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5. Felicidade e sentido: dois aspectos da vida ... - Desidério Murcho

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pena. 4 A minha sugestão é que a «entrega activa a projectos de valor» responde àsnão pode ser a impressão de que as suas activi<strong>da</strong>des não foram escolhi<strong>da</strong>s ou nãoforam diverti<strong>da</strong>s. Quando procuram fontes de <strong>sentido</strong> ou maneiras de <strong>da</strong>r <strong>sentido</strong>às suas vi<strong>da</strong>s, procuram projectos cujas justificações estejam noutro lado.Segundo, precisamos de uma explicação <strong>da</strong> razão pela qual certos génerosde activi<strong>da</strong>des e envolvimentos vêm ao espírito como coisas que contribuem parao <strong>sentido</strong> ao passo que outros parecem intuitivamente desapropriados. Pense noque dá <strong>sentido</strong> à sua vi<strong>da</strong> e às vi<strong>da</strong>s dos seus amigos e conhecidos. Entre as coisasque tendem surgir em tais listas já mencionei as realizações morais e intelectuaise as activi<strong>da</strong>des que conduzem a elas. As relações com amigos e familiares sãotalvez ain<strong>da</strong> mais importantes para a maior parte de nós. As iniciativas estéticas(tanto criativas como de apreciação), a dedicação a virtudes pessoais e a práticasreligiosas têm frequentemente uma forte presença. Em contraste, seria estranho,se não bizarro, pensar em palavras cruza<strong>da</strong>s, sitcoms ou o tipo de jogos de computadorde cujo vício lutamos para nos libertar como coisas que dão <strong>sentido</strong> àsnossas vi<strong>da</strong>s, apesar de ser óbvio que dão uma espécie de satisfação e que sãoobjectos de escolha. Escolho algumas coisas, como chocolate e aulas de aeróbica,apesar do custo considerável que têm para mim (é irrelevante que estas escolhasparticulares possam estar relaciona<strong>da</strong>s), e por isso tenho de considerar que valemde algum modo a pena. Mas não são o género de coisas que fazem a vi<strong>da</strong> valer anecessi<strong>da</strong>des que uma explicação do <strong>sentido</strong> na vi<strong>da</strong> tem de acomo<strong>da</strong>r. Se umapessoa está ou esteve activamente entregue, então tem efectivamente uma respostaà questão de saber se a sua vi<strong>da</strong> vale ou tem valido a pena, se tem ou teveuma razão de ser. Quando alguém procura maneiras de <strong>da</strong>r <strong>sentido</strong> à sua vi<strong>da</strong>,procura (ain<strong>da</strong> que não o faça talvez sob esta descrição) projectos que valham apena e pelos quais se possa entusiasmar. Isto explica também por que razãoalgumas activi<strong>da</strong>des e projectos, mas não outros, vêm à memória como coisas que4 Woody Allen parece ter uma perspectiva diferente. A sua lista <strong>da</strong>s coisas que fazem avi<strong>da</strong> valer a pena, no fim de Manhattan, incluem, por exemplo, «os caranguejos do Sam Woo» —algo que parece estar ao nível dos chocolates. Por outro lado, talvez os caranguejos surjam na listapara mostrar que Allen encara o prato como uma realização que merece apreciação estética, sendotal apreciação uma activi<strong>da</strong>de que vale a pena em si; assim, os caranguejos podem ser análogosa outros itens <strong>da</strong> sua lista, como o segundo an<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> Sinfonia Júpiter, a gravação de «PotatoheadBlues» de Louis Armstrong, e «aquelas maçãs e peras do Cézanne». Estritamente falando, aapreciação de chocolate excelente poderá também considerar‐se uma dessas activi<strong>da</strong>des.103


contribuem para o <strong>sentido</strong> na vi<strong>da</strong>. Alguns projectos, ou em qualquer caso, algunsactos particulares, valem a pena mas são demasiado aborrecidos ou mecânicospara serem fontes de <strong>sentido</strong>. As pessoas não obtêm <strong>sentido</strong> <strong>da</strong> reciclagem ou dopreenchimento de cheques para a Oxfam e a ACLU. Outros actos e activi<strong>da</strong>des,apesar de serem muitíssimo agradáveis e profun<strong>da</strong>mente envolventes, comoan<strong>da</strong>r na montanha russa ou conhecer uma estrela de cinema, não parecem ter otipo adequado de valor para que possam contribuir para o <strong>sentido</strong>.Bernard Williams distinguiu os desejos categóricos dos outros. Os desejoscategóricos dão‐nos razões para viver — não têm como premissa o pressupostode que iremos viver. Os géneros de coisas que dão <strong>sentido</strong> à vi<strong>da</strong> tendem a serobjectos de desejo categórico. Desejamo‐las, pelo menos é essa a minha sugestão,porque pensamos que valem a pena. Não valem a pena simplesmente porque asdesejamos ou simplesmente por tornarem a nossa vi<strong>da</strong> mais agradável.Grosso modo, pois, de acordo com a minha proposta, uma vi<strong>da</strong> com <strong>sentido</strong>tem de satisfazer <strong>dois</strong> critérios, adequa<strong>da</strong>mente conectados. Primeiro, tem dehaver entrega activa, e segundo, tem de ser uma entrega a projectos de valor.Uma vi<strong>da</strong> é destituí<strong>da</strong> de <strong>sentido</strong> se é destituí<strong>da</strong> de entrega a coisa alguma. Podesedizer que é destituí<strong>da</strong> de <strong>sentido</strong> a vi<strong>da</strong> de uma pessoa aborreci<strong>da</strong> ou alhea<strong>da</strong>do que passa a maior parte <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> a fazer. Note‐se que ela pode na ver<strong>da</strong>de estara executar funções de valor. Uma dona de casa e esposa, um médico ou um condutorde autocarros pode estar a desempenhar competentemente uma funçãosocialmente valiosa, mas se não se entregar ao seu trabalho (nem, presuma‐se, aqualquer outra coisa), não tem desejos categóricos que lhe dêem uma razão paraviver. Ao mesmo tempo, alguém que se entrega activamente pode também viveruma vi<strong>da</strong> destituí<strong>da</strong> de <strong>sentido</strong>, se os objectos <strong>da</strong> sua entrega forem totalmentedestituídos de valor. É difícil encontrar exemplos de vi<strong>da</strong>s dessas que sejamincontroversas sem serem bizarras. Mas tanto os exemplos bizarros como os controversostêm o seu lugar. Na categoria dos bizarros, poderíamos considerar casospatológicos: alguém cuja única paixão na vi<strong>da</strong> é coleccionar elásticos, ou memorizaro dicionário, ou fazer cópias manuscritas de Guerra e Paz. Casos controversosincluirão o advogado que sacrifica a sua vi<strong>da</strong> priva<strong>da</strong> e a sua saúde pelo sucessona hierarquia profissional, o devoto de um culto religioso ou — um exemplo oferecidopor Wiggins 5 — o criador de porcos que compra mais terra para cultivar5 Veja‐se Wiggins, «Truth, Invention, and the Meaning of Life», p. 342.104


