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https://novaescola.org.br/conteudo/12459/<strong>as</strong>-crianc<strong>as</strong>-agora-vao-poder-falar-eescrever-errado<br />
Publicado em NOVA ESCOLA 02 de Setembro | 2018<br />
Sala de aula<br />
As crianç<strong>as</strong> agora vão poder falar<br />
e escrever errado?<br />
Debate n<strong>as</strong> redes sociais <strong>que</strong>stiona se o pensamento sobre o <strong>que</strong> é "certo" e<br />
"errado" na Língua Portuguesa está mudando e <strong>com</strong>o a escola seria<br />
impactada<br />
Paula Calçade<br />
Foto: Getty Images<br />
É <strong>com</strong>um ouvir <strong>que</strong> há alguns anos ou em outro momento da história br<strong>as</strong>ileira, o ensino da Língua<br />
Portuguesa era mais “puxado”, <strong>com</strong> maior rigor na gramática, <strong>com</strong> sua escrita, pronúncia e<br />
formalidade. A preocupação <strong>com</strong> uma suposta flexibilização da norma culta já virou até tema de<br />
campanha política e discussões em redes sociais. Será <strong>que</strong> <strong>as</strong> escol<strong>as</strong> estão mais tolerantes <strong>com</strong> <strong>as</strong><br />
variações linguístic<strong>as</strong> presentes no país e n<strong>as</strong> sal<strong>as</strong> de aula? Realmente há um menor apego <strong>com</strong> a<br />
norma culta no ensino br<strong>as</strong>ileiro?<br />
Marcos Bagno é doutor em Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor do livro<br />
"Preconceito linguístico: o <strong>que</strong> é, <strong>com</strong>o se faz” e ressalta <strong>que</strong> ainda persiste um senso <strong>com</strong>um a<br />
respeito do ensino da língua: o de <strong>que</strong> só é possível aprender pelo estudo sistemático e minucioso da<br />
gramática, pela apreensão dos termos e conceitos elaborados para descrever a língua e,<br />
principalmente, <strong>que</strong> tal estudo garantiria um uso “correto” da língua. “M<strong>as</strong> séculos de ensino b<strong>as</strong>eados<br />
nessa tradição já demonstraram a ineficácia dessa metodologia”, destaca. Para o autor, campanh<strong>as</strong><br />
contra uma suposta flexibilização da norma culta ensinada n<strong>as</strong> aul<strong>as</strong> de Língua Portuguesa podem<br />
revelar projetos político-ideológicos em <strong>que</strong> a Educação apareceria apen<strong>as</strong> em segundo plano, sem<br />
aprofundamento da <strong>que</strong>stão.<br />
LEIA MAIS Escola militar é a saída para crianç<strong>as</strong> de <strong>com</strong>unidades vulneráveis?
Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) auxiliavam os conhecimentos em Língua Portuguesa e<br />
outr<strong>as</strong> disciplin<strong>as</strong> a serem p<strong>as</strong>sados no Ensino Fundamental e Médio, desde 1997 até aprovação da<br />
B<strong>as</strong>e Nacional Comum Curricular (BNCC) em 2017 e neste ano. Além do novo documento trazer ao<br />
processo de ensino-aprendizado da Língua Portuguesa <strong>as</strong> especificidades da leitura e da escrita em<br />
ambientes digitais, a BNCC inclui, agora, alguns determinantes sociais da escrita, <strong>com</strong>o por exemplo, a<br />
articulação da produção textual <strong>com</strong> a situação de <strong>com</strong>unicação, levando em conta o interlocutor e a<br />
variação linguística.<br />
A norma culta é uma dess<strong>as</strong> variantes, porém a <strong>que</strong> possui o maior prestígio social, de acordo <strong>com</strong><br />
Bruno Pereira, doutor em Ensino de Língua e Literatura pela Universidade Federal do Tocantins (UFT).<br />
“O fato de apresentarmos aos alunos divers<strong>as</strong> variações linguístic<strong>as</strong> o auxilia na <strong>com</strong>unicação de<br />
contextos socioculturais plurais, atentando-os à adequação pragmática da língua”, explica.<br />
De acordo <strong>com</strong> Bruno, é importante ressaltar <strong>que</strong> o aluno br<strong>as</strong>ileiro de agora não é o mesmo aluno de<br />
20 anos atrás. “É necessário incentivar uma postura reflexiva acerca do uso da língua em nossos<br />
alunos e, para isso, devemos apresentar a ele <strong>as</strong> divers<strong>as</strong> variações linguístic<strong>as</strong> <strong>que</strong> existem no mesmo<br />
idioma, bem <strong>com</strong>o su<strong>as</strong> especificidades e funcionalidades”, ressalta.<br />
Ao falar em ensino mais, ou menos, “rigoroso”, Maria Helena Moreira professora da Faculdade de<br />
Ciênci<strong>as</strong> e Letr<strong>as</strong> da Universidade do Estado de São Paulo (Unesp) destaca outro possível engano.<br />
“Todo ensino tem de ser ‘rigoroso’, m<strong>as</strong> no sentido de r<strong>as</strong>trear rigorosamente aquilo <strong>que</strong> é pertinente<br />
na tarefa em <strong>que</strong>stão, e, no nosso c<strong>as</strong>o, não no sentido de dosar para mais ou para menos o<br />
policiamento da linguagem”, afirma.<br />
Preconceito linguístico<br />
Para alguns educadores, o preconceito linguístico é um preconceito social. “Não é por ac<strong>as</strong>o, então, <strong>que</strong><br />
são <strong>as</strong> pesso<strong>as</strong> mais pobres, em sua maioria negr<strong>as</strong>, <strong>as</strong> <strong>que</strong> mais sofrem a acusação de ‘falar errado’<br />
ou ‘não saber português’", afirma Marcos Bagno. Ele tem pesquisado textos do período pósindependência<br />
<strong>que</strong> apresentam essa característica. "É um discurso <strong>que</strong> se repete no Br<strong>as</strong>il há duzentos<br />
anos, deixando bem manifesto este preconceito”, diz. Para o doutor pela USP, o fundamental e<br />
necessário n<strong>as</strong> propost<strong>as</strong> polític<strong>as</strong> e discussões é o foco no letramento d<strong>as</strong> pesso<strong>as</strong>, isto é, a inserção<br />
crescente de cidadãos na cultura escrita. “E isso se faz por meio da leitura e da escrita de todos os tipos<br />
e gêneros textuais possíveis, desde os mais marginalizados, <strong>com</strong>o letr<strong>as</strong> de funk e hip-hop, até os mais<br />
prestigiados, <strong>com</strong>o a literatura canonizada”, enfatiza.<br />
Os números dão ênf<strong>as</strong>e à preocupação de Marcos Bagno. Três em cada dez jovens e adultos de 15 a 64<br />
