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LITERATURA/LITTÉRATURE<br />
Godofredo de Oliveira Neto:<br />
“Marcelino Nanmbrá, o Manumisso”<br />
Alfredo Margarido<br />
O<br />
mais recente romance de<br />
Godofredo de Oliveira<br />
Neto* intriga o leitor pelo<br />
título, que associa a identidade<br />
da personagem falsamente principal<br />
(Marcelino Nanmbrá), com<br />
um substantivo que funciona<br />
como um adjectivo : “o manumisso”.<br />
Tenho muitas dúvidas que<br />
este termo possa ser decifrado<br />
pela maior parte dos leitores de<br />
português, na medida em que<br />
pertence ao vocabulário criado<br />
pela escravatura e pela maneira<br />
de gerir a liberdade dos escravos<br />
: manumisso, diz o dicionário de<br />
Cândido de Figueiredo, é “aquele<br />
que teve alforria ; escravo forro”.<br />
Em certo sentido podíamos afirmar<br />
tratar-se de um anacronismo,<br />
já que a escravatura foi abolida<br />
no Brasil pelo famoso decreto<br />
áureo de 13 de Maio de 1888, assinado<br />
pela Princesa Isabel.<br />
Todavia, face a um autor tão astucioso<br />
no recrutamento do seu<br />
vocabulário, e tão bem informado<br />
da história do seu país, devemos<br />
pôr em dúvida a realidade<br />
do anacronismo : Godofredo de<br />
Oliveira Neto quer salientar que a<br />
sociedade brasileira ainda não<br />
pôs termo às muitas formas de<br />
escravatura que caracterizam o<br />
quotidiano de um país que descende<br />
dos milhões de escravos<br />
africanos que desembarcaram na<br />
costa brasileira entre os séculos<br />
XVI e XIX.<br />
Indirectamente, também, o título<br />
salienta o facto de estarmos perante<br />
um falso-autêntico romance<br />
histórico, na medida em que em<br />
várias passagens do texto somos<br />
informados da cronologia : o<br />
romance começa em 1937, com a<br />
cerimónia que permitiu a queima<br />
da bandeira dos Estados, operação<br />
destinada a denunciar o federalismo<br />
republicano, que incomodava<br />
não só os adeptos das soluções<br />
totalitárias, mas ainda mais os integralistas<br />
de Plínio Salgado. A data<br />
em que ocorrem os acontecimentos<br />
principais é contudo 1942, ano<br />
em que o governo de Getúlio<br />
Vargas supera as opções germanófilas<br />
que caracterizavam certos<br />
meios culturais e políticos brasileiros,<br />
alinhando ao lado dos norteamericanos<br />
e do seu dirigente<br />
máximo, Franklin Delano<br />
Roosevelt, para declarar guerra ao<br />
Japão, à Itália e à Alemanha.<br />
Mas se o romancista tem o cuidado<br />
de fornecer os marcos cronológicos<br />
que permitem acompanhar<br />
a organização da história<br />
política do Brasil, não se separa ele<br />
nunca das considerações regionais,<br />
nem sequer da micro-história local.<br />
O seu projecto pretende por isso<br />
associar a macro-história, ou seja a<br />
história mundial, às escolhas de um<br />
quotidiano pobre, como é o da<br />
Praia do Nego Forro, no litoral de<br />
Santa Catarina. O laço entre o título<br />
e esta Praia é tão evidente que<br />
chega quase a ser pleonástico, mas<br />
ele permite sobretudo compreender<br />
o esforço teórico : a história<br />
universal só pode ser compreendida<br />
quando sabemos como pode ela<br />
ser vivida pelos famélicos da terra<br />
nas suas pequenas ou até minúsculas<br />
localidades.<br />
Por outro lado, o romance não<br />
podia furtar-se à inter-textualidade,<br />
seja na organização temática, seja<br />
também no que se refere à organização<br />
do vocabulário, sendo que a<br />
sintaxe respeita naturalmente os<br />
particularismos culturais da região.<br />
Não sendo embora um romance<br />
onde se procuram concentrar os<br />
particularismos locais, a verdade é<br />
que o esforço do romancista - onde<br />
perpassa a sua experiência pessoal,<br />
provinda certamente da infância -<br />
assenta no inventário das formas,<br />
