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ESPECIAL ELEIÇÕES EUA’08<br />
Primavera | Verão 2008 02<br />
A tesouraria virtual de Obama Hillary e as mulheres "Simplex" McCain<br />
ISSN 1646-883X<br />
Nos dois lados do Atlântico:<br />
Participação política<br />
Internacionalização da<br />
língua portuguesa<br />
Encontro de escritores<br />
"Os Estados Unidos<br />
nação reinventada<br />
por Hollywood"<br />
entrevista exclusiva a<br />
Eduardo Lourenço
2<br />
<strong>Fundação</strong> <strong>Luso</strong>-<strong>Americana</strong><br />
ConseLho DireCtivo:<br />
Teodora Cardoso (Presidente)<br />
Thomas F. Stephenson<br />
Jorge Figueiredo Dias<br />
Jorge Torgal<br />
Luís Braga da Cruz<br />
Luís Valente de Oliveira<br />
Maria Gabriela Canavilhas<br />
Michael de Mello<br />
Vasco Graça Moura<br />
ConseLho exeCutivo:<br />
Rui Chancerelle de Machete (Presidente)<br />
Charles Allen Buchanan, Jr<br />
Mário Mesquita<br />
seCretário-GerAL: Fernando Durão<br />
DireCtores: Maria Idalina Salgueiro, Fátima<br />
Fonseca, Paulo Zagalo e Melo, Miguel Vaz<br />
subDireCtores: António Vicente, Rui Vallêra<br />
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responsáveL peLos serviços ADministrAtivos:<br />
Luiza Gomes<br />
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Rua do Sacramento à Lapa, 21<br />
1249-090 Lisboa | Portugal<br />
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paralelo<br />
DireCtor: Rui Chancerelle de Machete<br />
eDitorA: Sara Pina<br />
CoorDenADorA: Paula Vicente<br />
seCretAriADo DA reDACção: Cristina Cambezes<br />
e Sofia Roquete<br />
CoLAborAm neste número: António Vicente,<br />
Branca Cardoso, Carla Baptista, Carla Maia<br />
de Almeida, Clara Pinto Caldeira, Fábio Silva,<br />
Filipa Brazona, Filipa Melo, Filipa Oliveira,<br />
Filipe Vieira, Francisco Belard, Guto Ferreira,<br />
Isabel Braga, José Cutileiro, Luís Nunes,<br />
Marco Silva, Maria Elisa Domingues,<br />
Mário Ruivo, Michael Werz, Nuno Costa Santos,<br />
Onésimo Teotónio de Almeida, Rita Siza,<br />
Rui Catalão, Rui Hermenegildo Gonçalves,<br />
Rui Ochôa, Teodora Cardoso, Susana Neves,<br />
Victor K. Mendes, Victor Melo<br />
DesiGn: José Brandão | Susana Brito [Atelier B2]<br />
revisão: am edições | antónio alves martins<br />
impressão: Textype<br />
tirAGem: 3000 exemplares<br />
paralelo@flad.pt<br />
Depósito legal: 269 114/07<br />
ISSN 1646-883X<br />
© Copyright: <strong>Fundação</strong> <strong>Luso</strong>-<strong>Americana</strong><br />
para o Desenvolvimento<br />
Todos os direitos reservados<br />
Nunca se viu tão grande interesse<br />
dos cidadãos portugueses numa campanha<br />
eleitoral norte-americana<br />
Caro leitor<br />
“<br />
Too close to call” é a frase que mais temos ouvido e lido<br />
durante a cobertura noticiosa da campanha para Presidente<br />
dos Estados Unidos da América. A corrida renhida dos<br />
candidatos democratas tem gerado um enorme interesse, não só no seu<br />
país (onde a participação política e eleitoral dos cidadãos tem comprovadamente<br />
aumentado) mas também por todo o mundo. Nunca se viu<br />
tão grande interesse dos cidadãos portugueses numa campanha eleitoral<br />
norte-americana.<br />
De todo o ambiente, a campanha, as consequências para a política<br />
externa, a participação dos imigrantes portugueses, a <strong>Paralelo</strong> dá conta<br />
neste especial eleições norte-americanas – um número para guardar.<br />
Nesta edição, o apoio da <strong>Fundação</strong> ao programa do MIT, contribuindo para<br />
o desenvolvimento português na área da ciência, tecnologia e educação, e,<br />
também, ao CohITEC para criação de empresas com projectos inovadores.<br />
Além disso, o ciclo de literatura “Asas sobre a América”, que durante<br />
meses tem enchido o auditório da FLAD com espectadores ávidos de ouvir<br />
escritores portugueses a falar sobre escritores norte-americanos.<br />
De salientar, ainda, duas iniciativas da <strong>Fundação</strong>. Uma é totalmente<br />
nova: o Acordo de Mobilidade Antero de Quental que permitirá o intercâmbio<br />
de estudantes e professores da Universidade dos Açores com universidades<br />
norte-americanas. A outra reinicia-se agora, embora em termos<br />
inovadores: os programas “José Rodrigues Miguéis” (nacional) e “Alfredo<br />
Mesquita” (Região Autónoma dos Açores) para formação de jornalistas<br />
portugueses na América. sArA pinA<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008
índice<br />
EUA‘08<br />
especial<br />
06 | REVISTA DE IMPRENSA<br />
18 | A escolha do próximo<br />
Presidente norte-americano<br />
26 | O financiamento<br />
das campanhas e a internet<br />
30 | As mulheres e Hillary<br />
44 [CuLturA]<br />
Escritores portugueses<br />
falam sobre escritores<br />
norte-americanos<br />
46 | Eduardo Lourenço<br />
em entrevista<br />
50 | Jornalistas<br />
portugueses nos EUA<br />
54 | Acordo Antero de<br />
Quental: mobilidade de<br />
estudantes portugueses<br />
e americanos<br />
10 [portuGAL/euA]<br />
Entrevista ao senador<br />
luso-americano<br />
Marc Pacheco<br />
14 | A língua<br />
portuguesa no mundo<br />
tabtoons@telus.net | Caglecartoons.com<br />
CAPA<br />
especial eleições<br />
norte-americanas<br />
16 páginas<br />
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<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 3<br />
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21 | O voto português<br />
por António Vicente<br />
24 | Consequências<br />
para a União Europeia<br />
por José Cutileiro<br />
28 | A influência<br />
dos latino-americanos<br />
por Michael Werz<br />
62 | A terceira<br />
margem do rio<br />
por Mário Mesquita<br />
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4<br />
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A incerteza aumenta<br />
após as primárias democratas<br />
‘ A alternância do partido Democrata, após os oito anos<br />
do presidente George W. bush, não parece estar adquirida.<br />
terminadas as primárias com a vitória de barack obama,<br />
nada está ainda decidido. tudo está mais obscuro<br />
e enevoado.<br />
’<br />
A vantagem de obama sobre mcCain é muito<br />
pequena. A incerteza permanece.<br />
Comentários e reportagens<br />
sobre as eleições americanas<br />
pp. 6-8, 18-30 e 62-63<br />
“Não, obama não é negro, pelo<br />
menos, em Nova Iorque. Eu sou<br />
nova-iorquina. Para mim, ‘Barack is<br />
mixed, not black’”. Quem o afirma é<br />
uma habitante de Manhattan.<br />
Convicta. Talvez tenha razão, no que<br />
se refere aos meios cosmopolitas,<br />
onde existe sempre a hipótese da<br />
“terceira via”, por exemplo entre a<br />
pele branca e a negra. Na outra<br />
América, dita profunda, nas pequenas<br />
e médias cidades, no “velho Sul”, só<br />
há preto e branco. Um cidadão de<br />
etnia negra, nascido no hawai, a disputar<br />
um lugar na Casa Branca. o<br />
impensável. ou quase.<br />
o qualificativo “histórico” está<br />
muito enfraquecido pelo excessivo<br />
uso jornalístico. Banalizou-se. Por<br />
tudo e por nada, invoca-se a história<br />
com maiúscula a propósito de acontecimentos<br />
destinados a desaparecer<br />
como areia entre os dedos. Mas, apesar<br />
do desgaste da palavra, ninguém<br />
contestará, presume-se, a sua apli-<br />
cação à vitória de obama nas primárias:<br />
ele é o primeiro negro – se<br />
preferirem, mulato – a disputar a<br />
Casa Branca. Da mesma forma que<br />
hillary Clinton teria sido, se conseguisse<br />
ser nomeada, a primeira<br />
mulher a lutar pela Presidência dos<br />
Estados Unidos.<br />
olhando a história da América,<br />
desde o tempo da escravatura e da<br />
Guerra da Secessão, este é um<br />
momento de viragem, que desenvolve<br />
os combates pelos Direitos Cívicos<br />
da década de 1960. Mas também é<br />
possível observar a pré-campanha<br />
em curso na perspectiva da luta pela<br />
hegemonia republicana ou democrata.<br />
Desse ponto de vista, a vantagem<br />
que, nos finais de 2007, os observadores<br />
concediam aos democratas<br />
parece, agora, incerta e reduzida<br />
quase à distância da margem de erro<br />
de uma sondagem. A ousadia de<br />
obama e de Clinton já teve o seu<br />
preço. A campanha eleitoral (propriamente<br />
dita) começará em<br />
Setembro de 2008 com maior incerteza<br />
do que seria previsível há um ano.<br />
A alternância do Partido Democrata,<br />
após os oito anos do Presidente<br />
George W. Bush, não parece estar<br />
adquirida. Terminadas as primárias<br />
com a vitória de Barack obama,<br />
nada está ainda decidido. Tudo está<br />
mais obscuro e enevoado. mm<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008
eDitoriAL<br />
A comunidade<br />
luso-descendente<br />
nas presidenciais americanas<br />
rui ChAnCereLLe De mAChete<br />
Vive-se com grande entusiasmo nos Estados<br />
Unidos a primeira fase do processo eleitoral<br />
para a escolha do próximo Presidente.<br />
Apesar de alguns analistas conjecturarem<br />
já o que será o “Post-American World”, a<br />
América será ainda num futuro previsível<br />
o mais importante país do mundo, cujas<br />
decisões, vida política e económica para<br />
além de eventuais crises irradiam consequências<br />
sobre os restantes Estados.<br />
‘ A solidariedade entre portugueses de cá<br />
e portugueses e luso-descendentes de lá<br />
torna as eleições presidenciais americanas<br />
ainda mais relevantes para nós.<br />
’<br />
Permanecerá igualmente o palco privilegiado<br />
onde se ganha ou perde a influência<br />
e o prestígio das potências e dos políticos<br />
estrangeiros e onde se joga a sorte de múltiplas<br />
iniciativas internacionais. Daí que, o<br />
modo como se desenrola a designação do<br />
futuro Presidente e, sobretudo, a personalidade<br />
e ideias dos principais candidatos,<br />
interesse sobremaneira não apenas ao Povo<br />
americano, mas também aos outros Estados<br />
e respectivos cidadãos.<br />
Compreende-se assim que Portugal e os<br />
portugueses estejam atentos a este processo<br />
de transferência de poder e de sucessão<br />
do titular do cargo mais relevante do sistema<br />
político americano. os Estados Unidos<br />
são o líder do ocidente, o aliado preponderante<br />
da NATo, o parceiro mais importante<br />
da União Europeia. Mas são também<br />
um país que alberga uma numerosa comunidade<br />
de emigrantes lusófonos. A solidarie-<br />
dade entre portugueses de cá e portugueses<br />
e luso-descendentes de lá torna as eleições<br />
presidenciais americanas ainda mais relevantes<br />
para nós.<br />
É sabido que poucas vezes o que se promete<br />
nas campanhas eleitorais, mesmo quando<br />
há programas formais de governo, tem correspondência<br />
no que os eleitos realmente<br />
fazem uma vez em posto. Apesar disso, e<br />
particularmente na América do Norte, os<br />
candidatos são sensíveis quando governantes,<br />
e sobretudo se aspiram a uma reeleição,<br />
às opiniões e desejos dos seus eleitores e<br />
governados. A participação nas múltiplas<br />
eleições a nível federal, dos Estados federados<br />
e municipal constitui conditio sine qua non<br />
para que a nossa comunidade se torne mais<br />
visível naquele grande País. Por isso, a<br />
<strong>Fundação</strong> <strong>Luso</strong>-<strong>Americana</strong> está profundamente<br />
empenhada, há já vários anos, num<br />
programa – o “Portuguese American<br />
Citizenship Project” – que, sem quebra dos<br />
laços político-culturais com Portugal, promova<br />
a aquisição da nacionalidade americana<br />
por parte dos nossos emigrantes e incite<br />
a comunidade lusófona a participar intensamente<br />
nas eleições a todos os níveis.<br />
A FLAD, como instituição portuguesa que<br />
tem, entre os seus propósitos mais significativos,<br />
reforçar a cooperação transatlântica,<br />
desenvolve também programas<br />
específicos que facultem um conhecimento<br />
mais aprofundado do sistema político<br />
norte-americano. Com a proximidade das<br />
eleições esses esforços serão intensificados<br />
de modo a atingirem-se audiências mais<br />
vastas através do uso dos meios de comunicação<br />
social. Um melhor conhecimento<br />
facilita o reforço dos laços de amizade e<br />
cooperação.<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 5
6<br />
Os candidatos à<br />
Presidência e o Iraque<br />
(...)<br />
o quinto aniversário da invasão do Iraque deu azo a uma profusão<br />
de discursos por parte do Presidente Bush e dos candidatos democratas<br />
que esperam herdar a Casa Branca no próximo ano.<br />
Lamentavelmente, um aspecto comum a todos eles foi<br />
a incapacidade de enfrentarem as realidades – a começar<br />
pela impossibilidade de discernir qualquer caminho claro<br />
ou rápido para chegar à “vitória” prometida por Bush<br />
ou à promessa de hillary Clinton e de Barack obama de<br />
“acabar com esta guerra”.<br />
‘ [...] no iraque,<br />
os progressos alcançados<br />
podem ser rapidamente<br />
anulados.<br />
’<br />
EUA‘08<br />
especial<br />
revistA De imprensA<br />
George Bush, afirmou que, mais do que “inverter a situação no<br />
Iraque”, o aumento de tropas “abriu a porta a uma importante<br />
vitória estratégica na guerra mais geral contra o terrorismo”. Foi<br />
uma afirmação no mínimo prematura, atendendo à fragilidade<br />
dos progressos no domínio da segurança e à lentidão dos dirigentes<br />
iraquianos em estabelecer os acordos políticos necessários<br />
para estabilizar verdadeiramente o país.<br />
o Presidente pelo menos reconhece, graças à sua “dura experiência”,<br />
que, no Iraque, os progressos alcançados podem ser<br />
O charme republicano<br />
com os media<br />
(…)<br />
Ao contrário dos jornalistas que giram na órbita da senadora<br />
hillary Rodham Clinton e do senador Barack obama – que se<br />
queixam diariamente da falta de acesso aos seus candidatos –,<br />
John McCain fala diariamente com os jornalistas que estão a<br />
cobrir a sua campanha, tanto assim que este vosso blogger já<br />
ouviu mais de um jornalista dizer que gostaria que “aquele<br />
tipo que fala sem rodeios” se calasse de uma vez por todas.<br />
Mas não é inteiramente verdade que esse seja o seu desejo,<br />
pois até reconhecem que McCain faz um esforço considerável<br />
para manter satisfeito o seu bando de jornalistas habituais. E o<br />
que se passou com os poucos jornalistas americanos que seguiram<br />
o candidato republicano até Londres e Paris? John McCain<br />
respondeu às perguntas de quase todos, ainda que, para o<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008
apidamente anulados. ontem, prometeu não ordenar retira-<br />
das de tropas para além das cinco brigadas que deverão regres-<br />
sar aos Estados Unidos no Verão deste ano, “a não ser que as<br />
apartamento dilecto<br />
em Cornville, no<br />
Arizona, não muito<br />
longe de Sedona.<br />
Enquanto os jornalistas que o acompanham se dirigem<br />
para um local espectacular chamado Enchantment<br />
Resort.<br />
(…)<br />
[ Joseph Curl, correspondente principal para a Casa Branca,<br />
26 de Março de 2008 ]<br />
está em jogo para os Estados Unidos está divorciada da rea-<br />
lidade, que foi aquilo de que acusaram Bush quando este<br />
decidiu invadir o Iraque.<br />
condições no terreno e as recomendações dos nossos coman- (...)<br />
dantes” o justifiquem. Isto significa que, se Barack obama ou Barack obama e hillary Clinton propõem-se ambos retirar as<br />
hillary Clinton se tornarem presidentes, um deles passará a tropas americanas ao ritmo mais rápido que o Pentágono diz<br />
ser comandante-chefe de pelo menos 100 mil militares ame- ser possível – uma brigada por mês. Durante os cerca de 16<br />
ricanos que se encontram no Iraque. No entanto, os seus meses que levaria a retirar as tropas, imaginam conseguir<br />
discursos sugerem que a sua visão do conflito e daquilo que realizar milagrosamente todos os objectivos políticos que a<br />
Administração Bush se propôs alcançar em cinco<br />
anos, desde o estabelecimento de um governo<br />
fazer, tenha sido obrigado a esquivar-se aos insistentes jorna- estável à concordância dos países vizinhos em<br />
listas britânicos e aos mal-humorados jornalistas franceses. apoiarem esse governo. Supõem que o facto de se<br />
saber que as forças americanas iriam partir inspi-<br />
E como são os seus fins-de-semana? Depois de uma fase iniraria<br />
esses acordos. Na verdade, o mais provável é<br />
cial em que fez campanha ininterruptamente, assim que a sua<br />
que a partida das tropas levaria todas as partes a<br />
ignorarem a influência americana e a prepararemnomeação<br />
ficou garantida McCain começou a passar os fins- -se para preencher violentamente o vazio deixado<br />
-de-semana no seu pela retirada dos americanos.<br />
‘ mcCain fala diariamente<br />
com os jornalistas<br />
que estão a cobrir<br />
a sua campanha<br />
’<br />
especial<br />
EUA‘08<br />
revistA De imprensA<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 7<br />
(...)<br />
[ Editorial, 20 de Março de 2008 ]
8<br />
O sabor amargo da vitória<br />
(...)<br />
A resposta à pergunta “E se nós ganharmos?” depende, obviamente,<br />
da definição de “ganhar” no Iraque. Para mim, significa o seguinte:<br />
as tendências da situação de segurança já estabelecidas durante<br />
o aumento de tropas mantêm-se num rumo positivo, a violência<br />
diminui para níveis aceitáveis, a capacidade das forças de segurança<br />
do Iraque aumenta, e o Governo central resiste a ponto de os<br />
Estados Unidos poderem contemplar a possibilidade de reduzirem<br />
substancialmente as suas forças sem que o país caia no caos.<br />
o Governo continuará a ser fraco e corrupto e permanecerá dividido,<br />
mas pelo menos continuará a governar. Postular mais do que<br />
isto tornaria este raciocínio circular e inútil.<br />
Ironicamente, uma “vitória” neste sentido representaria enormes<br />
problemas para um Presidente democrata em Janeiro de 2009.<br />
haveria uma base positiva de segurança que apenas se deterioraria<br />
se os Estados Unidos retirassem as suas tropas demasiado depressa<br />
e, portanto, uma pressão considerável para que não fossem respeitadas<br />
as promessas de uma retirada rápida feitas durante a campanha.<br />
Se conseguimos pressupor uma vitória nestes termos, também<br />
podemos pressupor as condições necessárias para permitir uma<br />
retirada total, mas é muito difícil imaginar como é que isso<br />
poderia acontecer a não ser durante um período prolongado<br />
e, portanto, politicamente desconfortável. A grande interrogação<br />
consistirá em saber como é que os diferentes<br />
actores políticos irão interpretar o legado de tal “vitória”.<br />
No que respeita aos actores da região, uma vitória<br />
poderá ser a salvação da reputação americana, mas o<br />
momento de obter um efeito de demonstração positivo<br />
com a substituição de Saddam por um Iraque democrático<br />
já passou. A aceitação deste novo actor made-in-<br />
America pelos países árabes vizinhos virá, mas levará<br />
especial<br />
EUA‘08<br />
revistA De imprensA<br />
tempo e não será concedida de bom grado. Muito dependerá do<br />
tipo de forças residuais que os Estados Unidos entenderem manter<br />
no Iraque. Nas melhores circunstâncias, o Iraque nunca se tornará<br />
uma Alemanha, nem um Japão, nem uma Coreia do Sul, onde uma<br />
presença permanente de forças americanas passou a fazer parte da<br />
rede de segurança regional. Uma presença americana a longo prazo<br />
no Iraque, mesmo que essa presença seja pequena e discreta, pre-<br />
judicará a legitimidade do regime de Bagdade.<br />
A “vitória” que acabamos de definir encerra uma importante<br />
contradição. os Estados Unidos não podem vencer sem que o<br />
Irão vença também. Esta vitória do Irão será medida pela aquisição<br />
de pelo menos um “cliente” no Sul do Iraque sobre o qual,<br />
em última análise, exercerá muito mais influência do que os<br />
Estados Unidos. Isto reduzirá significativamente o valor da vitória,<br />
a não ser que admitamos outros acontecimentos, como, por<br />
exemplo, uma mudança de regime em Teerão ou um afastamento<br />
entre Teerão e os seus “clientes” iraquianos – duas hipóteses<br />
que não parecem ter grande probabilidade de se concretizar num<br />
futuro próximo.<br />
(...)<br />
[Francis Fukuyama vol. II, n.º4, Março-Abril de 2008]<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008
REVISTA TRIMESTRAL DE<br />
Política Externa e<br />
Assuntos Internacionais<br />
EDITADA PELO<br />
INSTITUTO PORTUGUÊS DE<br />
RELAÇÕES INTERNACIONAIS<br />
da Universidade Nova de Lisboa<br />
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RELAÇÕES<br />
INTERNACIONAIS<br />
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<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 9
10<br />
portuGAL/euA<br />
senador luso-americano<br />
Apelo à participação portuguesa<br />
na vida política americana<br />
Eleito pelo Partido Democrata, com vinte anos de experiência política no estado de Massachusetts,<br />
o senador Marc Pacheco ocupa o cargo de maior relevo atribuído a um luso-descendente.<br />
Além da representação da comunidade portuguesa, ocupa-se da legislação de questões que interessam<br />
a todos os cidadãos, desde a saúde às alterações climáticas e ao aquecimento global.<br />
A <strong>Paralelo</strong> visitou-o na State House de Boston.<br />
POR CArLA mAiA De ALmeiDA<br />
FOTOGRAFIAS Guto FerreirA<br />
O que significa para si ser senador<br />
estadual e como é que representa<br />
a comunidade portuguesa de<br />
Massachusetts?<br />
Em primeiro lugar, é uma<br />
grande honra, porque é um<br />
cargo para o qual se é eleito<br />
por sufrágio directo pelos<br />
cidadãos e porque em todo o<br />
estado de Massachusetts apenas<br />
40 pessoas o podem desempenhar.<br />
Mas também tenho a honra de ser<br />
o senador principal, eleito oficialmente,<br />
neste estado cujo legado português<br />
é tão importante.<br />
Represento uma<br />
p o p u l a ç ã o<br />
numerosa de<br />
comunidadesportug<br />
u e s a s ,<br />
responsabilidade<br />
que levo muito a sério. Desde muito jovem<br />
que mantenho ligações com a comunidade<br />
portuguesa. A minha família nunca me<br />
deixou esquecer as minhas raízes e fez-me<br />
apreciá-las. Mas represento um círculo<br />
eleitoral muito diversificado, não só em<br />
termos de etnicidade e religião, mas também<br />
em termos económicos, e isso é<br />
muito estimulante e implica uma grande<br />
satisfação pessoal.<br />
Em comparação com outros grupos, considera que<br />
é mais difícil exercer pressão política quando se<br />
trata de fazer aprovar leis destinadas a apoiar<br />
e defender a comunidade portuguesa?<br />
É verdade. Embora neste estado haja muitas<br />
pessoas de origem portuguesa com<br />
direito de voto nos Estados Unidos, não há<br />
muitos americanos de ascendência portuguesa<br />
eleitos na assembleia legislativa do<br />
Massachusetts. De certa maneira, isto deve-<br />
-se ao tipo de cidadãos que somos, enquanto<br />
americanos de ascendência portuguesa.<br />
A maioria das pessoas que tenho representado<br />
ao longo dos anos e que tenho conhecido<br />
ocupa-se, em primeiro lugar, da<br />
família e da Igreja, independentemente de<br />
há quantos anos se encontram neste país.<br />
Quando essas pessoas decidem exercer<br />
o seu direito e participar na vida política,<br />
são tão competentes como<br />
outro grupo qualquer, sobretudo<br />
a nível local. No entanto,<br />
a decisão de o fazer<br />
não é tão frequente<br />
como eu gostaria<br />
que fosse. E os<br />
membros da<br />
comunidade<br />
p o r t u g u e s a
portuGAL/euA<br />
“Quando vou a uma certa zona de boston, assim que as pessoas vêem o meu nome (“pacheco”)<br />
pronunciam-no “patchéco”, porque pensam que é um nome latino-americano […]<br />
na zona norte […] pensam que é um nome italiano”.<br />
MASSACHUSETTS: DEZ FACTOS<br />
QUE FIZERAM A DIFERENÇA<br />
• A Boston Latin School, a primeira escola pública dos EUA, foi fundada em 1635. Ali se<br />
graduaram cinco dos subscritores da Declaração de Independência: John Hancock, Samuel<br />
Adams, Benjamin Franklin, Robert Treat Paine e William Hooper.<br />
• Em 1773, é publicado em Boston um livro intitulado Poems on Various Subjects, Religious<br />
and Moral. A autora é uma adolescente negra trazida num barco de escravos e adoptada por<br />
uma família que a ensina a ler e a escrever.<br />
• “Todos os homens nascem livres e iguais”, escreve John Adams no primeiro artigo da<br />
Constituição de Massachusetts, em 1780. Dezasseis anos mais tarde, será eleito segundo<br />
Presidente dos EUA.<br />
• Em 1820, um baleeiro vindo de Nantucket é totalmente destruído por uma baleia de grande<br />
porte. O facto inspirou Herman Melville na escrita do clássico Moby Dick.<br />
• Em 1837, Mary Lyon funda a primeira universidade para raparigas do país, Mount Holyoke<br />
College. “Vai aonde mais ninguém for. Faz o que mais ninguém fizer”, eis o seu lema.<br />
• Em 1845, Henry David Thoreau constrói a sua cabana no lago Walden. Com Ralph Waldo<br />
Emerson, Emily Dickinson e outros transcendentalistas da Nova Inglaterra, o seu pensamento<br />
vive até hoje.<br />
• O primeiro congresso nacional dos Direitos das Mulheres realiza-se em Worcester, em<br />
1850.<br />
• Em Boston, Alexander Graham Bell e o seu assistente Thomas Watson demonstram aos<br />
jornalistas a invenção patenteada em 1876: o telefone.<br />
• Em 1944, nos laboratórios de Harvard e do MIT (Massachusetts Institute of Technology),<br />
cientistas trabalham em protótipos de calculadoras, abrindo caminho para a era digital.<br />
• O senador de Massachusetts J. F. Kennedy é eleito Presidente dos EUA em 1960. Em 1972,<br />
Massachusetts será o único estado do país a não votar em Nixon, preferindo o democrata<br />
John McGovern.<br />
(do livro The 101 Events that Made Massachusetts, de Christopher Kenneally, Commonwealth Editions, 2005)<br />
‘ represento uma<br />
população numerosa<br />
de comunidades<br />
portuguesas,<br />
responsabilidade<br />
que levo muito<br />
a sério.<br />
’<br />
não votam necessariamente a favor de uma<br />
pessoa com base na sua origem étnica... o<br />
que me parece ser um bom princípio.<br />
Ter um nome português trazlhe mais vantagens<br />
ou mais desvantagens no desempenho das suas<br />
funções?<br />
Bem, só lhe posso falar da minha experiência<br />
pessoal. Quando vou a uma certa<br />
zona de Boston, assim que as pessoas<br />
vêem o meu nome (“Pacheco”), pronunciam-no<br />
“Patchéco”, porque pensam que<br />
é um nome latino-americano, um nome<br />
espanhol. Mas se eu for à zona norte da<br />
cidade pensam que é um nome italiano.<br />
Portanto, as vantagens e as desvantagens<br />
são muitas, consoante a zona da cidade<br />
onde me encontro! (Ri-se.) Tive uma<br />
experiência muito real em 2001, quando<br />
decidi concorrer ao Congresso dos Estados<br />
Unidos. Passei tempos difíceis. Para o fazer,<br />
é preciso ter recursos financeiros para<br />
conseguirmos transmitir a nossa mensagem<br />
às massas. Infelizmente, este é um<br />
aspecto em que estamos bastante aquém<br />
dos outros grupos. Alguns, como os gregos<br />
ou os italianos, têm uma grande capacidade<br />
de angariação de fundos.<br />
Há centenas de estudantes portugueses a frequentar<br />
as melhores universidades americanas.<br />
Considera que eles também representam o futuro<br />
da comunidade portuguesa?<br />
Sim. Estou absolutamente convencido de que<br />
nos estabelecimentos de ensino superior da<br />
América inteira – e particularmente nos<br />
estados em que existe uma grande percentagem<br />
de luso-americanos – temos suficientes<br />
pessoas qualificadas com capacidade para<br />
ascender aos cargos mais altos e a posições<br />
de autoridade na administração pública. Está<br />
a começar a acontecer com bastante frequência.<br />
o Dr. Mello (Craig C. Mello, Prémio<br />
Nobel da Medicina em 2006, em conjunto<br />
com Andrew Z. Fire) é um exemplo disso.<br />
Sentimos muito orgulho nele. Porque uma<br />
coisa que ouvimos dizer constantemente<br />
acerca dos portugueses é que têm excelentes<br />
características e uma óptima<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 11
12<br />
portuGAL/euA<br />
‘ [...] os membros da comunidade portuguesa não votam<br />
necessariamente a favor de uma pessoa com base<br />
na sua origem étnica... o que me parece ser<br />
um bom princípio.<br />
’<br />
reputação: são trabalhadores, honestos, íntegros,<br />
constituem boas famílias – tudo valores<br />
positivos. Mas não é muito frequente,<br />
na nossa comunidade, ouvirmos louvar pessoas<br />
ligadas ao ensino superior, pessoas do<br />
