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Risco<br />

Revista de Pesquisa em Arquitetura e Urbanismo<br />

Publicação do Instituto de Arquitetura e Urbanismo<br />

da Universidade de São Paulo (IAU-USP)<br />

Volume 14 Número 2 segundo semestre de 2016<br />

ISSN<br />

Risco Revista de Pesquisa em Arquitetura e Urbanismo<br />

(on line) ISSN 1984-4506<br />

Periodicidade Semestral<br />

Instituto de Arquitetura e Urbanismo - IAU-USP<br />

Av. Trabalhador Sãocarlense, n. 400<br />

São Carlos SP 13566-590<br />

Tel 16.3373-9312 Fax: 16.3373-9310<br />

risco@sc.usp.br<br />

A Revista Risco é apoiada pelo “Programa de Apoio<br />

às Publicações Científicas Periódicas da USP”<br />

A Revista Risco encontra-se indexada na “Actualidad<br />

Iberoamericana”, “Asociación de Revistas<br />

Latinoamericanas de Arquitectura”, “Bielefeld Academic<br />

Search Engine”, “Google Schor”, “Latindex” e<br />

“MIAR”<br />

Conselho Editorial<br />

Adauto Lúcio Cardoso (UFRJ,BR) ; Adrián Gorelik (UNQ,AR);<br />

Alberto Sato (UNAB,CL) ; Andrea Pane (UNINA,IT); Antonio<br />

Baptista Coelho (LNEC,PT); Arturo Almandoz (USB,VE);<br />

Aurelia Michel (Univ Paris-Diderot,FR); Beatriz Piccolotto<br />

Siqueira Bueno (USP,BR); Carlos Alberto Ferreira Martins<br />

(USP,BR); Carlos Antônio Leite Brandão (UFMG,BR); Carlos<br />

Roberto Monteiro de Andrade (USP,BR); Claudia Costa Cabral<br />

(UFRG,BR); Daniele Vitale (Politecnico di Milano,IT); Fernando<br />

Luiz Lara (UT,US); Georges Dantas (UFRN,BR); Irã Taborda<br />

Dudeque (UTFPr,BR); Jaelson Bitran Trindade (IPHAN,BR); João<br />

Masso Kamita (PUCRio,BR); Joubert José Lancha (USP,BR);<br />

Manoel R. Alves (USP,BR); Miguel Buzzar (USP,BR)<br />

As atribuições deste Conselho referem-se à gestão e execução<br />

da linha editorial da revista, à definição de aportes<br />

e temas, ao estabelecimento das seções, a decisões sobre<br />

os artigos a serem publicados, à definição dos pareceristas,<br />

das obras a serem objeto de resenhas e dos autores destas<br />

Editor<br />

Tomás Antonio Moreira (IAU-USP)<br />

Editor Adjunto<br />

Francisco Sales Trajano Filho (IAU-USP)<br />

Editores desta edição<br />

Tomás Antonio Moreira (IAU-USP)<br />

Francisco Sales Trajano Filho (IAU-USP)<br />

Secretaria Editorial<br />

Flávia Marcarine Arruda (mestranda IAU-USP)<br />

Wesley da Silva Mederios (mestrando IAU-USP)<br />

Agradecimentos<br />

Aline Coelho Sanches Corato (USP); Carlos Roberto<br />

Monteiro de Andrade (USP); Eulalia Negrelos Portela<br />

(USP); Josianne Cerasoli (UNICAMP); Marcus Vinicius<br />

Dantas de Queiroz (UFCG); Miguel Antonio Buzzar (USP);<br />

Ruy Sardinha Lopes (USP); Sarah Feldman (USP); Telma de<br />

Barros Correia (USP)<br />

Projeto Gráfico<br />

David Sperling<br />

Produção e Editoração Eletrônica<br />

José Eduardo Zanardi<br />

Apoio Técnico<br />

Centro de Produção Digital (CPDig-IAU/USP)<br />

Capa<br />

Autoria de José Eduardo Zanardi, a partir de argumento de<br />

Francisco Sales Trajano Filho. Imagem (detalhe) - “Cidade do<br />

Rio de Janeiro: extensão, remodelação, embelezamento”,<br />

fonte: Donat Alfred Agache, Paris, Foyer Brésilien, 1930<br />

Universidade de São Paulo<br />

Reitor: Prof. Titular Marco Antonio Zago<br />

Instituto de Arquitetura e Urbanismo<br />

Diretor: Prof. Associado Miguel Antonio Buzzar


sco<br />

V14N2<br />

4<br />

O campo da história urbana e do urbanismo ...<br />

editorial<br />

6<br />

O urbanismo e os urbanistas na história<br />

urbana brasileira: percursos e perguntas para<br />

pensar a história urbana da América Latina<br />

Rodrigo de Faria<br />

artigos e ensaios<br />

15<br />

Theodoro Sampaio, o Código Sanitário<br />

do Estado de São Paulo de 1894 e as<br />

exigências da modernidade<br />

Luiz Augusto Maia Costa<br />

23<br />

A questão da água para o abastecimento<br />

na cidade de São Paulo: as contribuições<br />

da família Paula Souza<br />

Cristina de Campos<br />

31<br />

Produção de cidade como projeto<br />

coletivo: a ação habitacional do Instituto<br />

dos Industriários (1937-1960)<br />

Nilce Cristina Aravecchia Botas<br />

38<br />

249 construtores de cidades<br />

Sylvia Ficher<br />

45<br />

O desenho como uma questão<br />

epistemológica: Rui Barbosa e John Ruskin<br />

Claudio Silveira Amaral<br />

56<br />

A pesquisa qualitativa fenomenológica:<br />

olhos para ver a criatividade cotidiana<br />

Hulda Erna Wehmann<br />

67<br />

Um paradoxo patrimonial: a Catedral<br />

Metropolitana do Rio de Janeiro<br />

Roberto Segre (in memorium), João Henrique<br />

dos Santos, Estela Maris de Souza<br />

82<br />

Entrevista com John Friedmann<br />

Elisângela de Almeida Chiquito<br />

tradução: Amanda Saba Ruggiero<br />

revisão: Elisângela de Almeida Chiquito<br />

90<br />

Entrevista com Maria Adélia de Souza<br />

Lucas Cestaro<br />

revisão: Maria Adélia de Souza<br />

transcrição<br />

102<br />

Artigos e ensaios<br />

abstracts/resumenes


editorial<br />

O<br />

Figura: Cidade do Rio de<br />

Janeiro: extensão, remodelação,<br />

embelezamento. Fonte:<br />

Donat Alfred Agache, Paris,<br />

Foyer Brésilien, 1930.<br />

campo da história urbana e do urbanismo consolidou-se<br />

nas últimas décadas como uma das frentes<br />

de investigação mais fecundas e consistentes da<br />

pesquisa acadêmica, em um processo continuado de<br />

ampliação de fronteiras cujo vigor parece ainda longe<br />

de se esgotar. O desdobramento de novos horizontes,<br />

temas, questões e sujeitos assinala a tônica desse<br />

processo, pautando o andamento, conformação<br />

e transformação nas trilhas investigativas que se<br />

proliferam nessa seara.<br />

A presente edição da Risco só faz corroborar tal<br />

constatação. Oriundos de diferentes vertentes de<br />

abordagem em história urbana e do urbanismo, o<br />

núcleo de artigos desta edição deixa evidente tanto<br />

a solidez desse campo de investigação, permitindo<br />

a elaboração de miradas mais transversais, de<br />

caráter historiográfico, como o dinamismo interno<br />

das pesquisas em curso. Como aquele primeiro<br />

viés, é o artigo de Rodrigo de Faria no propósito de<br />

deslindar a relevância de certos temas e questões no<br />

interior das pesquisas em história do urbanismo no<br />

Brasil na perspectiva de estabelecer aproximações<br />

e contrapontos com a realidade da investigação<br />

em história urbana e do urbanismo no contexto<br />

latino-americano. Com um enfoque historiográfico<br />

moldado a partir da ideia de construtores de cidades,<br />

Sylvia Ficher desenvolve um esforço de compilação<br />

e exposição de uma grande massa de material que<br />

podem subsidiar novos aportes investigativos.<br />

Da variedade que perpassa as investigações em curso,<br />

são exemplares alguns dos artigos aqui reunidos.<br />

A pesquisa em torno das trajetórias profissionais,<br />

que constituíram o cerne do último número da<br />

Risco, voltam a comparecer nesta edição. Trajetórias<br />

profissionais individuais, como a do engenheiro<br />

sanitarista Theodoro Sampaio, e contribuições<br />

coletivas, no caso, a ação da família Paula Souza<br />

no trato da questão do abastecimento d’água para<br />

São Paulo. A atuação de instâncias governamentais<br />

no âmbito da construção da cidade no Brasil através<br />

de políticas habitacionais de larga escala, no caso<br />

do Instituto dos Industriários aqui analisado por<br />

Nilce Botas, fecham o conjunto de artigos afeitos à<br />

história urbana e do urbanismo no Brasil.<br />

Três artigos muito singulares em seus objetos e<br />

abordagens encorpam esta edição. O primeiro detém-se<br />

na discussão da dimensão sensível na apreensão<br />

do espaço desde uma visada fenomenológica.<br />

O segundo, de Claudio Silveira Amaral, traça<br />

aproximações entre o ideário de John Ruskin e<br />

as propostas de ensino defendidas pelo brasileiro<br />

V14 N2<br />

revista de pesquisa em arquitetura e urbanismo instituto de arquitetura e urbanismo iau-usp<br />

4


Rui Barbosa, leitor e entusiasta das formulações do<br />

crítico e estudioso inglês. O terceiro artigo foca sua<br />

atenção no caso da Catedral Metropolitana do Rio<br />

de Janeiro, erguida em plena Esplanada de Santo<br />

Antonio, em franco contraste com a arquitetura<br />

e o tecido urbano colonial do entorno imediato.<br />

Arrematando esta segunda edição de 2016 da Risco,<br />

duas entrevistas, uma com Maria Adélia Aparecida<br />

Souza sobre sua atuação junto à SAGMACS do<br />

padre dominicano Louis-Joseph Lebret, e outra com<br />

o planejador urbano John Friedmann.<br />

Esperamos que tenham todos uma leitura prazerosa<br />

e enriquecedora!<br />

Carlos Roberto Monteiro de Andrade<br />

Francisco Sales Trajano Filho<br />

V14 N2<br />

editorial<br />

5


artigos e ensaios<br />

O urbanismo e os urbanistas na história<br />

urbana brasileira: percursos e perguntas para<br />

pensar a história urbana da América Latina<br />

Rodrigo de Faria<br />

Arquiteto e Urbanista, pós-doutorado pela FAU-USP (2008)<br />

e ETSAM/UPMadrid (2014/2015), professor associado I do<br />

Departamento de Teoria e História da Arquitetura e do Urbanismo<br />

da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UnB e do PPGFAU-<br />

UnB, ICC Norte, Gleba A, Campus Universitário Darcy Ribeiro,<br />

Asa Norte, Brasília, DF, CEP 70904-970, rod.dfaria@gmail.com<br />

Resumo<br />

Quais são os temas e os objetos da pesquisa em história do urbanismo no<br />

Brasil? Essa pergunta orientou uma análise sobre a pesquisa em história do<br />

urbanismo no Brasil pelo interesse na pesquisa das trajetórias profissionais<br />

de urbanistas. A partir de um levantamento sobre abordagens já realizadas<br />

pela historiografia brasileira, foram formuladas algumas considerações nesse<br />

campo de investigação. As recorrências e as permanências da pesquisa foram<br />

problematizadas para que pudéssemos apontar uma necessidade de articulação<br />

com a historiografia latino-americana, para que a construção-intepretação<br />

histórica urbanística da América Latina seja realizada com a presença mais<br />

direta dos estudos realizados no Brasil.<br />

Palavras-chave: história do urbanismo, Brasil, América Latina.<br />

1 A construção da versão final<br />

deste texto contou com as<br />

colaborações de Maria Stella<br />

Bresciani (CIEC-UNICAMP)<br />

e Ana Claudia Veiga Castro<br />

(FAU-USP), ao mesmo tempo<br />

lendo a versão preliminar<br />

e formulando ponderações<br />

de grande relevância à medida<br />

que os ajustes eram<br />

realizados. O texto integra<br />

os estudos realizados com<br />

apoio do CNPq no âmbito<br />

da Bolsa PQ-2 e auxílio Edital<br />

UNIVERSAL-2014.<br />

U<br />

ma construção permanente 1<br />

Elaborado originalmente como conferência inaugural<br />

do II Seminário Urbanistas e Urbanismo no Brasil, o<br />

presente texto mantém quase que integralmente as<br />

considerações enunciadas na ocasião. Nesse sentido,<br />

o percurso delineado na conferência será mantido,<br />

inclusive no tocante à estratégia de construção<br />

de uma narrativa que pudesse preservar a ideia<br />

original do próprio tema sugerido: o urbanismo no<br />

Brasil, seus temas e objetos. E em se tratando de<br />

conferência realizada num seminário focado nos<br />

estudos dos profissionais do urbanismo, a experiência<br />

de ter desenvolvido pesquisa doutoral no âmbito da<br />

trajetória (biografia?) profissional contribuiu e, ao<br />

mesmo tempo, orientou minha abordagem sobre<br />

os temas e objetos do Urbanismo no Brasil pela<br />

interface dos profissionais urbanistas.<br />

No primeiro Seminário Urbanistas e Urbanismo<br />

no Brasil, realizado em 2013 na FAU-UnB, a problematização<br />

qualificativa ocorreu no confronto/oposição<br />

teórico-metodológica entre as ideias<br />

de “Trajetória” e “Biografia”; nesse segundo,<br />

realizado em 2015 no IAU-USP, a problematização<br />

esteve centrada nas trajetórias e interlocuções<br />

transatlânticas, sem aquele sentido interrogativo<br />

do primeiro. E foi justamente esta característica que<br />

abriu o caminho para certa provocação final (no<br />

bom sentido da provocação) ao próprio Seminário,<br />

ou seja, para apresentar outra proposta de análise,<br />

algo como outro caminho em relação aos temas e<br />

objetos do urbanismo no Brasil.<br />

Como parte da estratégia de construção de uma<br />

narrativa que não escapasse ao eixo proposto, e<br />

reconhecendo meus próprios limites para formular<br />

uma análise ao mesmo tempo em grande angular<br />

e com as particularidades inerentes ao campo<br />

disciplinar do urbanismo e dos profissionais que<br />

atuaram nesse campo e no Brasil, um primeiro<br />

movimento que empreendi foi o de compilar algumas<br />

análises já realizadas sobre a pesquisa em história<br />

do urbanismo no Brasil.<br />

Ressalto apenas que a ideia não foi simplesmente a<br />

de contabilizar aquilo que já havia sido enunciado<br />

sobre o tema ou problematizar a ampla e consolidada<br />

V14 N2<br />

revista de pesquisa em arquitetura e urbanismo instituto de arquitetura e urbanismo iau-usp<br />

6


O urbanismo e os urbanistas na história urbana brasileira: percursos e perguntas para pensar a história urbana da América Latina<br />

2 A versão aqui utilizada está<br />

publicada nos Anais Eletrônicos<br />

do Seminário de História<br />

do Urbanismo e da Cidade<br />

(http://unuhospedagem.com.<br />

br/revista/rbeur/index.php/<br />

shcu/index) e inserido no conjunto<br />

de textos do I Seminário,<br />

realizado em 1990. No<br />

entanto, no início do texto<br />

existe a informação de que<br />

o mesmo fora produzido em<br />

1993 para o II Seminário de<br />

História da Cidade e do Urbanismo.<br />

Outra versão foi publicada<br />

na coletânea Cidade e<br />

Urbanismo: história, teorias<br />

e práticas (PADILHA, 1998).<br />

diversidade de trabalhos já realizados. A proposta<br />

foi a de buscar nessas análises o que elas nos<br />

informam sobre a pesquisa produzida na interface<br />

“urbanistas e urbanismo”. Diante disso, duas perguntas<br />

básicas foram formuladas: quais foram as<br />

análises já realizadas e o que elas nos informam? Em<br />

relação às análises que foram realizadas, menciono<br />

o seguinte conjunto de trabalhos:<br />

. “A pesquisa recente em história urbana no Brasil:<br />

percursos e questões”, de Ana Fernandes e Marco<br />

Aurélio; segundo os autores, produzido em 1990<br />

(provavelmente o primeiro texto com o objetivo<br />

de análise de produção nacional) para o I SHCU e<br />

posteriormente publicado em 1998 2 ;<br />

. A Sessão “História Urbana” do ENANPUR de 1999,<br />

ainda que não especificamente sobre tema dos<br />

profissionais urbanistas, mas com textos importantes<br />

no contexto da historiografia urbana e urbanística<br />

do/sobre Brasil, entre eles, “Avanços e limites na<br />

historiografia da legislação urbanística no Brasil”, de<br />

Sarah Feldman; “História da Cidade: contribuição e<br />

balanço temático”, de Stella Bresciani; “Habitação no<br />

Brasil: uma história em construção”, de Nabil Bonduki;<br />

. “Cidade e Urbanismo: história, forma e projeto”,<br />

de Margareth Pereira e Marco Aurélio, publicado<br />

nos Anais do IX ENANPUR de 2001;<br />

. “História da Cidade e do Urbanismo no Brasil:<br />

reflexões sobre a produção recente”, de Ana<br />

Fernandes e Marco Aurélio, publicado em Ciência<br />

e Cultura no ano de 2004;<br />

. “A cidade como história: os arquitetos e a historiografia<br />

da cidade e do urbanismo”, organizado<br />

por Eloísa Petti e Marco Aurélio e publicado em 2005;<br />

. “A cidade como história”, de Josianne Cerasoli e<br />

Marisa Carpintero, publicado em História: questões<br />

e debates em 2009.<br />

No texto de Ana Fernandes e Marco Aurélio, uma<br />

ideia importante é a de que “ao que tudo indica,<br />

estamos, pois, diante de um campo de estudos ainda<br />

em construção”. Mesmo que uma consideração<br />

mais geral sobre o que naquele momento foi<br />

denominado “História Urbana”, o sentido de “ainda<br />

em construção” - se é que teve naquele momento<br />

algum sentido crítico-negativo por parte dos autores<br />

-, deve ser pensado como algo que permanecerá<br />

em construção.<br />

Essa noção de continuidade é fundamental, pois<br />

assim não caímos na arriscada suposição de que tudo<br />

já foi historiografado e não teríamos mais nada por<br />

fazer, o que é o mesmo que afirmar que tudo estaria<br />

pesquisado e toda documentação possível acessada e<br />

analisada. O risco existe e fica ainda mais evidenciado<br />

em determinados campos de conhecimento que<br />

carregam em sua genealogia investigativa um certo<br />

desejo pelo ineditismo dos temas e objetos. Por esta<br />

lógica do inédito a construção estaria concluída e<br />

deveria acarretar na constatação da inexistência de<br />

novos objetos, no caso, de profissionais que atuaram<br />

no campo urbanístico.<br />

O contraponto a essa formulação está estruturado<br />

na noção da permanente construção – naquele<br />

sentido formulado por Ana Fernandes e Marco<br />

Aurélio -, e isso passa pela concepção de que o que<br />

é (ou deve ser) inédito é a pergunta/problematização<br />

que se faz no processo da pesquisa histórica. Por<br />

esse caminho será sempre possível investigar as<br />

trajetórias dos urbanistas, mesmo dos que já foram<br />

amplamente estudados. A cada nova proposta de<br />

investigação outras interpretações serão construídas<br />

segundo a diversidade documental interessada e<br />

localizada, segundo a inserção social-política e o<br />

contexto profissional-institucional do profissional<br />

pesquisado, segundo seu pensamento urbanístico, a<br />

partir da sua biblioteca pessoal, de suas publicações<br />

e tantas outras atividades profissionais realizadas e<br />

que estejam preservadas em algum arquivo.<br />

Evidentemente que outros estudos foram realizados,<br />

mas considero esses que mencionei como referências<br />

em decorrência de suas qualidades e especificidades. E<br />

a partir do texto que muito provavelmente inaugurou<br />

esse movimento de análise do conjunto da produção<br />

nacional no âmbito da história do urbanismo, é que<br />

iniciarei a construção daquele mencionado outro<br />

caminho em relação aos temas e objetos do urbanismo.<br />

Essa permanente construção pode e deve se apoiar<br />

na ideia formulada por Edgar de Decca (no clássico<br />

número 34 da Revista Espaço e Debates, todo ele<br />

dedicado ao tema Cidade e História) de que<br />

“o historiador tem que estar ciente de que os<br />

eventos históricos não existem por si, não existem<br />

como dado natural (...) É preciso se ter muito claro<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

7


O urbanismo e os urbanistas na história urbana brasileira: percursos e perguntas para pensar a história urbana da América Latina<br />

que o evento não é um evento natural, o evento<br />

é histórico conforme a trama a qual ele pertencer.<br />

E haverá tantas tramas quantas nós quisermos,<br />

conforme nossa capacidade de inventá-las”.<br />

(DE DECCA, 1991, p. 8)<br />

Nesse sentido, mantenhamos os estudos sobre<br />

as trajetórias/biografias em contínua construção<br />

com outras perguntas, outras tramas, outros documentos,<br />

outras interpretações, pois é esse o<br />

caminho necessário para o aprofundamento e a<br />

diversificação das interpretações sobre o urbanismo<br />

no Brasil.<br />

Trajetórias-biografias profissionais:<br />

uma recorrência estrutural e suas<br />

(necessárias) perguntas<br />

No mesmo texto de Ana Fernandes e Marco Aurélio<br />

(1990) já é possível constatar a importância das<br />

pesquisas mais específicas sobre as trajetórias<br />

profissionais para o campo mais geral da história do<br />

urbanismo no Brasil, no caso, por eles denominada<br />

de “pensamento urbanístico”. Para os autores, tal<br />

entrada de estudos estava interessada em grande<br />

parte na “dimensão projetual do urbanismo moderno,<br />

os trabalhos nessa linha recuperam, de<br />

modo pioneiro, as proposições feitas pela disciplina”<br />

(FERNANDES; GOMES, 1990, p.21). E se<br />

concordarmos com a análise apresentada por Robert<br />

Pechman no mesmo Seminário de História de<br />

História da Cidade e do Urbanismo de 1990, quando<br />

afirmou que<br />

“...transitando entre uma história econômica (cidade<br />

como lugar da acumulação), uma história<br />

política (cidade como base do pacto social) e uma<br />

histórica social (o papel da cidade na constituição<br />

da sociabilidade burguesa), a história furtou-se a<br />

enfrentar a cidade como temática com questões<br />

próprias”. Mais próximo disso esteve o urbanismo<br />

que, ao se legitimar como ‘ciência da cidade’<br />

procurou dar a ela estatuto científico próprio”.<br />

(PECHMAN, 1990, p.31)<br />

ou seja, de que foi pelo urbanismo que a cidade<br />

se inscreveu na histórica, então, aquela dimensão<br />

projetual do urbanismo como primeira entrada<br />

interessada dos estudos sobre o pensamento urbanístico<br />

não apenas se justificava, mas explicitava os<br />

inícios (no plural) da história do urbanismo no Brasil.<br />

Tais inícios plurais foram construídos pelas (e são<br />

constatados nas) análises sobre os planos urbanísticos<br />

e as diversas intervenções urbanas realizadas nas<br />

cidades e suas articulações com as concepções<br />

intelectuais dos profissionais que as elaboraram e/<br />

ou as executaram. No mesmo Seminário de 1990, o<br />

texto de Fernando Diniz sobre Saturnino de Brito faz<br />

justamente esse movimento entre o que poderíamos<br />

resumir como uma história das relações entre as<br />

concepções espaciais (no sentido da forma urbana)<br />

e as ideias urbanísticas do engenheiro construídas<br />

em suas interlocuções profissionais.<br />

Um segundo ponto importante a frisar no texto de<br />

Ana Fernandes e Marco Aurélio, é o reconhecimento<br />

de que as pesquisas dialogavam como a história das<br />

ideias, num sentido de construção de uma crítica<br />

da cultura enquanto embasamento conceitual.<br />

Para ambos,<br />

“nesse sentido, as biografias, enquanto abordagem<br />

privilegiada, têm dado ocasião de se discutir a<br />

formulação do pensamento urbanístico em suas<br />

origens no Brasil, assim como a filiação que esse<br />

pensamento guarda em relação ao movimento e/ou<br />

correntes urbanísticas que aconteciam paralelamente<br />

na Europa e nos Estados Unidos”. (FERNANDES;<br />

GOMES, 1990, p. 21)<br />

Essa discussão sobre a escrita biográfica (ou escrita<br />

de uma trajetória) foi um dos eixos centrais do<br />

I Seminário Urbanistas e Urbanismo no Brasil, o<br />

que seguramente reforça a importância e algum<br />

protagonismo desses estudos para o campo da<br />

história do urbanismo no Brasil. Tanto é assim<br />

que entre o Seminário de História da Cidade e do<br />

Urbanismo de 1990 e o I Seminário Urbanistas e<br />

Urbanismo em 2013, percorremos duas décadas que<br />

denotam essa importância, ainda que marcadas por<br />

certas permanências, às quais retornarei mais adiante.<br />

Nessas duas décadas os SHCU testemunharam a<br />

consolidação dos estudos sobre os profissionais,<br />

como analisado em outro texto de Marco Aurélio<br />

escrito em parceria com Eloisa Petti. No levantamento<br />

que fizeram até o VII SHCU podemos confirmar a<br />

presença constante de estudos por esse eixo, de um<br />

modo geral privilegiando, segundo os autores, as<br />

ideias que embasaram o pensamento urbanístico,<br />

os personagens que elaboraram propostas, a circulação<br />

de ideias, a regulamentação profissional<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

8


O urbanismo e os urbanistas na história urbana brasileira: percursos e perguntas para pensar a história urbana da América Latina<br />

(PETTI; GOMES, 2004). E foi justamente o debate<br />

sobre a circulação das ideias o tema central do<br />

SHCU de 2010, realizado na UFES, ou seja, de<br />

alguma forma a construção da história urbana/<br />

urbanística brasileira naquele momento foi pensada<br />

pela construção intelectual dos agentes proponentes<br />

das transformações urbanísticas e arquitetônicas:<br />

os profissionais.<br />

O que faz esse conjunto de referências é justamente<br />

reconhecer a importância dos estudos sobre as<br />

trajetórias profissionais como uma das entradas<br />

analíticas mais importantes da historiografia urbanística<br />

brasileira. O que até então não tinha<br />

sido considerado, e foi essa a ideia basilar do I<br />

Seminário Urbanistas e Urbanismo, é o debate<br />

teórico e conceitual sobre a noção de trajetória ou<br />

biografia. No entanto, mesmo sendo este um debate<br />

conceitual interessante, mais importante agora é a<br />

continuidade de um eixo de investigação que pode<br />

mesmo ser entendido como uma característica<br />

estrutural da historiografia do urbanismo no Brasil.<br />

Essa entrada, ou “marca”, não é evidentemente<br />

a única, mas é certamente uma das mais fortes e<br />

recorrentes. As diversas mesas organizadas no SHUC<br />

de 2010 sobre o lugar das ideias na construção<br />

das cidades e do urbanismo consolidaram essa<br />

marca/entrada.<br />

A realização dos dois primeiros Seminários Urbanistas<br />

e Urbanismo no Brasil confirmam essa marca e<br />

reforçam aquela ideia inicial de que a pesquisa deve<br />

permanecer em construção. Ao mesmo tempo eu<br />

fa-ço aqui uma primeira indagação: seria esse um<br />

caminho muito particularizado ou especializado da<br />

pesquisa em história urbana/do urbanismo e com o<br />

risco de não mais compreendermos os processos gerais<br />

e suas interações? De outra forma: nas pesquisas<br />

realizadas até hoje conseguimos capturar os diversos<br />

movimentos dos profissionais que estudamos, de suas<br />

mais específicas particularidades aos movimentos<br />

mais gerais que realizaram em contextos intelectuais<br />

e institucionais distintos, ou seja, conseguimos<br />

construir-percorrer as contradições dos processos ou<br />

nossas narrativas estão confortavelmente amparadas<br />

nas linearidades biológicas dos nossos personagens?<br />

Ou ainda: conseguimos até aqui desnaturalizar<br />

nossos personagens e suas ideias, retirando-os de<br />

uma lógica evolutiva cujo fim já estaria definido no<br />

início e que, portanto, apenas “comprovaríamos”<br />

um certo percurso ou trajetória profissional?<br />

Reconhecer permanências para<br />

formular mudanças<br />

Neste ponto da argumentação considero oportuno<br />

mencionar dois aspectos que em meu entendimento<br />

caracterizam certas “permanências” em nossos<br />

estudos. Não os aponto, entretanto, por considerálos<br />

um problema ou erro. Essas permanências<br />

são, isso sim, parte daquela marca/entrada a que<br />

me referi, ou seja, aquilo que informa o percurso<br />

que realizamos nessas duas décadas no âmbito da<br />

história do urbanismo. A primeira “permanência”<br />

está relacionada à concentração de estudos de<br />

personagens e suas práticas profissionais no campo<br />

urbanístico em cidades capitais; assim como os<br />

estudos sobre as próprias cidades. A constatação<br />

dessa permanência foi formulada por Marco Aurélio e<br />

Margareth Pereira no texto introdutório do Subtema<br />

“Cidade e Urbanismo: história, forma e projeto” do<br />

ENAPUR de 2001. Segundo os autores,<br />

“no caso das biografias de cidades, se por um lado<br />

os estudos de redes urbanas foram num primeiro<br />

momento deslocados, por outro, aprofundou-se o<br />

conhecimento sobre a história singular de várias<br />

metrópoles brasileiras – em detrimento, entretanto,<br />

da atenção às cidades de porte médio ou às pequenas<br />

cidades mortas”. (GOMES; PEREIRA, 2001, p. 547)<br />

O entendimento sobre essa permanência não exclui<br />

a mudança em processo e que novamente os SHCU<br />

confirmam: não é uma permanência inviolável, pois<br />

cidades do interior do país – os planos que foram<br />

desenvolvidos, os profissionais que se deslocaram<br />

até essas cidades, etc. - estão cada vez mais na<br />

pauta das pesquisas, inclusive das pesquisas em<br />

história urbana. E me parece que a recente expansão<br />

da Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo<br />

pelo território nacional já contribuiu e continuará<br />

contribuindo para que essa tendência se consolide<br />

cada dia mais.<br />

No caso específico da pesquisa em história urbana<br />

no Brasil, não apenas os Programas das Faculdades<br />

de Arquitetura e Urbanismo com forte tradição<br />

nesse campo contribuíram estruturalmente para<br />

o aprimoramento dos trabalhos. É fundamental<br />

e necessário considerar a interlocução desses Programas<br />

em Arquitetura e Urbanismo com o Programa<br />

de Pós-graduação em História do IFCH-UNICAMP<br />

(originalmente denominado de História Social do<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

9


O urbanismo e os urbanistas na história urbana brasileira: percursos e perguntas para pensar a história urbana da América Latina<br />

Trabalho), onde atualmente está organizada a Área<br />

Política, Memória e Cidade e especialmente a linha<br />

de pesquisa Cultura e Cidade. Uma interlocução<br />

também fundamentada na presença desse Programa<br />

entre os membros da Associação Nacional de Pósgraduação<br />

e Pesquisa em Planejamento Urbano<br />

Regional, a ANPUR.<br />

E se hoje o PPGH-IFCH-UNICAMP e o próprio<br />

Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Cidade<br />

(CIEC-UNICAMP) consubstanciam essa importante<br />

interlocução com a área da Arquitetura e Urbanismo<br />

no estudo sobre temas urbanos, urbanismo e cidades,<br />

necessário se faz reconhecer que esse trabalho foi<br />

iniciando ainda na década de 1980. Essa origem<br />

esteve, segundo Margareth Pereira, associada ao<br />

trabalho de pesquisa com a história literária de<br />

matriz urbana desenvolvido por Maria Stella Martins<br />

Bresciani (PEREIRA, 2014).<br />

Mais que um trabalho inicial nessa matriz literária<br />

urbana, o que fundamentou todo o esforço realizado<br />

foi a abertura ao diálogo interdisciplinar<br />

profundo com arquitetos e urbanistas, sociólogos,<br />

antropólogos, historiadores, principalmente a partir<br />

da criação dos Seminários de História da Cidade e<br />

do Urbanismo em 1990. Esse diálogo foi também<br />

importante para que aquela primeira permanência<br />

começasse a ser desfeita e o espectro de cidades<br />

estudadas se ampliasse consideravelmente. As<br />

pesquisas de mestrado e doutorado realizadas<br />

sobre cidades do interior paulista respaldam essa<br />

contribuição, incluindo trabalhos mais recentes<br />

(entre final do século XX e início do século XXI)<br />

sobre pensamento urbanístico, patrimônio urbanoindustrial,<br />

cultura urbana, entre tantos outros temas.<br />

A segunda permanência é também importante e<br />

merecedora de um debate mais profundo: ela está<br />

relacionada ao nosso olhar ainda muito unidirecional<br />

entre Brasil e Europa e/ou Brasil e EUA, com poucas<br />

interlocuções em relação à América Latina. No<br />

mesmo sentido interrogativo que no I Seminário<br />

pensamos a ideia de biografia em relação à de<br />

trajetória, formulei um contraponto ao próprio<br />

tema do II Seminário Urbanistas e Urbanismo no<br />

Brasil em relação às interlocuções transatlânticas<br />

(e não porque essas interlocuções não sejam mais<br />

importantes ou não merecedoras de novas análises).<br />

O sentido do contraponto é outro e está formulado<br />

da seguinte forma: quando iniciaremos o movimento<br />

mais estrutural de articulação com as pesquisas<br />

desenvolvidas no âmbito geográfico e cultural<br />

latino-americano? O que conhecemos sobre as<br />

mesmas interlocuções dos urbanistas brasileiros<br />

nesse contexto das ex-colônias da Coroa Espanhola?<br />

Essas perguntas não partem do princípio de que<br />

esse movimento nunca ocorreu, e novamente aqui<br />

os trabalhos de Marco Aurélio denotam não apenas<br />

o interesse nesse sentido, mas a sua importância e<br />

possíveis caminhos que precisamos percorrer. Faço<br />

referência ao livro “Urbanismo na América do Sul –<br />

circulação das ideias e constituição do campo”, que<br />

será retomado mais à frente para finalizar minhas<br />

considerações. No entanto, uma brevíssima análise<br />

em alguns dos mais importantes textos produzidos<br />

por pesquisadores institucionalmente localizados<br />

em países da América Latina reforça a ideia de<br />

que a presença brasileira é reduzida ou superficial,<br />

que a nossa articulação com a América Latina<br />

ainda é incipiente (mesmo que alguns esforços de<br />

aproximação já tenham ocorrido, por exemplo,<br />

nos SHCU).<br />

O Brasil na história urbana<br />

latino-americana<br />

No livro “Entre libros de história urbana – para<br />

una historiografia de la ciudad y del urbanismo en<br />

America Latina”, de Arturo Almandoz, constam<br />

como referência os seguintes trabalhos realizados<br />

por brasileiros: “Urbanismo no Brasil” (Leme),<br />

“Imagens de vilas e cidades no Brasil colonial”<br />

(Nestor Goulart), “Europa, França e Bahia. Difusão<br />

e adaptação de modelos urbanos” (Petti), “A cidade<br />

como história” (Petti/Filgueiras), “Formas urbanas:<br />

cidade real e cidade ideal” (Heliodoro Sampaio); e<br />

dois artigos, um de Celso Lampareli sobre Lebret e<br />

outro de Joel Outtes sobre urbanística entre Brasil e<br />

Argentina. Ainda assim, todos os trabalhos surgem<br />

como referência mais genérica ou explicação em<br />

nota de rodapé, não recebendo a mesma atenção<br />

que, por exemplo, a historiografia argentina recebeu<br />

desde Jorge Hardoy, passando por Ramón Gutierrez<br />

e Roberto Segre.<br />

De modo geral, para Arturo Almandoz, a força da<br />

presença brasileira nesse contexto latino-americano<br />

pode ser considerada em duas ocorrências. A<br />

primeira ao reconhecer a importância dos principais<br />

Seminários e Congressos brasileiros para o campo<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

10


O urbanismo e os urbanistas na história urbana brasileira: percursos e perguntas para pensar a história urbana da América Latina<br />

3 Faço aqui referência a outros<br />

importantes grupos de<br />

pesquisa: o URBIS – Grupo<br />

de pesquisa em história da<br />

cidade, arquitetura e paisagem<br />

(IAU-USP); o LeU – Laboratório<br />

de Estudos Urbanos<br />

(PROURBE-UFRJ); o Núcleo de<br />

História Urbana (FA-UFBA); o<br />

GESTHU - Grupo de Estudos<br />

do Território e de História<br />

Urbana (IPPUR-UFRJ)<br />

da história urbana. A quantidade de eventos e<br />

associações acadêmicas como os SHCU, ANPUR,<br />

ANPARQ, APUH, ANPOCS (o próprio DOCMOMO-<br />

Brasil, com sua especificidade na produção da<br />

arquitetura moderna), que de alguma forma abrem<br />

espaços de discussão sobre a história urbana em suas<br />

agendas institucionais e intelectuais fundamentam<br />

tal reconhecimento.<br />

A esse conjunto de congressos e instituições acadêmicas<br />

que agregam pesquisadores das mais<br />

diversas áreas do conhecimento, faz necessário<br />

mencionar os diversos grupos de pesquisa em<br />

história urbana/história da cidade e do urbanismo/cultura<br />

urbana cadastrados na plataforma CNPq.<br />

Entre esses grupos, alguns com décadas de atuação,<br />

como a Rede Urbanismo no Brasil, cuja produção<br />

sempre esteve atrelada ao estudo dos profissionais<br />

uranistas, ou ainda, grupos mais recentemente<br />

criados, como o Cultura, Arquitetura e Cidade na<br />

América Latina, apontando para uma atuação mais<br />

estrutural do Brasil no contexto latino-americano 3 .<br />

Da mesma forma, o papel relevante assumido nos<br />

últimos dez anos pelo Centro Interdisciplinar de<br />

Estudos da Cidade da UNICAMP, que edita desde<br />

2006 uma revista integralmente dedicada ao campo<br />

da história urbana, a Revista Eletrônica URBANA,<br />

e mais recentemente, no processo de criação da<br />

Associação Ibero-americana de História Urbana<br />

(AIHU), sendo sua sede acadêmica e atuando como<br />

secretaria administrativa e coordenação geral.<br />

A segunda ocorrência mais explícita nas considerações<br />

de Almandoz aponta para o trabalho de<br />

Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto, no<br />

texto Dependência e Desenvolvimento na América<br />

Latina. Esse reconhecimento ao livro traz, ao mesmo<br />

tempo, uma posição crítica por parte de Almandoz<br />

em relação a ausência da categoria espacial nos<br />

estudos realizados pelo duplo eixo econômico-social.<br />

Uma ausência que marca a tipologia de um conjunto<br />

amplo de autores e autoras cujas publicações foram<br />

construídas no âmbito institucional-intelectual da<br />

CEPAL, entre eles, Marta Schteingart, Anibal Quijano,<br />

e o próprio Roberto Segre.<br />

No início do capítulo especificamente dedicado ao<br />

que Almandoz chamou de “Transbordo Latinoamericano”<br />

(e em todo o livro a ideia de transbordo<br />

está contida de argumentos/conceitos que ainda<br />

estruturam certa historiografia construída na base<br />

da “importação das ideias”, da “transferência<br />

de modelos” e na concepção de “europeização<br />

das cidades latino-americanas”), existe uma formulação<br />

que talvez informe ou explique em parte<br />

essa “ausência” brasileira. O autor afirma que<br />

“a diferencia de países como Gran Bretaña y los<br />

Estados Unidos, donde la história urbana derivó de<br />

mainstreams económicos y sociales, la história del<br />

arte parece haber provisto el primer sustrato para<br />

la história urbana latinoamericana” (ALMANDOZ,<br />

2007, p. 146).<br />

Esse entendimento possibilita a formulação da<br />

seguinte pergunta: a historiografia urbana/urbanística<br />

brasileira está também relacionada em suas “origens”<br />

com a história da arte? Se considerarmos os autores<br />

brasileiros anteriormente mencionados, essa não<br />

parece ser a base fundacional da nossa pesquisa em<br />

história urbana. E se não é, estaria então respondida<br />

a indagação sobre a ausência brasileira entre os livros<br />

de história urbana que Almandoz considerou como<br />

os que fundamentaram a historiografia da cidade<br />

e do urbanismo na América Latina?<br />

O mapeamento sobre a presença brasileira no<br />

contexto latino-americana também pode ser realizado<br />

no artigo “A produção da cidade latino-<br />

-americana”, de Adrián Gorelik. Neste caso, apenas<br />

o livro “Economia política da urbanização” de Paul<br />

Singer surge como referência, revelando em meu<br />

entendimento um aspecto que considero importante<br />

nos argumentos desenvolvidos sobre a cidade<br />

latino-americana. A análise da narrativa<br />

empreendida por Gorelik revela uma quase total<br />

ausência das cidades brasileiras, das instituições<br />

brasileiras e dos profissionais brasileiros na interpretação<br />

dessa cidade que ele formulou como uma<br />

“construção cultural”.<br />

No entanto, essa postura crítica sobre a ausência<br />

mencionada não está direcionada ao texto em<br />

si, mas à forma como tomamos esse texto como<br />

uma referência – e obviamente é uma importante<br />

referência, dada a sua qualidade teórica e relevância<br />

aos estudos urbanos no continente – sobre a cidade<br />

latino-americana sem que essa construção cultural<br />

seja pensada também a partir das problemáticas<br />

brasileiras. Claro que a exceção existe, mas apenas<br />

na consideração feita pelo autor em relação ao<br />

caso de Brasília, evidentemente pelas dimensões<br />

histórico-político-urbanística desse caso.<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

11


O urbanismo e os urbanistas na história urbana brasileira: percursos e perguntas para pensar a história urbana da América Latina<br />

4 A Comissão Nacional de Urbanismo,<br />

1946 / Corporação<br />

Venezuelana de Fomento,<br />

1947 / Oficina Central de<br />

Coordenação e Planificação,<br />

1958)<br />

Se no livro de Almandoz, a Argentina foi considerada<br />

em seu protagonismo em relação à historiografia<br />

urbana, no artigo de Gorelik, cujo eixo é pensar<br />

o conceito de cidade latino-americana, o centro<br />

de força da análise recaiu na Venezuela, onde os<br />

processos econômicos-sociais da urbanização, do<br />

desenvolvimento, da pobreza e marginalidade,<br />

desequilíbrios regionais, etc, se evidenciou, conforme<br />

o próprio autor, “de modo radicalizado”. Ao<br />

construir seu argumento, Gorelik o estruturou<br />

nas complexidades e contradições da rede urbana<br />

venezuelana, incluindo suas diversas e importantes<br />

instituições 4 e experiências no campo<br />

do planejamento e do urbanismo, como foi o caso<br />

de Ciudad Guayana no âmbito dos debates sobre<br />

polos regionais; não fica ausente em seu texto o<br />

caso do Chile, ao mencionar o ILPES, a CEPAL e o<br />

Ministério de Habitação e Urbanismo, 1965.<br />

O caso brasileiro foi considerado apenas pontualmente<br />

com os exemplos de São Paulo, ao colocá-la<br />

lado a lado com Cidade do México e Montevidéu<br />

como “casos” para se pensar a cidade latinoamericana<br />

no marco da “explosão urbana”; e<br />

Brasília, e neste caso, ao reafirmar a ideia do sonho<br />

da cidade moderna num país “condenado ao<br />

moderno”. Nesse sentido, a pergunta que se abre<br />

diante de nós é: como entraremos nesse debate<br />

sobre a cidade latino-americana para que essa<br />

construção cultural, como proposto Gorelik, seja<br />

também pensada como processo integral de todo o<br />

continente americano, ou melhor, da parte americana<br />

decorrente da colonização ibérica, no que isso passa,<br />

portanto, pelo Brasil?<br />

Acredito – mas posso estar errado - que essa mesma<br />

desatenção ocorreu com outro livro importante<br />

e que parece ainda “esquecido” nas pesquisas e<br />

cursos no Brasil. Refiro-me ao texto “Las Estructuras<br />

Ambientales de America Latina”, publicado por<br />

Roberto Segre em 1977, que inclusive revela muito<br />

sobre o local institucional de sua fala: a Faculdade<br />

de Arquitetura de Havana e o próprio contexto<br />

revolucionário Cubano. A análise de Segre também<br />

apresenta um eixo crítico mais formalista como de<br />

Ramón Gutierrez, com foco no desenho em si, ou<br />

seja, no plano urbanístico, mas avança na abordagem<br />

econômica, política e social que o lugar da sua fala<br />

explicita: a crítica ao capitalismo em suas relações<br />

com os sistemas urbanos e o território. E se para<br />

Ramón Gutierrez, Brasília, elitista desde seu início,<br />

se fez classista por simples decantação, resultando<br />

numa monumentalidade cenográfica fascista, para<br />

Roberto Segre, Brasília<br />

“es una utopía evasiva, ajena a la realidade objetiva,<br />

suponer que dentro del sistema capitalista surgem<br />

proposiciones arquitectônicas o urbanísticas ajenas<br />

de las contradicciones económicas y sociales que<br />

caracterizan la esencia misma del sistema. Imaginar<br />

que Brasilia representaría un modelo urbanístico<br />

válido y expresivo de una abstracta nueva sociedad<br />

em la que desaparecerían la lucha de clases, la<br />

especulación sobre el território, la incidencia de<br />

la propriedade privada, implica no captar las directrices<br />

del proceso social y econômico nacional”.<br />

(SEGRE, 1977, p. 105)<br />

Na sequencia apresento um conjunto de perguntas<br />

que considero importantes:<br />

a) certa desatenção observada por Carlos Roberto<br />

Monteiro de Andrade (ANDRADE, 2005, P.82)<br />

não estaria associada à própria escrita que a historiografia<br />

urbanística e arquitetônica brasileira<br />

produziu sobre Brasília, qual seja, a de uma análise<br />

autorreferente, como objeto em si nos termos do<br />

seu plano urbanístico e de seus edifícios? De outra<br />

forma: em que momento a historiografia urbana<br />

e arquitetônica brasileira que estudou e estuda o<br />

caso de Brasília (e estou focado neste caso porque<br />

é aquele que de um modo geral a historiografia<br />

latino-americana faz referência) o fez em articulação<br />

com os processos nacionais de desenvolvimento<br />

macroeconômico da década de 1950 e em relação<br />

aos temas do desenvolvimento regional que a criação<br />

da Superintendência de Desenvolvimento Regional<br />

do Nordeste (SUDENE) representou?<br />

b) estaria, portanto, na articulação que a decisão<br />

política pela criação de Brasília tem com o debate<br />

latino-americano construído por Raul Prebisch e Celso<br />

Furtado na CEPAL - no campo do desenvolvimento<br />

nacional e de suas vinculações com o debate no<br />

continente – um caminho necessário e ainda não<br />

realizado pela historiografia brasileira?<br />

c) aquele silêncio ou apagamento das experiências<br />

brasileiras não estaria então justificado, ainda que<br />

em parte, na forma como escrevemos a nossa<br />

história urbana, quero dizer, numa escrita que talvez<br />

não tenha colocado o debate urbanístico brasileiro<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

12


O urbanismo e os urbanistas na história urbana brasileira: percursos e perguntas para pensar a história urbana da América Latina<br />

5 Entre as instituições, a Organización<br />

Interamericana de<br />

Cooperación Intermunicipal<br />

(OICI), a Sociedad Interamericana<br />

de Pnalificación e o<br />

Departamento de Vivienda<br />

y Planeamiento da Unión<br />

Panamericana/OEA, todas,<br />

de alguma forma, com eixos<br />

de atuação centrados nos<br />

problemas do desenvolvimento<br />

municipal organizaram<br />

congressos e mantinham<br />

publicações periódicos e temáticas.<br />

Grande parte dos<br />

profissionais que atuaram<br />

no âmbito do debate municipalista<br />

tiveram vínculos<br />

com essas instituições, entre<br />

eles, Carlos Mouchet, Carlos<br />

Morán, Antonio Delorenzo<br />

Neto, Rafael Picó.<br />

6 Como reconhecem Marco<br />

Aurélio e Carlos Espinoza<br />

sobre os Congressos da OICI,<br />

apenas “sabe-se que eles<br />

tiveram sua origem a VI Conferências<br />

Internacional Americana<br />

(Havana, 1928), embora<br />

sua primeira edição tenha<br />

ocorrido somente dez anos<br />

depois, também em Havana”<br />

(GOMEZ; ESPINOZA, 2009, p.<br />

31). Eu venho pesquisando a<br />

documentação sobre essas<br />

instituições, suas origens,<br />

profissionais e temáticas<br />

desde 2010, ainda que num<br />

trabalho lento, pois demanda<br />

um percurso por arquivos<br />

sediados em vários países do<br />

continente americano e na<br />

Espanha, onde a OICI está<br />

sediada e também consta<br />

o acervo do Instituto de<br />

Estudios de Adminstración<br />

Local (IEAL). Alguns resultados<br />

foram publicados em<br />

Congressos, Revista e Conferência,<br />

incluindo orientações<br />

de Iniciação Científica pelo<br />

Programa PIBIC/UnB-CNPq.<br />

Entre os mais recentes, ver:<br />

DE FARIA, 2013; DE FARIA,<br />

2015; DE FARIA, 2016a; DE<br />

FARIA, 2016b.<br />

em diálogo com as experiências levadas a cabo<br />

na América Latina, pois justamente nosso olhar<br />

ainda é majoritariamente transatlântico no sentido<br />

europeu? d) E nisso os estudos sobre Brasília são<br />

ainda construídos mais em relação ao urbanismo<br />

modernista e ao debate Europeu relacionados<br />

aos CIAMs que em relação ao debate sobre polos<br />

de desenvolvimento, desequilíbrio regional,<br />

industrialização como foi o caso de Ciudad Guayana<br />

na Venezuela ou o caso da Superintendência de<br />

Desenvolvimento Regional do Nordeste (SUDENE)<br />

no Brasil, entre várias outras experiências passíveis<br />

de uma análise comparada?<br />

Por uma nova história urbana da<br />

América Latina<br />

E para finalizar minhas considerações, eu retomo<br />

agora o livro “Urbanismo na América do Sul –<br />

circulação das ideias e constituição do campo” e<br />

espero assim amarrar este argumento final com o<br />

movimento que fiz até aqui para apontar um caminho<br />

(entre muitos outros) sobre os temas e objetos da<br />

pesquisa em história do urbanismo no Brasil. O<br />

aspecto que me interessa no livro e que me parece<br />

uma entrada potencial para as nossas pesquisas foi<br />

formulado por Marco Aurélio e José Carlos Espinoza<br />

no artigo “Olhares cruzados: visões do urbanismo<br />

moderno na América do Sul, 1930-1960”, e diz<br />

respeito às redes profissionais e institucionais latinoamericanas.<br />

Como enunciado (e eu compartilho<br />

dessa opinião) “as redes profissionais de circulação<br />

de ideias no âmbito continental são tema ainda<br />

pouco explorado pela bibliografia, particularmente<br />

a brasileira” (GOMES; ESPINOZA, 2009, P. 15).<br />

O que denota alguma atenção nesse campo ainda<br />

pouco explorado é o fato de que, mesmo entre<br />

pesquisadores originários dos países latinos de origem<br />

hispânica e que trabalham com história do urbanismo<br />

e do planejamento urbano-regional na América Latina<br />

entre as décadas de 1920 e 1970, de certa forma, se<br />

confirma. Temas mais gerais como desenvolvimento<br />

municipal/municipalismo, e mais especificamente as<br />

atividades das Instituições Interamericanas (incluindo<br />

suas diversas atividades, como seus Congressos e<br />

Publicações) 5 cujas ações perpassaram os campos do<br />

urbanismo e do planejamento urbano-regional, não<br />

foram trabalhados como objeto central de interpretação.<br />

No conjunto das pesquisas realizadas, as interlocuções<br />

entre essas instituições, os profissionais que nelas<br />

participaram, os debates entre eles, as concepções e<br />

proposições no campo do desenvolvimento municipal<br />

ainda não receberam a atenção necessária 6 .<br />

Ocorre que esses e outros contextos institucionalprofissionais<br />

são geralmente trabalhados pela historiografia<br />

em segundo plano, como panorama geral do<br />

debate urbanístico na América Latina ainda circunscrito<br />

às relações e “influências” provenientes dos CIAMs<br />

(Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna).<br />

De outra forma, “muito do que conhecemos sobre<br />

a experiência urbanística continental nessas décadas<br />

é tributário” de um olhar estrangeiro, “expresso em<br />

exposições, depoimentos e publicações de arquitetos,<br />

críticos e historiadores europeus e norte-americanos”<br />

(GOMES; ESPINOZA, 2009, p.14).<br />

Para uma nova problematização de todo esse<br />

contexto de redes profissionais e institucionais, Marco<br />

e José elaboram uma pergunta muito importante:<br />

como os arquitetos e urbanistas sul-americanos<br />

viam as suas próprias realizações e expressavam a<br />

busca de soluções para os problemas urbanos que<br />

então enfrentavam? Ao que acrescento: como a<br />

historiografia urbana construiu suas análises sobre<br />

esses mesmos profissionais, suas ideias, soluções e<br />

instituições às quais pertenciam?<br />

Em relação à historiografia brasileira, acredito que<br />

devemos nos perguntar o quê fizemos até aqui e<br />

quais os caminhos necessários para que a cidade<br />

latino-americana não apenas seja interpretada<br />

levando em consideração as particularidades brasileiras<br />

para a formulação de conceitos gerais sobre<br />

essa mesma cidade, mas como nós que trabalhamos<br />

com história urbana/urbanística, passaremos a<br />

dialogar mais enfaticamente com a pesquisa realizada<br />

pelos colegas da América Latina. Esses são<br />

possíveis movimentos que tornarão visíveis as nossas<br />

diversas e complexas experiências urbanísticas, os<br />

diversos lugares institucionais – sejam municipais,<br />

estaduais ou federal – criados desde o século<br />

XIX e as contraditórias formas de organização e<br />

desenvolvimento dos nossos municípios.<br />

No meu entendimento são esses os caminhos<br />

que considero necessários para que a história<br />

urbana da América Latina seja construída de forma<br />

compartilhada. Ela deve ser construída a partir<br />

das nossas próprias experiências e concepções<br />

e ao mesmo tempo aberta ao diálogo com os<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

13


O urbanismo e os urbanistas na história urbana brasileira: percursos e perguntas para pensar a história urbana da América Latina<br />

Recebido [Nov. 29, 2015]<br />

Aprovado [Abr. 05, 2016]<br />

principais centros europeus e norte-americanos de<br />

pesquisa, mas com uma postura política e intelectual<br />

fundamentada na recusa à concordância acrítica<br />

das interpretações que são feitas por esses centros<br />

sobre a nossa realidade urbana.<br />

O problema, e esse é um problema “interno” à<br />

América Latina, é que essa concordância acrítica<br />

sempre esteve presente, em grande medida estruturando<br />

conceitualmente nossas pesquisas, pelas<br />

noções de transposição, de importação, de cópia e<br />

de influências determinadas. Essa postura intelectual<br />

muito contribuiu para manutenção de outra noção,<br />

a de centro-periferia, ou seja, de que as ideias<br />

originais estão na Europa e EUA e nós na América<br />

Latina apenas as corroboramos.<br />

Ao entendermos que o campo conceitual que usamos<br />

não difere dos que são usados pelos centros europeus<br />

e norte-americanos, e que as particularidades devem<br />

assumir um papel também central na construção das<br />

narrativas históricas, no nosso caso, da história urbana,<br />

então os caminhos se sedimentarão em outras bases.<br />

As dificuldades para que nos movimentemos por<br />

esses caminhos sempre existiram e muitas delas nós<br />

conhecemos. No entanto, existem sinais evidentes de<br />

que iniciamos outras trajetórias intelectuais sobre a<br />

história urbana da América Latina, e nisso incluindo<br />

a contribuição da historiografia urbana brasileira em<br />

fermentação ao espectro geográfico e cultural de<br />

colonização ibéria. E apesar das críticas que façamos,<br />

estamos certos de que devemos isso aos que iniciaram<br />

a caminhada.<br />

Referências bibliográficas<br />

ANDRADE, Carlos, Roberto Monteiro. “A construção<br />

historiográfica da cidade e do urbanismo moderno<br />

no Brasil: o caso das cidades novas planejadas”. In:<br />

PINHEIRO, Eloísa Petti e GOMES, Marco Aurelio A.<br />

de Filgueiras. A Cidade como História: os arquitetos e<br />

a historiografia da cidade e do urbanismo. Salvador:<br />

EDUFBA, 2005.<br />

ALMANDOZ, Arturo. “Entre libros de historia urbana.<br />

Para una historiografia de la ciudad y el urbanismo<br />

en América Latina”. Caracas: Editorial EQUINOCCIO,<br />

2007.<br />

DE DECCA, Edgar. “O estatuto da História”. In: Revista<br />

Espaço & Debates, n. 34. São Paulo: NERU, 1991.<br />

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V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

14


artigos e ensaios<br />

Theodoro Sampaio, o Código Sanitário<br />

do Estado de São Paulo de 1894 e as<br />

exigências da modernidade<br />

Luiz Augusto Maia Costa<br />

Arquiteto, Urbanista e Filósofo, professor titular do Programa<br />

de Pós-Graduação em Urbanismo da Pontifícia Universidade<br />

Católica de Campinas, Rodovia D. Pedro I, km 136, Parque das<br />

Universidades, Campinas, SP, CEP 13086-900, luiz.agusto@puccampinas.edu.br<br />

Resumo<br />

O presente artigo busca relacionar as questões sanitárias no mundo ocidental<br />

(a partir da antiguidade até a contemporaneidade) com o que Freud definiu<br />

como as exigências da modernidade, isto é, ordem, higiene e beleza, a fim<br />

de estabelecer subsídios para a compreensão do Código Sanitário do Estado<br />

de São Paulo de 1894 como uma manifestação da modernidade engendrada<br />

a partir da Segunda Revolução Industrial. Defende que o referido Código<br />

contou, direta ou indiretamente, com a participação do engenheiro Theodoro<br />

Sampaio. Sendo assim, entendemos que a urbanística que então era forjada<br />

estava diretamente ligada ao próprio processo civilizatório típico do Ocidente.<br />

Palavras-chave: Theodoro Sampaio, modernidade, código sanitário, São Paulo.<br />

