Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Copyright © Editora Patuá, 2019.
As esferas do dragão © Duanne Ribeiro, 2019.
Editor
Eduardo Lacerda
Ilustração, Projeto gráfico e Diagramação
Leonardo Mathias | flickr.com/leonardomathias
Assistente Editorial
Ricardo Escudeiro
Administrativo
Sara Cristina Trajano
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD
R484e
Ribeiro, Duanne.
As esferas do dragão. / Duanne Ribeiro. - São Paulo:
Patuá, 2019.
ISBN 978-85-8297-732-3
1. Romance Brasileiro I. Título.
CDD – B869.3
Ficha Catalográfica elaborada por Janaína Ramos – CRB-8/9166
Índice para catálogo sistemático:
1. Romance Brasileiro : Literatura brasileira B869.3
Todos os direitos desta edição reservados à:
Editora Patuá
Rua Luís Murat, 40
CEP 05436-050 São Paulo – SP Brasil
Tel.: (11) 96548-0190
www.editorapatua.com.br
editorapatua@gmail.com
6 | Duanne Ribeiro
Episódio 1
Útero
O deus veio babuíno e astronauta.
Veio anunciar que a tristeza engendra a urgência
da aventura. A epopeia deu-se à luz — como ervas daninhas
nas frestas do asfalto — nos silêncios do meu
choro. A morte do meu avô impunha partir em viagem:
era mandatório encontrar as esferas do Dragão e ressuscitá-lo.
Sete globos cristalinos e alaranjados, aldebarãs
de oito centímetros de diâmetro esconsos em
locais aleatórios nas lonjuras, identificados por cifras
infantis — uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete estrelas
— manifestações fragmentárias da joia Cintamani,
As Esferas do Dragão | 7
provedora de desejos, apanágio de budas e leviatãs, força
mística originária. Reunidas, invocarão o deus-réptil
gigantesco, a singularidade da qual surgirá vigoroso —
oitenta e uma escamas brancas de carpa, olhos vermelhos
de coelho, chifres de veado cobertos de veludo,
patas alvas de tigre armadas de quatro garras de águia,
cabeça de camelo, pescoço de cobra, ventre de vôngole
e orelhas de touro moucas. Defronte à sua pujança, minha
fé ofidiófila estupefata, demandarei. Horrível e
bom, concederá. Na noite estrelada haverá um abraço.
Mas, antes, babuíno e astronauta, veio, negocioso.
8 | Duanne Ribeiro
Episódio 2
Três de Julho
A fala prevarica. Por exemplo:
— Ele não resistiu.
***
Em um três de julho que é sempre ontem, uma das
suas crises outra vez quebrou a tarde. Na cama hospitalar
que de uns tempos para cá ocupava o lado direito
do móvel em que dormira metade da sua vida, ele
parecia sofrer o mesmo sofrimento regular o suficiente
para ser acolhido com tédio. O crucifixo de madeira na
As Esferas do Dragão | 9
parede, os espelhos arqueados no dossel, o interruptor
estendido para que não fosse preciso levantar para ligar/desligar
a luz — sua decrepitude já era tão comum
quanto tais objetos com que povoara o seu conforto.
Os recursos anestésicos da vida são inúmeros e potentes.
Mas não era a angústia de sempre — como gostávamos
da angústia de sempre!
***
O desespero da minha avó: ineficiente. A diligência
dos vizinhos: de um funesto oblíquo. O rosto do enfermeiro:
um veredicto. A ambulância desperdiçou a sua
pressa na avenida. Ele havia olhado para mim, a boca
aberta, o rosto magro e mau barbeado, acho que tinha
medo. Agora no veículo olhava eu para ele, sua face à
deriva, atormentada. Mas ainda parecia ser a angústia
de sempre.
No Hospital Municipal Vereador José Storopolli, eu
me distraí por horas com a minha confiança na normalidade,
com os planos do dia seguinte, com a luneta
mágica de Joaquim Manuel de Macedo. Enfim, disse o
médico, tinha o olho esquerdo feito de vidro, ele não
resistiu, algoz, ele não resistiu.
10 | Duanne Ribeiro
***
Como não houvesse algo dentro de mim que pudesse
reagir a isso, eu não senti nada. Foi tímida e canhestra
a dor que tomou impulso e se adensou; primeiro, a dormência.
Entristecer-se é também um atuar de acordo,
para tal causa apresento tal efeito. Antônio de Oliveira
morreu, e me faltava a formação para perder um pai
(mesmo assim me culpo: não o amava o bastante?). Na
sala fechada do doutor, alguns minutos mais tarde, ele
me forçava a compreender as burocracias do luto. Uma
necropsia era necessária, mas se houver um médico que
possa dar um laudo não precisa, fixamente me olhava,
eu assentia com a cabeça, tenho de falar com a minha
mãe, enquanto isso minhas pernas se enchiam de fraqueza
(considerei: “Não é que isso acontece? Ou será
que estou fingindo?”) e eu tive de me escorar na mesa.
Atenção completa nas pontas dos dedos, na madeira.
As lembranças a despontar como estrelas, delineando o
irrecuperável; narrativas construindo um buraco negro.
***
A fala implode. Por exemplo:
As Esferas do Dragão | 11
Atravessei o hospital até a saída, constatando que,
contudo, o mundo continuava. Lá fora, na rua ao lado,
sem iluminação, disquei uma responsabilidade.
— Mãe.
Onde outra palavra? Eu quero falar: é preciso falar:
é meu dever falar. Fale.
— Mãe.
Mas ela já entende. Despedaça-se. Seu choro agudo.
Meu soluço torturado.
— Duanne…
No fim de tudo estamos tão próximos quanto no início
de tudo.
***
De madrugada, tivemos de ir ao necrotério para vestir
o cadáver do meu avô. Minha mãe não quis ir, não
estava pronta (eu a culpei por isso, por crer que era
uma obrigação dos filhos), então fomos eu e meu tio.
Recordo as débeis luzes dianteiras revelando as ruas
vazias; não lembro de nenhuma das muitas palavras
ditas por ele. Chegamos e nos levaram ao corpo na pla-
12 | Duanne Ribeiro
taforma de metal. Frio e retorcido como a vida o havia
deixado por fim; o caduceu tatuado no peito, em um
verde esmaecido; lavado (tê-lo-iam lavado com cuidado
ou a jatos de mangueira, feito um bicho?); o nariz
entupido de algodão, para evitar o fedor putrefato.
É uma honra estar aqui e fazer isso por ti, vô. Colocamos
suas calças sociais escuras, sua camisa de botão, seus
sapatos. Em dado momento, meu tio, desde sempre a
imagem da dureza, começou a chorar (pensei: conteria
a si mesmo se se lembrasse de que posso vê-lo? Eu
nunca o tinha visto assim e abaixei a cabeça por pudor e
respeito); com voz infantil, disse suas últimas palavras,
pesadas de ternura e acompanhadas de uma carícia na
bochecha do pai.
***
Foi então que avistei o babuíno pela primeira vez.
O símbolo na carne, liberado agora pela morte, o convocara.
Pois embora viesse como Toth, guardava a afeição
de Hermes pelas cobras gêmeas que adornavam seu
bastão alado. Vestia uma espécie de sotaina de camurça
verde cujo peitoral e gola alta eram feitos de couro
marrom-escuro e liso; por baixo, usava uma grossa blusa
de lã, da qual se podiam ver as mangas desfiadas
As Esferas do Dragão | 13
indo até os pulsos. Os pêlos estufavam os tecidos. Seu
chapéu em formato de lua cheia sobre lua crescente
brilhava com a luz da lua minguante lá em cima. “De
mim vêm os prodígios de que te orgulhas, escriba.
De mim a condição de possibilidade dos esconderijos
a céu aberto e das penicilinas do imaginário. Prestidigitador,
plagiário, te ofereço uma resposta. Um caminho
a caminhar. Porque faz tanto tempo que não me refresca
um herói indo-se pelos percursos! — e eu sinto fome.
Toma este presente antecipado e considera a viagem”.
Dissuadido do calor da minha solidão, eu o observara
fixamente, e foi com algum grau de medo que aceitei
o que me entregava — a esfera de quatro estrelas. Algo
nela me atraía demais, uma fundura, não o que informa,
soluciona, segreda, mas a expectativa tensa de uma
mensagem. A possibilidade vibrava na palma da minha
mão direita, assim como na mente comichava a palavra
“herói”.
14 | Duanne Ribeiro
Episódio 3
Três de Julho
A fala sonega. Por exemplo:
Antônio de Oliveira morreu aos 73 anos em 3 de julho
de 2009. Sua última profissão havia sido a de representante
comercial de empresas de materiais de construção.
Teve dois filhos, um casal, Adonai de Oliveira
e Sueli de Oliveira, com Margarida Gomes de Oliveira.
Criou também, com sua esposa, o primeiro filho de
Sueli, Duanne de Oliveira Ribeiro.
***
As Esferas do Dragão | 15
Enquanto os demais dormiam na casa excepcionalmente
cheia, eu ouvia todas as músicas cuja letra tivesse
os meus olhos. And sorrow’s native son: he’ll not
smile for anyone — porque eu queria estar em autoexílio,
nenhum “apoio” conseguiria ser mais do que conjunto
de eufemismos; for your sake I hope heaven and
hell are really there, but I wouldn’t hold my breath —
porque a poesia conciliava melancolia e ironia, dava
o tom da “firmeza de caráter” que eu precisava exibir
a mim mesmo; the photographs are peeling: the colours
turn to grey — porque não podia olhar uma fotografia
sua sem chorar, e só quando terminei uma das versões
deste texto, anos após, é que algo se completou aqui
dentro e eu fui capaz de ver sua imagem sem desmontar.
***
A fala transborda. Por exemplo:
Na manhã seguinte, me atribui a responsabilidade
de, antes de irmos ao velório, contar a um velho amigo
do meu avô, xará seu, sobre o falecimento. Seu Antônio
morava em uma casa próxima; fui e perguntei por ele.
Quinze degraus de cimento abaixo, ele apareceu e, forçando
os olhos atrás dos óculos de vidro grosso e convexo,
me avaliou. “Sou o neto do seu Antônio”, ou algo
16 | Duanne Ribeiro
do tipo, disse, não sem orgulho — como se declarar a
ascendência me recuperasse alguma coisa. A expressão
no seu rosto foi a de uma dor aguda e curta, logo substituída
por um cansaço ou um desengano prévios. Despedi-me
e voltei, tendo novamente o contentamento
da preservação do passado.
***
Íamos, enfim, ao cemitério. O carro do meu tio
aguardava, porém eu me detive por um momento no
umbral entre a sala e a cozinha. Havia algo de errado
na parede atrás da televisão, no lado oposto ao sofá.
O grande painel que a recobria inteira — uma paisagem
de montanhas enevoadas, lago de feições esverdeadas
e árvores europeias — vibrava com uma potência peculiar.
O sol de mentira ardeu de verdade; uma silhueta
se desenhou pequenina contra a luz cegante e na medida
em que vinha na minha direção, descolando-se da
superfície, crescia, chegando até um tamanho humano.
Era, outra vez, o deus. Capacete de astronauta, botas
brancas estampadas com asas estilizadas. No braço,
em vez da bandeira de um país, trazia, delimitado
por um círculo da mesma cor, um H azul.
As Esferas do Dragão | 17
“E então, herói?”, indagou, “o caminho? A resposta
a responder?”. Relutante, trêmulo, assenti. Ele estendeu
o caduceu, no qual as serpentes se enrodilhavam
vivas e asas no topo batiam levemente, tocou com o
bastão o papel de enfeite até que a realidade se confundiu
e a vara penetrou simulacro e concreto; a gosma de
ambos. Remexeu lá as nuvens pintadas e as pinçou para
fora, esculpindo-as numa só como quem faz algodão-
-doce. Néfela, nomeou-a; seria minha montaria: felpuda,
da cor de um sol alaranjado, com o temperamento
das cirro-estratos. Ingênua e impetuosa como uma criança
que anda de triciclo e finge que “vai ao trabalho”.
Acomodei-me nela, mergulhei no panorama. Senti sua
tessitura rarefeita e umedecida na pele, o vento rasgando
o rosto. Eu respirava o infinito.
18 | Duanne Ribeiro
Episódio 4
Falência do Mundo?
O horizonte estava anuviado e nevoento; o céu, porém,
fora algumas nuvens gordas, era todo azul. Sobrevoei
uma planície em que se alternavam tons mais
claro ou mais escuros de verde e em que despontavam
formações rochosas que eventualmente erigiam-se à
nobreza de montanhas. Um rio serpenteava cortando
a paisagem ao meio. Néfela deixava atrás de nós um
rastro dourado, como que uma neve levíssima feita de
ouro. Até me senti alegre: a liberdade lava.
Contudo, o idílico da paisagem foi rompido pela visão
do movimento de tropas no solo. Descuidado, me
aproximei — não tanto, mas, logo seria evidente, de-
As Esferas do Dragão | 19
mais. Os soldados escoltavam prisioneiros: ligados por
uma corrente de plástico pintada de cinza, vinham bonecos
com vida, um cowboy, um astronauta, um assassino
de broca na cabeça; coberto de fita isolante, andava
com dificuldade um roedor amarelo capaz de emanar
descargas elétricas; debaixo de pancadas que lhe
eram dadas com seu próprio chicote, conseguia manter
o orgulho um professor de antropologia afeito à aventura.
O grupo estava sendo levado para um caminhão
militar nas proximidades. Os uniformes dos militares
eram cor de musgo, com detalhes bordô. Tinham todos
o mesmo rosto. Um exclamou ao celular:
— Procuravam se isolar nas matas, capitão. Mas nós
conseguimos salvá-los.
E no instante seguinte me avistou. “Um momento, capitão,
temos uma situação...”, explicou ele, ao passo que
afastava o celular da orelha e o colocava no bolso. Sem
que tivesse feito qualquer gesto, os seus companheiros
já se mostravam conscientes da minha presença e me
vigiavam, sisudos. Por instinto, fiz com que Néfela elevasse
sua altitude. Não pareceram notar. Aquele que
agia como líder acoplou à têmpora um dispositivo metálico
que posicionava sobre o seu olho direito uma
lente rubra — números passaram por ela conforme ele
me observava. Então, ele gritou: “Não temos seu regis-
20 | Duanne Ribeiro
tro e a sua assinatura energética é incomum. Demandamos
que se identifique e se entregue”. E ainda:
— Este é um mundo moribundo. Você pode ser preservado.
Nós somos a redenção.
Aquilo não soou reconfortante. Ante dezenas de
olhos, que denunciavam indiferença e embaraço na
mesma medida, disparei pelos ares, abaixando-me o
máximo possível no interior de Néfela. Ouvi as metralhadoras
datilografando o ambiente; encolhi-me mais
ainda, ordenei em minha mente que a Nuvem subisse
o quanto pudesse. A estratégia pareceu funcionar por
pouco tempo: logo vieram os aviões de guerra, cilíndricos,
com hélices de três pás. Sobrevoávamos uma
floresta. Num rasante, embrenhei-me nela. Driblava os
troncos de sopetão, enroscando-se em cipós, atropelando
galhos. De repente, uma onda de impacto me
atirou no ar: deixaram cair uma bomba. Cai na terra
preta e, atordoado, tentei me arrastar. Outra bomba
tombou próxima. Fui engolido por calor e fumaça. Sob
a luminosidade filtrada pelo verde, me senti tonto: o
dióxido, a tosse. Desmaiei.
***
As Esferas do Dragão | 21
Abri os olhos e vi os dela. Hikari me encontrara na
inconsciência e me estendia a mão. O seu rosto somava
Clarice Lispector e Janis Joplin; na sua vista, queimava
Iansã. Vermelhos-claros eram os seus cabelos, rubra a
saia, preta a bata. Tinha na mão esquerda um bastão
de cerca de um metro (depois aprendi que se chamava
hanbo), enfeitado na ponta por uma estrela. Amarrada à
cintura, portava uma pandeireta. Devo ter parecido assustado,
pois se apressou a explanar: “Estamos em segurança,
estamos bem escondidos. E de todo jeito eles
não insistem muito nas perseguições, eles acham que
é o nosso destino se deixar levar. Bom, isso não vai ser
nosso destino agora”.
Constatei que nada estava quebrado ou doendo muito
e me levantei. Afirmei: eu não vim para lutar, não
sei quem são esses. Eu estou aqui para reunir as esferas
do Dragão e ressuscitar o meu avô. “É, uma coisa
é certa: não lutar contra eles não é uma opção. Eu tenho
uma preocupação muito maior — bem, duas, mas
uma é mais urgente — e estou tendo de lidar com eles.
Melhor se preparar”. Eu saberia lutar? Que recursos
a luta encontraria em mim? “Herói”, afinal, o deus
me chamara...
— Qual o seu nome? – perguntou ela.
22 | Duanne Ribeiro
Hesitei. Não por desconfiar dela, mas porque essa informação
não veio imediata como sempre; nem mesmo
com esforço conseguia me lembrar. Era como se
eu procurasse algo tateando em uma névoa espessa.
Ela testemunhava a minha confusão, surpresa. Súbita,
decidiu batizar-me:
— Kurokun? Que tal? Vou chamá-lo Kurokun.
O alívio de ter nome tomou-me. Sorri, admirado do
som: pode tanto uma única palavra. Não deixei de registrar
também uma habilidade de Hikari que eu entenderia
mais precisamente com o tempo: ela sabia
perceber e atender às carências e vontades de alguém,
o que lhe capacitava a satisfazer e a guardar certa distância,
a um passo. Não chegava a compreender os objetivos
e motivações de um projeto, mas sacava a empolgação
que lhe alimentava: empolgava-se com ela;
sorria gentil ao sonho de uma realização, prescindindo
do conhecimento sobre a importância ou descalabro
do a realizar. Hikari correspondia — o que, usualmente,
é bastante: alimenta — frivolamente, mas alimenta — e
esse banquete de condimentos proporciona a alegria
necessária ao desenvolvimento. Se você está no ringue,
ela é aquela que grita e aplaude: é possível ganhar
o gosto de vencer apenas com isso.
As Esferas do Dragão | 23
Essa lasca do comportamento de Hikari deixaria em
mim sua marca: pois alvitro que em nosso peito abrigamos
inumeráveis bússolas, e de uma delas se definiam
agora os pontos cardeais, articulavam-se norte,
condescendência, e sul, leste e oeste, individualismo,
independência, carinho. Eu divergiria mais ou menos
do giro dessa agulha; construiria sob a sua força, à força,
outras direções.
24 | Duanne Ribeiro
Episódio 5
Do I-Ching
às Soalhas
“Chamam-se Jade”, disse Hikari, “eles apareceram
não faz muito tempo, com essa ladainha: de que esta
dimensão está para morrer ou até já morreu, sei lá, e
eles são o nosso último recurso”. Os seus alvos preferenciais
eram aqueles “como nós” — as expressões são
dela — que têm “características especiais”, isto é, que
exibem alguma forma de poder. (No meu caso, devem
ter sido ouriçados pela minha montaria, por Néfela,
ainda desaparecida — mas depois viram em mim algo
que os interessou ainda mais, que será? O brilho pressentido
da esfera? O toque de Hermes no meu destino?)
Quanto a esses desviantes, portanto: “Eles caçam
a gente e depois prendem nuns ‘hospitais’ deles,
As Esferas do Dragão | 25
eu acho que são mais é presídios mesmo, fazem não sei
que coisas lá dentro, ‘preservam’, eles dizem. Falam de
si o tempo todo como se fossem grandes heróis. Sorte
ter escapado deles vindo até aqui”.
Estávamos em uma gruta, os arredores bem escondidos
por uma mata espessa. Hikari viajara até ali porque
se encaminhava à morada de sua mestra, Hinagiku.
Tinham assuntos importantíssimos para tratar; o Jade
já a havia atrasado muito. “Logo o torneio começará e
podemos perder nossa chance”, explicou ela, imediatamente
depois se encolhendo um pouco, sabendo que
falou demais.
***
Havia chegado até ali em segurança, defendeu ela,
porque estava sob resguardo do seu I-Ching, jogo e obra
de filosofia, declinação das 64 facetas dos atos e das
realidades. Tirando das varetas e moedas as coordenadas
dos conselhos guardados no texto, harmonizava-se
com as mais benignas intenções que o destino dirigia
a ela. (Honra ou demérito um livro ser reduzido à oráculo?
Pode este responder aleatório às preocupações
alheias inumeráveis? Eu não posso.) Hikari parecia empolgada
com essas manifestações de mistério como
26 | Duanne Ribeiro
quem tem uma fofoca a contar: sabor do conhecimento
privativo, de não ser comum porque se presenciou o
incomum. Claro, não só de empáfia se fazia a sua fé.
“Vamos ver o que o livro diz da sua busca?”, perguntou;
se referia à busca pelas esferas. Com pernas
ostensivamente abertas e cobertas pela saia vermelha,
afetou uma sexualidade agressiva, de acordo com a entidade
que procurava introjetar. Distribuiu seus instrumentos
na mesa e extraiu dos futuros o seguinte
número e conceito: 25 — Wu Wang, Sem Falsidade, definido
“Quando o ponto de virada retornar, não haverá
falsidade nem insinceridade. Assim, depois do Retorno
vem Sem Falsidade”. A mensagem, Hikari lia as
interpretações registradas, era positiva: indicava uma
situação positiva, em que o engano se tornava passado,
a perseverança adentraria uma veracidade. Guardei, porém,
um trecho que parecia aludir a desdobramentos
mais espraiados:
Quando a verdade acaba, para onde se pode ir?
Por um lado, tratava do já dito: é só no âmbito da
verdade que se encontram caminhos e paradeiros. Con-
tudo, não se poderia ler a frase no sentido da conclusão
As Esferas do Dragão | 27
de uma performance da verdade? Isto é, quando a verdade
faz o que tem que fazer, estabelece o que consegue
estabelecer, sobra alguma vereda ou interessam
ainda as vias variadas? Mas sinto que interpreto mal e
exagero a carta.
***
Nada a temer, senão o correr da luta
Nada a fazer, senão esquecer o medo
As pandeiretas bailavam nas mãos de Hikari, somavam-se
os choques metálicos das soalhas aos sons
ruminantes da fogueira. Eu me encantava. Dizia, vez
depois de vez, toque uma música para mim, eu não
estou com sono e agora não posso ir a lugar algum.
E ela cantava.
Abrir o peito à força, numa procura
Fugir às armadilhas da noite escura
28 | Duanne Ribeiro
Eu reconhecia outra vez como se fosse pela primeira
vez que a música pode dar esquadro ao mundo, se
há não muito tempo eu procurava encerrar meu luto
nas palavras dos cantores, agora eu via nos versos da
bruxa aberturas e rumos, estradas e vielas apropriadas
ao sonho.
longe se vai sonhando demais
mas onde se chega assim?
vou descobrir o que me faz sentir
eu, caçador de mim...
Que fúrias me convocam quando me identifico com
essa designação “caçador de mim”? Em torno de qual
sol me fariam rir, dançar, endoidar? Minha fala não é
minha, mas é tão minha.
***
Ainda mais, de madrugada, próximos ao calor, o fo-
go articulando-se em teatro de sombras na terra, nos
troncos das árvores, no teto de um apartamento, for-
As Esferas do Dragão | 29
mas abstratas, desfigurações dos carros na avenida, tão
insignificantes e recriados em fantástico nessa clausura
pela luz que invade a veneziana. Hikari, então, me
contou histórias, e me encantei outra vez — pois o seu
tom, a sua postura, as suas escolhas de entonação, tensionamento
e tema, tudo atraía como um acontecimento.
Talvez tenha sido ali a primeira vez em que me
mordeu a literatura. Toth sabe bem à voz de mãe.
30 | Duanne Ribeiro
Episódio 6
Tesouro Ornado
de Baratas
Na manhã bonita e tênue eu decidi segui-la: queria
também conhecer e aprender com a sua mestra. If I
am to battle, I must not be weak — não me dissera isso
a canção? Eu concordo.
Antes de partir, deixei que Hikari visse a esfera — já
confiava nela o suficiente. Ao fitá-la, a expressão de
Hikari foi paralisada. Nos olhos arregalados, pupilas epilépticas;
a boca se moveu muda como se soletrasse uma
língua recém-aprendida. Logo, passou a murmurar: “Eu
peço e ele me ajuda, sei que continua comigo, a qualquer
instante”, sentia-se nela a vontade de crer em cada
sílaba, o repouso de crer, “eu digo, me ajuda a arrumar
isso, e ele me ajuda, você não acredita, mas eu sinto”.
As Esferas do Dragão | 31
Então, cessou. Hikari! Hikari! Me assustei. Está se sentindo
bem?
— A esfera... fez alguma coisa comigo... com a minha
cabeça...
***
Um surto de imagens, uma harmonia de lembranças,
um gosto de quebra-cabeça mapeado. Viu-se sobre areias
amarelas, os pés andavam, andavam, sem que parecesse
que ela tivesse algo a ver com aquilo. O sol ardia
branquíssimo nos grãos; os passos afundavam em
luz fofa e ardilosa. Hikari tinha consciência do cansaço,
não se sentia cansada — o cansaço era mais e mais
pesado, mas de alguma maneira alheio, não nela, mas
sobreposto. Assim também as razões de caminhar, paixão
ou êxtase. Assim a necessidade de saber aonde caminhava.
Ao redor dela flutuavam circunstâncias, entretanto
ela em si era esse movimento puro. Peregrinava
desde a pré-história das coisas. A jornada encerrou
de súbito, porém. Havia encontrado o escrínio encrustado
de baratas. Dentro dele...
— Eu mesma. Me olhando. Não era eu mesma, podia
ser?
32 | Duanne Ribeiro
Ela reconhecia que as imagens evocadas pelo sonho
apenas reelaboravam um livro que lera. Porém, acrescentavam
detalhes tão devastadores, alteravam elementos
tão estruturais que era como olhar com cada olho
um mundo distinto. O delírio diluía-se, ela sentia aquele
mundo fenecendo (viriam também a ele os belicosos
do Jade?), urgia conversar, “fala comigo”, disse. O baú
dissipou-se, a mulher transpareceu cá e lá, próxima agora,
distante então. Hikari foi inútil de uma visagem a
outra, fala comigo, permaneça, fala comigo, permaneça.
Quando enfim pareceu que tocaria o rosto alheio ou
próprio, a ilusão cessou, e ela despertou com os dedos
eletrificados pela possibilidade do toque.
***
Também ouvi você falando outras coisas que não
essas, tais e tais frases sobre o alguém que apesar de
tudo estava lá. “Disso não me lembro”, Hikari me respondeu.
“Vagamente recordo o começo do que vislumbrei,
aparentemente um pesadelo puxou um sonho que
puxou uma profecia”.
Estranho que a esfera não tenha causado em
mim nada semelhante. As outras teriam tal impacto?
As Esferas do Dragão | 33
Pesadelo, sonho, profecia, em todas elas, surgindo como
soco? Overdose. Escapei de uma; haveria, me convenço
a sustentar a ideia, seis sobrecargas — até a leveza
do desejo realizado.
34 | Duanne Ribeiro
Episódio 7
Da Derrota dos
Pontos Finais
A cartomante consultou o I-Ching e recebeu: 50 —
Ding, Instituir o Novo. “Também é chamado de ‘caldeirão’
ou ‘vaso para sacrifícios’. É pena que eu não tenha
ingredientes de oferenda agora: tudo talvez se torne
mais complicado por conta disso”, comentou ela; o seu
cenho figurou pensamentos e ela passou a sussurrar é
favorável ser perseverante e reto, é favorável ser perseverante
e reto, até que chegou a algo como uma conclusão:
“Vamos. Temos de cumprir a vontade do Céu”.
Descemos então a rua da Consolação — a via estava
em polvorosa porque um menino trancara sua babá para
fora do apartamento e um bombeiro subia pela escada
retrátil do carro até a janela —, e avançamos atra-
As Esferas do Dragão | 35
vés das paisagens de Camboriú, Gramado, Florianópolis.
No Rio de Janeiro, capital, o Rock in Rio ocupava todas
as televisões enquanto eu aguardava Hikari voltar com
comida para nós dois. Em Curitiba, visitamos uma amiga
sua e eu vi pela primeira vez uma menstruação. Ao largo
do caminho a Ponte Pênsil era visível: estávamos na
Ilha Porchat. Engraçado que tenhamos ido distante dela
para depois retornar à mesma São Vicente, e só depois
ir a Santos.
***
Percorremos um longo território. Com alegria, sim,
mas a tempos era flagrante que Hikari não estava
bem. Ela cantava, frequentemente, para si mesma, quase
sem som:
How they dance in the courtyard, sweet summer sweat:
some dance to remember, some dance to forget
Acabou por confessar o que lhe afligia: desde a ex-
periência gerada pela esfera de quatro estrelas a ima-
gem da outra, ou seja, dela mesma duplicada, lhe as-
36 | Duanne Ribeiro
sombrava. À distância, escondida na neblina da serra
da Baixada, refletida nas águas do mar à beira da areia
batida. Hikari acarinhava o objetivo de ir procurá-la,
de estar face a face. “Creio que terei de abandoná-lo
a meio caminho: você encontra Hinagiku e transmite
meu recado a ela, diz que de todo jeito eu estarei no
torneio para finalizarmos o que começamos”. Também
nessa ocasião ela revelou um pouco do que planejavam:
tinham, tanto ela e Hinagiku quanto um terceiro, chamado
Shukun, um inimigo em comum. Não esclareceu
bem o motivo do conflito, mas precisavam derrotá-lo
e, sabendo que estaria em um campeonato de artes
marciais que ocorreria em breve, pensaram que podiam
pegá-lo algo desprevenido.
— Pois ele não é alguém que se pegue desprevenido
propriamente dito.
Enquanto ela falava, aconteceu algo maravilhoso,
que soou até como confirmação de que o destino apoiava
a nossa separação temporária: Néfela me reencontrou.
Como se abraça uma Nuvem? Fiz o que pude para
festejá-la e demonstrar que tinha sentido sua falta.
Como Hikari não podia montá-la — o vapor condensado
não se fazia consistente para ela —, pedi à Dádiva que
nos seguisse do alto até a hora da despedida; e lá ela foi,
desenhando uma faixa cor de gema no azul impoluto.
As Esferas do Dragão | 37
***
Antes de nos deixarmos, ela me contou mais uma
coisa sobre si.
Já disse que ouvia suas histórias com reverência;
igualmente reverente recebi a informação de que era escritora.
O título evolava magia: espremer do nada um
tudo, acessar em si um saber generoso e produtivo, mas
cioso da sua insciência; compor esses objetos que cortam
séculos, os livros — dir-se-ia que vencem até mesmo
a morte, por escarnecê-la, por ignorar que mate os
corpos e as almas e manter intactas as vidas vividas.
Escritor: logo eu quereria esse título para mim. Logo
seria natural para mim que aterrado por um problema
inesperado e insolúvel eu tomasse na mão a caneta.
“Você tem essa nuvem bonita”, Hikari disse, “vai gostar
desse poema”. Passou a declamá-lo: “Hoje eu queria
voar bem alto, me perder dessa vida, vivida, comprida,
sentida... hoje eu queria que você me ouvisse, me visse,
seguisse e sentisse que aquilo que alguém te disse era
apenas amor, cor, dor...”. Comentei que gostara, mas
nem sei se havia gostado: me impressionava simples o
fato que alguém pudesse escrever. Ela sorriu, despediu-
-se e partiu. Ainda pude ouvi-la cantar baixinho:
38 | Duanne Ribeiro
And in the master’s chambers,
They gathered for the feast
They stab it with their steely knives
But they just can’t kill the beast
As Esferas do Dragão | 39
Episódio 8
Passarinho
Avoa o Abismo
Quando a encontrei, Hinagiku pintava. Em um quarto
pequeno, entulhado de revistas Faça Fácil e volumes
encadernados de Mãos de Ouro e Bom Apetite, seus dedos
volumosos manejavam os pincéis. A tinta a óleo
manchava sua pele áspera, sapecava carnavais desencontrados
no seu rosto, multiplicava paisagens nas superfícies
das telas. Árvore seca de tronco duplo antepõe-se
ao rio de tons azuis-claros e verdes-escuros.
Guirlanda de folhas acima da mulher de saia e cesto
debaixo do braço; ao lado da moça, uma bica que despeja
água nos tijolinhos. Conhecer uma pessoa é imergir
em mitologia, pensei vendo tudo aquilo — ali, era óbvio,
pois materializado, mas em toda ocasião caminhamos
40 | Duanne Ribeiro
pelas memórias, espaços, expectativas; o outro funda
em nós uma realidade: olhar nos olhos é sempre um
convite a que nos invada uma nova teofania.
