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OBRA CAMILLE FLAMMARION O FIM DO MUNDO - a era do espírito

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<strong>OBRA</strong><strong>CAMILLE</strong> <strong>FLAMMARION</strong>O <strong>FIM</strong> <strong>DO</strong> MUN<strong>DO</strong>1 PARTENo século XXVAs teorias1 - A ameaça celesteII - O cometaIII - A sessão <strong>do</strong> InstitutoIV - Como acabará o mun<strong>do</strong>V - O Concílio <strong>do</strong> VaticanoVI - A crença no fim <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>VII - O choque2° - PARTEDentro de dez milhões de anosI - As etapas futuras


II - As metamorfosesIII - O apogeuIV - Vanitas vanitatumV - OmégarVI - EvaVII - O último diaEpílogo - Dissertação filosóficaPrimeira parte


NO VIGÉSIMO QUINTO SÉCULO - AS TEORIAS.CAPÍTULO IA ameaça celesteImplague ceternam timuerunt scecula noctem.VERGILIO, Geórgicas, I, 568.A magnífica ponte de mármore que liga as ruas deRennes e Louvre e que, debruada de estátuas de sábios efilósofos célebres delineia monumental aveni daconducente ao novo pórtico <strong>do</strong> Instituto, estavalit<strong>era</strong>lmente apinhada. Multidão inquieta parecia antesrolar que marchar, ao longo <strong>do</strong> cais, desbordan<strong>do</strong> detodas as ruas transversais, em demanda <strong>do</strong> edifício, já dehá muito invadi<strong>do</strong> pela onda tumultuária. Nunca, jamais,antes da constituição <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s da Europa, nasépocas da barbárie, quan<strong>do</strong> a força primava ao direito, omilitarismo governava a Humanid ade e a infâmia daguerra , sem tréguas, a estultícia humana; nunca, nasgrandes revoluções como nos dias tumultuosos dasdeclarações de guerra, as cercanias <strong>do</strong> Parlamento e aPraça da Concórdia apresentaram semelhanteespetáculo. Não <strong>era</strong>m já agrupamentos fanáticos emtorno de uma bandeira, a buscarem uma arma, segui<strong>do</strong>sde curiosos e desocupa<strong>do</strong>s, ávi <strong>do</strong>s de emoções e


novidades; <strong>era</strong> to<strong>do</strong> o povo inquieto, sôfrego , terrifica<strong>do</strong>;<strong>era</strong> o amálgama compacto de todas as classes sociais,ati<strong>do</strong> à decisão de um oráculo, esp<strong>era</strong>n<strong>do</strong> febril oresulta<strong>do</strong> <strong>do</strong> cálculo de célebre astrônomo, prometi<strong>do</strong>para esse dia de uma segunda-feira, às 3 da tarde, naAcademia das Ciências. Através da transformaçãopolítica e social <strong>do</strong>s homens e das coisas, o Instituto deFrança sobrevivia e detinha ainda, na Europa, a palmada ciência, das letras e das artes. Todavia, o eixo dacivilização deslocara-se para a América <strong>do</strong> Norte, àsmargens <strong>do</strong> lago Michigan.Estamos em pleno século vinte cinco.O novo edifício <strong>do</strong> Instituto, de altíssimos zimbórios eterraços, havia si<strong>do</strong> reconstruí<strong>do</strong> em fins <strong>do</strong> vigésimoséculo, de entre os escombros da grande r evoluçãointernacional-anarquista, que, em 1950, arrasara grandeparte da metrópole francesa, como se das entranhas <strong>do</strong>solo lhe houv<strong>era</strong> rebenta<strong>do</strong> a crat<strong>era</strong> de um vulcão.Ainda na vésp<strong>era</strong>, <strong>do</strong>mingo, espalhada pelas avenidase praças públicas, toda a populaçã o parisiense teria vistoa barquinha de um balão deslizan<strong>do</strong> lentamente e comoque desesp<strong>era</strong><strong>do</strong> e indiferente às coisas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Osavia<strong>do</strong>res alegres não mais sulcavam o espaço com avivacidade habitual. Aeroplanos, peixes aéreos, avesmecânicas, helicópteros elétricos, máquinas voa<strong>do</strong>ras,tu<strong>do</strong> se retraíra e imobilizara. As estações aéreas, locadasna cimeira das torres e <strong>do</strong>s arranha -céus, permaneciamvazias e desertas. Dir-se-ia que toda a vida humana seestagnara em seu curso. Em to<strong>do</strong>s os semblantes,preocupações e angústias. To<strong>do</strong>s se interpelavam semmesmo se conhecerem, e a mesma pergunta rebentava de


lábios trêmulos em semblantes desfigura<strong>do</strong>s: seráverdade? A mais terrível das epidemias não teriaapavora<strong>do</strong> tanto, quanto àquela predição astronômica,que andava agora em todas as bocas. Mais, ainda: nãoteria feito tantas vitimas, visto que a mortalidade jáentrara a crescer, sem causa conhecida. A to<strong>do</strong> omomento, cada qual se via sacudi<strong>do</strong> por um frêmito deterror.Alguns, queren<strong>do</strong> parecer mais fortes e menosalarma<strong>do</strong>s, se arrimavam a hipóteses vagas e mais oumenos aleatórias: pode ser que haja engano; ou então: elese desviará, não há de ser nada; havemos de recobrar <strong>do</strong>susto, etc.Todavia, a incerteza é, muitas vezes, mais terrível quea própria catástrofe. Um golpe brutal fere-nos de chofree nos abate mais ou menos: dele despertamos, tomamosnosso parti<strong>do</strong>, restabelecemo-nos e continuamos a viver.Aqui, porém, <strong>era</strong> o desconheci<strong>do</strong>, <strong>era</strong> a aproximaçãodum evento, inevitável, misterioso, extra mundano eformidável. Era a morte fatal, sim, mas de que mo<strong>do</strong>?Choque, arrasamento, combustão incendiária,envenenamento atmosférico com asfixia pulmonar? Quesuplício esp<strong>era</strong>r? Ameaça horripilante, mais que a morteem si mesma! O sofrimento espiritual também temlimites. Temer sem tréguas, perguntar todas as noitespelo que nos reserva o amanhã, vale por sofrer milmortes. E que dizer <strong>do</strong> me<strong>do</strong>? O me<strong>do</strong>, que coagula osangue nas artérias e aniquila as almas; o me<strong>do</strong>, espectroinvisível que ali rondava sobrepujan<strong>do</strong> todas as mente s eto<strong>do</strong>s os corações?


Havia um mês que to<strong>do</strong> o comércio paralisara. OComissaria<strong>do</strong> Administrativo (sucedâneo <strong>do</strong> Parlamentode outrora) suspend<strong>era</strong> as sessões, pois ali, mais quealhures, as divagações haviam chega<strong>do</strong> ao cúmulo.Paralisadas de oito dias as Bo lsas de Paris, Londres,Nova-Iorque, Chicago, Melbourne, Pequim! De fato: quevalia cogitar de negócios, de política, de planos ereformas quaisquer, se o mun<strong>do</strong> ia acabar? Ah . apolítica! Haveria quem se lembrasse de a ter p ratica<strong>do</strong>?Era como se tu<strong>do</strong> caminhasse no vácuo. Os própriostribunais não tinham significação: ninguém vai roubar,ou matar, quan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> vai perecer . A Humanidade jánão tinha que a estimulasse, o coração lhe pulsavaprecipite e como que prestes a mobilizar -se. De to<strong>do</strong>s osla<strong>do</strong>s surgiam fisionomias alt<strong>era</strong>das, macilentas, insones,e só a faceirice feminina, ainda que mal disfarçada,parecia resistir à obsessão da catástrofe iminente.E' que, de resto, a situação <strong>era</strong> mesmo gravíssima,por não dizer desesp<strong>era</strong><strong>do</strong>ra, até no conceito, <strong>do</strong>s maisestóicos.Nunca, nos fastos da Humanidade, a raça de Adão seencontrara ameaçada de semelhante perigo. As ameaçascósmicas pairavam sobre ela sem remissão. Era umproblema de vida ou de morte.Três meses mais ou menos, antes da data em queestamos, o Diretor <strong>do</strong> observatório <strong>do</strong> monteGaorisancar havia telefona<strong>do</strong> aos principaisobservatórios <strong>do</strong> planeta um reca<strong>do</strong> nestes termosDescobrimos, às 21h., 16m., 42s ., um cometatelescópico de ascensão retilínea a 49', 53', 45 dedeclinação boreal. E um cometa esverdea<strong>do</strong>.


Não se passava um mês que não fossem descobertos eanuncia<strong>do</strong>s cometas telescópicos por diversosobservatórios (1), sobretu<strong>do</strong> depois que astrônomosintrépi<strong>do</strong>s se instalaram nos altos cimos asiáticos deGaorisancar, Dapsang e Kintechindjinga; nos sul -americanos de Aconcágua, Illampon, Chimborazo ;assim como no Kilima-N'djaro africano e no Elbrouz eMont-Blanc, europeus. Destarte, aquele comunica<strong>do</strong> nãohavia, de começo, impressiona<strong>do</strong> maiormente aos sábios,familiariza<strong>do</strong>s com o seu conteú<strong>do</strong>. Grande número deobserva<strong>do</strong>res procurara focalizar o cometa na posiçãoassinalada, acompanhan<strong>do</strong>-o atentos. OsNeuastronomischenachrichten publicaram suasobservações. Um matemático alemão calculara umaprimeira órbita provisória, com as efemérides <strong>do</strong>movimento. Logo que foi divulgada essa órbita com assuas efemérides, outro sábio japonês fazia curiosíssimanotação, isto é : que, segun<strong>do</strong> o cálculo, o cometa deveriabaixar das alturas <strong>do</strong> infinito para o Sol e cruzar o planoda eclíptica aos 20 de Julho, num ponto pouco afa sta<strong>do</strong><strong>do</strong> em que se encontraria a Terra naquela data. Pelo que,acrescentava, seria imprescindível multiplicar asobservações e retomar o cálculo, para fixar a distância aque passaria o cometa e, só assim, prejulgar uma colisãocom a Terra, ou com a Lua.Uma senhorita, laureada <strong>do</strong> Instituto e candidata àDiretoria <strong>do</strong> Observatório, agarrara o pretexto parafincar-se na sala <strong>do</strong>s telefones, a fim de captarimediatamente to<strong>do</strong>s os despachos. Em menos de 10 dias,obtiv<strong>era</strong> ela mais de uma centena e, sem perder uminstante, ei-la passan<strong>do</strong> três dias e três noites a refazer o


cálculo, baseada na série de todas as observações. Oresulta<strong>do</strong> foi que o calculista alemão errara na distância<strong>do</strong> periélio, e a conclusão <strong>do</strong> astrônomo japonês <strong>era</strong>inexata, no concernente à passag em pelo plano daeclíptica, que se adiantara de cinco ou seis dias. Ointeresse <strong>do</strong> problema tornava-se, porém, maior, vistoque a distância mínima entre o cometa e a Terraafigurava-se mais curta que a calculada pelo japonês.Sem cogitar, no momento, da po ssibilidade de umchoque, to<strong>do</strong>s esp<strong>era</strong>vam encontrar na perturbaçãoenorme que o astro errante ia sofrer, da parte da Terra eda Lua, um novo meio de avaliar, com precisão rigorosa,a massa de uma e de outra, e, possivelmente, índicespreciosos <strong>do</strong> repartimento das densidades no interior <strong>do</strong>nosso orbe. A jovem calculista encarecia e justificava,destarte, a necessidade de observações mais numerosas eminudentes. Na vésp<strong>era</strong> da sessão, tinha ela já explica<strong>do</strong>a órbita, num comício acadêmico.Contu<strong>do</strong>, <strong>era</strong> no Observatório de Gaorisancar que secentralizavam todas as observações. Monta<strong>do</strong> no picomais eleva<strong>do</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, a 8000 metros de altitude, entreneves eternas que os novos processos da química elétricahaviam rechaça<strong>do</strong> a muitos quilômetros de em torno;sobrancean<strong>do</strong> quase sempre, a centenas de metros, asnuvens mais altas; pairan<strong>do</strong> numa atmosf<strong>era</strong> pura <strong>era</strong>refeita, a visão telescópica dir -se-ia ali centuplicada.Distinguiam-se a olho nu os círculos lunares, os satélitesde Júpiter e as fases de Vênus. Nove ou dez g <strong>era</strong>çõesfamiliares haviam já habita<strong>do</strong> a montanha asiática, lá seacliman<strong>do</strong> e identifican<strong>do</strong> com a rarefação atmosférica.E' certo que os primeiros haviam rapidamente pereci<strong>do</strong>,


mas a Ciência e a Indústria conseguiram atenuar osrigores <strong>do</strong> frio, graças ao armazenamento <strong>do</strong>s raiossolares, e a aclimação se fiz<strong>era</strong> gradualmente, tão bemcomo nos tempos i<strong>do</strong>s, em Quito e Bogotá, onde se viam,desde os séculos XVIII e XIX, populações felizes, emabastança, e mulheres que bailavam noites a fio, sem sefatigarem, numa altitude em que os excursionistas <strong>do</strong>Monte-Branco mal arriscariam alguns passos sem lhesfaltar a respiração. Uma pequena colônia astronômicainstalara-se, pouco a pouco, nos flancos <strong>do</strong> Himalaia e oObservatório granjeara, por seus trabalhos edescobertas, o titulo de primeiro <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Seuprincipal instrumento <strong>era</strong> a famosa equatorial de 100metros de foco, com auxílio da qual chegaram a decifraros sinais hieroglíficos que, de milênios, vinha Martebaldamente emitin<strong>do</strong> para a Terra. Enquanto osastrônomos europeus discutiam a órbita <strong>do</strong> novo cometae constatavam que ela deveria efetivamente atravessar a<strong>do</strong> nosso planeta, de feição a com ele chocar -se no espaço,o Observatório asiático expedira um novo fonograma:O cometa vai tornar-se visível a olho nu. Sempreesverdea<strong>do</strong>, dirige-se para a Terra.Viessem da Europa, Ásia ou América, os cálculosastronômicos já não ofereciam dúvida sobre a suaexatidão. Os jornais cotidianos bolsaram a notíciaalarmante, ilustrada de comentários trágicos e inúm<strong>era</strong>sentrevistas, que atribuíam aos sábios as mais esdrúxulasopiniões. Não faltava quem exag<strong>era</strong>sse os cálculos,gravan<strong>do</strong>-os com dissertações mais ou menos fantasistas.Mas, a verdade é que a imprensa periódica de to<strong>do</strong> omun<strong>do</strong>, sem exceção, transformara -se de há muito em


mero agente de mercantilismo. Essa imprensa que,noutros tempos, tantos serviços prestara à causa <strong>do</strong> livrepensamento e, portanto, ao progresso humano, estavaagora a sol<strong>do</strong> <strong>do</strong>s governos e <strong>do</strong> capitalismo, aviltada emanietada por compromissos de toda a espéci e. Nãohavia jornal que se não reduzisse a objeto de comércio. Aquestão, o problema de cada qual, resumia -se noaumento da tiragem e na receita <strong>do</strong>s anúncios mais oumenos estrambóticos. Fazer dinheiro, eis tu<strong>do</strong>. Por isso epara isso, maquinavam falsas not ícias, que desmentiamlogo tranqüila e imediatamente; minavam a to<strong>do</strong> oinstante a segurança <strong>do</strong> Espaço, mascaravam a verdade,atribuíam aos sábios falsos conceitos, caluniavamatrevidamente, semeavam escândalos, mentiam,arrazoavam assassínios e ladroeiras, multiplicavam oscrimes por sugestão, davam as fórmulas de explosivosrecentemente imagina<strong>do</strong>s, envenenavam seus própriosleitores e traíam todas as classes sociais no só intuito desobre excitar a curiosidade pública e vender a folha.Nada mais que negócios e reclames. Ciências, arte,lit<strong>era</strong>tura, filosofia, estu<strong>do</strong>s e pesquisas, nadainteressava. Um ator de segunda ordem, uma atrizobscura, um tenor, uma cantora, um ginasta, umcorre<strong>do</strong>r, um andarilho, um atleta, sobretu<strong>do</strong> umbandi<strong>do</strong> da pior espécie podiam, de um dia para outro,tornar-se mais célebre que o mais eminente <strong>do</strong>s sábios,ou o mais benemérito <strong>do</strong>s inventores. Publicavam -seretratos <strong>do</strong>s mais fortes corre<strong>do</strong>res, como <strong>do</strong>s maisilustres patifes e assassinos. Às vezes, davam -se aotrabalho de mascarar essa bestice com floreiospatrióticos, que os valorizassem um tantinho mais.


Contu<strong>do</strong>, o que pre<strong>do</strong>minava <strong>era</strong> a economia da folha.Por muito tempo deixara-se o público mistificar.Todavia, na época em que nos achamos, ele haviadesperta<strong>do</strong> e já não dava crédito a balelas impressas, desorte que não existiam jornais propriamente ditos, masapenas folhas de anúncios e reclames de utilidadecomercial. A primeira notícia lançada por todas aspublicações cotidianas <strong>era</strong> a de que um cometa seaproximava com incrível velocidade e ia chocar-se com aTerra na data prefixada. A segunda notícia acrescentavaque o astro vagabun<strong>do</strong> poderia ocasionar uma catástrofeuniversal, pelo envenenamento <strong>do</strong> ar respirável. Estadupla predição fora, aliás, acolhida por toda a gente, comdisplicente incredulidade, não produzira maior efeito queo da descoberta da fonte de Juventa ao porão <strong>do</strong> Paláciodas Fadas, em Montmartre, (surgi<strong>do</strong> das ruínas <strong>do</strong>Sagra<strong>do</strong>-Coração) e que também se anunciava comocoisa sensacional.Lit<strong>era</strong>tos, poetas e artistas val<strong>era</strong>m-se <strong>do</strong> pretextopara celebrar em prosa, em verso e ilustrações de todaespécie, as viagens cometárias através das regiõescelestes. Aqui, <strong>era</strong> o cometa afrontan<strong>do</strong> um enxame deestrelas aterradas; ali, precipitan<strong>do</strong> -se, cambalhotan<strong>do</strong>,ameaçan<strong>do</strong> a Terra a<strong>do</strong>rmecida. Tais personificaçõessimbólicas entretinham a credulidade pública, semacréscimo <strong>do</strong>s primeiros terrores. Dir -se-ia que sefamiliarizavam com a idéia de um encontro, sem maiorestemores. E' que a maré das impressões populares oscilacomo os barômetros.Ao demais, os próprios astrônomos, de começo, não setinham inquieta<strong>do</strong> com a probabilidade <strong>do</strong> encontro, sob


o ponto de vista das conseqüências atinentes aos destinoshumanos, tanto que as revistas de Astronomia (as únicasque ainda mereciam conceito) nada haviam dito nesseparticular, mesmo a título conjetural. Encararam oproblema pelo prisma das matemáticas puras,consid<strong>era</strong>n<strong>do</strong>-o apenas corno um caso interessante damecânica celeste. Nas entrevistas que d<strong>era</strong>m, limitou-se aresponder que o encontro <strong>era</strong> possível, provável mesmo,mas, destituí<strong>do</strong> de interesse para o público.De súbito, novo fonograma, desta vez emiti<strong>do</strong> <strong>do</strong>Monte Hamilton, na Califórnia, vinha alertarfisiologistas e químicos:As observações espectroscópicas atest am que ocometa é constituí<strong>do</strong> de massa assaz condensada,composta de vários gases, nos quais pre<strong>do</strong>mina o óxi<strong>do</strong>de carbono.O negócio complicava-se. O encontro <strong>era</strong> coisa certa.Se os astrônomos até então não se preocupavammaiormente, acostuma<strong>do</strong>s a consid<strong>era</strong>r inofensivas essasconjunções celestes, a ponto de se esquivarem, e alguns,de entre eles, despedirem a reportagem abelhuda,declaran<strong>do</strong> que o assunto, de pura alçada astronômica,não interessava ao vulgo, agora tocava aos médicos oalarme e o debate, agita<strong>do</strong> quanto às hipóteses de asfixiaou envenenamento. Menos indiferentes à opinião pública,eles, os médicos, não escorraçavam os publicistas e, muitoao invés, concorriam para que em poucos dias a questãotomasse outro aspecto. De astronômico, tornou -sefisiológico; e os expoentes mais célebres da medicinacomeçaram a retratar-se nas revistas ilustradas, comlegendas deste teor: dão-se consultas sobre o cometa. A


variedade, a diversidade e o antagonismo das apreciaçõesforam a ponto de originar controvérsias e polêmicasapaixonadas, através das quais <strong>era</strong>m os médicosaverba<strong>do</strong>s de charlatães.Contu<strong>do</strong>, cioso <strong>do</strong>s interesses da ciência, o Diretor <strong>do</strong>Observatório de Paris mantinha -se mu<strong>do</strong> em face dacontrovérsia que, por mais de uma feita, desvirtuara averdade astronômica. O Diretor <strong>era</strong> um anciãorespeitável, cujo cabelos haviam encaneci<strong>do</strong> no estu<strong>do</strong><strong>do</strong>s grandes problemas da cosmologia. Sua palavra <strong>era</strong>universalmente acatada e ele decidiu, finalmente,transmiti-la à imprensa, notifican<strong>do</strong>-lhe a prematuridadede quaisquer conjeturas, enquan to a assembléia <strong>do</strong>stécnicos, reunida no Instituto, não chegasse a umaconclusão.Já dissemos que o Observatório de Paris sempre semantiv<strong>era</strong> à testa <strong>do</strong> movimento científico, graças àoperosidade de seus membros. Sobretu<strong>do</strong>, pelatransformação <strong>do</strong>s seus méto<strong>do</strong>s de observação, tornarasesimultaneamente santuário de estu<strong>do</strong>s teóricos enúcleo telefônico <strong>do</strong>s seus congêneres, situa<strong>do</strong>s longe emais favoreci<strong>do</strong>s pela altitude e condições atmosféricas.Era, enfim, um asilo de paz no qual imp<strong>era</strong>va a maiscompleta harmonia. Os astrônomos ali se consagravam,uma vida inteira, aos progressos da ciência, estiman<strong>do</strong> -see respeitan<strong>do</strong>-se, indenes de inveja e ciúmes, eesquecen<strong>do</strong> méritos pessoais para só exaltarem osalheios. O Diretor <strong>era</strong> o primeiro a exemplificar e, assim,quan<strong>do</strong> falava, fazia-o em nome de to<strong>do</strong>s os colegas. Adissertação técnica, por ele publicada, teve o seumomento de atenção, mas, a verdade é que o problema


astronômico já estava fora <strong>do</strong> cartaz. Ninguémcontestava nem discutia o encontro <strong>do</strong> cometa com aTerra, que granjeara foros de matemática certeza. O quepreocupava os espíritos <strong>era</strong> a constituição química <strong>do</strong>cometa. Se a sua passagem pela Terra viesse absorver ooxigênio da atmosf<strong>era</strong>, não haveria como evitar a asfixiaimediata. Fosse o azoto combinar com os gasescomentários e seria ainda a morte, precedida de enormedelírio e de uma como alegria universal, um exaltamentode to<strong>do</strong>s os senti<strong>do</strong>s, decorrentes da subtração <strong>do</strong> azoto e<strong>do</strong> acréscimo proporcional <strong>do</strong> oxigênio em funçãopulmonar. A análise espectral a ssinalava, sobretu<strong>do</strong>, oóxi<strong>do</strong> de carbono. O que as revistas científicas discutiam,primordialmente, visava a saber se a mistura deste gásdeletério, com o ar respirável, envenenaria a populaçãoem bloco, homens e animais, conforme afirmava oPresidente da Academia de Medicina.Oxi<strong>do</strong> de carbono! Não se falava de outra coisa. Aanálise espectral não poderia enganar -se, os méto<strong>do</strong>s<strong>era</strong>m seguros, rigorosos os processos. Toda gente sabiaque a mínima partícula desse gás, aspira<strong>do</strong>, <strong>era</strong> morte atermo breve. A essa altura, novo despacho <strong>do</strong>Gaorisancar vinha confirmar e agravar o <strong>do</strong> Monte -Hamilton, dizen<strong>do</strong>:O cometa, cujo volume aumenta dia a dia e já excedeao da Terra, trinta vezes, acabará envolven<strong>do</strong> -atotalmente.Trinta vezes o diâmetro <strong>do</strong> nosso globo?! Mas, ent ão,mesmo que ele passasse entre a Terra e a Lua, afetaria


ambas, visto que uma ponte dessa extensão bastaria paraligar-nos ao satélite. Depois, a verdade é que, nesses trêsmeses, cujo histórico sumariamos, o cometa deslocara -se<strong>do</strong>s planos telescópicos, tornara-se visível a olho nu eagora aí estava pairan<strong>do</strong> todas as noites, gigantesco,ameaça<strong>do</strong>r, à face das estrelas. A crescer de noite paranoite, dir-se-ia fosse o próprio Terror materializa<strong>do</strong> eimpendente de todas as cabeças, caminhan<strong>do</strong> lenta egradualmente, qual espada formidanda e inexorável. Umúltimo ensaio fora tenta<strong>do</strong>, não para desviá -lo <strong>do</strong> seuroteiro - idéia aventada por certa classe de utopistas, quede nada duvidam e ousaram imaginar o recurso de umpoderoso ciclone elétrico, produzi<strong>do</strong> por bate riasdispostas na região passível de ser atingida - mas parareconsid<strong>era</strong>r o problema em to<strong>do</strong>s os seus aspectos etranqüilizar, possivelmente, os espíritos, reanimar -lhes aesp<strong>era</strong>nça com alguma falha das previsões já emitidas, ouqualquer nesga nos cálculos e observações consumadas.Quem diria não ser o encontro tão funesto comopretendiam os pessimistas? Uma discussão g<strong>era</strong>l deviatravar-se naquela noite de segunda-feira, no Instituto,isto é, quatro dias antes <strong>do</strong> fatídico encontro, previstopara o dia 13 de Julho. O mais célebre astrônomo daFrança, então Diretor <strong>do</strong> Observatório; o Presidente daAcademia de Medicina, fisiologista e químico eminente; oPresidente da Sociedade Astronômica, hábil matemático,e ora<strong>do</strong>res outros, entre os quais notabilíssima damajustamente afamada por suas descobertas no campo dasciências físicas, iam ilustrar os debates. Sim, a últimapalavra-não fora ainda pronunciada e nós vamos,


portanto, franquear o velho <strong>do</strong>mo <strong>do</strong> vigésimo séculopara assistir à discussão.Antes de o fazer, porém, examinemos nós mesmo essefamig<strong>era</strong><strong>do</strong> cometa, que aí está desvairan<strong>do</strong> todas asmentes.CAPITULO 11O cometaVapores qui ex caudis cometarum oriuntur ínciderepossunt in atmosph<strong>era</strong>s planetarum, et ibi condensari etcorverti in aquam, et sales, et sul phura, et limum, etlutum, et lapides, et substantias alias terrestres migrare.NEWTON, Principia, 111, 671.O estranho visitante desc<strong>era</strong> lentamente <strong>do</strong>s paramossid<strong>era</strong>is. Em vez de surgir de súbito, como sói acontecer etem-se observa<strong>do</strong> com os grandes cometas, quer quan<strong>do</strong>aparecem após a transposição <strong>do</strong> periélio, quer quan<strong>do</strong>longa serie, de noites nubladas, ou luarentas, interditou aobservação <strong>do</strong>s investiga<strong>do</strong>res, desta feita os flutuantesvapores sid<strong>era</strong>is haviam fica<strong>do</strong> nos espaços telescópicos,só observa<strong>do</strong>s pelos astrônomos.Nos primeiros dias, seqüentes à descoberta, ele sóseria acessível através de poderosas lentes. O públicoinstruí<strong>do</strong> não deixara, contu<strong>do</strong>, de procurar por simesmo. To<strong>do</strong> edifício moderno tinha, ao demais, o seuterraço destina<strong>do</strong> ao tráfego aéreo, e muitos deles


provi<strong>do</strong>s de cúpulas giratórias. Não havia famíliaremediada que não dispusesse de uma lunetaastronômica, nem apartamento de certa ordemdesprovi<strong>do</strong> de biblioteca bem fornida de obrascientíficas. E' que, no século XXV, os terr ícolascomeçavam efetivamente a pensar.O cometa fora, por assim dizer, observa<strong>do</strong> por toda agente, desde que se tornou acessível aos aparelhos demediana potência. Quanto às classes laboriosas, que têmas horas sempre contadas, as tinham ao seu dispor aslunetas assestadas nas praças públicas, sempre ocupadaspela turba impaciente. Não faltaram, então, a partir daprimeira noite de visibilidade, astrônomos <strong>do</strong> ar livre, ou<strong>do</strong> sereno, com as suas receitas e predições fantásticas.Grande número de operários d ispunham, todavia, delunetas <strong>do</strong>mésticas, sobretu<strong>do</strong> na província, e, manda ajustiça e a verdade se diga que, em França, o primeiro adescobrir o cometa (fora <strong>do</strong>s Observatórios oficiais, éclaro) não foi nenhum acadêmico nem figurão social, masum modesto alfaiate <strong>do</strong> arrabalde de Soissons, quevigilava todas as noites e, muni<strong>do</strong> de excelente lunetaadquirida com penoso esforço, não cessava de estudar ascuriosidades <strong>do</strong> firmamento.Uma nota digna de registo é a de que até o séculoXXIV quase to<strong>do</strong>s os habitantes da Terra viv<strong>era</strong>m semsaber onde estavam e sem mesmo ter a curiosidade de oindagar, mais ou menos como o cego apenas preocupa<strong>do</strong>com o seu apetite. Mas, de cem anos a essa parte, a raçahumana entrara a observar o Universo e a meditar. Parafazermos uma idéia da trajetória <strong>do</strong> cometa, bastaexaminar com atenção o gráfico. Ele representa o plano


da órbita <strong>do</strong> cometa e a sua intersecção na órbitaterrestre, com o cometa chegan<strong>do</strong> <strong>do</strong> infinito, dirigin<strong>do</strong> -se obliquamente para a Terra e prosseguin<strong>do</strong> em seucurso, a aproximar-se <strong>do</strong> Sol, que o não retém nemabsorve em sua passagem ao periélio.Não se levou em conta à perturbação acarretada pelaatração terrestre - influência que teria por efeitoreconduzir o cometa para a órbita terrestre, após umarevolução em torno <strong>do</strong> astro solar, transforman<strong>do</strong>-se-lhea órbita de parabólica em elipsoidal. To<strong>do</strong>s os cometasque gravitam em torno <strong>do</strong> Sol descrevem órbitasanálogas, mais ou menos alongadas, das quais o astroradioso ocupa um <strong>do</strong>s focos.Numerosos, esses cometas. O desenh o dá uma idéiadas intersecções que eles apresentam com a órbitaterrestre, em torno <strong>do</strong> Sol, e com as outras órbitasplanetárias. Examinan<strong>do</strong> essas intersecções, vê -se que umencontro nada tem de impossível, nem mesmo deanormal.Agora, ele poderia ver-se da Terra. Uma noite denovilúnio, com um céu admiravelmente limpo, algunsolhares mais penetrantes tinham consegui<strong>do</strong> distinguir aolho nu, não longe <strong>do</strong> zênite, nas bordas da Via -láctea eao sul da estrela ômicron de Andrômeda, uma comopálida nebulosidade, tenuíssima nuvenzinha esfumada eapenas alongada em direção oposta ao Sol, como umprolongamento gasoso, um esboço de cauda rudimentar.Aliás, <strong>era</strong> sob este mesmo aspecto que o fixavam ostelescópios, desde que fora descoberto. Ninguém poderia


atribuir a esse aspecto inofensivo o papel trágico que onovo astro iria representar na história da -Humanidade.O cálculo tão somente indicava, até então, a sua marchapara a Terra. O astro misterioso prosseguia, entretanto,rapidíssimo na sua trajetória. No dia segu inte, já metade<strong>do</strong>s curiosos conseguiam percebê -lo; e, no imediato, nãohavia binóculos que o não apanhassem. Dentro de umasemana, to<strong>do</strong>s o conheciam. Nas praças públicas, emtodas as vilas e aldeias, só se viam grupos a procurar,assinalar e discutir o intruso.E o intruso avultava de dia para dia. As lentes járevelavam, no seu corpo, um núcleo assaz luminoso, quesuscitava dissertações apaixonadas. Depois, a caudafendeu-se lentamente em raios divergentes <strong>do</strong> referi<strong>do</strong>núcleo e tomou, pouco a pouco, a form a de leque. Aemoção chegava ao auge quan<strong>do</strong>, após o primeiro quartode lua e durante a lua cheia, o cometa como queestacionara e até esmaec<strong>era</strong>. Ten<strong>do</strong> -o visto engrandecerprogressivamente até então, conjeturou qualquerdescui<strong>do</strong> no cálculo, o que ensejou um a fase de relativodesafogo e tranqüilidade. Depois <strong>do</strong> plenilúnio, obarômetro caiu rápida e consid<strong>era</strong>velmente : o centro dedepressão de fortíssima tempestade chegava <strong>do</strong> Atlânticoe passava ao norte das ilhas Britânicas. O céu ficoutotalmente encoberto durante <strong>do</strong>ze dias, para, quase to<strong>do</strong>o continente europeu. Mas, as nuvens se esvaec<strong>era</strong>m,enfim, e o Sol voltou a fulgir num céu azul, puríssimo. Dever-se, a emoção com que aguardavam o ocaso desse diaradioso, emoção tanto maior quanto alguns avia<strong>do</strong>restinham consegui<strong>do</strong>, antes, atravessar a camada nebulosae asseguravam que o cometa havia aumenta<strong>do</strong>


consid<strong>era</strong>velmente. As mensagens recebidas <strong>do</strong>s píncarosasiáticos e americanos anunciavam, por outro la<strong>do</strong>, achegada mais breve. Mas, quanta decepção' Ao cair danoite, quan<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s mergulhavam o olhar nofirmamento, na expectativa de contemplar um astrocoruscante, já não <strong>era</strong> um cometa clássico o que se lhesdeparava e sim uma aurora boreal de nova espécie, umcomo prodigioso leque de sete varas, a projetar no espa çooutros tantos raios esverdea<strong>do</strong>s, que pareciam provir deum foco oculto abaixo <strong>do</strong> horizonte. Não restava dúvidasde que essa aurora boreal, fantástica, fosse o própriocometa, ainda porque, <strong>do</strong> anteriormente observa<strong>do</strong>,ninguém lobrigava vestígios no manto estrela<strong>do</strong>. Aaparição diferia singularmente, na verdade, das formascometárias conhecidas, e o aspecto radioso <strong>do</strong> insólitovisitante poderia dizer-se o que de mais inesp<strong>era</strong><strong>do</strong>pudesse haver no mun<strong>do</strong>. Essas formações gasosas são,contu<strong>do</strong>, tão bizarras, tão caprichosas e multifárias, queninguém as poderia descrever. Depois, não <strong>era</strong> aprimeira vez que um cometa apresentava tal aspecto. Osanais da astronomia mencionavam, entre outros, umenorme cometa de seis caudas, observa<strong>do</strong> em 1744 e quefora, então, objeto de inúm<strong>era</strong>s dissertações. Haviamesmo, dele, um assaz pitoresco desenho de visu, feitopelo astrônomo Chesaux, de Lausanne, que opopularizara ao seu tempo. O cometa de 1861, com a suacauda em leque, <strong>era</strong> outro exemplo desse gênero deperegrinos interplanetários, e havia quem lembrasse que,a 30 de Junho daquele ano, ocorr<strong>era</strong> um encontro, porsinal que bem inofensivo, da sua cauda com a Terra.


Mas, ainda que não houv<strong>era</strong> precedentes, não haviacomo iludir a evidência.Entrementes, as discussões prosseguiam e verdadeirajusta astronômica se travara através das revistascientíficas de to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>, únicas que mantiv<strong>era</strong>malguns créditos, como vimos, no turbilhão <strong>do</strong>mercantilismo que de há muito empolgara aHumanidade. A questão principal, uma vez sabi<strong>do</strong> que oastro caminhava para a Terra, <strong>era</strong> a distância que seencurtava dia a dia, relacionada, portanto, com a suavelocidade. A jovem laureada <strong>do</strong> Instituto, recém -nomeada para a chefia da secção de cálculos, não deixavade expedir o boletim diário ao órgão oficia l <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>sUni<strong>do</strong>s da Europa.Uma relação matemática, bem simples, conjuga todaa velocidade cometária à sua distância solar, e vice -versa.Conhecida uma, pode-se imediatamente encontrar aoutra. De fato, a velocidade de um cometa é pura esimplesmente igual à de um planeta, multiplicada pelaraiz quadrada de 2. Ora, a velocidade de um planeta, aqualquer distância <strong>do</strong> Sol, está regulada pela terceira leide Kepler, em virtude da qual os quadra<strong>do</strong>s de tempodas revoluções estão entre si como os cubos dasdistâncias. Nada mais simples, portanto.Assim, pois, à distância de Júpiter, o magníficoplaneta que gravita em torno <strong>do</strong> Sol com uma velocidadede 13.000 metros por segun<strong>do</strong>, um cometa nessa mesmadistância deslocar-se-á, portanto, com a velocidade queacabamos de assinalar, multiplicada pela raiz quadradade 2, ou seja, pelo número 1,4142. Teremos, então, umavelocidade de 18380 metros por segun<strong>do</strong>.


Marte circula o Sol com a velocidade de 24000 metrospor segun<strong>do</strong>. A essa distância, a velocidade cometáriaserá de 34000 metros.A velocidade média da Terra em sua órbita é de29460 metros por segun<strong>do</strong>, um tanto mais lenta emJunho e mais rápida em Dezembro. Na vizinhança daTerra, a velocidade <strong>do</strong> cometa seria, portanto, de 41660metros, independentemente da aceler ação que a atraçãoda Terra lhe pudesse acarretar. Eis o que a laureada <strong>do</strong>Instituto incumbiu-se de transmitir ao público, aliás jáelementarmente inicia<strong>do</strong> nas teorias da mecânica celeste.Quan<strong>do</strong> o astro ameaça<strong>do</strong>r atingiu a distância deMarte, os temores populares deixaram de ser vagos,toman<strong>do</strong> formas definidas, baseadas na apreciação exata,quão fácil, da sua velocidade a 34000 metros porsegun<strong>do</strong>, ou sejam 2040 quilômetros por minuto,equivalentes a 122400 quilômetros à hora!Sen<strong>do</strong> à distância entre as órbitas de Marte e daTerra não excedente a 76 milhões de quilômetros, temosque, à razão de 122400 quilômetros horários, essadistância seria vencida em 621 horas, ou 26 dias mais oumenos. Contu<strong>do</strong>, à medida que se aproxima <strong>do</strong> Sol, ocometa acel<strong>era</strong> a sua marcha, visto que, à distância daTerra, sua velocidade é de 4166 metros por segun<strong>do</strong>.Da<strong>do</strong> este acréscimo de velocidade, à distância entre asduas órbitas seria coberta em 558 horas, ou 23 dias e 6horas.Mas, não deven<strong>do</strong> a Terra achar -se, no momentojusto <strong>do</strong> encontro, precisamente no ponto de sua órbitaatravessa<strong>do</strong> por uma linha entre o Sol e o cometa, poisque este não se precipitava para aquele, o encontro só


poderia dar-se uma semana mais tarde, pouco mais oumenos, ou fosse na sexta-feira 13 de Julho, à meia-noite.Desnecessário acrescentar, que, em tais circunstâncias,to<strong>do</strong>s os preparativos da festa nacional <strong>do</strong> 14 de Julhoforam esqueci<strong>do</strong>s. Ninguém pensava nisso. Pois o 14 deJulho não auspiciava, antes de tu<strong>do</strong>, um luto universal?De resto, havia já cinco séculos que a famosa efeméridevinha sen<strong>do</strong> - se bem que intermitentemente -comemorada pelos franceses. Entre os próprios romanos,a tradição das festas circenses não durara tanto tempo.Ouvia-se g<strong>era</strong>lmente dizer que o 14 de Julho já tinhavivi<strong>do</strong> bastante; que tinha morri<strong>do</strong> quinze vezes e nãodeveria ressuscitar.Encontramo-nos aqui, precisamente, aos 9 de Julho,segunda-feira. Havia cinco dias que o céu se ostentavabelíssimo e toda à noite o leque cometário esplendia naimensidade com o seu núcleo bem v isível, palheta<strong>do</strong> depontos luminosos, que poderiam representar corpossóli<strong>do</strong>s, de diâmetros quilométricos e que - asseguravamalguns calculistas - deveriam ser os primeiros aprecipitarem-se sobre a Terra, pois que a cauda semantinha voltada para o Sol e , no caso vertente,precedida <strong>do</strong> movimento e sensivelmente oblíqua. Oastro flutuava na constelação <strong>do</strong>s Peixes; a observação davésp<strong>era</strong> dava a sua posição exata; ascen são retilínea =23h. 10m., 32s. declinação boreal = 7° 36' 4 . A caudaatravessava to<strong>do</strong> o quadra<strong>do</strong> de Pégaso. O cometa surgiuàs 9h. 49m. e planava no céu por toda a noite.Durante o perío<strong>do</strong> de calma retro -assinala<strong>do</strong>,houv<strong>era</strong> uma reviravolta na opinião pública. Após umasérie de cálculos, certo astrônomo estabelec<strong>era</strong> que, por


várias vezes, a Terra tinha encontra<strong>do</strong> cometas e sempretais encontros resultaram em inofensiva chuva de estrelascadentes. Um colega, porém, lhe replica que o cometaatual longe estava de poder equiparar -se a um enxame demeteoros, por isso que gasoso, com um núcleo deconcreções sólidas; e lembrava, a propósito, asobservações relativas ao histórico e famoso cometa de1811. Tal cometa não deixa de justificar, efetivamente, decerta maneira, temores nada quiméricos. Tiv<strong>era</strong>m ocuida<strong>do</strong> de lembrar as suas dimensões. Comprimen to de180 milhões de quilômetros, ou seja, maior que àdistância da Terra ao Sol. A extremidade da caudaoferecia 25 milhões de quilômetros de largura. Odiâmetro da cabeça <strong>era</strong> de 1800000 quilômetros, isto é,cento e quarenta vezes maior que o da Terra. Ne ssacabeça nebulosa, elíptica e notoriamente regular, via-seum núcleo brilhante, qual estrela, cujo diâmetro, por sisó, media 200000 quilômetros. Esse cometa afigurava -semuitíssimo denso e foi observa<strong>do</strong> durante 6 meses e 22dias. Entretanto, o que de mais notável, talvez, se podeassinalar a seu respeito, é que o seu enormedesenvolvimento foi atingi<strong>do</strong> sem aproximar -se <strong>do</strong> Sol, àdistância de 150 milhões de quilômetros. Assim que,permaneceu sempre a mais de 170 milhões dequilômetros da Terra. Se mais se houv<strong>era</strong> aproxima<strong>do</strong> <strong>do</strong>Sol, da<strong>do</strong> que a dimensão <strong>do</strong>s cometas aumenta àproporção que experimentam maiormente a ação solar,seu aspecto deveria ter si<strong>do</strong> ainda mais prodigioso eterrificante para toda gente. E, como a sua massa longeestava de ser insignificante, se o seu vôo o tivesse leva<strong>do</strong>diretamente ao Sol, a velocidade acel<strong>era</strong>da à razão de 500


e 600 quilômetros por segun<strong>do</strong> no momento <strong>do</strong> choquecom o astro radioso, teria logra<strong>do</strong>, pela só transformação<strong>do</strong> movimento em calor, elevar a radiação solar a talgrau que toda a vida animal e vegetal na Terra seextinguiria em poucos dias... Um físico houve que chegouà curiosa pond<strong>era</strong>ção de que um cometa, igual ou maiorque o de 1811, poderia destarte acarretar o fim <strong>do</strong>mun<strong>do</strong>, sem tocar a Terra, por uma tal ou qual explosãode luz e calor solares, análoga às observadas com asestrelas temporárias. O choque, nesse caso, engendrariauma quantidade de calor igual a seis mil vezes a de umvolume de hulha igual ao cometa.Havia-se ressalta<strong>do</strong> que, em seu vôo, tal cometa, aoinvés de precipitar-se para o Sol, chocar-se-ia conosco eseria, então, a consumação pelo fogo. Se ele, o cometa,colidisse com Júpiter, levá-lo-ia a uma temp<strong>era</strong>turacapaz de lhe restituir a perdida luminosidade, comprerrogativas de sol temporário, de mo<strong>do</strong> que a Terraseria aclarada por <strong>do</strong>is sóis. Júpiter ficaria sen<strong>do</strong>, assim,um como pequeno sol noturno, muito mais luminoso quea Lua e emitin<strong>do</strong> luz própria... vermelha, rubi ou grenáceleste, e circulan<strong>do</strong> em <strong>do</strong>ze anos em torno de nós... Solnoturno! Vale dizer que não haveria mais noites para oglobo terrestre.Consultaram-se os mais clássicos trata<strong>do</strong>sastronômicos, rel<strong>era</strong>m os capítulos comentários escritospor Newton, Halley, Maupertius, Lalande, Laplace,Arago; as Memórias científicas de Faye, Tiss<strong>era</strong> nd,Bouquet de Ia Grye, H. Poincaré e sucessores. Eracontu<strong>do</strong> a opinião de Laplace que mais impressionava, ecujo texto fora assim divulga<strong>do</strong>:


Eixo e movimento rotativo alt<strong>era</strong><strong>do</strong>s, maresaban<strong>do</strong>nan<strong>do</strong> seus leitos em demanda novo equa<strong>do</strong>r,grande número de homens e animais afoga<strong>do</strong>s nessedilúvio universal; ou destruí<strong>do</strong>s pelo violento abalo <strong>do</strong>selementos; espécies inteiras aniquiladas, arrasa<strong>do</strong>s to<strong>do</strong>sos padrões da indústria humana; tais as conseqüênciasque a colisão de um cometa pode produzir.A constituição física <strong>do</strong>s núcleos comentários <strong>era</strong>,sobretu<strong>do</strong>, o objeto das mais sérias controvérsias.Tinham escava<strong>do</strong> nos anais da astronomia os desenhosindicativos da variedade desses núcleos, sua atividadeluminosa, a evolução das cabeleiras.Recordaram-se, entre outros, os pontos luminososobserva<strong>do</strong>s em 1868 no cometa de Brorsen e as radiaçõesmovimentadas da curiosíssima cabeça <strong>do</strong> cometa de1861... Revisavam-se as hipóteses concernentes acondensações gasosas, pulverulentas ou mesmo sólidas;as peculiares às descargas elétricas prodigiosas, quetransformam de um dia para outro a cabeleira dessesestranhos viajores <strong>do</strong> infinito.Assim corriam as discussões, as investigaçõesretrospectivas, es cálculos, as conjeturas. O que, porém,em definitiva não deixava de impressionar a toda gente<strong>era</strong> o duplo fato da observação já constatada, daquelenúcleo, de uma densidade considerável, em cujaconstituição química pre<strong>do</strong>minava o óxi<strong>do</strong> de carbono.Intensificaram os terrores, não se pensava, não se falavasenão <strong>do</strong> cometa.Já os espíritos engenhosos tinham procura<strong>do</strong> meiospráticos, mais ou menos viáveis, para lhe fugir àinfluência. Químicos que pretendiam salvar uma parte


<strong>do</strong> oxigênio atmosférico, imaginavam méto<strong>do</strong>s para isolá -lo <strong>do</strong> azoto e armazená-lo em grandes re<strong>do</strong>mas de vidrohermeticamente fechadas.Hábil farmacêutico reclamista afirmava tê -lo jácondensa<strong>do</strong> em pastilhas e despend<strong>era</strong> 8 milhões deanúncios em 15 dias.O espírito mercantilista sabe de tu<strong>do</strong> tirar parti<strong>do</strong>,mesmo <strong>do</strong> aniquilamento universal. Até companhias deseguro se haviam improvisa<strong>do</strong>, comprometen<strong>do</strong> -se atapar hermeticamente todas as cavas e galerias <strong>do</strong>subsolo, comprometen<strong>do</strong>-se a fornecer oxigênio puro (emesmo antissèpticamente perfuma<strong>do</strong>) a determina<strong>do</strong>número de pulmões, por quatro dias e quatro noites.Nem tu<strong>do</strong> estava perdi<strong>do</strong>, ao menos para os ricos.Também se falava em perfurar túneis para o povo.Discutia-se, tremia-se, morria-se mesmo e, contu<strong>do</strong>,esp<strong>era</strong>va-se ainda. Enfim, as últimas novas diziam que ocometa, desenvolven<strong>do</strong>-se à medida que se aproximava<strong>do</strong> calor e da eletrização solares, teria no momento<strong>do</strong>,encontro um diâmetro sessenta e cinco vezes maiorque o da Terra, ou fosse 825000 quilômetros.Foi no auge dessa agitação que se abriu a sessão <strong>do</strong>Instituto, esp<strong>era</strong>da como oracular e decisiva. Por forçamesmo <strong>do</strong> cargo, o Diretor <strong>do</strong> Observatório de Paris foiinscrito à testa <strong>do</strong>s ora<strong>do</strong>res. Mas, o que pareciadespertar maior interesse público <strong>era</strong> o prognóstico <strong>do</strong>Presidente da Academia de Medicina, quanto aosprováveis efeitos <strong>do</strong> óxi<strong>do</strong> de carbono. Por outro la<strong>do</strong>, oPresidente da Sociedade de Geologia também deveriatomar a palavra. O objetivo da sessão <strong>era</strong> passar em


evista todas as teorias científicas das modalidades quedeveriam aniquilar fatalmente o nosso globo.Evidente, pois, que o debate sobre o encontro <strong>do</strong>cometa estaria em primeiro lugar. De resto, comoacabamos de ver, o astro ameaça<strong>do</strong>r lá estava suspensosobre todas as cabeças. Toda a gente o via aumentar diaa dia, em velocidade crescente. Sabia -se que não estava amais de 17.992.000 quilômetros e que esta dis tância seriacoberta em cinco dias. Cada hora representava umaaproximação de 149000 quilômetros. Dentro de cincodias a Humanidade assustada respiraria tranqüila oudesapareceria de to<strong>do</strong>.CAPÍTULO IIIA sessão <strong>do</strong> InstitutoFacevano um tumulto, ti qual s'aggira Sempre inquell'aria senza tempo tinta, Come 1'orena quan<strong>do</strong> ilturbo spira.DANTE, I'Interno, III, 10.Nunca, desde que fora construí<strong>do</strong> em fins <strong>do</strong> séculoXX, o grandioso hemiciclo se ench<strong>era</strong> de multidão maiscompacta.Impossível, mecanicamente, adicionar-lhe uma sópessoa, que fosse. Anfiteatro, balcões, tribunas, galerias,


corre<strong>do</strong>res, tu<strong>do</strong>, até os degraus das escadas, estavalit<strong>era</strong>lmente ocupa<strong>do</strong>. Notavam-se presentes o Presidente<strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s da Europa, o diretor da Repúblicafrancesa, das Repúblicas italianas e ibérica, aembaixatriz das Índias, os embaixa<strong>do</strong>res das Repúblicasbritânica, alemã, húngara -e moscovita; o rei <strong>do</strong> Congo, aComissão de Administra<strong>do</strong>res, to<strong>do</strong>s os ministros, oprefeito da Bolsa internacional, o cardeal arcebispo d eParis, a Diretora g<strong>era</strong>l de Telefonoscopia, o presidente <strong>do</strong>Conselho de vias aéreas e elétricas, o Diretor daRepartição de Aerologia, os principais astrônomos,químicos, fisiologistas, médicos vin<strong>do</strong>s de toda a parte,grande número de funcionários oficiai s (que outrora sedenominavam sena<strong>do</strong>res c deputa<strong>do</strong>s), vários escritorescélebres, um conjunto, enfim, nunca visto, derepresentantes da ciência, da política, comércio,indústria, artes, etc. Cenáculo repleto à cunha:presidente, vices, secretários perpétuo s, ora<strong>do</strong>resinscritos. Já se não trajavam, porém, à moda antiga.Nada de togas, capelos, espadagões: um simples trajecivil. Havia mais de <strong>do</strong>is séculos que as insígnias estavamprescritas na Europa. Em compensação, as da Áfricacentral <strong>era</strong>m das mais luxuosas.Macacos educa<strong>do</strong>s, de há muito substituíam oscria<strong>do</strong>s <strong>do</strong>mésticos, que não mais se encontravam emparte alguma. Eles lá estavam às portas, mais porobedecer ao protocolo que para verificar os ingressos, devez que, uma hora antes da marcada, já o recinto foratoma<strong>do</strong> de assalto.Eis em que termos o Presidente abriu a sessão (2).Senhoras, senhores:


To<strong>do</strong>s vós conheceis a finalidade deste conclave.Nunca, jamais, a Humanidade atravessou uma fase comoesta. Nunca, em particular, esta velha sala <strong>do</strong> século XXcongregou tal auditório. O grande problema <strong>do</strong> fim <strong>do</strong>mun<strong>do</strong> é, de 15 dias a esta parte, sobretu<strong>do</strong>, a únicapreocupação de to<strong>do</strong>s os sábios. Essas discussões eestu<strong>do</strong>s vão ser aqui expostos e eu <strong>do</strong>u desde logo apalavra ao Sr. Diretor <strong>do</strong> Observatório.O astrônomo levantou-se logo, empunhan<strong>do</strong> algumasnotas. Tinha a palavra fácil, voz agradável, figura jovial,o gesto sóbrio e pacifica<strong>do</strong> o olhar.A testa larga e magnífica cabeleira branca e crespaornan<strong>do</strong>-lhe a fronte. Tinha tanto de erudição literáriaquanto de científica, e toda a sua pessoa inspiravarespeito e simpatia. Otimista também, ainda nas maisgraves circunstâncias. Bastou dissesse algumas palavraspara que os semblantes se transformassem de lúgubres eansiosos em calmos e serenos.Senhoras - começou dizen<strong>do</strong> - é a vós que primeirome dirijo, pedin<strong>do</strong> não vos atemorizardes diante de umaameaça que poderá, talvez, não ser tão horrível quanto sepresume. Espero convencer-vos, dentro em pouco, comargumentos que terei a honra de expor, que o esp<strong>era</strong><strong>do</strong>cometa não acarretará a ruína total da nossaHumanidade. Sem dúvida podemos, devemos mesmoesp<strong>era</strong>r qualquer catástrofe; mas, com relação ao fim <strong>do</strong>mun<strong>do</strong>, tu<strong>do</strong> nos leva a coligir que não sobrevirá. Osmun<strong>do</strong>s morrem de velhice e não de acidentes. E vóssabeis, melhor <strong>do</strong> que eu, que o nosso mun<strong>do</strong> está muitolonge de ser velho.


