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Gilberto Freyre na Língua Portuguesa de novembro - Academia ...

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<strong>Gilberto</strong> <strong>Freyre</strong> em exposiçãoNo aniversário <strong>de</strong> vinte anos da morte do sociólogo, o Museu da Língua<strong>Portuguesa</strong> apresenta exposição em que o que conta são as marcas <strong>de</strong> estilodo autor <strong>de</strong> Casa-gran<strong>de</strong> & SenzalaFátima QuintasDepois <strong>de</strong> ampliar a temporada da exposição em home<strong>na</strong>gem a ClariceLispector, o Museu da Língua <strong>Portuguesa</strong> lança este <strong>novembro</strong> uma exposiçãointeiramente <strong>de</strong>dicada ao sociólogo <strong>Gilberto</strong> <strong>Freyre</strong> (1900-1987). A curadoria é<strong>de</strong> Julia Peregrino, a mesma do tributo a Clarice feito pelo museu até o mêspassado. A cenografia é <strong>de</strong> André Cortez e a consultoria, do antropólogo<strong>Gilberto</strong> Velho, do presi<strong>de</strong>nte da ABL Marcos Villaça e dos pesquisadoresPedro Vasquez e Eli<strong>de</strong> Rucai.Passados vinte anos <strong>de</strong> sua morte, uma <strong>de</strong>ze<strong>na</strong> <strong>de</strong> lançamentos e reedições<strong>de</strong> obras <strong>de</strong> <strong>Freyre</strong> vieram à to<strong>na</strong>, como Casa-gran<strong>de</strong> & Senzala, Sobrados eMucambos, Nor<strong>de</strong>ste, Or<strong>de</strong>m e Progresso, Açúcar e Olinda (Global Editora).Acaba <strong>de</strong> ser lançada também <strong>Gilberto</strong> <strong>Freyre</strong>: uma Biografia Cultural(Civilização Brasileira, R$ 80), <strong>de</strong> Enrique Rodríguez Larreta e Guillermo Gucci.As edições põem em <strong>de</strong>bate o papel do per<strong>na</strong>mbucano nos estudos da culturabrasileira. Mais: mostram a exuberância e a consciência <strong>de</strong> estilo <strong>de</strong> um dosgran<strong>de</strong>s intelectuais brasileiros do século passado. Para lembrar esta faceta <strong>de</strong>sua linguagem, Língua pediu a Fátima Quintas e a Edson Nery da Fonseca,especialistas em <strong>Freyre</strong>, que traçassem a relação do sociólogo com alinguagem.Serviço<strong>Gilberto</strong> <strong>Freyre</strong> - O Intérprete do BrasilMuseu da Língua <strong>Portuguesa</strong>(www.museudalinguaportuguesa.org.br)Estação da Luz, s/nº, São Paulo. (11) 3326-0775De 27 <strong>de</strong> <strong>novembro</strong> a maio <strong>de</strong> 2008.


Terça a domingo, das 10h às 17hIngresso: R$ 4. Gratuita até 10 anos, e professores do ensino público.Sábados, grátisA senzala fez o idiomaA Linguagem usada por sociólogo morto há vinte anos virou pretexto paracrítica a sua obraPor Fátima QuintasCasa-gran<strong>de</strong> & Senzala, <strong>de</strong> <strong>Gilberto</strong> <strong>Freyre</strong>, representa uma autobiografiacoletiva, linguagem romanesca com semelhanças ao "roman vrai" dos irmãosGoncourt, autores <strong>de</strong> Histoire <strong>de</strong> la Société Française pendant la Révolution(1854), que <strong>de</strong>fendiam a histoire sociale, no tempo em que esta não era levadaa sério, <strong>na</strong> França e em outros lugares. A Edouard e Jules <strong>de</strong> Goncourt <strong>de</strong>vesea expressão histoire intime. Em Casa-gran<strong>de</strong> & senzala, <strong>Freyre</strong> se colocacomo espelho <strong>de</strong> si e da gente que vê entre rostos projetados. Suametodologia rejeita os convencio<strong>na</strong>lismos <strong>de</strong> uma era em que o positivismo <strong>de</strong>Comte referendava a i<strong>de</strong>ologia <strong>de</strong> um Brasil republicano (1889). Início <strong>de</strong>século 20: os eflúvios franceses persistiam e se solidificavam <strong>na</strong> legenda cívicada ban<strong>de</strong>ira - Or<strong>de</strong>m e Progresso. Mais uma vez <strong>Freyre</strong> se <strong>de</strong>parou com aincompreensão <strong>de</strong> um Brasil estampado em preto e branco, avesso areformulações <strong>na</strong> ciência social, menos ainda <strong>na</strong> literatura científica.O livro chocou. Os ataques expandiram-se. Da linguagem coloquial e sensual,instigante, à ousadia da "técnica inovadora". O texto era in<strong>de</strong>cente, bradavamuns. O método era questionável, reforçavam os a<strong>de</strong>ptos do quantitativismo. Alinguagem era superlativamente literária, reclamavam os cientificistas. Trabalhoinconcluso, sem arremates, fi<strong>na</strong>lizações. Os ecos soavam <strong>de</strong> toda parte. E aintolerância sugeriu queimar a obra, em repúdio às idéias, ao estilo, lírico emalgumas passagens e aguerrido em outras; um estilo que se respaldava emvivas metáforas, <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m poética e <strong>de</strong> crueza ostensiva - traçado não-linear<strong>de</strong> estrutura <strong>na</strong>rrativa.


Se <strong>Gilberto</strong> <strong>Freyre</strong> se <strong>de</strong>finiu como escritor, a ele não faltaram preocupaçõescom a linguagem no Brasil. Remonta ao passado para enten<strong>de</strong>r a gênese danossa expressão verbal. O falar abrasileirado carrega uma mistura do popularcom o erudito:"Suce<strong>de</strong>u, porém, que a língua portuguesa nem se entregou <strong>de</strong> todo àcorrupção das senzalas, no sentido <strong>de</strong> maior espontaneida<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão,nem se conservou acalafetada <strong>na</strong>s salas <strong>de</strong> aula das casas-gran<strong>de</strong>s sob oolhar duro dos padres-mestres. A nossa língua <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l resulta dainterpenetração das duas tendências. Devemo-la tanto às mães Bentas e àstias Rosas como aos padres Gamas e aos padres Pereiras (<strong>Freyre</strong>, Casagran<strong>de</strong>& Senzala, 2000, p. 389).Na casa-gran<strong>de</strong>, a linguagem eclodiu ditatorial, forte, autoritária, manifestação<strong>de</strong> hegemonia. O uso seco dos imperativos; a or<strong>de</strong>m; a imposição; a firmeza domando. Na senzala - e sobremaneira entre negros do doméstico -, predominoua docilida<strong>de</strong> do falar, a dolente súplica, a <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za do pedido, tentativa <strong>de</strong>proteger-se, por trás <strong>de</strong> uma "muralha" lingüística, dos freqüentesautoritarismos.O Brasil se favoreceu com a simbiose <strong>de</strong> códigos. O verbo se amoleceu <strong>na</strong>palavra invocativa da negra. O "me dê" no lugar do "dê-me". A antecipação dopronome converteu a or<strong>de</strong>m em súplica social e <strong>de</strong>smontou as confrariaslingüísticas em vigência. Um peso que permeou o cotidiano, enriquecendo ascombi<strong>na</strong>ções da casa-gran<strong>de</strong>.Duas tendências andaram, às vezes, em trilhos paralelos, às vezes, emestradas unificadas: a do lusitano e a da africa<strong>na</strong>. Uma e outra indicandoposições extremadas, que se congratulavam <strong>na</strong> musicalida<strong>de</strong> do portuguêsabrasileirado. O amálgama <strong>de</strong> duas correntes opostas, uma coloquial, a outra,cerimoniosa, favoreceu a fusão <strong>de</strong> núcleos em contradição. Da senzalaadvieram os ruídos da opressão, os gestos <strong>de</strong> humilda<strong>de</strong> e <strong>de</strong> persuasão, tãoirma<strong>na</strong>dos à lógica da subalternida<strong>de</strong>. Não houve, como diria Paulo Freire,