No vitral espelhado, cigano de camisa alva aberta no
peito e colete vermelho com arabescos lilases brilhantes
de purpurina; no pescoço um colar com cinco moedas.
Hinagiku tinha já mais de oitenta anos, seus cabelos
castanhos e brancos como a pelugem de um cervo; usava
óculos com armação cor-de-rosa. Casinha à beira da
queda d´água, porta entreaberta; ao fundo, geleiras de
vale. Cavalo marrom, detalhes da carne feitos em preto,
a pata esbranquiçada cisca. Dançava atrás dela uma
cauda de macaco que, eu saberia depois, era o seu descontrole
encarnado, resíduo do pavor de ver-se, do desespero
de estima, do nojo do corpo. Seu treinamento
me daria qualidades que eu me acostumaria a chamar
de “força”. Que transmitiria aos outros como “força”.
— Busco as esferas do dragão para ressuscitar
meu avô.
Hinagiku me olhou com atenção. “As pessoas que
morrem ficam aqui com a gente, pagando o que fizeram.
Não vão pra lugar nenhum não”. Eu não acho que
seja assim, respondi. “Mas é. Pra onde é que as pessoas
iam ir depois que morre? Ficam aqui”. Ela permaneceu
em silêncio por algum tempo, pensando, e depois exclamou:
“Bom, essas bolinhas parecem estar no centro
As Esferas do Dragão | 41
de tudo. O inimigo vai estar no torneio por conta de uma
delas. E a raiva dele de mim é que eu peguei uma outra
dele”. A guerreira, tinha, portanto, uma das esferas.
Eu fizera bem em vir para cá. “Vamos fazer o seguinte”,
continuou ela, “eu te treino. Se você for bem, lhe dou
a bolinha que eu tenho. Para pegar uma outra, você vem
com a gente e luta no torneio. Pode ser bom ter um a
mais”. Concordei.
***
A manhã era uma conversa com os passarinhos:
comiam alpiste das mãos dela como se encarnasse um
verso de Manoel de Barros. Céu nublado cor-de-chifre
e a voz de José Paulo de Andrade no rádio. Tínhamos
de nos alimentar bem, tomar um “café reforçado”; se
a vontade faltasse, era mister “forçar a natureza” —
subjugar o corpo: cabia à consciência decidir critérios.
O princípio transparecia em uma série de outras frases,
como “não deixar a doença tomar conta da gente”
— o que supõe que é por leniência nossa, também, que
adoecemos. Depois de comer, os exercícios começavam.
Imitávamos os movimentos de Tai Chi Chuang pela TV
Cultura; no segundo, jogávamos Final Fight (zeramos
o dois e o três). Observá-la era já estudar diligência
e resistência.
42 | Duanne Ribeiro
Sua atividade dizia que apesar de tudo as coisas
tinham de ser feitas. Tinham de ser terminadas. O desconforto
se mata com o desconforto (o amargo do boldo
contra aflições da barriga, o nojento do café com
manteiga contra catarro na garganta, o insosso espesso
e clorofilado do mentruz com leite contra a gripe),
a dor se mata com a dor (com um corte profundo no
braço, queimou folhas de jornal sobre a hemorragia,
cauterizou-se de imediato; restou a pele pintalgada de
borralho e sangue seco). Um “não quer curar?” contrapunha-se
a qualquer resistência: claro, uma falácia,
pois o que ela recomendava não era automaticamente
certo, mas, ainda assim, ali se colocava a noção de que
a nossa fraqueza alimenta a nossa fraqueza.
Quer continuar fraco? Era isso o subliminar. Até
quando quero continuar fraco? Quando, no futuro, eu
estivesse em Menwotsukeru e Kyua me discursasse sobre
o “sacrifício humano” — a ameaça de morte a que
o protagonista de Clube da Luta submetia outros caso
não se realizassem integralmente — seria talvez por reencontrar
Hinagiku nesse ponto que me fascinaria essa
noção. Sua imposição de urgência, de clareza de desejo,
de convicção: não quer viver? Hinagiku seria o
lastro de verdade que eu sentiria de pronto nos versos
do Arcade Fire “if you want something, don’t ask for
nothing; if you want nothing, don’t ask for something”.
As Esferas do Dragão | 43
No primeiro “livro” que escrevi, hoje perdido, uma história
de fantasia, eu usei como epígrafe o “não aprendi
a me render, que caía o inimigo então”, da Legião Urbana.
A mesma ideia, transmutando-se, crescendo por
agregação. E o motor era ela.
A noite era um toque que atravessa o abismo: minha
cama à parede, a dela no centro do quarto, eu estendia
minha mão para pegar a sua e nos ouvíamos inventar
fantasias; ela, sabedora da gramática de Gianni Rodari
sem sabê-lo. Era uma vez uma coruja que morava dentro
de um tronco de árvore, com tapete e escrivaninha,
um círculo cortado na madeira à guisa de porta. Tac Tac
lá fora tac tac tac renitente sem fim lá fora. Mas o que
ocorre, se enfezou a coruja, que distúrbio é esse? Tac
tac ela põe a cara pra fora e tac tac tac descobre um
pica-pau tac tac como no desenho! ostenta a penugem
vermelha tac tac tac porém é todo preto tac tac tac tac
e me destrói a casa. Ei! Ei! Chama a coruja, e ameaça
chamar a polícia, o Psiu, o diabo. O pássaro lhe retruca
cagando-lhe na cabeça. Tac tac aquela bosta toda seca
encrosta sobre a vista tac tac tac a coruja está cega como
a justiça tac tac e agora? Depois a Via Crúcis da
sabedoria procurando alguém pra lhe limpar a cara.
***
44 | Duanne Ribeiro
A criação imediata — histórias ricocheteando como
bolas de gude — a diversão da escatologia, os folguedos
de protelar o sono, a magia de ir ao sonho por uma estrada
de sonho: tudo isso me proveu um dom, que eu
usaria mais e mais para me entreter, para me muralhar,
para me subverter. O que eu vislumbrara era a faísca,
o explosivo, a incineração a cada vez que os dedos
interrompessem a digitação, detidos ante um pensamento
criança — titeriteiro marionetando o mundo ou
borboleta que deliberada se enrosca na rede caçadora.
Sabia lá tudo isso? Não. Escrevi meu primeiro conto:
Era uma vez um gato tremendamente habilidoso
na arte de saltar, o que lhe garantiu
salvar-se seguidamente de ser devorado pela onça
ardilosa. Derrotada, faz-se a onça humilde,
diz: gato, fui má, desamiga; por favor, perdoe-
-me, conceda-me a honra de ser tua aluna.
O gato, magnânimo, aceita. A onça doravante
estuda toda variedade de salto, Tsukahara,
Tkatchev, Jaeger, Comaneci, Yurchenko, todos.
Semanas e meses sucedem-se, a aluna deixa de
sentir as dores do aprendizado, o tédio torna-
-se companheiro cada vez mais frequente.
Aprendi, ela conclui. Está findo o ensinamento,
indaga ela afoita, está findo o ensinamento?
As Esferas do Dragão | 45
Está. Ela não espera mais nada; rosna, ataca,
veloz, feroz, com a habilidade que havia desenvolvido.
Mas a sua pata vara o ar, a sua mandíbula
morde o vento. Vixe! Que o gato dera um
duplo twist carpado uma tripla pirueta um flic
flac mortal esticado caindo numa sambadinha.
E a onça sente um ardor no pescoço, efeito das
garras que nem viu. Não havia lecionado tudo,
o gato. Ele ri lá do alto da árvore. Você achou
que ensinei tudo, é? Mas esse pulo é meu.
46 | Duanne Ribeiro
Episódio 9
Quebra de Samba
de Breque
“Não pode se entregar”, ainda outra variação do mesmo
princípio reativo. (Entregar-se a quem? À falta de
força, ao desespero, à degradação.) Não obstante o defendesse,
Hinagiku entregava-se, às vezes. “Sou um pobre
velho, ó Senhor. Estou abandonado, ó Senhor”, cantava,
como se a tristeza fosse uma coisa que a gente
respira, as moléculas de sofrimento acumulando âncoras
nos pulmões para depois se transferir em fogueiras
de célula a célula. Se antes eu aprendera com o espetáculo
do seu trabalho, o que me ensinava o espetáculo
do seu fardo?
Inspira: em momentos lhe sobrevinha o cansaço, pétalas
exangues, após esfregar roupas, quintal, cozinha,
As Esferas do Dragão | 47
banheiro, margarida descorada, informava ao mundo,
pararia “um pouco só”. Mesmo se não se permitia parar,
a debilidade gotejava nos resultados, se mostrava na
sujeira restante em um talher, quando antes tais detalhes
não passariam desapercebidos. Estranho vê-la em
fraqueza, vê-la abaixo de si mesma. Pelo fato de que
se obrigava a continuar, para além da necessidade de
manter o dia a dia ou de fruir sua habilidade, notava-
-se que, talvez mais agudamente do que para tantos outros,
o trabalho era sobre ela uma condenação; seu encaixe
na sociedade era dado pelo cumprimento destas
funções — dona de casa: esposa: mulher.
Quando, então, vestia sua velhice, o seu cotidiano
comportava mais períodos de descanso frente à televisão.
Acompanhava as novenas do Santuário do Pai
Eterno, cantarolava, como se a fé fosse uma tristeza diluída,
“somos povo de Deus caminhando para a luz da
Trindade sem véu”. Noutros momentos, encontrava em
Rodrigo Faro a mesma aparência de bom moço, a mesma
performance de caridade e o mesmo carisma hábil
do padre Robson de Oliveira. Sua solidão se traduzia
caricata pela crença de que as pessoas através da tela
a podiam ver e lhe falavam diretamente. Quando o programa
terminava, sorria e acenava com verdadeira simpatia
(ao ponto de que desmentir esse contato mútuo
parecia perigoso como extrair o “defeito que sustenta
48 | Duanne Ribeiro
o edifício inteiro”, conforme alerta Clarice Lispector).
É digna ou obscena a alegria que sobrevive às custas
da ingenuidade?
***
Eu fui a um baile
Na Estação da Piedade
Trouxe muitas novidades
Coisas de admirar —
te aguenta aí que eu vou contar!
Da televisão, ressoava Jorge Veiga. A canção fluía
por janelinhas retangulares que davam para o quintal.
Do outro lado dos vidros emoldurados de um metal cinza
e encardido, via-se Hinagiku, que acompanhava, com
certo atraso, a letra da música. Lá fora, eu prosseguia
meu treinamento.
Desenhava no espaço repetidamente o símbolo do
infinito, com um cabo de vassoura descascado. O ar
zumbia com os cortes sucessivos da madeira. Justeza do
gesto, agilidade na troca de mãos. E então um golpe
vertical que esmagasse a cabeça do oponente. Pedalava
a bicicleta ergométrica na varanda, com velocidade
As Esferas do Dragão | 49
bastante para que sua lataria tremesse sobre os pés roídos
de ferrugem. Encarava o sol porque me disseram
que não devia, e depois o embalava mancha no escuro
do olho fechado. Meditava ao lado do jardim — supriam-
-se da terra negra as azaleias, o coentro, a arruda, a
cebolinha e as rosas — eu me percorria o devir de todas
as coisas. Devagarinho, o mundo dá a si mesmo
uma alma; sente um cansaço de não-ser e passa a ser,
brota matéria e acalanta no interior de tudo sua força
primária: o Qi. Deixe-se levar, os braços erguidos para
cima como Atlas. Formiga à superfície da pele a alegria
da potência. Transparente e permeável, me atravessa o
sendo global.
É possível controlar essa energia (é possível deixar
que ela o coaja a querer controlá-la). Muito se passou
até que eu conseguisse forçá-la a um foco (submeter-
-me a ser artéria). Pálpebras cerradas, eu colocava minhas
mãos à direita, uma palma acima da outra, os dedos
levemente dobrados, de modo a esboçar um globo
vazio entre elas. O suor frio e as pernas trêmulas antecediam
o calor nas pontas dos dedos, sutil, intensificando-se.
Visualize. Canalize. No centro do globo, surgia
um fiapo de energia, inconstante, e sumia; mais
adiante, logrei algo do tamanho de uma semente de
feijão, supernova microscópica. A tentativa de engordá-la
parecia esvaziar-me de sangue. Eu tombava.
50 | Duanne Ribeiro
Me deu a mão e saímos passeando
E ela me conversando
E eu com toda atenção
***
“Cala a boca, vagabunda! Puta não tem vez! Vocês
são piores que as cachorras. As cachorras têm vergonha.
Que, puta? Vocês são lixo. Essas malditas destroem
a vida da gente. Tinha que fazer que nem fizeram
no Norte: botar pimenta na bicha delas”. Hinagiku
tinha sua hora orwelliana do ódio: a novela das seis.
Expira: ela chapinhava na ruela da raiva até alcançar
o alívio. Ruminava traumas até esgotar-se. Era apaixonada
por essa potência ou afetação de potência sempre
disponível.
Pobre, era classista; desprezada por sua origem, era
racista; mulher, era misógina. Sua consciência sofria
de uma doença autoimune. O que me ensinava o espetáculo
da sua contradição? Apontava, por um lado,
que Hinagiku sabia os golpes a que estava exposta; e
talvez nem tanto humilhava-se implorando cumplicidade
aos seus opressores quanto deixava claro, a um
tempo, que era superior àqueles a quem humilhavam
As Esferas do Dragão | 51
e feita, consequentemente, de uma matéria muito menos
vulnerável. Com todos eles, com qualquer um deles:
sim. Comigo, não. Convicta de sua “inferioridade”,
nunca conformada a essa “inferioridade”: quando a filha
de um fazendeiro riu dela, deixou a lata de água que
levava na cabeça e lhe atirou uma pedra na perna; quando
lhe pareceu que seu marido andava derrisoriamente
na rua com uma suposta amante, agarrou-se nas grades
do portão com tamanha força e adrenalina que o
arrancou do concreto. “Ninguém vai pisar em mim.”
Comigo, não.
Entrincheirada até o último fôlego do seu vigor.
Às vésperas de um ano novo, furtivo, encostado à porta
do quarto, pude ouvi-la rememorar uma a uma suas
mágoas e suas vontades natimortas. Se a vida se pode
representar como um território pelo qual se marcha ou
passeia, se peregrina ou se explora, Hinagiku palmilhava
sem trégua os mesmos cômodos da mesma casa
sob a qual pesavam os mesmos dias. Não obstante, naquele
dia, orelha à madeira, escutei-a declarar um manifesto:
“Não vou chorar. Todo ano novo eu choro. Esse
ano, eu não vou chorar”.
Meto a mão no bolso
Pra puxar o meu cartão
52 | Duanne Ribeiro
Foi uma decepção:
caiu um ás do meu baralho
Ela manjou meu velho galho
“Caiu um ás do meu baralho”, ela repetiu, imitando
a entonação dos sambistas de breque. Parecia contente
em se lembrar da música, porém sua expressão se anuviou
quando voltou o olhar à TV. O homem na tela, o
cantor, tinha um bigode ralo sob olhos inteligentes.
Vestia uma camisa de botão, calça e sapatos sociais;
no bolso da camisa trazia um pacote de cigarros Derby
azul e mantinha ao seu lado uma maleta executiva.
“Kachiaru”, Hinagiku sussurrou. Seus olhos estiveram
fixos em um ponto indefinido por alguns momentos,
então me afirmou, com somente um pouco de apreensão:
“Nós vamos enfrentar este homem no 23º Torneio
de Artes Marciais”. Logo depois, pôs a mão na boca, como
que pensando em algo, e acrescentou: “Mas, primeiro,
temos de resgatar alguém”.
As Esferas do Dragão | 53
Episódio 10
Esfera de Duas
Estrelas/Katiuska
“Acorda, São Paulo, do seu sono justo: é hora do Pulo
do Gato.” O rádio badalava as seis horas da manhã.
O sol não havia ainda nascido e o céu era um azul minguante.
Quando Hinagiku me acordou, me lembrei de
imediato que aquele era o dia derradeiro. Ela trouxe
meu prêmio de aluno em uma caixa hexagonal de madeira
pintada em tonalidade suaves, com figuras de papel
(anjos, corações, flores) coladas na parte de cima em
meio à decoração de strass. Então senti a sobrecarga, o
soco: à visão da esfera de duas estrelas, algo se apossou
de mim e nem mesmo percebi que dizia:
— Você vai morrer.
54 | Duanne Ribeiro
***
Uma menina ruim cutuca a lava com um toco de madeira;
o magma revela sem romper-se diversas rachaduras
de fogo. Minha prima Katiuska, franja castanha
sobre a testa, camiseta rosa com moça de vestido amarelo,
sapatos com cerejinhas dispôs à minha avó essa
informação: você vai morrer. A qual ela ouviu como
uma ameaça, um desejo, um “quero que você morra”; e,
portanto, passou a cozinhar em banho-maria um rancor.
Sete anos teria Katiuska à época; seria mesmo
capaz de uma agressividade de alvo tão definido? Uma
menina leviana engatilha uma espingarda de festim;
mira em freiras, pombas e avós (e, quem sabe, aponta
o cano à própria boca). Uma criança pode falar a alguém:
eu te odeio. Mas o que conhece a respeito do
comprometimento do ódio? Mais provável era que Katiuska
apenas seguisse as vias de um raciocínio: a avó
era idosa, seus pais eram jovens; soubera de velhos que
morreram e que se morria quando velho. (Eu tinha onze
anos e meu irmão mais novo tinha dois; estávamos
em Caldas, Minas Gerais, na casa dos fundos, sentados
na soleira da porta, à frente de um jardim com tartaruga
e videira. As férias continham já muitas ocorrências —
quando cheguei à cidade, havia me deitado na calçada
para ver a calcinha de uma prima; no dia de Natal, tirei
As Esferas do Dragão | 55
as roupas das bonecas e as escondi debaixo da cama para
apoquentar as meninas — mas a daquela tarde, sob o sol
hoje nostálgico, teria um caráter tanto mais filosófico.
Alguém disse ao meu irmão que morreríamos todos, no
fim. Chorou; pela incompreensão enorme? Lembro-me
de observá-lo sem entender. Não se chora por lendas, a
morte pra mim era como que uma lenda.) De todo modo,
por que comunicar a sentença? (Esperávamos que
nossa amiga saísse de casa, eu e outros colegas, acomodados
na calçada de uma rua de São Vicente, São
Paulo. Extrovertida, punk, dona de um riso escandaloso
durante o qual até batia nas pessoas, nos encontrou
amuada — sua avó estava doente — e nos perguntou,
pois tinha acabado de receber uma ligação do hospital:
que significa óbito? O que significa óbito? Eu sabia.
Eu não abri a boca.) Que alguém lhe mandara dizer
aquilo era uma hipótese plausível, e quem mais senão
sua nora, minha avó concluiu, agregando ao despeito
antigo outro elemento. O que Katiuska teria ouvido em
contra-ataque: se você quer que eu morra, fique sabendo
que eu não morro tão cedo, primeiro vai morrer a
tua mãe e a tua vó. Ou: se você não se importa comigo,
não vai te sobrar ninguém. Ou: neste autodecreto de
sobrevida, o medo, as variedades do medo: não havia
como desmentir a afirmação, era preciso menti-la. Uma
menina fútil inspira-se em si mesma para desenhar um
demônio numa folha de cartolina amarela; como se
56 | Duanne Ribeiro
conhece bem, o preenche cada vez com mais detalhes;
quanto mais real, mais o demônio a aterroriza. Minha
avó não era ingênua em relação à morte; de 16 irmãos,
10 morreram, ninguém sairia disso com uma fragilidade
vigorosa. Porém, não podia deixar de crer que falar
da morte era dar-lhe seu endereço. (Um homem decidiu
por à prova o amor da família, contava ela. Arrumou a
sala com antúrios e gérberas, acendeu velas por todo
o recinto e deitou-se na mesa de jantar com as mãos
sobre o peito. Fechou os olhos e aguardou para avaliar
a intensidade das lágrimas. Houve lágrimas, sim, entretanto
não chegou a assisti-las; morrera de fato, fulminado
pelo blefe.) Por igual motivo não pronunciava
o termo “câncer”, sempre preferindo “aquela doença
ruim”. (Comentara a minha avó com o vizinho do sítio
ao lado, enquanto passava o cortejo de um velório: o
próximo é o senhor. A piada ultrapassou o tabu e logo
cobrou seu preço: o homem, de fato, faleceria pouco
depois e, à noite, quando ela caminhasse no escuro e
no sereno até o banheiro, o escutaria tossir.) No mesmo
sentido: nunca admitiu totalmente o diagnóstico do
enfarto e da falência dos pulmões — segundo ela, meu
avô morreu por conta de macumba. Eu me questionava,
qual a diferença, se morreu, morreu, a fantasia é inútil,
mas é que eu não notava a modificação estrutural que
a frase impunha ao mundo: as pessoas jamais morrem,
as pessoas são mortas. As enfermidades não eram a de-
As Esferas do Dragão | 57
gradação progressiva e inelutável dos corpos; o que fere
é somente o mal, a ação da feitiçaria é o que conspurca
a carne sadia por princípio; as enfermidades são
um jogo de damas metafísico — o oponente negocia
com entidades transcendentes a realização de um crime
e marca seu alvo na existência reunindo fios de
cabelo e rasgos de roupa em uma encruzilhada; nós
podemos, do outro lado, reagir com idênticas armas.
O fundamental é que tudo permaneça ao alcance da
ação. Não é preciso agir, basta crer que seria possível
agir. (O primeiro defunto que vi foi Rubens, um parente;
não sentia nada por ele; compreendia, no entanto,
o momento, sabia o que devia sentir em torno do caixão:
forcei-me a chorar.) Uma menina forte plantou um
anjo no quintal para defendê-la dos perigos; sua harpa
ecoava calmante, mas seu primeiro voo mutilou suas
raízes e o matou. Tantas e tantas vezes escutei a lembrança
do que Katiuska dissera, e o que aprendi com as
repetições foi só a proibição. Minha prima pode pôr a
chama viscosa, a pólvora, o mistério na boca e provar
o gosto — eu só soube que era uma coisa que eu nunca
deveria dizer.
***
(O que foi isso? O que a esfera fez comigo?)
58 | Duanne Ribeiro
— Você vai morrer. Estou assustado.
Os sons dos pássaros da madrugada abriram caminho
em meio ao transe até a minha consciência. Meus
olhos estavam secos, percorridos por pruridos, as palmas
das minhas mãos estavam suadas. A esfera: em seu
núcleo alguém viveu. “Eu já morri”, respondeu a minha
mestra, “em um sonho”. No devaneio, o planeta era
destruído por imensas enchentes; todos se afogavam.
“O mundo acaba na água”, completava ela em nota de
rodapé profética. “Eu já morri.”
***
Naquela noite, ela me daria a mão e caminharíamos
para longe. A parada final, o torneio. Antes, nós encontraríamos
outro discípulo de Hinagiku, Shukun.
Sobre as nossas cabeças, dançavam no ar azul-escuro
como que fogueiras flutuantes. O termo científico —
“fogo-fátuo” — procura despojá-los da sua fantasmagoria,
mas, diante do fenômeno, não o podem. O real
supera-se em uma hipnose. Eu via neles assombrações,
maldições. “Pode vir!”, conclamou Hinagiku, “Vem
com a gente!”. E eles, à revelia do meu pavor, aquiesceram
e nos seguiram, sobressaltados pelo vigor da
lua crescente.
As Esferas do Dragão | 59
Episódio 11
Cachorros-Quentes
e Livros Obcecados
Desde a rua Orindiúva, passando pela Mere Amédea
até a avenida Guilherme Cotching, tudo tinha sido
devastado. Viaturas da Polícia Militar fumegavam no
meio do asfalto. Carros abandonados e pilhas de pneus
velhos velavam postos de gasolina largados ao léu.
À frente da loja de calçados Alfredo, a gangue Cruz-
-Caveira nos sorria maliciosa. “Lacaios do Jade”, murmurou
Hinagiku, “tem indulto de qualquer crime contanto
que levem gente arrastada”. O primeiro a sair da
calçada e vir nos desafiar tinha boina, camisa e calça
azul, além dos óculos escuros — quebrados na metade
por um soco ágil da minha mestra, que o fez cair de
costas. Enfureceram-se.
60 | Duanne Ribeiro
Outro, lenço verde na cabeça, garras de três lâminas
presas nos pulsos — pseudo-Wolverine — se lançou
contra ela velozmente. O aço zumbia no ar conforme
ela desviava das unhadas. Enquanto eu olhava, um homem
obeso de moicano me deu um encontrão com o
ombro, jogando-me longe. Eu me erguia, ele já tomava
distância para uma segunda colisão. Aguardei. Quando
se aproximou, dei-lhe um chute alto no queixo que
o pôs de pés pra cima e de lombo no chão. Hinagiku
derrotou o seu também e, por um momento, houve
calma. Mas logo descobriríamos que a Cruz-Caveira era
legião. Seus acólitos nos envolveriam como enxame e
nos perseguiriam sem trégua.
***
Da carroceria de um caminhão, pulou um troglodita
musculoso, de regata branca e quepe policial, armado
de cassetete. Hinagiku aparou um, dois, três golpes
nos antebraços, depois saltou girando no ar com as
pernas em ângulo de 90 graus; seu pé chocou-se uma,
duas, três vezes contra o rosto do criminoso. Cuspiu
dente e limpou sangue da bochecha estourada quando
se levantou. Já eu era confrontado por duas mulheres
com a mesma roupa, porém de cores diferentes —
As Esferas do Dragão | 61
top, calça justa de vinil; lilás e verde-musgo — ambas
com duas adagas, uma em cada mão. Rasgaram minha
face um pouco abaixo do olho direito (depois tive de
tomar três pontos para fechar). Agachei e rodei a perna
esticada, rasteirando a primeira e a segunda. Então um
chute com a sola em cada pescoço.
O quepe veio rolando até os meus sapatos. O miliciano
havia sido atirado ao gramado alto de um terreno,
atravessando a tela de arame que o protegia, e agora
dormia o sono dos injustos; porém Hinagiku estava cercada.
Dois gigantes com grandes cabelereiras vermelhas
e correntes amarradas na cintura; um rapaz negro
de cabelos raspados, cinto com presilha de ouro, lenço
rubro no peito; um maníaco de máscara de ferro e
dreads que portava uma enorme chave inglesa. Minha
mestra se deixou ficar no centro, cerrou os punhos e,
no instante certo, volteou rápida no próprio eixo. Seus
punhos violentaram seguidamente os maxilares de todos
os oponentes. Só um se pôs de pé outra vez: esse
que arrancava a máscara afundada e revelava sua cara
mutilada e aberrante.
Corri na sua direção. Tão veloz que eram um borrão
os veículos antigos atrás das vitrines das lojas surpreendentemente
intactas, enfeitadas com pequenas
árvores; tão veloz que o ferro-velho do outro lado da
rua — seus carros empilhados, seu piso de terra batida
62 | Duanne Ribeiro
— era um rastro no ar acobreado e ferroso. Chutei-lhe
os calcanhares para que perdesse o equilíbrio, a chave
inglesa errando a minha têmpora por pouco; segurei-o
pelos lados e o deixei de ponta-cabeça; saltei rodopiando
de forma tão frenética que o vento se aqueceu ao
redor, deixei-me cair com o crânio dele contra o meio
fio. Respiramos. A igreja da Candelária, sua arquitetura
angulosa, formando um compasso azul e branco no
entroncamento das avenidas, suspirava sobre nossa vitória
parcial.
***
— Você parece um José Deodato – sorria-me Hinagiku.
Era uma referência ao meu gosto pela leitura. Na sua
cidade natal, esse José abarrotava a sua casa de jornais,
revistas e livros; de tanto ler, teria ficado doido. O comentário
foi feito após comermos em um dos furgões
de lanche da Guilherme Cotching (na sua lataria havia
sido pintado um grande cachorro-quente e, ao seu
lado, um “R$1”) e depois de termos, quando caiu a noite,
armado nossa tenda na praça Santo Eduardo. Os bares
e lojas emitiam de portas e janelas uma forte luz
amarela, eu me acomodei embaixo de um poste no qual
As Esferas do Dragão | 63
duas cobras de metal entrelaçadas abriam as suas bocarras
abaixo da lâmpada cilíndrica, e retirei da nuvem
de Hermes alguns volumes que trouxera para me entreter:
O Menino no Espelho, do Fernando Sabino, e
várias edições do Asterix. Gostava de me ver lendo,
Hinagiku “sabia” que era importante, mas não entendia
realmente por quê.
Antes de dormir, criamos juntos outra história. Era
uma vez a onça e o gato acordam e percebem que têm
os rostos trocados. Os pelos cinzentos de um terminavam
na cabeçorra parda-pintada da outra. O corpo
branco em baixo, preto e amarelo-sujo em cima acabavam
na cachola acinzentada inapropriada. Só pode
ter sido o Mago, raciocinaram, pois que era o responsável
típico por tudo que fosse maligno naquelas redondezas.
Quem mijou na caixa da água? Não tenha
dúvida. Quem passou o dedo na bunda e botou pros
outros cheirar? Era batata. Partiram em direção ao castelo
do vilão — como de praxe, ultrapassaram vários
episódios menores, ao longo dos quais reuniram habilidades
precisas para sobrepujá-lo e se completaram
de autoconhecimento; porém que tédio percorrer essa
patacoada toda — aos finalmentes: a propriedade encoberta
pela noite, olham os dois pela janela e a boca
dos dois despenca. O Mago está lá dentro, e perpetra
algo atemorizante.
64 | Duanne Ribeiro
Episódio 12
Alguém Chegou
Primeiro
Minhas pernas doíam quando enfim chegamos à
avenida Morgan Dias de Figueiredo e avistamos um
quartel militar: suas instalações eram caixas retangulares
de concreto, ladeadas por um amplo estacionamento,
isoladas por grades — e coalhadas de corpos
caídos. Às dezenas, desmaiados ou mortos, ocupando
os espaços entre os carros; tanto os cruz-caveira (desde
os inúmeros rapazotes baixinhos com capacete, suspensório
e granadas até os magrelos com tacos e roupas
de baseball, cara coberta por máscaras do Jason)
quanto soldados idênticos coloridos de musgo e bordô.
O Jade havia sofrido uma imensa derrota. Algum daqueles
“como nós” não pudera ser submetido.
As Esferas do Dragão | 65
— Quem fez isso – alertou-me a minha companheira
– é quem temos de eliminar.
Adentramos o complexo militar, engolfados pelos
cheiros de sangue coagulado e carne queimada, e caminhamos
tensos pelos arabescos dourados de um tapete
de veludo azul que se estendia sem interrupções
pelo piso verde como as paredes. Em ambos os lados
do corredor, espaçadas por uns poucos metros, havia
vitrines nas quais estavam expostas armas de alta tecnologia
e mechas com o porte de rinocerontes e a altura
de dois homens. Ao chegarmos no elevador, tivemos
de retirar a pilha de cadáveres que estava lá dentro
para poder usá-lo. Eram bem uns quinze anões de
longas cabelereiras brancas e espetadas. Apertamos o
botão, e a subida foi vagarosa, silenciosa demais.
As portas se abriram com um solavanco seguido de
um longo rangido gemente. Estávamos no que parecia
ser uma prisão. Algumas paredes de pedra estavam quebradas
e os destroços bloqueavam parcialmente o caminho.
De canos estourados pingavam incômodos. De
súbito, um movimento se deu na sombra de uma cela;
quando nos viu, correu até a porta, segurando esperançosamente
as grades. “Hinagiku! Hinagiku!”, ele berrava.
Ela chegou à sua frente: “Foi ele, não foi?”. Pondo
o pé na barra inferior, por conforto, ele assentiu: “Sim.
Veio até mim. Escapei de enfrentá-lo”. “É ótimo que
66 | Duanne Ribeiro
tenha escapado de enfrentá-lo”, Hinagiku rosnou, “pois
em breve teremos de enfrentá-lo”.
***
Embaixo da boina cabelos e barba atingidos pelo
tempo, mas tingidos de preto bem forte. Na sua boca
faltavam alguns dentes da arcada inferior e o seu rosto
era bastante magro, não obstante ali havia uma vitalidade
encrustada e ainda potente, o fóssil de uma
força. Shukun tinha sido aluno de Hinagiku. Contou
que há algumas semanas o Jade tomara controle do local.
