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A transferência na histeria – Um estudo no “caso ... - Editora Escuta

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A transferência <strong>na</strong> <strong>histeria</strong> – um <strong>estudo</strong> <strong>no</strong> caso Dora de Freud 23A transferência <strong>na</strong> <strong>histeria</strong> – <strong>Um</strong> <strong>estudo</strong><strong>no</strong> “caso Dora” de Freud23Pulsio<strong>na</strong>l Revista de Psicanálise, a<strong>no</strong> XIII, n o 132, 23-33Sérgio de Gouvêa FrancoO trabalho exami<strong>na</strong> a transferência da paciente e do a<strong>na</strong>lista <strong>no</strong> caso Dora deFreud, tomando como apoio o artigo “Intervenção sobre a transferência” deLacan. A análise avança quando Freud interpreta a resistência de Dora. A análisepára quando tem dificuldade de reconhecer os complexos mecanismos de identificaçãohistéricos que vacilam entre uma bipolaridade sexual (hetero ehomoerótica) – aí a resistência do a<strong>na</strong>lista.Palavras-chave: Transferência, <strong>histeria</strong>, Dora, Lacan, feminilidadeThe article examines the transference of patient and a<strong>na</strong>lyst on Dora’s case ofFreud, using the Lacan’s article Intervention on Transference as a support. Thea<strong>na</strong>lysis goes on when Freud is able to interpret Dora’s resistance. But a<strong>na</strong>lysisstops when he fails to recognize the complex mechanisms of identification onhysteria, which hesitate between two sexual poles (hetero and homoerotic ones)– there we can see the a<strong>na</strong>lyst resistance.Key words: Transference, hysteria, Dora, Lacan, femininity


24 Pulsio<strong>na</strong>l Revista de PsicanáliseSe eu te amo, cuide-se.Joel Birman 1INTRODUÇÃOFreud atendeu esta moça de ape<strong>na</strong>sdezoito a<strong>no</strong>s, conhecida pelo pseudônimode Dora, ape<strong>na</strong>s três meses: entreoutubro e dezembro de 1900 2 . No iníciode 1901 ele escreveu sobre o caso,enquanto escrevia também “Sobre a psicopatologiada vida cotidia<strong>na</strong>”, livro quesaiu ainda em 1901. Mas o caso Dorasó foi publicado em 1905, com o título“Fragmento da análise de um caso de<strong>histeria</strong>” 3 . Tudo indica que a demora <strong>na</strong>publicação se deu para proteger a privacidadeda paciente. O título origi<strong>na</strong>l dolivro era “Sonhos e <strong>histeria</strong>, fragmentode uma análise”. O título abando<strong>na</strong>doaponta para o lugar central que a interpretaçãodos dois sonhos do caso ocupa<strong>no</strong> tratamento. De fato, Freud pensouo livro como uma continuação deseu fundamental A interpretação dos sonhos,de 1900. Ele quer mostrar comoos achados do livro sobre os sonhos podemser aplicados <strong>na</strong> cura da neurose.O livro sobre Dora pode ser visto nãoape<strong>na</strong>s como uma continuação de A interpretaçãodos sonhos, mas tambémcomo uma ponte entre este e os “Trêsensaios sobre a teoria da sexualidade”,de 1905. Muitos conceitos sobre a teoriada sexualidade apresentados <strong>no</strong>s“Três ensaios...” já aparecem <strong>no</strong> caso Dora:a <strong>no</strong>ção de que a neurose é o reverso daperversão, é um bom exemplo disto.Escrevendo para Fliess em 1901, Freudrefere-se ao caso Dora 4 como “a coisamais sutil que já escrevi” 5 . Ele pareceestar impressio<strong>na</strong>do com a complexidadeque estava aparecendo <strong>na</strong> sua clínica:descobre “a estrutura mais fi<strong>na</strong> daneurose” 6 . <strong>Um</strong> dos objetivos explícitosdo livro é exatamente “demonstrar aestrutura íntima da doença neurótica” 7 .Além de mostrar o fi<strong>no</strong> tecido das identificaçõesmúltiplas <strong>na</strong> <strong>histeria</strong>, o casofez Freud aprofundar conceitos de suateoria da sexualidade e da transferência.Ele já sabia há muito tempo sobre a etiologiapsicossexual da neurose, mas aindanão tinha reconhecido ple<strong>na</strong>mente a“importância da corrente homossexual1. Título de artigo de Joel Birman (“Se eu te amo, cuide-se – Sobre a feminilidade, a mulher e oerotismo <strong>no</strong>s a<strong>no</strong>s 80”) em M.T. Berlinck (org.) Histeria.2. Os biógrafos de Freud confirmam que o atendimento de Dora se deu em 1900, ainda que eletenha se enga<strong>na</strong>do mais de uma vez imagi<strong>na</strong>ndo que o a<strong>no</strong> tivesse sido 1899.3. Bruchstück einer Hysterie-A<strong>na</strong>lyse, em alemão.4. Dora é um dos cinco grandes casos clínicos publicados por Freud, juntamente com Peque<strong>no</strong>Hans, Schreber, Homem dos ratos e Homem dos lobos.5. S. Freud. E.S.B., vol. VII, p. 15.6. S. Freud. E.S.B., vol. VII, p. 23.7. S. Freud. E.S.B., vol. VII, p. 24.


