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a arte da mulher no museu: dinéia dutra e exemplos de ...

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Fênix – Revista <strong>de</strong> História e Estudos CulturaisMaio/ Junho/ Julho/ Agosto <strong>de</strong> 2012 Vol. 9 A<strong>no</strong> IX nº 2ISSN: 1807-6971Disponível em: www.revistafenix.pro.br3Este artigo visa apresentar primeiramente reflexões sobre a relação entre <strong>arte</strong> egênero citando alguns dos principais autores referenciais do tema na tentativa <strong>de</strong>construir um arcabouço discursivo para em segui<strong>da</strong> apresentar uma análise <strong>de</strong> três obras<strong>da</strong> artista goiana Dinéia Dutra, que p<strong>arte</strong>m <strong>da</strong> figuração e i<strong>de</strong>alização <strong>da</strong> imagem <strong>da</strong><strong>mulher</strong> se <strong>de</strong>frontando com a autorrepresentação. Intercalando as obras apresenta<strong>da</strong>scom referências à construção sociocultural e política <strong>da</strong> condição feminina em Goiás,são abor<strong>da</strong>dos elementos essenciais <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> discussão <strong>de</strong> gênero e <strong>arte</strong> <strong>no</strong> que serefere a questões <strong>da</strong> constituição do i<strong>de</strong>ário sócio cultural <strong>da</strong> <strong>mulher</strong> como amaterni<strong>da</strong><strong>de</strong>, a família, e o amor. Os trabalhos em discussão são do início <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong>80 e se encontram na reserva técnica do acervo do MAG – Museu <strong>de</strong> Arte <strong>de</strong> Goiânia.Como pesquisador <strong>da</strong> história <strong>da</strong> <strong>arte</strong> em Goiás, em princípio <strong>de</strong>dicado ao estudo docenário <strong>da</strong>s <strong>arte</strong>s plásticas em Goiânia <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 80, após uma intensa catalogação<strong>de</strong> exposições individuais e coletivas durante a déca<strong>da</strong>, foi possível perceber umagran<strong>de</strong> diferença entre a participação <strong>de</strong> artistas <strong>mulher</strong>es em contraste com aparticipação <strong>de</strong> artistas homens em exposições individuais e em exposições coletivas.De 140 exposições individuais contabiliza<strong>da</strong>s na déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 80 na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Goiânia,somente 37 eram individuais <strong>de</strong> <strong>mulher</strong>es, sendo que 15 exposições entram como asomatória <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> ou terceira individual <strong>de</strong> uma artista, portanto, somente 22 artistas<strong>mulher</strong>es realizaram exposições individuais na déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 80, em um cenário local quepossuía 88 <strong>mulher</strong>es artistas atuantes em exposições coletivas. 4A diferença observa<strong>da</strong> entre a participação <strong>de</strong> artistas <strong>mulher</strong>es e homens emespaços legitimadores toca em um problema <strong>de</strong>licado <strong>da</strong> História <strong>da</strong> Arte, que é o queLoponte se refere como sendo “uma visão particular e arbitrária”. 5 A presença <strong>da</strong><strong>mulher</strong> em instâncias legitimadoras do trabalho artístico, seja em aca<strong>de</strong>mias <strong>de</strong> <strong>arte</strong> oucom obras em coleções <strong>de</strong> <strong>museu</strong>s e instituições, faz p<strong>arte</strong> <strong>de</strong> um estudo iniciado porLin<strong>da</strong> Nochlin com o artigo publicado originalmente em 1971 Why have there been <strong>no</strong>great woman artists? 6 Este artigo que propõem uma relação entre gênero e <strong>arte</strong>456COELHO, Armando <strong>de</strong> Aguiar Gue<strong>de</strong>s. Carlos Sena: A Trajetória <strong>de</strong> Um Artista na Arte Goiana(1980 – 1989). Dissertação (Mestrado) – Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Goiás, Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Artes Visuais,2009, p. 99 – 109.LOPONTE, Luciana Grupelli. Mulheres e <strong>arte</strong>s visuais <strong>no</strong> Brasil: caminhos, vere<strong>da</strong>s,<strong>de</strong>scontinui<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Visuali<strong>da</strong><strong>de</strong>s: Revista do Programa <strong>de</strong> Mestrado em Cultura Visual I - Facul<strong>da</strong><strong>de</strong><strong>de</strong> Artes Visuais I UFG, Goiânia, v. 6, n. 1 e n. 2, p. 16, 2008.NOCHLIN, Lin<strong>da</strong>. Why have there been <strong>no</strong> great women artists? In: ______. Women, art, andpower and other essays. Colorado: Westview, 1989, p. 147-158.


Fênix – Revista <strong>de</strong> História e Estudos CulturaisMaio/ Junho/ Julho/ Agosto <strong>de</strong> 2012 Vol. 9 A<strong>no</strong> IX nº 2ISSN: 1807-6971Disponível em: www.revistafenix.pro.br4apresentou <strong>no</strong>vas perspectivas <strong>de</strong> análise tanto para a História <strong>da</strong> Arte quanto para osestudos <strong>de</strong> gênero. Os estudos que relacionam gênero e <strong>arte</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então vem ganhandointeresse <strong>de</strong> <strong>no</strong>vos pesquisadores, com <strong>no</strong>vas abor<strong>da</strong>gens e <strong>no</strong>vos <strong>de</strong>senvolvimentossobre o tema on<strong>de</strong> todos interessados, direta ou indiretamente, procuram respon<strong>de</strong>r ouproblematizar a seminal pergunta <strong>de</strong> Nochlin: Por que é que nunca houve gran<strong>de</strong>s<strong>mulher</strong>es artistas? Esta pergunta/provocação <strong>da</strong> autora po<strong>de</strong> <strong>de</strong>spertar, em um primeiromomento indignação, pois <strong>no</strong>mes já bem conhecidos do público como Fri<strong>da</strong> Khalo,Louise Bourgeois, ou então Tarsila do Amaral vêm à mente e são personali<strong>da</strong><strong>de</strong>simportantes na <strong>arte</strong>, não só <strong>de</strong> seus países, mas <strong>de</strong>ntro do cenário internacional. Maslogo que a<strong>de</strong>ntramos o texto percebemos a tônica <strong>da</strong> pergunta <strong>de</strong> Nochlin, que vai além<strong>da</strong> simples referência a alguma artista que tenha se <strong>de</strong>stacado em algum período <strong>da</strong>história <strong>da</strong> <strong>arte</strong>. Com esse texto a autora questiona a própria historiografia <strong>da</strong> <strong>arte</strong>.Dentro <strong>de</strong>sta perspectiva, citar a <strong>arte</strong> <strong>de</strong> Sofonisba Anguissola ou <strong>de</strong> ArtemisiaGentileschi como <strong>exemplos</strong> não é suficiente para preencher to<strong>da</strong>s as lacunas que seapresentam quando Nochlin questiona a participação <strong>da</strong> <strong>mulher</strong> na História <strong>da</strong> Arte.Com esse texto, Nochlin conseguiu <strong>de</strong>spertar a reflexão sobre o fato e promover ahistoricização <strong>da</strong> <strong>mulher</strong> na <strong>arte</strong> relacionando sua condição política e social com o meioartístico. A partir <strong>de</strong> então outros autores seguiram este caminho como WhitneyChadwick 7 e Grisel<strong>da</strong> Pollock 8 , por exemplo, e <strong>no</strong> Brasil, Ana Paula CavalcantiSimioni 9 e Luciana Gruppelli Loponte, 10 para citar algumas. Estes pesquisadores quearticulam o <strong>de</strong>bate sobre <strong>arte</strong> e gênero têm por princípio questionar o discurso oficial <strong>da</strong>história <strong>da</strong> <strong>arte</strong> como sendo um discurso que subjuga a participação <strong>da</strong> <strong>mulher</strong> artistasem apresentar a condição marginal que a <strong>mulher</strong> vivenciava <strong>no</strong> estudo do fazerartístico e tendo sua produção tacha<strong>da</strong> como uma <strong>arte</strong> “feminina”, portanto, diferencia<strong>da</strong>e relega<strong>da</strong> a uma subcategoria <strong>de</strong>ntro dos padrões antropocêntricos.Em Women, Art, and Society, Whitney Chadwick, cita duas artistas inglesasAngelica Kauffmann e Mary Moser do século XVIII, como <strong>exemplos</strong> <strong>de</strong> artistas78910CHADWICK, Whitney. Women, Art, and Society. 4 ed. London: Thames and Hudson, 2007.POLLOCK, Grisel<strong>da</strong>. Vision and difference: feminism, femininity and the histories of art. NewYork: Routledge, 2003.SIMIONE, Ana Paula Cavalcanti. O Corpo Inacessível: as <strong>mulher</strong>es e o ensi<strong>no</strong> artístico nas aca<strong>de</strong>miasdo século XIX. ArtCultura, Uberlândia, v. 9, n. 14, Jan.-Jun, p. 83-97, 2007.LOPONTE, Luciana Grupelli. Mulheres e <strong>arte</strong>s visuais <strong>no</strong> Brasil: caminhos, vere<strong>da</strong>s,<strong>de</strong>scontinui<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Visuali<strong>da</strong><strong>de</strong>s: Revista do Programa <strong>de</strong> Mestrado em Cultura Visual I – Facul<strong>da</strong><strong>de</strong><strong>de</strong> Artes Visuais I UFG, Goiânia, v. 6, n.1 e n. 2, 2008.