"inserção crítica". Não se <strong>de</strong>tectou tomada <strong>de</strong> consciência por parte dooprimido. Ocorreu uma "inserção doméstica" possibilitadora da infiltração <strong>de</strong>valores no campo privado. Não há melhor situs <strong>de</strong> atuação que o daprivacida<strong>de</strong>.Nesse átrio receptivo, tudo se dilui em mensagens invisíveis, absorvidasinvoluntariamente, sem reações ou <strong>de</strong>codificações mais apuradas. A negra, aotransitar nos corredores da família patriarcal, sedimentou uma simbologia <strong>de</strong>todo especial para o sistema <strong>de</strong> trocas. O estado <strong>de</strong> "imersão" evoluiu para oestado <strong>de</strong> "emersão". Os trâmites não foram abando<strong>na</strong>dos; ao contrário, foramusados <strong>na</strong> dialética objetivida<strong>de</strong>-subjetivida<strong>de</strong>.AbrandamentosA negra amaciou a linguagem, <strong>de</strong>u-lhe singeleza, tempero. Tratou-a compreciosismo, retirando-lhe a fereza das palavras e o ranço antipático dasexpressões: "faça-me isso"; "dê-me aquilo", "diga-me o que fez". Amassou-apara acomodar sílabas refratárias à boca da criança, facilitando tons esemitons <strong>de</strong> complicada <strong>de</strong>gustação. As mudanças se iniciaram pelalinguagem infantil. Em tese, a criança dá melhor acolhida às rupturas <strong>de</strong> umasocieda<strong>de</strong> cristalizada em normas antigas. A meni<strong>na</strong>da bebeu o que lhebrindaram como novo arranjo léxico. Conjugação <strong>de</strong> sílabas com recursosfacilitadores. Nada <strong>de</strong> severida<strong>de</strong>. Assim, as palavras chegavam aos meninosjá liquefeitas. Sem espinhos, com candura e <strong>de</strong>svelo para que nhonhôs esinhazinhas não tivessem dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> pronunciar os agrestes fonemas.Quase como uma cantiga <strong>de</strong> ni<strong>na</strong>r.Veio o abrandamento: "dói" passou a "dodói", <strong>de</strong>ngoso vocábulo que roga porcarinho. "A ama negra fez com as palavras o mesmo que com a comida:machucou-as, tirou-lhes as espinhas, os ossos, as durezas, só <strong>de</strong>ixando para aboca do menino branco as sílabas moles. (...) As Antônias ficaram Dondons,Toninhas, Totonhas; as Teresas, Tetés; os Manuéis, Nezinho, Mandus, Manés;os Franciscos, Chico, Chiquinho, Chico" (Casa-gran<strong>de</strong> & Senzala, 1966, p.356).


No Brasil colônia, o lusitano portou-se, no discurso, a referendar a herançaaristocrática. A gramática foi usada como escudo <strong>de</strong> uma categoria <strong>de</strong> classes,exibindo vetores <strong>de</strong> uma fala culta, a seu modo coativa, com o intuito <strong>de</strong>ratificar os ângulos da estratificação.No mundo da bagaceira, a língua escrita foi uma; a falada, outra. Essadicotomia teve apoio dos jesuítas, que tentaram instituir a elite não só social,mas cultural. O fosso aumentava entre negros e brancos e entre homens emulheres. Eram a<strong>na</strong>lfabetas, mesmo as aria<strong>na</strong>s. A escrita <strong>de</strong>nunciavadiferenças da oralida<strong>de</strong>. Estabelecia-se a divisão entre os que escreviam oportuguês europeu e o brasileiro, com vocábulos africanos e tupis.Escrita e falaSe a escrita proliferou <strong>na</strong> casa-gran<strong>de</strong> só entre patriarcas, padres-mestres,mestres-escolas, capelães, ocupando lugar à parte, a língua falada se dividiuem fatias <strong>de</strong>siguais: a dos senhores e a dos <strong>na</strong>tivos ou escravizados. Aprimeira, oficial; a outra, abaixo dos critérios <strong>de</strong> aceitação, embora fluente einfluente <strong>na</strong> ciranda diária. As mães negras, as mucamas e o clima - um aliado- fizeram com a língua um trabalho <strong>de</strong> artesão. O clima enlanguesceu ohomem, amoleceu a linguagem e espichou o tempo em apreciável ler<strong>de</strong>za. Alassidão do agir associou-se à linguagem, fê-la vagarosa, farta <strong>de</strong> langor. Asnegras, filhas do Sol, albergaram como ninguém o sentido saudável daindolência. E os ss e os rr sintetizaram o alvo mais atingido <strong>na</strong> conversão <strong>de</strong>um português autêntico para um português vívido e mutante, sem adornos eestilismos fora dos eixos socioecológicos, culturais e geográficos.O vernáculo <strong>de</strong> estufa não vingou. O hibridismo venceu o português <strong>de</strong> origem.Nem padres nem gramáticos obtiveram sucesso <strong>na</strong> imposição <strong>de</strong> in<strong>de</strong>clináveisconceitos. Ce<strong>de</strong>ram às pressões. Se não ce<strong>de</strong>ram, aceitaram-<strong>na</strong>s <strong>de</strong> maugrado, mas aceitaram-<strong>na</strong>s. A vitória recaiu <strong>na</strong> boca do povo.


Fátima Quintas é antropóloga, autora <strong>de</strong> Segredos da Velha Arca eorganizadora <strong>de</strong> O Cotidiano em <strong>Gilberto</strong> <strong>Freyre</strong>


O estilo <strong>de</strong> <strong>Gilberto</strong> <strong>Freyre</strong>O Sociólogo gostava <strong>de</strong> escrever como se exibisse uma pintura ou um filme, enão dispensava a enumeração caótica <strong>de</strong> elementos para melhor caracterizarum temaEdson Nery da FonsecaA Universida<strong>de</strong> Baylor (Waco, Texas), on<strong>de</strong> <strong>Gilberto</strong> <strong>Freyre</strong> fez graduação, nãoé tão conhecida e importante como Harvard, Yale, Columbia, Princeton ouBerkeley. Baylor teve, entretanto, um professor do mais alto nível. JosephArmstrong era especializado em literatura vitoria<strong>na</strong> e apaixo<strong>na</strong>do pelo casal <strong>de</strong>poetas Robert e Elizabeth Browning. Armstrong construiu em Baylor umaverda<strong>de</strong>ira catedral do livro: a Browning Library, objeto <strong>de</strong> verbete <strong>na</strong>Enciclopédia Britânica. E atraía para a universida<strong>de</strong> alguns dos maisimportantes escritores norte-americanos, como Amy Lowell, figura exponencialdo imagismo <strong>na</strong>s literaturas <strong>de</strong> língua inglesa.O imagismo foi um movimento iniciado <strong>na</strong> Inglaterra por Thomas Ernest Hulme(1883-1917) em reação às representações vagas do simbolismo. Amy Lowellfoi imagista em sua poesia e <strong>na</strong> difusão do movimento. <strong>Freyre</strong> ficou encantadocom uma conferência <strong>de</strong> Lowell sobre Walt Whitman, tendo escrito sobre elaum artigo publicado por Armstrong num jor<strong>na</strong>l <strong>de</strong> Waco: artigo ampliado emcapítulo <strong>de</strong> Vida, Forma e Cor (1962). Estão aí as raízes do imagismofreyriano: influência <strong>de</strong> Lowell. A "enumeração caótica" - expressão criada porLeo Spitazer em ensaio sobre Whitman - ele herdou tanto do autor <strong>de</strong> Leavesof Grass como <strong>de</strong> outro poeta, Vachel Lindsay, que conheceu em Nova York,em 1922, quando fazia pós-graduação <strong>na</strong> Universida<strong>de</strong> Columbia.Há nos primeiros artigos <strong>de</strong> <strong>Gilberto</strong> <strong>Freyre</strong> (1918-1922) - reunidos nos doisvolumes <strong>de</strong> Tempo <strong>de</strong> Aprendiz (1979) - exemplos <strong>de</strong> imagismo. No poema"Bahia <strong>de</strong> Todos os Santos e <strong>de</strong> quase todos os pecados" há casos tanto <strong>de</strong>imagismo como <strong>de</strong> "enumeração caótica". Manuel Ban<strong>de</strong>ira - que oconsi<strong>de</strong>rava "um dos mais belos do ciclo das cida<strong>de</strong>s brasileiras" - reproduziu-o