anos no Br<strong>as</strong>il – 29% do total, o equivalente a cerca de 38 milhões de pesso<strong>as</strong> – são considerados<br />
analfabetos funcionais, de acordo <strong>com</strong> o Indicador do Alfabetismo Funcional (Inaf) 2018.<br />
Analfabetismo funcional<br />
Infogram<br />
Diante desse cenário, o pensamento sobre o <strong>que</strong> é "certo" e "errado" na Língua Portuguesa está<br />
mudando no país. “Isso não <strong>que</strong>r dizer <strong>que</strong>, <strong>com</strong>o professor de Língua Portuguesa, eu não vá<br />
apresentar preceitos da norma culta durante <strong>as</strong> aul<strong>as</strong>”, pondera Bruno Pereira, afirmando <strong>que</strong> a<br />
dicotomia “certo vs errado” tornou-se obsoleta hoje. “Prefiro utilizar ‘adequado’ ou ‘inadequado’, pois<br />
acredito <strong>que</strong> devemos formar alunos <strong>que</strong> saibam fazer uso da língua de maneira consciente e<br />
adequada, e não de maneira mecanizada, <strong>com</strong>o sugere a concepção de ‘erro’, destaca.<br />
Ou seja, o trabalho escolar <strong>com</strong> a língua <strong>que</strong> se fala só tem sentido se apreendido na vivência efetiva<br />
da língua. “As diferenç<strong>as</strong> linguístic<strong>as</strong> dentro da sala de aula constituem o melhor possível tudo aquilo<br />
<strong>que</strong> há para ser dito sobre língua, linguagem, gramática e norma: ora, são exatamente <strong>as</strong> diferenç<strong>as</strong><br />
<strong>que</strong> ilustram a real natureza da linguagem”, explica Maria Helena, mostrando <strong>que</strong> é exatamente a<br />
variação <strong>que</strong> caracteriza a linguagem. O <strong>que</strong> menos há, nessa realidade de diferenç<strong>as</strong> existentes e<br />
observáveis, é lugar para preconceito.<br />
O doutor pela UFT demonstra <strong>que</strong> a língua é <strong>com</strong>o mecanismo viva, dinâmico e carregado de<br />
intencionalidades e isso, para ele, precisa se refletir no ensino atualmente. Segundo Bruno, a<br />
<strong>com</strong>preensão da norma culta deixa de ter perfil unilateral e p<strong>as</strong>sa a dialogar <strong>com</strong> <strong>as</strong> outr<strong>as</strong> variantes<br />
na rotina escolar, <strong>que</strong> deve estar focada no letramento e no desenvolvimento de habilidades de leitura,
escrita e interpretação de textos de maneira catalisadora. “O aluno p<strong>as</strong>sa a entender a função e<br />
aplicação social da língua, não é algo mecânico. Por isso, acredito na construção de uma língua<br />
igualitária”, conclui.<br />
Essa reportagem faz parte da campanha Mentira na Educação, não!, <strong>que</strong> realizará checagens de<br />
notíci<strong>as</strong> sobre Educação. A iniciativa é realizada por NOVA ESCOLA, <strong>com</strong> apoio do INSTITUTO<br />
UNIBANCO, INSTITUTO ALANA, CANAL FUTURA e FACEBOOK.
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https://novaescola.org.br/conteudo/11681/o-ensino-br<strong>as</strong>ileiro-jaaprendeu-a-lidar-<strong>com</strong>-o-racismo<br />
Publicado em NOVA ESCOLA 27 de Abril | 2018<br />
Inclusão<br />
O ensino br<strong>as</strong>ileiro já<br />
aprendeu a lidar <strong>com</strong> o<br />
racismo?<br />
A falta de abertura em discutir tem<strong>as</strong> considerados polêmicos<br />
dificulta trabalho de professores — no ensino público e privado<br />
Naiara Albu<strong>que</strong>r<strong>que</strong><br />
Foto: Marcello C<strong>as</strong>al Jr/Agência Br<strong>as</strong>il<br />
"Seu preto sujo, cabelo de bombril", ouviu Silvia Madeira, professora de Geografia,<br />
quando lecionava em uma escola pública em Diamantina, Min<strong>as</strong> Gerais. A declaração<br />
racista veio de um aluno pardo e foi endereçada a um colega preto. Lembrando <strong>que</strong>,<br />
segundo cl<strong>as</strong>sificação do IBGE, os dois <strong>com</strong>põem o grupo dos negros.<br />
LEIA MAIS Racismo e desigualdade não são discutidos em tod<strong>as</strong> <strong>as</strong> escol<strong>as</strong><br />
Surpresa <strong>com</strong> a agressão verbal, a professora Silvia diz <strong>que</strong> <strong>as</strong>sumiu a postura <strong>que</strong><br />
todo educador deveria adotar: agir <strong>com</strong> firmeza. “Não tolero esse tipo de atitude,<br />
repreendo na hora e depois tento fazer meus alunos pensarem no significado de su<strong>as</strong>
fal<strong>as</strong>”, afirma. O relato de Silvia não é único e se repete nos depoimentos de muitos<br />
outros professores br<strong>as</strong>ileiros.<br />
O estado de São Paulo registra um c<strong>as</strong>o de injúria racial em estabelecimentos de<br />
ensino a cada 5 di<strong>as</strong>, de acordo <strong>com</strong> dados da Secretaria Estadual da Segurança Pública<br />
de São Paulo. Foram 2.873 boletins entre os anos de 2016 e 2017.<br />
LEIA MAIS O racismo nosso de cada aula<br />
Para Sheila Perina de Souza, pedagoga e integrante do coletivo Ludere, <strong>que</strong> se propõe<br />
a discutir uma escolarização anti-racista <strong>com</strong> referênci<strong>as</strong> afro-br<strong>as</strong>ileir<strong>as</strong> e african<strong>as</strong>, é<br />
muito importante entender o grau de seriedade nos c<strong>as</strong>os de racismo em sala de aula.<br />
“Não se trata de bullying ou brincadeira de mau gosto, estamos falando de um<br />
problema histórico. É racismo – e isso é crime”, afirma. Segundo ela, é necessário <strong>que</strong><br />
os professores e coordenadores pontuem isso <strong>com</strong> seus alunos de forma séria e<br />
contundente.<br />
Os c<strong>as</strong>os de injúria racial estão no Código Penal Br<strong>as</strong>ileiro e referem-se a ofender a<br />
honra de alguém por raça, cor, etnia ou religião. O crime de racismo está presente na<br />
Lei nº 7.716/1989 e se dá quando a integridade de uma raça é lesada. O crime de<br />
racismo é inafiançável e imprescritível. Isso não impediu <strong>que</strong>, em março deste ano, um<br />
aluno da Fundação Getúlio Varg<strong>as</strong> (FGV) fosse chamado de “escravo” ou <strong>que</strong>, no ano<br />
p<strong>as</strong>sado, du<strong>as</strong> professor<strong>as</strong> de Uberlândia tenham sido ofendid<strong>as</strong> em convers<strong>as</strong> em<br />
redes sociais. Também em 2017, a campanha “Meu professor racista” revelou, por<br />