Fênix – Revista <strong>de</strong> História e Estudos CulturaisMaio/ Junho/ Julho/ Agosto <strong>de</strong> 2012 Vol. 9 A<strong>no</strong> IX nº 2ISSN: 1807-6971Disponível em: www.revistafenix.pro.br6após ser flagra<strong>da</strong> mantendo relações sexuais antes do casamento. O que leva a crer que aartista só pô<strong>de</strong> se ingressar na aca<strong>de</strong>mia e participar <strong>da</strong>s aulas <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lo vivo por que,para a socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, não possuía mais uma “moral” a per<strong>de</strong>r. Simioni, em seu texto OCorpo Inacessível: as <strong>mulher</strong>es e o ensi<strong>no</strong> artístico nas aca<strong>de</strong>mias do século XIX,faz menção à duas artistas francesas A<strong>de</strong>laï<strong>de</strong> Labille-Guiard e Elisabeth Vigée-Lebrun,a autora também evi<strong>de</strong>ncia a relação familiar <strong>de</strong> ambas artistas <strong>no</strong> processo <strong>de</strong>aprendizado do fazer artístico. 13 Labille-Guiard era esposa <strong>de</strong> François André, artista <strong>de</strong>re<strong>no</strong>me e Vigée-Lebrun, assim como Artemisia, Kauffmann e Moser, era filha <strong>de</strong>artista. Outro <strong>de</strong>talhe <strong>de</strong> divisão por gênero apontado por Simioni durante o período foio fato <strong>de</strong> que as <strong>mulher</strong>es que conseguiam ultrapassar as barreiras sociais e entrar paraaca<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> <strong>arte</strong>s ficavam relega<strong>da</strong>s a produções <strong>de</strong> me<strong>no</strong>r importância. Labille-Guiar<strong>de</strong> Vigée-Lebrum só foram aceitas na aca<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> <strong>arte</strong> francesa na condição <strong>de</strong>retratistas, que era um ofício me<strong>no</strong>r em relação às pinturas históricas.De acordo com Simioni, <strong>no</strong> Brasil até 1881, não havia instituição públicaalguma apta a acolher <strong>mulher</strong>es como discentes, e quando inauguraram as aulas para osexo femini<strong>no</strong> <strong>no</strong> Liceu <strong>de</strong> Artes e Ofícios do Rio <strong>de</strong> Janeiro as classes inclinavam-semais para a formação <strong>de</strong> <strong>arte</strong>sãos do que propriamente para formação <strong>de</strong> artistas. AEscola Nacional <strong>de</strong> Belas Artes (ENBA) apenas em 1892 começou a registrar o ingresso<strong>de</strong> <strong>mulher</strong>es, resultado <strong>da</strong> publicação do Decreto 115: “[...] é faculta<strong>da</strong> a matrícula aosindivíduos do sexo femini<strong>no</strong>, para os quais haverá nas aulas lugar separado”. 14Voltando à Lin<strong>da</strong> Nochlin e ao seu artigo Why have there been <strong>no</strong> greatwoman artists? a autora faz crítica à algumas artistas feministas contemporâneas quesugerem que exista um tipo diferente <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>za na <strong>arte</strong> <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es reforçando assima existência <strong>de</strong> um estilo distinto e caracteristicamente femini<strong>no</strong>. Nochlin contesta essasugestão afirmando não reconhecer uma “essência sutil <strong>de</strong> feminili<strong>da</strong><strong>de</strong>” 15 que possaunir o trabalho <strong>de</strong> Artemesia Gentileschi, Mine Vigée-Lebrun, Angelica Kauffmann,Bonheur Rosa, Morlsot Berthe, Suzanne Valadon, Kathe Kollwitz, Hepworth Barbara,Georgia O'Keeffe, Sophie Taeuber-Arp, Helen Frankenthaler , Bridget Riley, Lee131415SIMIONE, Ana Paula Cavalcanti. O Corpo Inacessível: as <strong>mulher</strong>es e o ensi<strong>no</strong> artístico nas aca<strong>de</strong>miasdo século XIX. ArtCultura, Uberlândia, v. 9, n. 14, Jan.-Jun, p. 83-97, 2007.Ibid.NOCHLIN, Lin<strong>da</strong>. Why have there been <strong>no</strong> great women artists? In: ______. Women, art, andpower and other essays. Colorado: Westview, 1989, p. 147-158.


Fênix – Revista <strong>de</strong> História e Estudos CulturaisMaio/ Junho/ Julho/ Agosto <strong>de</strong> 2012 Vol. 9 A<strong>no</strong> IX nº 2ISSN: 1807-6971Disponível em: www.revistafenix.pro.br7Bontecou, ou Louise Nevelson, entre outras. Conclui afirmando que as obras <strong>da</strong>s artistascita<strong>da</strong>s acima estão mais próximas <strong>da</strong>s produções <strong>de</strong> seus contemporâneos do que emuma relação geral com obras <strong>de</strong> outras <strong>mulher</strong>es. Este raciocínio <strong>de</strong> Nochlin dialogacom uma <strong>da</strong>s quatro proposições apresenta<strong>da</strong>s por Teresa <strong>de</strong> Lauretis em A tec<strong>no</strong>logia<strong>de</strong> Gênero <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> construção do gênero por meio <strong>de</strong> sua<strong>de</strong>sconstrução.Paradoxalmente, portanto, a construção do gênero também se faz pormeio <strong>de</strong> sua <strong>de</strong>sconstrução, quer dizer, em qualquer discurso,feminista ou não, que veja o gênero como apenas uma representaçãoi<strong>de</strong>ológica falsa. O gênero, como o real, é não apenas o efeito <strong>da</strong>representação, mas também o seu excesso, aquilo que permanece forado discurso como um trauma em potencial que, se/quando nãocontido, po<strong>de</strong> romper ou <strong>de</strong>sestabilizar qualquer representação. 16Com a colocação <strong>de</strong> Nochlin e a explicação <strong>de</strong> Lauretis po<strong>de</strong>mos perceber quea abor<strong>da</strong>gem <strong>de</strong> que não existe uma “estética feminina”, apesar <strong>de</strong> ser uma forma <strong>de</strong><strong>de</strong>sconstrução <strong>de</strong>ssa divisão por gênero, também é uma construção <strong>de</strong> gênero, pois não<strong>de</strong>scarta a predominância <strong>da</strong> visão antropocêntrica, como apresenta Loponte, “particulare arbitrária” na História <strong>da</strong> Arte. Essa divisão estética, <strong>de</strong> “um estilo femini<strong>no</strong>” utiliza<strong>da</strong>por algumas feministas e critica<strong>da</strong> por Nochlin, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong> serviu como um orientadorqualitativo <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> artística regi<strong>da</strong> pela política masculina,restringindo a <strong>mulher</strong> a encargos me<strong>no</strong>s <strong>no</strong>bres, como retratistas <strong>no</strong> exemplo Labille-Guiard e Vigée-Lebrum, e <strong>de</strong>finindo o ser femini<strong>no</strong> como mais frágil, mais sensível, eme<strong>no</strong>s propício às batalhas, como observamos nas pinturas neoclássicas <strong>de</strong> Jacques LuisDavid como em O Juramento dos Horácios <strong>de</strong> 1784 ou em Os Litores trazendo aBrutos os corpos <strong>de</strong> seus filhos <strong>de</strong> 1789.16DE LAURETIS, Teresa. Tech<strong>no</strong>logies of Gen<strong>de</strong>r, Essays on Theory, Film and Fiction.Bloomington/ Indiana: Indiana University Press, 1987, p. 209.