em Antologia <strong>de</strong> Poetas Brasileiros Bissextos Contemporâneos (1946). Noensaio "<strong>Gilberto</strong> <strong>Freyre</strong> poeta" - da coletânea <strong>Gilberto</strong> <strong>Freyre</strong>: sua Ciência, suaFilosofia, sua Arte (1962) - comentou as versões do poema: versõesreproduzidas no póstumo <strong>de</strong> <strong>Freyre</strong> Bahia e Baianos (1990).Note-se que o poema é <strong>de</strong> 1926: antes, portanto, da exaltação <strong>de</strong> valoresbaianos por Ary Barroso e Dorival Caymmi. O hoje esquecido brasilianistanorte-americano William Berrien salientou o imagismo no poema. Lembre-se ainfluência da "enumeração caótica" <strong>de</strong> Whitman e, sobretudo, a <strong>de</strong> Lindsay. Emalguns versos são evi<strong>de</strong>ntes as influências.Em conferência lida <strong>na</strong> Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Direito do Recife, em 24 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong>1934, e publicada no mesmo ano, há uma "enumeração caótica" <strong>na</strong> qual <strong>Freyre</strong>exemplifica seus variados contatos nos EUA fora da roti<strong>na</strong> pedagógica <strong>de</strong>leituras, aulas, seminários e laboratórios. É uma enumeração entre travessõesque se esten<strong>de</strong> por pági<strong>na</strong>s, obrigando o leitor a voltar ao início da frase paramelhor entendê-la. Lembre-se que <strong>Freyre</strong> usou muito travessões, em vez <strong>de</strong>parênteses, para acrescentar informações adicio<strong>na</strong>is sem alterar a estruturasintática das frases.Imagismo e enumeraçãoNo prefácio à primeira edição <strong>de</strong> Casa-gran<strong>de</strong> & Senzala, <strong>Freyre</strong> <strong>de</strong>finiu seulivro como "ensaio <strong>de</strong> sociologia genética". Mas logo nesse prefácio ele seduzo leitor com a linguagem e o estilo <strong>de</strong> um ensaísta literário. O imagismo<strong>de</strong>sponta quando o autor se refere à escassez, no Brasil, <strong>de</strong> diários íntimosque, entretanto, abundam em países <strong>de</strong> formação protestante, como quesubstituindo o confessionário dos católicos.Escreve ele, numa frase ao mesmo tempo enumerativa e imagística:"Em compensação, a Inquisição escancarou sobre nossa vida íntima da eracolonial, sobre alcovas com camas que em geral parecem ter sido <strong>de</strong> couro,rangendo às pressões dos adultérios e dos coitos da<strong>na</strong>dos, sobre as


camarinhas e os quartos <strong>de</strong> santos, sobre as relações <strong>de</strong> brancos comescravos - seu olho enorme, indagador".É impressio<strong>na</strong>nte a imagem <strong>de</strong> um "olho" que, além <strong>de</strong> "enorme, indagador",está "escancarado" sobre alcovas, camarinhas, quartos <strong>de</strong> santos e relações<strong>de</strong> brancos com escravos. O verbo "escancarar" - abrir <strong>de</strong> par em par, expor,mostrar, exibir, franquear - muito usado para indicar abertura <strong>de</strong> portas ejanelas - exerce papel insólito <strong>na</strong> frase, pois o comum seria estar o olho aberto,arregalado e, no máximo, esbugalhado. Aqui ele está "escancarado", como ojato <strong>de</strong> luz <strong>de</strong> um holofote <strong>na</strong> escuridão acobertadora <strong>de</strong> adultérios, coitosda<strong>na</strong>dos e relações <strong>de</strong> brancos com escravos.Ao longo do livro há imagens como essa, <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r expressivo, nãohavendo capítulo em que não apareçam, dando-nos a impressão <strong>de</strong> ver o queestamos lendo. Luis Jardim, no prefácio a Artigos <strong>de</strong> jor<strong>na</strong>l (1935) - que pareceter sido escrito pelo próprio <strong>Freyre</strong> - assi<strong>na</strong>la que é "neste uso <strong>de</strong> imagens paraexprimir idéias, quase sensualmente, como se a palavra não bastasse" queconsiste a forma da expressão freyria<strong>na</strong>. As cartas <strong>de</strong> <strong>Freyre</strong> a Amy Lowell -conservadas <strong>na</strong> Houghton Library, <strong>de</strong> Harvard - e as da poetisa a ele - hoje <strong>na</strong>Fundação <strong>Gilberto</strong> <strong>Freyre</strong> - mostram como um brasileiro absorveu o imagismo.Para mostrar, no segundo capítulo <strong>de</strong> Casa-gran<strong>de</strong> & Senzala, como "oambiente em que começou a vida brasileira foi <strong>de</strong> quase intoxicação sexual",<strong>Freyre</strong> escreve como se estivesse pintando, fotografando ou filmandocolonizadores e evangelizadores <strong>de</strong>scendo das caravelas:"O europeu saltava em terra escorregando em índia nua; os próprios padres daCompanhia [<strong>de</strong> Jesus] precisavam <strong>de</strong>scer com cuidado, senão atolavam o péem carne".Note-se a força dos verbos "saltar" - muito mais expressivo do que"<strong>de</strong>sembarcar" -, "escorregar" e "atolar", os dois últimos usados tanto emsentido literal como no figurado, pois também se escorrega e se atola noschamados pecados contra a castida<strong>de</strong>.