Senhores, vejo aqui representantes de todas ascamadas sociais, das mais humildes às mais elevadas.Explica-se que, da ameaça assim ostensiva de umadestruição terrestre, tenha resulta<strong>do</strong> a par alisação g<strong>era</strong>lde todas as atividades. Entretanto, pessoalmente, vosconfesso que, se a Bolsa não houvesse fecha<strong>do</strong> e tivesse eua infelicidade de ali jogar, não hesitaria em comprarainda hoje os títulos de renda tão subitamentedesvaloriza<strong>do</strong>s.Bem não acabara de o dizer e já um famoso judeuamericano, príncipe das finanças, diretor <strong>do</strong> periódicoSéculo XXV e que ocupava um balcão superior <strong>do</strong>anfiteatro, abriu caminho a torto e a direito, entre amassa, e precipitou-se como um bóli<strong>do</strong>, desaparecen<strong>do</strong>numa das portas de saída.Interrompi<strong>do</strong> um instante pelo inesp<strong>era</strong><strong>do</strong> efeito deuma reflexão puramente científica, o ora<strong>do</strong>r prosseguiuNosso tema pode dividir-se em três partes1.° Colidirá o cometa, fatalmente, com a Terra? - 2.°Qual a sua constituição? - 3.° Quais poderão ser,possivelmente, os efeitos <strong>do</strong> choque? Não preciso advertirao culto auditório que as fatídicas palavras tantas vezespronunciadas de algum tempo a esta parte: - Fim <strong>do</strong>mun<strong>do</strong> - significam unicamente Fim da Terra, que é,aliás, seja dito, o mun<strong>do</strong> que mais nos interessa.Se pudéssemos responder negativamente ao primeiroquesito, seria mais ou menos ocioso ocupar -nos <strong>do</strong>s <strong>do</strong>isoutros, cuja importância se tornaria desde logosecundária.Desgraçamente, devo reconhecer que os nossoscálculos astronômicos se apresentam aqui, como sói


densidade cometária é bastante forte para penetrar emnossa atmosf<strong>era</strong> respirável, penso eu que tu<strong>do</strong> seresolverá em magnífica chuva de estrelas cadentes, semquaisquer conseqüências fatais para a vida humana. Nãoo digo com certeza; todavia, a prob abilidade é muitogrande, talvez de um milhão contra um. Nada obstante,to<strong>do</strong>s os de pulmão fraco, seriam vitima<strong>do</strong>s. E daí, umaespécie de gripe, capaz de quintuplicar o obituáriocotidiano. Simples epidemia.Nada obstante, se, como concordes o indicam aspesquisas telescópicas e fotográficas, o núcleo cometáriocontém massas min<strong>era</strong>is, metálicas sem dúvida,específicas, uranólitos de diâmetros quilométricospesan<strong>do</strong> milhões de toneladas, não podemos recusar queos pontos atingi<strong>do</strong>s por essas massas, com a velo cidade járeferida, sejam irremissivelmente arrasa<strong>do</strong>s. Mas,porque haveriam esses pontos de ser Justamente oshabita<strong>do</strong>s? Lembremos que três quartos <strong>do</strong> planeta estãocobertos De água. Aquelas massas bem podem cair nomar, formarem talvez novas ilhas, trazen <strong>do</strong> consigonovos elementos de estu<strong>do</strong>, germes - quem sabe - deexistências desconhecidas. A geodésica, a forma e omovimento rotativo da Terra podem ser com issoafeta<strong>do</strong>s. Notemos, também, que não faltam extensõesdesérticas em nossa crosta. Perigo existe, certo, mas não odirei imenso.Além disso, essas massas e gases, mesmo os bóli<strong>do</strong>s deque falávamos, poderiam trazer em seus flancos causasde incêndios, aqui e acolá, sobre o continente. Dinamite,nitroglicerina, panclastite, etc., não passariam debrinque<strong>do</strong>, infantil, ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> que poderia surpreender -


nos. Ainda assim, não seria um cataclismo universal.Algumas cidades incin<strong>era</strong>das não bastam parainterromper a história da Humanidade. Vedes pois, to<strong>do</strong>svós, que, <strong>do</strong> exame metódico desses três pontos, result aevidente a existência de um perigo e perigo iminente, masnão tão desola<strong>do</strong>r, tão considerável e tão absoluto quantoo pregoam. Direi, ainda mais, que esse curioso eventoastronômico, que tanto vos perturba o cérebro quanto ocoração, aos olhos <strong>do</strong> filósof o apenas muda a facehabitual das coisas. To<strong>do</strong>s nós estamos certos de ter demorrer um dia, e isso não nos impede de viver tranqüilos.Porque, então, a ameaça de morte mais pronta alarmato<strong>do</strong>s os espíritos? Será o pesar de morrermos to<strong>do</strong>sjuntos? Mas, isso deveria ser antes um consolo para oegoísmo humano. Será por ver encurtada a vida dealguns dias, para uns, e de alguns anos para outros? Avida é breve e cada qual recusa encará -la diminuída deum ceitil; e, diante <strong>do</strong> que estamos ven<strong>do</strong> e ouvin<strong>do</strong>, dir -se-ia que cada qual preferiria ver o mun<strong>do</strong> inteiroarrasa<strong>do</strong>, sobreviven<strong>do</strong>-lhe sozinho, antes que morrer sóe saber que o resto lhe sobrevive. Puro egoísmo! Mas,senhores, insisto em crer que não haja mais que umacatástrofe parcial, <strong>do</strong> mais alto interesse par a a ciência, eque sempre nos deixará alguns historia<strong>do</strong>res para contá -la. Teremos choque, atrito, acidente local; mas, nadaalém disso, provavelmente. Será como a história dumtremor de terra, duma erupção vulcânica, ou dumciclone.Assim falou o astrônomo ilustre. Sua calma filosófica,acuidade espiritual e aparente indiferentismo peloperigo, contribuíram para tranqüilizar o auditório,


embora sem convencê-lo inteiramente. Não se tratava jáde um aniquilamento total, mas de catástrofe na qual,ultima rabo, sempre havia uma probabilidade desalvamento. Entrava-se a trocar impressões nessesenti<strong>do</strong>; comerciantes e políticos pareciam tercompreendi<strong>do</strong>, a preceito, os argumentos da ciência,quan<strong>do</strong>, a convite da Mesa, se dirigiu vagaroso para atribuna o Presidente da Academia de Medicina.Era um homem alto, esguio, páli<strong>do</strong>, figura de asceta,fisionomia saturnina coroada de raros cabelos grisalhos,corta<strong>do</strong>s rente. A voz tinha algo de cavernosa e o seuto<strong>do</strong> evocava, antes o tipo <strong>do</strong> emprega<strong>do</strong> de empresafunerária, que o de um médico confiante na cura <strong>do</strong>sclientes. Sua convicção sobre os acontecimentos <strong>era</strong>muito diversa da <strong>do</strong> astrônomo, qual se viu desde quecomeçou a falar.Senhores - disse - serei tão lacônico quanto o sábioeminente que acabamos de ouvir, posto que tenhapassa<strong>do</strong> longas noites analisan<strong>do</strong> em seus mínimosdetalhes as propriedades <strong>do</strong> óxi<strong>do</strong> de carbono. E' apropósito desse gás que vou falar -vos, de vez admitida asua pre<strong>do</strong>minância no cometa e o inevitável encontrodeste com o nosso globo. Suas propriedades sãodesastrosas, não há negá-lo. Qualquer porçãoinfinitesimal, no ar respirável, basta para aniquilar emtrês minutos a função pulmonar e acarretar a morte.To<strong>do</strong>s sabemos que o óxi<strong>do</strong> de carbono (em química CO)é um gás permanente, ino<strong>do</strong>ro, incolor, insíp i<strong>do</strong> e maisou menos insolúvel na água. Sua densidade, comparadaao ar, é de 0,96. Incendian<strong>do</strong>-se no ar, produz o anidri<strong>do</strong>carbônico, com uma chama azul de pouca claridade. E'


assim como um fogo fátuo. Ele possui, ao demais, umatendência permanente para ab sorver o oxigênio (oora<strong>do</strong>r frisa fortemente estas palavras). Nos altos fornos,por exemplo, o carvão se transforma em óxi<strong>do</strong> decarbono, ao contacto de uma quantidade de arinsuficiente, e é este óxi<strong>do</strong>, que a seguir reduz o ferro aesta<strong>do</strong> metálico, apod<strong>era</strong>n<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> oxigênio com o qualprimeiramente se combinara. Ao Sol, o óxi<strong>do</strong> de carbonose combina com o cloro e dá um oxiclorureto de o<strong>do</strong>rdesagradável e sufocante em esta<strong>do</strong> gasoso. ,O que,principalmente, deve despertar nossa atenção, é que estegás é <strong>do</strong>s mais venenosos que se conhecem. Muito maistóxico que o áci<strong>do</strong> carbônico. Em se fixan<strong>do</strong> nahemoglobina, ele diminui a capacidade respiratória <strong>do</strong>sangue. Acumulan<strong>do</strong>-se nos glóbulos vermelhos, aindaque em <strong>do</strong>se minimíssima, entrava, em grauaparentemente desproporcional com as causas, a aptidão<strong>do</strong> sangue para oxigenar-se. Assim, o sangue que absorve23 a 25 centímetros cúbicos de oxigênio por 100 volumes,não absorveria mais de metade em atmosf<strong>era</strong> quecontivesse menos de um milésimo de óxi<strong>do</strong> de carbono.Um decimilésimo já é deletério e diminui sensivelmente acapacidade <strong>do</strong> sangue, produzin<strong>do</strong>, não direi - a asfixia,mas o envenenamento quase instantâneo! O óxi<strong>do</strong> decarbono atua diretamente nos glóbulos sanguíneos efunde-se com eles, tornan<strong>do</strong>-os inaptos para entreter avida, sustan<strong>do</strong> a hematose, a transformação <strong>do</strong> sanguevenoso em sangue arterial. Três minutos bastam paraacarretar a morte. A circulação paralisa, o sangue venosoentope artérias e veias, os vasos venosos, principalmenteos cerebrais, ingurgitam-se: língua, garganta, traquéia e


ônquios se avermelham, e to<strong>do</strong> o cadáver apresentadesde logo uma coloração violácea, característica dacessação da hematose.Todavia, senhores, não são apenas as propriedadesdeletérias <strong>do</strong> óxi<strong>do</strong> de carbono que devemos temer, sebem que a só tendência desse gás. para absorver ooxigênio baste, só por si, para desfechar funestasconseqüências. Suprimi - que digo? - diminuí apenas ooxigênio e tereis logo extinto o gênero humano. Aqui,conhecem to<strong>do</strong>s uma das muitas histórias que ilustram asépocas <strong>do</strong> barbarismo, em que os homens seentrematavam legalmente, a pretexto de glóriaspatrióticas. Simples episódios de uma das guerrasinglesas na Índia, permiti-me vo-lo lembre aqui: cento equarenta e seis prisioneiros haviam si<strong>do</strong> enclau sura<strong>do</strong>snum cubículo acanha<strong>do</strong>, sem outra abertura além deduas janelinhas que davam para uma galeria. O primeirosintoma que os pobres reclusos experimentaram foi umcopioso sua<strong>do</strong>uro, logo segui<strong>do</strong> de sede insuportável, comgrande dificuldade de respiração. Ensaiaram diversosmeios de separarem-se o mais possível, em busca de ar.Despiram-se, abanaram-se e tomaram finalmente oparti<strong>do</strong> de se ajoelharem e levantarem, simultânea erepetidamente; mas, cada vez que o faziam, alguns, jábal<strong>do</strong>s de forças, caíam e ficavam estendi<strong>do</strong>s aos. pés <strong>do</strong>scompanheiros... Morriam, asfixia<strong>do</strong>s, em agonia. Antesda meia-noite, ou fosse quatro horas depois da reclusão,to<strong>do</strong>s os que ainda viviam sem haver aspira<strong>do</strong> junto dasjanelinhas um ar menos impuro, mantinham -se caí<strong>do</strong>sem estupor letárgico, quan<strong>do</strong> não em acesso delirante.Quan<strong>do</strong>, horas passadas, abriram a prisão, apenas vinte


três criaturas saíram com vida e, ainda assim, numesta<strong>do</strong> deplorável, qual foragi<strong>do</strong>s de um túmulo. Poderiaaqui juntar mil exemplos idênticos, mas, nada a diantaria,desde que não há dúvidas a respeito. Declaro portanto,senhores, que, por um la<strong>do</strong>, a absorção <strong>do</strong> óxi<strong>do</strong> decarbono em maior ou menor <strong>do</strong>se de oxigênioatmosférico e que, por outro la<strong>do</strong>, a alta toxidade dessegás para os glóbulos sanguíneos, parece m-me emprestarao encontro da imensa massa cometária com o nossoglobo - que deverá mergulhar nela durante algumashoras - uma gravidade excepcional e prenhe deconseqüências desastrosas. Havemos de ver pelas ruasdesgraça<strong>do</strong>s mortais em busca de ar respirá vel, a caíremmortos de asfixia. Também não vejo, por mim, nenhumrecurso escapatória.E ainda não falei da transformação <strong>do</strong> movimento emcalor, nem tão-pouco <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s químicos emecânicos <strong>do</strong> choque. Deixo esse aspecto da questão àcompetência <strong>do</strong> Secretário da Academia de Ciências,tanto quanto ao sábio Presidente da SociedadeAstronômica de França, que fiz<strong>era</strong>m importantescálculos nesse senti<strong>do</strong>. Para mim, repito, a Humanidadese encontra em perigo de morte e não vejo apenas uma,porém duas, três ou quatro, prestes a desabarem sobreela, Só una milagre poderia salvá -la. Mas, a verdade éque, de há muitos séculos, ninguém há que acredite emmilagres.Este discurso, pronuncia<strong>do</strong> em tom convicto, com vozforte e calma, lançou o auditório no mesmo esta<strong>do</strong> d eagitação, que o primeiro discurso tiv<strong>era</strong> a virtude deserenar. A certeza <strong>do</strong> próximo cataclismo desenhava -se


em to<strong>do</strong>s os semblantes. Havia-os amarelos, esverdea<strong>do</strong>s,lívi<strong>do</strong>s e avermelha<strong>do</strong>s, e apopléticos. Só pequenonúmero de auditores parecia guardar sang ue-frio, comoquem houvesse já toma<strong>do</strong> o seu parti<strong>do</strong>.Imenso burburinho enchia o salão e cada qualprocurava comunicar ao vizinho as suas impressões,g<strong>era</strong>lmente mais otimistas que sinc<strong>era</strong>s. Ninguém querparecer medroso. Levantou-se o Presidente da SociedadeAstronômica e caminhou para a tribuna. O sussurro damultidão cessou como por encanto. Eis como eleexordiou, tematizou e perorou:Senhoras, senhores: pelo que acabais de ouvir,ninguém mais poderá duvidar da realidade <strong>do</strong> encontrocometário e <strong>do</strong>s perigos consequentes. Cumpre-nos, pois,esp<strong>era</strong>r até sába<strong>do</strong>...- Aliás, sexta - interrompe uma voz partida daprópria mesa. - Sába<strong>do</strong>, repete o ora<strong>do</strong>r - umacontecimento extraordinário e absolutamente novo nahistória <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Digo - sába<strong>do</strong>, ainda que to<strong>do</strong>s osjornais o tenham anuncia<strong>do</strong> para sexta -feira, isto porquetal coisa não poderá ocorrer senão no dia 14 de Julho. Aúltima noite, passamo-la eu e meu sábio colega acomparar as observações feitas na Ásia e na América, everificamos, um erro de transmissão telefonográfica.Tal afirmativa produziu agradável expectação noauditório, foi como um raio luminoso no bojo de umanoite tenebrosa. A dilação de um dia tem sempre valorinestimável para um sentencia<strong>do</strong> de morte; e tantobastava para que em muitos cérebros começ assem agerminar presunções fantasistas. Recuava -se acatástrofe? Era uma espécie de graça. Não raciocinavam


que aquela diversão, puramente cosmografia, só afetavauma data e não o fato concreto em si mesmo.Convenha-se, porém, em que as mínimas facetasrepresentam grande papel nas impressões populares.Enfim... já não <strong>era</strong> para sexta-feira 13.Aqui tendes - disse o ora<strong>do</strong>r encaminhan<strong>do</strong>-se para oquadro-negro - a órbita definitiva <strong>do</strong> cometa, decalcadaem todas as observações colhidas... E gizou estas cifras:Passagem ao periélio ..... 11 Agosto às 0h 45m.,44s.Longitude <strong>do</strong> periélio ..... 52° 43'25.Distância <strong>do</strong> periélio ...... 0,76017Inclinação ................ 103°18'35.Longitude no nó ascendente 112°,54'40.O cometa - prosseguiu dizen<strong>do</strong> - cortará a eclíptica acaminho <strong>do</strong> nó descendente aos 13 de Julho, depois dameia-noite, ou seja exatamente às Oh. 18m. 23s. de 14,pelo meridiano de Paris, ou seja, ainda no momento justoda passagem da Terra no mesmo ponto. A atração daTerra abreviará o encontro de 3 0 segun<strong>do</strong>s, apenas. Seráum feito indubitavelmente extraordinário, mas, ao meuver, destituí<strong>do</strong> desse caráter trágico que nos esboçaram.Não creio venhamos a perecer to<strong>do</strong>s asfixia<strong>do</strong>s porenvenenamento <strong>do</strong> sangue. O choque nos oferecerá antes,suponho, a perspectiva de um fogo de artifício celestial,visto que a intermissão dessas massas sólidas e gasosas,na camada atmosférica, não poderá efetivar -se sem que oseu movimento, assim paralisa<strong>do</strong>, se transforme emcalor. Um abrasamento grandioso das alturas será,provavelmente, o primeiro fenômeno, enquanto milhões


de estrelas cadentes irão surgin<strong>do</strong> como emitidas de umfoco único e radiante.A quantidade de calor há de ser formidável.Qualquer estrela cadente, por mínima que seja, aochegar à nossa atmosf<strong>era</strong> com a velocidade cometária,logo se esquenta a tal ponto que arde e se consome.Sabeis, senhores, que a nossa atmosf<strong>era</strong> se projeta muitolonge, no espaço, em torno <strong>do</strong> planeta. Ela não éilimitada, como sustentam algumas hipóteses, de vez quea Terra gira sobre si mesma e em torno <strong>do</strong> Sol. O seulimite matemático está na altitude em que a forçacentrífuga, engendrada pelo movimento de rotaçãodiurno, torna-se igual ao peso. Essa altitude será de 6,64,se representarmos por 1 o meio diâmetro equatorial <strong>do</strong>globo, de 6.378.310 metros. Teremos, então, que omáximo da camada atmosférica será de 42352quilômetros.Não quero aqui entrar na matemática. O auditórioque me ouve é assaz instruí<strong>do</strong> para não desconhecer oequivalente mecânico <strong>do</strong> calor. To<strong>do</strong> corpo, deti<strong>do</strong> emseu movimento, produz uma quantidade de calor que seexprime em calorias, pela fórmula na qual m é a massa<strong>do</strong> corpo em quilogramas e V a sua velocidade em metrospor segun<strong>do</strong>. Um corpo pesan<strong>do</strong> 8338 quilos, porexemplo, caminhan<strong>do</strong> um metro por segun<strong>do</strong>,desenvolveria com a sua retenção precisamente umacaloria, ou seja a quantidade de calor suficiente paraelevar de um grau a temp<strong>era</strong>tura de um quilograma daágua.Se a velocidade desse corpo fosse de 500 metros porsegun<strong>do</strong>, sua parada produziria 250000 vezes mais c alor,


ou tanto quanto o necessário para elevar de 0 a 30 grausuma quantidade da água igual ao seu próprio volume. Se,já não de 500 mas de 5000 metros for à velocidade, ocalor produzi<strong>do</strong> será 5 milhões de vezes maior.Ora, senhores, sabeis que o encontro de um ,cometacom a Terra pode atingir a velocidade de 72000 metros, enesse caso a proporção se eleva a 5 milhões de graus!Aí temos um máximo e - direi - uma cifra por assimdizer - inconcebível. Mas, tomemos um mínimo, se assimpreferirdes. Admitamos se dêem esses choques nãodiretamente, de face, porém, em senti<strong>do</strong> mais ou menosoblíquo, e que, a velocidade não ultrapasse 30000 metros.Cada quilograma de um bóli<strong>do</strong> desenvolve, nestecaso, 107946 unidades de calor, quan<strong>do</strong>, pela resistência<strong>do</strong> ar, a velocidade se reduz a zero. Por outros termos, eledesenvolveu calor suficiente para elevar de zero a 100graus, isto é, de congela<strong>do</strong> a fervente, um volume da águade 1079 quilogramas Um uranólito de 2000 quilos,chegan<strong>do</strong> a Terra com uma velocidade anulada por es saresistência de ar, teria desenvolvi<strong>do</strong> calor suficiente paraelevar a 3000 graus uma coluna de ar de 30 metrosquadra<strong>do</strong>s de secção, em toda altura da nossa atmosf<strong>era</strong>,ou para elevar de 0 a 30 graus uma coluna de 3000metros quadra<strong>do</strong>s.Estes os cálculos que, rogo me desculpeis, se faziamnecessários para mostrar que a conseqüência imediata <strong>do</strong>encontro será um calor enorme, um aquecimentoextraordinário <strong>do</strong> ar. De resto, é o que acontece com aqueda <strong>do</strong>s bóli<strong>do</strong>s isola<strong>do</strong>s. O uranólito é fundi<strong>do</strong>,vitrifica<strong>do</strong> em toda a sua superfície, como revesti<strong>do</strong> deuma camada de verniz. A queda, porém, é tão rápida que


lhe não dá tempo de aquecer-se interiormente. Se oquebrarmos, vê-lo-emos absolutamente gela<strong>do</strong> pordentro. O ar atravessa<strong>do</strong> é que se aqueceu.Um <strong>do</strong>s efeitos mais curiosos da análise que acabo deresumir, é que as massas sólidas, mais ou menosvolumosas, que presumimos distinguir ao telescópio em onúcleo cometário, hão de experimentar tal resistência aoatravessar nossa atmosf<strong>era</strong>, que, salvo casosexcepcionais, não chegarão íntegras ao solo e sim mais oumenos fragmentadas. À frente <strong>do</strong> bóli<strong>do</strong> op<strong>era</strong>-se acompressão <strong>do</strong> ar; atrás é o vácuo. Aquecimento eincandescência exterior <strong>do</strong> corpo em movimento, ruí<strong>do</strong>violento devi<strong>do</strong> à precipitação <strong>do</strong> ar que vai preenchen<strong>do</strong>o vácuo, ribombos de trovão, explosões, desagregações,queda de elementos metálicos mais densos e evaporaçãode outros. Um bóli<strong>do</strong> de enxofre, de fósforo, de estanhoou de zinco, flamejaria e se evaporaria muito antes deatingir as camadas inferiores da atmosf <strong>era</strong>.Quanto às estrelas cadentes, se, como parece,constituem uma verdadeira nuvem, não produzirão maisque um prodigioso fogo de artifício.Se, pois, algo tem a temer, não é, na minha opinião, apenetração da massa gasosa <strong>do</strong> óxi<strong>do</strong> de carbono emnossa atmosf<strong>era</strong>, seja ela qual for, e sim a forte elevaçãoda temp<strong>era</strong>tura, conseqüente à transformação <strong>do</strong>movimento em calor.Neste caso, a salvação estaria, talvez, em refugiar -seno hemisfério oposto ao que haja de receber em cheio ochoque <strong>do</strong> cometa. O ar, sabemo-lo, é o pior condutor <strong>do</strong>calor.


Levanta-se, a seu turno, o Secretário perpétuo daAcademia. Digno sucessor <strong>do</strong>s Fontenelles e Aragos,aliava a uma vasta cultura científica as qualidades deora<strong>do</strong>r fluente e escritor elegante, não raro atingin<strong>do</strong> oscimos da eloqüência.A sábia teoria que acabastes de ouvir - disse - nadacumpre acrescentar, salvo a aplicação que pudéssemosdela fazer a qualquer cometa já de nós conheci<strong>do</strong>. Hádias, houve quem lembrasse, por exemplo, o cometa deBiela, de 1811. Pois bem: vamos supor que um cometadas mesmas dimensões nos esbarre lit<strong>era</strong>lmente emcheio, na rota <strong>do</strong> nosso curso solar. Nosso esferóidepenetraria a nebulosidade cometária sem experimentar,certo, qualquer resistência mais forte. Admitin<strong>do</strong> -semesmo que essa resistência fosse fraquíssima, e que adensidade <strong>do</strong> núcleo fosse negligenciável, o nosso globoprecisaria de vinte e cinco mil segun<strong>do</strong>s, ou sejam 417minutos para atravessar a massa cometária de 1800000quilômetros de diâmetro. Seria, portanto, sete horas demarcha com a velocidade de cento e vinte vezes a de umabala de canhão, sem deixar, por isso, de obedecer ao seumovimento rotativo.Tal mergulho no oceano cometário, por diáfano queseja, não poderia deixar de carrear como primeira eimediata conseqüência, atentos os princípiostermodinâmicos aqui lembra<strong>do</strong>s, uma elevação detemp<strong>era</strong>tura possivelmente capaz de incendiar aatmosf<strong>era</strong>! Neste caso, o perigo se me afigura <strong>do</strong>s maisgraves.E, contu<strong>do</strong>, seria um belo espetáculo para oshabitantes de Marte, mais ainda para o s de Vênus. Um


espetáculo dev<strong>era</strong>s admirável, análogo (mas, talvez maismaravilhoso para os nossos vizinhos) a essas curiosasconflagrações astrais temporárias, que já temosobserva<strong>do</strong> na profundeza <strong>do</strong>s céus. O oxigênio <strong>do</strong> ar teriao seu melhor papel no alimentar <strong>do</strong> incêndio. Mas, háoutro gás que os físicos pouco consid<strong>era</strong>m, pelacircunstância de não o haverem encontra<strong>do</strong> jamais emsuas análises... E' o hidrogênio. Que é feito de toda aquantidade desse gás, emitida pelo solo terreno, desdeque o mun<strong>do</strong> é mun<strong>do</strong>? Pois que a sua densidade édezesseis vezes mais fraca que a <strong>do</strong> ar, to<strong>do</strong> ele deve tersubi<strong>do</strong> para formar, em torno de nossa atmosf<strong>era</strong>, umcomo invólucro de hidrogênio muito rarefeito. Emvirtude da lei de difusão <strong>do</strong>s gases, grande parte dessehidrogênio deve ter-se mistura<strong>do</strong> intimamente com o ar,mas, ainda assim, não deixarão as camadas superiores deo conter em maior proporção. E lá que se acendem asestrelas cadentes e, sem dúvida, as auroras boreais, amais de cem quilômetros de altura. Notemos, a propósito,que o oxigênio <strong>do</strong> ar, receben<strong>do</strong> o choque cometário,bastaria para alimentar o fogo celeste.O fim <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> dar-se-ia, portanto, pelo incêndio daatmosf<strong>era</strong>. Durante sete horas, mais ou menos, ou melhor- por tempo mais longo, visto que a resistência cometárianão pode ser nula - haveria transformação constante demovimento em calor. Hidrogênio e oxigênio arderiamcombina<strong>do</strong>s com o carbono <strong>do</strong> cometa. A atmosf<strong>era</strong>elevar-se-ia a algumas centenas de graus e jardins,parques, florestas, casas, monumentos, cidades e campos,tu<strong>do</strong> ficaria em breve consumi<strong>do</strong>. Mares, lagos e riosentrariam a ferver e os homens e os animais, em


espiran<strong>do</strong> esse ambiente, pereceriam asfixia<strong>do</strong>s, antesmesmo de serem devora<strong>do</strong>s pelo fogo.Presto, depois, to<strong>do</strong>s os cadáveres estariamcarboniza<strong>do</strong>s, incin<strong>era</strong><strong>do</strong>s, e, no vasto incêndio celeste, sóo anjo incombustível <strong>do</strong> Apocalipse poderia entoar, aosom lancinante da sua trombeta, o velho cânticomortuário, como um <strong>do</strong>bre a fina<strong>do</strong>s:Dies, irce, dies illa!Solvet, sceculum in favilla!Aí tendes o que poderia suceder se um cometa como ode 1811 se encontrasse com a Terra.A essas palavras, o cardeal-arcebispo levantara-se epedira a palavra. O Secretário perpétuo havia -lhe nota<strong>do</strong>a presença e, depois de o saudar, por dever de cortesiam<strong>era</strong>mente social, inclinava-se ligeiramente como queesp<strong>era</strong>n<strong>do</strong> a palavra.Não quero - disse este - interromper o discurso <strong>do</strong>nobre ora<strong>do</strong>r. Mas, se a Ciência anuncia, como prelúdiode um drama de fogo, o aniquilamento da nossaHumanidade, não posso nem devo calar que a crençauniversal da Igreja sempre foi precisamente essa. Os céuspassarão, disse-o São Pedro. Os elementos combustões sedissolverão e a Terra se consumirá com to<strong>do</strong> o seuconteú<strong>do</strong>. Também S. Paulo anuncia a mesma renovaçãopelo fogo. E nós, nas missas fúnebres, sempre invocamos:E um qui venturas est judioare vivos et mortuos etsaeculum per ignem... Sim: Solvet seuecnclum in favilla.Deus reduzirá o universo a cinzas.- Mais de uma vez - interdiz o Secretário - a Ciênciase tem identifica<strong>do</strong> com a intuiç ão <strong>do</strong>s antepassa<strong>do</strong>s. Oincêndio devoraria em primeiro lugar as regiões


diretamente atingidas. To<strong>do</strong> o la<strong>do</strong> atingi<strong>do</strong> pelagigantesca massa cometária seria queima<strong>do</strong>, antes que oshabitantes <strong>do</strong> outro hemisfério pudessem perceber ocataclismo. O ar é mal condutor e, neste caso, o calor nãose propagaria imediatamente aos pontos opostos.Se o nosso hemisfério estivesse precisamente volta<strong>do</strong>para o cometa nos primeiros minutos <strong>do</strong> e encontro, seriao trópico de Câncer, os habitantes de Marrocos, Argélia,Tunis, Itália, Grécia, Egito que haveriam de constituir avanguarda da batalha celeste; ao passo que os daAustrália, Nova-Caledônia, Oceania e <strong>do</strong>s nossosantípodas seriam os mais favoreci<strong>do</strong>s. Mas, a absorção<strong>do</strong> ar produzida pela imensa fornalh a seria de tal monta,que desencadearia uma tempestade incomparável, emsua violência, aos mais violentos furacões conheci<strong>do</strong>s;mais impetuosa, digamos, que a corrente de 400quilômetros horários, qual a vigorante e constante noequa<strong>do</strong>r de Júpiter, sopran<strong>do</strong> <strong>do</strong>s antípodas para aEuropa e tu<strong>do</strong> arrasan<strong>do</strong> à sua passagem. Em seumovimento de rotação, a Terra arrastariasucessivamente para o eixo <strong>do</strong> choque os países situa<strong>do</strong>s aoeste <strong>do</strong> meridiano primeiramente atingi<strong>do</strong>. Uma horadepois a Áustria, a Alemanha, a França; depois oAtlântico e a América <strong>do</strong> Norte, que não entraria nomesmo eixo um tanto oblíquo, dada a marcha <strong>do</strong> cometapara o seu periélio, a cinco ou seis horas da França, ouseja, no fim da sua travessia.Apesar da inaudita velocidade <strong>do</strong> cometa e da Terra,a pressão cometária não seria descomunal, em virtude daextrema tenuidade da substância atravessada. Essasubstância, porém, encerran<strong>do</strong> carbono, torna -se


combustível e, na exaltação de seus ar<strong>do</strong>res periélios,vemos que esses astros juntam, muitas vezes, à suaprópria, a luz que <strong>do</strong> Sol recebem. Assim, os cometastornam-se incandescentes. Que seria, então, no choqueterrestre?? O incêndio das estrelas cadentes e <strong>do</strong>sbóli<strong>do</strong>s, a fusão superficial <strong>do</strong>s uranólitos, que chegamardentes à nossa crosta, tu<strong>do</strong> isso induz a crer que o maisintenso calor deva ser o primeiro e o mais considerável<strong>do</strong>s efeitos, o que não impediria, é claro, os elementosmaciços <strong>do</strong> núcleo de arrasarem os pontos de suapassagem, e mesmo deslocar, talvez, um continenteinteiro.Permanecen<strong>do</strong> o globo terráqueo inteir amenteenvolvi<strong>do</strong> pela massa cometária durante sete horas, maisou menos, a girar nesse gás incandescente, o afluxo <strong>do</strong> ar,precipitan<strong>do</strong>-se para o incêndio; o mar em ebulição,sobrecarregan<strong>do</strong> a atmosf<strong>era</strong> de novos vapores; umachuva torrencial esfervilhaste, a precipitar-se emcataratas; o furacão esfuzian<strong>do</strong> de to<strong>do</strong>s os quadrantes;estalidar de raios, ribombar de trovões; a tonalidade <strong>do</strong>sbelos dias substituída por um luar lúgubre, difuso, numambiente abafadiço, e já o globo inteiro não tardaria asucumbir no pandemônio, ainda que a morte <strong>do</strong>santípodas viesse a diferir daquela das populaçõesatingidas.Ao invés de serem imediatamente consumi<strong>do</strong>s pelofogo celeste, eles morreriam abafa<strong>do</strong>s pelo vapor ou pelapre<strong>do</strong>minância <strong>do</strong> azoto - uma vez diminuí<strong>do</strong> o oxigênio -ou envenena<strong>do</strong>s pelo óxi<strong>do</strong> de carbono. O incêndio nãofazia mais que incin<strong>era</strong>r depois os cadáveres, enquantoque os africanos e europeus seriam queima<strong>do</strong>s vivos.


Tomei como exemplo o cometa de 1811, mas, apresso -me a acrescentar, concluin<strong>do</strong>, que este nosso cometa meparece muito menos denso. E vós pudestes ver queencarei o problema de mo<strong>do</strong> assaz despreocupa<strong>do</strong> epersuadi<strong>do</strong> de que, ameaça<strong>do</strong>s fatalmente de um choque,nem por isso morreremos.Há certeza - exclama uma voz bem conhecida (<strong>era</strong> ummembro ilustre da Academia Cirúrgica) - de que ocometa seja essencialmente composto de óxi<strong>do</strong>carbônico? As observações espetroscópicas lhe teriamencontra<strong>do</strong> traços de azoto? Fosse o protóxi<strong>do</strong> de azoto eteríamos, então, na transfusão das atmosf<strong>era</strong>s, terrena ecometária, a anestesia <strong>do</strong>s terrícolas. To<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong><strong>do</strong>rmiria, talvez, para não mais acordar, se as funçõesvitais ficassem suspensas por tempo apenas um poucomais longo que o necessário às anestesias cirúrgicas. Amesma coisa sucederia se o cometa se compusesse de ét erou clorofórmio. Ter-se-ia, então, um fim tranqüilo.Menos o seria, contu<strong>do</strong>, se em vez de oxigênio o cometaabsorvesse azoto, visto que a extração, gradual ou totaldeste, produziria, dentro de poucas horas, em todas ascriaturas, homens, mulheres, crian ças, velhos, umatransformação de caráter nada incomodativa, a saber:primeiro, uma serenidade deliciosa: depois, uma alegriacontagiosa, expansiva, trepidante - uma exaltação febrilum delírio, loucura enfim, e, provavelmente, umacoreografia fantástica culminan<strong>do</strong> na morte de to<strong>do</strong>s osseres. Apoteose, dir-se-ia, de uma sarabanda louca, pelasuperexcitação de to<strong>do</strong>s os senti<strong>do</strong>s. Toda a genteestouraria de, Mo... Fim trágico ?


- A discussão continua aberta - replicou o Secretário.- O que eu disse das possíveis conseqüências <strong>do</strong> incêndioé aplicável ao encontro direto de um cometa análogo aode 1811. Este que ora nos ameaça é menor e o seu choquenão será em linha reta, mas oblíqua. Tal como osastrônomos que me preced<strong>era</strong>m nesta tribuna, eu querocrer que não tenhamos mais que um simples fogo deartifício.Aditarei que fenômenos químicos, imprevistos,poderão verificar-se. Assim, por exemplo, ninguém aquiignora que a água e o fogo se assemelham: hidrogênioque arde em combinação com oxigênio, ou hidrogêniocombina<strong>do</strong> com oxigênio, são coisas afins. A água <strong>do</strong>smares, <strong>do</strong>s lagos, <strong>do</strong>s rios, é composta de <strong>do</strong>is volumes dehidrogênio e um de oxigênio. Na origem de nosso planetaessa água <strong>era</strong> fogo e poderia volver ao seu primitivoesta<strong>do</strong> se, mediante uns tantos fenômenos de eletrólise, osferros magnéticos <strong>do</strong> núcleo cometário viessem adecompor-se, dissocian<strong>do</strong> suas moléculas de hidrogênio equeiman<strong>do</strong>-as. To<strong>do</strong>s os mares poderiam incendiar -sebem depressa.Falava ainda o ora<strong>do</strong>r, quan<strong>do</strong> uma jovemfuncionária da central-telefônica entrou por uma portabaixa, guiada por um símio <strong>do</strong>mestica<strong>do</strong>, precipitan<strong>do</strong> -separa a cadeira <strong>do</strong> Presidente, a fim de lhe entregar umgrande envelope quadra<strong>do</strong>, que foi imediatamenteaberto. Era um despacho <strong>do</strong> Observatório <strong>do</strong>Gaorisancar com estas únicas palavras:Habitantes de Marate mandaram mensagemfotofônica. Decifraremos dentro de poucas horas.


Senhores - disse o Presidente - acabo de ver quemuitos de vós consultastes o relógio e penso convosco serimpossível esgotar o assunto nesta reunião, ainda porque,resta-nos ouvir outros erninentes representantes dageologia, da história e da geonomia (3 ). De resto, odespacho que acabo de ler nos trará novo elemento paraa solução <strong>do</strong> problema. São quase 18 horas e eu vosproponho uma sessão complementar par a esta mesmanoite, às 21 horas. E' provável que até lá tenhamosrecebi<strong>do</strong> a decifração da mensagem marciana. Pedirei aoSr. Diretor <strong>do</strong> Observatório que se mantenha emcomunicação telefonoscópica permanente com a estaçãode Gaorisancar. Caso a mensagem não esteja aindadecifrada às 21 horas, o Sr. Presidente da SociedadeGeológica de França poderá abrir a sessão para expor oestu<strong>do</strong> que acabo de completar sobre o fim natural <strong>do</strong>orbe terrestre. Não há quem neste momento não seinteresse apaixonadamente por est a questão capital, sejapor saber se o nosso mun<strong>do</strong> está verdadeiramente fada<strong>do</strong>a perecer nesta contingência, ou seja a qualquer tempo,por causas outras suscetíveis de cálculo e previsão.CAPITULO IVComo acabará o mun<strong>do</strong>L'heure de Ia fin viendra, il n'y a point de <strong>do</strong>ute làdessuset cependant Ia plupart des hommes n'y croientpas.MAHOMET, le Ooran, XI, 61.


A multidão, imobilizada às portas <strong>do</strong> Instituto,afastara-se para dar passagem ao auditório e cada qualprocurava inteirar-se <strong>do</strong> resulta<strong>do</strong> da sessão. Esseresulta<strong>do</strong>, porém, sem que se soubesse como já haviatranspira<strong>do</strong> logo após o discurso <strong>do</strong> Diretor <strong>do</strong>Observatório, de sorte que, diziam, o encontro não seriaprovavelmente tão fatal quanto se prenunciara epresumira. Demais, enormes cartazes acab avam de s<strong>era</strong>fixa<strong>do</strong>s por toda a cidade, anuncian<strong>do</strong> a reabertura daBolsa de Chicago. Era um incitamento imprevisto aoreatamento das atividades normais, públicas e privadas.Eis o que ocorr<strong>era</strong>: Depois que se despencou das alturasda arquibancada, o príncipe das finanças voou peloaerocabo aos seus escritórios de Saint -Cloud e telefonouao sócio em Chicago, comunican<strong>do</strong> -lhe que novoscálculos foram apresenta<strong>do</strong>s ao Instituto de França e oevento astronômico não tinha a suposta gravidade; que oritmo <strong>do</strong>s negócios deveria ser retoma<strong>do</strong> e urgia, aqualquer preço, reabrir a Bolsa americana e compr arto<strong>do</strong>s os títulos que se apresentassem, fossem quaisfossem. Ora, 4 da tarde, em Paris, corresponde a 10 damanhã em Chicago. Estava, pois, o financista almoçan<strong>do</strong>,quan<strong>do</strong> lhe chegou o fonograma <strong>do</strong> sócio. Não lhe foidifícil promover logo a reabertura da Bolsa e comprar depancada algumas centenas de milhões de títulos. Anotícia de Chicago logo se divulgou em Paris, onde já não


<strong>era</strong> possível dar o mesmo golpe, mas podiam pr eparar-senovas combinações para o dia seguinte. O povo, otimista,acreditara: na espontaneidade da iniciativa americana, e,associan<strong>do</strong>-a a impressão calmante da assembléiaacadêmica, encheu-se de esp<strong>era</strong>nça.Mas, nem por isso, deixou de acorrer menos sôfre go àsessão noturna. Não fosse o serviço especial da GuardaCivil e impossível seria aos convida<strong>do</strong>s privilegia<strong>do</strong>spenetrar no recinto. A noite caíra e o cometa se tornavamaior, mais flamejante - e ameaça<strong>do</strong>r. Se uma parte dascriaturas mostrava-se mais ou menos tranqüilizada, aoutra - porventura a maior - continuava exaltada,nervosa, febricitante. O auditório <strong>era</strong> evidentemente omesmo, cada qual interessa<strong>do</strong> em conhecer de pronto asconclusões <strong>do</strong> debate entre os mais eminentes eautoriza<strong>do</strong>s cientistas, no concernente à sorte <strong>do</strong> planetae à espécie de morte que a to<strong>do</strong>s aguardava. Todavia, nãopassou despercebida a ausência <strong>do</strong> cardeal,inesp<strong>era</strong>damente chama<strong>do</strong> a Roma para tomar partenum concílio ecumênico, e que para lá seguira pelo tuboParis-Roma-Palermo-Túnis.Senhoras - disse o Presidente - ainda não recebemos odespacho de Marte, assinala<strong>do</strong> pelo Observatório deGaorisancar, mas podemos abrir desde já a sessão, a fimde ouvirmos as valiosas comunicações anunciadas peloSr. Presidente <strong>do</strong> sociedade Geológica , e pelo Sr.Secretário g<strong>era</strong>l da Academia, de Meteorologia. Douportanto a palavra ao primeiro.Já o ora<strong>do</strong>r estava na tribuna. Eis o seu discursoestenografa<strong>do</strong> por um aluno da nova escola.


O auditório vultoso que aqui se comprime, a emoçãotransparente de to<strong>do</strong>s os semblantes, a impaciência comque aguardais os debates que ainda aqui se devemtravar, tu<strong>do</strong> me levaria, Senhores, a abster -me de vosexpor as conclusões <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> que fiz, concernente aoproblema em foco, para ceder a palavra a espíritos maisimaginativos, ou mais audaciosos <strong>do</strong> que eu. E que, a meuver, o fim <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> não está próximo e a Humanidade,antes de b ver chegar esta semana, deve esperá -lo aindapor muito tempo... Milhares de anos, provavelmente. . .Mas, que digo? - milhares, não; milhões, ou melhor:milhares de milhões.Vede-me perfeitamente tranqüilo neste momento econsid<strong>era</strong>i que não tenho o mérito de Arquimedes,quan<strong>do</strong>, absorto em seus cálculos geométricos, foiestrangula<strong>do</strong> pelo solda<strong>do</strong> romano, no cerco de Siracusa.Arquimedes conhecia e esquecia o perigo. Eu não creiono perigo.Não ficareis, pois, surpreendi<strong>do</strong>s de me ouvir exporcom a maior calma a teoria da extinção de nosso mun<strong>do</strong>,pelo nivelamento assaz lento <strong>do</strong>s continentes e asubmersão gradual da sua crosta invadida pelas águas. ..Seria talvez preferível adiar esta dissertação para apróxima semana, pois não tenho a mínima dúvida de queaqui possamos to<strong>do</strong>s, ou quase to<strong>do</strong>s voltar, a fim de nosentretermos com as grandes fases da natureza.Nesta altura, fez uma pausa. O Presidente levantarase:Caro e ilustre colega - disse -, to<strong>do</strong>s aqui estamos paravos ouvir. Felizmente, o pânico destes últimos dias estáem parte acalma<strong>do</strong> e esp<strong>era</strong>mos que o próximo 14 de


Julho transcorra como os precedentes. Todavia,interessamo-nos mais que nunca pelo grande problema, enenhuma palavra poderá ser mais acatada que a <strong>do</strong>autor <strong>do</strong> clássico Trata<strong>do</strong> de Geologia.Pois bem - continuou o geólogo - eis como acabará omun<strong>do</strong>, de morte natural, se nada vier alt<strong>era</strong>r a ordemnatural das coisas, o que é provável, visto serem raros osacidentes no ritmo cósmico. A Natureza não dá saltos. Osgeólogos já não acreditam mais em revoluções súbitas,em subversões <strong>do</strong> globo, pois sabem que tu<strong>do</strong> se processapor evolução lenta e gradual.Se é dramático prefigurar-se o novo esferóidearrasta<strong>do</strong> a uma catástrofe universal, menos o será vê -lo,tão só pelas forças ativas que ora o ameaçam dedestruição. Não nos parece indefinida a estabilidade <strong>do</strong>scontinentes? Como duvidar da continuidade indefinidadeste solo, que tem comporta<strong>do</strong> t antas g<strong>era</strong>çõespregressas e sobre o qual os monumentos antiqüíssimosatestam que, se hoje os vemos em ruínas, não é porque osolo lhes tenha nega<strong>do</strong> apoio, mas, por sofrerem asinjúrias <strong>do</strong> tempo e, sobretu<strong>do</strong>, <strong>do</strong> homem? Temposedax, hauro edaobor! Tão longe quanto possamosremontar às nossas tradições, elas nos falam de rioscorren<strong>do</strong> nos mesmos leitos atuais; montanhas da mesmaaltura e, por quaisquer estuários obstruí<strong>do</strong>s,desmoronamentos ali e acolá, isso pouco significarelativamente à massa <strong>do</strong>s continentes , para quepossamos prognosticar uma destruição final.Destarte, poderá raciocinar quem não lance aomun<strong>do</strong> exterior mais que olhar superficial e indiferente.Outra, porém, a conclusão <strong>do</strong> observa<strong>do</strong>r afeito a


escrutar, atento, as modificações mais insignific antes quese verificam em torno dele. A cada passo, por pouco queele saiba ver, apreenderá as linhas de uma lutaincessante, empenhada pelas forças exteriores danatureza contra tu<strong>do</strong> o que ultrapassa o nível desteoceano, sob o qual reinam o silêncio e o repouso. Achuva, o gelo, a neve, o vento, as fontes, as praias, os rios;to<strong>do</strong>s os agentes meteóricos concorrem para modificarperpetuamente a superfície <strong>do</strong> globo. Os vales sãoescava<strong>do</strong>s pelos cursos da água e a seguir entulha<strong>do</strong>s comas terras de enxurro. Tu<strong>do</strong> muda sem cessar. Aqui é omar que, furioso, bate as praias e as leva de recuo, deséculo em século. Além, são talhões de montes que seesboroam, engolin<strong>do</strong> cidades e povoa<strong>do</strong>s, em poucosminutos, semean<strong>do</strong> a desolação entre vales risonhos.Avalanchas e torrentes desagregam montanhas. Ou,então, temos esses cones vulcânicos, contra os quais seencarniçam as chuvas tropicais, recortan<strong>do</strong> profundasravinas, e cujas paredes se fendem e mostram a ruinaria,o destroço desses gigantes. Alpes e Pirineus já perd<strong>era</strong> mmais de metade da sua altura.Mais silenciosa, porém não menos eficaz, é a ação <strong>do</strong>sgrandes rios quais o Ganges e o Mississipi, cujas águascarreiam grande massa de resíduos. Cada grão de areiaque turva a limpidez dessas águas representa umfragmento arranca<strong>do</strong> à terra firme. Lenta, masseguramente, as ondas conduzem ao imenso reservatóriooceânico tu<strong>do</strong> o que perde o solo, e os resíduos quediariamente se depositam nos deltas nada representam,compara<strong>do</strong>s aos depósitos que o mar recebe paradispersar em suas profundezas. Como pode o filósofo,


testemunha de um trabalho tal e saben<strong>do</strong> que ele seop<strong>era</strong> por séculos de séculos, como pode, repito, duvidarque os rios e as vagas oceânicas acarretem o lutopermanente à terra firme?E' uma conclusão que a geologia co nfirma em to<strong>do</strong>sos senti<strong>do</strong>s. De fato, ela nos mostra, em to<strong>do</strong>s oscontinentes, a superfície <strong>do</strong> solo constantemente atacada,seja por alt<strong>era</strong>ções térmicas, seja por alternativas dearidez e humidade atmosférica, gelo ou degelo, ou sejaainda pela ação ininterrupta <strong>do</strong>s vermes e <strong>do</strong>s vegetais.Daí, um processo de desagregação que acaba surriban<strong>do</strong>até as rochas mais compactas. Os destroços começamrolan<strong>do</strong> pelas encostas e no álveo das correntes, onde sedesgastam e transformam em cascalho, areia, lo<strong>do</strong>, àesp<strong>era</strong> de qualquer enchente com potencial bastante queos conduza ao mar.E' fácil provar qual seja o resulta<strong>do</strong> final dessetrabalho. O pensa<strong>do</strong>r, sempre operoso, não se satisfazsenão quan<strong>do</strong> os materiais submeti<strong>do</strong>s ao seu <strong>do</strong>míniotiverem conquista<strong>do</strong> condição mais estável. Ora, talestabilidade não se conquistaria senão no dia em queesses materiais não mais ruíssem... Importaria, portanto,suprimir to<strong>do</strong> e qualquer declive até o mar, reservatóriocomum,. onde se consumam todas as potênciascarrea<strong>do</strong>ras; e bem assim, que to<strong>do</strong>s os fragmentoscarrea<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s continentes se tenham dissemina<strong>do</strong> nofun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s mares. Em resumo: ou aplanamento completoda terra firme, ou, por melhor dizer, a destruição dequalquer relevo continental.O resulta<strong>do</strong> da erosão produzida pelas águascorrentes deve originar sobre as linhas de partilha


egional, pontudas arestas, passan<strong>do</strong> bem depressa àsplanícies quase absolutamente rasas, entre as quais nãorestaria, em última análise, nenhum relevo com mais de50 metros de altura.Entretanto, em parte alguma essas arestas agudas semanteriam por muito tempo, de vez que o peso, a ação<strong>do</strong>s ventos, das infiltrações e das variações detemp<strong>era</strong>tura seriam suficientes para provocar oarrasamento. Lícito é também dizer que o termo finaldesse trabalho de erosão continental há de ser onivelamento completo da terra firme, assim reconduzidaa nível mais ou menos equivalente ao da embocadura <strong>do</strong>srios.O coadjutor <strong>do</strong> Arcebispo de Paris, que ocupava olugar de sua Eminência, levantou -se e interrompeu oora<strong>do</strong>r:Eis aí como se confirmarão lit<strong>era</strong>lmente às escrituras,quan<strong>do</strong> dizem: To<strong>do</strong> vale será aterra<strong>do</strong>, colinas emontanhas serão arrasadas.A Bíblia tu<strong>do</strong> prenunciou - replica o geólogo -, a águacomo o fogo, o frio como o calor, e os espíritosengenhosos podem lá encontrar tu<strong>do</strong> o que desejarem.Mas, o que podemos haver por certo é que, se nadamodifica as condições da terra firme e <strong>do</strong>s oceanos, orelevo continental, esse está fatalmente destina<strong>do</strong> adesaparecer.Quanto tempo transcorrerá até que isso se verifique ?Se espalhássemos todas as montanhas da Terra, ela seapresentaria como uma planície <strong>do</strong>minan<strong>do</strong> em todaparte o mar, por penedias de 700 metros de altura, maisou menos.


Admiti<strong>do</strong> que a superfície total <strong>do</strong>s continentes sejade 145 milhões de quilômetros quadra<strong>do</strong>s, teríamos que ovolume da massa continental emergida pode esmar -se em145.000.000 x 07, ou ..... 101.500.000, ou, em númerosre<strong>do</strong>n<strong>do</strong>s, cem milhões de quilômetros, cú bicos. Tal aprevisão, indubitavelmente respeitável, mas nãoindefinida, contra a qual atuam potências destrui<strong>do</strong>ras.To<strong>do</strong>s os rios, de conjunto, podem estimar -se comodespejan<strong>do</strong> anualmente no mar 23000 quilômetroscúbicos da água (ou por outra, 23000 vezes um milhão demetros cúbicos) ; tal débito, pela relação estabelecida de38 partes sobre 100000, daria um volume igual a 10quilômetros e 34 centímetros de matérias sólidas. Estacifra está, para a <strong>do</strong> volume total <strong>do</strong>s continentes, naproporção de 1 para 9.730.000; se a terra firme fosse umaltiplano uniforme de 700 metros, perderia cada ano umafaixa de sete centésimos de milímetro, ou um milímetroem catorze anos, ou, ainda, sete milímetros cada século.Aí temos uma cifra positiva, que exprime o valoratual da erosão <strong>do</strong>s continentes. Aplican<strong>do</strong> -a ao conjunto<strong>do</strong>s mesmos, vê-se que essa erosão só por si destruiria emmenos de dez milhões de anos toda a massa de terrasemergidas.Não são, entretanto, as chuvas e os rios, os únicosfatores dessa obra de destruição progressiva. O primeiroé a erosão marinha. Para avaliá -la, dificilmenteencontraremos melhor estalão que o das costasbritânicas, cuja situação as expõe ao assalto das águasatlânticas, levadas pelos ventos prepond<strong>era</strong>ntes <strong>do</strong>su<strong>do</strong>este, sem interposição de obstáculos quaisquer. Ora,


o recuo médio <strong>do</strong> conjunto das costas inglesas é,seguramente, inferior a três metros em cada século.Podemos, por duas maneiras, proceder nessainvestigação. A primeira consiste em avaliar a perda devolume que representa, para a totalidade das costas, umrecuo anual de 3 centímetros. Para isso, importaconhecer-lhes a extensão e altura média. A extensão dasplagas em to<strong>do</strong> o globo pode estimar-se em 200000quilômetros, mais ou menos, e, quanto ao nível sobre omar, talvez exageremos calculan<strong>do</strong> -o em média de cemmetros. Logo, um recuo de 3 centímetros corresponde auma perda de 3 metros cúbicos por metro corrente, ou,seja, para 200000 quilômetros de costa, 600 milhões demetros cúbicos, que perfazem apenas seis décimos dequilômetro cúbico. Noutros termos: a erosão marinhanão representaria mais que a décima sétima par te <strong>do</strong>trabalho das águas meteóricas!Objetar-se-á, talvez, a esse processo, que, dada aaltitude crescente das costas para o interior, o mesmorecuo deveria, com o tempo, corresponder a maior perdade volume. E teria fundamento essa objeção? Não,porque, tenden<strong>do</strong> a ação das chuvas e <strong>do</strong>s rios para oaplanamento completo das superfícies, prosseguiria emparalelo com a ação das vagas.Por outro la<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> a superfície da terra firme de145 milhões de quilômetros quadra<strong>do</strong>s, um círculo deigual superfície deveria ter 6800 quilômetros de raio.Mas, a circunferência desse círculo não ultrapassaria40000 quilômetros, o que vale dizer que o mar teria, decontorno, diminuída de um quinto a carga queatualmente não tem, graças aos recortes que atingem a


200000 quilômetros ao longo de suas plagas. Podeadmitir-se, pois, que o trabalho de erosão marinhamarcha cinco vezes mais rápi<strong>do</strong> que sobre um círculoequivalente. Certo, esta estimativa representa ummáximo, pois as penínsulas estreitas, uma vez corroídaspelo mar, diminuiriam cada vez mais a correlação deperímetro e superfície, tornan<strong>do</strong> menos eficaz a ação daságuas. Em to<strong>do</strong> caso, desde que à razão de 3 centímetrospor ano, um raio de 6800 quilômetros está condena<strong>do</strong> adesaparecer dentro de 226600000 anos, um quinto destacifra, ou seja 45.000.000 de anos representaria o mínimo<strong>do</strong> tempo necessário à destruição da terra firme pelasvagas marinhas. Isso, como intensidade, apenascorresponderia à quinta parte da ação continental.O conjunto das ações mecânicas parece, poi s,arrebatar à terra firme, cada ano, um volume de 12quilômetros cúbicos, que, para um total de 100 milhões,culminaria na destruição completa em oito milhões deanos, mais ou menos. Não se pense, porém, que tenhamosesgota<strong>do</strong> a análise <strong>do</strong>s fenômenos destr utivos da massacontinental. A água não é somente um agente mecânico,mas também um elemento de dissolução, muito maisativo <strong>do</strong> que g<strong>era</strong>lmente se imagina, dada a proporçãoassaz notável de áci<strong>do</strong> carbônico que contém, quer oabsorvi<strong>do</strong> na atmosf<strong>era</strong>, quer o o rigina<strong>do</strong> dadecomposição das matérias orgânicas <strong>do</strong> solo. Circulan<strong>do</strong>através de to<strong>do</strong>s os terrenos, ela aí se satura dassubstâncias que carreia, mediante um verdadeiro ataquequímico aos min<strong>era</strong>is das rochas atravessadas.A água <strong>do</strong>s rios contém cerca de 182 toneladas desubstâncias dissolvidas, por quilômetro cúbico. O


conjunto <strong>do</strong>s rios carrega para o mar, anualmente, cercade cinco mil metros cúbicos de substâncias dissolvidas. Jánão seriam, portanto, mais <strong>do</strong>ze, e sim dezessete milmetros cúbicos que a terra firme perderia to<strong>do</strong>s os anos,sob as diversas influências que op<strong>era</strong>m a sua destruição.Temos então, desde logo, que o total de 100 milhõesdesapareceria, não mais em oito, mas em pouco menos deseis milhões de anos.Mas esta cifra, senhores, deve ainda s ofrer grandeatenuação. Com efeito, é preciso não esquecer que ossedimentos introduzi<strong>do</strong>s no mar, aí tomam o lugar de talou qual quantidade da água e, destarte, levantam o nível<strong>do</strong> Oceano de encontro à plataforma continental, que seabaixa, e cuja destruição final fica assim acel<strong>era</strong>da.A medida desse movimento é fácil de calcular.Efetivamente, por uma dada faixa que perde o planaltosuposto uniforme, é preciso que o mar se eleve emquantidade tal que o volume <strong>do</strong> leito marinhocorrespondente seja justamente igual ao volume <strong>do</strong>ssedimentos introduzi<strong>do</strong>s, ou seja ao da faixa destruída. Ocálculo mostra que a perda em volume eleva -se, em cifrasre<strong>do</strong>ndas, a 24.000 metros cúbicos.Podemos então concluir - uma vez que esta cifra de 24mil metros cúbicos é contida 4166666 na de 100 milhões,que representa o volume continental - que a só atuaçãodas forças atualmente op<strong>era</strong>ntes, independente demovimentos outros <strong>do</strong> solo, bastaria pa ra acarretar,daqui a 4 milhões de anos, a desaparição total da terrafirme.Acrescentarei que, se essa desaparição podepreocupar um geólogo ou um pensa<strong>do</strong>r, nem por isso


epresenta um evento inquietante para a nossa g<strong>era</strong>ção.Não serão nossos filhos nem tetranetos quem haja de oapreciar. Se, pois, houverdes por bem me permitirconcluir esta explanação por uma palavra um tanto...fantasista, direi que o cúmulo da previdência seria,seguramente, constituirmos desde já uma nova arca paraescapar a esse futuro dilúvio universal.Essa a tese sabiamente sustentada pelo Presidente daSociedade geológica da França. Essa exposição lenta ecalma das op<strong>era</strong>ções seculares <strong>do</strong>s agentes naturais,dilatan<strong>do</strong> de quatro milhões de anos as perspectivas devida planetária, foi um sedativo para os nervossobreexcita<strong>do</strong>s com a aproximação <strong>do</strong> cometa. Aassistência mostrava-se agora assaz tranqüila. Maldeixou o ora<strong>do</strong>r à tribuna, receben<strong>do</strong> elogios <strong>do</strong>s colegas,e a conversação se reanimou, subdividida em grupos. Umsopro de pacificação como que atravessara to<strong>do</strong>s oscérebros. Falava-se <strong>do</strong> fim <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> como da queda deum governo ou da chegada <strong>do</strong>s andarilhos, sem paixão eaté com certa displicência. Um acontecimento ainda quefatal, mas adia<strong>do</strong> por quarenta mil séculos, não nos afetade mo<strong>do</strong> algum.Mas o Secretário g<strong>era</strong>l da Academia meteorológicoacabava de subir à tribuna e to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> lhe prestoudesde logo a maior atenção.Minhas senhoras, meus senhoresVou expor uma teoria diametralmente oposta à <strong>do</strong>meu caro e eminente colega <strong>do</strong> Instituto, teoria apoiadaem fatos não menos rigorosamente observa<strong>do</strong>s, e comméto<strong>do</strong> racional não menos seguro. Sim, senhores,


diametralmente oposta, repito. Dota<strong>do</strong> de excelente vista,o ora<strong>do</strong>r logo percebeu que os semblantes se anuviaram.Oh! - exclamou - oposta, não quanto ao prazo que anatureza reserva à vida planetária, mas quanto àmaneira <strong>do</strong> seu perecimento, visto que também eu creionuma dilação de alguns milhões de anos.Apenas, em vez de conjeturar os continentesdestina<strong>do</strong>s a sucumbir pela invasão das águas,inteiramente submersos, penso que hão de morrer dearidez...Ao estu<strong>do</strong> precedente, poderia ter objeta<strong>do</strong> que, emmuitas regiões, não é o mar que desfalca a terra e simesta que o invade, seja pelas areias e dunas litorâneas, ouseja pelos deltas e aterros conseqüentes aos enxurrosfluviais. Não quero, entretanto, abrir controvérsia sobreos efeitos recíprocos das atividades terrenas e marinhas,que nos levaria muito longe; quero, apenas, chamar aatenção <strong>do</strong> auditório para um fato geológico muitointeressante, qual o da diminuição gradual da águaexistente na terra, de século para século. Di a virá em quenão mais teremos mares, nuvens, chuva, fontes, águaenfim! Toda a vida vegetal e animal acabarão , nãoafogada, mas de secura.E' fato que a água diminui na superfície <strong>do</strong> globo.Sem procurar exemplos mais longe, lembrarei queoutrora, em começo <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> quaternário, o local emque se estende este nosso Paris atual, <strong>do</strong> monte S.Germano à confluência <strong>do</strong> Marne, com os seus 9.000.000de habitantes, estava quase totalmente toma<strong>do</strong> pelaságuas, de vez que só a colina de Passy a Montmartre e aoPère-Lachaise e o planalto de Montrouge até o Pantheon


e o maciço <strong>do</strong> Mont-Valerien, emergiam <strong>do</strong> enormelençol da água. A altura desses planaltos não aumentou,não houve alteamentos, mas a água diminuiu. Aquitendes -disse projetan<strong>do</strong> um mapa na parede <strong>do</strong>anfiteatro - o que <strong>era</strong> o Sena nesta zona parisiense, emtempos pré-históricos.Insignificante quantidade da água, certo, em relaçãoao conjunto, mas nem por isso negligenciável, penetranas profundezas <strong>do</strong> solo, quer nas bacias marítimas, querpelas brechas devidas à deslocação e erupçõessubmarinas e mesmo em terra firme, visto que nem todaa massa pluvial encontra um leito de argila impermeável.Em g<strong>era</strong>l, a água das chuvas retorna ao mar pelas fontes,regatos e rios, mas, para isso, precisa encontrar umaterra argilosa, ai corren<strong>do</strong> conforme os declives. Quan<strong>do</strong>não haja camada impermeável, ela prosseguiráinfiltran<strong>do</strong>-se na crosta porosa <strong>do</strong> globo e irá saturar asrochas profundas. Essa água perde -se para a circulação equimicamente combinada constitui os hidratos. S e apenetração for muito profunda, a água atingetemp<strong>era</strong>tura suficientemente alta para transformar -seem vapor, e tal é a origem mais freqüente <strong>do</strong>s vulcões etremores de terra. Os fumos vulcânicos são quasetotalmente compostos de vapor da água. Entretanto, noâmago <strong>do</strong> solo, como ao ar livre, uma parte desprezíveldas águas móveis se transforma em hidratos, e mesmoem óxi<strong>do</strong>s. Nada como a humidade para produzir aferrugem. Assim fixa<strong>do</strong>s os elementos da água, ohidrogênio e o oxigênio deixam de combinar -se. As águastermais, por outro la<strong>do</strong>, não constituem toda umacirculação fluvial interior e proveniente da superfície?