mais milho para alimentar mais porcos para comprar mais terra para cultivarmais milho para alimentar mais porcos.Podemos resumir a minha proposta nos termos de um lema: «O <strong>sentido</strong>emerge quando a atracção subjectiva se encontra com o que é objectivamenteatraente». A ideia é que num mundo em que algumas coisas valem mais a penaque outras, o <strong>sentido</strong> emerge quando um sujeito descobre ou desenvolve umaafini<strong>da</strong>de por uma <strong>da</strong>s coisas que mais valem a pena, ou tipicamente várias, tem aoportuni<strong>da</strong>de de se entregar a ela ou a elas de um modo positivo, e entrega‐se.Uma vantagem do lema é evitar a referência algo enganadora a «projectos».Esse termo é menos que ideal por sugerir tarefas bem defini<strong>da</strong>s e orienta<strong>da</strong>spor objectivos. Certamente que muitos projectos dão <strong>sentido</strong> à vi<strong>da</strong> — dominaruma área de estudos, construir uma casa, transformar um pântano num jardim,curar o cancro — mas muito do que dá <strong>sentido</strong> à vi<strong>da</strong> consiste em relações eenvolvimentos em curso — com amigos, família, a comuni<strong>da</strong>de científica, com aigreja ou o ballet ou o xadrez. Estes ingredientes em curso <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> dão origem aprojectos e são em parte constituídos por projectos — planeamos uma festa desurpresa para a nossa esposa, treinamos uma equipa infantil, arbitramos um artigopara uma revista — mas o <strong>sentido</strong> vem menos dos projectos individuais doque dos envolvimentos mais latos de que são partes constituintes. O lema, contudo,é intencionalmente vago, pois se os juízos pré‐teóricos sobre o <strong>sentido</strong> seaproximam pelo menos <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de, então são imensamente variáveis não só osobjectos de valor mas também os tipos de interacção com eles que são susceptíveisde contribuir para o <strong>sentido</strong>. Pode‐se obter <strong>sentido</strong> <strong>da</strong> criação, promoção eprotecção de coisas (que valem a pena), <strong>da</strong> aju<strong>da</strong> a pessoas de que gostamos e apessoas necessita<strong>da</strong>s, <strong>da</strong> aquisição de níveis de proficiência e excelência, <strong>da</strong> ultrapassagemde obstáculos, <strong>da</strong> obtenção de compreensão e até <strong>da</strong> mera comunhãoou <strong>da</strong> apreciação activa do que há para ser apreciado.Faz parte <strong>da</strong> nossa tarefa como filósofos, se não <strong>da</strong> nossa inclinação natural,sermos cépticos — quanto à correcção desses juízos pré‐teóricos, quanto ànossa capaci<strong>da</strong>de para distinguir as activi<strong>da</strong>des com e sem <strong>sentido</strong> e quanto àprópria coerência <strong>da</strong> distinção. Não estou muito interessa<strong>da</strong> nas duas primeiraspreocupações. Presumindo que as distinções são coerentes e que algumas activi<strong>da</strong>desvalem mais a pena do que outras, é inevitável que os nossos juízos, inerentesà nossa cultura e ao nosso tempo, estejam parcialmente errados. A históriaestá cheia de génios menosprezados e de artistas, inventores e exploradores cujas105


activi<strong>da</strong>des foram desdenha<strong>da</strong>s, e está cheia de modelos de comportamento erealização que mais tarde parecem ter sido sobrevalorizados. Apesar de podermosmelhorar os nossos juízos, tanto particulares como gerais, por meio de um esforçosem preconceitos, concentrado e comunitário para examinar e articular osseus fun<strong>da</strong>mentos (um projecto que me parece simultaneamente valer a pena eintrinsecamente interessante), a esperança ou expectativa de que tal escrutíniofornecerá um método fidedigno para distinguir em geral as activi<strong>da</strong>des que valem<strong>da</strong>s que não valem a pena parece excessivamente optimista. Por que respeitamosmais as pessoas que se dedicam ao xadrez do que as que se tornam campeãs dejogos electrónicos? Por que admiramos mais estrelas de basquetebol do que campeõesde saltar à cor<strong>da</strong>? O que há de mais valioso em escrever um livro sobre filosofia<strong>da</strong> linguagem do que sobre a vi<strong>da</strong> sexual de Nicole Brown Simpson? É útilfazer e responder a perguntas destas, se pudermos fazê‐lo, tanto para alargar ecorrigir os nossos horizontes como para aumentar a nossa compreensão. Mas anossa incapaci<strong>da</strong>de para <strong>da</strong>r respostas completas e adequa<strong>da</strong>s, ou para ter confiançanos pormenores <strong>da</strong>s nossas estimativas, não tem de ser um problema sério.Afinal, o objectivo de reconhecer a distinção não é fazer classificações de vi<strong>da</strong>scom <strong>sentido</strong>. Não há necessi<strong>da</strong>de, em geral, de ajuizar indivíduos ou até activi<strong>da</strong>desa que as pessoas queiram entregar‐se. O objectivo é, ao invés, a um nível maisgeral, compreender os ingredientes do nosso próprio bem e do dos outros, e ficarcom uma ideia melhor dos géneros de considerações que fornecem razões paraviver as nossas vi<strong>da</strong>s de uma maneira em vez de outra.A ideia que estou agora a desenvolver é que o <strong>sentido</strong> é uma parte nãoderiva<strong>da</strong> do bem de um indivíduo, e que o <strong>sentido</strong> consiste na entrega activa aprojectos ou activi<strong>da</strong>des de valor. Apesar de me parecer que esta ideia, e a maiorparte <strong>da</strong> sua utili<strong>da</strong>de, se sustenta apesar de reconheci<strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong>des na identificaçãoprecisa dos projectos e activi<strong>da</strong>des em causa, seria totalmente destruí<strong>da</strong> seacaso se descobrisse que não há de modo algum projectos ou activi<strong>da</strong>des de valor— por outras palavras, se acaso se descobrisse, como Bentham pensava, que ojogo dos alfinetes * é tão bom quanto a poesia, 6 não por causa de excelências até* Trata‐se de um jogo infantil britânico, popular nos séculos XVI e XVII, mas entretantocaído em desuso. (N. do T.)6 John Stuart Mill tornou este comentário famoso, citando‐o no seu ensaio sobre Bentham.Veja‐se J. M. Robson, org., Collected Works of John Stuart Mill, vol. 10 (Toronto: Universityof Toronto Press, 1969), p. 113.106


