11.09.2018 Views

Retalhos

“Levantou-se e olhou ao redor. Sentiu os olhos mareados. Sempre se perguntara como seria a sensação de saber que se encontrava no ocaso da vida. Agora sabia. Caminhou lentamente pela ampla varanda. Olhou para o sempre bem cuidado jardim. Chovia torrencialmente e o velho sentiu frio. Lembrou da noite em que visitou pela primeira vez a pousada. Olhou novamente ao redor e constatou que, realmente estava sozinho. Voltou a sentar. Passou as mãos nos olhos. -É – pensou – Acho que vou chorar novamente. E enxugou uma lágrima marota que insistia em escapar de seus olhos.” Retalhos mostra como uma velha pensão no final de uma estrada deserta serve de pano de fundo para histórias de pessoas que, por um motivo ou por outro, acabam passando por ali. Mas, o que tem de especial na velha Pousada Encruzilhada que faz com que tantas histórias se passem nela? Ou essas histórias têm alguma ligação entre si? Acompanhe o drama sentimental de homens e mulheres que, realizados ou não, tem em comum a busca pelo amor e pela felicidade por mais inalcançáveis que eles pareçam estar.

“Levantou-se e olhou ao redor. Sentiu os olhos mareados.
Sempre se perguntara como seria a sensação de saber que se encontrava no ocaso da vida. Agora sabia.
Caminhou lentamente pela ampla varanda. Olhou para o sempre bem cuidado jardim.
Chovia torrencialmente e o velho sentiu frio.
Lembrou da noite em que visitou pela primeira vez a pousada.
Olhou novamente ao redor e constatou que, realmente estava sozinho.
Voltou a sentar. Passou as mãos nos olhos.
-É – pensou – Acho que vou chorar novamente.
E enxugou uma lágrima marota que insistia em escapar de seus olhos.”

Retalhos mostra como uma velha pensão no final de uma estrada deserta serve de pano de fundo para histórias de pessoas que, por um motivo ou por outro, acabam passando por ali.
Mas, o que tem de especial na velha Pousada Encruzilhada que faz com que tantas histórias se passem nela?
Ou essas histórias têm alguma ligação entre si?
Acompanhe o drama sentimental de homens e mulheres que, realizados ou não, tem em comum a busca pelo amor e pela felicidade por mais inalcançáveis que eles pareçam estar.

