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Livro Dois

Unhipili e as Bruxas

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<strong>Livro</strong> <strong>Dois</strong><br />

Unihipili e as Bruxas<br />

1


Eram tempos de magia. Sempre foram.<br />

Não tanto quanto outrora, mas certamente mais do que os tempos<br />

futuros o serão.<br />

Parece que a magia vai rareando proporcionalmente ao crescimento do<br />

homem na terra.<br />

Tempos enfumados, nevoados com cheiro de ervas e especiarias no ar.<br />

Por onde fosse, havia um odor penetrante.<br />

Ora um perfume forte emanava da vegetação abundante, ora outro<br />

perfume, mais artificial, surgia das pequenas chamas de ervas e incensos.<br />

Somente o homem ofendia essa mescla de cheiros e odores com sua<br />

presença, com seus suores e azedos pessoais.<br />

Sansa era um filho bastardo criado pela sua Avó materna.<br />

Sua mãe fora condenada e, para escapar de uma pena mais severa<br />

talvez até fatal, desaparecera no início de uma noite.<br />

2


A Avó de Sansa era uma bruxa, numa época em que isso era a<br />

diferença entre a vida e a morte.<br />

Ele fora criado entre frascos sujos de poções de cor duvidosa, cheiros<br />

fortes e penetrantes que lhe deixavam a pele impregnada de sabores<br />

diferentes.<br />

A mãe de sua Avó fora uma prostituta de prestígio na Corte<br />

Maior. Obtivera perdões, benesses e favores em troca de seus<br />

serviços sexuais.<br />

Sansa recorda quando ia visitá-la no meio de uma pequena floresta<br />

suja.<br />

Com a idade tomando conta do corpo, e afastando a juventude, seus<br />

préstimos foram sendo esquecidos e abandonada pela Corte e pelo<br />

povoado local, se refugiara num local ermo, perdido dos atalhos e<br />

caminhos comumente usados. 3


Ele recorda que, nas poucas vezes que ia vê-la, o caminho de ida era<br />

sempre margeado de expectativas pelo recebimento de um presente<br />

qualquer, um mimo que fosse.<br />

Mas o retorno nunca se dava como o esperado.<br />

Vinha coberto de fuligem do fogão, mãos sujas de carregar lenha e um<br />

cheiro de podre que insistia em lhe seguir.<br />

Sansa tivera uma infância normal para as crianças da época: muitas<br />

corridas entre as pequenas arvores que rodeavam sua casa,<br />

muitas surras pelos frascos que se quebravam inexplicavelmente quando<br />

ele passava no meio das estantes.<br />

Tinha o que comer e beber.<br />

E era uma criança diferente. Ele mesmo sentia isso.<br />

Tinha uma inteligência maior do que as crianças da aldeia.<br />

4


Fazia coisas que nem alguns adultos conseguiriam fazer com muito<br />

esforço.<br />

Isso era perigoso.<br />

Uma vizinha de cabelos negros, atarracada, com os olhos escuros como<br />

carvão observava Sansa em tudo o que ele fazia.<br />

A pretexto de lhe ensinar as artes da música, as vezes convidava Sansa<br />

para mexer numa caixa preta cheia de cordas e pedaços de marfim de<br />

várias cores. Artimanhas de bruxa.<br />

A aldeia de Sansa ficava a algumas léguas da Corte Maior. Uma boa<br />

caminhada ou um cavalo num trote médio chegaria nela em pouco<br />

tempo.<br />

Nos dias de festa, podia-se ouvir alguns gritos e risadas carregadas pelo<br />

vento sul.<br />

5


O cheiro da comida assada deixava a aldeia em alvoroço imaginando<br />

quais e tais petiscos estariam sendo devorados naqueles momentos.<br />

Na Corte Maior havia uma região que era estranha. Misteriosa.<br />

Ficava ao lado leste fazendo a divisa do final do Reino e as densas florestas<br />

de inverno.<br />

Era lá que ficava a Casa das Grandes Magias.<br />

Aquele amontoado de casas mal construídas e inacabadas exalava a ervas<br />

de todas as espécies e matizes. Ás vezes, olhando contra a luz do sol, poderse-ia<br />