Haviam dito a ele que logo seria transferido, que
as acomodações seriam agradáveis, que eles atuariam
para preservá-lo. “Podem me deixar aqui, eu falei, que
estou acostumado.” Estava mesmo: inclusive quando
houve a invasão já estava preso naquela cela. Não o
capturaram: levou-se lá por comportamento irregular.
Não fora a primeira vez. Nesta, aconteceu por dois
motivos. Primeiro, recusara-se a lavar banheiros quando
um oficial lhe ordenou fazê-lo; se escondeu até a
obrigação baixar. Conspirou: “Eu sou armeiro, tomo
conta das armas — vou limpar banheiro? Cada banheiro
grande. Vou lavar banheiro pra marmanjo?”. Segundo,
As Esferas do Dragão | 67
comera balas. Um tenente atirou ao alto um pacote
inteirinho, e a tropa urubuzou pra cima dos doces.
Vinha vindo o comandante e não estimou a pândega.
Shukun foi posto no cárcere por três dias, para dividir
uma cama no chão com os ratos, sem comida. No dia
dois da punição, o Jade invadiu o local. “Fiquei aqui
desde então, até que Kachiaru veio e matou todos.”
***
Encolhido na cela, Shukun soube que ele chegara:
no interior da sua psique acendeu-se um ardor, um faroleiro
— o pressentimento da imensa energia que se
aproximava. Depois disso, a batalha se denunciou pelos
ruídos: o estouro nos canos dos tanques, o estrondo
de um milhar de granadas, a polifonia de metralhadoras,
escopetas, espingardas e revólveres. Os gritos de fúria
e desespero do exército. Somente o Qi poderia feri-
-lo, pois do Qi ele extraía uma força e resistência descomunais.
Longos minutos de silêncio e fumaça se sucederam.
Ouviu então pés chapinharem na água, passo
a passo até estarem bem em frente ao quarto em que
estava. Olhou nos olhos de Shukun através do escuro
e da fuligem. Via-se em seu semblante o conforto beligerante
dos sabe-tudo. Um sorriso no canto da boca
68 | Duanne Ribeiro
encimada pelo bigode bem aparado, um jeito de ver os
outros de cima ou à frente. Deixou sua maleta executiva
no chão. Abriu a cela com a mente. Disse: “Venha
aqui”. Shukun foi.
O homem tirou do bolso da camisa de botão o pacote
de Derby azul. Acendeu um. “Estou à procura daquelas
tais esferas do Dragão. Sei que você tinha uma, sei onde
a havia escondido. Mas não pude encontrá-la. Vim
até aqui para arrancá-la de você, porém fiquei sabendo
de algumas coisas... achei mais divertido adiar essa
provisão. O fumo branco se espraiava da sua boca. “Se
quiser, sei como é você, podemos lutar agora mesmo,
mas seria um estorvo um pouco maior”. Shukun respondera,
de acordo com ele: “Também posso esperar. E aviso
que você pode não ter tanta sorte como da última
vez”. “Sorte?”, o homem tirou o cigarro da boca e o
ofereceu ao soldado, “isso não tem nada a ver com sorte”.
Pôs nos lábios, tragou; a nicotina dissipou-se ao
pulmão e daí carregou o desafio à corrente sanguínea.
Shukun fumava, compenetrado. O invasor, enquanto
saía, exclamou:
— Diga a Hinagiku que eu sei que está vindo. Eu a
aguardarei no torneio.
***
As Esferas do Dragão | 69
“Depois disso, voltei à cela e aguardei, porque sabia
que você viria.”
Shukun — suas mãos enluvadas de couro com os dedos
cortados — tamborilava na grade. Ombros largos,
magro e forte, camisa branca com uma larga faixa azul
no peito, boné preto para trás, cinto de guarnição. Sua
voz grave aliava-se a uma oratória convicta e assertiva
para emular a força ou a impostação de força que representavam
o par de revólveres com os quais estava armado.
Porém seus olhos exibiam uma mistura de cansaço
e opressão, como se sob um cerco longo demais,
sem fim à vista, plácido. Deixamos as celas, ele se armou
o quanto pode, e partimos.
70 | Duanne Ribeiro
Episódio 13
Esfera de Uma
Estrela/Barrabás
De tudo, ao menos para mim, uma boa notícia: nosso
companheiro recém-chegado sabia onde outra das esferas
se encontrava. Pedi que me levassem até ela, que me
deixassem tê-la. Aceitaram.
***
A linha dourada de Néfela marcava o céu nublado
bem acima de nós. Por três dias viajamos até o ponto
onde Shukun escondera a esfera. No caminho, ele me
ensinou Freecell. No jogo, as cartas são dispostas em
colunas aparentemente caóticas, mas que compõem
As Esferas do Dragão | 71
uma ordem dissimulada. Carta a carta, é preciso desenredá-la,
até o ponto em que se hierarquizem todos os
grupos possíveis do rei ao ás. É evidenciado que há
um meio de vencer — a derrota só vem do acúmulo sucessivo
de falhas. É preciso formar pequenos clusters
de organização enquanto não se pode mais do que isso,
notar e libertar tão logo quanto possível unidades cruciais.
Pode-se mover cartas entre colunas, o que se dá
com muitas limitações (pois um três vermelho só se casa
com um dois preto, e às vezes não temos oitos para os
noves), e pode-se “suspender” algumas, até quatro delas,
deixando-as de molho nuns espaços acima do tabuleiro.
Assim se tira um cinco ou um sete problemáticos
do caminho, assim se têm fôlego para movimentar
e sanar. Meu companheiro me instruiu sobre o método
— que consiste na análise cuidadosa do contexto,
na escolha ponderada da tática — engordei meu orgulho
partida após partida, assim que deslindava as lógicas.
Não tive chance de lhe demonstrar agradecimento —
não tanto pelas lições, mas por um meio simplório de
vez após vez me descobrir capaz da vitória.
“Cuzão!”, Shukun me chamava assim, fazendo piada
com a sonoridade da francesa “cousin”(éramos“primos”,
discípulos da mesma mestra), “venha pro exército. Com
faculdade, você já entra tenente”. Precisava de algo em
que se enxergar, às vezes pensava que podia fazer de
72 | Duanne Ribeiro
mim esse algo. Eu negava preguiçosamente. Preocupava-se
que o Jade parecia tomar o Estado; será que
a guerra estourava ao longo do país? Se isso era fato,
não se entendia desertor: somente tinha tirado uns dias
de folga... e disso ria malandramente. Havia dureza e
malomolência nele, uma força fluída de jogo de cintura.
Todas as noites nos contava histórias, antes e depois
de termos recuperado a esfera. Tinha de bater nos
presos nas solas dos pés porque não deixa marca. Ou
com as mãos em concha, estapeando ambas as orelhas.
Crueldade e riso se mesclavam no seu discurso, justificada
a mistura na medida em que os atingidos estavam
abaixo da linha de consideração, como que fora do
que é o humano. Além disso, a mistura se alimentava
dos prazeres orgásmicos do agir sobre as coisas. O júbilo
do demiurgo, o privilégio do escravo hegeliano.
Uma centralidade de si cuja consequência é que não
respeitasse verdadeiramente qualquer autoridade, seja
secular, seja espiritual. Dois exemplos: um general ou
algo assim lhe ordenou policiar tal passeata, onde era
possível que sua irmã estivesse — formulara silente e
rebelde o que agora conta: ”Se mandasse atirar no povo,
a gente virava e atirava nele”; um trabalho de macumba
lhe havia causado incômodo ou dor, encarcerou
a pomba gira em um pedaço de papel e atolou em
uma parede, onde o espírito permanece até hoje. Sou
As Esferas do Dragão | 73
eu que atuo, você atua por meio de mim, é o que esses
contos dizem, eu te obedeço apenas quando me obedeço.
Certo dia, escutou barulhos no telhado de casa. Prendeu
a arma às costas, no elástico da bermuda. Saiu, e
nada. Mas, em outro dia, ouviu da rua a bagunça: tinham
pego um sujeito e o acusado de roubar a vizinhança.
Shukun descobriu nos objetos “confiscados”
do ladrão ferramentas suas. “Você roubou a furadeira
que era do meu pai, seu filho da puta?” — narrava,
e me olhava nos olhos, sua córnea sanguínea — “Virei
um direto no nariz: a geleia escorreu. Depois veio a
mãe reclamando. Reclamar do quê? Quer ser presa
por desacato?”.
***
Um homem põe o indicador no canto entre o olho
e o nariz, levanta a pálpebra com a unha e enfia — o
dedo dói até o fundo, se lambuza de humor aquoso,
forma uma pinça e arranca. Na palma da mão a bolinha
branca continua vendo como se nada. Meu avô me narrou
a história de Barrabás, o homem que, por acaso e
política, carisma insuspeitado e intemperança das massas,
sobreviveu em lugar do Cristo e, por isso, foi condenado
por deus a viver para sempre. Penso nele e vejo
74 | Duanne Ribeiro
Anthony Quinn, barbado, com vestes sujas, intocado
pelas décadas e séculos, exausto de tudo. Ele levanta o
rosto pedinte para os céus, pede perdão e arrego, morre.
Mais do que reparar na arbitrariedade da deidade
cristã — who would wanna be such a control freak? — o
que me marcou mais foi essa imagem da vida inflacionada,
milhões em notas sem valor. Era possível não
querer estar aqui, tudo dependia das condições corretas.
Outro personagem bíblico punido com a vida é
Caim. Assassino de seu irmão pela paixão que a sujeição
a deus lhe impôs, foi marcado na testa para colher
apenas a indiferença das gentes, e imortalizado para
que vagasse sem fim. Que eu saiba, nunca se dobrou
ou foi indultado; e narrativas fantásticas o descrevem
como pai de vampiros. (Penso nisso e me lembro de
Brad Pitt sugando ratos num pardieiro.) Crimes mais
simples, como os de Sodoma e Gomorra, ou de todo
o planeta, no caso de Noé, recebiam veredictos mais
simples: o genocídio. Barrabás e Caim granjeiam a punição
máxima, que, paradoxalmente, se identifica à glória
máxima. Não é o que fundamentalmente esperamos
do paraíso? Jamais morrer? Viver para todo o sempre.
Um homem caminha entre camas de metal onde cadáveres
com sua face e corpo se estiram. Eles têm os
olhos fixos no teto e respiram asmáticos apesar de mortos.
O homem arranca suas unhas e elas continuam
crescendo, como fungos; extrai seus corações e os
As Esferas do Dragão | 75
chuta no assoalho, eles seguem pulsando combalidos.
A redenção é uma irmã oblíqua do suplício? Dir-se-á:
é a presença de Deus o que concede à vida valor; é ela
a Glória a transfigurar a água em vinho. A condenação
verdadeira de Caim e Barrabás é a eternidade sem
divindade; o paraíso é a fraternidade inerte no seio da
Luz. (Em Amor Além da Vida, os campos elísios a que
chegamos são universos particulares; a potência criativa
total nos é entregue como um brinquedo, e podemos
fazer mundos de tinta ou de dor. Já outra proposição,
de origem não identificada, diz que, quando morremos,
podemos escolher que partes do nosso percurso
queremos reviver, todas elas executáveis novamente
como filmes numa prateleira.) Que seja: o aprendizado
básico continua o mesmo: a vida é vazia de valor, de
que vale então, de nada, a vida é contexto. Quem, como,
quando, onde, por quê. (Criança, li um conto em que
um rei ouvia duas profecias iguais. Ambas lhe garantiam
uma vida extremamente longa, mas o primeiro profeta
sublinhou o que havia de sombrio nisso: ele assistiria
à morte de todos os seus. O segundo disse que
estaria presente para alegrar-se com suas alegrias e
para apoiá-los na tristeza. O primeiro foi enforcado;
o segundo, festejado.) Consideremos Lázaro. Jesus se
depara com o seu funeral e o convoca de volta à vida.
A questão é que ele teve a sorte de ser ressuscitado no
estado que conhecia e amava — em meio à sua família
76 | Duanne Ribeiro
e amizades, no seu tempo. E nós? Se no pós-vida tivéssemos
algo que nunca tivemos e nunca esperamos.
O evangelho: a novidade — ainda assim, bênção, ainda
assim, vida? Uma mulher grávida desparafusa a barriga
inchada e retira o bebê lá de dentro. Desenrosca dele
o cordão umbilical e o passa a outra mulher, que o reenrosca
e o põe no próprio útero. Qualquer ideia de
imortalidade dessignifica as palavras “morte” e “vida”.
Passam a descrever ambas a mesma linha, interrompidas
por um corte mínimo, diferenciadas pelos tons de
cinza com que são pintadas. O que se faz na morte é viver.
O que se faz na vida é morrer. Barrabás frui um
alívio intenso e curto, então desperta, vivo outra vez,
noutro lugar. Qual não foi a angústia que sentiu quando
soube, definitivamente, que não podia escapar, todas
as saídas eram entradas. Kierkegaard demonstra que a
provação de Abraão é suprema: teve de percorrer a extensão
inteira do amor pelo filho e se dispor a assassiná-
-lo quando chegou ao ápice. Mas essa provação é frívola,
na medida em que, sendo as almas imperecíveis,
ninguém criado jamais morreu ou morrerá. Tudo, no
máximo, retorna ao puro potencial, à esfera escolástica
da qual a criação emana. Não existir, o que seria isso,
essa sim, íntegra novidade; podemos, próximos de
Heidegger, pensar-nos no nada? Deus, acima de todos,
está encarcerado na existência. O onipotente pode matar
a si mesmo? Pela vontade impossível de poder não
ser, para degustá-la, crucificou-se Jesus?
As Esferas do Dragão | 77
Episódio 14
32º Torneio de
Artes Marciais
Na Escola Estadual de Ensino Fundamental Julio
Maia, a plataforma de pedra sob o sol do meio-dia era
uma retângulo de luz branca ardente. Seria o cenário
principal das batalhas. Políticos e ricaços, celebridades
e jornalistas empesteavam por ora esse espaço, conversando
e bebendo em volta de uma mesa coberta de tecido
vermelho onde estava depositado um troféu dourado e
delgado, com a caneca no topo pouco maior do que o
necessário para abrigar uma bola de tênis. Esconsa por
um pano preto, estava ali colocado o prêmio pelo qual
eu tinha vindo, a esfera de cinco estrelas.
Subdividiam a plataforma vários ringues menores.
Dezenas de inscritos decidiam seus destinos nas par-
78 | Duanne Ribeiro
tidas classificatórias. Eu estava entre eles, e lutei bem.
Ao nosso redor urravam as arquibancadas, buzinas desritmavam
o tempo, papeis coloridos picados esmigalhavam
o espaço. Sobre as amuradas do estádio, vigiavam
os soldados do exército Jade — coletando dados,
definindo perfis, projetando a prisão dos desviantes que
ali se destacassem? Fui informado: nunca antes havia se
imposto uma influência exógena no campeonato, que
era uma instituição tradicional. Isso significa que o poder
do Jade havia crescido. Com efeito, segundo rumores,
o número de prisões subia exponencialmente (foram
de centenas a milhares os que eram levados ao Sanatório
Jade — era esse o nome — todos os dias). A iminência
do fim cada vez mais intensa, os militares explicavam:
tinham de se aguerrir.
Os gritos de apoio e a cantoria do público não deixavam
meu temor pelo que pudesse acontecer se apoderar
de mim. Eu tinha veleidades de ser não mais que
um show; atender às suas expectativas, transbordá-las,
excessivo de tão adequado, surpreendentemente hábil
segundo os critérios alheios. O Jade podia prender-nos,
preservar-nos — esse momento de aclamação faria tudo
valer a pena.
Ao fim da tarde, haviam sido escolhidos os sete atletas
do 32ª Grande Torneio de Artes Marciais. O número
As Esferas do Dragão | 79
seria completado pelo vencedor do campeonato anterior,
que ainda não tinha chegado ao local. Os fogos de
artifício irromperam no céu arroxeado. Agora a plataforma
estava vazia de gente. Nós os selecionados ficamos
ombro a ombro, quatro de um lado da mesa de coberta
vermelha, três do oposto. Hinagiku e Shukun estavam
lá. E, surpreendentemente, Hikari. Trombetas
anunciaram a vinda de pessoas com importância, e
assim reencontrei o deus: Hermes, jovem vestido à grega,
nos pés sandálias simples, pequeninas asas nascendo
diretamente da carne, pisou macio a pedra até se
colocar atrás do troféu, suas mãos brincando com as
rendas da toalha rubra. Eu o fitei, sedento; não me deu
atenção. Ao seu lado, se colocaram seus filhos Abderus
e Palaestra. Os três, juízes.
Certo nervosismo coalhava a cerimônia. Claramente
porque não podiam dar início aos trabalhos se o número
de combatentes não estava ainda completo. Isso não
foi um problema por muito tempo. Logo notamos uma
movimentação afobada entre os funcionários do Jade.
Os militares corriam com suas metralhadoras pelas escadas,
saindo atabalhoados pelas portas de emergência.
Em silêncio, a multidão dentro do centro esportivo
acompanhou os ruídos externos de uma pequena guerra.
Em não mais que quinze minutos tudo cessou. Nesse
momento, ele entrou. Em uma mão, uma maleta exe-
80 | Duanne Ribeiro
cutiva preta. Na outra, uma cabeça arrancada e sangrenta,
segurada pelos cabelos. Sem pressa, andou passo
ante passo pela nossa apreensão e subiu à arena;
deixou o cadáver defronte ao prêmio, os olhos arregalados
sob a esfera recoberta; dirigiu-se a todos em
voz desapaixonada:
— Não suportaríamos não ser chefes de nós mesmos,
não é mesmo?
Pé ante pé sobre o nosso orgulho, posicionou-se no
seu lugar na fila. Não pude olhá-lo nos olhos. A minha
mirada se prendeu ao chão. Nos seus sapatos sociais.
Manchados de lama e vida subtraída.
***
Hermes passou as mãos pelos seus cabelos loiros e
colocou os óculos escuros como se fizesse parte de um
episódio do CSI: Miami. No telão, a câmera fez um close
veloz no seu rosto quando ele tomou o microfone e
anunciou as batalhas que se seguiriam nos próximos
dias, em três rodadas de mata-mata — quatro contra
quatro, dois contra dois, um contra um: na sequência,
Hinagiku versus Hikari; Jintoku versus Shiawase;
Shukun versus Kachiaru; Kurokun versus Kyua. Estavam
abertos os jogos.
As Esferas do Dragão | 81
Episódio 15
Paz Passivo-Agressiva;
Desconsolos da
Vontade de Potência
Conversei com Hikari antes que ela subisse à arena
para enfrentar Hinagiku. Disse-me que era difícil se
concentrar no plano, focar na derrota de Kachiaru, porque
desde que nos separamos estivera em busca da mulher
que entrevira sob o impacto da esfera de quatro
estrelas. Estava obcecada. Achava pistas da fugitiva
nos livros que lia, nos homens a quem dava sustento
(“a quem eu sirvo de terceira perna”, explicou) e, fluxos
da vida, a quem chegava o momento de ter de abandonar,
no sucesso do trabalho, no tédio dos televisores.
“Em você, inclusive”, concluiu, súbita, “sinto que poderia
seguir pelo seu rosto até achá-la escondida. Esquisito.
Será que eu devia não ter dado a você um nome?”.
82 | Duanne Ribeiro
***
Colocaram-se então frente a frente. Sua luta consistiu
numa troca de mansidões esquemáticas. Isto é,
não propriamente se batiam uma contra a outra, mas
apresentavam uma coreografia: os ataques e contra-
-ataques se mantinham, inofensivos, em momentos destinados
a ataque e a contra-ataque. Não há violência,
no sentido fundo da palavra, se a violência foi absorvida
pelo rotineiro. O público certamente não notou
que se tratava não de briga, mas de dança, como eu
percebia facilmente por tê-las visto lutar antes, por
ter treinado sob a mesma tradição delas. Nos golpes eu
via signos sabidos por nós três; se voava o hanbo na
mandíbula de Hinagiku, a postura do corpo de Hikari, a
força que aplicava no golpe, a inclinação e a velocidade
da arma indicavam à oponente como responder.
Se a minha mestra não se defendia com destreza desse
avanço — de que, eu sei, ela seria capaz — claro me parecia
que o objetivo era receber o impacto no antebraço,
recuar destrambelhada três passos e abrir a guarda
para a violenta pancada no estômago. Performava
essa fragilidade.
Às vezes, porém, algo no comportamento de ambas
desmentia essa teoria. Por exemplo: Hinagiku estando
As Esferas do Dragão | 83
ajoelhada, Hikari correu em sua direção com o hanbo
erguido como um machado. Zumbiu o cilindro no ar
conforme despencava com truculência, mas só estilhaçou
a pedra. A velha se jogara em uma cambalhota para
trás e caíra de pé. Os movimentos surpreenderam
as duas e a mim: eram criativos, divergiam pequena
porém significativamente do ritmo que pretendiam.
A expressão que restou nas suas faces — um desagrado
no canto da boca — provava que sabiam o que tinha se
dado. Um burburinho na barriga do orgulho alertava
que não conseguiriam fingir por muito tempo ou que
não conseguiriam fingir o tempo todo. Sobrepunha-se
a elas uma vontade de fruir a superioridade. Por tudo
isso, alternavam-se na partida surtos de agressividade
e retraimentos simpáticos. Era uma conversa. A um
bem-vindo contrapomos um obrigado, esgrimamos
bons-dias, preemptivamente a debelar a ameaça possível
do outro, torcendo tons de voz, contendo-se, deixando-se
levar.
De todo modo, conseguiram manter o estratagema
que eu supunha (com razão) estar em jogo. Com um chute
no queixo de Hikari — que se fazia parecer atrapalhada
ao manusear as cartas mágicas — Hinagiku abriu espaço
para lhe dar um, dois, três socos no peito, girar no
próprio eixo e virar a mão fechada na nuca da adversária,
que tombou com o nariz no chão. Grand finale.
84 | Duanne Ribeiro
***
— Como funcionam as esferas do Dragão?
No telão, a cada luta, eram exibidos programas variados
sobre o torneio. Neste, agora, um jornalista da
NNS de olhos vidrados e gravata lilás, conversava com
um acadêmico de cabelos azulados e óculos redondos,
que cofiava volumosos bigodes cinéreos: “A reunião dos
orbes permite enxergar o que seja o superholograma de
Michael Talbot. A ordem implicada de David Bohm é descortinada,
a estrutura generativa por trás do tempo e
do espaço se dá a conhecer; mesmo nossa identidade é
dissociada em onipresença”. O repórter coçou a cabeça:
— É possível dizer que o detentor das sete esferas
se torna onipotente?
O pesquisador era magrelo, usava um jaleco branco
e uma camisa polo verde-água. “A onipotência que se
prova factível não é individual, mas os poderes manifestos
de uma rede complexa, a potência de um todo,
porém um todo fractal no qual cada parte é potente.
A onisciência são os variados pontos de vista dessa rede,
coordenados a uma só vez sobre o objeto em questão
(para utilizar o exemplo clássico, é como se víssemos
o aquário e o peixe por todos os ângulos e em todos
As Esferas do Dragão | 85
os seus presentes). É nesse cenário em que um gesto
de vontade pode deslocar um fragmento no núcleo da
discreta ontologia de processos e gerar basicamente
qualquer efeito desejado (são essas as ocorrências traduzidas
por visões ingênuas como realizações fantásticas
de desejos)”.
O entrevistador recuou a um silêncio desarmado.
O doutor, constrangido, resolveu acrescentar algo à
guisa de esclarecimento: “Seguindo a terminologia de
Alfred Whitehead, se trata, cada esfera, de uma entidade
atual ou de uma ocasião atual...”.
***
Míope como Miguilim, óculos de grau Wayfarer tipo
Morrissey sobre bochechas cheinhas de sardas — leve,
contente, aberta ao mundo e frágil como Miguilim, mas
isto eu saberia só depois. Seu rosto era uma clareira em
meio a volumosos cabelos lilás-escuro encaracolados —
seu rosto me seria uma clareira: eu soube de imediato?
Yes, I’m sure it happens all the time. Shiawase.
Shiawase punha o pé nesse local em que o destino
se decide no soco em estado de paradoxo: era e não era
feita pra isso; era dona de um poder e de uma timidez, de
86 | Duanne Ribeiro
uma vontade de concórdia prenhe de calma e preguiça
atravessada por anseios de explosão. Feito Perséfone,
excedia-se ou minguava-se. Jintoku — gordo de pele
rosa choque, calças brancas bufantes, colete preto sem
camisa, no cinto o emblema do leão da tribo de Judá
e, dependurada, uma espada de samurai — era similar.
O que em si era potência tinha pouso na firmeza, no
descanso, no estabelecido. Nessa tríade naufragavam
o original e o individual nele. Isso, também, somente
descobri mais tarde, quando viajávamos, como ele me
descreveu, “na direção do fim de tudo que existe”. Agora,
o que via era a sua famosa katana de fio invertido (pois
não queria ferir de morte ninguém) chocar-se rutilante
no rosto da mulher.
O ruído duro e agudo do impacto de metal contra
metal demonstrou que ela não era uma menina trivial:
Shiawase era um androide. A contusão arrancara a tinta
bege da sua bochecha, deixando ver o ferro. Ela parecia
furiosa. Tomou impulso (passinhos para trás), correu
em enorme velocidade (os braços abertos de um
jeito engraçado) e saltou; furou horizontal a distância
como um homem-bala. A cabeçada atingiu o peitoral
de Jintoku com um baque seco e fofo. Ele foi impulsionado
por metros, suas botas douradas (como as luvas)
abrindo trincheiras na plataforma; manteve-se de pé.
Sua rival, apaixonada pelos resultados da própria força,
As Esferas do Dragão | 87
avançou. Desviou de um soco alto, sustentou-se em
uma perna e, com a outra contraindo-se e estendendo-
-se velozmente, despejou uma sequência de chutes no
oponente. Que foram absorvidos dezena a dezena. Era
como bater num saco de algodão.
Ofegante, ela parou. O corpo de Jintoku ficara todo
deformado: estava cheio de crateras nos pontos onde
havia sido atingido, fora modelado como massinha. Sua
carne molenga amarfanhada retornou aos poucos à normalidade.
O monstro sorriu com todos os dentes; abriu
o bocão e exibiu a língua, movendo as mãos zombeteiramente,
uma de cada lado da cara. Ela também abriu
a boca. Do fundo da garganta de Shiawase surgiu uma
luminosidade e, à queima-roupa, ela disparou uma torrente
de energia. Jintoku ainda resistiu no mesmo ponto
por alguns segundos até ser atirado além da arena,
fora dos limites regulamentares. Enquanto a moça dava
pulinhos de comemoração, ele lamentava a derrota
na grama, soltando fumaça raivosa por uns buracos que
lhe vazavam a periferia da cabeça.
88 | Duanne Ribeiro
Episódio 16
Expressões
Hereditárias da Força;
Enfeitar-se de Dor
“Não se exceda”, aconselhou Hinagiku ao pé da orelha
de Shukun antes do início da luta, mas ele só ouviu
a sua própria fúria. Nem mesmo deixou o juiz acabar
de abrir o combate. Sacou de cada flanco do corpo uma
Beretta M9 e as descarregou sem pausa. Os olhos do
inimigo sorriam sobre o bigode ralo. Sob o som dos tiros,
deu-se tempo para aspirar a nicotina. Depois sua
mão e o cigarro entre os dedos indicador e médio se
diluíram em manchas de cor bege e branca no ar. Trinta
disparos após, Kachiaru caminhou devagar até o
seu oponente, estendeu o braço e dispôs a palma para
baixo: uma série de pequenos objetos metálicos tombou
à pedra.
As Esferas do Dragão | 89
— Não se pode fugir de um estorvo para sempre.
Vamos lá.
O berro de Shukun estremeceu o estádio. Correu na
direção de Kachiaru, tentou um gancho — mas atravessou
o adversário; só o vulto dele, persistência de sua
imagem na vista, foi atingido. Sua falha lhe seria cobrada
logo: um forte chute nas costas o arremessou
contra o solo. Levantou-se, furioso, nariz estourado,
supercílio sangrando. Gritou outra vez, chamando-se.
Convocando a raiva dura que sempre lhe é disponível,
que aquece subrepticiamente o seu olhar triste. Ali eu
vi que a sua vanglória e sua cólera recobriam translúcidas
sua fraqueza, a qual eu não hesitaria dizer que
consiste em uma necessidade de amor tantas vezes disfarçada
ou tantas vezes realizada somente de forma
oblíqua ou opressa que esqueceu seu nome. Cuspiu um
dente. Voltou à carga.
Mas era como se todos os seus golpes fossem previsíveis.
Mais do que isso, como se Shukun tivesse
aprendido todos eles com Kachiaru, e este se entediasse
frente a uma sombra de si. (As gerações se sucedem
na manutenção da violência mais do que na divergência
em relação a ela; assim, se de um pai se conhece
que cintava as pernas da filha, usando o lado da presilha,
listrando as suas pernas de vergões ensanguentados,
porque voltara tarde demais de uma noitada, é
90 | Duanne Ribeiro
consequente que, do filho, se conheça que haja martelado
a mão da filha, neta daquele, porque ela havia
roubado o boné de um cretino). Shukun estava sendo
ridicularizado. Ofegante, não fazia mais que golpear
e perder.
Uniu por fim as mãos em um pseudorevólver. Da
ponta dos dedos indicadores uma luz branca vibrou por
um instante; agigantou-se de repente e foi disparada,
um meteoro de energia. Kachiaru cruzou os braços
diante do rosto e foi engolido por ela. Ainda estava lá
quando cessou. Fumegante. Andou devagar até um
Shukun exausto e paralisado, mantendo ainda, mas molemente,
o mesmo gesto; o segurou pela nuca e lançou
sua testa contra o próprio joelho. Então acabou.
***
Caminhando em um cenário feito por computação
gráfica, a jornalista apontou para as imagens que apareciam
ao seu lado sem tirar os olhos da câmera, por
vezes passando os dedos pela franja do seu cabelo curto
(penteado para a direita, de modo a deixar o lado
esquerdo da testa visível). “O atleta se submeteu por
meses a uma gravidade cada vez maior”, ela explanou,
As Esferas do Dragão | 91
conforme cenas de arquivo se sucediam, “gradativamente,
todo gesto se tornava mais difícil, mais demorado.
Até que a barreira era ultrapassada e o sofrimento antigo
evoluía ao novo normal”. Via-se um lutador de
roupa laranja e azul escura fazer flexões com um braço
só sobre um chão quadriculado vermelho; a estrutura
em que estava era circular e feita de metal; através das
janelas redondas um negrume tremendo. “Feito isso,
quando o atleta retornava à gravidade com que estamos
acostumados, sentia-se leve, imaterial quase. Nós
o assistimos golpear com impossível velocidade — mas
ele está somente se aquecendo, poderia fazer bem mais.
Ele superou a normalidade, superou o limite”.
Ajustou a franja à direita, continuou: “Temos como
compreender a grandeza? Não, e precisamente porque
a vemos como ‘grandeza’. A grande força, a grande
inteligência, a grande destreza — todas são ‘grandes’
para nós que as medimos segundo nossa força, nossa
inteligência, nossa destreza. O que dizemos da excepcionalidade
quando, no fundo, a descrevemos no sentido
de um ‘essa pessoa é mais forte do que eu, mais
inteligente do que eu, mais hábil do que eu’? Pouco
mais ou nada mais que ‘sou limitado, sou limitado, sou
limitado’. Para compreender a grandeza, temos que sa-
92 | Duanne Ribeiro
ber como é que uma normalidade se converteu noutra
normalidade. O corolário disso é que jamais devemos
buscar o poder: devemos buscar como tornar o poder
trivial”.
***
I knew right away he was not ordinary. Cabeça raspada
à navalha e nela se ramificam cicatrizes feito fractais.
Rubros olhos que amam o caos como a um filho.
Nas costas, a espada Kusanagi. Kyua. Antes que o sinal
de início tocasse, ele andou até mim, me cumprimentou
e murmurou:
— Eu quero que você me golpeie o mais forte
que puder.
O que? Certamente era o que eu pretendia. Afastou-
-se sem mais explicação. O juiz deu a permissão.
Kusanagi riscou veloz o chão, as duas mãos em seu
punho; a ponta da lâmina na pedra foi um longo som
azulado contrastado pela rítmica das passadas. Parei
a espada com as palmas nuas, uma a cada lado. Fervente,
a lâmina queimava ao toque; endureci a mandíbu-
As Esferas do Dragão | 93
la e resisti. Kyua empurrava a arma contra mim. Cada
vez mais próximo. Olhávamo-nos olhos.