campo da medicina, do campo jurídico,<br />
do campo literário...<br />
Ao mesmo tempo, não é verdade que se está a<br />
tornar cada vez mais difícil ensinar português às<br />
crianças lusoamericanas?<br />
Durante muitos anos tivemos em<br />
Massachusetts um ensino bilingue, mas<br />
os eleitores votaram a favor da sua supressão.<br />
opus-me veementemente a essa decisão,<br />
assumi publicamente uma posição<br />
contra a eliminação do ensino bilingue,<br />
mas mesmo em cidades como New<br />
Bedford, que é talvez uma das cidades com<br />
maior número de eleitores portugueses,<br />
o ensino bilingue foi suprimido.<br />
Por que é que isso aconteceu?<br />
Porque se fizeram sentir grandes pressões<br />
no sentido de se avançar para o ensino<br />
emergente, como alternativa. Em vez de<br />
haver aulas em que o ensino é ministrado<br />
em inglês e português, nos programas do<br />
ensino emergente tudo é ensinado em<br />
língua inglesa. De facto, funciona melhor<br />
para os alunos muito novos, mas quando<br />
se chega aos alunos um pouco mais velhos<br />
ou do secundário, não resulta. o problema<br />
aqui em Massachusetts, ou nos Estados<br />
Unidos, é que somos um melting pot, e tentar<br />
escolher uma língua, ou duas línguas,<br />
passa a ser um braço-de-ferro político.<br />
haverá sempre um grupo a perguntar:<br />
“Por que não a minha língua?”<br />
No que toca às últimas gerações, acha que há<br />
alguma coisa que se pode fazer para reavivar a<br />
sua identidade cultural, ou considera que terão<br />
mais benefícios quanto mais se integrarem na<br />
sociedade americana?<br />
Penso que é absolutamente fundamental<br />
para o futuro da América e de Portugal<br />
trabalharmos juntos no sentido de renovar<br />
esses laços. Estamos num mundo<br />
diferente, um mundo em que necessitamos<br />
de ser mais bem compreendidos<br />
entre os nossos concidadãos. E julgo que<br />
não há melhor maneira de promover<br />
uma maior compreensão do que permitir,<br />
através do processo educativo, que<br />
os nossos jovens participem em programas<br />
de intercâmbio, aprendam mais<br />
sobre os seus antepassados e sobre as<br />
origens das suas famílias, frequentando<br />
aulas no estrangeiro... e também recebendo<br />
aqui estudantes portugueses para<br />
frequentar aulas nos Estados Unidos.<br />
Julgo que isto representa um enorme<br />
benefício para os nossos dois países e<br />
também para os cidadãos.<br />
Desde 1993 que Marc R. Pacheco ocupa<br />
um lugar no Senado de Massachusetts.<br />
Descendente de açorianos, a educação na<br />
língua inglesa não impede que se mantenha<br />
a par das questões que interessam<br />
à comunidade portuguesa. Ilda Marques,<br />
sua assistente há muitos anos, fluente<br />
em português, espanhol e inglês, é a res-<br />
Mas será que o intercâmbio que tem havido é<br />
suficiente?<br />
Julgo que não, e a questão é precisamente<br />
essa. Massachusetts perdeu cerca de dois<br />
mil estudantes estrangeiros nos últimos<br />
dois anos, e isso equivale a uma perda<br />
de aproximadamente 63 milhões de dólares<br />
de receitas. Temos de redobrar esforços<br />
e tentar encontrar escolas do ensino<br />
superior e universidades que desejem<br />
estabelecer parcerias com os Estados<br />
Unidos, neste contexto, e vamos ter de<br />
tentar resolver eventuais problemas<br />
de burocracia. Temos de trabalhar com os<br />
líderes do Congresso e as pessoas aqui<br />
nos Estados Unidos que desejam facilitar<br />
a promoção de programas deste género<br />
e proporcionar este tipo de oportunidades<br />
aos estudantes estrangeiros que queiram<br />
vir para cá. Especialmente em<br />
Massachusetts, porque, a longo prazo,<br />
isso só nos beneficiará.<br />
ponsável pela recepção das muitas perguntas<br />
que chegam ao gabinete 312-B,<br />
na State House de Boston. Convicto de<br />
que hoje é mais fácil ser-se imigrante nos<br />
Estados Unidos da América do que há<br />
trinta anos, aguarda as próximas “eleições<br />
históricas” enquanto torce por Hillary<br />
Clinton.<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008
novo embaixador dos euA<br />
em portugal<br />
Thomas F. Stephenson é o novo embaixador<br />
dos Estados Unidos para Portugal. Até ao<br />
final do ano passado, altura em que tomou<br />
posse, foi sócio de uma empresa de capital<br />
de risco em Silicon Valley – a Sequóia<br />
Capital, dedicando-se, especialmente, a<br />
empresas de tecnologias da informação e<br />
prestação de cuidados de saúde.<br />
Natural de Wilmington, Delaware,<br />
Stephenson licenciou-se em Economia em<br />
breves<br />
Transatlânticas<br />
harvard e em Direito no Boston College,<br />
tendo completado o MBA na harvard<br />
Business School, mantendo, ainda, relações<br />
estreitas com esta universidade onde é,<br />
actualmente, membro do quadro de<br />
decuriões e da comissão executiva.<br />
Com 38 anos de experiência no sector<br />
do capital de risco e tendo pertencido a<br />
mais de uma dezena de quadros de administração<br />
de empresas públicas e privadas,<br />
Thomas F. Stephenson mudou-se para<br />
Lisboa com a sua mulher e um dos filhos<br />
apresentando credenciais ao Presidente<br />
Cavaco Silva em Fevereiro passado.<br />
“projecto regressos”<br />
em avaliação<br />
Facilitar a integração nos Açores dos cidadãos<br />
portugueses repatriados pelos Estados<br />
Unidos e estabelecer uma ligação entre o<br />
regressado e a família no país de acolhimento<br />
foram objectivos cumpridos do<br />
“Projecto Regressos”.<br />
Dois anos após a sua criação, o balanço do<br />
“Projecto Regressos”, iniciativa financiada<br />
Jorge paulus bruno, director do iAC (terceiro a contar da esquerda)<br />
ouve as explicações de João silvério, curador da FLAD.<br />
pela FLAD e pelo Governo Regional dos<br />
Açores, é positivo. As principais conclusões<br />
foram apresentadas em Abril, com a participação<br />
de Alzira Silva, da Direcção Regional<br />
das Comunidades, Charles Buchanan, da<br />
FLAD, Sam Sutter, procurador-geral do condado<br />
de Bristol (EUA) e Thomas hodgson,<br />
xerife de Bristol, entre outros.<br />
A reunião contou ainda com as participações<br />
de representantes do Centro de<br />
Assistência ao Emigrante (EUA), da Arrisca<br />
e da Novo Dia, entidades que operacionalizam<br />
o projecto no terreno.<br />
Alzira silva, James maclinchey e Charles buchanan<br />
na apresentação das conclusões do “projecto<br />
regressos” (na foto, da esquerda para a direita).<br />
Arte contemporânea<br />
em Angra do heroísmo<br />
“Corpo Intermitente”, exposição de arte<br />
contemporânea, que incluiu obras de Álvaro<br />
Lapa, Ana Jotta, Eduardo Batarda, Jorge<br />
Queiroz, José Loureiro, Miguel Branco, Rui<br />
Chafes, Rui Leitão, Rui Moreira e Rui<br />
Sanches, pôde ser visitada, durante dois<br />
meses, no Museu de Angra do heroísmo.<br />
A exposição teve como objectivo dar<br />
a conhecer a diversidade de propostas<br />
artísticas integradas na colecção da FLAD<br />
e estimular a descentralização.<br />
João Silvério, curador da FLAD, apresentou<br />
esta exposição como: “Pensada especificamente<br />
para o Museu de Angra do<br />
heroísmo. [...] o museu é como um<br />
corpo reconstruído que resguarda e projecta<br />
dentro de si um outro corpo dinâmico,<br />
multifacetado e versátil.” “Corpo<br />
Intermitente” esteve integrada num projecto<br />
da FLAD em colaboração com o<br />
Governo Regional dos Açores e do Instituto<br />
Açoriano de Cultura que incluiu a publicação<br />
de um catálogo.<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 13
14<br />
portuGAL/euA<br />
A internacionalização<br />
da língua portuguesa<br />
“Da minha língua vê-se o mar”, escreveu Vergílio Ferreira, para quem uma língua<br />
“é o lugar donde se vê o mundo e se traçam os limites do nosso pensar e sentir”.<br />
Na sede da FLAD reuniram-se representantes<br />
das embaixadas dos PALoP, Instituto<br />
Camões, CPLP, Instituto Cervantes,<br />
Ministério da Educação, Ministério dos<br />
Negócios Estrangeiros, British Council,<br />
Comissão Europeia e Parlamento Europeu,<br />
diversas universidades, Assembleia da<br />
República e outras instituições, para debater<br />
a “dimensão política da língua portuguesa<br />
e as estratégias de articulação da<br />
política cultural externa com a política de<br />
internacionalização da economia portuguesa”.<br />
Segundo a revista Ethnologue, a bíblia dos<br />
linguistas, existem cerca de sete mil idiomas<br />
no planeta. A maioria serve comunidades<br />
reduzidas e apenas 12 são usadas por cerca<br />
de 50 por cento da população mundial. “o<br />
português está no top ten, ocupando a sétima<br />
posição, com cerca de 200 milhões de falantes<br />
espalhados por oito países em quatro<br />
continentes”, afirmou Nicholas ostler, um<br />
dos oradores convidados pela FLAD para<br />
participar no encontro.<br />
A herança histórica e cultural do português<br />
coloca-o em boa posição, acima do<br />
alemão, do francês e do japonês, mas<br />
abaixo do espanhol, do russo e do bengali,<br />
para competir no futuro mercado global<br />
das línguas. No entanto, aquele especialista<br />
alertou para o facto de a glória de uma<br />
língua (como, de resto, de tudo o mais)<br />
ser transitória e só permanecer se a comunidade<br />
de origem se mantiver como centro<br />
de visibilidade e prestígio.<br />
POR CArLA bAptistA<br />
seminário de português na universidade de massachusetts – Dartmouth.<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008<br />
VICTOR K. MENDES
‘ existem cerca<br />
de sete mil idiomas<br />
no planeta. [...]<br />
“o português<br />
está no top ten,<br />
ocupando a sétima<br />
posição, com cerca<br />
de 200 milhões<br />
de falantes<br />
espalhados por<br />
oito países em quatro<br />
continentes”, afirmou<br />
nicholas ostler.<br />
’ na<br />
A difusão do português beneficia de uma<br />
forte pressão demográfica positiva do<br />
Brasil. Neste momento, por cada português<br />
existem 16,7 falantes brasileiros, o que<br />
constitui, de longe, o ratio mais favorável<br />
de todas as antigas colónias e metrópoles.<br />
No caso do espanhol, por exemplo, a proporção<br />
é de três mexicanos para cada<br />
espanhol, ou, para o inglês, de quatro<br />
americanos para cada britânico.<br />
Também é previsível um aumento do<br />
número de falantes em Angola e<br />
Moçambique, tanto por razões demográficas<br />
como de crescimento do investimento<br />
estrangeiro naqueles países.<br />
“Mas existem outras economias e respectivas<br />
línguas a considerar”, afirmou David<br />
Graddol, outro dos participantes no evento,<br />
que apresentou o cenário de um mundo em<br />
acelerada transformação. É previsível que<br />
línguas como o português, o russo e o hindi<br />
cresçam bastante após 2010, mas os maiores<br />
impactos virão dos gigantes China (o mandarim<br />
está a implantar-se fortemente como<br />
segunda língua, mesmo nos países ocidentais),<br />
Índia e do bloco dos países árabes. Entre<br />
2025 e 2050, é possível que o árabe se torne<br />
a língua mais difundida no mundo.<br />
A tendência actual também nos ensina<br />
que a riqueza material dos países de origem<br />
já não é o principal factor que contribui<br />
para o sucesso da difusão das respectivas<br />
línguas. o mais importante, disse David<br />
Graddol, é o número de pessoas que virá<br />
a reconhecer alguma utilidade em usá-las<br />
como segundo idioma.<br />
sua intervenção na FLAD, nicholas ostler falou sobre os usos políticos e económicos da língua.<br />
As línguas<br />
do passado, do presente<br />
e do futuro<br />
Dois académicos britânicos falam sobre as tendências<br />
históricas que fazem aparecer e desaparecer<br />
as línguas do mundo.<br />
“Padre, quem te trouxe a esta terra tão<br />
longe da Índia?”, terá sido a frase pronunciada<br />
num português impecável por<br />
um comandante militar persa e dirigida<br />
a um espantado frei Gaspar de São<br />
Bernardino que, em 1606, parou na região<br />
para se abastecer de água.<br />
Nicholas ostler, académico inglês com<br />
graus em Grego, Latim, Filosofia e<br />
Economia (Universidade de oxford)<br />
e um doutoramento em Linguística pelo<br />
MIT, foi um dos especialistas convidados<br />
pela FLAD para discursar sobre os usos<br />
políticos e económicos da língua, tendo<br />
apresentado este exemplo para ilustrar<br />
como o português foi usado como língua<br />
franca em vastíssimas regiões do<br />
mundo até ao século XVIII.<br />
outros casos são relatados no seu último<br />
livro, Empires of the Word: A Language History of<br />
the World, e contam uma história fascinante<br />
de como, alicerçado numa política expansionista<br />
e comercial baseada no estabelecimento<br />
de feitorias costeiras, paróquias e<br />
missões religiosas no interior, o império<br />
colonial português conseguiu a proeza de<br />
pôr todos os que pretendiam comerciar<br />
com as nações europeias (mesmo, mais<br />
tarde, com os franceses, ingleses e<br />
holandeses) a falar a língua de Camões,<br />
incluindo uma vasta população de árabes,<br />
arménios, hindus, japoneses e africanos.<br />
Já em 1551, o inglês Thomas Wyndham,<br />
viajando com o piloto António Pinteado<br />
ao longo da Costa da Guiné, descobriu<br />
que podia conversar em português com<br />
o rei do Benim, que tinha aprendido a<br />
língua em criança.<br />
Em 1600, quando o Japão recebeu o seu<br />
primeiro visitante inglês, o piloto Will<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 15<br />
RUI OCHôA
RUI OCHôA<br />
Adams, este serviu-se de um intérprete<br />
português para conseguir comunicar com<br />
o xógum Tokugawa Ieyasu.<br />
Actualmente, graças a uma política de<br />
ensino e difusão da língua a nível mundial,<br />
o inglês impôs-se como linguagem<br />
universal. A globalização do inglês foi<br />
explicada por David Graddol, linguista e<br />
autor do relatório English Next, encomendado<br />
em 2006 pelo British Council. Nele<br />
são analisadas as principais tendências<br />
económicas e demográficas que irão afectar<br />
a posição do inglês e de outras línguas<br />
ao longo do século XXI.<br />
Enquanto a expansão do português se<br />
baseou numa política de encontros face-a-<br />
-face e provocou uma rápida crioulização<br />
da língua, o inglês universalizou-se graças<br />
a um conjunto de razões demográficas,<br />
económicas, tecnológicas e políticas.<br />
Ao aumento do número de falantes, juntaram-se<br />
factores como a afirmação dos<br />
países anglo-saxónicos como os mais ricos<br />
do mundo e os fenómenos intrínsecos ao<br />
próprio movimento de globalização:<br />
maior mobilidade, tanto espacial como<br />
16<br />
David Graddol: mandarim, espanhol e árabe,<br />
competidores da “língua franca” inglesa.<br />
‘ [...] o império colonial português conseguiu a proeza<br />
de pôr todos os que pretendiam comerciar com as<br />
nações europeias [...] a falar a língua de Camões,<br />
incluindo uma vasta população de árabes, arménios,<br />
hindus, japoneses e africanos.<br />
’<br />
cultural, suportada pelas tecnologias de<br />
comunicação e a criação de redes transnacionais<br />
muito densas em vários níveis<br />
das sociedades.<br />
A fluência em inglês é consensualmente<br />
reconhecida como uma competência<br />
básica e os governos de todo o mundo<br />
têm introduzido intensivamente o ensino<br />
desta língua em níveis escolares cada vez<br />
mais básicos – neste momento, as crianças<br />
chinesas (e as portuguesas) já aprendem<br />
inglês desde o primeiro ano da escola<br />
primária.<br />
Porém, David Graddol afirma que se o<br />
inglês foi claramente a língua franca do<br />
século XX, enfrenta sérios competidores<br />
no século XXI, entre eles o mandarim, o<br />
espanhol, o árabe e o hindi-urdu.<br />
As pessoas não vão deixar de falar inglês,<br />
que já é visto como uma ferramenta de<br />
trabalho mais do que como uma língua<br />
estrangeira. os falantes nativos do idioma<br />
de Shakespeare é que podem ficar para<br />
trás se persistirem em manterem-se avessos<br />
à aprendizagem das outras línguas<br />
emergentes. Cb<br />
há potencial<br />
de crescimento<br />
para o ensino<br />
do português<br />
nos euA<br />
A promoção da língua e da cultura portuguesa<br />
nos Estados Unidos é um dos objectivos<br />
da FLAD desde 1985. Em muitos dos<br />
países – entre os quais se incluem a<br />
Espanha, a Itália, a França, a Coreia, a Grã-<br />
-Bretanha, a China, a Rússia ou o Japão –<br />
que concentram recursos consideráveis na<br />
difusão das suas línguas, existe o consenso<br />
de que as acções desenvolvidas em território<br />
norte-americano possuem um impacto<br />
e uma capacidade de irradiação muito<br />
superiores à sua base geográfica.<br />
Sendo a maior economia mundial e um<br />
país de emigrantes, os Estados Unidos<br />
oferecem um ambiente muito competitivo<br />
e qualquer estratégia ou lóbi em prol de<br />
uma língua terá de partir da comunidade<br />
local para obter sucesso. Neste sentido, a<br />
FLAD tem promovido e coordenado, desde<br />
2004, um conjunto de estudos no âmbito<br />
do seu programa “Iniciativa Língua<br />
Portuguesa”, que recolheu dados estatísticos<br />
rigorosos sobre o número de escolas<br />
americanas que ensinam português e a<br />
sua relação com as comunidades imigrantes<br />
portuguesas sediadas nessas zonas.<br />
Esse documento, pioneiro, apurou que<br />
cerca de 300 universidades americanas<br />
possuem cadeiras de Português e cerca de<br />
110 escolas secundárias públicas, situadas<br />
em seis estados (o mais relevante é a<br />
Califórnia, onde vivem 28 por cento dos<br />
luso-amer icanos, mas também<br />
Massachusetts, Rhode Island, Connecticut,<br />
Nova Jérsia, Nova Iorque e Florida são<br />
zonas que concentram uma forte emigração<br />
de origem portuguesa), oferecem este<br />
idioma como segunda língua.<br />
o relatório permitiu ainda perceber<br />
que existe um grande potencial de crescimento<br />
no número de alunos que poderão<br />
frequentar aulas de Português. Neste<br />
momento, a nível do ensino secundário,<br />
eles são à volta de 11 mil estudantes. No<br />
entanto, só na Califórnia existem cerca de<br />
79 mil pessoas com mais de cinco anos<br />
que falam português em casa, das quais<br />
quase 10 mil têm entre cinco e 17 anos<br />
de idade, ou seja, são luso-descendentes<br />
de segundas e terceiras gerações.<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008
outro dado encorajador é que<br />
o sistema escolar americano possui<br />
uma grande responsiveness, sendo<br />
bastante flexível e adaptável à<br />
diversidade cultural das comunidades<br />
locais. Em Massachusetts,<br />
por exemplo, basta um pedido<br />
formulado por 30 alunos ou<br />
encarregados de educação solicitando<br />
uma determinada cadeira<br />
de opção para o estado ser obrigado<br />
a criar a disciplina, contratar<br />
um professor e certificar a qualidade.<br />
As más notícias é que, neste<br />
momento, ainda existem poucos<br />
factores, para além de uma legítima<br />
nostalgia pela terra-mãe, que<br />
levem os luso-descendentes a querer<br />
estudar português.<br />
A FLAD tem conduzido iniciativas<br />
para levar o Colllege Board,<br />
a entidade mais credível que certifica<br />
os exames de acesso à maioria<br />
das universidades, a permitir a criação<br />
de um exame de língua portuguesa que<br />
possibilite aos estudantes liceais o acesso<br />
ao ensino superior.<br />
Estes exames são designados por Advanced<br />
Placement Courses and Exams (AP), e a<br />
sua aprovação garante a atribuição de créditos<br />
universitários existindo em cerca de<br />
19 áreas temáticas, incluindo as línguas<br />
(inglês, francês, alemão, latim, italiano,<br />
coreano e, em breve, japonês e chinês).<br />
Se o objectivo da criação desta prova for<br />
alcançado, abrem-se inúmeras oportuni-<br />
portuGAL/euA<br />
A maior concentração geográfica da comunidade luso-americana nos euA<br />
encontra-se assinalada a encarnado.<br />
‘ […] cerca de 300 universidades americanas possuem<br />
cadeiras de português e cerca de 110 escolas<br />
secundárias públicas, situadas em seis estados,<br />
oferecem este idioma como segunda língua.<br />
’<br />
A laranja, universidades onde se ensina português.<br />
dades para expandir o ensino do<br />
português. A existência de um<br />
exame de coreano, por exemplo,<br />
disponibilizada desde 1997,<br />
levou a que apenas em quatro<br />
anos o número de liceus que<br />
oferecem essa língua subisse de<br />
17 para 70.<br />
Em paralelo, a FLAD continuará<br />
a apoiar os departamentos de<br />
estudos portugueses e lusófonos<br />
em várias universidades, promovendo<br />
uma política de encontro<br />
entre académicos do mundo<br />
lusófono, bem como outras<br />
acções de menor âmbito, como<br />
o apoio a campos de férias com<br />
temáticas portuguesas e brasileiras,<br />
muito populares entre as<br />
famílias norte-americanas e que<br />
podem deixar memórias e estímulos<br />
positivos (embora dificilmente<br />
quantificáveis) nas<br />
centenas de crianças e jovens que<br />
os frequentam. Cb<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 17
18<br />
��������<br />
primárias norte-americanas:<br />
“simplex” republicano facilita<br />
escolha de mcCain<br />
Para se ser designado à Casa Branca pelos dois principais partidos,<br />
o escolhido tem de obter o apoio da maioria dos delegados que participam<br />
nos congressos dos respectivos partidos e que decorrem no Verão.<br />
A inexistência de uma recandidatura, quer<br />
por parte de George W. Bush, quer do<br />
próprio Vice-Presidente Dick Cheney, deixou<br />
campo aberto a todos os republicanos<br />
com aspirações à Casa Branca. E foi vê-los<br />
digladiarem-se à conquista da liderança,<br />
do Iowa à Florida, onde John McCain,<br />
apesar dos amargos de boca causados ao<br />
longo da jornada por Mike huckabee,<br />
finalmente se definiu como o virtual candidato<br />
republicano.<br />
Mas foram, na realidade, os candidatos<br />
democratas que emprestaram a estas primárias<br />
de 2008 um interesse e um dinamismo<br />
verdadeiramente invulgares. Em<br />
termos demográficos, não há memória<br />
recente de uma adesão tão entusiástica por<br />
parte do sector mais jovem da sociedade<br />
americana ao processo de nomeação do<br />
próximo Presidente.<br />
Milhões de votantes, acabados de registar,<br />
foram às urnas, arrastados sobretudo<br />
pelo apelo sedutor que lhe fora lançado<br />
pelo candidato Barack obama, prometendo<br />
“mudança” e semeando esperança,<br />
qual flautista de hamelin, enchendo estádios<br />
a abarrotar de gente jovem.<br />
Em resultado de toda a mobilização do<br />
campo democrata, a que também não foi<br />
alheia hillary Clinton, a taxa de participação,<br />
tradicionalmente baixa e com<br />
tendência para se agravar, alterou-se significativamente.<br />
Comparativamente às<br />
presidenciais de 2000, o New hampshire<br />
registou nestas primárias 52,5 por cento<br />
de afluência às urnas (contra 44,4),<br />
a Carolina do Sul 30,4 (contra 20,2),<br />
o Alabama 31,7 (contra 15,3), a Georgia<br />
POR FiLipe vieirA*<br />
32 (contra 17,7), sendo Nova Jérsia o caso<br />
mais paradigmático, onde uma afluência<br />
de 4,4 por cento há oito anos se transformou<br />
agora numa percentagem de 32,2<br />
por cento.<br />
Para se ser designado candidato à Casa<br />
Branca pelos dois principais partidos,<br />
o escolhido tem de obter o apoio da maioria<br />
dos delegados que participam nos<br />
congressos dos respectivos partidos e que<br />
decorrem no Verão que antecede as presidenciais,<br />
eleições aprazadas este ano para<br />
o dia 4 de Novembro. os democratas vão<br />
reunir-se de 25 a 28 de Agosto, na cidade<br />
de Denver, no Colorado, enquanto os<br />
republicanos têm o seu conclave marcado<br />
‘ não há memória recente<br />
de uma adesão tão entusiástica<br />
por parte do sector mais jovem<br />
da sociedade americana<br />
ao processo de nomeação<br />
do próximo presidente.<br />
’<br />
para as cidades gémeas de Minneapolis-<br />
-Saint Paul, no estado do Minnesota, de<br />
1 a 4 de Setembro.<br />
A escolha dos delegados resulta, por sua<br />
vez, dos chamados caucuses e das eleições<br />
primárias, que são disputadas estado a<br />
estado, num sistema de eliminatórias que<br />
acaba por afastar os candidatos com menor<br />
arcaboiço e correspondente falta de apoio<br />
popular e financeiro. Trata-se de um pro-<br />
cesso complexo que nem sempre é fácil<br />
de entender em todas as suas nuances.<br />
E se, em termos percentuais, os resultados<br />
das primárias facilmente tornam visível,<br />
a olho desarmado, um vencedor – pelo<br />
menos no que toca aos candidatos republicanos<br />
–, o facto é que, do lado dos<br />
democratas, esses números não se traduzem<br />
numa proporcionalidade directa em<br />
termos de delegados eleitos. Neste particular,<br />
o método adoptado pelo Partido<br />
Republicano é absolutamente linear.<br />
A começar pelos caucuses eleitorais, que são<br />
reuniões partidárias, geralmente realizadas<br />
em pequenas localidades, onde a votação<br />
é feita de braço no ar entre pessoas que<br />
se reúnem numa<br />
igreja, numa sala de<br />
uma qualquer asso-<br />
ciação cívica ou<br />
mesmo em casas de<br />
particulares, como<br />
foi o caso do Iowa,<br />
o estado talismã,<br />
onde todo o processo<br />
das primárias arranca,<br />
cada quatro anos.<br />
os caucuses, que tiveram<br />
lugar em mais de 15 estados e territórios<br />
sob administração americana, constituem<br />
um invulgar caso do exercício da democracia<br />
de base, que os republicanos resolvem<br />
numa única votação individual, conferindo<br />
a vitória ao candidato com maior apoio. No<br />
caso dos democratas, os votantes congregam-se<br />
em grupos de apoio aos diversos<br />
candidatos e cada um desses núcleos vota<br />
em bloco. Se não for achado de imediato<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008
LUSA / EPA STEFAN ZAKLIN<br />
um vencedor, que obtenha um mínimo de<br />
15 por cento do total dos votos, os dois<br />
grupos mais votados procuram cooptar o<br />
apoio dos que estão em minoria, num diálogo<br />
directo e, às vezes, moroso, até se<br />
encontrar um front-runner em sucessivas votações.<br />
Nos estados onde decorrem eleições primárias,<br />
que são a maioria, os republicanos<br />
adoptam o sistema the winner takes it all,<br />
o que permite ao candidato mais votado<br />
arrebatar todos os delegados em jogo<br />
naquele estado, independentemente da<br />
posição do segundo classificado, mesmo<br />
que este tenha obtido uma percentagem<br />
muito próxima da do vencedor.<br />
No que toca à escolha do seu candidato,<br />
o Partido Republicano revela, uma vez mais,<br />
o seu pragmatismo ao adoptar um processo<br />
extremamente linear para a definição do seu<br />
candidato à Casa Branca. o vencedor terá<br />
apenas de reunir sob o mesmo tecto da sala<br />
do congresso do partido 1191 delegados<br />
dispostos a indicar o seu nome, não exis-<br />
��������<br />
no princípio do ano, bill richardson, hillary Clinton, John edwards e barack obama na corrida às presidenciais. hillary e obama ainda estavam bem-dispostos.<br />
tindo, na nomenclatura republicana, a figura<br />
dos superdelegados.<br />
Entre os democratas, a divisão dos delegados<br />
começa por não corresponder, de<br />
todo, à percentagem total obtida pelos<br />
candidatos e obedece a um sistema extremamente<br />
intrincado de contagem, círculo<br />
eleitoral a círculo eleitoral, numa proporcionalidade<br />
que tem a ver com o número<br />
de inscritos em cada assembleia de voto.<br />
Caso concreto destas eleições, na Califórnia,<br />
hillary Clinton conseguiu 52 por cento<br />
dos votos e ganhou 195 delegados,<br />
enquanto o seu rival, Barack obama, obteve<br />
43 por cento, tendo-lhe sido atribuídos<br />
152 delegados. No estado da Virginia,<br />
onde obama conquistou 64 por cento do<br />
eleitorado, foram-lhe atribuídos 54 delegados<br />
contra 29 para hillary, que ficou<br />
pelos 35 por cento.<br />
A atestar a dificuldade processual está a<br />
discrepância na contagem dos delegados<br />
atribuída a obama e a hillary pelos diversos<br />
meios de comunicação social ameri-<br />
canos. A determinada altura, os números<br />
da CNN não correspondiam aos da MSNBC<br />
e estes diferiam também dos da Associated<br />
Press (AP). os dados fornecidos pela AP<br />
acabariam por revelar-se mais correctos,<br />
dado que os seus repórteres se deram ao<br />
