17.03.2017 Views

Pedagogia da Autonomia - Paulo Freire

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

1.3 – Ensinar exige respeito aos saberes dos educandos<br />

Por isso mesmo pensar certo coloca ao professor ou, mais amplamente, à escola, o dever de não<br />

só respeitar os saberes com que os educandos, sobretudo os <strong>da</strong> classes populares, chegam a ela –<br />

saberes socialmente construídos na prática comunitária – mas também, como há mais de trinta<br />

anos venho sugerindo, discutir com os alunos a razão de ser de alguns desses saberes em relação<br />

com o ensino dos conteúdos. Por que não aproveitar a experiência que têm os alunos de viver em<br />

áreas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de descui<strong>da</strong><strong>da</strong>s pelo poder público para discutir, por exemplo, a poluição dos riachos<br />

e dos córregos e os baixos níveis de bem-estar <strong>da</strong>s populações, os lixões e os riscos que oferecem<br />

à saúde <strong>da</strong>s gentes. Por que não há lixões no coração dos bairros ricos e mesmo puramente<br />

remediados dos centros urbanos? Esta pergunta é considera<strong>da</strong> em si demagógica e reveladora <strong>da</strong><br />

má vontade de quem a faz. É pergunta de subversivo, dizem certos defensores <strong>da</strong> democracia.<br />

Por que não discutir com os alunos a reali<strong>da</strong>de concreta a que se deva associar a disciplina cujo<br />

conteúdo se ensina, a reali<strong>da</strong>de agressiva em que a violência é a constante e a convivência <strong>da</strong>s<br />

pessoas é muito maior com a morte do que com a vi<strong>da</strong>? Por que não estabelecer uma necessária<br />

“intimi<strong>da</strong>de” entre os saberes curriculares fun<strong>da</strong>mentais aos alunos e a experiência social que<br />

eles têm como indivíduos? Por que não discutir as implicações políticas e ideológicas de um tal<br />

descaso dos dominantes pelas áreas pobres <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de? A ética de classe embuti<strong>da</strong> neste descaso?<br />

Porque, dirá um educador reacionariamente pragmático, a escola não tem na<strong>da</strong> que ver com<br />

isso. A escola não é partido. Ela tem que ensinar os conteúdos, transferí-los aos alunos.<br />

Aprendidos, estes operam por si mesmos.<br />

1.4 – Ensinar exige critici<strong>da</strong>de<br />

Não há para mim, na diferença e na “distância” entre a ingenui<strong>da</strong>de e a critici<strong>da</strong>de, entre o saber<br />

de pura experiência feito e o que resulta dos procedimentos metodicamente rigorosos, uma<br />

ruptura, mas uma superação. A superação e não a ruptura se dá na medi<strong>da</strong> em que a curiosi<strong>da</strong>de<br />

ingênua, sem deixar de ser curiosi<strong>da</strong>de, pelo contrário, continuando a ser curiosi<strong>da</strong>de, se criticiza.<br />

Ao criticizar-se, tornando-se então, permito-me repetir, curiosi<strong>da</strong>de epistemológica,<br />

metodicamente<br />

“rigorizando-se” na sua aproximação ao objeto, conota seus achados de maior exatidão.<br />

Na ver<strong>da</strong>de, a curiosi<strong>da</strong>de ingênua que, “desarma<strong>da</strong>”, está associa<strong>da</strong> ao saber do senso comum,<br />

é a mesma curiosi<strong>da</strong>de que, criticizando-se, aproximando-se de forma ca<strong>da</strong> vez mais<br />

metodicamente rigorosa do objeto cognoscível, se torna curiosi<strong>da</strong>de epistemológica. ilu<strong>da</strong> de<br />

quali<strong>da</strong>de mas não de essência. A curiosi<strong>da</strong>de de camponeses com quem tenho dialogado ao<br />

longo de minha experiência político-pe<strong>da</strong>gógica, fatalistas ou já rebeldes diante <strong>da</strong> violência <strong>da</strong>s<br />

injustiças, é a mesma curiosi<strong>da</strong>de, enquanto abertura mais ou menos espanca<strong>da</strong> diante de “nãoeus”,<br />

com que cientistas ou filósofos acadêmicos “admiram” o mundo. Os cientistas e os<br />

filósofos superam, porém, a ingenui<strong>da</strong>de <strong>da</strong> curiosi<strong>da</strong>de do camponês e se tornam

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!