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Copyright © Editora Patuá, 2019.

As esferas do dragão © Duanne Ribeiro, 2019.

Editor

Eduardo Lacerda

Ilustração, Projeto gráfico e Diagramação

Leonardo Mathias | flickr.com/leonardomathias

Assistente Editorial

Ricardo Escudeiro

Administrativo

Sara Cristina Trajano

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD

R484e

Ribeiro, Duanne.

As esferas do dragão. / Duanne Ribeiro. - São Paulo:

Patuá, 2019.

ISBN 978-85-8297-732-3

1. Romance Brasileiro I. Título.

CDD – B869.3

Ficha Catalográfica elaborada por Janaína Ramos – CRB-8/9166

Índice para catálogo sistemático:

1. Romance Brasileiro : Literatura brasileira B869.3

Todos os direitos desta edição reservados à:

Editora Patuá

Rua Luís Murat, 40

CEP 05436-050 São Paulo – SP Brasil

Tel.: (11) 96548-0190

www.editorapatua.com.br

editorapatua@gmail.com





6 | Duanne Ribeiro


Episódio 1

Útero

O deus veio babuíno e astronauta.

Veio anunciar que a tristeza engendra a urgência

da aventura. A epopeia deu-se à luz — como ervas daninhas

nas frestas do asfalto — nos silêncios do meu

choro. A morte do meu avô impunha partir em viagem:

era mandatório encontrar as esferas do Dragão e ressuscitá-lo.

Sete globos cristalinos e alaranjados, aldebarãs

de oito centímetros de diâmetro esconsos em

locais aleatórios nas lonjuras, identificados por cifras

infantis — uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete estrelas

— manifestações fragmentárias da joia Cintamani,

As Esferas do Dragão | 7


provedora de desejos, apanágio de budas e leviatãs, força

mística originária. Reunidas, invocarão o deus-réptil

gigantesco, a singularidade da qual surgirá vigoroso —

oitenta e uma escamas brancas de carpa, olhos vermelhos

de coelho, chifres de veado cobertos de veludo,

patas alvas de tigre armadas de quatro garras de águia,

cabeça de camelo, pescoço de cobra, ventre de vôngole

e orelhas de touro moucas. Defronte à sua pujança, minha

fé ofidiófila estupefata, demandarei. Horrível e

bom, concederá. Na noite estrelada haverá um abraço.

Mas, antes, babuíno e astronauta, veio, negocioso.

8 | Duanne Ribeiro


Episódio 2

Três de Julho

A fala prevarica. Por exemplo:

— Ele não resistiu.

***

Em um três de julho que é sempre ontem, uma das

suas crises outra vez quebrou a tarde. Na cama hospitalar

que de uns tempos para cá ocupava o lado direito

do móvel em que dormira metade da sua vida, ele

parecia sofrer o mesmo sofrimento regular o suficiente

para ser acolhido com tédio. O crucifixo de madeira na

As Esferas do Dragão | 9


parede, os espelhos arqueados no dossel, o interruptor

estendido para que não fosse preciso levantar para ligar/desligar

a luz — sua decrepitude já era tão comum

quanto tais objetos com que povoara o seu conforto.

Os recursos anestésicos da vida são inúmeros e potentes.

Mas não era a angústia de sempre — como gostávamos

da angústia de sempre!

***

O desespero da minha avó: ineficiente. A diligência

dos vizinhos: de um funesto oblíquo. O rosto do enfermeiro:

um veredicto. A ambulância desperdiçou a sua

pressa na avenida. Ele havia olhado para mim, a boca

aberta, o rosto magro e mau barbeado, acho que tinha

medo. Agora no veículo olhava eu para ele, sua face à

deriva, atormentada. Mas ainda parecia ser a angústia

de sempre.

No Hospital Municipal Vereador José Storopolli, eu

me distraí por horas com a minha confiança na normalidade,

com os planos do dia seguinte, com a luneta

mágica de Joaquim Manuel de Macedo. Enfim, disse o

médico, tinha o olho esquerdo feito de vidro, ele não

resistiu, algoz, ele não resistiu.