trabalho de acompanhar localmente o<br />
processo, falando com os dirigentes partidários<br />
e, às vezes mesmo, com os próprios<br />
delegados.<br />
Para obter a nomeação, o candidato vencedor<br />
terá de receber o mandato expresso<br />
de uma maioria de 2025 delegados presentes<br />
ao congresso do Partido Democrata.<br />
os delegados eleitos são, no total, 3253.<br />
Mas há ainda os chamados “superdelegados”<br />
que não são eleitos. São figuras de<br />
proa do partido, antigos presidentes,<br />
governadores estaduais, membros do<br />
Congresso dos Estados Unidos. E a esta<br />
lista acrescem os nomes de democratas de<br />
menor notoriedade, que são escolhidos,<br />
supostamente, para garantir a diversidade<br />
étnica e regional e, nalguns casos,<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 19
LUSA / EPA JOSHUA GATES WEISBERG<br />
como retribuição por pequenos-grandes<br />
favores, que é preciso reconhecer.<br />
A existência dos “superdelegados” passa,<br />
em regra, despercebida, mas a importância<br />
destes 796 votos pode muito bem<br />
determinar um vencedor se, perante o<br />
congresso, se apresentarem dois candidatos<br />
sem uma maioria clara. Foi esse o caso<br />
do congresso democrata de 1984, ao preferir<br />
a candidatura do ex-Vice-Presidente<br />
Walter Mondale à de Gary hart.<br />
o senador hart tinha conseguido recriar<br />
junto dos media a mística e o carisma de<br />
um outro senador, igualmente jovem e<br />
ambicioso e que conquistou a Casa Branca.<br />
hart pretendia seguir as pegadas de John<br />
Kennedy, o primeiro e único Presidente<br />
católico americano, tragicamente assassinado<br />
durante o seu mandato. E a nomeação<br />
parecia estar ao alcance de Gary hart: havia<br />
ganho mais primárias e caucuses do que o<br />
20<br />
��������<br />
seu rival democrata,<br />
Walter Mondale,<br />
que obteve um<br />
maior número de<br />
delegados, ainda<br />
que insuficientes<br />
para garantir a<br />
vitória no congresso.<br />
os “superdelegados”<br />
acaba-<br />
‘ A existência dos “superdelegados”<br />
passa, em regra, despercebida,<br />
mas a importância destes 796 votos<br />
pode muito bem determinar<br />
um vencedor<br />
’<br />
ram por pôr a nomeação nas mãos de<br />
Mondale, uma decisão a que não terá sido<br />
alheio o escândalo extramatrimonial em<br />
que Gary hart se viu envolvido, com honras<br />
de fotografias de primeira página, tiradas<br />
no tombadilho de um veleiro iro-<br />
nicamente chamado Monkey Business. Mondale<br />
acabou por concorrer à Casa Branca, propondo<br />
para a sua vice-presidência Geraldine<br />
Ferraro, a primeira mulher a candidatar-se<br />
àquele cargo na história da América. Mas<br />
a candidatura Mondale-Ferraro revelou-se<br />
um autêntico fracasso frente a um carismático<br />
Ronald Reagan, que garantiu a sua<br />
permanência no cargo para um segundo<br />
mandato por uma esmagadora maioria.<br />
Mondale conseguiu apenas ganhar as eleições<br />
no Minnesota, o seu estado natal, e<br />
na capital americana, Washington, um<br />
reduto dos democratas.<br />
* Jornalista em Washington DC<br />
mcCain em campanha na Califórnia: nos estados onde decorrem eleições primárias, que são a maioria,<br />
os republicanos adoptam o sistema the winner takes it all.<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008
POR António viCente*<br />
��������<br />
A comunidade<br />
luso-americana e a política<br />
A emigração tem uma curiosa relação com o tempo<br />
– os que partem tendem a ‘parar’ o país no momento<br />
em que o deixam, e os que ficam cristalizam a imagem<br />
dos emigrantes no momento da partida; anos<br />
mais tarde, tanto uns como outros surpreendem-se<br />
quando constatam as enormes mudanças ocorridas.<br />
Uma curiosa e pouco conhecida mudança nos<br />
últimos anos tem sido o surgimento de um número<br />
cada vez maior de políticos luso-americanos com<br />
considerável sucesso na vida americana. Alguns são<br />
emigrantes, outros são filhos ou netos de emigrantes<br />
portugueses. Mas todos assumem e projectam<br />
a sua “herança” portuguesa. Ainda menos conhecida<br />
é a influência política da comunidade luso-<br />
-americana em alguns contextos específicos. Estes<br />
dados deviam talvez ser mais discutidos em Portugal<br />
não só pela importância que os Estados Unidos têm<br />
no mundo, mas também porque a comunidade<br />
luso-americana pode assumir um papel cada vez<br />
mais importante nas relações económicas e diplomáticas<br />
entre Portugal e os Estados Unidos.<br />
há quase duas décadas, a FLAD iniciou um programa<br />
específico destinado a conhecer melhor a comunidade<br />
e a apoiar projectos apresentados por<br />
associações luso-americanas. Para além do apoio a<br />
estudos académicos sobre a temática, as prioridades<br />
da <strong>Fundação</strong> têm sido a educação – bolsas universitárias<br />
a jovens luso-descendentes, ensino da língua<br />
portuguesa, apoio a estudos portugueses em universidades<br />
situadas em zonas da emigração portuguesa<br />
– e a promoção da intervenção cívica e eleitoral da<br />
comunidade. Neste último campo, a <strong>Fundação</strong> criou,<br />
em 1998, o Portuguese American Citizenship Project,<br />
um programa que actua em 16 cidades americanas<br />
com forte concentração demográfica portuguesa e<br />
que reúne líderes da comunidade, promove campanhas<br />
de naturalização e de recenseamento eleitoral e<br />
organiza debates políticos com candidatos eleitorais<br />
onde se discutem assuntos relevantes. Um dos aspectos<br />
mais inovadores do projecto foi o desenvolvimento<br />
de uma ferramenta informática que cruza de forma<br />
rápida e eficiente as bases de dados de clubes e associações<br />
luso-americanos com os dados oficiais de<br />
recenseamento e voto. Com esta informação, consegue-se<br />
compreender a força eleitoral do clube e<br />
empreender campanhas personalizadas de apelo ao<br />
voto. Assim, umas semanas antes de uma determinada<br />
eleição, os voluntários do projecto enviam centenas<br />
(por vezes milhares) de cartas personalizadas<br />
relembrando ao destinatário a eleição que se aproxima,<br />
o local onde vota e o respectivo horário. Na carta,<br />
é feito ainda um apelo à importância do voto. Uns<br />
meses mais tarde, consegue-se medir o impacto da<br />
campanha, pois nos Estados Unidos a informação<br />
sobre se uma dada pessoa se absteve ou votou é<br />
pública. Este método tem permitido constatar que,<br />
ao contrário do que se pensava, a comunidade luso-<br />
-americana tende a votar em percentagens superiores<br />
à média da dos locais onde vive. Comprova-se também<br />
que a intervenção do Portuguese American Citizenship<br />
Project permite aumentar de forma visível e consistente<br />
a taxa de participação eleitoral dos luso-americanos.<br />
Esta informação tem sido amplamente<br />
divulgada junto dos luso-americanos e dos políticos<br />
locais, o que tem constituído uma fonte de empowerment<br />
da comunidade.<br />
Mas muito antes do surgimento deste e de outros<br />
projectos semelhantes, vários luso-americanos obtinham<br />
importantes vitórias eleitorais nos Estados<br />
Unidos. Embora a comunidade luso-americana ainda<br />
não tenha gerado um candidato à Casa Branca (ao<br />
contrário da comunidade grega, com Michel Dukakis,<br />
em 1988), nos últimos anos emanaram da mesma<br />
dezenas de congressistas federais (durante a anterior<br />
legislatura havia quatro congressistas luso-americanos<br />
na Câmara de Representantes em Washington DC;<br />
actualmente, são três), representantes e senadores<br />
estaduais, membros do executivo estadual e presidentes<br />
de câmara. Muitos mantêm estreitos laços com<br />
Portugal, todos continuam intimamente ligados<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 21
22<br />
à comunidade luso-americana, até porque muitas<br />
vezes o seu cargo depende do voto desta. Em alguns<br />
momentos (como durante a crise desencadeada pelo<br />
referendo em Timor Leste em 1999), este grupo,<br />
assim como alguns políticos eleitos por zonas de<br />
forte concentração portuguesa, acabam por mostrar<br />
uma maior liderança e sensibilidade em matérias<br />
importantes para a comunidade e para Portugal.<br />
‘ Comprova-se [...] que a intervenção do<br />
portuguese American Citizenship project permite<br />
aumentar de forma visível e consistente a taxa<br />
de participação eleitoral dos luso-americanos.<br />
’<br />
Naturalmente, a força da comunidade luso-americana<br />
revela-se principalmente na política local (a nível<br />
nacional, talvez apenas a hispânica tenha um poder<br />
efectivo). Mas, como referiu o conhecido político<br />
americano, Tip o’Neill, na América “all Politics is<br />
local”. o facto de os representantes federais serem<br />
eleitos por círculos uninominais faz com que alguns<br />
congressistas precisem do voto e do apoio da comunidade<br />
luso-americana, o que em alguns assuntos<br />
específicos permite dar uma dimensão nacional a um<br />
poder local. Quando, por exemplo, a <strong>Fundação</strong> iniciou<br />
um programa de promoção do ensino da língua portuguesa<br />
nos Estados Unidos e precisou do apoio de<br />
uma iniciativa federal, pôde contar com a cooperação<br />
de alguns destes congressistas.<br />
��������<br />
imigrantes portugueses em Fall river.<br />
Como tantos outros grupos de imigração recente,<br />
a comunidade portuguesa nos Estados Unidos tende<br />
a votar mais no campo democrata. Acresce que um<br />
dos principais locais de concentração da comunidade<br />
é precisamente um dos estados mais democratas da<br />
União – Massachusetts (também conhecido entre<br />
alguns republicanos como a “People’s Republic of<br />
Massachusetts”). Embora a maior parte dos políticos<br />
de origem portuguesa pertença ao Partido Democrata,<br />
existem, no entanto, importantes excepções. Do<br />
grupo de quatro congressistas federais luso-americanos<br />
referidos anteriormente, dois eram democratas<br />
e dois republicanos.<br />
Na actual eleição presidencial não se revela possível<br />
nem mesmo particularmente útil apurar com<br />
rigor se a comunidade luso-americana está mais<br />
próxima de obama ou de hillary. Importante, sim,<br />
é constatar a cada vez mais intensa participação<br />
cívica da comunidade luso-americana e os benefícios<br />
que daí advêm para a comunidade. Como<br />
referem os materiais de campanha produzidos pelo<br />
Portuguese American Citizenship Project, na democracia<br />
americana “quem não vota, não conta” e<br />
“sem voto, sem voz”. Um outro poster, desenhado<br />
por um grupo de luso-americanos de Fall River,<br />
acaba por invocar a tal ideia da “paragem” e “avanço”<br />
do tempo, assim como a vida entre dois mundos<br />
e duas culturas – junto à imagem da bandeira<br />
americana e do Uncle Sam lê-se a frase “Vota!<br />
o Voto é a Arma do Povo”.<br />
* Subdirector da FLAD<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008<br />
RUI OCHôA
��������<br />
o voto português<br />
na América<br />
Historicamente, a comunidade luso-americana favorece os candidatos do Partido Democrata.<br />
Estas eleições primárias não constituem excepção.<br />
Nos estados de Rhode Island e de<br />
Massachusetts, para falar da Costa Leste dos<br />
EUA, os votos luso-americanos têm sido<br />
determinantes para a vitória dos democratas,<br />
tanto a nível local como nacional.<br />
o mesmo se passa noutros centros urbanos,<br />
onde é numerosa a presença dos luso-<br />
-descendentes. Refira-se Newark, no<br />
estado de Nova Jérsia, ali às portas de<br />
Manhattan. ou a Manassas, no estado da<br />
Virginia, a cerca de uma hora de distância<br />
da Casa Branca, onde se instalou a mais<br />
recente comunidade emigrante.<br />
Mas é na Costa Leste que está a parte<br />
mais visível da franja de poder partilhada<br />
pelos luso-descendentes. Foi onde Bob<br />
Correia foi recentemente eleito presidente<br />
da Câmara de Fall River, numa corrida que<br />
envolveu outro luso-americano: Alfredo<br />
Alves, antigo vereador daquela edilidade.<br />
Alves é, aliás, uma excepção no que toca<br />
à generalidade das escolhas feitas nestas<br />
presidenciais, já que o seu voto está reservado<br />
para o senador republicano John<br />
McCain, porque “McCain representa estabilidade<br />
e, numa altura de guerra como<br />
POR FiLipe vieirA*<br />
a que vivemos, não podemos estar a brincar<br />
à presidência”. Apesar desta sua argumentação,<br />
Alfredo Alves faz, porém,<br />
questão em sublinhar que a sua intenção<br />
de voto poderá mudar, daqui até<br />
Novembro!<br />
observador atento ao que se passa nos<br />
estados da Nova Inglaterra, é director do<br />
Portuguese Times, uma das mais antigas publicações<br />
em língua portuguesa na América.<br />
Manuel Adelino Ferreira apoia a candidatura<br />
da senadora hillary Clinton e não o<br />
esconde. Disse-o publicamente, num seu<br />
programa de televisão que vai para o ar<br />
todos os sábados à noite no Portuguese<br />
Channel, um canal local dirigido à comunidade.<br />
Adelino Ferreira recordou à <strong>Paralelo</strong><br />
ter “manifestado desde logo a sua simpatia<br />
pela senadora Clinton, dado que a acha a<br />
mais experiente, porque é uma figura de<br />
mais prestígio, capaz de restaurar a imagem<br />
dos EUA, muito abalada pela Administração<br />
Bush, a nível nacional e internacional”.<br />
E é preciso não esquecer a Califórnia,<br />
onde os luso-americanos detêm já uma<br />
apreciável fatia do poder no plano regio-<br />
Alfredo Alves João Luís de medeiros<br />
manuel Adelino Ferreira<br />
nal, incluindo ao nível do Senado estadual,<br />
em Sacramento, a capital.<br />
João Luís de Medeiros, um açoriano que<br />
vive em Rancho Mirage, na Califórnia,<br />
é um indefectível apoiante da campanha<br />
de Barack obama, político que, na sua opinião,<br />
“aparece em cena como uma das mais<br />
credíveis apostas presidenciais do século<br />
XXI, um político que veio de baixo para<br />
cima no panorama nacional, à revelia dos<br />
patrões do aparelho do Partido Democrata”.<br />
Para Medeiros, que, nos anos 70, foi deputado<br />
à Assembleia Regional dos Açores e à<br />
Assembleia da República (PS) “ao contrário<br />
de hillary Clinton, obama não se apresenta<br />
como servo ‘noblesse oblige’ da renovação na<br />
continuidade. o seu carisma tem sido testado<br />
e consolidado pela maciça adesão popular<br />
à sua candidatura”.<br />
John Bento, arquitecto com ateliê na<br />
Califórnia do Sul, preside ao PALCUS, a associação<br />
para a defesa dos interesses da comunidade<br />
portuguesa nos Estados Unidos,<br />
sediada em Washington. Em declarações à<br />
<strong>Paralelo</strong>, Bento não manifestou a sua intenção<br />
de voto, mas admitiu “que John McCain<br />
não terá muitas hipóteses de vencer, porque<br />
qualquer candidato que esteja associado ao<br />
actual Presidente Bush irá ter uma grande<br />
dificuldade em ganhar a Casa Branca”.<br />
Comentou, por outro lado, estar surpreendido<br />
pela forma como o senador Barack<br />
obama conseguiu arrancar de uma situação<br />
de quase total anonimato e assumir a liderança.<br />
“À partida, esperaria que quem quer<br />
que fosse competir com hillary Clinton<br />
acabasse esmagado, o que não aconteceu<br />
com obama”, disse John Bento.<br />
* Jornalista em Washington DC<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 23
POR José CutiLeiro*<br />
24<br />
��������<br />
As eleições<br />
presidenciais americanas<br />
e a União Europeia<br />
Em 1995, numa conversa no State Department com<br />
o subsecretário de Estado Peter Tarnoff, em que discutíamos<br />
problemas de defesa europeia, eu disse a<br />
certa altura:<br />
“A Europa é um lugar complicado...”<br />
“Eu sei”, respondeu Tarnoff. “É por isso que nós<br />
estamos aqui.”<br />
‘ economicamente, não há dois blocos no mundo<br />
com relações mais estreitas do que a união<br />
europeia e os estados unidos.<br />
’<br />
Lembro-me muitas vezes deste esclarecimento.<br />
Embora adoptando e venerando valores europeus,<br />
os Estados Unidos nasceram e cresceram convencidos<br />
de terem deitado para trás das costas as zaragatas<br />
históricas do Velho Continente. o século XX<br />
veio dar emenda realista a essa convicção ingénua:<br />
estão com efeito do outro lado do mar mas, na<br />
Primeira Grande Guerra, na Segunda Grande Guerra<br />
e na Guerra Fria tiveram de passar para este lado<br />
para ajudarem a pôr a Europa – e o resto do mundo –<br />
em ordem. Das duas primeiras vezes com custos<br />
penosos que os cemitérios militares da Flandres e<br />
da Normandia atestam. (Conta-se que quando<br />
De Gaulle, em 1966, retirou a França da estrutura<br />
militar integrada da NATo e a organização se<br />
mudou para a Bélgica, Lyndon Johnson lhe mandou<br />
perguntar se queria que os americanos levassem<br />
também as sepulturas). Quando, em 1995,<br />
Tarnoff marcava a diferença entre a Europa e os<br />
Estados Unidos, fazia-o durante uma conversa sobre<br />
a partilha de encargos da nossa defesa comum.<br />
hoje, num mundo em constante e desordenada<br />
mutação, com as chamadas potências emergentes<br />
a crescerem como bambus, a olhos vistos, europeus<br />
e americanos continuam detentores de património<br />
de valores e interesses, defendido e promovido por<br />
laços militares, comerciais e financeiros e por esforços<br />
na protecção e disseminação dos Direitos do<br />
homem e de decência cívica e política. os laços<br />
transatlânticos são fortíssimos.<br />
Militarmente, a NATo – a mais poderosa aliança<br />
do mundo – aumentou o âmbito da sua acção desde<br />
o colapso da União Soviética: juntou à protecção<br />
que nos dava contra a guerra, aptidão para exportar<br />
paz. Continua não só a assegurar a defesa territorial<br />
dos seus Estados-membros mas também,<br />
de vez em quando com debate interno muito duro,<br />
a ir-lhes proteger interesses materiais ou morais<br />
onde for preciso: Kosovo, Afeganistão, Mediterrâneo,<br />
são as missões em curso. Dada como morta várias<br />
vezes desde o fim da Guerra Fria, por várias vezes<br />
tem vindo a mostrar que está viva e sã.<br />
Economicamente, não há dois blocos no mundo<br />
com relações mais estreitas do que a União Europeia<br />
e os Estados Unidos; na realidade, trocas comerciais<br />
e investimentos cruzados dão ao conjunto dos dois<br />
uma força incomparável e ilustram o benefício da<br />
associação, sobretudo agora que a concorrência<br />
exterior de outros blocos – Japão, China, Índia,<br />
Rússia, Brasil – é mais poderosa e acesa do que<br />
alguma vez foi. Na Europa, espíritos tão isentos<br />
quanto o de Jacques Delors, que recomenda também<br />
maior cooperação transatlântica em defesa e segurança,<br />
dão-se conta disso: Édouard Balladur escreve<br />
sobre as vantagens de uma comunidade atlântica<br />
– e Nicolas Sarkozy aproximou a França dos Estados<br />
Unidos de maneira inédita, pelo menos desde o<br />
regresso de De Gaulle ao poder em 1958.<br />
Por outro lado, nos Estados Unidos há quem<br />
sugira que o país vive um momento palmerstoniano<br />
(Lord Palmerston, estadista inglês do século XIX,<br />
disse que a Inglaterra não tinha amigos nem inimigos<br />
permanentes – tinha interesses permanentes)<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008
LUSA / EPA MICHAL CZERWONKA<br />
no qual, por divergência de interesses – por exemplo,<br />
falta de empenho em capacidade militar dos<br />
europeus –, a centralidade da Europa será mais<br />
fraca na política externa norte-americana durante<br />
o(s) mandato(s) do 44.° Presidente americano do<br />
que foi na segunda metade do século XX. Não<br />
tenho a certeza. Se por “centralidade” se entender<br />
a prioridade imposta pela situação geográfica da<br />
Europa durante a Guerra Fria, com certeza que esta<br />
já desapareceu. Se, porém, “centralidade” tiver a<br />
ver com um conjunto de valores e interesses que<br />
aproxima os dois lados do Atlântico mais do que<br />
aproxima qualquer deles de qualquer outro centro<br />
de poder no mundo multipolar que se avizinha,<br />
o laço transatlântico continuará a ser central na<br />
política externa dos Estados Unidos – e a exigir<br />
mais da Europa na partilha dos encargos de defesa<br />
e segurança.<br />
Seja John McCain, Barack obama ou hillary<br />
Clinton o 44.° Presidente dos Estados Unidos, a<br />
sua política externa não poderá afastar-se muito da<br />
de George W. Bush. As sementes de muito do que<br />
Bush fez, incluindo a invasão do Iraque, tinham<br />
sido deitadas por Clinton; outras há mais tempo<br />
ainda e os interesses americanos permanecem. Mas<br />
mudará com certeza a maneira de fazer. Washington<br />
terá um discurso mais racional e compreensivo das<br />
posições de outros, o que trará uma lufada de ar<br />
fresco e ajudará a tentar resolver algumas questões<br />
pendentes. o próximo Presidente americano chegará<br />
com parti pris favorável só por não ser George<br />
W. Bush, que acumulou demasiados erros de política<br />
externa (e de política interna com implicações<br />
��������<br />
externas), sobretudo no decurso do primeiro mandato.<br />
No segundo, o bom senso de vez em quando<br />
veio ao de cima e, do lado de cá do Atlântico, entre<br />
os Estados-membros da União Europeia houve<br />
alternâncias políticas favoráveis a Washington.<br />
Assim, no fim de Janeiro do ano que vem, o<br />
homem ou a mulher<br />
do oval office<br />
estará em condições<br />
de repor as<br />
relações transatlânticas<br />
na calha<br />
de onde George<br />
W. Bush parecia<br />
quase a fazê-las saltar<br />
– que é o que<br />
os europeus também querem. Sem esquecermos,<br />
nem nós nem eles, que eles estão do lado de lá<br />
porque nós somos como somos, acudiremos todos<br />
(outra vez Palmerston...) aos interesses permanentes<br />
que nos unem.<br />
Entretanto, a campanha eleitoral americana tem<br />
mostrado tal intensidade de vida política, tal<br />
riqueza de participação, tal entusiasmo e cogitação<br />
quanto ao futuro do país, tal alegria, que a imagem<br />
dos Estados Unidos na Europa e no mundo começa<br />
a pouco e pouco a sair do buraco negro onde<br />
entrara. E, se se comparar tudo isso com a eleição<br />
que levou Medvedev ao Kremlin, percebe-se, mais<br />
uma vez, a sorte grande que foi a Guerra Fria ter<br />
sido ganha por este lado.<br />
* Embaixador<br />
Dia de votação em Circleville, ohio.<br />
‘ Com as presidenciais, a imagem<br />
dos estados unidos na europa<br />
e no mundo começa a sair<br />
do buraco negro onde entrara.<br />
’<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 25
26<br />
��������<br />
obama combate hillary<br />
com tesouraria virtual<br />
A sua história está a ser escrita a cada ciclo<br />
noticioso, que há muito deixou de ser de<br />
vinte e quatro horas e cuja memória se<br />
transferiu das primeiras páginas dos jornais<br />
e dos telejornais para passar a assumir<br />
a perenidade fugaz dessa ardósia virtual<br />
que é a internet. As campanhas estão cientes<br />
disso mesmo e simulam, assim, a pose<br />
que julgam mais adequada para o combate<br />
eleitoral. os comícios populares são<br />
ainda a arena final, a prova real para o<br />
frente-a-frente entre os candidatos e os<br />
eleitores.<br />
Mas a nova realidade mediática é mais<br />
complexa do que nunca. Esta campanha<br />
começa por fazer história pelo simples<br />
facto de colocar, pela primeira vez, na<br />
corrida à Casa Branca um candidato negro<br />
e uma mulher. De uma assentada,<br />
a América confronta-se com dois desafios<br />
na aceitação social de si própria: Barack<br />
obama, o senador do Illinois, filho de um<br />
queniano e de uma americana branca; e<br />
hillary Clinton, a mais combativa de todas<br />
as ex-primeiras-damas. Ambos conquistaram<br />
facilmente o centro das atenções, que<br />
dividem o país e a unidade do próprio<br />
Partido Democrata. o senador John<br />
McCain, já definido como o candidato do<br />
Partido Republicano, acabou por ser<br />
empurrado para os destaques menores,<br />
esperando o seu dia ao sol.<br />
hillary Clinton começou por ser vista<br />
como a vencedora inevitável da nomeação<br />
democrata. Essa era a dinâmica decorrente<br />
do reconhecimento dado ao seu nome,<br />
reforçada pela influência que Bill Clinton<br />
tem na máquina partidária. habilmente e<br />
desde o início, os Clinton garantiram o<br />
apoio financeiro e o dos principais apoiantes<br />
do Partido Democrata, esgotando, em<br />
primeira análise, o acesso àquelas fontes<br />
por parte de novos candidatos.<br />
Barack obama arrancou para a sua campanha<br />
com conhecimento de que os Clinton<br />
Estas eleições estão a mudar a face política da América.<br />
POR FiLipe vieirA*<br />
consumiram, de facto, todo o “oxigénio<br />
financeiro” à volta de novos concorrentes<br />
e que seria necessário encontrar outros<br />
meios de sustentação. Já em 2004, a campanha<br />
do ex-governador pelo estado de<br />
Vermont, howard Dean, havia demonstrado<br />
a utilidade da internet na angariação de<br />
fundos a partir de pequenos doadores anónimos.<br />
obama agarrou nessa ideia e expandiu-a<br />
para a transformar num instrumento<br />
que utilizasse as tecnologias on-line para<br />
organizar a sua campanha ao nível comunitário.<br />
Na prática, o senador pretendia usar<br />
a internet para fazer uma campanha de<br />
porta-a-porta virtual, em tudo semelhante<br />
às que efectuou enquanto activista comunitário<br />
nos bairros pobres de Chicago, nos<br />
primórdios da sua carreira política. Para isso<br />
contou com o apoio de diversos gurus da<br />
informática, como foi o caso do criador do<br />
famoso site “FaceBook”, um dos mais populares<br />
pontos de encontro de toda a net.<br />
“Barackobama.com” tem sido o portal<br />
usado para gerir toda a sua campanha, um<br />
endereço afectuosamente conhecido entre<br />
os militantes como “MyBo”.<br />
A angariação de fundos tem sido um<br />
êxito absoluto. Só em Fevereiro, obama<br />
angariou 55 milhões de dólares, contra<br />
os 35 milhões que hillary arrecadou utilizando<br />
os métodos tradicionais. Naquele<br />
mesmo mês, no site de obama mais de<br />
385 mil doadores individuais ultrapassou,<br />
pela primeira vez, a marca de um milhão<br />
de dólares em dinheiro canalizado via<br />
internet.<br />
A par da angariação de fundos, a campanha<br />
de obama criou uma enorme e complexa<br />
comunidade on-line que, nalguns estados,<br />
mantém em contacto permanente e instantâneo<br />
mais de 100 mil apoiantes. Isso permite<br />
a mobilização das bases, quarteirão a<br />
quarteirão, bairro a bairro, cidade a cidade,<br />
estado a estado, numa reinterpretação benigna<br />
do poder popular à dimensão continental<br />
da América. Não é, pois, de estranhar<br />
que a sua campanha seja considerada a<br />
melhor em termos de coordenação e administração<br />
durante estas primárias.<br />
Ainda que utilizando a internet, hillary<br />
Clinton recorre com frequência aos media<br />
mais convencionais. E a sua organização,<br />
em geral, tem revelado muitos pontos<br />
fracos no que toca à mera gestão, que se<br />
revelou convulsiva com o despedimento<br />
e substituição da sua principal coordenadora,<br />
para não falar de um episódio verbal<br />
entre os dois principais estrategos trocando<br />
insultos ao telefone numa chuva de “efes”<br />
‘ A par da angariação de fundos, a campanha de obama<br />
criou uma enorme e complexa comunidade on-line que,<br />
nalguns estados, mantém em contacto permanente<br />
e instantâneo mais de 100 mil apoiantes.<br />
’<br />
que serviu para gáudio dos tablóides.<br />
ocorre falar também na decerto não<br />
menos importante súbita falta de fundos,<br />
que obrigou a candidata a fazer um auto-<br />
-empréstimo de cinco milhões de dólares<br />
– até que novo fluxo de dinheiro fosse<br />
injectado pelos doadores –, e pôs a nu<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008
��������<br />
barack obama discursa em plainfield, indiana. A sua campanha é considerada a melhor em termos de coordenação e administração.<br />
gastos sumptuários, uns, e aparentemente<br />
desnecessários, outros.<br />
As vitórias de hillary no ohio, no Texas<br />
e em Rhode Island, depois de 12 derrotas<br />
consecutivas frente a obama, serviram de<br />
lenitivo e permitiram-lhe relançar a campanha.<br />
A notável habilidade política dos<br />
Clinton transformou aquela super-terça-<br />
-feira num fulminante contra-ataque que<br />
deixou sem fôlego a campanha de obama,<br />