— Eu não quero morrer sem cicatrizes. Me golpeie!
O mais forte que puder.
Afastou-se em um salto, apenas para tomar novo
impulso de ataque. As cicatrizes no seu crânio — eu só
podia pensar, você já tem tantas! — ardiam avermelhadas.
Duas, cinco, onze, vinte estocadas, o metal foi, voltou
e reincidiu, dança irregular. Eu desviava o mais rápido
que podia e parecia salvar-me de ferimentos pelos erros
eventuais do meu adversário... até que percebi que
não se tratavam de erros. Kyua deliberadamente continha-se
quando percebia que eu estava indefeso. Fingia
lutar à sério — para a plateia, para os juízes — talvez
—, mas mirava outro tipo de conquista.
Sem a decadência do vencer ou perder, só o conflito
debilitante e intenso; os músculos extenuados,
as têmporas pulsando de dor, o suor uma atmosfera —
eu soube que adorava aquilo. Engajados no mesmo
fruir da força e do saber, eu sentia que construíamos
uma espécie de fraternidade. Éramos, Kyua e eu, irmãos.
Expandi o Qi em uma onda de energia que o desestabilizou.
A sua guarda aberta, dei-lhe uma sequência de
socos, esquerda, direita, esquerda. Cambaleante, deixou
cair a espada. Eu a tomei, girei em meu próprio eixo e
lhe rasguei a cara da testa ao lábio.
94 | Duanne Ribeiro
No chão, o rosto lavado de sangue, Kyua gargalhava:
— Sim. Esta aqui é nova!
Antes que o juiz anunciasse uma vitória, ergueu-se
e fez a única coisa que acarretava o fim das lutas além
de inconsciência ou morte: abandonou a plataforma.
As Esferas do Dragão | 95
Episódio 17
Violências do Afeto;
Histórias de Amor,
ou: Romantologia
Perséfone, eu a chamei antes de Perséfone, não? Um
recurso retrospectivo: foi ela própria, alhures, quem se
referiu a si sob essa metáfora. Mas que me significasse
algo... isso se deve talvez a que em mim houvesse o signo
de Hades, a quem me apegava. Não pelo desejo do
rapto, porém pela vontade de ser descoberto na sombra.
Sim. Que me raptasse a Perséfone verdadeira, e que
consigo eu viesse a conhecer — para além da estação
única do mundo inferior — as primaveras, os verões, e,
também, porque não mais que humanos, os outonos e
os invernos (Can´t stand the morning rain? Can’t stand
the blazing sun?). Shiawase e eu nos digladiávamos na
plataforma. O sol das quatro queimava.
96 | Duanne Ribeiro
Algumas dezenas de minutos luta adentro, identifiquei
alguns padrões no estilo de luta de Shiawase.
Agia dentro de um procedimento; qualquer interrupção
levava a um momento de confusão, no qual ela tentava
encetar alguma outra estrutura de ação. Era um
chefão de jogo de plataforma: bastava rememorar os
seus ciclos de atividade e enxertar os contra-ataques
nos vãos da sua personalidade. Atingi-lhe diversas vezes
por meios similares: disparou contra mim, com os
braços abertos, correndo aviãozinho; aguardei o soco,
me abaixei e retornei já com o gancho no queixo; assim
que ela subiu alguns metros, saltei, juntei as mãos num
globo e lhe mandei abaixo. Os choques explosivos da
sua carcaça metálica contra a pedra soavam como acidentes
de carro. Ou: tentou incinerar-me como fez com
Jintoku, mas era simples escapar do seu tiro de boca,
retilíneo e compacto; nos segundos após usar o canhão,
ficava frágil, resfriando; aproveitei-me e lhe meti uma
sequência enorme de murros na boca. Vários dentes de
metal dispersaram-se à nossa volta.
Shiawase era linear, da intenção à execução (o que
é chamado caráter no trato ético e fraqueza na batalha).
Era uma guerreira sem ferocidade: a briga não a
movia, não era o seu primeiro recurso — a cada bloqueio,
a cada investida falhada, a cada dano sofrido,
tinha de se mobilizar para a briga, de uma maneira
As Esferas do Dragão | 97
envergonhadamente consciente. Ora, Hinagiku fizera-
-me para a fúria: eu só conseguia compreender Shiawase
como débil. Quanto insulto ela engole até que descortine
a sua raiva? Passei a querer saber qual era o gosto da
sua violência, este sinal de vida. Intensifiquei meu Qi
e lancei uns trinta corpúsculos energéticos contra ela.
Ela driblou quantos pode, mas a maioria arrebentou sobre
si em nuvens de fumaça luminescentes. Arranquei-
-lhe um olho.
A vitória tão próxima: me sentia sujo, me sentia lindo.
A arrogância abriu minha guarda. Quando dei por
mim, Shiawase tinhas as mãos no meu pescoço, esganava.
Minha boca entreaberta, pegando ar nenhum; pingava
na minha língua o mercúrio líquido que escorria do
buraco que abri na sua face. Estamos muito próximos,
muito próximos, muito próximos, seu cativo eu lhe percebia
o cheiro, e o projetava a contextos mais felizes
— intimidade improvisada, desejo imiscuído no terreno
da cólera (é possível se apaixonar em batalha?) —,
pontinhos luminosos enchiam meu campo de visão...
até que ela afrouxou os punhos um pouco. Claramente
estava preocupada.
É preciso ser certo tipo de pessoa para manter a
agressividade intacta. Dei-lhe uma testada e depois
um chute no estômago com os dois pés. Não caiu.
Encaramo-nos, metros distantes um do outro. Ela se
posicionou defensiva e cerrou os dedos. Gritou:
98 | Duanne Ribeiro
— Você não vai me derrotar. Vou convocar o dragão,
eu mesma!
Gargalhei alto. Só depois de mim, menina. Para que você
quer as esferas, afinal? Ela hesitou, dando sinais de
timidez. Acabou inchando-se de coragem e retrucou:
— Eu vou pedir que todos fiquem bem! E todo mundo
vai ficar bem!
Ah! A boa samaritana. Bom, querida, isso só vai acontecer
depois que eu trocar duas palavras com o dragão.
Todo mundo pode ficar bem depois que eu ressuscitar o
meu avô.
— O que? Você quer as esferas... porque...
Sua expressão desabou em tristeza. Os dedos se abriram
e os braços caíram ao lado do corpo. Eu fiz menção
de atacar, mas ela nem se mexeu, de cabeça baixa.
“Quer as esferas, porque...”, murmurou. E então me
virou as costas, caminhando lentamente para fora da
plataforma, ultrapassando a linha regulamentar, desistindo.
Eu venci. (Só é possível apaixonar-se em batalha.)
Shiawase venceu.
***
Em off, um antigo lutador do Grande Torneio, Hércu-
les Satã, comentava as cenas de antigas batalhas do
As Esferas do Dragão | 99
campeonato, que preenchiam a tela. “Olha, isso tem tudo
a ver com aquele poema, como é, do bojo, como é?
Muitos confrontos do torneio o negócio foi quem fincava
pé no chão mais forte. Não quero dizer que se
chega perto da vitória assim: mas se mantém a derrota
à distância, vez a vez, e isso muda tudo”. Muda? A ideia
era, contudo, interessante: do fracasso ao sucesso o intervalo
não era simples; podia ser curto ou prolongar-se
indefinidamente como em um paradoxo de Zenão.
“Bojador, gente, não tem a ver com bojo! Bojador,
como é? A dor do Bojador...” Na tela, de um lado da plataforma,
um oponente se defendia dentro de um vento
furioso, lancinante; o seu adversário não se aproximava,
sob risco de sofrer cortes graves. Tendo de recuar, era
vulnerável aos ataques e ao cansaço. “Dá uma olhada:
ele cruza os antebraços e pula. Aquela ventaria bate que
nem peixeira, o sangue vaza, o garoto vai adiante, dane-
-se. De repente está dentro. Atravessou a violência!
O jogo acabou aí”. De fato. A luta não prossegue muito
mais depois disso. “Quem quer ir além do Bojador, tem
de ir além da dor. É isso! E está aí, na cara, que é isso
mesmo, né não?”.
***
100 | Duanne Ribeiro
Do sem movimento do aguardo pelo início da luta o
sinal os levou ao sem movimento do estudo do outro.
O pôr-do-Sol tingia as pedras da plataforma de um laranja
esmaecido. Hinagiku e Kachiaru se respeitavam,
isso era evidente; um respeito, nós adivinhávamos, decantado
de choques e consensos — das relações de força
e dos devires do afeto sobrepostos ao longo de anos.
Quando enfim deram os primeiros golpes, era como se
reapresentassem um ao outro estratégias de outrora —
o ataque e a resposta sucediam-se, levemente surpreendentes
não por inéditos, mas por, contra tudo, serem
ainda os mesmos. Tanto se passou e ainda a mesma
ópera! — a serenidade de ambos dizia.
Uma aproximação ousada, uma esquiva no último
instante, um rodopio; nos primeiros movimentos: apaixonaram-se.
Hinagiku meio que contestando um desafio
de uma namorada que ele tinha (“você não vai falar
mais com ele!”), driblando o noivo que não lhe agradava
mais... Kachiaru talvez fruindo a um só tempo as
ousadias de abandonar um compromisso e de estabelecer
um compromisso — o par em especulação libertária,
liberando-se do mais para acoplar-se a algo que fosse
mais. Sou livre porque escolhi você. E/ou: Kachiaru
descobrindo uma mulher adaptada ao seu ideal de submissão
e Hinagiku deliciando-se com a fantasia de ter
domado um mulherengo: no outro um meio de sentir-
As Esferas do Dragão | 101
se ou tornar-se potente. Sou forte porque tenho você.
Os adversários se equiparavam.
A guarda aberta, um bote falho, a ponderação dos
golpes baixos: casaram-se. Kachiaru cumprindo o manual
de instruções da vida: engravidou-lhe duas vezes,
comprou carro e casa, a dispôs de criada vitalícia, educou
as crias com rigidez e um toque de crueldade. Fez-
-se objeto de fascínio para os três. Hinagiku reagiu com
ciúme doentio e destrutivo (delirante?). Mobilizou narcolepsia
e esgotamento nervoso. Quando Kachiaru tentou
uma investida especialmente violenta, Hinagiku protegeu-se
com um rebento soldado do Exército. Ele lhe
sufocou os desejos, suprimiu suas opções, desprezou
sua ambição e capacidade. Ela devolveu ressentimento
e servilidade. Velhice, doença e cansaço levaram a disputa
a diversos tipos de empate. Um romantismo curado
da sua doença podemos testemunhar nos instantes delicados
em que eles notam como cirurgia após cirurgia
fizeram-se almas gêmeas.
A aparência de equilíbrio ou o equilíbrio concreto
final no entanto eram desmentidos pela dialética deficitária
que o havia precedido: se ambos haviam estreitado
mutuamente seus horizontes, era ela quem havia
sido mais reduzida, não obstante se mantivesse firme e
operante como sempre. A cada lance, víamos como seu
102 | Duanne Ribeiro
estilo se degradava fração a fração. Tudo estava a favor
de Kachiaru: ele se encaminhava como que por destino
à vitória. Foi então que a Lua surgiu e abortou o torneio.
A cauda de minha mestra volteava atrás de si. A noite
caíra completamente. Quando a Lua cheia foi descoberta
pelas nuvens, Hinagiku fechou os olhos e deixou
fluir sua escuridão. Transfigurou-se: a epiderme foi agitada
por violentas convulsões e cobriu-se de pelos negros;
o corpo agigantava-se a explosões, como se socado
de dentro pra fora. Nas arquibancadas, parte do
público se aterrorizara com o monstruoso gorila formando-se;
fugiam aos montes, tropeçando nas escadas.
Hinagiku feita titã erguia os punhos e os descia como
meteoros. Kachiaru se esquivava ao passo que a plataforma
era completamente destroçada; por três vezes,
bloqueou o golpe com as mãos nuas, até que ela conseguiu
agarrá-lo e principiou a esmagá-lo entre os dedos.
Sentiu os seus ossos quebrarem e o atirou contra
a escola. O corpo fragilizado atravessou o teto e a estrutura
toda desabou.
Mas, logo de pé, Kachiaru escalou os escombros. Tinha
a capacidade de se regenerar? Acendeu um cigarro.
O macaco urrou; o tambor de socos no peito tremeu
todo o estádio; o terremoto rompeu-se em um novo
ataque, punho-martelo tombando sobre o inimigo — e
As Esferas do Dragão | 103
chocando-se violentamente contra uma barreira de força.
A mão ricocheteou, combalida. De pronto, Kachiaru
saltou; seu corpo recoberto de Qi roxo bruxuleante
cortou o ar e varou de ponta a ponta o coração de
Hinagiku. Os beiços moles sobre dentes não mais ameaçadores,
a expressão algo sonolenta, confusa pelo súbito
déficit de vida... Despencou. Hinagiku morta, meu
deus, Hinagiku morta...
104 | Duanne Ribeiro
Episódio 18
Esfera de Cinco
Estrelas: Gercina
O monstro regrediu aos poucos à condição de senhorinha.
Corremos, eu, Shukun e Hikari a ela, caída
em uma poça de sangue. O buraco no peito era rubro
e escuro. Estava debilmente consciente. “Meu menino”,
ela me disse, levando a mão vaga à minha bochecha,
um último sorriso encantado no seu rosto. Meu choque
obliterava por complexo o pandemônio que se fizera
no estádio.
Ouvia, como que debaixo d’água, sons de explosão e
rajadas de metralhadora. Concentrado na face dela, os
pensamentos passavam pela minha mente como bons
dias de estranhos. O Jade invadira o espaço da competição,
tinham a desculpa de que precisavam — a con-
As Esferas do Dragão | 105
clusão revoou de um lado ao outro. Persistia a evanescência
nela. O desaparecimento se evidenciava. Lutavam
contra ele, tinham de capturá-lo. A sua mão perdeu
mesmo a força mínima necessária ao carinho; caiu sobre
a barriga como uma tristeza. Shukun e Hikari ergueram-se
afoitos: também hão de lutar? Eu a abracei, chorei
sem lágrimas e sem ar. Algo em mim, a despeito de
mim, procurava criar uma metáfora para explicar a mim
o meu estado: alegrias de areia, ampulhetas partidas?
Minha subjetividade lia definições da fome a um faminto.
Na vanguarda de todos que eu era, esse fiapo de
eu não sabia nem querer.
O corpo de Shukun foi lançado ao meu lado, avançando
ainda alguns metros à frente com o impulso.
Fumegava. Soldados e mais soldados caídos pavimentavam
o perímetro. Hikari, ferida, se afastava para longe.
Outro sentimento foi capaz de vir a mim: a fúria.
Kachiaru voltava a sua atenção a mim.
— A final foi decidida. Sou eu contra você.
Ergui-me, afastei as pernas e fechei os punhos; berrei.
O Qi percorreu meu corpo, violento. Disparei contra
o inimigo, completamente concentrado, cada uma
das centenas de socos que desferi causava uma mediana
explosão de luz. Por muito tempo eu ataquei sem
nem mesmo perceber o adversário; puro avanço, pura
106 | Duanne Ribeiro
tentativa de destruição quase sem objeto. Por fim notei
que ele se defendia com facilidade; entre os dedos de
uma mão o cigarro, a outra entediando-se com os golpes.
Busquei mais força em mim, encontrei; meus olhos
queimaram e a dormência atingiu todos os meus membros
à medida em que eu atingia a velocidade da luz;
os nós dos meus dedos contra a sua palma estendida,
as ondas de impacto abriam rasgos no concreto da
plataforma. Mas era eu contra a imobilidade. Ele então
prendeu meu pulso e o torceu para trás; uma joelhada
no estômago me dobrou; uma segunda me estourou o
nariz e me atirou para trás. Perdi a consciência.
***
“Vou ficar com as suas esferas também”, a voz de
Kachiaru me arrancou do desmaio, “e será melhor para
nós dois — bem, mais para você — se não ficar no
meu caminho novamente”. Minhas esferas, ele tinha
roubado as minhas esferas... pus-me, trêmulo, sobre
os cotovelos. Com a vista embaçada, vi sua expressão
de descrédito. “Ainda de pé? Mas então a batalha não
está terminada. Este brinde ficará com quem, se a batalha
não está terminada?”. A esfera de cinco estrelas,
soturna sob a luz.
As Esferas do Dragão | 107
***
Frívola atmosfera de cores fraturadas. Morremos em
conjunto a morte dos outros. Feições de índia velha,
prosódia nordestina, a minha tia-avó Gercina faleceu
poucos anos depois do meu avô. O que senti foi alívio:
seu fim me feria, porém a ferida era precária porquanto
tia Pina era uma figura quase mitológica, inconstante,
da minha infância — sua morte era apenas o eco do perigo
real: today, we escape... Defunta, reorganizaram-se
ao redor de si responsabilidades. Levei a minha avó
Margarida a vê-la em despedida. Através de uma Guaianazes
empoeirada, no meio da tarde, entramos em uma
igreja de arquitetura modernosa, deserta. Numa das salas
retangulares projetadas para o lamento, fileiras várias
de familiares meus que eu nunca havia visto. Um
falecimento desenterra redes, ativa outra vez conexões,
eletrifica os nós com sentimentos vagos de obrigação
e pertencimento. O “meu sangue”, de repente. (Estranha,
neste dia, a transformação dialética do luto:
com a vinda dos irmãos sobreviventes, minha avó alegrou-se
pelo reencontro, riram e informaram-se mutuamente
da vida. Esquecidos do trabalho da tristeza, exibiam
a beleza daquilo que os trouxera ali; por outro
lado, eles demonstravam uma espontaneidade e egoísmo
de sentimento que impediria reunirem-se antes do
108 | Duanne Ribeiro
próximo óbito. A morte de alguém, em um sentido
delicado, é uma bênção?) Participei de funerais por dever
de respeito e amizade: da mãe da Camila — as filhas
aplicadas na recepção dos parentes e amigos, não
contendo a aflição, mas: percorrendo-a por vias diferentes;
do pai do Yoshiharu — quando o caixão desceu,
o peso do salão, mesmo entre nós, desconhecidos, se
dissipou; algo tinha terminado, ou tínhamos encenado
o símbolo de que algo terminara. (Se é assim, nosso
choro devia ser “bem diferente”, como o de Cartola: vivo
feliz em Mangueira porque sei que alguém há de chorar
quando eu morrer. Arroz e feijão quentinhos, carne na
brasa cheirosa; em vez de velório, festa, como se Akira
Kurosawa sonhasse seu sonho no Brasil.) Já disse, na manhã
do enterro do meu avô, me inventei regras morais.
Certo amigo que o acompanhou boa parte da vida tinha
o direito de saber. Também se chamava Antônio; apertou
os olhos para me identificar no pé das escadas; galgou
os degraus baqueado pelas décadas; ciente, pode
comentar apenas: “Toninho...”. Uma família; uma dedicação;
um nome; algo de estável em meio ao torvelinho,
por favor. Eu precisava também dizer — a pessoas
especiais. Contei ao Rafael: ele me devolveu um emoticon
triste, que eu senti sincero, e gosto de pensar
que lá em Minas ele se abateu um pouco por mim.
Contei ao João, que comentou uma coisa bonita: queria
estar perto, para poder me dar um abraço. Eu riscava
As Esferas do Dragão | 109
linhas entre pontos dispersos como se de tal maneira
restaurasse alguma coerência ao mundo.
***
A esfera de cinco estrelas, na mão de Kachiaru.
— Portanto, para que não digam que não mereci
o premiozinho...
... ergueu-o no ar e me fraturou com ele a têmpora
esquerda.
110 | Duanne Ribeiro
Episódio 19
Sonho do
Rei Macaco
Uma ferocidade gargalhava dentro de mim: eu era
o Rei Macaco, cauda zombeteira e clava na pata. Chapinhava
no terreiro molhado, avistei os três reis e juízes
Minos, Éaco e Radamanto. Reunidos na mesma mise-
-en-scène em que Henrique Bernardelli põe as Moiras,
Cloto, Láquesis e Átropos. Bati a madeira na lama, agitando
respingos frente às suas visagens alheias ao tempo.
Guinchei blasfemo. Eu demandava o grande tomo que
traziam consigo, suas folhas grossas feitas de trapo, sua
capa de pergaminho, sua lista de solidões. Tomei-o; percorri
febril as páginas e enfim identifiquei o nome de
minha avó, Margarida Gomes de Oliveira, ao lado de
um número que determinava a medida do seu destino.
As Esferas do Dragão | 111
Cloto, Láquesis, Átropos, Minos, Éaco, Radamanto — que
farão, filhos da puta? Cuspi-lhes no chão um tanto de
respeito. As pupilas como planetas desabitados me observaram
esfregar o papel até que as letras sumissem,
até que ele se rasgasse. Arranquei-o e mastiguei a lei
com nojo.
Dei-lhes as costas e parti, meus passos produzindo
sons aguados no silêncio completo. Interrompido apenas
pela voz de qualquer deles atrás de mim:
— E quanto ao teu nome?
Eu lhes devolvi um olhar que continha só um pouco
de desalento.
— Não. O meu pode deixar.
112 | Duanne Ribeiro
Episódio 20
Alucinações do
Androide Paranoico
Não era capaz de me mover; assistia às dores em
meu corpo como se alheias. Algo quente empapava o
meu cabelo; ergui o braço trêmulo e toquei a umidade.
Opus meus dedos manchados de rubro à lua velha. Por
trás deles apareceu o rosto assustado de Hikari. “Não
desista, não desista”, ela dizia. Rasgou a bata na altura
da barriga e passou a murmurar um palavreado indistinguível.
De repente, o seu tronco se curvou para
frente, violentado; ela exalou um gemido de dor. Quando
se endireitou, ofegante, do ventre emergia uma esfera
negra, que se manteve flutuando entre suas mãos
quando se extraiu de todo. Parecia orgânica, miríades
de pequenos tentáculos de tinta negra compactados,
As Esferas do Dragão | 113
sobrepostos. Rugiam, dissolviam-se, ressurgiam, labaredas
na superfície de um Sol subalterno. Ela o pôs em
mim. Lesmas e minhocas de nanquim lamberam-me a
barriga. “Vá, Kasshoku”, ouvi.
***
Please, could you stop the noise?
I’m trying to get some rest
Via-me de cima, deitado sobre o lençol branco de
uma cama, minha imagem alongada e distorcida como
se vista através de um espelho anamórfico. Sem foco,
reduzida a uma mancha marrom, uma porta se abriu em
um canto do quarto; vermelho, bege e preto entraram,
vieram até mim, cada vez menos pintura abstrata e cada
vez mais criatura ganhando definição conforme se
aproximava. Uma mulher. Trazia com ela uma colher
cheia de um doce alvo. Paranoid Android, do Radiohead,
tocava em algum lugar. Ela forçou o aço contra os meus
lábios. Tentei resistir, olhos fechados e lacrimosos, músculos
da face retesados, mas o açúcar chegou espúrio à
minha língua, tentei resistir, tentei.
114 | Duanne Ribeiro
When I am king,
you’ll be first against the wall
Meus pés pisando grogue no carpete azul, na cerâmica
da cozinha, parados à frente da geladeira. A garrafa
pet nua, eu bebi a água gelada aos goles. Sede e sono.
Febre e meus braços pintalgados de nódoas purpúreas.
Grogue, abri uma porta que não a minha. Na cama de
casal, um homem monta uma mulher de pernas abertas,
ambos de cueca e calcinha. Enojado, fugi pelo corredor;
à entrada do banheiro, porém, o homem, de pênis ereto,
grosso e comprido, a cabeça sanguínea. Desonrado,
voltei ao beliche. Os berros de uma briga me tiraram do
torpor. Fingi continuar dormindo. Através do batente,
vi o homem, como se a estátua o ameaçasse, esmurrar
Xangô em uma prateleira.
The panic, the vomit, the panic, the vomit:
God loves his children
Sinto o cheiro da urina e da pelugem encardida dos
pitbulls na varanda, suas orelhas decepadas e a pele
As Esferas do Dragão | 115
amarfanhada restante costurada com fios pretos. No sofá
um gato banhado inadvertidamente com um produto
tóxico agoniza com miados espaçados e tênues. Um
vira-lata de pêlos macilentos fode uma lhasa apso que
nem mesmo se digna a ficar de pé. Com o pau inchado
e preso na boceta dela ele permanece elétrico, boca
aberta e língua para um lado e para o outro, enforcando-
-se com a coleira. Antes ou depois eu tento tirar um
osso da sua boca; morde meu polegar. Entro em colapso;
percebo o corpo gradativamente dormente, subo
escadas com pernas bambas, desabo no colchão.
116 | Duanne Ribeiro
Episódio 21
Promessas
de Liberdade
Kasshoku era um compacto de Qi pervertido, fluxo
de vida estacado, oceano vertido em petróleo. Ao transferi-lo
de si, Hikari injetou em mim o ódio como se
gasolina, atiçou os anticorpos da minha subjetividade
— a arrogância, a autodepreciação, a raiva, a melancolia,
o desprezo, o orgulho — e a vontade de destruir (a si,
aos outros) que eles incitavam fortificava à sua revelia
uma identidade que pouco a pouco tornou-se capaz de
prescindir deles. A criatura sustentou meu corpo combalido
e me deu tempo para me recuperar. Após onze
dias inconsciente, acordei. Estava na casa dela.
Por muito tempo, só com dificuldade pude me levantar
da cama. Engraçado que eu me recorde dessa situação
As Esferas do Dragão | 117
com alguma nostalgia, pois era tudo como um estado de
sítio: eu, muralhado numa fração de saúde, ameaçado
de doença, cingido de fraquezas. Das ameias das minhas
possibilidades limitadas eu avistava o tanto que as circunstâncias
me recusavam. No entanto, ao lembrar, eu
sinto uma ternura própria àquele momento. O pouco
ainda é pouco, mas nosso pouco. Horas ouvindo o meu
discman, a vista da minha janela (os ladrilhos verde-
-escuros do corredor à frente do sobrado, as telhas no
muro do vizinho, cilindros cortados boiando sobre um
excesso de cimento seco). Meu violão. Olha que coisa
mais, que coisa à toa, boa, boa, boa. Meu violão. Preto.
Empoeirado.
O violão me ensinou que a dor ensina. Ou me reeducou
nessa doutrina. Admiro as falanges feridas pelo aço
ou pelo nylon; com o polegar sinto a ponta de cada dedo,
a pele que descobriu uma fértil rudeza. Repito vezes
sem fim a marcha da primeira à sexta corda e de volta,
casas um e dois, dedo indicador e médio, casas três e
quatro, casas cinco e seis, casas sete e oito, casas nove
e dez… e de novo; depois, dedos médio e anelar; depois,
anelar e mínimo. Crispa-se o mindinho, paralisado por
um momento, dolorido: não adianta: nós faremos isso
novamente. Forço o espaço entre os dedos contra o lombo
do violão, para distender a abertura e alcançar notas
mais distantes. Essa pelezinha entre um e outro parece
tão frágil — se rasgará se eu me exceder? Corro o risco.
118 | Duanne Ribeiro
Exuberante que minhas mãos sejam capazes de se
tornar capazes de tocar música. Exuberante que eu seja
capaz de me tornar capaz. Ademais, a possante preguiça
frente a ter de aprender tablaturas alheias... o que me
restava? Inventar tudo só, acarinhar-me do meu ruim.
***
Convalescente, eu era novamente mitólogo amador.
Como quando cheguei à casa da minha antiga mestra,
tive a oportunidade explorar o realismo fantástico em
que consiste uma pessoa. Na galáxia Hikari orixás e
santos católicos conviviam, sincréticos; um pote de vidro
cheio de sal grosso negava acolhida ao mal; espelhos
eram distribuídos segundos os preceitos do Feng
Shui; uma cachorrinha preta andava pra lá e pra cá,
latindo às vezes seu nome na sua língua: Wendy, que
se sentava sobre as pernas e balançava o rabo curto no
chão, a expressão pedinte, enquanto eu comia de manhã
as fatias de pão de forma fritos com margarina que
Hikari fizera. Que isso acontecesse todos os dias, tão
certo como o nascer do sol, era tão necessário e tão esplêndido
quanto o nascer do sol.
Nesses princípios de jornada, Hikari erguia-se não
todos os Césares, como escreveu Pessoa, porém senhora
As Esferas do Dragão | 119
satisfeita das coisas que construiu. Abria a porta da sala
de estar que dava à varanda, a luz entrava como um
sorriso sobre a sua sala de estar, os seus sofás, a sua
televisão, plácidos e limpos. Atrás desse cenário, uma
mesa azul dispunha um limite e criava o espaço de um
escritório, no qual ela trabalhava atendendo ligações
e mexendo no computador até a noite. Aos domingos,
o mesmo contentamento em “ter uma vida sua” tinha
como corolário o seguinte: o dono da própria vida rege
os folguedos, determina aos santos os dias. Assim, se
nos comuns da semana o que comíamos era simples (arroz,
hamburguer, ovo), no sétimo ela se decidira a ser
dedicada: a nossa refeição, singela apoteose, pronta só
lá pelas cinco, oferecia arroz amarelado com açafrão,
feijão, carne cozida.
120 | Duanne Ribeiro
Episódio 22
Dos Nomes e
dos Adereços
Durante os meses que passei em recuperação, tomei
o costume de passear à noite. Aventurava-me a
paradas longínquas, montado na nuvem de Hermes.
Em uma dessas ocasiões, fui de São Vicente, em São
Paulo — sobrevoando a praça Barão (onde uma roda
de adolescentes bramia canções punk na madrugada),
o colégio Martim Afonso e o píer do Careca (em que a
polícia militar alinhara cerca de quinze jovens; um menino
e uma menina do mesmo grupo, abraçados, acompanhavam
a batida do outro lado da rua) — até Itabira,
em Minas Gerais, na qual encontrei a taverna
Menwotsukeru. Tornei-me conviva frequente do local;
mais: me afeiçoei a ele.
As Esferas do Dragão | 121
O estabelecimento ficava nos fundos de uma locadora.
À meia-noite, as prateleiras aparentemente encostadas
à parede eram afastadas, deixando à vista uma
porta cinza-Nintendo na qual havia uma plaquinha presa
a um prego com um fio de barbante, onde o nome do
local estava escrito em tinta preta esmaecida, de tal
forma que não se viam mais o N e o W. Por ali, seguíamos
por um corredor longo, de que a luz ia sendo gradativamente
extirpada. Quando alcançávamos uma escada
no final do percurso, não se via nada; tateávamos
os degraus com os pés e descíamos. Primeiro o pavor de
não ter referências; depois o prazer de perceber-se hábil
a obter referências. Vinte e três abaixo e a luminosidade
voltava parcialmente. Chegávamos à sala de máscaras.
— Qual o seu nome?
Perguntavam-lhe à entrada. Respondia: Kurokun.
Então me apresentavam, sempre como se nunca tivesse
eu ido ali, às estantes, aos baús, às caixas de papelão
entupidas de disfarces e fantasias. Em Menwotsukeru
não se entrava como si mesmo. Alguns falaram de “revolução
permanente”; o que se dava ali era um carnaval
permanente. Todas as vezes eu vestia a mesma fantasia:
botas marrons de ponta bojuda; calças listradas na
vertical, verde e branco, presas com um grande cinto
com uma grande fivela; um casaco azul-claro com mangas
compridas dobradas para trás, branca com bordas
122 | Duanne Ribeiro
vermelhas; luvas de couro rubro curtido; e um chapéu
cônico cor-de-areia, que se dobrava flácido à altura da
minha nuca. Sua aba assombreava meu rosto. Era doce,
pois meu rosto me assombrava.
dreamed I was flying high above the trees over the hills.
looked down into the house of Mary
A música inundava o bar quando enfim entrávamos.
Todos os meus amigos estavam lá. Você quem me levou
na garupa da bicicleta tantas vezes, quem jovial criava
simplesmente melodias, quem se cansou de mim e depois
também de si mesmo, trocando-se por pó e pedra;
você quem dissertava comigo sobre todas as coisas na
varanda de um apartamento, quem quase só por descuido
crê nas próprias capacidades, quem me entristece
porque talvez eu tenha de cantar “Canção para Amigos”
para o que restou da gente; você quem me levou a uma
cidade caiçara longínqua quando o que eu queria mais
era fugir, você quem se confessou apaixonado por um
menino enquanto nós ouvíamos “Maurício” à mesa
de plástico de um boteco, você quem queria mais,
sim, mas se acostumou com a leveza. Todos os meus
amigos estavam lá e nenhum deles sabia aonde a noite
se encaminhava.