10 | Duanne Ribeiro


***

Como não houvesse algo dentro de mim que pudesse

reagir a isso, eu não senti nada. Foi tímida e canhestra

a dor que tomou impulso e se adensou; primeiro, a dormência.

Entristecer-se é também um atuar de acordo,

para tal causa apresento tal efeito. Antônio de Oliveira

morreu, e me faltava a formação para perder um pai

(mesmo assim me culpo: não o amava o bastante?). Na

sala fechada do doutor, alguns minutos mais tarde, ele

me forçava a compreender as burocracias do luto. Uma

necropsia era necessária, mas se houver um médico que

possa dar um laudo não precisa, fixamente me olhava,

eu assentia com a cabeça, tenho de falar com a minha

mãe, enquanto isso minhas pernas se enchiam de fraqueza

(considerei: “Não é que isso acontece? Ou será

que estou fingindo?”) e eu tive de me escorar na mesa.

Atenção completa nas pontas dos dedos, na madeira.

As lembranças a despontar como estrelas, delineando o

irrecuperável; narrativas construindo um buraco negro.

***

A fala implode. Por exemplo:

As Esferas do Dragão | 11


Atravessei o hospital até a saída, constatando que,

contudo, o mundo continuava. Lá fora, na rua ao lado,

sem iluminação, disquei uma responsabilidade.

— Mãe.

Onde outra palavra? Eu quero falar: é preciso falar:

é meu dever falar. Fale.

— Mãe.

Mas ela já entende. Despedaça-se. Seu choro agudo.

Meu soluço torturado.

— Duanne…

No fim de tudo estamos tão próximos quanto no início

de tudo.

***

De madrugada, tivemos de ir ao necrotério para vestir

o cadáver do meu avô. Minha mãe não quis ir, não

estava pronta (eu a culpei por isso, por crer que era

uma obrigação dos filhos), então fomos eu e meu tio.

Recordo as débeis luzes dianteiras revelando as ruas

vazias; não lembro de nenhuma das muitas palavras

ditas por ele. Chegamos e nos levaram ao corpo na pla-

12 | Duanne Ribeiro


taforma de metal. Frio e retorcido como a vida o havia

deixado por fim; o caduceu tatuado no peito, em um

verde esmaecido; lavado (tê-lo-iam lavado com cuidado

ou a jatos de mangueira, feito um bicho?); o nariz

entupido de algodão, para evitar o fedor putrefato.

É uma honra estar aqui e fazer isso por ti, vô. Colocamos

suas calças sociais escuras, sua camisa de botão, seus

sapatos. Em dado momento, meu tio, desde sempre a

imagem da dureza, começou a chorar (pensei: conteria

a si mesmo se se lembrasse de que posso vê-lo? Eu

nunca o tinha visto assim e abaixei a cabeça por pudor e

respeito); com voz infantil, disse suas últimas palavras,

pesadas de ternura e acompanhadas de uma carícia na

bochecha do pai.

***

Foi então que avistei o babuíno pela primeira vez.

O símbolo na carne, liberado agora pela morte, o convocara.

Pois embora viesse como Toth, guardava a afeição

de Hermes pelas cobras gêmeas que adornavam seu

bastão alado. Vestia uma espécie de sotaina de camurça

verde cujo peitoral e gola alta eram feitos de couro

marrom-escuro e liso; por baixo, usava uma grossa blusa

de lã, da qual se podiam ver as mangas desfiadas

As Esferas do Dragão | 13


indo até os pulsos. Os pêlos estufavam os tecidos. Seu

chapéu em formato de lua cheia sobre lua crescente

brilhava com a luz da lua minguante lá em cima. “De

mim vêm os prodígios de que te orgulhas, escriba.

De mim a condição de possibilidade dos esconderijos

a céu aberto e das penicilinas do imaginário. Prestidigitador,

plagiário, te ofereço uma resposta. Um caminho

a caminhar. Porque faz tanto tempo que não me refresca

um herói indo-se pelos percursos! — e eu sinto fome.

Toma este presente antecipado e considera a viagem”.