Seja fixan<strong>do</strong>-se, seja combinan<strong>do</strong>-se ou penetran<strong>do</strong>nas camadas profundas <strong>do</strong> solo, o caso é que a águadiminui na superfície da Terra. Ela també m descerá cadavez mais fun<strong>do</strong>, à proporção que o calor interno fordiminuin<strong>do</strong>. Os poços caloríferos cava<strong>do</strong>s há cem anos,próximo das cidades mais importantes e que fornecemgratuitamente o calor necessário aos serviços <strong>do</strong>mésticos,esgotar-se-ão com a queda da temp<strong>era</strong>tura interior. Diavirá em que a Terra se resfriará até ao centro, e esse diacoincidirá com o desaparecimento total das águas.De resto, senhores, parece que este será o destino <strong>do</strong>sdiversos corpos celestes <strong>do</strong> nosso sistema solar. Nossavizinha Lua, cuja massa e volume são muito inferioresaos de nossa Terra, esfriou-se mais rapidamente e maisrapidamente percorreu as fases de sua evolução astral.Seus prístinos mares, que ainda hoje se podem identificarpelo efeito de suas águas, estão inteiram ente esgota<strong>do</strong>s,não se lhes percebe qualquer sinal de evaporação,qualquer nuvem, nem tão-pouco o espectroscópio nosrevela traços de vapor da água. Planos ári<strong>do</strong>s, roche<strong>do</strong>sabruptos, circos desertos. Por outro la<strong>do</strong>, Marte, umpouco menor que a Terra, apres enta-se-nos maisavança<strong>do</strong> em seu curso, constatan<strong>do</strong> -se já não possuirnenhum oceano digno desse nome, mas tão somentemediterrâneos pouco extensos, pouco profun<strong>do</strong>s ereliga<strong>do</strong>s por canais. Que há menos água em Marte quena Terra, é fato inconteste, por obse rva<strong>do</strong>. Os fenômenosde evaporação e condensação produzem -se lá, maisrápi<strong>do</strong>s <strong>do</strong> que aqui, as neves polares mostram, conformeas estações, uma variação muito mais ampla que a dasneves terrenas. Ainda por outro la<strong>do</strong> Vênus, mais jovem


que a Terra, apresenta-se-nos envolto em imensaatmosf<strong>era</strong>, permanentemente carregada de nuvens.Quanto ao grandioso Júpiter, esse está nos primórdios davida, não no vemos, por assim dizer, senão amortalha<strong>do</strong>em nuvens e vapores. Assim, os quatro planetas quemelhor conhecemos, confirmam, cada um de per si, aobservação terrena <strong>do</strong> decréscimo secular das águas.Folgo muito em poder confessar, a propósito, que a tese<strong>do</strong> nivelamento g<strong>era</strong>l sustentada pelo meu sábio colegatem apoio no esta<strong>do</strong> atual de Marte. O eminente geólogodizia-nos, há pouco, que, graças ao trabalho secular <strong>do</strong>srios, o relevo final <strong>do</strong> solo futuro será forma<strong>do</strong> de planosquase horizontais. E' o que já se verifica em Marte, ondeas plagas vizinhas <strong>do</strong> mar são tão unidas que freqüente efacilmente se inundam, qual o sabemos. De uma paraoutra estação, centenas de milhar de quilômetrosquadra<strong>do</strong>s são alternativamente enxutos, ou submersosnum espesso vapor da água. E' o que se observaprincipalmente nas plagas ocidentais <strong>do</strong> mar Arenoso.Na Lua, entretanto, o nivelamento nã o se operou. Seráque houvesse falta<strong>do</strong> o tempo e não haveria existi<strong>do</strong>águas nem ventos antes de sua consumação. Ao demais, opeso é lá quase nulo.E' certo, pois, que sofren<strong>do</strong> de século em século umnivelamento fatal, como expôs magistralmente o meuconfrade, a Terra sofre, ao mesmo tempo, umadiminuição gradual da quantidade da água que possui.Aparentemente, tu<strong>do</strong> indica que essa diminuição marchaparalelamente com o nivelamento. À medida que o globofor perden<strong>do</strong> calor interno e resfrian<strong>do</strong> -se, terá a mesmasorte da Lua e fender-se-á. A extinção absoluta <strong>do</strong> calor


há-de originar contrações, produzin<strong>do</strong> vácuos nointerior; a água <strong>do</strong>s oceanos correrá para esses vácuossem transformar-se em vapor e será absorvida pelasrochas, ou se combinará com as rochas metáli cas noesta<strong>do</strong> de hidrato de óxi<strong>do</strong> de ferro. A quantidade daágua diminuirá assim, indefinidamente, até desaparecerde to<strong>do</strong>. Os vegetais, em lhes faltan<strong>do</strong> o elementoessencial, transformar-se-ão a princípio, mas acabarãoperecen<strong>do</strong>. As espécies animais també m setransformarão, mas, haverá sempre herbívoros ecarnívoros, e os primeiros desaparecerão antes,devora<strong>do</strong>s pelos segun<strong>do</strong>s, até que a própria espéciehumana, mal gra<strong>do</strong> às suas transformações, acabemorren<strong>do</strong> à sede e à fome, na crosta da terra esturricadae ressequida.Podemos então, senhores, conseqüentemente, concluirque o mun<strong>do</strong> não acabará com outro dilúvio, mas, aocontrário, pela ausência da água. Sem água, toda a vidaplanetária se torna impossível, pois ela é o elementoessencial de to<strong>do</strong>s os corpos viventes. O próprio corpohumano com ela se forma na proporção de setenta porcento. Sem água não pode haver plantas nem animais.Seja no esta<strong>do</strong> liqui<strong>do</strong> ou vaporoso, é ela que rege toda 2.vida terrena. Suprimi-Ia equivale a um decreto de morte.Pois esse decreto a Natureza o promulgará, dentro deuma dezena de milhões de anos. Acrescento que onivelamento não virá antes disso. O Sr. Presidente daSociedade geológica não se esqueceu de notar que os seus4000000 de anos enquadram-se na hipótese de agirem ascausas atuais, destrutivas da terra firme, na medidaexata que ora se verifica, sem alt<strong>era</strong>ção de ritmo. Por


outro la<strong>do</strong>, é ele próprio quem diz não ser possívelcessarem desde já as manifestações da energia interior.Sublevações hão-de produzir-se por muito tempo, aqui eacolá, e os acréscimos délticos, insulares, vulcânicos,madrepóricos, far-se-ão sentir ainda por muito tempo. Operío<strong>do</strong> indica<strong>do</strong> não representa, por conseguinte, senãoum mínimo.Assim falou o meteorologista. Os <strong>do</strong>is ora<strong>do</strong>res foramouvi<strong>do</strong>s com profunda atenção. O auditório deixavaentrever, em suas atitudes, achar -se perfeitamentetranqüiliza<strong>do</strong> quanto aos destinos da Terra. O cometaestava completamente esqueci<strong>do</strong>.Tem a palavra a Senhorita que chefia o departamentode cálculos astronômicos. A jovem laureada <strong>do</strong> Instituto,<strong>do</strong>utora em ciências naturais, físicas e matemáticas,encaminhou-se para a tribuna.Meus <strong>do</strong>is sábios colegas - disse prescindin<strong>do</strong> deexórdio - têm razão, por isso que de um la<strong>do</strong> éincontestável a ação <strong>do</strong>s agentes meteóricos, a uxilia<strong>do</strong>spelo peso, no nivelamento <strong>do</strong> globo, cuja crosta se adensae solidifica cada vez mais; por outro la<strong>do</strong>, menos verdadenão é que o volume da água diminui de século a século,na superfície <strong>do</strong> planeta. Aí temos <strong>do</strong>is pontos que aCiência pode julgar como resolvi<strong>do</strong>s. Mas, senhores,parece-me que o fim <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> não sobrevirá pelasubmersão <strong>do</strong>s continentes, nem tão -pouco peloesgotamento, da água que entretém a vida animal evegetal.Esta nova declaração, implican<strong>do</strong> uma terceirahipótese, como que feriu o auditório de uma quaseestupefação.


Tão-pouco acredito - apressou-se a ora<strong>do</strong>ra emdeclarar - seja o cometa o encarrega<strong>do</strong> da catástrofefinal, pois penso, com os <strong>do</strong>is ora<strong>do</strong>res , que os mun<strong>do</strong>snão morrem de acidentes, mas de velhice.Sim; indubitavelmente, a água diminuirá e acabarámesmo desaparecen<strong>do</strong>, talvez; mas não será a sua falta,em si mesma, e sim as conseqüências dela oriundas, quedeterminarão o aniquilamento final. A diminuição <strong>do</strong>vapor aquoso na atmosf<strong>era</strong> acarretará o resfriamentog<strong>era</strong>l, e os meus estu<strong>do</strong>s neste senti<strong>do</strong> levaram-me aconcluir que o perecimento virá pelo frio.Para os meus ouvintes, é ocioso aqui declarar que aatmosf<strong>era</strong> respirável se compõe de 79% de azoto, 20 % deoxigênio, e que o centésimo restante comporta 25% devapor da água, 3 decimilésimos de ozônio, ou oxigênioeletriza<strong>do</strong>, amoníaco, hidrogênio e gases outros semquantidade infinitesimais. Azoto e oxigênio perfazem,portanto, 99% e o vapor da água apenas 1/4 <strong>do</strong> centésimointegrante.E contu<strong>do</strong>, minhas senhoras, <strong>do</strong> ponto de vista davida orgânica, esse 1/4 de centésimo tem a mais altaimportância e não receio afirmar que, no concernente àtemp<strong>era</strong>tura e ao clima, ele é mais essencial que to<strong>do</strong> oresto da atmosf<strong>era</strong>! Depois, senhores, invoco o juízo <strong>do</strong>shistoria<strong>do</strong>res, perguntan<strong>do</strong>: não são as pequeninas coisasque governam o mun<strong>do</strong>?As ondas de calor solar que aquecem o solo e deleemanam, depois, para difundir -se na atmosf<strong>era</strong>, sechocam de passagem contra os átomos de azoto e deoxigênio, e contra as moléculas de vapor da águadisseminadas no ar. Estas moléculas são tão rarefeitas


(pois que não ocupam por seu volume mais que 1/100 <strong>do</strong>espaço das outras), que poderíamos atribuir mais aoazoto e ao oxigênio, <strong>do</strong> que a elas, a conservação <strong>do</strong> calor.De fato, consid<strong>era</strong>n<strong>do</strong> os átomos em particula r, vemosque para 200 partes de oxigênio e azoto, apenas temos 1de vapor aquoso. Pois bem! esse único átomo tem oitentavezes mais energia, mais vapor eficiente para conservar ocalor radiante, <strong>do</strong> que os 200 de oxigênio e azoto! Porconseqüência, uma molécula de vapor aquoso é 16000vezes mais eficaz que uma molécula de ar seco, paraabsorver, como para irradiar o calor, de vez que os <strong>do</strong>ispoderes são recíprocos e proporcionais. Diminua -se emgrande proporção essas invisíveis moléculas de vaporaquoso e a Terra tornar-se-á imediatamente inabitável,em que pese ao oxigênio. Todas as regiões, mesmo oequa<strong>do</strong>r e os trópicos, logo perderão o calor que osvivifica, condena<strong>do</strong>s ao clima das grandes altitudes,sempre flageladas pelas neves eternas. Ao invés deplantas luxuriantes, de flores e frutos, de aves e ninhos,da vida que desborda na terra e nos mares; ao invés deregatos cantantes, de claros arroios, de lagos e mares,não teremos mais que gelos imóveis num imensodeserto... E quan<strong>do</strong> digo - nós, senhores, compreendeisque não nos sobraria tempo para assistir ao espetáculo,pois o próprio sangue se coagularia e to<strong>do</strong>s os coraçõeshumanos deixariam de pulsar. Aí tendes asconseqüências da supressão <strong>do</strong> vapor aquoso da nossaatmosf<strong>era</strong>, op<strong>era</strong>n<strong>do</strong> qual câmara protetor a e benéfica,em prol de toda a vida terrestre .Os princípios <strong>do</strong> termo-dinâmico demonstram que atemp<strong>era</strong>tura <strong>do</strong> espaço é de 273 graus abaixo de zero.


Esse, o frio glacial que há-de amortalhar nosso planeta,quan<strong>do</strong> priva<strong>do</strong> da cortina aérea que o envolve, a quece eproteje agora.Eis o destino reserva<strong>do</strong> a Terra pela diminuição daágua existente em sua superfície. Essa morte pelo frioserá inevitável, se aqui nos detivermos assaz longamentepara sofrê-la.Tal desfecho é tanto mais certo quanto não é só ovapor da água que diminui, mas também os, outroselementos, quais o oxigênio e o azoto, ou seja toda aatmosf<strong>era</strong>. O oxigênio se fixa insensivelmente por to<strong>do</strong>sos óxi<strong>do</strong>s perpetuamente forma<strong>do</strong>s na superfície <strong>do</strong>globo, e o azoto nas plantas e no solo, sem reverter emintegralmente ao esta<strong>do</strong> gasoso. A atmosf<strong>era</strong>, devi<strong>do</strong> àsua pressão, penetra nos oceanos e nos continentes,descen<strong>do</strong>, também ela, às regiões subterrâneas. Pouco apouco, século a século, a atmosf<strong>era</strong> diminui. Outrora, noperío<strong>do</strong> primário por exemplo, ela e ra imensa, as águascobriam quase to<strong>do</strong> o orbe. Apenas os primeirosalteamentos graníticos emergiam da massa líquida g<strong>era</strong>l.A atmosf<strong>era</strong> impregnava-se de vapor da água,incomparavelmente maior que em nossos dias. Assim seexplica a alta temp<strong>era</strong>tura dessas ép ocas remotas,quan<strong>do</strong> as plantas tropicais, contemporâneas, fetosarborescentes, calamitas, equissetáceas, sigilárias,lapi<strong>do</strong>dêndreas, formavam opulentas florestas, tanto nospólos como no equa<strong>do</strong>r. Hoje, tanto a atmosf<strong>era</strong> como ovapor da água diminuíram. De futuro, hão-dedesaparecer. Em Júpiter, que se encontra ainda noperío<strong>do</strong> primário, a atmosf<strong>era</strong> apresenta -se-nosvolumosa e prenhe de vapores, enquanto que na Lua


quase que não existe e a sua temp<strong>era</strong>tura mantém -seabaixo de zero, mesmo a pleno Sol. Marte o ferece-nosuma atmosf<strong>era</strong> bem mais rarefeita que a nossa. Assim, defuturo, esta nossa mís<strong>era</strong> humanidade há -de morrer defrio.Quanto ao tempo necessário à consumação <strong>do</strong>advento, eu a<strong>do</strong>taria os dez milhões de anos calcula<strong>do</strong>spelo ora<strong>do</strong>r que me precedeu nest a tribuna.Tais, senhoras e senhores, as etapas que a Naturezaparece haver traça<strong>do</strong> à marcha vital <strong>do</strong>s mun<strong>do</strong>s, pelomenos aos pertencentes ao nosso sistema planetário.Concluo, portanto, que a Terra segue o destino da Lua,perecerá pelo frio, logo que despojada da capa aérea queatualmente ainda a garante <strong>do</strong> desperdício perpétuo <strong>do</strong>calor solar que recebe <strong>do</strong> Sol.O chanceler da Academia columbiana, chega<strong>do</strong> nomesmo dia, de Bogotá, em aeronave elétrica, pediu apalavra. Sabia-se que ele havia funda<strong>do</strong>,justo na linhaequatorial e na altitude de 3000 metros, um observatórioque <strong>do</strong>minava to<strong>do</strong> o planeta, de onde se viamsimultaneamente os <strong>do</strong>is pólos celestes. Lembramostambém que, em homenagem à França , ele d<strong>era</strong> a essetemplo de Urânia o nome de um astrônomo francê s, cujavida toda se consagrara ao estu<strong>do</strong> <strong>do</strong>utros mun<strong>do</strong>s,dan<strong>do</strong>-os a conhecer aos espíritos esclareci<strong>do</strong>s eestabelecen<strong>do</strong> o papel sob<strong>era</strong>no da astronomia em toda equalquer <strong>do</strong>utrina filosófica ou religiosa. Porta<strong>do</strong>r de umnome universalmente conheci<strong>do</strong>, justo <strong>era</strong> fosse ouvi<strong>do</strong>com especial atenção.Senhores! - disse logo que assomou à tribuna - temosouvi<strong>do</strong> nestas duas sessões, admiravelmente resumidas,


as curiosas teorias que a moderna ciência tem o direitode oferecer à Humanidade, a respeito da forma por queacabará o nosso mun<strong>do</strong>. O abrasamento da atmosf<strong>era</strong> oua asfixia <strong>do</strong>s pulmões, determina<strong>do</strong>s por encontro <strong>do</strong>cometa que se avizinha rápi<strong>do</strong>; a submersão, aindalongínqua, <strong>do</strong>s continentes, pela precipitação daatmosf<strong>era</strong> na profundeza <strong>do</strong>s mares; a aridez absolut a <strong>do</strong>solo e <strong>do</strong> ar, devida à diminuição gradual <strong>do</strong> elementoaquoso e, finalmente, o resfriamento lunar <strong>do</strong> nossomísero planeta envelheci<strong>do</strong> e caduco. Eis, se me nãoengano, as cinco espécies de consumação possíveis.Disse o Sr. Diretor <strong>do</strong> Observatório não ac reditar naprimeira hipótese e que, ao seu ver, o encontro resultariamais, ou menos inofensivo. Estou de pleno acor<strong>do</strong> edesejo acrescentar que, depois de ter ouvi<strong>do</strong> atentamenteas sábias dissertações <strong>do</strong>s eminentes colegas, tão -poucopoderia acreditar nas hipóteses restantes.Senhores, de sobejo sabeis que nada é eterno... Tu<strong>do</strong>se transforma no seio da Natureza. Os rebentos daprimav<strong>era</strong> abrolham em flores, as flores em frutos.Passam as g<strong>era</strong>ções e a vida continua a sua obra. Nossomun<strong>do</strong> há-de acabar, por isso que começou. Mas, naminha opinião pelo menos, não será o cometa, nem aágua, nem a falta desta que lhe hão -de engendrar aagonia. O problema, parece-me, assenta inteiramente naúltima palavra da notável alocução da nossa graciosacolega <strong>do</strong> Departamento de cálculos. Sim! evidentemente,tu<strong>do</strong> se prende ao Sol.A vida planetária está suspensa em seus raios... Quedigo? - ela não é mais que transformação <strong>do</strong> calor solar.Ele, o Sol, é que mantém a água em esta<strong>do</strong> líqui<strong>do</strong> e o ar


em esta<strong>do</strong> gasoso. Se não existis se o Sol, tu<strong>do</strong> seria sóli<strong>do</strong>e morto. E' ele que evapora a água de mares, lagos, rios,charcos; que fabrica a nuvem, o vento, as chuvas, a reg<strong>era</strong> fecundante circulação das águas. E graças à sua luz eao seu calor que as plantas assimilam o carbono conti<strong>do</strong>no áci<strong>do</strong> carbônico da atmosf<strong>era</strong>. Para separar <strong>do</strong>oxigênio o carbono e retê-lo, a planta desenvolve grandelabor. A frescura das matas provém dessa conversão decalor solar em labor vegetal. A lenha que nos aquece, nãofaz mais que suprir-nos de calor solar armazena<strong>do</strong>, e,quan<strong>do</strong> queimamos óleo ou gás, estamos libertan<strong>do</strong> raiossolares aprisiona<strong>do</strong>s, há milhões de anos, nas florestasprimitivas. A própria eletricidade não é mais quetransformação <strong>do</strong> trabalho que tem no Sol a sua fonteoriginal. É, pois, o Sol que murmura na fonte, palpita novento, grita nas tempestades, flori na rosa, gorjeia norouxinol, fuzila no relâmpago; ruge no furacão, canta ouesbraveja em todas as sinfonias da Natureza.Assim, o calor solar transforma -se em correntesaéreas ou líquidas, em potencial expansivo de gases evapores, em eletricidade, madeira, flor, fruto, forçamuscular c nervosa. Enquanto esse astro brilhante puderfornecer-nos suficiente calor, a vida planetária estarágarantida.O calor <strong>do</strong> Sol origina-se, muito provavelmente, dacondensação da nebulosa que lhe deu origem,constituin<strong>do</strong>-se em centro <strong>do</strong> nosso sistema. Essatransformação de movimento devia ter produzi<strong>do</strong> 28milhões de graus centígra<strong>do</strong>s! Sabeis, senhores, que umquilograma de hulha vin<strong>do</strong> cair no Sol, de uma dist ânciainfinita, produziria, com o seu choque, seis mil vezes mais


calor que o produzi<strong>do</strong> por sua combustão. Pela taxa dairradiação atual, a provisão de calor solar representa airradiação solar durante 22 milhões de anos, e é muitoprovável que vá muito além, pois nada prova que oselementos da nebulosa tenham si<strong>do</strong> absolutamente frios;antes, pelo contrário, que já traziam consigo umaverdadeira provisão de calor.Nada obstante, tu<strong>do</strong> tem um fim. Se o Sol,continuan<strong>do</strong> a condensar-se, chegasse, um dia, àdensidade da Terra, essa condensação produziria novaquantidade de calor, suficiente para manter ainda por 17milhões de anos a mesma intensidade calorífica queentretém a vida terrena atual, e este prazo pode serprolonga<strong>do</strong>, admitin<strong>do</strong>-se uma diminuição na taxa deirradiação, uma queda de meteoros sobre o astrovoraginoso e uma condensação continuada, além dadensidade terrestre. Contu<strong>do</strong>, por mais longe quelevemos esse prazo, ele fatalmente se esgotará. Os sóisque se apagam na vastidão <strong>do</strong>s céus, são outros ta ntosexemplos antecipa<strong>do</strong>s da sorte reservada ao que nosilumina. De resto, aí o temos, já de algum tempo, acobrir-se de manchas enormes.Mas, quem poderia afirmar que, daqui a dezessete ouvinte milhões de anos, as maravilhosas faculdades deadaptação que a fisiologia e a paleontologia nos têmrevela<strong>do</strong>, em todas as espécies animais e vegetais, nãoconduzam o ser humano, de estágio em estágio, a umesta<strong>do</strong> de perfeição física e intelectual tão superior aoatual, quanto este hoje se distancia <strong>do</strong> iguano<strong>do</strong>nte dasépocas imemoriais? Quem sabe se o nosso esqueleto fóssilnão parecerá tão monstruoso aos nossos pósteros, quanto


se nos afigura, hoje, um arcabouço dinossaureano? Podeser que a estabilidade térmica autorize, então, a duvidarde que uma raça verdadeiram ente inteligente tenhavivi<strong>do</strong> em uma época qual a nossa, de saltostermométricos e variações fantásticas <strong>do</strong> firmamento,caracterizadas pelas nossas burlescas estações. E, quemsabe se daqui até lá, por mais de uma vez, qualquerrevolução, qualquer transformação não envolverá opassa<strong>do</strong> em novas camadas geológicas, a fim dereconstituir uma nova <strong>era</strong>, novos perío<strong>do</strong>s -quinquenário, sexenário, inteiramente diversos dasépocas quaternária, terciária, secundária, primária?O certo é que o Sol acabará perden<strong>do</strong> o c alor; que asua massa se condensa e se retrai; que a fluidez diminui.Dia virá em que a circulação que alimenta a fotosf<strong>era</strong> eregula a sua radiação, fazen<strong>do</strong> que dela participe a quasetotalidade da massa formidanda, será atingida ecomeçará a afrouxar. Então a luminescência e o calordiminuirão, a vida vegetal e animal se restringirá cadavez mais, convergin<strong>do</strong> para o equa<strong>do</strong>r. Cessada estacirculação, a brilhante fotosf<strong>era</strong> será substituída por umacrosta opaca e obscura, privada de qualquer radiaçãoluminosa. O Sol transformar-se-á em globo vermelhoescuroe sucessivamente negro, para que tu<strong>do</strong> mergulheem noite eterna. A Lua, cuja luz já nos vem refletida, nãomais poetizará as nossas noites silenciosas. A Terraapenas terá a luz da estrelas. Extinto o calor solar, nossaatmosf<strong>era</strong> ficará em calma absoluta, sem o sopro de umaaragem em qualquer direção. Se ainda houver mares,serão solidifica<strong>do</strong>s pelo frio. Nenhuma evaporação queenseje nuvens, nenhuma chuva cairá, nenhuma fonte


correrá. Talvez os derradeiros la mpejos de um círio,quais os vemos nessas estrelas negras prestes a seapagarem; talvez um acidental desenvolvimento de calor,devi<strong>do</strong> a qualquer retração da crosta solar, possamdespertar, ainda por instantes, o velho Sol de nossostempos, mas isso não será mais que um sintoma <strong>do</strong>último alento, <strong>do</strong> termo final.E a Terra, bola negra, gelada necrópole, continuarágiran<strong>do</strong> em torno <strong>do</strong> Sol negro, a vogar em noite infinita,levada com to<strong>do</strong> o sistema solar no bojo <strong>do</strong> abismoinsondável. Assim perecerá a Terra com a extinção <strong>do</strong>Sol, daqui a uns vinte milhões de anos, ou mesmo maistarde ... o <strong>do</strong>bro, talvez.Calou-se o ora<strong>do</strong>r e preparava-se para deixar atribuna, quan<strong>do</strong> o Diretor da Academia de Belas -Artespediu a palavra:Senhores - disse <strong>do</strong> seu lugar -, se bem tenhocompreendi<strong>do</strong>, o mun<strong>do</strong> há-de acabar, provavelmente,pelo frio, dentro de alguns milhões de anos. Se, pois, umpintor houvesse de fixar a última cena, deveria cobrir aTerra de geleiras e esqueletos...- Não é bem assim - replicou o Chanceler colombiano-, pois não é o frio, mas o calor, a causa primária dasgeleiras.Se o Sol não evaporasse a água <strong>do</strong>s mares, nenhumanuvem se produziria, nem haveria possibilidade deventos quaisquer... Para fabricar geleiras é preciso, antesde tu<strong>do</strong>, um sol que evapore a ág ua e a transforme emnuvem; portanto, um condensa<strong>do</strong>r. Sabeis que umquilograma de vapor representa uma quantidade decalor solar bastante para elevar 5 quilos de ferro ao


esta<strong>do</strong> de fusão (1110 graus). Enfraquecida a ação solar,teremos, claro, exauridas as geleiras.Destarte, não serão neves nem geleiras amortalhan<strong>do</strong>a Terra. Tu<strong>do</strong> o que remanescer <strong>do</strong> mar congela<strong>do</strong>,gela<strong>do</strong> ficará, e extinto to<strong>do</strong> e qualquer movimentoatmosférico.A menos, portanto, que o Sol não tenha sofri<strong>do</strong>, antes<strong>do</strong> último suspiro, um daqueles espasmos a que nostemos referi<strong>do</strong>, fundin<strong>do</strong> gelos, reproduzin<strong>do</strong> nuvens ecorrentes aéreas, despertan<strong>do</strong>, enfim, fontes e rios para,após esse pérfi<strong>do</strong> despertar, recair súbito no seu fatalletargo. Será o dia sem amanhã.Ouviu-se outra voz partida <strong>do</strong> anfiteatro. Era umcélebre eletricista.Todas as causas de morte pelo frio são plausíveis,mas, que dizermos <strong>do</strong> fogo? To<strong>do</strong>s se referiram a essamorte, em função <strong>do</strong> encontro cometário, e contu<strong>do</strong> elapoderia sobrevir-nos de outra forma.Sem falarmos <strong>do</strong> afundamento <strong>do</strong>s continentes nofogo central, motiva<strong>do</strong> por tremor de terra, g<strong>era</strong>l, ou pordeslocamento formidável das camadas de terra firme,parece-me que uma vontade suprema bastaria,independente de qualquer choque, para deter omovimento <strong>do</strong> planeta em seu curs o e transformar essesmovimento em calor.- Uma vontade? interpelou alguém. Mas, a ciênciapositiva não admite milagres...- Nem eu tão-pouco - revi<strong>do</strong>u o eletricista: quan<strong>do</strong>digo vontade, quero dizer força ideal e invisível. Explico -me:


Nosso globo singra o espaço com a velocidade de106.000 quilômetros horários, ou sejam 29460 metros porsegun<strong>do</strong>. Se qualquer sol, brilhante ou obscuro, quenteou frio, viesse das profundezas <strong>do</strong> espaço para formarcom o nosso sol um consórcio eletro -dinâmico e a colocarnosso planeta sobre essa linha de força, agin<strong>do</strong> sobre elecomo um freio; se, numa palavra, por uma causaqualquer a Terra fosse instantaneamente detida em seucurso, o movimento de sua massa se transformaria emmovimento molecular e o planeta se encontraria log oeleva<strong>do</strong> a um grau de calor tal que o reduziria mais oumenos a vapor...- Suponho, obtemperou o Diretor <strong>do</strong> Observatório <strong>do</strong>Monte Branco, que a Terra ainda poderia perecer deignidade por outra forma. Temos observa<strong>do</strong> mais oumenos, no céu, uma estrela tem porária, que, dentro dealgumas semanas, passou da sexta à quarta ordem defulgurância. Esse longínquo sol tornou -se, subitamente,cinqüenta mil vezes mais luminoso e ardente! Sim,cinqüenta mil vezes! Se tal evento sobreviesse ao nossosol, nada nos restaria de vida planetária, tu<strong>do</strong> seria desúbito incendia<strong>do</strong>, consumi<strong>do</strong>, resseca<strong>do</strong> ou evapora<strong>do</strong>.Esta súbita exaltação pode ser atribuída à penetraçãodaquele astro em uma espécie de nebulosa. Nosso sol,também ele, caminha com grande velocidade e poderiamuito bem oferecer-nos um encontro desse gênero. Elepoderá, igualmente, explodir pela dissociação <strong>do</strong>sátomos, sob a pressão formidável reinante no interior <strong>do</strong>astro. Poderíamos, então, morrer de calor ou de sede.A Terra se reduziria a deserto ári<strong>do</strong> e ardente a brevetrecho, com uma atmosf<strong>era</strong> de fornalha irrespirável.


- Confessemos - disse a sorrir o Presidente - que aNatureza nos ameaça com muitos gêneros de morte...- Senhores! - ergueu-se o Diretor <strong>do</strong> Observatório deParis - Permitis que resuma, em poucas palavras, todasas dissertações interessantíssimas aqui ouvidas sobre ograndioso tema em apreço?Segun<strong>do</strong> o que acabamos de ouvir, nosso planeta,para morrer, não terá outra dificuldade senão a deescolher o gênero de morte. Eu não creio, mais que hápouco, no perigo deste cometa. Preciso é, porém,confessar que, <strong>do</strong> só ponto de vista astronômico, nossomísero globo errante está exposto a muitas surpresas. Acriança nascida neste mun<strong>do</strong>, homem ou mulher, podecomparar-se a um indivíduo coloca<strong>do</strong> à entrada de um arua estreitissima, no estilo das <strong>do</strong> século XVI, ladeada deprédios, ten<strong>do</strong> em cada janela um caça<strong>do</strong>r muni<strong>do</strong> dessesbelos fuzis <strong>do</strong> último século. O indivíduo tem,iniludìvelmente, de percorrer toda a rua e evitar afuzilaria cerrada contra ele, de ponta a ponta. Todas asenfermidades nos molestam e ameaçam: dentição,convulsões, coqueluche, crupe, varíola, meningite,cataporas, influenza, escarlatina, pneumonia, enterite,aneurisma, tuberculose, câncer, apoplexia, esclerose, etc.Quero omitir outras ainda, que os meus caros ouvintesnão terão dificuldade em juntar à lista. Chegará o nossomal aventura<strong>do</strong> transeunte são e salvo à outra ponta nempor isso, deixará de morrer.Que assim seja e nem por isto deixará de morrer.Assim prossegue a nossa Terra em sua rota solitária,com velocidade superior a cem mil quilômetros horários,arrastada pelo Sol, bem como as suas irmãs, para a


constelação de Hércules. Resumin<strong>do</strong> o que aqui se há ditoe lembran<strong>do</strong> o que porventura se tenha esqueci<strong>do</strong>, direique podemos encontrar um cometa dez ou vinte vezesmais volumoso que o planeta e composto de gasesdeletérios, capazes de envenenar a nossa atmosf<strong>era</strong>. Podeencontrar um enxame de uranólitos, que lhe causem oefeito de uma carga de chumbo num passarinho. Podeesbarrar, em sua trajetória, com uma bola invisível, maisou menos densa, e cujo choque baste para reduzi -Ia aoesta<strong>do</strong> de vapor. Pode encontrar um sol que a devore,instantaneamente, qual maçã lançada a uma fornalha.Pode ser enredada num sistema de forças elétricas, quesejam como trave posta aos seus onze movimentos,capazes de fundi-la ou incendê-la como a um fio deplatina submeti<strong>do</strong> a corrente dupla. Pode perder ooxigênio que nos dá vida, pode estalar como a crat<strong>era</strong> deum vulcão, pode esventrar-se num abalo sísmico, podesubmergir em dilúvio mais universal que o último e pode,ao contrário, perder toda a água que representa oessencial elemento de sua organização vital; pode s<strong>era</strong>traída à passagem de outro corpo celeste que a destaque<strong>do</strong> Sol, arremessan<strong>do</strong>-a aos abismos gela<strong>do</strong>s <strong>do</strong> espaço;pode ser levada pelo próprio Sol, transmuda<strong>do</strong> emsatélite <strong>do</strong>utro Sol prepond<strong>era</strong>nte, engrena<strong>do</strong> ao sistemadas estrelas duplas. Pode perder, não apenas as últimasreservas de calor interno, que já não lhe atuam àsuperfície, como também o invólucro que lhe mantém atemp<strong>era</strong>tura vital. Pode, um belo dia, não ser maisiluminada, aquecida, fecundada por este Sol, obscureci<strong>do</strong>e resfria<strong>do</strong>, e pode, ao revés, acabar esturricada pordecuplicação subitânea <strong>do</strong> calor solar, tal como tem si<strong>do</strong>


observa<strong>do</strong> com as estrelas temporárias. Pode, pode...Mas, senhores, não esgotemos todas as causas acidentaisou patológicas, e deixemos a sua fácil enum<strong>era</strong>ção aocuida<strong>do</strong> <strong>do</strong>s senhores geólogos, meteorologistas, físicos,químicos, biologistas, médicos e mesmo veterinár ios,atento a que uma epidemia bem definida ou a invasão deum exército de micróbios suficientemente morbíficospoderiam bastar para destruir a Humanidade e asprincipais espécies animais e vegetais, sem por issocausar maior dano astronômico ao planeta propriamentedito.Repito, portanto, que o maior embaraço está naescolha. Fontenelle já dizia que toda a gente se preocupacom a morte, mas vai viven<strong>do</strong>. O mesmo se dará com onosso planeta. Não será este cometa que o vá matar.Compartilho a opinião da jovem calculista-chefe. Adiminuição <strong>do</strong> vapor da água em nossa atmof<strong>era</strong> há-depreceder a extinção <strong>do</strong> Sol, e a vida terrestre seextinguirão pela falta da água e pelo frio. Esse, o fim.No momento justo em que o ora<strong>do</strong>r assim falavaouviu-se como caída <strong>do</strong> teto uma voz estranha, queparecia provinda das profundezas <strong>do</strong> espaço... Mas,talvez convenha dar aqui uma explicaçãoOs observatórios instala<strong>do</strong>s nas mais altas montanhas<strong>do</strong> globo estavam, como vimos, telefônicamente liga<strong>do</strong>sao Observatório de Paris e os aparelho s receptorestransmitiam os despachos independente de fone acústico.O leitor lembra-se, de certo, que, no fim da precedentesessão, fora apresenta<strong>do</strong> um fonograma de Gaorisancaranuncian<strong>do</strong> uma mensagem fotofônica de Marte, portraduzir. Como a interpretaçã o desse <strong>do</strong>cumento não


tivesse chega<strong>do</strong> até à hora da segunda sessão, a Diretoriadas comunicações tinha posto o Instituo em contactodireto com o Observatório, instalan<strong>do</strong> um telefonoscópiono zimbório <strong>do</strong> edifício.Essa voz <strong>do</strong> Alto diziaOs astrônomos da cidade equatorial de Marteprevinem os terrícolas de que o cometa lhes chegarádiretamente, com a velocidade quas e igual ao duplo davelocidade orbitária de Marte. Movimento trans forma<strong>do</strong>em calor e este em eletricidade. Tempestade magnéticainterna. Afastar-se da Itália.A voz extinguiu-se no meio <strong>do</strong> mais absoluto silêncio,e <strong>do</strong> sobressalto de to<strong>do</strong>s os espíritos, exceto algunspoucos cépticos, dentre os quais um, redator de A críticaalegre, que se levantou de monóculo entala<strong>do</strong> no olhodireito, exclaman<strong>do</strong> com voz retumbante:Receio, veneráveis sábios, que o Instituto acabeburla<strong>do</strong> com uma boa farsa. Ninguém me convence deque os habitantes de Marte, da<strong>do</strong> que existam e nosmandem mensagens, conheçam a Itália pelo nome, Cápor mim, duvi<strong>do</strong> que eles tenham li<strong>do</strong> os Comentários deCésar ou a História <strong>do</strong>s papas, tanto mais quanto. . .Súbito, o ora<strong>do</strong>r que começava a arrojar -se numcurioso ditirambo, foi interrompi<strong>do</strong> pela extinção da luzelétrica. To<strong>do</strong> o salão mergulhou na treva, exceto umgrande retábulo luminoso, no teto. E logo a voz ajuntouquatro palavras: eis o despacho marciano. A seguir, estessinais na placa telefonoscópicaComo, assim no teto, o despacho só podia ser visto decabeça erguida, forçan<strong>do</strong> o observa<strong>do</strong>r à posiçãoincômoda, o Presidente tocou um botão e logo ocorreu


um contínuo com um projetor e um espelho, quepermitiram transportar os hieróglifos a uma telades<strong>do</strong>brada atrás da mesa presidencial. Destarte, to<strong>do</strong>stiv<strong>era</strong>m diante <strong>do</strong>s olhos e pud<strong>era</strong>m analisar, à vontade,o comunica<strong>do</strong> celeste. Análise fáci l, afinal, pois nada maissimples que essa leitura. A figura <strong>do</strong> cometa evidencia -sepor si mesma, a flexa indica o seu movimento na direçãode um corpo celeste, que, visto de Marte, oferece fases,mas, tem raios, qual uma estrela. Trata -se da Terra e émuito natural que os marcianos representem -na sob esseaspecto, visto que os seus olhos, forma<strong>do</strong>s em ambientemenos luminoso que o nosso, são um tanto mais sensíveise distinguem as fases da Terra, tanto mais quanto suaatmosf<strong>era</strong> é mais rarefeita e transparen te. Vê-se depois oglobo marciano <strong>do</strong> la<strong>do</strong> <strong>do</strong> Mar arenoso, o maiscaracterístico da sua geografia; e o traço que o atravessaindica, para o cometa, uma velocidade mais ou menosdupla da sua própria velocidade orbitária. As chamasindicam a transformação <strong>do</strong> movimento em calor. Aaurora boreal e os relâmpagos que se lhe seguem,representam a transformação em eletricidade. e em forçamagnética. Por fim, vê-se a bota italiana, naturalmenteapreciável à distância de Marte, , assinala<strong>do</strong> o pontoameaça<strong>do</strong>, segun<strong>do</strong> seus cálculos, por um <strong>do</strong>s elementosmais temíveis <strong>do</strong> núcleo cometário, enquanto as quatroflechas partin<strong>do</strong> <strong>do</strong>s pontos cardeais parecem traduzir oconselho para afastar-se da região ameaçada.A mensagem fotofônica, essa, <strong>era</strong> mais longa e maiscomplexa. Já es astrônomos de Gaorisancar haviamrecebi<strong>do</strong> outras e compreendi<strong>do</strong> que elas provinham deum centro intelectual e científico importantíssimo,


localiza<strong>do</strong> na zona equatorial, não longe da baía <strong>do</strong>Meridiano. Esta última mensagem <strong>era</strong> a mais grave eresumia a interpretação supra. 0 restante não foiretransmiti<strong>do</strong>, por mais sibilino e menos seguramentetraduzi<strong>do</strong>.O Presidente tocou a campainha. Competia -lhe, defato, uma peroração conclusiva de tu<strong>do</strong> o que fora dito.Senhores: o último comunica<strong>do</strong> de Gaorísancar vemimpressionar-vos, com razão. E' de presumir que osmarcianos estejam cientificamente mais adianta<strong>do</strong>s <strong>do</strong>que nós, o que aliás não constitui surpresa, visto seremmais velhos e nos levarem uma dianteira multissecularno des<strong>do</strong>bro <strong>do</strong> progresso. De resto, sua organizaçãopode ser mais perfeita, podem gozar de melhor vista, deaparelhos mais possantes e de faculdades intelectuaistranscendentes. Por nossa vez, constatamos aconformidade <strong>do</strong>s seus com os nossos cálculos, noconcernente ao encontro cometário, mas nota mo-los maisminudentes ao designarem o ponto exato onde o choqueserá violento. O conselho para afastar -se da Itália pode edeve ser segui<strong>do</strong> e vou já telefonar ao Papa, que,precisamente neste momento, reúne em Roma to<strong>do</strong>s osbispos católicos.A verdade é que nos vamos chocar com o cometa eainda não podemos prever as conseqüências daíresultantes. Mas, as maiores probabilidades apontamcomoção parcial e não um aniquilamento total. Semdúvida, o óxi<strong>do</strong> de carbono não permeará as camadas danossa atmosf<strong>era</strong> respirável. Haverá, todavia, enormedesenvolvimento de calor.


Quanto ao fim real <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, das hipóteses que nospermitem pressagiá-lo desde já, a mais provável é aa<strong>do</strong>tada pelo Sr. Diretor <strong>do</strong> Observatório. De um la<strong>do</strong>,nossa vida planetária depende da irradia ção solar e,enquanto o Sol brilhar, a Humanidade pode julgar -semais ou menos garantida. Por outro la<strong>do</strong>, o retraimentoda atmosf<strong>era</strong> e a diminuição <strong>do</strong> vapor da águaacarretarão previamente, talvez, o reina<strong>do</strong> dacongelação. No primeiro caso, teríamos ainda umatrintena de milhões de anos para viver; e, no segun<strong>do</strong>,uma dezena apenas. Será, pois, pelo frio que o mun<strong>do</strong> há -de acabar.Esperemos, pois, sem maiores tribulações o próximo14 de Julho. De mim, aconselharia os que pudessem fazê -lo, a passarem estes dias críticos em Chicago, ou mesmomais longe, como em São Francisco, Honolulu,Noumeia... Os transatlânticos aéro -elétricos são assaznumerosos para transportar milhões de viajantes atésexta-feira à noite.Ajuntarei, concluin<strong>do</strong>, que não houve descui<strong>do</strong> deumas tantas precauções, como abertura de cavas, túneis,galerias. Havemos de sofrer, certo, terrível borrasca, quepoderá durar algumas horas e teremos de respirar,então, um ar bem sufocante. Mas, senhores, as vítimas(que as haverá muitas) sucumbirão princ ipalmente deme<strong>do</strong>. Tenhamos serenidade de ânimo, consideremos queo embate celeste também poderá resultar inócuo e nãodurará senão algumas horas, que hão -de passar fugidias,deixan<strong>do</strong>-nos viver, como até aqui, à luz deste bom sol daNatureza.


CAPITULO VO Concílio <strong>do</strong> VaticanoPorque haverá então grande aflição qual nunca houvedesde o principio <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> até agora.MATEUS, XXIV, 21.Enquanto se discutia em Paris, assembléias idênticasse haviam congrega<strong>do</strong> em Londres, Chicago,Petersburgo, Yokoama, Melbourne, New-York e cidadesoutras importantes, esforçan<strong>do</strong>-se, cada qual com suasluzes, por solucionar o magno problema que empolgava aHumanidade inteira. Em Oxford notadamente, a igrejareformada agregava um síno<strong>do</strong> teológico no qual astradições e interpretações religiosas <strong>era</strong>m assazcontrovertidas. Interminável, a tarefa de aqui historiar,mesmo sucintamente, o resulta<strong>do</strong> desses congressos. Nãopodemos, contu<strong>do</strong>, deixar sem comentário o <strong>do</strong> Vaticano,como o mais importante <strong>do</strong> ponto de vista religioso, qualo de Paris <strong>do</strong> ponto de vista científico.Um concílio ecumênico de to<strong>do</strong>s os bispos fora, haviamuito, convoca<strong>do</strong> pelo Pontífice Pio XVIII, a fim de votarum novo artigo de fé, corroboran<strong>do</strong> e completan<strong>do</strong> o dainfalibilidade Papal, vota<strong>do</strong> em 1870, bem como tr êsoutros supervenientes. Desta vez, cogitava -se dadivindade <strong>do</strong> papa. A alma <strong>do</strong> pontífice romano, eleito


pelo conclave sob a inspiração direta <strong>do</strong> Espírito -Santo,deveria ser declarada como partícipe <strong>do</strong>s atributos <strong>do</strong>Eterno, não poderia falir, desde o iníc io <strong>do</strong> respectivomandato, não somente nas decisões teológicas ex -cathedra, como em to<strong>do</strong>s os assuntos humanos, epertencer, de pleno direito, à imortalidade paradisíaca<strong>do</strong>s santos que rodeiam de perto o trono de Deus,compartilhan<strong>do</strong> da sua glória. Um certo número deprela<strong>do</strong>s modernos não consid<strong>era</strong>va, é verdade, a religiãosenão em função <strong>do</strong> papel que pode representar na obrada civilização. Entretanto, os pontífices da velha escolaainda admitiam sinc<strong>era</strong>mente a Revelação e os últimospapas se haviam mostra<strong>do</strong> verdadeiros padrões desabe<strong>do</strong>ria, de virtude e santidade.O concílio antecipara-se de um mês, devi<strong>do</strong> aoadvento cometário, pois se esp<strong>era</strong>va que a soluçãoteológica iluminasse e acalmasse os fiéis sobressalta<strong>do</strong>s,levan<strong>do</strong>-lhes quiçá uma perfeita tranquilida de espiritual.Não nos preocupam aqui os trabalhos conciliares,pertinentes ao novo artigo de fé. Diremos tão só que foivota<strong>do</strong> por grande maioria, ou seja 451 por 86. Tambémfoi muito nota<strong>do</strong> o voto negativo de quatro cardeais,vinte cinco arcebispos ou bispos franceses. Entretanto, amaioria tinha força de lei e, ao ser proclama<strong>do</strong> o <strong>do</strong>gmada divindade Papal, viram-se quatrocentos e cinqüenta eum prela<strong>do</strong>s ajoelharem-se junto <strong>do</strong> trono pontifício, ema<strong>do</strong>ração ao Divino Pai - expressão esta que, de há muito,substituíra a de Santo Padre.Nos primeiros séculos <strong>do</strong> Cristianismo, o títulohonorífico da<strong>do</strong> ao Papa <strong>era</strong> o de Vosso Apostola<strong>do</strong>,substituí<strong>do</strong> mais tarde por Vossa Santidade. Agora,


dever-se-ia dizer - Vossa Divindade. A ascensão <strong>do</strong> títuloatingira o zênite.O concílio subdividira-se em umas tantas secções oucomissões de estu<strong>do</strong>s e a tese já muitas vezes agitada, <strong>do</strong>fim <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, fêz-se objeto exclusivo de uma comissão.Nosso dever é reproduzir aqui, tão exatamente quantopossível, o aspecto da principal sess ão consagrada aoassunto.O patriarca de Jerusalém, criatura sumamentepie<strong>do</strong>sa e profundamente crente, foi o primeiro a pedir apalavra. Falou em latim, mas aqui têm a tradução fiel <strong>do</strong>seu discurso:Veneráveis Padres, penso não poder agir maissabiamente <strong>do</strong> que abrin<strong>do</strong> p<strong>era</strong>nte vós os santosEvangelhos. Peço permissão para ler textualmentePortanto, quan<strong>do</strong> virdes a abominação <strong>do</strong>assolamento, de que foi dito por Daniel o Profeta, queestá no lugar santo, quem lê advirta. Então os queestiverem na Judéia, fujam para os montes. O que estiversobre o telha<strong>do</strong> não desça a tomar alguma coisa de suacasa. E o que estiver no campo não torne atrás a tomarseus vesti<strong>do</strong>s. Mas ai das prenhas e das que criaremnaqueles dias! Orai, porém, que vossa fugida nãoaconteça em inverno, nem em sába<strong>do</strong>. Porque haveráentão grande aflição, qual nunca houve desde o princípio<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> até agora, 'nem tão-pouco haverá. E se aquelesdias não fossem abrevia<strong>do</strong>s, nenhuma carne se salvaria;mas, por causa <strong>do</strong>s escolhi<strong>do</strong>s, serão abrevia<strong>do</strong>s aque lesdias. Porque como o relâmpago, que sai <strong>do</strong> Oriente eaparece até o Ocidente, assim será também a vinda <strong>do</strong>Filho <strong>do</strong> homem. E logo depois da aflição daqueles dias o


Sol se escurecerá, a Lua não dará seu resplen<strong>do</strong>r e asestrelas cairão <strong>do</strong> céu e as forças d os céus se comoverão.Então aparecerá no céu o sinal <strong>do</strong> Filho <strong>do</strong> homem; todasas tribos da terra lamentarão e verão o Filho <strong>do</strong> homem,que irem sobre as nuvens <strong>do</strong> céu com grande potência eglória. (Mateus XXVI) .Tais são, veneráveis irmãos, as palavras de Jesus-Cristo.E o Senhor não se descui<strong>do</strong>u de acrescentar:Em verdade vos digo, que alguns há <strong>do</strong>s que aquiestão, que não experimentarão a morte, até, que nãovejam vir o Filho <strong>do</strong> homem em seu reino. (Mateus XVI,28). Em verdade vos digo, que esta g<strong>era</strong>ção não passará,até que todas estas coisas não aconteçam. (Marcos XIII,30).Palavras são estas, textualmente respigadas <strong>do</strong>Evangelho, e vós sabeis que, sobre este ponto, osevangelistas são unânimes. Sabeis também,reverendíssimos Padres, que o Apocalipse de S. Joãoexpõe, em termos ainda mais trágicos, a grandecatástrofe final. Mas, to<strong>do</strong>s vós conheceis lit<strong>era</strong>lmente assantas Escrituras e ocioso seria, senão irreverente,p<strong>era</strong>nte vós, acumular citações que tendes na ponta dalíngua, por assim dizer.Este o exórdio <strong>do</strong> Patriarca de Jerusalém. Ele dividiuem três partes o seu discurso, a saber: 1.°, a palavra deJesus-Cristo; 2.°, a tradição evangélica; 3.°, o <strong>do</strong>gma daressurreição da carne no dia <strong>do</strong> juízo final. Inicia<strong>do</strong> emmoldes de exposição histórica, esse disc urso não tar<strong>do</strong>u atransformar-se numa espécie de amplíssimo sermão, equan<strong>do</strong> o ora<strong>do</strong>r, depois de citar S. Paulo, Clemente de


Alexandria, Tertuliano, Orígenes, chegou ao concílio deNicéia e ao <strong>do</strong>gma da ressurreição universal, deixou -seempolgar pelo assunto com tal eloqüência que abalouprofundamente toda a conspícua assembléia. Váriosbispos, já um tanto descrentes, sentiram -se toca<strong>do</strong>s pelafé apostólica <strong>do</strong>s primeiros séculos. Importa dizer que ocenário <strong>do</strong> sodalício prestava-se maravilhosamente aoassunto. Nem mais nem menos que a capela Cistina. Oimenso e grandioso painel de Miguel Ângelo ostentava-se,qual novo céu apocalíptico, diante de todas as vistas. Oformidável amontoa<strong>do</strong> de corpos, braços e pernas emcontorções violentas e bizarras; o Cristo fulm inante, osréprobos arrasta<strong>do</strong>s por demônios de face bestial, mortosa surgirem <strong>do</strong>s túmulos, esqueletos a revestir-se de carne,o estupor da Humanidade trêmula ante a cól<strong>era</strong> divina,to<strong>do</strong> esse conjunto parecia dar realidade viva aos troposeloqüentes <strong>do</strong> patriarca. Momentos havia em que, devi<strong>do</strong>talvez a efeitos de luz, as trombetas pareciam mover eavançar e timbrar, longinquamente, o celestial apelo.Logo que o Patriarca terminou, um bispoindependente e <strong>do</strong> número <strong>do</strong>s mais turbulentos edissidentes <strong>do</strong> concílio, o sábio Mayerstross, precipitou -separa a tribuna e entrou a clamar que <strong>era</strong> preciso nadatomar à letra nos Evangelhos, como nas tradições daIgreja, e mesmo nos <strong>do</strong>gmas.A letra mata - insistia - e o espírito vivifica! Tu<strong>do</strong> setransforma e obedece à lei <strong>do</strong> progresso. O mun<strong>do</strong>caminha. Os cristãos esclareci<strong>do</strong>s já não podem admitir aressurreição <strong>do</strong> corpo nem o retorno de Jesus num trononubívago, tanto quanto o juízo final. Todas estas imagens<strong>era</strong>m boas para a Igreja das catacumbas! Há muito que


ninguém acredita nisso. São idéias anti-científicas e vós,reveren<strong>do</strong>s Padres, tanto quanto eu, sabeis que agoraprecisamos estar acordes com a Ciência, que deixou deser, qual ao tempo de Galileu, a humilde serva dateologia: Theologiae humilis ancilla. Os corpos nã opodem mesmo reconstituir-se, nem por milagre, atento aque as moléculas voltam à natureza e pertencemsucessivamente a inúmeros seres, vegetais, animais,humanos. Nós somos forma<strong>do</strong>s da poeira <strong>do</strong>s mortos e,no futuro, as moléculas de oxigênio, hidrogênio, azoto,carbono, fósforo, enxofre, ferro, que constituem a vossacarne e os vossos ossos, serão incorporadas noutrosorganismos, humanos ou brutos. Mesmo em vida, há umapermuta perpétua. Morre uma criatura humana porsegun<strong>do</strong>, ou seja mais de oitenta e sei s mil por dia, maisde trinta milhões por ano, mais de três bilhões por século.Cem séculos - e isso não é muito para a história de umplaneta - cem séculos dariam apenas trezentos bilhões deressuscita<strong>do</strong>s. Ora, a humanidade terrena não tem vivi<strong>do</strong>menos de cem mil anos - e ninguém aqui ignora que osperío<strong>do</strong>s geológicos e astronômicos se aferem por milhõesde anos - pelo que, deveria ela, a Terra, fornecer ao Juízofinal, tanto como a bagatela de muitos bilhões de homens,mulheres e crianças ressuscita<strong>do</strong>s. M inha avaliação épouco menos que modesta, pois não abrange o acréscimosecular da população terrestre. Vós podereis objetar -meque só os cristãos ressuscitarão... Mas, que será feito <strong>do</strong>soutros? Dois pesos e duas medidas! A morte e a vida! Anoite e o dia! O preto e o branco!A injustiça divina e a bem-aventurança reinan<strong>do</strong> nacriação! Mas, não; não aceitais esta solução. A lei eterna


é a mesma para to<strong>do</strong>s. Pois bem! esses milhares demilhões de ressuscita<strong>do</strong>s onde os enfurnareis? Mostrai -me um vale de Josafá capaz de conter to<strong>do</strong>s... Sereiscapazes de os acomodar a to<strong>do</strong>s nesta nossa bola?Podereis suprimir os oceanos e os gelos polares?Envolvereis a Terra em floresta de corpos humanos?Admitamo-lo! Mas, como hão-de ver os antípodas achegada <strong>do</strong> Homem-Deus ? Será que ele vai contornar omun<strong>do</strong>? Quero crer que sim... Mas, depois? Que vai serde toda a imensa população? Eleitos para o céu, dana<strong>do</strong>spara o inferno... Muito bem, mas... onde o céu, onde oinferno? Dificuldades sobre dificuldades, absur<strong>do</strong>s porabsur<strong>do</strong>s. Não, veneráveis colegas, nossas crenças nãodevem, não podem mais ser tomadas à letra. Quis<strong>era</strong> euque aqui não houvesse mais teólogos de olhardesdenhoso, ensimesma<strong>do</strong>s, mas, astrônomos de olhosabertos para fora e para longe! -Essas palavras foram profer idas no meio deindescritível tumulto. Tentaram, mais de uma vez, sustaro discurso <strong>do</strong> bispo croata, ameaçan<strong>do</strong> -o de punhosfecha<strong>do</strong>s e apodan<strong>do</strong>-o de cismático. Contu<strong>do</strong>, oregulamento conciliar assegurava -lhe a liberdade deconsciência e a discussão foi mant ida até ao fim. Umcardeal irlandês surgiu a invocar para o dissidente acondenação da Igreja, a falar de ex -comunhão eanátema. Viu-se, então, assomar à tribuna um <strong>do</strong>smaiores prela<strong>do</strong>s da Igreja anglicana - o arcebispo deParis - declaran<strong>do</strong> que o <strong>do</strong>gma da ressurreição podia serventila<strong>do</strong> sem incidir em reprovação canônica. Quepoderiam conciliar-se à razão e a fé. Ao seu ver, poder -


se-ia admitir o <strong>do</strong>gma, embora reconhecen<strong>do</strong>racionalmente impossível a ressurreição <strong>do</strong> corpo!O Doutor Angélico - disse referin<strong>do</strong>-se a S. Tomás -assegurava que a completa dissolução de to<strong>do</strong>s os corposhumanos se daria pelo fogo, antes da ressurreição. (Sumateológica III).Aditarei de bom gra<strong>do</strong>, com D. Calmet (Dissertaçãosobre a ressurreição <strong>do</strong>s mortos) que, para a onipotênciadivina, não será impossível reunir as moléculas dispersas,de forma que, no corpo ressuscita<strong>do</strong>, não falte uma sódas que lhe hajam pertenci<strong>do</strong> na vida perecível.Entretanto, não se faz preciso semelhante milagre. Opróprio S. Tomás mostrou (loco citato) que estaidentidade completa da matéria não se torna, emqualquer maneira, indispensável para estabelecer aperfeita identidade <strong>do</strong> corpo ressuscita<strong>do</strong> com o corpodestruí<strong>do</strong> pela morte. Certo, não esposo as idéias umtanto subversivas, <strong>do</strong> nosso honorável colega; mas pensocom ele que o espírito deve sobrepor -se à letra.Qual o princípio da identidade <strong>do</strong>s corpos vivos?Seguramente, não consiste na identidade completa, epersistente, da matéria corporal. De fato, no fluxocontínuo e na renovação constante que const ituem o jogoda vida fisiológica, os materiais que pertenc<strong>era</strong>msucessivamente a um corpo humano, da infância àvelhice, dariam para fazer uma estátua colossal. Nestatorrente vital, os materiais passam e mudamconstantemente. O organismo, porém, é sempre o mesmo,apesar das modificações de volume, forma e constituiçãoíntima. O broto flébil <strong>do</strong> carvalho, oculto entre duascotiledôneas, teria deixa<strong>do</strong> de ser o mesmo vegetal


quan<strong>do</strong> culmina em fronde majestosa? O embrião dalarva, ainda no óvulo, deixaria de ser o mesmo insetotransforman<strong>do</strong>-se em lagarta, crisálida, borboleta?Deixará o feto humano de ser o mesmo indivíduo em setornan<strong>do</strong> criança, adulto, ancião? Ninguém o dirá.Restará no carvalho, na falena, no homem, uma sómolécula <strong>do</strong> broto, da larva embrionár ia, <strong>do</strong> feto? Qual,pois, o princípio subsistente a todas essas mudanças? Eserá ele algo de real, que não imaginário? Certo que sim.Não será a alma, porque as plantas vivem e não têmalma, no senti<strong>do</strong> que incumbe dar à palavra. Mas é,todavia, um agente imponderável. Sobrevivente aocorpo? E' possível. . . Assim pensava S. Gregório deNisse. Se ficar liga<strong>do</strong> à alma, pode ser chama<strong>do</strong> a dar -lheum novo corpo, idêntico ao dissolvi<strong>do</strong> com a morte, aindamesmo que esse corpo não possuísse uma só molécula odas que retiv<strong>era</strong> em qualquer fase da vida terrena. Nãodeixará, por isso, de ser um corpo nosso, tanto quanto oque investimos aos cinco, quinze ou sessenta anos. Talcorpo concorda perfeitamente com as santas Escriturasquan<strong>do</strong> afirmam que, depois de uma vida sep arada <strong>do</strong>corpo, as almas o retomarão no fim <strong>do</strong>s tempos, e parasempre.Permiti que, a S. Gregório de Nisse, acrescente umgrande filósofo, Leibnitz, que opinava ser imponderável,mas não incorpóreo, o princípio da vida fisiológica,fican<strong>do</strong> a ele unida a alma, após separar-se <strong>do</strong> corpovisível e ponderável. Não preten<strong>do</strong> aqui aceitar nemrecusar esta, hipótese. Noto, apenas, que ela se presta aexplicar o <strong>do</strong>gma da ressurreição, no qual to<strong>do</strong> cristãodeve crer sem nenhuma dúvida.