observar desenhos multicoloridos pairando sobre os telhados até que<br />

uma pequena brisa os redesenhava em novas formas.<br />

Seguida e seguidamente.<br />

6


Corriam lendas e contos que afirmavam que uma bruxa poderosa, há<br />

séculos atrás, morava na casa principal.<br />

Com seus encantos e feitiços fora conquistando as jovens incautas que<br />

passavam pelas ruelas mal desenhadas.<br />

O passar dos tempos fez aumentar as moradoras da casa primeira e elas<br />

foram lenta e vagarosamente incorporando as demais habitações ao<br />

redor.<br />

E passou-se chamar da Casa das Grandes Magias.<br />

As mulheres que, inadvertidamente passavam por perto e inalavam<br />

aqueles vapores misteriosos tinham saracoteios no corpo que iam<br />

aumentando na medida que o medo ia tomando conta de suas mentes e a<br />

respiração aumentava.<br />

7


Com isso elas absorviam mais e mais odores, olores e feitiços.<br />

Seus corpos, num frenesi, caem ao chão e imediatamente surgem como<br />

que por encanto, musculosos eunucos que as carregam no colo e<br />

desaparecem por uma porta que nunca ninguém prestara atenção que<br />

estava lá.<br />

Dizem que essas mulheres ficam a serviço da Mãe das Bruxas fazendo<br />

profecias e mágicas para que os homens e cavaleiros que ali adentrem<br />

consigam favores sexuais desta ou daquela mulher. Sejam elas casadas<br />

ou não.<br />

E isso causou um início de revolta na Corte Maior.<br />

Cavaleiros duelavam entre si após perderem suas amadas para outros<br />

cavaleiros mais ousados. As prostitutas da Corte perdiam seus clientes<br />

habituais com essa ‘desonesta concorrência’.<br />

8


O Grande Rei se via obrigado a agir. Mesmo sendo ele próprio um dos<br />

beneficiados dessa orgia. Havia o risco de se instaurar uma divisão entre<br />

seus nobres.<br />

E entre as putas.<br />

Numa noite de muito sexo entre o Grande Rei e a Mãe das Bruxas, eles<br />

chegaram num acordo proveitoso para ambos: a Casa das Grandes<br />

Magias seria fechada, mas dividida em pequenas outras Casas de Magia<br />

espalhadas pelo Reino.<br />

E com menos incensos exalando nas ruas para não chamar sobre si tanta<br />

atenção.<br />

Assim o Reino ganhou mais bruxas e aprendizes de.<br />

9


A vizinha de Sansa tinha uma pequena neta, bonita e possuidora de<br />

uma estranha luz nos olhos.<br />

Sansa, numa tarde de outono, estava brincando com algumas folhas e<br />

pedras.<br />

Passava boa parte de seu tempo jogando pedriscas nas corredias formigas<br />

que passavam na trilha de mel que ele, ardilosamente, preparara.<br />

Em sua mente, afirmava que estava se preparando para ser um grande<br />

atirador de pedras nos inimigos do Grande Rei.<br />

Foi inevitável um encontro entre as duas crianças. A nuvem da inocência<br />

guiava o caminhar de ambos. Uma troca de sorrisos, de encostar de<br />

mãos ao trocar as pedriscas foi o estopim de tudo!<br />

Sem conseguir perceber como, a menina foi bruscamente arrancada de<br />

seu lado e muitas palavras ininteligíveis foram ditas.<br />

10


Como que em transe, Sansa podia até ver as palavras balançando ao<br />

vento e vindo de encontro ao seu peito. Imediatamente uma falta de ar,<br />

uma sufocação tomou conta dele.<br />

Cambaleando para dentro da casa, olha para a sua Avó com olhos<br />

pulando do rosto suplicando por ajuda. Pele roxa, ofegante, não<br />

conseguia pronunciar uma letra sequer.<br />

Com um rápido olhar para as chamas da fogueira que ficava acesa<br />

permanente, sua velha Avó entendeu o que se passara.<br />

Um frasco numa mão, folhas em outra, pedaços de pano que um dia<br />

foram brancos e uma beberagem estava sendo feita. Foi o suficiente para<br />

que o ar voltasse pleno aos pulmões de Sansa.<br />

Até hoje, nos dias desses relatos, Sansa sofre de esporádicas faltas de ar.<br />