depoimentos de muitos alunos n<strong>as</strong> redes sociais, situações racist<strong>as</strong> em escol<strong>as</strong> em<br />
todo o Br<strong>as</strong>il. A iniciativa, <strong>que</strong> n<strong>as</strong>ceu do coletivo Ocupação Preta da USP, <strong>com</strong>pilou<br />
c<strong>as</strong>os de racismo não só no ambiente universitário, m<strong>as</strong> também nos ensinos<br />
fundamental e médio. São episódios <strong>que</strong> chamaram atenção para o racismo na escola,<br />
m<strong>as</strong> não devem encerrar a conversa.<br />
Falta mais debate<br />
Renato Maldonado, professor de História e Sociologia em escol<strong>as</strong> públic<strong>as</strong> e privad<strong>as</strong><br />
de São Paulo, afirma <strong>que</strong> o racismo no ambiente escolar ocorre não somente através<br />
de insultos, m<strong>as</strong> muit<strong>as</strong> vezes de forma velada. “Há outros indícios no meio escolar,<br />
<strong>com</strong>o por exemplo o baixo número de alunos e docentes negros”, diz.<br />
Para ele, o Br<strong>as</strong>il ainda não superou o racismo tanto na educação pública quanto na<br />
educação privada. “N<strong>as</strong> escol<strong>as</strong> privad<strong>as</strong> de elite, o negro é invisibilizado. Quando o<br />
negro está presente, é a empregada doméstica ou o segurança, e não o aluno”, afirma.<br />
Por contar <strong>com</strong> maioria branca entre o corpo docente e os alunos, diz ele, <strong>as</strong> escol<strong>as</strong><br />
privad<strong>as</strong> refletem a estrutura br<strong>as</strong>ileira de poder e desigualdade étnica. O <strong>que</strong> falta,<br />
segundo Seb<strong>as</strong>tian Alvarado Fuentes, professor de Geografia de cursinhos prévestibulares<br />
em São Paulo, é ampliar a discussão em uma esfera da <strong>com</strong>unidade,<br />
envolvendo <strong>as</strong> famíli<strong>as</strong>. “Ao lidar <strong>com</strong> tem<strong>as</strong> <strong>com</strong>o racismo, machismo, homofobia e<br />
outros <strong>as</strong>suntos considerados polêmicos, encontramos uma grande resistência por<br />
parte d<strong>as</strong> famíli<strong>as</strong> dos alunos”, afirma. "M<strong>as</strong> temos de falar".<br />
Rosane Borges, jornalista e pós-doutora em Ciênci<strong>as</strong> da Comunicação acredita <strong>que</strong><br />
esse é o caminho. “É fundamental <strong>que</strong> <strong>as</strong> famíli<strong>as</strong> <strong>as</strong>sumam os princípios de uma<br />
educação anti-racista, anti-sexista, não homofóbica e não transfóbica no processo de<br />
socialização dos filhos”, diz.<br />
Na rede pública, tem<strong>as</strong> <strong>com</strong>o o racismo são discutidos geralmente em reuniões<br />
pedagógic<strong>as</strong>. Em sala de aula, alguns professores levantam a <strong>que</strong>stão <strong>com</strong> os alunos,
m<strong>as</strong> não <strong>com</strong> a força e a frequência <strong>que</strong> se poderia esperar. Um levantamento feito<br />
pelo Centro de Estudos d<strong>as</strong> Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert) apontou <strong>que</strong><br />
24% d<strong>as</strong> escol<strong>as</strong> não abordam a <strong>que</strong>stão em projetos temáticos – ou seja, um universo<br />
de 12 mil escol<strong>as</strong> espalhad<strong>as</strong> pelo país.<br />
Desde 2003, <strong>com</strong> a Lei nº 10.639, <strong>as</strong> escol<strong>as</strong> públic<strong>as</strong> e privad<strong>as</strong> são obrigad<strong>as</strong> ensinar<br />
história e cultura africana e afro-br<strong>as</strong>ileira. Na prática, porém, há a resistência de pais e<br />
escol<strong>as</strong> em discutir certos <strong>as</strong>suntos por julgarem os tem<strong>as</strong> polêmicos.<br />
LEIA MAIS África e Br<strong>as</strong>il: unidos pela história e pela cultura<br />
No c<strong>as</strong>o do professor Renato Maldonado, <strong>que</strong> já lecionou na rede pública estadual, o<br />
tempo de du<strong>as</strong> hor<strong>as</strong> semanais g<strong>as</strong>to em atividades extracurriculares garantiu um<br />
aprofundamento n<strong>as</strong> discussões sobre tem<strong>as</strong> <strong>que</strong> os professores julgavam<br />
importantes. “Trabalhei em uma escola na zona oeste de São Paulo e a coordenação<br />
era muito preocupada em discutir tem<strong>as</strong> <strong>com</strong>o <strong>que</strong>stões de gênero e racismo, o <strong>que</strong> foi<br />
positivo. Tudo vai depender da figura da coordenação pedagógica”, explica.<br />
Para Sheila Perina de Souza, o conhecimento histórico é um instrumento importante<br />
contra o racismo e o preconceito. Ao recontar a história a partir da perspectiva de<br />
grupos oprimidos, <strong>com</strong>o aconteceu <strong>com</strong> o movimento de libertação negro, pode ajudar<br />
o aluno a entender o racismo não <strong>com</strong>o uma prática de hoje, m<strong>as</strong> algo historicamente<br />
construído.<br />
A escravidão, no c<strong>as</strong>o, deveria ser pensada e refletida não apen<strong>as</strong> em dat<strong>as</strong><br />
<strong>com</strong>emorativ<strong>as</strong>, <strong>com</strong>o o 13 de maio. “Temos <strong>que</strong> tirar a ideia da princesa Isabel <strong>com</strong>o<br />
libertadora e centrar na luta dos escravos e abolicionist<strong>as</strong>”, diz Maldonado.<br />
A aprovação da B<strong>as</strong>e Nacional Comum Curricular (BNCC) cria uma certa apreensão<br />
entre os <strong>que</strong> defendem a discussão sobre o racismo na sala de aula. Na BNCC do<br />
Ensino Médio, não há previsão de eliminar nenhuma disciplina. M<strong>as</strong> o professor<br />
Seb<strong>as</strong>tian Fuentes acredita <strong>que</strong> a B<strong>as</strong>e pode acabar invisibilizando discussões em pauta<br />
na sociedade, de acordo <strong>com</strong> o <strong>que</strong> for priorizado nos circuitos formativos. “A BNCC<br />
pode garantir uma maior liberdade e flexibilidade de <strong>as</strong>suntos. Porém, também pode<br />
levar a uma falta de reflexões sobre o racismo dentro d<strong>as</strong> disciplin<strong>as</strong> eletiv<strong>as</strong>, <strong>com</strong>o<br />
Geografia, História, Sociologia e Filosofia”.