um obama subitamente abandonado pelos<br />
media, agora seduzidos por esta nova versão<br />
no feminino do comeback kid.<br />
hillary contou, desde o início, com o<br />
apoio das figuras institucionais do Partido<br />
Democrata (incluindo os “superdelegados”)<br />
e, ao contrário de Al Gore, não enjeitou o<br />
apoio expresso do antigo Presidente Bill<br />
Clinton. A presença do seu ex-marido tem<br />
sido, nalguns casos, uma bênção política,<br />
e, noutros, quase uma maldição. os seus<br />
adversários chegaram mesmo a designar a<br />
candidata por “Billary”, numa maldosa simbiose<br />
dos seus nomes. Bill Clinton, que<br />
começou por vender as virtualidades da sua<br />
presidência como razão para votar na<br />
mulher, mudou várias vezes o tom do seu<br />
discurso para se adaptar a ventos e marés,<br />
sem conseguir verdadeiramente achar-se<br />
neste seu novo papel secundário.<br />
À sombra destas primeiras figuras, o candidato<br />
republicano John McCain viu, de<br />
certo modo, diminuído o seu protagonismo<br />
nestas primárias para as presidenciais de<br />
Novembro. E o feito de McCain não foi<br />
coisa pouca. Perante múltiplos candidatos<br />
republicanos com os cofres cheios (caso de<br />
Mitt Romney) e com um inegável carisma<br />
(caso de Mike huckabee), McCain pôs à<br />
prova, uma vez mais, a sua capacidade de<br />
sobrevivência. Prisioneiro de guerra no<br />
Vietname, aquele senador esteve cinco anos<br />
detido na famigerada prisão vietcongue<br />
ironicamente conhecida como “Saigon<br />
hilton”, onde lhe partiram os dois braços,<br />
de tal forma que ainda hoje não os consegue<br />
sequer levantar para se pentear.<br />
Também no que toca a estas eleições,<br />
McCain parece ter renascido das cinzas<br />
quando a sua campanha, antes da votação<br />
de New hampshire, se viu reduzida a 40<br />
mil dólares dos três milhões que o senador<br />
havia pedido emprestados ao seu seguro<br />
de vida, no início da corrida. os fundos<br />
eram tão esparsos, que um dos administradores<br />
da campanha, numa determinada<br />
altura, trocou o voo do candidato de uma<br />
companhia para outra para poder poupar<br />
uns trocados... Já em 2000, McCain havia<br />
adoptado o autocarro como a forma ideal<br />
de fazer campanha, baptizando-o de Straight<br />
Talk, o que se pode traduzir por “sem papas<br />
na língua”. E McCain cultiva essa imagem<br />
de linguagem directa com o eleitorado e,<br />
sobretudo, com os jornalistas que com ele<br />
viajam no autocarro o dia inteiro, com<br />
acesso permanente ao candidato. McCain,<br />
que sobreviveu a uma das mais mortíferas<br />
formas de cancro da pele (melanoma), tem<br />
uma personalidade a um tempo jovial e<br />
abrasiva e a sua relação aberta com os<br />
repórteres já lhe valeu ser considerado um<br />
media darling, o que terá decididamente<br />
mudado com o surgimento de uma outra<br />
estrela no firmamento político: Barack<br />
obama.<br />
* Jornalista em Washington DC<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 27<br />
LUSA / EPA STEVE C. MITCHELL
POR miChAeL Werz*<br />
28<br />
��������<br />
“Viva La Raza!”<br />
Como as eleições hispanizam a América<br />
É um dado adquirido que nas eleições se decide<br />
uma orientação para o futuro de uma sociedade.<br />
Mas nos EUA iniciou-se, em vez disso, e para espanto<br />
de muitos americanos, uma intensa discussão sobre<br />
a actualidade. Pela primeira vez na história americana<br />
as eleições não vão ser disputadas entre dois<br />
homens brancos. E o mais interessante é que as tradições<br />
dos fluxos migratórios e as alterações nas<br />
relações raciais se tornaram o centro do concurso<br />
das decisões políticas, sendo o peso dos latino-<br />
-americanos decisivo na corrida à Presidência.<br />
Foi isto mesmo que John Kerry provou quando<br />
há poucas semanas, após uma viagem ao Afeganistão,<br />
em vez de regressar a Washington, voou directamente<br />
para Del Rio, Texas, para apoiar Barack<br />
obama nestas eleições. Del Rio, o limite sul dos<br />
EUA, é o verdadeiro<br />
Sul. o número de<br />
habitantes ronda os<br />
36 mil, dos quais<br />
mais de 80 por cento<br />
são hispânicos e 17<br />
por cento são brancos.<br />
Em poucos minutos<br />
chega-se a pé ao<br />
rio Bravo. Na outra<br />
margem, situa-se a<br />
cidade-irmã mexicana,<br />
a Ciudad Acuña.<br />
Não admira, por isso,<br />
que John Kerry, já no palco, perguntasse, num tom<br />
meio irónico, onde é que se encontrava. o Sul do<br />
Texas dista tanto de Boston como Copenhaga de<br />
Faro e, ainda assim, esta região fronteiriça encontra-se<br />
no centro político dos EUA.<br />
A disputa das eleições primárias que este ano se<br />
realizam cedo tem sido bastante renhida e, pela<br />
primeira vez, as minorias de origem hispânica têm<br />
uma grande influência na nomeação. Dois terços<br />
dos hispânicos vivem no Texas, na Florida e na<br />
Califórnia, estados que nos anos 80 não tinham<br />
nenhuma relevância política porque as eleições<br />
primárias só começavam quando a corrida às urnas<br />
já estava decidida. Por isso, este ano os candidatos<br />
democratas precisaram de encontrar novas ideias,<br />
de forma a conquistarem a participação do eleitorado<br />
daquela que é a primeira minoria do país,<br />
com mais de 40 milhões de membros.<br />
No entanto, há que salientar que entre a Califórnia<br />
e o Texas, dois estados com mais de 40 por cento<br />
de população hispânica, existem enormes diferenças.<br />
Basta recuar à fundação do estado do Texas, em<br />
Dezembro de 1845, quando a região ainda pertencia<br />
ao México, para relembrar a história da ocupação<br />
dos hispânicos. A expressão “não fomos nós<br />
que atravessámos as fronteiras, foram elas que nos<br />
atravessaram a nós”, não é de maneira nenhuma<br />
uma mera piada política. No Texas, os hispânicos<br />
vêem-se a si próprios no centro e não à margem<br />
da sociedade. Na Califórnia, pelo contrário, existem<br />
‘ As minorias de origem hispânica<br />
têm uma grande influência na nomeação.<br />
Dois terços dos hispânicos vivem no texas,<br />
na Florida e na Califórnia.<br />
’<br />
muitos imigrantes de primeira e segunda geração<br />
provenientes do México.<br />
Barack obama utilizou, por isso, estratégias completamente<br />
diferentes para se dirigir a estes dois<br />
grupos distintos. Na Califórnia, nos preparativos<br />
das eleições primárias a 5 de Fevereiro, lembrou o<br />
seu pai queniano, e num comício realizado na parte<br />
oriental de Los Angeles afirmou: “o meu pai não<br />
aparentava ter vindo [da Europa] no Mayflower para<br />
a América.” Este discurso sobre a viagem é muito<br />
útil no Sul californiano mas não no Texas, onde<br />
mais de metade dos hispânicos se vêem como ‘brancos’<br />
e olham para obama percepcionando-o provavelmente<br />
mais negro do que ele é.<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008
‘ A melodia e o ritmo<br />
da campanha eleitoral<br />
de hillary Clinton<br />
são claramente<br />
hispanizados.<br />
’<br />
Para além disso, no Sul, o nome Clinton,<br />
principalmente para os hispânicos mais velhos,<br />
é sinónimo de Partido Democrata, o que está<br />
directamente ligado às lutas pelos direitos civis.<br />
Isto é relevante no Texas, porque até aos anos 60<br />
do século passado a discriminação contra os hispânicos<br />
era muito forte. Como minoria estabelecida,<br />
em pleno gozo de todos os direitos civis, os<br />
hispânicos do Texas denunciaram, no âmbito da<br />
sua própria luta, as más experiências vividas noutras<br />
partes do país. No entanto, devido ao facto de<br />
os cargos políticos do Texas reservados para a minoria<br />
não branca estarem ocupados por afro-americanos,<br />
desenvolveu-se uma concorrência pelo status<br />
de minoria par excellence. Isto levou a que os hispânicos<br />
se vissem muitas vezes forçados a defender<br />
os seus interesses através de alianças com políticos<br />
e activistas brancos progressistas.<br />
As eleições primárias no Texas transformaram esta<br />
constelação (comunidade) num tema de discussão<br />
em toda a América. A discussão pública sobre hispânicos<br />
texanos, cuja experiência política foi negra<br />
apesar da representação política ser branca, tornou-<br />
-se tema permanente de um debate mais alargado<br />
sobre o status quo da cultura e da política. Este<br />
debate, iniciado no outono passado, incendiou-se<br />
e intensificou-se devido às eleições, levando a que<br />
muitos milhões de americanos nele participassem.<br />
Debate que diz respeito a todos, tanto a minorias<br />
como a maiorias. É cada vez mais difícil ignorar<br />
que esta época tão marcada pelos movimentos dos<br />
direitos civis, pelo debate sobre o racismo e as<br />
demonstrações de afirmação, esteja a chegar ao seu<br />
��������<br />
fim, sem negligenciar os problemas existentes. As<br />
eleições e as suas alianças de 2008 mostram que<br />
não só uma parte da classe média instruída se vê<br />
como uma fracção de uma sociedade em que a<br />
colour line já não é uma linha divisória inflexível.<br />
Isto é visível nos apoios de ambos os candidatos<br />
democratas, uma vez que estes não recolhem simpatia<br />
apenas pela cor da pele mas também pela<br />
formação do eleitorado. Eleitores que acabaram o<br />
ensino secundário, com posses e consciência pós-<br />
-étnica, sentem-se fortemente identificados com o<br />
discurso de Barack obama e a retórica da “mudança”<br />
e de um mundo melhor. Para os trabalhadores<br />
migrantes provenientes da América Latina e de<br />
outras regiões, com um nível de formação abaixo<br />
da média, hillary Clinton orientou o seu discurso<br />
para os temas do “pão e da manteiga”, de modo<br />
a garantir os cerca de dois terços dos votos da<br />
Califórnia. Também no Texas os hispânicos contribuíram<br />
para aquele que poderá vir a ser o mais<br />
importante sucesso da sua carreira. Foi lá que muitos<br />
deles viram em hillary Clinton uma personagem<br />
política mais familiar do que Barack obama, o filho<br />
de imigrantes radicado no havai e formado em<br />
harvard. No entanto, conseguiu ganhar a simpatia<br />
dos hispânicos mais jovens que relacionam o nome<br />
Clinton com a velha mentalidade americana – o<br />
clássico conflito geracional no seio de uma minoria<br />
que se diferencia rapidamente.<br />
As eleições lançam para a ribalta um dos momentos<br />
históricos ainda em aberto nos EUA; um momento<br />
sobre o qual os candidatos têm visões políticas diferentes,<br />
seja qual for a cor de pele. A melodia e o ritmo<br />
da campanha eleitoral de hillary Clinton<br />
são claramente hispanizados, enquanto Barack obama<br />
projecta a imagem do visionário intelectual. No<br />
entanto, ambos sabem que, pelo menos por agora, o<br />
futuro dos EUA depende do Sudoeste do país.<br />
* Transatlantic Fellow do German Marshall Fund e Visiting Scholar<br />
na Universidade de Georgetown, em Washington DC<br />
http://www.gmfus.org/experts/espert.cfm?id=48<br />
Traduzido do alemão por Luís Nunes<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 29
30<br />
��������<br />
hillary e as mulheres<br />
Nos estados que já votaram até agora o grupo estatístico das mulheres entre<br />
os 40 e os 50 anos tem-se revelado o principal bloco de apoio de Hillary Clinton.<br />
Carol e Susie, duas mulheres de meia-<br />
-idade de Austin, no Texas, admitem que<br />
estavam decididas a apoiar o senador democrata<br />
do Illinois Barack obama nas eleições<br />
primárias do seu estado – só que na hora<br />
da verdade, quando entraram no cubículo<br />
reservado aos eleitores e se confrontaram<br />
com o ecrã da máquina de voto, o dedo<br />
fugiu-lhes para o quadrado que assinalava<br />
a candidatura de hillary Clinton.<br />
“Ela é uma excelente candidata, mas,<br />
mais importante do que isso, é uma<br />
mulher. Naquele momento apercebi-me<br />
que não podia cometer essa traição e votar<br />
num homem”, justificou-se Susie, que<br />
reúne todas as características que as estatísticas<br />
apontam como comuns aos mais<br />
fiéis apoiantes da senadora de Nova Iorque<br />
e antiga primeira-dama: mulher, branca,<br />
47 anos, casada, habitante dos subúrbios,<br />
com qualificações mas sem terminar um<br />
curso superior.<br />
“Li um artigo com uma estatística que<br />
dizia que 11 por cento dos americanos<br />
nunca votariam numa mulher, contra seis<br />
por cento que nunca votariam num negro.<br />
E senti-me insultada”, lamentou Susie,<br />
explicando que foi esse facto que a fez<br />
mudar de ideias e votar em hillary. “Afinal,<br />
neste país a misoginia é muito pior do que<br />
o racismo”, considerou.<br />
Nos estados que já votaram até agora o<br />
grupo estatístico das mulheres entre os<br />
40 e os 50 anos tem-se revelado o principal<br />
bloco de apoio de hillary Clinton.<br />
Não admira, por isso, que a sua candidatura<br />
continue a investir fortemente na<br />
realização de eventos direccionados para<br />
o público feminino.<br />
Nessas ocasiões, como destaca a imprensa<br />
norte-americana, o discurso da candidata<br />
concentra-se em torno de assuntos como a<br />
saúde, a educação, a criação de empregos<br />
ou mesmo a religião – temas alegadamente<br />
mais ‘queridos’ pelo eleitorado feminino.<br />
POR ritA sizA*<br />
Mas a verdade é que as mulheres têm<br />
uma reacção mais emocional à candidatura<br />
de hillary Clinton: adoram-na ou<br />
odeiam-na muito mais convictamente (e<br />
talvez mais irracionalmente).<br />
Para umas, hillary é a representante<br />
máxima da geração baby-boomer: uma<br />
mulher que lutou pela igualdade de<br />
oportunidades, afirmou a sua competência<br />
e ganhou a admiração dos seus<br />
pares. Mas para outras, não passa de uma<br />
política ambiciosa e calculista, capaz de<br />
fazer qualquer sacrifício para vencer –<br />
um comportamento rejeitado como a<br />
repetição de uma fórmula de sucesso<br />
machista.<br />
Aliás, bastou a apresentação da sua candidatura<br />
para se relançar o debate sobre<br />
o actual movimento feminista na América.<br />
o que pretendem agora as mulheres:<br />
liderar ou derrubar o status quo? Qual<br />
Apoiantes femininas de hillary no ohio.<br />
deverá ser a sua estratégia: juntar-se ao<br />
clube ou incendiar as suas instalações?<br />
É um debate para já estéril – pelo menos<br />
no que diz respeito ao futuro da campanha<br />
eleitoral.<br />
À Carol essa discussão não interessa. “há<br />
décadas que esta mulher se sujeita ao mais<br />
apertado escrutínio do mundo. olho para<br />
ela e penso: não há hipótese de ela poder<br />
ser encarada como uma pessoa normal,<br />
porque não há nada de normal na sua<br />
vida”, assinala. A simpatia que sente por<br />
hillary é antes de mais uma questão de<br />
solidariedade. “Basta pensar em tudo por<br />
que ela passou por causa do ‘affaire’ do<br />
marido, tudo o que ela aguentou para<br />
chegar a este momento. Agora, às vezes,<br />
pergunto-me se, caso perca a eleição, ela<br />
se vai finalmente divorciar…”<br />
* Correspondente do jornal Público nos EUA<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008<br />
LUSA / EPA MICHAL CZERWONKA
poLÍtiCA<br />
A turquia é uma mistura<br />
da ue a 27<br />
As relações entre a Turquia, a União<br />
Europeia (UE) e os Estados Unidos da<br />
América (EUA) não enfrentam novas<br />
dificuldades pois nunca existiu uma<br />
situação consideravelmente melhor. Esta<br />
foi uma das várias opiniões partilhadas<br />
numa discussão cujo mote foi dado<br />
pelo lançamento do livro Beyond Suspicion:<br />
Rethinking US Turkish Relations, de Ian Lesser,<br />
especialista em relações internacionais<br />
do German Marshall Fund, e que contou,<br />
ainda, com a presença de omer Kaya<br />
Turkmen, embaixador da República da<br />
Turquia, Armando Marques Guedes,<br />
presidente do Instituto Diplomático do<br />
Ministério dos Negócios Estrangeiros,<br />
Ahmet Evin, director do Istambul Policy<br />
Center, e Charles Buchanan, administrador<br />
da FLAD.<br />
Kaya Turkmen defendeu que a Turquia e<br />
os EUA são “aliados, embora, em alguns<br />
aspectos, pensem de forma distinta”,<br />
considerando um “exagero” julgar que<br />
se assiste a uma crise relacional pois,<br />
como admitiu, “nunca se viveu uma<br />
situação melhor”. “o lugar da Turquia<br />
é no ocidente” – disse o embaixador,<br />
acrescentando que acredita na rápida<br />
adesão do seu país à UE, apesar da longa<br />
espera de já cinquenta anos.<br />
POR FiLipA brAzonA<br />
Por sua vez, Marques Guedes, recorrendo<br />
à obra de Ian Lesser, apresentou uma<br />
perspectiva histórica das relações entre os<br />
três actores. À semelhança do primeiro<br />
orador, assegurou “firmemente” que “o<br />
lugar da Turquia é com o ocidente”.<br />
Apesar desta convicção, acrescentou que<br />
“seria desastroso se a Turquia aderisse à<br />
UE”, mas que seria um desastre “ainda<br />
maior se tal não viesse a acontecer”.<br />
Ahmet Evin acredita ser imperioso<br />
estabelecer uma data limite para a adesão<br />
da Turquia à UE, admitindo que o grande<br />
obstáculo no processo de adesão da<br />
Turquia à UE prende-se com a difícil<br />
definição da Turquia enquanto país: “A<br />
Turquia é uma mistura da UE a 27.”<br />
É essa amálgama de valores que confunde<br />
o mundo e que a impede de ser totalmente<br />
parte do ocidente ou do oriente.<br />
o título do livro – Beyond Suspicion:<br />
Rethinking US Turkish Relations – foi escolhido<br />
pelo autor para sublinhar a ideia de<br />
suspeição mútua. A Turquia mantém hoje<br />
relações com o Irão e o Iraque, situação<br />
que a Administração Bush não encara<br />
de forma pacífica, olhando estes países,<br />
muitas vezes, como um todo, “um bloco<br />
de problemas e não países diferenciados”,<br />
disse Lesser.<br />
ACIMA DE QUALQUER<br />
SUSPEITA...<br />
À margem do encontro, ian Lesser<br />
respondeu a algumas questões.<br />
O estreitar de relações com a UE dá à Turquia<br />
a possibilidade de melhores relações com os<br />
EUA?<br />
Tal dependerá do estado das relações<br />
transatlânticas. Se estas forem positivas,<br />
poderá ser uma ajuda ter uma base formal<br />
para uma relação triangular forte entre a<br />
Turquia, a Europa e os EUA. Por outro lado,<br />
simplificará as coisas para a Turquia porque<br />
o país não vai querer estar na posição de ter<br />
de escolher entre uma orientação pró-América<br />
e uma pró-Europa.<br />
Alienar ou isolar a Turquia, é uma possibilidade?<br />
Qual seria o pior cenário?<br />
O colapso do projecto europeu da Turquia seria<br />
o pior que poderia acontecer, porque os turcos<br />
iriam tornar-se mais nacionalistas e isolados.<br />
Também não é positivo que as relações entre<br />
os EUA e a UE continuem a deteriorar-se devido<br />
a questões como o Iraque. Poderíamos chegar<br />
a um triângulo de alienação… com os EUA a<br />
perderem os seus aliados, a Turquia a isolar-<br />
-se e a UE com dificuldade em relacionar-se<br />
com os seus parceiros. Há um sério risco de<br />
nacionalismo… mas esse é o pior cenário e não<br />
creio que venha a suceder.<br />
Que tipo de iniciativas deveriam ser levadas a<br />
cabo para enfatizar a relação transatlântica?<br />
Algumas dessas iniciativas terão mesmo de<br />
esperar por um novo governo norte-americano.<br />
As opiniões na Turquia e na Europa são, hoje,<br />
muito negativas e é difícil contrariar essa<br />
posição. Só com uma nova Administração<br />
haverá oportunidade para um tipo diferente<br />
de relação. Teremos de esperar para ver. Em<br />
qualquer caso, penso que é essencial ter caras<br />
novas com outras ideias para se pensar a sério<br />
nestas parcerias.<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 31
32<br />
poLÍtiCA<br />
Quando a nAto mora ao lado<br />
rede de bases militares norte-americanas<br />
discutida em Lisboa<br />
No Instituto de Estudos Superiores Militares debateu-se<br />
"O impacto político e social das bases militares da NATO".<br />
Mas uma questão ficou no ar: com uma Europa cada vez mais forte<br />
como serão as relações transatlânticas?<br />
A convite do Instituto Português de Relações<br />
Internacionais (IPRI), especialistas oriundos<br />
de vários pontos do globo participaram<br />
num workshop de “Pesquisa Avançada” (ver<br />
caixa) promovido pela NATo em Lisboa.<br />
Durante três dias foi analisado o impacto<br />
da instalação de bases militares norte-americanas<br />
nos vários continentes.<br />
POR mArCo siLvA<br />
Embora a NATo estivesse em causa,<br />
a referência à União Europeia (UE) foi<br />
transversal a todas as comunicações,<br />
numa altura em que os líderes europeus<br />
estavam reunidos em Lisboa. Foi evocada<br />
a situação de uma Europa cada vez mais<br />
forte e discutidas as repercussões dessa<br />
evolução na estratégia transatlântica.<br />
soldados aguardam junto do AWACs da nAto (Warning and Control system/sistema Aéreo de Alerta<br />
e Controle) equipado com radares para defesa e táctica militares.<br />
LUSA<br />
o DesAFio europeu<br />
Com uma Europa a Vinte e Sete, novos<br />
são os desafios que se colocam às relações<br />
internacionais, sobretudo no que respeita<br />
às estratégias de defesa e de segurança<br />
comuns – uma ideia consensual entre os<br />
oradores.<br />
Para Simon Duke, do European Institute<br />
of Public Administration em Maastricht,<br />
“Sendo a Europa um actor cada vez mais<br />
activo ao nível da política externa, ela terá<br />
de definir o seu próprio papel global em<br />
conjunto com os EUA e vice-versa […] a<br />
Europa vai querer ser encarada não como<br />
um parceiro inferior, mas antes de igual<br />
para igual”.<br />
Apesar das dificuldades em encontrar<br />
consensos políticos entre a Europa e<br />
os EUA, os oradores reconheceram que<br />
existem condições para o desenvolvimento<br />
das relações transatlânticas, ainda que esse<br />
seja um desafio entregue em parte ao<br />
futuro Presidente norte-americano.<br />
Entre os convidados encontrava-se o<br />
antigo embaixador da Roménia, Sebastian<br />
Mitrache. Actualmente ao serviço do<br />
Ministério dos Negócios Estrangeiros<br />
romeno (Departamento da NATo), falou<br />
sobre a política externa romena na última<br />
década. Tendo entrado para a UE há um<br />
ano atrás, a Roménia não virou contudo<br />
as costas à NATo: “Apoiamos tanto a<br />
NATo como a UE e acreditamos que<br />
ambas as estruturas deveriam cooperar<br />
no futuro.”<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008
MARCO SILVA<br />
Na Cimeira de Bucareste, que decorreu<br />
em Abril, esta cooperação foi posta à prova;<br />
da agenda fazem parte a participação<br />
militar da NATo no Afeganistão e a<br />
parceria com a Ucrânia.<br />
A herAnçA DA GuerrA FriA<br />
os oradores originários de países de<br />
Leste não deixaram de fazer referência<br />
à Rússia e aos efeitos da sua política<br />
externa na definição da estratégia da<br />
NATo e da UE.<br />
poLÍtiCA<br />
Numa altura em que a NATo se encontra<br />
a desenvolver fortes laços com os países<br />
da Europa de Leste, Volodymiyr Dubovyk,<br />
da Universidade de odessa, na Ucrânia,<br />
afirmou contudo que “a expansão<br />
da NATo não se pode traduzir numa<br />
militância contra a Rússia pois, nesse<br />
caso, verificar-se-á uma aproximação<br />
deste país aos tempos da Guerra Fria”.<br />
Da mesma opinião é Gevorg Melikyan, da<br />
organização não governamental arménia<br />
“Solidariedade dos Estudantes”, que<br />
afirma ser necessário “aliviar algumas das<br />
Luís nuno rodrigues, co-director do encontro, com o antigo embaixador da roménia,<br />
sebastian mitrache, e Carlos Gaspar, presidente do ipri.<br />
no final dos três dias do workshop, a <strong>Paralelo</strong><br />
entrevistou Luís nuno rodrigues, membro do<br />
ipri e co-director do encontro.<br />
paralelo [p] Agora que o workshop chegou<br />
ao fim, que balanço faz da iniciativa?<br />
Luís nuno rodrigues [Lnr] Faço um balanço<br />
altamente optimista e favorável. Acho que<br />
se deram vários passos significativos em<br />
prol de um conhecimento mais profundo<br />
desta problemática (a existência de bases<br />
militares da NATO espalhadas pelo globo).<br />
“Aqui produziu-se conhecimento”<br />
Durante três dias, aqui produziu-se conhecimento.<br />
[p] num mundo com novos centros de poder,<br />
ainda há espaço para a nAto?<br />
[Lnr] Penso que sim. Independentemente das<br />
alterações que se venham a verificar na sua<br />
rede de bases militares, a NATO continuará<br />
a ter um papel fundamental (senão mesmo<br />
decisivo) na manutenção da segurança e da<br />
defesa da Europa, dos próprios países que<br />
fazem parte da organização. Para além disso,<br />
a NATO tem procurado dar resposta a um<br />
posições da NATo em relação à Rússia”.<br />
Volodymiyr Dubovyk revelou-se ainda<br />
preocupado com o rumo político que<br />
o Kremlin está a tomar, sobretudo no<br />
domínio da política externa: “A Rússia<br />
está a mover-se na direcção errada,<br />
no que diz respeito, por exemplo,<br />
à consolidação de práticas autoritárias.”<br />
Por isso, considera que “Workshops deste<br />
tipo são essenciais para chamar a atenção<br />
para os problemas em territórios como a<br />
Crimeia, a Tchechénia, a Transnístria ou<br />
a Geórgia”.<br />
O que são os<br />
Workshops de<br />
Pesquisa Avançada<br />
(WPA)?<br />
Os WPA são encontros de académicos e<br />
especialistas, promovidos pela NATO. Têm<br />
como objectivo a construção de um diálogo<br />
transatlântico em diversos domínios do<br />
conhecimento, desde o ambiente às Forças<br />
Armadas. Proporcionam aos participantes a<br />
hipótese de partilharem conhecimentos de<br />
uma maneira informal. Estes workshops não<br />
são abertos ao público, fazendo-se a entrada<br />
mediante convite. Geralmente, têm a duração<br />
média de quatro dias e são financiados na<br />
íntegra pelo Programa Científico da NATO<br />
para a Paz e para a Segurança. Para mais<br />
informações, consultar: http://www.nato.<br />
int/science/<br />
conjunto de outras questões fora da área<br />
geográfica tradicional da sua acção. Por tudo<br />
isto, acredito que temos um papel crucial a<br />
desempenhar no futuro.<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 33
34<br />
soCieDADe<br />
Alunos de harvard<br />
estudam arquitectura lisboeta<br />
“Re-inventar” Lisboa como Capital Europeia do Atlântico foi o tema da sessão<br />
organizada pelo Lisbon Design Studio, iniciativa dos arquitectos Bernardo Vaz Pinto<br />
e Levi Dacosta Maia. O objectivo era transmitir aos 12 estudantes de Harvard<br />
presentes no auditório da FLAD uma visão global da história da cidade de Lisboa,<br />
das suas condições urbanísticas, sociais e económicas.<br />
Esta delegação norte-americana, dirigida<br />
pelo professor Rodolfo Machado, deslocou-<br />
-se a Portugal integrada num mestrado do<br />
Departamento de Urbanismo da Graduate<br />
School of Design.<br />
o projecto, desenvolvido pelos dois<br />
arquitectos formados igualmente em<br />
harvard, conta com o apoio da FLAD e<br />
visa promover a cidade de Lisboa num<br />
âmbito internacional. A visita de uma<br />
semana dos estudantes a Lisboa constitui,<br />
por isso, um dos principais momentos<br />
deste curso. Têm assim a possibilidade de<br />
contactar com a realidade lisboeta, observando<br />
directamente o objecto do seu trabalho.<br />
As propostas académicas que<br />
resultarem desta formação podem constituir,<br />
no futuro, soluções urbanísticas para<br />
a capital portuguesa.<br />
Mário Mesquita, administrador da FLAD,<br />
deu as boas-vindas aos estudantes de<br />
harvard e a Rodolfo Machado, abrindo a<br />
sessão com um incentivo: “o sucesso do<br />
vosso trabalho contribuirá para o sucesso<br />
de Lisboa.” Defendeu a ideia de que Lisboa<br />
é um “desafio” e uma “mais-valia” para<br />
quem a procura estudar e enquadrou a<br />
iniciativa na estratégia da <strong>Fundação</strong>, falando<br />
na vontade em “fomentar um olhar<br />
crítico, distanciado, mas informado, sobre<br />
as questões centrais do desenvolvimento<br />
da cidade”.<br />
o colóquio prosseguiu com uma breve<br />
apresentação do projecto, a cargo do<br />
arquitecto Bernardo Vaz Pinto. o responsável<br />
pelo Lisbon Design Studio deu a<br />
conhecer à audiência a área da cidade<br />
sobre a qual o estudo destes estudantes<br />
incide, numa extensão que vai de Santa<br />
Apolónia à Ponte 25 de Abril. Numa alu-<br />
RUI OCHôA<br />
POR rui CAtALão<br />
vista aérea de Lisboa.<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008
FáBIO SILVA<br />