BaralhosNo terceiro capítulo <strong>de</strong> Casa-gran<strong>de</strong> & Senzala, o autor mostra como foi<strong>de</strong>cepcio<strong>na</strong>nte para a Coroa <strong>de</strong>frontar-se com terras <strong>de</strong> pau-<strong>de</strong>-tinta após asriquezas <strong>de</strong>scobertas por Vasco da Gama <strong>na</strong> Índia. Surgem, a propósito, duasimagens surpreen<strong>de</strong>ntes, uma profa<strong>na</strong> - a do baralho - e outra religiosa: a dahumil<strong>de</strong> al<strong>de</strong>ia da Galiléia <strong>na</strong> qual viveu Jesus com seus pais."O Brasil foi como uma carta <strong>de</strong> paus puxada num jogo <strong>de</strong> trunfo em ouros. [...]Só em nova fase <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> portuguesa - a propriamente colonizadora, a dofim do século XVI e parte do século XVIII - o Brasil teria força <strong>de</strong> trunfo no jogodas competições imperialistas das <strong>na</strong>ções européias".No bojo da imagem religiosa vem outra também forte: a <strong>de</strong> "estilhaços do bloco<strong>de</strong> gente nobre" aplicada ao rebotalho humano que sobrou da aventura daÍndia: "Colônia fundada quase sem vonta<strong>de</strong>, com um sobejo ape<strong>na</strong>s <strong>de</strong>homens, estilhaços do bloco <strong>de</strong> gente nobre que só faltou ir inteira do reinopara as Índias, o Brasil foi a Nazaré das colônias portuguesas. Sem ouro nemprata. Somente pau-<strong>de</strong>-tinta e almas para Jesus Cristo".Re<strong>de</strong>s e palmeirasA<strong>na</strong>lisando uma pági<strong>na</strong> <strong>de</strong> Sobrados e Mucambos - obra por ele consi<strong>de</strong>radacomo superior a Casa-gran<strong>de</strong> & Senzala - Otto Maria Carpeaux falou da"gran<strong>de</strong> metáfora das palmeiras": as que vicejam gloriosas sobre túmulos <strong>de</strong>jovens vítimas da febre amarela nos cemitérios ingleses do Brasil; asmajestosas palmeiras representariam a vitória dos trópicos sobre o nórdicoinvasor.Outra metáfora <strong>de</strong> <strong>Gilberto</strong> <strong>Freyre</strong> é a da re<strong>de</strong>, símbolo da vida ociosa dospatriarcas. Está no último capítulo <strong>de</strong> Casa-gran<strong>de</strong> & Senzala e, apesar dosverbos chulos que nela aparecem, trata-se <strong>de</strong> uma das mais belas pági<strong>na</strong>s daprosa em língua portuguesa (ver pági<strong>na</strong> 42). Dessa pági<strong>na</strong> escreveu o poeta e


ensaísta português David Mourão Ferreira, num capítulo <strong>de</strong> Sob o mesmotecto: estudos sobre autores <strong>de</strong> língua portuguesa (1989): "Quadro implacável,quadro mesmo terrível. Mas quadro que não po<strong>de</strong> nem <strong>de</strong>ve fazer-nosesquecer, para lá da repulsa que o mo<strong>de</strong>lo nos provoque, a genial mestria <strong>de</strong>seu pintor".Ciência e literaturaAlém do imagismo e da enumeração caótica, Casa-gran<strong>de</strong> po<strong>de</strong> sercaracterizada como obra ao mesmo tempo científica e literária por suasaborosa prosa, seu estilo musical, sua pontuação origi<strong>na</strong>l, pela sábiautilização <strong>de</strong> expressões eruditas e populares, científicas e coloquiais. Alocução adverbial "<strong>de</strong> meia-tigela", por exemplo, aparece no prefácio à primeiraedição quando o autor se refere aos arremedos <strong>de</strong> diários íntimos que são osca<strong>de</strong>rnos com anotações <strong>de</strong> mexericos escritas por esquisitões, que <strong>de</strong>finecomo "Pepys <strong>de</strong> meia-tigela", associando a uma expressão popular o nome dodiarista inglês Samuel Pepys.Álvaro Lins dizia que mesmo eventualmente superada em suas sugestões poravanços <strong>na</strong>s ciências em que se baseia - antropologia, biologia, psicologia,sociologia - Casa-gran<strong>de</strong> subsistiria como obra literária. Falei em "sugestões"porque <strong>Freyre</strong> não gostava <strong>de</strong> "conclusões", tendo escrito que "a verda<strong>de</strong>iraciência é humil<strong>de</strong>, ficando a ênfase para a meia-ciência". Ele próprio oconfessou no prefácio à 4ª edição da obra - <strong>de</strong>finida pelo editor como"<strong>de</strong>finitiva": "<strong>de</strong>finitiva <strong>de</strong>ntro da relativida<strong>de</strong> que condicio<strong>na</strong> e <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>, emgran<strong>de</strong> parte, <strong>de</strong> novos avanços <strong>na</strong>s várias ciências e estudos em que sebaseia. Isto sem falar nos aspectos, porventura ainda mais flutuantes, <strong>de</strong> suasubjetivida<strong>de</strong>. As idéias e atitu<strong>de</strong>s do Autor. Seus pontos <strong>de</strong> vista. Osperso<strong>na</strong>lismos em que às vezes se alongam suas interpretações".Enumerações negativasAs enumerações freyria<strong>na</strong>s po<strong>de</strong>m ser classificadas em afirmativas - como asaté aqui citadas - e negativas: as usadas para caracterizar perso<strong>na</strong>lida<strong>de</strong>s pelo


que não foram e fatos não ocorridos. Na conferência Atualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Eucly<strong>de</strong>sda Cunha (1041) - reproduzida no livro Perfil <strong>de</strong> Eucly<strong>de</strong>s e outros Perfis (1944)- ele adotou a enumeração negativa:"Nem moças bonitas, nem danças, nem jantares alegres, nem almoços àbaia<strong>na</strong>, com vatapá, caruru, efó, nem feijoadas à per<strong>na</strong>mbuca<strong>na</strong>, nem vinho,nem aguar<strong>de</strong>nte, nem cerveja, nem tutu <strong>de</strong> feijão à paulista ou à mineira, nemsobremesas fi<strong>na</strong>s segundo velhas receitas <strong>de</strong> iaiás <strong>de</strong> sobrados, nemchurrascos, nem mangas <strong>de</strong> Itaparica, abacaxis <strong>de</strong> Goia<strong>na</strong>, assai, sopa <strong>de</strong>tartaruga, nem modinhas ao violão, nem pescarias <strong>de</strong> Sema<strong>na</strong> Santa, nemceias <strong>de</strong> siri com pirão, nem galos <strong>de</strong> briga, nem canários do Império, nemcaçadas <strong>de</strong> onça ou <strong>de</strong> anta <strong>na</strong>s matas das fazendas. Nem banhos <strong>na</strong>squedas-d'água dos rios <strong>de</strong> engenho - em nenhuma <strong>de</strong>ssas alegriascaracteristicamente brasileiras Eucly<strong>de</strong>s da Cunha se fixou. Nem mesmo nogosto <strong>de</strong> conversar e <strong>de</strong> cavaquear às esqui<strong>na</strong>s ou à porta das lojas - tão dosbrasileiros: <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a rua do Ouvidor à menor botica no centro <strong>de</strong> Goiás."São tantos e variados os problemas <strong>de</strong> medici<strong>na</strong>, em geral, e <strong>de</strong> alimentação,em particular, estudados por <strong>Freyre</strong> em Casa-gran<strong>de</strong> & Senzala que ao ler suaprimeira edição o professor Antonio da Silva Melo (1886-1973) pensou ser oautor, como ele, médico. É o que o fundador da Faculda<strong>de</strong> Nacio<strong>na</strong>l <strong>de</strong>Medici<strong>na</strong> escreveu em sua contribuição a <strong>Gilberto</strong> <strong>Freyre</strong>: sua Ciência, suaFilosofia, sua Arte. Por isso, <strong>Freyre</strong> foi convidado a prefaciar seu Problemas <strong>de</strong>Ensino Médico e <strong>de</strong> Educação (1937): uma das cente<strong>na</strong>s <strong>de</strong> seus prefáciospara outros autores, alguns médicos (Prefácios Desgarrados, 1978).Caos <strong>na</strong> medici<strong>na</strong>Em 1967 a Fundação Calouste Gulbenkian editou em Lisboa Sociologia daMedici<strong>na</strong>, <strong>de</strong> <strong>Freyre</strong>, <strong>de</strong>pois reeditado no Brasil pela editora Globo comoMédicos, Doentes e Contextos Sociais (1983). É nesse livro - <strong>de</strong>sconhecido noBrasil, mas traduzido em italiano em 1975 pela Rizzoli, <strong>de</strong> Milão, com o títuloorigi<strong>na</strong>l (Sociologia <strong>de</strong>lla medici<strong>na</strong>) - que se encontra um dos mais expressivos