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

RETALHOS<br />

<strong>Retalhos</strong><br />

1


Jorge Filho<br />

Dedicado a minha mãe, Elenita Alves Santos, a pessoa que mais<br />

contribuiu para que eu tivesse uma boa educação.<br />

2


RETALHOS<br />

Estava na cara que ia chover. Qualquer idiota teria percebido<br />

isso. Mas ele era tão mais idiota que os outros que, mesmo estando<br />

tão evidente, teimara em sair numa viagem de carro assim<br />

mesmo.<br />

Esses eram os pensamentos de Márcia enquanto ela e seu marido<br />

Marlon corriam com as pesadas bagagens rumo àquela a-<br />

bençoada pensão que, milagrosamente, encontraram após a-<br />

quela ingrata caminhada do carro pifado até ali.<br />

Felizmente, pensava ela, não precisariam dormir no carro.<br />

Sentia arrepios só de pensar numa noite inteira num desconfortável<br />

banco de carro exposta a tudo.<br />

Até a um hipotético assalto, já que a estrada era completamente<br />

deserta.<br />

-Também – ponderou – Quem sairia de casa debaixo de um<br />

dilúvio desses?<br />

Olhou para Marlon.<br />

Sentiu-se um pouco triste.<br />

A verdade era que qualquer coisa que ele fizesse a deixaria irritada.<br />

Há muito tempo era assim.<br />

Desde que ela percebeu que o amor que sentia por ele havia<br />

acabado.<br />

Seu casamento se arrastou por um longo período apenas para<br />

manter as aparências.<br />

Até que chegou a um ponto em que, o simples som da voz<br />

dele causava-lhe asco.<br />

Então resolveram romper de vez. Em seu intimo Márcia sabia<br />

que ele ainda a amava, mas infelizmente, não havia mais nenhum<br />

sentimento dela em relação a ele.<br />

Tal qual não foi sua surpresa e alivio quando ele a convidou<br />

para viajar a dois dias atrás.<br />

Surpresa por que eles mal se falavam dentro de casa, o que<br />

tornava aquele convite um motivo claro para sua recusa e,<br />

consequentemente, para mais uma discussão.<br />

Alivio quando ele explicou-lhe o motivo da viagem.<br />

3


Jorge Filho<br />

-Olha Márcia – começou ele – Eu não tenho mais nada com<br />

que me apegar para manter nosso casamento. Ainda te amo<br />

como no primeiro dia, mas sei que seus sentimentos são<br />

outros.<br />

-Então pra que essa viagem?<br />

-Quando você veio morar comigo, fui até a casa de seus pais e<br />

conversei com eles sobre sua saída. Agora acho que, tenho a<br />

obrigação moral de conversar com eles sobre nosso término.<br />

Eu irei até lá fazer isso com ou sem você.<br />

É claro que ela concordou na hora! Faria qualquer coisa para<br />

livrar-se daquele suplicio de morar com um homem que<br />

aprendera a desprezar.<br />

Marcaram então a viagem para aquele sábado.<br />

Porém, por maior que fosse a vontade de Márcia de livrar-se<br />

de seu marido, não podia ignorar o fato de que, as condições<br />

de tempo eram impróprias para viajar.<br />

O motor do velho carro de Marlon não iria suportar. E ela<br />

tentou avisá-lo disso. Porém, de repente, ele parecia mais<br />

ansioso que ela para conversar com seus pais.<br />

Por isso tinham saído de casa debaixo de um temporal<br />

daqueles.<br />

O carro é claro não aguentou e quebrou no meio da estrada.<br />

No pior lugar possível da estrada. No meio do nada.<br />

Após mais uma briga, resolveram que o mais sensato era<br />

saírem do carro e procurar ajuda.<br />

Mas de si para si mesma, Márcia era obrigada a admitir que, o<br />

que a incomodava de verdade era aquela súbita ânsia de<br />

Marlon de livrar-se dela.<br />

Claro que era exatamente o que ela pedira a Deus nos últimos<br />

anos, mas daquela forma, incomodava.<br />

Não deveria, mas incomodava.<br />

Andaram por aproximadamente meia hora.<br />

Foram provavelmente os trinta minutos mais longos da vida<br />

de Márcia.<br />

4


RETALHOS<br />

Além do profundo e pesado silêncio e do tempo chuvoso<br />

deixar a caminhada ainda mais melancólica, o pensamento de<br />

Marlon estar ansioso para romper de vez com ela a<br />

incomodava de uma forma que ela não entendia nem gostava.<br />

Foi quando, de repente, ele quebrou o silêncio.<br />

-Veja! Estamos salvos pelo menos por essa noite.<br />

Ela o olhou e notou uma alegria e empolgação nele que há<br />

muito tempo não via.<br />

Sentiu um pouco de ternura.<br />

-Quem sabe, não conseguimos, ao menos, sermos amigos? –<br />

pensou.<br />

Mas, apesar disso, ainda estava com raiva dele.<br />

-Que seja – respondeu-lhe secamente.<br />

Correram então até a pequena pousada.<br />

Parecia que enfim o pesadelo estava acabando.<br />

Aquela viagem já lhe era por si só um martírio, e naquelas<br />

condições então...<br />

Marlon estava cansado da vida que vivia.<br />

Tentara fazer tudo do jeito correto, mas parece que, na vida só<br />

se dá bem quem anda errado.<br />

Conhecia homens hipócritas, egoístas, enganadores e<br />

canalhas.<br />

Tentava lembrar se um deles, qualquer um, passava pelas<br />

adversidades que ele passara.<br />

Não. Com certeza não.<br />

Agora, além de ter perdido seu pequeno negócio, seu filho na<br />

barriga de sua esposa e seus pais num acidente de carro,<br />

Marlon perdia também Márcia.<br />

Sofrera bastante com isso.<br />

Sentia-se traído pela companheira.<br />

Na bonança ela era toda carinho e atenção. Agora, quando ele<br />

mais precisava dela, era abandonado.<br />

5


Jorge Filho<br />

Numa noite, no meio de um porre homérico, ele decidiu que<br />

nada nem ninguém valiam à pena tanto sofrimento.<br />

Afinal, quanto tempo levaria para que Márcia se apaixonasse<br />

por outro cara?<br />

-Se mesmo sem gostar mais de mim, ela é incapaz de pedir a<br />

separação, seria ela capaz de afastar-se antes de consumar um<br />

ato amoroso fora do casamento? – ponderava.<br />

Não seria um maior sofrimento para ele?<br />

Como dizia aquela música: “sofro, mas vou te libertar...”<br />

Mas, talvez fosse um defeito, ou quem sabe uma virtude,<br />

Marlon gostava de fazer tudo da forma correta.<br />

A “devolveria” para seus pais pessoalmente. Da mesma forma<br />

que fora pessoalmente comunicá-los do casamento anos atrás.<br />

-Que monte de bobagem – respondeu ela.<br />

Podia até ser, mas para Marlon, era questão de honra.<br />

-Sou um homem a moda antiga – respondeu-lhe.<br />

Já sabia que a reação de Márcia seria essa. Da mesma forma<br />

que, no começo, ele era um gênio para ela, agora qualquer<br />

coisa que dissesse era um disparate.<br />

-Eu irei até lá fazer isso com ou sem você.<br />

Meio que a contragosto, ela resolveu aceitar a ideia.<br />

Intimamente, Marlon cultivava a esperança de um possível<br />

reatamento durante a viagem.<br />

Reatamento este que parecia mais distante e improvável à<br />

medida que a viagem prosseguia.<br />

Primeiro ela reclamou de seu carro.<br />

Acusou-lhe de desleixo com o veiculo quando, na verdade, o<br />

carro era velho mesmo.<br />

Se ele já encontrava dificuldades para manter aquele, como<br />

comprar um mais novo?<br />

Depois reclamou das condições do tempo.<br />

-Até parece que você é meteorologista - resmungou ele.<br />

Mas não é que ela tinha razão nos dois casos?<br />

Desabou um temporal e o carro não aguentou. Pifou no pior<br />

lugar possível.<br />

6


RETALHOS<br />

Deserto e desabitado, aquele trecho da rodovia era, com<br />

certeza, o pior lugar para que aquilo acontecesse.<br />

E era ainda pior ter acontecido num momento em que Márcia<br />

estava coberta de razão.<br />

Sabia que, cedo ou tarde, ela lhe jogaria isso na cara. E foi o<br />

que aconteceu ainda dentro do carro. Os dois discutiram e<br />

resolveram que ficar brigando não resolveria o problema.<br />

Andaram em torno de meia hora em completo e<br />

constrangedor silêncio.<br />

Marlon pensava em como tudo podia ter terminado de forma<br />

tão melancólica.<br />

Como o casal perfeito havia virado dois estranhos morando<br />

sob o mesmo teto?<br />