A transferência <strong>na</strong> <strong>histeria</strong> – um <strong>estudo</strong> <strong>no</strong> caso Dora de Freud 25<strong>no</strong>s psiconeuróticos” 8 . A falta deste reconhecimentoimplicou um manejo deficienteda transferência que levou, comoo próprio Freud reconhece, ao térmi<strong>no</strong>prematuro da análise. Escrevendo paraFliess em 1901 depois do térmi<strong>no</strong> daanálise, ele fala da importância <strong>na</strong> <strong>histeria</strong>do conflito “desempenhado pela oposiçãoentre uma atração pelos homens eoutra pelas mulheres” 9 . Esta ambivalênciade identificações masculi<strong>na</strong> e femini<strong>na</strong><strong>na</strong> <strong>histeria</strong>, que descobriu em Dora,provocou profundamente o pensamentode Freud. Muito tempo depois do térmi<strong>no</strong>do tratamento, Freud ainda continuapensando sobre os temas nele envolvidos10 . O presente trabalho tem a intençãode ilumi<strong>na</strong>r a questão da transferência<strong>na</strong> <strong>histeria</strong> a partir do <strong>estudo</strong> docaso Dora. 11A DUALIDADE TRANSFERENCIALJacques Lacan, em seu artigo “Intervençãosobre a transferência”, discute aquestão da transferência <strong>no</strong> caso Dora.Afirma que “a experiência psica<strong>na</strong>lítica... se desenrola inteiramente nessa relaçãosujeito a sujeito” 12 . A fala do pacientese constitui <strong>na</strong> presença do a<strong>na</strong>lista.Não é possível assim pensar o pacientecomo um objeto, como uma coisa comcaracterísticas a serem exami<strong>na</strong>das porum cientista devidamente distanciado. Apsicanálise permanece como uma relaçãoonde um sujeito está diante de outrosujeito. Paciente e a<strong>na</strong>lista relacio<strong>na</strong>m-see mutuamente influenciam-se.Trata-se de um diálogo, de uma dialética,diz Lacan: “A psicanálise é uma experiênciadialética, e essa <strong>no</strong>ção deveprevalecer quando se coloca a questãoda <strong>na</strong>tureza da transferência.” 13É <strong>no</strong> caso Dora que Freud reconhececlaramente que o a<strong>na</strong>lista participa datransferência e não só o paciente 14 . Écom esta experiência que fica claro paraele que sua escuta de Dora determi<strong>na</strong>,ao me<strong>no</strong>s em parte, o que ela vai dizer.Suas atitudes e interpretações podemabrir ou fechar a possibilidade do avançoda análise. Freud ainda não tinha tanta8. S. Freud. E.S.B., vol. VII, p. 114, <strong>no</strong>ta 2.9. S. Freud. E.S.B., vol. VII, p. 16.10. A prova disto é que Freud faz acréscimos e <strong>no</strong>tas ao seu livro sobre Dora em 1923, mais devinte a<strong>no</strong>s após o seu atendimento, especialmente <strong>na</strong> última seção intitulada de postfácio.11. O trabalho pressupõe o conhecimento da complexa trama a<strong>na</strong>lisada por Freud. A descriçãodetalhada do caso foi evitada por poder tor<strong>na</strong>r-se enfadonha ou artificial pela exclusão domovimento inter<strong>no</strong> do atendimento. Serge André possui um resumo do historial em um parágrafo<strong>no</strong> seu livro O que quer uma mulher?, p. 146.12. J. Lacan. “Intervenção sobre a transferência” (Pronunciada <strong>no</strong> Congresso Dito de Psica<strong>na</strong>listasde Língua Românica, de 1951) in Escritos, p. 88. Vamos tomar o artigo de Lacan como umauxílio para ler Freud.13. J. Lacan. Op. cit., p. 88.14. J. Lacan. Op. cit., p. 90.