agora desconheci<strong>da</strong>s do jogo dos alfinetes, mas porque a própria ideia de distinçõesde valor é vazia ou incoerente. Se não houver projectos de valor (em contrastecom outros projectos), então não existirá aquilo que tenho em mente ao falarde vi<strong>da</strong>s com mais ou menos <strong>sentido</strong>, e por isso viver uma vi<strong>da</strong> com mais <strong>sentido</strong>em vez de menos não pode fazer parte do nosso bem. Se a ideia de um projectoque vale a pena é apenas uma fraude ou um embuste, então a minha explicaçãodo interesse próprio fica arruina<strong>da</strong>.Dado que não tenho qualquer teoria do valor com a qual possa provar acoerência do conceito ou refutar todos os desafios cépticos, na<strong>da</strong> mais posso fazersenão reconhecer a vulnerabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> minha explicação do interesse próprioquanto a este aspecto. Que acreditamos, a maior parte de nós, que algumas activi<strong>da</strong>dese projectos valem mais a pena que outros, que encaramos certas activi<strong>da</strong>descomo per<strong>da</strong>s de tempo (ou quase per<strong>da</strong>s de tempo) e outras como inerentementevaliosas, parece inegável. Estas crenças estão subjacentes a disposiçõespara nos sentirmos orgulhosos ou desgostos connosco mesmos por termos ocupadobem ou mal o tempo, e dão conta de pelo menos alguns dos nossos esforçospara orientar os nossos filhos e amigos em direcção a algumas activi<strong>da</strong>des e parase afastarem de outras. Quando tento assumir um ponto de vista que nega estadistinção entre activi<strong>da</strong>des que valem e que não valem a pena, não consigo considerá‐loconvincente. Mesmo assim, que estes juízos ateóricos, ou um seu núcleo,são filosoficamente defensáveis é um artigo de fé. É sobre o pressuposto de quesão defensáveis que se constroem as minhas perspectivas sobre o <strong>sentido</strong> e o interessepróprio.III. Dois desafiosA minha proposta até agora foi que o <strong>sentido</strong> na vi<strong>da</strong> emerge <strong>da</strong> entrega aactivi<strong>da</strong>des que vale a pena. Argumentei a favor <strong>da</strong> plausibili<strong>da</strong>de desta explicaçãocom base na ideia de que se ajusta bem tanto com as necessi<strong>da</strong>des tipicamentereferi<strong>da</strong>s como necessi<strong>da</strong>des de <strong>sentido</strong> como com os juízos concretos de activi<strong>da</strong>descom e sem <strong>sentido</strong> que mais comummente se fazem. Antes de prosseguircom um exame <strong>da</strong> relação entre <strong>sentido</strong> e interesse próprio, devo responder a<strong>dois</strong> desafios a esta explicação do <strong>sentido</strong>.O primeiro objecta que, ao contrário do que afirmo, a minha explicação do<strong>sentido</strong> não obedece às exigências que estabeleci. Em particular, não responde às107


tos sobre a condição humana no que respeita à questão de saber se existem taisprojectos. Se Deus não existe, pensam, então na<strong>da</strong> vale mais a pena do que qualqueroutra coisa. Neste grupo, há quem pense que Deus é o único padrão possíveldos juízos de valor não subjectivo. Se Deus não existe, pensam, então não hávalor moral ou estético ou qualquer outro tipo de valor que possa distinguir unsprojectos por serem melhores que outros. Outros acreditam que apesar de poderhaver uma diferença entre a grande literatura e o lixo, e entre a virtude e o vício, éescusado preocuparmo‐nos com qual deles nos ocuparemos. Na<strong>da</strong> dura parasempre; o género humano será destruído; a Terra acabará por ser engoli<strong>da</strong> peloSol. Só Deus, e a promessa de uma vi<strong>da</strong> eterna, para nós ou para o universo noqual as nossas realizações têm lugar, pode fazer que não seja escusado viver asnossas vi<strong>da</strong>s de um modo em vez de outro. Só Deus pode fazer <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> com <strong>sentido</strong>uma possibili<strong>da</strong>de.A minha perspectiva sobre esta posição é que exprime uma obsessão irracionalcom a permanência; mas para os propósitos deste ensaio basta fazer notarque não põe realmente em causa a explicação do <strong>sentido</strong> que defendi. Já reconhecique o interesse <strong>da</strong> minha perspectiva depende do pressuposto de que é defensávela distinção entre projectos que valem e que não valem a pena, e do pressupostode que pelo menos um núcleo <strong>da</strong>s nossas crenças sobre o que vale e o quenão vale a pena é aproxima<strong>da</strong>mente correcto. Quem pensa que Deus é um fun<strong>da</strong>mentonecessário destes pressupostos e acredita em Deus pode mesmo assimconsiderar que a minha explicação do <strong>sentido</strong> é aceitável. Quem pensa que Deusé um fun<strong>da</strong>mento necessário que infelizmente não existe rejeitará as minhas tesessubstanciais sobre o <strong>sentido</strong> pelas razões já admiti<strong>da</strong>s.Há quem pense, como Nagel e talvez Camus, que há diferenças entremaneiras melhores e piores de viver a vi<strong>da</strong>. Estes filósofos pensam, evidentemente,que os projectos e activi<strong>da</strong>des podem valer mais ou menos a pena, e que temosuma espécie de razão para favorecer o que vale mais a pena. Contudo, pensamque estes factos não fornecem uma base para o <strong>sentido</strong>. Como o grupo anterior,ligam o <strong>sentido</strong> de modo inextrincável a factos sobre o nosso lugar no espaçotempoe na ordem do cosmos. Num universo indiferente, pensam, as nossas vi<strong>da</strong>ssão inevitavelmente destituí<strong>da</strong>s de <strong>sentido</strong> independentemente do que fizermoscom elas. Por outro lado, pode haver outra razão para escolher fazer algo bom ouque vale a pena. Esta perspectiva discor<strong>da</strong> explicitamente <strong>da</strong> minha proposta —na ver<strong>da</strong>de, parece contradizê‐la directamente. Contudo, parece‐me em grande109


parte uma discordância no uso de palavras. A questão do <strong>sentido</strong>, que estes filósofosligam essencialmente a questões sobre a nossa significância (ou insignificância)no universo, parece‐me na reali<strong>da</strong>de um emaranhado de questões com<strong>aspectos</strong> que se sobrepõem entre si. Apesar de o discurso sobre o <strong>sentido</strong> exprimirpor vezes uma preocupação relativamente à nossa relação com o cosmos, ouso do termo e dos seus cognatos para referir as diferenças entre vi<strong>da</strong>s e activi<strong>da</strong>deshumanas não é menos comum. Penso haver relações entre estes usos diferentesque não foram integralmente ti<strong>da</strong>s em conta, e que filósofos como Nagel eCamus não reconheceram suficientemente até que ponto os valores antropocêntricospodem servir de base para enfrentar preocupações quanto ao nosso lugarno universo. 10 Contudo, esta questão não é relevante para o que pretendo fazeraqui: defender a perspectiva de que é do nosso interesse viver vi<strong>da</strong>s de um certogénero, e explorar algumas implicações dessa perspectiva. Se devemos ou nãodizer que essas vi<strong>da</strong>s têm mais <strong>sentido</strong> do que outras, ou que o desejo as viver éum desejo de <strong>sentido</strong>, é algo relativamente superficial e que pode em qualquercaso ser deixado para outra ocasião. Continuarei a usar a minha terminologia,contudo, esperando que ninguém se deixe confundir por isso.O segundo desafio à minha explicação do <strong>sentido</strong> é mais directamenterelevante para a questão <strong>da</strong> natureza do interesse próprio. Consiste numa explicaçãosubjectiva alternativa do <strong>sentido</strong> que é vigorosamente sugeri<strong>da</strong>, apesar denão exactamente nos termos que usarei, pela discussão de Richard Taylor do <strong>sentido</strong><strong>da</strong> vi<strong>da</strong> no seu livro Good and Evil. 11 De acordo com esta posição, o <strong>sentido</strong>não é uma questão de os projectos <strong>da</strong> nossa vi<strong>da</strong> valerem a pena de um ponto devista objectivo. (Taylor parece pensar que nenhuns projectos poderiam satisfazereste padrão.) Ao invés, a vi<strong>da</strong> de uma pessoa tem <strong>sentido</strong>, poder‐se‐ia dizer, setiver <strong>sentido</strong> para ela, e tem <strong>sentido</strong> para ela se ela pensar ou sentir que o tem.A sugestão de que algo tem <strong>sentido</strong> para alguém desde que essa pessoapense que o tem não pode aju<strong>da</strong>r‐nos a desenvolver uma explicação do <strong>sentido</strong>,pois não podemos compreender o que seria alguém pensar que a sua vi<strong>da</strong> tem<strong>sentido</strong> a menos que tenhamos uma explicação do que é o <strong>sentido</strong>. A perspectivaque quero discutir, contudo, diz mais respeito, estritamente falando, a um sentimentoou, melhor, uma percepção ou carácter qualitativo que algumas <strong>da</strong>s nossas10 Discuto isto no meu manuscrito inédito «Meaninful Lifes in a Meaningless Universe».11 Richard Taylor, «O Sentido <strong>da</strong> Vi<strong>da</strong>», nesta antologia.110