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https://novaescola.org.br/conteudo/8598/cartaoamarelo-para-o-material-dourado<br />
Matemática | 1º AO 3º ANO | Sala de aula<br />
Publicado em NOVA ESCOLA Edição 291, 07 de Abril | 2016<br />
Cartão amarelo para o<br />
material dourado<br />
Educadores explicam os problem<strong>as</strong> desse recurso e<br />
mostram caminhos alternativos<br />
Jac<strong>que</strong>line Hamine<br />
Wellington Soares<br />
Paula Peres<br />
"Em <strong>que</strong> situações da vida de cada criança, sem ser na escola, um número<br />
<strong>com</strong>o 12 aparece na forma de uma barra e dois cubinhos?", provoca Célia<br />
Carolino, professora da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul<br />
(UFMS). A fala forte já indica a opinião da pesquisadora do ensino de<br />
Matemática, uma d<strong>as</strong> mais respeitad<strong>as</strong> do país: <strong>com</strong>o a maior parte da<br />
<strong>com</strong>unidade acadêmica, ela acredita <strong>que</strong> está na hora de abandonar o uso do<br />
material dourado.<br />
No mundo do futebol, o cartão amarelo é um sinal de atenção. Para o<br />
material dourado, vale o mesmo princípio: se o professor optar por usálo,<br />
precisa estar ciente dos limites dos cubinhos e barr<strong>as</strong>. O recurso foi criado<br />
pela educadora italiana Maria Montessori (1870-1952), ganhou espaço n<strong>as</strong><br />
sal<strong>as</strong> de aula no final do século 20 e até hoje - muito por força da tradição - é<br />
considerado indispensável na aula de certos professores. M<strong>as</strong> pesquis<strong>as</strong><br />
recentes na área da didática da Matemática indicam <strong>que</strong> seu uso não é<br />
essencial e <strong>que</strong> ele pode, na verdade, atrapalhar.<br />
Em sala, o conjunto de cubos, barr<strong>as</strong> e plac<strong>as</strong> serve para <strong>que</strong> crianç<strong>as</strong> no<br />
início da escolarização se apropriem do sistema de numeração, ou<br />
seja, <strong>com</strong>preendam a organização dos números. A principal semelhança<br />
entre ele e o sistema decimal utilizado por nós é a organização em b<strong>as</strong>e 10:<br />
<strong>as</strong>sim <strong>com</strong>o 10 unidades formam uma dezena, 10 cubos pe<strong>que</strong>nos são<br />
equivalentes a uma barrinha, 10 barrinh<strong>as</strong> (dezen<strong>as</strong>) equivalem a uma placa<br />
(centena) e 10 plac<strong>as</strong> a um cubo grande (milhar). "O material dourado pode<br />
ser usado para <strong>as</strong> crianç<strong>as</strong> <strong>com</strong>preenderem, visualmente, <strong>que</strong> o número 100<br />
é <strong>com</strong>posto de vári<strong>as</strong> unidades", exemplifica Mônica Mandarino, uma d<strong>as</strong>
edator<strong>as</strong> da B<strong>as</strong>e Nacional Comum Curricular (BNCC) e<br />
professora aposentada da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro<br />
(Unirio).<br />
M<strong>as</strong> <strong>com</strong>preender os conceitos de dezena, centena e milhar é muito<br />
diferente de se apropriar verdadeiramente do sistema de numeração.A b<strong>as</strong>e<br />
decimal é apen<strong>as</strong> um dos elementos <strong>que</strong> formam a maneira <strong>com</strong>o<br />
representamos quantidades. Outros elementos são os símbolos e o<br />
reconhecimento do valor dos algarismos dependendo de sua posição nos<br />
números. Ambos os <strong>as</strong>pectos não entram em jogo na manipulação do<br />
material dourado. No sistema decimal, cada algarismo pode <strong>as</strong>sumir diversos<br />
valores. Se escrito sozinho, o 2 pode representar du<strong>as</strong> unidades, m<strong>as</strong><br />
também 20, 200 e <strong>as</strong>sim por diante, dependendo da existência ou não de<br />
outros algarismos a sua direita.<br />
No material dourado, por outro lado, a ordem em <strong>que</strong> se colocam <strong>as</strong> peç<strong>as</strong><br />
não altera o valor final. Se formos criar o número 25, por exemplo, a ordem<br />
d<strong>as</strong> du<strong>as</strong> barrinh<strong>as</strong> e dos cinco cubinhos não faria diferença: eles<br />
continuariam valendo a mesma quantidade. Já no nosso sistema, mudar o 2 e<br />
o 5 de posição modifica <strong>com</strong>pletamente o número. "Nesse sentido, o material<br />
dourado se <strong>as</strong>semelha ao sistema egípcio, <strong>que</strong> se b<strong>as</strong>eia na adição de<br />
elementos", <strong>com</strong>para Camilla Schiavo, formadora do Instituto Avisa Lá, em<br />
São Paulo.<br />
Para aproximar o funcionamento do sistema de numeração <strong>com</strong> o do<br />
material, seria necessário estabelecer uma série de regr<strong>as</strong>, <strong>que</strong> só<br />
tornariam sua utilização ainda mais <strong>com</strong>plicada para <strong>as</strong> crianç<strong>as</strong>. "Muitos<br />
professores acreditam <strong>que</strong> estão ajudando os alunos, b<strong>as</strong>eados na ideia de<br />
<strong>que</strong> todo material concreto ajuda. M<strong>as</strong>, na verdade, <strong>as</strong> crianç<strong>as</strong> estão<br />
entendendo mais sobre a lógica do próprio material dourado do <strong>que</strong> sobre os<br />
números", argumenta Maria Clara Galvão, formadora de professores da<br />
Escola da Vila, em São Paulo.<br />
"As semelhanç<strong>as</strong> entre o material dourado e o sistema decimal são<br />
muito menores do <strong>que</strong> pensam os professores <strong>que</strong> usam o<br />
recurso para ensinar esse conteúdo"
Outra crítica é <strong>que</strong> o uso sistemático desse material cria uma etapa<br />