26 Pulsio<strong>na</strong>l Revista de Psicanáliseexperiência clínica; é com este caso quepercebe o fenôme<strong>no</strong> dual da transferência.Ele reconhece “as severas exigênciasque a <strong>histeria</strong> faz ao médico e aoinvestigador”. Percebe que estas exigências“só podem ser satisfeitas pelo maisdedicado aprofundamento, e não poruma atitude de superioridade e desprezo”.Por fim cita Goethe: “Nem só aArte e a Ciência/ No trabalho há quemostrar paciência” 15 . Ele percebe queestá implicado <strong>no</strong> processo. Com humildadee paciência é que o a<strong>na</strong>lista descobreem que lugar está colocado pelopaciente ou em que lugar se coloca inconscientemente.Até este caso, Freud estava acostumadoa pensar a resistência do lado do paciente.O a<strong>na</strong>lista sempre trabalha paralevantar a resistência, pensava ele. A partirde Dora, percebe que a resistênciapode estar do lado do a<strong>na</strong>lista também.Ele já sabia que uma relação de confiançaera necessária para vencer os“sentimentos de timidez e vergonha” 16do paciente de forma que pudesse falartudo o que tem <strong>na</strong> consciência. Ele sabiaque a interpretação do a<strong>na</strong>lista eranecessária para trazer à to<strong>na</strong> o materialinconsciente e recompor as lacu<strong>na</strong>s dememória. Mas Freud pensava até aquique o a<strong>na</strong>lista sempre ajudava a análise.A esta época, <strong>no</strong> entanto, ele percebeque o a<strong>na</strong>lista pode atrapalhar. A técnicafica me<strong>no</strong>s diretiva: “... agora deixo queo paciente determine o tema do trabalhocotidia<strong>no</strong>” 17 . Dora se tor<strong>no</strong>u tão fundamentalpara Freud porque foi com elaque percebeu pela primeira vez que aanálise não avançou por uma limitaçãodo próprio a<strong>na</strong>lista, <strong>no</strong> caso, ele mesmo– Freud.REVIRAVOLTAS DIALÉTICASNo já citado artigo de Lacan, o autorfrancês diz ser possível pensar o casoDora por meio de uma série de reviravoltasdialéticas. A interpretação do a<strong>na</strong>listaproduziria estas reviravoltas <strong>no</strong> relatodo paciente. Dora conta que a Sra. K.e seu pai são amantes há muitos a<strong>no</strong>s edissimulam o relacio<strong>na</strong>mento com ficçõesque beiram o ridículo. O terrível, anunciaDora, é que deste modo ela fica sujeitaàs insinuações do Sr. K. Seu pai fechaos olhos para evitar chamar atençãosobre seu próprio relacio<strong>na</strong>mento com aSra. K. Dora seria uma espécie de moedade troca que compra o silêncio do Sr. K.:Quando ficava com ânimo mais exasperado,impunha-se a ela a concepção de tersido entregue ao Sr. K. como prêmio pelatolerância dele para com as relações entresua mulher e o pai de Dora; e por trás daternura desta pelo pai podia-se pressentirsua fúria por ser usada dessa maneira. 1815. S. Freud. E.S.B., vol. VII, pp. 26 e 27.16. S. Freud. E.S.B., vol. VII, p. 28.17. S. Freud. E.S.B., vol. VII, p. 23.18. S. Freud. E.S.B., vol. VII, p. 42.