A<br />

s correntes higienistas exerceram papel fundamental<br />

na reestruturação das cidades em todo o mundo<br />

ao longo do século XIX, senão antes. No caso<br />

do Brasil não foi diferente. Adentramos o século<br />

XX intervindo em nossas cidades, pelo menos<br />

até a década de 1930, alicerçados nos mesmos<br />

paradigmas. Para muito além de meramente infraestruturar<br />

e embelezar as cidades, promovendo<br />

indubitavelmente um processo de saneamento,<br />

que não foi somente físico, mas também social, o<br />

higienismo consistiu em mais que uma expressão<br />

do processo de urbanização de então, foi ele<br />

mesmo um vetor de urbanidade dessas cidades e<br />

dessa sociedade.<br />

Buscarei aqui demonstrar a pertinência de tais<br />

observações. Para tal, retomarei a contribuição que<br />

o engenheiro Theodoro Sampaio deu à questão ao<br />

mesmo tempo em que defenderei a atualidade e<br />

o caráter fundamental do Código Sanitário de São<br />

Paulo de 1894, cuja elaboração teve a participação<br />

deste. Defendo que este Código ainda hoje possui<br />

importância, ao nos lembrar que ordem, higiene e<br />

beleza são os alicerces para a construção das noções<br />

de urbanidade e civilidade. aneamento, urbanidade<br />

e civilização.<br />

Saneamento, urbanidade<br />

e civilização<br />

Zygmunt Bauman (1998:7) ao comentar o clássico “O<br />

mal-estar na civilização” de Sigmund Freud, observa que<br />

o famoso trabalho em questão contava afinal a “história<br />

da modernidade”. Sabido é que o psicólogo alemão<br />

defendia que “no desenvolvimento da civilização (...)<br />

o preço que pagamos por nosso avanço em termos de<br />

civilização é uma perda da felicidade pela intensificação<br />

do sentimento de culpa” (Freud, 2006: 137). Isto é,<br />

para que a civilização avançasse foi necessário abrir<br />

mão de porções de felicidade, isto é, reprimir parte<br />

das pulsações tanto da libido como de destruição.<br />

Onde se conclui que, segundo o raciocínio freudiano,<br />

para ganhar algo é necessário perde algo em troca.<br />

Seguindo os passos de Freud, Bauman (1998: 7)<br />

conclui que<br />

V14 N2<br />

revista de pesquisa em arquitetura e urbanismo instituto de arquitetura e urbanismo iau-usp<br />

15


Theodoro Sampaio, o Código Sanitário do Estado de São Paulo de 1894 e as exigências da modernidade<br />

“assim como “cultura” ou “civilização”, modernidade<br />

é mais ou menos beleza (“essa coisa inútil<br />

que esperamos ver valorizada pela civilização”),<br />

limpeza (“ a sujeira de qualquer espécie parece-nos<br />

incompatível com a civilização”) e ordem (“ordem é<br />

uma espécie de compulsão à repetição que, quando<br />

um regulamento foi definitivamente estabelecido,<br />

decide quando, onde e como uma coisa deve ser<br />

feita, de modo que em toda circunstância semelhante<br />

não haja hesitação ou indecisão”).<br />

O texto de Freud, escrito originalmente em alemão,<br />

suscitou um acirrado debate quanto a sua tradução.<br />

O termo correto a ser usado seria “civilização” ou<br />

“cultura”? Sem entrar no mérito etimológico da<br />

palavra, parece-nos que ambos termos de uma<br />

forma ou de outra estão ligados. Sobretudo na<br />

modernidade, civilização e cultura convergem para<br />

um terceiro termo: cidade.<br />

As relações entre “essas exigências da civilização”,<br />

ou melhor, da modernidade para com a cidade é algo<br />

que o próprio Freud sugere. Beleza, limpeza (higiene)<br />

e ordem, estão nos alicerces da cidade moderna e de<br />

sua disciplina: o urbanismo. São baseadas nesses três<br />

princípios que observarei a Lei 233 de 2 de março<br />

de 1894, que estabelece o primeiro Código Sanitário do<br />

estado de São Paulo, cuja elaboração contou com<br />

a participação do engenheiro Theodoro Sampaio.<br />

A despeito de estarmos apontando a relação entre<br />

beleza, limpeza e ordem na modernidade, isso não<br />

que dizer, de forma nenhuma, que anteriormente<br />

a este período “essas exigências” não existissem.<br />

Entretanto, é no século XIX que isto ganha contornos<br />

imperativos para a construção do espaço construído<br />

das cidades. No âmbito deste artigo, concentraremos<br />

na questão da higiene para defender que as condições<br />

sanitárias é um dos indicativos do grau de<br />

urbanidade de dado lugar.<br />

Da antiguidade clássica ao<br />

século XIX<br />

Quando olhamos para a Roma Imperial do século I<br />

d.C. com seu um ou dois milhões de habitantes, o<br />

que primeiro vem as nossas mentes é como, naquela<br />

época, a cidade não sucumbiu a pestes e epidemias. A<br />

resposta para isto é simples: as cidades romanas, nessa<br />

época, partiam de um nível zero ao serem erguidas.<br />

Aquilo que demoramos séculos para perceber, já<br />

era de domínio daqueles construtores. Uma cidade<br />

deve começar a ser erguida ancorada em uma rede<br />

de infraestrutura viária e sanitária (MACAULAY).<br />

Isso é, durante o Império Romano, antes de se<br />

estabelecer o traçado da cidade com sua planta<br />

hipodâmica, todo um trabalho de abertura de<br />

estradas interligado às cidades era realizado. Construíam-se<br />

aquedutos para trazer água limpa para a<br />

nova cidade que se constituía; o mesmo acontecendo<br />

com as cloacas responsáveis por retirar os dejetos<br />

humanos para fora da cidade junto com as águas<br />

servidas e pluviais, sendo estas descarregadas no<br />

rio ( in natura ) em local apropriado.<br />

As cidades romanas de então, contavam com uma<br />

série de equipamentos públicos voltados à limpeza<br />

dos corpos e das cidades: cisternas com água limpa,<br />

privadas públicas, banhos e termas onde os cidadãos<br />

faziam sua higiene pessoal. Nessas cidades, a altura<br />

das edificações particulares não podia ultrapassar<br />

o dobro da largura da rua em que se localizavam,<br />

a fim de que fosse assegurado que as ruas seriam<br />

ensolaradas (MACAULAY). Nas basílicas romanas,<br />

os clerestórios, janelas altas existentes entre as<br />

naves laterais e a nave principal do edifício, tinham<br />

a dupla função de permitir a passagem de luz e ar<br />

(ARGAN, 2003).<br />

No único tratado de arquitetura da antiguidade<br />

clássica que chegou aos nossos dias o De Architectura,<br />

Marcos Vitrúvio Polião (1999) nos ensina que<br />

um arquiteto, entre outras especialidades, como<br />

geografia, música, história, matemática, astronomia,<br />

deve também entender de medicina. Tal afirmação<br />

fica clara na medida em que se entende como era<br />

compreendida a medicina à época. Para o grande<br />

médico da antiguidade clássica, Hipócrates, as<br />

doenças e, em particular, as epidemias estavam<br />

relacionadas a fatores climáticos, raciais, dietéticos<br />

e ao meio onde as pessoas viviam. Estas ideias<br />

subsidiam a teoria dos meios que foi crucial para<br />

o desenvolvimento da engenharia sanitária até a<br />

descoberta dos micróbios por Louis Pasteur nos fins<br />

do século XIX (COSTA, 2003).<br />

Parece claro que para a civilização romana a questão<br />

da limpeza/higiene já estava posta e era um ponto<br />

nevrálgico. Compreendemos que não era apenas<br />

uma questão de “saúde pública” (a despeito da<br />

anacronia do termo) nem tão pouco uma questão<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

16


Theodoro Sampaio, o Código Sanitário do Estado de São Paulo de 1894 e as exigências da modernidade<br />

unicamente médica. A vida na cidade passava por<br />

uma concepção de mundo que atrelava beleza,<br />

ordem e limpeza. Nesse sentido, “as exigências da<br />

civilização” eram também um indicativo do grau de<br />

urbanidade de dado agrupamento humano. O mundo<br />

“bárbaro”, o que em termos romanos queria dizer<br />

todo aquele que não falasse latim e não vivesse ao<br />

modo romano, era o mundo do caos, da feiura e da<br />

sujeira. Contrapõe-se aqui uma realidade civilizada e<br />

urbana a uma realidade “bárbara” e tribal.<br />

Isto faz ainda mais sentido quando nos deparamos<br />

com a retração urbana que ocorreu no mundo<br />

ocidental a partir do século V d.C. Sabido é que<br />

durante o período conhecido como Idade Média,<br />

as cidades foram praticamente abandonadas e<br />

perderam seu papel de polo emanador de organização<br />

social e territorial (PIRENNE, 2009). A<br />

população se agrupa em feudos isolados entre si. Os<br />

hábitos, mo-dos e concepção de mundo mudaram<br />

radicalmente. O mundo urbano sucumbiu ao mundo<br />

rural/agrário. Sabe-se que foi um período de<br />

grandes privações e de total precariedade material<br />

(MARQUES, 2010).<br />

Diferentemente das cidades, os feudos não contavam<br />

com uma rede de infraestrutura sanitária; da mesma<br />

forma, a higiene pessoal torna-se, no mínimo,<br />

uma questão secundária frente à árdua luta pela<br />

sobrevivência. Não estamos dizendo que o<br />

medievo foi um período de barbárie ou incivilizado.<br />

A civilização ocidental deste período estava aportada<br />

em outros conteúdos diferentes daqueles prescritos<br />

no período pretérito (BASCHET, 2006). O que<br />

queremos articular aqui é que, com a retração do<br />

urbano, as “necessidades da civilização” foram<br />

resinificadas. Se a noção de ordem mudou e as<br />

concepções de beleza se metamorfosearam, foi a<br />

limpeza que mais sofreu transformação.<br />

Até o século XI, período em que começam a<br />

surgir os burgos que acabaram por ocasionar o<br />

“ressurgimento” das cidades, os aglomerados<br />

humanos do medievo eram caracterizados pela baixa<br />

densidade populacional e pela baixa mobilidade.<br />

Em um contexto de campos abertos, as sujeiras<br />

produzidas pelos homens pouco impactavam sobre<br />

o espaço. Quanto à saúde destes homens não se<br />

pode dizer o mesmo, certamente a falta de higiene<br />

e limpeza contribuía um tanto para as altas taxas<br />

de mortalidade, nesse caso, particularmente a<br />

infantil. O próprio sentido de limpeza foi modificado<br />

(MARQUES, 2010).<br />

O reflorescimento das cidades trouxe consigo um<br />

aumento da densidade populacional. De fato, a<br />

cidade medieval vai se caracterizar por ser uma<br />

cidade de baixa densidade populacional, baixa<br />

mobilidade/circulação de pessoas, mercadorias,<br />

fluidos - tanto de água como de ar - e privação dos<br />

serviços públicos destinados à higiene. A forma das<br />

cidades era dominada por ruas estreitas e tortuosas,<br />

as quais não seguiam nenhum padrão preconcebido.<br />

Ainda que a epidemia da peste bubônica não tenha<br />

sido um fenômeno exclusivamente urbano,<br />

é fácil, nesse contexto de precariedade higiênica,<br />

compreender por que no século XIV a Peste Negra<br />

dizimou entre 25 e 75 milhões de pessoas em toda<br />

a Europa. Acredita-se que a bactéria Yersinia pestis<br />

tenha desembarcado em Genova junto com os ratos<br />

vindos do oriente. Ao encontrar um ambiente propício<br />

para a sua disseminação, expandiu-se por toda a<br />

Europa e pelo Oriente Médio próximo (KELLY, 2011).<br />

Os então frágeis aglomerados urbanos, “essas<br />

pequenas cidades num mar de campos”, eram<br />

vítimas frágeis para essa e outras “pestes”. A<br />

insipiente urbanidade que então se enunciava nos<br />

primórdios do renascimento do século XV não dotava<br />

tais aglomerados com as redes de infraestruturas<br />

sanitárias imprescindíveis à limpeza urbana, à saúde<br />

das cidades e à higiene das pessoas. “As exigências<br />

da civilização” estavam então ganhando novos<br />

contornos e tinham que se sobrepor à estética, à<br />

higiene e à ordem do tempo pretérito. Buscava-se na<br />

Roma Imperial suas raízes, forjava-se uma tradição.<br />

Mas essa, pelo menos em termos higiênicos, era<br />

uma mera sombra do que fora antes.<br />

Certamente, os modelos de Cidades Ideais que então<br />

eram fomentados apontavam para preocupações<br />

higiênicas, pode-se falar de certa separação das<br />

atividades “poluidoras” das demais atividades<br />

urbanas. No entanto, o fato é que em nenhum desses<br />

modelos encontra-se uma proposta para as redes<br />

sanitárias (GOITIA, 2011). Sabia-se que tudo deveria<br />

fluir. Entretanto, não se propunha a construção de<br />

aquedutos, de cloacas ou banhos públicos à maneira<br />

romana. Sabe-se que muito pouco ou quase nada<br />

do que foi proposto para a cidade renascentista foi<br />

construído, sobretudo na Europa.<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

17


Theodoro Sampaio, o Código Sanitário do Estado de São Paulo de 1894 e as exigências da modernidade<br />

A bem da verdade, tanto a cidade renascentista,<br />

como a barroca e a cidade do século XVIII não<br />

primaram por voltar-se para a questões sanitárias<br />

da cidade, o que ocasionava sérios problemas de<br />

salubridade nas mesmas. Na medida em que o<br />

meio urbano adquiria cada vez mais importância<br />

no mundo ocidental, as cidades aumentavam não<br />

só de tamanho, como de densidade populacional<br />

e de importância nas atividades produtivas e, por<br />

consequência, na vida humana. É exatamente<br />

enquanto a sociedade industrial se configura em<br />

sua magnitude que a questão do sanitarismo ganha<br />

um contorno prioritário.<br />

Brasil urbano, mas não sanitário<br />

A despeito do Brasil ter começado a se industrializar<br />

a partir do início do século XX, os processos urbanos<br />

aqui verificados desde meados do século<br />

XIX estavam atrelados àqueles verificados na<br />

Europa. País agroexportador para os mercados<br />

internacionais, o Brasil passou por transformações<br />

urbanas significativas desde que os excedentes de<br />

capital estavam desvinculados do comércio infame<br />

(COSTA, 2014).<br />

As cidades brasileiras durante o século XIX, grosso<br />

modo, possuíam ainda a estrutura da cidade colonial.<br />

Cidade esta que se configurava carente de uma<br />

rede de infraestrutura sanitária. Sua morfologia,<br />

de ruas tortuosas e estreitas, aliada a um modo de<br />

vida muito mais rural do que urbano, estabelecia um<br />

caráter provinciano às cidades brasileiras de então.<br />

O sistema produtivo estava baseado na escravidão<br />

e essa perpassava a sociedade colonial como um<br />

todo. Era então uma sociedade na qual a atividade<br />

agroexportadora definia as bases econômicas e<br />

sociais.<br />

Por volta de 1850, verificamos uma transformação<br />

significativa no papel em que as obras urbanas<br />

possuíam no contexto do Brasil Império. Data daí o<br />

fim do tráfico negreiro entre a África e o Brasil. O fim<br />

do “comércio infame” fez com que um excedente<br />

de capitais fosse liberado, passando estes a serem<br />

aplicados em obras urbanas. O Rio de Janeiro, capital<br />

do Império, é um exemplo disso (SILVA, 2012).<br />

existia algum tipo de serviço urbano, este era<br />

insuficiente. Em uma cidade que aumentava progressivamente<br />

sua população, demonstrava falta<br />

de uma rede de distribuição de água e de esgoto<br />

e que carecia de um serviço de limpeza pública,<br />

onde os espaços lamacentos, os mangues e o lixo<br />

dominavam a paisagem urbana, os vibriões das<br />

moléstias encontravam um ambiente propício a<br />

sua reprodução e disseminação. As epidemias e<br />

pestes não demoraram a se tornar frequentes, era<br />

epidemia de cólera, da febre tifoide, entre outras.<br />

A partir daí a situação só fez piorar. O grande fluxo<br />

de imigrantes para as cidades brasileiras então verificado<br />

acentuou a insalubridade destas. O aumento<br />

populacional não foi acompanhado de uma melhoria<br />

sanitária, bem como não foi acompanhado por um<br />

aumento de oferta habitacional. Pelo contrário, um<br />

número cada vez maior de pessoas se amontoava<br />

em cortiços cujas condições de habitabilidade eram<br />

mínimas. Dada às condições precárias de existência<br />

de um número cada vez maior de miseráveis, o<br />

alcoolismo, a prostituição e uma série de outras<br />

delinquências passavam a ser uma triste realidade<br />

da sociedade. A pobreza desgastava tanto o tecido<br />

urbano como social de então.<br />

Aqui, como na Europa, não tardou para que os<br />

médicos e depois os engenheiros se detivessem<br />

nas condições higiênicas das cidades, derivando<br />

daí uma série de medidas de intervenção na<br />

cidade. Rios foram canalizados, lagoas e pântanos<br />

foram drenados, morros foram removidos a fim<br />

de permitir a circulação de ar, de luz; intentavase<br />

que os fluidos em geral dimanassem. Na<br />

mesma medida, começou-se a estabelecer as<br />

redes de abastecimento de água e de esgoto.<br />

A limpeza urbana era organizada, novos modos<br />

eram fomentados, tais como a higiene pessoal.<br />

No Brasil, São Paulo (1842) foi a primeira cidade<br />

a estabelecer um sistema de abastecimento de<br />

água; já em termos de serviço de esgoto o Rio de<br />

Janeiro (1864) foi a pioneira. De qualquer forma,<br />

já na segunda década do século XX as principais<br />

cidades brasileiras já estavam dotadas de uma<br />

rede de infraestrutura sanitária básica (COSTA,<br />

2003, 2014).<br />

Outro acontecimento importante ocorrido em<br />

1850 foi a chegada da Cólera no Brasil. À época,<br />

as cidades eram cobertas de sujeiras; quando<br />

As mudanças então ocorridas nas cidades vinham<br />

acompanhadas de uma mudança no modo de viver<br />

e ver a cidade. Essas “exigências da civilização”<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

18


Theodoro Sampaio, o Código Sanitário do Estado de São Paulo de 1894 e as exigências da modernidade<br />

conclamavam a entrada na modernidade. Porém,<br />

isso não se dava de forma direta e imediata, o<br />

que ocasionava um estranhamento e uma falta de<br />

entendimento das transformações então engendradas<br />

que eram acentuadas pelo modo autoritário<br />

e truculento de agir do Estado (SEVCENKO, 2010).<br />

O discurso científico-ideológico defendia que tais<br />

medidas iriam levar a “cura da cidade”, que então<br />

era vista como um corpo físico e moralmente doente.<br />

É nesse contexto, aqui sumariamente exposto, em<br />

que o primeiro código sanitário do Estado de São<br />

Paulo é elaborado e promulgado.<br />

1 Para uma biografia completa<br />

do engenheiro, ver:<br />

Costa, 2003.<br />

A população em geral não entendia, por exemplo,<br />

porque a água que até então era disponibilizada<br />

gratuitamente nos chafarizes tinha que ser paga.<br />

Theodoro Sampaio, em seu diário de quando era<br />

Diretor da Repartição de Água e Esgoto do Estado de<br />

São Paulo, relata a destruição dos hidrômetros então<br />

instalados gerando ocorrências policiais (COSTA,<br />

2003). O certo é que a introdução desses serviços<br />

sanitários gerou uma horda de desempregados<br />

urbanos entre os mais pobres, visto que os serviços<br />

de transporte de água, de águas servidas e de dejetos<br />

não mais eram necessários, aumentando o número<br />

destes na cidade.<br />

Durante as reformas sanitárias empreendidas por<br />

Oswaldo Cruz no Rio de Janeiro, a população<br />

ridicularizava a “caça aos ratos” então promovida.<br />

A mesma população se sentia ultrajada por expor<br />

seus corpos à vacinação. Impõem-se então uma série<br />

de normas disciplinares aos cidadãos que visavam<br />

“domesticar” os hábitos dessa mesma população.<br />

Ao mesmo tempo, operava-se uma intervenção no<br />

espaço físico da cidade e no meio social e moral<br />

na sociedade vigente, que era impelida à base de<br />

normas a cederem às “exigências da civilização”<br />

como definidas no contexto da modernidade. Este<br />

é um lado da equação.<br />

O outro lado é que sanear queria dizer excluir.<br />

Excluir o que era fétido e feio, mas, sobretudo,<br />

operar uma brutal exclusão social onde o preto,<br />

pobre e os desvalidos de todas as ordens deveriam<br />

ser preteridos em favor do moderno, civilizado,<br />

não raro, europeu. A violência com que isso foi<br />

feito está por traz da famosa Revolta da Vacina<br />

ocorrida no Rio de Janeiro (SEVCENKO, 2010). Em<br />

São Paulo isso pode ser observado na mudança da<br />

paisagem humana da cidade. No meio do século<br />

XIX a população da cidade era em sua maioria negra<br />

e o tupi era tão falado quanto o português; já no<br />

final do mesmo século, a população era em sua<br />

maioria branca e estrangeira, onde o italiano era<br />

amplamente verbalizado. Esmaecia-se o passado<br />

colonial e escravista dessa sociedade.<br />

No ano de 1894, segundo José Geraldo Simões<br />

Júnior (1990: 59), o<br />

“(...) Código Sanitário estabelecendo padrões para<br />

a abertura de ruas e praças e também para a<br />

construção de habitações, hotéis e casas de pensão,<br />

tendo em vista principalmente os aspectos de<br />

ventilação, insolação e boa drenagem de águas<br />

servidas e águas pluviais. Por esse Código, os cortiços<br />

ficam terminantemente proibidos de existir, dada<br />

as condições sanitárias desse tipo de construção<br />

e o favorecimento à propagação de epidemias,<br />

constatadas, sobretudo após os trabalhos de inspeção<br />

de higiene realizado por uma Comissão nos cortiços<br />

de Santa Ifigênia no ano de 1893”.<br />

Esse código possuía um claro conteúdo segregador,<br />

uma vez que as classes menos favorecidas não<br />

tinham recursos para bancar tais exigências e o<br />

déficit habitacional era grande. É nesse contexto<br />

que o Engenheiro Theodoro Sampaio vai atuar no<br />

estado de São Paulo ao longo dos 30 anos iniciais de<br />

sua vida profissional, os 30 restantes, serão divididos<br />

entre Salvador e o Rio de Janeiro. (Costa, 2003)<br />

O Engenheiro Theodoro Sampaio 1<br />

Nascido em 1855, o baiano Theodoro Fernandes<br />

Sampaio foi um dos homens públicos de maior<br />

importância no panorama urbanístico, político e<br />

cultural que emergiu no país no final do século<br />

XIX. Em 1872, ingressa na Escola Central que, no<br />

decorrer de sua graduação, transformou-se na<br />

Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Formou-se<br />

em 1877. Em 1875, no 4º ano de engenharia, é<br />

contratado para os trabalhos gráficos do Museu<br />

Nacional. Em 1886, integra a Comissão Geográfica<br />

e Geológica de São Paulo, ocupando o cargo de 1º<br />

Engenheiro e Chefe de Topografia da Comissão.<br />

No governo de Prudente de Morais (1890), ainda<br />

como engenheiro da Comissão Geográfica e Geológica<br />

de São Paulo, é convidado por este para<br />

realizar os estudos do Saneamento de São Paulo,<br />

juntamente com o Dr. Antônio Francisco de Paula<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

19


Theodoro Sampaio, o Código Sanitário do Estado de São Paulo de 1894 e as exigências da modernidade<br />

Souza. Concomitantemente, assume a chefia<br />

dos Serviços de Água e Esgoto da cidade de São<br />

Paulo, dos quais era concessionária a Companhia<br />

Cantareira, que se encontrava em crise. Dois anos<br />

depois, no Governo de Bernardino de Campos, passa<br />

a exercer cumulativamente os cargos de Engenheiro<br />

sanitarista e consultor técnico da Secretaria do<br />

Interior, a convite de Vicente de Carvalho. Desta<br />

época, destacam-se as obras de construção de<br />

Hospitais de Isolamento e outros institutos de higiene<br />

da cidade. Bem como a elaboração do Relatório<br />

da Comissão de exame e inspeção das habitações<br />

operárias e cortiços no distrito de Santa Ifigênia,<br />

e a direta consequência deste, a elaboração do<br />

Código Sanitário do Estado de São Paulo de 1894.<br />

Não há nas fontes primárias disponíveis no Acervo<br />

Theodoro Sampaio, existente no Instituto Geográfico<br />

e Histórico da Bahia, documentação probatória<br />

de que o engenheiro em questão tenha escrito<br />

o referido Código, porém acreditamos que, pelo<br />

menos, Sampaio tenha participado da elaboração<br />

da Lei de 1894.<br />

Em 1898, é nomeado chefe dos Serviços de Água<br />

e Esgoto do Estado de São Paulo. Exerce esse cargo<br />

por cinco anos ininterruptos. Neste período, realiza<br />

obras de profunda importância para a modernização<br />

da cidade e do estado de São Paulo, entre elas o<br />

desenvolvimento e restauro da rede de água e<br />

esgoto da capital, como também de outras cidades,<br />

destacando-se a da cidade de Santos. Faz também<br />

estudos para a captação das águas do Tietê, assim<br />

como para a elaboração de uma legislação sanitária.<br />

Trabalha ainda na estruturação da repartição e na<br />

definição de suas diretrizes. Esteve também ligado ao<br />

desenvolvimento da indústria de material cerâmico<br />

destinado aos serviços de água e esgoto. Em 1903,<br />

demite-se do cargo por envolver-se em uma rede<br />

de intrigas em torno do saneamento de Santos,<br />

quando volta para a Bahia.<br />

O Código Sanitário do Estado de São<br />

Paulo de 1894<br />

Composto por 27 capítulos, dos quais 5 tratam<br />

especificamente da questão habitacional, o código<br />

de 1894 está imbuído de concepção positivista<br />

inerente à Primeira República. Baseado em princípios<br />

da engenharia sanitária em sua concepção<br />

bacteriologista, a referida lei busca espacializar as<br />

questões fundamentais da limpeza/higiene na cidade.<br />

Não seria absurdo dizer que o tema central desse<br />

Código seja a cidade, essa problematizada e palco<br />

de intervenção física e social através da higiene.<br />

Indubitavelmente, essa lei aponta para uma noção<br />

de civilidade, alterando significativamente a cultura<br />

local. Essas mudanças apontavam então para a<br />

modernidade forjada no contexto da Segunda<br />

Revolução Industrial.<br />

As leis por definição estão atreladas à noção de<br />

Ordem. O código de 1894 vai além dessa ligação<br />

imediata com a ordem. As normas então estabelecidas<br />

disciplinavam os espaços, os hábitos, os<br />

corpos. Da limpeza do espaço público à higiene<br />

dos espaços da casa, do trabalho, da escola ou<br />

do lazer há uma noção de ordem que buscava<br />

constituir uma regulamentação da sociedade quanto<br />

à limpeza, a qual não permitia hesitação ou dúvida.<br />

Isto é significativo quando observado o disposto no<br />

capítulo 27, artigo 520, onde o legislador acena para<br />

a utilização da força via polícia para a execução do<br />

estabelecido na lei.<br />

Nesse sentido, o Código de 1894 cumpria de forma<br />

direta duas das “exigências da civilização” que<br />

Freud apontava: ordem e limpeza comparecem<br />

aqui interligadas. Mais o que dizer da beleza?<br />

Indiretamente, há uma intenção de desenhar a<br />

cidade, na medida em que o Código Sanitário nesse<br />

momento parece querer ser também um Código de<br />

Obras, ao regulamentar dimensões e tamanhos de<br />

ruas, casas, hospitais, escolas, entre outros.<br />

São essas ponderações que nos permite concluir que<br />

o código sanitário do estado de São Paulo de 1894<br />

era, em sua essência, uma busca de atrelar São Paulo<br />

ao projeto da modernidade que se forjou a partir do<br />

Iluminismo. Era um projeto burguês e eurocêntrico,<br />

o qual buscava da resposta ao mundo egresso da<br />

Segunda Revolução Industrial. Logo, o Código não<br />

era moderno por trazer o novo, o diferente, mas<br />

por manifestar uma concepção de ordem, higiene<br />

(limpeza) e sensibilidade estética (beleza) típicas do<br />

mundo ocidental do fim do século XIX.<br />

No contexto brasileiro, essa modernidade se travestia<br />

ainda de uma radical oposição à ordem,<br />

limpeza e beleza atrelada ao período colonial.<br />

Achar um novo lugar para a recente República<br />

na divisão internacional do trabalho passava por<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

20


Theodoro Sampaio, o Código Sanitário do Estado de São Paulo de 1894 e as exigências da modernidade<br />

desvincular-se da imagem de um país escravocrata,<br />

colonial, “arcaico”. Essa concepção forma-se após<br />

a Proclamação da República, visto que antes a<br />

realidade do Brasil Império não era vista como algo<br />

a ser superado nem esquecido.<br />

A modernidade para o Brasil, e em particular<br />

destaque para São Paulo, era inseri-lo na dinâmica<br />

capitalista internacional como um país agroexportador.<br />

Isso passa também pela criação de<br />

uma nova imagem para o antigo Império, agora:<br />

europeu, branco, moderno, civilizado. Isto tudo<br />

o Código de 1894 faz. Ele dialoga com o que<br />

vinha sendo proposto para o mundo ocidental em<br />

termos de ordenação físico e social, em termos de<br />

salubridade e de estética.<br />

Queremos ressaltar aqui, que a Lei 233 é em<br />

grande parte fruto de uma mudança mental da<br />

compreensão do que era o país e, no caso de<br />

São Paulo, do que era uma cidade de inserção<br />

internacional; pois não se enganem: esse era<br />

o projeto político da sociedade paulista de então.<br />

Uma burguesia agrária ávida por lucros e<br />

reconhecimento. Era claro que tais objetivos só se<br />

confirmariam através de uma intervenção estatal<br />

que imprimisse ordem, limpeza e beleza aos corpos,<br />

à cidade e à sociedade como um todo.<br />

Inegavelmente ao longo da Primeira República<br />

muito foi feito no sentido de dotar as cidades<br />

de uma ordem, limpeza e beleza burguesa e, em<br />

certa medida, os intuitos foram alcançados, ainda<br />

que em extensão e profundidade aquém do que<br />

poderia ter sido feito. De qualquer forma, a partir<br />

da década de 1930, com a ascensão do urbanismo<br />

rodoviarista, difundiu-se a ideia de que a “questão<br />

sanitária” estaria resolvida. Entretanto, quando<br />

analisamos os dados e índices sanitários do último<br />

censo brasileiro, fica fácil provar o contrário.<br />

Nesse sentido, concordamos com José Eli da<br />

Veiga quando o mesmo afirma que “o Brasil é<br />

menos urbano do que se calcula”. O referido autor<br />

centra-se sobretudo na densidade demográfica<br />

e no número de habitantes de dado território.<br />

Propomos abordar nossa urbanidade a partir das<br />

“exigências da civilidade”. A solução da questão da<br />

salubridade, ainda está posta tanto em termos da<br />

higiene como de limpeza; o estado das coisas, na<br />

maior parte das cidades brasileiras, está aquém do<br />

que se espera. Aqui, os designíos da modernidade<br />

empreendidos pelo sanitarismo estão incompletos.<br />

Há de se observar estes dados não de forma<br />

absoluta, mas do ponto de vista qualitativo. Neste<br />

sentido, é pertinente perguntar qual a qualidade<br />

dos serviços de saneamento oferecidos? Eles suprem<br />

as tais “exigências da modernidade” como hoje<br />

se colocam? Podemos serenamente afirmar que<br />

o estado de salubridade de nossas cidades atesta<br />

um grau de urbanidade que se espera de um país<br />

civilizado? Temo que a resposta a tais perguntas<br />

sejam não. Como se não bastasse as outras razões,<br />

só por essas indagações o Código Sanitário de<br />

São Paulo de 1894, ainda hoje, 120 anos depois<br />

de promulgado, ainda temo que nos dizer; e a<br />

atuação dos Engenheiros do início da República,<br />

como a de Theodoro Sampaio, ainda tem o que<br />

nos ensinar, pois hoje as “exigências da civilidade”<br />

metamorfosearam-se, mas continuam na ordem<br />

do dia.<br />

Referências bibliográficas<br />

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Paulo: Cosac & Naify, 3003.<br />

BASCHET, Jérôme. A civilização feudal. Do ano mil à<br />

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COSTA, Luiz Augusto Maia, O Ideário urbano paulista na<br />

virada do século. O Engenheiro Theodoro Sampaio<br />

e as questões territoriais e urbanas modernas (1886<br />

– 1903). São Carlos: RIMA, 2003.<br />

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presença norte-americana no debate de formação<br />

do urbanismo paulista (1886 – 1919). Santo André:<br />

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de Sigmund Freud. Volume XXI. Rio de Janeiro:<br />

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da Peste Negra. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.<br />

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PIRENNE, Henri. As cidades da Idade média. Portugal:<br />

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V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

21


Theodoro Sampaio, o Código Sanitário do Estado de São Paulo de 1894 e as exigências da modernidade<br />

SEVECENKO, Nicolau. A Revolta da vacina: mentes insanas<br />

em corpos rebeldes. São Paulo: Cosac Naify, 2010.<br />

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Práticas de Poder. Rio de Janeiro: E-papers, 2012.<br />

SIMÕES JUNIOR, José Geraldo. O setor de obras públicas<br />

e as origens do urbanismo na cidade de São Paulo.<br />

São Paulo: EAESP, FVG, 1990.<br />

VEIGA, José Eli da. Cidades Imaginárias: o Brasil é menos<br />

urbano que se calcula. São Paulo: Editora Autores<br />

Associados, 2001.<br />

Recebido [Nov. 14, 2015]<br />

Aprovado [Mai. 19, 2016]<br />

VITRÚVIO. Da Arquitetura. Introd. de J. Katinsky e trad. de<br />

Marco A. Lagonegro. São Paulo: Hucitec/ Fundação<br />

para a Pesquisa Ambiental,1999.<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

22


artigos e ensaios<br />

A questão da água para o abastecimento<br />

na cidade de São Paulo: as contribuições<br />

da família Paula Souza<br />

Cristina de Campos<br />

Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista Júlio de<br />

Mesquita Filho, pós-doutorado pela FAU-USP, professora<br />

colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Política Científica<br />

e Tecnológica do Instituto de Geociências da Universidade Estadual<br />

de Campinas, R. João Pandiá Calógeras, 51, CEP 13083-870,<br />

Campinas, SP, (16) 3289-1562, crisleine@gmail.com<br />

Resumo<br />

As cidades brasileiras passam por profundas transformações em suas estruturas<br />

urbanas em fins do século XIX. Pretende-se aqui explanar sobre a participação<br />

de profissionais na formulação de propostas aos problemas postos, tomando<br />

como exemplo a atuação da família Paula Souza. Em momentos distintos, o<br />

engenheiro Antonio Francisco de Paula Souza e o médico Geraldo Horácio<br />

de Paula Souza atuaram pelo saneamento da cidade de São Paulo, mais<br />

precisamente, sobre questões relativas ao abastecimento público de água.<br />

A intenção do artigo é ressaltar a complexidade dos problemas urbanos<br />

enfrentados à época pela inexistência de uma rede de infraestrutura adequada.<br />

Palavras-chave: infraestrutura urbana, abastecimento, cidade de São Paulo.<br />

1 Sobre os novos preceitos<br />

que guiavam o reordenamento<br />

das cidades consultar<br />

Melosi (2002).<br />

E<br />

m fins do século XIX a sociedade brasileira passa<br />

por transformações significativas. O trabalho escravo<br />

era abolido, um novo modelo de governo<br />

começa a ser engendrado e o país se firmava no<br />

mercado internacional como o principal produtor<br />

de café. O desejo de transformar radicalmente a<br />

sociedade brasileira torna-se um adendo importante<br />

ao projeto político republicano, que assume o<br />

poder em 1889. É, sem dúvida, um desejo de<br />

transformação controverso, afinal, mudanças nas<br />

estruturas sociais para garantir direitos e promover<br />

a inserção das classes menos favorecidas não<br />

faz parte da pauta do governo. Em um governo<br />

voltado para atender aos interesses da classe de<br />

produtores, as transformações pensadas visam,<br />

sobretudo, atender justamente aos ensejos deste<br />

grupo social. Neste amplo programa de reformas,<br />

o melhoramento das principais cidades do país<br />

ocupam posição de destaque.<br />

Transformar as cidades, como bem salientou Cristina<br />

Leme (1991), atendia a necessidades de ordem<br />

econômica, estética e de saúde. As cidades brasileiras<br />

eram um lembrança viva do passado colonial, com<br />

suas ruas tortuosas e estreitas. Possuidoras de<br />

uma infraestrutura urbana rudimentar, as cidades<br />

coloniais eram condenadas por serem insalubres<br />

e concorrerem diretamente para dificultar o estabelecimento<br />

de um ambiente urbano adequado<br />

aos novos padrões exigidos à vida humana 1 . As ruas<br />

estreitas que dificultavam a circulação de pessoas<br />

e mercadorias, bem como dos novos meios de<br />

transportes - os bonds e trolleys urbanos - forçavam<br />

as autoridades públicas a realizarem adequações nas<br />

vias, partindo inclusive para demolições e outras<br />

medidas radicais a fim de liberar o espaço para o<br />

desenvolvimento das novas atividades. Reformar a<br />

antiga cidade e prepará-la para as novas funções: é<br />

este o pensamento recorrente entre muitos políticos<br />

brasileiros do período. As cidades do sudeste, em<br />

especial, da antiga província de São Paulo, terão suas<br />

estruturas físicas alteradas tendo como pressupostos<br />

norteadores estes mesmos princípios de higiene,<br />

estética e circulação (Leme, 1991).<br />

V14 N2<br />

revista de pesquisa em arquitetura e urbanismo instituto de arquitetura e urbanismo iau-usp<br />

23


A questão da água para o abastecimento na cidade de São Paulo: as contribuições da família Paula Souza<br />

É necessário reforçar que além destes princípios<br />

norteadores, a cidade passa a desempenhar papel<br />

fundamental dentro do sistema produtivo, o que<br />

Wilson Cano (1977) denomina enquanto complexo<br />

cafeeiro, parte de um sistema que tem como objetivo<br />

oferecer suporte as atividades agroexportadoras.<br />

É nas cidades que os negócios são firmados, onde<br />

ocorre a distribuição da força de trabalho, que<br />

abriga as casas comissárias e bancos. Logo, instalamse<br />

nas cidades aparatos do Estado para regular<br />

seus diversos serviços que cada vez crescem mais.<br />

Pequenas fábricas, grandes oficinas ferroviárias<br />

e outras atividades industriais também nascem<br />

nas cidades, sem mencionar ainda o expressivo<br />

contingente populacional que se estabelece nestes<br />

núcleos.<br />

Na especificidade do caso brasileiro, a iniciativa de<br />

reformulação das cidades geralmente cabiam ao<br />

poder público, sem dúvida uma tarefa complexa que<br />

envolvia altas somas e iam além das obras em si,<br />

sendo necessário organizar novas instituições para<br />

o gerenciamento das atividades. Era comum, ainda,<br />

que as reformas urbanas ou a organização de uma<br />

nova repartição contasse, em sua maioria, com o<br />

assessoramento de um especialista - arquiteto ou<br />

engenheiro - profissões que lidavam diretamente com<br />

questões atreladas ao urbano. No entanto, não eram<br />

somente estes profissionais que se debruçavam para<br />

entender e aplicar soluções aos complexos problemas<br />

que as cidades do fim do século XIX apresentavam.<br />

Uma vasta bibliografia indica a participação de<br />

vários profissionais no debate acerca dos problemas<br />

gerados pelas grandes cidades.<br />

Neste artigo, toma-se como exemplo a cidade de<br />

São Paulo, que vivenciou as transformações acima<br />

apontadas. Pretende-se aqui explanar sobre a<br />

participação de tais profissionais na formulação<br />

de propostas aos problemas postos pela cidade,<br />

tomando como exemplo a atuação de dois membros<br />

da família Paula Souza. Em momentos distintos,<br />

o engenheiro e o médico atuaram em prol do<br />

saneamento urbano da cidade de São Paulo,<br />

mais precisamente, sobre questões relativas ao<br />

abastecimento público de água.<br />

O engenheiro Antonio Francisco de Paula Souza<br />

(1843-1917) realizou diversos projetos de sistemas de<br />

abastecimento para algumas cidades do interior de<br />

São Paulo. Nestes projetos, percebe-se sua sintonia<br />

com as técnicas praticadas por outros países para a<br />

captação e distribuição de água. Quando ocupou a<br />

Secretaria dos Negócios da Agricultura, Comércio e<br />

Obras Públicas em 1898, o engenheiro enfrentou o<br />

problema da falta de água para abastecimento da<br />

cidade de São Paulo. Como medida emergencial,<br />

sugeriu o uso das águas já poluídas do rio Tietê<br />

para abastecimento, fazendo uso de um engenhoso<br />

sistema de tratamento até então pouco utilizado<br />

nas cidades brasileiras.<br />

O tema da qualidade da água consumida pela<br />

população da cidade de São Paulo foi, pode-<br />

-se afirmar, recorrente na carreira do sanitarista<br />

Geraldo Horácio de Paula Souza (1889-1951).<br />

Durante sua estadia junto ao Laboratório de Química<br />

supervisionado pelo professor Roberto Hottinger da<br />

Escola Politécnica, Geraldo Paula Souza realizou uma<br />

série de pesquisas que culminaram no projeto de um<br />

aparelho capaz de purificar a água. Em palestras,<br />

divulgou abertamente sua recomendação para o<br />

uso das águas do rio Tietê em tempos de estiagem,<br />

desde que fossem submetidas a um processo de<br />

purificação. Como trabalho final em sua graduação<br />

em medicina, apresentou tese sobre o uso das águas<br />

tratadas do rio Tietê. Tempos depois, como diretor<br />

do Serviço Sanitário de São Paulo, recomendou que<br />

as águas distribuídas para abastecimento público<br />

passassem por pelo tratamento com cloro.<br />

A intenção deste trabalho é contribuir ao entendimento<br />

de que os problemas urbanos foram<br />

pensados por vários profissionais, que formularam<br />

e executaram soluções para a cidade de São Paulo.<br />

Ao revisitar estes dois membros da família Paula<br />

Souza é possível observar como tais soluções foram<br />

implantas e, em uma plano mais geral, sinalizar o<br />

estabelecimento das redes de infraestrutura urbana<br />

nesta capital.<br />

A reestruturação das cidades: redes<br />

de infraestrutura e instituições<br />

Ao passo em que os produtores paulistas conseguiam<br />

um bom desempenho junto ao mercado internacional,<br />

melhorias substanciais ocorriam na província<br />

de São Paulo. No âmbito das infraestruturas, as<br />

antigas estradas são melhoradas e novas são abertas.<br />

Contudo, o próprio governo provincial se recente da<br />

falta de pessoal técnico qualificado para a abertura de<br />

novas veredas ou mesmo para o conserto das antigas<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

24


A questão da água para o abastecimento na cidade de São Paulo: as contribuições da família Paula Souza<br />

vias, prejudicadas pelo intenso tráfego de tropas<br />

e pelas chuvas que causavam enormes estragos<br />

(Campos, 2016). Assim, no plano institucional, o<br />

governo provincial organiza o Gabinete Topográfico<br />

em 1834. O gabinete nasce como uma resposta<br />

aos reclamos dos produtores sobre a precária<br />

infraestrutura viária da província, mas segundo<br />

Rogério Beier (2013) pode-se concebê-la como<br />

algo maior, um gabinete com as atribuições de<br />

um repartição de Obras Públicas, para fiscalizar,<br />

organizar e formar pessoal técnico para postos<br />

ligados ao setor público de obras. Instituição de tal<br />

porte não existia, sendo corriqueiro o uso de força<br />

de trabalho de particulares para a realização das<br />

obras mais emergenciais. É uma primeira tentativa<br />

de organização de uma instituição de tal porte,<br />

mesmo que tenha sido extinta em 1849.<br />

Novas iniciativas são registradas nas décadas seguintes.<br />

Em 1868, a Inspetoria de Obras Públicas é<br />

organizada pelo governo provincial, com atribuições<br />

semelhantes as suas congêneres anteriores (Campos,<br />

2015). O anseio era de atingir vários campos das<br />

obras públicas, mas os trabalhos iniciais estavam<br />

voltados para as questões da viação pública, uma<br />

reivindicação das classes de produtores (Campos,<br />

2016).<br />

Uma década depois, novas repartições reforçam<br />

o governo provincial e veem no bojo de outras<br />

reivindicações: a Inspetoria de Higiene e a Comissão<br />

Geográfica e Geológica. A Inspetoria de Higiene estava<br />

voltada para as questões relativas à saúde pública<br />

como o controle de doenças, vacinações e inspeções<br />

diversas. Seu foco de atuação era toda a província<br />

de São Paulo, apesar dos baixos recursos de pessoal<br />

e de verbas, seu funcionamento ficou mais restrito<br />

à capital (Ribeiro, 1993). A Comissão Geográfica e<br />

Geológica partiu da Assembleia Legislativa e tinha<br />

como principal atividade o estudo e mapeamento<br />

do território paulista, cujos estudos deveriam guiar<br />

os rumos da agricultura e outros ramos produtivos<br />

da província paulista (Figueirôa, 1999; Costa, 2003).<br />

Com a instauração da República em 1889, estas<br />

instituições são ampliadas e novas surgem para<br />

organizar outras questões importantes para o<br />

governo estadual. O Serviço Sanitário amplia o<br />

campo da saúde pública, agora sob o respaldo<br />

legal de um Código Sanitário para guiar suas ações<br />

em prol da salubridade. A Inspetoria de Obras<br />

Públicas é reorganizada e passa a ser denominada<br />

Superintendência de Obras Públicas, estando sob<br />

sua responsabilidade os trabalhos da Comissão<br />

Geográfica e Geológica, além de outras atribuições,<br />

uma vez que seus trabalhos foram ampliados a<br />

outros campos.<br />

No campo das ações, as transformações pelas<br />

quais passaram a província nas últimas décadas<br />

do século XIX são impressionantes. O problema<br />

dos transportes - sobretudo o dos produtos para<br />

exportação – sofrem impactos substanciais com a<br />

inauguração da primeira ferrovia ligando o porto<br />

exportador ao platô paulista. A chegada da São<br />

Paulo Railway em 1867 fez eclodir outras iniciativas<br />

ferroviárias, que rasgaram as zonas produtoras com<br />

os caminhos de ferro, fazendo com que café e outros<br />

produtos escoassem rapidamente pelo território.<br />

Com a chegada das ferrovias, várias cidades paulistas<br />

observam suas dinâmicas urbanas passarem por<br />

transformações profundas. O apito do trem as<br />

conectaram a outros centros produtivos, em especial<br />

com a capital, agilizou a circulação de pessoas,<br />

bens e informações. A instalação das companhias<br />

ferroviárias, com suas oficinas, escritórios técnicos<br />

e o expressivo quadro de funcionários também<br />

foram significativas pelas múltiplas transformações<br />

atreladas ao universo ferroviário.<br />

Dentro deste contexto, não são somente as infraestruturas<br />

territoriais que são requalificadas,<br />

as urbanas também urgem por alterações. A<br />

capital São Paulo e outras cidades do interior<br />

realizam melhoramentos em seus sistemas viários,<br />

encomendam projetos de novas redes de<br />

abastecimento e esgotamento sanitário, além de<br />

adotarem um sistema de transportes urbanos, os<br />

bonds.<br />

Estes projetos eram iniciativas do poder público,<br />

que através de convocações públicas, chamavam<br />

os empresários interessados em organizar uma<br />

empresa para levar a cabo as obras e colocar o<br />

serviço em funcionamento. A melhor proposta,<br />

em termos orçamentários e de qualidade projetual,<br />

eram as selecionadas para os serviços (Campos,<br />

2015). Ao passo em que as repartições públicas<br />

vão se estruturando, muitas dessas obras passam a<br />

serem executadas pelo próprio poder público, seja<br />

estadual ou municipal.<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

25


A questão da água para o abastecimento na cidade de São Paulo: as contribuições da família Paula Souza<br />

Neste artigo, o interesse recai nas obras destinadas<br />

ao saneamento do meio, a criação de um aparato<br />

de infraestrutura urbana para as redes de águas e<br />

esgotos. Como a análise enfoca etapas distintas em<br />

que dois personagens atuaram no estabelecimento<br />

destas redes, é preciso entender cada um destes<br />

momentos. A construção da infraestrutura urbana<br />

durante o período de atuação profissional do engenheiro<br />

Paula Souza tem as suas ações guiadas por<br />

um referencial teórico pautados nas primeiras teorias<br />

que buscam entender como se dá a propagação das<br />

doenças no meio urbano. Fortemente centrada na<br />

teoria dos miasmas, as intervenções que ocorrem no<br />

espaço realizam alterações substanciais da paisagem,<br />

drenam as águas estagnadas e fazem circular as<br />

águas servidas para locais distantes das aglomerações<br />

urbanas. Busca-se também por fontes de águas<br />

puras, que contidas em reservatórios devem ser<br />

distribuídas em encanamentos para as residências<br />

(Fee, 1987; Melosi, 2002, Andrade, 1991). Por<br />

produzirem estas infraestruturas que demandam um<br />

conhecimento técnico especializado para construção<br />

de tais estruturas, esta é uma fase guiada quase que<br />

majoritariamente pelo engenheiro civil.<br />

No correr do século XX, com a comprovação da<br />

microbiologia, mudanças substanciais promovem<br />

o desenvolvimento de novos estudos sobre a transmissão<br />

das doenças. As intervenções no meio com a<br />

construção de infraestruturas de saneamento ainda<br />

são recomendadas, somando-se a isto um papel<br />

mais decisivo que os médicos passam a exercer no<br />

controle das doenças. Para que tal controle ocorra, os<br />

estudos em laboratórios passam a ser fundamentais<br />

para o entendimento das doenças, ao passo em que<br />

o campo disciplinar da saúde pública ganha novos<br />

contornos, chancelando aos médicos a qualidade de<br />

autoridade científica que o habilita a pensar e propor<br />

medidas para o ambiente urbano (Fee, 1987).<br />

Estas mudanças também se fazem sentir no Brasil<br />

e não somente com os emblemáticos esforços de<br />

saneamento da capital Rio de Janeiro perpetrados<br />

por Pereira Passos e Oswaldo Cruz. Em São Paulo<br />

as nova orientação se fez sentir com a organização<br />

do Serviço Sanitário em 1892, repartição voltada<br />

para a saúde pública que tinha sua atuação guiada<br />

por um conjunto de instituições de pesquisa e<br />

laboratórios (Ribeiro, 1993). No decorrer do século<br />

XX e com a consolidação da saúde pública enquanto<br />

campo científico e disciplina acadêmica, o Serviço<br />

Sanitário terá como uma de suas linhas de atuação<br />

o desenvolvimento da administração sanitária,<br />

composta por um rede de Centros de Saúde cuja<br />

função é a de controle não só dos corpos mas<br />

também do espaço, seja ele urbano ou rural. (Castro<br />

Santos e Faria, 2002; Campos, 2002)<br />

No âmbito do governo estadual paulista, duas<br />

secretarias dividiam as tarefas ligadas a higiene<br />

urbana: a Secretaria da Agricultura e a Secretaria do<br />

Interior. A da Agricultura, estuda em profundidade<br />

por Bernardini (2007), tinha sob sua responsabilidade<br />

o setor das Obras Públicas, sendo o responsável<br />

por estradas, edificações públicas, fiscalização de<br />

empresas concessionárias de serviços públicos e que<br />

construiu as redes de saneamento na capital e em<br />

algumas outras cidades do interior. A realização das<br />

obras de infraestrutura de saneamento (redes de<br />

águas e esgotos) pelo interior do estado é um estudo<br />

ainda a ser realizado, mas contou com a participação<br />

da Secretaria da Agricultura, de empresas privadas e<br />

como uma iniciativa das próprias Câmaras Municipais<br />

que bancavam estas empreitadas.<br />

A Secretaria do Interior, a qual estava subordinado<br />

o Serviço Sanitário e que tinha como engenheiro<br />

consultor o renomado sanitarista Theodoro Sampaio,<br />

administrava toda um número considerável de<br />

instituições ligadas ao campo da saúde pública<br />

e das políticas propriamente ditas. O controle da<br />

situação sanitária era por esta secretaria realizado,<br />

sendo que poucas prefeituras custeavam repartições<br />

próprias de saúde pública.<br />

Nesta breve exposição buscou-se pontuar estes<br />

momentos vividos pela higiene urbana em São<br />

Paulo: um primeiro, nos tempos imperiais, em que<br />

se buscava criar instituições e um segundo, na<br />

república, que surge com um aparato mais decisivo<br />

e uma presença mais marcante do Estado. Estes<br />

dois momentos podem ser melhor delineados se<br />

observado a partir da atuação do engenheiro Paula<br />

Souza (para o final de império e começo da República)<br />

e do médico Paula Souza (primeira República).<br />

Antonio Francisco de Paula Souza,<br />

o engenheiro civil: higiene e<br />

infraestrutura urbana<br />

Como surto de desenvolvimento econômico é<br />

comum encontrarmos nos relatos da época que<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

26


A questão da água para o abastecimento na cidade de São Paulo: as contribuições da família Paula Souza<br />

2 Esta é uma referência as<br />

cartas trocadas entre o Conselheiro<br />

Antonio Francisco de<br />

Paula Souza (1819-1866), ministro<br />

da Agricultura com seu<br />

filho, o jovem estudante de<br />

engenharia Antonio Francisco<br />

de Paula Souza. As fontes<br />

epistolares foram trabalhadas<br />

na tese de doutoramento<br />

que depois foi publicada no<br />

formato de livro em Campos<br />

(2010).<br />

3 A respeito dos projetos de<br />

abastecimento de Antonio<br />

F. de Paula Souza ver artigo<br />

publicado nesta revista em<br />

2008.<br />

o Brasil das décadas de 1850 e 1860 ainda tudo<br />

estava para ser feito 2 : estradas, ferrovias, redes<br />

de abastecimento, edifícios públicos... O perfil<br />

profissional vislumbrado era o que possuísse as<br />

atribuições de um engenheiro. Engenheiro era um<br />

profissional não tão comum no país, visto existir<br />

somente a Escola Central que formava no Brasil.<br />

Quando da instalação das primeiras companhias<br />

ferroviárias em São Paulo, as empresas traziam<br />

corpo profissional de seu país de origem para<br />

projeto e construção da linha, bem como para os<br />

trabalhos em outras instâncias da empresa como<br />

controle do tráfego e direção das oficinas de reparos<br />

(Campos, 2012). Atuando profissionalmente no<br />

Brasil, assumiam também outros trabalhos, como<br />

ilustra a passagem do engenheiro da The São Paulo<br />

Railway Company James Brunless em São Paulo:<br />

realizou estudos para o novo abastecimento de águas<br />

da cidade de São Paulo a partir dos mananciais da<br />

Serra da Cantareira e também realizou estudos para<br />

uma ferrovia entre Jundiaí e Campinas.<br />

É dentro desse campo fértil de atuação profissional<br />

que Antonio Francisco de Paula Souza (1843-1917)<br />

direciona seus estudos para a engenharia. Tendo<br />

realizado seus estudos secundários na Alemanha,<br />

prestou os exames de admissão da Eidgenössische<br />

Technische Hochschule de Zurique, transferindo-se<br />

depois para a Escola Politécnica do Grã-Ducado de<br />

Baden, na cidade de Carlsruhe, na Alemanha. Após<br />

sua intensa vida estudantil, realiza trabalhos de<br />

engenharia na Europa e Estados Unidos, ocupando<br />

postos em empresas ferroviárias neste país. Em 1871<br />

retorna ao Brasil e se estabelece no interior paulista,<br />

com trabalhos para empresas ferroviárias como a<br />

Ituana e a Paulista (Campos, 2010).<br />

O envolvimento do engenheiro com as infraestruturas<br />

permearam sua vida profissional. Foi<br />

durante a década de 1880 que tal envolvimento se<br />

intensificou. Nesta época, o engenheiro se instalou<br />

na cidade de Campinas com um escritório de<br />

engenharia que além dos serviços de engenheiro<br />

civil também fazia as vezes de representante<br />

comercial de material ferroviário dos Ateliers da<br />

Decauville Ainé. A escolha de Campinas não foi<br />

ao acaso: a cidade era o centro mais dinâmico da<br />

província de São Paulo, local onde se concentravam<br />

serviços, mão de obra e sobretudo, industriais,<br />

empresários e grandes proprietários rurais, estes<br />

potenciais clientes para o engenheiro.<br />

Enquanto engenheiro civil autônomo, Paula Souza<br />

envolveu-se em vários trabalhos para a elaboração<br />

de redes de abastecimento de água 3 , dos quais se<br />

destacam para as cidades de Amparo (1879), Rio<br />

Claro (1881) e Itu (1885), sendo este o único que<br />

o engenheiro chegou a executar. As redes de água<br />

nas cidades do interior são consequência direta do<br />

bom resultado da lavoura de exportação. É durante<br />

este final de século XIX que as cidades do interior se<br />

expandem, abrigam pequenas fábricas e algumas<br />

ainda a sede de empresas ferroviárias, o que dinamiza<br />

a economia urbana. Assim, a necessidade de expandir<br />

os serviços urbanos condizentes com os pressupostos<br />

técnicos e científicos da época se faz um imperativo<br />

para muitas cidades do interior. A demanda por<br />

água potável era uma das mais requisitadas pela<br />

sociedade, o mesmo não ocorrendo, pelo menos<br />

em um primeiro momento para os esgotos. Isto se<br />

justifica pelas correntes científicas da época que<br />

atribuíam as águas poluídas a veiculação de doenças,<br />

posteriormente foi também levantada a importância<br />

das redes de esgotos, para a remoção das águas<br />

servidas que eram depositadas nos fundos nos<br />

quintais, ocasionando outra ordem de problemas.<br />

As águas deveriam vir de mananciais distantes,<br />

indicavam os manuais de engenharia da época,<br />

para serem livres de qualquer tipo de contaminação.<br />

Imbuído de tal premissa e ciente da importância<br />

deste serviço para Campinas, o engenheiro Paula<br />

Souza organizou com outros empresários da cidade<br />

a Associação das Obras Hidráulicas e Melhoramentos<br />

da Cidade de Campinas. Era comum à época a<br />

organização de empresas para a realização de serviços<br />

públicos, pois a municipalidade e nem o governo<br />

provincial dispunham de uma estrutura administrativa<br />

para a organização desta infraestrutura. A iniciativa<br />

do engenheiro, no entanto, não se vingou.<br />

A ligação de Paula Souza com o movimento republicano<br />

paulista e seus principais líderes levaram o<br />

engenheiro a ocupar cargos de decisão quando estes<br />

assumiram o governo do pais em 1889. No governo<br />

estadual, foi convocado logo de inicio para organizar<br />

o setor de obras públicas, que agora passaria a ser<br />

denominado Superintendência de Obras Públicas (SOP).<br />

A nova repartição agregava setores antes dispersos,<br />

reunidos em quatro seções: 1ª e 2ª responsáveis pela<br />

direção e fiscalização das obras públicas do governo;<br />

3ª fiscalização e inspeção das empresas prestadoras de<br />

serviços públicos, 4ª demarcação, divisão e aplicação<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

