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a iconologia de erwin panofsky - Revista de História e Estudos ...

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Fênix – <strong>Revista</strong> <strong>de</strong> História e <strong>Estudos</strong> CulturaisSetembro/ Outubro/ Novembro/ Dezembro <strong>de</strong> 2010 Vol. 7 Ano VII nº 3ISSN: 1807-6971Disponível em: www.revistafenix.pro.br8e bom termo, “<strong>iconologia</strong>”, sempre que a iconografia for tirada <strong>de</strong> seuisolamento e integrada em qualquer outro método histórico,psicológico ou crítico, que tentemos usar para resolver o enigma daesfinge. Pois, se o sufixo “grafia” <strong>de</strong>nota algo <strong>de</strong>scritivo, assimtambém o sufixo “logia” – <strong>de</strong>rivado <strong>de</strong> “logos”, que quer dizerpensamento, razão – <strong>de</strong>nota algo interpretativo. [...] Assim, concebo a<strong>iconologia</strong> como uma iconografia que se torna interpretativa. 16A <strong>iconologia</strong> investiga a gênese e o significado das imagens figurativas, estuda,portanto, a “interação entre os diversos tipos; a influência das idéias filosóficas,teológicas e políticas; os propósitos e inclinações dos artistas e patronos; a correlaçãoentre os conceitos inteligíveis e a forma visível que assume em cada caso específico”. 17Assim, a <strong>iconologia</strong> é um método <strong>de</strong> interpretação que resulta, mais do que da análise,da síntese. Síntese <strong>de</strong> um quadro conceitual maior, <strong>de</strong> um contexto no qual a obra ougrupo <strong>de</strong> obras está inserido. Contudo, do alto <strong>de</strong> sua luci<strong>de</strong>z, Panofsky tem claro orisco do seu método: “Há, entretanto, certo perigo <strong>de</strong> a <strong>iconologia</strong> se portar, não como aetnologia em oposição à etnografia, mas como a astrologia em oposição à astrografia”. 18Como fez com as etapas anteriores à interpretação iconológica, Panofsky apresenta umprincípio corretivo.Apreen<strong>de</strong>r os princípios básicos e gerais inerentes à obra que nem sempre sãofruto <strong>de</strong> uma escolha consciente do artista, não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> apenas <strong>de</strong> um conhecimentoerudito. Não existe uma relação direta entre aqueles princípios e a imagem figurativacomo, conforme o exemplo usado por Panofsky, o texto <strong>de</strong> João 13:21 e iconografia daSanta Ceia. A percepção <strong>de</strong>ssas sutis relações <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> um certo talento em usaraquela faculda<strong>de</strong> mental <strong>de</strong>nominada “intuição sintética”. Como a interpretaçãosustentada pela intuição sintética do intérprete é condicionada à sua psicologia e à sua“visão <strong>de</strong> mundo”, a aplicação <strong>de</strong> princípios corretivos será fundamental. Será a históriados sintomas culturais que garantirá exatidão a esta última fase da interpretação.É aqui que a teoria dos símbolos <strong>de</strong> Ernst Cassirer se faz mais presente.Sintoma cultural é compreendido por Panofsky como símbolo na acepção <strong>de</strong> Cassirer.Símbolo é aquilo que o homem, enquanto ser racional, criou para compreen<strong>de</strong>r arealida<strong>de</strong> e que o distingue dos <strong>de</strong>mais animais. Á sua experiência da realida<strong>de</strong> é sempre161718PANOFSKY, Erwin. Iconografia e Iconologia: uma Introdução ao Estudo do Renascimento. In:Significado nas Artes Visuais. São Paulo: Perspectiva, 1991, p. 54.Ibid., p. 53.Ibid., p. 54.