Seus devaneios só foram interrompidos quando avistou uma<br />

pequena pousada no fim da estrada.<br />

O velho sentou-se calmamente na varanda da pequena<br />

pousada.<br />

A idade o havia ensinado a ser paciente.<br />

Afinal para que, a essa altura da vida, teria pressa? Já havia<br />

tido todo o tempo que uma vida podia proporcionar e agora,<br />

restava-lhe apenas esperar calmamente a morte chegar.<br />

-A morte chegar ou esse dilúvio acabar. O que acontecer<br />

primeiro – pensou.<br />

Não podia reclamar muito. Tivera uma vida intensa. Tanto<br />

nas coisas boas quanto nas ruins.<br />

A única coisa que lhe doía era sua solidão.<br />

E, com ela, a tristeza.<br />

Havia casado apenas uma vez e, divorciado alguns anos mais<br />

tarde. Após esse infeliz desenlace, namorara muito, mas<br />

nunca mais conseguira ficar muito tempo com uma mulher.<br />

A consequência era óbvia: chegaria à velhice completamente<br />

só.<br />

7


Jorge Filho<br />

Tentara evitar que isso acontecesse, mas não conseguira.<br />

Acabara sozinho.<br />

Mas, não era homem de ficar se lamentando.<br />

Realizara várias coisas com as quais sonhara.<br />

Dentre elas, havia comprado aquela pensão no meio do nada<br />

que tantas recordações lhe traziam.<br />

Não a comprara pelo dinheiro. Era tão distante de tudo que,<br />

raramente recebia hóspedes.<br />

Era apenas para que aquele lugar tão importante para sua<br />

sofrida vida fosse preservado.<br />

Levantou-se e olhou ao redor.<br />

Sentiu os olhos mareados.<br />

Sempre se perguntara como seria a sensação de saber que se<br />

encontrava no ocaso da vida.<br />

Agora sabia.<br />

Caminhou lentamente pela ampla varanda.<br />

Olhou para o sempre bem cuidado jardim.<br />

Chovia torrencialmente e o velho sentiu frio.<br />

Lembrou da noite em que visitou pela primeira vez a<br />

pousada.<br />

Olhou novamente ao redor e constatou que, realmente estava<br />

sozinho. Voltou a sentar.<br />

Passou as mãos nos olhos.<br />

-É – pensou – Acho que vou chorar novamente.<br />

E enxugou uma lágrima marota que insistia em escapar de<br />

seus olhos.<br />

Mais uma vez aquela maldita pousada! E mais uma vez<br />

debaixo de um maldito temporal!<br />

Ele não suportava aquele lugar, mas inexplicavelmente,<br />

acabava sempre parando por ali.<br />

Por um motivo ou por outro, as circunstâncias o colocavam de<br />

novo dentro daquela casa.<br />

8


RETALHOS<br />

E sempre debaixo de um temporal.<br />

-Um dia, acabo comprando essa porcaria só pra ter o prazer de<br />

demoli-la.<br />

Riu de si mesmo.<br />

Quem ele queria enganar?<br />

Nem a pousada era a razão de seus problemas, nem tinha<br />

dinheiro para comprar qualquer coisa que fosse.<br />

Era um empresário completamente falido.<br />

Vinha para essa pousada sempre que passava por ali por que<br />

era a que cobrava a diária mais barata.<br />

Por isso aquele lugar sempre lhe traria recordações.<br />

Em verdade, já viera hospedar-se ali quando mais jovem. Em<br />

uma época melhor onde não tinha tantas preocupações<br />

financeiras.<br />

Foi ali também que seu casamento acabou.<br />

Aquele era realmente um lugar especial.<br />

Mas, decididamente, não lhe trazia boas recordações.<br />

Agora, mais um momento para recordar-se de forma negativa.<br />

Estava quebrado, endividado e, estava ali apenas por dois<br />

motivos: tinha que fugir de seus credores e não tinha dinheiro<br />

para se hospedar em um lugar mais caro.<br />

Total e completa falta de opções.<br />

Estava ensopado.<br />

-Por que será que chove tanto por essas bandas?<br />

Chegou à entrada da pousada e parou para admirar a extensa<br />

varanda.<br />

-Um desperdício!<br />

Olhou a pintura gasta e a mal conservada fachada da<br />

pousada.<br />

Até o nome era esquisito: Pousada Encruzilhada.<br />

-Nome estúpido! Isso aqui é um fim de mundo, uma estrada<br />

deserta e sem saída, mas não há nenhuma encruzilhada por<br />

perto.<br />

Adentrou a varanda e colocou as malas no chão.<br />

Suspirou.<br />

9


Jorge Filho<br />

Gostando ou não, teria que passar um bom tempo naquele<br />

lugar.<br />

-Um dia, ainda compro esse lugar. Pra que, eu não sei. Mas<br />

ainda compro.<br />

Sorriu pra si mesmo novamente e entrou na pousada.<br />

Chuva. Muita chuva.<br />

E o único lugar visível para passar a chuva era aquela velha<br />

pousada no fim da estrada.<br />

-Lugarzinho mequetrefe!<br />

Porém, aquele com certeza não seria o pior lugar do mundo<br />

para dormir. Já estivera em pocilgas piores.<br />

Sua profissão fazia com que ela se envolvesse com todo tipo<br />

de homem em todo tipo de lugar.<br />

Era uma prostituta. Mas, de forma alguma uma prostituta<br />

convencional.<br />

Andava de cidade em cidade. Seu objetivo era conhecer o<br />

mundo.<br />

Invariavelmente, quando não conseguia nenhum tipo de<br />

trabalho temporário, apelava para a prostituição até conseguir<br />

dinheiro suficiente para viajar até uma próxima cidade.<br />

Naquele momento, tinha dinheiro o bastante para hospedar-se<br />

em um lugar melhor, mas toda aquela chuva atrapalhou seus<br />

planos.<br />

Pegara carona na última cidade que estivera com um jovem<br />

bem apessoado com o objetivo de chegar até a próxima cidade<br />

grande.<br />

Porém, o rapaz entendeu errado e quis algo mais.<br />

Ela realmente não era uma prostituta comum.<br />

E ele percebeu isso quando sentiu o peso da mão dela em seu<br />

rosto.<br />

10


RETALHOS<br />

O resultado não foi positivo para ela: acabou sendo obrigada a<br />

descer do carro naquela estrada no encontro do nada com<br />

lugar nenhum.<br />

E pra terminar de completar, desabara o maior dilúvio. Agora<br />

estava sozinha com suas malas naquele lugar deserto.<br />

Apesar da falta de visibilidade causada pela chuva torrencial,<br />

dava pra ver ao longe a pequena pousada.<br />

Difícil seria chegar com toda aquela bagagem até lá. Deixar ali<br />

mesmo estava fora de cogitação.<br />

Primeiro pelo estrago que a chuva causaria. Depois, por mais<br />

que chovesse e por maior que fosse a solidão daquele lugar,<br />

ladrões sempre poderiam aparecer.<br />

Esse pensamento causou-lhe um calafrio.<br />

Pior seria se, aquela construção que ela achava ser uma<br />

pensão, estivesse abandonada. Pra onde iria?<br />

Esse pensamento desesperador causou-lhe um súbito<br />

princípio de pânico.<br />

Que só fez aumentar quando ela olhou pra trás e viu ao longe,<br />

um homem caminhando em sua direção.<br />

Que fazer? Correr era uma opção. Mas, perderia toda a<br />

bagagem que trazia.<br />

O homem vinha em sua direção em passos apressados.<br />

Amaldiçoava em silêncio o momento em que pegara aquela<br />

carona.<br />

Mas, por outro lado, a vida lhe ensinara como se defender.<br />

Temia, mas estava preparada para o que pudesse vir a<br />

acontecer.<br />

O homem se aproximou e parou próximo a ela.<br />

Vida de andarilho é maravilhosa!<br />

Andar de lugar em lugar sem muitas preocupações. Era só<br />

descolar um trabalho temporário pra pagar alimentação e<br />

hospedagem enquanto estivesse na cidade e pronto!<br />

Conhecia novos lugares, novas pessoas e novas culturas.<br />

11


Jorge Filho<br />

Sentia-se livre. Livre como nenhum outro ser humano seria<br />

capaz de ser.<br />

Sentia-se, na verdade, como um colecionador.<br />

Colecionava rápidas amizades, breves romances e inúmeras<br />

grandes histórias pra contar.<br />

Tinha consciência que, um dia, aquela vida maravilhosa ia<br />

acabar.<br />

Por isso mesmo espremia ao máximo tudo que ela lhe<br />

proporcionava.<br />

Não havia naquele estilo de vida lugar para tristeza, solidão<br />

ou medo.<br />

Tudo era novo e maravilhoso.<br />

- Com certeza, sou um afortunado.<br />

Porém, às vezes, suas caminhadas o levavam a lugares<br />

inusitados.<br />

Já estava caminhando a um bom tempo numa estrada deserta<br />