A transferência <strong>na</strong> <strong>histeria</strong> – um <strong>estudo</strong> <strong>no</strong> caso Dora de Freud 27A primeira reviravolta <strong>na</strong> fala da pacientese dá quando Freud questio<strong>na</strong> esta posturade simples vítima de Dora. Não somentepelo silêncio, mas pela cumplicidadedireta, Dora sustentara a relaçãodos amantes. Nas palavras de Freud:[Dora] tor<strong>na</strong>ra-se cúmplice desse relacio<strong>na</strong>mentoe repudiara todos os si<strong>na</strong>is quepudessem mostrar sua verdadeira <strong>na</strong>tureza...Durante todos os a<strong>no</strong>s anteriores elafizera o possível para favorecer as relaçõesdo pai com a Sra. K. Nunca ia vê-la quandosuspeitava de que seu pai estivesse lá.Sabia que, neste caso, as crianças seriamafastadas e rumava pelo caminho em queestava certa de encontrá-las, indo passearcom elas. 19Então, Dora sustentava a trama dos relacio<strong>na</strong>mentosque permitia os galanteiosdo Sr. K. Ela não é vítima, pelo contrário,desfruta da atenção e presentes doSr. K.Admitido este passo de verdade, é precisoperguntar: por que subitamenteDora teria manifestado este ciúme antea relação amorosa do pai? A segunda reviravoltadialética se avizinha. Não é ape<strong>na</strong>so ciúme do pai que move Dora. Nãohá dúvida que ela se liga amorosamenteao pai e ao Sr. K., seu substituto psíquico.Mas o que põe em marcha a açãode Dora, exigindo o fim do relacio<strong>na</strong>mentodo pai com a Sra. K., é a ligaçãoque tem com ela: “Dora continuava ter<strong>na</strong>menteligada à Sra. K. e não queriasaber de nenhum motivo que fizesse asrelações do pai com ela parecerem indecentes”20 , explica Freud. Elas tinhamuma relação de intimidade: Dora ouvia asconfidências da Sra. K. Sabia o estadodas relações dela com o marido. Dorase identificava também com a Sra. K. <strong>no</strong>amor por seu pai.Quando Dora falava sobre a Sra. K, costumavaelogiar seu “adorável corpo alvo”num tom mais apropriado a um amante doque a uma rival derrotada... Na verdade,devo dizer que nunca ouvi dela uma só palavraáspera ou irada sobre essa mulher,embora, do ponto de vista de seus pensamentoshipervalentes, devesse ver nela aprincipal causadora de suas desventuras 21 ,conta Freud.O fato que desencadeia a ação de Dora,que deixa a moça furiosa, é a descobertade que a atenção da Sra. K. por elanão era assim tão grande. De fato, a Sra.K. traíra o segredo de Dora em <strong>no</strong>meda preservação do relacio<strong>na</strong>mento como pai de Dora. A Sra. K. conta ao maridoque Dora lê livros sobre temas sexuais(Mantegazza). O Sr. K. defendese,diante do pai de Dora acerca de suainsinuação à Dora, dizendo que alguémque lê livros assim pode muito bem fantasiaro episódio de assédio.A Sra. K. também não a [Dora] amava porela mesma, e sim por causa do pai. Ela a19. S. Freud. E.S.B., vol. VII, pp. 43 e 44.20. S. Freud. E.S.B., vol. VII, p. 44.21. S. Freud. E.S.B., vol. VII, p. 65.


28 Pulsio<strong>na</strong>l Revista de Psicanálisehavia sacrificado sem um momento de hesitaçãopara que seu relacio<strong>na</strong>mento como pai de Dora não fosse perturbado. Essaofensa talvez a tenha tocado mais de pertoe tido maior efeito patogênico... Creionão estar errado, portanto, em supor quea seqüência hipervalente de pensamentosde Dora, ... desti<strong>na</strong>va-se não ape<strong>na</strong>s a suprimirseu amor pelo Sr. K., que antes foraconsciente, mas também a ocultar o amorpela Sra. K. 22O que move Dora é o ciúmes da Sra.K. Quando não se vê amada por ela, Doraameaça suicídio e exige que o pai acabeo relacio<strong>na</strong>mento com sua amante.A REVIRAVOLTA DIALÉTICAQUE FICOU FALTANDOO que Lacan procura mostrar em seuensaio é que ficou faltando neste tratamentode Dora uma terceira e última reviravoltadialética, que Freud não podefazer: “... aquela que <strong>no</strong>s mostraria o valorreal do objeto que é a Sra. K, paraDora” 23 . A Sra. K. se transformou paraDora <strong>no</strong> mistério de sua própria feminilidade,mas especificamente <strong>no</strong> mistériode sua feminilidade corporal.Lacan chega aqui ao que considera ocerne da questão. O problema para todamulher “é <strong>no</strong> fundo o de se aceitar comoobjeto do desejo do homem” 24 . É poresta razão que a Sra. K. se tor<strong>na</strong> o mistérioda feminilidade para Dora. Ou seja,Dora precisaria da Sra. K. para poderreconhecer a sua própria feminilidade.Como ela não pode se aceitar como objetode desejo, ela precisa da Sra. K. parasustentar esta posição. Se Freud, emuma terceira reviravolta, tivesse podidoorientar Dora para o reconhecimento doque significava a Sra. K. para ela, ummundo de <strong>no</strong>vas informações sobre orelacio<strong>na</strong>mento das duas poderia ter aparecido.Freud explica que não pôde apreciar atempo o laço homossexual que unia Doraà Sra. K.:Quanto mais me vou afastando <strong>no</strong> tempodo térmi<strong>no</strong> dessa análise, mais provável meparece que meu erro técnico tenha consistido<strong>na</strong> seguinte omissão: deixei de descobrira tempo e de comunicar à doente quea moção amorosa homossexual (ginecofílica)pela Sra. K. era a mais forte das correntesinconscientes de sua vida anímica.Eu deveria ter conjeturado que nenhumaoutra pessoa poderia ser a fonte principaldos conhecimentos de Dora sobre coisassexuais senão a Sra. K., a mesma pessoaque depois a acusara por seu interessenesses assuntos... Antes de reconhecer aimportância da corrente homossexual <strong>no</strong>spsiconeuróticos, fiquei muitas vezes atrapalhadoou completamente des<strong>no</strong>rteado <strong>no</strong>tratamento de certos casos. 2522. S. Freud. E.S.B., vol. VII, p. 66.23. J. Lacan. Op. cit., p. 93.24. J. Lacan. Op. cit., p. 95.25. S. Freud. E.S.B. vol. VII, p. 114, <strong>no</strong>ta 2.