exemplos <strong>de</strong> enumeração caótica. Em "Civilização do Homem Sentado", noteseo fim inesperado e dramático da enumeração.Porém, a mais longa enumeração caótica do ensaísmo freyriano está nocapítulo "Tentativa <strong>de</strong> Síntese" <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>m e Progresso (1959). O assunto dolivro é uma interpretação do fim do século 19 e advento do 20. Em "O 1900brasileiro", <strong>Freyre</strong> enumera um número consi<strong>de</strong>rável <strong>de</strong> traços <strong>de</strong> culturamaterial e moral (a palavra "cultura" entendida em seu sentido antropológico)que caracterizaram o 1900 brasileiro. A numeração caótica se esten<strong>de</strong> por seispági<strong>na</strong>s da sexta edição (2004). O autor chega a mencio<strong>na</strong>r - entre hábitos,<strong>de</strong>voções, tipos <strong>de</strong> habitação, veículos, leituras, perfumes, sabonetes,doenças, remédios, diversões, latri<strong>na</strong>s, bidés, escarra<strong>de</strong>iras, esportes,brinquedos, roupas, chapéus, anúncios, leituras, livros, revistas, jor<strong>na</strong>is,roupas, sapatos, móveis, alimentos, prostitutas estrangeiras, engraxates etc. -"a voga do ataque histérico entre senhoras burguesas, à saída <strong>de</strong> enterros eem face <strong>de</strong> outras situações dramáticas" (sexta edição, pp. 160-165).Volto ao curso seguido por <strong>Freyre</strong> <strong>na</strong> Universida<strong>de</strong> Baylor. O professorArmstrong ficou tão impressio<strong>na</strong>do com o inglês <strong>de</strong> <strong>Freyre</strong> que o aconselhou aadotar a cidadania norte-america<strong>na</strong>, ace<strong>na</strong>ndo com a promessa <strong>de</strong> cobiçadabolsa em Oxford: a Rho<strong>de</strong>s Scolarship. Chegou a citar a seu aluno o caso <strong>de</strong>Joseph Conrad, que, <strong>na</strong>scido <strong>na</strong> Polônia, tornou-se gran<strong>de</strong> escritor em línguainglesa.<strong>Freyre</strong> recusou a sugestão, tendo anotado em seu diário: "Se tiver <strong>de</strong> serescritor, meu <strong>de</strong>ver é escrever em língua portuguesa" (cf. Tempo Morto eOutros Tempos. 2ª edição revista. São Paulo: Global, p. 65). E foi o queaconteceu: ele tornou-se um dos maiores ensaístas do nosso idioma.Edson Nery da Fonseca é pesquisador emérito da Fundação Joaquim Nabucoe professor emérito da UnB, autor <strong>de</strong> Em torno <strong>de</strong> <strong>Gilberto</strong> <strong>Freyre</strong>(Massanga<strong>na</strong>) AUniversida<strong>de</strong> Baylor (Waco, Texas), on<strong>de</strong> <strong>Gilberto</strong> <strong>Freyre</strong> fezgraduação, não é tão conhecida e importante como Harvard, Yale, Columbia,Princeton ou Berkeley. Baylor teve, entretanto, um professor do mais alto nível.


Joseph Armstrong era especializado em literatura vitoria<strong>na</strong> e apaixo<strong>na</strong>do pelocasal <strong>de</strong> poetas Robert e Elizabeth Browning. Armstrong construiu em Bayloruma verda<strong>de</strong>ira catedral do livro: a Browning Library, objeto <strong>de</strong> verbete <strong>na</strong>Enciclopédia Britânica. E atraía para a universida<strong>de</strong> alguns dos maisimportantes escritores norte-americanos, como Amy Lowell, figura exponencialdo imagismo <strong>na</strong>s literaturas <strong>de</strong> língua inglesa.O imagismo foi um movimento iniciado <strong>na</strong> Inglaterra por Thomas Ernest Hulme(1883-1917) em reação às representações vagas do simbolismo. Amy Lowellfoi imagista em sua poesia e <strong>na</strong> difusão do movimento. <strong>Freyre</strong> ficou encantadocom uma conferência <strong>de</strong> Lowell sobre Walt Whitman, tendo escrito sobre elaum artigo publicado por Armstrong num jor<strong>na</strong>l <strong>de</strong> Waco: artigo ampliado emcapítulo <strong>de</strong> Vida, Forma e Cor (1962). Estão aí as raízes do imagismofreyriano: influência <strong>de</strong> Lowell. A "enumeração caótica" - expressão criada porLeo Spitazer em ensaio sobre Whitman - ele herdou tanto do autor <strong>de</strong> Leavesof Grass como <strong>de</strong> outro poeta, Vachel Lindsay, que conheceu em Nova York,em 1922, quando fazia pós-graduação <strong>na</strong> Universida<strong>de</strong> Columbia.Há nos primeiros artigos <strong>de</strong> <strong>Gilberto</strong> <strong>Freyre</strong> (1918-1922) - reunidos nos doisvolumes <strong>de</strong> Tempo <strong>de</strong> Aprendiz (1979) - exemplos <strong>de</strong> imagismo. No poema"Bahia <strong>de</strong> Todos os Santos e <strong>de</strong> quase todos os pecados" há casos tanto <strong>de</strong>imagismo como <strong>de</strong> "enumeração caótica". Manuel Ban<strong>de</strong>ira - que oconsi<strong>de</strong>rava "um dos mais belos do ciclo das cida<strong>de</strong>s brasileiras" - reproduziu-oem Antologia <strong>de</strong> Poetas Brasileiros Bissextos Contemporâneos (1946). Noensaio "<strong>Gilberto</strong> <strong>Freyre</strong> poeta" - da coletânea <strong>Gilberto</strong> <strong>Freyre</strong>: sua Ciência, suaFilosofia, sua Arte (1962) - comentou as versões do poema: versõesreproduzidas no póstumo <strong>de</strong> <strong>Freyre</strong> Bahia e Baianos (1990).Note-se que o poema é <strong>de</strong> 1926: antes, portanto, da exaltação <strong>de</strong> valoresbaianos por Ary Barroso e Dorival Caymmi. O hoje esquecido brasilianistanorte-americano William Berrien salientou o imagismo no poema. Lembre-se ainfluência da "enumeração caótica" <strong>de</strong> Whitman e, sobretudo, a <strong>de</strong> Lindsay. Emalguns versos são evi<strong>de</strong>ntes as influências.


