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Risco<br />
Revista de Pesquisa em Arquitetura e Urbanismo<br />
Publicação do Instituto de Arquitetura e Urbanismo<br />
da Universidade de São Paulo (IAU-USP)<br />
Volume 14 Número 2 segundo semestre de 2016<br />
ISSN<br />
Risco Revista de Pesquisa em Arquitetura e Urbanismo<br />
(on line) ISSN 1984-4506<br />
Periodicidade Semestral<br />
Instituto de Arquitetura e Urbanismo - IAU-USP<br />
Av. Trabalhador Sãocarlense, n. 400<br />
São Carlos SP 13566-590<br />
Tel 16.3373-9312 Fax: 16.3373-9310<br />
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A Revista Risco é apoiada pelo “Programa de Apoio<br />
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Conselho Editorial<br />
Adauto Lúcio Cardoso (UFRJ,BR) ; Adrián Gorelik (UNQ,AR);<br />
Alberto Sato (UNAB,CL) ; Andrea Pane (UNINA,IT); Antonio<br />
Baptista Coelho (LNEC,PT); Arturo Almandoz (USB,VE);<br />
Aurelia Michel (Univ Paris-Diderot,FR); Beatriz Piccolotto<br />
Siqueira Bueno (USP,BR); Carlos Alberto Ferreira Martins<br />
(USP,BR); Carlos Antônio Leite Brandão (UFMG,BR); Carlos<br />
Roberto Monteiro de Andrade (USP,BR); Claudia Costa Cabral<br />
(UFRG,BR); Daniele Vitale (Politecnico di Milano,IT); Fernando<br />
Luiz Lara (UT,US); Georges Dantas (UFRN,BR); Irã Taborda<br />
Dudeque (UTFPr,BR); Jaelson Bitran Trindade (IPHAN,BR); João<br />
Masso Kamita (PUCRio,BR); Joubert José Lancha (USP,BR);<br />
Manoel R. Alves (USP,BR); Miguel Buzzar (USP,BR)<br />
As atribuições deste Conselho referem-se à gestão e execução<br />
da linha editorial da revista, à definição de aportes<br />
e temas, ao estabelecimento das seções, a decisões sobre<br />
os artigos a serem publicados, à definição dos pareceristas,<br />
das obras a serem objeto de resenhas e dos autores destas<br />
Editor<br />
Tomás Antonio Moreira (IAU-USP)<br />
Editor Adjunto<br />
Francisco Sales Trajano Filho (IAU-USP)<br />
Editores desta edição<br />
Tomás Antonio Moreira (IAU-USP)<br />
Francisco Sales Trajano Filho (IAU-USP)<br />
Secretaria Editorial<br />
Flávia Marcarine Arruda (mestranda IAU-USP)<br />
Wesley da Silva Mederios (mestrando IAU-USP)<br />
Agradecimentos<br />
Aline Coelho Sanches Corato (USP); Carlos Roberto<br />
Monteiro de Andrade (USP); Eulalia Negrelos Portela<br />
(USP); Josianne Cerasoli (UNICAMP); Marcus Vinicius<br />
Dantas de Queiroz (UFCG); Miguel Antonio Buzzar (USP);<br />
Ruy Sardinha Lopes (USP); Sarah Feldman (USP); Telma de<br />
Barros Correia (USP)<br />
Projeto Gráfico<br />
David Sperling<br />
Produção e Editoração Eletrônica<br />
José Eduardo Zanardi<br />
Apoio Técnico<br />
Centro de Produção Digital (CPDig-IAU/USP)<br />
Capa<br />
Autoria de José Eduardo Zanardi, a partir de argumento de<br />
Francisco Sales Trajano Filho. Imagem (detalhe) - “Cidade do<br />
Rio de Janeiro: extensão, remodelação, embelezamento”,<br />
fonte: Donat Alfred Agache, Paris, Foyer Brésilien, 1930<br />
Universidade de São Paulo<br />
Reitor: Prof. Titular Marco Antonio Zago<br />
Instituto de Arquitetura e Urbanismo<br />
Diretor: Prof. Associado Miguel Antonio Buzzar
sco<br />
V14N2<br />
4<br />
O campo da história urbana e do urbanismo ...<br />
editorial<br />
6<br />
O urbanismo e os urbanistas na história<br />
urbana brasileira: percursos e perguntas para<br />
pensar a história urbana da América Latina<br />
Rodrigo de Faria<br />
artigos e ensaios<br />
15<br />
Theodoro Sampaio, o Código Sanitário<br />
do Estado de São Paulo de 1894 e as<br />
exigências da modernidade<br />
Luiz Augusto Maia Costa<br />
23<br />
A questão da água para o abastecimento<br />
na cidade de São Paulo: as contribuições<br />
da família Paula Souza<br />
Cristina de Campos<br />
31<br />
Produção de cidade como projeto<br />
coletivo: a ação habitacional do Instituto<br />
dos Industriários (1937-1960)<br />
Nilce Cristina Aravecchia Botas<br />
38<br />
249 construtores de cidades<br />
Sylvia Ficher<br />
45<br />
O desenho como uma questão<br />
epistemológica: Rui Barbosa e John Ruskin<br />
Claudio Silveira Amaral<br />
56<br />
A pesquisa qualitativa fenomenológica:<br />
olhos para ver a criatividade cotidiana<br />
Hulda Erna Wehmann<br />
67<br />
Um paradoxo patrimonial: a Catedral<br />
Metropolitana do Rio de Janeiro<br />
Roberto Segre (in memorium), João Henrique<br />
dos Santos, Estela Maris de Souza<br />
82<br />
Entrevista com John Friedmann<br />
Elisângela de Almeida Chiquito<br />
tradução: Amanda Saba Ruggiero<br />
revisão: Elisângela de Almeida Chiquito<br />
90<br />
Entrevista com Maria Adélia de Souza<br />
Lucas Cestaro<br />
revisão: Maria Adélia de Souza<br />
transcrição<br />
102<br />
Artigos e ensaios<br />
abstracts/resumenes
editorial<br />
O<br />
Figura: Cidade do Rio de<br />
Janeiro: extensão, remodelação,<br />
embelezamento. Fonte:<br />
Donat Alfred Agache, Paris,<br />
Foyer Brésilien, 1930.<br />
campo da história urbana e do urbanismo consolidou-se<br />
nas últimas décadas como uma das frentes<br />
de investigação mais fecundas e consistentes da<br />
pesquisa acadêmica, em um processo continuado de<br />
ampliação de fronteiras cujo vigor parece ainda longe<br />
de se esgotar. O desdobramento de novos horizontes,<br />
temas, questões e sujeitos assinala a tônica desse<br />
processo, pautando o andamento, conformação<br />
e transformação nas trilhas investigativas que se<br />
proliferam nessa seara.<br />
A presente edição da Risco só faz corroborar tal<br />
constatação. Oriundos de diferentes vertentes de<br />
abordagem em história urbana e do urbanismo, o<br />
núcleo de artigos desta edição deixa evidente tanto<br />
a solidez desse campo de investigação, permitindo<br />
a elaboração de miradas mais transversais, de<br />
caráter historiográfico, como o dinamismo interno<br />
das pesquisas em curso. Como aquele primeiro<br />
viés, é o artigo de Rodrigo de Faria no propósito de<br />
deslindar a relevância de certos temas e questões no<br />
interior das pesquisas em história do urbanismo no<br />
Brasil na perspectiva de estabelecer aproximações<br />
e contrapontos com a realidade da investigação<br />
em história urbana e do urbanismo no contexto<br />
latino-americano. Com um enfoque historiográfico<br />
moldado a partir da ideia de construtores de cidades,<br />
Sylvia Ficher desenvolve um esforço de compilação<br />
e exposição de uma grande massa de material que<br />
podem subsidiar novos aportes investigativos.<br />
Da variedade que perpassa as investigações em curso,<br />
são exemplares alguns dos artigos aqui reunidos.<br />
A pesquisa em torno das trajetórias profissionais,<br />
que constituíram o cerne do último número da<br />
Risco, voltam a comparecer nesta edição. Trajetórias<br />
profissionais individuais, como a do engenheiro<br />
sanitarista Theodoro Sampaio, e contribuições<br />
coletivas, no caso, a ação da família Paula Souza<br />
no trato da questão do abastecimento d’água para<br />
São Paulo. A atuação de instâncias governamentais<br />
no âmbito da construção da cidade no Brasil através<br />
de políticas habitacionais de larga escala, no caso<br />
do Instituto dos Industriários aqui analisado por<br />
Nilce Botas, fecham o conjunto de artigos afeitos à<br />
história urbana e do urbanismo no Brasil.<br />
Três artigos muito singulares em seus objetos e<br />
abordagens encorpam esta edição. O primeiro detém-se<br />
na discussão da dimensão sensível na apreensão<br />
do espaço desde uma visada fenomenológica.<br />
O segundo, de Claudio Silveira Amaral, traça<br />
aproximações entre o ideário de John Ruskin e<br />
as propostas de ensino defendidas pelo brasileiro<br />
V14 N2<br />
revista de pesquisa em arquitetura e urbanismo instituto de arquitetura e urbanismo iau-usp<br />
4
Rui Barbosa, leitor e entusiasta das formulações do<br />
crítico e estudioso inglês. O terceiro artigo foca sua<br />
atenção no caso da Catedral Metropolitana do Rio<br />
de Janeiro, erguida em plena Esplanada de Santo<br />
Antonio, em franco contraste com a arquitetura<br />
e o tecido urbano colonial do entorno imediato.<br />
Arrematando esta segunda edição de 2016 da Risco,<br />
duas entrevistas, uma com Maria Adélia Aparecida<br />
Souza sobre sua atuação junto à SAGMACS do<br />
padre dominicano Louis-Joseph Lebret, e outra com<br />
o planejador urbano John Friedmann.<br />
Esperamos que tenham todos uma leitura prazerosa<br />
e enriquecedora!<br />
Carlos Roberto Monteiro de Andrade<br />
Francisco Sales Trajano Filho<br />
V14 N2<br />
editorial<br />
5
artigos e ensaios<br />
O urbanismo e os urbanistas na história<br />
urbana brasileira: percursos e perguntas para<br />
pensar a história urbana da América Latina<br />
Rodrigo de Faria<br />
Arquiteto e Urbanista, pós-doutorado pela FAU-USP (2008)<br />
e ETSAM/UPMadrid (2014/2015), professor associado I do<br />
Departamento de Teoria e História da Arquitetura e do Urbanismo<br />
da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UnB e do PPGFAU-<br />
UnB, ICC Norte, Gleba A, Campus Universitário Darcy Ribeiro,<br />
Asa Norte, Brasília, DF, CEP 70904-970, rod.dfaria@gmail.com<br />
Resumo<br />
Quais são os temas e os objetos da pesquisa em história do urbanismo no<br />
Brasil? Essa pergunta orientou uma análise sobre a pesquisa em história do<br />
urbanismo no Brasil pelo interesse na pesquisa das trajetórias profissionais<br />
de urbanistas. A partir de um levantamento sobre abordagens já realizadas<br />
pela historiografia brasileira, foram formuladas algumas considerações nesse<br />
campo de investigação. As recorrências e as permanências da pesquisa foram<br />
problematizadas para que pudéssemos apontar uma necessidade de articulação<br />
com a historiografia latino-americana, para que a construção-intepretação<br />
histórica urbanística da América Latina seja realizada com a presença mais<br />
direta dos estudos realizados no Brasil.<br />
Palavras-chave: história do urbanismo, Brasil, América Latina.<br />
1 A construção da versão final<br />
deste texto contou com as<br />
colaborações de Maria Stella<br />
Bresciani (CIEC-UNICAMP)<br />
e Ana Claudia Veiga Castro<br />
(FAU-USP), ao mesmo tempo<br />
lendo a versão preliminar<br />
e formulando ponderações<br />
de grande relevância à medida<br />
que os ajustes eram<br />
realizados. O texto integra<br />
os estudos realizados com<br />
apoio do CNPq no âmbito<br />
da Bolsa PQ-2 e auxílio Edital<br />
UNIVERSAL-2014.<br />
U<br />
ma construção permanente 1<br />
Elaborado originalmente como conferência inaugural<br />
do II Seminário Urbanistas e Urbanismo no Brasil, o<br />
presente texto mantém quase que integralmente as<br />
considerações enunciadas na ocasião. Nesse sentido,<br />
o percurso delineado na conferência será mantido,<br />
inclusive no tocante à estratégia de construção<br />
de uma narrativa que pudesse preservar a ideia<br />
original do próprio tema sugerido: o urbanismo no<br />
Brasil, seus temas e objetos. E em se tratando de<br />
conferência realizada num seminário focado nos<br />
estudos dos profissionais do urbanismo, a experiência<br />
de ter desenvolvido pesquisa doutoral no âmbito da<br />
trajetória (biografia?) profissional contribuiu e, ao<br />
mesmo tempo, orientou minha abordagem sobre<br />
os temas e objetos do Urbanismo no Brasil pela<br />
interface dos profissionais urbanistas.<br />
No primeiro Seminário Urbanistas e Urbanismo<br />
no Brasil, realizado em 2013 na FAU-UnB, a problematização<br />
qualificativa ocorreu no confronto/oposição<br />
teórico-metodológica entre as ideias<br />
de “Trajetória” e “Biografia”; nesse segundo,<br />
realizado em 2015 no IAU-USP, a problematização<br />
esteve centrada nas trajetórias e interlocuções<br />
transatlânticas, sem aquele sentido interrogativo<br />
do primeiro. E foi justamente esta característica que<br />
abriu o caminho para certa provocação final (no<br />
bom sentido da provocação) ao próprio Seminário,<br />
ou seja, para apresentar outra proposta de análise,<br />
algo como outro caminho em relação aos temas e<br />
objetos do urbanismo no Brasil.<br />
Como parte da estratégia de construção de uma<br />
narrativa que não escapasse ao eixo proposto, e<br />
reconhecendo meus próprios limites para formular<br />
uma análise ao mesmo tempo em grande angular<br />
e com as particularidades inerentes ao campo<br />
disciplinar do urbanismo e dos profissionais que<br />
atuaram nesse campo e no Brasil, um primeiro<br />
movimento que empreendi foi o de compilar algumas<br />
análises já realizadas sobre a pesquisa em história<br />
do urbanismo no Brasil.<br />
Ressalto apenas que a ideia não foi simplesmente a<br />
de contabilizar aquilo que já havia sido enunciado<br />
sobre o tema ou problematizar a ampla e consolidada<br />
V14 N2<br />
revista de pesquisa em arquitetura e urbanismo instituto de arquitetura e urbanismo iau-usp<br />
6
O urbanismo e os urbanistas na história urbana brasileira: percursos e perguntas para pensar a história urbana da América Latina<br />
2 A versão aqui utilizada está<br />
publicada nos Anais Eletrônicos<br />
do Seminário de História<br />
do Urbanismo e da Cidade<br />
(http://unuhospedagem.com.<br />
br/revista/rbeur/index.php/<br />
shcu/index) e inserido no conjunto<br />
de textos do I Seminário,<br />
realizado em 1990. No<br />
entanto, no início do texto<br />
existe a informação de que<br />
o mesmo fora produzido em<br />
1993 para o II Seminário de<br />
História da Cidade e do Urbanismo.<br />
Outra versão foi publicada<br />
na coletânea Cidade e<br />
Urbanismo: história, teorias<br />
e práticas (PADILHA, 1998).<br />
diversidade de trabalhos já realizados. A proposta<br />
foi a de buscar nessas análises o que elas nos<br />
informam sobre a pesquisa produzida na interface<br />
“urbanistas e urbanismo”. Diante disso, duas perguntas<br />
básicas foram formuladas: quais foram as<br />
análises já realizadas e o que elas nos informam? Em<br />
relação às análises que foram realizadas, menciono<br />
o seguinte conjunto de trabalhos:<br />
. “A pesquisa recente em história urbana no Brasil:<br />
percursos e questões”, de Ana Fernandes e Marco<br />
Aurélio; segundo os autores, produzido em 1990<br />
(provavelmente o primeiro texto com o objetivo<br />
de análise de produção nacional) para o I SHCU e<br />
posteriormente publicado em 1998 2 ;<br />
. A Sessão “História Urbana” do ENANPUR de 1999,<br />
ainda que não especificamente sobre tema dos<br />
profissionais urbanistas, mas com textos importantes<br />
no contexto da historiografia urbana e urbanística<br />
do/sobre Brasil, entre eles, “Avanços e limites na<br />
historiografia da legislação urbanística no Brasil”, de<br />
Sarah Feldman; “História da Cidade: contribuição e<br />
balanço temático”, de Stella Bresciani; “Habitação no<br />
Brasil: uma história em construção”, de Nabil Bonduki;<br />
. “Cidade e Urbanismo: história, forma e projeto”,<br />
de Margareth Pereira e Marco Aurélio, publicado<br />
nos Anais do IX ENANPUR de 2001;<br />
. “História da Cidade e do Urbanismo no Brasil:<br />
reflexões sobre a produção recente”, de Ana<br />
Fernandes e Marco Aurélio, publicado em Ciência<br />
e Cultura no ano de 2004;<br />
. “A cidade como história: os arquitetos e a historiografia<br />
da cidade e do urbanismo”, organizado<br />
por Eloísa Petti e Marco Aurélio e publicado em 2005;<br />
. “A cidade como história”, de Josianne Cerasoli e<br />
Marisa Carpintero, publicado em História: questões<br />
e debates em 2009.<br />
No texto de Ana Fernandes e Marco Aurélio, uma<br />
ideia importante é a de que “ao que tudo indica,<br />
estamos, pois, diante de um campo de estudos ainda<br />
em construção”. Mesmo que uma consideração<br />
mais geral sobre o que naquele momento foi<br />
denominado “História Urbana”, o sentido de “ainda<br />
em construção” - se é que teve naquele momento<br />
algum sentido crítico-negativo por parte dos autores<br />
-, deve ser pensado como algo que permanecerá<br />
em construção.<br />
Essa noção de continuidade é fundamental, pois<br />
assim não caímos na arriscada suposição de que tudo<br />
já foi historiografado e não teríamos mais nada por<br />
fazer, o que é o mesmo que afirmar que tudo estaria<br />
pesquisado e toda documentação possível acessada e<br />
analisada. O risco existe e fica ainda mais evidenciado<br />
em determinados campos de conhecimento que<br />
carregam em sua genealogia investigativa um certo<br />
desejo pelo ineditismo dos temas e objetos. Por esta<br />
lógica do inédito a construção estaria concluída e<br />
deveria acarretar na constatação da inexistência de<br />
novos objetos, no caso, de profissionais que atuaram<br />
no campo urbanístico.<br />
O contraponto a essa formulação está estruturado<br />
na noção da permanente construção – naquele<br />
sentido formulado por Ana Fernandes e Marco<br />
Aurélio -, e isso passa pela concepção de que o que<br />
é (ou deve ser) inédito é a pergunta/problematização<br />
que se faz no processo da pesquisa histórica. Por<br />
esse caminho será sempre possível investigar as<br />
trajetórias dos urbanistas, mesmo dos que já foram<br />
amplamente estudados. A cada nova proposta de<br />
investigação outras interpretações serão construídas<br />
segundo a diversidade documental interessada e<br />
localizada, segundo a inserção social-política e o<br />
contexto profissional-institucional do profissional<br />
pesquisado, segundo seu pensamento urbanístico, a<br />
partir da sua biblioteca pessoal, de suas publicações<br />
e tantas outras atividades profissionais realizadas e<br />
que estejam preservadas em algum arquivo.<br />
Evidentemente que outros estudos foram realizados,<br />
mas considero esses que mencionei como referências<br />
em decorrência de suas qualidades e especificidades. E<br />
a partir do texto que muito provavelmente inaugurou<br />
esse movimento de análise do conjunto da produção<br />
nacional no âmbito da história do urbanismo, é que<br />
iniciarei a construção daquele mencionado outro<br />
caminho em relação aos temas e objetos do urbanismo.<br />
Essa permanente construção pode e deve se apoiar<br />
na ideia formulada por Edgar de Decca (no clássico<br />
número 34 da Revista Espaço e Debates, todo ele<br />
dedicado ao tema Cidade e História) de que<br />
“o historiador tem que estar ciente de que os<br />
eventos históricos não existem por si, não existem<br />
como dado natural (...) É preciso se ter muito claro<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
7
O urbanismo e os urbanistas na história urbana brasileira: percursos e perguntas para pensar a história urbana da América Latina<br />
que o evento não é um evento natural, o evento<br />
é histórico conforme a trama a qual ele pertencer.<br />
E haverá tantas tramas quantas nós quisermos,<br />
conforme nossa capacidade de inventá-las”.<br />
(DE DECCA, 1991, p. 8)<br />
Nesse sentido, mantenhamos os estudos sobre<br />
as trajetórias/biografias em contínua construção<br />
com outras perguntas, outras tramas, outros documentos,<br />
outras interpretações, pois é esse o<br />
caminho necessário para o aprofundamento e a<br />
diversificação das interpretações sobre o urbanismo<br />
no Brasil.<br />
Trajetórias-biografias profissionais:<br />
uma recorrência estrutural e suas<br />
(necessárias) perguntas<br />
No mesmo texto de Ana Fernandes e Marco Aurélio<br />
(1990) já é possível constatar a importância das<br />
pesquisas mais específicas sobre as trajetórias<br />
profissionais para o campo mais geral da história do<br />
urbanismo no Brasil, no caso, por eles denominada<br />
de “pensamento urbanístico”. Para os autores, tal<br />
entrada de estudos estava interessada em grande<br />
parte na “dimensão projetual do urbanismo moderno,<br />
os trabalhos nessa linha recuperam, de<br />
modo pioneiro, as proposições feitas pela disciplina”<br />
(FERNANDES; GOMES, 1990, p.21). E se<br />
concordarmos com a análise apresentada por Robert<br />
Pechman no mesmo Seminário de História de<br />
História da Cidade e do Urbanismo de 1990, quando<br />
afirmou que<br />
“...transitando entre uma história econômica (cidade<br />
como lugar da acumulação), uma história<br />
política (cidade como base do pacto social) e uma<br />
histórica social (o papel da cidade na constituição<br />
da sociabilidade burguesa), a história furtou-se a<br />
enfrentar a cidade como temática com questões<br />
próprias”. Mais próximo disso esteve o urbanismo<br />
que, ao se legitimar como ‘ciência da cidade’<br />
procurou dar a ela estatuto científico próprio”.<br />
(PECHMAN, 1990, p.31)<br />
ou seja, de que foi pelo urbanismo que a cidade<br />
se inscreveu na histórica, então, aquela dimensão<br />
projetual do urbanismo como primeira entrada<br />
interessada dos estudos sobre o pensamento urbanístico<br />
não apenas se justificava, mas explicitava os<br />
inícios (no plural) da história do urbanismo no Brasil.<br />
Tais inícios plurais foram construídos pelas (e são<br />
constatados nas) análises sobre os planos urbanísticos<br />
e as diversas intervenções urbanas realizadas nas<br />
cidades e suas articulações com as concepções<br />
intelectuais dos profissionais que as elaboraram e/<br />
ou as executaram. No mesmo Seminário de 1990, o<br />
texto de Fernando Diniz sobre Saturnino de Brito faz<br />
justamente esse movimento entre o que poderíamos<br />
resumir como uma história das relações entre as<br />
concepções espaciais (no sentido da forma urbana)<br />
e as ideias urbanísticas do engenheiro construídas<br />
em suas interlocuções profissionais.<br />
Um segundo ponto importante a frisar no texto de<br />
Ana Fernandes e Marco Aurélio, é o reconhecimento<br />
de que as pesquisas dialogavam como a história das<br />
ideias, num sentido de construção de uma crítica<br />
da cultura enquanto embasamento conceitual.<br />
Para ambos,<br />
“nesse sentido, as biografias, enquanto abordagem<br />
privilegiada, têm dado ocasião de se discutir a<br />
formulação do pensamento urbanístico em suas<br />
origens no Brasil, assim como a filiação que esse<br />
pensamento guarda em relação ao movimento e/ou<br />
correntes urbanísticas que aconteciam paralelamente<br />
na Europa e nos Estados Unidos”. (FERNANDES;<br />
GOMES, 1990, p. 21)<br />
Essa discussão sobre a escrita biográfica (ou escrita<br />
de uma trajetória) foi um dos eixos centrais do<br />
I Seminário Urbanistas e Urbanismo no Brasil, o<br />
que seguramente reforça a importância e algum<br />
protagonismo desses estudos para o campo da<br />
história do urbanismo no Brasil. Tanto é assim<br />
que entre o Seminário de História da Cidade e do<br />
Urbanismo de 1990 e o I Seminário Urbanistas e<br />
Urbanismo em 2013, percorremos duas décadas que<br />
denotam essa importância, ainda que marcadas por<br />
certas permanências, às quais retornarei mais adiante.<br />
Nessas duas décadas os SHCU testemunharam a<br />
consolidação dos estudos sobre os profissionais,<br />
como analisado em outro texto de Marco Aurélio<br />
escrito em parceria com Eloisa Petti. No levantamento<br />
que fizeram até o VII SHCU podemos confirmar a<br />
presença constante de estudos por esse eixo, de um<br />
modo geral privilegiando, segundo os autores, as<br />
ideias que embasaram o pensamento urbanístico,<br />
os personagens que elaboraram propostas, a circulação<br />
de ideias, a regulamentação profissional<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
8
O urbanismo e os urbanistas na história urbana brasileira: percursos e perguntas para pensar a história urbana da América Latina<br />
(PETTI; GOMES, 2004). E foi justamente o debate<br />
sobre a circulação das ideias o tema central do<br />
SHCU de 2010, realizado na UFES, ou seja, de<br />
alguma forma a construção da história urbana/<br />
urbanística brasileira naquele momento foi pensada<br />
pela construção intelectual dos agentes proponentes<br />
das transformações urbanísticas e arquitetônicas:<br />
os profissionais.<br />
O que faz esse conjunto de referências é justamente<br />
reconhecer a importância dos estudos sobre as<br />
trajetórias profissionais como uma das entradas<br />
analíticas mais importantes da historiografia urbanística<br />
brasileira. O que até então não tinha<br />
sido considerado, e foi essa a ideia basilar do I<br />
Seminário Urbanistas e Urbanismo, é o debate<br />
teórico e conceitual sobre a noção de trajetória ou<br />
biografia. No entanto, mesmo sendo este um debate<br />
conceitual interessante, mais importante agora é a<br />
continuidade de um eixo de investigação que pode<br />
mesmo ser entendido como uma característica<br />
estrutural da historiografia do urbanismo no Brasil.<br />
Essa entrada, ou “marca”, não é evidentemente<br />
a única, mas é certamente uma das mais fortes e<br />
recorrentes. As diversas mesas organizadas no SHUC<br />
de 2010 sobre o lugar das ideias na construção<br />
das cidades e do urbanismo consolidaram essa<br />
marca/entrada.<br />
A realização dos dois primeiros Seminários Urbanistas<br />
e Urbanismo no Brasil confirmam essa marca e<br />
reforçam aquela ideia inicial de que a pesquisa deve<br />
permanecer em construção. Ao mesmo tempo eu<br />
fa-ço aqui uma primeira indagação: seria esse um<br />
caminho muito particularizado ou especializado da<br />
pesquisa em história urbana/do urbanismo e com o<br />
risco de não mais compreendermos os processos gerais<br />
e suas interações? De outra forma: nas pesquisas<br />
realizadas até hoje conseguimos capturar os diversos<br />
movimentos dos profissionais que estudamos, de suas<br />
mais específicas particularidades aos movimentos<br />
mais gerais que realizaram em contextos intelectuais<br />
e institucionais distintos, ou seja, conseguimos<br />
construir-percorrer as contradições dos processos ou<br />
nossas narrativas estão confortavelmente amparadas<br />
nas linearidades biológicas dos nossos personagens?<br />
Ou ainda: conseguimos até aqui desnaturalizar<br />
nossos personagens e suas ideias, retirando-os de<br />
uma lógica evolutiva cujo fim já estaria definido no<br />
início e que, portanto, apenas “comprovaríamos”<br />
um certo percurso ou trajetória profissional?<br />
Reconhecer permanências para<br />
formular mudanças<br />
Neste ponto da argumentação considero oportuno<br />
mencionar dois aspectos que em meu entendimento<br />
caracterizam certas “permanências” em nossos<br />
estudos. Não os aponto, entretanto, por considerálos<br />
um problema ou erro. Essas permanências<br />
são, isso sim, parte daquela marca/entrada a que<br />
me referi, ou seja, aquilo que informa o percurso<br />
que realizamos nessas duas décadas no âmbito da<br />
história do urbanismo. A primeira “permanência”<br />
está relacionada à concentração de estudos de<br />
personagens e suas práticas profissionais no campo<br />
urbanístico em cidades capitais; assim como os<br />
estudos sobre as próprias cidades. A constatação<br />
dessa permanência foi formulada por Marco Aurélio e<br />
Margareth Pereira no texto introdutório do Subtema<br />
“Cidade e Urbanismo: história, forma e projeto” do<br />
ENAPUR de 2001. Segundo os autores,<br />
“no caso das biografias de cidades, se por um lado<br />
os estudos de redes urbanas foram num primeiro<br />
momento deslocados, por outro, aprofundou-se o<br />
conhecimento sobre a história singular de várias<br />
metrópoles brasileiras – em detrimento, entretanto,<br />
da atenção às cidades de porte médio ou às pequenas<br />
cidades mortas”. (GOMES; PEREIRA, 2001, p. 547)<br />
O entendimento sobre essa permanência não exclui<br />
a mudança em processo e que novamente os SHCU<br />
confirmam: não é uma permanência inviolável, pois<br />
cidades do interior do país – os planos que foram<br />
desenvolvidos, os profissionais que se deslocaram<br />
até essas cidades, etc. - estão cada vez mais na<br />
pauta das pesquisas, inclusive das pesquisas em<br />
história urbana. E me parece que a recente expansão<br />
da Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo<br />
pelo território nacional já contribuiu e continuará<br />
contribuindo para que essa tendência se consolide<br />
cada dia mais.<br />
No caso específico da pesquisa em história urbana<br />
no Brasil, não apenas os Programas das Faculdades<br />
de Arquitetura e Urbanismo com forte tradição<br />
nesse campo contribuíram estruturalmente para<br />
o aprimoramento dos trabalhos. É fundamental<br />
e necessário considerar a interlocução desses Programas<br />
em Arquitetura e Urbanismo com o Programa<br />
de Pós-graduação em História do IFCH-UNICAMP<br />
(originalmente denominado de História Social do<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
9
O urbanismo e os urbanistas na história urbana brasileira: percursos e perguntas para pensar a história urbana da América Latina<br />
Trabalho), onde atualmente está organizada a Área<br />
Política, Memória e Cidade e especialmente a linha<br />
de pesquisa Cultura e Cidade. Uma interlocução<br />
também fundamentada na presença desse Programa<br />
entre os membros da Associação Nacional de Pósgraduação<br />
e Pesquisa em Planejamento Urbano<br />
Regional, a ANPUR.<br />
E se hoje o PPGH-IFCH-UNICAMP e o próprio<br />
Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Cidade<br />
(CIEC-UNICAMP) consubstanciam essa importante<br />
interlocução com a área da Arquitetura e Urbanismo<br />
no estudo sobre temas urbanos, urbanismo e cidades,<br />
necessário se faz reconhecer que esse trabalho foi<br />
iniciando ainda na década de 1980. Essa origem<br />
esteve, segundo Margareth Pereira, associada ao<br />
trabalho de pesquisa com a história literária de<br />
matriz urbana desenvolvido por Maria Stella Martins<br />
Bresciani (PEREIRA, 2014).<br />
Mais que um trabalho inicial nessa matriz literária<br />
urbana, o que fundamentou todo o esforço realizado<br />
foi a abertura ao diálogo interdisciplinar<br />
profundo com arquitetos e urbanistas, sociólogos,<br />
antropólogos, historiadores, principalmente a partir<br />
da criação dos Seminários de História da Cidade e<br />
do Urbanismo em 1990. Esse diálogo foi também<br />
importante para que aquela primeira permanência<br />
começasse a ser desfeita e o espectro de cidades<br />
estudadas se ampliasse consideravelmente. As<br />
pesquisas de mestrado e doutorado realizadas<br />
sobre cidades do interior paulista respaldam essa<br />
contribuição, incluindo trabalhos mais recentes<br />
(entre final do século XX e início do século XXI)<br />
sobre pensamento urbanístico, patrimônio urbanoindustrial,<br />
cultura urbana, entre tantos outros temas.<br />
A segunda permanência é também importante e<br />
merecedora de um debate mais profundo: ela está<br />
relacionada ao nosso olhar ainda muito unidirecional<br />
entre Brasil e Europa e/ou Brasil e EUA, com poucas<br />
interlocuções em relação à América Latina. No<br />
mesmo sentido interrogativo que no I Seminário<br />
pensamos a ideia de biografia em relação à de<br />
trajetória, formulei um contraponto ao próprio<br />
tema do II Seminário Urbanistas e Urbanismo no<br />
Brasil em relação às interlocuções transatlânticas<br />
(e não porque essas interlocuções não sejam mais<br />
importantes ou não merecedoras de novas análises).<br />
O sentido do contraponto é outro e está formulado<br />
da seguinte forma: quando iniciaremos o movimento<br />
mais estrutural de articulação com as pesquisas<br />
desenvolvidas no âmbito geográfico e cultural<br />
latino-americano? O que conhecemos sobre as<br />
mesmas interlocuções dos urbanistas brasileiros<br />
nesse contexto das ex-colônias da Coroa Espanhola?<br />
Essas perguntas não partem do princípio de que<br />
esse movimento nunca ocorreu, e novamente aqui<br />
os trabalhos de Marco Aurélio denotam não apenas<br />
o interesse nesse sentido, mas a sua importância e<br />
possíveis caminhos que precisamos percorrer. Faço<br />
referência ao livro “Urbanismo na América do Sul –<br />
circulação das ideias e constituição do campo”, que<br />
será retomado mais à frente para finalizar minhas<br />
considerações. No entanto, uma brevíssima análise<br />
em alguns dos mais importantes textos produzidos<br />
por pesquisadores institucionalmente localizados<br />
em países da América Latina reforça a ideia de<br />
que a presença brasileira é reduzida ou superficial,<br />
que a nossa articulação com a América Latina<br />
ainda é incipiente (mesmo que alguns esforços de<br />
aproximação já tenham ocorrido, por exemplo,<br />
nos SHCU).<br />
O Brasil na história urbana<br />
latino-americana<br />
No livro “Entre libros de história urbana – para<br />
una historiografia de la ciudad y del urbanismo en<br />
America Latina”, de Arturo Almandoz, constam<br />
como referência os seguintes trabalhos realizados<br />
por brasileiros: “Urbanismo no Brasil” (Leme),<br />
“Imagens de vilas e cidades no Brasil colonial”<br />
(Nestor Goulart), “Europa, França e Bahia. Difusão<br />
e adaptação de modelos urbanos” (Petti), “A cidade<br />
como história” (Petti/Filgueiras), “Formas urbanas:<br />
cidade real e cidade ideal” (Heliodoro Sampaio); e<br />
dois artigos, um de Celso Lampareli sobre Lebret e<br />
outro de Joel Outtes sobre urbanística entre Brasil e<br />
Argentina. Ainda assim, todos os trabalhos surgem<br />
como referência mais genérica ou explicação em<br />
nota de rodapé, não recebendo a mesma atenção<br />
que, por exemplo, a historiografia argentina recebeu<br />
desde Jorge Hardoy, passando por Ramón Gutierrez<br />
e Roberto Segre.<br />
De modo geral, para Arturo Almandoz, a força da<br />
presença brasileira nesse contexto latino-americano<br />
pode ser considerada em duas ocorrências. A<br />
primeira ao reconhecer a importância dos principais<br />
Seminários e Congressos brasileiros para o campo<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
10
O urbanismo e os urbanistas na história urbana brasileira: percursos e perguntas para pensar a história urbana da América Latina<br />
3 Faço aqui referência a outros<br />
importantes grupos de<br />
pesquisa: o URBIS – Grupo<br />
de pesquisa em história da<br />
cidade, arquitetura e paisagem<br />
(IAU-USP); o LeU – Laboratório<br />
de Estudos Urbanos<br />
(PROURBE-UFRJ); o Núcleo de<br />
História Urbana (FA-UFBA); o<br />
GESTHU - Grupo de Estudos<br />
do Território e de História<br />
Urbana (IPPUR-UFRJ)<br />
da história urbana. A quantidade de eventos e<br />
associações acadêmicas como os SHCU, ANPUR,<br />
ANPARQ, APUH, ANPOCS (o próprio DOCMOMO-<br />
Brasil, com sua especificidade na produção da<br />
arquitetura moderna), que de alguma forma abrem<br />
espaços de discussão sobre a história urbana em suas<br />
agendas institucionais e intelectuais fundamentam<br />
tal reconhecimento.<br />
A esse conjunto de congressos e instituições acadêmicas<br />
que agregam pesquisadores das mais<br />
diversas áreas do conhecimento, faz necessário<br />
mencionar os diversos grupos de pesquisa em<br />
história urbana/história da cidade e do urbanismo/cultura<br />
urbana cadastrados na plataforma CNPq.<br />
Entre esses grupos, alguns com décadas de atuação,<br />
como a Rede Urbanismo no Brasil, cuja produção<br />
sempre esteve atrelada ao estudo dos profissionais<br />
uranistas, ou ainda, grupos mais recentemente<br />
criados, como o Cultura, Arquitetura e Cidade na<br />
América Latina, apontando para uma atuação mais<br />
estrutural do Brasil no contexto latino-americano 3 .<br />
Da mesma forma, o papel relevante assumido nos<br />
últimos dez anos pelo Centro Interdisciplinar de<br />
Estudos da Cidade da UNICAMP, que edita desde<br />
2006 uma revista integralmente dedicada ao campo<br />
da história urbana, a Revista Eletrônica URBANA,<br />
e mais recentemente, no processo de criação da<br />
Associação Ibero-americana de História Urbana<br />
(AIHU), sendo sua sede acadêmica e atuando como<br />
secretaria administrativa e coordenação geral.<br />
A segunda ocorrência mais explícita nas considerações<br />
de Almandoz aponta para o trabalho de<br />
Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto, no<br />
texto Dependência e Desenvolvimento na América<br />
Latina. Esse reconhecimento ao livro traz, ao mesmo<br />
tempo, uma posição crítica por parte de Almandoz<br />
em relação a ausência da categoria espacial nos<br />
estudos realizados pelo duplo eixo econômico-social.<br />
Uma ausência que marca a tipologia de um conjunto<br />
amplo de autores e autoras cujas publicações foram<br />
construídas no âmbito institucional-intelectual da<br />
CEPAL, entre eles, Marta Schteingart, Anibal Quijano,<br />
e o próprio Roberto Segre.<br />
No início do capítulo especificamente dedicado ao<br />
que Almandoz chamou de “Transbordo Latinoamericano”<br />
(e em todo o livro a ideia de transbordo<br />
está contida de argumentos/conceitos que ainda<br />
estruturam certa historiografia construída na base<br />
da “importação das ideias”, da “transferência<br />
de modelos” e na concepção de “europeização<br />
das cidades latino-americanas”), existe uma formulação<br />
que talvez informe ou explique em parte<br />
essa “ausência” brasileira. O autor afirma que<br />
“a diferencia de países como Gran Bretaña y los<br />
Estados Unidos, donde la história urbana derivó de<br />
mainstreams económicos y sociales, la história del<br />
arte parece haber provisto el primer sustrato para<br />
la história urbana latinoamericana” (ALMANDOZ,<br />
2007, p. 146).<br />
Esse entendimento possibilita a formulação da<br />
seguinte pergunta: a historiografia urbana/urbanística<br />
brasileira está também relacionada em suas “origens”<br />
com a história da arte? Se considerarmos os autores<br />
brasileiros anteriormente mencionados, essa não<br />
parece ser a base fundacional da nossa pesquisa em<br />
história urbana. E se não é, estaria então respondida<br />
a indagação sobre a ausência brasileira entre os livros<br />
de história urbana que Almandoz considerou como<br />
os que fundamentaram a historiografia da cidade<br />
e do urbanismo na América Latina?<br />
O mapeamento sobre a presença brasileira no<br />
contexto latino-americana também pode ser realizado<br />
no artigo “A produção da cidade latino-<br />
-americana”, de Adrián Gorelik. Neste caso, apenas<br />
o livro “Economia política da urbanização” de Paul<br />
Singer surge como referência, revelando em meu<br />
entendimento um aspecto que considero importante<br />
nos argumentos desenvolvidos sobre a cidade<br />
latino-americana. A análise da narrativa<br />
empreendida por Gorelik revela uma quase total<br />
ausência das cidades brasileiras, das instituições<br />
brasileiras e dos profissionais brasileiros na interpretação<br />
dessa cidade que ele formulou como uma<br />
“construção cultural”.<br />
No entanto, essa postura crítica sobre a ausência<br />
mencionada não está direcionada ao texto em<br />
si, mas à forma como tomamos esse texto como<br />
uma referência – e obviamente é uma importante<br />
referência, dada a sua qualidade teórica e relevância<br />
aos estudos urbanos no continente – sobre a cidade<br />
latino-americana sem que essa construção cultural<br />
seja pensada também a partir das problemáticas<br />
brasileiras. Claro que a exceção existe, mas apenas<br />
na consideração feita pelo autor em relação ao<br />
caso de Brasília, evidentemente pelas dimensões<br />
histórico-político-urbanística desse caso.<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
11
O urbanismo e os urbanistas na história urbana brasileira: percursos e perguntas para pensar a história urbana da América Latina<br />
4 A Comissão Nacional de Urbanismo,<br />
1946 / Corporação<br />
Venezuelana de Fomento,<br />
1947 / Oficina Central de<br />
Coordenação e Planificação,<br />
1958)<br />
Se no livro de Almandoz, a Argentina foi considerada<br />
em seu protagonismo em relação à historiografia<br />
urbana, no artigo de Gorelik, cujo eixo é pensar<br />
o conceito de cidade latino-americana, o centro<br />
de força da análise recaiu na Venezuela, onde os<br />
processos econômicos-sociais da urbanização, do<br />
desenvolvimento, da pobreza e marginalidade,<br />
desequilíbrios regionais, etc, se evidenciou, conforme<br />
o próprio autor, “de modo radicalizado”. Ao<br />
construir seu argumento, Gorelik o estruturou<br />
nas complexidades e contradições da rede urbana<br />
venezuelana, incluindo suas diversas e importantes<br />
instituições 4 e experiências no campo<br />
do planejamento e do urbanismo, como foi o caso<br />
de Ciudad Guayana no âmbito dos debates sobre<br />
polos regionais; não fica ausente em seu texto o<br />
caso do Chile, ao mencionar o ILPES, a CEPAL e o<br />
Ministério de Habitação e Urbanismo, 1965.<br />
O caso brasileiro foi considerado apenas pontualmente<br />
com os exemplos de São Paulo, ao colocá-la<br />
lado a lado com Cidade do México e Montevidéu<br />
como “casos” para se pensar a cidade latinoamericana<br />
no marco da “explosão urbana”; e<br />
Brasília, e neste caso, ao reafirmar a ideia do sonho<br />
da cidade moderna num país “condenado ao<br />
moderno”. Nesse sentido, a pergunta que se abre<br />
diante de nós é: como entraremos nesse debate<br />
sobre a cidade latino-americana para que essa<br />
construção cultural, como proposto Gorelik, seja<br />
também pensada como processo integral de todo o<br />
continente americano, ou melhor, da parte americana<br />
decorrente da colonização ibérica, no que isso passa,<br />
portanto, pelo Brasil?<br />
Acredito – mas posso estar errado - que essa mesma<br />
desatenção ocorreu com outro livro importante<br />
e que parece ainda “esquecido” nas pesquisas e<br />
cursos no Brasil. Refiro-me ao texto “Las Estructuras<br />
Ambientales de America Latina”, publicado por<br />
Roberto Segre em 1977, que inclusive revela muito<br />
sobre o local institucional de sua fala: a Faculdade<br />
de Arquitetura de Havana e o próprio contexto<br />
revolucionário Cubano. A análise de Segre também<br />
apresenta um eixo crítico mais formalista como de<br />
Ramón Gutierrez, com foco no desenho em si, ou<br />
seja, no plano urbanístico, mas avança na abordagem<br />
econômica, política e social que o lugar da sua fala<br />
explicita: a crítica ao capitalismo em suas relações<br />
com os sistemas urbanos e o território. E se para<br />
Ramón Gutierrez, Brasília, elitista desde seu início,<br />
se fez classista por simples decantação, resultando<br />
numa monumentalidade cenográfica fascista, para<br />
Roberto Segre, Brasília<br />
“es una utopía evasiva, ajena a la realidade objetiva,<br />
suponer que dentro del sistema capitalista surgem<br />
proposiciones arquitectônicas o urbanísticas ajenas<br />
de las contradicciones económicas y sociales que<br />
caracterizan la esencia misma del sistema. Imaginar<br />
que Brasilia representaría un modelo urbanístico<br />
válido y expresivo de una abstracta nueva sociedad<br />
em la que desaparecerían la lucha de clases, la<br />
especulación sobre el território, la incidencia de<br />
la propriedade privada, implica no captar las directrices<br />
del proceso social y econômico nacional”.<br />
(SEGRE, 1977, p. 105)<br />
Na sequencia apresento um conjunto de perguntas<br />
que considero importantes:<br />
a) certa desatenção observada por Carlos Roberto<br />
Monteiro de Andrade (ANDRADE, 2005, P.82)<br />
não estaria associada à própria escrita que a historiografia<br />
urbanística e arquitetônica brasileira<br />
produziu sobre Brasília, qual seja, a de uma análise<br />
autorreferente, como objeto em si nos termos do<br />
seu plano urbanístico e de seus edifícios? De outra<br />
forma: em que momento a historiografia urbana<br />
e arquitetônica brasileira que estudou e estuda o<br />
caso de Brasília (e estou focado neste caso porque<br />
é aquele que de um modo geral a historiografia<br />
latino-americana faz referência) o fez em articulação<br />
com os processos nacionais de desenvolvimento<br />
macroeconômico da década de 1950 e em relação<br />
aos temas do desenvolvimento regional que a criação<br />
da Superintendência de Desenvolvimento Regional<br />
do Nordeste (SUDENE) representou?<br />
b) estaria, portanto, na articulação que a decisão<br />
política pela criação de Brasília tem com o debate<br />
latino-americano construído por Raul Prebisch e Celso<br />
Furtado na CEPAL - no campo do desenvolvimento<br />
nacional e de suas vinculações com o debate no<br />
continente – um caminho necessário e ainda não<br />
realizado pela historiografia brasileira?<br />
c) aquele silêncio ou apagamento das experiências<br />
brasileiras não estaria então justificado, ainda que<br />
em parte, na forma como escrevemos a nossa<br />
história urbana, quero dizer, numa escrita que talvez<br />
não tenha colocado o debate urbanístico brasileiro<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
12
O urbanismo e os urbanistas na história urbana brasileira: percursos e perguntas para pensar a história urbana da América Latina<br />
5 Entre as instituições, a Organización<br />
Interamericana de<br />
Cooperación Intermunicipal<br />
(OICI), a Sociedad Interamericana<br />
de Pnalificación e o<br />
Departamento de Vivienda<br />
y Planeamiento da Unión<br />
Panamericana/OEA, todas,<br />
de alguma forma, com eixos<br />
de atuação centrados nos<br />
problemas do desenvolvimento<br />
municipal organizaram<br />
congressos e mantinham<br />
publicações periódicos e temáticas.<br />
Grande parte dos<br />
profissionais que atuaram<br />
no âmbito do debate municipalista<br />
tiveram vínculos<br />
com essas instituições, entre<br />
eles, Carlos Mouchet, Carlos<br />
Morán, Antonio Delorenzo<br />
Neto, Rafael Picó.<br />
6 Como reconhecem Marco<br />
Aurélio e Carlos Espinoza<br />
sobre os Congressos da OICI,<br />
apenas “sabe-se que eles<br />
tiveram sua origem a VI Conferências<br />
Internacional Americana<br />
(Havana, 1928), embora<br />
sua primeira edição tenha<br />
ocorrido somente dez anos<br />
depois, também em Havana”<br />
(GOMEZ; ESPINOZA, 2009, p.<br />
31). Eu venho pesquisando a<br />
documentação sobre essas<br />
instituições, suas origens,<br />
profissionais e temáticas<br />
desde 2010, ainda que num<br />
trabalho lento, pois demanda<br />
um percurso por arquivos<br />
sediados em vários países do<br />
continente americano e na<br />
Espanha, onde a OICI está<br />
sediada e também consta<br />
o acervo do Instituto de<br />
Estudios de Adminstración<br />
Local (IEAL). Alguns resultados<br />
foram publicados em<br />
Congressos, Revista e Conferência,<br />
incluindo orientações<br />
de Iniciação Científica pelo<br />
Programa PIBIC/UnB-CNPq.<br />
Entre os mais recentes, ver:<br />
DE FARIA, 2013; DE FARIA,<br />
2015; DE FARIA, 2016a; DE<br />
FARIA, 2016b.<br />
em diálogo com as experiências levadas a cabo<br />
na América Latina, pois justamente nosso olhar<br />
ainda é majoritariamente transatlântico no sentido<br />
europeu? d) E nisso os estudos sobre Brasília são<br />
ainda construídos mais em relação ao urbanismo<br />
modernista e ao debate Europeu relacionados<br />
aos CIAMs que em relação ao debate sobre polos<br />
de desenvolvimento, desequilíbrio regional,<br />
industrialização como foi o caso de Ciudad Guayana<br />
na Venezuela ou o caso da Superintendência de<br />
Desenvolvimento Regional do Nordeste (SUDENE)<br />
no Brasil, entre várias outras experiências passíveis<br />
de uma análise comparada?<br />
Por uma nova história urbana da<br />
América Latina<br />
E para finalizar minhas considerações, eu retomo<br />
agora o livro “Urbanismo na América do Sul –<br />
circulação das ideias e constituição do campo” e<br />
espero assim amarrar este argumento final com o<br />
movimento que fiz até aqui para apontar um caminho<br />
(entre muitos outros) sobre os temas e objetos da<br />
pesquisa em história do urbanismo no Brasil. O<br />
aspecto que me interessa no livro e que me parece<br />
uma entrada potencial para as nossas pesquisas foi<br />
formulado por Marco Aurélio e José Carlos Espinoza<br />
no artigo “Olhares cruzados: visões do urbanismo<br />
moderno na América do Sul, 1930-1960”, e diz<br />
respeito às redes profissionais e institucionais latinoamericanas.<br />
Como enunciado (e eu compartilho<br />
dessa opinião) “as redes profissionais de circulação<br />
de ideias no âmbito continental são tema ainda<br />
pouco explorado pela bibliografia, particularmente<br />
a brasileira” (GOMES; ESPINOZA, 2009, P. 15).<br />
O que denota alguma atenção nesse campo ainda<br />
pouco explorado é o fato de que, mesmo entre<br />
pesquisadores originários dos países latinos de origem<br />
hispânica e que trabalham com história do urbanismo<br />
e do planejamento urbano-regional na América Latina<br />
entre as décadas de 1920 e 1970, de certa forma, se<br />
confirma. Temas mais gerais como desenvolvimento<br />
municipal/municipalismo, e mais especificamente as<br />
atividades das Instituições Interamericanas (incluindo<br />
suas diversas atividades, como seus Congressos e<br />
Publicações) 5 cujas ações perpassaram os campos do<br />
urbanismo e do planejamento urbano-regional, não<br />
foram trabalhados como objeto central de interpretação.<br />
No conjunto das pesquisas realizadas, as interlocuções<br />
entre essas instituições, os profissionais que nelas<br />
participaram, os debates entre eles, as concepções e<br />
proposições no campo do desenvolvimento municipal<br />
ainda não receberam a atenção necessária 6 .<br />
Ocorre que esses e outros contextos institucionalprofissionais<br />
são geralmente trabalhados pela historiografia<br />
em segundo plano, como panorama geral do<br />
debate urbanístico na América Latina ainda circunscrito<br />
às relações e “influências” provenientes dos CIAMs<br />
(Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna).<br />
De outra forma, “muito do que conhecemos sobre<br />
a experiência urbanística continental nessas décadas<br />
é tributário” de um olhar estrangeiro, “expresso em<br />
exposições, depoimentos e publicações de arquitetos,<br />
críticos e historiadores europeus e norte-americanos”<br />
(GOMES; ESPINOZA, 2009, p.14).<br />
Para uma nova problematização de todo esse<br />
contexto de redes profissionais e institucionais, Marco<br />
e José elaboram uma pergunta muito importante:<br />
como os arquitetos e urbanistas sul-americanos<br />
viam as suas próprias realizações e expressavam a<br />
busca de soluções para os problemas urbanos que<br />
então enfrentavam? Ao que acrescento: como a<br />
historiografia urbana construiu suas análises sobre<br />
esses mesmos profissionais, suas ideias, soluções e<br />
instituições às quais pertenciam?<br />
Em relação à historiografia brasileira, acredito que<br />
devemos nos perguntar o quê fizemos até aqui e<br />
quais os caminhos necessários para que a cidade<br />
latino-americana não apenas seja interpretada<br />
levando em consideração as particularidades brasileiras<br />
para a formulação de conceitos gerais sobre<br />
essa mesma cidade, mas como nós que trabalhamos<br />
com história urbana/urbanística, passaremos a<br />
dialogar mais enfaticamente com a pesquisa realizada<br />
pelos colegas da América Latina. Esses são<br />
possíveis movimentos que tornarão visíveis as nossas<br />
diversas e complexas experiências urbanísticas, os<br />
diversos lugares institucionais – sejam municipais,<br />
estaduais ou federal – criados desde o século<br />
XIX e as contraditórias formas de organização e<br />
desenvolvimento dos nossos municípios.<br />
No meu entendimento são esses os caminhos<br />
que considero necessários para que a história<br />
urbana da América Latina seja construída de forma<br />
compartilhada. Ela deve ser construída a partir<br />
das nossas próprias experiências e concepções<br />
e ao mesmo tempo aberta ao diálogo com os<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
13
O urbanismo e os urbanistas na história urbana brasileira: percursos e perguntas para pensar a história urbana da América Latina<br />
Recebido [Nov. 29, 2015]<br />
Aprovado [Abr. 05, 2016]<br />
principais centros europeus e norte-americanos de<br />
pesquisa, mas com uma postura política e intelectual<br />
fundamentada na recusa à concordância acrítica<br />
das interpretações que são feitas por esses centros<br />
sobre a nossa realidade urbana.<br />
O problema, e esse é um problema “interno” à<br />
América Latina, é que essa concordância acrítica<br />
sempre esteve presente, em grande medida estruturando<br />
conceitualmente nossas pesquisas, pelas<br />
noções de transposição, de importação, de cópia e<br />
de influências determinadas. Essa postura intelectual<br />
muito contribuiu para manutenção de outra noção,<br />
a de centro-periferia, ou seja, de que as ideias<br />
originais estão na Europa e EUA e nós na América<br />
Latina apenas as corroboramos.<br />
Ao entendermos que o campo conceitual que usamos<br />
não difere dos que são usados pelos centros europeus<br />
e norte-americanos, e que as particularidades devem<br />
assumir um papel também central na construção das<br />
narrativas históricas, no nosso caso, da história urbana,<br />
então os caminhos se sedimentarão em outras bases.<br />
As dificuldades para que nos movimentemos por<br />
esses caminhos sempre existiram e muitas delas nós<br />
conhecemos. No entanto, existem sinais evidentes de<br />
que iniciamos outras trajetórias intelectuais sobre a<br />
história urbana da América Latina, e nisso incluindo<br />
a contribuição da historiografia urbana brasileira em<br />
fermentação ao espectro geográfico e cultural de<br />
colonização ibéria. E apesar das críticas que façamos,<br />
estamos certos de que devemos isso aos que iniciaram<br />
a caminhada.<br />
Referências bibliográficas<br />
ANDRADE, Carlos, Roberto Monteiro. “A construção<br />
historiográfica da cidade e do urbanismo moderno<br />
no Brasil: o caso das cidades novas planejadas”. In:<br />
PINHEIRO, Eloísa Petti e GOMES, Marco Aurelio A.<br />
de Filgueiras. A Cidade como História: os arquitetos e<br />
a historiografia da cidade e do urbanismo. Salvador:<br />
EDUFBA, 2005.<br />
ALMANDOZ, Arturo. “Entre libros de historia urbana.<br />
Para una historiografia de la ciudad y el urbanismo<br />
en América Latina”. Caracas: Editorial EQUINOCCIO,<br />
2007.<br />
DE DECCA, Edgar. “O estatuto da História”. In: Revista<br />
Espaço & Debates, n. 34. São Paulo: NERU, 1991.<br />
DE FARIA, Rodrigo Santos. “O município em face do<br />
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V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
14
artigos e ensaios<br />
Theodoro Sampaio, o Código Sanitário<br />
do Estado de São Paulo de 1894 e as<br />
exigências da modernidade<br />
Luiz Augusto Maia Costa<br />
Arquiteto, Urbanista e Filósofo, professor titular do Programa<br />
de Pós-Graduação em Urbanismo da Pontifícia Universidade<br />
Católica de Campinas, Rodovia D. Pedro I, km 136, Parque das<br />
Universidades, Campinas, SP, CEP 13086-900, luiz.agusto@puccampinas.edu.br<br />
Resumo<br />
O presente artigo busca relacionar as questões sanitárias no mundo ocidental<br />
(a partir da antiguidade até a contemporaneidade) com o que Freud definiu<br />
como as exigências da modernidade, isto é, ordem, higiene e beleza, a fim<br />
de estabelecer subsídios para a compreensão do Código Sanitário do Estado<br />
de São Paulo de 1894 como uma manifestação da modernidade engendrada<br />
a partir da Segunda Revolução Industrial. Defende que o referido Código<br />
contou, direta ou indiretamente, com a participação do engenheiro Theodoro<br />
Sampaio. Sendo assim, entendemos que a urbanística que então era forjada<br />
estava diretamente ligada ao próprio processo civilizatório típico do Ocidente.<br />
Palavras-chave: Theodoro Sampaio, modernidade, código sanitário, São Paulo.<br />
A<br />
s correntes higienistas exerceram papel fundamental<br />
na reestruturação das cidades em todo o mundo<br />
ao longo do século XIX, senão antes. No caso<br />
do Brasil não foi diferente. Adentramos o século<br />
XX intervindo em nossas cidades, pelo menos<br />
até a década de 1930, alicerçados nos mesmos<br />
paradigmas. Para muito além de meramente infraestruturar<br />