- Esta tentativa de conciliação entre a fé e a razão -adverte o bispo croata - é digna de elogios, conquanto seme afigure mais engenhosa que aceitável. Essespresumi<strong>do</strong>s corpos assemelhar-se-ão aos nossos? Se,perfeitos, incorruptíveis, apropria<strong>do</strong>s a novo regime, nãodevem possuir órgãos quaisquer, sem finalidade prática.Para que uma boca, se não precisam alimentar -se?Porque pernas, sem necessidade de caminhar? Braçospara quê, se não há trabalho? Um <strong>do</strong>s nossos ancestrais,Orígenes, cujo sacrifício pessoal jamais foi esqueci<strong>do</strong>,conjeturou esses corpos como perfeitas bolas. Serialógico, tal, mas não belo nem interessante.E' preferível admitir com S. Gregório e San toAgostinho - intermite o arcebispo de Paris - que oscorpos ressuscitem sob a forma humana, véutransparente da beleza humana.Assim o cardeal francês resumiu a moderna opiniãoda Igreja, no concernente à ressurreição da carne.Quanto às objeções de local, número de ressuscita<strong>do</strong>s,exigüidade de espaço, fixação definitiva de eleitos econdena<strong>do</strong>s, foi impossível chegar a um aco r<strong>do</strong>, devi<strong>do</strong> àscontradições insolúveis.Cumpre-nos, todavia, assinalar a idéia assaz originalde um prega<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Oratório, candidato à púrpura, deque o mun<strong>do</strong> destina<strong>do</strong> a receber os ressuscita<strong>do</strong>s há -deser um enorme globo oco ilumina<strong>do</strong> no centro por um solinexaurível e habita<strong>do</strong> na face interior. Destarte, dizia,fica resolvi<strong>do</strong> o problema <strong>do</strong> dia perene da vida futura.A impressão subsistente em to<strong>do</strong>s os espíritos <strong>era</strong> a deque, apesar de todas as proposições, também nesseparticular deviam consid<strong>era</strong>r as coisa s figuradamente ;


que, nem o céu nem o inferno <strong>do</strong>s teólogos correspondema lugares precisos, antes correspondem a esta<strong>do</strong>s dealma, de bem ou de mal-estar, e que a vida eterna, dequalquer forma, poderá e deverão completar-se nosinumeráveis orbes que povoam o espaço infinito.Dir-se-ia, então, que o pensamento cristão se haviagradualmente transforma<strong>do</strong>, nos espíritos esclareci<strong>do</strong>s,de acor<strong>do</strong> com a astronomia e demais ciências.Sem embargo, o Papa e a maior parte <strong>do</strong>s Cardeaismantinham-se estrita e absolutamente aferra<strong>do</strong>s àsvelhas crenças e <strong>do</strong>gmas, decreta<strong>do</strong>s e sanciona<strong>do</strong>s deprístinos tempos.Do cometa, pouco cogitaram e, contu<strong>do</strong>, o Papatelefonou a todas as dioceses <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, recomendan<strong>do</strong>preces públicas para aplacar a cól<strong>era</strong> divina e desviar dacristandade o braço <strong>do</strong> Sob<strong>era</strong>no Juiz. Fonógrafosadequa<strong>do</strong>s fiz<strong>era</strong>m audível em todas as igrejas a palavra<strong>do</strong> Pontífice.Esta sessão realizara-se terça-feira, à noite, isto é, nodia imediato às duas verificadas em Paris. O Divino Paitinha transmiti<strong>do</strong> o aviso <strong>do</strong> Presi dente <strong>do</strong> Instituto paraque se afastassem da Itália na data crítica, mas ninguémlhe d<strong>era</strong> maior atenção; primeiro, porque a morterepresenta, para os crentes, uma libertação e, segun<strong>do</strong>,porque a maioria <strong>do</strong>s teólogos contestava a existência dehabitantes em Marte. Finalmente, porque um concílio debispos, presidi<strong>do</strong> pelo Divino Papa, não poderia parecertemeroso e devia guardar alguma confiança na eficáciada prece, na elevação das almas ao Deus onipotente, quesenhoreia e dirige os corpos celestes.


CAPITULO VIA crença no fim <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> através <strong>do</strong>s temposJed vies dana la nuée un clairon monstrueux.Et ce clairon semblait, au seuil profond des cieux.Calme, attendre le souffle Smmense de 1'Archange.VICTOR HUMO, La Trompette du dugement.Importa fazer aqui ligeira pausa no turbilhão <strong>do</strong>sacontecimentos que nos empolgam, a fim de compararesta nova expectativa <strong>do</strong> fim <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> a todas asprecedentes, bosquejan<strong>do</strong> a traços rápi<strong>do</strong>s a históriacuriosa desse evento, através de to<strong>do</strong>s os tempos. Deresto, no mun<strong>do</strong> inteiro, em todas as línguas, não sefalava, agora, de outra coisa.Os discursos <strong>do</strong>s eminentes sacer<strong>do</strong>tes prosseguiramna capela Sistina e desfecharam na interpretaçãoresumida pelo cardeal arcebispo de Paris, quanto ao<strong>do</strong>gma - Cre<strong>do</strong> resurrectionem carris. O sequente etvitam ceternam ficara tacitamente relega<strong>do</strong> à perspicácia<strong>do</strong>s futuros astrônomos e psicólogos. Esses discursoshavia, de algum mo<strong>do</strong>, historia<strong>do</strong> a <strong>do</strong>utrina cristã <strong>do</strong>fim <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, em to<strong>do</strong>s os tempos. Estu<strong>do</strong> curioso, porisso que representa ao mesmo tempo a história <strong>do</strong>pensamento humano, em face <strong>do</strong> seu próprio e definitivodestino. Julgamos, assim, 'dever aqui expô -lo em capituloespecial. Deixamos por instantes o papel de narra<strong>do</strong>r <strong>do</strong>


século XXV, para regressar à nossa época e resumir acrença <strong>do</strong>s tempos anteriores.Séculos houve, de fé ardente e profunda, nos quais -importa consid<strong>era</strong>r -, fora da <strong>do</strong>utrina cristã, todas asreligiões abriram a mesma porta para o desconheci<strong>do</strong>, noextremo limite da jornada terrena. E' a porta <strong>do</strong> Dantena Divina Comédia, posto que todas não- houvessemimagina<strong>do</strong>, para além dessa porta simbólica, o paraíso, oinferno e o purgatório <strong>do</strong>s cristãos.Zoroastro e o Zendavestá ensinavam que o mun<strong>do</strong>devia perecer de ignição. A mesma idéia se encontra naepístola de S. Pedro. Parecia que as tradições de Noé e <strong>do</strong>Deucalião indicavam uma primeira destruição pela águae a segunda pelo elemento contrário.Entre os Romanos, Lucrécio, Cícero, Virgílio, Ovídio,têm a mesma linguagem e anunciam a destruição finalpelo fogo.No capítulo anterior, vimos que, no pensamento deJesus, a g<strong>era</strong>ção a que se dirigia não deveria morr<strong>era</strong>ntes da catástrofe anunciada. S. Paulo, o verdadeirofunda<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Cristianismo, apresenta a crença naressurreição e no próximo fim <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, como <strong>do</strong>gmafundamental da nova Igreja. E chega mesmo a repeti -looito ou nove vezes, em sua 1.` Epístola aos Coríntios. (4)Infelizmente para o profeta, os discípulos, aos quaisassegurara que não morreriam antes <strong>do</strong> advento,sucumbiram uns após outros, de morte comum. S. Paulo,que não conhec<strong>era</strong> pessoalmente a Jesus, mas que <strong>era</strong> omais ativo apóstolo da igreja nascente, acreditava vivesseele mesmo até o dia da grande aparição (4 ) . Contu<strong>do</strong>,


to<strong>do</strong>s falec<strong>era</strong>m e o predito fim <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, com a voltadefinitiva <strong>do</strong> Messias, não se realizou.Nem por isso a crença desapareceu. Deixava -se,apenas, de interpretar à letra a predição <strong>do</strong> Mestre, parabuscar-lhe o espírito. Contu<strong>do</strong>, não deixou de ser umgrande golpe na crença evangélica... Passaram aamortalhar pie<strong>do</strong>samente os mortos, a encerrá -los emsarcófagos, sobre os quais inscreviam epitáfios quediziam ali <strong>do</strong>rmirem eles até o dia da ressurreição. Jesusdeveria voltar breve, a fim de julgar os vivos e os mortos.A senha de identificação <strong>do</strong>s cristãos <strong>era</strong> Maranatha, quese traduz por -o Senhor virá.Os apóstolos Pedro e Paulo morr<strong>era</strong>m,provavelmente, no ano 64, durante a horrível carnificinaordenada por Nero, após o incêndio de Roma,engendra<strong>do</strong> por ele e depois atribuí<strong>do</strong> aos cristãos, paraensejar-se o gozo de novos suplícios. S. João escreveu oApocalipse em 69. Uma onda de sangue se espalha sob oreina<strong>do</strong> <strong>do</strong> verdugo. Dir-se-ia que o martírio <strong>era</strong> ogalardão da virtude. O Apocalipse parece escrito noâmbito da alucinação coletiva e prefigura em Nero oanticristo, precursor da volta <strong>do</strong> Messias. S urgem osprodígios de toda à parte: cometas, estrelas cadentes,chuva de sangue, monstros, tremores de terra, fome,peste e, sobretu<strong>do</strong>, a guerra <strong>do</strong>s Judeus e a queda deJerusalém. Nunca - poder-se-á talvez dizer - seacumularam tantos horrores em tão curto perío<strong>do</strong> deanos. (64 a 69).A pequena igreja de Jesus parecia estarcompletamente dispersada. Em Jerusalém foraimpossível permanecer. O Terror de 1793 e a Comuna de


1871 nada representam ao la<strong>do</strong> da guerra civil da Judéia.A família de Jesus teve de fugir da cidade santa. Jaques,irmão de Jesus, fora assassina<strong>do</strong>. Falsos profetas surgiampara que se completasse a profecia. O Vesúvio elaboravaa tremenda erupção de 79, e já em 63 a cidade dePompéia tinha si<strong>do</strong> abalada por um tremor de terra.Patentes estavam, pois, to<strong>do</strong>s os prenúncios <strong>do</strong> fim <strong>do</strong>mun<strong>do</strong>. O Apocalipse o confirma, Jesus vai repontarnum trono de nuvens, os mártires serão os primeiros aressuscitar. O anjo julga<strong>do</strong>r aguarda apenas a ordem deDeus.Mas, após a tempestade veio a bonança, terminou aguerra <strong>do</strong>s Judeus, o templo de Jerusalém não mais sereconstruirá, Nero sucumbe com a revolução de Galba,Vespasiano e Tito promovem a paz (ano 71) e... o mun<strong>do</strong>não acabou. Impôs-se, desde então, uma novainterpretação evangélica. O advento <strong>do</strong> Cristo foiprocrastina<strong>do</strong> para quan<strong>do</strong> se consumasse a derrocada<strong>do</strong> velho mun<strong>do</strong> romano, oferecen<strong>do</strong>, assim, tal ou qualmargem aos comenta<strong>do</strong>res. A catástrofe final permaneciacomo infalível, mesmo próxima, embora atufada denuvens imprecisas, que lhe tiram to<strong>do</strong> o senti<strong>do</strong> l it<strong>era</strong>l, emesmo espiritual, das profecias. Não obstante, continua -se a esp<strong>era</strong>r.Santo Agostinho consagra o XX capítulo de a Cidadede Deus (ano 426), a pintar a renovação <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, aressurreição, o juízo final e a Nova Jerusalém. O livroXXI reporta-se à descrição <strong>do</strong> fogo eterno. O bispo deCartago, diante <strong>do</strong> fracasso de Roma e <strong>do</strong> império,presume assistir ao primeiro ato <strong>do</strong> drama. Mas, o reinode Deus devia durar 1.000 anos, e Satanás só poderia


chegar depois. S. Gregório, bispo de Tours (573),primeiro historia<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s Francos, assim começa a suahistóriaNo momento em que retraço as lutas realengas comas nações inimigas, não resisto ao desejo de expor minhacrença. O terror produzi<strong>do</strong> pela perspectiva <strong>do</strong> próximofim <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> me levou a respigar nas crônic as o númerode anos já transcorri<strong>do</strong>s, por saber claramente quantosconta o começo <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.O Salva<strong>do</strong>r vi<strong>era</strong> santificar a Humanidade. Queesp<strong>era</strong>ria ela para transportá-la ao céu?A tradição cristã perpetuava-se de ano em ano, deséculo a século, apesar <strong>do</strong>s desmenti<strong>do</strong>s da Natureza.Qualquer catástrofe - tremor de terra, epidemia, fome,inundação; qualquer fenômeno - eclipse, cometa,furacão, tempestade, <strong>era</strong>m encara<strong>do</strong>s como sinaisprecursores <strong>do</strong> cataclismo final. Os cristãos tremiamquais folhas levadas pelo vento, na expectativa constante<strong>do</strong> julgamento decisivo, e os prega<strong>do</strong>res alimentavamesse místico temor das. almas tímidas.Passadas e constantemente renovadas as g<strong>era</strong>ções, foipreciso definir melhor o conceito da história universal.Fixou-se, então, o ano 1000 no espírito <strong>do</strong>s comenta<strong>do</strong>res.Várias seitas de milenários surgiram, apregoan<strong>do</strong> queJesus reinaria na Terra com os seus santos, durante 1000anos, antes que viesse o Juízo Final. Ireneu, Pápias, eSulpício Sevérus compartilhavam essa crença. Alguns aexag<strong>era</strong>ram, revestin<strong>do</strong>-a de matizes sensuais,anuncian<strong>do</strong> uma como espécie de bodas para uma <strong>era</strong> devoluptuosidade. Santo Agostinho e S. Jerônimocontribuíram bastante para o descrédito dessas teorias,


mas, sem atingir a crença <strong>do</strong>gmática da ressurreição . Oscomentários cio Apocalipse continuaram a florir entre asfraudes sombrias da idade média, e a opinião de que oano 1000 assinalaria o fim e o renovamento <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>tomou vulto, sobretu<strong>do</strong>, no décimo século.A idéia de finamento <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> tornou -se, senãouniversal, muito gen<strong>era</strong>lizada. Diversas cartas dessaépoca, assim começam: - Termino mun<strong>do</strong> aproximan<strong>do</strong>seo fim <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>... Em que pese a alguns contraditores,parece-nos difícil não compartilhar a opinião <strong>do</strong>shistoria<strong>do</strong>res, notadamente Michelet, Henri Martin ,Guizot e Dury, a respeito da gen<strong>era</strong>lidade dessa crençano seio da cristandade. Sem dúvida, não é crível q ue omonge francês Gerbert, então papa Silvestre II, ou o reiRoberto de França, hajam pauta<strong>do</strong> a vida por essacrença; mas, a verdade é que ela não d eixara de penetrarfun<strong>do</strong> as consciências timoratas, e que a seguintepassagem apocalíptica <strong>era</strong> o tema de freqüentes sermões:Ao fim de 1000 anos, o demônio se libertará da suaprisão e seduzirá as gentes que estão nos quatro ângulosda Terra... O livro da vida será aberto, o mar restituiráos que tragou; o abismo infernal golfará seus mortos ecada qual será julga<strong>do</strong> segun<strong>do</strong> suas obras, por Aqueleque está assenta<strong>do</strong> no trono resplandecente... E haveráum novo céu e uma nova terra.Bernar<strong>do</strong>, um eremita da Tur íngia, haviaprecisamente elegi<strong>do</strong> para tema de suas prédicas essaspalavras enigmáticas <strong>do</strong> Apocalipse e, no ano 960,anunciava de público o fim <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Foi ele, de fato,um <strong>do</strong>s mais ativos arautos da profe cia, chegan<strong>do</strong> até afixar a sua data, que seria a em que coincidisse a da


Anunciação com a sexta-feira, o que aliás se verificou em992, à revelia de qualquer catástrofe.Druthmare, outro monge de Corbie, anunciounovamente a destruição <strong>do</strong> globo para 25 de Março <strong>do</strong>ano 1000. O terror foi tanto que o povo de muitas cidadesprocurou refugiar-se nas igrejas, ali permanecen<strong>do</strong> atémeia noite, na expectativa <strong>do</strong> juízo final, por morrer aospés da cruz.E' dessa época que datam inúm<strong>era</strong>s <strong>do</strong>ações. Todagente legava terras e bens aos mosteiros, que tu<strong>do</strong>aceitavam, apregoan<strong>do</strong>, embora, o fim <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Resta -nos, a esse respeito, uma crônica autêntica e assazcuriosa, escrita pelo monge Raul Glaber, no ano 1000.Diz ela em suas primeiras páginas: Satanás não tardará aser solto, de acor<strong>do</strong> com a profecia de João, visto q ue osmil anos estão passa<strong>do</strong>s. E desses anos que nos vamosocupar.O fim <strong>do</strong> décimo e começo <strong>do</strong> undécimo séculosmarcam uma época verdadeiramente estranha, quãosinistra. De 980 a 1040, parece que o espectro da morteabriu as asas sobre a Terra. A peste e a fomeavassalaram toda a Europa. Temos, em primeiro lugar, omal de fogo, que calcinava as carnes e as fazia cair depodre. Esses flagela<strong>do</strong>s entupiam as estradas e iam, emperegrinação, sucumbir junto <strong>do</strong>s santuários, ali seacumulan<strong>do</strong> e saturan<strong>do</strong> a atmosfe ra de o<strong>do</strong>resnauseabun<strong>do</strong>s. Muitos jaziam insepultos, agarra<strong>do</strong>s àssantas relíquias. Essa peste horrorosa ceifou, só naAquitânia, mais de 40.000 pessoas e devastou to<strong>do</strong> o sulda França. Seguiu-se-lhe a fome. Voltara-se à barbárie.Os lobos deixavam as florestas e vinham disputar ao


homem o direito de vida. A invasão <strong>do</strong>s Húngaros,renovara de 910 a 945 os horrores de Atila. Depois, tantose combat<strong>era</strong> de castelo em castelo, de província emprovíncia; tamanha a devastação, que os camposdeixaram de ser cultiva<strong>do</strong>s. A chuva consecutiva de trêsanos impediu toda e qualquer semeadura. A terra deixoude produzir, aban<strong>do</strong>naram-na. O moio de trigo, diz RaulGlaber, elevou-se a sessenta sols de ouro. Os ricosemagrec<strong>era</strong>m e palec<strong>era</strong>m ; os pobres devoravam raízes enão poucos deixaram de incidir na antropofagia. Sim.Vagan<strong>do</strong> pelas estradas, os fortes subjugavam os fracos,espostejavam-nos e comiam-nos. Havia-os astutos, queengabelavam as crianças com um ovo, uma fruta, a fimde as devorar. Esse delírio chegou a tal ponto que oanimal tinha mais garantias que o homem. Filhosmatavam os pais, mães devoravam os filhos. E, como setratasse de coisa natural, de regime estabeleci<strong>do</strong>, houvequem se propusesse vender carne humana no merca<strong>do</strong> deTournous. Denuncia<strong>do</strong>, ele não negou o feito e foicondena<strong>do</strong> à fogueira. Outro houve, que, pilha<strong>do</strong> adesenterrar cadáveres, foi também queima<strong>do</strong>.Quem o diz é um coevo e muitas vezes umatestemunha.Morria-se de fome por toda à parte. Por toda a partecomiam répteis, animais imun<strong>do</strong>s, carne human a. Nafloresta de Mâcon, perto de uma igreja erigida a S. João,um assassino construíra uma cabana, aonde atraía eestrangulava viajantes e peregrinos. Um dia, um casalentrou nessa cabana a fim de repousar, notou as caveiraslá existentes, tentou fugir, mas o hospedeiro os deteve.Lutaram, venc<strong>era</strong>m o conten<strong>do</strong>r e, chega<strong>do</strong>s a Mâcon,


divulgaram a façanha. Uma escolta foi ao antro e lácontou quarenta e oito crânios human os! Captura<strong>do</strong> osicário, foi amarra<strong>do</strong> a uma trave sobre um monte depalha e assim queima<strong>do</strong> vivo. Raul Glaber viu o local e ascinzas da fogueira.Combates, assaltos, pilhagem, duelo, <strong>era</strong>m feitoscomuns e próprios da época. Os flagelos <strong>do</strong> céu tiv<strong>era</strong>m,no entanto, a virtude de abalar as consciências.Reuniram-se os bispos e logo obtiv<strong>era</strong>m a abste nção <strong>do</strong>sduelos em três dias da semana, de quarta -feira à noite àmanhã de sába<strong>do</strong>. Era o que chamavam - a tréguadivina. O fim <strong>do</strong> mísero mun<strong>do</strong> tornou -se, assim,esp<strong>era</strong>nça e terror desses tempos espantosos. Nadaobstante, o ano 1000 passou como os precedent es e omun<strong>do</strong> não se acabou. Ter-se-iam os profetas engana<strong>do</strong>mais uma vez? Ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> Jesus crucifica<strong>do</strong> aos 33 anos,não seria mais lógico estender o milênio ao ano de 1033?Era razoável. Esp<strong>era</strong>ram. Mas, justamente nesse ano1033 verificou-se, aos 29 de Junho, um grande eclipse <strong>do</strong>Sol.O Sol tomou a cor de açafrão, os homens entreviam -se páli<strong>do</strong>s, de uma palidez cadavérica; to<strong>do</strong>s os objetostinham um matiz esbranquiça<strong>do</strong>, o estupor <strong>era</strong> g<strong>era</strong>l eto<strong>do</strong>s aguardavam uma catástrofe iminente.E, contu<strong>do</strong>, não <strong>era</strong> ainda o fim <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. A essaépoca tão angustiada é que devemos a construção dessascatedrais que têm desafia<strong>do</strong> os séculos e desperta<strong>do</strong> aadmiração <strong>do</strong>s pósteros. Benefícios enormes foramprodigaliza<strong>do</strong>s ao clero, <strong>do</strong>ações e testamentoscontinuavam a enriquecê-lo. Houve, assim, uma espéciede nova aurora. Depois <strong>do</strong> ano 1000 - é ainda Raul


Glaber quem diz -, as basílicas foram restauradas emquase to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>, principalmente na Itália e nasGálias, posto que a maior parte delas ainda estivesse emboas condições. Os povos cristãos pareciam, contu<strong>do</strong>,rivalizar na magnificência <strong>do</strong>s seus templos. Dir -se-ia queo mun<strong>do</strong> inteiro, acorde num só pensamento, despira -se<strong>do</strong>s seus andrajos para vestir túnica branca.Os fiéis já não se contentavam de só reconstruir asigrejas episcopais; embelezavam também os mosteiros eaté capelas aldeães, votadas a diversos oragos.O fúnebre perío<strong>do</strong> <strong>do</strong> ano milenar havia reuni<strong>do</strong> noabismo <strong>do</strong> tempo os séculos transcorri<strong>do</strong>s. Entretanto,quantas tribulações a Igreja vinha atravessan<strong>do</strong>? Ospapas <strong>era</strong>m o joguete trágico <strong>do</strong>s imp<strong>era</strong><strong>do</strong>res saxões e<strong>do</strong>s príncipes <strong>do</strong> Lácio, em constante e belicosarivalidade. (6) Toda a cristandade estava em desordeminexprimível. A tormenta passara, mas, nem por isso, oproblema <strong>do</strong> fim <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> estava resolvi<strong>do</strong> e aexpectativa, por incerta e vaga, não desaparec<strong>era</strong>, tantomais quanto, a crença no demônio e nos prodígioshaveria de continuar por muitos séculos, na base mesmadas superstições populares. A cena <strong>do</strong> Juízo Final foiesculpida na porta de todas as catedrais e ningué mpenetrava em santuário cristão sem passar sob a balança<strong>do</strong> Anjo, à esquerda <strong>do</strong> qual, demônios e réprobos seestorciam em me<strong>do</strong>nhas convulsões, antes que fossemprecipita<strong>do</strong>s no fogo eterno.Mas, a idéia <strong>do</strong> fim <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> sobrepairava eultrapassava o círculo das igrejas. No século XII osastrólogos aterrorizaram a Europa anuncian<strong>do</strong> umaconjunção de to<strong>do</strong>s os planetas da constelação da


Balança, que se verificou, efetivamente, pois a 15 deSetembro de 1186 to<strong>do</strong>s os planetas se encontravamcompreendi<strong>do</strong>s entre 180 e 190 graus de longitude. Nãofoi, porém, ainda dessa vez, fim <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.Surgiu então o célebre alquimista Arnal<strong>do</strong> deVilanova a predizê-lo para 1335. Em 1406, no reina<strong>do</strong> deCarlos VI, um eclipse solar, aos 16 de Junho, acarretoupânico g<strong>era</strong>l, assim narra<strong>do</strong> por Juvenal de Ursinos:Causava dó ver o povo refugiar -se nas igrejas, crente deque o mun<strong>do</strong> ir. acabar.S. Vicente Ferrer escreveu em 1491 um trata<strong>do</strong> queintitulou: - Do fim <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e da ciência espiritual.Nessa obra, concede ele à cristandade tantos anosquantos os versículos <strong>do</strong> Saltério - 2537. Stoffler,astrólogo alemão, por sua vez, predisse para 1524 umdilúvio universal, conseqüente a uma conjugaçãoplanetária. Houve pânico g<strong>era</strong>l. Propriedades situadasnos vales, à beira-rio ou próximas <strong>do</strong> mar, foramvendidas aos menos crédulos, a preço vil. Ariol, <strong>do</strong>utorde Toulouse, man<strong>do</strong>u construir uma arca para si, famíliae amigos, e Bodin assegura que essa iniciativa não foiúnica. O número de cépticos não <strong>era</strong> grande. Ten<strong>do</strong> ochanceler de Carlos V consultad o Pedro Mártir,respondeu-lhe este que o mal não seria tão funestoquanto o presumiam, mas que de fato essas conjunçõesacarretavam grandes distúrbios. O dia fatídico chegou enunca se viu mês de Fevereiro tão seco! Entretanto,novos prognósticos se fiz<strong>era</strong>m para 1532, da autoria deJoão Carion, eleitor de Brandeburgo. Depois, foi oastrólogo Cipriano Leowitz, para 1584. Ainda aqui,tratava-se da conjunção de astros e... dilúvio. Um


contemporâneo, Luís Guyon, atesta que o terror foienorme, as igrejas <strong>era</strong>m insuficientes para abrigar asmultidões, muita gente fazia testamento sem cogitar dainutilidade <strong>do</strong> ato, de vez que to<strong>do</strong>s haveriam desucumbir. Outros <strong>do</strong>avam seus bens aos clérigos, naesp<strong>era</strong>nça de que estes, por suas preces, retardassem odia <strong>do</strong> Juízo. Em 1588, apareceu uma nova prediçãoastrológica, nestes termos apocalípticos:Após 1584 anos conta<strong>do</strong>s <strong>do</strong> parto da Virgem, ooitavo ano será um ano extraordinário, prenhe deterrores. Se, nesse ano terrível, o globo não for reduzi<strong>do</strong>à poeira, se, terra e mares não forem aniquila<strong>do</strong>s, to<strong>do</strong>sos impérios <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> serão arrasa<strong>do</strong>s, a aflição pesarásobre o gênero humano.Encontra-se em livros dessa época, notadame nte naCrônica <strong>do</strong>s Prodígios, de Conra<strong>do</strong> Lycosthenes (1557),uma quantidade verdadeiramente fantástica d e figuras edescrições características desse terrorismo medieval.Aqui têm os leitores alguns espécimes: - um cometa,solda<strong>do</strong>s ala<strong>do</strong>s, um combate celeste, tu<strong>do</strong> descrito comoperfeitamente visto por toda a gente. O cometa, diga -se,não está muito exag<strong>era</strong><strong>do</strong>; mas, quanto aos combatentescelestes, é força confessar que a imaginação tem bonsolhos. O célebre adivinho Nostradamus não podia deixarde figurar no grupo <strong>do</strong>s profetas astrológicos. A ele seatribui a seguinte quadrinha, que foi objeto de muitoscomentáriosQuan<strong>do</strong> Jorge a Deus crucificarE Marcos o ressuscitar,S. João tão logo o levaráE o fim <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> então virá.


O que quer dizer: quan<strong>do</strong> a Páscoa cair em 25 deAbril (festa de S. Marcos), a sexta -feira santa será a 23(festa de S. Jorge) e a festa de Corpus Christi recairá nodia 24 de Junho (S. João). A esta quadra não faltavamalícia, visto que, ao tempo de Nostradamus, faleci<strong>do</strong> em1566, o calendário não tinha si<strong>do</strong> reforma<strong>do</strong> (1582) (1), ea Páscoa não poderia cair, jamais, em 25 de Abril. Noséculo XVI, o 25 de Abril correspondia ao dia 15. Depoisda reforma gregoriana a Páscoa pode cair aos 25 deAbril: é a sua data extrema e o que se tem verifica<strong>do</strong> ehá-de verificar-se em 1666 - 1734 - 1886 - 1943 - 2038 -2190, etc.; sem que esta coincidência venha acarretar ofim <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.Conjunções planetárias, eclipses e cometas,. como quepartilhavam entre si o acervo <strong>do</strong>s presságios sinistros.Entre os cometas históricos, os mais memoráveis, desteponto de vista, são: os de Guilherme, o Conquista<strong>do</strong>r,apareci<strong>do</strong> em 1066 e representa<strong>do</strong> na tapeçaria da rainhaMatilde, em Bayeux; o de 1264, que, dizem, desapareceuna mesmo dia em que morreu o papa Urbano VI; o de1337, <strong>do</strong>s maiores e mais belos que se hão visto, e quepressagiou a morte de Frederico, rei da Sicília; o de 1399,que Juvenal <strong>do</strong>s Ursinos qualificou de sinal de grandesmales futuros; o de 1402, que associaram à morte de JoãoGaleas Visconti, duque de Milão; o de 1456, que lançou oterror em toda a cristandade, sob o pontifica<strong>do</strong> deCalixto III, durante a guerra turca, e o de 1472, queprecedeu a morte <strong>do</strong> irmão de Luís XI. Outros lhessuced<strong>era</strong>m, associa<strong>do</strong>s igualmente a guerras ecatástrofes, e, sobretu<strong>do</strong>, à idéia de aniquilamento final.O de 1527 é representa<strong>do</strong> por Ambrosio Paré e Simão


Goulart como constituída de cabeças decepadas, punhaise nuvens sangrentas. O de 1531 pareceu anunciar amorte de Luisa de Sabóia, mãe de Francisco I e aprincesa compartilhou <strong>do</strong> erro comum, a respeito damaleficência desses astros. Eis ai - disse fitan<strong>do</strong>-o <strong>do</strong> leito,através da janela - um aviso que não parece manda<strong>do</strong> apessoas de baixa condição. Deus no -lo manda para nosadvertir. Preparemo-nos para morrer. Mas, de to<strong>do</strong>s oscometas, o famoso, batiza<strong>do</strong> de Carlos V, terá si<strong>do</strong> o maisdigno de registo. Fora ele identifica<strong>do</strong> como o me smo de1624 e preanuncia<strong>do</strong> para 1848, não ten<strong>do</strong> porémreapareci<strong>do</strong>.Os cometas de 1577, 1607, 1652 e 1665, motivaramdiscussões intermináveis, cujo coletânea perfaz enormeacervo bibliográfico. Foi ao última destes cometas que orei Afonso VI de Portugal, colérico, man<strong>do</strong>u um tiro depistola, com as mais grotescas ameaças! Por ordem deLuís XIV, Pedro Petit publicou um manual contra osterrores quiméricos - e políticos - origina<strong>do</strong>s peloscometas. Desejava o grande rei ser único, sem rival,fulgurar sozinho - nec pluribus impar!Não admitia supusessem periclitante a glória eternada França, mesmo provinda de um fenômeno celeste.Um <strong>do</strong>s maiores cometas que aos terrícolas já foida<strong>do</strong> contemplar, foi certamente o de 1680, que objetivouos cálculos de Newton. Projetou-se – diz Lemonnier - emgrande velocidade, das profundezas <strong>do</strong> céu, parecen<strong>do</strong>cair perpendicularmente para o Sol, de onde o viramremontar com a mesma velocidade da queda.Observaram-no durante quatro meses, muito próximoesteve da Terra, e foi a ele qu e Whiston atribuiu o


dilúvio. Bayle publicou os seus curiosos Pensamentosendereça<strong>do</strong>s a um <strong>do</strong>utor da Sorbona, ao tempo <strong>do</strong>cometa, evidencian<strong>do</strong> a absurdeza das várias crenças, apropósito de sinais celestes. A Sra. Sevigné escrevia aoprimo, conde de Bussy - Rabutin: Estamos aquiobservan<strong>do</strong> um grande cometa com a mais bela dascaudas até agora vistas. Muita gente graúda estáalarmada, supon<strong>do</strong> que o céu se preocupa com ela eesteja, assim, prevenin<strong>do</strong>-a de que vai perecer. Dizemque o cardeal Mazarin foi desengana<strong>do</strong> pelos médicos eos seus cortesãos resolv<strong>era</strong>m, então, honrar -lhe a agoniacom um prodígio, anuncian<strong>do</strong>-lhe o aparecimento <strong>do</strong>cometa que tanto os intimidava. O cardeal riu -se deles eteve ânimo forte para lhes dizer que o cometa muito ohonrava com a sua visita. Na verdade, poderíamos comele repetir que também o orgulho humano se lisonjeia, nopressuposto de que haja grandes movimentos astrais,quan<strong>do</strong> agoniza um grande homem.Como se vê, os cometas estavam insensivelmenteperden<strong>do</strong> o seu prestígio. Todavia, lemos num trata<strong>do</strong> <strong>do</strong>astrônomo Bernouille esta anotação assaz extravagante:Se, o corpo cometário não é um sinal da cól<strong>era</strong> divina, acauda bem poderia sê-lo.O terror <strong>do</strong> fim <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> se associou ainda aocometa de 1773, houve pânico em toda a Europa, até emParis. Eis o que to<strong>do</strong>s poderão ler na s Memórias secretasde Bachaumont:6 de Maio de 1773. - Na última sessão pública daAcademia de Ciências, o Sr. Lalande devia ler ummemorial mais curioso que os precedentes, deixan<strong>do</strong>,contu<strong>do</strong>, de o fazer por falta de tempo. Tratava-se, nesse


estu<strong>do</strong>, <strong>do</strong>s cometas que podem, em se aproximan<strong>do</strong> daTerra, originar comoções; sobretu<strong>do</strong>, <strong>do</strong> que nos devevisitar nestes dezoito anos. Mas, afirman<strong>do</strong> embora nãoser o dito cometa <strong>do</strong> número <strong>do</strong>s capazes de maleficiar aTerra, advertin<strong>do</strong>, ao demais, que seria sempreimpossível prefixar conseqüências, houve, ainda assim,uma g<strong>era</strong>l inquietação de espírito.9 de Maio. - O gabinete <strong>do</strong> Sr. Lalande é pequenopara comportar a onda de curiosos que o vão interpelarsobre o seu memorial, a que de certo vai dar a necessáriapublicidade, no intuito de tranqüilizar tantos cérebrosincandesci<strong>do</strong>s com as fábulas aí correntes. A exaltação foia ponto de irem os devotos solicitar ao Sr. Arcebispopreces de quarenta horas para conjurar o dilúvioiminente! Esteve o prela<strong>do</strong> a pique de o fazer e tê -lo-iafeito, certo, se alguns acadêmicos não lhe houvessemobserva<strong>do</strong> o ridículo desse recurso.14 de Maio. - O memorial de Lalande foi publica<strong>do</strong>.Ao seu ver, <strong>do</strong>s sessenta cometas conheci<strong>do</strong>s, oitopoderiam, aproximan<strong>do</strong>-se da Terra, produzir talpressão que os mares se deslocariam e invadiriam parte<strong>do</strong> globo.Com o correr <strong>do</strong>s tempos desvaneceu -se o pânico. Otemor <strong>do</strong>s cometas tomou outra feição. Deixou designificar a cól<strong>era</strong> de Deus, mas discutiramcientificamente os casos possíveis de um encon tro eninguém deixou de o temer. Em fins <strong>do</strong> último século,Laplace formulava a sua opinião naqueles dramáticostermos retro-referi<strong>do</strong>s. (Cap. II) .Em nosso século, a predição <strong>do</strong> fim <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> foi, porvárias vezes, associada às aparições cometárias. O


cometa de Biela, por exemplo, devia cruzar a órbitaterrestre a 29 de Outubro de 1832. O alarme gen<strong>era</strong>lizou -se. Estava-se de novo no fim <strong>do</strong>s tempos. Ameaça<strong>do</strong> ogênero humano! Como acabariam as coisas? Haviamconfundi<strong>do</strong> a órbita, isto é, a rota da Terra com a própriaTerra. Nosso globo não devia, absolutamente, passarnesse ponto da sua órbita ao mesmo tempo que o cometa,e sim a 30 de Novembro, ou seja, um mês e dia depois.Por outro la<strong>do</strong>, o cometa devia ficar sempre à distânciade 20 milhões de léguas. E lá se foi o me<strong>do</strong>.A mesma coisa se repetiu em 1857. Um profeta demau gosto anunciara, para 13 de Junho desse ano, à volta<strong>do</strong> famig<strong>era</strong><strong>do</strong> cometa de Carlos V , ao qual se atribuírauma revolução de três séculos. Ainda uma vez, mais d euma alma se apavorou e, mesmo em Paris, osconfessionários receb<strong>era</strong>m maior número de penitentes.Em 1872, nova predição en<strong>do</strong>ssada por umastrônomo que absolutamente o não <strong>era</strong> - (o Sr.Plantamour, <strong>do</strong> Observatório de Genebra).Tanto quanto os cometas, os g randes fenômenoscelestes ou terrestres, tais como eclipses totais <strong>do</strong> Sol,estrelas misteriosas subitamente aparecidas, chuva deestrelas cadentes, erupções vulcânicas comobscurecimento de grandes áreas, como a engolfar omun<strong>do</strong> num dilúvio de cinzas, trem ores de terraarrasan<strong>do</strong> cidades, to<strong>do</strong>s esses eventos grandiosos, ouapavorantes, sempre foram associa<strong>do</strong>s à idéia deaniquilamento imediato e universal <strong>do</strong>s seres e das coisas.Só os anais <strong>do</strong>s eclipses dariam um grande volume,não menos pitorescos que a história <strong>do</strong>s cometas. Parafalar um instante, apenas <strong>do</strong>s mais recentes, citaremos o


de 12 de Agosto de 1654, cuja penumbra cobriu oterritório francês. Anuncia<strong>do</strong> pelos astrônomos, entroulogo a engendrar terrores.Para uns, pressagiava grandes mudanças polític as e aderrocada de Roma; para outros, <strong>era</strong> caso de um novodilúvio universal; queriam outros fosse nada menos que oabrasamento da Terra.Enfim, os menos exag<strong>era</strong><strong>do</strong>s contentavam -se com umsimples empestamento atmosférico. A crença nessesefeitos trágicos estava tão gen<strong>era</strong>lizada, que, por ordemexpressa <strong>do</strong>s médicos, uma aluvião de ataranta<strong>do</strong>s serefugiou em subterrâneos bem veda<strong>do</strong>s, aqueci<strong>do</strong>s eperfuma<strong>do</strong>s, para isentar-se da perniciosa influência. Istoé o que se pode ler, principalmente em Os Mun<strong>do</strong>s, deFontenelle, 2.° serão.Não tivemos tanto me<strong>do</strong> - escreve ele - desse eclipseque, efetivamente, foi fatal? Pois não é que tanta gente seenfurnou nas adegas e porões?E os filósofos que escrev<strong>era</strong>m para tranquilizar -nos,não o fiz<strong>era</strong>m em vão, ou pouco menos? E o s que seenfurnaram, de lá saíram, afinal? Outro autor, <strong>do</strong>mesmo século, P. Petit, de quem falávamos há pouco,conta, em suas Dissertações sobre a natureza <strong>do</strong>scometas, que a consternação aumentou dia a dia, até àdata fatal; e que um cura de aldeia, não p oden<strong>do</strong> atend<strong>era</strong>os confidentes da última hora, viu-se obriga<strong>do</strong> a lhesfazer uma prédica, concitan<strong>do</strong>-os a não se apressarem,visto que o cometa chegaria com atraso de 15 dias. E osparoquianos o acreditaram.Por ocasião <strong>do</strong>s últimos eclipses solares queatravessaram a França, aos 12 de Maio de 1706, 22 de


Maio de 1724, 8 de Julho de 1842 e mesmo com osparciais mais pronuncia<strong>do</strong>s, de 9 de Outubro de 1847, 28de Julho de 1851, 15 de Março de 1858, 18 de Julho de1860 e 22 de Dezembro de 1870, ainda se verificar amapreensões mais ou menos fortes, de uns tantos espíritostimoratos. No mínimo, sabemos nós de fonte limpa, noconcernente a cada um desses eclipses, que os boletinsastronômicos ainda <strong>era</strong>m interpreta<strong>do</strong>s, por certa classede europeus, como sinais de maldição divina e que, diantedeles, em to<strong>do</strong>s os colégios e asilos religiosos, faziam -seorações. Esse senti<strong>do</strong> místico tende a desaparecerinteiramente entre as nações cultas e, certo, o próximoeclipse total, que vai colher a Espanha aos 28 de Maio de1900, não causará sobressaltos deste la<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Pirineus.Outro tanto não se poderia talvez dizer <strong>do</strong>s espanhóis.Ainda hoje, nos países não civiliza<strong>do</strong>s, essesfenômenos despertam os mesmos terrores nossos deoutrora. E' o que os viajantes têm observa<strong>do</strong>,principalmente na África. Por ocasião <strong>do</strong> eclipse de 18 deJulho de 1860 viu-se gente a orar, a correr, e outros setrancarem em casa.Durante o eclipse de 29 de Julho de 1878, total paraos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, um preto, convicto de que o mun<strong>do</strong> iaacabar, enlouqueceu e estrangulou a mulher e os filhos.De resto, é força confessar que esses fenômenos sãobem de molde a ferir a imaginação. O Sol, astro <strong>do</strong> dia decujos raios nos pende a vida, perde o fulgor que, antes deapagar-se, torna-se páli<strong>do</strong> e lúgubre. 0 firmamento,esmaeci<strong>do</strong>, toma uma tonalidade esquisita; os animaisficam desorienta<strong>do</strong>s, os cavalos empacam, os bois noara<strong>do</strong> estarrecem; o cão achega-se ao <strong>do</strong>no, as galinhas


uscam o poleiro; as aves deixam de gorjear e algumasaté caem mortas. Arago nos conta que, por oca sião <strong>do</strong>eclipse de 8 de Julho de 1842, vinte mil especta<strong>do</strong>resformavam um quadro assaz expressivo.Quan<strong>do</strong> o Sol se reduziu à estreita fita, não dan<strong>do</strong>mais que escassa luz, uma como inquietação apoderou -sede toda aquela gente, sentin<strong>do</strong> cada qual a necessidade deexternar suas impressões. Daí, um murmúrio abafa<strong>do</strong>,semelhante à longínqua tempestade. Esse rumoraumentava à proporção que o crescente solar se afilava,até que desapareceu. A treva sucedeu de súbito àclaridade, profun<strong>do</strong> silêncio assinalou essa fa se,nitidamente, como se fosse a pêndula de um relógioastronômico. O fenômeno, em sua magnificência,acabava de triunfar da petulância da juventude e dapresteza que algumas pessoas tomam por característicosde superioridade, naquela indiferença rui<strong>do</strong>sa e muitocomum nos solda<strong>do</strong>s. Profunda calma se fez também noambiente, as aves cessaram de cantar... Após soleneexpectativa de <strong>do</strong>is minutos, frenéticos aplausossaudavam no mesmo esto, com a mesma espontaneidade,o reaparecimento <strong>do</strong>s primeiros raios solares . Aorecolhimento melancólico, de emoções indefiníveis,sucedia o contentamento vivo que ninguém já procuravacomedir. Cada qual se afastava comovi<strong>do</strong>, depois deassistir a um <strong>do</strong>s mais belos espetáculos que a Naturezaoferece ao homem.Camponeses houve que se aterrorizaram com aobscuridade, sobretu<strong>do</strong> crentes de que iam ficar cegos.Um pobre pastorzinho de guarda ao rebanho,absolutamente ignorante <strong>do</strong> que ia suceder, viu aflito que


o Sol se escurecia num céu sem nuvens. Quan<strong>do</strong> a luz deto<strong>do</strong> se apagou, o pobrezinho, no auge <strong>do</strong> terror, pôs-se achorar e a gritar por socorro! O pranto ainda lhe vertiaquan<strong>do</strong> o disco lhe man<strong>do</strong>u o primeiro raio. Asserena<strong>do</strong>então, juntou as mãozinhas, exclaman<strong>do</strong>: Oh! belo Sol!Não será o dessa criança, o grito mesmo daHumanidade?!Explica-se, então, facilmente, a viva impressãoproduzida pelos eclipses, associada à idéia deaniquilamento <strong>do</strong> globo, desde que se não saiba que elessão apenas o efeito natural <strong>do</strong> movimento da Lua emtorno da Terra, e que podem ser preditos commatemática precisão. O mesmo se dá com outrosfenômenos celestes, notadamente aparições súbitas deestrelas desconhecidas, muito mais raros que os eclipses.Dessas aparições, a mais célebre foi a de 1572. A 11 deNovembro desse ano, pouco depois <strong>do</strong> massacre de S.Bartolomeu, surgiu subitamente, na constelação deCassiope, uma rutilante estrela de primeira grandeza. Aestupefação foi g<strong>era</strong>l, não só <strong>do</strong> povo, que todas as noitesprocurava contemplar o céu, como entre os sábios, quenão podiam explicar aquela aparição. Os astrólogosentraram logo a conjeturar que deveria ser a estrela <strong>do</strong>sMagos, núncia da volta <strong>do</strong> Homem -Deus, para efetivar osupremo julgamento da ressurreição. Daí, o grandesobressalto de todas as classes sociais... A estrela, porém,foi palecen<strong>do</strong>, até que de to<strong>do</strong> se extinguiu ao fim de oitomeses, sem produzir outras catástrofes além das que atoleima humana acrescenta às misérias de um planetabem mal sucedi<strong>do</strong>.


Os anais da Ciência registram diversas apariçõesdeste gênero, sen<strong>do</strong> esta, porém, a mais notá vel.Emoções idênticas acompanharam sempre to<strong>do</strong>s osgrandes fenômenos naturais, máxime os imprevistos.Podemos ler nas crônicas da Idade -Média, e mesmo maisrecentes, a impressão provocada pelas auroras boreais,chuvas de estrelas, bóli<strong>do</strong>s, etc. Ainda não há muito, porocasião da grande chuva de estrelas, a 27 de Novembrode 1872, que projetou no céu mais de quarenta milmeteoros provenientes da dissolução <strong>do</strong> cometa de Biela,vimos em Nice, principalmente, bem como em Roma.,mulheres <strong>do</strong> povo ávidas de conhe cer a causa daquelefogo de artifício celeste, que elas tinham imediatamentefilia<strong>do</strong> à idéia <strong>do</strong> fim <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, e à queda de estrelasanunciada como pródromo <strong>do</strong> último cataclismo.Tremores de terra e erupções vulcânicas atingem, àsvezes, proporções tais que logo suscitam o terrorismo <strong>do</strong>fim <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Imagine-se, então, o esta<strong>do</strong> da alma <strong>do</strong>shabitantes de Herculanum e Pompéia, quan<strong>do</strong> o Vesúvioos envolvia em mortalha de cinzas! Não seria a seusolhos, realmente, o fim <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>? Mais recentemente,quantos presenciaram a erupção <strong>do</strong> Krakatoa, nãopensam da mesma forma? Uma noite espessa que durou18 horas, atmosf<strong>era</strong> de fornalha, irrespirável, carregadade cinzas a entrarem pelo nariz, pela boca, pelos ouvi<strong>do</strong>s;o ribombo sur<strong>do</strong> e constante <strong>do</strong> vulcão, a pedra -pomes acair <strong>do</strong> céu negro; quadro dantesco apenasintermitentemente aclara<strong>do</strong> com relâmpagos, ou pelosfogos fátuos <strong>do</strong>s mastros e cor<strong>do</strong>alhas <strong>do</strong>s navios. Raiosem profusão, em precipitações satânicas. Depois, maischuva cinérea, agora transformada em lama... Eis o que


padec<strong>era</strong>m, nessa noite de 18 horas, de 26 a 28 de Agostode 1883, os numerosos passageiros dum barco javanês,enquanto uma parte da ilha de Krakatoa voava pelosares, e o mar, depois de recuar, avançava, terra a dentro,de 1 a 10 quilômetros, em vagas de 35 metros de altura.Isto, numa frente de 500 quilômetros! Em seu refluxo,essa avalancha arrasou e carreou para o oceano quatrocidades, a saber: Tjringin, M<strong>era</strong>k, Telok -Bétong, Anjer etu<strong>do</strong> o mais que povoava a costa, mais de 40.000 pessoas!Passageiros de um navio que cruzou o estreito no diaseguinte, viram que a proa cortava pencas de cadáveresentrelaça<strong>do</strong>s. Semanas após, ainda se encontraram, noventre de alguns peixes, ossos, cabelos, unhas humanas.Quantos pud<strong>era</strong>m sobreviver à hecatombe e to<strong>do</strong>s os quepud<strong>era</strong>m entrevê-Ia de bor<strong>do</strong> de um navio, ao reverem aluz <strong>do</strong> dia, que já supunham para sempre extinta,confessam com terror que aguardavam, de fato, o fim <strong>do</strong>mun<strong>do</strong>, convictos de que o cataclismo fosse universal.Uma testemunha ocular assegurava -nos que, porcoisa alguma deste mun<strong>do</strong>, consentiria em rever talquadro. Extinto o Sol, um véu de luto envolvia aNatureza e a morte universal ia reinar sob<strong>era</strong>na, eterna.De resto, essa erupção foi de tal violência que chegoua repercutir em to<strong>do</strong> o globo, mesmo p ara, os antípodas.E' que, ten<strong>do</strong> o jacto vulcânico atingi<strong>do</strong> 20.000 metros dealtura, a ondulação atmosférica por ele produzida sepropagou por toda a. superfície <strong>do</strong> globo, circulan<strong>do</strong> -oem 35 horas (mesmo em Paris os barômetros baixaram 4milímetros). E ainda por mais de um ano, a finíssimapoeira esparsa nas altas camadas atmosféricasproduziram, esbatidas ao Sol, as magníficas


luminosidades vespertinas que muita gente pôdeadmirar.Aí estão cataclismos formidáveis, que podem serconsid<strong>era</strong><strong>do</strong>s fins-de-mun<strong>do</strong> parciais. Alguns abalossísmicos podem comparar-se a essas me<strong>do</strong>nhas erupçõesvulcânicas, pela amplitude de suas trágicasconseqüências. Por ocasião <strong>do</strong> terremoto de Lisboa, em 1de Novembro de 1755, sucumbiram trinta mil pessoas. Oabalo estendeu-se por uma área correspondente a quatrovezes a superfície da Europa. Quan<strong>do</strong> Lima foi arrasada,em 28 de Outubro de 1724, o mar subiu 27 metros <strong>do</strong> seunível e precipitou-se sobre a cidade, empolgan<strong>do</strong>-a tãoradicalmente que lhe não ficou uma só casa. Naviosforam encontra<strong>do</strong>s em seco, a muitos quilômetros dacosta. A 10 de Dezembro de 1869 os habitantes da cidadede Onlah, na Ásia Menor, apavora<strong>do</strong>s com os rumoressubterrâneos e um abalo mais forte, salvaram -seescalan<strong>do</strong> uma colina próxima. Dali, viram, estupefatos,abrirem-se várias brechas no solo movediço, tragan<strong>do</strong> acidade em poucos minutos! Temos disso testemunhodiretos, que, em circunstâncias menos dramáticas, comopor exemplo em Nice, não deixaram por isso de suscitar,antes de tu<strong>do</strong>, a idéia de fim <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.A história da Humanidade poderia oferecer -nosgrande número de dramas semelhantes, de cataclismosparciais, ameaças de final destruição. A nos cabiademorar um instante nesses grandes fenômenos emcorrelação com a velha crença <strong>do</strong> fim <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, queatravessou todas as épocas, modifican<strong>do</strong>-se com oprogresso da Ciência. A fé desapareceu em parte, oaspecto místico e legendário que impressionava a mente


<strong>do</strong>s antepassa<strong>do</strong>s, e de que ainda nos restam curiosasrepresentações nas portas das catedrais, tanto quanto naescultura e na pintura inspiradas na tradição cristã, esseaspecto teológico <strong>do</strong> último dia terreno cedeu lugar aoestu<strong>do</strong> científico da durabilidade <strong>do</strong> sistema solar a quepertencemos. A concepção geocêntrica e antropocêntrica<strong>do</strong> Universo, que consid<strong>era</strong>va o ho mem como centro efim da criação, transformou-se gradualmente e acaboupor desaparecer. Agora, sabemos que o nosso humildeplaneta não passa de uma ilha no infinito; que a nossahistória tem si<strong>do</strong>, até aqui, feita de simples ilusões, e quea dignidade humana reside no seu valor intelectual emoral. Não tem o espírito <strong>do</strong> homem, por finalidadesob<strong>era</strong>na, o conhecimento exato das coisas e ainvestigação da verdade?No curso <strong>do</strong> século XIX, profetas agourentos, mais oumenos sinceros, anunciaram vinte cinco vezes o fim <strong>do</strong>mun<strong>do</strong>, mediante cálculos cabalísticos, sem se estribaremem qualquer fundamento sério. Tais predições se hão -derenovar por to<strong>do</strong> o tempo que durar a Humanidade. (7 )Esta divagação histórica nos desviou, em que pese àsua oportunidade, da nossa nar rativa <strong>do</strong> século XXV.Retomemo-la sem demora, ainda porque chegamos aoponto exato <strong>do</strong> seu des<strong>do</strong>bramento.CAPITULO VIIO choqueAs stars with trains of firo and dews of blood.