e não vira sinal nem de pessoas, nem de lugares.<br />

Estava anoitecendo e chovia muito.<br />

Era imperativo encontrar um lugar para passar a noite.<br />

O problema era que aquela estrada não oferecia opções.<br />

Era uma reta interminável com muito mato de um lado e um<br />

barranco sem fim do outro.<br />

Era andar em linha reta ou voltar.<br />

Voltar estava fora de cogitação, pois ele sabia que não daria<br />

tempo de chegar até a última cidade em que esteve antes de<br />

anoitecer.<br />

Na verdade a forte chuva já escurecia aquele final de dia de tal<br />

forma que comprometia a visibilidade.<br />

Começava a ficar preocupado com seu próprio bem-estar<br />

durante aquela noite.<br />

-Não acredito! Eu sou mesmo um desgraçado de sorte!<br />

Tanta alegria era causada pela mais inusitada visão possível:<br />

uma pequena construção erguia-se ao longe e, para seu<br />

deleite, no meio do caminho encontrava-se uma mulher de<br />

belas curvas nitidamente perdida.<br />

12


RETALHOS<br />

Sua euforia era tanta que passou a caminhar mais depressa.<br />

Estava feliz. Encontraria abrigo e, quem sabe, companhia para<br />

passar a noite.<br />

Ofereceria seus braços fortes para ajudá-la com as malas e<br />

teria um excelente motivo para puxar conversa.<br />

Agora até a chuva parecia-lhe agradável.<br />

Quando se aproximou da moça ficou tão maravilhado com<br />

sua beleza que parou estupefato.<br />

Em questão de segundos, o homem habituado a encarar com<br />

naturalidade todas as novidades que a vida lhe apresentava,<br />

encontrava-se experimentando sensações que o deixavam<br />

completamente desconcertado.<br />

Sentiu o coração acelerar e a pele formigar. De repente, estava<br />

com sede.<br />

Não sentia mais frio e o resto do mundo havia desaparecido.<br />

Até pensar era difícil.<br />

Só conseguia admirar a estonteante beleza que se encontrava a<br />

sua frente.<br />

Chegou então à óbvia constatação:<br />

-Meu Deus! Acho que estou apaixonado!<br />

Nunca pensou que voltaria àquele lugar.<br />

Aquela velha pensão lembrava-lhe uma música.<br />

Era inevitável chegar ali e lembrar-se da canção.<br />

-Era uma vez – cantarolou – Um lugarzinho no meio do nada,<br />

com sabor de chocolate e cheiro de terra molhada...<br />

Lugar doce distante de tudo.<br />

Literalmente um lugar onde o vento faz a curva.<br />

Comercialmente falando, um desastre.<br />

Não havia nada nas redondezas que atraísse visitantes ou<br />

turistas.<br />

Apenas pessoas perdidas e andarilhos se aventuravam por ali.<br />

13


Jorge Filho<br />

E somente essas pessoas se hospedavam na velha<br />

“Encruzilhada”.<br />

Por isso, todos acharam uma loucura quando ele a comprou.<br />

Mas, o que ninguém podia imaginar era o tamanho do valor<br />

sentimental que aquela velha e rústica construção tinha para<br />

ele.<br />

Ah, se existia um lugar onde ele queria estar quando de sua<br />

velhice, esse lugar era a Pousada Encruzilhada.<br />

Hoje ele era um homem extremamente bem-sucedido, mas<br />

quando não era assim, era ali que invariavelmente, ele<br />

encontrava abrigo.<br />

A única coisa que, verdadeiramente lhe incomodava na velha<br />

pousada era o clima do lugar.<br />

Por que cargas d’água chovia tanto?<br />

Desceu do carro e correu até a extensa varanda.<br />

Porém, no meio do caminho, parou.<br />

Não conseguia lembrar-se de uma única vez que entrara na<br />

pousada com a roupa seca.<br />

Não seria no momento de tomar posse dela que seria esnobe<br />

ao ponto de não tomar a já tradicional chuva!<br />

Subiu os três pequenos degraus e adentrou a varanda.<br />

-Meu Deus! Quantas recordações.<br />

Olhou com carinho para a velha construção.<br />

Acariciou as velhas e gastas paredes.<br />

Tudo tinha sabor de reminiscências.<br />

Sentiu um nó na garganta.<br />

-Vê se pode... Um homem da minha idade com vontade de<br />

chorar por causa de uma casa velha.<br />

Riu de si mesmo.<br />

Voltou ao carro e pegou suas malas.<br />

Caminhou de volta para a varanda.<br />

Parou na frente dos degraus e ergueu o rosto.<br />

Sentiu a chuva tocar-lhe as faces.<br />

-É aqui que vou passar os últimos felizes dias de minha vida.<br />

14


RETALHOS<br />

Ela jamais pensou que viveria o suficiente para se ver naquela<br />

situação.<br />

Completamente encharcada pela chuva torrencial que caía e,<br />

indo de encontro com aquele que, provavelmente, seria o pior<br />

emprego de toda sua vida.<br />

Ser a única funcionária de uma pousada no cruzamento do<br />

nada com lugar nenhum.<br />

Aquilo seria enfadonho e entediante, mas era apenas o que<br />

conseguira.<br />

“Espero que, ao menos, meu patrão seja bonito. Por que a<br />

propriedade dele é horrível” – pensou.<br />

Caminhou pela chuva até a varanda da pensão.<br />

Não se incomodava mais com a chuva.<br />

Já estava toda molhada mesmo.<br />

Suspirou.<br />

O que as dificuldades financeiras não fazem a gente aceitar.<br />

Era a primeira vez que via seu novo emprego e, já tinha plena<br />

certeza que iria odiá-lo.<br />

-Bem, gentil meu patrão não é. Se fosse, ao menos, sairia para<br />

me ajudar com as bagagens.<br />

Arrastou com dificuldade as pesadas malas pelos três<br />

degraus, amaldiçoando pela milésima vez o momento que<br />

aceitou aquele emprego.<br />

Já estivera ali antes. Já se hospedara ali antes.<br />

Mas, saudade daquele lugar não tinha nenhuma.<br />

Tinha saudade daquela época, isso tinha.<br />

Ela era mais jovem e despreocupada.<br />

Não tinha as dificuldades financeiras que tinha agora.<br />

O estranho era que, apesar de não gostar daquele lugar, tinha<br />

guardado na memória todos os detalhes que compunham<br />

aquela paisagem.<br />

A chuva atrapalhava a visibilidade, mas o pouco que dava pra<br />

ver era incrivelmente familiar e nítido em suas lembranças.<br />

Lembrava-se tanto do local quanto das pessoas.<br />

15


Jorge Filho<br />

Sorriu.<br />

- Como o tempo modifica as coisas.<br />

Não pensava mais na pensão, e sim, na forma como tinha sido<br />

contratada.<br />

Cadastrara-se numa agência de empregos e, pouco tempo<br />

depois, recebera uma proposta via correio para trabalhar<br />

justamente naquele lugar.<br />

A verdade era que ela nem sabia quem seria seu patrão.<br />

A carta informava endereço, função que deveria exercer e<br />

salário.<br />

E que salário!<br />

Esse foi o fator que a fez considerar a proposta.<br />

Seu primeiro impulso foi recusar. Mas o salário...<br />

Muito alto para os padrões da função. Uma proposta<br />

tentadora, porém suspeita.<br />

Mas, medo de arriscar nunca fora seu defeito.<br />

Ficaria por um tempo até arranjar algo melhor.<br />

Estava decidido.<br />

Despertou das lembranças ao avistar seu patrão.<br />

Achou-o estranhamente familiar.<br />

Colocou a mão sobre os olhos para enxergar melhor sem que a<br />

chuva os molhasse.<br />

Sim. Realmente seu patrão era alguém familiar.<br />

Mais uma noite chuvosa. Tanto tempo se passara e ele ainda<br />

não entendia por que chovia tanto naquele lugar.<br />

Mas isso pouco importava. O importante era que tinha<br />

trabalho a fazer.<br />

Principalmente agora que pressentia que iria ficar sozinho.<br />

Estava na cara que sua funcionária pensava em se demitir.<br />

A relação deles dois sempre fora conturbada. Mesmo antes de<br />

ela trabalhar pra ele.<br />

16


RETALHOS<br />

E não seria a primeira vez que ela explodiria e se afastaria<br />

dele.<br />

Sorriu um sorriso nitidamente amargo.<br />

Apesar de toda a distância e de todo o desprezo que ela<br />

visivelmente sentia por ele, gostava de sua companhia.<br />

Na maioria das vezes, a única companhia.<br />

A pousada nunca registrou um número grande de hóspedes.<br />

Nem teria como.<br />

Sua localização era completamente desfavorável para que isso<br />

acontecesse.<br />