27


A questão da água para o abastecimento na cidade de São Paulo: as contribuições da família Paula Souza<br />

de terras públicas, inspeção de colônias, fiscalização<br />

e levantamento da Carta Geográfica e Geológica do<br />

estado (Campos, 2010: p.197).<br />

Como diretor da SOP, o engenheiro teve participação<br />

decisiva em outras questões do governo ligadas as<br />

infraestruturas urbanas. Com Ramos de Azevedo,<br />

atuou decisivamente para que a Companhia Cantareira<br />

e Esgotos fosse estatizada e a partir dela fosse<br />

constituída a Repartição Técnica de Águas e Esgotos<br />

(RTAE). Dentro dos moldes propostos, a construção<br />

de ambas as redes - águas e esgotos - seriam de<br />

responsabilidade do poder público, cabendo ao<br />

mesmo administrar os serviços.<br />

Ainda nesta superintendência foi comissionado com<br />

o engenheiro Theodoro Sampaio para elaborar uma<br />

proposta para a várzea do Carmo, após o governador<br />

do estado Prudente de Moraes solicitar a organização<br />

da Comissão de Saneamento das Várzeas da Capital.<br />

Moraes pretendia dar solução definitiva as<br />

enchentes e outros problemas relacionados às<br />

várzeas do Carmo, Tamanduateí e Tietê, depois dos<br />

inúmeros debates envolvendo a imprensa paulistana,<br />

a Câmara Municipal de São Paulo e empresários<br />

interessados em sanear e explorar comercialmente<br />

o tal logradouro público (Campos, 2015).<br />

Com a drenagem de áreas alagadiças, obras de<br />

contenção de enchentes, áreas destinadas para<br />

parques e boulevards, além de um centro cívico<br />

foram alguns dos pontos que o relatório final dos<br />

engenheiros indicou para realização.<br />

Outra passagem que merece menção sobre a carreira<br />

de Paula Souza é sobre sua breve passagem na<br />

Secretaria dos Negócios da Agricultura, em 1898.<br />

Neste ano, a cidade passava por um período de<br />

estiagem prolongado, o que ocasionou falta de água<br />

para o abastecimento. O engenheiro optou pelo uso<br />

das águas poluídas do rio Tietê para abastecimento<br />

da cidade, para isso ordenou a construção de galerias<br />

filtrantes a fim de realizar tratamento prévio das<br />

águas antes de sua distribuição para a população.<br />

Estas são as contribuições mais relevantes da<br />

carreira de Antonio Francisco de Paula Souza<br />

para o desenvolvimento das infraestruturas e da<br />

higiene urbanas. No próximo tópico, será trazida a<br />

contribuição de seu filho - médico sanitarista - para<br />

a estas mesmas áreas.<br />

Geraldo Horácio de Paula Souza, o<br />

médico sanitarista: soluções para as<br />

águas do abastecimento público<br />

A participação e as propostas formuladas por<br />

Geraldo Horácio de Paula Souza (1889-1951) para<br />

a higiene urbana são indicativo de como o campo<br />

disciplinar da Saúde Pública era uma área em<br />

expansão e ganhava cada vez mais a contribuição<br />

dos médicos. A formação de Geraldo Horácio em<br />

medicina sempre teve forte inclinação para as análises<br />

clínicas. Formado em Farmácia e com passagem pelo<br />

Laboratório de Química da Escola Politécnica de São<br />

Paulo, depois ingressando na Faculdade de Medicina<br />

do Rio de Janeiro. Nesta faculdade, defendeu tese<br />

sobre o uso das águas do rio Tietê, demonstrando<br />

interesse sobre o tema das águas consumidas na<br />

cidade de São Paulo.<br />

Os estudos sobre a água prosseguiram sob o<br />

abrigo do Laboratório de Química da Politécnica<br />

de São Paulo, cujo responsável era o professor<br />

Roberto Hottinger. Junto com Hottinger, Geraldo<br />

Horácio desenvolveu vários estudos sobre as águas<br />

consumidas na capital paulista. A péssima qualidade<br />

das águas distribuídas pela cidade fizeram com que<br />

desenvolvessem, em parceria com outro professor<br />

da Politécnica Roberto Mange, um dispositivo<br />

purificador de água a base de ozônio, o Perfector.<br />

A ozonização e uso de luzes ultravioleta seriam,<br />

segundo a proposta, instalados como última etapa<br />

do processo de purificação da água destinada ao<br />

abastecimento público. O dispositivo, no entanto,<br />

não chegou a ser vendido para o governo. O<br />

dispositivo foi apresentado em várias ocasiões,<br />

principalmente nas sessões da Sociedade de Medicina<br />

e Cirurgia de São Paulo (Campos e Gitahy, 2011).<br />

Por volta de 1917 ingressou na Faculdade de<br />

Medicina de São Paulo como assistente da nova<br />

Cadeira de Higiene, criada a partir do convênio<br />

firmado com a Fundação Rockefeller (Ribeiro, 1993;<br />

Marinho, 2003). Concebida dentro da nova lógica<br />

que regia a disciplina da Saúde Pública (sobretudo<br />

sua vertente estadunidense), a Cadeira de Higiene<br />

estava de acordo com os critérios estabelecidos para<br />

esta disciplina, cuja primeira escola funcionava na<br />

Universidade Johns Hopkins, em Baltimore. Existiam<br />

outras escolas e outras vertentes, mas em São Paulo,<br />

muito em virtude dos acordos estabelecidos com<br />

a Fundação Rockefeller. Segundo Fee (1987), o<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

28


A questão da água para o abastecimento na cidade de São Paulo: as contribuições da família Paula Souza<br />

desejo era tornar a saúde pública um campo de<br />

atuação profissional, daí a importância de se formar<br />

profissionais qualificados para exercer as atividades<br />

ligadas a este ramo, tirando-a do controle político.<br />

Este profissional combinava conhecimento da bacteriologia<br />

e da engenharia sanitária. Tal formação<br />

permitia ampla atuação do profissional, sendo seu<br />

foco a saúde da população, estudos epidemiológicos<br />

das doenças, saneamento e o rigoroso controle das<br />

águas distribuídas, dos sistemas de recolhimento de<br />

resíduos sólidos e esgotos. Ou seja, tudo o que se<br />

relacionava diretamente à salubridade do espaço,<br />

seja o urbano quanto o rural.<br />

Os trabalhos do jovem médico seguiram esta mesma<br />

linha de atuação, cabendo ao mesmo assumir a<br />

Cadeira de Higiene, transformada em Instituto de<br />

Higiene em 1918, em 1921 após os técnicos norteamericanos<br />

concluírem seus contratos. Assim como<br />

nos Estados Unidos, a fundação do Instituto de<br />

Higiene visava formar profissionais para atuação na<br />

área de saúde pública e para desenvolver o campo<br />

de pesquisas dessa área no Brasil. O que corrobora<br />

tal afirmação é que Geraldo Horácio irá assumir<br />

a direção do Serviço Sanitário paulista em 1922,<br />

realizando uma série de medidas voltadas para a<br />

administração sanitária e as políticas públicas no<br />

setor. Seu papel enquanto diretor o permitia opinar<br />

diretamente sobre temas ligados à saúde pública:<br />

saneamento, higiene urbana e rural, sistemas de<br />

abastecimento, redes de assistência à saúde,etc.<br />

Durante a estiagem de 1925, Geraldo Horácio foi<br />

um dos que defenderam o uso das águas do rio<br />

Tietê para abastecimento da parte baixa da cidade.<br />

Em tal ocasião, tomou como referência os trabalhos<br />

realizados por seu pai em 1898, quando mandou<br />

construir galerias filtrantes e distribuiu as águas<br />

do Tietê (Paula Souza, 1936). Geraldo Horácio<br />

tinha consciência que as águas eram impróprias ao<br />

consumo, razão pela qual indicava que deveriam<br />

passar por um rigoroso processo de purificação, com<br />

o uso de um elemento químico, o cloro.<br />

Considerações finais<br />

Neste artigo procurou-se analisar a província/estado<br />

de São Paulo entre os séculos XIX e XX,<br />

com os esforços para a construção da rede de<br />

infraestrutura urbana e os profissionais envolvidos<br />

em sua construção. O enfoque em dois profissionais<br />

- engenheiro e médico - em momentos distintos e<br />

membros de uma mesma família, foi relevante ao<br />

mostrar os métodos escolhidos, as novas tecnologias<br />

para o problema da falta de água na cidade de<br />

São Paulo.<br />

Quando a análise transcorre entre os dois profissionais,<br />

percebe-se a evolução das técnicas empregadas<br />

e como o desenvolvimento a ciência impactaram a<br />

construção das redes de infraestrutura. Ressalta-se<br />

ainda o papel que a produção de conhecimento<br />

emanada de campos como a da Engenharia e da<br />

Saúde Pública cujos desdobramentos foram sentidos<br />

nas infraestruturas urbanas. O conhecimento sobre<br />

a transmissão das doenças e de sua epidemiologia<br />

geraram novas tecnologias, consequentemente<br />

geraram intervenções como as galerias filtrantes, o<br />

dispositivo Perfector e a aplicação de cloro.<br />

A intenção do artigo, além da contribuição destes<br />

dois profissionais que atuaram em campos distintos<br />

mas com um problema em comum, é a de salientar a<br />

complexidade dos problemas urbanos enfrentados à<br />

época pela inexistência de uma rede de infraestrutura<br />

adequada. Sem embargo, ainda hoje um desafio<br />

que precisa ser enfrentado.<br />

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V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

29


A questão da água para o abastecimento na cidade de São Paulo: as contribuições da família Paula Souza<br />

Recebido [Fev. 24, 2016]<br />

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V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

30


artigos e ensaios<br />

Produção de cidade como projeto coletivo:<br />

a ação habitacional do Instituto dos<br />

Industriários (1937-1960)<br />

Nilce Cristina Aravecchia Botas<br />

Arquiteta e Urbanista, doutora pela Universidade de São Paulo,<br />

professora do Departamento de História da Arquitetura e Estética<br />

do Projeto, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade<br />

de São Paulo, Rua do Lago, 876, Butantã, São Paulo, SP, CEP<br />

03178-200, nilce_aravecchia@hotmail.com<br />

Resumo<br />

Na perspectiva de debater a relação entre autoria e trabalho coletivo, este<br />

artigo traz questões sobre a ação de engenheiros e de arquitetos no âmbito<br />

das transformações do Estado a partir de 1930 no Brasil. A análise específica<br />

da conformação da Divisão de Engenharia do Instituto de Aposentadoria e<br />

Pensões dos Industriários (IAPI) busca divisar as principais ideias e as ações<br />

da produção habitacional das décadas de 1940 e 1950, para entender como<br />

os debates específicos do campo disciplinar da arquitetura e do urbanismo<br />

estiveram vinculados às dinâmicas de integração do país no sistema capitalista.<br />

Palavras-chave: habitação social, institutos de previdência, arquitetura, cidade.<br />

A<br />

rquitetura, habitação e previdência<br />

social: o papel do IAPI<br />

A partir de 1930, no contexto da Revolução Getulista,<br />

inicia-se a ação pública de previdência social no país,<br />

que se organizou a partir de diversas categorias<br />

profissionais. Até final da década estavam criados<br />

os chamados Institutos de Aposentadoria e Pensões,<br />

com destaque para as categorias dos Marítimos,<br />

dos Comerciários, dos Bancários e finalmente o<br />

foco deste trabalho, o Instituto de Aposentadoria e<br />

Pensões dos Industriários (IAPI). A partir dos fundos<br />

previdenciários desses institutos o poder público teve<br />

pela primeira vez a iniciativa de produzir habitação<br />

de interesse social no país.<br />

Distinto dos outros institutos que foram resultado<br />

de decisões mais centralizadas, o IAPI foi fruto de<br />

negociações entre o governo, representantes dos<br />

empregadores e representantes dos trabalhadores<br />

de indústrias, que compuseram uma comissão para<br />

estudar o que seria o maior dos órgãos de previdência<br />

social no Brasil. Acreditava-se que, por sua dimensão<br />

(atenderia cerca de um milhão de associados), era<br />

fundamental que seu organograma administrativo<br />

fosse fundamentado em critérios técnicos, visando<br />

eficiência no cumprimento de suas atribuições. O<br />

primeiro resultado prático desse processo foi a<br />

novidade inaugurada pelo IAPI de recrutar seu corpo<br />

técnico por meio de concurso público, realizado<br />

em 1937, e válido para todo o território nacional<br />

(HOCHMAN, 1990, p.28-31).<br />

Do ponto de vista da produção habitacional, o<br />

encontro entre distintas visões sobre habitação e<br />

cidade no interior do IAPI deu origem a projetos e<br />

obras de qualidade, apontando novos paradigmas<br />

de soluções de moradia econômica, consoantes<br />

com as discussões sobre arquitetura e cidade que<br />

permearam o meio técnico no segundo quartel do<br />

século XX. Em muitas situações os dirigentes do<br />

Instituto envolveram-se nas discussões teóricas,<br />

desencadeando a contratação de engenheiros e de<br />

arquitetos, que compartilhavam ideias semelhantes.<br />

V14 N2<br />

revista de pesquisa em arquitetura e urbanismo instituto de arquitetura e urbanismo iau-usp<br />

31


Produção de cidade como projeto coletivo: a ação habitacional do Instituto dos Industriários (1937-1960)<br />

Aspectos de qualidade construtiva dos empreendimentos,<br />

e da noção de habitação como serviço<br />

público que incluía equipamentos de uso coletivo<br />

e áreas de lazer, e de um padrão mínimo para<br />

a organização da planta das residências, eram<br />

constantes nos debates sobre habitação no período.<br />

O rebatimento dessas questões na ação habitacional<br />

do IAPI de certo foi influência da presença dos<br />

técnicos ligados às discussões impulsionadas pelo<br />

movimento moderno em arquitetura, em especial do<br />

arquiteto Carlos Frederico Ferreira, um dos primeiros<br />

profissionais chamados a trabalhar no Instituto.<br />

A constituição de uma burocracia estatal coincidiu<br />

com o nascimento da ideologia e da prática do<br />

planejamento como instrumentos de política econômica,<br />

de orientação nacional desenvolvimentista<br />

(IANNI, 2009, p. 51). Os tecnocratas formados nas<br />

entranhas do IAPI, e até mesmo anteriormente<br />

por meio das decisões políticas da criação do<br />

próprio Instituto, tiveram autonomia suficiente<br />

para direcionar os investimentos de seus recursos.<br />

Assim, foi possível avançar nas pesquisas tecnológicas<br />

voltadas à construção civil, e realizar projetos que<br />

incorporassem as discussões urbanísticas então<br />

em voga.<br />

Assim, a Divisão de Engenharia – uma repartição do<br />

IAPI – tornou-se pouco a pouco espaço privilegiado<br />

para a convergência de ideias, pois representava<br />

oportunidade profissional para muitos jovens engenheiros<br />

e arquitetos. Reunia em seu quadro<br />

técnicos que defendiam desde o viés construtivo<br />

e identitário dos arquitetos formados na Escola<br />

Nacional de Belas Artes, até a visão mais pragmática<br />

dos engenheiros formados em sua maioria pelas<br />

politécnicas do Rio de Janeiro e de São Paulo.<br />

Destarte, a produção habitacional do IAPI não poderia<br />

ser vinculada imediatamente à arquitetura dos<br />

conjuntos habitacionais promovidos nos Congressos<br />

Internacionais de Arquitetura Moderna, os CIAMs,<br />

como uma visão mais esquemática a partir do campo<br />

disciplinar da arquitetura poderia anunciar. As<br />

conexões com os debates internacionais mostraramse<br />

muito mais complexas, como um resultado do<br />

trânsito de ideias entre continentes, e não como<br />

uma marcha de mão única, de influência da Europa<br />

para o Brasil. Foi necessário portanto considerar:<br />

as especificidades do processo de industrialização<br />

brasileiro; a formação dos profissionais envolvidos; o<br />

eco das teorias cientificistas em território brasileiro;<br />

os referenciais culturais mais abrangentes; os processos<br />

econômicos e políticos que incluíam acertos<br />

diplomáticos do Brasil com a Europa e os EUA.<br />

Diretriz política, reorganização administrativa e a<br />

consolidação de forças culturais transformadoras,<br />

são alguns dos ingredientes que caracterizam a<br />

convergência ideológica que se forjou no Brasil dos<br />

anos 30, da qual a Divisão de Engenharia do IAPI<br />

pode ser tomada como exemplo das experiências das<br />

décadas de 1940 e 1950. Sua produção arquitetônica<br />

e urbanística fez parte de um celeiro de ações que<br />

tornariam possível a construção de Brasília.<br />

Técnica e política na formação da<br />

Divisão de Engenharia do IAPI<br />

O IAPI foi fundado em 1937 e no início de suas<br />

atividades de construção o grupo de profissionais era<br />

reduzido. Assim, ao mesmo tempo em que alguns<br />

projetos eram totalmente elaborados na Divisão de<br />

Engenharia do Instituto, outros eram encomendados<br />

a profissionais externos. Os Irmãos Roberto (Edifício<br />

Valparaíso de 1937 e um projeto não realizado para<br />

o Conjunto Residencial da Penha de 1940, ambos<br />

no Rio de Janeiro, e o Edifício Anchieta de 1941 em<br />

São Paulo), e os arquitetos Paulo Antunes Ribeiro<br />

(Conjunto Residencial da Mooca, 1946 em São Paulo)<br />

e Kneese de Mello (Edifício Japurá de 1945 em São<br />

Paulo) foram alguns dos arquitetos contratados. Tais<br />

procedimentos estavam relacionados aos interesses<br />

do Instituto de participar das transformações da<br />

arquitetura por meio de suas atividades de inversão<br />

imobiliária:<br />

As edificações projetadas devem atender às posturas<br />

municipais em vigor e traduzir, tanto quanto possível,<br />

empreendimentos de destaque no meio local da<br />

construção civil. (PEDRO, 1950:289)<br />

Os “empreendimentos de destaque” deveriam<br />

ser projetados por profissionais reconhecidos. Tais<br />

construções tratavam-se principalmente de edifícios<br />

para renda em locais nobres das capitais, mas no<br />

início das atividades do Instituto, também diziam<br />

respeito aos conjuntos habitacionais.<br />

As conexões entre o IAPI e os arquitetos engajados<br />

no movimento pela renovação da arquitetura nas<br />

décadas de 1930 e 1940 apontam um momento em<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

32


Produção de cidade como projeto coletivo: a ação habitacional do Instituto dos Industriários (1937-1960)<br />

que houve uma convergência entre a recolocação<br />

do papel da cultura por parte dos intelectuais e dos<br />

técnicos, e o projeto político que se consolidou na<br />

década de 1930.<br />

Nesse mesmo momento, a equipe de técnicos<br />

da Divisão de Engenharia do Instituto foi sendo<br />

formada para a realização de outros projetos, como<br />

foi o caso do emblemático Conjunto do Realengo<br />

no subúrbio do Rio de Janeiro. Simultaneamente<br />

também foi se formando a base teórica dessa ação<br />

com a participação direta dos altos dirigentes do<br />

instituto, que tinham livre acesso à cúpula do Estado<br />

Varguista, num claro desdobramento da relação<br />

entre ação técnica e inserção política.<br />

A pesquisa específica sobre o IAPI desvendou<br />

conexões entre os conceitos que permeavam<br />

sua organização interna, sua linha atuária e<br />

seus investimentos imobiliários, com ideias mais<br />

genéricas e abrangentes de projetos específicos<br />

de industrialização para o país.<br />

A circulação de ideias dava-se de diversas formas,<br />

com diversos atores. Pode-se citar como exemplo<br />

a contribuição do engenheiro arquiteto Rubens<br />

Porto (autor de vários escritos sobre a temática<br />

da habitação popular em meios institucionais), e<br />

dos engenheiros Plínio Cantanhede, Paulo Accioly<br />

de Sá e Francisco Batista de Oliveira, que juntos<br />

representaram o Brasil e o Ministério do Trabalho<br />

no I Congresso Panamericano de Vivienda Popular,<br />

que aconteceu em Buenos Aires em 1939. Todos eles<br />

tinham trânsito por uma série de órgãos públicos<br />

e de órgãos de classe, e dialogavam entre si e com<br />

outros profissionais. (PRIMEIRO [...], 1939, p.66-70)<br />

Os escritos de Rubens Porto, reunidos em 1939<br />

no livro O problema das casas operárias, revelam<br />

a mescla de uma série de ideários urbanísticos: os<br />

socialistas utópicos, os engenheiros sanitaristas, o<br />

Movimento Cidade Jardim, as cruzadas católicas,<br />

as unidades de vizinhança e também o movimento<br />

moderno europeu na figura de Le Corbusier. Da<br />

mesma forma, Plinio Cantanhede, que não estava<br />

diretamente ligado às questões habitacionais, mas<br />

era presidente do IAPI citava Lechworth na Inglaterra,<br />

as grandes construções populares nos arredores de<br />

Paris e Roma, as Siedlungen alemãs, e as iniciativas da<br />

Federal Housing Administration dos Estados Unidos<br />

- um político da confiança de Vargas, precisava<br />

manter-se respaldado por conhecimento técnico.<br />

(ARAVECCHIA-BOTAS, 2011, p.148-155).<br />

Cantanhede enfatizava as referências internacionais<br />

para legitimar a iniciativa do Instituto de produzir<br />

habitação, com a ressalva de que não poderiam ser<br />

tomadas em sua integridade, devendo-se atentar<br />

para a necessidade de adaptação às condicionantes<br />

nacionais, sobretudo àquelas de caráter econômico.<br />

O então presidente do IAPI, certamente tomou<br />

contato com as experiências internacionais no<br />

Congresso Panamericano de Vivienda e Francisco<br />

Batista de Oliveira ao voltar do mesmo evento,<br />

publicou vários artigos na revista Urbanismo e Viação<br />

citando casos da Argentina, do Uruguai, do Chile,<br />

do México, da Colômbia e do Peru (O ESTADO [...],<br />

1940, p. 199-202).<br />

Paulo Accioly de Sá e Plínio Cantanhede também<br />

participaram ativamente da Jornada da Habitação<br />

Econômica promovida pelo Instituto de Organização<br />

Racional do Trabalho (IDORT) em 1941, ocasião<br />

em que houve importante divulgação do trabalho<br />

do IAPI, com uma visita ao canteiro de obras do<br />

Realengo, além de uma exposição com projetos e<br />

fotos do andamento da construção. (JORNADA [...],<br />

1941, PP.21-22; ECOS [...], 1941, p. 44).<br />

O trânsito de profissionais e políticos entre instituições<br />

como o Idort e o IAPI revela a ligação estreita entre<br />

as discussões sobre a moradia e as necessidades<br />

de racionalização e padronização que permeavam<br />

o pensamento sobre administração e produção<br />

industrial.<br />

Havia entre eles uma preocupação comum sobre a<br />

impossibilidade de reproduzir no Brasil as condições<br />

técnicas dos países ricos que direcionava para a<br />

formulação de estratégias que combinassem, no<br />

âmbito da construção civil, novos processos técnicos<br />

com os saberes construtivos tradicionais. Experimento<br />

correlato a essa ideia já vinha sendo colocado em<br />

prática no próprio canteiro de obras do IAPI, no<br />

Conjunto Residencial do Realengo, desde o início de<br />

1940. Nesse caso, a inovação tecnológica ficava por<br />

conta da alvenaria de blocos de concreto, que já se<br />

desenvolvia desde o início do século XX na Europa,<br />

mas que, a partir dos EUA, se difundiu para o mundo<br />

todo, por meio da exportação de máquinas para a<br />

produção dos componentes. Para o projeto piloto,<br />

o IAPI importou uma máquina da empresa Besser<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

33


Produção de cidade como projeto coletivo: a ação habitacional do Instituto dos Industriários (1937-1960)<br />

Manufacturing Co., que pouco tempo antes havia<br />

vendido uma similar para a Venezuela. (THE BESSER<br />

[...], 2004). O uso da máquina no Brasil, pelo IAPI,<br />

foi parabenizada pelos fabricantes de máquinas de<br />

blocos de concreto dos EUA. (O PROBLEMA [...],<br />

1943, p.35).<br />

É em meio a esse quadro constituído tanto pelas<br />

dinâmicas próprias do problema habitacional, quanto<br />

por aquelas mais abrangentes das questões políticas<br />

relativas ao processo de industrialização, que se insere<br />

a ação exemplar de Carlos Frederico Ferreira no IAPI.<br />

Sua trajetória complexa permitiu que se inserisse<br />

entre o saber da engenharia e a militância pela nova<br />

linguagem buscada pelos arquitetos vinculados ao<br />

movimento moderno. Primeiro, cursou engenharia<br />

na Escola de Minas de Ouro Preto (1926-1930), e<br />

depois arquitetura na ENBA (1930-1935). Essa dupla<br />

formação explica seu trânsito entre os dois campos -<br />

da engenharia e da arquitetura -, e também elucida<br />

algumas de suas escolhas desde que foi contratado<br />

pelo IAPI para elaborar o projeto arquitetônico e<br />

urbanístico do Conjunto do Realengo em 1939.<br />

Em entrevista a Nabil Bonduki, pouco antes de falecer,<br />

Carlos Frederico Ferreira, relatou que os presidentes<br />

do IAPI, os engenheiros Plínio Cantanhede durante<br />

o Estado Novo e Alim Pedro no Governo Dutra,<br />

tiveram papel decisivo nas decisões acerca da<br />

produção habitacional do Instituto (BONDUKI, 1998,<br />

p.157). Esses “engenheiros políticos” escolhiam<br />

pessoalmente os técnicos a serem contratados<br />

e proporcionavam-lhe relativa autonomia para<br />

elaboração dos projetos. Entretanto, o caso da<br />

importação da máquina de blocos de concreto para<br />

o canteiro de obras do Realengo é exemplar da<br />

relação entre as escolhas de projeto e as dinâmicas<br />

que resultavam da participação dos dirigentes do<br />

IAPI nas esferas de decisão mais estratégicas da<br />

política nacional. Plínio Cantanhede, que estava<br />

na Comissão da Implantação da Cia Siderúrgica<br />

Nacional, tomou contato com a máquina de blocos<br />

de concreto numa das viagens diplomáticas aos EUA<br />

para tratar dos empréstimos para a CSN, e solicitou<br />

a Ferreira que pensasse um projeto incorporando<br />

o uso da máquina.<br />

É nesse mesmo processo, que ocorre a estruturação<br />

da Divisão de Engenharia do IAPI, com a contratação<br />

de profissionais para gerenciamento direto de<br />

projetos e de obras, eliminando em vários casos,<br />

a intermediação dos profissionais liberais e das<br />

construtoras. A contratação de firmas era bastante<br />

criticada por alguns setores internos dos institutos de<br />

previdência, que viam na iniciativa do IAPI de manter<br />

um corpo técnico fixo, um grande exemplo a ser<br />

seguido. É o que fica claro nos dizeres do arquiteto<br />

Moacir Fraga, do Instituto de Aposentadoria e<br />

Pensões dos Trabalhadores em Transportes e Cargas<br />

(IAPETEC), na Revista de Arquitetura em 1942. (A<br />

CONSTRUÇÃO [...], n.55, 1942). Fraga dizia que,<br />

por meio da administração direta dos órgãos de<br />

Estado podia-se relacionar, no processo construtivo,<br />

o conhecimento técnico e a prática. A gerência direta<br />

por parte do instituto ou órgão empreendedor, além<br />

de baratear as construções em relação ao sistema de<br />

empreita, também possibilitaria rapidez na solução<br />

de problemas, já que, os próprios funcionários dos<br />

institutos poderiam tomar decisões, conforme as<br />

exigências imprevistas no canteiro de obras.<br />

Esta orientação no interior do IAPI, a partir da<br />

constituição de um corpo profissional, traduziu-se<br />

numa reinterpretação dos debates sobre a arquitetura<br />

moderna e a habitação. O resultado<br />

seria a transformação da linguagem assumida pela<br />

arquitetura produzida em série pelo Instituto, que<br />

se refletiu na produção dos outros institutos de<br />

previdência.<br />

Mas a diretriz de realizar empreendimentos representativos<br />

do ponto de vista arquitetônico também<br />

demandava a parceria com profissionais que<br />

estivessem engajados com a ideia de criar uma<br />

arquitetura representativa do Estado.<br />

Por outro lado, como já destacado, muitos<br />

dos técnicos da Divisão de Engenharia do IAPI<br />

ingressaram por meio de concurso público, mas<br />

também é certo que, entre os funcionários de<br />

carreira do Instituto, destacam-se os que, de alguma<br />

forma, foram reconhecidos pela participação no<br />

movimento de renovação da arquitetura brasileira. O<br />

desenvolvimento de novas tecnologias construtivas,<br />

ou o envolvimento com a questão habitacional<br />

mesmo fora do IAPI, marcam a trajetória de algumas<br />

figuras marginais à história corrente da arquitetura<br />

brasileira. Com diferentes formações e trajetórias,<br />

o engenheiro Francisco de Paula Dias de Andrade<br />

e o arquiteto Helio Uchôa Cavalcanti, são nomes<br />

representativos daqueles que ligavam o IAPI aos<br />

setores intelectuais, e que estiveram juntos no projeto<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

34


Produção de cidade como projeto coletivo: a ação habitacional do Instituto dos Industriários (1937-1960)<br />

1A tese de livre docência de<br />

Francisco de Paula Dias de<br />

Andrade, intitulada, Organização<br />

do Tempo e do Espaço<br />

em Brasília, foi defendida na<br />

Escola Politécnica da Universidade<br />

de São Paulo, em 1962.<br />

FISCHER, 2005: 346.<br />

2 Na sua origem alemã o<br />

zoneamento fazia parte de<br />

uma complexa estratégia<br />

para melhor distribuir os benefícios<br />

urbanos. Os teóricos<br />

do movimento moderno,<br />

sobretudo Hans Schimidt,<br />

pensam o zoneamento no<br />

âmbito de um sistema legal,<br />

que não se restringe a um<br />

conjunto de normas, mas é<br />

parte constituinte do Estado<br />

na regulação e estruturação<br />

da estabilidade social. Nos<br />

EUA foi transformado em<br />

instrumento eficiente para<br />

garantir a valorização das<br />

propriedades, assegurando<br />

os processos imobiliários já<br />

em curso nas cidades (FELD-<br />

MAN, 2005: 79-82).<br />

3 O escritório do arquiteto<br />

Carlos Maximiliano Fayet<br />

realizou levantamento do<br />

Conjunto Residencial Passo<br />

D’Areia em Porto Alegre, a<br />

serviço da Secretaria do Planejamento<br />

Municipal. Foram<br />

registrados e catalogados<br />

os tipos habitacionais e as<br />

modificações pós-ocupação.<br />

Também foi feita pesquisa<br />

histórica sobre o projeto e<br />

a construção do conjunto,<br />

incluindo entrevista com o<br />

Engenheiro Kruter. O objetivo<br />

do trabalho era embasar as<br />

discussões sobre preservação<br />

do patrimônio construído e<br />

formas de adaptação possíveis.<br />

e no gerenciamento das obras das superquadras<br />

SQS 105 e SQS 305 em Brasília.<br />

Recém-formado engenheiro pela Escola Politécnica<br />

o engenheiro Francisco de Paula Dias de Andrade<br />

ingressou na Delegacia do IAPI em São Paulo em<br />

1938, ano em que assina um artigo intitulado<br />

“Casas Operárias” na Revista Inapiários (ANDRADE,<br />

1938:6-7). Voltando à universidade, diplomou-se<br />

engenheiro-arquiteto em 1951, iniciando carreira<br />

docente em 1959 na mesma Escola Politécnica, como<br />

assistente de Anhaia Mello (FISCHER, 2005:346). De<br />

1956 a 1961 esteve na equipe de gerenciamento<br />

das obras das superquadras do IAPI em Brasília,<br />

cujo trabalho foi tema de sua livre docência 1 como<br />

professor da Politécnica.<br />

Helio Lage Uchôa Cavalcanti formou-se na ENBA<br />

em 1934 e trabalhou como funcionário do IAPI ao<br />

mesmo tempo em que participou de vários projetos<br />

para outras esferas governamentais ou para o<br />

setor privado. O arquiteto, muito próximo a Oscar<br />

Niemeyer colaborou com ele no projeto do Instituto<br />

Técnico da Aeronáutica em São José dos Campos,<br />

do Parque do Ibirapuera em São Paulo e do Hospital<br />

Sul-América no Rio. Na área habitacional concebeu<br />

os projetos do Banco Hipotecário Lar Brasileiro<br />

em Goiânia, de 1952 (CAVALCANTI, 2001: 124).<br />

Depois deste trabalho é que se registra o projeto das<br />

superquadras do IAPI em Brasília, iniciado em 1956,<br />

e cujas características construtivas aproximam-se<br />

bastante da linguagem desenvolvida pelos arquitetos<br />

cariocas a partir da década de 1930.<br />

Mas, além desses nomes, a pesquisa do corpo<br />

técnico do IAPI, com a identificação de dezenas de<br />

engenheiros politécnicos, revelou que entre figuras<br />

representativas da arquitetura moderna brasileira,<br />

como Carmem Portinho, Affonso Eduardo Reidy,<br />

Attílio Corrêa Lima, Francisco Bolonha e mais adiante<br />

Vila Nova Artigas e outros, estiveram dezenas<br />

de anônimos que também contribuíram para a<br />

consolidação de um pensamento brasileiro sobre<br />

a problemática habitacional.<br />

Habitação e cidade como projeto<br />

coletivo: a confluência de trajetórias<br />

e de ideários na produção do IAPI<br />

Sabe-se, que por mais ativo e quantitativamente<br />

significativo o papel desses profissionais, seu<br />

engajamento não foi suficiente para resolver o<br />

problema da falta de moradia. Por outro lado,<br />

as realizações no campo da habitação durante<br />

as décadas de 1940 e 1950 são os resultados<br />

mais representativos da relação entre arquitetura<br />

e urbanismo que os debates do período buscaram<br />

deflagrar. Nos conjuntos habitacionais produzidos<br />

no período pode-se encontrar uma realização prática<br />

das formulações teóricas então feitas em torno da<br />

questão urbanística. Tais realizações não foram<br />

obra apenas dos adeptos do movimento moderno,<br />

mas também dos engenheiros, muitos dos quais,<br />

herdeiros das correntes do urbanismo científico<br />

do século XIX.<br />

O desenvolvimento do urbanismo científico na<br />

Alemanha foi intensamente marcado pela presença<br />

de engenheiros, para os quais era excessiva a<br />

preocupação com os aspectos sanitários e higiênicos.<br />

A questão dos fluxos também era<br />

primordial, refletindo-se em planos em que prevalecia<br />

a visão viária. Internacionalmente essa<br />

experiência foi incorporada como um grande<br />

pacote de instrumentos de controle do uso do solo<br />

dos quais fazia parte o “zoning” (zoneamento)<br />

(SIMÕES Jr, 2008). O zoneamento teve enorme<br />

repercussão inclusive no Brasil, onde será adotado<br />

principalmente a partir de sua reelaboração pelos<br />

americanos 2 .<br />

O ideário “cidade jardim”, elaborado por Ebenezer<br />

Howard na Inglaterra, também encontrou campo<br />

fértil na Alemanha e foi incorporado às formulações<br />

já instituídas, que ligavam as transformações<br />

físicas da cidade com inovações na legislação e na<br />

administração dos municípios.<br />

Pode-se afirmar que, no Brasil no início do século<br />

XX, em meio à profusão de propostas e realizações<br />

que se referenciavam na reforma do Barão de<br />

Haussmann de Paris, é possível identificar ideias<br />

que se aproximavam da urbanística germânica,<br />

ou do ideário “cidade jardim” (SIMÕES Jr, 2008;<br />

ANDRADE, 2009).<br />

O engenheiro Marcos Kruter, responsável pelo<br />

Conjunto Residencial Passo D’Areia, do IAPI, em<br />

Porto Alegre, junto com Edmundo Gardolinski,<br />

funcionário do IAPI, chegou a apontar nominalmente<br />

uma referência do urbanismo alemão. (FAYET &<br />

EQUIPE, 1995:25). 3<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

35


Produção de cidade como projeto coletivo: a ação habitacional do Instituto dos Industriários (1937-1960)<br />

Na perspectiva dos engenheiros a beleza estava<br />

relacionada à adequação da implantação aos terrenos<br />

e ao desenho paisagístico e à arborização, que, por<br />

sua vez, estava ligada à noção de salubridade. A<br />

tais concepções agregava-se o enfoque na eficiência<br />

e na racionalidade econômicas que se refletia na<br />

preocupação com os aspectos técnico-construtivos.<br />

Paralelamente, o movimento moderno em arquitetura,<br />

já bastante abordado pela historiografia<br />

corrente, engrossava o caldo de cultura e formação<br />

técnica, dando origem a um quadro de profissionais,<br />

cujas ideias, o quadro político e econômico gerado<br />

pela Revolução de 1930, ajudou a transformar em<br />

realidade.<br />

A partir do IAPI, esse processo se materializou em<br />

trabalho coletivo tanto no escritório de projetos<br />

quanto no canteiros de obras. O espírito de equipe<br />

que gerou algumas singularidades no processo<br />

de construção dos conjuntos habitacionais do<br />

Instituto fica claro em crônica de Joel Lima 4 , na<br />

Revista Inapiários (a revista do IAPI) que trata do<br />

Conjunto do Realengo no Rio de Janeiro. Ele nomeia<br />

os engenheiros Altino Machado Silva, Sydney de<br />

Barros Barreto, Luiz Metre, Pedro Coelho de Souza,<br />

Hermilo Campelo, Deocleciano Rocha Filho, Marino<br />

Guimarães, responsáveis cada um por uma parte<br />

da obra: produção de blocos de concreto por uma<br />

máquina importada dos EUA e de outras peças prémoldadas,<br />

instalações elétricas e hidráulicas, rede<br />

de água e esgoto, e gerenciamento dos operários.<br />

Por fim, fala de Carlos Frederico Ferreira:<br />

E, a essa altura, seria injustiça clamorosa silenciar o<br />

nome de Carlos Ferreira – esse poeta da arquitetura<br />

e do urbanismo, responsável não só pelo que há<br />

de belo nesta Obra, mas, também, pelo que ainda<br />

vai surgir, dentro de poucos dias, na Vila Operária<br />

dos Industriários. (LIMA, 1943: 12)<br />

Se até meados da década de 1940 esse trabalho<br />

de equipe concorria com as encomendas feitas<br />

a arquitetos de renome, dali em diante os empreendimentos<br />

seriam marcados por maior grau de<br />

reprodutibilidade e pela falta de autoria específica.<br />

Os conjuntos habitacionais nos subúrbios, formados<br />

em sua maioria por blocos de habitação longitudinais<br />

de dois a quatro pavimentos, compostos de apartamentos<br />

de dois e três dormitórios, desenharam<br />

uma parte considerável da paisagem do subúrbio<br />

carioca, além de pontuarem outras capitais e cidades<br />

importantes para o processo de urbanização<br />

brasileiro. Para o grupo que se reuniu no Setor<br />

de Engenharia do IAPI, sob a liderança de Carlos<br />

Frederico Ferreira, o elo entre o saber técnico próprio<br />

da formação dos engenheiros, com a renovação da<br />

linguagem arquitetônica, veicularia novas condições<br />

de urbanidade às moradias populares.<br />

Mesmo que o trabalho de alguns profissionais<br />

mereça algum destaque, é importante identificar o<br />

caráter exemplar de suas trajetórias no âmbito do<br />

grupo da Divisão de Engenharia do IAPI, que levou<br />

a termo um processo coletivo, tanto nos escritórios<br />

de projeto, quanto nos canteiros de obras.<br />

4 Joel Lima foi enviado ao<br />

Distrito de Obras do Realengo<br />

por Plínio Cantanhede, para<br />

trabalhar como auxiliar do<br />

engenheiro Altino Machado<br />

Silva, que era chefe do Distrito,<br />

no início da construção<br />

do conjunto (LIMA, 1943:12).<br />

A aliança entre a capacidade técnica e a inserção<br />

política dos profissionais foi o que possibilitou a<br />

aproximação entre projeto e processo de produção,<br />

permitindo a pesquisa tipológica e a realização dos<br />

primeiros grandes conjuntos habitacionais, que como<br />

já destacado, foram o primeiro campo experimental<br />

da arquitetura e do urbanismo, em escala territorial,<br />

no período que antecedeu Brasília.<br />

Por colocar a economia como condicionante básica<br />

dos projetos, reuniu os requisitos para superar o<br />

universo de exceção ao qual se enquadraram os<br />

esmerados projetos de Afonso Eduardo Reidy –<br />

Pedregulho e Gávea. Partindo-se do pressuposto<br />

de que teoria urbanística e prática política seguem<br />

historicamente apartadas, a intenção dessa reflexão<br />

foi contribuir com a análise pormenorizada e mais<br />

complexa de um período, em que ao menos se esboçou<br />

uma relação mais próxima entre planejamento<br />

territorial e planejamento socioeconômico. A<br />

ação do IAPI considerada tanto por sua dimensão<br />

quantitativa, quanto pelo conceito de habitação<br />

em massa formulado por seus técnicos, foi uma<br />

iniciativa ímpar de habitação pública para qual a<br />

participação dos conhecimentos da engenharia<br />

conferiu contornos mais pragmáticos. Nessa perspectiva,<br />

para o grupo que se reuniu na Divisão de<br />

Engenharia do IAPI, fazer habitação e construir a<br />

cidade não era uma utopia, era uma tarefa bem<br />

real sob sua responsabilidade.<br />

Referências bibliográficas<br />

A CONSTRUÇÃO das moradias proletárias. Revista de<br />

Arquitetura. Rio de Janeiro: n.55, Ano VIII, abr./<br />

mai., 1942.<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

36


Produção de cidade como projeto coletivo: a ação habitacional do Instituto dos Industriários (1937-1960)<br />

Recebido [Out. 01, 2015]<br />

Aprovado [Fev. 26, 2016]<br />

ANDRADE, Carlos Roberto Monteiro de. O ideário cidade<br />

jardim na cultura urbanística paulistana e carioca<br />

na primeira metade do século XX. In: Anais do XIII<br />

Encontro Nacional da ANPUR. Florianópolis: UFSC,<br />

2009. (cd-rom).<br />

ANDRADE, Francisco de Paula Dias de. Casas Operárias.<br />

Revista Inapiários. Rio e Janeiro: IAPI, n.6, abr., 1938.<br />

ARAVECCHIA-BOTAS, Nilce C. Entre o progresso técnico<br />

e a ordem política: arquitetura e urbanismo na ação<br />

habitacional do IAPI. Tese de Doutorado. São Paulo:<br />

FAU USP, 2011.<br />

BONDUKI, Nabil Georges. Origens da habitação social<br />

no Brasil: arquitetura moderna, Lei do Inquilinato e<br />

difusão da casa própria. São Paulo: Estação Liberdade,<br />

1998.<br />

CAVALCANTI, Lauro. Quando o Brasil era Moderno. Rio<br />

de Janeiro: Aeroplano, 2001.<br />

ECOS da “Jornada de Habitação econômica”. Revista<br />

Inapiários. Rio de Janeiro, IAPI, n.42, out., 1941.<br />

FAYET, Carlos Maximiliano & EQUIPE. Vila do IAPI: patrimônio<br />

cultural da cidade. Porto Alegre: Secretaria<br />

do Planejamento Municipal, 1995.<br />

FISCHER, Silvia. Os arquitetos da Poli: ensino e profi ssão<br />

em São Paulo. São Paulo: Fapesp, Edusp, 2005.<br />

JORNADA de habitação econômica. Urbanismo e Viação.<br />

Rio de Janerio, n.17, out., 1941.<br />

LIMA, Joel O. O Realengo que eu vi.... Revista Inapiários.<br />

Rio de Janeiro: IAPI, n.64, ago., 1943. REVISTA<br />

INAPIÁRIOS, n.6, 1938:6-7.<br />

O ESTADO actual da vivenda popular na América. Urbanismo<br />

e Viação. Rio de Janeiro, n.7, jan., 1940.<br />

PEDRO, Alim. O Seguro Social, A Indústria Brasileira,<br />

O Instituto dos Industriários. Relatório-estudo do<br />

presidente do IAPI, período de 1946 a 1951. Rio de<br />

Janeiro: IAPI, 1950.<br />

PRIMEIRO Congresso Panamericano de Vivienda Popular.<br />

Arquitetura e Urbansimo. Nov./Dez., 1939,<br />

p.66-70.<br />

SIMÕES JR., José Geraldo. A urbanística germânica<br />

(1870-1914). Internacionalização de uma prática e<br />

referência para o urbanismo brasileiro. Arquitextos.<br />

Ano 9, Jun. de 2008. http://www.vitruvius.com.br/<br />

revistas/read/arquitextos/09.097/134, acesso em<br />

jun., 2009.<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

37


artigos e ensaios<br />

249 construtores de cidades<br />

Sylvia Ficher<br />

Arquiteta e Urbanista, pós-doutorado em Sociologia pela<br />

‘École des Hautes Etudes en Science Sociales’, Paris, professora<br />

titular da Universidade de Brasília e coordenadora do Grupo de<br />

Pesquisa CNPq Arquitetura e Urbanismo da Região de Brasília,<br />

Campus Universitário Darcy Ribeiro, Brasília, DF, CEP 70910-900,<br />

sficher@unb.br<br />

Resumo<br />

Cidades não se resumem à sua materialidade, ainda que tal materialidade<br />

seja bem mais do que um cenário inerte diante do qual se desenrola o drama<br />

da vida em sociedade. E aqueles envolvidos diretamente na sua concretude<br />

podem ser considerados reais construtores de cidades. Conhecer melhor suas<br />

trajetórias profissionais é ferramenta útil para os estudos urbanos. Aqui é<br />

apresentada uma descrição sumária das atividades de alguns desses construtores<br />

da metrópole paulistana: 120 engenheiros-arquitetos diplomados pela Escola<br />

Politécnica (1899-1954); 90 arquitetos e engenheiros-arquitetos diplomados<br />

pela Escola de Engenharia Mackenzie (1919-46); e 39 arquitetos diplomados<br />

pela Escola de Belas Artes (1929-34).<br />

Palavras-chave: trajetórias profissionais, história urbana, arquitetos paulistas.<br />

E<br />

Like Rome, Nkongsamba was built on seven hills, but there all similarity ended. Set in undulating tropical<br />

rain forest, from the air it resembled nothing so much as… an ochrous tin checker-board, a bilious metallic<br />

sea, the paranoiac vision of a mad town planner. William Boyd, A good man in Africa, 1981<br />

Relief … it’s over. That is the story of the city. The city is no longer. We can leave the theatre now...<br />

Rem Koolhaas, S, M, L, XL, 1995<br />

videntemente, cidades não se resumem à sua<br />

materialidade, às suas ruas, jardins, edificações...,<br />

seus cheios e vazios ou suas permeabilidades e<br />

barreiras, como alguns gostam de dizer. Mesmo<br />

assim, tal materialidade é bem mais do que um<br />

cenário inerte para o desenrolar do drama da vida<br />

em sociedade. Apesar da dilatada permanência, do<br />

caráter duradouro, ela está também em incessante,<br />

inexorável e irrevogável transformação em função<br />

dos infinitos acontecimentos cotidianos da vida<br />

citadina.<br />

Os envolvidos mais diretamente na concretude<br />

desse processo podem ser considerados, de fato,<br />

construtores de cidades. No entanto, as posições<br />

que ocupam e as atividades que exercem variam<br />

grandemente no espaço social, indo da esfera<br />

política, passando pela atuação legislativa e pela<br />

gestão da coisa urbana, até o financiamento de<br />

empreendimentos e a sua realização, independente<br />

do tipo e escala e da qualidade dos resultados.<br />

Conhecer melhor as trajetórias profissionais dos<br />

atores mais dinâmicos na efetivação dessas ações<br />

é ferramenta extremamente útil para os estudos<br />

urbanos. Por meio delas, podemos recompor o<br />

contexto institucional e as relações interpessoais<br />

em momentos de maiores mudanças, assim como<br />

a mais lenta progressão das consequências de<br />

toda ordem induzidas por decisões tomadas. É<br />

evidente o relevo do papel de sanitaristas, urbanistas<br />

e estatísticos, contribuindo com suas reflexões,<br />

V14 N2<br />

revista de pesquisa em arquitetura e urbanismo instituto de arquitetura e urbanismo iau-usp<br />

38


249 construtores de cidades<br />

pesquisas e propostas, mas devem ser lembrados<br />

os quadros técnicos responsáveis pela aplicação<br />

de normas e implementação de determinações<br />

estabelecidas. Contudo, os meios econômicos<br />

disponíveis a cada momento têm tanta – ou talvez<br />

maior – importância, dependendo de financistas,<br />

investidores e empreendedores. Não é menor o<br />

aporte de projetistas e construtores; no extremo<br />

do espectro, deve-se considerar os trabalhadores<br />

que integram a mão-de-obra efetiva, sejam mais<br />

ou menos qualificados.<br />

Todos esses indivíduos formam o substrato técnico que<br />

se faz necessário para aquela dilatada permanência<br />

das cidades e, paradoxalmente, para a sua incessante,<br />

inexorável e irrevogável transformação.<br />

A elaboração de biografias, contudo, não é recurso<br />

exclusivo da história urbana. Muito pelo contrário,<br />

trata-se de tradição com raízes nos primórdios da<br />

disciplina histórica e da documentação que a embasa<br />

já no antigo Egito. Dentre as seleções exemplares,<br />

destacam-se as Vitae comparatae illustrium virorum<br />

Graecorum et Romanorum ou Vidas paralelas,<br />

de Plutarco (ca. d.C. 46 - d.C. 120), e as De vitis<br />

Caesarum ou Vidas dos doze Césares, de Suetônio<br />

(69 d.C. - ca. 141 d.C.). As biografias de santos<br />

alcançaram estima tal a ponto de instituírem uma<br />

categoria à parte, a hagiografia, responsável por<br />

verdadeiros best-sellers desde a baixa Idade Média.<br />

Do século 18 em diante, a biografia se firmou como<br />

literatura de grande sucesso, porém desde sempre<br />

envolvida na bizarra polêmica entre autorizada e nãoautorizada.<br />

Como foi o caso dos escritos deixados<br />

por John Aubrey (1626-1697), por ele intitulados<br />

Schediasmata, ou seja, Abreviações, trazendo relatos<br />

sobre alguns de seus quase-contemporâneos e<br />

contemporâneos de maior nomeada, como o corsário<br />

Sir Walter Raleigh (?-1618), os cientistas<br />

John Dee (1527-1608), Francis Bacon (1561-1626),<br />

Robert Boyle (1627-1691) e Edmund Halley (1656-<br />

1742), e os dramaturgos William Shakespeare<br />

(1564-1616) e Ben Jonson (1572-37). O material<br />

não chegou a ser publicado justamente por ser<br />

considerado inadequado para divulgação enquanto<br />

os retratados estivessem vivos, evitando assim<br />

processos de difamação. Interdição que perdurou a<br />

ponto de uma primeira edição – Letters Written by<br />

Eminent Persons in the Seventeenth and Eighteenth<br />

Centuries – ser de 1813, e ainda parcial...<br />

A história da arte também inclui em suas convenções<br />

as biografias de artistas, entre os quais arquitetos. Os<br />

fragmentos sobre teatrólogos, pintores e escultores<br />

de autoria de Duris de Samos (ca. 350 a.C. - após<br />

201 a.C.) estão entre os exemplos mais antigos<br />

conhecidos. O gênero se vulgarizaria a partir do<br />

século 15, como se constata com as Vitae virorum<br />

illustrium (1549-57), de Paolo Giovio (ca. 1483 -<br />

1552). O modelo definitivo seria estabelecido por Le<br />

vite de’ più eccellenti pittori, scultori, e architettori,<br />

da Cimabue insino a’ tempi nostri (1550 e 1568)<br />

ou, simplesmente, As vidas, de Giorgio Vasari (1511<br />

- 1574). O mais abrangente conjunto de biografias<br />

de artistas encontra-se em The Grove Dictionary of<br />

Art (1996), com 34 volumes, hoje disponível para<br />

assinantes no Oxford Art Online. Aos arquitetos foi<br />

dedicada a Macmillan Encyclopedia of Architects<br />

(1982), organizada por Adolf K. Placzek e contando<br />

com quatro volumes.<br />

Essas coletâneas são constituídas por uma amostragem<br />

marcada por critérios de seleção exclusivistas,<br />

versando quase sempre sobre personalidades de<br />

proeminência política ou cultural, conforme indicam<br />

seus adjetivos mais recorrentes: nobres, ilustres,<br />

excelentes. Uma deliciosa exceção encontra-se na<br />

Historia universal de la infamia (1935), de Jorge Luis<br />

Borges, cujos biografados são todos criminosos.<br />

Hoje, o gênero é aceito como ferramenta historiográfica<br />

e sociológica legitima, sem necessariamente<br />

se restringir a indivíduos de maior notoriedade. Muito<br />

pelo contrário, há um crescente interesse pelas<br />

“histórias de vida”, sem maiores discriminações.<br />

Nem por isso conjuntos de trajetórias deixam de<br />

ser amostragens restritas, findando por obedecer<br />

algum juízo arbitrário e, portanto, controverso e<br />

contestável.<br />

No presente ensaio, a amostragem a seguir apresentada<br />

é duplamente restrita. Ela considera apenas<br />

profissionais diplomados, e estes tão somente<br />

engenheiros-arquitetos e arquitetos diplomados<br />

entre 1899 e 1954 na Escola Politécnica, na Escola<br />

de Engenharia Mackenzie e na Escola de Belas Artes<br />

em São Paulo.<br />

Para descrever suas atividades principais ou de<br />

maior relevo como construtores de cidades, adotouse<br />

uma classificação bastante simplificada, para<br />

não dizer simplória: políticos urbanistas dirigentes<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

39


249 construtores de cidades<br />

de órgão público quadros técnicos professores<br />

proprietários fundiários e/ou imobiliários empresários<br />

da construção dirigentes/administradores de empresa<br />

construtores projetistas e construtores projetistas<br />

industriais outros não determinados<br />

1899-1954: Escola Politécnica de São Paulo<br />

120 engenheiros-arquitetos: 2,1 diplomados por ano<br />

1899<br />

João Moreira Maciel urbanista, construtor<br />

1900<br />

Mauro Alvaro de Souza Camargo quadro técnico<br />

1903<br />

Heribaldo Siciliano empresário da construção, urbanista,<br />

político<br />

Augusto de Toledo projetista e construtor, professor<br />

1905<br />

Alexandre Albuquerque professor, projetista e<br />

construtor, urbanista<br />

Bruno Simões Magro professor, projetista e construtor,<br />

urbanista<br />

Hippolyto Gustavo Pujol Júnior professor, projetista<br />

e construtor<br />

1907<br />

Mario de Salles Souto dirigente/administrador de<br />

empresa<br />

Euclydes Vieira quadro técnico, político<br />

Guilherme Ernesto Winter projetista e construtor,<br />

político<br />

1909<br />

Alberto Monteiro de Carvalho e Silva empresário<br />

da construção<br />

Luiz Alvaro da Silva quadro técnico<br />

Carlos Quirino Simões dirigente de órgão público<br />

Francisco Teixeira da Silva Telles empresário da<br />

construção<br />

1910<br />

Olavo Egydio de Souza Aranha Júnior empresário<br />

da construção, industrial<br />

Domingos Theodoro Gallo quadro técnico<br />

Fructuoso Theodoro Sampaio projetista, urbanista<br />

1913<br />

Luiz Ignacio Romeiro de Anhaia Mello professor,<br />

urbanista, político<br />

1915<br />

Mario Ribeiro Pinto projetista e construtor<br />

1917<br />

Francisco Prestes Maia quadro técnico, professor,<br />

urbanista, político<br />

1921<br />

Amador Cintra do Prado empresário da construção,<br />

político<br />

1922<br />

Luiz Gonzaga Pereira de Almeida projetista e construtor<br />

José Maria da Silva Neves quadro técnico, projetista,<br />

professor<br />

1924<br />

Alberto de Sá Moreira industrial<br />

1925<br />

Raul José Reinaldo Bolliger quadro técnico, construtor<br />

Carlos Alberto Gomes Cardim Filho dirigente de<br />

órgão público, urbanista<br />

1926<br />

Marcial Fleury de Oliveira quadro técnico, empresário<br />

da construção<br />

Ferrucio Julio Pinotti projetista e construtor<br />

1928<br />

Amadeu de Barros Saraiva empresário da construção<br />

1929<br />

Rogério Cezar de Andrade Filho quadro técnico,<br />

dirigente de órgão público, urbanista<br />

José Rangel de Camargo empresário da construção<br />

Ernesto Dias de Castro Filho não determinado<br />

Alfredo Mathias empresário da construção<br />

1931<br />

Archimedes de Barros Pimentel empresário da<br />

construção<br />

1932<br />

Flavio Baptista da Costa empresário da construção,<br />

projetista<br />

Julio Cesar Lacreta quadro técnico, projetista<br />

Heitor Nardon quadro técnico<br />

Carlos da Silva Prado outros (artista)<br />

1933<br />

Carmello Damato quadro técnico<br />

Ernesto Sampaio de Freitas quadro técnico, professor,<br />

empresário da construção<br />

Carlos Brasil Lodi quadro técnico, urbanista<br />

José Benedicto de Mello quadro técnico<br />

Juracy Camará da Silveira quadro técnico, dirigente<br />

de órgão público<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

40


249 construtores de cidades<br />

1934<br />

Ary Alves Delgado não determinado<br />

Camillo Fernandes Dinucci construtor<br />

Erio Flandoli Neto construtor<br />

Affonso Iervolino projetista, professor<br />

Mario Edgard Henrique Pucci quadro técnico, construtor<br />

e projetista<br />

Cyro Marques Simões quadro técnico, construtor<br />

1935<br />

Azelio Capobianco empresário da construção<br />

Romulo Gagliardi quadro técnico<br />

Alfredo Giglio quadro técnico<br />

Carlos Lang quadro técnico<br />

Ícaro de Castro Mello projetista<br />

1936<br />

Zenon Lotufo quadro técnico, professor, projetista<br />

1937<br />

João Batista Vilanova Artigas projetista, professor<br />

Henrique Ernesto Guilherme Bresslau empresário<br />

da construção<br />

Nico Oscar Lino Defilippi projetista<br />

Seraphim Trapé quadro técnico, construtor<br />

1938<br />

Octavio Cavalheiro Alves quadro técnico, construtor<br />

Rubens Gouvêa Carneiro Vianna quadro técnico,<br />

projetista<br />

Vicente Leme Zammataro quadro técnico<br />

1939<br />

Sylvio Ermel projetista<br />

Guido Gazzi quadro técnico<br />

Michel Elias Mahfuz empresário da construção<br />

Leo Ribeiro de Moraes urbanista, político, dirigente<br />

de órgão público<br />

1940<br />

Roberto Cerqueira Cesar projetista, professor,<br />

urbanista, político<br />

Anibal Martins Clemente projetista, urbanista,<br />

dirigente de órgão público, professor<br />

Frederico Rene de Jaegher quadro técnico<br />

José Luiz de Almeida Nogueira Junqueira projetista<br />

e construtor<br />

Ariosto Mila projetista e construtor, professor<br />

Roberto Carlos Milliet projetista<br />

Octavio Guedes Moraes projetista e construtor,<br />

outros (escritor)<br />

1941<br />

Oswaldo Correa Gonçalves quadro técnico, projetista,<br />

professor<br />

1942<br />

João Serpa Albuquerque projetista e construtor<br />

Tude Bastos quadro técnico<br />

Roberto Magno Ribeiro quadro técnico<br />

Arnaldo Azevedo Villares não determinado<br />

1943<br />

Leopoldino Wilson Paganelli quadro técnico, urbanista<br />

1944<br />

Carlos Cascaldi projetista, professor<br />

1945<br />

Miguel Badra Júnior empresário da construção<br />

1947<br />

Gilberto Junqueira Caldas quadro técnico, projetista,<br />

urbanista<br />

Carlos Fernando de Oliveira Caleiro empresário da<br />

construção, dirigente/administrador de empresa<br />

Geraldo Prado Guimarães projetista e construtor,<br />

urbanista<br />

Jarbas Bela Karman projetista e construtor, quadro<br />

técnico, dirigente/administrador de empresa<br />

Jorge de Santa Luzia Salles não determinado<br />

1948<br />

Oswaldo Ribeiro Bueno empresário da construção<br />

Luis Saia urbanista, dirigente de órgão público<br />

1949<br />

Renato de Albuquerque empresário da construção<br />

Elbio Camillo empresário da construção<br />

Elvio Novelleto quadro técnico, empresário da<br />

construção<br />

Waldemar D’Amaro Nunes quadro técnico, projetista<br />

e construtor<br />

David Araujo Benedicto Ottoni projetista, professor<br />

Alvaro Pereira quadro técnico<br />

Carlos Eduardo de Paula Pessôa construtor, Outros<br />

(calculista estrutural), professor<br />

Geraldo Domingues Pinto empresário da construção<br />

Antonio Carlos de Moraes Pitombo quadro técnico,<br />

projetista<br />

Leon Reitzfeld empresário da construção<br />

Evandro Sanches não determinado<br />

Enrique Zegarra Paz Soldan projetista<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