intermediária desnecessária na aprendizagem. "Se uma criança precisa<br />
resolver um problema <strong>com</strong> morangos e jabuticab<strong>as</strong>, por <strong>que</strong> converter isso<br />
para madeira e, depois, converter novamente para números? Se<br />
necessário, <strong>as</strong> própri<strong>as</strong> frut<strong>as</strong> podem ser o material manipulado, não precisa<br />
de um sistema intermediário nesse processo", argumenta Célia Carolino.<br />
Já Mônica Mandarino defende <strong>que</strong> o material pode continuar fazendo parte<br />
do trabalho do professor, m<strong>as</strong> apen<strong>as</strong> <strong>com</strong>o um apoio ? por exemplo, quando<br />
parte da turma não entendeu os conceitos de unidade, dezena e milhar pel<strong>as</strong><br />
explicações tradicionais. O <strong>que</strong> Mônica condena é o uso deturpado do<br />
recurso. "Já vi crianç<strong>as</strong> desenharem o material dourado em seus cadernos, <strong>as</strong><br />
pecinh<strong>as</strong> serem reproduzid<strong>as</strong> em livros didáticos e até professores colarem o<br />
material no quadro!", critica.<br />
Do auge ao ostracismo<br />
O <strong>que</strong> mudou no ensino da Matemática para fazer o material dourado ser tão<br />
criticado hoje? Uma rápida viagem histórica ajuda a explicar o <strong>que</strong> aconteceu.<br />
Montessori criou o recurso guiada pela concepção de <strong>que</strong> <strong>as</strong> crianç<strong>as</strong><br />
exploram e <strong>com</strong>preendem o mundo por meio do movimento e do to<strong>que</strong>. Nos<br />
anos 1960, os adeptos do movimento Matemática Moderna concordavam<br />
<strong>com</strong> Montessori e relacionavam seu pensamento à teoria de Jean Piaget<br />
(1896-1980) sobre <strong>as</strong> f<strong>as</strong>es de desenvolvimento infantil. Acreditava-se <strong>que</strong><br />
era necessário oferecer materiais manipuláveis para <strong>que</strong> <strong>as</strong> crianç<strong>as</strong>, entre <strong>as</strong><br />
f<strong>as</strong>es sensório-motora e operatória-concreto, fizessem a substituição,
na prática, de um objeto por uma representação.<br />
Porém, décad<strong>as</strong> mais tarde, os pesquisadores reinterpretaram <strong>as</strong> teori<strong>as</strong><br />
piagetian<strong>as</strong> e p<strong>as</strong>saram a entender o concreto <strong>com</strong>o relacionado a<br />
<strong>que</strong>stões cognitiv<strong>as</strong>. "Nem sempre o concreto em Piaget é algo palpável,<br />
material", explica Camilla.<br />
"O recurso <strong>com</strong>eçou a ser <strong>que</strong>stionado quando os pesquisadores<br />
repensaram o significado do termo "concreto". Para Constance<br />
Kamii, não existe número concreto"<br />
Para a pensadora nipo-americana Constance Kamii, <strong>que</strong> trabalhou <strong>com</strong><br />
Piaget, a própria natureza dos números já está no campo da abstração. "Não<br />
existe 'número concreto'", afirma ela no artigo Manipulatives: When Are They<br />
Useful? ("Manipuláveis: quando eles são úteis?", em tradução livre). A<br />
pesquisadora também ressalta <strong>que</strong>, para Piaget, o conhecimento lógi<strong>com</strong>atemático<br />
é construído por meio de relações estabelecid<strong>as</strong> dentro da<br />
cabeça d<strong>as</strong> crianç<strong>as</strong>. O trabalho <strong>com</strong> objetos concretos, <strong>com</strong>o o material<br />
dourado, estaria muito mais ligado às característic<strong>as</strong> dos próprios objetos - o<br />
<strong>que</strong> o pensador chama de abstração empírica - e, portanto, não ajudaria<br />
<strong>as</strong> crianç<strong>as</strong> a aprenderem Matemática.<br />
O melhor caminho para garantir <strong>que</strong> <strong>as</strong> crianç<strong>as</strong> se apropriem do sistema de<br />
numeração é partir dos conhecimentos prévios da turma."Pesquis<strong>as</strong> recentes<br />
mostram <strong>que</strong> <strong>as</strong> crianç<strong>as</strong> já trazem <strong>com</strong> el<strong>as</strong> algum<strong>as</strong> suposições sobre os<br />
números, mesmo sem saber o <strong>que</strong> são dezen<strong>as</strong> e centen<strong>as</strong>"" afirma Priscila<br />
Monteiro, coordenadora de Matemática do programa Nossa Rede, do<br />
Instituto Chapada de Educação e Pesquisa (Icep). Com ess<strong>as</strong> referênci<strong>as</strong>, eles<br />
criam hipóteses sobre os agrupamentos dos algarismos. "É um novo olhar<br />
sobre o aprendizado, <strong>que</strong> respeita o pensamento d<strong>as</strong> crianç<strong>as</strong> e o <strong>que</strong> el<strong>as</strong><br />
podem construir sobre esse sistema", afirma. Conheça em mais detalhes<br />
<strong>com</strong>o esse trabalho pode ser feito no roteiro didático disponível em<br />
abr.ai/sistema-de-numeracao.<br />
Fotografia: Ricardo Toscani
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https://novaescola.org.br/conteudo/8678/por-<strong>que</strong>-o-funk-e-proibido-na-escola<br />
Arte e Educação Física | Sala de aula<br />
Publicado em NOVA ESCOLA Edição 295, 14 de Setembro | 2016<br />
Por <strong>que</strong> o funk é proibido na<br />
escola<br />
Você detesta, m<strong>as</strong> seus alunos gostam. Acredite: debater o ritmo na escola é<br />
a melhor chance de <strong>que</strong>stionar <strong>as</strong> letr<strong>as</strong> pesad<strong>as</strong> e os movimentos sexuais<br />
Wellington Soares<br />
Paula Peres<br />
Patrick C<strong>as</strong>simiro<br />
Este texto deveria <strong>com</strong>eçar <strong>com</strong> uma grande foto de alunos e professor discutindo o funk, analisando<br />