Em conferência lida <strong>na</strong> Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Direito do Recife, em 24 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong>1934, e publicada no mesmo ano, há uma "enumeração caótica" <strong>na</strong> qual <strong>Freyre</strong>exemplifica seus variados contatos nos EUA fora da roti<strong>na</strong> pedagógica <strong>de</strong>leituras, aulas, seminários e laboratórios. É uma enumeração entre travessõesque se esten<strong>de</strong> por pági<strong>na</strong>s, obrigando o leitor a voltar ao início da frase paramelhor entendê-la. Lembre-se que <strong>Freyre</strong> usou muito travessões, em vez <strong>de</strong>parênteses, para acrescentar informações adicio<strong>na</strong>is sem alterar a estruturasintática das frases.Imagismo e enumeraçãoNo prefácio à primeira edição <strong>de</strong> Casa-gran<strong>de</strong> & Senzala, <strong>Freyre</strong> <strong>de</strong>finiu seulivro como "ensaio <strong>de</strong> sociologia genética". Mas logo nesse prefácio ele seduzo leitor com a linguagem e o estilo <strong>de</strong> um ensaísta literário. O imagismo<strong>de</strong>sponta quando o autor se refere à escassez, no Brasil, <strong>de</strong> diários íntimosque, entretanto, abundam em países <strong>de</strong> formação protestante, como quesubstituindo o confessionário dos católicos.Escreve ele, numa frase ao mesmo tempo enumerativa e imagística:"Em compensação, a Inquisição escancarou sobre nossa vida íntima da eracolonial, sobre alcovas com camas que em geral parecem ter sido <strong>de</strong> couro,rangendo às pressões dos adultérios e dos coitos da<strong>na</strong>dos, sobre ascamarinhas e os quartos <strong>de</strong> santos, sobre as relações <strong>de</strong> brancos comescravos - seu olho enorme, indagador".É impressio<strong>na</strong>nte a imagem <strong>de</strong> um "olho" que, além <strong>de</strong> "enorme, indagador",está "escancarado" sobre alcovas, camarinhas, quartos <strong>de</strong> santos e relações<strong>de</strong> brancos com escravos. O verbo "escancarar" - abrir <strong>de</strong> par em par, expor,mostrar, exibir, franquear - muito usado para indicar abertura <strong>de</strong> portas ejanelas - exerce papel insólito <strong>na</strong> frase, pois o comum seria estar o olho aberto,arregalado e, no máximo, esbugalhado. Aqui ele está "escancarado", como ojato <strong>de</strong> luz <strong>de</strong> um holofote <strong>na</strong> escuridão acobertadora <strong>de</strong> adultérios, coitosda<strong>na</strong>dos e relações <strong>de</strong> brancos com escravos.


Ao longo do livro há imagens como essa, <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r expressivo, nãohavendo capítulo em que não apareçam, dando-nos a impressão <strong>de</strong> ver o queestamos lendo. Luis Jardim, no prefácio a Artigos <strong>de</strong> jor<strong>na</strong>l (1935) - que pareceter sido escrito pelo próprio <strong>Freyre</strong> - assi<strong>na</strong>la que é "neste uso <strong>de</strong> imagens paraexprimir idéias, quase sensualmente, como se a palavra não bastasse" queconsiste a forma da expressão freyria<strong>na</strong>. As cartas <strong>de</strong> <strong>Freyre</strong> a Amy Lowell -conservadas <strong>na</strong> Houghton Library, <strong>de</strong> Harvard - e as da poetisa a ele - hoje <strong>na</strong>Fundação <strong>Gilberto</strong> <strong>Freyre</strong> - mostram como um brasileiro absorveu o imagismo.Para mostrar, no segundo capítulo <strong>de</strong> Casa-gran<strong>de</strong> & Senzala, como "oambiente em que começou a vida brasileira foi <strong>de</strong> quase intoxicação sexual",<strong>Freyre</strong> escreve como se estivesse pintando, fotografando ou filmandocolonizadores e evangelizadores <strong>de</strong>scendo das caravelas:"O europeu saltava em terra escorregando em índia nua; os próprios padres daCompanhia [<strong>de</strong> Jesus] precisavam <strong>de</strong>scer com cuidado, senão atolavam o péem carne".Note-se a força dos verbos "saltar" - muito mais expressivo do que"<strong>de</strong>sembarcar" -, "escorregar" e "atolar", os dois últimos usados tanto emsentido literal como no figurado, pois também se escorrega e se atola noschamados pecados contra a castida<strong>de</strong>.BaralhosNo terceiro capítulo <strong>de</strong> Casa-gran<strong>de</strong> & Senzala, o autor mostra como foi<strong>de</strong>cepcio<strong>na</strong>nte para a Coroa <strong>de</strong>frontar-se com terras <strong>de</strong> pau-<strong>de</strong>-tinta após asriquezas <strong>de</strong>scobertas por Vasco da Gama <strong>na</strong> Índia. Surgem, a propósito, duasimagens surpreen<strong>de</strong>ntes, uma profa<strong>na</strong> - a do baralho - e outra religiosa: a dahumil<strong>de</strong> al<strong>de</strong>ia da Galiléia <strong>na</strong> qual viveu Jesus com seus pais."O Brasil foi como uma carta <strong>de</strong> paus puxada num jogo <strong>de</strong> trunfo em ouros. [...]Só em nova fase <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> portuguesa - a propriamente colonizadora, a do


fim do século XVI e parte do século XVIII - o Brasil teria força <strong>de</strong> trunfo no jogodas competições imperialistas das <strong>na</strong>ções européias".No bojo da imagem religiosa vem outra também forte: a <strong>de</strong> "estilhaços do bloco<strong>de</strong> gente nobre" aplicada ao rebotalho humano que sobrou da aventura daÍndia: "Colônia fundada quase sem vonta<strong>de</strong>, com um sobejo ape<strong>na</strong>s <strong>de</strong>homens, estilhaços do bloco <strong>de</strong> gente nobre que só faltou ir inteira do reinopara as Índias, o Brasil foi a Nazaré das colônias portuguesas. Sem ouro nemprata. Somente pau-<strong>de</strong>-tinta e almas para Jesus Cristo".Re<strong>de</strong>s e palmeirasA<strong>na</strong>lisando uma pági<strong>na</strong> <strong>de</strong> Sobrados e Mucambos - obra por ele consi<strong>de</strong>radacomo superior a Casa-gran<strong>de</strong> & Senzala - Otto Maria Carpeaux falou da"gran<strong>de</strong> metáfora das palmeiras": as que vicejam gloriosas sobre túmulos <strong>de</strong>jovens vítimas da febre amarela nos cemitérios ingleses do Brasil; asmajestosas palmeiras representariam a vitória dos trópicos sobre o nórdicoinvasor.Outra metáfora <strong>de</strong> <strong>Gilberto</strong> <strong>Freyre</strong> é a da re<strong>de</strong>, símbolo da vida ociosa dospatriarcas. Está no último capítulo <strong>de</strong> Casa-gran<strong>de</strong> & Senzala e, apesar dosverbos chulos que nela aparecem, trata-se <strong>de</strong> uma das mais belas pági<strong>na</strong>s daprosa em língua portuguesa (ver pági<strong>na</strong> 42). Dessa pági<strong>na</strong> escreveu o poeta eensaísta português David Mourão Ferreira, num capítulo <strong>de</strong> Sob o mesmotecto: estudos sobre autores <strong>de</strong> língua portuguesa (1989): "Quadro implacável,quadro mesmo terrível. Mas quadro que não po<strong>de</strong> nem <strong>de</strong>ve fazer-nosesquecer, para lá da repulsa que o mo<strong>de</strong>lo nos provoque, a genial mestria <strong>de</strong>seu pintor".Ciência e literaturaAlém do imagismo e da enumeração caótica, Casa-gran<strong>de</strong> po<strong>de</strong> sercaracterizada como obra ao mesmo tempo científica e literária por suasaborosa prosa, seu estilo musical, sua pontuação origi<strong>na</strong>l, pela sábiautilização <strong>de</strong> expressões eruditas e populares, científicas e coloquiais. A