41


249 construtores de cidades<br />

1950<br />

Francisco de Paula Dias de Andrade professor, urbanista<br />

Jorge Rugardo Bercht projetista<br />

Lauro Bastos Birkholz quadro técnico, urbanista,<br />

professor<br />

Ivan do Brasil Silva Caldas empresário da construção<br />

Luiz Contrucci empresário da construção<br />

Aab Ozor de Freitas construtor, outros (fazendeiro)<br />

Antonio Gaido quadro técnico, outro (serralheria)<br />

Israel Galman projetista e construtor<br />

Carmino Antonio Iervolino quadro técnico<br />

Waldemar Scaletsky empresário da construção<br />

Arthur Puiggari Sepe quadro técnico<br />

Olavo Freire de Souza quadro técnico, projetista<br />

e construtor<br />

Leon Zilber construtor, empresário da construção<br />

1951<br />

Alfredo Korbmacher projetista<br />

Carlos González Lack projetista<br />

Diógenes Vieira Negrão quadro técnico, projetista<br />

e construtor<br />

1952<br />

Hugo González Aguilera não determinado<br />

1954<br />

Jamil Girard Jacob quadro técnico<br />

João Baptista Ferreira Pimont projetista<br />

1919-1946: Escola de Engenharia Mackenzie<br />

90 arquitetos e engenheiros-arquitetos, 3,2 diplomados<br />

por ano<br />

1919<br />

Waldemar Kneese Ferreira projetista e construtor,<br />

outro (artista)<br />

1920<br />

Romeu do Amaral projetista e construtor<br />

Antonio Gomes Barreiros não determinado<br />

Caetano Carnicelli construtor<br />

1922<br />

Renato Ribeiro de Aguiar empresário da construção,<br />

outro (fazendeiro)<br />

Antonio Gallo Ferrigno professor, quadro técnico,<br />

construtor<br />

José do Amaral Neddermeyer professor, projetista<br />

e construtor, outro (industrial)<br />

1923<br />

Armênio de Lima Góes quadro técnico<br />

Salomão Rosa projetista e construtor<br />

1924<br />

João dos Santos Filho empresário da construção,<br />

projetista<br />

Francisco de Paula Silveira projetista e construtor<br />

1925<br />

Antonio Cassese projetista e construtor<br />

Guilherme Corazza construtor<br />

Henrique Franzoi construtor<br />

Francisco José Esteves Kosuta empresário da construção,<br />

projetista, professor, urbanista, dirigente/<br />

administrador de empresa<br />

Ítalo Martinelli projetista e construtor<br />

1926<br />

Alexandre Cesar Cococi quadro técnico, projetista,<br />

dirigente/administrador de empresa<br />

Miguel Prota projetista e construtor<br />

José Bastos Silva empresário da construção<br />

1927<br />

Plínio Botelho do Amaral empresário da construção,<br />

dirigente/administrador de empresa<br />

José Dias da Gama projetista e construtor, outro<br />

(perito)<br />

Renato de Guglielmo outro (comerciante)<br />

Joaquim Marques Ladeira quadro técnico<br />

Oswaldo Barreto Robinson outro (especialista em<br />

soldagens)<br />

Francisco Souza Rocha Júnior não determinado<br />

Ruy Fernandes Seixas projetista e construtor, outro<br />

(escritor e jornalista)<br />

Álvaro David do Valle projetista e construtor<br />

1928<br />

Raul Freire de Mattos Barreto empresário da construção<br />

Vicente del Monaco quadro técnico<br />

Luiz del Nero construtor, quadro técnico<br />

Alcides Xande empresário da construção<br />

1929<br />

Max Hans Fortner empresário da construção<br />

Fernando Alberto Gama Rodrigues construtor<br />

Zilda de Almeida Sampaio professora, projetista,<br />

quadro técnico<br />

1930<br />

Armando Ciampolini empresário da construção,<br />

dirigente/administrador de empresa<br />

Antonio Tadeu Giuzio projetista e construtor<br />

Alfredo Cecílio Lopes outro (advogado, político,<br />

professor), dirigente/administrador de empresa<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

42


249 construtores de cidades<br />

Décio da Silva Pacheco projetista e construtor<br />

José Perroni Júnior projetista e construtor, dirigente/<br />

administrador de empresa<br />

1931<br />

Oswaldo Arthur Bratke projetista, construtor, urbanista<br />

Américo Capua empresário da construção, outro<br />

(editor)<br />

Jayme Fonseca Rodrigues projetista<br />

1932<br />

Olívia Barros do Amaral quadro técnico<br />

Carlos Amélio Botti projetista e construtor<br />

Eduardo Kneese de Mello projetista<br />

Vicente Nigro Júnior projetista e construtor<br />

Alberto Schirato projetista e construtor<br />

1933, julho<br />

Ferdinando Felippe projetista e construtor<br />

Octávio Lotufo empresário da construção<br />

Antonio Lucchesi de Luca quadro técnico<br />

Vicente Micelli empresário da construção<br />

Henrique Ephim Mindlin projetista<br />

Augusto Pedalini empresário da construção<br />

Mario Zerbini projetista, quadro técnico<br />

1933, dezembro<br />

Takeshi Suzuki projetista e construtor, professor<br />

1934<br />

Francisco José Dale Caiuby empresário da construção<br />

Walter Saraiva Kneese projetista e construtor, professor<br />

1937<br />

Mauricio dos Santos Cruz projetista e construtor<br />

Manoel Carlos Gomes Soutello projetista e construtor,<br />

professor<br />

1939<br />

Sophie Elma Miller Capps projetista<br />

Galiano Ciampaglia projetista<br />

Miguel Forte projetista, professor, dirigente/administrador<br />

de empresa, outro (designer)<br />

Manoel Amadeu Gomes Soutello projetista e construtor<br />

Igor Sresnewsky projetista, outro (especialista em<br />

acústica)<br />

1940<br />

Francisca Galvão Bueno projetista e construtora<br />

Nelson Pugliesi construtor, quadro técnico<br />

Jacob Mauricio Ruchti projetista, dirigente/administrador<br />

de empresa, outro (designer)<br />

Irene Sapojkin quadro técnico<br />

1941<br />

Francisco Augusto Saraiva Fanuele projetista e<br />

construtor<br />

Maria Ermelinda Hoenen projetista, quadro técnico,<br />

outro (editora)<br />

Domingos Vitório Jannini construtor<br />

Lauro da Costa Lima projetista, empresário da<br />

construção, dirigente/administrador de empresa<br />

João Bernardes Ribeiro projetista e construtor,<br />

outro (editor)<br />

1942<br />

Hugo Edmundo Kuhl empresário da construção,<br />

urbanista<br />

Gustavo Stal Júnior dirigente/administrador de<br />

empresa<br />

1943<br />

Fernando Behn de Aguiar construtor<br />

Mauro Alves dos Santos construtor<br />

1944<br />

João Francisco Portillo Andrade projetista, professor,<br />

dirigente/administrador de empresa<br />

Egberto Ferreira de Arruda Camargo não determinado<br />

Gustavo Ricardo Caron empresário da construção,<br />

professor<br />

Fernando Martins Gomes projetista e construtor,<br />

empresário da construção, professor, outro (inventor,<br />

escritor)<br />

1945<br />

William Hentz Gorham quadro técnico, projetista<br />

e construtor<br />

Oswaldo de Aguiar Pupo quadro técnico<br />

Arnaldo Guimarães Senna quadro técnico, projetista<br />

1946<br />

Plínio Croce projetista, dirigente/administrador de<br />

empresa, outro (designer)<br />

Nelson Carmo Frederico Pedalini quadro técnico,<br />

projetista<br />

Jorge José Proushan empresário da construção<br />

Roberto Tonetti construtor, dirigente/administrador<br />

de empresa<br />

Roger Henri Weiler projetista e construtor<br />

1929-1934: Escola de Belas Artes de São Paulo<br />

39 arquitetos, 9,75 diplomados por ano<br />

1931<br />

Luiz Augusto Bertacchi projetista e construtor,<br />

quadro técnico<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

43


249 construtores de cidades<br />

Recebido [Out. 14, 2015]<br />

Aprovado [Fev. 19, 2016]<br />

Salvador Cantarella projetista e construtor, dirigente/<br />

administrador de empresa<br />

Orlando Danti projetista e construtor<br />

Alexandre Silvio Lucas Evangelista quadro técnico<br />

Benedicto Calixto de Jesus Netto quadro técnico,<br />

projetista<br />

Djalma Lepage quadro técnico, projetista e construtor<br />

Basilio Milano Netto construtor<br />

Gabriel Garcia Moya não determinado<br />

José Peres projetista e construtor<br />

1932<br />

Raphael Barbato projetista João Cacciola quadro<br />

técnico, empresário da construção<br />

Wilson Maia Fina dirigente/administrador de empresa,<br />

urbanista<br />

Giordano Bruno Giacobbe quadro técnico, projetista<br />

e construtor<br />

Pedro de Moura quadro técnico, projetista e construtor<br />

Reynaldo de Paula quadro técnico<br />

Pedro Talarico construtor<br />

Rodolpho Gabriel Tartari construtor<br />

Isaías de Carvalho Whitaker projetista<br />

Miguel Wolf construtor<br />

1933<br />

Laert Battaglini construtor<br />

José Augusto Bellucci projetista e construtor<br />

José de Paula Machado construtor<br />

Guilherme Malfatti projetista e construtor<br />

Içáo Maruno não determinado<br />

Raphael Montefort projetista e construtor<br />

Antonio Garcia Moya projetista e construtor<br />

Guerino Humberto Paciullo professor<br />

Francisca Franco da Rocha outro (crítica de arquitetura)<br />

Vicente Schiezari projetista e construtor<br />

Jairo Alves da Silva projetista e construtor, quadro<br />

técnico<br />

Yolandino Torre projetista<br />

1934<br />

Rugero de Battisti projetista e construtor<br />

Murillo Sampaio Botelho Filho quadro técnico<br />

Luiz Camerlingo construtor<br />

Haroldo Amazonas Monteiro não determinado<br />

Domingos de Rosa projetista e construtor<br />

Lamartine Maia Rosa projetista e construtor<br />

João Carlos Rossi construtor<br />

Constante Costa da Silva não determinado<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

44


artigos e ensaios<br />

O desenho como uma questão<br />

epistemológica: Rui Barbosa e John Ruskin<br />

Claudio Silveira Amaral<br />

Arquiteto e Urbanista, pós-doutorado pela Fundação Casa de Rui<br />

Barbosa, pós-doutorado pela Ruskin Library and Research Centre<br />

da Universidade de Lancaster, professor e pesquisador no Curso de<br />

Pós-Graduação da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação<br />

da UNESP, Av. Eng. Luís Edmundo Carrijo Coube, 14-01, Vargem<br />

Limpa, Bauru, SP, CEP 17033-360, cs.amaral@terra.com.br<br />

Resumo<br />

A intenção deste artigo é estabelecer uma relação entre as propostas da Política<br />

do Ensino do Desenho e da Política de Industrialização, ambas de autoria do<br />

polímata (jurista, político, diplomata, escritor, filólogo, tradutor e orador) Rui<br />

Barbosa (1849-1923) e influenciadas por suas leituras dos escritos assinados<br />

pelo crítico de arte inglês John Ruskin (1819-1900). Para Rui Barbosa, assim<br />

como para John Ruskin o desenho é uma questão epistemológica.<br />

Palavras-chave: ensino, desenho, industrialização.<br />

A<br />

s chamadas Revolução Industrial e Revolução<br />

Francesa alteraram a divisão internacional do trabalho,<br />

a divisão social do trabalho e a divisão do<br />

trabalho em si, como também contribuíram para a<br />

difusão da ideologia do Iluminismo a todos os países.<br />

A proposta de industrialização de Rui Barbosa teria<br />

por objetivo alterar o senso comum de um país onde<br />

o trabalho era visto como algo indigno (realizado<br />

por pobres e escravos), para uma nova cultura social<br />

na qual o trabalho fosse reconhecido como seu<br />

principal valor. Só depois – talvez simultaneamente –<br />

surgiriam no Brasil as unidades fabris. Nesse sentido,<br />

a Educação seria o epicentro dessa transformação<br />

que Rui Barbosa explicitou em seus pareceres sobre<br />

‘Reforma do Ensino Primário’ (BARBOSA, 1942,<br />

1946,1947), ‘Reforma do Ensino Secundário e<br />

Superior’ (BARBOSA, 1941) e, depois, nas ‘Lições<br />

de Coisas’ (BARBOSA, 1950), em sintonia com as<br />

pedagogias dos países industrializados de então.<br />

Rui Barbosa foi influenciado por uma série de<br />

autores cuja afinidade ideológica circunscrevia-se<br />

às categorias maiúsculas do Iluminismo: Lógica,<br />

Razão, Objetividade, Natureza, Ciência, Progresso,<br />

Indústria.<br />

John Ruskin, considerado pela historiografia da<br />

Arquitetura Moderna como um neogótico e adverso<br />

à Revolução Industrial, será abordado aqui como<br />

adepto dos valores do Iluminismo e não como um<br />

medievalista pregador da volta ao sistema feudal de<br />

produção. Rui Barbosa, possivelmente, conheceu as<br />

ideias de Ruskin a partir de suas críticas à Exposição<br />

Universal de Londres de 1851, e do que observou<br />

como ausência de arte nos produtos industriais.<br />

Na industrialização, a questão estética foi, para<br />

Ruskin, não apenas do desenho do produto senão<br />

também – e fundamentalmente – das relações<br />

estabelecidas no processo produtivo. As ideias de<br />

Ruskin têm por base uma filosofia da Natureza cuja<br />

lógica se evidencia no relacionamento da política<br />

da ajuda mútua: cada elemento natural ajuda<br />

o outro para garantir sua existência. Esta seria,<br />

segundo Ruskin, a lógica da Natureza e também<br />

V14 N2<br />

revista de pesquisa em arquitetura e urbanismo instituto de arquitetura e urbanismo iau-usp<br />

45


O desenho como uma questão epistemológica: Rui Barbosa e John Ruskin<br />

sua ética. Ruskin estendeu sua filosofia da Natureza<br />

para as relações sociais e as relações produtivas, o<br />

que levou o arquiteto, designer e empreendedor<br />

Charles Robert Ashbee (1863-1942) a implantar<br />

uma fábrica de propriedade cooperativa com base<br />

nos escritos de Ruskin, bem como nos do designer<br />

têxtil, poeta, novelista, tradutor e militante socialista<br />

William Morris (1834-1896). Nesse contexto, o<br />

ensino do desenho seria o foco central de uma<br />

pedagogia voltada à formação de homens para<br />

o ‘trabalho com prazer’. Trata-se de um conceito<br />

ruskiniano, no qual o homem se encontra por<br />

inteiro, mergulhado em corpo e alma no trabalho:<br />

o trabalhador pensa e faz, sem uma divisão do<br />

trabalho com hierarquia de comando. O ensino do<br />

desenho teria por fim formar homens autônomos;<br />

ao contrário de autômatos, como seriam vistos os<br />

trabalhadores da indústria de então. Rui Barbosa<br />

partiu das críticas à Revolução Industrial, mas não<br />

chegou a definir um modelo ideal de unidade fabril.<br />

Tampouco Ruskin o fez. De fato, Rui Barbosa definiu<br />

um tipo de operário: aquele que pensa e faz da<br />

maneira como recomendaria Ruskin. Nesse sentido,<br />

o ensino do desenho é intrínseco à ‘pedagogia<br />

intuitiva’ (voltada a todos os sentidos do corpo),<br />

em que o aluno parte do concreto (a Natureza)<br />

para o abstrato (os conceitos). Dessa associação<br />

entre diferentes habilidades humanas – mental,<br />

manual e da visão –, em que o desenho exerce<br />

um papel central, surge ‘a mão que pensa’ a partir<br />

da observação da Natureza, no esteio de uma<br />

pedagogia que ensina a ver a lógica da Natureza.<br />

Ora, conceitos como Natureza, Lógica, Razão...,<br />

utilizados por Ruskin e Barbosa, inscrevem-se entre<br />

os valores do Iluminismo, concluindo-se que Rui<br />

Barbosa, assim como Ruskin, referia suas ideias<br />

pela concepção iluminista.<br />

Foi no Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro<br />

(LAO) que Rui Barbosa proferiu a palestra ‘O Desenho<br />

e a Arte Industrial’, ocasião quando explicitou<br />

sua proposta para a industrialização do país. Foi<br />

também no LAO, uma instituição de ensino com<br />

aulas noturnas gratuitas e voltada à população<br />

de trabalhadores, independentemente de credos<br />

religiosos, cor, idade ou sexo, que a pedagogia<br />

intuitiva foi utilizada pela primeira vez – e talvez<br />

a única. O ensino do LAO teria por mérito formar<br />

uma mão de obra qualificada em estética, destinada<br />

a um mercado de trabalho livre, em substituição<br />

à mão de obra escrava. Em outras palavras, Rui<br />

Barbosa propunha um ensino voltado à moderna<br />

sociedade industrial.<br />

Este artigo, portanto, tem como objetivo estabelecer<br />

uma relação entre a proposta de industrialização<br />

de Rui Barbosa e a proposta de<br />

industrialização de John Ruskin, uma vez que<br />

ambas têm em comum a promoção do desenho<br />

como base de fecundação.<br />

O século XIX<br />

A definição deste século impõe-se sobre a base<br />

histórica do Iluminismo, movimento filosófico desenvolvido<br />

na França, Alemanha e Inglaterra do<br />

século XVIII. A partir dos fundamentos iluministas,<br />

o Século XIX caracteriza-se por reconhecer o poder<br />

da Razão enquanto fonte única de entendimento,<br />

explicação e organização do mundo.<br />

[...] Procedente diretamente do racionalismo do<br />

século XVII, tem o clímax alcançado pela Ciência<br />

da Natureza (o Iluminismo vê no conhecimento<br />

da Natureza e no seu domínio eficiente a tarefa<br />

fundamental do homem). Conhecido também<br />

como Ilustração, não nega a história como um<br />

fato real, porém, a considera de um ponto de vista<br />

crítico e julga que o passado não é uma forma<br />

necessária na evolução da humanidade. [...] Na<br />

esfera da ciência e filosofia, pelo conhecimento da<br />

Natureza como meio de chegar ao seu domínio;<br />

na esfera moral e religiosa, pelo esclarescimento<br />

[...] das origens dos dogmas e das leis, como<br />

meio de chegar a uma religião natural igual em<br />

todos os homens, e um deísmo que não nega a<br />

Deus, que o relega à função de criador e primeiro<br />

motor de existência. (PEQUENO DICIONÁRIO DE<br />

FILOSOFIA, 1977; p. 191)<br />

Dessas considerações, o que interessa a este ensaio<br />

são duas certezas – indubitáveis – proclamadas pelos<br />

pensadores do Iluminismo:<br />

(i) A Natureza como origem de tudo e como única<br />

fonte de conhecimentos.<br />

(ii) A necessidade de conhecer as leis da Natureza<br />

para dominá-la.<br />

Tais convicções colocam o homem frente à Natureza<br />

e esta, como modelo de leis que a explicam. Tais<br />

leis, transplantadas para o contexto das relações<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

46


O desenho como uma questão epistemológica: Rui Barbosa e John Ruskin<br />

1 “Havia uma ordem no universo,<br />

mas já não era a ordem<br />

do passado. Havia somente<br />

um Deus, cujo nome era<br />

vapor e que falava com a<br />

voz de Malthus, McCulloch<br />

e de qualquer um que usasse<br />

maquinas.” (HOBSBAWN,<br />

2014, p. 294)<br />

2 “É significativo que os<br />

dois principais centros dessa<br />

ideologia fossem também os<br />

da dupla revolução, a França<br />

e a Inglaterra; embora de<br />

fato as ideias iluministas<br />

ganhassem uma voz corrente<br />

internacional ampla em suas<br />

formulações francesas,<br />

um individualismo secular,<br />

racionalista e progressista<br />

dominava o pensamento<br />

“esclarecido”. Libertar<br />

o individuo das algemas<br />

que o agrilhoavam era o<br />

seu principal objetivo: do<br />

tradicionalismo ignorante<br />

da Idade Média, que ainda<br />

lançava sua sombra pelo<br />

mundo, da superstição das<br />

Igrejas (distintas da religião<br />

‘racional’ ou ‘natural’), da<br />

irracionalidade que dividia os<br />

homens em uma hierarquia<br />

de patentes mais baixas e<br />

mais altas de acordo com<br />

o nascimento ou algum<br />

outro critério irrelevante.<br />

A liberdade, a igualdade e<br />

a fraternidade de todos os<br />

homens era seu slogan. No<br />

devido tempo se tornaria um<br />

slogan da Revolução Fancesa<br />

também.” (HOBSBAWN,<br />

2014, p. 48)<br />

3 “Poucas vezes a incapacidade<br />

dos governos em conter<br />

o curso da historia foi<br />

demonstrada de forma mais<br />

decisiva do que na geração<br />

pós 1815. Evitar uma segunda<br />

Revolução Francesa, ou<br />

ainda uma catástrofe pior de<br />

uma Revolução Europeia. Até<br />

mesmo os britânicos que não<br />

simpatizavam com o absolutismo,<br />

sabiam muito bem que<br />

as reformas não poderiam ser<br />

evitadas e temiam uma nova<br />

expansão franco-jacobina<br />

mais do que qualquer outra<br />

contingência internacional. E,<br />

ainda assim, nunca na historia<br />

da Europa e poucas vezes<br />

em qualquer outro lugar, o<br />

revolucionarismo foi tão endêmico,<br />

tão geral, tão capaz<br />

de se espalhar por propaganda<br />

deliberada como por<br />

contágio espontâneo. [...] A<br />

revolução Espanhola reviveu<br />

o movimento de libertação na<br />

América Latina. Os três grandes<br />

libertadores da América<br />

...continua próxima página...<br />

sociais, conseguem se instituir como instrumento<br />

de conhecimento da realidade e, nela, do homem.<br />

Para o Século XIX, a Natureza, entregue a suas próprias<br />

leis, transforma-se em modelo epistemológico<br />

de análise e conhecimento.<br />

Conforme o historiador britânico Eric Hobsbawm<br />

(1917-), a Revolução Francesa foi a responsável<br />

pela difusão das ideias do Iluminismo mundo afora.<br />

Para Hobsbawm, os anos entre 1789 e 1848<br />

trouxeram a maior transformação na história da<br />

humanidade, a que chamou de ‘dupla revolução’.<br />

A Revolução Industrial modificou aspectos da produção<br />

material, tecnológica, política, e ideológica<br />

de todos os países. Ela alterou a vida do mundo,<br />

ao constituir uma nova divisão internacional do<br />

trabalho, uma nova divisão social do trabalho e<br />

uma nova divisão do trabalho em si. 1<br />

A Revolução Industrial transformou o sistema<br />

de produção material da sociedade, enquanto a<br />

Revolução Francesa tratou de difundir as novas<br />

ideias, características do Iluminismo. 2<br />

Esse contágio de ideias revolucionárias invadiu a<br />

atmosfera econômica e social de todos os países,<br />

exigindo de seus governos adequarem-se aos valores<br />

do Iluminismo. Mesmo que isso fosse apenas uma<br />

farsa, como foi o caso do Brasil. 3<br />

Foi nesse contexto de revoluções que se deu a<br />

independência do Brasil de Portugal. Àquela época,<br />

Portugal já era administrado por uma concepção de<br />

lógica burocrática, própria de um Estado Moderno.<br />

Quando a Família Real portuguesa chegou ao Brasil,<br />

trouxe uma concepção de ordem administrativa<br />

baseada na racionalidade de uma burocracia. Para<br />

o cientista político e historiador brasileiro Murilo de<br />

Carvalho (1939-), essa burocracia era constituída por<br />

uma elite política, com base em uma homogeneidade<br />

ideológica. Diferentemente da homogeneidade de<br />

origem classista, essa tinha por eixo os estudos. Para<br />

participar, ou seja, para ser um funcionário público,<br />

era preciso ter formação universitária. Foi assim<br />

que a Universidade de Coimbra se especializou em<br />

formar burocratas para o Estado português. Com a<br />

Independência do Brasil, a instituição de faculdades<br />

de Direito em Pernambuco e em São Paulo substitui<br />

a ida dos filhos da elite brasileira a Coimbra.<br />

Essa burocracia estruturou-se em uma divisão de<br />

trabalho na forma de um organograma e de um<br />

fluxograma. Interna ao organograma definia-se uma<br />

hierarquia de comando na qual alguns pensam e<br />

decidem e os demais executam.<br />

Associada a essa burocracia, havia uma instância<br />

de representação composta pela Câmara de Deputados,<br />

Senado, um Conselho de Estado e o<br />

Poder Moderador. Dessa forma, apresentava-se<br />

uma concepção de Estado Moderno, ou seja, um<br />

Império Parlamentar. Entretanto, na medida em<br />

que o Poder Moderador (o Imperador) era, em<br />

última instância, quem decidia, a própria estrutura<br />

parlamentar tornava-se uma farsa: ao Imperador<br />

reservava-se o direito de destituir de poderes os<br />

integrantes da estrutura representativa. 4<br />

O Brasil alcançou sua independência, implantou<br />

um Estado Moderno, integrou uma nova posição<br />

na divisão internacional do trabalho. Porém, o<br />

país manteve a antiga divisão social do trabalho<br />

colonial, com base na agro exportação e sustentada<br />

na mão de obra escrava. Sabe-se que a Inglaterra<br />

pressionou o Império Brasileiro para que extinguisse<br />

a escravidão no país, decisão protelada ao máximo<br />

porque a agro exportação com base no trabalho<br />

escravo representava a garantia de maior receita<br />

para o Estado.<br />

Foi neste ambiente iluminista e de revoluções que<br />

viveram Rui Barbosa e John Ruskin. Seus projetos<br />

intelectuais procuraram responder a questões de<br />

seu tempo.<br />

Lourenço Filho atesta que Rui Barbosa foi um dos<br />

primeiros – senão o primeiro – a tentar disciplinar as<br />

questões gerais da educação nacional em seu sentido<br />

teórico-prático. Para tanto, Barbosa pesquisou<br />

vários autores, sendo muito grande o número de<br />

citações nos pareceres de suas Reformas do Ensino.<br />

[...] Vejamos as referências bibliográficas presentes<br />

nos pareceres.<br />

“Quantas e quais são elas? [...] Desde que se<br />

somem, obtém-se o total de 524. No primeiro<br />

parecer, referente ao Ensino Secundário e Superior,<br />

são 154. Remetem a 73 obras. No segundo, mais<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

47


O desenho como uma questão epistemológica: Rui Barbosa e John Ruskin<br />

... continuação da nota 3 ...<br />

espanhola, Simon Bolívar,<br />

San Martin e Bernardo O´Higgins,<br />

estabeleceram a independência<br />

respectivamente<br />

da ‘Grande Colômbia’ (que<br />

incluía as atuais repúblicas<br />

da Colômbia, da Venezuela<br />

e do Equador), da Argentina<br />

(exceto as áreas interioranas<br />

que hoje constituem o Paraguai<br />

e a Bolívia e os pampas<br />

além do rio da Prata, onde os<br />

gaúchos da Banda Oriental –<br />

hoje Uruguai – lutaram contra<br />

argentinos e brasileiros) e<br />

do Chile. Por volta de 1922<br />

a América espanhola estava<br />

livre. Enquanto isso, Iturbide,<br />

o general espanhol enviado<br />

para lutar contra as guerrilhas<br />

camponesas que ainda<br />

resistiam no México, tomou<br />

o partido dos guerrilheiros<br />

sob o impacto da revolução<br />

Espanhola e, em 1821, estabeleceu<br />

a independência<br />

mexicana. Em 1822, o Brasil<br />

separou-se pacificamente de<br />

Portugal sob o comando do<br />

regente deixado pela Família<br />

Real portuguesa em seu retorno<br />

à Europa após o exilio<br />

napoleônico.” (HOBSBAWN,<br />

2014; p. 181)<br />

4 “O monarca constitucional,<br />

além de ser o chefe do<br />

Poder Executivo, tem ademais<br />

o caráter augusto de<br />

defensor da Nação: ele é sua<br />

primeira autoridade vigilante,<br />

guarda dos nossos direitos e<br />

da Constitução. Eis, pois, a<br />

orientação que os conservadores<br />

brasileiros seguiriam<br />

no período: conciliar o governo<br />

forte com as fórmulas<br />

constitucionais e representativas,<br />

garantir sob as formas<br />

oligárquicas uma essência<br />

monárquica. Embora o art. ll<br />

da Carta Imperial declarasse<br />

que tanto o príncipe quanto<br />

a assembleia eram representantes<br />

da soberania nacional,<br />

o art. 98 proclamava a<br />

primazia do primeiro como<br />

o primeiro representante da<br />

Nação, por ela encarregado<br />

de velar incessantemente<br />

pelo equilíbrio dos poderes<br />

políticos. [...] Ou seja, embora<br />

ambos fossem delegados<br />

da nação, a representação<br />

exercida pelo imperador era<br />

anterior e superior àquela<br />

exercida pela assembleia”.<br />

(LYNCH, 2014, p. 50)<br />

5 “In 1849 Ruskin argued,<br />

in the Seven Lamps for the<br />

rejection of styles and the<br />

pursuit of styles: ‘We want<br />

...continua próxima página...<br />

extenso, excedem milhar e meio, por sua vez,<br />

mencionando 451 publicações diferentes. Entendamse,<br />

obras ou conjuntos delas, muitos dos quais<br />

em diversos volumes. Deles, o total ascende a<br />

quase 600, o que vale dizer que Rui se serviu de<br />

uma considerável livraria para a elaboração destes<br />

trabalhos.” (LOURENÇO FILHO, 2001, p. 103)<br />

É praticamente impossível abordar todos os autores<br />

citados por Barbosa. Entretanto, John Ruskin merece<br />

a nossa especial atenção frente a importância que<br />

teve no projeto de Barbosa.<br />

John Ruskin<br />

A principal preocupação de Ruskin encontra-<br />

-se em uma concepção de lógica e de razão na<br />

sustentação da abordagem de assuntos como<br />

arquitetura, pintura, política econômica, religião<br />

e outros (AMARAL, 2011). Diferentemente da<br />

opinião de vários historiadores da arquitetura moderna,<br />

que analisaram a obra ruskiniana sobre<br />

arquitetura de forma isolada, desvinculada dos<br />

demais assuntos, aqui as ideias e opiniões de Ruskin<br />

serão compreendidas sob a visão da estrutura lógica<br />

e da razão com que ele desenvolveu seus textos. O<br />

objetivo de Ruskin não seria constituir uma teoria<br />

da Natureza, da pintura, da política econômica,<br />

ou mesmo da arquitetura, e sim utilizar a mesma<br />

lógica de composição na abordagem de todos<br />

esses assuntos.<br />

O inglês John Ruskin foi um crítico de arte que viveu<br />

no século XIX, na Inglaterra vitoriana. Considerado o<br />

defensor do estilo gótico revival, mais precisamente<br />

o neogótico veneziano, viu-se obrigado, no prefácio<br />

da edição de 1849 de ‘As Sete Lâmpadas da Arquitetura’,<br />

e depois, em novo prefácio à edição de<br />

1855, a desmentir tal preferência. 5 Suas palavras<br />

não pretendiam divulgar um novo estilo e sim uma<br />

nova forma de raciocínio, justamente contrária a<br />

qualquer estilo.<br />

Segundo Elizabeth K. Helsinger (HELSINGER,<br />

1982), George L. Hersey (HERSEY, 1982) e John<br />

Dixon Hunt (HUNT, 1982), a forma de condução<br />

do raciocínio de Ruskin pode ser qualificada<br />

como um ‘pensamento visual, espacial’. Essa<br />

expressão de uma lógica visual é considerada<br />

por esses críticos como oposta à lógica formal:<br />

enquanto (i) a lógica formal prende-se a uma<br />

sequência linear, acompanhada por um tempo<br />

que cresce em argumentos e evolui de um ponto<br />

a outro, (ii) a lógica visual justapõe assuntos,<br />

usa da simultaneidade ao invés da linearidade<br />

no sequenciamento de ideias, trata do tempo<br />

como uma unidade simultânea composta de<br />

presente-passado-futuro, permite-se perder em<br />

divagações quando achar necessário, diverte-se<br />

com as cores e as texturas, com aproximações e<br />

distâncias, associa assuntos nunca antes vinculados<br />

e utiliza-se do recurso da metáfora para valorizar<br />

tais associações.<br />

Entende-se o fato de a obra de Ruskin se preocupar<br />

com o ensino da visão que, para ele, permite a<br />

visualização de uma concepção lógica da Natureza.<br />

Para ele, a leitura será sempre o resultado da<br />

apreensão de uma lógica cuja razão é captada pelo<br />

olhar sensível da primeira impressão.<br />

Para Ruskin, ensinar a desenhar é “ensinar a ver”,<br />

e ensinar a ver, ensinar a ler a lógica da Natureza:<br />

“Lembrem-se não estou aqui para ensiná-los<br />

a desenhar, estou aqui para ensiná-los a ver.”<br />

(HASLAM, 1988)<br />

O desenho ruskiniano se relaciona com a percepção,<br />

a educação, a cultura e as relações sociais no<br />

trabalho. A lógica presente em sua concepção de<br />

razão estrutura todos esses assuntos, permitindo<br />

que se inter-relacionem.<br />

O ensinar a ver ruskiniano contém, sem dúvida,<br />

uma proposta ética, motivada pelo culto ao belo. O<br />

belo é, portanto, o resultado de um relacionamento<br />

entre objetos, sensações e memórias. O belo é<br />

também o resultado de relações sociais, na forma de<br />

organização do trabalho, expressa em uma “política”<br />

da ajuda mútua cuja ética é própria da lógica da<br />

Natureza. Ruskin busca essa ética na paisagem<br />

natural, percebida por ele como bela porque nela<br />

encontra elementos constituintes, dependentes uns<br />

dos outros para viver uma situação de harmonia.<br />

Ruskin pretendia que a ética da Natureza se refletisse<br />

nas relações de produção da sociedade industrial e<br />

seus resultados. Isto seria belo.<br />

A arquitetura, particularmente, apareceu na teoria<br />

ruskiniana como o melhor exemplo dessa lógica:<br />

quando Ruskin visualiza um edifício, enxerga as<br />

relações de trabalho sobre as quais foi construído.<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

48


O desenho como uma questão epistemológica: Rui Barbosa e John Ruskin<br />

... continuação da nota 5 ...<br />

no new style in architecture.<br />

[...] But we want some styles’.<br />

Once a single style had become<br />

universally accepted,<br />

its adaptation would eventually<br />

produce a new style<br />

suitable to a new world. Unfortunately,<br />

however, Ruskin<br />

recommended not one style<br />

but a choice of four: Prisan<br />

romanesque, as in the Baptistry<br />

and Cathedral at Pisa,<br />

Early Gothic of the western<br />

Italian republics, as at Sta.<br />

Croce, Florence; Venetian<br />

Gothic – Sta. Maria dellÓrto,<br />

for example –, and early English<br />

decorated, as the north<br />

transept at Lincoln. (Crook,<br />

1982, p. 69)<br />

6 Frase que influenciou<br />

William Morris a escrever<br />

‘News from Nowhere’, novela<br />

que fala de uma sociedade<br />

utópica na qual a atividade<br />

do trabalho ocorre segundo<br />

o desejo e as particularidades<br />

de cada um. Assim, o resultado<br />

do trabalho é, para Morris,<br />

sempre uma obra de arte,<br />

pois é o resultado de uma<br />

atividade feita com prazer.<br />

(THOMPSON, 1955)<br />

7 [...] Mas somos uma nação<br />

agrícola. E porque não também<br />

uma nação industrial?<br />

Falece-nos o ouro, a prata,<br />

o ferro, o estanho, o bronze,<br />

o mármore, a argila, a madeira,<br />

a borracha, as fibras<br />

têxteis? Seguramente, não.<br />

Unicamente a educação especial,<br />

que nos habilite a não<br />

pagarmos ao estrangeiro o<br />

tributo enorme da mão de<br />

obra, e, sobretudo da mão de<br />

obra artística. Raro é o produto<br />

utilizável, seja de mero<br />

luxo, seja de uso comum,<br />

em que o gosto, a arte, a<br />

beleza não constitua o elemento<br />

incomparavelmente<br />

preponderante do valor. Ora,<br />

como nós não produzimos<br />

senão matéria bruta, o preço<br />

da nossa exportação ficará<br />

sempre imensamente aquém<br />

da importação de arte, a que<br />

nos obrigam as necessidades<br />

da vida civilizada. Nenhum<br />

país, a meu ver, reúne em<br />

si qualidades tão decisivas<br />

para ser fecundamente industrial,<br />

quanto aqueles, como<br />

o nosso, onde uma natureza<br />

assombrosa prodigaliza às<br />

obras do trabalho mecânico e<br />

do trabalho artístico um material<br />

superior, na abundancia<br />

e na qualidade. (BARBOSA,<br />

1949, p. 47)<br />

Ruskin falou de religião para tratar o assunto da<br />

criação arquitetônica. Explicou a existência de um<br />

deus arquiteto, construtor da Natureza graças<br />

a um trabalho criativo e perfeito. Reconheceu a<br />

imperfeição do homem, mas admitiu que este<br />

pudesse ser criativo, embora nunca perfeito como<br />

um criador divino. Por ser imperfeito, o homem<br />

deveria pedir ajuda a outros homens. E só seria<br />

criativo caso se associasse aos demais de forma<br />

cooperativa, no respeito à ética da ajuda mútua.<br />

Uma das frases mais conhecidas do crítico de arte<br />

inglês é a de que “o trabalho deve ser feito com<br />

prazer”. 6 Esta ideia implica uma concepção de<br />

prazer diferente da cultura vitoriana de seu tempo,<br />

quando o prazer significava o divertimento depois<br />

do trabalho e se realizava no ato do consumo.<br />

Para Ruskin, o prazer pertence ao mundo do<br />

trabalho, entendendo-se que o trabalho criativo<br />

traz prazer a quem o executa. Além de o trabalho<br />

ser feito com prazer, ele deve produzir coisas<br />

úteis para a vida.<br />

A teoria da percepção ruskiniana busca enxergar<br />

o belo. Contudo, o belo é fruto de uma lógica,<br />

expressão de uma ética que também se reflete na<br />

arquitetura desde sua produção, sob a forma de<br />

relações no trabalho. A partir dessas associações, a<br />

teoria da arquitetura ruskiniana supera a diferença<br />

entre as artes liberais e as artes mecânicas. Ao<br />

considerar a política da ajuda mútua, Ruskin se<br />

posiciona contrário a qualquer tipo de divisão<br />

no trabalho. Para ele, as relações no trabalho devem<br />

abolir a separação entre quem pensa e quem faz.<br />

O projeto político de Rui Barbosa<br />

Rui Barbosa, formado pela Faculdade de Direito da<br />

Universidade de São Paulo, portanto capacitado a<br />

participar da burocracia Imperial, exerceu as funções<br />

de Deputado durante um período de sua vida, quando<br />

elaborou um projeto para industrializar o Brasil 7 .<br />

Barbosa, embora fosse um político, utilizou a<br />

Educação como o alicerce de sua proposta de<br />

industrialização. Foi a partir de seus pareceres<br />

sobre a ‘Reforma do Ensino Primário’ e a ‘Reforma<br />

do Secundário e Superior’ (CÂMARA DOS DEPU-<br />

TADOS, 1882, 1883) 8 que sua proposta ganhou<br />

corpo.<br />

À época imaginava-se, como primeiro passo a ser<br />

dado para industrializar o país, a implantação de<br />

uma política educacional que valorizasse o trabalho<br />

manual. A pedagogia de Rui Barbosa substituiria a de<br />

influência jesuítica, fundamentada na memorização,<br />

por uma pedagogia qualificada de ‘intuitiva’, baseada<br />

nos sentidos do corpo humano.<br />

Para Barbosa, a educação é uma questão filosófica,<br />

social, política e técnica 9 .<br />

Barbosa acreditou no poder de uma ciência 10<br />

distante das paixões e dos interesses mesquinhos<br />

dos homens, porque tratava de objetividades, de<br />

leis e de razões. 11<br />

Sua pedagogia, primeiramente, reivindicou a união<br />

entre a mente e o corpo. Esta postura anti-cartesiana<br />

– de defesa dessa união – também representou uma<br />

crítica ao ensino de sua época, focado no modelo<br />

da catequese católica, o qual privilegia apenas a<br />

capacidade de memorização da mente.<br />

“Educar a vista, o ouvido, o olfato, habituar os<br />

sentidos a se exercerem naturalmente sem esforço e<br />

com eficácia; ensiná-los a apreenderem os fenômenos<br />

que se passam ao redor de nós, a fixarem na mente<br />

a imagem exata das coisas, a noção precisa dos<br />

fatos, eis a primeira missão da escola, e, entretanto<br />

a mais completamente desprezada na economia<br />

dos processos rudimentares que vigoram em nosso<br />

país.” (BARBOSA, 1942, p. 52)<br />

O aluno, segundo Barbosa, inicia seu aprendizado a<br />

partir das coisas concretas apreendidas na Natureza<br />

para só depois abstraí-las pelo uso das linguagens,<br />

tornando-as representações do real via conceitos.<br />

Do concreto para o abstrato e não do abstrato<br />

para o concreto como era o ensino de então. É<br />

por isso que os sentidos do corpo possuem um<br />

valor primordial para a pedagogia proposta por Rui<br />

Barbosa: no corpo estariam os poros pelos quais a<br />

realidade penetraria o ser. No entanto, existiria um<br />

sentido mais importante que os demais: o sentido do<br />

olhar. Seria através da visão que se estabeleceria o<br />

primeiro contato com o mundo externo a nós, e foi<br />

assim como o método científico se impôs, iniciando<br />

com a observação da Natureza para dela extrair<br />

verdades ou leis. Nessa perspectiva, o ensino teria<br />

por objetivo ensinar a ver. Porém, seria incorreto<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

49


O desenho como uma questão epistemológica: Rui Barbosa e John Ruskin<br />

8 Antes destes pareceres, Rui<br />

Barbosa já havia traduzido<br />

a obra de Norman Alisson<br />

Calkins (CALKINS, 1950)<br />

(LOURENÇO FILHO, 2001;<br />

p. 90).<br />

9 [...] Ora em pedagogia, o<br />

sistema começa por ser uma<br />

filosofia. O intento de intervir<br />

no destino do homem<br />

envolve necessarimente,<br />

uma compreensão do mundo,<br />

uma intuição do valor<br />

das energias do espírito e da<br />

cultura. (LOURENÇO FILHO,<br />

2001, p. 41)<br />

10 “Mas esse viciamento<br />

dos processos praticados no<br />

ensino secundário resulta<br />

inevitavelmente da ausência<br />

do espírito científico, que<br />

só se poderá incutir, restituindo<br />

à ciência o seu lugar<br />

preponderante na educação<br />

das gerações humanas. Todo<br />

o futuro da nossa espécie,<br />

todo o governo das sociedades,<br />

toda a prosperidade<br />

moral e material das nações<br />

dependem da ciência, como<br />

a vida do homem depende<br />

do ar. Ora, a ciência é toda<br />

observação, toda exatidão,<br />

toda verificação experimental.<br />

Perceber os fenômenos,<br />

discernir as relações, comparar<br />

as analogias e as dessemelhanças,<br />

classificar as<br />

realidades, e induzir as leis,<br />

eis a ciência; eis, portanto,<br />

o alvo que a educação deve<br />

ter em mira. Despertar na<br />

inteligência nascente as faculdades<br />

cujo concurso se<br />

requer nesses processos de<br />

descobrir e assimilar a verdade,<br />

é o a que devem tender<br />

os programas e os métodos<br />

de ensino. Ora, os nossos<br />

métodos e os nossos programas<br />

tendem precisamente<br />

ao contrario: a entorpecer<br />

as funções, a atrofiar as faculdades<br />

que habilitam o<br />

homem a penetrar o seio<br />

da natureza real, e perscrutar-lhe<br />

os segredos. Em vez<br />

de educar no estudante os<br />

sentidos, de industriá-lo em<br />

descobrir e pensar, a escola e<br />

o liceu entre nós ocupam-se<br />

exclusivamente em criar e desenvolver<br />

nele os hábitos mecânicos<br />

de decorar, e repetir.<br />

A ciência e o sopro científico<br />

não passam por nós. Penetramos<br />

nas academias com uma<br />

bagagem de estudos inúteis,<br />

sem a mais tênue mescla das<br />

habilitações precisas para<br />

entender a ciência e a vida.”<br />

(BARBOSA, 1941, p. 36)<br />

dizer que a visão é o sentido mais importante,<br />

porquanto a mesma pedagogia mistura-o em<br />

uma condição sinestésica: 12 na medida em que a<br />

mente se associa ao corpo, ou seja, a todos seus<br />

sentidos, observar é ver, e ver, ao se associar à<br />

mente, é pensar.<br />

O pensar, para os intelectuais do século XIX,<br />

obedecia ao método indutivo-dedutivo. O pensar<br />

conforme o método científico opera segundo uma<br />

lógica para se chegar a uma síntese, ou seja, a<br />

uma razão, e, portanto, a uma universalidade.<br />

Sendo a observação o primeiro momento da experiência<br />

científica e também do ensino racional,<br />

a linguagem apropriada para ensinar a ver seria<br />

o desenho. O desenho como resultado de uma<br />

operação sinestésica a ser executada pela mão,<br />

mente e olho. Para Barbosa, o desenho é a<br />

disciplina mais importante do método intuitivo,<br />

pelo que dizia: “Antes de aprender a ler ou a<br />

escrever, o aluno deverá aprender a desenhar”.<br />

“Na progressão natural, portanto, o desenho há<br />

de preceder a escrita. Dominada pelo gênio da<br />

curiosidade, a criança não o é menos pelo gênio<br />

da imitação. Todos os meninos desenham, por um<br />

natural pendor dos mais enérgicos instintos dessa<br />

idade. Modelar formas, e debuxar imagens: eis<br />

a primeira e mais geral expressão da capacidade<br />

criadora nas gerações nascentes. Cabe, pois, ao<br />

desenho, no programa escolar, precedência à escrita,<br />

cujo ensino facilita, e prepara racionalmente,<br />

naturalmente à leitura e a escrita.” (BARBOSA,<br />

1946, p. 64)<br />

O desenho passou a ser uma das grandes preocupações<br />

da pedagogia do século XIX. Pois,<br />

se desenhar é pensar, a função primordial da<br />

educação é ensinar a pensar. 13<br />

Nesse sentido, a palestra intitulada ‘O Desenho<br />

e a Arte Industrial’, pronunciada por Rui Barbosa<br />

no Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro em<br />

1882, é emblemática. Desse discurso surgiu a<br />

proposta de industrialização da nação. O ensino<br />

do desenho intuitivo seria voltado à formação de<br />

operários para substituir a mão de obra escrava no<br />

mercado de trabalho: “O desenho seria a escrita da<br />

indústria” (BARBOSA, 1942, 1946, 1947, p.115).<br />

“O desenho, senhores, unicamente, essa modesta<br />

e amável disciplina, pacificadora, comunicativa e<br />

afetuosa entre todas: o desenho professado às<br />

crianças e aos adultos, desde o Kindergarten até à<br />

universidade, como base obrigatória na educação de<br />

todas as camadas sociais “ (BARBOSA, 1949, p. 240).<br />

Tem-se aqui uma visão crítica de Barbosa em relação<br />

à Revolução Industrial: o operário que se pretende<br />

formar pensa e não apenas obedece; o ensino<br />

forma, não informa, educa homens e não pessoas<br />

dóceis (BARBOSA, 1946, p. 113). Trata-se de formar<br />

pessoas autônomas e não autômatos, como eram<br />

os operários dos países industrializados.<br />

“O primeiro escrito pedagógico [de Rui Barbosa]<br />

dado a público foi um discurso pronunciado no Liceu<br />

de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro, em novembro<br />

de 1882, e logo a seguir impresso. Consiste em<br />

ensaio sobre a importância do desenho no campo<br />

do artesanato e da produção industrial, bem como<br />

da influência geral do ensino artístico na formação<br />

do homem. Tem a feição de um prólogo, ou de<br />

adendo a mais largo estudo, que parece estar<br />

subentendido, embora Rui não lhe faça qualquer<br />

referência expressa. A que mais largo estado teria<br />

a intenção de reportar-se? Seria ao da tradução e<br />

adaptação do guia didático Liçoes de coisas, de<br />

Calkins, que no ano anterior havia preparado, mas<br />

se conservava inédito? Seria o parecer sobre Ensino<br />

Secundário, entregue em abril de 1882 à Comissão<br />

de Instrução Pública da Câmara dos Deputados,<br />

ou, enfim, ao parecer sobre Ensino Primário, nessa<br />

comissão apresentado duas semanas antes de<br />

proferido o discurso? De modo geral, a todos esses<br />

escritos, mas, em especial a este último, seu mais<br />

completo e extenso trabalho pedagógico, e no qual,<br />

nada menos que um décimo de todo o espaço se<br />

consagra à pedagogia do desenho e à influência<br />

educativa e social dessa disciplina.” (LOURENÇO<br />

FILHO, 2001, p. 90)<br />

Barbosa acompanhou as críticas feitas à péssima<br />

qualidade dos produtos industriais, como também<br />

a solução dada pelos governos dos países industrializados<br />

quanto a investir no ensino do<br />

desenho. 14<br />

Provavelmente, foi por intermédio das críticas à<br />

Exposição Mundial de 1851 em Londres que Rui<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

50


O desenho como uma questão epistemológica: Rui Barbosa e John Ruskin<br />

11 “Ora a verdade qual é,<br />

qual é o erro, a respeito de<br />

cada governo, a respeito de<br />

cada instituição existente? O<br />

erro na opinião de uns é a<br />

verdade na de outros; o erro<br />

aos olhos do poder é a verdade<br />

aos da oposição; o erro<br />

ao ver da maioria é a verdade<br />

na convicção dos dissidentes.<br />

Por ventura é sobre uma teoria<br />

céptica que assentamos os<br />

direitos da liberdade? Não;<br />

é sobre uma delimitação de<br />

competência real. Quem será<br />

neste mundo, o definidor da<br />

verdade e do erro? O Estado?...<br />

Secular ou religioso, o<br />

Estado não pode ser o árbitro<br />

da verdade, o qualificador do<br />

erro. Esta dignidade pertence,<br />

pois à ciência, que não<br />

tem organização oficial, cujo<br />

processo é a investigação,<br />

cuja luz o debate, cujo meio<br />

vital a liberdade... este dever<br />

e este direito são fatalmente<br />

limitados pelo seu objeto: a<br />

substituição da ignorância<br />

popular pela instrução popular.”<br />

(BARBOSA, 1946, p. 17)<br />

12 “Simultaneamente com a<br />

ginástica, que deve acompanhar,<br />

desde a escola primária,<br />

a educação em todo o seu<br />

curso, impõe-se à escola a<br />

necessidade de educar as faculdades<br />

de observação que<br />

raiam no espirito da criança<br />

com o primeiro despontar<br />

da inteligência. O menino<br />

é a curiosidade em pessoa.<br />

Pode-se definir a infância<br />

uma humanidade sem experiência,<br />

ávida de conhecer, e<br />

instruir-se... Observando imediatamente<br />

as coisas, exercitando-se<br />

em ver, em discernir<br />

as formas, em avaliar a relatividade,<br />

o timbre, a direção,<br />

a procedência, em apreciar<br />

pelo tato as superfícies, em<br />

diferenciar as sensações do<br />

paladar e do olfato, é que<br />

se ascenderá, se apurará, se<br />

ativará na infância o instinto<br />

da observação, origem de<br />

toda a atividade intelectual e<br />

alimento de todo o amor do<br />

estudo no homem. É pelos<br />

sentidos que o menino tem<br />

a primeira noção metódico,<br />

esse emprego constitui o primeiro<br />

modo de exploração<br />

científica: a observação.”<br />

(BARBOSA 1946, p. 63)<br />

Barbosa conheceu as ideias de John Ruskin sobre<br />

a indústria e o ensino do desenho.<br />

“Araújo Porto Alegre considerava lastimável a<br />

presença do Brasil na Exposição de 1851, e Rui<br />

Barbosa mostrava que a própria participação inglesa<br />

fora desastrosa, seus comentários foram<br />

certamente inspirados em John Ruskin cuja obra<br />

The Stones of Venice cita no mencionado discurso.<br />

Foi Ruskin quem chamou a atenção para a feiúra<br />

dos objetos produzidos na Inglaterra vitoriana, para<br />

a superioridade da produção artesanal, bem como<br />

para a sua visão da arte como necessidade social,<br />

que nenhuma nação poderia desprezar sem colocar<br />

em perigo sua existência intelectual.” (GAMA,<br />

1987, p. 144)<br />

Em sua proposta de ‘Reforma do Ensino Primário’,<br />

Barbosa citou Ruskin para falar da relação Educação/<br />

Natureza, relação esta em sintonia com a metodologia<br />

das ciências que entendia a Natureza possuidora<br />

de uma lógica capaz de ser apreendida pelos sentidos<br />

do corpo para ser reproduzida nas relações sociais<br />

e produtivas da sociedade. 15<br />

O operário que se pretendia formar pelo ensino do<br />

desenho sob a influência da pedagogia intuitiva não<br />

era o trabalhador passivo e treinado para obedecer,<br />

e sim o operário que pensa e toma decisões. Nesse<br />

aspecto, Barbosa se identificou com as ideias de<br />

John Ruskin.<br />

Ruskin foi reconhecidamente um dos críticos<br />

mais ferozes à Exposição de Londres de 1851:<br />

“Faltava arte aos produtos industriais”, dizia ele. No<br />

entanto, sua concepção de arte nunca se restringiu<br />

à melhoria da qualidade do desenho do produto.<br />

A estética ruskiniana deriva de sua concepção de<br />

lógica natural, em que o belo é o resultado de<br />

uma relação estabelecida, acorde a uma política<br />

da ajuda mutua. Um tipo de relacionamento que<br />

Ruskin acreditou representar a lógica da Natureza.<br />

O belo, no produto industrial, derivaria da ética<br />

do trabalho com base na cooperação, mediante a<br />

política da ajuda mútua.<br />

alienante. Para Ruskin, essa seria a tônica do que<br />

chamou ‘produto sem estética’.<br />

Entretanto, a crítica ruskiniana não exige simplesmente<br />

um desenho bem feito e sim outro tipo<br />

de relacionamento na divisão do trabalho fabril,<br />

o mesmo tipo de relação que imaginou existir na<br />

Natureza. Para tanto, ele exigia, também, uma<br />

Educação que levasse em conta o desenvolvimento<br />

do homem como ser pensante e não como ser<br />

alienado, o que o levou a propor o trabalho feito<br />

de forma cooperativa, um trabalho feito com prazer,<br />

no qual o homem está envolvido por inteiro<br />

(mente e corpo). A escola/fábrica/comércio seria<br />

uma ‘cooperativa’, na qual os proprietários seriam<br />

também os operários, administradores e vendedores<br />

de seu produto. Os lucros, como os prejuízos, seriam<br />

socializados entre todos os participantes do processo.<br />

Eliminavam-se os “fantasmas” – quando um obtém<br />

os créditos pelo trabalho do outro –, assim como a<br />

intermediação entre a produção e o consumo – com<br />

a venda do produto no próprio local da produção.<br />

Para Ruskin, ensinar a desenhar é ensinar a ver, e ensinar<br />

a ver é ensinar a ler a lógica da Natureza. Nesse sentido,<br />

o ensino do desenho ruskiniano parte da observação<br />

da Natureza e da busca por uma lógica natural,<br />

resultando em uma livre associação entre elementos<br />

díspares extraída da imaginação do artista. Foi pela<br />

referência à pintura de Joseph Turner (1775-1851) 16<br />

que Ruskin explicou essa sua teoria, mais precisamente<br />

pelos últimos trabalhos do paisagista inglês – parecidos<br />

a borrões coloridos sem um assunto identificável –,<br />

mais bem um todo pictórico composto por formas e<br />

cores-luzes que se entrelaçam, como propõe a teoria<br />

ruskiniana da política da ajuda mutua. Contrário ao<br />

ensino do desenho geométrico, feito com régua e<br />

compasso, o desenho ruskiniano é uma interpretação<br />

da lógica natural pela mão livre do artista.<br />

Rui Barbosa também se posicionou contra o ensino<br />

do desenho geométrico, dispensando as regras da<br />

composição neoclássica. Nesse sentido, Barbosa citou<br />

a técnica do processo “estigmográfico” utilizada<br />

por Friedrich Froebel:<br />

13 “Arnold Guyot, na sua<br />

série de atlas escolares, subordinou<br />

o seu método de<br />

ensino a um princípio constante<br />

e sistemático. Distingue<br />

ele, na evolução intelectual e,<br />

...continua próxima página...<br />

A crítica ruskiniana à exposição londrina teve por<br />

retaguarda sua concepção de estética. Ruskin criticou<br />

a organização do trabalho fabril porque dividia a<br />

produção em etapas especializadas, fazendo do<br />

trabalho um procedimento repetitivo, mecânico e<br />

“Muito cedo se compreendeu nesse país [Àustria]<br />

a esterilidade do ensino do desenho a régua e<br />

compasso. As tentativas para emancipar desse<br />

processo esterilizador a educação da mocidade<br />

principiam no começo deste século [1803], mas<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

