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Apocalipse 13 - Isso Poderia Realmente Acontecer - Marvin Moore (1)

teologia, educação, história política

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Título original em inglês:

COULD IT REALLY HAPPEN?

Direitos de tradução e publicação em

língua portuguesa reservados à

CASA PUBLICADORA BRASILEIRA

Rodovia SP 127 – km 106

Caixa Postal 34 – 18270-970 – Tatuí, SP

Tel.: (15) 3205-8800 – Fax: (15) 3205-8900

Atendimento ao cliente: (15) 3205-8888

www.cpb.com.br

1ª edição neste formato

Versão 1.1

2013

Coordenação Editorial: Marcos De Benedicto

Editoração: Matheus Cardoso, Paulo Roberto Pinheiro e Marcos De Benedicto

Design Developer: Anderson Mendes e Éfeso Granieri

Projeto Gráfico e Capa: Éfeso Granieri

Imagens da Capa: Fotolia

3


Todos os direitos reservados. Proibida a

reprodução total ou parcial, por qualquer meio,

sem prévia autorização escrita do autor e da

Editora.

14072/28183

4


Agradecimentos

Desejo agradecer a várias pessoas que contribuíram para o aperfeiçoamento

deste livro. O advogado Alan Reinach, diretor de Liberdade Religiosa da União do

Pacífico da Igreja Adventista do Sétimo Dia, leu vários capítulos que tratam de

questões relacionadas à igreja e ao Estado; em seguida, fez valiosas sugestões. O

Dr. John Markovic, professor de História Europeia na Universidade Andrews, leu

meus capítulos que falam sobre a história da Europa. Seus comentários sobre a

história da Alemanha, examinada no capítulo 5, foram especialmente úteis e

tornaram esse capítulo muito mais preciso. O Dr. Brian Bull, amigo pessoal e

médico da Universidade de Loma Linda, amavelmente se dispôs a ler todo o texto.

Suas sugestões tornaram o livro, como um todo, muito mais fácil de ler. Eu gostaria

também de agradecer a David Jarnes, meu editor, pelo ótimo trabalho de

preparação do texto para publicação. Mesmo as coisas mais bem escritas podem

ser melhoradas por um editor competente, e David certamente realizou isso de

maneira admirável neste livro. Finalmente, desejo expressar meu agradecimento

aos editores da Casa Publicadora Brasileira que trabalharam na edição em

português.

5


Prólogo

Gosto de predições extravagantes e tolas. Quanto mais excêntricas e tolas elas

são, mais gosto delas. Por quê? Porque, quanto mais extravagante e tola uma

predição parecer inicialmente, maior impacto causará quando se cumprir.

É claro que sempre há a possibilidade de que minha predição não se cumpra.

Nesse caso, minha predição não é a única coisa extravagante e tola – eu também

sou! Esse é o risco que corre qualquer pessoa que faça uma predição. Portanto, é

melhor estarmos seguros de que nossas predições têm um fundamento sólido e

racional, de acordo com os melhores fatos disponíveis no momento.

6


F

rederick Wheeler, um ministro metodista episcopal, estava realizando, no

início de 1844, uma cerimônia de santa ceia numa pequena igreja em

Washington, New Hampshire, num domingo de manhã. Antes de servir os

emblemas, ele disse à congregação que “todos os que confessam comunhão com

Cristo numa cerimônia como esta devem estar prontos a obedecer a Deus e

guardar Seus mandamentos em todas as situações”.

Rachel Oakes Preston, uma batista do sétimo dia, assistiu ao culto. Mais tarde,

quando Wheeler a visitou em casa, ela o desafiou:

– O senhor se lembra, pastor Wheeler, de ter afirmado que todos os que

confessam a Cristo devem obedecer a todos os mandamentos de Deus?

– Sim.

– Eu estive a ponto de me levantar naquela hora e dizer uma coisa.

– Percebi – Wheeler respondeu. – O que a senhora pensou em dizer?

– Eu gostaria de dizer que o senhor deveria deixar de usar aquela mesa e

cobri-la com uma toalha até que começasse a guardar os mandamentos de Deus.

Wheeler foi pego de surpresa e perguntou o que ela queria dizer. A Sra. Preston

falou que tinha em mente o quarto mandamento, o qual Wheeler estava violando

por não guardar o sétimo dia da semana. Wheeler aceitou o desafio e foi para casa

estudar o que a Bíblia ensina sobre esse dia. Algumas semanas depois estava

guardando seu primeiro sábado, e, em março de 1844, pregou seu primeiro

sermão sobre o assunto.

Foi assim que Rachel Oakes Preston apresentou o sábado para os adventistas 1 e

7


que Frederick Wheeler se tornou o primeiro ministro adventista do sétimo dia. Na

época, nem a Sra. Preston nem o pastor Wheeler imaginavam o impacto que seria

causado pelo simples diálogo ocorrido naquela manhã de domingo em Washington,

New Hampshire. 2

Não existem detalhes sobre o que aconteceu a seguir. Contudo, sabemos que

Thomas M. Preble, outro pregador que morava em Washington, New Hampshire,

ou próximo dali, ficou convencido da verdade a respeito do sábado e, no verão de

1844, começou a observá-lo. É muito provável que tenha ficado sabendo do sábado

por intermédio de Frederick Wheeler ou algum dos membros da igreja de

Wheeler.

Guilherme Miller, na época, pregava fervorosamente, e, em fevereiro do ano

seguinte, Preble divulgou um artigo sobre o sábado em The Hope of Israel [A

Esperança de Israel], uma publicação milerita. José Bates leu o texto de Preble e,

dentro de poucos dias, decidiu guardar o sábado. Daquele momento em diante,

passou a ser um infatigável defensor do quarto mandamento. No início de 1846,

discutiu o assunto com Tiago White e Ellen Harmon (que depois se tornaria Ellen

White). No entanto, estes, na ocasião, não deram importância ao sábado. Em

agosto de 1846, Bates publicou um panfleto de 48 páginas intitulado The Seventhday

Sabbath, a Perpetual Sign [O Sábado do Sétimo Dia, um Sinal Perpétuo]. Tiago

e Ellen White, que se casaram naquele mesmo mês, estudaram o panfleto de

Bates, convenceram-se de que aquela era a verdade e começaram a guardar o

sábado. Assim se iniciou a longa história da observância do sétimo dia por parte dos

adventistas.

Agora, observe o seguinte: nos últimos 150 anos, o número de membros da

Igreja Adventista do Sétimo Dia, no mundo, cresceu de cerca de três mil (em

1863) para mais de 16 milhões (2009). Por outro lado, os batistas do sétimo dia, que

eram muitas vezes mais numerosos que os adventistas em meados do século 19,

têm hoje um total de cerca de 50 mil membros. Essa minúscula fração

corresponde a 1% dos membros da Igreja Adventista hoje. O que fez a diferença?

Por que os adventistas do sétimo dia cresceram de maneira tão extraordinária

durante os últimos 150 anos, enquanto os batistas do sétimo dia permaneceram em

um número quase estático? Creio que uma das razões seja o fato de que, desde o

início de nossa história, colocamos o sábado num contexto escatológico, ao passo

que os batistas do sétimo dia veem o sábado simplesmente como o dia certo a ser

observado.

O sábado e a escatologia

Escatologia é o estudo dos eventos finais da história deste mundo, antes da

8


segunda vinda de Cristo. Temas escatológicos se encontram ao longo de toda a

Bíblia, mas especialmente em alguns livros do Antigo Testamento (principalmente

Daniel) e em um livro do Novo Testamento: Apocalipse. Além disso, os evangelhos

e as epístolas revelam que Jesus e os apóstolos estavam profundamente

interessados em escatologia. Os apóstolos criam que a segunda vinda de Cristo

ocorreria durante a vida deles ou pouco tempo depois. 3

Daniel e Apocalipse têm fascinado de maneira especial os estudantes das

profecias ao longo dos séculos, e os adventistas não são exceção. Contudo, nossa

compreensão dessas profecias difere significativamente daquela mantida por

intérpretes católicos e protestantes atuais, e o sábado é um aspecto essencial de

nossa perspectiva. Da forma como a compreendemos, a marca da besta (veja Ap

13:16, 17) é um símbolo que indica uma lei que exigirá a observância do domingo,

a qual será imposta primeiramente nos Estados Unidos, pouco antes da segunda

vinda de Cristo, e, depois, em todo o mundo. Cremos que uma questão importante

no conflito final será esta: O povo de Deus deve observar o sábado (o sétimo dia da

semana) ou o domingo (o primeiro dia)?

Esse conceito já existia no início de nosso movimento, cerca de quinze anos

antes de nos organizarmos como igreja. José Bates foi o primeiro a relacionar a

“marca da besta” à observância do domingo. Em um panfleto publicado em

janeiro de 1847, ele escreveu:

Há dezenas de milhares de pessoas que esperam Jesus e que não

creem nas doutrinas mencionadas acima; o que vai acontecer com eles?

Pergunte a João, pois ele sabe das coisas melhor do que nós; e ele só

descreveu dois grupos. Veja Apocalipse 14:9-12. Um desses grupos guarda

“os mandamentos de Deus e a fé de Jesus”. O outro tem a marca da besta.

[...] Não é evidente que o primeiro dia da semana, como dia de guarda ou

dia santo, é a marca da besta? 4

Alguns anos mais tarde, Ellen White, cofundadora da Igreja Adventista em

meados do século 19, expressou a mesma ideia sobre a marca da besta. Em seu

livro Primeiros Escritos, ela disse:

Então compreendi, como nunca antes, a importância de pesquisar

cuidadosamente a Palavra de Deus, para saber como escapar às pragas

que, a Palavra de Deus declara, virão sobre todos os ímpios que adorarem

a besta e sua imagem e receberem o seu sinal em sua testa ou em sua

9


mão. Surpreendi-me grandemente com o fato de alguém transgredir a lei

de Deus e pisar o Seu santo sábado, quando tão terríveis ameaças e

advertências estavam contra eles. 5

Nesse texto, embora Ellen White não declare especificamente a relação entre

a marca da besta e a observância do domingo, é óbvio que ela tinha essa ideia em

mente, pois contrastou a marca da besta com a observância do sábado. Ela

conservou esse conceito ao longo de 70 anos de ministério. Por exemplo, em 1899,

ela escreveu:

Quando for expedido o decreto que impõe o falso sábado [ou seja, o

domingo], e o alto clamor do terceiro anjo advertir as pessoas contra a

adoração da besta e de sua imagem, será traçada com clareza a linha

divisória entre o falso e o verdadeiro. Então, os que ainda persistirem na

transgressão receberão o sinal da besta. 6

De acordo com a declaração anterior, os adventistas creem que, pouco antes

da segunda vinda de Cristo, o mundo será dividido em apenas dois lados: os que

guardam o sábado receberão o selo de Deus, enquanto os que honram o domingo

receberão a marca da besta. Ellen White afirmou:

O Senhor me mostrou claramente que a imagem da besta será

formada antes do fim do tempo da graça; pois será o grande teste para o

povo de Deus, pelo qual seu destino eterno será decidido. [...]

Todos os que provarem sua lealdade a Deus, observando Sua lei e se

recusando a aceitar o sábado espúrio [o domingo], serão enfileirados sob a

bandeira do Senhor Deus Jeová e receberão o selo do Deus vivo. Os que

renunciarem à verdade de origem celeste e aceitarem o domingo como

dia de guarda, receberão a marca da besta. 7

Esse é o contexto escatológico no qual os adventistas do sétimo dia colocam o

sábado. Cremos que Deus nos chamou não apenas para proclamar o que a Bíblia

diz sobre o sábado, mas também a advertir o mundo sobre o conflito final que

girará em torno dos mandamentos de Deus, particularmente o quarto. Segundo

nossa compreensão, no fim dos tempos, a linha divisória entre os que servem a

10


Deus e os que não O servem envolverá essa controvérsia relacionada ao sábado e

ao domingo. Nessa ocasião, os guardadores do sábado serão perseguidos e até

mesmo martirizados por causa de sua lealdade a Deus ao observar o sétimo dia.

Sentimo-nos compelidos a advertir o mundo sobre algo de que a maioria das

pessoas não tem a menor ideia; algo que muitos julgam inacreditável. Estamos

certos de que tais eventos se acham à nossa frente. Esse é um dos principais fatores

que tornaram nossa proclamação do sábado tão mais bem-sucedida que a dos

batistas do sétimo dia. Essa é uma das principais razões pelas quais temos hoje

mais de 16 milhões de adeptos, em comparação aos 50 mil dos batistas do sétimo

dia.

Mas isso poderia realmente acontecer?

O mínimo que se pode dizer é que essa interpretação escatológica do sábado

abrange uma pretensão estupenda, até audaciosa. Mesmo um exame superficial da

história política norte-americana torna difícil a crença em que os Estados Unidos

um dia possam promulgar uma lei dominical nacional, pois, ao longo do tempo,

esse país tem mantido a igreja e o Estado separados.

Por volta de 1970, quando eu era pastor de uma pequena igreja na cidade de

Uvalde, no oeste do Texas, fiz amizade com um comerciante local que era batista.

Certo dia, enquanto estávamos conversando em seu escritório sobre religião e

profecias, eu lhe perguntei se ele tinha interesse em saber o que os adventistas

pregam sobre o tempo do fim. Ele disse que sim. Então, falei algo acerca do que

você leu neste capítulo. Quando terminei, perguntei-lhe o que achava. Ele sorriu e

disse: “Acho absurdo.”

Ele não é a única pessoa que pensa isso, nem a primeira. No início do século

20, um crítico chamou de “absurda” nossa concepção de que a marca da besta

será a imposição da guarda do domingo. Ele disse que, para os Estados Unidos

rejeitarem seu apoio histórico à liberdade religiosa, seria necessário “um milagre

maior do que aquele realizado por Deus: o crescimento instantâneo de um carvalho

gigantesco”. 8

Outro antigo crítico do cenário profético adventista foi D. M. Canright. Popular

evangelista e líder adventista durante os primeiros anos de nosso movimento,

Canright cortou ligação conosco em 1887 e se uniu a uma congregação batista em

Otsego, Nova York. Em seu livro Seventh-day Adventism Renounced [Por que

Renunciei ao Adventismo do Sétimo Dia], Canright escreveu:

Os adventistas do sétimo dia dão grande ênfase à sua interpretação

deste símbolo [a besta semelhante ao cordeiro] de Apocalipse 13:11-18. A

11


teoria deles sobre a marca da besta, sua imagem, o selo de Deus, a

mensagem do terceiro anjo, e toda a sua obra especial sobre o sábado,

está construída sobre sua pressuposição a respeito dessa besta. Se eles

estiverem enganados aqui, todo o sistema teológico deles desmorona. Eles

afirmam que essa besta representa os Estados Unidos; que em breve

ocorrerá nesse país uma união da igreja com o Estado, e isso será a

imagem da besta, isto é, do papado. A marca da besta é a guarda do

domingo. Uma lei vai impor isso aos adventistas. Mas eles não a

obedecerão. Serão proscritos pela lei, perseguidos e condenados à morte.

No tocante a todas as extravagantes especulações adventistas sobre as

profecias, essa merece estar entre as mais extravagantes. 9

Essa linguagem é muito forte! Eu não iria tão longe ao dizer que, se estivermos

errados em nossa interpretação profética de Apocalipse 13, todo o nosso sistema

teológico desmoronaria. Mas é verdade que grande parte do que consideramos

como nossa missão no mundo está baseada em nossa compreensão desse capítulo.

A pergunta fundamental, portanto, é esta: Isso poderia realmente acontecer? É

razoável supor que os Estados Unidos irão, algum dia, legislar sobre o domingo

como dia de descanso? Pode-se crer que, em algum momento, num futuro

relativamente próximo, um edito global exigirá que as pessoas observem o

domingo como dia de repouso e que os violadores sejam ameaçados de morte e,

talvez, até executados? A marca da besta realmente tem a ver com isso?

Meu propósito, ao escrever este livro, não é provar para você que a resposta a

essas perguntas é “Sim”. Desejo apresentar as evidências, da forma como eu e os

adventistas as vemos, e deixar que você decida por si mesmo. É por isso que o

subtítulo deste livro é: “Isso poderia realmente acontecer?”, e não: “Isso Vai

Realmente Acontecer?”.

A profecia e os eventos atuais

Gosto de comparar a interpretação das profecias a um par de óculos de sol. Se

você usar óculos com lentes azuis, o mundo parecerá azul. Se as lentes forem

amarelas, as imagens parecerão ter essa cor. Lentes verdes, por outro lado, darão

ao mundo um tom esverdeado. Da mesma forma, a interpretação dada por

alguém à profecia bíblica afetará a maneira como ele vê o que está acontecendo

no mundo atual e aquilo que provavelmente ocorrerá no futuro. Os

dispensacionalistas, por exemplo, têm uma determinada compreensão da profecia

e interpretam os acontecimentos mundiais à luz desse entendimento. Eles

concentram a atenção no Oriente Médio, especialmente em Israel. Interpretam

12


eventos como o Onze de Setembro, o conflito no Iraque e a luta entre israelenses e

palestinos com base em sua compreensão dispensacionalista da profecia. Suas

lentes proféticas também os levam a fazer certas predições sobre o futuro.

A compreensão profética adventista é bastante peculiar. É como se

colocássemos óculos de sol com lentes muito diferentes daquelas usadas pelos

dispensacionalistas. O mundo parece distinto através de nossas lentes, o que nos

leva a uma explicação singular do que está acontecendo agora e do que esperamos

para o futuro. Embora precisemos ser cautelosos quanto às implicações proféticas

de cada notícia que aparece no jornal ou na TV, as tendências, num certo período

de tempo, podem nos indicar o rumo a que o mundo está seguindo. E nosso

entendimento da profecia bíblica influencia nossa interpretação dessas tendências.

Neste livro, você terá uma explicação detalhada da compreensão adventista de

Apocalipse 13 e de como isso afeta nossa interpretação das tendências no mundo

atual. Este primeiro capítulo é uma breve introdução. O restante do livro examina

os detalhes. Minha discussão envolverá duas perguntas-chave ao longo da

exposição:

• A interpretação adventista de Apocalipse 13 é razoável, isto é, baseia-se no

que a Bíblia realmente diz, ou é mera especulação? Para responder a essa

pergunta, examinaremos esse texto, bem como algumas outras profecias bíblicas.

• Será que a história e os eventos atuais indicam que o cenário adventista é

possível? Para responder a essa questão, estudaremos a história do catolicismo, a

história de protestantes e católicos nos Estados Unidos, e a presença e influência de

ambos os grupos em nossos dias.

Apresentação do livro

Antes de ir para o próximo capítulo, preciso fazer alguns comentários que

facilitarão sua leitura. Em primeiro lugar, gostaria de dizer uma palavra sobre o

que você encontrará. Como foi dito, este livro consiste, em grande parte, num

estudo de Apocalipse 13 à luz da história e dos eventos atuais. Ele está dividido em

três seções, cada uma das quais lida com um aspecto diferente de Apocalipse 13:

• A primeira parte trata da terrível besta que surge do mar (Ap 13:1-

10).

• A segunda parte fala sobre a besta que surge da terra (v. 11-18).

13


• A terceira parte analisa a marca da besta (v. 16, 17).

As primeiras duas seções começam, cada uma, com um capítulo que trata da

base bíblica para a compreensão adventista daquele trecho de Apocalipse 13. A

seção que aborda a marca da besta começa com dois capítulos que expõem a base

bíblica para essa questão. Os capítulos posteriores apresentam evidências históricas

– algumas antigas, outras bastante recentes – com o objetivo de mostrar que a

interpretação adventista tem sólida base em eventos mundiais que já aconteceram

e estão acontecendo.

Em segundo lugar, é válido ressaltar que sempre fui adventista do sétimo dia;

portanto, escrevi este livro a partir de uma ótica adventista. Contudo, também o

redigi tendo em vista os que não são de nossa fé e não estão familiarizados com

nossas crenças. Uma vez que esse texto é direcionado não apenas a adventistas,

mas também a não adventistas, expliquei a base bíblica para nossa interpretação de

Apocalipse 13 com mais detalhes do que seria preciso para muitos adventistas.

Uma observação a respeito de Ellen G. White. Ela é, sem dúvida, a mais

influente escritora adventista. Ela viveu 87 anos – de 1827 a 1915. Em dezembro de

1844, quando tinha apenas 17 anos, recebeu a primeira visão. Ao todo, foram

cerca de dois mil sonhos proféticos e visões que afirmou ter recebido de Deus

durante a vida. Foi a mais prolífica escritora do século 19, e talvez de todos os

tempos. Durante seus mais de setenta anos de ministério, produziu mais de cem mil

páginas manuscritas, ou seja, mais de duas dúzias de livros. Desde sua morte,

trechos de suas cartas e seus diários, além de outros escritos, também têm sido

compilados e publicados no formato de livro.

Os adventistas aceitam Ellen White como uma profetisa genuína, embora ela

preferisse ser conhecida como “mensageira do Senhor”. Ela falou muito sobre o

tempo do fim. Partilhei com você, ao longo deste capítulo, algumas declarações

dela, e a citarei ocasionalmente em futuros capítulos. Os leitores adventistas, sem

dúvida, aceitarão essas citações como inspiradas por Deus. Os não adventistas que

estiverem lendo este livro podem pensar nessas citações como algo simplesmente

representativo daquilo em que os adventistas creem. A maioria dos adventistas

provavelmente irá concordar com a maior parte do que é dito neste livro. Convido

os leitores não adventistas a também aceitarem o que eu digo, se fizer sentido para

eles. De qualquer forma, espero que a leitura desta obra ajude tanto os adventistas

quanto os que não pertencem à nossa fé a compreenderem melhor nossa

interpretação das profecias.

14


1 Passariam outros dezessete anos antes que os adventistas guardadores do

sábado optassem pelo nome adventistas do sétimo dia, e outros dezenove anos antes

que se organizassem como denominação.

2 Veja Seventh-day Adventist Encyclopedia (Washington, DC: Review and

Herald, 1966), p. 1019, 1020; e Arthur W. Spaulding, Origin and History of Seventhday

Adventists (Washington, DC: Review and Herald, 1961), p. 117-119.

3 Veja, por exemplo, Romanos 13:11, 12; Tiago 5:8, 9; 1 Pedro 4:7; 1 João

2:18; Apocalipse 22:7, 12, 20.

4 Joseph Bates, The Seventh-day Sabbath, a Perpetual Sign From the Beginning,

to the Entering Into the Gates of the Holy City According to the Commandment

(New Bedford: Benjamin Lindsey, 1847), p. 59, ênfase acrescentada; em C.

Mervy n Maxwell, Development of Seventh-day Adventist Theology Source Book:

Maxwell Source Collection, material preparado para a disciplina de História da

Teologia Adventista, p. 271.

5 Ellen G. White, Primeiros Escritos (Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2001

[CD-Rom]), p. 65.

6 Ellen G. White, Manuscrito 51, 1899; citado em Ellen G. White, Evangelismo

(Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2001 [CD-Rom]), p. 234, 235.

7 Ellen G. White, The Seventh-day Adventist Bible Commentary (Washington,

DC: Review and Herald, 1957), v. 7, p. 976.

8 Theodore Nelson, na introdução ao livro de Dudley M. Canright, Seventh-day

Adventism

Renounced (Nashville: Gospel Advocate Company, 1914), p. 23.

9 Canright, ibid., p. 89.

15


Q

ual foi a última vez que você olhou para uma pintura? Era o retrato de um

homem simpático, uma mulher bonita ou, talvez, uma paisagem? Você

usou uma lente de aumento para examinar os detalhes? Essa não é a

melhor maneira de apreciar a beleza de uma pintura, não é mesmo? O artista tem

de prestar muita atenção a cada pincelada que dá, uma vez que, após o término da

obra, os críticos de arte irão analisar esses detalhes. No entanto, bem de pertinho,

essas pinceladas individuais não são muito atrativas. Se você realmente deseja

apreciar a beleza da produção do artista, tem de se afastar e olhar para o quadro

todo. Mais cedo ou mais tarde, até os críticos deverão se distanciar para enxergar o

“quadro mais amplo”.

O Apocalipse está cheio de imagens – quadros, por assim dizer. Você

encontrará mais dessas imagens simbólicas no Apocalipse do que em qualquer

outra parte da Bíblia. Neste livro, vamos ser “críticos de arte” das imagens do

Apocalipse. Passaremos bastante tempo examinando os detalhes dessas imagens,

especialmente as do capítulo 13. Assim como os detalhes de uma pintura não nos

mostram o quadro como um todo, também nossa compreensão do Apocalipse não

poderá ser completa se atentarmos apenas para os detalhes. Por isso, neste

capítulo, vamos dar uma olhada no “quadro mais amplo” do Apocalipse.

Examinaremos os detalhes em capítulos posteriores.

O grande conflito

Você não precisa ser um teólogo para compreender a mensagem básica do

Apocalipse. Até uma pessoa não religiosa que estiver lendo casualmente a última

metade do livro (do capítulo 12 ao 22) pode entender que o tema principal é a

batalha entre o bem e o mal – o que os adventistas do sétimo dia têm

16


tradicionalmente chamado de “o grande conflito”. De acordo com o Apocalipse,

esse conflito se iniciou no Céu milhares de anos atrás. Apocalipse 12:7 diz: “Houve

peleja no Céu. Miguel e os Seus anjos pelejaram contra o dragão. Também

pelejaram o dragão e seus anjos.” Miguel é o líder dos anjos leais do Céu, e o

dragão é Satanás, o líder dos anjos que se rebelaram contra Deus.

Essa guerra, porém, não afetou apenas o Céu. O Apocalipse diz que o dragão

“foi atirado para a Terra, e, com ele, os seus anjos” (v. 9). Portanto, a batalha entre

o bem e o mal se transferiu para a Terra e tem estado em andamento desde pouco

tempo depois de Deus ter criado nosso mundo. Mesmo hoje não é preciso muita

coisa para se perceber o conflito em ação. Basta passar alguns momentos lendo o

jornal ou assistindo ao noticiário na televisão para se ver o suficiente.

Grande parte da segunda metade do Apocalipse se concentra especialmente

nos últimos meses, ou talvez anos, do conflito entre o bem e o mal – fase a que vou

me referir como o “conflito final”. Nessa ocasião, Satanás irá intensificar seus

esforços a fim de intimidar os seres humanos e controlá- los. E a maioria das

pessoas vai se deixar levar sem resistência. O Apocalipse diz: “Toda a Terra se

maravilhou, seguindo a besta” (13:3). Diz ainda: “E adorá-la-ão todos os que

habitam sobre a Terra, aqueles cujos nomes não foram escritos no Livro da Vida

do Cordeiro que foi morto desde a fundação do mundo” (v. 8).

O ponto de disputa será a obediência. Ao longo da história, o povo de Deus tem

se deparado com a questão da obediência a Deus ou aos poderes do mal que há no

mundo, questão essa que será crucial no conflito final. Adão e Eva tiveram que

optar pela obediência a Deus ou à serpente. Escolheram ceder à sugestão da

serpente (veja Gn 3). Em contrapartida, Sadraque, Mesaque e Abede-Nego, diante

da ameaça de morte numa fornalha ardente, escolheram obedecer a Deus, em vez

de adorar a imagem de ouro de um rei pagão (veja Dn 3). No Novo Testamento,

Jesus obedeceu a Seu Pai ao Se submeter à cruz. No conflito final, a pergunta será

a mesma: Será que o povo de Deus irá obedecer a Ele, ou irá ceder à pressão

política dos poderes mundiais no último período da história da humanidade, os quais

tentarão fazer com que os seres humanos desobedeçam às leis de Deus?

Apocalipse 12:17 apresenta a integridade do povo de Deus no tempo do fim e o

conflito que isso provocará entre os fiéis e as forças do mal: “Irou-se o dragão

[Satanás] contra a mulher [o povo de Deus] e foi pelejar com os restantes da sua

descendência, os que guardam os mandamentos de Deus e têm o testemunho de

Jesus” (ênfase acrescentada). E o capítulo 14:12 diz: “Aqui está a perseverança dos

santos, os que guardam os mandamentos de Deus e a fé em Jesus” (ênfase

acrescentada).

Portanto, segundo o Apocalipse, os mandamentos de Deus – Sua lei – serão um

ponto central no conflito final. O povo de Deus permanecerá leal à Sua lei, mas

17


isso trará sobre eles a ira dos poderes político-religiosos apóstatas da Terra. Eis a

descrição desse aspecto do conflito final feita por Ellen White:

O último grande conflito entre a verdade e o erro não é senão a luta

final da prolongada controvérsia relativa à lei de Deus. Estamos agora a

entrar nessa batalha – batalha entre as leis dos homens e os preceitos de

Jeová, entre a religião da Bíblia e a religião das fábulas e da tradição. 1

Contudo, a obediência é apenas parte da questão no Apocalipse. A outra parte é

a fé. Os cristãos frequentemente falam sobre a “justificação pela fé”. Uma

correta compreensão da justificação pela fé se pauta em um equilíbrio correto

entre fé e obras. Uma ênfase demasiada na fé leva à graça barata, enquanto que a

exagerada importância dada às obras conduz ao legalismo. O povo de Deus que

viver durante o tempo do fim terá uma compreensão correta tanto da fé como das

obras. O próprio Apocalipse sugere isso quando diz: “Aqui está a perseverança dos

santos, os que guardam os mandamentos de Deus e a fé em Jesus” (Ap 14:12,

ênfase acrescentada).

Os dois lados

O conflito final envolverá questões profundamente espirituais. O mundo estará

dividido em dois campos, sendo que o povo de Deus estará de um lado, e as forças

do mal estarão arregimentadas contra ele do outro. Não devemos imaginar que

será suficiente o “cristianismo de fachada”. Jesus advertiu que, quando vier pela

segunda vez, muitas pessoas irão Lhe dizer: “Senhor, Senhor! Porventura, não

temos nós profetizado em Teu nome, e em Teu nome não expelimos demônios, e

em Teu nome não fizemos muitos milagres? Então, lhes direi explicitamente: nunca

vos conheci. Apartai- vos de Mim, os que praticais a iniquidade” (Mt 7:22, 23).

Observe que essas pessoas creem em Jesus. São membros de igreja leais e

íntegros. São fiéis a seus cônjuges, devolvem o dízimo e ocupam importantes

cargos na igreja. Contudo, Jesus lhes dirá: “Nunca vos conheci.” Também

podemos dizer o contrário: que eles nunca O conheceram. Seu cristianismo era

muito superficial. Consistia na compreensão intelectual de uma série de doutrinas e

na realização de boas obras. Acharam que, sendo membros da “igreja

verdadeira”, teriam garantido acesso ao Céu. Você provavelmente cruza com

algumas dessas pessoas em sua igreja. Mas ficará surpreso, um dia, ao descobrir

que elas não estarão junto a você durante a crise descrita no Apocalipse.

18


Creio que muitas dessas pessoas se posicionarão ao lado de Satanás durante o

conflito final. Isso pode parecer estranho a você. Mas tenha em mente que o último

conflito será primariamente uma batalha espiritual envolvendo assuntos

profundamente espirituais, e Satanás usará argumentos muito sutis para manter as

pessoas do seu lado. Jesus fez a seguinte advertência: “Porque surgirão falsos

cristos e falsos profetas operando grandes sinais e prodígios para enganar, se

possível, os próprios eleitos” (Mt 24:24). O mundo estará dividido em apenas dois

grupos no tempo do fim: o daqueles que são fiéis a Deus e o daqueles que são leais

a Satanás. Infelizmente, muitos supostos cristãos terão uma surpresa ao descobrir,

quando tudo terminar, que escolheram o lado errado.

Várias parábolas de Jesus ilustram a divisão do mundo em dois lados. Certa

vez, Ele chamou os justos de “boa semente”, e os ímpios, de “joio” (Mt 13:37-43).

Em outro momento, chamou-os de ovelhas e bodes (Mt 25:31-33). O Apocalipse

também apresenta símbolos para esses dois grupos de pessoas no fim dos tempos.

Os justos recebem o selo de Deus, ao passo que os ímpios recebem a marca da

besta (Ap 7:1-4; 13:16, 17). O povo de Deus guardará Seus mandamentos,

enquanto os ímpios estabelecerão suas próprias leis e se rebelarão contra as leis de

Deus. Como se isso não bastasse, estes ainda tentarão forçar o mundo todo,

inclusive o povo de Deus, a unir- se a eles em sua rebelião contra Deus.

Isso irá resultar numa luta de vida ou morte entre o povo de Deus e os poderes

do mal presentes no mundo – e, a princípio, parecerá que as forças do mal estão

ganhando. Apocalipse 13:7 fala sobre a besta que sai do mar: “Foi-lhe dado,

também, que pelejasse contra os santos e os vencesse” (ênfase acrescentada). O

verso 15 afirma que os que se recusarem a prestar adoração da maneira

politicamente correta serão mortos. Apocalipse 17 descreve uma mulher perversa

“embriagada com o sangue dos santos” (v. 6), ou seja, daqueles que foram

martirizados.

Essas declarações do Apocalipse dão a impressão de que os poderes do mal

irão vencer no conflito final. E, de fato, a princípio parecerá que eles venceram,

assim como pareceram vencer quando o Filho de Deus morreu na cruz. Os cristãos

entendem que, com Sua morte, Jesus obteve uma grande vitória. Contudo, aqueles

que testemunharam Sua crucifixão pensaram que Ele havia perdido. Até Seus

discípulos, lamentando Sua morte, disseram: “Ora, nós esperávamos que fosse Ele

quem havia de redimir a Israel” (Lc 24:21). Da mesma forma, durante o último

conflito haverá a impressão de que os poderes malignos da Terra venceram e que

o povo de Deus perdeu.

O mundo recompensará a lealdade dos justos a Deus e aos Seus mandamentos

com perseguição e morte, e as pessoas se alegrarão com a aparente vitória dos

poderes do mal. Eis como o Apocalipse descreve a alegria do mundo ao ver a

19


perseguição contra os que permanecerem fiéis a Deus: “Quando tiverem, então,

concluído o testemunho que devem dar, a besta que surge do abismo pelejará

contra elas, e as vencerá, e matará [...]. Os que habitam sobre a Terra se alegram

por causa deles, realizarão festas e enviarão presentes uns aos outros, porquanto

esses dois profetas atormentaram os que moram sobre a Terra” (Ap 11:7, 10).

O mundo nunca apreciou as leis de Deus. Acha que Seus princípios morais lhes

restringem a liberdade. Quando o povo de Deus chama a atenção para Suas leis, o

mundo responde com zombaria. É por isso que, durante o conflito final, “os que

habitam sobre a Terra se alegrarão por causa” dos fiéis que exaltarão Suas leis.

Obviamente, esse será um tempo de grande sofrimento para o povo de Deus.

Um mundo rebelde tentará fazer com que os justos desistam de sua lealdade a

Deus. Por que o povo de Deus permanecerá fiel a Ele durante esse tempo? Os

versos que anteriormente lemos nos dão a resposta:

• “O dragão [Satanás] irou-se contra a mulher [o povo de Deus] e saiu

para guerrear contra o restante da sua descendência, os que [...] se

mantêm fiéis ao testemunho de Jesus” (Ap 12:17, NVI, ênfase

acrescentada).

• “Aqui está a perseverança dos santos que [...] permanecem fiéis a

Jesus” (Ap 14:12, NVI, ênfase acrescentada).

Os fiéis conservarão sua lealdade a Deus porque “se manterão fiéis ao

testemunho de Jesus” e “permanecerão fiéis a Jesus”. A chave é o relacionamento

íntimo com Jesus, que nos dá a vitória sobre a tentação. Na crise final haverá o que

o Apocalipse chama de a “hora da provação que há de vir sobre o mundo inteiro”

(Ap 3:10). Ellen White afirma que a intensidade da pressão exercida sobre o povo

de Deus durante a crise final “mostrará se há fé real nas promessas de Deus.

Mostrará se ela está sustida pela graça”. 2 Não é necessário ser um adventista para

compreender que o relacionamento que agora você e eu desenvolvemos com

Jesus determinará se permaneceremos leais a Deus, ou se renunciaremos às

nossas convicções.

O fim do conflito

Aparentemente o mundo terá vencido o povo de Deus, mas essa vitória se dará

por pouco tempo. No último minuto, quando os fiéis selariam sua entrega com o

próprio sangue, Jesus intervirá em seu favor. O Apocalipse descreve o evento desta

20


forma:

• “Pelejarão eles [os poderes malignos da besta] contra o Cordeiro, e o

Cordeiro os vencerá, pois é o Senhor dos senhores e o Rei dos reis; vencerão

também os chamados, eleitos e fiéis que se acham com Ele” (Ap 17:14).

• “E vi a besta e os reis da terra, com os seus exércitos, congregados para

pelejarem contra Aquele [Cristo] que estava montado no cavalo e contra o Seu

exército. Mas a besta foi aprisionada, e com ela o falso profeta [...]. Os dois foram

lançados vivos dentro do lago de fogo que arde com enxofre” (Ap 19:19, 20).

Esses dois versos são, na verdade, vislumbres da batalha do Armagedom (veja

Ap 16:12-16). Contrariamente à opinião popular, o Armagedom não será uma

guerra entre nações da Terra. Ao contrário, será uma batalha entre os poderes

espirituais do bem e do mal no mundo. Durante a fase inicial, parecerá que as

forças do mal estão ganhando. Mas, no último minuto, quando tudo parecer

perdido, Jesus retornará à Terra, abaterá as forças do mal e livrará Seu povo do

poder delas.

Apocalipse 13

No restante do livro, examinaremos Apocalipse 13 de forma detalhada.

Porém, creio que será útil ter primeiro uma visão geral desse capítulo da Bíblia.

Para começar, recomendo que você leia todo o capítulo. A seguir, transcrevemos o

texto completo, extraído da Nova Versão Internacional. Como Apocalipse 12:17

está intimamente ligado ao capítulo 13, iniciaremos com esse verso.

(Ap 12:17) O dragão irou-se contra a mulher e saiu para guerrear contra o

restante da sua descendência, os que obedecem aos mandamentos de Deus e

se mantêm fiéis ao testemunho de Jesus.

(18) Então o dragão se pôs em pé na areia do mar.

(13:1) Vi uma besta que saía do mar. Tinha dez chifres e sete cabeças,

com dez coroas, uma sobre cada chifre, e em cada cabeça um nome de

blasfêmia. (2) A besta que vi era semelhante a um leopardo, mas tinha pés

como os de urso e boca como a de leão. O dragão deu à besta o seu poder, o

seu trono e grande autoridade. (3) Uma das cabeças da besta parecia ter

sofrido um ferimento mortal, mas o ferimento mortal foi curado. Todo o

21


mundo ficou maravilhado e seguiu a besta. (4) Adoraram o dragão, que tinha

dado autoridade à besta, e também adoraram a besta, dizendo: “Quem é

como a besta? Quem pode guerrear contra ela?”

(5) À besta foi dada uma boca para falar palavras arrogantes e blasfemas,

e lhe foi dada autoridade para agir durante quarenta e dois meses. (6) Ela

abriu a boca para blasfemar contra Deus e amaldiçoar o Seu nome e o Seu

tabernáculo, os que habitam nos Céus. (7) Foi-lhe dado poder para guerrear

contra os santos e vencê-los. Foi-lhe dada autoridade sobre toda tribo, povo,

língua e nação. (8) Todos os habitantes da Terra adorarão a besta, a saber,

todos aqueles que não tiveram seus nomes escritos no livro da vida do

Cordeiro que foi morto desde a criação do mundo.

(9) Aquele que tem ouvidos ouça:

(10) Se alguém há de ir para o cativeiro,

para o cativeiro irá.

Se alguém há de ser morto à espada,

morto à espada haverá de ser.

Aqui estão a perseverança e a fidelidade dos santos.

(11) Então vi outra besta que saía da terra, com dois chifres como

cordeiro, mas que falava como dragão. (12) Exercia toda a autoridade da

primeira besta, em nome dela, e fazia a Terra e seus habitantes adorarem a

primeira besta, cujo ferimento mortal havia sido curado. (13) E realizava

grandes sinais, chegando a fazer descer fogo do céu à Terra, à vista dos

homens. (14) Por causa dos sinais que lhe foi permitido realizar em nome da

primeira besta, ela enganou os habitantes da Terra. Ordenou-lhes que

fizessem uma imagem em honra à besta que fora ferida pela espada e

contudo revivera. (15) Foi-lhe dado poder para dar fôlego à imagem da

primeira besta, de modo que ela podia falar e fazer que fossem mortos todos

os que se recusassem a adorar a imagem. (16) Também obrigou todos,

pequenos e grandes, ricos e pobres, livres e escravos, a receberem certa

marca na mão direita ou na testa, (17) para que ninguém pudesse comprar

nem vender, a não ser quem tivesse a marca, que é o nome da besta ou o

número do seu nome.

(18) Aqui há sabedoria. Aquele que tem entendimento calcule o número

da besta, pois é número de homem. Seu número é seiscentos e sessenta e

seis.

22


Tenho certeza de que você notou que Apocalipse 13 descreve duas grandes

bestas. Uma sai do mar, e outra, da terra. Assim, no restante de nosso estudo eu as

chamarei de “a besta do mar” e “a besta da terra”.

Visão geral das duas bestas

O que ou quem essas duas bestas representam? Os adventistas, juntamente

com a maioria dos demais intérpretes da profecia, entendem que uma das bestas,

nas profecias apocalípticas, representa uma poderosa entidade política, um grande

poder que exerce domínio sobre grande território. Há vários séculos, um anjo disse

ao profeta Daniel que as quatro grandes bestas de Daniel 7:1-8 representam

“quatro reis (ou ‘reinos’) que se levantarão da Terra” (Dn 7:17). Era sem dúvida o

mesmo anjo que afirmou a Daniel que o carneiro e o bode de Daniel 8:1-8

representam os reinos da Média- Pérsia e da Grécia (Dn 8:20, 21).

Nesse contexto, surgem naturalmente estas perguntas: Que poderes mundiais a

besta do mar e a besta da terra representam? Essas entidades políticas somente

existiram no passado ou estão presentes no mundo hoje? Para responder a essas

questões, vamos começar com uma visão geral das duas bestas – o “quadro mais

amplo” de Apocalipse 13.

Poderes globais. O primeiro fato que notamos sobre essas duas bestas é que

ambas são poderes político-religiosos com influência global. A besta do mar é

claramente um poder político mundial, porque “deu-se-lhe ainda autoridade sobre

cada tribo, povo, língua e nação” (Ap 13:7). Sabemos que sua natureza é religiosa

pelo fato de que o mundo a adora e ela “abriu a boca em blasfêmias contra Deus,

para Lhe difamar o nome e difamar o tabernáculo, a saber, os que habitam no

Céu” (v. 6). A besta da terra também é um poder político global, porque tem

autoridade para ordenar que os habitantes da Terra façam uma imagem da besta

do mar (v. 14). Além disso, sua autoridade religiosa é evidente, já que ela faz

morrer todos os que não adoram a imagem da besta (v. 15).

Falsa adoração. Uma leitura atenta de Apocalipse 13 mostra que ambas as

bestas promovem a falsa adoração. Com exceção do remanescente, o povo de

Deus no tempo do fim, toda a população do mundo adorará a besta do mar (v. 8), e

a besta da terra forçará os seres humanos a adorar a imagem da besta do mar (v.

15).

Perseguição religiosa. Outro fator comum a essas duas bestas é que ambas

perseguem os que se opõem a seu programa político-religioso. A besta do mar

guerreia contra os santos e os vence (v. 7), e, como já foi observado, a besta da

terra força o mundo todo a adorar a imagem da besta do mar (v. 15).

23


Poderes no tempo do fim. Outra conclusão a que chegamos sobre a besta do

mar e a besta da terra é a seguinte: ambas são poderes presentes nos últimos dias.

Isso se torna evidente pelo fato de que elas cooperam entre si para impor a marca

da besta, que a maioria dos estudiosos do Apocalipse entende ser um fenômeno do

fim dos tempos.

Muitos intérpretes da profecia estão convencidos de que vivemos hoje no

tempo do fim. Se isso é verdade, pode-se afirmar que esses dois poderes

terrivelmente intolerantes existem no mundo hoje. Vinte, trinta ou quarenta anos

atrás, alguns estudantes das profecias afirmavam que a União Soviética comunista

era uma dessas bestas. No entanto, essa opção deixou de existir aproximadamente

em 1990. Hoje pode ser mais tentador pensar em terroristas islâmicos como uma

dessas bestas. Contudo, o comunismo e o terrorismo islâmico não nos reportam à

identificação correta de qualquer das duas bestas. No próximo capítulo, partilharei

com você a compreensão adventista da besta do mar. Capítulos posteriores

abordarão a besta da terra, a imagem da besta e a marca da besta.

1 Ellen G. White, O Grande Conflito (Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2001

[CD-Rom]), p. 582.

2 Ellen G. White, Parábolas de Jesus (Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2001

[CD-Rom]), p. 412.

24


A Besta do Mar

25


S

uponha que, enquanto você e eu estamos conversando sobre um amigo em

comum cujo nome é João, eu diga a seguinte frase: “João é um buldogue!”

Imediatamente você entende que não estou afirmando que nosso amigo é

um membro da espécie canina. Em vez disso, refiro-me a alguma característica

relacionada aos buldogues que também se aplica a João, ou pelo menos à maneira

como o vejo. Ao utilizar essa palavra, quero dizer que ele é muito agressivo e

tenaz; que, quando coloca algo na cabeça, corre atrás daquilo e não desiste até que

o tenha conseguido.

Usada dessa forma, a palavra buldogue se constitui numa metáfora, ou seja,

num símbolo. Cada língua, cada cultura tem símbolos como esse. E o Apocalipse

está cheio deles: bestas, estrelas, trombetas, tronos e coroas, entre muitos outros.

Há apenas um problema com os símbolos do Apocalipse: não podemos encontrar

seu significado tão facilmente. Em relação à maior parte deles, o último livro da

Bíblia não nos orienta quanto às suas respectivas representações. Há exceções, sem

dúvida. Por exemplo, em Apocalipse 12:9 somos informados de que o dragão

representa o “diabo ou Satanás”. Mas a maioria dos símbolos do Apocalipse não

são acompanhados de descrições que nos ajudem a compreender o que eles

significam.

Então, como é que o Apocalipse pode fazer sentido para nós se não é tão fácil

descobrir o significado de muitos dos seus símbolos? Na verdade, o sentido de

alguns é mais ou menos óbvio. Por exemplo, em nossa cultura moderna, bem

como na cultura romana de 2 mil anos atrás, uma coroa representa uma

autoridade governante. O mesmo se aplica a um trono. Portanto, quando lemos

algo sobre coroas e tronos no Apocalipse, podemos estar certos de que esses

símbolos representam alguma forma de governo. O trono de Deus aparece

26


repetidamente nesse livro, o que significa que Deus tem um governo que abrange

todo o Universo, ao passo que as autoridades terrestres dominam apenas sobre um

pequeno território do mundo.

Pode-se também determinar o sentido de um símbolo no Apocalipse

examinando a forma como ele é usado em outras partes da Bíblia. Essa

abordagem será utilizada em certos momentos neste livro.

A guerra é um dos símbolos mais frequentes no Apocalipse e uma metáfora

óbvia para conflito. Nesse livro, a guerra é geralmente uma representação do

conflito entre as forças do bem e do mal. Começamos a examinar essa guerra no

capítulo anterior e vimos que ela começou no Céu: “Houve peleja no Céu. Miguel

e os Seus anjos pelejaram contra o dragão. Também pelejaram o dragão e seus

anjos” (Ap 12:7). Miguel é o líder do exército celestial de Deus, enquanto que o

dragão é Satanás. Este perdeu a guerra no Céu. O Apocalipse diz que ele “foi

atirado para a Terra, e, com ele, os seus anjos” (v. 9). Confira o seguinte trecho de

um verso posterior, cujo tom é bastante admoestador:

Ai da terra e do mar,

pois o diabo desceu até vós,

cheio de grande cólera,

sabendo que pouco tempo lhe resta (v. 12).

Nosso mundo está mergulhado nessa guerra há milhares de anos. Satanás está

furioso porque perdeu a guerra no Céu, e sua ira o está impulsionando com maior

intensidade a ganhar aqui a batalha que perdeu lá. No tocante à maioria das

pessoas, Satanás já ganhou a guerra, já que os seus aliados são muitos. O objeto de

sua ira hoje é o grupo de pessoas que ainda resiste a ele. Este livro trata da guerra

contra o povo de Deus que será travada em nosso planeta pouco antes da volta de

Jesus. Apocalipse 12:17 apresenta essa fase final do conflito: “Irou-se o dragão

contra a mulher e foi pelejar com os restantes da sua descendência, os que

guardam os mandamentos de Deus e têm o testemunho de Jesus.”

O dragão, nesse verso, é Satanás, e a mulher representa o povo de Deus. Esse

texto confirma a afirmação de que os principais participantes do conflito final na

Terra serão Satanás e o povo de Deus. Nesse momento, a ira de Satanás atingirá o

nível máximo. Os fiéis que estiverem vivos durante esse conflito terão de lidar com

um inimigo extremamente hostil. Mas será que isso é tudo o que sabemos sobre o

conflito final? De modo algum! Apocalipse 12:17 apresenta apenas uma

27


introdução. O capítulo 13 é que nos fornece uma grande quantidade de detalhes.

Esse texto foi examinado de maneira geral no capítulo anterior deste livro. Agora,

é hora de atentarmos às minúcias. No restante deste capítulo, analisaremos a besta

que surge do mar com o propósito de expor a base bíblica para a compreensão

adventista da besta do mar e do seu papel durante a crise final que ocorrerá na

Terra.

Identificando a besta do mar

A maioria dos estudiosos atuais das profecias afirma que a besta do mar

representa o Império Romano (intérpretes preteristas) ou um anticristo futuro,

secular e ateu que emergirá durante a “grande tribulação” (intérpretes futuristas).

Mas os adventistas do sétimo dia entendem que a besta do mar representa o

papado. Chegamos a essa interpretação ao comparar a besta do mar com o chifre

pequeno de Daniel 7.

Em Daniel 7, o profeta descreve uma visão envolvendo quatro animais que

subiam do mar. Esses animais estão listados a seguir na coluna do lado esquerdo. A

coluna do lado direito mostra o reino que cada animal representa:

Leão (Dn 7:3, 4) Babilônia

Urso (v. 5) Média-Pérsia

Leopardo (v. 6) Grécia

Animal terrível (v. 7, 8) Roma

Em sua descrição da besta do mar (Ap 13:2), João utilizou palavras usadas por

Daniel para descrever os quatro animais:

• A besta do mar tinha “boca como de leão” (ênfase acrescentada).

• Tinha “pés como de urso” (ênfase acrescentada).

• A besta como um todo “era semelhante a leopardo” (ênfase acrescentada).

• “E deu-lhe o dragão o seu poder, o seu trono e grande autoridade” (ênfase

acrescentada).

Ao falar sobre a besta do mar em Apocalipse 13, João obviamente tinha em

28


mente a visão de Daniel sobre os quatro grandes animais, o último dos quais tinha

dez chifres. Daniel viu que um chifre pequeno surgiu e arrancou três dos dez outros

chifres, a fim de abrir espaço para si próprio. Daniel 7:25 apresenta uma descrição

detalhada desse chifre pequeno. Apocalipse 13:5-7 introduz quatro símbolos

adicionais baseados em Daniel 7:25. O gráfico a seguir compara as palavras

relevantes de cada passagem.

SEMELHANÇAS ENTRE O CHIFRE PEQUENO E A

BESTA DO MAR

Chifre pequeno

Daniel 7

Besta do mar

Apocalipse 13

Blasfema contra Deus

“Neste chifre havia [...] uma boca que

falava com insolência” (v. 8). “Proferirá

palavras contra o Altíssimo” (v. 25).

Blasfema contra Deus

“Foi-lhe dada uma boca que

proferia arrogâncias e

blasfêmias” (v. 5). “E abriu a

boca em blasfêmias contra

Deus” (v. 6).

Persegue o povo de Deus

“Magoará os santos do Altíssimo” (v.

25).

Persegue o povo de Deus

“Foi-lhe dado, também, que

pelejasse contra os santos” (v.

7).

Vence o povo de Deus

“Os santos lhe serão entregues nas

mãos” (v. 25).

Vence o povo de Deus

Foi permitido que “vencesse” os

santos (v. 7).

29


É-lhe concedido um período de tempo

“Os santos lhe serão entregues nas

mãos, por um tempo, dois tempos e

metade de um tempo” (v. 25, ênfase

acrescentada) – isto é, 1.260 dias.

É-lhe concedido um período de

tempo

“Foi-lhe dada [...] autoridade

para agir quarenta e dois

meses” (v. 5, ênfase

acrescentada) – isto é, 1.260

dias.

As semelhanças entre o chifre pequeno de Daniel 7 e a besta do mar de

Apocalipse 13 não deixam dúvida alguma de que ambos simbolizam o mesmo

poder terrestre. Alguns intérpretes afirmam que o chifre pequeno representa o

anticristo do tempo do fim. Contudo, os intérpretes adventistas têm

consistentemente relacionado o chifre pequeno ao papado medieval. Se essa

compreensão está correta, é evidente a conclusão de que a besta do mar de

Apocalipse 13 também representa o papado. Com que base, então, os adventistas

estabelecem essa identificação?

O chifre pequeno é realmente o papado?

O chifre pequeno de Daniel 7 cresceu na cabeça do quarto animal, que

representa o Império Romano. Portanto, é necessário estudar mais atentamente

esse animal. Eis a forma como Daniel descreveu sua visão:

Depois disto, eu continuava olhando nas visões da noite, e eis aqui o

quarto animal, terrível, espantoso e sobremodo forte, o qual tinha grandes

dentes de ferro; ele devorava, e fazia em pedaços, e pisava aos pés o que

sobejava; era diferente de todos os animais que apareceram antes dele e

tinha dez chifres.

Estando eu a observar os chifres, eis que entre eles subiu outro

pequeno, diante do qual três dos primeiros chifres foram arrancados; e eis

que neste chifre havia olhos, como os de homem, e uma boca que falava

com insolência (Dn 7:7, 8).

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De acordo com o texto, estes eram os primeiros três animais da visão de

Daniel: leão, urso e leopardo. Contudo, a quarta besta era tão incomum, tão

diferente de qualquer coisa que ele já havia visto, que não conseguiu dar nome a

ela; só pôde descrevê-la. Podemos chamá-la de dragão. A forma poderosa desse

animal torna-o um símbolo adequado do Império Romano. Por isso estamos

interessados nos dez chifres do dragão, especialmente em seu chifre pequeno.

Os dez chifres representam as tribos bárbaras que invadiram o Império

Romano entre os anos 300 e 500 d.C. Daniel disse que um chifre pequeno surgiria

entre os dez, arrancando três deles nesse processo. A descrição detalhada do chifre

pequeno revela seu significado: “Os dez chifres [da cabeça do dragão]

correspondem a dez reis que se levantarão daquele mesmo reino; e, depois deles,

se levantará outro, o qual será diferente dos primeiros, e abaterá a três reis.

Proferirá palavras contra o Altíssimo, magoará os santos do Altíssimo e cuidará

em mudar os tempos e a lei; e os santos lhe serão entregues nas mãos, por um

tempo, dois tempos e metade de um tempo” (Dn 7:24, 25).

Esses versos fornecem sete especificações do chifre pequeno que dizem

respeito ao papado:

1. “Depois deles, se levantará outro.” As tribos bárbaras estavam bem

estabelecidas no Império Romano na metade do 5º século (do ano 401 ao 500 d.C.).

O Império Romano Ocidental caiu diante das tribos bárbaras em 476 d.C., e o

poder político do papado começou em 538, como veremos no próximo capítulo.

Portanto, o papado se encaixa perfeitamente na profecia de Daniel, uma vez que

“depois deles [após o estabelecimento das tribos bárbaras no Império Romano], se

levantará outro” reino. De fato, o papado se ergueu com poderosa força política na

Europa após a conquista do Império Romano pelas dez tribos.

2. “Será diferente dos primeiros.” O papado se diferencia dos dez chifres por

deter tanto o poder religioso quanto o político. As nações da Europa que não

estiveram sob a jurisdição do clero eram organizações estritamente políticas.

3. “E abaterá a três reis.” Todas as tribos bárbaras que venceram Roma

acabaram se convertendo ao cristianismo, mas três delas – os visigodos, os

vândalos e os ostrogodos – adotaram o arianismo, 1 uma posição teológica sobre

Cristo condenada pelo Concílio de Niceia (325 d.C.) e por outros concílios

subsequentes da igreja. Clóvis, rei dos francos, venceu os visigodos em 508. A

pedido dos papas, o imperador romano Justiniano enviou seus exércitos para

eliminar as duas outras tribos heréticas: os vândalos, que desapareceram em 534, e

os ostrogodos, extintos em 538. 2 Em virtude disso, podemos afirmar que o papado

eliminou essas tribos bárbaras.

31


4. “Proferirá palavras contra o Altíssimo.” Os intérpretes historicistas da

profecia bíblica apontam para várias reivindicações do papado que cumprem a

predição de Daniel de que o chifre pequeno proferiria “palavras contra o

Altíssimo”. Uma delas é a de que os papas são vigários de Cristo. A palavra vigário,

que significa “substituto”, tem a mesma raiz da palavra vice, como em vicepresidente,

vocábulo esse que remete ao substituto do presidente. Ao afirmar ser

vigário de Cristo, o papa está dizendo que ele é o representante pessoal do Filho de

Deus na Terra durante o tempo em que Cristo está no Céu. Contudo, Jesus disse

especificamente que enviaria o Espírito Santo para representá-Lo na Terra em Sua

ausência (Jo 16:7, 8). Portanto, esse tipo de reivindicação faz com que o papa

ocupe o lugar que pertence ao Espírito Santo.

A análise de dois outros ensinos do papado bastarão para mostrar que ele

cumpre a predição de Daniel, no sentido de pronunciar “palavras contra o

Altíssimo”. O primeiro diz respeito à afirmação de que, por meio da confissão, os

sacerdotes católicos têm o poder de perdoar pecados – uma prerrogativa que

pertence somente a Deus. O segundo refere-se à doutrina de que o sacerdote

sacrifica o corpo e o sangue literais de Cristo no altar durante o serviço da missa.

Esse ensino não apenas contradiz a verdade de que Cristo Se ofereceu uma vez

para sempre (Hb 9:25, 26), mas também dá ao sacerdote católico autoridade para

trazer Cristo do Céu a fim de sacrificá-Lo.

5. “Magoará os santos do Altíssimo.” O poder representado pelo chifre pequeno

iria perseguir o povo de Deus. De fato, o papado cumpriu amplamente essa

predição ao se utilizar do poder do Estado para perseguir e, em muitos casos,

executar supostos hereges. A maioria desses “hereges” simplesmente criticava os

erros doutrinários do papado e as práticas imorais dos papas. A Inquisição

Espanhola é provavelmente o exemplo mais conhecido dessa perseguição.

6. “Cuidará em mudar os tempos e a lei.” A reivindicação católica de que a

igreja tem autoridade para mudar a lei de Deus ratifica essa afirmação da

profecia. Vale notar que a igreja removeu o segundo mandamento (que condena o

uso de imagens de escultura) inteiramente de seu catecismo, e, ao substituir o

sábado do quarto mandamento pelo primeiro dia da semana, o domingo, cumpriu a

predição de Daniel cujo foco é a mudança dos tempos. 3

7. “Os santos lhe serão entregues nas mãos, por um tempo, dois tempos e

metade de um tempo.” A palavra aramaica para “tempo”, nesse verso, é iddan, que

significa “um ano”. Um “tempo” equivale a um ano, “dois tempos”, a dois anos, e

“metade de um tempo”, a seis meses. De acordo com esse cálculo profético, um

ano tem 360 dias. 4 Nas profecias apocalípticas, um dia representa um ano;

portanto, um ano simbólico representa 360 anos. Veja:

32


1 ano = 360 dias simbólicos, ou 360 anos literais

2 anos = 730 dias simbólicos, ou 720 anos literais

½ ano = 180 dias simbólicos, ou 180 anos literais

Tota l = 1.260 dia s sim bólic o s ou 1.260 a n o s lite r a is

Veremos essa questão de forma mais detalhada no próximo capítulo. Por

enquanto, basta dizer que os 1.260 anos começaram em 538 d.C., quando entrou

em vigor o decreto do imperador romano Justiniano declarando o bispo de Roma, o

papa, como o chefe de todas as igrejas espalhadas por todo o império. O período

terminou 1.260 anos mais tarde, em 1798, quando o general de Napoleão, Berthier,

aprisionou o papa Pio VI.

A informação de que o chifre pequeno de Daniel surge e estabelece seu poder

em um momento determinado ajuda a confirmar o fato de que esse chifre

representa o papado. Observe que ele surge na cabeça do quarto animal,

constituindo-se numa parte deste. Essa é uma boa representação de como se

originou o papado. Enquanto Babilônia, Média-Pérsia, Grécia e Roma

conquistaram, cada qual, o império que a precedeu, o papado nasceu em Roma,

tornando-se uma extensão do império exatamente como o chifre pequeno, que

passou a ser parte constituinte da cabeça do animal. Quando Roma caiu, o papado

preencheu o vácuo político existente.

Muitos estudiosos protestantes afirmam que o chifre pequeno representa um

anticristo que aparecerá no futuro, embora essa interpretação deixe uma lacuna de

mais de 1.500 anos entre a queda do Império Romano Ocidental, em 476, e os

eventos finais da história da Terra. No entanto, não houve lacunas históricas no

tocante a quaisquer das nações representadas pelos animais anteriores. Cada um

deles substituiu imediatamente o predecessor. Da mesma forma, o papado

substituiu imediatamente o Império Romano; não houve nenhum vácuo histórico

entre seu surgimento e a queda do império.

Em resumo, o chifre pequeno de Daniel 7 é claramente um poder políticoreligioso,

e o papado é o único poder político-religioso que surgiu após a vitória das

tribos bárbaras sobre o Império Romano Ocidental. Uma vez que o papado inserese

no contexto das especificações do chifre pequeno registradas nos versos 24 e 25,

é natural ver esse chifre como símbolo do poder papal.

De volta à besta do mar de Apocalipse

33


A maioria dos intérpretes conservadores do Apocalipse entende que a besta do

mar representa um poder intolerante que surgirá na Terra próximo ao fim da

história mundial. Muitos asseguram que a besta do mar representa o ateísmo e o

secularismo. Os adventistas a têm identificado historicamente ao papado. Essa

interpretação baseia-se na semelhança entre a besta do mar e o chifre pequeno de

Daniel 7, fato que nos permite afirmar que ambos representam o mesmo poder.

Se essa conclusão está correta – e eu creio que está –, de acordo com

Apocalipse 13 podemos esperar vários desdobramentos dela nos próximos anos:

• “Deu-se-lhe [à besta do mar] ainda autoridade sobre cada tribo,

povo, língua e nação” (v. 7). Isso significa que o poder papal exercerá

influência sobre o mundo todo.

• “E toda a terra se maravilhou, seguindo a besta; [...] adoraram a

besta, dizendo: Quem é semelhante à besta? Quem pode pelejar contra

ela?” (v. 3, 4). Esse trecho afirma que o mundo reconhecerá a liderança

espiritual do papado e lhe prestará homenagem.

• “Foi-lhe dado, também, que pelejasse contra os santos e os

vencesse” (v. 7). Em outras palavras, o poder papal perseguirá os que se

opuserem à sua autoridade.

A pergunta é: Será que essas predições espantosas sobre o papado realmente se

cumprirão? É realista a afirmação de que o papado dominará de forma absoluta,

que o mundo todo reconhecerá sua liderança espiritual e que ele perseguirá todos

os que lhe recusarem obediência?

Será que isso pode realmente acontecer?

A resposta curta é “sim”. A resposta mais longa ocupará o restante deste livro.

Os próximos três capítulos examinarão a história política do papado: da queda do

Império Romano até o presente. Após isso, dedicarei dois capítulos à teoria política

católica. Então partiremos para um exame da besta da terra e da marca da besta

em Apocalipse 13. Para concluir o livro, voltaremos ao papel da besta do mar nos

dias finais da história da Terra, abordando inclusive sua associação com a besta da

terra numa perseguição conjunta ao povo de Deus.

34


1 Os arianos negavam a plena igualdade entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo,

bem como a natureza divina do Filho e do Espírito Santo. Eles criam que Jesus é

um ser criado e, assim, por natureza, inferior a Deus, o Pai. Os antitrinitarianos

ainda são às vezes chamados de arianos.

2 Ver William Shea, Daniel: A Reader’s Guide (Nampa: Pacific Press, 2005),

p. 116, 117.

3 Ibid., p. 120-122. Shea provê documentação significativa quanto à

reivindicação do papado de ter autoridade para mudar o dia de descanso do

sábado, o sétimo dia da semana, para o domingo, o primeiro dia.

4 Um ano do calendário consiste de 365 dias. Contudo, o Apocalipse apresenta

o período de tempo profético de três maneiras: (1) como uma repetição da

expressão “um tempo, dois tempos e metade de um tempo” de Daniel, que

equivale a três anos e meio (Ap 12:14; 3,5 x 360 = 1.260); (2) como 1.260 dias (Ap

12:6); e (3) como quarenta e dois meses (Ap 13:5; quarenta e dois meses

equivalem a 1.260 dias).

35


C

reio que você teria achado interessante ser um cristão mil anos atrás. As

coisas eram diferentes naquela época. Se hoje tudo ocorresse como

naquele tempo, o presidente dos Estados Unidos escolheria o presidente

mundial da Igreja Adventista, e ele ou outros oficiais do governo também

apontariam os presidentes das divisões e uniões da igreja. Da mesma forma, o

presidente mundial da igreja escolheria o presidente dos Estados Unidos e dirigiria

a cerimônia de posse. De acordo com o costume daquela época, quando um papa

morria, o imperador aprovava a nomeação daquele que o substituiria e dava seu

consentimento para a nomeação de cardeais, arcebispos e outros oficiais da igreja.

Por outro lado, quando o imperador morria, o papa nomeava o próximo soberano e

o consagrava.

Entretanto, pouco depois do início do segundo milênio d.C., a igreja decidiu que

devia nomear seus próprios papas independentemente da vontade do imperador.

Surgiu uma oportunidade para isso em 1059, ano em que a igreja precisou apontar

um novo papa. Um concílio da igreja em Roma decretou que, daquele momento

em diante, todos os papas seriam eleitos pelo Colégio de Cardeais – um método de

escolha que perdura até o presente. Como o imperador Henrique IV na ocasião

ainda era criança, não pôde se opor à decisão da igreja.

Isso ocorreu de forma relativamente tranquila. Contudo, a nomeação de

cardeais, arcebispos e postos menores ainda estava nas mãos do imperador, e a

igreja também desejava assumir essa responsabilidade. Para conseguir isso, em

1075 o papa Gregório VII decretou que o imperador não mais apontaria qualquer

oficial da igreja. Henrique IV, que, nessa época, já era adulto, desafiou-o,

nomeando o bispo de Milão. Também escreveu a Gregório uma carta informandolhe

que haveria a eleição de um novo papa, já que ele seria destituído de seu posto.

36


Gregório não iria receber essa ameaça e ficar sentado sem fazer nada. Respondeu

com uma carta na qual excomungava Henrique, depunha-o do cargo de imperador

e instruía seus súditos de que não mais lhe deviam lealdade.

O conflito talvez teria se prolongado por mais algum tempo se alguns nobres

alemães, vendo oportunidade de obter de Henrique o que desejavam, não tivessem

exigido que ele fizesse as pazes com o papa, caso não quisesse perder o apoio

deles. Com o propósito de pressionar ainda mais o imperador, esses nobres

organizaram uma reunião em Augsburgo e convidaram o papa a presidir a sessão.

Henrique, vendo a escrita na parede, rendeu-se. Iniciou a travessia dos Alpes em

direção a Roma, no auge do inverno, para fazer as pazes com Gregório.

Nesse ínterim, Gregório recebeu o convite para presidir o concílio de

Augsburgo. Percebendo a oportunidade de promover sua causa, o papa aceitou-o

alegremente e iniciou a travessia dos Alpes, durante o inverno, em direção à

Alemanha. Depois de iniciada a viagem, recebeu a notícia de que Henrique

também estava cruzando os Alpes e que ambos provavelmente se encontrariam

em algum ponto. Temendo que Henrique quisesse fazer- lhe mal, hospedou-se num

castelo fortificado em Canossa.

Henrique, que, havia empreendido a travessia dos Alpes não para fazer guerra,

mas para pedir perdão, ao ouvir a notícia de que o papa estava refugiado no castelo

de Canossa, dirigiu-se para lá. O papa, contudo, não estava inclinado a receber o

rei imediatamente. Durante três dias, de 25 a 27 de janeiro de 1077, vestido como

um penitente, Henrique permaneceu chorando no portão do castelo, e suplicando o

perdão do papa. A tradição conta que o rei, descalço, ficou ajoelhado na neve

durante esses três dias. No terceiro dia, Gregório lhe concedeu uma audiência,

perdoou-o e suspendeu a excomunhão. Entretanto, exigiu que Henrique lhe

fornecesse uma escolta e lhe garantisse uma passagem livre e segura até a Dieta.

Depois que Henrique se submeteu à vontade do papa, pôde voltar à Alemanha com

seu reinado restaurado.

Essa história ilustra a relação que existiu entre a igreja e o Estado ao longo do

período medieval europeu. O papa era uma poderosa figura política capaz de

exercer domínio sobre reis e príncipes. Daniel predisse que o chifre pequeno, que

representa o papado, teria poder durante três anos e meio. Esses três anos e meio

são simbólicos e representam 1.260 anos literais (538-1798 d.C.). O papado obteve

o controle político da Europa no início desse período, mas perdeu-o no decorrer

do tempo.

Apocalipse 13:3 diz: “Então, vi uma de suas cabeças [da besta do mar] como

golpeada de morte, mas essa ferida mortal foi curada”. Se a ferida da cabeça da

besta do mar representa a “ferida” do papado, que evento ou eventos históricos se

encaixam nesse quadro, e o que significaria a cura da ferida? Neste capítulo,

37


examinaremos brevemente esses 1.260 anos, durante os quais houve o início e o

término do domínio do papado na política europeia. Os adventistas entendem que o

declínio e a queda do papado –processo que ocorreu entre o século 16 e o 18 –

corresponde à ferida mortal da besta do mar. Para compreender plenamente esse

conceito, é necessário voltar à origem da relação igreja-Estado que resultou no

choque entre o papa Gregório VII

e o rei Henrique IV. Vários detalhes analisados neste capítulo fornecerão a base

para a compreensão de futuros capítulos; portanto, esteja atento.

Começando pelo início

Em Seu julgamento, Jesus disse a Pilatos: “O Meu reino não é deste mundo. Se

fosse, os Meus servos lutariam” (Jo 18:36, Nova Versão Internacional). Jesus nunca

teve a intenção de que os apóstolos e seus herdeiros espirituais alcançassem poder

político no mundo. A ordem que lhes deu não foi a de conquistar todas as nações,

mas a de proclamar a todas as nações as boas- novas da salvação (Mt 24:14; 28:19,

20; At 1:8). O cristianismo não desfrutava de liberdade legal no Império Romano

antes de 313 d.C.; por isso, os cristãos não exerceram poder político durante esse

tempo. Quando Constantino reconheceu o cristianismo como religião legal, o papel

dessa crença no império mudou quase da noite para o dia.

Esse reconhecimento modificou a relação entre igreja e Estado. Nossa

moderna compreensão ocidental da independência do Estado em relação à igreja

era completamente alheia ao pensamento de qualquer pessoa naquela época.

Durante centenas de anos, o imperador havia sido oficialmente o chefe da religião

do império, a qual exigia dos cidadãos a adoração do soberano. Ou seja, havia uma

união íntima entre religião e governo. Todos esperavam que o Estado interferisse

nos assuntos religiosos, e vice-versa. Nunca ocorreu a ninguém, inclusive aos

cristãos, que pudesse haver um arranjo melhor. Contudo, a mudança de status legal

do cristianismo levou a uma importante pergunta: Qual era a religião do Estado: o

paganismo ou o cristianismo? Dentro de um século, o cristianismo já havia

substituído o paganismo, tornando-se a religião oficial do Império Romano. Será

que os cristãos viam algum problema nisso? É claro que não! Era exatamente isso

que eles esperavam que acontecesse.

A posição de Agostinho sobre a igreja e o Estado

O conceito da igreja como força política ganhou forte apoio teológico de

Aurélio Agostinho (354-430), conhecido como Santo Agostinho. Esse bispo da

igreja que atuou no norte da África ainda é considerado um dos maiores teólogos

da história cristã. Para entender o pensamento de Agostinho, no tocante à relação

38


entre igreja e Estado, precisamos conhecer algo sobre sua compreensão das

profecias. 1

Durante os primeiros séculos da Era Cristã, os cristãos eram prémilenaristas,

isto é, criam que Jesus voltaria no início dos mil anos de Apocalipse

20. Eles entendiam que o sonho de Nabucodonosor (Dn 2) representa a destruição

de todos os reinos terrestres, que desaparecerão na segunda vinda de Cristo,

momento em que Ele estabelecerá Seu reino eterno (Dn 2:44, 45). Em outras

palavras, os cristãos acreditavam que o milênio teria início com o retorno de Jesus.

Naquela época, eles pensavam também que a volta de Cristo ocorreria em breve.

Contudo, à medida que o tempo foi passando sem que Jesus voltasse, houve

uma mudança na maneira de se compreender a segunda vinda. Num livro

chamado Cidade de Deus, Agostinho propôs que a igreja, estabelecida na primeira

vinda de Cristo, era a pedra que atingiria os pés da estátua, tornando-se o reino

eterno de Deus. Uma vez que, no sonho, a pedra destruiu todos os reinos terrestres,

a missão da igreja durante o milênio envolveria a destruição de todos os reinos

terrestres, a transformação do mundo todo numa sociedade cristã e o

estabelecimento de si mesma como o reino eterno de Deus na Terra. “A igreja,

agora mesmo, é o reino de Cristo e o reino dos Céus”, disse Agostinho.

“Consequentemente, agora mesmo Seus santos reinam com Ele.” 2 O modo como

Agostinho entendeu Daniel 2 e as implicações dessa compreensão para a missão

da igreja são importantes conceitos teológicos aos quais retornaremos neste livro.

A interpretação profética de Agostinho se harmoniza muito bem com a relação

estabelecida na época entre a igreja e o império. Os imperadores eram cristãos. O

império era oficialmente cristão. Além disso, enquanto esse bispo escrevia, o

Império Romano estava se desintegrando por causa das invasões de tribos bárbaras

do Norte. À medida que o poderio romano se enfraquecia, a igreja se erguia para

preencher o vácuo político. De modo geral, todas essas tribos bárbaras se tornaram

cristãs, o que pareceu ser mais um indicativo de que a interpretação profética

desse teólogo estava correta.

Agostinho propunha que, no decorrer do tempo, a igreja converteria toda a

sociedade, venceria os sistemas políticos do mundo e estabeleceria o governo do

reino de Deus em toda a Terra. Quando todas as nações do mundo já houvessem se

submetido à autoridade da igreja, Jesus voltaria – no fim do milênio.

Isso não significa que a igreja afirmava ser o Estado. A igreja reconhecia que

entidades políticas ainda eram necessárias para a organização da sociedade, a

criação de exércitos e a manutenção de serviços públicos. O papel da igreja era o

de fornecer ao Estado orientação moral e garantir que ele imporia os princípios

morais da igreja aos cidadãos, que deveriam permanecer doutrinariamente

39


ortodoxos. Qualquer pessoa que ousasse desafiar a autoridade da igreja ou

discordar de suas doutrinas era encaminhada para o Estado a fim de ser punida

como herege.

Começam os 1.260 anos

No tempo de Agostinho, as igrejas locais estavam espalhadas por cidades e

aldeias em todo o império, e as catedrais das grandes cidades – Alexandria, Éfeso,

Constantinopla, Atenas, Roma, etc. – já exerciam grande influência em suas

respectivas regiões. Entretanto, ainda havia um grande problema: nenhuma igreja

era considerada a líder oficial de todas as igrejas cristãs do império. Os cristãos,

especialmente os da parte ocidental do Império Romano, muitas vezes buscavam a

liderança do bispo de Roma, mas não havia nada de oficial nessa prática.

Em 330 d.C., Constantino mudou a capital do império, de Roma para

Constantinopla. Isso possibilitou que a igreja rapidamente ampliasse seu poderio

em Roma. Historiadores modernos, tanto religiosos quanto seculares, afirmam que

o bispo de Roma, com sua igreja, passou a exercer a função do imperador, o que o

levou a se tornar o cabeça de todas as igrejas do império. É por isso que a Igreja

Católica é oficialmente conhecida como a Igreja Católica Romana. Até hoje, o

papa é oficialmente o bispo da igreja local de Roma.

Uma vez que a capital do império agora era Constantinopla, o bispo dessa

cidade começou a reivindicar o direito de representar todo o cristianismo. Iniciouse,

assim, uma disputa entre o bispo de Roma e o de Constantinopla pela liderança

das igrejas cristãs de todo o império. A guerra teve fim quando o imperador

Justiniano resolveu a questão em 533 com uma carta que confirmava o bispo de

Roma como o “cabeça de todas as santas igrejas” e o “cabeça de todos os santos

sacerdotes de Deus”. 3

Nessa época, a tribo bárbara dos ostrogodos controlava a cidade de Roma. Eles

eram arianos, ou seja, negavam a igualdade de Cristo com o Pai. Por isso, eram

considerados hereges pela Igreja Católica Romana. É fácil notar, portanto, que o

decreto de Justiniano que tornava o bispo de Roma o cabeça de todas as igrejas

cristãs não teria valor enquanto os ostrogodos controlassem Roma. Para solucionar

também esse problema, Justiniano enviou seu exército para a Itália, e, em 538,

seus soldados expulsaram os ostrogodos de Roma. 4 Assim, a cristandade passou a

ter um cabeça oficial que podia verdadeiramente atuar.

Isso não significa que o papa, de repente, tenha se envolvido em política pela

primeira vez. Os bispos cristãos, especialmente o de Roma, já influenciavam a

política laica havia mais de duzentos anos. O que ocorreu é que, agora, a igreja

40


finalmente tinha um cabeça oficial que podia representar todo o corpo de cristãos,

no que tange aos assuntos políticos e aos religiosos. O decreto de Justiniano conferiu

ao bispo de Roma – o papa – a autoridade que este precisava para estender seu

poder religioso a toda a cristandade e, eventualmente, seu controle político a toda a

Europa. Os acontecimentos do ano 538 possibilitaram ao bispo de Roma a obtenção

do domínio político da Europa. Por isso, 538 d.C. é o ponto inicial dos 1.260 anos

mencionados em Daniel 7:25 (e em outros textos de Daniel e Apocalipse).

O presente do rei ao papa

O poder político do papado foi ampliado de forma significativa em 752 d.C.

por meio da ação de Pepino III (o Breve). Nesse período, um homem chamado

Childerico era oficialmente o rei dos francos – que habitavam a atual França –, e

Pepino era o prefeito (essa palavra não denotava, na época, aquilo que

conhecemos hoje). Contudo, embora não fosse o rei, a posição de Pepino o

autorizava a tomar decisões reais. Por isso, em 752, ele fez uma pergunta ao papa

Zacarias: Quem deveria ser o governante oficial do reino franco: a pessoa com

título de rei ou o governante com poder de rei? O papa concordou com o fato de

que o poder de tomar decisões era mais importante que o título. Com a bênção do

papa Estêvão II, que o consagrou, Pepino foi eleito rei por uma assembleia de

líderes francos. 5

Esse incidente mostra o poder político da igreja naquela época, pois o papa foi

o árbitro final numa disputa pelo trono. Vale ressaltar que, quando Pepino foi eleito,

o papa oficiou em sua cerimônia de posse.

Em 754, desejando expressar sua gratidão pelo apoio do papa, Pepino deu a

ele um território independente na Itália. Esse evento também é muito significativo,

porque pela primeira vez o papa exerceu poder político como governante temporal

(ao interferir em assuntos terrestres). Agora ele se tornara o cabeça não apenas de

uma igreja, mas também de um território – um reino. Isso lhe possibilitou interagir

com outros governantes laicos como se fosse “um deles”. Os papas que vieram a

seguir continuaram a governar os Estados Papais (nomenclatura que passou a ser

utilizada na época), no centro da Itália, por mais de mil anos, até 1870, quando,

sem o consentimento do papado, esses Estados foram incorporados ao moderno

Estado da Itália.

Vale ressaltar, neste ponto, o já mencionado conflito ocorrido em 1075 entre o

papa Gregório VII e o rei Henrique IV da Alemanha. Gregório, um dos maiores

papas da história política da Igreja Católica Apostólica Romana, afirmou:

41


A Igreja Romana nunca errou e nunca pode errar, e o papa é o

supremo juiz, que não pode ser julgado por ninguém. Não há mudança em

suas decisões, somente ele tem direito à homenagem de todos os príncipes,

e somente ele pode depor reis e imperadores. 6

Essa afirmação demasiadamente arrogante não poderia ter vindo de um líder

da igreja cristã. E, novamente, é um indicativo do poder político que o papado

obteve naquela época.

Seria um erro supor que, desse momento em diante, os papas sempre

conseguiram fazer prevalecer sua vontade no tocante aos assuntos políticos que

envolviam a igreja e os vários governantes da Europa. Porém, nosso argumento

essencial é que o papado se tornou uma poderosa organização política com a qual

todo governante temporal era forçado a lidar.

O auge do poder político papal

A máxima influência política do papado na Europa se deu durante o século 13.

Inocêncio III, que liderou de 1198 a 1216, conservou a prática da coroação de reis

e imperadores. Reconheceu Frederico como rei da Sicília e mediou uma disputa

entre Filipe da Suábia e Oto IV pelo trono imperial. Acabou favorecendo Filipe,

mas, quando este foi assassinado, apoiou Oto, que foi coroado na cidade de Roma

em 1209. Um ano mais tarde, Oto invadiu alguns dos territórios papais na Itália e

tentou obter o controle da Sicília. Por isso, Inocêncio o excomungou e promoveu

um homem chamado Frederico, que foi coroado em 1215. Transpondo esse

contexto político para a realidade de hoje, é como se o presidente mundial da

Igreja Adventista pudesse depor o presidente dos Estados Unidos e instalar nesse

cargo o candidato de sua escolha. Isso denota um grande poder político, poder esse

obtido com a utilização da autoridade espiritual da igreja e da excomunhão, cujo

propósito era o alcance de um fim civil/político.