Então os longos e solitários dias e as entediantes e chuvosas<br />

noites tinham que ser compartilhados por eles dois.<br />

Trabalho, paixão e desprezo já haviam acompanhado ambos<br />

durante todo esse tempo de convivência.<br />

Mas, ironicamente, ela nunca o deixou sozinho.<br />

Ele nunca entendera o motivo, mas ia curtindo a companhia<br />

dela.<br />

Na verdade, ele a amava.<br />

Do seu jeito único, ele a amava.<br />

Desde que a vira pela primeira vez, ali mesmo na entrada da<br />

velha pousada.<br />

Mas, apesar de todo o esforço que sempre fizera, sentia que,<br />

dessa vez, ela iria embora para sempre.<br />

E quando se está sozinho, para sempre é muito tempo.<br />

Sentia-se triste.<br />

Porém, há muito tempo, tristeza e solidão eram seu café da<br />

manhã.<br />

Por outro lado, ele começava a resignar-se com as intempéries<br />

que a vida lhe apresentava.<br />

Já fora um homem afortunado tanto financeiramente quanto<br />

emocionalmente.<br />

Agora só lhe restava uma velha e semi-deserta pensão e a<br />

visão da mulher que sempre embalou seus sonhos.<br />

Assim como ela, a felicidade para ele estava tão próxima e, ao<br />

mesmo tempo, inalcançável.<br />

17


Jorge Filho<br />

Foi até a janela e observou por um tempo a chuva que caia.<br />

Suspirou.<br />

Na verdade, adquirir aquela velha pousada não parecia ter<br />

sido a melhor das ideias.<br />

Era como se tivesse comprado sua própria cela na prisão.<br />

Estava preso àquela velha casa pelas recordações que ela lhe<br />

trazia.<br />

Sabia que jamais conseguiria se livrar da casa ou das<br />

recordações.<br />

Só duvidava se realmente havia sido a coisa certa a fazer.<br />

Uma porta próxima se abriu.<br />

Ele fechou os olhos por um momento.<br />

Ela era. Ele tinha certeza.<br />

Assim como tinha convicção de qual seria o teor da conversa<br />

que teriam naquele momento.<br />

Insuportável. Não havia outra palavra para explicar aquela<br />

situação.<br />

Trabalhar para um ex-marido que ela desprezava e que, com o<br />

tempo, estava aprendendo a odiar era o cúmulo do absurdo.<br />

Mas era exatamente o que acontecia com ela naquele<br />

momento.<br />

Aceitara o trabalho muito a contragosto.<br />

Na ocasião, era questão de desespero.<br />

Estava desempregada e, ao chegar à pousada, não tinha<br />

recursos nem pra voltar pra casa.<br />

Resolveu ficar para esperar a chuva passar.<br />

Depois ficou para juntar dinheiro pra ir embora.<br />

Aí foi ficando por que o salário era muito bom.<br />

E acabou nunca saindo dali.<br />

Mas isso ia acabar naquela noite.<br />

Iria embora, com ou sem chuva.<br />

Chorava enquanto arrumava as malas.<br />

18


RETALHOS<br />

Sentia raiva, frustração...<br />

Mas não era por isso que chorava.<br />

Era o sentimento de ter jogado sua vida fora que a corroia por<br />

dentro.<br />

Sempre que parava pra pensar em como havia sido e<br />

comparava com o que era agora, sentia muita raiva de si<br />

mesma.<br />

Sentia-se frustrada.<br />

Todo mundo esperava que ela fosse longe na vida. Mas<br />

ninguém lhe mostrou o caminho.<br />

Agora sentia que não tinha ido a lugar algum.<br />

Estava estagnada.<br />

E ele tinha uma parcela enorme de culpa nisso.<br />

Ele era como uma âncora sempre a impedi-la de velejar pelos<br />

mares da vida.<br />

Decidida, fechou a mala e saiu do quarto.<br />

Foi até o saguão de entrada e o viu recostado na janela a olhar<br />

a chuva.<br />

Estranhamente sentiu ternura por ele.<br />

Na verdade, tudo que ele fizera foi por amá-la.<br />

Disso ela não duvidava.<br />

Mas ele sempre fazia tudo do jeito errado.<br />

E ela sempre foi incapaz de amá-lo.<br />

Chegou, por uma fração de segundo, a cogitar desistir de ir<br />

embora.<br />

Porém, resoluta, abriu a porta.<br />

Ele permaneceu impassível em frente à janela.<br />

-Não finja que não sabe que estou aqui.<br />

Ele permaneceu em silêncio.<br />

Apenas baixou um pouco a cabeça.<br />

Ela sabia exatamente o que iria lhe dizer.<br />

Mas isso não tornava mais fácil aquele momento.<br />

Bom ou ruim, aquele homem de uma forma ou de outra tinha<br />

estado ao seu lado por uma grande parte de sua vida.<br />

E ela sabia que o que tinha pra dizer o magoaria muito.<br />

19


Jorge Filho<br />

Mas, existem momentos em que precisamos ser egoístas e<br />

duros para não piorar uma situação que já está ruim.<br />

E aquele era o momento.<br />

Súbito, ele ergueu a cabeça e virou-se em sua direção.<br />

-Sei que está aqui. E sei que precisamos conversar. Pode<br />

começar. Sou todo ouvidos.<br />

Ela sentiu uma sensação de dejavú.<br />

Chovia torrencialmente. Porém aquela chuva não seria capaz<br />

de impedi-lo de aproximar-se dela. Nada seria.<br />

Pela primeira vez em sua vida, o andarilho estava preso a<br />

alguma coisa.<br />

Precisava falar com aquela mulher. Precisava ter aquela<br />

mulher.<br />

Se anjos existissem, ele sabia estar diante de um.<br />

Aproximou-se e a cumprimentou.<br />

Ela respondeu de forma seca e formal.<br />

Parecia estar assustada.<br />

-Não pretendo lhe fazer mal. Sou só um andarilho procurando<br />

abrigo para a chuva.<br />

-Andarilho? – respondeu ela, acrescentando – Um tipo de<br />

vagabundo?<br />

-Prefiro dizer que sou um homem livre. Ademais, estou<br />

sempre trabalhando. Não posso ser incluído na galeria dos<br />

vagabundos.<br />

-Ah! Você é um vagabundo com grife!<br />

Riram os dois.<br />

-Que tal sairmos dessa chuva?<br />

-Eu gostaria, mas minhas malas são demasiadamente<br />

pesadas...<br />

-Deixe que isso eu resolvo.<br />

20


RETALHOS<br />

Ela titubeou um momento. E se ele fosse um ladrão? Afinal<br />

acabara de conhecê-lo.<br />

Como que se adivinhasse seus pensamentos, o rapaz<br />

completou:<br />

-Não se preocupe. Não pretendo roubar suas malas. Além<br />

disso, como poderia correr com tanto peso? Parece que você<br />

está carregando uma casa desmontada aqui dentro.<br />

Riram novamente.<br />

-Desculpe. É que, em minha profissão tendemos a ser<br />

desconfiadas.<br />

-E qual seria sua profissão?<br />

-Sou prostituta de ocasião.<br />

-De ocasião? – estranhou o rapaz.<br />

-Faço apenas o que é necessário para me manter. Quando<br />

preciso de dinheiro para me locomover de uma cidade para<br />

outra, entende?<br />

O rapaz demorou pra responder. Ele a queria muito, mas não<br />

daquele jeito. Ele queria a mulher, o anjo... Não queria a<br />

profissional.<br />

-Nossa, que silêncio! Está decepcionado?<br />

Estaria ele decepcionado? Não o saberia dizer com plena<br />

certeza.<br />

-Não – respondeu finalmente – Acho que o que faço não é<br />

muito diferente.<br />

-Você é um prostituto? – perguntou ela, com ar de surpresa.<br />

Ele riu.<br />

-Não! Sei lá. Não transo por dinheiro. Mas faço o que for<br />

preciso para manter minha vida de andarilho. Talvez um dia,<br />

faça isso também.<br />

-Hum! E quanto você cobraria?<br />

-Sério? Pra você faço de graça.<br />

Riram novamente.<br />

E assim, com uma saudável empatia, chegaram à entrada da<br />

velha pousada.<br />

21


Jorge Filho<br />

Márcia e Marlon entraram na pousada para aquela que, com<br />

certeza, seria a noite mais desagradável de suas vidas.<br />

Pediram um quarto. Márcia chegou a cogitar em seu íntimo<br />

sugerir que pedissem quartos separados, mas ponderou que<br />

esse seria um constrangimento desnecessário.<br />

Passaram pelo estreito corredor em completo silêncio.<br />

O mesmo silêncio que imperou por longos minutos enquanto<br />

secavam-se e desarrumavam as bagagens.<br />

-Se só vamos passar uma noite aqui, é necessário mesmo<br />

desarrumarmos a bagagem? – perguntou Marlon, com a clara<br />

intenção de quebrar o gelo daquele clima tão desagradável e<br />

pesado.<br />

-Estou treinando para quando nos separarmos – respondeu<br />

Márcia secamente.<br />

Marlon não respondeu de imediato.<br />