<strong>com</strong> uma postura crítica essa manifestação cultural. Foi esse o projeto de Felipe Nunes, <strong>que</strong> atua na EE<br />
Professor Norberto Alves Rodrigues, na M'Boi Mirim, periferia da zona sul de São Paulo. Deu errado. A<br />
Diretoria Regional de Ensino achou melhor não expor a instituição (mudou de ideia quando já era tarde<br />
e a revista estava indo para a gráfica). Afinal, lugar de funk não é na escola, certo?<br />
Dá para entender a resistência. Muit<strong>as</strong> letr<strong>as</strong> são fortes e fazem referência à violência e à sexualização<br />
precoce. Os movimentos da dança transitam entre a sensualização excessiva e a transformação do<br />
corpo em objeto. De fato, causa <strong>as</strong>sombro pensar nos seus alunos descendo até o chão ao som do<br />
funk sensual. M<strong>as</strong> é o <strong>que</strong> muitos deles fazem. É a realidade.<br />
Vamos defender <strong>que</strong> a escola é, sim, lugar de funk. Pedimos sua parceria para ir conosco até o fim, m<strong>as</strong><br />
sabemos d<strong>as</strong> dificuldades. O <strong>as</strong>sunto re<strong>que</strong>r uma boa dose de coragem para <strong>com</strong>prar uma briga - <strong>com</strong><br />
a direção, os coleg<strong>as</strong> professores e os pais. "Uma mãe me falou: 'Demorei anos para a minha filha<br />
parar de gostar de funk e agora você vai fazê-la ouvir isso de novo!'", conta Felipe, <strong>que</strong> encontrou<br />
resistência até dos próprios alunos <strong>que</strong> ouviam o ritmo (nem eles acham <strong>que</strong> funk pode ter a ver <strong>com</strong><br />
Educação).<br />
M<strong>as</strong> o funk é mais do <strong>que</strong> uma coletânea de trechos de letr<strong>as</strong> impublicáveis. "Ele é um <strong>com</strong>plexo<br />
movimento cultural. Rejeitá-lo <strong>com</strong>o um todo por causa de algum<strong>as</strong> de su<strong>as</strong> característic<strong>as</strong> é<br />
desconhecimento e preconceito", defende Marcos Neira, professor da Faculdade de Educação da<br />
Universidade de São Paulo (USP). Ele faz um paralelo <strong>com</strong> a banda Legião Urbana: Faroeste Caboclo<br />
narra a trajetória de vida de um traficante, bandido e estuprador criminoso. Nem por isso <strong>as</strong> escol<strong>as</strong><br />
deixam de utilizar outr<strong>as</strong> (e mesmo essa!) músic<strong>as</strong> da banda em atividades didátic<strong>as</strong>.<br />
Com o funk, é diferente. A interdição é total, apesar de apen<strong>as</strong> parte d<strong>as</strong> músic<strong>as</strong> terem palavrões,<br />
insinuações sexuais, machismo, referênci<strong>as</strong> a drog<strong>as</strong> e a crimes - o proibidão. Aí está uma primeira<br />
possibilidade de abordagem: focar em um dos diversos subgêneros. O funk melody de Claudinho e<br />
Buchecha, por exemplo, fala sobre relações amoros<strong>as</strong>. Já o engajado Rap da Felicidade, de Cidinho e<br />
Doca, <strong>que</strong>stiona a apropriação do ritmo n<strong>as</strong>cido n<strong>as</strong> periferi<strong>as</strong> pela cl<strong>as</strong>se média.<br />
Essa é, digamos, uma proposta mais light. O baguio fica loko A situação é mais <strong>com</strong>plicada quando o<br />
funk conhecido pelos alunos é justamente a<strong>que</strong>le capaz de deixar de cabelo em pé até o mais liberal<br />
dos educadores. É a opção dos professores mais ousados, <strong>que</strong> não negam o repertório dos alunos<br />
apresentando apen<strong>as</strong> <strong>as</strong> versões "limpinh<strong>as</strong>" do ritmo. Foi o c<strong>as</strong>o de Felipe, cuja turma era fã de grupos<br />
<strong>com</strong>o o Bonde d<strong>as</strong> Maravilh<strong>as</strong>. Entre os sucessos do conjunto, está a canção Novo Movimento, em <strong>que</strong><br />
el<strong>as</strong> cantam ?El<strong>as</strong> batem <strong>com</strong> a bunda/el<strong>as</strong> sentam <strong>com</strong> a bunda/el<strong>as</strong> quicam <strong>com</strong> a bunda/el<strong>as</strong> jogam<br />
pra trás? sobre movimentos de dança <strong>que</strong> lembram o ato sexual. O <strong>que</strong> ele poderia fazer?<br />
Se canções <strong>que</strong> falam sobre sexo, violência e drog<strong>as</strong><br />
fazem parte do repertório dos alunos, o caminho é,
<strong>com</strong> b<strong>as</strong>e nel<strong>as</strong>, apresentar outr<strong>as</strong> variedades do ritmo<br />
Da batida do soul ao batidão<br />
A opção do professor foi expandir a variedade inicial trazida pelos estudantes e apresentar outr<strong>as</strong>, <strong>que</strong><br />
permitissem enxergar nov<strong>as</strong> facet<strong>as</strong> do ritmo musical (influênci<strong>as</strong> nacionais e internacionais no funk<br />
aparecem no artigo Soul Br<strong>as</strong>ileiro e Funk Carioca). A turma se surpreendeu ao saber <strong>que</strong> o funk<br />
tocado pelos carros <strong>que</strong> circulam na região próxima à escola bebe na fonte de batid<strong>as</strong> criad<strong>as</strong> nos<br />
Estados Unidos. O R&B (rhythm and blues) dos anos 1950 é o seu ancestral mais antigo, <strong>que</strong> ele<br />
<strong>com</strong>partilha <strong>com</strong> o rock e o soul. Do soul, n<strong>as</strong>ceu o movimento hip-hop n<strong>as</strong> periferi<strong>as</strong> de Nova York, e o<br />
funk americano no sul do país, <strong>que</strong> tem James Brown (1933-2006) <strong>com</strong>o um de seus maiores<br />
representantes.<br />
Era para ouvir e dançar <strong>as</strong> músic<strong>as</strong> de Brown <strong>que</strong> os jovens se reuniam n<strong>as</strong> periferi<strong>as</strong> carioc<strong>as</strong> durante<br />