A mesma coisa aconteceu na Inglaterra alguns anos depois. Quando o rei John

se recusou a aceitar o cardeal Stephen Langton como arcebispo da Cantuária (em

inglês, Canterbury ), o chefe da Igreja Católica o excomungou, deixando a

Inglaterra sob interdito. Em outras palavras, o papa proibiu as igrejas da Inglaterra

de ministrar os sacramentos a qualquer pessoa do reino. Na teologia católica, os

cristãos recebem a graça de Deus por meio dos sacramentos; assim, os crentes a

quem são recusados os sacramentos são essencialmente cortados dos meios de

salvação. Um interdito, portanto, impossibilita a salvação de uma nação inteira!

Ameaçado pela oposição de seus nobres, John se rendeu. Entregou o território

42


ao papa e recebeu-o de volta como feudo papal. Imagine que o papa aponte como

cardeal de Nova York alguém a quem o presidente dos Estados Unidos se recusa a

aceitar. Por causa disso, o papa diz a toda a população católica dos Estados Unidos

que ela não poderá receber os sacramentos da igreja até que seu presidente aceite

a escolha do papa. Foi essencialmente isso que ocorreu nesse episódio que

envolveu o papa Inocêncio III e o rei John da Inglaterra, no que diz respeito à

nomeação do arcebispo da Cantuária. Isso é poder político alcançado por meio de

uma poderosa ameaça espiritual. Mantenha esse evento em mente, pois

voltaremos a ele mais tarde neste livro.

A filosofia política de Inocêncio se harmonizava com seus atos enquanto papa.

Ele declarou que “a liberdade eclesiástica é mais bem preservada quando a Igreja

Romana tem pleno poder tanto em assuntos temporais [políticos] quanto

espirituais”. 7 Ele também decretou que o papa tem o direito de decidir se um rei é

digno de sua coroa.

Bonifácio VIII, o próximo grande papa, governou a igreja cem anos mais

tarde (1294-1303). Nessa época, o poder dos governantes políticos da França e

Inglaterra aumentava cada vez mais, ao passo que a autoridade política do papado

sobre a política europeia começava a diminuir. Quando o rei Filipe IV, da França,

impôs tributos ao clero, Bonifácio emitiu uma bula declarando que os reis não

podiam fazer isso sem o consentimento do papa. Filipe, então, retaliou suspendendo

as contribuições da França a Roma. Ao enfrentar essa grande perda financeira,

Bonifácio recuou, uma vez que, já naquele tempo, o dinheiro falava alto!

Num conflito com Filipe em 1302, Bonifácio emitiu sua famosa bula Unam

Sanctam (Una, Santa), a qual declarava que o papa tem autoridade sobre os

governantes laicos: “Com a verdade como nossa testemunha, é da competência do

poder espiritual [o papado] estabelecer o poder terrestre [político] e desaprová-lo

se este não for bom.” 8 Entretanto, quando Bonifácio excomungou Filipe, o rei

francês convocou uma assembleia na qual 29 acusações foram feitas contra o

papa. Nesse momento, cinco arcebispos e 21 bispos tomaram o partido de Filipe.

Em setembro de 1303, um bando de dois mil mercenários atacou o palácio papal e

aprisionou Bonifácio. Uma semana mais tarde ele foi liberto e voltou a seu palácio,

mas em meados de outubro contraiu uma violenta febre e morreu.

Razões para o declínio

O que causou a diminuição do poder político do papado? Mais do que qualquer

outra coisa, ela decorreu de uma renovação do conhecimento intelectual. De modo

geral, a maioria dos pensamentos grego e romano foram esquecidos durante parte

da Idade Média – aproximadamente de 500 a 1000 d.C. Porém, o século 12

43


presenciou a redescoberta de uma antiga literatura: a de Platão, Aristóteles,

Sócrates e de outros pensadores gregos. Isso acabou levando ao Renascimento, que

se iniciou no século 14, perdurando até o 16. O humanismo – que enfatiza a

importância das soluções racionais para os problemas humanos, em detrimento das

soluções ditadas pela religião e pela igreja – desenvolveu-se a partir desse resgate

do antigo saber. O Renascimento deu início a um processo de secularização que

atingiu o ápice em nossos dias. Essa secularização levou ao fim do poder político

papal. Dada a sua importância, retornaremos a essa questão várias vezes no

restante deste livro.

A invenção da imprensa por Gutenberg, na metade do século 15, propiciou

uma explosão intelectual que muito contribuiu nesse processo. Em 1500, casas

impressoras já haviam sido estabelecidas em toda a Europa. Antes de Gutenberg,

alguém só poderia obter a cópia de um livro como a Bíblia se um escriba fosse

contratado para copiá-la de forma manuscrita: palavra por palavra. Podia levar

um ano inteiro para se produzir uma única cópia da Bíblia! Obviamente, poucas

pessoas possuíam livros naquele tempo. Na verdade, a maioria dos indivíduos nem

sabia ler. De repente, Gutenberg tornou possível a produção de centenas de cópias

da Bíblia ou de qualquer outro livro numa questão de semanas, de forma que

qualquer pessoa de condição financeira modesta podia adquirir uma pequena

coleção de livros, e indivíduos ricos podiam montar uma biblioteca considerável.

Cada vez mais pessoas aprenderam a ler, e o conhecimento começou a se

espalhar rapidamente.

O nascimento da ciência moderna no fim do século 15 e início do 16 também

deu impulso ao processo de secularização. Não podemos deixar de mencionar,

neste ponto, o matemático e astrônomo polonês Nicolau Copérnico (1473-1543)

que desenvolveu a teoria de que os planetas giram em torno do Sol, contrapondo-se

à ideia de que o Sol e os planetas giravam em torno da Terra. Na época, o papado

se opôs ferrenhamente a Copérnico, porque sua teoria contradizia o conteúdo de

certas passagens da Bíblia que davam a entender que o Sol gira em torno da Terra

e que esta é o centro do Universo. 9 Essas passagens, no entanto, descrevem apenas

a observação do nascer e pôr do sol. É claro que Copérnico estava certo, e a igreja,

errada. De modo geral, os estudiosos afirmam que sua descoberta deu origem à

moderna revolução científica.

Todo esse avanço no conhecimento fez com que pessoas de todos os lugares

começassem a pensar por si mesmas. E quando seres humanos começam a

pensar, questionam, e quando questionam, começam a desafiar a autoridade

estabelecida. E a religiosa é uma das primeiras que começam a ser contestadas. O

papado ainda era uma força poderosa na política europeia em torno de 1500, mas

sua autoridade passou a ser desafiada pela secularização.

44


Nesse contexto, surgiu Martinho Lutero.

Lutero não tinha nenhuma intenção de começar uma reforma quando pregou

suas 95 teses na porta da igreja de Wittenberg, na Alemanha, em 31 de outubro de

1517. Ele escreveu suas declarações em latim, mas elas foram imediatamente

traduzidas para o alemão. Se dentro de duas semanas as teses já haviam sido

impressas e espalhadas por toda a Alemanha, dentro de dois meses elas já haviam

sido traduzidas para várias línguas europeias, impressas e espalhadas por todo o

continente. Quando Roma percebeu o que estava acontecendo, era tarde demais

para deter o movimento popular a que Lutero inadvertidamente deu início.

O rompimento de Lutero com Roma teria sido impossível sem a imprensa, que

permitiu a rápida propagação de informações. O ponto importante é que o

aumento de conhecimento instigou as pessoas a desafiar a autoridade; nesse caso, a

autoridade papal. A imprensa possibilitou, portanto, que esse movimento desse um

gigantesco salto. Embora Lutero fosse profundamente religioso, seu rompimento

com Roma também contribuiu para o processo de secularização.

O papa Leão X declarou heréticos os conceitos de Lutero e o convocou a uma

entrevista em Roma. Entretanto, Lutero tinha o apoio de Frederico III, o eleitor da

Saxônia, o qual, sabendo que Lutero seria provavelmente aprisionado e executado

em Roma, recusou-se a enviá-lo. O papa não teve outra escolha a não ser enviar

representantes para confrontar Lutero na Alemanha. Várias dietas (reuniões), nas

quais Lutero apresentou suas ideias aos representantes papais, foram realizadas.

Como se previa, todos eles declararam que as ideias do reformador eram

heréticas. Em 1521, Lutero foi excomungado da Igreja Católica Romana. Contudo,

Frederico o protegeu. Esse foi um grande desvio da maneira com que príncipes,

reis e imperadores haviam lidado com hereges no passado. Durante centenas de

anos, a igreja também havia confiado ao Estado a tarefa de punir os hereges, mas

Frederico se recusou a executar a punição que a igreja havia decretado contra

Lutero. A secularização estava em andamento. O poder do papado sobre os políticos

europeus sofrera um severo golpe.

A era do Iluminismo

À medida que o saber aumentava, a autoridade política do papado diminuía.

Durante o século 18, surgiu um movimento chamado Iluminismo (também

conhecido como Era da Razão). Seus proponentes desafiaram os conceitos básicos

do cristianismo e promoveram o racionalismo nos pensamentos filosófico, político

e econômico. O Iluminismo desencadeou o rápido avanço da secularização. Você

talvez reconheça alguns dos nomes de maior destaque nesse movimento:

45


• Voltaire (cujo verdadeiro nome era François-Marie Arouet)

• Jean-Jacques Rousseau

• Baruch Spinoza

• René Descartes

• David Hume

• Immanuel Kant

• Thomas Jefferson

• Benjamin Franklin

• John Locke

• Thomas Paine

Humanistas seculares passaram a questionar e minar a autoridade tanto do

catolicismo quanto do protestantismo. Sua força gradualmente fez com que o

papado se ajoelhasse politicamente, levando, próximo ao fim do século 18, a dois

eventos marcantes que mudaram a face da política ocidental por mais de duzentos

anos: a Revolução Norte-Americana (1775-1783) e a Revolução Francesa (1789-

1799).

O resultado primário da Revolução Norte-Americana foi a criação de uma

forma representativa de governo baseada numa Constituição em que há equilíbrio

entre os poderes legislativo, executivo e judiciário. No sistema norte- americano,

não há uma igreja oficial. O Estado e a esfera religiosa operam de forma

independente, cada qual em seu âmbito de atuação. Há uma boa razão para a

divisão entre religião e governo. Os excessos papais levados a cabo nos mil anos

anteriores e a perseguição aos dissidentes nos Estados Unidos durante o período

colonial fizeram com que os “Pais Fundadores” da nação temessem que a religião

pudesse uma vez mais controlar o governo. Por isso, embora o governo norteamericano

nunca tenha atacado a religião, sua constituição é claramente uma

reação ao controle excessivo que a religião e a igreja exerceram sobre a política

europeia ao longo de mais de mil anos.

Vários fatores contribuíram para o desencadeamento da Revolução Francesa.

Para nosso estudo, no entanto, o fator religioso é o mais relevante. Esse episódio

foi, de fato, uma rebelião secular violenta contra o catolicismo romano. A igreja,

que havia sido a maior possuidora de terras na França, viu suas propriedades serem

confiscadas pelo governo francês. Houve uma severa repressão ao clero, incluindo

o aprisionamento e massacre de sacerdotes em todo o país. O resultado de tudo isso

46


foi uma transferência massiva do poder político da Igreja Católica para o Estado

laico.

O clímax se deu em 1798, quando o general de Napoleão, Louis Alexandre

Berthier, entrou em Roma e exigiu que o papa Pio VI renunciasse à sua autoridade

sobre os Estados Papais. Quando o chefe da igreja se recusou a fazê-lo, Berthier o

levou prisioneiro para a França, onde morreu um ano e meio mais tarde. 10 Assim

começou o que o escritor jesuíta Malachi Martin chamou de “duzentos anos de

inatividade que foram impostas ao papado pelas principais potências seculares do

mundo”. 11 O que Martin está dizendo é que o papado não mais foi capaz de

exercer uma influência dominadora sobre os governos da maneira como havia

feito durante os 1.200 anos anteriores. Esse aniquilamento da autoridade política do

papado e sua transferência para o Estado laico é o que os adventistas sempre

entenderam como a ferida mortal da besta do mar (Ap 13:3).

O período de um tempo, dois tempos e metade de um tempo (1.260 dias

simbólicos ou 1.260 anos literais) de Daniel 7:25 começou em 538 d.C., quando o

bispo de Roma conseguiu exercer autoridade sobre todas as nações cristãs. Esse

poder havia sido conferido pelo imperador Justiniano cinco anos antes. Nos 700

anos seguintes, o domínio político do papado gradualmente se tornou mais forte até

atingir o seu auge no século 13. Desse ponto em diante, o domínio da Igreja

Católica declinou gradualmente até que, em 1798, o general de Napoleão levou o

papa como prisioneiro. A perda da autoridade política em 1798 marcou o fim dos

1.260 anos de supremacia papal profetizada por Daniel.

Como veremos no próximo capítulo, isso não quer dizer que o papado se tornou

totalmente inativo no campo político depois de 1798. Nos últimos dois séculos tem

predominado uma filosofia laica e democrática de governo, particularmente no

mundo ocidental. Isso significa que a lei civil passou a ser a autoridade final nos

assuntos do Estado, em contraste com a ideia papal e medieval de que o poder da

igreja deve ser superior ao do Estado. Nos Estados laicos, o poder concentra-se nas

mãos de um ditador; no caso das democracias, teoricamente, nas mãos do próprio

povo.

No governo laico, tratando-se de ditaduras ou democracias, a religião

subordina-se ao poder civil e não exerce domínio algum sobre ele. Numa

democracia, os princípios morais que formam as leis do Estado têm origem na

compreensão comum do povo; portanto, não estão baseados nos princípios

religiosos/morais do catolicismo ou de qualquer outra religião. As instituições

públicas educacionais das nações ocidentais são controladas pelo Estado e não pela

igreja. O princípio que impera é o de que deve haver um distanciamento entre

igreja e Estado.

47


É extremamente importante notar que, mais do que qualquer outra coisa, foi a

secularização do governo que levou à liberdade religiosa que o mundo ocidental

tem conhecido durante os últimos duzentos anos ou mais.

Contudo, essa filosofia de governo tem sido rejeitada pela Igreja Católica, que

afirma ser a única depositária das verdades morais nas quais as leis de todo bom

Estado devem estar baseadas. Reivindicando o direito de exigir que os Estados

imponham às pessoas os princípios morais católicos, a igreja se opõe ao

distanciamento entre religião e governo, a exemplo do existente nos Estados

Unidos.

A ferida mortal que foi infligida à besta do mar é a incapacidade da Igreja

Católica, nestes últimos duzentos anos, de impor seus princípios e sua filosofia de

governo aos Estados laicos, tanto às ditaduras quanto às democracias. Contudo, o

Apocalipse profetizou que a ferida mortal seria curada e que o papado recuperaria

a autoridade política perdida. Nos últimos 150 anos os adventistas têm predito que

isso irá acontecer. Na década de 1850, quando se começou a propagar essa

verdade, a ideia parecia um absurdo. Fazia apenas uns 50 anos que as nações da

Europa haviam destituído o papado dos últimos vestígios de sua autoridade política

sobre elas. E, então, vieram os adventistas dizendo que, antes da volta de Cristo, o

papado obteria autoridade política sobre o mundo todo. Muito embora esse conceito

parecesse bastante improvável, nós começamos a proclamá-lo porque ele é

predito na profecia.

Mas será que isso pode realmente acontecer?

1 LeRoy E. Froom apresenta um excelente panorama da interpretação

profética de Agostinho em The Prophetic Faith of Our Fathers (Washington, DC:

Review and Herald, 1950), v. 1, p. 465-491.

2 Ibid., p. 483. Meus comentários sobre a interpretação de Agostinho sobre

profecias estão baseados na obra de Froom.

3 Citado em The Seventh-day Adventist Bible Commentary (Washington, DC:

Review and Herald, 1955), v. 4, p. 827.

4 O general romano Belisário ocupou facilmente a cidade de Roma em 536,

uma vez que a maioria das forças dos ostrogodos estava lutando contra os francos

48


no norte da Itália. Contudo, os ostrogodos não demoraram muito a voltar e, sendo

muito superiores em número, sitiaram a cidade. Obviamente, nessa situação o

papa ainda não podia exercer sua autoridade sobre as igrejas cristãs de todo o

império. Contudo, em 538 Belisário recebeu reforços que o capacitaram a libertar

Roma permanentemente do poder dos ostrogodos.

5 Zacarias morreu pouco tempo após ter respondido à pergunta de Pepino.

6 The Seventh-day Adventist Bible Commentary, v. 4, p. 837.

7 Citado em C. J. Barry, ed., Readings in Church History (Westminister, MD:

The Newman Press, 1960), v. 1, p. 438.

8 Bula do papa Bonifácio VIII, promulgada em 18 de novembro de 1302.

Papal Encyclicals Online, Unam Sanctam,

http://www.papalencyclicals.nt/Bon08/B8unam.htm.

9 Veja, por exemplo, Salmo 93:1; 104:5; Eclesiastes 1:5.

10 Berthier assumiu o controle dos Estados Papais, mas eles foram restituídos

ao papado dois anos depois, e pelos próximos setenta anos o papado teve o controle

deles ora sim, ora não, até 1870, quando os perdeu permanentemente para o

moderno Estado da Itália.

11 Malachi Martin, The Keys of this Blood: The Struggle for World Dominion

Between Pope John Paul II, Mikhail Gorbachev, and the Capitalist West (Nova York:

Simon and Schuster, 1990), p. 22.

49


N

o tocante ao aprisionamento do papa Pio VI em 1798, não era a primeira

vez na história cristã que um papa havia sido levado prisioneiro. Antes

dessa data, quando governantes laicos encarceravam chefes católicos, o

papado sempre voltava a se impor; dentro de alguns anos, geralmente, recuperava

grande parte da autoridade política que havia perdido. No entanto, isso não ocorreu

em 1798, e é por isso que o aprisionamento do papa nessa data constitui a “ferida

mortal”, que persistiu durante todo o século 19.

Quando o Congresso de Viena se reuniu em 1815, o papado, que duzentos anos

antes teria exercido uma influência significativa, teve apenas uma participação

secundária por intermédio de seu representante, o cardeal Ercole Consalvi. O

propósito do Congresso foi restabelecer as fronteiras dos reinos desfeitas pelas

guerras de Napoleão. Quando a Rússia, a Áustria e a Prússia formaram uma

“Santa Aliança” para encorajar as outras regiões da Europa a fundamentar seus

governos em princípios cristãos, a maioria dos outros reinos aderiu. 1 Tudo o que o

papa pôde fazer foi condenar a proposta, já que se recusava a fazer um acordo

com tantos “hereges”. Portanto, a Revolução Francesa realmente quebrou o poder

do papado sobre a política europeia. Durante o restante do século 19, a Igreja

Católica Romana ficou na defensiva no âmbito da política mundial.

A democracia e o Estado laico

Além de eliminar o poder político do papado, a Revolução Norte- Americana

e a Francesa deram impulso ao novo paradigma político que examinamos no

capítulo anterior, ou seja, ao modelo em que a democracia e os Estados laicos

devem manter a religião separada do governo. Ora, o papado estava acostumado a

50


exercer domínio em Estados em que o catolicismo era a religião oficial e o

governo impunha os princípios morais e doutrinários da igreja. O papado não

estava habituado à atuação num Estado laico no qual era alheio ao governo.

De acordo com o antigo paradigma, nos países em que o catolicismo era a

religião estatal, o intercâmbio entre a religião e o governo, às vezes, levava a

disputas entre o Estado e a igreja, que estava acostumada a resolver essas questões

com reis, imperadores e príncipes “tomando uma rápida decisão na antessala de

um palácio”. 2 Era muito mais fácil para a igreja fazer acordos com um rei ou um

imperador do que ter de negociar com grandes corporações de representantes

eleitos em parlamentos e congressos, especialmente quando o catolicismo nem

mesmo era a religião oficial do Estado. Agora, reis e imperadores não tinham mais

de prestar contas a ninguém, exceto a si mesmos. Sua decisão era lei, a despeito do

que os súditos pudessem pensar. Por outro lado, os representantes nos parlamentos

e congressos tinham que dar satisfação a seus eleitores, uma vez que a opinião do

povo é muito importante nesse sistema de governo. Nesse contexto, se há um

número expressivo de católicos entre os eleitores, os interesses do papado podem

ser protegidos – embora não haja garantia nem mesmo disso. Porém, o domínio

católico certamente não é exercido quando os cidadãos são, em grande parte,

protestantes ou não religiosos, ou até mesmo antirreligiosos.

Os Estados Unidos e sua forma republicana de governo surgiram poucos anos

antes da Revolução Francesa, e isso estabeleceu um parâmetro para o restante do

mundo ocidental no século 19. Paulatinamente, as monarquias e ditaduras da

Europa e América Latina foram substituídas por governos laicos e democráticos

baseados numa constituição. O poder político agora, teoricamente, pertencia ao

povo, não mais ao rei ou ao papa.

De modo geral, a Igreja Católica Romana atacou verbalmente essa tendência.

Pio IX (o papa que atuou de 1846 a 1878), em seu “Sílabo de Erros”, 3 condenou a

separação entre igreja e Estado e o fato de o governo laico estar livre da

supervisão da igreja. Esse chefe católico objetou vigorosamente à afirmação de

que “em caso de leis conflitantes promulgadas pelos dois poderes, a lei civil

prevalece”. Também protestou veementemente contra o conceito político de que

os líderes do governo estão isentos para com a autoridade da igreja e de que a

igreja e o Estado devem permanecer separados. 4 Leão XIII (o papa que atuou de

1878 a 1903) insistiu em que o Estado deve proteger a Igreja Católica para o bem

da sociedade. 5

O historiador Owen Chadwick, em seu livro The Secularization of the European

Mind in the Nineteenth Century [A Secularização da Mente Europeia no Século 19],

descreveu bem o problema:

51


A igreja e o Estado sempre haviam esbarrado um no outro [antes do

século 19] com certo grau de atrito, o que, ocasionalmente, provocava

crises explosivas geralmente mantidas dentro de limites toleráveis por

causa da sorte e das concessões mútuas.

Os governos representativos estabeleceram novos limites entre igreja

e Estado. As formas comuns de concessões mútuas tornaram- se

impossíveis. O antigo mundo regulara seu “toma lá, dá cá” com menos

desconforto, porque o governo era declarada e abertamente cristão, quer

fosse católico ou protestante. Os líderes da igreja aceitavam as restrições à

liberdade propostas pelo governo porque o próprio Estado prestava

lealdade à igreja. Mas nenhum governo representativo podia ser

abertamente cristão da maneira como havia ocorrido anteriormente.

Mesmo que o rei ou o primeiro ministro fossem devotos ou piedosos, [...] o

governo tinha de ser neutro; precisava tratar imparcialmente todas as

religiões; e lidar imparcialmente com todas as religiões significa tratar

imparcialmente também a irreligião. 6

Outro fator que contribuiu para o enfraquecimento do poder político da igreja

durante o século 19 foi a crescente separação entre ciência e religião. Os cientistas

nunca esqueceram – nem perdoaram – a punição que a igreja infligiu a Galileu

por este haver confirmado a teoria copernicana de que a Terra e os outros planetas

giram ao redor do Sol. Esse episódio confirmou o fato de que a igreja havia

permitido que o dogma dominasse sobre a razão.

Um dos acontecimentos políticos mais significativos com os quais o papado

teve de lidar no século 19 foi a perda dos Estados Papais. No capítulo anterior,

mencionei que Pepino III deu esses territórios ao papa em 754 d.C., os quais foram

governados pela Igreja Católica por mais de mil anos. Em 1869, as forças italianas

antagônicas ao governo papal conquistaram uma grande porção dos Estados

Papais, e, em 1861, o rei Vítor Manuel deu os primeiros passos para o

estabelecimento da moderna nação laica da Itália. Quase dez anos depois, em

setembro de 1870, essa nação declarou guerra ao que restava dos Estados Papais,

incluindo a cidade de Roma, na qual as tropas italianas chegaram no dia 20 de

setembro.

Na ocasião, o papa Pio IX apresentou uma resistência simbólica com seu

minúsculo exército, mas, depois de três horas, as forças italianas entraram em

Roma e tomaram os Estados Papais. O papa ficou furioso. Nos 59 anos seguintes,

os papas que sucederam a Pio IX exigiram a devolução dos Estados Papais, mas o

52


governo italiano recusou-se firmemente a fazê-lo. Por isso, durante esses 59 anos

os papas protestaram, permanecendo confinados no Vaticano. Esse conflito entre o

papado e o governo da Itália passou a ser conhecido como a “Questão Romana”.

Entretanto, o século 20 presenciou uma mudança radical na relação do

Vaticano para com a política mundial. Seria impossível neste capítulo nos

aprofundarmos numa simples fração das atividades políticas exercidas pelo

Vaticano durante esse século. Mas é válida a abordagem de três dos exemplos mais

importantes: (1) o Tratado de Latrão, feito entre o Vaticano e a Itália de Mussolini

em 1929, acordo esse que restaurou a condição de Estado do Vaticano; (2) a

concordata do Vaticano com a Alemanha de Hitler em 1933; (3) a contribuição do

Vaticano para a queda do comunismo na Europa Oriental e na Rússia no fim da

década de 1980 e início da década de 1990.

O Tratado de Latrão

A história do Tratado de Latrão, feito em 1929, teve início 59 anos antes dessa

data, quando a Igreja Católica perdeu os Estados Papais para o Estado emergente

da Itália. Nesse momento, juntamente com a maioria dos outros Estados europeus,

a nação italiana estava empenhada na luta pelo liberalismo, pela democracia, pelo

anticlericalismo e pela condição de Estado laico. O papado se opunha fortemente a

essa tendência, uma vez que preferia lidar com governos autoritários que

estabelecessem o catolicismo como a religião oficial e lhe dessem um papel

importante na vida civil. Os papas proclamavam que o liberalismo, a democracia e

a liberdade de expressão e de imprensa eram ideais pecaminosos. Além disso,

declaravam que qualquer pessoa que votasse em favor de um Estado laico italiano

cometia um pecado que automaticamente resultava em condenação eterna. 7

Na primeira década do século 20, o Vaticano deixou de proibir o voto dos

italianos. Na verdade, devido ao fato de que o socialismo – o qual o Vaticano

também detestava – estava rapidamente ganhando terreno na Itália após a

Primeira Guerra Mundial, o Vaticano permitiu que os católicos organizassem um

partido político que teria por objetivo anular a influência socialista. Conhecido

como Partito Populare [Partido Popular], e liderado por um sacerdote siciliano

chamado Don Sturzo, logo se tornou uma força poderosa na política italiana.

Aproximadamente nessa mesma época surgiu o Partito Fascista [Partido

Fascista] italiano, e, em 22 de outubro de 1922, seu líder, Benito Mussolini, assumiu

o controle do governo italiano. Entre outras coisas, Mussolini e os fascistas lutaram

contra o socialismo e o comunismo. O Vaticano, incluindo o recém-empossado

papa Pio XI, observou esse acontecimento com grande satisfação, pois, se havia

algo que o papado odiava mais que a democracia, era o socialismo e o

53


comunismo, ambos com filosofia ainda mais secular que a dos governos

democráticos. O comunismo se constituía em algo particularmente odioso, porque

declarava, nas palavras de Karl Marx, que a religião é “o ópio do povo”. Os papas

estavam bem conscientes das atrocidades cometidas contra a igreja pelo governo

comunista da Rússia.

Mussolini, que desejava obter poderes ditatoriais, sofreu resistência de uma

coalizão composta por socialistas e pelo Partito Populare católico. Pio XI,

vendo nos fascistas de Mussolini um poderoso oponente do socialismo e do

comunismo, apoiou os fascistas contra seu próprio partido católico. Ele advertiu

todos os católicos italianos de que qualquer aliança com os socialistas era pecado, e

ordenou a todos os sacerdotes que eram membros do partido católico que o

abandonassem. Mussolini conseguiu sua ditadura. O Partito Populare estava

condenado.

O Tratado de Latrão. O Vaticano estava ansioso para resolver a controvérsia de

sessenta anos com o governo italiano sobre os Estados Papais. Em outubro de 1926,

Pio XI iniciou negociações com Mussolini que resultaram no Tratado de Latrão,

assinado pelo Vaticano e pelo governo italiano em 11 de fevereiro de 1929.

Esse acordo consistiu em três documentos: o tratado em si, chamado de

“Tratado de Conciliação”; uma “Convenção Financeira”; e uma “Concordata”. 8 O

primeiro artigo do tratado estabeleceu o catolicismo como a religião oficial do

Estado. Embora a relação entre a igreja e o Estado delineada no tratado ainda não

fosse a ideal, segundo os padrões de Roma, houve um grande passo nessa direção.

Os artigos 3 e 4 do tratado deram à Santa Sé completa e soberana autoridade sobre

a cidade do Vaticano, garantindo que o governo italiano não interviria nos negócios

internos do papado.

A Convenção Financeira estipulou que o governo italiano daria 7,5 milhões de

liras italianas ao Vaticano como compensação pela perda dos Estados Papais em

1870.

O artigo 11 da Concordata reconheceu os dias de festa instituídos pela igreja,

incluindo “todos os domingos”. O artigo 34 estabeleceu a lei canônica católica

como a base para o casamento e o divórcio. 9 O artigo 36 conferiu à Igreja

Católica controle sobre toda a instrução religiosa dada nas escolas públicas da

Itália. A Concordata também estipulou que os casamentos civis deveriam ser

regidos por essa lei. O resultado disso foi a adoção da lei canônica católica – no

tocante à educação e ao casamento – como a política oficial do governo italiano.

Em essência, a lei religiosa se tornou a lei italiana. Isso foi de extrema importância

para o Vaticano, pois, novamente, alguns dos mais importantes princípios morais

católicos deveriam, pelo menos em teoria, ser impostos por um governo civil,

54


muito embora este fosse um governo laico.

Um dos efeitos primários do Tratado de Latrão foi a restauração do Vaticano

enquanto Estado independente. Agora, o papa, como legítimo chefe de Estado,

poderia uma vez mais realizar negócios com outras nações do mundo, inclusive a

troca de embaixadores.

Alguns adventistas do sétimo dia, ouvindo a notícia do Tratado de Latrão em

1929, proclamaram que a ferida mortal havia sido curada. De fato, o acordo

possibilitou o início da cura da ferida mortal; porém, essa recuperação ainda está

em andamento.

A concordata com a Alemanha

A Alemanha emergiu da Primeira Guerra Mundial como uma nação

democrática chamada República de Weimar. Vários partidos competiam pela

influência no Reichstag – o parlamento ou congresso alemão. Entre esses estava o

Partido do Centro, o Partido Alemão dos Trabalhadores (que Hitler, mais tarde,

denominou Partido Socialista Nacional Alemão dos Trabalhadores), o dos

Democratas Sociais e o dos Comunistas. O Partido do Centro, o equivalente alemão

do Partito Populare italiano, era católico.

Eugenio Pacelli. Em 1920, o Vaticano enviou Eugenio Pacelli, um de seus mais

talentosos diplomatas, como núncio 10 ao estado alemão da Bavária. Três anos

depois, ele foi designado para Berlim, onde se tornou o núncio da igreja na

Alemanha. Nessa função, conseguiu exercer uma influência significativa na

política alemã. Uma das grandes ambições de Pacelli durante a década de 1920 foi

a negociação de uma concordata com a República de Weimar. Vale ressaltar que

ele conseguiu estabelecer uma concordata com a Bavária, para onde havia ido

como núncio em 1920, devido ao fato de que a maior parte dos habitantes desse

país é católica. No caso da Alemanha, porém, em que dois terços da população são

protestantes, o governo democrático de Weimar não se interessou em estabelecer

uma concordata com o Vaticano que sujeitasse os protestantes da Alemanha a uma

lei canônica que desse à igreja controle sobre a educação pública e o casamento.

Por isso, Pacelli nunca conseguiu fazer esse acordo com a República de Weimar.

Mas teria muito mais sucesso com Hitler.

Adolf Hitler. Na época da juventude desse homem, certamente ninguém

imaginava que ele seria um futuro líder mundial. Hitler desejava se tornar um

artista, mas fracassou completamente nesse sentido. Não conseguiu nem ser aceito

numa razoável faculdade de Artes. Ao longo da maior parte do período da

Primeira Guerra Mundial, foi visto como um derrotado que mal conseguia se

55


sustentar em Viena. Contudo, era um orador talentoso que arrebatava multidões e

um exímio político. Por causa disso, em 1919 uniu-se ao Partido dos Trabalhadores

(que logo se tornaria o Partido Nazista), transformando-se em um ardente defensor

dessa causa. Em 1921, já havia alcançado tal preeminência no partido que foi

nomeado seu líder. Assim, aproximadamente na mesma época em que Mussolini

obteve poder ditatorial na Itália, Hitler emergiu como uma força menor na política

alemã.

Dois importantes fatores contribuíram para a posterior ascensão de Hitler ao

poder. O primeiro diz respeito aos termos severos do Tratado de Versalhes, que os

governos Aliados forçaram a Alemanha a assinar no fim da Primeira Guerra

Mundial. O segundo, às horríveis condições econômicas da Alemanha durante a

década de 1920, que resultaram na Grande Depressão da década de 1930. As duas

estiveram intimamente relacionadas.

O Tratado de Versalhes limitou severamente as forças militares da Alemanha,

impôs ao país a perda de grandes porções do território alemão e, o mais

importante, exigiu que a Alemanha pagasse enormes quantias pelo dano que sua

guerra havia causado às nações europeias. O povo alemão se sentiu humilhado, e

sua economia, que já cambaleava sob o pesado fardo do custo da guerra, foi

arruinada. Milhões de pessoas ficaram desempregadas. A inflação subiu a tal ponto

que um barril cheio de marcos (moeda alemã) mal dava para comprar um pão. O

colapso econômico mundial de 1929 fez a Alemanha se prostrar de joelhos.

Nesse contexto, Hitler, um eloquente orador, hipnotizou o povo alemão com

sua brilhante promessa de acabar com o pagamento das reparações, reconstruir o

exército alemão e recuperar o território que havia sido tomado da Alemanha no

momento da assinatura do Tratado de Versalhes. No fim da década de 1920, ele já

estava emergindo com uma poderosa força na política alemã.

Hitler e a Igreja Católica. À medida que obtinha poder político na Alemanha,

Hitler compreendia que teria de lidar com a oposição moral a suas políticas por

parte dos protestantes e católicos da Alemanha, particularmente no que diz respeito

a suas políticas antijudaicas. Em virtude disso, passou a considerar a concordata

que o Vaticano negociou com a Itália em 1929 como um modelo que poderia usar

para neutralizar o poder político dos católicos. Assim, logo no início de sua carreira

política, Hitler determinou que estabeleceria uma concordata com o Vaticano.

Primeiro, porém, ele precisava se tornar o líder do governo alemão,

transformando-o numa ditadura chefiada por ele mesmo.

Ao longo da década de 1920, o Partido Nacional Socialista exerceu pouca

influência na política alemã. No entanto, após o colapso econômico mundial de

1929, à medida que a Alemanha mergulhava em um caos econômico, as

promessas de restauração do poder militar alemão e, especialmente, as do término

56


dos pagamentos esmagadores das reparações, que intensificaram as dificuldades

econômicas da nação, passaram a ter grande popularidade entre o povo alemão. O

resultado foi que, na eleição de setembro de 1930, os nazistas conquistaram 107

cadeiras no Reichstag, fato que os tornou o segundo maior partido político da

nação. Hitler estava quase realizando o seu desejo de governar a Alemanha.

Entretanto, a maioria do povo católico, dos bispos e arcebispos ainda se opunha

fortemente às políticas nazistas, condenando-as em público. Felizmente, Hitler tinha

um aliado no Vaticano.

O Vaticano e os nazistas. Em 1930, o papa Pio XI chamou Eugenio Pacelli de

volta a Roma e o nomeou secretário de Estado do Vaticano. Pacelli e Pio tinham a

ambição prioritária de estabelecer uma concordata com a Alemanha. E viram a

ascensão de Hitler ao poder como um meio de satisfazê-la. Também viram em

Hitler um poderoso aliado contra os comunistas, a quem eles temiam e odiavam.

Esses foram os dois fatores dominantes que moldaram o relacionamento do

Vaticano com a Alemanha no início da década de 1930. No livro The Churches and

the Third Reich [As Igrejas e o Terceiro Reich], Klaus Scholder 11 explica: “Toda a

administração alemã era julgada por Roma, sobretudo, tendo-se em vista duas

questões: a de quão resolutamente ela lutava contra o comunismo ateísta e a de

quão preparada estava para concluir uma concordata com o Reich.” 12

Entretanto, como mencionei antes, a República de Weimar não estava

interessada em fazer um acordo com o Vaticano. Não houve problemas, no que

tange à concordata com o estado alemão da Bavária, porque a maioria dos seus

habitantes era católica. Entretanto, dois terços da população da Alemanha eram

protestantes. Por isso, a democrática República de Weimar não poderia impor a

eles uma concordata que favorecesse os católicos.

Uma visita do chanceler alemão Heinrich Bruening a Pacelli, em agosto de

1930, indica tanto a importância que o Vaticano atribuía à negociação de uma

concordata com a Alemanha como a resistência do governo alemão a tal acordo.

Embora ele próprio fosse católico, Bruening se opunha fortemente a uma

concordata, e por boas razões: ele sabia que a constituição alemã não a permitiria,

uma vez que compreendia a política alemã. Em resumo, Bruening tinha a

consciência de que o governo alemão nunca aceitaria uma concordata com o

Vaticano. Embora essa questão tenha sido esclarecida, o catolicismo de Bruening,

por um lado, e sua oposição à concordata, por outro, era uma dicotomia que

Pacelli não conseguia entender. Muitos anos após a visita, Bruening publicou suas

recordações sobre a conversa que tiveram. Klaus Scholder descreve o impasse em

detalhes:

57


Pacelli levantou a questão de uma concordata com o Reich. [...]

Bruening, no entanto, não queria que essa ligação ocorresse. Do seguinte

modo este relatou o andamento da conversação: “Eu [Bruening] disse a

ele [Pacelli] que era impossível para mim, como chanceler católico, em

vista da tensão na Alemanha, até mesmo abordar esse assunto. [...] Se eu

levantasse a questão de uma concordata com o Reich agora, instigaria o

furor dos protestantes, por um lado, e, por outro, seria completamente mal

entendido pela esquerda.”

Scholder continua sua análise da entrevista:

[A rejeição da exigência de Pacelli por Bruening] se pautou, é claro,

numa avaliação precisa. Para Pacelli, porém, essas dificuldades alemãs

eram, obviamente, sem importância. [...] Por mais de uma década ele

havia devotado todas as suas energias a uma questão [à concordata com o

governo alemão]. Agora, havia surgido uma nova situação política [a

ascensão de Hitler ao poder], e Pacelli estava determinado a obter

vantagem dela – pois sempre havia procurado levar vantagem em

situações políticas.

Com Bruening, no entanto, isso não pôde ser feito. Ao contrário, o

chanceler respondeu firmemente ao cardeal que “ele estava equivocado

quanto à situação política na Alemanha e, acima de tudo, quanto ao

verdadeiro caráter dos nazistas”.

A conversa se tornou ainda mais acalorada quando foi mencionada a

questão dos tratados das igrejas protestantes. Bruening relata o seguinte:

“Pacelli achava impossível que um chanceler católico fizesse um tratado

com igrejas protestantes. Respondi bruscamente que, de acordo com o

próprio espírito da constituição à qual eu havia jurado, eu tinha de proteger

os interesses do protestantismo religioso com base na plena igualdade. O

cardeal secretário de Estado [titular da Secretaria de Estado do Vaticano]

agora condenava toda a minha política.” 13

Essa conversa entre o chanceler alemão e o secretário de Estado do Vaticano é

uma excelente ilustração do tipo de pressão que pode ser exercida pelo Vaticano

sobre os católicos que são políticos, uma vez que a igreja espera que os políticos

católicos apoiem as ambições do papado. Esse é outro ponto extremamente

importante ao qual retornaremos em capítulos posteriores.

58


Os eventos que se seguiram à visita de Bruening a Pacelli favoreceram este.

Pouco depois de seu encontro com o secretário de Estado do Vaticano, as políticas

econômicas impopulares de Bruening puseram fim à sua chancelaria. Contudo, na

eleição de 31 de julho de 1932, os nazistas mais do que dobraram sua

representação no Reichstag, a qual passou de 107 membros para 230. Hitler estava

prestes a satisfazer sua ambição política de governar a Alemanha.

A oposição dos bispos alemães a Hitler. Em contraposição ao Vaticano, os

bispos e católicos alemães não apoiaram Hitler. Além disso, opuseram- se

fortemente ao partido nazista. Os bispos católicos alemães fizeram uma

conferência em agosto de 1932, pouco após a eleição que deu aos nazistas 230

cadeiras no Reichstag, e as atas desse encontro registram o seguinte:

Todas as autoridades diocesanas desaprovam a participação nesse

partido [nazista]. Primeiro, porque partes de seu programa oficial contêm

falsas doutrinas no tocante à maneira com que devem ser compreendidas.

[...] Segundo, porque as declarações de numerosos representantes e portavozes

do partido são de caráter hostil à fé, expressando uma atitude

contrária aos ensinos e às afirmações da Igreja Católica. [...] Terceiro,

porque, de acordo com a opinião coletiva do clero católico e dos leais

defensores católicos dos interesses da igreja na vida pública, se o partido

alcançar o monopólio que tão ardentemente deseja na Alemanha, os

interesses dos católicos em relação à igreja ficarão totalmente

sem acolhida.14

A ascensão de Hitler ao poder. O Vaticano apoiou o nazismo, já que a ascensão

de Hitler ao poder continuou a satisfazer os desejos do Vaticano. Em 30 de janeiro

de 1933, ele foi nomeado chanceler da Alemanha, ficando mais próximo da

obtenção do poder ditatorial. A República de Weimar e sua constituição

democrática lhe barravam o caminho, mas havia uma solução para esse

problema. A constituição da república incluía uma cláusula cujo conteúdo

declarava que, numa emergência nacional, uma “Lei de Capacitação Plena”

votada por dois terços do Reichstag poderia conferir poderes ditatoriais ao

chanceler. Tendo isso em vista, Hitler necessitava do respaldo dessa Lei de

Capacitação Plena. Só havia um problema: os membros de seu partido nazista não

totalizavam dois terços dos votos no Reichstag. Sendo assim, para se valer de uma

Lei de Capacitação Plena, os nazistas teriam de colaborar com outro dos partidos

políticos da Alemanha – mas qual deles? Para Hitler, a resposta era simples: o

Partido do Centro católico. A fim de conseguir a adesão desse partido, ele pensou

em oferecer ao Vaticano uma concordata.

59


O plano funcionou. Eugenio Pacelli, determinado como sempre a negociar

uma concordata com o governo alemão, vendo Hitler como aliado no combate ao

comunismo, concordou prontamente. O Partido do Centro católico emprestou seus

votos aos nazistas, e, em 23 de março de 1933, o Reichstag deu a Hitler o poder

ditatorial por meio da Lei de Capacitação Plena. Portanto, foi o Vaticano que

contribuiu para a ascensão de Hitler ao poder no momento em que ele era o

chanceler da Alemanha havia menos de dois meses.

Klaus Scholder faz o seguinte comentário: “Os que questionam o fato de que

houve uma relação entre a aceitação da Lei de Capacitação Plena e o

estabelecimento da concordata com o Reich definitivamente parecem não ser

convincentes.” 15

No livro The Coming of the Third Reich [A Vinda do Terceiro Reich], Richard J.

Evans escreve:

O Partido [do Centro] recebeu a garantia, em dois dias de discussões

com Hitler, de que os direitos da igreja não seriam afetados pela Lei de

Capacitação Plena. [...] Essas promessas, combinadas com uma forte

pressão da parte do Vaticano, foram suficientes para fazer com que os

delegados do Partido do Centro passassem a apoiar a medida que, a longo

prazo, viria a significar sua própria extinção política. 16

É importante notar que a concordata foi estritamente estabelecida entre o

Vaticano e o governo alemão, não entre o catolicismo alemão e o governo alemão.

No que se refere a esse fato, vale notar as palavras de Scholder:

Pacelli obviamente viu – provavelmente de maneira correta – que

seus planos [para uma concordata] correriam perigo, se não ficassem

fadados ao fracasso, por causa de uma inclusão prematura dos bispos

alemães nas negociações da concordata. Por isso, nessa primeira fase ele

conservou tudo o que tinha a ver com a concordata em segredo,

evidentemente sem considerar o triunfo que seria para Hitler o fato de a

Cúria ter mais confiança nele que em seus próprios bispos. 17

A distinção entre o Vaticano e os bispos católicos alemães pode, à primeira

vista, parecer irrelevante. Contudo, ela é extremamente importante, pois nos ajuda

60


a compreender o papel do Vaticano na política mundial. A concordata deve ser

vista como um arranjo entre dois Estados ou nações: o governo alemão de Hitler e

o governo do Vaticano. Não teve nada a ver com os católicos alemães e seus

bispos, já que, no âmbito da estrutura hierárquica da Igreja Católica, quando o

papa falava, os bispos eram obrigados a seguir, quer concordassem ou não com o

que havia sido feito. O periódico católico Allgemeine Rundschau afirmou que “os

bispos não podem lutar quando Roma conclui que deve haver paz”. 18

Richard Evans salienta que, “na busca da prometida concordata, os bispos

alemães retiraram sua oposição ao nazismo e emitiram uma declaração coletiva

de apoio ao regime em maio [de 1933]”. Na conferência dos bispos, em 1º de

junho, também expediram uma carta pastoral “dando as boas-vindas ao

‘despertamento nacional’ e à nova ênfase numa forte autoridade estatal”. No

entanto, ainda davam atenção às questões que os haviam preocupado no ano

anterior: a apreensão relacionada à “ênfase dos nazistas na raça e a iminente

ameaça às instituições leigas católicas”. 19

A concordata com o Reich. Em contraposição ao Tratado de Latrão, a

concordata estabelecida entre o Vaticano e a Alemanha de Hitler não consolidou a

Igreja Católica como a religião estatal. Isso teria sido impossível, uma vez que dois

terços do povo alemão eram protestantes. Contudo, o primeiro artigo da concordata

garantiu “liberdade de profissão e prática pública da religião católica”. Além disso,

foi concedida à igreja liberdade para “administrar e regulamentar seus próprios

negócios independentemente, e, dentro da estrutura de sua própria competência,

publicar leis e ordenanças obrigatórias aos seus membros”. O artigo 3 assegurou a

troca de embaixadores (núncios, na esfera católica) entre a Alemanha e o

Vaticano. O artigo 4 outorgou à igreja a liberdade de publicar “instruções,

ordenanças, Cartas Pastorais, boletins diocesanos oficiais e outras decretações

relativas à orientação espiritual dos fiéis, propagadas pelas autoridades eclesiásticas

no âmbito de sua competência [...] sem impedimentos”.

De modo geral, vários artigos favoreceram Hitler. O artigo 16, por exemplo,

declarava:

Antes de os bispos assumirem suas dioceses, devem fazer um

juramento de lealdade ao representante do Reich no estado em questão ou

ao presidente do Reich, de acordo com as seguintes palavras: “Diante de

Deus e dos santos evangelhos, juro e prometo, como é próprio de um

bispo, lealdade ao Reich alemão e ao estado de [o nome de um estado

alemão é inserido aqui]. Juro e prometo honrar o governo legalmente

constituído e fazer com que o clero de minha diocese o honre. Na

61


realização de meu ofício espiritual e em meu zelo pelo bem-estar e pelos

interesses do Reich alemão, irei me esforçar para evitar todos os atos

prejudiciais que possam colocá-lo em perigo.”

Hitler desejava neutralizar o poder político do clero alemão. Para conseguir

isso, valeu-se do artigo 32 da concordata, o qual declarava que “a Santa Sé

prescreverá regulamentos para que os clérigos e os membros de ordens religiosas

não pertençam a partidos políticos e não se engajem em suas atividades”. Um dos

resultados da concordata foi a extinção do Partido do Centro católico. Scholder

declarou: “O Partido do Centro se desintegrou com uma velocidade tão grande que

surpreendeu até os socialistas nacionais [os nazistas].” 20

Por outro lado, o artigo 21 beneficiou a igreja, pois estipulou que “a instrução

religiosa católica, nas instituições de ensino elementar, avançado, secundário e

técnico, constitui uma porção regular do currículo e deve ser ensinada de acordo

com os princípios da Igreja Católica”. Esse artigo também deu ao clero autoridade

sobre a escolha de livros para a instrução religiosa em escolas públicas e “o direito

de investigar se os alunos estão recebendo instrução religiosa de acordo com os

ensinos e as exigências da igreja”.

A maioria das pessoas não está ciente do papel crucial que o Vaticano

desempenhou ao ajudar Hitler a obter o poder na Alemanha. Por ser um exímio

político, Hitler provavelmente teria cumprido sua meta de alguma outra forma,

ainda que não tivesse sido por intermédio do papado. Historicamente, porém, é fato

que a ansiedade do Vaticano para estabelecer uma concordata com a Alemanha

foi um fator-chave em que levou Hitler ao poder. Esse líder nazista fez reviver um

tipo de governante autocrático com o qual o papado historicamente estava

acostumado a lidar. Naquela ocasião, o mundo mal podia imaginar as terríveis

atrocidades que seriam cometidas por Hitler na Europa.

O relacionamento do Vaticano com a República de Weimar e com Hitler

remete a uma importante mudança da política papal, no que diz respeito às nações

democráticas. Essa mudança se pauta no fato de que o Vaticano compreendeu que

o ataque verbal à democracia e ao liberalismo político não o levaria a lugar algum.

Em virtude disso, ele passou a buscar maneiras de alcançar seus objetivos políticos

no contexto do processo democrático. Em resumo, durante o século 19 o Vaticano

orientou seus membros a não participar do processo democrático. Ele chegou ao

ponto de dizer-lhes que o ato de votar era pecado. Entretanto, pouco depois, o

papado se uniu ao processo democrático, permitindo a organização de partidos

políticos católicos cuja abordagem estivesse alinhada à política do Vaticano. O

confronto entre Bruening e Eugenio Pacelli explicita o fato de que o Vaticano não

62


poderia aceitar um político católico que colocasse a constituição e as leis de seu

país acima das exigências da igreja. Por fim, o papado esteve disposto a sacrificar

até seu próprio partido político, pois, com isso, alcançaria um de seus principais

objetivos, a saber, uma concordata com a Alemanha de Hitler.

Meu propósito em partilhar com você essa descrição do relacionamento entre

Hitler e o Vaticano, bem como entre Mussolini e o Vaticano, é apresentar o papado

como um agente expressivo na política mundial ao longo do século 20. Não foi

minha intenção colocar o Vaticano em posição difícil, uma vez que só temos uma

perspectiva completa dos fatos depois que eles ocorrem. Tendo isso em vista,

embora houvesse sinais de advertência do que estava para acontecer na Alemanha

de Hitler durante o início da década de 1930, ninguém poderia ter previsto

Auschwitz, Dachau e o aniquilamento de seis milhões de judeus. Klaus Shcolder

notou que, “enquanto os seres humanos não tiverem a capacidade de prever o

futuro, nem defensores nem oponentes poderão ser inteiramente censurados por

basearem suas decisões em experiências e padrões anteriores, em vez de se

espelharem na figura de um homem que, à sua própria maneira, foi, sem dúvida,

um tipo que aparece uma vez a cada cem anos”. 21

Por ora, basta só um exemplo da crescente influência do Vaticano na política

global durante o século 20.

O Vaticano e a queda do comunismo

Segunda-feira, 7 de junho de 1982, foi um dia histórico para o Vaticano e os

Estados Unidos. Foi histórico, sobretudo, para a União Soviética e os seus

partidários do leste europeu, embora não tenha sido provável que a União Soviética

e os seus aliados estivessem cientes do que estava acontecendo. Nesse dia, Ronald

Reagan passou cinquenta minutos com o papa João Paulo II na biblioteca do

Vaticano. Conversaram sozinhos. Sem secretários, sem auxiliares, sem intérpretes.

Foi o primeiro encontro entre o presidente e o papa, embora não tenha sido o

último. O assunto da conversa? “Reagan e o papa fizeram um acordo para

empreender uma campanha secreta cujo objetivo era apressar a dissolução do

império comunista.” 22 Estavam “convencidos de que a Polônia podia se

desprender da órbita soviética se o Vaticano e os Estados Unidos utilizassem seus

recursos com a finalidade de desestabilizar o governo polonês”. 23 Também criam

que, se pudessem derrubar o regime comunista na Polônia, o mesmo ocorreria

com outras nações do leste da Europa, ocasionando, possivelmente, a extinção da

União Soviética.

Solidariedade. A estratégia que Reagan e João Paulo II adotaram foi o apoio ao

63


Sindicato Solidariedade. Essa organização teve suas origens numa greve ilegal dos

trabalhadores que ocorreu no estaleiro polonês de Gdansk 24 em 1970. Para

combatê-la, o governo comunista enviou a tropa de choque, o que resultou em

mais de oitenta mortes. Ainda assim, Lech Walesa, um dos membros da comissão

de greve, continuou a organizar pequenos sindicatos clandestinos, os quais

ampliaram o número de manifestações por todo o país, visto que a economia

polonesa se deteriorou rapidamente no fim da década de 1970. Não podemos

deixar de mencionar a greve que ocorreu no estaleiro de Gdansk em agosto de

1980. Nessa ocasião, Walesa escalou um muro com o propósito de desafiar o

governo, fato que o tornou instantaneamente um herói nacional. Greves

espontâneas logo se seguiram por toda a Polônia.

Em setembro, o governo assinou um acordo com os grevistas que permitiu a

organização legal da Comissão de Coordenação Nacional do Sindicato Comercial

Livre Solidariedade. Walesa se tornou o presidente da comissão, e logo o número

de membros rapidamente subiu para nove milhões. Apesar disso, a Polônia

continuou a se afundar em um caos econômico que resultou em escassez de

alimentos, racionamento e aumento do desemprego. As greves continuaram, e, em

31 de dezembro de 1981, o líder do governo, o general Wojciech Jaruzelski, valeuse

da lei marcial para suspender as atividades do sindicato. No mês de outubro do

ano seguinte, ele a baniu. Seiscentos líderes do Sindicato Solidariedade foram

presos, e centenas de membros foram acusados de traição. Entretanto, alguns

milhares foram abrigados por sacerdotes e bispos em igrejas e mosteiros. Seis

meses depois, Reagan se encontrou com João Paulo II na biblioteca do papa.

João Paulo II e Ronald Reagan. O Sindicato Solidariedade era, acima de tudo,

um movimento do povo polonês, e não morreu enquanto esteve proscrito. Apenas

funcionou de forma clandestina. Por causa de razões políticas, João Paulo II e

Ronald Reagan decidiram manter o movimento vivo e ajudá-lo a crescer. O

Sindicato Solidariedade seria o punhal deles no coração do regime comunista. O

presidente norte-americano e o papa dariam, cada um, sua própria contribuição.

De um lado, os Estados Unidos forneceriam os auxílios financeiro e tecnológico

que fossem necessários, ao passo que João Paulo II daria a inspiração moral. De

outro, a igreja na Polônia proveria a sede geral e os locais de encontro para as

uniões clandestinas de todo o país.

E assim aconteceu. Usando canais secretos, os Estados Unidos enviaram

toneladas de equipamento para os poloneses: máquinas de fax, prelos,

fotocopiadoras, computadores e software. Os equipamentos eram frequentemente

enviados primeiro para a Suécia e Dinamarca. De lá, eram transferidos para

grandes contêineres e reenviados com endereço escandinavo para o porto polonês

de Gdansk por meio de um navio. Os trabalhadores dos armazenamentos dos portos

64


que eram agentes clandestinos do Sindicato Solidariedade sabiam quais

equipamentos continham o contrabando e, por intermédio de sacerdotes e de outros

canais da igreja, faziam-no chegar aos prédios dos sindicatos secretos em toda a

Polônia.

João Paulo II encorajou Walesa a conservar vivo seu sindicato clandestino. A

estratégia da igreja consistiu no impedimento de um confronto com o governo

polonês enquanto cooperava com os Estados Unidos ao exercer crescente pressão

sobre a ditadura polonesa. Tendo isso em vista, o papa disse a Walesa que os

membros de seu sindicato deviam evitar os confrontos abertos com o governo nas

ruas. Tais confrontos, segundo o chefe católico, só forçariam o governo a intervir

com o envio das tropas russas, que teriam por objetivo dissolver a rebelião.

Em junho de 1979, três anos antes de sua visita a Reagan, João Paulo II viajou

à Polônia onde foi recebido por milhões de católicos poloneses, e, em junho de

1983, um ano após seu encontro com Reagan, o papa retornou à sua terra natal. Ao

percorrer o país, exigiu direitos humanos e elogiou o Sindicato Solidariedade,

atraindo a atenção de multidões. Na ocasião, João Paulo II se deparou pela

primeira vez com Jaruzelski, o qual percebeu que seu governo estava abalado.

A pressão política exercida pelos Estados Unidos e pelo Vaticano sobre o

regime totalitário fez com que, em 5 de abril de 1989, o governo assinasse um

acordo que legalizaria novamente o Sindicato Solidariedade, possibilitando as

eleições parlamentares dois meses depois. Em dezembro de 1990, Lech Walesa se

tornou o presidente da Polônia.

O Vaticano e o poder mundial

Uma das razões primárias pelas quais o Vaticano apoiou Mussolini e Hitler foi

a feroz oposição dos dois ditadores ao comunismo. No entanto, embora não tenha

negado auxílio ao nazismo e fascismo, o papado acabou sendo desfavorecido com

essa união. Por outro lado, quando o Vaticano se aliou aos Estados Unidos, teve

sucesso. O acordo entre o Vaticano e Washington acabou vencendo o comunismo

na terra natal de João Paulo II, a Polônia. Também é válido ressaltar que, no início

de 1990, o comunismo já havia sido banido de toda a Europa ocidental e que, em

dezembro de 1991, o comunismo da União Soviética chegou ao fim. Tendo em

vista todas essas questões mencionadas, é razoável dizer que o Vaticano, cuja

influência exercida na política europeia durante a Idade Média foi tão forte,

novamente voltou a desempenhar um papel significativo na política mundial.

Os três exemplos que citei neste capítulo sobre o envolvimento do Vaticano

com a política são apenas alguns exemplos. Há muitos outros. No capítulo 16, você

lerá algo sobre o atual relacionamento entre Igreja Católica e a política norte-

65


americana. O envolvimento católico na política no século 21 difere

significativamente da política de poder da Idade Média. Mil anos atrás, a igreja não

tinha de se preocupar muito com a opinião pública. Exercia sua influência política

entre reis e imperadores, favorecendo quem mais parecia ter probabilidade de

realizar as ambições acariciadas pelo papado. Em contrapartida, o Vaticano atual

tem de cooperar com as democracias e inspirar movimentos entre o povo. E já

demonstrou ser hábil em trabalhar com as modernas realidades políticas, assim

como o era ao lidar com as questões políticas de mil anos atrás. É interessante

notar que, durante a época em que João Paulo II e Ronald Reagan estavam

minando o comunismo polonês, o arcebispo Pio Laghi aconselhou um diplomata de

Washington com as seguintes palavras: “Ouça o Santo Padre. Temos dois mil anos

de experiência nisso.” 25 O boletim online publicado por Stratfor 26 declarou: “Os

papas sabem como exercer a política do poder.” 27

No capítulo 3, expliquei por que os adventistas entendem que a besta do mar

representa o papado. Com base nessa interpretação, apresentei estas conclusões

sobre o papado no tempo do fim:

• “Deu-se-lhe [à besta do mar] ainda autoridade sobre cada tribo,

povo, língua e nação” (v. 7). Isso significa que o papa exercerá influência

política sobre o mundo todo.

• “E toda a terra se maravilhou, seguindo a besta; [...] também

adoraram a besta, dizendo: Quem é semelhante à besta? Quem pode

pelejar contra ela?” (v. 3, 4). Em outras palavras, isso quer dizer que o

mundo reconhecerá a liderança espiritual do papado e lhe prestará

homenagem.

• “Foi-lhe dado, também, que pelejasse contra os santos e os

vencesse” (v. 7). Esse texto remete ao fato de que o poder papal

perseguirá os que se opuserem à sua autoridade.

Será que essas surpreendentes conclusões são realmente corretas?

Cem anos atrás, muitos estudiosos das profecias provavelmente consideravam

extravagante e tola a predição adventista (baseada em Apocalipse 13) de que o

papado obteria domínio político global durante o tempo do fim. Contudo, a

influência política mundial do papado ao longo do século 20 tornou essa profecia

muito mais razoável hoje.

E o que dizer da predição de que o mundo reconhecerá a liderança espiritual

do poder papal e da profecia de que o papado perseguirá aqueles que rejeitarem

sua autoridade?

66


Será que isso pode realmente acontecer?

Para responder a essas perguntas, precisamos de um pouco mais

de informação.

1 Sendo que na época a Europa era fortemente anticlerical, a maioria das

nações zombou da proposta, mas acabou assinando-a assim mesmo. De qualquer

forma, a Aliança durou cerca de dez anos.

2 Owen Chadwick, The Secularization of the European Mind (Cambridge:

Cambridge University Press, 1975), p. 127.

3 “The Syllabus of Errors Condemned by Pius IX”, Papal Ency clicals Online,

http://www.papalencyclicals.net/Pius09/p9sy ll.htm.

4 Veja especialmente a parte 6 do “Syllabus” intitulada “Errors About Civil

Society, Considered Both in Itself and in Its Relation to the Church”.

5 Leão XIII, “On the Nature of True Liberty ”.

6 Chadwick, The Secularization of the European Mind, p. 126.

7 Avro Manhattan, The Vatican in World Politics (Nova York: Gaer Associates,

1949), p. 108.

8 Uma concordata é um acordo formal. Às vezes o termo é usado

especificamente para um acordo entre um governo e a Igreja Católica Romana

quanto à relação entre ambos.

9 A Igreja Católica proíbe seus membros de se divorciarem, portanto a igreja

autoriza anulações para casais que estejam separados. Tecnicamente, a anulação

difere do divórcio porque declara que o casamento nunca existiu, enquanto o

divórcio reconhece a existência do casamento e o rompe – algo que a teologia

católica proíbe. Na prática, contudo, as anulações católicas têm o mesmo propósito

que o divórcio; portanto, na realidade, não existe qualquer diferença entre os dois.

10 Um núncio católico é essencialmente o mesmo que um embaixador e serve

67


também como a ligação principal do Vaticano com os bispos do país para o qual é

nomeado.

11 Klaus Scholder (1930-1985) foi um historiador eclesiástico alemão e

professor de História na Universidade Eberhad Karls de Tubingen. É

especialmente conhecido por sua obra em dois volumes Die Kirchen und das Dritte

Reich, cujo título em inglês é The Churches and the Third Reich. A maior parte do

que digo sobre a relação do Vaticano com a Alemanha antes da Segunda Guerra

Mundial é baseada em seu primeiro volume.

12 Klaus Scholder, The Churches and the Third Reich (Philadelphia: Fortress

Press, 1988), p. 146.

13 Ibid., p. 152, 153.

14 Ibid., p. 157.

15 Ibid., p. 247, 248.

16 Richard J. Evans, The Coming of the Third Reich (Nova York: Penguin Press,

2004), p. 352; ênfase acrescentada.

17 Scholder, The Churches and the Third Reich, p. 392.

18 Nº 16, 19 de abril de 1933; citado em Guenther Lewy, The Catholic Church

and Nazi Germany (Nova York: McGraw-Hill, 1964), p. 44.

19 Evans, The Coming of the Third Reich, p. 363.

20 Scholder, The Churches and the Third Reich, p. 396.

21 Ibid., p. 221.

22 Carl Bernstein, “Holy Alliance”, Time, 14 de fevereiro de 1992, p. 28.

23 Ibid.

24 Gdansk é a sexta maior cidade da Polônia e seu principal porto marítimo.

25 Bernstein, “Holy Alliance”, p. 33.

68


26 Stratfor representa Strategic Forecasting (Previsão Estratégica). Essa edição

do boletim de Stratfor foi um comentário sobre as afirmações controversas que o

papa Bento XVI fez ao islamismo em setembro de 2006.

27 George Friedman, “Faith, Reason and Politics: Parsing the Pope’s Remarks”,

boletim online de Stratfor, 19 de setembro de 2006.

69


A

o ler os principais jornais e revistas de notícias que circularam na semana

da morte de João Paulo II, jamais se poderia concluir que o secularismo

estava em alta, e a religião em baixa, no mundo ocidental. Imagens de

pessoas chorando, orando, segurando velas e fazendo o sinal da cruz eram

frequentes tanto na mídia impressa quanto na eletrônica. Em que outras

circunstâncias a popular revista norte-americana Time publicaria estas palavras:

“Jesus Cristo é a resposta para as interrogações da vida humana”? Ou a Newsweek

faria uma matéria de capa intitulada “Vá com Deus”? 1

Algumas semanas após o funeral de João Paulo II, ouvi adventistas em toda

parte dizerem: “Toda a Terra se maravilhou, seguindo a besta” (Ap 13:3). Eles

consideraram a vida desse papa e a fascinação mundial pelo seu funeral como um

cumprimento profético. E com boas razões.

Kenneth Woodward, da Newsweek, de modo brilhante afirmou que João Paulo

II “transformou a figura do papa, que até então era um ícone distante, num rosto

familiar: o rosto dele”. 2 Durante sua eleição em 1978, João Paulo II, com 58 anos

de idade, consagrou-se o mais jovem papa em 132 anos. Por ser muito dinâmico,

três meses após sua nomeação visitou a República Dominicana e o México. Essa

foi a primeira das 104 peregrinações que marcaram seus 26 anos de atuação como

Pontífice Máximo. 3 Durante esse tempo, ele viajou o equivalente a três vezes a

distância da Terra à Lua. 4 De acordo com David Van Biema, da revista Time, “o

mundo era um palco, e o papa estava determinado a percorrer cada centímetro

dele”. 5 E o percorreu, pois, durante sua gestão, João Paulo visitou 129 dos quase

200 países do mundo. 6 Esse papa fez mais viagens fora de Roma que todos os

70


outros papas juntos 7 e foi visto pessoalmente por mais pessoas que qualquer outra

figura mundial, religiosa ou política. Ele se via como o sucessor não apenas de

Pedro, mas também de Paulo, que “nunca conseguia ficar parado, estando sempre

em constante movimento”. 8

João Paulo II exercia grande influência sobre as pessoas. “Ele sabe que

ninguém lê as encíclicas de um papa morto”, disse o arcebispo da Filadélfia, Justin

Rigali. “É por isso que ele vai às ruas. Talvez dure apenas um minuto, mas é como

se as pessoas tivessem dez horas da mais íntima experiência mística. Para muitas

delas, esse era o momento em que elas poderiam dizer: ‘Vi outra possibilidade na

vida.’” 9 No que diz respeito a mim, embora nunca tenha sentido algo místico

relacionado a João Paulo, uma vez que creio em uma doutrina diferente daquela

apregoada pelos católicos, posso dizer que senti seu carisma, especialmente em

seus primeiros anos de atuação. Eu gostava dele como pessoa.

O programa de viagens de João Paulo II era suficiente para deixar exausta a

maioria das pessoas. Contudo, houve outras realizações igualmente

impressionantes: (1) ele falava oito línguas, e, quando conhecia a língua da pessoa

que fazia uma pergunta, respondia naquela língua. Em 1989, quando se encontrou

pela primeira vez com Mikhail Gorbachev, ele e o primeiro- ministro soviético

conversaram durante oito minutos em russo; (2) os discursos e textos de João Paulo

II compreendem 150 espessos volumes; 10 (3) ele também completou uma difícil

tarefa iniciada por seu predecessor, Paulo VI: a revisão do extenso código de lei

canônica da igreja. Ele revisou, editou e corrigiu todo o documento, linha por

linha. 11

O impacto de João Paulo II em sua própria igreja foi bastante intenso. Durante

seu pontificado, o número de membros da igreja aumentou 41% – de 737 milhões,

em 1978, passou a 1,1 bilhão em 2003. O crescimento católico na África foi de

168%, e o número de sacerdotes africanos aumentou 237%. 12 João Paulo II

nomeou 150 cardeais durante sua gestão como papa, sendo que 44 foram

empossados de uma só vez em fevereiro de 2003. Sete meses depois, em

setembro, ele nomeou mais 31. João Paulo era famoso por ser doutrinariamente

muito conservador. E seu conservadorismo inevitavelmente dominará a igreja nos

próximos anos, pois, dos 117 cardeais de 52 países que se reuniram em Roma em

18 de abril de 2005 para escolher seu sucessor, 114 haviam sido nomeados por

ele. 13 Esse apego às tradições continua também com Bento XVI, pois, quando

ainda prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (antigamente conhecida

como Inquisição), no Vaticano, Bento XVI foi, ao longo de 25 anos, o responsável

pela defesa da doutrina de João Paulo II.

71


Ecumenismo

Um dos objetivos de João Paulo foi estabelecer relações com outros grupos

religiosos. Embora almejasse especialmente a união de todos os cristãos sob a

bandeira papal, também esteve atento às religiões não cristãs. Sentia ter um laço

especial com os judeus por estar familiarizado com os sofrimentos impostos a eles

na Polônia dominada pelos nazistas ao longo da Segunda Guerra Mundial. Foi o

primeiro papa a visitar uma sinagoga em Roma. Em 1984, encontrou-se com

membros do B’nai B’rith, uma organização judaica dedicada aos direitos humanos.

Dois anos depois, reuniu mais de 270 líderes religiosos, cristãos e não cristãos, para

um serviço de adoração em Assis. Entre os presentes estavam sacerdotes hindus,

xamãs tribais e o budista tibetano Dalai Lama, os quais tomaram assento ao lado

do papa.

Em 1993, estabeleceu relações diplomáticas entre o Vaticano e Israel. Em

2000, visitou esse país, onde orou no Muro das Lamentações e se encontrou com

líderes judeus. Quatro anos depois, os principais rabinos de Israel retribuíram o

favor visitando o papa no Vaticano.

João Paulo II também iniciou contatos com os muçulmanos. Em 1996, ao ser

presenteado com um exemplar do Alcorão pelo patriarca Rafael Bidawid, do

Iraque, ele se inclinou e beijou o livro em sinal de respeito. Vale ressaltar que o

papa cooperou com os islamitas no que se refere às questões de interesse comum.

Na conferência das Nações Unidas realizada em 1994, em que um dos assuntos

tratados foi a evolução dos direitos das mulheres, João Paulo II se uniu aos

muçulmanos para pressionar a conferência a adotar, na resolução final, uma

linguagem que protegesse os fetos.

Além de tudo isso, João Paulo II era um exímio diplomata político. Enfrentou o

comunismo e desafiou destemidamente seus líderes, fazendo com que todo o

sistema no leste da Europa ruísse. A União Soviética, que, no auge de seu

crescimento, foi uma das duas superpotências mundiais, não existe mais. E isso

ocorreu, em grande parte, por causa das habilidades políticas de João Paulo II.

Líderes de todas as grandes religiões do mundo viam João Paulo II como um

grande homem. Billy Graham o chamou de “a consciência moral do Ocidente” 14

e “a forte consciência de todo o mundo cristão”. 15 Ao falar sobre um encontro que

teve com o papa em 2002, Mufti Selim Mehmed, o líder da grande comunidade

muçulmana da Bulgária, disse: “Cremos que o mundo precisa de João Paulo II

porque ele fala em favor da paz, dos pobres e dos carentes.” 16 O rabino James

Rudin, da Comissão Judaica Norte-Americana, disse que o papa “compreendia os

72


judeus não apenas com a mente, mas com o coração. Suas contribuições são

históricas, e, provavelmente, ele é o melhor papa que os judeus já

conheceram”. 17 Observe as manchetes de uma série inteira de artigos publicados

na Christianity Today, a principal revista do protestantismo evangélico norteamericano:

• “Papa deu aos evangélicos o impulso moral que não tínhamos”

• “Papa ‘alargou o caminho’ para evangélicos e católicos”

• “Não mais ‘anticristo’: evangélicos elogiam papa”

• “Ele era meu papa também”

• “Protestantes elogiam papa por causa de suas posições ecumênicas

e sociais”

• “Funeral do papa coloca em foco afinidades entre católicos e

evangélicos”

O funeral de João Paulo

É a partir desse pano de fundo que precisamos avaliar o funeral de João Paulo

II e sua relevância profética. Por que estiveram presentes a esse evento quatro

reis, cinco rainhas e mais de setenta primeiros-ministros? Por que estiveram

presentes a ele 23 delegações da Igreja Ortodoxa e oito delegações protestantes,

que se uniram a representantes do judaísmo, do islamismo e de outras religiões não

cristãs? Por que três presidentes norte-americanos, inclusive o da época,

ajoelharam-se por cinco minutos em frente ao ataúde do papa? Por que mais de

setecentas pessoas ficaram em pé durante várias horas na Praça de São Pedro

para assistir ao funeral do papa? E por que cerca de dois bilhões de pessoas ao

redor do mundo o viram pela TV, sendo quatro milhões delas da cidade de Roma?

A resposta é simples: por causa do modo com que as pessoas o viam como

pessoa e da influência que exerceu no mundo. João Paulo II modificou a visão que

o mundo tinha de seu cargo e sua igreja. É por isso que, muitos dias antes de sua

morte, a TV, as rádios e os jornais ao redor do mundo apresentaram boletins

diários, às vezes de hora em hora, sobre o agravamento de seu estado de saúde.

Seu funeral foi o foco das notícias por mais de uma semana. A morte de João

Paulo II e a escolha de seu sucessor mantiveram a Igreja Católica Romana nas

principais páginas das mídias eletrônica e impressa durante todo o mês de abril de

2005. Inclusive a morte de papas anteriores foi relembrada em todo o mundo. É

realmente intrigante o fato de quatro reis, cinco rainhas, 70 primeiros-ministros, 23

73


delegações Ortodoxas e oito delegações protestantes irem ao funeral. Quatro

milhões de pessoas assistirem ao funeral somente em Roma, e dois bilhões ao redor

do mundo? Concordo com aqueles que interpretam esse evento como parte do

cumprimento da profecia de que “toda a Terra se maravilhou, seguindo a besta”

(Ap 13:3). De fato, o funeral de João Paulo remeteu diretamente ao contexto

bíblico estudado neste livro!

É importante notar que Apocalipse 13 diz que todos “adoraram a besta” (v. 4).

Na conclusão do capítulo intitulado “Apocalipse 13 e a besta do mar”, sugeri que,

pouco antes do fim, o mundo todo reconhecerá a liderança espiritual do papado.

Essa predição pode ter parecido extravagante e tola cem anos atrás, mas os

acontecimentos mundiais que delineei neste capítulo e no anterior tornam essa

conclusão muito mais razoável hoje.

Apocalipse 13:7 prossegue dizendo que foi permitido que a besta do mar

“pelejasse contra os santos e os vencesse”. Em outras palavras, o papado do fim

dos tempos se tornará um poder intolerante e perseguidor que castigará com

penalidades civis os que não se submeterem aos seus interesses espirituais

e morais.

Será que isso pode realmente acontecer?

Para responder a essa pergunta precisamos de mais evidências. Os próximos

dois capítulos nos ajudarão nisso, mas a resposta completa nos será dada no fim

deste livro.

1 David Van Biema, “Pope John Paul II, 1920-2005: A Defender of the Faith”,

Time, 11 de abril de 2005, 36; Newsweek, 18 de abril de 2005, p. 1.

2 Kenneth L. Woodward, “Beloved and Brave”, Newsweek, 11 de abril de

2005, p. 35.

3 Em latim, “Pontifex Maximus” era originalmente o título do sumo sacerdote

da religião estatal do Império Romano. Do tempo de César Augusto em diante, o

imperador passou a usar esse título, e com a queda do Império Romano Ocidental

em 476 d.C., o título passou ao bispo de Roma, o papa.

4 Andrew Nagorski, “Freedom Matters”, Newsweek, 11 de abril de 2005, p. 46.

74


5 Van Biema, “Pope John Paul II, 1920-2005”, p. 39.

6 Esse é o número de países independentes alistados pelo Departamento de

Estado dos Estados Unidos em maio de 2005 no site

http://www.estate.gov/www/regions/independent_states.html.

7 Woodward, “Beloved and Brave”, p. 42.

8 Jeffery L. Sheler, “Pope John Paul II: pastor to the world, he led a revolution

of conscience”, U.S. News & World Report, 11 de abril de 2005, p. 31.

9 Citado em Van Biema, “Pope John Paul II, 1920-2005”, p. 39.

10 Woodward, “Beloved and Brave”, p. 44.

11 Ibid., p. 43.

12 Van Biema, “Pope John Paul II, 1920-2005”, p. 40.

13 Ibid., p. 42. Num artigo de notícia na Internet em 18 de abril de 2005, a

CNN apresentou o número de 115.

14 Woodward, “Beloved and Brave”, p. 39.

15 Van Biema, “Pope John Paul II, 1920-2005”, p. 36.

16 Ibid.

17 Ibid., p. 42.

75


A

esta altura, precisamos considerar a compreensão católica da relação que

deve existir entre a igreja e o Estado. Isso é necessário a fim de

compreendermos os objetivos do papado no mundo atual. Dividi a

discussão em duas partes. Neste capítulo, examinaremos a teoria católica sobre a

relação igreja-Estado e a liberdade religiosa existente antes do Concílio Vaticano II

(1962-1965) e, em alguns casos, após esse concílio. 1 No próximo capítulo,

analisaremos declarações católicas referentes à separação entre igreja e Estado,

bem como à liberdade religiosa, feitas durante o Concílio Vaticano II e em período

posterior.

Superioridade da Igreja Católica

A compreensão católica dessas duas questões mencionadas há pouco é

construída com base em várias premissas importantes. A primeira diz respeito à

afirmação de que o cristianismo é a única religião verdadeira e a de que a Igreja

Católica é a única igreja cristã verdadeira. O papa Pio IX declarou

categoricamente: “A religião da Igreja Católica é a única religião verdadeira.” 2

Em sua encíclica “Sobre a Promoção da Verdadeira Unidade de Religião”,

promulgada em 6 de janeiro de 1928, Pio XI disse: “A Igreja Católica é a única

que mantém o verdadeiro culto. Ela é a fonte da verdade, o domicílio da fé e o

templo de Deus.” 3

O papado também ensina que só há salvação por meio da Igreja Católica. O

Catecismo da Igreja Católica, publicado durante o pontificado de João Paulo II,

declara que a “igreja, peregrina na Terra, é necessária à salvação. [...] Não podem

se salvar aqueles que, sabendo que Deus, por intermédio de Jesus Cristo, fundou a

76


Igreja Católica, se recusam a fazer parte dela ou a nela perseverar.” 4 Pio XI disse:

“Se alguém não trilhar esse caminho ou dele se desviar, não terá a esperança da

vida e salvação.” 5 O autor católico George La Piana, que também é um crítico,

disse que a igreja se considera “a agência divina exclusiva da salvação, o órgão

exclusivo da graça divina, o canal exclusivo do divino Espírito”. 6

Os católicos não são os únicos a afirmar que a sua é a única igreja verdadeira.

Algumas igrejas protestantes também têm reivindicado a mesma coisa. Entretanto,

há vários problemas decorrentes dessa asserção, e o menor deles não é a

arrogância e exclusividade às quais ela muitas vezes leva. A questão que enfocarei

neste livro é o efeito prejudicial que surge quando o conceito da “igreja

verdadeira” é combinado com outros aspectos da teoria política católica, que

examinaremos nas páginas seguintes.

Suprema autoridade do papa

A segunda grande premissa da teoria política católica é a que o papa deve ser a

suprema autoridade, tanto no que tange aos assuntos religiosos quanto aos

temporais (ou políticos). Ninguém questionará o direito que o papa tem de exercer

domínio no âmbito religioso. Mas a Igreja Católica insiste no fato de que o papa

deve ter autoridade também sobre os governantes políticos. Inocêncio III, o qual

liderou de 1198 a 1216, disse: “A liberdade eclesiástica é mais bem preservada

quando a Igreja Romana tem pleno poder para resolver tanto assuntos temporais

[políticos] quanto os espirituais.” 7 Cem anos mais tarde, em 1302, Bonifácio disse

na Bula Unam Sanctam: “Com a verdade como nossa testemunha, é da

competência do poder espiritual [do papado] estabelecer o poder terrestre

[político] e desaprová-lo se este não for bom.” 8

O papado baseia em Romanos 13:1 sua reivindicação da autoridade sobre os

assuntos seculares. Nesse verso, ao abordar a questão do poder dos governantes

políticos, Paulo afirma: “As autoridades que existem foram por Ele [Deus]

instituídas”. Na encíclica de Leão XIII publicada em 1881, “Sobre a Autoridade

Governamental”, ele apresentou esta ideia: “No que diz respeito ao poder político,

a igreja corretamente ensina que ele vem de Deus.” 9 Ao se valer desse conceito

bíblico, o papado vai ainda além, pois afirma que Deus exerce Sua autoridade

sobre reis e reinos por intermédio da igreja e que o papa tem autoridade sobre os

governantes políticos, já que ele é o cabeça da igreja. No século 13, Tomás de

Aquino disse as seguintes palavras: “O poder secular [político] está sujeito ao poder

espiritual como o corpo está sujeito à alma.” E acrescentou: “Na figura do papa, o

poder secular está unido ao espiritual. Ele sustenta o vértice de ambos os

77


poderes.” 10 O papa Leão XIII reforçou essa ideia em sua encíclica de 1888,

“Sobre a Natureza da Verdadeira Liberdade”. Ele salientou que, se as autoridades

seculares e religiosas partilham da mesma clientela, seus interesses às vezes

coincidem. Tendo isso em vista, declarou: “Precisa existir necessariamente alguma

ordem ou modo de procedimento para remover as ocasiões de divergência e

conflito, a fim de se garantir a harmonia em todas as coisas. Não se pode

considerar inapropriado o fato de que essa harmonia foi comparada à que existe

entre o corpo e a alma.” 11

O ponto principal enfatizado por Tomás de Aquino e Leão XIII é o de que tanto

os poderes políticos quanto os religiosos são ordenados por Deus, embora o poder

religioso (espiritual) seja superior ao político (secular). Em virtude disso, o papa

deve ter autoridade sobre o rei, e, nos momentos de conflito, o poder papal deve

predominar. Essa é a filosofia que norteou a política europeia durante a Idade

Média. Os reis nem sempre se curvavam à vontade dos papas. Contudo, como

vimos em capítulo anterior, os papas tinham o poder da excomunhão e do interdito,

por meio do qual exerciam intensa pressão sobre os governantes para que eles se

submetessem à igreja.