experiências têm. Podemos usar o termo «realização» para referir tal coisa. Éaprazível sermos ou sentirmo‐nos realizados ou sentir que uma activi<strong>da</strong>de ourelação nos realiza, mas é um prazer de um tipo especial, que parece intimamenteassocia<strong>da</strong> com o pensamento de que as nossas vi<strong>da</strong>s, ou certas activi<strong>da</strong>des <strong>da</strong>vi<strong>da</strong>, têm <strong>sentido</strong>. Poderá sugerir‐se que reconhecer isto nos dá to<strong>da</strong> a base deque precisamos para uma explicação do <strong>sentido</strong> que obedeça aos meus requisitos.Podemos compreender a ânsia de <strong>sentido</strong> <strong>da</strong>s pessoas como uma ânsia por estesentimento particular, uma ânsia que outros tipos de prazer não satisfazem.Podemos igualmente explicar por que razão algumas activi<strong>da</strong>des respondem tipicamentemelhor à ânsia de <strong>sentido</strong> do que outras. Algumas dão lugar ao sentimentode realização, ao passo que outras não. O chocolate satisfaz mas não realiza;dá prazer, mas não deste tipo particular. Quando uma pessoa dá um passoatrás, perguntando‐se se a sua vi<strong>da</strong> teve <strong>sentido</strong>, ou procurando um modo de lhe<strong>da</strong>r mais <strong>sentido</strong>, pode estar apenas a procurar este quociente de realização nasua vi<strong>da</strong> ou a procurar maneiras de o aumentar.Os laços muito íntimos entre o <strong>sentido</strong> e a realização nos quais esta explicaçãose apoia são importantes para compreender tanto o conceito de <strong>sentido</strong>quanto o do seu valor. Que uma activi<strong>da</strong>de ou uma vi<strong>da</strong> com <strong>sentido</strong> nos realizapelo menos parcialmente é, como esta explicação sugere, uma ver<strong>da</strong>de conceptual.Identificar o <strong>sentido</strong> com a realização, contudo, negligencia <strong>aspectos</strong> do nossouso destes termos, e <strong>aspectos</strong> <strong>da</strong>s experiências que os termos descrevem, que aminha explicação mais objectiva do <strong>sentido</strong> acomo<strong>da</strong> melhor.Para começar, o <strong>sentido</strong> não é um sentimento bruto, mas um sentimentocom algum conteúdo ou concomitante cognitivo. Que certas activi<strong>da</strong>des tendema realizar‐nos, ao passo que outras não, parece estar ligado a características <strong>da</strong>sactivi<strong>da</strong>des relevantes que tornam este facto inteligível. Há um ajuste entre certostipos de activi<strong>da</strong>des e o potencial para nos realizar. Quando uma relação ou umemprego nos realiza, há algo nessas coisas que nos realiza. Sentimo‐nos prezadosou amados, ou temos a impressão de nos sairmos bem, ou sentimos que o desafiodo trabalho é compensador. Não se trata apenas de as activi<strong>da</strong>des em causa estaremà altura <strong>da</strong>s nossas expectativas, apesar de isso fazer parte do fenómeno.Algumas coisas são proveitosas mas não nos realizam — a minha relação com aminha cabeleireira, por exemplo, ou as minhas excursões semanais ao supermercado.111


Estas considerações sugerem que as coisas só nos realizam se conseguimospensar nelas de certa maneira. É difícil identificar com precisão uma só crençaque esteja sempre associa<strong>da</strong> com a experiência <strong>da</strong> realização. Apesar disso, proponhoque há uma qualquer associação entre realizarmo‐nos com uma activi<strong>da</strong>dee acreditar, ou pelo menos ver tenuemente, inarticula<strong>da</strong>mente, que há algo deindependentemente bom ou que vale independentemente a pena.Na sua discussão do <strong>sentido</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, Richard Taylor considera o caso deSísifo e imagina que os deuses, inserindo uma substância qualquer nas suas veias,lhe dão um gosto pela activi<strong>da</strong>de de carregar pedras. A vi<strong>da</strong> de Sísifo deixa assimde ser uma vi<strong>da</strong> de servidão e transforma‐se numa vi<strong>da</strong> de realização extática. Opróprio Taylor reconhece que a experiência mental é estranha, e que a paixão porcarregar pedras parecerá bizarra aos leitores. Contudo, Taylor parece pensar quea estranheza do exemplo resulta simplesmente de ser invulgar. As pessoas nãoficam tipicamente arrebata<strong>da</strong>s com tarefas acéfalas, fúteis e sem fim; nem este é otipo de disposição tipicamente induzi<strong>da</strong> pelas drogas. Para muitas pessoas, contudo,o exemplo não é apenas surpreendente, mas de algum modo horroroso. Oestado de nos sentirmos realizados ao carregar pedras perpetuamente não é inequivocamenteinvejável. É claro que para Sísifo, que em qualquer caso está condenadoa carregar pedras, o benefício de ficar feliz com a sua sorte é grande. Emgeral, contudo, suspeito que as pessoas, na sua maior parte, pensariam que carregarpedras (isto é, o mero carregar de pedras, sem qualquer propósito ou sem odesenvolvimento de uma competência) não é o tipo de coisa com o qual nosdevamos sentir realizados. 12 O facto de Sísifo se realizar ao carregar pedras sugereuma compreensão de Sísifo como vítima (ain<strong>da</strong> que feliz) de um tipo de ilusãoprovoca<strong>da</strong> por uma droga. Sísifo vê na activi<strong>da</strong>de de carregar pedras algo que nãoexiste realmente.Se aceitarmos a ideia de que o sentimento de realização está necessariamenteconectado com crenças sobre os seus objectos — se aceitarmos que umaactivi<strong>da</strong>de ou relação só pode realizar‐nos se acreditarmos que é de algum modoindependentemente boa — então podemos distinguir duas hipóteses sobre arelação entre o <strong>sentido</strong> e a realização. O <strong>sentido</strong> resulta <strong>da</strong> experiência de realização,independentemente <strong>da</strong> sua causa, ou uma vi<strong>da</strong> tem <strong>sentido</strong> quando alguém1992), cap. 13.12 Veja‐se Joel Feinberg, Freedom and Fulfillment (Princeton: Princeton University Press,112