Fênix – <strong>Revista</strong> <strong>de</strong> História e <strong>Estudos</strong> CulturaisSetembro/ Outubro/ Novembro/ Dezembro <strong>de</strong> 2010 Vol. 7 Ano VII nº 3ISSN: 1807-6971Disponível em: www.revistafenix.pro.br9interposta uma espécie <strong>de</strong> véu, ou seja, uma teia simbólica que difere <strong>de</strong> cultura paracultura. O homem não é somente um animal racional, mas precisamente um animalsimbólico, essa é a lição <strong>de</strong> Cassirer. 19 Seria esse “véu” (ou “lentes”), mediador darelação artista e realida<strong>de</strong>, diverso em espaço e tempo (e nem sempre consciente aoartista) que Panofsky quer enten<strong>de</strong>r, ou seja, a dimensão simbólica da obra.A intuição sintética é corrigida pela história dos sintomas culturais à qualcorrespon<strong>de</strong> a “compreensão da maneira pela qual, sob diferentes condições históricas,as tendências gerais e essenciais da mente humana foram expressas por temasespecíficos e conceitos”. 20 O historiador da arte terá que avaliar o que julga ser osignificado intrínseco da obra ou grupo <strong>de</strong> obras sobre as quais se <strong>de</strong>tém, baseando-senaquilo que acredita ser o significado intrínseco dos <strong>de</strong>mais documentos da civilizaçãohistoricamente correspon<strong>de</strong>nte a obra em estudo. Terá que estimar os documentos quetestemunham as tendências políticas, poéticas, religiosas, filosóficas e sociais dapersonalida<strong>de</strong>, período ou país em questão. Aí, na investigação dos significadosintrínsecos ou conteúdo as muitas disciplinas humanísticas encontram-se <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong>“servirem apenas como criadas uma das outras”. 21Em resumo, Panofsky estabelece três níveis <strong>de</strong> interpretação <strong>de</strong> três diferentestemas da obra <strong>de</strong> arte: natural, convencional e o conteúdo. Diante <strong>de</strong>ste temas distintos,o ato <strong>de</strong> interpretar também será distinto: <strong>de</strong>scrição pré-iconográfica, análiseiconográfica e interpretação iconológica respectivamente. Como tais estágios <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m<strong>de</strong> um equipamento subjetivo, e por isso mesmo é gran<strong>de</strong> a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> erro, elasserão submetidas sempre a princípios corretivos: história do estilo, história dos tipos ehistória dos sintomas culturais, todos eles unidos por nexos históricos. A soma <strong>de</strong>ssesprincípios corretivos é a tradição, é o que assegura a valida<strong>de</strong> não só do métodoiconológico mas da disciplina História da Arte. O entendimento da tradição garanteexatidão ao conhecimento da história da arte e faz <strong>de</strong>sta uma disciplina humanística enão uma ciência. 2219202122CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o Homem. Lisboa: Guimarães Editores, 1995.PANOFSKY, Erwin. Iconografia e Iconologia: uma Introdução ao Estudo do Renascimento. In:______. Significado nas Artes Visuais. São Paulo: Perspectiva, 1990, p. 63.Ibid., p. 63.Cf. PANOFSKY, Erwin. História da arte como disciplina humanística. In: Ibid.


Fênix – <strong>Revista</strong> <strong>de</strong> História e <strong>Estudos</strong> CulturaisSetembro/ Outubro/ Novembro/ Dezembro <strong>de</strong> 2010 Vol. 7 Ano VII nº 3ISSN: 1807-6971Disponível em: www.revistafenix.pro.br11O ponto <strong>de</strong> partida <strong>de</strong> Aby Warburg e ao mesmo tempo o “problema” quenorteou toda a sua reflexão foi o da influência da Antiguida<strong>de</strong> sobre o Renascimento.Autor <strong>de</strong> obras como O Renascimento do Paganismo Antigo e Arte Italiana eAstrologia Internacional do Palácio Schifanoja <strong>de</strong> Ferrara, Warburg pesquisou aadoção pelo Renascimento <strong>de</strong> certas formas da Antigüida<strong>de</strong> Clássica. Debruçou-sesobre o tipo <strong>de</strong> representação dos movimentos do corpo, do vestuário e assim por diante,nas figuras do Quattrocento florentino. Encontrando a sua origem na Antigüida<strong>de</strong>,Warburg compreen<strong>de</strong>u que o recurso ao passado não se fazia por questões <strong>de</strong> or<strong>de</strong>mformais, mas era sintoma <strong>de</strong> uma nova orientação emocional presente em toda asocieda<strong>de</strong> quatrocentista. Ao refletir sobre a assimilação pela arte e pela socieda<strong>de</strong>florentina <strong>de</strong> um <strong>de</strong>terminado tipo <strong>de</strong> representação, Warburg reformulou a próprianoção <strong>de</strong> Antigüida<strong>de</strong>. Ao invés do pathos apolíneo comumente atribuído à Antiguida<strong>de</strong>pelos historiadores, ele reconheceu o pathos dionisíaco. A Antiguida<strong>de</strong> para ele era aAntiguida<strong>de</strong> dionisíaca. Ele i<strong>de</strong>ntificou o mesmo uso da “mímica intensificada” nasrepresentações dos homens do Quattrocentos, fosse na pintura, no vestuário, nacabeleira ou na escrita, e o associou ao emprego das “fórmulas do patético”(Pathosformeln), enten<strong>de</strong>ndo tais fórmulas como “fórmulas genuinamente antigas <strong>de</strong>uma expressão física ou psíquica intensificada, ao estilo renascentista, que se esforça emrepresentar a vida em movimento”. 26 Assim, Warburg, explicou que o homem dorenascimento recorria às “fórmulas do patético” buscando romper com “os vínculosimpostos pela Ida<strong>de</strong> Média à expressão”. 27Warburg também chamou a atenção <strong>de</strong> seus contemporâneos para aimportância <strong>de</strong> documentos na época aparentemente sem importância comotestamentos, cartas amorosas, pinturas <strong>de</strong> autores obscuros, tidos até então como <strong>de</strong>interesse exclusivo dos historiadores <strong>de</strong> costumes. O estudo <strong>de</strong>stes documentos “semimportância” lhe possibilitou estabelecer maiores relações entre as representaçõesfigurativas e a mentalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma dada socieda<strong>de</strong>. Deste modo, o objetivo central <strong>de</strong>suas pesquisas foi o <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r uma <strong>de</strong>terminada situação histórica a partir <strong>de</strong> seustestemunhos figurativos e documentais. O auxílio <strong>de</strong> documentos tidos como não2627WARBURG, 1905 apud GINZBURG, Carlo. De Warburg a E. H. Gombrich: notas sobre umproblema <strong>de</strong> método. In: ______. Mitos, Emblemas e Sinais. São Paulo: Cia. das Letras, 1990, p. 44.Ibid.