são ao título deste exercício, Bernardo Vaz<br />
Pinto reconheceu a ambição de elevar a<br />
cidade de Lisboa a Capital Europeia do<br />
Atlântico, uma “visão optimista do desenvolvimento<br />
da cidade”.<br />
Por outro lado, não poupou elogios ao<br />
professor Rodolfo Machado, de quem foi<br />
aluno, afirmando que “Lisboa só tem<br />
a ganhar com a sua experiência”. Sob a<br />
orientação do “mestre”, acredita que os<br />
estudantes de harvard “têm todas as capacidades<br />
para perceber e analisar os problemas<br />
actuais da cidade, propondo soluções<br />
interessantes para o futuro”.<br />
o grupo de alunos assistia com um<br />
misto de interesse, atenção e descontracção<br />
às palavras dos oradores. À primeira<br />
soCieDADe<br />
“Lisboa é um local único”<br />
eugenio simoneti, 28 anos, do Chile, e Ya Gao,<br />
23, chinesa, alunos de harvard e participantes<br />
do projecto partilharam as suas opiniões sobre<br />
Lisboa...<br />
paralelo [p] Agora que já tiveram o primeiro<br />
contacto com a cidade, o que mais vos cativou<br />
em Lisboa?<br />
eugenio simoneti [es] A história, a forte<br />
identidade da cidade e do país e as<br />
potencialidades de Lisboa enquanto imagem<br />
de marca.<br />
Ya Gao [YG] Surpreendeu-me pela interessante<br />
localização e pela grande ligação com o<br />
oceano.<br />
[p] tendo em conta o que tiveram a<br />
oportunidade de ouvir e de conhecer, qual é<br />
o maior desafio deste projecto?<br />
[YG] Lisboa é um local único. Só por isso já<br />
é um desafio.<br />
[es] Reinventar a cidade sem perder a identidade.<br />
Acho que essa é a tarefa mais árdua.<br />
Depois de Lisboa, o que esperam do<br />
futuro?<br />
[es] Ir para a Índia trabalhar como arquitecto,<br />
pois é um país que precisa muito de gente<br />
da nossa área.<br />
[YG] Primeiro quero trabalhar em Portugal.<br />
Depois espero voltar aos Estados Unidos e<br />
mais tarde à China.<br />
vista, sobressaía a pluralidade de nacionalidades:<br />
dois chineses, dois taiwaneses,<br />
cinco norte-americanos, um libanês, um<br />
porto-riquenho e um chileno. Conhecendo<br />
um pouco mais estes alunos, tornava-se<br />
fácil constatar que a pluralidade se estende<br />
igualmente à profissão. Uns provêm da<br />
área da arquitectura, outros do design<br />
urbanístico, outros ainda do planeamento<br />
urbano.<br />
o olissipógrafo José Sarmento de Matos<br />
propôs olhar para Lisboa numa perspectiva<br />
mais histórica, alertando para a necessidade<br />
de “entender o desenvolvimento e<br />
crescimento da cidade”. Este especialista<br />
em história da capital portuguesa traçoulhe<br />
o perfil desde a tomada do castelo aos<br />
mouros até à reconstrução após o terramoto<br />
de 1755. Aos estudantes, procurou<br />
transmitir a noção de que “todos os projectos<br />
têm de ser muito bem pensados,<br />
tendo em conta a carga histórica” que<br />
Lisboa encerra, bem como a importância<br />
da relação entre a cidade e o rio.<br />
Aproveitando a deixa de José Sarmento<br />
de Matos, Ana Tostões – também ela especialista<br />
em história da cidade – partiu da<br />
explicação do plano de reconstrução<br />
da Baixa para dar o seu contributo. Mostrou<br />
inúmeras imagens e falou de monumentos<br />
e outras construções, desde o Elevador de<br />
Santa Justa ao Parque Florestal de Monsanto,<br />
da Avenida da Liberdade à Ponte 25 de<br />
Abril.<br />
Após um pequeno coffee-break e dois dedos<br />
de conversa, o advogado José Miguel<br />
Júdice e o gestor Rolando Borges Martins<br />
assumiram o papel de oradores. o primeiro<br />
intitulou-se um “cidadão de Coimbra com<br />
ideias sobre Lisboa”, reforçando o argumento<br />
de que é preciso “voltar a juntar<br />
Lisboa e o rio”. Para José Miguel Júdice,<br />
a frente ribeirinha é como o “jardim” de<br />
Lisboa, pelo que “não se deve construir<br />
em cima dos jardins”. Nesse sentido, vê<br />
com bons olhos o trabalho dos 12 estudantes<br />
de harvard, de quem espera resultados<br />
que tenham uma aplicação<br />
efectiva.<br />
A última exposição da tarde coube ao<br />
responsável máximo pela Parque Expo,<br />
entidade criada pelo Governo para a<br />
requalificação da zona do Parque das<br />
Nações, iniciada logo após o encerramento<br />
da Expo’98. Rolando Borges Martins<br />
procurou explicar aos presentes a estratégia<br />
urbanística e ambiental que esteve<br />
na base da intervenção na zona do Parque<br />
das Nações. Partindo deste exemplo, apresentou<br />
os novos projectos para a cidade<br />
de Lisboa, divididos em três frentes distintas:<br />
a Grande Lisboa, mais concretamente<br />
a frente ribeirinha da Baixa<br />
pombalina; a zona oeste, nos eixos Ajuda-<br />
-Belém e Pedrouços-Dafundo; e a zona<br />
este, com a consolidação do investimento<br />
no Parque das Nações. Tal como Rolando<br />
Borges Martins assegurou, todas estas<br />
intervenções têm como vector fundamental<br />
a “multifuncionalidade”, isto é, a articulação<br />
de áreas distintas como os<br />
espaços verdes, as zonas residenciais e<br />
os centros de negócios.<br />
Todos os oradores estiveram de acordo<br />
quanto à necessidade de apostar na cidade<br />
de Lisboa enquanto imagem de marca. Já<br />
os estudantes saíram da sessão com a certeza<br />
de que se deparam com um desafio<br />
complexo, mas que lhes permitirá desenvolver<br />
as suas competências.<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 35
36<br />
eConomiA<br />
mit portugal<br />
na hora do balanço<br />
O Programa MIT Portugal, iniciado em Outubro de 2006,<br />
começou por se centrar no domínio dos “Sistemas de Engenharia”. O sector energético<br />
e a indústria automóvel são as áreas que até agora melhor responderam a este programa.<br />
Em finais de Fevereiro, o MIT Portugal estendeu-se à área da gestão.<br />
o Programa MIT Portugal, envolvendo o<br />
Massachusetts Institute of Technology (MIT),<br />
o Governo português, universidades e<br />
laboratórios nacionais e várias<br />
empresas, lançado em outubro de 2006<br />
pelo ministro da Ciência, Tecnologia e<br />
Ensino Superior, Mariano Gago, tem como<br />
objectivo demonstrar que um investimento<br />
em ciência, tecnologia e educação ao<br />
nível mais avançado pode ter um impacto<br />
positivo e duradouro na economia portuguesa.<br />
“o nosso objectivo é desenvolver a interacção<br />
universidade-empresa e criar valor<br />
com a investigação desenvolvida”, sublinha<br />
Paulo Ferrão, professor do Instituto<br />
Superior Técnico e coordenador do Programa<br />
MIT Portugal.<br />
o MIT Portugal desenvolve-se em duas<br />
vertentes principais, os sistemas de engenharia<br />
e a gestão, sendo que esta última se<br />
encontra ainda numa fase inicial, uma vez<br />
que o protocolo que permite a obtenção<br />
do MBA (Master in Business Administration),<br />
ao abrigo da cooperação entre o MIT e as<br />
universidades portuguesas, só no passado<br />
dia 21 de Fevereiro foi assinado.<br />
“os projectos já em curso inserem-se<br />
no domínio dos sistemas de engenharia,<br />
uma ideia que significa, simplesmente, pôr<br />
a funcionar um conjunto de áreas que até<br />
agora funcionavam separadamente, como<br />
a engenharia, a economia e as ciências<br />
sociais”, afirma o mesmo responsável.<br />
Um exemplo concreto deste funcionamento<br />
pode encontrar-se ao nível dos<br />
graus académicos proporcionados pelo<br />
MIT Portugal. “Faculdades de Engenharia<br />
MIT<br />
POR isAbeL brAGA<br />
experiência laboratorial mit.<br />
e de Economia juntaram-se para oferecer,<br />
no domínio das energias sustentáveis,<br />
os dois graus académicos que o<br />
MIT Portugal proporciona, ou seja, doutoramentos<br />
e mestrados profissionais”,<br />
sublinha Paulo Ferrão.<br />
As outras áreas de sistemas de engenharia<br />
em que o MIT Portugal aposta são a<br />
engenharia de concepção e fabrico avançado,<br />
os sistemas de bioengenharia e os<br />
sistemas de transporte. As quatro áreas<br />
proporcionam quatro doutoramentos<br />
– “completamente novos”, afirma o coordenador<br />
do programa – com a duração<br />
de três a quatro anos, um dos quais passado<br />
no MIT.<br />
os três mestrados profissionais criados<br />
pelo MIT Portugal destinam-se a quadros<br />
de empresas, têm a duração de nove<br />
meses, em horário pós-laboral, e envolvem<br />
já 130 alunos.<br />
A estes cursos candidataram-se alunos<br />
portugueses e de países como o Brasil,<br />
a Finlândia, a Grécia, a Itália, a Moldávia e<br />
a Roménia. Cinquenta bolsas de doutoramento<br />
e cerca de 20 para estágios de pósdoutoramento<br />
foram atribuídas em<br />
instituições portuguesas em colaboração<br />
com o MIT.<br />
Segundo o Ministério da Ciência,<br />
Tecnologia e Ensino Superior (MCTES), no<br />
trabalho realizado durante o primeiro ano<br />
colaboraram cerca de 60 professores<br />
do MIT, incluindo um Prémio Nobel e três<br />
Institute Professors (distinção atribuída apenas<br />
‘ os projectos já em curso inserem-se no domínio<br />
dos sistemas de engenharia, uma ideia que significa,<br />
simplesmente, pôr a funcionar um conjunto de áreas<br />
que até agora funcionavam separadamente, como<br />
a engenharia, a economia e as ciências sociais.<br />
’<br />
a 14 dos mil professores do MIT), e 180<br />
professores e investigadores das sete universidades<br />
e onze instituições portuguesas<br />
envolvidas no programa.<br />
Como exemplos de projectos concretos<br />
em desenvolvimento no âmbito do MIT<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008
RUI OCHôA<br />
Portugal, Paulo Ferrão cita aquele que<br />
está em curso na Autoeuropa – no domínio<br />
da concepção e fabrico dos componentes<br />
automóveis –, os que envolvem<br />
a GALP, a EFACEC e a EDP – para promover<br />
a eficiência energética em centros<br />
urbanos actuando na gestão da energia<br />
em edifícios, as redes energéticas inteligentes<br />
– e o projecto desenvolvido com<br />
a AGNI – de criação de pilhas de combustível<br />
que vai permitir produzir equipamentos<br />
de microgeração, capazes de<br />
produzir frio ou calor e de importar ou<br />
exportar energia, consoante as necessidades.<br />
o relatório elaborado pela <strong>Fundação</strong> para<br />
a Ciência e a Tecnologia (FCT), instituição<br />
do MCTES, sobre os primeiros doze meses<br />
de actividade do programa, sublinha que<br />
o MIT Portugal tem-se saldado por um<br />
“enorme sucesso”, uma vez que tem<br />
atraído “excelentes alunos” para os programas<br />
de ensino criados e recebido respostas<br />
muito positivas do sector<br />
empresarial, com destaque para a indústria<br />
automóvel e o sector energético.<br />
o lançamento, em Portugal, no âmbito<br />
deste programa, da área de “Sistemas de<br />
Engenharia”, permitiu identificar 30 áreas<br />
prioritárias de investigação e desenvolvimento,<br />
com importância estratégica quer<br />
para Portugal, quer para o MIT.<br />
Segundo o relatório de avaliação do programa,<br />
no âmbito dos sistemas sustentáveis<br />
de energia, o conceito de redes de equipamento<br />
de microgeração em edifícios, de<br />
paulo Ferrão, coordenador do programa mit portugal.<br />
eConomiA<br />
‘ o relatório elaborado pela<br />
<strong>Fundação</strong> para a Ciência<br />
e a tecnologia (FCt),<br />
instituição do mCtes,<br />
sobre os primeiros doze<br />
meses de actividade<br />
do programa, sublinha<br />
que o mit portugal<br />
tem-se saldado por um<br />
“enorme sucesso” […]<br />
’<br />
metabolismo urbano e de tecnologia de<br />
aproveitamento de energia das ondas são<br />
algumas das novas áreas prioritárias.<br />
No que se refere à engenharia de concepção<br />
e sistemas avançados de produção,<br />
destaca-se, entre outras áreas, a aplicação<br />
ao automóvel.<br />
Dentro dos sistemas de bioengenharia,<br />
a nanotecnologia e biomateriais, as prioridades<br />
em termos de investigação e<br />
desenvolvimento vão para a engenharia<br />
celular e de tecidos, e a interacção homem-<br />
-robot, factores humanos e interacções<br />
com o cérebro. Finalmente, no que respeita<br />
aos sistemas de transportes, as áreas<br />
prioritárias são os sistemas inteligentes,<br />
o projecto de aeroportos e o transporte<br />
ferroviário de alta velocidade.<br />
O relatório divulgado pela FCT cita também um<br />
grupo de empresas do sector automóvel que<br />
se comprometeram, de forma inédita, a duplicar<br />
as suas despesas em I&D, em Portugal, até<br />
finais de 2009, devendo essas despesas atingir<br />
em média seis por cento do total da facturação<br />
no período entre 2007 e 2013.<br />
Essas empresas são a VW Autoeuropa, a Amorim<br />
Industrial Solutions, a Celoplás – Plásticos<br />
para Indústria, SA, a Iber Oleff – Componentes<br />
em Plástico SA, a Inapal Metal SA, a Inapal<br />
Plásticos SA, a Manuel da Conceição Graça<br />
LDA., a Plasdan, a Simoldes Plásticos LDA., a<br />
Sunviauto Indústria de Componentes Automóveis<br />
TMG-Automotive e o CEIIA (Centro de Excelência<br />
e Inovação da Indústria Automóvel).<br />
Adicionalmente, a Autoeuropa vai apoiar o<br />
desenvolvimento dos programas de formação<br />
avançada e disponibilizar, no âmbito do MIT<br />
Portugal, estágios profissionalizantes e programas<br />
de doutoramento.<br />
A FCT apoiará a formação avançada de recursos<br />
humanos e a contratação de investigadores<br />
doutorados pelo CEIIA, os quais desenvolverão<br />
actividades dentro do enquadramento científico<br />
dos grupos académicos envolvidos no<br />
Programa MIT Portugal.<br />
Uma resposta muito positiva surgiu também<br />
do sector energético, tendo aderido ao MIT<br />
Portugal, a Agni-Inc, a Deimos Engenharia, SA,<br />
a EDP, SA, a EDP Inovação, a EFACEC, SA, a<br />
GALP Energia, SA, a MARTIFER, SA, a REN –<br />
Redes Energéticas Nacionais, SA.<br />
Garantir o ingresso de mais de 20 quadros<br />
superiores por ano nos cursos de programação<br />
avançada promovidos pelo Programa MIT<br />
Portugal é um compromisso das empresas afiliadas<br />
nas áreas da engenharia de concepção<br />
e fabrico avançado.<br />
A acrescentar a isto há ainda o compromisso<br />
das empresas também ligadas ao MIT Portugal,<br />
que se comprometem a garantir o ingresso de<br />
mais de 20 quadros superiores por cada ano<br />
nos cursos de formação avançada promovidos<br />
pelo programa.<br />
A Agência Ciência Viva também se encontra<br />
vinculada a este programa, assegurando a interacção<br />
deste com as camadas mais jovens.<br />
“Sempre que vem a Portugal um professor do<br />
MIT, levamo-lo a fazer uma palestra em escolas<br />
secundárias de todo o país”, lembra ainda<br />
Paulo Ferrão.<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 37
A FLAD assinou um protocolo com o MIT<br />
Portugal, mediante o qual se compromete<br />
a contribuir com 500 mil dólares para este<br />
programa, durante os próximos quatro<br />
anos.<br />
Rui Machete, presidente da FLAD, considera<br />
o MIT Portugal “um salto em frente” no<br />
chamado Plano Tecnológico do Governo<br />
português. “Já tínhamos uma colaboração<br />
antiga com o MIT, mas nada que atingisse<br />
esta dimensão. Agora, além de apoiarmos<br />
financeiramente o MIT Portugal com uma<br />
soma importante, procuramos apostar em<br />
iniciativas convergentes e complementares,<br />
que o Estado tinha dificuldade em realizar,<br />
38<br />
eConomiA<br />
sede do mit em Cambridge, massachusetts.<br />
FLAD apoia mit portugal<br />
ou promover acções que possam conferir maior<br />
flexibilidade ao programa”, sublinhou.<br />
Zagalo e Melo, director da FLAD para a<br />
área da educação, ciência, tecnologia e<br />
inovação, enumerou as áreas a que a FLAD<br />
irá dar especial atenção no apoio ao MIT<br />
Portugal: os sistemas de energia sustentável,<br />
o empreendedorismo – visando fomentar uma<br />
atitude proactiva na criação de negócios –,<br />
o transporte e logística, especialmente na<br />
componente marítima, e a inovação em<br />
ciência e tecnologia.<br />
O programa das iniciativas a concretizar<br />
durante o ano corrente e parte de 2009 no<br />
âmbito do acordo entre a FLAD e o MIT Portu-<br />
gal estará definido “até finais de Abril”, afirmou<br />
Zagalo e Melo. No entanto, a FLAD já se<br />
comprometeu a apoiar um projecto concreto, a<br />
Conferência MIT Europa 2008, que, a 26 e 27<br />
de Março deste ano, reuniu em Lisboa a rede<br />
dos antigos alunos e colaboradores do<br />
programa, espalhados por toda a Europa.<br />
Neste encontro participaram especialistas<br />
norte-americanos nas áreas da energia, do<br />
ambiente, da engenharia civil e da bioquímica,<br />
aeronáutica e astronáutica, ciência dos<br />
materiais, gestão e transportes, com<br />
directores de grandes empresas, na área dos<br />
plásticos, da indústria farmacêutica e da<br />
informática.<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008<br />
MIT
eConomiA<br />
Conhecer, inovar,<br />
experimentar o CohiteC<br />
O que aconteceria se, numa mesma sala, estivessem reunidos gestores e cientistas?<br />
O que aconteceria se ambos partilhassem um mesmo projecto de trabalho?<br />
A resposta é dada pelo COHITEC, um programa que visa<br />
a criação de empresas de base tecnológica.<br />
o conceito é simples: juntar o faro para o<br />
negócio dos estudantes de MBA à investigação<br />
de ponta desenvolvida pelos cientistas.<br />
os resultados são notórios: projectos de<br />
negócio de forte componente tecnológica<br />
emergem. Em traços gerais, assim se define<br />
o CohITEC – um programa de valorização<br />
do conhecimento promovido pela CoTEC<br />
(Associação Empresarial para a Inovação).<br />
Numa altura em que o “Choque<br />
Tecnológico” está na ordem do dia, programas<br />
como o CohITEC asseguram aos<br />
gestores e investigadores uma oportunidade<br />
de se associarem na criação de um<br />
plano de negócio. “Quando foi projectado,<br />
em 2003, o CohITEC era uma iniciativa<br />
pioneira. Não havia ninguém, na altura,<br />
que fizesse a ponte entre cientistas e gestores”,<br />
afirma Pedro Vilarinho, um dos<br />
responsáveis pelo programa.<br />
Seguindo o modelo proposto pelo centro<br />
hITEC (parte da North Carolina State<br />
University), criou-se então este programa<br />
com a ajuda de alguns parceiros: a FLAD,<br />
a Faculdade de Economia da Universidade<br />
Nova de Lisboa (FEUNL) e a Escola de Gestão<br />
do Porto (EGP). De ambas as instituições de<br />
ensino saem os estudantes de MBA, prontos<br />
para colaborar com os cientistas no desenvolvimento<br />
de planos de negócio.<br />
Do proJeCto pArA o merCADo<br />
o CohITEC está estruturado em duas fases<br />
distintas. Num primeiro momento, são<br />
admitidos cerca de 80 participantes (50<br />
investigadores e 30 estudantes de MBA).<br />
POR mArCo siLvA<br />
Nesta fase do programa, todos os participantes<br />
são divididos por equipas de trabalho e<br />
submetidos a acções de formação, que decorrem<br />
tanto no Porto (EGP) como em Lisboa<br />
(FEUNL). Nelas, os formandos adquirem as<br />
competências necessárias para o desenvolvimento<br />
dos respectivos planos de negócio.<br />
Desde a fundação do CohITEC, já<br />
aconteceram seis edições destas acções de<br />
formação.<br />
Concluída esta fase, são seleccionados cerca<br />
de 10 projectos de negócio, que passam por<br />
um conjunto de filtros, antes de serem apresentados<br />
aos investidores. Caso algum dos<br />
projectos seja considerado viável, é-lhe dado<br />
então acesso à segunda fase do programa: a<br />
altura em que é criada uma “empresa virtual”<br />
(financiada pelo IAPMEI) e se preparam os<br />
projectos de negócio para apresentação aos<br />
investidores.<br />
Embora o CohITEC só tenha entrado na<br />
segunda fase uma vez desde a sua fundação<br />
(em 2005), Pedro Vilarinho não se revela<br />
preocupado: “A nossa actividade visa sobretudo<br />
a globalização do conhecimento. o mais<br />
importante não é propriamente o número<br />
de empresas criadas, mas antes a valorização<br />
do conhecimento.”<br />
ApostAr nA inovAção<br />
Ano após ano, o número de candidaturas<br />
tem excedido o número de vagas –<br />
tendência que demonstra, segundo Pedro<br />
Vilarinho, o sucesso do CohITEC. “os<br />
custos de um programa como este são<br />
elevados, já que os participantes não<br />
‘ numa altura em que<br />
o “Choque tecnológico”<br />
está na ordem do dia,<br />
programas como o<br />
CohiteC asseguram<br />
aos gestores<br />
e investigadores<br />
uma oportunidade<br />
de se associarem<br />
na criação de um<br />
plano de negócio.<br />
’<br />
pagam nada. Mas enquanto houver<br />
investigadores dispostos a participar, o<br />
programa vai continuar”, garante. A este<br />
nível, Pedro Vilarinho aponta a FLAD<br />
como um parceiro fundamental: “Estão<br />
connosco desde que começámos. São o<br />
nosso primeiro parceiro.”<br />
Assegurando o financiamento do programa,<br />
a FLAD tem garantido a continuidade da iniciativa<br />
– um investimento que, de acordo<br />
com o secretário-geral da FLAD, Fernando<br />
Durão, se justifica: “A FLAD tem desenvolvido<br />
uma forte aposta na inovação e o apoio ao<br />
CohITEC faz parte dessa aposta.”<br />
Abrangendo, de ano para ano, domínios<br />
comerciais cada vez mais diversos (desde<br />
a alimentação ao domínio do software),<br />
o programa tem “andado um passo à fren-<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 39
te na criação de conceitos de negócio”,<br />
afirma Fernando Durão. Da mesma opinião<br />
é Pedro Vilarinho, que considera<br />
muitos dos projectos inseridos no<br />
CohITEC “tão bons como os da North<br />
Carolina University”, onde o modelo do<br />
programa surgiu.<br />
Talvez por essa razão o sucesso do programa<br />
tenha sido reconhecido em 2006<br />
pela Universidade de Stanford através do<br />
prémio Price Foundation Innovative<br />
Entrepreneurship Educators Award. Tendo<br />
sido atribuído pela primeira vez a um programa<br />
fora dos Estados Unidos, este prémio<br />
40<br />
novos projectos<br />
eConomiA<br />
representa para Pedro Vilarinho “aquilo que<br />
qualquer pessoa que anda nesta área gostaria<br />
de receber: é o maior prémio de reconhecimento<br />
a nível mundial”.<br />
um suCesso em tons De verDe<br />
Embora só tenha entrado uma vez na<br />
segunda fase, o CohITEC lançou já as bases<br />
de uma empresa: a Consumo em Verde<br />
– Biotecnologia das Plantas S.A. (ver entrevista<br />
a Ricardo Boavida Ferreira, p. 41).<br />
Tendo como objectivo a produção de um<br />
Com os olhos postos em novos projectos empresariais, a COTEC deu já início a mais<br />
uma edição deste programa. Durante o mês de Dezembro de 2007, decorreram no Porto<br />
e em Lisboa sessões de apresentação do COHITEC com novas equipas de investigadores<br />
e gestores. Prevê-se agora que no início de Junho sejam apresentados os projectos de<br />
negócio. A partir daí, a Comissão Executiva da COTEC decidirá quais os projectos viáveis<br />
para propor aos investidores. Uma das grandes novidades este ano tem que ver com a<br />
estreia de uma instituição do ensino politécnico no programa – o Instituto Superior de<br />
Engenharia do Porto.<br />
fungicida bioquímico, esta empresa foi<br />
a primeira, no quadro do programa, a<br />
encontrar investidores privados dispostos<br />
a financiar o projecto.<br />
Associando a investigação desenvolvida<br />
em torno de uma proteína (base do fungicida)<br />
ao contributo de um conjunto de<br />
estudantes de MBA da Universidade Nova<br />
de Lisboa, o CohITEC proporcionou condições<br />
para que o projecto fosse apresentado<br />
a um consórcio de empresas<br />
portuguesas, que decidiu investir no projecto<br />
quase 12,5 milhões de euros.<br />
Dentro em breve, um outro projecto<br />
deverá entrar na segunda fase. É tutelado<br />
pela Universidade do Minho e propõe<br />
uma autêntica revolução ao nível dos<br />
materiais de construção: a substituição do<br />
aço utilizado nas construções por polímeros.<br />
De ano para ano, novos investigadores<br />
se juntam ao programa, na esperança de<br />
encontrarem nele uma porta para o mercado,<br />
a chave para a industrialização. Casos<br />
como o da empresa Consumo em Verde<br />
demonstram que é possível a criação e<br />
desenvolvimento de empresas de base tecnológica.<br />
Porque, afinal, como afirma<br />
Pedro Vilarinho: “o conhecimento tem de<br />
ser transferido para a sociedade.”<br />
entrega do prémio CoteC 2007. eduardo marçal Grilo (administrador da <strong>Fundação</strong> Calouste Gulbenkian), José Carlos marques dos santos (reitor da universidade do porto),<br />
mariano Gago (ministro da Ciência, tecnologia e ensino superior), rui machete (presidente da FLAD), António santos silva (presidente do bpi) e José Carlos pinto (optimus).<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008<br />
RUI OCHôA
COTEC<br />
ricardo<br />
boavida Ferreira<br />
“A COTEC ajudou-nos a<br />
escolher os investidores<br />
e transmitiu-lhes<br />
confiança.”<br />
A Consumo em Verde – Biotecnologia das<br />
Plantas S.A. (CEV) foi a primeira empresa a<br />
emergir graças ao apoio do COHITEC. Para<br />
conhecer melhor o projecto de negócio que<br />
deu origem a esta empresa, a <strong>Paralelo</strong> falou<br />
com Ricardo Boavida Ferreira, um dos<br />
investigadores que a lidera. É com ambição<br />
que fala do futuro, que pode muito bem<br />
passar pela distribuição à escala global de<br />
um poderoso fungicida descoberto em<br />
Portugal.<br />
[<strong>Paralelo</strong>] Em que circunstâncias surge o projecto<br />
da CEV?<br />
[Ricardo Boavida Ferreira] Tudo começou há<br />
16 anos, com a descoberta acidental de<br />
uma proteína. Durante 10 anos, estudámos<br />
essa proteína no Instituto Superior de<br />
Agronomia e no Instituto de Tecnologia<br />
Química e Biológica. Durante esse período,<br />
fomos levados a deduzir que ela teria propriedades<br />
antifúngicas surpreendentes. Ao<br />
contrário da maioria das proteínas, esta<br />
teria uma resistência extrema a agentes<br />
físicos, podendo ser utilizada na agricul-<br />
MARCO SILVA<br />
eConomiA<br />
é a partir da planta do tremoço que a Cev – biotecnologia das plantas extrai a proteína<br />
que age como fungicida.<br />
tura não só como fungicida, mas<br />
também como bioestimulante.<br />
[P] Quem estava envolvido no projecto na<br />
altura?<br />
[RBF] Eu e o professor Artur<br />
Ricardo Teixeira liderávamos na<br />
altura o grupo de trabalho. Mais<br />
tarde, quando descobrimos a actividade<br />
fungicida, juntou-se a nós<br />
a professora Sara Monteiro.<br />
Finalmente, em 2005, pudemos<br />
contar com a participação de um<br />
colega que introduziu no grupo<br />
uma componente de empreendedorismo:<br />
o professor Virgílio<br />
Loureiro, com quem já tínhamos<br />
anteriormente colaborado.<br />
[P] De que forma é que o COHITEC contribuiu<br />
para o sucesso do projecto?<br />
[RBF] Até 2004 publicámos artigos científicos,<br />
onde demos a conhecer esta proteína.<br />
Mas, a certa altura, quando nos<br />
apercebemos do seu potencial comercial,<br />
parámos de escrever e contactámos algumas<br />
multinacionais. Como estávamos sozinhos,<br />
esse contacto não deu quaisquer<br />
resultados. Meses depois, entrámos no<br />
CohITEC, que se revelou uma ajuda ines-<br />
timável para ultrapassar o fosso entre a<br />
investigação e o desenvolvimento comercial.<br />
Na segunda fase do programa, a<br />
CoTEC ajudou-nos a escolher os investidores<br />
e transmitiu-lhes confiança. Isso foi<br />
muito gratificante para nós.<br />
[P] Encontrar um investidor foi um processo<br />
fácil?<br />
[RBF] Desde o início, tivemos a noção de<br />
que este projecto poderia chegar a valer<br />
uma enormidade. Depois de apresentarmos<br />
o nosso projecto aos investidores,<br />
ficámos com sete ou oito investidores dos<br />
quais escolhemos os dois melhores. Mas<br />
tivemos muita dificuldade em tomar uma<br />
decisão, porque havia propostas excelentes<br />
– o que me surpreendeu pela positiva.<br />
Às vezes, achava que nós tínhamos mais<br />
dúvidas sobre o produto do que os próprios<br />
investidores.<br />
[P] Quais são os planos para o futuro da CEV?<br />
[RBF] Tentar pôr o produto no mercado<br />
o mais depressa possível. Agora que os<br />
desafios de laboratório já foram ultrapassados,<br />
o grande desafio é mesmo o<br />
desenvolvimento industrial. Isto, é claro,<br />
depois de resolvermos as formalidades da<br />
patente e da homologação.<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 41
RUI OCHôA<br />
POR teoDorA CArDoso*<br />
Em 1989, um artigo da Harper’s Magazine 1<br />
resumia as ideias expostas por Robert Reich<br />