se realiza com activi<strong>da</strong>des adequa<strong>da</strong>s à experiência? A explicação subjectiva sugeri<strong>da</strong>por Taylor opta pela primeira; mas a segun<strong>da</strong> parece adequar‐se melhor aonosso uso comum do conceito. 13Um exemplo é a versão de Taylor do próprio Sísifo. O facto de Sísifo sesentir realizado com a sua vi<strong>da</strong> está pressuposto. Mas devemos dizer que a suavi<strong>da</strong> tem <strong>sentido</strong>? Isto parece‐me um uso incorrecto <strong>da</strong> palavra. «Tem <strong>sentido</strong>para ele», poderá alguém dizer, e nós compreendemos o que isto significa. Significaque Sísifo se sente realizado com a sua vi<strong>da</strong> e, talvez, que pensa que a suavi<strong>da</strong> tem <strong>sentido</strong> (ou pensaria tal coisa, se lhe perguntassem). Mas para quemconsidera o exemplo horroroso isso faz parte do problema: Sísifo pensa que carregarpedras acéfala e futilmente dá <strong>sentido</strong> à sua vi<strong>da</strong>, mas não dá.Podemos construir um segundo exemplo considerando alguém cujo juízosobre um aspecto <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong> mudou. Uma mulher previamente apaixona<strong>da</strong> descobreque o homem que amou a usou. Sentiu‐se anteriormente realiza<strong>da</strong> com arelação antes de descobrir as suas mentiras. Teria dito, se lhe fosse perguntadoanteriormente, que a relação contribuía para o <strong>sentido</strong> <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong>. Que diria elaagora, contudo, e o que devemos nós dizer sobre ela? Ninguém pode eliminar osentimento de realização que teve durante o período em que estava engana<strong>da</strong>;mas parece implausível que ela diga, depois, que a relação tinha realmente <strong>da</strong>do<strong>sentido</strong> à sua vi<strong>da</strong>. Efectivamente, parte do que torna este tipo de situação tãotriste é que, além <strong>da</strong> dor causa<strong>da</strong>, a descoberta <strong>da</strong> mentira arruína o valor de todoo prazer anterior.Menos fantasioso do que Sísifo são casos de viciados em drogas ou recrutasde cultos religiosos cujos sentimentos de contentamento são causados, mas nãojustificados, pelas coisas que estão na sua origem. Apesar de devermos ter cui<strong>da</strong>dopara não fazer juízos sobre as activi<strong>da</strong>des que outras pessoas consideram valera pena, isto não é razão para excluir a possibili<strong>da</strong>de de as pessoas se enganarempor vezes, de serem erra<strong>da</strong>mente leva<strong>da</strong>s a considerar que algo as realiza, querpor meio do estabelecimento de crenças factuais falsas (como a crença na fideli<strong>da</strong>dede quem amamos ou no estatuto divino de um líder carismático) quer pormeio de drogas ou eléctrodos. Contudo, se são leva<strong>da</strong>s por tais meios de adulteraçãomental a passar as suas vi<strong>da</strong>s ocupa<strong>da</strong>s com um equivalente à activi<strong>da</strong>de de13 Robert Nozick sugere algo de semelhante em The Examined Life (Nova Iorque: Simonand Schuster, 1989). Além de querer a felici<strong>da</strong>de, escreve Nozick, «queremos também que estaemoção de felici<strong>da</strong>de seja adequa<strong>da</strong>» (p. 112).113


carregar pedras — vendo reposições sem fim de Leave it to Beaver * ou contando erecontando os mosaicos do chão do quarto de banho — então parece perfeitamentede acordo com a linguagem comum afirmar que as suas vi<strong>da</strong>s são destituí<strong>da</strong>sde <strong>sentido</strong>, por mais que se sintam realiza<strong>da</strong>s. Além disso, se acor<strong>da</strong>rem ousaírem do transe — se passarem a ver as coisas de um ponto de vista que desvalorizaas suas vi<strong>da</strong>s anteriores — então as suas descrições posteriores não atribuiriam<strong>sentido</strong>, penso, às coisas que antes lhes <strong>da</strong>vam contentamento.IV. Sentido e interesse próprioAté agora tratei de esmiuçar uma concepção do que é o <strong>sentido</strong> na vi<strong>da</strong>. Oobjectivo, neste contexto, é relacioná‐la com a ideia de interesse próprio. O <strong>sentido</strong>parece‐me um ingrediente importante de uma vi<strong>da</strong> boa, um ingrediente queé demasia<strong>da</strong>s vezes negligenciado ou distorcido nas explicações contemporâneasdo bem‐estar individual.Não sei como seria um argumento a favor desta tese. A minha esperança,como mencionei, é que o simples esmiuçar <strong>da</strong> tese será suficiente para levar amaior parte <strong>da</strong>s pessoas a aceitá‐la. Contudo, penso que sem atender explicitamenteao nosso interesse no <strong>sentido</strong> tendemos a compreendê‐lo e a descrevê‐lomal, acabando por isso as nossas vi<strong>da</strong>s por assumir formas que têm menos <strong>sentido</strong>do que poderá ser bom para nós.A maior parte <strong>da</strong>s pessoas — pelo menos a maior parte <strong>da</strong>s pessoas numcerto grupo, liga<strong>da</strong>s talvez por classe ou educação, assim como pela cultura e pelahistória — comportam‐se de maneiras que sugerem que procuram o que fazercom as suas vi<strong>da</strong>s que valha a pena. Procuram activamente projectos ou, maistipicamente, apoderam‐se com gosto de activi<strong>da</strong>des, de entre as que as atraem,que consideram valer a pena. Os pensamentos explícitos sobre o valor e o <strong>sentido</strong>ocorrem frequentemente em conexão com decisões importantes <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, além<strong>da</strong>queles momentos de crise que referi. Algumas pessoas decidem ter filhos porpensarem que <strong>da</strong>rá <strong>sentido</strong> às suas vi<strong>da</strong>s. Outras decidem não ter filhos porrecearem que as responsabili<strong>da</strong>des de assistência as privará do tempo e dos recursose <strong>da</strong> paz de espírito de que precisam para outras coisas nas quais encontram<strong>sentido</strong>. Deliberações sobre se nos devemos dedicar a uma <strong>da</strong><strong>da</strong> carreira, ou auma carreira qualquer, pode analogamente envolver preocupações sobre se o* Sitcom norte‐americana dos finais dos anos cinquenta do séc. XX. (N. do T.)114


emprego vale a pena, ou se exigirá tempo e energia que nos afastarão do que valea pena. Mesmo muitas pessoas que não falam explicitamente em termos de <strong>sentido</strong>ou valor fazem escolhas que se explicam melhor por referência a tais termos.Por outras palavras, o nosso comportamento, incluindo algum do nosso discurso,parece revelar uma preferência por uma vi<strong>da</strong> significativa.Temos mais tendência, contudo, para explicar as nossas escolhas em termosde realização do que de <strong>sentido</strong>. Entre duas carreiras possíveis, um homemopta pela que envolve mais desafios, apesar <strong>da</strong> tensão e <strong>da</strong> insegurança. Umamulher escolhe um trabalho no qual ganha menos num emprego que consideramoralmente valioso. As pessoas ajustam as suas vi<strong>da</strong>s de modo a ter algumashoras por semana para aju<strong>da</strong>r instituições de cari<strong>da</strong>de, ou para aprender piano,ou para acompanhar um grupo de leituras, apesar de isso implicar menos tempopara dormir, menos flexibili<strong>da</strong>de, menos diversão simples. Porquê? Porque, dirão,se sentem realizados. Escolhem viver desse modo porque consideram que é, numcerto <strong>sentido</strong>, melhor para eles.Defender estas escolhas em termos de realização estabelece‐as como escolhasfeitas em nome do interesse próprio. Falar de realização, contudo, podesugerir uma interpretação mais hedonista do que está em causa do que ofereci.Escolher algo porque nos realiza é, afinal, escolhê‐lo por causa de um carácterqualitativo <strong>da</strong> nossa experiência — e apesar de as activi<strong>da</strong>des que nos realizamnem sempre serem tão diverti<strong>da</strong>s ou intensamente aprazíveis quanto algumas <strong>da</strong>salternativas, pode ser que no longo prazo, ou no prazo lato (tendo em consideraçãoas diferenças de Mill tanto na quali<strong>da</strong>de como na quanti<strong>da</strong>de de prazer,digamos), uma vi<strong>da</strong> realiza<strong>da</strong> é qualitativamente melhor e portanto mais feliz namais ver<strong>da</strong>deira <strong>da</strong>s acepções, do que uma vi<strong>da</strong> com os mesmos prazeres, oumais, mas sem realização. Pelo menos assim têm de pensar as pessoas que descrevino parágrafo anterior, tal como nós temos de pensar se considerarmos queas suas escolhas são racionais, e que são racionais pela razão que invocam.Não faz parte do meu objectivo negar esta sugestão. Pelo contrário, que arealização é um grande bem qualitativo, e que merece um lugar importante numateoria adequa<strong>da</strong> <strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de, são factores importantes a favor <strong>da</strong> minha tese deque o <strong>sentido</strong> é uma componente do nosso bem. Já vimos que as ligações entre o<strong>sentido</strong> e a realização são muito íntimos. Dado que uma vi<strong>da</strong> com <strong>sentido</strong> nosrealiza necessariamente pelo menos em parte, e <strong>da</strong>do que a realização é uma <strong>da</strong>smais importantes componentes <strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de, uma razão muito importante para115


