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omance esteja nitidamente redigido<br />
para ser compreendido apenas<br />
pelos brasileiros. Quando<br />
Godofredo de Oliveira Neto, numa<br />
das operações em que procura pôr<br />
em evidência o racismo brasileiro,<br />
se refere ao Fluminense, o clube<br />
pó de arroz, é evidente que fornece<br />
uma informação que dificilmente<br />
pode, sem extensa nota de rodapé,<br />
sem compreendida em Lisboa<br />
ou em Paris. O sentido é em primeiro<br />
lugar carioca e só num<br />
segundo grau pode ser alargado ao<br />
Brasil : durante anos a fio o clube<br />
de futebol Fluminense recusou integrar<br />
homens de cor nas suas equipas<br />
e, quando se viu obrigado a<br />
fazê-lo, obrigou esses jogadores a<br />
empoar-se abundamente com pó<br />
de arroz para negar a evidência da<br />
cor. Ainda hoje, no Maracanã,<br />
sobretudo nos choques<br />
Fluminense-Flamengo, os adeptos<br />
do Flamengo lançam sobre os<br />
adeptos do Fluminense basta farinha<br />
de mandioca, o substituto barato<br />
do pó de arroz.<br />
É arrastado pela necessidade de<br />
reforçar a brasileiridade do texto<br />
que encontramos em várias passagens<br />
a referência à extradição de<br />
Olga Benário. Godofredo de<br />
Oliveira Neto mobiliza este incidente<br />
da vida política brasileira,<br />
para denunciar a crueldade dos fascistas<br />
mas sobretudo dos nazistas<br />
brasileiros, que se empenharam em<br />
extraditar para a Alemanha esta<br />
militante do Partido Comunista<br />
Brasileiro, casada com o “cavaleiro<br />
da esperança”, Luís Carlos Prestes.<br />
Também neste caso a utilização de<br />
um acontecimento hipercarregado<br />
de simbolismo só pode funcionar<br />
quando o leitor possui uma excelente<br />
informação respeitante à<br />
história contemporânea do Brasil.<br />
Acrescente-se que o romance utiliza<br />
aquilo a que chamarei uma<br />
construção “impressionista”, que<br />
lhe permite encastrar na narrativa<br />
uma grande quantidade de informações<br />
que definem a condição<br />
cultural e física da sociedade brasileira<br />
nos anos indo de 1937 a 1942.<br />
Assim, por exemplo, o romance<br />
faz referências discretas a duas das<br />
personalidades mais controversas<br />
do getulismo : Filinto Müller, encarregado<br />
das operações repressivas<br />
policiais (pena que Godofredo de<br />
Oliveira Neto não tenha encontrado<br />
lugar para referir a morte singular<br />
deste polícia, asfixiado na cabine<br />
de um avião da Varig que pegara<br />
fogo em pleno voo, tendo chegado<br />
já cadáver ao aeroporto parisiense<br />
de Orly), assim como Lourival<br />
Fontes, o criador do famoso DIP<br />
(Departamento de Informação e<br />
Propaganda), que teve como colaboradores<br />
homens como Graciliano<br />
Ramos, Oswaldo de Andrade, Mário<br />
de Andrade e Manuel Bandeira.<br />
Não sem alguma crueldade, o<br />
romancista salienta os compromissos<br />
que macularam as escolhas e<br />
as práticas dos escritores brasileiros,<br />
sendo certamente Graciliano o<br />
mais singular, pois saiu das prisões<br />
políticas do getulismo para aceitar<br />
as tarefas que lhe foram destinadas<br />
no DIP.<br />
Pode dizer-se que o romance<br />
procura fornecer uma síntese das<br />
escolhas políticas e culturais brasileiras,<br />
tal como podiam ser compreendidas<br />
a partir do litoral de<br />
Santa Catarina, onde se não liam<br />
jornais, mesmo se há referências às<br />
revistas da época, a Fon-Fon et a<br />
Careta, mas se ouvia a rádio que,<br />
como em todos os estados totalitários,<br />
foi um dos agentes mais eficazes<br />
da propaganda do aparelho<br />
político. Mas o romancista nos<br />
informa dos gostos musicais, visto<br />
a rádio emitir constantemente Ari<br />
Barroso, Almirante, Villalobos,<br />
Lamartine Babo. Confesso ter ficado<br />
algo surpreendido com a ausência<br />
de Pixinguinha que, enquadrado<br />
nos famosos concursos de<br />
música popular organizados pelo<br />
DIP, foi o introdutor dos ritmos do<br />
jazz, naturalmente importados dos<br />
Estados Unidos.<br />
A história de Marcelino Nanmbrá,<br />
cafuzo descendente de africanos e<br />
de índios, fica à margem da sociedade<br />
branca, se bem que tivesse<br />
frequentado a escola primária, onde<br />
não passou da terceira classe.<br />
Godofredo de Oliveira Neto procede<br />
ao inventário das práticas racistas<br />
da sociedade brasileira, na<br />
medida em que os urbanos, brancos<br />
ou considerando-se tais, denunciam<br />
a maneira como as povoações<br />
empestam, devido à presença,<br />
mesmo se reduzida, dos negros.<br />
Godofredo de Oliveira Neto<br />
Marcelino pertence à categoria<br />
menos repelida dos mestiços claros,<br />
o que o torna não só aceitável,<br />
mas sedutor. A governanta dos filhos<br />
do senador Nazareno, figura<br />
grada do aparelho político que funciona<br />
no Rio entre a Guanabara e<br />
o Catete, Eve, encontra no corpo<br />
do jovem pescador o próprio<br />
modelo do futuro herói brasileiro,<br />
que não será negro, mas antes fantasma<br />
que já vem do século XIX,<br />
pelo menos, moreninho.<br />
Marcelino será contudo vítima<br />
de um acidente de trabalho pois,<br />
tendo sido picado por um peixe,<br />
não procede a nenhuma desinfecção,<br />
confiando o tratamento a uma<br />
dessas virtuosas que tudo cura com<br />
chás e outras mèsinhas, o que não<br />
consegue travar a invasão da gangrena,<br />
que obriga os cirurgiões a<br />
amputar a mão esquerda do pescador.<br />
Mas é precisamente durante<br />
este período em que luta contra a<br />
infecção, que Marcelino é vampirizado<br />
pela “alemãzona”, embora Eve<br />
seja já uma brasileira descendente<br />
de uma família alemã. Se a filha do<br />
senador Nazareno sente a atracção<br />
“selvagem” do jovem pescador, não<br />
consegue dar o passo em frente que<br />
a levaria à iniciação sexual. Essa<br />
tarefa cabe a Eve, muito mais velha,<br />
que não se deixa enlear nem pela<br />
virgindade, há muito perdida, nem<br />
pelas considerações sociais, que<br />
consegue rejeitar.<br />
São de resto alguns dos diálogos<br />
opondo Sibila, a filha do senador,<br />
a Marcelino que servem para<br />
tornar mais clara a estrutura do<br />
racismo brasileiro, pois se<br />
Marcelino defende que os sentimentos<br />
dos homens são homogéneos,<br />
não havendo aí lugar para<br />
LATITUDES<br />
n° <strong>14</strong> - mai 2002<br />
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