e embelezar as cidades, promovendo<br />
indubitavelmente um processo de saneamento,<br />
que não foi somente físico, mas também social, o<br />
higienismo consistiu em mais que uma expressão<br />
do processo de urbanização de então, foi ele<br />
mesmo um vetor de urbanidade dessas cidades e<br />
dessa sociedade.<br />
Buscarei aqui demonstrar a pertinência de tais<br />
observações. Para tal, retomarei a contribuição que<br />
o engenheiro Theodoro Sampaio deu à questão ao<br />
mesmo tempo em que defenderei a atualidade e<br />
o caráter fundamental do Código Sanitário de São<br />
Paulo de 1894, cuja elaboração teve a participação<br />
deste. Defendo que este Código ainda hoje possui<br />
importância, ao nos lembrar que ordem, higiene e<br />
beleza são os alicerces para a construção das noções<br />
de urbanidade e civilidade. aneamento, urbanidade<br />
e civilização.<br />
Saneamento, urbanidade<br />
e civilização<br />
Zygmunt Bauman (1998:7) ao comentar o clássico “O<br />
mal-estar na civilização” de Sigmund Freud, observa que<br />
o famoso trabalho em questão contava afinal a “história<br />
da modernidade”. Sabido é que o psicólogo alemão<br />
defendia que “no desenvolvimento da civilização (...)<br />
o preço que pagamos por nosso avanço em termos de<br />
civilização é uma perda da felicidade pela intensificação<br />
do sentimento de culpa” (Freud, 2006: 137). Isto é,<br />
para que a civilização avançasse foi necessário abrir<br />
mão de porções de felicidade, isto é, reprimir parte<br />
das pulsações tanto da libido como de destruição.<br />
Onde se conclui que, segundo o raciocínio freudiano,<br />
para ganhar algo é necessário perde algo em troca.<br />
Seguindo os passos de Freud, Bauman (1998: 7)<br />
conclui que<br />
V14 N2<br />
revista de pesquisa em arquitetura e urbanismo instituto de arquitetura e urbanismo iau-usp<br />
15
Theodoro Sampaio, o Código Sanitário do Estado de São Paulo de 1894 e as exigências da modernidade<br />
“assim como “cultura” ou “civilização”, modernidade<br />
é mais ou menos beleza (“essa coisa inútil<br />
que esperamos ver valorizada pela civilização”),<br />
limpeza (“ a sujeira de qualquer espécie parece-nos<br />
incompatível com a civilização”) e ordem (“ordem é<br />
uma espécie de compulsão à repetição que, quando<br />
um regulamento foi definitivamente estabelecido,<br />
decide quando, onde e como uma coisa deve ser<br />
feita, de modo que em toda circunstância semelhante<br />
não haja hesitação ou indecisão”).<br />
O texto de Freud, escrito originalmente em alemão,<br />
suscitou um acirrado debate quanto a sua tradução.<br />
O termo correto a ser usado seria “civilização” ou<br />
“cultura”? Sem entrar no mérito etimológico da<br />
palavra, parece-nos que ambos termos de uma<br />
forma ou de outra estão ligados. Sobretudo na<br />
modernidade, civilização e cultura convergem para<br />
um terceiro termo: cidade.<br />
As relações entre “essas exigências da civilização”,<br />
ou melhor, da modernidade para com a cidade é algo<br />
que o próprio Freud sugere. Beleza, limpeza (higiene)<br />
e ordem, estão nos alicerces da cidade moderna e de<br />
sua disciplina: o urbanismo. São baseadas nesses três<br />
princípios que observarei a Lei 233 de 2 de março<br />
de 1894, que estabelece o primeiro Código Sanitário do<br />
estado de São Paulo, cuja elaboração contou com<br />
a participação do engenheiro Theodoro Sampaio.<br />
A despeito de estarmos apontando a relação entre<br />
beleza, limpeza e ordem na modernidade, isso não<br />
que dizer, de forma nenhuma, que anteriormente<br />
a este período “essas exigências” não existissem.<br />
Entretanto, é no século XIX que isto ganha contornos<br />
imperativos para a construção do espaço construído<br />
das cidades. No âmbito deste artigo, concentraremos<br />
na questão da higiene para defender que as condições<br />
sanitárias é um dos indicativos do grau de<br />
urbanidade de dado lugar.<br />
Da antiguidade clássica ao<br />
século XIX<br />
Quando olhamos para a Roma Imperial do século I<br />
d.C. com seu um ou dois milhões de habitantes, o<br />
que primeiro vem as nossas mentes é como, naquela<br />
época, a cidade não sucumbiu a pestes e epidemias. A<br />
resposta para isto é simples: as cidades romanas, nessa<br />
época, partiam de um nível zero ao serem erguidas.<br />
Aquilo que demoramos séculos para perceber, já<br />
era de domínio daqueles construtores. Uma cidade<br />
deve começar a ser erguida ancorada em uma rede<br />
de infraestrutura viária e sanitária (MACAULAY).<br />
Isso é, durante o Império Romano, antes de se<br />
estabelecer o traçado da cidade com sua planta<br />
hipodâmica, todo um trabalho de abertura de<br />
estradas interligado às cidades era realizado. Construíam-se<br />
aquedutos para trazer água limpa para a<br />
nova cidade que se constituía; o mesmo acontecendo<br />
com as cloacas responsáveis por retirar os dejetos<br />
humanos para fora da cidade junto com as águas<br />
servidas e pluviais, sendo estas descarregadas no<br />
rio ( in natura ) em local apropriado.<br />
As cidades romanas de então, contavam com uma<br />
série de equipamentos públicos voltados à limpeza<br />
dos corpos e das cidades: cisternas com água limpa,<br />
privadas públicas, banhos e termas onde os cidadãos<br />
faziam sua higiene pessoal. Nessas cidades, a altura<br />
das edificações particulares não podia ultrapassar<br />
o dobro da largura da rua em que se localizavam,<br />
a fim de que fosse assegurado que as ruas seriam<br />
ensolaradas (MACAULAY). Nas basílicas romanas,<br />
os clerestórios, janelas altas existentes entre as<br />
naves laterais e a nave principal do edifício, tinham<br />
a dupla função de permitir a passagem de luz e ar<br />
(ARGAN, 2003).<br />
No único tratado de arquitetura da antiguidade<br />
clássica que chegou aos nossos dias o De Architectura,<br />
Marcos Vitrúvio Polião (1999) nos ensina que<br />
um arquiteto, entre outras especialidades, como<br />
geografia, música, história, matemática, astronomia,<br />
deve também entender de medicina. Tal afirmação<br />
fica clara na medida em que se entende como era<br />
compreendida a medicina à época. Para o grande<br />
médico da antiguidade clássica, Hipócrates, as<br />
doenças e, em particular, as epidemias estavam<br />
relacionadas a fatores climáticos, raciais, dietéticos<br />
e ao meio onde as pessoas viviam. Estas ideias<br />
subsidiam a teoria dos meios que foi crucial para<br />
o desenvolvimento da engenharia sanitária até a<br />
descoberta dos micróbios por Louis Pasteur nos fins<br />
do século XIX (COSTA, 2003).<br />
Parece claro que para a civilização romana a questão<br />
da limpeza/higiene já estava posta e era um ponto<br />
nevrálgico. Compreendemos que não era apenas<br />
uma questão de “saúde pública” (a despeito da<br />
anacronia do termo) nem tão pouco uma questão<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
16
Theodoro Sampaio, o Código Sanitário do Estado de São Paulo de 1894 e as exigências da modernidade<br />
unicamente médica. A vida na cidade passava por<br />
uma concepção de mundo que atrelava beleza,<br />
ordem e limpeza. Nesse sentido, “as exigências da<br />
civilização” eram também um indicativo do grau de<br />
urbanidade de dado agrupamento humano. O mundo<br />
“bárbaro”, o que em termos romanos queria dizer<br />
todo aquele que não falasse latim e não vivesse ao<br />
modo romano, era o mundo do caos, da feiura e da<br />
sujeira. Contrapõe-se aqui uma realidade civilizada e<br />
urbana a uma realidade “bárbara” e tribal.<br />
Isto faz ainda mais sentido quando nos deparamos<br />
com a retração urbana que ocorreu no mundo<br />
ocidental a partir do século V d.C. Sabido é que<br />
durante o período conhecido como Idade Média,<br />
as cidades foram praticamente abandonadas e<br />
perderam seu papel de polo emanador de organização<br />
social e territorial (PIRENNE, 2009). A<br />
população se agrupa em feudos isolados entre si. Os<br />
hábitos, mo-dos e concepção de mundo mudaram<br />
radicalmente. O mundo urbano sucumbiu ao mundo<br />
rural/agrário. Sabe-se que foi um período de<br />
grandes privações e de total precariedade material<br />
(MARQUES, 2010).<br />
Diferentemente das cidades, os feudos não contavam<br />
com uma rede de infraestrutura sanitária; da mesma<br />
forma, a higiene pessoal torna-se, no mínimo,<br />
uma questão secundária frente à árdua luta pela<br />
sobrevivência. Não estamos dizendo que o<br />
medievo foi um período de barbárie ou incivilizado.<br />
A civilização ocidental deste período estava aportada<br />
em outros conteúdos diferentes daqueles prescritos<br />
no período pretérito (BASCHET, 2006). O que<br />
queremos articular aqui é que, com a retração do<br />
urbano, as “necessidades da civilização” foram<br />
resinificadas. Se a noção de ordem mudou e as<br />
concepções de beleza se metamorfosearam, foi a<br />
limpeza que mais sofreu transformação.<br />
Até o século XI, período em que começam a<br />
surgir os burgos que acabaram por ocasionar o<br />
“ressurgimento” das cidades, os aglomerados<br />
humanos do medievo eram caracterizados pela baixa<br />
densidade populacional e pela baixa mobilidade.<br />
Em um contexto de campos abertos, as sujeiras<br />
produzidas pelos homens pouco impactavam sobre<br />
o espaço. Quanto à saúde destes homens não se<br />
pode dizer o mesmo, certamente a falta de higiene<br />
e limpeza contribuía um tanto para as altas taxas<br />
de mortalidade, nesse caso, particularmente a<br />
infantil. O próprio sentido de limpeza foi modificado<br />
(MARQUES, 2010).<br />
O reflorescimento das cidades trouxe consigo um<br />
aumento da densidade populacional. De fato, a<br />
cidade medieval vai se caracterizar por ser uma<br />
cidade de baixa densidade populacional, baixa<br />
mobilidade/circulação de pessoas, mercadorias,<br />
fluidos - tanto de água como de ar - e privação dos<br />
serviços públicos destinados à higiene. A forma das<br />
cidades era dominada por ruas estreitas e tortuosas,<br />
as quais não seguiam nenhum padrão preconcebido.<br />
Ainda que a epidemia da peste bubônica não tenha<br />
sido um fenômeno exclusivamente urbano,<br />
é fácil, nesse contexto de precariedade higiênica,<br />
compreender por que no século XIV a Peste Negra<br />
dizimou entre 25 e 75 milhões de pessoas em toda<br />
a Europa. Acredita-se que a bactéria Yersinia pestis<br />
tenha desembarcado em Genova junto com os ratos<br />
vindos do oriente. Ao encontrar um ambiente propício<br />
para a sua disseminação, expandiu-se por toda a<br />
Europa e pelo Oriente Médio próximo (KELLY, 2011).<br />
Os então frágeis aglomerados urbanos, “essas<br />
pequenas cidades num mar de campos”, eram<br />
vítimas frágeis para essa e outras “pestes”. A<br />
insipiente urbanidade que então se enunciava nos<br />
primórdios do renascimento do século XV não dotava<br />
tais aglomerados com as redes de infraestruturas<br />
sanitárias imprescindíveis à limpeza urbana, à saúde<br />
das cidades e à higiene das pessoas. “As exigências<br />
da civilização” estavam então ganhando novos<br />
contornos e tinham que se sobrepor à estética, à<br />
higiene e à ordem do tempo pretérito. Buscava-se na<br />
Roma Imperial suas raízes, forjava-se uma tradição.<br />
Mas essa, pelo menos em termos higiênicos, era<br />
uma mera sombra do que fora antes.<br />
Certamente, os modelos de Cidades Ideais que então<br />
eram fomentados apontavam para preocupações<br />
higiênicas, pode-se falar de certa separação das<br />
atividades “poluidoras” das demais atividades<br />
urbanas. No entanto, o fato é que em nenhum desses<br />
modelos encontra-se uma proposta para as redes<br />
sanitárias (GOITIA, 2011). Sabia-se que tudo deveria<br />
fluir. Entretanto, não se propunha a construção de<br />
aquedutos, de cloacas ou banhos públicos à maneira<br />
romana. Sabe-se que muito pouco ou quase nada<br />
do que foi proposto para a cidade renascentista foi<br />
construído, sobretudo na Europa.<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
17
Theodoro Sampaio, o Código Sanitário do Estado de São Paulo de 1894 e as exigências da modernidade<br />
A bem da verdade, tanto a cidade renascentista,<br />
como a barroca e a cidade do século XVIII não<br />
primaram por voltar-se para a questões sanitárias<br />
da cidade, o que ocasionava sérios problemas de<br />
salubridade nas mesmas. Na medida em que o<br />
meio urbano adquiria cada vez mais importância<br />
no mundo ocidental, as cidades aumentavam não<br />
só de tamanho, como de densidade populacional<br />
e de importância nas atividades produtivas e, por<br />
consequência, na vida humana. É exatamente<br />
enquanto a sociedade industrial se configura em<br />
sua magnitude que a questão do sanitarismo ganha<br />
um contorno prioritário.<br />
Brasil urbano, mas não sanitário<br />
A despeito do Brasil ter começado a se industrializar<br />
a partir do início do século XX, os processos urbanos<br />
aqui verificados desde meados do século<br />
XIX estavam atrelados àqueles verificados na<br />
Europa. País agroexportador para os mercados<br />
internacionais, o Brasil passou por transformações<br />
urbanas significativas desde que os excedentes de<br />
capital estavam desvinculados do comércio infame<br />
(COSTA, 2014).<br />
As cidades brasileiras durante o século XIX, grosso<br />
modo, possuíam ainda a estrutura da cidade colonial.<br />
Cidade esta que se configurava carente de uma<br />
rede de infraestrutura sanitária. Sua morfologia,<br />
de ruas tortuosas e estreitas, aliada a um modo de<br />
vida muito mais rural do que urbano, estabelecia um<br />
caráter provinciano às cidades brasileiras de então.<br />
O sistema produtivo estava baseado na escravidão<br />
e essa perpassava a sociedade colonial como um<br />
todo. Era então uma sociedade na qual a atividade<br />
agroexportadora definia as bases econômicas e<br />
sociais.<br />
Por volta de 1850, verificamos uma transformação<br />
significativa no papel em que as obras urbanas<br />
possuíam no contexto do Brasil Império. Data daí o<br />
fim do tráfico negreiro entre a África e o Brasil. O fim<br />
do “comércio infame” fez com que um excedente<br />
de capitais fosse liberado, passando estes a serem<br />
aplicados em obras urbanas. O Rio de Janeiro, capital<br />
do Império, é um exemplo disso (SILVA, 2012).<br />
existia algum tipo de serviço urbano, este era<br />
insuficiente. Em uma cidade que aumentava progressivamente<br />
sua população, demonstrava falta<br />
de uma rede de distribuição de água e de esgoto<br />
e que carecia de um serviço de limpeza pública,<br />
onde os espaços lamacentos, os mangues e o lixo<br />
dominavam a paisagem urbana, os vibriões das<br />
moléstias encontravam um ambiente propício a<br />
sua reprodução e disseminação. As epidemias e<br />
pestes não demoraram a se tornar frequentes, era<br />
epidemia de cólera, da febre tifoide, entre outras.<br />
A partir daí a situação só fez piorar. O grande fluxo<br />
de imigrantes para as cidades brasileiras então verificado<br />
acentuou a insalubridade destas. O aumento<br />
populacional não foi acompanhado de uma melhoria<br />
sanitária, bem como não foi acompanhado por um<br />
aumento de oferta habitacional. Pelo contrário, um<br />
número cada vez maior de pessoas se amontoava<br />
em cortiços cujas condições de habitabilidade eram<br />
mínimas. Dada às condições precárias de existência<br />
de um número cada vez maior de miseráveis, o<br />
alcoolismo, a prostituição e uma série de outras<br />
delinquências passavam a ser uma triste realidade<br />
da sociedade. A pobreza desgastava tanto o tecido<br />
urbano como social de então.<br />
Aqui, como na Europa, não tardou para que os<br />
médicos e depois os engenheiros se detivessem<br />
nas condições higiênicas das cidades, derivando<br />
daí uma série de medidas de intervenção na<br />
cidade. Rios foram canalizados, lagoas e pântanos<br />
foram drenados, morros foram removidos a fim<br />
de permitir a circulação de ar, de luz; intentavase<br />
que os fluidos em geral dimanassem. Na<br />
mesma medida, começou-se a estabelecer as<br />
redes de abastecimento de água e de esgoto.<br />
A limpeza urbana era organizada, novos modos<br />
eram fomentados, tais como a higiene pessoal.<br />
No Brasil, São Paulo (1842) foi a primeira cidade<br />
a estabelecer um sistema de abastecimento de<br />
água; já em termos de serviço de esgoto o Rio de<br />
Janeiro (1864) foi a pioneira. De qualquer forma,<br />
já na segunda década do século XX as principais<br />
cidades brasileiras já estavam dotadas de uma<br />
rede de infraestrutura sanitária básica (COSTA,<br />
2003, 2014).<br />
Outro acontecimento importante ocorrido em<br />
1850 foi a chegada da Cólera no Brasil. À época,<br />
as cidades eram cobertas de sujeiras; quando<br />
As mudanças então ocorridas nas cidades vinham<br />
acompanhadas de uma mudança no modo de viver<br />
e ver a cidade. Essas “exigências da civilização”<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
18
Theodoro Sampaio, o Código Sanitário do Estado de São Paulo de 1894 e as exigências da modernidade<br />
conclamavam a entrada na modernidade. Porém,<br />
isso não se dava de forma direta e imediata, o<br />
que ocasionava um estranhamento e uma falta de<br />
entendimento das transformações então engendradas<br />
que eram acentuadas pelo modo autoritário<br />
e truculento de agir do Estado (SEVCENKO, 2010).<br />
O discurso científico-ideológico defendia que tais<br />
medidas iriam levar a “cura da cidade”, que então<br />
era vista como um corpo físico e moralmente doente.<br />
É nesse contexto, aqui sumariamente exposto, em<br />
que o primeiro código sanitário do Estado de São<br />
Paulo é elaborado e promulgado.<br />
1 Para uma biografia completa<br />
do engenheiro, ver:<br />
Costa, 2003.<br />
A população em geral não entendia, por exemplo,<br />
porque a água que até então era disponibilizada<br />
gratuitamente nos chafarizes tinha que ser paga.<br />
Theodoro Sampaio, em seu diário de quando era<br />
Diretor da Repartição de Água e Esgoto do Estado de<br />
São Paulo, relata a destruição dos hidrômetros então<br />
instalados gerando ocorrências policiais (COSTA,<br />
2003). O certo é que a introdução desses serviços<br />
sanitários gerou uma horda de desempregados<br />
urbanos entre os mais pobres, visto que os serviços<br />
de transporte de água, de águas servidas e de dejetos<br />
não mais eram necessários, aumentando o número<br />
destes na cidade.<br />
Durante as reformas sanitárias empreendidas por<br />
Oswaldo Cruz no Rio de Janeiro, a população<br />
ridicularizava a “caça aos ratos” então promovida.<br />
A mesma população se sentia ultrajada por expor<br />
seus corpos à vacinação. Impõem-se então uma série<br />
de normas disciplinares aos cidadãos que visavam<br />
“domesticar” os hábitos dessa mesma população.<br />
Ao mesmo tempo, operava-se uma intervenção no<br />
espaço físico da cidade e no meio social e moral<br />
na sociedade vigente, que era impelida à base de<br />
normas a cederem às “exigências da civilização”<br />
como definidas no contexto da modernidade. Este<br />
é um lado da equação.<br />
O outro lado é que sanear queria dizer excluir.<br />
Excluir o que era fétido e feio, mas, sobretudo,<br />
operar uma brutal exclusão social onde o preto,<br />
pobre e os desvalidos de todas as ordens deveriam<br />
ser preteridos em favor do moderno, civilizado,<br />
não raro, europeu. A violência com que isso foi<br />
feito está por traz da famosa Revolta da Vacina<br />
ocorrida no Rio de Janeiro (SEVCENKO, 2010). Em<br />
São Paulo isso pode ser observado na mudança da<br />
paisagem humana da cidade. No meio do século<br />
XIX a população da cidade era em sua maioria negra<br />
e o tupi era tão falado quanto o português; já no<br />
final do mesmo século, a população era em sua<br />
maioria branca e estrangeira, onde o italiano era<br />
amplamente verbalizado. Esmaecia-se o passado<br />
colonial e escravista dessa sociedade.<br />
No ano de 1894, segundo José Geraldo Simões<br />
Júnior (1990: 59), o<br />
“(...) Código Sanitário estabelecendo padrões para<br />
a abertura de ruas e praças e também para a<br />
construção de habitações, hotéis e casas de pensão,<br />
tendo em vista principalmente os aspectos de<br />
ventilação, insolação e boa drenagem de águas<br />
servidas e águas pluviais. Por esse Código, os cortiços<br />
ficam terminantemente proibidos de existir, dada<br />
as condições sanitárias desse tipo de construção<br />
e o favorecimento à propagação de epidemias,<br />
constatadas, sobretudo após os trabalhos de inspeção<br />
de higiene realizado por uma Comissão nos cortiços<br />
de Santa Ifigênia no ano de 1893”.<br />
Esse código possuía um claro conteúdo segregador,<br />
uma vez que as classes menos favorecidas não<br />
tinham recursos para bancar tais exigências e o<br />
déficit habitacional era grande. É nesse contexto<br />
que o Engenheiro Theodoro Sampaio vai atuar no<br />
estado de São Paulo ao longo dos 30 anos iniciais de<br />
sua vida profissional, os 30 restantes, serão divididos<br />
entre Salvador e o Rio de Janeiro. (Costa, 2003)<br />
O Engenheiro Theodoro Sampaio 1<br />
Nascido em 1855, o baiano Theodoro Fernandes<br />
Sampaio foi um dos homens públicos de maior<br />
importância no panorama urbanístico, político e<br />
cultural que emergiu no país no final do século<br />
XIX. Em 1872, ingressa na Escola Central que, no<br />
decorrer de sua graduação, transformou-se na<br />
Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Formou-se<br />
em 1877. Em 1875, no 4º ano de engenharia, é<br />
contratado para os trabalhos gráficos do Museu<br />
Nacional. Em 1886, integra a Comissão Geográfica<br />
e Geológica de São Paulo, ocupando o cargo de 1º<br />
Engenheiro e Chefe de Topografia da Comissão.<br />
No governo de Prudente de Morais (1890), ainda<br />
como engenheiro da Comissão Geográfica e Geológica<br />
de São Paulo, é convidado por este para<br />
realizar os estudos do Saneamento de São Paulo,<br />
juntamente com o Dr. Antônio Francisco de Paula<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
19
Theodoro Sampaio, o Código Sanitário do Estado de São Paulo de 1894 e as exigências da modernidade<br />
Souza. Concomitantemente, assume a chefia<br />
dos Serviços de Água e Esgoto da cidade de São<br />
Paulo, dos quais era concessionária a Companhia<br />
Cantareira, que se encontrava em crise. Dois anos<br />
depois, no Governo de Bernardino de Campos, passa<br />
a exercer cumulativamente os cargos de Engenheiro<br />
sanitarista e consultor técnico da Secretaria do<br />
Interior, a convite de Vicente de Carvalho. Desta<br />
época, destacam-se as obras de construção de<br />
Hospitais de Isolamento e outros institutos de higiene<br />
da cidade. Bem como a elaboração do Relatório<br />
da Comissão de exame e inspeção das habitações<br />
operárias e cortiços no distrito de Santa Ifigênia,<br />
e a direta consequência deste, a elaboração do<br />
Código Sanitário do Estado de São Paulo de 1894.<br />
Não há nas fontes primárias disponíveis no Acervo<br />
Theodoro Sampaio, existente no Instituto Geográfico<br />
e Histórico da Bahia, documentação probatória<br />
de que o engenheiro em questão tenha escrito<br />
o referido Código, porém acreditamos que, pelo<br />
menos, Sampaio tenha participado da elaboração<br />
da Lei de 1894.<br />
Em 1898, é nomeado chefe dos Serviços de Água<br />
e Esgoto do Estado de São Paulo. Exerce esse cargo<br />
por cinco anos ininterruptos. Neste período, realiza<br />
obras de profunda importância para a modernização<br />
da cidade e do estado de São Paulo, entre elas o<br />
desenvolvimento e restauro da rede de água e<br />
esgoto da capital, como também de outras cidades,<br />
destacando-se a da cidade de Santos. Faz também<br />
estudos para a captação das águas do Tietê, assim<br />
como para a elaboração de uma legislação sanitária.<br />
Trabalha ainda na estruturação da repartição e na<br />
definição de suas diretrizes. Esteve também ligado ao<br />
desenvolvimento da indústria de material cerâmico<br />
destinado aos serviços de água e esgoto. Em 1903,<br />
demite-se do cargo por envolver-se em uma rede<br />
de intrigas em torno do saneamento de Santos,<br />
quando volta para a Bahia.<br />
O Código Sanitário do Estado de São<br />
Paulo de 1894<br />
Composto por 27 capítulos, dos quais 5 tratam<br />
especificamente da questão habitacional, o código<br />
de 1894 está imbuído de concepção positivista<br />
inerente à Primeira República. Baseado em princípios<br />
da engenharia sanitária em sua concepção<br />
bacteriologista, a referida lei busca espacializar as<br />
questões fundamentais da limpeza/higiene na cidade.<br />
Não seria absurdo dizer que o tema central desse<br />
Código seja a cidade, essa problematizada e palco<br />
de intervenção física e social através da higiene.<br />
Indubitavelmente, essa lei aponta para uma noção<br />
de civilidade, alterando significativamente a cultura<br />
local. Essas mudanças apontavam então para a<br />
modernidade forjada no contexto da Segunda<br />
Revolução Industrial.<br />
As leis por definição estão atreladas à noção de<br />
Ordem. O código de 1894 vai além dessa ligação<br />
imediata com a ordem. As normas então estabelecidas<br />
disciplinavam os espaços, os hábitos, os<br />
corpos. Da limpeza do espaço público à higiene<br />
dos espaços da casa, do trabalho, da escola ou<br />
do lazer há uma noção de ordem que buscava<br />
constituir uma regulamentação da sociedade quanto<br />
à limpeza, a qual não permitia hesitação ou dúvida.<br />
Isto é significativo quando observado o disposto no<br />
capítulo 27, artigo 520, onde o legislador acena para<br />
a utilização da força via polícia para a execução do<br />
estabelecido na lei.<br />
Nesse sentido, o Código de 1894 cumpria de forma<br />
direta duas das “exigências da civilização” que<br />
Freud apontava: ordem e limpeza comparecem<br />
aqui interligadas. Mais o que dizer da beleza?<br />
Indiretamente, há uma intenção de desenhar a<br />
cidade, na medida em que o Código Sanitário nesse<br />
momento parece querer ser também um Código de<br />
Obras, ao regulamentar dimensões e tamanhos de<br />
ruas, casas, hospitais, escolas, entre outros.<br />
São essas ponderações que nos permite concluir que<br />
o código sanitário do estado de São Paulo de 1894<br />
era, em sua essência, uma busca de atrelar São Paulo<br />
ao projeto da modernidade que se forjou a partir do<br />
Iluminismo. Era um projeto burguês e eurocêntrico,<br />
o qual buscava da resposta ao mundo egresso da<br />
Segunda Revolução Industrial. Logo, o Código não<br />
era moderno por trazer o novo, o diferente, mas<br />
por manifestar uma concepção de ordem, higiene<br />
(limpeza) e sensibilidade estética (beleza) típicas do<br />
mundo ocidental do fim do século XIX.<br />
No contexto brasileiro, essa modernidade se travestia<br />
ainda de uma radical oposição à ordem,<br />
limpeza e beleza atrelada ao período colonial.<br />
Achar um novo lugar para a recente República<br />
na divisão internacional do trabalho passava por<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
20
Theodoro Sampaio, o Código Sanitário do Estado de São Paulo de 1894 e as exigências da modernidade<br />
desvincular-se da imagem de um país escravocrata,<br />
colonial, “arcaico”. Essa concepção forma-se após<br />
a Proclamação da República, visto que antes a<br />
realidade do Brasil Império não era vista como algo<br />
a ser superado nem esquecido.<br />
A modernidade para o Brasil, e em particular<br />
destaque para São Paulo, era inseri-lo na dinâmica<br />
capitalista internacional como um país agroexportador.<br />
Isso passa também pela criação de<br />
uma nova imagem para o antigo Império, agora:<br />
europeu, branco, moderno, civilizado. Isto tudo<br />
o Código de 1894 faz. Ele dialoga com o que<br />
vinha sendo proposto para o mundo ocidental em<br />
termos de ordenação físico e social, em termos de<br />
salubridade e de estética.<br />
Queremos ressaltar aqui, que a Lei 233 é em<br />
grande parte fruto de uma mudança mental da<br />
compreensão do que era o país e, no caso de<br />
São Paulo, do que era uma cidade de inserção<br />
internacional; pois não se enganem: esse era<br />
o projeto político da sociedade paulista de então.<br />
Uma burguesia agrária ávida por lucros e<br />
reconhecimento. Era claro que tais objetivos só se<br />
confirmariam através de uma intervenção estatal<br />
que imprimisse ordem, limpeza e beleza aos corpos,<br />
à cidade e à sociedade como um todo.<br />
Inegavelmente ao longo da Primeira República<br />
muito foi feito no sentido de dotar as cidades<br />
de uma ordem, limpeza e beleza burguesa e, em<br />
certa medida, os intuitos foram alcançados, ainda<br />
que em extensão e profundidade aquém do que<br />
poderia ter sido feito. De qualquer forma, a partir<br />
da década de 1930, com a ascensão do urbanismo<br />
rodoviarista, difundiu-se a ideia de que a “questão<br />
sanitária” estaria resolvida. Entretanto, quando<br />
analisamos os dados e índices sanitários do último<br />
censo brasileiro, fica fácil provar o contrário.<br />
Nesse sentido, concordamos com José Eli da<br />
Veiga quando o mesmo afirma que “o Brasil é<br />
menos urbano do que se calcula”. O referido autor<br />
centra-se sobretudo na densidade demográfica<br />
e no número de habitantes de dado território.<br />
Propomos abordar nossa urbanidade a partir das<br />
“exigências da civilidade”. A solução da questão da<br />
salubridade, ainda está posta tanto em termos da<br />
higiene como de limpeza; o estado das coisas, na<br />
maior parte das cidades brasileiras, está aquém do<br />
que se espera. Aqui, os designíos da modernidade<br />
empreendidos pelo sanitarismo estão incompletos.<br />
Há de se observar estes dados não de forma<br />
absoluta, mas do ponto de vista qualitativo. Neste<br />
sentido, é pertinente perguntar qual a qualidade<br />
dos serviços de saneamento oferecidos? Eles suprem<br />
as tais “exigências da modernidade” como hoje<br />
se colocam? Podemos serenamente afirmar que<br />
o estado de salubridade de nossas cidades atesta<br />
um grau de urbanidade que se espera de um país<br />
civilizado? Temo que a resposta a tais perguntas<br />
sejam não. Como se não bastasse as outras razões,<br />
só por essas indagações o Código Sanitário de<br />
São Paulo de 1894, ainda hoje, 120 anos depois<br />
de promulgado, ainda temo que nos dizer; e a<br />
atuação dos Engenheiros do início da República,<br />
como a de Theodoro Sampaio, ainda tem o que<br />
nos ensinar, pois hoje as “exigências da civilidade”<br />
metamorfosearam-se, mas continuam na ordem<br />
do dia.<br />
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PIRENNE, Henri. As cidades da Idade média. Portugal:<br />
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V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
21
Theodoro Sampaio, o Código Sanitário do Estado de São Paulo de 1894 e as exigências da modernidade<br />
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Recebido [Nov. 14, 2015]<br />
Aprovado [Mai. 19, 2016]<br />
VITRÚVIO. Da Arquitetura. Introd. de J. Katinsky e trad. de<br />
Marco A. Lagonegro. São Paulo: Hucitec/ Fundação<br />
para a Pesquisa Ambiental,1999.<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
22
artigos e ensaios<br />
A questão da água para o abastecimento<br />
na cidade de São Paulo: as contribuições<br />
da família Paula Souza<br />
Cristina de Campos<br />
Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista Júlio de<br />
Mesquita Filho, pós-doutorado pela FAU-USP, professora<br />
colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Política Científica<br />
e Tecnológica do Instituto de Geociências da Universidade Estadual<br />
de Campinas, R. João Pandiá Calógeras, 51, CEP 13083-870,<br />
Campinas, SP, (16) 3289-1562, crisleine@gmail.com<br />
Resumo<br />
As cidades brasileiras passam por profundas transformações em suas estruturas<br />
urbanas em fins do século XIX. Pretende-se aqui explanar sobre a participação<br />
de profissionais na formulação de propostas aos problemas postos, tomando<br />
como exemplo a atuação da família Paula Souza. Em momentos distintos, o<br />
engenheiro Antonio Francisco de Paula Souza e o médico Geraldo Horácio<br />
de Paula Souza atuaram pelo saneamento da cidade de São Paulo, mais<br />
precisamente, sobre questões relativas ao abastecimento público de água.<br />
A intenção do artigo é ressaltar a complexidade dos problemas urbanos<br />
enfrentados à época pela inexistência de uma rede de infraestrutura adequada.<br />
Palavras-chave: infraestrutura urbana, abastecimento, cidade de São Paulo.<br />
1 Sobre os novos preceitos<br />
que guiavam o reordenamento<br />
das cidades consultar<br />
Melosi (2002).<br />
E<br />
m fins do século XIX a sociedade brasileira passa<br />
por transformações significativas. O trabalho escravo<br />
era abolido, um novo modelo de governo<br />
começa a ser engendrado e o país se firmava no<br />
mercado internacional como o principal produtor<br />
de café. O desejo de transformar radicalmente a<br />
sociedade brasileira torna-se um adendo importante<br />
ao projeto político republicano, que assume o<br />
poder em 1889. É, sem dúvida, um desejo de<br />
transformação controverso, afinal, mudanças nas<br />
estruturas sociais para garantir direitos e promover<br />
a inserção das classes menos favorecidas não<br />
faz parte da pauta do governo. Em um governo<br />
voltado para atender aos interesses da classe de<br />
produtores, as transformações pensadas visam,<br />
sobretudo, atender justamente aos ensejos deste<br />
grupo social. Neste amplo programa de reformas,<br />
o melhoramento das principais cidades do país<br />
ocupam posição de destaque.<br />
Transformar as cidades, como bem salientou Cristina<br />
Leme (1991), atendia a necessidades de ordem<br />
econômica, estética e de saúde. As cidades brasileiras<br />
eram um lembrança viva do passado colonial, com<br />
suas ruas tortuosas e estreitas. Possuidoras de<br />
uma infraestrutura urbana rudimentar, as cidades<br />
coloniais eram condenadas por serem insalubres<br />
e concorrerem diretamente para dificultar o estabelecimento<br />
de um ambiente urbano adequado<br />
aos novos padrões exigidos à vida humana 1 . As ruas<br />
estreitas que dificultavam a circulação de pessoas<br />
e mercadorias, bem como dos novos meios de<br />
transportes - os bonds e trolleys urbanos - forçavam<br />
as autoridades públicas a realizarem adequações nas<br />
vias, partindo inclusive para demolições e outras<br />
medidas radicais a fim de liberar o espaço para o<br />
desenvolvimento das novas atividades. Reformar a<br />
antiga cidade e prepará-la para as novas funções: é<br />
este o pensamento recorrente entre muitos políticos<br />
brasileiros do período. As cidades do sudeste, em<br />
especial, da antiga província de São Paulo, terão suas<br />
estruturas físicas alteradas tendo como pressupostos<br />
norteadores estes mesmos princípios de higiene,<br />
estética e circulação (Leme, 1991).<br />
V14 N2<br />
revista de pesquisa em arquitetura e urbanismo instituto de arquitetura e urbanismo iau-usp<br />
23
A questão da água para o abastecimento na cidade de São Paulo: as contribuições da família Paula Souza<br />
É necessário reforçar que além destes princípios<br />
norteadores, a cidade passa a desempenhar papel<br />
fundamental dentro do sistema produtivo, o que<br />
Wilson Cano (1977) denomina enquanto complexo<br />
cafeeiro, parte de um sistema que tem como objetivo<br />
oferecer suporte as atividades agroexportadoras.<br />
É nas cidades que os negócios são firmados, onde<br />
ocorre a distribuição da força de trabalho, que<br />
abriga as casas comissárias e bancos. Logo, instalamse<br />
nas cidades aparatos do Estado para regular<br />
seus diversos serviços que cada vez crescem mais.<br />
Pequenas fábricas, grandes oficinas ferroviárias<br />
e outras atividades industriais também nascem<br />
nas cidades, sem mencionar ainda o expressivo<br />
contingente populacional que se estabelece nestes<br />
núcleos.<br />
Na especificidade do caso brasileiro, a iniciativa de<br />
reformulação das cidades geralmente cabiam ao<br />
poder público, sem dúvida uma tarefa complexa que<br />
envolvia altas somas e iam além das obras em si,<br />
sendo necessário organizar novas instituições para<br />
o gerenciamento das atividades. Era comum, ainda,<br />
que as reformas urbanas ou a organização de uma<br />
nova repartição contasse, em sua maioria, com o<br />
assessoramento de um especialista - arquiteto ou<br />
engenheiro - profissões que lidavam diretamente com<br />
questões atreladas ao urbano. No entanto, não eram<br />
somente estes profissionais que se debruçavam para<br />
entender e aplicar soluções aos complexos problemas<br />
que as cidades do fim do século XIX apresentavam.<br />
Uma vasta bibliografia indica a participação de<br />
vários profissionais no debate acerca dos problemas<br />
gerados pelas grandes cidades.<br />
Neste artigo, toma-se como exemplo a cidade de<br />
São Paulo, que vivenciou as transformações acima<br />
apontadas. Pretende-se aqui explanar sobre a<br />
participação de tais profissionais na formulação<br />
de propostas aos problemas postos pela cidade,<br />
tomando como exemplo a atuação de dois membros<br />
da família Paula Souza. Em momentos distintos,<br />
o engenheiro e o médico atuaram em prol do<br />
saneamento urbano da cidade de São Paulo,<br />
mais precisamente, sobre questões relativas ao<br />
abastecimento público de água.<br />
O engenheiro Antonio Francisco de Paula Souza<br />
(1843-1917) realizou diversos projetos de sistemas de<br />
abastecimento para algumas cidades do interior de<br />
São Paulo. Nestes projetos, percebe-se sua sintonia<br />
com as técnicas praticadas por outros países para a<br />
captação e distribuição de água. Quando ocupou a<br />
Secretaria dos Negócios da Agricultura, Comércio e<br />
Obras Públicas em 1898, o engenheiro enfrentou o<br />
problema da falta de água para abastecimento da<br />
cidade de São Paulo. Como medida emergencial,<br />
sugeriu o uso das águas já poluídas do rio Tietê<br />
para abastecimento, fazendo uso de um engenhoso<br />
sistema de tratamento até então pouco utilizado<br />
nas cidades brasileiras.<br />
O tema da qualidade da água consumida pela<br />
população da cidade de São Paulo foi, pode-<br />
-se afirmar, recorrente na carreira do sanitarista<br />
Geraldo Horácio de Paula Souza (1889-1951).<br />
Durante sua estadia junto ao Laboratório de Química<br />
supervisionado pelo professor Roberto Hottinger da<br />
Escola Politécnica, Geraldo Paula Souza realizou uma<br />
série de pesquisas que culminaram no projeto de um<br />
aparelho capaz de purificar a água. Em palestras,<br />
divulgou abertamente sua recomendação para o<br />
uso das águas do rio Tietê em tempos de estiagem,<br />
desde que fossem submetidas a um processo de<br />
purificação. Como trabalho final em sua graduação<br />
em medicina, apresentou tese sobre o uso das águas<br />
tratadas do rio Tietê. Tempos depois, como diretor<br />
do Serviço Sanitário de São Paulo, recomendou que<br />
as águas distribuídas para abastecimento público<br />
passassem por pelo tratamento com cloro.<br />
A intenção deste trabalho é contribuir ao entendimento<br />
de que os problemas urbanos foram<br />
pensados por vários profissionais, que formularam<br />
e executaram soluções para a cidade de São Paulo.<br />
Ao revisitar estes dois membros da família Paula<br />
Souza é possível observar como tais soluções foram<br />
implantas e, em uma plano mais geral, sinalizar o<br />
estabelecimento das redes de infraestrutura urbana<br />
nesta capital.<br />
A reestruturação das cidades: redes<br />
de infraestrutura e instituições<br />
Ao passo em que os produtores paulistas conseguiam<br />
um bom desempenho junto ao mercado internacional,<br />
melhorias substanciais ocorriam na província<br />
de São Paulo. No âmbito das infraestruturas, as<br />
antigas estradas são melhoradas e novas são abertas.<br />
Contudo, o próprio governo provincial se recente da<br />
falta de pessoal técnico qualificado para a abertura de<br />
novas veredas ou mesmo para o conserto das antigas<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
24
A questão da água para o abastecimento na cidade de São Paulo: as contribuições da família Paula Souza<br />
vias, prejudicadas pelo intenso tráfego de tropas<br />
e pelas chuvas que causavam enormes estragos<br />
(Campos, 2016). Assim, no plano institucional, o<br />
governo provincial organiza o Gabinete Topográfico<br />
em 1834. O gabinete nasce como uma resposta<br />
aos reclamos dos produtores sobre a precária<br />
infraestrutura viária da província, mas segundo<br />
Rogério Beier (2013) pode-se concebê-la como<br />
algo maior, um gabinete com as atribuições de<br />
um repartição de Obras Públicas, para fiscalizar,<br />
organizar e formar pessoal técnico para postos<br />
ligados ao setor público de obras. Instituição de tal<br />
porte não existia, sendo corriqueiro o uso de força<br />
de trabalho de particulares para a realização das<br />
obras mais emergenciais. É uma primeira tentativa<br />
de organização de uma instituição de tal porte,<br />
mesmo que tenha sido extinta em 1849.<br />
Novas iniciativas são registradas nas décadas seguintes.<br />
Em 1868, a Inspetoria de Obras Públicas é<br />
organizada pelo governo provincial, com atribuições<br />
semelhantes as suas congêneres anteriores (Campos,<br />
2015). O anseio era de atingir vários campos das<br />
obras públicas, mas os trabalhos iniciais estavam<br />
voltados para as questões da viação pública, uma<br />
reivindicação das classes de produtores (Campos,<br />
2016).<br />
Uma década depois, novas repartições reforçam<br />
o governo provincial e veem no bojo de outras<br />
reivindicações: a Inspetoria de Higiene e a Comissão<br />
Geográfica e Geológica. A Inspetoria de Higiene estava<br />
voltada para as questões relativas à saúde pública<br />
como o controle de doenças, vacinações e inspeções<br />
diversas. Seu foco de atuação era toda a província<br />
de São Paulo, apesar dos baixos recursos de pessoal<br />
e de verbas, seu funcionamento ficou mais restrito<br />
à capital (Ribeiro, 1993). A Comissão Geográfica e<br />
Geológica partiu da Assembleia Legislativa e tinha<br />
como principal atividade o estudo e mapeamento<br />
do território paulista, cujos estudos deveriam guiar<br />
os rumos da agricultura e outros ramos produtivos<br />
da província paulista (Figueirôa, 1999; Costa, 2003).<br />
Com a instauração da República em 1889, estas<br />
instituições são ampliadas e novas surgem para<br />
organizar outras questões importantes para o<br />
governo estadual. O Serviço Sanitário amplia o<br />
campo da saúde pública, agora sob o respaldo<br />
legal de um Código Sanitário para guiar suas ações<br />
em prol da salubridade. A Inspetoria de Obras<br />
Públicas é reorganizada e passa a ser denominada<br />
Superintendência de Obras Públicas, estando sob<br />
sua responsabilidade os trabalhos da Comissão<br />
Geográfica e Geológica, além de outras atribuições,<br />
uma vez que seus trabalhos foram ampliados a<br />
outros campos.<br />
No campo das ações, as transformações pelas<br />
quais passaram a província nas últimas décadas<br />
do século XIX são impressionantes. O problema<br />
dos transportes - sobretudo o dos produtos para<br />
exportação – sofrem impactos substanciais com a<br />
inauguração da primeira ferrovia ligando o porto<br />
exportador ao platô paulista. A chegada da São<br />
Paulo Railway em 1867 fez eclodir outras iniciativas<br />
ferroviárias, que rasgaram as zonas produtoras com<br />
os caminhos de ferro, fazendo com que café e outros<br />
produtos escoassem rapidamente pelo território.<br />
Com a chegada das ferrovias, várias cidades paulistas<br />
observam suas dinâmicas urbanas passarem por<br />
transformações profundas. O apito do trem as<br />
conectaram a outros centros produtivos, em especial<br />
com a capital, agilizou a circulação de pessoas,<br />
bens e informações. A instalação das companhias<br />
ferroviárias, com suas oficinas, escritórios técnicos<br />
e o expressivo quadro de funcionários também<br />
foram significativas pelas múltiplas transformações<br />
atreladas ao universo ferroviário.<br />
Dentro deste contexto, não são somente as infraestruturas<br />
territoriais que são requalificadas,<br />
as urbanas também urgem por alterações. A<br />
capital São Paulo e outras cidades do interior<br />
realizam melhoramentos em seus sistemas viários,<br />
encomendam projetos de novas redes de<br />
abastecimento e esgotamento sanitário, além de<br />
adotarem um sistema de transportes urbanos, os<br />
bonds.<br />
Estes projetos eram iniciativas do poder público,<br />
que através de convocações públicas, chamavam<br />
os empresários interessados em organizar uma<br />
empresa para levar a cabo as obras e colocar o<br />
serviço em funcionamento. A melhor proposta,<br />
em termos orçamentários e de qualidade projetual,<br />
eram as selecionadas para os serviços (Campos,<br />
2015). Ao passo em que as repartições públicas<br />
vão se estruturando, muitas dessas obras passam a<br />
serem executadas pelo próprio poder público, seja<br />
estadual ou municipal.<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
25
A questão da água para o abastecimento na cidade de São Paulo: as contribuições da família Paula Souza<br />
Neste artigo, o interesse recai nas obras destinadas<br />
ao saneamento do meio, a criação de um aparato<br />
de infraestrutura urbana para as redes de águas e<br />
esgotos. Como a análise enfoca etapas distintas em<br />
que dois personagens atuaram no estabelecimento<br />
destas redes, é preciso entender cada um destes<br />
momentos. A construção da infraestrutura urbana<br />
durante o período de atuação profissional do engenheiro<br />
Paula Souza tem as suas ações guiadas por<br />
um referencial teórico pautados nas primeiras teorias<br />
que buscam entender como se dá a propagação das<br />
doenças no meio urbano. Fortemente centrada na<br />
teoria dos miasmas, as intervenções que ocorrem no<br />
espaço realizam alterações substanciais da paisagem,<br />
drenam as águas estagnadas e fazem circular as<br />
águas servidas para locais distantes das aglomerações<br />
urbanas. Busca-se também por fontes de águas<br />
puras, que contidas em reservatórios devem ser<br />
distribuídas em encanamentos para as residências<br />
(Fee, 1987; Melosi, 2002, Andrade, 1991). Por<br />
produzirem estas infraestruturas que demandam um<br />
conhecimento técnico especializado para construção<br />
de tais estruturas, esta é uma fase guiada quase que<br />
majoritariamente pelo engenheiro civil.<br />
No correr do século XX, com a comprovação da<br />
microbiologia, mudanças substanciais promovem<br />
o desenvolvimento de novos estudos sobre a transmissão<br />
das doenças. As intervenções no meio com a<br />
construção de infraestruturas de saneamento ainda<br />
são recomendadas, somando-se a isto um papel<br />
mais decisivo que os médicos passam a exercer no<br />
controle das doenças. Para que tal controle ocorra, os<br />
estudos em laboratórios passam a ser fundamentais<br />
para o entendimento das doenças, ao passo em que<br />
o campo disciplinar da saúde pública ganha novos<br />
contornos, chancelando aos médicos a qualidade de<br />
autoridade científica que o habilita a pensar e propor<br />
medidas para o ambiente urbano (Fee, 1987).<br />
Estas mudanças também se fazem sentir no Brasil<br />
e não somente com os emblemáticos esforços de<br />
saneamento da capital Rio de Janeiro perpetrados<br />
por Pereira Passos e Oswaldo Cruz. Em São Paulo<br />
as nova orientação se fez sentir com a organização<br />
do Serviço Sanitário em 1892, repartição voltada<br />
para a saúde pública que tinha sua atuação guiada<br />
por um conjunto de instituições de pesquisa e<br />
laboratórios (Ribeiro, 1993). No decorrer do século<br />
XX e com a consolidação da saúde pública enquanto<br />
campo científico e disciplina acadêmica, o Serviço<br />
Sanitário terá como uma de suas linhas de atuação<br />
o desenvolvimento da administração sanitária,<br />
composta por um rede de Centros de Saúde cuja<br />
função é a de controle não só dos corpos mas<br />
também do espaço, seja ele urbano ou rural. (Castro<br />
Santos e Faria, 2002; Campos, 2002)<br />
No âmbito do governo estadual paulista, duas<br />
secretarias dividiam as tarefas ligadas a higiene<br />
urbana: a Secretaria da Agricultura e a Secretaria do<br />
Interior. A da Agricultura, estuda em profundidade<br />
por Bernardini (2007), tinha sob sua responsabilidade<br />
o setor das Obras Públicas, sendo o responsável<br />
por estradas, edificações públicas, fiscalização de<br />
empresas concessionárias de serviços públicos e que<br />
construiu as redes de saneamento na capital e em<br />
algumas outras cidades do interior. A realização das<br />
obras de infraestrutura de saneamento (redes de<br />
águas e esgotos) pelo interior do estado é um estudo<br />
ainda a ser realizado, mas contou com a participação<br />
da Secretaria da Agricultura, de empresas privadas e<br />
como uma iniciativa das próprias Câmaras Municipais<br />
que bancavam estas empreitadas.<br />
A Secretaria do Interior, a qual estava subordinado<br />
o Serviço Sanitário e que tinha como engenheiro<br />
consultor o renomado sanitarista Theodoro Sampaio,<br />
administrava toda um número considerável de<br />
instituições ligadas ao campo da saúde pública<br />
e das políticas propriamente ditas. O controle da<br />
situação sanitária era por esta secretaria realizado,<br />
sendo que poucas prefeituras custeavam repartições<br />
próprias de saúde pública.<br />
Nesta breve exposição buscou-se pontuar estes<br />
momentos vividos pela higiene urbana em São<br />
Paulo: um primeiro, nos tempos imperiais, em que<br />
se buscava criar instituições e um segundo, na<br />
república, que surge com um aparato mais decisivo<br />
e uma presença mais marcante do Estado. Estes<br />
dois momentos podem ser melhor delineados se<br />
observado a partir da atuação do engenheiro Paula<br />
Souza (para o final de império e começo da República)<br />
e do médico Paula Souza (primeira República).<br />
Antonio Francisco de Paula Souza,<br />
o engenheiro civil: higiene e<br />
infraestrutura urbana<br />
Como surto de desenvolvimento econômico é<br />
comum encontrarmos nos relatos da época que<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
26
A questão da água para o abastecimento na cidade de São Paulo: as contribuições da família Paula Souza<br />
2 Esta é uma referência as<br />
cartas trocadas entre o Conselheiro<br />
Antonio Francisco de<br />
Paula Souza (1819-1866), ministro<br />
da Agricultura com seu<br />
filho, o jovem estudante de<br />
engenharia Antonio Francisco<br />
de Paula Souza. As fontes<br />
epistolares foram trabalhadas<br />
na tese de doutoramento<br />
que depois foi publicada no<br />
formato de livro em Campos<br />
(2010).<br />
3 A respeito dos projetos de<br />
abastecimento de Antonio<br />
F. de Paula Souza ver artigo<br />
publicado nesta revista em<br />
2008.<br />
o Brasil das décadas de 1850 e 1860 ainda tudo<br />
estava para ser feito 2 : estradas, ferrovias, redes<br />
de abastecimento, edifícios públicos... O perfil<br />
profissional vislumbrado era o que possuísse as<br />
atribuições de um engenheiro. Engenheiro era um<br />
profissional não tão comum no país, visto existir<br />
somente a Escola Central que formava no Brasil.<br />
Quando da instalação das primeiras companhias<br />
ferroviárias em São Paulo, as empresas traziam<br />
corpo profissional de seu país de origem para<br />
projeto e construção da linha, bem como para os<br />
trabalhos em outras instâncias da empresa como<br />
controle do tráfego e direção das oficinas de reparos<br />
(Campos, 2012). Atuando profissionalmente no<br />
Brasil, assumiam também outros trabalhos, como<br />
ilustra a passagem do engenheiro da The São Paulo<br />
Railway Company James Brunless em São Paulo:<br />
realizou estudos para o novo abastecimento de águas<br />
da cidade de São Paulo a partir dos mananciais da<br />
Serra da Cantareira e também realizou estudos para<br />
uma ferrovia entre Jundiaí e Campinas.<br />
É dentro desse campo fértil de atuação profissional<br />
que Antonio Francisco de Paula Souza (1843-1917)<br />
direciona seus estudos para a engenharia. Tendo<br />
realizado seus estudos secundários na Alemanha,<br />
prestou os exames de admissão da Eidgenössische<br />
Technische Hochschule de Zurique, transferindo-se<br />
depois para a Escola Politécnica do Grã-Ducado de<br />
Baden, na cidade de Carlsruhe, na Alemanha. Após<br />
sua intensa vida estudantil, realiza trabalhos de<br />
engenharia na Europa e Estados Unidos, ocupando<br />
postos em empresas ferroviárias neste país. Em 1871<br />
retorna ao Brasil e se estabelece no interior paulista,<br />
com trabalhos para empresas ferroviárias como a<br />
Ituana e a Paulista (Campos, 2010).<br />
O envolvimento do engenheiro com as infraestruturas<br />
permearam sua vida profissional. Foi<br />
durante a década de 1880 que tal envolvimento se<br />
intensificou. Nesta época, o engenheiro se instalou<br />
na cidade de Campinas com um escritório de<br />
engenharia que além dos serviços de engenheiro<br />
civil também fazia as vezes de representante<br />
comercial de material ferroviário dos Ateliers da<br />
Decauville Ainé. A escolha de Campinas não foi<br />
ao acaso: a cidade era o centro mais dinâmico da<br />
província de São Paulo, local onde se concentravam<br />
serviços, mão de obra e sobretudo, industriais,<br />
empresários e grandes proprietários rurais, estes<br />
potenciais clientes para o engenheiro.<br />
Enquanto engenheiro civil autônomo, Paula Souza<br />
envolveu-se em vários trabalhos para a elaboração<br />
de redes de abastecimento de água 3 , dos quais se<br />
destacam para as cidades de Amparo (1879), Rio<br />
Claro (1881) e Itu (1885), sendo este o único que<br />
o engenheiro chegou a executar. As redes de água<br />
nas cidades do interior são consequência direta do<br />
bom resultado da lavoura de exportação. É durante<br />
este final de século XIX que as cidades do interior se<br />
expandem, abrigam pequenas fábricas e algumas<br />
ainda a sede de empresas ferroviárias, o que dinamiza<br />
a economia urbana. Assim, a necessidade de expandir<br />
os serviços urbanos condizentes com os pressupostos<br />
técnicos e científicos da época se faz um imperativo<br />
para muitas cidades do interior. A demanda por<br />
água potável era uma das mais requisitadas pela<br />
sociedade, o mesmo não ocorrendo, pelo menos<br />
em um primeiro momento para os esgotos. Isto se<br />
justifica pelas correntes científicas da época que<br />
atribuíam as águas poluídas a veiculação de doenças,<br />
posteriormente foi também levantada a importância<br />
das redes de esgotos, para a remoção das águas<br />
servidas que eram depositadas nos fundos nos<br />
quintais, ocasionando outra ordem de problemas.<br />
As águas deveriam vir de mananciais distantes,<br />
indicavam os manuais de engenharia da época,<br />
para serem livres de qualquer tipo de contaminação.<br />
Imbuído de tal premissa e ciente da importância<br />
deste serviço para Campinas, o engenheiro Paula<br />
Souza organizou com outros empresários da cidade<br />
a Associação das Obras Hidráulicas e Melhoramentos<br />
da Cidade de Campinas. Era comum à época a<br />
organização de empresas para a realização de serviços<br />
públicos, pois a municipalidade e nem o governo<br />
provincial dispunham de uma estrutura administrativa<br />
para a organização desta infraestrutura. A iniciativa<br />
do engenheiro, no entanto, não se vingou.<br />
A ligação de Paula Souza com o movimento republicano<br />