das cores, das texturas, dos cantos,<br />
dos voos, seja dos peixes, seja dos<br />
pássaros. Marcelino Nanmbrá é de<br />
resto conhecido pela alcunha de<br />
Lino Voador, que alude não aos<br />
pássaros mas aos peixes voadores,<br />
esses animais singulares que animam<br />
tanto o Atlântico e suscitam<br />
técnicas particulares de pesca. A<br />
lição linguística associa, como não<br />
podia deixar de ser, Pound, Joyce<br />
e Guimarães Rosa : os particularismos<br />
linguísticos são uma espécie<br />
de capital regional, no caso de<br />
Guimarães Rosa, urbano, no caso<br />
de Joyce, e mais cosmopolita no<br />
caso de Pound.<br />
Pode até encontrar-se em não<br />
poucas passagens um sopro picaresco,<br />
comprometido contudo pela<br />
outra lição intertextual que faz<br />
deste romance uma obra consagrada<br />
à iniciação sexual de Marcelino<br />
Nanmbrá, jovem pescador que<br />
passa no romance dos dezasseis<br />
para os dezassete anos, e não tinha<br />
até então, como confessa angustiado<br />
ao seu amigo Tião, visto uma<br />
mulher nua. Mas encontramos aqui<br />
um triângulo, sendo o eixo fornecido<br />
pelo jovem pescador, e aí aparecendo<br />
a governanta do senador<br />
Nazareno, que passa as férias da<br />
villa Fayal em Nego Forro, Eve, e<br />
as duas adolescentes, Martinha e<br />
Sabina, que se interrogam sobre a<br />
sua própria sexualidade, que não<br />
se pode entender sem a relação<br />
com os homens.<br />
O romance nunca perde contudo<br />
de vista a necessidade de mobilizar<br />
as informações mais reveladoras<br />
das escolhas do país, embora,<br />
deve dizer-se, neste aspecto o<br />
78 LATITUDES n° <strong>14</strong> - mai 2002
omance esteja nitidamente redigido<br />
para ser compreendido apenas<br />
pelos brasileiros. Quando<br />
Godofredo de Oliveira Neto, numa<br />
das operações em que procura pôr<br />
em evidência o racismo brasileiro,<br />
se refere ao Fluminense, o clube<br />
pó de arroz, é evidente que fornece<br />
uma informação que dificilmente<br />
pode, sem extensa nota de rodapé,<br />
sem compreendida em Lisboa<br />
ou em Paris. O sentido é em primeiro<br />
lugar carioca e só num<br />
segundo grau pode ser alargado ao<br />
Brasil : durante anos a fio o clube<br />
de futebol Fluminense recusou integrar<br />
homens de cor nas suas equipas<br />
e, quando se viu obrigado a<br />
fazê-lo, obrigou esses jogadores a<br />
empoar-se abundamente com pó<br />
de arroz para negar a evidência da<br />
cor. Ainda hoje, no Maracanã,<br />
sobretudo nos choques<br />
Fluminense-Flamengo, os adeptos<br />
do Flamengo lançam sobre os<br />
adeptos do Fluminense basta farinha<br />
de mandioca, o substituto barato<br />
do pó de arroz.<br />
É arrastado pela necessidade de<br />
reforçar a brasileiridade do texto<br />
que encontramos em várias passagens<br />
a referência à extradição de<br />
Olga Benário. Godofredo de<br />
Oliveira Neto mobiliza este incidente<br />
da vida política brasileira,<br />
para denunciar a crueldade dos fascistas<br />
mas sobretudo dos nazistas<br />
brasileiros, que se empenharam em<br />
extraditar para a Alemanha esta<br />
militante do Partido Comunista<br />
Brasileiro, casada com o “cavaleiro<br />
da esperança”, Luís Carlos Prestes.<br />
Também neste caso a utilização de<br />
um acontecimento hipercarregado<br />
de simbolismo só pode funcionar<br />
quando o leitor possui uma excelente<br />
informação respeitante à<br />
história contemporânea do Brasil.<br />
Acrescente-se que o romance utiliza<br />
aquilo a que chamarei uma<br />
construção “impressionista”, que<br />
lhe permite encastrar na narrativa<br />
uma grande quantidade de informações<br />
que definem a condição<br />
cultural e física da sociedade brasileira<br />
nos anos indo de 1937 a 1942.<br />
Assim, por exemplo, o romance<br />
faz referências discretas a duas das<br />