Sentia-se triste e melancólico.<br />

Questionou se ainda valia à pena falar sobre tão doído<br />

assunto. Resolveu que sim.<br />

-O que foi que eu fiz de tão errado para você sentir tanto<br />

desprezo por mim? Sei que o amor, às vezes acaba, mas daí a<br />

virar asco...<br />

Ela permaneceu em silêncio desarrumando sua mala.<br />

Marlon suspirou profundamente.<br />

-Acho melhor eu dormir no sofá. Já estou habituado mesmo.<br />

Súbito, ouviu um soluço.<br />

Márcia estava chorando. Em todo aquele tempo juntos, ele<br />

jamais a ouvira chorar. Às vezes Marlon a invejava. Jamais a<br />

vira dar sinais de fraqueza emocional, coisa que ele não<br />

conseguia fazer.<br />

Intimamente a comparava com um cubo de gelo. Agora, ali<br />

estava uma faceta dela que ele não conhecia. A mulher que<br />

também tinha sentimentos que a fragilizava. Ele simplesmente<br />

não sabia o que dizer. Apenas a abraçou.<br />

22


RETALHOS<br />

Porém, esse abraço não melhorou a situação.<br />

Márcia desvencilhou-se violentamente dele e seus soluços<br />

viraram choro compulsivo.<br />

Marlon sentiu os olhos mareados. Lembrou-se do pai de<br />

Márcia lhe dizendo no dia do casamento:<br />

-Apenas não faça minha pequenina infeliz.<br />

-Jamais. Magoar Márcia é como apunhalar meu próprio<br />

coração. Juro por Deus que isso jamais acontecerá!<br />

Agora ali estava ela, chorando de forma compulsiva. Toda<br />

esperança que Marlon tinha de reconquistar o amor de sua<br />

esposa desvanecia-se junto com as lágrimas dela.<br />

Ele, naquele momento, sentia-se o pior dos homens da face da<br />

terra.<br />

Ficou por intermináveis minutos de pé, parado a contemplar o<br />

amargo choro da mulher que amou desde o primeiro dia que<br />

a vira.<br />

Pensou no acidente de carro que vitimou seus pais e o filho<br />

que Márcia trazia na barriga.<br />

Era pra ser uma comemoração pela boa-nova. Márcia<br />

finalmente estava grávida. Sua felicidade era tanta que<br />

exagerou na bebida.<br />

Por mais que todos lhe avisassem, ele não parou de beber.<br />

E por ser o único que sabia dirigir, sentou-se ao volante<br />

apenas para minutos depois bater o carro contra um poste.<br />

Aquele fôra o princípio do fim de sua vida conjugal com<br />

Márcia.<br />

Ali verdadeiramente o seu casamento acabara.<br />

Marlon nunca teve coragem de pedir desculpas.<br />

Na verdade, ele mesmo nunca se perdoara.<br />

Anos de amargura e tristeza culminaram com aquelas<br />

lágrimas. E ele era o culpado por tudo.<br />

Sentiu um nó na garganta. Aquele vazio que sentia no peito,<br />

apenas aumentava.<br />

Não havia mais clima nem para dividirem o mesmo teto,<br />

quanto mais o mesmo quarto.<br />

23


Jorge Filho<br />

-Vou pedir outro quarto e uma garrafa de conhaque pra mim.<br />

Hoje posso beber a vontade, não vou dirigir.<br />

Saiu e fechou a porta sabendo que deixara pra trás a pessoa<br />

mais importante de sua vida. E a deixara ferida, triste e<br />

magoada. Tudo que jurara jamais fazer.<br />

-Eu sou um fracasso e minha vida é uma piada de extremo<br />

mau gosto.<br />

-Um dia ainda compro esse lugar.<br />

Voltou a sorrir.<br />

Aquela ideia não saía de sua cabeça.<br />

-Como eu posso pensar em comprar algo nessa situação em<br />

que eu me encontro?<br />

Ele estava completamente falido.<br />

A ideia de comprar aquele lugar que, de certa forma, sempre<br />

lhe serviu de refúgio teimava em brincar dentro de sua mente.<br />

Foi ali que conhecera sua esposa. Foi ali que se divorciou.<br />

-Se um dia melhorar de vida, comprarei essa pousada.<br />

Desfez as malas, tomou um banho quente e atravessou aquele<br />

tão familiar corredor até a portaria da pousada.<br />

Como sempre, estava tudo deserto.<br />

-Deveriam mudar o nome para Pousada Desolação – pensou.<br />

Sentou-se na varanda e vislumbrou a chuva forte que caía.<br />

Suspirou longamente.<br />

-Será que sempre chove aqui ou é só quando eu venho?<br />

Riu.<br />

Era especialista na arte de parecer feliz mesmo quando estava<br />

se remoendo por dentro.<br />

A verdade era que, só voltava aquele lugar por questões<br />

estritamente financeiras.<br />

Perdera a casa no processo de divórcio e, aquela era a pousada<br />

mais barata que conhecia.<br />

24


RETALHOS<br />

Porém, as recordações que aquela casa lhe trazia o<br />

torturavam.<br />

Ali tinha vivido um dos dias mais felizes de sua vida. E ali<br />

tinha vivido um dos dias mais tristes dessa mesma vida.<br />

Era irônico como o mesmo lugar e a mesma pessoa podiam<br />

trazer sentimentos tão contraditórios.<br />

Aquela pousada combinava mais com ela que com ele.<br />

Ela havia transformado amor em ódio. Duas emoções opostas<br />

e contraditórias.<br />

Ele não. Suas emoções e sentimentos permaneceram imutáveis<br />

e perenes. E assim seria sempre.<br />

Na verdade, estar naquele lugar era uma tortura em todos os<br />

sentidos.<br />

Significava lembrar que era um fracasso na vida financeira e<br />

na vida sentimental.<br />

Só estava ali por que não tinha dinheiro para hospedar-se em<br />

outro lugar.<br />

Além disso, não conseguia não pensar naquela mulher e em<br />

toda a grande derrota que era sua miserável vida.<br />

E aquilo sempre terminava do mesmo jeito: bebia para não<br />

chorar e chorava após beber.<br />

-Mas mesmo assim, um dia eu ainda compro esse lugar...<br />

Sim. Não havia dúvida alguma. Seu novo patrão era alguém<br />

extremamente familiar.<br />

Familiar e íntimo.<br />

-Dá pra você me explicar o que significa isso?<br />

Ela tentava se controlar, mas estava furiosa.<br />

-Não há necessidade para tanto nervosismo – respondeu o<br />

homem.<br />

25


Jorge Filho<br />

-Como não? Venho por uma proposta de emprego até esse fim<br />

de mundo apenas para descobrir que meu novo patrão é<br />

ninguém mais que meu ex-marido! Pra quê isso? Quer me<br />

humilhar por que está em melhores condições financeiras que<br />

eu? Quer se aproveitar disso para me humilhar? Pois não vai<br />

conseguir! Eu nem fui contratada ainda e já me demito!<br />

-Tente se acalmar e me escute! Não quero te humilhar. Apenas<br />

não conheço ninguém mais em que eu possa confiar pra me<br />

ajudar a gerenciar essa pousada. Afinal, já vivemos juntos.<br />

Além disso...<br />

-Além disso, o quê?<br />

-Ainda te amo.<br />

-Mais um motivo para que eu não fique aqui. Entenda de uma<br />

vez: acabou! Eu não te amo mais.<br />

Nitidamente aquelas palavras doeram demais nele, porém o<br />

homem continuou firme.<br />

-Isso não é novidade pra mim. Não pretendo reconquistá-la.<br />

Pra mim, ter você por perto já é um grande alento.<br />

Ela titubeou. Não por que tivesse sido tocada pelas palavras<br />

do ex-marido. Mas, por que não podia ignorar sua situação<br />

atual.<br />

Chovia, ela estava longe de qualquer possibilidade de voltar<br />

pra casa aquela noite, tinha fome e não dava pra esquecer que<br />

sua situação financeira era desesperadora e, sendo ou não seu<br />

ex-marido, a proposta salarial era tentadora demais pra ser<br />

sumariamente ignorada.<br />

-Tudo bem. Fico aqui essa noite e decido se aceito ou não sua<br />

proposta. Mas que fique claro: não haverá um reatamento de<br />

nossa relação. Se eu aceitar, será de forma meramente<br />

profissional.<br />

-Eu não achava que seria de outra maneira.<br />

Porém, apesar dessas palavras, o homem ainda acalentava em<br />

um recanto escondido da alma um fino fio de esperança de<br />

que aquele momento marcasse um novo recomeço.<br />

26


RETALHOS<br />

Intimamente ele sabia que, jamais em sua vida, perderia as<br />

esperanças em relação à mulher que mais amou na vida.<br />

Pena que ela nitidamente não pensava o mesmo.<br />

E isso ficava cada vez mais claro.<br />

Contratá-la foi uma medida baseada no desespero. Uma<br />

última e provavelmente frustrada tentativa.<br />