Dissuadido do calor da minha solidão, eu o observara

fixamente, e foi com algum grau de medo que aceitei

o que me entregava — a esfera de quatro estrelas. Algo

nela me atraía demais, uma fundura, não o que informa,

soluciona, segreda, mas a expectativa tensa de uma

mensagem. A possibilidade vibrava na palma da minha

mão direita, assim como na mente comichava a palavra

“herói”.

14 | Duanne Ribeiro


Episódio 3

Três de Julho

A fala sonega. Por exemplo:

Antônio de Oliveira morreu aos 73 anos em 3 de julho

de 2009. Sua última profissão havia sido a de representante

comercial de empresas de materiais de construção.

Teve dois filhos, um casal, Adonai de Oliveira

e Sueli de Oliveira, com Margarida Gomes de Oliveira.

Criou também, com sua esposa, o primeiro filho de

Sueli, Duanne de Oliveira Ribeiro.

***

As Esferas do Dragão | 15


Enquanto os demais dormiam na casa excepcionalmente

cheia, eu ouvia todas as músicas cuja letra tivesse

os meus olhos. And sorrow’s native son: he’ll not

smile for anyone — porque eu queria estar em autoexílio,

nenhum “apoio” conseguiria ser mais do que conjunto

de eufemismos; for your sake I hope heaven and

hell are really there, but I wouldn’t hold my breath —

porque a poesia conciliava melancolia e ironia, dava

o tom da “firmeza de caráter” que eu precisava exibir

a mim mesmo; the photographs are peeling: the colours

turn to grey — porque não podia olhar uma fotografia

sua sem chorar, e só quando terminei uma das versões

deste texto, anos após, é que algo se completou aqui

dentro e eu fui capaz de ver sua imagem sem desmontar.

***

A fala transborda. Por exemplo:

Na manhã seguinte, me atribui a responsabilidade

de, antes de irmos ao velório, contar a um velho amigo

do meu avô, xará seu, sobre o falecimento. Seu Antônio

morava em uma casa próxima; fui e perguntei por ele.

Quinze degraus de cimento abaixo, ele apareceu e, forçando

os olhos atrás dos óculos de vidro grosso e convexo,

me avaliou. “Sou o neto do seu Antônio”, ou algo

16 | Duanne Ribeiro


do tipo, disse, não sem orgulho — como se declarar a

ascendência me recuperasse alguma coisa. A expressão

no seu rosto foi a de uma dor aguda e curta, logo substituída

por um cansaço ou um desengano prévios. Despedi-me

e voltei, tendo novamente o contentamento

da preservação do passado.

***

Íamos, enfim, ao cemitério. O carro do meu tio

aguardava, porém eu me detive por um momento no

umbral entre a sala e a cozinha. Havia algo de errado

na parede atrás da televisão, no lado oposto ao sofá.

O grande painel que a recobria inteira — uma paisagem

de montanhas enevoadas, lago de feições esverdeadas

e árvores europeias — vibrava com uma potência peculiar.

O sol de mentira ardeu de verdade; uma silhueta

se desenhou pequenina contra a luz cegante e na medida

em que vinha na minha direção, descolando-se da

superfície, crescia, chegando até um tamanho humano.

Era, outra vez, o deus. Capacete de astronauta, botas

brancas estampadas com asas estilizadas. No braço,

em vez da bandeira de um país, trazia, delimitado

por um círculo da mesma cor, um H azul.

As Esferas do Dragão | 17


“E então, herói?”, indagou, “o caminho? A resposta

a responder?”. Relutante, trêmulo, assenti. Ele estendeu

o caduceu, no qual as serpentes se enrodilhavam

vivas e asas no topo batiam levemente, tocou com o

bastão o papel de enfeite até que a realidade se confundiu

e a vara penetrou simulacro e concreto; a gosma de

ambos. Remexeu lá as nuvens pintadas e as pinçou para

fora, esculpindo-as numa só como quem faz algodão-

-doce. Néfela, nomeou-a; seria minha montaria: felpuda,

da cor de um sol alaranjado, com o temperamento

das cirro-estratos. Ingênua e impetuosa como uma criança

que anda de triciclo e finge que “vai ao trabalho”.