Fênix – Revista <strong>de</strong> História e Estudos CulturaisMaio/ Junho/ Julho/ Agosto <strong>de</strong> 2012 Vol. 9 A<strong>no</strong> IX nº 2ISSN: 1807-6971Disponível em: www.revistafenix.pro.br8Figura 1 – Jacques-Louis David, O Juramento dos Horácios, 1784. (Fonte: ibiblio/WebMuseum)Figura 2 – Jacques-Louis David, Os litores trazendo a Brutos os corpos <strong>de</strong> seus filhos, 1789.(Fonte: ibiblio/WebMuseum)Joan Scott em Gênero uma categoria útil <strong>de</strong> análise histórica, 17 <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> ahistoricização e <strong>de</strong>sconstrução dos termos que procuram <strong>de</strong><strong>no</strong>minar a diferença sexual.Hoje se discute que a construção <strong>de</strong> gênero se faz arbitrariamente em relação àdiferenciação dos sexos <strong>de</strong> homens e <strong>mulher</strong>es, ou seja, não existe “a <strong>mulher</strong>”, nãoexiste “o homem”, enquanto categorias sociais. O que se percebe é que na tentativa <strong>de</strong>corrigir um empirismo ingênuo diante do que se vinha sendo construído como a história<strong>da</strong> <strong>mulher</strong>, Scott propõem compreen<strong>de</strong>r como as socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s constroem essas diferençase não a diferença em si. Nesse sentido a própria História sofre uma reformulação, umavez que, “[...] abandona as buscas pelas origens dos fenôme<strong>no</strong>s, reconhecendo a17SCOTT, Joan. Gênero: Uma Categoria útil <strong>de</strong> Análise Histórica. Educação e Reali<strong>da</strong><strong>de</strong>. PortoAlegre: Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Educação/UFRGS, Vol.6, N°2, jul/<strong>de</strong>z 1990.


Fênix – Revista <strong>de</strong> História e Estudos CulturaisMaio/ Junho/ Julho/ Agosto <strong>de</strong> 2012 Vol. 9 A<strong>no</strong> IX nº 2ISSN: 1807-6971Disponível em: www.revistafenix.pro.brcomplexi<strong>da</strong><strong>de</strong> dos processos históricos enquanto elementos inter-relacionados”. 189Édiscutindo como uma visão <strong>de</strong> gênero se construiu e se impôs num <strong>de</strong>terminado grupo,que po<strong>de</strong>mos apontar para sua historici<strong>da</strong><strong>de</strong>, e assim promover sua <strong>de</strong>sconstrução. E<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sse paradigma é que po<strong>de</strong>remos analisar e problematizar as construções <strong>de</strong>gênero que implicaram na configuração <strong>de</strong> instituições como os <strong>museu</strong>s e as aca<strong>de</strong>mias<strong>de</strong> <strong>arte</strong>.Os estudos em tor<strong>no</strong> <strong>da</strong> questão do gênero estão muito além <strong>da</strong> simples relaçãoentre a biologia sexual e a construção <strong>da</strong> categoria social <strong>da</strong> <strong>mulher</strong>. Hoje as pesquisasestão em volta <strong>de</strong> uma história social volta<strong>da</strong> para a análise dos problemas que opera<strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> ligação entre conhecimento <strong>de</strong> gênero, experiência <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es <strong>no</strong> passado ea história em geral. 19 A necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconstruir a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> uma estética “feminina”se dá principalmente pelo reconhecimento <strong>da</strong> produção <strong>de</strong> <strong>mulher</strong>es artistas,romancistas, filósofas, e outras mais, que dialogaram com seus contemporâneos homense <strong>mulher</strong>es, contribuindo <strong>de</strong> igual para igual <strong>no</strong> <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> suas áreas.Portanto, a próxima p<strong>arte</strong> <strong>de</strong>ste artigo ten<strong>de</strong> a analisar trabalhos <strong>da</strong> artista <strong>mulher</strong> DinéiaDutra não por uma estética feminina, mas relacionando sua produção <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong>observação do histórico sociocultural e político <strong>da</strong> condição <strong>da</strong> <strong>mulher</strong> o que, porconsequência, reestrutura a forma <strong>de</strong> análise <strong>da</strong> obra <strong>no</strong> que tange a importânciadiscursiva dos elementos simbólicos e formais.MULHERES POSSÍVEIS NA ARTE GOIANA: A ARTISTA E AAUTORREPRESENTAÇÃODar lembranças, <strong>da</strong>r recado.Visitas com aviso prévio.Mulheres entrarem pelo portão.Saírem pelo portão.Darem voltas, passarem por <strong>de</strong>trás.Evitarem as ruas do centro,Serem vistas <strong>de</strong> todo o mundo”.Cora Coralina 20181920SANTANA, Rosemere O. História <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es ou estudos <strong>de</strong> gênero: contribuições para um <strong>de</strong>bate.II seminário Nacional <strong>de</strong> gênero e práticas culturais. João Pessoa: Culturas, leituras erepresentações, p. 3, 2009.TILLY, Louise A. Gênero, história <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es e História social. Ca<strong>de</strong>r<strong>no</strong>s Pagu, n. 3, p. 29-62,1994.CORALINA, Cora. Poemas dos Becos <strong>de</strong> Goiás e Estórias Mais. São Paulo: Global, 1993, p. 114.