As Esferas do Dragão | 123
take a bottle
drink it down
pass it around
Cumprimentava cada um no extenso salão enquanto
a água salina enluarada pelas luzes dos postes batia
nas pedras. Coletava trocados para comprar vodka,
conhaque e cachaça bêbado de mim. Sou uma pessoa.
Não é surpreendente? Sou uma pessoa! Mas a minha
única garantia disso são vocês.
***
Para voltar de Menwotsukeru, pegava uma lotação
clandestina na avenida Presidente Wilson, em São Vicente.
Pela primeira vez por engano, não devolvi a fantasia;
como nunca me repreendessem, deixei que se
tornasse um costume. Sentado na van ajustava o chapéu
cônico na testa como quem se persigna e acompanhava
com alegria, através do vidro dianteiro, o céu
alternar-se gradações de azul até alcançar o que lhe serviria
nesse princípio de dia. Sorria porque cumpria o
verso: “Devia ter visto o Sol nascer” (pondo-me atento
124 | Duanne Ribeiro
aos tons róseos do dia recém-nascido eu parecia atender
ao chamado de cautela que me fizera a canção).
Chego à casa de Hikari soluçando, a cabeça pesada de
álcool. Cumpria, assim, outro verso: “O banheiro é a
igreja de todos os bêbados”. Mais: para imitar qualquer
filme, me sentava no chão e, com a cara sobre o vaso,
vomitava. Enfim, ia ao meu quarto.
As Esferas do Dragão | 125
Episódio 23
Ascensão do
Voo à Coisa
“Lembra? Ding, ding — o caldeirão. Eu tinha certeza
que não realizar um ritual daria problema. Uma bruxa
tem de sentir o destino e seguir.” Comigo melhor, ela
me pediu para acompanhá-la em um procedimento mágico
que, cria, encerraria “assuntos mal resolvidos”,
processos desencaminhados, e lhe traria a mulher que
procurava. “Começou quando te dei um nome. Para dar
um passo adiante, temos que partir disso. Você, aqui.
E a dádiva ao além.”
Hikari armou na terra mole uma oferenda ao demiurgo
protetor: no alguidar, alface, feijão fradinho,
cenouras cozidas, azeite de dendê, uma maçã vermelha
e uma vela branca. Sentimos nas nucas um bafo quente
126 | Duanne Ribeiro
e úmido, como se de búfalo. Encara o olho do búfalo,
Hikari, o que você vê? Um pássaro negro pousa no
mundo emanando tragédia. Encara o olho do pássaro,
Hikari, o que você vê? O som subcutâneo da respiração
do mundo intensifica-se. Ameaçador. Inconsistente.
Hikari em meio a isso tudo como uma testemunha de
assassinato eufórica por ter conquistado uma história
para contar.
“O sol se depõe a oeste, meu espírito clama por partir”,
rezava, “o sol se depõe a oeste, meu espírito clama
por partir”. Mas a noite vinha, não lhe trazendo nada
de novo, apenas fazendo flanar a neblina na floresta
próxima. Ouviam-se vozes no escuro? Encara o escuro,
Hikari. O que você vê?
***
No vão da lâmpada havia um ninho de passarinho.
Avisado por uma vizinha de Hikari, incomodada com a
sujeira que a mãe deixava ao sair e voltar, um faxineiro
cutucou-o com a vassoura até derrubá-lo. Hikari estava
à porta e ouviu isto que no futuro saberíamos ser um
sinal (teria o demiurgo ouvido a demanda?). Foi ao corredor
e em frente ao elevador viu a cena do crime:
As Esferas do Dragão | 127
dois ovinhos e um recém-nascido no ninho, o homem
informando que iria jogá-lo no lixo. Um pássaro que é
vivo e que está à morte, um pássaro que é vivo e que está
à morte, Hikari pensou; sentiu e seguiu o ímpeto de
impedi-lo. Tomou a casinha e lhe arrumou um lugar
entre as suas plantas. Deu de comer ao filhote, pondo,
com uma colher pequenina, água misturada com fubá,
pelo biquinho.
No mesmo dia, a mãe retornou. “Eu sinto a dor da
perda dela, é triste”, me dizia Hikari enquanto o animal
voava de um lado ao outro, rodeando o local onde
deviam estar seus filhotes. Hikari agitava-se —
“o desespero é visível!” —, e avançava na direção da
passarinha: “O ninho está no meu jardim! O ninho está
no meu jardim!”. Mas não pode se comunicar. E aí veio
o pequeno milagre: os pios do filho pareceram chamar a
atenção da progenitora. Quebrou seu voo em círculos e
foi direto aonde o ninho estava. Hikari gritou de alegria.
Por um tempo, a partir de então, a ave alimentou sua
prole, até que o filhote se tornou forte o bastante para
voar. Partiram sem dizer adeus.
Hikari se entristeceu só um pouco, pois o trabalho
da dádiva já havia lhe dado toda uma abundância. De
todo modo, resolvi presenteá-la: dei¬-lhe minha Néfela.
Sem você eu não teria chegado até aqui, eu disse, e além
do mais agora você já é familiar de tudo aquilo que voa.
Ela sorriu.
128 | Duanne Ribeiro
***
Contudo, em sonho ou em realidade, o pássaro pródigo
voltou a nós.
Pousou em uma árvore ao lado do riacho, e cantou.
Chamava-nos? Andamos por entre as árvores, atravessamos
Miami, Guarujá, Salvador, São Paulo. Chegamos
a um parque de diversões encanecido e só. Perseguimos
o bater das asas a bordo dos botes que navegavam
pelos caminhos pré-definidos de água rasa; ao fim de
uma descida, caíamos na água, apenas para voltar a subir
outra vez e molhar-nos de novo. Quando o barco
viking chegava às suas elevações máximas, eu e Hikari
esticávamos os braços para roçar no voo da nossa guia.
Na casa dos espelhos, por fim, proliferou-se ela em infinitos
passarinhos, mesclados às nossas imagens alongadas,
bojudas, contorcidas. Sob o olhar de inúmeros
nós mais ou menos distorcidos, mais ou menos concretos,
tendo como a estabilidade a permitir um caminho
apenas os pios que, longínquos, formavam uma melodia,
nós seguíamos, batendo a cabeça contra os vidros
uma vez e outra vez. Acabamos chegando a um planetário
à beira-mar.
Vimos tratar-se do Emissário Submarino, em Santos.
Acima, em uma cúpula cujos suportes sumiam na
As Esferas do Dragão | 129
escuridão da noite, acendiam-se pedagógicas estrelas,
acompanhadas por uma voz radiofônica: “Temos neste
momento o céu do planeta marrom e amarelo, Arlia; as
anãs-vermelhas compõem o panorama”. À passarinha
ameaçava inutilmente a maré: a espuma morria antes
de tocar as patinhas que afundavam em pulinhos na
areia encharcada. “Namek, rajado de verde e branco, sofre
o calor e a luz de três sóis; sua noite nunca acaba.”
Aproximamo-nos. Carregava algo no bico.
Uma barata. Hikari recuou um passo. O inseto sempre
a tinha horrorizado. Soube, entretanto, que desta
vez não poderia fugir. A passarinha depositou o bicho
moribundo à sua frente. “Castor A e Castor B, Pólux,
diversos astros nomeados Gem, formam uma combinação
famosa.” Hikari ouvira essa história antes; a história
vinha até ela agora. Negara e desejara o tipo de
choque transformador que ela esperava da experiência
de saborear o nojo. Ajoelhou-se, pegou a barata e trouxe
à boca.
***
O quanto os dentes precisam forçar a casca para que
estale na boca? As asas, pele de cebola roxa, folhas de
130 | Duanne Ribeiro
celofane, se dissolvem na língua? A gosma da barriga
explodida, flan de coco ou manjar branco? Mastigava,
“eu precisava que ela me dissesse algo”, chorando, “eu
precisava estar à altura dela eu mesma”. O falso céu
havia sido desligado quando ela terminou de comer.
Iluminada apenas pelos letreiros que anunciavam, vermelhos,
as saídas, Hikari desenhou com um dedo trêmulo
figuras no solo. Primeiro, seu pai e sua mãe.
Remexeu a areia, delineou seus filhos:
— Encontrei!
Mas a mão voltou a arrastar-se sobre a obra. Compôs
então a imagem de uma médica, “encontrei!”, apagou-a;
a imagem de uma escritora, “encontrei!”, mas
apagou-a; a imagem de uma empresária, “encontrei!”,
mas apagou-a. Arregimentadora de viagens, encontrada
e perdida, fazedora de doces encontrada. No fim das
contas, os grãos de areia tinham todos eles os traços do
seu rosto.
— Encontrei – concluiu.
As Esferas do Dragão | 131
Episódio 24
Cicatrizes,
Caça ao Tesouro
Naquela noite, decidi que era hora de retornar à minha
jornada. Despedi-me de Hikari e parti. Fui, também
por despedida, uma última vez à Menwotsukeru, desta
vez a pé. Lá, reencontrei Kyua.
De acordo com as regras da casa, também estava disfarçado.
Vestia uma camisa branca de mangas curtas,
com os dois botões de cima abertos, por cima de uma
camisa azul escura, da mesma cor da calça. O cinto
marrom pendia sobre a perna esquerda. Os tênis eram
também brancos. Usava uma peruca castanha com uma
franja espetada. Essa imagem se gravaria em mim, e
sempre ao rever o guerreiro, as cicatrizes, a lâmina,
eu procuraria como que em meio a escombros por ela.
132 | Duanne Ribeiro
Onde está o menino? — eu questionaria — onde está o
que eu conheci e admirei nesta manifestação curtida e
conspurcada da mesma coisa? Eu guardaria gestos, uma
timidez, uma agudeza, como conchas na praia — extrairia
do presente um passado volátil e me convenceria de
ter achado uma essência.
Olhou-me de relance, mas não me deu muita atenção.
Eu esperava mais. Mas por quê? Tratava-se de uma
ilusão de ótica a nossa proximidade, ou, ao menos, a
nossa relação se coalhava de pontos cegos que se tornavam
patentes agora quando eu o via em seu lugar “natural”.
Enraizado. Distintos os cumprimentos, os tons
de voz, os recursos de linguagem, o posicionar-se do
corpo. Não era para mim aquela pessoa nova que se
descortinava na velha. Meu relacionamento com ele
se revelava a distância construída interação após interação;
revelava-se distância o que antes surgia imediatez.
E é como se esse caminho não fosse percorrível.
O outro é o eixo central de um carrossel do qual nós
somos os brinquedos que giram em torno, fixos nos nossos
locais relativos.
Quando não os sujeitos desta analogia, estamos perpétuos
em órbita. O outro é sempre um sol.
***
As Esferas do Dragão | 133
Kyua estava à uma larga mesa de madeira, com um
pequeno grupo em torno. Mestrava uma partida de Mago
– A Ascensão. Acompanhei a narrativa por algumas rodadas,
então me decidi a ir embora. Quando eu estava
próximo à saída do salão, Kyua me alcançou: “Sei onde
está uma das esferas. Fácil de pegar. Afim?”. Qual o
preço da dica, perguntei. Não tenho dinheiro. “Isso não
é necessário. Fica me devendo o favor.” E que tipo de
favor seria esse? “Você pega a sua esfera, reencontramos
um velho conhecido e aí vocês me ajudam com a
minha viagem”. Viagem? Eu ri. Aonde você vai?
— Eu? – respondeu, já voltando à mesa, o rosto sobre
o ombro – Eu vou para o futuro.
Deixei Menwotsukeru, pois, sabendo que era para
sempre; percorri o caminho contrário à entrada, saindo
pela locadora. E fiz mais do que o meu costume dessa
vez: não sai com minha fantasia para, eventualmente,
logo, abandoná-la e ter de tornar a vesti-la — daí
doravante, ela era o que eu era. Doravante, portanto,
progredi paramentado: botas, calças, casaco, luvas, chapéu.
Vermelho, verde, marrom, branco, sombrio, foi assim
que alguns dias mais tarde compareci ao ponto
de encontro.
***
134 | Duanne Ribeiro
with your feet in the air
and your head on the ground
try this trick, and spin it, yeah
Fone nas orelhas, ligado o discman. Só recentemente
aprendi a discernir as várias linhas narrativas das músicas.
Suprimir por ora os demais instrumentos, alterar
o nível de atenção e se dedicar a uma sonoridade.
Agora: violão. Agora: segundo vocal. Agora: guitarra.
Agora: contrabaixo. Espalham-se no mesmo espaço. desenvolvem
lógicas próprias, mais ou menos coincidentes.
É engraçado quando passamos a ver algo que não
víamos, mas que sempre esteve lá. O mecanismo.
your head will colapse
but there’s nothing in it
and you’ll ask yourself:
“where’s my mind?”
Também tinha comigo meu violão. Por vezes, procurava
na internet alguma tablatura e executava a melodia
eu mesmo. A diferença entre o esquema e a feitura
era então clara. Há uma personalidade na sequência de
notas que não é atingida simplesmente por tocá-las
As Esferas do Dragão | 135
de maneira correta. As lógicas múltiplas, os mecanismos
distintos, eram em cada música e em cada postura
de música modificadas como que por refração (a reta
sendo outra reta noutro ambiente).
A versatilidade do mesmo, assim, me entretia enquanto
eu esperava por Kyua. Eu havia me movido
desde a rodoviária do Tietê, em São Paulo, até Itabira,
em Minas Gerais. As horas se passavam, mas ele não
chegava. Andando de um lado a outro e chutando
pedrinhas, acabei por achar uma carta, à frente da
estátua de Drummond, amparada pelo livro que ele
lê eternamente:
“Seguinte, é melhor andarmos separados
por um tempo para não chamar atenção.
O Jade sofreu um abalo forte, mas não foi
desmantelado e pode muito bem sabotar a
expedição. Fora a minha falta, o plano continua
como combinado. Você vai receber uma
esfera. Depois vai me ajudar com os meus
propósitos. No meio disso vamos encontrar
nosso colega.”
Senti-me contrariado. Continuei lendo:
“Outra coisa, pelo que vi do jeito que você
luta, seriosamente, você precisa de umas dicas.
Vou te mandar umas aulas por carta du-
136 | Duanne Ribeiro
rante a viagem. Para me responder, basta
escrever e inserir o sigilo GRANDECTS (elaborei
com “grandes cartas”; o desenho está
aqui embaixo), que o universo conspira e
chega aqui pra mim. Vai ser uma coisa meio
discípulo/mestre.”
Quanta presunção. A carta pelo menos tinha as indicações
de onde eu conseguiria meu pagamento, a
esfera, e os procedimentos a seguir. Peguei uma folha,
anotei esta mensagem, com o devido sigilo:
“Não sou seu discípulo. Estarei lá.”
As Esferas do Dragão | 137
Episódio 25
Esfera de Três
Estrelas: Victor
Dialogar com alguém protegido pelas distâncias se
mostrou de imensa riqueza. As grandes cartas se tornavam
cada vez maiores, abrangendo discussões teóricas
e confissões dos cotidianos. Um ouvinte justifica,
corrige, flexibiliza o vivido. Neste caso, estar longínquo
acrescentava um grau de segurança — não se tratava
tanto de conversar com uma pessoa concreta, a quem
você sempre pode decair à condição de recurso; não,
nessas trocas tudo se passava como se conversássemos
com uma outra personalidade nossa, tornada acessível
pelos sistemas de comunicação. As grandes cartas eram
um meio de nos falarmos a nós mesmos por meio um
do outro.
138 | Duanne Ribeiro
“Você está andando pra cima e pra baixo
vestido de mago de videogame. Você diz
que não sabe o porquê. Eu diria sem pensar
que está matando o seu ego. Pondo as
rédeas da vida no automático por um tempo.
Mas é isso mesmo: ‘você não é o seu nome’.
Não importa se a fantasia dá na cara que é
fantasia ou se é daquelas de pessoa normal.”
Seu discurso era cheio de palavras novas — eu me
esforçava para acompanhá-lo. ID, Superego, Ego: eu não
era, portanto, unitário, eu consistia no embate protopolítico
entre três forças — a natureza, os instintos; a
autoridade internalizada da sociedade; e a individualidade
residual. O que me prende, o que me empurra?
Vi-me à distância; eu objeto sob escrutínio. Inconsciente
coletivo: os psiquismos reunidos redundam num
oceano de idealidades: captamos e enviamos pensamentos
e sentimentos por meio de uma rede que nos
atrela a todos. Eu não era impermeável — era legião.
Magia do Caos: através de subterfúgios esquematizados,
podemos reprogramar nosso subconsciente para
que nos ajude a conquistar o que quer que seja. Eu o
resultado dos algoritmos formadores da subjetividade,
fantoche, não obstante fantoche baconiano, vencedor
porque obediente. Assim íamos nos diluindo, e saber
quem éramos fundia-se com selecionar um personagem.
As Esferas do Dragão | 139
***
Mensagem a mensagem, Kyua me levou a encontrar,
em São Vicente, a esfera de três estrelas.
***
Uma criança fere o dedo em uma afiada folha de
sulfite; mesmerizante, o corte incha, vermelho. A criança
se apavora, pois não sabia que entranhava sangue
em si. Meu amigo Victor morreu em um acidente de
moto; tinha menos de trinta anos. Chegara em casa pela
manhã, vinha do Rock in Rio, com a catarse e a camaradagem
na pele, como costuma ser. Brigou com a
família e voltou a sair — virado e bêbado. Tinha decidido
ir à casa do seu primo, Danilo, a quem ligou, e que
lhe disse: “Não pega a moto”. O carro lhe pegou pela
lateral. (Uma característica nuclear dos acontecimentos
e das histórias que interpretamos como trágicas é
a sua falta de necessidade. Othelo e Macbeth, vistos
deste nosso ponto de vista que sobrevoa as artimanhas
e a conclusão, são criaturas que poderiam, a cada passo,
contrapondo-se ao que nos aparece como erros evidentes,
modificar seus destinos. O incômodo indispen-
140 | Duanne Ribeiro
sável da tragédia é que tudo poderia ter sido diferente.)
Não éramos próximos exatamente, mas ele estava sempre
presente nos nossos ensaios, parecia gostar verdadeiramente
da música que fazíamos. Ao fim de um
show, veio até mim e disse: “Foda!”, e isto apenas, pelo
fato de que era desinteressado e expresso com alegria,
teve valor. Foi nesta lembrança que sofri o luto, foi ela
o que tive de deixar queimar lentamente e então assistir
ao dissipar das cinzas. Victor tinha a minha idade
à época. O raciocínio surgido nessas situações funda-
-se numa petição de princípio: coloca em perspectiva o
potencial de vida desperdiçado. O que seriam esses dez,
trinta, cinquenta anos que o aguardavam, essa cidade
alagada, essa revolução traída, essa intenção defunta
de um soco? (Tyler Durden, em Clube da Luta, executa
um tipo de performance que chama de “sacrifício humano”.
O personagem arranca do seu posto um atendente
de uma loja de conveniência, lhe põe de joelhos,
mira um gatilho à sua cabeça, pergunta o que o seu refém
quer da vida, o que, de fato, queria estar fazendo,
o que gostaria de realizar. Quando extrai as respostas,
impõe ao subjugado o seu próprio jugo, demanda dele
que seja sujeito: ou cumpre o que disse desejar em tantos
meses ou Tyler retorna e o mata. De repente, então,
tudo muda: é como se se pudesse morrer a qualquer
momento, e é preciso ser de acordo com a urgência.)
As Esferas do Dragão | 141
O bebê cadáver é imediatamente subsumido pela condição
de ideal, torna-se “anjo”; o jovem deixa o gosto
persistente de rumo interrompido. He had a stroke at the
age of twenty four; it could have been a wonderful career.
O corolário disso é: e quanto a nós? O que ele poderia
ter feito aprofunda-se em: o que eu posso fazer? O que
fiz do tempo, o que farei do tempo? Quanto tempo?
O menino morto tornou-se uma régua. Mede-me e já
estou justo: minha vida cabe inteira, sem mais, na fôrma
da morte. Um velho cuja barba branca desce até o
umbigo rasga o abdômen com uma peixeira; por uma
corda, desce ao térreo da ferida, respira fundo e põe-se
a percorrer a estrada; seus pés encarquilhados afundam
na terra preta que, saturada do líquido vital, forma
poças e bolhas rubras por toda a sua extensão.
Uma amiga minha, Gabriela, suicidou-se. Para mim, ela
se tornara o símbolo da minha pós-graduação; no dia
em que apresentaram o curso aos calouros, ela se apresentou:
era representante discente. Eu, mestrando, ela,
doutoranda, cursamos a mesma disciplina em um dos
semestres. Era parte da organização dos eventos internos,
tinha criado o grupo de Facebook e o de Whatsapp,
propusera um programa de rádio sobre informação.
Agregadora, produtiva, esforçada. Como? Por que? Um
suicida demonstra que acreditamos sobretudo na inércia.
Descubramos “evidências” de que isso poderia ser
previsto: mãe de uma filha pequena — parece estava
142 | Duanne Ribeiro
tendo problemas com a guarda da menina; um ou dois
dias antes postara um pedido algo desesperado por
indicações de emprego, e compartilhara toda a letra de
“Hand in my Pocket”, da Alanis Morissette — I’m broke,
but I’m happy. O momento de ser forte ainda mais uma
vez, a borda do despenhadeiro. (Kurt Cobain, em sua
última entrevista, para a Rolling Stone, não agia como
alguém que daria um tiro na própria boca em breve.
Empolgava-se com possibilidades criativas, achava graça
em quem o via como um doido autodestrutivo. Disse
ter sugerido que um álbum seu se chamasse I Hate Myself
and I Want to Die como piada.) A morte de Gabriela
gerou um efeito curioso: eu e outros conhecidos dela,
assim como pessoas a quem contei essa história, todos
de súbito escrutaram seus amigos em busca de alguma
dor disfarçada. Sejamos mais próximos, disseram. Tudo
poderia ter sido diferente, querem crer. A menina morta
tornou-se uma régua — para os outros. A morte é o
único ponto de vista.
As Esferas do Dragão | 143
Episódio 26
Leão e Mero Cristão
Encostado em uma árvore sob a noite manauara, eu
dedilhava no violão
Hello,
I’m the ghost of troubled Joe
Hung by his pretty white neck
enquanto observava o Amazonas serpentear entre as
árvores curvadas, pesadas de penduricalhos, sobre as
águas. Entre os versos do estribilho despontou no horizonte
obliterado de escuridão a proa do navio que
eu aguardava. O dourado da madeira anunciava a sua
144 | Duanne Ribeiro
chegada como um sol adiantado. A carranca era um
dragão de boca aberta; as asas do animal se estendiam
até as laterais verdes da embarcação. Quanto aportou
próxima a mim, vi a luz da lua refletida sobre o púrpura
das suas velas quadradas. O casco balançava-se levemente
como que sobre petróleo.
but don’t, don’t mention love:
I’d hate the pain of the strain again
Quem eu aguardava, nós nos encontrávamos novamente,
afinal: era Jintoku. Sua pele rosa tinha um tom
baço na sombra, o que combinava com a sua expressão
entristecida e cismenta. Voou do barco até mim, o colete
sacudindo no ar, as calças infladas pelo vento. Tinha
a seriedade de um desenho animado; seu conforto era a
naturalidade de um cartoon.
***
Jintoku tinha se afiliado à empreitada de Kyua, co-
mo eu, por um motivo particular: estava em uma mis-
são possivelmente suicida para extrair Jesus Cristo das
As Esferas do Dragão | 145
mãos do exército Jade. Sim: o Messias da religião cristã
havia sido capturado. No momento, sob correntes, seguia
ao Sanatório Jade.
Dirigíamos agora pela Transamazônica. Meu companheiro
pilotava, as carnes róseas vazando para os lados
do banco, marcadas fundo pelo cinto de segurança
apertado. A terra vermelha permanecia monótona por
quilômetros. Devíamos ir ao encontro de Kyua; segundo
ele, teríamos de nos perder a caminho de Diamantina e
encontrá-lo em Ipatinga, ambas as cidades em Minas
Gerais. Falávamos enquanto o tédio repetia árvores.
“Um deus dinossauro? Méh. Você está correndo tanto
por isso?”, me perguntou. Não se trata de dinossauro, é
um dragão. Solucionador de desejos. Ele riu. “Sim! Um
dragão... de novo: você está pra lá e pra cá atrás... de
um réptil? Uma lagartixa que voa?”.
Que voa e repara a morte, que tal? Jintoku assumiu
um tom professoral. “Kurokun, o meu Senhor, depois
de humilhado, crucificado, assassinado, reapareceu aos
discípulos”. Uma lagartixa regenera o rabo, retruquei,
quem sabe com a própria vida possam alguns fazer o
mesmo? “Ok, ok”, rindo-se, “Mas tem mais isso: meu
Senhor concedeu outra vez a Lázaro que vivesse. Bastou
lhe dizer: levanta e anda. Você não precisa dessas suas
bolinhas laranjas. Você precisa de fé”.
146 | Duanne Ribeiro
Jintoku, me parece, nunca perderia a expectativa de
que eu me voltasse à crença; ou, o que é mais exato, era
como se avistasse detrás das minhas ações a matéria
prima dessa fé, como se eu, a cada episódio, expressasse
um tal potencial à minha revelia, e que seria suficiente
eu me encaminhar a ele e percebê-lo meu sustentáculo
e trampolim. Em outra ocasião, ele me contaria sobre
como todas as religiões podiam ser entendidas como os
feixes de luz que penetram uma cela escura, mais suaves
umas, mais encorpadas de poeira outras, não obstantes
todas originárias da mesma luz. É possível que
eu o tenha entendido de forma ecumênica demais. De
todo modo, a ideia, assim interpretada, eu admirei as
suas possibilidades de paz. Contudo, só a minha luz me
atraía verdadeiramente.
“Não há Eldorado às margens dessa estrada”, Jintoku
introduzia um novo tópico da aula, “Porém no depois
da morte haverá algo maior, onde descansaremos”. Descansar
em uma visagem estupenda — sim, isso me seduz.
Nossos pés além-viventes pisariam ruas de uma
metrópole de ouro, amarelo mesmerizante rodeado por
muros altíssimos de jaspe vermelho opaco enfeitados
pelo sárdio castanho-avermelhado, pela calcedônia marrom,
pela ametista “queimada” laranja-escuro e amarela,
pelo topázio amarelo-avermelhado ou rosa-avermelhado.
Também a ametista roxa e o topázio azul-
As Esferas do Dragão | 147
-claro, a safira azul-escuro, o berilo azul-esverdeado, o
crisoprásio verde e a esmeralda verde só um pouco menos
clara. Também a raríssima esmeralda transparente,
próxima ao topázio transparente, ao jacinto vermelho-
-vinho, à sardônica vermelho-marrom. O amarelo-ouro
do crisólito. Nestes muros, ainda, doze portas de pérola,
seu branco duro e brilhoso consoante com as vestes
purificadas de todos nós, reunidos na exuberância.
Entretanto, perguntei:
— Mas, então, para que muros?
148 | Duanne Ribeiro
Episódio 27
Eficácias da
Sinceridade
Pela janela do veículo sucediam-se espaçadas as árvores,
picolés e cilindros verdes cujos galhos lhes riscavam
de listras diagonais ou onduladas. Nas nuvens
dinossaurinhos laranjas agitavam bandeiras. A paisagem
me interessava pouco, contudo: trazidas das lonjuras,
as grandes cartas enchiam meu colo de diálogos.
Nelas, Kyua me apresentava o “Jogo de Lecter”, um desafio
inspirado em O Silêncio dos Inocentes. Consistia
em um escambo de sinceridades: cada qual devia confessar
uma vergonha, um fracasso, um desejo, uma bizarria.
Algo de escondido, algo de arriscado. Performance
negativa do “Poema em Linha Reta”. Exercício
de sinceridade absoluta, liberar-se de pesos silentes.
As Esferas do Dragão | 149
Não era tanto aquilo a que eu me dispunha a entregar,
não as brechas nas minhas defesas que dali adiante
eu abriria — era o que sutilmente me exauria não expressar,
esforçar-me por não saber ou deixar saber.
O segredo, toda forma de segredo, é uma atividade.
Colocar de lado esse esforço por um momento — eis
a perspectiva do Jogo de Lecter, potencializado pela
segurança da comunicação à distância (éramos como
abstrações, dupla personalidade um do outro). Às margens
da estrada os canos de esgoto protuberavam verdes
e verticais às margens da estrada. Observei-os passar
como borrões, absorto; então tomei da caneta e escrevi
em uma folha de resposta:
Não rezei no velório do meu avô, não me reduzi a um
crente, e me orgulho disso.
Isso porém não era vergonha, fracasso, desejo, bizarria;
não era exatamente segredo: o incômodo aí era
distinto, concentrava-se no fato de que esse ato subjetivo
plenamente consistente só ganharia uma realização
completa se fosse posto assim, em manifesto.
Era preciso que alguém soubesse, mas isso ao mesmo
tempo mediocrizava a convicção. O lúdico lecteriano
nesse caso satisfazia a precisão do “tenho de dizer” e o
embaraço do “tinha de ter dito”, e a ambos recebia indiferentemente,
doce. São várias as efetividades e desníveis
das lutas que lutamos conosco dentro de nós.
150 | Duanne Ribeiro
Um solavanco sob as rodas: passávamos agora a um
piso de madeira que flutuava na escuridão. Lá e cá flutuavam
fantasmas gordinhos. De longe via-se lava. Que
mais eu contaria nas grandes cartas?
***
Preferia e continuei preferindo mesmo após essas
experiências formas mais assépticas de confissão. A literatura,
por exemplo, ou a pretensão de tê-la exercido.
Era algo que eu havia feito mesmo antes desta viagem
em busca das esferas, recobrindo a matéria factual com
o claro-escuro das metáforas, das alusões intelectuais,
das referências endereçadas a alguns leitores em particular,
intencionando a leitura como um jogo de montar
no qual deliberadamente faltavam peças e ou se
compunham as ausentes com materiais próprios ou
se aprendia a amar as lacunas. Sempre quis me esconder
à vista de todos. Evidente e latente. Por exemplo
agora mesmo.
Kyua, frequente único leitor das minhas escrituras,
ele próprio um contador de estórias bissexto — e carregado
da leitura dos Seis Passeios pelos Bosques da
Ficção, de Umberto Eco — comentou isso:
As Esferas do Dragão | 151
“Juntando semiótica com narratodologia,
eu diria que falta um caminho dentro do
próprio texto, que vai ter as informações necessárias
para seu entendimento. A chave
tem que estar embaixo do tapete, entende?
Isso se refere à criação do leitor-modelo no
próprio texto. O entendimento se dá quando
o leitor sabe aquilo que você sabe para
desvendar o texto. Tirar da mente e colocar
sem nenhum contexto não gera o objeto
imediato que você pretende.”
Respondi algo como esperar do leitor que fosse um
detetive. Kyua retrucou:
“Sobre os ‘enigmas’ no texto, acho que
ainda sim você esconde demais em alguns.
Eu leio às vezes e não vejo nada, daí eu
leio de novo. E creio que eu devo estar bem
preparado para ser seu leitor modelo. No
entanto, não sou. Quando digo pra chave ficar
em baixo do tapete, é porque isso é comum.
Jogar pistas fáceis pelo menos para
o leitor procurar algumas mais difíceis. Há
uma coisa chamada articulação. É a maneira
com que se faz as informações de um texto
completarem outras antes ditas. Aquela ha-
152 | Duanne Ribeiro
bilidade de buscar no fim do texto um conclusão
para a pergunta que se fez no primeiro
parágrafo. Mas posso estar errado e as
pessoas realmente entendem o que precisam
entender.”
Mas como receber conselhos sobre escrever? Escreve-
-se sob a água, onde os sons do mundo, vozes e o de mais,
filtram-se gordurosas e indistintas; é lá que o ar apodrecendo
fomenta a criatividade; lá, no pequeno pseudosuicídio,
os brotos do gênio. Subo o rosto à superfície
e ouço a respeito de como agir, de como melhorar — mas
cá debaixo só posso recorrer a mim mesmo concentrado.
***
Depois dos corredores rochosos bordejados de magma
— onde escapamos dos cubos de pedra que possuídos
tombavam visando às nossas cabeças —, atravessamos
de ilhota a ilhota um arquipélago ensolarado,
alcançando os terrenos pedregosos em que flores-
-piranha mordiscavam o ar e então as pistas de neve
em torno de um lago recortado anguloso no gelo.
Enfim, sobre lajotas multicoloridas, boiando no espaço
sideral, nos aproximamos do termo desta road trip;
encontraríamos Kyua.