a década de 1970. "Esses eventos eram fre<strong>que</strong>ntados, principalmente, por negros em clubes de<br />
subúrbios e periferi<strong>as</strong>", afirma Carlos Palombini, professor da Universidade Federal de Min<strong>as</strong> Gerais.<br />
Com o tempo, Brown e outros ícones do funk deram espaço a novos estilos. O electro e o miami b<strong>as</strong>s,<br />
marcados por batid<strong>as</strong> repetitiv<strong>as</strong>, se misturaram às batid<strong>as</strong> do hip-hop vindo dos Estados Unidos. "Os<br />
DJs, junto <strong>com</strong> os fre<strong>que</strong>ntadores dos bailes, p<strong>as</strong>saram a exercer um grau crescente de manipulação<br />
sobre esse material, <strong>que</strong>, colocado em relação <strong>com</strong> musicalidades locais, deu origem ao funk carioca",<br />
conta Carlos.<br />
Os MCs do Bonde do Canguru desmontaram mitos do funk ostentação<br />
O tempo p<strong>as</strong>sou e o ritmo foi incorporando nov<strong>as</strong> batid<strong>as</strong>, novos tem<strong>as</strong>, se transformando. Como já<br />
falamos, o probidão é só uma del<strong>as</strong>. Ess<strong>as</strong> referênci<strong>as</strong>, inclusive, já estavam presentes nos ancestrais<br />
d<strong>as</strong> músic<strong>as</strong> mais famos<strong>as</strong> hoje. No miami b<strong>as</strong>s e no blues, <strong>as</strong> referênci<strong>as</strong> sexuais eram constantes, e<br />
no rap são <strong>com</strong>uns <strong>as</strong> letr<strong>as</strong> <strong>que</strong> falam sobre crimes e denunciam a violência policial. Nada disso é<br />
gratuito. O conteúdo se relaciona diretamente <strong>com</strong> a realidade vivida por <strong>que</strong>m produz essa<br />
manifestação cultural. "O funk não é problema, m<strong>as</strong>, no máximo - e apen<strong>as</strong> em parte -, sua<br />
representação", defende Carlos.<br />
Para Felipe, chegava a hora de encarar o proibidão. Primeiro, ele propôs <strong>que</strong> a turma fizesse a<br />
apreciação do repertório selecionado. Quem quisesse podia dançar à vontade. O restante tomou not<strong>as</strong><br />
sobre <strong>as</strong> letr<strong>as</strong>, os ritmos e <strong>as</strong> danç<strong>as</strong>. Depois, se reuniram para discutir o <strong>que</strong> observaram.
Aí veio o ganho pedagógico. "Ficou claro para mim <strong>que</strong>, no momento da dança, nem sempre a relação<br />
entre letra e movimento era clara", lembra Felipe. Uma d<strong>as</strong> alun<strong>as</strong> chegou a dizer: "Quando estou<br />
dançando, não penso na letra e no <strong>que</strong> ela significa, só penso em dançar". A escola foi sua primeira<br />
chance de refletir sobre a mensagem.<br />
O <strong>com</strong>portamento dos meninos também foi para a berlinda. A turma notou <strong>que</strong> quando el<strong>as</strong><br />
dançavam, eles ficavam no fundo da quadra. Indagados, muitos rapazes confessaram estar<br />
observando o corpo d<strong>as</strong> coleg<strong>as</strong>. Nova oportunidade para <strong>que</strong>stionar: se a dança estava sendo feita no<br />
espaço da escola, na aula de Educação Física e <strong>com</strong> o objetivo de analisar os movimentos, ficar<br />
objetificando o corpo d<strong>as</strong> menin<strong>as</strong> era a postura mais adequada? A turma concluiu <strong>que</strong> não.<br />
Os bailes n<strong>as</strong>ceram antes do funk carioca.<br />
Os jovens se reuniam para ouvir <strong>as</strong> músic<strong>as</strong><br />
de James Brown e de outros ídolos americanos<br />
Funkeiros e imagens de fachada<br />
A discussão sobre a dança é polêmica. "O batidão provoca um movimento qu<strong>as</strong>e natural do quadril n<strong>as</strong><br />
pesso<strong>as</strong> <strong>que</strong> gostam de dançar. A forte influência africana aparece aí, <strong>as</strong>sim <strong>com</strong>o no samba", explica<br />
Ana Abrahão, doutoranda em música pela Unicamp. Ela explica <strong>que</strong>, n<strong>as</strong> cultur<strong>as</strong> african<strong>as</strong> <strong>que</strong><br />
influenciaram a criação do funk e do samba, os movimentos de quadril não necessariamente estavam<br />
relacionados <strong>com</strong> a sexualização. No Br<strong>as</strong>il, <strong>as</strong> letr<strong>as</strong> <strong>que</strong> a<strong>com</strong>panham o ritmo reestabeleceram essa<br />
relação.<br />
No ato final, a sequência didática avançou para cima de outro tabu: o funk ostentação. Vertente<br />
popularizada em São Paulo, traz letr<strong>as</strong> e clipes <strong>com</strong> os funkeiros <strong>que</strong> se vangloriam de um estilo de vida<br />
luxuoso. Questão para a turma: essa é uma imagem real? Para responder, Felipe convidou os MCs<br />
Balão e Japinha, do Bonde do Canguru, para conversar <strong>com</strong> a turma. Na entrevista, mitos desfeitos. Os<br />
alunos achavam <strong>que</strong> os plaquê de cem maços de dinheiro, carrões, jói<strong>as</strong> e mansões mostrados nos<br />
vídeos reproduziam o cotidiano dos artist<strong>as</strong>. Os MCs desmentiram, explicando <strong>que</strong> <strong>as</strong> mulheres, os<br />
carros, <strong>as</strong> motos e os cordões de ouro eram, na verdade, atrizes contratad<strong>as</strong> e equipamentos alugados<br />
temporariamente. Confira playlists de vídeos <strong>que</strong> ajudam a entender a história e os diferentes gêneros<br />
do funk em bit.ly/tocafunk.<br />
Convidamos os MCs para uma sessão de fotos dentro da EE Professor Norberto Alvez Rodrigues. M<strong>as</strong> a<br />
autorização demorou demais para vir. O trabalho de Felipe tinha sido controverso e eles não <strong>que</strong>riam<br />