Segundo o papado, a proteção da igreja é uma das atribuições mais

importantes do Estado. O papa Pio XI, cujo pontificado se estendeu de 1922 a

1939, disse: “O poder real foi dado não apenas para o governo do mundo, mas,

acima de tudo, para a proteção da igreja.” 12 De maneira geral, nossos modernos

governos democráticos também são responsáveis pelo funcionamento das igrejas,

sinagogas e mesquitas. Mas isso simplesmente significa que o Estado é responsável

pela criação de um ambiente seguro no qual a religião possa ser praticada. É fato

que Pio XI e outros papas queriam dizer algo completamente diferente quando

afirmaram que “o poder real foi dado [...] acima de tudo, para a proteção da

igreja”. Na verdade, eles propagaram o conceito de que, num Estado ideal, a

Igreja Católica deve ser a única religião oficial, e o Estado precisa garantir a

superioridade da Igreja Católica em relação a todas as outras.

União entre igreja e Estado

Obviamente, o Vaticano prefere a união entre igreja e Estado, sendo

totalmente contra o moderno princípio político da separação entre ambas as

instituições.

Além disso, segundo a ótica do papado, uma vez que a Igreja Católica é a

única religião verdadeira, o catolicismo deve ser a religião estatal; o ideal é que

seja a única permitida pelo Estado. Com base nesse pensamento, Pio IX afirmou

78


que um dos principais erros de nosso tempo é a ideia de que “na atualidade não é

mais essencial que o catolicismo seja considerado a religião do Estado, com

exclusão de todas as outras formas de culto”. 13

Nos Estados Unidos e na maioria dos outros países ocidentais atuais, o Estado é

propositalmente não religioso. Em outras palavras, é secular ou laico. O Estado

laico não é hostil à religião; na verdade, protege-a, proporcionando liberdade para

todas as igrejas levarem avante sua missão do modo como acharem apropriado,

sem qualquer interferência do poder secular. Entretanto, de acordo com a teoria

política católica, é essencial que o Estado proporcione meios e oportunidades pelos

quais a comunidade possa ser habilitada a viver adequadamente, ou seja, de

acordo com as leis de Deus. Pois, uma vez que Deus é a fonte de toda bondade e

justiça, é totalmente inaceitável o fato de o Estado não prestar atenção a essas leis

ou torná-las infrutíferas ao promulgar leis contrárias. 14

Segundo esse pensamento, ao qual retornaremos em capítulos posteriores, o

Estado deve ser abertamente religioso, impondo as leis de Deus e não meramente as

leis seculares.

Pio XI, que esteve na função papal de 1922 a 1939, disse que “a dignidade real

[de Cristo] exige que o Estado leve em consideração os princípios de Deus, tanto ao

elaborar leis quanto ao exercer justiça”. 15 E, uma vez que a religião católica seria

a única verdadeira, os mandamentos de Deus e os princípios morais sobre os quais

o governo está baseado devem estar em harmonia com a compreensão católica.

Leão XIII, que exerceu o pontificado de 1878 a 1903, exortou fervorosamente os

governantes a “defender a religião e consultar os interesses de seus Estados ao dar

à Igreja [Católica] aquela liberdade que não pode ser tirada sem prejuízo e ruína

para a comunidade”. 16

Em outras palavras, visto que a autoridade espiritual da igreja deveria ser

superior à do Estado, ela teria o direito de ditar as verdadeiras leis morais que

governarão as nações e os seus povos. Segundo a concepção católica, um Estado

que promulgue leis em desacordo com o ensino moral da igreja está equivocado e,

pelo bem comum da sociedade, precisa mudar seus princípios a fim de que eles

estejam em harmonia com as normas impostas pelo papado.

É por isso que o catolicismo se opõe tão fortemente à separação entre igreja e

Estado. Pio IX declarou que outro dos “principais erros de nossa época” é a ideia

de que “a igreja deve ser separada do Estado, e o Estado, da igreja”. 17 Leão XIII

considerou esse conceito como um “princípio fatal”. 18 George La Piana disse que

79


a Igreja Católica condena a separação entre igreja e Estado “como uma ofensa à

lei de Deus e uma fonte inevitável de males”. 19

Oposição à liberdade de consciência

A consequência natural do pensamento católico é a rejeição da ideia da

liberdade religiosa, que pressupõe liberdade de consciência e de culto, segundo a

escolha individual. Pio IX disse que um dos principais erros de nossa época consiste

na ideia de que “todo homem é livre para adotar e professar a religião que, guiado

pela luz da razão, considerar verdadeira”. 20 Gregório XVI, que exerceu o ofício

papal de 1841 a 1846, declarou que “essa vergonhosa fonte de indiferentismo [o

liberalismo e a democracia] dá origem à absurda e errônea afirmação de que a

liberdade de consciência precisa ser mantida para todos”. 21 Nesse sentido, Pio IX

também discordou do conceito de que “a liberdade de consciência e culto é um

direito pessoal de cada homem que deve ser legalmente proclamado e afirmado

em toda sociedade corretamente constituída”. De acordo com ele, essa é “uma

opinião errônea, muitíssimo desastrosa quanto a seus efeitos sobre a Igreja Católica

e a salvação de almas, sendo, por isso, chamada de doutrina insana por nosso

predecessor Gregório XVI”. 22

É evidente que a liberdade de consciência para todo cidadão é um dos

preceitos fundamentais do Estado democrático laico, cujo princípio básico de

governo é a separação entre igreja e Estado. A oposição do papado à liberdade de

consciência, portanto, é outro ponto chave que abordaremos de forma mais ampla

neste livro.

Oposição ao governo do povo

Tendo em vista a ideia de que não se pode confiar na capacidade humana de

escolha conscienciosa da própria religião, a conclusão mais óbvia é a de que

também não se pode esperar que as pessoas tenham competência para escolher

seu próprio governo. Afinal de contas, a autoridade para governar vem de Deus,

não do povo. Com base nesse conceito, o papado se opõe fortemente ao “governo

do povo, pelo povo e para o povo” (trecho extraído do famoso Discurso de

Getty sburg, de Abraham Lincoln). Nesse ponto, vale ressaltar a seguinte

declaração do papa Leão XIII, presente em sua encíclica “Sobre a Autoridade do

Governo”.

80


De fato, em época mais recente, ao andarem nas trilhas daqueles que,

no passado, atribuíram a si mesmos o nome de filósofos, muitos dizem que

todo o poder vem do povo. Dessa maneira, aqueles que exercem

autoridade no Estado, fazem-no porque o poder lhes foi concedido pelo

povo. Portanto, segundo essa regra, a autoridade pode ser revogada pela

vontade do próprio povo. No entanto, os católicos discordam dessas

pessoas, afirmando que o direito de governar vem de Deus, como um

princípio natural e necessário. 23

Leão XIII prosseguiu dizendo que, quando “a lei que determina o certo e o

errado está à mercê da maioria, [...] ela é simplesmente uma estrada que leva

direto à tirania”. 24

Afirmamos, alguns parágrafos atrás, que o papado baseia sua teoria de

governo em Romanos 13:1, texto de Paulo que declara o seguinte: “As autoridades

[governamentais] que existem foram por Ele [Deus] instituídas.” Isso ocorre

porque, segundo a interpretação católica, esse verso afirma que um governo eleito

pelo povo não pode ter sido indicado por Deus. Embora não ocorra nada neste

mundo sem a permissão de Deus, vale lembrar que Paulo não disse como uma

autoridade governamental deveria vir à existência. Historicamente, os governos

obtiveram controle dos Estados de várias formas: com base em uma linhagem

real, no caso da monarquia; por meio de eleição, com participação do povo; por

meio de revolução, etc.

A propósito das formas de governo instituídas, as ações praticadas por qualquer

organização política têm por objetivo manter a ordem na sociedade. Para que isso

ocorra, a obediência às leis seculares não podem entrar em conflito com a

observância das leis de Deus. A pressuposição não declarada na teoria católica de

um governo apontado por Deus é que a mais alta autoridade na Terra é o papa; e,

uma vez que ele é o representante de Deus, qualquer governo que deseje

legitimidade precisa ter sua bênção. Por isso, os papas preferem a existência de

reis à de presidentes e parlamentos. Afinal de contas, os governos eleitos são mais

difíceis de ser controlados pelo papa.

Para ser justo, devo mencionar que recentemente alguns papas deram apoio,

com ressalvas, à democracia, considerando-a uma forma legítima de governo. O

primeiro papa a se pronunciar a respeito foi Leão XIII. Em sua encíclica intitulada

“Sobre a Autoridade Governamental”, de 1881, ele afirmou: “É importante,

contudo, notar que pessoas às quais se dá autoridade sobre um Estado podem, em

certos casos, ser escolhidas pela vontade e decisão da multidão, sem que haja

oposição à doutrina católica ou contestação por parte dela.” 25

81


Vale ressaltar que ele aceitou, sob certas circunstâncias, o fato de o povo poder

escolher seus próprios governantes quando não houver “oposição à doutrina

católica ou contestação por parte dela”. Do ponto de vista do papado, a

legitimidade da autoridade governamental se dá na medida em que há

concordância com as doutrinas e os princípios morais católicos. O ideal é que o

governante esteja disposto a se submeter à autoridade do papa. Portanto, o que

parecia uma mudança de atitude papal e uma aprovação irrestrita à moderna

democracia, não é algo tão convincente assim. Ou seja, um governo cujos

princípios devem estar em conformidade com os pressupostos papais não é uma

democracia – pelo menos não a democracia laica norte-americana.

Governo mundial

Postas essas informações, percebe-se que o alvo supremo do papado é a

obtenção do governo mundial e a imposição do conceito da união entre igreja e

Estado. Em sua encíclica “Sobre a Festa de Cristo Rei”, Pio XI escreveu:

O império de nosso Redentor abrange a todos. Nas palavras de nosso

imortal predecessor, o papa Leão XIII: “Seu império inclui não apenas as

nações católicas, não apenas as pessoas batizadas que, embora por direito

pertençam à igreja, tenham sido desviadas pelo erro ou separadas por

causa de seu cisma, mas também todos aqueles que não adotaram a fé

cristã; de forma que, verdadeiramente, toda a humanidade está sujeita ao

poder de Jesus Cristo.” No tocante à esse assunto, não há diferença entre o

indivíduo, a família e o Estado, pois todos os homens, coletiva ou

individualmente, estão sob o domínio de Cristo. NEle está a salvação do

indivíduo, nEle está a salvação da sociedade. 26

O seguinte resumo das palavras de Leão XIII torna o assunto ainda mais claro:

• “O império de nosso Redentor abrange a todos”, não apenas os

católicos ou cristãos.

• “Toda a humanidade está sujeita ao poder de Jesus Cristo.”

• “Todos os homens [...] estão sob o domínio de Cristo.”

Em certo sentido, é correto dizer que “toda a humanidade está sujeita ao poder

de Jesus Cristo” e que “todos [...] estão sob o domínio de Cristo”. No entanto, Pio

82


XI não quis afirmar apenas que Deus é o Governante supremo do mundo; que, na

segunda vinda de Cristo, todo ser humano “dará contas de si mesmo a Deus”

(Rm 14:12); que Cristo irá “ferir as nações” e “as regerá com cetro de ferro” (Ap

19:15). O raciocínio de Pio XI, na verdade, abrange os seguintes conceitos: (1) as

leis das nações precisam estar baseadas na Bíblia, que deve ser corretamente

compreendida; (2) a Igreja Católica é a única igreja cristã verdadeira e a

autoridade suprema no que diz respeito ao significado da Bíblia; (3) a autoridade do

papa é superior à dos governantes seculares.

Portanto, a conclusão lógica é a de que todos os seres humanos e todas as

nações devem se sujeitar à autoridade do papa, o representante de Deus na Terra.

Afirmei em um dos capítulos anteriores que Agostinho modificou

radicalmente a interpretação da profecia de Daniel 2. Por trezentos anos a igreja

havia considerado a pedra que atingiu os pés da estátua como um símbolo da

segunda vinda de Cristo, na qual, Ele “esmiuçará e consumirá todos estes reinos

[terrestres]” (Dn 2:44). Segundo a nova interpretação de Agostinho, a pedra

representa a primeira vinda de Cristo; portanto, a igreja é o reino eterno de Deus e

o instrumento por meio do qual todos os reinos terrestres serão vencidos. Esse foi o

conceito relativo à Bíblia e à profecia que levou a igreja, durante o período

medieval, a exercer domínio sobre reis e reinos. E esse raciocínio ainda está vivo e

ativo no pensamento católico, pois Pio XI – no século 20 – fez a seguinte

declaração: “Se o reino de Cristo [isto é, a Igreja Católica] recebe, como deveria,

todas as nações sob seu controle, não há razão pela qual devamos desistir de ver

aquela paz que o Príncipe da paz veio trazer à Terra.” 27

Pio XI também falou fortemente contra a democracia laica moderna, que

destituiu a igreja de seu poder temporal. Ele chamou de “praga do

anticlericalismo” a liberdade de religião proporcionada pela democracia laica, que

tem existido no mundo nos últimos duzentos anos.

Esse mau espírito, como vocês estão bem cientes, veneráveis irmãos,

não veio à existência em um dia; faz tempo que ele está à espreita. O

domínio do império de Cristo sobre todas as nações [isto é, o poder político

do papado sobre a Europa durante o período medieval] foi rejeitado. O

direito que a igreja recebeu do próprio Cristo, de ensinar a humanidade, de

fazer leis, de governar os povos em tudo o que diz respeito à sua salvação

eterna – esse direito foi negado. Gradualmente, a religião de Cristo [o

catolicismo] veio a ser igualada às falsas religiões e a ser rebaixada de

forma humilhante, ao mesmo nível delas. Foi então subordinada ao poder

do Estado [em vez de o Estado ser submetido ao poder da igreja] e passou

83


a ser tolerada em maior ou menor grau, segundo o capricho de príncipes e

governantes. 28

Até hoje a Igreja Católica não aprova o moderno Estado laico. Ela convive

com ele porque não tem outra escolha. A separação entre a religião e o governo,

nunca foi, e até hoje não é, aceita pelo papado, que apregoa o conceito de que, no

Estado considerado ideal, o catolicismo deve ser a religião oficial do Estado, cuja

função se pauta na imposição da moralidade e do dogma católicos.

George La Piana resumiu deste modo a ambição papal: “Tendo em vista sua

própria reivindicação, a Igreja Católica Romana é totalitária e espera conquistar o

mundo com base no princípio de que ela é a agência divina exclusiva da salvação,

o órgão exclusivo da graça divina, o canal exclusivo do divino Espírito.” 29

Em resumo

Antes do Concílio Vaticano II, a teoria papal da relação que deve existir entre a

igreja e o Estado estava baseada no conceito de que o cristianismo é a única

religião verdadeira e o catolicismo é a única igreja cristã verdadeira. A conclusão

disso é que o papa tem suprema autoridade tanto em assuntos espirituais quanto

seculares. Portanto, reis, presidentes e primeiros-ministros devem se sujeitar a ele

– pelo menos em questões espirituais (ou morais). De acordo com essa visão, a

igreja e o Estado devem se unir para que o governo

secular imponha os princípios morais defendidos pelo catolicismo. As pessoas

precisam se submeter à autoridade doutrinária da igreja; não têm o direito de crer

e adorar como desejam. Deus é o Autor da autoridade do Estado, e a Igreja

Católica, como a verdadeira representante de Deus na Terra, deve auxiliar o

Estado a governar seus cidadãos. Ou seja, devido ao fato de ser a única religião

verdadeira, deve dominar o mundo politicamente a fim de estabelecer o reino de

Cristo na Terra.

Diante dessas concepções, não hesito em dizer que, se o papado conseguisse

fazer o que deseja, seu sistema totalitário dominaria a política de todas as nações

da Terra. Isso porque a maior parte das fontes papais que citei não datam do

período medieval. São declarações de papas e de católicos estudiosos que viveram

nos últimos duzentos anos, sendo alguns deles do século 20.

Apesar disso, talvez haja alguém que pense que o Concílio Vaticano II, no

início da década de 1960, tenha mudado tudo isso; afinal de contas, nessa

assembleia foram feitas algumas declarações notáveis sobre a liberdade religiosa.

Para entender melhor essa questão, é necessário o exame dos pressupostos que

84


nortearam as conferências desse Concílio.

1 Vaticano II foi um concílio geral da Igreja Católica Romana. Foi realizado no

Vaticano (daí o nome “Vaticano II”) de 11 de outubro de 1962 a 8 de dezembro de

1965. O Concílio Vaticano I foi realizado entre 1869 e 1870.

2 Pio IX, “Sy llabus of Errors Condemned by Pius IX”, Nº 21; Papal

Ency clicals Online, http://www.papalency clicals.net/Pius09/p9syll.htm.

3 Pio XI, encíclica, 26 de janeiro de 1928, “On Religious Unity ” (Mortalium

Animos), par. 11; Papal Ency clicals Online, http://www.papalency clicals.net/

Pius11/P11MORTA.HTM.

4 Catecismo da Igreja Católica (São Paulo: Loy ola, 2000), par. 846.

5 Pius XI, “On Religious Unity ”, par. 11.

6 George La Piana e John Swomley, Catholic Power vs. American Freedom

(Amherst, NY: Prometheus Books, 2002), p. 20.

7 Citado em Readings in Church History, ed. C. J. Barry (Westminster, MD:

The Newman Press, 1960), v. 1 , p. 438.

8 Bonifácio VIII, bula promulgada em 18 de novembro de 1302, Unam

Sanctam, http://en.wikipedia.org/wiki/Unam_Sanctam.

9 Leão XIII, encíclica, 29 de junho de 1881, “On the Origin of Civil Power”

(Diuturnum Illud), par. 8; Papal Encyclicals Online,

http://www.papalency clicals.net/ Leo13/113civ.htm.

10 Citado em Dino Bigongiari, ed., The Political Ideas of St. Thomas Aquinas

(Nova York: Hafner Publishing Company, 1953), p. xxiv.

11 Leão XIII, encíclica, 20 de junho de 1888, “On the Nature of Human

Liberty” (Libertas Praestantissimum), par. 18; Papal Ency clicals Online,

85


http://www.papalencyclicals.net/Leo13/113liber.htm.

12 Pio IX, encíclica, 8 de dezembro de 1864, “Condemning Current Errors”,

também chamada “Forbidding Traffic in Alms” (Quanta Curd), par. 8; Papal

Ency clicals Online, http://www.papalency clicals.net/Pius09/p9quanta.htm; ênfase

acrescentada.

13 Pio IX, “Syllabus of Errors”, nº 77.

14 Leão XIII, “On the Nature of Human Liberty”, par. 18.

15 Pio XI, encíclica, 11 de dezembro de 1925, “On the Feast of Christ the

King” (Quas Primas), par. 32; Papal Encyclicals Online,

http://www.papalencyclicals.net/ Pius11/P11PRIMA.HTM.

16 Leão XIII, “On the Origin of Civil Power”, par. 25.

17 Pio IX, “Syllabus of Errors”, nº 55.

18 Leão XIII, “On the Nature of Human Liberty”, par. 38.

19 George La Piana e John Swomley, Catholic Power vs. American Freedom

(Amherst, N.Y.: Prometheus Books, 2002), p. 51.

20 Pio IX, “Syllabus of Errors”, nº 15.

21 Gregório XVI, encíclica, 15 de agosto de 1832, “On Liberalism and

Religious Indifferentism” (Mirari Vos), par. 14, Papal Encyclicals Online,

http://www .papalency clicals.net/Greg16/g16mirar.htm; itálicos no original.

22 Pio IX, “On Current Errors”, par. 3; ênfase acrescentada.

23 Leão XIII, “On the Origin of Civil Power”, par. 5.

24 Leão XIII, “On the Nature of Human Liberty”, par. 16.

25 Leão XIII, “On the Origin of Civil Power”, par. 6.

26 Pio XI, “On the Feast of Christ the King”, par. 18.

27 Ibid., par. 20.

86


28 Ibid., par. 24.

29 La Piana e Swomley, Catholic Power vs. American Freedom, p. 20.

87


V

árias afirmações presentes na “Declaração Sobre a Liberdade Religiosa”

do Concílio Vaticano II são bastante surpreendentes em vista da história de

intolerância da Igreja Católica e de sua compreensão das relações entre

igreja e Estado que apresentei no capítulo anterior. Na verdade, alguns adventistas

têm questionado a validade de nossa interpretação de Apocalipse 13 por causa de

declarações positivas do Concílio Vaticano II sobre liberdade religiosa, como as

duas que se seguem:

Este Concílio Vaticano declara que o ser humano tem direito à

liberdade religiosa. Essa liberdade significa que todos devem ser imunes à

coerção por parte de indivíduos ou de grupos sociais e de qualquer poder

humano, de tal forma que ninguém deva ser forçado a agir de maneira

contrária a suas próprias crenças, particular ou publicamente, individual ou

em associação com outros, dentro dos devidos limites. 1

Todos devem ser impelidos pela natureza e também compelidos por uma

obrigação moral a buscar a verdade, especialmente a religiosa. Cada pessoa tem a

obrigação de aderir àquilo que é verdadeiro, uma vez que isso seja conhecido, e de

ordenar toda a sua vida de acordo com as exigências da verdade. Contudo,

ninguém pode cumprir essas incumbências em harmonia com sua própria

natureza, a menos que desfrute de imunidade de coerção externa, bem como de

liberdade psicológica. Portanto, o direito à liberdade religiosa tem seu fundamento

não apenas na disposição subjetiva da pessoa, mas em sua própria natureza. Em

consequência, o direito a essa imunidade continua a existir mesmo naqueles que

88


não vivem à altura de sua obrigação de buscar a verdade e aderir a ela, e o

exercício desse direito não deve ser impedido, contanto que a justa ordem pública

seja observada. 2

Vindas de uma instituição que tem uma história tão longa de perseguição

àqueles que dela discordam, essas declarações são verdadeiramente afirmações

notáveis sobre liberdade religiosa. Contudo, um exame mais minucioso mostra que

essas declarações positivas sobre liberdade religiosa incluem frases e sentenças

com ressalvas que poderiam, sob certas circunstâncias, ser usadas para negar o

que elas parecem afirmar tão claramente. Não quero dizer que os bispos que

formularam essas declarações católicas sobre liberdade religiosa tinham motivos

desonestos. Prefiro atribuir a eles a melhor das intenções. Minha preocupação é

com o uso que poderia ser feito dessas declarações sob circunstâncias que, no

futuro, sejam diferentes das que prevalecem atualmente no mundo.

Analisando as afirmações

A primeira declaração inicia dizendo que “a pessoa humana tem direito à

liberdade religiosa”, mas termina declarando que essa liberdade está dentro de

“limites”. É óbvio que a ideia de que existem limites à liberdade religiosa não é

necessariamente má. A Suprema Corte dos Estados Unidos também tomou a

posição de que, sob certas circunstâncias, o governo tem justificativas para impedir

que as pessoas ajam em harmonia com suas crenças religiosas. Para usar um

exemplo hipotético comum, uma pessoa não pode agir sobre a crença religiosa de

que é seu dever dar um soco no nariz de outras pessoas. Um exemplo real é a

prática do manuseio de cobras venenosas durante serviços religiosos, a qual as

cortes americanas têm consistentemente defendido que o governo pode proibir.

Assim, a pergunta relativa à frase “dentro dos devidos limites” não é se esse é

um princípio errado. Em vez disso, a pergunta é: Quem estabelecerá esses

“devidos limites”? Num governo democrático, laico, que não é controlado por

pressuposições religiosas sobre o que é moralmente certo e errado, esses limites

serão definidos de maneira muito estreita, e a liberdade religiosa será em grande

parte protegida. Contudo, num Estado onde prevalece a filosofia católica da união

entre a igreja e o Estado, a igreja será a entidade que define esses limites, e a

liberdade religiosa daqueles que discordam poderia ser muito facilmente cerceada.

A segunda declaração afirma que todos são “compelidos por uma obrigação

moral a buscar a verdade, especialmente a verdade religiosa”, e que “também

têm a obrigação de aderir à verdade, uma vez que seja conhecida”. Surge, é claro,

89


a pergunta do que constitui a “verdade”, e para isso a Igreja Católica tem uma

resposta pronta: como a verdadeira igreja de Cristo na Terra, ela tem o direito

exclusivo, como vimos, de definir a verdade que todos são “compelidos por uma

obrigação moral a buscar” e à qual têm a obrigação de “aderir [...], uma vez que

seja conhecida”.

A declaração prossegue dizendo, contudo, que “ninguém pode cumprir essas

incumbências de maneira que esteja em harmonia com sua própria natureza, a

menos que desfrute de imunidade de coerção externa, bem como de liberdade

psicológica”. Além disso, “o direito a essa imunidade continua a existir mesmo

naqueles que não vivem à altura de sua obrigação de buscar a verdade e aderir a

ela”. Em outras palavras, as pessoas têm o direito de estar erradas! Vinda de um

concílio da Igreja Católica, essa é de fato uma declaração notável que certamente

podemos aplaudir.

A frase que apresenta ressalvas na segunda declaração é a que diz: “contanto

que a justa ordem pública seja observada”. Podemos entender que isso signifique

simplesmente que ninguém tem o direito religioso de causar dano a outra pessoa. A

verdadeira pergunta, como ocorre com a declaração anterior, é: A quem cabe

definir o que constitui uma “justa ordem pública”? E sobre essa pergunta, é

relevante uma declaração posterior do Concílio Vaticano II sobre liberdade

religiosa:

A sociedade tem o direito de se defender contra possíveis abusos

cometidos sob o pretexto de liberdade religiosa. É especial dever do

governo proporcionar essa proteção. Contudo, o governo não deve agir de

maneira arbitrária ou com injusto espírito de partidarismo. Sua ação deve

ser controlada por normas jurídicas que estejam em conformidade com a

ordem moral objetiva. Essas normas surgem da necessidade de

salvaguarda efetiva dos direitos de todos os cidadãos e da resolução

pacífica de conflitos de direitos, e também da necessidade de cuidado

adequado com a paz pública, que surge quando todos vivem juntos em boa

ordem e verdadeira justiça, e finalmente da necessidade de uma proteção

adequada da moralidade pública. 3

Observe que “é especial dever do governo” defender a sociedade contra

“possíveis abusos cometidos sob o pretexto de liberdade religiosa”. Novamente,

podemos concordar com a declaração, contanto que entendamos o significado dela

como sendo que ninguém tem o direito religioso de prejudicar outra pessoa ou

colocar em risco a saúde e segurança públicas. O terrorismo, por exemplo, não

90


pode ser aprovado, mesmo que os terroristas creiam firmemente que seus atos

sejam cumprimento de um dever religioso. Mas a declaração do Vaticano vai

além disso. Ela afirma que, ao defender a sociedade contra abusos cometidos sob o

pretexto de liberdade religiosa, a ação do governo deve ser “controlada por normas

jurídicas que estejam em conformidade com a ordem moral objetiva”, e que

surgem “da necessidade de uma proteção adequada da moralidade”.

Já vimos que a Igreja Católica considera sua autoridade espiritual como

superior à autoridade do Estado da mesma forma que a alma é superior ao corpo.

Portanto, em situações em que a Igreja Católica é favorecida pelo governo, a

igreja tomará para si a responsabilidade de definir os princípios morais da “ordem

moral objetiva” que o Estado deve proteger. Essa é uma importante ressalva às

declarações positivas sobre liberdade religiosa que lemos há pouco. Em

circunstâncias adequadas, essa ressalva poderia ser interpretada como dando à

igreja a mesma autoridade sobre o governo civil que ela possuía durante a Idade

Média.

Outro fato importante a ser lembrado é que, apesar de todas as suas

declarações elogiáveis em apoio à liberdade religiosa do indivíduo, o papado nunca

renunciou a sua preferência pela união igreja-Estado. Em um país onde esta

prática seja possível, a Igreja Católica ainda gostaria de ser a igreja oficial, com o

Estado legislando e impondo os princípios morais católicos. Mas, é claro, a união

igreja-Estado é um fator central em quase todas as perseguições. Num governo

em que há união entre igreja e Estado, a liberdade religiosa está em perigo de ser

cerceada em certo grau. 4

O Catecismo Católico

O Catecismo da Igreja Católica, cuja tradução para o inglês foi publicada em

1994, contém uma declaração que é relevante para nossa discussão:

A doutrina da igreja elaborou o princípio dito da subsidiariedade.

Segundo ele, uma comunidade de ordem superior não deve interferir na

vida interna duma comunidade de ordem inferior, privando-a das suas

competências, mas deve antes apoiá-la, em caso de necessidade, e ajudála

a coordenar a sua ação com a dos demais componentes sociais, com

vista ao bem comum. 5

Essa declaração está completamente em harmonia com a filosofia medieval

91


da igreja sobre a relação entre igreja e Estado. Ela descreve duas comunidades –

uma de uma ordem superior, que é a igreja, e a outra de uma ordem inferior, o

Estado. A palavra subsidiariedade na frase inicial é um termo sociológico. Significa

que as funções que uma organização subordinada pode realizar efetivamente não

devem ser assumidas por uma organização mais elevada, uma vez que a

organização subordinada está mais próxima das situações locais.

A filosofia católico-romana sobre a igreja e o Estado, é claro, considera o

Estado como subordinado à igreja. Assim, o princípio da subsidiariedade significa

que as funções que o Estado pode realizar melhor devem ser deixadas para ele.

Isso soa bem à primeira vista, especialmente a declaração de que “uma

comunidade de ordem superior [a igreja] não deve interferir na vida interna de

uma comunidade de ordem inferior [o Estado], privando-a das suas

competências”. Contudo, a declaração prossegue dizendo que a comunidade de

ordem superior [a igreja] deve “apoiá-la, em caso de necessidade, e ajudá-la a

coordenar a sua ação com a dos demais componentes sociais, com vista ao bem

comum”.

Isso poderia ser entendido como significando que a comunidade de ordem

inferior (o Estado) ainda depende do apoio e coordenação da comunidade de

ordem superior (a igreja). Portanto, a igreja estaria livre para intervir nos assuntos

do Estado “em caso de necessidade”. E a questão de “necessidade” seria

obviamente decidida pela comunidade de ordem superior – a igreja. Embora

revestida em termos que são consideravelmente mais modernos, a teoria medieval

da superioridade da igreja em relação ao Estado está contida nessa declaração,

pronta para ser implementada sem receio quando as circunstâncias o permitirem.

Malachi Martin

Vários anos atrás, adquiri um livro chamado The Keys of This Blood [As

Chaves Deste Sangue]. O autor, Malachi Martin, foi um sacerdote que,

anteriormente, havia servido como professor do Pontifício Instituto Bíblico do

Vaticano em Roma. Seu livro mais vendido, que foi publicado pela editora Simon

and Schuster em 1990, é de grande significado para nossa discussão.

Martin começa seu livro com a ousada declaração de que “dispostos ou não,

prontos ou não, todos estamos envolvidos numa enérgica competição global de três

vias que nada pode deter”. A competição, Martin explica, é sobre quem irá

controlar o futuro governo mundial, o qual qualquer pessoa de 40 anos para baixo

em 1990 viveria para ver. Ele então afirma: “O propósito escolhido do pontificado

de João Paulo II é ser o vencedor nessa competição, que agora já está bastante

avançada.” 6 Segundo Malachi Martin, a mais elevada ambição de João Paulo II

92


era que ele e sua igreja estivessem no comando do futuro governo mundial. E,

dada a influência global que João Paulo II desenvolveu para si e a igreja durante

seu pontificado, é fácil acreditar que Martin sabia do que estava falando.

Posteriormente em seu livro, Martin faz várias outras declarações que são

relevantes quando vistas à luz do que temos examinado sobre a compreensão

católica das relações entre igreja e Estado: “É uma verdade segura e evidente para

João Paulo II que ninguém tem o direito – democrático ou de outro tipo – de

cometer um erro moral; e nenhuma religião baseada na revelação divina tem o

direito moral de ensinar esse erro moral ou defendê-lo.” 7

Interessante! Você e eu não temos o direito de crer – muito menos de praticar

ou ensinar – algo que seja moralmente errado! A pergunta chave, obviamente, é:

Quem decide o que é moralmente certo e errado? Eis a resposta de Martin: “A

Igreja Católica Romana sempre reivindicou – e, sob a direção de João Paulo II,

reivindica hoje – ser o árbitro supremo do que é moralmente bom e moralmente

mau na ação humana.” 8

Note que a Igreja Católica afirma hoje, como sempre afirmou, ser “o árbitro

supremo”, não do que é moralmente bom ou mau para os católicos, mas do que é

moralmente bom ou mau “na ação humana” – isto é, para todos os seres humanos.

Então, o que a igreja de João Paulo II se propõe a fazer com respeito às

pessoas que escolhem ensinar e defender um erro moral? É sensato pensar sobre a

resposta de Martin e de sua igreja a essa pergunta. Coloquei em itálico algumas

palavras-chave que analisarei depois. Eis o que Martin declara:

O pré-requisito final para a capacidade georreligiosa [domínio

religioso do mundo] é a autoridade. A instituição [Igreja Católica

Romana], em suas estruturas e empreendimentos organizacionais, deve ter

uma autoridade singular [controle político]: uma autoridade que seja

autônoma em comparação com todas as outras autoridades no plano

supranacional [global]; uma autoridade que traga consigo sanções que

sejam eficazes para manter a unidade e objetivos da instituição [Igreja

Católica Romana], enquanto ela desempenha sua tarefa de servir ao bem

maior da comunidade como um todo e em todas as suas partes. 9

Em uma análise atenta, essas palavras têm implicações sombrias. Martin disse

no início de seu livro que o objetivo de João Paulo II era que ele e sua igreja

dominassem o futuro governo mundial. Então ele afirma que, a fim de qualquer

93


organização ter essa “capacidade georreligiosa”, é necessário ter uma autoridade

que é “autônoma em comparação com todas as outras autoridades no plano

supranacional”. Em outras palavras, a Igreja Católica Romana precisa ter uma

autoridade que seja independente e superior em comparação com qualquer outra

autoridade do mundo, de forma que esteja no controle e ninguém possa prevalecer

sobre ela.

Martin declara ainda que a Igreja Católica Romana precisa ter a capacidade

de formular “sanções que sejam eficazes para manter a unidade e propósitos da

instituição enquanto desempenha sua tarefa de servir ao bem maior da

comunidade como um todo e em todas as suas partes”. Sanções é o que acontece

quando uma autoridade superior impõe restrições às políticas e ações de uma

autoridade subordinada até que a autoridade subordinada se submeta às exigências

da autoridade superior. Um exemplo são as restrições (sanções) de importação e

exportação que as Nações Unidas impuseram ao Iraque após a Guerra do Golfo

em 1991, em uma tentativa de forçar Saddam Hussein a revelar seu programa de

armas de destruição em massa.

Malachi Martin acrescenta que “a instituição” – isto é, a Igreja Católica

Romana – precisa ter autoridade para impor seus interesses morais ao restante do

mundo (o que ele chamou de “plano supranacional”) e para impor sanções a

qualquer nação que recuse se dobrar às exigências da igreja. Martin escolheu sua

linguagem muito cuidadosamente, certificando-se de ser um pouco ambíguo com

suas longas sentenças. Mas, em um exame atento, seu significado é óbvio: a Igreja

Católica Romana precisa ter a autoridade de deter qualquer um que interfira em

sua ambição global de servir ao que a igreja considera “o bem maior da

comunidade como um todo e em todas as suas partes”. Em outras palavras, a

igreja deseja o controle sobre todos os elementos da sociedade humana no mundo

todo. Essa é a relação entre igreja e Estado que existia na Idade Média! É a

filosofia da relação entre igreja e Estado que as encíclicas papais têm defendido

nos últimos duzentos anos, embora a igreja tenha sido impedida de aplicá-la na

maioria dos países.

Alguns católicos sem dúvida argumentariam que Malachi Martin, que morreu

em 1999, representava um elemento muito conservador do catolicismo que não é

aceito pela maioria dos católicos hoje, especialmente na América do Norte e

Europa ocidental. Isso certamente é verdade. Contudo, João Paulo II era um forte

conservador, tanto em sua visão religiosa quanto política, e seu sucessor, Bento

XVI, é tanto ou mais conservador. A visão conservadora de Martin está viva e ativa

no catolicismo hoje, e, na presença de condições adequadas, ela poderia ganhar

influência novamente em qualquer país e, em circunstâncias propícias, no

mundo todo.

94


Apocalipse 13:7 prediz que a besta do mar receberá “autoridade sobre cada

tribo, povo, língua e nação”. Esse é um domínio político. Apocalipse 13 descreve o

catolicismo romano no tempo do fim. Portanto, o Apocalipse está predizendo que a

ferida mortal será completamente curada e que a Igreja Católica Romana

alcançará domínio político do mundo todo durante os dias finais da história da

Terra.

Será que isso pode realmente acontecer?

Essa conclusão parecia extravagante e tola no passado, e no clima de

tolerância religiosa e atitude politicamente correta que vivemos hoje, estou certo

de que ainda parece extravagante e tola para muitas pessoas. Porém, o exame que

fizemos neste capítulo e no anterior sobre a filosofia política do catolicismo romano

me leva à conclusão de que, numa crise global, isso pode realmente acontecer.

À luz de nossa compreensão profética, nós, adventistas, cremos que

irá acontecer.

1 “Declaração sobre Liberdade Religiosa” do Concílio Vaticano II, nº 2;

http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vatii_decl_19651207_dignitatishumanae_en.htm.

2 Ibid.

3 Ibid., nº 7.

4 Alguns países, como a Inglaterra, possuem uma igreja estatal estabilizada,

mas oferecem plena liberdade religiosa a todos os cidadãos.

original.

5 Catecismo da Igreja Católica (São Paulo: Loy ola, 2000), nº 1883, itálicos no

6 Malachi Martin, The Keys of This Blood: The Struggle for World Dominion

Between Pope John Paul II, Mikhail Gorbachev, and the Capitalist West (Nova York:

Simon and Schuster, 1990), p. 15, 17.

7 Ibid., p. 157.

95


8 Ibid., p. 287.

9 Ibid., p. 157, ênfase acrescentada.

96


A Besta da Terra

97


P

ara interpretar Apocalipse 13:11-18 adequadamente, temos que entender o

significado de três símbolos: a besta que surge da terra, a imagem da besta

e a marca da besta. Neste capítulo e nos próximos, examinaremos a besta

da terra e a imagem da besta do mar. Examinaremos a marca da besta na última

parte do livro.

Há um século e meio os adventistas do sétimo dia têm identificado a besta da

terra como os Estados Unidos da América, e a imagem da besta como o

protestantismo. Essas conclusões parecem muito estranhas, pois a besta da terra é

extremamente intolerante. Devido à liberdade religiosa que tem caracterizado os

Estados Unidos e o protestantismo norte-americano por mais de duzentos anos,

parece incrível que a besta da terra e sua imagem simbolizem esse país e suas

igrejas protestantes. Contudo, isso é o que temos dito e continuamos a dizer. Este

capítulo analisará a base bíblica para nossa conclusão de que a besta da terra

representa os Estados Unidos e a imagem da besta representa o protestantismo.

Quatro características da besta da terra apoiam a conclusão de que ela

representa os Estados Unidos da América: (1) a besta da terra é uma besta; (2) a

besta da terra tem autoridade global; (3) a besta da terra é um poder do tempo do

fim; e (4) a besta da terra é um poder cristão. Analisemos cada uma dessas

características:

A besta da terra é uma besta

Parece simples demais – até redundante – dizer que a besta da terra é uma

besta. Contudo, esse é um ponto significativo, pois uma besta em profecia bíblica

representa uma nação, um poder político importante no mundo. Lembre-se de que

98


besta, na Bíblia, não é necessariamente um termo negativo ou uma ofensa, mas

apenas outra palavra para se referir a animal. Daniel 7 descreve um sonho que

Daniel teve, no qual ele viu quatro grandes animais (ou bestas) saírem do mar: um

leão, um urso, um leopardo e um animal indescritível que pode ser chamado de

dragão. O anjo que interpretou o sonho de Daniel lhe disse que esses quatro

grandes animais representavam “quatro reis [ou “reinos”, v. 23] que se levantarão

da Terra” (Dn 7:17): Babilônia, Média-Pérsia, Grécia e Roma (veja Dn 8:20, 21).

A besta da terra também representa um poder político, e os Estados Unidos são

um poder político. Contudo, alguém poderia argumentar que a besta da terra

representava o Império Romano nos dias de João ou qualquer poder político

importante que tenha se seguido nos 2 mil anos desde então. Precisamos de

evidências adicionais para concluir que ela representa os Estados Unidos.

A besta da terra tem autoridade global

Apocalipse 13 mostra claramente que a besta da terra tem autoridade política

global:

• “Exerce toda a autoridade da primeira besta na sua presença” (v.

12). Vimos num dos capítulos anteriores que a primeira besta de

Apocalipse 13 é um poder político global. Portanto, a besta da terra, que

“exerce toda a autoridade da primeira besta”, também precisa ser um

poder político global.

• “Faz com que a Terra e os seus habitantes adorem a primeira besta”

(v. 12). A besta da terra tem o poder político necessário para impor uma

falsa adoração, não só dentro de suas fronteiras, mas também à “Terra e

seus habitantes”.

• “Seduz os que habitam sobre a Terra” e diz “aos que habitam sobre a

Terra que façam uma imagem à besta, àquela que, ferida à espada,

sobreviveu” (v. 14). A besta da terra tem o poder de ordenar ao mundo

inteiro que faça uma imagem à besta do mar.

Dito em palavras atuais, a besta da terra é uma superpotência global. Contudo,

o fato de que a besta da terra é uma superpotência global ainda não identifica os

Estados Unidos, porque no tempo em que João escreveu o Apocalipse, o Império

Romano era uma superpotência. Nos últimos séculos, a França e a Inglaterra

foram importantes superpotências mundiais. E, no século 20, a União Soviética foi

99


uma superpotência global. Portanto, a besta da terra poderia representar qualquer

uma destas superpotências globais: o Império Romano, a França, a Inglaterra e a

União Soviética. Precisamos de evidências adicionais para identificar a besta da

terra como os Estados Unidos.

A besta da terra é um poder do tempo do fim

Apocalipse 13:16 e 17 declara que a besta da terra forçará todas as classes de

pessoas a receberem “certa marca sobre a mão direita ou sobre a fronte, para que

ninguém possa comprar ou vender, senão aquele que tem a marca, o nome da

besta”. Em Apocalipse 16, a primeira das sete pragas é dirigida sobre os “homens

portadores da marca da besta e adoradores da sua imagem” (v. 2). Essas sete

pragas são os últimos eventos a acontecer no mundo antes da segunda vinda de

Cristo. Assim, a marca da besta claramente é um fenômeno do tempo do fim, e,

portanto, a besta da terra que impõe a marca precisa ser uma superpotência do

tempo do fim. Além dos Estados Unidos, as nações que mencionei no parágrafo

anterior já não são superpotências; portanto, não se encaixam na descrição do

Apocalipse sobre a besta da terra. Como os Estados Unidos são uma superpotência

do tempo do fim, eles cumprem essa especificação da profecia.

Outra evidência muito significativa estabelece claramente os Estados Unidos

como a besta da terra de Apocalipse 13:11-18.

A besta da terra é um poder cristão

A palavra cordeiro ocorre trinta e uma vezes no Apocalipse e, com exceção de

uma, é símbolo de Cristo. A única exceção é Apocalipse 13:11, que descreve a

besta da terra como tendo “dois chifres, parecendo cordeiro”. A besta da terra não

é Jesus Cristo – nem poderia ser, pela maneira que persegue os verdadeiros

adoradores de Cristo. Contudo, ela é descrita como “parecendo cordeiro”.

Aplicando-se isso a uma nação, podemos dizer que a nação representada pela

besta da terra é alegadamente uma nação cristã.

Quando reunimos as quatro características da besta da terra, torna-se muito

evidente que ela representa os Estados Unidos:

• A besta da terra é um poder político no mundo, uma nação.

• Tem autoridade global – é uma superpotência global.

• É uma superpotência do tempo do fim.

• É uma nação cristã.

100


Somente uma nação do mundo se encaixa em todas essas especificações: os

Estados Unidos da América. Não há nenhum outro candidato.

Algumas outras conclusões

Se a besta da terra representa os Estados Unidos durante o tempo do fim,

podemos tirar várias outras conclusões significativas sobre o futuro desse país.

Durante a maior parte da história norte-americana, essas conclusões pareceram

inacreditáveis, e a maioria delas provavelmente ainda parece inacreditável para a

maioria das pessoas. É por isso que os críticos do cenário profético adventista têm

chamado nossa predição sobre o futuro dos Estados Unidos de “extravagante” e

“tola”. Contudo, antes que você termine de ler a terceira parte deste livro, creio

que verá que essas conclusões são bastante sensatas.

O “braço direito” do papado. A Idade Média da história europeia foi um tempo

de supremacia papal. O papa tinha o poder de estabelecer e remover reis, e era

dever dos governos europeus impor a doutrina e a ordem moral do papado. A

maioria das pessoas conhece as severas perseguições que ocorreram por causa da

Inquisição, incluindo a execução de hereges por métodos tão cruéis que incluíam

queimar pessoas vivas na estaca. Contudo, o papado em si geralmente não

executava os hereges. Os tribunais religiosos do papado ouviam as acusações

contra o réu e davam a sentença para os que eram considerados culpados, mas

nesse momento a igreja entregava o réu à autoridade secular para que fosse

punido. Assim, o Estado era o “braço direito” da igreja.

Essa é precisamente a relação que existe entre a besta da terra e a besta do

mar em Apocalipse 13. O verso 12 diz que a besta da terra “faz com que a Terra e

os seus habitantes adorem a primeira besta”. O verso 15 acrescenta que foi dado

poder à besta da terra para “comunicar fôlego à imagem da besta, para que não só

a imagem falasse, como ainda fizesse morrer quantos não adorassem a imagem

da besta”. Em outras palavras, a besta da terra impõe a adoração e os ensinos da

besta do mar.

Uma união entre igreja e Estado. A Constituição dos Estados Unidos exige que a

religião e o governo permaneçam separados um do outro. Embora o cristianismo

seja a religião dominante nos Estados Unidos, nunca foi a religião legal e oficial da

nação. Contudo, se a besta da terra de Apocalipse 13 representa os Estados Unidos,

podemos concluir que a histórica separação entre governo e religião que existe

nesta nação irá acabar um dia. Certos aspectos desenvolvidos pela forma católica

de cristianismo se tornarão parte da religião dos Estados Unidos. Isso é claramente

evidente na descrição que o Apocalipse faz da besta da terra, pois diz que a besta

101


da terra fará uma imagem da besta do mar, e a imagem fará “morrer quantos não

adorassem a imagem da besta”. Esse tipo de perseguição religiosa só pode

acontecer quando a religião e o governo estão intimamente ligados. Assim, de

acordo com Apocalipse 13, um dia a igreja e o Estado estarão unidos nos Estados

Unidos.

Um poder perseguidor. O Apocalipse diz que a besta da terra imporá sua falsa

adoração com punho de ferro. Qualquer pessoa que se recuse a receber a marca

da besta será impedida de exercer qualquer atividade econômica, pois não será

permitido a tais pessoas comprar ou vender. E aqueles que se recusarem a adorar

da maneira politicamente correta serão ameaçados de morte! Sei que parece

inacreditável hoje sugerir que os Estados Unidos um dia perseguirão aqueles que

discordam de práticas religiosas, mas continue a leitura. A seguir, identificaremos a

imagem da besta.

Identificando a imagem da besta

O Apocalipse diz que a besta da terra fará uma imagem à besta do mar e

forçará o mundo todo a adorá-la. Qualquer pessoa que se recuse a adorar a

imagem pode ser morta, ou no mínimo ser proibida de exercer atividades

econômicas. O que é essa “imagem”? Os adventistas a têm historicamente

identificado como sendo o protestantismo. Vamos examinar as evidências.

Uma imagem é uma representação concreta – geralmente uma estátua,

pintura ou fotografia – de alguma outra coisa. Provavelmente devamos entender a

imagem em Apocalipse 13 como sendo uma estátua. Vários capítulos atrás

enfatizei que Apocalipse 13 extrai muitos simbolismos de Daniel. O mesmo se

aplica à imagem. Você com certeza se lembra de que, após o sonho da estátua de

Nabucodonosor (Dn 2), ele construiu uma imagem inteiramente de ouro (Dn 3).

Então reuniu todos os líderes do reino da Babilônia e ordenou que se inclinassem

perante essa imagem, senão sofreriam a morte numa fornalha de fogo. Parece

óbvio que, ao descrever a imagem que a besta da terra faz, o Apocalipse está

fazendo referência a essa história de Daniel.

Embora uma imagem seja uma representação concreta de alguma outra

coisa, ela não é aquilo que representa. Para ser uma imagem, precisa ser ao

mesmo tempo semelhante ao objeto que representa e distintamente diferente dele.

Felizmente, o Apocalipse identifica o objeto que a imagem representa: é uma

imagem da “besta [...] que, ferida à espada, sobreviveu” (v. 14) – isto é, a besta

que surge do mar. Já identificamos a besta do mar como sendo o papado; portanto,

a imagem precisa imitar o papado em certos aspectos-chave. Não esperamos que

a imagem da besta seja uma estátua literal; ela representa uma entidade que tenha

102


algumas das principais características do papado. Mencionarei cinco delas.

1. O papado é uma organização de seres humanos. Portanto, a

imagem será uma organização humana de algum tipo.

2. O papado é uma organização religiosa. Podemos esperar que a

imagem também seja uma organização religiosa.

3. O papado é uma organização religiosa cristã. Então, isso também

deve se aplicar a sua imagem.

4. O papado do tempo do fim é intolerante: ele “[peleja] contra os

santos” (v. 7), isto é, persegue aqueles que discordam dele. A besta da terra

que faz uma imagem da besta do mar é terrivelmente intolerante. Por isso,

podemos concluir que a imagem que ela faz também será intolerante

contra aqueles que discordam dela.

5. O papado, ao longo de toda a sua história, tem sido uma organização

muito política, e já vimos que o papado do tempo do fim terá poder

político global. Portanto, sua imagem também terá poder político global.

Então, se os Estados Unidos irão fazer uma imagem à besta, parece seguro

concluir que a entidade que a imagem representa será uma organização religiosa

cristã que tenha grande poder político e também seja intolerante. O cristianismo de

hoje está dividido em três ramos principais: católico romano, católico ortodoxo e

protestante. A imagem da besta do mar quase certamente será um desses.

Obviamente, podemos excluir o catolicismo, uma vez que ele é o original, do qual

a imagem é a cópia. Isso nos deixa com o cristianismo ortodoxo oriental e o

cristianismo protestante. Podemos excluir o cristianismo ortodoxo, uma vez que os

Estados Unidos são predominantemente uma nação protestante. Portanto, a

imagem que a besta da terra erige será o protestantismo. Essa tem sido a

interpretação adventista sobre a imagem da besta do mar descrita no Apocalipse.

Em conclusão, será possível que no futuro o governo dos Estados Unidos

persiga dissidentes religiosos? Seria concebível que o protestantismo norteamericano

pudesse vir a refletir a natureza política do papado e sua intolerância?

Ou será que o cenário adventista do tempo do fim é simplesmente uma

especulação extravagante e tola?

Será que isso pode realmente acontecer?

Continue lendo!

103


104


O

capitão Kemble havia acabado de retornar de uma viagem de três anos

em alto-mar. Durante todo esse tempo, não havia visto sua esposa nem

uma vez. Assim, quando ela abriu a porta para lhe dar as boas-vindas ao

lar, o primeiro impulso dele foi tomá-la nos braços, e dar- lhe um abraço apertado

e um beijo. E o fez. Infelizmente, sua comunidade desaprovou a demonstração de

afeição do capitão Kemble por sua esposa. Esse ato “indecente” custou ao capitão

Kemble duas horas no tronco por “comportamento obsceno e indecoroso”. Afinal

de contas, ele havia beijado a esposa “publicamente” no dia de descanso!

Você adivinhou. O capitão Kemble vivia na Nova Inglaterra, Estados Unidos,

na metade do século 17, um tempo em que a cultura era dominada por noções

puritanas sobre a observância adequada do dia de descanso (o domingo), que era

imposta pelo governo civil.

Um viajante chamado Burnaby teve sorte ainda pior. O código sobre a guarda

do domingo (chamado por eles de “sábado”) em sua colônia estipulava que “quem

quer que profane o dia do Senhor fazendo qualquer obra servil [isto é, comum] ou

abusos semelhantes, perderá, para cada falta destas, dez xelins, ou será açoitado”.

Assim, quando Burnaby beijou a esposa na rua em sua cidade da Nova Inglaterra

em um domingo, foi duramente chicoteado.

A seguir se encontram algumas das outras ofensas do dia de descanso que

receberam punição na Nova Inglaterra puritana:

• O capitão Dennison, de New Haven, Connecticut, foi multado em

quinze xelins por não ter ido à igreja.

• Um soldado foi multado em cinco xelins por “molhar um pedaço de

105


chapéu velho para colocar no sapato” a fim de proteger o pé.

• Elizabeth Eddy, de Plymouth, foi multada em dez xelins por torcer e

pendurar roupas no varal.

• Outro homem de Plymouth foi arrastado perante a corte porque

puxou uma junta de bois “sem necessidade” no dia de descanso.

• Em 1670, John Lewis e Sarah Chapman foram acusados e julgados

por “se sentarem juntos no dia do Senhor sob uma macieira no pomar de

Goodman Chapman”. 1

Nem todos, porém, estavam felizes com a estrita teocracia da Nova Inglaterra.

Roger Williams, por exemplo, cria que a religião devia ser totalmente voluntária.

Era errado, afirmava ele, que o governo civil impusesse doutrinas e práticas

religiosas.

Williams foi um dos primeiros defensores da separação entre igreja e Estado,

não apenas na história norte-americana, mas também na história mundial. Em

1635, Williams era o pastor atuante de uma igreja em Salém, Massachusetts, mas

seus conceitos eram tão controvertidos que, em 9 de outubro, a colônia votou que o

baniria no mês de janeiro seguinte. A união entre igreja e Estado ainda era forte

demais nas colônias, e a ideia de um Estado laico era demasiadamente radical

para as sensibilidades dos líderes puritanos.

Temendo que pudessem mandá-lo de volta para a Inglaterra, Williams fugiu

de Salém na metade do inverno, apesar de que havia acabado de se restabelecer

de uma doença grave. Durante os meses seguintes, morou no deserto com amigos

índios. Mais tarde escreveu: “Fiquei de um lado para outro durante catorze

semanas, não sabendo o que era comer ou dormir.” 2

No mês de junho seguinte, Williams negociou com os índios uma terra para

estabelecer uma colônia. Ele deu a sua colônia o nome de Providence

(“providência”, em inglês), porque cria que Deus havia cuidado dele e de seus

seguidores, e havia lhes proporcionado a terra que haviam obtido dos índios. A

carta régia que Williams elaborou para sua colônia fazia providências para

liberdade de consciência e separação entre a autoridade eclesiástica e a civil.

Posteriormente Rhode Island se uniu a Providence, sendo que completa liberdade

de religião era elemento essencial da carta régia da colônia. Muitas pessoas

vinham a Rhode Island em busca de liberdade para praticar sua religião de acordo

com os ditames de sua própria consciência. Entre estes estavam batistas, quakers e

judeus. Williams foi batizado como batista em 1639, e organizou a primeira igreja

batista dos Estados Unidos.

106


Williams versus puritanos

Roger Williams e os puritanos refletem dois conceitos opostos do

relacionamento que deve existir entre a religião e o governo, entre a igreja e o

Estado. Williams, como vimos, foi um dos primeiros visionários de um Estado

laico, com separação entre a religião e o governo. O conceito puritano dominou os

anos coloniais. Um dos lados mais sombrios do conceito puritano sobre a relação

igreja-Estado ocorreu em Salém, Massachusetts, entre janeiro de 1792 e janeiro

de 1793. A maioria das pessoas já ouviu falar dos julgamentos das bruxas de

Salém. Esses julgamentos não eram uma questão entre igreja e Estado no sentido

estrito, porque as acusações contra as “bruxas” eram trazidas por indivíduos, não

pela igreja. Contudo, as acusações, os julgamentos, as condenações e as resultantes

execuções refletiam noções puritanas de uma religião adequada e da imposição

dessa religião pelo governo. Os julgamentos ocorriam no contexto de uma histeria

da comunidade com respeito a supostas atividades satânicas por parte dos

acusados. Quando a histeria se acalmou, dezenove pessoas já haviam sido

executadas – seis homens e treze mulheres.

Felizmente, algumas pessoas reconheceram e condenaram essa loucura. Um

clérigo puritano, Increase Mather, publicou em 1693 um documento intitulado

“Casos de Consciência a Respeito de Espíritos Maus”, em que argumentava que

“seria melhor dez suspeitos de bruxaria escaparem do que um inocente ser

condenado”. 3 A declaração de Mather reflete o conceito de “inocente até que se

prove o contrário”, que se tornou um princípio básico da jurisprudência norteamericana.

O impacto dos julgamentos das bruxas de Salém “foi tão profundo que

ajudou a acabar com a influência da fé puritana sobre o governo da Nova

Inglaterra”. 4

Contudo, a ideia de que o Estado deve apoiar a religião ainda estava viva e

ativa na Nova Inglaterra no século 18. No tempo da Revolução Norte- Americana

em 1776, sete das treze colônias originais haviam estabelecido igrejas cujos

pastores eram pagos pelo governo colonial ou estatal. 5 Quando essas colônias se

tornaram estados, conservaram suas igrejas estabelecidas, mas em 1840 todas elas

já haviam abandonado o apoio à religião. Assim, o conceito de Williams da

relação entre igreja e Estado tem predominado durante a maior parte da história

norte-americana.

O conceito puritano, porém, sempre teve o apoio de uma minoria, e essa

minoria está rapidamente ganhando influência nos Estados Unidos. Embora poucas

pessoas hoje sejam a favor de um retorno a uma teocracia puritana, uma

crescente minoria deseja mudar o histórico governo laico, com sua separação

107


entre igreja e Estado, que tem caracterizado em grande parte os Estados Unidos

desde 1776. Assim, é importante que examinemos o alicerce da liberdade religiosa

na América hoje e busquemos entender a base sobre a qual ela está sendo

desafiada.

A singularidade do sistema de governo norte-americano

A maioria dos americanos provavelmente considera seu sistema de governo

algo tão natural que nunca reflete sobre os princípios sobre os quais ele está

baseado. O princípio fundamental é este: o governo existe pelo consentimento dos

governados. Em outras palavras, o povo cria o governo. Essa foi uma inovação

radical na história das nações. Durante centenas de anos, os governos europeus

tinham sido impostos sobre o povo por reis e papas. A autoridade fluía de cima para

baixo; o governante fazia as leis e as impunha. O povo não tinha nenhuma escolha

sobre quem seria o rei, porque, quer isso fosse bom, quer fosse mau, quando um

rei morria, seu filho, ou ocasionalmente sua filha, o sucedia – ou isso, ou um

usurpador conseguia tomar o trono à força. Se as pessoas não gostassem de seu rei

e das leis que ele fazia, pouco ou nada podiam fazer para mudar. Como Richard

Viguerie e David Franke mostram no livro America’s Right Turn [A Guinada Certa

dos Estados Unidos],

no princípio os Estados Unidos eram simplesmente uma extensão da

ideia do Velho Mundo de que os grupos dominantes – quer puritanos,

anglicanos ou agentes da coroa britânica – estabeleciam as regras,

geralmente sob a reivindicação de direito divino. Cabia ao restante da

sociedade trabalhar e viver dentro dessas regras. 6

A singularidade do sistema norte-americano é que as pessoas criam seu próprio

governo e escolhem seus governantes. Nesse país, uma constituição que define as

responsabilidades dos governantes e os direitos do povo deixa clara a relação que

existe entre os governados e aqueles que eles elegem para governá-los. E os

governantes ocupam o cargo apenas por tempo limitado, após o qual precisam

enfrentar a reeleição pelo povo. Se o povo não gostar da maneira como

determinado governante exerceu seu mandato, pode substituí-lo na próxima

eleição. Leonard W. Levy resume bem a situação:

A majestosa abertura do preâmbulo [da Constituição dos Estados

108


Unidos] – “Nós, o povo” – evoca a ideia ainda radicalmente democrática

de que o governo dos Estados Unidos existe para servir o povo, não o povo

para servir o governo. [...] Os cidadãos norte-americanos têm o dever,

bem como o direito, de impedir que o governo caia em erro, e não o

contrário. 7

A separação entre igreja e Estado é outro princípio básico do governo norteamericano.

Esse conceito significa pelo menos três coisas. Primeiro, significa que

a religião e o governo devem operar em esferas separadas. A igreja não pode

controlar o governo, e o governo não pode controlar a igreja – nenhum dos dois

pode dizer ao outro o que fazer. Segundo, significa que o governo não irá financiar

a religião. Não irá pagar o salário dos clérigos nem a promulgação de doutrinas

religiosas. E terceiro, significa que as leis do Estado estarão baseadas em princípios

morais laicos, não nos princípios morais de qualquer igreja ou livro sagrado.

Quando os legisladores formulam leis que tratam de questões morais, devem

consultar o senso comum dos cidadãos, não a Bíblia, ou o Alcorão, ou os ensinos de

determinada religião ou igreja. Qualquer governo civil que tenha um tipo de

separação entre igreja e Estado que inclua essas três características estará em

grande medida livre de perseguição.

Quando a Constituição dos Estados Unidos foi apresentada à nação por seus

constituintes para ser ratificada, não continha nada sobre a relação entre governo e

religião. Os delegados da Convenção Constitucional não criam que tal declaração

fosse necessária. Diziam que o governo não poderia agir em qualquer área que não

estivesse mencionada na Constituição, e uma vez que a religião não estava

mencionada, o governo não poderia agir nessa esfera. Mas vários dos estados

recusaram-se a ratificar a Constituição até que recebessem a certeza de que seria

acrescentada uma carta de direitos que incluísse o direito à liberdade religiosa.

Quando essa certeza foi concedida, o último dos nove estados necessários ratificou

a Constituição, e ela tem sido a lei nacional nos Estados Unidos desde então.

A Carta de Direitos é composta de dez emendas à Constituição, a primeira das

quais declara:

O Congresso não fará nenhuma lei referente ao estabelecimento da

religião, ou proibindo o livre exercício dela; ou restringindo a liberdade de

expressão ou de imprensa; ou o direito de as pessoas se reunirem

pacificamente, e de solicitarem ao governo a reparação de danos ou

prejuízos.

109


A razão da Primeira Emenda

Nosso interesse está nas duas primeiras frases desta emenda, que trata da

liberdade religiosa: “O Congresso não fará qualquer lei referente ao

estabelecimento da religião, ou proibindo o livre exercício dela.” Por que a

liberdade religiosa era tão importante que se tornou a primeira liberdade

mencionada na Carta de Direitos? 8 A resposta é muito simples: a lembrança da

perseguição religiosa por parte tanto de católicos quanto de protestantes ainda

estava fresca na mente dos cidadãos norte-americanos.

Os protestantes ainda não haviam se esquecido da perseguição católica na

Europa. E as minorias religiosas como os batistas e os quakers estavam ainda mais

próximos da perseguição puritana que haviam enfrentado durante o período

colonial. Vários quakers haviam sido enforcados em Massachusetts no final da

década de 1650 e início da de 1660, incluindo Mary Dy er, que foi executada nos

Jardins Públicos de Boston, Massachusetts, em 1º de junho de 1660, porque recusou

renunciar à sua fé. 9 No final do século 17, os anglicanos da Virgínia conseguiram a

aprovação de leis que negavam aos quakers o direito “de batizar seus filhos,

proibiam sua reunião para culto e garantiam sua execução se eles voltassem após

terem sido expulsos”. 10 E, é claro, houve os histéricos julgamentos das bruxas de

Salém que mencionei alguns parágrafos atrás.

Até a própria época da Revolução, os batistas em Massachusetts ainda eram

frequentemente multados, açoitados e presos por “crimes” relacionados a sua

fé. 11 Entre 1765 e 1778, os clérigos na Virgínia tinham de obter licença do estado

para realizar sermões, e a licença era recusada aos batistas. Mais de cinquenta

ministros batistas foram presos durante esse período simplesmente porque

pregavam sem licença. Cinco ministros batistas foram presos em Fredericksburg,

Virgínia, em 1768, porque, como o perseguidor disse, “estes homens são grandes

perturbadores da paz; não podem encontrar um homem na estrada que precisam

enfiar-lhe um texto da Bíblia garganta abaixo”. O juiz se ofereceu para suspender

a sentença sob a condição de os ministros batistas jurarem que deixariam de

pregar por um ano e um dia. “Recusando-se a aceitar a condição colocada para

sua liberdade, foram cantando hinos durante todo o caminho do tribunal até a

prisão.” 12

Os dissidentes religiosos foram perseguidos na Europa medieval e durante o

período colonial norte-americano porque o governo apoiava a religião

financeiramente e impunha as doutrinas e códigos morais desta. Além disso, os

líderes religiosos tinham grande parte na elaboração das leis e indicação de

110


governantes. Assim, as leis da religião se tornaram as leis do governo civil. O

governo e a religião estavam entrelaçados num relacionamento ao qual chamamos

de “união entre igreja e Estado”. Isso levou inevitavelmente à perseguição dos

dissidentes e a conflitos entre os interesses do Estado e os interesses da igreja.

Tudo isso estava na mente dos elaboradores do sistema de governo norteamericano

quando escreveram a Declaração de Independência, a Constituição e a

Carta de Direitos. Esse fato explica a importância, para eles, do princípio

fundamental presente nas duas cláusulas religiosas da Primeira Emenda: o governo

e a religião devem ser mantidos separados. Os cidadãos norte-americanos e seus

líderes no fim do século 18 desejavam evitar a perseguição de dissidentes e os

conflitos entre a religião e o governo que haviam caracterizado a história europeia

e seu próprio período colonial, e por isso criaram um sistema no qual o governo e a

religião foram separados um do outro. A religião devia manter suas mãos fora do

governo, e o governo devia manter suas mãos fora da religião. Esse princípio é

resumido na conhecida frase “separação entre igreja e Estado”. É um princípio

extremamente importante, do qual os norte-americanos e outros países ocidentais

simplesmente não podem esquecer se desejam manter as sociedades livres que

temos hoje.

A Revolução Francesa foi uma feroz rebelião contra toda religião. O

parlamento francês baniu a religião e proclamou um Estado ateu – uma condição

que existiu por vários anos durante a década de 1790. A Revolução Norte-

Americana, que ocorreu entre dez e quinze anos antes da Revolução Francesa, foi

muito diferente, pois ao manter a igreja e o Estado separados, os constituintes não

estavam motivados por qualquer hostilidade para com a religião. Na verdade, eles

reconheciam que sua experiência na democracia só poderia ser bem-sucedida em

uma nação onde as pessoas fossem essencialmente religiosas. James Madison

escreveu, por exemplo, que “a crença num Deus todo-poderoso, sábio e bom é

essencial para a ordem moral do mundo”. 13 George Washington disse: “A razão e

a experiência nos proíbem de esperar que possa prevalecer uma moralidade

nacional com exclusão do princípio religioso.” 14 John Adams afirmou: “Nossa

Constituição foi feita somente para um povo moral e religioso. Ela é totalmente

inadequada para o governo de qualquer outro povo.” 15

Isso não quer dizer que os constituintes eram cristãos devotos que queriam

converter os outros a todo custo e que iam à igreja toda semana. Eles eram um tipo

singular de defensores do Estado laico que apreciavam a contribuição positiva que

a religião poderia dar à vida da nação. Thomas Jefferson era um deísta 16 que

certa vez passou várias noites na Casa Branca com uma Bíblia numa das mãos e

uma lâmina na outra, cortando fora os textos dos evangelhos que contradiziam sua

111


compreensão dos ensinos de Jesus. Contudo, na introdução da Declaração de

Independência, que ele escreveu, pôde falar das “leis da natureza e do Deus da

natureza” e, no preâmbulo, disse: “Todos os homens são criados iguais [...] por seu

Criador.” Benjamin Franklin também era um deísta que atacava o dogma religioso.

Contudo, disse também: “Se os homens são tão ímpios com a religião, o que seriam

sem ela?” 17 E um dos itens de sua lista de virtudes a serem praticadas era “imitar

Jesus [religião] e Sócrates [secular]”. 18

Os elaboradores da Constituição dos Estados Unidos reconheciam a

importância da religião, mas também estavam convencidos de que seu novo

governo não podia patrocinar a religião. James Madison resumiu esse princípio em

uma curta frase: “A religião floresce com maior pureza sem a ajuda do governo

do que com ela.” 19 Também disse: “O número, a operosidade e a moralidade do

sacerdócio, bem como a devoção do povo, aumentam manifestamente pela total

separação entre a igreja e o Estado.” 20 O Estado deve permanecer fora do

caminho da religião – libertá-la, deixá-la seguir seu próprio caminho. O papel do

Estado é proteger a religião, não promovê-la. O Estado deve especialmente

proteger a liberdade da religião para ensinar, persuadir e evangelizar, mas o Estado

não deve se envolver com a pregação, o ensino ou a condução de quaisquer atos de

adoração pública, nem deve financiar quaisquer dessas atividades. É isso que

significa a expressão “separação entre igreja e Estado”.

Laico e religioso nos Estados Unidos: separados, mas cooperantes

É crucial entender que o tipo norte-americano de separação entre igreja e

Estado foi resultado de uma cooperação singular entre o laicismo e a religião. Nos

países comunistas, o laicismo predomina tanto que a religião é rigidamente

controlada. No outro extremo, a igreja tem tido uma influência dominante sobre o

Estado durante a maior parte da história da Espanha. É apenas nos Estados Unidos

que o governo foi fundado sobre uma cooperação entre os dois. E o crédito disso

pertence a pessoas tanto religiosas quanto não religiosas na época da fundação da

República.

Nem todas as pessoas religiosas estavam felizes com respeito à separação

entre igreja e Estado. Os dois grupos religiosos majoritários no país, os episcopais e

os congregacionalistas, não gostaram de renunciar ao apoio que recebiam do

Estado. Contudo, os batistas, quakers e membros de outros grupos religiosos

minoritários que haviam sido severamente reprimidos durante o período colonial

eram fortes defensores da separação entre igreja e Estado. Por outro lado,

fundadores como Jefferson, Franklin,

112


Madison e outros eram pessoas não religiosas que reconheciam o bem tanto no

laicismo quanto na religião. Em seu livro American Gospel [Evangelho Norte-

Americano], Jon Meacham, editor-chefe da revista Newsweek, escreveu:

Nem convenientemente devoto nem inteiramente descrente, Jefferson

inspecionou e manteve sob vigilância um meio-termo norte-americano

entre, por um lado, a ferocidade dos cristãos evangelizadores e, por outro,

o desprezo à religião por parte dos philosophes seculares. 21 Os da direita

gostariam que Jefferson fosse um soldado da fé; os da esquerda gostariam

que ele fosse como um Voltaire americano. Ele era, dependendo do

momento, ambos ou nenhum dos dois; ele era, em outras palavras,

grandemente semelhante a muitos de nós. 22

Duas forças no século 18 contribuíram para a cooperação entre a religião e o

laicismo. No lado religioso, desde o tempo em que os primeiros colonizadores se

estabeleceram no continente norte-americano, o país sempre foi religioso. Uma

notável manifestação disso – o Grande Reavivamento – ocorreu sob a liderança de

Jonathan Edwards e George Whitefield no início do século 18. Ao mesmo tempo,

durante a maior parte desse século, um movimento laico chamado Iluminismo

estava ocorrendo em toda a Europa e América do Norte. Essas duas forças se

fundiram na formação do governo norte-americano. A conclusão é que,

historicamente, nos Estados Unidos, as pessoas religiosas têm apreciado as não

religiosas, e estas têm apreciado as religiosas. Cada um se dispôs a dar e receber, e

a ceder a fim de alcançar uma acomodação que deu a cada lado, em grande

parte, o que desejavam. Cada um aceitou certa quantidade de expressão pública

dos conceitos do outro como o preço a ser pago pela paz entre ambos.

A religião civil

A expressão pública da religião nos Estados Unidos tem sido tradicionalmente

chamada “religião civil” ou “deísmo cerimonial”. Jon Meacham, em seu livro

American Gospel, a chama de “religião pública”. 23 A religião civil ou pública é o

reconhecimento pelo governo de um Ser supremo, ao passo que este deixa a

promoção da religião e a formulação de suas doutrinas às igrejas e ao crente

individual. Por exemplo, na Declaração de Independência, Jefferson podia falar de

um “Criador” e “das leis da natureza e do Deus da natureza”. A religião civil ou

pública permite que existam as palavras “Em Deus confiamos” nas moedas norteamericanas

e as palavras “uma nação sob Deus” no Juramento de Lealdade.

113


Permite que haja capelães no Congresso norte-americano e no exército. Sempre

houve tensão entre o laico e o religioso. Historicamente, algumas pessoas têm

desejado mais religião no governo, e outras, menos. Mas os presidentes,

legisladores e juízes da nação têm conseguido, ao longo da maior parte da história

dos Estados Unidos, estruturar um equilíbrio que tem mantido a maioria dos

habitantes do país razoavelmente satisfeitos, se não totalmente felizes.

Os norte-americanos têm uma dívida de gratidão para com os adeptos do

Iluminismo do século 18, que promoveram o Estado laico com sua separação entre

religião e governo. Temos uma dívida de gratidão para com as pessoas

fervorosamente religiosas exemplificadas pelo Grande Reavivamento do século

18, que reconheceram o valor de um governo laico com sua separação entre

igreja e Estado. Seria difícil dizer quem fez a maior contribuição para esse grande

projeto de nação: os laicos ou os religiosos.

Nós, dos Estados Unidos, também temos uma dívida de gratidão para com os

fundadores de nossa nação, que foram sábios o suficiente para estruturar uma

constituição que incorporava um equilíbrio entre o laico e o religioso. E,

finalmente, temos uma dívida de gratidão para com os líderes políticos e para com

o povo comum que, por mais de duzentos anos, fizeram com que esse equilíbrio

entre o laico e o religioso realmente funcionasse na vida da nação. É por causa

desse delicado equilíbrio que temos desfrutado tanta liberdade religiosa ao longo de

nossa história. Jon Meacham afirma:

Uma democracia tolerante e pluralista na qual as forças religiosas e

laicas continuamente contendem uma contra a outra pode não ser ideal,

mas já se demonstrou o arranjo mais prático e permanente dos negócios

humanos – e precisamos guardar bem esse arranjo. 24

A separação entre igreja e Estado na história dos Estados Unidos

De modo geral, os norte-americanos têm apoiado o princípio da separação

entre igreja e Estado desde o princípio da história da nação. Há pouco mencionei

uma declaração de James Madison de que “o número, a operosidade e a

moralidade do sacerdócio, bem como a devoção do povo, aumentam

manifestamente pela total separação entre a igreja e o Estado”. Numa carta

datada de 1º de janeiro de 1802, Thomas Jefferson escreveu para a Associação

Batista de Danbury, na Virgínia:

114


Encaro com solene reverência o ato de todo o povo norte-americano

que declarou que sua legislatura não devia fazer “nenhuma lei referente

ao estabelecimento da religião, ou proibindo o livre exercício dela”,

construindo assim um muro de separação entre a igreja e o Estado. 25

O historiador e pensador político francês Alexis de Tocqueville, após viajar

pelos Estados Unidos no início do século 19 e conversar com muitos clérigos norteamericanos,

disse que “todos atribuíram o pacífico domínio que a religião exerce

em seu país principalmente à completa separação entre igreja e Estado”. 26

O presidente Andrew Jackson falou sobre a “segurança da qual a religião

agora desfruta neste país em sua completa separação das preocupações políticas

do Governo Geral”. 27 O presidente John Ty ler ofereceu suas ideias sobre religião

e liberdade: “Os Estados Unidos entrou numa grande e nobre experiência, a da

total separação entre igreja e Estado.” 28 O presidente Ulysses Grant disse:

“Deixem o assunto da religião para o altar da família. Que a igreja e a escola

particular sejam sustentadas inteiramente por contribuições privadas. Mantenham

a igreja e o Estado separados para sempre.” 29 E mais recentemente, no lado

religioso, o evangelista Billy Graham disse: “Nos Estados Unidos toda e qualquer

religião tem o direito de existir e propagar o que defende. Desfrutamos separação

entre igreja e Estado, e nenhuma religião denominacional jamais foi – e oramos a

Deus que jamais seja – imposta a nós.” 30

Desafios à separação

Esses fatos não significam que não tem havido na história dos Estados Unidos

desafios ao conceito da separação entre igreja e Estado. Em 1863, os

Contratantes, 31 um pequeno grupo que saiu da Igreja Presbiteriana em Allegheny,

Pensilvânia, propôs uma emenda ao preâmbulo da Constituição dos Estados

Unidos. As palavras da emenda proposta estão entre colchetes:

Nós, o povo dos Estados Unidos, [reconhecendo o Ser e atributos do

Deus todo-poderoso, a divina autoridade das Sagradas Escrituras, a lei de

Deus como a regra suprema, e Jesus, o Messias, o Salvador e Senhor de

todos], a fim de formar uma união mais perfeita [...]. 32

115


Essa proposta não saiu do lugar, mas os Contratantes se mesclaram a outros

partidos interessados para formar, em 1864, a Associação da Reforma Nacional

(ARN). O objetivo primário da ARN era emendar a Constituição dos Estados

Unidos de forma a reconhecer a Deus como a divina autoridade da nação e

estabelecer o cristianismo como a religião oficial do país. O preâmbulo da

constituição da ARN, embora um pouco extenso, é relevante à luz de esforços

semelhantes que estão sendo feitos atualmente nos Estados Unidos:

Crendo que o Deus todo-poderoso é a fonte de todo poder e autoridade

no governo civil, que o Senhor Jesus Cristo é o Governante das nações, e

que a vontade de Deus revelada é de suprema autoridade em assuntos

civis;

Lembrando que este país foi estabelecido por homens cristãos, com

objetivos cristãos em vista, e que eles deram um caráter distintamente

cristão às instituições que estabeleceram;

Percebendo as tentativas sutis e perseverantes que são feitas para se

proibir a leitura da Bíblia em nossas escolas públicas, para subverter nossas

leis sobre o dia de descanso [domingo], para corromper a família, para

abolir o juramento, a oração em nossas legislaturas nacional e estadual,

dias de jejum e ações de graças e outras características cristãs de nossas

instituições, e assim divorciar o governo norte-americano de toda ligação

com a religião cristã; [...]

Crendo que uma constituição escrita deve conter evidências explícitas

do caráter e propósito cristão da nação que a elabora, e percebendo que o

silêncio da Constituição dos Estados Unidos a esse respeito é usado como

um argumento contra tudo que é cristão no costume e administração de

nosso governo;

Nós, cidadãos dos Estados Unidos, nos unimos sob os seguintes artigos,

e nos comprometemos com Deus e uns com os outros, a trabalhar, por

meios sábios e lícitos, para os fins aqui expostos. 33

O documento prosseguia alistando vários artigos a serem incorporados. O

artigo II é particularmente significativo:

O objetivo desta sociedade será manter características cristãs

116


existentes no governo norte-americano, promover as reformas necessárias

na ação do governo no que respeita ao dia de descanso, à instituição da

família, ao elemento religioso na educação, ao juramento e à moralidade

pública, segundo afetada pelo tráfico de bebidas e outros males

semelhantes; e assegurar uma emenda à Constituição dos Estados Unidos

que declare a lealdade da nação a Jesus Cristo e sua aceitação das leis

morais da religião cristã, e assim indicar que esta é uma nação cristã, e

colocar todas as leis, instituições e costumes cristãos de nosso governo

sobre uma inegável base legal na lei fundamental do país. 34

Na verdade, a ARN conseguiu submeter sua proposta de emenda

constitucional ao Comitê Judiciário do Senado no final de 1864. Contudo, o comitê

se recusou a passá-la para o Senado.

Minha razão para mencionar essa informação sobre a Associação da Reforma

Nacional é chamar a atenção para o fato de que ela basicamente não chegou a

lugar algum. A maioria dos leitores deste livro provavelmente nunca nem ouviu

falar da Associação da Reforma Nacional. O ponto essencial é que o princípio de

manter o governo e a religião separados um do outro – ou seja, a separação entre

igreja e Estado – conseguiu sucesso, e o fez muito facilmente.

O anticatolicismo e a separação entre igreja e Estado

Um forte anticatolicismo permeou a opinião pública norte-americana ao longo

de todo o século 19, especialmente durante a última parte do

século, quando os imigrantes estavam chegando às praias, vindos de países

católicos da Europa, particularmente Irlanda, Itália e Polônia. Esse anticatolicismo

resultou em alguns incidentes lamentáveis de perseguição, que mencionarei num

capítulo posterior. No entanto, o anticatolicismo norte-americano durante esse

período surgiu em parte por medo de que o princípio católico da união entre igreja

e Estado pudesse ser imposto nos Estados Unidos.

Muito depois, em 1960, quando John F. Kennedy, um católico, foi candidato à

presidência dos Estados Unidos pelo Partido Democrata, os protestantes

conservadores do país, inclusive batistas do Sul e a maioria dos grupos

carismáticos, ficaram tão receosos do perigo que seu catolicismo representava

para uma separação entre igreja e Estado que se recusaram a apoiá-lo na eleição

até que ele fizesse um voto endossando esse princípio constitucional. Kennedy fez

esse voto numa reunião da associação ministerial de Houston, Texas, em setembro

de 1960. Ele disse:

117


Creio em um país onde a separação entre igreja e Estado seja

absoluta, onde nenhum prelado católico diria ao presidente (caso ele seja

católico) como agir, e nenhum ministro protestante diria aos membros de

sua igreja em quem votar; onde nenhuma igreja ou escola confessional

receba fundos públicos ou preferência política; e onde não seja negado a

nenhuma pessoa um cargo público simplesmente porque sua religião

difere da do presidente que o nomearia ou do povo que o elegeria.

Creio em um país que oficialmente não seja nem católico, nem

protestante, nem judaico; onde nenhum oficial público solicite ou aceite

instruções sobre política pública do papa, do Concílio Nacional de Igrejas

ou de qualquer outra fonte eclesiástica; onde nenhuma corporação

religiosa procure impor sua vontade direta ou indiretamente à população

geral ou aos atos públicos de seus oficiais; e onde a liberdade religiosa seja

tão indivisível que um ato contra uma igreja seja tratado como um ato

contra todas. 35

O que pretendo mostrar é que, em 1960, a maioria dos protestantes

conservadores e evangélicos dos Estados Unidos ainda apoiava fortemente o

princípio da separação entre igreja e Estado. Infelizmente, hoje um número

significativo de conservadores e evangélicos estão criticando fortemente a

separação entre igreja e Estado. Como essa tendência tem se desenvolvido nos

Estados Unidos será o assunto dos próximos capítulos.