SHAKESPEARE, Hamlet, I.Qual bala de canhão desfechada em alvo, com ainexorabilidade das leis <strong>do</strong> destino, inflexíveis, assimcobria o cometa a sua órbita regular, com velocidadecrescente, para o ponto que o nosso planeta deveria, porsua vez, atingir na noite de 13 para 14 de Julho. Oscálculos definitivos não discrepavam de uma linha. Os<strong>do</strong>is viajores celestes encontrar -se-iam como <strong>do</strong>iscomboios em disparada louca e cega, para se espatifareme fundirem num embate monstruoso, como rivaisassoma<strong>do</strong>s de ódios insopitáveis. Mas, neste caso,advirta-se que a velocidade deveria ser , simplesmente,sessenta e cinco vezes maior que a de <strong>do</strong>is combo ios acem quilômetros horários!À noite de 12 para 13, o cometa havia -se des<strong>do</strong>bra<strong>do</strong>e coberto quase to<strong>do</strong> o firmamento, permitin<strong>do</strong>distinguir, a olho nu, turbilhões ígneos a rolarem emtorno de um eixo oblíquo à vertical. Dir -se-ia ali estivesseto<strong>do</strong> um exército de meteoros em desordenadaconflagração, na qual a eletricidade e os relâmpagos seempenhavam em fantásticas batalhas. O astro coruscanteparecia girar sobre si mesmo e revolver-se interiormente,como se possuísse vida própria e padecesse tormentosas<strong>do</strong>res. Enormes jactos de fogo bolsavam de vários focas.Evidente que a luz solar agia sobre o turbilhão devapores, decompon<strong>do</strong> uns tantos corpos, produzin<strong>do</strong>


combinações explosivas, eletrizand o as partes maispróximas, repelin<strong>do</strong> vapores para além da cabeçaenorme, que pairava sobre nós. O astro de ri mesmoemitia, porém, fogos bem diferentes <strong>do</strong> vaporoso reflexoda luz solar, e lançava chamas sempre maiores, qualmonstro que se precipitasse a Terra para incendiá-la. Oque mais sobressaltava, talvez, nesse espetáculo, é queninguém podia explicar o que ocorria: Paris e to<strong>do</strong>s oscentros de atividade humana calavam -se instintivamentenessa noite, como que imobiliza<strong>do</strong>s por uma expectaçãoúnica, como que procuran<strong>do</strong> apreender algum eco <strong>do</strong>turbilhão celeste que se avizinhava, sem que ruí<strong>do</strong> algumlhes chegasse <strong>do</strong> pandemônio cometário.A lua cheia, esverdeada, ostentava -se na rubrafornalha, mas, sem brilho, não projetan<strong>do</strong> mais quesombras. A noite deixara de ser noite; as estrelassumiram-se para só ficar o céu abrasa<strong>do</strong> de intensoclaror.O cometa aproximava-se com a velocidade de 147.000quilômetros por hora, e a Terra, por sua vez, avançava àrazão de 104.000 quilômetros, de oeste para leste, emsenti<strong>do</strong> oblíquo à órbita cometária, que, pela posição dequalquer meridiano, à meia-noite, pairava a nordeste. Acombinação das respectivas velocidades aproximava os<strong>do</strong>is corpos celestes à razão de 173.000 quilômetros porhora. Quan<strong>do</strong> a observação, de acor<strong>do</strong> com o cálculo,constatou que os contornos da cabeça <strong>do</strong> astro estavamapenas à distância da Lua, soube -se que a tragédiacomeçaria dentro de duas horas.Contrariamente a toda expectativa, o dia de sexta -feira apresentou-se de maravilhosa beleza, como os


precedentes: o Sol brilhou num céu escampo de nuvens,mas, refrescada por ligeira brisa, toda a Naturezaparecia festar: campos flori<strong>do</strong>s, luxuriantes de beleza,regatos múrmuros alegran<strong>do</strong> vales, aves cantan<strong>do</strong> nasfrondes. As cidades, só elas, apresentavam -se combalidas,pois que aí a Humanidade sucumbia consternada. Aimpassibilidade tranquila da Natureza contrastava<strong>do</strong>lorosamente com a ansiedade angustiosa <strong>do</strong>s coraçõeshumanos.Milhões de europeus haviam deixa<strong>do</strong> Paris, Viena,Berlim, Petersburgo, Roma, etc., para refugiarem-se naAustrália, aonde haviam acorri<strong>do</strong> até os antípodas. Amedida que se aproximava o dia <strong>do</strong> encontro, aadministração <strong>do</strong>s transportes transatlânticos aéreostriplicava o tráfego, e os comboios aéreo-elétricospousavam como ban<strong>do</strong>s de pássaros mi gratórios em S.Francisco, Honolulu, Noumeia e nas cidades australianasde Melbourne, Sydney, Liberty, Pax. Mas, esses milhõesde fugitivos não representavam mais que uma minoriaprivilegiada, cuja ausência mal se poderia notar, dianteda massa que formigava, estarrecida, pelas cidades evilas.Noites inteiras de vigília já se haviam passa<strong>do</strong>.Ninguém <strong>do</strong>rmia. O terror <strong>do</strong> desconheci<strong>do</strong> exaltavatodas as mentes, arrebatava-lhes o sono. Nem mesmohavia quem se deitasse para repousar. Como? Dormir oderradeiro sono? Não ter, nunca mais, o encanto <strong>do</strong>despertar. Semblantes lívi<strong>do</strong>s, em g<strong>era</strong>l, olhos fun<strong>do</strong>s,cabeleiras desgrenhadas, faties angustiadas da maisterrível angústia que jamais assaltara a mente humana,eis o que se via. O ar respirável tornava -se de mais a mais


quente e seco. Ninguém pensava, desde a vésp<strong>era</strong>, emalimentação qualquer, e o estômago, órgão tão poucodescui<strong>do</strong>so de si mesmo, ainda assim, nada reclamava.Entretanto, uma sede ardente foi o primeiro efeitofisiológico da aridez atmosférica e as pesso as maissóbrias não pud<strong>era</strong>m furtar-se ao imp<strong>era</strong>tivo de acalmála,fosse como fosse, sem o conseguir. O sofrimento físicoiniciava a sua tarefa e devia de pronto <strong>do</strong>minar asangústias morais. A atmosf<strong>era</strong> tornava -se hora a horamais irrespirável, mais cruel. As criancinhas choravam,esperneavam, chamavam pelos pais, sem saberemporquê.Em Paris, como em Londres, como em todas ascidades, vilas, aldeias, a população evadia -se de casa paraerrar estonteada, ao ar livre, qual enxame de formigasquan<strong>do</strong> se lhes desmancha o formigueiro.To<strong>do</strong>s os negócios da vida normal foramaban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>s, to<strong>do</strong>s os projetos estavam implicitamenteaniquila<strong>do</strong>s. Ninguém se preocupava com a casa, afamília, nem de si mesmo. Depressão moral absoluta,mais forte que o enjôo <strong>do</strong> mar.Igrejas católicas, templos protestantes, sinagogasjudaicas, capelas gregas orto<strong>do</strong>xas, mesquitasmuçulmanas, pagodes chineses, budistas, santuáriosespíritas, sociedades teosóficas, ocultistas, psicosóficas,antroposóficas, naves da nova religião anglicana, to<strong>do</strong>s o scentros de culto religioso, enfim, que ainda dividiam aHumanidade, tinham si<strong>do</strong> invadi<strong>do</strong>s por seus fiéisadeptos, nessa quarta-feira memorável, e mesmo emParis a multidão entalada nos pórticos a ninguém


permitia franquear as igrejas, em cujo interior seprosternavam os crentes.Cantos, órgãos, hinos, tu<strong>do</strong> emudec<strong>era</strong> e o que apenasse poderia ouvir <strong>era</strong> um abafa<strong>do</strong> sussurrar de preces.Como nos i<strong>do</strong>s tempos de fé ingênua e ardente, de quenos falam historia<strong>do</strong>res medievais, os confessionários<strong>era</strong>m quase que toma<strong>do</strong>s de assalto.Nas ruas, nas praças, nas avenidas, o mesmo silêncio,salvo alguns magotes de estontea<strong>do</strong>s, que procuravamiludir o perigo com a embriaguez. Insensatos berravam aesmo, blasfemavam, esmurravam as paredes. Nem umpregão, nem um jornal! Aviõ es, balões, aeronaves,helicópteros, haviam desapareci<strong>do</strong> como por encanto. Asúnicas viaturas em tráfego <strong>era</strong>m coches funerárioslevan<strong>do</strong> aos crematórios as primeiras vítimas <strong>do</strong> cometa.O dia assim passou, sem incidente astronômico. Aansiedade crescia, porém, à proporção que a noite fatalse avizinhava. Nunca, poder-se-ia talvez dizer, se vira umpôr-<strong>do</strong>-sol tão belo em céu assim tão puro! Era como se oastro-rei se recolhesse em leito de ouro e púrpura. Odisco vermelho mergulhou no horizonte. As estrelas nã oaparec<strong>era</strong>m, porém, nem com elas à noite. Ao dia solarsucedeu o cometário-lunar, intensamente aclara<strong>do</strong>, aevocar auroras boreais, sensivelmente mais vivas e comoemanantes de grande foco incandescente, que nãobrilhara durante o dia, por encontrar -se abaixo <strong>do</strong>horizonte, mas poderia, contu<strong>do</strong>, rivalizar com o próprioSol.Esse foco luminoso surgiu no oriente, quase ao mesmotempo em que a lua cheia, que parecia subir com ele, nocéu - qual hóstia sepulcral em altar fúnebre - <strong>do</strong>minan<strong>do</strong>


o luto imenso da Natureza. À medida que se elevava, aLua empalidecia, mas o foco cometário aumentava debrilho com a queda <strong>do</strong> Sol, abaixo <strong>do</strong> horizonte ocidental.E agora, <strong>era</strong> a ele que cabia imp<strong>era</strong>r no mun<strong>do</strong> - solnebuloso, rubro-escarlate, a vomitar flamas suri -verdes,que figuravam enorme nervura de asas. Olharesterrifica<strong>do</strong>s viam nele um Gigante desmesura<strong>do</strong>, quetomava posse <strong>do</strong> Céu e da Terra.A vanguarda da cabeleira cometária tinha jápenetra<strong>do</strong> no interior da órbita lunar e, de um momentopara outro, iria tocar as frontei ras rarificadas daatmosf<strong>era</strong> terrestre, a duzentos quilômetros de altura,mais ou menos.Foi nesse momento que to<strong>do</strong>s os olhares seesbugalharam, loucos de terror, ao verem explodir emto<strong>do</strong> o horizonte um como vasto incêndio, projetan<strong>do</strong> aocéu pequenas chamas violáceas.Quase instantaneamente após, o cometa diminuiu debrilho, certo porque, a pique de tocar a Terra, entrara napenumbra desta e perd<strong>era</strong>, assim, uma parte da luz quelhe provinha <strong>do</strong> Sol. Desfalque aparente, contu<strong>do</strong>, devi<strong>do</strong>principalmente a um efeito de contraste, vista como,quan<strong>do</strong> olhares menos ofusca<strong>do</strong>s se afeiçoaram àquelanova tonalidade luminosa, ela lhes pareceu tão vivaquanto a primeira, embora embaciada, sinistra,sepulcral. Jamais a Terra se banhara em semelhante luz -um fun<strong>do</strong> de tela amarelada, além da qual fuzilassemrelâmpagos. A secura <strong>do</strong> ar tornara -se intolerável; umcalor de fornalha soprava de cima, tresandan<strong>do</strong> aenxofre, provavelmente devi<strong>do</strong> ao ozônio supereletriza<strong>do</strong>,que empestava a atmosf<strong>era</strong>. Cada qual julgava chegada


há sua hora. Foi quan<strong>do</strong> um grande grito estrugiu nosilêncio, cobrin<strong>do</strong> todas as angústias:O mun<strong>do</strong> está arden<strong>do</strong>! Fogo! fogo! - clamavamto<strong>do</strong>s, de toda à parte...De fato, to<strong>do</strong> o horizonte parecia agora coroa<strong>do</strong> dechamas azuladas. Era, pois, o que se previra o óxi<strong>do</strong> decarbono a queimar-se, produzin<strong>do</strong> o anidri<strong>do</strong> carbônico.Certo, também, o hidrogênio cometário aí estava acombinar-se lentamente. Dir-se-ia uma iluminaçãofúnebre em torno de um catafalco.Súbito, enquanto a Humanidade se quedava imóvel,silenciosa, aterrada, reten<strong>do</strong> a respiração, cataleptizada, -por assim dizer, toda a abóbada celeste pareceu rasgar -sede alto a baixo e, pela fauce aberta, cria -se ver enormegoela a vomitar chamas verdes, coruscantes. Tão intensodeslumbramento, acompanha<strong>do</strong> de horrível estron<strong>do</strong>, fezque to<strong>do</strong>s os especta<strong>do</strong>res, ainda os mais animosos e demistura velhos, mulheres, crianças, ainda não abriga<strong>do</strong>s,se precipitassem para as cavas e galerias subterrâneas, jáentão quase repletas. Daí, nessa correria desabalada,uma aluvião de mortes por esmagamento, apoplexias,aneurismas, delírios cerebrais fulminantes. Era como se aRazão humana se houv<strong>era</strong> de súbito aniquila<strong>do</strong> e fossesubstituída pelo Estupor louco, inconsciente, resigna<strong>do</strong>,mu<strong>do</strong>.Apenas alguns jovens casais, abraça<strong>do</strong>s, parecia misolar-se <strong>do</strong> cataclismo, destacarem-se <strong>do</strong> terror universalpara viverem, por e para si mesmos, tão somenteentregues à exaltação <strong>do</strong> seu idílio.Sobre os terraços ou nos observatórios, os astrônomoshaviam, contu<strong>do</strong>, permaneci<strong>do</strong> a postos e alguns deles


fotografavam as constantes transformações <strong>do</strong> céu.Foram eles assim, por pouco tempo embora, as únicastestemunhas <strong>do</strong> encontro cometário, salvo um que outrotemp<strong>era</strong>mento corajoso, a expiar através de vidraças oúltimo cataclismo.Os cálculos indicavam que o gl obo terrestre deviapenetrar no âmago <strong>do</strong> cometa, tal como uma bala emmassa nebulosa, e que, a partir <strong>do</strong> primeiro contacto comas zonas atmosféricas extremas, de uma e outro, levariaquatro e meia horas para atravessar a referida massa,como se torna fácil verificar, visto que, sen<strong>do</strong> o cometamais ou menos sessenta e cinco vezes maior que a Terra,em diâmetro, devia ser atravessa<strong>do</strong> não ao centro, mas aum quarto de distância, com a velocidade de 173.000quilômetros por hora.Havia quarenta minutos, mais ou menos, que se d<strong>era</strong>o primeiro contacto e já o calor e a terrível exalação deenxofre chegavam a tal ponto, que, dentro em breve, todaa vida haveria de cessar irremissivelmente, em seu curso.Os próprios astrônomos se retraíram no interior <strong>do</strong>sobservatórios, fechan<strong>do</strong>-os hermeticamente e descen<strong>do</strong>aos subterrâneos. Em Paris, só a jovem calculista, já <strong>do</strong>nosso conhecimento, ficou por mais alguns segun<strong>do</strong>s noterraço, circunstância que lhe permitiu presenciar airrupção de formidável bóli<strong>do</strong>, aparentemente quinze ouvinte vezes maior que a Lua, a precipitar -se para o Sulcom a velocidade <strong>do</strong> relâmpago.Não havia, porém, quem pudesse fazer maisobservações quaisquer. Ninguém mais respirava. Aocalor e à secura, acrescia agora o envenenamento da


atmosf<strong>era</strong> pela mistura <strong>do</strong> óxi<strong>do</strong> de carbono, quecomeçava a produzir-se.Os ouvi<strong>do</strong>s tilintavam numa espécie de sonoridadeinterior, os corações acel<strong>era</strong>vam o ritmo com violência eo cheiro de enxofre <strong>era</strong> cada vez mais forte! Nessecomemos, despejou-se <strong>do</strong> céu uma chuva de fogo, d eestrelas cadentes, de bóli<strong>do</strong>s que, em sua maior parte,não chegariam ao solo, mas deflagravam comobombardas, e cujos fragmentos perfuravam os telha<strong>do</strong>s eateavam incêndios a granel. O céu <strong>era</strong> também, to<strong>do</strong> ele,comburente e, ao fogo <strong>do</strong> céu, correspondia o da Terra,qual se um exército de relâmpagos houv<strong>era</strong>, numinstante, incendia<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>. Ribombos de trovãosucediam-se ininterruptos, provin<strong>do</strong>s em parte daexplosão <strong>do</strong>s bóli<strong>do</strong>s e, por outro la<strong>do</strong>, de imensa procela,de molde a presumir que to<strong>do</strong> o calor atmo sférico setransformara em eletricidade. Um rumor contínuo, comode tambores ao longe, castigava os ouvi<strong>do</strong>s, entremea<strong>do</strong>sde choques horrendes e de sinistros silvos, como deserpentes. Depois, os clamores selvagens, o esfervilhar decaldeiras em ebulição, estouros violentos, gemi<strong>do</strong>s <strong>do</strong>vento, e desesp<strong>era</strong><strong>do</strong>s, tremores da terra, como se a Terraestivesse a fundir-se.Nesse lance, a tempestade tornou -se tão espantosa,tão estranha, tão feroz, tão raiventa, que a Humanidadeficou como que cataleptizada, muda,ani quilada e,finalmente, apassivada qual folha fenecida à mercê <strong>do</strong>sventos.Desta feita, <strong>era</strong> evidente, tu<strong>do</strong> ia acabar. E cada qualse resignou com a perspectiva de sepultamento sob osescombros <strong>do</strong> universal incêndio, sem cogitar, um


minuto, de qualquer meio de salvação. Num supremoesforço abraçavam-se quantos se não haviam separa<strong>do</strong>,no intuito consola<strong>do</strong>r de morrerem juntos.Entretanto, o grosso <strong>do</strong> exército celeste havia passa<strong>do</strong>e uma espécie de rarefação, de vacuidade, se produzirana atmosf<strong>era</strong>, quiçá devi<strong>do</strong> às explosões meteóricas, vistoque, de chofre, todas as vidraças estalaram e projetaram -se para fora, abrin<strong>do</strong>-se de si mesmas todas as portas ejanelas. Terrível furacão desencadeou -se, então,abrevian<strong>do</strong> o incêndio e reaniman<strong>do</strong> os homens, que,instantaneamente, voltaram a si <strong>do</strong> pesadelo horrível.Depois, foi toda uma chuva diluvial.Leiam o Século XXV! O esmagamento <strong>do</strong> papa e deto<strong>do</strong>s os bispos! A queda <strong>do</strong> cometa em Roma. Peçam ojornal!Meia hora depois da tormenta, já to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>começava a sair das cavas, sentin<strong>do</strong>-se reviver. Era comoo expertar insensível de um sonho e a despeito <strong>do</strong>sincêndios que ainda subsistiam, sem embargo da chuvadiluviana, já os pregões atroavam nas ruas de Paris e detodas as grandes cidades mal acordadas. Por toda à parteo mesmo anúncio, a mesma vozearia e, antes de procurarextinguir os braseiros, toda a gente comprava por umcêntimo o grande jornal de dezesseis páginas fartamenteilustra<strong>do</strong>.Leiam o esmagamento <strong>do</strong> papa e duos cardeais... OSacro colégio massacrada pelo cometa ! Impossívelnomear outro papa! Peçam o jornal!Os vende<strong>do</strong>res aumentavam, o pregão recrudescia ecada qual queria saber o que havia de verdade a talrespeito.


Eis, em suma, o que ocorr<strong>era</strong>.O judeu americano com o qual já travamos relações,páginas atrás; o mesmo que, na terça-feira anterior,conseguira ganhar alguns milhões com a reabertura dasBolsas de Paris e Chicago, não desesp<strong>era</strong>va de prosseguirnegocian<strong>do</strong>, e assim como outrora os mosteirosaceitavam os testamentos escritos com vistas ao fim <strong>do</strong>mun<strong>do</strong>, assim o nosso infatigável bolsista julgaraoportuno manter-se ao seu telefone, a tempo instala<strong>do</strong> emprofunda galeria hermeticamente fechada. Dono delinhas especiais entre Paris e os maiores centrosmundiais, não interromp<strong>era</strong> as suas comunicações comeles..O núcleo <strong>do</strong> cometa encerrava, comprimi<strong>do</strong>s emmassa de gás incandescente, certo número de concreçõesuranoliticas, algumas de diâmetros quilométricos. Umadestas massas atingira a Terra, próximo de Roma, e logoos fonogramas <strong>do</strong> correspondente anunciavam oseguinte:To<strong>do</strong>s os membros <strong>do</strong> concílio estavam reuni<strong>do</strong>s sob acúpula <strong>do</strong> Vaticano, para festejar solene e pomposamentea decretação <strong>do</strong> <strong>do</strong>gma da divindade pontifícia. Acerimônia da a<strong>do</strong>ração fora marcada para a horasagrada da meia-noite. Profusamente ilumina<strong>do</strong> oprimeiro e mais grandioso <strong>do</strong>s templos da cristandade,mediante invocações pie<strong>do</strong>sas e por entre nuvens deincenso e cânticos harmoniosos, o papa, assenta<strong>do</strong> no seutrono de ouro, tinha a seus pés, prosterna<strong>do</strong>, o fielrebanho que ali representava a cri standade das cincopartes <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. E foi justo quan<strong>do</strong> ele se erguia para abênção suprema, que, <strong>do</strong> alto, se abateu um bloco de


ferro maciço, descomunal, ou seja equivalente a meiaárea da cidade eterna, tu<strong>do</strong> esmagan<strong>do</strong> e mergulhan<strong>do</strong>num abismo de profundidade incalculável! Verdadeiraqueda infernal, dir-se-ia. Toda a Itália estremeceu aochoque <strong>do</strong> monstro aéreo, ao mesmo passo que o rumorde formidável trovão se propagava até Marselha.O bóli<strong>do</strong> tinha si<strong>do</strong> visto de todas as cidades italianas,através de intensa chuva de estrelas, com abrasamentog<strong>era</strong>l da atmosf<strong>era</strong>. A Terra se iluminara como que deum novo sol rubro, coruscante, e um estron<strong>do</strong>formi<strong>do</strong>loso, algo como infernal, suced<strong>era</strong> à queda, comose de fato a abóbada celeste se houvesse rasga<strong>do</strong> de alto abaixo.(Esse o bóli<strong>do</strong> que a calculista <strong>do</strong> Observatório deParis lobrigara no momento em que, apesar <strong>do</strong> seu zelo,não pud<strong>era</strong> manter-se no ambiente asfixiante <strong>do</strong>cataclismo. )O nosso homem de negócios recebia despachos,,expedia ordens telefônicas, redigia notí cias sensacionaispara o seu jornal, impresso de contínuo emParis e nas principais cidades <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Toda anovidade, por ele ditada, circulava 15 minutos após, nofrontispício <strong>do</strong> Século XXV, em New -York, Melbourne,etc.Meia hora depois da 1. edição, apr egoava-se a 2.,dizen<strong>do</strong>Leiam o incêndio de Paris e de quase todas as cidadesda Europa! A morte definitiva da Igreja católica. O papacastiga<strong>do</strong> pelo seu orgulho! Roma reduzida a cinzas...Leiam O Século XXV.


E nessa 2. edição já se podia ler uma dissertaç ão assazerudita, de abalisa<strong>do</strong> publicista sobre as conseqüênciasda extinção <strong>do</strong> Sacro-ColégioNesse artigo, assertava eleque, de acor<strong>do</strong> com o estatuí<strong>do</strong> nos concílios de Latrão(1179), de Lião (1274), de Viena (1312), bem como nasordenações de Gregório X e Gregório XIII, os sob<strong>era</strong>nospontífices só podem ser eleitos pelo conclave <strong>do</strong>s cardeais.Esses concílios e ordenações não haviam previsto ahipótese de um aniquilamento total e simultâneo, <strong>do</strong>scardeais. Nos próprios termos da jurisdição eclesiástica,nenhum papa poderia, conseguintemente, ser nomea<strong>do</strong>.Eis como e porque a Igreja ficava sem chefe. S. Pedro jánão teria sucessor. Era o fim <strong>do</strong> Catolicismo, nos moldesem que se constituíra e mantiv<strong>era</strong> por tantos séculos.Peçam o Século XXV, 4.° edição e vejam: aparição,na Itália, de um novo vulcão! Revolução em Nápoles...Leiam, leiam!Essa 4. edição seguira-se a 2., sem referir-se a 3..Anunciava que um bóli<strong>do</strong>, cujo peso se calculava em cemmil toneladas ou mais, havia-se abati<strong>do</strong> com a velocidadejá anteriormente assinalada, sobre a enxofreira dePouzzoles e, atravessan<strong>do</strong> a crosta frágil e sonora daregião, lá se afundara profundamente e originara umnovo vulcão, cujas chamas iluminavam agora os camposflegrianos. A revolução, de fun<strong>do</strong> supersticioso ecapitaneada por monges fanáticos, que em tu<strong>do</strong> viamavisos <strong>do</strong> céu, começava a depredar o Palazzo reate.Sexta edição! Sensacional! Leiam: aparição de umanova filha no Mediterrâneo! A Inglaterra conquista, ..Um fragmento <strong>do</strong> cometa havia -se fixa<strong>do</strong> noMediterrâneo, a Oeste de Roma, forman<strong>do</strong> uma ilha


irregular de 1.500 metros de comprimento por 700 delargura e 50 de altura. O mar começara a ferver e ainundar as praias de vagalhões enormes. Todavia, láestava precisamente um inglês, que não teve outrocuida<strong>do</strong> senão tomar um barco, escalar o roche<strong>do</strong> e lheespetar no cimo o pavilhão britânico.Em to<strong>do</strong>s os lugares da terra o jornal <strong>do</strong> nossohomem teve, nessa noite de 14 para 15 de Julho, umatiragem de milhões de exemplares, dita<strong>do</strong>s <strong>do</strong> seugabinete, como quem soub<strong>era</strong> monop olizar to<strong>do</strong>s ostrágicos acontecimentos. Por toda à parte, aquelasnotícias <strong>era</strong>m avidamente devoradas, antes mesmo decoordenarem esforços para a extinção <strong>do</strong>s incêndios. E'verdade que a chuva, de começo, prestara um auxílioinesp<strong>era</strong><strong>do</strong>, mas os estragos mat eriais <strong>era</strong>m enormes,posto que to<strong>do</strong>s os edifícios fossem de superestruturametálica. As companhias de seguro alegavam causasuperior imprevisível, esquivan<strong>do</strong> -se a qualquerindenização. Por outro la<strong>do</strong>, os seguros sobre asfixiatinham realiza<strong>do</strong> em oito dias lucros colossais.O milagre de Roma! Assombroso! Leiam a 10. edição<strong>do</strong> Século XXV. Peçam o jornal.Qual o milagre? Oh! simplíssimo - dizia o SéculoXXV que o seu correspondente deixara -se iludir por umafalsa informação e que o bóli<strong>do</strong>... caíra distante de Romae nada havia destruí<strong>do</strong> na cidade eterna. S. Pedro e oVaticano tinham si<strong>do</strong> miraculosamente poupa<strong>do</strong>s.Entretanto, o jornal se vend<strong>era</strong> por centenas de milhões,em to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>. Excelente negócio.A crise passou. Pouco a pouco a Humanidade se refezpara o encanto <strong>do</strong> viver. A noite ficou aclarada por


estranho luar cometário, alimenta<strong>do</strong> pela queda demeteoros e com incêndios por toda à parte. Quan<strong>do</strong>rompeu o dia, às 3 1/2 mais ou menos, havia mais de 3horas que o cometa cruzara com a Terra e a sua cabeçapassara ao su<strong>do</strong>este, continuan<strong>do</strong>, contu<strong>do</strong>, a envolvê -lana sua cauda. O choque verificara -se na noite de 13 para14, às 12 h., 10 de Paris, isto é, às 12 h. 58 de Roma,conforme a exata previsão <strong>do</strong> Presidente da SociedadeAstronômica da França, que o leitor não terá de certoesqueci<strong>do</strong>.Enquanto a maior porção <strong>do</strong> hemisfério volta<strong>do</strong> parao cometa, na hora <strong>do</strong> encontro, tinha experimenta<strong>do</strong> asecura <strong>do</strong> ar, o calor sufocante, a emanação sulfurosa e oestupor letárgico, resultantes da resistência atmosféricaoposta à marcha <strong>do</strong> astro, da eletrização supersaturada<strong>do</strong> ozônio e da mistura <strong>do</strong> protóxi<strong>do</strong> de azoto com ascamadas aéreas superiores, o outro hemisfério ficaramais ou menos indene, a não serem as perturbaçõesatmosféricas inevitáveis e oriundas da rutura deequilíbrio. Os barômetros haviam marca<strong>do</strong> curvasfantásticas, configuran<strong>do</strong> píncaros e abismos.Felizmente, o cometa não fiz<strong>era</strong> mais que deslizarpela superfície e o choque longe estava de ter si<strong>do</strong> frontal.Sem dúvida, a própria atração <strong>do</strong> globo terrestre agiravigorosamente na queda <strong>do</strong>s bóli<strong>do</strong>s sobre a Itália e oMediterrâneo. Em to<strong>do</strong> caso, a órbita <strong>do</strong> cometa foiinteiramente transformada por essa perturbação,enquanto que a Terra e a Lua continuaram em seu cursotranqüilo ao re<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Sol, como se nada houv<strong>era</strong>ocorri<strong>do</strong>. De parabólica, a órbita cometária fez elíptica,


com o seu afélio próximo a ponto da eclíptica em que foracaptura<strong>do</strong> pela atração <strong>do</strong> nosso globo.Quan<strong>do</strong> mais tarde fiz<strong>era</strong>m a estatística das vítimas<strong>do</strong> cometa, viu-se que orçavam por quatro décimos dapopulação européia. Só em Paris, que abrangia umaparte <strong>do</strong>s antigos departamentos <strong>do</strong> Sena e <strong>do</strong> Sena -e-Oise, contan<strong>do</strong> 9.000.000 de habitantes, houve, nesseinesquecível mês de Julho, mais de 200.000 mortes, assimcomputadasVê-se que a mortalidade triplicara uma semana antes<strong>do</strong> sinistro e quintuplicara no dia 9. A progressãodiminuíra em conseqüência das sessões <strong>do</strong> Instituto, quetiv<strong>era</strong>m a virtude de acalmar os espíritos maisimpressionáveis. Chegou a verificar -se, até, ummovimento retrocessivo no dia 10 . Infelizmente, com aaproximação <strong>do</strong> astro, o pânico recrudesceu e, a partir<strong>do</strong> dia 11, o obituário sextuplicava a média normal. Amaior parte das pessoas fracas havia sucumbi<strong>do</strong>. Naquinta-feira 12, aproximan<strong>do</strong>-se a data fatal e devi<strong>do</strong> aprivações de to<strong>do</strong> o gênero, como ausência dealimentação e de sono, distúrbios, quais a falta detranspiração, cutânea, febre orgânica, superexcitaçãocardíaca, congestões cerebrais, a mortalidade atingira, sóem Paris, a cifra desproporcional de dez mil! Quanto aoataque g<strong>era</strong>l, na noite de 13 para 14, que ceifou mais decem mil vidas, caracterizou-se principalmente pelaressecação da laringe, congestões pulmonares, astenia<strong>do</strong>s órgãos respiratórios, embaraços da circulação <strong>do</strong>sangue, etc. O tão temi<strong>do</strong> óxi<strong>do</strong> de carbono não fi z<strong>era</strong>uma só vítima, porque, em chegan<strong>do</strong> à atmosf<strong>era</strong>, atransformação <strong>do</strong> movimento em calor o levara à


combustão e impedira, dada a sua fraca densidade, demisturar-se maiormente às camadas inferiores. Umaparte das pessoas mortalmente atingidas sucumbiu nodia seguinte e alguns houve cuja agonia permaneceu porvários dias. Não foi senão passa<strong>do</strong>s quinze dias que amédia se restabeleceu. Durante o mês fatídico, nasc<strong>era</strong>mem Paris 17.500 crianças, mas, quase todas sucumbiramvitimadas pelo pavor materno. Chegav am ao mun<strong>do</strong> jáenvenenadas, com os seus corpinhos azula<strong>do</strong>s.A estatística assinalava normalmente a média de 15óbitos por 1.000 habitantes, graças aos progressos daciência médica, o que corresponde a 35.000 por ano, ou369 por dia. Se, pois, descontarmos <strong>do</strong> cômputoprecedente 11.439 óbitos <strong>do</strong> coeficiente comum, temos acifra de 218.000 vítimas, mais ou menos, causadas pelocataclismo.O me<strong>do</strong>, só ele, teria origina<strong>do</strong> 150.000 mortes porsíncope, rutura de aneurismas, congestões cerebrais.E, contu<strong>do</strong>, o cataclismo não culminara no fim <strong>do</strong>mun<strong>do</strong>. Os claros não tardaram a ser preenchi<strong>do</strong> poruma espécie de recrudescimento de vitalidade, tal comose dava outrora em relação às guerras. A pauta denascimentos, de conjunto tomada em to<strong>do</strong> o globo,poderia estimar-se em uni nascimento por segun<strong>do</strong>, nocurso <strong>do</strong> primeiro ano após o pânico. Mas ardente quenunca, a Vênus física provou que o mun<strong>do</strong> não estavaprestes a findar. A Terra continuou o seu giro à luzfecunda <strong>do</strong> Sol, a Humanidade prosseguiu graduan<strong>do</strong> -separa mais altos destinos.


E o cometa servira de pretexto, quase único, paratodas as possíveis discussões e conjeturas, a respeito <strong>do</strong>grande problema capital <strong>do</strong> - Fim, <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>.<strong>FIM</strong> DA PRIMEIRA PARTESegunda ParteDENTRO DE DEZ MILHOES DE ANOS.CAPITULO 1As etapas futurasL'homme enfin prend son sceptre et jette son bâton,Et 1'on voit s'envoler le calcul de Newton,Monté sur Pode de Pindare.V. HUGO, Plein Ciel.O acontecimento que vimos de relatar, com asdiscussões que ele originou, ocorr<strong>era</strong> no século X XV da<strong>era</strong> cristã. A humanidade terrena não sucumbira aoembate cometário, que se tornou, entretanto, o maiorfenômeno de toda a sua história. Acontecimentomemorabilissimo, na verdade, e jamais esqueci<strong>do</strong>, sem


embargo das inúm<strong>era</strong>s transformações por que pas sou,posteriormente, a raça humana. A Terra prosseguiugiran<strong>do</strong>, o Sol continuou brilhan<strong>do</strong>, as criançasenvelhec<strong>era</strong>m e desaparec<strong>era</strong>m, sucedidas no fluxoperpétuo das g<strong>era</strong>ções. Os séculos, os perío<strong>do</strong>s seculares,transcorr<strong>era</strong>m. O Progresso, suprema lei, conqu istara omun<strong>do</strong>, apesar de to<strong>do</strong>s os entraves e obstáculos que oshomens costumam oferecer -lhe. A Humanidadeengrandec<strong>era</strong>-se lentamente em ciência e bem -estar,através de mil flutuações transitórias, para chegar aoapogeu e percorrer as veredas terrestres a ela assinadas.Mas... que série enorme de transformações físicas ementais!A população da Europa elevara -se, a partir <strong>do</strong> ano1900 ao ano 3000, de trezentos e setenta e cinco asetecentos milhões de habitantes. A Ásia passara deoitocentos e setenta e cinco milhões a um bilhão, a Áfricade setenta e cinco a duzentos milhões; as Américas decento e vinte a mil e quinhentos milhões e a Austrália decinco a sessenta milhões, perfazen<strong>do</strong> assim, para o globo,um acréscimo de um bilhão e novecentos milhões dealmas. E a progressão continuara, com alternativas.Também as línguas se haviam transforma<strong>do</strong>. Osprogressos incessantes da Ciência e da Indústria haviamorigina<strong>do</strong> grande número de vocábulos novos,ordinariamente estrutura<strong>do</strong>s na velha etimologia grega.Ao mesmo tempo, a língua inglesa se espalhara em todasas regiões <strong>do</strong> globo. Do vigésimo quinto ao trigésimoséculo, o idioma fala<strong>do</strong> na Europa derivava de um mistode inglês, francês e vocábulos etimologicamente gregos,aos quais se juntaram algumas expressões colh idas no


alemão e no italiano. Nenhum ensaio de língua universal,artificialmente criada, lograra êxito.Antes <strong>do</strong> século XXV, já a guerra fora banida dalógica humana, e ninguém concebia que uma raçapresumida inteligente e racional houvesse podi<strong>do</strong>sujeitar-se de bom gra<strong>do</strong> e por tanto tempo a um jugo tãobrutal quanto estúpi<strong>do</strong>, que a relegava a nível inferioraos animais. Alguns episódios históricos, que a pinturapopularizara, demonstrava em to<strong>do</strong> o seu horror a velhabarbárie. Aqui, <strong>era</strong> Rhamsés III, no Egit o, ven<strong>do</strong>entornar-se à frente <strong>do</strong> seu carro cestos e cestos de mãosdecepadas aos inimigos venci<strong>do</strong>s, a fim de op<strong>era</strong>r maisfacilmente a sua contagem, às centenas e aos milhares;ali, <strong>era</strong> Teglatpal-Asar nas planuras da Caldeia,mandan<strong>do</strong> esfolar vivos e expond o ao Sol os prisioneiros,ou Assurbanipal, na Assíria, arrancan<strong>do</strong> a língua aosBabilônios e empalan<strong>do</strong> os Susianos. Mais além, diante<strong>do</strong>s muros de Cartago, <strong>era</strong> Aníbal a crucificar os reféns.Depois, César decepan<strong>do</strong> a macha<strong>do</strong> o pulso <strong>do</strong>sGauleses revolta<strong>do</strong>s. Outros quadros mostravam Neroassistin<strong>do</strong> ao suplício <strong>do</strong>s cristãos acusa<strong>do</strong>s <strong>do</strong> incêndiode Roma e transforma<strong>do</strong>s em tochas ardentes. Emcompensação, por outro la<strong>do</strong>, Filipe II da Espanha e suacorte assistin<strong>do</strong> à queima <strong>do</strong>s heréticos, em nome deJesus. E mais: Gengis Khan balizan<strong>do</strong> o roteiro de suasvitórias com pirâmides de cabeças degoladas, e Atilaincendian<strong>do</strong> as cidades depois de saqueadas. Condena<strong>do</strong>sda Inquisição a expirarem em torturas inconcebíveis, e oschineses enterran<strong>do</strong> os condena<strong>do</strong>s até o pescoço, acabeça untada de mel, em pasta às moscas, ou, então,num suplício mais rápi<strong>do</strong>, serran<strong>do</strong> -os ao meio entre


duas pranchas. E Joana d'Arc expiran<strong>do</strong> na fogueira,Maria Stuart com a cabeça no cepo, e Lavoisier, Bailly,Chenier, no cadafalso, as dragonadas de Cévennes, osexércitos de Luís XIV devastan<strong>do</strong> o Palatina<strong>do</strong>, ossolda<strong>do</strong>s. de Napoleão tomba<strong>do</strong>s nas estepes geladas daRússia, e cidades bombardeadas, batalhas navais,amálgamas de tropas ceifadas à metralha, combates,aéreos despejan<strong>do</strong> <strong>do</strong> céu torrentes de f ogo, e pencas decadáveres, e destroços de máquinas. Por toda à parte o<strong>do</strong>mínio brutal <strong>do</strong> mais forte, na mais espantosaselvajaria. A série das guerras internacionais, civis,políticas, sociais, fora passada em revista e ninguémquis<strong>era</strong>m crer que as aberrações dessa loucura homicidativessem realmente avassala<strong>do</strong> por tanto tempo a mís<strong>era</strong>raça humana, chegada, finalmente, à idade da razão.Os últimos sob<strong>era</strong>nos haviam em vão proclama<strong>do</strong>,com ênfase retumbante, que a guerra <strong>era</strong> uma instituiçãode ordem providencial, divina, por isso.que resultavanaturalmente da luta pela vida, constituía o mais nobre<strong>do</strong>s exercícios, sen<strong>do</strong> o patriotismo a mais nobre dasvirtudes. De nada valeu fossem proclama<strong>do</strong>s campos dehonra os campos de batalha, com os gen<strong>era</strong>is vitoriososesculpi<strong>do</strong>s em bronze nas praças públicas. O sensohumano acabara por notar que nenhuma espécie animal,salvo algumas qualidades de formigas, d<strong>era</strong> mostras deestupidez tão grande, e, portanto, que a guerra tinha si<strong>do</strong>o esta<strong>do</strong> primitivo da Humanidade, obrigada a disputar avida aos animais. Concluíra, então, que de há muito esseinstinto rudimentar se voltara contra o próprio homem,que a luta pela vida não consistia em aniquilar -se a simesmo e sim em conquistar a natureza; que to<strong>do</strong>s os


ecursos da Humanidade estavam sen<strong>do</strong> lança<strong>do</strong>s aoabismo voraz <strong>do</strong>s exércitos permanentes, em pura perda,e que só o serviço militar codifica<strong>do</strong> valia por agravo talà liberdade, a ponto de restabelecer a escravidão apretexto de dignidade. As nações, governadas porsob<strong>era</strong>nos belicosos e sacer<strong>do</strong>tais, haviam-se revolta<strong>do</strong>,acaban<strong>do</strong> por encarcerá-los e embalsamá-los depois demortos, como espécimes dignos da curiosidade <strong>do</strong>spósteros. Assim, foram eles transporta<strong>do</strong>s a Aix -la-Chapelle e lá deposita<strong>do</strong>s, como satélites de outra época,em torno <strong>do</strong> túmulo de Carlos Magno.Os Esta<strong>do</strong>s europeus, constituí<strong>do</strong>s em repúblicasconfed<strong>era</strong>das, reconhec<strong>era</strong>m que o militarismorepresentava nos perío<strong>do</strong>s de paz um parasitismodevora<strong>do</strong>r, e mais - a impotência e a esterilidade; e nostempos de guerra o roubo e o homicídio legaliza<strong>do</strong>s, odireito brutal <strong>do</strong> mais forte, regímen ininteligentemanti<strong>do</strong> por uma obediência passiva aos diplomatasespecula<strong>do</strong>res da ignorância e fraqueza humanas.Outrora, nos tempos primitivos, combatiam -se as cidadesentre si, para proveito e glória de seus chefes e essaguerra ainda vigorava no século XIX na África central,onde se deparavam rapazes e raparigas compenetradas<strong>do</strong> seu papel de escravos, a ponto de marcharemvoluntariamente para as regiões onde deveriam sercomi<strong>do</strong>s ritualística e pomposamente. Algo diminuída aprimitiva barbaria, entraram as províncias a secoligarem e se combaterem: Atenas contra Sparta, Romacontra Cartago, Paris contra Dijon, Londres contraEdimburgo. A História registara os combates <strong>do</strong> Duquede Bourgogne contra o rei de França, <strong>do</strong>s Norman<strong>do</strong>s


contra os Parisienses, <strong>do</strong>s Ingleses contra os Escoceses,<strong>do</strong>s Venezianos contra os Genoveses, <strong>do</strong>s Saxões contraos Bávaros, etc.Depois, formaram-se nações mais vastas,suprimiram-se bandeiras e diversas províncias, mascontinuaram nações e povos a ensinar aos filhos o ódioaos vizinhos, arregimentan<strong>do</strong>-os e preparan<strong>do</strong>-os para seexterminarem.Guerras intermináveis e quase incessantes haviamdeflagra<strong>do</strong> entre a França, Inglaterra, Alemanha,Áustria, Itália, Espanha, Rússia, T urquia, etc.Os engenhos destrui<strong>do</strong>res acompanharam osprogressos da química, da mecânica, da aeronáutica e damaior parte das ciências. Havia mesmo teóricos -sobretu<strong>do</strong> entre os estadistas - que afirmavam ser aguerra necessária ao progresso, esqueci<strong>do</strong>s de que amaior parte <strong>do</strong>s inventores, em quaisquer ramos daciência, como da indústria, foram às criaturas maisantibélicas deste mun<strong>do</strong>. A estatística demonstrara que aguerra aniquilava quarenta milhões de homens cadaséculo, mil e cem por dia, ou fossem mil e duzentosmilhões em três mil anos. Não havia como iludir a ruínadas nações, pois só no século XIX elas gastaram emarmamentos a bela cifra de setecentos bilhões. Tambémse objetava, às vezes, que uma sangria <strong>era</strong> útil paracorrigir o acréscimo da população, sem levar em contaque a Terra poderia alimentar um número dez vezesmaior de habitantes, que os ceifa<strong>do</strong>s pelas guerras. Essasrivalidades patrióticas, habilmente entretidas pelospolíticos, que, por assim dizer, delas viviam, impediram aEuropa, por longo tempo, de imitar a América na


supressão <strong>do</strong>s exércitos que lhe exauriam todas as forças,arrebatan<strong>do</strong>-lhe anualmente milhões sobre milhões derecursos penosamente arranca<strong>do</strong>s ao povo laborioso,para constituir-se em Esta<strong>do</strong>s-Uni<strong>do</strong>s da Europa e poder,enfim, viver na abundância <strong>do</strong> trabalho útil. O gládio deMarte continuou a dizimar os melhores cidadãos. Mas,como os homens não se decidiam a renunciar aospreconceitos e vaidades nacionais, coube à alma femininaa glória de salvar a Humanidade.Sob a inspiração e direção de uma mulher superior, amaioria das mães coligou-se em toda a Europa paraeducar os filhos, e sobretu<strong>do</strong> as filhas, no horror <strong>do</strong>barbarismo militar. As conversas familiares, os serõesnoturnos, os discursos e leituras punham de manifesto aestupidez <strong>do</strong>s homens, a frivolidade <strong>do</strong>s pretextos quelançaram as nações umas contra as outras, a falácia dadiplomacia, tu<strong>do</strong> envidan<strong>do</strong> para exaltar o patriotismo edesvairar os espíritos, a inutilidade das guerras, oequilíbrio europeu sempre oscilante, j amais fixa<strong>do</strong>, aruína <strong>do</strong>s povos, os campos junca<strong>do</strong>s de mortos e feri<strong>do</strong>s,rasga<strong>do</strong>s à metralha - mortos e feri<strong>do</strong>s que, horas antes,viviam gloriosa e utilmente os <strong>do</strong>ns da Natureza... E asviúvas, os órfãos, a miséria, a fome, a morte, ainda... esempre. Uma só g<strong>era</strong>ção, assim esclarecida, houv<strong>era</strong>basta<strong>do</strong> para livrar a infância desses remanescentes deanimalidade carnívora, incutin<strong>do</strong>-lhe horror e desprezopor tu<strong>do</strong> o que lembrasse a velha barbaria. As mulherestornaram-se eleitoras e, como tais, elegíveis. Elasobtiv<strong>era</strong>m, antes de tu<strong>do</strong>, que a condição de elegibilidadeaos cargos administrativos importaria no compromissode combater os orçamentos militares, e foi na Alemanha


que a evolução se operou mais facilmente, graças aointernacional socialismo. Nada obstant e o compromisso,uma vez eleitos, mais de metade <strong>do</strong>s deputa<strong>do</strong>s a elefaltaram, alegan<strong>do</strong> razões de Esta<strong>do</strong>. Confessavam hav<strong>era</strong>liena<strong>do</strong> a independência pessoal e não poderemdesobedecer à palavra de ordem <strong>do</strong>s seus líderes! Naverdade, os governos recusavam de sarmar e osorçamentos de guerra continuavam sanciona<strong>do</strong>s.Imaginaram, depois, que, diferençan<strong>do</strong> -se os militaresem cada país, sobretu<strong>do</strong> pelos costumes, seria talvezpossível suprimir os exércitos com a supressão dessescostumes. A proposição <strong>era</strong>, contu<strong>do</strong>, assaz simplistapara que pudesse lograr êxito. Foi então que as <strong>do</strong>nzelasjuraram, entre si, não esposar militares nem militaristas.Renunciavam, dessarte, ao casamento, e mantiv<strong>era</strong>m -sefiéis ao juramento.Os primeiros tempos dessa liga foram assazdificultosos, mesmo para o belo sexo. Não fosse o temorda reprovação universal e mais de um coração ter -se-iarendi<strong>do</strong>. E' que, aos rapazes não lhes faltavamqualidades pessoais, e os uniformes não haviam perdi<strong>do</strong> ofascínio da elegância. Diga-se, a bem da verdade, quesempre houve algumas defecções; mas, como os casaisassim constituí<strong>do</strong>s foram, desde logo, mal vistos eaponta<strong>do</strong>s como parias da sociedade, o exemplo nãofrutificou. A opinião pública se consolidara a tal respeitoe já não havia como contrariar a corre nte. Por toda àparte, viam-se nos logra<strong>do</strong>uros públicos inscrições eapelos à paz universal.Os belicosos são ladrões e assassinos! - eis umconceito <strong>do</strong>s mais li<strong>do</strong>s, notadamente em Berlim.


Durante cinco anos, mais ou menos, não se efetuaraum só casamento. Na França, na Alemanha, na Itália emesmo na Inglaterra, to<strong>do</strong> cidadão <strong>era</strong> solda<strong>do</strong>. Ali,como nos demais países, o imposto de sangue fora vota<strong>do</strong>ainda no século XX. Eles achavam -se prontos para seconfed<strong>era</strong>rem, mas recalcitravam e divergiam porquestões de bandeira. As mulheres agiam com firmeza,sentiam consigo a chave <strong>do</strong> problema e que a sua decisãolibertaria da escravidão o gênero humano.As objurgatórias apaixonadas de alguns homens,respondiam unânimes: Não! não mais queremos imbecis.Outras acrescentavam: Recusamo-nos a criar filhos parao mata<strong>do</strong>uro. Se a teimosia continuasse, permaneceriamirredutíveis no juramento ou emigrariam para aAmérica, onde o militarismo havia desapareci<strong>do</strong>, já dealguns séculos. No Departamento da AdministraçãoEstatal (out rora Parlamento), os cidadãos maiseloqüentes reclamavam sem tréguas o desarmamento.Enfim, ao cabo de cinco anos, em face da muralha deoposição feminina, dia a dia mais espessa e irredutível, asdeputações internacionais, num impulso de eloqüenteunanimidade, reforçavam de bela retórica os argumentose apelos femininos, e, dentro de uma semana, odesarmamento estava decreta<strong>do</strong> para todas as nações. ARepública alemã havia triunfa<strong>do</strong> de to<strong>do</strong>s os prejuízos epreconceitos, de que se fiz<strong>era</strong> a primeira e maior v itima.Estava-se então na primav<strong>era</strong>. O golpe não provocaranenhuma revolução. Inúmeros casamentos se realizaram.A Rússia e a Inglaterra haviam fica<strong>do</strong> fora <strong>do</strong> acor<strong>do</strong>,visto que o sufrágio feminino não <strong>era</strong> unânime nessespaíses. Mas, como no ano seguinte to <strong>do</strong>s os povos


europeus se constituíram em Repúblicas, confed<strong>era</strong>n<strong>do</strong> -se num Esta<strong>do</strong> único, a convite <strong>do</strong> governo <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>sUni<strong>do</strong>s da Europa, as duas grandes nações decretaram, aseu turno, o desarmamento gradual, por décadas.Havia muito que as Índias se tinham emancipa<strong>do</strong> daInglaterra e se constituí<strong>do</strong> em Repúblicas. Quanto àRússia, mantinha sempre o governo monárquico. Osministérios da guerra foram suprimi<strong>do</strong>s em toda a parte,como verdadeiras aberrações sociais, estigma infamante.Mediava-se, então, o XXIV século e daí por diante a idéiamesquinha de pátria foi substituída pelo consenso g<strong>era</strong>lde humanidade. A selvajaria internacional suced<strong>era</strong> umafed<strong>era</strong>ção inteligente...Das instituições militares apenas restava a música,única fantasia agradável associada a o marcialismo, e queto<strong>do</strong>s procuravam conservar. As milícias especiais foramtambém conservadas, no só intuito de entreter esseespírito marcial de camaradagem tão alegre, brilhante esalutar. Com o correr <strong>do</strong>s tempos, nunca se chegou acompreender que tal música fosse inventada para levartropas ao mata<strong>do</strong>uro.Livre da servidão militar, a Europa houv<strong>era</strong> tambémde forrar-se imediatamente à praga <strong>do</strong> funcionalismoburocrático, que, por outro la<strong>do</strong>, ameaçava as nações deesgotamento, dada a sua pletora. Para isso , contu<strong>do</strong>, foipreciso uma revolução radical. Os parasitas <strong>do</strong>orçamento tiv<strong>era</strong>m de ser elimina<strong>do</strong>s sem restrições, edesde então a Europa elevou-se rapidamente num surtomaravilhoso de progresso social, científico, industrial eartístico.To<strong>do</strong>s respiravam livremente, vivia-se enfim.