A transferência <strong>na</strong> <strong>histeria</strong> – um <strong>estudo</strong> <strong>no</strong> caso Dora de Freud 29Lacan assevera que esta dificuldade emreconhecer a tendência homossexual entreos histéricos se deve a um preconceitode Freud. Ele sente simpatia peloSr. K. e atração por Dora. Por ter se colocado“um pouco demasiadamente <strong>no</strong>lugar do Sr. K.” 26 ficou impedido de vera atração de Dora pela Sra. K. e de interpretaresta atração. Por este motivo <strong>na</strong>rcísicocontratransferencial, Freud se voltaao amor que o Sr. K. inspiraria em Dora.O que nem sempre Dora confirma.Lacan pergunta ainda neste seu artigo oque de fato aconteceu <strong>na</strong> ce<strong>na</strong> do lagoque colocou Dora doente e necessitadade ajuda. A resposta está <strong>no</strong> próprio texto.O Sr. K. teve ape<strong>na</strong>s tempo de dizeralgumas palavras: “Sabe, não tenho <strong>na</strong>dacom minha mulher” 27 . Como resposta aestas palavras, Dora lhe dá uma bofetada.Deste modo se rompe o feitiço deDora em relação ao Sr. K. Se ele não seinteressa por sua mulher, então Doratambém não se interessa ele. O interessede Dora pelo Sr. K. só se sustenta <strong>na</strong>medida em que ele está ligado à Sra. K.No momento em que ela percebe quenão há ligação real entre ele e sua mulher,o triângulo se desfaz.A TRANSFERÊNCIA DE FREUDLacan declara em outro artigo que Freudtentou modelar o ego de Dora 28 . Eleachava que Dora deveria se apaixo<strong>na</strong>rpor um homem. A transferência negativade Dora (que a levou a interrompero tratamento) deve ser entendida entãocomo uma resposta (raivosa) às dificuldadesimpostas ao tratamento pelo próprioFreud. Devido ao seu preconceito,Freud não pode ver a ligação de Doracom a Sra. K. Talvez, mais que isto, sejanecessário dizer que o que escapou àcompreensão de Freud foram as identificaçõesmasculi<strong>na</strong>s de Dora. O preço apagar por esta falta de percepção foi otérmi<strong>no</strong> abrupto da análise.Se Freud tinha uma transferência comDora que toldou sua percepção, estatransferência deve ser a<strong>na</strong>lisada. Doraestá identificada a um perso<strong>na</strong>gem masculi<strong>no</strong>,o Sr. K., de maneira que ela podefacilmente se identificar com Freud.Freud percebeu o deslocamento pai deDora/Sr. K./o a<strong>na</strong>lista Freud, mas imagi<strong>no</strong>uque as figuras masculi<strong>na</strong>s eramobjeto de amor e não de identificação.A identificação viril de Dora, cuja matrizinfantil pode ter sido sua identificaçãocom o irmão mais velho, não teveuma apreensão mais completa da partede Freud.Podemos relacio<strong>na</strong>r o discurso histéricode Dora ao desejo de Freud, comoquer Serge Cottet 29 . A transferência deDora se modula pelo desejo freudia<strong>no</strong> de26. J. Lacan. Op. cit., p. 96.27. S. Freud. E.S.B., vol. VII, p. 97.28. Em “Os escritos técnicos de Freud”, Seminário I, conforme Serge Cottet em Freud y el deseodel psicoa<strong>na</strong>lista, p. 41.29. S. Cottet. Freud y el deseo del psicoa<strong>na</strong>lista, p. 43 e sg.