1 Sobre a observância de um dia de guarda pelos puritanos, veja Alice Morse

Earle, The Sabbath in Puritan New England (Project Gutenberg Literary Archive

Foundation, 2005), capítulo 10, disponível em

http://www.gutenberg.org/dirs/etext05/8sabb10h.htm#17.

2 “Roger Williams (theologian)”, Wikipedia,

http://en.wikipedia.org/wiki/Roger_Williams_%28theologian%29.

3 “Salem witch trials”, Wikipedia,

http://en.wikipedia.org/wiki/Salem_Witch_Trials.

118


4 Ibid.

5 Connecticut, Geórgia, Massachusetts, New Hampshire, Carolina do Norte,

Carolina do Sul e Virgínia.

6 Richard Viguerie e David Franke, America’s Right Turn: How Conservatives

Used New and Alternative Media to Take Power (Chicago: Bonus Books, 2004), p.

20.

7 Leonard W. Levy, Original Intent and the Framers’ Constitution (Chicago:

Ivan R. Dee, 1988), p. x.

8 A Carta de Direitos original, que foi apresentada pelo Congresso aos estados,

tinha doze emendas, as primeiras duas das quais não passaram no processo de

ratificação. Foi assim que a emenda referente à religião se tornou a primeira.

9 “Mary Dy er”, Wikipedia, http://en.wikipedia.org/wiki/Mary_Dyer.

10 Mark R. Levin, Men in Black: How the Supreme Court is Destroying

America (Washington, DC: Regnery Publishing, 2005), p. 36.

11 Forrest Church, ed., The Separation of Church and State: Writings of a

Fundamental Freedom by America’s Founders (Boston: Beacon Press, 2004), p. 17.

12 Ibid., p. 3, 4.

13 Jon Meacham, American Gospel: God, the Founding Fathers, and the

Making of a Nation (Nova York: Random House, 2006), p. 228.

14 Address of George Washington, President of the United States… Preparatory

to His Declination (Baltimore: George and Henry S. Keatinge, 1796), p. 22, 23.

15 Charles Frances Adams, ed., The Works of John Adams, Second President of

the United States (Boston: Little, Brown and Company, 1854), v. 9, p. 229.

16 Os deístas possuíam a compreensão do “Deus relojoeiro”: Deus criou o

mundo e o abandonou para ser conduzido pelas leis estabelecidas por Ele.

17 Numa carta a Thomas Paine; veja “Benjamin Franklin’s Letter to Thomas

119


Paine”, WallBuilders, http://www.wallbuilders.com/resources/search/detail.php?

ResourceID=93.

18 “Benjamin Franklin”, Wikipedia,

http://en.wikipedia.org/wiki/Benjamin_Franklin#Public_life.

19 James Madison, carta a Edward Livingston, 10 de julho de 1822, citado em

“Pure Religion”, Liberty, dezembro de 2005, p. 13.

20 Citado em Church and State, abril de 2006, p. 24.

21 Os philosophes (palavra francesa para “filósofos”) eram intelectuais

franceses do Iluminismo do século 18 que criam na supremacia da razão humana

e questionavam a autoridade religiosa. Muitos deles eram deístas, e alguns deles

eram totalmente críticos do cristianismo. Veja

http://en.wikipedia.org/wiki/Philosophes.

22 Meacham, American Gospel, p. 4.

23 Ibid., p. 25.

24 Ibid., p. 33.

25 Ibid., p. 264.

26 Ibid., p. 78, 80.

27 Ibid., p. 111.

28 Ibid., p. 134, 135.

29 Ibid., p. 143.

30 Ibid., p. 214.

31 Covenanters: os membros da Igreja da Escócia que assinaram o Pacto

Nacional Escocês de 1638, que os obrigava a manter a Igreja da Escócia como foi

organizada durante a Reforma, isto é, presbiteriana (N. do T.).

32 “The NRA (National Reform Association) and the Christian Amendment”,

http://candst.tripod.com/nra.htm.

120


33 Ibid.

34 Ibid.

35 Citado em George J. Marlin, The American Catholic Voter: 200 Years of

Political Impact (South Bend: St. Augustine’s Press, 2004), p. 254.

121


A

inda me lembro da eleição presidencial nos Estados Unidos em novembro

de 1964. Na ocasião, eu era pastor de uma igreja muito pequena na

ventosa cidade de Mojave, Califórnia. Minha esposa e eu fomos às urnas

pouco antes de serem fechadas no final da tarde. Naquele momento já era óbvio

pelos boletins dos noticiários que Lyndon Johnson havia obtido uma vitória

esmagadora. Brinquei com um amigo que era quase inútil votar. Na eleição mais

assimétrica desde 1824, Goldwater recebeu 38,5% dos votos contra 61,1% de

Johnson. Barry Goldwater perdeu feio! Para os que estão familiarizados com a

política norte-americana, Goldwater acumulou 52 votos eleitorais contra 486 de

Johnson. Goldwater conseguiu a maioria dos votos apenas em seu estado natal, o

Arizona, e em cinco estados do Sul: Alabama, Mississipi, Geórgia, Carolina do

Norte e Louisiana.

Porém, o que a maioria das pessoas considerou uma perda tremenda, para

algumas pessoas foi um enorme sucesso. A história começou cerca de dez anos

antes, em meados da década de 1950. Na época, os políticos liberais do leste

controlavam tanto o partido Democrata quanto o Republicano. Contudo, um

pequeno movimento conservador começou a crescer, alimentado pela crescente

ameaça do comunismo. Os poucos cabeças-duras conservadores do país

objetaram ao que consideravam ser a acomodação dos liberais ao comunismo, e

começaram a conversar entre si. Escreveram alguns livros e publicaram várias

revistas, as mais influentes das quais foram Human Events [Eventos Humanos] e a

National Review [Revista Nacional], esta última de William F. Buckley.

No final da década de 1950, Barry Goldwater emergiu como o líder desse

movimento conservador. Na época da campanha presidencial de 1960, os

conservadores haviam ganhado força suficiente para conseguir colocar, na

122


Convenção Nacional Republicana, o nome de seu partidário como uma das

possíveis opções para candidato à presidência. Goldwater não ganhou a nomeação

para a candidatura, mas eletrizou suas tropas quando tomou a tribuna para fazer

um discurso. Ele falou:

Este país, e a majestade que ele possui, é grande demais para

qualquer homem, seja ele conservador ou liberal, ficar em casa e não

trabalhar só porque não está de acordo. Vamos crescer, conservadores!

Desejamos tomar novamente a posse desse partido, e acho que um dia

conseguiremos. Ao trabalho! 1

O mínimo que se pode dizer é que essa declaração foi um prenúncio das coisas

que viriam.

Em 1964, o movimento conservador já havia ganhado força suficiente para

conseguir nomear Barry Goldwater como candidato à presidência. Entretanto,

sendo que o movimento conservador estava em sua infância, e que tanto os

partidos políticos quanto a imprensa e os meios eletrônicos de comunicação eram

quase totalmente controlados pelos liberais, Goldwater teve sorte em haver vencido

em seis estados.

Longe, porém, de ficarem desencorajados pela esmagadora derrota do

defensor de seus princípios, os conservadores ficaram exultantes – não pela perda,

mas pelo fato de que haviam conseguido colocar um dos seus como candidato ao

mais alto cargo do país. Essa foi uma vitória e tanto, e encorajou as tropas a

seguirem em frente. Afinal, o próprio Goldwater não lhes havia dito: “Desejamos

tomar novamente a posse desse partido, e acho que um dia conseguiremos”? 2 As

tropas decidiram que um dia conseguiriam. Afinal de contas, haviam acabado de

persuadir mais de 27 milhões de eleitores norte-americanos a apoiar seu candidato.

Não havia maneira, porém, de os conservadores fazerem sua mensagem

chegar até o público norte-americano através da imprensa e dos meios eletrônicos

de comunicação. Esses eram firmemente controlados por editores e políticos

liberais. Portanto, os conservadores se voltaram para a mala direta a fim de

“vender” seu produto. E havia uma vantagem nisso: era algo que não podia ser

detectado. Os conservadores podiam construir seu movimento sem que os liberais

percebessem o que estava acontecendo.

Virando a maré

123


E a vitória veio. Durante a década de 1970, Ronald Reagan substituiu Barry

Goldwater como o político favorito dos conservadores, e o movimento continuou a

crescer, especialmente através da mala direta. Em 1980, o movimento já havia

evoluído a tal ponto que Ronald Reagan foi nomeado como o candidato

presidencial do Partido Republicano e obteve uma vitória esmagadora: 50,7% dos

votos populares contra 41% de Jimmy Carter. E o que é ainda mais significativo é

que Reagan ganhou a eleição em todos os estados com exceção de seis, ou seja,

ele acumulou 489 votos eleitorais contra os 49 de Carter.

Quatro anos depois, Reagan ganhou em todos os estados exceto Minnesota, o

estado natal de seu oponente democrata, Walter Mondale. Nessa eleição, Reagan

ganhou 525 votos eleitorais contra 13 de Mondale! Parte do sucesso de Reagan era

o próprio Reagan. Ele fazia jus a seu apelido: o Grande Comunicador. Entretanto,

foram os conservadores que lhe deram projeção nacional. Apesar de todas as suas

habilidades de comunicação, é improvável que tivesse sido eleito sem os

incansáveis esforços do movimento conservador.

George W. Bush (Bush pai) foi eleito presidente em 1988, novamente com a

ajuda de conservadores. Contudo, Bush era apenas um conservador medíocre.

Nunca teve o apoio caloroso da maioria dos eleitores conservadores, e quando veio

o carismático Bill Clinton em 1992, derrotou Bush facilmente.

Com a derrota de Bush, alguns especialistas políticos escreveram o epitáfio do

movimento conservador. A eleição intermediária de 1994 os chocou, tirando-os de

sua despreocupação. Os democratas haviam virtualmente monopolizado ambas as

Casas do Congresso nos sessenta anos anteriores, mas em 1994 os democratas

saíram e os republicanos entraram, tanto no Senado quanto na Câmara Federal! No

Senado, os democratas perderam oito cadeiras para os republicanos, dando aos

republicanos uma maioria de quatro cadeiras. A catástrofe dos democratas foi até

pior na Câmara Federal, onde perderam quatro cadeiras para os republicanos,

dando aos últimos uma maioria de 26 cadeiras. Todos os tipos de estudiosos

políticos concordaram que foram os conservadores que fizeram a diferença. Os

republicanos continuaram a dominar a Câmara Federal pelos próximos doze anos,

e, com exceção do 108º Congresso, entre 2002 e 2004, dominaram também o

Senado.

Ainda mais significativa foi a eleição de George W. Bush, o filho de George H.

W. Bush, como presidente dos Estados Unidos em 2000. 3 Bush filho foi um

verdadeiro conservador. Muito mais que seu pai e Ronald Reagan, ele se

conformava com os padrões políticos dos conservadores. Em uma das decisões

mais significativas de sua carreira como presidente, Bush nomeou dois juízes

conservadores para a Suprema Corte dos Estados Unidos: John Roberts como

presidente da Suprema Corte, e Samuel Alito como juiz associado. Com essas

124


nomeações, os conservadores passaram a ter influência dominante nos três ramos

de governo dos Estados Unidos. Os conservadores haviam finalmente saído da

sombra!

Programas de rádio

Outra poderosa força política nos Estados Unidos hoje é o discurso

conservador no rádio. Começou com Rush Limbaugh, cujo programa diário, o

Rush Limbaugh Show, satiriza pessoas e causas liberais. Limbaugh começou a

transmissão de seu programa em Sacramento, na Califórnia, em 1984. Vários anos

depois, ele se mudou para a cidade de Nova York e, em 1988, começou a vender

seu programa para várias emissoras de rádio locais. No momento em que escrevo

(2007), a audiência de Limbaugh é estimada entre 14 e 20 milhões de pessoas por

semana, tornando-a a maior audiência de um programa de rádio nos

Estados Unidos. 4

Outros apresentadores de programas conservadores durante a primeira década

do século 20 foram Sean Hannity, Bill O’Reilly, Michael Savage e Laura Ingram. O

programa de TV a cabo de O’Reilly, The O’Reilly Factor [O Fator O’Reilly], no

Fox News Channel, atrai um número de espectadores estimado em 2,2 milhões.

Esses programas promovem uma filosofia política conservadora e atacam a

esquerda liberal. Não há dúvida em minha mente de que Limbaugh e os outros

colegas apresentadores são uma força poderosa que está impulsionando o

eleitorado norte-americano em direção a uma filosofia política conservadora que

influenciará as eleições neste país durante os próximos anos.

Contudo, o surgimento do movimento conservador nos Estados Unidos durante

a última metade do século 20 é só uma parte da história. Ainda mais significativa

para nosso estudo é a influência da religião no movimento conservador durante

esse tempo. Como Timothy By rne o expressou em seu livro Catholic Bishops in

American Politics [Os Bispos Católicos na Política Norte-Americana], a aliança

entre os líderes religiosos e os políticos atuantes que apareceram em cena no final

da década de 1970 foi resultado de uma estratégia cuidadosamente implementada

para mobilizar novos eleitores, construir novas coalizões políticas e efetuar um

realinhamento duradouro do eleitorado norte-americano. 5

O resultado dessa estratégia é história, como veremos.

125


1 Citado por Richard A. Viguerie and David Franke, em America’s Right Turn:

How Conservatives Used New and Alternative Media to Take Power (Chicago:

Bonus Books, 2004), p. 67.

2 Ibid., ênfase acrescentada.

3 George W. Bush na verdade obteve, nacionalmente, menos votos populares

do que seu concorrente Democrata Al Gore, mas ganhou mais votos eleitorais. O

estado-chefe foi a Flórida, onde o resultado dos votos foi tão próximo que os

democratas o questionaram na justiça. Após várias idas e vindas, a Suprema Corte

dos Estados Unidos autenticou os votos da Flórida, dando o ganho da eleição a Bush.

4 “Rush Limbaugh”, Wikipedia, http://en.wikipedia.org/wiki/Rush_Limbaugh.

5 Timothy By rne, Catholic Bishops in American History (Princeton: Prince​ton

University Press, 1991), p. 90.

126


G

eorge Rappleyea era o gerente de uma empresa de mineração, a

Companhia de Carvão e Ferro Cumberland, no distante Tennessee de

1925. George gostava de publicidade; tinha talento natural para a

dramaticidade. E viu uma oportunidade para isso na Lei Butler, que a legislatura

estadual do Tennessee havia acabado de aprovar. A lei declarava:

Será ilegal para qualquer professor, em qualquer das universidades,

escolas normais e em todas as outras escolas públicas do estado que são

mantidas inteiramente ou em parte pelos fundos públicos estaduais, ensinar

qualquer teoria que negue a história da criação divina do ser humano

ensinada na Bíblia, e ensinar, em vez disso, que o homem descendeu de

uma ordem inferior de animais. 1

Você provavelmente está pensando que tipo de oportunidade para publicidade

George Rappley ea viu na lei antievolução do Tennessee. Precisamente isto: a

União Norte-Americana pelas Liberdades Civis tinha se oferecido para defender

qualquer pessoa que violasse a nova lei.

George abordou os pais de alunos da cidade com uma proposta: Por que não

combinar com um professor da escola secundária que ele ensinasse evolução em

sua disciplina, fazer com que ele fosse preso e acusado, e depois chamar a União

Norte-Americana pelas Liberdades Civis para defendê-lo? A controvérsia que o

julgamento gerasse colocaria a cidade de Dayton em destaque no mapa.

Os habitantes gostaram da ideia e encarregaram George de fazer os arranjos.

127


Assim, George lançou a ideia para John Scopes, um professor de Ciências

substituto na escola secundária local. Scopes concordou, e alguns dias mais tarde

dedicou uma aula à teoria da evolução. Em 25 de maio, foi preso e acusado de

violar a Lei Butler do Tennessee. Então a União Norte- Americana pelas

Liberdades Civis cumpriu sua promessa.

“O julgamento do macaco”, como se tornou conhecido, teria sido uma

ocorrência incomum mas insignificante na história da jurisprudência norteamericana

se não fosse por um simples fato: colocou a religião conservadora

contra o liberalismo secular. A publicidade foi enorme. Os principais jornais da

nação enviaram mais de uma centena de repórteres para fazer a cobertura do

julgamento, e estes mandaram mais de 165 mil palavras telegrafadas por dia para

seus escritórios jornalísticos. Durante dias o julgamento permaneceu na primeira

página de quase todos os principais jornais do país, e de muitos dos jornais

menores. A estação de rádio WGN de Chicago e seu anunciante, Quin Ryan,

davam relatórios ao vivo diariamente sobre o andamento – a primeira cobertura ao

vivo de um julgamento na história dos meios eletrônicos de comunicação. 2

Dayton, no Tennessee, tem sido um nome famoso na cultura norte-americana

desde então. Livros têm sido escritos sobre o julgamento; Hollywood fez um filme

sobre ele; e a pequena e velha Dayton tem um lugar seguro garantido nos livros de

história mundial até que o Senhor venha.

A esta altura, você provavelmente deve estar perguntando o que esse

julgamento do início da década de 1920 teve a ver com o surgimento da direita

cristã nos Estados Unidos durante a segunda metade do século 20. Afinal de contas,

o ridículo que os cristãos norte-americanos conservadores sofreram com o

julgamento os conservou numa posição desvantajosa por várias décadas. Eles se

esconderam, se afastaram da política e se mantiveram longe de controvérsias

sociais. Como isso podia ajudar no surgimento da direita cristã cinquenta anos mais

tarde?

Permita-me falar um pouco sobre o contexto do julgamento de Scopes.

O surgimento dos grupos conservadores nos Estados Unidos

A teologia liberal fez profundas incursões no protestantismo norte- americano

tradicional, começando na segunda metade do século 19 e avançando até o século

20. Os teólogos liberais negavam o sobrenatural, inclusive os milagres de Jesus, Seu

nascimento virginal e Sua ressurreição corporal. Também negavam a inspiração e

autoridade da Bíblia como a Palavra de Deus, e abandonavam cada vez mais o

relato bíblico da criação, substituindo-o pela teoria da evolução. No início do século

20, os líderes religiosos conservadores responderam com uma coleção de quatro

128


livros chamada Os Fundamentos. Esses livros exaltavam os ensinos cristãos

tradicionais que o liberalismo negava. O movimento que surgiu com sua

publicação veio a ser conhecido como fundamentalismo, e as pessoas que

defendiam essas crenças ficaram conhecidas como fundamentalistas.

O júri decidiu que John Scopes era culpado do crime do qual foi acusado.

Assim, os fundamentalistas ganharam na corte legal. Mas perderam na corte da

opinião pública. Até hoje o “julgamento do macaco” é considerado um ganho

importante para a ciência e o secularismo e um enorme revés para a religião

conservadora. As pessoas não religiosas lançaram ridículo sobre o

fundamentalismo e os fundamentalistas. É por isso que, após o julgamento, os

fundamentalistas se afastaram quase completamente da política e do envolvimento

em questões sociais. Sua tarefa, diziam eles, era a proclamação do evangelho e a

salvação de almas, não a ação política.

Porém, embora em certo sentido o julgamento tenha sido uma perda imensa e

embaraçosa, prestou aos conservadores religiosos um grande benefício: deu-lhes a

causa perfeita em torno da qual arregimentar suas tropas. 3 A questão não era

simplesmente a controvérsia entre criação e evolução, importante como fosse. A

questão era todo um interesse liberal, incluindo sua rejeição do sobrenatural, a

negação do nascimento virginal de Cristo e Sua ressurreição, seu tratamento da

Bíblia como qualquer outro exemplar de literatura em vez de a Palavra inspirada

de Deus, etc. Todas essas questões estavam desafiando o cristianismo na época,

especialmente o protestantismo. 4

Assim, os fundamentalistas arregaçaram as mangas e puseram mãos à obra

para conquistar interessados em seu tipo fundamentalista de religião. Entre 1926 e

1940, os batistas do Sul alcançaram 1,5 milhão de membros, e as Assembleias de

Deus quadruplicaram o número de seus adeptos. Kevin Philips, no livro American

Theocracy [Teocracia Norte-Americana], comentou que “os grupos evangélicos,

fundamentalistas e pentecostais, longe de se evaporarem ou estagnarem durante o

início do século 20, parecem ter sido uma força de ajuntamento, como uma maré

que está subindo”. 5

Durante esse mesmo período, a vertente principal do protestantismo encolheu

de maneira tão significativa quanto o protestantismo conservador se expandiu. Mas

há um importante aspecto a notar: apesar do declínio em seu número de membros,

os pastores, sacerdotes e membros das denominações protestantes da vertente

principal constituíam a elite culta da nação, e dominaram sua política durante os

primeiros três quartos do século 20.

Os evangélicos e os protestantes fundamentalistas não estavam interessados

em política. Estavam muito ocupados ganhando almas. Estavam ocupados

129


crescendo. Mas o crescimento dos protestantes fundamentalistas não estava sendo

detectado. Poucos cientistas sociais prestavam qualquer atenção a eles. Afinal de

contas, presumia a elite, eles eram simplórios, ignorantes – talvez úteis como

servos e trabalhadores braçais, mas não muito mais do que isso. Assim, a maior

parte da classe alta estava ingenuamente inconsciente do que estava acontecendo

bem no seu quintal dos fundos. Deixaram de perceber que o declínio no número de

membros de suas próprias denominações tradicionais e o dramático crescimento no

número de membros das denominações fundamentalistas e evangélicas iria

certamente se traduzir, com o tempo, numa significativa mudança de poder político.

O surgimento da direita cristã

Podemos dizer que a direita cristã nasceu num dia de neve em janeiro de

1979. Ed McAteer, Paul Wey rich, Howard Phillips e Robert Billings eram líderes

do movimento conservador norte-americano que tinham a intenção de dar à

política nacional um rumo mais conservador. Os quatro enfrentaram uma

tempestade de neve para se encontrar com Jerry Falwell no Holiday Inn, em

Ly nchburg, Virgínia. 6 O encontro estava programado para durar uma hora, mas

terminou nove horas mais tarde.

O propósito do encontro era alistar Falwell como um general no exército

conservador. Introduzindo a conversa, Weyrich disse: “Lá fora se encontra o que

poderíamos chamar de a maioria moral em nosso país, que concorda com os

princípios dos Dez Mandamentos. A chave para qualquer tipo de impacto político é

unir essas pessoas.” 7

Falwell o interrompeu, dizendo: “O que foi que você falou?”

Wey rich repetiu o que havia dito, inclusive as palavras maioria moral.

“É isso!”, Falwell exclamou. “Esse é o nome da organização!”

E com isso nasceu a Maioria Moral.

Afirmei no capítulo anterior que o movimento conservador nos Estados Unidos

começou em cerca de 1955, e que em 1964 os conservadores já haviam ganhado

força e prática política suficientes para conseguir que o Partido Republicano

nomeasse o senador Barry Goldwater como seu candidato presidencial na eleição

daquele ano.

Goldwater perdeu, é claro; mas isso não desencorajou os conservadores.

O alvo deles era assumir o governo norte-americano. A nomeação de Goldwater

deu aos conservadores um sabor de vitória. Contudo, logo perceberam que sua

única esperança de ganhar controle do governo era expandir seu eleitorado.

130


Precisavam que mais pessoas se unissem a sua causa. Mas onde poderiam

encontrar essas pessoas? Fixaram-se em dois segmentos chave da população, os

quais criam que podiam ganhar para seu lado: os democratas do Sul e os

conservadores religiosos. O fato de Goldwater ter arrebatado cinco estados do

extremo Sul – tradicionalmente uma fortaleza democrata – provava que os

democratas do Sul podiam ser convencidos a votar no Partido Republicano. E de

fato os democratas perderam em grande parte o Sul para os republicanos durante

os últimos 25 anos do século 20.

Os conservadores políticos também viam nos conservadores religiosos o

potencial para um poderoso bloco de eleitores que podiam ser inspirados a apoiar

sua causa. Os conservadores religiosos defendiam muitos dos mesmos valores que

inspiravam os conservadores políticos. Os batistas do Sul e principalmente os

pentecostais vinham se fortalecendo silenciosamente por meio século, enquanto o

número de membros das denominações protestantes mais liberais havia estado

declinando. O protestantismo liberal havia dominado os políticos norte-americanos

durante a maior parte da história da nação, mas, com seu declínio e o aumento do

protestantismo conservador, mais cedo ou mais tarde uma mudança política era

inevitável. Um militante político conservador observou que os cristãos evangélicos

e fundamentalistas eram “o maior trecho de madeira virgem da paisagem

política”. 8 Ed McAteer, Paul Wey rich, Howard Phillips e Robert Billings decidiram

que havia chegado o momento de começar a extrair essa madeira. Esse fato

explica a urgência de seu encontro com Jerry Falwell. Alguém poderia chamar a

isso de uma proposta de casamento.

Não foi um namoro fácil. Os conservadores religiosos haviam insistido,

durante a maior parte do século 20, que sua tarefa era espiritual, não política: que

Deus os havia chamado para evangelizar, não tratar de política. O próprio Falwell

havia desdenhado o envolvimento político até março de 1965, declarando num

sermão em sua igreja batista de Thomas Road que “os pregadores não são

chamados a serem políticos, mas a serem ganhadores de almas”. 9 Em 1976, Billy

Graham insistiu que era “contrário à organização dos cristãos num bloco

político”. 10 E em 1980 Pat Robertson ainda declarava que “a política promovida

por partidários ativos é o caminho errado para os verdadeiros evangélicos”. 11

Contudo, a revolução sexual da década de 1960 fez os conservadores religiosos

se convencerem de que os Estados Unidos estavam em uma derrocada moral.

Entre os fatores que contribuíam para esse declínio, achavam eles, estavam as

decisões da Suprema Corte em 1962 e 1963, que baniram a oração e a leitura da

Bíblia das escolas públicas. De repente, o envolvimento político passou a não

parecer uma ideia tão má assim! Era improvável que gritar do púlpito trouxesse

131


muita mudança. Se os líderes religiosos conservadores realmente desejavam

reverter o declínio moral do país através da legislação, teriam de arregaçar as

mangas e pular na arena política.

Jimmy Carter

Os religiosos conservadores ficaram compreensivelmente entusiasmados

quando Jimmy Carter foi nomeado o candidato democrata para a presidência em

julho de 1976. Carter era batista do Sul. Compreendia a mente religiosa

conservadora. Era um deles para travar as batalhas deles! Portanto, uniram-se sob

sua bandeira.

Contudo, Carter não cumpriu as promessas. Em seu primeiro ano na

presidência, apoiou (ou pelo menos foi acusado de apoiar) uma regra da Receita

Federal a qual estipulava que as escolas particulares que deixassem de cumprir

certos padrões de integração social teriam seu status de isenção de impostos

revogado. Carter também convocou uma Conferência sobre a Família Norte-

Americana na Casa Branca à qual os religiosos conservadores se opuseram. Carter

desejava que a conferência representasse um amplo espectro de pontos de vista, e

tomou medidas para assegurar que a voz conservadora fosse ouvida.

Mas isso não era suficiente para os conservadores. Eles desejavam que seu

ponto de vista dominasse, ou pelo menos se igualasse em volume à voz dos liberais.

Temiam, corretamente em vista do que aconteceu, que a conferência promovesse

interesses amplamente liberais. Quando a conferência se reuniu no verão de 1980,

um dos assuntos foi o planejamento familiar, que incluía aborto, e foi permitido aos

homossexuais que expressassem sua versão de família. Assim, os conservadores

sentiram de maneira muito forte que os delegados da conferência eram, como um

participante conservador o expressou, “um monte de liberais empilhados”. 12

O golpe final que pôs fim ao apoio dos conservadores a Carter veio em uma

reunião que ele teve com vários líderes religiosos conservadores, incluindo Jerry

Falwell, James D. Kennedy, Tim LaHay e e Oral Roberts. LaHaye perguntou ao

presidente por que ele apoiava a Emenda de Direitos Iguais, quando ela era tão

prejudicial à família, e Carter “deu uma resposta bizarra, dizendo que a Emenda

dos Direitos Iguais era boa para a família”. 13 Após a reunião, LaHay e fez uma

oração silenciosa: “Deus, temos de tirar esse homem da Casa Branca e colocar

alguém que aja de forma decisiva para trazer de volta os valores morais

tradicionais.” 14 Os outros ministros, como ele ficou sabendo mais tarde, acharam

o mesmo, e trabalharam duro para derrotar Carter. Essa é uma das razões

primárias pelas quais Carter perdeu sua aposta na reeleição em 1980.

132


A Maioria Moral

A decisão da Suprema Corte em 1973 no caso Roe versus Wade atingiu a

Igreja Católica Romana como uma tonelada de tijolos, e os bispos imediatamente

começaram a trabalhar para revertê-la. Por essa razão, muitos protestantes

fundamentalistas e evangélicos ficaram inicialmente cautelosos quanto ao

movimento antiaborto, considerando-o em grande parte uma questão católica. Em

1971, dois anos antes do caso Roe versus Wade, a Convenção Batista do Sul votou

quase unanimemente em apoio a uma resolução que afirmava o direito de uma

mulher de fazer aborto caso o dar à luz constituísse um risco físico ou emocional. 15

Falwell não pregou nenhum sermão sobre aborto até 1978. 16

Falwell adquiriu o gosto pela atividade política pela primeira vez em 1979,

quando ajudou Anita Bry ant com uma cruzada contra os homossexuais na Flórida.

Contudo, seu verdadeiro envolvimento começou com o estabelecimento da

Maioria Moral naquele mesmo ano. Essa foi uma mudança total em seu conceito

sobre os cristãos em relação à política. Ed Dobson, um dos associados de Falwell,

explicou que, tradicionalmente, os fundamentalistas tinham achado que “o mundo

político – a praça pública – não devia ser parte da prioridade cristã”.

Nossa prioridade é amar a Deus e a nosso próximo; esqueçam a

política. Essa ideia pietista predominou entre os membros comuns que

ocupavam os bancos das igrejas fundamentalistas nos Estados Unidos. O

milagre da Maioria Moral foi que, simplesmente numa questão de meses,

todo esse conceito foi destruído, e [os fundamentalistas] começaram a se

registrar para votar e a se envolver. 17

Nos anos seguintes, Falwell passou bem mais tempo viajando e promovendo os

interesses políticos fundamentalistas do que pastoreando sua igreja batista de

Thomas Road. Em alguns anos ele chegava a viajar 500 mil quilômetros, falando

frequentemente várias vezes por dia em igrejas e encontros de pastores, e

ajudando a estabelecer filiais de sua Maioria Moral ao redor do país.

Falwell estava disposto a dar as mãos a qualquer pessoa que apoiasse interesses

políticos conservadores, mesmo que fosse um judeu, mórmon ou católico. Alguns

líderes conservadores ficaram chocados. O Dr. Bob Jones, da Universidade Bob

Jones, achou que era “a coisa mais herética que já ouvi”. Contudo, Falwell tinha

uma resposta:

133


Não é uma violação de suas convicções, nem desagrada ao Senhor

que você trabalhe com pessoas que não concordam com você

teologicamente, se ao fazê-lo você melhora seu país, melhora sua

sociedade, ajuda famílias e realiza coletivamente coisas que não

conseguiria realizar sozinho. 18

E funcionou. “Após um ano da explosão da Maioria Moral”, ele disse, “nosso

povo compreendeu que isso era o que a oposição vinha fazendo o tempo todo”. E

concluiu: “Levá-los da política como questão individual para a negociação e

acordo coletivo foi um processo de cerca de um ano, mas foi feito, e não precisa

ser feito novamente.” 19

Quando os conservadores políticos partiram para a união com os

conservadores religiosos, conectaram-se a um imenso reservatório de poder

político que tem revolucionado a política norte-americana. Uma das primeiras

histórias de sucesso advindas desse casamento foi a eleição de Ronald Reagan

como presidente dos Estados Unidos em 1980.

Ronald Reagan

Inicialmente, os líderes da direita cristã amavam Ronald Reagan. Isso mudou

em 21 de agosto de 1980. Nesse dia, a Mesa Redonda Religiosa patrocinou um

encontro em Dallas, Texas, que lotou a Arena de Reuniões da cidade, com

capacidade para 17 mil lugares. Todos os pesos-pesados do movimento

conservador e do movimento da direita cristã estavam lá: Paul Wey rich, Ed

McAteer, James Robison (que estava na liderança do evento), Phy llis Schlafly,

Tim LaHay e, Jerry Falwell e Pat Robertson, para mencionar apenas alguns.

Ronald Reagan, o candidato republicano na eleição presidencial daquele ano, foi o

orador principal. Também presentes estavam 2.500 pastores de 41 estados.

James Robison fez um poderoso discurso pouco antes de Reagan se levantar.

“O palco está montado”, disse Robison. “Ou teremos uma tomada de poder do tipo

Hitler, ou uma dominação soviética, ou Deus vai assumir o controle deste país. É

hora de sairmos de detrás dos púlpitos e pararmos de olhar através de janelas de

vitral.” 20 Essas palavras incandescentes são características da maneira como os

militantes da direita cristã abordam a política.

Reagan estava sentado na plataforma atrás de Robison, aplaudindo cada

palavra. E as pessoas notaram. Quando Reagan se levantou para falar, ele disse:

“Vocês não podem me endossar, mas eu endosso vocês.” 21 Com essas palavras, o

134


candidato presidencial deu seu apoio aos interesses conservadores. Também não

passou despercebido pelos líderes e pelas pessoas que Reagan apoiou a dispensa do

imposto de educação para os pais dos alunos que estudassem em escolas

confessionais, reclamou que a Suprema Corte havia expulsado Deus das salas de

aula e endossou o ensino do criacionismo bíblico nas escolas públicas como

alternativa à evolução. Todos os presentes também estavam cientes do comentário

enigmático de Reagan de que “todos que são a favor do aborto já nasceram”. 22

E assim Reagan fez o juramento de posse em 20 de janeiro de 1981.

Contudo, para o desapontamento dos conservadores religiosos, Reagan foi mais

um conservador político do que um conservador religioso. Durante a campanha ele

honrou com os lábios as questões debatidas pelos religiosamente conservadores,

tais como o aborto, a dispensa do imposto educacional para pais que tivessem filhos

em escolas confessionais e a oração nas escolas públicas, mas depois de ter

assumido o governo não implementou quase nada. Os militantes da direita cristã

também ficaram desapontados porque ele nomeou poucos deles para os cargos

importantes de gabinete, 23 mas o presidente provavelmente teve pouca escolha.

Os cristãos fundamentalistas e evangélicos haviam se mantido fora da política por

mais de cinquenta anos, e poucos deles tinham a experiência necessária para

assumir uma nomeação política importante no governo nacional.

Reagan foi reeleito em 1984 por maioria esmagadora. 24 Assim, os

conservadores políticos tiveram seu representante na Casa Branca durante a maior

parte da década de 1980. Os conservadores religiosos ainda precisariam esperar

alguns anos.

Pat Robertson

Durante a campanha primária de 1988, Pat Robertson apostou que se tornaria

o candidato republicano à presidência naquele outono. Seus dois principais rivais

eram o vice-presidente de Reagan, George H. W. Bush, e o senador Robert Dole.

Bush era considerado o que mais tinha chances de ganhar em Michigan, mas os

conservadores fizeram uma campanha silenciosa e bem organizada em favor de

Robertson que diminuiu consideravelmente as aparições de Bush nas primárias

daquele estado. 25 Por causa da cuidadosa organização de seus militantes,

Robertson na verdade venceu Bush na reunião do partido em Iowa, ficando em

segundo lugar em relação a Dole, com Bush no terceiro lugar. Robertson também

ficou em primeiro ou segundo lugar nas primárias e reuniões do partido no Havaí,

Nevada, Alaska, Minnesota e Dakota do Sul. 26 De repente, quer apreciasse isso ou

não, a mídia liberal da esquerda teve de prestar atenção a um conservador

135


religioso.

Robertson perdeu para Bush nas primárias da Super Terça-Feira, e Bush

prosseguiu ganhando a nomeação na convenção republicana do mês de agosto

seguinte. Contudo, Robertson provou o ponto de vista da direita cristã: os candidatos

religiosos conservadores podiam fazer uma aparição eleitoral digna, e pretendiam

ganhar algum dia.

Em meados da década de 1980, a Maioria Moral já havia perdido sua

influência, e deixou de existir em 1989. Esse fato, junto com a aposta presidencial

fracassada de Robertson em 1988, fez com que os comentaristas liberais

predissessem a morte do movimento conservador nos Estados Unidos. Não podiam

ter estado mais errados, pois Pat Robertson continuou a partir do ponto em que a

Maioria Moral parou. Sua campanha presidencial o havia deixado com uma

imensa lista de endereços de milhares de doadores que o haviam apoiado. Além

disso, seus auxiliares haviam criado uma grande máquina política com grupos

organizados em setores por todo o país, e essas pessoas estavam prontas para

trabalhar. Um amigo disse a Robertson no início de 1989: “Centenas de milhares de

pessoas, que você trouxe para a política pela primeira vez na vida delas, estão

olhando para você em busca de liderança. Você precisa fazer alguma coisa.” 27

Robertson já havia começado a fazer alguma coisa.

1 Tennessee Sixty -Fourth General Assembly, 1925, House Bill nº 185,

http://www.law.umkc.edu/faculty /projects/ftrials/scopes/tennstat.htm.

2 Para detalhes sobre o julgamento, veja “Scopes Trial”, Wikipedia,

http://en.wikipedia.org/wiki/Scopes_trial.

3 Outro benefício que os fundamentalistas ganharam com o “julgamento do

macaco” de Scopes foi a relutância dos editores de livros didáticos em lidar com a

teoria da evolução durante as próximas três décadas, a fim de não serem levados a

julgamento. Só foi na década de 1960 que os livros didáticos das escolas públicas

passaram a tratar extensivamente da evolução.

4 Os adventistas do sétimo dia partilham das convicções básicas dos cristãos

conservadores, inclusive a confiabilidade do relato de Gênesis sobre a criação e o

136


dilúvio, o sobrenatural, o nascimento virginal e a ressurreição de Cristo, e a

inspiração da Bíblia.

5 Kevin Philips, American Theocracy (Nova York: Viking, 2006), p. 115. Philips

é a fonte, neste capítulo, para as estatísticas sobre o crescimento do protestantismo

fundamentalista e o declínio da vertente principal do protestantismo.

6 Veja Connie Paige, The Right to Lifers (Nova York: Summit Books, 1983), p.

155. William Martin afirma que esse encontro ocorreu em maio de 1979; veja seu

livro With God on Our Side: The Rise of the Religious Right in America (Nova York:

Broadway Books, 1996), p. 200.

7 William Martin, With God on Our Side: The Rise of the Religious Right in

America (Nova York: Broadway Books, 1996), p. 200.

8 Ibid., p. 191.

9 Ibid., p. 70.

10 Ibid., p. 153.

11 Ibid., p. 259.

12 Ibid., p. 181.

13 Ibid., p. 189.

14 Ibid.

15 Ibid., p. 156.

16 Ibid., p. 195.

17 Ibid., p. 202.

18 Ibid., p. 204.

19 Ibid.

20 Ibid., p. 216.

21 Ibid., p. 217.

137


22 Ibid.

23 James Watt, secretário de Assuntos Internos, era membro das Assembleias

de Deus.

24 Os republicanos venceram em todos os estados exceto Minnesota, a terra

natal do oponente democrata de Reagan, Walter Mondale. E Mondale ganhou em

seu próprio estado por menos de cinco mil votos!

25 Robertson afirma que ele ganhou Michigan, “mas a ‘velha guarda’ estava lá

e eles roubaram isso de nós”. Veja Martin, With God on Our Side, p. 285.

26 Ibid., p. 2.

27 Ibid., p. 299.

138


G

eorge H. W. Bush (Bush pai) mal havia baixado a mão após o juramento

presidencial em janeiro de 1989, quando Pat Robertson se sentou à mesa

de jantar com Ralph Reed, fundador e presidente de uma organização

chamada Students for America [Estudantes para os Estados Unidos]. Os dois

conversaram sobre a campanha presidencial fracassada de Robertson, e Reed

disse a Robertson muito francamente o que achava que este havia feito certo e o

que achava que havia feito errado. Robertson ficou impressionado. Ali estava um

jovem que ele mal conhecia e que, no entanto, tinha a coragem de dizer o que

pensava. Além do mais, o que Reed disse fazia sentido politicamente, pois a essa

altura a direita cristã estava começando a perceber que colocar um deles na Casa

Branca seria apenas um sucesso parcial. Outras batalhas, muitas delas mais

importantes, ainda estariam por ser travadas.

A Maioria Moral de Falwell havia concentrado a maior parte de sua atenção

em fazer com que seus líderes fossem eleitos em nível nacional. Mas Reed

salientou para Robertson que “seria necessário mudar o enfoque do movimento

‘pró-família’, ou do movimento conservador religioso, para fora de Washington e

do Escritório Oval e ir às raízes: comissões escolares, comitês municipais,

comissões estaduais, e assim por diante”. 1 Como Paul Weyrich o expressou, “a

única maneira de se tomar Washington é tomando a área rural”. 2

Antes de terminar a noite, Robertson havia convidado Reed para ser o líder no

estabelecimento de uma nova organização que substituiria a Maioria Moral e

também mudaria o enfoque da política da direita cristã: em vez de eleger

presidentes, eleger membros de comissões estaduais e de comissões escolares. O

resultado foi a Coalizão Cristã, que sem dúvida foi a mais bem-sucedida

organização política da direita cristã durante a última década do século 20 e que

139


continua a ter influência significativa na política religiosa conservadora no início do

século 21.

A Coalizão Cristã

Poucas pessoas hoje estão cientes de que a Coalizão Cristã começou como

algo muito, muito pequeno. Robertson conseguiu com vários doadores a soma

inicial de mil dólares, e Reed pagou com seu próprio cartão de crédito os primeiros

telefones da organização. O esforço inicial deles foi enviar por mala direta uma

mensagem a todos os que haviam doado para a campanha presidencial de

Robertson. Reed levou as cartas para seu grupo de estudo bíblico das quartas-feiras

à noite, e, após a reunião, as pessoas permaneceram lá e ajudaram a colocar as

cartas nos envelopes e selá-los.

À medida que o dinheiro entrava, eles passaram a colocar anúncios de página

inteira no New York Times, Washington Post e USA Today, exigindo que o Congresso

aprovasse leis impedindo a National Endowment for the Arts de usar dinheiro

federal para apoiar a pornografia e outras obras de arte que fossem ofensivas a seu

eleitorado religiosamente conservador. “Se vocês continuarem a votar a favor

dessas coisas”, os anúncios advertiam os representantes do Congresso, “terão de se

ver com os eleitores em novembro de 1992.” 3

Reed também viajou pelo país, estabelecendo grupos de ação política e dando

treinamento às pessoas sobre como se envolver na política local. E funcionou. Um

militante político da direita cristã expressou o resultado nas seguintes palavras:

“Havia pessoas por toda o país que haviam estado politicamente envolvidas pela

primeira vez [na campanha presidencial de Robertson], e haviam sido picadas pelo

inseto da política. Desejavam continuar.” 4 Paul Weyrich resumiu a abordagem de

Robertson e Reed:

Eles aprenderam o que todos esses outros líderes [da direita cristã]

nunca compreenderam, isto é: se você deseja ter influência sobre a

política neste país, então eleja pessoas em nível local. Faça o movimento

crescer de baixo para cima. Não se preocupe com a presidência; a

presidência cuidará de si mesma no devido tempo.

Robertson e Reed, segundo ele, “levaram a sério minha recomendação de que

deviam primeiro ser ativos na política local”. 5

140


No final de 1991, a Coalizão Cristã já havia alistado mais de 82 mil membros.

Pouco depois disso, veio seu primeiro grande teste político. George H. W. Bush

havia nomeado o politicamente conservador Clarence Thomas, um juiz negro,

para substituir o presidente da Suprema Corte, Thurgood Marshall, também um

negro, que estava se aposentando. A mídia da esquerda e os políticos liberais

ficaram horrorizados, não porque Thomas fosse negro, mas por causa de seu

conservadorismo político. Eles fizeram todos os esforços possíveis para garantir

que ele não fosse confirmado. Mas a Coalizão Cristã também estava fazendo todos

os esforços possíveis para garantir que ele fosse confirmado. Guy Rogers,

assistente de Ralph Reed, resumiu o que foi realizado por eles:

Sabíamos que a votação [sobre Thomas] ia ser muito apertada;

portanto fizemos o que faria qualquer boa organização levada avante pelo

povo. Identificamos [os senadores] que achávamos que ainda estavam

indecisos e mobilizamos nosso pessoal nesses estados para que fizessem

ligações telefônicas. Fizemos dezenas de milhares de ligações, e

realizamos o tipo certo de ligação. Quando Thomas foi confirmado, isso

realmente impressionou nosso povo. Eles compreenderam que quando

lhes dissemos: “É assim que se faz”, estávamos dizendo: “Vocês têm ideias

a respeito disto. Agora podem fazer alguma coisa. A voz de vocês não será

uma voz clamando no deserto; será uma voz coletiva que soará muito alto

na Colina do Capitólio.” O juiz Thomas foi alvo de uma tremenda

campanha difamatória por parte dos liberais. Não perceberam que ali

havia um gigante adormecido que tomaria esse homem como seu

paladino. 6

A direita cristã estava aprendendo que podia ganhar em nível nacional atuando

em nível local.

O próximo grande desafio para a Coalizão Cristã veio em 1992, o ano em que

George H. W. Bush iria se candidatar à reeleição. Embora Bush tivesse deixado de

cumprir os interesses conservadores da direita cristã, estes compreenderam que

ele ganharia a nomeação na convenção republicana. Bush também era preferível

ao candidato democrata, Bill Clinton. Assim, os conservadores religiosos, em vez

de tentarem conseguir a nomeação de um candidato mais conservador, passaram

a colocar na plataforma republicana questões conservadoras, como a questão

antiaborto.

Reed fez um apelo apaixonado à comissão da plataforma do partido,

advertindo-os de que eles perderiam os votos dos conservadores religiosos a menos

141


que incluíssem linguagem pró-família na plataforma republicana. Vários

conservadores fizeram discursos durante a convenção, inclusive Pat Robertson e

Pat Buchanan. Este, em especial, fez um discurso militante no qual advertiu:

Há uma guerra religiosa em andamento neste país. É uma guerra

cultural tão importante para o tipo de nação que seremos como a própria

Guerra Fria. Essa guerra é pela alma dos Estados Unidos. E nessa guerra

pela alma do país, Clinton e Clinton estão do outro lado, e George Bush está

do nosso lado. 7

Os republicanos liberais ficaram horrorizados com o discurso de Buchanan.

Contudo, as pesquisas do dia seguinte refletiram o impacto que ele causou. Como

geralmente é o caso durante as convenções políticas, a posição do candidato

presidencial cresce a cada dia. No caso de Bush, o maior aumento veio no dia

seguinte aos discursos de Robertson e Buchanan.

Infelizmente para Bush, não foi suficiente. Na eleição de novembro, ele

perdeu para Bill Clinton, que se sentaria no Escritório Oval pelos próximos oito

anos. Entretanto, mesmo nas más notícias os conservadores viram algo de bom.

Guy Rogers, assistente de Ralph Reed, disse:

O que o povo norte-americano não sabe é que, pela primeira vez na

história deste país, acabaram de eleger para a presidência um liberal que é

a favor do aborto e dos direitos homossexuais. Agora vocês terão uma

amostra do liberalismo moderno, e todo mundo vai poder vê-lo de uma

forma em que não o haviam visto antes.

Outro militante da direita cristã observou: “Que maneira melhor há de

galvanizar suas tropas do que ter Bill Clinton para lutar contra?” 8

Os novos vencedores

Desse ponto em diante, graças, em grande parte, às habilidades políticas de

Ralph Reed, os conservadores religiosos começaram a ganhar eleições no país

inteiro. Uma das primeiras foi uma eleição especial na qual Paul Coverdale se

tornou o segundo senador republicano a representar a Geórgia no Congresso Norte-

Americano desde a Reconstrução (1865-1877), período que ocorreu após a Guerra

142


Civil. A Coalizão Cristã arregimentou suas tropas na Geórgia para distribuir mais de

um milhão de guias para eleitores e para telefonar a todas as pessoas que

constavam em seu cadastro como eleitores da ala conservadora. Coverdale ganhou

a eleição.

No entanto, o verdadeiro sucesso das forças da Coalizão Cristã e da direita

cristã veio nas eleições intermediárias, 9 em novembro de 1994. Embora seja

comum que o partido que está na Casa Branca perca força no Congresso nas

eleições intermediárias, a eleição de 1994 foi um desastre absoluto para os

democratas. Como observei em um capítulo anterior, os democratas perderam oito

cadeiras no Senado, dando aos republicanos uma maioria de quatro cadeiras, e na

Câmara Federal perderam 44 cadeiras, dando aos republicanos uma maioria de 26

cadeiras! O Partido Republicano também elegeu onze governadores e 472

deputados estaduais em todo o país. E há claras evidências de que a Coalizão Cristã

teve grande influência no sucesso republicano. Dos eleitos, 26 senadores e 114

deputados federais haviam recebido nota máxima no Cartão de Avaliação dos

Congressistas publicado pela Coalizão Cristã, ou eram novatos que haviam recebido

forte aprovação da Coalizão. 10

Os especialistas políticos em toda parte, muitos dos quais haviam predito a

extinção da direita política cinco anos antes, agora reconheciam seu poder. Seis

meses após a eleição de 1994, a revista Time publicou uma matéria de capa com

Ralph Reed, acompanhada das palavras: “A Mão Direita de Deus: Conheça Ralph

Reed. Sua Coalizão Cristã está numa cruzada para assumir a política dos Estados

Unidos – e está funcionando”. 11 O artigo descrevia a Coalizão Cristã como

“formidável”, e “uma das mais poderosas organizações populares da política

norte-americana”. 12 O artigo citou as seguintes palavras do principal estrategista

de Bob Dole, William Lacy: “Sem ter o apoio significativo da direita cristã, um

republicano não pode conseguir tornar-se candidato ou ganhar a eleição geral.” 13

A Time concluiu seu artigo com a declaração de que “a direita cristã está se

movendo em direção ao palco central na vida secular norte-americana”. 14 Os

conservadores religiosos estavam finalmente obtendo a atenção – e o respeito

forçado – da imprensa secular liberal!

Um grupo de deputados federais conservadores conseguiu deixar irado o

público norte-americano durante seus primeiros dois anos de mandato ao manter

refém de suas estreitas exigências o orçamento federal de 1996 de Bill Clinton, e

muitos deles não foram reeleitos em 1996. O apagado Bob Dole foi o oponente de

Clinton em 1996, e Clinton ganhou novamente. Contudo, durante o resto da década

de 1990 os republicanos permaneceram no controle de ambas as casas do

Congresso dos Estados Unidos.

143


Provavelmente nenhum norte-americano se esquecerá tão cedo da eleição

presidencial de 2000, quando a disputa entre George W. Bush (o filho do expresidente

George H. W. Bush) e Al Gore foi finalmente resolvida pela Suprema

Corte em favor de Bush. O significado da presidência de Bush é que ele foi o

primeiro presidente a tratar os conservadores religiosos como seu eleitorado

principal, a quem tinha de agradar acima de todos os demais. Embora isso não

receba grande destaque da imprensa, não é segredo para os conhecedores da

política que Bush consultava semanalmente os conservadores, tanto católicos

quanto protestantes, seja em pessoa ou por meio de seus conselheiros. Durante seu

mandato, Bush promoveu vários temas que são estimados pela direita cristã,

incluindo uma emenda na Constituição dos Estados Unidos relativa ao casamento, a

oração nas escolas, a dispensa de impostos educacionais 15 para alunos de escolas

confessionais e a limitação do aborto.

Porém, a contribuição mais duradoura de Bush para a causa da direita cristã

foi sem dúvida as duas nomeações que ele fez para a Suprema Corte durante seu

segundo mandato: John Roberts no lugar de William Rehnquist, que falecera; e

Samuel Alito no lugar de Sandra Day O’Connor, que se aposentara. Tanto Roberts

quanto Alito são conservadores e católicos. Com a nomeação deles, cinco dos nove

juízes da Suprema Corte são católicos. Creio que a nomeação desses dois católicos

por Bush não foi acidental. O lobby católico nos Estados Unidos é muito forte, e os

protestantes da direita cristã hoje veem os católicos como aliados na guerra

cultural norte- americana. Assim, a nomeação de dois católicos por Bush deixou

ambos os lados muito felizes.

Mas o que tudo isso tem a ver com a profecia bíblica? Continue lendo!

1 William Martin, With God on Our Side: The Rise of the Religious Right in

America (Nova York: Broadway Books, 1996), p. 300.

2 Ibid., p. 331.

3 Ibid., p. 304.

4 Dick Weinhold, citado em ibid., p. 306.

5 Martin, With God on Our Side, p. 308.

144


6 Ibid., p. 317.

7 Ibid., p. 325.

8 Ibid., p. 329.

9 Eleições que não coincidem com a eleição presidencial (N. da T.).

10 Martin, With God on Our Side, p. 339, 340.

11 Jeffrey H. Birnbaum, “The Gospel According to Ralph”, Time, 15 de maio

de 1995, p. 1.

12 Ibid., p. 28, 30.

13 Ibid., p. 30.

14 Ibid., p. 35.

15 Normalmente os cidadãos que pagam escolas particulares têm de também

pagar os impostos relativos à educação pública (N. da T.).

145


M

encionei no capítulo 10 que, quando John F. Kennedy estava

concorrendo à presidência em 1960, enfrentou a Associação Ministerial

de Houston em setembro daquele ano para defender o que pensava

sobre a separação entre igreja e Estado. “Creio”, disse Kennedy, “em um país

onde a separação entre igreja e Estado seja absoluta, onde nenhum prelado

católico diria ao presidente (caso ele seja católico) como agir, e nenhum ministro

protestante diria aos membros de sua igreja em quem votar.” 1 Mas observe o

seguinte, porque isto é extremamente importante: ao dizer essa frase, Kennedy, um

católico, foi contra o ensino de sua própria igreja. Na verdade, alguns católicos

ficaram bastante descontentes com ele por suas palavras. Mas Kennedy sabia que

estava enfrentando um grande eleitorado protestante – especialmente batistas do

Sul e carismáticos – que temia que seu catolicismo fizesse com que ele, como

presidente, comprometesse a separação entre igreja e Estado. Assim, Kennedy

não teve escolha a não ser fazer essa ousada declaração.

No entanto, os batistas do Sul e os carismáticos dos Estados Unidos deram uma

meia-volta. Esses mesmos grupos estão agora na vanguarda da batalha contra a

separação entre igreja e Estado. Nos parágrafos seguintes, citarei algumas de suas

declarações mais enfáticas.

Pat Robertson: “Eles [os liberais e secularistas] nos têm mantido

submissos porque falam sobre a separação entre igreja e Estado. Não

existe isso na Constituição. É uma mentira da esquerda, e não vamos mais

tolerá-la.” 2

“Foi-nos imposta uma distorção nos últimos anos pelos esquerdistas que têm se

146


prendido ao sistema judiciário. E nos tem sido imposta uma mentira de que há,

incrustado na Constituição, algo chamado separação entre igreja e Estado.” 3

“[As cortes] estão tirando de nós nossa religião sob o disfarce de

separação entre igreja e Estado.” 4

Herry Falwell: “A separação entre igreja e Estado tem sido há muito

tempo, o grito de batalha dos libertários civis que desejam purgar nossa

gloriosa herança cristã da história de nossa nação. O termo, é claro, não

aparece uma única vez em nossa Constituição e é uma moderna

maquinação discriminatória.” 5

W. A. Criswell, ex-pastor titular da Primeira Igreja Batista de Dallas:

“Não existe algo como separação entre igreja e Estado. É meramente

uma ficção imaginária dos incrédulos.” 6

D. James Kennedy, pastor presbiteriano em Fort Lauderdale, Flórida:

“Se estamos dedicados a levar de volta a nação aos valores morais

cristãos, e estamos envolvidos nisso, não há dúvida de que podemos

testemunhar a queda, não só do muro de Berlim, mas do ainda mais

diabólico ‘muro de separação’ que tem levado à secularização, impiedade,

imoralidade e corrupção em nosso país.” 7

Francis Schaeffer, preeminente filósofo cristão do final do século 20,

escreveu: “Hoje a separação entre igreja e Estado nos Estados Unidos é

usada para silenciar a igreja.” 8

Os líderes religiosos não são os únicos a liderar o ataque à separação entre

igreja e Estado. Note os seguintes exemplos:

William Rehnquist, ex-juiz associado da Suprema Corte dos Estados

Unidos. Serviu como presidente da Suprema Corte de 1986 a 2005:

“O ‘muro de separação entre a igreja e o Estado’ é uma metáfora baseada

numa interpretação errada da história, uma metáfora que se tem

demonstrado inútil como diretriz para a tarefa de julgar. Deve ser franca e

explicitamente abandonada.” 9

Antonin Scalia, juiz associado da Suprema Corte dos Estados Unidos: o

site TheocracyWatch chama a atenção para um discurso feito por Scalia

em 12 de janeiro de 2003, num evento alusivo ao Dia da Liberdade

147


Religiosa, no qual ele disse que o princípio da separação entre igreja e

Estado não estava embutido na Constituição e, portanto, devia ser

acrescentado democraticamente, o que significa por meio de uma

emenda constitucional. O site observa, corretamente, que uma emenda à

Constituição sobre a separação entre igreja e Estado seria impossível de

ser alcançada no atual clima político e, portanto, o argumento é destituído

de sentido. 10

Tom DeLay, ex-líder da maioria na Câmara Federal, em um discurso

no salão da Câmara: “Afirmar que nossos Pais Fundadores [os fundadores

dos Estados Unidos] eram a favor da separação entre igreja e Estado é

reescrever a história, ou é ser muito ignorante sobre ela.” 11

Jay Alan Seculow, conselheiro-chefe do American Center for Law

and Justice: “Estou farto dos infames ataques da União Norte-Americana

pelas Liberdades Civis à herança religiosa de nossa nação e a nosso direito

de expressar publicamente nossa fé. [...] O frustrante sobre isso é que todo

o argumento deles está baseado no princípio totalmente falso da

‘separação entre igreja e Estado’. [...] Não há nenhum ‘muro’ de

separação!”

“O fato é que a frase ‘separação entre igreja e Estado’ não se encontra

na Constituição dos Estados Unidos, que forma a estrutura de nossa

liberdade. [...] Demasiadas vezes se permite que a frase ‘separação entre

igreja e Estado’ tome o lugar de nossas verdadeiras provisões

constitucionais.” 12

Esses líderes da direita política e religiosa afirmam que a separação entre

igreja e Estado é uma mentira da esquerda radical. Afirmam que os defensores do

Estado laico o tomaram emprestado da Constituição da União Soviética e o

impuseram aos norte-americanos. Será que eles têm amnésia? Será que se

esqueceram do que os líderes religiosos conservadores exigiram de John F.

Kennedy quando estava concorrendo à presidência?

A verdade é que a separação entre igreja e Estado tem sido um princípio da

legislação e jurisprudência norte-americana desde a fundação do país. Os adeptos

da direita cristã radical é que são os revisionistas radicais. Em 1960, os batistas do

Sul eram alguns dos mais fortes defensores da separação entre igreja e Estado.

Hoje, os batistas do Sul conservadores estão na vanguarda da oposição à separação

entre igreja e Estado. E muitos dos líderes evangélicos e fundamentalistas dos

Estados Unidos são tão diametralmente opostos à separação entre igreja e Estado

148


que estão lutando para vê-la derrotada.

Por que a mudança

O que aconteceu? O que causou essa dramática mudança em tão curto período

de tempo? Vários fatores são responsáveis por isso. Mencionarei três, mas tenho

certeza de que há outros.

O secularismo versus o cristianismo conservador. Os Estados Unidos sempre

foram uma nação formada tanto por pessoas religiosas quanto por pessoas

secularizadas, que têm se dado bem umas com as outras apesar de suas diferenças

religiosas e espirituais. Contudo, uma mudança significativa no equilíbrio de poder

ocorreu durante o século 20. Por um lado, o secularismo ganhou em grande parte o

controle das principais instituições da nação, inclusive a educação, o

entretenimento e a mídia eletrônica e impressa. Por outro lado, como mostrei no

capítulo 12, uma grande proporção do povo norte-americano aceitou a religião

conservadora com seus valores morais conservadores.

Um choque entre essas duas forças culturais era inevitável. Ele começou com

os ativistas políticos conservadores. Na década de 1970, esses ativistas, que eram

em grande parte não religiosos, estavam procurando blocos significativos de

pessoas no país que pudessem estar dispostas a se unir a eles em seus esforços para

obter domínio político sobre o governo norte-americano. Os cristãos

conservadores, que nos cinquenta anos anteriores haviam evitado o envolvimento

político e cujos números haviam estado crescendo rapidamente, estavam prontos

para ser colhidos. Só foi preciso um pouco de persuasão para ganhar Jerry Falwell,

Pat Robertson e outros da direita cristã.

Se esses cristãos conservadores tivessem adotado os interesses dos

conservadores não religiosos, a separação entre igreja e Estado não teria sido

ameaçada, pois, como observei no capítulo 10, a versão norte-americana da

separação entre igreja e Estado é resultado de uma mistura singular entre o

religioso e o laico. Contudo, os cristãos conservadores levaram todo o movimento

conservador para uma direção significativamente diferente. Querem que o

governo norte-americano e suas principais instituições sejam controladas por mais

do que uma filosofia política conservadora. O objetivo deles é um interesse

religioso conservador. D. James Kennedy afirmou:

Nossa tarefa é recuperar os Estados Unidos para Cristo, qualquer que

seja o custo. Como os representantes de Deus, devemos exercer domínio e

influência piedosos sobre nossa vizinhança, nossas escolas, nosso governo,

nossa literatura e arte, nossos ginásios esportivos, nossa mídia de

entretenimento, nossa mídia de notícias, nossos esforços científicos – em

149


resumo, sobre todos os aspectos e instituições da sociedade humana. 13

A separação entre igreja e Estado é especialmente ameaçada pelo esforço da

direita cristã de “exercer domínio e influência piedosos sobre [...] nosso governo”.

A legislação de direitos civis das décadas de 1950 e 1960, que à primeira vista

parece não ter relação nenhuma com a separação entre igreja e Estado, na

verdade contribuiu significativamente para a mudança de atitude da direita cristã

em relação a esse princípio. Vejamos o porquê.

Durante o século 19 e grande parte do 20, o apoio protestante à separação

entre igreja e Estado incluía a recusa de destinar fundos do governo para a

educação religiosa confessional, que era em grande parte católica na época. Os

católicos haviam estabelecido seu sistema de escolas para que seus filhos não

fossem expostos ao protestantismo que tendia a permear a educação pública. Eles

objetaram (corretamente) que estavam sendo forçados a pagar duas vezes pela

educação de seus filhos: uma vez através dos impostos que mantinham as escolas

públicas, e uma segunda vez através do estipêndio e dos subsídios que tinham de

pagar para manter suas próprias escolas confessionais. Os protestantes

responderam que esse era o preço que as igrejas que mantinham escolas

confessionais tinham de pagar para que o país mantivesse a separação entre igreja

e Estado. Os protestantes acharam fácil dizer isso, porque não possuíam muitas

escolas confessionais.

Então veio a legislação de direitos civis das décadas de 1950 e 1960, e as

decisões da Suprema Corte que exigiam a integração das escolas públicas, mesmo

que significassem que os estudantes tivessem de ir de ônibus de uma parte da

cidade para outra. E os pais de etnia branca ficaram furiosos! Eles não queriam

que seus filhos tivessem de sair de ônibus de seus distritos escolares só para

alcançar equilíbrio racial. Os brancos do Sul, que ainda mantinham muitos de seus

preconceitos contra os negros, ficaram particularmente irados. O resultado foi um

movimento difundido de escolas confessionais entre os protestantes evangélicos. As

igrejas em toda parte começaram a estabelecer suas próprias escolas. Essas

escolas forneciam dois benefícios: conservavam as crianças perto de casa e

tornavam possível que as crianças estudassem em suas escolas a Bíblia e os

conceitos bíblicos da criação, da sexualidade humana e outras questões morais.

De repente, o sapato estava no outro pé. Agora os protestantes conservadores

começaram a compreender o embaraço financeiro de pagar duas vezes pela

educação de seus filhos, 14 e o argumento da separação entre igreja e Estado,

contra o uso de fundos públicos para a educação confessional, perdeu seu brilho.

Esse é um importante fator na meia-volta dos conservadores protestantes sobre a

150


separação entre igreja e Estado.

Decisões da Suprema Corte. Várias decisões da Suprema Corte dos Estados

Unidos durante a segunda metade do século 20, e uma decisão do Tribunal de

Justiça de Massachusetts, também tiveram uma poderosa influência sobre a atitude

da direita cristã quanto à separação entre igreja e Estado. A primeira, no caso

Everson versus Secretaria de Educação, foi dada pela Suprema Corte no início de

1947. Uma frase nessa decisão deixou especialmente irados os conservadores da

direita cristã. O juiz Hugo Black, escrevendo para a maioria, disse: “Nas palavras

de [Thomas] Jefferson, a cláusula contra o estabelecimento da religião por lei tinha

a intenção de erigir um muro de separação entre a igreja e o Estado.” Os

conservadores religiosos responderam veementemente: “Não há muro de

separação!”

Duas decisões da Suprema Corte no início da década de 1960 também

irritaram os conservadores religiosos: uma em 1962, que proíbe a oração nas

escolas públicas que seja promovida pela própria escola, 15 e outra em 1963, que

proíbe a leitura da Bíblia em escolas públicas por ordem do estado. 16 Ralph Reed,

o diretor executivo da Coalizão Cristã, chamou a sentença judicial sobre oração nas

escolas de “uma tentativa nacional de busca e destruição de práticas religiosas para

os estudantes”. 17 Duas outras decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos que

deixou irada a direita cristã foram em relação ao caso Roe versus Wade em 1973,

que permite às mulheres o direito de fazer aborto, e uma decisão em 2003, que

descriminalizou a intimidade homossexual entre adultos que nela participassem por

livre consentimento. 18 Finalmente, há a decisão da Suprema Corte estadual de

Massachusetts em 2004, que permite o casamento entre homossexuais. 19 Roberta

Combs, a presidente da Coalizão Cristã, chamou essa decisão de “repreensível” e

de “um desrespeito à vontade da esmagadora maioria do povo norte-americano,

que acredita ser o casamento uma união apenas entre um homem e

uma mulher”. 20

Essas decisões da Suprema Corte elevaram a ira da direita cristã contra a

separação entre igreja e Estado a um estado de ebulição. 21 Os processos de

Michael Newdow contra as palavras “sob Deus” no Juramento de Lealdade ao país

e às palavras “Em Deus confiamos” no dinheiro norte-americano só

intensificaram os temores dos ativistas da direita cristã de que, em nome da

separação entre igreja e Estado, a Suprema Corte também baniria do setor público

esses símbolos da religião civil.

151


A solução da direita cristã

A solução da direita cristã para essas decisões da Suprema Corte é

preocupante. Permita-me apresentar-lhe algumas evidências.

Os conservadores religiosos acusam os chamados “juízes ativistas” da

Suprema Corte, e de certas cortes inferiores, de “legislar para fora dos tribunais” e

ignorar o intento original que estava na mente dos fundadores da república norteamericana

quando escreveram a Constituição. De acordo com Mark Levin em seu

livro Men in Black [Homens de Preto],

os ativistas judiciais não são nada menos que radicais de toga – que

desdenham a norma da lei, subvertendo a Constituição segundo seu desejo,

e usando a confiança pública para impor à sociedade suas preferências

sobre como esta deve ser governada. Na verdade, nenhum movimento

político radical tem sido mais eficiente em minar nosso sistema de

governo que o judiciário. 22

Essa é uma declaração e tanto! Mas Levin não é o único a atacar as cortes.

Em 14 de março de 2006, recebi o e-mail de uma organização chamada

ConservativeAlerts.com [Alertas Conservadores]. O e-mail tinha como título:

“Altos crimes e contravenções: os juízes ativistas precisam ser removidos agora!”

Passava, então, a acusar os liberais de “subverterem a Constituição, carregando as

cortes federais com adeptos da ideologia liberal”, e prosseguia com exemplos de

“alguns dos magistrados mais afrontosos e suas incríveis decisões”.

Em seu programa de televisão 700 Club [Clube dos 700], Pat Robertson

declarou: “O fato de que [as cortes] estão tentando ignorar a herança religiosa

deste país é simplesmente horrível. Estão tirando de nós nossa religião sob o

disfarce de separação entre igreja e Estado. Nunca houve qualquer intenção de

que nosso governo fosse separado do Deus Todo-Poderoso. Nunca, nunca, nunca

na história desta nação os fundadores deste país, ou os que vieram depois deles,

pensaram que esse fosse o caso.” 23

Segundo Tony Perkins, presidente e diretor geral do Family Research Council

[Conselho de Pesquisas sobre a Família] de Washington, DC, a Suprema Corte

“tem se tornado cada vez mais hostil ao cristianismo. Ela representa uma ameaça

maior ao governo representativo do que qualquer outra força – mais do que déficits

orçamentários, mais do que o terrorismo”. 24 E Donald Wildmon, fundador e

presidente da American Family Association [Associação Norte-Americana para a

152


Família], diz: “Grupos antioração e anticristãos – como a ACLU [União Norte-

Americana pelas Liberdades Civis] e Norte-Americanos Unidos para a Separação

entre Igreja e Estado – uniram-se em cooperação com os juízes liberais da

Suprema Corte dos Estados Unidos e estão removendo nossa liberdade

religiosa.” 25

Em 29 de março de 2005, recebi um e-mail da Conservative Petitions

[Petições Conservadoras] me convidando para uma conferência nos dias 7 e 8 de

abril, intitulada “Confrontando a Guerra Judicial contra a Fé”. William Greene,

presidente da RightMarch.com e patrocinador da conferência, afirmava no e-mail

que “os juízes ativistas estão minando a democracia, devastando famílias e

atacando a moralidade judaico-cristã”. Ele concluía o e-mail dizendo: “Essa será

uma conferência voltada para a ação que buscará um esforço amplo para salvar

os Estados Unidos dos juízes.”

Até o presidente George W. Bush fez uma declaração enfática sobre o

judiciário: “Precisamos de juízes que tenham bom senso e que entendam que

nossos direitos são derivados de Deus. Esse é o tipo de juiz que pretendo colocar no

exercício da magistratura.” 26 Ele teve sua chance em 2005, o que elevou a

retórica da direita cristã a um estridente grito de guerra. Em uma reportagem

sobre a situação, Debra Rosenberg, da Newsweek, escreveu: “Ultimamente a

animosidade [contra os juízes tem] alcançado um estado de ebulição.” Com a

especulação, na época, sobre uma possível cadeira vaga na Suprema Corte (e, no

final, houve duas), Rosenberg disse: “As apostas e os ataques verbais estão mais

acirrados que nunca.” 27 As tensões contra a Suprema Corte aumentaram e alguns

magistrados receberam ameaças de morte, o que os levou a solicitar à agência de

policiamento norte-americano Marshals Services um reforço na segurança. 28

O ministério Focus on the Family [Enfoque na Família], de James Dobson,

comparou os magistrados de toga preta da Suprema Corte aos membros de túnica

branca da Ku Klux Klan. 29 Em um discurso gravado para uma conferência da

direita cristã em Washington, DC, que tinha o objetivo de se livrar dos “juízes

renegados que ultrapassam sua autoridade constitucional”, o líder da maioria no

Senado, Tom DeLay, reclamou de “um judiciário que se comporta de maneira

ultrajante”. Ele acrescentou que o Congresso precisa “reafirmar nossa autoridade

constitucional sobre as cortes”. 30

Na mesma conferência, Edwin Vieira, autor do livro How to Dethrone the

Imperial Judiciary [Como Destronar o Judiciário Imperial], disse: “O maior dos

tolos na Suprema Corte decide a questão e então, de acordo com eles, todas as

demais pessoas do mundo precisam obedecer a essa decisão.” Vieira também

153


criticou a corte por promover o “Marxismo-Leninismo-Stalinismo”. 31 A

conferência terminou com um ataque à separação entre igreja e Estado como

“uma frase que não se encontra na Constituição e um conceito alheio à lei

constitucional antes de 1947”. 32

Uma carta destinada ao levantamento de fundos que recebi de Jerry Falwell

reclamava sobre “cortes liberais descontroladas”. Roberta Combs, da Coalizão

Cristã, afirmou: “O ramo [do governo] que os Pais Fundadores tencionavam que

fosse o mais fraco dos três tem estado ditando para o povo norte-americano, há

décadas, o que eles acham que é melhor para este povo.” 33 Em outra carta

destinada ao levantamento de fundos, que recebi pouco após o falecimento de Terri

Schiavo, Combs disse que a morte de Schiavo “concentrou a atenção nacional na

ameaça à vida e à liberdade que juízes federais fora de controle

podem representar”.

Os ativistas da direita cristã têm proposto vários métodos radicais para

“refrear” as cortes e seus magistrados “fora de controle”. Uma é o de juízes cujas

decisões eles não apreciarem. Outra é dar ao Congresso autoridade para derrubar

qualquer decisão de uma corte federal por dois terços dos votos, mais o voto de

dois terços das assembleias legislativas estaduais. Uma terceira sugestão é que o

Congresso limite as verbas para as cortes. Uma quarta é que o Congresso aprove

uma lei negando às cortes federais o direito de ouvir certos tipos de casos,

especialmente casos religiosos. 34 Por exemplo, D. James Kennedy, pastor

presbiteriano em Fort Lauderdale, Flórida, exigiu que as cortes fossem impedidas

de tomar decisões sobre “quaisquer assuntos pertencentes a Deus”. 35 Essa

“solução”, é claro, tornaria nula a Primeira Emenda da Constituição.

O que tudo isso significa

É importante refletir na implicação de toda essa retórica hostil da direita cristã

contra as cortes norte-americanas, e especialmente contra a Suprema Corte. As

palavras têm poder, e à medida que se multiplicam as vozes que as pronunciam,

essas palavras se traduzem numa onda de poder político que ameaça invadir a

paisagem política norte-americana e destruir muitas de nossas liberdades mais

básicas.

Por mais de 225 anos a Suprema Corte tem sido a guardiã da liberdade

religiosa norte-americana. A direita cristã afirma que as cortes estão destituindo a

nação de sua liberdade religiosa porque impedem que o Congresso e as várias

assembleias legislativas estaduais promulguem leis de acordo com a visão religiosa

e moral da direita cristã. Infelizmente, se a direita cristã conseguir o que quer, a

154


proteção da Primeira Emenda contra leis religiosas será apenas uma vaga

lembrança, e todos os tipos de iniciativas religiosas se tornarão a lei da nação.

Por mais de cem anos os adventistas do sétimo dia têm ocupado a vanguarda

no esforço de preservar a liberdade religiosa nos Estados Unidos. Nossa motivação

tem sido uma compreensão singular sobre a besta da terra de Apocalipse 13, que

cremos representar os Estados Unidos da América. Essa besta, que parece bondosa

quando surge da terra – tem “dois chifres, parecendo cordeiro” (v. 11) – falará,

contudo, “como dragão”. O verso 15 diz que a besta da terra fará “morrer quantos

não adorassem a imagem da besta”. Também exigirá que todos os seres humanos

recebam uma marca de lealdade na testa ou na mão, e aqueles que se recusarem

a isto serão sujeitos a um boicote econômico – isto é, lhes será negado o direito de

comprar ou vender (v. 16, 17). E a ameaça máxima na exigência de conformidade

religiosa será a morte.

Será que isso pode realmente acontecer?

Cem anos atrás nossos críticos não adventistas afirmavam que para que os

Estados Unidos renunciassem a seu histórico apoio à liberdade religiosa seria

preciso acontecer “um milagre maior do que Deus fazer crescer um carvalho

gigante num instante”. 36 Mas os conservadores religiosos obtiveram tremendo

poder político nos Estados Unidos durante os últimos 25 anos do século 20 e os

primeiros anos do século 21. Pat Robertson afirma: “Desejamos liberdade neste

país, e desejamos poder.” Ele queria dizer que os conservadores da direita cristã

desejam liberdade e poder para transformar seu tipo de religião em lei. Creio que

a afirmação de que a atual exigência por parte dos conservadores da direita cristã

norte-americana de anular a separação entre igreja e Estado e destituir a Suprema

Corte de sua autoridade para considerar casos que tratem de religião está levando

este país em direção a um direto cumprimento da interpretação adventista da

intolerante besta da terra de Apocalipse 13.

Estou certo de que há aqueles que irão argumentar que a interpretação

adventista de Apocalipse 13 é incorreta. Porém, diante dos eventos atuais, já não

podem argumentar que ela é irrealista.

1 Citado em George J. Marlin, The American Catholic Voter: 200 Years of

Political Impact (South Bend: St. Augustine’s Press, 2004), p. 254.

155


2 De um discurso de Pat Robertson feito em novembro de 1993, citado em

Anti-Defamation League, The Religious Right: The Assault on Tolerance and

Pluralism in America (Nova York: Anti- Defamation League, 1994), p. 4.

3 Pat Robertson em 12 de outubro de 2002, na Conferência “Caminho para a

Vitória” da Coalizão Cristã; citado no site de Americans United for Separation of

Church and State, “They Said It! Religious Right Leaders in Their Own Words”,

http://www.au.org/site/DocServer/They_Said_It.pdf?docID=221.

4 Pat Robertson em seu programa de televisão Clube dos 700, em 19 de julho

de 2005; citado por Rob Boston em “Religious Right Power Brokers: The Top Ten”,

Church and State, junho de 2006, p. 10.

5 Jerry Falwell, citado por Rob Boston em “Religious Right Power Brokers: The

Top Ten”, Church and State, junho de 2006, p. 14.

6 De uma entrevista da CBS de 6 de setembro de 1984, gravada um dia após

ele ter dado a bênção na Convenção Nacional Republicana, citado em Anti-

Defamation League, The Religious Right: The Assault on Tolerance and Pluralism in

America, p. 4.

p. 36.

7 Citado em “They Said It! Religious Right Leaders in Their Own Words”.

8 Francis A. Schaeffer, A Christian Manifesto (Westchester: Crossway, 1981),

9 William Rehnquist em Wallace v. Jaffree, 1984.

10 “Biblical Law”, http://www.theocracy watch.org/biblical_law2.htm.

11 Citado em Signswatch, Winter 2001, p. 3.

12 Ministry Magazine (não a adventista), outono de 2004; citado em “Religious

Right Power Brokers: The Top Ten”, p. 13.

13 Citado em The Rise of the Religious Right in the Republican Party, http://

www.theocracywatch.org; ênfase acrescentada.

14 Não é correto dizer que os pais que enviam os filhos para escolas

156


confessionais têm de pagar duas vezes pela educação de seus filhos. Todos pagam

os impostos que sustentam a educação pública, inclusive pessoas que não têm

filhos: solteiros, casais recém-casados, idosos, etc.

15 Caso Engel versus Vitale.

16 Caso Distrito Escolar de Abingdom versus Schempp.

17 Ralph Reed, Contract With the American Family (Nova York: Random

House, 1995), p. 6.

18 Caso Lawrence versus Texas.

19 Goodridge vs. Department of Public Health.

20 U.S. Newswire, “Christian Coalition Condemns Massachusetts Supreme

Court’s Approval of Homosexual Marriage”, http://releases.usnewswire.com/

GetRelease.asp?id=23507.

21 A decisão da Suprema Corte permitindo a intimidade homossexual entre

adultos que nela participassem por livre consentimento e a decisão da Corte de

Massachusetts que permitiu o casamento homossexual não são questões ligadas à

relação entre igreja e Estado, mas estavam entre uma série de decisões dos

tribunais americanos em anos recentes que deixaram irados os protestantes e

católicos da direita cristã que se opõem à separação entre igreja e Estado.

22 Mark R. Levin, Men in Black: How the Supreme Court is Destroying

America (Washington, DC: Regnery, 2005), p. 22.

23 Pat Robertson em seu programa de televisão Clube dos 700; citado por

Boston, “Religious Right Power Brokers: The Top Ten”, p. 10.

24 Jerry Falwell na conferência “Confrontando a Guerra Judicial Contra a Fé”,

7 de março de 2005; citado por Boston, p. 13.

25 Donald Wildman numa carta para levantamento de fundos no outono de

2000; citado por Boston, “Religious Right Power Brokers: The Top Ten”, p. 12.

26 Citado num e-mail que recebi de Lou Sheldon, cuja linha “assunto” dizia:

“Ajude a Tomarmos de Volta Nossas Cortes da Esquerda Anti-Deus”, e cujo título

157


dizia: “Nosso plano de batalha: tomar de volta nossas cortes”.

23.

27 Debra Rosenberg, “The War on Judges”, Newsweek, 25 de abril de 2005, p.

28 Ibid., p. 23, 24.

29 Ibid., p. 23.

30 Rob Boston, “Judge Not”, Liberty, setembro/outubro de 2005, p. 6, 22; pode

ser visto em http://www.liberty magazine.Org/article/articleview/519/l/85/.

31 Ibid.

32 Ibid.

33 Roberta Combs, em Washington Weekly Review, publicado por Christian

Coalition of America, 26 de março de 2005.

32, 33.

34 Boston, “Judge Not”, p. 6, 22.

35 Daniel Eisenberg, “The Posse in the Pulpit”, Time, 23 de maio de 2005, p.

36 Theodore Nelson na introdução do livro de Dudley M. Canright, Seventhday

Adventism Renounced (Nashville: Gospel Advocate Company, 1914), p. 23.

158


P

or favor, leia a citação seguinte, que é do Ato de Tolerância promulgado em

1649 por uma das treze colônias norte-americanas originais. Então, da lista

que se encontra abaixo da citação, selecione a colônia que você acha que

promulgou este generoso conceito de liberdade religiosa:

Sendo que o ato de forçar a consciência em assuntos de religião tem

frequentemente se demonstrado ser de consequências perigosas nas

comunidades onde tem sido praticado, seja, portanto, ordenado e

promulgado que nenhuma pessoa dentro desta província que professe crer

em Jesus Cristo será daqui por diante perturbada, molestada ou

envergonhada de qualquer forma por sua religião ou a respeito dela, nem

em seu livre exercício da mesma dentro desta província.

