CARTA ABERTA: A CIÊNCIA, A CRISE DE IDENTIDADE E O FUTURO PROFISSIONAL
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AFASTAR-SE DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO PODE
COMPROMETER A IDENTIDADE E O FUTURO DE UMA PROFISSÃO
Estamos próximo a 2020, mas a citação nos remete há mais de 2.000
quando Hipócrates declarou: “De fato, existem duas coisas: ciência e opinião; o
primeiro gera conhecimento; o segundo, ignorância.” Se alguém propusesse um novo
tratamento, Hipócrates provavelmente iria dizer que deveríamos usar a ciência para
decidir se funciona ou não, ao invés de confiar na opinião de alguém. A ciência tem
sua base em experimentos, observações, tentativas, argumentos e discussões e por
meio de uma metodologia adequada busca chegar a um consenso objetivo sobre as
questões presentes no mundo. De fato, a dúvida é o caminho da ciência. Por isso, seu
princípio básico, conhecido como princípio da hipótese nula, nos orienta a partir da
ideia de que fenômeno não existe ou que determinado tratamento, teste ou método
não traz benefício. Mesmo quando uma conclusão testada cientificamente já existe, a
ciência ainda investiga e produz novas conclusões para lacunas ainda não
respondidas. Por outro lado, as opiniões são subjetivas e conflitantes, geralmente
apoiada por conflitos de interesse, e aquele que tiver a melhor campanha, a melhor
presença, o maior carisma tem a maior chance de promover sua opinião,
independentemente de estar certo ou errado.
Quando falamos de tratamentos que serão aplicados na população, a
ciência precisa ser rigorosa e envolver diversas etapas uma vez que, desconhecemos
suas possibilidades de benefício e, muito mais grave, não sabemos os riscos que essas
pessoas poderão estar expostas. Assim, de volta a Hipócrates, e sua frase atribuída
equivocadamente ao Juramento de Hipócrates, mas que na verdade está presente na
coleção de textos gregos Hippocratic Corpus, os tratamentos dos profissionais de
saúde devem seguir este princípio “primeiro não provoque dano” (“primum non
nocere”). Atualmente, podemos considerar que não é “primeiro não provoque dano”,
mas “faça mais bem do que mal”. Em outras palavras, se os riscos conhecidos de um
tratamento forem maiores que os benefícios esperados, eticamente, não podemos
prescrevê-lo. Em seu editorial (Alternative Medicine--The Risks of Untested and
Unregulated Remedies) Angell e Kassirer, quando comentam sobre terapias
alternativas, os autores destacam que os tratamentos (no caso do editorial, os
alternativos) devem ser submetidos a testes científicos não menos rigorosos que os
exigidos para tratamentos convencionais.
Por mais que a produção do conhecimento científico e o acesso a
informação tenham aumentado, isso não foi suficiente para diminuir a lacuna entre
ciência e clínica. Na sua grande maioria, as habilidades para se analisar criticamente,
compreender os resultados da pesquisa e aplica-los na prática clínica não são
desenvolvidos durante o processo de formação profissional. Essas habilidades básicas
para o desenvolvimento do pensamento crítico, incluindo conhecimentos básicos de
probabilidade e estatística, são ensinadas de maneira insuficiente durante a formação.
Essa falha no processo de formação, além de cegar os alunos para a verdade, impacta
negativamente na sua capacidade de responder adequadamente a críticas pertinentes
ao seu campo de atuação. Consequentemente, abre-se espaço para propostas de
tratamento sem fundamentos científico e, muitas vezes, sem qualquer explicação na
biologia/fisiologia. Por exemplo, para justificar tais tratamentos infundados, os
interessados em promover esses tratamentos podem, quando conveniente, substituir os
ensaios clínicos aleatorizados robustos (vistos como "padrão-ouro") que mostram
resultados contrários as suas propostas de tratamento, por outras formas de
“evidência” mais compatíveis que foram desenvolvidas em outras partes do mundo e,
que de maneira surpreendente, nós brasileiros nunca tivemos conhecimento ou
substituí-los por estudos pequenos, estudos com baixa qualidade metodológica,
estudos observacionais ou mesmo relatos de um único caso.
Em todas as áreas da saúde a população tem o direito de esperar que
certos preceitos éticos básicos sejam satisfeitos incluindo: (1) Competência – os
profissionais de saúde devem ser suficientemente qualificados e conhecedores, para
que sua prática clínica seja eficaz e atualizada; (2) Evidência – os tratamentos e
procedimentos de diagnóstico oferecidos devem basear-se em conhecimentos obtidos
por meio de pesquisas robustas; (3) Autonomia – a população deve ser apresentada a
todas as opções de tratamento fundamentadas na ciência e ter a liberdade de escolha,
conhecendo como o tratamento funciona, seus riscos e benefícios; (4) Honestidade –
os profissionais devem se comportar com sinceridade; isso inclui profissionais, órgãos
profissionais, clínicas e hospitais; (5) Ausência de exploração – a população deve ter
certeza que está recebendo tratamentos com base nas melhores evidências disponíveis
e de que não será explorada. Somente assim, e não somando novas intervenções ao
grupo de habilidades e competências profissional, que poderemos servir melhor a
saúde da população.
Adicionar novos tratamentos faz parte da evolução de uma profissão,
desde que esses tratamentos respeitem a ética e tenham sido testados rigorosamente
por métodos científicos adequados. Justificar a inserção de tratamentos por qualquer
outro argumento, é colocar a profissão (como no caso de falta de argumentos na
defesa durante um processo jurídico) e a população em risco. Não é a quantidade de
condutas que um profissional de saúde pode realizar, mas sim, a base científica
existente nos tratamentos propostos que contribui para a sua identidade profissional e
para a melhor percepção dos demais membros da área da saúde. Especificamente, a
minha área de formação está no meio de uma “crise de identidade”. As
especificidades da profissão não são duplicadas por nenhuma outra da área da saúde.
Portanto, como médicos, professores e alunos, percebemos que nós, como
profissionais, somos importantes e que os anos da profissão permitiram um avanço de
conhecimento do qual podemos nos orgulhar. Sendo assim, vejo que esse seria o
momento de investirmos em criar uma base científica sólida na prática clínica das
competências e habilidades já descritas para a profissão ao invés de buscar incluir
qualquer outro procedimento ainda não testado. Isso sim é necessário para melhorar a
qualidade do serviço prestado a população, uma vez que um estudo realizado aqui no
Brasil por um grupo de São Paulo mostrou que a maioria dos profissionais não baseou
a escolha da sua intervenção em pesquisas científicas quando expostos a diferentes
casos clínicos. Essa crise de identidade me lembra uma cena do filme Spies Like Us
(https://www.youtube.com/watch?v=hoe24aSvLtw) em que não parece haver
distinção entre os Doctors gerando uma grande confusão na identidade dos
personagens.
Por fim, o conhecimento superficial e essa carência sobre as bases do
raciocínio científico ainda podem comprometer o futuro de uma profissão. Vivemos
um mundo de confrontos e debates incendiados entre fatos científicos e opiniões
repletas de conflitos de interesse. Essas opiniões, dizem se basear em teorias, mas
quando usada em um contexto não científico, a palavra "teoria" implica que algo não
está comprovado e repousa sobre uma base de suposições, intuição, especulação ou,
palpites. Ironicamente, atualmente, o mesmo conhecimento científico que permitiu
viver vidas longas, saudáveis e prósperas parece não ser considerado. Em prol de uma
profissão com identidade fortalecida, precisamos de líderes que naveguem mais com a
bússola do conhecimento científico do que com o mapa das opiniões.
Felipe Reis, PhD.