As Esferas do Dragão | 153
Episódio 28
Da Substância
da Salvação
Mais uma difração: o Kyua das cartas oposto ao Kyua
enfim reencontrado. As pessoas esfarelam de um jeito...
observe qualquer um: pululam ali representações
e definições gradualmente acumuladas que devem explicá-lo.
Porém soterrado por elas está um oco translúcido
o qual não podem recobrir completamente, ao
qual não aderem. Como que a leitura não me entregou
tudo? Eu tive você aqui nas minhas mãos, o seu depoimento.
Boia o meu discurso despedaçado, um tal
constrangimento de não poder firmar minhas certezas.
Móvel, móvel demais, uma pessoa.
***
154 | Duanne Ribeiro
Em um bar de Ipatinga, Kyua dispôs, à nossa frente,
entre cervejas, cartas de Magic! The Gathering, um jogo
de baralho com temática fantástica. Com ajuda delas,
explicava, seria capaz de discernir os caminhos por
dentro do Sanatório Jade. O místico, ao que parece, é
tremendamente acessível.
Havia desenvolvido um método que utilizava o Magic!
sob as regras do Tarô, presumivelmente com efeitos
análogos. A partir de um deck pré-montado (selecionando
cartas cujo descritivo incluísse um elemento “literário”,
isto é, narrativo ou aforístico — como é comum
nesse jogo), selecionavam-se uma a uma até que
se dispusessem dez cartas na mesa. Figura e texto deviam
ser interpretados de acordo com a ordem de retirada:
a primeira simulava o momento presente; a segunda,
o obstáculo; a terceira, os fatores externos; a
quarta, a motivação inconsciente; a quinta, as influências
passadas; a sexta, o futuro imediato; a sétima, a atitude
do consulente; a oitava, a visão das pessoas próximas; a
nona, as esperanças e os temores; a décima, o desfecho
da situação.
Casa 1 (Momento Presente) | “Telepatia”:
Seus oponentes jogam com os cards de suas
respectivas mãos revelados. | “A questão não
As Esferas do Dragão | 155
é se eu posso ler mentes, e sim se eu ainda
encontrarei uma mente que valha a pena
ler.” — Embaixador Laquatus
(Você também pode jogar o jogo. Suponha que a mão
tirada aqui foi sorteada para ti: o que o jogo te fala?
Eis teu momento presente: você vê claramente, é até ridículo,
todas as estratégias que foram preparadas contra
você. Não é assim? Vasculhe-se.) “Tá bem na cara,
né? O Jade não esconde suas cagadas”, Kyua pensava
alto, “o que você vê é o que você obtém”. (Ou você pode
jogar outro jogo. Que tal se eu te sacar augúrios sob
medida? Aqui, do meu monte, extraio outro momento
presente, especialmente para você: “Fecundidade”. Por
favor, procure sozinho, eu não farei tudo.)
Casa 2 (Obstáculo) | “Avatar de Serra”:
O poder e resistência de Avatar da Serra são
ambos iguais ao seu total de pontos de vida.
Quando Avatar de Serra for colocado num
cemitério vindo de qualquer lugar, embaralhe-o
no grimório de seu dono. | “Serra não
está morta. Ela vive através de mim.”
156 | Duanne Ribeiro
“Ela vive através de mim... eles dizem que ‘preservam’.
Tem coisa aí...”. Antes dessa investigação do inimigo,
Kyua montou para a gente leituras com focos nas nossas
vidas pessoais. No começo, foi um bocado constrangedor
vê-lo dar tanto valor àquilo. Afinal, faça-me
o favor, cartas de Magic? Mas a questão é que, a seu
modo, todo espelho reflete: o que faz atuar o sortilégio
é a operação de fazer com que nos vejamos de forma
inesperada. De repente uma maneira de mapear-se:
muito bem, eu sei delimitar, com uso da palavra “obstáculo”,
certos setores das coisas que vivo.
Casa 3 (Fatores Externos) | “Desmatamento”:
Reforçar — Sacrifique um terreno. | Previne
todo dano de combate que a criatura
alvo causaria neste turno. Se você pagou
o custo de reforço, previne todo o dano de
combate que outra criatura alvo causaria
neste turno.
Derramo-me nesse novo vasilhame: “Fatores externos”.
De pronto eu me capacito a me ver segundo as
ideias de influência, condicionamento, opressão. É diferente
de se supor livre: o modelo pelo qual me apreendo
muda tudo. (Decidiu qual jogo você prefere jogar?
As Esferas do Dragão | 157
Um: que travas você mantém vivas às expensas de si
mesmo, o que você tem sacrificado para imunizar-se.
Dois: uma tarefa para você: obstáculo: “Desviar Olhar”;
fatores externos: “Curandeiro Kalastria”.)
***
Quanto à carta anterior, é claro que Kyua gerou toda
uma teoria do que o Jade estaria matando em seu
nome, que territórios destruídos lhes estariam dando
invulnerabilidade. Nós acompanhávamos sem exaltação.
Não parecia funcionar igualmente bem... mas a
coisa foi em frente.
Motivação Inconsciente deu “Mestre de Etherium”, cujo
efeito de jogo era “o poder e a resistência de Mestre
de Etherium são ambos iguais ao número de artefatos
que você controla” (o que pareceu, a Kyua, corroborar
a visada da Casa 2) e a frase era “somente uma mente
livre das preocupações da carne pode ver o mundo como
ele realmente é” (o que lhe sugeriu a hipótese de que
o interesse do Jade era atingir outro grau ontológico).
Influências Passadas, “Transcendência”, sem citação e
com as regras “você não perde o jogo por ter 0 de vida
158 | Duanne Ribeiro
ou menos pontos de vida; quando você tiver 20 ou
mais pontos de vida, você perde o jogo; toda vez que
você perde vida, você ganha 2 pontos de vida para cada
1 ponto de vida perdido; o dano causado a você o faz
perder vida” (que o levou a concluir que o Jade era de
uma substância inadequada à morte).
(Seriam as suas motivações inconscientes os objetos
que você acumulou? Fácil nos vem uma crítica a esse
materialismo algorítmico que se visibiliza em ti — vem
fácil, claro, porque é uma perspectiva lugar-comum,
um clichê; mas não diz Magnólia que só os clichês são
verdade?) “Vocês não sentem no peito que alguma coisa
bateu? Esse é o sinal de que estamos no caminho.
Se não der a epifania, precisamos inventar outra descrição”.
Kyua emprestara esse método da interpretação
de sonhos de Irvin Yalom. No caso da análise das vidas,
o discurso de quem joga as cartas ou quem analisa o
sonho trisca no inconsciente quanto o sentimento do
analisando diz que é assim. Nessa especulação sobre o
ausente, como poderíamos aferir a correção das teses?
(Avante: teria sido decisivo no seu passado que a abundância
lhe aterrou e que a estreiteza lhe empurrou
adiante? É só você quem pode dizer se essas formas de
discorrer encontram confirmação em você.)
As Esferas do Dragão | 159
À Casa 6, Futuro Imediato, coube “Sipaio
da Lança Solar”. Efeito: “Enquanto Sipaio da
Lança Solar estiver equipado, ele terá iniciativa
e vínculo com a vida”; frase: “Sem
seu líder Raksha, os leoninos dividiram-se
em dois bandos: um apoiou o kha regente,
enquanto o outro se rebelou furiosamente”
(fora a confirmação que a regra dava a cartas
anteriores — o Jade era crucialmente a sua
atividade — o restante indicava que eles estavam
à beira da ruptura, o que nos era positivo).
Já A Atitude do Consulente recebeu
“Mago-Sifão de Urborg” — “descarte um card:
cada um dos outros jogadores perde 2 pontos
de vida. Você ganha uma quantidade de
pontos de vida igual à quantidade de pontos
de vida perdida dessa maneira” (outra vez a
característica vampírica do Jade) e “eu me
tornei uma espécie de gourmet. Cada alma
tem seu próprio sabor distinto. A arte está
em convidar a companhia certa para o banquete”
(no que ele identificou o objetivo do
Jade: perseguia os potentes porque os devorava
de alguma forma). Eram as cervejas
o que estava a facilitar o convencer-se de
tudo isso?
160 | Duanne Ribeiro
***
Sim, pois ocorria novamente, mudávamos do tédio
cético a um interesse razoável. Era curioso como, conforme
Kyua avançava na construção do seu discurso,
se tornava cada vez mais difícil imaginar que não fosse
tudo como expunha. Alinhavando um delírio ao outro,
bordando superintepretação em superinterpretação,
surgia algo com toda aparência de racionalidade, acima
de tudo sedutor. E no momento que nos opusemos
às suas conclusões, propondo outras possibilidades, já
havíamos sido derrotados em um nível mais fundamental:
estávamos convencidos do potencial do sistema.
Claro, podíamos negar a realidade e a utilidade disso
tudo, teimar em dizer que não passava de uma grande
bobagem — não obstante, a cada carta na mesa, a cada
gambiarra coerente, crescia o custo da incredulidade.
A fé é uma aposta, argumentou Pascal; e aos poucos
parecia que íamos perder.
Veja, essa já é outra maneira de ver a coisa toda
— deixemos de lado a revelação da subjetividade.
Passemos à fé como um processo feito de microdisputas
retóricas. Não uma definitiva, pesadíssima aposta
pascaliana, mas um curso de pequeninas apostas cujo
preço individual é irrelevante. Custaria mais esforçar-se
As Esferas do Dragão | 161
para ganhar; não custa nada perder. Míseros mistérios
se apresentam um por vez e baixamos as armas à primeira
resposta conclusiva, “até que faz sentido”, e nisso
toda a estrutura da compreensão já sofreu uma modificação
de base. Ainda mais, o prazer de preservar
nossa força, de evitar o cansaço, torna-se — ao passo em
que se multiplicam as soluções místicas e se acumulam
os benefícios microscópicos de aceitá-las — um atrativo
por si só. Conversão da fé inofensiva inicial em má
fé: fuga do uso da força, fuga de sermos por inteiro.
Prazer da fuga.
Casa 8 (Visão das Pessoas Próximas) | “Peneirador
Luvalua”: Toque Mortífero (toda
vez que esta criatura causar dano a outra
criatura, destrua aquela criatura.) | “Os peneiradores
vivem para eliminar os seca-olhos,
criaturas que os elfos julgam feias demais
para existir.”
(Certamente era o que todos sentíamos: o Jade movia
uma guerra de extermínio contra todos nós.) Avaros
e preguiçosos de nós mesmos, empanturramo-nos de
soberba através da fé. Até que ela nos ultrapassa e
desenvolve sua própria gula (e, na falta de mistérios
162 | Duanne Ribeiro
reluzentes, começamos a encenar fabulações ocas para
alimentá-la), sua própria luxúria (o gosto por não ter
de agir se torna a paixão por não agir, uma ética do
não agir). Tanto ouro falso nas nossas barrigas exigirá
ser protegido; daí todas as práticas da ira. Aos que se
formem noutras economias da energia de si, só restará
a inveja. A crença, assim, se concretiza autoimune.
Antes o mundo, então o mundo gradativamente povoado
de explicações ardilosas do mundo, por fim um invólucro
ao redor faz às vezes de mundo.
Casa 9 (As Esperanças e os Temores) | “Selo
do Destino”: Sacrifique Selo do Destino: Destrua
uma criatura alvo que não seja preta.
Ela não pode ser regenerada. | “O olhar de
um Basilisco é muito eficaz, mas desfazer-
-se dos cadáveres é uma tarefa cansativa.
É muito menos trabalhoso dissolver a vítima
por inteiro.” — Szadek
(O poder do Jade é fatal, mas a destruição é tanto
boa nova quanto maldição?) E como se enfrenta um
sistema com tal constituição? (O Jade não é nada sem
a sua atividade, mas a sua atividade reduz as coisas
todas a nada; é, então, inerentemente, suicida?) Talvez
As Esferas do Dragão | 163
com uma estratégia idêntica, uma razão de guerrilha:
vencendo pequenas batalhas em prol da empiria, distribuindo
postos de vigia da lógica, estabelecendo zonas
francas da dialética: um pensamento-cupim. (Eles têm
tudo a perder e não tem nada a perder, ou menos: são
cegos e inertes. Portanto deixar de ser visto é simples.
Fugir da sua linha de ação é simples.) “Faz sentido”, diziam
tanto a tanto, “faz sentido”, como a cada passo
desta argumentação, com seu ritmo, com sua força de
tração. Destarte surge um heroísmo da razão. Com a
mesma gula? A mesma luxúria? Semelhantes ira, inveja,
avareza e preguiça?
Casa 10 (Desfecho da Situação) | “Decreto
de Crufix”: Lampejo. No início da etapa de
compra de cada jogador, aquele jogador compra
um card adicional. | “O conhecimento é
cruel. Ele vai partir o seu coração e testar
suas alianças. Tem certeza de que deseja esta
maldição?”
Sim, eu respondi em minha mente de pronto, sem
escutar o que Kyua prognosticava sobre a nossa mis-
164 | Duanne Ribeiro
são; retornei minha atenção a ele, perdido na conversa.
O espadachim compreendeu e disse:
— Estaremos seguros assim que do lado de dentro.
O Jade é vazio.
As Esferas do Dragão | 165
Episódio 29
Eternidades das
Preliminares
de Partida
Era no decorrer da conversa entre as cartas lançadas
à mesa que eu exibia esses pensamentos sobre religião;
divinação concluída, continuamos. Fora o que
possa estar correto nessa argumentação, me seduzia
fundamentalmente provocar Jintoku. Mais do que contrariar
sua fé, o sabor da coisa estava em torcê-la entre
os dedos. Um iluminismo ateu como forma de realização
narcísica; mas, acima da erística, o fulgor do fato de
que a amizade compreendia essa espécie de ferocidade
sem ceder, como o globo de vidro, clichê natalino,
contém um fenômeno natural, o soçobro da neve — e,
mastigando essa metáfora, poderíamos imaginar ainda
outras miniaturas, esferas capazes de englobar pores
166 | Duanne Ribeiro
do sol, eclipses da lua, vulcões adormecidos, buracos
na camada de ozônio. Ao longo da noite, assim, tanto
chovemo-nos granizo quanto refrescamo-nos brisa de
mar. Universo declinando-se.
— Agora, você só falou tudo isso pra se justificar por
não ter rezado...
(Esta mesa, este bar — isso não se repetiria: logo
nos separaríamos indefinidamente. Quanto tempo dura
um universo?) As provocações de Kyua procuravam
o sentimento atrás da ideia, o que de cara já me irritava:
a ideia subsistia só ideia. Agora era como se eu não
pensasse que a crença dá espaço a uma degradação
progressiva do pensar e do agir — era como se eu tivesse
racionalizado que dessa forma fosse para esconder
uma frieza ou algo assim. A realidade, para Kyua, era
a sensação; a razão vinha, no mais das vezes, para tapar
o sentimento com a peneira. “Você quis rezar”, ele
interrogava, “você se sente mal agora por não ter rezado?”.
Não quis. Não me sinto. “Mas e a história que
você disse que quer escrever, não é uma forma de reza?”
Pode ser, aliás agora me lembro do que Clarice disse,
rezar a si mesmo com desprezo. “Hmm, tem algo aí mesmo
então. O que você sente?”
***
As Esferas do Dragão | 167
(Você joga esse jogo todos os dias. Há tantas, tantas
fôrmas disponíveis para preencher e esgueirar-se fora
do que se é, desbravando, todavia, adentro. Antes, espalhado
e inconsistente na convicção periclitante de
um eu; agora, aconchegando-se em um símbolo, juntando
características de si em um todo coerente. Caber
no Leão, ver-se de um só golpe em um descritivo de
poucas linhas ou em um gráfico deslumbrante, sentir
suas qualidades boas e más conectadas umas às outras
em um complexo indiscernível como o de uma demonstração
lógica, ganhar até algo como uma teleologia
pessoal, eu sou assim, eu serei assim; e daí a chance
de pensar a si: se sou assim, se serei assim, tais e tais
opções estão disponíveis e outras não. Mas os signos
são muito rígidos, pouco produtivos.
O que mais é apto também a esse tipo de efeito?
Considere. Seja como for, toma a tua mão: motivação
inconsciente: “Batedor Avançado”; influências passadas:
“Mamutes Lanosos”; futuro imediato: “Academia
de Nefália”; atitude do consulente: “Escorregão Trágico”;
visão das pessoas próximas: “Pacifismo”; esperanças e
temores: “Aboshan, Imperador Cefálida”; desfecho da situação:
“Fluxo de Ideias”.)
***
168 | Duanne Ribeiro
Como aceitar ou suportar ou admirar o paradoxo das
várias pessoas que existem a partir da mesma pessoa
em diferentes instâncias de relação, eu me perguntava.
Eu já reconhecia, espaçadas, facetas do velho Kyua neste
Kyua novo. E frações deste Kyua iluminavam outras
daquele. Logo, essas figuras desfocadas sobrepostas seriam
uma só, e eu perderia o saber das variações contextuais;
teria só um Kyua, producente dos dois casos.
Jintoku, por outro lado, jamais gerou em mim processos
do gênero — o modo como se comunicava de longe
rimava fácil com a performance de si que fazia ao vivo;
o humor frívolo e caustico, a erudição a postos, a
seriedade bonachona — naturais, sem erro.
Era curioso vê-los juntos, como se se misturassem
elementos químicos cuja soma era desconhecida. Não
opostos, algo como caos versus ordem. Muito mais:
um, caos na ordem, outro, ordem no caos.
Fruídas cachaça, carne, batata, cerveja, maconha, à
beira da missão suicida ríamos despreocupados. Dormimos
na toca do espadachim, ele na cama, nós em
colchões no chão. (Quanto tempo dura um globo de
neve?) No meio da madrugada, Jintoku acordou, perturbado.
Tivera o sonho que segue.
As Esferas do Dragão | 169
Episódio 30
Sonho do Dragão
Descascante
Vivia (sabia, no sonho, que sempre houvera vivido)
em uma caverna atapetada de ouro — moedas, troféus,
punhos de espada, armaduras —, onde aqui e ali brilhavam
pedras preciosas com os olhos de demônios. Convivia
(sabia, no sonho, que sempre houvera convivido)
com um dragão: o chumbo no focinho, o sangue nos
olhos, um corpo alongado e flexível recoberto de escamas,
sustentado por pernas como que de aranha.
Suas asas morceguentas raspavam a rocha, e do seu
nariz fumaça negra e espessa saía continuamente.
“É difícil respirar neste mundo, faz-se o possível”,
Jintoku lamentava-se a si mesmo, conforme se preparava
para, como em todas as noites, assassinar o dragão.
170 | Duanne Ribeiro
Reunia diariamente breu, gordura e pêlos de animais
variados, o que cozinhava até que se tornasse uma
massa oleosa e fedida. Modelava esse material em bolas
úmidas e peguentas e metia na boca do dragão.
O animal se contorcia, espirrava fogo e acabava morto
feito barata, virado para cima. Na manhã seguinte
(não é curioso que se possa dormir e acordar durante
um sonho?), estava lá como se nada tivesse ocorrido.
Então mais colofônia, lipídio, queratina, borbulhando,
evaporando, a pasta mastigada molemente por dentes
monstruosos, as contorções epilépticas, a morte. E aí,
na próxima manhã, a vida. Por uma eternidade — mil
duzentos e noventa dias — isso se passou.
***
Até que, uma vez, despertando de sonhos dentro
do sonho que não eram tranquilos ou intranquilos, da
nulidade narrativa acordou ele próprio o dragão. Gatinhou
em pavor para fora da caverna, cauda chicoteante
atrás, rasgando a terra com os unhões. Na folha de
água de um lago, teve confirmação. Chorou grossas
lágrimas que, em contato com as escamas, entravam
em calefação. Sentia o magma percorrer suas veias,
disponível, potente. O fogo à ponta da língua. Amedrontou-se
mais, e orou.
As Esferas do Dragão | 171
Suas preces foram atendidas. Foi visitado por um
homem com vestes de linho, brancas e beges, com
um cinto de ouro à cintura. Sua carne era uma espécie de
cristal levemente colorido, verde ou azul, dependendo
da parte do corpo. A cabeça não tinha boca nem nariz;
exatamente oval, transparente, via-se dentro dela, no
oco, uma contínua tempestade; pelos vazados que faziam
as vezes de olhos, o choque dos relâmpagos fazia
explodir luminescências como tochas de fogo branco.
Falava com a voz de mil homens e orientou Jintoku:
“Tenha força, tenha força”. Com uma adaga de bronze,
pôs-se a arrancar uma a uma as escamas do dragão que
meu amigo era.
Por semanas estenderam-se essas sessões extremamente
dolorosas de limpeza; à noite, as escamas se
regeneravam, e era preciso sempre recomeçar muitos
passos atrás do que se havia avançado. O intercessor,
não obstante, persistia. Depois de mil trezentos e trinta
e quatro dias, Jintoku não pode mais. Sacudiu as asas
enrijecidas pela falta de uso, sustentou-se periclitante
no ar e fugiu. “É difícil ser quem se é neste mundo, faz-
-se o possível”, justificou a si mesmo. Voou longe, longe,
o mais que pode, distanciando-se das suas orações
atendidas, do alcance do seu Senhor. Não poderia mais
ser visto por ele, ser monitorado por ele, agora trafegava
em direções impensadas.
172 | Duanne Ribeiro
Mas, sob as primeiras estrelas, notou-se pequenino.
Apercebeu-se de que o horizonte delineava um território.
Que o mundo sobre o qual voava era — todo
abrangente — apenas a palma do seu Deus.
As Esferas do Dragão | 173
Episódio 31
Invasão ao
Sanatório Jade
Correntes sacolejavam entre braços, correntes arrastavam
consigo a grama da colina entre pés. Em filas
longuíssimas eram escoltados inúmeros prisioneiros,
oriundos de várias direções, afunilando-se no Sanatório
Jade como se conectam ao corpo as patas da tarântula.
Os soldados atiçavam-nos com baionetas, puniam a lentidão
com insultos e agressões, debochavam daqueles
cujo poder não significa nada agora. Super-heróis; coelhos
da Páscoa; católicos canonizados; celebridades
mortas jovens; mártires dos quais cartilhas ainda falam;
filósofos que foram inventados por outro filósofos por
motivo de argumentação; escritores encardidos com a
sua imortalidade; personagens originais dos contos de
174 | Duanne Ribeiro
fadas estufados e deformados pela soma de si a todas
as suas releituras ao longo das épocas; amigos imaginários
e respectivos criadores; monstruosidades ou delicadezas
criadas por esquizofrenias várias; corporificadas
ideias tidas num instante, lembradas só levemente;
os deuses esquecidos idolatrados pelos dinossauros.
Seguiam escravizados como redentos foram os animais
à arca de Noé. Não podíamos salvá-los. Nós, em
número pequenino, só podíamos assisti-los mastigar a
dor e deixá-los. Toda fantasia morre hoje e aqui, toda
fantasia morre hoje e aqui, eu pensava, e nada mais eu
podia que testemunhar.
***
O estratagema de Kyua nos levou cuidadosos pelas
áreas menos vigiadas e pelos pontos cegos das torres
de vigia. O ritmo da atenção se estabiliza em rotinas:
o soldado averigua durante um tempo costumado um
certo espaço (digamos, durante doze compassos), assegura-se
de certa continuidade (no blues mais básico,
o primeiro acorde mantido durante 4/12, o segundo e o
primeiro, dois para cada, 8/12, aí terceiro, segundo, primeiro,
terceiro, 12/12 — permanência e variação programada),
enfim se dá por satisfeito e segue ao próximo
As Esferas do Dragão | 175
ponto onde deve repetir-se. Então: aguardávamos.
O mundo respirando do seu jeito e nós andando nos
vácuos entre expiração e aspiração.
O cheiro das plantas próximo e úmido fazendo cócegas
às narinas: aguardávamos. Os joelhos na lama,
as costas contra as viaturas, o sol subjugando as pálpebras:
aguardávamos. De vez em quando, tornava-se
necessário desacordar um dos militares; o mata-leão
os pegava desprevenidos, o sufoco não deixava soar
o alarme, o pescoço quebrado garantia a colaboração.
Avançávamos. Pouco a pouco, às vezes chamando
atenção demais, improvisando esconderijos onde o arrefecimento
das patrulhas demorava uma vida até o seu
ápice. Avançávamos. (Não só em música, o tema deve
ser desenvolvido, a dissonância solucionada; em Akira
Toryiama: permanência — duas procuras, uma gradativa,
que deve prender à contagem, um até sete, outra,
perene, que deve prender a um ideal em construção,
por exemplo, a fraqueza engatinhando para a força; e
variação programada — o motivo novo para ir número
a número até o desejo e para grau a grau debater-se à
areté). Entramos.
176 | Duanne Ribeiro
***
Dentro dos corredores, era como se a guarda perdesse
a existência. Primeiro, decaíam os detalhes dos
rostos: tornavam-se manequins que marchavam. Depois,
nem olhos, nem boca, nem nariz, nem qualquer
atributo, reduziam-se a manchas de cor ambulantes,
vermelho, verde, cores de pele. Então se transpareciam
e por fim evanesciam. Não obstante eu sentisse ainda
a sua presença, não parecia que podiam me ver ou me
afetar (isso seria desmentido); com certeza, ao menos,
não tinham mais uma capacidade contundente de
agir. Kyua ficou cheio de si por estar certo, até resolveu
explicar:
— A boa notícia – começou ele – é que o Jade é oco.
Sugam realidade dos mundos para que viajam. Nos próprios
espaços, não tem o que chupar, somem.
Por que, então, os prisioneiros se mantinham nas
suas filas, por que se adequavam às suas celas, eu quis
questionar. Conforme cumpríssemos as nossas missões,
nós os veríamos sem escolta, pondo a si mesmos sob
grilhões, encolhendo-se no canto dos quartos à frente
As Esferas do Dragão | 177
das grades escancaradas. Nós nunca nos livramos, depois
de compreendê-la, da tristeza de saber que os seres
mais autênticos do nosso território deliberadamente se
deixavam diminuir. You do it to yourself, and that’s what
really hurts. Mas o que eu perguntei foi: e a má notícia?
Kyua sorriu, cínico:
— É que são parasitas de apocalipses. Pressentem,
se estabelecem e consomem localidades frágeis. A má
notícia é que nosso mundo está mesmo acabando.
178 | Duanne Ribeiro
Episódio 32
Jesus Acorrentado
Liberta dos Grilhões
Os calabouços eram um grande galpão onde se multiplicavam
celas cúbicas de vidro. De pé, fixados em
um gesto, os olhos estatelados, os encarcerados eram
alheados do tempo. Sua excepcionalidade neutralizada,
borboletas alfinetadas em almanaque. O Jade cometia
uma taxidermia de carne viva. A fantasia morre aqui e
sempre, a fantasia morre aqui e sempre, pensava, mas
tudo o que eu podia fazer era percorrer os corredores
sem poeira, ponderar sobre o eco dos meus passos,
dar de comer ao desespero. O plano mostrou-se exato.
Chegamos ao quadrilátero onde estava Jesus Cristo.
— Meu Senhor!
As Esferas do Dragão | 179
Jintoku caíra sobre os joelhos. Jesus, na posição do
crucificado, mas sem cruz, os olhos muito abertos contemplavam
qualquer infinito miserável à frente. De
repente, o monstro rosa ergueu-se e socou o vidro; a
superfície se desintegrou uniforme, caindo como uma
cortina de pó cristalino aos pés do meu companheiro.
Ele arrastou o cativo para fora das esquadrias de metal,
sentou-se e o acalentou. A cabeça coroada de espinhos
em seu colo. Rezava, em um murmúrio frenético e incompreensível.
“Como adorar um deus tão fraco?”, eu
perguntei sem pensar. Jintoku parou um momento para
me rebater: “Como mistificar pela eternidade a própria
fraqueza?”. Deus fez-se homem, ele quis dizer, em
um sentido muito mais profundo do que o da cópia
da compleição.
Por três dias observamos a oração ignorar com veemência
a sua própria inutilidade, até que enfim o fracasso
se abateu. Jesus piscou debilmente; mais alguns
segundos e a inteligência voltou a ocupar a sua expressão.
Homem, pardo, de cabelo curto e olhar inquietante,
feio, com mãos marcadas de trabalho, pés cheios
de calos das estradas batidas. Pressentia-se seu senso
de humor e seu senso de confronto — e sentia-se
debaixo da pele que ele encarnava o que pudesse ser
o divino. As pupilas fixas do meu amigo denunciavam
o amor e o pavor a que estava reduzido. Ter no colo,
180 | Duanne Ribeiro
segundo sua fé, a essência do universo. Jesus olhou-o
nos olhos, “obrigado”, e ergueu a mão lenta, direita, e
dois dedos estendidos, algo dobrados, leves, tocaram
o rosto do crente.
O corpo de Jintoku expulsou-se de si. Deslizou violento
acima, troposfera, estratosfera, mesosfera, termosfera,
exosfera — e voltou. Despencou a alma transbordante
de retorno ao corpo oco, agora a carne pesadíssima,
opressa por uma gravidade hiperbólica, esmigalhado,
humilhado, consciente do que é em relação
a. Uma voz também percorre seus neurônios, elétrica e
terrível: do you not love me am I not worthy will you love
your own life above me. Jintoku chora. Jintoku ri. “O que
ele lhe fez?”, eu lhe perguntei um dia, “aonde ou ao que
ele o levou?”; e meu amigo respondeu:
— Eu ainda tenho medo de pensar no que ele dirá
para mim e no que dirá de mim.
De nossa parte, o que vimos foi Jesus bomba de luz
evanescer no espaço. Jintoku continuou no chão. Nos
disse para seguir em frente, que estava terrivelmente
justificado e feliz, que precisava de tempo para desacostumar-se
dessa fé estável e funda. Nós o deixamos.
***
As Esferas do Dragão | 181
O desenrolar da aventura não permitiria que nos
reuníssemos novamente tão cedo; antes de vê-lo outra
vez, eu escalaria a torre, me moeria no lombo da
cobra e assistiria ao debacle dos planetas miniatura
— e ainda mais coisas para além desta história. Assim,
apenas anos depois Jintoku me contaria o que ocorreu
mais tarde naquele dia.
Ainda era, para ele, como se o Cristo estivesse ali.
O conforto das farpas de saber-se nada ainda lhe compunha
e soçobrava. Todos os seus gestos de força eram
revelados como prestidigitação. Poderia continuar enganando
aos outros e a ele mesmo, poderia voltar a andar
entre os homens recorrendo às farsas e às evasivas
de sempre. Mas agora era como se observasse o seu eu
eficiente à sua frente, e, vistos assim distanciados, os
seus estratagemas e fugas de primeiro minuto pareciam
— indignas? Bastaria reparar a dignidade por linhas
tortas. Não se tratava tampouco de enfim se reconhecer
em pecado: pode-se armar para si um comércio de desvios
e compensações que dure uma vida. O que lhe
ocorrera fora a seguinte epifania: não havia agência nos
seus erros. Lançava seus erros adiante como batedores;
estabelecia campos avançados de erros, deixava que
atuassem em seu lugar. Eram golens, escravos que o
imobilizavam em pujança. Como retornar-se à vida,
182 | Duanne Ribeiro
como retornar os golens à não-vida? Escreveu na testa
de cada qual seu nome próprio. Desabaram em poeira.
Golens então; agora, ele, gal’mi. Humilhado, pó; recomposto:
argila. Meu companheiro finalmente pode
sentir a energia voltar aos seus membros. Abraão
teve de chegar às margens de matar o filho; a Jintoku
foi suficiente e necessário assassinar o seu senso
de autoproteção.
As Esferas do Dragão | 183
Episódio 33
Líquido Amniótico
no Seio do Robô
Kyua caminhou convicto pelos corredores, sem fazer
menção de checar o mapa, como se percorrera aquilo
— as trilhas ao “futuro”, sua meta anunciada — vezes
inumeráveis. Como se prosseguíssemos em direção
ao futuro irremediavelmente. Atravessamos uma porta
adereçada de turquesa, ouro e diamantes. Chegamos a
uma plataforma pintada com listras vermelhas e pretas,
suspensa em uma tal altitude que não se distinguia o
fundo. À meio caminho das suas extremidades, via-se
a cabeça roxa de um monumental robô. Seus olhos,
verdes, chapados, eram agressivos e inexpressivos.
— Isso vai ser legendário, exclamou Kyua.
184 | Duanne Ribeiro
Contornando o titã pela lateral, acionou um botão.
Um compartimento cilíndrico foi expelido da sua nuca.