51


O desenho como uma questão epistemológica: Rui Barbosa e John Ruskin<br />

... continuação da nota 13 ...<br />

portanto, no estudo de todas<br />

as ciências de observação,<br />

três estados que se sucedem<br />

numa ordem inevitável: o estado<br />

perceptivo, o analítico, o<br />

sintético... O cultivo das ciências<br />

da natureza, encetado<br />

logo aos primeiros passos da<br />

educação elementar, implantou<br />

solidamente no espirito<br />

do aluno o gosto pelos fatos,<br />

o sentimento das relações<br />

de causalidade, a intuição<br />

da lei, que reúne e explica<br />

os fenômenos da criação.”<br />

(BARBOSA, 1946, p. 360)<br />

14 “A exposição de Londres<br />

em 1851 foi o começo da<br />

nova era. Ela fez pela arte,<br />

entre os ingleses, o que Sócrates<br />

fizera pela filosofia,<br />

quando a trouxe dos cumes<br />

aos homens: ensinou ao<br />

povo britânico que a deusa<br />

podia habitar sob o teto de<br />

qualquer família, como num<br />

palácio veneziano. A supremacia<br />

inglesa saiu corrida<br />

do certame internacional. A<br />

sua preponderância política,<br />

a sua soberania monetária, a<br />

enorme potência mecânica<br />

acumulada nas suas fábricas<br />

não a salvaram! O colosso<br />

recebeu a mais severa das<br />

humilhações. A disformidade<br />

do cíclope foi desbaratada<br />

por uma onipotência impalpável:<br />

a do ideal, transmitido<br />

à matéria pela mão hábil do<br />

artista. Esse revés, porém,<br />

foi o começo de uma transfiguração.<br />

Magoada, mas<br />

resoluta, a grande nação<br />

compreendeu a situação<br />

inevitável e resolveu-a. Com<br />

raras exceções, as suas indústrias<br />

tinham-se assinalado por<br />

uma grosseiria rudimentar. O<br />

país inteiro estremeceu; mas<br />

o país estava salvo, como<br />

todos os países onde a capacidade<br />

governa; porque<br />

os homens do Estado inglês<br />

tiveram a fortuna de perceber<br />

a causa, sutil, obscura,<br />

solapada, mas decisiva, desse<br />

desastre. Sabeis o que, na<br />

opinião dos ingleses e do<br />

mundo derrotara a Inglaterra?<br />

Um nada, uma causa<br />

extravagante, frívola, pueril,<br />

aos olhos da gente prática e<br />

sábia como nós: o desleixo<br />

do ensino do desenho. O<br />

governo viu-o; o governo<br />

creu-o; o governo proclamou<br />

-o; o governo estabeleceu<br />

que, para a reabilitação da<br />

potestade ferida de Albion,<br />

só havia um meio: uma reforma<br />

radical do ensino do<br />

...continua próxima página...<br />

aparece em 1846 o processo estigmográfico, aliás, já<br />

muito antes consideravelmente utilizado por Froebel,<br />

entre os jogos infantis, do Kindergarten, recebeu do<br />

Dr. Hillard, em Viena, a sistematização, que hoje é dele<br />

a base mais racional de todo o ensino do desenho...<br />

Todos em suma, hoje em dia, reconhecem que é<br />

necessário assentar um plano metódico para o ensino<br />

do desenho, e esquivar os processos de exercícios<br />

puramente mecânicos.” (BARBOSA, 1946, p. 151)<br />

Rui Barbosa citou vários autores em suas Reformas<br />

do Ensino, mas não se prendeu a qualquer um deles,<br />

apenas utilizou a metodologia científica propagada<br />

por todos. Barbosa inclusive se contrapôs a algumas<br />

conclusões, como por exemplo, a de Huxley ao<br />

afirmar que o homem é derivado do macaco,<br />

ou a de Littré ao dizer que todas as espécies da<br />

Natureza possuem uma mesma origem. Parece uma<br />

contradição supor que Rui Barbosa concordasse<br />

com a metodologia científica, sendo um católico:<br />

“Temos, portanto, que os grandes demolidores dos<br />

livros sagrados confessam esta verdade que nós, os<br />

católicos, recebemos em nossas investigações pela<br />

fé.” (BARBOSA, 1941, p. 311)<br />

O fato de ser católico não desmerece a crença de<br />

Rui Barbosa nas categorias do Iluminismo, senão<br />

o contrário. Provavelmente, ele se incluiu entre os<br />

adeptos da religião “natural” e não da “revelada”,<br />

o que explicaria sua simpatia pela metodologia<br />

científica. A nova mentalidade científica deu inicio<br />

a uma nova compreensão da natureza da religião.<br />

Cada vez mais, os cientistas e os teólogos<br />

passavam a diferenciar dois tipos de religião: a<br />

“natural” e a “revelada” (GRENZ, 2008). A religião<br />

natural implicava a existência de um conjunto de<br />

verdades fundamentais (normalmente, acreditavase<br />

na existência de Deus e em um corpo de leis<br />

morais universalmente aceitas), às quais, presumiase,<br />

todos os seres humanos tinham acesso no<br />

exercício da razão. A religião revelada, por sua<br />

vez, acarretava a existência de um conjunto de<br />

doutrinas especificamente cristãs, derivadas da Bíblia<br />

e ensinadas pela Igreja ao longo do tempo. À medida<br />

que evoluía a Idade da Razão, a religião revelada<br />

era cada vez mais torpedeada e desmistificada<br />

enquanto a religião natural ganhava status de<br />

religião verdadeira. Por fim, a religião natural – ou<br />

religião da razão – substituiu, entre os intelectuais,<br />

o enfoque no dogma e na doutrina característico<br />

da Idade Média e do período da Reforma.<br />

Para Ruskin, a lógica da Natureza criada por Deus<br />

expressa uma racionalidade. John Locke (1632-1704),<br />

filósofo empirista britânico, ajudou a preparar o caminho<br />

para a ascensão da religião natural em detrimento da<br />

revelada. Ele partilhava da tese de que, uma vez despido<br />

de sua roupagem dogmática, “o cristianismo era a<br />

forma mais racional de religião”. Com base na obra<br />

de Locke, os pensadores do Iluminismo construíram<br />

uma alternativa teológica à ortodoxia, que veio a<br />

ser conhecida como Deísmo. Os teólogos deístas<br />

procuravam reduzir a religião a seus elementos básicos,<br />

os quais acreditavam serem universais e racionais.<br />

Essa minimização do corpo doutrinário estava de<br />

acordo com a compreensão deísta da Natureza da<br />

religião. Para seus seguidores, a religião, mais além<br />

de um arcabouço de crenças, constituía um sistema<br />

destinado à estruturação do comportamento ético. A<br />

função primordial da religião, afirmavam, era conceder<br />

uma sanção divina à moralidade.<br />

Rui Barbosa e John Ruskin<br />

Colocando-se frente a frente Rui Barbosa e John<br />

Ruskin, torna-se possível registrar as diferenças que<br />

caracterizam cada um. Barbosa concebia o desenho<br />

como um instrumento de aprender e saber pensar,<br />

porém na perspectiva prática de adequar o Brasil às<br />

exigências da Revolução Industrial. 17<br />

Ao que parece, para Rui Barbosa, sua proposta de<br />

projeto não supunha uma ruptura com a ideologia da<br />

economia agrícola do Império, senão representava a<br />

continuidade de um establishment que não concebia<br />

uma educação libertadora.<br />

Ruskin entendia o desenho visando à atuação<br />

do trabalhador a partir de um projeto coletivo de<br />

construção, contribuindo assim para o desen-volvimento<br />

de uma consciência crítica, juntamente com um maior<br />

domínio de seu oficio. 18 Ele criticou a educação de<br />

sua época, sobretudo a divisão do trabalho fabril,<br />

sugerindo o trabalho cooperativo mediante a política<br />

da ajuda mútua. Pode-se dizer, entretanto, que Ruskin<br />

também foi um reformista enquanto jamais mencionou<br />

qualquer intenção de romper com o modo de produção<br />

capitalista, e sim falou de mudanças internas ao próprio<br />

capitalismo, estimulado pelo desejo de reformá-lo.<br />

Rui Barbosa fez uso de vários conceitos circunscritos às<br />

categorias do Iluminismo – Razão, Natureza, Lógica,<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

52


O desenho como uma questão epistemológica: Rui Barbosa e John Ruskin<br />

... continuação da nota 14 ...<br />

desenho em todas as escolas.<br />

E ali os governos não prometem;<br />

anunciam e executam;<br />

ali não se adia a satisfação<br />

das necessidades públicas;<br />

não se ladeiam as questões;<br />

encaram-se, estudam-se, virilmente.<br />

Já nos fins de 1851<br />

se apontavam as medidas. No<br />

ano seguinte lançaram-se as<br />

primeiras pedras do imenso<br />

monumento de que a escola<br />

de South Kensington, com<br />

seu museu, é o centro, e que<br />

consome à Inlglaterra somas<br />

espantosas. Numa palavra,<br />

esse ensino, que até 1852<br />

não existia naquele país, em<br />

1880 se ministrava nos cursos<br />

superiores desse instituto, a<br />

824 alunos, em 151 escolas<br />

de desenho a 30.239 pessoas,<br />

em 632 classes especiais<br />

a 26.646 discípulos e, em<br />

4.758 escolas primárias a<br />

768.661 crianças.” (BARBO-<br />

SA, 1949, p. 16)<br />

15 “Até bem recentemente,<br />

toda a energia da educação<br />

convergia, de todos os modos<br />

possíveis, para extinguir o<br />

amor da natureza. Toda a instrução<br />

que entre nós se tinha<br />

e havia por essencial, era puramente<br />

verbal, completando-se<br />

pelo conhecimento de<br />

ciências abstratas; ao passo<br />

que qualquer pendor manifestado<br />

pelas crianças para<br />

objetos puramente naturais<br />

sofria violenta repressão, ora<br />

era escrupulosamente circunscrito<br />

às horas de recreio,<br />

tornando-se assim impossível<br />

ao menino estudar afetuosamente<br />

sem quebra dos seus<br />

deveres à obra divina; pelo<br />

que o amor da natureza viera<br />

a constituir peculiarmente<br />

a característica dos vadios<br />

e ociosos. Por honra sua, a<br />

pátria de Ruskin não tardou<br />

em escutar a voz dos altos<br />

espíritos que a chamavam a<br />

reconciliar a educação com<br />

a natureza, e a Inglaterra<br />

emprega hoje heroicos esforços<br />

para levar amplamente<br />

a efeito essa transformação,<br />

a mais profunda, a mais pacífica<br />

e a mais benfazeja de<br />

todas as revoluções sociais;<br />

a renovação da cultura popular<br />

pela arte e pela ciência<br />

inauguradas no ensino desde<br />

a escola.” (BARBOSA, 1946,<br />

p. 254)<br />

16 “J. M. W. Turner contase<br />

entre aqueles artistas<br />

contemplados com um longo<br />

período de atividade.<br />

...continua próxima página...<br />

Ciência... –, extraídos de diferentes autores, embora<br />

não se fixasse em qualquer um deles no que tange à<br />

coerência interna de suas ideias e pensamentos. Barbosa<br />

não os adotou integralmente e sim misturou-os,<br />

indiscriminadamente. De Ruskin, tomou a concepção<br />

de trabalho feito com prazer, a que o indivíduo se<br />

entrega por inteiro (mente e corpo no trabalho), não<br />

levando em conta suas consequências conceituais,<br />

como a política da ajuda mútua.<br />

Barbosa propôs uma reforma no ensino tradicional,<br />

o que, obviamente, implicava um curso de reformas<br />

gradativas. Assim como Ruskin, Barbosa imaginou uma<br />

educação estética pelo ensino do desenho voltado aos<br />

interesses da sociedade industrial. Com o propósito<br />

de colocar o país na esteira da industrialização, Rui<br />

Barbosa entendia como necessária a construção de<br />

uma base educacional, de uma pedagogia fundada<br />

no desenho como instrumento da formação de um<br />

homem autônomo, sujeito de seu pensar e de seu agir,<br />

preparado para as necessidades da produção industrial.<br />

John Ruskin, por sua vez, diante uma Inglaterra já<br />

industrializada, mostrou-se um crítico ao modus<br />

operandi da fábrica. Seu projeto negava as relações<br />

de extrema divisão do trabalho, acreditando ser<br />

possível humanizar o capitalismo a partir de uma<br />

iniciativa de transformação nas relações de trabalho,<br />

desconhecendo serem estas dissociadas do sistema<br />

produtivo dominante.<br />

Em termos de semelhanças, Barbosa e Ruskin são<br />

pensadores do Século XIX, protagonistas do culto<br />

à razão e de seu congênere, o Iluminismo. 19 Ambos<br />

concebiam o desenho como força atuante de<br />

indução do pensar, como instrumento de ascensão<br />

ao conhecimento.<br />

O verbo Pensar é recorrente no discurso dos dois<br />

pensadores, em seu combate a um ensino de apelo à<br />

memória como domínio de conhecimentos. Resistiam<br />

a esse tipo de ensino porque, segundo eles, afastava<br />

o individuo da realidade como objeto de reflexão.<br />

Viam o desenho como uma questão epistemológica.<br />

Outro assim, salvo as diferenças já comentadas, há<br />

algo mais que os acomuna para além de suas teorias<br />

sobre o ensino do desenho: Barbosa e Ruskin viram<br />

seus projetos serem marginalizados pela sociedade<br />

de seu tempo. No caso de Rui, a força de uma<br />

oligarquia poderosa, agarrada a interesses que lhes<br />

asseguravam um lugar de liderança, tanto no Império<br />

como na República, foi a principal responsável pela<br />

tensão política que marginalizou o projeto barbosiano.<br />

“Embora a reforma da instrução proposta por<br />

Rui houvesse causado forte impacto na sociedade<br />

e grande impressão no Imperador D. Pedro II,<br />

pela erudição, pelas opiniões defendidas e pelas<br />

justificativas apresentadas, houve ceticismo quanto<br />

à praticidade de se pôr em uso um sistema<br />

considerado moderno, grandioso, mas voltado<br />

para o estrangeiro, irrealista e inadaptável para o<br />

país. Numa compensação, que talvez não viesse ao<br />

encontro dos seus desejos, por indicação de Lafayette,<br />

recebe do imperador o título de Conselheiro, em<br />

reconhecimento à sua luta em favor da instrução<br />

pública.” (MAGALHÃES, 2003, p. 34)<br />

Já o projeto de Ruskin foi marginalizado em razão<br />

de sua proposta de capitalismo humanizado, de<br />

combate à exploração da força de trabalho. O inglês<br />

também viu suas pretensões serem preteridas pela<br />

incompreensão dos historiadores da Arquitetura<br />

Moderna, que o qualificam de ‘neogótico e adverso<br />

à indústria’.<br />

Considerações Finais<br />

Procurou-se mostrar que os pareceres pela reforma<br />

do Ensino Primário, Secundário e Superior consistiram<br />

na proposta de industrialização de Rui Barbosa, e seu<br />

epicentro, na crença de que a Educação teria o poder<br />

de alterar valores culturais arraigados na tradição<br />

de desprezo ao trabalho manual e supremacia ao<br />

trabalho intelectual.<br />

Acreditava-se que o ensino do desenho seria a disciplina<br />

principal a atender às expectativas de uma pedagogia<br />

intuitiva, que tivesse em conta os sentidos do corpo<br />

humano. Barbosa entendia, também, a inter-relação<br />

entre mente, olho e mão na ação sinestésica para a<br />

produção de tal reciprocidade: ver é pensar, sendo o<br />

desenho a expressão da mão que pensa.<br />

Um desenho entendido como fonte de ideias e de<br />

conhecimentos da Natureza, em uma perspectiva<br />

capaz de caminhar desde a experiência real empírica à<br />

realidade em seu aspecto abstrato, simultaneamente,<br />

como instrumento atuante na capacidade de observação<br />

e criação, pela construção de um homem autônomo.<br />

Por meio do desenho, essa autonomia,<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

53


O desenho como uma questão epistemológica: Rui Barbosa e John Ruskin<br />

... continuação da nota 16 ...<br />

Trabalhou infatigavelmente<br />

durante mais de sessenta<br />

anos: o seu espólio abrange<br />

mais de 19.000 desenhos e<br />

esboços a cores e o leque da<br />

sua produção é amplo. Só a<br />

custo conseguimos identificar<br />

as páginas que saíram da<br />

mão do jovem Turner por<br />

volta de 1790 – os últimos<br />

anos do Rococó –, como o<br />

trabalho do artista que cultivou<br />

a livre urdidura de cores<br />

encontrada nos seus quadros<br />

da década de 40 do século<br />

XIX. Só nos últimos trabalhos<br />

achou um estilo próprio,<br />

uma visão da natureza até aí<br />

impossível. Ainda hoje, as<br />

suas derradeiras obras podem<br />

desencadear no observador<br />

uma sensação de quem contempla<br />

o mundo pela primeira<br />

vez – um mundo de<br />

cor e luz.” (BOCKEMÜHL,<br />

2000, p. 6)<br />

17 “Parodiando o dito de<br />

um antigo general […] esse<br />

estadista exprimia-se assim:<br />

‘Ao meu ver, cada mestre é<br />

um general, um combatente<br />

contra a ignorância e a<br />

superficialidade’. Ora, para<br />

mim tenho a falta de instrução<br />

como a raiz de todos<br />

os males que há na terra;<br />

e não vejo outro meio de<br />

debelá-la senão três coisas:<br />

primeiro, instrução; segundo,<br />

mais intrução; terceiro, muito<br />

mais intrução. A solução do<br />

problema, conseguentemente<br />

é esta: criar a educação<br />

industrial. Mas somos uma<br />

nação agrícola. E, por que<br />

não também uma nação industrial?<br />

Falece-nos o ouro,<br />

a prata, o ferro, o estanho, o<br />

bronze, o mármore, a argila,<br />

a madeira, a borracha, as<br />

fibras têxteis? Seguramente<br />

não. Que é, pois, o que a<br />

educação especial, que nos<br />

habilite a não pagarmos ao<br />

estrangeiro o tributo enorme<br />

da mão de obra, e sobretudo<br />

da mão de obra artística. Raro<br />

é o produto utilizável, seja de<br />

mero luxo, seja de uso comum,<br />

em que o gosto, a arte,<br />

a beleza não constitua o elemento<br />

incomparavelmente<br />

preponderante do valor. Ora,<br />

como nós não produzimos<br />

senão matéria bruta, o preço<br />

da nossa exportação ficará<br />

sempre imensamente aquém<br />

da importação de arte, a que<br />

nos obrigam as necessidades<br />

da vida civilizada. Nenhum<br />

país, a meu ver, reúne em<br />

si qualidades tão decisivas<br />

...continua próxima página...<br />

paulatinamente, induziria o homem ao conhecimento<br />

das leis da razão encontráveis na Natureza, difundida<br />

socialmente como agente de integração do homem<br />

à sua lógica.<br />

No plano da História, esse processo materializava-se<br />

no progresso da Ciência – da tecnologia e da própria<br />

ideologia da Revolução Industrial –, pensada como<br />

a única capaz de afrontar os desafios da evolução<br />

da humanidade.<br />

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V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

54


O desenho como uma questão epistemológica: Rui Barbosa e John Ruskin<br />

... continuação da nota 17...<br />

para ser fecundamente industrial,<br />

quanto aqueles, como<br />

o nosso, onde uma natureza<br />

assombrosa prodigaliza às<br />

obras do trabalho mecânico e<br />

do trabalho artístico um material<br />

superior, na abundância<br />

e na qualidade. Na adiantada<br />

civilização dos nossos tempos,<br />

a indústria é inseparável<br />

da agricultura. Tão intima é a<br />

sua afinidade, tão indissolúvel<br />

o seu consórcio, que escolas<br />

industriais há (na Bavária, por<br />

exemplo), onde o ensino agrícola,<br />

com o cunho peculiar<br />

de arte que lhe cabe, forma<br />

uma seção de estudos, entre<br />

os cursos professados no estabelecimento.<br />

Considerai<br />

os Estados Unidos: segundo<br />

o recenseamento de 1870,<br />

metade da sua população<br />

ocupada ainda se empregava<br />

na agricultura. Cincinati, a<br />

quarta cidade manufatora<br />

da União Americana, tem a<br />

sua sede no centro de uma<br />

imensa região agrícola. Mal<br />

formulada, pois, tem sido até<br />

hoje, a questão, entre nós. Os<br />

seus termos são outros, e não<br />

consistem senão nisto: Como<br />

havemos de extrair o maior<br />

proveito dos nossos recursos<br />

naturais, que, posto variados<br />

e amplos, não passam de<br />

simples bases da riqueza?<br />

De que modo lograremos<br />

consumir em indústrias domésticas<br />

a máxima parte da<br />

matéria prima que o solo nos<br />

fornece, multiplicando-lhe<br />

a valia ao tomar mágico do<br />

gosto e da habilidade técnica?<br />

Enunciado assim, o<br />

problema não tem solução<br />

possível, a não ser a que lhe<br />

dá o Liceu de Artes e Ofícios.<br />

Criar a indústria é organizar<br />

a sua educação. Favorecer a<br />

indústria é preparar a inteligência,<br />

o sentimento e a mão<br />

do industrial para emular, na<br />

superioridade do trabalho,<br />

com a produção similar dos<br />

outros Estados. Cultivada<br />

assim, ela encontra em si própria<br />

os segredo de vencer:<br />

dispensa os obséquios do<br />

sistema protetor; descultivada<br />

como se acha, os privilégios<br />

desse regime, impondo<br />

ao consumo nacional uma<br />

indústria sem arte, registram<br />

o odioso da tirania fiscal com<br />

a influência desastrosa dos<br />

hábitos de grosseria que inoculam<br />

no espírito popular.<br />

... continua ...<br />

Recebido [Set. 08, 2016]<br />

Aprovado [Dez. 22, 2016]<br />

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________. Modern Painters. Londres: Smith, Elder & Co.,<br />

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________________________<br />

...continuação da nota 17...<br />

No dia em que o desenho e a modelação começarem a fazer<br />

parte obrigatória do plano de estudos na vida do ensino nacional,<br />

datarão o começo da história da indústria e da arte no Brasil. Se a<br />

regra da política entre nós não fosse cuidar, por uma preferência<br />

imemorial, do que menos importa ao país, essa data não estaria<br />

longe. Semear o desenho imperativamente nas escolas primárias,<br />

abrir-lhe escolas especiais, fundar para os operários aulas noturnas<br />

desse gênero, assegurar-lhe vasto espaço no programa das escolas<br />

normais, reconhecer ao seu professorado a dignindade que lhe<br />

pertence, no mais alto grau de escala docente, par a par com o<br />

magistério da ciência e das letras, reunir toda essa organização<br />

num corpo coeso, fecundo, harmônico, mediante a institução de<br />

uma escola superior da arte aplicada que nada tem, nem até hoje<br />

teve em parte nenhuma, nem jamais poderá ter, com academias<br />

de Belas-Artes, eis o roteiro dessa conquista, a que estão ligados<br />

os destinos da pátria. Não é uma aspiração do futuro; é uma<br />

exigência da atualidade mais atual perfeitamente realizável, mas<br />

urgentemente instante. Só o não compreenderão os incapazes<br />

da educação popular.” (BARBOSA, 1949, p. 50)<br />

18 “[...] Nós discordamos da denominação de perfeição atribuída<br />

ao sistema de divisão de trabalho da civilização moderna. Na verdade<br />

não é o trabalho que foi dividio, mas sim o homem. O homem<br />

foi transformado em fragmentos de homem. [...] Poderiam me<br />

RUSKIN, J. A Joy for Ever. Londres: Routledge Thoemmes<br />

Press, 1994.<br />

________. Time and Tide. Londres: Routledge Thoemmes<br />

Press, 1994.<br />

________. The Crown of Wild Olive. Londres: Routledge<br />

Thoemmes Press, 1994.<br />

________. Into this Last. Londres: Routledge Thoemmes<br />

Press, 1994.<br />

________. Lectures on Architecture and Painting. Londres:<br />

Smith, Elder & Co., 1854.<br />

SPENCER, H. Essays on Education. London: J. M. Dent &<br />

Sons Ltd., 1963.<br />

SPENCER, H. The Evolution of Society. Chicago: The University<br />

of Chicago Press, 1967. p. 5<br />

SQUEFF, L. C. O Brasil nas letras de um pintor: Manuel de<br />

Araújo Porto Alegre. Tese (Mestrado), Faculdade de<br />

Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade<br />

de São Paulo, São Paulo. 2000, p. 167.<br />

THOMPSON, E. P. William Morris Romantic to Revolutionary.<br />

Londres: Lawrence & Wishart ttd. 1955. p. 802<br />

VILCHES, G.; COZZI, V. La Educación en Pestalozzi y Froebel.<br />

Buenos Aires: Editorial Hemul, 1966.<br />

WEBB, B. Preface. In: SPENCER, H. The Evolution of Society.<br />

Chicago: The University of Chicago Press, 1967. p. XVi<br />

WILDMAN, S. Stephen Wildman: depoimento (julho de<br />

2004). Entrevistador: AMARAL, C. S. Lancaster: Lancaster<br />

University, Ruskin Library and Research Centre, 2004.<br />

Entrevista concedida ao projeto de doutorado ‘John<br />

Ruskin e o desenho no Brasil’ em curso na Faculdade de<br />

Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.<br />

perguntar, como uma produção em larga escala pode ocorrer sem<br />

o sistema de divisão do trabalho? Eu proponho três princípios para<br />

que o trabalho humano seja um trabalho digno: 1) Toda produção<br />

tem de ser criativa. A invenção deve ter um lugar no processo.<br />

2) Nunca definir o produto final antes de começar o processo de<br />

produção. Deverá existir a possibilidade de mudanças durante o<br />

processo produtivo. 3) Nunca encoraje a imitação para o desenho<br />

do produto.” (Ruskin, J. The seven lamps of architecture; p.164)<br />

19 “É significativo que os dois principais centros dessa ideologia<br />

fossem também os da dupla revolução, a França e a Inglaterra;<br />

embora de fato as ideias iluministas ganhassem uma voz corrente<br />

internacional mais ampla em suas formulações francesas (até<br />

mesmo quando fossem simplesmente versões galicistas de<br />

formulações britânicas). Um individualimo secular, racionalista<br />

e progressita dominava o pensamento esclarecido. Libertar o<br />

indivíduo das algemas que o agrilhoavam era o principal objetivo<br />

do tradicionalismo ignorante da Idade Média, que ainda lançava<br />

sua sombra pelo mundo, da irracionalidade que dividia os homens<br />

em uma hierarquia de patentes mais baixas e mais altas de acordo<br />

com o nascimento ou algum outro critério irrelevante. A liberdade,<br />

a igualdade, e, em seguida, a fraternidade de todos os homens<br />

eram seus slogans. No devido tempo se tornariam os slogans da<br />

Revolução Francesa.” (HOBSBAWM, 2014, p. 48)<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

55


artigos e ensaios<br />

A pesquisa qualitativa fenomenológica:<br />

olhos para ver a criatividade cotidiana<br />

Hulda Erna Wehmann<br />

Arquiteta e Urbanista, doutoranda em Arquitetura e Paisagismo<br />

pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de<br />

São Paulo, R. do Lago 876, Butantã, São Paulo, SP, CEP 03178-200,<br />

(11) 3091-4795, wehmann.hulda@gmail.com<br />

Resumo<br />

Entender a paisagem como a apreensão sensível do espaço implica uma revisão<br />

de metodologias de trabalho: como indagar sobre essas percepções, e a quem?<br />

Como trabalhar imaginários diversos para espaços sempre em transformação?<br />

São estas as questões que estruturam este texto, sobre as possibilidades trazidas<br />

pela pesquisa qualitativa de inspiração fenomenológica para o tema. A partir<br />

de uma aproximação inicial ao campo, investiga-se as contribuições trazidas<br />

pelo campo às inquietações teóricas iniciais. Essa sondagem realizou-se entre<br />

outubro de 2015 e janeiro de 2016, e incluiu 14 entrevistas em profundidade<br />

nas Comunidades do Lagamar e do Serviluz, em Fortaleza-CE.<br />

Palavras-chave: paisagem cotidiana, pesquisa qualitativa, habitação.<br />

Q<br />

uais contribuições poderia uma pesquisa qualitativa<br />

trazer para projetos de espaços livres em<br />

espaços habitacionais? De que forma informações<br />

aprofundadas de percepções individuais podem<br />

auxiliar projetos realizados para usuários desconhecidos?<br />

O objetivo do presente artigo é alinhavar<br />

proposições teóricas a resultados de uma<br />

primeira sondagem, a fim de entender possíveis<br />

aportes ofertados pela metodologia qualitativa<br />

fenomenológica para o tema.<br />

Um primeiro aspecto a ser definido é a justificativa<br />

para inserir tais percepções como dados de projeto de<br />

espaços cujo destinatário final é anônimo. Se o projeto<br />

se destina a espaços coletivos, por que não seguir<br />

a formulação generalista do usuário padrão, com<br />

suas necessidades universais? Como subjetividades<br />

individuais poderiam representar acréscimos qualitativos<br />

para tal tipo de projeto? Em parte, esta<br />

resposta já é dada nos capítulos introdutórios deste<br />

livro: a unicidade e a irrepetibilidade do homem<br />

não se refere à completa singularidade de cada<br />

indivíduo. Inseridos dentro de integrações nas quais<br />

se formam e assimilam valores e comportamentos,<br />

o homem é, simultaneamente, ser particular e ser<br />

genérico (Heller, 1970, p.34)<br />

A isto, se soma o entendimento de que a cidade<br />

é uma construção realizada ao longo do tempo,<br />

tanto em seu aspecto físico quanto simbólico. O<br />

imaginário urbano, as formas de habitar um espaço<br />

são estruturados pela base física de suporte, ao<br />

mesmo tempo que a modelam pelas ações de seus<br />

habitantes. Um projeto, assim, não se dá sobre tabula<br />

rasa, mas fundamenta-se em heranças espaciais,<br />

especialmente as relações que se dão sobre e com<br />

o espaço.<br />

Essa compreensão da cidade como produção<br />

coletiva a aproxima da noção de paisagem no<br />

V14 N2<br />

revista de pesquisa em arquitetura e urbanismo instituto de arquitetura e urbanismo iau-usp<br />

56


A pesquisa qualitativa fenomenológica: olhos para ver a criatividade cotidiana<br />

1 Augustin Berque defende<br />

que a noção de sociedades<br />

paisageiras, relacionadas intimamente<br />

às paisagens que<br />

produzem, modelando-as<br />

a partir do labor continuo<br />

de gerações que sucedem e<br />

depositam sobre a estrutura<br />

do solo, objetivo e físico, as<br />

camadas de significado que<br />

constituem a paisagem. (SER-<br />

RÂO, 2013).<br />

2 Designa-se por cotidiano “o<br />

conjunto de atividades naturais<br />

e rotineiras reguladas<br />

por costumes e desenvolvidas<br />

num espaço social definido e<br />

próximo” (Carvalho; Netto,<br />

2011:77), está presente em<br />

todas as esferas da vida do<br />

indivíduo.<br />

3 O uso do termo experienciadores,<br />

aqui, se dá substituindo<br />

o tradicional usuário.<br />

A escolha do termo indica<br />

uma crítica a uma visão funcionalista<br />

do planejamento<br />

urbano, que subdivide os<br />

cidadãos segundo classes<br />

com necessidades e papéis<br />

específicos, e que lhe nega a<br />

co-criação de seu espaço de<br />

vida. Assim, para expressar<br />

seu papel de agente participante<br />

da própria paisagem,<br />

adotamos o termo experienciadores,<br />

derivado da noção<br />

de experiência, percepções<br />

mescladas das sensações da<br />

vivência e das imprensões da<br />

memória individual e coletiva,<br />

conforme compreensão de<br />

Angelo Serpa (2007) sobre<br />

o pensamento de Walter<br />

Benjamin.<br />

4 A própria cidade é uma<br />

obra, e esta característica<br />

contrasta com a orientação<br />

irreversível na direção do dinheiro,<br />

na direção do comércio,<br />

na direção das trocas, na<br />

direção dos produtos. Com<br />

efeito, a obra é valor de uso<br />

e o produto é valor de troca.<br />

O uso principal da cidade,<br />

isto é, das ruas e das praças,<br />

dos edifícios e dos monumentos,<br />

é a festa (que consome<br />

improdutivamente, sem<br />

nenhuma outra vantagem<br />

além do prazer e do prestígio,<br />

enormes riquezas em objetos<br />

e dinheiro). Lefebvre, 1991<br />

sentido entendido por Augustin Berque como<br />

produção paisageira 1 , ambas diretamente relacionadas<br />

às ações cotidianas de coletivos<br />

que habitam o lugar. Desconsiderar a pluralidade<br />

atuando sobre a cidade é produzir espaços defasados<br />

em seu nascimento. As recentes discussões sobre<br />

a aplicação do conceito de sustentabilidade ao<br />

urbano não podem ignorar o papel significativo dos<br />

espaços livres para além do funcionalismo de espaços<br />

de esporte e lazer. Então, pactuar as propostas<br />

técnicas e os usos efetivamente realizados, evitando<br />

as dissonâncias tão recorrentes, que reduzem a<br />

efetivamente os resultados pretendidos com a própria<br />

intervenção? Inserir a subjetividade criativa dos<br />

cidadãos nas intervenções é, na verdade, racionalizar<br />

os projetos.<br />

A necessidade de estabelecer recortes em uma<br />

temática tão vasta levou à escolha dos espaços do<br />

cotidiano 2 como objeto de estudo. Dentre estes, os<br />

espaços livres em áreas residenciais destacam-se,<br />

tanto por seu significado, quanto por seu quase<br />

abandono por uma lógica de produção urbana de<br />

caráter mercadológico. Por uma razão muito simples:<br />

apenas os espaços excepcionais – em duplo sentido:<br />

por suas características e pela restrição de acesso - são<br />

passíveis de se transformar em produtos vendáveis.<br />

O espaço vivido, cotidiano, banal, o espaço opaco<br />

de Milton Santos, não possui interesse para a cidade<br />

do espetáculo.<br />

As possibilidades de uma investigação aprofundada<br />

desse tema, portanto, exige a revisão do entendimento<br />

do papel dos espaços livres. Transformá-los<br />

de espaços de exceção a elementos integrantes do<br />

cotidiano, de espaços de fruição passiva a locus<br />

da ação criativa dos experienciadores 3 , do espaço<br />

cenográfico do visível para o espaço da corporeidade,<br />

do acessível. É a partir desta percepção que se<br />

percebe a necessidade de planejar como pensar a<br />

própria pluralidade do real e dar efetividade a este<br />

pensamento do plural (CERTEAU, 1998, p.172).<br />

É na aceitação das lógicas plurais expressas no<br />

cotidiano que o processo de planejamento poderá<br />

evoluir de estruturas natimortas a espaços plenos<br />

de e para vida.<br />

A resposta à pergunta sobre como criar espaços<br />

públicos satisfatórios é uma nova questão: como<br />

não propor um produto acabado (aliás, uma utopia<br />

dos arquitetos), mas permitir ao projeto ser aquilo<br />

que realmente é, uma etapa numa obra sempre<br />

inacabada que é a cidade 4 (Lefebvre, 1991)? O<br />

desafio é então como trabalhar com múltiplas<br />

percepções, permitir que lógicas diversas convivam<br />

e se influenciem concomitantemente, recriando a<br />

partir de vocabulários e sintaxes propostos uma<br />

nova poesia urbana.<br />

A pesquisa em andamento encontra-se em fase<br />

inicial. Para entender as possíveis contribuições<br />

da pesquisa qualitativa fenomenológica, realizouse<br />

um experimento de sondagem em campo, o<br />

qual será apresentado neste capítulo. Para um<br />

melhor entendimento, uma breve introdução das<br />

questões que orientaram o objetivo da pesquisa<br />

será apresentada. Em seguida, alguns resultados<br />

preliminares e ao final, reflexões necessárias sobre o<br />

processo de investigação, problemáticas enfrentadas<br />

e aportes que se anunciam.<br />

Espaço cotidiano e sustentabilidade<br />

urbana<br />

O primeiro passo no caminho do entendimento<br />

é a melhor definição das questões investigadas.<br />

Para isto, é expandir a noção de ‘projeto bemsucedido’,<br />

denominado na atualidade pelo cognome<br />

de sustentável. O termo sustentabilidade tem se<br />

subdivido em diversas adjetivações. Atualmente,<br />

aceita-se que sustentabilidade no meio urbano<br />

implica num arranjo territorial dos assentamentos<br />

urbanos que satisfaria seus habitantes como “seres<br />

culturais” (reis, 2002), ou seja, não somente suas<br />

necessidades objetivas (como acesso a bens e<br />

serviços urbanos ou possibilidades de participação<br />

em processos de decisão) seriam contempladas,<br />

mas igualmente necessidades subjetivas (como<br />

a satisfação do sentimento de pertencimento<br />

ao lugar e a continuidade cultural) devem ser<br />

atendidas (ACSELRAD, 1999, PLESSIS, 2001). Aliás,<br />

é importante salientar, a sondagem realizada deixa<br />

entrever o próprio desejo dos entrevistados de<br />

reconhecimento como co-criadores, e a recusa em<br />

aceitar propostas elaboradas sem sua participação.<br />

Tais propostas, porém, ainda são regra nas intervenções<br />

urbanas, orientadas por um funcionalismo<br />

tecnocrata, em especial para os espaços públicos<br />

ditos banais. O fato urbano transforma-se num<br />

espaço abstrato de uma sociedade imaginária,<br />

descarnado porque separado de seu conteúdo<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

57


A pesquisa qualitativa fenomenológica: olhos para ver a criatividade cotidiana<br />

5 Entendida aqui como a atividade<br />

de criar, inventar, gerar.<br />

6 O termo corpografia, retirado<br />

de artigo homônimo, quer<br />

dizer um tipo de cartografia<br />

realizada pelo e no corpo,<br />

ou seja, a memória urbana<br />

inscrita no corpo, o registro<br />

de sua experiência da cidade,<br />

uma espécie de grafia urbana,<br />

da própria cidade vivida,<br />

que fica inscrita mas também<br />

configura o corpo de quem<br />

a experimenta. (JACQUES,<br />

2008)<br />

7 LEFEBVRE, H. Critique de<br />

la vie. IIII: Modernité au modernisme:<br />

pour une métaphilosophie<br />

du quotidien).<br />

Paris: L’Arche, 1981 apud<br />

Carvalho; Netto, 2011)<br />

8 Tanto Rosario Assunto<br />

quanto Arnold Berleant, ao<br />

tratar da experiência estética<br />

na cidade, ressaltam a<br />

importância da consciência<br />

dos processos que originam o<br />

espaço vivido como essenciais<br />

para o bem-estar do homem.<br />

(SERRÂO, 2013). A consciência<br />

deste processo seria vital<br />

também para o processos de<br />

‘homogeneização’, de crescimento<br />

humano em direção<br />

às suas potencialidades como<br />

“homem inteiramente”, atingindo<br />

um estágio sempre<br />

maior de desenvolvimento.<br />

(Heller, 1970).<br />

humano, unidade forjada por uma racionalidade<br />

urbanística à mercê do interesse utilitário da razão.<br />

Esta “Cidade-conceito” (Certeau, 1998), é também<br />

a “insensata Megalópole Industrial”, espaço de<br />

fragmentação do humano e de alienação, espaço<br />

tecnológico industrial da metrópole-fábrica gigante,<br />

espaço da quantidade divisível e da repetição,<br />

da incomensurabilidade entre mundo objetivo e<br />

subjetivo, da destruição do espaço de vida e sua<br />

substituição por espaços impessoais (Assunto, 2013).<br />

O foco exclusivo em necessidades objetivas passíveis<br />

de mensuração quantitativa fragmenta o habitante<br />

urbano em análises setoriais, e o sintetiza em<br />

um somatório de necessidades e carências, que<br />

cumpre satisfazer de forma padronizada (Martins<br />

et al., 1996). O projeto assim realizado transforma<br />

o cidadão em “usuário”, unidade discreta de um<br />

sujeito universal criado pelas estratégias da ciência<br />

urbanista, excluído da propriedade e da gerência<br />

do espaço urbano, consumidor de um espaço que<br />

lhe é imposto, numa atitude de submissão aos<br />

detentores do saber técnico.<br />

Porém, transformar os cidadãos em consumidores<br />

não elimina, mas apenas esconde suas ações criativas,<br />

a poiein 5 anônima, a combinação dos elementos<br />

desta cultura de forma sempre diferenciada.<br />

É somente pelo fato da vida cotidiana ter sido<br />

transformada em uma rotina repetitiva, mirrada, em<br />

que as forças humanas estão presentes, mas não<br />

plenamente atuantes, que se sustenta o conceito<br />

do antagonismo intrínseco entre o processo de vida<br />

normal e a apreciação estética.<br />

É a vida cotidiana que constrói verdadeiramente a<br />

cidade, e vice versa. Ainda que inconscientemente,<br />

são os habitantes, através de suas práticas e táticas<br />

que escrevem com seus corpos os textos<br />

que compõem a cidade. Em recíproca, a cidade<br />

inscreve neles sua cartografia, num processo que<br />

culmina naquilo que Jacques (2008) descreve como<br />

corpografia urbana 6 . Esse processo criativo,<br />

poético, ocorre no intercâmbio do corpo com o<br />

espaço urbano, transformando os espaços livres<br />

de uma cidade no substrato por excelência da<br />

sociabilidade urbana, microcosmos das ações criativas<br />

das diversas subculturas que compõem a sociedade<br />

urbana, e, portanto, elemento chave da formação<br />

de uma “esfera pública” (QUEIROGA, 2012). São<br />

espaços aonde as atividades rotineiras do trabalho<br />

e da subsistência podem dar lugar à criatividade<br />

e a fruição, necessários ao crescimento humano,<br />

funcionando como espaços de descontração de<br />

uma rotina marcada pelo economicismo das atitudes<br />

repetitivas (Heller, 1970).<br />

Neste processo, espaços gerados de forma quase<br />

esquizofrênica, em lógicas de projeto distanciadas<br />

daquelas de seus destinatários, são traduzidos para<br />

uma linguagem inteligível para o cidadão comum.<br />

São estas micro-resistências que lhes permitem<br />

habitar em espaços nos quais são sim-ples locatários,<br />

ao dissociar as micro-decisões da macroestrutura<br />

dominante 7 , permitem aos designados consumidores<br />

tornarem-se produtores autônomos, utilizando-se<br />

do vocabulário fornecido para a construção de<br />

suas próprias narrativas. A cidade como espaço<br />

democrático deveria ofertar o suporte a este processo<br />

8 ; uma cidade sustentável deveria aproveitar<br />

racionalmente a energia des-pendida como elemento<br />

de sua produção.<br />

Para isso , é preciso entender as relações mantidas<br />

pelos que vivem o espaço com o imaginário urbano,<br />

entender seu discurso, abordar a linguagem na<br />

própria linguagem ordinária, sem um ponto<br />

privilegiado, de forma que a própria pessoa do<br />

planejador se ache implicada, num processo autorreflexivo<br />

em que se reconheçam as formas<br />

ditas “naturais” de dominação do espaço e do<br />

conhecimento, permitindo-se aprender as formas<br />

alternativas, furtivas, dominadas mas presentes, de<br />

apropriação do mundo e da natureza. Desaperceber<br />

os elementos sutis, não-ditos, mas cruciais, que<br />

influenciam o comportamento dos indivíduos pode<br />

comprometer os resultados.<br />

A experiência estética como<br />

elemento do cotidiano<br />

Heller nos apresenta o cotidiano como a própria<br />

‘essência da história’ (Heller, 1970, p.34). Ao<br />

mesmo tempo que repetitivo e baseado em comportamentos<br />

aprendidos, a interação entre aquilo<br />

que é socialmente aceito e a própria individualidade<br />

do homem dá a ele possibilidades de criação que<br />

o individualizam. É aí que se produz a criatividade<br />

cotidiana. Essas possibilidades só se tornam conscientes,<br />

e desalienadoras, porém, se lhe for possível o<br />

distanciamento que origina a reflexão. Ela denomina<br />

este processo de homogeneização. Caso contrário,<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

58


A pesquisa qualitativa fenomenológica: olhos para ver a criatividade cotidiana<br />

9 Associa-se aqui ao termo<br />

a apreciação estética dos<br />

espaços livres no ambiente<br />

de vida, e é neste sentido<br />

que é utilizada num contexto<br />

urbano.<br />

10 O autor defende a importância<br />

da preocupação com o<br />

bem estar humano e a satisfação<br />

instríseca que provêm<br />

como resultado de uma experiência<br />

estética positiva, que<br />

se estão presentes na arte,<br />

são mais nítidos no meio ambiente<br />

(que trata como aquilo<br />

que envolve o homem, parte<br />

do homem que se conforma<br />

fora de seu corpo). A importância<br />

do aspecto positivo<br />

destas experiências é que,<br />

segundo Berleant, “Logo, as<br />

coisas que fazemos fazem-<br />

-nos a nós.(...) Dentro e fora,<br />

consciência e mundo, seres<br />

humanos e processos naturais<br />

não são pares de opostos,<br />

mas aspectos da mesma<br />

coisa: a unidade do ambiente<br />

humano.” (Berleant, 1997).<br />

11 Alain Roger apresenta<br />

um processo que denomina<br />

de artialização, de operação<br />

artística sobre o objeto natural,<br />

seja como produção de<br />

imagens da natureza (artialização<br />

in visu), mas também<br />

diretamente sobre a natureza<br />

(artialização in situ).<br />

12 Forclusão, termo oriundo<br />

do vocabulário jurídico e psicanalítico,<br />

significa, grosso<br />

modo “retirar/excluir e fechar<br />

a porta”. Ver BERQUE:<br />

O pensamento paisageiro<br />

– uma aproximação mesológica<br />

(FERRÂO, 2013).<br />

a cristalização dos comportamentos do cotidiano<br />

termina por empobrecer a essência humana nos<br />

‘papéis sociais’.<br />

A necessidade de experiências que permitam esse<br />

distanciamento, a descompressão do homem do<br />

automatismo exigido pela heterogeneidade e<br />

velocidade das múltiplas tarefas diárias, permitem<br />

propor uma necessidade da paisagem 9 . Mais<br />

ainda, que essa paisagem não seja um atributo<br />

de momentos específicos, mas esteja presente<br />

mesmo em nossa vida cotidiana. Conforme Arnold<br />

Berleant, ao discorrer sobre a apreciação estética<br />

ambiental por ele proposta 10 : “Os valores no nosso<br />

ambiente expandem-se quando alargamos a nossa<br />

sensibilidade e atenção e já não restringimos a<br />

apreciação a ocasiões especiais.”<br />

O processo proposto por Berleant para permitir esta<br />

apreciação permite associa-lo à de homogeneização<br />

apresentado por Heller. Segundo o autor, seria<br />

necessário para esta apreciação a “(...) atenção<br />

profunda, tão rara no mundo contemporâneo, à<br />

vivência numa casa ou no lugar ao qual pertencemos<br />

de forma íntima.” (Berleant, 1997) A concentração<br />

de todas as nossas forças em uma única tarefa seria,<br />

segundo a filósofa húngara, o segundo elemento<br />

necessário para conseguir a homogeneização que<br />

produziria o crescimento do homem em direção<br />

a uma unidade consciente, e seu consequente<br />

afastamento da fragmentação e alienação que<br />

atormentam a vida contemporânea.<br />

Esse processo é contrário à citada visão mercadológica<br />

da cidade, com a valorização específica de<br />

determinados espaços, consumidos como produtos<br />

para usufruto de uma elite educada, capazes de<br />

entender um vocabulário estético produzido por<br />

numa intervenção artializadora 11 do indivíduo<br />

excepcional, sensível, como resultado daquilo que<br />

Berque denomina de “forclusão” 12 do trabalho.<br />

(Berque, 2013). Neste modelo somente se permite a<br />

preocupação estética naqueles locais cujos ocupantes<br />

teriam suficiente renda para se permitir devaneios<br />

ociosos em ambientes cuidadosamente trabalhados.<br />

A paisagem seria assim, luxo para poucos, mesmo<br />

porque exigiria determinados níveis de sensibilidade<br />

e cultura inexistentes no cidadão comum.<br />

Para os demais, os poucos espaços livres disponibilizados<br />

são projetados a partir de projetos<br />

padrão, ofertando equipamentos cujo descolamento<br />

do contexto torna-os quase esquizofrênicos. A<br />

multiplicidade de funções que esses espaços livres<br />

podem abrigar – frequentemente, sobrepostas<br />

numa mesma base física – tem sido muitas vezes<br />

desprezada, e não é incomum que sejam tratados<br />

como o espaço “que resta”.<br />

Esta separação entre estética e cotidiano é artificiosa,<br />

e mesmo prejudicial, pois, à medida que trata a<br />

arte não mais como parte de uma cultura inata<br />

e espontânea, enfraquece-a como expressão da<br />

matéria perceptiva, afastando o homem comum<br />

de um tema que supõe refinado, imergindo-o no<br />

pragmatismo cotidiano em busca de substitutos,<br />

mesmo que vulgares e baratos, que lhes atendam<br />

os anseios por experiências prazerosas. A demanda<br />

pela experiência estética é parte do homem, e a arte<br />

nada mais é que a transformação de materiais “que<br />

gaguejem ou emudeçam na experiência comum em<br />

veículos eloquentes” (Dewey, 2010).<br />

A diferença entre a arte e o banal seria apenas<br />

a intensidade da própria experiência sensorial e<br />

perceptiva, significativamente mais esclarecida e<br />

intensificada, permitindo o entrelaçamento do<br />

tempo individual num tempo mais amplo, que<br />

é natural e histório, simultâneamento passado,<br />

presente e futuro, naquilo que Assunto chama<br />

de temporalidade. Ou seja, seria arte tudo aquilo<br />

capaz de despertar respostas mais profundas do<br />

ser humano, a atenção concentrada e consciente<br />

da reflexão.<br />

É esta experiência que Berleant (1997) diz ser mais<br />

vívida no espaço de vida que na própria arte. E que<br />

Assunto (2013) prega como necessidade humana no<br />

ambiente, se não se desejar submergir a consciência<br />

humana no cotidiano alienado e sufocante do<br />

espaço padronizado e produzido em massa. É aí<br />

que se produz a homogeneização das experiências<br />

fragmentárias que permitem a unidade (ainda que<br />

nunca completa e permanente, mas sempre maior)<br />

que eleva o indivíduo em direção à consciência, de<br />

que nos falam Lukács e Heller. (Martins et al., 1996).).<br />

A estética está nas possibilidades da própria essência<br />

humana. O que é oposto ao estético é a monotonia,<br />

a desatenção ante as tarefas, a submissão às<br />

convenções, as características da vida cotidiana<br />

expandidas para esferas que não lhe pertencem,<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

59


A pesquisa qualitativa fenomenológica: olhos para ver a criatividade cotidiana<br />

13 Berleant cunha o termo<br />

dano estético para definir<br />

as consequências de experiências<br />

estéticas negativas<br />

repetitivas, que implicariam<br />

o afastamento e alienação<br />

do homem de seu ambiente.<br />

14 Aqui o sentido do termo<br />

é aquele apresentado por<br />

Martins & Bicudo (2005:22)<br />

para a pesquisa psicológica e<br />

educacional: o sentido da entidade<br />

que se mostra em local<br />

situado. Entende-se assim<br />

que a paisagem só se mostra<br />

onde alguém a experiência,<br />

e o acesso a ela se dá pela<br />

experiência e indiretamente<br />

por meio da descrição desta.<br />

o distanciamento artificial imposto pela rotina e<br />

pela insensibilidade que com que o indivíduo se<br />

protege do excesso de danos estéticos 13 da cidade<br />

contemporânea. Observa-se então o dilema do<br />

homem comum: submetido a uma lógica alheia,<br />

subsiste numa rotina castradora. Apenas quando<br />

assume a dualidade entre os circuitos dominantes e<br />

instituídos e suas ações cotidianas que experimenta<br />

a esperança e a autonomia.<br />

A cultura sempre mais totalizante é incapaz de<br />

sufocar essas ações, práticas de guerrilha. E elas<br />

resistem em culturas subdominantes (SERPA, 2007).<br />

Apesar da cultura hegemônica de uma cidade<br />

espetáculo expandir sempre mais suas áreas de<br />

atuação, surgem brechas que permitem resistências,<br />

possibilidades criativas ao homem comum. É possível<br />

perceber que apesar dessa penetração sempre maior<br />

de uma ordem imposta, permanecem resquícios<br />

de práticas “menores”, alternativas, pois somente<br />

a partir de táticas “sem identidade legível, sem<br />

tomadas apreensíveis, sem transparências racionais”<br />

(Certeau, 1996, p.174), assim classificadas por<br />

distanciarem-se das narrativas oficiais inscritas no<br />

espaço. E é preciso reconhece-la. Como encontrála?<br />

É preciso saber ouvir as falas dos cidadãos. E<br />

é aí que se acredita que a metodologia qualitativa<br />

com base na fenomenologia pode vir a contribuir<br />

fortemente.<br />

A paisagem pelos olhos de quem<br />

habita<br />

A noção de paisagem urbana é um conceito teórico<br />

controverso. Apesar de livremente utilizado na<br />

fala das pessoas entrevistadas, existe um intenso<br />

debate teórico sobre sua pertinência ou não. Para<br />

os fins deste trabalho, a noção a ser utilizada aqui<br />

se aproxima mais da apreciação estética ambiental,<br />

conforme denominada por Arnold Berleant denomina<br />

de experiência estética ambiental. Segundo<br />

este autor, existiria a necessidade de uma<br />

qualidade estética de nossos espaços cotidianos,<br />

pois a satisfação e bem-estar humanos estão<br />

intimamente associados à experiências estéticas<br />

positivas. Essas experiências seriam muito mais<br />

vívidas e satisfatórias no ambiente de vida, ao<br />

qual estaríamos intimamente conectados, de tal<br />

forma que a relação de continuidade se dá pela<br />

expansão sempre infinita das camadas em torno<br />

da individualidade. (BERLEANT,2013).<br />

Paisagem seria para Berleant a dimensão perceptiva<br />

de um espaço observado, criada a partir de<br />

“(...) atenção profunda, tão rara no mundo contemporâneo”,<br />

com a concentração de todos os<br />

sentidos neste processo. Aqui se aproxima do<br />

pensamento de Berque, que define a percepção da<br />

ecúmena como a mediância, o sentido subjetivo e<br />

objetivo da relação de uma sociedade com a extensão<br />

terrestre (toda ela, segundo o autor, já passível de<br />

ser entendida como espaço ecumental, por ser toda<br />

ela inserida no espaço de vida humana).<br />

A escolha da modalidade de entrevistas em profundidade<br />

permite entender as referências utilizadas<br />

pelos respondentes, não somente para comunicar<br />

a compreensão da paisagem, como também aquelas<br />

introjetadas sistematicamente por imagens<br />

hegemônicas. O objetivo das entrevistas realizadas<br />

foi procurar como o fenômeno 14 da paisagem<br />

se manifestava para os entrevistados. O roteiro<br />

elaborado se desenvolveu em torno da pergunta:<br />

“O que é isto, a paisagem?”.<br />

A fim de entender como então era traduzida a<br />

paisagem para os entrevistados, as perguntas se<br />

desenvolviam em torno de 03 temas, a saber:<br />

- A compreensão do termo: paisagem<br />

- Memórias da paisagem<br />

- Elementos de uma bela paisagem<br />

Por se tratar de uma primeira sondagem, e pelo<br />

próprio caráter da pesquisa fenomenológica, as<br />

perguntas efetivamente propostas variaram de<br />

entrevista a entrevista, explorando alguns conceitos<br />

mais aprofundadamente, à medida em que surgiam<br />

na comunicação do entrevistado. Além disso, o<br />

próprio aprendizado de pesquisa se reflete nestas<br />

alterações: à medida em que mais entrevistas foram<br />

efetuadas, a prática permitiu um aumento da<br />

desenvoltura e da sensibilidade na própria atuação<br />

do pesquisador, facilitando a condução da conversa.<br />

Inicialmente, na maioria dos casos, pedia-se aos<br />

entrevistados, escolhidos entre moradores das<br />

áreas de estudo determinadas, que definissem o<br />

que entendiam por paisagem. A pergunta, que<br />

imediatamente promovia uma reflexão sobre um<br />

tema pouco usual para eles, objetivava entender<br />

que de forma qual a conceituação dada para um<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

60


A pesquisa qualitativa fenomenológica: olhos para ver a criatividade cotidiana<br />

termo já adaptado ao vocabulário cotidiano. As<br />

respostas, quase sempre fornecidas após pausas<br />

mais ou menos longas, tratavam em geral de lugares<br />

comuns: natureza, o belo, ainda que muitas vezes<br />

mescladas a conceitos mais aprofundados. Em<br />

alguns casos, especialmente dos entrevistados mais<br />

jovens, surgem noções bastante surpreendentes.<br />

Observou-se também que a reação a essa primeira<br />

resposta em muito ajudou o desenvolvimento da<br />

entrevista. Ao perceber que a primeira resposta,<br />

elaborada com alguma dificuldade e timidez era<br />

aceita, os entrevistados sentiam-se mais livres para<br />

fornecer as próximas respostas, e a entrevista fluía<br />

mais livremente.<br />

A percepção do impacto de determinadas posturas<br />

e procedimentos sobre os entrevistados e sua<br />

disposição na participação foi muito importante,<br />

facilitando sensivelmente as entrevistas realizadas<br />

posteriormente. Esse desenvolvimento do próprio<br />

pesquisador é fundamental, em especial neste<br />

momento da pesquisa. Permitir a expressão sincera<br />

dos entrevistados é difícil, especialmente no contexto<br />

escolhido, em que alguns se posicionam já em<br />

posição de inferioridade ou receio (de suas respostas<br />

serem consideradas erradas, de desapontar, etc.).<br />

Além disso, é um exercício não buscar confirmar<br />

idéias pré-concebidas, inclusive com uma condução<br />

da entrevista guiada a partir de molduras cristalizadas<br />

da experiência própria ou da teoria, prejudicando o<br />

aprendizado. É preciso questionar as teorias a partir<br />

da experimentação, permitindo-se refazer caminhos<br />

quando necessário.<br />

Ao mesmo tempo, questões como a escolha dos<br />

participantes e do vocabulário a ser utilizado, a<br />

determinação do roteiro, decisões como a melhor<br />

forma de fazer o entrevistado retornar a temas<br />

relativos à pergunta em meio a divagações por<br />

vezes significativas para aqueles que têm poucas<br />

oportunidades de ser escutados, são processos<br />

intuitivos baseados numa sensibilidade que se<br />

desenvolve ao longo da prática. Isso reforça a<br />

importância do exercício prévio de sondagem aqui<br />

realizado: a aceitação de equívocos e oportunidades<br />

não-exploradas na análise posterior a cada entrevista<br />

auxiliaram a refinar os roteiros das entrevistas<br />

subsequentes.<br />

As comunidades aonde se realizaram as entrevistas<br />

foram dois, escolhidos justamente por situaremse<br />

em situações aonde se reconhecia um esforço<br />

por uma paisagem (no sentido aqui trabalhado).<br />

Através de conversas com membros das duas<br />

comunidades revelou-se um discurso sobre a<br />

importância do prazer de estar em determinado<br />

espaço, que os próprios moradores denominação<br />

‘sua’ paisagem. Com o interesse despertado por<br />

tais falas, procedeu-se a algumas entrevistas,<br />

no total de 04 moradores em uma comunidade<br />

(Lagamar) e 10 na outra (Cais do Porto ou<br />

Serviluz), a fim de entender o que se apresentava.<br />

A escolha dos entrevistados não se realizou de<br />

forma determinada previamente, porém envolveu,<br />

nas duas comunidades, faixas etárias diversas<br />

(adolescentes, jovens adultos e idosos), buscando<br />

tipificar as diversas redes existentes (cf. sugestão<br />

de SERPA, 2007).<br />

As entrevistas foram realizadas nas comunidades,<br />

em sua maioria, ao ar livre. Isso revelou-se importante<br />

– muitas das falas foram permeadas por<br />

gestos, que apontavam no espaço circundante<br />

confirmações das palavras: olha aquela árvore,<br />

veja essa vista, ali naquele lugar, esse mar, esse<br />

céu. Acredita-se que este fato foi importante para<br />

o desenvolvimento de algumas respostas. Algumas<br />

entrevistas foram realizadas com o entrevistado<br />

sozinho, outras, por solicitação do entrevistado,<br />

em companhia de outros. Em alguns casos, isso<br />

revelou-se positivo, à medida em que o grupo se<br />

auxiliava entre as repostas. Em outros, negativo,<br />

à medida em que o entrevistado tinha alguma<br />

dificuldade de expressar pensamentos, expondo<br />

sua individualidade frente a colegas, especialmente<br />

no caso de adolescentes.<br />

Um dos primeiros pontos das entrevistas foi a<br />

Comunidade do Lagamar. Situada às margens de<br />

um riacho posteriormente canalizado, o Riacho do<br />

Tauape e Rio Cocó, foi inicialmente uma comunidade<br />

que acolhe migrantes que acorrem a Fortaleza<br />

fugidos da seca, ocupando terrenos alagadiços.<br />

Com história de mobilização, especialmente protagonizada<br />

por mulheres, que se transformou em<br />

marco na cidade, é atualmente uma das poucas<br />

Zonas de Interesse Social regularizadas no município.<br />

O Lagamar foi escolhido justamente por um novo<br />

conflito ocorrido no momento da pesquisa: o<br />

protesto dos moradores por uma reforma na praça<br />

da comunidade, praça de São Francisco, sem consulta<br />

prévia à população.<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

61


A pesquisa qualitativa fenomenológica: olhos para ver a criatividade cotidiana<br />