Fênix – Revista <strong>de</strong> História e Estudos CulturaisMaio/ Junho/ Julho/ Agosto <strong>de</strong> 2012 Vol. 9 A<strong>no</strong> IX nº 2ISSN: 1807-6971Disponível em: www.revistafenix.pro.br10Cora Coralina, a mais <strong>de</strong>staca<strong>da</strong> poetisa goiana, neste peque<strong>no</strong> trecho <strong>de</strong> um <strong>de</strong>seus poemas do livro Poemas dos Becos <strong>de</strong> Goiás e Estórias Mais, <strong>de</strong> 1965, <strong>de</strong>screveo cotidia<strong>no</strong> <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> vilaboense do início do século XX. Esse“acanhamento” <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es, <strong>de</strong>scrito pela poetisa, “tem sua origem <strong>no</strong> passado” emanálise <strong>de</strong> Maria José Goulart Bittar em As Três Faces <strong>de</strong> Eva na Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Goiás. 21Essa <strong>mulher</strong> <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> vilaboense, “acanha<strong>da</strong>”, como comenta Bittar, aparece naforma <strong>de</strong> uma <strong>mulher</strong> submissa, uma <strong>mulher</strong> <strong>de</strong> “Dar lembranças, <strong>da</strong>r recados” pelaspalavras <strong>de</strong> Cora Coralina, entrar e sair pelo portão. Dar recados era, em uma época semas facili<strong>da</strong><strong>de</strong>s tec<strong>no</strong>lógicas, uma ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> comumente liga<strong>da</strong> a crianças, garotos, como<strong>no</strong> famoso quadro <strong>de</strong> Almei<strong>da</strong> Junior “Recado difícil” <strong>de</strong> 1895, on<strong>de</strong> aparece um garotoconstrangido, <strong>de</strong> pés <strong>de</strong>scalços, segurando seu chapéu sobre o peito ao tempo queencontra a maneira <strong>de</strong> passar, transmitir, o “Recado difícil”. A ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>da</strong>r recadossempre esteve associa<strong>da</strong> às crianças, indivíduos sem voz e posição <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> umasocie<strong>da</strong><strong>de</strong>. Pessoas sem obrigação que serviam para <strong>da</strong>r recados transmitidos porpessoas que “tinham obrigações”, “coisas importantes a fazer”, portanto sem tempo <strong>de</strong>ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s me<strong>no</strong>res. Esta é a <strong>mulher</strong> apresenta<strong>da</strong> por Cora Coralina <strong>no</strong> poema acima, emuma posição <strong>de</strong> segundo pla<strong>no</strong>, <strong>de</strong> <strong>de</strong>simportância. Dentro do texto <strong>de</strong> Cora, o ato <strong>de</strong>“<strong>da</strong>r recado” é apresentado <strong>no</strong> poema <strong>de</strong> forma pejorativa, e explicitamente<strong>de</strong>nunciativa <strong>de</strong> uma posição submissa em que a <strong>mulher</strong> se apresentava à socie<strong>da</strong><strong>de</strong>.Evi<strong>de</strong>ncio este poema <strong>de</strong> Cora Coralina para introduzir algumas argumentaçõessobre a formação <strong>de</strong> uma condição sociocultural e política <strong>da</strong> <strong>mulher</strong> goiana<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte genealogicamente ou culturalmente <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> vilaboense.Esta relação se faz necessária para que seja possível compreen<strong>de</strong>r reflexoscomportamentais do final do século XIX e início do século XX na ico<strong>no</strong>grafia <strong>da</strong>produção cultural <strong>da</strong> <strong>mulher</strong> goiana dos a<strong>no</strong>s 1980. De que forma a <strong>mulher</strong> goiana dofinal do século XX se relaciona com sua correspon<strong>de</strong>nte do século XIX? Como se <strong>da</strong>essa relação entre o passado e o presente? Sabemos que a <strong>mulher</strong> contemporânea,principalmente <strong>de</strong>pois dos a<strong>no</strong>s 60, <strong>de</strong>pois dos movimentos feministas organizados,vem alcançando seu espaço na socie<strong>da</strong><strong>de</strong> e lutando para reestruturar os machismosinerentes <strong>de</strong> uma organização social calca<strong>da</strong> na figura masculina. Se esse esforço <strong>de</strong>restaurar a história p<strong>arte</strong> principalmente <strong>de</strong> problemas encontrados durante o processo21BITTAR, Maria José Goulart. As três faces <strong>de</strong> Eva na Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Goiás. Goiânia: Kelps, 2002, p.155.


Fênix – Revista <strong>de</strong> História e Estudos CulturaisMaio/ Junho/ Julho/ Agosto <strong>de</strong> 2012 Vol. 9 A<strong>no</strong> IX nº 2ISSN: 1807-6971Disponível em: www.revistafenix.pro.br11historiográfico, indica que fatos ocorridos <strong>no</strong> passado foram <strong>de</strong>finidores <strong>de</strong> atitu<strong>de</strong>s dopresente. Com isso po<strong>de</strong>mos argumentar que <strong>de</strong>finições comportamentais construí<strong>da</strong>s<strong>no</strong> passado, encontram reflexos <strong>no</strong>s dias atuais.Se a experiência social é <strong>de</strong>terminante na formação <strong>da</strong>s pessoas, e é on<strong>de</strong>ganham atributos específicos, po<strong>de</strong>-se afirmar que um indivíduo é her<strong>de</strong>iro <strong>de</strong> umatradição comportamental que vem sendo construí<strong>da</strong> por todo o passado do meio socialem que este é constituído. Segundo Bittar a <strong>mulher</strong> goiana do Século XIX, <strong>da</strong>s cama<strong>da</strong>ssociais mais abasta<strong>da</strong>s, foi ensina<strong>da</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sua infância a ser a “[...] gestora e a guardiã<strong>da</strong> casa e do <strong>de</strong>sti<strong>no</strong> <strong>de</strong> sua prole”. 22Nos meados do século XIX, num tempo já distante <strong>da</strong> febremineradora, e estruturado em bases sociais mais estáveis, próprias <strong>da</strong>socie<strong>da</strong><strong>de</strong> agrária que tem <strong>no</strong> casamento e na transmissão <strong>da</strong> herançaseus pilares básicos, chegam à ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Goiás algumas famíliasbrancas, <strong>de</strong> posses, que vão, gra<strong>da</strong>tivamente, impondo seus costumese reforçando o valor do casamento. São costumes que levam as<strong>mulher</strong>es a adotarem posturas rígi<strong>da</strong>s <strong>no</strong> sentar e an<strong>da</strong>r – que severificam até hoje nas suas <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes – e, principalmente, <strong>no</strong>cui<strong>da</strong>do com o vestuário. 23A acanha<strong>da</strong> <strong>mulher</strong> vilaboense apresenta<strong>da</strong> por Cora Coralina, que ten<strong>de</strong> a“evitar a rua do centro’, e “evitar serem vistas <strong>de</strong> todo o mundo”, esta <strong>mulher</strong> <strong>de</strong>scritaque evita a relação com o exterior, preservando sua vi<strong>da</strong> domiciliar, estabelece umconvívio social restrito “quase que exclusivamente à área do privado, restando, à áreado público, apenas as poucas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s liga<strong>da</strong>s à igreja”. 24 Segundo Mary Del Prioreem Ao Sul do Corpo: condição feminina, materni<strong>da</strong><strong>de</strong>s e mentali<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>no</strong> BrasilColônia, ain<strong>da</strong> <strong>no</strong> período colonial, Igreja e Estado criam o estereótipo <strong>da</strong> “santamãezinha”.25Esse estereótipo é incorporado inicialmente pela elite e, <strong>de</strong>pois,gra<strong>da</strong>tivamente, espalha-se por to<strong>da</strong>s as classes sociais, fenôme<strong>no</strong> que se verifica emquase todo o Brasil.Po<strong>de</strong>mos constatar que este estereótipo <strong>da</strong> “santa-mãezinha”, criado peloestado e pela igreja ain<strong>da</strong> <strong>no</strong> Brasil Colônia, ganha aliados morais e i<strong>de</strong>ológicos na22232425BITTAR, Maria José Goulart. As três faces <strong>de</strong> Eva na Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Goiás. Goiânia: Kelps, 2002, p.92.Ibid., p.151.Ibid.DEL PRIORE, Mary. Ao Sul do Corpo: condição feminina, materni<strong>da</strong><strong>de</strong>s e mentali<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>no</strong>Brasil Colônia. Rio <strong>de</strong> Janeiro / Brasilia: José Olympio / Edunb, 1993, p. 33.