O espadachim se voltou a mim: “Só tem espaço pra
um. Mas, daqui a um tempo, se você ligar de novo, a
cabine vai sair e vai estar vazia. Aí você pode entrar,
e nos encontramos do outro lado”. Não posso, você
sabe, tenho tanta coisa a cumprir, roguei. “Massa”, ele
retrucou, “nos encontramos do outro lado, então”. Saltou
para dentro da nave, que se fechou consigo e se
introduziu no corpo.
***
Também só soube do desenrolar dessa aventura
muito tempo depois.
Dentro do cilindro, havia pouquíssima luz. LEDs débeis
deixavam ver manches, esquerdo e direto. O guerreiro
segurou-os; um pressentimento lhe perturbou os
dedos como eletricidade: o maquinário era vivo, expectante.
Todavia, ativou a estrutura integralmente.
Um líquido alaranjado, ejetado por todos os lados, preencheu
toda a cabine. Ao invadir as vias aéreas, proporcionou
um curto sufoco — logo se percebia que,
estranhamente, ainda era possível respirar. O toque
As Esferas do Dragão | 185
da substância sobre a pele, sua circulação através dos
pulmões ao sangue e assim a todos os órgãos internos,
fazia o corpo esquecer da sua identidade. Kyua era agora
como um quebra-cabeça a ser montado. Até mesmo
os seus conteúdos mentais flutuavam dispersos. Onde
é quem estava testemunhando essas coisas? Uma liberdade
tremenda ali era oportunizada: qual alucinação
iria performar?
Digamos que a seguinte: despojado de tudo, nu,
agora pontinho imerso em um oceano de vitalidade
concentrada. Laranja carregado, pulsante. Não era como
nadar: era como atuar sem peso. Brincava sob a
ausência de gravidade, os pés para cima, a cabeça para
o chão (mas tais palavras colapsaram). Era tudo potência,
mas no interior do riso havia, contudo, outro
burburinho... chilreios, ronronares, zurros, sim, porém
não discerníveis, um amálgama animalesco, uivo, guincho.
Estavam escondidos (o que supunha que ele fosse
algo como um protagonista) ou só estavam, latentes
como lhes cabia ser? Balidos, gritapos, não, nada definível,
mais a percepção da própria categoria do ruído.
Um deles se deixou ver, não obstante; um peixe
pequenininho, à guisa de vaga-lume, logo ali...
Como assim? Assim: aparecia a tempos, saltante,
lampejo na escama, e voltava a afundar invisível. Eis
que pulava — e tornava a mergulhar. Kyua sabia que
186 | Duanne Ribeiro
não era apropriado pensar: seguiu o peixe, até que o
bicho tomou conhecimento dele. Virando-lhe o corpo,
a nadadeira atrás sem estancar as sacudidas frequentes,
não desapareceu mais. Sua boca abria e fechava
compulsivamente.
— Esse trem aqui é tudo metáfora que eu tô ligado.
Se tivesse um cigarrinho aí ia ser mais fácil digerir
o negócio. “Bom, tenho de me virar. Você só pode ser
uma representação do inconsciente...”. A boca abria e
fechava expressivamente? “O que é que meu inconsciente
está querendo me dizer...”. A boca abrindo e
fechando silente.
***
De repente, identificou naquela síncope uma mensagem:
“Eu posso te derrotar”. E se assustou. “Eu posso
te derrotar”, era um desafio ou uma constatação?
O espadachim não os vê, mas na extensão ao redor
despontam figuras fantasmáticas, homens, mulheres,
que falam baixinho, ardilosos; todos enunciam “eu posso
te derrotar”, embora com outras palavras, outras
histórias, outras acusações. A mudez do peixe, o coro
opressivo, seus sons volumosos intensificavam-se e
As Esferas do Dragão | 187
atenuavam-se. Tentou opor um “eu posso lhes derrotar”,
mas isso pareceu uma bravata até para si. Tentou o
“pode, sim”, e foi atravessado por um frescor. Escorado
nesse tipo de clareira, dedicou-se a tomar notas.
Mais um dos seus instrumentos de magia? Afinal,
se registrava “hoje, eu pude ser derrotado”, uma mudança
fundamental havia sido executada. A falação tão
múltipla obstava com esse saber simples. Mesmo quando
a cacofonia alternou sua linguagem — discorrendo
“seria melhor ter seguido outro caminho”, “é isso o
que você é e não mais”, she said: you aren’t never going
anywhere — ele soube displicentemente dispensar toda
a sua semântica, registrar somente as linhas de força,
para cima e para baixo. Mais ainda, mais fundo:
importava tampouco a oscilação, interna ou externa, o
que era decisivo era o ato de observar-se. O olho dele
sabendo: hoje isso, hoje aquilo. Ajustando-se, criando-
-se para depois: “O devir não te pega se você é movimento
também”. Como? Me dê uma metáfora.
— Lá no topo é tudo paralisia e medo da descida, da
ladeira. Deslize.
188 | Duanne Ribeiro
Episódio 34
Prazos de
Validade
da Magia
Sim, em nenhum lugar pareciam estar os combatentes
de Jade. Mas gradativamente a sua presença invisível
foi se tornando mais insidiosa: sua intenção me
tateava, eu respirava um ar distorcido pela sua avidez.
Ignorei os sinais disso o quanto pude, mas a partir de
determinado ponto, um certo peso nos meus membros
se tornou intenso. Tratava-se de uma infecção, de alcance
crescente. Em pouco tempo mais, a sensação se
elevava a paroxismos — tamanha força tinha que me
fazia cair de joelhos — para, súbita, desvanecer, como
milhares de moscas que num baque se afastassem de um
cadáver. Segui pelos fluxos e refluxos dessas investidas
fantasmas; talvez por sorte, alcancei o meu alvo.
As Esferas do Dragão | 189
***
Eram marrons claras as escadas de pedra pelas quais
desci. Talvez nem tanto marrons como beges, ou cor de
oliva... acima da entrada, uma cabeça monstruosa, olhos
redondos vidrados e abaixo deles asas ou bigodes, asas-
-bigodes, agitando-se sobre os punhos em formato de
soco com que se apoiava nos pilares aos lados da porta,
os quais formavam com ela um triângulo escaleno.
Esse limiar levava a um jardim: seis árvores de um estranho
tronco triplo e convoluto, uma para cada face
do polígono à esquerda e à direita; um gramado verdinho,
alagado, seguindo o círculo das árvores, por uma
poça da água, não, por um ribeiro rasíssimo do qual
não descobrimos a nascente; no centro, três pilastras
bordeavam um pátio com um desenho esculpido, sol
com ponto final no centro, sol-olho, oito retas fazendo
as vezes de raios de luz. O local estava repleto de outros
com a mesma fantasia que eu.
Você se lembra. Chapéu cônico, calças listradas, cinto
de fivela enorme, casaco de mangas dobradas, luvas
enrugadas sobre os dedos. Eram todos assim, com suas
pequenas variações de vestimenta, de cores, de tamanho.
Uma marcante distinção, contudo: não tinham, ou
não exibiam, rosto. Sombras bruxuleavam em torno de
190 | Duanne Ribeiro
olhos amarelos vívidos como lâmpadas fluorescentes.
Com receio, segui até um deles; a criatura foi como que
ativada pela minha presença.
— Como você sabe que existe? Talvez nós
não existamos...
O quê? Me diga o que são vocês. Me diga onde estamos.
Mas o sujeito só parecia capaz de repetir a sua
arenga, “como você sabe que existe? talvez nós não
existamos”, “como você sabe que existe, talvez nós
não existamos”. Andei até o próximo, sobre o qual causei
o mesmo efeito disparador: “Ei, você sabia que o
tempo flui igualzinho à água?”. E mais do que isso não
fui capaz de arrancar dele. O próximo exclamou: “Nós
só podemos continuar vivos por um certo período de
tempo”; e, adiante, outro: “Talvez nós sejamos bonecos
criados para servir aos humanos”. O ser dessa gente
se reduzia à performance dessas frases às quais tinham
sido incumbidos por algum programa. A dois deles uma
missão diferente tinha sido dada. Pareciam conversar.
Ativei-os indo até eles:
— É este quem veio aqui com aqueles humanos?
— Ele é ok. Veja os seus olhos. Ele é atento, assim
como nós.
Gesticulavam na minha direção. Observavam-me acurados.
O segundo resolveu me explicar algo:
As Esferas do Dragão | 191
— Isto aqui é um... qual é a palavra?
— Um cemitério – respondeu o outro.
— Certo. Um cemitério.
Como um golpe no estômago veio a recrudescência
da infecção. Cambaleei e cai, sustentando-me com as
mãos. Minha cabeça pulsava quente e dolorida, grande
tambor atrás dos olhos.
— Nós nos tornamos atentos um dia, cada qual em
diferentes circunstâncias.
— Você se lembra de ter nascido?
Uma batida, duas batidas, as pupilas em febre, as lágrimas.
Três batidas. Eu vomitei aos pés dos dois magos
de sombra que conversavam, entrecortada pela minha
tosse eu escutava sua voz monótona. Diziam: “Muitos
dos nossos pararam de funcionar recentemente.
Os que foram produzidos primeiro pararam primeiro.
Varia um pouco, mas a maioria para de funcionar um
ano depois da produção”. Oito batidas, nove batidas
— por que não morrem agora, então? — a raiva um paliativo
para a minha dor, ela mobilizava algo que eu
cria obliterado, kasshoku, cobras de tinta devorando as
piranhas do nada, anticorpos ou primeiros invasores
contra os invasores tardios. Eu suava, trêmulo.
192 | Duanne Ribeiro
— Mas viver nesta vila com todo mundo me enche de
alegria. Não é o mesmo para você? Viajar com os seus
amigos dá sentido à sua vida.
E doravante, brinquedos de corda exauridos, passaram
a reproduzir suas falas, não é o mesmo com
você?, embalando-me conforme eu afundava nesse pesadelo,
você se lembra de ter nascido?, eu o palco de
uma disputa, qual é a palavra?, eu um personagem
como eles porém com uma habilidade retórica maior,
um cemitério, qual é a palavra?, você é atento, assim
como nós.
***
Despertei. O tormento passara. Abri os olhos. Negrume.
— Nos enganamos a seu respeito.
Negrume; e essa voz... sim, a minha própria. Mas
não era eu.
— Não divisamos de início que você era o comburente.
Agora está claro.
Senti enfim minha bochecha contra a grama e, abaixo,
a pedra. Tive de me esforçar para mobilizar as minhas
mãos. Senti o chão nos dedos. Forcei-me acima.
As Esferas do Dragão | 193
— Não é impossível capturar um comburente. Sim,
sempre trabalhoso. Consequentemente, sempre recompensador.
Mas a intraexegética agiu preemptivamente
no seu caso.
Eu estava de pé. Agitava os braços no ilimitado. Não
conseguia falar. Minha voz estava mesmo fora de mim?
Fechei os dedos num punho e avancei contra a fonte do
som. Varei o vento.
— Talvez ainda haja uma chance para nós, tentaremos,
mas se julgue vencedor.
Ele riu um riso meu, adoçado com uma ironia minha.
Ele dirá: é uma vitória de Pirro...
— É uma vitória de Pirro, como uma de suas expressões
disse. Embora você esteja errado quanto a
sermos “parasitas”. Bem. Não se podem salvar todos os
mundos. Vá!
Silêncio. A sensação do espaço sem ocupantes. Ele
(?) me dera permissão ou declarara desistência?
Eu tinha de sair dali, de todo jeito. Cheguei à parede;
tateei as suas formas geométricas até alcançar uma
ausência. Era o lado oposto do octágono. Uma saída.
Tropeçoso, desesperado, eu sai.
194 | Duanne Ribeiro
Episódio 35
Abrigo Contra
a Tempestade
As sombras eram consistentes como fumaça e se arrastavam
sobre o meu rosto como serpentes. O tempo
fez com que se rarefassem o suficiente para que eu
pudesse enxergar através de si um pouco — ou me
acostumei a ter um mundo turvo. As sombras se entranhavam
também em minha carne, enrijecendo os
músculos, arrancando o fôlego. Para avançar um pouco
que fosse eu tinha de extrair de mim toda força física
e toda potência do Qi. Gradativamente, fui-me tornando
menos pesado ou me acostumei com o peso. Vaguei
por dias pelo inóspito, reconhecendo nas águas de um
lago e de outro que eu me tornara uma criatura sem
definição. Até que avistei uma casa ao longo, e felicitei-
-me por poder parar. Era uma vista à beira-mar, águas
As Esferas do Dragão | 195
claras de Parati banhando a areia fina, paredes brancas,
janelas muito azuis, telhados marrons de Campos
do Jordão, chaminés roxas. Uma alegria de Buenos Aires
toda em torno. Então reencontrei, silhueta na luz do
poente, Shiawase.
“Onde você esteve?”, perguntou ela. Muitos lugares,
eu disse. “Você parece diferente”. Pois é. Acho que
sim. “Você vai ficar?”. Por ora. Porém logo devo partir.
***
Algumas refeições atingem a dignidade de arquétipos.
Nesta mesa em redor da qual eu me afeiçoei à família
de Shiawase, um comum fora sendo criado novo
a novo. O frouxo ritual que disto resultou efetivava-se
entre câmara de descompressão e mirante. No almoço,
tínhamos macarrão coberto de queijo, feito no forno.
De sobremesa, sorvete — flocos, chocolate, morango —,
em taças de plástico colorido. Nos fins de tarde, café
com leite semidesnatado e pão, acompanhado de frango
desfiado e mortadela. Todo o insosso contente do
pensado “para sempre”; de tal consistência que até hoje
a sua lembrança é sólida o bastante para que eu não
só a reproduza como imagem, mas que adentre e respire
um pouco do seu hálito, pavio aceso nas sobras da cera.
196 | Duanne Ribeiro
Era uma família grande. O pai era inventor; havia
construído não só Shiawase como três irmãos, dois
deles pequenos — um menino e uma menina, ambos
de cabelos verdes e asas pequeninas com as quais borboletavam
abaixo do ventilador de teto — e uma jovem,
com quem toquei violão às vezes. O patriarca, humano
engenhoso, após criar tanto maquinário externo, por
essa época projetava um reequipamento de si: um exoesqueleto
eletrônico recoberto de marfim de granito
que lhe tornaria uma potência visível a quilômetros.
A mãe também era inventora; sua obra, todavia, era a
casa. Sob o porcelanato movimentavam-se sem cessar
engrenagens conectadas por engenhocas de toda sorte
a todos os móveis da residência. De tempos em
tempos, a dona, tomada de inquietude, revolvia os locas
determinados, sofás agora em ângulo reto com a
estante, mesa de jantar dessa vez ao lado direito do
televisor; no subterrâneo, os mecanismos e cabos elétricos
ronronavam — ela agia como quem acertava um
relógio ou como quem buscava a combinação que escancara
um cofre.
Além deles, havia a avó, alta, magra, de saião, óculos
de vidro côncavo escurecidos. Com seus passos
largos percorria os sebos e brechós da cidade e presenteava
a família com os achados. Discuti com ela política,
e foi esse o acontecimento que tive de super-
As Esferas do Dragão | 197
valorizar, essa a memória que fui forçado a ruminar para
subverter à nostalgia o baque de quando a perdemos.
***
Shiawase era — como se torna claro em relação a
todos nós quando vistos suficientemente de perto —
um efeito da sua configuração familiar. O descanso na
operosidade, de um lado, e o comodismo perturbado
por solavancos sazonais, de outro, produziam uma eficiência
de hipnose autoinflingida. Era forte ou resistente
como quem prende a respiração debaixo d’água
e conscienciosamente inerte como quem boia entre as
ondas, o sol acima ofuscante; a mira entre calculada e
intuída do atirador somada à cegueira no voo do projétil
de efeito seguro. Conforme a observava, mais uma
vez eu me encantava pela capacidade de trabalho de
alguém; e meu afeto incipiente se estendia regiões
muito antigas da minha simbologia particular. Eu me
apaixonava pelo mesmo renascido do outro?
Sem dúvida, algo das condições de possibilidade do
amor está nessa oportunidade de reencarnação do tipo
de afeto que nos aqueceu antes, assim como na instauração
de novas fontes de calor que o alimentam de
198 | Duanne Ribeiro
forma oblíqua. Mas essas são, ainda, exterioridades.
No limite, só é razoável dizer: eu me apaixonava, ação
que regride aquém das designações de causas eficientes
até uma singularidade tão irredutível quanto a alternância
entre o sim e o não. Eu me apaixonava por que
teria o que tive? Eu me apaixonava pelos novos lugares
aonde voltar? Eu me apaixonava pela sonolência do
carinho? Eu me apaixonava pela satisfação da minha
idolatria a mim mesmo? Eu me apaixonava pelo ato de
me apaixonar? Exaustão das explicações: seria igualmente
fácil dizer: o amor veio pois a noite veio.
À noite, as ondas quebravam nos paralelepípedos da
Praça Nossa Senhora Aparecida, em Santos. A menina
esteve comigo frente ao mar insuspeitado, às florações
de espuma suspensas no vazio; aqui um outro arquétipo
esculpido? O banco de pedra curvilíneo, dois jovens,
preservados doravante no pétreo das idealidades. Essa
brisa de eternidade anuncia: a bonança que vem é da
cor dos teus olhos castanhos. Mapeamentos da textura,
lampejos do cheiro, intrepidez do gosto. Diluição.
O oceano, estou certo, me ensinou algo, mas algo alheio
a qualquer língua que eu aprendera.
As Esferas do Dragão | 199
Episódio 36
Libertação dos
Passarinhos
O amor é então essa aurora boreal que para se estender
no tempo fará as vezes de âncora. Contudo, é um
vetor entre outros; paixão na revoada das paixões, na
competição entre as paixões, e em mim um apaixonar-
-se pela viagem, ou mais, pela transformação, recendia
e retornava para conquistar as balizas mentais, inchar-
-se até ocupar o espaço completo da vontade. Esse
gosto do transtorno era filho do mesmo dinamismo
que havia dado condições de possibilidade ao amor;
contanto forte, esse último tinha nele um oponente à
altura, senão maior. Com isso eu digo: eu amo, tenho de
ficar; com isso eu digo: eu amo, tenho de partir. Ama-se
mais do que pessoas. “Eu amo” é um prisma.
200 | Duanne Ribeiro
Para acalmar esse paradoxo, passei a investigar as
proximidades da casa de Shiawase. Esperava que em
algum ponto do perímetro algo me indicaria onde procurar
as demais esferas. Na solidão dos caminhos eu
regenerava a minha capacidade de afeto, porém. Quando
eu, sem entender, me via de volta, e, ainda mais sem
compreender, querendo permanecer, eu sabia que algo
em mim havia sido alimentado e que algo em mim agora
tinha fome.
***
Em algumas dessas incursões, não obstante, Shiawase
veio comigo. Avançamos pelos gramados sob os quais
uma estranha terra se distribuía, em blocos quadrados,
amarelos e marrons. Grandes flores com as pétalas em
formato de estrela e totens primitivos com rostos esculpidos
(olhos e bocas preto contornado por verde,
alguns impassíveis, outros assustados) margeavam o
percurso. Por aberturas na superfície descíamos ao subterrâneo
onde estalactites de gelo pingavam sobre as
nossas cabeças e grandes caranguejos vermelhos tentavam
nos ferir. Saltávamos pelos suportes de toras
amarradas de madeira que flutuavam sobre as cachoeiras,
desviando das piranhas que pulavam bem alto
As Esferas do Dragão | 201
para fora da água, destruindo as vespas robóticas que
nos ameaçavam.
As aventuras agora não me aproximavam do objetivo,
pelo contrário me afastavam dele, ou melhor, do
doído incômodo de imaginar tê-lo à mão e não alcançá-
-lo, por que ainda me aventurava então? E ela, por que
me acompanhava? Adquirimos o luxo da imanência: os
percursos valiam por poderem ser percorridos. Equilibrando-se
nos longos caules que serviam de pontes nas
florestas, passeando em alamedas de plantas altas como
árvores rodeadas de flores vermelhas, expressávamos
que estar ali e ter estado lá bastavam-se. Preenchíamos
a palavra “juntos” de sentido.
Foi nessas explorações sem alvo que nos deparamos
com as prisões de passarinho. Eram estruturas de metal
cilíndricas, com porta de vidro, pouco maiores do
que um elevador mediano. Eram gaiolas. Não soubemos
quem prendera os animais, se o exército Jade, se
Kachiaru, se outro, mas nos demos a missão de libertá-
-los. Por semanas seguimos, aumentando a liberdade
do mundo aos pouquinhos.
Pelos templos de povos antigos, feitos de blocos de
pedra amarela com deuses remotos esculpidos, pelos
complexos industriais de pisos e paredes metálicas em
meio aos quais a cidade entardecia em laranjas escu-
202 | Duanne Ribeiro
ros e claros, pelas plataformas acima das torres em
construção que tremeluziam sob a ventania e as luzes
da tempestade — quebrávamos os cadeados, estilhaçávamos
as passagens, e de lá voavam pintassilgos, tico-
-ticos, canários, sanhaços, periquitos, bicos-de-lacre e
uma hipérbole de espécies. Surpreendi-nos múltiplas
vezes assistindo ao espetáculo de mãos dadas: as asas
riscando gizes amarelos, verdes, vermelhos, marrons,
brancos contra a normalidade.
***
Então, quando aparentemente tínhamos cumprido
a hordália, um susto no céu: eis novamente ele, eis o
inimigo, rasgando uma avenida nas nuvens. No horizonte,
a torre de Hermes erguia-se vertical. Tudo indicava
que ele se dirigia para lá. A oportunidade da
batalha de novo assomava.
As Esferas do Dragão | 203
Episódio 37
Esfera de Sete
Estrelas: Cícera
Retornamos sob essa sombra e quando chegamos tivemos
a notícia: a avó de Shiawase falecera. O velório
aconteceria naquele mesmo dia. A casa estava repleta
de familiares.
Não havia o que o inventor pudesse construir; os
maquinários se acumulariam tolos frente à tarefa de
reparar o fim. Não havia rearranjo da casa ou da vida
que a inventora pudesse empreender que fizesse o tempo
girar em falso. Aproximei-me do cadáver no centro
da sala, suas mãos sobre o peito, pousadas uma sobre
a outra, a pele parda e as veias grossas, eu toquei uma
delas e me deparei com uma nova qualidade de frio.
Não o da pele resfriada pelo dia de inverno, sob a qual
204 | Duanne Ribeiro
sem nos darmos conta pressentimos o movimento dos
fluídos, o burburinho dos nervos e músculos. Um frio
quieto e seco. A frieza de um objeto. O prurido que eu
fingisse estar nele sendo apenas eu.
Toca esta página agora. Toca. É assim.
***
Após o enterro, os pais de Shiawase me entregaram
um pequeno baú que a avó havia deixado para que me
encaminhassem. Dentro havia um bilhete — “(...) sei
que procura coisas desse gênero; achei essa entre edições
velhas de uns livros que eu tinha” — e, inesperada,
a esfera de sete estrelas.
***
Certos seres da infância e velhice crescem largando
para trás da pele renovada, como um tapete de carne
amarfanhada e mais ou menos peluda, a pele antiga.
A epiderme se estende por quilômetros ao fim de uma
vida; nelas os seus donos leem augúrios; nelas os demais
inventam teorias e segredos. Quando morreu
As Esferas do Dragão | 205
Cícera, avó materna da Letícia, pensei ter chegado pela
primeira vez à compreensão do que era a morte.
Não que eu não houvesse presenciado a morte antes.
Pequeninho, contam de mim que frente à minha bisavó
moribunda ou defunta eu perguntei: “A vozinha está
dormindo?” (a história tem “inocência de criança” o suficiente
para ser tanto verdade quanto mentira). Mais
tarde, compareci ao enterro de um primo da minha
mãe, Rubens, ainda criança, e, partindo de uma ideia
do que era o comportamento correto para um velório,
tentei me forçar a chorar (creio que consegui uma ou
duas lágrimas). Mas essas experiências como se vê não
ultrapassaram um turismo da morte. Certas serpentes-
-humanóides casam-se em uma cerimônia de troca
e intercâmbio de pele. Comem o invólucro antigo do
parceiro, costume que, manda a tradição, devem reproduzir
frequentemente, alimentando-se do que o outro
foi, até que este se descasque à insignificância como um
palimpsesto exaurido. Cícera morreu tão brevemente.
Estava andadeira como sempre, visitando brechós e
sebos e trazendo sacolas de tralhas para casa, de repente
foi abalada pelo mal-estar, descobriu em si um tumor
e em uma semana não mais era. Eu encostei no corpo —
e o corpo estava frio. Um frio não-natural, paralisado,
brusco. A pele possuí uma verdade que nós ignoramos
cotidianamente. Naquele dia, eu prometi, mais ou menos,
lembrar-me de tocar o outro, sentir o calor próprio
206 | Duanne Ribeiro
do vivente, de abraçar, quem sabe, pois que tudo isso
é efêmero, os primeiros a serem assassinados serão o
toque, o cheiro, o gosto. Beija esta fronte morta: a dureza
confronta os teus lábios, ridiculariza o teu afeto.
Os narizes tapados com algodão lembram que é tudo
uma farsa; o odor doentio das flores teria um acento de
podridão sem cuidados de contra-regra. As pessoas que
amamos são carne, são sangue, amamos o que pulsa,
perdemos o que pulsa. Eu chorei. E me questionei: eu
posso chorar? Tínhamos nos conhecido há pouco tempo,
tivemos poucas conversas, mas eu lhe guardava
simpatia — e isso é o bastante para chorar? Senti o
pavor do possível impostor. Chorei, de todo modo.
Claro, ninguém me repreendeu e é mais provável que
ninguém me julgasse. Hoje ainda testemunharia a meu
favor, hoje eu ainda me diria sincero. Se não podia
chorar, havia o que chorar: o choro é a reinvenção da
pessoa como memória, é a reorganização das memórias
não mais como dínamo, mas arquivo.
As Esferas do Dragão | 207
Episódio 38
Anciã no Céu
sem Livros
E se a verdade fosse só um contra-tempo? Urgia uma
história para recobrir a dor, morfina no sangue do luto.
Senti o frescor da fantasia assim que vislumbrei a
premissa, mais ou menos:
“Para a avó, ter morrido não fora mais que
um espirro; falecer coube num ops!, num
eita! e quase chegava ao mas minha gente!
Ela sacudiu a cabeça, alisou o vestido no
corpo e olhou ao redor. Era o Céu. Ali na
frente, São Pedro lhe olhava curiosíssimo.
208 | Duanne Ribeiro
Quando a mulher lhe fitou, ele se apressou
a perguntar: “Isso que a senhora traz aí
são livros?”
Sua sabedoria teria sobrevida, sim, que alegria!
O próprio Paraíso teria necessidade do seu garimpo
literário. Uma estrutura precisa logo aderiu ao germe
do enredo, e eu soube que teria de levar o leitor por
uma jornada de encontros pontuais, cada qual com um
livro no bojo, pois só assim seria renovada vez após
vez a aventura, de tal modo que mesmo após o fim dos
episódios se estabeleceria claro que o caminho poderia
prosseguir indefinidamente.
“Sabe, minha senhora? Por aqui nós só temos
a Bíblia, e nem um épico tão sangrento,
uma deliberação ética tão portentosa,
uma argumentação teológica tão embrenhada
quanto ela pode sobreviver ao tédio de
uma eternidade de leituras. Já reviramos os
textos sagrados de tudo o que é jeito, já lemos
escondidos todos os apócrifos. A gente
quer uma novidade.”
As Esferas do Dragão | 209
São Pedro era baixinho, a senhorinha era
alta, então ela o via um tanto de cima, agitando
a cabeça em concordância de vez em
quando. Quando ele terminou, ela se agachou
e abriu a mala que trazia consigo.
Estava repleta de livros. São Pedro sorriu de
maravilha. “Acho que você precisa de uma
série. Pra ter bastante e durar. Em Busca do
Tempo Perdido ou Crônicas de Gelo e Fogo?”,
perguntou a mulher. “Manda os dois”, respondeu
o santo.
Seria interessante também, pensei, se não só o conto
fosse sendo guiado pela entrega de histórias, mas se
a sua própria tessitura fosse costurada de narrativas
outras. Desde o título — uma corruptela de Lucy in the
Sky with Diamonds: Anciã no Céu sem Livros — até os
anjos que encontrasse em seu périplo, que teriam asas
de crepom branco e algodão grudadas com Super-Bonder
para referenciar Cherub Rock. Como se saltássemos de
uma a outra; uma infraestrutura Mil e uma Noites.
“Será que a senhora poderia fazer umas
visitas aqui pelo nosso cafofo, levando es-
sas glórias de Deus?”, pediu São Pedro, “sabe,
210 | Duanne Ribeiro
minha senhora, tem gente por aqui com mais
de trinta mudas de pena e não botou a mão
nem em um gibi.”
De Miguel a Rafael a Gabriel a Uriel a Jegudiel a
Salatiel a Baraquiel, distribuindo de Joyce a Pratchett
e de Amano à Clarice. Talvez inserir um interlúdio em
que a avó é contatada por Lúcifer, que pede a ela que
diminua o déficit livresco do inferno. Então de Belzebu
a Mamon a Azazel a Asmodeus a Leviatã a Belfegor e
de volta outra vez à Lúcifer. Quem sabe a leitura dissuada
as facções da guerra final que levaria ao apocalipse,
e o filho pródigo da luz reate os laços com a luz
pela luz da poesia.
Ou ainda possivelmente o próprio Deus sinta falta
de um livrinho, mas nada já escrito poderia trazer satisfação
nesse sentido, então o Todo-Poderoso demandaria,
analogamente ao evento nuclear de A História
Sem Fim, que a avó lhe diga um nome, um nome novo,
que pingará em Si fazendo tremer águas primordiais,
nome-semente inesperado como Adão, como Eva, “outra
chance de a Serpente Me presentear com A Surpresa”,
nome-big-bang, e eis que a avó o diria, e o nome seria
As Esferas do Dragão | 211
***
Li o conto à Shiawase, ela sorriu com ternura, abaixou
os olhos mareados e se deixou em silêncio. A folha pendia
na minha mão, exaurida das suas potencialidades.
Deixei-a cair. Mantive a quietude por mais algum
tempo e então me confessei: devo partir. Ela olhou para
mim como se já soubesse. Aproximou-se, estudou o meu
não-rosto, tocou as sombras, que se enrodilharam entre
seus dedos lentas como um óleo, rarefeitas. Com
suas mãos brancas ela afastou as trincheiras e me encontrou.
Beijamo-nos. Então tomei minhas coisas e
caminhei ao fim.
212 | Duanne Ribeiro
Episódio 39
Escalada da
Torre de Hermes
A torre de Hermes rivalizava em altura com o pico
do Jaraguá; erguia-se, cilindro de pedra-amarela, até as
alturas de uma memória imperecível. No sopé, estava
o deus que lhe dava o nome. Seus pés sangravam: alguém
havia arrancado asas que, mais intrínsecas que
sandálias, nasciam diretamente deles. Seu corpo, coberto
por vagos panos brancos sujos, pululava aqui e
lá em hematomas. Não obstante, ter-me visto deu-lhe
alguma satisfação.
— Telêmaco malfadado! Eis o herói!
Ele me contaria que havia lutado contra Kachiaru.
Procurara defender a torre, os tesouros de poder que ela
As Esferas do Dragão | 213
guardava em seu topo. Não pudera. Pensava ter causado
danos significativos ao adversário, mas certamente não
foram o bastante para derrubá-lo nem atrasá-lo na sua
investida. “Lá em cima”, me explicaria Hermes, “ele encontrará
não só licores de pura energia como mais uma
das esferas”. Agora eu reparava a enorme destruição
que a batalha impusera ao redor.
— O herói! Perseu que se encontrou Narciso nos
olhos da Medusa. Ulisses que diariamente costura e desfaz
penélopes sucessivas. Teseu pet sitter passeando minotauros
pelo labirinto.
Observei, e as palavras para descrever o que via me
ocorreram como se já houvessem sido escritas: era uma
terra em agonia. Por que não morria já? “Ele aprendeu
um truque novo: pode sugar a vida de tudo para dentro
de si, concentrá-la numa esfera e lançá-la contra
mim. É sorte sua, não penso que poderá fazer outra
vez.” As coisas cresciam ásperas, retorcidas, amargas,
lutando. Espinhos, musgo e moscas pardas, cinzentas,
negras; nuvens de mosquitos doidos de fome.