personalidades mais controversas<br />
do getulismo : Filinto Müller, encarregado<br />
das operações repressivas<br />
policiais (pena que Godofredo de<br />
Oliveira Neto não tenha encontrado<br />
lugar para referir a morte singular<br />
deste polícia, asfixiado na cabine<br />
de um avião da Varig que pegara<br />
fogo em pleno voo, tendo chegado<br />
já cadáver ao aeroporto parisiense<br />
de Orly), assim como Lourival<br />
Fontes, o criador do famoso DIP<br />
(Departamento de Informação e<br />
Propaganda), que teve como colaboradores<br />
homens como Graciliano<br />
Ramos, Oswaldo de Andrade, Mário<br />
de Andrade e Manuel Bandeira.<br />
Não sem alguma crueldade, o<br />
romancista salienta os compromissos<br />
que macularam as escolhas e<br />
as práticas dos escritores brasileiros,<br />
sendo certamente Graciliano o<br />
mais singular, pois saiu das prisões<br />
políticas do getulismo para aceitar<br />
as tarefas que lhe foram destinadas<br />
no DIP.<br />
Pode dizer-se que o romance<br />
procura fornecer uma síntese das<br />
escolhas políticas e culturais brasileiras,<br />
tal como podiam ser compreendidas<br />
a partir do litoral de<br />
Santa Catarina, onde se não liam<br />
jornais, mesmo se há referências às<br />
revistas da época, a Fon-Fon et a<br />
Careta, mas se ouvia a rádio que,<br />
como em todos os estados totalitários,<br />
foi um dos agentes mais eficazes<br />
da propaganda do aparelho<br />
político. Mas o romancista nos<br />
informa dos gostos musicais, visto<br />
a rádio emitir constantemente Ari<br />
Barroso, Almirante, Villalobos,<br />
Lamartine Babo. Confesso ter ficado<br />
algo surpreendido com a ausência<br />
de Pixinguinha que, enquadrado<br />
nos famosos concursos de<br />
música popular organizados pelo<br />
DIP, foi o introdutor dos ritmos do<br />
jazz, naturalmente importados dos<br />
Estados Unidos.<br />
A história de Marcelino Nanmbrá,<br />
cafuzo descendente de africanos e<br />
de índios, fica à margem da sociedade<br />
branca, se bem que tivesse<br />
frequentado a escola primária, onde<br />
não passou da terceira classe.<br />
Godofredo de Oliveira Neto procede<br />
ao inventário das práticas racistas<br />
da sociedade brasileira, na<br />
medida em que os urbanos, brancos<br />
ou considerando-se tais, denunciam<br />
a maneira como as povoações<br />
empestam, devido à presença,<br />
mesmo se reduzida, dos negros.<br />
Godofredo de Oliveira Neto<br />
Marcelino pertence à categoria<br />
menos repelida dos mestiços claros,<br />
o que o torna não só aceitável,<br />
mas sedutor. A governanta dos filhos<br />
do senador Nazareno, figura<br />
grada do aparelho político que funciona<br />
no Rio entre a Guanabara e<br />
o Catete, Eve, encontra no corpo<br />
do jovem pescador o próprio<br />
modelo do futuro herói brasileiro,<br />
que não será negro, mas antes fantasma<br />
que já vem do século XIX,<br />
pelo menos, moreninho.<br />
Marcelino será contudo vítima<br />
de um acidente de trabalho pois,<br />
tendo sido picado por um peixe,<br />
não procede a nenhuma desinfecção,<br />
confiando o tratamento a uma<br />
dessas virtuosas que tudo cura com<br />
chás e outras mèsinhas, o que não<br />
consegue travar a invasão da gangrena,<br />
que obriga os cirurgiões a<br />
amputar a mão esquerda do pescador.<br />
Mas é precisamente durante<br />
este período em que luta contra a<br />
infecção, que Marcelino é vampirizado<br />
pela “alemãzona”, embora Eve<br />
seja já uma brasileira descendente<br />
de uma família alemã. Se a filha do<br />
senador Nazareno sente a atracção<br />
“selvagem” do jovem pescador, não<br />
consegue dar o passo em frente que<br />
a levaria à iniciação sexual. Essa<br />
tarefa cabe a Eve, muito mais velha,<br />
que não se deixa enlear nem pela<br />
virgindade, há muito perdida, nem<br />
pelas considerações sociais, que<br />
