Revista PÚBLICA - 1ª Edição
Revista PÚBLICA é uma publicação digital da Pública-Central do Servidor. Um espaço de análise, debate, opinião e conteúdos para pensar o segmento dos servidores públicos, serviços públicos e estrutura do Estado brasileiro.
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30 Pública - Central do Servidor<br />
Pública - Central do Servidor<br />
31<br />
ARTIGO<br />
MERITOCRACIA<br />
& DEMOCRACIA<br />
ALEX CANUTO<br />
Presidente da Associação Nacional dos<br />
Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental (ANESP),<br />
Bacharel em Direito pela USP e Mestre em Public Policy pela Hertie School of Governance de Berlin<br />
Meritocracia é a junção do latim meritum com<br />
o grego cracia, cujo significado literal é “poder<br />
do mérito”, e que designa um sistema sócioeconômico<br />
que toma o resultado da ação humana<br />
de cada indivíduo como critério organização<br />
social, que valoriza o fruto do trabalho de cada<br />
pessoa com base nas suas habilidades pessoais<br />
e no seu esforço. Esse reconhecimento do direito<br />
do indivíduo ao fruto do seu trabalho tende a<br />
estimular o empreendedorismo, o desenvolvimento<br />
tecnológico, e a produtividade, gerando benefícios<br />
para toda a sociedade.<br />
A meritocracia não substitui a democracia, mas<br />
coexiste com ela. Assim como os poderes executivo,<br />
legislativo e judiciário constituem um sistema<br />
de freios e contrapesos, para que os próprios<br />
poderes controlem mutuamente possíveis abusos,<br />
democracia (“poder do povo”) e meritocracia<br />
constituem um novo patamar de checks-andbalances,<br />
mais sofisticado que a tradicional<br />
tripartição de poderes, que dá mais desenvoltura<br />
e eficiência à ação do Estado, contrabalanceando<br />
representatividade e produtividade.<br />
Dentro da máquina pública, há espaços de poder<br />
que devem ser eminentemente democráticos<br />
e representativos de um lado, tais como o<br />
Parlamento, e de outro aqueles que devem<br />
priorizar a produtividade. É nestes últimos onde<br />
se opera a aplicação da lei, a gestão pública,<br />
a prestação de serviços à sociedade; onde ser<br />
requer conhecimento para otimização de recursos,<br />
para melhor aplicação das leis produzidas pelas<br />
instâncias representativas. E esses espaços de<br />
aplicação das leis e dos recursos públicos devem<br />
priorizar a meritocracia, sob pena de entrarem em<br />
um círculo vicioso de ineficiência.<br />
Por isso que o Poder Judiciário é um espaço<br />
eminentemente meritocrático, no qual a investidura<br />
de seus membros se dá por uma avaliação de mérito,<br />
conhecida como concurso público. E por isso que<br />
o Poder Executivo é uma espécie de meio termo,<br />
no qual apenas o seu chefe e seu substituto direto<br />
são escolhidos por um mecanismo democrático,<br />
conhecido como eleições, mas depende de um<br />
grande contingente de mão-de-obra especializada<br />
para gerir a gigantesca máquina pública sob seu<br />
comando. Este contingente é, ou pelo menos<br />
deveria ser, investido em cargos públicos por<br />
critérios meritocráticos.<br />
Quando a meritocracia surge e começa a ganhar<br />
força no debate público brasileiro, ainda em fins do<br />
século passado, logo fica claro que sua aplicação ao<br />
serviço público propiciaria ganhos de gestão. Com<br />
ela, é possível fazer florescer um modelo de gestão<br />
de competências baseado em reconhecimento do<br />
esforço, da capacidade e da produtividade de cada<br />
servidor ou servidora como critério essencial para<br />
investidura em cargos públicos e em posições de<br />
liderança.<br />
É somente com o formação de uma comunidade<br />
meritocrática dentro e entorno do serviço<br />
público nas últimas décadas, que começou-se a<br />
se desenhar uma alternativa de substituição ao<br />
patrimonialismo, nepotismo, ao aparelhamento<br />
do Estado e ao clientelismo (que vou chamar de<br />
PNAC). E é justamente por se contrapor a essas<br />
vanguardas do atraso que a meritocracia vem se<br />
consolidando nas últimas décadas. Quem tem a<br />
ganhar com isso é toda a sociedade, que tende a<br />
ter um Estado mais eficiente, gerido por pessoas<br />
capazes e motivadas, e que preste serviços<br />
públicos com mais qualidade.<br />
Contudo, na medida em que as instituições<br />
meritocráticas vêm se fortalecendo e ocupando os<br />
espaços antes dominados pelas forças do atraso,<br />
estas começam a reagir. Uma vez que é difícil<br />
construir um discurso que justifique nomeação de<br />
apadrinhados ou captura da máquina pública, os<br />
opositores da meritocracia traçam uma estratégia<br />
que a ataca por outro flanco, associando-a à ideia de<br />
elitismo, atacando não com argumentos que tentem<br />
justificar o PNAC, mas apelando para a ideologia<br />
da ação afirmativa, que quase sempre se traduz em<br />
cotas para determinados grupos sociais de ocasião<br />
ocuparem espaços públicos e políticos, sob os mais<br />
variados pretextos de representatividade. Isso<br />
provocou um deslocamento do debate, que antes<br />
era de “meritocracia x PNAC”, para “meritocracia<br />
x cotas”, como se estes últimos fossem conceitos<br />
antagônicos e inconciliáveis. Mas não são, pois<br />
meritocracia só é antagônica ao PNAC.<br />
Tentar fazer com que os espaços de gestão de<br />
leis e de recursos públicos sejam investidos<br />
eminentemente por representatividade é uma<br />
distorção tão grande como pretender que a<br />
investidura de representantes do povo em um<br />
Parlamento seja feita por mérito e não por voto,<br />
por concurso e não por eleições. Nesse sentido,<br />
também é falacioso acreditar que simplesmente<br />
a representatividade (seja baseada em votos ou<br />
em cotas) irá gerar uma melhor produtividade<br />
dos serviços prestados pelo Estado, pois não há<br />
relação de causa e efeito entre esses fatores.<br />
O fato de um indivíduo representar um segmento<br />
social não o faz mais competente para o exercício<br />
de uma função pública, apenas o faz porta-voz<br />
deste segmento. Nesse sentido, a investidura<br />
de agentes públicos por representatividade não<br />
os estimula a ser mais produtivos, mas apenas a<br />
tentar manter ou ampliar sua representatividade.<br />
Isso pode até gerar mais debates, mas não gera<br />
mais resultados. Não por acaso, esse argumento<br />
da representatividade tem sido historicamente<br />
usado no Brasil para lotear o Estado, distribuindo<br />
cargos às forças políticas que dão sustentação<br />
a cada governo do nosso presidencialismo de<br />
coalização, nas três esferas federativas. Tudo de<br />
forma proporcionalmente representativa da força<br />
de cada grupo político.<br />
Por tudo isso, é preciso posicionar adequadamente<br />
este debate, definido claramente quem são as<br />
forças antagônicas retrógadas que obstruem<br />
a consolidação da meritocracia. Esta não se<br />
estabelece se não for contrabalanceada por<br />
uma democracia forte, sob pena de se converter<br />
em aristocracia e em seguida se deturpar numa<br />
oligarquia, na linha de evolução dos ciclos de<br />
poder de Maquiavel. Por fim, meritocracia pode e<br />
deve coexistir com democracia, mas não há como<br />
coexistir com ditaduras (sejam militares ou do<br />
proletariado).