paulista e seus principais líderes levaram o<br />
engenheiro a ocupar cargos de decisão quando estes<br />
assumiram o governo do pais em 1889. No governo<br />
estadual, foi convocado logo de inicio para organizar<br />
o setor de obras públicas, que agora passaria a ser<br />
denominado Superintendência de Obras Públicas (SOP).<br />
A nova repartição agregava setores antes dispersos,<br />
reunidos em quatro seções: 1ª e 2ª responsáveis pela<br />
direção e fiscalização das obras públicas do governo;<br />
3ª fiscalização e inspeção das empresas prestadoras de<br />
serviços públicos, 4ª demarcação, divisão e aplicação<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
27
A questão da água para o abastecimento na cidade de São Paulo: as contribuições da família Paula Souza<br />
de terras públicas, inspeção de colônias, fiscalização<br />
e levantamento da Carta Geográfica e Geológica do<br />
estado (Campos, 2010: p.197).<br />
Como diretor da SOP, o engenheiro teve participação<br />
decisiva em outras questões do governo ligadas as<br />
infraestruturas urbanas. Com Ramos de Azevedo,<br />
atuou decisivamente para que a Companhia Cantareira<br />
e Esgotos fosse estatizada e a partir dela fosse<br />
constituída a Repartição Técnica de Águas e Esgotos<br />
(RTAE). Dentro dos moldes propostos, a construção<br />
de ambas as redes - águas e esgotos - seriam de<br />
responsabilidade do poder público, cabendo ao<br />
mesmo administrar os serviços.<br />
Ainda nesta superintendência foi comissionado com<br />
o engenheiro Theodoro Sampaio para elaborar uma<br />
proposta para a várzea do Carmo, após o governador<br />
do estado Prudente de Moraes solicitar a organização<br />
da Comissão de Saneamento das Várzeas da Capital.<br />
Moraes pretendia dar solução definitiva as<br />
enchentes e outros problemas relacionados às<br />
várzeas do Carmo, Tamanduateí e Tietê, depois dos<br />
inúmeros debates envolvendo a imprensa paulistana,<br />
a Câmara Municipal de São Paulo e empresários<br />
interessados em sanear e explorar comercialmente<br />
o tal logradouro público (Campos, 2015).<br />
Com a drenagem de áreas alagadiças, obras de<br />
contenção de enchentes, áreas destinadas para<br />
parques e boulevards, além de um centro cívico<br />
foram alguns dos pontos que o relatório final dos<br />
engenheiros indicou para realização.<br />
Outra passagem que merece menção sobre a carreira<br />
de Paula Souza é sobre sua breve passagem na<br />
Secretaria dos Negócios da Agricultura, em 1898.<br />
Neste ano, a cidade passava por um período de<br />
estiagem prolongado, o que ocasionou falta de água<br />
para o abastecimento. O engenheiro optou pelo uso<br />
das águas poluídas do rio Tietê para abastecimento<br />
da cidade, para isso ordenou a construção de galerias<br />
filtrantes a fim de realizar tratamento prévio das<br />
águas antes de sua distribuição para a população.<br />
Estas são as contribuições mais relevantes da<br />
carreira de Antonio Francisco de Paula Souza<br />
para o desenvolvimento das infraestruturas e da<br />
higiene urbanas. No próximo tópico, será trazida a<br />
contribuição de seu filho - médico sanitarista - para<br />
a estas mesmas áreas.<br />
Geraldo Horácio de Paula Souza, o<br />
médico sanitarista: soluções para as<br />
águas do abastecimento público<br />
A participação e as propostas formuladas por<br />
Geraldo Horácio de Paula Souza (1889-1951) para<br />
a higiene urbana são indicativo de como o campo<br />
disciplinar da Saúde Pública era uma área em<br />
expansão e ganhava cada vez mais a contribuição<br />
dos médicos. A formação de Geraldo Horácio em<br />
medicina sempre teve forte inclinação para as análises<br />
clínicas. Formado em Farmácia e com passagem pelo<br />
Laboratório de Química da Escola Politécnica de São<br />
Paulo, depois ingressando na Faculdade de Medicina<br />
do Rio de Janeiro. Nesta faculdade, defendeu tese<br />
sobre o uso das águas do rio Tietê, demonstrando<br />
interesse sobre o tema das águas consumidas na<br />
cidade de São Paulo.<br />
Os estudos sobre a água prosseguiram sob o<br />
abrigo do Laboratório de Química da Politécnica<br />
de São Paulo, cujo responsável era o professor<br />
Roberto Hottinger. Junto com Hottinger, Geraldo<br />
Horácio desenvolveu vários estudos sobre as águas<br />
consumidas na capital paulista. A péssima qualidade<br />
das águas distribuídas pela cidade fizeram com que<br />
desenvolvessem, em parceria com outro professor<br />
da Politécnica Roberto Mange, um dispositivo<br />
purificador de água a base de ozônio, o Perfector.<br />
A ozonização e uso de luzes ultravioleta seriam,<br />
segundo a proposta, instalados como última etapa<br />
do processo de purificação da água destinada ao<br />
abastecimento público. O dispositivo, no entanto,<br />
não chegou a ser vendido para o governo. O<br />
dispositivo foi apresentado em várias ocasiões,<br />
principalmente nas sessões da Sociedade de Medicina<br />
e Cirurgia de São Paulo (Campos e Gitahy, 2011).<br />
Por volta de 1917 ingressou na Faculdade de<br />
Medicina de São Paulo como assistente da nova<br />
Cadeira de Higiene, criada a partir do convênio<br />
firmado com a Fundação Rockefeller (Ribeiro, 1993;<br />
Marinho, 2003). Concebida dentro da nova lógica<br />
que regia a disciplina da Saúde Pública (sobretudo<br />
sua vertente estadunidense), a Cadeira de Higiene<br />
estava de acordo com os critérios estabelecidos para<br />
esta disciplina, cuja primeira escola funcionava na<br />
Universidade Johns Hopkins, em Baltimore. Existiam<br />
outras escolas e outras vertentes, mas em São Paulo,<br />
muito em virtude dos acordos estabelecidos com<br />
a Fundação Rockefeller. Segundo Fee (1987), o<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
28
A questão da água para o abastecimento na cidade de São Paulo: as contribuições da família Paula Souza<br />
desejo era tornar a saúde pública um campo de<br />
atuação profissional, daí a importância de se formar<br />
profissionais qualificados para exercer as atividades<br />
ligadas a este ramo, tirando-a do controle político.<br />
Este profissional combinava conhecimento da bacteriologia<br />
e da engenharia sanitária. Tal formação<br />
permitia ampla atuação do profissional, sendo seu<br />
foco a saúde da população, estudos epidemiológicos<br />
das doenças, saneamento e o rigoroso controle das<br />
águas distribuídas, dos sistemas de recolhimento de<br />
resíduos sólidos e esgotos. Ou seja, tudo o que se<br />
relacionava diretamente à salubridade do espaço,<br />
seja o urbano quanto o rural.<br />
Os trabalhos do jovem médico seguiram esta mesma<br />
linha de atuação, cabendo ao mesmo assumir a<br />
Cadeira de Higiene, transformada em Instituto de<br />
Higiene em 1918, em 1921 após os técnicos norteamericanos<br />
concluírem seus contratos. Assim como<br />
nos Estados Unidos, a fundação do Instituto de<br />
Higiene visava formar profissionais para atuação na<br />
área de saúde pública e para desenvolver o campo<br />
de pesquisas dessa área no Brasil. O que corrobora<br />
tal afirmação é que Geraldo Horácio irá assumir<br />
a direção do Serviço Sanitário paulista em 1922,<br />
realizando uma série de medidas voltadas para a<br />
administração sanitária e as políticas públicas no<br />
setor. Seu papel enquanto diretor o permitia opinar<br />
diretamente sobre temas ligados à saúde pública:<br />
saneamento, higiene urbana e rural, sistemas de<br />
abastecimento, redes de assistência à saúde,etc.<br />
Durante a estiagem de 1925, Geraldo Horácio foi<br />
um dos que defenderam o uso das águas do rio<br />
Tietê para abastecimento da parte baixa da cidade.<br />
Em tal ocasião, tomou como referência os trabalhos<br />
realizados por seu pai em 1898, quando mandou<br />
construir galerias filtrantes e distribuiu as águas<br />
do Tietê (Paula Souza, 1936). Geraldo Horácio<br />
tinha consciência que as águas eram impróprias ao<br />
consumo, razão pela qual indicava que deveriam<br />
passar por um rigoroso processo de purificação, com<br />
o uso de um elemento químico, o cloro.<br />
Considerações finais<br />
Neste artigo procurou-se analisar a província/estado<br />
de São Paulo entre os séculos XIX e XX,<br />
com os esforços para a construção da rede de<br />
infraestrutura urbana e os profissionais envolvidos<br />
em sua construção. O enfoque em dois profissionais<br />
- engenheiro e médico - em momentos distintos e<br />
membros de uma mesma família, foi relevante ao<br />
mostrar os métodos escolhidos, as novas tecnologias<br />
para o problema da falta de água na cidade de<br />
São Paulo.<br />
Quando a análise transcorre entre os dois profissionais,<br />
percebe-se a evolução das técnicas empregadas<br />
e como o desenvolvimento a ciência impactaram a<br />
construção das redes de infraestrutura. Ressalta-se<br />
ainda o papel que a produção de conhecimento<br />
emanada de campos como a da Engenharia e da<br />
Saúde Pública cujos desdobramentos foram sentidos<br />
nas infraestruturas urbanas. O conhecimento sobre<br />
a transmissão das doenças e de sua epidemiologia<br />
geraram novas tecnologias, consequentemente<br />
geraram intervenções como as galerias filtrantes, o<br />
dispositivo Perfector e a aplicação de cloro.<br />
A intenção do artigo, além da contribuição destes<br />
dois profissionais que atuaram em campos distintos<br />
mas com um problema em comum, é a de salientar a<br />
complexidade dos problemas urbanos enfrentados à<br />
época pela inexistência de uma rede de infraestrutura<br />
adequada. Sem embargo, ainda hoje um desafio<br />
que precisa ser enfrentado.<br />
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V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
29
A questão da água para o abastecimento na cidade de São Paulo: as contribuições da família Paula Souza<br />
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V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
30
artigos e ensaios<br />
Produção de cidade como projeto coletivo:<br />
a ação habitacional do Instituto dos<br />
Industriários (1937-1960)<br />
Nilce Cristina Aravecchia Botas<br />
Arquiteta e Urbanista, doutora pela Universidade de São Paulo,<br />
professora do Departamento de História da Arquitetura e Estética<br />
do Projeto, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade<br />
de São Paulo, Rua do Lago, 876, Butantã, São Paulo, SP, CEP<br />
03178-200, nilce_aravecchia@hotmail.com<br />
Resumo<br />
Na perspectiva de debater a relação entre autoria e trabalho coletivo, este<br />
artigo traz questões sobre a ação de engenheiros e de arquitetos no âmbito<br />
das transformações do Estado a partir de 1930 no Brasil. A análise específica<br />
da conformação da Divisão de Engenharia do Instituto de Aposentadoria e<br />
Pensões dos Industriários (IAPI) busca divisar as principais ideias e as ações<br />
da produção habitacional das décadas de 1940 e 1950, para entender como<br />
os debates específicos do campo disciplinar da arquitetura e do urbanismo<br />
estiveram vinculados às dinâmicas de integração do país no sistema capitalista.<br />
Palavras-chave: habitação social, institutos de previdência, arquitetura, cidade.<br />
A<br />
rquitetura, habitação e previdência<br />
social: o papel do IAPI<br />
A partir de 1930, no contexto da Revolução Getulista,<br />
inicia-se a ação pública de previdência social no país,<br />
que se organizou a partir de diversas categorias<br />
profissionais. Até final da década estavam criados<br />
os chamados Institutos de Aposentadoria e Pensões,<br />
com destaque para as categorias dos Marítimos,<br />
dos Comerciários, dos Bancários e finalmente o<br />
foco deste trabalho, o Instituto de Aposentadoria e<br />
Pensões dos Industriários (IAPI). A partir dos fundos<br />
previdenciários desses institutos o poder público teve<br />
pela primeira vez a iniciativa de produzir habitação<br />
de interesse social no país.<br />
Distinto dos outros institutos que foram resultado<br />
de decisões mais centralizadas, o IAPI foi fruto de<br />
negociações entre o governo, representantes dos<br />
empregadores e representantes dos trabalhadores<br />
de indústrias, que compuseram uma comissão para<br />
estudar o que seria o maior dos órgãos de previdência<br />
social no Brasil. Acreditava-se que, por sua dimensão<br />
(atenderia cerca de um milhão de associados), era<br />
fundamental que seu organograma administrativo<br />
fosse fundamentado em critérios técnicos, visando<br />
eficiência no cumprimento de suas atribuições. O<br />
primeiro resultado prático desse processo foi a<br />
novidade inaugurada pelo IAPI de recrutar seu corpo<br />
técnico por meio de concurso público, realizado<br />
em 1937, e válido para todo o território nacional<br />
(HOCHMAN, 1990, p.28-31).<br />
Do ponto de vista da produção habitacional, o<br />
encontro entre distintas visões sobre habitação e<br />
cidade no interior do IAPI deu origem a projetos e<br />
obras de qualidade, apontando novos paradigmas<br />
de soluções de moradia econômica, consoantes<br />
com as discussões sobre arquitetura e cidade que<br />
permearam o meio técnico no segundo quartel do<br />
século XX. Em muitas situações os dirigentes do<br />
Instituto envolveram-se nas discussões teóricas,<br />
desencadeando a contratação de engenheiros e de<br />
arquitetos, que compartilhavam ideias semelhantes.<br />
V14 N2<br />
revista de pesquisa em arquitetura e urbanismo instituto de arquitetura e urbanismo iau-usp<br />
31
Produção de cidade como projeto coletivo: a ação habitacional do Instituto dos Industriários (1937-1960)<br />
Aspectos de qualidade construtiva dos empreendimentos,<br />
e da noção de habitação como serviço<br />
público que incluía equipamentos de uso coletivo<br />
e áreas de lazer, e de um padrão mínimo para<br />
a organização da planta das residências, eram<br />
constantes nos debates sobre habitação no período.<br />
O rebatimento dessas questões na ação habitacional<br />
do IAPI de certo foi influência da presença dos<br />
técnicos ligados às discussões impulsionadas pelo<br />
movimento moderno em arquitetura, em especial do<br />
arquiteto Carlos Frederico Ferreira, um dos primeiros<br />
profissionais chamados a trabalhar no Instituto.<br />
A constituição de uma burocracia estatal coincidiu<br />
com o nascimento da ideologia e da prática do<br />
planejamento como instrumentos de política econômica,<br />
de orientação nacional desenvolvimentista<br />
(IANNI, 2009, p. 51). Os tecnocratas formados nas<br />
entranhas do IAPI, e até mesmo anteriormente<br />
por meio das decisões políticas da criação do<br />
próprio Instituto, tiveram autonomia suficiente<br />
para direcionar os investimentos de seus recursos.<br />
Assim, foi possível avançar nas pesquisas tecnológicas<br />
voltadas à construção civil, e realizar projetos que<br />
incorporassem as discussões urbanísticas então<br />
em voga.<br />
Assim, a Divisão de Engenharia – uma repartição do<br />
IAPI – tornou-se pouco a pouco espaço privilegiado<br />
para a convergência de ideias, pois representava<br />
oportunidade profissional para muitos jovens engenheiros<br />
e arquitetos. Reunia em seu quadro<br />
técnicos que defendiam desde o viés construtivo<br />
e identitário dos arquitetos formados na Escola<br />
Nacional de Belas Artes, até a visão mais pragmática<br />
dos engenheiros formados em sua maioria pelas<br />
politécnicas do Rio de Janeiro e de São Paulo.<br />
Destarte, a produção habitacional do IAPI não poderia<br />
ser vinculada imediatamente à arquitetura dos<br />
conjuntos habitacionais promovidos nos Congressos<br />
Internacionais de Arquitetura Moderna, os CIAMs,<br />
como uma visão mais esquemática a partir do campo<br />
disciplinar da arquitetura poderia anunciar. As<br />
conexões com os debates internacionais mostraramse<br />
muito mais complexas, como um resultado do<br />
trânsito de ideias entre continentes, e não como<br />
uma marcha de mão única, de influência da Europa<br />
para o Brasil. Foi necessário portanto considerar:<br />
as especificidades do processo de industrialização<br />
brasileiro; a formação dos profissionais envolvidos; o<br />
eco das teorias cientificistas em território brasileiro;<br />
os referenciais culturais mais abrangentes; os processos<br />
econômicos e políticos que incluíam acertos<br />
diplomáticos do Brasil com a Europa e os EUA.<br />
Diretriz política, reorganização administrativa e a<br />
consolidação de forças culturais transformadoras,<br />
são alguns dos ingredientes que caracterizam a<br />
convergência ideológica que se forjou no Brasil dos<br />
anos 30, da qual a Divisão de Engenharia do IAPI<br />
pode ser tomada como exemplo das experiências das<br />
décadas de 1940 e 1950. Sua produção arquitetônica<br />
e urbanística fez parte de um celeiro de ações que<br />
tornariam possível a construção de Brasília.<br />
Técnica e política na formação da<br />
Divisão de Engenharia do IAPI<br />
O IAPI foi fundado em 1937 e no início de suas<br />
atividades de construção o grupo de profissionais era<br />
reduzido. Assim, ao mesmo tempo em que alguns<br />
projetos eram totalmente elaborados na Divisão de<br />
Engenharia do Instituto, outros eram encomendados<br />
a profissionais externos. Os Irmãos Roberto (Edifício<br />
Valparaíso de 1937 e um projeto não realizado para<br />
o Conjunto Residencial da Penha de 1940, ambos<br />
no Rio de Janeiro, e o Edifício Anchieta de 1941 em<br />
São Paulo), e os arquitetos Paulo Antunes Ribeiro<br />
(Conjunto Residencial da Mooca, 1946 em São Paulo)<br />
e Kneese de Mello (Edifício Japurá de 1945 em São<br />
Paulo) foram alguns dos arquitetos contratados. Tais<br />
procedimentos estavam relacionados aos interesses<br />
do Instituto de participar das transformações da<br />
arquitetura por meio de suas atividades de inversão<br />
imobiliária:<br />
As edificações projetadas devem atender às posturas<br />
municipais em vigor e traduzir, tanto quanto possível,<br />
empreendimentos de destaque no meio local da<br />
construção civil. (PEDRO, 1950:289)<br />
Os “empreendimentos de destaque” deveriam<br />
ser projetados por profissionais reconhecidos. Tais<br />
construções tratavam-se principalmente de edifícios<br />
para renda em locais nobres das capitais, mas no<br />
início das atividades do Instituto, também diziam<br />
respeito aos conjuntos habitacionais.<br />
As conexões entre o IAPI e os arquitetos engajados<br />
no movimento pela renovação da arquitetura nas<br />
décadas de 1930 e 1940 apontam um momento em<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
32
Produção de cidade como projeto coletivo: a ação habitacional do Instituto dos Industriários (1937-1960)<br />
que houve uma convergência entre a recolocação<br />
do papel da cultura por parte dos intelectuais e dos<br />
técnicos, e o projeto político que se consolidou na<br />
década de 1930.<br />
Nesse mesmo momento, a equipe de técnicos<br />
da Divisão de Engenharia do Instituto foi sendo<br />
formada para a realização de outros projetos, como<br />
foi o caso do emblemático Conjunto do Realengo<br />
no subúrbio do Rio de Janeiro. Simultaneamente<br />
também foi se formando a base teórica dessa ação<br />
com a participação direta dos altos dirigentes do<br />
instituto, que tinham livre acesso à cúpula do Estado<br />
Varguista, num claro desdobramento da relação<br />
entre ação técnica e inserção política.<br />
A pesquisa específica sobre o IAPI desvendou<br />
conexões entre os conceitos que permeavam<br />
sua organização interna, sua linha atuária e<br />
seus investimentos imobiliários, com ideias mais<br />
genéricas e abrangentes de projetos específicos<br />
de industrialização para o país.<br />
A circulação de ideias dava-se de diversas formas,<br />
com diversos atores. Pode-se citar como exemplo<br />
a contribuição do engenheiro arquiteto Rubens<br />
Porto (autor de vários escritos sobre a temática<br />
da habitação popular em meios institucionais), e<br />
dos engenheiros Plínio Cantanhede, Paulo Accioly<br />
de Sá e Francisco Batista de Oliveira, que juntos<br />
representaram o Brasil e o Ministério do Trabalho<br />
no I Congresso Panamericano de Vivienda Popular,<br />
que aconteceu em Buenos Aires em 1939. Todos eles<br />
tinham trânsito por uma série de órgãos públicos<br />
e de órgãos de classe, e dialogavam entre si e com<br />
outros profissionais. (PRIMEIRO [...], 1939, p.66-70)<br />
Os escritos de Rubens Porto, reunidos em 1939<br />
no livro O problema das casas operárias, revelam<br />
a mescla de uma série de ideários urbanísticos: os<br />
socialistas utópicos, os engenheiros sanitaristas, o<br />
Movimento Cidade Jardim, as cruzadas católicas,<br />
as unidades de vizinhança e também o movimento<br />
moderno europeu na figura de Le Corbusier. Da<br />
mesma forma, Plinio Cantanhede, que não estava<br />
diretamente ligado às questões habitacionais, mas<br />
era presidente do IAPI citava Lechworth na Inglaterra,<br />
as grandes construções populares nos arredores de<br />
Paris e Roma, as Siedlungen alemãs, e as iniciativas da<br />
Federal Housing Administration dos Estados Unidos<br />
- um político da confiança de Vargas, precisava<br />
manter-se respaldado por conhecimento técnico.<br />
(ARAVECCHIA-BOTAS, 2011, p.148-155).<br />
Cantanhede enfatizava as referências internacionais<br />
para legitimar a iniciativa do Instituto de produzir<br />
habitação, com a ressalva de que não poderiam ser<br />
tomadas em sua integridade, devendo-se atentar<br />
para a necessidade de adaptação às condicionantes<br />
nacionais, sobretudo àquelas de caráter econômico.<br />
O então presidente do IAPI, certamente tomou<br />
contato com as experiências internacionais no<br />
Congresso Panamericano de Vivienda e Francisco<br />
Batista de Oliveira ao voltar do mesmo evento,<br />
publicou vários artigos na revista Urbanismo e Viação<br />
citando casos da Argentina, do Uruguai, do Chile,<br />
do México, da Colômbia e do Peru (O ESTADO [...],<br />
1940, p. 199-202).<br />
Paulo Accioly de Sá e Plínio Cantanhede também<br />
participaram ativamente da Jornada da Habitação<br />
Econômica promovida pelo Instituto de Organização<br />
Racional do Trabalho (IDORT) em 1941, ocasião<br />
em que houve importante divulgação do trabalho<br />
do IAPI, com uma visita ao canteiro de obras do<br />
Realengo, além de uma exposição com projetos e<br />
fotos do andamento da construção. (JORNADA [...],<br />
1941, PP.21-22; ECOS [...], 1941, p. 44).<br />
O trânsito de profissionais e políticos entre instituições<br />
como o Idort e o IAPI revela a ligação estreita entre<br />
as discussões sobre a moradia e as necessidades<br />
de racionalização e padronização que permeavam<br />
o pensamento sobre administração e produção<br />
industrial.<br />
Havia entre eles uma preocupação comum sobre a<br />
impossibilidade de reproduzir no Brasil as condições<br />
técnicas dos países ricos que direcionava para a<br />
formulação de estratégias que combinassem, no<br />
âmbito da construção civil, novos processos técnicos<br />
com os saberes construtivos tradicionais. Experimento<br />
correlato a essa ideia já vinha sendo colocado em<br />
prática no próprio canteiro de obras do IAPI, no<br />
Conjunto Residencial do Realengo, desde o início de<br />
1940. Nesse caso, a inovação tecnológica ficava por<br />
conta da alvenaria de blocos de concreto, que já se<br />
desenvolvia desde o início do século XX na Europa,<br />
mas que, a partir dos EUA, se difundiu para o mundo<br />
todo, por meio da exportação de máquinas para a<br />
produção dos componentes. Para o projeto piloto,<br />
o IAPI importou uma máquina da empresa Besser<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
33
Produção de cidade como projeto coletivo: a ação habitacional do Instituto dos Industriários (1937-1960)<br />
Manufacturing Co., que pouco tempo antes havia<br />
vendido uma similar para a Venezuela. (THE BESSER<br />
[...], 2004). O uso da máquina no Brasil, pelo IAPI,<br />
foi parabenizada pelos fabricantes de máquinas de<br />
blocos de concreto dos EUA. (O PROBLEMA [...],<br />
1943, p.35).<br />
É em meio a esse quadro constituído tanto pelas<br />
dinâmicas próprias do problema habitacional, quanto<br />
por aquelas mais abrangentes das questões políticas<br />
relativas ao processo de industrialização, que se insere<br />
a ação exemplar de Carlos Frederico Ferreira no IAPI.<br />
Sua trajetória complexa permitiu que se inserisse<br />
entre o saber da engenharia e a militância pela nova<br />
linguagem buscada pelos arquitetos vinculados ao<br />
movimento moderno. Primeiro, cursou engenharia<br />
na Escola de Minas de Ouro Preto (1926-1930), e<br />
depois arquitetura na ENBA (1930-1935). Essa dupla<br />
formação explica seu trânsito entre os dois campos -<br />
da engenharia e da arquitetura -, e também elucida<br />
algumas de suas escolhas desde que foi contratado<br />
pelo IAPI para elaborar o projeto arquitetônico e<br />
urbanístico do Conjunto do Realengo em 1939.<br />
Em entrevista a Nabil Bonduki, pouco antes de falecer,<br />
Carlos Frederico Ferreira, relatou que os presidentes<br />
do IAPI, os engenheiros Plínio Cantanhede durante<br />
o Estado Novo e Alim Pedro no Governo Dutra,<br />
tiveram papel decisivo nas decisões acerca da<br />
produção habitacional do Instituto (BONDUKI, 1998,<br />
p.157). Esses “engenheiros políticos” escolhiam<br />
pessoalmente os técnicos a serem contratados<br />
e proporcionavam-lhe relativa autonomia para<br />
elaboração dos projetos. Entretanto, o caso da<br />
importação da máquina de blocos de concreto para<br />
o canteiro de obras do Realengo é exemplar da<br />
relação entre as escolhas de projeto e as dinâmicas<br />
que resultavam da participação dos dirigentes do<br />
IAPI nas esferas de decisão mais estratégicas da<br />
política nacional. Plínio Cantanhede, que estava<br />
na Comissão da Implantação da Cia Siderúrgica<br />
Nacional, tomou contato com a máquina de blocos<br />
de concreto numa das viagens diplomáticas aos EUA<br />
para tratar dos empréstimos para a CSN, e solicitou<br />
a Ferreira que pensasse um projeto incorporando<br />
o uso da máquina.<br />
É nesse mesmo processo, que ocorre a estruturação<br />
da Divisão de Engenharia do IAPI, com a contratação<br />
de profissionais para gerenciamento direto de<br />
projetos e de obras, eliminando em vários casos,<br />
a intermediação dos profissionais liberais e das<br />
construtoras. A contratação de firmas era bastante<br />
criticada por alguns setores internos dos institutos de<br />
previdência, que viam na iniciativa do IAPI de manter<br />
um corpo técnico fixo, um grande exemplo a ser<br />
seguido. É o que fica claro nos dizeres do arquiteto<br />
Moacir Fraga, do Instituto de Aposentadoria e<br />
Pensões dos Trabalhadores em Transportes e Cargas<br />
(IAPETEC), na Revista de Arquitetura em 1942. (A<br />
CONSTRUÇÃO [...], n.55, 1942). Fraga dizia que,<br />
por meio da administração direta dos órgãos de<br />
Estado podia-se relacionar, no processo construtivo,<br />
o conhecimento técnico e a prática. A gerência direta<br />
por parte do instituto ou órgão empreendedor, além<br />
de baratear as construções em relação ao sistema de<br />
empreita, também possibilitaria rapidez na solução<br />
de problemas, já que, os próprios funcionários dos<br />
institutos poderiam tomar decisões, conforme as<br />
exigências imprevistas no canteiro de obras.<br />
Esta orientação no interior do IAPI, a partir da<br />
constituição de um corpo profissional, traduziu-se<br />
numa reinterpretação dos debates sobre a arquitetura<br />
moderna e a habitação. O resultado<br />
seria a transformação da linguagem assumida pela<br />
arquitetura produzida em série pelo Instituto, que<br />
se refletiu na produção dos outros institutos de<br />
previdência.<br />
Mas a diretriz de realizar empreendimentos representativos<br />
do ponto de vista arquitetônico também<br />
demandava a parceria com profissionais que<br />
estivessem engajados com a ideia de criar uma<br />
arquitetura representativa do Estado.<br />
Por outro lado, como já destacado, muitos<br />
dos técnicos da Divisão de Engenharia do IAPI<br />
ingressaram por meio de concurso público, mas<br />
também é certo que, entre os funcionários de<br />
carreira do Instituto, destacam-se os que, de alguma<br />
forma, foram reconhecidos pela participação no<br />
movimento de renovação da arquitetura brasileira. O<br />
desenvolvimento de novas tecnologias construtivas,<br />
ou o envolvimento com a questão habitacional<br />
mesmo fora do IAPI, marcam a trajetória de algumas<br />
figuras marginais à história corrente da arquitetura<br />
brasileira. Com diferentes formações e trajetórias,<br />
o engenheiro Francisco de Paula Dias de Andrade<br />
e o arquiteto Helio Uchôa Cavalcanti, são nomes<br />
representativos daqueles que ligavam o IAPI aos<br />
setores intelectuais, e que estiveram juntos no projeto<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
34
Produção de cidade como projeto coletivo: a ação habitacional do Instituto dos Industriários (1937-1960)<br />
1A tese de livre docência de<br />
Francisco de Paula Dias de<br />
Andrade, intitulada, Organização<br />
do Tempo e do Espaço<br />
em Brasília, foi defendida na<br />
Escola Politécnica da Universidade<br />
de São Paulo, em 1962.<br />
FISCHER, 2005: 346.<br />
2 Na sua origem alemã o<br />
zoneamento fazia parte de<br />
uma complexa estratégia<br />
para melhor distribuir os benefícios<br />
urbanos. Os teóricos<br />
do movimento moderno,<br />
sobretudo Hans Schimidt,<br />
pensam o zoneamento no<br />
âmbito de um sistema legal,<br />
que não se restringe a um<br />
conjunto de normas, mas é<br />
parte constituinte do Estado<br />
na regulação e estruturação<br />
da estabilidade social. Nos<br />
EUA foi transformado em<br />
instrumento eficiente para<br />
garantir a valorização das<br />
propriedades, assegurando<br />
os processos imobiliários já<br />
em curso nas cidades (FELD-<br />
MAN, 2005: 79-82).<br />
3 O escritório do arquiteto<br />
Carlos Maximiliano Fayet<br />
realizou levantamento do<br />
Conjunto Residencial Passo<br />
D’Areia em Porto Alegre, a<br />
serviço da Secretaria do Planejamento<br />
Municipal. Foram<br />
registrados e catalogados<br />
os tipos habitacionais e as<br />
modificações pós-ocupação.<br />
Também foi feita pesquisa<br />
histórica sobre o projeto e<br />
a construção do conjunto,<br />
incluindo entrevista com o<br />
Engenheiro Kruter. O objetivo<br />
do trabalho era embasar as<br />
discussões sobre preservação<br />
do patrimônio construído e<br />
formas de adaptação possíveis.<br />
e no gerenciamento das obras das superquadras<br />
SQS 105 e SQS 305 em Brasília.<br />
Recém-formado engenheiro pela Escola Politécnica<br />
o engenheiro Francisco de Paula Dias de Andrade<br />
ingressou na Delegacia do IAPI em São Paulo em<br />
1938, ano em que assina um artigo intitulado<br />
“Casas Operárias” na Revista Inapiários (ANDRADE,<br />
1938:6-7). Voltando à universidade, diplomou-se<br />
engenheiro-arquiteto em 1951, iniciando carreira<br />
docente em 1959 na mesma Escola Politécnica, como<br />
assistente de Anhaia Mello (FISCHER, 2005:346). De<br />
1956 a 1961 esteve na equipe de gerenciamento<br />
das obras das superquadras do IAPI em Brasília,<br />
cujo trabalho foi tema de sua livre docência 1 como<br />
professor da Politécnica.<br />
Helio Lage Uchôa Cavalcanti formou-se na ENBA<br />
em 1934 e trabalhou como funcionário do IAPI ao<br />
mesmo tempo em que participou de vários projetos<br />
para outras esferas governamentais ou para o<br />
setor privado. O arquiteto, muito próximo a Oscar<br />
Niemeyer colaborou com ele no projeto do Instituto<br />
Técnico da Aeronáutica em São José dos Campos,<br />
do Parque do Ibirapuera em São Paulo e do Hospital<br />
Sul-América no Rio. Na área habitacional concebeu<br />
os projetos do Banco Hipotecário Lar Brasileiro<br />
em Goiânia, de 1952 (CAVALCANTI, 2001: 124).<br />
Depois deste trabalho é que se registra o projeto das<br />
superquadras do IAPI em Brasília, iniciado em 1956,<br />
e cujas características construtivas aproximam-se<br />
bastante da linguagem desenvolvida pelos arquitetos<br />
cariocas a partir da década de 1930.<br />
Mas, além desses nomes, a pesquisa do corpo<br />
técnico do IAPI, com a identificação de dezenas de<br />
engenheiros politécnicos, revelou que entre figuras<br />
representativas da arquitetura moderna brasileira,<br />
como Carmem Portinho, Affonso Eduardo Reidy,<br />
Attílio Corrêa Lima, Francisco Bolonha e mais adiante<br />
Vila Nova Artigas e outros, estiveram dezenas<br />
de anônimos que também contribuíram para a<br />
consolidação de um pensamento brasileiro sobre<br />
a problemática habitacional.<br />
Habitação e cidade como projeto<br />
coletivo: a confluência de trajetórias<br />
e de ideários na produção do IAPI<br />
Sabe-se, que por mais ativo e quantitativamente<br />
significativo o papel desses profissionais, seu<br />
engajamento não foi suficiente para resolver o<br />
problema da falta de moradia. Por outro lado,<br />
as realizações no campo da habitação durante<br />
as décadas de 1940 e 1950 são os resultados<br />
mais representativos da relação entre arquitetura<br />
e urbanismo que os debates do período buscaram<br />
deflagrar. Nos conjuntos habitacionais produzidos<br />
no período pode-se encontrar uma realização prática<br />
das formulações teóricas então feitas em torno da<br />
questão urbanística. Tais realizações não foram<br />
obra apenas dos adeptos do movimento moderno,<br />
mas também dos engenheiros, muitos dos quais,<br />
herdeiros das correntes do urbanismo científico<br />
do século XIX.<br />
O desenvolvimento do urbanismo científico na<br />
Alemanha foi intensamente marcado pela presença<br />
de engenheiros, para os quais era excessiva a<br />
preocupação com os aspectos sanitários e higiênicos.<br />
A questão dos fluxos também era<br />
primordial, refletindo-se em planos em que prevalecia<br />
a visão viária. Internacionalmente essa<br />
experiência foi incorporada como um grande<br />
pacote de instrumentos de controle do uso do solo<br />
dos quais fazia parte o “zoning” (zoneamento)<br />
(SIMÕES Jr, 2008). O zoneamento teve enorme<br />
repercussão inclusive no Brasil, onde será adotado<br />
principalmente a partir de sua reelaboração pelos<br />
americanos 2 .<br />
O ideário “cidade jardim”, elaborado por Ebenezer<br />
Howard na Inglaterra, também encontrou campo<br />
fértil na Alemanha e foi incorporado às formulações<br />
já instituídas, que ligavam as transformações<br />
físicas da cidade com inovações na legislação e na<br />
administração dos municípios.<br />
Pode-se afirmar que, no Brasil no início do século<br />
XX, em meio à profusão de propostas e realizações<br />
que se referenciavam na reforma do Barão de<br />
Haussmann de Paris, é possível identificar ideias<br />
que se aproximavam da urbanística germânica,<br />
ou do ideário “cidade jardim” (SIMÕES Jr, 2008;<br />
ANDRADE, 2009).<br />
O engenheiro Marcos Kruter, responsável pelo<br />
Conjunto Residencial Passo D’Areia, do IAPI, em<br />
Porto Alegre, junto com Edmundo Gardolinski,<br />
funcionário do IAPI, chegou a apontar nominalmente<br />
uma referência do urbanismo alemão. (FAYET &<br />
EQUIPE, 1995:25). 3<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
35
Produção de cidade como projeto coletivo: a ação habitacional do Instituto dos Industriários (1937-1960)<br />
Na perspectiva dos engenheiros a beleza estava<br />
relacionada à adequação da implantação aos terrenos<br />
e ao desenho paisagístico e à arborização, que, por<br />
sua vez, estava ligada à noção de salubridade. A<br />
tais concepções agregava-se o enfoque na eficiência<br />
e na racionalidade econômicas que se refletia na<br />
preocupação com os aspectos técnico-construtivos.<br />
Paralelamente, o movimento moderno em arquitetura,<br />
já bastante abordado pela historiografia<br />
corrente, engrossava o caldo de cultura e formação<br />
técnica, dando origem a um quadro de profissionais,<br />
cujas ideias, o quadro político e econômico gerado<br />
pela Revolução de 1930, ajudou a transformar em<br />
realidade.<br />
A partir do IAPI, esse processo se materializou em<br />
trabalho coletivo tanto no escritório de projetos<br />
quanto no canteiros de obras. O espírito de equipe<br />
que gerou algumas singularidades no processo<br />
de construção dos conjuntos habitacionais do<br />
Instituto fica claro em crônica de Joel Lima 4 , na<br />
Revista Inapiários (a revista do IAPI) que trata do<br />
Conjunto do Realengo no Rio de Janeiro. Ele nomeia<br />
os engenheiros Altino Machado Silva, Sydney de<br />
Barros Barreto, Luiz Metre, Pedro Coelho de Souza,<br />
Hermilo Campelo, Deocleciano Rocha Filho, Marino<br />
Guimarães, responsáveis cada um por uma parte<br />
da obra: produção de blocos de concreto por uma<br />
máquina importada dos EUA e de outras peças prémoldadas,<br />
instalações elétricas e hidráulicas, rede<br />
de água e esgoto, e gerenciamento dos operários.<br />
Por fim, fala de Carlos Frederico Ferreira:<br />
E, a essa altura, seria injustiça clamorosa silenciar o<br />
nome de Carlos Ferreira – esse poeta da arquitetura<br />
e do urbanismo, responsável não só pelo que há<br />
de belo nesta Obra, mas, também, pelo que ainda<br />
vai surgir, dentro de poucos dias, na Vila Operária<br />
dos Industriários. (LIMA, 1943: 12)<br />
Se até meados da década de 1940 esse trabalho<br />
de equipe concorria com as encomendas feitas<br />
a arquitetos de renome, dali em diante os empreendimentos<br />
seriam marcados por maior grau de<br />
reprodutibilidade e pela falta de autoria específica.<br />
Os conjuntos habitacionais nos subúrbios, formados<br />
em sua maioria por blocos de habitação longitudinais<br />
de dois a quatro pavimentos, compostos de apartamentos<br />
de dois e três dormitórios, desenharam<br />
uma parte considerável da paisagem do subúrbio<br />
carioca, além de pontuarem outras capitais e cidades<br />
importantes para o processo de urbanização<br />
brasileiro. Para o grupo que se reuniu no Setor<br />
de Engenharia do IAPI, sob a liderança de Carlos<br />
Frederico Ferreira, o elo entre o saber técnico próprio<br />
da formação dos engenheiros, com a renovação da<br />
linguagem arquitetônica, veicularia novas condições<br />
de urbanidade às moradias populares.<br />
Mesmo que o trabalho de alguns profissionais<br />
mereça algum destaque, é importante identificar o<br />
caráter exemplar de suas trajetórias no âmbito do<br />
grupo da Divisão de Engenharia do IAPI, que levou<br />
a termo um processo coletivo, tanto nos escritórios<br />
de projeto, quanto nos canteiros de obras.<br />
4 Joel Lima foi enviado ao<br />
Distrito de Obras do Realengo<br />
por Plínio Cantanhede, para<br />
trabalhar como auxiliar do<br />
engenheiro Altino Machado<br />
Silva, que era chefe do Distrito,<br />
no início da construção<br />
do conjunto (LIMA, 1943:12).<br />
A aliança entre a capacidade técnica e a inserção<br />
política dos profissionais foi o que possibilitou a<br />
aproximação entre projeto e processo de produção,<br />
permitindo a pesquisa tipológica e a realização dos<br />
primeiros grandes conjuntos habitacionais, que como<br />
já destacado, foram o primeiro campo experimental<br />
da arquitetura e do urbanismo, em escala territorial,<br />
no período que antecedeu Brasília.<br />
Por colocar a economia como condicionante básica<br />
dos projetos, reuniu os requisitos para superar o<br />
universo de exceção ao qual se enquadraram os<br />
esmerados projetos de Afonso Eduardo Reidy –<br />
Pedregulho e Gávea. Partindo-se do pressuposto<br />
de que teoria urbanística e prática política seguem<br />
historicamente apartadas, a intenção dessa reflexão<br />
foi contribuir com a análise pormenorizada e mais<br />
complexa de um período, em que ao menos se esboçou<br />
uma relação mais próxima entre planejamento<br />
territorial e planejamento socioeconômico. A<br />
ação do IAPI considerada tanto por sua dimensão<br />
quantitativa, quanto pelo conceito de habitação<br />
em massa formulado por seus técnicos, foi uma<br />
iniciativa ímpar de habitação pública para qual a<br />
participação dos conhecimentos da engenharia<br />
conferiu contornos mais pragmáticos. Nessa perspectiva,<br />
para o grupo que se reuniu na Divisão de<br />
Engenharia do IAPI, fazer habitação e construir a<br />
cidade não era uma utopia, era uma tarefa bem<br />
real sob sua responsabilidade.<br />
Referências bibliográficas<br />
A CONSTRUÇÃO das moradias proletárias. Revista de<br />
Arquitetura. Rio de Janeiro: n.55, Ano VIII, abr./<br />
mai., 1942.<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
36
Produção de cidade como projeto coletivo: a ação habitacional do Instituto dos Industriários (1937-1960)<br />
Recebido [Out. 01, 2015]<br />
Aprovado [Fev. 26, 2016]<br />
ANDRADE, Carlos Roberto Monteiro de. O ideário cidade<br />
jardim na cultura urbanística paulistana e carioca<br />
na primeira metade do século XX. In: Anais do XIII<br />
Encontro Nacional da ANPUR. Florianópolis: UFSC,<br />
2009. (cd-rom).<br />
ANDRADE, Francisco de Paula Dias de. Casas Operárias.<br />
Revista Inapiários. Rio e Janeiro: IAPI, n.6, abr., 1938.<br />
ARAVECCHIA-BOTAS, Nilce C. Entre o progresso técnico<br />
e a ordem política: arquitetura e urbanismo na ação<br />
habitacional do IAPI. Tese de Doutorado. São Paulo:<br />
FAU USP, 2011.<br />
BONDUKI, Nabil Georges. Origens da habitação social<br />
no Brasil: arquitetura moderna, Lei do Inquilinato e<br />
difusão da casa própria. São Paulo: Estação Liberdade,<br />
1998.<br />
CAVALCANTI, Lauro. Quando o Brasil era Moderno. Rio<br />
de Janeiro: Aeroplano, 2001.<br />
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Inapiários. Rio de Janeiro, IAPI, n.42, out., 1941.<br />
FAYET, Carlos Maximiliano & EQUIPE. Vila do IAPI: patrimônio<br />
cultural da cidade. Porto Alegre: Secretaria<br />
do Planejamento Municipal, 1995.<br />
FISCHER, Silvia. Os arquitetos da Poli: ensino e profi ssão<br />
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JORNADA de habitação econômica. Urbanismo e Viação.<br />
Rio de Janerio, n.17, out., 1941.<br />
LIMA, Joel O. O Realengo que eu vi.... Revista Inapiários.<br />
Rio de Janeiro: IAPI, n.64, ago., 1943. REVISTA<br />
INAPIÁRIOS, n.6, 1938:6-7.<br />
O ESTADO actual da vivenda popular na América. Urbanismo<br />
e Viação. Rio de Janeiro, n.7, jan., 1940.<br />
PEDRO, Alim. O Seguro Social, A Indústria Brasileira,<br />
O Instituto dos Industriários. Relatório-estudo do<br />
presidente do IAPI, período de 1946 a 1951. Rio de<br />
Janeiro: IAPI, 1950.<br />
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Arquitetura e Urbansimo. Nov./Dez., 1939,<br />
p.66-70.<br />
SIMÕES JR., José Geraldo. A urbanística germânica<br />
(1870-1914). Internacionalização de uma prática e<br />
referência para o urbanismo brasileiro. Arquitextos.<br />
Ano 9, Jun. de 2008. http://www.vitruvius.com.br/<br />
revistas/read/arquitextos/09.097/134, acesso em<br />
jun., 2009.<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
37
artigos e ensaios<br />
249 construtores de cidades<br />
Sylvia Ficher<br />
Arquiteta e Urbanista, pós-doutorado em Sociologia pela<br />
‘École des Hautes Etudes en Science Sociales’, Paris, professora<br />
titular da Universidade de Brasília e coordenadora do Grupo de<br />
Pesquisa CNPq Arquitetura e Urbanismo da Região de Brasília,<br />
Campus Universitário Darcy Ribeiro, Brasília, DF, CEP 70910-900,<br />
sficher@unb.br<br />
Resumo<br />
Cidades não se resumem à sua materialidade, ainda que tal materialidade<br />
seja bem mais do que um cenário inerte diante do qual se desenrola o drama<br />
da vida em sociedade. E aqueles envolvidos diretamente na sua concretude<br />
podem ser considerados reais construtores de cidades. Conhecer melhor suas<br />
trajetórias profissionais é ferramenta útil para os estudos urbanos. Aqui é<br />
apresentada uma descrição sumária das atividades de alguns desses construtores<br />
da metrópole paulistana: 120 engenheiros-arquitetos diplomados pela Escola<br />
Politécnica (1899-1954); 90 arquitetos e engenheiros-arquitetos diplomados<br />
pela Escola de Engenharia Mackenzie (1919-46); e 39 arquitetos diplomados<br />
pela Escola de Belas Artes (1929-34).<br />
Palavras-chave: trajetórias profissionais, história urbana, arquitetos paulistas.<br />
E<br />
Like Rome, Nkongsamba was built on seven hills, but there all similarity ended. Set in undulating tropical<br />
rain forest, from the air it resembled nothing so much as… an ochrous tin checker-board, a bilious metallic<br />
sea, the paranoiac vision of a mad town planner. William Boyd, A good man in Africa, 1981<br />
Relief … it’s over. That is the story of the city. The city is no longer. We can leave the theatre now...<br />
Rem Koolhaas, S, M, L, XL, 1995<br />
videntemente, cidades não se resumem à sua<br />
materialidade, às suas ruas, jardins, edificações...,<br />
seus cheios e vazios ou suas permeabilidades e<br />
barreiras, como alguns gostam de dizer. Mesmo<br />
assim, tal materialidade é bem mais do que um<br />
cenário inerte para o desenrolar do drama da vida<br />
em sociedade. Apesar da dilatada permanência, do<br />
caráter duradouro, ela está também em incessante,<br />
inexorável e irrevogável transformação em função<br />
dos infinitos acontecimentos cotidianos da vida<br />
citadina.<br />
Os envolvidos mais diretamente na concretude<br />
desse processo podem ser considerados, de fato,<br />
construtores de cidades. No entanto, as posições<br />
que ocupam e as atividades que exercem variam<br />
grandemente no espaço social, indo da esfera<br />
política, passando pela atuação legislativa e pela<br />
gestão da coisa urbana, até o financiamento de<br />
empreendimentos e a sua realização, independente<br />
do tipo e escala e da qualidade dos resultados.<br />
Conhecer melhor as trajetórias profissionais dos<br />
atores mais dinâmicos na efetivação dessas ações<br />
é ferramenta extremamente útil para os estudos<br />
urbanos. Por meio delas, podemos recompor o<br />
contexto institucional e as relações interpessoais<br />
em momentos de maiores mudanças, assim como<br />
a mais lenta progressão das consequências de<br />
toda ordem induzidas por decisões tomadas. É<br />
evidente o relevo do papel de sanitaristas, urbanistas<br />
e estatísticos, contribuindo com suas reflexões,<br />
V14 N2<br />
revista de pesquisa em arquitetura e urbanismo instituto de arquitetura e urbanismo iau-usp<br />
38
249 construtores de cidades<br />
pesquisas e propostas, mas devem ser lembrados<br />
os quadros técnicos responsáveis pela aplicação<br />
de normas e implementação de determinações<br />
estabelecidas. Contudo, os meios econômicos<br />
disponíveis a cada momento têm tanta – ou talvez<br />
maior – importância, dependendo de financistas,<br />
investidores e empreendedores. Não é menor o<br />
aporte de projetistas e construtores; no extremo<br />
do espectro, deve-se considerar os trabalhadores<br />
que integram a mão-de-obra efetiva, sejam mais<br />
ou menos qualificados.<br />
Todos esses indivíduos formam o substrato técnico que<br />
se faz necessário para aquela dilatada permanência<br />
das cidades e, paradoxalmente, para a sua incessante,<br />
inexorável e irrevogável transformação.<br />
A elaboração de biografias, contudo, não é recurso<br />
exclusivo da história urbana. Muito pelo contrário,<br />
trata-se de tradição com raízes nos primórdios da<br />
disciplina histórica e da documentação que a embasa<br />
já no antigo Egito. Dentre as seleções exemplares,<br />
destacam-se as Vitae comparatae illustrium virorum<br />
Graecorum et Romanorum ou Vidas paralelas,<br />
de Plutarco (ca. d.C. 46 - d.C. 120), e as De vitis<br />
Caesarum ou Vidas dos doze Césares, de Suetônio<br />
(69 d.C. - ca. 141 d.C.). As biografias de santos<br />
alcançaram estima tal a ponto de instituírem uma<br />
categoria à parte, a hagiografia, responsável por<br />
verdadeiros best-sellers desde a baixa Idade Média.<br />
Do século 18 em diante, a biografia se firmou como<br />
literatura de grande sucesso, porém desde sempre<br />
envolvida na bizarra polêmica entre autorizada e nãoautorizada.<br />
Como foi o caso dos escritos deixados<br />
por John Aubrey (1626-1697), por ele intitulados<br />
Schediasmata, ou seja, Abreviações, trazendo relatos<br />
sobre alguns de seus quase-contemporâneos e<br />
contemporâneos de maior nomeada, como o corsário<br />
Sir Walter Raleigh (?-1618), os cientistas<br />
John Dee (1527-1608), Francis Bacon (1561-1626),<br />
Robert Boyle (1627-1691) e Edmund Halley (1656-<br />
1742), e os dramaturgos William Shakespeare<br />
(1564-1616) e Ben Jonson (1572-37). O material<br />
não chegou a ser publicado justamente por ser<br />
considerado inadequado para divulgação enquanto<br />
os retratados estivessem vivos, evitando assim<br />
processos de difamação. Interdição que perdurou a<br />
ponto de uma primeira edição – Letters Written by<br />
Eminent Persons in the Seventeenth and Eighteenth<br />
Centuries – ser de 1813, e ainda parcial...<br />
A história da arte também inclui em suas convenções<br />
as biografias de artistas, entre os quais arquitetos. Os<br />
fragmentos sobre teatrólogos, pintores e escultores<br />
de autoria de Duris de Samos (ca. 350 a.C. - após<br />
201 a.C.) estão entre os exemplos mais antigos<br />
conhecidos. O gênero se vulgarizaria a partir do<br />
século 15, como se constata com as Vitae virorum<br />
illustrium (1549-57), de Paolo Giovio (ca. 1483 -<br />
1552). O modelo definitivo seria estabelecido por Le<br />
vite de’ più eccellenti pittori, scultori, e architettori,<br />
da Cimabue insino a’ tempi nostri (1550 e 1568)<br />
ou, simplesmente, As vidas, de Giorgio Vasari (1511<br />
- 1574). O mais abrangente conjunto de biografias<br />
de artistas encontra-se em The Grove Dictionary of<br />
Art (1996), com 34 volumes, hoje disponível para<br />
assinantes no Oxford Art Online. Aos arquitetos foi<br />
dedicada a Macmillan Encyclopedia of Architects<br />
(1982), organizada por Adolf K. Placzek e contando<br />
com quatro volumes.<br />
Essas coletâneas são constituídas por uma amostragem<br />
marcada por critérios de seleção exclusivistas,<br />
versando quase sempre sobre personalidades de<br />
proeminência política ou cultural, conforme indicam<br />
seus adjetivos mais recorrentes: nobres, ilustres,<br />
excelentes. Uma deliciosa exceção encontra-se na<br />
Historia universal de la infamia (1935), de Jorge Luis<br />
Borges, cujos biografados são todos criminosos.<br />
Hoje, o gênero é aceito como ferramenta historiográfica<br />
e sociológica legitima, sem necessariamente<br />
se restringir a indivíduos de maior notoriedade. Muito<br />
pelo contrário, há um crescente interesse pelas<br />
“histórias de vida”, sem maiores discriminações.<br />
Nem por isso conjuntos de trajetórias deixam de<br />
ser amostragens restritas, findando por obedecer<br />
algum juízo arbitrário e, portanto, controverso e<br />
contestável.<br />
No presente ensaio, a amostragem a seguir apresentada<br />
é duplamente restrita. Ela considera apenas<br />
profissionais diplomados, e estes tão somente<br />
engenheiros-arquitetos e arquitetos diplomados<br />
entre 1899 e 1954 na Escola Politécnica, na Escola<br />
de Engenharia Mackenzie e na Escola de Belas Artes<br />
em São Paulo.<br />
Para descrever suas atividades principais ou de<br />
maior relevo como construtores de cidades, adotouse<br />
uma classificação bastante simplificada, para<br />
não dizer simplória: políticos urbanistas dirigentes<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
39
249 construtores de cidades<br />
de órgão público quadros técnicos professores<br />
proprietários fundiários e/ou imobiliários empresários<br />
da construção dirigentes/administradores de empresa<br />
construtores projetistas e construtores projetistas<br />
industriais outros não determinados<br />
1899-1954: Escola Politécnica de São Paulo<br />
120 engenheiros-arquitetos: 2,1 diplomados por ano<br />
1899<br />
João Moreira Maciel urbanista, construtor<br />
1900<br />
Mauro Alvaro de Souza Camargo quadro técnico<br />
1903<br />
Heribaldo Siciliano empresário da construção, urbanista,<br />
político<br />
Augusto de Toledo projetista e construtor, professor<br />
1905<br />
Alexandre Albuquerque professor, projetista e<br />
construtor, urbanista<br />
Bruno Simões Magro professor, projetista e construtor,<br />
urbanista<br />
Hippolyto Gustavo Pujol Júnior professor, projetista<br />
e construtor<br />
1907<br />
Mario de Salles Souto dirigente/administrador de<br />
empresa<br />
Euclydes Vieira quadro técnico, político<br />
Guilherme Ernesto Winter projetista e construtor,<br />
político<br />
1909<br />
Alberto Monteiro de Carvalho e Silva empresário<br />
da construção<br />
Luiz Alvaro da Silva quadro técnico<br />
Carlos Quirino Simões dirigente de órgão público<br />
Francisco Teixeira da Silva Telles empresário da<br />
construção<br />
1910<br />
Olavo Egydio de Souza Aranha Júnior empresário<br />
da construção, industrial<br />
Domingos Theodoro Gallo quadro técnico<br />
Fructuoso Theodoro Sampaio projetista, urbanista<br />
1913<br />
Luiz Ignacio Romeiro de Anhaia Mello professor,<br />
urbanista, político<br />
1915<br />
Mario Ribeiro Pinto projetista e construtor<br />
1917<br />
Francisco Prestes Maia quadro técnico, professor,<br />
urbanista, político<br />
1921<br />
Amador Cintra do Prado empresário da construção,<br />
político<br />
1922<br />
Luiz Gonzaga Pereira de Almeida projetista e construtor<br />
José Maria da Silva Neves quadro técnico, projetista,<br />
professor<br />
1924<br />
Alberto de Sá Moreira industrial<br />
1925<br />
Raul José Reinaldo Bolliger quadro técnico, construtor<br />
Carlos Alberto Gomes Cardim Filho dirigente de<br />
órgão público, urbanista<br />
1926<br />
Marcial Fleury de Oliveira quadro técnico, empresário<br />
da construção<br />
Ferrucio Julio Pinotti projetista e construtor<br />
1928<br />
Amadeu de Barros Saraiva empresário da construção<br />
1929<br />
Rogério Cezar de Andrade Filho quadro técnico,<br />
dirigente de órgão público, urbanista<br />
José Rangel de Camargo empresário da construção<br />
Ernesto Dias de Castro Filho não determinado<br />
Alfredo Mathias empresário da construção<br />
1931<br />
Archimedes de Barros Pimentel empresário da<br />
construção<br />
1932<br />
Flavio Baptista da Costa empresário da construção,<br />
projetista<br />
Julio Cesar Lacreta quadro técnico, projetista<br />
Heitor Nardon quadro técnico<br />
Carlos da Silva Prado outros (artista)<br />
1933<br />
Carmello Damato quadro técnico<br />
Ernesto Sampaio de Freitas quadro técnico, professor,<br />
empresário da construção<br />
Carlos Brasil Lodi quadro técnico, urbanista<br />
José Benedicto de Mello quadro técnico<br />
Juracy Camará da Silveira quadro técnico, dirigente<br />
de órgão público<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
40
249 construtores de cidades<br />
1934<br />
Ary Alves Delgado não determinado<br />
Camillo Fernandes Dinucci construtor<br />
Erio Flandoli Neto construtor<br />
Affonso Iervolino projetista, professor<br />
Mario Edgard Henrique Pucci quadro técnico, construtor<br />
e projetista<br />
Cyro Marques Simões quadro técnico, construtor<br />
1935<br />
Azelio Capobianco empresário da construção<br />
Romulo Gagliardi quadro técnico<br />
Alfredo Giglio quadro técnico<br />
Carlos Lang quadro técnico<br />
Ícaro de Castro Mello projetista<br />
1936<br />
Zenon Lotufo quadro técnico, professor, projetista<br />
1937<br />
João Batista Vilanova Artigas projetista, professor<br />
Henrique Ernesto Guilherme Bresslau empresário<br />
da construção<br />
Nico Oscar Lino Defilippi projetista<br />
Seraphim Trapé quadro técnico, construtor<br />
1938<br />
Octavio Cavalheiro Alves quadro técnico, construtor<br />
Rubens Gouvêa Carneiro Vianna quadro técnico,<br />
projetista<br />
Vicente Leme Zammataro quadro técnico<br />
1939<br />