locução adverbial "<strong>de</strong> meia-tigela", por exemplo, aparece no prefácio à primeiraedição quando o autor se refere aos arremedos <strong>de</strong> diários íntimos que são osca<strong>de</strong>rnos com anotações <strong>de</strong> mexericos escritas por esquisitões, que <strong>de</strong>finecomo "Pepys <strong>de</strong> meia-tigela", associando a uma expressão popular o nome dodiarista inglês Samuel Pepys.Álvaro Lins dizia que mesmo eventualmente superada em suas sugestões poravanços <strong>na</strong>s ciências em que se baseia - antropologia, biologia, psicologia,sociologia - Casa-gran<strong>de</strong> subsistiria como obra literária. Falei em "sugestões"porque <strong>Freyre</strong> não gostava <strong>de</strong> "conclusões", tendo escrito que "a verda<strong>de</strong>iraciência é humil<strong>de</strong>, ficando a ênfase para a meia-ciência".Ele próprio o confessou no prefácio à 4ª edição da obra - <strong>de</strong>finida pelo editorcomo "<strong>de</strong>finitiva": "<strong>de</strong>finitiva <strong>de</strong>ntro da relativida<strong>de</strong> que condicio<strong>na</strong> e <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>,em gran<strong>de</strong> parte, <strong>de</strong> novos avanços <strong>na</strong>s várias ciências e estudos em que sebaseia. Isto sem falar nos aspectos, porventura ainda mais flutuantes, <strong>de</strong> suasubjetivida<strong>de</strong>. As idéias e atitu<strong>de</strong>s do Autor. Seus pontos <strong>de</strong> vista. Osperso<strong>na</strong>lismos em que às vezes se alongam suas interpretações".Enumerações negativasAs enumerações freyria<strong>na</strong>s po<strong>de</strong>m ser classificadas em afirmativas - como asaté aqui citadas - e negativas: as usadas para caracterizar perso<strong>na</strong>lida<strong>de</strong>s peloque não foram e fatos não ocorridos. Na conferência Atualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Eucly<strong>de</strong>sda Cunha (1041) - reproduzida no livro Perfil <strong>de</strong> Eucly<strong>de</strong>s e outros Perfis (1944)- ele adotou a enumeração negativa:"Nem moças bonitas, nem danças, nem jantares alegres, nem almoços àbaia<strong>na</strong>, com vatapá, caruru, efó, nem feijoadas à per<strong>na</strong>mbuca<strong>na</strong>, nem vinho,nem aguar<strong>de</strong>nte, nem cerveja, nem tutu <strong>de</strong> feijão à paulista ou à mineira, nemsobremesas fi<strong>na</strong>s segundo velhas receitas <strong>de</strong> iaiás <strong>de</strong> sobrados, nemchurrascos, nem mangas <strong>de</strong> Itaparica, abacaxis <strong>de</strong> Goia<strong>na</strong>, assai, sopa <strong>de</strong>tartaruga, nem modinhas ao violão, nem pescarias <strong>de</strong> Sema<strong>na</strong> Santa, nemceias <strong>de</strong> siri com pirão, nem galos <strong>de</strong> briga, nem canários do Império, nem


caçadas <strong>de</strong> onça ou <strong>de</strong> anta <strong>na</strong>s matas das fazendas. Nem banhos <strong>na</strong>squedas-d'água dos rios <strong>de</strong> engenho - em nenhuma <strong>de</strong>ssas alegriascaracteristicamente brasileiras Eucly<strong>de</strong>s da Cunha se fixou. Nem mesmo nogosto <strong>de</strong> conversar e <strong>de</strong> cavaquear às esqui<strong>na</strong>s ou à porta das lojas - tão dosbrasileiros: <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a rua do Ouvidor à menor botica no centro <strong>de</strong> Goiás."São tantos e variados os problemas <strong>de</strong> medici<strong>na</strong>, em geral, e <strong>de</strong> alimentação,em particular, estudados por <strong>Freyre</strong> em Casa-gran<strong>de</strong> & Senzala que ao ler suaprimeira edição o professor Antonio da Silva Melo (1886-1973) pensou ser oautor, como ele, médico. É o que o fundador da Faculda<strong>de</strong> Nacio<strong>na</strong>l <strong>de</strong>Medici<strong>na</strong> escreveu em sua contribuição a <strong>Gilberto</strong> <strong>Freyre</strong>: sua Ciência, suaFilosofia, sua Arte. Por isso, <strong>Freyre</strong> foi convidado a prefaciar seu Problemas <strong>de</strong>Ensino Médico e <strong>de</strong> Educação (1937): uma das cente<strong>na</strong>s <strong>de</strong> seus prefáciospara outros autores, alguns médicos (Prefácios Desgarrados, 1978).Caos <strong>na</strong> medici<strong>na</strong>Em 1967 a Fundação Calouste Gulbenkian editou em Lisboa Sociologia daMedici<strong>na</strong>, <strong>de</strong> <strong>Freyre</strong>, <strong>de</strong>pois reeditado no Brasil pela editora Globo comoMédicos, Doentes e Contextos Sociais (1983). É nesse livro - <strong>de</strong>sconhecido noBrasil, mas traduzido em italiano em 1975 pela Rizzoli, <strong>de</strong> Milão, com o títuloorigi<strong>na</strong>l (Sociologia <strong>de</strong>lla medici<strong>na</strong>) - que se encontra um dos mais expressivosexemplos <strong>de</strong> enumeração caótica. Em "Civilização do Homem Sentado", noteseo fim inesperado e dramático da enumeração.Porém, a mais longa enumeração caótica do ensaísmo freyriano está nocapítulo "Tentativa <strong>de</strong> Síntese" <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>m e Progresso (1959). O assunto dolivro é uma interpretação do fim do século 19 e advento do 20. Em "O 1900brasileiro", <strong>Freyre</strong> enumera um número consi<strong>de</strong>rável <strong>de</strong> traços <strong>de</strong> culturamaterial e moral (a palavra "cultura" entendida em seu sentido antropológico)que caracterizaram o 1900 brasileiro. A numeração caótica se esten<strong>de</strong> por seispági<strong>na</strong>s da sexta edição (2004). O autor chega a mencio<strong>na</strong>r - entre hábitos,<strong>de</strong>voções, tipos <strong>de</strong> habitação, veículos, leituras, perfumes, sabonetes,doenças, remédios, diversões, latri<strong>na</strong>s, bidés, escarra<strong>de</strong>iras, esportes,


inquedos, roupas, chapéus, anúncios, leituras, livros, revistas, jor<strong>na</strong>is,roupas, sapatos, móveis, alimentos, prostitutas estrangeiras, engraxates etc. -"a voga do ataque histérico entre senhoras burguesas, à saída <strong>de</strong> enterros eem face <strong>de</strong> outras situações dramáticas" (sexta edição, pp. 160-165).Volto ao curso seguido por <strong>Freyre</strong> <strong>na</strong> Universida<strong>de</strong> Baylor. O professorArmstrong ficou tão impressio<strong>na</strong>do com o inglês <strong>de</strong> <strong>Freyre</strong> que o aconselhou aadotar a cidadania norte-america<strong>na</strong>, ace<strong>na</strong>ndo com a promessa <strong>de</strong> cobiçadabolsa em Oxford: a Rho<strong>de</strong>s Scolarship. Chegou a citar a seu aluno o caso <strong>de</strong>Joseph Conrad, que, <strong>na</strong>scido <strong>na</strong> Polônia, tornou-se gran<strong>de</strong> escritor em línguainglesa.<strong>Freyre</strong> recusou a sugestão, tendo anotado em seu diário: "Se tiver <strong>de</strong> serescritor, meu <strong>de</strong>ver é escrever em língua portuguesa" (cf. Tempo Morto eOutros Tempos. 2ª edição revista. São Paulo: Global, p. 65). E foi o queaconteceu: ele tornou-se um dos maiores ensaístas do nosso idioma.A metáfora da re<strong>de</strong><strong>Gilberto</strong> <strong>Freyre</strong>Ociosa, mas alagada <strong>de</strong> preocupações sexuais, a vida do senhor <strong>de</strong> engenhotornou-se uma vida <strong>de</strong> re<strong>de</strong>. Re<strong>de</strong> parada, com o senhor <strong>de</strong>scansando,dormindo, cochilando. Re<strong>de</strong> andando, com o senhor em viagem ou a passeio<strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> tapetes ou corti<strong>na</strong>s. Re<strong>de</strong> rangendo, com o senhor copulando<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>la. Da re<strong>de</strong> não precisava afastar-se o escravocrata para dar suasor<strong>de</strong>ns aos negros: mandar escrever suas cartas pelo caixeiro ou pelo capelão;jogar gamão com algum parente ou compadre. De re<strong>de</strong> viajavam quase todos -sem ânimo para montar a cavalo: <strong>de</strong>ixando-se tirar <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> casa comogeléia por uma colher. Depois do almoço, ou do jantar, era <strong>na</strong> re<strong>de</strong> que elesfaziam longamente o quilo - palitando os <strong>de</strong>ntes, fumando charuto, cuspindo nochão, arrotando alto, peidando, <strong>de</strong>ixando-se aba<strong>na</strong>r, agradar e catar piolhopelas mulequinhas, coçando os pés ou a genitália; uns coçando-se por vício;outros por doença venérea ou da pele. Lindsay diz que <strong>na</strong> Bahia viu pessoas