— Whatever happened to the heroes? Whatever happened
to the heroes? – Hermes passara a cantar, debilmente
– no more heroes anymore, no more heroes anymore.
Hermes sempre sentira prazer em ser parte do sangue
das aventuras. Mas naquele dia a derrota lhe amar-
214 | Duanne Ribeiro
gara a índole. Com estafa, indicou o alto da torre com
a testa. Sim, está certo. Cumprimentei-o com o olhar e
segui adiante. Busquei frestas na pedra rugosa, agarrei-
-me, soergui o corpo, então busquei casa para as solas.
E aí de novo, e aí de novo. Quando olhei para baixo, o
deus já avançava, curvado, braços pendentes de babuíno;
os olhos amarelos e doentios na sua careta avermelhada
e branca não pareciam mirar nada em particular;
gingando a bunda vermelha, sacudindo a pelugem
espetada, caminhou até pegar entre matos sua
roupa de viajante do espaço. Armou-se astronauta vagarosamente.
Antes de por o capacete pareceu notar-
-me, virgulinha no traço vertical. Moveu os beiços babentos
como se dissesse. Sua voz sem som retumba
ainda no interior do meu crânio.
***
Logo a terra estava longe. A pele sufocava e ardia
sob o sol, cujo brilho não deixava saber o quanto mais
perto de qualquer coisa eu tinha me colocado. Horas e
horas seguiram nessa toada. Quando a noite caiu, me
acomodei à beira do abismo sobre um bloco tanto mais
largo que os demais. O outro dia, e os outros depois
As Esferas do Dragão | 215
dele, me entregaram sóis tão pérfidos quanto o anterior.
Minhas reservas de comida e água começaram a se
esgotar na quarta manhã. Logo eu escalava sem recurso
algum, com a cabeça zonza e pesada, as veias pulsando
nas têmporas, os olhos secos, coçando e queimando.
Na noite graciosa em que choveu, permaneci
encharcado, quieto, fruindo um mínimo de vida.
Pensava sobretudo nos amigos que fizera ao longo
do percurso. Eu vivera uma espécie de benção: estivemos
alinhados, Shiawase, Kyua, Jintoku, Hikari, Shukun,
Hinagiku e eu — quanto tempo até a glória de alinhamentos
tão poderosos novamente? Nossas epopeias individuais,
entrecruzadas e/ou sobrepostas, por sorte,
gerando assim destinos. Aquilo em que rimávamos em
situação e intentos, quem sabe nunca mais se desse.
Seguíamos épicas ainda irmãs, no entanto distantes
— assim como certo dia, ou agora mesmo, eu poderei
compartilhar armaduras distintas ou viver vidas outras.
E se não vierem outros alinhamentos dessa estirpe,
por quanto eu teria ou poderia me alimentar só do eco?
Quanto tempo travar a digestão total das lembranças?
***
216 | Duanne Ribeiro
O afeto voluteia, compõe e decompõe. Impraticável
remontar a qualquer estado particular anterior. Possível
talvez seja evitar o instante decisivo em que passamos
a gostar das pessoas — e arriscar-se jamais nesse
redemoinho. É mandatório que o gesto, aí, seja vigoroso:
uma hesitação e o escape se desfaz, e veloz nasce
ao lado dos nossos sapatos uma flor tímida. O afeto
ramifica-se, densifica locais e sujeitos: os homens e as
mulheres que amo pesam fundos no tecido estendido
da minha alma, como crateras na epiderme de um planeta
— eu-território incorporo os meteoros. Âncoras —
e faróis; estrelas-guia. Ilhas encantando o continente.
E o perigo — ah! — o perigo de uma Atlântida.
***
A escalada descortinava um céu acima do céu, no
qual as nuvens compunham um descampado que mentia
solidez. A brancura frutificava figuras associativas:
acidentes geográficos de algodão-doce, crânios esculpidos
em claras em neve, fumaça de cigarro à guisa de
desertos e estepes. Atravessar a água e o gelo suspensos
era impassível como tocar um fantasma, porém.
As Esferas do Dragão | 217
A contradição entre o fato e o delírio extraía verdades
das falácias e vice-versa: eu estava em uma jurisdição
própria à fábula. O mundo lá embaixo se embaralhava
em macondos e madeleines. Cheguei ao topo.
218 | Duanne Ribeiro
Episódio 40
Despertar do
Comburente
Como um ovo deitado e cortado precisamente ao
meio, as fatias distantes uns metros uma da outra, a de
cima sustentada por pilares, a de baixo equilibrando-
-se de maneira frágil sobre a torre. Alcancei uma escada
disposta na lateral da estrutura e subi à plataforma
central. O porcelanato branco, liso, se espalhava de um
ponta a outra, fazendo fronteira à pedra rústica do contorno
como o oceano se choca com a encosta. De pé, no
outro extremo, me aguardava o inimigo.
Estava eu exausto e faminto. A ascensão cobrava seu
preço em dormência e rigidez de músculo. Eu respirava
pela boca, como o peixe arrancado à perplexidade. Ele
via. Ele sorria. Tomei fôlego e botei o corpo endireitado.
As Esferas do Dragão | 219
Exclamei: me dê as esferas. Eu exijo que me dê as esferas.
Lá, prosseguiu aquele mórbido gato de Cheshire.
Lá, na outra extremidade da reta, a maleta, o cigarro, o
sorriso imóveis.
— Seria neste momento – respondeu ele, sugando o
veneno – que eu gargalharia alto e você saberia que não
há, nem nunca houve, outra possibilidade, senão lutar...
As sombras dançavam fumacentas e translúcidas em
frente aos meus olhos; assisti ao seu rosto ser coberto
pela nuvem branca de resíduos de nicotina e outros
tóxicos. Apertei as mãos em punhos e afastei as pernas
por mais sustentação. Armei-me em kamae.
— ...você saberia, você sabe. Vamos direto ao ponto,
então?
***
Engoli o sangue que vazava dos rasgos do lado interno
da minha bochecha; o inimigo me atingiu de súbito,
seu golpe me estourou a boca, eu sentia os fragmentos
de dente na língua, uma sonolência doentia me
percorria o cérebro. Mas eu estava de pé. Ergui a cabeça
quando a sua aproximação se fez adiantar por uma
220 | Duanne Ribeiro
lufada de ar ardente; o soco no estômago me dobrou
ao meio, me fez flutuar por alguns segundos, enquanto
ele entrelaçava as mãos e as descia na minha nuca feito
marreta. Eu provei o sabor do concreto da torre de
Hermes. Mas instantes depois, trêmulo, cego de sangue,
eu me coloquei disposto, eu estava de pé. Ele não pode
ser derrotado, porém eu não posso perder.
I’ll keep taking punches until their will grows tired.
Outro murro. A cabeça jogada para trás feito a de um
boneco. Outro. Kasshoku proliferava-se aceleradamente
no meu sangue, tingindo minha pele de tatuagens
serpenteantes, mas não podia me regenerar rápido o
bastante. Outro. A dor é também conforto, afinal você
sabe o que esperar do próximo instante. Outro. Lembranças
assomam à mente: um garoto perfurado em
vários pontos da carne pelas quinze estrelas da constelação
de escorpião; um garoto que corre no último
fôlego da esperança por uma escadaria recoberta de
flores que busca hipnotizá-lo ao sono e à morte. Outro.
De quem são essas memórias? Outro. Estão aqui, esses
tantos são como eu, eu vivo o que eles viveram. Outro.
Não. Viveram ou tampouco, tanto faz; me enxerto.
Abri os olhos. A palma do inimigo a um palmo à
frente do meu rosto, incandescente. Explodiu numa
rajada violentíssima, tiro de canhão na cara. Acordei
após um curto coma, pilar demolido nas minhas costas,
As Esferas do Dragão | 221
rasgo fundo na pedra denunciando meu caminho pregresso
à frente. Como sobrevivi? Notei enfim que me
refrescava a fronte outra vez o ar: as sombras endureceram
em escudo e salvaram a minha existência?
Talvez. Renovadamente nu, levantei-me de novo. “Por
que você não morre?”, eu o escuto dizer. Um homem
que congela as balas à frente e implode o adversário
com um mergulho ontológico. De onde vêm essas memórias?
Enxertava-me nessas possibilidades do impossível,
é isso, eu frui naquele momento uma lucidez incrédula.
Do que me chamaram? Comburente...
O que é que queimo? Este mundo queima por meio
de mim. Ele sussurrava a sua dependência, tinha o medo
de fenecer junto comigo. Aspirei o tudo. A força infinita
me destripou, inchei de energia, os meus olhos
fachos brancos, a minha boca holofote, brandi as mãos
nuas contra o adversário.
***
Ele aguentou. A realidade se esfacelava ao redor dele
e ao longo da gigantesca torrente desfechada através
do meu corpo, mas ele continha toda essa potência
mobilizando tudo o que era. Contudo por fim foi
222 | Duanne Ribeiro
engolido pela rajada. Incinerou em fogo atômico, urrando
sem som. Quando tudo cessou, não tinha caído.
Cambaleante, tentou armar um golpe. Caiu de costas.
Deixei-me deitar também: o descanso soava doce
como um buraco-negro. Em meio ao torpor, notei que
no centro do teto da torre de Hermes existia um nicho
no qual se aninhava um globo de pedra. Sem reação,
vi-o começar a girar, tão logo quanto pequenas linhas
que expulsavam luz surgiram na sua superfície lisa.
A bola acelerou suas voltas e veio descendente, abrindo
gradativamente de modo a montar com suas partes
deixadas a cada altura um degrau.
Terrivelmente débil, fora Kachiaru quem, com artes
por mim ignoradas, ligara o mecanismo. No pé da
escada, ele me fitou com uma expressão de afogado, e
então subiu.
As Esferas do Dragão | 223
Episódio 41
Esfera de Seis
Estrelas: Aborto
Arrastei-me degrau a degrau, atravessei a abertura
circular no topo e cheguei a um terraço do qual partia
uma passarela esculpida em formato de cobra, extensa
a ponto de não se divisar a cabeça a morder o infinito
lá adiante. À esquerda e à direita nuvens felpudas e
amarelo-manga se alongavam como um tapete. Respirar
o novo ar que se espalhava nesse nível desanuviou
a minha debilitação. Ainda fragilizado, mas capaz de
prosseguir, comecei a caminhada pelo que eu saberia
ser o Caminho da Serpente. Por um sem tempo segui,
meus passos ininterruptos nada mais que o movimento
sem movimento, já que sempre como se nada mudasse
no centro entre duas linhas sem extremidade.
224 | Duanne Ribeiro
Logo era como se eu estivesse em uma espécie de
nulidade, apenas um pensamento dormente com um
vetor. Seria razoável se eu tivesse me agarrado então
às minhas memórias — mas era também a chance de
escapar das memórias e suas bombas-relógio, cercas
de arame farpado, areia movediça.
Só voltei a mim quando encontrei – abandonada,
perdida ou deixada como dádiva – a esfera de seis estrelas.
Peguei-a na mão e deixei-me mais uma vez
afundar no que os orbes contam.
***
Um universo em que não houvesse a luz obsoleta
das estrelas, no qual em tempo real pudéssemos vê-
-las nascer e morrer, ou melhor, que vislumbrássemos
acenderem-se as constelações futuras. Eu aceitei morrer
com cerca de 12 anos. Nadando em uma praia de
Santos, fui fundo demais. Meus pés remexeram a água
sem poder riscar a terra. Ninguém estava próximo. Não
me desesperei: avaliei o momento, fitando sem dar-lhes
atenção os prédios tortos além da avenida. Conclui:
ok, vou morrer. De alguma forma, pouco depois dessa
indiferença e tomando o seu lugar com só um pouco
As Esferas do Dragão | 225
menos de debilidade veio a decisão oposta: não, vou
viver. Então me agitei, gritei, consegui que me vissem,
viessem e me levassem. Antes e quando rebocado pelo
salva-vidas, eu me fascinava com o que tinha podido
pensar, mais, me chocava (com o acréscimo de um toque
de orgulho) com o fato de ter, sem falsidade, escolhido
o suicídio, assim “tão novo”. Um messias-casmurro em
uma dimensão vencida pelo niilismo, em que o levanta-
-te e anda é substituído pelo murcha-te e recua, não
Lázaro redivivo, mas gravidezes desfeitas; um flautista
de Hamelin a quem já de início pedem para que dê
sumiço às crianças, “os ratos são um problema menor”.
Pode ter sido a primeira, mas não foi a última vez em
que me ocorreu me matar — contudo mais precisamente
concordo com o verso “I don’t wanna die, but sometimes
I wish I’ve never been born at all”. Escapar por inteiro
da avassaladora dialética que mobilizou Hilda Hilst:
nem ter sido nem estar sendo. Por que me sinto e me
raciocino dessa maneira? Deleuze fala que alguns escritores
portam certa marca da morte? Carrego-a eu?
Seria possível fazer uma pseudoargumentação nesse
sentido: eu poderia lembrar que desde a gestação não
fui um ser vivo promissor; que a minha concepção tomou
sete anos, que já em estado avançado, a minha
mãe correu risco de me perder, período em que (ela me
contou) ouvia repetidamente “Índios”, da Legião Urbana
(busquei tantas vezes nessa letra o que é que ela
encontrava aí; será pela referência repetida às riquezas
226 | Duanne Ribeiro
desperdiçadas? Será que eu coube no “você” do refrão?
— “é só você quem a cura do meu vício de insistir nessa
saudade que eu sinto de tudo que eu ainda não vi?”).
Mas eu penso que estaria mentindo se procedesse dessa
forma. O ferrete da morte não é meu privilégio. Um
Narciso-aranha que fiasse uma teia de intrincados padrões
e enorme extensão, pela qual se apaixonava, na
qual passava a se lançar sob a esperança de ser capturado,
no entanto, claro, incapaz disso, imune demais,
nunca presa o suficiente, sempre algo destacado apesar
da beberagem do engano. Minha mãe sofreu o pavor de
perder um bebê, a ameaça do aborto natural. Por que
o pavor? Um feto não é mais que o acúmulo cada vez
maior e mais habilidoso de células, até a arrogância
mamífera que passeamos ao túmulo. Mas se só isso o
aborto não aturdiria ninguém. Por que se postula que
a alma se acopla à carne já no instante em que espermatozoide
e óvulo se conjugam? Porque, de fato, algo
de simbólico foi gerado. O aborto assusta não porque
interrompe um bicho, mas porque assassina uma narrativa.
É a alegria prometida de segurar no colo que leva
um tiro na testa. É a promoção ao status de responsável
pela vida de alguém, é enfim ter, de modo palpável,
um destino (uns abraçam, outros fogem). Kundera afirma
que recorrentemente buscamos construir-nos sobre
um “deve ser”. O aborto abala a vontade de determinação.
Nos retorna à leveza. Eis aqui na verdade um
As Esferas do Dragão | 227
exemplo menor de uma circunstância existencial maior:
somos levados no fluxo das histórias. Em situação de
paz, é nelas que nos aconchegamos. Sobre os sismos, é
a elas que nos apegamos mais que nunca.
***
As outras esferas pontuavam o Caminho da Serpente
como pedaços de pão. Reencontrei a de duas estrelas,
a de uma estrela, a de cinco estrelas. Só a de quatro
estrelas não encontrei tão facilmente. Assim, somadas
as que eu havia encontrado pós-torneio – três e sete
estrelas – enfim eu chegava a portar seis de sete. Só
mais a orbe com que tudo principiara e eu concretizaria
o meu objetivo.
228 | Duanne Ribeiro
Episódio 42
Última Página
da Força
Sem as esferas para ferir o mesmo com o diferente
o percurso mergulhou-me em catatonias cada vez mais
profundas. Caminhar a serpente comeu meu cansaço
e minha força, meus projetos e meus fracassos. Ruiu
minha identidade, regurgitou um dinamismo discreto.
Meus pensamentos, meus sentimentos, eles boiavam
estrangeiros sobre um seguir em frente que não parecia
implicar em um avanço. Mais: eu vibrava. Como um
átomo isolado continha tensão e nada.
Depois de quanto? Cheguei à boca da cobra.
Percebi-me em um piso emborrachado marrom-
-claro. Tentei mover-me; senti com súbita verdade,
As Esferas do Dragão | 229
que havia desaprendido o andar. Contemplei os padrões
geométricos do chão por longo período.
— Vem, filho.
Voz-farol. O horizonte é a mão de alguém.
— Vem, filho.
Eu engatinhava. Não sei andar, mas ele sabe que andar
está em mim. Equilibrei-me em duas pernas. Era...
duvidoso. O corpo oscilava para frente, para trás, os
dedos, as solas dos pés, tensionavam-se para agarrar o
solo, para frente, para trás, as mãos inúteis, afogadas
no ar, para frente, para trás, ele me chamara, para frente,
para trás, e o que me detém não é o medo — cair não
é algo contra o qual me previna, cair seria inaugurante
—, estava só em contemplação dessa coisa incomum
que é ser bípede. Porém ele chamara — bondade à vista!,
apressam-se os navios — então, para frente, para
trás, um passo. Voou sobre os abismos o meu pé e havia
do outro lado algo tão seguro quanto. Um passo.
Ainda funcional. Um passo. O equilíbrio agora quase
entediante. Um passo... e rapidinhos múltiplos outros.
Veloz... e cadente, surpreso sou salvo da queda; ele me
segurou, ele me abraçou.
Estava de pé, os sentidos novamente nítidos. À minha
frente, um homem aleijado e atrofiado sofria.
230 | Duanne Ribeiro
***
A potência de Kachiaru, humilhada. O braço direito
agitava-se bambo no espaço, contente de poder mover-
-se? Vago, lento, estupidificado. O esquerdo e as pernas
restavam enrijecidos. O antebraço e a mão curvados
contra o peito e a barriga, os membros inferiores
parodiando a posição fetal. Esticar os músculos não
significava outra coisa que dor; sua paralisia era o mais
alto que almejava. As costas crateravam de escaras —
fundas, pegajosas, com sangue e pus reluzentes. O odor
de bosta na fralda e de urina na bolsa cirúrgica tornavam
denso o ambiente e demarcavam os sentimentos
possíveis. O olhar no seu rosto era o do sofrimento da
escassez de si. Entretanto na boca entortada, nos dentes
poucos, roídos de tártaro, quando uma alegria-
-mártir o animava, eu reconhecia o seu sorriso.
As Esferas do Dragão | 231
Episódio 43
Lições do
Sétimo Mestre
Aí então ocorreu meu derradeiro treinamento.
Descobri estarmos num planeta em miniatura — sem
pressa, era possível rodeá-lo em uma manhã — coberto
de uma grama verde-desenho-animado e ocupado por
apenas uma casa. Atravessando o portão branco, enferrujado,
sujo, da residência, víamos a nosso lado um
jardim, em que azaleias, roseiras, pés de arruda e
boldos-do-chile confraternizavam (entre as tantas,
admirei uma planta que dava frutinhos vermelhos e
tinha a minha altura). Mais avante na propriedade,
estava estacionado desde sempre um Gol cinza escuro.
Espremíamo-nos na sua lateral para chegar à porta
de entrada.
232 | Duanne Ribeiro
Dentro, uma sala que servia de escritório e oficina
de eletrônica. As paredes brancas desfaziam-se em quilos
de pó sobre a cerâmica branca do piso. Uma estante
de mogno aguentava enciclopédias Conhecer e Larousse,
uma coleção de Os Pensadores, a obra completa de
Victor Hugo, a compilação de citações Dicionário da
Sabedoria, de A. Della Nina, apostilas do Instituto Universal
Brasileiro. À sua frente, a mesa longa de madeira
escura se recobria também de chaves de fenda e alicates,
rádios feitos sobre tábuas de madeira, ferros de
soldar, uma caixa com fitas K7 de música caipira.
O horizonte era granulado por uma infinidade de
outros planetas mínimos. Como que de brinquedo, eles
giravam em tons fortes de cores primárias dentro de
contornos pretos bem definidos. Giravam, giravam, e
então alguns explodiam ou simplesmente caíam como
moscas abatidas. O debacle desses variados mundos
nos assustava e divertia, embora não soubéssemos sua
explicação, seu significado.
As coisas que existem, como dentes-de-leão salvar-
-se-ão alhures?
***
As Esferas do Dragão | 233
Kachiaru me guiou pelo seu conhecimento. Do simbólico
— aprendiz, companheiro, mestre — segui ao filosófico
— cavaleiro, missionário, guardião, servidor,
em que se enfileiram lealdade, franqueza, verdade, coragem,
justiça, tolerância, prudência, onze completos,
daí à probidade, perseverança, liberdade, igualdade, fraternidade,
perfeição, agricultura e pecuária, indústria
e comércio, trabalho, economia, educação, enfim o nível
23, aí organização social, justiça social, paz, arte,
ciência, religião, filosofia, bem público, civismo e pátria
e humanidade. Kachiaru me orientou ademais a passar,
como Jesus, 30 anos vivendo na cabala (para, quem sabe,
feito ele morrer de velho na cidade de Caximira, na
Índia). Kachiaru me repassou a arte da parapsicologia,
de estancar sangue a hipnotizar gente.
Ele me dirigia à banca de jornal e me afeiçoava à leitura.
Nesse fluxo li os diálogos em que Platão se esforça
para inventar uma sobrevida à Sócrates; não entendi
nada, mas creio que as palavras desde aí passaram a
nadar em mim causando todo tipo de efeitos. Ele me
educou no confronto aos crentes que de porta em porta
vinham anunciar redenções e continuidades, ele os contradizia
e procurava fazer com que se percebessem estúpidos.
Sua ética era tão clara quanto a de Hinagiku,
concentrada em frases simples: “seja seu próprio chefe”,
“tudo é feito por interesse”, “todas as invenções
234 | Duanne Ribeiro
foram feitas por causa da preguiça”. Ele me ensinou
palavras-terremoto, como: “Autodidata”.
Eu me fortalecia, mas para que? Kachiaru era meu
primeiro e último grande adversário. Quando sua degradação
chegasse ao ápice, minha força se evidenciaria
supérflua.
***
A convivência com essa degradação, no entanto, me
lembrou que a luta atual se renovaria mais uma e mais
outra vez, indefinidamente. People come and people go...
o risco nunca foi tão nítido: minha avó morta, minha avó
morta, me dói até escrevê-lo, um dia esta história será
velha e essa frase será verdadeira, eu a lerei como um
exorcista fracassado, nada me aterroriza mais.
Em muitos outros dias previ ocorrer, respirei acontecer,
chorei em meio ao sono, até sentir o alívio de
saber que era irreal — e nem tão alívio, pois irreal,
contudo por enquanto. Desperto, à salvo, me envolvia
e mastigava por muito tempo ainda a perfeita profecia.
Constipado, os olhos molhados, o corpo encolhido, eu
sofria, pequeno e patético. Mesmo imaginei que, no fim
das contas, isso tudo era benigno: me dispunha cara a
As Esferas do Dragão | 235
cara com meu terror, me faziam vivê-lo de imediato;
quando viesse enfim o de verdade, eu estaria preparado,
me atingiria menos — imaginava e logo me contrariava:
como eu poderia estar preparado para perder a pessoa
que me preparou para tudo? Se ela dorme, eu me assusto
— observo seu peito, vejo se ainda se move — se, de
manhã, demora-se para acordar, eu me assusto — terá
sido hoje nesta noite calma? Dores de cabeça, um aviso?
Gripe, presságio? A rotina me mente tamanha garantia:
só quero que tudo fique como está, só quero que fique...
***
Alguma coisa vai se salvar? Enquanto aqui lanço
mão do meu último recurso contra a morte ela não pode
estar manobrando para me atacar pelas costas?
236 | Duanne Ribeiro
Episódio 44
Esfera de Quatro
Estrelas/Duanne
Quando seu corpo enfim viu-se concluído, meu mestre,
passou a suar muito, opresso pelo susto e confusão
na face. Mesmo tendo mastigado a previsão do pior até
ela se tornar fugaz (e tendo, dessa forma, certeza da escapatória),
eu me preocupei o suficiente para procurar
salvá-lo. Venha, teremos de recompor nossos passos no
lombo da serpente, vamos, temos que voltar ao mundo.
Ainda a sua face que não conseguia dizer nada, mas ele
conseguiu estender sua mão boa e me ofereceu: enfim,
a esfera de quatro estrelas. Eu tinha chegado a um ponto
final. Olhei no olho do orbe para receber a sua ladainha.
Nada. Não tinha tempo, porém, para considerar
essa ocorrência propriamente. Pus meu adversário nos
braços, galguei o réptil e reiniciei a corrida.
As Esferas do Dragão | 237
***
(Eu quis dizer à Letícia: “Ele me ensinou a andar”,
mas não era só isso que eu queria dizer com “ele me
ensinou a andar” — engasgado, a voz embargada, primeira
e segunda tentativas falhas, terceira enfim, eu
queria dizer: ele me ensinou a andar! Ele me ensinou
a andar. Creio que ela não soube o que eu dizia; a sinceridade
minha mais verdadeira é, assim, esse mensageiro
incapaz.)
***
A catatonia do caminho me afogou outra vez, eu
me movia com a vítima no colo sem saber de final ou
começo. Mas agora não me parecia estar descolado do
tempo, como se corresse sem que meus pés tocassem
o chão. Tratava-se mais agora do furioso movimento
concomitante de tudo. A própria cobra debaixo de mim
parecia apressar suas escamas, lançando-me adiante, às
vezes em um ritmo que eu não podia igualar, a que eu
tinha de resistir para não cair. Às margens, ao longe,
os planetas pequeninos surgiam ou decaíam em suas
velocidades particulares, e eu, por estar imerso na cor-
238 | Duanne Ribeiro
rida de agora, perdia vislumbrá-los ou descobri-los,
talvez para sempre, ao passo que nem pressentia os
que viriam para sem querer querer sufocar a saudade
dos passados. Correndo, era como se eu me movimentasse,
ou não movimentasse, ou só ou um pouco,
ou estabanadamente.
Correndo, correndo, de todo modo eventualmente enfim
pude ver a abertura da torre, a saída, sim! Correndo
ainda, ouvia o barulho descontrolado das sirenes, sentia
desviar dos carros ansiosamente. Olhei meu avô e
meu avô me olhou e nós nos olhamos nos olhos e não
sei se ele estava consciente mas foi a última vez que
nos olhamos nos olhos em toda a vida. Eu havia reconhecido
o seu sorriso, eu reconheci o seu amor então
também. Eu poderei buscá-los? Pois ele sorri para sempre
em fotos-arquétipo que não aguento confrontar.
A gente em Aparecida do Norte, eu mesmo tirei essas
fotos. Meus aniversários, eu fantasiado de Jiraya ou
Batman. Você ao meu lado, me erguendo para soprar as
velas. O que eu desejei então? Garoto tolo. E eu, bebê,
tocando o seu queixo, poderia saber que seria esta a
última pessoa a vê-lo vivo, este menino pegando no
seu rosto, vô?
***
As Esferas do Dragão | 239
A saída, vista de cima tão aparente a uma entrada
para o abismo, estou fora, venha a mim a epopeia ainda
mais uma vez, onde porém a torre, onde o deus, agora?
Estou num escritório. A porta fechada, olho-burocracia
orientando sobre necropsias e atestados de óbito.
A compreensão compreendera. Os olhos alagaram, corri
a represar os diques, pois não diante deste estranho.
A língua-pragmatismo seguia: se houvesse um médico
de confiança, era sugerido chamá-lo para assinar a comprovação
da morte, ou teria de ser feita uma análise
do corpo para fins documentais do hospital. Minha mão
se escorou na mesa, minhas pernas em prévia de desmaio.
Pensei: então isso ocorre mesmo; pensei: será
que estou fingindo? Minhas memórias vazaram no discurso
desses lábios e dentes movendo-se na face porosa
quase cobre de um porra de camisa xadrez e jaleco, meu
avô sorrindo it sung like a violent wind that our memories
depend on a faulty camer in our minds meu avô morreu.
Meu avô morreu. Achar médico de confiança evitar necropsia
ligar pra minha mãe. Meu avô morreu: nada
depois desta frase; nada antes dela? Como se deixássemos
o possível para trás: a substância seca.
Onde as planícies, as aventuras? Tomei o telefone
do gancho. Minha voz não se sentia capaz, mas é preciso.
Eu digo: mãe — e hesito. Eu digo: mãe. E ela sabia.
Antes que eu pudesse dizer, sabia. Eu a escutei
240 | Duanne Ribeiro
chorar, meu braço trêmulo, falei; cumpri com o meu
dever. Depois nessa cadeira qualquer, vendo quando
chegaram ao hospital. Como em um filme mudo, os filhos
transmitiram a mensagem à mãe, e eu assisti. Há
um instante delicado em que eu não vejo qualquer
sentimento nela, e é a alma procurando por alguma
fuga. Porém: não. Na noite encoberta, então, houve
um abraço, eu o senti tão bonito, e sei tão bem o que
sentiam, minha avó, meu tio e minha mãe, conexos pela
notícia. Minha dor, no entanto, não queria ser dividida.
Mais adiante naquela noite, eu satisfiz outra vez
o necessário. Madrugada, andando de carro, eu e meu
tio até tivemos uma troca de futilidades. Como tudo
se dopa. Na cama de metal de um necrotério a carne
fria e dura para que a vestíssemos com suas roupas
de gala definitivas. Eu queria sentir esse gesto como
uma carícia.
***
Em um três de julho que é sempre ontem, agora a
coisa pálida no coração da sala. Ao redor, a tensão do
ritual se afrouxa, são permitidos gracejos, conversas
à toa. O cadáver nos reúne em circunstância, mas não
em sentimento — que é que você faz neste velório,
As Esferas do Dragão | 241
que é que faz nesta morte que é minha? Meu choro é
autoexílio conforme prosseguimos à cova. O dia está
criminosamente bonito. No céu voejam pipas canalhas.
A madeira e a carne morta foram enterradas, logo irão
de volta à casa meus familiares, a normalidade colonizando
os pensamentos com velocidade — “era a hora
dele”, “foi o melhor” (posso imaginar uma série de cenários
melhores), “como fica a avó” — mas eu, eu não!
Eu tenho comigo as sete esferas do Dragão. Eu posso
fazer tudo ser como era antes.
***
(Para me purgar, escrevi à Letícia, ao Rafael e ao
João um e-mail em que eu narrava com detalhes a morte
do meu avô, uma crônica de como passei por isso.
Escrevi aos três; vocês, por exemplo, não têm o menor
direito de lê-la — pela diferença entre a gota de óleo
no óleo e a gota de óleo na água.
Mas, se é assim, o que é que eu tenho feito ao longo
de todo este texto?)
242 | Duanne Ribeiro
Episódio 45
Dragão
Que viesse a mim o Dragão. Alinhei as sete na
terra. Estrelas amarelas, esferas laranjas, superfícies
polidas — reluzem feéricas. Do interior de cada uma,
compassadamente, pipocaram faíscas como fogos de artifício
minúsculos que, em seu apagar-se e surgir, para
quem soubesse ler, exibiriam sucessivos ideogramas
das linguagens do segredo. A agitação desses fulgores
foi se transformando em uma única massa de luz, homogênea
energia branca que primeiro preencheu os artefatos
e após escapou dos seus limites. A explosão me
atirou para trás; o brilho ofuscou minha vista; o clarão
me engoliu. De um fiapo verde no branco leitoso
e elétrico brotou o animal. O turbilhão luminoso era a
As Esferas do Dragão | 243
sua incubadora. O astro no horizonte foi coagido a pôr-
-se, o firmamento, reconhecendo que assim era apropriado,
estremeceu em tempestade. Raios rabiscam
garatujas na imensa rajada vertical, até tocarem sem
qualquer dano a carne reptiliana. Fez-se o Dragão.
A realidade fora espancada. Eu era ridículo e miserável
frente ao titânico da divindade. Pedi. Ele sorriu dentes
grandes como destinos.
E respondeu:
— Isto não pode nada...
244 | Duanne Ribeiro
As Esferas do Dragão | 245
246 | Duanne Ribeiro
As Esferas do Dragão | 247
Esta obra foi composta em PT Serif
em março de 2019 para a Editora Patuá.
A certa altura desse livro eu digo que ao terminá-lo
me tornei novamente capaz de olhar as fotos do meu avô.
Isso é parcialmente verdade: antes eu evitava mesmo
observá-las, agora eu apenas resisto um pouco. Posso vê-lo.
Atribuo isso ao livrinho, meu patuá, meu omamori, meu exercício
de religare. Como GH à Clarice, ele me deu uma alegria difícil —
mas que ainda se chama alegria. Cha-la Head-Cha-La!