Boletim nº2
Boletim da BGUE- 2014
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O LIVRO<br />
DA MINHA VIDA<br />
Manuel Mota<br />
“Chega de saudade”<br />
de Ruy Castro (1990)<br />
Como escolher “o” livro da<br />
nossa vida? Não existe, pois<br />
são tantos que a escolha se torna<br />
extremamente difícil. Resolvi<br />
fazer a minha escolha em algo<br />
recente, não recuando aos tempos<br />
da juventude, das leituras<br />
clássicas de grandes monstros<br />
sagrados como p.ex. Leo Tolstoi<br />
ou Ernest Hemingway. Assim, e<br />
olhando para os acontecimentos<br />
marcantes da minha vida de há<br />
uns 5-6 anos para cá, escolhi o<br />
“Chega de saudade” do Ruy Castro.<br />
Um autor brasileiro talvez<br />
não muito conhecido em Portugal,<br />
com excepção dos estudiosos<br />
e amantes da música brasileira.<br />
O Ruy teve uma longa carreira<br />
de jornalista e também biografou<br />
algumas das figuras mais marcantes<br />
da vida brasileira como<br />
Cármen Miranda (cuja biografia<br />
de mais de 600 pp estou a terminar),<br />
Nelson Rodrigues, ou Garrincha,<br />
para citar apenas três.<br />
O “Carnaval no Fogo” é uma das<br />
mais belas histórias que já li sobre<br />
a vida no Rio de Janeiro. E<br />
com “Chega de saudade” temos<br />
aquela que é talvez considerada<br />
a mais completa e bem escrita<br />
história da bossa nova, o período<br />
que vai, grosso-modo, entre 1958<br />
e 1964, com alguns antecedentes<br />
62<br />
entre 1955 e 1958. Período rico<br />
para o Brasil, em termos de desenvolvimento<br />
e de cultura, com<br />
um presidente dinâmico (Juscelino<br />
Kubistchek de Oliveira),<br />
propício à explosão da música<br />
de maior impacte internacional<br />
do Brasil. O livro relata a génese<br />
da bossa-nova pela boca dos seus<br />
principais intervenientes. Ruy<br />
Castro conseguiu testemunhos<br />
de figuras emblemáticas como<br />
Tom Jobim e Vinicius de Moraes.<br />
E o relato das conversas com João<br />
Gilberto, afinal o “pai” da nova<br />
batida, bem como as suas surrealistas<br />
histórias são deliciosas,<br />
como a mítica estória do suicídio<br />
do seu gato, no apartamento de<br />
Leblon, tendo saltado do 5º andar<br />
por não aguentar ouvir tantas<br />
vezes tocado “O pato”. Mito, claro.<br />
O título refere-se, naturalmente,<br />
ao grande êxito de Tom e Vinicius<br />
que estoirou em 1958/59,<br />
primeiro com a versão de Elizeth<br />
Cardoso (1958) e depois com a<br />
famosíssima versão de João Gilberto<br />
(1959). Ruy Castro relata o<br />
tempo em que Tom e Vinicius tinham<br />
composto o tema, mas não<br />
tinham conseguido ainda acertar<br />
no ritmo, na batida certa. Eis<br />
senão quando lhes é apresentado<br />
o violonista da Bahia que chegara<br />
pouco tempo antes ao Rio e que<br />
mostrava a um grupo restrito de<br />
amigos essa batida diferente e<br />
suave no seu violão. Assim que<br />
Tom e Vinicius ouviram o violão<br />
de João Gilberto, exultaram, pois<br />
estava ali encontrado o ritmo que<br />
faltava para o seu tema. Nascia<br />
aí a bossa-nova, termo que aliás<br />
João Gilberto não gostava pois<br />
dizia sempre que o que ele fazia<br />
era samba, nada mais. E passado<br />
uns anos a descrição da composição<br />
da “Garota de Ipanema”,<br />
em 1962, a segunda música mais<br />
gravada até hoje, depois de “Yesterday”<br />
dos Beatles. Para mim, o<br />
livro recriou no meu espírito, e na<br />
perfeição, o que era a vida nesse<br />
fecundo período no Rio de Janeiro,<br />
a cidade maravilhosa, que<br />
tenho tido a felicidade de visitar<br />
de tempos a tempos, e tornou-se<br />
assim um livro marcante. Para<br />
além do mais, como músico amador,<br />
e furioso praticante da bossa<br />
nova (e de outras bossas...) o livro<br />
foi extremamente importante.<br />
Será o “livro da minha vida”?<br />
Por ora, sim, sem dúvida.