Sylvio Ermel projetista<br />
Guido Gazzi quadro técnico<br />
Michel Elias Mahfuz empresário da construção<br />
Leo Ribeiro de Moraes urbanista, político, dirigente<br />
de órgão público<br />
1940<br />
Roberto Cerqueira Cesar projetista, professor,<br />
urbanista, político<br />
Anibal Martins Clemente projetista, urbanista,<br />
dirigente de órgão público, professor<br />
Frederico Rene de Jaegher quadro técnico<br />
José Luiz de Almeida Nogueira Junqueira projetista<br />
e construtor<br />
Ariosto Mila projetista e construtor, professor<br />
Roberto Carlos Milliet projetista<br />
Octavio Guedes Moraes projetista e construtor,<br />
outros (escritor)<br />
1941<br />
Oswaldo Correa Gonçalves quadro técnico, projetista,<br />
professor<br />
1942<br />
João Serpa Albuquerque projetista e construtor<br />
Tude Bastos quadro técnico<br />
Roberto Magno Ribeiro quadro técnico<br />
Arnaldo Azevedo Villares não determinado<br />
1943<br />
Leopoldino Wilson Paganelli quadro técnico, urbanista<br />
1944<br />
Carlos Cascaldi projetista, professor<br />
1945<br />
Miguel Badra Júnior empresário da construção<br />
1947<br />
Gilberto Junqueira Caldas quadro técnico, projetista,<br />
urbanista<br />
Carlos Fernando de Oliveira Caleiro empresário da<br />
construção, dirigente/administrador de empresa<br />
Geraldo Prado Guimarães projetista e construtor,<br />
urbanista<br />
Jarbas Bela Karman projetista e construtor, quadro<br />
técnico, dirigente/administrador de empresa<br />
Jorge de Santa Luzia Salles não determinado<br />
1948<br />
Oswaldo Ribeiro Bueno empresário da construção<br />
Luis Saia urbanista, dirigente de órgão público<br />
1949<br />
Renato de Albuquerque empresário da construção<br />
Elbio Camillo empresário da construção<br />
Elvio Novelleto quadro técnico, empresário da<br />
construção<br />
Waldemar D’Amaro Nunes quadro técnico, projetista<br />
e construtor<br />
David Araujo Benedicto Ottoni projetista, professor<br />
Alvaro Pereira quadro técnico<br />
Carlos Eduardo de Paula Pessôa construtor, Outros<br />
(calculista estrutural), professor<br />
Geraldo Domingues Pinto empresário da construção<br />
Antonio Carlos de Moraes Pitombo quadro técnico,<br />
projetista<br />
Leon Reitzfeld empresário da construção<br />
Evandro Sanches não determinado<br />
Enrique Zegarra Paz Soldan projetista<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
41
249 construtores de cidades<br />
1950<br />
Francisco de Paula Dias de Andrade professor, urbanista<br />
Jorge Rugardo Bercht projetista<br />
Lauro Bastos Birkholz quadro técnico, urbanista,<br />
professor<br />
Ivan do Brasil Silva Caldas empresário da construção<br />
Luiz Contrucci empresário da construção<br />
Aab Ozor de Freitas construtor, outros (fazendeiro)<br />
Antonio Gaido quadro técnico, outro (serralheria)<br />
Israel Galman projetista e construtor<br />
Carmino Antonio Iervolino quadro técnico<br />
Waldemar Scaletsky empresário da construção<br />
Arthur Puiggari Sepe quadro técnico<br />
Olavo Freire de Souza quadro técnico, projetista<br />
e construtor<br />
Leon Zilber construtor, empresário da construção<br />
1951<br />
Alfredo Korbmacher projetista<br />
Carlos González Lack projetista<br />
Diógenes Vieira Negrão quadro técnico, projetista<br />
e construtor<br />
1952<br />
Hugo González Aguilera não determinado<br />
1954<br />
Jamil Girard Jacob quadro técnico<br />
João Baptista Ferreira Pimont projetista<br />
1919-1946: Escola de Engenharia Mackenzie<br />
90 arquitetos e engenheiros-arquitetos, 3,2 diplomados<br />
por ano<br />
1919<br />
Waldemar Kneese Ferreira projetista e construtor,<br />
outro (artista)<br />
1920<br />
Romeu do Amaral projetista e construtor<br />
Antonio Gomes Barreiros não determinado<br />
Caetano Carnicelli construtor<br />
1922<br />
Renato Ribeiro de Aguiar empresário da construção,<br />
outro (fazendeiro)<br />
Antonio Gallo Ferrigno professor, quadro técnico,<br />
construtor<br />
José do Amaral Neddermeyer professor, projetista<br />
e construtor, outro (industrial)<br />
1923<br />
Armênio de Lima Góes quadro técnico<br />
Salomão Rosa projetista e construtor<br />
1924<br />
João dos Santos Filho empresário da construção,<br />
projetista<br />
Francisco de Paula Silveira projetista e construtor<br />
1925<br />
Antonio Cassese projetista e construtor<br />
Guilherme Corazza construtor<br />
Henrique Franzoi construtor<br />
Francisco José Esteves Kosuta empresário da construção,<br />
projetista, professor, urbanista, dirigente/<br />
administrador de empresa<br />
Ítalo Martinelli projetista e construtor<br />
1926<br />
Alexandre Cesar Cococi quadro técnico, projetista,<br />
dirigente/administrador de empresa<br />
Miguel Prota projetista e construtor<br />
José Bastos Silva empresário da construção<br />
1927<br />
Plínio Botelho do Amaral empresário da construção,<br />
dirigente/administrador de empresa<br />
José Dias da Gama projetista e construtor, outro<br />
(perito)<br />
Renato de Guglielmo outro (comerciante)<br />
Joaquim Marques Ladeira quadro técnico<br />
Oswaldo Barreto Robinson outro (especialista em<br />
soldagens)<br />
Francisco Souza Rocha Júnior não determinado<br />
Ruy Fernandes Seixas projetista e construtor, outro<br />
(escritor e jornalista)<br />
Álvaro David do Valle projetista e construtor<br />
1928<br />
Raul Freire de Mattos Barreto empresário da construção<br />
Vicente del Monaco quadro técnico<br />
Luiz del Nero construtor, quadro técnico<br />
Alcides Xande empresário da construção<br />
1929<br />
Max Hans Fortner empresário da construção<br />
Fernando Alberto Gama Rodrigues construtor<br />
Zilda de Almeida Sampaio professora, projetista,<br />
quadro técnico<br />
1930<br />
Armando Ciampolini empresário da construção,<br />
dirigente/administrador de empresa<br />
Antonio Tadeu Giuzio projetista e construtor<br />
Alfredo Cecílio Lopes outro (advogado, político,<br />
professor), dirigente/administrador de empresa<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
42
249 construtores de cidades<br />
Décio da Silva Pacheco projetista e construtor<br />
José Perroni Júnior projetista e construtor, dirigente/<br />
administrador de empresa<br />
1931<br />
Oswaldo Arthur Bratke projetista, construtor, urbanista<br />
Américo Capua empresário da construção, outro<br />
(editor)<br />
Jayme Fonseca Rodrigues projetista<br />
1932<br />
Olívia Barros do Amaral quadro técnico<br />
Carlos Amélio Botti projetista e construtor<br />
Eduardo Kneese de Mello projetista<br />
Vicente Nigro Júnior projetista e construtor<br />
Alberto Schirato projetista e construtor<br />
1933, julho<br />
Ferdinando Felippe projetista e construtor<br />
Octávio Lotufo empresário da construção<br />
Antonio Lucchesi de Luca quadro técnico<br />
Vicente Micelli empresário da construção<br />
Henrique Ephim Mindlin projetista<br />
Augusto Pedalini empresário da construção<br />
Mario Zerbini projetista, quadro técnico<br />
1933, dezembro<br />
Takeshi Suzuki projetista e construtor, professor<br />
1934<br />
Francisco José Dale Caiuby empresário da construção<br />
Walter Saraiva Kneese projetista e construtor, professor<br />
1937<br />
Mauricio dos Santos Cruz projetista e construtor<br />
Manoel Carlos Gomes Soutello projetista e construtor,<br />
professor<br />
1939<br />
Sophie Elma Miller Capps projetista<br />
Galiano Ciampaglia projetista<br />
Miguel Forte projetista, professor, dirigente/administrador<br />
de empresa, outro (designer)<br />
Manoel Amadeu Gomes Soutello projetista e construtor<br />
Igor Sresnewsky projetista, outro (especialista em<br />
acústica)<br />
1940<br />
Francisca Galvão Bueno projetista e construtora<br />
Nelson Pugliesi construtor, quadro técnico<br />
Jacob Mauricio Ruchti projetista, dirigente/administrador<br />
de empresa, outro (designer)<br />
Irene Sapojkin quadro técnico<br />
1941<br />
Francisco Augusto Saraiva Fanuele projetista e<br />
construtor<br />
Maria Ermelinda Hoenen projetista, quadro técnico,<br />
outro (editora)<br />
Domingos Vitório Jannini construtor<br />
Lauro da Costa Lima projetista, empresário da<br />
construção, dirigente/administrador de empresa<br />
João Bernardes Ribeiro projetista e construtor,<br />
outro (editor)<br />
1942<br />
Hugo Edmundo Kuhl empresário da construção,<br />
urbanista<br />
Gustavo Stal Júnior dirigente/administrador de<br />
empresa<br />
1943<br />
Fernando Behn de Aguiar construtor<br />
Mauro Alves dos Santos construtor<br />
1944<br />
João Francisco Portillo Andrade projetista, professor,<br />
dirigente/administrador de empresa<br />
Egberto Ferreira de Arruda Camargo não determinado<br />
Gustavo Ricardo Caron empresário da construção,<br />
professor<br />
Fernando Martins Gomes projetista e construtor,<br />
empresário da construção, professor, outro (inventor,<br />
escritor)<br />
1945<br />
William Hentz Gorham quadro técnico, projetista<br />
e construtor<br />
Oswaldo de Aguiar Pupo quadro técnico<br />
Arnaldo Guimarães Senna quadro técnico, projetista<br />
1946<br />
Plínio Croce projetista, dirigente/administrador de<br />
empresa, outro (designer)<br />
Nelson Carmo Frederico Pedalini quadro técnico,<br />
projetista<br />
Jorge José Proushan empresário da construção<br />
Roberto Tonetti construtor, dirigente/administrador<br />
de empresa<br />
Roger Henri Weiler projetista e construtor<br />
1929-1934: Escola de Belas Artes de São Paulo<br />
39 arquitetos, 9,75 diplomados por ano<br />
1931<br />
Luiz Augusto Bertacchi projetista e construtor,<br />
quadro técnico<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
43
249 construtores de cidades<br />
Recebido [Out. 14, 2015]<br />
Aprovado [Fev. 19, 2016]<br />
Salvador Cantarella projetista e construtor, dirigente/<br />
administrador de empresa<br />
Orlando Danti projetista e construtor<br />
Alexandre Silvio Lucas Evangelista quadro técnico<br />
Benedicto Calixto de Jesus Netto quadro técnico,<br />
projetista<br />
Djalma Lepage quadro técnico, projetista e construtor<br />
Basilio Milano Netto construtor<br />
Gabriel Garcia Moya não determinado<br />
José Peres projetista e construtor<br />
1932<br />
Raphael Barbato projetista João Cacciola quadro<br />
técnico, empresário da construção<br />
Wilson Maia Fina dirigente/administrador de empresa,<br />
urbanista<br />
Giordano Bruno Giacobbe quadro técnico, projetista<br />
e construtor<br />
Pedro de Moura quadro técnico, projetista e construtor<br />
Reynaldo de Paula quadro técnico<br />
Pedro Talarico construtor<br />
Rodolpho Gabriel Tartari construtor<br />
Isaías de Carvalho Whitaker projetista<br />
Miguel Wolf construtor<br />
1933<br />
Laert Battaglini construtor<br />
José Augusto Bellucci projetista e construtor<br />
José de Paula Machado construtor<br />
Guilherme Malfatti projetista e construtor<br />
Içáo Maruno não determinado<br />
Raphael Montefort projetista e construtor<br />
Antonio Garcia Moya projetista e construtor<br />
Guerino Humberto Paciullo professor<br />
Francisca Franco da Rocha outro (crítica de arquitetura)<br />
Vicente Schiezari projetista e construtor<br />
Jairo Alves da Silva projetista e construtor, quadro<br />
técnico<br />
Yolandino Torre projetista<br />
1934<br />
Rugero de Battisti projetista e construtor<br />
Murillo Sampaio Botelho Filho quadro técnico<br />
Luiz Camerlingo construtor<br />
Haroldo Amazonas Monteiro não determinado<br />
Domingos de Rosa projetista e construtor<br />
Lamartine Maia Rosa projetista e construtor<br />
João Carlos Rossi construtor<br />
Constante Costa da Silva não determinado<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
44
artigos e ensaios<br />
O desenho como uma questão<br />
epistemológica: Rui Barbosa e John Ruskin<br />
Claudio Silveira Amaral<br />
Arquiteto e Urbanista, pós-doutorado pela Fundação Casa de Rui<br />
Barbosa, pós-doutorado pela Ruskin Library and Research Centre<br />
da Universidade de Lancaster, professor e pesquisador no Curso de<br />
Pós-Graduação da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação<br />
da UNESP, Av. Eng. Luís Edmundo Carrijo Coube, 14-01, Vargem<br />
Limpa, Bauru, SP, CEP 17033-360, cs.amaral@terra.com.br<br />
Resumo<br />
A intenção deste artigo é estabelecer uma relação entre as propostas da Política<br />
do Ensino do Desenho e da Política de Industrialização, ambas de autoria do<br />
polímata (jurista, político, diplomata, escritor, filólogo, tradutor e orador) Rui<br />
Barbosa (1849-1923) e influenciadas por suas leituras dos escritos assinados<br />
pelo crítico de arte inglês John Ruskin (1819-1900). Para Rui Barbosa, assim<br />
como para John Ruskin o desenho é uma questão epistemológica.<br />
Palavras-chave: ensino, desenho, industrialização.<br />
A<br />
s chamadas Revolução Industrial e Revolução<br />
Francesa alteraram a divisão internacional do trabalho,<br />
a divisão social do trabalho e a divisão do<br />
trabalho em si, como também contribuíram para a<br />
difusão da ideologia do Iluminismo a todos os países.<br />
A proposta de industrialização de Rui Barbosa teria<br />
por objetivo alterar o senso comum de um país onde<br />
o trabalho era visto como algo indigno (realizado<br />
por pobres e escravos), para uma nova cultura social<br />
na qual o trabalho fosse reconhecido como seu<br />
principal valor. Só depois – talvez simultaneamente –<br />
surgiriam no Brasil as unidades fabris. Nesse sentido,<br />
a Educação seria o epicentro dessa transformação<br />
que Rui Barbosa explicitou em seus pareceres sobre<br />
‘Reforma do Ensino Primário’ (BARBOSA, 1942,<br />
1946,1947), ‘Reforma do Ensino Secundário e<br />
Superior’ (BARBOSA, 1941) e, depois, nas ‘Lições<br />
de Coisas’ (BARBOSA, 1950), em sintonia com as<br />
pedagogias dos países industrializados de então.<br />
Rui Barbosa foi influenciado por uma série de<br />
autores cuja afinidade ideológica circunscrevia-se<br />
às categorias maiúsculas do Iluminismo: Lógica,<br />
Razão, Objetividade, Natureza, Ciência, Progresso,<br />
Indústria.<br />
John Ruskin, considerado pela historiografia da<br />
Arquitetura Moderna como um neogótico e adverso<br />
à Revolução Industrial, será abordado aqui como<br />
adepto dos valores do Iluminismo e não como um<br />
medievalista pregador da volta ao sistema feudal de<br />
produção. Rui Barbosa, possivelmente, conheceu as<br />
ideias de Ruskin a partir de suas críticas à Exposição<br />
Universal de Londres de 1851, e do que observou<br />
como ausência de arte nos produtos industriais.<br />
Na industrialização, a questão estética foi, para<br />
Ruskin, não apenas do desenho do produto senão<br />
também – e fundamentalmente – das relações<br />
estabelecidas no processo produtivo. As ideias de<br />
Ruskin têm por base uma filosofia da Natureza cuja<br />
lógica se evidencia no relacionamento da política<br />
da ajuda mútua: cada elemento natural ajuda<br />
o outro para garantir sua existência. Esta seria,<br />
segundo Ruskin, a lógica da Natureza e também<br />
V14 N2<br />
revista de pesquisa em arquitetura e urbanismo instituto de arquitetura e urbanismo iau-usp<br />
45
O desenho como uma questão epistemológica: Rui Barbosa e John Ruskin<br />
sua ética. Ruskin estendeu sua filosofia da Natureza<br />
para as relações sociais e as relações produtivas, o<br />
que levou o arquiteto, designer e empreendedor<br />
Charles Robert Ashbee (1863-1942) a implantar<br />
uma fábrica de propriedade cooperativa com base<br />
nos escritos de Ruskin, bem como nos do designer<br />
têxtil, poeta, novelista, tradutor e militante socialista<br />
William Morris (1834-1896). Nesse contexto, o<br />
ensino do desenho seria o foco central de uma<br />
pedagogia voltada à formação de homens para<br />
o ‘trabalho com prazer’. Trata-se de um conceito<br />
ruskiniano, no qual o homem se encontra por<br />
inteiro, mergulhado em corpo e alma no trabalho:<br />
o trabalhador pensa e faz, sem uma divisão do<br />
trabalho com hierarquia de comando. O ensino do<br />
desenho teria por fim formar homens autônomos;<br />
ao contrário de autômatos, como seriam vistos os<br />
trabalhadores da indústria de então. Rui Barbosa<br />
partiu das críticas à Revolução Industrial, mas não<br />
chegou a definir um modelo ideal de unidade fabril.<br />
Tampouco Ruskin o fez. De fato, Rui Barbosa definiu<br />
um tipo de operário: aquele que pensa e faz da<br />
maneira como recomendaria Ruskin. Nesse sentido,<br />
o ensino do desenho é intrínseco à ‘pedagogia<br />
intuitiva’ (voltada a todos os sentidos do corpo),<br />
em que o aluno parte do concreto (a Natureza)<br />
para o abstrato (os conceitos). Dessa associação<br />
entre diferentes habilidades humanas – mental,<br />
manual e da visão –, em que o desenho exerce<br />
um papel central, surge ‘a mão que pensa’ a partir<br />
da observação da Natureza, no esteio de uma<br />
pedagogia que ensina a ver a lógica da Natureza.<br />
Ora, conceitos como Natureza, Lógica, Razão...,<br />
utilizados por Ruskin e Barbosa, inscrevem-se entre<br />
os valores do Iluminismo, concluindo-se que Rui<br />
Barbosa, assim como Ruskin, referia suas ideias<br />
pela concepção iluminista.<br />
Foi no Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro<br />
(LAO) que Rui Barbosa proferiu a palestra ‘O Desenho<br />
e a Arte Industrial’, ocasião quando explicitou<br />
sua proposta para a industrialização do país. Foi<br />
também no LAO, uma instituição de ensino com<br />
aulas noturnas gratuitas e voltada à população<br />
de trabalhadores, independentemente de credos<br />
religiosos, cor, idade ou sexo, que a pedagogia<br />
intuitiva foi utilizada pela primeira vez – e talvez<br />
a única. O ensino do LAO teria por mérito formar<br />
uma mão de obra qualificada em estética, destinada<br />
a um mercado de trabalho livre, em substituição<br />
à mão de obra escrava. Em outras palavras, Rui<br />
Barbosa propunha um ensino voltado à moderna<br />
sociedade industrial.<br />
Este artigo, portanto, tem como objetivo estabelecer<br />
uma relação entre a proposta de industrialização<br />
de Rui Barbosa e a proposta de<br />
industrialização de John Ruskin, uma vez que<br />
ambas têm em comum a promoção do desenho<br />
como base de fecundação.<br />
O século XIX<br />
A definição deste século impõe-se sobre a base<br />
histórica do Iluminismo, movimento filosófico desenvolvido<br />
na França, Alemanha e Inglaterra do<br />
século XVIII. A partir dos fundamentos iluministas,<br />
o Século XIX caracteriza-se por reconhecer o poder<br />
da Razão enquanto fonte única de entendimento,<br />
explicação e organização do mundo.<br />
[...] Procedente diretamente do racionalismo do<br />
século XVII, tem o clímax alcançado pela Ciência<br />
da Natureza (o Iluminismo vê no conhecimento<br />
da Natureza e no seu domínio eficiente a tarefa<br />
fundamental do homem). Conhecido também<br />
como Ilustração, não nega a história como um<br />
fato real, porém, a considera de um ponto de vista<br />
crítico e julga que o passado não é uma forma<br />
necessária na evolução da humanidade. [...] Na<br />
esfera da ciência e filosofia, pelo conhecimento da<br />
Natureza como meio de chegar ao seu domínio;<br />
na esfera moral e religiosa, pelo esclarescimento<br />
[...] das origens dos dogmas e das leis, como<br />
meio de chegar a uma religião natural igual em<br />
todos os homens, e um deísmo que não nega a<br />
Deus, que o relega à função de criador e primeiro<br />
motor de existência. (PEQUENO DICIONÁRIO DE<br />
FILOSOFIA, 1977; p. 191)<br />
Dessas considerações, o que interessa a este ensaio<br />
são duas certezas – indubitáveis – proclamadas pelos<br />
pensadores do Iluminismo:<br />
(i) A Natureza como origem de tudo e como única<br />
fonte de conhecimentos.<br />
(ii) A necessidade de conhecer as leis da Natureza<br />
para dominá-la.<br />
Tais convicções colocam o homem frente à Natureza<br />
e esta, como modelo de leis que a explicam. Tais<br />
leis, transplantadas para o contexto das relações<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
46
O desenho como uma questão epistemológica: Rui Barbosa e John Ruskin<br />
1 “Havia uma ordem no universo,<br />
mas já não era a ordem<br />
do passado. Havia somente<br />
um Deus, cujo nome era<br />
vapor e que falava com a<br />
voz de Malthus, McCulloch<br />
e de qualquer um que usasse<br />
maquinas.” (HOBSBAWN,<br />
2014, p. 294)<br />
2 “É significativo que os<br />
dois principais centros dessa<br />
ideologia fossem também os<br />
da dupla revolução, a França<br />
e a Inglaterra; embora de<br />
fato as ideias iluministas<br />
ganhassem uma voz corrente<br />
internacional ampla em suas<br />
formulações francesas,<br />
um individualismo secular,<br />
racionalista e progressista<br />
dominava o pensamento<br />
“esclarecido”. Libertar<br />
o individuo das algemas<br />
que o agrilhoavam era o<br />
seu principal objetivo: do<br />
tradicionalismo ignorante<br />
da Idade Média, que ainda<br />
lançava sua sombra pelo<br />
mundo, da superstição das<br />
Igrejas (distintas da religião<br />
‘racional’ ou ‘natural’), da<br />
irracionalidade que dividia os<br />
homens em uma hierarquia<br />
de patentes mais baixas e<br />
mais altas de acordo com<br />
o nascimento ou algum<br />
outro critério irrelevante.<br />
A liberdade, a igualdade e<br />
a fraternidade de todos os<br />
homens era seu slogan. No<br />
devido tempo se tornaria um<br />
slogan da Revolução Fancesa<br />
também.” (HOBSBAWN,<br />
2014, p. 48)<br />
3 “Poucas vezes a incapacidade<br />
dos governos em conter<br />
o curso da historia foi<br />
demonstrada de forma mais<br />
decisiva do que na geração<br />
pós 1815. Evitar uma segunda<br />
Revolução Francesa, ou<br />
ainda uma catástrofe pior de<br />
uma Revolução Europeia. Até<br />
mesmo os britânicos que não<br />
simpatizavam com o absolutismo,<br />
sabiam muito bem que<br />
as reformas não poderiam ser<br />
evitadas e temiam uma nova<br />
expansão franco-jacobina<br />
mais do que qualquer outra<br />
contingência internacional. E,<br />
ainda assim, nunca na historia<br />
da Europa e poucas vezes<br />
em qualquer outro lugar, o<br />
revolucionarismo foi tão endêmico,<br />
tão geral, tão capaz<br />
de se espalhar por propaganda<br />
deliberada como por<br />
contágio espontâneo. [...] A<br />
revolução Espanhola reviveu<br />
o movimento de libertação na<br />
América Latina. Os três grandes<br />
libertadores da América<br />
...continua próxima página...<br />
sociais, conseguem se instituir como instrumento<br />
de conhecimento da realidade e, nela, do homem.<br />
Para o Século XIX, a Natureza, entregue a suas próprias<br />
leis, transforma-se em modelo epistemológico<br />
de análise e conhecimento.<br />
Conforme o historiador britânico Eric Hobsbawm<br />
(1917-), a Revolução Francesa foi a responsável<br />
pela difusão das ideias do Iluminismo mundo afora.<br />
Para Hobsbawm, os anos entre 1789 e 1848<br />
trouxeram a maior transformação na história da<br />
humanidade, a que chamou de ‘dupla revolução’.<br />
A Revolução Industrial modificou aspectos da produção<br />
material, tecnológica, política, e ideológica<br />
de todos os países. Ela alterou a vida do mundo,<br />
ao constituir uma nova divisão internacional do<br />
trabalho, uma nova divisão social do trabalho e<br />
uma nova divisão do trabalho em si. 1<br />
A Revolução Industrial transformou o sistema<br />
de produção material da sociedade, enquanto a<br />
Revolução Francesa tratou de difundir as novas<br />
ideias, características do Iluminismo. 2<br />
Esse contágio de ideias revolucionárias invadiu a<br />
atmosfera econômica e social de todos os países,<br />
exigindo de seus governos adequarem-se aos valores<br />
do Iluminismo. Mesmo que isso fosse apenas uma<br />
farsa, como foi o caso do Brasil. 3<br />
Foi nesse contexto de revoluções que se deu a<br />
independência do Brasil de Portugal. Àquela época,<br />
Portugal já era administrado por uma concepção de<br />
lógica burocrática, própria de um Estado Moderno.<br />
Quando a Família Real portuguesa chegou ao Brasil,<br />
trouxe uma concepção de ordem administrativa<br />
baseada na racionalidade de uma burocracia. Para<br />
o cientista político e historiador brasileiro Murilo de<br />
Carvalho (1939-), essa burocracia era constituída por<br />
uma elite política, com base em uma homogeneidade<br />
ideológica. Diferentemente da homogeneidade de<br />
origem classista, essa tinha por eixo os estudos. Para<br />
participar, ou seja, para ser um funcionário público,<br />
era preciso ter formação universitária. Foi assim<br />
que a Universidade de Coimbra se especializou em<br />
formar burocratas para o Estado português. Com a<br />
Independência do Brasil, a instituição de faculdades<br />
de Direito em Pernambuco e em São Paulo substitui<br />
a ida dos filhos da elite brasileira a Coimbra.<br />
Essa burocracia estruturou-se em uma divisão de<br />
trabalho na forma de um organograma e de um<br />
fluxograma. Interna ao organograma definia-se uma<br />
hierarquia de comando na qual alguns pensam e<br />
decidem e os demais executam.<br />
Associada a essa burocracia, havia uma instância<br />
de representação composta pela Câmara de Deputados,<br />
Senado, um Conselho de Estado e o<br />
Poder Moderador. Dessa forma, apresentava-se<br />
uma concepção de Estado Moderno, ou seja, um<br />
Império Parlamentar. Entretanto, na medida em<br />
que o Poder Moderador (o Imperador) era, em<br />
última instância, quem decidia, a própria estrutura<br />
parlamentar tornava-se uma farsa: ao Imperador<br />
reservava-se o direito de destituir de poderes os<br />
integrantes da estrutura representativa. 4<br />
O Brasil alcançou sua independência, implantou<br />
um Estado Moderno, integrou uma nova posição<br />
na divisão internacional do trabalho. Porém, o<br />
país manteve a antiga divisão social do trabalho<br />
colonial, com base na agro exportação e sustentada<br />
na mão de obra escrava. Sabe-se que a Inglaterra<br />
pressionou o Império Brasileiro para que extinguisse<br />
a escravidão no país, decisão protelada ao máximo<br />
porque a agro exportação com base no trabalho<br />
escravo representava a garantia de maior receita<br />
para o Estado.<br />
Foi neste ambiente iluminista e de revoluções que<br />
viveram Rui Barbosa e John Ruskin. Seus projetos<br />
intelectuais procuraram responder a questões de<br />
seu tempo.<br />
Lourenço Filho atesta que Rui Barbosa foi um dos<br />
primeiros – senão o primeiro – a tentar disciplinar as<br />
questões gerais da educação nacional em seu sentido<br />
teórico-prático. Para tanto, Barbosa pesquisou<br />
vários autores, sendo muito grande o número de<br />
citações nos pareceres de suas Reformas do Ensino.<br />
[...] Vejamos as referências bibliográficas presentes<br />
nos pareceres.<br />
“Quantas e quais são elas? [...] Desde que se<br />
somem, obtém-se o total de 524. No primeiro<br />
parecer, referente ao Ensino Secundário e Superior,<br />
são 154. Remetem a 73 obras. No segundo, mais<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
47
O desenho como uma questão epistemológica: Rui Barbosa e John Ruskin<br />
... continuação da nota 3 ...<br />
espanhola, Simon Bolívar,<br />
San Martin e Bernardo O´Higgins,<br />
estabeleceram a independência<br />
respectivamente<br />
da ‘Grande Colômbia’ (que<br />
incluía as atuais repúblicas<br />
da Colômbia, da Venezuela<br />
e do Equador), da Argentina<br />
(exceto as áreas interioranas<br />
que hoje constituem o Paraguai<br />
e a Bolívia e os pampas<br />
além do rio da Prata, onde os<br />
gaúchos da Banda Oriental –<br />
hoje Uruguai – lutaram contra<br />
argentinos e brasileiros) e<br />
do Chile. Por volta de 1922<br />
a América espanhola estava<br />
livre. Enquanto isso, Iturbide,<br />
o general espanhol enviado<br />
para lutar contra as guerrilhas<br />
camponesas que ainda<br />
resistiam no México, tomou<br />
o partido dos guerrilheiros<br />
sob o impacto da revolução<br />
Espanhola e, em 1821, estabeleceu<br />
a independência<br />
mexicana. Em 1822, o Brasil<br />
separou-se pacificamente de<br />
Portugal sob o comando do<br />
regente deixado pela Família<br />
Real portuguesa em seu retorno<br />
à Europa após o exilio<br />
napoleônico.” (HOBSBAWN,<br />
2014; p. 181)<br />
4 “O monarca constitucional,<br />
além de ser o chefe do<br />
Poder Executivo, tem ademais<br />
o caráter augusto de<br />
defensor da Nação: ele é sua<br />
primeira autoridade vigilante,<br />
guarda dos nossos direitos e<br />
da Constitução. Eis, pois, a<br />
orientação que os conservadores<br />
brasileiros seguiriam<br />
no período: conciliar o governo<br />
forte com as fórmulas<br />
constitucionais e representativas,<br />
garantir sob as formas<br />
oligárquicas uma essência<br />
monárquica. Embora o art. ll<br />
da Carta Imperial declarasse<br />
que tanto o príncipe quanto<br />
a assembleia eram representantes<br />
da soberania nacional,<br />
o art. 98 proclamava a<br />
primazia do primeiro como<br />
o primeiro representante da<br />
Nação, por ela encarregado<br />
de velar incessantemente<br />
pelo equilíbrio dos poderes<br />
políticos. [...] Ou seja, embora<br />
ambos fossem delegados<br />
da nação, a representação<br />
exercida pelo imperador era<br />
anterior e superior àquela<br />
exercida pela assembleia”.<br />
(LYNCH, 2014, p. 50)<br />
5 “In 1849 Ruskin argued,<br />
in the Seven Lamps for the<br />
rejection of styles and the<br />
pursuit of styles: ‘We want<br />
...continua próxima página...<br />
extenso, excedem milhar e meio, por sua vez,<br />
mencionando 451 publicações diferentes. Entendamse,<br />
obras ou conjuntos delas, muitos dos quais<br />
em diversos volumes. Deles, o total ascende a<br />
quase 600, o que vale dizer que Rui se serviu de<br />
uma considerável livraria para a elaboração destes<br />
trabalhos.” (LOURENÇO FILHO, 2001, p. 103)<br />
É praticamente impossível abordar todos os autores<br />
citados por Barbosa. Entretanto, John Ruskin merece<br />
a nossa especial atenção frente a importância que<br />
teve no projeto de Barbosa.<br />
John Ruskin<br />
A principal preocupação de Ruskin encontra-<br />
-se em uma concepção de lógica e de razão na<br />
sustentação da abordagem de assuntos como<br />
arquitetura, pintura, política econômica, religião<br />
e outros (AMARAL, 2011). Diferentemente da<br />
opinião de vários historiadores da arquitetura moderna,<br />
que analisaram a obra ruskiniana sobre<br />
arquitetura de forma isolada, desvinculada dos<br />
demais assuntos, aqui as ideias e opiniões de Ruskin<br />
serão compreendidas sob a visão da estrutura lógica<br />
e da razão com que ele desenvolveu seus textos. O<br />
objetivo de Ruskin não seria constituir uma teoria<br />
da Natureza, da pintura, da política econômica,<br />
ou mesmo da arquitetura, e sim utilizar a mesma<br />
lógica de composição na abordagem de todos<br />
esses assuntos.<br />
O inglês John Ruskin foi um crítico de arte que viveu<br />
no século XIX, na Inglaterra vitoriana. Considerado o<br />
defensor do estilo gótico revival, mais precisamente<br />
o neogótico veneziano, viu-se obrigado, no prefácio<br />
da edição de 1849 de ‘As Sete Lâmpadas da Arquitetura’,<br />
e depois, em novo prefácio à edição de<br />
1855, a desmentir tal preferência. 5 Suas palavras<br />
não pretendiam divulgar um novo estilo e sim uma<br />
nova forma de raciocínio, justamente contrária a<br />
qualquer estilo.<br />
Segundo Elizabeth K. Helsinger (HELSINGER,<br />
1982), George L. Hersey (HERSEY, 1982) e John<br />
Dixon Hunt (HUNT, 1982), a forma de condução<br />
do raciocínio de Ruskin pode ser qualificada<br />
como um ‘pensamento visual, espacial’. Essa<br />
expressão de uma lógica visual é considerada<br />
por esses críticos como oposta à lógica formal:<br />
enquanto (i) a lógica formal prende-se a uma<br />
sequência linear, acompanhada por um tempo<br />
que cresce em argumentos e evolui de um ponto<br />
a outro, (ii) a lógica visual justapõe assuntos,<br />
usa da simultaneidade ao invés da linearidade<br />
no sequenciamento de ideias, trata do tempo<br />
como uma unidade simultânea composta de<br />
presente-passado-futuro, permite-se perder em<br />
divagações quando achar necessário, diverte-se<br />
com as cores e as texturas, com aproximações e<br />
distâncias, associa assuntos nunca antes vinculados<br />
e utiliza-se do recurso da metáfora para valorizar<br />
tais associações.<br />
Entende-se o fato de a obra de Ruskin se preocupar<br />
com o ensino da visão que, para ele, permite a<br />
visualização de uma concepção lógica da Natureza.<br />
Para ele, a leitura será sempre o resultado da<br />
apreensão de uma lógica cuja razão é captada pelo<br />
olhar sensível da primeira impressão.<br />
Para Ruskin, ensinar a desenhar é “ensinar a ver”,<br />
e ensinar a ver, ensinar a ler a lógica da Natureza:<br />
“Lembrem-se não estou aqui para ensiná-los<br />
a desenhar, estou aqui para ensiná-los a ver.”<br />
(HASLAM, 1988)<br />
O desenho ruskiniano se relaciona com a percepção,<br />
a educação, a cultura e as relações sociais no<br />
trabalho. A lógica presente em sua concepção de<br />
razão estrutura todos esses assuntos, permitindo<br />
que se inter-relacionem.<br />
O ensinar a ver ruskiniano contém, sem dúvida,<br />
uma proposta ética, motivada pelo culto ao belo. O<br />
belo é, portanto, o resultado de um relacionamento<br />
entre objetos, sensações e memórias. O belo é<br />
também o resultado de relações sociais, na forma de<br />
organização do trabalho, expressa em uma “política”<br />
da ajuda mútua cuja ética é própria da lógica da<br />
Natureza. Ruskin busca essa ética na paisagem<br />
natural, percebida por ele como bela porque nela<br />
encontra elementos constituintes, dependentes uns<br />
dos outros para viver uma situação de harmonia.<br />
Ruskin pretendia que a ética da Natureza se refletisse<br />
nas relações de produção da sociedade industrial e<br />
seus resultados. Isto seria belo.<br />
A arquitetura, particularmente, apareceu na teoria<br />
ruskiniana como o melhor exemplo dessa lógica:<br />
quando Ruskin visualiza um edifício, enxerga as<br />
relações de trabalho sobre as quais foi construído.<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
48
O desenho como uma questão epistemológica: Rui Barbosa e John Ruskin<br />
... continuação da nota 5 ...<br />
no new style in architecture.<br />
[...] But we want some styles’.<br />
Once a single style had become<br />
universally accepted,<br />
its adaptation would eventually<br />
produce a new style<br />
suitable to a new world. Unfortunately,<br />
however, Ruskin<br />
recommended not one style<br />
but a choice of four: Prisan<br />
romanesque, as in the Baptistry<br />
and Cathedral at Pisa,<br />
Early Gothic of the western<br />
Italian republics, as at Sta.<br />
Croce, Florence; Venetian<br />
Gothic – Sta. Maria dellÓrto,<br />
for example –, and early English<br />
decorated, as the north<br />
transept at Lincoln. (Crook,<br />
1982, p. 69)<br />
6 Frase que influenciou<br />
William Morris a escrever<br />
‘News from Nowhere’, novela<br />
que fala de uma sociedade<br />
utópica na qual a atividade<br />
do trabalho ocorre segundo<br />
o desejo e as particularidades<br />
de cada um. Assim, o resultado<br />
do trabalho é, para Morris,<br />
sempre uma obra de arte,<br />
pois é o resultado de uma<br />
atividade feita com prazer.<br />
(THOMPSON, 1955)<br />
7 [...] Mas somos uma nação<br />
agrícola. E porque não também<br />
uma nação industrial?<br />
Falece-nos o ouro, a prata,<br />
o ferro, o estanho, o bronze,<br />
o mármore, a argila, a madeira,<br />
a borracha, as fibras<br />
têxteis? Seguramente, não.<br />
Unicamente a educação especial,<br />
que nos habilite a não<br />
pagarmos ao estrangeiro o<br />
tributo enorme da mão de<br />
obra, e, sobretudo da mão de<br />
obra artística. Raro é o produto<br />
utilizável, seja de mero<br />
luxo, seja de uso comum,<br />
em que o gosto, a arte, a<br />
beleza não constitua o elemento<br />
incomparavelmente<br />
preponderante do valor. Ora,<br />
como nós não produzimos<br />
senão matéria bruta, o preço<br />
da nossa exportação ficará<br />
sempre imensamente aquém<br />
da importação de arte, a que<br />
nos obrigam as necessidades<br />
da vida civilizada. Nenhum<br />
país, a meu ver, reúne em<br />
si qualidades tão decisivas<br />
para ser fecundamente industrial,<br />
quanto aqueles, como<br />
o nosso, onde uma natureza<br />
assombrosa prodigaliza às<br />
obras do trabalho mecânico e<br />
do trabalho artístico um material<br />
superior, na abundancia<br />
e na qualidade. (BARBOSA,<br />
1949, p. 47)<br />
Ruskin falou de religião para tratar o assunto da<br />
criação arquitetônica. Explicou a existência de um<br />
deus arquiteto, construtor da Natureza graças<br />
a um trabalho criativo e perfeito. Reconheceu a<br />
imperfeição do homem, mas admitiu que este<br />
pudesse ser criativo, embora nunca perfeito como<br />
um criador divino. Por ser imperfeito, o homem<br />
deveria pedir ajuda a outros homens. E só seria<br />
criativo caso se associasse aos demais de forma<br />
cooperativa, no respeito à ética da ajuda mútua.<br />
Uma das frases mais conhecidas do crítico de arte<br />
inglês é a de que “o trabalho deve ser feito com<br />
prazer”. 6 Esta ideia implica uma concepção de<br />
prazer diferente da cultura vitoriana de seu tempo,<br />
quando o prazer significava o divertimento depois<br />
do trabalho e se realizava no ato do consumo.<br />
Para Ruskin, o prazer pertence ao mundo do<br />
trabalho, entendendo-se que o trabalho criativo<br />
traz prazer a quem o executa. Além de o trabalho<br />
ser feito com prazer, ele deve produzir coisas<br />
úteis para a vida.<br />
A teoria da percepção ruskiniana busca enxergar<br />
o belo. Contudo, o belo é fruto de uma lógica,<br />
expressão de uma ética que também se reflete na<br />
arquitetura desde sua produção, sob a forma de<br />
relações no trabalho. A partir dessas associações, a<br />
teoria da arquitetura ruskiniana supera a diferença<br />
entre as artes liberais e as artes mecânicas. Ao<br />
considerar a política da ajuda mútua, Ruskin se<br />
posiciona contrário a qualquer tipo de divisão<br />
no trabalho. Para ele, as relações no trabalho devem<br />
abolir a separação entre quem pensa e quem faz.<br />
O projeto político de Rui Barbosa<br />
Rui Barbosa, formado pela Faculdade de Direito da<br />
Universidade de São Paulo, portanto capacitado a<br />
participar da burocracia Imperial, exerceu as funções<br />
de Deputado durante um período de sua vida, quando<br />
elaborou um projeto para industrializar o Brasil 7 .<br />
Barbosa, embora fosse um político, utilizou a<br />
Educação como o alicerce de sua proposta de<br />
industrialização. Foi a partir de seus pareceres<br />
sobre a ‘Reforma do Ensino Primário’ e a ‘Reforma<br />
do Secundário e Superior’ (CÂMARA DOS DEPU-<br />
TADOS, 1882, 1883) 8 que sua proposta ganhou<br />
corpo.<br />
À época imaginava-se, como primeiro passo a ser<br />
dado para industrializar o país, a implantação de<br />
uma política educacional que valorizasse o trabalho<br />
manual. A pedagogia de Rui Barbosa substituiria a de<br />
influência jesuítica, fundamentada na memorização,<br />
por uma pedagogia qualificada de ‘intuitiva’, baseada<br />
nos sentidos do corpo humano.<br />
Para Barbosa, a educação é uma questão filosófica,<br />
social, política e técnica 9 .<br />
Barbosa acreditou no poder de uma ciência 10<br />
distante das paixões e dos interesses mesquinhos<br />
dos homens, porque tratava de objetividades, de<br />
leis e de razões. 11<br />
Sua pedagogia, primeiramente, reivindicou a união<br />
entre a mente e o corpo. Esta postura anti-cartesiana<br />
– de defesa dessa união – também representou uma<br />
crítica ao ensino de sua época, focado no modelo<br />
da catequese católica, o qual privilegia apenas a<br />
capacidade de memorização da mente.<br />
“Educar a vista, o ouvido, o olfato, habituar os<br />
sentidos a se exercerem naturalmente sem esforço e<br />
com eficácia; ensiná-los a apreenderem os fenômenos<br />
que se passam ao redor de nós, a fixarem na mente<br />
a imagem exata das coisas, a noção precisa dos<br />
fatos, eis a primeira missão da escola, e, entretanto<br />
a mais completamente desprezada na economia<br />
dos processos rudimentares que vigoram em nosso<br />
país.” (BARBOSA, 1942, p. 52)<br />
O aluno, segundo Barbosa, inicia seu aprendizado a<br />
partir das coisas concretas apreendidas na Natureza<br />
para só depois abstraí-las pelo uso das linguagens,<br />
tornando-as representações do real via conceitos.<br />
Do concreto para o abstrato e não do abstrato<br />
para o concreto como era o ensino de então. É<br />
por isso que os sentidos do corpo possuem um<br />
valor primordial para a pedagogia proposta por Rui<br />
Barbosa: no corpo estariam os poros pelos quais a<br />
realidade penetraria o ser. No entanto, existiria um<br />
sentido mais importante que os demais: o sentido do<br />
olhar. Seria através da visão que se estabeleceria o<br />
primeiro contato com o mundo externo a nós, e foi<br />
assim como o método científico se impôs, iniciando<br />
com a observação da Natureza para dela extrair<br />
verdades ou leis. Nessa perspectiva, o ensino teria<br />
por objetivo ensinar a ver. Porém, seria incorreto<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
49
O desenho como uma questão epistemológica: Rui Barbosa e John Ruskin<br />
8 Antes destes pareceres, Rui<br />
Barbosa já havia traduzido<br />
a obra de Norman Alisson<br />
Calkins (CALKINS, 1950)<br />
(LOURENÇO FILHO, 2001;<br />
p. 90).<br />
9 [...] Ora em pedagogia, o<br />
sistema começa por ser uma<br />
filosofia. O intento de intervir<br />
no destino do homem<br />
envolve necessarimente,<br />
uma compreensão do mundo,<br />
uma intuição do valor<br />
das energias do espírito e da<br />
cultura. (LOURENÇO FILHO,<br />
2001, p. 41)<br />
10 “Mas esse viciamento<br />
dos processos praticados no<br />
ensino secundário resulta<br />
inevitavelmente da ausência<br />
do espírito científico, que<br />
só se poderá incutir, restituindo<br />
à ciência o seu lugar<br />
preponderante na educação<br />
das gerações humanas. Todo<br />
o futuro da nossa espécie,<br />
todo o governo das sociedades,<br />
toda a prosperidade<br />
moral e material das nações<br />
dependem da ciência, como<br />
a vida do homem depende<br />
do ar. Ora, a ciência é toda<br />
observação, toda exatidão,<br />
toda verificação experimental.<br />
Perceber os fenômenos,<br />
discernir as relações, comparar<br />
as analogias e as dessemelhanças,<br />
classificar as<br />
realidades, e induzir as leis,<br />
eis a ciência; eis, portanto,<br />
o alvo que a educação deve<br />
ter em mira. Despertar na<br />
inteligência nascente as faculdades<br />
cujo concurso se<br />
requer nesses processos de<br />
descobrir e assimilar a verdade,<br />
é o a que devem tender<br />
os programas e os métodos<br />
de ensino. Ora, os nossos<br />
métodos e os nossos programas<br />
tendem precisamente<br />
ao contrario: a entorpecer<br />
as funções, a atrofiar as faculdades<br />
que habilitam o<br />
homem a penetrar o seio<br />
da natureza real, e perscrutar-lhe<br />
os segredos. Em vez<br />
de educar no estudante os<br />
sentidos, de industriá-lo em<br />
descobrir e pensar, a escola e<br />
o liceu entre nós ocupam-se<br />
exclusivamente em criar e desenvolver<br />
nele os hábitos mecânicos<br />
de decorar, e repetir.<br />
A ciência e o sopro científico<br />
não passam por nós. Penetramos<br />
nas academias com uma<br />
bagagem de estudos inúteis,<br />
sem a mais tênue mescla das<br />
habilitações precisas para<br />
entender a ciência e a vida.”<br />
(BARBOSA, 1941, p. 36)<br />
dizer que a visão é o sentido mais importante,<br />
porquanto a mesma pedagogia mistura-o em<br />
uma condição sinestésica: 12 na medida em que a<br />
mente se associa ao corpo, ou seja, a todos seus<br />
sentidos, observar é ver, e ver, ao se associar à<br />
mente, é pensar.<br />
O pensar, para os intelectuais do século XIX,<br />
obedecia ao método indutivo-dedutivo. O pensar<br />
conforme o método científico opera segundo uma<br />
lógica para se chegar a uma síntese, ou seja, a<br />
uma razão, e, portanto, a uma universalidade.<br />
Sendo a observação o primeiro momento da experiência<br />
científica e também do ensino racional,<br />
a linguagem apropriada para ensinar a ver seria<br />
o desenho. O desenho como resultado de uma<br />
operação sinestésica a ser executada pela mão,<br />
mente e olho. Para Barbosa, o desenho é a<br />
disciplina mais importante do método intuitivo,<br />
pelo que dizia: “Antes de aprender a ler ou a<br />
escrever, o aluno deverá aprender a desenhar”.<br />
“Na progressão natural, portanto, o desenho há<br />
de preceder a escrita. Dominada pelo gênio da<br />
curiosidade, a criança não o é menos pelo gênio<br />
da imitação. Todos os meninos desenham, por um<br />
natural pendor dos mais enérgicos instintos dessa<br />
idade. Modelar formas, e debuxar imagens: eis<br />
a primeira e mais geral expressão da capacidade<br />
criadora nas gerações nascentes. Cabe, pois, ao<br />
desenho, no programa escolar, precedência à escrita,<br />
cujo ensino facilita, e prepara racionalmente,<br />
naturalmente à leitura e a escrita.” (BARBOSA,<br />
1946, p. 64)<br />
O desenho passou a ser uma das grandes preocupações<br />
da pedagogia do século XIX. Pois,<br />
se desenhar é pensar, a função primordial da<br />
educação é ensinar a pensar. 13<br />
Nesse sentido, a palestra intitulada ‘O Desenho<br />
e a Arte Industrial’, pronunciada por Rui Barbosa<br />
no Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro em<br />
1882, é emblemática. Desse discurso surgiu a<br />
proposta de industrialização da nação. O ensino<br />
do desenho intuitivo seria voltado à formação de<br />
operários para substituir a mão de obra escrava no<br />
mercado de trabalho: “O desenho seria a escrita da<br />
indústria” (BARBOSA, 1942, 1946, 1947, p.115).<br />
“O desenho, senhores, unicamente, essa modesta<br />
e amável disciplina, pacificadora, comunicativa e<br />
afetuosa entre todas: o desenho professado às<br />
crianças e aos adultos, desde o Kindergarten até à<br />
universidade, como base obrigatória na educação de<br />
todas as camadas sociais “ (BARBOSA, 1949, p. 240).<br />
Tem-se aqui uma visão crítica de Barbosa em relação<br />
à Revolução Industrial: o operário que se pretende<br />
formar pensa e não apenas obedece; o ensino<br />
forma, não informa, educa homens e não pessoas<br />
dóceis (BARBOSA, 1946, p. 113). Trata-se de formar<br />
pessoas autônomas e não autômatos, como eram<br />
os operários dos países industrializados.<br />
“O primeiro escrito pedagógico [de Rui Barbosa]<br />
dado a público foi um discurso pronunciado no Liceu<br />
de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro, em novembro<br />
de 1882, e logo a seguir impresso. Consiste em<br />
ensaio sobre a importância do desenho no campo<br />
do artesanato e da produção industrial, bem como<br />
da influência geral do ensino artístico na formação<br />
do homem. Tem a feição de um prólogo, ou de<br />
adendo a mais largo estudo, que parece estar<br />
subentendido, embora Rui não lhe faça qualquer<br />
referência expressa. A que mais largo estado teria<br />
a intenção de reportar-se? Seria ao da tradução e<br />
adaptação do guia didático Liçoes de coisas, de<br />
Calkins, que no ano anterior havia preparado, mas<br />
se conservava inédito? Seria o parecer sobre Ensino<br />
Secundário, entregue em abril de 1882 à Comissão<br />
de Instrução Pública da Câmara dos Deputados,<br />
ou, enfim, ao parecer sobre Ensino Primário, nessa<br />
comissão apresentado duas semanas antes de<br />
proferido o discurso? De modo geral, a todos esses<br />
escritos, mas, em especial a este último, seu mais<br />
completo e extenso trabalho pedagógico, e no qual,<br />
nada menos que um décimo de todo o espaço se<br />
consagra à pedagogia do desenho e à influência<br />
educativa e social dessa disciplina.” (LOURENÇO<br />
FILHO, 2001, p. 90)<br />
Barbosa acompanhou as críticas feitas à péssima<br />
qualidade dos produtos industriais, como também<br />
a solução dada pelos governos dos países industrializados<br />
quanto a investir no ensino do<br />
desenho. 14<br />
Provavelmente, foi por intermédio das críticas à<br />
Exposição Mundial de 1851 em Londres que Rui<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
50
O desenho como uma questão epistemológica: Rui Barbosa e John Ruskin<br />
11 “Ora a verdade qual é,<br />
qual é o erro, a respeito de<br />
cada governo, a respeito de<br />
cada instituição existente? O<br />
erro na opinião de uns é a<br />
verdade na de outros; o erro<br />
aos olhos do poder é a verdade<br />
aos da oposição; o erro<br />
ao ver da maioria é a verdade<br />
na convicção dos dissidentes.<br />
Por ventura é sobre uma teoria<br />
céptica que assentamos os<br />
direitos da liberdade? Não;<br />
é sobre uma delimitação de<br />
competência real. Quem será<br />
neste mundo, o definidor da<br />
verdade e do erro? O Estado?...<br />
Secular ou religioso, o<br />
Estado não pode ser o árbitro<br />
da verdade, o qualificador do<br />
erro. Esta dignidade pertence,<br />
pois à ciência, que não<br />
tem organização oficial, cujo<br />
processo é a investigação,<br />
cuja luz o debate, cujo meio<br />
vital a liberdade... este dever<br />
e este direito são fatalmente<br />
limitados pelo seu objeto: a<br />
substituição da ignorância<br />
popular pela instrução popular.”<br />
(BARBOSA, 1946, p. 17)<br />
12 “Simultaneamente com a<br />
ginástica, que deve acompanhar,<br />
desde a escola primária,<br />
a educação em todo o seu<br />
curso, impõe-se à escola a<br />
necessidade de educar as faculdades<br />
de observação que<br />
raiam no espirito da criança<br />
com o primeiro despontar<br />
da inteligência. O menino<br />
é a curiosidade em pessoa.<br />
Pode-se definir a infância<br />
uma humanidade sem experiência,<br />
ávida de conhecer, e<br />
instruir-se... Observando imediatamente<br />
as coisas, exercitando-se<br />
em ver, em discernir<br />
as formas, em avaliar a relatividade,<br />
o timbre, a direção,<br />
a procedência, em apreciar<br />
pelo tato as superfícies, em<br />
diferenciar as sensações do<br />
paladar e do olfato, é que<br />
se ascenderá, se apurará, se<br />
ativará na infância o instinto<br />
da observação, origem de<br />
toda a atividade intelectual e<br />
alimento de todo o amor do<br />
estudo no homem. É pelos<br />
sentidos que o menino tem<br />
a primeira noção metódico,<br />
esse emprego constitui o primeiro<br />
modo de exploração<br />
científica: a observação.”<br />
(BARBOSA 1946, p. 63)<br />
Barbosa conheceu as ideias de John Ruskin sobre<br />
a indústria e o ensino do desenho.<br />
“Araújo Porto Alegre considerava lastimável a<br />
presença do Brasil na Exposição de 1851, e Rui<br />
Barbosa mostrava que a própria participação inglesa<br />
fora desastrosa, seus comentários foram<br />
certamente inspirados em John Ruskin cuja obra<br />
The Stones of Venice cita no mencionado discurso.<br />
Foi Ruskin quem chamou a atenção para a feiúra<br />
dos objetos produzidos na Inglaterra vitoriana, para<br />
a superioridade da produção artesanal, bem como<br />
para a sua visão da arte como necessidade social,<br />
que nenhuma nação poderia desprezar sem colocar<br />
em perigo sua existência intelectual.” (GAMA,<br />
1987, p. 144)<br />
Em sua proposta de ‘Reforma do Ensino Primário’,<br />
Barbosa citou Ruskin para falar da relação Educação/<br />
Natureza, relação esta em sintonia com a metodologia<br />
das ciências que entendia a Natureza possuidora<br />
de uma lógica capaz de ser apreendida pelos sentidos<br />
do corpo para ser reproduzida nas relações sociais<br />
e produtivas da sociedade. 15<br />
O operário que se pretendia formar pelo ensino do<br />
desenho sob a influência da pedagogia intuitiva não<br />
era o trabalhador passivo e treinado para obedecer,<br />
e sim o operário que pensa e toma decisões. Nesse<br />
aspecto, Barbosa se identificou com as ideias de<br />
John Ruskin.<br />
Ruskin foi reconhecidamente um dos críticos<br />
mais ferozes à Exposição de Londres de 1851:<br />
“Faltava arte aos produtos industriais”, dizia ele. No<br />
entanto, sua concepção de arte nunca se restringiu<br />
à melhoria da qualidade do desenho do produto.<br />
A estética ruskiniana deriva de sua concepção de<br />
lógica natural, em que o belo é o resultado de<br />
uma relação estabelecida, acorde a uma política<br />
da ajuda mutua. Um tipo de relacionamento que<br />
Ruskin acreditou representar a lógica da Natureza.<br />
O belo, no produto industrial, derivaria da ética<br />
do trabalho com base na cooperação, mediante a<br />
política da ajuda mútua.<br />
alienante. Para Ruskin, essa seria a tônica do que<br />
chamou ‘produto sem estética’.<br />
Entretanto, a crítica ruskiniana não exige simplesmente<br />
um desenho bem feito e sim outro tipo<br />
de relacionamento na divisão do trabalho fabril,<br />
o mesmo tipo de relação que imaginou existir na<br />
Natureza. Para tanto, ele exigia, também, uma<br />
Educação que levasse em conta o desenvolvimento<br />
do homem como ser pensante e não como ser<br />
alienado, o que o levou a propor o trabalho feito<br />
de forma cooperativa, um trabalho feito com prazer,<br />
no qual o homem está envolvido por inteiro<br />
(mente e corpo). A escola/fábrica/comércio seria<br />
uma ‘cooperativa’, na qual os proprietários seriam<br />
também os operários, administradores e vendedores<br />
de seu produto. Os lucros, como os prejuízos, seriam<br />
socializados entre todos os participantes do processo.<br />
Eliminavam-se os “fantasmas” – quando um obtém<br />
os créditos pelo trabalho do outro –, assim como a<br />
intermediação entre a produção e o consumo – com<br />
a venda do produto no próprio local da produção.<br />
Para Ruskin, ensinar a desenhar é ensinar a ver, e ensinar<br />
a ver é ensinar a ler a lógica da Natureza. Nesse sentido,<br />
o ensino do desenho ruskiniano parte da observação<br />
da Natureza e da busca por uma lógica natural,<br />
resultando em uma livre associação entre elementos<br />
díspares extraída da imaginação do artista. Foi pela<br />
referência à pintura de Joseph Turner (1775-1851) 16<br />
que Ruskin explicou essa sua teoria, mais precisamente<br />
pelos últimos trabalhos do paisagista inglês – parecidos<br />
a borrões coloridos sem um assunto identificável –,<br />
mais bem um todo pictórico composto por formas e<br />
cores-luzes que se entrelaçam, como propõe a teoria<br />
ruskiniana da política da ajuda mutua. Contrário ao<br />
ensino do desenho geométrico, feito com régua e<br />
compasso, o desenho ruskiniano é uma interpretação<br />
da lógica natural pela mão livre do artista.<br />
Rui Barbosa também se posicionou contra o ensino<br />
do desenho geométrico, dispensando as regras da<br />
composição neoclássica. Nesse sentido, Barbosa citou<br />
a técnica do processo “estigmográfico” utilizada<br />
por Friedrich Froebel:<br />
13 “Arnold Guyot, na sua<br />
série de atlas escolares, subordinou<br />
o seu método de<br />
ensino a um princípio constante<br />
e sistemático. Distingue<br />
ele, na evolução intelectual e,<br />
...continua próxima página...<br />
A crítica ruskiniana à exposição londrina teve por<br />
retaguarda sua concepção de estética. Ruskin criticou<br />
a organização do trabalho fabril porque dividia a<br />
produção em etapas especializadas, fazendo do<br />
trabalho um procedimento repetitivo, mecânico e<br />
“Muito cedo se compreendeu nesse país [Àustria]<br />
a esterilidade do ensino do desenho a régua e<br />
compasso. As tentativas para emancipar desse<br />
processo esterilizador a educação da mocidade<br />
principiam no começo deste século [1803], mas<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
51
O desenho como uma questão epistemológica: Rui Barbosa e John Ruskin<br />
... continuação da nota 13 ...<br />
portanto, no estudo de todas<br />