adical. 27 Segundo Clarisse Ismério em “Mulher a moral e o imaginário 1889 – 1930”Fênix – Revista <strong>de</strong> História e Estudos CulturaisMaio/ Junho/ Julho/ Agosto <strong>de</strong> 2012 Vol. 9 A<strong>no</strong> IX nº 2ISSN: 1807-6971Disponível em: www.revistafenix.pro.br12ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Goiás a partir <strong>de</strong> 1846, com a criação do Liceu <strong>de</strong> Goiás. A escola que dá àci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Goiás a estrutura fun<strong>da</strong>mental que propicia o <strong>de</strong>senvolvimento intelectual quese faz sentir a partir <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> meta<strong>de</strong> do século XIX, ao mesmo tempo introduz umamoral rígi<strong>da</strong> <strong>de</strong> comportamento tanto para os homens quanto para as <strong>mulher</strong>es.Aparecendo como uma alternativa à igreja, o colégio Liceu mesmo in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte dospreceitos católicos e procurando formar um pensamento científico, apresenta forteinfluência maçônica e se pauta <strong>no</strong> positivismo. 26O Positivismo é um conceito criado por Auguste Comte que surgiu como<strong>de</strong>senvolvimento sociológico do Iluminismo, <strong>da</strong>s crises sociais e morais do fim <strong>da</strong> I<strong>da</strong><strong>de</strong>Média e do nascimento <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> industrial, processos que tiveram como gran<strong>de</strong>marco a Revolução Francesa (1789-1799). Em linhas gerais, a doutrina propõe àexistência humana valores completamente huma<strong>no</strong>s. O Positivismo associa umainterpretação <strong>da</strong>s ciências e uma classificação do conhecimento a uma ética humanaexistiam três tipos <strong>de</strong> Positivismo <strong>no</strong> período que vai <strong>de</strong> 1870 a 1930: o político, odifuso e o religioso. A moral, a rigi<strong>de</strong>z, o autoritarismo e a disciplina eram os pontosque uniam os três tipos <strong>de</strong> Positivismo, fundindo-os em um único objetivo: organizar asocie<strong>da</strong><strong>de</strong> através <strong>de</strong> uma moral conservadora. A <strong>mulher</strong> <strong>de</strong>veria ser a rainha do lar e oanjo tutelar <strong>de</strong> sua família e, para atingir esses mo<strong>de</strong>los, seguiria <strong>no</strong>rmas préestabeleci<strong>da</strong>spelo Catecismo Positivista, <strong>no</strong> qual Comte codificou todo o pensamentoconservador em tor<strong>no</strong> <strong>da</strong> <strong>mulher</strong>. 28O espaço <strong>da</strong> <strong>mulher</strong> ficava restrito à casa, on<strong>de</strong> <strong>de</strong>veria <strong>de</strong>dicar-seexclusivamente ao trabalho doméstico e à educação dos filhos,enquanto o serviço exter<strong>no</strong> para sustentar a casa, caberia ao marido. 2926272829BITTAR, Maria José Goulart. As três faces <strong>de</strong> Eva na Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Goiás. Goiânia: Kelps, 2002, p.129.LACERDA, Gustavo Biscaia. O momento comtia<strong>no</strong>: república e política <strong>no</strong> pensamento <strong>de</strong>Augusto Comte. 2010. Tese (Doutorado em Sociologia Política) – Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> SantaCatarina, Florianópolis, 2010.Cf. ISMÉRIO, Clarisse. Mulher: a moral e o imaginário: 1889-1930. Porto Alegre: EDIPUCRS,1995.COSTA, Cristina. A Imagem <strong>da</strong> Mulher: Um estudo <strong>de</strong> <strong>arte</strong> brasileira. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Senac Rio,2002, p. 30.


Fênix – Revista <strong>de</strong> História e Estudos CulturaisMaio/ Junho/ Julho/ Agosto <strong>de</strong> 2012 Vol. 9 A<strong>no</strong> IX nº 2ISSN: 1807-6971Disponível em: www.revistafenix.pro.br13A artista goiana Dinéia Dutra, abor<strong>da</strong> a questão <strong>da</strong> <strong>mulher</strong>/mãe em umagravura em metal <strong>de</strong> 1980, intitula<strong>da</strong> Materni<strong>da</strong><strong>de</strong> (Figura 1). Neste trabalho po<strong>de</strong>mosobservar uma forte influência mo<strong>de</strong>rnista em uma execução expressionista compondofiguras humanas organiza<strong>da</strong>s em uma tradicional cena que remete à <strong>arte</strong> sacra cristã, queé a Madona ou a Virgem com o meni<strong>no</strong> Jesus. Nesta gravura <strong>de</strong> Dinéia existe umaterceira pessoa, que vai além <strong>da</strong> relação mãe e filho, uma segun<strong>da</strong> <strong>mulher</strong> que fazcompanhia a mãe com o bebê. A imagem apresenta a figura <strong>de</strong> duas <strong>mulher</strong>es, sendoque uma <strong>de</strong>las está carregando um bebê <strong>de</strong> colo e a outra somente observa a ação.Dentro <strong>da</strong> linha expressionista emprega<strong>da</strong> por Dinéia na composição <strong>da</strong> forma humana,observamos uma triangulação proposital na representação do olhar <strong>da</strong>s figurasfemininas. A primeira <strong>mulher</strong>, a mãe, olhando (cui<strong>da</strong>ndo) <strong>da</strong> criança, e a segun<strong>da</strong><strong>mulher</strong> olhando a mãe. Esta triangulação tem paralelo com a cumplici<strong>da</strong><strong>de</strong> entre as<strong>mulher</strong>es <strong>no</strong> período pós-parto, a cumplici<strong>da</strong><strong>de</strong> feminina <strong>da</strong> gestação, do saber <strong>da</strong>materni<strong>da</strong><strong>de</strong>, sentimento restrito à condição natural <strong>da</strong> <strong>mulher</strong>, umas aju<strong>da</strong>ndo as outras,fazendo meias e roupas <strong>de</strong> tricô, visitas <strong>de</strong> felicitações, mimos ao recém chegado.Também existe um paralelo com a <strong>mulher</strong> interiorana, que passa gran<strong>de</strong> p<strong>arte</strong> do temposem a presença do marido, que viaja a negócios, que por vezes nunca mais volta, porvezes tem outra família, e a <strong>mulher</strong> ali, sempre cheia <strong>de</strong> parentes e aparenta<strong>da</strong>s,acompanha<strong>da</strong> <strong>da</strong> filha, ou <strong>de</strong> uma vizinha.A segun<strong>da</strong> <strong>mulher</strong> na gravura Materni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Dinéia, também ressalta a figura<strong>da</strong> aju<strong>da</strong>nte funcionária ou “babá”, profissão majoritariamente feminina, salvo emraríssimos casos. Pela capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> natural <strong>da</strong> <strong>mulher</strong> <strong>de</strong> realizar a gestação é atribuí<strong>da</strong> aela uma relação natural <strong>de</strong> afetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> com o bebê ou com a criança, sugerindo assimuma cumplici<strong>da</strong><strong>de</strong> entre a <strong>mulher</strong> e a criança que não necessariamente correspon<strong>de</strong> amesma cumplici<strong>da</strong><strong>de</strong> entre mãe e filho.Durante longo tempo consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s como “vocação”, estas profissõesfemininas, centra<strong>da</strong>s sobre os cui<strong>da</strong>dos com crianças e doentes, eramconsi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s perfeitamente a<strong>da</strong>pta<strong>da</strong>s às <strong>mulher</strong>es pela sua tendência“inata” à compaixão, à <strong>de</strong>dicação pelos mais fracos, ou seja, suacapaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> maternagem. 3030BAILLARGEON, Denyse. No calor do <strong>de</strong>bate: A materni<strong>da</strong><strong>de</strong> em perspectiva. Tradução <strong>de</strong> TaniaNavarro-Swain. Textos <strong>de</strong> Historia, Revista <strong>da</strong> Pós-graduação em Historia <strong>da</strong> UNB, Brasília, v. 8, n.1/2, p. 139-155, 2000.