(que viria a ser responsável pelo Trabalho<br />
na Administração Clinton) aos seus alunos<br />
da Kennedy School of Government com<br />
respeito ao futuro do trabalho. Afirmava ele:<br />
“À medida que a economia americana<br />
se funde com o resto do mundo, quem se<br />
dedicar a tarefas relativamente pouco qualificadas,<br />
que possam ser executadas com<br />
menores custos noutros locais, não pode<br />
esperar manter-se próspero por muito<br />
tempo. [...] Muitas tarefas de rotina vão<br />
desaparecer, tanto na indústria como nos<br />
serviços. As que restam serão de dois tipos:<br />
serviços complexos, parte dos quais será<br />
vendida ao resto do mundo em troca de<br />
importações, e serviços pessoais que não<br />
podem ser fornecidos à distância.<br />
“os serviços complexos (como a engenharia,<br />
a finança, o direito, a informática,<br />
etc.) implicam trabalhar com dados e conceitos<br />
abstractos. Mesmo na indústria, são<br />
as tarefas executivas e de gestão que vão<br />
desenvolver-se mais rapidamente e também<br />
elas envolvem esse tipo de competências.<br />
[...] o equipamento intelectual<br />
necessário às tarefas do futuro é a capacidade<br />
de definir problemas, de assimilar<br />
rapidamente os dados relevantes, de conceptualizar<br />
e reorganizar a informação, de<br />
extrair conclusões, tanto dedutiva como<br />
intuitivamente, de fazer as perguntas difíceis,<br />
de discutir os resultados com os<br />
colegas, de colaborar na busca de soluções<br />
e de convencer outros.”<br />
Por seu turno, Peter Drucker, num dos<br />
seus últimos textos, escrito quando o<br />
autor já ultrapassara os 90 anos, mas não<br />
tinha perdido nada da sua excepcional<br />
capacidade de análise da sociedade que o<br />
rodeava 2 , afirmava em 2001: “A próxima<br />
sociedade será a sociedade do conhecimento.<br />
o conhecimento será o seu<br />
recurso-chave e os trabalhadores do<br />
42<br />
eConomiA<br />
As universidades<br />
e a nova sociedade<br />
conhecimento serão o grupo dominante<br />
da sua força de trabalho. As suas três características<br />
principais serão:<br />
“A ausência de fronteiras, porque o<br />
conhecimento se dissemina ainda mais<br />
facilmente que o dinheiro.<br />
“A capacidade de ascensão social, promovida<br />
por sistemas de educação formal<br />
acessíveis a todos.<br />
“o potencial de falhar, tal como de ser<br />
bem-sucedido. Todos podem adquirir os<br />
‘meios de produção’, isto é, os conhecimentos<br />
necessários a uma profissão, mas<br />
nem todos sairão vencedores.”<br />
E acrescenta: “A sociedade do conhecimento<br />
é a primeira sociedade humana em<br />
que o potencial de ascensão social é<br />
potencialmente ilimitado. o conhecimento<br />
difere de todos os outros meios de<br />
produção pelo facto de não poder ser herdado<br />
ou doado. Tem de ser adquirido de<br />
novo por cada indivíduo e todos partem<br />
da mesma total ignorância.”<br />
‘ Gasto por aluno inferior a 10 mil euros<br />
na europa contra mais de 35 mil euros<br />
nos estados unidos.<br />
’<br />
Este conjunto de ideias tem estado, por<br />
todo o mundo, na base de muito do debate<br />
sobre os temas da educação e das políticas<br />
do sector, em particular no que<br />
respeita ao ensino superior. Contudo, ao<br />
fim de duas décadas, verificamos que a<br />
maior parte das políticas foram ineficazes<br />
e, nalguns casos, agravaram mesmo os<br />
problemas, em especial no que respeita à<br />
ligação com a investigação científica e a<br />
inovação. Toda a Europa, onde o problema<br />
se tornou evidente, está, por isso, empe-<br />
nhada numa profunda reforma do ensino<br />
superior, que vai desde o Processo de<br />
Bolonha, ao financiamento das universidades<br />
e à articulação com a investigação.<br />
o reforço do financiamento é um dos<br />
pontos-chave da questão, bem caracterizado<br />
pelo facto de a despesa total (pública<br />
e privada) com o ensino superior a<br />
atingir apenas 1,3 por cento do PIB na<br />
UE25 contra 3,3 por cento nos Estados<br />
Unidos, o que se traduz num gasto por<br />
aluno inferior a 10 mil euros na Europa<br />
contra mais de 35 mil euros nos Estados<br />
Unidos 3 . A agravar o problema – e também<br />
a dificultar a solução – está a má qualidade<br />
da governança das instituições na Europa,<br />
a sua insuficiente autonomia e os incentivos<br />
perversos a que estão sujeitas.<br />
Todos estes factores estão presentes em<br />
Portugal, em geral em maior grau que na<br />
média europeia. Questões como a ausência<br />
de articulação com o ensino secundário,<br />
a dispersão de cursos com um<br />
pequeno número<br />
de candidatos, a<br />
desadequação dos<br />
apoios financeiros<br />
aos estudantes, os<br />
elevados custos<br />
administrativos (por<br />
vezes resultantes de<br />
imposições regulamentares),<br />
a “consanguinidade”<br />
dos corpos docentes,<br />
recrutados entre os diplomados da própria<br />
escola, ou a progressão nas carreiras,<br />
determinada pela existência de vagas e não<br />
pelo desempenho, estão entre os factores<br />
críticos apontados pela oCDE na sua avaliação<br />
recente do ensino superior em<br />
Portugal 4 .<br />
Quanto ao financiamento, essa análise<br />
defende que o seu aumento deve ser precedido<br />
de uma revisão do actual sistema<br />
de distribuição de fundos baseado em<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008
fórmulas que se revelam desincentivadoras<br />
das instituições mais dinâmicas, substituindo-o<br />
por contratos entre as<br />
instituições e o Governo, baseados em<br />
planos estratégicos e em objectivos negociados<br />
e sujeitos a acompanhamento<br />
quanto aos indicadores de desempenho.<br />
o sistema deve igualmente incentivar a<br />
captação de fundos privados e a articulação<br />
com a investigação científica, favorecendo<br />
a autonomia de gestão, com base<br />
na definição de estratégias de investimen-<br />
eConomiA<br />
‘ Factores críticos apontados pela oCDe na sua avaliação<br />
recente do ensino superior em portugal.<br />
’<br />
to e num sistema de indicadores que permita<br />
uma avaliação eficaz do desempenho,<br />
reduzindo simultaneamente a carga burocrática<br />
que pesa sobre as instituições, com<br />
um muito reduzido proveito em matéria<br />
de acompanhamento efectivo.<br />
Não pode esperar-se que a adopção<br />
deste tipo de medidas, já parcialmente<br />
consagrada em lei, coloque imediatamente<br />
Portugal em pé de igualdade com os<br />
Estados Unidos nesta matéria tão essencial<br />
para o desenvolvimento da economia<br />
Cerimónia de formatura enchendo de estudantes o Care stadium em blacksburg, virginia.<br />
e da sociedade. Elas constituem, no<br />
entanto, um passo indispensável para a<br />
necessária melhoria de resultados e para<br />
a capacidade de simultaneamente atrair<br />
investimento privado e incentivar a inovação,<br />
o binómio em que assenta o bom<br />
desempenho americano.<br />
1<br />
The Future of Work, Abril de 1989.<br />
2<br />
“Survey: The Near Future”, The Economist, 1 de Novembro<br />
de 2001.<br />
3<br />
Ver, por exemplo, “Why reform Europe’s universities?”,<br />
Brugel Policy Brief, n.º 4, 2007.<br />
4<br />
Tertiary Education in Portugal, 2007.<br />
* Economista, administradora do Banco de Portugal e presidente do<br />
Conselho Directivo da FLAD<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 43<br />
LUSA / EPA DAVIS TURNER
44<br />
CuLturA<br />
AsAs sobre A AmériCA<br />
um encontro transatlântico<br />
entre irmãos em universo<br />
Portugal Infinito, onze de Junho de mil novecentos e quinze...<br />
Hé-lá-á-á-á-á-á-á!<br />
Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa,<br />
dirige-se em saudação a Walt Whitman, seu “irmão em Universo”.<br />
Enquanto tira a gravata e o colarinho,<br />
porque “não se pode ter muita energia<br />
com a civilização à roda do pescoço”,<br />
garante-lhe:<br />
Sou dos teus, tu bem sabes, e compreendo-te e amo-te,<br />
E embora te não conhecesse, nascido pelo ano em que<br />
morrias,<br />
Sei que me amaste também, que me conheceste, e estou<br />
contente.<br />
Sei que me conheceste, que me contemplaste e me explicaste,<br />
Sei que é isso que eu sou, quer em Brooklyn Ferry dez<br />
anos antes de eu nascer,<br />
Quer pela Rua do Ouro acima pensando em tudo que<br />
não é a Rua do Ouro,<br />
E conforme tu sentiste tudo, sinto tudo, e cá estamos de<br />
mãos dadas,<br />
De mãos dadas, Walt, de mãos dadas, dançando o universo<br />
na alma.<br />
os mais de duzentos versos de Saudação a<br />
Walt Whitman são talvez o testemunho mais<br />
efusivo de ligação decisiva de um autor<br />
português a um autor norte-americano.<br />
É simbólico também o facto de Fernando<br />
Pessoa ter nascido poucos anos antes<br />
(1888) da morte de Whitman (1892), as<br />
duas obras unindo assim dois séculos de<br />
criação poética dos dois lados do Atlântico.<br />
E é pela carga simbólica da união criativa<br />
entre a dupla de poetas que esta foi escolhida<br />
como matriz tutelar para o ciclo “Asas<br />
sobre a América – Wings over America”,<br />
a decorrer na sede da FLAD até Julho próximo.<br />
A ideia inicial foi de Mário Mesquita,<br />
administrador da <strong>Fundação</strong> que tem a seu<br />
POR FiLipA meLo<br />
FOTOGRAFIAS rui oChÔA<br />
cargo a área cultural, abrangendo as humanidades,<br />
as ciências sociais e as artes. “Asas<br />
sobre a América – Wings over America” foi<br />
pensado primeiro como proposta de reflexão<br />
sobre as possíveis pontes entre a<br />
literatura portuguesa e a literatura norte-<br />
-americana, o modo como se manifestaram<br />
no passado e se manifestam no presente.<br />
A abordagem queria-se não exaustiva, mas<br />
antes particular e criativa, e daí o objectivo<br />
de interpelar autores portugueses para que<br />
dissertassem sobre os laços afectivos, intelectuais,<br />
formativos e mesmo técnicos, que<br />
os uniram e unem ao seu autor (ou um<br />
dos seus autores) norte-americano e obra<br />
ou conjunto de obra de eleição e possíveis<br />
influências destes sobre as suas próprias<br />
criações.<br />
Gonçalo M. Tavares,<br />
Manuel António Pina,<br />
Inês Pedrosa, Lídia<br />
Jorge, Pedro Mexia,<br />
Ana Luísa Amaral e Rui<br />
Zink, os autores convidados,<br />
representam<br />
várias gerações e várias<br />
expressões distintas da<br />
prosa e da poesia contemporâneas,<br />
e relativamente<br />
a todos é<br />
manifesto o reconhecimento da qualidade<br />
das suas obras. o convite teve em conta<br />
uma provável experiência estética de ligação<br />
à literatura norte-americana. Em alguns<br />
casos, foi endereçado a partir do conhecimento<br />
prévio da escolha mais provável de<br />
um determinado autor norte-americano,<br />
como, por exemplo, para o ficcionista Rui<br />
Zink, tradutor de obras de Saul Bellow, ou<br />
para a poeta Ana Luísa Amaral, doutorada<br />
em Literatura Norte-<strong>Americana</strong> com uma<br />
tese sobre Emily Dickinson. Noutros casos,<br />
foi feita uma sugestão inicial, que depois<br />
correspondeu, ou não, ao conjunto de preferências<br />
de cada autor português, procurando<br />
ajustar-se a opção final dentro<br />
dessas preferências a um conjunto coerente<br />
de referências a autores que representassem<br />
uma parte da melhor literatura norte-americana,<br />
desde o século XIX até à actualidade:<br />
Ezra Pound, Emily Dickinson, William<br />
Faulkner, Carson McCullers, Flannery<br />
o’Connor, Saul Bellow e Philip Roth.<br />
“Asas sobre a América – Wings over<br />
America” serve também uma abordagem<br />
‘ o ciclo afirma-se como incentivo<br />
ao debate criativo sobre o que poderá<br />
unir a ficção e a poesia portuguesas<br />
contemporâneas a um legado<br />
da literatura norte-americana.<br />
’<br />
à edição e ao ensino da literatura norte-<br />
-americana em Portugal não só através da<br />
realização de dois debates sobre o tema e<br />
do convite a várias editoras para a exposição<br />
e venda das suas traduções em paralelo<br />
a cada sessão do ciclo, como também através<br />
de parcerias entre a <strong>Fundação</strong> e várias<br />
universidades para a deslocação de estu-<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008
CuLturA<br />
eduardo Lourenço abriu o ciclo acompanhado por Filipa melo (escritora), rui machete<br />
e Abílio hernandez (Faculdade de Letras da universidade de Coimbra).<br />
dantes com o objectivo de assistirem às<br />
sessões. Vários docentes dessas universidades<br />
são também convidados a intervir nas<br />
sessões do ciclo, nomeadamente participando<br />
na condução do debate com o público.<br />
A relação entre Fernando Pessoa e Walt<br />
Whitman foi analisada por Richard Zenith,<br />
tradutor e ensaísta norte-americano e<br />
importante investigador pessoano há anos<br />
a residir em Portugal.<br />
“Asas sobre a América – Wings over<br />
America” acompanha um esforço recente<br />
de edição em língua portuguesa de inúmeras<br />
obras fundamentais da literatura<br />
norte-americana. o ciclo afirma-se como<br />
incentivo ao debate criativo sobre o que<br />
poderá unir a ficção e a poesia portuguesas<br />
contemporâneas a um legado da literatura<br />
norte-americana. Serve também de<br />
incitação para um entendimento daquilo<br />
que, na sessão inaugural, o filósofo e ensaísta<br />
Eduardo Lourenço definiu como “um<br />
continente futurante”, referindo-se sobretudo<br />
ao contributo dos Estados Unidos<br />
para uma mitologia planetária. Ao longo<br />
de cinco meses, a América, como “uma<br />
espécie de realidade objectiva incontornável”,<br />
surgirá reflectida no olhar subjectivo<br />
de criadores que, do lado de cá do<br />
Atlântico, colheram na melhor literatura<br />
norte-americana noções, inquietações,<br />
memórias e fascínios vários. Através do<br />
dinamismo desses trânsitos literários, saúdam-se<br />
possíveis irmandades, como a que<br />
levou o engenheiro e poeta sensacionista<br />
Álvaro de Campos a meter esporas e a<br />
convidar Whitman, “lá do outro mundo”,<br />
para uma dança furiosa, exclamando:<br />
“Meu velho Walt, meu grande Camarada,<br />
evohé!”<br />
sessão do ciclo “Asas sobre a América” no auditório da FLAD.<br />
> Philip Roth pinta um quadro geral,<br />
mas não esquece os pormenores. Os<br />
grandes e os pequenos movimentos da<br />
mão. Como falar do organismo e ainda<br />
da História, eis duas das tarefas de Roth.<br />
Ligadas de modo improvável.<br />
GonçALo m. tAvAres<br />
> Ezra Pound encontra-se de forma<br />
manifesta em alguns poemas que escrevi,<br />
mas tenho razões para suspeitar de que<br />
está presente em muitos mais sem ser<br />
visível em parte nenhuma deles.<br />
mAnueL António pinA<br />
> Com The Heart is a Lonely Hunter, de<br />
Carson McCullers, descobri que a<br />
adolescência é eterna e que a poesia<br />
pode nascer da limpidez da prosa.<br />
inÊs peDrosA<br />
> Walt Whitman, autor de Canto de Mim<br />
Mesmo, ajudou Pessoa a libertar-se de<br />
si próprio e para si próprio.<br />
riChArD zenith<br />
> Admiro profundamente a obra de<br />
William Faulkner. Não conheço outro<br />
escritor que melhor tenha entrado no<br />
coração profundo dos homens. Ainda por<br />
cima, relê-lo é surpreender a própria<br />
escrita na fonte da modernidade.<br />
LÍDiA JorGe<br />
> O mais fascinante em Flannery<br />
O’Connor é talvez a ilustração ao mesmo<br />
tempo cruel e compassiva dos caminhos<br />
ínvios para a salvação.<br />
peDro mexiA<br />
> “Habito a Possibilidade, uma Casa<br />
mais bela do que a Prosa”, declarou a<br />
maior poeta de língua inglesa. Emily<br />
Dickinson escreve uma poesia em que<br />
se propõe dizer toda a verdade, mas de<br />
forma oblíqua, e assim antecipa o radical<br />
gesto moderno do fingimento poético.<br />
“O meu ofício é a Circunferência”, disse<br />
ainda – que melhor cartão de visita?<br />
AnA LuÍsA AmArAL<br />
> Saul Bellow começa por ser uma voz,<br />
uma grande voz, que conversa comigo.<br />
E me faz aceitar um bocadinho mais o<br />
humano terno e ridículo e vivo que há<br />
em mim. (Nem sempre é fácil.)<br />
rui zinK<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 45
46<br />
CuLturA<br />
Querendo representar uma “espécie de cowboy armado” que “impõe a democracia”<br />
no mundo inteiro, os Estados Unidos criam a figura do “anticowboy”,<br />
defende Eduardo Lourenço. Assim, o “anjo” bélico do século XXI<br />
continua o imaginário de um “Continente violado na origem”,<br />
no qual o exercício da liberdade incluía o direito à violência.<br />
Reflectir sobre os Estados Unidos a partir<br />
do cinema, tema da conferência de<br />
Eduardo Lourenço (ver caixa, p. 48) que<br />
abriu o ciclo “Asas sobre a América –<br />
A Pietá impiedosa<br />
POR susAnA neves<br />
FOTOGRAFIAS rui oChÔA<br />
Wings over America”, na <strong>Fundação</strong> <strong>Luso</strong>-<br />
-<strong>Americana</strong>, implica inevitavelmente<br />
analisar o western, género cinematográfico<br />
paradigma da cultura americana.<br />
Nesta entrevista inédita, onde se procura<br />
descobrir se a genealogia do cowboy<br />
é europeia ou por que razão a humanidade<br />
ainda tem sede de mitos, revela-se em<br />
eduardo Lourenço em entrevista. um pensador capaz de “perscrutar a vocação das nações”, disse rui machete.<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008
simultâneo a capacidade ensaística e a<br />
independência intelectual do autor de,<br />
entre outras obras, A Morte de Colombo –<br />
Metamorfose e Fim do Ocidente como Mito<br />
(Gradiva, 2005).<br />
Como bem definiu Rui Chancerelle de<br />
Machete, presidente da FLAD, no dia da<br />
sessão inaugural, Eduardo Lourenço não<br />
é só “por excelência um ensaísta na literatura<br />
e na história”, mas um pensador<br />
capaz de “perscrutar a vocação das<br />
Nações”.<br />
André Bazin diz que “o western nasceu do<br />
encontro de uma mitologia com um meio de<br />
expressão”. Que mitologia é esta que o cinema<br />
americano, e em particular o género western,<br />
recriou e divulgou?<br />
o western veicula a posse virtual ou real de<br />
um espaço que não pertencia aos americanos.<br />
Lembra a epopeia da sua conquista<br />
e colonização, o momento em que se formou<br />
uma identidade. Quando os cowboys,<br />
heróis desta conquista, começam a desaparecer<br />
é quando começam a ser interessantes<br />
como objectos de ficção. Porque as<br />
histórias do western situam-se sempre no<br />
passado, manifestam uma nostalgia por<br />
uma época de ouro, uma nostalgia dos<br />
grandes espaços, do contacto com a terra,<br />
a América fundamental.<br />
Podemos considerar que os westerns legitimaram<br />
a usurpação de um território e a violência<br />
contra um ‘outro’ que não foi reconhecido como<br />
‘outro’ e como igual?<br />
Sem dúvida. Numa primeira fase, de total<br />
boa consciência, o western oscila entre o<br />
divertimento, com conotação épica, e uma<br />
maneira de tornar heróico aquilo que foi<br />
uma usurpação, e uma colonização, por<br />
vezes, particularmente violenta; que, de<br />
resto, não se exerceu apenas contra os<br />
índios, mas também contra o México,<br />
a quem foi roubada uma parte imensa do<br />
território, a que posteriormente se veio a<br />
chamar Texas, fonte de grande riqueza<br />
devido à existência de petróleo.<br />
No livro La Grande Aventure du Western,<br />
de JeanLouis Rieupeyrout [Les Éditions du Cerf,<br />
Paris, 1971], encontrei um anúncio de 1860,<br />
que recrutava cavaleiros para o Pony Express.<br />
Neste anúncio, divulgado por um periódico de<br />
São Francisco, pediase um cavaleiro jovem, que<br />
não tivesse mais de 18 anos, fosse excelente<br />
cavaleiro e estivesse disposto a enfrentar o risco<br />
de morte diária – preferiam órfãos. Fiquei<br />
a pensar no perfil do cowboy e em qual seria<br />
a sua genealogia. Será que podemos encontrar<br />
um equivalente ao cowboy, por exemplo, num<br />
cruzado?<br />
Não creio que seja essa a genealogia.<br />
CuLturA<br />
o primeiro número da paralelo sob o olhar atento de eduardo Lourenço.<br />
o mito do cowboy não é de origem inglesa<br />
mas mais de origem hispânica, enraíza-se<br />
na longínqua ascendência do cavaleiro da<br />
Ibéria. o que é curioso é que o cowboy, em<br />
princípio, não tem a conotação aristocrática<br />
ou nobre que representa o cavaleiro na<br />
Europa, é pura e simplesmente um elemento<br />
da cultura das grandes fazendas, a sua<br />
extracção é muito mais humilde. o western<br />
é que elevou, pouco a pouco, esses personagens<br />
a heróis, sobretudo os positivos, os<br />
que fazem respeitar a lei e a justiça num<br />
mundo onde o poder central não tem grande<br />
eficácia. Eram simples vaqueiros, assalariados,<br />
os cowboys eram uma Pietá, e talvez<br />
até por isso o género foi imediatamente<br />
muito popular.<br />
Acha que os Estados Unidos já se libertaram dos<br />
seus westerns ou a sociedade norteamericana<br />
vive refém desta cultura popular?<br />
Não, creio é que a natureza épica, de acção<br />
contínua, veiculada pelo cinema, impregna<br />
todo o sistema social americano. os americanos<br />
não são actores de uma cultura ou<br />
civilização adquiridas, têm sempre de<br />
impor a sua lei com mais ou menos violência,<br />
o que era natural na primeira fase<br />
de conquista do oeste. Ainda hoje, são uma<br />
nação armada, sem inimigo à vista. Na<br />
Idade Média, só o cavaleiro tinha direito<br />
de andar armado, mas para o americano é<br />
legal e honroso, é um direito. Esta atitude<br />
guerreira impregnou todo o inconsciente<br />
da cultura americana; digamos que os<br />
Estados Unidos, no seu conjunto, e a cultura<br />
americana em particular, são uma<br />
espécie de cowboy armado.<br />
Michael Moore realizou Tiros em Colombine<br />
(“Bowling for Colombine”, 2002), sobre o massacre<br />
na escola secundária de Colombine.<br />
Recentemente, houve mais um massacre no meio<br />
universitário americano. Que tipo de herói/cowboy<br />
é este que mata sem ter inimigo?<br />
É preciso uma sociologia complexa para<br />
explicar este tipo de fenómenos mas eu<br />
penso que desde o início toda a América,<br />
não só a do Norte, nasceu de um acto de<br />
violência, é como se um continente tivesse<br />
sido violado na origem. É preciso não<br />
esquecer que essa América são sempre duas<br />
Américas, a que existia há milhares de anos,<br />
que desconhecia a existência de um outro<br />
mundo, e a que vem da Europa, ou seja,<br />
literalmente de outro planeta, e destrói a<br />
primeira. os vestígios dessa violência ainda<br />
estão latentes. A verdade é que essa violência<br />
quase natural e estrutural das Américas<br />
se repercute a nível simbólico em todos os<br />
campos: na literatura, na arte, em tudo.<br />
A nossa necessidade de construir mitos fezme<br />
pensar em Marcel Proust. Na obra Em Busca<br />
do Tempo Perdido, defende que a ascensão<br />
ao conhecimento significa também a destruição<br />
dos mitos, ou seja, a passagem da “Idade dos<br />
Nomes à Idade das Palavras”. Ora nós, e quando<br />
digo “nós” refirome à cultura toda, a<br />
Humanidade, continuamos agarrados aos mitos,<br />
venham eles de onde vierem. O cinema é óptimo,<br />
é uma máquina visual, auditiva e sensorial fortíssima.<br />
Se tivermos em conta as ideias de Proust<br />
significa que não crescemos, não atingimos ainda<br />
a maturidade? Continuamos na Idade dos<br />
Nomes, dos Mitos e não chegámos ainda à das<br />
Palavras?<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 47
os mitos não são uma criação nem uma<br />
leitura da realidade intrinsecamente falsa<br />
ou aparente, mas uma leitura da realidade<br />
em imagem. A mitologia é a primeira<br />
expressão da verdade e nunca desaparece.<br />
Depois pode haver outras versões que se<br />
desmistificam sucessivamente, mas o enraizamento<br />
do nosso imaginário é imediatamente<br />
mítico. Fernando Pessoa dizia que<br />
tinha o sentimento de não existir mas tinha<br />
conseguido transformar-se num mito.<br />
Embora o professor Eduardo Lourenço tenha<br />
começado por anunciar que a sua presença<br />
na abertura do ciclo de conferências “Asas<br />
sobre a América – Wings over America" era<br />
“um erro de casting”, uma vez que não é<br />
“americanista” nem expert em cinema americano,<br />
a sua intervenção constituiu um<br />
momento ensaístico decisivo para o entendimento<br />
dos Estados Unidos como nação<br />
reinventada por Hollywood, fábrica de mitos<br />
de carácter universal e “futurante”.<br />
No seu habitual tom pausado, falando para<br />
um auditório a transbordar de visitantes, o<br />
autor de O Esplendor do Caos (Gradiva, 2007)<br />
explicou que os Estados Unidos não só forjaram<br />
a sua identidade a partir do cinema como<br />
através da Sétima Arte conseguiram suscitar<br />
nos outros povos o desejo de ser americano,<br />
disseminando desta forma os seus sonhos,<br />
valores e padrões de comportamento.<br />
Máquina de colonização simbólica prodigiosa,<br />
o cinema americano foi também um<br />
instrumento de reinvenção e “comentário”<br />
da história americana, à medida que ela ia<br />
acontecendo. O Nascimento de Uma Nação<br />
("The Birth of a Nation"), de D. W. Grifffith,<br />
1915, E Tudo O Vento Levou ("Gone with<br />
the Wind"), de Victor Fleming, 1939, ou<br />
ainda As Vinhas da Ira ("The Grapes of<br />
Wrath"), de John Ford, 1940, seriam para<br />
Eduardo Lourenço alguns dos filmes paradigmáticos<br />
da cinematografia americana<br />
enquanto lugar de História, os dois primeiros<br />
por abordarem o conflito Norte-Sul que<br />
dividiu os Estados Unidos entre abolicionistas<br />
e defensores da escravatura, o terceiro<br />
por ser uma referência à Grande Depressão<br />
de 1929.<br />
“Espaço mitológico por excelência”, sobretudo<br />
a partir dos anos de 1940 e 1950, o<br />
cinema americano soube “reciclar” todas as<br />
temáticas e mitologias ocidentais (Cleópatra,<br />
48<br />
CuLturA<br />
Nenhuma cultura em tão pouco tempo<br />
criou uma mitologia tão eficaz e tão partilhada<br />
pelo mundo inteiro como o cinema<br />
americano. Por que é que o western<br />
teve tanta eficácia, tanto impacto, sobretudo<br />
nos primeiros tempos? Porque de<br />
uma forma simples mostrou o confronto<br />
entre o Bem e Mal. Na fase mais inocente<br />
e maniqueísta, o cowboy é uma<br />
espécie de Deus ex-machina, restaura a<br />
ordem e a paz quando a comunidade já<br />
“A América é a vida como cinema”<br />
Joseph L. Mankiewicz, 1963) e não ocidentais,<br />
impondo-se também pela invenção no âmbito<br />
dos seus vários géneros e a originalidade<br />
dos seus personagens que ascenderam ao<br />
estatuto de ícones universais.<br />
Se Tarzan se tornou um símbolo da “heroicidade<br />
medida não pela relação do Homem<br />
com os outros homens mas com a Natureza”,<br />
“sem precedentes no imaginário europeu”,<br />
Charlot conquistaria uma universalidade<br />
equivalente a D. Quixote, enquanto Fred<br />
Astaire, herói aéreo, capaz de dançar até no<br />
tecto (You Are All the World to Me, 1951),<br />
é um dos mais carismáticos representantes<br />
da comédia musical, género cinematográfico<br />
que foi de “uma novidade total” na história<br />
não sabe o que há-de fazer perante os<br />
crimes, arbitrariedades e injustiças que<br />
se cometem. Quando a paz social foi<br />
corroída pelo medo, pelo pânico e pela<br />
cobardia. O Comboio Apitou Três Vezes (“high<br />
Noon”, 1952, de Fred Zinnemann), com<br />
Gary Cooper, é um filme paradigmático<br />
e uma metáfora do mundo dominado<br />
pelo medo, temática muito forte da sociedade<br />
americana, onde se teme voltar ao<br />
caos.<br />
João Lopes e Almeida Faria (na foto da direita para a esquerda) no auditório a transbordar<br />
para ouvir eduardo Lourenço.<br />
do cinema, porventura, também um dos mais<br />
“abstractos”.<br />
“Duplo do mundo” mas com uma “capacidade<br />
de emocionar superior à vida”, o cinema,<br />
e em particular o americano, tornou-se<br />
em si mesmo um Continente onde são possíveis<br />
todas as viagens no tempo. Quer seja<br />
ao passado, sob a forma nostálgica da revisitação<br />
da “origem absoluta de si mesmo”,<br />
de que o género western é um paradigma<br />
exemplar, quer seja rumo ao futuro, unidade<br />
temporal onde é possível reinventar o Paraíso<br />
à maneira americana, ou seja, pela acção.<br />
“A América é a vida como cinema e sobretudo<br />
como cinema americano”, conclui Eduardo<br />
Lourenço, e o público aplaudiu.<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008