as ciências de observação,<br />
três estados que se sucedem<br />
numa ordem inevitável: o estado<br />
perceptivo, o analítico, o<br />
sintético... O cultivo das ciências<br />
da natureza, encetado<br />
logo aos primeiros passos da<br />
educação elementar, implantou<br />
solidamente no espirito<br />
do aluno o gosto pelos fatos,<br />
o sentimento das relações<br />
de causalidade, a intuição<br />
da lei, que reúne e explica<br />
os fenômenos da criação.”<br />
(BARBOSA, 1946, p. 360)<br />
14 “A exposição de Londres<br />
em 1851 foi o começo da<br />
nova era. Ela fez pela arte,<br />
entre os ingleses, o que Sócrates<br />
fizera pela filosofia,<br />
quando a trouxe dos cumes<br />
aos homens: ensinou ao<br />
povo britânico que a deusa<br />
podia habitar sob o teto de<br />
qualquer família, como num<br />
palácio veneziano. A supremacia<br />
inglesa saiu corrida<br />
do certame internacional. A<br />
sua preponderância política,<br />
a sua soberania monetária, a<br />
enorme potência mecânica<br />
acumulada nas suas fábricas<br />
não a salvaram! O colosso<br />
recebeu a mais severa das<br />
humilhações. A disformidade<br />
do cíclope foi desbaratada<br />
por uma onipotência impalpável:<br />
a do ideal, transmitido<br />
à matéria pela mão hábil do<br />
artista. Esse revés, porém,<br />
foi o começo de uma transfiguração.<br />
Magoada, mas<br />
resoluta, a grande nação<br />
compreendeu a situação<br />
inevitável e resolveu-a. Com<br />
raras exceções, as suas indústrias<br />
tinham-se assinalado por<br />
uma grosseiria rudimentar. O<br />
país inteiro estremeceu; mas<br />
o país estava salvo, como<br />
todos os países onde a capacidade<br />
governa; porque<br />
os homens do Estado inglês<br />
tiveram a fortuna de perceber<br />
a causa, sutil, obscura,<br />
solapada, mas decisiva, desse<br />
desastre. Sabeis o que, na<br />
opinião dos ingleses e do<br />
mundo derrotara a Inglaterra?<br />
Um nada, uma causa<br />
extravagante, frívola, pueril,<br />
aos olhos da gente prática e<br />
sábia como nós: o desleixo<br />
do ensino do desenho. O<br />
governo viu-o; o governo<br />
creu-o; o governo proclamou<br />
-o; o governo estabeleceu<br />
que, para a reabilitação da<br />
potestade ferida de Albion,<br />
só havia um meio: uma reforma<br />
radical do ensino do<br />
...continua próxima página...<br />
aparece em 1846 o processo estigmográfico, aliás, já<br />
muito antes consideravelmente utilizado por Froebel,<br />
entre os jogos infantis, do Kindergarten, recebeu do<br />
Dr. Hillard, em Viena, a sistematização, que hoje é dele<br />
a base mais racional de todo o ensino do desenho...<br />
Todos em suma, hoje em dia, reconhecem que é<br />
necessário assentar um plano metódico para o ensino<br />
do desenho, e esquivar os processos de exercícios<br />
puramente mecânicos.” (BARBOSA, 1946, p. 151)<br />
Rui Barbosa citou vários autores em suas Reformas<br />
do Ensino, mas não se prendeu a qualquer um deles,<br />
apenas utilizou a metodologia científica propagada<br />
por todos. Barbosa inclusive se contrapôs a algumas<br />
conclusões, como por exemplo, a de Huxley ao<br />
afirmar que o homem é derivado do macaco,<br />
ou a de Littré ao dizer que todas as espécies da<br />
Natureza possuem uma mesma origem. Parece uma<br />
contradição supor que Rui Barbosa concordasse<br />
com a metodologia científica, sendo um católico:<br />
“Temos, portanto, que os grandes demolidores dos<br />
livros sagrados confessam esta verdade que nós, os<br />
católicos, recebemos em nossas investigações pela<br />
fé.” (BARBOSA, 1941, p. 311)<br />
O fato de ser católico não desmerece a crença de<br />
Rui Barbosa nas categorias do Iluminismo, senão<br />
o contrário. Provavelmente, ele se incluiu entre os<br />
adeptos da religião “natural” e não da “revelada”,<br />
o que explicaria sua simpatia pela metodologia<br />
científica. A nova mentalidade científica deu inicio<br />
a uma nova compreensão da natureza da religião.<br />
Cada vez mais, os cientistas e os teólogos<br />
passavam a diferenciar dois tipos de religião: a<br />
“natural” e a “revelada” (GRENZ, 2008). A religião<br />
natural implicava a existência de um conjunto de<br />
verdades fundamentais (normalmente, acreditavase<br />
na existência de Deus e em um corpo de leis<br />
morais universalmente aceitas), às quais, presumiase,<br />
todos os seres humanos tinham acesso no<br />
exercício da razão. A religião revelada, por sua<br />
vez, acarretava a existência de um conjunto de<br />
doutrinas especificamente cristãs, derivadas da Bíblia<br />
e ensinadas pela Igreja ao longo do tempo. À medida<br />
que evoluía a Idade da Razão, a religião revelada<br />
era cada vez mais torpedeada e desmistificada<br />
enquanto a religião natural ganhava status de<br />
religião verdadeira. Por fim, a religião natural – ou<br />
religião da razão – substituiu, entre os intelectuais,<br />
o enfoque no dogma e na doutrina característico<br />
da Idade Média e do período da Reforma.<br />
Para Ruskin, a lógica da Natureza criada por Deus<br />
expressa uma racionalidade. John Locke (1632-1704),<br />
filósofo empirista britânico, ajudou a preparar o caminho<br />
para a ascensão da religião natural em detrimento da<br />
revelada. Ele partilhava da tese de que, uma vez despido<br />
de sua roupagem dogmática, “o cristianismo era a<br />
forma mais racional de religião”. Com base na obra<br />
de Locke, os pensadores do Iluminismo construíram<br />
uma alternativa teológica à ortodoxia, que veio a<br />
ser conhecida como Deísmo. Os teólogos deístas<br />
procuravam reduzir a religião a seus elementos básicos,<br />
os quais acreditavam serem universais e racionais.<br />
Essa minimização do corpo doutrinário estava de<br />
acordo com a compreensão deísta da Natureza da<br />
religião. Para seus seguidores, a religião, mais além<br />
de um arcabouço de crenças, constituía um sistema<br />
destinado à estruturação do comportamento ético. A<br />
função primordial da religião, afirmavam, era conceder<br />
uma sanção divina à moralidade.<br />
Rui Barbosa e John Ruskin<br />
Colocando-se frente a frente Rui Barbosa e John<br />
Ruskin, torna-se possível registrar as diferenças que<br />
caracterizam cada um. Barbosa concebia o desenho<br />
como um instrumento de aprender e saber pensar,<br />
porém na perspectiva prática de adequar o Brasil às<br />
exigências da Revolução Industrial. 17<br />
Ao que parece, para Rui Barbosa, sua proposta de<br />
projeto não supunha uma ruptura com a ideologia da<br />
economia agrícola do Império, senão representava a<br />
continuidade de um establishment que não concebia<br />
uma educação libertadora.<br />
Ruskin entendia o desenho visando à atuação<br />
do trabalhador a partir de um projeto coletivo de<br />
construção, contribuindo assim para o desen-volvimento<br />
de uma consciência crítica, juntamente com um maior<br />
domínio de seu oficio. 18 Ele criticou a educação de<br />
sua época, sobretudo a divisão do trabalho fabril,<br />
sugerindo o trabalho cooperativo mediante a política<br />
da ajuda mútua. Pode-se dizer, entretanto, que Ruskin<br />
também foi um reformista enquanto jamais mencionou<br />
qualquer intenção de romper com o modo de produção<br />
capitalista, e sim falou de mudanças internas ao próprio<br />
capitalismo, estimulado pelo desejo de reformá-lo.<br />
Rui Barbosa fez uso de vários conceitos circunscritos às<br />
categorias do Iluminismo – Razão, Natureza, Lógica,<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
52
O desenho como uma questão epistemológica: Rui Barbosa e John Ruskin<br />
... continuação da nota 14 ...<br />
desenho em todas as escolas.<br />
E ali os governos não prometem;<br />
anunciam e executam;<br />
ali não se adia a satisfação<br />
das necessidades públicas;<br />
não se ladeiam as questões;<br />
encaram-se, estudam-se, virilmente.<br />
Já nos fins de 1851<br />
se apontavam as medidas. No<br />
ano seguinte lançaram-se as<br />
primeiras pedras do imenso<br />
monumento de que a escola<br />
de South Kensington, com<br />
seu museu, é o centro, e que<br />
consome à Inlglaterra somas<br />
espantosas. Numa palavra,<br />
esse ensino, que até 1852<br />
não existia naquele país, em<br />
1880 se ministrava nos cursos<br />
superiores desse instituto, a<br />
824 alunos, em 151 escolas<br />
de desenho a 30.239 pessoas,<br />
em 632 classes especiais<br />
a 26.646 discípulos e, em<br />
4.758 escolas primárias a<br />
768.661 crianças.” (BARBO-<br />
SA, 1949, p. 16)<br />
15 “Até bem recentemente,<br />
toda a energia da educação<br />
convergia, de todos os modos<br />
possíveis, para extinguir o<br />
amor da natureza. Toda a instrução<br />
que entre nós se tinha<br />
e havia por essencial, era puramente<br />
verbal, completando-se<br />
pelo conhecimento de<br />
ciências abstratas; ao passo<br />
que qualquer pendor manifestado<br />
pelas crianças para<br />
objetos puramente naturais<br />
sofria violenta repressão, ora<br />
era escrupulosamente circunscrito<br />
às horas de recreio,<br />
tornando-se assim impossível<br />
ao menino estudar afetuosamente<br />
sem quebra dos seus<br />
deveres à obra divina; pelo<br />
que o amor da natureza viera<br />
a constituir peculiarmente<br />
a característica dos vadios<br />
e ociosos. Por honra sua, a<br />
pátria de Ruskin não tardou<br />
em escutar a voz dos altos<br />
espíritos que a chamavam a<br />
reconciliar a educação com<br />
a natureza, e a Inglaterra<br />
emprega hoje heroicos esforços<br />
para levar amplamente<br />
a efeito essa transformação,<br />
a mais profunda, a mais pacífica<br />
e a mais benfazeja de<br />
todas as revoluções sociais;<br />
a renovação da cultura popular<br />
pela arte e pela ciência<br />
inauguradas no ensino desde<br />
a escola.” (BARBOSA, 1946,<br />
p. 254)<br />
16 “J. M. W. Turner contase<br />
entre aqueles artistas<br />
contemplados com um longo<br />
período de atividade.<br />
...continua próxima página...<br />
Ciência... –, extraídos de diferentes autores, embora<br />
não se fixasse em qualquer um deles no que tange à<br />
coerência interna de suas ideias e pensamentos. Barbosa<br />
não os adotou integralmente e sim misturou-os,<br />
indiscriminadamente. De Ruskin, tomou a concepção<br />
de trabalho feito com prazer, a que o indivíduo se<br />
entrega por inteiro (mente e corpo no trabalho), não<br />
levando em conta suas consequências conceituais,<br />
como a política da ajuda mútua.<br />
Barbosa propôs uma reforma no ensino tradicional,<br />
o que, obviamente, implicava um curso de reformas<br />
gradativas. Assim como Ruskin, Barbosa imaginou uma<br />
educação estética pelo ensino do desenho voltado aos<br />
interesses da sociedade industrial. Com o propósito<br />
de colocar o país na esteira da industrialização, Rui<br />
Barbosa entendia como necessária a construção de<br />
uma base educacional, de uma pedagogia fundada<br />
no desenho como instrumento da formação de um<br />
homem autônomo, sujeito de seu pensar e de seu agir,<br />
preparado para as necessidades da produção industrial.<br />
John Ruskin, por sua vez, diante uma Inglaterra já<br />
industrializada, mostrou-se um crítico ao modus<br />
operandi da fábrica. Seu projeto negava as relações<br />
de extrema divisão do trabalho, acreditando ser<br />
possível humanizar o capitalismo a partir de uma<br />
iniciativa de transformação nas relações de trabalho,<br />
desconhecendo serem estas dissociadas do sistema<br />
produtivo dominante.<br />
Em termos de semelhanças, Barbosa e Ruskin são<br />
pensadores do Século XIX, protagonistas do culto<br />
à razão e de seu congênere, o Iluminismo. 19 Ambos<br />
concebiam o desenho como força atuante de<br />
indução do pensar, como instrumento de ascensão<br />
ao conhecimento.<br />
O verbo Pensar é recorrente no discurso dos dois<br />
pensadores, em seu combate a um ensino de apelo à<br />
memória como domínio de conhecimentos. Resistiam<br />
a esse tipo de ensino porque, segundo eles, afastava<br />
o individuo da realidade como objeto de reflexão.<br />
Viam o desenho como uma questão epistemológica.<br />
Outro assim, salvo as diferenças já comentadas, há<br />
algo mais que os acomuna para além de suas teorias<br />
sobre o ensino do desenho: Barbosa e Ruskin viram<br />
seus projetos serem marginalizados pela sociedade<br />
de seu tempo. No caso de Rui, a força de uma<br />
oligarquia poderosa, agarrada a interesses que lhes<br />
asseguravam um lugar de liderança, tanto no Império<br />
como na República, foi a principal responsável pela<br />
tensão política que marginalizou o projeto barbosiano.<br />
“Embora a reforma da instrução proposta por<br />
Rui houvesse causado forte impacto na sociedade<br />
e grande impressão no Imperador D. Pedro II,<br />
pela erudição, pelas opiniões defendidas e pelas<br />
justificativas apresentadas, houve ceticismo quanto<br />
à praticidade de se pôr em uso um sistema<br />
considerado moderno, grandioso, mas voltado<br />
para o estrangeiro, irrealista e inadaptável para o<br />
país. Numa compensação, que talvez não viesse ao<br />
encontro dos seus desejos, por indicação de Lafayette,<br />
recebe do imperador o título de Conselheiro, em<br />
reconhecimento à sua luta em favor da instrução<br />
pública.” (MAGALHÃES, 2003, p. 34)<br />
Já o projeto de Ruskin foi marginalizado em razão<br />
de sua proposta de capitalismo humanizado, de<br />
combate à exploração da força de trabalho. O inglês<br />
também viu suas pretensões serem preteridas pela<br />
incompreensão dos historiadores da Arquitetura<br />
Moderna, que o qualificam de ‘neogótico e adverso<br />
à indústria’.<br />
Considerações Finais<br />
Procurou-se mostrar que os pareceres pela reforma<br />
do Ensino Primário, Secundário e Superior consistiram<br />
na proposta de industrialização de Rui Barbosa, e seu<br />
epicentro, na crença de que a Educação teria o poder<br />
de alterar valores culturais arraigados na tradição<br />
de desprezo ao trabalho manual e supremacia ao<br />
trabalho intelectual.<br />
Acreditava-se que o ensino do desenho seria a disciplina<br />
principal a atender às expectativas de uma pedagogia<br />
intuitiva, que tivesse em conta os sentidos do corpo<br />
humano. Barbosa entendia, também, a inter-relação<br />
entre mente, olho e mão na ação sinestésica para a<br />
produção de tal reciprocidade: ver é pensar, sendo o<br />
desenho a expressão da mão que pensa.<br />
Um desenho entendido como fonte de ideias e de<br />
conhecimentos da Natureza, em uma perspectiva<br />
capaz de caminhar desde a experiência real empírica à<br />
realidade em seu aspecto abstrato, simultaneamente,<br />
como instrumento atuante na capacidade de observação<br />
e criação, pela construção de um homem autônomo.<br />
Por meio do desenho, essa autonomia,<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
53
O desenho como uma questão epistemológica: Rui Barbosa e John Ruskin<br />
... continuação da nota 16 ...<br />
Trabalhou infatigavelmente<br />
durante mais de sessenta<br />
anos: o seu espólio abrange<br />
mais de 19.000 desenhos e<br />
esboços a cores e o leque da<br />
sua produção é amplo. Só a<br />
custo conseguimos identificar<br />
as páginas que saíram da<br />
mão do jovem Turner por<br />
volta de 1790 – os últimos<br />
anos do Rococó –, como o<br />
trabalho do artista que cultivou<br />
a livre urdidura de cores<br />
encontrada nos seus quadros<br />
da década de 40 do século<br />
XIX. Só nos últimos trabalhos<br />
achou um estilo próprio,<br />
uma visão da natureza até aí<br />
impossível. Ainda hoje, as<br />
suas derradeiras obras podem<br />
desencadear no observador<br />
uma sensação de quem contempla<br />
o mundo pela primeira<br />
vez – um mundo de<br />
cor e luz.” (BOCKEMÜHL,<br />
2000, p. 6)<br />
17 “Parodiando o dito de<br />
um antigo general […] esse<br />
estadista exprimia-se assim:<br />
‘Ao meu ver, cada mestre é<br />
um general, um combatente<br />
contra a ignorância e a<br />
superficialidade’. Ora, para<br />
mim tenho a falta de instrução<br />
como a raiz de todos<br />
os males que há na terra;<br />
e não vejo outro meio de<br />
debelá-la senão três coisas:<br />
primeiro, instrução; segundo,<br />
mais intrução; terceiro, muito<br />
mais intrução. A solução do<br />
problema, conseguentemente<br />
é esta: criar a educação<br />
industrial. Mas somos uma<br />
nação agrícola. E, por que<br />
não também uma nação industrial?<br />
Falece-nos o ouro,<br />
a prata, o ferro, o estanho, o<br />
bronze, o mármore, a argila,<br />
a madeira, a borracha, as<br />
fibras têxteis? Seguramente<br />
não. Que é, pois, o que a<br />
educação especial, que nos<br />
habilite a não pagarmos ao<br />
estrangeiro o tributo enorme<br />
da mão de obra, e sobretudo<br />
da mão de obra artística. Raro<br />
é o produto utilizável, seja de<br />
mero luxo, seja de uso comum,<br />
em que o gosto, a arte,<br />
a beleza não constitua o elemento<br />
incomparavelmente<br />
preponderante do valor. Ora,<br />
como nós não produzimos<br />
senão matéria bruta, o preço<br />
da nossa exportação ficará<br />
sempre imensamente aquém<br />
da importação de arte, a que<br />
nos obrigam as necessidades<br />
da vida civilizada. Nenhum<br />
país, a meu ver, reúne em<br />
si qualidades tão decisivas<br />
...continua próxima página...<br />
paulatinamente, induziria o homem ao conhecimento<br />
das leis da razão encontráveis na Natureza, difundida<br />
socialmente como agente de integração do homem<br />
à sua lógica.<br />
No plano da História, esse processo materializava-se<br />
no progresso da Ciência – da tecnologia e da própria<br />
ideologia da Revolução Industrial –, pensada como<br />
a única capaz de afrontar os desafios da evolução<br />
da humanidade.<br />
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V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
54
O desenho como uma questão epistemológica: Rui Barbosa e John Ruskin<br />
... continuação da nota 17...<br />
para ser fecundamente industrial,<br />
quanto aqueles, como<br />
o nosso, onde uma natureza<br />
assombrosa prodigaliza às<br />
obras do trabalho mecânico e<br />
do trabalho artístico um material<br />
superior, na abundância<br />
e na qualidade. Na adiantada<br />
civilização dos nossos tempos,<br />
a indústria é inseparável<br />
da agricultura. Tão intima é a<br />
sua afinidade, tão indissolúvel<br />
o seu consórcio, que escolas<br />
industriais há (na Bavária, por<br />
exemplo), onde o ensino agrícola,<br />
com o cunho peculiar<br />
de arte que lhe cabe, forma<br />
uma seção de estudos, entre<br />
os cursos professados no estabelecimento.<br />
Considerai<br />
os Estados Unidos: segundo<br />
o recenseamento de 1870,<br />
metade da sua população<br />
ocupada ainda se empregava<br />
na agricultura. Cincinati, a<br />
quarta cidade manufatora<br />
da União Americana, tem a<br />
sua sede no centro de uma<br />
imensa região agrícola. Mal<br />
formulada, pois, tem sido até<br />
hoje, a questão, entre nós. Os<br />
seus termos são outros, e não<br />
consistem senão nisto: Como<br />
havemos de extrair o maior<br />
proveito dos nossos recursos<br />
naturais, que, posto variados<br />
e amplos, não passam de<br />
simples bases da riqueza?<br />
De que modo lograremos<br />
consumir em indústrias domésticas<br />
a máxima parte da<br />
matéria prima que o solo nos<br />
fornece, multiplicando-lhe<br />
a valia ao tomar mágico do<br />
gosto e da habilidade técnica?<br />
Enunciado assim, o<br />
problema não tem solução<br />
possível, a não ser a que lhe<br />
dá o Liceu de Artes e Ofícios.<br />
Criar a indústria é organizar<br />
a sua educação. Favorecer a<br />
indústria é preparar a inteligência,<br />
o sentimento e a mão<br />
do industrial para emular, na<br />
superioridade do trabalho,<br />
com a produção similar dos<br />
outros Estados. Cultivada<br />
assim, ela encontra em si própria<br />
os segredo de vencer:<br />
dispensa os obséquios do<br />
sistema protetor; descultivada<br />
como se acha, os privilégios<br />
desse regime, impondo<br />
ao consumo nacional uma<br />
indústria sem arte, registram<br />
o odioso da tirania fiscal com<br />
a influência desastrosa dos<br />
hábitos de grosseria que inoculam<br />
no espírito popular.<br />
... continua ...<br />
Recebido [Set. 08, 2016]<br />
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1856, vol. 4.<br />
________. Modern Painters. Londres: Smith, Elder & Co.,<br />
1860, vol.5.<br />
________________________<br />
...continuação da nota 17...<br />
No dia em que o desenho e a modelação começarem a fazer<br />
parte obrigatória do plano de estudos na vida do ensino nacional,<br />
datarão o começo da história da indústria e da arte no Brasil. Se a<br />
regra da política entre nós não fosse cuidar, por uma preferência<br />
imemorial, do que menos importa ao país, essa data não estaria<br />
longe. Semear o desenho imperativamente nas escolas primárias,<br />
abrir-lhe escolas especiais, fundar para os operários aulas noturnas<br />
desse gênero, assegurar-lhe vasto espaço no programa das escolas<br />
normais, reconhecer ao seu professorado a dignindade que lhe<br />
pertence, no mais alto grau de escala docente, par a par com o<br />
magistério da ciência e das letras, reunir toda essa organização<br />
num corpo coeso, fecundo, harmônico, mediante a institução de<br />
uma escola superior da arte aplicada que nada tem, nem até hoje<br />
teve em parte nenhuma, nem jamais poderá ter, com academias<br />
de Belas-Artes, eis o roteiro dessa conquista, a que estão ligados<br />
os destinos da pátria. Não é uma aspiração do futuro; é uma<br />
exigência da atualidade mais atual perfeitamente realizável, mas<br />
urgentemente instante. Só o não compreenderão os incapazes<br />
da educação popular.” (BARBOSA, 1949, p. 50)<br />
18 “[...] Nós discordamos da denominação de perfeição atribuída<br />
ao sistema de divisão de trabalho da civilização moderna. Na verdade<br />
não é o trabalho que foi dividio, mas sim o homem. O homem<br />
foi transformado em fragmentos de homem. [...] Poderiam me<br />
RUSKIN, J. A Joy for Ever. Londres: Routledge Thoemmes<br />
Press, 1994.<br />
________. Time and Tide. Londres: Routledge Thoemmes<br />
Press, 1994.<br />
________. The Crown of Wild Olive. Londres: Routledge<br />
Thoemmes Press, 1994.<br />
________. Into this Last. Londres: Routledge Thoemmes<br />
Press, 1994.<br />
________. Lectures on Architecture and Painting. Londres:<br />
Smith, Elder & Co., 1854.<br />
SPENCER, H. Essays on Education. London: J. M. Dent &<br />
Sons Ltd., 1963.<br />
SPENCER, H. The Evolution of Society. Chicago: The University<br />
of Chicago Press, 1967. p. 5<br />
SQUEFF, L. C. O Brasil nas letras de um pintor: Manuel de<br />
Araújo Porto Alegre. Tese (Mestrado), Faculdade de<br />
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade<br />
de São Paulo, São Paulo. 2000, p. 167.<br />
THOMPSON, E. P. William Morris Romantic to Revolutionary.<br />
Londres: Lawrence & Wishart ttd. 1955. p. 802<br />
VILCHES, G.; COZZI, V. La Educación en Pestalozzi y Froebel.<br />
Buenos Aires: Editorial Hemul, 1966.<br />
WEBB, B. Preface. In: SPENCER, H. The Evolution of Society.<br />
Chicago: The University of Chicago Press, 1967. p. XVi<br />
WILDMAN, S. Stephen Wildman: depoimento (julho de<br />
2004). Entrevistador: AMARAL, C. S. Lancaster: Lancaster<br />
University, Ruskin Library and Research Centre, 2004.<br />
Entrevista concedida ao projeto de doutorado ‘John<br />
Ruskin e o desenho no Brasil’ em curso na Faculdade de<br />
Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.<br />
perguntar, como uma produção em larga escala pode ocorrer sem<br />
o sistema de divisão do trabalho? Eu proponho três princípios para<br />
que o trabalho humano seja um trabalho digno: 1) Toda produção<br />
tem de ser criativa. A invenção deve ter um lugar no processo.<br />
2) Nunca definir o produto final antes de começar o processo de<br />
produção. Deverá existir a possibilidade de mudanças durante o<br />
processo produtivo. 3) Nunca encoraje a imitação para o desenho<br />
do produto.” (Ruskin, J. The seven lamps of architecture; p.164)<br />
19 “É significativo que os dois principais centros dessa ideologia<br />
fossem também os da dupla revolução, a França e a Inglaterra;<br />
embora de fato as ideias iluministas ganhassem uma voz corrente<br />
internacional mais ampla em suas formulações francesas (até<br />
mesmo quando fossem simplesmente versões galicistas de<br />
formulações britânicas). Um individualimo secular, racionalista<br />
e progressita dominava o pensamento esclarecido. Libertar o<br />
indivíduo das algemas que o agrilhoavam era o principal objetivo<br />
do tradicionalismo ignorante da Idade Média, que ainda lançava<br />
sua sombra pelo mundo, da irracionalidade que dividia os homens<br />
em uma hierarquia de patentes mais baixas e mais altas de acordo<br />
com o nascimento ou algum outro critério irrelevante. A liberdade,<br />
a igualdade, e, em seguida, a fraternidade de todos os homens<br />
eram seus slogans. No devido tempo se tornariam os slogans da<br />
Revolução Francesa.” (HOBSBAWM, 2014, p. 48)<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
55
artigos e ensaios<br />
A pesquisa qualitativa fenomenológica:<br />
olhos para ver a criatividade cotidiana<br />
Hulda Erna Wehmann<br />
Arquiteta e Urbanista, doutoranda em Arquitetura e Paisagismo<br />
pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de<br />
São Paulo, R. do Lago 876, Butantã, São Paulo, SP, CEP 03178-200,<br />
(11) 3091-4795, wehmann.hulda@gmail.com<br />
Resumo<br />
Entender a paisagem como a apreensão sensível do espaço implica uma revisão<br />
de metodologias de trabalho: como indagar sobre essas percepções, e a quem?<br />
Como trabalhar imaginários diversos para espaços sempre em transformação?<br />
São estas as questões que estruturam este texto, sobre as possibilidades trazidas<br />
pela pesquisa qualitativa de inspiração fenomenológica para o tema. A partir<br />
de uma aproximação inicial ao campo, investiga-se as contribuições trazidas<br />
pelo campo às inquietações teóricas iniciais. Essa sondagem realizou-se entre<br />
outubro de 2015 e janeiro de 2016, e incluiu 14 entrevistas em profundidade<br />
nas Comunidades do Lagamar e do Serviluz, em Fortaleza-CE.<br />
Palavras-chave: paisagem cotidiana, pesquisa qualitativa, habitação.<br />
Q<br />
uais contribuições poderia uma pesquisa qualitativa<br />
trazer para projetos de espaços livres em<br />
espaços habitacionais? De que forma informações<br />
aprofundadas de percepções individuais podem<br />
auxiliar projetos realizados para usuários desconhecidos?<br />
O objetivo do presente artigo é alinhavar<br />
proposições teóricas a resultados de uma<br />
primeira sondagem, a fim de entender possíveis<br />
aportes ofertados pela metodologia qualitativa<br />
fenomenológica para o tema.<br />
Um primeiro aspecto a ser definido é a justificativa<br />
para inserir tais percepções como dados de projeto de<br />
espaços cujo destinatário final é anônimo. Se o projeto<br />
se destina a espaços coletivos, por que não seguir<br />
a formulação generalista do usuário padrão, com<br />
suas necessidades universais? Como subjetividades<br />
individuais poderiam representar acréscimos qualitativos<br />
para tal tipo de projeto? Em parte, esta<br />
resposta já é dada nos capítulos introdutórios deste<br />
livro: a unicidade e a irrepetibilidade do homem<br />
não se refere à completa singularidade de cada<br />
indivíduo. Inseridos dentro de integrações nas quais<br />
se formam e assimilam valores e comportamentos,<br />
o homem é, simultaneamente, ser particular e ser<br />
genérico (Heller, 1970, p.34)<br />
A isto, se soma o entendimento de que a cidade<br />
é uma construção realizada ao longo do tempo,<br />
tanto em seu aspecto físico quanto simbólico. O<br />
imaginário urbano, as formas de habitar um espaço<br />
são estruturados pela base física de suporte, ao<br />
mesmo tempo que a modelam pelas ações de seus<br />
habitantes. Um projeto, assim, não se dá sobre tabula<br />
rasa, mas fundamenta-se em heranças espaciais,<br />
especialmente as relações que se dão sobre e com<br />
o espaço.<br />
Essa compreensão da cidade como produção<br />
coletiva a aproxima da noção de paisagem no<br />
V14 N2<br />
revista de pesquisa em arquitetura e urbanismo instituto de arquitetura e urbanismo iau-usp<br />
56
A pesquisa qualitativa fenomenológica: olhos para ver a criatividade cotidiana<br />
1 Augustin Berque defende<br />
que a noção de sociedades<br />
paisageiras, relacionadas intimamente<br />
às paisagens que<br />
produzem, modelando-as<br />
a partir do labor continuo<br />
de gerações que sucedem e<br />
depositam sobre a estrutura<br />
do solo, objetivo e físico, as<br />
camadas de significado que<br />
constituem a paisagem. (SER-<br />
RÂO, 2013).<br />
2 Designa-se por cotidiano “o<br />
conjunto de atividades naturais<br />
e rotineiras reguladas<br />
por costumes e desenvolvidas<br />
num espaço social definido e<br />
próximo” (Carvalho; Netto,<br />
2011:77), está presente em<br />
todas as esferas da vida do<br />
indivíduo.<br />
3 O uso do termo experienciadores,<br />
aqui, se dá substituindo<br />
o tradicional usuário.<br />
A escolha do termo indica<br />
uma crítica a uma visão funcionalista<br />
do planejamento<br />
urbano, que subdivide os<br />
cidadãos segundo classes<br />
com necessidades e papéis<br />
específicos, e que lhe nega a<br />
co-criação de seu espaço de<br />
vida. Assim, para expressar<br />
seu papel de agente participante<br />
da própria paisagem,<br />
adotamos o termo experienciadores,<br />
derivado da noção<br />
de experiência, percepções<br />
mescladas das sensações da<br />
vivência e das imprensões da<br />
memória individual e coletiva,<br />
conforme compreensão de<br />
Angelo Serpa (2007) sobre<br />
o pensamento de Walter<br />
Benjamin.<br />
4 A própria cidade é uma<br />
obra, e esta característica<br />
contrasta com a orientação<br />
irreversível na direção do dinheiro,<br />
na direção do comércio,<br />
na direção das trocas, na<br />
direção dos produtos. Com<br />
efeito, a obra é valor de uso<br />
e o produto é valor de troca.<br />
O uso principal da cidade,<br />
isto é, das ruas e das praças,<br />
dos edifícios e dos monumentos,<br />
é a festa (que consome<br />
improdutivamente, sem<br />
nenhuma outra vantagem<br />
além do prazer e do prestígio,<br />
enormes riquezas em objetos<br />
e dinheiro). Lefebvre, 1991<br />
sentido entendido por Augustin Berque como<br />
produção paisageira 1 , ambas diretamente relacionadas<br />
às ações cotidianas de coletivos<br />
que habitam o lugar. Desconsiderar a pluralidade<br />
atuando sobre a cidade é produzir espaços defasados<br />
em seu nascimento. As recentes discussões sobre<br />
a aplicação do conceito de sustentabilidade ao<br />
urbano não podem ignorar o papel significativo dos<br />
espaços livres para além do funcionalismo de espaços<br />
de esporte e lazer. Então, pactuar as propostas<br />
técnicas e os usos efetivamente realizados, evitando<br />
as dissonâncias tão recorrentes, que reduzem a<br />
efetivamente os resultados pretendidos com a própria<br />
intervenção? Inserir a subjetividade criativa dos<br />
cidadãos nas intervenções é, na verdade, racionalizar<br />
os projetos.<br />
A necessidade de estabelecer recortes em uma<br />
temática tão vasta levou à escolha dos espaços do<br />
cotidiano 2 como objeto de estudo. Dentre estes, os<br />
espaços livres em áreas residenciais destacam-se,<br />
tanto por seu significado, quanto por seu quase<br />
abandono por uma lógica de produção urbana de<br />
caráter mercadológico. Por uma razão muito simples:<br />
apenas os espaços excepcionais – em duplo sentido:<br />
por suas características e pela restrição de acesso - são<br />
passíveis de se transformar em produtos vendáveis.<br />
O espaço vivido, cotidiano, banal, o espaço opaco<br />
de Milton Santos, não possui interesse para a cidade<br />
do espetáculo.<br />
As possibilidades de uma investigação aprofundada<br />
desse tema, portanto, exige a revisão do entendimento<br />
do papel dos espaços livres. Transformá-los<br />
de espaços de exceção a elementos integrantes do<br />
cotidiano, de espaços de fruição passiva a locus<br />
da ação criativa dos experienciadores 3 , do espaço<br />
cenográfico do visível para o espaço da corporeidade,<br />
do acessível. É a partir desta percepção que se<br />
percebe a necessidade de planejar como pensar a<br />
própria pluralidade do real e dar efetividade a este<br />
pensamento do plural (CERTEAU, 1998, p.172).<br />
É na aceitação das lógicas plurais expressas no<br />
cotidiano que o processo de planejamento poderá<br />
evoluir de estruturas natimortas a espaços plenos<br />
de e para vida.<br />
A resposta à pergunta sobre como criar espaços<br />
públicos satisfatórios é uma nova questão: como<br />
não propor um produto acabado (aliás, uma utopia<br />
dos arquitetos), mas permitir ao projeto ser aquilo<br />
que realmente é, uma etapa numa obra sempre<br />
inacabada que é a cidade 4 (Lefebvre, 1991)? O<br />
desafio é então como trabalhar com múltiplas<br />
percepções, permitir que lógicas diversas convivam<br />
e se influenciem concomitantemente, recriando a<br />
partir de vocabulários e sintaxes propostos uma<br />
nova poesia urbana.<br />
A pesquisa em andamento encontra-se em fase<br />
inicial. Para entender as possíveis contribuições<br />
da pesquisa qualitativa fenomenológica, realizouse<br />
um experimento de sondagem em campo, o<br />
qual será apresentado neste capítulo. Para um<br />
melhor entendimento, uma breve introdução das<br />
questões que orientaram o objetivo da pesquisa<br />
será apresentada. Em seguida, alguns resultados<br />
preliminares e ao final, reflexões necessárias sobre o<br />
processo de investigação, problemáticas enfrentadas<br />
e aportes que se anunciam.<br />
Espaço cotidiano e sustentabilidade<br />
urbana<br />
O primeiro passo no caminho do entendimento<br />
é a melhor definição das questões investigadas.<br />
Para isto, é expandir a noção de ‘projeto bemsucedido’,<br />
denominado na atualidade pelo cognome<br />
de sustentável. O termo sustentabilidade tem se<br />
subdivido em diversas adjetivações. Atualmente,<br />
aceita-se que sustentabilidade no meio urbano<br />
implica num arranjo territorial dos assentamentos<br />
urbanos que satisfaria seus habitantes como “seres<br />
culturais” (reis, 2002), ou seja, não somente suas<br />
necessidades objetivas (como acesso a bens e<br />
serviços urbanos ou possibilidades de participação<br />
em processos de decisão) seriam contempladas,<br />
mas igualmente necessidades subjetivas (como<br />
a satisfação do sentimento de pertencimento<br />
ao lugar e a continuidade cultural) devem ser<br />
atendidas (ACSELRAD, 1999, PLESSIS, 2001). Aliás,<br />
é importante salientar, a sondagem realizada deixa<br />
entrever o próprio desejo dos entrevistados de<br />
reconhecimento como co-criadores, e a recusa em<br />
aceitar propostas elaboradas sem sua participação.<br />
Tais propostas, porém, ainda são regra nas intervenções<br />
urbanas, orientadas por um funcionalismo<br />
tecnocrata, em especial para os espaços públicos<br />
ditos banais. O fato urbano transforma-se num<br />
espaço abstrato de uma sociedade imaginária,<br />
descarnado porque separado de seu conteúdo<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
57
A pesquisa qualitativa fenomenológica: olhos para ver a criatividade cotidiana<br />
5 Entendida aqui como a atividade<br />
de criar, inventar, gerar.<br />
6 O termo corpografia, retirado<br />
de artigo homônimo, quer<br />
dizer um tipo de cartografia<br />
realizada pelo e no corpo,<br />
ou seja, a memória urbana<br />
inscrita no corpo, o registro<br />
de sua experiência da cidade,<br />
uma espécie de grafia urbana,<br />
da própria cidade vivida,<br />
que fica inscrita mas também<br />
configura o corpo de quem<br />
a experimenta. (JACQUES,<br />
2008)<br />
7 LEFEBVRE, H. Critique de<br />
la vie. IIII: Modernité au modernisme:<br />
pour une métaphilosophie<br />
du quotidien).<br />
Paris: L’Arche, 1981 apud<br />
Carvalho; Netto, 2011)<br />
8 Tanto Rosario Assunto<br />
quanto Arnold Berleant, ao<br />
tratar da experiência estética<br />
na cidade, ressaltam a<br />
importância da consciência<br />
dos processos que originam o<br />
espaço vivido como essenciais<br />
para o bem-estar do homem.<br />
(SERRÂO, 2013). A consciência<br />
deste processo seria vital<br />
também para o processos de<br />
‘homogeneização’, de crescimento<br />
humano em direção<br />
às suas potencialidades como<br />
“homem inteiramente”, atingindo<br />
um estágio sempre<br />
maior de desenvolvimento.<br />
(Heller, 1970).<br />
humano, unidade forjada por uma racionalidade<br />
urbanística à mercê do interesse utilitário da razão.<br />
Esta “Cidade-conceito” (Certeau, 1998), é também<br />
a “insensata Megalópole Industrial”, espaço de<br />
fragmentação do humano e de alienação, espaço<br />
tecnológico industrial da metrópole-fábrica gigante,<br />
espaço da quantidade divisível e da repetição,<br />
da incomensurabilidade entre mundo objetivo e<br />
subjetivo, da destruição do espaço de vida e sua<br />
substituição por espaços impessoais (Assunto, 2013).<br />
O foco exclusivo em necessidades objetivas passíveis<br />
de mensuração quantitativa fragmenta o habitante<br />
urbano em análises setoriais, e o sintetiza em<br />
um somatório de necessidades e carências, que<br />
cumpre satisfazer de forma padronizada (Martins<br />
et al., 1996). O projeto assim realizado transforma<br />
o cidadão em “usuário”, unidade discreta de um<br />
sujeito universal criado pelas estratégias da ciência<br />
urbanista, excluído da propriedade e da gerência<br />
do espaço urbano, consumidor de um espaço que<br />
lhe é imposto, numa atitude de submissão aos<br />
detentores do saber técnico.<br />
Porém, transformar os cidadãos em consumidores<br />
não elimina, mas apenas esconde suas ações criativas,<br />
a poiein 5 anônima, a combinação dos elementos<br />
desta cultura de forma sempre diferenciada.<br />
É somente pelo fato da vida cotidiana ter sido<br />
transformada em uma rotina repetitiva, mirrada, em<br />
que as forças humanas estão presentes, mas não<br />
plenamente atuantes, que se sustenta o conceito<br />
do antagonismo intrínseco entre o processo de vida<br />
normal e a apreciação estética.<br />
É a vida cotidiana que constrói verdadeiramente a<br />
cidade, e vice versa. Ainda que inconscientemente,<br />
são os habitantes, através de suas práticas e táticas<br />
que escrevem com seus corpos os textos<br />
que compõem a cidade. Em recíproca, a cidade<br />
inscreve neles sua cartografia, num processo que<br />
culmina naquilo que Jacques (2008) descreve como<br />
corpografia urbana 6 . Esse processo criativo,<br />
poético, ocorre no intercâmbio do corpo com o<br />
espaço urbano, transformando os espaços livres<br />
de uma cidade no substrato por excelência da<br />
sociabilidade urbana, microcosmos das ações criativas<br />
das diversas subculturas que compõem a sociedade<br />
urbana, e, portanto, elemento chave da formação<br />
de uma “esfera pública” (QUEIROGA, 2012). São<br />
espaços aonde as atividades rotineiras do trabalho<br />
e da subsistência podem dar lugar à criatividade<br />
e a fruição, necessários ao crescimento humano,<br />
funcionando como espaços de descontração de<br />
uma rotina marcada pelo economicismo das atitudes<br />
repetitivas (Heller, 1970).<br />
Neste processo, espaços gerados de forma quase<br />
esquizofrênica, em lógicas de projeto distanciadas<br />
daquelas de seus destinatários, são traduzidos para<br />
uma linguagem inteligível para o cidadão comum.<br />
São estas micro-resistências que lhes permitem<br />
habitar em espaços nos quais são sim-ples locatários,<br />
ao dissociar as micro-decisões da macroestrutura<br />
dominante 7 , permitem aos designados consumidores<br />
tornarem-se produtores autônomos, utilizando-se<br />
do vocabulário fornecido para a construção de<br />
suas próprias narrativas. A cidade como espaço<br />
democrático deveria ofertar o suporte a este processo<br />
8 ; uma cidade sustentável deveria aproveitar<br />
racionalmente a energia des-pendida como elemento<br />
de sua produção.<br />
Para isso , é preciso entender as relações mantidas<br />
pelos que vivem o espaço com o imaginário urbano,<br />
entender seu discurso, abordar a linguagem na<br />
própria linguagem ordinária, sem um ponto<br />
privilegiado, de forma que a própria pessoa do<br />
planejador se ache implicada, num processo autorreflexivo<br />
em que se reconheçam as formas<br />
ditas “naturais” de dominação do espaço e do<br />
conhecimento, permitindo-se aprender as formas<br />
alternativas, furtivas, dominadas mas presentes, de<br />
apropriação do mundo e da natureza. Desaperceber<br />
os elementos sutis, não-ditos, mas cruciais, que<br />
influenciam o comportamento dos indivíduos pode<br />
comprometer os resultados.<br />
A experiência estética como<br />
elemento do cotidiano<br />
Heller nos apresenta o cotidiano como a própria<br />
‘essência da história’ (Heller, 1970, p.34). Ao<br />
mesmo tempo que repetitivo e baseado em comportamentos<br />
aprendidos, a interação entre aquilo<br />
que é socialmente aceito e a própria individualidade<br />
do homem dá a ele possibilidades de criação que<br />
o individualizam. É aí que se produz a criatividade<br />
cotidiana. Essas possibilidades só se tornam conscientes,<br />
e desalienadoras, porém, se lhe for possível o<br />
distanciamento que origina a reflexão. Ela denomina<br />
este processo de homogeneização. Caso contrário,<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
58
A pesquisa qualitativa fenomenológica: olhos para ver a criatividade cotidiana<br />
9 Associa-se aqui ao termo<br />
a apreciação estética dos<br />
espaços livres no ambiente<br />
de vida, e é neste sentido<br />
que é utilizada num contexto<br />
urbano.<br />
10 O autor defende a importância<br />
da preocupação com o<br />
bem estar humano e a satisfação<br />
instríseca que provêm<br />
como resultado de uma experiência<br />
estética positiva, que<br />
se estão presentes na arte,<br />
são mais nítidos no meio ambiente<br />
(que trata como aquilo<br />
que envolve o homem, parte<br />
do homem que se conforma<br />
fora de seu corpo). A importância<br />
do aspecto positivo<br />
destas experiências é que,<br />
segundo Berleant, “Logo, as<br />
coisas que fazemos fazem-<br />
-nos a nós.(...) Dentro e fora,<br />
consciência e mundo, seres<br />
humanos e processos naturais<br />
não são pares de opostos,<br />
mas aspectos da mesma<br />
coisa: a unidade do ambiente<br />
humano.” (Berleant, 1997).<br />
11 Alain Roger apresenta<br />
um processo que denomina<br />
de artialização, de operação<br />
artística sobre o objeto natural,<br />
seja como produção de<br />
imagens da natureza (artialização<br />
in visu), mas também<br />
diretamente sobre a natureza<br />
(artialização in situ).<br />
12 Forclusão, termo oriundo<br />
do vocabulário jurídico e psicanalítico,<br />
significa, grosso<br />
modo “retirar/excluir e fechar<br />
a porta”. Ver BERQUE:<br />
O pensamento paisageiro<br />
– uma aproximação mesológica<br />
(FERRÂO, 2013).<br />
a cristalização dos comportamentos do cotidiano<br />
termina por empobrecer a essência humana nos<br />
‘papéis sociais’.<br />
A necessidade de experiências que permitam esse<br />
distanciamento, a descompressão do homem do<br />
automatismo exigido pela heterogeneidade e<br />
velocidade das múltiplas tarefas diárias, permitem<br />
propor uma necessidade da paisagem 9 . Mais<br />
ainda, que essa paisagem não seja um atributo<br />
de momentos específicos, mas esteja presente<br />
mesmo em nossa vida cotidiana. Conforme Arnold<br />
Berleant, ao discorrer sobre a apreciação estética<br />
ambiental por ele proposta 10 : “Os valores no nosso<br />
ambiente expandem-se quando alargamos a nossa<br />
sensibilidade e atenção e já não restringimos a<br />
apreciação a ocasiões especiais.”<br />
O processo proposto por Berleant para permitir esta<br />
apreciação permite associa-lo à de homogeneização<br />
apresentado por Heller. Segundo o autor, seria<br />
necessário para esta apreciação a “(...) atenção<br />
profunda, tão rara no mundo contemporâneo, à<br />
vivência numa casa ou no lugar ao qual pertencemos<br />
de forma íntima.” (Berleant, 1997) A concentração<br />
de todas as nossas forças em uma única tarefa seria,<br />
segundo a filósofa húngara, o segundo elemento<br />
necessário para conseguir a homogeneização que<br />
produziria o crescimento do homem em direção<br />
a uma unidade consciente, e seu consequente<br />
afastamento da fragmentação e alienação que<br />
atormentam a vida contemporânea.<br />
Esse processo é contrário à citada visão mercadológica<br />
da cidade, com a valorização específica de<br />
determinados espaços, consumidos como produtos<br />
para usufruto de uma elite educada, capazes de<br />
entender um vocabulário estético produzido por<br />
numa intervenção artializadora 11 do indivíduo<br />
excepcional, sensível, como resultado daquilo que<br />
Berque denomina de “forclusão” 12 do trabalho.<br />
(Berque, 2013). Neste modelo somente se permite a<br />
preocupação estética naqueles locais cujos ocupantes<br />
teriam suficiente renda para se permitir devaneios<br />
ociosos em ambientes cuidadosamente trabalhados.<br />
A paisagem seria assim, luxo para poucos, mesmo<br />
porque exigiria determinados níveis de sensibilidade<br />
e cultura inexistentes no cidadão comum.<br />
Para os demais, os poucos espaços livres disponibilizados<br />
são projetados a partir de projetos<br />
padrão, ofertando equipamentos cujo descolamento<br />
do contexto torna-os quase esquizofrênicos. A<br />
multiplicidade de funções que esses espaços livres<br />
podem abrigar – frequentemente, sobrepostas<br />
numa mesma base física – tem sido muitas vezes<br />
desprezada, e não é incomum que sejam tratados<br />
como o espaço “que resta”.<br />
Esta separação entre estética e cotidiano é artificiosa,<br />
e mesmo prejudicial, pois, à medida que trata a<br />
arte não mais como parte de uma cultura inata<br />
e espontânea, enfraquece-a como expressão da<br />
matéria perceptiva, afastando o homem comum<br />
de um tema que supõe refinado, imergindo-o no<br />
pragmatismo cotidiano em busca de substitutos,<br />
mesmo que vulgares e baratos, que lhes atendam<br />
os anseios por experiências prazerosas. A demanda<br />
pela experiência estética é parte do homem, e a arte<br />
nada mais é que a transformação de materiais “que<br />
gaguejem ou emudeçam na experiência comum em<br />
veículos eloquentes” (Dewey, 2010).<br />
A diferença entre a arte e o banal seria apenas<br />
a intensidade da própria experiência sensorial e<br />
perceptiva, significativamente mais esclarecida e<br />
intensificada, permitindo o entrelaçamento do<br />
tempo individual num tempo mais amplo, que<br />
é natural e histório, simultâneamento passado,<br />
presente e futuro, naquilo que Assunto chama<br />
de temporalidade. Ou seja, seria arte tudo aquilo<br />
capaz de despertar respostas mais profundas do<br />
ser humano, a atenção concentrada e consciente<br />
da reflexão.<br />
É esta experiência que Berleant (1997) diz ser mais<br />
vívida no espaço de vida que na própria arte. E que<br />
Assunto (2013) prega como necessidade humana no<br />
ambiente, se não se desejar submergir a consciência<br />
humana no cotidiano alienado e sufocante do<br />
espaço padronizado e produzido em massa. É aí<br />
que se produz a homogeneização das experiências<br />
fragmentárias que permitem a unidade (ainda que<br />
nunca completa e permanente, mas sempre maior)<br />
que eleva o indivíduo em direção à consciência, de<br />
que nos falam Lukács e Heller. (Martins et al., 1996).).<br />
A estética está nas possibilidades da própria essência<br />
humana. O que é oposto ao estético é a monotonia,<br />
a desatenção ante as tarefas, a submissão às<br />
convenções, as características da vida cotidiana<br />
expandidas para esferas que não lhe pertencem,<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
59
A pesquisa qualitativa fenomenológica: olhos para ver a criatividade cotidiana<br />
13 Berleant cunha o termo<br />
dano estético para definir<br />
as consequências de experiências<br />
estéticas negativas<br />
repetitivas, que implicariam<br />
o afastamento e alienação<br />
do homem de seu ambiente.<br />
14 Aqui o sentido do termo<br />
é aquele apresentado por<br />
Martins & Bicudo (2005:22)<br />
para a pesquisa psicológica e<br />
educacional: o sentido da entidade<br />
que se mostra em local<br />
situado. Entende-se assim<br />
que a paisagem só se mostra<br />
onde alguém a experiência,<br />
e o acesso a ela se dá pela<br />
experiência e indiretamente<br />
por meio da descrição desta.<br />
o distanciamento artificial imposto pela rotina e<br />
pela insensibilidade que com que o indivíduo se<br />
protege do excesso de danos estéticos 13 da cidade<br />
contemporânea. Observa-se então o dilema do<br />
homem comum: submetido a uma lógica alheia,<br />
subsiste numa rotina castradora. Apenas quando<br />
assume a dualidade entre os circuitos dominantes e<br />
instituídos e suas ações cotidianas que experimenta<br />
a esperança e a autonomia.<br />
A cultura sempre mais totalizante é incapaz de<br />
sufocar essas ações, práticas de guerrilha. E elas<br />
resistem em culturas subdominantes (SERPA, 2007).<br />
Apesar da cultura hegemônica de uma cidade<br />
espetáculo expandir sempre mais suas áreas de<br />
atuação, surgem brechas que permitem resistências,<br />
possibilidades criativas ao homem comum. É possível<br />
perceber que apesar dessa penetração sempre maior<br />
de uma ordem imposta, permanecem resquícios<br />
de práticas “menores”, alternativas, pois somente<br />
a partir de táticas “sem identidade legível, sem<br />
tomadas apreensíveis, sem transparências racionais”<br />
(Certeau, 1996, p.174), assim classificadas por<br />
distanciarem-se das narrativas oficiais inscritas no<br />
espaço. E é preciso reconhece-la. Como encontrála?<br />
É preciso saber ouvir as falas dos cidadãos. E<br />
é aí que se acredita que a metodologia qualitativa<br />
com base na fenomenologia pode vir a contribuir<br />
fortemente.<br />
A paisagem pelos olhos de quem<br />
habita<br />
A noção de paisagem urbana é um conceito teórico<br />
controverso. Apesar de livremente utilizado na<br />
fala das pessoas entrevistadas, existe um intenso<br />
debate teórico sobre sua pertinência ou não. Para<br />
os fins deste trabalho, a noção a ser utilizada aqui<br />
se aproxima mais da apreciação estética ambiental,<br />
conforme denominada por Arnold Berleant denomina<br />
de experiência estética ambiental. Segundo<br />
este autor, existiria a necessidade de uma<br />
qualidade estética de nossos espaços cotidianos,<br />
pois a satisfação e bem-estar humanos estão<br />
intimamente associados à experiências estéticas<br />
positivas. Essas experiências seriam muito mais<br />
vívidas e satisfatórias no ambiente de vida, ao<br />
qual estaríamos intimamente conectados, de tal<br />
forma que a relação de continuidade se dá pela<br />
expansão sempre infinita das camadas em torno<br />
da individualidade. (BERLEANT,2013).<br />
Paisagem seria para Berleant a dimensão perceptiva<br />
de um espaço observado, criada a partir de<br />
“(...) atenção profunda, tão rara no mundo contemporâneo”,<br />
com a concentração de todos os<br />
sentidos neste processo. Aqui se aproxima do<br />
pensamento de Berque, que define a percepção da<br />
ecúmena como a mediância, o sentido subjetivo e<br />
objetivo da relação de uma sociedade com a extensão<br />
terrestre (toda ela, segundo o autor, já passível de<br />
ser entendida como espaço ecumental, por ser toda<br />
ela inserida no espaço de vida humana).<br />
A escolha da modalidade de entrevistas em profundidade<br />
permite entender as referências utilizadas<br />
pelos respondentes, não somente para comunicar<br />
a compreensão da paisagem, como também aquelas<br />
introjetadas sistematicamente por imagens<br />
hegemônicas. O objetivo das entrevistas realizadas<br />
foi procurar como o fenômeno 14 da paisagem<br />
se manifestava para os entrevistados. O roteiro<br />
elaborado se desenvolveu em torno da pergunta:<br />
“O que é isto, a paisagem?”.<br />
A fim de entender como então era traduzida a<br />
paisagem para os entrevistados, as perguntas se<br />
desenvolviam em torno de 03 temas, a saber:<br />
- A compreensão do termo: paisagem<br />
- Memórias da paisagem<br />
- Elementos de uma bela paisagem<br />
Por se tratar de uma primeira sondagem, e pelo<br />
próprio caráter da pesquisa fenomenológica, as<br />
perguntas efetivamente propostas variaram de<br />
entrevista a entrevista, explorando alguns conceitos<br />
mais aprofundadamente, à medida em que surgiam<br />
na comunicação do entrevistado. Além disso, o<br />
próprio aprendizado de pesquisa se reflete nestas<br />
alterações: à medida em que mais entrevistas foram<br />
efetuadas, a prática permitiu um aumento da<br />
desenvoltura e da sensibilidade na própria atuação<br />
do pesquisador, facilitando a condução da conversa.<br />
Inicialmente, na maioria dos casos, pedia-se aos<br />
entrevistados, escolhidos entre moradores das<br />
áreas de estudo determinadas, que definissem o<br />
que entendiam por paisagem. A pergunta, que<br />
imediatamente promovia uma reflexão sobre um<br />
tema pouco usual para eles, objetivava entender<br />
que de forma qual a conceituação dada para um<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
60
A pesquisa qualitativa fenomenológica: olhos para ver a criatividade cotidiana<br />
termo já adaptado ao vocabulário cotidiano. As<br />
respostas, quase sempre fornecidas após pausas<br />
mais ou menos longas, tratavam em geral de lugares<br />
comuns: natureza, o belo, ainda que muitas vezes<br />
mescladas a conceitos mais aprofundados. Em<br />
alguns casos, especialmente dos entrevistados mais<br />
jovens, surgem noções bastante surpreendentes.<br />
Observou-se também que a reação a essa primeira<br />
resposta em muito ajudou o desenvolvimento da<br />
entrevista. Ao perceber que a primeira resposta,<br />
elaborada com alguma dificuldade e timidez era<br />
aceita, os entrevistados sentiam-se mais livres para<br />
fornecer as próximas respostas, e a entrevista fluía<br />
mais livremente.<br />
A percepção do impacto de determinadas posturas<br />
e procedimentos sobre os entrevistados e sua<br />
disposição na participação foi muito importante,<br />
facilitando sensivelmente as entrevistas realizadas<br />
posteriormente. Esse desenvolvimento do próprio<br />
pesquisador é fundamental, em especial neste<br />
momento da pesquisa. Permitir a expressão sincera<br />
dos entrevistados é difícil, especialmente no contexto<br />
escolhido, em que alguns se posicionam já em<br />
posição de inferioridade ou receio (de suas respostas<br />
serem consideradas erradas, de desapontar, etc.).<br />
Além disso, é um exercício não buscar confirmar<br />
idéias pré-concebidas, inclusive com uma condução<br />
da entrevista guiada a partir de molduras cristalizadas<br />
da experiência própria ou da teoria, prejudicando o<br />
aprendizado. É preciso questionar as teorias a partir<br />
da experimentação, permitindo-se refazer caminhos<br />
quando necessário.<br />
Ao mesmo tempo, questões como a escolha dos<br />
participantes e do vocabulário a ser utilizado, a<br />
determinação do roteiro, decisões como a melhor<br />
forma de fazer o entrevistado retornar a temas<br />
relativos à pergunta em meio a divagações por<br />
vezes significativas para aqueles que têm poucas<br />
oportunidades de ser escutados, são processos<br />
intuitivos baseados numa sensibilidade que se<br />
desenvolve ao longo da prática. Isso reforça a<br />
importância do exercício prévio de sondagem aqui<br />