Acomodei-me nela, mergulhei no panorama. Senti sua

tessitura rarefeita e umedecida na pele, o vento rasgando

o rosto. Eu respirava o infinito.

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Episódio 4

Falência do Mundo?

O horizonte estava anuviado e nevoento; o céu, porém,

fora algumas nuvens gordas, era todo azul. Sobrevoei

uma planície em que se alternavam tons mais

claro ou mais escuros de verde e em que despontavam

formações rochosas que eventualmente erigiam-se à

nobreza de montanhas. Um rio serpenteava cortando

a paisagem ao meio. Néfela deixava atrás de nós um

rastro dourado, como que uma neve levíssima feita de

ouro. Até me senti alegre: a liberdade lava.

Contudo, o idílico da paisagem foi rompido pela visão

do movimento de tropas no solo. Descuidado, me

aproximei — não tanto, mas, logo seria evidente, de-

As Esferas do Dragão | 19


mais. Os soldados escoltavam prisioneiros: ligados por

uma corrente de plástico pintada de cinza, vinham bonecos

com vida, um cowboy, um astronauta, um assassino

de broca na cabeça; coberto de fita isolante, andava

com dificuldade um roedor amarelo capaz de emanar

descargas elétricas; debaixo de pancadas que lhe

eram dadas com seu próprio chicote, conseguia manter

o orgulho um professor de antropologia afeito à aventura.

O grupo estava sendo levado para um caminhão

militar nas proximidades. Os uniformes dos militares

eram cor de musgo, com detalhes bordô. Tinham todos

o mesmo rosto. Um exclamou ao celular:

— Procuravam se isolar nas matas, capitão. Mas nós

conseguimos salvá-los.

E no instante seguinte me avistou. “Um momento, capitão,

temos uma situação...”, explicou ele, ao passo que

afastava o celular da orelha e o colocava no bolso. Sem

que tivesse feito qualquer gesto, os seus companheiros

já se mostravam conscientes da minha presença e me

vigiavam, sisudos. Por instinto, fiz com que Néfela elevasse

sua altitude. Não pareceram notar. Aquele que

agia como líder acoplou à têmpora um dispositivo metálico

que posicionava sobre o seu olho direito uma

lente rubra — números passaram por ela conforme ele

me observava. Então, ele gritou: “Não temos seu regis-

20 | Duanne Ribeiro


tro e a sua assinatura energética é incomum. Demandamos

que se identifique e se entregue”. E ainda:

— Este é um mundo moribundo. Você pode ser preservado.

Nós somos a redenção.

Aquilo não soou reconfortante. Ante dezenas de

olhos, que denunciavam indiferença e embaraço na

mesma medida, disparei pelos ares, abaixando-me o

máximo possível no interior de Néfela. Ouvi as metralhadoras

datilografando o ambiente; encolhi-me mais

ainda, ordenei em minha mente que a Nuvem subisse

o quanto pudesse. A estratégia pareceu funcionar por

pouco tempo: logo vieram os aviões de guerra, cilíndricos,

com hélices de três pás. Sobrevoávamos uma

floresta. Num rasante, embrenhei-me nela. Driblava os

troncos de sopetão, enroscando-se em cipós, atropelando

galhos. De repente, uma onda de impacto me

atirou no ar: deixaram cair uma bomba. Cai na terra

preta e, atordoado, tentei me arrastar. Outra bomba

tombou próxima. Fui engolido por calor e fumaça. Sob

a luminosidade filtrada pelo verde, me senti tonto: o

dióxido, a tosse. Desmaiei.

***

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Abri os olhos e vi os dela. Hikari me encontrara na

inconsciência e me estendia a mão. O seu rosto somava

Clarice Lispector e Janis Joplin; na sua vista, queimava

Iansã. Vermelhos-claros eram os seus cabelos, rubra a

saia, preta a bata. Tinha na mão esquerda um bastão

de cerca de um metro (depois aprendi que se chamava

hanbo), enfeitado na ponta por uma estrela. Amarrada à

cintura, portava uma pandeireta. Devo ter parecido assustado,

pois se apressou a explanar: “Estamos em segurança,

estamos bem escondidos. E de todo jeito eles

não insistem muito nas perseguições, eles acham que

é o nosso destino se deixar levar. Bom, isso não vai ser

nosso destino agora”.