Fênix – Revista <strong>de</strong> História e Estudos CulturaisMaio/ Junho/ Julho/ Agosto <strong>de</strong> 2012 Vol. 9 A<strong>no</strong> IX nº 2ISSN: 1807-6971Disponível em: www.revistafenix.pro.br14A imagem <strong>da</strong> <strong>mulher</strong> acompanha<strong>da</strong> é também um reflexo <strong>de</strong> um cotidia<strong>no</strong> <strong>da</strong>ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Goiás do século XIX observados por Saint-Hilaire em Viagem à Província<strong>de</strong> Goiás em que o autor comenta que as <strong>mulher</strong>es vilaboenses “Geralmente fazem oseu passeio em grupos, raramente acompanha<strong>da</strong>s <strong>de</strong> homens”. 31Figura 3 – Dinéia Dutra, Materni<strong>da</strong><strong>de</strong>, gravura em metal, 1980. (Fonte: MAG)A vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> <strong>mulher</strong> é um tema que inspirou Dinéia. Em 1980, a artista apresentaum álbum <strong>de</strong> gravuras que abor<strong>da</strong> a <strong>mulher</strong> em diferentes momentos vivenciais. A<strong>mulher</strong> <strong>no</strong> amor, na paixão, na religião, na solidão, na materni<strong>da</strong><strong>de</strong>, diferentesabor<strong>da</strong>gens <strong>da</strong> <strong>mulher</strong> em gravura em metal que veio construir uma postura <strong>da</strong> artistaenquanto gravurista <strong>no</strong> cenário <strong>da</strong> <strong>arte</strong> goianiense. Sobre este álbum <strong>de</strong> gravuras ocrítico <strong>de</strong> <strong>arte</strong> goia<strong>no</strong> Miguel Jorge fez o seguinte comentário na época – “[...] nestestrabalhos, Dinéia <strong>no</strong>s apresenta uma obra mais <strong>de</strong>fini<strong>da</strong>, expressando-se <strong>de</strong> modo maisdireto, criando personagens, geralmente <strong>mulher</strong>es <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> comum brasileira,configurando a atual temática <strong>da</strong> artista e seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> síntese”. 32 Essa série <strong>de</strong> gravuras<strong>de</strong> Dinéia dos a<strong>no</strong>s 80, além <strong>de</strong> apresentar um avanço técnico <strong>no</strong> processo formal <strong>da</strong>artista conjuga com a posição social <strong>no</strong> papel <strong>de</strong> autorreapresentação <strong>da</strong> <strong>mulher</strong>,possibilitando um exercício <strong>de</strong> memória emocional na representação <strong>de</strong> umposicionamento social a qual a autora compartilha em termos naturais. Quem é essa3132SAINT-HILAIRE, August <strong>de</strong>. Viagem à Província <strong>de</strong> Goiás. Belo Horizonte / São Paulo: Itatiaia /EDUSP, 1975, p. 54.JORGE, Miguel. Dinéia Dutra. O Popular, Suplemento Cultural, Goiânia, 27 Set. 1980.


Fênix – Revista <strong>de</strong> História e Estudos CulturaisMaio/ Junho/ Julho/ Agosto <strong>de</strong> 2012 Vol. 9 A<strong>no</strong> IX nº 2ISSN: 1807-6971Disponível em: www.revistafenix.pro.br15<strong>mulher</strong> representa<strong>da</strong> por Dinéia? Seria uma memória afetiva interna ou externa, ou asduas coisas? Na obra <strong>da</strong> artista Materni<strong>da</strong><strong>de</strong> (Figura 3) existe uma conjuntura <strong>de</strong>personali<strong>da</strong><strong>de</strong> dos dois indivíduos representados, existe uma conexão <strong>de</strong> ligação e<strong>de</strong>pendência entre mãe e filho, preservando uma uni<strong>da</strong><strong>de</strong>, uma relação <strong>de</strong> Materni<strong>da</strong><strong>de</strong>em tor<strong>no</strong> <strong>de</strong> uma completu<strong>de</strong>. O que não chega a se constituir como uma estéticafeminina, mas sim um reflexo social, um gesto construído a qual a artista compartilhaenquanto síntese <strong>de</strong> uma cultura programa<strong>da</strong>.A questão <strong>da</strong> materni<strong>da</strong><strong>de</strong> é um ponto <strong>de</strong>finidor <strong>de</strong> parâmetros na história <strong>da</strong><strong>mulher</strong>. Des<strong>de</strong> os a<strong>no</strong>s 1970 os historiadores que se inclinam ao tema vem <strong>de</strong>dicandoum lugar prepon<strong>de</strong>rante à analise <strong>da</strong> relação <strong>mulher</strong>/materni<strong>da</strong><strong>de</strong>. Um dos pontosprincipais <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sta análise trata-se <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar que as <strong>mulher</strong>es também vêmexercendo em sua história outros papéis que os <strong>de</strong> mãe e dona <strong>de</strong> casa, “[...] ressaltandosua participação <strong>no</strong> mercado capitalista do trabalho, sua implicação nas lutas sindicaisou ain<strong>da</strong> seus combates feministas”. 33Este viés <strong>da</strong> História <strong>da</strong>s <strong>mulher</strong>es que se pautava apenas pela mi<strong>no</strong>rialiga<strong>da</strong> ao mercado <strong>de</strong> trabalho atingiu seus limites, pois nãoconsi<strong>de</strong>rava senão a mi<strong>no</strong>ria que exercera uma ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> fora do lar,rejeitando para fora <strong>da</strong> história to<strong>da</strong>s as que jamais haviam tido umtrabalho remunerado ou que não haviam militado. Diante <strong>de</strong>staconstatação, as historiadoras iniciaram uma crítica epistemológica <strong>de</strong>sua disciplina que <strong>de</strong>veria conduzi-las à contestar a visão <strong>da</strong> históriatradicional, limita<strong>da</strong> aos gran<strong>de</strong>s eventos políticos e econômicos. Maisespecificamente, insistiram sobre a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> levar em conta aesfera priva<strong>da</strong>, ou seja, a família e as relações que se estabeleciamentre as duas esferas (pública e priva<strong>da</strong>) para atingir uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iracompreensão do passado. 34A representação <strong>da</strong> <strong>mulher</strong> na <strong>arte</strong>, ou sua autorrepresentação <strong>no</strong> caso <strong>da</strong>sgravuras <strong>de</strong> Dinéia, é caracteriza<strong>da</strong> em “[...] conformi<strong>da</strong><strong>de</strong> com a trama <strong>da</strong>s relaçõessociais nas quais se insere, em termos que po<strong>de</strong>m ser naturalistas ou realistas,psicológicos ou sociais”. 35 Movimenta-se <strong>de</strong> acordo com as formas <strong>de</strong> sociabili<strong>da</strong><strong>de</strong> e osjogos <strong>de</strong> forças sociais prevalecentes. As gravuras <strong>da</strong> artista operam <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> umaconfiguração figurativa e sua representação <strong>da</strong> <strong>mulher</strong>, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo do jogo <strong>da</strong>s333435BAILLARGEON, Denyse. No calor do <strong>de</strong>bate: A materni<strong>da</strong><strong>de</strong> em perspectiva. Tradução <strong>de</strong> TaniaNavarro-Swain. Textos <strong>de</strong> Historia, Revista <strong>da</strong> Pós-graduação em Historia <strong>da</strong> UNB, Brasília, V. 8, n.1/2, p. 140, 2000.Ibid.COSTA, Cristina. A Imagem <strong>da</strong> Mulher: Um estudo <strong>de</strong> <strong>arte</strong> brasileira. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Senac Rio,2002, p. 30.