Fênix – <strong>Revista</strong> <strong>de</strong> História e <strong>Estudos</strong> CulturaisSetembro/ Outubro/ Novembro/ Dezembro <strong>de</strong> 2010 Vol. 7 Ano VII nº 3ISSN: 1807-6971Disponível em: www.revistafenix.pro.br12“oficiais” foi amplamente usado por Panofsky em seu método da <strong>iconologia</strong>. Aliás,diga-se <strong>de</strong> passagem, que sem tais documentos a pesquisa iconológica não se realiza.Warburg <strong>de</strong>mosntrou que a cultura figurativa renascentista alimentou-se dasimagens recebidas da Antiguida<strong>de</strong>, ou seja, as imagens históricas. Panofsky continuouseus estudos nesta mesma direção: a <strong>de</strong>scoberta das formas da Antiguida<strong>de</strong> peloRenascimento. Juntamente com F. Saxl, outro pesquisador do Instituto Warburg, propôsa tese <strong>de</strong> que com o retorno à Antiguida<strong>de</strong> o Renascimento inaugurou a consciênciahistórica mo<strong>de</strong>rna. Comparando o surgimento <strong>de</strong>ssa consciência histórica com ainvenção da perspectiva, Panofsky propôs um paralelismo entre os acontecimentosartísticos e os históricos, estabelecendo uma relação <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência para a suacompreensão.Do mesmo modo que era impossível para a Ida<strong>de</strong> Média elaborar umsistema mo<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> perspectivas, que se baseia na conscientização <strong>de</strong>uma distância fixa entre o olho e o objeto e permite assim ao artistaconstruir imagens compreensíveis e coerentes das coisas visíveis,assim também lhe era impossível <strong>de</strong>senvolver a idéia mo<strong>de</strong>rna <strong>de</strong>história, baseada na conscientização <strong>de</strong> uma distância intelectual entreo presente e o passado que permite ao estudioso armar conceitoscompreensíveis e coerentes <strong>de</strong> períodos idos. 28Assim, ele traça o percurso da tradição oci<strong>de</strong>ntal. Esta tradição tem seu“início”, se este for o termo mais a<strong>de</strong>quado, na Antiguida<strong>de</strong> pagã, mas Panofsky nãoconsi<strong>de</strong>ra tal percurso como rupturas e sim como um processo em <strong>de</strong>senvolvimento.Desenvolvimento <strong>de</strong> uma tradição que se dá a partir da tradução e que necessariamenteimplica “traição”. Tomando sempre um quadro conceitual como referência, Panofskyprocura <strong>de</strong>limitar o contexto em que a obra foi produzida e nesta procura,inevitavelmente encontra pequenas diferenças. Diferenças resultantes da tradução quemove o processo histórico. Quando constrói o contexto, opera com a idéia <strong>de</strong> quetradição remete à tradução e em algum ponto <strong>de</strong>sta tradução haverá uma gran<strong>de</strong> traição.Logo, a tradução sempre é errada. Nesta perseguição do <strong>de</strong>senrolar da tradição, umperíodo não rompe com o imediatamente anterior para retornar a outro simplesmente.Como exemplo, seria o retorno do Renascimento à Antiguida<strong>de</strong> Clássica. Tal retorno,no sentido estrito do termo, seria impossível uma vez que a Ida<strong>de</strong> Média modificou a28PANOFSKY, Erwin. Iconografia e Iconologia: uma Introdução ao Estudo do Renascimento. In:______. Significado nas Artes Visuais. São Paulo: Perspectiva, 1991, p. 83.


Fênix – <strong>Revista</strong> <strong>de</strong> História e <strong>Estudos</strong> CulturaisSetembro/ Outubro/ Novembro/ Dezembro <strong>de</strong> 2010 Vol. 7 Ano VII nº 3ISSN: 1807-6971Disponível em: www.revistafenix.pro.br13mentalida<strong>de</strong> dos homens, uma vez que a Ida<strong>de</strong> Média traduziu a Antiguida<strong>de</strong> e emalgum momento <strong>de</strong>ssa tradução houve uma traição:Tinham (os renascentistas) <strong>de</strong> lutar por uma nova forma <strong>de</strong> expressão,estilística e graficamente diferente da clássica assim como damedieval, mas no entanto relacionada com ambas e <strong>de</strong>vedora <strong>de</strong>ambas. 29É certo que na reconstrução do processo das tradições das imagens, talprocesso po<strong>de</strong> não ter uma lógica, no sentido <strong>de</strong> uma direção constante, mas certamentetem uma or<strong>de</strong>m. 30 Uma or<strong>de</strong>m que se evi<strong>de</strong>ncia no processo <strong>de</strong> fatura da obra peloartista. Ao fazer a obra, o artista “presentifica” experiências passadas, recupera amemória. O processo <strong>de</strong> feitura da obra or<strong>de</strong>na o movimento <strong>de</strong> recuperaçãomnemônico, o movimento da imaginação, muitas vezes confuso e impreciso, e lheconfere significado. O que faz com que o artista transforme as representaçõesiconográficas <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados temas não é uma resolução <strong>de</strong>liberada e arbitrária, masum processo <strong>de</strong> imaginação resultante <strong>de</strong> experiências culturais perfeitamentei<strong>de</strong>ntificáveis. Na imaginação do artista, por exemplo do Renascimento, encontrava-se<strong>de</strong> maneira <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nada