30 Pulsio<strong>na</strong>l Revista de Psicanáliseconvencê-la a uma relação heterossexual.A esta altura da teoria, Freud nãofaz uma distinção clara entre objeto deamor e objeto de identificação. Então aligação que vê entre Dora e Sr. K. reduzao amor. Mas a ligação com o Sr. K.é também e primeiramente identificatória.Dora se aproxima do Sr. K. para entendercomo um homem deseja uma mulher.O erro de Freud foi não percebereste lugar que o Sr. K. ocupava para Dorae transferencialmente o lugar identificatórioque ele próprio ocupava para ela.A afonia de Dora evidencia claramenteo lugar que o Sr. K. ocupa em seu imaginário.Em sua ausência, conta Freud,o sintoma piora. O poder da pulsão oralaumenta quando Dora está só com aSra. K. A sua afonia tipifica o sexo oralcom a amante de seu pai, mostrandocomo está identificada com o Sr. K. Estaidentificação histérica com o Sr. K. permitea Dora ficar em um lugar ondepode desejar a Sra. K.A resistência aqui então é de Freud e nãode Dora. Quando ele insiste em interpretarcomo amor o que Dora sente peloSr. K., estamos diante da resistência doa<strong>na</strong>lista e não do paciente. Quando elese põe <strong>na</strong> posição de do<strong>no</strong> da verdade,impede que Dora se dê conta de seu desejopela Sra. K. A resistência é falsamenteimputada a Dora, quando, <strong>na</strong> verdade,ela é de Freud. O efeito desta resistênciade Freud em Dora foi despertara raiva e agressividade dela contraFreud, raiva que já sentia contra seu paie o Sr. K., generalizando agora a todosos homens.Freud pode favorecer esta “agressividade”de Dora em relação aos homens não vendoos fundamentos verdadeiros de sua relaçãocom o homem, que é uma identificaçãoimaginária que estrutura a relação <strong>na</strong>rcísica,afirma Serge Cottet. 30Querendo colocar Dora em um bom caminho,Freud estimulou seu desejo devingança contra todos os homens – umaconseqüência de sua alie<strong>na</strong>ção <strong>na</strong>rcísica,a saber, sua identificação com o Sr.K. e com Freud. Então, Dora se vingade Freud rompendo o tratamento domesmo modo como se vingou do Sr. K.e de seu pai.A MULHER COMO UM MAIS ALÉMA compreensão de que Freud teria introduzidoum elemento resistencial <strong>na</strong>análise de Dora poderia eventualmente<strong>no</strong>s levar a conclusão de que ela estivessefazendo um vínculo estritamente homossexualcom a Sra. K. Parece que foieste ponto de vista que Freud valorizouquando escreveu sobre o caso Dora apóso seu térmi<strong>no</strong> 31 . Os desdobramentosposteriores do pensamento do próprioFreud, <strong>no</strong> entanto, apontam para outra30. S. Cottet. Op. cit., p. 46.31. Conferir a última seção do caso, intitulada de postfácio.