Seguiram-se semanas tensas após o ocorrido.<br />

11


As janelas das duas casas já não se abriam mais juntas. Quando uma se<br />

abria, outra se batia. Foram dias de olhares esguios, de ódios não<br />

pronunciados.<br />

Era uma guerra declarada por bocas fechadas. Uma plantação que<br />

murchava aqui, um animal que morria acolá.<br />

Se alguém tivesse o poder, veria faíscas e escuridões pulando de um lado<br />

para outro da pequena cerca que dividia as propriedades.<br />

Inevitavelmente, isso chegou ao conhecimento da Mãe das Bruxas.<br />

Certa madrugada, gritos e sons estranhos!<br />

De modo simultâneo as venezianas se abrem batendo nas toscas paredes de<br />

barro e as duas velhas, prontas para vociferarem as pragas engasgadas nas<br />

bocas, ficam paralisadas com o que veem: uma coluna de fogo azul com<br />

umas duas braças de comprimento e um palmo de altura flanava acima da<br />

cerca indo para um lado e para o outro!<br />

12


Aquilo durou menos do que um minuto. Eterno minuto. E, da<br />

mesma maneira que apareceu, sumiu!<br />

As duas se entreolham e entendem perfeitamente a mensagem<br />

enviada.<br />

Sansa foi crescendo, e vez ou outra era alcançado por uma bruxa ou<br />

pelos Cavaleiros dos Três Pontos.<br />

Sempre os encontraria em suas andanças.<br />

Ele nunca entendeu três fatos que foram profundamente marcantes em sua<br />

infância e todas envolviam ‘passeios’ com sua Avó.<br />

Sem conseguir precisar a sequência correta, em uma das vezes, Sansa<br />

lembra que sua velha Avó o levara para a Praia das Agulhas.<br />

Era uma pequena praia com areias sujas e cobertas de musgos e plantas<br />

pegajosas. Sem ondas, somente algumas pequenas ondulações faziam<br />

perceber que as águas não estavam mortas.<br />

13


Sansa ficou brincando com a areia levantando montes disformes e, ao<br />

olhar ao redor, sua Avó desaparecera.<br />

Quando o sufoco do medo começava a tomar conta de seu peito, surge uma<br />

pequena criança toda vestida de branco, transmitindo sensações enormes de<br />

Paz.<br />

Ela oferece um enorme e tranquilizador sorriso ao mesmo tempo que lhe<br />

estende a mão.<br />

Palavras eram dispensáveis naquele instante. Falavam pela mente, pelo<br />

olhar, sem se dar ao trabalho de mexer os lábios.<br />

Sansa foi levado por um caminho mágico até sua velha Avó que se<br />

considerava longe e livre dele.<br />

Os momentos que seguiram foram apagados da mente de Sansa.<br />

- - - - - - - - - - - o - - - - - - - - - - - -<br />

14


O segundo ‘passeio’ foi a uma casa estranha onde moravam crianças e<br />

uma mulher de pele negra.<br />

Essa mulher chamou sua atenção pelos panos coloridos enrolados na sua<br />

cabeça.<br />

Sansa recorda que sua velha Avó estava colocando uma pequena moeda<br />

na mão dessa mulher.<br />

Ela deu um sorriso de dentes brancos ao sentir o objeto em sua posse.<br />

Porém ao levantar a cabeça e esticar a outra mão para pegar Sansa, seu<br />

olhar é desviado e seu rosto transfigura-se imediatamente!<br />

Outra vez, a mesma menina vestida de branco surge e abraça Sansa.<br />

A mulher negra joga a moeda longe, cospe inúmeras vezes, fala numa<br />

língua diferente e ordena que ambos, Sansa e a velha saiam daquele<br />

lugar.<br />

Mais crianças aparecem de dentro da casa, agora com feições<br />

ameaçadoras. 15


O terceiro evento, ocorreu quando Sansa foi levado ao alto de uma<br />

montanha perto da aldeia.<br />

A velha o segurava pelos ombros empurrando em direção ao lado sem<br />

fim quando surge do meio das pedras um pastor extremamente irritado.<br />

Ele ergue alguma coisa com suas mãos e ordena que ela solte Sansa. A<br />

partir daí as duas bocas pronunciam frases e palavras pesadas uma para<br />

a outra.<br />

O homem tem a palavra final e faz com que ambos desçam correndo da<br />

montanha.<br />

Correndo e num relance, Sansa olha para o lado e enxerga aquela<br />

menina de branco sorrindo mansa e calmamente para ele.<br />

Retribui o sorriso com o olhar.<br />

Nas imediações da aldeia, a velha solta a mão de Sansa e ordena que ele<br />

vá para casa. Ela dá um giro com os pés e some numa esquina de casas.<br />

16


Um pouco ofegante, sem entender nada, na mente de Sansa somente<br />

uma coisa o aborrecia:<br />

-“ Qual será o nome daquela menina? “<br />

Pouco se lhe importava quem era ou de onde vinha. Isso não tinha o<br />

mínimo significado.<br />

Quase que imediatamente, uma pequena poeira se levanta do chão, vai se<br />

transformando em nuvem, se transformando, pegando uma forma mais<br />

consistente e, do nada, ela ressurge.<br />

– Meu nome é Unihipili. Estarei sempre com você. Ao seu lado. Dentro<br />

de seu coração. Na sua Essência.<br />

17

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