tomar o <strong>sentido</strong> como algo que é do nosso interesse é que traz consigo a realização.Seria enganador, contudo, retirar <strong>da</strong>qui a conclusão de que o <strong>sentido</strong> é umbem instrumental para nós. Conceber o <strong>sentido</strong> como um bem por ser um meiopara o bem independente <strong>da</strong> realização seria um erro.É duvidoso que a realização seja um bem independente, apesar de seragradável sentirmo‐nos realizados e desagradável não nos sentirmos realizados.Se a realização fosse um bem independente, seguir‐se‐ia que o sentimento de realizaçãoseria desejável independentemente <strong>da</strong> sua causa. Teria de ser melhor serum Sísifo feliz (ou, mais precisamente, um Sísifo realizado) do que um Sísifo infeliz(que não está realizado), ain<strong>da</strong> que isto exigisse que Sísifo estivesse permanentementefora de si, drogado. A opinião, contudo, divide‐se nesta questão. Muitaspessoas só valorizam a realização na condição de se basear em pensamentos oupercepções apropriados. Além disso, mesmo entre quem acredita que sentirmonosrealizados é incondicionalmente melhor do que a alternativa, muitas pessoasprefeririam mesmo assim que estes sentimentos fossem adequa<strong>da</strong>mente causados.É melhor ser um Sísifo feliz do que um Sísifo infeliz, poderão dizer, mas omelhor é não ser um Sísifo.Um proponente de uma teoria puramente hedonista do interesse própriopode fazer notar que os relatos de tais intuições na<strong>da</strong> provam. O facto de as pessoaspensarem que a realização justifica<strong>da</strong> ou apropria<strong>da</strong> é melhor do que a injustifica<strong>da</strong>e desapropria<strong>da</strong> não a torna melhor. Para quem tem estas intuições, contudo,o ónus <strong>da</strong> prova parece pertencer ao hedonista. A menos que estejamosantecipa<strong>da</strong>mente comprometidos com uma explicação puramente hedonista dovalor, não parece haver razão para duvi<strong>da</strong>r que o que é sobretudo desejável é realizarmo‐noscom activi<strong>da</strong>des que genuinamente realizam, ou seja, com activi<strong>da</strong>descujo sentimento de realização resulta <strong>da</strong> percepção correcta do seu valor. Nãoparece haver razão para duvi<strong>da</strong>r, por outras palavras, que o que é sobretudo desejávelé viver uma vi<strong>da</strong> que tem <strong>sentido</strong> e não viver uma vi<strong>da</strong> que parece ter <strong>sentido</strong>ou que nos dá essa impressão. Uma teoria puramente hedonista do interessepróprio não dá conta do facto de preferirmos uma vi<strong>da</strong> ver<strong>da</strong>deiramente com<strong>sentido</strong> a uma vi<strong>da</strong> que apenas parece ou dá a impressão de ter <strong>sentido</strong>.Uma teoria <strong>da</strong> preferência do interesse próprio, contudo, não teria de <strong>da</strong>rconta disso — os teorizadores <strong>da</strong> preferência aceitam simplesmente as nossaspreferências e calculam a partir <strong>da</strong>í o nosso interesse próprio. Isto sugere umaexplicação alternativa <strong>da</strong> relação entre o <strong>sentido</strong> e o interesse próprio. De acordo116


com as teorias <strong>da</strong> preferência, o <strong>sentido</strong> é importante para o nosso bem‐estar se, esó se, o <strong>sentido</strong> for importante para nós. Dado que queremos, muitos de nós,viver vi<strong>da</strong>s com <strong>sentido</strong> — <strong>da</strong>do que pensamos que isso é melhor para nós — osteorizadores <strong>da</strong> preferência concor<strong>da</strong>rão que é do nosso interesse que as nossasvi<strong>da</strong>s tenham <strong>sentido</strong>. Do seu ponto de vista, não é preciso fazer quaisquer afirmaçõesmais objectivas.De um ponto de vista prático, pouca importância tem aceitar esta teoria ououtra mais objectiva, sobretudo quando se pensa, como eu, que a preferência poruma vi<strong>da</strong> com <strong>sentido</strong> é muito comum e profun<strong>da</strong>. Se se aceitar como facto <strong>da</strong>natureza humana (ain<strong>da</strong> que seja um facto estatístico e ain<strong>da</strong> que seja de umanatureza humana cria<strong>da</strong> culturalmente) que as pessoas se importam pura e simplesmentecom o <strong>sentido</strong> <strong>da</strong>s suas vi<strong>da</strong>s, então isto dá‐nos razão suficiente paramol<strong>da</strong>r as nossas vi<strong>da</strong>s de maneiras que encorajem não apenas a realização mastambém o <strong>sentido</strong>, e dá‐nos razão suficiente para mol<strong>da</strong>r as nossas instituiçõespolíticas e sociais de maneiras que aumentem as oportuni<strong>da</strong>des para que to<strong>da</strong>s aspessoas vivam não apenas vi<strong>da</strong>s felizes e confortáveis, mas também vi<strong>da</strong>s com<strong>sentido</strong>.Contudo, uma teoria <strong>da</strong> preferência não parece reflectir com exactidão oestatuto que tem uma vi<strong>da</strong> com <strong>sentido</strong> para a maior parte <strong>da</strong>s pessoas. Ao queparece, na sua maior parte, as pessoas não encaram a sua preferência por umavi<strong>da</strong> com <strong>sentido</strong> como uma preferência sem fun<strong>da</strong>mento que por acaso temos.Se pensassem tal coisa, tomariam como irrelevante a questão de saber se maisalguém tem ou não esta preferência e, na ver<strong>da</strong>de, não teriam qualquer razãopara querer manter esta preferência se estivessem convencidos de que estariammelhor sem ela. Para a maior parte <strong>da</strong>s pessoas, contudo, pelo menos ao que meparece, ter uma vi<strong>da</strong> com <strong>sentido</strong> é um valor e não apenas uma preferência. Nãoqueremos apenas que as nossas vi<strong>da</strong>s tenham <strong>sentido</strong>, pensamos que é bom querertal coisa. Na ver<strong>da</strong>de, menciona‐se por vezes o nosso interesse, e preocupação,pelo <strong>sentido</strong> como uma marca <strong>da</strong> nossa humani<strong>da</strong>de, um aspecto do que nos elevaacima dos brutos. Pensamos que ficaríamos diminuídos como espécie se perdêssemosa aspiração, ou o interesse, por uma vi<strong>da</strong> com <strong>sentido</strong> e não apenasfeliz. Lamentamos ou até nos apie<strong>da</strong>mos dos indivíduos que carecem do desejode que as suas vi<strong>da</strong>s tenham <strong>sentido</strong>.Uma vez mais, pode‐se sublinhar que acreditar em algo não prova que issoé ver<strong>da</strong>de, e tenho uma vez mais de reconhecer que não tenho qualquer prova do117