A praça de São Francisco foi construída a partir de<br />

iniciativa dos próprios moradores (ou moradoras,<br />

como as entrevistadas faziam orgulhosamente<br />

questão de ressaltar). A partir de terreno pouco<br />

propício, por se tratar de área de terreno pantanoso,<br />

foram estabelecidos sucessivamente<br />

dois projetos de praça. Interessante notar que<br />

os mais jovens a responder as perguntas contam<br />

relatos complementares à entrevistada mais idosa,<br />

idealizadora primeira do espaço. É como se as<br />

narrativas se complementassem, demonstrando a<br />

existência de duas fases no processo de apropriação<br />

da praça. Um primeiro, no momento de implantação<br />

da própria praça, com a preparação do terreno<br />

em mutirão encabeçado por uma das entrevistas.<br />

O esforço foi posteriormente contemplado pela<br />

municipalidade e pela igreja católica, com a pavimentação<br />

e implantação de bancos e uma edificação<br />

(capela/espaço comunitário). O segundo, a<br />

partir de atuação dos moradores para revitalização<br />

do equipamento, abandonado, com mutirão de<br />

limpeza e plantação dos canteiros.<br />

O segundo, o Serviluz, é uma comunidade praieira, a<br />

“esquina de Fortaleza”, conforme a definiu um dos<br />

entrevistados. Comunidade surgida na retarguarda<br />

do Porto do Mucuripe, é conformada ao redor de um<br />

pequeno núcleo de pescadores artesanais acrescido<br />

por sucessões de levas de migrantes, afixados no<br />

lugar por diferentes motivos: trabalhadores do porto<br />

e do parque industrial de apoio, pescadores movidos<br />

pela valorização de outras praias urbanas, etc. A<br />

comunidade tem resistido a frequentes ameaças de<br />

remoção, motivadas pela transformação da zona<br />

porturária e a retirada das indústrias, com objetivos<br />

de transformar o espaço em zona turística. Assim,<br />

observa-se a existência de algumas organizações dos<br />

próprios moradores, autônomas ou com apoio de<br />

organizações como igrejas ou ONGs. Um dos motivos<br />

da resistência é justamente a percepção de que<br />

também eles teriam direito a permanecer morando<br />

à beira-mar, enquanto as alternativas sugeridas<br />

ofertam remoção para espaços distantes na cidade.<br />

O papel marcante dos espaços de mobilização<br />

social, representado na importância dada pelos<br />

entrevistados, é refletido claramente em suas respostas.<br />

Quando instados a descreverem um circuito<br />

pelos marcos da comunidade, poucos não citaram<br />

uma parada nas associações e pontos de reunião da<br />

comunidade. Mesmos os mais jovens, já distantes<br />

dos líderes comunitários inicialmente contactados,<br />

relatam que o contato com grupos do bairro os fez<br />

retornar e rever aonde moravam.<br />

Pr., por exemplo, de 19 anos, fala incialmente<br />

imagens de cachoeiras e serras que visitou, nãorelacionadas<br />

à praia aonde mora, quando responde<br />

sobre paisagens enquanto conceito teórico. Porém,<br />

quando questionada sobre memórias marcantes<br />

de experiências ao ar livre, relata principalmente<br />

memórias dentro do bairro, de momentos de reflexão<br />

em atividades banais, como banhos de<br />

mar. E explica que tais momentos se tornaram<br />

memoráveis principalmente pela consciência de que<br />

faziam parte de seu lugar de moradia, mas ela só os<br />

havia percebido naquele instante, somente então<br />

se tornavam experiências. E diz: no dia a dia, saia<br />

cedo e retornava tarde, morava no bairro, mas não<br />

o conhecia. Somente quando se insere num coletivo<br />

que atua no bairro é que “volta ao seu bairro”.<br />

Essa fala possui múltiplas relações com a discussão<br />

inicial. Um dos argumentos utilizados por muitos<br />

defensores da hipótese artializadora moderna seria<br />

justamente a pouca importância dada pela população<br />

a paisagem em seus espaços de vida. Por se tratar de<br />

parte de seus cotidianos, já não haveria olhos para<br />

ver aquilo que seria produzido também por eles.<br />

O que se deixa entrever é que não é o cotidiano<br />

que cega o olhar para espaço, mas a rotina e a<br />

aceitação de pré-juízos. Pr., por exemplo, fala da<br />

importância do conhecimento de outras narrativas<br />

para a valorização de um lugar. Ela cita o caso de<br />

outra comunidade litorânea, o Poço da Draga,<br />

conhecida como espaço de criminalidade e violência.<br />

Porém, ao travar conhecimento com um morador<br />

do local, passa a conhecer toda a beleza escondida<br />

por trás das imagens negativos.<br />

Um outro questionamento pode ser apresentado a<br />

partir das memórias significativas apresentadas pelos<br />

entrevistados. Esses relatos nunca são estáticos, não<br />

contam momentos de contemplação passiva, mas<br />

sempre tratam de atividades realizadas dentro de seu<br />

próprio contexto de moradia (jogos na infância, banhos<br />

de mar, retorno à casa, caminhadas entre pontos do<br />

bairro), fincadas nas lembranças por breves segundos<br />

de conscientização, como o pensamento apresentado<br />

por G., de 43 anos, quando se lembra da cena de uma<br />

caminhada na praia: “Acho massa quando o estilo de<br />

vida se une à natureza (...) É você fazer seu habitar.” É<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

62


A pesquisa qualitativa fenomenológica: olhos para ver a criatividade cotidiana<br />

esse pensamento que eterniza a lembrança daquele dia<br />

na memória, e permite descrever as cenas observadas,<br />

e a natureza como pano de fundo.<br />

Esses momentos podem ser relacionados às experiências<br />

de estética ambiental, conforme des-critos<br />

por Berleant, e se percebe sua importância para o<br />

sentimento de pertencimento à comunidade. “Eu<br />

gosto da minha quebrada”, continua G., apesar<br />

dos sonhos de uma melhor condição de moradia.<br />

Prefere, diz ele, uma boa moradia por ali, por já haver<br />

se acostumado com a “condição de viver perto do<br />

mar”. Aqui talvez ocorra um diálogo entre a imagem<br />

hegemônica da cidade de Fortaleza, cidade litorânea<br />

da indústria do turismo, e as memórias individuais,<br />

que as assimila e traduz numa interpretação própria.<br />

Ou talvez essa percepção tenha raízes diferenciadas,<br />

nem sempre ancoradas nas imagens oficiais de um<br />

espaço. P., de 28 anos, diz: “Aqui, as pessoas se<br />

refugiam no mar.” Ele se refere ao fato do Serviluz<br />

abrigar muitos migrantes, em especial os advindos<br />

de outros espaços litorâneos em Fortaleza ou outros<br />

municípios. Mesmo que trabalhem em indústrias não<br />

relacionadas a atividades marítimas, o mar os atrai,<br />

perpetuando memórias em seu cotidiano. Conclui<br />

dizendo que as paisagens são feitas por atração.<br />

Essa ideia, de que os novos espaços são escolhidos a<br />

partir de memórias anteriores, é fascinante, quando<br />

confrontadas com a hipótese da mediância, em que<br />

a produção se faz em meio a percepções subjetivas<br />

e o que objetivamente se oferece, numa construção<br />

por adição do novo sobre substratos existentes.<br />

Nestes relatos, percebe-se a vantagem de permitir ao<br />

entrevistado certa margem de divagação. Desafiado<br />

por perguntas por vezes inesperadas (muitas entrevistas<br />

iniciam-se com hiatos mais ou menos<br />

longos entre pergunta e resposta), os respondentes<br />

foram levados a refletir. Algumas respostas tiveram<br />

conteúdo mesmo um pouco contraditórios, como<br />

a da jovem P., que inicia declarando que todos<br />

preferem conhecer aquilo que não tem, e ao longo<br />

da entrevista releva por diversas vezes a emoção por<br />

descobrir aquilo que já era seu (“do meu bairro”).<br />

A sensação de posse e pertencimento é recorrente: “Eu<br />

tenho a minha praia”, diz Ca., de 15 anos; “Na maior<br />

realidade que eu vivo, que é a minha comunidade”,<br />

diz A., de 29 anos. É a partir dessas estruturas que se<br />

organizam o conhecimento do mundo: a outra praia<br />

é diferente, porque diferente da minha; aqui é assim,<br />

nos “grandes bairros” é diferente. Essa construção<br />

permite o estabelecimento de significados a partir<br />

de características do es-paço, muito simbólicos, que<br />

assumem o papel de diferenciadores e classificadores do<br />

espaço urbano, como no caso da iluminação pública.<br />

A., por exemplo, atribui um papel discriminatório à<br />

iluminação por vapor de sódio, que identifica como<br />

“lâmpadas amarelas”. Ela diz:<br />

Nas comunidades, as lâmpadas são amarelas. Quando<br />

você entra nas periferias de Fortaleza, as lâmpadas,<br />

elas são amarelas. Onde você chega é amarela. Pra<br />

já dar este ar de penumbra e de diferenciação. (....)<br />

E aqui, elas eram amarelas. Aí na época da reforma,<br />

a gente solicitou que mudasse para brancas. E<br />

é interessante como mudou o clima. As árvores<br />

ficaram mais verdes, tudo ficou mais colorido. As<br />

cores ficaram mais vibrantes, porque o amarelo<br />

de fato dá um ar de escuridão. Algumas ruas aqui<br />

ainda têm lâmpadas amarelas, e muda o cenário.<br />

A tonalidade de luz da lâmpada de sódio, em realidade<br />

alaranjada, possui efetivamente uma pior<br />

reprodutibilidade de cor do que a às de vapor de<br />

mercúrio ou LED, de tonalidade branca. Por estas<br />

últimas serem tecnologias relativamente novas, têm<br />

sido progressivamente instaladas substituindo as<br />

primeiras, mais antigas. Porém, trabalhando na lógica<br />

excludente das administrações públicas brasileiras, o<br />

processo se inicia nos bairros de maior poder aquisitivo.<br />

Daí surge a interessante tradução de uma decisão<br />

técnica, funcionalista a princípio, na materialização<br />

da percepção de uma discriminação sócio-espacial<br />

entre a comunidade e os ‘grandes bairros’: a cor da<br />

lâmpada é o que estabelece o “ar de diferenciação”.<br />

O tratamento do espaço público, nas respostas<br />

apresentadas, é sempre descrito como uma demonstração<br />

de códigos que estabelecem que ambas<br />

as comunidades e seus moradores “não são<br />

prioridade”, como diz J., de 34 anos. Inclusive,<br />

porque como diz P., quando o poder público se<br />

manifesta com um projeto, geralmente não inclui<br />

a comunidade nem no planejamento, nem na<br />

implantação. Reiteradamente, moradores de ambas<br />

as comunidades questionam: Por que não perguntam<br />

a quem mora o que fazer para embelezar o lugar?<br />

Retomando ao Lagamar, A. e J. explicam o conflito<br />

ocorrido. Não é porque não quisessem a<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

63


A pesquisa qualitativa fenomenológica: olhos para ver a criatividade cotidiana<br />

implantação dos brinquedos ofertados, inclusive<br />

reconhecem a necessidade de espaços para o lazer<br />

infantil, inexistentes na comunidade. Mas por que:<br />

Eles querem intervir na realidade das comunidades<br />

sem nem saber que que acontece nas comunidades.<br />

E nós aqui, que somos ativos, que temos uma ZEIS<br />

ativa, dentro de Fortaleza, nós queremos participar<br />

das escolhas da nossa comunidade.<br />

afeto por um lugar. P. continua o exemplo, contando<br />

uma discussão com um amigo que mora “em outra<br />

quebrada” e com quem se envolve numa disputa<br />

comparativa. Diz: o que é que tem lá? Ao que o outro<br />

responde: “Lá tem o Canal, a gente faz churrasco na<br />

beira do Canal”. As particularidades de cada lugar<br />

é o que faz dizer: “eu não troco meu conjunto por<br />

nada”, ainda que a marca impressa se pareça com<br />

uma degradação.<br />

A dificuldade de diálogo entre os técnicos propositores<br />

e a população atinge ambas as comunidades.<br />

A percepção de que os moradores são indiferentes<br />

ao espaço que os circunda é reiterado na surpresa<br />

com que as recusas e protestos são recebidos pelos<br />

técnicos. P. resume: “Eles ficam zoados” porque<br />

os moradores não aceitam as propostas. A jovem<br />

C., de 15, porém, ao definir o que seria paisagem,<br />

apresenta uma visão bastante singular: “É aquilo<br />

que é bonito, né? Aquilo que não sai (...) as pessoas<br />

é que tem de ir pra ver.”. Esta fala demonstra uma<br />

percepção da preponderância de um lugar. É o<br />

espaço que é buscado, que faz com que as pessoas<br />

se desloquem para experiência-lo.<br />

A importância do espaço é reforçada pelas memórias<br />

que ancoram as pessoas naquele lugar.<br />

Como os moradores do Serviluz, que ao definirem<br />

o espaço de assentamento rememoram o lugar<br />

de partida. Ou como as senhoras da praça do<br />

Lagamar, An., de 75 anos, para quem a pequena<br />

pracinha “é muito mais linda que a praça do<br />

Ferreira (principal praça do Centro de Fortaleza).<br />

É, né, não, mulher? Mais conservada, se é pra ir<br />

pra Praça do Ferreira, eu prefiro vir aqui. ” Ao<br />

que a outra, R., de 68 anos, complementa: “É,<br />

todo mundo acha, né. Mas não é a praça, não,<br />

o negócio é amor, né? ”.<br />

P., do Serviluz, usa uma imagem (“retratos”, diz)<br />

para explicar este apego:<br />

(...) olhando uma parede branquinha e uma parede<br />

cheia de picho (...) aquela parede [branca] está vazia,<br />

não representada nada, e a outra está cheia de picho,<br />

está cheia de singularidades (...) é vazio, aquilo, então<br />

a galera quer dar uma vida àquilo dali, embora de<br />

uma forma anárquica, de uma forma diferente (...).<br />

São, assim, as singularidades gravadas no espaço<br />

vazio que caracterizam a especificidade e a razão do<br />

A relação entre marcas singulares se mostra também<br />

quando se tenta implementar outras marcas a partir de<br />

soluções generalizadas, sem raízes fixadas no espaço.<br />

Por exemplo, a implantação dos brinquedos de forma<br />

padronizada na praça. Mesmo quando se trata apenas<br />

de ideias aceitas como positivas, é preciso adequá-la<br />

às realidades do lugar, ainda que a iniciativa parta<br />

dos próprios moradores. O Lagamar fornece ainda<br />

um outro exemplo.<br />

J. conta sobre um evento criado por um grupo de<br />

jovens para a praça do Lagamar. Chamado o Dia do<br />

Abraço na Praça, reuniu um grupo de moradores,<br />

inclusive crianças, para realizar intervenções na praça<br />

e conscientizar para o “cuidado com o nosso”. Avalia<br />

que o dia foi um sucesso, pois “Depois desse dia, a<br />

gente percebeu que a comunidade pegou [a praça]<br />

pra ela, se apropriou mesmo (...) A lembrança foi<br />

muito forte, muito marcante, esse ato do Abraço na<br />

Praça, foi o momento em que as pessoas se sentiram<br />

naquele local”.<br />

Essa iniciativa representa a incorporação da organização<br />

local de ações ocorridas por toda a cidade,<br />

a partir da mobilização da população frente à degradação<br />

crescente de áreas públicas. As intervenções<br />

realizadas foram a limpeza na praça e a reinserção de<br />

plantas em canteiros. Os vizinhos passaram a adotar<br />

cada canteiro e a manter a vegetação. E um conflito<br />

então se instala: as crianças quebravam as plantas,<br />

com as brincadeiras com bola. Porém, não havia outro<br />

espaço de lazer, pois o canal, antigo espaço de jogos,<br />

encontra-se agora sempre cheio e poluído. Foi preciso<br />

então articular uma solução específica, que pactuasse<br />

o uso de espaço verde com o de lazer infantil e de<br />

festividades da comunidade (como a quadrilha junina).<br />

Foi nesse delicado equilíbrio que a ação da prefeitura<br />

para instalação de brinquedos quase interferiu, ao<br />

implantar os brinquedos no espaço central, impedindo<br />

os demais usos, ou ao propor a destruição de um dos<br />

canteiros.<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

64


A pesquisa qualitativa fenomenológica: olhos para ver a criatividade cotidiana<br />

Conclusões parciais de um<br />

aprendizado de pesquisa<br />

A escolha do método trouxe desafios e recompensas.<br />

A pesquisa qualitativa busca uma compreensão<br />

particular daquilo que se estuda (Martins & Bicudo,<br />

2005), selecionando evidências para a argumentação<br />

(Bauer & Gaskell, 2015). De forma alguma pode se<br />

revestir de menor rigor científico, ainda que, ao focar<br />

não na possível generalização dos resultados, mas<br />

na compreensão, novas perguntas surgem quando<br />

deixa de lados determinadas questões lógicas e<br />

metodológicas essenciais para outras modalidades<br />

de pesquisa.<br />

A preocupação com a qualidade dos resultados e<br />

sua efetividade para os fins desejados não se dá a<br />

partir de padrões de procedimentos preestabelecidos<br />

como corretos para o desenvolvimento da pesquisa,<br />

mas de um processo autorreflexivo de autocrítica,<br />

demarcando práticas boas de práticas ruins, baseados<br />

em elementos como intuitividade e habilidade do<br />

pesquisador. O potencial do conhecimento é posto<br />

à prova a partir do diálogo.<br />

A realização da sondagem de campo contribuiu para<br />

além dos aportes extremamente enriquecedores<br />

para o próprio objetivo da pesquisa, na indicação<br />

de posicionamentos frente à fundamentação<br />

proveniente da teoria. O esforço da empatia, de<br />

penetrar a forma de pensar, parece significativamente<br />

importante, em especial na temática estudada, que<br />

se constrói a partir de sentidos e interpretações a<br />

um tempo compartilhados e individuais.<br />

Para isso, a experimentação, ainda que reduzida,<br />

demonstrou-se muito importante. O desenvolvimento<br />

da postura do pesquisador, a reflexão sobre<br />

os resultados de cada entrevista, das possibilidades<br />

surgidas, de seu aproveitamento ou não, funcionam<br />

como um treinamento do olhar e auxiliam na<br />

orientação do pensamento referente à temática. A<br />

cada entrevista, novos horizontes se descortinam.<br />

Cada respondente é um indivíduo singular, ainda<br />

que compartilhe de características mais ou menos<br />

genéricas. Observou-se a importância de uma postura<br />

compatível, que assegurasse aos entrevistados a<br />

importância de suas respostas.<br />

A delicadeza de algumas memórias é surpreendente.<br />

A revelação de significados atrelados a determinadas<br />

circunstâncias e a valorização destes no ato de ouvir<br />

leva alguns entrevistados às lágrimas. A entrevista<br />

é um diálogo, que transforma respondente e<br />

entrevistador. É mais fácil a adoção de uma postura<br />

de respeito genuíno após esse mergulho em reflexões<br />

por vezes surpreendentemente aprofundadas.<br />

Percebeu-se nas respostas alguma insegurança,<br />

com solicitações mudas ou verbalizadas em um,<br />

“não é?” da confirmação da pertinência das ideias<br />

apresentadas. Ao ouvir suas próprias palavras, não<br />

raros moradores reflexionam sobre as respostas<br />

iniciais, que contradizem as opiniões apresentadas<br />

a posteriori. Não raras vezes, comentários realizados<br />

em meio ou após a entrevista refletiam: é, eu acho<br />

que é assim.<br />

Algumas vezes, era preciso divagar. Os entrevistados<br />

precisavam de algum tempo para soltarem-se<br />

das amarras das imagens pré-concebidas, do<br />

automatis-mo de algumas imagens. Contudo,<br />

é preciso ainda um certo cuidado para que a<br />

entrevista não se perca, retornando ao tema de<br />

interesse. Como realizar este cuidado sem reprimir<br />

as respostas seguintes é um ajuste cuidadoso.<br />

Contudo, as divagações contribuíram bastante<br />

positivamente, indicando possibilidades a serem<br />

seguidas.<br />

O cuidado da reflexão posterior sobre o material<br />

coletado em cada entrevista é essencial, para avaliação<br />

da atuação do pesquisador. Observou-se ser<br />

mais vantajoso o espaçamento entre entrevistas,<br />

para permitir esse momento de reflexão. Talvez,<br />

em estágio posterior, seja possível um maior agrupamento<br />

das conversas.<br />

Neste experimento, não se realizou um procedimento<br />

formal de escolha de respondentes, a partir de uma<br />

tipificação. À medida em que as entrevistas foram<br />

sendo realizadas, percebeu-se a necessidade de<br />

outras. Por exemplo, no caso do Serviluz, comunidade<br />

de maior número de entrevistados, iniciou-se com<br />

a indicação de um jovem. A partir dele, outros 03<br />

foram indicados. Em um dos encontros, solicitou-se<br />

a indicação de entrevistados de outro perfil (não<br />

engajado, de outras faixas etárias). Este processo<br />

precisa ser melhorado, a partir de um estudo mais<br />

cuidado e de um roteiro mais elaborado. Contudo,<br />

acredita-se que existirá sempre uma margem para a<br />

reformulação das estratégias, a partir das descobertas<br />

in loco das redes existentes.<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

65


A pesquisa qualitativa fenomenológica: olhos para ver a criatividade cotidiana<br />

Recebido [Set. 03, 2016]<br />

Aprovado [Dez. 21, 2016]<br />

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V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

66


artigos e ensaios<br />

Um paradoxo patrimonial:<br />

a Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro<br />

Roberto Segre (in memorium)<br />

Arquiteto e Urbanista, doutorado em História da Arte pela<br />

Universidade de Havana, Cuba, doutorado em Urbanismo no<br />

Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano da Universidade<br />

Federal do Rio de Janeiro, RJ, Brasil, pós-doutorado no Instituto<br />

de Pesquisa e Planejamento Urbano da Universidade Federal do<br />

Rio de Janeiro, RJ, Brasil<br />

Resumo<br />

A Catedral do Rio de Janeiro foi construída na Esplanada de Santo Antônio<br />

na segunda metade do século XX. A nova Catedral rompe com a tipologia<br />

das igrejas coloniais e traz a influência das pirâmides maias em um edifício<br />

moderno. A Esplanada de Santo Antônio traduz a grande ruptura que o tecido<br />

urbano sofreu nessa área onde é significativo o contraste entre o passado<br />

e o presente deixando em aberto o desafio de integrá-los em um conjunto<br />

patrimonial que recupere os valores humanísticos que sempre caracterizaram<br />

a cidade do Rio de Janeiro.<br />

João Henrique dos Santos<br />

Ecólogo, doutor em Ciência da Religião pela Universidade Federal<br />

de Juiz de Fora, MG, Brasil, professor adjunto do Departamento<br />

de História e Teoria da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da<br />

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Prédio da Reitoria/FAU, Av.<br />

Pedro Calmon, 550, Cidade Universitária, Rio de Janeiro, RJ, CEP<br />

21941-485, (21) 3938-1628, joaohenrique@fau.ufrj.br<br />

Estela Maris de Souza<br />

Arquiteta e Urbanista, doutoranda do PROURB - Programa de<br />

Pós-Graduação em Urbanismo da Faculdade de Arquitetura e<br />

Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Prédio da<br />

Reitoria/FAU, Av. Pedro Calmon, 550, Cidade Universitária, Rio<br />

de Janeiro, RJ, CEP 21941-485, (21) 3938-1628, emaris711@<br />

gmail.com<br />

Palavras-chave: Rio de Janeiro, história urbana, Catedral Metropolitana.<br />

O<br />

paradoxo patrimonial representado pela Catedral<br />

Metropolitana do Rio de Janeiro foi construída em<br />

um espaço emblemático da cidade onde havia o<br />

Morro de Santo Antônio e uma lagoa de mesmo<br />

nome. Com a dissecação da lagoa surge o Largo da<br />

Carioca e com o desmonte parcial do morro temos<br />

a Esplanada de Santo Antônio. São duas áreas<br />

contíguas de mesma origem, mas que guardam<br />

singularidades. Essas duas áreas formam uma paisagem<br />

urbana dicotômica em função do tecido<br />

urbano original, pois a Catedral Metropolitana<br />

e os edificios institucionais da década de 70 se<br />

contrapõem ao conjunto franciscano representado<br />

pelo Convento de Santo Antônio no Largo da<br />

Carioca. Os edificios modernos representados pelas<br />

sedes da Petrobrás, BNDES e Caixa Econômica<br />

refletem o momento de desenvolvimento econômico<br />

do país na década de 60/70, embora a cidade do Rio<br />

de Janeiro não fosse mais a capital federal. Neste<br />

cenário de uma das áreas mais importantes do centro<br />

do da cidade do Rio de Janeiro temos a construção<br />

da Catedral Metropolitana e suas varias nuances.<br />

Uma catedral itinerante<br />

A Catedral do Rio de Janeiro antes de se estabelecer<br />

na Esplanada de Santo Antônio, no centro de<br />

negócios da cidade, teve sua história marcada<br />

pela itinerância de 300 anos. Desde a criação da<br />

Diocese em 1676, até a inauguração da Catedral<br />

Metropolitana, em 1976, a Catedral foi abrigada por<br />

três igrejas de irmandades, Santa Cruz dos Militares,<br />

Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e Nossa Senhora<br />

do Carmo da Antiga Sé. Além destas ainda houve<br />

um pleito pela igreja da Candelária e três projetos<br />

desenvolvidos, mas nenhuma dessas ações foram<br />

concretizadas (Figura 1). Sua tipologia foi desde a<br />

tradicional igreja colonial até o edifício moderno. O<br />

centro da cidade modernizou-se através das grandes<br />

avenidas e a Catedral Metropolitana atual traduz<br />

V14 N2<br />

revista de pesquisa em arquitetura e urbanismo instituto de arquitetura e urbanismo iau-usp<br />

67


Um paradoxo patrimonial: a Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro<br />

Figura 1: Mapa com a localização<br />

das Igrejas que foram<br />

Catedral após saída da Igreja<br />

de São Sebastião no Morro<br />

do Castelo. Fonte: Mapa<br />

realizado pelos autores sobre<br />

imagem do Google Maps.<br />

esse período de transformações modernistas em<br />

que o antigo dava espaço ao novo, e o moderno<br />

traduzido através da cidade espetáculo. O edificio<br />

impõe-se pela escala e sua forma insólita, alterando<br />

o paradigma tipológico consagrado na construção<br />

de edificações religiosas no Rio de Janeiro colonial.<br />

A Diocese do Rio de Janeiro foi criada em 1676, ato<br />

instituído pelo Papa Inocêncio XI no Reinado de D.<br />

Pedro II, de Portugal. Quando da criação do bispado,<br />

a Matriz do Rio de Janeiro funcionava na modesta<br />

igreja de São Sebastião no Morro do Castelo. Essa<br />

igreja (Figura 2) foi construída por Salvador Correia<br />

de Sá em 1583 para onde foram levados os restos<br />

mortais de Estácio de Sá, fundador da cidade.<br />

Este simples templo tombou destruído com o arrasamento<br />

do Morro do Castelo em 1922, mas antes<br />

disso já estava em condições precárias de abandono.<br />

Com a expansão urbana da cidade do Rio de Janeiro<br />

começou-se o estabelecimento nas várzeas. Esse<br />

deslocamento fez com que os Ministros da Sé e<br />

Bispos começassem a achar longe e difícil o acesso<br />

à Catedral no Morro do Castelo e foi sendo aos<br />

poucos abandonada. No início do século XVIII já se<br />

pensava na mudança da Sé para a planície.<br />

A falta de construção de uma igreja própria para a<br />

Catedral levou os Bispos fluminenses a pleitearem<br />

igrejas de Irmandades. Essa tarefa não foi fácil, pois<br />

os membros das Irmandades fugiam da convivência<br />

com o Cabido.<br />

Em 1702 foi pedido para que a Sé mudasse para<br />

a igreja de São José, mas também foi cogitado um<br />

projeto para a Sé em 1703. A igreja de São José não<br />

foi aceita e a igreja da Irmandade da “Santa Cruz dos<br />

Militares” foi cotada desde que se fizesse o Cruzeiro<br />

com Capela Mor, Sacristia, Sala de reunião do Cabido<br />

aproveitando o corpo do templo. Nesse meio tempo a<br />

igreja da Candelária (Figura 3) também foi pleiteada,<br />

tendo seu consentimento em 1721, mas a mudança<br />

nunca ocorreu. Em 1733 a Sé é transferida para a<br />

igreja Santa Cruz dos Militares (Figura 4) de fato. No<br />

entanto, não foi uma estadia tranquila.<br />

A Igreja Santa Cruz dos Militares, pela precariedade,<br />

não aguentou os arranjos para tornar-se a Catedral,<br />

e estava prestes a ruir quando os Cônegos foram<br />

transferidos interinamente para rezar na Igreja N.<br />

Sra. do Rosário dos Pretos (Figura 6) em 1737; ato<br />

que se tornou definitivo em 1739. E, mesmo sob<br />

protestos, aí permaneceu até a chegada da Família<br />

Real em 1808. No entanto, o pleito para um projeto<br />

para a Sé foi aceito e, em 1749, definiu-se o terreno<br />

no atual Largo de São Francisco, onde foi lançada<br />

a pedra fundamental para construção da nova Sé<br />

(Figura 7).<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

68


Um paradoxo patrimonial: a Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro<br />

Figura 2 (topo): Igreja de São<br />

Sebastião no Morro do Castelo.<br />

Fonte: .<br />

Figura 3 (centro): Igreja da<br />

Candelária (N o 1 no Mapa).<br />

Fonte: .<br />

Figura 4: Igreja Santa Cruz<br />

dos Militares (N o 2 no Mapa).<br />

Fonte: Fotografia realizada<br />

pelo autor, jan 2013.<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

69


Um paradoxo patrimonial: a Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro<br />

Figura 5 (topo): Igreja do<br />

Carmo (N o 5 no Mapa). Fonte:<br />

Fotografia realizada pelo<br />

autor, jan 2013.<br />

Figura 6 (esquerda): Igreja<br />

Nossa Senhora do Rosário<br />

dos Pretos (N o 3 no Mapa).<br />

Fonte: Fotografia realizada<br />

pelo autor, jan 2013.<br />

Figura 7 (direita): Igreja<br />

São Vicente de Fora, fachada<br />

principal, Armando Serôdio,<br />

1960 – inspiração para o projeto<br />

(N o 4 no Mapa). Fonte:<br />

.<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

70


Um paradoxo patrimonial: a Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro<br />

A planta da igreja foi realizada pelo Sargento-Mor<br />

Carlos Manuel e as obras se arrastaram até 1752.<br />

As obras ficaram paralisadas por 44 anos, pois o<br />

Estado estava mais preocupado com as fronteiras do<br />

que com a construção de uma nova Sé. O Cabido,<br />

cansado de esperar, ainda conseguiu levar a obra<br />

até 1797, mas nessa data a obra parou novamente e<br />

acabou abrigando a Academia Militar após reforma.<br />

Com a chegada à cidade da Família Real, esta não<br />

deveria frequentar a igreja de pretos, e o Rei ordena<br />

que os Carmelitas sejam desalojados de seu convento<br />

para que D. Joãoelevasse a igreja anexa a Capela<br />

Real. Portanto, a Igreja do Carmo (Figura 5) não foi<br />

elevada a Catedral, mas a Capela Real. E a partir daí<br />

todas as grandes solenidades da Corte foram feitas na<br />

Capela Real. Em 1818 nela foi realizada a Sagração<br />

de D. João VI – Rei de Portugal, Brasil e Algarves,<br />

a única sagração de um Rei europeu realizada em<br />

terras americanas. Nela foram Sagrados os dois<br />

Imperadores do Brasil: D. Pedro I em dezembro de<br />

1822, quando ela passou a ser a Capela Imperial e<br />

D. Pedro II então com apenas 15 anos em julho de<br />

1841.Com a Proclamação da República a Igreja sofreu<br />

uma restauração e em 1900 foi reinaugurada como<br />

a Catedral Metropolitana, com grandes solenidades,<br />

em celebração do Quarto Centenário da Descoberta<br />

do Brasil.Já na República, o Prefeito Pereira Passos<br />

exigiu reformas externas que levaram sua feição<br />

simples colonial a pretensões renascentistas de<br />

gosto duvidoso.<br />

Além da itinerância da Catedral pelas igrejas e da obra<br />

iniciada no atual Largo de São Franscisco, ainda foram<br />

feitos dois projetos para a construção da Catedral<br />

do Rio de Janeiro. Um deles ainda levava em conta<br />

o Morro de Santo Antônio colocando a Catedral<br />

no cume do morro. Já o segundo projeto estava<br />

dentro das diretrizes do projeto de remodelação<br />

e embelezamento da cidade do Rio de Janeiro<br />

inspirado na Europa, precisamente em Paris/França<br />

que abriam grandes avenidas e visadas.<br />

No entanto, a idéia da construção de uma Catedral<br />

não havia terminado, mas era necessário encontrar<br />

um terreno já que a construção no Largo de São<br />

Francisco foi requisitado por Dom João VI para a<br />

criação da Academia Militar e desde aqueles tempos<br />

estaba ocupado. Havia uma urgência nesse projeto<br />

em função dos festejos dos 400 anos de fundação<br />

da Cidade, pois era necessário construir um “templo<br />

que seja um escrínio de sua arte, de sua história, da<br />

sua fé” (CALLIARI, 1977, pg. 63).<br />

O Rio de Janeiro nasceu também sob o signo<br />

bendito da Cruz; mas... até hoje, depois de inúmeras<br />

tentativas, continuamos sem Catedral, porque até<br />

hoje os poderes públicos não nos fizeram justiça,<br />

pela desapropriação da que estava em construção na<br />

praça Real da Sé Nova, hoje Largo de São Francisco.<br />

(CALLIARI, 1977, pg. 64)<br />

Por esse motivo, pela tradição histórica de todas as<br />

cidades do Brasil, pelo exemplo dado pelo Governo<br />

Federal, em Brasília, doando terreno para 20 igrejas,<br />

inclusive a Catedral, pelo princípio de democracia,<br />

pois esse é o desejo de todos os católicos, que<br />

passam de 85% da população carioca, pedimos<br />

que a V. Excia. Sr. Governador do Estado, haja por<br />

bem enviar uma mensagem à Câmara do Estado,<br />

solicitando autorização para doar um terreno no<br />

centro urbano em que se construa a Catedral do<br />

Rio de Janeiro. Caso não seja pedir demais, tomo<br />

a liberdade de o localizar na esplanada do morro<br />

de Santo Antônio, pois a sua área não está ainda<br />

entregue ao uso público. Além disso, nela podem<br />

ser logo iniciados os trabalhos de construção por<br />

se achar livre e desimpedida; e pela exigüidade de<br />

tempo, urge o início das obras. (CALLIARI, 1977,<br />

pg. 65)<br />

Em 1960 saiu publicado no Diário Oficial o Projeto de<br />

Lei doando o terreno para a construção da Catedral<br />

e edifícios assistenciais. E após 300 anos finalmente<br />

a cidade do Rio de Janeiro teria sua Catedral.<br />

Um insólito edifício<br />

O partido arquitetônico da Catedral nasce em 1956,<br />

em Zipaquirá, Colômbia. Dom Jaime de Barros<br />

Câmara se encanta com a “Catedral do Sal” e ao<br />

voltar sugere que se faça o mesmo no Rio de Janeiro<br />

no morro da Babilônia ou na pedreira da Favela, na<br />

altura do Mangue. No entanto, uma obra desse<br />

porte no morro da Babilônia ficaria muito caro.<br />

Pelo décimo do preço poderíamos construir uma de<br />

cimento, em forma de cruz, cujas paredes subiriam<br />

até a altura do raio do círculo. Círculo que a cada<br />

dois metros – em aros também de 2 metros – elevarse-iam<br />

formando a cobertura: assim como uma<br />

cúpula. (CALLIARI, 1977, pg. 81)<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

71


Um paradoxo patrimonial: a Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro<br />

Figura 8: Pirâmide Maia - inspiração.<br />

Fonte: .<br />

Foram montadas duas maquetes: uma de 50 metros<br />

de altura e outra de 100 metros, ambas com o<br />

diâmetro externo de 100 metros. Aquela desagradou,<br />

ficava acachapada. A outra, pareceu melhor. E ficou<br />

exposta no dia do lançamento da 1ª pedra, à 20<br />

de janeiro de 1964, diante da grande multidão que<br />

acompanhara a procissão do Santo Padroeiro, e se<br />

postara ao longo do imenso círculo dos alicerces.<br />

(CALLIARI, 1977, pg. 81)<br />

O projeto definitivo foi confiado ao arquiteto Edgar<br />

de Oliveira da Fonseca; o engenheiro foi Newton<br />

Sotto Maior e o mestre de obras, Joaquim Corrêa;e<br />

o executor das obras, o secretário particular do<br />

Cardeal Câmara, Monsenhor Ivo Antonio Calliari.<br />

No entanto, o gobernador Carlos Lacerda criticou a<br />

maquete da nova Catedral. E a situação se complica,<br />

pois ele deveria aprovar as plantas para o início da<br />

obra. Monsenhor Calliari estava no escritório da<br />

firma Severo e Villares folheando uma revista maia<br />

quando se deparou com uma pirâmide escalonada.<br />

De que maneira conjugar o círculo e a cruz foi o<br />

desafio enfrentado até delinear a Catedral que<br />

aí está, de estilo tão diferente de todas as igrejas<br />

construídas conforme os padrões convencionais.<br />

E esse desafio encontrou resposta e inspiração na<br />

pirâmide que os Maias construíram na Península de<br />

Yucatán, no México. Na base, a pirâmide é quadrada<br />

e larga, mas se estreita a medida em que sobe, até<br />

tomar, no topo, a forma de um platô. (CALLIARI,<br />

1977, pg. 82) (Figura 8)<br />

Foi chamado o arquiteto e as modificações foram<br />

feitas de acordo com a nova inspiração. O projeto<br />

novo foi aprovado e, em 1965, o alvará para início<br />

das obras foi assinado.<br />

Diferentemente das pirâmides dos Maias, ela tem<br />

forma circular e cônica para significar a eqüidistância<br />

e proximidade das pessoas em relação a Deus,<br />

lembrando um pouco também a mitra usada pelos<br />

bispos nas cerimônias mais solenes; Deus, – como<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

72


Um paradoxo patrimonial: a Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro<br />

Figura 9: Catedral concluída.<br />

Fonte: .<br />

que “desce” das alturas para vir ao encontro do<br />

homem – é simbolizado pela luz que se esparrama<br />

dos quatro braços da cruz, à qual domina grande<br />

parte do teto e tem o seu prolongamento nos quatro<br />

vitrais que se ligam aos pórticos. (PORTAL UM, 2011)<br />

A Catedral tem as seguintes medidas: 75 metros<br />

de altura externa e 64 metros de altura interna,<br />

106 metros de diâmetro externo e 96 de diâmetro<br />

interno (Figuras 10, 11 e 12), cada vitral: 64,50<br />

x 17,80 x 9,60 metros; área de 8.000 m2, com<br />

capacidade para abrigar 20.000 pessoas em pé ou<br />

5.000 sentadas. Uma Catedral imponente enquanto<br />

marco na cidade, mas que não tem aceitação<br />

favorável por parte da população em função de<br />

seu partido arquitetônico (Figura 9).<br />

No entanto, quem consegue deixar de lado a primeira<br />

impressão negativa do edificio e transpõe o espaço<br />

profano que a cerca, desfruta de um espaço sagrado<br />

muito significativo. O interior da igreja enquanto<br />

representação do Universo fica patente na sua forma<br />

circular quando se transpõe a porta principal, pois<br />

o altar em seu centro encimado pela cruz grega<br />

de grandes proporções eleva o usuário ao mundo<br />

sagrado onde o profano é transcendido. Seus vitrais<br />

coloridos projetam cores diferentes nos diferentes<br />

horários do dia criando uma atmosfera sagrada.<br />

Estamos falando da recriação do universo religioso<br />

no centro de negocios da cidade do Rio de Janeiro,<br />

onde homens modernos circulam com seus passos<br />

apressados sem momentos de descompressão.<br />

Portanto,<br />

Esse homem moderno precisa, talvez ainda mais<br />

do que seus antepassados, de um local onde possa<br />

refugiar-se do ruído da cidade moderna, para<br />

sentir, no silêncio e na tranqüilidade, a realidade<br />

sobrenatural, sobre a qual repousa nossa existência.<br />

Na igreja o homem procura a solidão para escutar<br />

a Deus, trocar confidências mútuas e confiantes,<br />

seguras e benévolas. Os pensamentos, as preces,<br />

ele os pode dirigir a Deus, também, em outro lugar.<br />

Mas não há dúvida de que o ambiente da igreja<br />

pode e deve favorecer o recolhimento, a meditação,<br />

a oração. (SCHUBERT, 1977, p. 25)<br />

A Catedral Metropolitana proporciona esse recolhimento<br />

desde que se consiga transpor varios<br />

obstáculos urbanísticos causados pelo número<br />

elevado de carros, a falta de um passeio agradável e a<br />

visão do edificio “brotando” de um estacionamento.<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

73


Um paradoxo patrimonial: a Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro<br />

Figura 10 (topo): Fachada<br />

esquemática da Catedral Metropolitana.<br />

Fonte: Autores<br />

sobre Arquivo da Cúria.<br />

Figura 11 (centro): Térreo<br />

da Catedral Metropolitana.<br />

Fonte: Autores sobre Arquivo<br />

da Cúria.<br />

Figura 12: Subsolo da Catedral<br />

Metropolitana. Fonte:<br />

Autores sobre Arquivo da<br />

Cúria.<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

74


Um paradoxo patrimonial: a Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro<br />

Mapa 1: Morros que delimitavam<br />

a cidade colonial<br />

junto ao litoral. Fonte: Sisson,<br />

2008, p. 12.<br />

Uma difícil localização<br />

Após 300 anos de itinerância a Catedral finalmente<br />

recebe um lote na Esplanada de Santo Antônio para<br />

sua construção e anexos. O que hoje conhecemos<br />

como Esplanada de Santo Antônio já foi outrora um<br />

lugar chamado Morro de Santo Antônio. O morro<br />

de Santo Antônio faz parte do conjunto de morros<br />

que delimitava o início da cidade colonial junto ao<br />

litoral (Mapa 1). Além dele ainda havia o morro do<br />

Castelo, do Senado, Conceição e São Bento. Desses<br />

cinco morros, atualmente permanecem o morro de<br />

São Bento, morro da Conceição e da Providência.<br />

O morro de Santo Antônio recebeu esse nome<br />

em função da ermida destinada a Santo Antônio,<br />

construída ao sopé do morro às margens da lagoa<br />

de mesmo nome. Com o aterro da lagoa, o espaço<br />

criado ficou conhecido como Campo de Santo<br />

Antônio. Esse nome só foi mudado para Largo da<br />

Carioca em 1723 com a inauguração do Chafariz<br />

que trazia água do rio Carioca.<br />

A questão referente ao arrasamento do morro de<br />

Santo Antônio vem desde os tempos da Regência<br />

em 1837, mas só em 1850, com o aparecimento<br />

da febre amarela, o Visconde de Barbacena cogitou<br />

organizar uma empresa para o arrasamento do<br />

morro de Santo Antônio. Os motivos eram higiene e<br />

salubridade pública, pois os médicos e engenheiros<br />

achavam que o morro impedia que os ares frescos do<br />

mar adentrassem ao interior da cidade. No entanto<br />

parte de seu desmonte só foi acontecer de fato<br />

na década de 60 graças à política de urbanismo<br />

importado da Europa onde se abriam grandes visadas<br />

na cidade em detrimento de seu tecido histórico.<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

75


Um paradoxo patrimonial: a Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro<br />

Esse local sofreu várias intervenções urbanas que<br />

culminaram numa perda de identidade. A área<br />

fazia parte de uma paisagem significante, de um<br />

‘lugar’ da cidade do Rio de Janeiro. A falta de uma<br />

identidade definida, no entanto, não significa uma<br />

falta de potencial para tornar-se um lugar, pois a<br />

área em questão possui uma história cultural a ser<br />

contada e vivida pelos indivíduos que ali freqüentam<br />

ou transitam. No entorno encontramos edifícios de<br />

prestígio, além da própria Catedral Metropolitana. A<br />

área é também um ponto central que liga fisicamente<br />

vários ‘lugares’ do centro da cidade como Lapa,<br />

Cinelândia, Praça Tiradentes, Largo da Carioca e<br />

Rua do Lavradio, mas que não exerce nenhum poder<br />

imagístico de identidade sobre as pessoas que ali<br />

frequentam. (SOUZA, 2011, p. 2)<br />

O projeto inicial, desejo do Governador Carlos<br />

Lacerda, seria transformar a Esplanada de Santo<br />

Antônio num grande parque onde a Catedral entraria<br />

como elemento principal no centro do terreno, mas<br />

não foi o que aconteceu, pois o mesmo foi sendo<br />

diminuído pelo Estado a cada modificação de<br />

projeto. E a Catedral acabou dividindo seu espaço<br />

com os edifícios da Telefônica, Petrobrás, BNH e<br />

BNDES. E a Esplanada de Santo Antônio foi sendo<br />

desmantelada a cada vez que o Estado precisava de<br />

dinheiro assim como a área que seria destinada aos<br />

prédios assistenciais também foi vendida. Antes que<br />

a Catedral fosse ainda mais sufocada, delimitaram<br />

uma área de entorno imediato.<br />

Mesmo com a definição do terreno, os problemas<br />

para a construção da Catedral não se extinguiram.<br />

A Catedral acabou sendo construída não no centro<br />

do terreno, mas num lote dentro da Esplanada de<br />

Santo Antônio. O espaço sagrado foi profanado<br />

antes mesmo de ser concluído. Esse é um ponto<br />

interessante da implantação da Catedral, pois como<br />

diz Eliade, “O homem toma conhecimento do<br />

sagrado porque este se manifesta, se mostra como<br />

algo absolutamente diferente do profano”. (ELIADE,<br />

1992, p. 15) No caso da Catedral, no entanto, a<br />

igreja nasce num mar de carros e encarcerada entre<br />

grades. A Catedral tornou-se um marco turístico,<br />

um asterisco no mapa de turismo, mas não confere<br />

à área uma identidade enquanto marco religioso.<br />

Esta área, considerada por muitos como um vazio<br />

urbano, é caracterizadapela dicotomia Rio Antigo<br />

e Rio Contemporâneo. O Rio contemporâneo traz<br />

comorepresentantes edifícios institucionais já citados<br />

e o Rio antigo pelo que sobrou docasario na Rua<br />

do Lavradio e Rua dos Arcos. A área ficou entre a<br />

política dapreservação do patrimônio e a política<br />

do ‘arrasa-quarteirão’, bem marcada noprojeto<br />

traçado por Reidy5 em 1948 para a Esplanada de<br />

Santo Antônio, que não foifinalizado, mas que foi<br />

forte influência para o que hoje existe. A Catedral<br />

também fazparte desse plano, caracterizado pela sua<br />

escala e imponência como marco de umaavenida<br />

moderna. (SOUZA, 2011, p. 4)<br />

Segundo Eliade, o espaço sagrado representa o<br />

centro do Cosmos onde o Templo é a imagem<br />

santificada da representação desse Cosmos. Tudo<br />

que está fora desse Centro representa o espaço<br />

profano. No caso da Catedral, a representação do<br />

sagrado apesar de imponente, se revela impotente<br />

perante o espaço profano que a cerca.<br />

[...] a irrupção do sagrado não somente projeta um<br />

ponto fixo no meio da fluidez amorfa do espaço<br />

profano, um “Centro”, no “Caos”; produz também<br />

uma rotura de nível, quer dizer, abre a comunicação<br />

entre os níveis cósmicos (entre a Terra e o Céu) e<br />

possibilita a passagem, de ordem ontológica, de um<br />

modo de ser a outro. (ELIADE, 1992, p. 55)<br />

O entorno da Catedral, que possibilitaria a transição<br />

do espaço profano para o sagrado, lhe foi tirado. A<br />

igreja deveria se constituir numa rotura no espaço<br />

profano da cidade. E a Catedral enquanto marco,<br />

representa bem esse papel, mas sua localização<br />

dificulta sua utilização enquanto rotura do tempo<br />

profano, pois as pessoas não são atraídas a transpor<br />

o portal que as levará ao tempo sagrado (Figura 13).<br />

A catedral profanada<br />

Quando em 1959, Juscelino Kubitschek inaugura a<br />

Avenida Chile, a nova Esplanada de Santo Antônio<br />

constituía uma espécie de vazio urbano no centro<br />

da cidade. Nos anos sessenta começou a ocupação<br />

da Esplanada, sem nenhum projeto urbanístico<br />

(SEGRE, 2000, p. 18). A Prefeitura, aleatoriamente,<br />

foi entregando a diferentes instituições parcelas de<br />

terrenos para assentar as suas sedes. E a primeira foi<br />

a Catedral Metropolitana, em uma área cedida pelo<br />

governador Carlos Lacerda em 1963. Curiosamente,<br />

o maior templo religioso do Brasil surgiu no Rio de<br />

Janeiro e não em Brasília, reafirmando a sua vocação<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

76


Um paradoxo patrimonial: a Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro<br />

Figura 13: Relação do espaço<br />

sagrado e profano. Fonte:<br />

.<br />

religiosa neste tradicional espaço “sagrado”, já<br />

conformado no diálogo histórico entre a natureza<br />

e o Convento de Santo Antônio.<br />

Com o início do regime militar em 1964, a Esplanada<br />

de Santo Antônio se transformou no espaço em<br />

que se estabeleceu um diálogo contraditório entre<br />

o “sacro” e o “profano”. Imaginando a criação de<br />

um centro administrativo de abrangência nacional,<br />

o governo militar decidiu localizar na Esplanada<br />

três das mais importantes instituições estatais:<br />

a Petrobrás; o Banco Nacional de Habitação e o<br />

BNDES. Em 1966, ganham o concurso para a sede<br />

da Petrobrás os arquitetos de Paraná, Roberto Luis<br />

Gandolfi, José H. Sanchotene, Abraão Assad e Luis<br />

Forte Netto. Pela sua originalidade, com a forma<br />

de um volume cúbico perfurado por vazios que<br />

definem áreas abertas de convivência –previstos<br />

com antecedência á preocupação atual dos edifícios<br />

verdes –; as fachadas com brises e o releve do friso da<br />

cornija, constitui o prédio mais icônico da Esplanada,<br />

ao diferenciar-se das tradicionais lâminas de aço e<br />

vidro. Posteriormente, em 1968, surgiu a sede do<br />

BNH, projeto de Haroldo Cardoso de Souza e Rogério<br />

Marques de Oliveira (XAVIER, 1991, p.135). Aqui a<br />

tradicional lâmina de vidro se divide em dois subvolumes,<br />

articulados por um núcleo central fechado<br />

de concreto armado que contém as circulações e os<br />

serviços. Finalmente, em 1974, a equipe formada<br />

por Alfred Willer, Ariel Stelle, Joel Ramalho Jr., José<br />

Sanchotene, Leonardo Oba, Oscar Mueller e Rubens<br />

Sanchotene, obtém o primeiro prêmio no concurso<br />

para a sede do BNDES, o mais luxuoso e sofisticado<br />

edifício da Esplanada (CZAJKOWSKI, 2000, p.36).<br />

A alta torre cúbica de vidro preto se levanta sobre<br />

um núcleo central que a separa nitidamente do<br />

embasamento. O maior interesse do prédio é a<br />

articulação do embasamento com as encostas<br />

remanescentes do Morro que pertencem ao espaço<br />

verde do Convento de Santo Antônio, e a sua<br />

continuidade com o espaço público do Largo da<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

77


Um paradoxo patrimonial: a Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro<br />

Figura 14: Skyline da área.<br />

Fonte: Material produzido<br />

para a tese de Doutorado (em<br />

andamento) de Estela Maris<br />

de Souza - Autores: Estela<br />

Maris de Souza e Leonardo<br />

Falcão.<br />

Carioca. A ratificação da “capitalidade” perdida do Rio<br />

de Janeiro, que devia fortalecer-se com a iconicidade<br />

deste novo conjunto administrativo nacional, não<br />

se concretizou, já que o vazio da Esplanada não<br />

foi nunca preenchido, mantendo-se isolados estes<br />

“elefantes brancos” no centro da cidade. Apesar<br />

da existência de alguns projetos elaborados após a<br />

volta da democracia, que procuraram recuperar a<br />

dimensão social da Esplanada, nada foi concretizado,<br />

continuando a ocupação do espaço com novas torres<br />

como o edifício Metropolitan (1991) e o conjunto<br />

recente Corporate Ventura Towers (2007).<br />

A forte impressão da espacialidade interna da Catedral<br />

contrasta com o vazio urbano e com a falta de uma<br />

praça monumental que valorize a sua presença, que<br />

existia na primeira proposta aprovada por Lacerda.<br />

Assim, a edificação que foi idealizada como um<br />

grande cone em uma esplanada ficou cercada, cingida<br />

e contida pelas grandiosas edificações “laicas”. O<br />

adro que estabeleceria um reforço formal ao acesso<br />

principal nunca foi estabelecido. De fato, o que se<br />

tem é uma extensão mal definida de espaço com<br />

áreas verdes precárias, uma terra de ninguém tomada<br />

por uma quantidade absurda de carros estacionados.<br />

Situada no cruzamento das Avenidas Chile e Paraguai,<br />

não se percebe uma clara estrutura compositiva que<br />

permita identificar a presença de um templo em um<br />

espaço predominantemente laico.<br />

Talvez se deva reconhecer que a preterida Catedral<br />

não consegue adquirir a significação de um<br />

espaço religioso, assim como os prédios altos da<br />

Esplanada, que além de um alinhamento medíocre<br />

não apresentam nenhuma conformação urbana<br />

consequente, não preenchendo o vazio urbano.<br />

Desafortunadamente, o predomínio do profano<br />

confuso e desarticulado sobre o sacro acabrunhado,<br />

acabou por profanar a simplicidade simbólica do<br />

sagrado. (Figura 14)<br />

Complexidades urbanas do<br />

patrimônio<br />

Dentro deste contexto de vazio urbano é necessário<br />

reconhecer as dicotomias causadas pelo patrimonio<br />

material representados pelos edificios construídos<br />

na década de 70 e principalmente sua relação<br />

com o entorno, no caso Catedral Metropolitana e<br />

transeuntes. Para tanto, Françoise Choay (CHOAY,<br />

2001: 128) salienta a distinção que se faz necessária<br />

entre o valor cognitivo e o valor artístico de um<br />

monumento. Se o primeiro o acompanha ao longo<br />

de toda a sua história, o segundo lhe é agregado ou<br />

subtraído com o passar do tempo. Vale dizer que<br />

determinados monumentos são reconhecidos como<br />

tais e com tal valor desde sua edificação, enquanto<br />

que a passagem do tempo pode acrescentar-lhe<br />

ou diminuir-lhe o valor artístico.<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

78


Um paradoxo patrimonial: a Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro<br />