consegue rejeitar.<br />
São de resto alguns dos diálogos<br />
opondo Sibila, a filha do senador,<br />
a Marcelino que servem para<br />
tornar mais clara a estrutura do<br />
racismo brasileiro, pois se<br />
Marcelino defende que os sentimentos<br />
dos homens são homogéneos,<br />
não havendo aí lugar para<br />
LATITUDES<br />
n° <strong>14</strong> - mai 2002<br />
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classes sociais, já a jovem Sabina<br />
está convencida de que não pode<br />
haver tal homogeneidade : os sentimentos<br />
variam de acordo com o<br />
estatuto social, o que vale dizer que<br />
também variam conforme as condições<br />
somáticas de cada um. Se bem<br />
que não seja um elemento muito<br />
posto em evidência, pode e deve<br />
dizer-se que o romance não renuncia<br />
nunca ao inventário e à denúncia<br />
das condições de funcionamento<br />
da sociedade brasileira, marcada<br />
não só pelas diferenças sociais, mas<br />
assentanto estas na existência de<br />
grelhas somáticas muito numerosas<br />
e, naturalmente, muito agressivas.<br />
Se encontramos já em Tião um dos<br />
homens que pretende recuperar as<br />
terras que os urbanos, europeus e<br />
brancos, retiraram aos índios, não<br />
há dúvida que o aguilhão que o<br />
empurra depende das condições<br />
históricas da organização da sociedade<br />
brasileira.<br />
No plano da brasileiridade, que<br />
recupera os caminhos literários já<br />
iniciados por Gregório de Matos, e<br />
prosseguidos por Gonçalves Dias<br />
ou por Guimarães Rosa, encontramos<br />
não só o autóctone, que<br />
conhece os meandros das várias<br />
naturezas, mas nelas assenta a<br />
consciência nacional. Se o curió<br />
canto-praia desempenha um papel<br />
fundamental, preso na sua taquara<br />
- e o indianismo não pode deixar<br />
de evocar, na história literária brasileira,<br />
o verde taquaral que emerge<br />
na poesia do carioca Gonçalves<br />
Crespo, que a história da literatura<br />
brasileira empurrou para os portugueses,<br />
onde figura como um dos<br />
melhores poetas parnasianos - tal<br />
como o sabiá de Gonçalves Dias<br />
dissera que o canto brasileiro não<br />
podia confundir-se com os<br />
rouxinóis da Menina e Moça do<br />
Bernardim Ribeiro. Como se a densidade<br />
canora - e sempre esperei<br />
aqui uma incisa que pudesse admitir<br />
os canários de Leodegário A. de<br />
Azevedo Filho - constituisse uma<br />
das formas mais particulares de<br />
afirmação da originalidade brasileira.<br />
O leitor que, mesmo atento aos<br />
particularismos brasileiros, não<br />
dispõe da intimidade com a natureza<br />
que é dada pelo nascimento,<br />
sentiu-se muitas vezes, neste<br />
romance, como Pero Vaz de<br />
Caminha face à densidade arbórea<br />
onde não conseguia identificar uma<br />
única planta. No caso do romance<br />
de Godofredo de Oliveira Neto os<br />
particularismos referem-se sobretudo<br />
à gente voante e cantante, assim<br />
como aos peixes. Quando<br />
Marcelino descreve os seios de Eve<br />
como sendo “duas barrigas de baiacu<br />
inchado” (p. <strong>24</strong>), o leitor retem<br />
a ousadia da metáfora, mas considera<br />
apenas a função do “inchado”,<br />
que autoriza a pensar em seios<br />
volumosos, que atraem de resto a<br />
mão e o corpo de Marcelino.<br />
O universal não pode explicarse<br />
sem passar pelo crivo do nacional,<br />
ou mesmo do regional : o eco<br />
provocado pelas escolhas políticas<br />
na Praia do Nego Forro implica a<br />
tomada de posição de cada um,<br />
mesmo do mais modesto, mesmo<br />
daquele que parece não dispor da<br />
menor forma de consciência política.<br />
Mesmo se a sua participação é<br />
provocada apenas pelo aumento<br />
brutal e pela rarificação dos produtos<br />
indispensáveis à organização<br />
do quotidiano, não há quem possa<br />