reacender a polêmica. Dentro da escola, o funk continua proibidão.<br />
Para saber mais<br />
Confira playlists de vídeos <strong>que</strong> ajudam a entender a história e os diferentes gêneros do<br />
funk. http://bit.ly/tocafunk<br />
Fotografia: Mariana Pekin<br />
Consultoria: Marcos Neira, professor da Faculdade de Educação da USP, e Carlos Palombini, professor da Universidade<br />
Federal de Min<strong>as</strong> Gerais (UFMG)
Endereço da página:<br />
https://novaescola.org.br/conteudo/8790/na-boca-dopovo-a-coisa-esta-preta<br />
Língua Portuguesa | Sala de aula<br />
Publicado em NOVA ESCOLA Edição 302, 11 de Maio | 2017<br />
Na boca do povo, a coisa<br />
está preta<br />
Sem nos darmos conta, usamos expressões <strong>com</strong> sentido<br />
pejorativo e, muit<strong>as</strong> vezes, racista. Repense o linguajar<br />
<strong>com</strong> a turma<br />
Patrick C<strong>as</strong>simiro<br />
Maggi Krause<br />
Monise Cardoso<br />
Cansado de ouvir xingamentos entre os estudantes, o professor Luiz<br />
Henri<strong>que</strong> de Melo Rosa resolveu listar junto <strong>com</strong> eles os usados na EM<br />
Herbert Moses, no Rio de Janeiro. Entre 600 expressões e apelidos, descobriu<br />
365 de cunho racista. "Isso me chocou, pois a maioria dos alunos é negra.<br />
Falta conhecimento d<strong>as</strong> palavr<strong>as</strong> e de consciência racial", conta o professor<br />
de Biologia, líder do projeto multidisciplinar Qual É a Graça? <strong>que</strong> se iniciou<br />
<strong>com</strong> uma exposição e seguiu <strong>com</strong> discussões sobre escravidão e preconceito.<br />
"A linguagem tem uma responsabilidade grande n<strong>as</strong> relações. É preciso<br />
ensinar desde bem cedo maneir<strong>as</strong> de falar do outro e <strong>com</strong> o outro sem<br />
reproduzir discriminações", defende Maria Edna de Menezes, autora da tese<br />
Reflexos Negros: a Imagem Social do Negro Através d<strong>as</strong> Metáfor<strong>as</strong>.<br />
Dê uma olhada n<strong>as</strong> expressões ilustrad<strong>as</strong> à abaixo. Sabia <strong>que</strong> tod<strong>as</strong> são<br />
pejorativ<strong>as</strong>? B<strong>as</strong>ta refletir sobre sentidos escondidos no seu uso. "Quando<br />
alguém diz: 'Ele é um negro de alma branca', produz um enunciado falso, pois<br />
não se atribui cor à alma. Ele tem intenção de dizer outra coisa, de elogiar",<br />
afirma Vera Menezes, professora da Universidade Federal de Min<strong>as</strong> Gerais<br />
(UFMG) e autora do artigo Metáfor<strong>as</strong> Negr<strong>as</strong>.<br />
Com o racismo implícito, ess<strong>as</strong> expressões de provérbios, poem<strong>as</strong>, músic<strong>as</strong>,<br />
livros e falad<strong>as</strong> na rua merecem um trabalho criterioso em sala de aula (leia a<br />
sugestão abaixo) para pesar na consciência dos alunos "Não b<strong>as</strong>ta mudar a<br />
linguagem para <strong>que</strong> a discriminação deixe de existir." alerta José Luiz Fiorin,<br />
linguista da Universidade de São Paulo (USP). Revelar a origem racista por trás<br />
desse palavreado já é um bom <strong>com</strong>eço.
POR TRÁS DESTAS PALAVRAS<br />
Como não são explícitos, os termos são legitimizados socialmente<br />
"Negro de alma branca"<br />
Utilizada para dizer <strong>que</strong>, apesar da cor negra, o indivíduo carrega qualidades<br />
de pesso<strong>as</strong> branc<strong>as</strong>.<br />
"Fulano tem um pé na cozinha"<br />
Fala sobre alguém <strong>que</strong> tem origem negra. Remete ao período da escravidão,<br />
quando <strong>as</strong> mulheres ficavam restrit<strong>as</strong> às cozinh<strong>as</strong> dos patrões<br />
"Dia de branco"<br />
Se refere a um dia de trabalho. Reforça a ideia de <strong>que</strong> negros são<br />
preguiçosos.<br />
"A coisa tá preta"<br />
Sinônimo de a situação está ruim. Faz analogia às condições miseráveis dos<br />
escravos vindos da África.<br />
"Da cor do pecado"<br />
Usada para elogiar pesso<strong>as</strong> negr<strong>as</strong>, principalmente mulheres. Expressão<br />
hiperssexualizada, dá a entender <strong>que</strong> el<strong>as</strong> causam atração sexual fora do<br />
<strong>com</strong>um.<br />
"Samba do crioulo doido"<br />
Descreve situações de confusão ou trapalhada, liga o negro a bagunça,<br />
desorganização e falta de <strong>com</strong>promisso. A expressão é título do samba de<br />
Sérgio Porto, <strong>que</strong> satirizava o ensino de História do Br<strong>as</strong>il na época da<br />
ditadura.
"Não sou tua nega"<br />
Serve para avisar <strong>que</strong> <strong>com</strong>igo não. P<strong>as</strong>sa a sensação de <strong>que</strong> <strong>com</strong> <strong>as</strong> mulheres<br />
negr<strong>as</strong> pode.<br />
Da realidade para a aula<br />
Proponha a leitura de um texto <strong>com</strong> algum<strong>as</strong> d<strong>as</strong> expressões e levante um<br />
debate, <strong>que</strong>stionando: há alguma palavra ou expressão diferenciada? O <strong>que</strong><br />
el<strong>as</strong> têm em <strong>com</strong>um? Têm sentido pejorativo? Por quê? Você a utiliza? De<br />
alguma forma reproduz o discurso racista?<br />
Peça <strong>que</strong> os alunos pesquisem entre os conhecidos esse tipo de expressões.<br />
Monte um glossário <strong>com</strong> o resultado. É importante <strong>que</strong> a turma descreva em<br />
qual situação usa <strong>as</strong> palavr<strong>as</strong> ou expressões.<br />
Peça <strong>que</strong> os alunos, em grupos, procurem substitutos em dicionários.<br />
Proponha a reescrita do texto utilizando os novos termos.<br />
Ilustração: CATAPRETA