A transferência <strong>na</strong> <strong>histeria</strong> – um <strong>estudo</strong> <strong>no</strong> caso Dora de Freud 31direção. O que parece estar em jogo efetivamentesão os complexos mecanismosde identificação histéricos que vacilamentre uma bipolaridade sexual.Dora, por um lado, se identifica com oSr. K. (identificação masculi<strong>na</strong>), com seupai e com Freud para poder desejar aSra. K. Por outro lado também se identificacom a Sra. K. (identificação femini<strong>na</strong>),desejando ser amada pelo Sr. K.e por seu pai à maneira pela qual a Sra.K. é amada por esse último. Esta complexidadeidentificatória só encontrará algumatematização em Freud em seus artigos<strong>no</strong> fi<strong>na</strong>l de vida, especialmente osartigos sobre a feminilidade 32 . Freud entãose aperceberá da profunda assimetriado Édipo femini<strong>no</strong> e se dará contade que tanto meni<strong>no</strong> como meni<strong>na</strong> têmcomo primeiro objeto de amor a mãe. Ochamado Édipo completo não está desenvolvidoà época de Dora.Serge André <strong>no</strong>s mostra em seu livro Oque quer uma mulher? 33 , que <strong>no</strong> SeminárioMais, Ainda, Lacan fala da mulhercomo um mais além do desejo masculi<strong>no</strong>.Neste seminário a feminilidade é vistaalém da condição de desejada pelo sexomasculi<strong>no</strong>. Trata-se de um acréscimo deLacan que não descarta o anteriormentedito sobre Dora e a feminilidade. Semeste desenvolvimento, Lacan tambémcaracteriza a ligação de Dora com a Sra.K. como homossexual. Quando, recomendaAndré, o melhor seria falar em“uma homossexuação do desejo de Dora,homossexuação ligada aos desvios dasidentificações pelas quais ela deve passarpara interrogar sua própria feminilidade”34 . A histérica se colocaria <strong>no</strong> lugarmasculi<strong>no</strong> para apreciar o valor quea mulher recebe do desejo masculi<strong>no</strong>.Dora não forma um par sexual com aSra. K., pelo contrário. Tendo demarcadoa posição da Sra. K., do ponto de vistado homem, Dora conclui que gostariade ser amada por um homem comoa Sra. K. é amada por seu pai.O que à luz de Mais, Ainda se pode dizeré que para Dora, a Sra. K. é objetodo amor de seu pai para além dela própria,quer dizer, como suplemento defeminilidade da qual ela mesma se senteem falta. O mesmo vale em relação aoSr. K., Dora pode aceitar seus galanteiosdesde que permanece um mais alémda Sra. K. Neste sentido, o processotodo vai denunciar nem tanto a homossexualidadede Dora, como o lugar supervalorizadoque a Sra. K. ocupa para elacomo encar<strong>na</strong>ção da feminilidade.Recolocando então a questão transferencial,o que se precisa dizer é que o queDora está fazendo é colocar a questão32. “A dissolução do complexo de Édipo” (1924), “Algumas conseqüências psíquicas da distinçãoa<strong>na</strong>tômica entre os sexos” (1925), a conferência 33 sobre “Feminilidade” (1933) em “Novasconferências introdutórias sobre a psicanálise”, entre outros.33. A. Serge. O que quer uma mulher?34. Idem, p. 150.


32 Pulsio<strong>na</strong>l Revista de Psicanáliseda feminilidade em sua análise comFreud. A pergunta sobre a mulher é feitanesta relação a<strong>na</strong>lítica. Dora procuraem Freud a resposta desta questão. Dorademanda dele o sentido de seu corpo ealma de mulher. Mas como nenhum saberpode dar conta desta indagação, asrespostas de Freud são insuficientes...Ele aponta para questão da maternidade,uma resposta boa mas parcial, que fazDora interromper a análise. Mais tardeFreud reconhecerá o limite do conhecimentopsica<strong>na</strong>lítico sobre a mulher:Isto é tudo o que tinha a dizer-lhes a respeitoda feminilidade. Certamente está incompletoe fragmentário... Se vocês quiseremsaber mais a respeito da feminilidade,recorram a suas próprias experiências, oudirijam-se aos poetas ou aguardem até quea ciência possa dar-lhes uma informaçãomais profunda e mais coerente. 35CONCLUSÃOA histérica está em busca do amor. Aoseu médico apresenta sua demanda, nãoraro apresentando-a com intensidade edramaticidade. <strong>Um</strong>a intensidade de demandaque freqüentemente coloca o a<strong>na</strong>listaem situação desconfortável. <strong>Um</strong>aintensidade de demanda que mobiliza resistências<strong>no</strong> a<strong>na</strong>lista. Como Freud <strong>no</strong>caso Dora, o a<strong>na</strong>lista pode ser enredadopor esta demanda histérica. ComoFreud, o a<strong>na</strong>lista pode se tor<strong>na</strong>r a principalresistência ao avanço da análise.Como defesa à demanda de Dora, Freudusa seu saber para conter esta demanda.Mas diz Lucien Israel “todo o sabersobre o outro corre o risco de ser redutorpara o outro.” 36A histérica coloca sua questão <strong>na</strong> análise:como posso ser uma mulher? Se oa<strong>na</strong>lista tem paciência, se não se assustanem atende a demanda, a perguntapode se tor<strong>na</strong>r: o que existe em mim quepode agradar aos homens? A histéricademanda e oferece amor ao a<strong>na</strong>lista perguntandopor sua feminilidade. Ao a<strong>na</strong>listacabe não acolher nem rejeitar esteamor. Cabe a ele escutar este amor einterpretá-lo, para que a histérica descubrao que há em si mesma nesta ofertade amor. Cabe ao a<strong>na</strong>lista possibilitar àpaciente que continue em análise, produzira revolução dialética que dissolvea resistência de que fala Lacan. Nas palavrasde Ma<strong>no</strong>el Berlinck:Seria levado a dizer, então, que o ato dopsica<strong>na</strong>lista [acting] é me<strong>no</strong>s uma ação emais a falta de ação que deixa de reatualizar<strong>no</strong> sujeito o des-centramento da posiçãopropriamente psica<strong>na</strong>lítica que relançao sujeito em sua própria análise. 3735. S. Freud. Conferência 33 – “Feminilidade” in Novas conferências introdutórias sobre a psicanálise.Traduzido e citado por Letícia Nobre in “Da <strong>histeria</strong> ao femini<strong>no</strong>: uma passagem emanálise”. Pulsio<strong>na</strong>l Revista de Psicanálise, São Paulo, a<strong>no</strong> XII, n o 126, outubro de 1999.36. L. Israel. Mancar não é pecado, p. 149.37. “A histérica e o psica<strong>na</strong>lista” in M.T. Berlinck (org.). Histeria, p. 43.