<strong>de</strong> ambos os sexos <strong>de</strong>ixando-se catar piolhos; e os homens coçando-sesempre <strong>de</strong> "sar<strong>na</strong>s sifilíticas".Casa-gran<strong>de</strong> & Senzala. Edição crítica. Paris: ALLCA XX, 2002 (Unesco.Coleção Archivos, 55), p. 433.Bahia <strong>de</strong> todos os santos (e <strong>de</strong> quase todos os pecados)Poema <strong>de</strong> <strong>Gilberto</strong> <strong>Freyre</strong> é rico exemplo do estilo enumerativo e imagístico doautorBahia <strong>de</strong> todos os santos (e <strong>de</strong> quase todos os pecados)casas trepadas umas por cima das outrascasas sobrados igrejas como gente se espremendo pra sair num retrato<strong>de</strong> revista ou jor<strong>na</strong>l (vaida<strong>de</strong> das vaida<strong>de</strong>s, diz o Eclesiastes)Igrejas gordas (as <strong>de</strong> Per<strong>na</strong>mbuco são mais magras)toda a Bahia é uma mater<strong>na</strong>l cida<strong>de</strong> gordacomo se dos ventres empi<strong>na</strong>dos dos seus montesdos quais saíram tantas cida<strong>de</strong>s do Brasilinda outras estivessem pra sair........................................................................................automóveis a 30$ a horae um ford todo osso sobe a la<strong>de</strong>ira sagradasaltando, pulando, tilintandopra <strong>de</strong>pois escorrer sobre o asfalto novoque branqueja como <strong>de</strong>ntadura postiça sobre a terra encar<strong>na</strong>da(a terra encar<strong>na</strong>da <strong>de</strong> 1500)gente da Bahia!preta, parda roxa more<strong>na</strong>cor dos bons jacarandás <strong>de</strong> engenho do Brasil(ma<strong>de</strong>ira que cupim não rói)sem rostos cor <strong>de</strong> fiambrenem corpos cor <strong>de</strong> peru frio...........................................................................................


BahiaSalvadorTodos os Santosum dia voltarei com vagar ao teu seio moreno brasileiroàs tuas igrejas on<strong>de</strong> pregou Vieira mulato hoje cheias <strong>de</strong> fra<strong>de</strong>s[ruivos aos teus tabuleiros escancarados em "x" (esse "x" é o futuro do[Brasil) tuas casas sobrados cheirando a incenso comida alfazema cacauCivilização do homem sentado<strong>Gilberto</strong> <strong>Freyre</strong>Quando se <strong>de</strong>fine a civilização contemporânea como uma civilização <strong>de</strong>"homem sentado", toma-se em especial consi<strong>de</strong>ração o fato, <strong>na</strong> verda<strong>de</strong> sociale higienicamente significativo, <strong>de</strong> ser, <strong>na</strong>s suas áreas tecnologicamente maisavançadas, uma civilização em que os seus agenes, os seus lí<strong>de</strong>res e os seusparticipantes passam gran<strong>de</strong>, talvez a maior parte, do seu tempo físico e doseu tempo socialmente mais valioso, sentados. Sentados em estudos, <strong>na</strong>sescolas primárias, secundárias, superiores. Sentados em funções <strong>de</strong> ensino,<strong>na</strong>s cátedras; em trabalhos <strong>de</strong> escritório, <strong>de</strong> ofici<strong>na</strong>, <strong>de</strong> fábrica, <strong>de</strong> banco, <strong>de</strong>estabelecimentos comerciais e industriais. Sentados em tratores, nos campos.Sentados <strong>na</strong> direção <strong>de</strong> arados, <strong>de</strong> caterpillars, <strong>de</strong> outras máqui<strong>na</strong>s agrárias e<strong>de</strong> várias, urba<strong>na</strong>s. Sentados <strong>na</strong> direção <strong>de</strong> automóveis, <strong>de</strong> aviões, <strong>de</strong> lanchas,<strong>de</strong> caminhões, bem como <strong>de</strong> locomotivas. Sentados como passageiros <strong>de</strong>ssesveículos, hoje numerosíssimos, e <strong>de</strong> bicicletas e motocicletas. Sentados emcasa, repousando, <strong>de</strong>scansando, cismando. Sentados <strong>na</strong> igreja, rezando.Sentados <strong>na</strong>s arquibancadas <strong>de</strong> campos <strong>de</strong> jogos <strong>de</strong> futebol e <strong>de</strong> outros jogos,nos concertos, nos teatros, e também para assistir a danças folclóricas ououtros espetáculos ao ar livre. Sentados <strong>na</strong>s assembléias, nos congressos, nosparlamentos, nos conselhos municipais. Sentados, quando moços, quandohomens <strong>de</strong> meia-ida<strong>de</strong>, quando velhos. (...) Sentados em movimento. Sentadosem repouso. Sentados em estações, à espera <strong>de</strong> trens e nos aeroportos, àespera <strong>de</strong> aviões. Sentados nos bancos, em ca<strong>de</strong>iras, em poltro<strong>na</strong>s, emespreguiça<strong>de</strong>iras, em sofás, em marquesões. Sentados para ouvir rádio, para


ver televisão ou cinema. Sentados <strong>na</strong> ca<strong>de</strong>ira do <strong>de</strong>ntista, <strong>na</strong> ca<strong>de</strong>ira dobarbeiro, <strong>na</strong> <strong>de</strong> cabeleireiro, <strong>na</strong> <strong>de</strong> engraxate, no banco dos réus e até - não éfreqüente mas acontece - em ca<strong>de</strong>ira elétrica, para cumprir sentença <strong>de</strong> morte.Sociologia da Medici<strong>na</strong>. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1967. 2ªedição. Médicos, Doentes e Contextos Sociais: uma Abordagem Sociológica.Rio: Globo, 1983, p. 166.Edson Nery da Fonseca é pesquisador emérito da Fundação Joaquim Nabucoe professor emérito da UnB, autor <strong>de</strong> Em torno <strong>de</strong> <strong>Gilberto</strong> <strong>Freyre</strong>(Massanga<strong>na</strong>).A Universida<strong>de</strong> Baylor (Waco, Texas), on<strong>de</strong> <strong>Gilberto</strong> <strong>Freyre</strong> fez graduação, nãoé tão conhecida e importante como Harvard, Yale, Columbia, Princeton ouBerkeley. Baylor teve, entretanto, um professor do mais alto nível. JosephArmstrong era especializado em literatura vitoria<strong>na</strong> e apaixo<strong>na</strong>do pelo casal <strong>de</strong>poetas Robert e Elizabeth.Revista Língua <strong>Portuguesa</strong> (SP) edição 25Novembro 2007

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