Constatei que nada estava quebrado ou doendo muito

e me levantei. Afirmei: eu não vim para lutar, não

sei quem são esses. Eu estou aqui para reunir as esferas

do Dragão e ressuscitar o meu avô. “É, uma coisa

é certa: não lutar contra eles não é uma opção. Eu tenho

uma preocupação muito maior — bem, duas, mas

uma é mais urgente — e estou tendo de lidar com eles.

Melhor se preparar”. Eu saberia lutar? Que recursos

a luta encontraria em mim? “Herói”, afinal, o deus

me chamara...

— Qual o seu nome? – perguntou ela.

22 | Duanne Ribeiro


Hesitei. Não por desconfiar dela, mas porque essa informação

não veio imediata como sempre; nem mesmo

com esforço conseguia me lembrar. Era como se

eu procurasse algo tateando em uma névoa espessa.

Ela testemunhava a minha confusão, surpresa. Súbita,

decidiu batizar-me:

— Kurokun? Que tal? Vou chamá-lo Kurokun.

O alívio de ter nome tomou-me. Sorri, admirado do

som: pode tanto uma única palavra. Não deixei de registrar

também uma habilidade de Hikari que eu entenderia

mais precisamente com o tempo: ela sabia

perceber e atender às carências e vontades de alguém,

o que lhe capacitava a satisfazer e a guardar certa distância,

a um passo. Não chegava a compreender os objetivos

e motivações de um projeto, mas sacava a empolgação

que lhe alimentava: empolgava-se com ela;

sorria gentil ao sonho de uma realização, prescindindo

do conhecimento sobre a importância ou descalabro

do a realizar. Hikari correspondia — o que, usualmente,

é bastante: alimenta — frivolamente, mas alimenta — e

esse banquete de condimentos proporciona a alegria

necessária ao desenvolvimento. Se você está no ringue,

ela é aquela que grita e aplaude: é possível ganhar

o gosto de vencer apenas com isso.

As Esferas do Dragão | 23


Essa lasca do comportamento de Hikari deixaria em

mim sua marca: pois alvitro que em nosso peito abrigamos

inumeráveis bússolas, e de uma delas se definiam

agora os pontos cardeais, articulavam-se norte,

condescendência, e sul, leste e oeste, individualismo,

independência, carinho. Eu divergiria mais ou menos

do giro dessa agulha; construiria sob a sua força, à força,

outras direções.

24 | Duanne Ribeiro


Episódio 5

Do I-Ching

às Soalhas

“Chamam-se Jade”, disse Hikari, “eles apareceram

não faz muito tempo, com essa ladainha: de que esta

dimensão está para morrer ou até já morreu, sei lá, e

eles são o nosso último recurso”. Os seus alvos preferenciais

eram aqueles “como nós” — as expressões são

dela — que têm “características especiais”, isto é, que

exibem alguma forma de poder. (No meu caso, devem

ter sido ouriçados pela minha montaria, por Néfela,

ainda desaparecida — mas depois viram em mim algo

que os interessou ainda mais, que será? O brilho pressentido

da esfera? O toque de Hermes no meu destino?)

Quanto a esses desviantes, portanto: “Eles caçam

a gente e depois prendem nuns ‘hospitais’ deles,

As Esferas do Dragão | 25


eu acho que são mais é presídios mesmo, fazem não sei

que coisas lá dentro, ‘preservam’, eles dizem. Falam de

si o tempo todo como se fossem grandes heróis. Sorte

ter escapado deles vindo até aqui”.

Estávamos em uma gruta, os arredores bem escondidos

por uma mata espessa. Hikari viajara até ali porque

se encaminhava à morada de sua mestra, Hinagiku.