A transferência <strong>na</strong> <strong>histeria</strong> – um <strong>estudo</strong> <strong>no</strong> caso Dora de Freud 33Quando o a<strong>na</strong>lista pode suportar seguira histérica até este ponto... Quando aceitaficar <strong>no</strong> lugar de não dar respostaalguma à demanda, quando luta paradesmontar suas próprias resistências,quando suporta o descontentamento histéricoque exige sem cessar do a<strong>na</strong>lista38 , pode-se manter aberto o espaço a<strong>na</strong>líticoque permite a cada histérica pensaro que significa, para ela, ser uma mulher.•BIBLIOGRAFIAALONSO, S. Notas Seminário sobre Histeria.Instituto Sedes Sapientiae de SãoPaulo, 1999.ANDRÉ, S. O que quer uma mulher? Trad.D. D. Estrada. O Campo Freudia<strong>no</strong> <strong>no</strong>Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 1987.BERLINCK, M.T. (org.). Histeria. Bibliotecade Psicopatologia Fundamental. Trad.M. Seincman. São Paulo: <strong>Escuta</strong>, 1997.COTTET, S. Freud y el deseo del psicoa<strong>na</strong>lista.Trad. C. A. de Santos. Bue<strong>no</strong>sAires: Hacia el Tercer Encuentro delCampo Freudia<strong>no</strong>, 1984.ETCHEGOYEN, R.H. Fundamentos da técnicapsica<strong>na</strong>lítica. Trad. C.G. Fer<strong>na</strong>ndes.Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.FENICHEL, O. Teoria psica<strong>na</strong>lítica das neuroses.Trad. S. P. Reis. São Paulo: Atheneu,s/ data.FREUD, S. Edição Standard Brasileira dasObras Psicológicas Completas. Comentáriose <strong>no</strong>tas de J. Strachey.Colab. A. Freud. Dir. E. Bras. J. Salomão.Rio de Janeiro: Imago, 1996.ISRAEL, L. Mancar não é pecado. Trad. L.Arantangy e A. M. Leandro. São Paulo:<strong>Escuta</strong>, 1994.LACAN, J. Escritos. Trad. I. Oseki-Depré.Coleção Debates, n o 132. São Paulo:Perspectiva, 1978.MCDOUGALL, J. As múltiplas faces de Eros.<strong>Um</strong>a exploração psica<strong>na</strong>lítica da sexualidadehuma<strong>na</strong>. Trad. P. H. B. Rondon.São Paulo: Martins Fontes, 1977.NASIO, J. D. A <strong>histeria</strong> – Teoria e clínicapsica<strong>na</strong>lítica. Trad. V. Ribeiro. Rio deJaneiro: Zahar, 1991.NOBRE, L. “Da <strong>histeria</strong> ao femini<strong>no</strong>. <strong>Um</strong>apassagem em análise”, in Pulsio<strong>na</strong>l Revistade Psicanálise. São Paulo, a<strong>no</strong>XII, n o 126, outubro de 1999.38. Conferir a seção “<strong>Um</strong> eu insatisfeito” in J.D. Nasio. A <strong>histeria</strong> – Teoria e clínica psica<strong>na</strong>lítica,pp. 15 e 16.

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