O valor cognitivo é dado de per se, pela construção<br />

histórica e pelo nível de informação que se passa à<br />

população, enquanto que o segundo partirá sempre<br />

de um parâmetro comparativo, especialmente com<br />

outros monumentos ou edificações construídos<br />

no entorno, principalmente no entorno imediato.<br />

Citando Paolo Rossi,<br />

“O tempo possui uma direção e uma flecha. Escorre<br />

de alguma coisa para outra coisa. Na visão linear do<br />

tempo, é proibida qualquer repetição. Trabalha-se<br />

somente com eventos singulares, individuais, não<br />

repetitíveis, cada um se posicionando num ponto<br />

determinado da flecha. Porém, muitos afirmaram que<br />

pedaços do passado se reapresentam no presente,<br />

dando lugar a renascimentos ou a retornos. Na ideia<br />

do retorno está implícita a de uma volta e de uma<br />

repetição, de uma não unicidade e não repetitibilidade<br />

dos eventos, de possíveis uniformidades ou<br />

leis do devir. A metáfora da flecha se mistura, de<br />

modos imprevistos e complicados, à do ciclo”.<br />

(ROSSI, 2007:129-130)<br />

No Rio de Janeiro, a questão do ambiente construído<br />

sempre se revestiu de complexidade,<br />

com um dado especial que é a exuberância do<br />

patrimônio natural. Por vezes, tentou-se competir<br />

com a beleza da natureza; outras vezes, tentou-se<br />

fazer que o ambiente construído se integrasse, sem<br />

competir, com o ambiente natural. O centro da<br />

cidade do Rio de Janeiro, onde se iniciou o processo<br />

de ocupação e colonização da cidade, sofreu<br />

inúmeras intervenções que descaracterizaram<br />

por completo a paisagem natural e estabeleceu<br />

uma competição, muitas vezes predatória, entre<br />

o novo e o antigo.<br />

Assim, a compreensão das complexidades urbanas<br />

do patrimônio não pode ser reduzida à questão da<br />

historicidade ou beleza da edificação, mas deve<br />

abranger a implantação urbana da mesma e sua<br />

percepção pela população da cidade. A questão<br />

tem seu foco deslocado para a questão de como as<br />

pessoas percebem ou utilizam aquele monumento;<br />

se o valor que lhe é dado é unicamente simbólico<br />

ou se lhe é agregado valor histórico e artístico.<br />

Entendendo-se a cidade como um organismo vivo,<br />

com dinâmicas endógenas e exógenas, a questão<br />

do patrimônio torna-se ainda mais complexa, pois<br />

que ele figuraria como a cristalização em meio a<br />

um ambiente essencialmente fluido.<br />

Citando Maria Cecília Fonseca, há que se fazer a<br />

distinção entre bem cultural e bem patrimonial:<br />

“Ao se considerar um bem como bem cultural, ao<br />

lado de seu valor utilitário e econômico (valor de<br />

uso enquanto habitação, local de culto, ornamento<br />

etc. -... -) enfatiza-se seu valor simbólico, enquanto<br />

referências a ordem da cultura” (FONSECA, 2009:42).<br />

Neste sentido, e pelo que se exporá a seguir, podese<br />

classificar a Catedral do Rio de Janeiro como um<br />

bem cultural.<br />

Ainda Françoise Choay destaca, na integração do<br />

patrimônio com a vida contemporânea, ao tratar<br />

da reutilização, que “as verdadeiras dificuldades<br />

surgem quando se trata de dar uma destinação aos<br />

velhos edifícios religiosos, de culto ou conventuais”<br />

(CHOAY, 2001, 221). Tal questão não envolveu as<br />

diversas igrejas que abrigaram a Catedral do Rio de<br />

Janeiro nem tampouco a atual Catedral.<br />

A Catedral do Rio de Janeiro sempre esteve abrigada<br />

em igrejas, como descrito no início deste artigo, que,<br />

com exceção da primeira Igreja de São Sebastião,<br />

ainda existem preservadas e na sua funcionalidade.<br />

A questão parece ser outra, de caráter subjetivo,<br />

que é a percepção por parte dos utilizadores – os<br />

fiéis católicos – e da população como um todo de<br />

que aquele prédio é sua Igreja Matriz, vale dizer sua<br />

Igreja-Mãe, aquele edifício que seria a epítome de<br />

sua catolicidade.<br />

No Rio de Janeiro, os sucessivos Planos Diretores<br />

descaracterizaram a fisionomia do Centro da<br />

cidade, tanto arquitetônica e urbanisticamente<br />

quanto topograficamente. Intervenções duras que<br />

causaram o aumento da complexidade do diálogo do<br />

patrimônio. E ao se falar em diálogo, é importante<br />

lembrar que esse diálogo é feito entre o edifício/<br />

monumento de interesse patrimonial e os edifícios<br />

vicinais como também entre ele e o entorno urbano,<br />

imediato e a cidade como um todo.<br />

É inegável a matriz européia do Brasil, sem que aqui<br />

se faça referência à colonização portuguesa; mas se<br />

levarmos em consideração o Brasil independente,<br />

especialmente o Segundo Reinado, veremos que<br />

este sempre se colocou “de costas para o Brasil<br />

e de frente para a Europa”, na frase de Oliveira<br />

V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

79


Um paradoxo patrimonial: a Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro<br />

Viana, repetida na música de Milton Nascimento<br />

e Fernando Brandt que dizia “ficar de frente pro<br />

mar, de costas pro Brasil”, com a monarquia<br />

brasileira buscando “afrancesar-se”, querendo ser<br />

(e tornando-se culturalmente) muito mais Orléans<br />

do que Bragança. Os republicanos, que tentaram<br />

a todo custo dar uma cara brasileira à República,<br />

buscaram exatamente na França e nos Estados<br />

Unidos o modelo político e cultural a seguir. De<br />

certo modo, pode-se dizer que deixamos de ser<br />

monárquicos, mas nos mantivemos “franceses”.<br />

Desta forma, muito do disposto na Conferência de<br />

Atenas sobre a conservação de monumentos de arte<br />

e de história, realizada em 1931, aplica-se ao Brasil,<br />

ainda que o Brasil ou países de quaisquer outros<br />

continentes que não a Europa se fizesse presente.<br />

De um modo especial, a ênfase na ação do poder<br />

público não apenas no aspecto da preservação,<br />

mas também na educação, sobretudo dos mais<br />

jovens, como citado na Resolução da Comissão<br />

Internacional para a Cooperação Intelectual, de<br />

1932 (apud CHOAY, 2011:156-162, passim).<br />

Este parece ser o ponto para se reintroduzir a questão<br />

da Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro na<br />

discussão sobre o patrimônio construído. Dominique<br />

Poulot afirma que “qualquer tipo de patrimônio,<br />

tal como o entendemos atualmente, tem a vocação<br />

de encarnar uma identidade em certo número de<br />

obras ou de lugares” (POULOT, 2009:40).<br />

Tradicionalmente, as Igrejas Catedrais assumem nas<br />

cidades de matriz religiosa católico-romana, papel<br />

de centralidade. Desta forma, entende-se que a<br />

Catedral de S. Sebastião do Rio de Janeiro fosse<br />

sempre situada nos eixos centrais da cidade (quase a<br />

evocar a proximidade com o cardus e o decumanus<br />

das cidades romanas) ou próxima a eles. Se na Europa<br />

(Westminster, Colônia, Milão, Notre Dame de Paris<br />

etc.) as Catedrais têm o poder de agregar os fiéis<br />

em torno de si, como epítome da religiosidade,<br />

na América Latina também encontramos esses<br />

exemplos, como no caso da Catedral de Nossa<br />

Senhora de Guadalupe, na Cidade do México, na<br />

Catedral de Santa Rosa de Lima, no Peru, etc.<br />

Belém, Pará, que galvaniza multidões não somente<br />

durante o Círio (registrada como a maior festa<br />

católica do mundo), mas ao longo de todo o ano,<br />

sendo o referencial devocional da fé.<br />

Neste sentido, cumpre indagar como o povo da<br />

cidade do Rio de Janeiro percebe sua Catedral,<br />

qual a valoração que lhe dá. Não apenas os serviços<br />

religiosos dominicais não congregam grandes massas,<br />

como até mesmo a festa do Padroeiro da Cidade,<br />

que atrai uma multidão em sua saída da Igreja de<br />

S. Sebastião dos Frades Capuchinhos, na Tijuca, até<br />

sua chegada na Catedral, não tem grande entrada<br />

de fiéis nesta para o que seria o ato litúrgico maior,<br />

que seria a celebração da Missa. Estes se dispersam<br />

após o “Auto de S. Sebastião”, que recorda o<br />

martírio do santo.<br />

Esta não percepção da Catedral como igreja-mãe<br />

torna-a pouco representativa para a população de<br />

seu papel devocional.<br />

Ora, se não se presta ao papel cultual-devocional,<br />

a que linguagem de discurso pode ser vinculada<br />

a Catedral do Rio de Janeiro? Parece não restar<br />

dúvidas que ao discurso de poder. Ela é o sinal visível<br />

do Arcebispado do Rio de Janeiro em meio a uma<br />

implantação dominada pelas edificações seculares<br />

e profanas. Ou seja, ela representa o sagrado em<br />

meio ao profano, o poder eclesiástico em meio ao<br />

poder civil, seja ele político ou econômico. Neste<br />

sentido, ao dialogar com as outras edificações e com<br />

o entorno de sua implantação, a Catedral do Rio<br />

de Janeiro dialoga primeiramente consigo própria,<br />

reafirmando o que re(a)presenta no local onde está.<br />

Assim, o foco da complexidade dos diálogos do<br />

patrimônio no coração da Urbs desloca-se do antigo<br />

X moderno para o moderno sagrado X moderno<br />

profano. Ao mesmo tempo a arquitetura assume um<br />

valor simbólico particular atribuído pela significação<br />

que estabelece o uso social contido nos rituais e<br />

celebrações no espaço sagrado que constitui o<br />

patrimônio imaterial. Eis as razões pelas quais foi<br />

afirmado que a Catedral de S. Sebastião é antes um<br />

bem cultural do que um bem patrimonial.<br />

Por outro lado, no Brasil encontramos poucos<br />

exemplos dessa utilização simbólica nas grandes<br />

cidades, especialmente nas capitais. Um exemplo<br />

disso é a Basílica de Nossa Senhora de Nazaré, em<br />

Referências bibliográficas<br />

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V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

80


Um paradoxo patrimonial: a Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro<br />

Recebido [Jun. 22, 2016]<br />

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V14 N2<br />

artigos e ensaios<br />

81


transcrição<br />

Entrevista com John Friedmann<br />

Entrevista:<br />

Elisângela de Almeida Chiquito<br />

Arquiteta e Urbanista, pós-doutoranda no Instituto de<br />

Arquitetura e Urbanismo de São Carlos - IAU/USP, professora<br />

do Departamento de Planejamento Urbano da Escola de<br />

Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais, Rua<br />

Paraíba 697, Funcionários, Belo Horizonte, MG, Brasil,<br />

CEP 30130-140, lisalmeida@ufmg.br<br />

Tradução:<br />

Amanda Saba Ruggiero<br />

Revisão:<br />

Elisângela de Almeida Chiquito<br />

1 Em “Encounters with Development<br />

Planning”, palestra<br />

sobre sua trajetória proferida<br />

em 24 de maio de 2009 em<br />

Londres, Friedmann deu o<br />

seguinte depoimento: “ Durante<br />

semanas, eu vasculhei<br />

a biblioteca técnica da TVA<br />

procurando o Plano Diretor<br />

desta região, mas para meu<br />

espanto, não havia nada para<br />

ser encontrado. TVA era uma<br />

agência de planejamento<br />

com uma missão - sobre isso<br />

não havia dúvida. Mas o seu<br />

planejamento foi feito sem<br />

um plano regional abrangente.<br />

Eu estava atordoado<br />

por esta descoberta. Porque,<br />

se não havia nenhum plano,<br />

como era realizado o planejamento?<br />

Eu levaria décadas<br />

para encontrar a resposta<br />

desta pergunta, ou melhor,<br />

de como deveríamos pensar<br />

o planejamento.”<br />

2 O livro a que se refere é a<br />

publicação de sua tese de<br />

doutorado: FRIEDMANN, J.<br />

The spatial structure of economic<br />

development in the<br />

Tennesse Valley. A study in<br />

Regional Planning. Chicago:<br />

Un. Of Chicago Press, 1955.<br />

E<br />

ntrevista realizada em Vancouver, CA, em 8 de<br />

junho de 2015.<br />

Elisângela de Almeida Chiquito Inicialmente,<br />

gostaria de saber sobre o início de sua trajetória no<br />

planejamento regional, sobre sua primeira experiência<br />

prática junto ao Department of Regional Studies da<br />

Tennessee Valley Authority.<br />

John Friedmann O meu trabalho na TVA foi<br />

entre o mestrado e o doutorado. Minha pesquisa de<br />

doutorado ocorreu enquanto trabalhei na TVA. Vou<br />

mostrar a dissertação que foi fruto disso. [Levantase,<br />

desce a escada para buscar os livros, retorna] Eu<br />

associei a geografia, economia e planejamento. Ainda<br />

não era claro o que era planejamento naquela época. 1<br />

E é uma pergunta que ainda permanece, uma das<br />

minhas questões favoritas: o que é planejamento?<br />

A TVA foi o ponto inicial, a única coisa que eu sabia<br />

sobre desenvolvimento e planejamento regional.<br />

O conceito de desenvolvimento é muito novo. Em<br />

1965 havia só uma publicação em desenvolvimento<br />

econômico regional e transformações culturais,<br />

foi publicado em 1963/64. O primeiro periódico<br />

acadêmico em desenvolvimento regional foi pela<br />

universidade de Chicago. Este foi um período<br />

interessante para mim, de encontrar um caminho<br />

para se pensar. Parecia quase como uma teoria<br />

secreta que teria de ser revelada, de como promover<br />

o desenvolvimento. Depois percebi que tudo estava<br />

errado! Mas foi de onde partimos. E claro,<br />

uma maneira de compreender isso foi através da<br />

história, da história comparativa. E outro modo foi<br />

experimentar isso pela prática profissional, e eu<br />

tive ambos.<br />

A questão central era: o que é planejamento?<br />

Planejamento era visto como uma nova tecnologia,<br />

uma tecnologia que, quando você a juntava<br />

ao dinheiro, isso se transformava e gerava desenvolvimento.<br />

Claro que hoje sabemos que não é<br />

tão simples, mas era no que se acreditava naqueles<br />

tempos.<br />

Bom, devo mostrar-lhe o livro 2 , talvez fique mais<br />

claro. Este livro que você está vendo é resultado<br />

do que aprendi na Universidade de Chicago. Foi<br />

uma tentativa de reinterpretar a experiência de<br />

planejamento do Tennessee Valley Authority, do<br />

ponto de vista do planejamento dos recursos, que<br />

significava capturar a força do rio para navegação,<br />

controle de enchentes, recreação e uso da terra. Esses<br />

quatro elementos, juntamente com o manejo de<br />

florestas, aprender quais seriam as melhores culturas<br />

que poderiam crescer nas planícies e nas zonas<br />

altas, todas estas coisas juntas formavam a ideia<br />

de desenvolvimento integrado de recursos. E isso<br />

tudo conectado à engrenagem do desenvolvimento.<br />

Inicialmente, a geração de energia era distribuída<br />

para cooperativas, que compravam energia em<br />

grande escala e distribuía aos membros cooperados,<br />

era um ciclo. E a TVA tinha o monopólio da energia,<br />

V14 N2<br />

revista de pesquisa em arquitetura e urbanismo instituto de arquitetura e urbanismo iau-usp<br />

82


Entrevista com John Friedmann<br />

Figura 1: Sobreposição da<br />

região do Vale do Tennesse<br />

e da “Power Service Area”<br />

da TVA. Fonte: Friedmann<br />

(1955).<br />

3 A região do Vale do Tennesse<br />

possuía, em 1950, apenas<br />

duas cidades de porte médio,<br />

Knoxville com 124.769<br />

habitantes e Chattanooga<br />

com 131.041 habitantes. As<br />

demais eram cidades com<br />

menos de 30 mil habitantes.<br />

4 O artigo a que se refere é<br />

“Locational Aspects of Economic<br />

Development” publicado<br />

no Journal of Land<br />

Economics em 1956.<br />

não só ao longo do vale do rio, mas no que era<br />

chamado “Power Service Area”, que era maior<br />

do que a área do vale do rio Tennessee (aponta<br />

à figura do vale em seu livro), pois era conectada<br />

às cidades. Então, o rio em si tinha no máximo,<br />

duas cidades médias, que eram centros de energia<br />

registrados. 3 [ver Figura 1 ] Mas o que eu queria<br />

ressaltar é que o desenvolvimento econômico requer<br />

que as cidades tenham um papel ativo como lugar.<br />

Minha tese também gerou alguns artigos. Um deles<br />

está relacionado com a localização de indústrias,<br />

onde uso o conceito de aspectos locacionais do<br />

desenvolvimento econômico. 4 Quando eu estava<br />

na Bahia produzimos a tradução deste artigo, e<br />

esta foi uma das coisas que fiz no Brasil.<br />

E.A.C. Depois de trabalhar na TVA e finalizar o<br />

doutorado você foi para o Brasil, em 1955. Como<br />

isso aconteceu?<br />

J.F. Bem, quando me foi dada a oportunidade de<br />

ir para o Brasil pela USAID [United States Agency<br />

for International Development] eu não sabia nada<br />

de português e não sabia nada sobre o Brasil. E tive<br />

que aprender rapidamente, e uma das primeiras<br />

coisas era a língua, tive que aprender o português. E,<br />

inicialmente, tive um ótimo intérprete, um brasileiro,<br />

poeta, chamado Mário Faustino, do Piauí. Ele vinha<br />

de uma família com onze irmãos - naquela época as<br />

pessoas tinham bastantes filhos! Mas Mário tinha<br />

um ótimo inglês, ele havia passado um tempo nos<br />

Estados Unidos, tinha interesse em poesia moderna,<br />

em Ezra Pound. Tivemos uma boa relação, ele era<br />

um pouco mais novo, tivemos uma grande amizade.<br />

Então fomos para a Amazônia. Eu lecionei um<br />

Curso de Teoria do Planejamento em Belém do<br />

Pará. Os alunos eram da Superintendência do Plano<br />

de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA),<br />

onde o curso era oferecido. Tinham acabado de<br />

comprar dois navios novos para turistas. Então<br />

pegamos estes barcos com os alunos e fomos numa<br />

expedição de duas semanas. Foi uma experiência<br />

interessante. Havia muito a ser visto quando estávamos<br />

em terra, mas na água você não consegue ver muita<br />

coisa... [risos]. Dei o Curso de Teoria do Planejamento<br />

e mais tarde eu desenvolvi uma serie de palestras que<br />

foram publicadas em um livro pela Fundação Getúlio<br />

Vargas. Eu estava construindo minhas reflexões sobre<br />

planejamento, pois todo mundo estava pensando<br />

V14 N2<br />

transcrição<br />

83


Entrevista com John Friedmann<br />

Figura 2: Capa do livro “The<br />

Spatial Structure od Economic<br />

Development. Fonte:<br />

acervo da autora.<br />

sobre isso naquele momento. Você sabe disso,<br />

escreveu sobre o Padre Lebret, que também foi uma<br />

influência no Brasil naquele período. Mas todo mundo<br />

estava procurando pela chave de ouro de algo que<br />

estava trancado. A questão era como o planejamento<br />

poderia levar ao desenvolvimento. Foi minha tentativa<br />

de contribuição ao fazer essas palestras.<br />

E.A.C. Quais os principais aspectos da sua experiência<br />

na TVA que você levou para sua atuação no SPVEA?<br />

J.F. A experiência na TVA não foi necessariamente<br />

relevante para a Amazônia. Foram experiências bem<br />

distintas. Bem...talvez não. Por exemplo, este livro<br />

é sobre energia. [aponta para imagem na capa do<br />

livro – ver Figura 2 ] Aqui é energia elétrica e aqui<br />

são os padrões das linhas de tráfego do fluxo de<br />

energia, os veículos, mas estas são as cidades e os<br />

nós interconectados. Eu defino o que seria o Vale<br />

do Tennessee de forma geral, como um grande<br />

tubo extenso, e esta aqui é uma rede de cidades,<br />

uma concepção espacial completamente diferente.<br />

Na Amazônia era tudo bem separado, a energia<br />

elétrica, a navegação, e havia somente duas cidades<br />

significativas, Belém do Pará e Manaus. São diferentes<br />

do ponto de vista da geografia humana e da geografia<br />

física, totalmente diferente. A geografia humana<br />

parece mais com este. E é claro, isso é o transporte<br />

de energia, uma rede que flui, não somente objetos<br />

físicos, materiais. Algumas coisas imateriais são reais,<br />

mas imateriais, você não vê a eletricidade. Você na<br />

verdade não enxerga estas redes, você tem que<br />

construí-las para torna-las visíveis.<br />

E.A.C. Como se deu o seu contrato com o Brasil?<br />

J.F. A Escola Brasileira de Administração Publica<br />

(EBAP) que me contratou para o curso de planejamento<br />

regional. Eu fui um dos professores do<br />

curso. Era um programa de 16 semanas, mais ou<br />

menos. O curso foi desenvolvido para os funcionários<br />

da Superintendência, havia pessoas de várias áreas<br />

do Governo, da universidade, e militares. A EBAP<br />

entrou em contato com a embaixada Americana,<br />

V14 N2<br />

transcrição<br />

84


Entrevista com John Friedmann<br />

5 Harvey Perloff foi docente<br />

na Universidade de Chicago<br />

entre 1947 e 1955. Durante<br />

o governo Kennedy foi consultor<br />

sobre América Latina<br />

e representante dos Estados<br />

Unidos no Comitê dos Nove<br />

do Programa Aliança para<br />

o Progresso. Em 1968, foi<br />

nomeado diretor da Escola de<br />

Arquitetura e Planejamento<br />

Urbano da UCLA. Perloff foi<br />

o grande incentivador para<br />

atuação de Friedmann na<br />

América Latina e principal<br />

responsável pelo seu ingresso<br />

como docente na UCLA<br />

em 1969.<br />

com a USAID, e havia um cargo. Eles estavam<br />

procurando um expert em planejamento regional.<br />

E eu fui o primeiro graduado em planejamento<br />

regional. Meu professor orientador, o professor<br />

Harvey Perloff 5 , ficou sabendo disso e me disse: - Vá<br />

conferir! Naquele momento eu estava procurando<br />

trabalho. Tinha acabado de concluir meu doutorado<br />

e estava passeando pela universidade até alguma<br />

coisa aparecer. Então surgiu o trabalho.<br />

E.A.C. Você teve uma indicação?<br />

J.F. Não. Eu fui ao Rio de Janeiro para uma primeira<br />

entrevista, foi o primeiro contato. Depois eu levei<br />

minha esposa. Naquele momento assinei um contrato<br />

para um trabalho específico. No meu caso - claro<br />

que pode parecer diferente para vocês - mas no<br />

meu ponto de vista era: estou aprendendo aqui!<br />

Era para eu ser o expert, mas parecia um tipo<br />

de brincadeira, eu estava mais aprendendo do<br />

que sendo um expert. Minha visão é que estava<br />

constantemente desenvolvendo minhas próprias<br />

ideias, meu ponto de vista sobre o planejamento<br />

regional. E isso começou a se reunir na publicação<br />

sobre a Venezuela.<br />

Depois que acabamos em Belém, fomos ao Rio<br />

de Janeiro e fiquei envolvido com a Escola (EBAP)<br />

e com a escrita e a tradução deste livro [aponta<br />

o livro “Introdução ao planejamento regional”],<br />

aguardando um novo contrato. E depois um novo<br />

contrato apareceu em poucos meses, por intermédio<br />

de Rômulo Almeida. Ele era o diretor responsável,<br />

não me lembro bem o cargo que ocupava no<br />

desenvolvimento econômico da Bahia. Ele me levou<br />

para a Universidade e lá havia o Instituto de Economia<br />

e Finanças da Bahia. Era uma instituição que estava<br />

obsoleta e sem produzir, não estava funcionando. E<br />

ele propôs: vamos fazer uma coisa nova, criar algo<br />

novo, uma escola ou instituto de planejamento<br />

do espaço ou territorial - diferentes nomes para a<br />

mesma coisa. Foi o que fizemos juntos. Havia um<br />

novo diretor na universidade e ele apoiou a ideia de<br />

criar um novo centro e disponibilizou recursos para<br />

isso. E meu primeiro trabalho era definir um diretor<br />

para este centro, que tinha que ser brasileiro. Então<br />

um dos meus alunos no curso de Belém, Armando<br />

Dias Mendes, falecido há poucos anos, foi convidado<br />

pela universidade, por minha indicação. Ele era do<br />

Pará, era um advogado e não economista. Enquanto<br />

eu estava lá, tudo correu bem. Mas depois ele não<br />

conseguiu se integrar na sociedade bahiana... Ele<br />

ficou no cargo um ano e meio, e então o centro<br />

fechou. Demos um curso de mestrado, para pessoas<br />

com diploma de graduação. O Instituto se manteve<br />

por alguns anos, e depois com o golpe militar alguns<br />

alunos saíram do país e mudaram de trabalho. As<br />

coisas começavam a mudar (...) seria interessante<br />

pensar como isso teria continuado.<br />

A USAID, na verdade, não sabia o que eu estava<br />

fazendo e não estava interessada nisso. Havia também<br />

outra pessoa, meu chefe na TVA, Stefan Robock,<br />

era um consultor do Banco do Nordeste do Brasil,<br />

em Fortaleza, eles também tinham um programa<br />

de desenvolvimento regional. Isso era o que eles<br />

(USAID) estavam financiando. Tinham poder e<br />

dinheiro. A universidade era apenas a universidade<br />

enquanto eles estavam realizando projetos. Então<br />

me disseram: já temos alguém em planejamento<br />

regional. E interromperam a ajuda financeira. O<br />

diretor Armando Mendes tinha voltado para Belém, e<br />

depois se tornou presidente do Banco da Amazônia.<br />

Ele era um planejador regional e depois trabalhou<br />

no Banco de Desenvolvimento da Amazônia, similar<br />

ao Banco do Desenvolvimento do Nordeste. Ele se<br />

tornou o presidente do banco da Amazônia e depois<br />

ele criou um instituto de pesquisa. Ele realmente deu<br />

um salto, avançou em se tornar uma pessoa orientada<br />

para o desenvolvimento, é bem interessante esta<br />

conexão. E ele era realmente um cidadão do Pará,<br />

um patriota da Amazônia. Tinha a intenção de<br />

promover o desenvolvimento da Amazônia, mas<br />

em seguida veio o golpe.<br />

E.A.C. O que levou da experiência no Brasil para o<br />

MIT (Massachusetts Institute of Technology)?<br />

J.F. Eu fui o primeiro especialista sobre o desenvolvimento<br />

e o planejamento regional, muito diferente<br />

de planejamento urbano, que é muito mais<br />

ligado ao desenho. No meu caso era uma orientação<br />

mais direcionada às políticas de desenvolvimento.<br />

Quando fui para o MIT, após dois anos na Coreia, meu<br />

trabalho foi de ensinar o planejamento regional, este<br />

foi meu trabalho. Eu tinha o conhecimento adquirido<br />

no Brasil e na Coreia. Eu não fiz planejamento regional<br />

na Coreia, foi mais política de desenvolvimento<br />

regional. Não ficou definido muito bem o meu trabalho<br />

lá, estava sempre aprendendo e pensando sobre as<br />

coisas. Mas quando fui para o MIT, tive que ser mais<br />

sistemático com meus pensamentos.<br />

V14 N2<br />

transcrição<br />

85


Entrevista com John Friedmann<br />

6 Editado juntamente com<br />

Willian Alonso e publicado<br />

em 1964.<br />

7 FRIEDMANN, J. (1975) The<br />

spatial organization of power<br />

in the development of urban<br />

systems. In: FRIEDMANN, J.;<br />

ALONSO, W. (eds.) Regional<br />

Policy. Readings in theory and<br />

application. Cambridge, MA:<br />

MIT Press. pp. 266-304.<br />

Então me deixe mostrar os livros publicados. Este<br />

primeiro se chama Regional Policy. Readings in<br />

theory and application - a primeira edição se chama<br />

Regional Development and Planning - A Reader. 6 Eu<br />

escrevi este artigo, Spatial Organization of Power<br />

and Urban Systems 7 . Houve diferentes contribuições<br />

aqui. Este era o estado do pensamento da época.<br />

E há algo aqui, um capítulo em especial, que é um<br />

ensaio bibliográfico intitulado Regional development<br />

planning: the progress of a decade, que dá um<br />

panorama. Foi minha tentativa de cobrir a literatura<br />

existente, de estabelecer o planejamento regional<br />

como uma especialização dentro do planejamento<br />

urbano e regional. No momento que foi feito a<br />

segunda edição do livro, a ideia de desenvolvimento<br />

regional havia acabado. Havia o neoliberalismo, a<br />

partir de 1975, de 1980, naquele período havia o<br />

estado vazio, o desmanche do poder do estado e<br />

a força do capital privado.<br />

E.A.C. Fale um pouco sobre sua atuação na Venezuela?<br />

J.F. No MIT teve o estudo de caso do desenvolvimento<br />

na Venezuela. Eu lecionava no MIT, e lá eles<br />

tinham um projeto em conjunto com a Universidade<br />

de Harvard, um convênio com a cidade de Guayana<br />

e parte do acordo com o governo da Venezuela.<br />

Eles providenciaram assistência técnica, através<br />

da Corporación Venezolana de Guayana (CVG), e<br />

fizemos pesquisa. Eu fui como pesquisador, esta<br />

foi uma opção minha.<br />

Eu escrevi sobre a Venezuela, fiz uma pesquisa e dei<br />

algumas palestras em um centro de desenvolvimento,<br />

o CENDES, que era liderado por um economista<br />

chileno que depois me chamou para o trabalho<br />

no Chile. Seu nome era Jorge Ahumada. Ele faleceu,<br />

infelizmente, mas foi o diretor do CENDES.<br />

Eu tentava dar sentido a algumas informações, criando<br />

diagramas, e depois fiz uma série de mapas, acho<br />

que os mapas são bem interessantes. Dê uma olhada.<br />

A ideia era escrever sobre o que você esta escrevendo,<br />

sobre um plano nacional de desenvolvimento regional.<br />

Foi sobre isso o trabalho na Venezuela.<br />

E.A.C. A iniciativa da pesquisa partiu da Venezuela<br />

ou das universidades americanas?<br />

J.F. Isto foi Rómulo Betancourt, um presidente<br />

liberal, talvez o melhor presidente que a Venezuela<br />

teve. Ele era um novo democrata após o governo de<br />

Marcos Pérez Jimenez, que foi ditador por 20 anos.<br />

Ele entrou no lugar do ditador Jimenez e começou<br />

um novo regime, começou a usar o dinheiro do<br />

petróleo que a Venezuela tinha para industrializar o<br />

país, não somente exportar o petróleo, mas agregar<br />

valor. Eles tinham uma visão de desenvolver o país.<br />

Uma cidade industrial, chamada Guayana, ficava na<br />

confluência de dois rios, Caroní e Orinoco [mostra<br />

livros e mapas]. Foi uma tentativa de ser analítico.<br />

Neste projeto havia estudantes de Harvard. Eram<br />

arquitetos que ajudaram a fazer estes mapas. Este<br />

era o outro rio, o rio Orinoco, havia um espaço<br />

vago no início do delta, e nesta região queriam<br />

criar a indústria do aço, e enfim criar um novo<br />

polo de desenvolvimento regional. Este novo polo<br />

de energia descentralizaria a região de Caracas.<br />

Outro polo era a cidade de Barquisimeto, um local<br />

bem pobre.<br />

Eles criaram a Corporación Venezolana de Guayana<br />

e colocaram um militar para dirigir, Rafael Alfonzo<br />

Ravard, engenheiro do MIT, que fez o contato entre a<br />

Universidade de Harvard e o MIT, para fazer pesquisa<br />

e levar o conhecimento, levar energia do norte e<br />

desenvolver as outras cidades e partes do país. Um<br />

dos coordenadores da pesquisa, Lloyd Rodwin, um<br />

dos diretores do MIT e meu chefe direto na pesquisa,<br />

propôs fazer a pesquisa numa determinada região,<br />

mas eu não concordei, não estava interessado nessa<br />

região, eu estava interessado estudar a política<br />

regional, e então tivemos uma grande desavença. E<br />

então eu deixei o MIT e fui para o Chile, mas produzi<br />

este livro. [aponta para o livro Regional development<br />

policy: a case study of Venezuela]<br />

E.A.C. Como foi sua aproximação com Walter Isard<br />

e a Regional Science Association?<br />

J.F. A Regional Science Association foi criada por<br />

Walter Isard, um economista, preocupado com<br />

questões de localização. Foi interessante quando<br />

a geografia era dominada por este pensamento.<br />

Isard começou com um programa de doutorado em<br />

Regional Science, na Universidade de Pensilvânia.<br />

William Alonso foi aluno de Isard, o primeiro<br />

orientando dele. Depois Isard tentou mudar<br />

para Cambridge, pois havia mais prestigio em<br />

Harvard, mas a universidade não teve muito<br />

interesse. Não havia muito interesse em geografia<br />

V14 N2<br />

transcrição<br />

86


Entrevista com John Friedmann<br />

pela universidade de Harvard. Ele foi para o<br />

Departament of Lansdcape Architecture, mas não<br />

conseguiu se firmar, estabelecer seu espaço de<br />

atuação em Harvard. A geografia mudou, ele se<br />

aposentou e foi lecionar na Cornell University. Mas<br />

a Regional Science ficou instituída. É um movimento<br />

pequeno que permanece até hoje, mas não tão<br />

interessante, pois não teve uma personalidade<br />

marcante para se desenvolver. Em parte porque<br />

a geografia se ampliou demais, e também porque<br />

a teoria se baseava obsessivamente em modelos<br />

quantitativos, e não muito em assuntos de políticas,<br />

enquanto que a maioria das pessoas no mundo<br />

estava mais interessada em política regional, e não<br />

em ciência regional. Então a ciência regional não<br />

tinha muito a oferecer senão modelos, não era<br />

muito atraente para a política. Foi um momento.<br />

E.A.C. No livro Territory and function, de 1981,<br />

você traça um panorama histórico do planejamento<br />

regional nos Estados Unidos, enfatizando as concepções<br />

teóricas e os deslocamentos que elas<br />

sofrem ao longo do tempo. Na terceira parte você<br />

trata da “crise do desenvolvimento”. Você poderia<br />

falar a respeito?<br />

J.F. Naquele momento eu estava envolvido em<br />

assuntos de planejamento regional. Agora isso<br />

mudou, fala-se em desenvolvimento metropolitano<br />

e urbano, ficou mais manejável. Ao pensar em<br />

regiões metropolitanas podemos ver a relação com o<br />

ambiente de forma mais direta. Quando se pensava<br />

em políticas nacionais naquele momento, pensava-se<br />

na alocação de recursos pelo estado para promover<br />

o desenvolvimento. Hoje se pensa de outra maneira,<br />

em como atrair investimento privado. É um modo<br />

completamente diferente.<br />

E.A.C. Parece que durante os anos 1970 houve<br />

uma reorientação de seu trabalho...<br />

J.F. Bem...no meio dos anos 1970 tivemos uma<br />

nova revolução, neoliberal, uma revolução diferente,<br />

mas com grandes consequências. E<br />

eu mudei minha perspectiva de vida e decidi<br />

que o Planejamento Regional não era para<br />

mim (...) e desisti do planejamento regional<br />

e do apoio do estado ao planejamento (...),<br />

eu sei que precisamos do Estado, não sou<br />

um anarquista. Mas fiquei mais interessado<br />

em organizações locais, pequenos espaços,<br />

comunidades, planejamento de unidades de<br />

vizinhança comunitárias, movimentos sociais,<br />

sociedade civil.<br />

E depois mudei minha pesquisa de ambiente geográfico,<br />

da América Latina para a China. Na China<br />

pode se ver por um lado um grande sucesso em<br />

termos econômicos, como o GDP (Gross Domestic<br />

Products), uma medida usual per capita. Por um<br />

lado o crescimento deste fator, e por outro sua<br />

relação com o declínio da qualidade ambiental.<br />

Hoje as coisas são mais complexas.<br />

E.A.C. Você acha que as políticas nacionais de<br />

desenvolvimento tinham uma utopia que foi<br />

substituída pelo dinheiro?<br />

J.F. É uma interpretação política (...) se você<br />

conversar com as pessoas na China o que importa<br />

é somente o dinheiro. Não somente, também tem<br />

o poder nacional em um mundo global. A China<br />

não se sustenta por si com seus próprios recursos,<br />

nem o Canadá, EUA. Compramos da Ásia, os<br />

alimentos vêm de todo lugar. Não produzimos<br />

muito. Temos serviço, mas nosso consumo em<br />

geral vem de algum lugar. É muito complicado,<br />

não sei... Não sabemos o que vai acontecer, nem<br />

um nem outro, mas algo entre, talvez!<br />

E.A.C. Então esta mudança para você foi uma<br />

desilusão?<br />

J.F. Para mim foi. Eu me divorciei de um modo<br />

pessoal de pensar e inclusive no relacionamento<br />

com as pessoas e, em particular, com minha esposa<br />

naquele momento. E depois fiquei sozinho por dez<br />

anos e depois me casei novamente. Mas minha<br />

orientação política sobre planejamento mudou<br />

para uma prática social, que é mais o que acontece<br />

no nível da sociedade civil, e acho que é a única<br />

esperança que temos. Recentemente, no livro<br />

Insurgencies, publiquei um conjunto de artigos<br />

que escrevi desde 1973 até os dias atuais, mas tem<br />

uma introdução que tento explicar teoricamente<br />

esta minha mudança, é um textbook.<br />

No livro “Planning in the public domain” eu trato<br />

da mobilização social, utopismo, anarquismo,<br />

materialismo histórico. Os utopistas dizem: o<br />

futuro é agora, você cria uma sociedade alternativa<br />

agora. O anarquismo social é a imanência de<br />

V14 N2<br />

transcrição<br />

87


Entrevista com John Friedmann<br />

uma boa sociedade que pode ser alcançada<br />

por esta reestruturação completa, pela própria<br />

governança, e a possibilidade do aprendizado<br />

social é imediata. E o materialismo histórico<br />

explora as interpretações internas da sociedade<br />

capitalista. Foi minha tentativa de tratar o assunto<br />

em seu conjunto, conectado de movimentos,<br />

mas internamente, com formatos diferentes,<br />

com diferentes características. Eu fiz um estudo<br />

histórico, sobre os tipos de movimentos sociais,<br />

que deve ser expandido, e isso não foi feito. Isso<br />

deve ser realizado, alguém tem que fazer uma<br />

pesquisa sobre isso.<br />

Geralmente os movimentos sociais sempre brigam<br />

entre si. A esquerda nunca se une, enquanto a<br />

aliança é uma estratégia política. Mas quando<br />

você pensa sobre os movimentos de ocupação,<br />

como Ocuppy Wall Street, são geralmente o tipo<br />

de movimentos populares. Há presença do anarquismo<br />

lá visivelmente, mas muitos simpatizantes,<br />

adeptos ao pensamento utópico, e claro, marxistas<br />

estão sempre lá, trotskistas, stalinistas, estão juntos<br />

em alguns momentos históricos.<br />

Então a tradição da mobilização social, nós<br />

precisamos repensar o que precisamos do planejamento,<br />

e eu estava acostumado a pensar o<br />

planejamento pelo Estado, mas por outro lado<br />

há as práticas sociais, este talvez seja o melhor<br />

termo para definir isso, eu não elaborei isso, mas<br />

creio que é algo que devemos pensar mais sobre.<br />

É uma fase do planejamento a prática social.<br />

E então, não podemos mais planejar o conjunto,<br />

mas podemos pensar as partes. Planejar significa<br />

transformar, é uma teoria da transformação, e isso<br />

precisa ser elaborado, uma real transformação<br />

social. E eu tenho alguma ideia sobre isso, de<br />

qualquer modo. Então acho que você deve fazer<br />

isso, é nova e tem 50 anos para trabalhar ainda.<br />

E.A.C. Quais são seus vínculos atuais com o<br />

Brasil? Seus interesses?<br />

J.F. Eu mantenho meu interesse pelo Brasil, nos<br />

movimentos sociais, no movimento sem-terra,<br />

e toda questão da democracia participativa.<br />

Acho que o Brasil é um tipo de líder, é um dos<br />

lugares do mundo que acredito que há uma certa<br />

esperança. Se você olha para a China, Índia, e<br />

Oriente Médio, sem mencionar África, não há<br />

muito otimismo para estes locais, de modo geral.<br />

Então você olha para algumas pequenas luzes,<br />

é fácil chegar a conclusões.<br />

Na ditadura de Pinochet, no Chile, havia muita<br />

criatividade acontecendo no país. Eu levei isso a<br />

sério e investi certa esperança nesses movimentos.<br />

O capitalismo e sua força são muito poderosos,<br />

é muito difícil se defender do capitalismo. E não<br />

temos nenhum outro sistema em que acreditar<br />

sem ser o capitalismo. Mas acho que estaremos<br />

forcados a mudar, pois temos problemas ecológicos<br />

para se resolver, ambientais. E no fim estamos<br />

nos destruindo uns aos outros para manter os<br />

últimos recursos. É o que esta acontecendo na<br />

Rússia, China, África, USA, e a relação de força<br />

no oriente médio, estão se destruindo. Então<br />

não sei (...) mas quando você ouve as pessoas<br />

falarem de participação, como nas comissões<br />

de bacia regional, como o presidente que foi do<br />

Brasil, Lula, que trouxe grandes mudanças sociais<br />

(...) no geral acho que coisas boas acontecem<br />

no Brasil. Não estou diretamente envolvido mas<br />

tenho acompanhado de fora.<br />

Referências bibliográficas<br />

FRIEDMANN, J. Aspectos locacionais do desenvolvimento<br />

econômico. Série IV, Caderno I. Salvador: Universidade<br />

da Bahia, 1957.<br />

________. Globalization and the Emerging Culture of Planning.<br />

Progress in Planning, 64 (3), 2005, pp.183– 234.<br />

________. La estratégia de los polos de crescimento como<br />

instrumento de la política de desarollo. Revista de la<br />

Sociedade Interamericana de Planificación, vol. III, nº<br />

9-10, 1969.<br />

________. Planning in the Public Domain: From Knowledge<br />

to Action. Princeton: Princeton University Press, 1987.<br />

________. Regional development policy: a case study of<br />

Venezuela. Cambridge, MA: MIT Press, 1966.<br />

________. Retracking America: A Theory of Transactive<br />

Planning. New York: Anchor Press, 1973.<br />

________. The spatial structure of economic development<br />

in the Tennesse Valley. A study in Regional Planning.<br />

Chicago: Un. Of Chicago Press, 1955.<br />

________. Urban and Regional Development in Chile: A<br />

Case Study of Innovative Planning. Los Angeles: UCLA<br />

Library, 1969.<br />

FRIEDMANN, J. R. P. Introdução ao planejamento regional<br />

- com referência especial à região amazônica. Rio de<br />

Janeiro: FGV, 1960.<br />

V14 N2<br />

transcrição<br />

88


Entrevista com John Friedmann<br />

FRIEDMANN, J.; ALONSO, W. (1975) Regional Policy. Readings<br />

in theory and application. Cambridge, MA: MIT Press.<br />

FRIEDMANN, J.; ALONSO, W. (eds.) Regional Policy. Readings<br />

in theory and application. Cambridge, MA: MIT<br />

Press. pp. xv-xxi.<br />

FRIEDMANN, J.; LEAL, J. População e mão de obra na<br />

Bahia. Coleção Cadernos de Desenvolvimento Econômico.<br />

Série I, Caderno I. Salvador: Universidade<br />

da Bahia, 1957.<br />

Figura 3: John Friedmann.<br />

Fonte: fotografia de Elisângela<br />

de Almeida Chiquito.<br />

FRIEDMANN, J.; WEAVER, C. Territory and function. The<br />

evolution of Regional Planning. London: Edward<br />

Arnold, 1979.<br />

V14 N2<br />

transcrição<br />

89


transcrição<br />

Entrevista com Maria Adélia de Souza *<br />

Entrevista:<br />

Lucas Cestaro<br />

Arquiteto e Urbanista, doutor em Arquitetura e Urbanismo pelo<br />

IAU-USP, professor da Faculdade de Engenharia, Arquitetura e<br />

Urbanismo da Universidade Metodista de Piracicaba, Rodovia<br />

Luís Ometto Km 24 - SP 306, Santa Bárbara d’Oeste, SP,<br />

CEP 13451-900, (19) 3124-1777, lucas_cestaro@uol.com.br<br />

Revisão:<br />

Maria Adélia de Souza<br />

*<br />

Maria Adélia Aparecida<br />

de Souza - Geógrafa pela<br />

FFLCH USP 1962, equipe da<br />

SAGMACS (escritório de São<br />

Paulo) 1960-1963, aluna do<br />

IRFED 1963-1964. Entrevista<br />

realizada em 2 de abril de<br />

2014, sobre sua atuação junto<br />

aos quadros da SAGMACS<br />

e formação no IRFED. Transcrição<br />

revisada e autorizada<br />

pela depoente em dezembro<br />

de 2015.<br />

E<br />

m nossa pesquisa para o doutorado empregamos a<br />

realização de entrevistas com atores envolvidos no<br />

processo que consistia o objeto de estudo, como<br />

uma ferramenta para aprimorarmos o acesso as<br />

informações e dados a serem elucidados. Estudamos<br />

a atuação de Lebret e da SAGMACS no Brasil, no<br />

período de 1947 até 1964, numa tentativa de elucidar<br />

as ideias, os planos e as contribuições trazidas pelo<br />

grupo de Economia e Humanismo, para o campo<br />

do planejamento urbano e regional nas décadas<br />

de 1950 e 1960.<br />

A SAGMACS atuou no Brasil sob a supervisão de<br />

Louis-Joseph Lebret, tendo escritórios nas cidades do<br />

Rio de Janeiro, Recife, Belo Horizonte e São Paulo,<br />

principal sede, que concentrava a maior quantidade<br />

de técnicos e profissionais e também os principais<br />

membros da diretoria da equipe.<br />

Em 1960, o grupo passou a ser uma cooperativa<br />

de técnicos, e ganhou novos atores envolvidos<br />

em sua equipe. Entre eles estava Maria Adélia<br />

Aparecida de Souza, estudante do segundo ano<br />

do curso de Geografia na Faculdade de Filosofia da<br />

USP. Conforme apuramos, Maria Adélia participou<br />

de ao menos cinco trabalhos junto da equipe da<br />

SAGMACS, entre os quais o Plano Diretor de<br />

Barretos e Sorocaba, ambos concluídos em 1963<br />

e do estudo para o Programa de Desenvolvimento<br />

do Estado do Paraná, no governo de Ney Braga<br />

(1961-1965).<br />

Em 1963 seguiu para Paris para estudar Planejamento<br />

Territorial com Lebret no Institut de Recherche et<br />

Formation pour Économie et Développment – IRFED,<br />

instituição também vinculada ao grupo de Economia<br />

e Humanismo da França, voltada para a formação<br />

de técnicos de países do Terceiro Mundo para<br />

implementação de políticas para o desenvolvimento.<br />

Em Paris, conviveu mais próxima do Frei Dominicano<br />

Lebret e o acompanhou durante o tratamento de<br />

saúde que o levou a morte em 1966 no Hopital<br />

d’Alesia.<br />

Também em Paris desenvolveu sua pesquisa de<br />

Mestrado, na Université de Paris, sob a orientação<br />

do economista brasileiro Celso Furtado. Obteve o<br />

título de Mestre com a dissertação “Paraná: quadro<br />

geográfico, econômico e histórico da urbanização”<br />

em 1967, quando retornou ao Brasil, passando a<br />

construir uma carreira voltada tanto para a pesquisa<br />

e docência, quanto para a prática em planejamento<br />

no Brasil, com atuação junto ao Serviço Federal<br />

de Habitação e Urbanismo – SERFHAU. Em 1975<br />

defendeu a tese de doutorado “Ville/Region –<br />

Propositions Méthodologiques” sob orientação do<br />

geógrafo francês Michel Rochefort na Université Paris I.<br />

Nesta entrevista, a geógrafa e professora Maria<br />

Adélia de Souza nos conta sobre sua vinculação junto<br />

a equipe da SAGMACS, sua relação com Lebret e<br />

os demais membros do grupo e a importância que<br />

o IRFED teve em sua formação de planejadora.<br />

Também expõe o pioneirismo presente em sua<br />

atuação profissional e acadêmica, e seu papel de<br />

pensadora crítica sobre os problemas que afligem<br />

o campo disciplinar do planejamento urbano e<br />

regional no Brasil.<br />

V14 N2<br />

revista de pesquisa em arquitetura e urbanismo instituto de arquitetura e urbanismo iau-usp<br />