Tinham assuntos importantíssimos para tratar; o Jade

já a havia atrasado muito. “Logo o torneio começará e

podemos perder nossa chance”, explicou ela, imediatamente

depois se encolhendo um pouco, sabendo que

falou demais.

***

Havia chegado até ali em segurança, defendeu ela,

porque estava sob resguardo do seu I-Ching, jogo e obra

de filosofia, declinação das 64 facetas dos atos e das

realidades. Tirando das varetas e moedas as coordenadas

dos conselhos guardados no texto, harmonizava-se

com as mais benignas intenções que o destino dirigia

a ela. (Honra ou demérito um livro ser reduzido à oráculo?

Pode este responder aleatório às preocupações

alheias inumeráveis? Eu não posso.) Hikari parecia empolgada

com essas manifestações de mistério como

26 | Duanne Ribeiro


quem tem uma fofoca a contar: sabor do conhecimento

privativo, de não ser comum porque se presenciou o

incomum. Claro, não só de empáfia se fazia a sua fé.

“Vamos ver o que o livro diz da sua busca?”, perguntou;

se referia à busca pelas esferas. Com pernas

ostensivamente abertas e cobertas pela saia vermelha,

afetou uma sexualidade agressiva, de acordo com a entidade

que procurava introjetar. Distribuiu seus instrumentos

na mesa e extraiu dos futuros o seguinte

número e conceito: 25 — Wu Wang, Sem Falsidade, definido

“Quando o ponto de virada retornar, não haverá

falsidade nem insinceridade. Assim, depois do Retorno

vem Sem Falsidade”. A mensagem, Hikari lia as

interpretações registradas, era positiva: indicava uma

situação positiva, em que o engano se tornava passado,

a perseverança adentraria uma veracidade. Guardei, porém,

um trecho que parecia aludir a desdobramentos

mais espraiados:

Quando a verdade acaba, para onde se pode ir?

Por um lado, tratava do já dito: é só no âmbito da

verdade que se encontram caminhos e paradeiros. Con-

tudo, não se poderia ler a frase no sentido da conclusão

As Esferas do Dragão | 27


de uma performance da verdade? Isto é, quando a verdade

faz o que tem que fazer, estabelece o que consegue

estabelecer, sobra alguma vereda ou interessam

ainda as vias variadas? Mas sinto que interpreto mal e

exagero a carta.

***

Nada a temer, senão o correr da luta

Nada a fazer, senão esquecer o medo

As pandeiretas bailavam nas mãos de Hikari, somavam-se

os choques metálicos das soalhas aos sons

ruminantes da fogueira. Eu me encantava. Dizia, vez

depois de vez, toque uma música para mim, eu não

estou com sono e agora não posso ir a lugar algum.

E ela cantava.

Abrir o peito à força, numa procura

Fugir às armadilhas da noite escura

28 | Duanne Ribeiro


Eu reconhecia outra vez como se fosse pela primeira

vez que a música pode dar esquadro ao mundo, se

há não muito tempo eu procurava encerrar meu luto

nas palavras dos cantores, agora eu via nos versos da

bruxa aberturas e rumos, estradas e vielas apropriadas

ao sonho.

longe se vai sonhando demais

mas onde se chega assim?

vou descobrir o que me faz sentir

eu, caçador de mim...

Que fúrias me convocam quando me identifico com

essa designação “caçador de mim”? Em torno de qual

sol me fariam rir, dançar, endoidar? Minha fala não é

minha, mas é tão minha.

***

Ainda mais, de madrugada, próximos ao calor, o fo-

go articulando-se em teatro de sombras na terra, nos

troncos das árvores, no teto de um apartamento, for-

As Esferas do Dragão | 29


mas abstratas, desfigurações dos carros na avenida, tão

insignificantes e recriados em fantástico nessa clausura

pela luz que invade a veneziana. Hikari, então, me

contou histórias, e me encantei outra vez — pois o seu

tom, a sua postura, as suas escolhas de entonação, tensionamento

e tema, tudo atraía como um acontecimento.