Para pagar 700 bilhões por século, aos cidadãosafasta<strong>do</strong>s de to<strong>do</strong> o trabalho produtivo e parasubvencionar os encargos <strong>do</strong> funcionalismo, os governosse tinham visto na contingência de elevar os impostos acifras astronômicas. O imposto progressivo, cria<strong>do</strong> noséculo XX, mal chegara para cobrir o déficit, emboraarrecada<strong>do</strong> por bilhões. De 31 de Dezembro de 1950 a 31de Dezembro de 1960, a França entrara na posse de todasas linhas férreas e, apesar <strong>do</strong>s reembolsos, enriquec<strong>era</strong>subitamente com um capital de 20 bilhões. Mas esseacréscimo de capital já havia si<strong>do</strong> de antemão desconta<strong>do</strong><strong>do</strong> orçamento e os orçamentos, e os impostos, em vez debaixarem, subiram ainda mais nos séculos XX e XXI.Afinal, acabaram tu<strong>do</strong> tributan<strong>do</strong>: o ar respiráve l, aágua das fontes e as fluviais, a luz artificial e a natural, opão, o vinho, to<strong>do</strong>s os artigos de consumo, habitações,ruas, cidades, campos, animais de toda a espécie,inclusive aves de gaiola, instrumentos e maquinismosquaisquer, os empregos, os cel ibatários, os casa<strong>do</strong>s, asamas, os móveis, tu<strong>do</strong>, enfim, que representasse utilidadeou valor. Nesse ritmo, cresc<strong>era</strong>m os impostos, até o diaem que o seu montante igualou a exata produção <strong>do</strong>trabalho, exceto o indispensável - o pão cotidiano. Nessedia, to<strong>do</strong> o trabalho paralisou. A vida afigurava -seimpossível. Daí, a grande revolução internacionalanarquista, a que aludimos no começo deste livro, e asque se lhe seguiram.To<strong>do</strong>s os Esta<strong>do</strong>s incidiram sucessiva mente embranca-rota.Mas, essas revoluções não tinham logra<strong>do</strong> livrar aEuropa, definitivamente, da antiga barbaria. Os


prejuízos patrióticos já começavam a endividar o mun<strong>do</strong>,e foi ainda à liga feminina que a Humanidade deveu asua libertação.Viu-se, então, uma coisa incrível, inadmissível, semprecedentes na História: - diminuição <strong>do</strong>s impostos!Alivia<strong>do</strong> de nove décimos, o orçamento não se aplicousenão na manutenção da ordem interna, na segurança<strong>do</strong>s cidadãos, nas escolas de todas as categorias, noestímulo de novas investigações, no progresso crescentedas artes, indústrias e todas as manifestações deatividade intelectual. Com isso, a iniciativa individualsobrepujara a velha centralização que por tantos séculoshavia, dissipan<strong>do</strong> as finanças, atrofia<strong>do</strong> ou abafa<strong>do</strong> asmais ardentes e fecundas tentativas.E assim morr<strong>era</strong> a burocracia com todas as suashonras e prerrogativas. A parvoíce <strong>do</strong> duelo nãosobreviv<strong>era</strong> de muito a da guerra. Não havia já quempudesse conceber que dissídios quaisquer se resolvessemracionalmente a tiros ou estocadas, da mesma forma q ueninguém admirava a galanteria <strong>do</strong>s oficiais franceses, dechapéu na mão, na batalha de Fontenoy, convidan<strong>do</strong> osSrs. Ingleses a dispararem primeiro. Tu<strong>do</strong> isso nãopassava, mesmo aos olhos das crianças, de um grande eestúpi<strong>do</strong> anacronismo.A despeito de todas as inconseqüências <strong>do</strong> cepticismobalofo, da incompetência habitual, da nulidade científicae de umas que outras prevaricações de alguns políticos, aforma republicana sobrelevara a to<strong>do</strong>s os outros regimes,salvo no pre<strong>do</strong>mínio democrático. Reconhec<strong>era</strong>m, afinal,que não pode haver igualdade intelectual e moral entreos homens, e que melhor fora confiar o governo a um


grupo de espíritos de escol, <strong>do</strong> que entregá -lo a umaturba de ambiciosos, cujo mérito principal consistia naforça <strong>do</strong>s pulmões e na loquacid ade inexaurível, semoutro ideal que o de tirarem parti<strong>do</strong> pessoal no jogoconstante das paixões populares. Verificara -se,outrossim, que uma Câmara composta de centenas dehomens tinha menor capacidade de julgamento que umsó homem. Os erros grosseiros, os excessos brutais dademagogia tinham, mais de uma feita, coloca<strong>do</strong> aRepública em perigo de morte. Mas, da<strong>do</strong> que ahereditariedade monárquica também não garantiamaiormente os deveres de um governo racional,acabaram a<strong>do</strong>tan<strong>do</strong> uma Constituição patrocinada p orlimita<strong>do</strong> número de cidadãos, eleitos sob garantias de umsufrágio também seleciona<strong>do</strong> e restrito. Os títulos egalardões não mais se distribuíam ao primeiro pleiteanteque os ambicionava, e sim aos estudiosos que, por seuscomprova<strong>do</strong>s méritos, a eles fizessem jus.A uniformidade <strong>do</strong>s povos, das idéias, <strong>do</strong>s idiomasfora o complemento da <strong>do</strong>s pesos e medidas. Nenhumanação recusara o sistema basea<strong>do</strong> na mensuração <strong>do</strong>próprio orbe. A moeda tornou -se uma só, um sómeridiano inicial regulou a geografia. Esse meri dianopassava pelo Observatório de Greenwich e <strong>era</strong> no seuantípoda que o dia mudava de nome, às 12 horas. Omeridiano de Paris, havia muito, caíra em desuso. Aesf<strong>era</strong> terráquea fora, durante alguns séculos,convencionalmente dividida em fusos de 24 horas; mas,as diferenças da verdadeira hora acarretan<strong>do</strong>irregularidades ilógicas e inúteis, as horas locaisabsolutamente necessárias às observações astronômicas


haviam reapareci<strong>do</strong> como satélites da hora universal,contava-se, então, consecutivamente de 1 a 4 e não maisinfantilmente, como outrora, duas vezes 12 horas.Transformações não menos radicais houv<strong>era</strong> nasciências, nas artes, nas indústrias e, sobretu<strong>do</strong>, nalit<strong>era</strong>tura. A classificação <strong>do</strong>s conhecimentos humanos,<strong>do</strong> ponto de vista <strong>do</strong> seu valor intrínseco, mu<strong>do</strong>u com oprogresso relativo de cada uma.A meteorologia, por exemplo, tornou -se uma ciênciaexata e atingiu a precisão da astronomia.Chegara-se a prever o tempo para o século XXX, qualprevemos hoje um eclipse, ou a visita de um cometa. Osantigos almanaques foram substituí<strong>do</strong>s por anuáriosseguros, prenuncian<strong>do</strong> com grande antecipação to<strong>do</strong>s osfenômenos da Natureza. Festividades públicas, diversõesparticulares, viagens e passeios já se não adiavam pormau tempo e, no mar, tão-pouco, os navios se deixavamcolher por tempestades. As florestas haviamdesapareci<strong>do</strong> inteiramente, não só para cultivo <strong>do</strong> solo,como para atender à fabricação <strong>do</strong> papel. O juro legal damoeda baixara a 1/2 %. Os grandes capitalistas foramrelega<strong>do</strong>s ao plano tradicional das idades fó sseis. Aeletricidade substituíra o vapor. Estradas de ferro, tubospneumáticos, funcionavam no transporte de cargas. Asviagens <strong>era</strong>m feitas de preferência em balões dirigíveis,aeronaves elétricas, aeroplanos, helicópteros, uns mais,outros menos pesa<strong>do</strong>s que o ar. Os antigos vagões sujos,fumarentos, empoeira<strong>do</strong>s, barulhosos e trepidantes, comapitos estridentes das locomotivas, d<strong>era</strong>m lugar aosberços aéreos, leves, rápi<strong>do</strong>s, elegantes, a fenderemsilenciosamente as altas e puras camadas atmosféricas.


Pelo só advento da navegação aérea, as fronteiras,que aliás nunca existiram para os sábios em suas relaçõesmútuas, teriam si<strong>do</strong> suprimidas, se antes o não fossempelos progressos da razão. As constantes viagens pelasuperfície <strong>do</strong> globo redundaram no internacion alismo ena livre e incondicional permuta das idéias. Abolidas asalfândegas, riqueza universal, nem exércitos, nemmarinha, nem aduanas, nem tributos quaisquer. Toda amáquina social simplificara-se. A indústria realizouconquistas extraordinárias. Desde o século trigésimo queo mar chegava a Paris mediante um grande canal. Navioselétricos ali aportavam, procedentes <strong>do</strong> Atlântico e <strong>do</strong>Pacífico, atravessan<strong>do</strong> o istmo <strong>do</strong> Panamá. Esses navioscobriam em poucas horas o percurso <strong>do</strong> cais de Saint -Denis ao porto de Londres. Muita gente os utilizavaainda, apesar <strong>do</strong>s comboios aéreos regulares, <strong>do</strong> túnel eda ponte sobre o canal da Mancha.Para além de Paris reinava a mesma atividade, pois ocanal <strong>do</strong>s Dois-Mares ligan<strong>do</strong> o Mediterrâneo aoAtlântico, de Narbonne a Bordé us, suprimira a grandevolta pelo estreito de Gibraltar, e, por outro la<strong>do</strong>, umtubo metálico, constantemente percorri<strong>do</strong> por comboiosde ar comprimi<strong>do</strong>, ligava a República da Ibéria(antigamente Espanha e Portugal) a Argélia ocidental(antigo Marrocos). Paris e Chicago contavam, então,nove milhões de habitantes. Lond res dez e New-York<strong>do</strong>ze milhões. Prosseguin<strong>do</strong> em sua marcha para oeste,Paris estendia-se da confluência <strong>do</strong> Marne para além deS. Germain. A velha cidade apenas se reconheceria porantigos monumentos arruina<strong>do</strong>s, <strong>do</strong>s séculos XIX e XX.Para fixar apenas alguns aspectos, diremos que a cidade


<strong>era</strong> iluminada por cem luas artificiais, faróis elétricossuspensos de torres altas de 1.000 metros. Chaminés coma sua fumarada haviam desapareci<strong>do</strong>, pois to<strong>do</strong> o calor<strong>era</strong> o <strong>do</strong> solo, ou produzi<strong>do</strong> por usinas hidroelétricas. Anavegação elétrica suprimira to<strong>do</strong>s os veículosprimitivos, das épocas ditas bárbaras. Ninguém via lamanem poças da água pelas ruas, pois que à primeira gotade chuva os tol<strong>do</strong>s de vidro <strong>era</strong>m lo go corri<strong>do</strong>s, e osmilhões de guardas-chuvas fósseis ficavam assimsubstituí<strong>do</strong>s.Enfim, o que chamamos hoje civilização, não passavade primitivismo, em relação aos progressos realiza<strong>do</strong>s.Todas as grandes cidades haviam progredi<strong>do</strong> emdetrimento <strong>do</strong>s campos. A agricultura <strong>era</strong> explorada porusinas elétricas; o hidrogênio <strong>era</strong> extraí<strong>do</strong> das águas <strong>do</strong>mar; as quedas da água e as marés produziam luz agrandes distâncias; os raios solares armazena<strong>do</strong>s no estiodistribuíam-se no inverno, e as estações haviam mais oumenos desapareci<strong>do</strong>, sobretu<strong>do</strong> depois que os poçossubterrâneos traziam à superfície <strong>do</strong> solo a temp<strong>era</strong>turainterior <strong>do</strong> globo, que parecia inesgotável. To<strong>do</strong>s oshabitantes da Terra podiam intercomunicar -se portelefone. A telefonoscopia dava a conhecer, em toda aparte, imediatamente, quaisquer acontecimentos maisimportantes e interessantes. Uma peça teatral,representada em Chicago ou em Paris, <strong>era</strong> ouvida ouvista, simultaneamente, em todas as cidades <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.Calcan<strong>do</strong> um botão elétrico, poder -se-ia, à vontade,assistir ao espetáculo preferi<strong>do</strong>. Uno simples comuta<strong>do</strong>rlevava instantaneamente aos confins da Ásia e deixavaentrever os bailarinos de uma festividade em Ceilão ou


Calcutá. Não só se ouvia como via, à distância: o engenhohumano chegara mesmo a transmi tir, por influênciascerebrais, as sensações tácteis, bem como as olfativas. Aimagem refletida podia, em dadas condições especiais,reconstituir integralmente a pessoa ausente.No quinquagésimo século inventaram -semaravilhosos aparelhos de física e de óp tica. Uma novasubstância substituiu o vidro e acarretou à Ciênciaresulta<strong>do</strong>s absolutamente imprevistos. Novas energiasconquistadas à Natureza.E o progresso social acompanhara o científico. Asmáquinas elétricas substituíram gradualmente o trabalhomanual. Para os serviços triviais cotidianos, houve quedesistir <strong>do</strong>s <strong>do</strong>mésticos ou cria<strong>do</strong>s humanos, visto não seencontrar um só que não explorasse odiosamente opatrão, já exigin<strong>do</strong> salários principescos, jásistematizan<strong>do</strong> o roubo. Ao demais, em to<strong>do</strong>s os centro spopulosos haviam desapareci<strong>do</strong> os merca<strong>do</strong>s públicos,aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>s pelos clientes devi<strong>do</strong> à grosseria <strong>do</strong>smerca<strong>do</strong>res. Essa, a razão que determinara a supressãoinsensível de quaisquer intermediários e a recorrer, tãodiretamente quanto possível, às fontes da Natureza, como auxílio de aparelhos automáticos, dirigi<strong>do</strong>s por símios.Sim; nada de serviçais quaisquer, que não macacosadestra<strong>do</strong>s. Demais, a vassalagem humana haveriamesmo de acabar, como suced<strong>era</strong> outrora com aescravidão. Além disso, os regimes de al imentaçãotinham-se inteiramente transforma<strong>do</strong>. A síntese químicaconseguira substituir açúcares, albuminas, ami<strong>do</strong>s,gorduras, extraí<strong>do</strong>s <strong>do</strong> ar, da água e <strong>do</strong>s vegetais,compostos de combinações mais vantajosas, em


proporções sabiamente calculadas, de carbono,hidrogênio, oxigênio, azoto, etc. Os banquetes maissuntuosos realizavam-se, então, não mais em torno demesas fumegan<strong>do</strong> destroços de animais estrangula<strong>do</strong>s,sangra<strong>do</strong>s ou asfixia<strong>do</strong>s - bois, carneiros, porcos, frangos,peixes, etc., - mas, em salões elegantes, orna<strong>do</strong>s dearbustos e de flores, num ambiente leve, que a música eos perfumes enchiam de harmonias. Homens e mulheresnão mastigavam mais com requintes de brutal glutonariapedaços de animais imun<strong>do</strong>s, sem mesmo separar o útil<strong>do</strong> inútil.De começo, passaram a destilar as carnes; depois,visto que os animais se constituem, também eles, deelementos tira<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s reinos min<strong>era</strong>l e vegetal,recorr<strong>era</strong>m diretamente a esses elementos.Era em bebidas esquisitas, frutas, bolos,comprimi<strong>do</strong>s, que se absorviam os princípios necessáriosà reparação <strong>do</strong>s teci<strong>do</strong>s orgânicos, sem necessidade demastigar carnes. De resto, a eletricidade e o Solfabricavam perpetuamente a análise e a síntese <strong>do</strong> ar eda água.Os médicos haviam desapareci<strong>do</strong>, por inúteis. Umahigiene racional, adequada aos temp<strong>era</strong>mentos, idade esexo, substituíra em trinta séculos a velha medicinainteresseira e cega.Cada qual reconhec<strong>era</strong> que, estudan<strong>do</strong> -se a si mesmo,tornava-se supérfluo e perigoso oferecer o organismo eexperiências tateantes da medicina empí rica, servidapelos tóxicos farmacêuticos. O que só havia <strong>era</strong>higienistas dedica<strong>do</strong>s à conservação da saúde normal, ecirurgiões para os casos acidentais.


A partir <strong>do</strong> sexagésimo século, sobretu<strong>do</strong>, o sistemanervoso se refinara e desenvolv<strong>era</strong> sob modalidadesimprevistas. O cérebro feminino conservara -se sempreum pouco menor que o masculino e, diga -se, pensan<strong>do</strong>sempre um tanto diferente (sua esquisita sensibilidadesempre timbrada pelo sentimentalismo, antes que oraciocínio completo tenha tempo de se formar nas célulasmais profundas) e o crânio também diminuíra, com afronte mais larga, mas, tão elegantemente plantada numpescoço flexível, tão altamente destacada <strong>do</strong> bustoharmonioso, que provocava, como nunca, a admiração<strong>do</strong> homem, Em ficar comparativamente menor que a <strong>do</strong>homem, a cabeça da mulher tinha aumenta<strong>do</strong>, todavia,com o exercício das faculdades intelectuais; é que ascircunvoluções cerebrais se fiz<strong>era</strong>m mais numerosas emais profundas, e isto, tanto nos cérebros femininoscomo nos masculinos. Em suma: a cabeça, em g<strong>era</strong>l,aumentara em volume. Em compensação, o corpodiminuíra, não se encontravam mais gigantes.Quatro causas permanentes tinham contribuí<strong>do</strong> paramodificar insensivelmente a forma humana -desenvolvimento <strong>do</strong> cérebro e das faculdadesintelectuais; diminuição <strong>do</strong>s trabalhos manuais e <strong>do</strong>sexercícios corporais; transformação <strong>do</strong> alimento e seleçãonupcial. A primeira tiv<strong>era</strong> por efeito aumentar a cabeçaproporcionalmente ao resto <strong>do</strong> corpo; a segunda,diminuir a força <strong>do</strong>s braços e das pernas; a terce ira,restringir a amplitude <strong>do</strong> ventre, apequenan<strong>do</strong>, afilan<strong>do</strong>e perolan<strong>do</strong> os dentes; a quarta, ao invés, como quetend<strong>era</strong> a perpetuar as formas clássicas da belezahumana, na estatura masculina, na nobreza da fronte


elevada para o céu, nas curvas firmes e g raciosas damulher.No centésimo século da nossa <strong>era</strong>, não houve mais queuma só raça, assaz pequena de porte, branca, e na qualos antropologistas poderiam talvez reencontrar vestígiosde anglo-saxônios e chineses.Nenhuma outra raça veio substituir e <strong>do</strong>mi nar anossa. Quan<strong>do</strong> os poetas haviam anuncia<strong>do</strong> que o homemacabaria, com o progredir maravilhoso de todas ascoisas, adquirin<strong>do</strong> asas e voan<strong>do</strong> com a só energia <strong>do</strong>sseus músculos, não tinham estuda<strong>do</strong> as origens daestrutura antropomórfica. Não lhes ocorreu q ue, para t<strong>era</strong>o mesmo tempo braços e ossos, o homem deveriapertencer a uma ordem zoológica de sextúpedes,inexistentes em nosso planeta, ao passo que ele proveio<strong>do</strong> quadrúpede, cujo tipo foi gradualmentetransforma<strong>do</strong>. Entretanto, se de fato não adquirira novosórgãos naturais, não deixava de os ter artificiais. Elesabia, notadamente, guiar-se nos ares, planar nas alturas<strong>do</strong> firmamento, servin<strong>do</strong>-se de aparelhos elétricos muitorápi<strong>do</strong>s e simples.Compartilhava com as aves os <strong>do</strong>mínios daatmosf<strong>era</strong>. E' muito provável que se uma raça de grandesvoa<strong>do</strong>res pudesse adquirir, séculos o fora, graças àfaculdade de observação, um cérebro análogo ao homem,ainda o mais primitivo, essa raça não tardaria a <strong>do</strong>minara espécie humana, substituin<strong>do</strong>-a por uma nova raça.Mas, como a intensidade <strong>do</strong> peso terrestre opõe -se a queos seres ala<strong>do</strong>s adquiram a qualquer tempo um taldesenvolvimento, a Humanidade - evolvida - ficarasempre sob<strong>era</strong>na deste mun<strong>do</strong>.


Chegada ao ducentésimo século, a espécie humanadeixara de apresentar qualquer semelhança física com osmacacos. Do ponto de vista moral perd<strong>era</strong>, também, aafinidade com os animais carnívoros. Todas as divisõesnacionais das épocas remotas haviam sucessivamentedesapareci<strong>do</strong>, após reações e flutuações formidáveis. AEuropa, uma vez pacificada, sofr<strong>era</strong> a inundaçãoasiática. Enquanto havia bárbaros, as civilizações <strong>era</strong>mperiodicamente agredidas pela brutalidade da força, devez que, chega<strong>do</strong>s ao bem-estar, à riqueza, à ordem, aosaber, é que os povos deixam de conceber separaçõesnacionais, perdem a noção de pátria e acabamsucumbin<strong>do</strong> ao embate invasor <strong>do</strong>s vizinhos aindabarbariza<strong>do</strong>s. Tal fora à sorte <strong>do</strong> Egito, da Pérsia, daGrécia, de Roma, da França e, finalmente, da Europatoda. Primeiro os eslavos, depois os chineses, haviam<strong>do</strong>mina<strong>do</strong>. Mas, com a gen<strong>era</strong>lização <strong>do</strong> progressomilenar, as civilizações ressurgiam sempre maisaprimoradas e um tanto mais fortes, de sorte que obarbarismo acabara por desaparecer inteiramente daface da Terra. Com o desaparecimento da força bruta, aHumanidade idealizara e começara a viver pelo espírito.CAPITULO IIAs metamorfosesVidi ego, quod fu<strong>era</strong>t quondam solidissima tellus.Esse fretum; vidi fractas eequore terras.Et procul a pelago conchoe jacuere marinae,


Et vetus inventa est in montibus anchora su mmls.OVIDIUS, Metamorph. XV 262.Conhecida é a lenda <strong>do</strong> Árabe Kazwini, contada porum viajante <strong>do</strong> século XIII e que não tinha, portanto,qualquer noção de longevidade das épocas da natureza.Passan<strong>do</strong> certo dia - diz ele - por uma cidadeantiqüíssima e muito populosa, perguntei a um de seushabitantes quantos anos contava a sua fundação. De fato- respondeu -, é uma cidade importante, esta, mas nósnão lhe sabemos a idade e os nossos antepassa<strong>do</strong>s <strong>era</strong>m,neste particular, tão ignorantes quantos nós.Cinco séculos mais tarde, passava eu pelo mesmo sítioe não pude perceber nenhum vestígio da cidade.Perguntei a um camponês, entreti<strong>do</strong> a colher lenha, se<strong>era</strong> ali que demorava a antiga cidade e, no casoafirmativo, há quanto tempo fora destruida. Para dizerverdade - respondeu -, nada lhe posso dizer e atéestranho a pergunta, porque este terreno nunca passoudisto. Então, não existiu aqui uma grande cidade? -indaguei. Nunca; a menos que possamos concluir peloque não vimos; além de que, nossos pais também jam aisnos falaram de tal coisa.Em lá regressan<strong>do</strong> outra vez, passa<strong>do</strong>s mais dequinhentos anos, encontrei o terreno invadi<strong>do</strong> pelo mar ena praia um magote de pesca<strong>do</strong>res, aos quais pergunteiquan<strong>do</strong> se d<strong>era</strong> aquela transformação. Isso é lá pergunta


que nos faça um homem como vós? - diss<strong>era</strong>m eles. - Poisisto aqui sempre foi o que é. Mais quinhentos anos<strong>do</strong>ba<strong>do</strong>s, em lá regressan<strong>do</strong>, vi que tu<strong>do</strong> haviadesapareci<strong>do</strong>. Informei-me de um único homem, láencontra<strong>do</strong>, e a sua resposta foi à mesma que asanteriores.Finalmente, permea<strong>do</strong> igual perío<strong>do</strong> de tempo, volteipela última vez e lá encontrei uma cidade populosa emais rica que a primeira por mim visitada; e, quan<strong>do</strong>pretendi inteirar-me da sua origem, obtive esta resposta:a data de sua fundação perde-se na noite <strong>do</strong>s tempos,ignoramos a sua evolução e os nossos antepassa<strong>do</strong>s já nosdiziam a mesma coisa, isto é : sabiam tanto quanto nós.Não temos aí a imagem da fugacidade da memóriahumana e da estreiteza <strong>do</strong>s nossos horizontes, no tempocomo no espaço? Somos leva<strong>do</strong>s a crer que a Terrasempre foi o que é, e como é. Dificilmente nos damosconta das transformações seculares que ela temexperimenta<strong>do</strong>. A vultuosidade desses tempos nosesmaga como, em astronomia, a enormidade <strong>do</strong> espaço.Entretanto, tu<strong>do</strong> muda, tu<strong>do</strong> se transforma, tu<strong>do</strong> semetamorfoseia. Dia virá em que Paris, foco atrativo detodas as nações, verá palecer o seu brilho, deixará de sero farol <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.Depois da fusão <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s-Uni<strong>do</strong>s da Europa emuma confed<strong>era</strong>ção única, a República russa formara, dePetersburgo a Constantinopla, uma espécie de barreiraao surto da emigração chinesa, que já havia funda<strong>do</strong>cidades populosas nas margens <strong>do</strong> mar Cáspio. Asnacionalidades antigas, porém, haviam desapareci<strong>do</strong> como progresso. As bandeiras européias passaram de moda,


haviam-se proscrito pelos mesmos motivos. Ascomunicações de leste a oeste, entre a Europa e América,tornaram-se mais a mais fáceis; o mar deixara de oporobstáculos à marcha da Humanidade no senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> Sol.Aos territórios exauri<strong>do</strong>s, da Europa ocidental, aatividade industriosa preferira as terras novas <strong>do</strong> vastocontinente americano. Desde o século XXV o foco dacivilização fulgurava às margens <strong>do</strong> lago Michigan, emuma como nova Atenas de 9.000.000 de habitantes, igualà Paris. Contu<strong>do</strong>, não tar<strong>do</strong>u seguisse a bel a capitalfrancesa o destino de suas irmãs mais velhas: - Roma,Atenas, Mênfis, Tebas, Nínive, Babilônia. Os grandestesouros, os recursos de toda ordem e as atrações eficazesdeslocaram-se, transpus<strong>era</strong>m o oceano, estavam alhures.A Ibéria, a França, a Itália, pouco a poucodespovoadas, viram estender-se à solidão sobre as suasvelhas cidades em ruínas. Lisboa havia desapareci<strong>do</strong>,destruída pelas ondas. Madrid, Roma, Nápoles eFlorença não passavam de escombros, e Paris, Lião eMarselha não tardaram a acompa nhá-las na mesmaderrocada. O tipo humano e os idiomas sofr<strong>era</strong>m taltransformação que nenhum etnólogo ou lingüista seriacapaz de encontrar resquícios <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>. Havia muitoque já se não falava o francês, o inglês, o alemão, oitaliano, o espanhol, o português. A Europa emigrarapara além <strong>do</strong> Atlântico e a Ásia se deslocara para aEuropa. Os chineses, em número de um bilhão, tinham,insensivelmente, invadi<strong>do</strong> toda a Europa ocidental.Mistura<strong>do</strong>s à raça anglo-saxônia, havia, de algum sedes<strong>do</strong>brara, qual rua interminável, de cada la<strong>do</strong> <strong>do</strong> canal<strong>do</strong>s Dois-mares, de Bordéus a Tolosa e a Narbona. As


causas da fundação de Lutécia na ilha <strong>do</strong> Sena, e quehaviam gradualmente desenvolvi<strong>do</strong> a cidade <strong>do</strong>sParisienses até o século XXV, não mais existiam e Parisentrara em rápida decadência. O comércio apossara -se<strong>do</strong> Mediterrâneo e das grandes rotas oceânicas, e o canal<strong>do</strong>s Dois-mares <strong>era</strong> um empório mundial.As nações a que chamamos modernas haviam -seeclipsa<strong>do</strong>, como as antigas. Depois de uma existência bempeculiar, de mais ou menos <strong>do</strong>is mil anos, a França sediluíra no Esta<strong>do</strong> europeu, no século XXVIII, o mesmoacontecen<strong>do</strong> à Itália no XXIX e à Alemanha no XXXIII.A Inglaterra, essa, disseminara-se por to<strong>do</strong>s os mares. Avelha Europa oferecia ao olhar e ao pensamentohumanos o mesmo panorama das planuras da Assíria, daCaldeia, <strong>do</strong> Egito. Novos tempos, nova gente. Seresoutros povoaram as antigas cidades. Assim que, emnossos tempos, Atenas e Roma ainda sobrevivem, massua fisionomia é outra, e há muito desaparec<strong>era</strong>m <strong>do</strong>cenário os primitivos gregos e romanos.As costas <strong>do</strong> sul e <strong>do</strong> oeste, da antiga França, tinhamsi<strong>do</strong> protegidas por diques, a fim de barrar a invasão <strong>do</strong>mar; mas, descura<strong>do</strong>s o norte e o nordeste, devi<strong>do</strong> aoafluxo das populações <strong>do</strong> sul e su<strong>do</strong>este, a depressão lentae constante das praias continentais, observadas já naépoca de César, chegou abaixo <strong>do</strong> nível <strong>do</strong> mar e este,continuan<strong>do</strong> a alargar a Mancha e a carcomer as rochas,<strong>do</strong> Havre à ponta <strong>do</strong> Hélder, sobrepujara os diquesholandeses invadin<strong>do</strong> os Países Baixos, a Bélgi ca e onorte da França. Amsterdam, Utrech, Rotterdam,Antuérpia, Bruxellas, Lille, Amiens e Ruão submergirame os navios flutuavam sobre os seus escombros. Paris


mesma, depois de arvorada em porto de mar durantemuito tempo, vira as águas subirem às torres de Notre-Dame e cobrirem de ondas inquietas a planíciememorável onde, por tantos e longos anos, se jogaram osdestinos da Terra. D<strong>era</strong>-se com a França a mesma coisaque com a Holanda de outros tempos, cujas cidadestragadas pelo mar deixavam entrever por longo tempo,sob o lençol transparente das águas, a m agnificência dassuas ruínas. (8)Sim! Paris, a bela Paris, a velha e gloriosa cidade jánão passava de um montão de escombros. O soloeuropeu, principalmente a oeste e norte, tinha baixa<strong>do</strong>muito, à razão de 30 centímetros cada século, e avança<strong>do</strong>S metros sobre as terras desagregadas. A cartageográfica da França mudara lentamente. A depressãofora de 3 metros por 1.000 anos, ou 24 metros em 8.000anos; e, visto que o nível <strong>do</strong> Sena, em Paris, não passa de25 metros acima <strong>do</strong> mar, as grandes marés vinhamlamber o cais parisiense, junto aos pene<strong>do</strong>s de SãoGermano.Simultaneamente, a erosão marítima arrebatara aocontinente uma faixa de 24 quilômetros de largura, emto<strong>do</strong> o litoral. O desgaste das montanhas, de vi<strong>do</strong> àschuvas, aos regatos, às torrentes, tinha, em 8.000 anos,alt<strong>era</strong><strong>do</strong> o relevo continental de uns 0,m 56 apenas. Mas,nem por isso o nível <strong>do</strong> mar se elevara, visto haverdiminuí<strong>do</strong> a quantidade da água, mais ou menos namesma proporção.Num lapso de tempo mais ou menos duplo, seja em17.000 anos, a depressão atingira a 50 metros. Insensível,mas progressivamente aban<strong>do</strong>nada, Paris acabara


submergin<strong>do</strong>-se de to<strong>do</strong>. O forasteiro errante pelasruínas espalhadas nas colinas, mal poderia localizar oLouvre, as Tulherias, o Instituto; enfim, tu<strong>do</strong> o queconstituíra as velhas glórias da cidade morta.Curioso ver a variação geográfica que uma fracadiferença de nível acarreta. Tracemos <strong>do</strong>is mapas daFrança, um com o seu território acima 50 metros <strong>do</strong> nívelatual, como foi outrora, e outro com uma depressãoequivalente, que o futuro parece reservar -lhe,confrontan<strong>do</strong>-as. Que transformação! To<strong>do</strong>s os rios daantiga França a correrem como entre ilhas! O eixo daprovíncia <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s da Europa, que substituírao povo francês, desaparec<strong>era</strong> e traçava -se agorageograficamente, de Colônia ao canal <strong>do</strong>s Dois -Mares.Desde então, Paris e a França foram apagadas dahistória <strong>do</strong> nosso mun<strong>do</strong>. A Holanda, a Bélgica. e umaparte norte da França haviam submergi<strong>do</strong> inteiramente.Amsterdã, Rotterdam, Anvers e Lille desaparec<strong>era</strong>m sobas águas. Mais tarde, o mar chegava a Londres, apequena Bretanha <strong>era</strong> uma ilha.De século para século a fisionomia da Europa e <strong>do</strong>mun<strong>do</strong> inteiro modificara-se. Os mares ocupavam oscontinentes, novos sedimentos deposita<strong>do</strong>s na profundezadas águas recobriam as camadas desaparecidas,formavam novas camadas geológicas. Por outro la<strong>do</strong>, oscontinentes substituíram os mares. Nas Bocas <strong>do</strong> Ródano,por exemplo, a terra firme que, a princípio, ganhara aomar o solo que se estende de Arles ao litoral, continuaraa estender-se para o sul, Na Itália as aluviões <strong>do</strong> Pócontinuaram avançan<strong>do</strong> no Adriático, assim como as <strong>do</strong>Nilo, Tibre e vários rios mais recentes, no Mediterrâneo.


Além disso, as dunas e restingas litorâneas tinhamaumenta<strong>do</strong> em proporções variáveis os <strong>do</strong>mínios da terrafirme. A configuração <strong>do</strong>s continentes e <strong>do</strong>s maresmudara a ponto de tornar irreconhecíveis as velhascartas geográficas.Já não seria por perío<strong>do</strong>s de cinco séculos que ohistoria<strong>do</strong>r seguisse, qual o árabe <strong>do</strong> século XIII, cujalenda há pouco registramos. O décuplo desse perío<strong>do</strong> malbastaria para evidenciar sensivelmente as modificaçõesda crosta terráquea, de vez que 5.000 anos nãorepresentam mais que simples ruga no bojo das <strong>era</strong>s. E'por dezenas de milhar de anos que nos devemos pautar,para estimarmos o conjunto <strong>do</strong>s continentes submersos eas novas terras emergidas à luz <strong>do</strong> Sol, em conseqüência<strong>do</strong> desnivelamento da crosta sólida, cuja espessura edensidade variam conforme a região, e cujo peso sobre onúcleo central, ainda plástico e móbil, faz oscilar as maisvastas regiões. Uma insignificante variação de equilíbrio,o mínimo movimento de básculo, de menos de 100metros, muitas vezes, sobre os 12.000 quilômetros <strong>do</strong>diâmetro <strong>do</strong> globo, basta para alt<strong>era</strong> r a face <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.E, se nós entrevirmos a história planetária deconjunto, não mais por perío<strong>do</strong>s de dez, vinte, ou trintamil, mas de cem mil anos, por exemplo, constataremosque dentro de uma dessas dilatadas épocas, seja ummilhão de anos, a superfície <strong>do</strong> globo se tenhametamorfosea<strong>do</strong> muitas vezes, sobretu<strong>do</strong> nas regiões emque atuam mais ativamente os agentes internos eexternos. Avançan<strong>do</strong> a um ou <strong>do</strong>is milhões de anos,futuro a dentro, presenciaremos um prodigioso fluxo erefluxo <strong>do</strong>s seres e das coisas. Nesse des<strong>do</strong>bro de dez ou


vinte mil séculos, quantas vezes o mar não teria volta<strong>do</strong> arolar suas ondas sobre as prístinas cidades humanas!E quantas vezes a terra firme não teria ressurgi<strong>do</strong> <strong>do</strong>sabismos oceânicos, revigorada e virginal! Essas variaçõeshaviam-se op<strong>era</strong><strong>do</strong> outrora, mediante revoluções bruscas- aluimento <strong>do</strong> solo, deslocação de nível, rupturas dediques naturais, tremores de terra, erupções vulcânicas,afloramento de montanhas - isso, nos tempos primevos,quan<strong>do</strong> o planeta ainda quente e líqui<strong>do</strong> nã o se revestiasenão de fina película, mal coagulada num oceanoardente. Mais tarde, as transformações tornaram -se maislentas, à medida que a crosta se adensava e consolidava.A contração gradual <strong>do</strong> globo originara a formação devácuos, abaixo <strong>do</strong> invólucro sóli<strong>do</strong>, a queda defragmentos desse invólucro sobre o núcleo pastoso e,enfim, movimentos de básculo, que transformaram osrelevos <strong>do</strong> solo. Mais tarde ainda, modificaçõesinsensíveis foram produzidas pelos agentes externos. Deum la<strong>do</strong> os rios, carrean<strong>do</strong> para os estuários os destroçosdas montanhas, tinham altea<strong>do</strong> o fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> mar eaumenta<strong>do</strong>, lentamente, os <strong>do</strong>mínios da terra, entupin<strong>do</strong>de século em século os antigos portos; e, por outro la<strong>do</strong>, aação das vagas e das tempestades, corroen<strong>do</strong>constantemente as rochas, tinha diminuí<strong>do</strong> o <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong>scontinentes em benefício <strong>do</strong> mar.Perpetuamente e sem tréguas, a configuração dascostas marítimas se transformara, mar e terrapermutaram de leito, mais de uma vez. Nosso planetatornara-se para o historia<strong>do</strong>r um mun<strong>do</strong> ou tro,inteiramente diverso.


Tu<strong>do</strong> mudara. Continentes, mares, acidentesgeográficos, raças, idiomas, costumes, corpos, espírito,idéias, sentimentos, tu<strong>do</strong>! A França submersa, o fun<strong>do</strong> <strong>do</strong>Atlântico emergi<strong>do</strong>; uma parte da América desaparecida,um continente no lugar da Oceania; a China afogadatambém; a morte onde existira vida, a vida onde habitaraa morte. E o olvi<strong>do</strong> eterno de tu<strong>do</strong> o que fiz<strong>era</strong> outrora agrandeza e a glória das nações! Se a Humanidade atualemigrasse para Marte, talvez se visse lá menosexpatriada <strong>do</strong> que voltan<strong>do</strong> a Terra nesses longínquosevos futuros.Da mesma forma, de tempos em tempos, a fauna <strong>do</strong>globo se transformara gradualmente. As espéciesselvagens, como leões, tigres, hienas, pant<strong>era</strong>s, elefantes,girafas, tanto quanto baleias, tubarões e focasdesaparec<strong>era</strong>m por completo. O mesmo se d<strong>era</strong> com asaves de rapina. O homem havia conquista<strong>do</strong> e<strong>do</strong>mestica<strong>do</strong> as espécies utilizáveis, destruin<strong>do</strong> as outrase senhorean<strong>do</strong> inteiramente o mun<strong>do</strong>.O pre<strong>do</strong>mínio da natureza recuara constantementeante as vitórias da civilização. To<strong>do</strong> o planeta <strong>era</strong> umcomo jardim da humanidade, cultiva<strong>do</strong> científica,inteligente e racionalmente. Nele, não mais se viramárvores frutíf<strong>era</strong>s e vinhe<strong>do</strong>s florirem antes <strong>do</strong>s de gelosda primav<strong>era</strong>; nem saraivadas derruban<strong>do</strong> frutos, nemventanias vergan<strong>do</strong> trigais, nem rios inundan<strong>do</strong> cidades,nem chuvas, nem secas sacrifican<strong>do</strong> colheitas, nemexcessos de frio ou de calor ceifan<strong>do</strong> vidas. Durante oinverno, utilizava-se o calor solar, cuida<strong>do</strong>samentearmazena<strong>do</strong> no estio.


A ordem natural, tanto quanto a social, estavaorganizada. Os trabalha<strong>do</strong>res já não morriam de fome,dizima<strong>do</strong>s pela indigência, e os ociosos e sibaritastambém não morriam de apoplexia ou gastralgia, pormuito comer.Porque o reina<strong>do</strong> <strong>era</strong>, só e só, da inteligência.CAPITULO IIIO apogeuDes a11es! des Biles!Des afiles au-dessus de Ia vie! Des afies par delà de Iamort!RUCKERT.O progresso é a lei suprema, imposta pelo Cria<strong>do</strong>r atodas as criaturas. Cada ser procura o melhor. Nósignoramos de onde viemos e para onde vamo s. Ossistemas solares conduzem os mun<strong>do</strong>s através <strong>do</strong> espaçoinfinito. Nós não vemos a origem, nem o fim, e o porquêpermanece desconheci<strong>do</strong>. Mas, em nossa esf<strong>era</strong> depercepção tão restrita, tão limitada e incompleta, malgra<strong>do</strong> à morte <strong>do</strong>s indivíduos, das esp écies e <strong>do</strong>s mun<strong>do</strong>s,constatamos que o progresso rege a natureza e que to<strong>do</strong>


ser cria<strong>do</strong> evolve, constantemente, para um grausuperior. To<strong>do</strong>s querem subir. Ninguém quer descer.Através das metamorfoses seculares <strong>do</strong> planeta, aHumanidade continuara a engrandec er-se com esseprogresso, que lhe é lei suprema e, desde as origens desua existência planetária, até o momento em que ascondições de habitabilidade entraram a decrescer, to<strong>do</strong>sos seres vivos se tinham embeleza<strong>do</strong> e enriqueci<strong>do</strong> deórgãos mais perfeitos. A árvore da vida terrestreaflorada com os protozoários rudimentare s, acéfalos,cegos, sur<strong>do</strong>s e mu<strong>do</strong>s, quase totalmente desprovi<strong>do</strong>s desensibilidade, tinha-se alça<strong>do</strong> à luz, adquiri<strong>do</strong>sucessivamente os maravilhosos órgãos <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s echegara ao homem, que, aperfeiçoan<strong>do</strong>-se por sua vez, deséculo em século, transformara-se de selvagem primitivo,escravo da natureza, no sob<strong>era</strong>no intelectual, <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>r<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e procuran<strong>do</strong> fazer dele um paraíso defelicidade, de ciência e de voluptuosidade.A Ciência havia transfigura<strong>do</strong> o planeta; seushabitantes viviam, enfim, no céu, saben<strong>do</strong> -se delecidadãos. A física e a química contavam tantosprogressos quanto a astronomia. A indústria, em toda aparte, substituíra por máquinas automáticas o trabalhomanual. Culminavam as artes nas mais nobres quãobelas concepções humanas.A sensibilidade nervosa <strong>do</strong> homem adquiriradesenvolvimento prodigioso. Os seis velhos senti<strong>do</strong>s davista, audição, olfato, paladar, táctil, genésico, tinham -seeleva<strong>do</strong> gradualmente acima das grosseiras s ensaçõesprimitivas, para atingir uma delicadeza requintada.Graças ao estu<strong>do</strong> das propriedades elétricas <strong>do</strong>s seres


vivos, um sétimo senti<strong>do</strong> - o elétrico, se criara, por assimdizer, ,.e todas as peças, e to<strong>do</strong>s os homens e mulherespossuíam a faculdade mais ou menos vivace e ativa,conforme o seu temp<strong>era</strong>mento, de atrair ou repelir oscorpos vivos ou inertes. O senti<strong>do</strong> pre<strong>do</strong>minante, porém,o que representava o maior papei nas relações humanas<strong>era</strong> indubitavelmente o oitavo - o senti<strong>do</strong> psíquico, quepermitia aos espíritos comunicarem-se, à distância.Outros <strong>do</strong>is senti<strong>do</strong>s foram entrevistos, mas sofr<strong>era</strong>mparalisação fatal no seu desenvolvimento, quase aonascer. O primeiro tiv<strong>era</strong> por objetivo a visibilidade <strong>do</strong>sraios ultravioleta, tão sensíveis aos processos químicos,mas, completamente obscuros para a retina humana. Osolhos humanos que procuraram exercitar -se nessesenti<strong>do</strong>, quase nada alcançaram em faculdades novas, emuito perd<strong>era</strong>m das antigas. O segun<strong>do</strong> tiv<strong>era</strong> por fim aorientação, mas quase nada conseguira, me smoprocuran<strong>do</strong> pesquisar e adaptar -se ao campo <strong>do</strong>magnetismo terrestre.Ninguém lograva, tão-pouco, eximir os ouvi<strong>do</strong>s aosdiscursos soporíferos, qual se faz com os olhos fechan<strong>do</strong> -os à vontade, e como se faz noutros mun<strong>do</strong>s maisevolvi<strong>do</strong>s.Nosso organismo imperfeito opus<strong>era</strong>-se, fatalmente, amais de um progresso desejável.A descoberta da periodicidade sexual <strong>do</strong> óvulofeminino tinha acarreta<strong>do</strong>, por algum tempo, umdesequilíbrio alarmante quanto à proporcionalidade <strong>do</strong>snascimentos, levan<strong>do</strong> a crer que só houves se filhosvarões. E o ritmo só se restabeleceu em virtude de umaverdadeira transformação social.


Pouco a pouco, em certas regiões, as mulheresdeixavam de ser mães e atribuíam os encargos da função,julga<strong>do</strong>s prejudiciais à elegância e ao comodismo, àsmulheres ditas <strong>do</strong> povo, e <strong>do</strong>s campos. O amor tornara -sea lei suprema, como levan<strong>do</strong> em si o seu objeto, emdetrimento <strong>do</strong> velho preceito de perpetuidade da espécie,para só envolver a criatura em gozos e afagos. A beleza eo perfume das flores também fazem, às vezes, esquecer osfrutos. De resto, muito tempo havia que só das camadaspopulares saíam às g<strong>era</strong>ções robustas. Os círculosaristocráticos, enerva<strong>do</strong>s, apenas davam raros e mofinosrebentos. O que se via, então, nas cidades esplendentes,<strong>era</strong> uma nova raça de mulheres a derramarem no mun<strong>do</strong>o encanto caricioso e lascivo das voluptuosidadesorientais, ao demais refinadas pelos progressos de umluxo extravagante.Os costumes e as convenções sofr<strong>era</strong>m pro fundasalt<strong>era</strong>ções. A infância <strong>era</strong> educada pelo Esta<strong>do</strong>, ash<strong>era</strong>nças foram radicalmente suprimidas. Os vínculos <strong>do</strong>casamento legal já não existiam, nem lei alguma queencadeasse <strong>do</strong>is seres. As mulheres, eleitoras e elegíveis,ten<strong>do</strong> conquista<strong>do</strong> posição destacada na legislatura,esforçaram-se por manter íntegras as antigas vantagens<strong>do</strong> instituto nupcial; contu<strong>do</strong>, não pud<strong>era</strong>m impedircaíssem elas em progressivo desuso. As uniões inspiradassó no amor, ardente e comparti<strong>do</strong>, substituíram osparti<strong>do</strong>s de m<strong>era</strong> conveniência econômica ou social.A livre escolha <strong>do</strong>s nubentes, a seleção e ahereditariedade produziram uma raça de homensregen<strong>era</strong><strong>do</strong>s, qual se houv<strong>era</strong> saí<strong>do</strong> da terra fecundada


por novo dilúvio, para novamente transformar afisionomia <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.Novas civilizações se suced<strong>era</strong>m, fluxo e refluxo damaré imensa da história humana. A matéria humilhou-sepouco a pouco, graças ao <strong>do</strong>mínio ascendente <strong>do</strong> espírito.Os operários intelectuais, cujos dias fogem tãorápi<strong>do</strong>s, tinham consegui<strong>do</strong> prolongar de duas horas oseu trabalho consagra<strong>do</strong> a pesquisas úteis àHumanidade, rouban<strong>do</strong> essas duas horas aos nulos deinteligência, que procuram matar o tempo. De comumacor<strong>do</strong>, os primeiros estabelec<strong>era</strong>m dias de 16 horas e ossegun<strong>do</strong>s de 12, no senti<strong>do</strong> de que os primeiros <strong>do</strong>rmiam6 horas, enquanto os segun<strong>do</strong>s soneavam 10, durante asquais, hábeis técnicos lhes subtraíam, numa op<strong>era</strong>çãosutil de alguns segun<strong>do</strong>s, certa <strong>do</strong>se de energia vital, quetransfundiam nas artérias <strong>do</strong>s primeiros. Assim, <strong>era</strong>como se to<strong>do</strong>s houvessem <strong>do</strong>rmi<strong>do</strong> 8 horas, mas, com umganho real de 2 horas a favor <strong>do</strong>s homens úteis.O oitavo senti<strong>do</strong> - o psíquico, representava um grandepapel nas relações humanas.O desenvolvimento das faculdades intelectuais e acultura <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s psíquicos haviam transfigura<strong>do</strong>completamente a nossa raça. Descobriram -se na almaforças latentes, <strong>do</strong>rmitantes no perío<strong>do</strong> primário <strong>do</strong>sinstintos grosseiros, que durara mais de um milhão deanos. À medida que a alimentação bestial de tantos anostornara-se de ordem química, as faculdades se haviamdesperta<strong>do</strong> e acendra<strong>do</strong>, num surto magnífico. Desdeentão, não mais se pensava como atualmente. As almas secomunicavam à distância. As vibrações etéreas,resultantes <strong>do</strong>s movimentos cerebrais, transmitiam -se


por virtude de um magnetismo transcendente, <strong>do</strong> qualaté as crianças podiam utilizar -se. To<strong>do</strong> pensamentoexcita no cérebro um movimento vibratório, que originaondas etéreas e, quan<strong>do</strong> estas encontram um cérebrosintoniza<strong>do</strong> com o emissor, podem comunicar -lhe opensamento inicial, tal como a corda vibrante, receben<strong>do</strong>a distância a ondulação <strong>do</strong> som, ou como a placatelefônica reconstituin<strong>do</strong> a voz silenciosamentetransportada por um movimento elétrico.Essas faculdades, por muito tempo latentes noorganismo, tinham si<strong>do</strong> estudadas, analisadas,desenvolvidas. Era comum ver -se uma criatura atrairoutra, mentalmente, e ter diante de si a imagem desejada.A mulher continuou exercen<strong>do</strong> sobre o homem umaatração mais viva que a recíproca. O homem seriasempre o escravo <strong>do</strong> amor. Nas horas de ausência, desolidão, de sonho, bastava ao espírito pensar para quevisse aparecer-lhe a <strong>do</strong>ce imagem <strong>do</strong> ser ama<strong>do</strong>. Porvezes, a intercomunicação <strong>era</strong> tão completa que aimagem se fazia tangível e audível. Toda a sensação estáno cérebro, não alhures. Os seres terrestres, que assimviviam na esf<strong>era</strong> espiritual, chegavam mesmo acomunicar-se com os seres invisíveis que nos rodeiam,desprovi<strong>do</strong>s de corpo material. E também o faziam comos habitantes <strong>do</strong>utros mun<strong>do</strong>s. A primeira comunicaçãoint<strong>era</strong>stral fora com o planeta Marte e a segunda comVênus. Esta prosseguiu até o fim da Terra, mas a deMarte cessou com a extinção da humanidade marciana.Em compensação, as comunicações com Júpiter sócomeçaram para alguns raros inicia<strong>do</strong>s, já nos últimosperío<strong>do</strong>s da vida terrestre.


Esses estu<strong>do</strong>s ultramundanos, seleciona<strong>do</strong>s e bemdirigi<strong>do</strong>s, acabaram crian<strong>do</strong> uma raça ve rdadeiramentenova, hipernervosa, e cuja forma orgânica <strong>era</strong>, semdúvida, semelhante à nossa, mas cujas faculdadesintelectuais diferiam inteiramente. O conhecimento dahipnose, as ações hipnóticas, magnéticas psíquicassubstituíram com vantagem os velhos p rocessos tãobárbaros, e às vezes tão cegos, da medicina, da farmáciae mesmo da cirurgia. A telepatia tornara -se uma ciênciatão vasta quão fecunda.A Humanidade tinha atingi<strong>do</strong> um grau d<strong>era</strong>cionalismo suficiente para viver tranqüila. Os esforçosda inteligência e <strong>do</strong> trabalho aplicaram-se à conquista denovas forças da natureza e ao aperfeiçoamento constanteda civilização. Insensível, gradualmente, a personalidadehumana se transformara, ou, por melhor dizer,transfigurara-se.Os homens, quase to<strong>do</strong>s inteligentes, lembravam-se esorriam das ambições infantis <strong>do</strong>s seus antepassa<strong>do</strong>s daépoca em que to<strong>do</strong>s procuravam ser alguém, tal comodeputa<strong>do</strong>, sena<strong>do</strong>r, acadêmico, prefeito, gen<strong>era</strong>l,pontífice, diretor disto ou daquilo, grão -cruz de algumaordem, etc. ; a combaterem-se tão encarniça<strong>do</strong>s na lutadas aparências. Compreend<strong>era</strong>m eles, enfim, que averdadeira felicidade é espiritual, que o estu<strong>do</strong> constitui omaior prazer da alma, que o amor é o sol <strong>do</strong>s corações,que a vida é curta e não merece que se lhe apegue àssuperficialidades. To<strong>do</strong>s se julgavam felizes com aliberdade de pensar, sem preocupações de riquezas quejá não existiam.


As mulheres adquiriram uma beleza perfeita, bustosesbeltos, diferentes da amplitude <strong>do</strong>s helênicos. Cútis debrancura translúcida, olhos i lumina<strong>do</strong>s de sonhos,cabelos se<strong>do</strong>sos e longos, nos quais o castanho e o lourode outros tempos se fundiram num castanho ruivo, comtonalidades auri-solares, de revérberos harmoniosos. Asantigas mandíbulas bestiais desaparec<strong>era</strong>m, idealizadasem pequenina boca, diante de cujos sorrisos, dessaspérolas brilhantes, embutidas em róseas gengivas, não sepodia compreender como os prístinos amantes beijavamas mulheres <strong>do</strong> outro tempo. De todas as épocas, namulher o sentimento <strong>do</strong>minara o julgamento. O sistemanervoso conservara a sua auto-excitabilidade tão curiosa,de sorte que ela, a mulher, não deixara nunca de pensarum tanto diversamente <strong>do</strong> homem, conservan<strong>do</strong> a suaindômita tenacidade de sentimentos e idéias. Mas, no seuconjunto, o ser feminino <strong>era</strong> tão bizarr o, seus <strong>do</strong>tescordiais envolviam o homem em tal atmosf<strong>era</strong>, <strong>do</strong>ce epenetrante; tanta a sua abnegação, devotamento ebondade, que nenhum progresso mais se poderia desejar,como se a felicidade houvesse atingi<strong>do</strong> o seu apogeu paraa vida eterna.E' possível que a <strong>do</strong>nzela fosse uma florprematuramente desabrochada; mas, as sensações <strong>era</strong>mtão vivas, decuplicadas, centuplicadas pelas sutilezas datransformação nervosa gradualmente op<strong>era</strong>da, que ajornada da vida parecia já não ter aurora nemcrepúsculo. Ao demais, o espírito, o pensamento e osonho <strong>do</strong>minavam a velha matéria. Reinava a beleza. Foiuma <strong>era</strong> de voluptuosidade ideal.


Mais que em outra época qualquer da História, oshomens, neste perío<strong>do</strong> de hiperestesia de to<strong>do</strong>s ossenti<strong>do</strong>s, se tornaram loucos pelas mulhe res, e asmulheres loucas pelo próprio corpo. Essa espécie desuperexcitação cerebral não impediu os mais amplostrabalhos espirituais de se completarem, nem arealização das mais extraordinárias descobertascientíficas. Dir-se-ia viver, então, uma outra r açahumana, sobrepujan<strong>do</strong> de muito a <strong>do</strong>s Arístotos, <strong>do</strong>sKepler, <strong>do</strong>s Hugos, - das Frineias, Dianas de Poitiers,Paulinos Borghèse. A transformação <strong>era</strong> tão completaque, nos museus de geologia, mostravam -se comestupefação, a raiar por incredulidade, os espéc imes dehomem fóssil <strong>do</strong> século XX, com os seus ossos pesa<strong>do</strong>s,dentes brutais, grosseiros intestinos. Mal se admitia queorganismos tão espessos pudessem ter si<strong>do</strong> ancestrais daraça elegante <strong>do</strong> apogeu.Dessarte, a Humanidade chegara a uma situação debem-estar moral e físico, grandeza intelectual eaperfeiçoamento científico, artístico e industrialincomparavelmente superiores a tu<strong>do</strong> o que possamosimaginar. Dissemos que o calor central <strong>do</strong> globo tinhasi<strong>do</strong> conquista<strong>do</strong> e aplica<strong>do</strong> no inverno ao aquecimentode cidades e vilas, bem como utiliza<strong>do</strong> em váriasindústrias, durante milhões de anos. Quan<strong>do</strong> esse calor,gradualmente diminuí<strong>do</strong>, se extingiu de to<strong>do</strong>, captaram -se os raios solares, armazenan<strong>do</strong> -os e utilizan<strong>do</strong>-os àvontade. Das águas oceânicas extraíam o hidrog ênio. Aprincípio as cachoeiras, depois as marés, foramtransformadas em força calorífica ou luminosa. To<strong>do</strong> o


planeta <strong>era</strong> patrimônio da Ciência, a jogardiscricionariamente com to<strong>do</strong>s os elementos.Os senti<strong>do</strong>s humanos eleva<strong>do</strong>s a tal grau derefinamento que, hoje, antes se diriam extraterrestres. Asnovas faculdades de que falamos, aperfeiçoadas deg<strong>era</strong>ção em g<strong>era</strong>ção; o ser humano de mais a maisdesprendi<strong>do</strong> da matéria; a alimentação transformada; ainteligência governan<strong>do</strong> os corpos; esqueci<strong>do</strong>s os apetitesvulgares <strong>do</strong>s tempos primitivos; as faculdades psíquicasem atividade constante, agin<strong>do</strong> à distância em quaisquerlatitudes e chegan<strong>do</strong> mesmo, qual o dissemos, a atingir oshabitantes de planetas vizinhos; aparelhos ao presenteinconcebíveis, a substituírem os v elhos instrumentosópticos que ensejaram os progressos da astronomiafísica; to<strong>do</strong> um arsenal inteiramente novo de percepçõese de estu<strong>do</strong>s num ambiente social esclareci<strong>do</strong>, <strong>do</strong> qualhaviam desapareci<strong>do</strong> a inveja, o ciúme, a miséria, oroubo e o assassínio; - eis o que constituía umaHumanidade de carne e osso qual a nossa, mas,incomparavelmente superior em grandeza intelectual, emsensibilidade requintada, em sutileza espiritual, tantoquanto o seremos hoje em relação aos símios <strong>do</strong> perío<strong>do</strong>terciário. O interesse venal, sobretu<strong>do</strong>, tinha deixa<strong>do</strong> deenvenenar os pensamentos e atos humanos.Graças aos progressos da fisiologia, à higieneuniversal, aos cuida<strong>do</strong>s meticulosos da anti-sepsia, àassimilação <strong>do</strong>s extratos orquíticos e vertebrais, àrenovação <strong>do</strong> sangue nos teci<strong>do</strong>s, ao bem-estar g<strong>era</strong>l e aoexercício de todas as faculdades, a vida humana atingiragraus de maior longevidade, não raro ven<strong>do</strong> -se velhos de150 anos. Não pud<strong>era</strong>m, é fato, matar a morte, mas


acharam meios de não envelhecer e de conservar asenergias juvenis até além <strong>do</strong>s 100 anos. A maiór partedas enfermidades foram <strong>do</strong>minadas, desde a sífilis até a<strong>do</strong>r de dentes. E os caracteres <strong>era</strong>m, em regra, afáveis -de parte algumas nuanças inevitáveis -, porque issodepende muito <strong>do</strong>s temp<strong>era</strong>mentos e da saúde, e o sorganismos se apresentavam to<strong>do</strong>s bem equilibra<strong>do</strong>s.A Humanidade tend<strong>era</strong> para a unidade: uma só raça,um só idioma, um só governo, uma só religião (a filosofiaastronômica) ; nada de sistemas religiosos oficializa<strong>do</strong>s, esim a voz das consciências esclarec idas. Nessa unidade, asremotas diferenças antropológicas acabaram por sefundirem. Não se viam melífluos beatos nem cépticoscabeçu<strong>do</strong>s. As religiões antigas, quais o catolicismo, oislamismo, o budismo, o moisaísmo, tinham si<strong>do</strong>relegadas ao plano das lendas místicas. A trindadecatólica habitava o céu pagão. Os holocaustos ofereci<strong>do</strong>saos deuses antropomorfos e aos seus profetas, durantetantos séculos, quais foram Buda, Osíris, Jeová, Júpiter,Jesus ou Maria, Moisés, Maomé - os cultos antigos emodernos, todas essas abstrações <strong>do</strong> pietismo religioso setinham evapora<strong>do</strong> com o incenso das preces, perdi<strong>do</strong>s nocéu terrestre, na atmosf<strong>era</strong> nebulosa, sem alcançar o Serinatingível. O espírito humano não conseguira conhecer oincognoscível.A Astronomia tinha atingi<strong>do</strong> o seu alvo: oconhecimento da natureza <strong>do</strong>s outros mun<strong>do</strong>s. Tal comose deu com as línguas, com os ideais, com as leis e oscostumes, também outra <strong>era</strong> a maneira de calcular otempo. A divisão em anos e séculos continuava em vigor,mas a <strong>era</strong> cristã desaparec<strong>era</strong> com os santos <strong>do</strong>


calendário, bem como as <strong>era</strong>s muçulmana, judaica,chinesa, etc.As velhas regiões <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> extinguiram -se com osseus respectivos ministérios, progressivamentesubstituí<strong>do</strong>s no coração <strong>do</strong> homem pela filosofiaastronômica.Não havia mais que um calendário para toda aHumanidade, composto de <strong>do</strong>ze meses reparti<strong>do</strong>s emquatro trimestres iguais de três meses de 31, 30 e 29 dias,em que cada trimestre continha exatamente trezesemanas. O dia de Ano-Bom <strong>era</strong> festivo e não entrava nocômputo. Nos anos bissextos <strong>era</strong>m conta<strong>do</strong>s <strong>do</strong>is dias deAno-Bom. A semana foi conservada. To<strong>do</strong>s os anoscomeçavam em segunda-feira e as datas correspondiamindefinidamente aos mesmos dias da semana. O anoprincipiava para to<strong>do</strong> o globo na antiga data de 20 deMarço.A <strong>era</strong>, puramente astronômica, tinha origem nacoincidência <strong>do</strong> solstício de Dezembro com o periélio erenovava-se após vinte e cinco mil s setecentos e sessentae cinco anos.A primeira <strong>era</strong>, abrangen<strong>do</strong> toda a história antiga esuprimin<strong>do</strong> as datas negativas, a nteriores ao nascimento<strong>do</strong> Cristo, partia <strong>do</strong> ano 24517 antes da <strong>era</strong> cristã. Era aíque se radicava a origem da história. A segunda <strong>era</strong> sehavia fixa<strong>do</strong> no ano 1248 de nossa <strong>era</strong>; a terceirainiciava-se com uma festividade universal no ano 27013 eassim continuaram, levan<strong>do</strong> em conta, na série, asvariações astronômicas seculares de precessão <strong>do</strong>sequinócios e da obliqüidade da eclíptica. Os princípios


acionais acabaram por triunfar de todas as bizarrias efantasias <strong>do</strong>s antigos cronologistas.A Ciência soub<strong>era</strong> apossar-se de todas as forças daNatureza e dirigir todas as forças físicas e psíquicas aprol da Humanidade. Os únicos limites de suasconquistas foram os das faculdades humanas, certopouco amplas, sobretu<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> com paradas às dealguns seres extraterrenos, mas, ainda assim, de muitoexcedentes às que hoje conhecemos.Assim chegou o planeta a realizar uma pátria única,intelectualmente iluminada, vingan<strong>do</strong> seus altos destinoscomo em coro imenso que se des<strong>do</strong>bra em acordes deimensa harmonia. Todavia, cada mun<strong>do</strong> tem sua esf<strong>era</strong>de expansão espiritual e a nossa Terra comportava,também ela, um máximo inultrapassável. Durante os dezmilhões da história da Humanidade, a espécie humana,sobreviven<strong>do</strong> a todas as g<strong>era</strong>ções, como se fora um serreal, experimentara todas aquelas grandestransformações, no físico como no moral. Retiv<strong>era</strong>sempre consigo o cetro da sob<strong>era</strong>nia terrena, nenhumaoutra raça a destronara, visto que nenhum ser baixa <strong>do</strong>céu nem sobe <strong>do</strong> inferno. Nenhuma Minerva nasceperfeitamente armada. Vênus al guma surge núbil deuma concha nacarada, na crista das ondas. Tu<strong>do</strong> tem asua finalidade e a espécie humana, nascida <strong>do</strong>s seusancestrais, fora, desde início, o resulta<strong>do</strong> natural daevolução vital <strong>do</strong> planeta. A lei <strong>do</strong> progresso a fiz<strong>era</strong>,outrora, sair <strong>do</strong>s limbos da animalidade e continuouatuan<strong>do</strong> para o seu aperfeiçoamento e gradualtransformação.