¨ Rhode Island

¨ Pensilvânia

¨ Nova York

¨ Maryland

¨ Virgínia

159


Agora, da lista na página seguinte, selecione o líder norte-americano que você

acha que fez esta declaração: “Tenho observado que, quando os ministros religiosos

deixam os deveres de sua profissão para tomar parte ativa em assuntos políticos,

geralmente caem em desprezo.” 1

¨ George Washington

¨ James Madison

¨ John Carroll

¨ Thomas Jefferson

¨ Cotton Mathers

Se você marcou Maryland para a primeira pergunta e John Carroll para a

segunda, acertou. Essa resposta é significativa, pois Maryland era

predominantemente uma colônia católica, e em 1789 o papa nomeou John Carroll

como bispo de Baltimore. Carroll tornou-se, assim, o primeiro bispo católico norteamericano.

Durante a maior parte do segundo milênio, a Igreja Católica havia

dominado a política europeia, e por muito tempo havia anunciado sua oposição à

separação entre igreja e Estado e à liberdade religiosa. Tendo em vista essa

história, o que motivou essas extraordinárias declarações feitas por católicos?

A resposta é simples. Os católicos eram uma pequena minoria religiosa no

início da história da nação – menos de 1% da população na época da Guerra da

Independência dos Estados Unidos (1775-1783). Muitos norte- americanos haviam

chegado ao Novo Mundo para escapar da perseguição católica. Assim sendo,

tinham forte preconceito contra os católicos, o que tornava extremamente difícil

para os membros dessa igreja encontrar verdadeira liberdade religiosa. Como

solução para esse problema, em 1649 Lorde Baltimore, um católico, estabeleceu

Maryland como uma colônia onde eram bem-vindas as pessoas de todas as

religiões, inclusive os católicos. O preconceito contra os católicos em todas as

colônias era ainda muito forte 140 anos depois, quando John Carroll se tornou o

bispo de Baltimore. Os católicos eram considerados um elemento estranho na terra

dos livres, o que explica o comentário de Carroll sobre a importância de os clérigos

se manterem fora da política.

O que os católicos deviam fazer diante desses fortes sentimentos anticatólicos?

160


Discutirei três estratégias que os líderes católicos adotaram.

“Somos norte-americanos!”

Carroll era o líder dos católicos norte-americanos nos anos que se seguiram

imediatamente à Guerra da Independência. Uma de suas estratégias primárias foi

disseminar um senso de que os católicos eram norte-americanos genuínos. Esse

era um grande desafio, porque todo o problema do preconceito anticatólico era a

ideia de que os membros dessa igreja, sendo sujeitos ao papa, não podiam ao

mesmo tempo ser súditos leais do governo dos Estados Unidos. As pessoas temiam

que, se tivessem a chance, os católicos tentariam transformar os Estados Unidos

em uma teocracia que fosse leal ao papa. Para mitigar esse temor, os católicos

norte-americanos tiveram de se distanciar da filosofia católica de união entre

igreja e Estado e adotar o espírito norte-americano de liberdade religiosa.

Outro líder católico que adotou essa política foi John England, que se tornou

bispo de Charleston, Carolina do Sul, em 1820. England “trabalhou de maneira

clara para comunicar a harmonia entre os princípios católicos e as bases

constitucionais do governo norte-americano”. 2 Ele citou a Primeira Emenda à

Constituição dos Estados Unidos no cabeçalho do primeiro número de seu boletim

eclesiástico Catholic Miscellany [Miscelânea Católica]. E a Carta Pastoral de 1837

dos líderes católicos norte-americanos, escrita por John England, fez uma

declaração notável: “Nós não reconhecemos qualquer supremacia ou poder civil

ou político sobre nós por parte de qualquer potentado estrangeiro, mesmo que esse

potentado seja o chefe-geral de nossa igreja.” 3

England tinha boas razões para desejar demonstrar ao público norteamericano

que os católicos eram leais ao governo dos Estados Unidos e não ao

papa. A imigração irlandesa para os Estados Unidos já estava começando na

década de 1830. Devido ao fato de que a maioria desses imigrantes era formada

por católicos, os protestantes se sentiram ameaçados, e logo se desenvolveu uma

forte reação militante anticatólica. Por exemplo, os católicos construíram um

convento de freiras ursulinas em Charlestown, Massachusetts, em 1817, com o

propósito de educar meninas entre seis e catorze anos. Tudo correu bem por mais

de 15 anos, mas em 1834 espalhou-se um boato de que as freiras estavam

maltratando suas alunas, e, em 14 de agosto, uma turba queimou completamente o

convento. As autoridades não intervieram. O bispo John England escreveu a

afirmação citada no parágrafo anterior três anos após o incidente.

Durante a segunda metade do século 19, a imigração católica proveniente da

Europa alcançou grandes proporções: não só vinda da Irlanda, mas também da

Alemanha, Polônia, Itália e partes católicas dos Bálcãs. Esse afluxo de católicos

161


provocou um forte movimento “nativista” entre os protestantes, os quais criam que

os católicos defendiam conceitos políticos que eram uma ameaça ao estilo de vida

norte-americano. Novamente, vários líderes católicos fizeram o máximo para

apresentar os católicos ao público como leais norte-americanos. 4 O arcebispo John

Ireland, da cidade de St. Paul, Minnesota, fez a seguinte declaração em 1884:

Não há conflito algum entre a Igreja Católica e os Estados Unidos. Eu

não poderia proferir uma sílaba sequer que caluniasse, ainda que

remotamente, a igreja ou a República, e quando afirmo, como

solenemente agora o faço, que os princípios da igreja estão em completa

harmonia com os interesses da República, sei, no fundo de minha alma,

que digo a verdade. 5

Essas são declarações notáveis, devido ao fato de que, durante o século 19 e

início do século 20, o papado condenou fortemente a forma democrática de

governo, como vimos no capítulo 7. Ratificar a experiência norte-americana com

a democracia foi uma das formas de os católicos tentarem apresentar a si mesmos

e sua igreja como verdadeiramente norte-americanos durante os primeiros 150

anos da história da nação.

Apoio às guerras norte-americanas

Historicamente, os católicos também tentaram se apresentar como leais

cidadãos dos Estados Unidos ao darem forte apoio aos esforços de guerra da

nação. John Carroll deu entusiástico apoio ao lado norte-americano na Guerra da

Independência, e durante a guerra de 1812 “foi inabalável em sua defesa da causa

norte-americana”. 6 O escritor católico Timothy By rnes comentou:

O primeiro bispo católico dos Estados Unidos entendeu, como também

muitos de seus sucessores, que nada seria mais eficiente para demonstrar

a lealdade dos católicos norte-americanos a seu país do que o entusiástico

patriotismo por parte dos líderes da igreja em tempos de guerra. 7

Durante a Guerra Civil, os líderes católicos do Norte apoiaram a causa do

norte, e os líderes do Sul apoiaram a causa do Sul. Até a Guerra Hispano-

Americana de 1898 teve forte apoio católico – apesar do fato de que a Espanha,

162


contra a qual os Estados Unidos estavam lutando, era uma nação católica.

Antes da guerra, o papa, temeroso das consequências da guerra para os católicos

espanhóis, alistou a ajuda do arcebispo John Ireland, de Minnesota, para fazer a

mediação entre os governos norte-americano e espanhol. Infelizmente os esforços

de Ireland fracassaram, e irrompeu a hostilidade entre os dois países. Contudo,

depois que a guerra começou, “na tradição de apoio católico aos esforços de

guerra norte-americanos, Ireland declarou que era ‘a favor da guerra – a favor da

bandeira dos Estados Unidos’”. 8 Assim, os bispos norte-americanos publicaram

uma carta pastoral em maio de 1898 que incluiu o seguinte parágrafo, expresso em

fortes palavras:

Qualquer que possam ter sido as opiniões individuais dos norteamericanos

antes da declaração de guerra, agora não pode haver duas

opiniões quanto ao dever de todo cidadão leal. [...] Nós, membros da

Igreja Católica, somos verdadeiros norte-americanos, e como tais somos

leais a nosso país e a nossa bandeira, e obedientes aos mais altos decretos e

à suprema autoridade da nação. 9

A Primeira Guerra Mundial trouxe aos católicos norte-americanos tanto

problemas quanto uma oportunidade singular. O problema foi o medo da

comunidade protestante dos Estados Unidos de que os católicos de origem alemã

fossem norte-americanos desleais. A guerra proporcionou uma oportunidade para

os católicos demonstrarem sua lealdade. E eles o fizeram. Os bispos deram seu

pleno apoio à guerra, e os soldados norte-americanos católicos se portaram

bravamente em favor de sua nação no campo de batalha.

A igreja foi um passo além e organizou um esforço nacional para apoiar a

guerra. Em 1917, sob a liderança do cardeal Gibbons, os bispos estabeleceram o

Conselho Nacional de Guerra Católico. O conselho capacitou os católicos norteamericanos

a doarem fundos e dedicarem pessoas para prover cuidado espiritual e

serviços de recreação aos que estavam servindo durante a guerra. O total apoio da

igreja à guerra compensou. O anticatolicismo diminuiu significativamente após a

Primeira Guerra Mundial.

Timothy Byrnes comentou que, “durante a Segunda Guerra Mundial, novas

alturas foram alcançadas na identificação do catolicismo com os objetivos de

guerra norte-americanos”. 10 O arcebispo Francis Spellman se distinguiu como

capelão não oficial para as forças norte-americanas além-mar e serviu como

representante pessoal do presidente Roosevelt junto ao Vaticano. Citando By rnes

163


novamente:

Nada agradou mais a Spellman do que esta oportunidade de promover

simultaneamente os interesses de sua igreja e os de sua nação, e de servir

como uma personificação da compatibilidade entre os dois. Os sacrifícios

dos católicos em geral em tempos de guerra ilustraram de tal forma essa

compatibilidade que George Fly nn argumentou que “o patriotismo dos

católicos na grande cruzada [Segunda Guerra Mundial] seria tão brilhante

que nunca mais ninguém ousaria questionar o norte-americanismo

deles”. 11

Assim, uma segunda forma em que muitos dentre os líderes católicos

procuraram aquietar os temores anticatólicos dos protestantes norte-americanos foi

dando irrestrito apoio a todas as guerras da nação. Uma terceira maneira foi

protegendo seu povo através de ação política.

Envolvimento político

O grande número de imigrantes vindos da Europa durante a última metade do

século 19 e as primeiras duas décadas do século 20 desafiou a liderança católica

dos Estados Unidos de duas formas: primeiro, essas pessoas tiveram que fornecer

apoio pastoral para esses vários grupos étnicos. E segundo, tiveram que defender

seus membros contra o antagonismo nativista. Este último desafio foi tornado muito

mais fácil pelo fato de que a maioria dos católicos imigrantes se congregou nas

grandes cidades norte-americanas, especialmente Nova York, Boston e Chicago.

Isso deu aos bispos católicos nessas cidades enorme poder político em nível local, e

eles muitas vezes usaram esse poder eficientemente para proteger seus membros

de ataques hostis.

Quando os protestantes de Nova York ameaçaram fazer uma revolta contra os

católicos durante a década de 1840, o bispo Hughes ameaçou a prefeitura da

cidade, dizendo que se uma só igreja católica fosse danificada, seus membros

incendiariam a cidade. Timothy By rnes tirou a seguinte conclusão significativa:

“Hughes entrou com os dois pés no processo político a fim de defender os

interesses católicos que sentiu estarem sob ataque.” 12 E, é claro, Hughes tinha todo

o direito – e de fato a obrigação – de fazer tudo o que pudesse para proteger os

membros de sua igreja.

Várias décadas depois, Hughes desafiou a prática comum dos professores das

164


escolas públicas da cidade de Nova York de ler cada dia para suas classes

passagens da versão King James da Bíblia, que é protestante. Hughes afirmou que

isso ofendia as sensibilidades dos católicos. Como os dirigentes das escolas

recusaram-se a reconhecer isso, Hughes tentou conseguir com que o estado

ajudasse financeiramente os católicos no estabelecimento de suas próprias escolas.

Isso criou uma tempestade entre os protestantes, e Hughes formou sua própria

chapa de candidatos para a Assembleia Legislativa do estado de Nova York e

conclamou todos os católicos a votarem nela. Quando os candidatos do bispo

perderam, ele ficou sem escolha, a não ser estabelecer seu próprio sistema de

escolas confessionais sem o benefício do apoio estadual.

Um incidente em Illinois em 1889 terminou muito melhor para os católicos. O

Partido Republicano conseguiu aprovar um projeto de lei na Assembleia

estipulando que a exigência de frequência compulsória à escola podia ser satisfeita

apenas por alunos que frequentassem escolas aprovadas pela Secretaria de

Educação local. Assim, se a comissão escolar de uma escola pública não

aprovasse o currículo de uma escola católica, os alunos que frequentassem aquela

escola seriam considerados não frequentadores. Os bispos de Illinois condenaram a

lei como uma violação dos direitos dos católicos, e, na eleição de 1892, usaram seu

voto para tirar os republicanos do poder. A lei foi logo revogada – como devia!

O poder político dos católicos nas grandes áreas urbanas cresceu junto com o

crescimento da população católica. A sociedade Tammany Hall, a máquina

política democrata em Nova York, é um ótimo exemplo. Embora tenha sido muito

caluniada, Tammany Hall forneceu aos imigrantes serviços sociais vitais. “Os

políticos católicos compreenderam que seu povo estava preocupado com

empregos, com a remoção do lixo, com moradia e com centenas de outros

assuntos, grandes e pequenos. Os políticos que organizavam as subdivisões políticas

de uma cidade estavam, especialmente através dos líderes de sua zona eleitoral,

em íntimo contato com as necessidades do povo.” 13 Tammany Hall era controlada

pelos católicos, o que dava aos líderes enorme poder político. Nas grandes cidades,

tornou-se quase impossível para qualquer candidato a um cargo político ganhar as

eleições sem a aprovação do bispo ou do arcebispo.

Para resumir, durante quase duzentos anos após o estabelecimento dos Estados

Unidos como nação independente, os católicos do país e seus líderes fizeram todos

os esforços para ser vistos como leais cidadãos. Fizeram isso através de fortes

afirmações de apoio ao sistema democrático norte-americano e a seus conflitos

militares. O único desafio que os católicos fizeram ao governo durante esse período

foi em nível local, onde protegeram seu próprio povo do preconceito anticatólico

por parte da maioria protestante. Essa era uma política essencial, dado seu pequeno

número nos primeiros anos da república e dada a hostilidade exibida contra os

165


católicos durante o século 19, enquanto os imigrantes católicos chegavam em

grande número ao país, vindos da

Europa. Contudo, na metade do século 20 as circunstâncias já haviam mudado

dramaticamente. Os esforços para serem vistos como norte-americanos leais

finalmente deu resultado, tornando possível aos líderes católicos adotarem uma

abordagem muito diferente em relação ao país e a seu governo. Esse será o tema

do próximo capítulo.

1 Citado em Timothy A. By rnes, Catholic Bishops in American Politics

(Princeton: Princeton University Press, 1991), p. 13.

2 Peter Guilday, The Life and Times of John England (Nova York: America,

1927), v. 1, p. vii, viii; citado em ibid., p. 14.

3 Ibid., p. 15; ênfase acrescentada.

4 Nem todos os líderes católicos da época apoiavam essa posição liberal.

Alguns achavam que a igreja devia se isolar da cultura norte-americana.

5 James H. Moy nihan, The Life of Archbishop John Ireland (Nova York:

Harper, 1953), p. 33, 34; citado em By rnes, Catholic Bishops in American Politics,

p. 15.

6 Byrnes, Catholic Bishops in American Politics, p. 13.

7 Ibid., p. 13.

8 Ibid., p. 22.

9 Frank Reuter, Catholic Influence on American Colonial Policies, 1898-1904

(Austin: University of Texas Press, 1967), p. 7; citado por George J. Marlin em The

American Catholic Voter (South Bend: St. Augustine’s Press, 2004), p. 150.

10 Byrnes, Catholic Bishops in American Politics, p. 31.

11 Ibid., p. 30.

166


12 Ibid., p. 16.

13 Marlin, The American Catholic Voter, p. 147.

167


E

m 1788, o papa Pio VI] enviou um emissário a Paris a fim de se encontrar

com um diplomata da nova república norte-americana, os Estados Unidos,

que para ali havia sido recentemente designado. O diplomata era Benjamin

Franklin, e a solicitação do papa a ele era curta e simples: “Estaria bem para o

presidente George Washington se o papa nomeasse um bispo na nova terra?”

Franklin obedientemente consultou o presidente George Washington, e veio a

resposta para que ele dissesse ao papa que este podia nomear qualquer bispo que

quisesse para os Estados Unidos, uma vez que a revolução nas colônias era

exatamente em função disso – a liberdade, inclusive a liberdade religiosa. O papa

prontamente nomeou o frei jesuíta John Carrol como o primeiro bispo católico dos

Estados Unidos. 1

Você pode imaginar o papa Bento XVI fazendo humildemente uma solicitação

como essa para o atual presidente dos Estados Unidos? Mas foi assim naquela

época. E ainda é hoje.

Afirmei no capítulo 10 que bem depois do início do século 20 os protestantes

conservadores dos Estados Unidos ainda eram fortes defensores da separação

entre igreja e Estado. Também estavam suficientemente temerosos em relação a

qualquer comprometimento desse princípio por parte dos católicos para exigir que

John F. Kennedy fizesse um voto favorecendo a separação entre a igreja e o

Estado antes que pudessem apoiá-lo na eleição presidencial de 1960. Contudo, essa

foi a última apreensão significativa dos protestantes com respeito às intenções

católicas. A curta presidência de Kennedy apagou qualquer anticatolicismo que

restasse por parte da maioria dos norte-americanos.

168


Assim, 1960 foi um ano divisor de águas para os católicos dos Estados Unidos.

Antes de 1960, uma importante função dos bispos católicos tinha sido proteger sua

igreja e seus membros de sentimentos anticatólicos, e, durante o século 19, de

incidentes isolados de franca perseguição. Desde 1960, contudo, o anticatolicismo

virtualmente desapareceu, e houve apenas episódios ocasionais comumente

tratados na mídia como violência de religiosos fanáticos. O voto de apoio de

Kennedy à separação entre igreja e Estado e sua popularidade como presidente

foram fatores importantes que contribuíram para a diminuição do anticatolicismo,

mas vários outros fatores também estiveram envolvidos. Examinaremos dois: o

crescimento demográfico católico e mudanças no Vaticano.

Crescimento demográfico católico

Durante o século 19 e primeira parte do século 20, os católicos dos Estados

Unidos eram vistos principalmente como imigrantes, e eram em sua maior parte

cidadãos da classe operária empregados nos escalões mais baixos da indústria, do

governo, do comércio, etc. Entretanto, nos cem anos anteriores a 1960, os católicos

tinham estado educando seus filhos em suas próprias escolas. Após a Segunda

Guerra Mundial, essa educação começou a mostrar resultados, à medida que os

católicos foram entrando nas profissões e posições um pouco mais elevadas do

governo e da indústria.

Além disso, antes de 1950, os católicos viviam mais nos guetos de cidades do

interior; mas, após a Segunda Guerra Mundial, começaram a se mudar para os

subúrbios, onde fizeram amizade com vizinhos protestantes da classe média e alta.

Isso também quebrou preconceitos, à medida que os protestantes começaram a

perceber que os católicos são pessoas normais. Em seu livro Catholic Bishops in

American Politics [Os Bispos Católicos na Política Norte-Americana], Timothy

Byrnes escreve:

Os católicos deixaram a era da imigração para trás na década de

1960, no que [o bispo Andrew] Greeley denominou uma “notável história

de sucesso”. Na verdade, eles emergiram de sua longa história de

imigração como um dos setores da população mais bem remunerados e

cultos dos Estados Unidos. “Se a igualdade com o desempenho nacional é

um sinal de aculturação”, concluiu Greeley, “então os católicos norteamericanos

estão agora plenamente aculturados à sociedade norteamericana”.

2 169


Mudanças no Vaticano

Alguns atos do Vaticano também contribuíram para a diminuição do

preconceito contra os católicos. João XXIII foi extraordinariamente popular nos

Estados Unidos durante seu curto pontificado (1958-1963), assim como João Paulo

II o foi durante a última parte do século 20. Além disso, os vigorosos

pronunciamentos do Concílio Vaticano II em apoio da liberdade religiosa do

indivíduo deram fim à maioria dos temores que ainda restavam nos protestantes

sobre os católicos e a separação entre igreja e Estado.

Finalmente, a Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo Moderno, lançada

no Concílio Vaticano II, revolucionou a maneira de a igreja encarar os governos

democráticos. Durante 150 anos, os papas haviam atacado verbalmente as

democracias e quase proibido os sacerdotes e bispos de se envolverem na política

democrática. “O Vaticano havia repetidamente advertido os bispos norteamericanos

a não envenenarem a igreja através do contato com a cultura do país.”

No entanto, após o Concílio Vaticano II, “os bispos não mais deviam ver a cultura

norte-americana como uma força contra a qual a igreja tinha de se defender. Ao

contrário, deviam ver essa cultura como a própria arena na qual a igreja devia

levar avante sua missão”. 3

Durante duzentos anos antes disso, vários bispos norte-americanos haviam

endossado a experiência democrática no país como compatível com o pensamento

político católico. A Constituição Pastoral não chegou a esse ponto, mas “considerou

a igreja como sendo desafiadora e crítica da cultura moderna”. 4 A Constituição

Pastoral incluiu uma lista de assuntos da cultura contemporânea nas quais

encorajou a igreja a se concentrar – uma lista que Byrne diz que “parece um

projeto esquematizado da agenda política dos líderes da igreja nos Estados Unidos

nas décadas de 1970 e 1980”. 5

Tudo isso se traduziu em outro benefício para os bispos: eles podiam dedicar

mais de sua energia à atividade política sem ter que se preocupar com uma reação

violenta por parte dos protestantes. Nem mesmo o escândalo de abuso sexual dos

sacerdotes no final do século 20 e início do 21 provocou um preconceito

anticatólico da maneira como o teria feito três ou quatro gerações antes.

Atividade política nacional

Na década de 1960, os bispos começaram a prestar atenção à política em nível

nacional, bem como em nível local. Agora que não tinham mais de se preocupar

com o perigo de que suas posições políticas gerassem intolerância contra os

católicos, começaram a tomar uma posição mais crítica em relação ao governo

170


nacional. Assim, enquanto no passado haviam colocado grande ênfase em se

identificarem com a política do governo norte-americano, agora começaram a

expressar seu próprio julgamento moral contra assuntos políticos que conflitavam

com ensinos da igreja. E ninguém pareceu se importar. Como disse By rnes, “a

diminuição da segregação religiosa e da autoridade episcopal levou à diminuição

do anticatolicismo e a uma oposição menos estridente às atividades políticas dos

católicos e seu líderes clericais”. 6

O resultado de tudo isso foi que, durante as duas décadas posteriores ao

Concílio Vaticano II, os bispos norte-americanos publicaram várias cartas pastorais

sobre tópicos como economia, moradia de baixa renda e trabalho rural, que

tornavam claras as convicções morais e éticas da Igreja Católica nesses pontos.

Em 1976, os bispos também prepararam um documento intitulado Political

Responsability: Reflections on an Election Year [Responsabilidade Política:

Reflexões sobre um Ano Eleitoral]. Esse documento afirmava a responsabilidade

dos bispos de tomar uma posição firme sobre questões políticas atuais.

Uma Resolution on Southeast Asia [Resolução sobre o Sudeste da Ásia], em

1971, expressou forte desacordo com o conflito no Vietnã. Em uma carta pastoral

de 1983 intitulada The Challenge of Peace [O Desafio da Paz], os bispos tomaram

firme posição contra o uso de armas nucleares. Essa carta foi uma resposta direta

à plataforma de Ronald Reagan na eleição de 1980, que exigia uma série

completamente nova de sistemas de armas nucleares. Um dos últimos parágrafos

da carta declarava:

As decisões sobre armas nucleares estão entre as questões morais

mais urgentes de nossa época. [...] Bons fins (defender o próprio país,

proteger a liberdade, etc.) não podem justificar meios imorais (o uso de

armas que matam indiscriminadamente e ameaçam sociedades inteiras).

Tememos que nosso mundo e nossa nação estejam tomando uma direção

errada. 7

Vimos no último capítulo que em todos os conflitos militares anteriores, da

Guerra da Independência em 1776 à Segunda Guerra Mundial na década de 1940,

os líderes católicos tomaram firme posição em apoio das guerras norteamericanas.

Essa foi uma das formas em que eles apresentaram os católicos à

nação como norte-americanos leais. O conflito no Vietnã foi a primeira guerra na

qual os líderes católicos nos Estados Unidos se opuseram abertamente a uma

guerra norte-americana, e o desafio à construção de armas nucleares norteamericanas

foi a primeira vez em que eles confrontaram um procedimento militar

171


importante. Nessa época, já não precisavam provar a lealdade católica.

Aborto

A iniciativa política que de longe foi a mais importante dos líderes católicos

durante a última metade do século 20 e início do 21 envolveu o aborto. Antes da

decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos em 1973 no caso Roe versus Wade,

que afirmou o direito da mulher ao aborto, quase todos os atos políticos

relacionados ao aborto aconteceram em nível estadual, e era nesse nível que os

líderes católicos tinham de reagir. O caso Roe versus Wade trouxe o debate para o

nível nacional. Coincidentemente, o Comitê de Defesa da Vida da Conferência

Nacional dos Bispos Católicos se reuniu pela primeira vez no dia seguinte ao da

decisão da corte sobre o aborto. O comitê condenou imediatamente a decisão da

corte e insistiu para que fossem explorados todos os meios legais para revertê-la,

inclusive a adição de uma emenda em defesa da vida à Constituição dos Estados

Unidos.

Os bispos também não pararam de fazer pronunciamentos oficiais. Em 1975,

publicaram um Pastoral Plan for Pro-Life Activities [Plano Pastoral para Atividades

de Defesa da Vida]. Esse ato “tem sido chamado de a mais ‘focada e agressiva

liderança política’ já exercida pelos dirigentes católicos norte-americanos”. 8 Um

breve exame do plano revela que essa é uma avaliação válida. O Pastoral Plan

pede ação por parte dos católicos em nível estadual, da diocese e da paróquia local.

Alista as responsabilidades a serem cumpridas em cada um dos níveis, sendo o

alvo final a reversão do caso Roe versus Wade pela Suprema Corte dos Estados

Unidos e a adição de uma emenda em defesa da vida à Constituição do país.

O Pastoral Plan declara:

Líderes civis católicos que rejeitam ou ignoram o ensino da igreja

sobre a santidade da vida humana o fazem com risco de seu próprio bemestar.

Nenhum oficial público, especialmente alguém que afirme ser um

católico comprometido e fiel, pode responsavelmente advogar ou apoiar

ativamente os ataques contra a vida humana inocente.

O documento prossegue dizendo:

As decisões sobre o aborto da Suprema Corte dos Estados Unidos

precisam ser revertidas. [...] Nosso próprio compromisso não vacilará.

172


Nossos esforços não cessarão. Falaremos em favor da santidade da vida

em todos os lugares e momentos em que ela for ameaçada.

A maioria dos norte-americanos não está ciente da extensão em que o Pastoral

Plan e atividades semelhantes dos líderes católicos têm contribuído para as

atividades antiaborto dos protestantes da direita cristã. Timothy By rne o declarou

da seguinte forma:

Um relato adequado do papel político dos evangélicos e

fundamentalistas no final da década de 1970 e início da de 1980 precisa

incluir um reconhecimento do papel indireto mais importante que os

líderes católicos desempenharam na estratégia da nova direita.

Os bispos colocaram a base para a criação do movimento pró- família

no final da década de 1970 através de seu papel na criação do movimento

pró-vida durante a década precedente. Desde os primeiros estrondos da

liberalização das leis do aborto na década de 1960, os bispos identificaram

firmemente sua igreja e sua própria autoridade moral com a causa do

direito à vida. Eles foram também a fonte dos primeiros fundos para o

movimento do direito à vida. [...] Os bispos não concordavam com a nova

direita em muitas questões sociais, mas quando a nova direita começou a

moldar o movimento de direito à vida para novos propósitos políticos, ela

estava lidando com um movimento cuja estrutura institucional original e

cujos recursos financeiros haviam vindo diretamente da Conferência

Nacional dos Bispos Católicos. 9

Connie Paige escreve:

A Igreja Católica Romana criou o movimento do direito à vida. Sem a

igreja, o movimento não existiria como ele é hoje. A igreja forneceu a

ele, desde o começo, a infraestrutura organizacional, a rede de

comunicações, o apoio logístico, os recursos, a ideologia e as pessoas, bem

como uma máquina política nacional já pronta que de outra forma seria

impossível de duplicar. A igreja sempre contribuiu com grande quantia de

dinheiro através de suas próprias organizações e através de doações para

grupos independentes, mas relacionados à causa. 10

Portanto, é correto dizer que o movimento do direito à vida nos Estados Unidos,

173


que geralmente é considerado pelos norte-americanos como um movimento

protestante fundamentalista, na verdade é, em grande parte, criação da Igreja

Católica norte-americana e de seus bispos. Connie Paige estava certa. Sem o apoio

da Igreja Católica em todos os níveis, o movimento pró-vida como o conhecemos

hoje simplesmente não existiria.

O eleitor católico

Outro fator contribuiu para a influência política católica na política nacional

durante o século 20: o crescente poder dos católicos como um bloco de eleitores.

Durante a maior parte da história norte-americana, os líderes católicos não

exerceram poder político significativo em nível nacional. Porém, através das urnas

e dos votos católicos individuais, a igreja passou a ter influência significativa na

política nacional já a partir da metade do século 19. À medida que a porcentagem

de católicos nos Estados Unidos cresceu de menos de 1% em 1776 para pouco

mais de 25% hoje, os líderes políticos norte-americanos de ambos os partidos se

tornaram cada vez mais conscientes de que os católicos constituem um bloco

eleitoral que vale a pena ser cultivado.

Durante a primeira parte do século 20, a maioria esmagadora dos católicos dos

Estados Unidos era formada por democratas e geralmente votava em candidatos

democratas. As únicas exceções foram em 1952 e 1956, quando os católicos

apoiaram o republicano Dwight Eisenhower. Em 1960, os católicos voltaram ao

Partido Democrata, dando total apoio a John F. Kennedy, que se tornou o primeiro

católico a obter a presidência dos Estados Unidos. Porém, um fator que foi pouco

notado na época da eleição de 1964 indicava o início de uma tendência que

continuaria até o fim do século. Na eleição daquele ano, os católicos brancos em

algumas partes dos distritos nova-iorquinos do Queens, State Island, Brookly n e

Bronx, de fato, deram a Barry Goldwater sólidas maiorias. 11 Em seu livro The

American Catholic Voter [O Eleitor Católico Norte-Americano], George Marlin

concluiu: “Democratas reformadores míopes não conseguiram ver que os

católicos étnicos da classe operária nos anos 60 não mais se sentiam desejados no

Partido Democrata.” 12

Os católicos votaram fortemente em apoio a Ronald Reagan em 1980 e 1984,

e Reagan recompensou os esforços deles de várias formas. A mais significativa foi

o estabelecimento de relações diplomáticas entre o governo dos Estados Unidos e o

Vaticano em 1984. Reagan também nomeou vários católicos para postos de

gabinete e embaixadas, inclusive William Casey como chefe da CIA, Richard

Allen e William Clark como conselheiros nacionais de segurança, Alexander Haig

como secretário de Estado, Vernon Walters como embaixador itinerante para casos

174


especiais, e William Wilson como o primeiro embaixador para o Vaticano. 13 Eles

estavam entre os membros-chave da equipe de política externa de Reagan.

Essa equipe teve uma influência significativa na introdução de princípios éticos

e morais católicos na política de governo norte-americana. A revista Time publicou

que uma das conquistas da equipe em favor de sua igreja foi conseguir que

a administração

alterasse seu programa de ajuda externa para que esse se adequasse

aos ensinos da igreja sobre controle de natalidade. [...] Os Estados Unidos

deixaram de financiar, entre outras, duas das maiores organizações de

planejamento familiar do mundo: a Federação Internacional de

Paternidade Planejada e o Fundo das Nações Unidas para a População. 14

William Wilson, o embaixador do presidente para o Vaticano, declarou: “A

política norte-americana foi mudada como resultado de o Vaticano não concordar

com a nossa política.” 15 E foram os católicos no governo que fizeram com que

isso acontecesse em favor de sua igreja.

Pense nisto: o governo dos Estados Unidos recuou diante da pressão católica e

colocou em vigência um dogma moral católico! E eles alcançaram isso através

dos esforços de membros da igreja que haviam sido nomeados para altas posições

no governo. Cinquenta anos antes, esforços católicos semelhantes para influenciar

uma política de governo teriam suscitado uma tempestade de protestos, e 150 anos

antes poderiam ter suscitado até uma violenta perseguição. Mas, em meados da

década de 1980, esses esforços passaram como uma suave ondulação na

superfície da água.

Mudança de partido

Outra importante mudança ocorreu na década de 1980: os católicos

começaram a mudar seu voto do Partido Democrata para o Partido Republicano.

Entre 1980 e 1984, a proporção de católicos que se consideravam republicanos

subiu de 17% para 26%. 16 Obviamente, essa mudança de eleitorado não constituiu

uma saída em massa do Partido Democrata, mas foi suficientemente significativa

para a Organização Gallup concluir que “os católicos haviam se tornado uma

igreja bipartidária” e “nenhum candidato, democrata ou republicano, pode tomar

como certo o voto dos católicos”. 17 Alguns capítulos atrás, vimos que as eleições

175


intermediárias de 1994 deram aos republicanos fortes maiorias, tanto no Senado

como na Câmara Federal, quebrando quase 60 anos de domínio democrata em

ambas as casas do Congresso. Nessa eleição, os católicos apoiaram os candidatos

republicanos por uma margem de 52% contra 48%.

George H. W. Bush (Bush pai) tentou avidamente conseguir os votos dos

católicos e os recompensou quando ganhou a eleição. Um mês após ter tomado

posse, incluiu todos os cinco cardeais norte-americanos em reuniões realizadas na

Casa Branca, e dois cardeais – Bernard Law, de Boston, e John O’Conner, de Nova

York – passaram noites no local. Doug Wead, assistente especial do presidente,

declarou que Bush “nomeou mais oficiais de gabinete católicos do que qualquer

outro [presidente] da história norte-americana”. 18

A eleição de 2000 foi tão apertada que a Suprema Corte dos Estados Unidos é

que acabou decidindo-a a favor de George W. Bush. Uma das primeiras

prioridades de George Bush nos meses seguintes foi cultivar o voto católico. Pouco

depois de ter feito o juramento, ele se encontrou com responsáveis pelas

Fundações de Caridade Católicas para discutir assuntos que estas tinham na área de

dedução de impostos para organizações de caridade. Em 17 de março, Bush

comemorou o Dia de São Patrício com oficiais católicos da República da Irlanda.

No fim de março, convidou vários cardeais e bispos para irem à Casa Branca,

onde elogiou o sistema educacional católico. Em abril, inaugurou o Centro Cultural

João Paulo II em Washington, DC, e “falou de modo entusiasmado sobre a criança

inocente que esperava para nascer” 19 – um tema que ele tinha certeza que

agradaria seus anfitriões. Algumas semanas mais tarde, Bush foi o orador principal

nas cerimônias de formatura da Universidade de Notre Dame. George Marlin

resumiu o apoio de Bush aos interesses católicos durante o primeiro mandato:

Em seus quatro primeiros anos, o presidente Bush iniciou e promoveu

programas e políticas que apelavam aos católicos. Ele reverteu as ordens

executivas pró-aborto de Clinton, propôs iniciativas baseadas na fé,

experiências com a isenção do imposto educacional e limites à pesquisa

com células-tronco. Também assinou a lei proibindo o aborto com

nascimento parcial. 20

A eleição de 2004

Tudo isso foi compensado na eleição de 2004, que a sabedoria convencional

dizia que Bush iria perder – mas não perdeu. E os católicos tiveram muito a ver

com isso.

176


As pesquisas de boca de urna em novembro de 2004 indicavam que 63% dos

católicos votaram na eleição de 2004, em comparação com os 53% da população

geral. E os católicos apoiaram George W. Bush contra John Kerry por uma

margem de 52 a 47%, apesar do fato de Kerry ser católico. Dos que iam à missa

uma vez por semana, 56% votaram em Bush. Cinquenta por cento dos que

assistiam à missa com menos frequência também votaram em Bush. 21 E no

estado de Ohio, que foi fundamental para a decisão da eleição, Bush ganhou 53%

dos votos dos católicos, contra 46% de Kerry. 22

Tudo isso nos mostra o real significado da eleição de 2004. Afirmei no capítulo

13 que a eleição naquele ano estabeleceu a direita cristã como um bloco poderoso

muito real na política norte-americana, que não podia mais ser ignorado ou tratado

como uma aberração. Essa eleição também demonstrou o poder político dos

católicos norte-americanos, que cooperaram com protestantes da direita cristã

para colocar Bush outra vez no poder, apesar do fato de sua guerra do Iraque ser

altamente impopular diante da maioria dos norte-americanos.

Parte do problema para os democratas foi a posição de Kerry sobre o aborto e

os direitos homossexuais, que o colocaram em desavença com a direita cristã e

com os dirigentes de sua própria igreja. Esses líderes deixaram claro que

preferiam ter um presidente protestante que apoiasse seus valores do que um

presidente católico que não os apoiasse. Na verdade, vários bispos e arcebispos

declararam publicamente que Kerry não precisava aparecer para tomar a

comunhão (a santa ceia) em suas igrejas, porque isso lhe seria recusado. Um

desses bispos, o arcebispo Ray mond Burke de St. Louis, disse: “Qualquer legislador

que esteja apoiando publicamente leis que favoreçam o aborto ou a eutanásia não

precisa se apresentar para a santa comunhão.” 23

Burke e seus colegas de liderança tinham o apoio do Vaticano. Por causa dos

pontos de vista de Kerry sobre o aborto, o cardeal Theodore McCarrick, de

Washington, DC, presidente da força-tarefa dos bispos sobre “Os Católicos na Vida

Política”, pediu orientação ao Vaticano sobre como relacionar-se com Kerry e

outros políticos que não apoiavam os princípios morais da igreja. O então cardeal

Joseph Ratzinger respondeu que sacerdotes e bispos cujas congregações incluem

políticos que apoiam o aborto ou a eutanásia devem dizer ao político que “ele não

deve se apresentar para a santa comunhão até que ponha fim àquela situação

objetiva de pecado, e devem adverti-lo de que, do contrário, a comunhão lhe será

negada”. 24 Assim, o cardeal Ratzinger, que é agora o papa Bento XVI, deu sua

aprovação à posição do arcebispo Ray mond Burke contra Kerry. 25

Note o que Ratzinger falou: o político deve ser informado de que não apoiar os

177


pontos de vista da igreja sobre o aborto ou a eutanásia é um pecado. Na teologia

cristã, tanto protestante quanto católica, o pecado impede a pessoa de receber a

vida eterna.

Em 2002, o Vaticano lançou uma “Nota Doutrinária sobre Algumas Perguntas

Relativas à Participação de Católicos na Vida Política”. A introdução dessa “Nota

Doutrinária” afirma que ela é “dirigida a bispos da Igreja Católica e, de maneira

especial, a políticos católicos e a todos os membros leigos dentre os fiéis que forem

chamados a participar na vida política das sociedades democráticas”. 26 Ela

declara também: “Uma consciência cristã [leia-se: católica] bem formada não

permite que alguém vote em um programa político ou uma lei individual que

contradiga os assuntos fundamentais de fé e moral.” 27 Em outras palavras, os

legisladores católicos precisam falar e votar de acordo com os ensinos da igreja. A

“Nota Doutrinária” continua dizendo:

João Paulo II, continuando o constante ensino da igreja, reiterou muitas vezes

que aqueles que estão diretamente envolvidos em um corpo legislativo têm “uma

séria e clara obrigação de se opor” a qualquer lei que ataque a vida humana. Para

eles, como para todo católico, é impossível promover tais leis ou votar a favor

delas. 28

Em 28 de fevereiro de 2006, 55 dos 73 membros da Câmara dos Deputados

dos Estados Unidos disseram aos principais bispos norte-americanos que “a

primazia de sua consciência” os levou a apoiar os direitos ao aborto, e perguntaram

aos bispos se não seria possível que a igreja lhes desse a liberdade de votar de

acordo com sua consciência, apesar dos ensinos da igreja em contrário. A resposta,

dada em 10 de março, foi um firme não. 29

Vamos revisar o que comentei nos parágrafos anteriores:

• O bispo Burke, com o apoio do Vaticano, disse que negaria a comunhão a

John Kerry porque sua posição sobre o aborto contradizia a moralidade católica.

• O cardeal Ratzinger (que se tornaria o papa Bento XVI) disse aos bispos

católicos dos Estados Unidos que um político que deixe de votar em harmonia com

a posição da igreja sobre o aborto e a eutanásia está pecando.

• A “Nota Doutrinária sobre [...] Católicos na Vida Política”, publicada pelo

Vaticano em 2002, declara que uma boa consciência católica não pode votar em

178


leis que contradigam “assuntos fundamentais de fé e moral” – isto é, da fé e moral

católicas.

• João Paulo II disse que “é impossível” para os legisladores católicos

promover ou votar em “qualquer lei que ataque a vida humana”. Ele quis dizer, é

claro, qualquer lei que ataque a vida humana como a moralidade católica a

define. 30

• Quando 55 legisladores católicos pediram a seus bispos permissão para

votarem contra o ensino católico no Congresso Norte-Americano, a resposta foi

um direto e inequívoco não!

Minha pergunta é esta: Que direito têm os legisladores de consultar os líderes

de sua igreja e lhes pedir permissão para votar de determinada forma?

Orientação? Sim, sem dúvida. Mas permissão? Em cada caso, os líderes católicos

disseram a esses legisladores que, em seus deveres oficiais de governo, eles eram

obrigados por sua igreja a votar em harmonia com os ensinos dela sobre

determinados assuntos. O bispo Burke chegou ao ponto de dizer que recusaria a

comunhão a um político que ousasse expressar opiniões e dar seu voto de maneira

contrária aos ensinos da igreja. Na década de 1950 e talvez até na de 1960, uma

declaração como essa teria causado uma tempestade de protestos por parte dos

protestantes dos Estados Unidos. Mas não em 2004! Hoje, os protestantes da direita

cristã teriam aplaudido.

Talvez você concorde com os valores defendidos pelo papa João Paulo II e

pelo bispo Burke. A questão não são os valores. A questão é se uma igreja deve

negar – ou ameaçar negar – os sacramentos a membros que não apoiem seu

ensino por meio de votos no Congresso dos Estados Unidos ou numa Assembleia

Legislativa estadual. A questão é se uma igreja deve ordenar a seus membros que

são juízes, legisladores, prefeitos, governadores e presidentes, que apoiem o ensino

da igreja em suas decisões legislativas e judiciais, e se ela deve se recusar a darlhes

permissão para participar da vida da igreja caso não concordem em fazê-lo. A

questão é se uma igreja deve pressionar os legisladores a votar de certa forma

dizendo-lhes que o voto “errado” é um pecado.

De volta à Idade Média

Mil anos atrás, o papa Gregório VII excomungou o rei Henrique IV, da

Alemanha, quando o rei desafiou o papa com respeito à nomeação do bispo de

Milão. O rei atravessou os Alpes no meio do inverno e ficou em pé na neve por três

dias para pedir o perdão do papa a fim de que ele pudesse ser reinstalado no trono.

179


Naturalmente, condenamos o ato do papa como um exercício de autoridade

espiritual totalmente desapropriado a fim de alcançar um fim político. É um

exemplo clássico de dominação do Estado pela igreja durante o período medieval.

Contudo, o mesmo princípio da relação do poder espiritual para com o poder

político está acontecendo diante dos nossos olhos no século 21, nos Estados Unidos,

e achamos isso normal.

É totalmente apropriado para qualquer igreja educar seus membros quanto aos

princípios morais que ela defende. Também é apropriado para a igreja encorajar

seus membros que estão num cargo político a apoiar os ensinos morais da igreja

com sua voz e voto legislativos. Porém, é totalmente inapropriado para uma

corporação religiosa controlar seus membros que estão em cargos políticos pela

censura, negação dos sacramentos ou excomunhão desses membros que falam e

votam de maneira contrária ao ensino da igreja. Foi isso que Gregório VII fez a

Henrique IV mil anos atrás, e é o que líderes católicos estão fazendo nos Estados

Unidos. Mas é tão impróprio hoje usar o poder espiritual para forçar um resultado

político como o era então.

Os protestantes do século 19 estavam profundamente preocupados com a

possibilidade de que os governantes e legisladores católicos pudessem introduzir a

doutrina da igreja na lei norte-americana. Preocupavam-se de que o papa, como

chefe de um governo, usasse seu poder espiritual para controlar o governo dos

Estados Unidos. Essa preocupação era legítima, apesar do lamentável preconceito

anticatólico e, em alguns casos, da aberta perseguição aos católicos à qual isso

levou. Em 1960, John F. Kennedy disse a um grupo de ministros protestantes

conservadores em Houston, Texas, que ele cria “em um país [...] onde nenhum

oficial público solicite ou aceite instruções sobre política pública do papa, do

Concílio Nacional de Igrejas ou qualquer outra fonte eclesiástica”. 31 Porém, hoje,

aquilo que os protestantes mais temiam durante o século 19 e princípio do século

20, tornou-se realidade, e muito poucos deles se importam. Na verdade, muitos

aplaudem!

Agora, considere isto também: a população católica dos Estados Unidos

continua a explodir através da imigração, hoje em dia, não vinda da Europa, mas

do México, da América Central e do Caribe. À medida que continua a aumentar a

porcentagem da população católica norte-americana, o que inevitavelmente irá

acontecer, que tipo de pressão os líderes católicos poderão exercer sobre a política

da nação e seus políticos no futuro? E até que ponto os futuros juízes da Suprema

Corte interpretarão a Constituição dos Estados Unidos em harmonia com os

princípios católicos de moralidade e da relação igreja-Estado católicos, em vez de

com os princípios de separação entre essas duas instituições?

A igreja católica nos Estados Unidos verdadeiramente tem dado uma meia-

180


volta desde 1960. Seu poder político hoje é enorme, e ela está usando esse poder

para desafiar o sistema político norte-americano como nunca antes. Os

protestantes da direita cristã agora concordam com os católicos sobre várias

questões-chave no que diz respeito à moralidade e à relação entre igreja e Estado.

Não é demais dizer que, quando eles se unirem em determinada questão, os

católicos e os protestantes da direita cristã terão influência para eleger a um cargo

qualquer pessoa que desejarem, e de promulgar qualquer legislação que quiserem.

Então, o que o futuro nos reserva? Os adventistas do sétimo dia têm

uma sugestão.

1 Jim Nicholson, “The United States and the Holy See: The Long Road, a Brief

History of U.S.-Holy See Relations”;

http://vatican.usembassy.it/text/policy /speeches/speech.asp?id=sp020007.

2 Timothy Byrne, Catholic Bishops in American History (Princeton: Princ​eton

University Press, 1991), p. 36. As citações de Andrew Greeley são de Catholic

Schools in a Declining Church (Kansas City, MO: Sheed and Ward, 1976), p. 74, 47.

3 Byrne, Catholic Bishops in American History, p. 40.

4 Ibid., p. 41.

5 Ibid.

6 Ibid., p. 37.

7 National Council of Catholic Bishops, “The Challenge of Peace: God’s

Promise and Our Response – Part 2”, par. 332;

http://www.osjspm.org/the_challenge_of_peace_2.aspx.

8 Byrne, Catholic Bishops in American History, p. 58.

9 Ibid., p. 90, 91; ênfase acrescentada.

10 Connie Paige, The Right to Lifers: Who They Are, How They Operate, Where

They Get Their Money (Nova York: Summit Books, 1983), p. 51.

181


11 George J. Marlin, The American Catholic Voter (South Bend: St. Augustine

Press, 2004), p. 59, 60.

12 Ibid., p. 268.

13 John W. Swomley, “One Nation Under God”; http://www.populationsecurity.org/swom-98-05.htm.

p. 35.

14 “The U.S. and the Vatican on Birth Control”, Time, 24 de fevereiro de 1992,

15 Ibid.

16 Marlin, The American Catholic Voter, p. 303.

17 Ibid., p. 306, 307.

18 Swomley, “One Nation Under God”.

19 Marlin, The American Catholic Voter, p. 333, 334.

20 Ibid., p. 334.

21 Center for Applied Research in the Apostolate, “Sixty-three Percent of

Catholics Voted in the 2004 Presidential Election”, Georgetown University, 22 de

novembro de 2004; http://www.georgetown.edu/research/cara/Press112204.pdf.

22 Joe Feuerherd, “Cardinal Ratzinger as Presidential Kingmaker”, National

Catholic Repórter online;

http://www.nationalcatholicreporter.org/washington/wnb042105.htm.

23 Rogers Cadenhead, “Bush Courts Catholics”, Workbench,

http://www.cadenhead.org/workbench/news/2800/president-bush-courts-catholics.

24 Feuerherd, “Cardinal Ratzinger as Presidential Kingmaker”, ênfase

acrescentada.

25 Ibid.

26 Congregação para a Defesa da Fé, “Doctrinal Note on Some Questions

Regarding the Participation of Catholics in Political Life”;

182


http://www.Vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_200

27 Ibid.

28 Ibid.

29 Christian Century, 4 de abril de 2006, p. 17.

30 Os norte-americanos, tanto religiosos quanto seculares, defendem uma

variedade de opiniões sobre aborto, eutanásia, pena de morte, pesquisa com

células-tronco e contracepção. Porém, a despeito do que outros possam pensar, os

bispos católicos norte-americanos não ficarão satisfeitos até que todos os seus

princípios morais sejam parte da lei dos Estados Unidos, quer como legislação,

decreto judicial ou emenda constitucional.

31 Citado em Marlin, The American Catholic Voter, p. 254.

183


A Marca da Besta

184


uando eu estudava no seminário teológico, pintava casas para

custear as despesas. Pintar uma casa parece fácil à primeira vista:

Q

simplesmente pegar um pincel e um balde de tinta e pôr mãos à obra.

Mas não é assim. Dependendo da condição da pintura anterior e do edifício em si,

pode ser que 90% do trabalho do pintor seja preparar a superfície a ser pintada. É

preciso raspar a velha tinta e lixar a superfície para que fique lisa. Os buracos

precisam ser preenchidos, e as rachaduras, calafetadas. Se houver mofo nos

beirais, é preciso eliminá-lo. Qualquer madeira descoberta tem de receber a

primeira demão. Às vezes o edifício precisa de reparos, o que também precisa ser

feito. Só quando esse trabalho preliminar é completado é que o pintor pode aplicar

a tinta.

Da mesma forma, você achará nosso estudo sobre a marca da besta muito

mais fácil de entender se tomarmos tempo para fazer um exame preliminar de

vários fatores que constituem o pano de fundo. Esse é o propósito do presente

capítulo.

Marca de qual besta?

Apocalipse 13 apresenta duas bestas, uma que surge do mar e outra que surge

da terra. A qual dessas bestas a marca pertence? Obviamente, antes de tentarmos

identificar a marca da besta, precisamos saber de que besta estamos falando.

Eis aqui uma boa pista: os versos 12 a 15 descrevem as ações realizadas pela

besta da terra, enquanto que a palavra besta se refere à besta do mar. Veja:

• “[A besta da terra] exerce toda a autoridade da primeira besta [...]

[e] faz com que a Terra e os seus habitantes adorem a primeira besta” (v.

185


12, ênfase acrescentada).

• “[A besta da terra] seduz os que habitam sobre a Terra por causa dos

sinais que lhe foi dado executar diante da besta” (v. 14, ênfase

acrescentada).

• “Dizendo [a besta da terra] aos que habitam sobre a Terra que

façam uma imagem à besta, àquela que, ferida à espada, sobreviveu” (v.

14, ênfase acrescentada).

• “E lhe [a besta da terra] foi dado comunicar fôlego à imagem da

besta” (v. 15, ênfase acrescentada).

Nessas ocorrências da palavra besta, o Apocalipse a identifica pelas

expressões “a primeira besta” e “a besta” “que, ferida à espada, sobreviveu” (v.

12, 14). Não há dúvida, portanto, sobre a besta mencionada no texto. Agora

examinemos os versos 16 e 17, que novamente descrevem ações cujo sujeito é a

besta da terra e também usam a palavra besta, dessa vez em conexão com a

marca: “A todos, os pequenos e os grandes, os ricos e os pobres, os livres e os

escravos, [a besta da terra] faz que lhes seja dada certa marca sobre a mão direita

ou sobre a fronte, para que ninguém possa comprar ou vender, senão aquele que

tem a marca, o nome da besta ou o número do seu nome” (ênfase acrescentada).

Como nos versos anteriores, as ações cujo sujeito é a besta da terra, no verso

16, claramente se referem à segunda besta. Contudo, a palavra besta no verso 17

não é identificada da mesma maneira como nos versos 12-15; portanto, poderia se

referir tanto à besta do mar quanto à besta da terra. Mas três fatores ligam a marca

à besta do mar:

• Primeiro, uma vez que nos versos 12-15 as ações sempre se referem

à besta da terra e a palavra besta sempre se refere à besta do mar, é

natural presumir que o mesmo ocorra aqui.

• Segundo, o verso 15 fala da “imagem da besta”, e o verso 17 fala de

uma “marca [...] da besta”. No grego, as duas frases são quase idênticas e

têm objetos idênticos (“besta”), o que sugere que ambas se referem à

mesma entidade.

• Terceiro, seria estranho que o texto dissesse que a besta da terra

forçou todos a receberem uma marca da besta da terra. Se João quisesse

dizer que a marca estava associada à besta da terra, pareceria mais

apropriado que ele tivesse dito que a besta da terra forçou todos a

186


receberem sua marca.

É natural, portanto, concluir que a expressão “marca da besta” se refere à

besta do mar, não à besta da terra. Isso, eu acredito, é como a maioria dos

estudiosos da profecia a compreende. E definitivamente é como os adventistas

entendem.

Dois lados no tempo do fim

Várias das parábolas de Jesus em Mateus nos fornecem vislumbres sobre o

tempo do fim. Um tema comum perpassa essas parábolas: a população do mundo

nessa época estará dividida apenas em duas classes – os justos e os ímpios. Jesus

usou uma variedade de símbolos para representar os dois grupos. A lista abaixo

apresenta alguns desses símbolos:

• Trigo e joio (Mt 13:24-30, 36-43);

• Peixes bons e peixes ruins (Mt 13:47-50);

• Servo fiel e servo mau (Mt 24:45-51);

• Virgens prudentes e néscias (Mt 25:1-13);

• Servos fiéis e servo negligente (Mt 25:14-30);

• Ovelhas e bodes (Mt 25:31-46).

O Apocalipse também diz que durante o conflito final na Terra, o mundo estará

dividido em duas classes de pessoas: os justos, que recebem o selo de Deus; e os

ímpios, que recebem a marca da besta. Atualmente, há três tipos de pessoas no

mundo: os que tomaram uma decisão definida ao lado de Deus, os que tomaram

uma decisão definida contra Ele e os que ainda não tomaram nenhuma decisão.

Apocalipse 7:1-4 descreve o selamento do povo de Deus. Nós os conhecemos

como os 144 mil. Vemos esse grupo novamente em Apocalipse 14:1-5, onde são

descritos como “os que não se macularam com mulheres, porque são castos. São

eles os seguidores do Cordeiro por onde quer que vá [...] e não se achou mentira na

sua boca; não têm mácula” (v. 4, 5).

Por outro lado, os que receberem a marca da besta adorarão o dragão

(Satanás), a besta do mar e sua imagem (Ap 13:4, 8, 14). E, se persistirem em sua

rebelião contra Deus, sofrerão o derramamento de Sua ira sem mistura de

187


misericórdia (Ap 14:9-11).

Parece evidente que, a essa altura da história descrita em Apocalipse 13 e 14,

os que estão em rebelião contra Deus ainda têm a oportunidade de se arrepender,

aceitar Jesus e declarar sua lealdade a Seus mandamentos. Digo isso por causa de

três anjos mencionados em Apocalipse 14. O primeiro anjo conclama os

habitantes do mundo a adorar a Deus (v. 6, 7), e o terceiro anjo adverte sobre a

vinda da ira de Deus (v. 9-11), que são as sete pragas (Ap 16). A mensagem do

terceiro anjo está claramente chamando as pessoas a deixarem de adorar a besta e

sua imagem para que não recebam a marca; portanto, nesse ponto ainda existe a

oportunidade de fazê-lo.

Qualquer que seja a marca, Deus deseja que as pessoas em toda parte evitem

recebê-la.

Condição espiritual

Há um ponto extremamente importante sobre a marca da besta que

precisamos compreender antes de tentar interpretá-la: ela simboliza uma profunda

condição espiritual daqueles que a recebem. Afirmei no segundo capítulo deste

livro que Satanás se rebelou contra Deus no próprio Céu e que ele envolveu a raça

humana em sua rebelião quando foi atirado para a Terra. Assim, durante os últimos

milênios nosso planeta tem sido o teatro no qual se desenrola o conflito entre o bem

e o mal. A última metade do Apocalipse (capítulos

12-22) descreve os dias finais desse conflito. A linguagem é altamente simbólica e

muito vívida. Mas, quando lemos cuidadosamente, podemos reconhecer que as

questões durante o conflito final reunirão tudo o que a Bíblia tem a dizer sobre

nosso relacionamento com Jesus: Estamos verdadeiramente convertidos? Temos fé

nas promessas de Deus? Estamos dispostos a confiar em Jesus com o risco de nossa

própria vida? Temos o compromisso de obedecer a Ele mesmo que isso signifique

sofrer martírio?

Os que permanecerem firmes ao lado de Deus durante o conflito final terão

desenvolvido esse tipo de relação íntima com Jesus. O amor dessas pessoas por Ele

será tão grande e a confiança nEle tão completa que, como os três hebreus,

preferirão morrer a desobedecer a Deus. Satanás falhará em todos os seus

esforços para forçá-los a desobedecer aos mandamentos de Deus. É por isso que o

Apocalipse diz que o povo de Deus nos últimos dias “guardam os mandamentos de

Deus” (Ap 12:17; 14:12). Um dos sentidos de Apocalipse 14:12 é que os

verdadeiros cristãos do tempo do fim permanecerão “fiéis a Jesus” (NVI). “Fé em

Jesus”, “fé de Jesus” e “fiéis a Jesus” são traduções corretas do texto grego. O

povo de Deus que vive durante a crise final da Terra será tão dedicado a Ele que

188


será fiel mesmo sob a mais intensa perseguição.

Apocalipse 14:12 apresenta um vislumbre do caráter espiritual do povo de

Deus nos últimos dias. Imediatamente após a terrível advertência do anjo contra a

adoração da besta e sua imagem, ele descreve o povo de Deus: “Aqui está a

perseverança dos santos, os que guardam os mandamentos de Deus e a fé em

Jesus.” Várias características se destacam nesse verso. A obediência aos

mandamentos de Deus aparece também em Apocalipse 12:17. O povo de Deus é

descrito como tendo grande perseverança, e mantém a “fé em Jesus”. Uma

conclusão que podemos extrair desse verso é que o povo de Deus que viver durante

a crise final da Terra terá aprendido um equilíbrio correto entre fé e obras. Essas

pessoas desejarão obedecer completamente a Deus, mas também reconhecerão

que sua salvação depende inteiramente do sacrifício de Jesus por seus pecados e do

fato de Ele lhe atribuir Sua justiça.

Apocalipse 13:16 diz que os ímpios podem receber a marca da besta na testa

ou na mão. Isto é, eles podem receber a marca da besta por convicção (na mente),

ou podem recebê-la por questão de conveniência (na mão), cedendo à pressão

espiritual da besta embora não creiam no discurso dela. Por outro lado, as pessoas

podem receber o selo de Deus apenas na testa. Ninguém pode servir a Deus

meramente por conveniência.

A condição espiritual daqueles que recebem o selo de Deus é descrita ainda

em Apocalipse 14:4, 5: “São estes os que não se macularam com mulheres, porque

são castos. São eles os seguidores do Cordeiro por onde quer que vá. [...] e não se

achou mentira na sua boca; não têm mácula”. Obviamente, essas pessoas

desenvolveram um relacionamento muito íntimo com Jesus.

Entretanto, é muito claro no Apocalipse que aqueles que receberem a marca

da besta estarão em total rebelião contra Deus. Essa é também uma condição

profundamente espiritual, mas no sentido negativo. Contudo, embora seja fácil

supor que todos aqueles que se rebelarem contra Deus durante o conflito final

serão ateus e outras pessoas secularizadas que O negam abertamente, a mais

enganosa forma de rebelião contra Deus é a que passa como sendo uma forma de

servi-Lo. Jesus disse que, quando Ele voltar, muitas pessoas irão Lhe dizer:

“Senhor, Senhor! Porventura, não temos nós profetizado em Teu nome, e em Teu

nome não expelimos demônios, e em Teu nome não fizemos muitos milagres?

Então, lhes direi explicitamente: nunca vos conheci. Apartai-vos de Mim, os que

praticais a iniquidade” (Mt 7:22, 23). Por isso, sem dúvida muitos daqueles que

receberão a marca da besta estarão se considerando como íntegros cristãos.

A falsa adoração em Apocalipse 13 e 14

189


A adoração é outro indicativo da condição espiritual daqueles que recebem a

marca da besta. A adoração é um dos temas centrais de Apocalipse 13 e 14, e são

descritos dois tipos: a verdadeira adoração a Deus e uma falsa adoração à besta do

mar e sua imagem. Antes de interpretarmos a marca da besta, será útil examinar o

que o Apocalipse diz sobre essa falsa adoração.

Os capítulos 13 e 14 mencionam várias vezes a falsa adoração. A primeira

menção está em Apocalipse 13:4: “E adoraram o dragão porque deu a sua

autoridade à besta; também adoraram a besta, dizendo: Quem é semelhante à

besta? Quem pode pelejar contra ela?” Esse verso fala de duas entidades que

estarão recebendo adoração: o dragão e a besta. O dragão, obviamente, é Satanás

(Ap 12:9). Sendo que a adoração descrita no verso 4 é dirigida em parte a ele,

obviamente deve ser uma falsa forma de adoração.

Apocalipse 13:8 confirma essa conclusão: Adorarão a besta “todos os que

habitam sobre a Terra, aqueles cujos nomes não foram escritos no Livro da Vida

do Cordeiro que foi morto desde a fundação do mundo”. O “livro da vida” contém

os nomes dos integrantes do verdadeiro povo de Deus (Ap 3:5). Assim, a adoração

à besta é claramente uma falsa forma de adoração, porque somente aqueles cujos

nomes não estão escritos no livro da vida participarão dela. O verdadeiro povo de

Deus se recusará a adorar a besta.

Também descobrimos um elo entre a falsa adoração e as atividades da besta

da terra. Contudo, há uma diferença: enquanto a besta do mar aceita adoração, a

besta da terra a impõe. Lemos sobre isso duas vezes na última metade de

Apocalipse 13: “Exerce toda a autoridade da primeira besta na sua presença. Faz

com que a Terra e os seus habitantes adorem a primeira besta, cuja ferida mortal

fora curada” (v. 12). “E [...] foi dado [à besta da terra] comunicar fôlego à

imagem

da besta, para que não só a imagem falasse, como ainda fizesse morrer quantos

não adorassem a imagem da besta” (v. 15).

Observe que a besta da terra “faz com que a Terra e seus habitantes adorem a

primeira besta”. Ela fazia “morrer quantos não adorassem a imagem da [primeira]

besta”. De alguma forma, a besta da terra forçará os seres humanos a adorar a

besta do mar. Durante o período medieval do papado, a igreja fazia as leis e o

Estado as impunha. Às vezes a igreja até desculpava o aprisionamento e execução

de “hereges” sob a alegação de que não era ela que punia esses indivíduos, mas o

Estado (embora ela os entregasse ao Estado precisamente para serem punidos).

Assim, durante o período medieval, o Estado era o braço de imposição da igreja.

O Apocalipse prediz a mesma relação entre a igreja e o Estado para o tempo

do fim: a besta da terra, que é uma entidade política, imporá a adoração à besta do

mar, uma entidade religiosa. Porém, essa falsa adoração custará um preço

190


terrível. Apocalipse 14:9-11 afirma: “Seguiu-se a estes outro anjo, o terceiro,

dizendo, em grande voz: Se alguém adora a besta e a sua imagem e recebe a sua

marca na fronte ou sobre a mão, também esse beberá do vinho da cólera de Deus,

preparado, sem mistura, do cálice da Sua ira, e será atormentado com fogo e

enxofre, diante dos santos anjos e na presença do Cordeiro. [...] Não têm descanso

algum, nem de dia nem de noite, os adoradores da besta e da sua imagem e quem

quer que receba a marca do seu nome.”

A mensagem do terceiro anjo é a mais solene advertência, registrada em

qualquer parte da Bíblia, que Deus já tenha feito a seres humanos. Portanto, o que

quer que seja essa “marca da besta”, é melhor que você e eu nos informemos

sobre ela e façamos tudo o que está ao nosso alcance para evitá-la.

191


V

ários anos atrás, o professor Kevin Warwick andou até a porta de seu

escritório na Universidade de Reading, em Reading, Inglaterra, e a porta

se abriu automaticamente, as luzes de seu escritório se acenderam e uma

voz disse: “Bem-vindo, professor Warwick!” Será que alguém, dentro do escritório

do professor Warwick, viu-o se aproximar, abriu a porta, acendeu as luzes e

pronunciou a saudação? Não. Será que uma câmera escondida captou seus

movimentos e transmitiu a informação para um monitor em outra parte do

edifício, fazendo com que um guarda de segurança acionasse um interruptor que

abriu a porta e acendeu as luzes, e o guarda de segurança então o cumprimentou?

Não.

A história é ao mesmo tempo mais simples e mais complexa. Uma semana

antes, o professor Warwick teve um microchip implantado debaixo da pele.

Quando ele se aproximou do escritório, um scanner leu as informações

armazenadas no microchip, e o scanner enviou a ordem que destrancou a porta,

acendeu as luzes e acionou uma gravação digital que lhe deu as boas-vindas. 1

Hoje em dia, milhões de cachorros, gatos, cavalos e exemplares bovinos têm

microchips implantados debaixo da pele. Esses chips tornam possível que

veterinários e agentes de controle animal identifiquem animais perdidos e roubados

e os devolvam a seus legítimos donos. Algum dia talvez os pais possam mandar

implantar esses chips em suas crianças, tornando possível identificá-las se alguma

vez forem sequestradas. E os filhos adultos talvez possam monitorar as atividades

de seus pais idosos: “Mamãe tomou seus remédios hoje de manhã? Papai escovou

os dentes?” E se os pais caírem no chão ou saírem de casa e se perderem,

o chip também poderia enviar um sinal para algum dispositivo que notificaria o

filho adulto sobre o problema. E pode chegar o dia em que você não mais precise

carregar um cartão de crédito na carteira ou na bolsa. Um scanner na loja irá ler

192


as informações do chipque estiver implantado em alguma parte de seu corpo e

autorizar a compra. O sistema seria tão seguro que você não precisaria nem

assinar uma nota de compra!

O nome dessa tecnologia é identificação por radiofrequência. Parece ótimo – e

é. Contudo, os defensores da liberdade civil já estão expressando preocupação com

o potencial para abuso que essa tecnologia apresenta. Suponha, por exemplo, que

num esforço para controlar o terrorismo, o governo exigisse de todo cidadão que

ele tivesse um número de identificação pessoal registrado num chip debaixo da

pele. Teoricamente, o governo poderia rastrear você em quase qualquer lugar. E

poderia monitorar e controlar todas as suas atividades econômicas. Isso seria ótimo

como forma de rastrear terroristas e outros criminosos que desejam causar dano

às pessoas. Não é tão bom assim para o resto de nós. Não gostamos da ideia de o

governo saber tanto a nosso respeito!

Desde que essa tecnologia se tornou exequível, alguns cristãos têm especulado

que a marca da besta poderia ser um microchip implantado debaixo da pele. A

ideia parece razoável numa leitura rápida do texto bíblico sobre a marca da besta:

“A todos, os pequenos e os grandes, os ricos e os pobres, os livres e os escravos, faz

que lhes seja dada certa marca sobre a mão direita ou sobre a fronte, para que

ninguém possa comprar ou vender, senão aquele que tem a marca, o nome da

besta ou o número do seu nome” (Ap 13:16, 17).

Dois elementos nos fazem lembrar de um microchip. Primeiro, a marca será

colocada na testa ou na mão, sendo ambos locais lógicos para a implantação de

microchips. Segundo, a marca, o que quer que seja ela, será usada para controlar o

comportamento das pessoas, o que um microchip tornaria muito possível.

Contudo, não creio que Deus estivesse predizendo microchips sob a pele

quando deu a João a visão sobre a marca da besta. O que, então, é essa “marca da

besta” que o Apocalipse apresenta com uma linguagem tão ameaçadora? Como

posso evitar recebê-la?

A verdadeira adoração em Apocalipse 14

A maior parte dos textos sobre adoração em Apocalipse 13 e 14 diz respeito

à falsa adoração. Das oito vezes que a palavra adoração ocorre nesses dois

capítulos, sete são sobre a adoração ao dragão ou à besta e sua imagem, sendo que

duas das sete são uma terrível advertência de Deus (Ap 14:9-11). Examinamos a

falsa adoração no capítulo anterior.

A oitava ocorrência da palavra adoração se encontra em Apocalipse 14:6 e 7,

em que um anjo conclama o povo de Deus a adorá-Lo. Essa, obviamente, é a

193


verdadeira adoração e, novamente, a questão é profundamente espiritual: “Vi outro

anjo voando pelo meio do céu, tendo um evangelho eterno para pregar aos que se

assentam sobre a terra, e a cada nação, e tribo, e língua, e povo, dizendo, em

grande voz: Temei a Deus e dai-Lhe glória, pois é chegada a hora do Seu juízo; e

adorai Aquele que fez o Céu, e a Terra, e o mar, e as fontes das águas”.

O que é essa verdadeira adoração do verdadeiro Deus? Temos uma boa

indicação na maneira em que o anjo menciona o verdadeiro Deus. Em realidade,

ele não diz: “Adorai a Deus.” Ele diz: “Adorai Aquele que fez o Céu, e a Terra, e o

mar, e as fontes das águas.” Portanto, o anjo está chamando os seres humanos em

toda parte a adorarem a Deus como o Criador.

Qualquer interpretação do Apocalipse precisa levar em consideração que

literalmente centenas de alusões ao Antigo Testamento ocorrem ao longo do livro.

Uma delas ocorre no chamado do anjo a adorar “Aquele que fez o Céu, e a Terra,

e o mar, e as fontes das águas”, que é quase uma citação direta do quarto

mandamento da lei de Deus (Êx 20:11). No quadro a seguir, o mandamento está no

lado esquerdo, e as palavras do anjo no Apocalipse, no lado direito. Note

especialmente as palavras em itálico:

Êxodo 20:11

“Porque, em seis dias, fez o Senhor os Céus e a Terra, o mar e

o que neles há” (ênfase acrescentada).

Aqui está o ponto importante: a adoração do verdadeiro Deus, a qual o anjo

conclama no Apocalipse, está baseada no quarto mandamento, que é o

mandamento do sábado. A partir dessa e de outras evidências, os adventistas

concluem que o primeiro anjo de Apocalipse 14 está conclamando o mundo a

guardar o sábado de Deus.

Agora, associe isso ao fato de que o povo de Deus do tempo do fim será um

povo que guarda os mandamentos: “Irou-se o dragão contra a mulher e foi pelejar

com os restantes da sua descendência, os que guardam os mandamentos de Deus e

têm o testemunho de Jesus” (Ap 12:17, ênfase acrescentada). “Aqui está a

194


perseverança dos santos, os que guardam os mandamentos de Deus e a fé em

Jesus” (Ap 14:12, ênfase acrescentada).

Esses dois textos nos dizem que o povo de Deus no tempo do fim guardará

todos os Seus mandamentos. Contudo, isso não será uma mera observância

legalista de regras e regulamentos. Apocalipse 14:12 declara que o povo de Deus

nesse tempo guardará os mandamentos de Deus e também guardará a fé em Jesus.

Mencionei no capítulo anterior que isso mostra que o povo de Deus no tempo do

fim terá uma clara compreensão da justificação pela fé e da relação correta entre

lei e graça. Essas pessoas terão aprendido como tornar a justificação pela fé real

na experiência deles, conservando sua lealdade à lei de Deus e ao mesmo tempo

reconhecendo que sua aceitação por Deus e sua salvação eterna estão

fundamentadas na morte de Cristo na cruz e não na obediência deles.

Os Dez Mandamentos e a adoração

A primeira tábua dos Dez Mandamentos está relacionada à adoração.

Apocalipse 13 alude ao segundo mandamento, que proíbe a adoração de imagens:

a besta da terra faz uma imagem em honra à besta do mar e ordena aos habitantes

da Terra que adorem a imagem. Os que se recusam a fazê-lo são ameaçados de

morte (v. 14, 15). Isso é uma clara alusão à história descrita em Daniel 3, de

Sadraque, Mesaque e Abede-Nego, que se recusam a adorar a imagem erigida

pelo rei Nabucodonosor. O irado rei condenou os três à morte numa fornalha de

fogo ardente. O Apocalipse aplica essa história aos verdadeiros cristãos do tempo

do fim. Eles também serão informados de que devem adorar uma imagem, e

serão ameaçados de morte se recusarem a fazê-lo. A obediência ao segundo

mandamento é claramente um assunto fundamental em Apocalipse 13.

Vimos que a obediência ao quarto mandamento também é um assunto

fundamental no capítulo 14. Os versos 6 e 7 apresentam um “anjo voando no meio

do céu” e conclamando o povo de Deus a adorá-Lo como o Criador – Aquele que

fez “o Céu, a Terra, o mar e as fontes das águas”, como diz o quarto mandamento.

Essa é a verdadeira adoração, em contraste com a falsa adoração da besta e sua

imagem.

Portanto, o que é essa falsa adoração? Se a verdadeira adoração no tempo do

fim será caracterizada pela guarda do sábado do quarto mandamento, o que

caracterizará seu oposto – ou seja, a adoração à besta e sua imagem? Por mais de

150 anos, os adventistas do sétimo dia têm dito que a falsa adoração durante a crise

final na Terra será a observância do domingo, quando for imposta por lei.

Uma das principais diferenças entre os cristãos atuais tem a ver com a escolha

do dia de descanso. A maioria dos cristãos observa o primeiro dia da semana, o

195


domingo, enquanto que os adventistas do sétimo dia e outros poucos observam o

sétimo dia da semana, o sábado. Os adventistas argumentam que não há qualquer

evidência bíblica de que Deus tenha mudado o dia de descanso do sábado para o

primeiro dia da semana. Na verdade, cremos que Ele ainda pede a Seu povo que

observe o sétimo dia. 2 Ensinamos que a obediência a todos os mandamentos de

Deus – uma das características de Seu povo nos últimos dias – requer que

observemos o sábado de acordo com o mandamento. Cremos que a observância

do domingo por parte da maioria dos cristãos, embora geralmente sincera, não

satisfaz às especificações do quarto mandamento. É por isso que entendemos que a

marca da besta seja a observância do domingo. Contudo, também insistimos que

nenhum cristão hoje está recebendo a marca da besta por causa de sua

observância do domingo. Somente quando o domingo como dia de adoração for

imposto por lei, com penalidades para os que se recusarem a observá-lo, é que

aqueles que continuarem a guardar o domingo receberão

a marca da besta.

Como eu disse no capítulo 9, os adventistas interpretam a besta da terra de

Apocalipse 13 como os Estados Unidos da América, e é a besta da terra que impõe

a marca da besta. Então, cremos que virá um momento em que o governo dos

Estados Unidos promulgará leis estabelecendo o domingo como dia oficial de

descanso e adoração. Eventualmente, esse país imporá duras penalidades àqueles

que se recusarem a honrar o domingo como dia de descanso, e levará o mundo

todo a essa falsa adoração. Pouco antes da volta de Cristo, aqueles que se

recusarem a obedecer serão ameaçados de morte, e talvez alguns paguem com a

vida por sua lealdade a Deus.

Uma perseguição assim por parte do governo dos Estados Unidos parece

inacreditável. Contudo, é o que nossa interpretação de Apocalipse 13 logicamente

requer, pois a besta da terra ameaça de morte qualquer pessoa que se recusar a

adorar da forma politicamente correta.

Ellen White e a marca da besta

Ellen White tinha bastante a dizer sobre a marca da besta. Ela advertiu que o

mundo está se aproximando de uma terrível crise, ao fim da qual Cristo descerá à

Terra e porá um fim à história das nações. A crise final que precede Sua volta

dividirá o mundo todo em apenas duas classes: os que recebem o selo de Deus e os

que recebem a marca da besta. E o que irá dividi-los, disse ela, será a controvérsia

do sábado versus o domingo. Aqui estão duas das declarações mais sucintas e

explícitas de Ellen White:

196


A questão do sábado será o ponto controverso no grande conflito final

em que o mundo inteiro será envolvido. [...] Cada instituição [sábado e

domingo] traz o nome de seu autor, a marca indestrutível que revela sua

autoridade. 3

O sábado será a pedra de toque da lealdade; pois é o ponto da verdade

especialmente controvertido. Quando sobrevier aos homens a prova final,

será traçada a linha divisória entre os que servem a Deus e os que não O

servem. Ao passo que a observância do sábado falso em conformidade

com a lei do Estado, contrária ao quarto mandamento, será uma

declaração de fidelidade ao poder que se acha em oposição a Deus. É a

guarda do verdadeiro sábado, em obediência à lei divina, uma prova de

lealdade para com o Criador. Ao passo que uma classe, aceitando o sinal

de submissão aos poderes terrestres, recebe o sinal da besta, a outra,

preferindo o sinal da obediência à autoridade divina, recebe o selo de

Deus. 4

Tudo isso, Ellen White disse, acontecerá através da legislação imposta pelo

governo dos Estados Unidos que estabeleça o domingo como dia oficial de

descanso e adoração:

Quando nossa nação, em suas assembleias legislativas, promulgar leis

que restrinjam a consciência das pessoas quanto ao seus privilégios

religiosos, impondo a observância do domingo e exercendo poder opressor

contra os que guardam o sábado do sétimo dia, a lei de Deus será, para

todos os efeitos, invalidada em nosso país, e a apostasia nacional será

seguida de ruína nacional. 5

Os dignitários da igreja e do Estado se unirão para subornar, persuadir

ou forçar todas as classes a honrar o domingo. A falta de autoridade divina

será suprida por legislação opressiva. A corrupção política está destruindo

o amor à justiça e a consideração para com a verdade; e mesmo na livre

América do Norte, governantes e legisladores, a fim de conseguir o favor

do público, cederão ao pedido popular de uma lei que imponha a

observância do domingo. 6 197


Quando as igrejas protestantes se unirem com o poder secular para

amparar uma religião falsa, à qual se opuseram os seus antepassados,

sofrendo com isso a mais terrível perseguição, quando o Estado usar seu

poder para impor os decretos e apoiar as instituições da igreja – então a

nação protestante dos Estados Unidos terá formado uma imagem ao

papado, e haverá uma apostasia nacional que somente terminará em ruína

nacional. 7

Ellen White também disse que o próprio povo exigirá a aprovação de leis

dominicais como forma de melhorar o nível moral da sociedade. Líderes religiosos

irão alegar “que a corrupção que rapidamente se alastra é atribuível em grande

parte à profanação do descanso dominical, e que a imposição da observância do

domingo melhoraria grandemente a moral da sociedade”. Essa alegação, disse ela,

será apresentada especialmente nos Estados Unidos. 8

Ao longo dos setenta anos de serviço de Ellen White à Igreja Adventista do

Sétimo Dia, ela nunca se desviou de sua advertência de que a crise final do mundo

será caracterizada por um conflito relativo à lei de Deus, sendo que a questão

primária será o mandamento do sábado.

Marca da autoridade papal

A marca da besta é um sinal ou marca de autoridade da besta do mar, que usa

essa autoridade para impor sua adoração ao mundo. Os adventistas entendem que

a besta do mar representa o papado; assim, a marca da besta será uma marca de

autoridade do papado. Mas como devemos entender esse conceito?

A resposta é muito simples. De acordo com a teologia católica romana, Jesus

investiu Sua igreja de uma autoridade tão grande que a qualifica até a mudar a lei

de Deus. Vemos uma indicação disso na profecia de Daniel 7. Expliquei no capítulo

3 por que os adventistas identificam o chifre pequeno como o papado medieval. O

verso 25 diz que esse chifre cuidaria “em mudar os tempos e a lei” (ênfase

acrescentada). Há muito os adventistas têm sustentado que a lei que a Igreja

Católica mudou inclui especialmente o mandamento do sábado.

Vários autores católicos têm afirmado que a mudança do dia de descanso do

sábado para o domingo foi um ato legítimo de sua igreja e que, ao continuar a

observância do domingo, os protestantes estão seguindo nos passos da Igreja

Católica, que possui vários ensinos que eles vigorosamente rejeitam. A seguir estão

vários exemplos:

198


Cardeal James Gibbons: A instituição divina de um dia para descanso

das ocupações comuns e para adoração religiosa, transferido pela

autoridade da igreja do sábado, o último dia, para o domingo, o primeiro

dia da semana, [...] é um dos sinais mais patentes de que somos um povo

cristão. 9

The Convert’s Cathecism of Catholic Doctrine [O Catecismo da

Doutrina Católica para o Convertido]:

P: Qual é o dia de descanso?

R: O dia de descanso é o sábado.

P: Por que observamos o domingo em vez do sábado?

R: Observamos o domingo em vez do sábado porque a Igreja Católica

transferiu a solenidade do sábado para o domingo. 10

Plain Talk About the Protestantism of Today [Conversa Franca Sobre o

Protestantismo de Hoje, livro de um autor católico]: Foi a Igreja Católica

que, pela autoridade de Jesus Cristo, transferiu esse repouso para o

domingo em lembrança da ressurreição de nosso Senhor. Assim, a

observância do domingo pelos protestantes é uma homenagem que

prestam, sem querer, à autoridade da Igreja [Católica]. 11

John A. O’Brien (professor de Teologia na Universidade de Notre

Dame na metade do século 20): O terceiro mandamento [quarto

mandamento em Êxodo 20 e para a maioria dos protestantes] é: “Lembrate

do dia de sábado para o santificar.” [...] A palavra “sábado” significa

descanso, e é o sétimo dia da semana.

Por que, então, os cristãos observam o domingo em vez do dia

mencionado na Bíblia? [...]