Talvez tenha sido ali a primeira vez em que me

mordeu a literatura. Toth sabe bem à voz de mãe.

30 | Duanne Ribeiro


Episódio 6

Tesouro Ornado

de Baratas

Na manhã bonita e tênue eu decidi segui-la: queria

também conhecer e aprender com a sua mestra. If I

am to battle, I must not be weak — não me dissera isso

a canção? Eu concordo.

Antes de partir, deixei que Hikari visse a esfera — já

confiava nela o suficiente. Ao fitá-la, a expressão de

Hikari foi paralisada. Nos olhos arregalados, pupilas epilépticas;

a boca se moveu muda como se soletrasse uma

língua recém-aprendida. Logo, passou a murmurar: “Eu

peço e ele me ajuda, sei que continua comigo, a qualquer

instante”, sentia-se nela a vontade de crer em cada

sílaba, o repouso de crer, “eu digo, me ajuda a arrumar

isso, e ele me ajuda, você não acredita, mas eu sinto”.

As Esferas do Dragão | 31


Então, cessou. Hikari! Hikari! Me assustei. Está se sentindo

bem?

— A esfera... fez alguma coisa comigo... com a minha

cabeça...

***

Um surto de imagens, uma harmonia de lembranças,

um gosto de quebra-cabeça mapeado. Viu-se sobre areias

amarelas, os pés andavam, andavam, sem que parecesse

que ela tivesse algo a ver com aquilo. O sol ardia

branquíssimo nos grãos; os passos afundavam em

luz fofa e ardilosa. Hikari tinha consciência do cansaço,

não se sentia cansada — o cansaço era mais e mais

pesado, mas de alguma maneira alheio, não nela, mas

sobreposto. Assim também as razões de caminhar, paixão

ou êxtase. Assim a necessidade de saber aonde caminhava.

Ao redor dela flutuavam circunstâncias, entretanto

ela em si era esse movimento puro. Peregrinava

desde a pré-história das coisas. A jornada encerrou

de súbito, porém. Havia encontrado o escrínio encrustado

de baratas. Dentro dele...

— Eu mesma. Me olhando. Não era eu mesma, podia

ser?

32 | Duanne Ribeiro


Ela reconhecia que as imagens evocadas pelo sonho

apenas reelaboravam um livro que lera. Porém, acrescentavam

detalhes tão devastadores, alteravam elementos

tão estruturais que era como olhar com cada olho

um mundo distinto. O delírio diluía-se, ela sentia aquele

mundo fenecendo (viriam também a ele os belicosos

do Jade?), urgia conversar, “fala comigo”, disse. O baú

dissipou-se, a mulher transpareceu cá e lá, próxima agora,

distante então. Hikari foi inútil de uma visagem a

outra, fala comigo, permaneça, fala comigo, permaneça.

Quando enfim pareceu que tocaria o rosto alheio ou

próprio, a ilusão cessou, e ela despertou com os dedos

eletrificados pela possibilidade do toque.

***

Também ouvi você falando outras coisas que não

essas, tais e tais frases sobre o alguém que apesar de

tudo estava lá. “Disso não me lembro”, Hikari me respondeu.

“Vagamente recordo o começo do que vislumbrei,

aparentemente um pesadelo puxou um sonho que

puxou uma profecia”.

Estranho que a esfera não tenha causado em

mim nada semelhante. As outras teriam tal impacto?

As Esferas do Dragão | 33


Pesadelo, sonho, profecia, em todas elas, surgindo como

soco? Overdose. Escapei de uma; haveria, me convenço

a sustentar a ideia, seis sobrecargas — até a leveza

do desejo realizado.

34 | Duanne Ribeiro


Episódio 7

Da Derrota dos

Pontos Finais

A cartomante consultou o I-Ching e recebeu: 50 —

Ding, Instituir o Novo. “Também é chamado de ‘caldeirão’

ou ‘vaso para sacrifícios’. É pena que eu não tenha

ingredientes de oferenda agora: tudo talvez se torne

mais complicado por conta disso”, comentou ela; o seu

cenho figurou pensamentos e ela passou a sussurrar é

favorável ser perseverante e reto, é favorável ser perseverante

e reto, até que chegou a algo como uma conclusão:

“Vamos. Temos de cumprir a vontade do Céu”.