Fênix – Revista <strong>de</strong> História e Estudos CulturaisMaio/ Junho/ Julho/ Agosto <strong>de</strong> 2012 Vol. 9 A<strong>no</strong> IX nº 2ISSN: 1807-6971Disponível em: www.revistafenix.pro.br16hierarquias, intolerantes ou preconceituosas, po<strong>de</strong> apresentar i<strong>de</strong>alizações tantopositivas, negativas, neutras, assim como contraditórias.A representação <strong>de</strong> gênero nas gravuras <strong>de</strong> Dinéia do início <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 80apresenta uma <strong>mulher</strong> <strong>da</strong>s relações <strong>de</strong> amor, <strong>da</strong> família e <strong>da</strong> religião. Uma <strong>mulher</strong> queexiste <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma esfera priva<strong>da</strong>, e que mesmo que tenha her<strong>da</strong>do rituaiscomportamentais muito rígidos não compartilham <strong>da</strong>s necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> <strong>mulher</strong> domercado capitalista do trabalho, dos gran<strong>de</strong>s centros urba<strong>no</strong>s, <strong>da</strong> esfera individualista ecosmopolita.Figura 4 – Dinéia Dutra, Namorados, gravura em metal, 1981 (Fonte: MAG)Em Namorados (Figura 4) a artista apresenta em sua representação femininauma <strong>mulher</strong> fazendo o jogo do amor. A face <strong>da</strong> <strong>mulher</strong> aparece submissa a figuramasculina ao mesmo tempo em que seu corpo se esquiva como em um jogo <strong>de</strong> sedução.Dinéia era eficaz em <strong>de</strong>monstrar a misencene do romance. A apresentação <strong>da</strong>s figuras, ohomem em pé, em postura ativa, e a <strong>mulher</strong> senta<strong>da</strong>, esquivando em postura passiva,conti<strong>da</strong>, resguar<strong>da</strong><strong>da</strong>, mostra que a interpretação do jogo <strong>da</strong> sedução não se encaixa emuma lineari<strong>da</strong><strong>de</strong> cognitiva. O que se apresenta não é o que se vê. No jogo <strong>de</strong> seduçãotanto a <strong>mulher</strong> quanto o homem se utilizam <strong>de</strong> gestuais para atingir seu objetivo,gestuais que nem sempre correspon<strong>de</strong>m com o ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro <strong>de</strong>sejo. A <strong>mulher</strong> <strong>de</strong> Dinéia é<strong>de</strong> família e <strong>da</strong> religião, mas não é uma <strong>mulher</strong> ingênua, sabe o que quer e se utiliza <strong>de</strong>seus instrumentos para conquistar seu objetivo.É <strong>de</strong> se observar que a personali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> artista, com to<strong>da</strong>s as complexi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong>vi<strong>da</strong>, dos relacionamentos, <strong>da</strong> paixão e do cotidia<strong>no</strong> possibilita um resultado poético que


Fênix – Revista <strong>de</strong> História e Estudos CulturaisMaio/ Junho/ Julho/ Agosto <strong>de</strong> 2012 Vol. 9 A<strong>no</strong> IX nº 2ISSN: 1807-6971Disponível em: www.revistafenix.pro.br17une dois mundos aparentemente distintos. O trabalho árduo <strong>da</strong> gravura em metal com aluta para conquistar seu espaço profissional, em contraste com uma ico<strong>no</strong>grafia queevoca uma <strong>mulher</strong> passiva.A <strong>arte</strong> impressa, a gravura, exige inversão <strong>de</strong> <strong>de</strong>senho, ácidos para gravação <strong>de</strong>matriz e prensa para impressão <strong>de</strong> cópias. Este processo complexo e <strong>de</strong> certa formapesado em sua estrutura, e árduo em sua busca por resultados, é observado pelo escritorBrasigóis Felício em texto sobre a obra e a ascensão <strong>de</strong> Dinéia Dutra <strong>no</strong> cenário artísticogoia<strong>no</strong> e sobre sua passagem <strong>da</strong> pintura para a produção <strong>de</strong> gravuras.A artista Dinéia Dutra, que vem, num constante crescimento,revelando um fecundo talento criador, passou todo o a<strong>no</strong> <strong>de</strong> 1981elaborando um <strong>no</strong>vo álbum <strong>de</strong> gravuras, a exemplo do que fez, comgran<strong>de</strong> aceitação <strong>da</strong> crítica e público, <strong>no</strong> a<strong>no</strong> passado. 36No mesmo artigo Brasigóis ain<strong>da</strong> comenta a adoção <strong>da</strong> gravura pela artista eseu início <strong>de</strong> carreira como pintora, revela<strong>da</strong> por um famoso concurso <strong>de</strong> <strong>no</strong>vos valores<strong>da</strong> capital goiana – “Dinéia não atua somente na gravura em metal, como se po<strong>de</strong><strong>de</strong>preen<strong>de</strong>r <strong>da</strong> insistência com que vem elaborando suas pesquisas nesta área <strong>da</strong> criaçãoartística”. 37 O escritor evi<strong>de</strong>ncia a diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> na produção <strong>da</strong> artista lembrado <strong>de</strong> suasincursões pela pintura em meados dos a<strong>no</strong>s 70. A artista, em 1981, encontrava-setotalmente submergi<strong>da</strong> com a pesquisa na gravura em metal – como comentou Brasigóis– “uma técnica difícil”.Figura 5 – Dinéia Dutra, Luar, gravura em metal, 1980. (Fonte: MAG)3637FELÍCIO, Brasigóis. O Áspero Ofício <strong>da</strong> Gravura em Metal. O Popular, Ca<strong>de</strong>r<strong>no</strong> 2, Goiânia, 11 Out.1981.Ibid.