A igreja recebeu de seu Fundador, Jesus Cristo, autoridade para fazer a

mudança. Ele solenemente conferiu à Sua igreja o poder de legislar,

governar e administrar o poder das chaves dos Céus. 12

199


Foi essa reivindicação dos próprios católicos que levou os adventistas a

concluírem que a mudança do sábado para o domingo é uma marca da

reivindicação de Roma à autoridade espiritual. Essa é uma das razões mais

importantes pelas quais continuamos a afirmar que a marca da besta será a

observância do domingo imposta durante a crise final do mundo.

Mas é tão simplório!

Algumas pessoas podem objetar que o dia de guarda é uma questão simplória

demais para ser a terrível “marca da besta” do Apocalipse. Não necessariamente.

O sábado é um dos Dez Mandamentos. Isso o torna muito importante! Além disso,

os testes de obediência dados por Deus no passado sempre foram muito simples.

Veja, por exemplo, o teste que Ele deu a nossos primeiros pais: “Não comam do

fruto da árvore do bem e do mal” (veja Gn 2:17). Algumas pessoas podem

argumentar que Deus certamente não teria rejeitado Adão e Eva por algo tão

simples quanto comer um pedaço da fruta de determinada árvore. Mas se Deus

tivesse dado a Adão e Eva algum teste muito difícil, como pular de um abismo,

eles poderiam ter-se desculpado sob a alegação de que era um teste difícil demais.

Foi a própria simplicidade do teste que o tornou tão eficiente.

O teste para os três hebreus que enfrentaram o irritado Nabucodonosor

também foi extremamente simples: apenas se curvem e adorem a imagem por

alguns minutos. Os hebreus podiam ter-se abaixado para amarrar o cadarço de

suas sandálias sem adorar a imagem. Mas a lealdade a Deus exigia que eles

permanecessem de pé, eretos, para que todo mundo pudesse vê-los (veja Dn 3).

Isso nos faz lembrar outra característica de testes semelhantes à marca da

besta: eles geralmente envolvem um sinal exterior que tem grande visibilidade

pública. Não houve dúvidas sobre a quem os três jovens escolheram obedecer.

Toda a multidão – centenas e talvez milhares de pessoas – pôde vê-los de pé,

eretos. Daniel podia ter deixado as janelas de sua casa fechadas quando foi

ameaçado de morte por adorar ao Deus do Céu, mas abriu as janelas para que o

mundo o visse de joelhos, cabeça curvada, voltado para Jerusalém. Durante os

primeiros anos da história cristã, muitos dos mártires cristãos receberam um

pouquinho de incenso e lhes foi ordenado que o atirassem no fogo em frente a um

deus pagão, mas eles preferiram sacrificar a vida a desonrar o Deus do Céu. Todos

esses testes tanto foram extremamente simples como grandemente visíveis.

Por isso, a marca da besta também envolverá uma escolha que seja ao

mesmo tempo muito simples e altamente visível – e a questão do sábado versus o

domingo apresenta as duas características. É a própria simplicidade da questão e

sua visibilidade que a torna uma candidata tão excelente para a marca da besta.

200


Seria possível, é claro, guardar o sábado em casa,

e ninguém notaria nada, assim como Daniel poderia ter mantido suas janelas

fechadas e evitado a acusação de violar o decreto do rei. Mas os adventistas

entendem que a questão será uma observância imposta do domingo, talvez

envolvendo frequência à igreja, e aqueles que se recusarem a obedecer serão

muito visíveis.

Será que isso pode realmente acontecer?

A compreensão adventista sobre marca da besta tem sido um dos ensinos mais

controvertidos durante os últimos 150 anos. Mais de cem anos atrás, um de nossos

críticos disse que um acontecimento como esse nos Estados Unidos “seria um

milagre maior do que Deus fazer crescer um carvalho gigante num

instante”. 13 Outro crítico o chamou de “a mais extravagante” de nossas

“extravagantes especulações proféticas”. 14

Então, será que pode realmente acontecer?

Muitos que conhecem o ensino adventista dizem “não”. E, de fato, parece

incrível supor que o governo dos Estados Unidos algum dia aprove uma lei

impondo a observância do domingo com penalidades severas para os

desobedientes. Por exemplo, os Estados Unidos hoje se constituem uma nação

muito secularizada, e uma lei dominical de qualquer tipo não seria bem recebida

pelas pessoas secularizadas, muito menos uma lei que tivesse severas penalidades

para os não conformistas. Entretanto, os adventistas continuam a crer que a marca

da besta, como a entendemos, pode realmente acontecer – e, na verdade, vai

acontecer. No mundo atual, essa ideia é muito mais crível do que era durante

grande parte do século 20, como iremos ver.

1 Gail Russell Chaddock, “Microchip Under His Skin”, The Christian Science

Monitor, 3 de setembro de

1998;http://www.csmonitor.com/1998/0903/090398.feat.feat.2.html.

2 Sobre a importância do sábado, veja o Apêndice B. O Apêndice C apresenta

uma resposta adventista aos argumentos protestantes mais comuns para a

observância do domingo.

201


3 Ellen G. White, Testemunhos Para a Igreja (Tatuí: Casa Publicadora

Brasileira, 2005), v. 6, p. 352.

4 Ellen G. White, O Grande Conflito (Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2001

[CD-Rom]), p. 605.

5 Ellen G. White, Eventos Finais, p. 133, 134.

6 Ellen G. White, O Grande Conflito, p. 592.

7 Ellen G. White, The Seventh-day Adventist Bible Commentary (Washington,

DC: Review and Herald, 1957), v. 7, p. 976; parcialmente em White, Eventos

Finais, p. 134.

8 Ellen G. White, O Grande Conflito, p. 587.

9 James Cardinal Gibbons, “The Claims of the Catholic Church in the Making

of the Republic”; citado em John Gilmary Shea e outros, The Cross and the Flag,

Our Church and Country (Nova York: The Catholic Historical League of America,

1899), p. 24, 25; ênfase acrescentada.

10 Peter Geirman, The Convert’s Catechism of Catholic Doctrine, edição de

1957 (St. Louis: B. Herder, 1930), p. 50.

11 Louis Gaston de Segur, Plain Talk About the Protestantism of To-day (Boston:

Patrick Donahoe, 1868), p. 225; ênfase acrescentada.

12 Citado em William H. Shea, Daniel: A Readers Guide (Nampa: Pacific

Press, 2005), p. 121, 122, ênfase acrescentada.

13 Theodore Nelson na introdução ao livro de Dudley M. Canright, Seventhday

Adventism Renounced (Nashville: Gospel Advocate Company, 1914), p. 23.

14 Canright, Seventh-day Adventism Renounced, p. 89.

202


M

ichael Quitman passou trinta dias numa prisão na Geórgia, Estados

Unidos, em 1878. As condições da prisão eram tão imundas que nesse

curto tempo sua saúde se deteriorou, e um ano e meio mais tarde ele

morreu. Sua ofensa? Havia trabalhado no domingo.

Três homens, William Dortch, W. H. Parker e James Stem, estavam

aprisionados no Tennessee em 1885, e passaram várias semanas trabalhando numa

turma de prisioneiros acorrentados. Seu crime? Haviam violado a lei de

observância do domingo de seu estado. Haviam trabalhado nesse dia.

R. M. King foi preso no Tennessee em 1889 e novamente em 1890 por algo

muito ofensivo: cultivar milho e capinar sua plantação de batatas – num domingo!

Em 21 de maio de 1888, o senador H. W. Blair de New Hampshire apresentou

um projeto de lei no Congresso dos Estados Unidos que, se tivesse sido aprovado,

teria separado o domingo como dia nacional de adoração religiosa. Os opositores

ao projeto salientaram que ele violava a proibição da Primeira Emenda contra o

estabelecimento da religião, e com isso ele morreu. No ano seguinte, o senador

deixou a linguagem religiosa fora do projeto de lei e reapresentou-o, mas este

último projeto teve o mesmo destino do que ele havia apresentado no ano anterior.

À primeira vista, esses episódios históricos triviais parecem pouco mais que

ilustrações das crescentes dores dos Estados Unidos rumo ao estabelecimento da

liberdade religiosa para todos. Porém, em vista da explicação da marca da besta

que fiz no capítulo anterior, você percebe que toda a atividade relativa a uma lei

dominical nacional entre 1888 e 1890 captou a atenção dos adventistas do sétimo

dia. Naquela época, eles viram esses eventos como sinais da crise final e da breve

volta de Jesus. A febre do fim dos tempos ardia no coração deles!

203


Contudo, os sinais não perduraram. As leis dominicais permaneceram nos

livros da maioria dos estados da União, mas lá pelo ano de 1900 seu cumprimento

já havia deixado de ser imposto e, com uma exceção aqui e ali, permaneceram

sem se fazer cumprir durante todo o século 20. Então, por que esperaríamos que

tanto tempo depois essas leis fossem tiradas do papel, aumentadas e aplicadas?

Além disso, o cenário proposto pelos adventistas requer não apenas leis dominicais

estaduais, mas uma lei dominical nacional. Contudo, nos mais de duzentos anos

desde a fundação da nação, o Congresso dos Estados Unidos nunca aprovou uma

lei dominical nacional. Que razão há para esperar que agora irá fazê-lo?

Separação entre igreja e Estado sob ataque

Observe a razão pela qual, em 1888, o Congresso se recusou a aprovar o

projeto de lei de H. W. Blair separando o domingo como dia nacional de descanso:

uma lei assim teria violado a proibição da Primeira Emenda contra o

estabelecimento de algo que tivesse cunho religioso. Assim, a separação entre

igreja e Estado manteve esta proposta de lei fora da legislação do governo norteamericano.

Creio que nunca poderá haver uma lei dominical nacional enquanto o

Congresso dos Estados Unidos guiar sua legislação pelos princípios de separação

entre igreja e Estado. A esta altura você provavelmente já entende uma das razões

básicas pelas quais uma lei dominical nacional é uma expectativa realista hoje:

como salientei no capítulo 14, o princípio da separação entre igreja e Estado está

sendo ferozmente atacado pelos protestantes da direita cristã norte-americana.

Considere as seguintes declarações, que citei naquele capítulo:

Pat Robertson: “Não existe isso [separação entre Igreja e Estado] na

Constituição. É uma mentira da esquerda, e não vamos mais tolerá-la.” 1

D. James Kennedy: “Não há dúvida de que podemos testemunhar a

queda, não só do muro de Berlim, mas do ainda mais diabólico ‘muro de

separação’ que tem levado à secularização, impiedade, imoralidade e

corrupção em nosso país.” 2

W. A. Criswell: “Não existe algo como separação entre igreja e

Estado. É meramente uma ficção imaginária dos incrédulos.” 3

Francis Schaeffer: “Hoje a separação entre igreja e Estado nos

Estados Unidos é usada para silenciar a igreja.” 4

204


Essas são declarações extremamente significativas feitas por protestantes da

direita cristã. Infelizmente, como afirmei no capítulo 14, eles não são os únicos a

atacar a separação entre igreja e Estado. Considere novamente o seguinte:

William Rehnquist: “O ‘muro de separação entre a igreja e o Estado’ é

uma metáfora [... que] deve ser franca e explicitamente abandonada.” 5

Tom DeLay: “Afirmar que nossos Pais Fundadores [os fundadores dos

Estados Unidos] eram a favor da separação entre igreja e Estado é

reescrever a história, ou é ser muito ignorante sobre ela.” 6

Jay Alan Seculow: “Não há nenhum ‘muro’ de separação!” 7

O ataque à separação entre igreja e Estado está acontecendo também no

próprio Congresso dos Estados Unidos. As cortes continuam a bloquear o caminho

para que a direita cristã alcance seu objetivo de uma teocracia cristã nos Estados

Unidos. Por isso, vários legisladores simpáticos aos objetivos da direita cristã

continuam a apresentar projetos de lei no Congresso dos Estados Unidos que

restringiriam as cortes de julgarem casos relacionados a questões religiosas. Por

exemplo, em 2005, Gresham Barrett, deputado federal pela Carolina do Sul,

apresentou um projeto de lei chamado “Ato de Proteção à Oração Pública”. Esse

projeto de lei declarava:

A Suprema Corte não terá jurisdição para rever, por apelação, ordem

de avocação (writ of certiorari 8 ) ou outro meio, qualquer processo

relacionado ao estabelecimento da religião que envolva uma entidade do

governo federal ou de um governo estadual ou local. 9

O projeto de lei do deputado Barrett também dizia que

qualquer decisão de corte federal tomada antes ou depois da

decretação da lei “não constitui um precedente obrigatório 10 para a corte

de qualquer estado, do Distrito de Colúmbia ou de qualquer comunidade,

território ou possessão dos Estados Unidos”. 11

205


Um site comentou que o projeto de lei de Barrett “na verdade tornaria a

Primeira Emenda um artefato histórico sem qualquer força de lei”. 12 Se o “Ato de

Proteção à Oração Pública” se transformasse em lei, todas as decisões da

Suprema Corte na história norte-americana que estivessem baseadas na Primeira

Emenda se tornariam completamente nulas.

Um projeto de lei semelhante que tem sido apresentado ao Congresso dos

Estados Unidos todos os anos, desde 1994, é o chamado “Ato de Restauração

Constitucional”. Esse projeto de lei, se aprovado, destituiria as cortes de todo direito

legal de julgar casos relacionados à Primeira Emenda. Significativamente, o “Ato

de Restauração Constitucional” foi escrito pelo presidente da Suprema Corte

Estadual do Alabama, Roy Moore, que lutou sem sucesso para conservar um

monumento dos Dez Mandamentos no edifício da Suprema Corte daquele

estado. 13

Em realidade, a Câmara dos Estados Unidos já afirmou algo semelhante. Na

quarta-feira, 19 de julho de 2006, a Câmara aprovou um projeto que, se tivesse se

tornado lei, teria impedido as cortes federais de julgar a constitucionalidade das

palavras “sob Deus” no Juramento de Lealdade. A votação foi de 260 a 167, o que

não é exatamente um resultado muito apertado. 14 Felizmente, o Senado votou

contra o projeto de lei.

Se o Congresso dos Estados Unidos aprovasse algum desses projetos,

transformando-os em leis, os não religiosos imediatamente questionariam a

legislação, levando a luta até chegar à Suprema Corte. Estou praticamente certo de

que a Corte, mesmo com Roberts e Alito na magistratura, quase certamente a

rejeitariam. Mas a questão não é que precisamos temer uma revogação imediata

da Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos. A questão é que um

segmento significativo da população norte-americana é abertamente hostil ao

princípio da separação entre igreja e Estado. E se a oposição deles continuar e

crescer, a separação entre igreja e Estado pode de fato um dia deixar de ser um

princípio fundamental da legislação e jurisprudência norte-americana.

Anos atrás, Ellen White predisse que chegará um dia em que os Estados

Unidos irão “repudiar todos os princípios de sua Constituição, que fizeram deles um

governo protestante e republicano”. 15 O ataque à separação entre igreja e Estado

por parte dos protestantes da direita cristã e seus esforços para impedir a Suprema

Corte de julgar casos relacionados à Primeira Emenda são avanços alarmantes em

direção ao cumprimento da predição de Ellen White.

Em 1960, os líderes protestantes norte-americanos insistiram em que John F.

Kennedy fizesse um voto apoiando uma separação entre igreja e Estado antes que

206


eles o apoiassem em seu objetivo de chegar à presidência. Menos de 50 anos mais

tarde, os líderes dessas mesmas denominações estão na vanguarda da oposição à

separação entre igreja e Estado. Ao mesmo tempo, os católicos, que sempre

favoreceram historicamente a união entre igreja e Estado e sempre se opuseram à

separação entre os dois, estão rapidamente ganhando poder político nos Estados

Unidos.

Assim, é muito realista hoje em dia dizer que o histórico princípio norteamericano

da separação entre igreja e Estado está, cada vez mais, em terreno

perigoso. E isso está abrindo caminho para que sejam promulgadas leis religiosas

nos Estados Unidos. Um projeto de lei que autorizasse uma lei dominical nacional

dificilmente passaria no Congresso dos Estados Unidos hoje. Mas em vista do fato

de que a principal barreira legal à legislação dominical nos Estados Unidos está sob

ameaça, ele poderia passar facilmente num futuro não tão distante.

Levando a nação de volta a Deus

Durante a maior parte dos últimos duzentos anos, os valores judaico- cristãos

da população norte-americana influenciaram fortemente suas leis. Em um ponto

ou outro da história desse país, a expressão pública de vulgaridades já foi proibida,

a pornografia já foi severamente regulamentada e os relacionamentos

homossexuais já foram ilegais. Contudo, essas proibições foram em grande parte

colocadas de lado nos últimos anos, e há um forte senso entre os protestantes da

direita cristã de que os Estados Unidos estão numa derrocada moral. Nossos

entretenimentos públicos estão cada vez mais cheios de violência, sexo e

vulgaridade. A internet tem multiplicado exponencialmente a propagação da

pornografia. O aborto sob demanda está matando milhões de bebês todos os anos.

A homossexualidade está obtendo larga aceitação, e as uniões e casamentos

homossexuais estão se tornando cada vez mais comuns.

Ao mesmo tempo, a expressão religiosa está gradualmente sendo excluída das

instituições do governo. No princípio da década de 1960, a oração e leitura da

Bíblia patrocinadas pelos estados foram banidas das escolas públicas do país. Mais

recentemente, a Suprema Corte decidiu contra a colocação dos Dez Mandamentos

em propriedades do governo, e os não religiosos estão

desafiando as palavras religiosas no Juramento de Lealdade e nas moedas norteamericanas.

De repente, há um clamor nos Estados Unidos para levar o país “de

volta a Deus”. Os protestantes da direita cristã estão exigindo uma “guerra

cultural” que restaure a nação a sua herança cristã.

Ênfase nos Dez Mandamentos

207


Durante os últimos 150 anos, muitos protestantes se opuseram à prática

adventista de observar o sétimo dia da semana, com o argumento de que “os Dez

Mandamentos foram abolidos”. Ainda ouvimos essa objeção. Contudo, hoje está

havendo, entre os protestantes conservadores do país, uma forte ênfase nos Dez

Mandamentos como o fundamento do sistema legal norte-americano. Isso tem

acontecido em grande parte por causa do declínio moral da nação. O resultado é

que os Dez Mandamentos estão uma vez mais em voga.

Escrevo este parágrafo na sexta-feira, 5 de maio de 2006. Daqui a dois dias

será o Dia dos Dez Mandamentos, patrocinado pela Comissão dos Dez

Mandamentos. O seguinte texto do site declara a razão para sua existência:

Recentes decisões legais contra os Dez Mandamentos, bem como

várias outras tendências perturbadoras que testemunhamos diariamente

em nossa cultura, demonstram claramente que nosso país está se

afastando dessa tradição. Essas ações têm ameaçado a própria essência e

fundamento de nossa cultura e fé. Os Dez Mandamentos e todas as outras

referências a Deus, que têm servido como o alicerce moral e a âncora de

nosso grande país, estão sistematicamente sendo removidos de lugares

públicos. As exibições públicas dos Dez Mandamentos e outros símbolos de

nossa fé têm sido um poderoso testemunho visual do fato de que os Estados

Unidos da América são “uma nação sob Deus”. Sua remoção dos lugares

públicos mostra que aqueles que sustentam interesses humanistas seculares

pretendem destruir a herança moral de nossa nação.

Com os ataques realizados pelos humanistas seculares e com a

iminente ameaça internacional do islamismo radical, as pessoas de fé se

tornam a linha de defesa – este é o “Muro de Jerusalém”, e você é o

atalaia que Deus colocou.

Os que se importam com os valores tradicionais não podem se sentar

passivamente e assistir à remoção dos próprios princípios que tornaram

grande este país. Os Dez Mandamentos e o que eles representam

constituem o âmago de todo código moral e precisam ser recolocados no

âmago de nossa sociedade.

Não devemos permitir que os oponentes dos valores tradicionais

tenham êxito.

A Comissão dos Dez Mandamentos foi fundada para se opor aos

interesses secularizados e ajudar a restaurar os Dez Mandamentos e os

208


valores judaico-cristãos a seu legítimo lugar em nossa sociedade. 16

Os adventistas do sétimo dia têm corretamente dado forte apoio a esse

interesse nos Dez Mandamentos. Afinal de contas, há 150 anos temos dado essa

ênfase, mesmo diante de significativa oposição protestante. Assim, o chamado

para uma restauração dos Dez Mandamentos como o fundamento da lei e da

ordem social é inteiramente apropriada. Afinal de contas, Ellen White disse: “Em

Sua lei Deus tornou conhecidos os princípios que sustentam toda verdadeira

prosperidade, tanto das nações como dos indivíduos.” 17 Certamente, uma volta aos

Dez Mandamentos ajudaria a restaurar a ordem moral a uma nação que

moralmente está cada vez mais fora de controle. E é precisamente por isso que a

Comissão dos Dez Mandamentos foi organizada. A declaração em seu site diz: “Os

Dez Mandamentos e o que eles representam constituem o âmago de todo código

moral e precisam ser recolocados no âmago de nossa sociedade.”

A reforma moral da sociedade

Portanto, qual é o problema? O que tudo isso tem a ver com a legislação

referente ao domingo? Leia cuidadosamente a seguinte frase: “A Comissão dos

Dez Mandamentos foi fundada para se opor aos interesses secularizados e ajudar a

restaurar os Dez Mandamentos e os valores judaico-cristãos a seu legítimo lugar

em nossa sociedade.” Observe que coloquei em itálico a palavra sociedade. Há

uma crescente ênfase entre os protestantes da direita cristã sobre a mudança da

sociedade norte-americana e fazê-la voltar a suas raízes bíblicas. As seguintes

citações ilustram essa verdade:

Pat Robertson: “O plano de Deus é que Seu povo assuma o domínio.

[...] O Senhor diz: ‘Deixarei que vocês redimam a sociedade.’” 18

D. James Kennedy: “Nossa tarefa é recuperar os Estados Unidos para

Cristo, qualquer que seja o custo. Como os representantes de Deus,

devemos exercer domínio e influência piedosos sobre [...] todos os

aspectos e instituições da sociedade humana.” 19

Paul Wey rich: “Estamos falando sobre cristianizar os Estados Unidos.

Devemos simplesmente propagar o evangelho num contexto político.” 20

Francis Schaeffer: “O governo civil e, portanto, a lei, precisam estar

baseados na lei de Deus dada na Bíblia. [...] O Estado deve ser

209


administrado de acordo com os princípios da lei de Deus.” 21

Randall Terry : “Nosso alvo é uma nação cristã. Temos um dever

bíblico: somos chamados por Deus a conquistar este país.” 22

O problema que vejo com essa ênfase em reformar a sociedade, conquistar os

Estados Unidos e redimi-los para Cristo, é que ela pode facilmente levar à

intolerância para com aqueles que discordam dessa ideia. Quando leio a história da

queda da raça humana no Éden, fico impressionado com o fato de que Deus

permitiu que Seus filhos Lhe desobedecessem se assim o escolhessem. Creio que

os cristãos precisam conceder o mesmo privilégio hoje àqueles que rejeitam a

Deus.

A imoralidade era excessiva no Império Romano durante o 1º século de nossa

era, incluindo a homossexualidade e o infanticídio (a matança de bebês

indesejados). Mas em nenhuma parte do Novo Testamento os apóstolos sugeriram

que os cristãos deviam tentar reformar a sociedade ou redimir o Império Romano,

mudando suas leis de forma a refletir valores bíblicos. A igreja cristã primitiva não

buscava a conversão da sociedade. Eles buscavam a conversão de indivíduos.

Eventualmente os valores cristãos acabaram reformando a sociedade romana,

mas só como resultado de trezentos anos de luta dos cristãos para converter

indivíduos, um pagão de cada vez.

O texto redigido pela Comissão dos Dez Mandamentos que citei anteriormente

enfatiza a restauração da moralidade pública: “Os que se importam com os valores

tradicionais não podem se sentar passivamente e assistir à remoção dos próprios

princípios que tornaram grande este país. Os Dez Mandamentos e o que eles

representam constituem o âmago de todo código moral e precisam ser recolocados

no âmago de nossa sociedade.”

Note a ênfase sobre a reforma moral da sociedade. Anos atrás, Ellen White

disse que a reforma moral da sociedade norte-americana seria um dos argumentos

apresentados pelos líderes protestantes para apoiarem uma lei dominical nacional.

Ela disse que esses líderes religiosos iriam alegar que “a corrupção que

rapidamente se alastra é atribuível em grande parte à profanação do descanso

dominical, e que a imposição da observância do domingo melhoraria grandemente

a moral da sociedade”. 23

Alguns líderes da direita cristã já estão insistindo nesse argumento. Em seu

livro Why the Ten Commandments Matter [Por Que os Dez Mandamentos

Importam], D. James Kennedy escreveu um capítulo sobre cada um dos Dez

Mandamentos, mostrando por que eles ainda são importantes no século 21. Seu

210


capítulo sobre o quarto mandamento inclui uma seção na qual ele apresenta

resumidamente os argumentos protestantes típicos em apoio à mudança do dia de

descanso do sétimo para o primeiro dia da semana. 24 Então diz:

Os cristãos precisam compreender que observar o dia de descanso

[domingo] na verdade cria um clima mais moral em nossa cultura.

Promove uma conscientização de que Deus e Seus caminhos e leis são

importantes para todos nós. Sem a moralidade pública, nossas leis

seculares têm menos significado; o resultado é que a transgressão da lei

aumenta, e nossa nação mergulha no crime, no medo, na desordem e na

injustiça.

A partir do testemunho da igreja primitiva, do testemunho de nossa

vida desordenada e do testemunho de nossa sociedade que cambaleia à

beira do colapso moral, vemos que a necessidade do dia de repouso é

verdadeiramente urgente. 25

É óbvio que os adventistas do sétimo dia apoiam a renovada ênfase nos Dez

Mandamentos que está acontecendo nos Estados Unidos! Mas também

argumentaremos que, por ignorar a santidade que Deus colocou no sétimo dia, a

grande maioria dos cristãos, consciente ou inconscientemente, está na verdade

transgredindo o quarto mandamento, que se encontra no centro dos dez. Estão

transgredindo o quarto mandamento em nome da sua observância. O perigo é que,

no interesse de melhorar a moralidade pública, o Congresso dos Estados Unidos

possa legalizar o domingo como dia de descanso, contrariamente ao próprio quarto

mandamento que ele deseja honrar. Assim, os adventistas veem aspectos tanto

positivos quanto negativos nessa ênfase renovada sobre os Dez Mandamentos.

Será que essa ênfase renovada nos Dez Mandamentos não poderia levar a uma

legislação que imponha o domingo como dia oficial de descanso

e adoração?

D ie s D o m in i

Em 31 de maio de 1998, o papa João Paulo II publicou uma carta apostólica

intitulada Dies Domini, que em latim quer dizer “dia do Senhor”. Nessa carta, ele

insistiu com todos os católicos sobre a importância de santificar o domingo. O texto

de João Paulo II tem muitas coisas que a recomendam. Por exemplo, ele salientou

que uma correta teologia do sábado precisa levar em consideração que ele se

211


originou na criação. “A fim de entender plenamente o significado do domingo”, ele

disse, “precisamos reler a grande história da criação e aprofundar nossa

compreensão da teologia do sábado.” 26 Ele também salientou algo que os

adventistas enfatizam há muito tempo: que “antes de decretar que algo seja feito, o

mandamento [do sábado] insiste em que algo seja lembrado”. 27

E finalmente, embora ele tenha aplicado o quarto mandamento ao domingo, o

conselho de João Paulo II sobre como guardar o mandamento se assemelha às

recomendações adventistas para a observância do sábado. Além da frequência aos

serviços da igreja (para ele, a missa), o papa sugeriu que os cristãos se dediquem a

obras de misericórdia e caridade: “Convidar para uma refeição pessoas que vivem

sozinhas, visitar os doentes, proporcionar alimento para famílias necessitadas,

passar algumas horas em serviço voluntário e atos de solidariedade.” 28

Entretanto, a carta apostólica de João Paulo II também levanta algumas

bandeiras vermelhas significativas. A respeito da lei dominical de Constantino, ele

disse: “Os cristãos se regozijaram de ver assim removidos os obstáculos que até

então tinham às vezes tornado a observância do dia do Senhor algo heroico. Eles

podiam agora se dedicar à oração em comum sem impedimento.” 29 E quanto a

nossos próprios dias, ele disse: “Nesse assunto, meu predecessor, o papa Leão XIII,

em sua encíclica Rerum Novarum, falou do descanso do domingo como um direito

do trabalhador que o Estado precisa garantir.” Ele declarou também: “Nas

circunstâncias particulares de nosso próprio tempo, os cristãos naturalmente se

esforçarão para garantir que a legislação civil respeite seu dever de santificar o dia

de guarda.” 30

No capítulo 16, falei sobre a grande influência política que os líderes católicos

norte-americanos exercem atualmente sobre o governo dos Estados Unidos. Essas

pessoas estão determinadas a fazer com que sua compreensão da moralidade,

incluindo o aborto, a eutanásia e a pesquisa com células-tronco, seja promulgada

como lei nesse país. A esta altura, os líderes católicos norte-americanos não

exigem uma legislação que proteja o domingo como dia de descanso religioso e

adoração. Contudo, uma vez que esses outros princípios morais católicos tenham se

tornado a lei do país – e estou convencido de que isso vai acontecer – será apenas

um passo além o exigir a proteção legal do domingo. Isso é especialmente

provável em vista da carta apostólica de João Paulo II, Dies Domini, que insta os

governos a protegerem o domingo como dia de descanso e adoração.

Também acho interessante que, em uma conferência ocorrida em 2005 e

patrocinada pelo Conselho Judaico-Cristão para a Restauração Constitucional, o

rabino Aryeh Spero “assumiu a atitude incomum de lutar por um dia de descanso

212


cristão, dizendo à multidão: ‘Eu sugeriria que instituamos novamente o dia de

descanso, o domingo, como era antes. Façam do dia de domingo um dia de fé.’” 31

No contexto de uma conferência que exigia “Restauração Constitucional”, Spero

estava claramente exigindo leis – talvez até uma emenda constitucional – que

tornasse o domingo um dia de descanso religioso e adoração.

Leis dominicais nos Estados Unidos

Agora, no princípio do século 21, quando os protestantes da direita cristã e os

católicos romanos trabalham juntos, eles têm poder político suficiente nos Estados

Unidos para eleger quase qualquer pessoa que desejarem e promulgar quase

qualquer lei que desejarem. Será que acabarão exigindo uma lei que imponha o

domingo como dia de descanso religioso e adoração? No final do século 19, Ellen

White fez uma declaração significativa. Ela disse que, “mesmo na livre América

do Norte, governantes e legisladores, a fim de conseguir o favor do público,

cederão ao pedido popular de uma lei que imponha a observância do domingo”. 32

Essa declaração é ameaçadora à luz da pressão que os católicos e os protestantes

da direita cristã já estão fazendo sobre os líderes do congresso norte-americano e

os legisladores estaduais para promulgarem leis que imponham a moral cristã

conservadora.

Estou nas listas de e-mail de vários grupos conservadores, e constantemente

recebo apelos para que pressione, nesta ou naquela questão, os deputados federais

por meu estado. A internet tornou extremamente fácil fazer isso. E-mails insistindo

com as pessoas para que entrem em contato com seus deputados federais

geralmente incluem um link no qual as pessoas podem clicar e enviar mensagens

preparadas para todos os senadores e/ou deputados federais eleitos por seu estado.

A reforma da imigração foi um assunto de intenso debate público nos Estados

Unidos durante o ano de 2006, e ilustra o poder que os norte-americanos – e

mesmo os de outros países – têm hoje sobre os legisladores nacionais e estaduais.

Os conservadores formam a base política do Partido Republicano, que em 2006

controlou a presidência e ambas as casas do Congresso. Contudo, existe também

um imenso eleitorado hispânico nos Estados Unidos, que tanto republicanos quanto

democratas procuram avidamente seduzir. Durante os dois primeiros trimestres de

2006, os conservadores norte-americanos fizeram tremenda pressão sobre seus

senadores e deputados federais para que promulgassem leis de imigração severas.

Eu sei, porque fui bombardeado com frenéticos e-mails me incitando – me

suplicando, me pedindo – que contatasse os congressistas de meu estado em apoio

à proteção de nossas fronteiras e a leis mais duras contra estrangeiros ilegais. Os

pobres legisladores ficaram entre a cruz e a espada! Enquanto escrevo este

213


capítulo, ainda resta saber em que direção o Congresso se inclinará, mas isso não

vem ao caso. O que desejo que você observe é a tremenda pressão que ambos os

lados colocam sobre o Congresso. A declaração de Ellen White, de que “mesmo na

livre América do Norte, governantes e legisladores, a fim de conseguir o favor do

público, cederão ao pedido popular de uma lei que imponha a observância do

domingo”, assume novo significado à luz das exigências populares que estão sendo

feitas de todos os lados, agora, sobre o Congresso, com respeito a outros assuntos.

E então, será que o Congresso dos Estados Unidos em algum momento no

futuro promulgará uma lei que imponha o domingo como dia de descanso religioso

e adoração? Essa é uma pergunta sobre o futuro e, a partir de uma perspectiva

estritamente secular, obviamente não posso responder “sim”. Porém, mesmo a

partir de uma perspectiva secular, posso reconhecer que o fundamento cultural

para uma lei como essa está se formando rapidamente. Como adventista do sétimo

dia, não hesito em dizer que uma lei dominical nacional – que vimos predizendo há

150 anos e que tem parecido tão tola para tantas pessoas durante a maior parte

desse tempo – agora é uma distinta possibilidade. Os adventistas estão seguros de

que isso se tornará realidade em algum momento no futuro.

Continue atento à leitura.

1 De um discurso de Pat Robertson feito em novembro de 1993, citado em

Anti-Defamation League, The Religious Right: The Assault on Tolerance and

Pluralism in America (Nova York: Anti- Defamation League, 1994), p. 4.

2 Citado em “They Said It! Religious Right Leaders in Their Own Words”.

3 De uma entrevista da CBS de 6 de setembro de 1984, gravada um dia após

ele ter dado a bênção na Convenção Nacional Republicana, citado em Anti-

Defamation League, The Religious Right: The Assault on Tolerance and Pluralism in

America, p. 4.

p. 36.

4 Francis A. Schaeffer, A Christian Manifesto (Westchester: Crossway, 1981),

5 William Rehnquist em Wallace v. Jaffree, 1984.

214


6 Citado em Signswatch, inverno de 2001, p. 3.

7 Ministry Magazine (não a adventista), outono de 2004; citada por Rob Boston

em “Religious Right Power Brokers: The Top Ten”, Church and State, junho de

2006, p. 13.

8 O writ of certiorari é uma ordem escrita que uma Corte de apelação ou a

Suprema Corte expede para uma Corte inferior no sentido de que lhe remeta um

determinado caso a fim de ser revisto pela Corte superior, por se tratar de um

possível erro legal.

9 RedSonja2000, “Dominionist Dream: Repeal the First Amendment”, 16 de

dezembro de 2005, Talk to Action,

http://www.talk2action.org/story /2005/12/l6/103532/64.

10 Binding precedent: decisão judicial de uma corte superior que constitui

norma jurídica a ser seguida por todas as cortes inferiores em casos semelhantes

(N. da T.).

11 RedSonja2000, “Dominionist Dream”.

12 Ibid.

13 Ibid.

14 Jim Abrams, “House Passes Bill Shielding Pledge of Allegiance”, The Idaho

Statesman, 20 de julho de 2006, Main 15.

15 Ellen G. White, Testemunhos para a Igreja (Tatuí: Casa Publicadora

Brasileira, 2004), v. 5, p. 451.

16 “The Ten Commandments Day ”, http://www.tencommandmentsday.com.

Nota: o conteúdo desse site muda ligeiramente a cada ano, por ocasião do Dia dos

Dez Mandamentos. A citação que se encontra aqui é do Dia dos Dez Mandamentos

de 2006.

17 Ellen G. White, Profetas e Reis (Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2001

[CD-Rom]), p. 500; ênfase acrescentada.

215


18 Comentário de Pat Robertson no programa de televisão Clube dos 700;

citado em RedSonja2000, “Dominionist Dream”.

19 Citado em “Rise of the Religious Right in American Politics”,

http://www.theocracywatch.org.

1980.

20 Signswatch, Winter 2001, p. 4; declaração de Paul Weyrich em agosto de

21 Francis A. Schaeffer, A Christian Manifesto (Westchester: Crossway, 1981),

p. 100. Nessas frases, Schaeffer apresenta os conceitos do filósofo político do

século 17, Samuel Rutherford (1600-1661), mas fica claro pelo contexto que ele

partilha das ideias de Rutherford.

22 The News Sentinel, Fort Wayne, Indiana, 16 de agosto de 1993; citado em

Anti-Defamation League, The Religious Right, p. 4.

23 Ellen G. White, O Grande Conflito (Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2001

[CD-Rom]), p. 587; ênfase acrescentada.

24 Respondo a vários desses argumentos no Apêndice B.

25 D. James Kennedy, Why the Ten Commandments Matter (Nova York:

Warner Faith, 2005), p. 81, 82 na cópia de leitura pré-publicação do editor.

26 João Paulo II, Carta Apostólica Dies Domini, 1:8;

http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/apost_letters/documents/hf_jpii_apl_05071998_dies-domini_en.html

<http://www.vatican.va/holy _father/john_paul_ii/apost_letters/documents/hf_jpii_apl_05071998_dies-domini_en.html>.

27 Ibid., 1:16.

28 Ibid., 4:69, 72.

29 Ibid., 4:64.

30 Ibid., 4:66, 67, ênfase acrescentada.

31 Citado por Rob Boston em “Judge Not”, Liberty, setembro-outubro de 2005,

216


p. 23.

32 White, O Grande Conflito, p. 592.

217


S

e você é como a maioria dos leitores deste livro, provavelmente não tem

nenhuma ideia do que significam as palavras reconstrucionismo e

dominionismo. Reconstrucionismo é o nome de um movimento

ultraconservador iniciado por R. J. Rushdoony. Dominionismo é um conceito

teológico no qual se baseia o reconstrucionismo.

A maioria dos leitores deste livro provavelmente também nunca ouviu falar de

R. J. Rushdoony. Alguns conhecem o nome de Francis A. Schaeffer. Schaeffer não

era um reconstrucionista, mas era um dominionista em sua teologia. Ambos os

homens tiveram um profundo impacto sobre o pensamento dos protestantes da

direita cristã norte-americana. Começarei com Rushdoony.

R. J. Rushdoony

Rousas John Rushdoony nasceu em 25 de abril de 1916, na cidade de Nova

York. Seus pais eram refugiados da Armênia. Na verdade, sua mãe estava grávida

quando a família fugiu do genocídio na Armênia que estava sendo perpretado pelos

turcos otomanos. Rushdoony nasceu pouco depois de ter chegado aos Estados

Unidos. A família de Rushdoony, porém, não permaneceu em Nova York. Seu pai

aceitou o compromisso de pastorear uma igreja presbiteriana armena em

Kingsburg, Califórnia, e, portanto, Rushdoony cresceu na costa oeste. Graduou-se

pela Universidade da Califórnia, em Berkley, onde se formou em Inglês e em

Pedagogia. Também frequentou a Faculdade de Religião do Pacífico (também em

Berkeley ), pela qual se graduou em 1944. Tanto a Universidade da Califórnia

quanto a Faculdade de Religião do Pacífico eram (e são) baluartes do liberalismo,

mas Rushdoony não aceitou sua filosofia liberal. Aprendeu nelas o que significa o

liberalismo, e o rejeitou.

218


Após seus estudos em Teologia, Rushdoony entrou no ministério presbiteriano.

Sua primeira designação foi para uma missão entre os chineses em São Francisco.

Depois disso, ele aceitou convite para trabalhar com uma tribo de índios no norte

de Nevada, onde passou oito anos.

Rushdoony era um leitor infatigável. Leu um livro por dia, seis dias por

semana, durante cerca de cinquenta anos! E não apenas lia. Fazia anotaçõs e

produzia um índice pessoal na capa de trás de cada livro. 1 No final da vida, ele já

possuía mais de 33 mil livros, os quais guardava num espaçoso cômodo que era sua

biblioteca particular.

Rushdoony era também um autor prolífico. Seu primeiro livro, By What

Standard? [Por Qual Padrão?], publicado em 1959, foi uma introdução aos

conceitos do erudito holandês Cornelius Van Til, professor no Seminário

Westminister da Filadélfia, Pensilvânia, cuja teologia influenciou Rushdoony

fortemente. Nas duas décadas seguintes, Rushdoony escreveu mais de doze livros.

Em 1965, mudou-se para Los Angeles, onde estabeleceu a Chalcedon Foundation

[Fundação Calcedônia]. Em outubro de 1965, começou a escrever o Chalcedon

Report [Relatório de Calcedônia], um boletim mensal que ao longo dos anos

apresentou em detalhes a teologia e filosofia política do reconstrucionismo.

O livro mais abrangente de Rushdoony foi Institutes of Biblical Law [Institutos

da Lei Bíblica], de 900 páginas, que foi publicado em 1973. Ele consistia em

grande parte de sermões que haviam sido pregados entre 1968 e 1972. Os Institutes

de Rushdoony aplicam os princípios legais da Bíblia a condições do mundo

moderno. Ele fundamentou sua filosofia da lei nos Dez Mandamentos, e depois fez

aplicações das leis do Antigo Testamento, especialmente as do Pentateuco, ao

mundo atual. Ele considerou que todas as leis do Antigo Testamento, exceto aquelas

especificamente abolidas pelo Novo Testamento, estão em vigor hoje. Rushdoony

faleceu em 8 de fevereiro de 2001.

Os modernos críticos defensores do Estado laico da direita cristã são muito

severos com Rushdoony. Eles o satirizam e falam dele e da Chalcedon Foundation

nos termos mais ríspidos. É importante manter em mente, ao ler esses autores, que

o evangelho não faz absolutamente nenhum sentido para eles. São tão prontos a

satirizar você e eu, ou qualquer outro cristão evangélico por nossas crenças, como

o estão para ridicularizar Rushdoony pelas dele.

Embora eu partilhe da preocupação dos críticos sobre certos aspectos da

filosofia de Rushdoony sobre igreja e Estado, primeiro gostaria de fazer um breve

comentário sobre três áreas nas quais eu – e creio que a maioria dos adventistas –

concordaria com ele.

219


Pontos positivos de Rushdoony

Primeiro, Rushdoony tinha um profundo interesse na educação cristã. Ele cria

que a responsabilidade primária pela educação das crianças repousa sobre a

família e a igreja, não sobre o Estado. Assim, ele era um forte defensor de as

igrejas estabelecerem escolas cristãs, e também apoiava enfaticamente o ensino

escolar doméstico (home schooling). Rushdoony compareceu como uma

testemunha especialista (expert witness) em muitos casos de julgamento ao redor

dos Estados Unidos em que a educação cristã estava sendo desafiada. Também

compareceu a julgamentos que tratavam de educação escolar no lar e ajudou a

estabelecer a legitimidade dessa forma de educação cristã. Assim, fez uma

importante contribuição para o estabelecimento da legitimidade da educação cristã

nos Estados Unidos. Os adventistas, por isso, têm uma dívida de gratidão para com

Rousas John Rushdooony.

A segunda área de acordo em Rushdoony e os adventistas está em sua

compreensão do evangelho. A página da Chalcedon Foundation inclui um link sobre

as crenças da instituição e, obviamente, de Rushdoony. A declaração de crenças da

Fundação Calcedônia inclui um parágrafo sobre justificação que está em harmonia

com a compreensão adventista. A declaração diz, em parte:

Cremos que os pecadores são salvos unicamente com base na morte

substitutiva e expiatória de Cristo e em Sua vida de cumprimento da lei – a

obediência passiva e ativa de Cristo (2Co 5:21; 1Pe 2:24). Além disso,

cremos que somente pela fé alguém pode se apropriar da justificação, ou

seja, a aceitação legal do ser humano à vista de Deus como “inocente”

(Rm 5:1; Ef 2:8-10). Sendo que a fé em si é um dom de Deus, nenhum tipo

de guarda da lei ou de obras que uma pessoa possa realizar poderiam, de

alguma forma, assegurar sua justificação ou aceitação perante Deus, ou

contribuir para ela. Deus não coopera com o homem em salvá-lo. Deus

salva pecadores; Ele não os ajuda

a se salvarem. A guarda da lei e as boas obras são resultados essenciais da

justificação; não são a base ou o meio de alguém se apropriar da

justificação (1Co 6:9, 10; 1Jo 1:8). [...] O Deus que justifica também

santifica, e a santificação significa obediência progressiva aos requisitos de

Deus, Sua lei do Antigo e do Novo Testamentos. 2

Finalmente, embora eu discorde completamente de alguns dos conceitos de

Rushdoony sobre a lei, seu entendimento da relação entre lei e graça e do lugar da

lei no plano da salvação é semelhante ao dos adventistas. Na introdução de seu

220


livro The Institutes of Biblical Law, ele escreve:

O propósito da graça não é colocar de lado a lei, mas cumprir a lei e

capacitar o homem a guardar a lei. Se a lei era tão séria à vista de Deus

que exigiria a morte de Jesus Cristo, o Filho único de Deus, a fim de fazer

expiação pelo pecado do homem, parece estranho que Deus depois

abandonasse a lei! 3

Creio que os adventistas do sétimo dia podem afirmar completamente a ênfase

de Rushdoony (e da Fundação Calcedônia) na educação cristã e a compreensão

deles sobre a justificação e a relação entre lei e graça. E embora possamos

discordar completamente de alguns outros aspectos dos ensinos deles, devemos

evitar um ataque indiscriminado a eles. Contudo, outros aspectos me causam

séria preocupação.

Meu desacordo com Rushdoony

Os críticos não cristãos de Rushdoony tendem a desprezá-lo. Eles o

ridicularizam como um fundamentalista extravagante e tolo. Essa é uma atitude

perigosa, porque Rushdoony não era nenhum tolo. Mesmo um exame casual de

seu livro The Institutes of Biblical Law o revelam como um atento pensador cujos

conceitos teológicos e políticos formavam um sistema de crenças muito lógico e

coerente. Rushdoony era também um bom escritor. Expressava seus conceitos

claramente. Seu estilo é muito fácil de se ler e compreender. A seguir, resumirei o

sistema de crenças dele.

Pós-milenarismo. Rushdoony cria que Cristo estabeleceu Seu reino eterno por

ocasião de Sua ressurreição, e que o milênio descrito em Apocalipse 20 começou

naquela época. Assim, ele entendeu que o milênio era figurativo da Era Cristã, e

não uma contagem exata de mil anos. De acordo com esse cenário, a segunda

vinda de Cristo ocorrerá em algum momento distante do futuro.

Aperfeiçoamento da sociedade. Rushdoony cria que os cristãos conseguirão

converter o mundo todo. Jesus virá a segunda vez quando o mundo todo tiver sido

cristianizado e estiver preparado para Lhe dar as boas-vindas. E aqui está o pontochave:

Rushdoony cria que os cristãos são responsáveis por aperfeiçoar a

sociedade, inclusive seus governos civis, a fim de que Jesus possa retornar. Em seu

livro The Institutes of Biblical Law, ele disse: “O ser humano é convocado a criar a

sociedade que Deus requer.” 4 Isso é semelhante à crença de Agostinho de que é

221


responsabilidade da Igreja Católica cristianizar a sociedade, inclusive seus

governos, para que Jesus possa voltar.

Dominionismo. Rushdoony era um firme defensor do dominionismo, também

conhecido como “teologia do domínio”. O dominionismo baseia-se na história do

Éden em Gênesis. Quando Deus criou Adão e Eva, ordenou-lhes: “Dominai sobre

os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todo animal que rasteja pela

terra” (Gn 1:28; ênfase acrescentada). Rushdoony cria que essa ordem de domínio

ainda está em vigor hoje. Ele declara:

A aliança de Deus com Adão exigia que ele exercesse domínio sobre

a Terra e a subjugasse (Gn 1:26-28) sob a autoridade de Deus e de acordo

com a lei (ou palavra) de Deus. Essa relação do ser humano para com

Deus era uma aliança. [...]

A restauração dessa relação de aliança era a obra de Cristo, Sua graça

para Seu povo escolhido. O cumprimento dessa aliança é a grande

comissão deles: subjugar todas as coisas e todas as nações a Cristo e à Sua

lei-palavra.

A ordem dada na criação foi precisamente o requisito de que o ser

humano subjugasse a Terra e exercesse domínio sobre ela. Não há uma

palavra na Bíblia indicando ou subentendendo que essa ordem tenha

sido revogada. 5

O propósito de Deus ao exigir que Adão exercesse domínio sobre a

Terra permanece como Sua contínua palavra de aliança: o ser humano,

criado à imagem de Deus, a quem foi ordenado que subjugasse a Terra e

exercesse domínio sobre ela em nome de Deus, é novamente chamado a

essa tarefa e privilégio por sua redenção e regeneração. 6

Jesus disse a Seus discípulos: “Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações,

batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; ensinando-os a

guardar todas as coisas que vos tenho ordenado” (Mt 28:19, 20). Rushdoony

compreendia isso como uma repetição da ordem de domínio dada por Deus a

Adão e Eva em Gênesis. Ele escreveu: “Os redimidos são novamente chamados

ao propósito original do ser humano, de exercer domínio debaixo da autoridade de

Deus.” 7 Assim, no conceito de Rushdoony sobre o futuro, o cumprimento final da

grande comissão de Cristo ocorrerá quando o mundo como um todo tiver se

colocado sob o domínio de Cristo através dos esforços da igreja, e uma sociedade

cristã tiver sido estabelecida em cada nação. Isso, ele argumentava, é o preparo

pelo qual Jesus está ansiando para que possa voltar.

222


A lei bíblica. Rushdoony não cria em um Estado laico, com suas leis que são

baseadas na sabedoria humana. “Em qualquer cultura”, ele afirmou, “a fonte da lei

é o deus dessa sociedade. Se a lei tem sua fonte na razão do homem, então a razão

é o deus dessa sociedade.” 8 Segundo Rushdoony, a razão também se torna a

religião daquela sociedade. “Os fundamentos da lei são inescapavelmente

religiosos”, ele declarou, pois “não existe nenhuma sociedade sem um fundamento

religioso ou sem um sistema legal que codifica a moralidade de sua religião.” 9

Assim, se a sabedoria humana é a religião de uma sociedade, então as leis daquela

sociedade estarão baseadas na religião da sabedoria humana – isto é, humanismo e

secularismo. Rushdoony não cria no governo norte-americano, com suas leis que

são em grande parte baseadas em premissas seculares. Ele cria que as leis

seculares têm sido “selvagens em [sua] hostilidade ao sistema de leis da Bíblia”. 10

“A lei revelada [isto é, a lei bíblica]”, ele disse, “é necessidade e privilégio da

sociedade cristã. É o único meio pelo qual o homem pode cumprir a ordem que lhe

foi dada na criação, de exercer domínio debaixo da autoridade de Deus.” 11

No novo mundo cristão de Rushdoony, a lei bíblica substituiria as leis seculares

como o fundamento para o governo da sociedade. Ele escreveu: “A lei civil não

pode ser separada da lei bíblica, pois a doutrina bíblica da lei inclui todas as leis:

civis, eclesiásticas, sociais, familiares e todas as outras formas de lei.” 12 A lei

bíblica, ele concluiu, “é, portanto, a lei para o cristão e a sociedade cristã”. 13 Ele

ansiava pelo dia – embora não em sua época – em que o mundo inteiro estaria

verdadeiramente convertido e as leis civis de todas as nações seriam baseadas na

Bíblia.

“Leis para casos específicos”. Rushdoony via os Dez Mandamentos como o

fundamento para todas as leis bíblicas. Contudo, pelo fato de que esses

mandamentos são breves, Deus expandiu seu significado por meio das leis levíticas

e outras leis do Pentateuco, para que os israelitas pudessem entender tudo o que os

Dez Mandamentos abrangiam. Rushdoony chamou essas leis adicionais de “leis

para casos específicos”. Esse conceito é básico para a concepção de Rushdoony

sobre a lei bíblica; portanto citarei um parágrafo de seu livro:

Sem a lei para casos específicos, a lei de Deus logo seria reduzida a

um escopo de significado extremamente limitado. Isso, é claro, foi

precisamente o que aconteceu. Os que negam a presente validade das leis

do Antigo Testamento fora os Dez Mandamentos têm como consequência

uma definição muito limitada de roubo. Sua definição geralmente segue a

lei civil de seu país, é humanista e não é radicalmente diferente das

223


definições dadas pelos muçulmanos, budistas e humanistas. Mas, ao

analisar as leis para casos específicos, que ilustram a lei “Não furtarás”,

veremos quão amplo é seu significado. 14

A “lei para casos específicos” à qual Rushdoony se referia era primariamente

o restante das leis civis, religiosas, morais e de saúde que há no Pentateuco,

embora ele também reconhecesse que “o conceito bíblico de lei é mais amplo que

os códigos legais da formulação mosaica. O termo “lei” se aplica à palavra e

instrução divina em sua totalidade”. 15 Rushdoony considerava todas as leis bíblicas

como sendo ainda aplicáveis durante a era cristã, a menos que, como as leis

cerimoniais, elas tenham sido especificamente abolidas no Novo Testamento. Por

exemplo, quanto ao mandamento levítico de que a mulher devia estar “impura”

por vários dias após o nascimento de uma criança, Rushdoony disse: “Não há razão

válida para a descontinuação desse rito.” 16

Rushdoony também cria que, num mundo ideal, essas leis bíblicas para casos

específicos seriam incluídas nas leis civis das nações. Dez capítulos nas quase 900

páginas de seu livro The Institutes of Biblical Law são dedicadas a uma análise de

cada um dos Dez Mandamentos à luz das “leis para casos específicos” pertinentes

a eles. Entre outras coisas, Rushdoony considerava as leis do Pentateuco que

exigiam a pena de morte como aplicáveis ainda hoje. Ele disse: “Uma lei-ordem

piedosa restauratá a pena de morte.” 17 Ele chegou ao ponto de chamar a pena

capital de um “aspecto do dever religioso do homem”. 18 Três vezes em seus

institutos da lei bíblica, ele alistou os crimes que requerem a pena de morte, 19 e

comentou sobre a maioria deles ao longo do livro. 20 No modelo utópico de

Rushdoony, o governo civil imporia todas essas leis bíblicas. Rushdoony ansiava

pelo dia em que a maior parte da população do mundo seria formada por cristãos,

e a lei bíblica seria a base para as leis civis de todas as nações do mundo. Ele cria

que isso prepararia o mundo para a segunda vinda de Jesus.

Análise de Rushdoony

Em um exame cuidadoso, percebemos que algumas das principais premissas

de Rushdoony são completamente falhas a partir de uma perspectiva bíblica, e

constituem um coquetel para a perseguição daqueles que rejeitam suas ideias.

O dominionismo e a Grande Comissão. Como mencionei anteriormente,

Rushdoony cria que a ordem de Deus a Adão e Eva para que dominassem o

224


mundo ainda está em vigor, e é novamente declarada à igreja por Cristo em Sua

grande comissão. Contudo, ele não apresentou nenhuma base exegética para essa

conclusão. Simplesmente a declarou.

Essa é uma área na qual discordo completamente de Rushdoony. Não há

nenhuma ligação exegética razoável entre o “domínio” que Deus ordenou em

Gênesis 1 e Sua grande comissão em Mateus 28. Em Gênesis, Deus ordenou a

Adão e Eva que dominassem “sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e

sobre todo animal que rasteja pela terra” (v. 28) – em outras palavras, o reino

animal. O domínio sobre as pessoas era papel de Deus.

Em Mateus 28:19, Jesus ordenou a Seus seguidores que fizessem discípulos de

todas as nações. Ele nem mesmo insinuou que eles devessem ter domínio sobre

todas as nações. 21 A “teoria do domínio” de Rushdoony enxerga no texto bíblico

mais do que a linguagem do verso pode sustentar. Jesus repetiu Sua ordem aos

discípulos em vários outros lugares do Novo Testamento, e em parte alguma Ele

sequer deixou implícito que ela incluía o domínio sobre governos civis. Em Mateus

24:14, Ele disse: “E será pregado este evangelho do reino por todo o mundo, para

testemunho a todas as nações.” Em Lucas 24:48, Ele disse a Seus discípulos que

eles deviam ser “testemunhas destas coisas” – isto é, de Sua vida, morte e

ressurreição. E, em

Atos 1:8, Ele disse: “Sereis minhas testemunhas tanto em Jerusalém como

em toda a Judeia e Samaria e até os confins da Terra” (NVI). A palavra-chave em

todos esses textos é testemunho, não domínio. Esses textos simplesmente não

apoiam a ideia de que Jesus pretendia que Seus seguidores tivessem domínio sobre

as nações do mundo e seus governos civis.

Um tempo do fim perfeito. Do ponto de vista otimista de Rushdoony, à medida

que mais pessoas se converterem a Cristo, o mundo todo gradualmente se tornará

cristão, inclusive seus governos civis. Esses governos estarão baseados em todas as

leis bíblicas do Antigo e do Novo Testamentos, e esse será o sinal para que Jesus

volte.

Essa noção de um tempo do fim perfeito é refutada pelo ensino bíblico de que

“nos últimos dias, sobrevirão tempos difíceis” (2Tm 3:1). Nos versos 1-5, Paulo

apresenta uma longa lista dos pecados dos quais as pessoas nos últimos dias seriam

culpadas. Jesus predisse que pouco antes de Sua volta os ensinos de falsos cristos e

falsos profetas serão tão difundidos que até Seus próprios escolhidos estarão em

perigo de sucumbir ao engano (Mt 24:23, 24). Pedro escreveu que “nos últimos

dias, virão escarnecedores com os seus escárnios, andando segundo as próprias

paixões” (2Pe 3:3). E de acordo com o Apocalipse, com exceção dos poucos

remanescentes de Deus, o mundo todo seguirá a besta do mar em sua rebelião

contra Deus (Ap 13:4, 8). É à malévola besta do mar que será dada “autoridade

225


sobre cada tribo, povo, língua e nação” no tempo do fim, não ao povo de Deus (v.

7).

O Novo Testamento deixa muito claro que o mundo, pouco antes da segunda vinda

de Cristo, estará intensificando sua rebelião contra as leis de Deus, e não crescendo

em sua lealdade a Ele.

O dominionismo e a perseguição. Entretanto, minha principal preocupação

com a “teoria do domínio” de Rushdoony é que ela é uma receita para a

perseguição. Embora Rushdoony tenha reconhecido que a ordem de Cristo a Seus

discípulos inclui a conversão dos indivíduos, em sua mente ela também inclui a

conversão das sociedades e a moldagem de suas leis civis em conformidade com a

lei bíblica. Foi precisamente esse ponto de vista da igreja que levou ao domínio

católico da política europeia durante a Idade Média – incluindo seu funesto

resultado, a horrível perseguição de “hereges” simplesmente porque eles

discordavam da religião estatal.

Creio que em qualquer momento que os cristãos trocarem a grande comissão

de Cristo (o testemunho a todas as nações) para o domínio de todas as nações com

leis bíblicas, mais cedo ou mais tarde o resultado será perseguição daqueles que

discordam disso. A ordem que recebemos foi reformar indivíduos, não a

sociedade. A sociedade será reformada nas culturas em que mais e mais indivíduos

se tornarem cristãos. Mas a ordem permanecerá para sempre: a redenção de

indivíduos, não da sociedade. A ideia de que os cristãos (e a igreja) devem

reformar a sociedade é um caminho direto para a perseguição das pessoas, nessa

sociedade, que escolherem não ser reformadas.

Agora, aqui está um ponto que não podemos perder de vista: Rushdoony

publicou seu livro The Institutes of Biblical Law em 1973, na época exata em que os

conservadores políticos dos Estados Unidos estavam recrutando os conservadores

religiosos para sua causa. Rushdoony forneceu a esses religiosos conservadores a

justificação teórica e teológica que precisavam para se unir ao exército dos

conservadores políticos. Isso não quer dizer que os cristãos conservadores de hoje

adotam completamente a teologia de Rushdoony. A maioria dos cristãos da direita

cristã de hoje são dispensacionalistas pré-milenaristas que creem num

arrebatamento iminente e na breve volta de Cristo. Eles rejeitam o pósmilenarismo

de Rushdoony. Além disso, a maioria dos líderes da direita cristã

rejeita a aplicação extrema da lei bíblica que Rushdoony faz – especialmente sua

exigência para a imposição de todas as leis levíticas que requerem a pena de

morte. Ralph Reed, que durante grande parte da década de 1990 foi diretor

executivo da Coalizão Cristã de Pat Robertson, criticou o reconstrucionismo de

Rushdoony como “uma ideologia autoritária que ameaça as mais básicas

liberdades civis de uma sociedade livre e democrática”. 22

226


Porém, embora os cristãos da direita cristã, de maneira geral, rejeitem os

pontos de vista mais extremos de Rushdoony, são muito atraídos para sua noção de

que os governos devem ser cristãos e que as leis norte-americanas devem ser

baseadas na Bíblia, tornando assim os Estados Unidos uma “nação cristã”.

Francis Schaeffer

Francis Schaeffer nasceu em 30 de janeiro de 1912 e cresceu em

Germantown, na Pensilvânia. Como Rushdoony, era presbiteriano. Após sua

graduação na faculdade, passou um ano estudando sob a tutela de Cornelius Van Til

no Seminário Teológico de Westminster, na Filadélfia (Van Til, se você se recorda,

teve uma grande influência na teologia e na filosofia política de Rushdoony. Na

verdade, o primeiro livro publicado de Rushdoony, By What Standard?, é uma

análise da teologia de Van Til). Schaeffer completou seus estudos teológicos no

Faith Theological Seminary em Baltimore, Mary land, onde se formou em 1938.

Depois de trabalhar como pastor na Pensilvânia e Missouri, mudou-se para a Suíça

em 1955, onde estabeleceu uma comunidade chamada L’Abri – um termo francês

que significa “o abrigo”.

Schaeffer acabou se tornando um dos mais amplamente respeitados

pensadores sociais, teológicos e políticos em círculos cristãos conservadores

durante a segunda metade do século 20. Um admirador chamou-o de “o último dos

teólogos modernos relevantes e verdadeiramente grandes”. 23 Schaeffer não foi

um discípulo de Rushdoony. Porém, tanto Schaeffer quanto Rushdoony possuíam

conceitos dominionistas, cuja base filosófica aprenderam com Cornelius Van Til, 24

e ambos defendiam uma volta da sociedade norte-americana, inclusive o governo,

a suas raízes cristãs. A enciclopédia online Wikipedia (em inglês) comenta:

“Schaeffer e Rushdoony leram os escritos um do outro, e até se encontraram.

Schaeffer conduziu um estudo dos escritos de Rushdoony no instituto de Schaeffer

[L’Abri] na Suíça.” 25 Uma das quatro principais ênfases no ensino do instituto de

Schaeffer, L’Abri, é esta:

Sendo que o cristianismo é verdadeiro, ele fala à vida toda e não a

uma esfera estreitamente religiosa, e muito do material produzido por

L’Abri tem o objetivo de ajudar a desenvolver uma perspectiva cristã

sobre as artes, a política e as ciências sociais, e assim por diante. 26

Em seu livro A Christian Manifesto [Um Manifesto Cristão], Schaeffer

227


argumentou de maneira apaixonada que os materialistas seculares, cuja filosofia

ele afirmava controlar o governo norte-americano, “não têm base suficiente nem

para a sociedade nem para a lei”. 27 Ele queria dizer que o secularismo, que está

baseado exclusivamente na sabedoria humana, é inadequado como uma base

sobre a qual possam ser estruturadas as leis morais de uma nação. Ele então

prosseguiu salientando o que considerava ser uma “base suficiente” para a lei:

Essa base era a lei escrita de Deus, retrocedendo desde o Novo

Testamento até a Lei escrita de Moisés; e o conteúdo e a autoridade dessa

Lei escrita estão enraizados nAquele que é a realidade final. Assim, nem a

igreja nem o Estado eram iguais a essa lei, e muito menos estavam acima

dela. A base para a lei não é dividida, e ninguém, incluindo reis, o Estado e

a igreja, tem o direito de colocar algo acima do conteúdo da lei de Deus. 28

Em Romanos 13:1, Paulo declarou: “Todo homem esteja sujeito às autoridades

superiores; porque não há autoridade que não proceda de Deus; e as autoridades

que existem foram por Ele instituídas.” A partir desse versículo, Schaeffer

argumentou que “o Estado deve ser administrado de acordo com os princípios da

lei de Deus”. 29 Esse conceito permeia o livro de Schaeffer. Em outra parte de seu

livro ele disse: “A lei [civil] está fundamentada na lei de Deus”, 30 e “o governo

civil, como toda a vida, está debaixo da lei de Deus”. 31 Schaeffer citou John Knox,

o qual afirmou que o poder dos reis “é limitado pela Palavra de Deus”. 32

Nos Estados Unidos, o governo é “do povo, pelo povo e para o povo”, 33 o que

significa que o povo formula suas próprias leis, que podem ou não se conformar

em todos os aspectos à lei de Deus. Contudo, foi ao governo “do povo, pelo povo e

para o povo” que Schaeffer objetou de maneira especial. Ele argumentou:

Vivemos numa sociedade secularizada e numa lei secularizada e

sociológica. Por lei sociológica queremos dizer lei que não tem base fixa,

mas nessa lei um grupo de pessoas decide o que é sociologicamente bom

para a sociedade em dado momento; e o que eles arbitrariamente

decidem se torna lei. 34

Isso é precisamente o que o “governo do povo, pelo povo e para o povo”

228


significa. Nos Estados Unidos, por mais de 200 anos, a lei tem refletido valores

cristãos pelo fato de que a maior parte dos norte-americanos tem sido formada por

cristãos. Schaeffer argumentou que essa base para a lei mudou durante a última

metade do século 20. E em certo sentido, ele estava certo. Nossa cultura se tornou

mais secularizada. Os próprios cristãos tendem a pensar em termos mais seculares

hoje do que o faziam cem anos atrás, e as leis da nação e as decisões de suas

cortes estão gradualmente vindo a refletir essa mudança.

Isso foi precisamente o que Schaeffer achou tão objetável. Ele argumentou

que “toda a estrutura judaico-cristã de nossa sociedade está sendo atacada e

destruída. Estão dando a ela uma base inteiramente oposta, o que dá resultados

exatamente opostos”. 35 Assim, de acordo com Schaeffer, os Estados Unidos estão

engajados em uma guerra cultural: “Essas duas religiões, o cristianismo e o

humanismo, se colocam uma contra a outra como totalidades.” 36 “Devíamos estar

lutando e orando para que toda essa outra entidade – a visão de mundo que enfatiza

o acaso e a energia material – possa ser repelida, juntamente com todos os seus

resultados na totalidade da vida.” 37 “Precisamos compreender que haverá uma

batalha a cada passo do caminho. Eles [os materialistas seculares] estão

determinados a fazer com que o que eles ganharam não seja repelido.” 38

“Estamos em guerra.” 39

A ideia de que a lei de Deus forma a base para a lei do governo civil está no

fundamento de todas as teocracias. Posteriormente, Schaeffer afirmou que não

estava “de maneira alguma falando sobre qualquer tipo de teocracia”. 40

Tecnicamente, ele estava correto. Por definição, uma teocracia é um governo que

é administrado por Deus ou pelo clero em nome de Deus. Mas, de qualquer forma,

na compreensão dele, as leis de Deus se tornam as leis do Estado. Então, embora

Schaefer possa não ter tido em mente um estado governado por sacerdotes, sua

declaração de que ele não estava exigindo uma teocracia contradiz sua exigência

de que a lei de Deus deve ser a base da lei civil.

Novamente, como Rushdoony, Schaeffer entrou em cena como um

importante pensador evangélico protestante exatamente no momento em que os

conservadores políticos norte-americanos estavam recrutando os conservadores

religiosos do país para sua causa. E juntamente com Rushdoony, Schaffer forneceu a

esses conservadores religiosos a justificação teórica e teológica que eles

precisavam para se unir ao exército dos conservadores políticos. Schaeffer estava

ainda mais próximo da maioria dos protestantes evangélicos do que Rushdoony,

porque Schaeffer era um pré-milenarista, enquanto que Rushdoony era um pósmilenarista.

Schaeffer foi fortemente influenciado pelo dominionismo de

229


Rushdoony. Ele simplesmente o adaptou ao pré-milenarismo. 41

Um ponto-chave que não podemos passar por alto é que tanto Rushdoony

quanto Schaeffer estavam convencidos de que as leis do Estado precisavam estar

baseadas na Bíblia. Rushdoony disse: “A lei civil não pode ser separada da lei

bíblica”, que “é, portanto, a lei para o cristão e a sociedade cristã.” E Schaeffer

insistiu que “o Estado deve ser administrado de acordo com os princípios da lei de

Deus” e que “a lei [civil] está fundamentada na lei de Deus”; “o governo civil,

como a vida toda, se encontra debaixo da lei de Deus”.

No capítulo 10, apresentei como assunto-chave o fato de que a separação entre

igreja e Estado significa, entre outras coisas, que as leis do Estado estarão baseadas

nos princípios morais laicos, não nos princípios morais de qualquer igreja ou livro

sagrado. A filosofia de governo de Rushdoony e Schaeffer destruiria a separação

entre igreja e Estado como a temos conhecido nos Estados Unidos.

Rushdoony e Schaeffer são na verdade muito semelhantes aos muçulmanos

fundamentalistas no tipo de governo que exigem. Em seu livro A Brief Guide to

Islam [Um Breve Guia sobre o Islamismo], Paul Grieve escreve:

O Estado laico no modelo ocidental é um conceito que vai diretamente

contra as tradições muçulmanas, que remontam à comunidade original

dos ‘ummah’ [os ‘fiéis’], estabelecida pelo profeta [Maomé] em Medina

no 7º século. Aqui estava a sociedade muçulmana ideal sem quaisquer

fronteiras nacionais e com uma religião e Estado mesclados, governados

pelas leis de Deus. 42

Uma “religião e Estado mesclados, governados pelas leis de Deus” foi

precisamente o que Rushdoony e Schaeffer exigiram. A única diferença entre

Rushdoony e Schaeffer, por um lado, e os muçulmanos, por outro, é que

Rushdoony e Schaeffer desejavam que o governo civil norte-americano fosse

governado pelas leis do Deus judaico-cristão em vez de pelas leis do Alá

muçulmano. Eles desejavam que as leis dos Estados Unidos fossem baseadas na

Bíblia em vez de no Alcorão. Desejavam que os Estados Unidos fossem

governados por uma versão cristã da lei Sharia islâmica!

E então?

Apresentei uma palestra baseada neste capítulo para um grupo de adventistas

na reunião campal de Redwood, no norte da Califórnia, no final de julho de 2006.

230


Após haver concluído minhas considerações, uma senhora no fundo levantou a

mão e perguntou: “Como podemos saber que a filosofia de governo de Rushdoony

e Schaeffer teve algo a ver com as ideias da direita cristã de hoje?”

Essa é uma boa pergunta, e há uma boa resposta.

John W. Whitehead, o presidente da filial do Instituto Rutherford 43 na Virgínia,

em Charlottesville, trabalhou em íntima ligação com Francis Schaeffer antes de

sua morte, ajudando-o na pesquisa de seu livro A Christian Manifesto, do qual fiz

várias citações neste capítulo. Whitehead também conheceu Rushdoony em 1975,

e, por um período de vários anos, teve muitas conversas profundas com ele. 44 Ele

disse:

Os escritos de Rushdoony transformaram a maneira em que os cristãos

pensavam sobre o envolvimento político, e em essência lançaram os fundamentos

para o surgimento de um poder político da ala direita. Como observa o genro de

Rushdoony, Gary North, seus escritos “são a fonte de muitas das ideias essenciais

da nova direita cristã”. 45

Whitehead salientou: “Embora Rushdoony e Schaeffer sejam virtualmente

desconhecidos fora dos círculos cristãos da ala direita, seus ensinos, aceitos por

aqueles que têm intenções políticas, ganharam vida própria.” 46

Em um artigo sobre o reconstrucionismo cristão na revista Church and State,

John Sugg 47 escreveu: “Seria fácil descartar os reconstrucionistas como a orla

lunática, que não desperta mais preocupação do que os remanescentes do Partido

da Proibição. 48 Mas, na verdade, eles têm extaordinário acesso e influência junto

aos mais importantes líderes e instituições da direita cristã.” 49 Seu artigo explica

por que “o juiz dos Dez Mandamentos do Alabama, Roy Moore, está alinhado com

essa congregação [os reconstrucionistas], e por que um terço dos republicanos do

Alabama que votaram nas eleições primárias de junho o apoiou”. 50

Muitos dos livros didáticos do ensino escolar doméstico são escritos por autores

reconstrucionistas – um fato que não é de surpreender, dado o forte apoio de

Rushdoony ao movimento em prol deste tipo de ensino. Herb Titus, um advogado

formado por Harvard e ex-diretor da Faculdade de Direito da Universidade

Regent, de Pat Robertson, é um reconstrucionista; ele serviu como conselheiro

legal do juiz Roy Moore. A Universidade Liberty, de Jerry Falwell, localizada em

Lynchburg, Virgínia, emprega reconstrucionistas como professores. Roger Schultz,

231


diretor do departamento de História da universidade, é um contribuinte regular do

periódico reconstrucionista Faith for All of Life [Fé para a Totalidade da Vida]. Sugg

disse que James Dobson “tem um relacionamento cordial com muitos do

movimento [reconstrucionista], e admitiu ter votado no candidato reconstrucionista

à presidência [dos Estados Unidos], Howard Phillips, em 1996”. 51

O reconstrucionismo tem tido um profundo efeito sobre o pensamento dos

protestantes da direita cristã. Note a ênfase na ideia de que os cristãos devem

assumir o domínio sobre a sociedade:

Pat Robertson: “O plano de Deus é que Seu povo, senhoras e senhores,

assuma o domínio. [...] O que é domínio? Bem, domínio é senhorio. Deus

deseja que Seu povo reine e governe com Ele, mas está esperando que nós

ampliemos Seu domínio. [...] E o Senhor diz: ‘Deixarei que vocês redimam

a sociedade. Haverá uma reforma.’ [...] Não toleraremos mais que

aqueles utópicos dirigentes, que estão na Suprema Corte e em Washington

com a intenção de nos coagir, dominem sobre nós. Não toleraremos essa

situação. Diremos: ‘Desejamos liberdade neste país, e desejamos

poder.’” 52

D. James Kennedy: “Nossa tarefa é recuperar os Estados Unidos para

Cristo, qualquer que seja o custo. Como os representantes de Deus,

devemos exercer domínio e influência piedosos sobre nossa vizinhança,

nossas escolas, nosso governo, nossa literatura e arte, nossos ginásios

esportivos, nossa mídia de entretenimento, nossa mídia de notícias, nossos

esforços científicos – em resumo, sobre todos os aspectos e instituições da

sociedade humana.” 53

Onde Robertson obteve a ideia de que “o plano de Deus é que Seu povo [...]

assuma o domínio”? Onde Kennedy obteve a ideia de que os cristãos devem

“exercer domínio e influência piedosos [...] sobre todos os aspectos e instituições da

sociedade humana”? Não conversei nem com Robertson nem com Kennedy, mas

a filosofia política nessas declarações é um reflexo perfeito da filosofia política de

Rushdoony e Schaeffer, e tenho certeza de que sei de onde eles obtiveram a ideia.

Então, para onde é que todo o dominionismo está nos levando?

Estamos nos aproximando do fim deste livro, mas ainda há algumas peças a

serem encaixadas no lugar; por isso, continue lendo.

232


1 Gary North, “R. J. Rushdoony, R.I.P.”, Lew Rockwell.com,

http://www.lewrockwell.com/north/north33.html.

2 “What Chalcedon Believes”, The Chalcedon Foundation,

http://www.chalcedon.edu/credo.php; itálicos no original.

3 Rousas John Rushdoony, The Institutes of Biblical Law (Phillipsburg: P & R

Publishing, 1973), p. 4.

4 Ibid.

5 Ibid., p. 14.

6 Ibid., p. 9; itálicos no original.

7 Ibid., p. 3, 4; ênfase acrescentada.

8 Ibid., p. 4; itálicos no original.

9 Ibid., p. 5.

10 Ibid.

11 Ibid.

12 Ibid., p. 4.

13 Ibid., p. 9; ênfase acrescentada.

14 Ibid., p. 12.

15 Ibid., p. 6.

16 Ibid., p. 12.

17 Ibid., p. 399.

18 Ibid., p. 221.

233


19 Veja páginas 77, 235, 402.

20 As leis mosaicas que requerem a pena de morte sobre as quais Rushdoony

comentou incluem idolatria (p. 66), amaldiçoar os pais (p. 120), agredir os pais (p.

120), sequestro (p. 120), escravidão imposta (p. 120), transgressão do dia de

descanso (p. 137, embora ele aparentemente cresse que essa pena de morte não

seja mais válida – veja p. 235, 402), homossexualidade (p. 256), bestialidade ou

zoofilia (p. 256); incesto (p. 399) e adultério (p. 399).

21 O texto grego afirma, literalmente: “Vão, portanto, fazer discípulos [de]

todas as nações.” Se deixarmos de fora a palavra ‘de’, que os tradutores

acrescentaram para que as palavras de Jesus fizessem sentido em nosso idioma,

talvez fosse possível entender que Jesus quisesse dizer que as nações em si deviam

ser tornadas em discípulos. Contudo, as palavras seguintes de Jesus excluem essa

interpretação. Ele disse: “batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito

Santo”. É impossível batizar uma nação. O contexto é tanto o discipulado quando o

batismo de indivíduos, e não de nações inteiras.

22 Citado em “Dominionism”, Religious Tolerance.org,

http://www.religioustolerance.org/reconstr.htm.

23 David Hopkins, “Francis SchaefFer: The Last Great Modern Theologian”,

http://www.next-wave.org/dec99/francis_schaeffer.htm.

24 Van Til negava ter qualquer interesse em movimentos político-religiosos.

Veja “Dominionism”, Wikipedia,

http://en.wikipedia.org/wiki/Dominionism#Roots_and_branches.

25 “Dominionism”, Wikipedia,

http://en.wikipedia.org/wiki/Dominionism#Origin_of_the_Term.

p. 26.

26 L’Abri Fellowship, http://www.labri.org/history.html; ênfase acrescentada.

27 Francis A. SchaefFer, A Christian Manifesto (Westchester: Crossway, 1981),

28 Ibid., p. 29; ênfase acrescentada.

29 Ibid., p. 28, 100.

234


30 Ibid., p. 99.

31 Ibid., p. 90.

32 Ibid., p. 98.

33 Do Discurso de Gettysburg, de Abraão Lincoln.

34 Schaeffer, p. 41.

35 Ibid., p. 101, 102.

36 Ibid., p. 54.

37 Ibid., p. 73, 74.

38 Ibid., p. 75.

39 Ibid., p. 116.

40 Ibid., p. 120.

41 “Dominionism”, Wikipedia,

http://en.wikipedia.org/wiki/Dominionism#Origin_of_the_Term.

42 Paul Grieve, A Brief Guide to Islam – History, Faith and Politics: The

Complete Introduction (Nova York: Carroll and Graf Publishers, 2006), p. 22.

43 O Instituto Rutherford é uma organização em prol de liberdades religiosas

que fornece serviços legais gratuitos a pessoas cujos direitos constitucionais e

humanos foram ameaçados ou violados.

44 Adaptei os detalhes sobre a associação de Whitehead com Rushdoony e

Schaeffer das informações biográficas sobre ele em seu artigo “The Rise of

Dominionism and the Christian Right”, Liberty, julho/agosto de 2006, p. 6.

45 John W. Rutherford, “The Rise of Dominionism and the Christian Right”,

Liberty, julho/agosto de 2006, p. 9.

46 Ibid. John W. Whitehead foi amigo íntimo de Francis Schaeffer. No artigo

da edição de julho-agosto de 2006 da revista Liberty que citei neste capítulo, ele

235


disse que Schaeffer “discordava das ideias dominionistas de Rushdoony ”, e que

“embora Rushdoony advogasse uma teocracia cristã, isso está muito longe dos

pontos de vista de Schaeffer” (p. 9, 8). Talvez Whitehead estivesse muito mais

familiarizado com Schaeffer do que eu jamais poderia estar. Contudo, as citações

que apresentei neste capítulo, do livro de Schaeffer, A Christian Manifesto, fazemme

crer que suas ideias levam ao dominionismo e à teocracia, quer ele tenha ou

não esposado essas doutrinas em si.

47 John Sugg é um dos editores-chefes de CL Newspapers em Atlanta,

Charlotte, Tampa e Sarasota.

48 Partido político norte-americano fundado em 1869, mais bem conhecido

por sua oposição ao consumo de bebidas alcoólicas (N. da T.).

13.

49 John Sugg, “Warped Worldview”, Church and State, julho-agosto de 2006, p.

50 Ibid., p. 11.

51 As informações sobre os laços da direita cristã com o reconstrucionismo

que citei neste parágrafo são do artigo de Sugg, “Warped Worldview”, p. 11-13.

52 Comentário de Pat Robertson em seu programa de televisão Clube dos 700;

citado em RedSonja2000, “Dominionist Dream: Repeal the 1st Amendment”, Talk

to Action, http://www.talk2action.org/story/2005/12/l6/103532/64.

53 Citado em “The Rise of the Religious Right in the Republican Party”,

http://www.theocracy watch.org.

236


D

e vez em quando, ouvimos falar de uma igreja que afirma ser “a única

igreja verdadeira”. Vimos anteriormente neste livro que os católicos de

fato reivindicam isso para sua igreja. E eles não são os únicos. Alguns

protestantes também reivindicam isso para sua denominação. Essa reivindicação é

uma das características de uma filosofia chamada “triunfalismo”. Essa filosofia

também pode incluir a crença de que “minha religião vai prevalecer sobre a sua”,

ou até de que “minha religião vai vencer a sua”.

Triunfalismo é uma atitude ou crença de que determinada doutrina, cultura ou

sistema social é superior a todos os outros e deve triunfar sobre eles. A religião

islâmica é muito triunfalista. Os muçulmanos creem que sua religião é a única

verdadeira, e muitos, especialmente os terroristas, pensam que sua religião

conquistará o mundo. Eles acreditam que chegará o dia em que todas as pessoas de

todos os lugares serão muçulmanas, e isso trará o fim do mundo. Essa, na verdade,

corresponde perfeitamente à visão de Rushdoony sobre o cristianismo.

Com base no que acabei de dizer, talvez você ache que o triunfalismo é mau.

