strong>sviar ou dirimir as <strong>de</strong>gradações <strong>do</strong> corpo que as políticas <strong>do</strong> nossotempo lhe infligiram) tem feito é se apo<strong>de</strong>rar <strong>do</strong>s emblemas da <strong>de</strong>gradação comoum meio <strong>de</strong> protestar em nome da humanida<strong>de</strong>. “Para muitos na cultura contemporânea”,escreve Hal Foster, “a verda<strong>de</strong> resi<strong>de</strong> no sujeito traumático e abjeto, nocorpo a<strong>do</strong>eci<strong>do</strong> ou mutila<strong>do</strong>. Assim o corpo é a evidência básica <strong>de</strong> importantestestemunhos da verda<strong>de</strong>, da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> testemunhar contra o po<strong>de</strong>r” 31 .Jean Clair acompanhou sua apresentação com um consi<strong>de</strong>rável número<strong>de</strong> sli<strong>de</strong>s, visan<strong>do</strong> apoiar visualmente sua tese 32 . E George Steiner observou queaquelas imagens lhe lembravam Bergen-Belsen, sugerin<strong>do</strong> assim uma paráfraseà famosa troca entre Picasso e um oficial alemão a quem ele <strong>de</strong>u uma pinturada Guernica. O oficial indagou se ele a tinha feito, e Picasso respon<strong>de</strong>u dizen<strong>do</strong>:não – os alemães que haviam feito Guernica. Com efeito, não eram os artistas osresponsáveis por essa imagem, mas a socieda<strong>de</strong>.O que <strong>de</strong>ve ser credita<strong>do</strong> a <strong>Duchamp</strong>, mediante sua transformação <strong>do</strong>conceito <strong>de</strong> arte, foi o fato <strong>de</strong> ter legitima<strong>do</strong> para os artistas o uso <strong>de</strong> materiaisnão convencionais para que fizessem o tipo <strong>de</strong> crítica que pretendiam – paraefetivamente esfregar no nariz da socieda<strong>de</strong> os emblemas das suas <strong>de</strong>ficiências.Quanto aos tipos <strong>de</strong> substâncias/ materiais a serem usa<strong>do</strong>s, não havia necessida<strong>de</strong><strong>de</strong> recorrer a nada na obra amplamente cerebral <strong>de</strong> <strong>Duchamp</strong>. Só era necessárioexplorar o vocabulário universal <strong>do</strong> repulsivo, cujo senti<strong>do</strong> é amplamente invariável<strong>de</strong> cultura para cultura e em diferentes tempos.O que é assombroso, dada a enormida<strong>de</strong> da cruelda<strong>de</strong> humana em nossotempo, é quão poucos artistas contemporâneos a<strong>do</strong>taram essa agenda, quão poucosaí tem segui<strong>do</strong> o apelo da arte abjeta. Havia, em certa medida, uma provocação<strong>do</strong>s limites <strong>do</strong> repulsivo na exposição “Sensation”, mas feito com um bom humormais no espírito <strong>do</strong>s afrescos <strong>de</strong> Tuchlauben que <strong>do</strong> <strong>de</strong>clínio <strong>do</strong>s críticos oci<strong>de</strong>ntais,como lamenta Jean Clair. Nem na “Whitney Biennal” 2000, nem na colateral “NewYork Greater Exbihition” no PS1 em Long Island, houve muita arte abjeta sobrea qual se falar. Pelo contrário, eu estava perplexo, como um crítico <strong>de</strong> arte, pelograu em que os artistas contemporâneos haviam se transforma<strong>do</strong> em pensa<strong>do</strong>resvisuais, em que o senti<strong>do</strong> das obras está tão fora <strong>do</strong> alcance <strong>do</strong> olhar que sótemos acesso a elas através <strong>de</strong> exercícios <strong>de</strong> interpretação bastante elabora<strong>do</strong>s.Nesse senti<strong>do</strong> eles também são os filhos/ her<strong>de</strong>iros <strong>de</strong> <strong>Duchamp</strong>, que lhes mostroucomo fazer filosofia fazen<strong>do</strong> arte. Como alguém próximo a esse cenário eu ficoàs vezes espanta<strong>do</strong> com a qualida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s artistas em sua <strong>de</strong>dicação aos maisaltos princípios morais e seu infalível respeito pela inteligência humana. As musas<strong>de</strong>vem estar orgulhosas.31. FOSTER, Hal.The Return of theReal. Cambridge/Massachusetts: MITPress, 1999, p.166.32. Entre elas existemimagens <strong>de</strong> trabalhos<strong>de</strong> Cindy Sherman.Sherman é às vezescitada como artistaabjeta, por suas assimchamadas imagensrepugnantes <strong>de</strong>vômito ou eventualmentepornográficasbaseadas no uso <strong>de</strong>figuras anatômicasque compra em lojas<strong>de</strong> material médico.Mas existe aí umaespécie <strong>de</strong> travessura<strong>de</strong> Halloween, umprazer quase infantilem ser assusta<strong>do</strong>r.Sua arte está em<strong>de</strong>scendência diretacom os afrescos <strong>de</strong>Tuchlauben. A artistaSue Willians usou umsimulacro plástico <strong>de</strong>vômito, como umsímbolo para transmitirrepulsa em sua obraexposta na altamentepolitizada “WhitneyBiennal”, <strong>de</strong> 1993.Nessa obra ela é umaartista abjeta: aintenção <strong>de</strong>ssa peçaera insultar o abuso<strong>do</strong> corpo femininopelos homens. Amarca da abjeção nãoé o material que oartista usa mas osignifica<strong>do</strong> quepreten<strong>de</strong> transmitir.Danto27


* Este ensaio é em resposta a uma fala <strong>de</strong> Jean Clair, diretor <strong>do</strong> Museu Picasso, em um colóquio patrocina<strong>do</strong>pela Fundação Nexus em Tilburg, nos Países Baixos, em abril <strong>de</strong> 2000. Deve ser publica<strong>do</strong> na traduçãoholan<strong>de</strong>sa, na Nexus. Tive permissão para publicá-lo no jornal Tout-Fait, pelo diretor da Nexus, Rob Rieman eKirsten Walgreen. Ao expressar gratidão <strong>de</strong>vo <strong>de</strong>clarar minha ilimitada admiração pela sua <strong>de</strong>dicação pessoalà causa <strong>do</strong> diálogo cultural, bem como pelo calor, generosida<strong>de</strong> e amiza<strong>de</strong>.Arthur Danto é Professor Emérito da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Colúmbia e crítico <strong>de</strong> arte da revistaThe Nation. É autor, entre outros, <strong>do</strong>s livros The abuse of beauty e after the end of art.Tradução <strong>de</strong> Virginia Aita.28 Danto


Danto29

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