Chegara, porém, a época em que a vida terrenacomeçaria a decrescer e a Humanidade cessaria deprogredir, para entrar em declínio.O calor central <strong>do</strong> globo, conside rável ainda no séculoXIX, mas não se fazen<strong>do</strong> já então sensível à superfícieaquecida apenas pelo Sol, havia diminuí<strong>do</strong> lentamente e aTerra resfriara-se, por fim, de to<strong>do</strong>. Esse resfriamentonão influenciara, de maneira direta, as condições físicasda vida terrestre, que ficara dependente <strong>do</strong> calor solar eda atmosf<strong>era</strong>. O resfriamento interno <strong>do</strong> planeta nãopode acarretar o fim <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.Insensivelmente, de século em século, o globo senivelara. As chuvas, as neves, as geleiras, o calor solar eos ventos tinham atua<strong>do</strong> sobre as montanhas; as águastorrenciais, os regatos, os ribeiros e os rios tinham poucoa pouco carrea<strong>do</strong> para o mar os destroços de to<strong>do</strong>s osrelevos continentais; o fun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s mares se alteara e asmontanhas haviam desapareci<strong>do</strong> quase inteiramente ,dentro de nove milhões de anos. Concomitantemente, oplaneta envelhec<strong>era</strong> mais depressa que o Sol. Perd<strong>era</strong> assuas condições de vitalidade mais rapidamente, e antesque o astro <strong>do</strong> dia esgotasse as suas radiantes faculdadesluminosas e caloríf<strong>era</strong>s.Esta evolução planetária está de acor<strong>do</strong> com o nossoatual conhecimento <strong>do</strong> Universo. Sem dúvida, a nossalógica é fatalmente incompleta, pueril, em face da grandeVerdade universal e eterna, a valer pela de duas formigasa discretearem sobre a história da França. Mas, apesarda modéstia infligida ao nosso sentimento pela infinidadedas coisas criadas; mal gra<strong>do</strong> à humildade <strong>do</strong> nosso ser eo nada que ele representa diante <strong>do</strong> infinito, não


podemos eximir-nos à necessidade de sermos lógicos comnós mesmos, para pretender que melhor fora abdicar danossa razão que aproveitá-la como garantia dejulgamento. Nós acreditamos numa constituiçãointeligente <strong>do</strong> Universo, numa destinação +'os mun<strong>do</strong>s e<strong>do</strong>s seres; pensamos que os globos importantes <strong>do</strong>sistema solar devem durar mais tempo que os menores eque, por conseqüência, não estan<strong>do</strong> a vida dessesplanetas em paridade de relação com os raios solares,não podem durar uniformemente, tanto quanto o astrosolar. De resto, a observação direta confirma estaperspectiva g<strong>era</strong>l <strong>do</strong> Universo. A Terra, sol extinto,resfriou-se mais depressa que o Sol; Júpiter, enorme,ainda está na sua fase primordial; a Lua, menor queMarte, está mais que ele avançada nas fases da vidaastral (talvez mesmo próxima <strong>do</strong> fim) ; Marte, menor quea Terra, está mais adianta<strong>do</strong> que nós e menos que a Lua.Nosso planeta, a seu turno, deve preceder Júpiter, comoeste precederá o Sol na sua extinção.Consideremos a grandeza da Terra comparada aoutros planetas: Júpiter apresenta -se-nos com umdiâmetro onze vezes maior que o nosso e o Sol é dez vezesmaior <strong>do</strong> que Júpiter. O diâmetro de Saturno vale pornove da Terra. Parece-nos, então, natural coligir queJúpiter e Saturno viverão mais que o nosso planeta e queVênus, Marte ou Mercúrio, pigmeus celestes!Os sucessos confirmaram essas ilações da ciênciahumana. Calamidades nos tinham advin<strong>do</strong> na trajetóriaimensa: mil acidentes deveriam atingir -nos - cometas,corpos celestes, obscuros ou flamantes, nebulosas, etc. -,mas nosso planeta não pereceria por acidente. A


senectude o atingiu também a ele, como a todas as coisas.E envelheceu mais depressa que o Sol, perdeu ascondições de vitalidade antes que o astro centralesgotasse as suas reservas de luz e calor.Durante os perío<strong>do</strong>s seculares <strong>do</strong> seu esplen<strong>do</strong>r vital,quan<strong>do</strong> tronava no concerto <strong>do</strong>s mun<strong>do</strong>s levan<strong>do</strong> consigouma humanidade intelectual e triunfante das forças cegasda natureza, é que ainda o envolvia uma atmosf<strong>era</strong>vivificante e protetora, dentro da qual se empenhavamto<strong>do</strong>s os prélios da vida e da felicidade. Um elementoessencial da natureza - a água, regulava a vida terrena.Esta substância entrava, desde os primórdios, nacomposição de to<strong>do</strong>s os corpos vegetais, animais,humanos; influía ativamente na circulação atmosférica,<strong>era</strong> o órgão principal <strong>do</strong>s climas e das estaçõe s, sob<strong>era</strong>na,enfim, <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> terrestre.De século a século, porém, a quantidade da águahavia diminuí<strong>do</strong> nos mares, nos rios e na atmosf<strong>era</strong>.Primeiramente, uma parte das águas pluviais tinha si<strong>do</strong>absorvida no âmago <strong>do</strong> solo sem retornar ao mar,porque, ao invés de resvalar sobre camadasimpermeáveis para formar fontes ou veios subterrâneos,ou submarinos, infiltrava-se profundamente e tinhapouco a pouco enchi<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s os vácuos é - brechas,saturan<strong>do</strong> as rochas a grandes profundidades.Enquanto o calor central se mantinha suficientementeeleva<strong>do</strong> para opor-se à queda indefinida dessas águas,converten<strong>do</strong>-as em vapor, uma grande quantidade delassempre se mantiv<strong>era</strong> na superfície. Sobrevi<strong>era</strong>m, porém,os séculos nos quais o calor central foi totalmente


dispersa<strong>do</strong> no espaço, e deixou de opor-se à infiltração namassa porosa.Elas, as águas, diminuíram então na superfície,associaram-se às rochas sob a forma de hidratos e aí sefixaram, desaparecen<strong>do</strong>, em parte, da circulaçãoatmosférica.Efetivamente, ainda que a dimi nuição das águasoceânicas se estime por decimilímetros anuais, ter -se-á oseu total esgotamento dentro de dez milhões de anos.A infiltração gradual das águas no interior <strong>do</strong> globo,à medida que o calor deste se perdia no espaço, aliada àfixação lenta <strong>do</strong>s hidratos, produziu dentro de oitomilhões de anos, mais ou menos, um desfalque de trêsquartos <strong>do</strong> líqui<strong>do</strong> em circulação na superfície da Terra.Em virtude <strong>do</strong> nivelamento <strong>do</strong>s relevos continentais,op<strong>era</strong><strong>do</strong> pelas chuvas, neves, degelos, ventos, ribeiros erios, tu<strong>do</strong> arrastan<strong>do</strong> para o mar em obediência à lei degravidade, o globo aproximou-se de uma superfície denível e os mares tornaram-se pouco profun<strong>do</strong>s. Mas,como na formação e evaporação <strong>do</strong> vapor da águaatmosférica só a extensão da superfície líquida e n ão aprofundidade influi, a atmosf<strong>era</strong> ainda permaneceuricamente fornida de vapor aquoso.O planeta atingiu, então, as condições atuais deMarte, onde vemos desapareci<strong>do</strong>s os grandes oceanos eos mares reduzi<strong>do</strong>s a estreitos mediterrâneos, poucoprofun<strong>do</strong>s; continentes planos, evaporação fácil, vaporda água ainda considerável na atmosf<strong>era</strong>, chuvasescassas, neves abundantes nas regiões polares decondensação e seu fundimento quase total nos estios de


cada ano. Mun<strong>do</strong>, ainda assim, habitável por seresidênticos aos terrícolas.Essa época marcou o apogeu da Humanidadeterráquea. A partir dela, as condições de vida seempobrec<strong>era</strong>m. De g<strong>era</strong>ção em g<strong>era</strong>ção os seres sofr<strong>era</strong>mprofundas transformações. Vegetais, animais, hominais,tu<strong>do</strong> mu<strong>do</strong>u. Mas, ao passo que até então asmetamorfoses enriqueciam, embelezavam eaperfeiçoavam os seres, daí por diante acentuou -se adecadência. A inteligência humana havia tãocompletamente senhorea<strong>do</strong> as forças da Natureza, quedir-se-ia impossível fosse jamais vencida no seu enormequão glorioso pre<strong>do</strong>mínio.A diminuição da água, porém, começou a alarmar osmais otimistas. Desapareci<strong>do</strong>s os mares, os póloscontinuavam gela<strong>do</strong>s. Os continentes de outrora, cujaslatitudes abrangiam Babilônia, Nínive, Ecbatana, Tebas,Mênfis, Atenas, Roma, Chicago , Liberty, Paz e focostantos, outros, de civilizações de vivos fulgores, nãopassavam de imensos desertos sem um lago, sem um rio,sem uma fonte sequer. Insensivelmente, a Humanidade seconchegara à zona tropical, ainda regada por cursos daágua corrente, lagos e mares. Não mais montanhas,condensa<strong>do</strong>ras de neve. A Terra apresentava -se quaseplana, os mediterrâneos rasos, os lagos e alguns cursos daágua confinaram a vegetação e a vida na zona estreitadas regiões equatoriais.


CAPITULO IV«Vanitas vanitatumoEternité, néant, passé, sombres abimes,Que faites-vous des jours que vous engloutissez?Parlez: nous rendrez-vous ces extases sublimes Que vousnous ravissez?LAMARTINE, Meditations.To<strong>do</strong> o imenso progresso da Humanidade, lenta egradualmente conquista<strong>do</strong> num esforço de vários milhõesde anos, haveria, - ó misteriosa lei inconcebível aohomúnculo terrestre! - de atingir o cimo de uma curva,um apogeu, e aí parar.E a curva geométrica que poderia traçar ao nossoespírito o diagrama da história h umana vai declinar, talcomo ascendeu. Partin<strong>do</strong> de zero, da primitiva nebulosacósmica, e elevada, por estágios planetários e humanos, àsua cúspide luminosa, ela decai em seguida paramergulhar em noite eterna. Sim. To<strong>do</strong> esse progresso,toda essa ciência, toda essa ventura e todas essas glóriasdeviam desfechar um dia no derradeiro sono, no silêncioe aniquilamento da sua própria história. Assim comonasc<strong>era</strong>, tiv<strong>era</strong> um princípio, assim deveria a vidaterrena morrer um dia, ter um fim. O sol da humanidadese levantara, outrora, em dilúculos de aurora; subira


glorioso ao seu meridiano e ia baixar para diluir -se numanoite sem manhã.Porque, pois, todas essas glórias, lutas, conquistas,vaidades, uma vez que a luz e a vida estavam fadadas aperecer?Mártires e apóstolos de todas as liberdades haviamderrama<strong>do</strong> o seu sangue para regar essa terra, tambémela destinada a morrer. Tu<strong>do</strong> devia desaparecer e só ela,a Morte, devia ficar como a última sob<strong>era</strong>na <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.Já imaginastes, ao contemplar o cemitério de umacidade, quão pequeno ele é para conter todas as g<strong>era</strong>çõesque têm engolfa<strong>do</strong> no transcurso <strong>do</strong>s séculos?O homem já existia antes <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> glaciário,anterior a nós de <strong>do</strong>is mil séculos. Sua ancianidadeparece remontar a mais de duzentos e cinqüenta milanos. A história escrita data de ontem. Encontraram -seem Paris sílex talha<strong>do</strong>s e poli<strong>do</strong>s, atestantes da presença<strong>do</strong> homem nas margens <strong>do</strong> Sena, muito anterior àprimeira origem histórica <strong>do</strong>s Gauleses. Os parisienses<strong>do</strong> século XIX pisam um terreno sagra<strong>do</strong> porantepassa<strong>do</strong>s, velhos de mais de dez milênios. Que restade to<strong>do</strong>s esses seres que formigaram nessa colméia <strong>do</strong>mun<strong>do</strong>? Que é feito <strong>do</strong>s Romanos, Gregos, Egípcios,Asiáticos que reinaram por séculos e séculos? Onde ostrilhões de homens que já viv<strong>era</strong>m nesta crosta? Não há,deles, um punha<strong>do</strong> de cinzas, sequer! No conjunto dahumanidade morre um homem por segun<strong>do</strong>, ou sejaoitenta e seis mil por dia, nascen<strong>do</strong> igualmente outrostantos, ou melhor: - um pouco mais. Esta estatística,deste século XIX, aplica-se a uma longa época, em se lheaumentan<strong>do</strong> ò a cifra proporcional ao tempo. O número


de habitantes foi aumentan<strong>do</strong> de perío<strong>do</strong> em perío<strong>do</strong>. Aotempo de Alexandre haveria, tal vez, uns milhões decriaturas na Terra. Nos fins <strong>do</strong> século XIX esse númer o;acrescia-se de meio bilhão. Nos século XXL- e XXIX,<strong>era</strong>m respectivamente de <strong>do</strong>is e três bilhões, quechegariam a dez no apogeu planetário. Daí por diante apopulação começou a diminuir.Dos inumeráveis corpos humanos forma<strong>do</strong>s na Terra,nada resta, tu<strong>do</strong> reverteu aos elementos par a a formaçãode outros corpos: o céu sorri, o campo floresce, a Morteceifa.À medida que passam os dias, o que neles existiuresvala ao nada. Trabalhos, desgostos, alegrias e gozos, otempo os engolfa e consome e extingue. As glóriaspassadas suced<strong>era</strong>m as ruínas presentes. No bojo daeternidade, tu<strong>do</strong> o que existia desapareceu. O mun<strong>do</strong>visível esvanece-se a cada momento. O real, o dura<strong>do</strong>uro,é só o invisível.As condições da vida planetária haviam muda<strong>do</strong>lentamente. A água diminuíra. Seu vapor na atmosf<strong>era</strong><strong>era</strong> o que ainda entretinha o calor e a vida e foi, afinal, asua desaparição que acarretou o resfriamento e a morte.Se, desde agora, o vapor da água desaparecesse daatmosf<strong>era</strong>, o calor solar seria incapaz de entreter a vidavegetal e animal, que, ao demai s, não poderia subsistir,pois que os vegetais, como os animais, se compõemessencialmente de água.E' também o vapor da água atmosférico que exerce amaior influência no regímen térmico. Sem dúvida, pareceinsignificante e quase negligenciável essa quanti dade devapor, pois que oxigênio e azoto perfazem só por si 99


por 1/2 centésimo <strong>do</strong> ar respirável e que, no 1/2centésimo restante, encontram-se, além desse vapor, oáci<strong>do</strong> carbônico, o amoníaco e outras substâncias . Assim,não haverá mais que 1/4 de centésimo de vapor aquoso.Toman<strong>do</strong> em consid<strong>era</strong>ção os átomos que constituem oar, o físico constata que, sobre duzentos átomos deoxigênio e azoto, apenas se encontra um de vapor.Entretanto, esse átomo possui oitenta vezes mais energiaabsorvente que os duzentos outros.0 calor radiante <strong>do</strong> Sol aquece a superfície terráqueadepois de atravessar a atmosf<strong>era</strong>. As ondas caloríficasque emanam da Terra aquecida não vão perder -se noespaço, mas, antes, chocar-se com os átomos aquosos,num como teto protetor, que os cap ta e conserva emnosso planeta.Esta é uma das mais brilhantes e fecundasdescobertas da física contemporânea. As moléculas deoxigênio e azoto, de ar seco, não impedem o desperdíciode calor. Mas, como vimos de dizer, uma molécula devapor aquoso tem energia oitenta vezes mais absorventeque as duzentas outras de vapor enxuto, e, porconseqüência, tal molécula tem mil vezes mais potencia,para conservar o calor, <strong>do</strong> que uma molécula de ar seco!E', pois, o vapor da água e não o ar propriamente dito, oque regula as condições da vida terrena.Se tirássemos à massa aérea que envolve a Terra ovapor da água nela conti<strong>do</strong>, dar-se-ia na superfície <strong>do</strong>solo um desperdício de calor semelhante ao que se dá nasgrandes altitudes, onde a camada aérea não tem, maisque o vácuo, a propriedade de conservar o calor. Eteríamos então um frio análogo ao existente na superfície


da Lua. A crosta poderia aquecer -se ainda, diretamente,sob a ação <strong>do</strong> Sol, mas, mesmo durante o dia, o calor nãoseria conserva<strong>do</strong> e, logo que posto o as tro-central, aTerra ficaria exposta ao frio ultraglacial <strong>do</strong> espaço, quese estima em 273 graus abaixo de zero. O mesmo é dizerque a vida vegetal, animal e humana tornar -se-iaimpossível, se o não fosse, já então, pela ausência mesmada água.Sem dúvida podemos, devemos admitir que a águahouv<strong>era</strong> si<strong>do</strong>, para to<strong>do</strong>s os mun<strong>do</strong>s <strong>do</strong> infinito, qual o foipara o nosso, um elemento essencial da vida. A Naturezanão tem os seus poderes limita<strong>do</strong>s pela esf<strong>era</strong> daobservação humana. Devem existir, nos campos daimensidade ilimitada, miríades, milhões de sóis diferentes<strong>do</strong> nosso, sistemas de mun<strong>do</strong>s nos quais outrascombinações químicas, outras substâncias, condiçõesfísicas, mecânicas e ambientais produziram seresabsolutamente diversos de nós, com outros regimes devida, dispon<strong>do</strong> <strong>do</strong>utros senti<strong>do</strong>s, incomparavelmentemais distancia<strong>do</strong>s da nossa estrutura orgânica, <strong>do</strong> que omolusco ou o peixe <strong>do</strong>s abismos oceânicos em relação àsaves e às falenas. Todavia, o que aqui estudamos são ascondições da vida terrestre, e essas condiçõ es sãodeterminadas pela constituição mesma <strong>do</strong> nosso planeta.Ã medida que a água diminuíra, que as chuvas rarearam,que as fontes secaram e o vapor aquoso escasseara, osvegetais mudaram de aspecto. Aumentaram de volume asfolhas, as raízes se alongaram, procuran<strong>do</strong> de qualquermo<strong>do</strong> absorver a umidade tão necessária à suasubsistência. As espécies que não conseguiram moldar -seao novo regime, tinham desapareci<strong>do</strong>. As outras se


transformaram. Nenhuma árvore ou planta, das queconhecemos hoje, poderia ser reco nhecida. Não maiscarvalhos, freixos, olmos, álamos, tílias, salgueiros. Aspaisagens <strong>era</strong>m também muito outras, que não as dehoje. Apenas as espécies rudimentares, criptogâmicas,sobreviviam.O mesmo suced<strong>era</strong> com o reino animal. Formasinteiramente mudadas. As primitivas raças selvagenshaviam desapareci<strong>do</strong> ou tinham si<strong>do</strong> <strong>do</strong>mesticadas. Adiminuição da água modificara a alimentação deherbívoros e carnívoros. As espécies recentes - produtodas que pud<strong>era</strong>m subsistir - <strong>era</strong>m menores, menoscarnosas e mais ossudas. Diminuída grandemente avegetação, o áci<strong>do</strong> carbônico <strong>do</strong> ar <strong>era</strong> absorvi<strong>do</strong> maisescassamente, e a proporção <strong>era</strong> um tanto grande.A população humana baixara gradualmente de dez asete bilhões, quan<strong>do</strong> ainda poderia espalhar -se pelametade da superfície terrena. Depois, à medida que azona habitável se retraía para o equa<strong>do</strong>r, a Humanidademais se debilitava e a própria média da vida tinhabaixa<strong>do</strong>. Chegou, enfim, o dia em que o censo nãocomputaria mais que algumas centenas de milhões,dissemina<strong>do</strong>s em grupos ao longo <strong>do</strong> equa<strong>do</strong>r, para sóviver <strong>do</strong>s artifícios de uma indústria científica elaboriosa.Nas habitações humanas, o ferro e o vidrosubstituíram a madeira e a pedra, as cidades e vilas comofeitas de cristal. As vantagens dessa arquiteturaimpus<strong>era</strong>m-se nos derradeiros tempos como imp<strong>era</strong>tivoclimatério, da<strong>do</strong> o resfriamento <strong>do</strong> ar, conseqüente àdiminuição <strong>do</strong> vapor aquoso na atmosf<strong>era</strong>. O que mais


importava, então, <strong>era</strong> captar os raios solares. Por toda àparte, grandes salas envidraçadas armazenavam o calorsolar. Os antigos edifícios não passavam de ruínasaban<strong>do</strong>nadas.Apesar <strong>do</strong>s milhões de anos transcorri<strong>do</strong>s, o Sol aindaentornava, sobre a Terra, quase que a mesma quantidadede luz e calor. A diferença não seria senão de um décimo,talvez, e apenas se notava que o astro centralapresentava-se um pouco menor e mais amarela<strong>do</strong>.A Lua também prosseguia em seu giro, embora umpouco mais lento... Ela se havia afasta<strong>do</strong>, gradualmente,<strong>do</strong> nosso globo e nos parecia aparentemente menor.(Para o Sol é que as suas dimensõe s reais tinhammuda<strong>do</strong>). Simultaneamente, o movimento rotativo daTerra também se tornara mais lento. Este efeito tríplice:rotação mais demorada da Terra, afastamento da Lua eprolongamento <strong>do</strong> mês lunar - tinha-se origina<strong>do</strong> <strong>do</strong>atrito das marés, a op<strong>era</strong>r mais ou menos como um freio.Se a Terra e Lua durassem bastantemente, bem como osoceanos e as marés, poder-se-ia, pelo cálculo, prefinir oadvento de uma época na qual a rotação <strong>do</strong> nosso globoseria tão lenta que acabaria por equivaler ao mês lunar emesmo ultrapassá-lo, a ponto de não haver anos commais de cinco dias e um quarto. A Terra apresentariasempre, então, a mesma face à Lua. Tal transformaçãonão demandaria, contu<strong>do</strong>, menos de cento e cinqüentamilhões de anos. O perío<strong>do</strong> que atingimos (dez milhõesde anos) não representa senão uma décima quinta partedaquele. Em vez de setenta vezes mais longa que hoje, arotação da Terra <strong>era</strong> apenas quatro e meia vezes maisdemorada, ou fosse de cento e dez horas, mais ou menos.


Esses longos dias facultavam ao Sol aquecerdemoradamente a superfície terrestre, mas esse calor emnada quase beneficiava as regiões que o recebiam de face,isto é, a zona equatorial, entre os <strong>do</strong>is círculos tropicais:a obliqüidade da eclíptica não tinha muda<strong>do</strong>, o eixo daTerra mantinha a mesma inclinação (cerca de 2 graus) eas variações de excentridade da órbita não produziramqualquer efeito mais sensível sobre as estações e osclimas.Forças humanas, alimentação, respiração, funçõesorgânica, vida física e intelectual, idéias, julgamento s,religiões, ciência, linguagem, tu<strong>do</strong>, enfim, havia muda<strong>do</strong>.Do Homem de outros tempos quase na existia.Um pouco por toda à parte, não mais que ruínassilenciosas e solitárias e se esboarem, a fundirem, paranunca mais se erguerem.CAPITULO VOmégarTu saís de quel linceul le temps couvre les hommes,Tu saís que, tõt ou tard, dans 1'ombre de 1'oubli, Siècles,peuples, héros, tout <strong>do</strong>rt enseveli.LAMARTINE, Harmonies.


O frio aumentava. Eternizava-se o inverno, brilhan<strong>do</strong>embora o Sol. Caducavam todas as espécies animais evegetais, a luta pela vida cessara, apesar dastransformações ocorrentes, como se houvessemcompreendi<strong>do</strong> o determinismo da sua condenação. Asmaravilhosas faculdades de adaptação <strong>do</strong> gênerohumano e uma espécie de energia selvagem e infatigávelhaviam prolonga<strong>do</strong> a vida física e intelectual <strong>do</strong> homem,mais que <strong>do</strong>s animais superiores. Isso, porém, só se davaem relação a alguns poucos núcleos de c ivilizaçãoprivilegiada, visto que, de conjunto condenada ainelutável miséria, a Humanidad e recaíra na barbárie enão podia mais se reerguer.O que de tu<strong>do</strong> restava <strong>era</strong>m <strong>do</strong>is grupos de .algumascentenas de criaturas humanas, que ocupavam as últimasmetrópoles da indústria. Em to<strong>do</strong> o resto <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> araça humana havia pouco a pouco desapareci<strong>do</strong>,ressecada, esgotada, degen<strong>era</strong>da gradual,inexoravelmente, de século em século, à míngua deatmosf<strong>era</strong> assimilável e de alimentação suficiente. Seusúltimos rebentos pareciam reverti<strong>do</strong>s à barbaria,vegetan<strong>do</strong> como selvagens em região de Esquimós emorren<strong>do</strong> lentamente de fome e de frio. Os <strong>do</strong>is velhosfocos de civilização, perecen<strong>do</strong> embora gradualmente,também, só conseguiram subsistir a custa de lutas tãoincessantes, quão perspicazes, contra a naturezaimplacável.As últimas regiões habitadas situavam -se próximo <strong>do</strong>equa<strong>do</strong>r, em <strong>do</strong>is grandes vales outrora cobertos pelooceano. Vales pouco profun<strong>do</strong>s, já se vê, visto que onivelamento g<strong>era</strong>l <strong>era</strong> quase absoluto. Não se viam picos,


montanhas, ravinas, gargantas abruptas, nem vala<strong>do</strong>s,nem escarpas.Era tu<strong>do</strong> planície. Rios e mares haviaminsensivelmente desapareci<strong>do</strong>. Mas, como os agentesmeteóricos, chuvas e torrentes tinham diminuí<strong>do</strong> deintensidade, paralelamente com as águas, os últimosabismos marinhos não foram inteiramente entulha<strong>do</strong>s erestavam os sulcos pouco profun<strong>do</strong>s, como vestígios davelha estrutura <strong>do</strong> globo. Lá se encontravam aindaalguns terrenos úmi<strong>do</strong>s e gela<strong>do</strong>s, mas não havia, porassim dizer, circulação da água na atmosf<strong>era</strong> e os últimosrios corriam subterraneamente, como artérias invisíveis.A falta de vapor da água na atmosf<strong>era</strong> proporcionavaum céu sempre puro, sem nuvens, sem chuvas, sem neves.Menos fulgurante e cáli<strong>do</strong> que nos primitivos tempos, oSol tinha uma tonalidade amarelada de topázio. Ofirmamento <strong>era</strong> antes verde que azul -marinho. Aatmosf<strong>era</strong> diminuíra consid<strong>era</strong>velmente de extensão. Ooxigênio e o azoto haviam-se fixa<strong>do</strong>, em parte, nosmin<strong>era</strong>is, em esta<strong>do</strong> de óxi<strong>do</strong> e azotatos, e o áci<strong>do</strong>carbônico aumentara ligeiramente, à medida que osvegetais, em lhes faltan<strong>do</strong> a água, rareavam. Entretanto,a massa planetária se tinha avoluma<strong>do</strong> de século emséculo, devi<strong>do</strong> à queda incessante de estrelas filantes, debóli<strong>do</strong>s e uranólitos, de sorte que a atmosf<strong>era</strong>,empobrecen<strong>do</strong>-se, conservava a mesma densidade e maisou menos a mesma pressão.Circunstância inesp<strong>era</strong>da a de haverem as neves egeadas diminuí<strong>do</strong>, à medida que o globo se resfriava,porque a causa desse resfriamento <strong>era</strong> a ausência devapor aquoso na atmosf<strong>era</strong>, e a diminuição correspondia


precisamente à da superfície <strong>do</strong>s mares. À medida que aságuas iam penetran<strong>do</strong> no âmago <strong>do</strong> globo, aprofundidade conseqüente ao nivelamento, em primeirolugar, e depois a superfície, haviam diminuí<strong>do</strong>. A câmarainvisível <strong>do</strong> vapor condensa<strong>do</strong> perd<strong>era</strong> gradualmente oseu valor de proteção à vida, até o dia em que o calorsolar, não mais conserva<strong>do</strong> por uma garantia suficiente,se perdia no espaço como se caísse num espelhoinaquecível.Tal a situação <strong>do</strong> nosso mun<strong>do</strong>. Os últimosrepresentantes da espécie humana não tinhamsobrevivi<strong>do</strong> a todas essas transformações físicas, senãomercê <strong>do</strong> gênio da indústria, que, por seu turno, soub<strong>era</strong>tu<strong>do</strong> transformar. Os últimos esforços foram porcontinuar extrain<strong>do</strong> <strong>do</strong> ar, das águas subterrâneas e dasplantas, as substâncias nutritivas, e a substituir a câmaraprotetora de vapor desapareci<strong>do</strong> por tetos e construçõesde vidro. Como vimos páginas atrás, preciso fora captar,a to<strong>do</strong> custo, os raios solares e impedir to<strong>do</strong> e qualquerdesperdício. Não <strong>era</strong>, aliás, difícil obter grande provisão,pois que o Sol brilhava to<strong>do</strong>s os dias num céu escampo denuvens e o dia <strong>era</strong> de cinqüenta e cinco horas.Os arquitetos de há muito não tinham objetivo outroque não o de aprisionar os raios solares, impedin<strong>do</strong> a suadispersão durante as cinqüenta e cinco horas noturnas.Isso conseguiram, afinal, mediante engenhosacombinação de fechos e aberturas de vários tetos de vidrosuperpostos, com telas móveis. Muito tempo havia,também, que faltava to<strong>do</strong> e qualquer combustível, poismesmo o hidrogênio das águas escassamente se oferecia àindústria.


A temp<strong>era</strong>tura média <strong>do</strong> dia, ao ar livre , não <strong>era</strong>extremamente baixa, pois não ia além de 15 graus. (9)Mal gra<strong>do</strong> às transformações seculares, as espéciesvegetais não podiam sobreviver, mesmo nessa zonaequatorial.Quanto às outras latitudes, estavam já de milêniosabsolutamente inabitáveis, ap esar <strong>do</strong>s esforçosemprega<strong>do</strong>s por conservá-las. Nas latitudes hojecorrespondentes a Paris, Nice, Roma, Nápoles, Argélia,Tunísia, a atmosf<strong>era</strong> deixara de permear o vapor e aobliqüidade <strong>do</strong>s raios solares nada mais podia aquecer. Osolo conservava-se frígida em todas as profundidadesacessíveis, qual verdadeiro bloco de gelo.Mesmo entre os trópicos e o equa<strong>do</strong>r, os <strong>do</strong>isrestantes grupos humanos que ainda subsistiam à custade grandes dificuldades, crescentes de ano para ano, dirse-iaque antes vegetavam sobre os últimos destroços dahumanidade.Nesses <strong>do</strong>is vales oceânicos, situa<strong>do</strong>s respectivamentenos atuais abismos <strong>do</strong> Pacifico e ao sul da ilha de Ceilão,haviam-se estendi<strong>do</strong>, nos séculos precedentes, duasvastíssimas cidades de ferro e de vidro, elementosutiliza<strong>do</strong>s então em todas as construções. Dir -se-iam <strong>do</strong>isenormes jardins de inverno, sem andares, com ostelha<strong>do</strong>s transparentes, suspensos a grande altura.Restavam ainda algumas salas <strong>do</strong>s antigos palácios. Asúltimas plantas cultivadas lá permaneciam, além das quese coletavam nas galerias de comunicação com os riossubterrâneos.


Como vemos, nada mais que vestígios derradeiros deuma grandeza extinta; e além, por toda à parte e em todaa extensão <strong>do</strong> velho mun<strong>do</strong>, não mais que ruínas.Na primeira dessas cidades, os últimos sobreviventes<strong>era</strong>m <strong>do</strong>is anciães e o neto de um deles, Omégar. O rapazcaminhava desesp<strong>era</strong><strong>do</strong> naquelas vastidões desertas,depois de haver assisti<strong>do</strong> à morte, por consunção, da mãee das irmãs. Os <strong>do</strong>is velhos <strong>era</strong>m um filósofo queconsagrara toda a existência ao estu<strong>do</strong> da humanidademoribunda, e um médico que se propus<strong>era</strong>, em vão, asalvar da degenerescência final os últimos habitantes daTerra. Apresentavam-se emacia<strong>do</strong>s, mais pela anemiaque pela idade. Páli<strong>do</strong>s quais <strong>do</strong>is espectros, barbaslongas, só por sua energia moral pareciam sobrepujar afatalidade <strong>do</strong> destino.Não pud<strong>era</strong>m, contu<strong>do</strong>, lutar muito tempo contra essedestino. Últimos sobreviventes da sua raça, estavam,como os demais, condena<strong>do</strong>s a perecer, até que um diaOmégar os encontrou caí<strong>do</strong>s e mortos, um ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong>outro. O primeiro deixara escapar das mãos frouxas aúltima história que escrev<strong>era</strong>, meio século antes, dasextremas transformações da humanidade. O segun<strong>do</strong>expirava procuran<strong>do</strong> preservar no seu laboratório osúltimos tubos alimentares, automaticamente entreti<strong>do</strong>spor máquinas movidas pela energia solar.Os últimos cria<strong>do</strong>s <strong>do</strong>mésticos, macacos de há muitotransforma<strong>do</strong>s por uma longa e paciente educação,também já haviam sucumbi<strong>do</strong> anteriormente. O mesmose d<strong>era</strong> com todas as espécies anim ais ao serviço dahumanidade. Cães, cavalos, renas, ursos e algumas agesde grande porte, empregadas em serviços aéreos, ainda


sobreviviam, mas, tão transforma<strong>do</strong>s que ninguém osidentificaria com os seus antepassa<strong>do</strong>s.Evidente a condenação irrevogável da r aça humana.As ciências haviam desapareci<strong>do</strong> com os sábios, as artescom os artistas, e os últimos seres humanos apenasviviam <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>. Bal<strong>do</strong>s os corações de toda esp<strong>era</strong>nça,não havia como conceber ambições. A luz ficara paratrás, o futuro incidia em noite eterna. Nada, nada mais!Extintas, para to<strong>do</strong> o sempre, as glórias <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>. Sequalquer viajor transvia<strong>do</strong> nas solidões profundas ecrente nos séculos i<strong>do</strong>s pensasse em assinalar os lugaresem que se ergu<strong>era</strong>m Paris, Roma ou metrópoles outrasque lhes suced<strong>era</strong>m, não teria mais que uma quim<strong>era</strong>,visto que, <strong>do</strong>ba<strong>do</strong>s milhões de anos, nem mesmo taissítios existiam, por varri<strong>do</strong>s que tinham si<strong>do</strong> pelas águasoceânicas. Vagas' tradições, flutuantes através dasidades, graças à manutenção da imprensa e aos copista s<strong>do</strong>s grandes fastos da História. Mas, ainda assim, essasmesmas tradições <strong>era</strong>m incertas e, muitas vezes,mentirosas, pois, a respeito de Paris, por exemplo, osanais não registravam senão alguns traços de um Parismarítimo e os milhares de anos <strong>do</strong> Paris - capital daFrança - apenas restavam como vaga lembrança. Osnomes que hoje nos parecem inextinguíveis, quaisMoisés, Confúcio, Platão, Maomé, Alexandre, CarlosMagno, Napoleão e -- França, Itália, Grécia, Europa,América, não tinham sobrenada<strong>do</strong>, tornaram -se nulos.A arte conservara belas lembranças, mas essas longeestavam de remontar às épocas infantis da humanidade edatavam, no máximo, de alguns milhões de anos. Poder -se-ia crer que o planeta houvesse abriga<strong>do</strong>


consecutivamente várias raças separadas por dilúvios, oumesmo por novas criações.Omégar se detiv<strong>era</strong> na velha galeria de quadroslega<strong>do</strong>s pelas g<strong>era</strong>ções remotas, a contemplar opanorama das grandes cidades desaparecidas. A únicapertinente à Europa mostrava-lhe a perspectiva de umagrande capital, assente num promontório e coroada porum templo astronômico, com helicópteros aéreos a lhesobrevoarem as altas torres. Navios gigantescosbalouçavam no mar. Este Paris clássico pertencia aoséculo CLX da <strong>era</strong> cristã, correspondente ao CLVII da<strong>era</strong> astronômica. Era o Paris que preced<strong>era</strong>imediatamente a definitiva invasão oceânica. O próprionome havia muda<strong>do</strong>, visto que as palavras tambémmudam, como os seres e as coisas. A seguir, quadrosrepresentavam as grandes cidades de épocas menosremotas, que haviam floresci<strong>do</strong> na América, na Ásia, naAustrália e, mais tarde, nas terras emergidas <strong>do</strong> oceano.Dessarte, aquela espécie de museu retrospectivo evocavaa sucessão <strong>do</strong>s fastos históricos até o fim da Humanidade.O fim! Há sua hora soara no quadrante <strong>do</strong>s destinos.Omégar sabia que toda a vida da Terra consistia, dalipor diante, no seu passa<strong>do</strong>; que nenhum futuro deveriajamais existir para ela e que, mesmo o presente, se lheestava apagan<strong>do</strong> como o sonho de um minuto. O singularherdeiro <strong>do</strong> gênero humano experimento u, então, asensação profunda da vanidade imensa de todas ascoisas. Poderia esp<strong>era</strong>r que um inimaginável milagreainda pudesse salvá-lo de uma condenação evidente? Iriaamortalhar os velhos e compartilhar <strong>do</strong> seu túmulo?Deveria procurar viver ainda alguns dias, algumas


semanas ou anos, talvez, de uma existência solitária,inútil, desesp<strong>era</strong>da? P<strong>era</strong>mbulou o dia to<strong>do</strong> por aquelasgalerias vastas e silenciosas. Em vin<strong>do</strong> à noite, entregouseao sono que o empolgava. Tu<strong>do</strong> <strong>era</strong>m trevas em tornodele.Uma noite sepulcral. Doce sonho lhe despertou, então,na alma <strong>do</strong>lorida, como que a envolvê -la na tênueclaridade de angelical auréola. D<strong>era</strong> -lhe o sono a ilusãoda vida.Já se não via isola<strong>do</strong>. Sedutora imagem, já entrevistamais de uma vez, tinha vin<strong>do</strong> postar -se diante dele. Doisolhos blandiciosos de um fulgor e profundeza <strong>do</strong>sinfinitos, nele se fixavam e o penetravam, e o atraíam. Esentia-se num jardim riquíssimo de flores e perfumes.Sobre ele, entre a ramagem, uma concertina de pássaroscanoros. No fun<strong>do</strong> da paisagem, as ruínas enormes dascidades mortas enquadravam-se de plantas e flores.Depois, lobrigou um lago sulca<strong>do</strong> por aves aquáticas, dasquais se destacavam <strong>do</strong>is cisnes que lhe trazia num berço,e, dentro deste, uma criancinha recém -nascida que lheestendia os braços. Nunca tal raio de luz lhe iluminara oespírito. Tão viva a impressão, que o despertou de súbito.Abriu os olhos e não enxergou mais que a tristerealidade. Possuiu-se, então, de uma tristeza porventuramais pungente que a <strong>do</strong>s dias anteriores. Levantou-se,voltou ao leio e, acabrunha<strong>do</strong>, aguar<strong>do</strong>u queamanhecesse. Lembrou-se <strong>do</strong> sonho, mas não lhe deucrédito. Sentia vagamente que um outro ser humanoainda existia, mas a sua raça degen<strong>era</strong>da havia perdi<strong>do</strong>em parte as faculdades psíquicas, e, sem dúvida, q ue aohomem sempre lhe pareceu que a mulher lhe inspirava


atração excedente à dele, exercida sobre ela. Quan<strong>do</strong> odia reapareceu na sua luminosidade inexorável,, quan<strong>do</strong>o derradeiro homem viu perfilarem -se diante dele asruínas da sua velha cidade; quan<strong>do</strong> s e viu novamente sócom os seus <strong>do</strong>is mortos, sentiu mais que nunca o seudestino irrevogável e, num ápice, decidiu pôr termo auma vida assim inútil e atribulada. Dirigin<strong>do</strong> -se para olaboratório, procurou um frasco de fórmula assazconhecida, destampou-a e procurou esvaziá-lo de umtrago. Mas, justo no momento de o levar aos lábios,sentiu que duas mãos lhe tolhiam o braço... Voltou -se...Ninguém no laboratório! E na galeria não encontroumais que <strong>do</strong>is cadáveres...CAPITULO VIEvaFragilité des choses qui sont, Eternité des chosesqu'on réve.DARMESTETER.Nas ruínas da outra cidade equatorial, situada no valeoutrora submarino que se prolongava ao sul de Ceilão,sobrevivia uma jovem, inteiramente só, depois de lhe


morrerem inanidas a mãe e a irmã m ais velha. Era ela,assim, o último rebento da última família que pôdesobreviver à extinção g<strong>era</strong>l e que, simbolizan<strong>do</strong> ossalva<strong>do</strong>s <strong>do</strong> naufrágio universal, após a decadência daespécie humana e da última raça aristocrática,conseguiram manter-se em luta extrema contra a misériag<strong>era</strong>l, na esp<strong>era</strong>nça ilusória de vencer as injúrias <strong>do</strong>tempo, como a querer disputar -lhe os escombros. Umretorno atávico, que as leis da hereditariedade poderiamexplicar, d<strong>era</strong> à última flor dessa árvore humana umabeleza fulgurante, há muito desaparecida com adecadência universal. Era assim qual uma flor quetardiamente desabrochasse nos fins da estação, sobre ogalho de um tronco morto. Havia muito, nos camposestéreis os seres decrépitos, esgota<strong>do</strong>s, diminuí<strong>do</strong>s decorpo e de alma, retrograda<strong>do</strong>s à selvajaria, tinhamaban<strong>do</strong>na<strong>do</strong> a mís<strong>era</strong> carcaça às solidões geladas. Aflama da vida estava de fato e para sempre extinta.Assentada à sombra <strong>do</strong>s últimos arbustos polares,que, no topo de uma serra, iam morren<strong>do</strong> aos poucos, ajovem Eva conservava entre as suas as mãos da genitorafalecida na vésp<strong>era</strong>. Frígida à noite, na cúpula <strong>do</strong>firmamento a lua cheia brilhava como um disco de ouro.Seus raios de ouro, porém, <strong>era</strong>m tão álgi<strong>do</strong>s quanto os deprata da velha Selene.Profun<strong>do</strong> silêncio <strong>do</strong>minava o am biente, uma solidãode sepulcro só quebrada pela respiração flébil da moça,num como ritmo silencioso. Lágrimas por derramar, jáas não tinha. Seus dezesseis anos comportavam maiorexperiência e mais sabe<strong>do</strong>ria que os sessenta das épocasfloridas. De fato, ela sabia-se a última sobrevivente <strong>do</strong>


grupo de criaturas que acabava de extinguir -se, e quetoda a felicidade, alegria, esp<strong>era</strong>nça, com eladesapareciam para sempre! Sim: sabia que para ela, nempara outrem, já não havia presente nem futuro.A solidão, o silêncio, a dificuldade de vida, física emoral, e depois... o sono eterno. Pensava nas mulheres deoutrora, nas que tinham vivi<strong>do</strong> a vida real dahumanidade, nas amorosas, nas esposas, nas mães, e seusolhos avermelha<strong>do</strong>s, enxutos, não divisavam em torno desi mais que painéis de morte e, para além daquelasparedes vidradas, não mais que o deserto infecun<strong>do</strong>, osúltimos gelos, as últimas neves. Às vezes, o coração lhebatia violento no peito juvenil e ela, com as pequeninasmãos, mal conseguia comprimi -lo; outras vezes, pelocontrário, toda a vida interior como que se estancavacom a própria respiração. Se a<strong>do</strong>rmecia, por instantes,logo revia em sonho os seus brincos de outrora: a irmãrisonha. e turbulenta, sua mãe cantan<strong>do</strong> ainda, com vozcristalina e penetrante. as belas inspirações <strong>do</strong>s últimospoetas. E acreditava ver, então, de longe as últimas festasde uma sociedade brilhante, como que refletidas à face deum espelho. Depois, despertan<strong>do</strong>, a magia daslembranças se apagava, cedia à realidade fúnebre! Só,absolutamente isolada no mun<strong>do</strong>! E amanhã... a morte,antes de conhecer a vida... Fim inelutável, revoltasinúteis, condenação <strong>do</strong> destino, eis a lei brutal. E nãohavia como lhe fugir, senão que esp<strong>era</strong>r o fim próximo,pois nem a alimentação, nem a respiração e ntretinhammais os organismos. Um recurso, mísero recurso, lherestava: acabar logo com aquela existência <strong>do</strong>lorosa eirremediavelmente condenada. Dirigiu-se ao banheiro,


onde a água tépida ainda circulava, posto que osaparelhos, industriosamente engenha<strong>do</strong> s para acalorificação, de há muito houvessem deixa<strong>do</strong> defuncionar por falta de cuida<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s últimos servos eassim atingi<strong>do</strong>s, também eles, pela diminuição gradualdas águas. Mergulhou no banho perfuma<strong>do</strong>, tocou umcomuta<strong>do</strong>r ainda eficiente e a energia elét rica, provinda<strong>do</strong>s cursos da água subterrâneos não de to<strong>do</strong> congela<strong>do</strong>s,proporcionou-lhe um repouso repara<strong>do</strong>r, que fezesquecer por instantes a fatalidade <strong>do</strong> seu destino. Umobserva<strong>do</strong>r indiscreto que a houvesse contempla<strong>do</strong> poucodepois, quan<strong>do</strong>, de pé, em face <strong>do</strong> grande espelho, se pôsa entrançar a longa e anelada cabeleira quase loura, teriapodida entrever-lhe nos lábios um sorriso significativo deque naquele momento esquecia o seu tétrico destino.Noutro compartimento, encontrou ela os recursos que,dia a dia, lhe haviam forneci<strong>do</strong> os elementos da modernaalimentação, extraí<strong>do</strong>s da água, <strong>do</strong> ar, das plantas efrutos automaticamente cultiva<strong>do</strong>s nas serras, pelaprópria energia solar. Tu<strong>do</strong> isso funcionava como umrelógio remonta<strong>do</strong>. A partir de milênios, toda agenialidade humana se havia dedica<strong>do</strong> quaseexclusivamente a <strong>do</strong>minar o destino. Forçaram asderradeiras águas a circular em canais interiores, a esteslevan<strong>do</strong>, igualmente, o calor solar. Conquistaram osúltimos animais para fazer deles os servos passivos damáquina, e trataram as plantas de feição a desenvolvê -lasao máximo, a fim de lhes extrair todas as propriedadesnutritivas. Acabaram, assim, por viver de quase nada,quantitativamente, de vez que cada substânciaalimentícia, novamente criada, <strong>era</strong> perfeit amente


assimilável. As últimas cidades <strong>era</strong>m serraniasensolaradas, onde chegavam todas as substânciasaquosas, necessárias à alimentação e que substituíam osvelhos produtos da natureza. Entretanto, de século aséculo, tornava-se mais difícil obter os prod utosindispensáveis à vida. A mina acabara por esgotar -se. Amatéria fora vencida pela inteligência, mas, chegaraenfim o dia em que a inteligência também devia servencida: os operários acabaram, desde que a própriaterra não pôde mais abastecê-los. Houv<strong>era</strong>, portanto,uma luta gigantesca, imposta ao homem que não queria,de maneira alguma, sucumbir. Mas, os últimos esforçosnão lograram impedir que o solo absorvesse toda a águae, desde então, as últimas provisões, economizadas poruma ciência aparentemente superior à própria natureza,tinham atingi<strong>do</strong> o seu limite extremo.Eva tinha volta<strong>do</strong> para junto <strong>do</strong> corpo de sua mãe.Ainda uma vez, tomou-lhe das mãos geladas. Asfaculdades psíquicas das criaturas, há esse tempo, já odissemos, tinham adquiri<strong>do</strong> uma forç a transcendente.Eva pensou, num instante, em invocar a genitora, <strong>do</strong>âmbito mesmo das sombras. Afigurava -se-lhe que ela, agenitora, desejava, senão uma aprovação, ao menos umconselho. Uma idéia misteriosa a empolgava, a obsidiava,tanto quanto encantava. E <strong>era</strong> unicamente essa idéia quelhe obstava o intento de morrer imediatamente. Ela via,ao longe, a única alma que pôde vibrar uníssona com asua. Quan<strong>do</strong> nasc<strong>era</strong>, nenhum homem existia mais nasua tribo, que assim justificasse o velho qualificativo desexo forte. Os quadros colga<strong>do</strong>s à parede da amplabiblioteca mostravam-lhe os avós e as antigas


personagens da cidade. Os livros, as gravuras, asestátuas, mostravam-lhe o homem. Entretanto, narealidade nunca jamais vira um homem.Nada obstante, sonhava e, muitas vezes, pela retina<strong>do</strong>s olhos fecha<strong>do</strong>s, passavam-lhe imagens desconhecidas,perturba<strong>do</strong>ras. Seu espírito flutuava, às vezes, nomistério ignora<strong>do</strong>; <strong>era</strong> levada em sonho a uma vida nova,parecen<strong>do</strong>-lhe que o amor não estava ainda exila<strong>do</strong> daTerra. Desde que o frio extremo avassalara o planeta,muitos anos antes, haviam cessa<strong>do</strong> todas as comunicaçõeselétricas entre os últimos núcleos de população. Ninguémse falava, ninguém mais se avistava à distância. Ela,porém, conhecia a cidade oceânica como se a tivesse vistoe, quan<strong>do</strong> fixava o olhar na grande esf<strong>era</strong> que seostentava no centro da biblioteca, cerran<strong>do</strong> as pálpebras,deixava vogar livre o pensamento; quan<strong>do</strong> aplicava osenti<strong>do</strong> psíquico ao objeto <strong>do</strong>s seus desejos, eis queop<strong>era</strong>va, a distância, com intensidade de ordemdiferente, é certo, mas tão eficaz quanto à <strong>do</strong>s antigosaparelhos elétricos. Chamava alguém e sentia quealguém a compreendia.Na noite precedente, tinha-se transporta<strong>do</strong> à velhacidade de Omégar e, por instantes, ele se lhe mostrou emsonho. Logo pela manhã, vira o seu gesto desesp<strong>era</strong><strong>do</strong> e,num esforço supremo, conseguira deter -lhe o braço.E eis que, súbito, tombou, sonha<strong>do</strong>ra, acalmada nasua poltrona em frente ao cadáver materno.Flutuante o espírito, ei-lo a pairar sobre a cidadeoceânica, na pista daquela outra alma gêmea da sua, queainda vivia na Terra. Na última cidade oceânica, Omégara entendeu. Lentamente, como a sonhar, subiu à


plataforma <strong>do</strong> aeroporto. Influencia<strong>do</strong> por misteriosaforça, obedeceu à voz longínqua. A aeronave alçou -se emrumo <strong>do</strong> ocidente, atravessou as terras frigidas, outroratropicais, que substituíram o antigo oceano Pacífico, aPolinésia, a Malásia, as ilhas da Sonda e foi aterrissar naplataforma <strong>do</strong> palácio cristalino, onde a moça despertoucom o ruí<strong>do</strong> <strong>do</strong> aparelho, para ver o aeronauta que seprecipitava a seus pés.Correu, espantada, até ao fun<strong>do</strong> da galeria imensa eprocurava levantar a pesada pele que cortinava abiblioteca, quan<strong>do</strong>, acercan<strong>do</strong>-se, o rapaz se ajoelhou e,toman<strong>do</strong>-lhe da mão, murmurou simplesmente:chamastes-me e eu aqui estou... acrescentan<strong>do</strong> logo: hámuito que vos conheço, sabia que existíeis, muitas vezesvos vi, sois a perpétua atração <strong>do</strong> meu ser. Entretanto,nunca ousei vir.E ela, levantan<strong>do</strong>-o: Sei que somos únicos no mun<strong>do</strong>,e prestes a morrer. Uma voz mais forte que a minhaordenou-me que vos chamasse... Creio que fosse opensamento supremo de minha mãe, vitorioso da própriamorte. Vede, ela aqui está, inerte desde ontem... Ah!como esta noite é longa!O rapaz ajoelhara-se, tomara a mão da morta. Elesali estavam ambos, como em prece, diante daquelesdespojos.Ele inclinou-se depois para ela, e, delicadamente, suasfaces se tocaram.Eva estremeceu ligeiramente e murmurou: não!Súbito, porém, Omégar levantou -se, terrifica<strong>do</strong>, os olhosestatela<strong>do</strong>s... Era a morta que voltava a si! Retirou a mão


que ele retinha presa às suas, arregalou os olhos paramirá-las e disse:Desperto de um sonho estranho... E sem mostrar -sesurpresa com a presença de Omégar, acrescentou: aítendes, meus filhos... E estenden<strong>do</strong> a mão, apontou-lhesno céu o planeta Júpiter, que irradiava um brilhoesplêndi<strong>do</strong>.Fitan<strong>do</strong> o astro, o jovem par constatou que ele seaproximava, crescen<strong>do</strong> desmesuradamente, e, ofuscan<strong>do</strong>a paisagem polar, oferecia-se em toda a extensão aos seusolhares maravilha<strong>do</strong>s.Mares extensíssimos, coalha<strong>do</strong>s de embarcações,sobrevoa<strong>do</strong>s por flotilhas aéreas, plagas marinhas,embocaduras de rios gigantes, <strong>era</strong>m outros tantos centrosde atividade prodigiosa. Cidades brilhantes surgiam e,com elas, multidões formigantes. Impossível distinguirdetalhes das habitações, bem como a silhueta daquelesnovos seres, mas adivinhava -se ali uma outrahumanidade diferente da nossa, viven<strong>do</strong> no âmbito deoutra natureza, dispon<strong>do</strong> de outros órgãos e de outrossenti<strong>do</strong>s. E mais se adivinhava um mun<strong>do</strong> prodigioso,incomparavelmente superior a Terra.Eis ali onde estaremos amanhã - disse a morta -, ondeiremos encontrar toda a antiga humanidade terrena,aperfeiçoada e transformada. Júpiter recebeu a h<strong>era</strong>nçada Terra. Nosso mun<strong>do</strong> completou sua tarefa, não maishaverá g<strong>era</strong>ções neste ambiente... Adeus!Estendeu-lhe os braços. O jovem par inclinou -se paraa morta e beijou-lhe a fronte. Só então perceb<strong>era</strong>m queaquela fronte, apesar <strong>do</strong> estranho colóquio, continuava


fria como o mármore. Sim, ela havia fecha<strong>do</strong> os olhospara sempre.CAPITULO VIIO último diaAmour, étre de 1'ëtre! Amour, ãme de I'ãme.LAMARTINE, Harmonies.Bela coisa a vida... o amor vale por tu<strong>do</strong> e faz tu<strong>do</strong>esquecer. Música inefável <strong>do</strong>s corações, tua divinamelodia envolve o ser em êxtase de voluptuosidadesinfinitas! Quantos historia<strong>do</strong>res ilustres têm celebra<strong>do</strong> ospioneiros <strong>do</strong> progresso, a glória das armas, as conquistasda inteligência e as ciências da alma? Depois de tantosséculos de trabalho e lutas, nada mais restava na Terraque o arfar de <strong>do</strong>is corações, os beijos de duas almas,nada mais que o amor. E o amor afirmava -se e ficavacomo o sumo sentimento a <strong>do</strong>minar, qual farolinextinguível, o imenso oceano das idades mortas.Morrer? Como imaginá-lo? Pois, então, ali nãoestavam um pelo outro reciprocamente se bastan<strong>do</strong>? Ainvasão <strong>do</strong> frio trespassava-os até à medula, mas, nãotinham eles no peito calor bastante para vencer a