Sem dúvida, não é politicamente correto na cultura ocidental de hoje que qualquer

pessoa afirme que sua religião é a única verdadeira. Contudo, o triunfalismo não é

necessariamente mau. O cristianismo é uma religião triunfalista, porque os cristãos

creem que eles estão certos e que têm a responsabilidade de ganhar para Jesus

Cristo o maior número possível de pessoas. Afinal de contas, a salvação eterna das

pessoas depende disso. O triunfalismo cristão está baseado nas palavras do próprio

Jesus Cristo, que disse: “Eu sou o caminho, a verdade, e a vida; ninguém vem ao

Pai senão por Mim” (Jo 14:6). Em outras palavras, se você deseja a salvação,

precisa vir através de Jesus. Até hoje, muitos cristãos, especialmente os cristãos

fundamentalistas e evangélicos, creem que é possível obter a salvação somente

237


através de Jesus – uma convicção da qual os adventistas do sétimo dia partilham.

O triunfalismo tipicamente leva a um senso de missão. A crença de que

“estamos certos e todos os outros estão errados” e de que “a salvação está

disponível apenas através de nossa religião” provê uma poderosa motivação para

converter outros à fé. Em relação ao cristianismo, o próprio Jesus disse: “Ide,

portanto, fazei discípulos de todas as nações” (Mt 28:19).

Talvez você já tenha ouvido falar do termo “destino manifesto”, que

expressava a ideia do século 19 de que os Estados Unidos tinham a

responsabilidade – quase uma ordem divina – de conquistar o Ocidente.

Diferentemente do triunfalismo religioso, esse é um triunfalismo civil. A política

norte-americana conservadora ainda contém uma tendência triunfalista. George

W. Bush estava sendo triunfalista quando dizia acreditar que os Estados Unidos têm

a responsabilidade de propagar a democracia no mundo.

Alguns parágrafos atrás mencionei que os católicos tendem a ser triunfalistas

porque creem que a Igreja Católica é a única igreja verdadeira. Não tenho

problema em relação a isso. Os católicos têm o direito de crer que sua igreja é a

única verdadeira. Não creio nessa ideia, mas a respeito. Também respeito os

muçulmanos, que acreditam que sua religião é a única verdadeira. Afinal de

contas, há uma tendência triunfalista no adventismo, como você talvez já tenha

reconhecido. Temos algumas fortes convicções sobre a crise final, e cremos que é

nossa missão advertir o mundo sobre o que entendemos com relação ao futuro.

A tentação do triunfalismo

O triunfalismo é um problema quando se torna arrogante, especialmente

quando utiliza métodos antiéticos e abusivos para alcançar o triunfo. Os norteamericanos

triunfalistas que conquistaram o Oeste dos Estados Unidos trataram os

nativos de forma extremamente injusta. O triunfalismo religioso é particularmente

perigoso quando se alia ao governo civil, porque aí se torna muito fácil usar o poder

do Estado para impor o sistema de crenças daqueles que detêm o poder sobre

aqueles que discordam. Esse foi o problema durante a Idade Média, quando os

líderes católicos perseguiram os hereges que se recusaram a conformar-se com as

doutrinas e o estilo de vida católico.

Na verdade, até uma leitura casual de Apocalipse 13 torna óbvio que os dois

poderes do tempo do fim, simbolizados por bestas, são muito triunfalistas. Eles irão

combinar a religião e o governo civil numa única autoridade, que usarão para

forçar o mundo todo a adorar da forma que eles consideram correta. Essa é uma

expressão muito errada de triunfalismo.

238


Como eu disse, os adventistas são em certo sentido triunfalistas e o triunfalismo

é a chave de nosso sucesso. Somos impelidos pelo senso de que temos uma

mensagem sobre uma crise estupenda que virá sobre o mundo e que envolverá

questões espirituais que não são compreendidas pela maioria das pessoas. Na

verdade, a própria interpretação profética que muitos têm achado tão extravagante

e tola é a mensagem que nos sentimos compelidos a advertir o mundo. Para os

batistas do sétimo dia, o sábado é simplesmente “o dia certo a ser guardado”. Para

nós, o sábado será o ponto de controvérsia na crise final, e o destino eterno das

pessoas dependerá da decisão que elas tomarem com respeito a isso. Esse é o

contexto escatológico de nossas convicções sobre o sábado. Foi isso que

impulsionou nosso senso de missão nesses últimos 150 anos. É por isso que temos

hoje mais de 16 milhões de membros.

Rushdoony, Schaeffer e o triunfalismo

Um dos pontos mais significativos a se notar na filosofia política de R. H.

Rushdoony e Francis Schaeffer é que ambos são muito triunfalistas porque, por

definição, o dominionismo é triunfalista. Novamente, não há nada de errado nisso,

contanto que os que defendem essa filosofia tratem os outros com respeito. Mas

qualquer religião triunfalista que se alie ao governo civil está em grande perigo de

se tornar antiética e abusiva na maneira como trata os que discordam dela. Esse é

o problema que vejo com Rushdoony e Schaeffer. Eles acreditavam que as leis do

governo civil precisam estar baseadas nas leis bíblicas e que os cristãos têm a

responsabilidade de fazer isso acontecer exercendo domínio sobre a sociedade.

Como expliquei no capítulo anterior, essa filosofia política tem tido profundo

efeito sobre o pensamento dos evangélicos da direita cristã. Pat Robertson defende:

“O plano de Deus é que Seu povo assuma o domínio”. Deus “deseja que Seu povo

reine e governe com Ele, mas está esperando que nós ampliemos Seu domínio. [...]

Desejamos liberdade neste país, e desejamos poder”. 1 D. James Kennedy disse:

“Nossa tarefa é recuperar os Estados Unidos para Cristo e exercer domínio e

influência piedosos sobre [...] nosso governo [...] [e] sobre todos os aspectos e

instituições da sociedade humana.” 2

O dominionismo de Rushdoony, de Schaeffer e da direita cristã dos Estados

Unidos é também muito triunfalista. E de maneira perigosa em minha opinião,

porque, como as citações de Robertson e Kennedy mostram tão claramente, os

conservadores da direita cristã estão determinados a assumir o governo civil norteamericano

e usá-lo para impor sua agenda moral sobre a nação. À medida que a

nação se afunda num caos moral – o que certamente está acontecendo – o

dominionismo triunfalista de Rushdoony e Schaeffer parece muito atrativo para os

239


cristãos conservadores, que o veem como a solução para o problema.

Infelizmente, o dominionismo não é a solução.

Os católicos também têm uma longa história de favorecimento à união entre

igreja e Estado, e ainda consideram esse relacionamento como o ideal.

Infelizmente, no passado, a união entre religião e política combinou com o

triunfalismo católico, o que resultou em horríveis formas de perseguição, como a

tortura e a execução por queima na estaca. Essas foram cometidas para com

aqueles que discordavam da igreja em nome da salvação de sua alma. Não hesito

em dizer que a união entre igreja e Estado, que Rushdoony, Schaeffer, os

protestantes da direita cristã e os católicos olham com tão grande favor, é o

fundamento de toda perseguição religiosa.

Não tenho qualquer dúvida de que, se fossem perguntados, tanto católicos

quanto protestantes da direita cristã assegurariam que não têm qualquer intenção

de perseguir aqueles que discordam deles. Porém, note que Pat Robertson disse:

“Desejamos poder.” Isso me faz lembrar as palavras de Lorde Acton, que disse:

“O poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente.” 3 Em

um mundo pecaminoso, nenhum indivíduo, igreja ou religião está imune a esse

princípio. Sinceramente, eu não desejaria que minha própria Igreja Adventista se

unisse à autoridade civil. É perigoso demais. Temo que mais cedo ou mais tarde

permitiríamos que nosso tipo particular de triunfalismo nos levasse a impô-lo

sobre outros.

A melhor garantia que qualquer um de nós pode ter contra perseguir a outros é,

em primeiro lugar, evitar que nosso sistema de crenças religiosas se una ao poder

civil. Essa tem sido a conduta norte-americana desde a fundação do país, e é por

isso que há pouca perseguição religiosa desde 1776. O problema com a filosofia

política dos católicos e dos protestantes da direita cristã não está com as intenções

deles neste momento. Está com o sistema político-religioso que estão determinados a

estabelecer e com o uso desse sistema depois de ter sido estabelecido.

Será possível que a filosofia política dos católicos e dos protestantes da direita

cristã possa levar, algum dia, à perseguição nos Estados Unidos?

1 Comentário de Pat Robertson no programa de televisão Clube dos 700, citado

em RedSonja2000, “Dominionist Dream: Repeal the 1st Amendment”, Talk to

Action, http://www.talk2action.org/story /2005/12/l6/103532/64.

240


2 Citado em “The Rise of the Religious Right in the Republican Party ”,

http://www.theocracy watch.org.

3 Esta é uma citação muito conhecida. Encontrei-a em “John Dalberg-Acton,

1st Baron Acton”, Wikipedia, http://en.wikipedia.org/wiki/Lord_Acton.

241


C

onstantino estava preocupado, e com razão. Seu pequeno exército

enfrentava um inimigo muito maior: as forças de Maxêncio. Os dois

cunhados (Constantino era casado com a irmã de Maxêncio, Fausta)

estavam lutando pelo trono do imperador. Maxêncio governava em Roma desde a

morte do último imperador, Constâncio I. Porém, Constantino era o filho desse

falecido imperador, e achava que o trono devia ser seu. E assim, em outubro de

312, os dois homens, cada um com seu próprio exército, se encontraram na Ponte

de Mílvia, a curta distância de Roma. O exército de Maxêncio era pelo menos

quatro vezes maior que o de Constantino – e alguns estudiosos estimam que fosse

dez vezes maior. De qualquer forma, o exército adversário excedia muito em

número ao de Constantino, e é por isso que ele estava preocupado. Como poderia

esse pequeno exército derrotar o exército de Maxêncio, que era muito maior?

Constantino conhecia apenas um meio de isso acontecer.

Naquela época, todos acreditavam que os deuses ajudavam o lado que

favorecessem. Portanto, Constantino, que era pagão, buscou o favor do mais

poderoso deus pagão. Mas a resposta que obteve não foi de maneira alguma a que

ele esperava. No final da tarde de 27 de outubro, ele teve a visão de uma cruz

emoldurada pelo sol poente. Próximo à cruz estavam as palavras gregas En toutō

nika, que significam: “Com este sinal vencerás.” Incrível! Ele devia ir à batalha

em nome do Deus cristão. Na manhã seguinte, Constantino ordenou a seus soldados

que inscrevessem nos escudos as letras gregas X e P (o “R” grego se parece com

nosso “P”), que são as primeiras duas letras de Xristos, a forma grega do nome

Cristo. Mais tarde, no mesmo dia, o exército de Constantino derrotou o exército de

Maxêncio, e Constantino se tornou o imperador de Roma.

Constantino imediatamente professou fé em Cristo, e no ano seguinte, 313,

242


proclamou o Edito de Milão, que dava liberdade para todas as religiões, inclusive o

cristianismo. Após quase 300 anos de perseguição (com intervalos), os cristãos

estavam finalmente livres para praticar sua religião sem medo de serem presos,

encarcerados e, em alguns casos, mortos. Afinal, o imperador era agora um irmão

de fé!

A conversão de Constantino era apenas um pequeno tremor nos eventos da

época, mas nos cem anos seguintes o tremor cresceu, tornando-se um gigantesco

terremoto que mudou radicalmente o curso da história. H. A. Drake, professor de

História na Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara, e autor do livro

Constantine and the Bishops [Constantino e os Bispos], chama a conversão de

Constantino e seu subsequente apoio ao cristianismo “uma das mais importantes

transferências de poder na história ocidental”. 1 O paganismo, e especificamente o

culto ao imperador, havia sido a religião oficial do império nos séculos anteriores.

O Edito de Milão colocou o paganismo e o culto ao imperador no mesmo nível que

todas as outras religiões. Embora Constantino ainda fosse o Pontifex Maximus

(Pontífice Máximo) e, assim, o chefe oficial no império do culto pagão ao

imperador, era também agora um cristão, e isso deu ao cristianismo uma

importante margem de vantagem sobre o paganismo. No fim do século, o

cristianismo não só havia substituído o paganismo como a religião oficial do

império, mas, em alguns casos, os cristãos estavam perseguindo os pagãos tão

severamente como os pagãos haviam perseguido os cristãos cem anos antes.

Os primitivos cristãos e a liberdade de consciência

Essa perseguição foi um desvio radical do cristianismo tradicional. Por quase

300 anos os cristãos haviam se apegado firmemente à convicção de que a

conversão tinha de ser resultado da escolha voluntária de cada pessoa. O

cristianismo era uma religião de amor, não de força. O próprio Jesus havia feito o

convite “Vinde a Mim” (Mt 11:28, ênfase acrescentada). E, no Apocalipse, Ele

disse: “E quem quiser receba de graça a água da vida” (Ap 22:17, ênfase

acrescentada).

A ideia de que as pessoas precisam escolher suas crenças religiosas

livremente, sem coerção, era reforçada cada vez que os cristãos eram perseguidos

por sua fé. Pessoas tentavam forçá-los a prestar obediência a deuses pagãos, mas

os cristãos permaneciam fiéis. A adoração precisa ser prestada voluntariamente,

ou não é adoração. Atanásio, conhecido por sua participação no Concílio de Niceia,

disse que “aqueles que têm confiança no que creem não devem forçar e compelir

os que não desejam aceitar. [...] A verdade não é pregada com espadas ou dardos,

nem por meio de soldados; mas através de argumentação e conselhos”. 2 Drake

243


observa que os cristãos na época de Constantino tinham uma “crença inerente de

que a verdadeira fé não podia vir de coerção”. Eles “herdavam como um artigo de

fé a afirmação de que os inimigos precisam ser suportados e amados”. 3

Constantino não se voltou contra os pagãos quando se tornou cristão, nem

encorajou os cristãos a perseguir os pagãos. 4 Embora ainda fosse o chefe oficial

da religião estatal romana, também assumiu um papel significativo nos negócios

cristãos. Durante seu reinado, presidiu o importante Concílio de Niceia em 325,

bem como outros concílios menores. E, ao longo de tudo isso, tentou construir um

clima no qual os diferentes pontos de vista religiosos pudessem coexistir.

Constantino sem dúvida teria ficado surpreso com a prática norte- americana

relativa à liberdade religiosa, e provavelmente a teria aprovado.

Entretanto, cem anos após Constantino haver professado sua fé em Cristo, os

cristãos estavam perseguindo pagãos, tentando forçá-los a se converterem à “fé”.

Alguns pagãos até perderam a vida nas mãos dos cristãos! 5 O que aconteceu? De

que forma uma religião que iniciou com a convicção de que a crença religiosa

precisa ser livremente escolhida se tornou uma religião que tentava impor a

crença? Drake pergunta: “Se o cristianismo tolerante e inclusivo de Constantino

conseguiu formar uma coalizão de cristãos e pagãos em favor do monoteísmo

definido em termos amplos, então por que uma forma mais coerciva e intolerante

de cristianismo já havia se instalado no fim do século?” 6 Examinemos o processo.

Como os cristãos começaram a perseguir

Constantino governou o Império Romano por trinta anos, de 307 a 337 d.C., e,

como já foi dito, tentou criar uma sociedade na qual várias crenças religiosas

pudessem coexistir. Durante todo o seu governo, os cristãos conservaram a prática

de que a conversão só poderia ocorrer por consentimento voluntário do indivíduo.

O filho de Constantino, Constante, seguiu a prática de seu pai ao tolerar a todas as

religiões. Durante essa época, o cristianismo progrediu. Os conversos vinham em

multidão para a igreja, e os cristãos, especialmente os bispos, ganharam

significativo poder político.

Constante morreu em 350 e foi sucedido pelo irmão Constâncio II, um cristão

mais radical que decretou que todos os templos pagãos deviam ser fechados e que

fosse morta qualquer pessoa que oferecesse sacrifícios a deuses pagãos.

Constâncio morreu em 361 e foi seguido por Juliano, que era pagão por escolha.

Juliano governou por apenas dois anos e meio. Durante esse tempo, tentou

reinstalar o paganismo como a religião do império. Em 362, expediu um edito

garantindo liberdade de religião em todo o império, mas também reintroduziu os

244


sacrifícios pagãos e começou a reduzir o poder dos bispos.

Naturalmente, os bispos ficaram descontentes com essa redução de poder.

Também se sentiram ameaçados pelo desafio de Juliano à sociedade cristã que

eles haviam criado durante os 50 anos que haviam se passado desde a conversão

de Constantino ao cristianismo. O governo de Juliano, embora muito curto, foi

longo o suficiente para gerar temores de reversão ao paganismo na mente dos

cristãos. Como resultado, extremistas na comunidade cristã que defendiam métodos

mais radicais de conservar uma sociedade cristã, começaram a ganhar vantagem.

Se Constantino havia suprimido essas tendências radicais, imperadores

subsequentes as permitiram e até as encorajaram. 7 No fim do século, os cristãos

já estavam perseguindo severamente os pagãos.

Comparações

Acostumados como estamos à liberdade religiosa, e dedicados como somos à

ideia de que a conversão deve resultar da escolha pessoal, nos é difícil imaginar

que a perseguição possa um dia surgir nos Estados Unidos. Contudo, o fato de que o

Império Romano e a igreja cristã mudaram da liberdade religiosa para a coerção

religiosa durante a segunda metade do 4º século deve nos levar a reconhecer que,

se isso pôde acontecer naquela época, pode acontecer agora; e, se pôde acontecer

lá, pode acontecer aqui. Duas comparações entre aquela época e a atual nos fazem

parar e pensar na direção tomada por algumas pessoas.

Primeiro, hoje facilmente nos sentimos ameaçados pelos “pagãos” de nossos

dias – os chamados ateus e secularizados – como os cristãos no 4º século se

sentiram pelo paganismo de Juliano. Hoje ocorre uma “guerra cultural”.

Reclamamos veementemente contra os “pagãos” atuais, assim como aqueles

antigos cristãos reclamavam contra os deles. Recebo algumas das mais hostis

correspondências e e-mails de cristãos que criticam amargamente os não religiosos

por suas convicções morais. E tenho de me perguntar: Como esses zelotes religiosos

tratariam as pessoas sem religião se obtivessem posição de poder político nos

Estados Unidos? Uma comparação com zelotes cristãos semelhantes durante a

segunda metade do 4º século d.C. me dá sérios motivos para preocupação.

Segunda comparação: os protestantes da direita cristã e os católicos estão tão

decididos a construir uma sociedade cristã hoje como os cristãos estavam naquela

época. No início do 5º século (sendo que o século começou com o ano 401 d.C.),

Agostinho escreveu o livro Cidade de Deus para argumentar que o cristianismo

finalmente triunfaria sobre o paganismo na sociedade romana. Hoje, os cristãos da

direita cristã pressionam para conseguir o triunfo final do cristianismo sobre o

secularismo na sociedade norte-americana.

245


Os católicos têm procurado moldar as nações de forma a torná-las sociedades

católicas durante a maior parte dos dois últimos milênios, e alcançam resultados

satisfatórios. Infelizmente, nos locais a que tiveram sucesso, com frequência houve

intolerância àqueles que discordam deles. Você pode protestar dizendo que as

fortes declarações em apoio da liberdade de consciência que vieram do Concílio

Vaticano II devem impedir os católicos de jamais voltarem à perseguição. Porém,

no capítulo 8, chamei a atenção para as ressalvas presentes naquelas declarações

que, sob as condições certas (ou erradas), poderiam, mesmo agora, dar

legitimidade à coerção.

É também muito evidente que certos princípios morais singulares da Igreja

Católica poderiam em algum momento se tornar lei nos Estados Unidos. Salientei

em capítulos anteriores que os líderes católicos norte-americanos no século 21

estão exercendo pressão sobre os legisladores e juízes católicos para que façam

leis e promulguem medidas judiciais que estejam em harmonia com o ensino

católico. Isso é simplesmente uma forma menor da pressão espiritual que os papas

usaram contra os governantes a fim de dominarem a política europeia durante a

Idade Média – o que provocou a mais severa perseguição. Se a moral católica se

tornar lei nos Estados Unidos, como penso que acontecerá, que consequências

resultarão para aqueles cujas convicções os levam a um caminho moral diferente?

Os protestantes da direita cristã também estão fazendo forte campanha para

tornar a lei bíblica o fundamento do sistema legal da nação. Desejam que o

Congresso e os vários estados promulguem leis que estejam baseadas na Bíblia, e

desejam que os juízes interpretem as leis nacionais e estaduais de acordo com a

Bíblia.

Sugiro que todos nós, cristãos moderados, bem como os que se inclinam mais

para a direita, necessitemos parar e olhar com cuidado para o futuro. Precisamos

perguntar a nós mesmos aonde o caminho que estamos tomando nos levará.

Richard Evans, em seu livro The Coming of the Third Reich [A Vinda do Terceiro

Reich], levantou várias perguntas sobre os cidadãos da Alemanha durante os anos

que antecederam a elevação de Hitler à liderança de seu país, perguntas estas que

precisamos fazer sobre a direita cristã nos Estados Unidos hoje. Note

especialmente as palavras em itálico no final da seguinte citação: “Como foi que

uma nação avançada e altamente culta como a Alemanha pôde ceder à força

brutal do Socialismo Nacional tão rapidamente e tão facilmente? Por que houve tão

pouca resistência séria ao poder nazista? Como um partido da direita radical pôde

subir ao poder de maneira tão dramaticamente repentina? Por que tantos alemães

deixaram de perceber as consequências potencialmente desastrosas de ignorar a

natureza violenta, racista e assassina do movimento nazista?” 8

Admito que a direita cristã nos Estados Unidos é muito mais benigna que os

246


soldados de Hitler eram na Alemanha pré-nazista e no início da Alemanha nazista.

Porém, as vozes de intolerância estão lá, e a aparente benignidade da causa da

direita cristã simplesmente mascara o perigo da direção para a qual ela se dirige.

Estamos nós hoje, como os alemães nos anos que precederam a Segunda Guerra

Mundial, deixando de perceber as consequências potencialmente desastrosas de

ignorarmos a natureza intolerante e coerciva dos cristãos da direita cristã em sua

proclamação de uma guerra cultural e em sua exigência de transformar os Estados

Unidos numa sociedade baseada em princípios bíblicos? Creio que se uma parte

insignificante da direita radical pudesse subir ao poder de maneira tão repentina e

dramática como aconteceu na Alemanha, a mesma coisa poderia, sob as

circunstâncias propícias, acontecer nos Estados Unidos hoje.

A Bíblia prediz uma perseguição universal

Para aqueles que ainda questionam a ideia de que a perseguição religiosa

chegará aos Estados Unidos, oferecerei mais uma razão para minha certeza: o

próprio Jesus o predisse. É claro que Ele não mencionou os Estados Unidos por

nome. Ele simplesmente disse que Seus seguidores serão “atribulados, e vos

matarão. Sereis odiados de todas as nações, por causa do Meu nome” (Mt 24:9,

ênfase acrescentada). Preciso lembrar-lhes que os Estados Unidos são uma nação

que deve ser incluída na predição de Jesus? Isso é particularmente verdade em

vista do fato de que Jesus falou essas palavras em resposta à pergunta dos

discípulos sobre os sinais de Seu retorno. Assim, podemos esperar que a predição

de Jesus seja cumprida antes de Sua segunda vinda.

Várias declarações do Apocalipse confirmam a profecia da perseguição no

tempo do fim por parte de “todas as nações”. Os seguintes textos deixam muito

claro que o povo de Deus em todo o mundo será severamente perseguido pouco

antes da volta de Jesus:

• “Foi-lhe dado, também, que pelejasse contra os santos e os vencesse.

Deu-se-lhe ainda autoridade sobre cada tribo, povo, língua e nação” (Ap

13:7).

• “E lhe foi dado [à besta da terra] comunicar fôlego à imagem da

besta, para que não só a imagem falasse, como ainda fizesse morrer

quantos não adorassem a imagem da besta” (Ap 13:15).

• “Então, vi a mulher embriagada com o sangue dos santos e com o

sangue das testemunhas de Jesus” (Ap 17:6).

247


Mesmo sem identificar os poderes políticos específicos representados pela

besta do mar e pela besta da terra em Apocalipse 13 ou a meretriz do capítulo 17, é

óbvio que o Apocalipse prediz uma perseguição mundial antes da segunda vinda de

Jesus. A maioria dos intérpretes cristãos conservadores das profecias entende que

estamos vivendo nos dias finais da história da Terra. Portanto, devemos esperar que

os Estados Unidos, que hoje são a única superpotência mundial, estarão

intensamente envolvidos na perseguição do fim dos tempos. A pergunta não deve

ser se, mas como. Devemos, na verdade, estar alertas para reconhecer as

tendências, tanto nos Estados Unidos quanto em outras partes do mundo, que

indicam que essa perseguição se aproxima. Esse tem sido um de meus motivos

primários para escrever este livro. Assim, não peço desculpas pela compreensão

adventista de que a intolerância religiosa vai surgir nos Estados Unidos algum dia.

Sob as circunstâncias certas, isso pode acontecer, e as tendências que já estão bem

adiantadas neste país sugerem que vai acontecer e como vai acontecer.

Muitos estudiosos conservadores das profecias interpretam as intolerantes

bestas do Apocalipse como símbolos do ateísmo e do humanismo secular. Os livros

de ficção de Tim LaHay e da série Deixados para Trás, por exemplo, retratam o

anticristo como Carpathia, um malvado líder ateu das Nações Unidas. Os

adventistas veem o Apocalipse 13 de maneira diferente. Entendemos que as duas

bestas malévolas daquele capítulo representam poderes políticos cristãos que

exercerão domínio sobre o mundo todo durante a crise final. Será possível que

cristãos nos Estados Unidos possam um dia perseguir aqueles de quem eles

discordam?

Será que isso pode realmente acontecer?

Ainda falta mais uma peça do quebra-cabeça para ser colocada no lugar.

1 H. A. Drake, Constantine and the Bishops: The Politics of Intolerance

(Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2000), xv.

2 Citado em ibid., p. 407.

3 Drake, Constantine and the Bishops, p. 402.

4 Muitos historiadores têm suposto que a aceitação dos pagãos por parte de

Constantino sugere que seu cristianismo era mais uma estratégia política do que

248


uma convicção pessoal. H. A. Drake contesta essa conclusão. Seu estudo o levou a

concluir que Constantino era verdadeiramente um cristão, mas que ele

sinceramente desejava conceder oportunidades iguais a todas as religiões no

império. Veja Constantine and the Bishops, Drake, p. 11-27.

5 Por exemplo, em 415 d.C., uma turba de cristãos assassinou Hipácia, uma

filósofa popular (e, segundo algumas informações, bela) de Alexandria. Veja

“Hy patia of Alexandria”, Wikipedia,

http://en.wilipedia.org/wiki/Hy patia_of_Alexandria.

6 Drake, Constantine and the Bishops, p. 408.

7 Para uma discussão mais completa deste assunto, veja ibid., p. 437-440.

8 Richard Evans, The Coming of the Third Reich (Nova York: Penguin Press,

2004), p. xxii; ênfase acrescentada.

249


Q

uero deixar algo muito claro. Embora eu já tenha dito isto em capítulos

anteriores, irei repeti-lo: não creio que ninguém no mundo cristão hoje,

seja protestante, católico ou ortodoxo, tenha qualquer intenção de

perseguir alguém. Quando o papa João Paulo II se desculpou perante o mundo

vários anos atrás pela perseguição que sua igreja infligiu aos judeus, protestantes,

muçulmanos e outros em eras passadas, estava sendo sincero. Quando os cardeais

e bispos reunidos no Concílio Vaticano II publicaram, em meados da década de

1960, sua declaração oficial em apoio à liberdade religiosa, estavam sendo

sinceros. Se você fosse perguntar a Pat Robertson, D. James Kennedy, Jerry

Falwell e outros líderes protestantes da direita cristã nos Estados Unidos se

pretendem torturar os que discordam deles, estou certo de que responderiam com

um veemente “não”! E estariam sendo sinceros.

O ex-presidente George W. Bush declarou publicamente repetidas vezes que

deseja ver a democracia e a liberdade espalhadas ao redor do mundo. Posso

assegurar-lhe que a perseguição religiosa não faz parte dos interesses dele. Um

grupo de líderes de liberdade religiosa da Igreja Adventista passou 45 minutos com

o presidente Bush no Escritório Oval em 4 de abril de 2006. Jan Paulsen, então

presidente mundial da Igreja Adventista do Sétimo Dia, disse que Bush “revelou

com entusiasmo o que ele sente em relação à liberdade religiosa: liberdade de

consciência, liberdade para a adoração, liberdade de pensamento”. 1

Minha preocupação, como declarei em capítulos anteriores, é com a direção

que está sendo tomada por católicos e protestantes da direita cristã. Em uma crise,

tendências que são preocupantes hoje podem crescer até mesmo além das piores

coisas que tememos. É inteiramente possível que pessoas que hoje não pensariam

em fazer mal a uma mosca cometam alguns dos mais horríveis abusos amanhã,

250


durante uma crise.

Enquanto escrevo estas palavras, há um bom exemplo disso no noticiário. Um

grupo de marinheiros norte-americanos é acusado de assassinar civis em Haditha,

no Iraque. Enquanto estou escrevendo, essas acusações ainda não foram levadas

perante um tribunal. Contudo, a despeito do veredito final, suspeito que esses jovens

são basicamente norte-americanos dignos que, em circunstâncias normais, jamais

cometeriam tal crime. Mas, se de fato eles o fizeram, foi a crise da guerra que

obviamente os influenciou. Algo em sua mente foi acionado, e eles cometeram

atrocidades que nunca pensariam em cometer sob circunstâncias normais. A Bíblia

prediz que o mundo enfrentará uma terrível crise imediatamente antes da volta de

Jesus, e é no contexto dessa crise que serão promulgadas leis e serão cometidas

perseguições que hoje parecem inconcebíveis.

Como as pessoas reagem à crise

Vários anos atrás, li um livro intitulado The Addictive Organization [A

Organização Viciada]. Nos últimos anos, tenho tido muito interesse no assunto de

vícios, mas sempre havia pensado nos vícios como algo que acontece a pessoas.

Nunca me havia ocorrido que organizações podem se tornar viciadas. Contudo, as

autoras, Anne Wilson e Diane Fassel, apresentam bons argumentos para

demonstrar sua proposta. Uma das maneiras que elas sugeriram para identificar

uma organização disfuncional, viciada, é notar a maneira como seus

administradores lidam com crises. Eis como elas descreveram o estilo de

administração de uma organização viciada:

Em tempos de crise permitimos que certas pessoas assumam o

controle e adotem procedimentos incomuns. A crise se alimenta da ilusão

de que o controle pode colocar a situação sob controle. As crises são

usadas para desculpar ações drásticas e equivocadas por parte dos

administradores. [...] Os indivíduos têm menos responsabilidades na crise à

medida que a administração ganha mais poder para fazer face ao

problema. Quando a norma é a crise, a administração tende a assumir

uma quantidade perigosa de poder a cada dia. 2

Se a administração superior consulta os supervisores dos escalões inferiores e

elabora uma estratégia conjunta para resolver os problemas, a organização muito

provavelmente é saudável. Por outro lado, se a administração superior tira o

controle dos administradores dos níveis inferiores, tenta microgerenciar a

251


organização, e nesse processo toma algumas decisões bastante tolas, a organização

provavelmente é disfuncional e viciada. E mesmo quando você não sabe se a

organização está enfrentando uma crise, ainda pode suspeitar que ela seja viciada

se vê a administração superior tentando se apoderar do controle, microgerenciando

e tomando decisões apressadas.

Creio que isso nos ajude a compreender o comportamento das duas bestas de

Apocalipse 13. Mesmo sem interpretar os símbolos, qualquer pessoa que leia esse

capítulo pode imediatamente reconhecer que o comportamento das duas bestas

não é normal. Algo as leva a agir de maneira muito equivocada. Elas são a

“administração superior” do mundo, desejam freneticamente o controle e exibem

um comportamento extremamente anormal para consegui-lo. A besta do mar

persegue o povo de Deus e tenta conseguir o controle político do mundo todo, e a

besta da terra ameaça matar qualquer pessoa que se recusar a adorar a besta do

mar e sua imagem. Essas duas bestas estão fazendo o que Schaff e Fassel afirmam

que as organizações viciadas fazem quando estão numa crise: buscam uma

quantidade desordenada de poder e alimentam “a ilusão de que o controle pode

colocar a situação sob controle”. O comportamento dessas duas bestas nos leva a

suspeitar que há uma crise por trás de tudo.

Outras partes do Apocalipse ajudam a compreender melhor o assunto. O

capítulo 7:1-4 mostra “quatro anjos em pé nos quatro cantos da Terra, conservando

seguros os quatro ventos da Terra, para que nenhum vento soprasse sobre a Terra,

nem sobre o mar, nem sobre árvore alguma” até que um selo seja colocado na

testa do povo de Deus – os 144 mil. Esses ventos simbolizam as forças destrutivas

da natureza porque, após os servos de Deus serem selados e ser permitido que os

quatro ventos soprem, a terra, o mar e as árvores serão danificados. Em outras

palavras, a ecologia mundial será devastada. Temos um vislumbre adicional dessa

crise no capítulo 16, que descreve sete terríveis pragas que cairão sobre a Terra no

fim do tempo: as pessoas sofrerão terríveis úlceras na pele (v. 2), a água dos

oceanos e fontes se transformará em sangue (v. 3, 4) e o sol esquentará tanto que

queimará os homens com fogo (v. 8). No capítulo 18, descobrimos que essas

pragas abalam a economia mundial. Os reis e mercadores da Terra “chorarão

e se lamentarão” porque já ninguém compra sua mercadoria (v. 9, 11) e os pilotos

de navios “lançaram pó sobre a cabeça e, chorando e pranteando, gritavam” ao

ver a devastação que as pragas causaram (v. 19).

O poder da natureza, quando se desencadeia, é devastador. Vimos exemplos

disso com o tsunami no Oceano Índico em dezembro de 2004 e os furacões Katrina

e Rita em agosto e setembro de 2005. Deus está segurando essas forças agora,

como sugere a imagem de anjos segurando os ventos em Apocalipse 7, mas

quando Ele as liberar, a devastação será global. 3 Havia recursos suficientes

252


disponíveis, de forma que o mundo foi capaz de reagir razoavelmente bem à

destruição causada pelo tsunami e pelo furacão Katrina. Mas imagine se a

destruição causada por esses eventos fosse multiplicada por cem. Os sistemas de

enfrentamento do mundo ficariam totalmente sobrecarregados.

O profeta Daniel, do Antigo Testamento, descreveu a crise final do mundo no

capítulo 12 de seu livro. Ele disse: “Nesse tempo, Se levantará Miguel, o grande

Príncipe, o defensor dos filhos do Teu povo, e haverá tempo de angústia, qual

nunca houve, desde que houve nação até àquele tempo; mas, naquele tempo, será

salvo o Teu povo, todo aquele que for achado inscrito no livro. Muitos dos que

dormem no pó da terra ressuscitarão, uns para a vida eterna, e outros para

vergonha e horror eterno” (Dn 12:1, 2). De acordo com Daniel, o pior tempo de

angústia que o mundo já conheceu acontecerá imediatamente antes da

ressurreição na segunda vinda de Cristo. Será precisamente durante essa angústia

que as duas bestas de Apocalipse 13 atuarão de maneira mais intensa.

Obtemos outra pista sobre a gravidade da crise final através de algumas

palavras de Jesus em Mateus 24. Seus discípulos haviam Lhe perguntado sobre os

sinais do fim, e uma das coisas que Ele lhes disse foi que viria sobre a Terra um

tempo de grande angústia “como desde o princípio do mundo até agora não tem

havido e nem haverá jamais” (v. 21). Jesus estava simplesmente parafraseando as

palavras do profeta Daniel. Ele então prosseguiu, dizendo: “Não tivessem aqueles

dias sido abreviados, ninguém seria salvo” (Mt 24:22, ênfase acrescentada).

Observe palavras em itálico. O tempo de angústia que está para vir será tão severo

que ameaçará a própria sobrevivência da raça humana. Se Deus não colocasse um

fim na devastação, os seres humanos se tornariam a próxima espécie extinta. Essa

é uma crise terrível!

Obtemos mais evidências da crise final no texto de Lucas sobre os sinais do

fim. Jesus disse que, por causa dos sinais no Sol, na Lua e nas estrelas, haverá

“angústia entre as nações em perplexidade” e “homens que desmaiarão de terror e

pela expectativa das coisas que sobrevirão ao mundo” (Lc 21:25, 26). As pessoas

no mundo compreenderão que sua sobrevivência está por um fio, e reagirão de

maneira muito previsível: entrarão em pânico.

Como a crise afeta nossa maneira de pensar

O medo faz com que as pessoas façam coisas que, em seu juízo perfeito,

nunca sonhariam em fazer. Creio que o medo que Jesus predisse – nações em

perplexidade e toda a raça humana desmaiando de terror – é a crise que está por

trás das cenas em Apocalipse 13. Esse capítulo não descreve o clima político e

religioso são e racional que o mundo ocidental conhece hoje. Descreve um mundo

253


– um planeta inteiro – que está em pânico e está reagindo de maneira horrível,

contudo previsível, diante da crise final.

Vários anos atrás, li um livro chamado Disasters and the Millennium [Os

Desastres e o Milênio], de Michael Barkun, professor de Ciências Sociais na

Universidade de Nova York, em Buffalo. Barkun estudou o efeito que os desastres

podem ter sobre a atitude das pessoas. Uma de suas conclusões mais significativas

foi que “o desastre cria condições especialmente adaptadas à rápida alteração de

sistemas de valores”. 4 Eis aqui várias declarações semelhantes:

O desastre produz o questionamento, a ansiedade e a

sugestionabilidade que são requeridas [para a mudança]; somente como

consequência de um desastre é que as pessoas são movidas a abandonar

antigos valores do passado. 5

O desastre, ao remover o ambiente familiar, remove precisamente as

estruturas de referência pelas quais normalmente avaliamos afirmações,

ideias e crenças. Sistemas de crença que talvez fossem rejeitados em

condições livres de desastre, agora recebem consideração favorável. 6

Uma população sujeita a um desastre sofre um senso temporário de

incapacidade, vulnerabilidade e confusão. A estrutura social desmoronada

torna as tradicionais relações de autoridade menos eficientes, e os status

tradicionais, menos significativos. A vítima de desastre, para quem as

pistas e marcos normais do viver foram removidos, fica passiva, receptiva

à sugestão e necessitada de um ambiente substituto. Ela requer uma nova

configuração de relações e valores sociais para explicar a situação difícil

em que se encontra. 7

Em uma situação de desastre, ideias sobre as quais, no passado, as pessoas

teriam pensado duas vezes, e das quais poderiam até ter recuado horrorizadas,

agora parecem razoáveis e apropriadas. Diante do desastre, a maioria das pessoas

se torna mais passiva e aberta a novas relações de autoridade e a novos sistemas

sociais. Assim, uma crise global provê uma oportunidade perfeita para que os

líderes políticos do mundo consolidem seu poder a fim de colocar a situação sob

controle. E essa, acredito, é a crise que está por trás de Apocalipse 13.

254


Hoje, ninguém está pensando em perseguir pessoas por causa do dia que elas

guardam – certamente não nos Estados Unidos! É ridículo sugerir que alguém

esteja sequer cogitando tal ideia. Contudo, as tendências que já estão bem

desenvolvidas nos Estados Unidos me preocupam até mesmo agora. Numa crise,

essas tendências poderiam facilmente levar os líderes políticos e religiosos do

mundo a fazer coisas que hoje consideraríamos inconcebíveis.

Um decreto de morte?

Há uma questão da qual precisamos tratar. Os adventistas afirmam que a

marca da besta é a observância do domingo quando for imposta por lei e que,

eventualmente, aqueles que persistirem em guardar o sábado serão ameaçados de

morte. Será que o mundo, mesmo num pânico generalizado, reagiria tão

drasticamente assim? A Bíblia descreve outro aspecto da crise final – o

espiritualismo – que tornará isso possível.

Conserve em mente o contexto espiritual da crise final que apresentei no

capítulo 2 deste livro. Satanás e seus anjos se rebelaram contra Deus no Céu, e

quando Deus os expulsou, eles vieram para a Terra, onde têm travado, desde então,

uma guerra espiritual contra Deus. A crise final será seu último esforço defensivo. 8

Satanás tentará ganhar para o seu lado o maior número de pessoas que puder, e

dois de seus instrumentos principais serão a força e o engano. Já falamos a respeito

do seu uso da força. Jesus também advertiu sobre os enganos de Satanás: “Porque

aparecerão falsos profetas e falsos messias, que farão milagres e maravilhas para

enganar, se possível, até o povo escolhido de Deus” (Mt 24:24, Nova Tradução na

Linguagem de Hoje; ênfase acrescentada). Um dos traços de caráter que definem

Satanás é o engano, e os enganos desses falsos cristos do tempo do fim serão tão

sutis que até o povo de Deus estará em perigo de ser enganado.

Paulo também advertiu sobre os enganos de Satanás no tempo do fim. Ele

disse: “O perverso chegará com o poder de Satanás e fará todo tipo de falsos

milagres e maravilhas. E enganará com todo tipo de maldade os que vão ser

destruídos. Eles vão ser destruídos porque não aceitaram nem amaram a verdade

que os poderia salvar. Por isso Deus envia o poder do erro para agir neles a fim de

que acreditem naquilo que é falso. O resultado disso é que serão condenados todos

os que não creem na verdade, mas têm prazer no pecado” (2Ts 2:9-12, Nova

Tradução na Linguagem de Hoje; ênfase acrescentada).

Paulo não deixou dúvidas quanto à fonte demoníaca desse engano. Ele o

atribuiu ao “poder de Satanás” e afirma que as pessoas serão enganadas.

Apocalipse 13 também comenta sobre esse engano. João diz que, em sua

255


visão, a besta da terra “também fazia grandes sinais miraculosos, chegando a fazer

descer fogo do céu à terra, à vista de todos. Com esses sinais que lhe foi permitido

realizar em nome da primeira besta, ela enganou os habitantes da Terra. Ordenoulhes

que fizessem uma imagem em honra à besta que fora ferida pela espada e

contudo revivera” (Ap 13:13, 14, Nueva Versión Internacional; ênfase

acrescentada).

João nos deu um pouco mais de informação a respeito desses falsos milagres.

Falando da sexta praga, ele disse: “Então vi saírem da boca do dragão, da boca da

besta e da boca do falso profeta três espíritos imundos semelhantes a rãs. São

espíritos de demônios que realizam sinais miraculosos; eles vão aos reis de todo o

mundo, a fim de reuni-los para a batalha do grande dia do Deus Todo-Poderoso”

(Ap 16:13, 14, Nova Versão Internacional; ênfase acrescentada). Pouco antes da

volta de Cristo, os espíritos maus de Satanás – seus demônios operadores de

milagres – irão ajuntar os líderes políticos e religiosos para a última batalha

espiritual contra o povo de Deus, que o Apocalipse chama de Armagedom (v. 16).

Note que Jesus, Paulo e João predisseram que os enganos de Satanás no tempo

do fim incluirão milagres (“sinais”, na Almeida Revista e Atualizada), ou seja,

ocorrências sobrenaturais que surpreendem a raça humana e levam as pessoas a

acreditar em uma mentira.

Os adventistas creem que é no contexto desse engano demoníaco que os

líderes mundiais promulgarão um decreto de morte contra aqueles que guardam os

mandamentos de Deus, inclusive o quarto. Ellen White predisse que durante a crise

final, Satanás se revelará pessoalmente, visivelmente à raça humana, e afirmará

ser Cristo:

Como ato culminante no grande drama do engano, o próprio Satanás

personificará Cristo. A igreja [cristã] tem há muito tempo professado

considerar o advento do Salvador como a realização de suas esperanças.

Assim, o grande enganador fará parecer que Cristo veio. Em várias partes

da Terra, Satanás se manifestará entre os homens como um ser majestoso,

com brilho deslumbrante, assemelhando-se à descrição do Filho de Deus

dada por João no Apocalipse (1:13-15). A glória que o cerca não é

excedida por coisa alguma que os olhos mortais já tenham contemplado.

Ressoa nos ares a aclamação de triunfo: “Cristo veio! Cristo veio!” O povo

se prostra em adoração diante dele, enquanto este ergue as mãos e sobre

eles pronuncia uma bênção, assim como Cristo abençoava Seus discípulos

quando esteve aqui na Terra. Sua voz é meiga e branda, cheia de melodia.

Em tom manso e compassivo apresenta algumas das mesmas verdades

celestiais e cheias de graça que o Salvador proferia; cura as doenças do

256


povo, e então, em seu pretenso caráter de Cristo, alega ter mudado o

sábado para o domingo, ordenando a todos que santifiquem o dia que ele

abençoou. Declara que aqueles que persistem em santificar o sétimo dia

estão blasfemando de Seu nome, pela recusa de ouvirem Seus anjos a eles

enviados com a luz e a verdade. É esse o poderoso engano, quase

invencível. 9

Esse engano satânico é o que os adventistas entendem que levará o mundo a

promulgar um decreto de morte contra aqueles que guardam o sábado. Os

protestantes e católicos de hoje obviamente não têm tais pensamentos em mente e

compreensivelmente reagem com horror diante da ideia de que um dia fariam

isso. Mas, quando os adventistas falam sobre a futura perseguição do povo de Deus

por causa do dia que eles guardam, não se referem aos tempos normais de hoje.

Estamos falando sobre uma crise final em que forças satânicas desesperadas farão

seu último esforço de resistência na história do conflito entre o bem e o mal. Esse é

o curto período imediatamente antes da volta de Cristo, que Daniel disse seria o

pior tempo de angústia que o mundo já conheceu. Nesse tempo, a raça humana

estará em pânico e

as forças demoníacas estarão operando seus milagres para enganar. Estamos

falando sobre um tempo de angústia tão severo ao qual Jesus disse que ninguém

sobreviveria se Deus não o abreviasse. Essa é a crise que os adventistas creem que

o mundo enfrentará.

Estamos nos referindo também a um tempo quando, sob a pressão da crise

final com seus rigorosos desastres naturais, o fanatismo religioso levará os seres

humanos a defender ideias e ações que hoje nem lhes passa pela mente. Você se

recordará que um dos fatores para a transformação do cristianismo no 4º século,

de uma religião de liberdade para uma religião de coerção, incluía cristãos

fanáticos que obtiveram uma posição de poder na igreja e no Estado. Infelizmente,

esse tipo de fanatismo está, agora mesmo, surgindo nos Estados Unidos. Observe as

duas citações seguintes:

Gary North, reconstrucionista e fundador do Instituto de Economia

Cristã: “Sejamos francos: precisamos usar a doutrina da liberdade

religiosa para obter independência para as escolas cristãs até que

treinemos uma geração de pessoas que saibam que não há neutralidade

religiosa, nem lei neutra, nem educação neutra, nem governo civil neutro.

Então elas se ocuparão em construir uma ordem social, política e religiosa

baseada na Bíblia, que finalmente negue a liberdade religiosa aos inimigos

257


de Deus.” 10

Randall Terry, fundador da Operação Resgate e candidato republicano

ao Senado pelo estado da Flórida nas eleições primárias de 2006:

“Simplesmente quero que vocês deixem uma onda de intolerância passar

por vocês. Quero que vocês deixem uma onda de ódio passar por vocês.

Sim, o ódio é bom. [...] Nosso alvo é uma nação cristã. Temos um dever

bíblico, somos chamados por Deus para conquistar este país. Não

desejamos um tempo igual para todos. 11 Não desejamos o pluralismo.” 12

Essas são palavras de luta. São palavras fanáticas. Contudo, são extremistas só

em certo grau quando comparadas aos pontos de vista de Pat Robertson, Jerry

Falwell, D. James Kennedy e outros da direita cristã. Isso me faz lembrar as

palavras de Roland Hegstad, que por muitos anos durante a segunda metade do

século 20 foi o diretor do departamento de Liberdade Religiosa da Associação

Geral da Igreja Adventista do Sétimo Dia: “A perseguição não vem de pessoas

más tentado tornar outras pessoas más. Vem de pessoas boas tentando tornar outras

pessoas boas”. Ele está certo. E, infelizmente, essa é precisamente a mentalidade

de muitos dos líderes da direita cristã hoje. Não duvido da sinceridade deles. Mas,

em seu desejo de tornar os Estados Unidos uma nação religiosa, eles são boas

pessoas que desejam tornar boas outras pessoas. E esse é o problema.

Eu detestaria ver o dia em que pessoas com essa mentalidade obtivessem

controle do governo norte-americano. Entretanto, a compreensão adventista de

Apocalipse 13 nos leva a concluir que isso é precisamente o que irá acontecer. Os

Estados Unidos estarão intimamente envolvidos na perseguição durante o conflito

final. Isso não deve nos surpreender, pois Jesus disse que, antes de Sua segunda

vinda, “todas as nações” odiarão e perseguirão o povo de Deus (Mt 24:9). Os

enganos do tempo do fim farão com que até os Estados Unidos quebrem seu

princípio fundamental de liberdade religiosa.

E os adventistas veem tendências neste país que, agora mesmo, estão levando

em direção a esses acontecimentos. Gostaria de repetir: aqueles que apoiam essa

tendência na atualidade não têm qualquer intenção de perseguir pessoas que

guardam o sábado. O que eles não percebem é que, em sua hostil oposição à

separação entre igreja e Estado, estão colocando os alicerces para que essa própria

perseguição aconteça durante uma futura crise. Essa perseguição ocorrerá sob

circunstâncias dramaticamente diferentes das do mundo relativamente pacífico de

hoje, e sob a direção de líderes fanáticos que não possuem as mesmas convicções

que eles sobre liberdade religiosa.

258


O papado

No capítulo 3, falei de três conclusões que podemos extrair da descrição da

besta do mar em Apocalipse 13:

• “Deu-se-lhe [à besta do mar] ainda autoridade sobre cada tribo,

povo, língua e nação” (v. 7). Isso significa que o papado alcançará

influência política sobre o mundo todo.

• “E toda a terra se maravilhou, seguindo a besta; [...] adoraram a

besta, dizendo: Quem é semelhante à besta? Quem pode pelejar contra

ela?” (v. 3, 4). O mundo reconhecerá a liderança espiritual do papado e lhe

prestará homenagem.

• “Foi-lhe dado, também, que pelejasse contra os santos e os

vencesse” (v. 7). O papado perseguirá os que se opuserem à sua

autoridade.

Se a besta do mar é um poder que atuará no tempo do fim, e se representa o

papado, como os adventistas têm ensinado, então o papado cumprirá cada uma

dessas especificações nos dias finais da história da Terra. Incrível como isso possa

parecer, conserve em mente que o Vaticano historicamente sempre aspirou ao

domínio global. Pio XI disse: “O império de nosso Redentor abrange a todos”, e: “A

humanidade toda está sujeita ao poder de Jesus Cristo”. 13 Pio XI também objetou

fortemente ao moderno estado laico, que por cerca de duzentos anos tem tornado

impossível ao papado exercer dominação global. Referindo-se ao fim da

dominação política sobre a Europa que o papado havia exercido durante o período

medieval, ele disse:

O império de Cristo sobre todas as nações [isto é, o poder político do

papado sobre a Europa durante o período medieval] foi rejeitado. O direito

que a igreja recebeu do próprio Cristo, de ensinar a humanidade, de fazer

leis, de governar os povos em tudo o que diz respeito a sua salvação eterna

– esse direito foi negado. Então, gradualmente a religião de Cristo [o

catolicismo] veio a ser igualada a falsas religiões e a ser colocada de

forma humilhante no mesmo nível que elas. Foi então colocada sob o

poder do Estado [em vez de o Estado ser colocado sob o poder da Igreja] e

passou a ser tolerada em maior ou menor grau, segundo o capricho de

259


príncipes e governantes. 14

Obviamente Pio XI teria gostado de ver restaurada a autoridade política do

papado sobre os governos civis do mundo. O autor católico George La Piana

resumiu a ambição papal nestas palavras: “Por sua própria reivindicação, a Igreja

Católica Romana é uma igreja totalitária que espera conquistar o mundo sobre o

princípio de que ela é a agência divina exclusiva da salvação, o órgão exclusivo da

graça divina, o canal exclusivo do divino Espírito”. 15

O título do livro do autor jesuíta Malachi Martin, que mencionei em capítulos

anteriores, também revela as ambições globais do Vaticano: The Keys of This

Blood: The Struggle for World Dominion Between Pope John Paul II, Mikhail

Gorbachev, and the Capitalist West [As Chaves Deste Sangue: A Luta pelo Domínio

Mundial Entre o Papa João Paulo II, Mikhail Gorbachev e o Ocidente

Capitalista]. 16 O livro de Martin, publicado em 1990, começa com a ousada

afirmação de que um governo único mundial ocorrerá dentro de apenas algumas

décadas, e João Paulo II estava competindo com Gorbachev e com o Ocidente

capitalista pelo domínio desse governo.

Martin escreve: “O propósito escolhido do pontificado de João Paulo II é ser o

vencedor nessa competição, que agora já está bastante avançada.” 17 De acordo

com esse autor, o Vaticano deseja dominar o mundo politicamente para tirar

ordem do caos moral em que este se encontra. É claro que, uma vez que o mundo

se submeta à dominação moral/política do Vaticano, a perseguição dos que não

concordam com ele acontecerá naturalmente, como sempre acontece quando a

igreja e o Estado estão unidos.

Então, como podemos entender as ousadas declarações em apoio à liberdade

de consciência que vieram do Concílio Vaticano II? No capítulo 8, apresentei várias

frases no documento sobre liberdade religiosa lançado pelo Concílio Vaticano II

que, na presença das circunstâncias certas – ou erradas – poderiam levar à

supressão da tolerância. Mas os eventos da crise que descrevi neste capítulo são o

que, no final, levará as horrendas predições de Apocalipse 13 a seu cumprimento

completo, incluindo a predição do Apocalipse sobre o papel do papado, do

protestantismo e do governo dos Estados Unidos no tempo do fim.

Malachi Martin concordaria com esse princípio, pois próximo do fim de seu

livro ele disse claramente que João Paulo II estava

esperando por um evento que irá dividir a história humana, separando

260


o passado imediato do futuro iminente. Será um evento visto publicamente

no céu, nos oceanos e nas massas continentais deste planeta. Envolverá

particularmente nosso sol humano. [...] Essa divisão será como um evento,

na convicção de fé de João Paulo II, pois anulará imediatamente todos os

grandes planos que as nações estão fazendo agora e introduzirá o Plano

Maior do Criador do homem. Então o tempo de espera e vigília de João

Paulo II estará terminado. E então começará seu ministério como servo

do Plano Maior. 18

Martin disse que João Paulo II esperava que algum tipo de desastre natural

trouxesse a dominação papal do mundo. 19 Isso está em completo acordo com a

conclusão adventista, que delineei neste capítulo, de que severos desastres naturais,

que ultrapassarão a capacidade do mundo de lidar com eles, precipitarão a crise

final. 20 Não é uma hipótese implausível imaginar que as pessoas do mundo se

voltariam para uma autoridade religiosa a fim de ajudá-las a sair das catastróficas

consequências de desastres naturais sem precedentes. E que autoridade religiosa

melhor do que a única que já tem influência e respeito globais?

Isso nos traz novamente a outra variação das perguntas que tenho feito

repetidamente ao longo deste livro: Quão realista é a predição adventista de que o

papado obterá o controle do mundo algum dia e de que então esse controle

resultará na perseguição dos dissidentes?

Será que isso pode realmente acontecer?

Por mais de 150 anos, os adventistas têm defendido firmemente que sim – que

isso acontecerá nos dias finais da história da Terra.

1 “World Church: Adventist Leaders Meet with United States President at the

White House”, Adventist News Network,

http://news.adventist.org/data/2006/03/1144177860/index.html.en.

2 Anne Wilson Schaef e Diane Fassel, The Addictive Organization (San

Francisco: Harper Collins Publishers, 1988), p. 160.

3 As opiniões diferem entre os estudiosos sobre o grau em que Deus será

261


responsável pelos desastres naturais durante a crise final.

4 Michael Barkun, Disasters and the Millennium (New Haven: Yale University

Press, 1974), p 113.

5 Ibid., p. 6.

6 Ibid., p. 56.

7 Ibid., p. 55, 56.

8 O último esforço defensivo de Satanás na verdade ocorrerá no final do

milênio, mas seu último esforço na história de nosso mundo atual será durante a

crise final, pouco antes da segunda vinda de Cristo.

9 Ellen G. White, O Grande Conflito (Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2001

[CD-Rom]), p. 624, ênfase acrescentada.

10 Christianity and Civilization, primavera de 1982, ênfase acrescentada.

11 Uma referência à regra do tempo igual, a qual especifica que todas as

estações de rádio e TV dos Estados Unidos forneçam uma oportunidade

equivalente a quaisquer candidatos políticos opostos que a solicitarem. Isto

significa, por exemplo, que se uma emissora der um minuto de tempo grátis para

um candidato no horário nobre, precisa fazer o mesmo para outro candidato (N. da

T.).

12 The News-Sentinel, Fort Wayne, Indiana, 16 de agosto de 1993; citado em

Anti-Defamation League, The Religious Right: The Assault on Tolerance and

Pluralism in America (Nova York: Anti- Defamation League, 1994), p. 4.

13 Pio XI, carta encíclica sobre a festa de Cristo o Rei, Quas Primas, par. 18.

14 Ibid., par. 24.

15 George La Piana e John Swomley, Catholic Power vs. American Freedom

(Amherst: Prometheus, 2002), p. 20.

16 Malachi Martin, The Keys of This Blood: The Struggle for World Dominion

Between Pope John Paul II, Mikhail Gorbachev, and the Capitalist West (Nova York:

262


Simon and Schuster, 1990).

17 Ibid., p. 15, 17.

18 Ibid., p. 639.

19 Martin disse que João Paulo esperava ver essa predição cumprida durante

sua existência. Obviamente, isso não aconteceu. Contudo, a predição deve ser

entendida de maneira mais ampla, como o futuro papel do papado, em vez de

como o futuro papel de qualquer papa específico.

20 Ellen White escreve: “Satanás também opera por meio dos elementos a fim

de recolher sua colheita de almas desprevenidas. Estudou os segredos dos

laboratórios da natureza, e emprega todo o seu poder para dirigir os elementos

tanto quanto o permite Deus. [...] Ao mesmo tempo em que aparece aos filhos dos

homens como grande médico que pode curar todas as enfermidades, trará

moléstias e desgraças até que cidades populosas se reduzam à ruína e desolação.

Mesmo agora está ele em atividade. Nos acidentes e calamidades no mar e em

terra, nos grandes incêndios, nos violentos furacões e terríveis saraivadas, nas

tempestades, inundações, ciclones, ressacas e terremotos, em toda parte e sob

milhares de formas, Satanás está exercendo o seu poder. Destrói a seara que está a

amadurar, e seguem-se fome, angústia. Comunica ao ar infecção mortal, e

milhares perecem pela pestilência. Essas visitações devem tornar-se mais e mais

frequentes e desastrosas. A destruição será tanto sobre o homem como sobre os

animais. [...] E então o grande enganador persuadirá os homens de que os que

servem a Deus estão motivando esses males. A classe que provocou o

descontentamento do Céu atribuirá todas as suas inquietações àqueles cuja

obediência aos mandamentos de Deus é perpétua reprovação aos transgressores.

Será declarado que as pessoas estão ofendendo a Deus pela violação do descanso

dominical; que esse pecado acarretou calamidades que não cessarão antes que a

observância do domingo seja estritamente imposta; e que os que apresentam os

requisitos do quarto mandamento, destruindo assim a reverência pelo domingo, são

perturbadores do povo, impedindo a sua restauração ao favor divino e à

prosperidade temporal” (O Grande Conflito, p. 589, 590; nota dos editores).

263


U

m de meus passatempos favoritos é montar quebra-cabeças. Não que eu

o faça com frequência. Contudo, nas raras ocasiões em que me sento

para montar um quebra-cabeça, não vejo as horas passarem.

Geralmente começo pelas beiradas. Já notei que a maioria das pessoas o faz,

porque essas peças, sendo retas em um dos lados, são as mais fáceis de identificar.

Uma vez que as beiradas estejam montadas, é hora de começar a montar a parte

de dentro, e esse é o verdadeiro desafio. Felizmente, os fabricantes de quebracabeças

imprimem uma versão em miniatura da figura na caixa, que dá uma boa

ideia de como ficará o quebra-cabeça completo, e eu sempre procuro nessa figura

padrões que possam aparecer nas peças. Talvez haja um estábulo vermelho na

figura, ou um riacho cristalino, ou um trecho com várias margaridas amarelas. A

maioria das paisagens também tem um pouco do céu na parte de cima. Procuro

todas as peças com aquelas cores e padrões e as coloco amontoadas de um lado. É

mais fácil achar as peças que se encaixam dentro desses padrões do que numa

mesa cheia de peças que não têm nenhuma relação umas com as outras. Depois

de algum tempo, consigo montar várias das partes maiores da figura, e as coloco

no lugar a que pertencem na estrutura formada pelas peças da beirada.

Essa é uma analogia do que tenho feito neste livro. No capítulo 1, apresentei

um esboço geral da compreensão adventista sobre os eventos finais,

particularmente nossa interpretação das duas bestas e da marca da besta de

Apocalipse 13. Podemos comparar isso a olhar para a figura na caixa do quebracabeça.

Nos capítulos seguintes, expliquei nossa interpretação sobre a besta do

mar, a besta da terra e a marca da besta, e salientei como a história e os eventos

atuais cumpriram ou estão cumprindo nossa compreensão

desses símbolos proféticos. Podemos comparar esses temas às partes principais de

264


nosso quebra-cabeça imaginário. Neste capítulo, eu gostaria de juntar essas partes

principais umas às outras para formar uma figura completa. Obviamente, isso

envolverá um pouco de repetição, mas acho que precisamos fazê-lo a fim de

vermos a figura como um todo. Cada um dos intertítulos no restante deste capítulo

é uma das partes principais da figura que estivemos montando.

Ameaça à separação entre igreja e Estado

A separação entre igreja e Estado é o fundamento da liberdade religiosa.

Quando as leis do Estado estão baseadas em princípios morais religiosos, em vez de

laicos, mais cedo ou mais tarde isso sempre resulta em perseguição àqueles

contrários às ideias predominantes. Isso não quer dizer que as leis do Estado

discordarão dos princípios religiosos. Em muitos casos, as duas serão iguais. Em

outras palavras: quando os legisladores elaboram as leis do Estado, devem

consultar o bom-senso das pessoas, não os livros sagrados que as pessoas levam

consigo para igrejas, sinagogas ou mesquitas. Infelizmente, as tendências recentes

nos Estados Unidos ameaçam reverter o histórico princípio norte-americano da

separação entre igreja e Estado.

Os católicos, que têm estado relativamente em silêncio durante a recente

guerra cultural norte-americana sobre o assunto de separação entre igreja e

Estado, têm historicamente favorecido a união entre igreja e Estado. Eles chegam

à sua filosofia política de união entre igreja e Estado de maneira bastante natural.

O paganismo já era a religião oficial no tempo em que Constantino se tornou

cristão. Ninguém pensou, naquela época, em separar a religião do governo. Assim,

após a conversão de Constantino, o cristianismo gradualmente substituiu o

paganismo como a religião estatal, e ninguém viu qualquer problema nesse

arranjo. Era simplesmente a forma como as coisas eram feitas. E continuou a ser

a forma como as coisas foram feitas pelos próximos 1.400 ou 1.500 anos, até que o

Iluminismo quebrou o poder da religião sobre o governo e criou as nações laicas

que conhecemos hoje, em que religião e governo são separados.

A reação dos papas a essa mudança foi compreensível: não gostaram dela.

Ninguém gosta de mudanças – especialmente mudanças que desafiam nossa

autoridade e contrariam a maneira como as coisas têm sido feitas durante um

milênio e meio! Assim, os papas atacaram veementemente a separação entre

igreja e Estado. Mas não havia quase nada que eles pudessem fazer a esse respeito;

as nações da Europa haviam se tornado laicas, e haviam ganhado poder suficiente

para se livrar do poder político que o papado havia exercido sobre elas por

centenas de anos. A Revolução Francesa foi o clímax dessa tendência – a gota

d’água que fez transbordar o copo para os católicos. Essa foi a “ferida mortal” que

atingiu a besta do mar de Apocalipse 13 após cerca de 1.260 anos de dominação na

265


política europeia.

Contudo, o papado não mudou seu conceito sobre a relação com o governo

civil. Até hoje os católicos veem o cristianismo como a única religião verdadeira e

sua igreja como a única igreja cristã verdadeira, sendo o papa seu chefe. Até hoje,

no Estado católico ideal a autoridade do papa seria respeitada como suprema, não

apenas em assuntos religiosos, mas também em assuntos políticos. Afinal, assim

como a alma é superior ao corpo, a igreja é superior ao Estado.

Consequentemente, o Estado deve estar sujeito à igreja, pelo menos no que diz

respeito a assuntos relacionados à teologia e à moral.

E que dizer da liberdade de consciência? É fato que durante centenas de anos o

papado condenou a ideia de que cada pessoa é livre para crer e adorar de acordo

com os ditames de sua consciência. Mas será que o Concílio Vaticano II não trouxe

uma notável mudança na compreensão do Vaticano sobre liberdade religiosa?

Esse concílio de fato afirmou que “a pessoa humana tem direito à liberdade

religiosa” e que “ninguém deve ser forçado a agir de maneira contrária a suas

próprias crenças”. Cada pessoa, disse o concílio, deve “desfrutar imunidade de

coerção externa, bem como liberdade psicológica”, e essa “liberdade religiosa tem

seu fundamento [...] na própria natureza [da pessoa]”. Porém, salientei no capítulo

8 várias frases contidas nos documentos do Concílio Vaticano II sobre liberdade

religiosa que poderiam comprometer essas declarações positivas. De qualquer

forma, a ameaça primária à liberdade religiosa que existe na compreensão política

do Vaticano hoje é seu contínuo apoio à união entre igreja e Estado, pois o Concílio

Vaticano II não abandonou esse princípio, e a união entre igreja e Estado é uma

das pedras fundamentais da perseguição religiosa.

Agora os protestantes da direita cristã também estão ativamente ocupados em

promover a união entre igreja e Estado, pois estão atacando ferozmente o princípio

da separação entre igreja e Estado. Pat Robertson declarou que essa separação “é

uma mentira da esquerda, e não vamos mais tolerá-la”. 1 Ele disse também que

“[as cortes] estão tirando de nós nossa religião sob o disfarce de separação entre

igreja e Estado”. 2 Jerry Falwell disse: “A separação entre igreja e Estado tem sido,

há muito tempo, o grito de batalha dos libertários civis que desejam purgar nossa

gloriosa herança cristã da história de nossa nação”. 3 W. A. Criswell, ex-pastor da

Primeira Igreja Batista de Dallas, Texas, declarou que a separação entre igreja e

Estado “é meramente uma ficção imaginária dos infiéis”. 4

Outra recente ameaça à separação entre igreja e Estado é a exigência de

Rousas Rushdoony e Francis Schaeffer de que as leis civis norte-americanas sejam

baseadas na Bíblia e na lei de Deus. Rushdoony declara: “A lei civil não pode ser

266


separada da lei bíblica”. A lei bíblica “é, portanto, a lei para a pessoa cristã e para a

sociedade cristã”. 5 Schaeffer insiste que “o Estado [...] deve ser administrado de

acordo com os princípios da lei de Deus”. 6 Rushdoony e Schaeffer estão

simplesmente exigindo uma versão norte-americana da lei sharia muçulmana.

Outras vozes, embora talvez o expressando de forma mais moderada, ecoam o

mesmo sentimento. A Comissão dos Dez Mandamentos deseja “ajudar a restaurar

os Dez Mandamentos e os valores judaico-cristãos a seu legítimo lugar em nossa

sociedade”. 7 Paul Wey rich deseja “cristianizar os Estados Unidos”. 8 Pat Robertson

deseja que os cristãos “redimam a sociedade”. 9 E D. James Kennedy deseja

“recuperar os Estados Unidos para Cristo”. 10

Ao longo da maior parte da história norte-americana, os protestantes, incluindo

os fundamentalistas e evangélicos, têm dado forte apoio à separação entre igreja e

Estado. Ainda em 1960, recusaram-se a endossar John F. Kennedy para presidente

até que ele fez um voto apoiando a separação entre igreja e Estado. Mas agora um

bloco significativo de protestantes se une aos católicos ao se oporem à separação

entre igreja e Estado. Os católicos hoje chegam a 25% da população dos Estados

Unidos, e os protestantes da direita cristã ficam pouco atrás. Caso esses dois grupos

se unam, poderão facilmente destruir a separação entre igreja e Estado nos

Estados Unidos. E apesar de todas as declarações deles em apoio à liberdade de

religião, com a separação entre igreja e Estado fora do caminho, a liberdade

religiosa eventualmente daria lugar à perseguição religiosa.

Talvez você esteja pensando na eleição intermediária de 2006, a qual quebrou

o controle que o Partido Republicano havia exercido sobre o Congresso dos Estados

Unidos durante os doze anos anteriores. Isso não enfraqueceu o poder que a direita

cristã havia exercido sobre a política norte- americana durante esses doze anos? É

claro que sim, mas isso é na verdade completamente irrelevante para o que quero

demonstrar. O poder político está constantemente mudando de um lado para outro,

e devemos evitar em qualquer momento dar demasiada importância a uma

mudança em qualquer direção. Mas a conclusão que desejo apresentar é que a

direita cristã surgiu na última metade do século 20 como uma poderosa força

política na política norte-americana, que até mesmo os não religiosos não podem

mais ignorar. É um poder que, dadas as circunstâncias certas, poderia emergir

novamente a qualquer momento, e que numa crise poderia se voltar bem mais

para a extrema direita do que a maioria dos próprios líderes da direita cristã atual

gostaria de ver.

O novo evangelismo

267


O cristianismo sempre foi uma religião de evangelismo. O próprio Jesus

ordenou a Seus seguidores: “Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações”

(Mt 28:19). Durante dois mil anos, os cristãos têm viajado por todo o mundo

conquistando pessoas para Jesus. As cruzadas evangelísticas de Billy Graham na

segunda metade do século 20 são um exemplo de primeira grandeza do

evangelismo cristão. Esse é o evangelismo bíblico tradicional.

Contudo, o novo “evangelismo” dos protestantes da direita cristã e dos católicos

norte-americanos é muito diferente. Embora o evangelismo bíblico procure

conquistar as pessoas para Cristo, o evangelismo atual da direita cristã luta para

moldar sociedades inteiras “para Cristo”. No evangelismo bíblico genuíno, que

busca ganhar as pessoas para Cristo, cada um é livre para escolher tornar-se

ou não um cristão. Mas em uma nação que está deliberadamente sendo moldada

em uma sociedade cristã governada pela lei de Deus, os que escolhem não se

tornar cristãos e os cristãos que creem de maneira diferente da definição nacional

da lei de Deus inevitavelmente se sentem como párias, e mais cedo ou mais tarde

serão pressionados a se conformar à vontade da maioria. Estou certo de que o

esforço dos protestantes da direita cristã e dos católicos de hoje para moldar os

Estados Unidos numa sociedade cristã acabará sendo sentido de maneira coerciva,

assim como os pagãos no 4º século sentiram a coerção dos cristãos que tentavam

criar uma “sociedade cristã” no Império Romano.

Isso me lembra as palavras de Roland Hegstad que citei no capítulo anterior.

“A perseguição”, disse Hegstad, “não surge de pessoas más tentando tornar outras

pessoas más. Surge de pessoas boas tentando tornar outras pessoas boas”. Isso é o

que facilmente acontece – quase inevitavelmente acontece – quando os cristãos

concentram parte importante de seus esforços “evangelísticos” em criar uma

sociedade cristã, em vez de seguir a ordem de Cristo de simplesmente pregar o

evangelho, fazer discípulos, batizar e ensinar as pessoas (Mt 24:14; 28:19, 20).

E os protestantes da direita cristã de hoje realmente querem mudar a

sociedade. Mencionei as citações seguintes alguns parágrafos atrás no contexto da

separação entre igreja e Estado, mas elas se aplicam igualmente ao “novo

evangelismo” da direita cristã. De acordo com Pat Robertson, “o Senhor diz:

‘Deixarei que vocês redimam a sociedade’”. 11 O ponto de vista de D. James

Kennedy é que os cristãos devem “recuperar os Estados Unidos para Cristo,

qualquer que seja o custo. Como vice-regentes de Deus, devemos exercer domínio

e influência piedosos sobre [...] todos os aspectos e instituições da sociedade

humana”. 12 E a Comissão dos Dez Mandamentos “foi fundada para se opor à

agenda secular e ajudar a restaurar os Dez Mandamentos e os valores judaicocristãos

a seu legítimo lugar em nossa sociedade”. 13

268


É verdade que poucas pessoas na direita cristã atualmente falam sobre

perseguir aqueles que discordam deles. Contudo, o reconstrucionista cristão Gary

North deseja que os cristãos se dediquem a “construir uma ordem social, política e

religiosa baseada na Bíblia, que finalmente negue a liberdade religiosa aos inimigos

de Deus”. 14 E Randall Terry, o agressivo fundador da Operação Resgate, deseja

que as pessoas “deixem uma onda de intolerância [e ódio] passar por vocês. [...]

Nosso alvo é uma nação cristã. [...] Somos chamados por Deus para conquistar

este país”. 15

Admito que Gary North e Randall Terry estão entre as vozes mais radicais de

nossa sociedade. Contudo, a coerção surgiu no 4º século porque os elementos mais

radicais da sociedade cristã daquela época subiram ao poder. Além disso, Gary

North e Randall Terry são só ligeiramente mais radicais do que Pat Robertson e D.

James Kennedy. Todos esses homens defendem ideias que mais adiante poderiam

facilmente levar à coerção em nome de tornar outras pessoas boas.

O novo evangelismo – o esforço de converter a sociedade em vez de converter

as pessoas – é uma poderosa ameaça à liberdade religiosa. É óbvio que uma

sociedade religiosa tem pontos positivos, mas primeiro devemos transformar as

pessoas.

Dominionismo

Intimamente aliado ao novo evangelismo, está o conceito de “dominionismo”,

o qual propõe que os cristãos devem purificar os Estados Unidos e, por fim, o

mundo todo, exercendo “domínio piedoso” sobre a sociedade e o governo. O

dominionismo foi proposto explicitamente durante a última metade do século 20

por R. J. Rushdoony e, implicitamente, por Francis Schaeffer.

Como Agostinho, mil e quinhentos anos antes, Rushdoony cria que o milênio

começou com a primeira vinda de Cristo, em vez de Sua segunda vinda. Agostinho

reinterpretou a predição de Daniel sobre a pedra que atingiu os pés da estátua,

aplicando-a à igreja cristã em vez de se referir à segunda vinda de Cristo. Assim,

tornou-se responsabilidade da igreja “[esmiuçar e consumir] todos esses reinos” e

estabelecer o eterno reino de Deus na Terra (Dn 2:44). O pós-milenarismo de

Rushdoony propõe essencialmente a mesma coisa. “O homem é convocado”, ele

declara, “para criar a sociedade que Deus requer.” 16

Rushdoony igualou a grande comissão de Cristo à ordem que Deus deu a Adão

e Eva de sujeitar a Terra e dominar “sobre os peixes do mar, sobre as aves dos

céus e sobre todo animal que rasteja pela terra” (Gn 1:28). Assim, a grande

comissão de Cristo, “fazei discípulos de todas as nações” (Mt 28:19), agora se torna

269


uma ordem para conquistar o mundo politicamente. Onde Agostinho via a Igreja

Católica como a pedra que destruiria todos os reinos terrestres, Rushdoony atribuiu

a tarefa ao cristianismo como um todo. Em outros aspectos, seus pontos de vista

são idênticos. Isso é dominionismo, apesar de Agostinho não ter usado esse termo.

Embora Francis Schaeffer não tenha usado o termo “domínio” exatamente da

maneira que Rushdoony o fez, sua filosofia básica se assemelha à de Rushdoony.

“O Estado”, ele afirma, “deve ser administrado de acordo com os princípios da lei

de Deus.” 17 Ele desejava que as leis dos Estados Unidos fossem “fundamentadas

na lei de Deus”. 18 “O governo civil”, dizia ele, “está debaixo da lei de Deus”, 19 e

o poder dos reis “é limitado pela Palavra de Deus”. 20 O dominionismo de

Rushdoony e Schaeffer influenciou profundamente os protestantes atuais da direita

cristã e seu chamado para que os cristãos fundamentalistas assumissem o domínio

de nossa sociedade e suas instituições, inclusive o governo.

A ideia principal é esta: o dominionismo – o conceito de que os cristãos devem

exercer domínio piedoso sobre a sociedade e seus governos – é simplesmente outro

nome para a união entre igreja e Estado. A união entre igreja e Estado é o

fundamento de toda perseguição. E os protestantes da direita cristã norteamericana

desejam domínio.

Q uebrando a cooperação entre o laicismo e a religião

O conceito de separação entre igreja e Estado é uma proposta singularmente

laica. Surgiu durante o século 18 como resultado da oposição do Iluminismo ao

domínio clerical dos governos da Europa. A Revolução Francesa, que a certa altura

proscreveu toda religião, foi a mais extrema forma desta oposição secular à união

entre igreja e Estado.

O Iluminismo também afetou profundamente a Revolução Norte-

Americana e a Constituição que resultou dela. No entanto, nos Estados Unidos, a

separação entre igreja e Estado assumiu um modelo significativamente diferente.

Os líderes não religiosos norte-americanos – Thomas Jefferson, George

Washington, James Madison, John Adams e Benjamin Franklin, para mencionar

alguns – estavam profundamente cientes da contribuição que a religião pode dar

para uma sociedade estável. Madison, por exemplo, disse: “A crença em Deus [é]

essencial para a ordem moral do mundo”. 21 George Washington afirmou: “A

razão e a experiência nos proíbem, ambas, de esperar que possa prevalecer uma

moralidade nacional com exclusão do princípio religioso.” 22

Contudo, a consideração de Madison, Washington e seus compatriotas pela

270


religião não significa que estivessem interessados numa união entre igreja e

Estado. Ao contrário, eles criam que a melhor maneira de proteger a religião era

separá-la do governo. Assim, Madison argumentava que “a religião floresce com

maior pureza sem a ajuda do governo do que com ela” 23 e que “o número, a

operosidade e a moralidade do sacerdócio, bem como a devoção do povo,

aumentam manifestamente pela total separação entre a igreja e o Estado”. 24 E

Thomas Jefferson concebeu “um muro de separação entre a igreja e o Estado”. 25

É extremamente importante compreender que o tipo norte-americano de

separação entre igreja e Estado foi resultado de uma cooperação singular entre o

laicismo e a religião. Enquanto na Europa, duzentos anos atrás, o laicismo e a

religião tendiam a estar em feroz desacordo um com o outro, nos Estados Unidos

cada um deles reconhecia a contribuição que o outro podia dar para uma

sociedade estável e um governo democrático. Os norte-americanos, de modo

geral, apoiaram a cooperação entre o religioso e o laico durante a maior parte de

sua história.

Observe que eu disse “a maior parte de sua história”, pois hoje a direita cristã

está em guerra contra o laicismo. Francis Schaeffer afirmou que os materialistas

seculares “não têm base suficiente nem para a sociedade nem para a lei”. 26 Ele

argumentou de maneira entusiasmada que “essas duas religiões, o cristianismo e o

humanismo [laicismo], se colocam uma contra a outra como totalidades”. 27

Assim, “deveríamos lutar e orar para que toda essa outra entidade – a cosmovisão

que enfatiza o acaso e a energia material [secularismo] – possa ser repelida,

juntamente com todos os seus resultados na totalidade da vida”. 28

Schaeffer escreveu: “Estamos em guerra.” 29 Ele queria dizer, é claro, que os

religiosos dos Estados Unidos estão em guerra com os não religiosos. Isso é o

mesmo que a “guerra cultural” da qual os protestantes da direita cristã falam às

vezes. É uma guerra entre a religião cristã e o laicismo. No livro American Gospel

[Evangelho Norte-Americano], Jon Meacham afirma que “Deus não nos dá

respostas fáceis” para “as questões que nos dividem”. Mas falou sobre uma

resposta que tem servido bem aos Estados Unidos ao longo de sua história. Essa

resposta, que “tem muito que a recomende, é simplesmente o diálogo entre

aqueles que discordam. [...] O diálogo em tais assuntos geralmente sobrepuja o

combate”. 30

Infelizmente, os não religiosos e os religionistas atuais não dialogam. Eles

brigam. E não parece haver muita chance de que consigam dialogar tão cedo.

Agora observe o seguinte: a cooperação entre a religião e o laicismo está sendo

271


seriamente ameaçada hoje pela guerra cultura dos protestantes da direita cristã.

Contudo, a cooperação entre a religião e o laicismo – esse diálogo, como Jon

Meacham o expressou – foi o que tornou possível a separação entre igreja e

Estado, e a liberdade religiosa que dela resulta. A separação entre igreja e Estado e

a liberdade religiosa estão profundamente ameaçadas no momento em que

cristãos e não religiosos quebram sua histórica cooperação, recusam-se a dialogar

e, em vez disso, começam a guerrear uns contra os outros.

A esta altura, parece que ocorre uma guerra para alcançar a linha de chegada,

sendo que um dos lados vai ganhar e o outro vai perder. A única pergunta é: Que

lado vencerá? Pela compreensão adventista das profecias, você já sabe a resposta.

Resumo

Durante 150 anos, os adventistas do sétimo dia têm identificado a besta do mar

de Apocalipse 13 como sendo o papado, e a besta da terra como sendo os Estados

Unidos da América. Também temos identificado a marca da besta como a

observância do domingo como dia de descanso e adoração imposto por lei. Com

base nessa interpretação, concluímos isto:

• O papado, que foi uma potência política na Europa durante centenas

de anos durante a Idade Média, recebeu o que parecia ser uma ferida

mortal quando os modernos estados laicos da Europa e dos Estados Unidos

separaram a religião do governo.

• Contudo, durante a crise final da Terra, o papado se recuperará dessa

ferida mortal e se tornará uma potência política global, impondo suas

doutrinas e princípios morais com perseguição semelhante àquela que

praticou na história medieval.

• Os Estados Unidos também se tornarão um poder perseguidor,

cooperando com o papado, especialmente na imposição do domingo como

dia de descanso religioso e adoração – a marca da besta.

Essas predições parecem extravagantes e tolas ao longo da maior parte de

nossa história, e é por isso que tenho repetidamente feito a pergunta: Será que os

eventos preditos com base em nossa compreensão de Apocalipse 13 podem

realmente acontecer? Creio que a esta altura – dadas as tendências do mundo atual

que delineei neste livro, e dada a predição bíblica de uma crise global, provocada

por desastres naturais, que ultrapassará a capacidade de o mundo enfrentá-la –

272


você já pode entender por que os adventistas creem que a resposta é “sim”.