valor ou <strong>da</strong> desejabili<strong>da</strong>de objectiva do <strong>sentido</strong>. Ao mesmo tempo, a afirmação deque uma vi<strong>da</strong> com <strong>sentido</strong> é preferível (e não apenas uma preferência bruta) auma vi<strong>da</strong> destituí<strong>da</strong> de <strong>sentido</strong> poderá parecer quase tão auto‐evidente que nãoprecisa de demonstração. Mal estamos dispostos a aplicar os termos do <strong>sentido</strong> e<strong>da</strong> sua ausência, pode parecer instável acreditar que uma vi<strong>da</strong> sem <strong>sentido</strong> não épior do que uma vi<strong>da</strong> com <strong>sentido</strong>. Mesmo que possamos distinguir logicamentea posição de que algumas vi<strong>da</strong>s têm mais <strong>sentido</strong> do que outras <strong>da</strong> posição queacrescenta que (algum) <strong>sentido</strong> é um bem, esta última posição parece mais naturaldo que a sua negação. Apesar de podermos ser incapazes de argumentar afavor do interesse pelo <strong>sentido</strong> de um modo que possa convencer quem à parti<strong>da</strong>não se interessa, o interesse ou o desejo por activi<strong>da</strong>des com <strong>sentido</strong> é, para quemo tem, mais racionalmente coerente com outros valores e disposições do que asua ausência.Em resposta à questão «Porquê ter interesse em viver uma vi<strong>da</strong> com <strong>sentido</strong>em vez de uma vi<strong>da</strong> sem <strong>sentido</strong>?» a resposta que penso que melhor exprimeum senso comum reflectido começará com a conexão entre o <strong>sentido</strong> e a felici<strong>da</strong>de:nove vezes em dez, talvez noventa e nove vezes em cem, uma vi<strong>da</strong> com <strong>sentido</strong>será mais feliz do que uma vi<strong>da</strong> sem <strong>sentido</strong>. São maravilhosos os sentimentosde realização que obtemos ao interagir inequivocamente e ao proteger coisas oucriaturas (ou «domínios») cuja afeição parece mereci<strong>da</strong>, e esse sentimentos têmmais valor, em termos qualitativos, do que qualquer outro tipo de prazer, valendoo custo de suportar quanti<strong>da</strong>des consideráveis de dor. Além disso, estar ciente,ain<strong>da</strong> que indistinta e inarticula<strong>da</strong>mente, de uma ausência de algo que possaconstituir uma fonte de orgulho ou de conexão com algo de valor além de nósmesmos pode ser horrível, tornando‐nos irritáveis, irrequietos e desdenhososperante nós mesmos.A não ser em contextos filosóficos académicos como este, não é talveznatural insistir. Se insistirmos, to<strong>da</strong>via, parece‐me que a melhor maneira deexplicar a força e carácter destes sentimentos de prazer e dor não é afirmandoque são meras peculiari<strong>da</strong>des <strong>da</strong>s nossas psiques naturais ou culturalmente condiciona<strong>da</strong>s.Ao invés, o facto de nos sentirmos tão bem ou tão mal consoantetemos ou não um <strong>sentido</strong> de conexão com valores fora de nós parece‐me explicarsemelhor em termos de uma crença subjacente de que a vi<strong>da</strong> é melhor quandotem tais conexões. O que há precisamente de melhor é difícil dizer. Mas talveztenha a ver com o nosso lugar no universo: <strong>da</strong>do que somos, ca<strong>da</strong> um de nós,118


habitantes de um mundo cheio de valor independente dos nossos eus individuais,viver de maneira a conectarmo‐nos inequivocamente e a protegermos algunsvalores que não são subjectivos harmoniza‐se melhor com a nossa situação objectivado que uma vi<strong>da</strong> cujas ocupações principais só possam ser subjectivamentedefendi<strong>da</strong>s. 14V. A desconstrução do interesse próprioNeste ensaio ocupei‐me <strong>da</strong> defesa, ou melhor, <strong>da</strong> elaboração, do que vejocomo uma perspectiva profun<strong>da</strong>mente enraiza<strong>da</strong> e muito difundi<strong>da</strong> sobre o bemhumano individual, nomea<strong>da</strong>mente, que uma vi<strong>da</strong> completamente de sucesso é,entre outras coisas, uma vi<strong>da</strong> com <strong>sentido</strong>. Além disso, insisti que esta tese ficadistorci<strong>da</strong> se for compreendi<strong>da</strong> como um elemento de uma teoria hedonista dointeresse próprio ou como uma teoria <strong>da</strong>s preferências do interesse próprio. Adequa<strong>da</strong>mentecompreendi<strong>da</strong>, a tese exige uma rejeição destes <strong>dois</strong> géneros de teorias.Como tese substancial, não espero que será surpreendente a ideia de queuma vi<strong>da</strong> boa tem de ter <strong>sentido</strong>. Não estamos habituados a pensar muito explicitamenteou muito analiticamente sobre isto, contudo; e na consciência populararreflecti<strong>da</strong>, um interesse substancial numa vi<strong>da</strong> com <strong>sentido</strong> está muitas vezes apar de pressupostos que são incompatíveis com esse interesse. Quantas vezes nãose ouve dizer que não vale a pena fazer algo se não for divertido, ou se não gostarmosde o fazer? Oiço exprimir este sentimento muitas vezes, apesar de viverna Costa Leste. É ver<strong>da</strong>de que tais expressões tendem a limitar‐se a contextos deinteresse próprio. Não são vistas como rejeições <strong>da</strong> autori<strong>da</strong>de racional <strong>da</strong> obrigaçãomoral ou legal. Além disso, há muitas vezes uma razão de ser por detrás detais comentários que eu apoiaria fortemente. Contra um certo tipo de entregaexcessiva ao trabalho e a outras obsessões neuróticas análogas, relaciona<strong>da</strong>s comcertos tipos de sucesso ou realização, pode ser útil <strong>da</strong>r um passo atrás e reflectirdo modo como esses comentários sugerem. Contudo, a sugestão de que não podehaver qualquer razão de ser no que não é um dever nem é divertido é, estritamentefalando, tanto falso como perigoso.Muito do que fazemos seria inexplicável, ou pelo menos indefensável, se asua justificação dependesse de ser um dever ou, mesmo a longo prazo, de contri‐14 Exploro isto em «Meaningful Lives in a Meaningless World».119