realizado: a aceitação de equívocos e oportunidades<br />
não-exploradas na análise posterior a cada entrevista<br />
auxiliaram a refinar os roteiros das entrevistas<br />
subsequentes.<br />
As comunidades aonde se realizaram as entrevistas<br />
foram dois, escolhidos justamente por situaremse<br />
em situações aonde se reconhecia um esforço<br />
por uma paisagem (no sentido aqui trabalhado).<br />
Através de conversas com membros das duas<br />
comunidades revelou-se um discurso sobre a<br />
importância do prazer de estar em determinado<br />
espaço, que os próprios moradores denominação<br />
‘sua’ paisagem. Com o interesse despertado por<br />
tais falas, procedeu-se a algumas entrevistas,<br />
no total de 04 moradores em uma comunidade<br />
(Lagamar) e 10 na outra (Cais do Porto ou<br />
Serviluz), a fim de entender o que se apresentava.<br />
A escolha dos entrevistados não se realizou de<br />
forma determinada previamente, porém envolveu,<br />
nas duas comunidades, faixas etárias diversas<br />
(adolescentes, jovens adultos e idosos), buscando<br />
tipificar as diversas redes existentes (cf. sugestão<br />
de SERPA, 2007).<br />
As entrevistas foram realizadas nas comunidades,<br />
em sua maioria, ao ar livre. Isso revelou-se importante<br />
– muitas das falas foram permeadas por<br />
gestos, que apontavam no espaço circundante<br />
confirmações das palavras: olha aquela árvore,<br />
veja essa vista, ali naquele lugar, esse mar, esse<br />
céu. Acredita-se que este fato foi importante para<br />
o desenvolvimento de algumas respostas. Algumas<br />
entrevistas foram realizadas com o entrevistado<br />
sozinho, outras, por solicitação do entrevistado,<br />
em companhia de outros. Em alguns casos, isso<br />
revelou-se positivo, à medida em que o grupo se<br />
auxiliava entre as repostas. Em outros, negativo,<br />
à medida em que o entrevistado tinha alguma<br />
dificuldade de expressar pensamentos, expondo<br />
sua individualidade frente a colegas, especialmente<br />
no caso de adolescentes.<br />
Um dos primeiros pontos das entrevistas foi a<br />
Comunidade do Lagamar. Situada às margens de<br />
um riacho posteriormente canalizado, o Riacho do<br />
Tauape e Rio Cocó, foi inicialmente uma comunidade<br />
que acolhe migrantes que acorrem a Fortaleza<br />
fugidos da seca, ocupando terrenos alagadiços.<br />
Com história de mobilização, especialmente protagonizada<br />
por mulheres, que se transformou em<br />
marco na cidade, é atualmente uma das poucas<br />
Zonas de Interesse Social regularizadas no município.<br />
O Lagamar foi escolhido justamente por um novo<br />
conflito ocorrido no momento da pesquisa: o<br />
protesto dos moradores por uma reforma na praça<br />
da comunidade, praça de São Francisco, sem consulta<br />
prévia à população.<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
61
A pesquisa qualitativa fenomenológica: olhos para ver a criatividade cotidiana<br />
A praça de São Francisco foi construída a partir de<br />
iniciativa dos próprios moradores (ou moradoras,<br />
como as entrevistadas faziam orgulhosamente<br />
questão de ressaltar). A partir de terreno pouco<br />
propício, por se tratar de área de terreno pantanoso,<br />
foram estabelecidos sucessivamente<br />
dois projetos de praça. Interessante notar que<br />
os mais jovens a responder as perguntas contam<br />
relatos complementares à entrevistada mais idosa,<br />
idealizadora primeira do espaço. É como se as<br />
narrativas se complementassem, demonstrando a<br />
existência de duas fases no processo de apropriação<br />
da praça. Um primeiro, no momento de implantação<br />
da própria praça, com a preparação do terreno<br />
em mutirão encabeçado por uma das entrevistas.<br />
O esforço foi posteriormente contemplado pela<br />
municipalidade e pela igreja católica, com a pavimentação<br />
e implantação de bancos e uma edificação<br />
(capela/espaço comunitário). O segundo, a<br />
partir de atuação dos moradores para revitalização<br />
do equipamento, abandonado, com mutirão de<br />
limpeza e plantação dos canteiros.<br />
O segundo, o Serviluz, é uma comunidade praieira, a<br />
“esquina de Fortaleza”, conforme a definiu um dos<br />
entrevistados. Comunidade surgida na retarguarda<br />
do Porto do Mucuripe, é conformada ao redor de um<br />
pequeno núcleo de pescadores artesanais acrescido<br />
por sucessões de levas de migrantes, afixados no<br />
lugar por diferentes motivos: trabalhadores do porto<br />
e do parque industrial de apoio, pescadores movidos<br />
pela valorização de outras praias urbanas, etc. A<br />
comunidade tem resistido a frequentes ameaças de<br />
remoção, motivadas pela transformação da zona<br />
porturária e a retirada das indústrias, com objetivos<br />
de transformar o espaço em zona turística. Assim,<br />
observa-se a existência de algumas organizações dos<br />
próprios moradores, autônomas ou com apoio de<br />
organizações como igrejas ou ONGs. Um dos motivos<br />
da resistência é justamente a percepção de que<br />
também eles teriam direito a permanecer morando<br />
à beira-mar, enquanto as alternativas sugeridas<br />
ofertam remoção para espaços distantes na cidade.<br />
O papel marcante dos espaços de mobilização<br />
social, representado na importância dada pelos<br />
entrevistados, é refletido claramente em suas respostas.<br />
Quando instados a descreverem um circuito<br />
pelos marcos da comunidade, poucos não citaram<br />
uma parada nas associações e pontos de reunião da<br />
comunidade. Mesmos os mais jovens, já distantes<br />
dos líderes comunitários inicialmente contactados,<br />
relatam que o contato com grupos do bairro os fez<br />
retornar e rever aonde moravam.<br />
Pr., por exemplo, de 19 anos, fala incialmente<br />
imagens de cachoeiras e serras que visitou, nãorelacionadas<br />
à praia aonde mora, quando responde<br />
sobre paisagens enquanto conceito teórico. Porém,<br />
quando questionada sobre memórias marcantes<br />
de experiências ao ar livre, relata principalmente<br />
memórias dentro do bairro, de momentos de reflexão<br />
em atividades banais, como banhos de<br />
mar. E explica que tais momentos se tornaram<br />
memoráveis principalmente pela consciência de que<br />
faziam parte de seu lugar de moradia, mas ela só os<br />
havia percebido naquele instante, somente então<br />
se tornavam experiências. E diz: no dia a dia, saia<br />
cedo e retornava tarde, morava no bairro, mas não<br />
o conhecia. Somente quando se insere num coletivo<br />
que atua no bairro é que “volta ao seu bairro”.<br />
Essa fala possui múltiplas relações com a discussão<br />
inicial. Um dos argumentos utilizados por muitos<br />
defensores da hipótese artializadora moderna seria<br />
justamente a pouca importância dada pela população<br />
a paisagem em seus espaços de vida. Por se tratar de<br />
parte de seus cotidianos, já não haveria olhos para<br />
ver aquilo que seria produzido também por eles.<br />
O que se deixa entrever é que não é o cotidiano<br />
que cega o olhar para espaço, mas a rotina e a<br />
aceitação de pré-juízos. Pr., por exemplo, fala da<br />
importância do conhecimento de outras narrativas<br />
para a valorização de um lugar. Ela cita o caso de<br />
outra comunidade litorânea, o Poço da Draga,<br />
conhecida como espaço de criminalidade e violência.<br />
Porém, ao travar conhecimento com um morador<br />
do local, passa a conhecer toda a beleza escondida<br />
por trás das imagens negativos.<br />
Um outro questionamento pode ser apresentado a<br />
partir das memórias significativas apresentadas pelos<br />
entrevistados. Esses relatos nunca são estáticos, não<br />
contam momentos de contemplação passiva, mas<br />
sempre tratam de atividades realizadas dentro de seu<br />
próprio contexto de moradia (jogos na infância, banhos<br />
de mar, retorno à casa, caminhadas entre pontos do<br />
bairro), fincadas nas lembranças por breves segundos<br />
de conscientização, como o pensamento apresentado<br />
por G., de 43 anos, quando se lembra da cena de uma<br />
caminhada na praia: “Acho massa quando o estilo de<br />
vida se une à natureza (...) É você fazer seu habitar.” É<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
62
A pesquisa qualitativa fenomenológica: olhos para ver a criatividade cotidiana<br />
esse pensamento que eterniza a lembrança daquele dia<br />
na memória, e permite descrever as cenas observadas,<br />
e a natureza como pano de fundo.<br />
Esses momentos podem ser relacionados às experiências<br />
de estética ambiental, conforme des-critos<br />
por Berleant, e se percebe sua importância para o<br />
sentimento de pertencimento à comunidade. “Eu<br />
gosto da minha quebrada”, continua G., apesar<br />
dos sonhos de uma melhor condição de moradia.<br />
Prefere, diz ele, uma boa moradia por ali, por já haver<br />
se acostumado com a “condição de viver perto do<br />
mar”. Aqui talvez ocorra um diálogo entre a imagem<br />
hegemônica da cidade de Fortaleza, cidade litorânea<br />
da indústria do turismo, e as memórias individuais,<br />
que as assimila e traduz numa interpretação própria.<br />
Ou talvez essa percepção tenha raízes diferenciadas,<br />
nem sempre ancoradas nas imagens oficiais de um<br />
espaço. P., de 28 anos, diz: “Aqui, as pessoas se<br />
refugiam no mar.” Ele se refere ao fato do Serviluz<br />
abrigar muitos migrantes, em especial os advindos<br />
de outros espaços litorâneos em Fortaleza ou outros<br />
municípios. Mesmo que trabalhem em indústrias não<br />
relacionadas a atividades marítimas, o mar os atrai,<br />
perpetuando memórias em seu cotidiano. Conclui<br />
dizendo que as paisagens são feitas por atração.<br />
Essa ideia, de que os novos espaços são escolhidos a<br />
partir de memórias anteriores, é fascinante, quando<br />
confrontadas com a hipótese da mediância, em que<br />
a produção se faz em meio a percepções subjetivas<br />
e o que objetivamente se oferece, numa construção<br />
por adição do novo sobre substratos existentes.<br />
Nestes relatos, percebe-se a vantagem de permitir ao<br />
entrevistado certa margem de divagação. Desafiado<br />
por perguntas por vezes inesperadas (muitas entrevistas<br />
iniciam-se com hiatos mais ou menos<br />
longos entre pergunta e resposta), os respondentes<br />
foram levados a refletir. Algumas respostas tiveram<br />
conteúdo mesmo um pouco contraditórios, como<br />
a da jovem P., que inicia declarando que todos<br />
preferem conhecer aquilo que não tem, e ao longo<br />
da entrevista releva por diversas vezes a emoção por<br />
descobrir aquilo que já era seu (“do meu bairro”).<br />
A sensação de posse e pertencimento é recorrente: “Eu<br />
tenho a minha praia”, diz Ca., de 15 anos; “Na maior<br />
realidade que eu vivo, que é a minha comunidade”,<br />
diz A., de 29 anos. É a partir dessas estruturas que se<br />
organizam o conhecimento do mundo: a outra praia<br />
é diferente, porque diferente da minha; aqui é assim,<br />
nos “grandes bairros” é diferente. Essa construção<br />
permite o estabelecimento de significados a partir<br />
de características do es-paço, muito simbólicos, que<br />
assumem o papel de diferenciadores e classificadores do<br />
espaço urbano, como no caso da iluminação pública.<br />
A., por exemplo, atribui um papel discriminatório à<br />
iluminação por vapor de sódio, que identifica como<br />
“lâmpadas amarelas”. Ela diz:<br />
Nas comunidades, as lâmpadas são amarelas. Quando<br />
você entra nas periferias de Fortaleza, as lâmpadas,<br />
elas são amarelas. Onde você chega é amarela. Pra<br />
já dar este ar de penumbra e de diferenciação. (....)<br />
E aqui, elas eram amarelas. Aí na época da reforma,<br />
a gente solicitou que mudasse para brancas. E<br />
é interessante como mudou o clima. As árvores<br />
ficaram mais verdes, tudo ficou mais colorido. As<br />
cores ficaram mais vibrantes, porque o amarelo<br />
de fato dá um ar de escuridão. Algumas ruas aqui<br />
ainda têm lâmpadas amarelas, e muda o cenário.<br />
A tonalidade de luz da lâmpada de sódio, em realidade<br />
alaranjada, possui efetivamente uma pior<br />
reprodutibilidade de cor do que a às de vapor de<br />
mercúrio ou LED, de tonalidade branca. Por estas<br />
últimas serem tecnologias relativamente novas, têm<br />
sido progressivamente instaladas substituindo as<br />
primeiras, mais antigas. Porém, trabalhando na lógica<br />
excludente das administrações públicas brasileiras, o<br />
processo se inicia nos bairros de maior poder aquisitivo.<br />
Daí surge a interessante tradução de uma decisão<br />
técnica, funcionalista a princípio, na materialização<br />
da percepção de uma discriminação sócio-espacial<br />
entre a comunidade e os ‘grandes bairros’: a cor da<br />
lâmpada é o que estabelece o “ar de diferenciação”.<br />
O tratamento do espaço público, nas respostas<br />
apresentadas, é sempre descrito como uma demonstração<br />
de códigos que estabelecem que ambas<br />
as comunidades e seus moradores “não são<br />
prioridade”, como diz J., de 34 anos. Inclusive,<br />
porque como diz P., quando o poder público se<br />
manifesta com um projeto, geralmente não inclui<br />
a comunidade nem no planejamento, nem na<br />
implantação. Reiteradamente, moradores de ambas<br />
as comunidades questionam: Por que não perguntam<br />
a quem mora o que fazer para embelezar o lugar?<br />
Retomando ao Lagamar, A. e J. explicam o conflito<br />
ocorrido. Não é porque não quisessem a<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
63
A pesquisa qualitativa fenomenológica: olhos para ver a criatividade cotidiana<br />
implantação dos brinquedos ofertados, inclusive<br />
reconhecem a necessidade de espaços para o lazer<br />
infantil, inexistentes na comunidade. Mas por que:<br />
Eles querem intervir na realidade das comunidades<br />
sem nem saber que que acontece nas comunidades.<br />
E nós aqui, que somos ativos, que temos uma ZEIS<br />
ativa, dentro de Fortaleza, nós queremos participar<br />
das escolhas da nossa comunidade.<br />
afeto por um lugar. P. continua o exemplo, contando<br />
uma discussão com um amigo que mora “em outra<br />
quebrada” e com quem se envolve numa disputa<br />
comparativa. Diz: o que é que tem lá? Ao que o outro<br />
responde: “Lá tem o Canal, a gente faz churrasco na<br />
beira do Canal”. As particularidades de cada lugar<br />
é o que faz dizer: “eu não troco meu conjunto por<br />
nada”, ainda que a marca impressa se pareça com<br />
uma degradação.<br />
A dificuldade de diálogo entre os técnicos propositores<br />
e a população atinge ambas as comunidades.<br />
A percepção de que os moradores são indiferentes<br />
ao espaço que os circunda é reiterado na surpresa<br />
com que as recusas e protestos são recebidos pelos<br />
técnicos. P. resume: “Eles ficam zoados” porque<br />
os moradores não aceitam as propostas. A jovem<br />
C., de 15, porém, ao definir o que seria paisagem,<br />
apresenta uma visão bastante singular: “É aquilo<br />
que é bonito, né? Aquilo que não sai (...) as pessoas<br />
é que tem de ir pra ver.”. Esta fala demonstra uma<br />
percepção da preponderância de um lugar. É o<br />
espaço que é buscado, que faz com que as pessoas<br />
se desloquem para experiência-lo.<br />
A importância do espaço é reforçada pelas memórias<br />
que ancoram as pessoas naquele lugar.<br />
Como os moradores do Serviluz, que ao definirem<br />
o espaço de assentamento rememoram o lugar<br />
de partida. Ou como as senhoras da praça do<br />
Lagamar, An., de 75 anos, para quem a pequena<br />
pracinha “é muito mais linda que a praça do<br />
Ferreira (principal praça do Centro de Fortaleza).<br />
É, né, não, mulher? Mais conservada, se é pra ir<br />
pra Praça do Ferreira, eu prefiro vir aqui. ” Ao<br />
que a outra, R., de 68 anos, complementa: “É,<br />
todo mundo acha, né. Mas não é a praça, não,<br />
o negócio é amor, né? ”.<br />
P., do Serviluz, usa uma imagem (“retratos”, diz)<br />
para explicar este apego:<br />
(...) olhando uma parede branquinha e uma parede<br />
cheia de picho (...) aquela parede [branca] está vazia,<br />
não representada nada, e a outra está cheia de picho,<br />
está cheia de singularidades (...) é vazio, aquilo, então<br />
a galera quer dar uma vida àquilo dali, embora de<br />
uma forma anárquica, de uma forma diferente (...).<br />
São, assim, as singularidades gravadas no espaço<br />
vazio que caracterizam a especificidade e a razão do<br />
A relação entre marcas singulares se mostra também<br />
quando se tenta implementar outras marcas a partir de<br />
soluções generalizadas, sem raízes fixadas no espaço.<br />
Por exemplo, a implantação dos brinquedos de forma<br />
padronizada na praça. Mesmo quando se trata apenas<br />
de ideias aceitas como positivas, é preciso adequá-la<br />
às realidades do lugar, ainda que a iniciativa parta<br />
dos próprios moradores. O Lagamar fornece ainda<br />
um outro exemplo.<br />
J. conta sobre um evento criado por um grupo de<br />
jovens para a praça do Lagamar. Chamado o Dia do<br />
Abraço na Praça, reuniu um grupo de moradores,<br />
inclusive crianças, para realizar intervenções na praça<br />
e conscientizar para o “cuidado com o nosso”. Avalia<br />
que o dia foi um sucesso, pois “Depois desse dia, a<br />
gente percebeu que a comunidade pegou [a praça]<br />
pra ela, se apropriou mesmo (...) A lembrança foi<br />
muito forte, muito marcante, esse ato do Abraço na<br />
Praça, foi o momento em que as pessoas se sentiram<br />
naquele local”.<br />
Essa iniciativa representa a incorporação da organização<br />
local de ações ocorridas por toda a cidade,<br />
a partir da mobilização da população frente à degradação<br />
crescente de áreas públicas. As intervenções<br />
realizadas foram a limpeza na praça e a reinserção de<br />
plantas em canteiros. Os vizinhos passaram a adotar<br />
cada canteiro e a manter a vegetação. E um conflito<br />
então se instala: as crianças quebravam as plantas,<br />
com as brincadeiras com bola. Porém, não havia outro<br />
espaço de lazer, pois o canal, antigo espaço de jogos,<br />
encontra-se agora sempre cheio e poluído. Foi preciso<br />
então articular uma solução específica, que pactuasse<br />
o uso de espaço verde com o de lazer infantil e de<br />
festividades da comunidade (como a quadrilha junina).<br />
Foi nesse delicado equilíbrio que a ação da prefeitura<br />
para instalação de brinquedos quase interferiu, ao<br />
implantar os brinquedos no espaço central, impedindo<br />
os demais usos, ou ao propor a destruição de um dos<br />
canteiros.<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
64
A pesquisa qualitativa fenomenológica: olhos para ver a criatividade cotidiana<br />
Conclusões parciais de um<br />
aprendizado de pesquisa<br />
A escolha do método trouxe desafios e recompensas.<br />
A pesquisa qualitativa busca uma compreensão<br />
particular daquilo que se estuda (Martins & Bicudo,<br />
2005), selecionando evidências para a argumentação<br />
(Bauer & Gaskell, 2015). De forma alguma pode se<br />
revestir de menor rigor científico, ainda que, ao focar<br />
não na possível generalização dos resultados, mas<br />
na compreensão, novas perguntas surgem quando<br />
deixa de lados determinadas questões lógicas e<br />
metodológicas essenciais para outras modalidades<br />
de pesquisa.<br />
A preocupação com a qualidade dos resultados e<br />
sua efetividade para os fins desejados não se dá a<br />
partir de padrões de procedimentos preestabelecidos<br />
como corretos para o desenvolvimento da pesquisa,<br />
mas de um processo autorreflexivo de autocrítica,<br />
demarcando práticas boas de práticas ruins, baseados<br />
em elementos como intuitividade e habilidade do<br />
pesquisador. O potencial do conhecimento é posto<br />
à prova a partir do diálogo.<br />
A realização da sondagem de campo contribuiu para<br />
além dos aportes extremamente enriquecedores<br />
para o próprio objetivo da pesquisa, na indicação<br />
de posicionamentos frente à fundamentação<br />
proveniente da teoria. O esforço da empatia, de<br />
penetrar a forma de pensar, parece significativamente<br />
importante, em especial na temática estudada, que<br />
se constrói a partir de sentidos e interpretações a<br />
um tempo compartilhados e individuais.<br />
Para isso, a experimentação, ainda que reduzida,<br />
demonstrou-se muito importante. O desenvolvimento<br />
da postura do pesquisador, a reflexão sobre<br />
os resultados de cada entrevista, das possibilidades<br />
surgidas, de seu aproveitamento ou não, funcionam<br />
como um treinamento do olhar e auxiliam na<br />
orientação do pensamento referente à temática. A<br />
cada entrevista, novos horizontes se descortinam.<br />
Cada respondente é um indivíduo singular, ainda<br />
que compartilhe de características mais ou menos<br />
genéricas. Observou-se a importância de uma postura<br />
compatível, que assegurasse aos entrevistados a<br />
importância de suas respostas.<br />
A delicadeza de algumas memórias é surpreendente.<br />
A revelação de significados atrelados a determinadas<br />
circunstâncias e a valorização destes no ato de ouvir<br />
leva alguns entrevistados às lágrimas. A entrevista<br />
é um diálogo, que transforma respondente e<br />
entrevistador. É mais fácil a adoção de uma postura<br />
de respeito genuíno após esse mergulho em reflexões<br />
por vezes surpreendentemente aprofundadas.<br />
Percebeu-se nas respostas alguma insegurança,<br />
com solicitações mudas ou verbalizadas em um,<br />
“não é?” da confirmação da pertinência das ideias<br />
apresentadas. Ao ouvir suas próprias palavras, não<br />
raros moradores reflexionam sobre as respostas<br />
iniciais, que contradizem as opiniões apresentadas<br />
a posteriori. Não raras vezes, comentários realizados<br />
em meio ou após a entrevista refletiam: é, eu acho<br />
que é assim.<br />
Algumas vezes, era preciso divagar. Os entrevistados<br />
precisavam de algum tempo para soltarem-se<br />
das amarras das imagens pré-concebidas, do<br />
automatis-mo de algumas imagens. Contudo,<br />
é preciso ainda um certo cuidado para que a<br />
entrevista não se perca, retornando ao tema de<br />
interesse. Como realizar este cuidado sem reprimir<br />
as respostas seguintes é um ajuste cuidadoso.<br />
Contudo, as divagações contribuíram bastante<br />
positivamente, indicando possibilidades a serem<br />
seguidas.<br />
O cuidado da reflexão posterior sobre o material<br />
coletado em cada entrevista é essencial, para avaliação<br />
da atuação do pesquisador. Observou-se ser<br />
mais vantajoso o espaçamento entre entrevistas,<br />
para permitir esse momento de reflexão. Talvez,<br />
em estágio posterior, seja possível um maior agrupamento<br />
das conversas.<br />
Neste experimento, não se realizou um procedimento<br />
formal de escolha de respondentes, a partir de uma<br />
tipificação. À medida em que as entrevistas foram<br />
sendo realizadas, percebeu-se a necessidade de<br />
outras. Por exemplo, no caso do Serviluz, comunidade<br />
de maior número de entrevistados, iniciou-se com<br />
a indicação de um jovem. A partir dele, outros 03<br />
foram indicados. Em um dos encontros, solicitou-se<br />
a indicação de entrevistados de outro perfil (não<br />
engajado, de outras faixas etárias). Este processo<br />
precisa ser melhorado, a partir de um estudo mais<br />
cuidado e de um roteiro mais elaborado. Contudo,<br />
acredita-se que existirá sempre uma margem para a<br />
reformulação das estratégias, a partir das descobertas<br />
in loco das redes existentes.<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
65
A pesquisa qualitativa fenomenológica: olhos para ver a criatividade cotidiana<br />
Recebido [Set. 03, 2016]<br />
Aprovado [Dez. 21, 2016]<br />
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V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
66
artigos e ensaios<br />
Um paradoxo patrimonial:<br />
a Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro<br />
Roberto Segre (in memorium)<br />
Arquiteto e Urbanista, doutorado em História da Arte pela<br />
Universidade de Havana, Cuba, doutorado em Urbanismo no<br />
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano da Universidade<br />
Federal do Rio de Janeiro, RJ, Brasil, pós-doutorado no Instituto<br />
de Pesquisa e Planejamento Urbano da Universidade Federal do<br />
Rio de Janeiro, RJ, Brasil<br />
Resumo<br />
A Catedral do Rio de Janeiro foi construída na Esplanada de Santo Antônio<br />
na segunda metade do século XX. A nova Catedral rompe com a tipologia<br />
das igrejas coloniais e traz a influência das pirâmides maias em um edifício<br />
moderno. A Esplanada de Santo Antônio traduz a grande ruptura que o tecido<br />
urbano sofreu nessa área onde é significativo o contraste entre o passado<br />
e o presente deixando em aberto o desafio de integrá-los em um conjunto<br />
patrimonial que recupere os valores humanísticos que sempre caracterizaram<br />
a cidade do Rio de Janeiro.<br />
João Henrique dos Santos<br />
Ecólogo, doutor em Ciência da Religião pela Universidade Federal<br />
de Juiz de Fora, MG, Brasil, professor adjunto do Departamento<br />
de História e Teoria da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da<br />
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Prédio da Reitoria/FAU, Av.<br />
Pedro Calmon, 550, Cidade Universitária, Rio de Janeiro, RJ, CEP<br />
21941-485, (21) 3938-1628, joaohenrique@fau.ufrj.br<br />
Estela Maris de Souza<br />
Arquiteta e Urbanista, doutoranda do PROURB - Programa de<br />
Pós-Graduação em Urbanismo da Faculdade de Arquitetura e<br />
Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Prédio da<br />
Reitoria/FAU, Av. Pedro Calmon, 550, Cidade Universitária, Rio<br />
de Janeiro, RJ, CEP 21941-485, (21) 3938-1628, emaris711@<br />
gmail.com<br />
Palavras-chave: Rio de Janeiro, história urbana, Catedral Metropolitana.<br />
O<br />
paradoxo patrimonial representado pela Catedral<br />
Metropolitana do Rio de Janeiro foi construída em<br />
um espaço emblemático da cidade onde havia o<br />
Morro de Santo Antônio e uma lagoa de mesmo<br />
nome. Com a dissecação da lagoa surge o Largo da<br />
Carioca e com o desmonte parcial do morro temos<br />
a Esplanada de Santo Antônio. São duas áreas<br />
contíguas de mesma origem, mas que guardam<br />
singularidades. Essas duas áreas formam uma paisagem<br />
urbana dicotômica em função do tecido<br />
urbano original, pois a Catedral Metropolitana<br />
e os edificios institucionais da década de 70 se<br />
contrapõem ao conjunto franciscano representado<br />
pelo Convento de Santo Antônio no Largo da<br />
Carioca. Os edificios modernos representados pelas<br />
sedes da Petrobrás, BNDES e Caixa Econômica<br />
refletem o momento de desenvolvimento econômico<br />
do país na década de 60/70, embora a cidade do Rio<br />
de Janeiro não fosse mais a capital federal. Neste<br />
cenário de uma das áreas mais importantes do centro<br />
do da cidade do Rio de Janeiro temos a construção<br />
da Catedral Metropolitana e suas varias nuances.<br />
Uma catedral itinerante<br />
A Catedral do Rio de Janeiro antes de se estabelecer<br />
na Esplanada de Santo Antônio, no centro de<br />
negócios da cidade, teve sua história marcada<br />
pela itinerância de 300 anos. Desde a criação da<br />
Diocese em 1676, até a inauguração da Catedral<br />
Metropolitana, em 1976, a Catedral foi abrigada por<br />
três igrejas de irmandades, Santa Cruz dos Militares,<br />
Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e Nossa Senhora<br />
do Carmo da Antiga Sé. Além destas ainda houve<br />
um pleito pela igreja da Candelária e três projetos<br />
desenvolvidos, mas nenhuma dessas ações foram<br />
concretizadas (Figura 1). Sua tipologia foi desde a<br />
tradicional igreja colonial até o edifício moderno. O<br />
centro da cidade modernizou-se através das grandes<br />
avenidas e a Catedral Metropolitana atual traduz<br />
V14 N2<br />
revista de pesquisa em arquitetura e urbanismo instituto de arquitetura e urbanismo iau-usp<br />
67
Um paradoxo patrimonial: a Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro<br />
Figura 1: Mapa com a localização<br />
das Igrejas que foram<br />
Catedral após saída da Igreja<br />
de São Sebastião no Morro<br />
do Castelo. Fonte: Mapa<br />
realizado pelos autores sobre<br />
imagem do Google Maps.<br />
esse período de transformações modernistas em<br />
que o antigo dava espaço ao novo, e o moderno<br />
traduzido através da cidade espetáculo. O edificio<br />
impõe-se pela escala e sua forma insólita, alterando<br />
o paradigma tipológico consagrado na construção<br />
de edificações religiosas no Rio de Janeiro colonial.<br />
A Diocese do Rio de Janeiro foi criada em 1676, ato<br />
instituído pelo Papa Inocêncio XI no Reinado de D.<br />
Pedro II, de Portugal. Quando da criação do bispado,<br />
a Matriz do Rio de Janeiro funcionava na modesta<br />
igreja de São Sebastião no Morro do Castelo. Essa<br />
igreja (Figura 2) foi construída por Salvador Correia<br />
de Sá em 1583 para onde foram levados os restos<br />
mortais de Estácio de Sá, fundador da cidade.<br />
Este simples templo tombou destruído com o arrasamento<br />
do Morro do Castelo em 1922, mas antes<br />
disso já estava em condições precárias de abandono.<br />
Com a expansão urbana da cidade do Rio de Janeiro<br />
começou-se o estabelecimento nas várzeas. Esse<br />
deslocamento fez com que os Ministros da Sé e<br />
Bispos começassem a achar longe e difícil o acesso<br />
à Catedral no Morro do Castelo e foi sendo aos<br />
poucos abandonada. No início do século XVIII já se<br />
pensava na mudança da Sé para a planície.<br />
A falta de construção de uma igreja própria para a<br />
Catedral levou os Bispos fluminenses a pleitearem<br />
igrejas de Irmandades. Essa tarefa não foi fácil, pois<br />
os membros das Irmandades fugiam da convivência<br />
com o Cabido.<br />
Em 1702 foi pedido para que a Sé mudasse para<br />
a igreja de São José, mas também foi cogitado um<br />
projeto para a Sé em 1703. A igreja de São José não<br />
foi aceita e a igreja da Irmandade da “Santa Cruz dos<br />
Militares” foi cotada desde que se fizesse o Cruzeiro<br />
com Capela Mor, Sacristia, Sala de reunião do Cabido<br />
aproveitando o corpo do templo. Nesse meio tempo a<br />
igreja da Candelária (Figura 3) também foi pleiteada,<br />
tendo seu consentimento em 1721, mas a mudança<br />
nunca ocorreu. Em 1733 a Sé é transferida para a<br />
igreja Santa Cruz dos Militares (Figura 4) de fato. No<br />
entanto, não foi uma estadia tranquila.<br />
A Igreja Santa Cruz dos Militares, pela precariedade,<br />
não aguentou os arranjos para tornar-se a Catedral,<br />
e estava prestes a ruir quando os Cônegos foram<br />
transferidos interinamente para rezar na Igreja N.<br />
Sra. do Rosário dos Pretos (Figura 6) em 1737; ato<br />
que se tornou definitivo em 1739. E, mesmo sob<br />
protestos, aí permaneceu até a chegada da Família<br />
Real em 1808. No entanto, o pleito para um projeto<br />
para a Sé foi aceito e, em 1749, definiu-se o terreno<br />
no atual Largo de São Francisco, onde foi lançada<br />
a pedra fundamental para construção da nova Sé<br />
(Figura 7).<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
68
Um paradoxo patrimonial: a Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro<br />
Figura 2 (topo): Igreja de São<br />
Sebastião no Morro do Castelo.<br />
Fonte: .<br />
Figura 3 (centro): Igreja da<br />
Candelária (N o 1 no Mapa).<br />
Fonte: .<br />
Figura 4: Igreja Santa Cruz<br />
dos Militares (N o 2 no Mapa).<br />
Fonte: Fotografia realizada<br />
pelo autor, jan 2013.<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
69
Um paradoxo patrimonial: a Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro<br />
Figura 5 (topo): Igreja do<br />
Carmo (N o 5 no Mapa). Fonte:<br />
Fotografia realizada pelo<br />
autor, jan 2013.<br />
Figura 6 (esquerda): Igreja<br />
Nossa Senhora do Rosário<br />
dos Pretos (N o 3 no Mapa).<br />
Fonte: Fotografia realizada<br />
pelo autor, jan 2013.<br />
Figura 7 (direita): Igreja<br />
São Vicente de Fora, fachada<br />
principal, Armando Serôdio,<br />
1960 – inspiração para o projeto<br />
(N o 4 no Mapa). Fonte:<br />
.<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
70
Um paradoxo patrimonial: a Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro<br />
A planta da igreja foi realizada pelo Sargento-Mor<br />
Carlos Manuel e as obras se arrastaram até 1752.<br />
As obras ficaram paralisadas por 44 anos, pois o<br />
Estado estava mais preocupado com as fronteiras do<br />
que com a construção de uma nova Sé. O Cabido,<br />
cansado de esperar, ainda conseguiu levar a obra<br />
até 1797, mas nessa data a obra parou novamente e<br />
acabou abrigando a Academia Militar após reforma.<br />
Com a chegada à cidade da Família Real, esta não<br />
deveria frequentar a igreja de pretos, e o Rei ordena<br />
que os Carmelitas sejam desalojados de seu convento<br />
para que D. Joãoelevasse a igreja anexa a Capela<br />
Real. Portanto, a Igreja do Carmo (Figura 5) não foi<br />
elevada a Catedral, mas a Capela Real. E a partir daí<br />
todas as grandes solenidades da Corte foram feitas na<br />
Capela Real. Em 1818 nela foi realizada a Sagração<br />
de D. João VI – Rei de Portugal, Brasil e Algarves,<br />
a única sagração de um Rei europeu realizada em<br />
terras americanas. Nela foram Sagrados os dois<br />
Imperadores do Brasil: D. Pedro I em dezembro de<br />
1822, quando ela passou a ser a Capela Imperial e<br />
D. Pedro II então com apenas 15 anos em julho de<br />
1841.Com a Proclamação da República a Igreja sofreu<br />
uma restauração e em 1900 foi reinaugurada como<br />
a Catedral Metropolitana, com grandes solenidades,<br />
em celebração do Quarto Centenário da Descoberta<br />
do Brasil.Já na República, o Prefeito Pereira Passos<br />
exigiu reformas externas que levaram sua feição<br />
simples colonial a pretensões renascentistas de<br />
gosto duvidoso.<br />
Além da itinerância da Catedral pelas igrejas e da obra<br />
iniciada no atual Largo de São Franscisco, ainda foram<br />
feitos dois projetos para a construção da Catedral<br />
do Rio de Janeiro. Um deles ainda levava em conta<br />
o Morro de Santo Antônio colocando a Catedral<br />
no cume do morro. Já o segundo projeto estava<br />
dentro das diretrizes do projeto de remodelação<br />
e embelezamento da cidade do Rio de Janeiro<br />
inspirado na Europa, precisamente em Paris/França<br />
que abriam grandes avenidas e visadas.<br />
No entanto, a idéia da construção de uma Catedral<br />
não havia terminado, mas era necessário encontrar<br />
um terreno já que a construção no Largo de São<br />
Francisco foi requisitado por Dom João VI para a<br />
criação da Academia Militar e desde aqueles tempos<br />
estaba ocupado. Havia uma urgência nesse projeto<br />
em função dos festejos dos 400 anos de fundação<br />
da Cidade, pois era necessário construir um “templo<br />
que seja um escrínio de sua arte, de sua história, da<br />
sua fé” (CALLIARI, 1977, pg. 63).<br />
O Rio de Janeiro nasceu também sob o signo<br />
bendito da Cruz; mas... até hoje, depois de inúmeras<br />
tentativas, continuamos sem Catedral, porque até<br />
hoje os poderes públicos não nos fizeram justiça,<br />
pela desapropriação da que estava em construção na<br />
praça Real da Sé Nova, hoje Largo de São Francisco.<br />
(CALLIARI, 1977, pg. 64)<br />
Por esse motivo, pela tradição histórica de todas as<br />
cidades do Brasil, pelo exemplo dado pelo Governo<br />
Federal, em Brasília, doando terreno para 20 igrejas,<br />
inclusive a Catedral, pelo princípio de democracia,<br />
pois esse é o desejo de todos os católicos, que<br />
passam de 85% da população carioca, pedimos<br />
que a V. Excia. Sr. Governador do Estado, haja por<br />
bem enviar uma mensagem à Câmara do Estado,<br />
solicitando autorização para doar um terreno no<br />
centro urbano em que se construa a Catedral do<br />
Rio de Janeiro. Caso não seja pedir demais, tomo<br />
a liberdade de o localizar na esplanada do morro<br />
de Santo Antônio, pois a sua área não está ainda<br />
entregue ao uso público. Além disso, nela podem<br />
ser logo iniciados os trabalhos de construção por<br />
se achar livre e desimpedida; e pela exigüidade de<br />
tempo, urge o início das obras. (CALLIARI, 1977,<br />
pg. 65)<br />
Em 1960 saiu publicado no Diário Oficial o Projeto de<br />
Lei doando o terreno para a construção da Catedral<br />
e edifícios assistenciais. E após 300 anos finalmente<br />
a cidade do Rio de Janeiro teria sua Catedral.<br />
Um insólito edifício<br />
O partido arquitetônico da Catedral nasce em 1956,<br />
em Zipaquirá, Colômbia. Dom Jaime de Barros<br />
Câmara se encanta com a “Catedral do Sal” e ao<br />
voltar sugere que se faça o mesmo no Rio de Janeiro<br />
no morro da Babilônia ou na pedreira da Favela, na<br />
altura do Mangue. No entanto, uma obra desse<br />
porte no morro da Babilônia ficaria muito caro.<br />
Pelo décimo do preço poderíamos construir uma de<br />
cimento, em forma de cruz, cujas paredes subiriam<br />
até a altura do raio do círculo. Círculo que a cada<br />
dois metros – em aros também de 2 metros – elevarse-iam<br />
formando a cobertura: assim como uma<br />
cúpula. (CALLIARI, 1977, pg. 81)<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
71
Um paradoxo patrimonial: a Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro<br />
Figura 8: Pirâmide Maia - inspiração.<br />
Fonte: .<br />
Foram montadas duas maquetes: uma de 50 metros<br />
de altura e outra de 100 metros, ambas com o<br />
diâmetro externo de 100 metros. Aquela desagradou,<br />
ficava acachapada. A outra, pareceu melhor. E ficou<br />
exposta no dia do lançamento da 1ª pedra, à 20<br />
de janeiro de 1964, diante da grande multidão que<br />
acompanhara a procissão do Santo Padroeiro, e se<br />
postara ao longo do imenso círculo dos alicerces.<br />
(CALLIARI, 1977, pg. 81)<br />
O projeto definitivo foi confiado ao arquiteto Edgar<br />
de Oliveira da Fonseca; o engenheiro foi Newton<br />
Sotto Maior e o mestre de obras, Joaquim Corrêa;e<br />
o executor das obras, o secretário particular do<br />
Cardeal Câmara, Monsenhor Ivo Antonio Calliari.<br />
No entanto, o gobernador Carlos Lacerda criticou a<br />
maquete da nova Catedral. E a situação se complica,<br />
pois ele deveria aprovar as plantas para o início da<br />
obra. Monsenhor Calliari estava no escritório da<br />
firma Severo e Villares folheando uma revista maia<br />
quando se deparou com uma pirâmide escalonada.<br />
De que maneira conjugar o círculo e a cruz foi o<br />
desafio enfrentado até delinear a Catedral que<br />
aí está, de estilo tão diferente de todas as igrejas<br />
construídas conforme os padrões convencionais.<br />
E esse desafio encontrou resposta e inspiração na<br />
pirâmide que os Maias construíram na Península de<br />
Yucatán, no México. Na base, a pirâmide é quadrada<br />
e larga, mas se estreita a medida em que sobe, até<br />
tomar, no topo, a forma de um platô. (CALLIARI,<br />
1977, pg. 82) (Figura 8)<br />
Foi chamado o arquiteto e as modificações foram<br />
feitas de acordo com a nova inspiração. O projeto<br />
novo foi aprovado e, em 1965, o alvará para início<br />
das obras foi assinado.<br />
Diferentemente das pirâmides dos Maias, ela tem<br />
forma circular e cônica para significar a eqüidistância<br />
e proximidade das pessoas em relação a Deus,<br />
lembrando um pouco também a mitra usada pelos<br />
bispos nas cerimônias mais solenes; Deus, – como<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
72
Um paradoxo patrimonial: a Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro<br />
Figura 9: Catedral concluída.<br />
Fonte: .<br />
que “desce” das alturas para vir ao encontro do<br />
homem – é simbolizado pela luz que se esparrama<br />
dos quatro braços da cruz, à qual domina grande<br />
parte do teto e tem o seu prolongamento nos quatro<br />
vitrais que se ligam aos pórticos. (PORTAL UM, 2011)<br />
A Catedral tem as seguintes medidas: 75 metros<br />
de altura externa e 64 metros de altura interna,<br />
106 metros de diâmetro externo e 96 de diâmetro<br />
interno (Figuras 10, 11 e 12), cada vitral: 64,50<br />
x 17,80 x 9,60 metros; área de 8.000 m2, com<br />
capacidade para abrigar 20.000 pessoas em pé ou<br />
5.000 sentadas. Uma Catedral imponente enquanto<br />
marco na cidade, mas que não tem aceitação<br />
favorável por parte da população em função de<br />
seu partido arquitetônico (Figura 9).<br />
No entanto, quem consegue deixar de lado a primeira<br />
impressão negativa do edificio e transpõe o espaço<br />
profano que a cerca, desfruta de um espaço sagrado<br />
muito significativo. O interior da igreja enquanto<br />
representação do Universo fica patente na sua forma<br />
circular quando se transpõe a porta principal, pois<br />
o altar em seu centro encimado pela cruz grega<br />
de grandes proporções eleva o usuário ao mundo<br />
sagrado onde o profano é transcendido. Seus vitrais<br />
coloridos projetam cores diferentes nos diferentes<br />
horários do dia criando uma atmosfera sagrada.<br />
Estamos falando da recriação do universo religioso<br />
no centro de negocios da cidade do Rio de Janeiro,<br />
onde homens modernos circulam com seus passos<br />
apressados sem momentos de descompressão.<br />
Portanto,<br />
Esse homem moderno precisa, talvez ainda mais<br />
do que seus antepassados, de um local onde possa<br />
refugiar-se do ruído da cidade moderna, para<br />
sentir, no silêncio e na tranqüilidade, a realidade<br />
sobrenatural, sobre a qual repousa nossa existência.<br />
Na igreja o homem procura a solidão para escutar<br />
a Deus, trocar confidências mútuas e confiantes,<br />
seguras e benévolas. Os pensamentos, as preces,<br />
ele os pode dirigir a Deus, também, em outro lugar.<br />
Mas não há dúvida de que o ambiente da igreja<br />
pode e deve favorecer o recolhimento, a meditação,<br />
a oração. (SCHUBERT, 1977, p. 25)<br />
A Catedral Metropolitana proporciona esse recolhimento<br />
desde que se consiga transpor varios<br />
obstáculos urbanísticos causados pelo número<br />
elevado de carros, a falta de um passeio agradável e a<br />
visão do edificio “brotando” de um estacionamento.<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
73
Um paradoxo patrimonial: a Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro<br />
Figura 10 (topo): Fachada<br />
esquemática da Catedral Metropolitana.<br />
Fonte: Autores<br />
sobre Arquivo da Cúria.<br />
Figura 11 (centro): Térreo<br />
da Catedral Metropolitana.<br />
Fonte: Autores sobre Arquivo<br />
da Cúria.<br />
Figura 12: Subsolo da Catedral<br />
Metropolitana. Fonte:<br />
Autores sobre Arquivo da<br />
Cúria.<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
74
Um paradoxo patrimonial: a Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro<br />
Mapa 1: Morros que delimitavam<br />
a cidade colonial<br />
junto ao litoral. Fonte: Sisson,<br />
2008, p. 12.<br />
Uma difícil localização<br />
Após 300 anos de itinerância a Catedral finalmente<br />
recebe um lote na Esplanada de Santo Antônio para<br />
sua construção e anexos. O que hoje conhecemos<br />
como Esplanada de Santo Antônio já foi outrora um<br />
lugar chamado Morro de Santo Antônio. O morro<br />
de Santo Antônio faz parte do conjunto de morros<br />
que delimitava o início da cidade colonial junto ao<br />
litoral (Mapa 1). Além dele ainda havia o morro do<br />
Castelo, do Senado, Conceição e São Bento. Desses<br />
cinco morros, atualmente permanecem o morro de<br />
São Bento, morro da Conceição e da Providência.<br />
O morro de Santo Antônio recebeu esse nome<br />
em função da ermida destinada a Santo Antônio,<br />
construída ao sopé do morro às margens da lagoa<br />
de mesmo nome. Com o aterro da lagoa, o espaço<br />
criado ficou conhecido como Campo de Santo<br />
Antônio. Esse nome só foi mudado para Largo da<br />
Carioca em 1723 com a inauguração do Chafariz<br />
que trazia água do rio Carioca.<br />
A questão referente ao arrasamento do morro de<br />
Santo Antônio vem desde os tempos da Regência<br />
em 1837, mas só em 1850, com o aparecimento<br />
da febre amarela, o Visconde de Barbacena cogitou<br />
organizar uma empresa para o arrasamento do<br />
morro de Santo Antônio. Os motivos eram higiene e<br />
salubridade pública, pois os médicos e engenheiros<br />
achavam que o morro impedia que os ares frescos do<br />
mar adentrassem ao interior da cidade. No entanto<br />
parte de seu desmonte só foi acontecer de fato<br />
na década de 60 graças à política de urbanismo<br />
importado da Europa onde se abriam grandes visadas<br />
na cidade em detrimento de seu tecido histórico.<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
75
Um paradoxo patrimonial: a Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro<br />
Esse local sofreu várias intervenções urbanas que<br />
culminaram numa perda de identidade. A área<br />
fazia parte de uma paisagem significante, de um<br />
‘lugar’ da cidade do Rio de Janeiro. A falta de uma<br />
identidade definida, no entanto, não significa uma<br />
falta de potencial para tornar-se um lugar, pois a<br />
área em questão possui uma história cultural a ser<br />
contada e vivida pelos indivíduos que ali freqüentam<br />
ou transitam. No entorno encontramos edifícios de<br />
prestígio, além da própria Catedral Metropolitana. A<br />
área é também um ponto central que liga fisicamente<br />
vários ‘lugares’ do centro da cidade como Lapa,<br />
Cinelândia, Praça Tiradentes, Largo da Carioca e<br />
Rua do Lavradio, mas que não exerce nenhum poder<br />
imagístico de identidade sobre as pessoas que ali<br />
frequentam. (SOUZA, 2011, p. 2)<br />
O projeto inicial, desejo do Governador Carlos<br />
Lacerda, seria transformar a Esplanada de Santo<br />
Antônio num grande parque onde a Catedral entraria<br />
como elemento principal no centro do terreno, mas<br />
não foi o que aconteceu, pois o mesmo foi sendo<br />
diminuído pelo Estado a cada modificação de<br />
projeto. E a Catedral acabou dividindo seu espaço<br />
com os edifícios da Telefônica, Petrobrás, BNH e<br />
BNDES. E a Esplanada de Santo Antônio foi sendo<br />
desmantelada a cada vez que o Estado precisava de<br />
dinheiro assim como a área que seria destinada aos<br />
prédios assistenciais também foi vendida. Antes que<br />
a Catedral fosse ainda mais sufocada, delimitaram<br />
uma área de entorno imediato.<br />
Mesmo com a definição do terreno, os problemas<br />
para a construção da Catedral não se extinguiram.<br />
A Catedral acabou sendo construída não no centro<br />
do terreno, mas num lote dentro da Esplanada de<br />
Santo Antônio. O espaço sagrado foi profanado<br />
antes mesmo de ser concluído. Esse é um ponto<br />
interessante da implantação da Catedral, pois como<br />
diz Eliade, “O homem toma conhecimento do<br />
sagrado porque este se manifesta, se mostra como<br />
algo absolutamente diferente do profano”. (ELIADE,<br />
1992, p. 15) No caso da Catedral, no entanto, a<br />
igreja nasce num mar de carros e encarcerada entre<br />
grades. A Catedral tornou-se um marco turístico,<br />
um asterisco no mapa de turismo, mas não confere<br />
à área uma identidade enquanto marco religioso.<br />
Esta área, considerada por muitos como um vazio<br />
urbano, é caracterizadapela dicotomia Rio Antigo<br />
e Rio Contemporâneo. O Rio contemporâneo traz<br />
comorepresentantes edifícios institucionais já citados<br />
e o Rio antigo pelo que sobrou docasario na Rua<br />
do Lavradio e Rua dos Arcos. A área ficou entre a<br />
política dapreservação do patrimônio e a política<br />
do ‘arrasa-quarteirão’, bem marcada noprojeto<br />
traçado por Reidy5 em 1948 para a Esplanada de<br />
Santo Antônio, que não foifinalizado, mas que foi<br />
forte influência para o que hoje existe. A Catedral<br />
também fazparte desse plano, caracterizado pela sua<br />
escala e imponência como marco de umaavenida<br />
moderna. (SOUZA, 2011, p. 4)<br />
Segundo Eliade, o espaço sagrado representa o<br />
centro do Cosmos onde o Templo é a imagem<br />
santificada da representação desse Cosmos. Tudo<br />
que está fora desse Centro representa o espaço<br />
profano. No caso da Catedral, a representação do<br />
sagrado apesar de imponente, se revela impotente<br />
perante o espaço profano que a cerca.<br />
[...] a irrupção do sagrado não somente projeta um<br />
ponto fixo no meio da fluidez amorfa do espaço<br />
profano, um “Centro”, no “Caos”; produz também<br />
uma rotura de nível, quer dizer, abre a comunicação<br />
entre os níveis cósmicos (entre a Terra e o Céu) e<br />
possibilita a passagem, de ordem ontológica, de um<br />
modo de ser a outro. (ELIADE, 1992, p. 55)<br />
O entorno da Catedral, que possibilitaria a transição<br />
do espaço profano para o sagrado, lhe foi tirado. A<br />
igreja deveria se constituir numa rotura no espaço<br />
profano da cidade. E a Catedral enquanto marco,<br />
representa bem esse papel, mas sua localização<br />
dificulta sua utilização enquanto rotura do tempo<br />
profano, pois as pessoas não são atraídas a transpor<br />
o portal que as levará ao tempo sagrado (Figura 13).<br />
A catedral profanada<br />
Quando em 1959, Juscelino Kubitschek inaugura a<br />
Avenida Chile, a nova Esplanada de Santo Antônio<br />
constituía uma espécie de vazio urbano no centro<br />
da cidade. Nos anos sessenta começou a ocupação<br />
da Esplanada, sem nenhum projeto urbanístico<br />
(SEGRE, 2000, p. 18). A Prefeitura, aleatoriamente,<br />
foi entregando a diferentes instituições parcelas de<br />
terrenos para assentar as suas sedes. E a primeira foi<br />
a Catedral Metropolitana, em uma área cedida pelo<br />
governador Carlos Lacerda em 1963. Curiosamente,<br />
o maior templo religioso do Brasil surgiu no Rio de<br />
Janeiro e não em Brasília, reafirmando a sua vocação<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
76
Um paradoxo patrimonial: a Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro<br />
Figura 13: Relação do espaço<br />
sagrado e profano. Fonte:<br />
.<br />
religiosa neste tradicional espaço “sagrado”, já<br />
conformado no diálogo histórico entre a natureza<br />
e o Convento de Santo Antônio.<br />
Com o início do regime militar em 1964, a Esplanada<br />
de Santo Antônio se transformou no espaço em<br />
que se estabeleceu um diálogo contraditório entre<br />
o “sacro” e o “profano”. Imaginando a criação de<br />
um centro administrativo de abrangência nacional,<br />
o governo militar decidiu localizar na Esplanada<br />
três das mais importantes instituições estatais:<br />
a Petrobrás; o Banco Nacional de Habitação e o<br />
BNDES. Em 1966, ganham o concurso para a sede<br />
da Petrobrás os arquitetos de Paraná, Roberto Luis<br />
Gandolfi, José H. Sanchotene, Abraão Assad e Luis<br />
Forte Netto. Pela sua originalidade, com a forma<br />
de um volume cúbico perfurado por vazios que<br />
definem áreas abertas de convivência –previstos<br />
com antecedência á preocupação atual dos edifícios<br />
verdes –; as fachadas com brises e o releve do friso da<br />
cornija, constitui o prédio mais icônico da Esplanada,<br />
ao diferenciar-se das tradicionais lâminas de aço e<br />
vidro. Posteriormente, em 1968, surgiu a sede do<br />
BNH, projeto de Haroldo Cardoso de Souza e Rogério<br />
Marques de Oliveira (XAVIER, 1991, p.135). Aqui a<br />
tradicional lâmina de vidro se divide em dois subvolumes,<br />
articulados por um núcleo central fechado<br />
de concreto armado que contém as circulações e os<br />
serviços. Finalmente, em 1974, a equipe formada<br />
por Alfred Willer, Ariel Stelle, Joel Ramalho Jr., José<br />
Sanchotene, Leonardo Oba, Oscar Mueller e Rubens<br />
Sanchotene, obtém o primeiro prêmio no concurso<br />
para a sede do BNDES, o mais luxuoso e sofisticado<br />
edifício da Esplanada (CZAJKOWSKI, 2000, p.36).<br />
A alta torre cúbica de vidro preto se levanta sobre<br />
um núcleo central que a separa nitidamente do<br />
embasamento. O maior interesse do prédio é a<br />
articulação do embasamento com as encostas<br />
remanescentes do Morro que pertencem ao espaço<br />
verde do Convento de Santo Antônio, e a sua<br />
continuidade com o espaço público do Largo da<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
77
Um paradoxo patrimonial: a Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro<br />
Figura 14: Skyline da área.<br />
Fonte: Material produzido<br />
para a tese de Doutorado (em<br />
andamento) de Estela Maris<br />
de Souza - Autores: Estela<br />
Maris de Souza e Leonardo<br />
Falcão.<br />
Carioca. A ratificação da “capitalidade” perdida do Rio<br />
de Janeiro, que devia fortalecer-se com a iconicidade<br />
deste novo conjunto administrativo nacional, não<br />
se concretizou, já que o vazio da Esplanada não<br />
foi nunca preenchido, mantendo-se isolados estes<br />
“elefantes brancos” no centro da cidade. Apesar<br />
da existência de alguns projetos elaborados após a<br />
volta da democracia, que procuraram recuperar a<br />
dimensão social da Esplanada, nada foi concretizado,<br />
continuando a ocupação do espaço com novas torres<br />
como o edifício Metropolitan (1991) e o conjunto<br />
recente Corporate Ventura Towers (2007).<br />
A forte impressão da espacialidade interna da Catedral<br />
contrasta com o vazio urbano e com a falta de uma<br />
praça monumental que valorize a sua presença, que<br />
existia na primeira proposta aprovada por Lacerda.<br />
Assim, a edificação que foi idealizada como um<br />
grande cone em uma esplanada ficou cercada, cingida<br />
e contida pelas grandiosas edificações “laicas”. O<br />
adro que estabeleceria um reforço formal ao acesso<br />
principal nunca foi estabelecido. De fato, o que se<br />
tem é uma extensão mal definida de espaço com<br />
áreas verdes precárias, uma terra de ninguém tomada<br />
por uma quantidade absurda de carros estacionados.<br />
Situada no cruzamento das Avenidas Chile e Paraguai,<br />
não se percebe uma clara estrutura compositiva que<br />
permita identificar a presença de um templo em um<br />
espaço predominantemente laico.<br />
Talvez se deva reconhecer que a preterida Catedral<br />
não consegue adquirir a significação de um<br />
espaço religioso, assim como os prédios altos da<br />
Esplanada, que além de um alinhamento medíocre<br />
não apresentam nenhuma conformação urbana<br />
consequente, não preenchendo o vazio urbano.<br />
Desafortunadamente, o predomínio do profano<br />
confuso e desarticulado sobre o sacro acabrunhado,<br />
acabou por profanar a simplicidade simbólica do<br />
sagrado. (Figura 14)<br />
Complexidades urbanas do<br />
patrimônio<br />
Dentro deste contexto de vazio urbano é necessário<br />
reconhecer as dicotomias causadas pelo patrimonio<br />
material representados pelos edificios construídos<br />
na década de 70 e principalmente sua relação<br />
com o entorno, no caso Catedral Metropolitana e<br />
transeuntes. Para tanto, Françoise Choay (CHOAY,<br />
2001: 128) salienta a distinção que se faz necessária<br />
entre o valor cognitivo e o valor artístico de um<br />
monumento. Se o primeiro o acompanha ao longo<br />
de toda a sua história, o segundo lhe é agregado ou<br />
subtraído com o passar do tempo. Vale dizer que<br />
determinados monumentos são reconhecidos como<br />
tais e com tal valor desde sua edificação, enquanto<br />
que a passagem do tempo pode acrescentar-lhe<br />
ou diminuir-lhe o valor artístico.<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
78
Um paradoxo patrimonial: a Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro<br />
O valor cognitivo é dado de per se, pela construção<br />
histórica e pelo nível de informação que se passa à<br />
população, enquanto que o segundo partirá sempre<br />
de um parâmetro comparativo, especialmente com<br />
outros monumentos ou edificações construídos<br />
no entorno, principalmente no entorno imediato.<br />
Citando Paolo Rossi,<br />
“O tempo possui uma direção e uma flecha. Escorre<br />
de alguma coisa para outra coisa. Na visão linear do<br />
tempo, é proibida qualquer repetição. Trabalha-se<br />
somente com eventos singulares, individuais, não<br />