Porém, pior que saber que tinha chegado ao ponto do<br />

desespero, era constatar que tinha realmente chegado ao<br />

fundo do poço.<br />

A mulher lhe odiava e, ainda assim, movido pelo amor ele<br />

mais uma vez tentava reconquistá-la.<br />

Por quanto tempo aquela situação se sustentaria? Ele tinha<br />

certeza que ela só ficaria até conseguir se equilibrar<br />

financeiramente. Depois iria embora e ele voltaria a ficar só.<br />

Mas, apesar dessas certezas, não podia evitar sonhar em estar<br />

errado.<br />

Sabia estar dando um passo errado, mas não tinha forças para<br />

evitar.<br />

Assim como sabia que todo aquele ódio que ela sentia era por<br />

sua culpa. Apenas ele e somente ele era o culpado.<br />

Por outro lado, era impossível compreender como a mesma<br />

mulher que acalentava seus sonhos e, dessa forma, lhe trazia<br />

felicidade podia ser a mesma mulher que o fazia sofrer tanto.<br />

Como em uma fração de minutos a perspectiva de felicidade<br />

plena podia transformar-se em um momento de tragédia e<br />

tristeza perene?<br />

Olhar para ela ali em sua frente molhada da chuva era a mais<br />

bela visão possível. E a mais triste.<br />

Chega certo momento na vida em que tudo que nos resta são<br />

as recordações.<br />

E isso era tudo que havia restado para o velho homem.<br />

27


Jorge Filho<br />

Aquela lágrima que teimou em cair do seu olho acabara de se<br />

transformar em um choro compulsivo e sem previsão de fim.<br />

Aquela havia sido sua última tentativa.<br />

Sabia que já estava velho e doente demais para ter qualquer<br />

tipo de esperança de felicidade.<br />

Mas, ainda assim, teimava em esperar conseguir alcançá-la.<br />

Sua memória falhava muito. Esquecia-se constantemente das<br />

coisas mais recentes e corriqueiras. Mas de sua história com<br />

aquela mulher, jamais conseguira esquecer.<br />

Não precisava esforço para lembrar.<br />

Afinal, tentar esquecer nada mais é que lembrar.<br />

Aquele era um martírio que parecia infindável.<br />

Era como um fantasma de uma pessoa morta e enterrada<br />

numa cova bem funda que voltava todos os dias para lembrarlhe<br />

de sua existência.<br />

O velho homem passara grande parte da sua vida tentando.<br />

Tentava esquecer e tentava reconquistá-la.<br />

Paradoxalmente, ele nunca soube qual das vontades era mais<br />

forte.<br />

Agora no crepúsculo de sua vida, enviara uma última carta<br />

para ela.<br />

Precisava vê-la antes de morrer.<br />

Necessitava dizer o quanto a amava e o quanto sentia por<br />

nunca ter sido o homem ideal para ela.<br />

Tinha que dizer que sentia muito por ter estragado tudo e que,<br />

todos os erros cometidos haviam sido em nome do amor.<br />

Se não conseguisse, morreria infeliz.<br />

Porém, não tinha mais como se locomover até ela para dizerlhe<br />

essas coisas e nem adiantaria para ele escrever sobre isso.<br />

Precisava falar-lhe pessoalmente. Olhar nos seus olhos.<br />

Mas estava óbvio que ela nunca viria.<br />

Agora só lhe restavam as recordações.<br />

E esse era o gosto mais amargo que um homem podia sentir: o<br />

gosto da incapacidade.<br />

28


RETALHOS<br />

Incapacidade de ser feliz; Incapacidade de esquecer;<br />

Incapacidade de conquistar; Incapacidade de seguir em<br />

frente...<br />

O velho homem sentia-se maltratado pela vida.<br />

Sentia-se fraco e cansado.<br />

Mas, acima de tudo, sentia-se triste e vazio.<br />

Gostaria de perguntar a Deus se aquela era a forma de um<br />

homem terminar a vida.<br />

Se existia merecimento ou objetivo em tanto sofrer.<br />

Só lhe restaram as lembranças e a saudade...<br />

Apenas as lembranças e a saudade.<br />

Dizem que recordar é viver.<br />

Para o velho, recordar é sofrer.<br />

E seu sofrimento era perene porque não conseguia esquecer.<br />

Recordava-se a todo o momento.<br />

Lembrava-se de todos os pormenores de sua doída vida.<br />

Lembrava-se dos momentos bons e dos momentos ruins.<br />

Todos intensos.<br />

Na sua longa vida nunca tivera momentos de calmaria. Tudo<br />

era extremo.<br />

A felicidade era intensa. O sofrimento também.<br />

E quando o assunto era sentimento, essa intensidade<br />

triplicava.<br />

Suspirou. A dor no peito era cada vez mais intensa. Seu<br />

coração doía de duas formas diferentes ao mesmo tempo.<br />

Doía sentimentalmente por nunca conseguir esquecer a<br />

mulher amada e ter certeza que ela não responderia a seu<br />

último apelo, e doía pela doença que fizera com que os<br />

médicos o desenganassem.<br />

Sobre a doença não queria pensar. Apenas sabia que seu velho<br />

coração poderia parar de bater a qualquer momento.<br />

29


Jorge Filho<br />

Sobre os sentimentos, sabia que era hora de recordar pela<br />

última vez.<br />

E isso era fácil.<br />

Lembrava com clareza daquele final de tarde chuvoso quando<br />

ainda era um andarilho perdido nessa estrada longa e deserta<br />

que agora se desenhava a sua frente.<br />

Também com clareza recordava-se de pensar ser o homem<br />

mais feliz do mundo por ser um andarilho livre e<br />

descompromissado.<br />

E de como esse conceito foi desfeito instantaneamente quando<br />

a viu pela primeira vez.<br />

Ela estava cheia de malas tentando chegar até a velha pousada<br />

e se mostrou extremamente assustada com sua presença.<br />

Ele aproximou-se e, quando a viu com clareza, descobriu o<br />

que era o amor e o quanto era ilusória a sensação de extrema<br />

felicidade que ele sentira toda a sua vida a te aquele momento.<br />

Não queria mais ser livre e descompromissado. Queria estar<br />

preso a ela.<br />

Foi um dos momentos mais felizes de sua vida!<br />

Após a primeira aproximação, uma completa empatia tomou<br />

conta deles.<br />

Apesar da decepção inicial de descobrir que ela era uma<br />

prostituta de ocasião e que, portanto, provavelmente seria<br />

como uma flor que jamais poderia ser retirada do jardim para<br />

ser criada em um vaso, ele não reprimiu seus sentimentos.<br />

Principalmente depois daquela noite.<br />

Não houve pagamento. Não fôra uma prostituta que dormira<br />

com ela e sim, uma mulher tocada pelo fogo da paixão.<br />

Trocaram telefones e endereço.<br />

A partir daquela noite, o andarilho encontrara porto fixo e a<br />

prostituta encontrou um único homem.<br />

Quando voltaram a se encontrar não eram mais<br />

desconhecidos. Eram amantes.<br />

E logo se tornaram marido e mulher.<br />

E em seguida, futuros pais.<br />

30


RETALHOS<br />

O velho sorriu. Aquela era a parte doce das recordações.<br />

A velha senhora chegava em casa finalmente.<br />

Todo o dia conferia a caixa de correspondências apesar de, há<br />

muitos anos, não receber cartas. Era mais por mania que por<br />

achar que, realmente haveria algo ali dentro.<br />

Por isso, muito grande foi sua surpresa quando percebeu que,<br />

naquele dia, tinha uma carta dentro da caixa.<br />

- Deve ter sido entregue por engano – pensou.<br />

Pôs o envelope dentro de um dos livros que trazia consigo e<br />

foi cuidar de outros afazeres.<br />

Alguns dias se passaram e sua rotina continuara a mesma.<br />

Tinha hábitos simples e passava por uma velhice tranquila.<br />

Não procurava pensar muito na vida, pois esta muito lhe<br />

maltratara.<br />

Procurava agora apenas deixar os dias passarem e viver de<br />

forma descansada os anos que lhe restavam de sua vida.<br />

E, sem sombras de dúvida, a coisa que mais lhe relaxava era o<br />

prazer de uma boa leitura.<br />

Devorava livros um atrás do outro. Terminava uma leitura,<br />

começava outra.<br />

Recentemente, havia ido a um sebo e adquirira alguns livros<br />

antigos. Comprava sempre uma quantidade razoável para não<br />

ter que sair de casa para comprar outros.<br />

Da última vez, comprara cinco volumes daqueles de muitas<br />

páginas.<br />

Isso significava tranquilidade para o resto da semana.<br />