excluir-se das escolhas políticas. E,<br />
sendo assim, não há sociedade que<br />
possa furtar-se à maneira como<br />
constrói a sua própria história.<br />
Qualquer que seja a distância separando<br />
a Praia do Nego Forro do<br />
Catete, as decisões políticas só<br />
podem alcançar o seu máximo efeito<br />
quando interiorizadas pelos<br />
humílimos produtores do litoral<br />
santa-catarinense.<br />
O leitor não-brasileiro não é<br />
repelido pelos termos regionais,<br />
mas não pode evitar deitar mão aos<br />
dicionários para devolver o pleno<br />
sentido à estrutura do romance.<br />
Não me fica mal confessar que mais<br />
de uma vez me lancei nas páginas<br />
do Aurélio para encontrar a definição<br />
exacta, que me permitia reforçar<br />
o sentido do texto. O romance<br />
iniciático, que envolve a metamorfose<br />
de Marcelino Nanmbrá - que<br />
se devia grafar Nan-mbrá, separado,<br />
como manda a lógica terminológica<br />
índia - que passa de adolescente<br />
a adulto - por obra e graças<br />
da governanta Eve - tal como perde<br />
uma parte do corpo, a mão esquerda,<br />
em consequência do trabalho e<br />
das condições de assistência. Mas<br />
que, históricamente, assinala um<br />
período em que a penicilina, que<br />
todavia já existia, ainda não entrara<br />
nos hábitos mais correntes, devido<br />
à segunda guerra mundial. Mais<br />
alguns, poucos, anos e a infecção<br />
de Marcelino teria sido debelada<br />
graças a doses maciças de sulfamidas.<br />
Se o romance que comentei<br />
nesta mesma revista possuia um<br />
carácter essencialmente urbano e<br />
cosmopolita, já as aventuras de<br />
Marcelino recuperam os valores da<br />
região, integrando-se noutro aspecto<br />
da ficção brasileira que, sobretudo<br />
na esteira do neo-realismo, se<br />
empenhou em proceder ao inventário<br />
não só das articulações sociais,<br />
mas sobretudo da língua com que<br />
o Brasil se define e se inventa. Há,<br />
neste romance, o recurso aos arquivos,<br />
assim como a utilização das<br />
tradições orais santa-catarinenses,<br />
sublinhando a importância da escuta<br />
na restruturação do mundo. Se<br />
em algumas passagens se sente o<br />
recurso aos arquivos (por exemplo,<br />
p. <strong>17</strong>, evocação dos anúncios que<br />
seria possível ler nas paredes do<br />
Rio de Janeiro em 1942 :<br />
“Pharmácia Azambuja, Leite de<br />
Colónia, Dentifrício Odol, Armazens<br />
Triumpho”), é quase sempre a oralidade<br />
que fornece o material mais<br />
simbolicamente significativo.<br />
Se o romance mobiliza de<br />
maneira constante a psicologia<br />
histórica cara a Ignace Meyerson e<br />
a Jean-Pierre Vernant, não pode<br />
separar-se do ingrediente policial<br />
80 LATITUDES n° <strong>14</strong> - mai 2002
que a literatura norte-americana<br />
impôs ao mundo inteiro. Eve faz<br />
parte de uma conspiração que<br />
mobiliza figuras mal definidas que<br />
procuram atingir o próprio aparelho<br />
de Estado, situação denunciada<br />
por Marcelino que permite a intervenção<br />
eficaz das forças secretas.<br />
Sendo que esta operação policial<br />
fere mortalmente Eve, que como<br />
não podia deixar de ser, dado o seu<br />
nome, fora a iniciadora sexual,<br />
sendo ao mesmo tempo, sempre<br />
fiel ao modelo bíblico, o agente da<br />
perturbação. Do ponto de vista<br />
estritamente simbólico, a operação<br />
revela não só a necessidade, mas<br />
sobretudo a eficácia das forças do<br />
ordem, mesmo quando agem secretamente.<br />
Num plano complementar podemos<br />
simplesmente verificar que o<br />
Brasil aparece como uma nação<br />
consciente da sua própria estrutura,<br />
e por isso capaz de resistir às<br />
operações levadas a cabo pelas forças<br />
que procuram comprometer ou<br />
tornar inviável a democracia. O<br />
romance recupera neste plano os<br />
direitos que cabem à história, permitindo<br />