repetitíveis, cada um se posicionando num ponto<br />
determinado da flecha. Porém, muitos afirmaram que<br />
pedaços do passado se reapresentam no presente,<br />
dando lugar a renascimentos ou a retornos. Na ideia<br />
do retorno está implícita a de uma volta e de uma<br />
repetição, de uma não unicidade e não repetitibilidade<br />
dos eventos, de possíveis uniformidades ou<br />
leis do devir. A metáfora da flecha se mistura, de<br />
modos imprevistos e complicados, à do ciclo”.<br />
(ROSSI, 2007:129-130)<br />
No Rio de Janeiro, a questão do ambiente construído<br />
sempre se revestiu de complexidade,<br />
com um dado especial que é a exuberância do<br />
patrimônio natural. Por vezes, tentou-se competir<br />
com a beleza da natureza; outras vezes, tentou-se<br />
fazer que o ambiente construído se integrasse, sem<br />
competir, com o ambiente natural. O centro da<br />
cidade do Rio de Janeiro, onde se iniciou o processo<br />
de ocupação e colonização da cidade, sofreu<br />
inúmeras intervenções que descaracterizaram<br />
por completo a paisagem natural e estabeleceu<br />
uma competição, muitas vezes predatória, entre<br />
o novo e o antigo.<br />
Assim, a compreensão das complexidades urbanas<br />
do patrimônio não pode ser reduzida à questão da<br />
historicidade ou beleza da edificação, mas deve<br />
abranger a implantação urbana da mesma e sua<br />
percepção pela população da cidade. A questão<br />
tem seu foco deslocado para a questão de como as<br />
pessoas percebem ou utilizam aquele monumento;<br />
se o valor que lhe é dado é unicamente simbólico<br />
ou se lhe é agregado valor histórico e artístico.<br />
Entendendo-se a cidade como um organismo vivo,<br />
com dinâmicas endógenas e exógenas, a questão<br />
do patrimônio torna-se ainda mais complexa, pois<br />
que ele figuraria como a cristalização em meio a<br />
um ambiente essencialmente fluido.<br />
Citando Maria Cecília Fonseca, há que se fazer a<br />
distinção entre bem cultural e bem patrimonial:<br />
“Ao se considerar um bem como bem cultural, ao<br />
lado de seu valor utilitário e econômico (valor de<br />
uso enquanto habitação, local de culto, ornamento<br />
etc. -... -) enfatiza-se seu valor simbólico, enquanto<br />
referências a ordem da cultura” (FONSECA, 2009:42).<br />
Neste sentido, e pelo que se exporá a seguir, podese<br />
classificar a Catedral do Rio de Janeiro como um<br />
bem cultural.<br />
Ainda Françoise Choay destaca, na integração do<br />
patrimônio com a vida contemporânea, ao tratar<br />
da reutilização, que “as verdadeiras dificuldades<br />
surgem quando se trata de dar uma destinação aos<br />
velhos edifícios religiosos, de culto ou conventuais”<br />
(CHOAY, 2001, 221). Tal questão não envolveu as<br />
diversas igrejas que abrigaram a Catedral do Rio de<br />
Janeiro nem tampouco a atual Catedral.<br />
A Catedral do Rio de Janeiro sempre esteve abrigada<br />
em igrejas, como descrito no início deste artigo, que,<br />
com exceção da primeira Igreja de São Sebastião,<br />
ainda existem preservadas e na sua funcionalidade.<br />
A questão parece ser outra, de caráter subjetivo,<br />
que é a percepção por parte dos utilizadores – os<br />
fiéis católicos – e da população como um todo de<br />
que aquele prédio é sua Igreja Matriz, vale dizer sua<br />
Igreja-Mãe, aquele edifício que seria a epítome de<br />
sua catolicidade.<br />
No Rio de Janeiro, os sucessivos Planos Diretores<br />
descaracterizaram a fisionomia do Centro da<br />
cidade, tanto arquitetônica e urbanisticamente<br />
quanto topograficamente. Intervenções duras que<br />
causaram o aumento da complexidade do diálogo do<br />
patrimônio. E ao se falar em diálogo, é importante<br />
lembrar que esse diálogo é feito entre o edifício/<br />
monumento de interesse patrimonial e os edifícios<br />
vicinais como também entre ele e o entorno urbano,<br />
imediato e a cidade como um todo.<br />
É inegável a matriz européia do Brasil, sem que aqui<br />
se faça referência à colonização portuguesa; mas se<br />
levarmos em consideração o Brasil independente,<br />
especialmente o Segundo Reinado, veremos que<br />
este sempre se colocou “de costas para o Brasil<br />
e de frente para a Europa”, na frase de Oliveira<br />
V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
79
Um paradoxo patrimonial: a Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro<br />
Viana, repetida na música de Milton Nascimento<br />
e Fernando Brandt que dizia “ficar de frente pro<br />
mar, de costas pro Brasil”, com a monarquia<br />
brasileira buscando “afrancesar-se”, querendo ser<br />
(e tornando-se culturalmente) muito mais Orléans<br />
do que Bragança. Os republicanos, que tentaram<br />
a todo custo dar uma cara brasileira à República,<br />
buscaram exatamente na França e nos Estados<br />
Unidos o modelo político e cultural a seguir. De<br />
certo modo, pode-se dizer que deixamos de ser<br />
monárquicos, mas nos mantivemos “franceses”.<br />
Desta forma, muito do disposto na Conferência de<br />
Atenas sobre a conservação de monumentos de arte<br />
e de história, realizada em 1931, aplica-se ao Brasil,<br />
ainda que o Brasil ou países de quaisquer outros<br />
continentes que não a Europa se fizesse presente.<br />
De um modo especial, a ênfase na ação do poder<br />
público não apenas no aspecto da preservação,<br />
mas também na educação, sobretudo dos mais<br />
jovens, como citado na Resolução da Comissão<br />
Internacional para a Cooperação Intelectual, de<br />
1932 (apud CHOAY, 2011:156-162, passim).<br />
Este parece ser o ponto para se reintroduzir a questão<br />
da Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro na<br />
discussão sobre o patrimônio construído. Dominique<br />
Poulot afirma que “qualquer tipo de patrimônio,<br />
tal como o entendemos atualmente, tem a vocação<br />
de encarnar uma identidade em certo número de<br />
obras ou de lugares” (POULOT, 2009:40).<br />
Tradicionalmente, as Igrejas Catedrais assumem nas<br />
cidades de matriz religiosa católico-romana, papel<br />
de centralidade. Desta forma, entende-se que a<br />
Catedral de S. Sebastião do Rio de Janeiro fosse<br />
sempre situada nos eixos centrais da cidade (quase a<br />
evocar a proximidade com o cardus e o decumanus<br />
das cidades romanas) ou próxima a eles. Se na Europa<br />
(Westminster, Colônia, Milão, Notre Dame de Paris<br />
etc.) as Catedrais têm o poder de agregar os fiéis<br />
em torno de si, como epítome da religiosidade,<br />
na América Latina também encontramos esses<br />
exemplos, como no caso da Catedral de Nossa<br />
Senhora de Guadalupe, na Cidade do México, na<br />
Catedral de Santa Rosa de Lima, no Peru, etc.<br />
Belém, Pará, que galvaniza multidões não somente<br />
durante o Círio (registrada como a maior festa<br />
católica do mundo), mas ao longo de todo o ano,<br />
sendo o referencial devocional da fé.<br />
Neste sentido, cumpre indagar como o povo da<br />
cidade do Rio de Janeiro percebe sua Catedral,<br />
qual a valoração que lhe dá. Não apenas os serviços<br />
religiosos dominicais não congregam grandes massas,<br />
como até mesmo a festa do Padroeiro da Cidade,<br />
que atrai uma multidão em sua saída da Igreja de<br />
S. Sebastião dos Frades Capuchinhos, na Tijuca, até<br />
sua chegada na Catedral, não tem grande entrada<br />
de fiéis nesta para o que seria o ato litúrgico maior,<br />
que seria a celebração da Missa. Estes se dispersam<br />
após o “Auto de S. Sebastião”, que recorda o<br />
martírio do santo.<br />
Esta não percepção da Catedral como igreja-mãe<br />
torna-a pouco representativa para a população de<br />
seu papel devocional.<br />
Ora, se não se presta ao papel cultual-devocional,<br />
a que linguagem de discurso pode ser vinculada<br />
a Catedral do Rio de Janeiro? Parece não restar<br />
dúvidas que ao discurso de poder. Ela é o sinal visível<br />
do Arcebispado do Rio de Janeiro em meio a uma<br />
implantação dominada pelas edificações seculares<br />
e profanas. Ou seja, ela representa o sagrado em<br />
meio ao profano, o poder eclesiástico em meio ao<br />
poder civil, seja ele político ou econômico. Neste<br />
sentido, ao dialogar com as outras edificações e com<br />
o entorno de sua implantação, a Catedral do Rio<br />
de Janeiro dialoga primeiramente consigo própria,<br />
reafirmando o que re(a)presenta no local onde está.<br />
Assim, o foco da complexidade dos diálogos do<br />
patrimônio no coração da Urbs desloca-se do antigo<br />
X moderno para o moderno sagrado X moderno<br />
profano. Ao mesmo tempo a arquitetura assume um<br />
valor simbólico particular atribuído pela significação<br />
que estabelece o uso social contido nos rituais e<br />
celebrações no espaço sagrado que constitui o<br />
patrimônio imaterial. Eis as razões pelas quais foi<br />
afirmado que a Catedral de S. Sebastião é antes um<br />
bem cultural do que um bem patrimonial.<br />
Por outro lado, no Brasil encontramos poucos<br />
exemplos dessa utilização simbólica nas grandes<br />
cidades, especialmente nas capitais. Um exemplo<br />
disso é a Basílica de Nossa Senhora de Nazaré, em<br />
Referências bibliográficas<br />
CALLIARI, Ivo Antonio. Trezentos anos depois. Rio de<br />
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V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
80
Um paradoxo patrimonial: a Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro<br />
Recebido [Jun. 22, 2016]<br />
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V14 N2<br />
artigos e ensaios<br />
81
transcrição<br />
Entrevista com John Friedmann<br />
Entrevista:<br />
Elisângela de Almeida Chiquito<br />
Arquiteta e Urbanista, pós-doutoranda no Instituto de<br />
Arquitetura e Urbanismo de São Carlos - IAU/USP, professora<br />
do Departamento de Planejamento Urbano da Escola de<br />
Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais, Rua<br />
Paraíba 697, Funcionários, Belo Horizonte, MG, Brasil,<br />
CEP 30130-140, lisalmeida@ufmg.br<br />
Tradução:<br />
Amanda Saba Ruggiero<br />
Revisão:<br />
Elisângela de Almeida Chiquito<br />
1 Em “Encounters with Development<br />
Planning”, palestra<br />
sobre sua trajetória proferida<br />
em 24 de maio de 2009 em<br />
Londres, Friedmann deu o<br />
seguinte depoimento: “ Durante<br />
semanas, eu vasculhei<br />
a biblioteca técnica da TVA<br />
procurando o Plano Diretor<br />
desta região, mas para meu<br />
espanto, não havia nada para<br />
ser encontrado. TVA era uma<br />
agência de planejamento<br />
com uma missão - sobre isso<br />
não havia dúvida. Mas o seu<br />
planejamento foi feito sem<br />
um plano regional abrangente.<br />
Eu estava atordoado<br />
por esta descoberta. Porque,<br />
se não havia nenhum plano,<br />
como era realizado o planejamento?<br />
Eu levaria décadas<br />
para encontrar a resposta<br />
desta pergunta, ou melhor,<br />
de como deveríamos pensar<br />
o planejamento.”<br />
2 O livro a que se refere é a<br />
publicação de sua tese de<br />
doutorado: FRIEDMANN, J.<br />
The spatial structure of economic<br />
development in the<br />
Tennesse Valley. A study in<br />
Regional Planning. Chicago:<br />
Un. Of Chicago Press, 1955.<br />
E<br />
ntrevista realizada em Vancouver, CA, em 8 de<br />
junho de 2015.<br />
Elisângela de Almeida Chiquito Inicialmente,<br />
gostaria de saber sobre o início de sua trajetória no<br />
planejamento regional, sobre sua primeira experiência<br />
prática junto ao Department of Regional Studies da<br />
Tennessee Valley Authority.<br />
John Friedmann O meu trabalho na TVA foi<br />
entre o mestrado e o doutorado. Minha pesquisa de<br />
doutorado ocorreu enquanto trabalhei na TVA. Vou<br />
mostrar a dissertação que foi fruto disso. [Levantase,<br />
desce a escada para buscar os livros, retorna] Eu<br />
associei a geografia, economia e planejamento. Ainda<br />
não era claro o que era planejamento naquela época. 1<br />
E é uma pergunta que ainda permanece, uma das<br />
minhas questões favoritas: o que é planejamento?<br />
A TVA foi o ponto inicial, a única coisa que eu sabia<br />
sobre desenvolvimento e planejamento regional.<br />
O conceito de desenvolvimento é muito novo. Em<br />
1965 havia só uma publicação em desenvolvimento<br />
econômico regional e transformações culturais,<br />
foi publicado em 1963/64. O primeiro periódico<br />
acadêmico em desenvolvimento regional foi pela<br />
universidade de Chicago. Este foi um período<br />
interessante para mim, de encontrar um caminho<br />
para se pensar. Parecia quase como uma teoria<br />
secreta que teria de ser revelada, de como promover<br />
o desenvolvimento. Depois percebi que tudo estava<br />
errado! Mas foi de onde partimos. E claro,<br />
uma maneira de compreender isso foi através da<br />
história, da história comparativa. E outro modo foi<br />
experimentar isso pela prática profissional, e eu<br />
tive ambos.<br />
A questão central era: o que é planejamento?<br />
Planejamento era visto como uma nova tecnologia,<br />
uma tecnologia que, quando você a juntava<br />
ao dinheiro, isso se transformava e gerava desenvolvimento.<br />
Claro que hoje sabemos que não é<br />
tão simples, mas era no que se acreditava naqueles<br />
tempos.<br />
Bom, devo mostrar-lhe o livro 2 , talvez fique mais<br />
claro. Este livro que você está vendo é resultado<br />
do que aprendi na Universidade de Chicago. Foi<br />
uma tentativa de reinterpretar a experiência de<br />
planejamento do Tennessee Valley Authority, do<br />
ponto de vista do planejamento dos recursos, que<br />
significava capturar a força do rio para navegação,<br />
controle de enchentes, recreação e uso da terra. Esses<br />
quatro elementos, juntamente com o manejo de<br />
florestas, aprender quais seriam as melhores culturas<br />
que poderiam crescer nas planícies e nas zonas<br />
altas, todas estas coisas juntas formavam a ideia<br />
de desenvolvimento integrado de recursos. E isso<br />
tudo conectado à engrenagem do desenvolvimento.<br />
Inicialmente, a geração de energia era distribuída<br />
para cooperativas, que compravam energia em<br />
grande escala e distribuía aos membros cooperados,<br />
era um ciclo. E a TVA tinha o monopólio da energia,<br />
V14 N2<br />
revista de pesquisa em arquitetura e urbanismo instituto de arquitetura e urbanismo iau-usp<br />
82
Entrevista com John Friedmann<br />
Figura 1: Sobreposição da<br />
região do Vale do Tennesse<br />
e da “Power Service Area”<br />
da TVA. Fonte: Friedmann<br />
(1955).<br />
3 A região do Vale do Tennesse<br />
possuía, em 1950, apenas<br />
duas cidades de porte médio,<br />
Knoxville com 124.769<br />
habitantes e Chattanooga<br />
com 131.041 habitantes. As<br />
demais eram cidades com<br />
menos de 30 mil habitantes.<br />
4 O artigo a que se refere é<br />
“Locational Aspects of Economic<br />
Development” publicado<br />
no Journal of Land<br />
Economics em 1956.<br />
não só ao longo do vale do rio, mas no que era<br />
chamado “Power Service Area”, que era maior<br />
do que a área do vale do rio Tennessee (aponta<br />
à figura do vale em seu livro), pois era conectada<br />
às cidades. Então, o rio em si tinha no máximo,<br />
duas cidades médias, que eram centros de energia<br />
registrados. 3 [ver Figura 1 ] Mas o que eu queria<br />
ressaltar é que o desenvolvimento econômico requer<br />
que as cidades tenham um papel ativo como lugar.<br />
Minha tese também gerou alguns artigos. Um deles<br />
está relacionado com a localização de indústrias,<br />
onde uso o conceito de aspectos locacionais do<br />
desenvolvimento econômico. 4 Quando eu estava<br />
na Bahia produzimos a tradução deste artigo, e<br />
esta foi uma das coisas que fiz no Brasil.<br />
E.A.C. Depois de trabalhar na TVA e finalizar o<br />
doutorado você foi para o Brasil, em 1955. Como<br />
isso aconteceu?<br />
J.F. Bem, quando me foi dada a oportunidade de<br />
ir para o Brasil pela USAID [United States Agency<br />
for International Development] eu não sabia nada<br />
de português e não sabia nada sobre o Brasil. E tive<br />
que aprender rapidamente, e uma das primeiras<br />
coisas era a língua, tive que aprender o português. E,<br />
inicialmente, tive um ótimo intérprete, um brasileiro,<br />
poeta, chamado Mário Faustino, do Piauí. Ele vinha<br />
de uma família com onze irmãos - naquela época as<br />
pessoas tinham bastantes filhos! Mas Mário tinha<br />
um ótimo inglês, ele havia passado um tempo nos<br />
Estados Unidos, tinha interesse em poesia moderna,<br />
em Ezra Pound. Tivemos uma boa relação, ele era<br />
um pouco mais novo, tivemos uma grande amizade.<br />
Então fomos para a Amazônia. Eu lecionei um<br />
Curso de Teoria do Planejamento em Belém do<br />
Pará. Os alunos eram da Superintendência do Plano<br />
de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA),<br />
onde o curso era oferecido. Tinham acabado de<br />
comprar dois navios novos para turistas. Então<br />
pegamos estes barcos com os alunos e fomos numa<br />
expedição de duas semanas. Foi uma experiência<br />
interessante. Havia muito a ser visto quando estávamos<br />
em terra, mas na água você não consegue ver muita<br />
coisa... [risos]. Dei o Curso de Teoria do Planejamento<br />
e mais tarde eu desenvolvi uma serie de palestras que<br />
foram publicadas em um livro pela Fundação Getúlio<br />
Vargas. Eu estava construindo minhas reflexões sobre<br />
planejamento, pois todo mundo estava pensando<br />
V14 N2<br />
transcrição<br />
83
Entrevista com John Friedmann<br />
Figura 2: Capa do livro “The<br />
Spatial Structure od Economic<br />
Development. Fonte:<br />
acervo da autora.<br />
sobre isso naquele momento. Você sabe disso,<br />
escreveu sobre o Padre Lebret, que também foi uma<br />
influência no Brasil naquele período. Mas todo mundo<br />
estava procurando pela chave de ouro de algo que<br />
estava trancado. A questão era como o planejamento<br />
poderia levar ao desenvolvimento. Foi minha tentativa<br />
de contribuição ao fazer essas palestras.<br />
E.A.C. Quais os principais aspectos da sua experiência<br />
na TVA que você levou para sua atuação no SPVEA?<br />
J.F. A experiência na TVA não foi necessariamente<br />
relevante para a Amazônia. Foram experiências bem<br />
distintas. Bem...talvez não. Por exemplo, este livro<br />
é sobre energia. [aponta para imagem na capa do<br />
livro – ver Figura 2 ] Aqui é energia elétrica e aqui<br />
são os padrões das linhas de tráfego do fluxo de<br />
energia, os veículos, mas estas são as cidades e os<br />
nós interconectados. Eu defino o que seria o Vale<br />
do Tennessee de forma geral, como um grande<br />
tubo extenso, e esta aqui é uma rede de cidades,<br />
uma concepção espacial completamente diferente.<br />
Na Amazônia era tudo bem separado, a energia<br />
elétrica, a navegação, e havia somente duas cidades<br />
significativas, Belém do Pará e Manaus. São diferentes<br />
do ponto de vista da geografia humana e da geografia<br />
física, totalmente diferente. A geografia humana<br />
parece mais com este. E é claro, isso é o transporte<br />
de energia, uma rede que flui, não somente objetos<br />
físicos, materiais. Algumas coisas imateriais são reais,<br />
mas imateriais, você não vê a eletricidade. Você na<br />
verdade não enxerga estas redes, você tem que<br />
construí-las para torna-las visíveis.<br />
E.A.C. Como se deu o seu contrato com o Brasil?<br />
J.F. A Escola Brasileira de Administração Publica<br />
(EBAP) que me contratou para o curso de planejamento<br />
regional. Eu fui um dos professores do<br />
curso. Era um programa de 16 semanas, mais ou<br />
menos. O curso foi desenvolvido para os funcionários<br />
da Superintendência, havia pessoas de várias áreas<br />
do Governo, da universidade, e militares. A EBAP<br />
entrou em contato com a embaixada Americana,<br />
V14 N2<br />
transcrição<br />
84
Entrevista com John Friedmann<br />
5 Harvey Perloff foi docente<br />
na Universidade de Chicago<br />
entre 1947 e 1955. Durante<br />
o governo Kennedy foi consultor<br />
sobre América Latina<br />
e representante dos Estados<br />
Unidos no Comitê dos Nove<br />
do Programa Aliança para<br />
o Progresso. Em 1968, foi<br />
nomeado diretor da Escola de<br />
Arquitetura e Planejamento<br />
Urbano da UCLA. Perloff foi<br />
o grande incentivador para<br />
atuação de Friedmann na<br />
América Latina e principal<br />
responsável pelo seu ingresso<br />
como docente na UCLA<br />
em 1969.<br />
com a USAID, e havia um cargo. Eles estavam<br />
procurando um expert em planejamento regional.<br />
E eu fui o primeiro graduado em planejamento<br />
regional. Meu professor orientador, o professor<br />
Harvey Perloff 5 , ficou sabendo disso e me disse: - Vá<br />
conferir! Naquele momento eu estava procurando<br />
trabalho. Tinha acabado de concluir meu doutorado<br />
e estava passeando pela universidade até alguma<br />
coisa aparecer. Então surgiu o trabalho.<br />
E.A.C. Você teve uma indicação?<br />
J.F. Não. Eu fui ao Rio de Janeiro para uma primeira<br />
entrevista, foi o primeiro contato. Depois eu levei<br />
minha esposa. Naquele momento assinei um contrato<br />
para um trabalho específico. No meu caso - claro<br />
que pode parecer diferente para vocês - mas no<br />
meu ponto de vista era: estou aprendendo aqui!<br />
Era para eu ser o expert, mas parecia um tipo<br />
de brincadeira, eu estava mais aprendendo do<br />
que sendo um expert. Minha visão é que estava<br />
constantemente desenvolvendo minhas próprias<br />
ideias, meu ponto de vista sobre o planejamento<br />
regional. E isso começou a se reunir na publicação<br />
sobre a Venezuela.<br />
Depois que acabamos em Belém, fomos ao Rio<br />
de Janeiro e fiquei envolvido com a Escola (EBAP)<br />
e com a escrita e a tradução deste livro [aponta<br />
o livro “Introdução ao planejamento regional”],<br />
aguardando um novo contrato. E depois um novo<br />
contrato apareceu em poucos meses, por intermédio<br />
de Rômulo Almeida. Ele era o diretor responsável,<br />
não me lembro bem o cargo que ocupava no<br />
desenvolvimento econômico da Bahia. Ele me levou<br />
para a Universidade e lá havia o Instituto de Economia<br />
e Finanças da Bahia. Era uma instituição que estava<br />
obsoleta e sem produzir, não estava funcionando. E<br />
ele propôs: vamos fazer uma coisa nova, criar algo<br />
novo, uma escola ou instituto de planejamento<br />
do espaço ou territorial - diferentes nomes para a<br />
mesma coisa. Foi o que fizemos juntos. Havia um<br />
novo diretor na universidade e ele apoiou a ideia de<br />
criar um novo centro e disponibilizou recursos para<br />
isso. E meu primeiro trabalho era definir um diretor<br />
para este centro, que tinha que ser brasileiro. Então<br />
um dos meus alunos no curso de Belém, Armando<br />
Dias Mendes, falecido há poucos anos, foi convidado<br />
pela universidade, por minha indicação. Ele era do<br />
Pará, era um advogado e não economista. Enquanto<br />
eu estava lá, tudo correu bem. Mas depois ele não<br />
conseguiu se integrar na sociedade bahiana... Ele<br />
ficou no cargo um ano e meio, e então o centro<br />
fechou. Demos um curso de mestrado, para pessoas<br />
com diploma de graduação. O Instituto se manteve<br />
por alguns anos, e depois com o golpe militar alguns<br />
alunos saíram do país e mudaram de trabalho. As<br />
coisas começavam a mudar (...) seria interessante<br />
pensar como isso teria continuado.<br />
A USAID, na verdade, não sabia o que eu estava<br />
fazendo e não estava interessada nisso. Havia também<br />
outra pessoa, meu chefe na TVA, Stefan Robock,<br />
era um consultor do Banco do Nordeste do Brasil,<br />
em Fortaleza, eles também tinham um programa<br />
de desenvolvimento regional. Isso era o que eles<br />
(USAID) estavam financiando. Tinham poder e<br />
dinheiro. A universidade era apenas a universidade<br />
enquanto eles estavam realizando projetos. Então<br />
me disseram: já temos alguém em planejamento<br />
regional. E interromperam a ajuda financeira. O<br />
diretor Armando Mendes tinha voltado para Belém, e<br />
depois se tornou presidente do Banco da Amazônia.<br />
Ele era um planejador regional e depois trabalhou<br />
no Banco de Desenvolvimento da Amazônia, similar<br />
ao Banco do Desenvolvimento do Nordeste. Ele se<br />
tornou o presidente do banco da Amazônia e depois<br />
ele criou um instituto de pesquisa. Ele realmente deu<br />
um salto, avançou em se tornar uma pessoa orientada<br />
para o desenvolvimento, é bem interessante esta<br />
conexão. E ele era realmente um cidadão do Pará,<br />
um patriota da Amazônia. Tinha a intenção de<br />
promover o desenvolvimento da Amazônia, mas<br />
em seguida veio o golpe.<br />
E.A.C. O que levou da experiência no Brasil para o<br />
MIT (Massachusetts Institute of Technology)?<br />
J.F. Eu fui o primeiro especialista sobre o desenvolvimento<br />
e o planejamento regional, muito diferente<br />
de planejamento urbano, que é muito mais<br />
ligado ao desenho. No meu caso era uma orientação<br />
mais direcionada às políticas de desenvolvimento.<br />
Quando fui para o MIT, após dois anos na Coreia, meu<br />
trabalho foi de ensinar o planejamento regional, este<br />
foi meu trabalho. Eu tinha o conhecimento adquirido<br />
no Brasil e na Coreia. Eu não fiz planejamento regional<br />
na Coreia, foi mais política de desenvolvimento<br />
regional. Não ficou definido muito bem o meu trabalho<br />
lá, estava sempre aprendendo e pensando sobre as<br />
coisas. Mas quando fui para o MIT, tive que ser mais<br />
sistemático com meus pensamentos.<br />
V14 N2<br />
transcrição<br />
85
Entrevista com John Friedmann<br />
6 Editado juntamente com<br />
Willian Alonso e publicado<br />
em 1964.<br />
7 FRIEDMANN, J. (1975) The<br />
spatial organization of power<br />
in the development of urban<br />
systems. In: FRIEDMANN, J.;<br />
ALONSO, W. (eds.) Regional<br />
Policy. Readings in theory and<br />
application. Cambridge, MA:<br />
MIT Press. pp. 266-304.<br />
Então me deixe mostrar os livros publicados. Este<br />
primeiro se chama Regional Policy. Readings in<br />
theory and application - a primeira edição se chama<br />
Regional Development and Planning - A Reader. 6 Eu<br />
escrevi este artigo, Spatial Organization of Power<br />
and Urban Systems 7 . Houve diferentes contribuições<br />
aqui. Este era o estado do pensamento da época.<br />
E há algo aqui, um capítulo em especial, que é um<br />
ensaio bibliográfico intitulado Regional development<br />
planning: the progress of a decade, que dá um<br />
panorama. Foi minha tentativa de cobrir a literatura<br />
existente, de estabelecer o planejamento regional<br />
como uma especialização dentro do planejamento<br />
urbano e regional. No momento que foi feito a<br />
segunda edição do livro, a ideia de desenvolvimento<br />
regional havia acabado. Havia o neoliberalismo, a<br />
partir de 1975, de 1980, naquele período havia o<br />
estado vazio, o desmanche do poder do estado e<br />
a força do capital privado.<br />
E.A.C. Fale um pouco sobre sua atuação na Venezuela?<br />
J.F. No MIT teve o estudo de caso do desenvolvimento<br />
na Venezuela. Eu lecionava no MIT, e lá eles<br />
tinham um projeto em conjunto com a Universidade<br />
de Harvard, um convênio com a cidade de Guayana<br />
e parte do acordo com o governo da Venezuela.<br />
Eles providenciaram assistência técnica, através<br />
da Corporación Venezolana de Guayana (CVG), e<br />
fizemos pesquisa. Eu fui como pesquisador, esta<br />
foi uma opção minha.<br />
Eu escrevi sobre a Venezuela, fiz uma pesquisa e dei<br />
algumas palestras em um centro de desenvolvimento,<br />
o CENDES, que era liderado por um economista<br />
chileno que depois me chamou para o trabalho<br />
no Chile. Seu nome era Jorge Ahumada. Ele faleceu,<br />
infelizmente, mas foi o diretor do CENDES.<br />
Eu tentava dar sentido a algumas informações, criando<br />
diagramas, e depois fiz uma série de mapas, acho<br />
que os mapas são bem interessantes. Dê uma olhada.<br />
A ideia era escrever sobre o que você esta escrevendo,<br />
sobre um plano nacional de desenvolvimento regional.<br />
Foi sobre isso o trabalho na Venezuela.<br />
E.A.C. A iniciativa da pesquisa partiu da Venezuela<br />
ou das universidades americanas?<br />
J.F. Isto foi Rómulo Betancourt, um presidente<br />
liberal, talvez o melhor presidente que a Venezuela<br />
teve. Ele era um novo democrata após o governo de<br />
Marcos Pérez Jimenez, que foi ditador por 20 anos.<br />
Ele entrou no lugar do ditador Jimenez e começou<br />
um novo regime, começou a usar o dinheiro do<br />
petróleo que a Venezuela tinha para industrializar o<br />
país, não somente exportar o petróleo, mas agregar<br />
valor. Eles tinham uma visão de desenvolver o país.<br />
Uma cidade industrial, chamada Guayana, ficava na<br />
confluência de dois rios, Caroní e Orinoco [mostra<br />
livros e mapas]. Foi uma tentativa de ser analítico.<br />
Neste projeto havia estudantes de Harvard. Eram<br />
arquitetos que ajudaram a fazer estes mapas. Este<br />
era o outro rio, o rio Orinoco, havia um espaço<br />
vago no início do delta, e nesta região queriam<br />
criar a indústria do aço, e enfim criar um novo<br />
polo de desenvolvimento regional. Este novo polo<br />
de energia descentralizaria a região de Caracas.<br />
Outro polo era a cidade de Barquisimeto, um local<br />
bem pobre.<br />
Eles criaram a Corporación Venezolana de Guayana<br />
e colocaram um militar para dirigir, Rafael Alfonzo<br />
Ravard, engenheiro do MIT, que fez o contato entre a<br />
Universidade de Harvard e o MIT, para fazer pesquisa<br />
e levar o conhecimento, levar energia do norte e<br />
desenvolver as outras cidades e partes do país. Um<br />
dos coordenadores da pesquisa, Lloyd Rodwin, um<br />
dos diretores do MIT e meu chefe direto na pesquisa,<br />
propôs fazer a pesquisa numa determinada região,<br />
mas eu não concordei, não estava interessado nessa<br />
região, eu estava interessado estudar a política<br />
regional, e então tivemos uma grande desavença. E<br />
então eu deixei o MIT e fui para o Chile, mas produzi<br />
este livro. [aponta para o livro Regional development<br />
policy: a case study of Venezuela]<br />
E.A.C. Como foi sua aproximação com Walter Isard<br />
e a Regional Science Association?<br />
J.F. A Regional Science Association foi criada por<br />
Walter Isard, um economista, preocupado com<br />
questões de localização. Foi interessante quando<br />
a geografia era dominada por este pensamento.<br />
Isard começou com um programa de doutorado em<br />
Regional Science, na Universidade de Pensilvânia.<br />
William Alonso foi aluno de Isard, o primeiro<br />
orientando dele. Depois Isard tentou mudar<br />
para Cambridge, pois havia mais prestigio em<br />
Harvard, mas a universidade não teve muito<br />
interesse. Não havia muito interesse em geografia<br />
V14 N2<br />
transcrição<br />
86
Entrevista com John Friedmann<br />
pela universidade de Harvard. Ele foi para o<br />
Departament of Lansdcape Architecture, mas não<br />
conseguiu se firmar, estabelecer seu espaço de<br />
atuação em Harvard. A geografia mudou, ele se<br />
aposentou e foi lecionar na Cornell University. Mas<br />
a Regional Science ficou instituída. É um movimento<br />
pequeno que permanece até hoje, mas não tão<br />
interessante, pois não teve uma personalidade<br />
marcante para se desenvolver. Em parte porque<br />
a geografia se ampliou demais, e também porque<br />
a teoria se baseava obsessivamente em modelos<br />
quantitativos, e não muito em assuntos de políticas,<br />
enquanto que a maioria das pessoas no mundo<br />
estava mais interessada em política regional, e não<br />
em ciência regional. Então a ciência regional não<br />
tinha muito a oferecer senão modelos, não era<br />
muito atraente para a política. Foi um momento.<br />
E.A.C. No livro Territory and function, de 1981,<br />
você traça um panorama histórico do planejamento<br />
regional nos Estados Unidos, enfatizando as concepções<br />
teóricas e os deslocamentos que elas<br />
sofrem ao longo do tempo. Na terceira parte você<br />
trata da “crise do desenvolvimento”. Você poderia<br />
falar a respeito?<br />
J.F. Naquele momento eu estava envolvido em<br />
assuntos de planejamento regional. Agora isso<br />
mudou, fala-se em desenvolvimento metropolitano<br />
e urbano, ficou mais manejável. Ao pensar em<br />
regiões metropolitanas podemos ver a relação com o<br />
ambiente de forma mais direta. Quando se pensava<br />
em políticas nacionais naquele momento, pensava-se<br />
na alocação de recursos pelo estado para promover<br />
o desenvolvimento. Hoje se pensa de outra maneira,<br />
em como atrair investimento privado. É um modo<br />
completamente diferente.<br />
E.A.C. Parece que durante os anos 1970 houve<br />
uma reorientação de seu trabalho...<br />
J.F. Bem...no meio dos anos 1970 tivemos uma<br />
nova revolução, neoliberal, uma revolução diferente,<br />
mas com grandes consequências. E<br />
eu mudei minha perspectiva de vida e decidi<br />
que o Planejamento Regional não era para<br />
mim (...) e desisti do planejamento regional<br />
e do apoio do estado ao planejamento (...),<br />
eu sei que precisamos do Estado, não sou<br />
um anarquista. Mas fiquei mais interessado<br />
em organizações locais, pequenos espaços,<br />
comunidades, planejamento de unidades de<br />
vizinhança comunitárias, movimentos sociais,<br />
sociedade civil.<br />
E depois mudei minha pesquisa de ambiente geográfico,<br />
da América Latina para a China. Na China<br />
pode se ver por um lado um grande sucesso em<br />
termos econômicos, como o GDP (Gross Domestic<br />
Products), uma medida usual per capita. Por um<br />
lado o crescimento deste fator, e por outro sua<br />
relação com o declínio da qualidade ambiental.<br />
Hoje as coisas são mais complexas.<br />
E.A.C. Você acha que as políticas nacionais de<br />
desenvolvimento tinham uma utopia que foi<br />
substituída pelo dinheiro?<br />
J.F. É uma interpretação política (...) se você<br />
conversar com as pessoas na China o que importa<br />
é somente o dinheiro. Não somente, também tem<br />
o poder nacional em um mundo global. A China<br />
não se sustenta por si com seus próprios recursos,<br />
nem o Canadá, EUA. Compramos da Ásia, os<br />
alimentos vêm de todo lugar. Não produzimos<br />
muito. Temos serviço, mas nosso consumo em<br />
geral vem de algum lugar. É muito complicado,<br />
não sei... Não sabemos o que vai acontecer, nem<br />
um nem outro, mas algo entre, talvez!<br />
E.A.C. Então esta mudança para você foi uma<br />
desilusão?<br />
J.F. Para mim foi. Eu me divorciei de um modo<br />
pessoal de pensar e inclusive no relacionamento<br />
com as pessoas e, em particular, com minha esposa<br />
naquele momento. E depois fiquei sozinho por dez<br />
anos e depois me casei novamente. Mas minha<br />
orientação política sobre planejamento mudou<br />
para uma prática social, que é mais o que acontece<br />
no nível da sociedade civil, e acho que é a única<br />
esperança que temos. Recentemente, no livro<br />
Insurgencies, publiquei um conjunto de artigos<br />
que escrevi desde 1973 até os dias atuais, mas tem<br />
uma introdução que tento explicar teoricamente<br />
esta minha mudança, é um textbook.<br />
No livro “Planning in the public domain” eu trato<br />
da mobilização social, utopismo, anarquismo,<br />
materialismo histórico. Os utopistas dizem: o<br />
futuro é agora, você cria uma sociedade alternativa<br />
agora. O anarquismo social é a imanência de<br />
V14 N2<br />
transcrição<br />
87
Entrevista com John Friedmann<br />
uma boa sociedade que pode ser alcançada<br />
por esta reestruturação completa, pela própria<br />
governança, e a possibilidade do aprendizado<br />
social é imediata. E o materialismo histórico<br />
explora as interpretações internas da sociedade<br />
capitalista. Foi minha tentativa de tratar o assunto<br />
em seu conjunto, conectado de movimentos,<br />
mas internamente, com formatos diferentes,<br />
com diferentes características. Eu fiz um estudo<br />
histórico, sobre os tipos de movimentos sociais,<br />
que deve ser expandido, e isso não foi feito. Isso<br />
deve ser realizado, alguém tem que fazer uma<br />
pesquisa sobre isso.<br />
Geralmente os movimentos sociais sempre brigam<br />
entre si. A esquerda nunca se une, enquanto a<br />
aliança é uma estratégia política. Mas quando<br />
você pensa sobre os movimentos de ocupação,<br />
como Ocuppy Wall Street, são geralmente o tipo<br />
de movimentos populares. Há presença do anarquismo<br />
lá visivelmente, mas muitos simpatizantes,<br />
adeptos ao pensamento utópico, e claro, marxistas<br />
estão sempre lá, trotskistas, stalinistas, estão juntos<br />
em alguns momentos históricos.<br />
Então a tradição da mobilização social, nós<br />
precisamos repensar o que precisamos do planejamento,<br />
e eu estava acostumado a pensar o<br />
planejamento pelo Estado, mas por outro lado<br />
há as práticas sociais, este talvez seja o melhor<br />
termo para definir isso, eu não elaborei isso, mas<br />
creio que é algo que devemos pensar mais sobre.<br />
É uma fase do planejamento a prática social.<br />
E então, não podemos mais planejar o conjunto,<br />
mas podemos pensar as partes. Planejar significa<br />
transformar, é uma teoria da transformação, e isso<br />
precisa ser elaborado, uma real transformação<br />
social. E eu tenho alguma ideia sobre isso, de<br />
qualquer modo. Então acho que você deve fazer<br />
isso, é nova e tem 50 anos para trabalhar ainda.<br />
E.A.C. Quais são seus vínculos atuais com o<br />
Brasil? Seus interesses?<br />
J.F. Eu mantenho meu interesse pelo Brasil, nos<br />
movimentos sociais, no movimento sem-terra,<br />
e toda questão da democracia participativa.<br />
Acho que o Brasil é um tipo de líder, é um dos<br />
lugares do mundo que acredito que há uma certa<br />
esperança. Se você olha para a China, Índia, e<br />
Oriente Médio, sem mencionar África, não há<br />
muito otimismo para estes locais, de modo geral.<br />
Então você olha para algumas pequenas luzes,<br />
é fácil chegar a conclusões.<br />
Na ditadura de Pinochet, no Chile, havia muita<br />
criatividade acontecendo no país. Eu levei isso a<br />
sério e investi certa esperança nesses movimentos.<br />
O capitalismo e sua força são muito poderosos,<br />
é muito difícil se defender do capitalismo. E não<br />
temos nenhum outro sistema em que acreditar<br />
sem ser o capitalismo. Mas acho que estaremos<br />
forcados a mudar, pois temos problemas ecológicos<br />
para se resolver, ambientais. E no fim estamos<br />
nos destruindo uns aos outros para manter os<br />
últimos recursos. É o que esta acontecendo na<br />
Rússia, China, África, USA, e a relação de força<br />
no oriente médio, estão se destruindo. Então<br />
não sei (...) mas quando você ouve as pessoas<br />
falarem de participação, como nas comissões<br />
de bacia regional, como o presidente que foi do<br />
Brasil, Lula, que trouxe grandes mudanças sociais<br />
(...) no geral acho que coisas boas acontecem<br />
no Brasil. Não estou diretamente envolvido mas<br />
tenho acompanhado de fora.<br />
Referências bibliográficas<br />
FRIEDMANN, J. Aspectos locacionais do desenvolvimento<br />
econômico. Série IV, Caderno I. Salvador: Universidade<br />
da Bahia, 1957.<br />
________. Globalization and the Emerging Culture of Planning.<br />
Progress in Planning, 64 (3), 2005, pp.183– 234.<br />
________. La estratégia de los polos de crescimento como<br />
instrumento de la política de desarollo. Revista de la<br />
Sociedade Interamericana de Planificación, vol. III, nº<br />
9-10, 1969.<br />
________. Planning in the Public Domain: From Knowledge<br />
to Action. Princeton: Princeton University Press, 1987.<br />
________. Regional development policy: a case study of<br />
Venezuela. Cambridge, MA: MIT Press, 1966.<br />
________. Retracking America: A Theory of Transactive<br />
Planning. New York: Anchor Press, 1973.<br />
________. The spatial structure of economic development<br />
in the Tennesse Valley. A study in Regional Planning.<br />
Chicago: Un. Of Chicago Press, 1955.<br />
________. Urban and Regional Development in Chile: A<br />
Case Study of Innovative Planning. Los Angeles: UCLA<br />
Library, 1969.<br />
FRIEDMANN, J. R. P. Introdução ao planejamento regional<br />
- com referência especial à região amazônica. Rio de<br />
Janeiro: FGV, 1960.<br />
V14 N2<br />
transcrição<br />
88
Entrevista com John Friedmann<br />
FRIEDMANN, J.; ALONSO, W. (1975) Regional Policy. Readings<br />
in theory and application. Cambridge, MA: MIT Press.<br />
FRIEDMANN, J.; ALONSO, W. (eds.) Regional Policy. Readings<br />
in theory and application. Cambridge, MA: MIT<br />
Press. pp. xv-xxi.<br />
FRIEDMANN, J.; LEAL, J. População e mão de obra na<br />
Bahia. Coleção Cadernos de Desenvolvimento Econômico.<br />
Série I, Caderno I. Salvador: Universidade<br />
da Bahia, 1957.<br />
Figura 3: John Friedmann.<br />
Fonte: fotografia de Elisângela<br />
de Almeida Chiquito.<br />
FRIEDMANN, J.; WEAVER, C. Territory and function. The<br />
evolution of Regional Planning. London: Edward<br />
Arnold, 1979.<br />
V14 N2<br />
transcrição<br />
89
transcrição<br />
Entrevista com Maria Adélia de Souza *<br />
Entrevista:<br />
Lucas Cestaro<br />
Arquiteto e Urbanista, doutor em Arquitetura e Urbanismo pelo<br />
IAU-USP, professor da Faculdade de Engenharia, Arquitetura e<br />
Urbanismo da Universidade Metodista de Piracicaba, Rodovia<br />
Luís Ometto Km 24 - SP 306, Santa Bárbara d’Oeste, SP,<br />
CEP 13451-900, (19) 3124-1777, lucas_cestaro@uol.com.br<br />
Revisão:<br />
Maria Adélia de Souza<br />
*<br />
Maria Adélia Aparecida<br />
de Souza - Geógrafa pela<br />
FFLCH USP 1962, equipe da<br />
SAGMACS (escritório de São<br />
Paulo) 1960-1963, aluna do<br />
IRFED 1963-1964. Entrevista<br />
realizada em 2 de abril de<br />
2014, sobre sua atuação junto<br />
aos quadros da SAGMACS<br />
e formação no IRFED. Transcrição<br />
revisada e autorizada<br />
pela depoente em dezembro<br />
de 2015.<br />
E<br />
m nossa pesquisa para o doutorado empregamos a<br />
realização de entrevistas com atores envolvidos no<br />
processo que consistia o objeto de estudo, como<br />
uma ferramenta para aprimorarmos o acesso as<br />
informações e dados a serem elucidados. Estudamos<br />
a atuação de Lebret e da SAGMACS no Brasil, no<br />
período de 1947 até 1964, numa tentativa de elucidar<br />
as ideias, os planos e as contribuições trazidas pelo<br />
grupo de Economia e Humanismo, para o campo<br />
do planejamento urbano e regional nas décadas<br />
de 1950 e 1960.<br />
A SAGMACS atuou no Brasil sob a supervisão de<br />
Louis-Joseph Lebret, tendo escritórios nas cidades do<br />
Rio de Janeiro, Recife, Belo Horizonte e São Paulo,<br />
principal sede, que concentrava a maior quantidade<br />
de técnicos e profissionais e também os principais<br />
membros da diretoria da equipe.<br />
Em 1960, o grupo passou a ser uma cooperativa<br />
de técnicos, e ganhou novos atores envolvidos<br />
em sua equipe. Entre eles estava Maria Adélia<br />
Aparecida de Souza, estudante do segundo ano<br />
do curso de Geografia na Faculdade de Filosofia da<br />
USP. Conforme apuramos, Maria Adélia participou<br />
de ao menos cinco trabalhos junto da equipe da<br />
SAGMACS, entre os quais o Plano Diretor de<br />
Barretos e Sorocaba, ambos concluídos em 1963<br />
e do estudo para o Programa de Desenvolvimento<br />
do Estado do Paraná, no governo de Ney Braga<br />
(1961-1965).<br />
Em 1963 seguiu para Paris para estudar Planejamento<br />
Territorial com Lebret no Institut de Recherche et<br />
Formation pour Économie et Développment – IRFED,<br />
instituição também vinculada ao grupo de Economia<br />
e Humanismo da França, voltada para a formação<br />
de técnicos de países do Terceiro Mundo para<br />
implementação de políticas para o desenvolvimento.<br />
Em Paris, conviveu mais próxima do Frei Dominicano<br />
Lebret e o acompanhou durante o tratamento de<br />
saúde que o levou a morte em 1966 no Hopital<br />
d’Alesia.<br />
Também em Paris desenvolveu sua pesquisa de<br />
Mestrado, na Université de Paris, sob a orientação<br />
do economista brasileiro Celso Furtado. Obteve o<br />
título de Mestre com a dissertação “Paraná: quadro<br />
geográfico, econômico e histórico da urbanização”<br />
em 1967, quando retornou ao Brasil, passando a<br />
construir uma carreira voltada tanto para a pesquisa<br />
e docência, quanto para a prática em planejamento<br />
no Brasil, com atuação junto ao Serviço Federal<br />
de Habitação e Urbanismo – SERFHAU. Em 1975<br />
defendeu a tese de doutorado “Ville/Region –<br />
Propositions Méthodologiques” sob orientação do<br />
geógrafo francês Michel Rochefort na Université Paris I.<br />
Nesta entrevista, a geógrafa e professora Maria<br />
Adélia de Souza nos conta sobre sua vinculação junto<br />
a equipe da SAGMACS, sua relação com Lebret e<br />
os demais membros do grupo e a importância que<br />
o IRFED teve em sua formação de planejadora.<br />
Também expõe o pioneirismo presente em sua<br />
atuação profissional e acadêmica, e seu papel de<br />
pensadora crítica sobre os problemas que afligem<br />
o campo disciplinar do planejamento urbano e<br />
regional no Brasil.<br />
V14 N2<br />
revista de pesquisa em arquitetura e urbanismo instituto de arquitetura e urbanismo iau-usp<br />
90
Entrevista com Maria Adélia de Souza<br />
Maria Adélia é professora emérita da Faculade de<br />
Filosofia, Ciências e Letras da USP desde 1996, onde<br />
segue orientando pesquisas de pós-graduação.<br />
Na USP, foi a primeira mulher a ocupar o cargo<br />
de prefeita do campus, entre os anos de 1983 e<br />
1986, tendo também atuado junto a Faculdade<br />
de Arquitetura e Urbanismo e no assessoramento<br />
da administração superior da universidade, como<br />
Chefe de Gabinete do Reitor, durante a gestão<br />
do Prof. Flávio Fava de Moraes. Na Universidade<br />
Latino Americana, criada em 2010, foi a primeira<br />
Pró-Reitoria de Graduação (2011/2012). Além disso,<br />
atuou como pesquisadora nas Universidades de<br />
Buenos Aires, de Paris I, na UFSC, UFRN e na PUC<br />
de Campinas.<br />
Lucas Cestaro Para iniciarmos seria importante a<br />
senhora expor sua trajetória pessoal e a formação<br />
profissional, para entendermos como é que se deu<br />
sua vinculação com o Padre Lebret, o Movimento<br />
Economia e Humanismo e sua atuação na equipe<br />
da SAGMACS. Muitos dos que tiveram posição de<br />
destaque ali eram católicos, foram da JUC. A senhora<br />
tem esta origem também? ntrevista com Maria<br />
Adélia Aparecida de Souza sobre sua atuação junto<br />
aos quadros da SAGMACS e formação no IRFED.<br />
Transcrição revisada e autorizada pela depoente<br />
em dez. 2015.<br />
Maria Adélia de Souza Eu era da JUC<br />
(Juventude Universitária Católica) e foi aí que eu<br />
conheci essas pessoas do movimento Economia<br />
e Humanismo, o Francisco Whitaker Ferreira e o<br />
Pedro Calil Padis. O Calil, como o chamávamos,<br />
tinha feito Economia na USP e era meu colega. Eu<br />
o conheci ainda como estudante da graduação de<br />
Geografia e frequentávamos algumas disciplinas<br />
que eram ministradas na sede da Faculdade<br />
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas que<br />
funcionava na rua Maria Antônia, de saudosa<br />
memória! E, a Faculdade de Economia funcionava<br />
na rua Dr. Vilanova, mas o pátio de ambas as<br />
faculdades era comum e a frequência ao Grêmio<br />
da Filosofia, também. Nesse pátio fazíamos nossas<br />
assembleias estudantis, por vezes invadidas pelos<br />
estudantes do Mackenzie!<br />
Foi nesse contexto que conheci meu querido amigo<br />
Pedro Calil, e também em reunião de estudos da<br />
JUC, quando eu comecei a me interessar pela<br />
questão do planejamento. Calil já era da SAGMACS<br />
(Sociedade de Análises Gráficas e Mecanográficas<br />
Aplicadas aos Complexos Sociais), e me convidou<br />
para fazer um estágio lá, vendo esse meu interesse.<br />
Ele, então, me disse que como eu estava no segundo<br />
ano de Geografia seria bom tentar fazer um estágio<br />
lá com eles.<br />
Na época eu nem sabia o que era a SAGMACS,<br />
apesar de eu ser da JUC. Então foi Pedro Calil, que<br />
já trabalhava lá na SAGMACS, quem me levou para<br />
ser estagiária, em 1960. Assim comecei a aprender<br />
a fazer tabelas, cálculos de porcentagem, com umas<br />
maquininhas engenhosas, onde a lida com uns<br />
pequenos pinos e o rodar de uma pequena manivela,<br />
nos revelava o cálculo... Aprendi também a lidar<br />
com mapa, fazer cartografia temática...<br />
Sou eternamente devedora da SAGMACS, pois ali eu<br />
fui estagiária. Os estagiários eram carinhosamente<br />
chamados pela equipe técnica da SAGMACS de<br />
“bagrinhos”.<br />
Assim, fui “bagrinho” de Flávio Villaça e de Luiz<br />
Carlos Costa arquitetos e urbanistas de enorme<br />
competência.<br />
Trabalhando com eles na SAGMACS eu constatei<br />
que o ensino e a Geografia praticada em São Paulo,<br />
que sempre foi considerado um curso muito bom,<br />
porém na perspectiva de uma formação tradicional,<br />
e nós aprendíamos as matérias de uma forma muito<br />
certinha, analítica, descritiva. Mas, na SAGMACS<br />
tinham os arquitetos que praticavam a Geografia<br />
a seu modo, mas que me levavam com eles a ir do<br />
presente ao futuro com muita facilidade e isso me<br />
fascinava! Eu os considerava uns malucos! Produziam<br />
mapas coloridos, lindos, mas que pouco tinham a<br />
ver com o que eu aprendia com meu professor de<br />
Cartografia, um rigoroso engenheiro cartógrafo,<br />
austríaco, formado para atender ao exército austrohúngaro!!!!<br />
Depois fui compreender o significado<br />
de ambas as cartografias, as normas e rigores<br />
cartográficos que nem sempre os arquitetos levam<br />
a sério... até hoje!<br />
Agora, a relação da SAGMACS com o Movimento<br />
Economia e Humanismo se dava de uma forma muito<br />
séria, pelo fato de que a maioria dos personagens<br />
que lá trabalhavam tinham ido à Paris fazer o curso<br />
no IRFED (Institut de Recherche et Formation en<br />
vue du Développement Harmonisé). O Francisco<br />
V14 N2<br />
transcrição<br />
91
Entrevista com Maria Adélia de Souza<br />
Whitaker Ferreira – o Chico – foi, era o nosso líder,<br />
era mais velho, coordenador técnico da maioria<br />
dos trabalhos realizados pela SAGMACS. Ele o<br />
Frei Benevenuto de Santa Cruz, meu saudoso e<br />
queridíssimo amigo eram os nossos “chefões”,<br />
função que exerciam com tamanho disfarce, que<br />
quem não soubesse não perceberia! Aprendi com<br />
essas pessoas que é possível fazer um trabalho<br />
rigoroso, politicamente interessado e sério, com<br />
bom humor! Tudo isso, busquei não perder na<br />
universidade que é o reino da disputa individual<br />
e do mal humor!!! Chico era o diretor técnico e<br />
o Frei Benevenuto – o “Bené” – como o chamei<br />
a vida toda, nosso diretor geral. Ambos de um<br />
humor refinado, que faziam das reuniões que pude<br />
assistir aulas maravilhosas de competência e bom<br />
humor, com todos os outros profissionais que lá<br />
trabalhavam, sobre os quais falarei mais adiante.<br />
Eles estão ai, todos, felizmente ainda vivos para<br />
testemunhar esse meu sentimento. Bené cuidou a<br />
vida toda e eu o acompanhei desde então, cuidando<br />
da Livraria Duas Cidades, uma dessas maravilhas<br />
que encantava e qualificava a vida intelectual da<br />
cidade de São Paulo...<br />
Eu fiz o IRFED e continuei na França por mais 7<br />
anos. Fiz parte da derradeira turma que foi aluna do<br />
Padre Lebret, no ano letivo de 1963/1964. Por isso<br />
acredito que desse grupo quem mais acompanhou<br />
o Lebret fui eu e o Chico, nos últimos dias de<br />
vida dessa ilustre figura do humanismo mundial.<br />
Para você ter uma ideia, quando ele precisava de<br />
alguém para secretaria-lo, auxiliá-lo com textos<br />
mais elaborados, ele pedia apoio para Madame<br />
Dupuy, que era bibliotecária, Editora da revista<br />
do IRFED e desempenhava o papel de secretária<br />
dele, especialmente, quando adoeceu e, para mim.<br />
Como estive perto dele e o acompanhei durante<br />
a doença, quando ficou hospitalizado no Hospital<br />
d’Alesia, perto da Cité Universitairé, próximo de<br />
onde eu morava, fui solicitada por ele, quando me<br />
ditou um primeiro rascunho de parte da “Encíclica<br />
da Vida Humana”, pois o Padre Lebret foi assessor<br />
direto de papas, à época de Paulo VI. Madame<br />
Dupuy adoeceu e eu a substitui durante dias...<br />
L.C. Estamos falando então de 1966 quando o Lebret<br />
faleceu. A senhora estava acompanhando de perto<br />
ele no final da vida. É um vínculo bastante forte! Da<br />
SAGMACS a senhora já seguiu para cursar o IRFED<br />
e ficou estes quase sete anos na França então?<br />
M.A.S. Sim. Eu fui da turma de outubro de 1963 a<br />
junho de 1964, do IRFED. Fui convidada pelo próprio<br />
Padre Lebret e por Pierre Monbeig para estudar<br />
na França, quando ambos, um dia apareceram na<br />
SAGMACS, para uma visita!<br />
Como eu fiquei mais tempo na França, eu acabei<br />
convivendo mais com o Padre Lebret em Paris e<br />
seguindo os cursos no IRFED. Eram cursos que o<br />
Padre Lebret organizava sobre vários campos do<br />
conhecimento e de professores que ele chamava<br />
para dar uma conferência, quase que semanalmente.<br />
Por exemplo, o geógrafo Jean Labasse, que era<br />
importantíssimo na geografia francesa (então professor<br />
na “Science Po” Instituto de Ciências Políticas<br />
da universidade de Paris, onde eu assistia a disciplina<br />
que ele ministrava). Isso por que o padre Lebret<br />
tinha um quadro de professores e disciplinas que<br />
constituíam um ano de curso no IRFED, mas ele<br />
estabelecia convênios com professores de outros<br />
institutos! Foi assim também que eu assisti no<br />
Instituto de Demografia uma conferência com o<br />
famoso professor Alfred Sauvy que nos apresentava<br />
suas recentes (e conservadoras) concepções sobre<br />
a dinâmica demográfica. Enfim, nós assistíamos<br />
também cursos no ISST – Institut des Sciences<br />
Sociales et du Travail, com todo o pessoal que<br />
estava discutindo o cooperativismo porque era visto<br />
como uma forma de chegar e atuar nas ex-colônias<br />
da França. Aqui tomei contato com interessantes<br />
obras sobre cooperativismo, além de ter sido aluna<br />
do marcante Professor Joffre Dumazedier, mestre<br />
da sociologia do lazer, desde os anos 60, também<br />
grande amigo do Padre Lebret.<br />
É dessa época também, como geógrafa, meu<br />
interesse pelas reflexões sobre o Espaço, feitas<br />
pelo filósofo Paul Ricoeur em Nanterre e pelo<br />
personalismo de Emmanuel Mounier, apresentados<br />
por colegas que faziam doutorados com ou sobre<br />
esses mestres! Sempre tive muita sorte na minha<br />
vida intelectual. Minha geração teve a oportunidade<br />
e a possibilidade de assistir aulas e conferências dos<br />
maiores geógrafos e intelectuais do século XX, como<br />
estudantes bolsistas em Paris! Eu não perdi nenhuma<br />
dessas oportunidades! Assim fui aluna de Jean Paul<br />
Sartre, Simone de Beauvoir, Henri Lefebvre, Michel<br />
Foucault, François Perroux, em cursos e conferências<br />
que ministravam no Collège de France ou em suas<br />
Escolas e Faculdades! E dos geógrafos, todos eles:<br />
Pierre George, Michel Rochefort, Yves Lacoste (jovem<br />
V14 N2<br />
transcrição<br />
92
Entrevista com Maria Adélia de Souza<br />
e que nos dava trabalho de campo), Tricart, Bernard<br />
Kaiser, Madame Beaujeu-Garnier, Pinchemel, Jean<br />
Labasse e tantos outros...<br />
IRFED, se preocupavam em selecionar pessoas que<br />
já tinham algum engajamento nos países de terceiro<br />
mundo, expressão que surgia na época.<br />
L.C. Foi uma estada proveitosa então. Cursou<br />
não só o IRFED, mas também se aproximou da<br />
intelectualidade francesa. Mas no caso do Economia<br />
e Humanismo, dos adeptos do grupo de Lebret,<br />
como era esta formação dada pelo IRFED?<br />
M.A.S. Era uma formação muito sólida, embora<br />
fosse um curso de especialização, ou como se diz<br />