Fênix – Revista <strong>de</strong> História e Estudos CulturaisMaio/ Junho/ Julho/ Agosto <strong>de</strong> 2012 Vol. 9 A<strong>no</strong> IX nº 2ISSN: 1807-6971Disponível em: www.revistafenix.pro.br18A <strong>mulher</strong> que a todos causava admiração pela <strong>de</strong>dicação ao exercício <strong>da</strong>gravura e pela forma disciplina<strong>da</strong> em que construía sua carreira apresentava umasimplici<strong>da</strong><strong>de</strong> sonhadora em seus temas, vestidos em uma atmosfera bucólica <strong>de</strong>cotidia<strong>no</strong> sere<strong>no</strong> <strong>da</strong> <strong>mulher</strong> sonhadora, apaixona<strong>da</strong>, contemplativa e romântica.Construções simbólicas que remetem a figura feminina como o pilar central <strong>da</strong> estruturafamiliar, sem apresentar indícios <strong>de</strong> um engajamento político feminista, individualista,que estavam em ple<strong>no</strong> <strong>de</strong>bate <strong>no</strong>s a<strong>no</strong>s 70 e 80.Dinéia, em temática para suas obras, também não encontrava <strong>no</strong> universosentimental femini<strong>no</strong> elementos que impedissem a <strong>mulher</strong> <strong>de</strong> exercer o seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong><strong>de</strong>cisão e escolha. Seu tempo, sua obra e sua postura em relação ao seu trabalho, tudo oque hoje constitui material precioso sobre sua gravura e sua vi<strong>da</strong>, é consi<strong>de</strong>rado <strong>de</strong>gran<strong>de</strong> valor para o levantamento e para o entendimento do papel <strong>da</strong> <strong>mulher</strong> <strong>no</strong> cenárioartístico <strong>de</strong> Goiás. Mesmo com engajamentos e posturas mais au<strong>da</strong>ciosas a favor <strong>da</strong><strong>arte</strong>, e principalmente <strong>da</strong> gravura, Dinéia era uma artista que se entregava aos temasligados ao universo sentimental <strong>da</strong> <strong>mulher</strong>, mas que formalmente os concebia <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>uma estética mo<strong>de</strong>rnista, progressista. Se levarmos em conta que a estética mo<strong>de</strong>rnistaan<strong>da</strong>va em congruência com as últimas revoluções comportamentais e filosóficas, épossível encontrar nestas gravuras <strong>de</strong> Dinéia um confronto conceitual. Em Luar (Figura5), observa-se essa contradição na construção dos pla<strong>no</strong>s apresentados. Vemos umainclinação <strong>da</strong> artista a um imaginário construtivo na geometrização do pla<strong>no</strong> <strong>de</strong> fundo.Uma visita à abstração. Mesmo que a geometrização <strong>de</strong>sta obra apresente volume, aartista mostra-se aberta a tais discursos formais, mas se ren<strong>de</strong> <strong>no</strong>vamente a figuração aoconcluir o tema central. É como se a influência mo<strong>de</strong>rnista que se formava <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong>artista a convi<strong>da</strong>sse para uma aventura arrisca<strong>da</strong>, <strong>de</strong> audácia, mas que po<strong>de</strong>ria terprejuízos profissionais/sociais caso a aventura se apresentasse como equívoco. Esseembate formal/sentimental cria um paralelo sócio/cultural ao dilema <strong>da</strong> <strong>mulher</strong> nacontemporanei<strong>da</strong><strong>de</strong>. Ser mãe ou seguir uma carreira?É importante ressaltar que, visto em seu conjunto, esse i<strong>de</strong>al fechado <strong>da</strong>“esposa-mãe-dona-<strong>de</strong>-casa”, proposto às meninas, hoje é opção raramente acessa<strong>da</strong>,pelo me<strong>no</strong>s <strong>no</strong> que diz respeito às <strong>mulher</strong>es <strong>de</strong> classe operária, que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m <strong>da</strong>ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> capitalista para o autossustento, e às <strong>mulher</strong>es que optam pela carreiraprofissional como um projeto <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>. As <strong>mulher</strong>es possíveis <strong>de</strong> Dinéia se encontramexatamente aí. Na possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> conjugar essas diversas <strong>mulher</strong>es. Ela mesma, uma


Fênix – Revista <strong>de</strong> História e Estudos CulturaisMaio/ Junho/ Julho/ Agosto <strong>de</strong> 2012 Vol. 9 A<strong>no</strong> IX nº 2ISSN: 1807-6971Disponível em: www.revistafenix.pro.br19artista <strong>de</strong>dica<strong>da</strong> que participava <strong>de</strong> exposições e cursos com artistas re<strong>no</strong>mados, e quebrigava por um espaço maior para a gravura e para a <strong>arte</strong> em papel, se mostrou temática“ao amor” nessas gravuras do início dos a<strong>no</strong>s 80.Dinéia reconhecia que a gravura era uma técnica que, além <strong>de</strong> complexa, era <strong>de</strong>difícil aceitação do público em geral. Em <strong>de</strong>poimento <strong>da</strong>do ao jornal O Popular <strong>de</strong><strong>no</strong>vembro <strong>de</strong> 1981 a artista faz o seguinte comentário: “O gran<strong>de</strong> problema enfrentadopelos gravadores, é o do pouco conhecimento que se tem acerca <strong>da</strong> gravura e do seugran<strong>de</strong> significado estético”. 38 A artista associava o preconceito em relação à gravuraem Goiás ao pouco conhecimento <strong>de</strong> <strong>arte</strong> <strong>no</strong> estado o que alimentava uma certa rejeiçãoem relação à <strong>arte</strong> que era produzi<strong>da</strong> tendo o papel como suporte, e somado a isso o fato<strong>da</strong> gravura ser um trabalho artístico <strong>de</strong> reprodução. Um procedimento que aos olhos <strong>de</strong>leigos, quebra ou faz o sentido <strong>de</strong> legitimi<strong>da</strong><strong>de</strong> se per<strong>de</strong>r pela ausência <strong>da</strong> exclusivi<strong>da</strong><strong>de</strong>.Questões como estas eram <strong>de</strong>bati<strong>da</strong>s publicamente pela artista e sua postura crítica emrelação à carência <strong>de</strong> um público mais especializado eram abertamente discuti<strong>da</strong>s <strong>no</strong>sjornais.Falar <strong>de</strong> Dinéia <strong>no</strong> início <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 80 era visualizar um tipo <strong>de</strong> gravura emmetal <strong>de</strong> quali<strong>da</strong><strong>de</strong> já reconheci<strong>da</strong> nacionalmente, “... domínio maduro <strong>da</strong> técnica, ariqueza <strong>de</strong> texturas, a sabedoria <strong>da</strong> <strong>de</strong>formação <strong>da</strong> figura, tudo revelando uma artistacompleta, <strong>no</strong> nível <strong>da</strong> melhor gravura produzi<strong>da</strong> hoje <strong>no</strong> Rio e em São Paulo...”. 39reconhece o crítico <strong>de</strong> <strong>arte</strong> Walmir Ayala em <strong>de</strong>poimento sobre o trabalho <strong>da</strong> artista, <strong>no</strong>início <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 80; Anna Letycia Quadros, gravadora brasileira e professora <strong>no</strong>Museu <strong>de</strong> Arte Mo<strong>de</strong>rna do Rio <strong>de</strong> Janeiro, falou sobre o trabalho <strong>da</strong> artista goiana: “Ostrabalhos <strong>de</strong> Dinéia são fortes, diretos. O uso do grão grosso, <strong>da</strong>s morsuras profun<strong>da</strong>s naexecução <strong>da</strong>s gravuras estabelece oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s e abre caminhos”. 40 Po<strong>de</strong>-se encontrare conviver com os temas <strong>da</strong>s gravuras <strong>de</strong> Dinéia tanto em uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong> rural como emum contexto proto-urbanístico <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Goiânia do final dos a<strong>no</strong>s 70. A artista emseus temas dialogava simbolicamente com os dois universos existentes.Essas múltiplas <strong>mulher</strong>es a que <strong>de</strong>sdobrava Dinéia, a artista atuante, <strong>de</strong> opiniãoe <strong>de</strong> postura, e a apologista <strong>de</strong> um universo femini<strong>no</strong> do lar, <strong>da</strong> família e dos filhos são383940FELÍCIO, Brasigóis. O Áspero Ofício <strong>da</strong> Gravura em Metal. O Popular, Ca<strong>de</strong>r<strong>no</strong> 2, Goiânia, 11 Out.1981.JORGE, Miguel. Dinéia Dutra. O Popular, Suplemento Cultural, Goiânia, 27 Set. 1980Ibid.


Fênix – Revista <strong>de</strong> História e Estudos CulturaisMaio/ Junho/ Julho/ Agosto <strong>de</strong> 2012 Vol. 9 A<strong>no</strong> IX nº 2ISSN: 1807-6971Disponível em: www.revistafenix.pro.br20as <strong>mulher</strong>es possíveis encontra<strong>da</strong>s <strong>de</strong>ntro do universo particular <strong>da</strong> artista. Suasgravuras e sua vi<strong>da</strong>, juntas apresentam uma completu<strong>de</strong> que se constrói pela dialéticaentre a herança comportamental e a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> contemporânea. As gravuras <strong>de</strong>Dinéia do acervo do MAG são relatos visuais <strong>de</strong> um conflito provável <strong>da</strong> <strong>mulher</strong> goianado século XXI. Mulheres que se impõem profissionalmente, mas que carregam umimaginário comportamental formado <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma construção i<strong>de</strong>ntitária <strong>de</strong> moralpositivista, <strong>da</strong> santa-mãezinha, <strong>da</strong> dona-<strong>de</strong>-casa, <strong>da</strong> rainha do Lar.

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