não apenas as imagens provenientes da Antiguida<strong>de</strong> Clássica,como também aquelas <strong>de</strong>correntes da sua experiência sensorial. Estas imagensconstituem um conjunto <strong>de</strong> noções que o artista, indiscriminadamente, utiliza ao fazersua obra, são instrumentos <strong>de</strong> trabalho. As representações figurativas são códigosconvencionados e, por isso, compreensíveis tanto ao artista, quanto ao espectador, poissem tais convenções a obra seria in<strong>de</strong>cifrável. A arte é concebida e atua <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> umcontexto, ou seja, <strong>de</strong> um campo cultural dado e aceito, que <strong>de</strong>ste modo concorre paramodificá-lo. Vale frisar que Panofsky pertence a uma geração que apregoará a “crise daarte”, ou seja, a “separação das ativida<strong>de</strong>s artísticas do contexto das ativida<strong>de</strong>s que,nesta condição da socieda<strong>de</strong>, produzem cultura”. 31 Por isso, a arte é pensada comocapaz <strong>de</strong> intervir no contexto cultural em que está inserida.Como arte e contexto histórico são uma via <strong>de</strong> mão dupla, é imprescindível àinterpretação iconológica a interpretação do maior número possível <strong>de</strong> imagens293031PANOFSKY, Erwin. Iconografia e Iconologia: uma Introdução ao Estudo do Renascimento. In:______. Significado nas Artes Visuais. São Paulo: Perspectiva, 1991, p. 87.ARGAN, Giulio Carlo. A História da Arte. In: ______. História da Arte como História da Cida<strong>de</strong>.São Paulo: Martins Fontes, 1992.Ibid., p. 85.


Fênix – <strong>Revista</strong> <strong>de</strong> História e <strong>Estudos</strong> CulturaisSetembro/ Outubro/ Novembro/ Dezembro <strong>de</strong> 2010 Vol. 7 Ano VII nº 3ISSN: 1807-6971Disponível em: www.revistafenix.pro.br14contemporâneas à obra em questão. Daí a importância <strong>de</strong> gravuras populares, <strong>de</strong>medalhas, moedas, ilustrações <strong>de</strong> outra or<strong>de</strong>m, enfim, coisas do gênero. O historiador daarte, durante sua pesquisa, <strong>de</strong>verá recolher o maior número possível <strong>de</strong> documentosmesmo que aparentemente não se relacionem diretamente com o tema tratado. Panofskyafirma que tais documentos proporcionarão maior conhecimento sobre a obra estudada eassim maior exatidão nas afirmativas. Longe <strong>de</strong> ser um mero “recolhedor <strong>de</strong>documentos icônicos”, o iconólogo o faz guiado por um juízo <strong>de</strong> valor. Juízo que opróprio Panofsky chamou <strong>de</strong> “síntese recriativa”. Ao apurar aquelas imagens que nãonecessariamente são imagens artísticas (ou melhor, não <strong>de</strong>vem ser somente imagensartísticas), o historiador, sintetizando todas aquelas imagens, recria a imagem artísticaque ele está interpretando. Não mencionamos acima que a <strong>iconologia</strong> não analisa e simsintetiza? No processo <strong>de</strong> interpretação da imagem visual, o historiador <strong>de</strong>compõeaquela imagem em várias imagens. Enquanto a iconografia limita-se a uma <strong>de</strong>scrição, a<strong>iconologia</strong> faz da obra uma síntese “porque reconstrói a existência prévia da imagem e<strong>de</strong>monstra a necessida<strong>de</strong> do seu renascimento naquele presente absoluto que é a obra <strong>de</strong>arte”. 32A idéia <strong>de</strong> síntese, assim como a própria <strong>iconologia</strong>, está estreitamenterelacionada à idéia <strong>de</strong> estilo <strong>de</strong> época (e <strong>de</strong> lugar). Não me parece casual o fato <strong>de</strong>Panofsky não se <strong>de</strong>dicar à arte mo<strong>de</strong>rna ou não-objetiva como ele a chamou. Ora, <strong>de</strong>s<strong>de</strong>1931 Panofsky lecionava em Nova York, em 1934, se estabeleceu <strong>de</strong>finitivamente nosEUA on<strong>de</strong> morreu em 1968, em 1939, publicou <strong>Estudos</strong> <strong>de</strong> Iconologia e sua últimaobra foi Arquitetura Gótica e Escolástica <strong>de</strong> 1957. No entanto ele nunca se <strong>de</strong>tevesobre a arte mo<strong>de</strong>rna e muito menos sobre a arte americana cujo “bum” ele testemunhoupessoalmente. Por que isso? Como pensar uma explicação para o aparente <strong>de</strong>sinteresse,se não pela impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aplicação da noção <strong>de</strong> estilo na interpretação da artemo<strong>de</strong>rna?Panofsky, assim como sua geração, pensa a arte como algo que está a serviço<strong>de</strong> um aperfeiçoamento interior do indivíduo e da cultura. A arte cumpre um programapedagógico <strong>de</strong> aperfeiçoamento <strong>de</strong> cada ser humano individualmente. Em toda obra <strong>de</strong>Panofsky, percebe-se uma certa tensão entre a discussão dos autores individuais e adiscussão dos estilos. Na arte mo<strong>de</strong>rna em diante, seria problemático estabelecer32ARGAN, Giulio Carlo. A História da Arte. In: ______. História da Arte como História da Cida<strong>de</strong>.São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 54.