Podemos encontrar na cultura e literatura ocidentais<br />
narrativas que sejam equivalentes às narrativas<br />
do western?<br />
A Odisseia [atribuída a homero] não é<br />
propriamente um western, mas Ulisses<br />
é submetido a uma série de provas, com<br />
um conteúdo iniciático, é alguém que<br />
também vai atravessar e vencer uma série<br />
de obstáculos no Mar – que é uma metáfora<br />
da existência, uma substância imprevisível,<br />
na qual os homens estão sempre<br />
em perigo de naufragar. É exactamente<br />
o mesmo esquema da mitologia americana.<br />
Nela, os heróis lançam-se em perigos<br />
diversos, sempre com a ideia de<br />
chegarem a um espaço mítico onde se<br />
encontra uma espécie de paz, a Terra<br />
Prometida. Nos nossos clássicos, o herói<br />
também procura chegar a um lugar específico,<br />
no caso de Ulisses é a casa. Mas o<br />
problema de Ulisses é que ele não queria<br />
muito regressar a casa.<br />
o que distingue a mitologia americana<br />
em relação a qualquer mitologia ocidental<br />
é que nela há um fundo de optimismo<br />
superior. A mitologia americana nasceu<br />
de um sonho, de gente que encontrou<br />
qualquer coisa que alegoricamente era o<br />
Paraíso, era o que o Colombo procurava.<br />
Mas que ele se encarregou de destruir rapidamente.<br />
Sim, mas essa ideia ficou. Toda a mitologia<br />
americana está ligada à ideia de que<br />
aquela é a Terra da Liberdade. onde cada<br />
um, na medida do possível, é capaz de<br />
concretizar os seus sonhos até ao fim. E,<br />
sobretudo, ser ele mesmo, ser responsável<br />
pela sua vida. os Estados Unidos herdaram<br />
essa pulsão messiânica que vem do texto<br />
bíblico, que se tornou o texto cultural por<br />
excelência dos colonos e depois da maioria<br />
dos americanos. É muito interessante<br />
verificar que logo nos primeiros anos do<br />
século XX, toda essa gente que tem um<br />
papel importante na criação do cinema<br />
americano, na altura o espectáculo mais<br />
popular do mundo, são judeus. Não só os<br />
proprietários das majors, por exemplo,<br />
Warner, Mayor e Goldwyn, mas também<br />
os realizadores como [Josef von] Sternberg<br />
ou grandes actores como Chaplin.<br />
Acha possível o regresso dos cowboys?<br />
Se os cowboys são essa espécie de anjos<br />
cinematográficos que incarnam os valores<br />
mais preciosos na tradição ocidental,<br />
enquanto restauradores da justiça, esperemos<br />
que haja sempre cowboys! o problema<br />
é se a América se institui cowboy para<br />
fazer reinar a justiça no mundo inteiro<br />
– nessa altura, contraria o ideal de liberdade<br />
que defende e torna-se anticowboy.<br />
CuLturA<br />
Uma coisa é querer que todos os povos<br />
do mundo sejam cada vez mais democráticos,<br />
outra coisa é impor a democracia à<br />
força, através da violência e, sobretudo,<br />
uma violência absolutamente desproporcionada.<br />
Quando os Estados Unidos vieram<br />
salvar a Europa da ameaça hitleriana,<br />
quando durante vários anos enfrentaram<br />
a ameaça soviética, confrontavam forças<br />
iguais; agora, mobilizar as armas mais<br />
sofisticadas do mundo para pôr na ordem<br />
um país de décima quinta categoria isso<br />
é o cúmulo da violência e da injustiça.<br />
[No 11 de Setembro] os Estados Unidos<br />
foram atacados pela primeira vez no seu<br />
solo, mas atacados por quem? Por nenhum<br />
Estado. Punir o mundo inteiro porque uma<br />
espécie de loucos decidiu castigar os<br />
Estados Unidos pelos seus pecados, significa<br />
entrar já não num western mas num<br />
género dramático e eticamente pouco<br />
aceitável.<br />
“uma coisa é querer que todos os povos do mundo sejam cada vez mais democráticos,<br />
outra coisa é impor a democracia à força.”<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 49
50<br />
CuLturA<br />
Jornalistas portugueses<br />
nos euA<br />
Dez jornalistas portugueses estão de partida para<br />
os Estados Unidos com bolsas de curta duração. Vão<br />
ao abrigo dos programas “Alfredo Mesquita”<br />
(Açores) e “Rodrigues Miguéis” (Continente), criados<br />
pela FLAD com o objectivo de favorecer o intercâmbio<br />
na área jornalística.<br />
os seleccionados irão visitar diversas instituições<br />
norte-americanas – como o Congresso, o Senado e<br />
o jornalista José<br />
rodrigues miguéis,<br />
escritor<br />
POR onésimo teotónio ALmeiDA<br />
o escritor José Rodrigues Miguéis foi<br />
também um jornalista assíduo que pelos<br />
jornais derramou prolífica colaboração.<br />
Muitos dos seus livros foram mesmo surgindo<br />
primeiro na imprensa, se bem que<br />
em textos escritos com intenção de serem<br />
mais tarde reunidos em volume.<br />
A sua vinda para os Estados Unidos em<br />
1935 proporcionou-lhe (ou, se preferirmos,<br />
empurrou-o para) um contacto<br />
intenso com as comunidades emigrantes<br />
portuguesa e hispânica. No período de<br />
adaptação é comum os recém-chegados a<br />
um país procurarem relacionar-se com as<br />
comunidades que lhes são culturalmente<br />
mais próximas. Miguéis tinha, por um<br />
lado, o na altura pequeno núcleo português<br />
de Nova Iorque (e Newark, ali perto);<br />
por outro, a Guerra Civil de Espanha agarrou<br />
a sua sensibilidade de animal político,<br />
fazendo-o envolver-se fortemente na causa<br />
republicana. Numa entrevista à revista<br />
Gávea-Brown, por sinal a última que conce-<br />
deu, afirmava: “Colaborei muito em jornais<br />
luso-americanos como o Diário de<br />
Notícias, de New Bedford, o Independente, de<br />
Fall River, etc.; em jornais e revistas do<br />
segmento hispano-americano, por vezes<br />
ao abrigo de pseudónimos; no diário<br />
republicano La Voz, de Nova Iorque, na<br />
revista Norte e na revista Nueva Democracia<br />
(escrevia espanhol correntemente).<br />
Colaborei em inglês em revistas como The<br />
Nation e The Protestant.” Alguns desses escritos<br />
têm sido recuperados. Duarte Barcelos<br />
Mendonça reuniu toda a colaboração no<br />
Diário de Notícias, de New Bedford, que será<br />
publicada em breve na revista Gávea-Brown,<br />
com uma introdução do investigador.<br />
o professor George Monteiro procurou<br />
identificar a colaboração em La Voz, mas<br />
sem êxito. os pseudónimos diferentes não<br />
facilitam o trabalho. Apesar do auxílio da<br />
viúva, Camila Miguéis, que indicou a<br />
George Monteiro alguns dos mais usados<br />
pelo escritor.<br />
Foram dez anos de intensa participação<br />
política e jornalística que não deixaram<br />
boas recordações no escritor. Na citada<br />
entrevista ele explica porquê. Ao ser-lhe<br />
pedido que explicitasse melhor uma afirmação<br />
feita sobre ter sido um erro dedicar<br />
demasiado tempo aos problemas dos<br />
emigrantes, esclareceu-se nestes termos:<br />
“Não tanto aos imigrantes, como à política<br />
em que eles se envolviam – na mino-<br />
o Supremo Tribunal de Justiça –, bem como universidades,<br />
e contactar com personalidades de áreas<br />
públicas e privadas. Participarão, também, num<br />
curso do Committee of Concerned Journalists e em<br />
seminários dirigidos pelos jornalistas Bill Kovacs e<br />
Tom Rosenthiel.<br />
os programas contam com o apoio do Departamento<br />
de Estado e da Embaixada dos EUA em Lisboa. CpC<br />
ria! Foi um erro na medida em que vim<br />
a verificar que, em troca da minha dedicação<br />
total, conheci a ingratidão e o abandono.<br />
Mas até no erro se aprende – talvez<br />
melhor! Também, enquanto me dediquei<br />
aos nossos emigrantes não produzi literariamente.<br />
Identifiquei-me com eles! Já<br />
antes tinha escrito: ‘o homem em nós<br />
mata o escritor’ – ao que acrescentei:<br />
‘Diante das lágrimas que escorrem pela<br />
face interior do mundo, cai-nos das mãos<br />
a pena’. o escritor em mim tinha morrido<br />
às mãos do sectário! Mas, um dia,<br />
como que renasceu das cinzas, acreditando<br />
que a função do escritor é a de realizar-se<br />
fazendo obras e que a essência da sua<br />
vocação é exprimir-se – exprimindo os<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008
dramas dos outros.” (“Entrevista com José<br />
Rodrigues Miguéis”, conduzida por<br />
Carolina Matos, enviada pela revista a Nova<br />
Iorque: Gávea-Brown, Janeiro-Junho de<br />
1980, p. 44).<br />
No entanto, Miguéis nunca mais largaria<br />
os jornais. Deixou, sim, o artigo de<br />
opinião, mas o seu impulsivo reagir ao<br />
que à sua volta se passava bem como a<br />
Alfredo Mesquita, escritor e jornalista, natural<br />
de Angra do heroísmo onde nasceu em<br />
1871, deixou-nos belas páginas de ensaio<br />
histórico-filosófico sobre a vida e os costumes<br />
de vários países, incluindo Portugal, a<br />
Espanha, a holanda e os Estados Unidos da<br />
América. A sua obra inclui livros passados<br />
em Lisboa (Alfacinhas e Rua do Ouro), e em<br />
Angra (o Jarrão da Índia), e crónicas de viagens<br />
com detalhes sobre os lugares onde serviu<br />
como diplomata (Espanha, holanda, Estados<br />
Unidos da América).<br />
É dele a seguinte descrição do grupo dos<br />
“Vencidos da Vida”, da qual faziam parte<br />
personalidades como Eça de Queirós,<br />
CuLturA<br />
sua perspicaz atenção<br />
ao quotidiano ditaram-lhe<br />
sempre crónicas<br />
que foi regular-<br />
mente enviando para a<br />
imprensa lisboeta,<br />
sobretudo o Diário<br />
Popular, onde tinha<br />
como arrimo o seu<br />
indefectível, infatigável<br />
e sempre leal<br />
amigo Jacinto Baptista. Continuou escrevendo<br />
para a imprensa periódica em<br />
parte por necessidade económica, pois<br />
decidira ser escritor a tempo inteiro e<br />
precisava de conseguir algum suporte<br />
económico. No espólio doado à Biblioteca<br />
John hay, da Brown University, há várias<br />
cartas tratando de assuntos contabilísticos<br />
com os jornais reveladores de como os<br />
tostões eram todos contados. A crónica<br />
foi, por isso, a par do conto (e dos aforismos),<br />
o seu modo perene de presença<br />
jornalística. Crónicas sobretudo tomando<br />
como tema a América do Norte, mais<br />
precisamente Nova Iorque. Escritas em<br />
português, uma selecção delas foi finalmente<br />
traduzida para inglês pelo professor<br />
David Brookshaw, da Universidade de<br />
Bristol, no Reino Unido, que tem dedicado<br />
algum tempo da sua pesquisa a<br />
investigar o espólio de Miguéis. Um volu-<br />
Alfredo mesquita,<br />
a diplomacia ao correr da pena<br />
POR CArLA bAptistA<br />
Ramalho ortigão, Jaime Batalha Reis e<br />
outros intelectuais da chamada “Geração<br />
de 70”: “A redacção [do jornal Tempo] era<br />
nas vizinhanças do hotel Bragança, e os<br />
Vencidos da Vida, que lá tinham os seus<br />
habituais jantares, costumavam invadir-nos<br />
a casa ao levantarem-se da mesa, enchendo-nos<br />
as salas com o alarido confuso da<br />
sua conversação, que o champanhe espiritualizava<br />
e risonhamente requintava.<br />
“Umas vezes era Eça de Queirós, desengonçando-se<br />
em pequenos pulos, dando<br />
volta à sala onde escrevíamos, vindo de<br />
mesa em mesa apresentar a cada um de nós<br />
os seus ‘mais respeitosos cumprimentos’,<br />
‘ A crónica foi, a par do conto<br />
(e dos aforismos),<br />
o modo perene<br />
da presença jornalística<br />
de miguéis.<br />
’<br />
me com o título The Polyedric Mirror. Tales of<br />
American Life foi publicado em 2007 pela<br />
editora Gávea-Brown, do Departamento de<br />
Estudos Portugueses e Brasileiros da Brown<br />
University, em Providence, Rhode Island.<br />
Mais um na infelizmente ainda magra série<br />
de livros de Miguéis traduzidos para inglês.<br />
(os outros são uma colectânea de contos<br />
– Steerage and Ten Other Stories, coordenada por<br />
George Monteiro e também da responsabilidade<br />
da Gávea-Brown, e A Man Smiles at<br />
Death – with half-a-face, tradução por George<br />
Monteiro de Um Homem Sorri à Morte – com<br />
Meia-Cara, publicado pela University Press<br />
of New England).<br />
Só resta espaço para lembrar a importância<br />
de se reler Miguéis, quanto mais<br />
não seja para se saborear uma escrita de<br />
altíssima qualidade estilística. Nos tempos<br />
que correm, já não é pouco. há, porém,<br />
muito mais.<br />
tratando por ‘vossa excelência’ e perguntando<br />
com voz aflautada pela esposa e os<br />
meninos ao paladino do celibato que era<br />
Alberto Braga. Depois, ao fim desta estúrdia,<br />
pedia a um de nós o lugar para escrever<br />
a notícia do banquete; mas a meio da<br />
segunda linha escrita suspendia a pena e<br />
declarava peremptoriamente não se lembrar<br />
já do que lá se passara, nem do que<br />
se comera, e ia adormecer num sofá, soluçando<br />
e implorando do conde de Ficalho<br />
a conclusão da notícia.<br />
“Ficalho, por sua vez desmemoriado<br />
miserimamente, como ele dizia, recorria à<br />
memória, incomparavelmente pronta<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 51
de António Cândido; mas mesmo esse apenas<br />
se recordava, de um modo muito incerto<br />
e vago, de que houvera perdizes. Só<br />
Carlos de Lima Mayer parecia convencido<br />
de que haviam sido devoradas duas lagostas<br />
opíparas.”<br />
Estas linhas integram um livro que<br />
Alfredo Mesquita dedicou ao seu grande<br />
amigo João Chagas, que começa com um<br />
parágrafo comovente:<br />
“Na terça feira passada, 31 de Janeiro, ao<br />
fim da tarde, fui ao alto de S. João para estar<br />
52<br />
CuLturA<br />
ilustração do livro América do norte.<br />
ainda uns instantes com o meu amigo João<br />
Chagas, que ali tem a sua última morada.<br />
Encontrei-o só, estivemos sós, e durante<br />
muito tempo não trocámos duas palavras.<br />
Decerto o meu silêncio não lhe causou surpresa,<br />
porque me foi sempre hábito, estando<br />
em sua companhia, ouvi-lo e calar-me.”<br />
Partilhando o fel habitual entre os intelectuais<br />
da época que viveu, foi mordaz<br />
em relação aos hábitos lusos. No livro de<br />
memórias, intitulado justamente Memórias<br />
de Um Fura-Vidas (1905), encontramos frases<br />
como “A ambição de todo o português<br />
é ser empregado público – e não ir à repartição”,<br />
para depois prestar homenagem aos<br />
que, sendo funcionários públicos, vão à<br />
repartição: “A legião dos magros, dos pálidos,<br />
dos escanifrados que já por volta das<br />
nove e meia da manhã, em todos os dias<br />
úteis, vêm chegando à formiga dos bairros<br />
velhos e pobres da cidade, atravessam as<br />
Arcadas e arrastam pelas infinitas escadarias<br />
dos ministérios as solas rotas e os tacões<br />
gastos das suas botas esbeiçadas, se perdem<br />
depois pelos corredores daqueles imensos<br />
casarões e se somem por aquelas mil e<br />
uma portas misteriosas, que se não abrem<br />
a pessoas estranhas ao serviço.”<br />
o seu último livro foi também o mais<br />
bem-sucedido, tendo conhecido várias<br />
edições depois da primeira, em 1916.<br />
Intitula-se América do Norte e é um misto de<br />
diário jornalístico e ensaio sociológico<br />
sobre a paisagem e as instituições americanas,<br />
justificando a sua fama de ser o<br />
“Tocqueville português”.<br />
‘ partilhando o fel habitual<br />
entre os intelectuais<br />
da época que viveu,<br />
foi mordaz em relação<br />
aos hábitos lusos.<br />
no livro Memórias de<br />
Um Fura-Vidas (1905),<br />
encontramos frases<br />
como “A ambição<br />
de todo o português é<br />
ser empregado público<br />
– e não ir à repartição”.<br />
’<br />
Alfredo Mesquita foi redactor da<br />
Democracia Portuguesa, Revista Ilustrada,<br />
de António Maria Pereira, O Nacional, de<br />
Mariano Pina, Portugal, Correio Nacional, Jornal<br />
do Comércio e Diário de Notícias, tendo sido<br />
delegado da Associação dos Jornalistas de<br />
Lisboa nos congressos de Imprensa em<br />
Itália, na Suíça e em França.<br />
Em 1911, foi nomeado cônsul de segunda<br />
classe em Durban, transitando depois<br />
para orense, Melbourne, Constantinopla,<br />
Roma, Nova Iorque, hamburgo e Paris.<br />
Finda a carreira diplomática, decidiu ficar<br />
em Paris, tornou-se gerente de um hotel<br />
e aí morreu, em 1931.<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008
RUI OCHôA<br />
CuLturA<br />
No 15.º aniversário da Bolsa Ernesto de Sousa Arte Experimental Intermedia<br />
recordamos o artista transversal.<br />
Contra “a austera, apagada e vil tristeza”<br />
dos portugueses, já observada em Camões,<br />
Ernesto de Sousa (1921-1988), em sintonia<br />
com Raúl Brandão, defendia: “a<br />
pedra há-de dar flor”.<br />
o mais importante, para o realizador do<br />
filme Dom Roberto, 1962, premiado em<br />
Cannes, pioneiro e divulgador da arte<br />
intermedia em Portugal, não era o espectá-<br />
“ele [ernesto de sousa] vivia no futuro”,<br />
lembra isabel Alves.<br />
o homem que estava<br />
sempre a ler<br />
POR susAnA neves<br />
culo, nem a arte, mas a<br />
vida, a comunicação,<br />
o encontro plural, propício<br />
à festa.<br />
Para ele, conversar<br />
com Man Ray ou com<br />
o mítico Joseph Beuys<br />
(Documenta 5, Kassel,<br />
1972) era equivalente à descoberta de<br />
artistas portugueses quase anónimos e<br />
esquecidos como Rosa Ramalho ou o iletrado<br />
Franklin que um dia lhe dissera:<br />
“o Sol descobre a arte.”<br />
Para a “invenção do dia claro”, frase de<br />
Almada Negreiros, com quem muito conviveu<br />
e sobre quem realiza o filme Almada,<br />
Um Nome de Guerra, 1983, todas as “provocações”<br />
eram indispensáveis, sobretudo,<br />
as que punham em causa “a cultura asfixiante”,<br />
burguesa, tanto ética como esteticamente<br />
rígida e parcelar.<br />
Na linhagem de Dubuffet, influenciado<br />
pelo Living Theatre e os artistas Fluxus,<br />
Ernesto de Sousa defendia que a verdadeira<br />
vanguarda só é possível através do<br />
aproveitamento da memória e da “aventura<br />
da tradição”.<br />
Luis Vaz 73, obra mixed media, apresentada<br />
no V Festival Internacional de Mixed<br />
Media (Gent, 1975), é um bom exemplo<br />
desse princípio. Inspirando-se na poesia<br />
camoniana, Ernesto de Sousa concebe um<br />
conjunto de imagens enquanto Jorge<br />
Peixinho compõe música sem qualquer<br />
relação de complementaridade ou ilustração.<br />
E é a partir desta obra transversal<br />
que no futuro se propicia o encontro com<br />
Phill Niblock, director da Experimental<br />
Intermedia Foundation, Nova Iorque,<br />
‘ Leitor contínuo, estudioso e criador<br />
imparável, tinha “projectos e trabalho<br />
para vários séculos”.<br />
’<br />
actual orientador da Bolsa Ernesto de<br />
Sousa, co-financiada pela FLAD e pela<br />
<strong>Fundação</strong> Calouste Gulbenkian.<br />
“Ernesto só foi aos Estados Unidos uma<br />
vez, em 1983, a convite de Phill Niblock,<br />
para apresentar o mixed media Ultimatum. Ele<br />
vivia no futuro. Lembro-me de nessa viagem,<br />
quando era preciso acertar os últimos<br />
detalhes da apresentação, já estar a<br />
falar do projecto seguinte”, recorda Isabel<br />
Alves, sua companheira ao longo de vinte<br />
e dois anos, autora do site documental de<br />
referência: www.ernestodesousa.com.<br />
Leitor contínuo, estudioso e criador<br />
imparável, tinha “projectos e trabalho<br />
para vários séculos”, Ernesto de Sousa foi<br />
também um crítico controverso e um<br />
divulgador apaixonado das obras de<br />
outros. Recorde-se, entre muitos eventos,<br />
o comissariado de várias representações<br />
portuguesas na Bienal de Veneza bem<br />
como a notável exposição “Alternativa<br />
Zero”, realizada em Belém, em 1977,<br />
e a abertura da inovadora Galeria<br />
Diferença, da qual foi um dos fundadores.<br />
Ao final da tarde, na “sala branca” da R.<br />
S. Filipe Nery, havia tertúlia, muitos artistas<br />
de várias gerações apareciam para o<br />
ouvir falar. Ele que estava sempre a ler, e<br />
cultivara a “ingenuidade voluntária”,<br />
atraía e metia medo.<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 53
54<br />
CuLturA<br />
Açores e estados unidos da América<br />
universidades em partilha<br />
A partir de agora, professores e estudantes da Universidade dos Açores poderão trabalhar,<br />
durante o máximo de um ano, em vários estabelecimentos de ensino superior norte-americanos,<br />
assim como destes virão universitários para os Açores, pelo mesmo período de tempo,<br />
graças ao Acordo de Mobilidade Antero de Quental.<br />
Assinado em Ponta Delgada, em Março, este<br />
acordo é financiado (para o ano de 2008)<br />
em 100 mil euros pela FLAD e em 25 mil<br />
pela <strong>Fundação</strong> Calouste Gulbenkian.<br />
Mário Mesquita, administrador da FLAD<br />
responsável pelo projecto, explica a escolha<br />
do nome do programa: “Antero de<br />
Quental terá sido, de entre os grandes<br />
nomes da cultura portuguesa do século<br />
XIX, aquele que, desde a juventude, mais<br />
se interessou pela cultura norte-americana,<br />
conforme sustenta a anterianista Ana Maria<br />
de Almeida Martins. Talvez a sua condição<br />
de açoriano seja responsável por essa simpatia,<br />
tendo em conta que a emigração<br />
açoriana para os Estados Unidos, já considerável<br />
a partir de 1860, fazia parte da<br />
vida social dos insulares.”<br />
o acordo funcionará, para já, entre a<br />
Universidade dos Açores e o consórcio de<br />
universidades norte-americanas situadas<br />
em áreas onde se concentram as comunidades<br />
de emigrantes portugueses:<br />
Universidade de Brown; Universidade de<br />
Massachusetts – Dartmouth; Universidade<br />
de Massachusetts – Amherst; Universidade<br />
da Califórnia – Berkeley e Bristol<br />
Community College. outras universidades<br />
americanas poderão vir a aderir.<br />
Tanto os docentes como os estudantes,<br />
bem como os coordenadores deste projecto,<br />
serão seleccionados pelas respectivas<br />
universidades. E já há candidatos...<br />
Por ocasião da assinatura do Acordo de<br />
Mobilidade Antero de Quental foi organizado<br />
um colóquio na Universidade dos Açores<br />
sobre “Dinâmicas da Língua Portuguesa<br />
em Contexto Multilingue”, no qual foi<br />
discutida e analisada, ao longo de todo o<br />
dia, a difusão do português no Mundo e,<br />
em especial, nos Estados Unidos.<br />
A abrir o colóquio, Luís Andrade, pró-<br />
-reitor da Universidade dos Açores,<br />
POR sArA pinA<br />
FOTOGRAFIA viCtor meLo<br />
agradeceu o apoio da FLAD. Desta universidade<br />
intervieram, ainda, Clara Rolão<br />
Bernardo, helena Montenegro, Paulo<br />
Meneses e Graça Castanho. Para além dos<br />
subscritores do acordo, da Universidade<br />
de Massachusetts participou, também,<br />
Anna Klobucka, responsável pela coordenação<br />
de Ponto de Encontro, um manual de<br />
ensino de português.<br />
António Vicente, da FLAD, apresentou<br />
dados actualizados sobre o estado e perspectivas<br />
de crescimento da língua portuguesa<br />
que, nos Estados Unidos, é grande.<br />
Entre os 5 e os 17 anos de idade há mais<br />
de 85 mil pessoas que falam português<br />
em casas norte-americanas. A FLAD tem<br />
vindo a trabalhar com o College Board,<br />
em Nova Iorque, para que a língua portuguesa<br />
seja uma língua dos exames de<br />
acesso às universidades americanas e em<br />
breve apresentará, através do seu site<br />
(www.flad.pt), um programa interactivo<br />
sobre o português nos Estados Unidos.<br />
o presidente do Conselho Executivo, Rui<br />
Machete, encerrou o debate congratulan-<br />
do-se por este Acordo de Mobilidade constituir<br />
um instrumento de preservação e<br />
desenvolvimento da língua portuguesa.<br />
Assinatura do Acordo. Da esquerda para a direita: onésimo t. Almeida (universidade de brown<br />
e em representação da universidade da Califórnia – berkeley), rui machete, presidente da FLAD, Avelino<br />
de meneses, reitor da uAC, manuel Carmelo rosa, em representação da Gulbenkian, e victor C. mendes<br />
(universidade de massachusetts – Dartmouth). José Francisco Costa do bristol Comunity College,<br />
em representação da universidade de massachusetts – Amherst subscreveu, também, o acordo.<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008
No dia em que fiz 50 anos, estava profundamente apaixonada e<br />
em Nova Iorque: era-me difícil imaginar conjugação mais feliz.<br />
Depois de me arranjar para o jantar, registei esse momento<br />
numa daquelas fotos que só empolgam quem visita a cidade<br />
pela primeira vez ou os namorados: diante das inebriantes cortinas<br />
de néon de Times Square.<br />
Nova Iorque proporcionou-me muitas outras alegrias: entre elas,<br />
o prazer de ouvir Frank Sinatra por duas vezes ao vivo, no<br />
Metropolitan e no Radio City hall, o puro deleite de ver Rex<br />
harrison interpretar o Professor higgins de My Fair Lady (hélas! sem<br />
Audrey hepburn), George C. Scott dominar magistralmente o notável<br />
elenco de Twelve Angry Men. Pelo amor ao teatro, segui afoita, por<br />
vielas esconsas, atrás de um enorme negro que me prometera arranjar<br />
bilhetes para um hit do momento absolutamente esgotado.<br />
A história só não acabou mal porque o cavalheiro tinha cadastro e<br />
havia dois polícias no seu encalço que intervieram no exacto<br />
momento em que ele se preparava, com competência, para me<br />
assaltar; enquanto um dos agentes da lei se afastava com o delinquente<br />
algemado, a outra pregava-me um violento raspanete, olhando-me<br />
como se estivesse a dirigir-se a alguém apoucado.<br />
Foi também em Nova Iorque, instalados no Soho, que passei<br />
as últimas grandes férias a sós com o meu filho, antes daquele<br />
momento natural, mas melancólico para uma mãe, em que ele<br />
passou a preferir outras companhias femininas à minha. É provavelmente<br />
a pessoa com quem partilho mais afinidades e um<br />
grande companheiro de viagem. Tenho, muitas vezes, saudades<br />
desse Verão.<br />
CArtA brAnCA<br />
O dia do meu aniversário<br />
‘ nova iorque proporcionou-me muitas alegrias:<br />
entre elas, o prazer de ouvir Frank sinatra ao vivo,<br />
o puro deleite de ver rex harrison interpretar<br />
o professor higgins de my Fair Lady,<br />
George C. scott dominar magistralmente<br />
o notável elenco de twelve Angry men.<br />
’<br />
mAriA eLisA DominGues*<br />
Mas foi igualmente em Nova Iorque que vivi, na coincidência<br />
de um outro aniversário, a maior desilusão da minha<br />
vida, daquelas que rasgam o peito e nos fazem questionar<br />
toda a nossa existência, dilacerarmo-nos a procurar o<br />
momento em que falhámos, tentando em vão encontrar um<br />
sentido para continuar. Creio que nunca me recompus dessa<br />
graça perdida.<br />
E como os grandes amores não existem sem o reverso, foi<br />
em Nova Iorque ou graças a ela que, por duas vezes, me<br />
soube traída: da primeira, fugi do hotel – que, de qualquer<br />
modo odiava, imenso, impessoal – e regressei no primeiro<br />
avião para Lisboa, perdendo o que deveriam ter sido umas<br />
deliciosas férias nas ilhas Keys, tontice de que ainda hoje me<br />
arrependo, tanto mais que acabei por voltar para os braços<br />
do traidor.<br />
Da segunda vez foi mais grave: no rescaldo do 11 de Setembro,<br />
o homem que jurava ser eu a mulher da sua vida, publicou<br />
num jornal o relato emotivo das suas recordações de Nova<br />
Iorque contando, entre outros detalhes igualmente íntimos,<br />
que se declarara à mulher que amava no cimo do Empire State<br />
Building. o que jamais poderia ocorrer comigo pois detesto<br />
alturas, ainda que o clima seja da maior paixão.<br />
Dessa vez, não perdoei, foi corte definitivo. Por algum<br />
tempo, remoí a ideia de que a culpa era da cidade, perdi a<br />
vontade de lá voltar. Mas durou pouco. Como poderia eu<br />
virar costas ao sítio do mundo onde, no intervalo de poucos<br />
quarteirões, me senti morrer de dor e morrer de amor?<br />
* Jornalista da RTP<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 55<br />
RUI GAGEIRO
Seamounts: Ecology,<br />
Fisheries & Conservation<br />
pitcher, t. J., morato, t., et al. (eds.)<br />
2007, Oxford: Blackwell Publishing<br />
56<br />
Montes<br />
submarinos<br />
POR mário ruivo<br />
Professor, presidente do Comité Português<br />
para a Comisssão Oceanográfica Intergovernamental<br />
A publicação deste livro é particularmente<br />
oportuna, tendo em conta o tema e a<br />
abordagem polifacetada seguida, bem<br />
como o contexto da exploração e conservação<br />
do oceano em que se enquadra.<br />
Num conjunto de capítulos de grande<br />
qualidade, esta obra oferece um panorama<br />
sobre o estado actual dos conhecimentos<br />
e das implicações socioeconómicas da<br />
exploração dos seamounts (montes submarinos,<br />
terminologia que entrou em uso<br />
na década de 1930), numa perspectiva de<br />
gestão dos recursos e do meio marinho<br />