hoje, pós-graduação lato sensu! O IRFED tinha quatro<br />
formações gerais que eram dadas em um ano de<br />
estudo, mas você tinha que fazer uma formação<br />
específica que te obrigava a se concentrar nela. As<br />
quatro formações eram: Planejamento Educacional,<br />
Planejamento Econômico, Planejamento Social e o<br />
Planejamento Territorial que era a formação para os<br />
planejadores, quem ia atuar no que aqui no Brasil<br />
era chamado de planejamento urbano e regional.<br />
Dentro dessas formações nós tínhamos cursos de<br />
economia, curso de ética, tinha uma disciplina<br />
lindíssima que se chamava cultura e civilização que<br />
era para você conhecer a essência da sociedade<br />
que como planejador você iria intervir, estudava<br />
contabilidade, se chamava contabilidade nacional,<br />
hoje se chama finanças públicas, tínhamos estatística<br />
de alto controle, economia, economia e<br />
sociologia rural, análises econômicas e sociais<br />
“territorializadas”, eu diria, ministrada pelo próprio<br />
Padre Lebret. Fomos a última turma para quem ele<br />
pessoalmente lecionou, pois depois adoeceu e veio<br />
a falecer em 1966 vítima de um câncer. E, daqui<br />
do Brasil, comigo fizeram o IRFED alguns colegas,<br />
dos quais me lembro, de Silke Weber, que sempre<br />
foi secretária de Educação em todos os governos<br />
de Miguel Arraes, em Pernambuco. Ela trabalhou<br />
junto com o Paulo Freire e fundaram, com outros<br />
pernambucanos ilustres a pedagogia do oprimido.<br />
No IRFED, Silke Weber foi aluna da formação em<br />
Planejamento Educacional.<br />
O Planejamento Econômico era para aqueles que<br />
poderiam um dia vir a planejar a economia nacional<br />
de seus países. O IRFED formava quadros técnicos<br />
para os países subdesenvolvidos ou aqueles que<br />
acabavam suas guerras anti coloniais. O que era<br />
muito interessante naquela época, era o fato de que<br />
tanto o Padre Lebret quanto a própria instituição<br />
Refiro-me, aqui, ao ano de 1963, quando eu<br />
comecei a fazer o IRFED em outubro daquele ano.<br />
Lembro-me muito bem que naquela turma tinha<br />
muitos colegas que vinham da África, para serem<br />
preparados tecnicamente para serem os quadros<br />
técnicos e políticos qualificados para os países<br />
que tinham saído das guerras coloniais. Lembrome,<br />
com emoção, de três colegas argelinos que<br />
tinham acabado de sair da guerra, e que estavam<br />
lá para se preparar para voltar e assumir funções de<br />
Estado em seu país recém-libertado. A característica<br />
internacional e voltada para a formação de quadros<br />
para países pobres e recém-libertos o legitimava<br />
para receber jovens que acabavam de fazer uma<br />
guerra contra a própria França! Mas nossa vivência<br />
no IRFED naqueles tempos não era tranquila, pois<br />
éramos bem mais revolucionários do que a proposta<br />
política trazida pela “ideologia” do Movimento<br />
Economia e Humanismo, de um desenvolvimento<br />
“harmonioso” e solidário. Nisso nunca acreditei<br />
ou usei esses conceitos desde então, até hoje!<br />
Tristemente vejo que esses dois conceitos-obstáculo<br />
hoje tem outros nomes que da mesma forma<br />
atrapalham a crítica a exploração humana: a maldita<br />
sustentabilidade, inclusão social ou seja lá do que<br />
for e outras detestáveis metáforas...<br />
Havia também a formação em Planejamento Social,<br />
que tirando aquela da Educação, considerada fundamental<br />
para o avanço de qualquer sociedade do<br />
mundo pobre, era onde eram tratados os aspectos<br />
de saúde, assistência social, cultura, que o Padre<br />
Lebret colocou magistralmente no seu livro “La<br />
Dinamyque concrète du Devéloppement”, um,<br />
dos melhores e, ao que eu saiba, ainda não foi<br />
publicado em português. É um livro precioso, com<br />
aspectos válidos até hoje, onde ele ensina a fazer<br />
análises cruzadas, coisa que hoje se faz usando<br />
softwares que com poucos comandos apresentam<br />
complexidades, que outrora levávamos às vezes<br />
anos, para representar... Mas o que importava era o<br />
sistema de análise, como ele nos ensinava, ou seja, a<br />
teoria que o Movimento de Economia e Humanismo<br />
oferecia. Cristã e neoliberal é bem verdade, mas coesa<br />
e muito bem ensinada... Debatíamos e discutíamos<br />
muito, especialmente os colegas recém-saídos das<br />
guerras de libertação da África.<br />
V14 N2<br />
transcrição<br />
93
Entrevista com Maria Adélia de Souza<br />
Mas, naquela época, esses ensinamentos eram<br />
muito importantes! Havia uns famosos gráficos que<br />
denominávamos “de borboleta” que eram uma<br />
espécie de representação gráfica e iconográfica da<br />
realidade. Eu achava essa forma de representação<br />
genial não apenas pela parte gráfica, mas porque na<br />
montagem do gráfico ficava explícita, pelas variáveis<br />
consideradas, a filosofia do Movimento “Economia e<br />
Humanismo” e a sua definitiva preocupação com os<br />
aspectos políticos e sociais, ainda que a seu modo.<br />
Mas o seu humanismo era inquestionável!<br />
era a montagem do pacto político a ser refletido<br />
tecnicamente pelo Plano!<br />
Naqueles tempos, o curso era em tempo integral<br />
e ficávamos um ano inteiro estudando. Se compararmos<br />
com a aprendizagem de hoje, a formação<br />
do IRFED equivaleria a três anos de um curso de<br />
pós-graduação hoje, stricto sensu, porém sem a<br />
elaboração de uma dissertação ou tese. Realizávamos<br />
provas escritas, como mecanismo de avaliação. Era<br />
linha dura!<br />
A formação que fiz, era o Planejamento Territorial,<br />
que aqui no Brasil sempre foi chamado de Planejamento<br />
Urbano e Regional, mas que na sua<br />
origem não tinha esta separação, por que nós<br />
aprendíamos a ser estrategistas territoriais.<br />
Dentro dessa imensa formação tinha uma gavetinha<br />
pequenina que era a do Plano Diretor. Este, lamentavelmente,<br />
até hoje é considerado um plano do<br />
município ou da cidade, cujo produto é uma norma<br />
politica, como sabemos, e que nem sempre tem a ver<br />
com a totalidade do uso do território do município<br />
por todos os seus habitantes. O grande produto<br />
do plano diretor, a Lei de Zoneamento, sabemos,<br />
reflete interesses poderosos e imutáveis na vida da<br />
cidade, desde sempre.<br />
No entanto, desde que comecei a estudar esse tema<br />
no IRFED, o Plano sempre foi considerado como<br />
uma técnica, onde o difícil era exibir o que vinha<br />
antes, que eram as escolhas políticas, as diretrizes<br />
políticas, as prioridades territoriais.<br />
Mas eu aprendi muito no IRFED, onde a seleção dos<br />
alunos era rigorosa, trazendo para o curso pessoas<br />
já maduras, sensíveis aos trabalhos dos movimentos<br />
sociais, pois o problema do Instituto era formar<br />
gente para melhorar as condições de vida nos países<br />
pobres, de onde vinham os alunos.<br />
Eu me lembro de dois colegas belgas e de um<br />
padre francês, padre operário, que frequentaram o<br />
curso comigo. Eles trabalhavam na África, e assim<br />
eram meus colegas, além dos africanos, africanos<br />
negros, africanos árabes, haitianos, gente de Santo<br />
Domingo, tinha muita gente da América Central<br />
que estava fervendo por causa da revolução cubana<br />
em andamento. Do Brasil éramos: três do nordeste,<br />
eu aqui de São Paulo. O ano era 1963 (outubro,<br />
pouco antes do golpe militar...) e acreditávamos que<br />
faríamos a revolução socialista, que nos parecia em<br />
marcha... Mas logo em seguida, quando fazíamos<br />
um estágio de Economia agrícola na Bretanha, de<br />
manhã, no dia 31 de março recebemos pelo rádio<br />
a informação do Golpe Militar..<br />
Até hoje aqui no Brasil faz-se Plano Diretor sem<br />
território, mas apenas promovendo aquilo que<br />
venho chamando de “guerra das localizações”,<br />
“guerra dos valores do solo”, praticadas pelos<br />
especuladores imobiliários e fundiários os quais,<br />
na verdade mandam na cidade. Acoplado a essa<br />
guerra vive o romantismo da forma e da formalidade<br />
oferecida pelo racional funcionalismo que ainda<br />
predomina, mesmo conduzindo um pretenso discurso<br />
de esquerda, de vanguarda. Tristemente, a<br />
inspiração dos planos diretores ainda está em Atenas,<br />
em Londres, em Paris, ou mais recentemente, em<br />
Barcelona!<br />
Enorme emoção, pois o que nos unia, a todos os<br />
alunos era uma problemática de fundo, libertária.<br />
O golpe militar foi um choque para toda a turma.<br />
O fato é que eu sou de uma geração que está na<br />
transição de uma universidade que era elitista para<br />
uma universidade mais popular de classe média.<br />
Eu estou nesta transição... Eu ainda peguei esta<br />
“universidade chique”! A Faculdade de Filosofia,<br />
Ciências e Letras da USP era um reduto de “gente<br />
chique”, por quê? Porque formava professores e na<br />
época ser professor, no final dos anos 1950, dos anos<br />
1940 o professor era uma figura prestigiadíssima.<br />
O Plano Diretor era uma questão de técnica<br />
para o Padre Lebret, de fácil resolução. Difícil<br />
No entanto, no curso de Geografia que eu fazia na<br />
USP tenho certeza de que fui a primeira pessoa que<br />
V14 N2<br />
transcrição<br />
94
Entrevista com Maria Adélia de Souza<br />
1 Bagrinho, como já disse<br />
anteriormente aqui, era o<br />
nome carinhoso atribuído<br />
aos estagiários da SAGMACS.<br />
teve a coragem de dizer: eu quero ser professora,<br />
mas eu também quero ser planejadora. Mal sabia<br />
eu o que era isso! Apenas estava sendo introduzida<br />
na SAGMACS, nessa prática, como “bagrinho” 1 !<br />
Nem sabia como é que se fazia isso e por isso é que<br />
eu fui fazer o IRFED e fui uma geógrafa pioneiríssima!<br />
Sem formação específica em planejamento havia<br />
um ou dois geógrafos que se atreviam a participar<br />
das equipes multidisciplinares requeridas por essa<br />
prática. E eu acho que sem dúvida alguma eu<br />
sou a primeira geógrafa paulista, com certeza<br />
e, provavelmente brasileira, com formação de<br />
planejadora que trabalhou em planejamento no<br />
Brasil. Eu tive uma outra colega contemporânea,<br />
grande geógrafa carioca, que fazia geografia urbana<br />
e que trabalhou com planejamento: a Lyzia Bernardes<br />
que foi uma grande geógrafa com um trabalho<br />
importante, sobre a região metropolitana do Rio<br />
de Janeiro. Mas a Lyzia fazia análise geográfica.<br />
Ao que eu saiba, a não ser liderando trabalhos<br />
no Governo, na área de planejamento, ela nunca<br />
elaborou uma alternativa de futuro, como fiz em<br />
várias oportunidades, definindo políticas urbanas e<br />
regionais, para o Brasil, para o Estado de São Paulo,<br />
para a região Sul do Brasil, além de dezenas de Planos<br />
Diretores. E isso tudo eu devo a este curso que eu<br />
fiz lá no IRFED e também claro a formação que eu<br />
tive aqui, na SAGMACS, mesmo sendo “bagrinho”.<br />
Eu sempre sou muito atenta a qualquer processo<br />
de aprendizagem, até hoje.<br />
L.C. Vamos voltar um pouquinho para situarmos<br />
melhor seu vínculo, e o curso no IRFED, pois o IRFED<br />
a senhora foi fazer já depois de ter atuado como<br />
estagiária, bagrinho do Lebret na SAGMACS não é?<br />
Já levou consigo um conhecimento sobre o método<br />
que a SAGMACS utilizava.<br />
M.A.S. Eu me lembro, como se fosse hoje do Padre<br />
Lebret e do professor Pierre Monbeig entrando<br />
juntos na biblioteca do escritório da SAGMACS.<br />
Era ali que eu ficava, trabalhando, sob o comando<br />
naquela época do arquiteto Luiz Carlos Costa. Foi<br />
quando eu fui convidada pelo Padre Lebret e pelo<br />
Pierre Monbeig a continuar meus estudos na França,<br />
quando terminasse minha graduação. Levei a sério<br />
esse convite! Eu era estagiária da SAGMACS e os<br />
dois foram visitar frei Benevenuto, nosso líder na<br />
SAGMACS. Foi quando o Frei, como o chamávamos,<br />
me apresentou ao Professor Monbeig dizendo que<br />
finalmente tinha na equipe uma geógrafa, ainda<br />
estagiária que estava interessada em prosseguir seus<br />
estudos sobre planejamento territorial. Foi então que<br />
o Professor Pierre Monbeig, fundador da USP foi à<br />
biblioteca me conhecer e me perguntou em que ano<br />
eu estava na Faculdade. Eu cursava o terceiro ano<br />
e então ele me disse: quando você terminar você<br />
me escreve, pois eu vou conseguir uma bolsa para<br />
você ir para Paris fazer o IRFED. Então ele chamou o<br />
Padre Lebret e me apresentou à ele dizendo que eu<br />
seria uma futura aluna do instituto. O Padre Lebret<br />
falou a mesma coisa, que quando eu terminasse<br />
para eu seguir para Paris para aperfeiçoar-me em<br />
planejamento. Levei tão a sério o convite que eu<br />
terminei o quarto ano em dezembro de 1962 e logo<br />
comecei a organizar minha viagem. E em novembro<br />
de 1963, segui de navio, o “Enrico C”, para Paris,<br />
com parada em Marseille.<br />
O Padre Lebret me ofereceu uma bolsa de um<br />
comitê católico ligado aos padres jesuítas, que<br />
acolhia exilados políticos também, naquela época,<br />
chamado Comite Catolic contre la Faim e pour le<br />
Developpement. O Professor Monbeig me conseguiu<br />
uma bolsa depois, para fazer o mestrado com Celso<br />
Furtado e o doutorado inicialmente com ele (Pierre<br />
Monbeig), terminando com Michel Rochefort. Mas<br />
a primeira bolsa que eu tive na França foi o Padre<br />
Lebret quem me arrumou. E eu me lembro de que<br />
a Silke Weber, eu e os outros colegas do nordeste<br />
tivemos esta bolsa do comitê católico. Naquela<br />
época o Brasil não oferecia ainda bolsa de estudos.<br />
Existiam esse Comitê e o próprio Governo francês,<br />
oferecendo bolsas de estudos a estrangeiros. E eu<br />
me beneficiei delas, por isso sou grata ao povo<br />
francês até hoje por ter custeado meu doutorado.<br />
Então eu sou uma cria da SAGMACS! Acho que sou<br />
a única cria jovem da equipe, fui estagiária, fiz o<br />
IRFED. Eu comecei como estagiária e fui seguindo,<br />
trabalhei no Plano de Governo do Ney Braga para o<br />
Paraná, um projeto de loteamento para São Vicente<br />
coordenado pelo arquiteto Flávio Villaça, um projeto<br />
para a fazenda da Yolanda Penteado em Araras,<br />
o Plano Diretor de Sorocaba... mas nessa minha<br />
época não tiveram muitos trabalhos assim feitos<br />
pela SAGMACS.<br />
Quando eu voltei de Paris a SAGMACS já não atuava<br />
mais, já tinha tido o golpe militar de 1964 e foi<br />
uma história complicada, com alguns dos nossos<br />
V14 N2<br />
transcrição<br />
95
Entrevista com Maria Adélia de Souza<br />
perseguidos pelos militares... O escritório estava<br />
fechado, mas alguns de nós, com a autorização do<br />
Frei usávamos o espaço. Levávamos trabalhos para<br />
desenvolver lá, utilizávamos a estrutura do espaço.<br />
O Vincenzo Bochicchio, meu colega e amigo da<br />
graduação era um cartógrafo, juntos lá fizemos<br />
o primeiro mapa da Grande São Paulo, editado<br />
pela Livraria Duas Cidades, um primor, que depois<br />
a Geomapas editou. Trabalhamos dois anos na<br />
produção dessa cartografia. O Bochicchio dava aulas,<br />
eu trabalhava na Secretaria de Planejamento durante<br />
o dia e, nas horas vagas e a noite, trabalhávamos no<br />
mapa, no escritório da SAGMACS, para segundo o<br />
Frei não deixa-lo totalmente fechado.<br />
E esse mapa ficou lá na Livraria Duas Cidades,<br />
como um dos seus produtos à venda mas, serviu<br />
como prova para os agentes que foram prender o<br />
frei dominicano que era a conexão com o Carlos<br />
Marighela, que segundo a polícia, parece-me o<br />
contato era feito a partir da livraria! Foi uma enorme<br />
dor de cabeça, pois o nosso mapa foi usado como<br />
prova de que nós estávamos organizando a guerrilha<br />
urbana, imagine só!!!... Se não fora a amizade do<br />
Frei Benevenuto com o Alfredo Buzaid, Ministro<br />
da Justiça da ditadura, mas que era um grande<br />
intelectual, freguês da livraria, eu e meu amigo<br />
cartógrafo tínhamos sido presos, pois éramos os<br />
autores do mapa.<br />
Guerrilha urbana, naqueles tempos sombrios!!!<br />
Na realidade, nós tínhamos feito um mapa para<br />
discutir o planejamento e a constituição da Região<br />
Metropolitana de São Paulo. Era um período que<br />
já se discutia isso, já se falava da instituição do<br />
GEGRAN, eu estava na Secretaria de Planejamento,<br />
trabalhando com o Luiz Carlos Costa, nós estávamos<br />
definindo a primeira divisão regional do estado<br />
de São Paulo, a criação do Grupo Executivo da<br />
Grande São Paulo – o GEGRAN, que deu origem<br />
a EMPLASA, tudo isso estava nascendo e tudo<br />
sendo feito a mão.<br />
Os policiais baixaram na livraria duas Cidades em<br />
função da denuncia da conexão dos dominicanos<br />
com o Marighela. Acham um mapa, o primeiro feito<br />
para a região, cheio de informações estratégicas...<br />
Então, para ligar o mapa, com a livraria, com a<br />
Maria Adélia e o Bochicchio e guerrilha urbana<br />
foi um passo... Enorme susto levamos, todos...<br />
Inesquecível!<br />
Eu me lembro de que em 1968, depois do AI 5, o<br />
DOPS invadiu a SAGMACS eu fui para lá, avisada<br />
pelo Frei, para tentar salvar o que dava do nosso<br />
acervo. Eu trabalhava no palácio do Governo e o Frei<br />
Benevenuto me ligou por volta de umas dezessete<br />
horas e disse que tinha a informação de que o DOPS<br />
iria invadir o escritório. Eu convidei o Bochicchio,<br />
que também era meu colega, tinha feito estágio lá<br />
também, mais três moças, não lembro mais quem<br />
e fomos para lá em quatro carros e tudo o que deu<br />
para retirar da biblioteca a gente tirou e eu levei<br />
para uma garagem na casa de uma tia minha que<br />
morava lá no Parque São Lucas, na Zona Leste de<br />
São Paulo. Esse material ficou por um bom tempo<br />
lá até que o Frei decidiu vender esse material para<br />
o Prof. Nestor Goulart Reis, então Diretor da FAU,<br />
que comprou para a Biblioteca da pós-graduação,<br />
tudo o que pudemos salvar.<br />
L.C. O Lamparelli comenta que este acervo comprado<br />
pelo Prof. Nestor para a Biblioteca da FAU USP não<br />
era nem um terço do acervo que tinha na SAGMACS.<br />
A senhora disse que pegou o que foi possível.<br />
Mas houve uma preocupação de retirar livros que<br />
pudessem chamar mais atenção dos agentes do<br />
regime? Priorizou-se algo para ser salvo do acervo?<br />
M.A.S. Não deu tempo! O Atlas de Favelas de<br />
São Paulo tinha ficado comigo porque era uma<br />
preciosidade, depois é que eu entreguei. Mas foi o<br />
que deu para salvar, nós fomos pegando, os arquivos,<br />
os projetos, foi o que deu tempo de pegar, tinha<br />
muita coisa que estava fechada. Da biblioteca eu<br />
peguei muita coisa, de projeto não levamos quase<br />
nada e nós saímos de lá e o DOPS entrou. Acho<br />
que nós levamos para fazer isso umas três horas,<br />
eram outros tempos, foi uma operação com um<br />
cara lá embaixo vigiando se o DOPS chegava, nós<br />
no 13º andar do prédio, aqueles elevadores que<br />
não andavam... um pesadelo... nós saímos de lá<br />
e a polícia chegou. Por pouco, pouco, não fomos<br />
pegos. Mas o Lamparelli tem razão. Ainda ficou<br />
um bocado de material que não deu para retirar.<br />
Não houve tempo...<br />
L.C. Quando houve o golpe em 1964 a senhora<br />
cursava o IRFED. Alguns dos que se exilaram na<br />
França também cursaram o IRFED um tempo<br />
depois. Eu também me lembro de ter visto em<br />
Fontainebleau jornais da época, como se vocês<br />
estivessem acompanhando o que se passava por aqui.<br />
V14 N2<br />
transcrição<br />
96
Entrevista com Maria Adélia de Souza<br />
M.A.S. Quando aconteceu o golpe em 1964 eu e<br />
a Silke Weber éramos da Ação Popular, juntamente<br />
com o Vinicius Caldeira Brant, o José Serra, a Maria<br />
do Carmo Menezes e seu marido Sergio Menezes,<br />
a Maria da Penha Vilela de Carvalho, que ficou em<br />
Paris e fez sua carreira como assistente de Paul<br />
Ricoeur e está lá até hoje...<br />
Como disse anteriormente, e eu estava me lembrando<br />
de que em 31 de março nós todos que<br />
cursávamos o IRFED estávamos na Bretanha fazendo<br />
um estágio sobre os problemas das propriedades<br />
rurais. E eu me lembro que nós fomos nos deitar no<br />
31 de março com a notícia do sucesso do comício da<br />
Candelária e então no meio da noite eu fui acordada<br />
por um amigo do Ceará, que depois atuou no Banco<br />
do Nordeste e ele batia na porta dizendo: Adélia, Silke<br />
acordem, acordem, acordem; e quando nós abrimos<br />
a porta ele disse: Jango caiu! Eu pensei, como assim<br />
Jango caiu? Os militares deram um golpe... Saímos<br />
todos correndo para Paris, interrompemos nosso<br />
estágio, e nos juntamos aos companheiros (da AP)<br />
que estavam já se mobilizando. Eles nos disseram<br />
alguns precisam ir para (o aeroporto de) Orly, “pois<br />
os exilados vão começar a chegar”...<br />
Na noite no dia 1º de abril eu e mais alguns companheiros<br />
já estávamos em Orly recebendo as pessoas<br />
que começavam a chegar, sobretudo, das ligas<br />
camponesas que foram os primeiros. Chegavam lá<br />
famílias de camponeses inteiras pedindo socorro.<br />
Os franceses foram de uma generosidade e o<br />
Movimento Economia e Humanismo tinha uma<br />
respeitabilidade, uma capilaridade lá que ajudou<br />
muita gente também a se alojar.<br />
Era difícil, pois tínhamos que instalar as pessoas que<br />
chegavam, arrumar emprego, arrumar comida... Mas<br />
eram os exilados de bases políticas, gente simples,<br />
estudantes secundários e universitários... Não era<br />
o Almino Afonso que eu fui receber, era gente que<br />
começou a chegar depois em 1966, 1967, antes da<br />
coisa piorar mais aqui, gente que tinha ido para o<br />
Chile e seguiu para a França depois... Dos geógrafos<br />
o Manuel Correia de Andrade, de Pernambuco<br />
chegou em 1964, o Milton Santos chegou em 1966.<br />
Eu me lembro do Manuel Correia porque nós íamos<br />
juntos para o curso de Mestrado, que eu comecei<br />
a fazer em 1965 sob a orientação do Prof. Celso<br />
Furtado. O Professor Monbeig tinha me indicado<br />
e o Celso Furtado me aceitou como orientanda. Eu<br />
tinha um material sobre o Paraná que eu acumulei<br />
durante o trabalho de “bagrinho” na SAGMACS,<br />
quando foi feito o Plano de Governo para o Ney<br />
Braga. Era um material muito bom e isso eu usei<br />
para o mestrado. Depois o professor Celso Furtado<br />
acabou orientando o Pedro Calil, apresentado por<br />
mim, fazendo uma bela tese sobre economia agrícola.<br />
Calil acabou ficando em Paris, fez o IRFED e acabou<br />
sendo um dos seus dirigentes, como também o<br />
Chico Whitaker. Mas já nos anos 70 se não me<br />
falha a memória...<br />
L.C. Voltando para nosso tema e antes de avançarmos<br />
mais sobre a SAGMACS, a senhora mencionou<br />
a pouco do Lebret e o Monbeig entrarem<br />
juntos no escritório da SAGMACS. Comentou que<br />
quem fez sua indicação para o IRFED foi o Monbeig.<br />
Eu sei que há um vínculo entre ele e o Lebret, mas<br />
isso é institucional? Ele deu aulas no IRFED?<br />
M.A.S. Tinham muitos professores universitários<br />
franceses que participavam do Movimento, na<br />
geografia tinha o Monbeig e o Jean La Basse que<br />
era de Lyon, vários professores da economia, o<br />
Jean Marie Albertini, professores da sociologia do<br />
trabalho, gente que trabalhava nos institutos e<br />
nas universidades de lá e que pertenciam ou eram<br />
ligados ao movimento.<br />
Penso que no caso do Professor Monbeig pesava o<br />
conhecimento que ele tinha do Brasil, o fato dele<br />
ter estado aqui, já conhecia melhor e acredito que<br />
ele ajudou o Padre Lebret a se introduzir em alguns<br />
meios aqui no Brasil. Provavelmente pode ter sido<br />
o Professor Monbeig quem pode ter apresentado o<br />
Lebret ao pessoal do Estadão, que acabou fazendo<br />
um caderno especial do jornal sobre o estudo feito<br />
sobre as favelas de São Paulo! O Professor Monbeig<br />
ficou amigo dos Mesquitas, quando veio trabalhar<br />
na USP nos anos 1930 e foi a família que o acolheu<br />
aqui. Monbeig tem um filho que é afilhado do Julio<br />
Mesquita! Então eu acho que o fato do Monbeig<br />
ter estado aqui alguns anos antes, ele pode ter sido<br />
a pessoa que introduziu o Padre Lebret em alguns<br />
nichos da sociedade paulistana. Mas ele não deu<br />
aulas no IRFED pelo menos enquanto fui aluna. Ele<br />
estava sempre lá, contribuía, mas não dava aulas.<br />
L.C. Dentro dessa questão dos seus colegas de<br />
IRFED, pensando que eram pessoas de países pobres<br />
V14 N2<br />
transcrição<br />
97
Entrevista com Maria Adélia de Souza<br />
indo para Paris fazer o curso como é que se dava<br />
o financiamento das atividades do instituto? A<br />
senhora mencionou ter ganho uma bolsa de estudos<br />
financiada por um Comitê Católico. Estas bolsas<br />
eram para todos? Havia custos para os alunos?<br />
Como é que o Insituto se mantinha?<br />
M.A.S. Parece-me que tinham organizações religiosas<br />
que financiavam, além dos trabalhos técnicos<br />
de consultoria realizados pelo próprio IRFED. O<br />
Comitê Católico dava a bolsa, como a que eu<br />
consegui, e acredito que o Padre Lebret conseguia<br />
algum dinheiro junto ao Vaticano, com a realização<br />
de trabalhos de assessoria. Mas era tudo muito<br />
simples também. O esquema do Padre Lebret era<br />
simples, ele conseguia as bolsas para as pessoas que<br />
iam para lá estudar de diferentes organizações, tinha<br />
formas de alojar os alunos e acho que ele conseguia<br />
algum apoio em alguns governos também.<br />
Tinha também a Livraria que dava algum dinheiro,<br />
as edições Ouvrières eram muito comercializadas,<br />
tinham muito prestígio. Havia a Revista do movimento<br />
que também era bastante requisitada. Certamente o<br />
IRFED tinha que pagar os professores, mas era tudo<br />
muito simples, era uma sala pequena onde tínhamos<br />
aula, não tinha nada sofisticado. Mas nós, os alunos,<br />
não falávamos disso não, não dava para saber, pois<br />
cada um vinha de uma guerra de libertação, ou um<br />
lugar de extrema pobreza que era tudo muito tenso,<br />
as pessoas não conversavam muito ali.<br />
Mas era muito interessante isso tudo, os alunos<br />
chegavam na França três meses antes do início<br />
do curso no IRFED e eram acolhidos num castelo,<br />
ficavam alojados lá, trancados por três meses só<br />
para aprender o francês. E não pagávamos nada por<br />
isso! Íamos para lá antes para aprender o francês<br />
e assim é que nos conhecíamos. E tinha gente de<br />
todo lugar que vinham para fazer o curso: tinham<br />
aqueles quem vinham de colônias inglesas, tinha<br />
colega da Ásia.<br />
L.C. Agora poderíamos falar sobre uma questão de<br />
ideologia e posicionamento político da SAGMACS. É<br />
possível verificar que a SAGMACS atuou basicamente<br />
para o Poder Público e se olharmos os períodos veremos<br />
que há uma abertura em governos mais progressistas<br />
como aqui em São Paulo durante o Carvalho Pinto, o<br />
Ney Braga no Paraná, o Toledo Pizza na Prefeitura de<br />
São Paulo, em Belo Horizonte o Plano Diretor para o<br />
Amintas, o Baltar em Recife também com trabalhos<br />
bem progressistas para o desenvolvimento regional.<br />
No Rio acredito que menos... A SAGMACS não estava<br />
mesmo vinculada politicamente a esses governos? Aos<br />
partidos mais à esquerda?<br />
M.A.S. Não é que não estava vinculada politicamente.<br />
Isso não existe! O que havia era uma questão<br />
de convergências políticas, com algumas figuras ou<br />
alguns partidos, o que é diferente de hoje que há<br />
uma ligação direta de um contrato de consultoria<br />
com o partido e alguém do partido.<br />
Naquele tempo não era assim, sendo a SAGMACS<br />
representante do Movimento Economia e Humanismo,<br />
para operacionalizar as ideologias humanistas<br />
em sua essência, combativas do problema da desigualdade,<br />
isso era uma novidade quando as<br />
discussões intelectuais no mundo se davam a<br />
partir disso e do terceiro mundo, isso vinha das<br />
reverberações da segunda guerra, a Europa ainda<br />
em reconstrução...<br />
Então eu acho que a SAGMACS conseguiu realizar<br />
trabalhos, foi convidada a participar nos governos<br />
democrata-cristãos, onde teve, no caso do Ney Braga<br />
no Paraná. Aqui em São Paulo não tivemos esta<br />
experiência com os governos democrata-cristãos,<br />
quando eu estive lá. Aliás, nessa época, tínhamos<br />
em São Paulo pouquíssimos trabalhos. Lembro-me<br />
que, além do Plano de Governo para o Ney Braga<br />
no Paraná, trabalhei no Plano Diretor de Sorocaba,<br />
Barretos... Mas eram pouquíssimos, não foi muita<br />
coisa que a SAGMACS fez, se contar acho que não<br />
passam de vinte trabalhos! A SAGMACS deve ter<br />
durado uns quinze anos!!!<br />
Havia também o projeto da Bacia do Tietê e antes<br />
disso tinha tido o governo Carvalho Pinto, que<br />
eu ainda era estudante, mas aí foi a mudança<br />
para o planejamento. O Governador Lucas Garcez<br />
contratou o trabalho para a bacia do Paraná-Uruguai,<br />
intitulado “Necessidades e Possibilidades para o<br />
desenvolvimento da Bacia Paraná Uruguai”, ele<br />
conseguiu alguns trabalhos, viraram contratos. Mas<br />
eram pessoas, um grupo de Democrata-Cristãos<br />
mais esclarecidos que não tinham nada a ver com<br />
a esquerda não, eu acho.<br />
L.C. A SAGMACS me coloca este ponto de indagação<br />
sobre a ideologia, ela começa com a vinda do Lebret<br />
V14 N2<br />
transcrição<br />
98
Entrevista com Maria Adélia de Souza<br />
em 1947 a convite da Escola de Sociologia e Política,<br />
mas há quem aponte que também foi a FIESP que<br />
bancou a vinda do Lebret para dar um curso de<br />
planejamento econômico e quando a SAGMACS<br />
é fundada ela vai trabalhar dentro do Jóquei Clube<br />
com o Lucas Nogueira Garcez e o Luiz Cintra do<br />
Prado que não eram pessoas nada progressistas.<br />
M.A.S. Exatamente! Mas isso é transparente não<br />
é? Porque a Democracia Cristã não está ligada a<br />
esquerda, sempre esteve muito ligada as elites, ainda<br />
mais aqui. Mas é isso mesmo, começou com o Garcez,<br />
Jóquei Clube, depois é que começa a mudar, quando<br />
o Frei Benevenuto assume a direção e começa a trazer<br />
uma equipe bastante progressista. Não conheço bem<br />
esse início, pois já cheguei na Praça das Bandeiras. Aí,<br />
então, penso que a SAGMACS começa a se desvincular<br />
desses mandos, mas mesmo neste período tinha um<br />
debate interessante sobre o desenvolvimento e esta<br />
geração que eu peguei tinha o Chico Whitaker que<br />
me parecia à época o mais à esquerda, tanto que foi<br />
superintendente da SUPRA – Superintendência para<br />
a Reforma Agrária, no Governo Jango.<br />
Mas apesar de tudo nós estávamos mais a esquerda<br />
do que qualquer outro movimento da época, tanto<br />
é que os que eram do movimento cristão e que<br />
mais se radicalizaram foram para a Ação Popular,<br />
isso foi o racha, por conta dos católicos que eram<br />
contra este conservadorismo.<br />
Mas eu fui militar na AP lá em Paris, nem foi aqui...<br />
Mas eu fui amavelmente convidada a deixar a JUC<br />
porque eu havia participado de um comando de greve<br />
da Perus, cujo advogado era o Mario Carvalho de Jesus<br />
que participava as vezes da SAGMACS, de algumas<br />
reuniões, se não me falha a memória. Mas, na equipe<br />
tinha o médico João Yunes e o José Carlos Seixas,<br />
também médico e líder da JUC e que também eram<br />
do movimento. Nossa atuação na greve da Perus foi<br />
considerada um anarquismo inconsequente. Então<br />
deixei a JUC. Depois disso, na universidade eu fui me<br />
aproximando mais da POLOP (Organização Operária<br />
Marxista), com a Regina Toledo e o Eder Sader, que<br />
depois foi seu marido, o Fuad Saad, Mario Damato<br />
e tantos outros companheiros de politica estudantil<br />
do Grêmio da Faculdade de Filosofia, na rua Maria<br />
Antonia. Mas jamais entrei nessa organização. Era<br />
amiga de muitos dos seus militantes. A POLOP era<br />
barra mais pesada, tanto que muitos dos nossos<br />
companheiros foram mortos.<br />
L.C. Quanto ao catolicismo, isso é mais forte no<br />
grupo da SAGMACS que estava em São Paulo? É<br />
certo falarmos em equipe da SAGMACS de São<br />
Paulo, pois isso soa como se eu estivesse dizendo<br />
que houve várias vertentes dentro do grupo. Isso de<br />
fato existia? O que é que a diferenciava?<br />
M.A.S. Talvez sim, isso porque o Dr. Baltar que<br />
estava em Recife, o pessoal do Rio, ligado ao<br />
Arthur Rios se não me falha a memória não tinha<br />
um frei na direção de forma ali tão direta como<br />
nós tínhamos o Frei Benevenuto em São Paulo.<br />
Embora o frei fosse muito esclarecido, sabia muito<br />
bem diferenciar isso, pois era muito inteligente e<br />
um grande intelectual. Dos melhores que conheci<br />
em minha vida. E extremamente crítico e rigoroso.<br />
Mas eu acho que você tem que ver também<br />
o contexto da igreja católica, o momento que<br />
estávamos vivendo, tudo isso tem que ser colocado,<br />
porque naquele contexto este grupo nosso era<br />
um grupo católico de extrema esquerda... naquele<br />
contexto. Era uma igreja saindo do Pio XII, de<br />
um conservadorismo e começando o Vaticano<br />
II, com o João XXIII, aquela abertura toda e com<br />
a posterior chegada de Paulo VI. Naquela época<br />
era tudo muito cioso, solene, hoje mudou, mas<br />
a igreja foi se modificando, porque o capitalismo<br />
é de uma desfaçatez que ele vai detonando com<br />
tudo e até com aquelas estruturas que pareciam<br />
intocáveis.<br />
L.C. Os trabalhos feitos pelas equipes dos grupos<br />
vinculados ao Movimento Economia e Humanismo<br />
como os que a SAGMACS faziam aqui no Brasil, a<br />
SAGMA lá na França, SAGMAESCO na Colômbia,<br />
etc, tinha algum monitoramento por parte do<br />
movimento? Havia um vínculo financeiro de cooperação,<br />
como valores enviados pelo movimento da<br />
França à SAGMACS no Brasil?<br />
M.A.S. Que eu saiba não. Mas não conheço bem<br />
essa história. A SAGMACS se mantinha através<br />
dos contratos que estabelecia para realização dos<br />
trabalhos técnicos em planejamento urbano e<br />
regional e urbanismo. Eu nunca soube também<br />
de que nós tivemos que remeter nada para eles lá<br />
não. Havia um intercâmbio para fazer cursos nos<br />
diferentes países. De São Paulo foram arquitetos<br />
para a Colômbia, por exemplo fazer cursos sobre<br />
Habitação Popular!<br />
V14 N2<br />
transcrição<br />
99
Entrevista com Maria Adélia de Souza<br />
Mas eram os contratos mesmo que mantinham as<br />
equipes. Mas na SAGMACS eu era “bagrinho”. Eu<br />
não participava dessas reuniões de decisão, depois<br />
que eu fui para Paris que eu me aproximei mais do<br />
Padre Lebret.<br />
Aqui no Brasil, nossos dirigentes, além do Frei<br />
Benevenuto era o Celso Lamparelli, o Flavio Vilaça,<br />
a Clementina Ambrósis, o Antonio Claudio Moreira,<br />
o Chico Whitaker que sabiam melhor disso. Eu me<br />
lembro de alguns intercâmbios... acho que foi o<br />
Vitold quem buscou este intercâmbio junto com<br />
outros dois arquitetos formados pela FAU: o Paulão<br />
(Paulo Yazetti) e o Roberto Yazigi.<br />
L.C. Por fim, gostaria que a senhora apontasse a<br />
partir de um quadro do que ocorria no campo das<br />
práticas profissionais dos urbanistas e dos órgãos<br />
que pensavam o planejamento na época, em que<br />
se diferenciou o trabalho da SAGMACS e o porque<br />
conseguiu se constituir a partir desta diferença. Há<br />
alguma influência da SAGMACS nas práticas do<br />
planejamento pós década de 1960?<br />
M.A.S. Eu acho que foi um movimento importante<br />
para aquela época para dar uma conscientização<br />
sobre a questão da importância do planejamento,<br />
mostrou que o planejamento não é uma questão<br />
apenas técnica, é algo para se pensar no futuro<br />
das nações. O primeiro exercício de implantação<br />
dos princípios de planejamento, que vinga desta<br />
formação que nós tínhamos no IRFED, foi no governo<br />
Carvalho Pinto. Foram os princípios “irfedianos”<br />
que nortearam o grupo do PAGE – Plano de Ação<br />
daquele governo, um plano territorial. Se você<br />
pegar o plano do governo do Carvalho Pinto eles<br />
começam ali a instituir um instrumento que é<br />
“irfediano” que é o que eu segui pelo resto da vida<br />
e faço até hoje, onde o território não é apenas um<br />
enunciado, mas uma categoria de análise. Por isso<br />
falávamos em regionalização para descentralização<br />
e democratização de implantação de serviços, que<br />
hoje virou esta coisa de participação popular que<br />
está aí... com mais discurso do que ação.<br />
do Estado de São Paulo, que o Carvalho Pinto não<br />
tinha feito. Esse governo havia feito a regionalização<br />
dos serviços. Já o Costa, como o chamávamos,<br />
quando eu trabalhei com ele neste projeto, cuidou<br />
de uma regionalização integral dos serviços, que<br />
naquela época nós acre-ditávamos muito, e hoje<br />
eu me revejo nisso... Nós errávamos por falta de<br />
formação teórica e filosófica mais aprimorada...<br />
Eu não tinha sido aluna do Sartre ainda, e por isso<br />
eu acreditava na busca da intersetorialidade, como<br />
busca da prática governamental. Essa coisa faria a<br />
articulação entre os setores do governo de modo a<br />
agilizar e melhorar a prestação dos serviços. Hoje eu<br />
sei que isso não existe, o que existe é a totalidade<br />
em movimento e quem expressa essa unidade e essa<br />
dinâmica é o território usado. O território, não o setor<br />
é quem deve ser considerado pelo planejamento.<br />
Trata-se de discutir o planejamento territorial versus<br />
o planejamento setorial.<br />
Daquele trabalho coordenado pelo Luiz Carlos Costa<br />
na Secretaria do Planejamento do Estado de São Paulo<br />
sai a ação regional, e o primeiro decreto desta ação<br />
é de 1968, e este decreto consistia em lidar com a<br />
gestão pública de uma forma articulada, integrada,<br />
inter setorial, territorialmente falando. Depois veio<br />
a criação do GEGRAN e isso eu acho que é uma<br />
influência do Movimento Economia e Humanismo.<br />
Mas, independentemente dos escorregões mais à<br />
direita, mais classistas, o movimento, para nós que<br />
estávamos na ativa, trabalhando nas coisas, não<br />
digo os dirigentes e os figurões, nós tínhamos uma<br />
concepção bastante avançada quanto a descentralização,<br />
participação e eu levei isso comigo para<br />
onde eu fui trabalhar pelo resto da vida.<br />
Fui trabalhar no SERFHAU levei essas coisas, até<br />
verifiquei recentemente um Termo de Referência que<br />
eu fiz para Chapecó em 1969, que exigia reuniões<br />
populares, em Santa Catarina.<br />
Foram das coisas que eu aprendi na SAGMACS, no<br />
IRFED, com o Padre Lebret.<br />
Naquela época não! Tanto é que o Carvalho Pinto<br />
foi o primeiro governo a fazer uma divisão regional<br />
do Estado de São Paulo para efeito de planejamento.<br />
Depois, com esta experiência do PAGE, o Luiz Carlos<br />
Costa na Secretaria de Planejamento, nos anos 1960<br />
fez o primeiro decreto de regionalização administrativa<br />
Lembro-me de ter acompanhado o Padre Lebret<br />
em trabalhos de campo e reuniões no Senegal com<br />
plantadores de amendoim, para tentar ver se eles<br />
mudavam as tecnologias do plantio e poder ter<br />
maior rentabilidade. Ficamos por lá com ele três<br />
meses e não conseguimos mudar absolutamente nada<br />
V14 N2<br />
transcrição<br />
100
Entrevista com Maria Adélia de Souza<br />
Figura: Maria Adélia Aparecida<br />
de Souza. Fonte: fotografia<br />
de Daniel Garcia.<br />
na cabeça dos pequenos plantadores. Era uma tribo<br />
muito fechada, que não queria mudar nada em sua<br />
cultura de plantio, pois assim faziam há séculos...<br />
Desde então eu passei a ser crítica das teorias<br />
desenvolvimentistas, porque tecnicamente era fácil<br />
de mudar, mas de fazer as pessoas entenderem isso<br />
não era simples. As empresas podem fazer o que<br />
bem entendem. As pessoas não!<br />
Ou você muda a cultura ou a economia te arrasa!<br />
Claro que mais tarde esta tribo deve ter entrado<br />
num processo capitalista de cultivo do amendoim,<br />
que arrasou com tudo. Mas a que preço? Se as<br />
pessoas não conseguem entender o que é o seu<br />
modo de ser, se elas não entenderem isso para elas<br />
mesmas fazerem a crítica e querer mudar, o que<br />
vier de forma diferente, como sempre se fez com o<br />
planejamento, não é aceito e o efeito é exatamente<br />
o contrário do que se diz e discursa. Basta olhar as<br />
cidades hoje, onde as periferias são carentes de tudo.<br />
Mas os discursos dos planos, não! Neste sentido<br />
eu acho que nisso hoje, o novo conceito de lugar<br />
proposto por Milton Santos, como sendo um espaço<br />
do acontecer solidário, ajuda nessa perspectiva de<br />
lida, no planejamento com o conceito de espaço<br />
banal, proposto pelo François Perroux, que era do<br />
movimento Economia e Humanismo, embora com<br />
divergências com o Padre Lebret. Mas essa é outra<br />
conversa, com outro personagem que tenho usado<br />
na minha vida de planejadora nos tempos atuais.<br />
Mas eu aprendi muito nessa escola da SAGMACS<br />
e do IRFED, que tenho levado adiante a vida toda,<br />
sempre renovando-a com novas aprendizagens,<br />
novas teorias, novos fazeres. Não sou nenhuma<br />
tecnocrata, pois aprendi que é preciso rigor no<br />
processo de conhecimento para ajudar as pessoas<br />
a serem melhores e que é a política quem faz isso!<br />
Entendi que planejamento e política são irmãos<br />
siameses.<br />
V14 N2<br />
transcrição<br />
101
Abstracts / Resumenes<br />
Urbanism and Urbanists in Brazilian urban history: trajectories and questions<br />
to think Latin American urban history<br />
Rodrigo de Faria<br />
Abstract<br />
What are the themes and research objects in Urbanism history in Brazil? This postulation oriented an<br />
analysis about the research in History of Urbanism in Brazil through the investigation of the professional<br />
trajectory of urbanists. Based on data gathered from existing approaches of the Brazilian historiography,<br />
some considerations were formulated in this field of research. The recurrences and permanencies of the<br />
research were problematized to point to a necessity of articulation with the Latin American historiography,<br />
in ways that the construction-interpretation of Latin America Urban History takes place with a more direct<br />
presence with the studies done in Brazil.<br />
Keywords: history of urbanism, Brazil, Latin America.<br />
El urbanismo y los urbanistas en la historia urbana brasileña: caminos y<br />
preguntas para pensar acerca de la historia urbana de América Latina<br />
Rodrigo de Faria<br />
Resumen<br />
¿Cuáles son los temas y objetivos de la investigación en historia del urbanismo en Brasil? Ésa fue la<br />
pregunta que dio lugar a un análisis sobre la investigación en historia del urbanismo en Brasil según<br />
el interés de las trayectorias profesionales de los urbanistas. A partir de una revisión de los distintos<br />
planteamientos que se han hecho hasta el momento desde la historiografia brasileña, se han formulado<br />
algunas consideraciones sobre este campo. Se han analizado las recurrencias y las constantes que se daban<br />
para así poder señalar la necesidad de articulación con la historiografía latinoamericana, de modo que<br />
la construcción-interpretación de la historia urbanística de America Latina tenga en cuenta la presencia<br />
más directa de los estudios realizados en Brasil.<br />
Palabras clave: historia del urbanismo, Brasil, América Latina.<br />
V14 N2<br />
revista de pesquisa em arquitetura e urbanismo instituto de arquitetura e urbanismo iau-usp<br />
102
Theodoro Sampaio, the Sanitary Code of São Paulo State of 1894 and the<br />
demands of modernity<br />
Luiz Augusto Maia Costa<br />
Abstract<br />
The present paper seeks to relate sanitary issues in the Western world (from antiquity to contemporaneity)<br />
with what Freud defined as the demands of modernity, that is, order, hygiene and beauty, in order to<br />
establish a basis for understanding the Code Sanitary of the State of São Paulo of 1894 as a manifestation<br />
of the modernity engendered from the Second Industrial Revolution. He argues that the Code concerned,<br />
directly or indirectly, with the participation of engineer Theodoro Sampaio. Thus, we understand that the<br />
town planning that was forged was directly linked to the very civilizational process typical of the West.<br />
Keywords: Theodoro Sampaio, modernity, sanitary code, São Paulo.<br />
Theodoro Sampaio, el Código Sanitario del Estado de Sao Paulo de 1894 y las<br />
exigencias de la modernidad<br />
Luiz Augusto Maia Costa<br />
Resumen<br />
En este artículo se busca relacionar los problemas de salud en el mundo occidental (desde la antigüedad<br />
hasta nuestros días), con lo que Freud define como las exigencias de la modernidad, es decir, el orden,<br />
higiene y belleza, con el fin de proporcionar subvenciones para la comprensión del Código salud del Estado<br />
de San Pablo 1894 como una manifestación de la modernidad generó a partir de la segunda revolución<br />
industrial. Se argumenta que el Código incluye, directa o indirectamente, con la participación del ingeniero<br />
Theodoro Sampaio. Por lo tanto, entendemos que el urbanismo que después se forjó estaba directamente<br />
relacionada con el proceso típico real civilizar el Oeste.<br />
Palabras clave: Theodoro Sampaio, modernidad, código sanitario, São Paulo.<br />
V14 N2<br />
abstracts / resumenes<br />
103
The question of water supply in the city of São Paulo: the contributions of the<br />
Paula Souza family<br />
Cristina de Campos<br />
Abstract<br />
Brazilian cities passed through profound changes in their urban structures in the late nineteenth century.<br />
It is intended here to explain about the participation of professionals in formulating proposals to the<br />
problems posed, taking as an example the work of two members of the Paula Souza family. At different<br />
times, the engineer Antonio Paula Souza and the medical doctor Geraldo Paula Souza worked for the<br />
sanitation of the São Paulo relating to public water supply. The intention of the article is to highlight<br />
the complexity of urban problems faced at the time by the lack of an adequate infrastructure network.<br />
Keywords: urban infrastructure, water supply, city of São Paulo.<br />
El problema del suministro de agua en la ciudad de São Paulo: las contribuciones<br />
de la familia Paula Souza<br />
Cristina de Campos<br />
Resumen<br />
A finales del siglo XIX las ciudades brasileñas atravesaron profundos cambios en sus estructuras urbanas.<br />
Se pretende explicar la participación de los profesionales en la formulación de propuestas frente a los<br />
problemas planteados tomando como ejemplo la familia Paula Souza. En diferentes momentos, el<br />
ingeniero Antonio Francisco Paula Souza y el médico Horacio Geraldo Paula Souza, ambos trabajaron en<br />
pro del saneamiento de São Paulo, principalmente, sobre el suministro público de agua. La intención del<br />
artículo es poner de relieve la complejidad de los problemas urbanos afrontados en su momento por la<br />
falta de una red de infraestructura adecuada.<br />
Palabras clave: infraestructura urbana, suministro de agua, ciudad de São Paulo.<br />
V14 N2<br />
abstracts / resumenes<br />
104
Production of City as a collective project: the housing action of the Institute<br />
of Industrialists (1937-1960)<br />
Nilce Cristina Aravecchia Botas<br />
Abstract<br />
To discuss the relationship between authorship and collective work, this paper brings questions about<br />
the actions of engineers and architects within the changes of the Brazilian State from 1930. The specific<br />
analysis of the conformation of the Engineering Division of the Institute of Retirement and Pensions of<br />
Industrial Workers (IAPI) seeks to discern the main ideas and actions of the social housing production of<br />
the 1940s and 1950s, to understand how the specific discussions of the disciplinary field of architecture<br />
and urban planning were linked to the integration dynamics of the country into Capitalism.<br />
Keywords: social housing, security institutes, architecture, city.<br />
Producción de la Ciudad como proyecto colectivo: la acción de viviendas del<br />
Instituto de Trabajadores de la Industria (1937-1960)<br />
Nilce Cristina Aravecchia Botas<br />
Resumen<br />
Para hablar sobre la relación entre autoría y el trabajo colectivo, este texto presenta preguntas sobre las<br />
acciones de los ingenieros y arquitectos dentro de los cambios del Estado brasileño desde 1930. El análisis<br />
específico de la conformación de la División de Ingeniería del Instituto de Aposentadoria e Pensões dos<br />
Industriários (IAPI) tiene como objetivo visualizar las principales ideas y las acciones de la producción de<br />
viviendas de los años 1940 y 1950, para entender cómo las discusiones específicas del campo disciplinar<br />
de la arquitectura y urbanismo estaban vinculadas a la dinámica de la integración del país en el sistema<br />
capitalista.<br />
Palabras clave: vivienda social, institutos de seguridad, arquitectura, ciudad.<br />
V14 N2<br />
abstracts / resumenes<br />
105
249 town builders<br />
Sylvia Ficher<br />
Abstract<br />
Cities are not limited to their materiality, even though such materiality is quite more than an inert<br />
scenario for the unfolding of the drama of life in society. And those involved directly in its concretion<br />
can be considered de facto town builders. Getting to know their professional biographies is a useful tool<br />
for urban studies. This article presents a summary description of the activities of some builders of São<br />
Paulo: 120 engineers-architects graduated from the Polytechnic School (1899-1954); 90 architects and<br />
engineers-architects graduated from the Mackenzie School of Engineering (1919-46); and 39 architects<br />
graduated from the School of Fine Arts (1929-34).<br />
Keywords: professional trajectories, urban history, São Paulo architects.<br />
249 constructores de ciudades<br />
Sylvia Ficher<br />
Resumen<br />
Ciudades no se limitan a su materialidad, aún tal materialidad sea mucho más que un telón de fondo<br />
delante al qual se desarrolla el drama de la vida en sociedad. Y aquellos directamente implicados en su<br />
concreción se puede considerar, de hecho, constructores de ciudades. Herramienta útil para los estudios<br />
urbanos, aquí se expone una breve descripción de la carrera profesional de algunos de estos constructores<br />
de São Paulo: 120 ingenieros-arquitectos graduados de la Escuela Politécnica (1899-1954); 90 arquitectos<br />
e ingenieros-arquitectos graduados de la Escuela de Ingeniería Mackenzie (1919-46); y 39 arquitectos<br />
graduados de la Escuela de Bellas Artes (1929-34).<br />
Palabras clave: carreras profesionales, historia urbana, arquitectos de São Paulo.<br />
V14 N2<br />
abstracts / resumenes<br />
106
Drawing as an epistemological question: Rui Barbosa and John Ruskin<br />
Claudio Silveira Amaral<br />
Abstract<br />
The intent of this article is to establish a relationship between the principles of drawing Education Policy<br />
and Industrialization Policy, both authored by polymath (jurist, politician, diplomat, writer, philologist,<br />
translator and speaker) Rui Barbosa (1849-1923) and influenced by his readings of the writings signed<br />
by the English art critic John Ruskin (1819-1900). To Rui Barbosa, as well as John Ruskin drawing is an<br />
epistemological question.<br />
Keywords: education, design, industrialization.<br />
El dibujo como una cuestión epistemológica: Rui Barbosa y John Ruskin<br />
Claudio Silveira Amaral<br />
Resumen<br />
La intención de este artículo es el de establecer una relación entre los principios de elaboración de Política<br />
Educativa y Política de Industrialización, escrito por el erudito (jurista, político, diplomático, escritor, filólogo,<br />
traductor y locutor) Rui Barbosa (1849-1923) e influenciado por sus lecturas de los escritos firmados por<br />
el crítico de arte John Ruskin Inglés (1819-1900). Rui Barbosa, así como el dibujo de John Ruskin es una<br />
cuestión epistemológica.<br />
Palabras clave: educación, diseño, industrialización.<br />
V14 N2<br />
abstracts / resumenes<br />
107
Phenomenological qualitative research: eyes to see creativity of everyday life<br />
Hulda Erna Wehmann<br />
Abstract<br />
To understanding the landscape as the sensible apprehension of space implies a review of working<br />
methods: how to inquire about these perceptions, and to whom? How to insert various imaginaries in<br />
ever-changing spaces? These are the questions that structure this text, about the possibilities brought<br />
by the qualitative research of phenomenological inspiration for the theme. It aims to investigate the<br />
contributions brought by a first field research to the initial theoretical discussions. This survey was held<br />
between October 2015 and January 2016, and included 14 in-depth interviews in Lagamar and Serviluz<br />
Communities, in the city of Fortaleza - CE.<br />
Keywords: ordinary landscape, qualitative research, housing.<br />
La investigación cualitativa fenomenológica: ojos para ver la creatividad<br />
de la cotidianidad<br />
Hulda Erna Wehmann<br />
Resumen<br />
Tratar el paisaje como la aprehensión sensible del espacio implica una revisión de los métodos de trabajo:<br />
¿Cómo investigar sobre estas percepciones, y a quién preguntar? ¿Cómo insertar diversos imaginarios<br />
en espacios tan mutables? Estas cuestiones estructuran este texto, acerca de posibilidades presentadas<br />
por la investigación cualitativa de inspiración fenomenológica para el tema. Su objetivo es pensar las<br />
contribuciones a las discusiones teóricas iniciales interpuestos por una investigación de campo, que se<br />
llevó a cabo entre octubre de 2015 y enero de 2016, e incluyó 14 entrevistas en profundidad en Lagamar<br />
y Serviluz Comunidades, en Fortaleza – CE.<br />
Palabras clave: paisaje ordinario, investigación cualitativa, vivenda.<br />
V14 N2<br />
abstracts / resumenes<br />
108
A paradox sheet: the Metropolitan Cathedral of Rio de Janeiro<br />
Roberto Segre (in memorium), João Henrique dos Santos, Estela Maris de Souza<br />
Abstract<br />
The Cathedral of Rio de Janeiro was built in Santo Antônio Esplanade in the second half of the 20th<br />
century. The new Cathedral breaks the typology of the colonial churches and brings the influence of Maya<br />
pyramids in a modern building. Santo Antonio Esplanade traduces the breaking suffered by the urban<br />
tissue in this area of the city. It is still significant the contrast between past and present there, leaving<br />
open the defy of integrate them in a cultural and historical heritage set which retrieves the humanistic<br />
values which have always characterized Rio de Janeiro.<br />
Keywords: Rio de Janeiro, urban history, Metropolitan Cathedral.<br />
Na hoja paradoja: la Catedral Metropolitana de Rio de Janeiro<br />
Roberto Segre (in memorium), João Henrique dos Santos, Estela Maris de Souza<br />
Resumen<br />
La Catedral Metropolitana fue construida en la segunda mitad del siglo XX, en la Explanada de San<br />
Antonio. La nueva Catedral rompe con la tipología de las iglesias coloniales y asume, la influencia de las<br />
pirámides mayas. La Explanada de San Antonio expresa la gran ruptura que sufrió el tejido urbano en<br />
esta área. Todavía resulta significativo el contraste entre el pasado y el presente, que deja en abierto<br />
el desafío de integrarlos en un conjunto patrimonial que recupere los valores humanísicos que siempre<br />
caracterizaron la capital.<br />
Palabras clave: Río de Janeiro, historia urbana, Catedral Metropolitana.<br />
V14 N2<br />
abstracts / resumenes<br />
109