Fênix – <strong>Revista</strong> <strong>de</strong> História e <strong>Estudos</strong> CulturaisSetembro/ Outubro/ Novembro/ Dezembro <strong>de</strong> 2010 Vol. 7 Ano VII nº 3ISSN: 1807-6971Disponível em: www.revistafenix.pro.br15relações entre estilo e individualida<strong>de</strong>, contexto e individualida<strong>de</strong>, justamente porqueesta estaria limitada à cultura subjetiva do seu autor. Neste sentido, o estilo – porabranger melhor o contexto – cumpre com maior eficácia aquele programa <strong>de</strong>aperfeiçoamento do indivíduo.ARQUITETURA GÓTICA E ESCOLÁSTICAArquitetura Gótica e Escolástica foi apresentado pela primeira vez em 1948no ciclo <strong>de</strong> conferências <strong>de</strong> Wimmer, na Pennsylvania. Três anos após, quandopublicado na forma <strong>de</strong> livro, novamente Panofsky se viu em meio a muitas discussõessuscitadas não apenas pelo que diz respeito à arte e filosofia medievais, mas tambémpelo método empregado. Tal texto é uma espécie <strong>de</strong> coroamento <strong>de</strong> seu método:Panofsky interpreta o significado intrínseco daquelas formas arquitetônicas, as imagens,a partir da filosofia que constitui o seu contexto:Assim, a hora e o local <strong>de</strong> nascimento dos primórdios da escolásticacoinci<strong>de</strong>m com os dos primórdios da arquitetura gótica [...]. Tantouma nova forma <strong>de</strong> pensar como o novo modo <strong>de</strong> construirdisseminaram-se a partir <strong>de</strong> uma região geograficamente circunscritanum raio <strong>de</strong> aproximadamente cento e cinquenta quilômetros em torno<strong>de</strong> Paris [...]. 33Apesar do anuncio da tese <strong>de</strong> um paralelismo temporal entre a arquiteturagótica e a filosofia escolástica logo no início do texto, ao longo da primeira seção,Panofsky “olha” muito mais para o Renascimento do que para o Gótico propriamente,operando uma separação entre duas posições que seriam antitéticas em relação a umtipo <strong>de</strong> síntese que ele irá surpreen<strong>de</strong>r na discussão do gótico e da escolástica. De umlado, aborda os nominalistas, sobretudo Guilherme <strong>de</strong> Ockham, e <strong>de</strong> outro, a mística <strong>de</strong>mestre Eckhardt. Comparando os dois pensamentos, Panofsky chama a atenção para queambos remetem a um universo muito mais “individualista”. Mais individualista,naturalmente, em relação ao período gótico escolástico. Panofsky parece afirmarnegativamente a síntese que ele mesmo propôs estabelecer: chama a atenção para umasíntese entre partes distintas para mostrar que no período seguinte tal síntese não serámais possível. Contrastando o Gótico em seu apogeu com o Renascimento, Panofsky33PANOFSKY, Erwin. Arquitetura Gótica e Escolástica. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 3.


Fênix – <strong>Revista</strong> <strong>de</strong> História e <strong>Estudos</strong> CulturaisSetembro/ Outubro/ Novembro/ Dezembro <strong>de</strong> 2010 Vol. 7 Ano VII nº 3ISSN: 1807-6971Disponível em: www.revistafenix.pro.br16compreen<strong>de</strong> tal período como uma espécie <strong>de</strong> preparação para a chegada doRenascimento.Apesar <strong>de</strong> muito distintos, a mística e o nominalismo se aproximam pela idéia<strong>de</strong> infinito. Para o místico, a sua subjetivida<strong>de</strong> individual não tem limite, pois semultiplica pelo próprio vínculo com Deus. Ela se expan<strong>de</strong> ilimitavelmente. Configuraseaí a idéia do infinito associado ao sujeito — Panofsky i<strong>de</strong>ntificará no seu estudosobre Dürer o tema do infinito e a mística alemã. Já para o homem nominalista, oobjeto, não o sujeito, se transforma em um mundo sem limite. A realida<strong>de</strong>, o mundo écomposto <strong>de</strong> inúmeras partes, infinitas partes na qual cada uma tem um sentido em simesma. Existindo por si mesmas, as partes do mundo são reunidas em um princípio <strong>de</strong>dispersão. O mundo se fragmenta e se transforma em objeto sem limite. Por caminhosdiversos, a idéia <strong>de</strong> infinito está presente em ambos: na mística, o infinito se dá emrelação ao sujeito, para o nominalismo, em relação ao objeto. Panofsky chama a atençãoque tanto um quanto outro operam com o conceito <strong>de</strong> infinitu<strong>de</strong>.Também aqui o nominalismo e a mística revelam-se como osextremos que se tocam. É fácil perceber que essas tendênciasaparentemente inconciliáveis do século XIV se interpenetram <strong>de</strong>diversas maneiras, fundindo-se finalmente, por um breve e grandiosomomento, na pintura dos gran<strong>de</strong>s flamengos e na filosofia <strong>de</strong> seuadmirador Nicolau <strong>de</strong> Cusa, falecido no mesmo ano que Rogier van<strong>de</strong>r Wey<strong>de</strong>n. 34De fato, Panofsky propõe refletir sobre a relação da arte com a filosofia num<strong>de</strong>terminado tempo e espaço, mas não per<strong>de</strong> nunca <strong>de</strong> vista o processo da tradição dasimagens, o que o faz pensar o Gótico em direção ao Renascimento.A perspectiva sintetiza o Renascimento, pois sintetiza a relação sujeito eobjeto. A perspectiva estrutura a pintura, o ponto <strong>de</strong> fuga transforma o plano pictóricoem um cubo cujo fundo é infinito. Assim, o quadro é transformado em uma janela. Aidéia da consciência da subjetivida<strong>de</strong> em oposição ao objeto expressa-se na estruturaperspéctica da pintura que tem no espaço infinito do quadro (representado pelo ponto <strong>de</strong>fuga) o inverso simetricamente oposto ao sujeito. Panofsky analisa o apogeu gótico,i<strong>de</strong>ntificando uma certa propensão para articulação com o período imediatamenteposterior, o Renascimento, que tem a regra individualista como centro <strong>de</strong> sua <strong>de</strong>finição.34PANOFSKY, Erwin. Arquitetura Gótica e Escolástica. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 13.