com base científica e da avaliação dos<br />
impactos de origem antropogénica.<br />
o interesse deste livro é acentuado pelo<br />
equilibrado plano a que obedece e que<br />
traduz a estreita interacção entre os autores<br />
e as abordagens interdisciplinares,<br />
apoiadas numa vasta bibliografia das mais<br />
recentes investigações na matéria. É de<br />
notar a preocupação em inserir os temas<br />
numa perspectiva contextualizada, ecológica<br />
e norteada pelos objectivos de um<br />
desenvolvimento sustentável. o professor<br />
Tony J. Pitcher sublinha, porém, no “Series<br />
Editors Forward”, que apesar dos progressos<br />
verificados no conhecimento de alguns<br />
dos habitats menos estudados do planeta,<br />
como é o caso dos montes submarinos e<br />
dos organismos que os habitam, estes<br />
continuam a ser “um mistério”, desbravado<br />
nos 21 capítulos, estruturados em<br />
Livros<br />
estante FLAD<br />
quatro partes, da autoria de 57 especialistas<br />
mundiais, entre os quais vários portugueses:<br />
I – Metodologias e técnicas; II<br />
– Interacção biofísica da produtividade<br />
dos montes submarinos; III – Visão sinóptica<br />
da ecologia dos montes submarinos<br />
e dos recursos pesqueiros; e, IV – Gestão<br />
e conservação.<br />
o “triunfo da colaboração” entre institutos<br />
e autores de reconhecidas competências<br />
nas matérias abordadas e a<br />
atmosfera que caracterizou o encontro<br />
realizado na horta, Faial, Açores, em Maio<br />
de 2005, é visível na expressão dos participantes<br />
na fotografia comemorativa.<br />
Não se trata, efectivamente, de um livro<br />
ocasional integrado na prestigiada série<br />
“Fish and Aquatic Resources Series”.<br />
Resulta de uma longa colaboração e de<br />
um rigoroso e paciente trabalho preparatório<br />
entre os autores-investigadores, no<br />
âmbito de uma rede científica que se tem<br />
vindo a consolidar ao longo dos anos e<br />
na qual o Departamento de oceanografia<br />
e Pescas da Universidade dos Açores, liderado<br />
pelo Doutor Ricardo Serrão Santos,<br />
tem estado activamente envolvido.<br />
É de notar, ainda, a preocupação de colocar<br />
os conhecimentos científicos ao ser-<br />
‘ [...] apesar dos progressos<br />
verificados no conhecimento<br />
de alguns dos habitats menos<br />
estudados do planeta, como<br />
é o caso dos montes submarinos<br />
e dos organismos que<br />
os habitam, estes continuam<br />
a ser “um mistério”<br />
’<br />
viço da gestão e da governação do oceano,<br />
apoiada numa leitura responsável da<br />
Convenção das Nações Unidas sobre o<br />
Direito do Mar (UNCLoS) e de outros<br />
instrumentos relevantes, cuja implementação<br />
requer consciencialização e envolvimento<br />
da sociedade civil. Este objectivo<br />
exprime-se no tratamento equilibrado da<br />
gestão dos recursos vivos/pesqueiros e da<br />
biodiversidade dos fundos marinhos,<br />
nomeadamente nos montes submarinos,<br />
num enquadramento ecossistémico e de<br />
desenvolvimento sustentável apoiado no<br />
conhecimento científico e, quando apropriado,<br />
no princípio da precaução.<br />
A consulta e leitura deste livro (525<br />
páginas, enriquecidas com ilustrações e<br />
gráficos de alta qualidade) é facilitada pelo<br />
estilo adoptado pelos autores, que contribui<br />
para a boa compreensão dos temas<br />
abordados não só por especialistas como<br />
também pelo público em geral.<br />
Seamounts: Ecology, Fisheries & Conservation<br />
constitui, pois, uma valiosa contribuição<br />
para uma governação mais adequada e<br />
eficaz do oceano, na linha da recente<br />
decisão da União Europeia de definir uma<br />
Política Marítima Europeia para os Mares<br />
e oceanos, e, no que diz respeito a<br />
Portugal, da adopção da Estratégia Nacional<br />
para o Mar.<br />
Neste contexto, mereceria projectar-se<br />
uma versão de divulgação sobre estes<br />
“habitats menos conhecidos” do espaço<br />
interior do nosso planeta. Estão de parabéns<br />
os autores e as instituições que contribuíram<br />
para a organização do encontro<br />
da horta e para a edição deste livro.<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008
As Fundações na Europa:<br />
Aspectos Jurídicos<br />
rui Chancerelle de machete<br />
e henrique sousa Antunes (coord.)<br />
Janeiro de 2008, Lisboa: <strong>Fundação</strong><br />
<strong>Luso</strong>-<strong>Americana</strong><br />
Fundações<br />
e direito da<br />
União Europeia<br />
POR rui hermeneGiLDo GonçALves<br />
Doutorando da Faculdade de Direito<br />
da Universidade Nova de Lisboa<br />
o livro As Fundações na Europa: Aspectos Jurídicos,<br />
uma edição bilingue da FLAD, de Janeiro<br />
de 2008, coordenada por Rui Chancerelle<br />
de Machete e henrique Sousa Antunes,<br />
transcreve as comunicações apresentadas<br />
no seminário internacional organizado<br />
pela própria FLAD, em parceria com a<br />
<strong>Fundação</strong> Bertelsmann, com o mesmo<br />
título, em Junho de 2005, bem como os<br />
animados debates que se seguiram às diferentes<br />
sessões. o objectivo fundamental<br />
deste seminário, resumido por Rui<br />
Chancerelle de Machete no discurso de<br />
abertura, consistia em proporcionar um<br />
debate público sobre os dois projectos de<br />
“estatuto de <strong>Fundação</strong> Europeia” existentes<br />
àquela data, do Centro Europeu de<br />
Fundações e do consórcio liderado pela<br />
<strong>Fundação</strong> Bertelsmann, que são reproduzidos<br />
integralmente no final do livro.<br />
Se, em Junho de 2005, se revelava oportuno<br />
discutir os projectos referidos, em<br />
2008, devido às recentes evoluções ao nível<br />
da União Europeia, a questão é de uma<br />
profunda actualidade. Com efeito, em Abril<br />
de 2007, a Direcção-Geral do Mercado<br />
Interno e Serviços da Comissão Europeia,<br />
também em resposta a um apelo reiterado<br />
Livros<br />
das fundações europeias, lançou finalmente<br />
um concurso público para a apresentação<br />
de um estudo sobre a viabilidade de introduzir<br />
um “estatuto de <strong>Fundação</strong> Europeia”,<br />
cujos resultados deverão ser conhecidos até<br />
ao final de 2008. o estudo será realizado<br />
pelo Max Planck Institute for International<br />
Private Law, em hamburgo, e pelo Centre<br />
for Social Investment, em heidelberg, dirigidos<br />
por Klaus J. hopt e Volker Then,<br />
respectivamente, que participaram activamente<br />
no seminário de 2005. A decisão da<br />
FLAD de publicar o livro As Fundações na<br />
Europa: Aspectos Jurídicos permite, por isso,<br />
recuperar a memória da relevante discussão<br />
sobre um assunto que influenciará necessariamente<br />
o futuro<br />
das fundações na<br />
Europa.<br />
Sem prejuízo das<br />
diferenças entre os<br />
projectos em comparação<br />
no livro,<br />
devidamente assinaladas<br />
por Klaus J.<br />
hopt na sua intervenção,<br />
pode afirmar-se<br />
que ambos concretizam uma<br />
aspiração legítima das fundações europeias<br />
de obter um enquadramento jurídico ver-<br />
dadeiramente europeu para as suas actividades<br />
transfronteiriças, pelo menos<br />
dentro da União Europeia. o estatuto de<br />
fundação europeia, que traduziria um<br />
instrumento jurídico optativo ou adicional<br />
para as fundações de interesse público,<br />
contribuiria assim para terminar com as<br />
restrições dos diferentes ordenamentos<br />
jurídicos nacionais às actividades intracomunitárias<br />
das fundações, designadamente<br />
discriminações fiscais em função da<br />
nacionalidade ou da residência, indo de<br />
encontro à jurisprudência mais recente<br />
do Tribunal de Justiça da União Europeia.<br />
Por último, a adopção de um estatuto<br />
de fundação europeia poderia ainda con-<br />
tribuir para o aprofundamento da integração<br />
europeia bem como para a<br />
diminuição do distanciamento entre os<br />
cidadãos europeus e as instituições da<br />
União. Tal como reconhece Rui Chancerelle<br />
de Machete, “as fundações ajudarão pode-<br />
rosamente no reforço do movimento de<br />
integração europeia, tão carecido de novos<br />
agentes e factores que o dinamizem”.<br />
A mudança de paradigma que o Tratado<br />
de Lisboa aportará à União Europeia passará<br />
necessariamente por um crescimento<br />
do papel e da importância das fundações<br />
e das demais organizações da sociedade<br />
civil. Tendo em conta a reconhecida capacidade<br />
de intermediação das fundações<br />
entre a sociedade civil e as instituições<br />
públicas, o estatuto de fundação europeia<br />
poderia por isso incentivar o exercício da<br />
filantropia como uma expressão de cidadania<br />
europeia e de concretização do bem<br />
comum europeu.<br />
‘ o estatuto de fundação europeia, que traduziria<br />
um instrumento jurídico optativo ou adicional para<br />
as fundações de interesse público, contribuiria<br />
assim para terminar com as restrições dos<br />
diferentes ordenamentos jurídicos nacionais […].<br />
’<br />
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<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 57<br />
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In Pursuit<br />
of Their Dreams<br />
Jerry r. Williams<br />
2005, Massachusetts: Center for<br />
Portuguese Studies and Culture,<br />
University of Massachusetts<br />
O sonho açoriano<br />
58<br />
POR nuno CostA sAntos<br />
Escritor<br />
Comecemos pela foto da capa – que é<br />
todo um romance. Uma foto a preto e<br />
branco de uma família açoriana nos<br />
Estados Unidos. Nove pessoas. Nove rostos<br />
de entre os milhares e milhares que, desde<br />
o início do século XIX, deixaram as ilhas<br />
e as suas biografias de pobreza, em busca<br />
de oportunidades de trabalho. há homens,<br />
mulheres, crianças. E um relógio por cima<br />
deles, sublinhando o tempo que corre.<br />
‘ […] um tempo de esforço e de labor.<br />
não há alegria nem tristeza nestes<br />
rostos fechados. Apenas a serena<br />
resignação de quem viajou por<br />
necessidade – não por turismo.<br />
’<br />
Curiosamente, percorre esta fotografia a<br />
ideia de suspensão desse tempo – um<br />
tempo de esforço e de labor. Não há alegria<br />
nem tristeza nestes rostos fechados.<br />
Apenas a serena resignação de quem viajou<br />
por necessidade – não por turismo.<br />
ou, noutra perspectiva: para fugir a problemas<br />
como o excesso de população,<br />
o decréscimo da produtividade agrícola e<br />
as condições naturais adversas.<br />
É destas famílias, tantas vezes ignoradas,<br />
que trata o livro de Jerry R.<br />
Williams, In Pursuit of Their Dreams – a History<br />
Livros<br />
of Azorean Immigration to the United States, obra<br />
útil e informada para quem perceber<br />
com alguma profundidade a questão<br />
da emigração açoriana para as várias<br />
Américas – a da Costa Leste, a da Costa<br />
oeste, a do havai.<br />
Emigração esta que, como<br />
lembra o autor, teve vários<br />
ciclos – iniciou-se com os<br />
baleeiros da Nova Inglaterra<br />
do início do século XIX,<br />
imortalizados pela pena de<br />
Melville, e tem, como última<br />
vaga reconhecida, a que<br />
se iniciou nos anos 60,<br />
nuns Estados Unidos pós-<br />
-Segunda Guerra Mundial,<br />
mais abertos a receber<br />
estrangeiros e as suas experiências.<br />
Jerry R. Williams faz aquilo<br />
que o jargão da imprensa<br />
não consegue fazer:<br />
pormenoriza. Distingue, em<br />
termos de ocupações laborais<br />
e hábitos de vida, os<br />
vários destinos da emigração<br />
(a título de exemplo, os<br />
destinos dos operários fabris<br />
e dos pescadores da Costa<br />
Leste nada tiveram a ver<br />
com os dos agricultores e<br />
dos mineiros da Califórnia).<br />
Trajectórias diferentes e diversas<br />
que se unificam num<br />
conjunto de valores de<br />
“portuguesidade” (e de,<br />
arrisque-se uma palavra<br />
menos consensual, “açorianidade”)<br />
que se mantêm ao<br />
longos dos anos: a importância<br />
da família, a figura<br />
paterna como marca de<br />
autoridade e a manutenção<br />
de laços com a família alargada.<br />
In Pursuit of Their Dreams é,<br />
apesar dos seus intentos<br />
especificamente académicos,<br />
uma homenagem.<br />
Uma homenagem a uma<br />
comunidade que, depois<br />
de ter ultrapassado a fase<br />
da sobrevivência pura e simples, foi<br />
aprendendo a impor-se, social e culturalmente,<br />
nas complexas e multiétnicas<br />
sociedades para as quais transportou<br />
um sonho e uma ambição.<br />
‘ uma homenagem a uma comunidade<br />
que, depois de ter ultrapassado<br />
a fase da sobrevivência pura e simples,<br />
foi aprendendo a impor-se, social<br />
e culturalmente, nas complexas e multiétnicas<br />
sociedades para as quais transportou um<br />
sonho e uma ambição.<br />
’<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008
Aventuras<br />
de Um Nabogador<br />
onésimo teotónio Almeida<br />
2007, Lisboa: Bertrand<br />
Contares<br />
do andarilho<br />
POR FrAnCisCo beLArD<br />
Jornalista freelance<br />
Navegar é preciso, viver idem, podia dizer<br />
o autor de Aventuras de Um Nabogador & Outras<br />
Estórias-em-Sanduíche, ou desventuras de um<br />
navegador. A dupla qualidade do narrador<br />
– autor e protagonista – marca as<br />
histórias ou “estórias”, “ensanduichadas<br />
em crónicas”. Português nos EUA, a dupla<br />
pertença terá marcado a predilecção por<br />
um termo que aspira a demarcar story de<br />
history e trocar “conto” por short story<br />
(mesmo short é mais ampla semanticamente),<br />
contornando na volta a questão da<br />
“história” com e sem maiúscula. Este viajante,<br />
não turista, dado a recriar mas não<br />
a mentir, narra episódios que viveu ou lhe<br />
foram contados, que assim aconteceram<br />
ou podiam acontecer. onésimo é um dos<br />
nossos melhores navegantes em fim de<br />
século ou começo de outro. Faz-se ao mar<br />
de avião, e, se tal não ocorre, mete água<br />
metafórica, como no episódio que<br />
encerrao livro e lhe dá título. Neste livro<br />
reitera o jeito raro de contar acontecimentos<br />
(reais, passe a redundância) e efabular<br />
em torno. A realidade irrompe tão rica,<br />
interessante e até prodigiosa que dispensa<br />
ficções propriamente mentidas.<br />
o escrúpulo dissuade-o de ser ficcionista,<br />
não lhe faltando experiências e arte que<br />
dele fariam “escritor” na acepção de<br />
matriz continental. Detecta-se na sua “poética”<br />
uma indecisão central entre ficção e<br />
registo (como cronista, testemunha, repórter<br />
ou revelador de indiscrições); talvez<br />
viesse ao caso discutir a natureza dos seus<br />
Livros<br />
textos não académicos a partir do conceito<br />
de paralaxe, ou parallax view, mas não<br />
serei eu a fazê-lo. Este homem, que<br />
defronta certezas infundadas do establishment<br />
intelectual e moral, que é atrevido a<br />
contar histórias reais e fictícias, poupa-se<br />
ao salto não mortal para a ficção “pura”<br />
que eliminaria problemas. Pairam sobre<br />
as andanças de onésimo a exposição ao<br />
olhar próximo (mãe, mulher, conhecidos,<br />
pudor na linguagem e em identificar pessoas;<br />
“excesso de pruridos”, “frágil vergar<br />
aos conselhos da minha primeira leitora”)<br />
e o medo de nos maçar, tão consentido<br />
que talvez lhe corte asas para voos de outra<br />
ordem. Sente-se a tensão fecunda entre<br />
olhar nativo e olhar estranho. É neste olhar<br />
movente que a sua perspicácia tão fundamente<br />
assenta, esteja aqui ou ali, observando<br />
todos como outros e, ao mesmo<br />
tempo, nossos. São textos que a voz do<br />
narrador torna homogéneos, em livro<br />
capaz de dispensar o itálico como separador<br />
entre “estórias”. Nuns casos, estas<br />
seriam fragmentos ou esboços de uma<br />
campus novel (e onésimo o nosso David<br />
Lodge), noutros, a literatura de viagens e<br />
a narrativa cómico-marítima que nos faltaram<br />
na viragem do século. Ao mesmo<br />
tempo, em digressão pelos espaços, ele<br />
condensa as expressões de mundos atlânticos<br />
e pacíficos, com as virtualidades da<br />
perspectiva luso-americana e da mundividência<br />
universalista. A sensibilidade às<br />
tragédias do povo de origem é patente,<br />
sem proclamações patéticas. Se a isto juntarmos<br />
o humor (subtil, subliminar ou de<br />
understatement nuns casos, aberto e descarado<br />
noutros), encontramos um escritor só<br />
tolhido por modéstia e autodepreciação<br />
(ficam-lhe bem, de resto), de que se evade<br />
em invenção vocabular e recursos estilísticos.<br />
onésimo é o bom contrabandista<br />
de géneros literários, que o seu talento<br />
guarda em gaveta indefinível de material<br />
confessável e inconfessável, contável e<br />
incontável. Na sua escrita vigiada, evita<br />
ser mais um romancista português. Toma<br />
diversas vozes; a pessoal, de actor e testemunha,<br />
e as que ecoam no poder de<br />
observador e contador, conjugando peças<br />
de descolagem variável em relação ao “que<br />
realmente aconteceu” (Ranke), acenando<br />
‘ onésimo é o bom contrabandista<br />
de géneros literários, que<br />
o seu talento guarda em gaveta<br />
indefinível de material confessável<br />
e inconfessável, contável<br />
e incontável.<br />
’<br />
ao que podia ter acontecido. Um universo<br />
sedutor, verdadeiro mesmo quando<br />
inverosímil (é também isso a realidade),<br />
marginal ao emprego deste investigador<br />
e professor, que escapa a ossos mais sisudos<br />
do ofício para dar o humor com que<br />
sobrevoa os oceanos e aterra em terras<br />
novamente descobertas. Essa harmonia<br />
polifónica não é manto fantasioso sobre<br />
a verdade nua; é desvio subtil entre nós e<br />
a crueza do mundo interpretado.<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 59
o campo de intervenção e pesquisa de Rui Moreira é o desenho.<br />
Para este artista, desenhar não é apenas um fazer, é um modo de<br />
pensar. Pensar a arte e pensar o mundo. Cada desenho que realiza<br />
no seu ateliê pressupõe uma viagem que o antecede. Deserto<br />
do Sara, Amazónia, Trás-os-Montes. o seu desenho inicia-se com<br />
a experiência física de um determinado lugar, a experiência directa<br />
do viver, sentir, cheirar, encontrar. Esta imediatez é ‘armazenada’<br />
no seu corpo e transposta, já na interioridade do seu<br />
ateliê, para a folha de papel. o espaço entre os dois acontecimentos<br />
é fundamental para que a experiência se transforme em<br />
matéria artística, para que se transforme em linguagem visual.<br />
A proposição filosófica de heidegger – o ser-no-mundo – pode<br />
ser invocada aqui para pensar a prática artística de Rui Moreira.<br />
Não há uma dissociação entre a sua vida e a sua arte. o fazer<br />
arte, o desenhar, constitui um prolongamento do seu estar no<br />
mundo. E o seu estar no mundo, embebido e imerso no quotidiano<br />
tangível, traduz-se no seu desenho. Um “desenho alargado”,<br />
como o denomina.<br />
o projecto que realizou em Trás-os-Montes iniciou-se em 2004.<br />
A sua proposta era estudar as festas pagãs (orgiásticas em tempos)<br />
que ainda subsistiam no Norte do País, e em particular debruçar-<br />
-se sobre a figura do careto. Esta figura, também uma antiga<br />
tradição nacional, é um homem comum que, através do vestir<br />
Rui Moreira nasceu no Porto, em 1971. Formou-se no Ar.Co,<br />
tendo começado a expor em meados da década de 1990. Das suas<br />
exposições individuais destacam-se as realizadas na Galeria Lisboa<br />
20 (2007, 2005 e 2003). Prepara uma mostra antológica na<br />
60<br />
CoLeCção FLAD<br />
rui moreira<br />
Encarnar o desenho<br />
de indumentárias típicas, se transforma noutro ser. Um ente<br />
possuído pela magia, em forte comunhão com a natureza e transportando<br />
uma forte tensão sexual. os desenhos de Rui Moreira<br />
sobre estas personagens apresentam seres em processo de mutação<br />
(entre o homem, o animal e o vegetal) e armados de uma<br />
poderosa força sexual.<br />
o trabalho de execução de cada um destes desenhos (como é<br />
habitual na sua obra) é caracterizado por um extraordinário<br />
detalhe. A cruz é um elemento recorrente na sua obra. Simboliza<br />
a unidade, o indivíduo. Enquanto adorno das vestes do careto,<br />
ela traduz a comunidade (presente mas também do passado, do<br />
tempo da história) que este personifica naquele momento.<br />
Recorrente é ainda a cor. o azul que escolhe e que emprega de<br />
forma monocromática, alude igualmente a uma história e a uma<br />
tradição portuguesa.<br />
Apesar de esta série se alinhar na continuidade dos trabalhos<br />
que havia desenvolvido anteriormente (e daí a repetição de<br />
determinados elementos), ela representa uma mudança no traço<br />
do artista que passa a renunciar a linha geometrizante e rigorosa<br />
para adoptar um fluir manual.<br />
FiLipA oLiveirA<br />
Curadora de arte contemporânea<br />
<strong>Fundação</strong> Carmona e Costa, a inaugurar no decorrer deste ano.<br />
Das exposições colectivas em que participou destacam-se: “Portugal<br />
Agora”, Mudam, 2007; “Bouzean”, Faro Capital da Cultura, 2005;<br />
“os Últimos Dias”, <strong>Fundação</strong> Calouste Gulbenkian, 2000.<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008
CoLeCção FLAD<br />
Sem Título, 2004, tinta de caneta sobre papel, 121 × 160 cm<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 61
62<br />
bLoCo De notAs<br />
A terceira margem do rio<br />
‘ As três candidaturas, ainda em disputa, situam-se<br />
fora dos binómios que moldam a cultura americana.<br />
“o (número) três – escreve Damatta – é a sábia<br />
e sempre próxima (mas invisível e paradoxal) terceira<br />
margem do rio”.<br />
’<br />
“Se na sociedade brasileira as relações<br />
entre as pessoas obrigam a mentir e calcular<br />
constantemente quem nos deve e a<br />
quem devemos, aqui, nos Estados Unidos,<br />
o problema é a ilusão de que tudo pode<br />
ser resolvido formalmente por meio de<br />
instituições impessoais.”<br />
Estas palavras são de Roberto DaMatta,<br />
antropólogo brasileiro traduzido em múltiplas<br />
línguas, autor de estudos sobre a<br />
vida quotidiana brasileira, o carnaval e o<br />
futebol, a rua e o jogo do bicho. DaMatta<br />
compilou em livro as colunas do Jornal da<br />
Tarde (1993-2001), do Estado de S. Paulo<br />
(2001-2004) e de periódicos de menor<br />
difusão, sob o título sedutor de<br />
Tocquevilleanas – Notícias da América (Rio de<br />
Janeiro, Rocco, 2005). o autor foi professor<br />
da Universidade de Notre Dame<br />
(Indiana) durante os dezassete anos a que<br />
correspondem estes ensaios e crónicas.<br />
o contraste entre os tipos de sociedade<br />
a que DaMatta alude remete para as teses<br />
de Edward hall (Beyond Culture). Nas sociedades<br />
pobres em contexto (as anglo-americanas)<br />
os códigos comunicativos quase dispen-<br />
sam a compreensão aprofundada do<br />
ambiente circundante. Nas culturas ricas<br />
em contexto (as sul-americanas), a comunicação<br />
interpessoal e não-verbal relega<br />
para segundo plano a lei, a regra ou o<br />
código. DaMatta não afirma coisa diferente:<br />
“No Brasil todo o mundo personaliza;<br />
aqui (nos Estados Unidos) todo o mundo<br />
impessoaliza”.<br />
Textos jornalísticos, mas simultaneamente<br />
ensaios de investigador que procura<br />
evitar que “os factos canibalizem as teorias<br />
ou, para ser menos pedante, os vários<br />
estilos pelos quais os acontecimentos são<br />
anestesiados de suas repercussões pelo uso<br />
de receitas interpretativas rotineiras”. Ao<br />
contrário dos que se encerram no jargão<br />
especializado, Roberto DaMatta assume<br />
a sua atitude de procurar traduzir para<br />
públicos mais vastos os resultados da pesquisa<br />
e da reflexão universitárias.<br />
o contraste entre sociedades desenvolvidas<br />
e “pobres em contexto” e sociedades<br />
em vias de desenvolvimento “ricas em<br />
contexto” – teorizado por Edward hall –<br />
não adquire na obra do antropólogo bra-<br />
mário mesQuitA<br />
um tocqueville antropólogo e brasileiro<br />
em pleno século xxi.<br />
sileiro significado normativo. Equivale<br />
antes a um esforço de interpretação.<br />
A ilusão anglo-americana é que tudo pode<br />
ser resolvido sem a interferência das relações<br />
entre as pessoas, através do respeito<br />
da legalidade e do culto das instituições.<br />
A ilusão sul-americana é que a amizade e<br />
o compadrio bastam para regular a socie-<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008
dade enquanto a lei e a regra são pormenores<br />
de menor relevância.<br />
A personalização sulista provoca o recurso<br />
frequente à mentira, enquanto a impessoalidade<br />
do Norte, sob a inspiração de<br />
certa cultura protestante, conduz muitas<br />
vezes à hipocrisia. No Brasil, o acento<br />
tónico nas relações interpessoais redunda,<br />
muitas vezes, na “corrupção e (na) incapacidade<br />
de, no plano público, separar o<br />
joio do trigo”, enquanto nos Estados<br />
Unidos, “o preço de uma radical institucionalização<br />
da vida social tem sido o mal-<br />
-estar causado pelo desencanto com um<br />
mundo que não tem lugar para as contradições,<br />
as dualidades e as ambiguidades”.<br />
Este exercício comparativo não conduz<br />
a adoptar uma das sociedades como<br />
“modelo” a imitar e a outra como “antimodelo”<br />
a exorcizar. Em muitos aspectos,<br />
Roberto DaMatta admira a organização<br />
social norte-americana. Noutros, a simpatia<br />
do colunista e investigador vai para<br />
a raiz brasileira. Mas nunca a admiração<br />
pelo Norte se converte em culto basbaque,<br />
nem o amor do Sul em autocontemplação<br />
alheia ao espírito crítico. DaMatta: “No<br />
Brasil e em outros países (como o Chile)<br />
muita gente está convencida de que falta<br />
muito pouco para sermos como eles [os<br />
americanos]: adiantados, grandes, desenvolvidos,<br />
hiperconsumistas e obviamente<br />
felizes. Mas, quando chegarmos lá, eles<br />
serão muito diferentes, provavelmente,<br />
muito mais parecidos connosco do que<br />
gostaria a nossa vã sociologia ou economia.”<br />
A eterna questão do terceiro partido<br />
norte-americano foi reavivada pelas candidaturas<br />
de Ross Perot e de Ralph Nader<br />
(tácticas ou não, pouco importa). Colin<br />
Powell, negro republicano e centrista, sustentou,<br />
sem ambiguidades, que os Estados<br />
Unidos precisam de um terceiro partido.<br />
Sucede que – como sublinha o antropólogo<br />
brasileiro – “o número três não é<br />
bem visto nesta terra que representa-se a<br />
si mesma como dual e que sempre imaginou<br />
que o tudo ou nada, o preto ou o<br />
branco, o leste ou o oeste, o sul ou o<br />
norte, constituem as opções de uma moralidade<br />
suficiente e superior”.<br />
A questão do terceiro termo não se resume,<br />
claro, ao terceiro partido ou ao terceiro<br />
candidato presidencial. Na<br />
actualidade, o número três inscreve-se por<br />
todos os ecrãs televisivos nos relatos e<br />
especulações sobre as próximas eleições<br />
norte-americanas. As três candidaturas,<br />
ainda em disputa, situam-se fora dos binómios<br />
que moldam a cultura americana.<br />
“o (número) três – escreve DaMatta – é<br />
bLoCo De notAs<br />
A excelente montagem da capa da time magazine acentua que só haverá lugar para um dos<br />
pré-candidatos – obama ou hillary – nas eleições americanas, mas a presença de uma mulher<br />
e de um mulato na luta pela Casa branca deixará traço na história da América.<br />
a sábia e sempre próxima (mas invisível<br />
e paradoxal) terceira margem do rio.”<br />
A ironia da história poderá ditar a “renovação<br />
na continuidade”, com a vitória do<br />
candidato republicano (isto não é uma<br />
previsão, mas uma hipótese), mas a presença<br />
de hillary e Barack – uma mulher<br />
e um mulato – na margem democrática<br />
da política americana, representa já uma<br />
enorme mudança que, sejam quais forem<br />
os resultados finais, deixará traço na história<br />
da América.<br />
Desde as primeiras sufragistas a hillary<br />
Clinton, desde a escravatura a Barack<br />
obama, os americanos perfizeram um<br />
enorme percurso. o longo caminho não<br />
está terminado, nem para a América, nem<br />
para o mundo, longe disso, mas ganha<br />
novo alento neste ano de 2008. Ao fundo,<br />
na linha do horizonte, esconde-se, sob o<br />
nevoeiro da esperança, a tal “terceira margem”<br />
– utópica, mas, por certo, necessária.<br />
Nunca chegaremos a vê-la,<br />
provavelmente, mas sabemos de ciência<br />
certa que lá está, em lugar incerto, sob o<br />
denso nevoeiro, à nossa espera.<br />
<strong>Paralelo</strong> n. o 2 | PRIMAVERA | VERÃO 2008 63