uir maximamente para o nosso saldo de diversão. As relações com os amigos ecom a família, os <strong>aspectos</strong> não obrigatórios dos nossos papéis profissionais, e oscompromissos permanentes com empreendimentos artísticos, académicos ouatléticos levam‐nos tipicamente a devotar energia a coisas que são difíceis e desagradáveis,e a renunciar a oportuni<strong>da</strong>des para a descontracção e o prazer. Éargumentável que, a longo prazo, muitas destas escolhas aprofun<strong>da</strong>m a nossafelici<strong>da</strong>de (no <strong>sentido</strong> mais lato, a nossa diversão), mas tais argumentos são namelhor <strong>da</strong>s hipóteses incertos, e o pensamento de que são necessários para adefesa destas escolhas exerce um tipo de pressão lamentável sobre os compromissosque estão na sua origem. Há uma razão de ser, contudo — e até uma razão deser relaciona<strong>da</strong> com o interesse próprio — para fazer coisas que não se incluemnas categorias do dever ou <strong>da</strong> diversão. Podemos encontrar uma razão para fazeralgo, ou pelo menos uma explicação justificativa, no facto de o acto ou activi<strong>da</strong>deem questão contribuir para o <strong>sentido</strong> <strong>da</strong> nossa vi<strong>da</strong>.Quando deixamos de identificar o interesse próprio com a felici<strong>da</strong>de, contudo,há outros pressupostos que são também destruídos. Torna‐se mais difícil detrabalhar com o conceito de interesse próprio. Especificamente, uma concepçãode interesse próprio que reconheça a importância do <strong>sentido</strong> para uma vi<strong>da</strong> boaadmite uma indeterminação muito maior do que as concepções tradicionais. Istoé parcialmente em função <strong>da</strong> indeterminação existente na própria categoria de<strong>sentido</strong>. Apesar de o <strong>sentido</strong> não ser um conceito de tudo ou na<strong>da</strong> — algumasvi<strong>da</strong>s têm mais <strong>sentido</strong> do que outras, a vi<strong>da</strong> de uma pessoa pode não ter <strong>sentido</strong>suficiente para ser satisfatória — não há qualquer sistema bem formado parafazer juízos comparativos. O <strong>sentido</strong> de uma vi<strong>da</strong> pode variar em função do tempopassado em activi<strong>da</strong>des com <strong>sentido</strong>, ou de essas activi<strong>da</strong>des valerem mais oumenos a pena, 15 ou de quão completa é a entrega (ou a atracção) do indivíduo.Em muitos casos, contudo, parece absurdo pensar que há uma comparação correcta.É a vi<strong>da</strong> de um filósofo grande mas solitário mais ou menos significativa doque a de uma emprega<strong>da</strong> doméstica benquista? Não parece haver razão parapressupor que há uma questão de facto quanto a isto. Além disso, do ponto devista do interesse próprio, não é claro se é importante que, para lá de um certo15 A escala relevante de valor, contudo, será em si uma questão de disputa. Como os meusexemplos provavelmente tornaram claro, não há razão para identificar aqui o tipo relevante devalor com o valor moral.120


ponto, uma vi<strong>da</strong> tenha mais <strong>sentido</strong>. Uma vi<strong>da</strong> com <strong>sentido</strong> é melhor do que umavi<strong>da</strong> sem <strong>sentido</strong>, mas a partir do momento em que tem <strong>sentido</strong> suficiente, podenão haver qualquer razão de interesse próprio para querer, digamos, incorporarmais <strong>sentido</strong> nessa vi<strong>da</strong>. Finalmente, a mistura entre o <strong>sentido</strong> e a felici<strong>da</strong>de quese sente pode não ter um ideal determinado. Uma pessoa tem muitas vezes deescolher entre um caminho que fortaleceria ou expandiria uma parte <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong>que contribui para o seu <strong>sentido</strong> (tirar uma pós‐graduação, adoptar uma criança,envolver‐se politicamente) e um caminho mais fácil ou aprazível. Uma vez aceiteuma concepção de interesse próprio que reconheça o <strong>sentido</strong> como um aspectoindependente do nosso bem pessoal, podemos ter de admitir que em tais casospode não haver resposta à questão de saber o que é mais do nosso interesse próprio.Felizmente, à medi<strong>da</strong> que o conceito de interesse próprio se torna maisdifícil de aplicar, torna‐se menos importante ser capaz de o aplicar. Ao aceitar ovalor do <strong>sentido</strong> como um ingrediente do nosso próprio interesse, aceitamostambém necessariamente que a activi<strong>da</strong>de com <strong>sentido</strong> tem um valor que é parcialmenteindependente dos nossos interesses. Aceitamos, por outras palavras, aexistência de um tipo de razão para fazer coisas que pode competir com o interessepróprio, um tipo que, em qualquer caso, nos afasta de um cui<strong>da</strong>do pelo nossointeresse próprio. O que tenho em mente é o tipo de razão <strong>da</strong><strong>da</strong> pelo valor <strong>da</strong>própria activi<strong>da</strong>de com <strong>sentido</strong> (ou do seu objecto).A activi<strong>da</strong>de com <strong>sentido</strong>, recorde‐se, envolve a entrega a projectos devalor. Ocorre onde a atracção subjectiva e o objectivamente atraente se encontram.Reconhecer que uma activi<strong>da</strong>de, ou um projecto, tem valor, contudo, éreconhecer, entre outras coisas, que há uma razão para a desempenhar — pelomenos, uma razão para a desempenhar se nos sentirmos atraídos por ela. Umarazão para escrever um livro sobre o livre‐arbítrio é estimular o pensamentonuma direcção frutuosa. Uma razão para plantar flores e mon<strong>da</strong>r o jardim é manterum lugar de beleza natural. Uma razão para fazer uma roupa de fantasia parauma criança de oito anos é fazê‐la feliz.Para quem obtém <strong>sentido</strong> <strong>da</strong>s activi<strong>da</strong>des menciona<strong>da</strong>s, estes géneros derazões serão dominantes. Estar adequa<strong>da</strong>mente entregue a estas activi<strong>da</strong>des domodo como as pessoas que delas retiram <strong>sentido</strong> o estão envolve sermos atraídospelo seu bem ou valor específico. Não é provável que quem se entrega dessemodo dê um passo atrás e pergunte «Isto é o melhor que posso fazer por mim?».121


O que está aqui em causa não é apenas o que está em causa no conhecidoparadoxo do hedonismo. Não se trata apenas de, ao não se preocupar muito emsaber se as suas activi<strong>da</strong>des serão o melhor para si, ser mais provável que o agenteesteja a viver uma vi<strong>da</strong> que é melhor para si. Ao invés, trata‐se de o agente teruma razão para as suas activi<strong>da</strong>des que não depende de serem o melhor para si.Aceitar uma concepção do interesse próprio que incorpore o <strong>sentido</strong> envolve,pois, rejeitar <strong>da</strong>r demasia<strong>da</strong> importância ao interesse próprio. Contudo, a activi<strong>da</strong>decom <strong>sentido</strong> e o interesse próprio não podem psicologicamente afastar‐sedemasiado. A activi<strong>da</strong>de só tem <strong>sentido</strong> se nos podemos entregar a ela, se nossentimos atraídos por ela, se estamos apaixonados por ela ou pelo objecto em quese centra. Tal activi<strong>da</strong>de irá sempre de algum modo realizar‐nos, e portanto irásempre fazer‐nos de algum modo felizes. E como a realização e a felici<strong>da</strong>de serãoapropria<strong>da</strong>s ou mereci<strong>da</strong>s, tanto melhor.122

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