Natureza? Não continuava o Sol a fulgurar sempre, maisradioso? Quem diria não fosse a condenação finalretardada por longo tempo ainda?Omégar excogitava de como poderia entreter aindato<strong>do</strong> aquele sistema de há muito organiza<strong>do</strong> para extrairautomaticamente os princípios alimentares <strong>do</strong> ar, daságuas, e das plantas. E esp<strong>era</strong>va consegui -lo. Assim,outrora, depois da queda <strong>do</strong> império romano, viram-sebárbaros utilizarem os aquedutos, os banhos, as fontestermais e todas as realizações <strong>do</strong>s tempos cesareanos,extrain<strong>do</strong> de indústrias desaparecidas os elementos desua vitalidade.Um dia eles viram ali chegar, ao último palácio daúltima cidade terrena, um ban<strong>do</strong> de mís<strong>era</strong>s criaturasenvilecidas, descarnadas, meio selvagens, quase nadahumanas, e que pareciam haver regredi<strong>do</strong> aoprimitivismo das espécies simiescas, já de há muitodesaparecidas. Tratava-se de uma família errante, -destroços de uma raça degen<strong>era</strong>da, que vinhaprocuran<strong>do</strong> fugir à morte. Em virtude <strong>do</strong> secularpauperismo das condições de vida planetária, aHumanidade que, por milhões de anos, <strong>do</strong>minarasob<strong>era</strong>namente a natureza, atingin<strong>do</strong> a unidade tãolongamente esp<strong>era</strong>da, constituin<strong>do</strong> uma única espécie emque se fundiram todas as variedades, - essa humanidadesuperior, homogênea, perd<strong>era</strong> pouco a pouco o vigor e agrandeza.As influências de climas e meios não tardaram adeslocar a unidade conquistada, originan<strong>do</strong> novasvariedades e novas raças. E não foi senão com grandecusto que as duas civilizações mais sólidas e mais


enérgicas resistiram e se mantiv<strong>era</strong>m nos pináculos daintelectualidade. To<strong>do</strong> o resto da humanidade sofr<strong>era</strong> opeso <strong>do</strong>s evos, enfraquec<strong>era</strong>, modificara -se à mercê dasinfluências prepond<strong>era</strong>ntes. Ã antiga lei de progressotinha sucedi<strong>do</strong> uma como lei degradativa. A matéria, dir -se-ia, retomara os seus direitos, regredin<strong>do</strong> o homem àanimalidade. Mas todas as raças desse mun<strong>do</strong> senecto,caducárias e desagregadas, hav iam sucessivamentesucumbi<strong>do</strong>.Apenas alguns raros grupos erravam como espectros,por entre as ruínas <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>.Omégar procurou utilizar aqueles servos de novaespécie, na manutenção <strong>do</strong>s aparelhos culinários queainda funcionassem e, sobretu<strong>do</strong>, na conser vação eaproveitamento <strong>do</strong> calor solar.A esp<strong>era</strong>nça raiou naquela estância <strong>do</strong> Amor, com abeleza <strong>do</strong> arco-íris através de uma nuvem. O jovem paresqueceu o passa<strong>do</strong>, mais cioso <strong>do</strong> futuro e to<strong>do</strong> entregueao presente venturoso.Assim viv<strong>era</strong>m alguns meses na ebr iedade <strong>do</strong> amorque os prendia. Houve já quem dissesse que o amor é apoesia <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s e o beijo perene de duas almas.Diss<strong>era</strong>m, também, que a glória, a ciência, o talento, abeleza e a fortuna são incapazes de dar a felicidade, sema consagração <strong>do</strong> amor.Nós poderíamos acrescentar que nesses extremos diasterrenos só esse amor brilhava, qual uma estrela em meioà noite universal. Aqueles <strong>do</strong>is amantes não se advertiamde que se abraçavam dentro de um sepulcro.Por vezes, à tarde, quan<strong>do</strong> o Sol se punha atr ás dasruínas, Eva sentia-se angustiada na contemplação <strong>do</strong>


imenso deserto que os rodeava, e, abraçan<strong>do</strong> -se ao bemama<strong>do</strong>,não podia reter as lágrimas que lhe toldavam oolhar. Sim. Ela ainda confiava no futuro... Mas, quantasolitude, silêncio, desolação! Que estranho espólio de umaradiosa humanidade! As recordações ali estavam... Oslivros, naquela biblioteca, contavam as glórias todas <strong>do</strong>passa<strong>do</strong>; as gravuras como que as reviviam ante os seusolhos maravilha<strong>do</strong>s; os aparelhos fotográficos repetiam,à vontade, a voz <strong>do</strong>s mortos ilustres e até à própriaimagem deles, na tela das projeções telefúticas. Nosvelhos cofres metálicos, enormes, podiam as mãosmergulhar num oceano de moedas de ouro, de to<strong>do</strong>s ostimbres e valores - lega<strong>do</strong> estéril de riquezas inutilmenteacumuladas... Os instrumentos de física e de astronomia,que haviam transforma<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>, jaziam no pó.Senhores <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, de to<strong>do</strong>s os seus valores emobiliários, tu<strong>do</strong> possuin<strong>do</strong>, ei-los ambos mais pobresque os mais pobres mendigos <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>'.De que serviu tu<strong>do</strong> isso? - dizia ela passean<strong>do</strong> os olhospor todas aquelas conquistas da humanidade extinta.Sim! - para que to<strong>do</strong> esse esforço, conquistas,descobertas, e crimes, e virtudes? Sucessivamente, cadapovo havia cresci<strong>do</strong> e desapareci<strong>do</strong>. Alternativamente,cada cidade brilhara na glória e no prazer, para acabarem pó. Ei-las, ali, patentes naquelas ruínas que cobriam osolo, amontoadas, superpostas, ruínas de ruínas, sobreruínas. E as últimas teriam a mesma sorte. Dos bilhões dehomens que aqui viv<strong>era</strong>m, que resta? Nada.- Dize-me pois, meu bem-ama<strong>do</strong>, tu que tu<strong>do</strong> sabes,porque, e para que teria Deus cria<strong>do</strong> a Terra? E, porquea Humanidade? Não achas, meu queri<strong>do</strong>, que esse Deus é


um tanto louco? To<strong>do</strong>s esses bilhões de criaturas quevi<strong>era</strong>m pulular e disputar sobr e esta pequenina bolagirante, de que e para que serviram, uma vez que nadaresta? Dar-se-á não estejam agora, precisamente, comose nada houv<strong>era</strong> existi<strong>do</strong>? Eu bem sei que os habitantesde Marte tiv<strong>era</strong>m a mesma sorte e que os de Vênus,quan<strong>do</strong> se comunicavam conosco, há alguns séculos,também, não se consid<strong>era</strong>vam vota<strong>do</strong>s ao aniquilamento.Agora, aí temos os Jupiterianos que começam aindaincapazes de compreender nossas mensagens. Terão omesmo destino... Dize-me : comédia, ou drama, acriação? Diverte-se o Cria<strong>do</strong>r com os seus bonecos, ouapraz-lhe fazê-los sofrer? E' idiota? Que me dizes, meuamor?- Para que indagar, oh! minha Eva? Que teus olhosnão se turvem assim... Assenta-te aqui, nos meus joelhos,vem repousar a bela cabecinha junto <strong>do</strong> meu coração.Deus, crê, só fez o mun<strong>do</strong> para o amor. Esquece, pois,tu<strong>do</strong> o mais.- Mas, como esquecer, fechar os olhos, abafar a razãoe o coração nestas horas tão solenes? Sim, nosso amor étu<strong>do</strong>, absolutamente tu<strong>do</strong>. Mas, meu queri<strong>do</strong>, como nãopensar ainda que to<strong>do</strong>s os casa is que nos preced<strong>era</strong>m,desde o princípio <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, desaparec<strong>era</strong>m, tambémeles, e que to<strong>do</strong>s esses amores que aureolaram deesp<strong>era</strong>nças os votos humanos; to<strong>do</strong>s esses ósculosdivinais, de lábios nos quais dir-se-ia reascender um gozoeterno; to<strong>do</strong>s esses arroubos se perd<strong>era</strong>m, se diluíram emfumo; - sim, em fumo - e que de tu<strong>do</strong> não resta mais quenada, nada... Oh! meu Omégar, a verdade é que aHumanidade viveu dez milhões de anos para acabar


nada saben<strong>do</strong>'. A Ciência entre todas maravilhosa, aciência <strong>do</strong> universo, a Astronomia, tu<strong>do</strong> nos ensinou, deu -nos a verdadeira religião, mas, não nos demonstrou alógica de Deus!- Queres muito saber, Eva. Contu<strong>do</strong>, não ignoras quea humanidade terrestre flutuou no incognoscível e nósnão podemos conhecer o incognoscível. Sabe o ponteiro<strong>do</strong> relógio porque foi feito e porque gira? Precisamosresignar-nos com a circunstância de não havermospassa<strong>do</strong> de ponteiros. Somos seres finitos e Deus éinfinito. Não há estalão de medida entre o finito e oinfinito. Estamos na situação de uma r odinha de relógio,que, metida na sua caixa, raciocinasse sobre a indústriarelojoeira. Seguramente, ela poderia também raciocinardurante dez milhões de anos, sem concluir que omecanismo em que se integra tem por fim correspond<strong>era</strong>o movimento diurno <strong>do</strong> nosso planeta. Minha querida: arodinha <strong>do</strong> relógio só tem uma função, que é rodar.Todas as <strong>do</strong>utrinas filosóficas e religiosas resultaram vãsna indagação <strong>do</strong> absoluto.Entretanto, a Ciência não é totalmente ilusória.Sabemos que o mun<strong>do</strong> visível, atingível, perceptível aosnossos senti<strong>do</strong>s, não existe sob as formas aparentes quenos impressionam e não passam de um véu <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>real e invisível. Sabemos que o átomo é intangível, que aluz, o calor, o som, não existem, bem como a solidezaparente <strong>do</strong>s corpos. Nossos senti<strong>do</strong>s, nossos meios depercepção apenas nos dão uma falsa imagem darealidade. Sabem que assim é, já é alguma coisa, bemcomo que a realidade reside no invisível, que a alma éuma força psíquica indestrutível, que se torna


pessoalmente imortal, isto é, consciente de suaimortalidade, desde que começou a viverintelectualmente, desprendida da espessa ganga material.Sobre os bilhões de seres humanos que povoam a Terra,a proporção <strong>do</strong>s conscientes de sua imortalidade,conservan<strong>do</strong> a lembrança de existên cias anteriores éfraca, mesmo em Júpiter, sua estância atual. Mas, oprogresso é a lei da Natureza e to<strong>do</strong>s deverão atingir essevalor consciencial. Essa é a força psíquica quemovimenta o mun<strong>do</strong>. O Universo é um dinamismo. Ovisível aos olhos <strong>do</strong> corpo é co mposto de elementosinvisíveis. O que vemos é feito de coisas que se não vêem.As classificações científicas que, durante tantos milhõesde anos, constituíram a ciência humana, foram baseadasem sensações superficiais. A Humanidade, porém, pelaanálise mesma das sensações, pela observação e pelaexperimentação, aprendeu que o Universo é regi<strong>do</strong> porforças imateriais, que as almas são realidades, seresindestrutíveis, que podem comunicar -se, manifestar-se àdistância; que o espaço não é barreira de separação,antes laço de união entre os mun<strong>do</strong>s; que a pequeninaTerra, ora moribunda, é um astro celeste como os seusvizinhos, e que a sua Humanidade não teria passa<strong>do</strong> deuma diminuta fração das muitas que existem noUniverso. E, como se perpetuou por tanto tempo e ssahumanidade? Certo, pela suprema lei <strong>do</strong> amor. Foi ele, oamor, quem lançou as almas no cadinho universal. E' oamor que deve pairar acima <strong>do</strong> tempo, como se verificana história da Humanidade. Ele, o cria<strong>do</strong>r perpétuo,universal; a imagem sensível e deslu mbrante <strong>do</strong> Poder


invisível e incognoscível, que irradia eternamente nomistério insondável.Eis como, naqueles últimos dias <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, os <strong>do</strong>isúltimos exemplares da Humanidade ainda conversavamsobre os grandes problemas que, de to<strong>do</strong>s os tempos,desafiaram a curiosidade <strong>do</strong>s homens. Eles tinham -seapoia<strong>do</strong> na esp<strong>era</strong>nça <strong>do</strong> além e, naquele momento, essaesp<strong>era</strong>nça lhes irradiava no coração como um fanalinextinguível.Ali estava, realmente, o verdadeiro sol. O outro, o <strong>do</strong>planeta, continuava a brilhar e aquecer, sempre. Nossaspersonagens tinham a impressão de que viveriam muitotempo ainda. O sistema circulatório das águas e aextração <strong>do</strong>s princípios alimentares funcionavam, graçasao esforço <strong>do</strong>s servos infatigáveis, parecen<strong>do</strong> que aúltima hora não soaria tão ce <strong>do</strong> no quadrante circular<strong>do</strong>s destinos.Mas, um dia, por mais perfeito que fosse, esse sistemadeveria de parar. As águas subterrâneas cessaram decorrer. O solo congelou-se a grandes profundidades. Osraios solares prosseguiam aquecen<strong>do</strong> as habitações detetos envidraça<strong>do</strong>s, mas planta alguma poderia resistir àfalta da água.To<strong>do</strong>s os esforços combina<strong>do</strong>s da ciência e daindústria não lograram dar à atmosf<strong>era</strong> os elementosnutritivos, peculiares à atmosf<strong>era</strong> de uns tantos mun<strong>do</strong>s,e o organismo humano reclamava sempre osreconstituintes que aqueles esforços tinham obti<strong>do</strong>, qualvimos, <strong>do</strong> ar, das águas e das plantas. Secas as fontes,decretada estava à condenação.


Depois de haver enfrenta<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s os óbices ereconhecida a inutilidade da luta, o último casal humanonão se resignou a esp<strong>era</strong>r a morte. Outrora, antes de seconhecerem, cada qual de per si a esp<strong>era</strong>va sem temor.Agora, porém, cada qual queria seqüestrar o ser ama<strong>do</strong>ao destino impie<strong>do</strong>so. A só idéia de ver o seu Omégarinanima<strong>do</strong> junto dela, Eva experimentava uma sensaçãotão <strong>do</strong>lorosa que nem sabia como lhe pudesse resistir. Eele, por sua vez, desesp<strong>era</strong>va-se de não poder arrebatá-ladeste mun<strong>do</strong> condena<strong>do</strong> a perecer, voan<strong>do</strong> para aquel<strong>era</strong>dioso Júpiter, sem deixar na Terra o belo corpo quea<strong>do</strong>rava.Imaginou que ainda poderia existir alguma regiãoque retivesse um pouco daquela água preciosa, a minguada qual a vida se esvaia. Posto que já debilita<strong>do</strong>, tomou asuprema resolução de partir, de investigar. O aviãoelétrico ainda funcionava. Deixan<strong>do</strong> a última cidadehumana, que já não <strong>era</strong> mais que um cemitério, os <strong>do</strong>isúltimos descendentes da extinta humanidade esquec<strong>era</strong>mas regiões inóspitas, em busca de qualquer oásisdesconheci<strong>do</strong>.To<strong>do</strong>s os antigos reinos deslizaram a seus pés.Reconhec<strong>era</strong>m vestígios das últimas metró poles focos decivilização, que agora pontilhavam de ruínas toda aextensa zona equatorial. Tu<strong>do</strong> acaba<strong>do</strong>, tu<strong>do</strong> morto! Empouco, tornaram a ver a cidade que haviam deixa<strong>do</strong> eonde, sabiam, faltava, como alhures, to<strong>do</strong> e qualquerelemento de vida. Não desc<strong>era</strong>m e assim prosseguirampercorren<strong>do</strong>, naquele vôo solitário, todas as regiões queanimaram as últimas etapas históricas. Por toda à parte,contu<strong>do</strong>, nada mais que ruínas, silêncio, desolação! Um


deserto de gelo. Nem mais relva, nem plantas, mesmopolares.Os últimos cursos da água desenhavam-se como emmapa geográfico e via-se que, junto deles, a vida humanase prolongara. Estavam agora, porém, exauri<strong>do</strong>s,esgota<strong>do</strong>s para sempre, e, quan<strong>do</strong> por vezes se lhespatenteava o fun<strong>do</strong> de um lago, <strong>era</strong> um lago de pedra. OSol, mesmo no equa<strong>do</strong>r, já não fundia os gelos eternos.Os animais, espécie de ursos de longo pêlo, que aindaresistiam, mal encontrariam, em geladas furnas, exíguaalimentação vegetal. Viam-se também, de vez emquan<strong>do</strong>, uma espécie de morsas e pingüins caminhan<strong>do</strong>sobre o gelo, e grandes aves cinzentas voan<strong>do</strong> rasteira,melancolicamente.Os míseros condena<strong>do</strong>s não encontraram em partealguma o deseja<strong>do</strong> oásis. A noite caía. No céu, nem umanuvem. Um vento menos frio, sopran<strong>do</strong> <strong>do</strong> sul, havia -osleva<strong>do</strong> a planar sobre a antiga África, transformada emregião glacial. O mecanismo <strong>do</strong> avião paralisara. O frio,mais que a fome, estarrecia-os no fun<strong>do</strong> da sua naceleforrada de peles.Pareceu-lhes, perceber uma ruína e tomaram pé. Eraum grande tabuleiro quadrangular, mostran <strong>do</strong> osfundamentos assentes em grandes massas graníticas.Nem mais nem menos que vestígios de uma pirâmideegípcia. Construção milenar, destinada à eternidade, elasobreviv<strong>era</strong>, primeiramente, em pleno deserto, àcivilização de que <strong>era</strong> símbolo; mais tarde, d esc<strong>era</strong>abaixo <strong>do</strong> nível oceânico, com os territórios <strong>do</strong> Egito, daNúbia e da Abissínia; depois, tornara a emergir e forapomposamente restaurada no seio de uma nova capital e


de uma civilização mais opulenta que as de Tebas eMênfis, até que, finalmente, ac abou em aban<strong>do</strong>no nassolidões desérticas. No monumento das primeiras idadesque ainda subsistia, graças à sua conformaçãogeométrica.- Descansemos aqui - disse Eva - sorridente emelancólica. Pois que estamos condena<strong>do</strong>s à morte - e, aodemais, quem o não foi? - quero morrer tranqüilamenteem teus braços.Procuraram uma anfratuosidade nas ruínas e ali seassentaram conchega<strong>do</strong>s, à face da solidão tumular. Elaencolhia-se toda, febrilmente, abraçan<strong>do</strong> -se aocompanheiro e procuran<strong>do</strong> reagir ao frio implacável qu etoda a invadia. Ele a atraía e apertava de encontro aocoração, como se quisesse reaquecê -la com o fogo <strong>do</strong>sseus beijos.- Amo-te e ...morro - disse; mas, logo emen<strong>do</strong>u:não, tu disseste que nós não morremos ... Vês a estrelaque nos chama?Nesse instante, ouviram atrás deles, sain<strong>do</strong> <strong>do</strong> túmulode Khéops, um leve ruí<strong>do</strong> semelhante ao farfalhar deuma ramagem agitada pelas brisas. Trêmulos, voltaram -se num movimento único e entreviram uma sombra, quelhes parecia autoluminosa - visto que a noite se fechava enão havia luar - deslizan<strong>do</strong>, antes que marchan<strong>do</strong>, ecélere se lhes aproximan<strong>do</strong>, até que estacou diante deseus olhos aterra<strong>do</strong>s, estupefatos.- Nada temais - disse -, venho receber-vos. Nãomorrereis... Ninguém morre, ninguém jamais morreu. Otempo rola na eternidade e a eternidade fica. Fui Khéops,eu que vos falo e aqui reinei, nos prístinos tempos deste


mun<strong>do</strong>. Depois, aqui expiei meus crimes em sucessivasexistências servis; e quan<strong>do</strong> fiz jus à imortalidade, fuihabitar Netuno, Ganímedes, Reia, Titã, Satur no, Marte eoutros mun<strong>do</strong>s de vós desconheci<strong>do</strong>s. Atualmente, moroem Júpiter. Nos tempos áureos da Terra, esse planeta <strong>era</strong>ainda inabitável para seres inteligentes e percorriaestágios preparatórios. Agora, é esse mun<strong>do</strong> colossal querecebe o patrimônio <strong>do</strong>s progressos terrenos. Os mun<strong>do</strong>sse sucedem no tempo, como no espaço. Tu<strong>do</strong> é eterno,tu<strong>do</strong> se funde no divino. Confiai em mim, vinde comigo.Enquanto falava o velho Faraó, sentiram deliciosoflui<strong>do</strong> penetrar-lhes na mente, como sói acontecerquan<strong>do</strong> ouvimos uma <strong>do</strong>ce melodia. Uma sensação defelicidade transcendente e calma os invadiu inteiramente.Nunca um sonho, um êxtase, lhes produzira tal gozo.Eva ainda estreitou mais fortemente o companheiro... Amo-te, amo-te! repetia. Omégar depôs-lhe nos lábios jáfrios um terno beijo, e ouviu que ela ainda lhe dizia numfrêmito: oh! quanto o teria ama<strong>do</strong>!. . .Júpiter lá estava a cintilar no céu.Eva abriu os olhos, fitou o planeta gigantesco epareceu que se abismava no seu fulgor, como fascinadapor alguma visão. De repente, o semblante iluminou-selhenum êxtase radiante. Muita vez, com o derradeirosuspiro <strong>do</strong> moribun<strong>do</strong>, vê-se um halo de tranquilidadeestender-se, banhar-lhe a fronte e nela imprimir o selo deum sonho inefável. Assim, e porvent ura maisradiosamente, numa iluminação divina, transfigurou-se osemblante da última mulher.


Ainda tentou falar, estendeu os braços para o astro e,reanimada por uma energia nova, ei -la a exclamar,admirada:Sim, é verdade, lá está ela, a Verdade que me fizestepressentir. Como são belos! Espíritos imortais, eis -meconvosco. Ah! que bem o disseste - nada morre. Estouconsolada, Omégar está comigo,. vivemos, continuamos aviver sempre, sempre! Exaltava -se ainda. Fixou emOmégar os olhos fulgurantes de entusiasmo e, contu<strong>do</strong>,não o viu. Sim - disse ela - ele está comigo. Nós vivemos,sentimos, vemos... A felicidade está na vida, na vida...eterna.Levada por uma força sobrenatural, ergu<strong>era</strong> -se comose quisesse alçar-se à imensidão <strong>do</strong> céu, mas,. logo,rodan<strong>do</strong> nos calcanhares, recaiu nos braços de Omégar,que se apressara em ampará-la. Estava. morta. Beijou-aainda nos lábios géli<strong>do</strong>s, trespassa<strong>do</strong> de um frio glacial esentiu, ele próprio, que a vida lhe fugia. O coração bateu -lhe precipite e, de repente, parou.Seus olhos se apagaram confu ndi<strong>do</strong>s na luz deJúpiter, fechan<strong>do</strong> as pálpebras suavemente.A sombra de Khéops elevou-se, desapareceu noespaço. A quem pudesse ver, não com os olhos <strong>do</strong> corpo,que só apreendem as vibrações físicas, mas, com os olhosda alma, que captam as vibrações psíqui cas, deparar-seiaentão, levadas por aquela. sombra, duas minúsculasflamas conchegadas, conjugadas na mesma atração,ascenden<strong>do</strong> ao céu.Daí por diante, nada mais restava na Terra, a não s<strong>era</strong>lguns míseros grupos de criaturas a morrerem de fomee de frio - assim uma espécie de esquimós selvagens,


evesti<strong>do</strong>s de peles e buscan<strong>do</strong> nas cavernas rupestres umderradeiro abrigo. A raça intelectual, essa estavadefinitivamente extinta. Algumas espécies animais,degen<strong>era</strong>das, ainda sobreviv<strong>era</strong>m alguns milhares deanos. Depois, insensível, gradualmente, toda a vidaplanetária se extinguiu.Estes sucessos ocorr<strong>era</strong>m, como vimos, dez milhões deanos após a época que estamos viven<strong>do</strong>. O Sol continuoua brilhar ainda por uns vinte milhões de anos e Júpiter eSaturno foram, então, a sede de g<strong>era</strong>ções florescentes.Ela, a Terra, continuou a girar no espaço, qual desoladanecrópole, na qual não se ouviria, jamais, o pipilar de umpássaro. Eterno silêncio amortalhou as ruínas daHumanidade morta. Toda a história humana se esvaíraqual nuvem de fumo.E no abismo celeste, na amplidão infinita <strong>do</strong>s céus,nenhuma lápide, uma só lembrança assinalou o ponto emque o nosso mísero planeta exalara o derradeiro suspiro.EPILOGODissertação FilosóficaEntão jurou por Aquele que vive para to<strong>do</strong>s osséculos <strong>do</strong>s séculos, que mais tempo não haverá.Apocalipse, X 6.


A Terra estava morta. Os outros planetas haviamtambém morri<strong>do</strong>, uns após outros. Apagara -se o Sol. Asestrelas, porém, continuavam a brilhar, havia sempresóis e outros mun<strong>do</strong>s.Na eternidade sem limites, o tempo, essencialmenterelativo, é determina<strong>do</strong> pelo movimento de cada planetae mesmo estima<strong>do</strong> em cada qual diversamente, segun<strong>do</strong>as sensações pessoais das criaturas. Cada globo conta asua própria duração. Os anos da Terra não são os deNetuno, que equivalem a cento e sessenta e quatro <strong>do</strong>snossos e, ainda assim, nada representam no cômputo <strong>do</strong>absoluto. Não há medida comum entre o tempo e aeternidade. No espaço vazio não existe o tempo. Ninguémpoderia lá julgar-se em qualquer ano ou século. Admitese,contu<strong>do</strong>, a possibilidade de um estalão quedeterminasse a chegada de um globo giratório.Sem movimento periódico, impossível se tornaqualquer noção de tempo.A Terra já não existia. Nem ela, nem a sua pequenavizinha celeste - a ilhota Marte, nem a bela Vênus, ocolossal Júpiter, o estranho Saturno, que perd<strong>era</strong> osanéis e, tão-pouco, Urano e Netuno com toda a sualenteza. Nem mesmo o Sol que, com a ignidade das suaschamas, havia, durante tanto tempo, fecunda<strong>do</strong> ascelestes pátrias que lhe gravitavam em torno. Ele, o Sol,não passava agora de uma bola escura, idêntico aosplanetas vassalos; e o sistema planetário, invisível,prosseguia corren<strong>do</strong> na imensidão estrelada, no bojo <strong>do</strong>espaço obscuro. Do ponto de vista vital, esses mun<strong>do</strong>s


estavam to<strong>do</strong>s mortos, não mais existiam. Sobreviviam àsua história, assim como os escombros das cidadesAssírias que o arqueólogo descobre no deserto adusto, arolarem obscuros no invisível e ignoto. E tu<strong>do</strong> isso emtemp<strong>era</strong>tura ultraglacial de 273 graus ab aixo de zero.Nenhum gênio, nenhum mago poderia reconstituir otempo esvaeci<strong>do</strong>, restaurar os antigos dias em que aTerra flutuava inebriada de luz, belos pra<strong>do</strong>sverdejantes, rios ondulosos como grandes serpentes,bosques orquestrais, florestas compactas e misteriosas,mares pláci<strong>do</strong>s ou rugi<strong>do</strong>res, montanhas sangran<strong>do</strong>fontes e cascatas, recantos luminosos, jardins flori<strong>do</strong>s,ninhos, berços, populações laboriosas que viv<strong>era</strong>m tãogloriosamente ao sol da vida, perpetuadas por um amorsem fim. Eterna, então, parecia toda aquela ventura. Quefim levaram aquelas manhãs, aquelas noites? As flores eos amantes, as luzes e os perfumes, belezas e sonhos?Tu<strong>do</strong> aniquila<strong>do</strong>, desapareci<strong>do</strong> tu<strong>do</strong>! A terra, osplanetas, to<strong>do</strong> o sistema solar anula<strong>do</strong>! E o própriotempo susta<strong>do</strong>! Ele, o tempo, escoa-se na eternidade; masa eternidade permanece e o tempo ressuscita.Antes de existir a Terra, por toda uma eternidadehouve sóis e houve mun<strong>do</strong>s, humanidades vi vas eoperosas, como a nossa de agora. Assim viviam elas nobojo <strong>do</strong> infinito, milhões e milhões de anos, antes que aTerra existisse. Nem o universo anterior seria menosfulgurante que o nosso. E depois de nós, será o mesmoque antes de nós. Nossa época não tem qualquerimportância.Examinan<strong>do</strong> a história da Terra, poderíamosremontar primeiramente à época primária, na qual ela


fulgia no espaço como verdadeiro sol; depois, vê -la-íamosna fase em que, semelhante a Júpiter e a Saturno, foirecoberta de uma atmosf<strong>era</strong> densa, carregada de vaporesquentes, e, daí por diante, acompanhar -lhe todas astransformações até ao perío<strong>do</strong> humano. Acabamostambém de ver, que, quan<strong>do</strong> o vapor da águadesapareceu da sua atmosf<strong>era</strong>, sen<strong>do</strong> esta mais ou menosabsorvida pelo próprio globo, ele deveria retratar aimagem <strong>do</strong>s grandes desertos lunares ora revela<strong>do</strong>s pe losnossos telescópios, com as diferenças individuais danatureza terrena regida por seus próprios elementos,com as suas últimas configurações geográficas, suasplagas e rios desseca<strong>do</strong>s. Cadáver planetário! Terramorta e regelada, leva, nada obstante, em seu seio umaenergia não esgotada - a <strong>do</strong> seu movimento de translaçãoem torno <strong>do</strong> Sol, energia que, transformada em calorpela parada de movimento, bastaria para fundir toda asua massa, reduzir uma parte a vapor e recomeçar umanova história planetária, embora de curtíssima duração,visto que, se este movimento de translação viesse a cessar,a Terra se precipitaria no Sol e perderia a sua existênciaprópria.Paralisada de súbito, ela cairia em linha reta para oSol, em velocidade crescente, para atingi -lo em 65 dias.Paran<strong>do</strong> gradualmente, a queda seria em espiral elevaria mais tempo para desvanecer -se no astro-central.Toda a história da vida terrena, aí a temos diante <strong>do</strong>solhos, com o seu começo e o seu fim. Sua duração, sejaqual for o número de séculos que a integrem, antecede esucede a uma eternidade, de sorte que não representa


senão um instante perdi<strong>do</strong> no infinito, uma vagaimperceptível no oceano imenso das idades.Muito tempo depois que a Terra deixara de ser umaestância de vida, os gigantescos mun <strong>do</strong>s de Júpiter eSaturno, transitan<strong>do</strong> mais lentamente da fase solar àplanetária, reinaram a seu turno no seio <strong>do</strong> sistema solar,irradian<strong>do</strong> uma vitalidade incomparavelmente superior atoda a história orgânica. <strong>do</strong> nosso globo. Entretanto,também para eles, chegaram os dias da decrepitude ehouv<strong>era</strong>m de mergulhar na noite <strong>do</strong> túmulo.XNavigateurs lancés pour n'atteindre aucun port.SULLY - Prudhomme, le Zenith.Se a Terra tivesse conserva<strong>do</strong> por tempos mais longosos seus elementos vitais como Júpiter, por exemplo, ela sópereceria quan<strong>do</strong> se extinguisse o próprio Sol. Mas, averdade é que a duração da vida <strong>do</strong>s mun<strong>do</strong>s éproporcional à grandeza e aos elementos vitais de cadaum.Duas são as fontes principais <strong>do</strong> calor solar:condensação da nebulosa primitiva e a queda demeteoros. A primeira causa produziu, segun<strong>do</strong> os maisseguros cálculos da termodinâmica, um calor queultrapassa de dezoito milhões o irradia<strong>do</strong> pela Soldurante um ano, suposto que a primitiva nebulosa fossefria, o que não provável. Continuan<strong>do</strong> a condensar-se, o


Sol pode irradiar, sem nada perder, durante séculos eséculos.O calor emiti<strong>do</strong> por segun<strong>do</strong> equivale ao resultanteda combustão de 11 quatrilhões e 600.000 milhões detoneladas de carvão min<strong>era</strong>l! A Terra não capta mais quemeio milésimo dessa irradiação, e esse meio milésimobasta para entreter toda a vida terrestre. Dos 67 milhõesde raios luminosos e caloríficos que o Sol manda aoespaço, apenas um é recebi<strong>do</strong> e utiliza<strong>do</strong> pelos planetas.Pois bem: para conservar essa fonte de calor, bastar iaque o globo solar continuasse a condensar -se, de tal mo<strong>do</strong>que o seu diâmetro não diminuísse senão 77 metros porano, ou 1 quilômetro em treze anos. Uma contração tãolenta que se tornaria absolutamente imperceptível.Seriam precisos nove mil e quinhento s anos para reduziro diâmetro de um segun<strong>do</strong> apenas, de arco.Se o mesmo Sol ainda fosse atualmente gasoso, seucalor, longe de diminuir, ou mesmo estacionar,aumentaria pelo só efeito da contração, porquanto,condensan<strong>do</strong>-se por um la<strong>do</strong> e resfrian<strong>do</strong>-se por outro,um corpo gasoso, o calor engendra<strong>do</strong> pela contração émais que suficiente para impedir a queda detemp<strong>era</strong>tura, e o calor aumenta até que a condensaçãocomece sob a forma líquida. Tal, provàvelmente, o esta<strong>do</strong>atual <strong>do</strong> Sol.A condensação <strong>do</strong> globo solar, cuja densidade aindanão representa senão um quarto da densidade terrena,pode, só por si, entreter durante muitos séculos (pelomenos dez milhões de anos) o calor e a luz solar. Mas, nósfalamos duma segunda fonte de manutenção dessatemp<strong>era</strong>tura, que é a queda <strong>do</strong>s meteoros.


Constantemente, desabam na Terra cento e quarenta eseis milhões de estrelas cadentes, cada ano. Maior,incomparavelmente, é o número das que convergem parao Sol, dada a sua atração prepond<strong>era</strong>nte. Se elerecebesse, digamos, a centésima parte da massa terrena,tal queda bastaria para entreter a sua irradiação, nãopela combustão desses meteoros - pois se o Sol seconsumisse a si mesmo a sua duração não passaria de seismil anos - mas, pela redução a calor <strong>do</strong> movimentosubitamente susta<strong>do</strong>, igual a 650.000 metros no últimosegun<strong>do</strong> da queda, tal a intensidade da atração solar.Se a Terra caísse no Sol, entreteria por 95 anos odespêndio atual da energia solar. E assimVênus – durante - 84 anosMercúrio – durante – 7 anosMarte– durante – 13 anosJúpiter – durante – 32.254 anosSaturno – durante – 9.652 anosUrano – durante –1.610 anosNetuno – durante –1.890 anosO que vale dizer que a queda de to<strong>do</strong>s os planetas noSol produziria calor suficiente para alimentá -lo por cercade quarenta e seis mil anos.Certo, pois, que a queda de meteoros adita uma longaduração ao entretenimento <strong>do</strong> calor solar. Trinta e trêsmilionésimos de acréscimo anual, na massa solar,bastariam para compensar a perda, e somente a metade,se admitirmos que a condensa ção tenha uma parteequivalente à da queda <strong>do</strong>s meteoros, para a manutenção


<strong>do</strong> calor solar. Entretanto, para que os astrônomos opercebessem, mediante o acel<strong>era</strong>mento das revoluçõesplanetárias, muitos séculos seriam precisos.Podemos, assim, admitir um míni mo de vinte milhõesde anos para o futuro <strong>do</strong> nosso Sol, levan<strong>do</strong> em contaapenas estes <strong>do</strong>is fatores. Poderíamos, mesmo, elevar ocálculo a trinta milhões, sem exagero. E note -se que talduração ainda pode ser aumentada pela reserva defatores desconheci<strong>do</strong>s, sem imaginarmos o encontro deum enxame meteórico.Foi, portanto, o Sol o último sobrevivente <strong>do</strong> seusistema, o último beneficia<strong>do</strong> <strong>do</strong> fogo vital.E contu<strong>do</strong>, também ele se extinguiu... Depois de haverderrama<strong>do</strong> sobre a família celeste, por tanto tempo, osraios da sua luz vivificante, viu aumentarem-se-lhe asmanchas, em número e extensão, palecer -lhe a fotosf<strong>era</strong>,sombrear-se, coagular-se a superfície outrora fulgurante.Uma bola enorme, vermelha, substituiu no espaço o focoesplendente <strong>do</strong>s mun<strong>do</strong>s desapareci<strong>do</strong>s.Também para ele chegou o último termo, soou aúltima hora no eterno relógio <strong>do</strong>s destinos, hora em queto<strong>do</strong> o sistema solar houv<strong>era</strong> de ser risca<strong>do</strong> <strong>do</strong> livro davida.Sucessivamente, todas as estrelas que representamum sol, to<strong>do</strong>s os sistemas solares, t o<strong>do</strong>s os mun<strong>do</strong>s,tiv<strong>era</strong>m a mesma sorte...Tout s<strong>era</strong>, tout semble étre, et tout n'est que néant.BOUDHA.


Apesar disso, tal como hoje, o Universo continuou aexistir. A ciência matemática nos diz:Parece que o sistema solar não possui atualmentemais que a centésima qüinquagésima parte da energiatransformável, que possuía no esta<strong>do</strong> de nebulosa. Sebem que este remanescente constitua ainda uma provisãocuja enormidade nos confunde, ele terá também o seutotal esgotamento. Mais tarde, a transformação seop<strong>era</strong>rá em to<strong>do</strong> o Universo e acabará estabelecen<strong>do</strong> umequilíbrio g<strong>era</strong>l de pressão e de temp<strong>era</strong>tura.Daí por diante, a energia não mais será suscetível detransformar-se. Não será a imobilidade absoluta, vistoque a mesma soma de energia há -de existir sempre sob aforma de movimentos atômicos, e sim, a ausência de to<strong>do</strong>o movimento sensível, de toda a diferença e de toda atendência, isto é, a morte definitiva.Eis o que diz a matemática contemporânea.A observação atesta, de fato, que, de um la<strong>do</strong>, aquantidade de matéria permanece constante, e, de outrola<strong>do</strong>, o mesmo se dá com a força ou energia, através detodas as transformações e posições <strong>do</strong>s corpos; mas, queo Universo tende para um esta<strong>do</strong> de equilíbrio,conseqüente à uniformidade <strong>do</strong> calor reparti<strong>do</strong>. O ca lorsolar, como o de to<strong>do</strong>s os astros, parece devi<strong>do</strong> àtransformação <strong>do</strong>s movimentos iniciais, aos choquesmoleculares, e o calor atual, proveniente dessatransformação de movimento, difunde -se constantementeno espaço, isso até que to<strong>do</strong>s os astros sejam res fria<strong>do</strong>s à


temp<strong>era</strong>tura <strong>do</strong> próprio espaço. Se consid<strong>era</strong>rmosidôneas as nossas atuais ciências quais a física, amecânica, as matemáticas; e admitin<strong>do</strong> a constância dasleis que hoje regem a natureza e o raciocínio humano,outro não poderá ser o destino <strong>do</strong> Uni verso. Longe de sereterna, esta Terra que habitamos teve o seu princípio. Naeternidade, cem milhões, um bilhão de anos, ou deséculos, são como um dia. A eternidade precede e sucede,a longura aparente se desvanece para reduzir -se a umponto. O estu<strong>do</strong> científico da natureza e o conhecimentode suas leis nos levam, pois, à questão outrora posta pelosteólogos, chamem-se eles Zoroastro, Platão, Agostinho,Tomás de Aquino, ou qualquer bisonho seminaristatonsura<strong>do</strong> de vésp<strong>era</strong>, a saber: Que fazia Deus antes decriar o mun<strong>do</strong>? E fin<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>, que fará Deus? Ouentão, sob uma forma menos antropomórfica, de vez queDeus é incognoscível:- Qual seria o esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Universo antes da ordem decoisas atual, e que será depois?A questão é a mesma, quer se admita um Deuspessoal, pensan<strong>do</strong> e agin<strong>do</strong> preconcebidamente, quer senegue à existência de qualquer princípio espiritual, parasó admitir a de átomos e forças indestrutíveisrepresentan<strong>do</strong> uma quantidade de energia invariável,não menos indestrutível.No primeiro caso, porque Deus, potência eterna,incriada, teria fica<strong>do</strong> inativo, ou, ten<strong>do</strong> fica<strong>do</strong> inativo,satisfeito com a sua absoluta imensidade inacrescível,haveria de mudar esse esta<strong>do</strong> crian<strong>do</strong> a matéria e asforças? O teólogo poderá responder: porque assim lhe


aprouve fazer... Mas, o filósofo não se conformará comessa variabilidade <strong>do</strong> pensamento divino.No segun<strong>do</strong> caso, pois que a origem da atual ordemde coisas apenas remonta a urna certa data e não háefeito sem causa, temos o direito de perguntar qual oesta<strong>do</strong> anterior à formação <strong>do</strong> universo atual.Ninguém poderá contestar que, posto seja a energiaindestrutível, há uma tendência universal para a suadissipação, que deve culminar em repouso e morteuniversal. E um raciocínio matemático, impecável. Econtu<strong>do</strong>, nós não o admitimos... Porquê?Porque o Universo não é uma quantidade finita.Devant 1'éternité tout siècle est du méme ãge.LAMARTINE, Harmonies.E' impossível conceber um limite à extensão damatéria.Temos diante de nós, através de um espaço ilimita<strong>do</strong>,a fonte inestancável da transformação de energiapotencial em movimento sensível e, daí, em calor enoutras forças; e não um simples mecanismo finito, atrabalhar como um relógio, que pudesse parar um diapara sempre.O futuro <strong>do</strong> Universo é o seu passa<strong>do</strong>. Se ele devessefinalizar um dia, há muito teria acaba<strong>do</strong> e nós aqui nãoestaríamos a estudar este problema.


E por serem finitas as nossas concepções que nãopodemos assinalar principio nem fim, às coisas. Nãoconcebemos mais que uma série, absolutamenteinterminável, de transformações existentes no passa<strong>do</strong>,em trânsito para o futuro; ou, ainda, séries igualmenteinfindáveis de combinações materiais poden<strong>do</strong> encadear -se de planetas em sóis, de sóis em sistemas solares, destesem vias-lácteas, em universos estelares, etc., etc. Opanorama celeste aí está, contu<strong>do</strong>, a demonstrar -nos oinfinito. Não compreendemos maiormente a infinidade<strong>do</strong> espaço e <strong>do</strong> tempo, menos ainda qualquer limitação deespaço e tempo, de vez que o pensamento os ultrapassa econtinua a vê-los. Caminharíamos sempre, em qualquerdireção, sem jamais topar um fim. Podemos, de igualmo<strong>do</strong>, imaginar uma ordem de sucessão nas coisasfuturas.Falan<strong>do</strong> <strong>do</strong> absoluto, não é espaço e tempo o que nosdeve preocupar, sem dúvida, mas o infinito e aeternidade, no seio <strong>do</strong>s quais toda a medida, por maisextensa que seja, se reduz a um ponto. Nós nãoconcebemos, não compreendemos o infinito, no espaço ouna duração, mas a nossa incapacidade de compreensãonada prova contra o absoluto.Confessan<strong>do</strong> nada compreender, sent imos que ele,esse infinito, nos envolve, e que o espaço limita<strong>do</strong> poruma parede ou barreira qualquer é de si mesmo umaidéia absurda, tal como a de que pudéramos admitir, emda<strong>do</strong> momento da eternidade, a possível existência de umsistema de mun<strong>do</strong>s cujos movimentos medissem o temposem o criar. Será que sejam os relógios quem cria otempo?


Ninguém o dirá, senão que eles apenas o medem.Nossas medidas de tempo e espaço se desvanecem diante<strong>do</strong> absoluto. Mas o absoluto permanece.O fato é que vivemos no infini to, sem dissoduvidarmos. A mão que sustém esta pena, compõe -se deelementos indestrutíveis, eternos; e os átomos que aintegram já existiam na nebulosa que originou o nossoplaneta, e continuarão existin<strong>do</strong> por to<strong>do</strong>s os séculos <strong>do</strong>sséculos. Vosso peito respira e o cérebro pensa com osmateriais e a força já op<strong>era</strong>ntes há milhões de anos, e quehão-de op<strong>era</strong>r, sem fim. E o minúsculo globo quehabitamos está no fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> infinito - não no centro deum universo limita<strong>do</strong> - no fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> infinito, tanto quantoa mais longínqua estrela acessível às nossas lentestelescópicas.A melhor definição <strong>do</strong> Universo que até agora nos foidada, é ainda a de Pascal, à qual nada haveria queacrescentar, a saber: - Uma esf<strong>era</strong> cujo centro está emtoda a parte e cuja circunferência não está em partealgumaE este infinito que assegura a eternidade <strong>do</strong> Universo.Estrelas após estrelas, sistemas sobre sistemas, universossuceden<strong>do</strong>-se a universos, aos milhares, aos milhões,infin<strong>do</strong>s em to<strong>do</strong>s os rumos e direções. Não habitamosum centro inexistente e, tal como a mais longínquaestrela a que aludimos, a Terra jaz no fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> infinito.Voemos no espaço infin<strong>do</strong>, em pensamento e com avelocidade <strong>do</strong> pensamento, por meses, anos, séculos,milênios e nunca, jamais, nos deterão quaisquer limites,nem nos aproximaremos de uma fronteira. Haveremos


de ficar no vestíbulo desse infinito escancara<strong>do</strong> à nossaface...Infinitos no tempo: vivamos em pensamento paraalém das idades futuras, juntemos séculos a séculos,perío<strong>do</strong>s seculares a perío<strong>do</strong>s seculares e jamaisatingiremos o fim. Haveremos de ficar no vestíbulo dessaEternidade des<strong>do</strong>brada diante de nós...Em nossa pequena esf<strong>era</strong> de observação terrestre,constatamos que, através de todas as mudanças deaspecto da matéria e <strong>do</strong> movimento, o Qu antum de uma eoutro continua sen<strong>do</strong> o mesmo, sob outras formas.Matéria e Força se transformam, mas a quantidade demassa e de potência subsiste.Os seres vivos nos dão este exemplo perpétuo:nascem, crescem, assimilan<strong>do</strong> substâncias tomadas aoambiente exterior, e, quan<strong>do</strong> morrem, se desagregam erestituem à Natureza to<strong>do</strong>s os elementos que lhesintegraram o corpo.Uma lei constante reconstitui perpetuamente outroscorpos com esses mesmos elementos. To<strong>do</strong> astro écomparável a um ser organiza<strong>do</strong>, mesmo no concernenteao seu calor interno. O corpo vive enquanto funcionamos seus diversos órgãos, aciona<strong>do</strong>s pelos movimentos darespiração e da circulação. Quan<strong>do</strong> sobrevêm oequilíbrio e o estacionamento, verifica -se a morte; mas,depois da morte, todas as substâncias que formavam ocorpo vão reconstituir outros seres. A dissolução é, assim,o prelúdio <strong>do</strong> renovamento e formação <strong>do</strong>utros seres. Aanalogia leva-nos a crer que a mesma coisa se verifica nosistema cósmico. Nada pode ser destruí<strong>do</strong>.


O que subsiste, invariável em quan tidade, mussempre mudan<strong>do</strong> de forma sob as aparênc ias sensíveisque o Universo nos apresenta, é uma Potênciaimensurável, que somos obriga<strong>do</strong>s a reconhecer ilimitadano espaço, e sem começo nem fim, no tempo.Eis porque sempre haverá sóis e mun<strong>do</strong>s, que nãoserão os nossos sóis e mun<strong>do</strong>s atuais; que serão outros,mas, sucessivos sempre, por toda a eternidade.E este universo visível não deve representar para onosso espírito mais que as aparências variáveis emutáveis da Realidade absoluta e eterna, constituída pelouniverso invisível.I1 mit 1'éternité par delà tous les âges; Par de18 tousles cieux 11 jeta rinfini.VITOR HUGO, Movah.Foi em virtude dessa lei transcendente, que, muitotempo depois da morte da Terra, <strong>do</strong>s planetas gigantes e<strong>do</strong> próprio astro central - enquanto ele, o nosso velho Solenegreci<strong>do</strong> vogava sempre, na imensidade ilimitada,levan<strong>do</strong> consigo os cadáveres de mun<strong>do</strong>s em que ashumanidades terrestres e planetárias haviam moureja<strong>do</strong>outrora - um outro sol extinto, vin<strong>do</strong> das profundezas <strong>do</strong>infinito, o encontrou quase de face e o deteve!Então, dentro da noite sid<strong>era</strong>l profunda, essas duasbolas formidáveis engendraram, nuns repente, por força


<strong>do</strong> choque prodigioso, um fogo celeste imenso, uma vastanebulosa a oscilar, primeiramente qual flama louca, amergulhar depois nos abismos celestes, insondáveis. Suatemp<strong>era</strong>tura poder-se-ia estimar em milhões de graus.Tu<strong>do</strong> o que fora terra, água, ar, min<strong>era</strong>l, planta, homem,aqui na Terra; tu<strong>do</strong> o que fora carne, olhos, coraçõespalpitantes de amor, belezas empolgant es, cérebrospensantes, mãos operosas; vence<strong>do</strong>res ou venci<strong>do</strong>s,carrascos e vítimas, átomos e almas não desprendidas damatéria, tu<strong>do</strong> se reduzira a fogo. E assim os mun<strong>do</strong>s deMarte, Vênus, Júpiter, Saturno e a restante confraria.Era a ressurreição da natureza visível, enquanto que asalmas que tinham adquiri<strong>do</strong> a imortalidade continuavama viver eternamente nas hi<strong>era</strong>rquias <strong>do</strong> universopsíquico, invisível.A consciência de to<strong>do</strong>s os seres humanos que tinhamvivi<strong>do</strong> na Terra, graduara-se no ideal; os seres haviamprogredi<strong>do</strong> por suas transmigrações através <strong>do</strong>s mun<strong>do</strong>se to<strong>do</strong>s reviviam em Deus, desprendi<strong>do</strong>s das gangasmateriais, plainan<strong>do</strong> na luz eterna e progredin<strong>do</strong> sempre.O universo aparente, o mun<strong>do</strong> visível, é o cadinho noqual se elabora, incessantemente, o mund o psíquico,único real e definitivo.O espantoso choque <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is sóis extintos criou umanebulosa imensa, que absorveu to<strong>do</strong>s os velhos mun<strong>do</strong>sreduzi<strong>do</strong>s a vapor e que, soberba, gigantesca, flutuan<strong>do</strong>no espaço infinito, começou a girar sobre si mesma. Naszonas de condensação dessa nebulosa primordialcomeçaram, então, a nascer novos globos, tal como se deuoutrora, nos primórdios da Terra.


E foi, assim, um recomeço <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, uma gênese quefuturos Moisés e Laplace haveriam de recordar.E a criação prosseguiu nova, diversa, não terrestre,marciana, saturnina, solar, mas, sim, extraterrena,sobre-humana, inextinguível.E houve outras humanidades, outras civilizações,outras vaidades, outras Babilônias, Tebas, Atenas,Romas; outros palácios, templos, monumentos; outrasglórias e outros amores. Mas, tu<strong>do</strong> isso nada tinha daTerra, cujas efígies se esvanec<strong>era</strong>m como sombrasespectrais.E esses universos também passaram, por sua vez.Outros lhes suced<strong>era</strong>m. A certa. época, perdida naeternidade <strong>do</strong>s tempos, todas as est relas da via-láctea seprecipitaram para um centro comum de gravidade,constituin<strong>do</strong> um imenso, formidável sol - centro de umsistema cujos mun<strong>do</strong>s gigantescos se povoaram de seresorganiza<strong>do</strong>s, em temp<strong>era</strong>tura incandescente para nós, ecujos senti<strong>do</strong>s, vibran<strong>do</strong> sob outras irradiações, comoutra física e outra química, lhes mostraram o Universosob aspectos irreconhecíveis aos nossos olhos...Para outras criações, outros seres e outrospensamentos.E sempre, sempre o espaço infinito permaneceurepleto de mun<strong>do</strong>s e de estrelas, de almas e de sois. Nemnunca deixou de haver eternidade.Visto que ela não comporta começo nem fim...


FimNOTAS DE RODAPÉ(1) Havia mais de 300 anos que o Observatório deParis se tornara apenas o núcleo administrativo daastronomia francesa. De preferência às cidades baixas,populosas e poeirentas, as observações se faziam agoranas montanhas mais altas, emergentes de atmosf<strong>era</strong>spuras e afastadas de tumultos e distrações mundanas. Otelefone mantinha os observa<strong>do</strong>res em comunicaçãopermanente com a sede administrativa. Os aparelhos, aiconserva<strong>do</strong>s, não se destinavam senão a satisfazer acuriosidade de alguns sábios residentes em Paris, ou paraverificação de algumas descobertas.(2) Escusa<strong>do</strong> dizer que a linguagem <strong>do</strong> século XXVvai aqui traduzida na <strong>do</strong> XIX.(3) Antiga física <strong>do</strong> globo.(4) I, 7-8; 111, 13; IV, 5; VI, 2-3; XI, 26; XV.(5) Porque o mesmo Senhor <strong>do</strong> céu descerá com,algazarras, e com voz de Arcanjo, e com a trombeta deDeus: e os que em Cristo morr<strong>era</strong>m, primeiroressuscitarão: - Depois nós outros, que ficarmos vivos,seremos com eles juntamente arrebata<strong>do</strong>s, sain<strong>do</strong> aoencontro <strong>do</strong> Senhor em o ar: e assim estaremos semprecom o Senhor. - Assim que uns aos outros consolai -voscom estas palavras.(6) 0 dia imediato ao 4 de Novembro, passou a ser 15.


(7) Mal se publicava a 1.4 edição desta obra (1.9 deDezembro de 1893), um novo profeta, um sábio vienense,Ro<strong>do</strong>lfo Falb, anunciava um novo fim <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, destavez para 13 de Novembro de 1899, por força de umencontro cometário. Ora, o que nós esp<strong>era</strong>mos nessa datanão é um cometa, mas inofensiva chuva de estrelascadentes.(8) A partir <strong>do</strong> século XIX os estu<strong>do</strong>s históricos daNatureza tinham descoberto as oscilações verticais,seculares, da crosta terrestre, varian<strong>do</strong> segun<strong>do</strong> asregiões, e constatara, assim, a lenta depressão <strong>do</strong> soloocidental e setentrional da França e a invasãoprogressiva <strong>do</strong> mar, até onde chegavam às tradiçõeshistóricas. Viram como, pouco a pouco, o mar destacara<strong>do</strong> continente as ilhas de Tersey, as Minquiers, Chausey,Cezembre, Monte S. Miguel, engulin<strong>do</strong> as cidades de Is.Helion, Tommem, Harbour, S. Luís, Monny, Bourgneuf,Feillette, Paluel, Naza<strong>do</strong> e a península armoricana arecuar lentamente diante da invasão oceânica. De séculoem século a hora diluviana fora soan<strong>do</strong> para Herbavilla,a oeste de Nantes, para Saint-Denis-Chef-de-Caux, aonorte <strong>do</strong> Havre, para Saint-Etienne-de-Paluel e Gar<strong>do</strong>ineao norte de Dol, para Tolente, a oeste de Brest, paraPorspican, vizinha de Cancale. Mais de oitentalocalidades da Holanda tinham sid o tragadas noqüinquagésimo século. Noutras regiões as modificações severificaram em senti<strong>do</strong> inverso, o mar havia recua<strong>do</strong>. Aonorte e oeste de Paris, porém, a dupla ação <strong>do</strong>abaixamento <strong>do</strong> solo e erosão das costas produziram em8.000 anos um lençol liqui<strong>do</strong> navegável para navios dealto porte.


(9) Mais de um leitor há-de julgar muito suportáveleste clima, visto podermos ao presente citar regiões detemp<strong>era</strong>turas médias inferiores a essa e que, nem porIsso, deixam de ser habitadas. Temos por exemplo,Verchnolansk, cuja temp<strong>era</strong>tura média anual é de 190,3.Mas, nessas regiões, há um estio durante o qual o gelo sefunde e, se em Janeiro sofrem um frio de 60 graus e atémais, gozam em Julho de 15 ou 20 acima de zero. Aolimite em que chegamos na história <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> , dava-se ocontrário, a temp<strong>era</strong>tura média da zona equatorial <strong>era</strong>constante e, mais <strong>do</strong> que nunca, o gelo poderia fundir -se.

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