Já havia lido quatro e estava na metade do quinto quando, ao<br />

virar uma página viu a carta que havia encontrado em sua<br />

caixa de correspondências.<br />

-Nossa, esqueci completamente disso!<br />

31


Jorge Filho<br />

Pensou em olhar o endereço do verdadeiro destinatário para<br />

que, quando fosse ao sebo comprar mais livros, passar no<br />

correio e devolver a carta ao seu legítimo dono.<br />

Qual não foi sua surpresa ao constatar que ela era realmente a<br />

destinatária da carta.<br />

Achou a letra familiar e, ao conferir o remetente, sentiu-se um<br />

pouco aborrecida.<br />

Era uma pessoa que ela queria esquecer.<br />

Pensou em não abrir a carta. Talvez jogá-la fora.<br />

Tinha certeza que seu conteúdo não a faria bem.<br />

Por outro lado, era o momento de encarar essa questão de<br />

frente.<br />

Abriu a carta e notou que o texto era muito longo.<br />

Botou o livro de lado e começou a ler a correspondência.<br />

À medida que lia, era tomada por nostalgia, tristeza,<br />

arrependimento e emoção.<br />

Era o texto mais apaixonado e triste que ela já havia visto na<br />

vida.<br />

Que aquele homem a amava, ela sempre soube. Mas não<br />

conhecia de verdade seus motivos para ter feito tudo que ele<br />

fez.<br />

E aquela noticia triste no final...<br />

A velha senhora sentiu coisas que a muito não sentia.<br />

Chorou de forma amarga e lamentou tanto tempo perdido.<br />

Pela primeira vez em muitos anos, não sabia o que fazer.<br />

Nenhuma vida é feita só de alegrias. Disso ninguém mais que<br />

o velho homem sabia.<br />

Agora viriam as partes amargas das suas recordações.<br />

Após o acidente tudo mudou.<br />

O sonho tornou-se um pesadelo. E o casamento virou<br />

separação.<br />

32


RETALHOS<br />

Separação essa que, mais uma vez, colocou a velha pousada<br />

em seu caminho.<br />

Em outra noite chuvosa, veio o rompimento definitivo.<br />

Com o rompimento, ele se sentiu perdido e desorientado.<br />

Perdeu tudo naquela fase de sua vida.<br />

Perdeu a esposa, o filho, o dinheiro...<br />

Vagou perdido na vida durante um longo período, fugindo de<br />

credores e acompanhado de suas próprias dores.<br />

Mas, como todo poço tem um fundo, ele caiu até esse limite.<br />

O único consolo de quem está no fundo do poço é que não há<br />

mais pra onde cair. Só resta erguer-se e escalar de volta para<br />

fora dele.<br />

E foi isso que ele fez.<br />

Reergueu-se financeiramente e elaborou um plano<br />

desesperado.<br />

Comprou a velha pousada onde tudo tinha começado e onde<br />

tudo tinha terminado e convidou anonimamente a mulher de<br />

sua vida para trabalhar com ele.<br />

Sabia que, naquele momento, a situação financeira dela era<br />

delicada. A ela restara apenas a casa que ele cedera durante o<br />

divórcio.<br />

Ela teria que aceitar o emprego, e ele podia tê-la por perto<br />

para, quem sabe, conseguir reconquistá-la.<br />

Porém, o plano estava fadado ao fracasso desde o princípio<br />

apesar de um pálido sucesso inicial.<br />

Ela aceitou muito a contragosto, trabalhar na pousada.<br />

Mas manteve uma fria distância dele todo o tempo.<br />

Aquela paixão que ele enxergara antes havia virado desprezo.<br />

O velho homem sentiu um nó na garganta ao relembrar<br />

aqueles momentos.<br />

Aquela noite chuvosa quando ela pediu demissão da pousada<br />

e foi embora.<br />

Apesar de lembrar-se dela com todo carinho, tinha mais<br />

recordações de lágrimas que de sorrisos.<br />

33


Jorge Filho<br />

Até que um dia, a situação mostrou-se insustentável e mais<br />

um rompimento aconteceu.<br />

Era impossível esquecer aquele momento.<br />

As palavras ditas por ela fugiram de sua memória com o<br />

tempo. Ou talvez ele as tenha bloqueado tamanha foi a dor<br />

que sentira.<br />

Isso foi há muito tempo atrás. Mas ainda doía muito.<br />

As recordações vinham como pequenos retalhos de um tecido<br />

desgastado e multicolorido.<br />

O velho homem fitou a chuva que caía torrencialmente lá fora.<br />

Levantou-se com muita dificuldade e foi além da velha<br />

varanda senti-la tocar em seu rosto.<br />

A chuva! Essa sim era sua companheira fiel!<br />

Em todos os grandes momentos da vida, ela estava a<br />

acompanhá-lo.<br />

A água da chuva caia sobre seu rosto e misturava-se com as<br />

lágrimas que deslizavam sobre sua face.<br />

As várias facetas daquele homem, o andarilho que encontrou<br />

o amor no mais improvável dos lugares, o empresário falido<br />

que fugia para a pousada para esconder-se de seus problemas,<br />

o bem-sucedido homem de negócios que comprara a mesma<br />

pousada numa tentativa desesperada de reconquistar a<br />

mulher amada e agora, aquele velho desiludido, triste e<br />

amargo que apenas esperava a morte chegar eram todas as<br />

tentativas que um homem podia ter feito para ser feliz.<br />

Todas frustradas por uma única faceta: a do homem feliz que<br />

se embriagara para comemorar a gravidez da esposa e,<br />

acabara por matar seu filho antes mesmo que ele nascesse. E<br />

com isso, enterrar qualquer chance de felicidade no futuro.<br />

E mesmo em seu último e desesperado ato, colhera apenas o<br />

fracasso.<br />

34


RETALHOS<br />

Nenhuma das alegrias que conquistara era sequer alento para<br />

essa única derrota que sofrera.<br />

Voltou para a varanda.<br />

Sentia o coração a cada momento mais fraco.<br />

-Minha hora está chegando.<br />

Sentou-se novamente. A chuva caia ainda mais forte.<br />

Pensou em levantar-se e telefonar para algum hospital.<br />

Mas não tinha mais forças para tal ação.<br />

Não tinha força por estar estraçalhado sentimentalmente ao<br />

ponto de não querer mais prolongar aquela tristeza e não<br />

tinha forças físicas porque seu coração, guerreiro cansado de<br />

lutas e desilusões, finalmente estava sucumbindo.<br />

Sua respiração estava fraca e a visão começava a faltar-lhe.<br />

Mas ainda conseguia visualizar ao longe uma figura de<br />

mulher envelhecida pelo tempo a caminhar apressadamente<br />

em sua direção.<br />

Ouviu uma voz extremamente familiar chamar seu nome.<br />

-Marlon! Marlon!<br />

-Meu Deus, é Márcia – pensou.<br />

-Estou aqui meu amor – a ouviu dizer – Estou aqui para te<br />

dizer que te perdoo e te amo! Dizer que sempre te amei e<br />

quero estar com você até o fim de nossas vidas.<br />

Marlon, o velho homem, duvidou de seus sentidos. Não<br />

saberia dizer se aquilo estava mesmo acontecendo ou se era<br />

apenas o último fio de esperança lhe acalentando no momento<br />

de sua morte.<br />

Viu-a se aproximar chorosa e aflita a gritar seu nome e a dizer<br />

o quanto o amava.<br />

Sentiu-se triste por não ter forças para responder. Para dizer<br />

que amor era uma palavra muito pequena para aquilo que ele<br />

sempre sentiu por ela.<br />

Seu corpo estava dormente. Sentia calor. Tudo estava turvo e<br />

confuso.<br />

35


Jorge Filho<br />

Apesar disso, Marlon estava feliz pela primeira vez em muito<br />

tempo.Não importava mais se aquilo era mesmo verdade ou<br />

apenas fruto de sua imaginação.<br />

Importava que, no momento de sua morte, reconquistara<br />

Márcia mesmo que por algum truque de sua mente. Sorriu<br />

levemente.<br />

Sentiu o abraço quente e molhado dela. Sentiu suas lágrimas e<br />

ouviu sua doce voz.<br />

Parou de sentir dor no coração.<br />

Sentiu finalmente que sua vida tivera um sentido. Não foi<br />

perfeita, mas foi intensa.<br />

Pena que era tarde demais para aproveitá-la.<br />

Queria levantar-se e abraçar Márcia com toda força que ainda<br />

lhe restava mesmo sem saber se era realmente ela que ali<br />

estava.<br />

Abraçou-a ali sentado mesmo.<br />

Talvez com ela, talvez sozinho. Que importava agora? O<br />

importante era que não havia mais dor.<br />

Voltou a sorrir e tudo escureceu.<br />

FIM<br />

36

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!