a utilização da micro-história,<br />
a história dos indivíduos e das<br />
pequenas instituições, para dar<br />
conta da maneira como o país é<br />
engendrado pela violência : os<br />
escravos forros que, nos anos da<br />
abolição da escravatura, tiveram as<br />
rótulas esmagadas pelos proprietários,<br />
e que passaram a vida arrastando-se,<br />
fornecem a prova última<br />
da violência repressiva das sociedades<br />
racistas.<br />
Paradoxalmente, Eve não só<br />
rejeita os preconceitos, mas manifesta<br />
um interesse profundo pelo<br />
cafuzo, no qual se misturam os<br />
sangues e as genealogias : o cafuzo<br />
é, do ponto de vista da alemãzona,<br />
o próprio futuro do Brasil, o<br />
homem capaz de superar as oposições.<br />
Elogio da mestiçagem, o que<br />
faz do romance de Godofredo de<br />
Oliveira Neto uma resposta, mesmo<br />
se indirecta, à condenação do mestiço<br />
a que procedera Euclides da<br />
Cunha, a isso “cientificamente”<br />
autorizado por Nina Rodrigues, em<br />
Os Sertões. Como se a literatura<br />
brasileira não pudesse furtar-se à<br />
violência dos problemas somáticos,<br />
ou simplesmente raciais que a<br />
sociedade procura recusar, aceitando<br />
pagar o elevado preço do<br />
recalque, num domínio que exige<br />
análises profundas e opções claras.<br />
Há já vinte anos que acompanho<br />
a produção romanesca de<br />
Godofredo de Oliveira Neto, pois<br />
em 1981 analisei no Jornal do<br />
Brasil, a sua primeira ficção publicada,<br />
A Faina de Jurema, quando<br />
ainda morávamos todos na Rua<br />
Bartolomeu Portela, quase colada<br />
ao cinema Veneza. Prossigo agora,<br />
salientando a ductilidade do criador<br />
e a sedução de uma escrita que<br />
não repele nenhum dos materiais<br />
que a voz, o canto, o corpo,<br />
podem introduzir no espaço forçosamente<br />
virtual da escrita. Só<br />
pode, por isso, convidar-se o leitor,<br />
sobretudo o português, a ler<br />
neste romance a imensidade dos<br />
particularismos culturais do Brasil<br />
e das praias de Santa Catarina.<br />
Preparando-me para ter o prazer<br />
de ler - esperemos que muito em<br />
breve - o próximo e inevitável<br />
romance de Godofredo de Oliveira<br />
Neto ●<br />
* Marcelino Nanmbrá, o Manumisso,<br />
Rio de Janeiro, Editora Nova<br />
Fronteira, 2000, 211 p. O capista, que<br />
não leu o romance, mobilizou a<br />
calandra de um Nash, marca que o<br />
texto nunca refere!<br />
Prix National du Conte Brésilien 2001<br />
pour Aleilton Fonseca<br />
L’<br />
Académie des Lettres de Bahia<br />
a décerné, en février dernier,<br />
le Prix National Herberto Salles -<br />
Contes 2001 à notre ami Aleilton<br />
Fonseca, co-éditeur de la revue<br />
Iararana, avec laquelle nous entretenons<br />
des échanges réguliers et<br />
enrichissants. Professeur de littérature<br />
brésilienne à l’Université de<br />
Feira de Santana (Etat de Bahia),<br />
Aleilton Fonseca, 42 ans, est déjà<br />
l’auteur de six livres, dont celui que<br />
nous présentions dans Latitudes<br />
n°12 de décembre 2001, Jaú dos<br />
Bois e outros contos. Juste avant ce<br />
prix il venait de publier O desterro<br />
dos mortos (éditions Relume-<br />
Dumará), autre livre de contes, dans<br />
lesquels il fixe des scènes<br />
et des types humains de<br />
l’intérieur rural ou de la<br />
ville, avec une grande sensibilité.<br />
Le livre présenté<br />
par Aleilton Fonseca pour<br />
participer au Prix Herberto<br />
Salles s’intitule O Canto de<br />
Alvorada. Il a été sélectionné<br />
parmi 297 autres<br />
concurrents originaires de<br />
plusieurs Etats du Brésil,<br />
la plupart étant du Minas<br />
Gerais et de São Paulo et<br />
il sera bientôt publié ●<br />
D.S.<br />
Aleilton Fonseca<br />
LATITUDES<br />
n° <strong>14</strong> - mai 2002<br />
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