Fênix – <strong>Revista</strong> <strong>de</strong> História e <strong>Estudos</strong> CulturaisSetembro/ Outubro/ Novembro/ Dezembro <strong>de</strong> 2010 Vol. 7 Ano VII nº 3ISSN: 1807-6971Disponível em: www.revistafenix.pro.br17Via mística, via nominalismo, via adoção da perspectiva na pintura, Panofsky enten<strong>de</strong> oprocesso <strong>de</strong> <strong>de</strong>finição do mundo a partir da ativida<strong>de</strong> individual.Será somente a partir da segunda seção que Panofsky irá expor seu argumento:a estreita relação entre arquitetura gótica e escolástica:Em contraste com um mero <strong>de</strong>senvolvimento paralelo, trata-se [...] <strong>de</strong>uma verda<strong>de</strong>ira relação <strong>de</strong> causa e efeito, entretanto, contrariamente àinfluência individual, essa relação <strong>de</strong> causa e efeito resulta <strong>de</strong> umprocesso <strong>de</strong> difusão genérico, e não <strong>de</strong> influências diretas. Forma-se apartir do que po<strong>de</strong>ríamos <strong>de</strong>nominar [...] um hábito mental – atravésdo qual aqui compreen<strong>de</strong>mos esse surrado lugar-comum em seusentido exato, escolástico, como “princípio que rege a ação” [...]. Taishábitos mentais exercem sua ação em qualquer cultura [...]. 35Compreen<strong>de</strong>r o que gera o “hábito mental”, quais são as suas ações ei<strong>de</strong>ntificá-las nas imagens visuais só é possível com o emprego do método iconológico.Panofsky admite não ser tarefa simples “isolar <strong>de</strong> muitas outras uma força motriz capaz<strong>de</strong> moldar hábitos mentais”. 36 Mas, argumenta que num <strong>de</strong>terminado período que vai <strong>de</strong>“1130 a 1270, e numa zona <strong>de</strong> cem milhas em torno <strong>de</strong> Paris” tal tarefa é possível.Então, justifica tal recorte, explicando “o monopólio da escolástica na formaçãointelectual naquele âmbito restrito”. Panofsky <strong>de</strong>tém-se numa espécie <strong>de</strong> “apanhadohistórico” para justificar a estreita relação, naquele âmbito específico, entre arquitetura efilosofia. Com a reforma gregoriana, os mosteiros per<strong>de</strong>ram a importância e tiveram seupo<strong>de</strong>r político transferido para as catedrais góticas. Foi neste momento, precisamente,que as igrejas <strong>de</strong> capitais começaram a <strong>de</strong>senvolver uma estética própria. A catedralgótica era uma igreja urbana que envolvia uma ativida<strong>de</strong> pedagógica. Ora, ofortalecimento da pedagogia pautou-se na filosofia da escolástica, elaborando umapedagogia da luz que materializava-se na arte gótica. A estrutura arquitetônica da igreja,bem diferente da dos mosteiros, orientou-se para cima, recebendo e filtrando a luz.Tanto o Gótico quanto a Escolástica alteraram a estrutura do esclarecimento. Pelaprimeira vez no oci<strong>de</strong>nte medieval, começou-se a operar com a metáfora da luz. E aprimeira luz que efetivamente se tornou importante foi a luz da escolástica, a luz quevinha do gótico.Após apresentar o quadro <strong>de</strong> surgimento e fortalecimento político da catedralgótica, e nisso há estrita vinculação com a escolástica, Panofsky <strong>de</strong>tém-se na figura do3536PANOFSKY, Erwin. Arquitetura Gótica e Escolástica. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 14.Ibid.