90


Entrevista com Maria Adélia de Souza<br />

Maria Adélia é professora emérita da Faculade de<br />

Filosofia, Ciências e Letras da USP desde 1996, onde<br />

segue orientando pesquisas de pós-graduação.<br />

Na USP, foi a primeira mulher a ocupar o cargo<br />

de prefeita do campus, entre os anos de 1983 e<br />

1986, tendo também atuado junto a Faculdade<br />

de Arquitetura e Urbanismo e no assessoramento<br />

da administração superior da universidade, como<br />

Chefe de Gabinete do Reitor, durante a gestão<br />

do Prof. Flávio Fava de Moraes. Na Universidade<br />

Latino Americana, criada em 2010, foi a primeira<br />

Pró-Reitoria de Graduação (2011/2012). Além disso,<br />

atuou como pesquisadora nas Universidades de<br />

Buenos Aires, de Paris I, na UFSC, UFRN e na PUC<br />

de Campinas.<br />

Lucas Cestaro Para iniciarmos seria importante a<br />

senhora expor sua trajetória pessoal e a formação<br />

profissional, para entendermos como é que se deu<br />

sua vinculação com o Padre Lebret, o Movimento<br />

Economia e Humanismo e sua atuação na equipe<br />

da SAGMACS. Muitos dos que tiveram posição de<br />

destaque ali eram católicos, foram da JUC. A senhora<br />

tem esta origem também? ntrevista com Maria<br />

Adélia Aparecida de Souza sobre sua atuação junto<br />

aos quadros da SAGMACS e formação no IRFED.<br />

Transcrição revisada e autorizada pela depoente<br />

em dez. 2015.<br />

Maria Adélia de Souza Eu era da JUC<br />

(Juventude Universitária Católica) e foi aí que eu<br />

conheci essas pessoas do movimento Economia<br />

e Humanismo, o Francisco Whitaker Ferreira e o<br />

Pedro Calil Padis. O Calil, como o chamávamos,<br />

tinha feito Economia na USP e era meu colega. Eu<br />

o conheci ainda como estudante da graduação de<br />

Geografia e frequentávamos algumas disciplinas<br />

que eram ministradas na sede da Faculdade<br />

de Filosofia, Letras e Ciências Humanas que<br />

funcionava na rua Maria Antônia, de saudosa<br />

memória! E, a Faculdade de Economia funcionava<br />

na rua Dr. Vilanova, mas o pátio de ambas as<br />

faculdades era comum e a frequência ao Grêmio<br />

da Filosofia, também. Nesse pátio fazíamos nossas<br />

assembleias estudantis, por vezes invadidas pelos<br />

estudantes do Mackenzie!<br />

Foi nesse contexto que conheci meu querido amigo<br />

Pedro Calil, e também em reunião de estudos da<br />

JUC, quando eu comecei a me interessar pela<br />

questão do planejamento. Calil já era da SAGMACS<br />

(Sociedade de Análises Gráficas e Mecanográficas<br />

Aplicadas aos Complexos Sociais), e me convidou<br />

para fazer um estágio lá, vendo esse meu interesse.<br />

Ele, então, me disse que como eu estava no segundo<br />

ano de Geografia seria bom tentar fazer um estágio<br />

lá com eles.<br />

Na época eu nem sabia o que era a SAGMACS,<br />

apesar de eu ser da JUC. Então foi Pedro Calil, que<br />

já trabalhava lá na SAGMACS, quem me levou para<br />

ser estagiária, em 1960. Assim comecei a aprender<br />

a fazer tabelas, cálculos de porcentagem, com umas<br />

maquininhas engenhosas, onde a lida com uns<br />

pequenos pinos e o rodar de uma pequena manivela,<br />

nos revelava o cálculo... Aprendi também a lidar<br />

com mapa, fazer cartografia temática...<br />

Sou eternamente devedora da SAGMACS, pois ali eu<br />

fui estagiária. Os estagiários eram carinhosamente<br />

chamados pela equipe técnica da SAGMACS de<br />

“bagrinhos”.<br />

Assim, fui “bagrinho” de Flávio Villaça e de Luiz<br />

Carlos Costa arquitetos e urbanistas de enorme<br />

competência.<br />

Trabalhando com eles na SAGMACS eu constatei<br />

que o ensino e a Geografia praticada em São Paulo,<br />

que sempre foi considerado um curso muito bom,<br />

porém na perspectiva de uma formação tradicional,<br />

e nós aprendíamos as matérias de uma forma muito<br />

certinha, analítica, descritiva. Mas, na SAGMACS<br />

tinham os arquitetos que praticavam a Geografia<br />

a seu modo, mas que me levavam com eles a ir do<br />

presente ao futuro com muita facilidade e isso me<br />

fascinava! Eu os considerava uns malucos! Produziam<br />

mapas coloridos, lindos, mas que pouco tinham a<br />

ver com o que eu aprendia com meu professor de<br />

Cartografia, um rigoroso engenheiro cartógrafo,<br />

austríaco, formado para atender ao exército austrohúngaro!!!!<br />

Depois fui compreender o significado<br />

de ambas as cartografias, as normas e rigores<br />

cartográficos que nem sempre os arquitetos levam<br />

a sério... até hoje!<br />

Agora, a relação da SAGMACS com o Movimento<br />

Economia e Humanismo se dava de uma forma muito<br />

séria, pelo fato de que a maioria dos personagens<br />

que lá trabalhavam tinham ido à Paris fazer o curso<br />

no IRFED (Institut de Recherche et Formation en<br />

vue du Développement Harmonisé). O Francisco<br />

V14 N2<br />

transcrição<br />

91


Entrevista com Maria Adélia de Souza<br />

Whitaker Ferreira – o Chico – foi, era o nosso líder,<br />

era mais velho, coordenador técnico da maioria<br />

dos trabalhos realizados pela SAGMACS. Ele o<br />

Frei Benevenuto de Santa Cruz, meu saudoso e<br />

queridíssimo amigo eram os nossos “chefões”,<br />

função que exerciam com tamanho disfarce, que<br />

quem não soubesse não perceberia! Aprendi com<br />

essas pessoas que é possível fazer um trabalho<br />

rigoroso, politicamente interessado e sério, com<br />

bom humor! Tudo isso, busquei não perder na<br />

universidade que é o reino da disputa individual<br />

e do mal humor!!! Chico era o diretor técnico e<br />

o Frei Benevenuto – o “Bené” – como o chamei<br />

a vida toda, nosso diretor geral. Ambos de um<br />

humor refinado, que faziam das reuniões que pude<br />

assistir aulas maravilhosas de competência e bom<br />

humor, com todos os outros profissionais que lá<br />

trabalhavam, sobre os quais falarei mais adiante.<br />

Eles estão ai, todos, felizmente ainda vivos para<br />

testemunhar esse meu sentimento. Bené cuidou a<br />

vida toda e eu o acompanhei desde então, cuidando<br />

da Livraria Duas Cidades, uma dessas maravilhas<br />

que encantava e qualificava a vida intelectual da<br />

cidade de São Paulo...<br />

Eu fiz o IRFED e continuei na França por mais 7<br />

anos. Fiz parte da derradeira turma que foi aluna do<br />

Padre Lebret, no ano letivo de 1963/1964. Por isso<br />

acredito que desse grupo quem mais acompanhou<br />

o Lebret fui eu e o Chico, nos últimos dias de<br />

vida dessa ilustre figura do humanismo mundial.<br />

Para você ter uma ideia, quando ele precisava de<br />

alguém para secretaria-lo, auxiliá-lo com textos<br />

mais elaborados, ele pedia apoio para Madame<br />

Dupuy, que era bibliotecária, Editora da revista<br />

do IRFED e desempenhava o papel de secretária<br />

dele, especialmente, quando adoeceu e, para mim.<br />

Como estive perto dele e o acompanhei durante<br />

a doença, quando ficou hospitalizado no Hospital<br />

d’Alesia, perto da Cité Universitairé, próximo de<br />

onde eu morava, fui solicitada por ele, quando me<br />

ditou um primeiro rascunho de parte da “Encíclica<br />

da Vida Humana”, pois o Padre Lebret foi assessor<br />

direto de papas, à época de Paulo VI. Madame<br />

Dupuy adoeceu e eu a substitui durante dias...<br />

L.C. Estamos falando então de 1966 quando o Lebret<br />

faleceu. A senhora estava acompanhando de perto<br />

ele no final da vida. É um vínculo bastante forte! Da<br />

SAGMACS a senhora já seguiu para cursar o IRFED<br />

e ficou estes quase sete anos na França então?<br />

M.A.S. Sim. Eu fui da turma de outubro de 1963 a<br />

junho de 1964, do IRFED. Fui convidada pelo próprio<br />

Padre Lebret e por Pierre Monbeig para estudar<br />

na França, quando ambos, um dia apareceram na<br />

SAGMACS, para uma visita!<br />

Como eu fiquei mais tempo na França, eu acabei<br />

convivendo mais com o Padre Lebret em Paris e<br />

seguindo os cursos no IRFED. Eram cursos que o<br />

Padre Lebret organizava sobre vários campos do<br />

conhecimento e de professores que ele chamava<br />

para dar uma conferência, quase que semanalmente.<br />

Por exemplo, o geógrafo Jean Labasse, que era<br />

importantíssimo na geografia francesa (então professor<br />

na “Science Po” Instituto de Ciências Políticas<br />

da universidade de Paris, onde eu assistia a disciplina<br />

que ele ministrava). Isso por que o padre Lebret<br />

tinha um quadro de professores e disciplinas que<br />

constituíam um ano de curso no IRFED, mas ele<br />

estabelecia convênios com professores de outros<br />

institutos! Foi assim também que eu assisti no<br />

Instituto de Demografia uma conferência com o<br />

famoso professor Alfred Sauvy que nos apresentava<br />

suas recentes (e conservadoras) concepções sobre<br />

a dinâmica demográfica. Enfim, nós assistíamos<br />

também cursos no ISST – Institut des Sciences<br />

Sociales et du Travail, com todo o pessoal que<br />

estava discutindo o cooperativismo porque era visto<br />

como uma forma de chegar e atuar nas ex-colônias<br />

da França. Aqui tomei contato com interessantes<br />

obras sobre cooperativismo, além de ter sido aluna<br />

do marcante Professor Joffre Dumazedier, mestre<br />

da sociologia do lazer, desde os anos 60, também<br />

grande amigo do Padre Lebret.<br />

É dessa época também, como geógrafa, meu<br />

interesse pelas reflexões sobre o Espaço, feitas<br />

pelo filósofo Paul Ricoeur em Nanterre e pelo<br />

personalismo de Emmanuel Mounier, apresentados<br />

por colegas que faziam doutorados com ou sobre<br />

esses mestres! Sempre tive muita sorte na minha<br />

vida intelectual. Minha geração teve a oportunidade<br />

e a possibilidade de assistir aulas e conferências dos<br />

maiores geógrafos e intelectuais do século XX, como<br />

estudantes bolsistas em Paris! Eu não perdi nenhuma<br />

dessas oportunidades! Assim fui aluna de Jean Paul<br />

Sartre, Simone de Beauvoir, Henri Lefebvre, Michel<br />

Foucault, François Perroux, em cursos e conferências<br />

que ministravam no Collège de France ou em suas<br />

Escolas e Faculdades! E dos geógrafos, todos eles:<br />

Pierre George, Michel Rochefort, Yves Lacoste (jovem<br />

V14 N2<br />

transcrição<br />

92


Entrevista com Maria Adélia de Souza<br />

e que nos dava trabalho de campo), Tricart, Bernard<br />

Kaiser, Madame Beaujeu-Garnier, Pinchemel, Jean<br />

Labasse e tantos outros...<br />

IRFED, se preocupavam em selecionar pessoas que<br />

já tinham algum engajamento nos países de terceiro<br />

mundo, expressão que surgia na época.<br />

L.C. Foi uma estada proveitosa então. Cursou<br />

não só o IRFED, mas também se aproximou da<br />

intelectualidade francesa. Mas no caso do Economia<br />

e Humanismo, dos adeptos do grupo de Lebret,<br />

como era esta formação dada pelo IRFED?<br />

M.A.S. Era uma formação muito sólida, embora<br />

fosse um curso de especialização, ou como se diz<br />

hoje, pós-graduação lato sensu! O IRFED tinha quatro<br />

formações gerais que eram dadas em um ano de<br />

estudo, mas você tinha que fazer uma formação<br />

específica que te obrigava a se concentrar nela. As<br />

quatro formações eram: Planejamento Educacional,<br />

Planejamento Econômico, Planejamento Social e o<br />

Planejamento Territorial que era a formação para os<br />

planejadores, quem ia atuar no que aqui no Brasil<br />

era chamado de planejamento urbano e regional.<br />

Dentro dessas formações nós tínhamos cursos de<br />

economia, curso de ética, tinha uma disciplina<br />

lindíssima que se chamava cultura e civilização que<br />

era para você conhecer a essência da sociedade<br />

que como planejador você iria intervir, estudava<br />

contabilidade, se chamava contabilidade nacional,<br />

hoje se chama finanças públicas, tínhamos estatística<br />

de alto controle, economia, economia e<br />

sociologia rural, análises econômicas e sociais<br />

“territorializadas”, eu diria, ministrada pelo próprio<br />

Padre Lebret. Fomos a última turma para quem ele<br />

pessoalmente lecionou, pois depois adoeceu e veio<br />

a falecer em 1966 vítima de um câncer. E, daqui<br />

do Brasil, comigo fizeram o IRFED alguns colegas,<br />

dos quais me lembro, de Silke Weber, que sempre<br />

foi secretária de Educação em todos os governos<br />

de Miguel Arraes, em Pernambuco. Ela trabalhou<br />

junto com o Paulo Freire e fundaram, com outros<br />

pernambucanos ilustres a pedagogia do oprimido.<br />

No IRFED, Silke Weber foi aluna da formação em<br />

Planejamento Educacional.<br />

O Planejamento Econômico era para aqueles que<br />

poderiam um dia vir a planejar a economia nacional<br />

de seus países. O IRFED formava quadros técnicos<br />

para os países subdesenvolvidos ou aqueles que<br />

acabavam suas guerras anti coloniais. O que era<br />

muito interessante naquela época, era o fato de que<br />

tanto o Padre Lebret quanto a própria instituição<br />

Refiro-me, aqui, ao ano de 1963, quando eu<br />

comecei a fazer o IRFED em outubro daquele ano.<br />

Lembro-me muito bem que naquela turma tinha<br />

muitos colegas que vinham da África, para serem<br />

preparados tecnicamente para serem os quadros<br />

técnicos e políticos qualificados para os países<br />

que tinham saído das guerras coloniais. Lembrome,<br />

com emoção, de três colegas argelinos que<br />

tinham acabado de sair da guerra, e que estavam<br />

lá para se preparar para voltar e assumir funções de<br />

Estado em seu país recém-libertado. A característica<br />

internacional e voltada para a formação de quadros<br />

para países pobres e recém-libertos o legitimava<br />

para receber jovens que acabavam de fazer uma<br />

guerra contra a própria França! Mas nossa vivência<br />

no IRFED naqueles tempos não era tranquila, pois<br />

éramos bem mais revolucionários do que a proposta<br />

política trazida pela “ideologia” do Movimento<br />

Economia e Humanismo, de um desenvolvimento<br />

“harmonioso” e solidário. Nisso nunca acreditei<br />

ou usei esses conceitos desde então, até hoje!<br />

Tristemente vejo que esses dois conceitos-obstáculo<br />

hoje tem outros nomes que da mesma forma<br />

atrapalham a crítica a exploração humana: a maldita<br />

sustentabilidade, inclusão social ou seja lá do que<br />

for e outras detestáveis metáforas...<br />

Havia também a formação em Planejamento Social,<br />

que tirando aquela da Educação, considerada fundamental<br />

para o avanço de qualquer sociedade do<br />

mundo pobre, era onde eram tratados os aspectos<br />

de saúde, assistência social, cultura, que o Padre<br />

Lebret colocou magistralmente no seu livro “La<br />

Dinamyque concrète du Devéloppement”, um,<br />

dos melhores e, ao que eu saiba, ainda não foi<br />

publicado em português. É um livro precioso, com<br />

aspectos válidos até hoje, onde ele ensina a fazer<br />

análises cruzadas, coisa que hoje se faz usando<br />

softwares que com poucos comandos apresentam<br />

complexidades, que outrora levávamos às vezes<br />

anos, para representar... Mas o que importava era o<br />

sistema de análise, como ele nos ensinava, ou seja, a<br />

teoria que o Movimento de Economia e Humanismo<br />

oferecia. Cristã e neoliberal é bem verdade, mas coesa<br />

e muito bem ensinada... Debatíamos e discutíamos<br />

muito, especialmente os colegas recém-saídos das<br />

guerras de libertação da África.<br />

V14 N2<br />

transcrição<br />

93


Entrevista com Maria Adélia de Souza<br />

Mas, naquela época, esses ensinamentos eram<br />

muito importantes! Havia uns famosos gráficos que<br />

denominávamos “de borboleta” que eram uma<br />

espécie de representação gráfica e iconográfica da<br />

realidade. Eu achava essa forma de representação<br />

genial não apenas pela parte gráfica, mas porque na<br />

montagem do gráfico ficava explícita, pelas variáveis<br />

consideradas, a filosofia do Movimento “Economia e<br />

Humanismo” e a sua definitiva preocupação com os<br />

aspectos políticos e sociais, ainda que a seu modo.<br />

Mas o seu humanismo era inquestionável!<br />

era a montagem do pacto político a ser refletido<br />

tecnicamente pelo Plano!<br />

Naqueles tempos, o curso era em tempo integral<br />

e ficávamos um ano inteiro estudando. Se compararmos<br />

com a aprendizagem de hoje, a formação<br />

do IRFED equivaleria a três anos de um curso de<br />

pós-graduação hoje, stricto sensu, porém sem a<br />

elaboração de uma dissertação ou tese. Realizávamos<br />

provas escritas, como mecanismo de avaliação. Era<br />

linha dura!<br />

A formação que fiz, era o Planejamento Territorial,<br />

que aqui no Brasil sempre foi chamado de Planejamento<br />

Urbano e Regional, mas que na sua<br />

origem não tinha esta separação, por que nós<br />

aprendíamos a ser estrategistas territoriais.<br />

Dentro dessa imensa formação tinha uma gavetinha<br />

pequenina que era a do Plano Diretor. Este, lamentavelmente,<br />

até hoje é considerado um plano do<br />

município ou da cidade, cujo produto é uma norma<br />

politica, como sabemos, e que nem sempre tem a ver<br />

com a totalidade do uso do território do município<br />

por todos os seus habitantes. O grande produto<br />

do plano diretor, a Lei de Zoneamento, sabemos,<br />

reflete interesses poderosos e imutáveis na vida da<br />

cidade, desde sempre.<br />

No entanto, desde que comecei a estudar esse tema<br />

no IRFED, o Plano sempre foi considerado como<br />

uma técnica, onde o difícil era exibir o que vinha<br />

antes, que eram as escolhas políticas, as diretrizes<br />

políticas, as prioridades territoriais.<br />

Mas eu aprendi muito no IRFED, onde a seleção dos<br />

alunos era rigorosa, trazendo para o curso pessoas<br />

já maduras, sensíveis aos trabalhos dos movimentos<br />

sociais, pois o problema do Instituto era formar<br />

gente para melhorar as condições de vida nos países<br />

pobres, de onde vinham os alunos.<br />

Eu me lembro de dois colegas belgas e de um<br />

padre francês, padre operário, que frequentaram o<br />

curso comigo. Eles trabalhavam na África, e assim<br />

eram meus colegas, além dos africanos, africanos<br />

negros, africanos árabes, haitianos, gente de Santo<br />

Domingo, tinha muita gente da América Central<br />

que estava fervendo por causa da revolução cubana<br />

em andamento. Do Brasil éramos: três do nordeste,<br />

eu aqui de São Paulo. O ano era 1963 (outubro,<br />

pouco antes do golpe militar...) e acreditávamos que<br />

faríamos a revolução socialista, que nos parecia em<br />

marcha... Mas logo em seguida, quando fazíamos<br />

um estágio de Economia agrícola na Bretanha, de<br />

manhã, no dia 31 de março recebemos pelo rádio<br />

a informação do Golpe Militar..<br />

Até hoje aqui no Brasil faz-se Plano Diretor sem<br />

território, mas apenas promovendo aquilo que<br />

venho chamando de “guerra das localizações”,<br />

“guerra dos valores do solo”, praticadas pelos<br />

especuladores imobiliários e fundiários os quais,<br />

na verdade mandam na cidade. Acoplado a essa<br />

guerra vive o romantismo da forma e da formalidade<br />

oferecida pelo racional funcionalismo que ainda<br />

predomina, mesmo conduzindo um pretenso discurso<br />

de esquerda, de vanguarda. Tristemente, a<br />

inspiração dos planos diretores ainda está em Atenas,<br />

em Londres, em Paris, ou mais recentemente, em<br />

Barcelona!<br />

Enorme emoção, pois o que nos unia, a todos os<br />

alunos era uma problemática de fundo, libertária.<br />

O golpe militar foi um choque para toda a turma.<br />

O fato é que eu sou de uma geração que está na<br />

transição de uma universidade que era elitista para<br />

uma universidade mais popular de classe média.<br />

Eu estou nesta transição... Eu ainda peguei esta<br />

“universidade chique”! A Faculdade de Filosofia,<br />

Ciências e Letras da USP era um reduto de “gente<br />

chique”, por quê? Porque formava professores e na<br />

época ser professor, no final dos anos 1950, dos anos<br />

1940 o professor era uma figura prestigiadíssima.<br />

O Plano Diretor era uma questão de técnica<br />

para o Padre Lebret, de fácil resolução. Difícil<br />

No entanto, no curso de Geografia que eu fazia na<br />

USP tenho certeza de que fui a primeira pessoa que<br />

V14 N2<br />

transcrição<br />

94


Entrevista com Maria Adélia de Souza<br />

1 Bagrinho, como já disse<br />

anteriormente aqui, era o<br />

nome carinhoso atribuído<br />

aos estagiários da SAGMACS.<br />

teve a coragem de dizer: eu quero ser professora,<br />

mas eu também quero ser planejadora. Mal sabia<br />

eu o que era isso! Apenas estava sendo introduzida<br />

na SAGMACS, nessa prática, como “bagrinho” 1 !<br />

Nem sabia como é que se fazia isso e por isso é que<br />

eu fui fazer o IRFED e fui uma geógrafa pioneiríssima!<br />

Sem formação específica em planejamento havia<br />

um ou dois geógrafos que se atreviam a participar<br />

das equipes multidisciplinares requeridas por essa<br />

prática. E eu acho que sem dúvida alguma eu<br />

sou a primeira geógrafa paulista, com certeza<br />

e, provavelmente brasileira, com formação de<br />

planejadora que trabalhou em planejamento no<br />

Brasil. Eu tive uma outra colega contemporânea,<br />

grande geógrafa carioca, que fazia geografia urbana<br />

e que trabalhou com planejamento: a Lyzia Bernardes<br />

que foi uma grande geógrafa com um trabalho<br />

importante, sobre a região metropolitana do Rio<br />

de Janeiro. Mas a Lyzia fazia análise geográfica.<br />

Ao que eu saiba, a não ser liderando trabalhos<br />

no Governo, na área de planejamento, ela nunca<br />

elaborou uma alternativa de futuro, como fiz em<br />

várias oportunidades, definindo políticas urbanas e<br />

regionais, para o Brasil, para o Estado de São Paulo,<br />

para a região Sul do Brasil, além de dezenas de Planos<br />

Diretores. E isso tudo eu devo a este curso que eu<br />

fiz lá no IRFED e também claro a formação que eu<br />

tive aqui, na SAGMACS, mesmo sendo “bagrinho”.<br />

Eu sempre sou muito atenta a qualquer processo<br />

de aprendizagem, até hoje.<br />

L.C. Vamos voltar um pouquinho para situarmos<br />

melhor seu vínculo, e o curso no IRFED, pois o IRFED<br />

a senhora foi fazer já depois de ter atuado como<br />

estagiária, bagrinho do Lebret na SAGMACS não é?<br />

Já levou consigo um conhecimento sobre o método<br />

que a SAGMACS utilizava.<br />

M.A.S. Eu me lembro, como se fosse hoje do Padre<br />

Lebret e do professor Pierre Monbeig entrando<br />

juntos na biblioteca do escritório da SAGMACS.<br />

Era ali que eu ficava, trabalhando, sob o comando<br />

naquela época do arquiteto Luiz Carlos Costa. Foi<br />

quando eu fui convidada pelo Padre Lebret e pelo<br />

Pierre Monbeig a continuar meus estudos na França,<br />

quando terminasse minha graduação. Levei a sério<br />

esse convite! Eu era estagiária da SAGMACS e os<br />

dois foram visitar frei Benevenuto, nosso líder na<br />

SAGMACS. Foi quando o Frei, como o chamávamos,<br />

me apresentou ao Professor Monbeig dizendo que<br />

finalmente tinha na equipe uma geógrafa, ainda<br />

estagiária que estava interessada em prosseguir seus<br />

estudos sobre planejamento territorial. Foi então que<br />

o Professor Pierre Monbeig, fundador da USP foi à<br />

biblioteca me conhecer e me perguntou em que ano<br />

eu estava na Faculdade. Eu cursava o terceiro ano<br />

e então ele me disse: quando você terminar você<br />

me escreve, pois eu vou conseguir uma bolsa para<br />

você ir para Paris fazer o IRFED. Então ele chamou o<br />

Padre Lebret e me apresentou à ele dizendo que eu<br />

seria uma futura aluna do instituto. O Padre Lebret<br />

falou a mesma coisa, que quando eu terminasse<br />

para eu seguir para Paris para aperfeiçoar-me em<br />

planejamento. Levei tão a sério o convite que eu<br />

terminei o quarto ano em dezembro de 1962 e logo<br />

comecei a organizar minha viagem. E em novembro<br />

de 1963, segui de navio, o “Enrico C”, para Paris,<br />

com parada em Marseille.<br />

O Padre Lebret me ofereceu uma bolsa de um<br />

comitê católico ligado aos padres jesuítas, que<br />

acolhia exilados políticos também, naquela época,<br />

chamado Comite Catolic contre la Faim e pour le<br />

Developpement. O Professor Monbeig me conseguiu<br />

uma bolsa depois, para fazer o mestrado com Celso<br />

Furtado e o doutorado inicialmente com ele (Pierre<br />

Monbeig), terminando com Michel Rochefort. Mas<br />

a primeira bolsa que eu tive na França foi o Padre<br />

Lebret quem me arrumou. E eu me lembro de que<br />

a Silke Weber, eu e os outros colegas do nordeste<br />

tivemos esta bolsa do comitê católico. Naquela<br />

época o Brasil não oferecia ainda bolsa de estudos.<br />

Existiam esse Comitê e o próprio Governo francês,<br />

oferecendo bolsas de estudos a estrangeiros. E eu<br />

me beneficiei delas, por isso sou grata ao povo<br />

francês até hoje por ter custeado meu doutorado.<br />

Então eu sou uma cria da SAGMACS! Acho que sou<br />

a única cria jovem da equipe, fui estagiária, fiz o<br />

IRFED. Eu comecei como estagiária e fui seguindo,<br />

trabalhei no Plano de Governo do Ney Braga para o<br />

Paraná, um projeto de loteamento para São Vicente<br />

coordenado pelo arquiteto Flávio Villaça, um projeto<br />

para a fazenda da Yolanda Penteado em Araras,<br />

o Plano Diretor de Sorocaba... mas nessa minha<br />

época não tiveram muitos trabalhos assim feitos<br />

pela SAGMACS.<br />

Quando eu voltei de Paris a SAGMACS já não atuava<br />

mais, já tinha tido o golpe militar de 1964 e foi<br />

uma história complicada, com alguns dos nossos<br />

V14 N2<br />

transcrição<br />

95


Entrevista com Maria Adélia de Souza<br />

perseguidos pelos militares... O escritório estava<br />

fechado, mas alguns de nós, com a autorização do<br />

Frei usávamos o espaço. Levávamos trabalhos para<br />

desenvolver lá, utilizávamos a estrutura do espaço.<br />

O Vincenzo Bochicchio, meu colega e amigo da<br />

graduação era um cartógrafo, juntos lá fizemos<br />

o primeiro mapa da Grande São Paulo, editado<br />

pela Livraria Duas Cidades, um primor, que depois<br />

a Geomapas editou. Trabalhamos dois anos na<br />

produção dessa cartografia. O Bochicchio dava aulas,<br />

eu trabalhava na Secretaria de Planejamento durante<br />

o dia e, nas horas vagas e a noite, trabalhávamos no<br />

mapa, no escritório da SAGMACS, para segundo o<br />

Frei não deixa-lo totalmente fechado.<br />

E esse mapa ficou lá na Livraria Duas Cidades,<br />

como um dos seus produtos à venda mas, serviu<br />

como prova para os agentes que foram prender o<br />

frei dominicano que era a conexão com o Carlos<br />

Marighela, que segundo a polícia, parece-me o<br />

contato era feito a partir da livraria! Foi uma enorme<br />

dor de cabeça, pois o nosso mapa foi usado como<br />

prova de que nós estávamos organizando a guerrilha<br />

urbana, imagine só!!!... Se não fora a amizade do<br />

Frei Benevenuto com o Alfredo Buzaid, Ministro<br />

da Justiça da ditadura, mas que era um grande<br />

intelectual, freguês da livraria, eu e meu amigo<br />

cartógrafo tínhamos sido presos, pois éramos os<br />

autores do mapa.<br />

Guerrilha urbana, naqueles tempos sombrios!!!<br />

Na realidade, nós tínhamos feito um mapa para<br />

discutir o planejamento e a constituição da Região<br />

Metropolitana de São Paulo. Era um período que<br />

já se discutia isso, já se falava da instituição do<br />

GEGRAN, eu estava na Secretaria de Planejamento,<br />

trabalhando com o Luiz Carlos Costa, nós estávamos<br />

definindo a primeira divisão regional do estado<br />

de São Paulo, a criação do Grupo Executivo da<br />

Grande São Paulo – o GEGRAN, que deu origem<br />

a EMPLASA, tudo isso estava nascendo e tudo<br />

sendo feito a mão.<br />

Os policiais baixaram na livraria duas Cidades em<br />

função da denuncia da conexão dos dominicanos<br />

com o Marighela. Acham um mapa, o primeiro feito<br />

para a região, cheio de informações estratégicas...<br />

Então, para ligar o mapa, com a livraria, com a<br />

Maria Adélia e o Bochicchio e guerrilha urbana<br />

foi um passo... Enorme susto levamos, todos...<br />

Inesquecível!<br />

Eu me lembro de que em 1968, depois do AI 5, o<br />

DOPS invadiu a SAGMACS eu fui para lá, avisada<br />

pelo Frei, para tentar salvar o que dava do nosso<br />

acervo. Eu trabalhava no palácio do Governo e o Frei<br />

Benevenuto me ligou por volta de umas dezessete<br />

horas e disse que tinha a informação de que o DOPS<br />

iria invadir o escritório. Eu convidei o Bochicchio,<br />

que também era meu colega, tinha feito estágio lá<br />

também, mais três moças, não lembro mais quem<br />

e fomos para lá em quatro carros e tudo o que deu<br />

para retirar da biblioteca a gente tirou e eu levei<br />

para uma garagem na casa de uma tia minha que<br />

morava lá no Parque São Lucas, na Zona Leste de<br />

São Paulo. Esse material ficou por um bom tempo<br />

lá até que o Frei decidiu vender esse material para<br />

o Prof. Nestor Goulart Reis, então Diretor da FAU,<br />

que comprou para a Biblioteca da pós-graduação,<br />

tudo o que pudemos salvar.<br />

L.C. O Lamparelli comenta que este acervo comprado<br />

pelo Prof. Nestor para a Biblioteca da FAU USP não<br />

era nem um terço do acervo que tinha na SAGMACS.<br />

A senhora disse que pegou o que foi possível.<br />

Mas houve uma preocupação de retirar livros que<br />

pudessem chamar mais atenção dos agentes do<br />

regime? Priorizou-se algo para ser salvo do acervo?<br />

M.A.S. Não deu tempo! O Atlas de Favelas de<br />

São Paulo tinha ficado comigo porque era uma<br />

preciosidade, depois é que eu entreguei. Mas foi o<br />

que deu para salvar, nós fomos pegando, os arquivos,<br />

os projetos, foi o que deu tempo de pegar, tinha<br />

muita coisa que estava fechada. Da biblioteca eu<br />

peguei muita coisa, de projeto não levamos quase<br />

nada e nós saímos de lá e o DOPS entrou. Acho<br />

que nós levamos para fazer isso umas três horas,<br />

eram outros tempos, foi uma operação com um<br />

cara lá embaixo vigiando se o DOPS chegava, nós<br />

no 13º andar do prédio, aqueles elevadores que<br />

não andavam... um pesadelo... nós saímos de lá<br />

e a polícia chegou. Por pouco, pouco, não fomos<br />

pegos. Mas o Lamparelli tem razão. Ainda ficou<br />

um bocado de material que não deu para retirar.<br />

Não houve tempo...<br />

L.C. Quando houve o golpe em 1964 a senhora<br />

cursava o IRFED. Alguns dos que se exilaram na<br />

França também cursaram o IRFED um tempo<br />

depois. Eu também me lembro de ter visto em<br />

Fontainebleau jornais da época, como se vocês<br />

estivessem acompanhando o que se passava por aqui.<br />

V14 N2<br />

transcrição<br />

96


Entrevista com Maria Adélia de Souza<br />

M.A.S. Quando aconteceu o golpe em 1964 eu e<br />

a Silke Weber éramos da Ação Popular, juntamente<br />

com o Vinicius Caldeira Brant, o José Serra, a Maria<br />

do Carmo Menezes e seu marido Sergio Menezes,<br />

a Maria da Penha Vilela de Carvalho, que ficou em<br />

Paris e fez sua carreira como assistente de Paul<br />

Ricoeur e está lá até hoje...<br />

Como disse anteriormente, e eu estava me lembrando<br />

de que em 31 de março nós todos que<br />

cursávamos o IRFED estávamos na Bretanha fazendo<br />

um estágio sobre os problemas das propriedades<br />

rurais. E eu me lembro que nós fomos nos deitar no<br />

31 de março com a notícia do sucesso do comício da<br />

Candelária e então no meio da noite eu fui acordada<br />

por um amigo do Ceará, que depois atuou no Banco<br />

do Nordeste e ele batia na porta dizendo: Adélia, Silke<br />

acordem, acordem, acordem; e quando nós abrimos<br />

a porta ele disse: Jango caiu! Eu pensei, como assim<br />

Jango caiu? Os militares deram um golpe... Saímos<br />

todos correndo para Paris, interrompemos nosso<br />

estágio, e nos juntamos aos companheiros (da AP)<br />

que estavam já se mobilizando. Eles nos disseram<br />

alguns precisam ir para (o aeroporto de) Orly, “pois<br />

os exilados vão começar a chegar”...<br />

Na noite no dia 1º de abril eu e mais alguns companheiros<br />

já estávamos em Orly recebendo as pessoas<br />

que começavam a chegar, sobretudo, das ligas<br />

camponesas que foram os primeiros. Chegavam lá<br />

famílias de camponeses inteiras pedindo socorro.<br />

Os franceses foram de uma generosidade e o<br />

Movimento Economia e Humanismo tinha uma<br />

respeitabilidade, uma capilaridade lá que ajudou<br />

muita gente também a se alojar.<br />

Era difícil, pois tínhamos que instalar as pessoas que<br />

chegavam, arrumar emprego, arrumar comida... Mas<br />

eram os exilados de bases políticas, gente simples,<br />

estudantes secundários e universitários... Não era<br />

o Almino Afonso que eu fui receber, era gente que<br />

começou a chegar depois em 1966, 1967, antes da<br />

coisa piorar mais aqui, gente que tinha ido para o<br />

Chile e seguiu para a França depois... Dos geógrafos<br />

o Manuel Correia de Andrade, de Pernambuco<br />

chegou em 1964, o Milton Santos chegou em 1966.<br />

Eu me lembro do Manuel Correia porque nós íamos<br />

juntos para o curso de Mestrado, que eu comecei<br />

a fazer em 1965 sob a orientação do Prof. Celso<br />

Furtado. O Professor Monbeig tinha me indicado<br />

e o Celso Furtado me aceitou como orientanda. Eu<br />

tinha um material sobre o Paraná que eu acumulei<br />

durante o trabalho de “bagrinho” na SAGMACS,<br />

quando foi feito o Plano de Governo para o Ney<br />

Braga. Era um material muito bom e isso eu usei<br />

para o mestrado. Depois o professor Celso Furtado<br />

acabou orientando o Pedro Calil, apresentado por<br />

mim, fazendo uma bela tese sobre economia agrícola.<br />

Calil acabou ficando em Paris, fez o IRFED e acabou<br />

sendo um dos seus dirigentes, como também o<br />

Chico Whitaker. Mas já nos anos 70 se não me<br />

falha a memória...<br />

L.C. Voltando para nosso tema e antes de avançarmos<br />

mais sobre a SAGMACS, a senhora mencionou<br />

a pouco do Lebret e o Monbeig entrarem<br />

juntos no escritório da SAGMACS. Comentou que<br />

quem fez sua indicação para o IRFED foi o Monbeig.<br />

Eu sei que há um vínculo entre ele e o Lebret, mas<br />

isso é institucional? Ele deu aulas no IRFED?<br />

M.A.S. Tinham muitos professores universitários<br />

franceses que participavam do Movimento, na<br />

geografia tinha o Monbeig e o Jean La Basse que<br />

era de Lyon, vários professores da economia, o<br />

Jean Marie Albertini, professores da sociologia do<br />

trabalho, gente que trabalhava nos institutos e<br />

nas universidades de lá e que pertenciam ou eram<br />

ligados ao movimento.<br />

Penso que no caso do Professor Monbeig pesava o<br />

conhecimento que ele tinha do Brasil, o fato dele<br />

ter estado aqui, já conhecia melhor e acredito que<br />

ele ajudou o Padre Lebret a se introduzir em alguns<br />

meios aqui no Brasil. Provavelmente pode ter sido<br />

o Professor Monbeig quem pode ter apresentado o<br />

Lebret ao pessoal do Estadão, que acabou fazendo<br />

um caderno especial do jornal sobre o estudo feito<br />

sobre as favelas de São Paulo! O Professor Monbeig<br />

ficou amigo dos Mesquitas, quando veio trabalhar<br />

na USP nos anos 1930 e foi a família que o acolheu<br />

aqui. Monbeig tem um filho que é afilhado do Julio<br />

Mesquita! Então eu acho que o fato do Monbeig<br />

ter estado aqui alguns anos antes, ele pode ter sido<br />

a pessoa que introduziu o Padre Lebret em alguns<br />

nichos da sociedade paulistana. Mas ele não deu<br />

aulas no IRFED pelo menos enquanto fui aluna. Ele<br />

estava sempre lá, contribuía, mas não dava aulas.<br />

L.C. Dentro dessa questão dos seus colegas de<br />

IRFED, pensando que eram pessoas de países pobres<br />

V14 N2<br />

transcrição<br />

97


Entrevista com Maria Adélia de Souza<br />

indo para Paris fazer o curso como é que se dava<br />

o financiamento das atividades do instituto? A<br />

senhora mencionou ter ganho uma bolsa de estudos<br />

financiada por um Comitê Católico. Estas bolsas<br />

eram para todos? Havia custos para os alunos?<br />

Como é que o Insituto se mantinha?<br />

M.A.S. Parece-me que tinham organizações religiosas<br />

que financiavam, além dos trabalhos técnicos<br />

de consultoria realizados pelo próprio IRFED. O<br />

Comitê Católico dava a bolsa, como a que eu<br />

consegui, e acredito que o Padre Lebret conseguia<br />

algum dinheiro junto ao Vaticano, com a realização<br />

de trabalhos de assessoria. Mas era tudo muito<br />

simples também. O esquema do Padre Lebret era<br />

simples, ele conseguia as bolsas para as pessoas que<br />

iam para lá estudar de diferentes organizações, tinha<br />

formas de alojar os alunos e acho que ele conseguia<br />

algum apoio em alguns governos também.<br />

Tinha também a Livraria que dava algum dinheiro,<br />

as edições Ouvrières eram muito comercializadas,<br />

tinham muito prestígio. Havia a Revista do movimento<br />

que também era bastante requisitada. Certamente o<br />

IRFED tinha que pagar os professores, mas era tudo<br />

muito simples, era uma sala pequena onde tínhamos<br />

aula, não tinha nada sofisticado. Mas nós, os alunos,<br />

não falávamos disso não, não dava para saber, pois<br />

cada um vinha de uma guerra de libertação, ou um<br />

lugar de extrema pobreza que era tudo muito tenso,<br />

as pessoas não conversavam muito ali.<br />

Mas era muito interessante isso tudo, os alunos<br />

chegavam na França três meses antes do início<br />

do curso no IRFED e eram acolhidos num castelo,<br />

ficavam alojados lá, trancados por três meses só<br />

para aprender o francês. E não pagávamos nada por<br />

isso! Íamos para lá antes para aprender o francês<br />

e assim é que nos conhecíamos. E tinha gente de<br />

todo lugar que vinham para fazer o curso: tinham<br />

aqueles quem vinham de colônias inglesas, tinha<br />

colega da Ásia.<br />

L.C. Agora poderíamos falar sobre uma questão de<br />

ideologia e posicionamento político da SAGMACS. É<br />

possível verificar que a SAGMACS atuou basicamente<br />

para o Poder Público e se olharmos os períodos veremos<br />

que há uma abertura em governos mais progressistas<br />

como aqui em São Paulo durante o Carvalho Pinto, o<br />

Ney Braga no Paraná, o Toledo Pizza na Prefeitura de<br />

São Paulo, em Belo Horizonte o Plano Diretor para o<br />

Amintas, o Baltar em Recife também com trabalhos<br />

bem progressistas para o desenvolvimento regional.<br />

No Rio acredito que menos... A SAGMACS não estava<br />

mesmo vinculada politicamente a esses governos? Aos<br />

partidos mais à esquerda?<br />

M.A.S. Não é que não estava vinculada politicamente.<br />

Isso não existe! O que havia era uma questão<br />

de convergências políticas, com algumas figuras ou<br />

alguns partidos, o que é diferente de hoje que há<br />

uma ligação direta de um contrato de consultoria<br />

com o partido e alguém do partido.<br />

Naquele tempo não era assim, sendo a SAGMACS<br />

representante do Movimento Economia e Humanismo,<br />

para operacionalizar as ideologias humanistas<br />

em sua essência, combativas do problema da desigualdade,<br />

isso era uma novidade quando as<br />

discussões intelectuais no mundo se davam a<br />

partir disso e do terceiro mundo, isso vinha das<br />

reverberações da segunda guerra, a Europa ainda<br />

em reconstrução...<br />

Então eu acho que a SAGMACS conseguiu realizar<br />

trabalhos, foi convidada a participar nos governos<br />

democrata-cristãos, onde teve, no caso do Ney Braga<br />

no Paraná. Aqui em São Paulo não tivemos esta<br />

experiência com os governos democrata-cristãos,<br />

quando eu estive lá. Aliás, nessa época, tínhamos<br />

em São Paulo pouquíssimos trabalhos. Lembro-me<br />

que, além do Plano de Governo para o Ney Braga<br />

no Paraná, trabalhei no Plano Diretor de Sorocaba,<br />

Barretos... Mas eram pouquíssimos, não foi muita<br />

coisa que a SAGMACS fez, se contar acho que não<br />

passam de vinte trabalhos! A SAGMACS deve ter<br />

durado uns quinze anos!!!<br />

Havia também o projeto da Bacia do Tietê e antes<br />

disso tinha tido o governo Carvalho Pinto, que<br />

eu ainda era estudante, mas aí foi a mudança<br />

para o planejamento. O Governador Lucas Garcez<br />

contratou o trabalho para a bacia do Paraná-Uruguai,<br />

intitulado “Necessidades e Possibilidades para o<br />

desenvolvimento da Bacia Paraná Uruguai”, ele<br />

conseguiu alguns trabalhos, viraram contratos. Mas<br />

eram pessoas, um grupo de Democrata-Cristãos<br />

mais esclarecidos que não tinham nada a ver com<br />

a esquerda não, eu acho.<br />

L.C. A SAGMACS me coloca este ponto de indagação<br />

sobre a ideologia, ela começa com a vinda do Lebret<br />

V14 N2<br />

transcrição<br />

98


Entrevista com Maria Adélia de Souza<br />

em 1947 a convite da Escola de Sociologia e Política,<br />

mas há quem aponte que também foi a FIESP que<br />

bancou a vinda do Lebret para dar um curso de<br />

planejamento econômico e quando a SAGMACS<br />

é fundada ela vai trabalhar dentro do Jóquei Clube<br />

com o Lucas Nogueira Garcez e o Luiz Cintra do<br />

Prado que não eram pessoas nada progressistas.<br />

M.A.S. Exatamente! Mas isso é transparente não<br />

é? Porque a Democracia Cristã não está ligada a<br />

esquerda, sempre esteve muito ligada as elites, ainda<br />

mais aqui. Mas é isso mesmo, começou com o Garcez,<br />

Jóquei Clube, depois é que começa a mudar, quando<br />

o Frei Benevenuto assume a direção e começa a trazer<br />

uma equipe bastante progressista. Não conheço bem<br />

esse início, pois já cheguei na Praça das Bandeiras. Aí,<br />

então, penso que a SAGMACS começa a se desvincular<br />

desses mandos, mas mesmo neste período tinha um<br />

debate interessante sobre o desenvolvimento e esta<br />

geração que eu peguei tinha o Chico Whitaker que<br />

me parecia à época o mais à esquerda, tanto que foi<br />

superintendente da SUPRA – Superintendência para<br />

a Reforma Agrária, no Governo Jango.<br />

Mas apesar de tudo nós estávamos mais a esquerda<br />

do que qualquer outro movimento da época, tanto<br />

é que os que eram do movimento cristão e que<br />

mais se radicalizaram foram para a Ação Popular,<br />

isso foi o racha, por conta dos católicos que eram<br />

contra este conservadorismo.<br />

Mas eu fui militar na AP lá em Paris, nem foi aqui...<br />

Mas eu fui amavelmente convidada a deixar a JUC<br />

porque eu havia participado de um comando de greve<br />

da Perus, cujo advogado era o Mario Carvalho de Jesus<br />

que participava as vezes da SAGMACS, de algumas<br />

reuniões, se não me falha a memória. Mas, na equipe<br />

tinha o médico João Yunes e o José Carlos Seixas,<br />

também médico e líder da JUC e que também eram<br />

do movimento. Nossa atuação na greve da Perus foi<br />

considerada um anarquismo inconsequente. Então<br />

deixei a JUC. Depois disso, na universidade eu fui me<br />

aproximando mais da POLOP (Organização Operária<br />

Marxista), com a Regina Toledo e o Eder Sader, que<br />

depois foi seu marido, o Fuad Saad, Mario Damato<br />

e tantos outros companheiros de politica estudantil<br />

do Grêmio da Faculdade de Filosofia, na rua Maria<br />

Antonia. Mas jamais entrei nessa organização. Era<br />

amiga de muitos dos seus militantes. A POLOP era<br />

barra mais pesada, tanto que muitos dos nossos<br />

companheiros foram mortos.<br />

L.C. Quanto ao catolicismo, isso é mais forte no<br />

grupo da SAGMACS que estava em São Paulo? É<br />

certo falarmos em equipe da SAGMACS de São<br />

Paulo, pois isso soa como se eu estivesse dizendo<br />

que houve várias vertentes dentro do grupo. Isso de<br />

fato existia? O que é que a diferenciava?<br />

M.A.S. Talvez sim, isso porque o Dr. Baltar que<br />

estava em Recife, o pessoal do Rio, ligado ao<br />

Arthur Rios se não me falha a memória não tinha<br />

um frei na direção de forma ali tão direta como<br />

nós tínhamos o Frei Benevenuto em São Paulo.<br />

Embora o frei fosse muito esclarecido, sabia muito<br />

bem diferenciar isso, pois era muito inteligente e<br />

um grande intelectual. Dos melhores que conheci<br />

em minha vida. E extremamente crítico e rigoroso.<br />

Mas eu acho que você tem que ver também<br />

o contexto da igreja católica, o momento que<br />

estávamos vivendo, tudo isso tem que ser colocado,<br />

porque naquele contexto este grupo nosso era<br />

um grupo católico de extrema esquerda... naquele<br />

contexto. Era uma igreja saindo do Pio XII, de<br />

um conservadorismo e começando o Vaticano<br />

II, com o João XXIII, aquela abertura toda e com<br />

a posterior chegada de Paulo VI. Naquela época<br />

era tudo muito cioso, solene, hoje mudou, mas<br />

a igreja foi se modificando, porque o capitalismo<br />

é de uma desfaçatez que ele vai detonando com<br />

tudo e até com aquelas estruturas que pareciam<br />

intocáveis.<br />

L.C. Os trabalhos feitos pelas equipes dos grupos<br />

vinculados ao Movimento Economia e Humanismo<br />

como os que a SAGMACS faziam aqui no Brasil, a<br />

SAGMA lá na França, SAGMAESCO na Colômbia,<br />

etc, tinha algum monitoramento por parte do<br />

movimento? Havia um vínculo financeiro de cooperação,<br />

como valores enviados pelo movimento da<br />

França à SAGMACS no Brasil?<br />

M.A.S. Que eu saiba não. Mas não conheço bem<br />

essa história. A SAGMACS se mantinha através<br />

dos contratos que estabelecia para realização dos<br />

trabalhos técnicos em planejamento urbano e<br />

regional e urbanismo. Eu nunca soube também<br />

de que nós tivemos que remeter nada para eles lá<br />

não. Havia um intercâmbio para fazer cursos nos<br />

diferentes países. De São Paulo foram arquitetos<br />

para a Colômbia, por exemplo fazer cursos sobre<br />

Habitação Popular!<br />

V14 N2<br />

transcrição<br />

99


Entrevista com Maria Adélia de Souza<br />

Mas eram os contratos mesmo que mantinham as<br />

equipes. Mas na SAGMACS eu era “bagrinho”. Eu<br />

não participava dessas reuniões de decisão, depois<br />

que eu fui para Paris que eu me aproximei mais do<br />

Padre Lebret.<br />

Aqui no Brasil, nossos dirigentes, além do Frei<br />

Benevenuto era o Celso Lamparelli, o Flavio Vilaça,<br />

a Clementina Ambrósis, o Antonio Claudio Moreira,<br />

o Chico Whitaker que sabiam melhor disso. Eu me<br />

lembro de alguns intercâmbios... acho que foi o<br />

Vitold quem buscou este intercâmbio junto com<br />

outros dois arquitetos formados pela FAU: o Paulão<br />

(Paulo Yazetti) e o Roberto Yazigi.<br />

L.C. Por fim, gostaria que a senhora apontasse a<br />

partir de um quadro do que ocorria no campo das<br />

práticas profissionais dos urbanistas e dos órgãos<br />

que pensavam o planejamento na época, em que<br />

se diferenciou o trabalho da SAGMACS e o porque<br />

conseguiu se constituir a partir desta diferença. Há<br />

alguma influência da SAGMACS nas práticas do<br />

planejamento pós década de 1960?<br />

M.A.S. Eu acho que foi um movimento importante<br />

para aquela época para dar uma conscientização<br />

sobre a questão da importância do planejamento,<br />

mostrou que o planejamento não é uma questão<br />

apenas técnica, é algo para se pensar no futuro<br />

das nações. O primeiro exercício de implantação<br />

dos princípios de planejamento, que vinga desta<br />

formação que nós tínhamos no IRFED, foi no governo<br />

Carvalho Pinto. Foram os princípios “irfedianos”<br />

que nortearam o grupo do PAGE – Plano de Ação<br />

daquele governo, um plano territorial. Se você<br />

pegar o plano do governo do Carvalho Pinto eles<br />

começam ali a instituir um instrumento que é<br />

“irfediano” que é o que eu segui pelo resto da vida<br />

e faço até hoje, onde o território não é apenas um<br />

enunciado, mas uma categoria de análise. Por isso<br />

falávamos em regionalização para descentralização<br />

e democratização de implantação de serviços, que<br />

hoje virou esta coisa de participação popular que<br />

está aí... com mais discurso do que ação.<br />

do Estado de São Paulo, que o Carvalho Pinto não<br />

tinha feito. Esse governo havia feito a regionalização<br />

dos serviços. Já o Costa, como o chamávamos,<br />

quando eu trabalhei com ele neste projeto, cuidou<br />

de uma regionalização integral dos serviços, que<br />

naquela época nós acre-ditávamos muito, e hoje<br />

eu me revejo nisso... Nós errávamos por falta de<br />

formação teórica e filosófica mais aprimorada...<br />

Eu não tinha sido aluna do Sartre ainda, e por isso<br />

eu acreditava na busca da intersetorialidade, como<br />

busca da prática governamental. Essa coisa faria a<br />

articulação entre os setores do governo de modo a<br />

agilizar e melhorar a prestação dos serviços. Hoje eu<br />

sei que isso não existe, o que existe é a totalidade<br />

em movimento e quem expressa essa unidade e essa<br />

dinâmica é o território usado. O território, não o setor<br />

é quem deve ser considerado pelo planejamento.<br />

Trata-se de discutir o planejamento territorial versus<br />

o planejamento setorial.<br />

Daquele trabalho coordenado pelo Luiz Carlos Costa<br />

na Secretaria do Planejamento do Estado de São Paulo<br />

sai a ação regional, e o primeiro decreto desta ação<br />

é de 1968, e este decreto consistia em lidar com a<br />

gestão pública de uma forma articulada, integrada,<br />

inter setorial, territorialmente falando. Depois veio<br />

a criação do GEGRAN e isso eu acho que é uma<br />

influência do Movimento Economia e Humanismo.<br />

Mas, independentemente dos escorregões mais à<br />

direita, mais classistas, o movimento, para nós que<br />

estávamos na ativa, trabalhando nas coisas, não<br />

digo os dirigentes e os figurões, nós tínhamos uma<br />

concepção bastante avançada quanto a descentralização,<br />

participação e eu levei isso comigo para<br />

onde eu fui trabalhar pelo resto da vida.<br />

Fui trabalhar no SERFHAU levei essas coisas, até<br />

verifiquei recentemente um Termo de Referência que<br />

eu fiz para Chapecó em 1969, que exigia reuniões<br />

populares, em Santa Catarina.<br />

Foram das coisas que eu aprendi na SAGMACS, no<br />

IRFED, com o Padre Lebret.<br />

Naquela época não! Tanto é que o Carvalho Pinto<br />

foi o primeiro governo a fazer uma divisão regional<br />

do Estado de São Paulo para efeito de planejamento.<br />

Depois, com esta experiência do PAGE, o Luiz Carlos<br />

Costa na Secretaria de Planejamento, nos anos 1960<br />

fez o primeiro decreto de regionalização administrativa<br />

Lembro-me de ter acompanhado o Padre Lebret<br />

em trabalhos de campo e reuniões no Senegal com<br />

plantadores de amendoim, para tentar ver se eles<br />

mudavam as tecnologias do plantio e poder ter<br />

maior rentabilidade. Ficamos por lá com ele três<br />

meses e não conseguimos mudar absolutamente nada<br />

V14 N2<br />

transcrição<br />

100


Entrevista com Maria Adélia de Souza<br />

Figura: Maria Adélia Aparecida<br />

de Souza. Fonte: fotografia<br />

de Daniel Garcia.<br />

na cabeça dos pequenos plantadores. Era uma tribo<br />

muito fechada, que não queria mudar nada em sua<br />

cultura de plantio, pois assim faziam há séculos...<br />

Desde então eu passei a ser crítica das teorias<br />

desenvolvimentistas, porque tecnicamente era fácil<br />

de mudar, mas de fazer as pessoas entenderem isso<br />

não era simples. As empresas podem fazer o que<br />

bem entendem. As pessoas não!<br />

Ou você muda a cultura ou a economia te arrasa!<br />

Claro que mais tarde esta tribo deve ter entrado<br />

num processo capitalista de cultivo do amendoim,<br />

que arrasou com tudo. Mas a que preço? Se as<br />

pessoas não conseguem entender o que é o seu<br />

modo de ser, se elas não entenderem isso para elas<br />

mesmas fazerem a crítica e querer mudar, o que<br />

vier de forma diferente, como sempre se fez com o<br />

planejamento, não é aceito e o efeito é exatamente<br />

o contrário do que se diz e discursa. Basta olhar as<br />

cidades hoje, onde as periferias são carentes de tudo.<br />

Mas os discursos dos planos, não! Neste sentido<br />

eu acho que nisso hoje, o novo conceito de lugar<br />

proposto por Milton Santos, como sendo um espaço<br />

do acontecer solidário, ajuda nessa perspectiva de<br />

lida, no planejamento com o conceito de espaço<br />

banal, proposto pelo François Perroux, que era do<br />

movimento Economia e Humanismo, embora com<br />

divergências com o Padre Lebret. Mas essa é outra<br />

conversa, com outro personagem que tenho usado<br />

na minha vida de planejadora nos tempos atuais.<br />

Mas eu aprendi muito nessa escola da SAGMACS<br />

e do IRFED, que tenho levado adiante a vida toda,<br />

sempre renovando-a com novas aprendizagens,<br />

novas teorias, novos fazeres. Não sou nenhuma<br />

tecnocrata, pois aprendi que é preciso rigor no<br />

processo de conhecimento para ajudar as pessoas<br />

a serem melhores e que é a política quem faz isso!<br />

Entendi que planejamento e política são irmãos<br />

siameses.<br />

V14 N2<br />

transcrição<br />

101


Abstracts / Resumenes<br />

Urbanism and Urbanists in Brazilian urban history: trajectories and questions<br />

to think Latin American urban history<br />

Rodrigo de Faria<br />

Abstract<br />

What are the themes and research objects in Urbanism history in Brazil? This postulation oriented an<br />

analysis about the research in History of Urbanism in Brazil through the investigation of the professional<br />

trajectory of urbanists. Based on data gathered from existing approaches of the Brazilian historiography,<br />

some considerations were formulated in this field of research. The recurrences and permanencies of the<br />

research were problematized to point to a necessity of articulation with the Latin American historiography,<br />

in ways that the construction-interpretation of Latin America Urban History takes place with a more direct<br />

presence with the studies done in Brazil.<br />

Keywords: history of urbanism, Brazil, Latin America.<br />

El urbanismo y los urbanistas en la historia urbana brasileña: caminos y<br />

preguntas para pensar acerca de la historia urbana de América Latina<br />

Rodrigo de Faria<br />

Resumen<br />

¿Cuáles son los temas y objetivos de la investigación en historia del urbanismo en Brasil? Ésa fue la<br />

pregunta que dio lugar a un análisis sobre la investigación en historia del urbanismo en Brasil según<br />

el interés de las trayectorias profesionales de los urbanistas. A partir de una revisión de los distintos<br />

planteamientos que se han hecho hasta el momento desde la historiografia brasileña, se han formulado<br />

algunas consideraciones sobre este campo. Se han analizado las recurrencias y las constantes que se daban<br />

para así poder señalar la necesidad de articulación con la historiografía latinoamericana, de modo que<br />

la construcción-interpretación de la historia urbanística de America Latina tenga en cuenta la presencia<br />

más directa de los estudios realizados en Brasil.<br />

Palabras clave: historia del urbanismo, Brasil, América Latina.<br />

V14 N2<br />

revista de pesquisa em arquitetura e urbanismo instituto de arquitetura e urbanismo iau-usp<br />

102


Theodoro Sampaio, the Sanitary Code of São Paulo State of 1894 and the<br />

demands of modernity<br />

Luiz Augusto Maia Costa<br />

Abstract<br />

The present paper seeks to relate sanitary issues in the Western world (from antiquity to contemporaneity)<br />

with what Freud defined as the demands of modernity, that is, order, hygiene and beauty, in order to<br />

establish a basis for understanding the Code Sanitary of the State of São Paulo of 1894 as a manifestation<br />

of the modernity engendered from the Second Industrial Revolution. He argues that the Code concerned,<br />

directly or indirectly, with the participation of engineer Theodoro Sampaio. Thus, we understand that the<br />

town planning that was forged was directly linked to the very civilizational process typical of the West.<br />

Keywords: Theodoro Sampaio, modernity, sanitary code, São Paulo.<br />

Theodoro Sampaio, el Código Sanitario del Estado de Sao Paulo de 1894 y las<br />

exigencias de la modernidad<br />

Luiz Augusto Maia Costa<br />

Resumen<br />

En este artículo se busca relacionar los problemas de salud en el mundo occidental (desde la antigüedad<br />

hasta nuestros días), con lo que Freud define como las exigencias de la modernidad, es decir, el orden,<br />

higiene y belleza, con el fin de proporcionar subvenciones para la comprensión del Código salud del Estado<br />

de San Pablo 1894 como una manifestación de la modernidad generó a partir de la segunda revolución<br />

industrial. Se argumenta que el Código incluye, directa o indirectamente, con la participación del ingeniero<br />

Theodoro Sampaio. Por lo tanto, entendemos que el urbanismo que después se forjó estaba directamente<br />

relacionada con el proceso típico real civilizar el Oeste.<br />

Palabras clave: Theodoro Sampaio, modernidad, código sanitario, São Paulo.<br />

V14 N2<br />

abstracts / resumenes<br />

103


The question of water supply in the city of São Paulo: the contributions of the<br />

Paula Souza family<br />

Cristina de Campos<br />

Abstract<br />

Brazilian cities passed through profound changes in their urban structures in the late nineteenth century.<br />

It is intended here to explain about the participation of professionals in formulating proposals to the<br />

problems posed, taking as an example the work of two members of the Paula Souza family. At different<br />

times, the engineer Antonio Paula Souza and the medical doctor Geraldo Paula Souza worked for the<br />

sanitation of the São Paulo relating to public water supply. The intention of the article is to highlight<br />

the complexity of urban problems faced at the time by the lack of an adequate infrastructure network.<br />

Keywords: urban infrastructure, water supply, city of São Paulo.<br />

El problema del suministro de agua en la ciudad de São Paulo: las contribuciones<br />

de la familia Paula Souza<br />

Cristina de Campos<br />

Resumen<br />

A finales del siglo XIX las ciudades brasileñas atravesaron profundos cambios en sus estructuras urbanas.<br />

Se pretende explicar la participación de los profesionales en la formulación de propuestas frente a los<br />

problemas planteados tomando como ejemplo la familia Paula Souza. En diferentes momentos, el<br />

ingeniero Antonio Francisco Paula Souza y el médico Horacio Geraldo Paula Souza, ambos trabajaron en<br />

pro del saneamiento de São Paulo, principalmente, sobre el suministro público de agua. La intención del<br />

artículo es poner de relieve la complejidad de los problemas urbanos afrontados en su momento por la<br />

falta de una red de infraestructura adecuada.<br />

Palabras clave: infraestructura urbana, suministro de agua, ciudad de São Paulo.<br />

V14 N2<br />

abstracts / resumenes<br />

104


Production of City as a collective project: the housing action of the Institute<br />

of Industrialists (1937-1960)<br />

Nilce Cristina Aravecchia Botas<br />

Abstract<br />

To discuss the relationship between authorship and collective work, this paper brings questions about<br />

the actions of engineers and architects within the changes of the Brazilian State from 1930. The specific<br />

analysis of the conformation of the Engineering Division of the Institute of Retirement and Pensions of<br />

Industrial Workers (IAPI) seeks to discern the main ideas and actions of the social housing production of<br />

the 1940s and 1950s, to understand how the specific discussions of the disciplinary field of architecture<br />

and urban planning were linked to the integration dynamics of the country into Capitalism.<br />

Keywords: social housing, security institutes, architecture, city.<br />

Producción de la Ciudad como proyecto colectivo: la acción de viviendas del<br />

Instituto de Trabajadores de la Industria (1937-1960)<br />

Nilce Cristina Aravecchia Botas<br />

Resumen<br />

Para hablar sobre la relación entre autoría y el trabajo colectivo, este texto presenta preguntas sobre las<br />

acciones de los ingenieros y arquitectos dentro de los cambios del Estado brasileño desde 1930. El análisis<br />

específico de la conformación de la División de Ingeniería del Instituto de Aposentadoria e Pensões dos<br />

Industriários (IAPI) tiene como objetivo visualizar las principales ideas y las acciones de la producción de<br />

viviendas de los años 1940 y 1950, para entender cómo las discusiones específicas del campo disciplinar<br />

de la arquitectura y urbanismo estaban vinculadas a la dinámica de la integración del país en el sistema<br />

capitalista.<br />

Palabras clave: vivienda social, institutos de seguridad, arquitectura, ciudad.<br />

V14 N2<br />

abstracts / resumenes<br />

105


249 town builders<br />

Sylvia Ficher<br />

Abstract<br />

Cities are not limited to their materiality, even though such materiality is quite more than an inert<br />

scenario for the unfolding of the drama of life in society. And those involved directly in its concretion<br />

can be considered de facto town builders. Getting to know their professional biographies is a useful tool<br />

for urban studies. This article presents a summary description of the activities of some builders of São<br />

Paulo: 120 engineers-architects graduated from the Polytechnic School (1899-1954); 90 architects and<br />

engineers-architects graduated from the Mackenzie School of Engineering (1919-46); and 39 architects<br />

graduated from the School of Fine Arts (1929-34).<br />

Keywords: professional trajectories, urban history, São Paulo architects.<br />

249 constructores de ciudades<br />

Sylvia Ficher<br />

Resumen<br />

Ciudades no se limitan a su materialidad, aún tal materialidad sea mucho más que un telón de fondo<br />

delante al qual se desarrolla el drama de la vida en sociedad. Y aquellos directamente implicados en su<br />

concreción se puede considerar, de hecho, constructores de ciudades. Herramienta útil para los estudios<br />

urbanos, aquí se expone una breve descripción de la carrera profesional de algunos de estos constructores<br />

de São Paulo: 120 ingenieros-arquitectos graduados de la Escuela Politécnica (1899-1954); 90 arquitectos<br />

e ingenieros-arquitectos graduados de la Escuela de Ingeniería Mackenzie (1919-46); y 39 arquitectos<br />

graduados de la Escuela de Bellas Artes (1929-34).<br />

Palabras clave: carreras profesionales, historia urbana, arquitectos de São Paulo.<br />

V14 N2<br />

abstracts / resumenes<br />

106


Drawing as an epistemological question: Rui Barbosa and John Ruskin<br />

Claudio Silveira Amaral<br />

Abstract<br />

The intent of this article is to establish a relationship between the principles of drawing Education Policy<br />

and Industrialization Policy, both authored by polymath (jurist, politician, diplomat, writer, philologist,<br />

translator and speaker) Rui Barbosa (1849-1923) and influenced by his readings of the writings signed<br />

by the English art critic John Ruskin (1819-1900). To Rui Barbosa, as well as John Ruskin drawing is an<br />

epistemological question.<br />

Keywords: education, design, industrialization.<br />

El dibujo como una cuestión epistemológica: Rui Barbosa y John Ruskin<br />

Claudio Silveira Amaral<br />

Resumen<br />

La intención de este artículo es el de establecer una relación entre los principios de elaboración de Política<br />

Educativa y Política de Industrialización, escrito por el erudito (jurista, político, diplomático, escritor, filólogo,<br />

traductor y locutor) Rui Barbosa (1849-1923) e influenciado por sus lecturas de los escritos firmados por<br />

el crítico de arte John Ruskin Inglés (1819-1900). Rui Barbosa, así como el dibujo de John Ruskin es una<br />

cuestión epistemológica.<br />

Palabras clave: educación, diseño, industrialización.<br />

V14 N2<br />

abstracts / resumenes<br />

107


Phenomenological qualitative research: eyes to see creativity of everyday life<br />

Hulda Erna Wehmann<br />

Abstract<br />

To understanding the landscape as the sensible apprehension of space implies a review of working<br />

methods: how to inquire about these perceptions, and to whom? How to insert various imaginaries in<br />

ever-changing spaces? These are the questions that structure this text, about the possibilities brought<br />

by the qualitative research of phenomenological inspiration for the theme. It aims to investigate the<br />

contributions brought by a first field research to the initial theoretical discussions. This survey was held<br />

between October 2015 and January 2016, and included 14 in-depth interviews in Lagamar and Serviluz<br />

Communities, in the city of Fortaleza - CE.<br />

Keywords: ordinary landscape, qualitative research, housing.<br />

La investigación cualitativa fenomenológica: ojos para ver la creatividad<br />

de la cotidianidad<br />

Hulda Erna Wehmann<br />

Resumen<br />

Tratar el paisaje como la aprehensión sensible del espacio implica una revisión de los métodos de trabajo:<br />

¿Cómo investigar sobre estas percepciones, y a quién preguntar? ¿Cómo insertar diversos imaginarios<br />

en espacios tan mutables? Estas cuestiones estructuran este texto, acerca de posibilidades presentadas<br />

por la investigación cualitativa de inspiración fenomenológica para el tema. Su objetivo es pensar las<br />

contribuciones a las discusiones teóricas iniciales interpuestos por una investigación de campo, que se<br />

llevó a cabo entre octubre de 2015 y enero de 2016, e incluyó 14 entrevistas en profundidad en Lagamar<br />

y Serviluz Comunidades, en Fortaleza – CE.<br />

Palabras clave: paisaje ordinario, investigación cualitativa, vivenda.<br />

V14 N2<br />

abstracts / resumenes<br />

108


A paradox sheet: the Metropolitan Cathedral of Rio de Janeiro<br />

Roberto Segre (in memorium), João Henrique dos Santos, Estela Maris de Souza<br />

Abstract<br />

The Cathedral of Rio de Janeiro was built in Santo Antônio Esplanade in the second half of the 20th<br />

century. The new Cathedral breaks the typology of the colonial churches and brings the influence of Maya<br />

pyramids in a modern building. Santo Antonio Esplanade traduces the breaking suffered by the urban<br />

tissue in this area of the city. It is still significant the contrast between past and present there, leaving<br />

open the defy of integrate them in a cultural and historical heritage set which retrieves the humanistic<br />

values which have always characterized Rio de Janeiro.<br />

Keywords: Rio de Janeiro, urban history, Metropolitan Cathedral.<br />

Na hoja paradoja: la Catedral Metropolitana de Rio de Janeiro<br />

Roberto Segre (in memorium), João Henrique dos Santos, Estela Maris de Souza<br />

Resumen<br />

La Catedral Metropolitana fue construida en la segunda mitad del siglo XX, en la Explanada de San<br />

Antonio. La nueva Catedral rompe con la tipología de las iglesias coloniales y asume, la influencia de las<br />

pirámides mayas. La Explanada de San Antonio expresa la gran ruptura que sufrió el tejido urbano en<br />

esta área. Todavía resulta significativo el contraste entre el pasado y el presente, que deja en abierto<br />

el desafío de integrarlos en un conjunto patrimonial que recupere los valores humanísicos que siempre<br />

caracterizaron la capital.<br />

Palabras clave: Río de Janeiro, historia urbana, Catedral Metropolitana.<br />

V14 N2<br />

abstracts / resumenes<br />

109

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