Cremos não só que tudo isso pode acontecer, mas que irá acontecer.

1 De um discurso de Pat Robertson feito em novembro de 1993, citado em

Anti-Defamation League, The Religions Right: The Assault on Tolerance and

Pluralism in America (Nova York: Anti- Defamation League, 1994), p. 4.

2 Pat Robertson em seu programa de televisão Clube dos 700, de 19 de julho

de 2005, citado por Rob Boston em “Religious Right Power Brokers: The Top Ten”,

Church and State, junho de 2006, p. 10.

3 Citado por Rob Boston em “Religious Right Power Brokers: The Top Ten”,

Church and State, junho de 2006, p. 14.

4 De uma entrevista da CBS de 6 de setembro de 1984, gravada um dia após

ele haver dado a bênção na Convenção Nacional Republicana; citada em Anti-

Defamation League, The Religious Right, p. 4.

5 Rousas John Rushdoony, The Institutes of Biblical Law (Phillipsburg: P & R

Publishing, 1973), p. 4, 9.

6 Francis A. Schaeffer, A Christian Manifesto (Westchester: Crossway, 1981),

p. 28, 100, 99.

7 “The Ten Commandments Day”, http://www.tencommandmentsday.com.

Nota: as palavras neste website mudam ligeiramente para o Dia dos Dez

Mandamentos a cada ano. As palavras citadas aqui são referentes ao Dia dos Dez

Mandamentos de 2006.

1980.

8 Signswatch, inverno de 2001, p. 4; declaração de Paul Wey tich em agosto de

9 Comentário de Pat Robertson no Clube dos 700, citado em RedSonja2000

“Dominionist Dream: Repeal the 1st Amendment”, Talk to Action,

http://www.talk2action.org/story /2005/12/16/103532/64.

273


10 Citado em “The Rise of the Religious Right in the Republican Party”,

http://www.theocracywatch.org, ênfase acrescentada.

11 Ver nota 5.

12 Ver nota 6.

13 Ver nota 7.

14 Christianity and Civilization, Spring 1982, ênfase acrescentada.

15 The News-Sentinel, Fort Wayne, Indiana, 16 de agosto de 1993; citado em

The Religious Right: The Assault on Tolerance and Pluralism in America, p. 4.

16 Rushdoony, The Institutes of Biblical Law, p. 4.

17 Schaeffer, A Christian Manifesto, p. 28, 100.

18 Ibid., p. 99.

19 Ibid., p. 90.

20 Ibid., p. 98.

21 Joseph Laconte, “Faith and the founding: the influence of religion on the

politics of James Madison”, Journal of Church and State, 22 de setembro de 2003,

p. 7; citado por Mark R. Levin em Men in Black: How the Supreme Court Is

Destroying America (Washington, DC: Regnery, 2005), p. 249.

22 Address of George Washington, President of the United States, …

Preparatory to His Declination (Baltimore: George and Henry S. Keatinge, 1796),

p. 22, 23.

23 James Madison numa carta para Edward Livingston, 10 de julho de 1822,

citado em “Pure Religion”, Liberty, dezembro de 2005, p. 13.

24 Church and State, abril de 2006, p. 24.

25 “Separation of Church and State in the United States”, Wikipedia,

http://en.wikipedia.org/wiki/Separation_of_church_and_state_in_the_United_States.

274


26 Schaeffer, A Christian Manifesto, p. 26.

27 Ibid., p. 54.

28 Ibid., p. 73, 74.

29 Ibid., p. 116.

30 Jon Meacham, American Gospel, God, the Founding Fathers, and the Mercy

of a Nation (Nova York: Random House, 2006), p. 83, 84; ênfase acrescentada.

275


E

ntão, como devemos reagir ao que vimos neste livro? Mencionarei quatro

atitudes que creio serem responsabilidade de todo aquele que crê pelo

menos em alguma coisa do que leu nas páginas anteriores.

Proteger a liberdade religiosa

Às vezes ouço algum adventista dizer: “Por que não deixar simplesmente que a

opressão religiosa assuma o controle? Isso apressará a volta de Jesus.” Essa é uma

ideia muito errada. Precisamos fazer tudo que pudermos para proteger a liberdade

religiosa que temos durante o maior tempo possível. Falando exatamente nesse

contexto, Ellen White escreveu: “É nosso dever fazer tudo que estiver ao nosso

alcance para evitar o perigo que se aproxima.” 1

O que você e eu podemos fazer para “evitar o perigo que se aproxima” da

perseguição religiosa?

A primeira coisa que precisamos fazer é nos informarmos sobre esses

assuntos. Tentei apresentá-los neste livro da maneira mais clara possível, mas ainda

há muito mais que todos nós podemos aprender. Sugiro que você leia os três livros

seguintes. À medida que se familiarizar com o assunto, ficará sabendo de outros

livros.

• La Piana, George e John Swomley. Catholic Power vs. Ameri​can

Freedom. Editado por Herbert F. Vetter. Nova York: Pro​metheus, 2002. (A

primeira parte, escrita por George La Piana, é especialmente útil.)

276


• Levy, Leonard W. Original Intent and the Framers’ Constitution.

Nova York: Macmillan, 1988.

• Meacham, Jon. American Gospel: God, the Founding Fathers, and

the Making of a Nation. Nova York: Random House, 2006.

Também é uma boa ideia visitar na internet algumas organizações laicas norteamericanas.

Sugiro as seguintes:

• Americans United for Separation of Church and State:

http://www.au.org

• People for the American Way: http://www.pfaw.org/pfaw/general/

• American Civil Liberties Union: http://www.aclu.org/

Também sugiro que você se familiarize com o pensamento dos ativistas da

direita cristã. Para isso, recomendo que inclua em sua lista os seguintes:

The Christian Coalition: http://www.cc.org

The American Center for Law and Justice: http://www.aclj.org

The Moral Majority Coalition: http://www.moralmajority.us/

Uma das coisas mais importantes que você pode fazer para defender a

liberdade religiosa é estar ciente das questões que envolvem a liberdade religiosa e

que estão sendo debatidas no Congresso dos Estados Unidos e nas assembleias

legislativas estaduais. Você ficará informado sobre grande parte delas através de

comunicações por correspondência ou e-mail que receberá das organizações, tanto

laicas quanto religiosas conservadoras, que mencionei acima. Porém, não basta

apenas se manter ciente. Você precisa agir. Quando houver uma questão

importante que diga respeito à liberdade religiosa, faça com que os senadores e

deputados federais eleitos por seu estado conheçam suas convicções. Cartas, e-

mails e telefonemas são maneiras simples de se comunicar com eles.

Finalmente, vote de acordo com suas convicções na época das eleições. Você

terá de equilibrar suas convicções sobre liberdade religiosa e separação entre

igreja e Estado com outras questões ao decidir em quem votar. Mas não vote

simplesmente em um partido. Seja um eleitor bem informado.

277


Prepare-se para o inevitável

Vários tornados atingiram o Oklahoma no verão de 1999. Lembro-me de ler

no jornal sobre uma mulher que, vários anos antes, havia transformado um closet

de sua casa em abrigo de tempestades ao construir uma parede de blocos de

concreto ao redor dele. Quando ela e sua família ouviram um alerta sobre tornados

na TV, esconderam-se todos no abrigo contra tempestades. Momentos mais tarde

um tornado demoliu sua casa – mas eles sobreviveram. Essa mulher não tinha

ideia de quando – ou sequer se – um tornado destruiria sua casa, mas se preparou

de antemão para a possibilidade e, quando ele chegou, ela estava pronta.

De acordo com as profecias que analisamos neste livro, o mundo enfrentará

uma terrível crise, que consistirá em vários desastres naturais, guerras e

terrorismo. A economia do mundo será abalada, provocando incalculáveis

dificuldades. Ao mesmo tempo, muitos experimentarão um grande reavivamento

religioso. Pessoas em todo o mundo perceberão que Deus está tentando conseguir

nossa atenção e, então, se voltarão para Ele em multidões. Infelizmente, esse será

também um tempo de intensa atividade satânica, e o erro desviará a muitos. Em

seguida, ocorrerá a perseguição religiosa para aqueles que se recusarem seguir as

práticas de adoração politicamente corretas.

Aquela mulher da cidade de Oklahoma não sabia se um tornado algum dia

atingiria sua casa, mas se preparou para o caso de isso ocorrer. Nós hoje não temos

de ficar pensando se virá uma tempestade. Sabemos que virá porque a Bíblia o

prediz. Ainda em 1896, Ellen White escreveu: “Com fúria inexorável aproxima-se

a tormenta.” E então ela pergunta: “Estamos nós preparados para enfrentá-la?” 3

Que preparo, então, deveríamos fazer? Sugiro três maneiras de nos prepararmos.

Preparo espiritual. Seu preparo mais importante será o espiritual. É fácil dizer

que você precisará de um relacionamento íntimo com Jesus. Muitas pessoas falam

sobre relacionamento com Jesus, e elas obviamente estão certas. Mas o que isso

significa? Como você pode desenvolver esse relacionamento com Jesus?

Não é preciso dizer que você precisa estudar sua Bíblia e orar. Quanto ao

estudo da Bíblia, preciso adverti-lo de que “uma palavrinha do Senhor para hoje”

não é suficiente. A leitura rápida de uma página da meditação diária não é

suficiente. Você precisa dedicar tempo para estudar de maneira organizada. Se

você possui um plano regular de estudo da Bíblia, tal como a lição da Escola

Sabatina, então continue fazendo isso. Pessoalmente, gosto de passar por todos os

livros da Bíblia. Tenho um programa bíblico em meu computador que me dá

acesso a várias versões da Bíblia. Posso encontrar qualquer texto da Bíblia em

segundos, e o texto aparece em minha tela em todas as versões disponíveis,

278


inclusive grego ou hebraico (dependendo da parte da Bíblia em que estou). Escrevo

meu próprio comentário, um verso de cada vez, no computador. Geralmente levo

de duas a três semanas para examinar apenas um capítulo.

Também é importante ter familiaridade com os ensinos fundamentais da Bíblia

– o que os teólogos chamam de “doutrina”. Algumas pessoas pensam que doutrina

é desnecessária, e que “ter um relacionamento com Jesus” é tudo que importa. O

problema com essa noção é que a doutrina afetará seu relacionamento com Jesus.

Justificação e santificação são doutrinas. Lei e obediência são doutrinas. O sábado

é uma doutrina. Cada um desses assuntos possui uma contribuição essencial para

seu relacionamento com Jesus e, quanto melhor você os entender, mais íntimo será

seu relacionamento com Ele. Assim, recomendo que você encontre uma forma de

estudar os ensinos básicos da Bíblia e do cristianismo. O livro Nisto Cremos 4 é uma

excelente maneira de estudar biblicamente as doutrinas adventistas. Se você deseja

se aprofundar mais, uma boa fonte é o Tratado de Teologia Adventista do Sétimo

Dia. 5 Recomendo especialmente que você aprenda tudo o que puder sobre

justificação pela fé. Será extremamente importante compreender esse assunto

quando você estiver sob as pressões espirituais do tempo do fim, porque Satanás

tentará você a crer que está perdido e que seu caso é sem esperança. Mas será

muito difícil para ele fazer isso se você tiver compreendido corretamente a

justificação pela fé. Não se esqueça de compreender a diferença entre

justificação e santificação. Paulo falou detalhadamente sobre ambas nos primeiros

oito capítulos de Romanos. Escrevi um livro explicando esses capítulos. O título é

Forever His: How to Have a Joyful and Unbroken Relationship With Jesus [Para

Sempre Seu: Como Ter um Relacionamento Alegre e Ininterrupto com Jesus]. 6

Recomendo que você adquira um exemplar e o estude cuidadosamente.

A oração também é parte essencial de seu preparo para a última crise. Isso

também não pode ser apenas uma conversinha de dois minutos com Deus na qual

você Lhe pede que o “proteja de qualquer dano ou perigo hoje, amém”. Todos nós

precisamos fazer isso, obviamente. Mas a oração é muito mais do que isso. Para

começar, você precisa passar tempo de joelhos com Deus. Sua mente irá fugir

para outros assuntos. A minha faz isso, e a de todas as outras pessoas. Simplesmente

continue trazendo-a de volta ao assunto. Algumas pessoas preferem orar sentadas,

outras deitadas. Deus não Se importa com isso. Ele simplesmente está interessado

em que você passe tempo conversando com Ele e ouvindo-O. Portanto, seja de

joelhos, sentado ou deitado, e seja de olhos fechados ou abertos, faça o que

funciona melhor para você. Mas faça.

Vencer defeitos de caráter. Minha segunda sugestão para que você se prepare

279


espiritualmente a fim de sobreviver à crise vindoura é vencer seus defeitos de

caráter, porque essas são as questões em sua vida que irão fazer com que você

desista de suas convicções sob a ameaça de perseguição. Qualquer compulsão está

baseada num defeito de caráter, e todos nós as temos: compulsão por comida,

sexo, pornografia, trabalho, álcool, fumo, narcóticos, jogo, TV, internet – e por aí

vai.

E como lidar com um defeito de caráter? Vários anos atrás, escrevi um livro

chamado Conquering the Dragon Within [Vencendo o Dragão que Há Dentro de

Nós], 7 que trata detalhadamente de como vencer compulsões e outros defeitos de

caráter. Darei a vocês uma breve explicação aqui. O conceito mais importante

para você ter em mente ao lutar com qualquer compulsão ou defeito de caráter é

que o problema básico não é seu comportamento errado. O problema básico é seu

desejo errado. Tiago disse: “Quando alguém for tentado, não diga: ‘Esta tentação

vem de Deus.’ Pois Deus não pode ser tentado pelo mal e Ele mesmo não tenta

ninguém. Mas as pessoas são tentadas quando são atraídas e enganadas pelos seus

próprios maus desejos. Então esses desejos fazem com que o pecado nasça, e o

pecado, quando já está maduro, produz a morte” (Tg 1:13-15, Nova Tradução na

Linguagem de Hoje).

Qualquer que seja a tentação que venha a assediá-lo, se você não desejá-la,

não será vencido por ela. Se você se livrar do desejo, basicamente se livrará da

tentação, e com isso se livrará do comportamento errado. Meu livro Conquering

the Dragon Within tem várias sugestões práticas para você lidar com os desejos

errados e com os comportamentos errados que eles provocam.

Outra sugestão que partilharei aqui é agradecer a Deus pela vitória quando

você ainda está sob a tentação. Você pode dizer mais ou menos o seguinte:

“Obrigado, Pai, porque por Sua morte na cruz Jesus quebrou o poder que esta

tentação tem sobre minha vida. Agradeço porque através de Jesus a vitória já é

minha.” Você deve fazer essa oração mesmo enquanto a tentação ainda está

ardendo no seu cérebro e você sente que o poder dela está para vencê-lo. Fazer

essa oração é um ato de fé, e a justiça é “pela fé”. Essa oração tem sido uma das

mais poderosas estratégias que descobri para vencer a tentação.

Preparo físico. Parte de seu preparo espiritual para a crise final é se manter

fisicamente bem preparado. É simples; você já conhece: uma dieta equilibrada

(com ênfase em frutas, castanhas, leguminosas e verduras), muita água, exercício

aeróbico, ar fresco e sol, e repouso adequado. Também é uma boa ideia fazer um

exame físico completo ao ano, incluindo dentes e olhos.

Entretanto, existe uma forma de preparo físico que recomendo que você não

tente fazer. Alguns anos atrás um jovem se aproximou de mim após o culto e me

280


perguntou se é uma boa ideia comprar uma casinha de campo nas montanhas a

fim de fugir para lá no tempo de angústia. Eu disse que, se ele tivesse condições

financeiras, comprar uma casinha nas montanhas era uma boa ideia como

oportunidade de férias para sua família. Contudo, eu o aconselhava a não comprar

a casinha de campo como preparo para o tempo de angústia. Nem aconselho

guardar comida ou dinheiro para o tempo de angústia, e certamente não

recomendo guardar armas e munição. Deus fará provisão para suas necessidades

durante o tempo de angústia, e protegerá você dos inimigos.

Compartilhe suas convicções

Suponha que eu tivesse informações absolutamente certas de que em algum

momento nos próximos cinco anos sua casa seria totalmente destruída pelo fogo –

contudo, eu não pudesse lhe dar uma data; poderia ser a qualquer momento

durante esses cinco anos. Como você gostaria que eu me relacionasse com essas

informações? Talvez eu hesitasse em advertir você do perigo iminente, porque

você acharia minha predição tola. O que você preferiria: que eu não lhe dissesse

nada para não parecer tolo ou que eu lhe dissesse e deixasse você decidir o que

fazer com a informação?

Essa é a situação que os adventistas do sétimo dia têm enfrentado durante 150

anos. Cerca de cem anos atrás, um crítico disse que a renúncia dos Estados Unidos

a seu histórico apoio à liberdade religiosa exigiria “um milagre maior do que Deus

fazer crescer um carvalho gigante num instante”. 8 Outro disse: “De todas as

extravagantes especulações adventistas sobre profecias, [...] [a predição sobre as

leis dominicais] merece figurar entre as mais extravagantes.” 9 Contudo, várias

tendências do mundo político e religioso norte-americano – tendências que

começaram nos últimos 25 anos do século 20 e continuam até o presente –

apontam na direção do cumprimento dessa profecia.

Portanto, qual é nossa responsabilidade? Qual é a responsabilidade de qualquer

pessoa que reconheça o perigo dessas tendências? Devemos partilhar o que

sabemos? A resposta é: Sim, é claro, assim como seria certo de minha parte que eu

falasse das más notícias do incêndio que destruiria sua casa nos próximos cinco

anos – e terrivelmente errado de minha parte não lhe contar, com medo de que

você me achasse tolo. Irei discutir três questões que você precisa conservar em

mente ao partilhar com outros o que delineei neste livro.

Sempre demonstre respeito. Um forte anticatolicismo “nativista” surgiu nos

Estados Unidos durante o século 19, enquanto chegavam grandes levas de

imigrantes de vários países católicos da Europa. O medo era que esses católicos

fossem mais leais ao papa do que às instituições políticas norte- americanas. Esse

281


anticatolicismo resultou em alguns infelizes episódios de perseguição. Hoje, porém,

vemos acontecer na política norte-americana o que esses nativistas mais temiam:

políticos católicos são informados pelo Vaticano de que estão pecando se seus votos

no Congresso dos Estados Unidos não estiverem de acordo com os princípios

morais católicos. Então, como devem reagir aqueles dentre nós que reconhecem

esse problema?

A reação nativista durante o século 19 foi muito intolerante e, por isso, resultou

em episódios ocasionais de perseguição. Isso é totalmente impróprio. A intolerância

nunca resolve problemas. Só os torna piores. Portanto, um dos princípios mais

importantes a se ter em mente ao analisarmos a pergunta “Como reagiremos?” é

este: sempre demonstre respeito. Devemos respeitar a todos: católicos, protestantes

da direita cristã e não religiosos, pois não desejamos repetir as atitudes nativistas do

século 19. É possível discordar de maneira entusiasmada e ainda mostrar respeito.

Tentei modelar esse tipo de respeito neste livro. Desejo evitar a intolerância como

uma praga. Nos pontos em que falhei, por favor, perdoe-me e lembre-se de que

sou apenas um falível ser humano.

Mostre que Jesus é o mais importante. As profecias bíblicas não salvarão

ninguém. Ninguém será salvo por compreender as leis dominicais. Creio nas

profecias. Elas têm seu lugar. Mas o aspecto mais importante da religião cristã é

Jesus, não os eventos históricos preditos nas profecias. Portanto, um dos primeiros

princípios para partilhar qualquer profecia é que você não comece por ela.

Comece com Jesus. Comece com o plano da salvação. Comece com uma

preocupação com as pessoas e em vê-las salvas no reino de Deus.

Um importante propósito das profecias bíblicas, especialmente daquelas que

lidam com o tempo do fim, é ajudar as pessoas a compreenderem os desafios à

sua fé que elas experimentarão durante a crise final do mundo. É por isso que a

profecia bíblica é importante. Ao advertir as pessoas do que está pela frente,

damos a elas a oportunidade de se prepararem espiritualmente para que não

percam a salvação que obtiveram em tempos mais pacíficos. Mas primeiro elas

precisam receber essa salvação para fazer o preparo espiritual do qual irão

precisar a fim de preservar a salvação durante uma crise posterior. E você não

pode compartilhar um Jesus que não conhece. Isso significa que você precisa

desenvolver seu próprio relacionamento com Jesus a fim de que possa partilhá-lo

com outros.

Testemunhe de maneira inteligente. Que tipo de lições de matemática sua

professora dos primeiros anos do ensino básico lhe dava? Provavelmente lições

muito simples de adição e subtração. Se não me falha a memória, só aprendi

multiplicação e divisão no início do ensino fundamental, e só estudei álgebra e

geometria no ensino médio. A questão é esta: começa-se com o simples e se

282


avança para o complexo. Seria um erro os professores darem álgebra e geometria

para os alunos do ensino básico. Essas matérias simplesmente não fariam sentido

para eles. Eles precisam ter a base fornecida pelos problemas mais simples de

matemática para compreenderem as tarefas mais complexas.

O mesmo se aplica à apresentação das profecias bíblicas para aqueles que não

estão familiarizados com elas. As profecias são muito complexas, e as partes mais

complicadas não farão sentido para aqueles que não têm base bíblica para

entendê-las. Eles pensarão que você é tolo, e a verdade é que você estaria sendo,

mesmo. A tolice não estaria em sua compreensão profética. Estaria na maneira

em que você pula para a parte mais complexa antes de ter lançado a base que as

pessoas necessitam para entendê-la.

As pessoas precisam conhecer Jesus primeiro. Precisam compreender o

amplo alcance dos ensinos bíblicos. Antes de estudar sobre a compreensão

adventista a respeito da marca da besta, precisam compreender o ensino bíblico

sobre o sábado. Quando você estiver pronto para passar para as profecias, comece

com algo simples como a estátua de Daniel 2. Então você pode passar para os

quatro animais de Daniel 7. Com essa base, as pessoas podem compreender

Apocalipse 13 e 14.

Ame os não religiosos

Os protestantes da direita cristã veem a si mesmos como envolvidos numa

“guerra cultural” contra o secularismo. E os não religiosos lutam contra a direita

cristã tão veementemente quanto esta luta contra eles. Isso me perturba

profundamente. No capítulo anterior, expliquei minha preocupação pelo fato de

que essa guerra cultural está rompendo a histórica cooperação entre as pessoas

religiosas e as pessoas seculares, que deu uma contribuição tão vital para a

liberdade religiosa nos Estados Unidos. As forças seculares atuais ainda defendem

o princípio da separação entre igreja e Estado, e nisso os apoio. Felizmente, a

direita cristã conservadora não é o único poder religioso nos Estados Unidos. Ainda

há muitos protestantes e católicos nesse país favoráveis à tradicional cooperação

entre religião e laicismo, e precisamos apoiá-los. Essa é uma das coisas que você e

eu podemos fazer para defender a liberdade religiosa.

Contudo, o ataque da direita cristã ao laicismo me perturba também por outra

razão. Jesus ordenou a Seus seguidores que amassem seus inimigos, não que os

odiassem (Mt 5:44). Mas é impossível amar seus inimigos e ao mesmo tempo se

empenhar numa guerra cultural contra eles. A guerra promove ódio, não amor, e o

ódio a nossos inimigos é o resultado inevitável de mudarmos a grande comissão de

Cristo, da conquista de indivíduos para a reforma da sociedade.

283


É impossível ganharmos pessoas para Jesus quando estamos em guerra com

elas. As pessoas são atraídas a Jesus através de cristãos fiéis, mas não podemos

atrair pessoas enquanto estamos lutando com elas. O novo “evangelismo” da

direita cristã, que procura converter a sociedade para Jesus, é na verdade

contraproducente para a verdadeira missão dada por Cristo, que é conquistar

pessoas para Ele, amando-as. A igreja cristã primitiva vivia numa cultura que era

bem mais hostil a seus interesses do que a cultura norte- americana é aos nossos,

contudo, dentro de trezentos anos a igreja conquistou aquela cultura.

Francis Schaeffer declara: “Deveríamos lutar e orar para que toda essa outra

entidade – a cosmovisão que enfatiza o acaso e a energia material [secularismo] –

possa ser repelida, juntamente com todos os seus resultados na totalidade da

vida.” 10 “Precisamos compreender que haverá uma batalha a cada passo do

caminho. Eles [os materialistas seculares] estão determinados a fazer com que o

que eles ganharam não seja repelido.” 11 Essas são palavras de luta, não palavras

que conquistam almas.

Alguns podem protestar alegando que, a menos que lutemos por nossa

liberdade, os não religiosos a tirarão de nós. Se isso acontecer, precisamos nos

lembrar de que os cristãos tinham pouca liberdade nos primeiros trezentos anos do

movimento, mas que, mesmo sem a liberdade, conquistaram o império. Os

cristãos não ganham lutando. Ganhamos amando. E ganhamos perdendo. Essa

última declaração lhe parece estranha? Lembre-se de que todos os que estavam ao

redor da cruz naquela sexta-feira à tarde acharam que Jesus havia perdido. Mas o

que parecia uma terrível perda era uma grande vitória. O Apocalipse diz que na

crise final da Terra, a besta do mar recebe autoridade para “que pelejasse contra

os santos e os vencesse” (Ap 13:7). Contudo, pouco tempo depois, esses santos

estarão se unindo a Cristo em Sua segunda vinda. Os cristãos ganham perdendo.

Deus não nos chamou para lutar contra os não religiosos; Ele nos chamou a amálos.

E embora eles possam nos oprimir, Jesus estará conosco até o fim (Mt 28:20).

Os cristãos estão empenhados numa guerra. O Apocalipse diz que “irou- se o

dragão contra a mulher e foi pelejar com os restantes da sua descendência”

(Ap 12:17). Contudo, “nossa luta não é contra o sangue e a carne”. Não é contra

pessoas. A elas, devemos amar. Nossa luta é “contra os principados e potestades,

contra os dominadores deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal,

nas regiões celestes” (Ef 6:12).

Sim, os cristãos estão engajados numa guerra. Certifiquemo-nos de que

estamos lutando contra o inimigo certo.

284


1 Ellen G. White, Eventos Finais (Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2001

[CD-Rom]), p. 126.

2 As organizações People for the American Way e American Civil Liberties

Union tratam de várias questões relacionadas a direitos civis, inclusive questões

relacionadas à liberdade religiosa e à relação entre igreja e Estado.

3 Ellen G. White, Maranata, o Senhor Vem (Tatuí: Casa Publicadora Brasileira,

2001 [CD-Rom]), p. 106.

4 Nisto Cremos: as 28 Crenças Fundamentais da Igreja Adventista do Sétimo

Dia (Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2006).

5 Raoul Dederen, ed., Tratado de Teologia Adventista do Sétimo Dia (Tatuí:

Casa Publicadora Brasileira, 2011).

6 Marvin Moore, Forever His: How to Have a Joyful and Unbroken

Relationship With Jesus (Nampa: Pacific Press, 2004).

7 Moore, Conquering the Dragon Within: God’s Provision for Assurance and

Victory in the End Time (Nampa: Pacific Press, 1995).

8 Theodore Nelson na introdução ao livro de Dudley M. Canright, Seventh-day

Adventism Renounced (Nashville: Gospel Advocate Company, 1914), p. 23.

9 Ibid., p. 89.

10 Francis A. Schaeffer, A Christian Manifesto (Westchester: Crossway, 1981),

p. 73, 74.

11 Ibid., p. 75.

285


C

onforme eu disse no prólogo, gosto de predições extravagantes e tolas.

Quanto mais extravagantes e tolas elas são, mais gosto delas. Por quê?

Porque, quanto mais extravagante e tola uma predição parecer

inicialmente, mais impressão causará quando se cumprir.

É claro que sempre há a possibilidade de que minha predição não se cumpra.

Nesse caso, minha predição não é a única coisa extravagante e tola – eu também

sou! Esse é o risco que corre qualquer pessoa que faça uma predição. Portanto, é

melhor estarmos seguros de que nossas predições têm um fundamento sólido e

racional, de acordo com os melhores fatos disponíveis no momento.

Corretamente entendidas, as profecias bíblicas proveem uma base sólida sobre

a qual podemos conhecer o futuro. Neste livro, partilhei com você a base bíblica

para a compreensão adventista de Apocalipse 13 e os eventos mundiais que

mostram seu cumprimento parcial.

Será que nossas predições são extravagantes e tolas? Ou será que... isso pode

realmente acontecer?

Deixo com você a decisão.

286


D

evido aos ataques que estão sendo desferidos contra a separação entre

igreja e Estado, é importante que tenhamos uma compreensão correta

desse princípio. Discuti detalhadamente questões sobre igreja e Estado nos

capítulos 10 e 14. Irei comentar aqui sobre três objeções apresentadas pela direita

cristã contra a separação entre igreja e Estado. Tenha em mente duas coisas ao ler

este adendo: (1) livros inteiros têm sido escritos sobre esse assunto; portanto, admito

que minha explicação é extremamente resumida; (2) não sou um advogado

especializado na Constituição; o que você lerá serão minhas reflexões pessoais após

ter considerado os argumentos de ambos os lados durante vários anos. 1

1. A separação entre igreja e Estado não está presente na Constituição. Jerry

Falwell argumenta que a expressão “separação entre igreja e Estado” “não

aparece uma única vez na Constituição”, 2 e Pat Robertson afirma: “Não existe isso

[separação entre igreja e Estado] na Constituição.” 3 Tecnicamente, Falwell,

Robertson e outros que fazem essa acusação estão corretos. Você pode ler a

Constituição dos Estados Unidos do princípio ao fim e não encontrará as palavras

“separação entre igreja e Estado” em qualquer parte do documento. Mas isso não

significa que o conceito seja inconstitucional, assim como o fato de as palavras

Trindade, encarnação e milênio não se encontrarem na Bíblia não significa que

esses conceitos sejam antibíblicos. Os norte-americanos usam com frequência

vários outros termos políticos, e creem fortemente neles, embora não se

encontrem na Constituição. Entre eles temos “julgamento justo”, “inocente até que

se prove o contrário” e “direito à não autoincriminação”. 4 Os princípios que esses

termos expressam encontram-se na Constituição, embora os termos em si não se

encontrem.

287


Assim, que princípio é expresso pelas palavras separação entre igreja e

Estado?

A perseguição dos protestantes contra os católicos na Europa medieval ainda

estava fresca na mente dos fundadores dos Estados Unidos, bem como a

perseguição de protestantes por católicos e de católicos por protestantes durante o

período da Reforma. E ainda mais próxima da época dos fundadores estava a

perseguição de dissidentes pelos puritanos durante o início do período colonial.

Mesmo na época da Revolução Norte-Americana,

os batistas, os quakers e outras minorias religiosas foram marginalizados pelas

igrejas estabelecidas – na maioria dos casos, as igrejas episcopal e congregacional.

O Estado concedia subsídios a essas igrejas maiores, enquanto proibia os ministros

batistas e quakers até de pregar, e aprisionava alguns que ousavam fazer isso.

Esse problema estava na mente dos fundadores dos Estados Unidos quando

escreveram a Constituição. Mas como resolvê-lo? Eles criaram uma ideia radical

que nunca antes havia sido experimentada: propuseram criar um governo laico que

estivesse livre de embaraço com a religião.

Durante a Idade Média, os governos laicos eram desconhecidos. A teoria

política católica defendia naquela época – e ainda defende hoje – que o governo e

a religião devem estar unidos. Não apenas isso, mas o papado afirmava que o

poder religioso é superior ao civil, e, em qualquer desentendimento entre os dois, o

poder espiritual (a igreja) deve prevalecer. Por outro lado, durante o mesmo

período, o poder civil às vezes impunha sua vontade à igreja, para angústia desta.

Tudo isso criava muitas discussões e intermináveis hostilidades.

Para resolver esse problema, os fundadores dos Estados Unidos disseram:

Manteremos a religião e o governo separados para que nenhum dos dois possa

controlar o outro. A igreja não dirá ao governo o que fazer e o governo não

mandará na igreja. O governo não promulgará leis religiosas, nem financiará a

religião. E não favorecerá uma religião sobre a outra; será neutro em relação a

todas as religiões, protegendo-as igualmente e dando a cada uma autonomia para

desempenhar sua missão como julgar apropriado. O governo ficará inteiramente

fora do campo da religião. Esse é o significado das duas cláusulas religiosas que

constam na Primeira Emenda da Constituição: “O Congresso não fará nenhuma lei

referente ao estabelecimento da religião, ou proibindo o livre exercício dela.”

Resumindo, nos Estados Unidos, a separação entre igreja e Estado significa, de

maneira muito simples, que governo e religião não se misturam. Um governo laico

é um governo que não é controlado, ou mesmo diretamente influenciado, pela

religião. Suas leis não são baseadas nas leis de qualquer religião. A separação entre

igreja e Estado torna isso possível.

288


2. A separação entre igreja e Estado proíbe a expressão pública da religião. De

vez em quando, recebo uma carta ou um e-mail acalorado de alguma organização

da direita cristã protestando que a separação entre igreja e Estado está tirando a

liberdade de os cristãos expressarem sua religião publicamente. Eles afirmam que

a separação entre igreja e Estado está destruindo aquilo que ela visava proteger.

Mas observo algo interessante quando leio essas cartas e e-mails. Em cada um

desses casos, o que os ativistas da direita cristã realmente querem dizer é que estão

proibidos de expressar sua religião em propriedades e instituições pertencentes ao

governo. Mas a palavra “público” tem um sentido muito mais amplo que isso.

Quando dou uma volta por minha vizinhança, às vezes, vejo placas amarelas

com os Dez Mandamentos nos gramados das casas. Quando dirijo pela rua, vejo

adesivos atrás dos carros que dizem “Jesus é o Senhor”. Ao dirigir na estrada, às

vezes vejo uma placa pregada no mourão de alguma cerca dizendo: “Jesus salva”.

Cada um desses exemplos é uma expressão pública de religião, e ainda estou para

ouvir falar de alguém que tente proibir as pessoas de colocar essas placas, a não

ser em propriedade governamental.

Por que as cortes ordenam a remoção dos Dez Mandamentos de escolas e

tribunais públicos? Porque escolas e tribunais são edifícios governamentais, e

subentende-se que o governo seja neutro em religião. Se cristãos e judeus não

podem colocar citações de seus livros sagrados em escolas públicas e gramados de

tribunais, o mesmo se aplica a muçulmanos, hindus e adeptos da bruxaria. A

separação entre igreja e Estado impede todas as pessoas de expressarem sua

religião em propriedades e instituições do governo, mas não as impede de

expressar sua religião publicamente. É um argumento ilusório afirmar que ela o

faz. Não deixe que ninguém o engane com ele.

3. A separação entre igreja e Estado é um mito histórico. Como mencionei no

capítulo 14, William Rehnquist, presidente da Suprema Corte dos Estados Unidos,

disse certa vez: “O ‘muro de separação entre igreja e Estado’ é uma metáfora

baseada numa interpretação errada da história”. E, na mesma linha de

pensamento, o congressista Tom DeLay disse: “Afirmar que nossos Pais

Fundadores eram a favor da separação entre igreja e Estado é reescrever a

história ou é ser muito ignorante dela.” Essas declarações simplesmente não são

verdadeiras.

A expressão “separação entre igreja e Estado” remonta ao tempo dos Pais

Fundadores. Numa carta à Associação Batista de Danbury, Thomas Jefferson

disse: “Encaro com solene reverência o ato de todo o povo norte- americano que

declarou que sua legislatura não devia fazer ‘nenhuma lei referente ao

estabelecimento da religião, ou proibindo o livre exercício dela’, construindo assim

um muro de separação entre a igreja e o Estado.” 5

289


Observe que o comentário de Jefferson sobre “um muro de separação entre a

igreja e o Estado” vem logo após sua citação das cláusulas religiosas da Primeira

Emenda. Essa é uma clara indicação de que Jefferson – um dos fundadores da

república norte-americana, se é que houve fundador – entendia que as cláusulas

religiosas significavam “separação entre a igreja e o Estado”.

Os oponentes da separação entre Igreja e Estado argumentam que a carta de

Jefferson era um assunto particular entre ele e um pequeno grupo de batistas;

portanto, não deve influenciar decisões judiciais duzentos anos mais tarde. É claro

que a carta era particular – o detalhe é que ela expressava as convicções de

Jefferson. Se você estivesse sendo julgado por um crime e uma carta particular a

um amigo fosse lida na corte como evidência de seus pensamentos e atitudes, não

seria aceita como evidência válida? É óbvio! Da mesma forma, a carta de

Jefferson para os batistas de Danbury mostra o que ele – o autor da Declaração de

Independência e um dos fundadores primários da República – achava sobre a

separação entre igreja e Estado no que diz respeito à Primeira Emenda.

A separação entre igreja e Estado tem uma longa história nos Estados Unidos

desde que a nação foi fundada. No capítulo 10, citei declarações dos presidentes

Andrew Jackson, John Ty ler e Uly sses Grant, no século 19, em apoio da separação

entre igreja e Estado. Em 1985, Billy Graham disse que os norte-americanos

desfrutam “separação entre igreja e Estado, e nenhuma religião denominacional

jamais foi – e oramos a Deus que jamais seja – imposta a nós”. 6

1 No apêndice B, forneço reflexões adicionais sobre “intenção original” e

“ativismo judicial” – duas outras preocupações dos conservadores políticos e

religiosos.

2 Fax de Falwell, de 10 de abril de 1998; citado em Church and State, maio de

1998, p. 18.

3 De um discurso de Pat Robertson feito em novembro de 1993; citado em The

Religious Right: The Assault on Tolerance and Pluralism in America (Nova York:

Anti-Defamation League, 1994), p. 4.

4 Para uma longa lista desses termos, veja Leonard W. Levy, Original Intent

and the Framers’ Constitution (Chicago: Ivan R. Dee, 1988), p. 351.

290


5 Essa declaração está incluída numa carta que Jefferson escreveu para a

Associação Batista de Danbury (Connecticut). É uma citação bem conhecida,

disponível em muitas fontes. Uma das mais fáceis de se acessar é a Wikipedia,

artigo “Thomas Jefferson”:

http://en.wikipedia.org/wiki/Thomas_Jefferson#Church_and_state; ênfase

acrescentada.

6 Jon Meacham, American Gospel: God, the Founding Fathers, and the Making

of a Nation (Nova York: Random House, 2006), p. 214.

291


N

este apêndice, irei comentar sobre a exigência da direita cristã de que as

decisões das cortes dos Estados Unidos sempre devem estar baseadas nas

doutrinas da intenção original e do originalismo, e discutirei brevemente o

chamado ativismo judicial. Como mencionei no Apêndice A, você deve ter duas

coisas em mente ao ler o que se segue. Em primeiro lugar, livros inteiros têm sido

escritos sobre cada um desses tópicos; portanto, admito que o que digo aqui é

extremamente resumido. Segundo, não sou um advogado constitucional. Expresso

aqui apenas minhas reflexões após ter considerado os argumentos de ambos os

lados ao longo dos anos. 1

Intenção original

“Intenção original” é um conceito de responsabilidade judicial o qual declara

que os juízes – especialmente os juízes da Suprema Corte dos Estados Unidos e os

juízes das cortes federais inferiores – devem basear suas decisões na intenção

daqueles que escreveram a Constituição. Um termo relacionado é “originalismo”,

o qual declara que a Constituição tem um sentido fixo que foi estabelecido na

época de sua promulgação, e deve ser interpretada hoje estritamente de acordo

com esse significado.

Os originalistas e os partidários da intenção original não veem a Constituição

como um documento que declara princípios amplos cuja interpretação pode

evoluir com o tempo. Quando chega um caso diante da Corte, os juízes devem

perguntar: O que os constituintes entendiam que isso significava? O que a

Constituição significava, quando foi criada, no que diz respeito a esta questão? Os

juízes devem sempre buscar basear suas decisões nessas determinações.

292


Alguns juízes – embora provavelmente uma minoria – creem nos princípios do

originalismo e da intenção original. Por exemplo, o juiz nomeado para a Suprema

Corte, Robert Bork, 2 declarou que “o originalismo procura promover a norma da

lei ao comunicar à Constituição um sentido fixo, contínuo e previsível”. 3 Bork

também disse: “Os juízes não devem subverter a vontade das maiorias legislativas

estando ausente a violação de um direito constitucional, da maneira como esses

direitos eram compreendidos pelos constituintes.” 4 Os ativistas da direita cristã são

extremamente críticos dos juízes que não julgam de acordo com o originalismo e a

intenção original. Mark R. Levin, no livro Men in Black [Homens de Preto],

escreve:

Na extensão em que [o princípio do originalismo] é comprometido,

tanto a liberdade quanto a norma da lei são colocadas em risco. O Poder

Judiciário, operando fora de seu escopo, é a maior ameaça que

enfrentamos hoje ao governo representativo. 5

Que dizer da intenção original? Que dizer do originalismo? Será que esses são

princípios válidos para juízes da Suprema Corte seguirem ao tomarem suas

decisões? Minha primeira observação é que ambos são princípios válidos para os

juízes considerarem ao tomarem suas decisões. Levy afirma também: “Na

maioria dos casos a intenção original deve ser seguida quando claramente

discernível, e sempre merece o máximo respeito e consideração como guia

interpretativo.” 6 A questão é se os juízes devem sempre estar presos a um sentido

fixo da Constituição e às intenções dos constituintes. Por várias razões, a resposta é

“não”.

Quem redigiu a Constituição dos Estados Unidos? Antes de os juízes poderem

basear suas decisões no que os constituintes tencionavam, devem primeiro decidir

quem eram estes. Nós os limitamos aos membros da Convenção Constitucional que

se reuniu na Filadélfia entre 25 de maio e 17 de setembro de 1787? Ou devemos

acrescentar os membros das convenções estaduais ratificadoras que deram

aprovação final à Constituição dos Estados Unidos? E há outros que devemos

considerar? Ambos os pontos de vista têm seus defensores.

David Barton, na obra Original Intent [Intenção Original], argumenta que entre

os Pais Fundadores devem ser incluídos todos os seguintes:

• os 56 assinantes da Declaração de Independência;

293


• os líderes militares mais significativos (Barton defende cerca de três

dúzias) que lutaram pela independência;

• os catorze presidentes que governaram os Estados Unidos entre 1774

e 1779; 7

• os 55 homens que compuseram a Convenção Constitucional;

• os delegados das convenções estaduais que ratificaram a

Constituição;

• os 90 membros do primeiro Congresso, que criou a Carta de Direitos;

• os membros mais antigos da Suprema Corte;

• os membros do gabinete de George Washington durante seus dois

mandatos. 8

Essa é uma lista e tanto! E é longa demais. Obviamente, os delegados

presentes à convenção que criou a Constituição devem ser incluídos como

constituintes, e é razoável incluir os delegados das convenções estaduais que

ratificaram a Constituição, porque presumivelmente haviam lido o documento e

dado seu consentimento a ele; não haveria Constituição sem eles. Creio que temos

de restringir nossa definição de “os constituintes” a esses dois grupos.

Como sabemos qual era a intenção deles? Se determinarmos quem eram os

constituintes, temos então de descobrir o que eles pensavam, o que eles

tencionavam. Levy salienta que “não podemos responder a qualquer pergunta

sobre a intenção dos constituintes sem primeiro determinar se existem evidências

que fornecerão uma resposta”. 9 Mas para onde nos voltamos em busca de

evidências? Quase não foram conservados registros dos procedimentos da

Convenção Constitucional. Se a convenção tivesse sido realizada hoje, todos os

discursos sem dúvida teriam sido gravados em áudio e talvez até em vídeo, e a

intenção dos delegados teria sido clara para todos verem. Mas anotações manuais

eram a única maneira de registrar os procedimentos naquele tempo, e as

anotações manuais são demasiado lentas para conseguir acompanhar a velocidade

normal da fala. Assim, era impossível fazer registros completamente acurados do

que foi dito na Convenção Constitucional.

Além disso, o único que fez o que se aproxima de um registro dos

procedimentos foi James Madison, e ele só publicou suas notas uns 50 anos mais

tarde, e nesse tempo ele já teve que recorrer à memória para preencher as

lacunas. Além disso, nesse tempo seu próprio discernimento já havia amadurecido;

294


ele já havia até mudado de ideia sobre algumas questões constitucionais

significativas, e isso pode ter alterado seu pensamento enquanto preparava o

registro da convenção para ser publicado.

Os procedimentos das convenções estaduais ratificadoras são ainda mais

esparsos e bem mais problemáticos. A convenção estadual da Pensilvânia tem o

melhor registro disponível. Levy afirma: “Os debates de nenhum outro estado

foram tão plenamente registrados, ou, antes, reconstruídos a partir de jornais e

tratados.” 10 Note cuidadosamente o que Levy escreve: o registro dos debates da

Pensilvânia foi em grande extensão reconstruído “a partir de jornais e tratados”. O

problema é que jornais e tratados não são atas oficiais. São relatórios dos

procedimentos da convenção da Pensilvânia feitos por jornalistas e escritores, e

essa é uma fonte pouco digna de confiança para determinar as opiniões dos

constituintes. Eldrid Gerry, que foi delegado da convenção da Pensilvânia, mais

tarde reclamou que os “debates das convenções estaduais, publicados por

escritores que haviam feito notas taquigráficas, eram geralmente parciais e

mutilados”. 11

Começando em 1827, um homem chamado John Elliott publicou The Debates

in the Several State Conventions, on the Adoption of the Federal Constitution [Os

Debates das Várias Convenções Estaduais sobre a Adoção da Constituição

Federal]. Contudo, seus Debates “relatam de maneira não confiável os

procedimentos de apenas cinco estados, além de alguns fragmentos de outros”. 12

Seu relatório dos procedimentos da Pensilvânia foram particularmente falhos

porque ele citou apenas os discursos de James Wilson e Thomas McKean, ambos

os quais eram federalistas que favoreciam a ratificação. Ele ignorou todos os

oponentes à ratificação. Não é de admirar que Levy diga: “Os relatos existentes

[da Convenção Constitucional e das convenções estaduais ratificadoras]

simplesmente não são suficientemente amplos, um fato que torna completamente

impossível uma jurisprudência da intenção original.” 13

Não existe unanimidade. Uma importante falha na doutrina da intenção original

é o pressuposto de que os delegados da Convenção Constitucional e das convenções

estaduais ratificadoras tinham todos o mesmo pensamento sobre o significado do

documento que produziram. Mas é simplesmente irrealista esperar que 55 pessoas

numa sala estejam todas de acordo sobre todos os aspectos de um documento tão

complexo quanto a Constituição dos Estados Unidos. E obter unanimidade de

opinião nas convenções de 13 estados é ainda menos provável. Se você tem acesso

ao C-Span (o canal do governo dos Estados Unidos) na TV por assinatura, passe

uma hora assistindo aos procedimentos do Senado dos Estados Unidos. Você verá

uma enorme diversidade de opiniões. O mesmo certamente teria sido o caso com

295


respeito à Convenção Constitucional e às convenções ratificadoras estaduais.

Levy acrescenta que o termo “‘intenção’ [original] é insatisfatório porque

implica numa única ou uniforme condição mental, ou de propósito, ou de

compreensão, por parte dos constituintes e mesmo dos ratificadores da

Constituição. ‘Intenções originais’ [no plural] seria uma expressão muito

melhor”. 14 Os constituintes, conclui Levy, “discordavam em muitos assuntos

cruciais”. Por isso, “durante várias décadas após a ratificação da Constituição as

recordações distantes daqueles que haviam estado presentes à Convenção

Constitucional da Filadélfia forneceram as principais evidências da intenção dos

constituintes. Mesmo quando essas recordações eram claras, os constituintes

discordavam veementemente sobre o que a Convenção tinha significado ou

tencionado”. 15

Por causa desses pontos de vista conflitantes na mente dos constituintes, um

problema óbvio com a doutrina da intenção original é que, ao se escolher quem se

cita, é possível fazer os constituintes dizerem quase qualquer coisa que se desejar. E

mesmo então, a fonte que alguém cita pode ser mais um reflexo das anotações

falhas de um repórter, de sua memória imperfeita ou de sua percepção

tendenciosa sobre o que o constituinte disse, do que uma representação acurada do

que o constituinte em questão realmente queria dizer.

Originalismo. Uma das principais questões com respeito à Constituição é se ela

tem um significado fixo para todos os tempos ou se ela é um “documento vivo”

cujo significado evolui com o tempo. Aqueles que defendem um sentido fixo são

“originalistas”. São também chamados “construcionistas estritos” porque desejam

que a Constituição seja interpretada exatamente de acordo com o que ela significa,

e nada mais. Aqueles que advogam uma interpretação mais flexível veem a

Constituição como um “documento vivo” que é adaptável a muitas circunstâncias e

situações. Os ativistas da direita cristã são quase sem exceção

construcionistas estritos.

Um importante problema com a compreensão construcionista estrita é que os

constituintes não poderiam ter previsto todas as miríades de situações com as quais

o Congresso teria de lidar ou que seriam levadas à Suprema Corte à medida que os

anos se passassem. Por essa própria razão, os constituintes parecem ter

intencionalmente deixado ambíguas muitas partes da Constituição, para que sua

interpretação fosse adaptável a uma variedade de situações. E as circunstâncias de

fato mudam. Levy apropriadamente declara que

os constituintes e ratificadores não podem falar de seus túmulos para

dirigir nossa vida resolvendo as questões constitucionais de nossa época.

296


Vivemos num mundo de aeronaves supersônicas, DNA recombinante,

robôs, computadores, micro-ondas, ecologia de aldeia global, exploração

interplanetária e de uma economia mundial interdependente. Nossos

problemas particulares de lei constitucional não podem ser resolvidos pela

sabedoria e discernimento daqueles que elaboraram e ratificaram a

Constituição, muito embora observemos a intenção deles em muitos

assuntos cruciais e fundamentais. 16

Mesmo que pudéssemos ressuscitar os constituintes de sua sepultura e lhes

pedir que resolvessem nossos problemas de acordo com sua intenção original, eles

não falariam com uma só voz. Observei pouco acima que eles estavam tão

profundamente divididos em sua época como estamos em nossa e, se estivessem

vivos para debater nossos problemas, estariam tão profundamente divididos quanto

nós estamos.

Ativismo judicial

Os defensores da intenção original muitas vezes reclamam sobre o ato dos

juízes de hoje de “legislar dos tribunais”. Outro termo para isso é ativismo judicial.

Essa objeção é baseada na ideia do originalismo – de que a Constituição tem um

significado fixo para todos os tempos, e que é responsabilidade dos juízes

determinar esse significado e tomar todas as decisões em harmonia com esse

significado predeterminado. Sobre juízes que tomam decisões fora desse

significado original da Constituição, às vezes é dito que são “ativistas judiciais” e

que estão “legislando dos tribunais”. Isto é, em vez de interpretarem a lei, eles a

estão criando. De acordo com esse ponto de vista, é responsabilidade do poder

legislativo criar leis. A única responsabilidade do judiciário é interpretar leis,

inclusive a Constituição.

Há dois ou três problemas importantes com esse ponto de vista. O primeiro é a

crença equivocada de que os juízes podem de alguma forma interpretar a lei sem

ao mesmo tempo criá-la. Vários anos atrás, recebi uma multa de trânsito e decidi

contestá-la no tribunal. Infelizmente, a decisão do juiz foi contrária a mim. Quer eu

gostasse disso ou não, a decisão do juiz teve força de lei para mim. Tive de pagar a

multa. Toda decisão judicial, da menor à maior, é imposta como lei. É lei.

A direita cristã objeta que os juízes tomam decisões em áreas às quais a

Constituição não se dirige. Os ativistas da direita cristã muitas vezes dizem que os

juízes de hoje criam direitos que não existem na Constituição. Por exemplo, Robert

Bork, nomeado à Suprema Corte, declarou: “Os juízes podem olhar para o texto, a

297


estrutura e a história da Constituição, mas estão proibidos de inventar direitos

extraconstitucionais.” 17 Contudo, voltando a um argumento que apresentei há

pouco, é solicitado aos juízes de hoje que julguem questões das quais os

constituintes não tinham qualquer noção. Para citar Levy novamente:

Os magistrados que olham para a Constituição em busca de mais do

que simplesmente uma frase enigmática embora majestosa, poderiam

igualmente se voltar para as histórias em quadrinhos em busca de

orientações práticas sobre como decidir a maioria dos grandes casos que

envolvem política pública nacional, quer a questão esteja relacionada ao

número de representantes legislativos por estado, ao uso de imunidade, à

pornografia, a vereditos judiciais sem unanimidade, à segregação racial, à

ação afirmativa, à escuta ilegal, à regulamentação de tarifas públicas, ao

trabalho infantil, a atividades subversivas, à busca sem mandado judicial, à

redução da safra agrícola, à estatização de siderúrgicas, ou à presença de

um advogado durante a identificação criminal. 18

A lista de Levy prossegue, mas você já entendeu. Levy conclui dizendo:

A Constituição não contém uma única palavra sobre essas ou a

maioria dos assuntos de considerável importância com os quais a Corte

precisa lidar. Esse fato, paradoxalmente, é um grande ponto forte da

Constituição, respondendo em parte por sua longevidade e vitalidade,

porque permite a adaptação evolutiva a novas necessidades. 19

Os ativistas da direita cristã às vezes respondem que na ausência de orientação

constitucional, a Corte deve permitir que os cidadãos da nação decidam a questão

através de emendas em vez de uma decisão judicial que cria uma nova lei.

Contudo, isso seria uma forma extremamente incômoda de resolver as milhares de

questões que são levadas perante a Corte. Vinte e sete emendas à Constituição

foram ratificadas nos dois séculos seguintes ao estabelecimento do governo dos

Estados Unidos (4 de março de 1789). Dessas, 10 estavam na Carta de Direitos,

deixando 17 emendas para serem ratificadas nos anos seguintes. Isso dá a média

de uma a cada 13 anos. Imagine a dificuldade que a nação enfrentaria se toda

decisão da Suprema Corte que não pudesse ser baseada nas palavras da

Constituição tivesse que ser decidida por emenda constitucional! Todos os tipos de

298


questões simplesmente ficariam sem ser resolvidos. Proibir os juízes de julgar

sobre assuntos a respeito dos quais a Constituição não fala criaria um horrível e

intolerável caos nacional.

Um dos problemas com a acusação de ativismo judicial é que, em grande

parte, o fato de alguém crer que um juiz “legislou do tribunal” depende se

determinado observador gostou ou não da decisão tomada pela Suprema Corte.

Afinal de contas, se a Constituição não fala sobre determinado assunto, então os

juízes são tão culpados de “legislar dos tribunais” nas situações em que a direita

cristã está contente com a decisão como nos casos em que ela está descontente.

Mas os únicos casos dos quais eles reclamam são as decisões que eles não gostam.

Em sua pressa de exigir uma diminuição de autoridade da Suprema Corte, a

direita cristã passa por alto o fato de que em qualquer organização humana alguém

tem de assumir a responsabilidade. Alguém tem de ter a palavra final em situações

em que as pessoas em posição inferior na hierarquia discordam. Muito cedo em

sua história, a Suprema Corte assumiu essa responsabilidade, e desde então isso

tem permanecido como um princípio operativo fundamental do governo dos

Estados Unidos.

Além disso, no sistema norte-americano, certos direitos são “inalienáveis”,

para citar a Declaração de Independência – o que significa que esses direitos não

podem ser sobrepujados pelo voto da maioria. Às vezes, conflitos que

inevitavelmente ocorrem entre indivíduos ameaçam direitos inalienáveis. Os

ativistas da direita cristã, por exemplo, gostam de dizer que os direitos da maioria

estão sendo minados pela minoria. Mas em nosso sistema de governo, às vezes tem

de ser dessa forma. E, no governo norte- americano, a Suprema Corte tem a

responsabilidade de tomar as decisões difíceis quando pessoas em lados opostos de

uma questão não conseguem resolver sozinhas seus interesses conflitantes. Em seu

livro In God We Trust [Em Deus Confiamos], a escritora Kathry ne Page Camp faz

uma provocativa pergunta e a responde:

A Suprema Corte sempre dá a resposta certa? É claro que não. Os

juízes da Suprema Corte são humanos. Mas alguém tem de decidir, e os

Pais Fundadores criaram um sistema em que cada um dos três poderes

impõe limites ao outro e o poder judiciário tem a palavra final. Embora o

sistema possa ser imperfeito, a maioria dos cidadãos dos Estados Unidos

não está disposta a trocá-lo por quaisquer dos sistemas que existem em

outros países. Isso significa que a Suprema Corte tem de ficar com essa

tarefa, e os Estados Unidos têm de conviver com as decisões tomadas pela

Suprema. 20 299


Infelizmente, alguns norte-americanos estão cada vez menos dispostos a viver

com essas decisões. Ao satirizar os juízes da Suprema Corte como “tolos”,

“membros da Ku Klux Klan” e outros termos depreciativos, essas pessoas estão

minando um dos poderes fundamentais do governo que tem mantido norteamericanos

de todas as opiniões religiosas livres por mais de duzentos anos. Minha

preocupação é que essas vozes estão crescendo em número e aumentando em

volume. Onde isso vai terminar?

Concluindo, quero partilhar com vocês o que Leonard W. Levy considera a

intenção fundamental dos constituintes:

A majestosa abertura do Preâmbulo [da Constituição], “Nós, o povo”,

evoca a ideia ainda radicalmente democrática de que o governo dos

Estados Unidos existe para servir o povo, não o povo para servir o governo.

Isso é fundamental na intenção original dos constituintes, como também o

é a ideia associada de que o governo nos Estados Unidos não pode nos

dizer o que pensar ou crer sobre política, religião, arte, ciência, literatura

ou qualquer outra coisa; os cidadãos norte-americanos têm o dever, bem

como o direito, de impedir que o governo caia em erro, e não o

contrário. 21

1 Dois livros que tratam da intenção original, um de cada lado do assunto,

ajudaram-me a compreender as questões envolvidas: Original Intent and the

Framers’ Constitution, de Leonard W. Levy (Chicago: Ivan R. Dee, 1988), e

Original Intent: The Courts, the Constitution, & Religion, de David Barton (Aledo,

TX: WallBuilders, 2000). Levy é um historiador constitucional. Barton é um leigo

que fundou a organização Wallbuilders, da direita cristã em Aledo, Texas. Dos dois

livros, acho o de Levy bem mais persuasivo.

2 A nomeação de Bork pelo presidente George H. W. Bush foi tão controvertida

que Bork acabou retirando seu nome das considerações.

3 Mark R. Levin, Men in Black: How the Supreme Court is Destroying America

300


(Washington, DC: Regnery Publishing, 2005), p. 13.

4 Ibid.; ênfase acrescentada.

5 Ibid.

6 Ibid., p. x.

7 Antes da adoção da Constituição, cada presidente do Congresso Continental,

que foram em número de catorze entre 1774 e 1779, essencialmente serviu como

presidente da nação.

8 Barton, Original Intent, p. 123, 124.

9 Levy, Original Intent and the Framers’ Constitution, p. 284.

10 Ibid., p. 289.

11 Ibid.

12 Ibid.

13 Ibid., p. 285.

14 Ibid., p. xiv, xv.

15 Ibid., p. ix.

16 Ibid., p. 298, 299.

17 Levin, Original Intent and the Framers’ Constitution, p. 13; ênfase

acrescentada.

18 Ibid., p. 352.

19 Ibid., p. 353.

20 Kathryn Page Camp, In God We Trust: How the Supreme Court’s First

Amendment Decisions Affect Organized Religion (Grand Rapids: Faith Walk

Publishing, 2006), p. 5.

21 Levy, Original Intent and the Framers’ Constitution, p. x.

301


302


A

firmei no capítulo 1 que a Igreja Adventista do Sétimo Dia cresceu até

chegar a mais de 16 milhões de membros hoje, enquanto a denominação

batista do sétimo dia, da qual um membro apresentou o sábado aos

adventistas 160 anos atrás, permaneceu relativamente estática com 50 mil

membros. Uma das razões primárias para essa diferença é que, como salientei no

capítulo 1 e você viu neste livro, os adventistas incluíram um componente

escatológico em seu ensino sobre o sábado. Contudo, isso em si não torna o sábado

um ensino bíblico importante. Então, por que o sábado é importante? Essa é a

pergunta da qual tratarei brevemente neste apêndice.

O sábado é importante simplesmente porque é parte dos Dez Mandamentos,

que são o fundamento da moralidade judaico-cristã. Apocalipse 12:17 e 14:12 diz

que o povo de Deus no tempo do fim guarda “os mandamentos de Deus” e isso,

obviamente, inclui o mandamento do sábado.

Naturalmente os cristãos que observam o domingo também reconhecem a

importância do dia de descanso por causa da inclusão dele nos Dez Mandamentos.

D. James Kennedy, pastor da Igreja Presbiteriana de Coral Ridge, em Fort

Lauderdale, na Flórida, escreveu: “A partir do testemunho da igreja primitiva, do

testemunho de nossa vida desordenada e do testemunho de nossa sociedade que

cambaleia à beira do colapso moral, vemos que a necessidade do dia de repouso é

verdadeiramente urgente.” 1

Um dos argumentos mais comuns para a observância do domingo é que não

importa que dia uma pessoa guarde, contanto que seja um dia em sete. Essa linha

de raciocínio pressupõe que todos os dias são iguais e que o dia de descanso pode

ser qualquer um deles. Contudo, a Bíblia não ensina que o sábado é igual a qualquer

outro dia. Quando Deus criou o sábado no Éden, Ele “abençoou [...] o dia sétimo e

303


o santificou” (Gn 2:3, ênfase acrescentada). E o quarto mandamento declara:

“Porque, em seis dias, fez o Senhor os Céus e a Terra, o mar e tudo o que neles há

e, ao sétimo dia, descansou; por isso, o Senhor abençoou o dia de sábado e o

santificou” (Êx 20:11, ênfase acrescentada). O sábado é diferente porque é um

tempo santo, separado pelo próprio Deus para um propósito especial. Portanto, não

podemos simplesmente dizer que não faz qualquer diferença que dia uma pessoa

guarda, porque o dia que Deus ordenou que guardássemos na verdade é diferente

dos outros seis dias da semana. É tempo santo.

Quando Deus designa algo particular e dá uma ordem sobre isso, Ele quer

dizer exatamente aquilo e não alguma outra coisa. Você pode imaginar Adão e Eva

dizendo: “Veja, há muitas árvores no jardim. Se escolhermos uma das muitas, não

faz qualquer diferença qual é a árvore do conhecimento do bem e do mal.” Não

acho que Deus teria aceitado essa linha de raciocínio.

Quando Moisés se aproximou da sarça ardente no deserto do Sinai, a Bíblia diz

que Deus lhe falou: “Tira as sandálias dos pés, porque o lugar em que estás é terra

santa” (Êx 3:5). Você pode imaginar Moisés interrompendo a Deus e dizendo:

“Senhor, Tu sabes aquele bosque do outro lado da montanha onde eu Te adoro

todas as manhãs? Aquele é meu lugar santo. Por favor, vamos conversar lá”. Em

seguida, Moisés corre para o outro lado da montanha? Você acha que Deus teria

aceitado isso? É claro que não! Da mesma forma, quando Deus designa um dia

particular da semana como santo, Ele quer dizer aquele dia e não outro dia

qualquer.

Algumas pessoas argumentam que já houve muitas mudanças de calendário

nos últimos milênios para que possamos ter certeza de que dia é o sábado. Porém,

como os judeus têm guardado o sábado tão estritamente ao longo da história, essa

ideia é falsa. Jesus guardou o mesmo dia que os judeus guardavam em Sua época,

e sabemos que o ciclo semanal tem permanecido intacto durante esses dois

milênios desde então.

O Novo Testamento fala da abolição das leis cerimoniais do ritual do templo

israelita. Hebreus 9 e 10 deixam isso claro. O Novo Testamento também dá

testemunho do fim do ritual judaico da circuncisão. Contudo, não há nenhum

indicativo de que Deus tenha removido a santidade do sábado ou de que Ele o tenha

mudado para o domingo.

Alguns estudiosos argumentam que o sétimo dia é um aspecto cerimonial do

mandamento relativo ao dia de descanso. Contudo, as leis cerimoniais levíticas

abolidas no Novo Testamento tratavam de rituais do templo, que apontavam para a

vida, morte e ressurreição de Cristo. O sábado, por outro lado, foi estabelecido na

criação, e o mandamento do sábado aponta para a criação.

304


Alguns cristãos dizem: “Adoro a Deus todos os dias.” Os adventistas

respondem: “Ótimo! Você deve fazer isso. Ficamos felizes que você o faça.”

Outros cristãos dizem: “Todos os dias são dias de descanso”. Os adventistas

respondem que se todos os dias são dias de descanso, então nenhum dia é dia de

descanso, pois o mesmo Deus que separou o sétimo dia como tempo santo também

ordenou que trabalhássemos nos outros seis dias.

O fato mais importante sobre o sábado é que ele é um tempo santo, separado

pelo próprio Deus, e nós, seres humanos, não estamos autorizados a mudar Seu

código moral, os Dez Mandamentos. Portanto, os adventistas continuam a guardar

o sábado, como Deus ordenou.

1 D. James Kennedy, Why the Ten Commandments Matter (Nova York: Warner

Faith, 2005), p. 81, 82, na cópia de leitura pré-publicação do editor.

305


M

uitos cristãos argumentam que o Novo Testamento autoriza a mudança

no dia de descanso do sétimo para o primeiro dia da semana. A melhor

resposta a essa afirmação é: “Mostre-me o texto do Novo Testamento

que autoriza isso.” O fato é que não existe tal texto.

Como você sabe, Paulo ensinava que os gentios não precisavam se circuncidar

para aceitar a Jesus e se tornar cristãos. Infelizmente, nem todo mundo concordava

com ele. Alguns judeus o perseguiam persistentemente por seu ensino sobre a

circuncisão. A certa altura ele chegou a dizer: “Tomara até se mutilassem

[castrassem] os que vos incitam à rebeldia” (Gl 5:12). Os judeus na época dos

apóstolos atribuíam ainda maior significado ao sábado que à circuncisão. Assim,

qualquer mudança no dia de descanso teria provocado uma discussão muito maior

que a ocorrida devido à circuncisão, e isso certamente estaria refletido no Novo

Testamento. Mas o Novo Testamento não diz absolutamente nada sobre qualquer

controvérsia desse tipo. Esse é um dos mais fortes argumentos contra a ideia de

que o Novo Testamento apresenta uma mudança do dia a ser observado.

Apesar disso, os defensores da observância do domingo apontam vários textos

do Novo Testamento para justificar sua prática. Examinarei esses textos a seguir.

Atos 20:7

Aqueles que defendem a observância do domingo costumam citar dois textos

sobre o “primeiro dia da semana” como evidência de que uma tendência nessa

direção já se havia iniciado no 1º século. Um desses textos é Atos 20:7, que fala

sobre uma reunião que Paulo dirigiu na igreja de uma cidade chamada Trôade. 1

Atos 20:7 afirma: “No primeiro dia da semana, estando nós reunidos com o fim de

306


partir o pão, Paulo, que devia seguir viagem no dia imediato, exortava-os e

prolongou o discurso até à meia-noite.”

Quando ocorreu essa reunião, Paulo já havia completado sua terceira viagem

missionária ao redor da Ásia Menor e sudeste da Europa, e estava a caminho de

volta para Jerusalém. O verso 25 declara que essa era a última vez que ele

esperava estar no local. Assim, seria a última oportunidade para os cristãos de

Trôade ouvi-lo.

O ponto significativo a ser notado é que essa reunião começou num sábado à

noite e continuou até o amanhecer do domingo (v. 11). O livro de Atos se refere ao

primeiro dia da semana porque, de acordo com o cômputo judaico, o sétimo dia

termina e o primeiro dia começa ao pôr do sol. A New English Bible traduz: “no

sábado à noite” em vez de “no primeiro dia da semana”.

Portanto, será que esse texto é evidência de que a observância do domingo já

se iniciara na igreja daquele tempo? Se isso fosse verdade, colocaria um selo

apostólico de aprovação sobre a guarda do domingo. Contudo, os fatos, nesse caso,

mostram que, longe de indicar uma base bíblica para a guarda do domingo, essa

reunião foi uma exceção à prática comum.

A mais clara evidência para isso é que a reunião durou até o início da

madrugada. As pessoas naquele tempo não estavam acostumadas a ouvir sermões

que se prolongavam até a madrugada, assim como não estamos hoje! Mas

estavam dispostas a permanecer naquela reunião porque Paulo iria partir no dia

seguinte, e elas sabiam que nunca mais iriam vê-lo. O livro de Atos chama a

atenção para o fato de que a reunião ocorreu no primeiro dia da semana, não

porque isso fosse comum, mas porque esse foi um dos vários fatores incomuns

nessa reunião em particular.

1 Coríntios 16:1 e 2

Esse texto diz: “Quanto à coleta para os santos, fazei vós também como

ordenei às igrejas da Galácia. No primeiro dia da semana, cada um de vós ponha

de parte, em casa, conforme a sua prosperidade, e vá juntando, para que se não

façam coletas quando eu for.”

Havia uma fome na Palestina quando Paulo escreveu essas palavras, e ele

estava pedindo oferta às igrejas da Europa e Ásia Menor para ajudar os cristãos

atingidos pela fome. Foi por isso que ele disse aos cristãos de Corinto para

separarem dinheiro.

Alguns cristãos afirmam que Paulo estava instruindo os membros da igreja de

Corinto a recolher uma oferta durante sua reunião de culto semanal. Se isso fosse

307


correto, então de fato essa passagem forneceria evidências da observância do

domingo no Novo Testamento.

Contudo, uma leitura atenta do texto grego descarta essa interpretação. Paulo

disse, literalmente, que no primeiro dia da semana cada um dos cristãos coríntios

“ponha junto a si, guardando o que venha de sua prosperidade”.

As palavras de Paulo “ponha junto a si” significam que ele estava instruindo os

cristãos de Corinto a poupar seu dinheiro em casa, não na igreja. As palavras

gregas “ponha junto a si” são o equivalente de “em casa”. A edição em espanhol

da altamente respeitada Bíblia de Jerusalém diz: “Reserve em su casa”; isto é,

“Reserve [ou separe] em casa”. A Almeida Revista e Atualizada traduz: “No

primeiro dia da semana, cada um de vós ponha de parte, em casa, conforme a sua

prosperidade.”

Apocalipse 1:10

Esse verso afirma que João se viu “em espírito, no dia do Senhor”. As pessoas

que estão buscando apoio bíblico para sua prática de observar o domingo afirmam

que “o dia do Senhor” significa o domingo. Mas estão introduzindo no texto uma

ideia que ele em si não declara. Ao contrário, Jesus afirmou ser Senhor do sábado

– o dia que os judeus estavam observando (Mc 2:27, 28). E Isaías – que escreveu

seu livro quando o último dia da semana era o único que qualquer pessoa do povo

de Deus já tinha ouvido falar que se guardasse – chamou o sábado de “santo dia do

Senhor”

(Is 58:13). Portanto, de acordo com a definição bíblica de “dia do Senhor”, esse é o

sétimo dia da semana, e não o primeiro.

Colossenses 2:16 e 17

Os defensores da observância do domingo frequentemente usam esse texto,

que diz: “Ninguém, pois, vos julgue por causa de comida e bebida, ou dia de festa,

ou lua nova, ou sábados, porque tudo isso tem sido sombra das coisas que haviam

de vir; porém o corpo é de Cristo.”

A palavra grega traduzida como “sábado” em Colossenses 2:16 é sabbatōn.

Essa é a mesma palavra, no singular ou no plural, que é traduzida como “sábado”

em todas as outras ocorrências do Antigo ou do Novo Testamento em grego. 2 A

palavra em si mesma pode se referir ao sábado semanal ou aos sábados

cerimoniais anuais descritos no Antigo Testamento.

Existem algumas possíveis interpretações desse texto, e nenhuma delas

308


fornece uma base adequada para se concluir que a igreja do Novo Testamento

estava observando o primeiro dia da semana. A resposta adventista tradicional para

esse texto é que o “sábado” de Colossenses 2:16 eram os sábados anuais do ritual

do templo judaico, não o sábado semanal. Alguns comentaristas argumentam que,

devido ao fato de sabbatōn em Colossenses 2:16 ser plural, se refere ao sábado

semanal. Contudo, o plural de sabbatōn é usado em outras partes do Novo

Testamento para um único sábado (Mt 28:1). Não podemos determinar, com base

na forma grega da palavra, se sabbatōn se refere aos sábados semanais ou aos

sábados cerimoniais. Temos de determinar isso de outras maneiras, principalmente

examinando o contexto.

Paulo mencionou dois elementos em Colossenses 2:16 que podem nos ajudar a

descobrir se o sábado em questão era o sábado semanal ou os sábados anuais. O

primeiro elemento é que “sábado” é a última de várias questões sobre as quais os

cristãos colossenses estavam aparentemente julgando um ao outro. As outras eram

escolhas sobre o que comer e beber, festas religiosas e lua nova. Todas essas coisas

eram parte do sistema cerimonial judaico.

Em segundo lugar, Paulo disse que tudo isso “tem sido sombra das coisas que

haviam de vir; porém o corpo é de Cristo”. Então, Paulo não estava falando

simplesmente sobre o que as pessoas comiam ou bebiam em suas refeições

normais. Ele tinha em mente o comer e beber que era uma sombra de Cristo.

Também tinha em mente a observância de festas religiosas e comemorações de

lua nova que apontavam para Cristo.

Sabemos que a lei cerimonial exigia que os judeus trouxessem várias ofertas

de comida e bebida ao templo como parte de sua adoração (ver, por exemplo, Lv

7:12-18 [ofertas de comida]; Lv 23:13; Nm 15:10 [ofertas de bebida]). Também

ordenava a observância de vários dias de descanso ao longo do ano (Lv 23:4-44), e

a lua nova devia ser celebrada no primeiro dia de cada mês (Nm 10:10; 28:11).

Tudo isso era de fato “sombra das coisas que haviam de vir” – isto é, da vida,

morte e ressurreição de Cristo. Foi por isso que Paulo disse: “porém o corpo é de

Cristo” (Cl 2:17). Quando Cristo veio, Ele cumpriu todas essas sombras e tipos,

incluindo os sacrifícios animais, e eles cessaram de existir. Isso é consistente com a

declaração em Hebreus de que todo o ritual do santuário era “figura e sombra das

coisas celestes” (Hb 8:5, ênfase acrescentada).

O sábado semanal nunca foi sombra de coisa alguma. O quarto mandamento

apresenta o sábado semanal como um memorial da criação: “Porque, em seis

dias, fez o Senhor os Céus e a Terra, o mar e tudo o que neles há e, ao sétimo dia,

descansou; por isso, o Senhor abençoou o dia de sábado e o santificou” (Êx 20:11).

Mesmo no tempo em que Deus deu os Dez Mandamentos, a criação era um evento

no distante passado e não uma sombra de Cristo, cuja vinda ainda estava no futuro.

309


Isso exclui a hipótese de o sábado em Colossenses 2:16 ser o sábado semanal.

Por outro lado, todos os sábados cerimoniais apontavam para Cristo,

exatamente como Paulo disse. Assim, em Colossenses 2:16, Paulo estava se

referindo aos sábados anuais do ritual do santuário hebraico, não ao sábado

semanal do quarto mandamento.

Essa é a explicação adventista tradicional de Colossenses 2:16, 17. Mas outras

respostas também são possíveis, mesmo crendo-se que Paulo realmente tinha em

vista o sábado semanal.

O propósito básico de Paulo ao escrever Colossenses era condenar falsos

mestres e aconselhar os membros da igreja da cidade a resistir às práticas

ascéticas das quais esses mestres estavam tentando persuadi-los. Muitos

comentaristas afirmam que esses falsos mestres não eram os cristãos judeus que

seguiam Paulo por onde ele ia, insistindo que os gentios tinham de se tornar judeus

e se submeter a todas as leis cerimoniais judaicas antes de se tornar cristãos. Eram,

em vez disso, mestres gnósticos que insistiam num estilo de vida ascético. Isso é

evidente em Colossenses 2:20-23, em que Paulo escreve: “Se morrestes com Cristo

para os rudimentos do mundo, por que, como se vivêsseis no mundo, vos sujeitais a

ordenanças; não manuseies isto, não proves aquilo, não toques aquiloutro [...]? [...]

Tais coisas, com efeito, têm aparência de sabedoria, como culto de si mesmo, e de

falsa humildade, e de rigor ascético; todavia, não têm valor algum contra

a sensualidade.”

Se Paulo de fato tinha o sábado semanal em mente quando escreveu

Colossenses 2:16, então esses falsos mestres obviamente estavam ensinando

formas distorcidas de observar esse dia. Paulo não o diz explicitamente, mas,

devido às rigorosas tendências ascéticas deles, os falsos mestres talvez estivessem

insistindo em regras muito legalistas sobre a guarda do sábado. Quaisquer que

fossem os detalhes, Paulo disse: Não permitam que eles julguem vocês sobre a

maneira de guardar o sábado.

Assim, Paulo não estava proibindo a guarda do sábado em Colossenses 2:16.

Não estava dizendo aos cristãos colossenses que o sábado tinha sido abolido e não

precisava mais ser guardado. Não há qualquer alusão a isso no texto. Ao contrário,

se o sábado nesse texto de fato se refere ao sábado semanal, é óbvio que os cristãos

colossenses ainda estavam guardando o dia, e o conselho de Paulo foi: Não deixem

esses falsos mestres julgarem vocês por isso. Colossenses 2:16 e 17 se torna, dessa

forma, um argumento em favor da observância do sábado no Novo Testamento,

não um argumento contra ela.

Há uma lição prática nisso para os cristãos atuais. Muitos de nós também

temos várias convicções sobre o sábado, e é importante que levemos o conselho de

310


Paulo a sério e evitemos julgar uns aos outros no que diz respeito a nossas escolhas.

1 Trôade ficava na Ásia Menor (moderna Turquia), exatamente ao sul do

Helesponto, a estreita passagem aquática que separa a Europa da Ásia Menor.

2 O Antigo Testamento foi originalmente escrito em hebraico e aramaico, mas

foi traduzido para o grego cerca de dois séculos antes de Cristo.

311


312


313


Sumário

Folha de rosto 2

Expediente 3

Agradecimentos 5

Prólogo 6

Capítulo 1: O Cenário Profético Adventista 7

O sábado e a escatologia 8

Mas isso poderia realmente acontecer 11

A profecia e os eventos atuais 12

Apresentação do livro 13

Capítulo 2: O Quadro Mais Amplo do Apocalipse 16

O grande conflito 16

Os dois lados 18

O fim do conflito 20

Apocalipse 13 21

Visão geral das duas bestas 23

Poderes globais. 23

Falsa adoração. 23

Perseguição religiosa. 23

Poderes no tempo do fim. 24

314


Parte 1: A Besta do Mar 25

Capítulo 3: Apocalipse 13 e a Besta do Mar 26

Identificando a besta do mar 28

O chifre pequeno é realmente o papado? 30

De volta à besta do mar de Apocalipse 33

Capítulo 4: O Antigo Papado: Começo e Fim de seu Poder

Político

Começando pelo início 38

A posição de Agostinho sobre a igreja e o Estado 38

Começam os 1.260 anos 40

O presente do rei ao papa 41

O auge do poder político papal 42

Razões para o declínio 43

A era do Iluminismo 45

Capítulo 5: O Moderno Papado: Cura da Ferida Mortal 50

A democracia e o Estado laico 50

O Tratado de Latrão 53

A concordata com a Alemanha 55

O Vaticano e a queda do comunismo 63

O Vaticano e o poder mundial 65

Capítulo 6: Toda a Terra se Maravilhou 70

Ecumenismo 72

O funeral de João Paulo 73

36

315


Capítulo 7: Teoria Política Católica Antes do Concílio

Vaticano II

Superioridade da Igreja Católica 76

Suprema autoridade do papa 77

União entre igreja e Estado 78

Oposição à liberdade de consciência 80

Oposição ao governo do povo 80

Governo mundial 82

Em resumo 84

Capítulo 8: Teoria Política Católica Após o Concílio

Vaticano II

Analisando as afirmações 89

O Catecismo Católico 91

Malachi Martin 92

Parte 2: A Besta da Terra 97

Capítulo 9: Apocalipse 13, a Besta da Terra e a Imagem da

Besta

A besta da terra é uma besta 98

A besta da terra tem autoridade global 99

A besta da terra é um poder do tempo do fim 100

A besta da terra é um poder cristão 100

Algumas outras conclusões 101

Identificando a imagem da besta 102

Capítulo 10: Separação Entre Igreja e Estado na História

316

76

88

98


Norte-Americana 105

Williams versus puritanos 107

A singularidade do sistema de governo norteamericano

108

A razão da Primeira Emenda 110

Laico e religioso nos Estados Unidos: separados, mas

cooperantes

112

A religião civil 113

A separação entre igreja e Estado na história dos

Estados Unidos

114

Desafios à separação 115

O anticatolicismo e a separação entre igreja e Estado 117

Capítulo 11: Surgimento do Movimento Conservador nos

Estados Unidos

122

Virando a maré 123

Programas de rádio 125

Capítulo 12: Surgimento da Direita Cristã nos Estados

Unidos

O surgimento dos grupos conservadores nos Estados

Unidos

127

128

O surgimento da direita cristã 130

Jimmy Carter 132

A Maioria Moral 133

Ronald Reagan 134

317


Capítulo 13: Consequências da Direita Cristã nos Estados

Unidos

139

A Coalizão Cristã 140

Os novos vencedores 142

Capítulo 14: Ataque à Separação Entre Igreja e Estado 146

Capítulo 15: Católicos na História Norte-Americana: 1776

a 1960

Capítulo 16: Católicos na História Norte-Americana: 1960

a 2004

159

168

Parte3: A Marca da Besta 184

Capítulo 17: A Marca da Besta: Considerações

Preliminares

185

Capítulo 18: Apocalipse 13 e a Marca da Besta 192

Capítulo 19: Os Estados Unidos e a Marca da Besta 203

Capítulo 20: Reconstrucionismo e Dominionismo Cristãos 218

Capítulo 21: Dominionismo e Triunfalismo 237

Capítulo 22: Como Acontece a Perseguição 242

Capítulo 23: A Crise Final 250

Capítulo 24: Encaixando as Peças 264

Capítulo 25: Como Devemos Reagir? 276

Apêndice A: Reflexões Sobre a Separação Entre

Igreja e Estado

Apêndice B: Reflexões Sobre “Intenção Original” e

318

287


Apêndice B: Reflexões Sobre “Intenção Original” e

“Ativismo Judicial”

292

Apêndice C: Por que o Sábado é Importante 303

Apêndice D: Novo Testamento Autoriza uma

Mudança do Dia de Descanso?

306

Acesse 312

319

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