Fênix – <strong>Revista</strong> <strong>de</strong> História e <strong>Estudos</strong> CulturaisSetembro/ Outubro/ Novembro/ Dezembro <strong>de</strong> 2010 Vol. 7 Ano VII nº 3ISSN: 1807-6971Disponível em: www.revistafenix.pro.br18arquiteto profissional: o arquiteto profissional [...] aprendia seu ofício <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início esupervisionava suas obras pessoalmente. Nesse processo progredia até o ponto <strong>de</strong> setornar um homem do mundo, muito viajado e com freqüência bastante letrado [...]. 37Embora ele cite alguns nomes, o arquiteto é uma figura anônima se comparado com osautores renascentistas. Tal é a gran<strong>de</strong> questão que permite o sucesso da interpretaçãoiconológica, um método profundamente ligado à noção <strong>de</strong> estilo <strong>de</strong> época. O arquitetoprofissional não se torna mais importante pela sua obra individual, ou seja, a sua obranão é associada ao seu nome. Na verda<strong>de</strong>, o mesmo ocorre com a Escolástica, o nomemais conhecido é o <strong>de</strong> Tomás <strong>de</strong> Aquino e, por ter sido seu professor, Alberto Magnum.Quando nos indagamos <strong>de</strong> que modo esse hábito mental, estimuladopela escolástica inicial e do apogeu, po<strong>de</strong> ter influenciado a arquiteturagótica, convém <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> lado o conteúdo <strong>de</strong>ssa estrutura e nosconcentrarmos, como teriam aconselhado os próprios escolásticos, emseu modus operandi. [...] o arquiteto mantinha contato estreito com osescultores, pintores <strong>de</strong> vidro, entalhadores, etc, [...] aos quaistransmitia a programação iconográfica que, por sua vez, só po<strong>de</strong>ria ser<strong>de</strong>senvolvida em estreita cooperação com um conselheiroescolástico. 38Assim ele começa a seção III, mostrando como a escolástica forneceu umprograma iconográfico à arquitetura da época:A paixão pela clareza transmitiu-se, todavia, a todos os espíritosenvolvidos em questões culturais – o que é perfeitamente natural,tendo em vista que a escolástica <strong>de</strong>tinha o monopólio da formaçãointelectual – tendo-se tornado um hábito mental. 39Panofsky já havia chamado a atenção para a idéia <strong>de</strong> hábito mental como umquadro on<strong>de</strong> se lê uma unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> espírito. É a idéia <strong>de</strong> “espírito da época” que,associada às noções <strong>de</strong> Hegel e Her<strong>de</strong>r, apresenta-se numa versão mais hermenêuticanessa análise. Aos poucos, Panofsky amplia pouco o <strong>de</strong>bate até chegar à discussão davisualida<strong>de</strong> e dos sentidos. O método da escolástica entra em todos os domínios dareflexão. Panofsky não se refere somente à substância do argumento, ele refere-se àforma, à disposição da escrita escolástica, sugerindo certa solidarieda<strong>de</strong> entre forma econteúdo no processo <strong>de</strong> reflexão escolástica. A idéia das repartições múltiplas e373839PANOFSKY, Erwin. Arquitetura Gótica e Escolástica. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 17.Ibid., p. 18.Ibid., p. 25.


Fênix – <strong>Revista</strong> <strong>de</strong> História e <strong>Estudos</strong> CulturaisSetembro/ Outubro/ Novembro/ Dezembro <strong>de</strong> 2010 Vol. 7 Ano VII nº 3ISSN: 1807-6971Disponível em: www.revistafenix.pro.br19subdivisões própria da reflexão e organização escolástica, Panofsky amplia para avisualida<strong>de</strong>.O que se observa na poesia aplica-se também às artes plásticas. Amo<strong>de</strong>rna psicologia da Gestalt recusa-se, ao contrário das doutrinas doséculo XIX e em consonância com as do século XIII, a “atribuir acapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> síntese apenas às funções superiores da mentehumana”, e realça as forças configurativas dos processos sensoriais”.A própria percepção é hoje consi<strong>de</strong>rada – cito textualmente – umaespécie <strong>de</strong> “inteligência”, que “organiza os objetos da percepçãosegundo o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> configurações simples e “boas”, no “esforço doorganismo <strong>de</strong> assimilar estímulos à sua própria estruturação”(Arnheim). Temos aí uma formulação mo<strong>de</strong>rna para o que Tomás <strong>de</strong>Aquino quis dizer quando escreveu: “Os sentidos exultam ante coisasbem proporcionadas, já que estas se lhes assemelham; pois também ossentidos são uma espécie <strong>de</strong> razão, assim como qualquer forçacognitiva”. 40Panofsky afirma que a inteligência não se dá apenas no conceito, mas tambémnos sentidos. Esse ponto é importante, pois a percepção partilha <strong>de</strong> uma mesma lógicaque a da escolástica. Ora se a percepção está organizada segundo uma mesma lógica,evi<strong>de</strong>ntemente, as artes visuais conhecerão um or<strong>de</strong>namento semelhante. Este é oargumento exposto na passagem abaixo:Não é <strong>de</strong> estranhar que um modo <strong>de</strong> pensar que consi<strong>de</strong>ravanecessário clarear a fé por meio <strong>de</strong> um apelo à razão e a razão pormeio <strong>de</strong> um apelo à capacida<strong>de</strong> imaginativa, também se sentisseobrigado a “clarear” esta última por meio <strong>de</strong> um apelo aos sentidos. 41Aí, Panofsky transfere a discussão para as artes especificamente, discorrendosobre as imagens até o ponto em que explica <strong>de</strong> vez o Gótico pela Escolástica:Como a Summa do apogeu escolástico, a catedral do apogeu góticoaspirava em primeiro lugar à “completu<strong>de</strong>”, caminhando assim pormeio da síntese e eliminação, em direção a uma solução completa e<strong>de</strong>finitiva. [...] Através <strong>de</strong> seu programa imagético, a catedral doapogeu gótico tentava representar todo o conjunto do conhecimentocristão da teologia, da moral, das ciências naturais e da história, noqual tudo tinha seu lugar certo, e sendo suprimido o que não tivesse.De modo semelhante, buscou-se na estrutura arquitetônica uma síntese<strong>de</strong> todos os motivos centrais [...]. 42Em seguida, Panofsky anuncia como a arquitetura, especificamente, seguiu alógica escolástica <strong>de</strong> organização dos elementos: “A segunda exigência que a404142PANOFSKY, Erwin. Arquitetura Gótica e Escolástica. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 27.Ibid., p. 28.Ibid., p. 31.


Fênix – <strong>Revista</strong> <strong>de</strong> História e <strong>Estudos</strong> CulturaisSetembro/ Outubro/ Novembro/ Dezembro <strong>de</strong> 2010 Vol. 7 Ano VII nº 3ISSN: 1807-6971Disponível em: www.revistafenix.pro.br20escolástica fazia ao texto, a “estruturação segundo um sistema <strong>de</strong> partes e partes daspartes homólogas”, encontra sua expressão mais viva na divisão e subdivisão uniforme<strong>de</strong> toda a edificação”. 43Panofsky inicia seu texto prometendo um paralelismo entre a arquitetura góticae a escolástica. À medida que a análise avança, percebe-se que a relação entre as duas,arquitetura e filosofia, não é propriamente <strong>de</strong> paralelismo: a filosofia dita a formaarquitetônica. Na verda<strong>de</strong>, o que Panofsky faz é analisar a arquitetura gótica a partir doseu método iconológico, ou melhor, <strong>de</strong>monstrar a aplicação do método iconológico. Talaplicação consiste no esforço <strong>de</strong> esclarecer a visualida<strong>de</strong> por referência a um conjunto<strong>de</strong> “textos”, que não necessariamente são textos escritos. Em outras palavras, Panofskyesclarece as imagens visuais, no caso a arquitetura, tomando como referência umcontexto, erudito ou social, ou outros <strong>de</strong>senhos ou pinturas. O contexto éconceitualmente traduzido na imagem visual. A aplicação do método iconológico nainterpretação da arquitetura gótica nos remete à idéia <strong>de</strong> que o sentido da visualida<strong>de</strong>encontra-se sempre fora <strong>de</strong>la. O sentido da visualida<strong>de</strong> é dado por um contexto que lhe émais amplo. Daí, a promessa inicial <strong>de</strong> paralelismo não po<strong>de</strong> ser cumprida, pois ocontexto da arte Gótica é a escolástica e não vice-versa.Diante <strong>de</strong> todas essas consi<strong>de</strong>rações, o leitor interessado po<strong>de</strong>rá sentir-se comoo doutor Watson diante das teorias filogenéticas <strong>de</strong> Sherlock Holmes: “Isso é realmentecurioso”. 44 Assim Panofsky encerra seu texto Arquitetura Gótica e Escolástica. Elecompara o historiador da arte, no caso o iconólogo, ao personagem <strong>de</strong> Conan Doyle, ofamoso <strong>de</strong>tetive inglês que por sua astúcia e perspicácia <strong>de</strong>svenda os mais intrigantesmistérios, revelando sempre a verda<strong>de</strong>. Astúcia e perspicácia são qualida<strong>de</strong>sfundamentais ao iconólogo, que não po<strong>de</strong> se amparar apenas no conhecimento erudito.Como o <strong>de</strong>tetive inglês que no final da história reconstrói a cena do crime, a partir dosindícios que ele acumulou durante a sua investigação, explicando todos os seuscomponentes, o iconólogo reconstrói a imagem que ele está interpretando, revelando aorigem e o significado <strong>de</strong> cada elemento ali presente. No processo <strong>de</strong> investigação, ohistoriador da arte constrói o contexto em que a obra está inserida e a interpreta a partir<strong>de</strong>le. Como Arquitetura Gótica e Escolástica é uma <strong>de</strong>monstração do método4344PANOFSKY, Erwin. Arquitetura Gótica e Escolástica. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 32.Ibid., p. 61.


Fênix – <strong>Revista</strong> <strong>de</strong> História e <strong>Estudos</strong> CulturaisSetembro/ Outubro/ Novembro/ Dezembro <strong>de</strong> 2010 Vol. 7 Ano VII nº 3ISSN: 1807-6971Disponível em: www.revistafenix.pro.br21iconológico, a imagem que Panofsky constrói, ao citar Sherlock Holmes para finalizar otexto, po<strong>de</strong> ser interpretada como uma “síntese recriativa” do próprio trabalho dohistoriador da arte.

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