Descemos então a rua da Consolação — a via estava

em polvorosa porque um menino trancara sua babá para

fora do apartamento e um bombeiro subia pela escada

retrátil do carro até a janela —, e avançamos atra-

As Esferas do Dragão | 35


vés das paisagens de Camboriú, Gramado, Florianópolis.

No Rio de Janeiro, capital, o Rock in Rio ocupava todas

as televisões enquanto eu aguardava Hikari voltar com

comida para nós dois. Em Curitiba, visitamos uma amiga

sua e eu vi pela primeira vez uma menstruação. Ao largo

do caminho a Ponte Pênsil era visível: estávamos na

Ilha Porchat. Engraçado que tenhamos ido distante dela

para depois retornar à mesma São Vicente, e só depois

ir a Santos.

***

Percorremos um longo território. Com alegria, sim,

mas a tempos era flagrante que Hikari não estava

bem. Ela cantava, frequentemente, para si mesma, quase

sem som:

How they dance in the courtyard, sweet summer sweat:

some dance to remember, some dance to forget

Acabou por confessar o que lhe afligia: desde a ex-

periência gerada pela esfera de quatro estrelas a ima-

gem da outra, ou seja, dela mesma duplicada, lhe as-

36 | Duanne Ribeiro


sombrava. À distância, escondida na neblina da serra

da Baixada, refletida nas águas do mar à beira da areia

batida. Hikari acarinhava o objetivo de ir procurá-la,

de estar face a face. “Creio que terei de abandoná-lo

a meio caminho: você encontra Hinagiku e transmite

meu recado a ela, diz que de todo jeito eu estarei no

torneio para finalizarmos o que começamos”. Também

nessa ocasião ela revelou um pouco do que planejavam:

tinham, tanto ela e Hinagiku quanto um terceiro, chamado

Shukun, um inimigo em comum. Não esclareceu

bem o motivo do conflito, mas precisavam derrotá-lo

e, sabendo que estaria em um campeonato de artes

marciais que ocorreria em breve, pensaram que podiam

pegá-lo algo desprevenido.

— Pois ele não é alguém que se pegue desprevenido

propriamente dito.

Enquanto ela falava, aconteceu algo maravilhoso,

que soou até como confirmação de que o destino apoiava

a nossa separação temporária: Néfela me reencontrou.

Como se abraça uma Nuvem? Fiz o que pude para

festejá-la e demonstrar que tinha sentido sua falta.

Como Hikari não podia montá-la — o vapor condensado

não se fazia consistente para ela —, pedi à Dádiva que

nos seguisse do alto até a hora da despedida; e lá ela foi,

desenhando uma faixa cor de gema no azul impoluto.

As Esferas do Dragão | 37


***

Antes de nos deixarmos, ela me contou mais uma

coisa sobre si.

Já disse que ouvia suas histórias com reverência;

igualmente reverente recebi a informação de que era escritora.

O título evolava magia: espremer do nada um

tudo, acessar em si um saber generoso e produtivo, mas

cioso da sua insciência; compor esses objetos que cortam

séculos, os livros — dir-se-ia que vencem até mesmo

a morte, por escarnecê-la, por ignorar que mate os

corpos e as almas e manter intactas as vidas vividas.

Escritor: logo eu quereria esse título para mim. Logo

seria natural para mim que aterrado por um problema

inesperado e insolúvel eu tomasse na mão a caneta.

“Você tem essa nuvem bonita”, Hikari disse, “vai gostar

desse poema”. Passou a declamá-lo: “Hoje eu queria

voar bem alto, me perder dessa vida, vivida, comprida,

sentida... hoje eu queria que você me ouvisse, me visse,

seguisse e sentisse que aquilo que alguém te disse era

apenas amor, cor, dor...”. Comentei que gostara, mas

nem sei se havia gostado: me impressionava simples o

fato que alguém pudesse escrever. Ela sorriu, despediu-

-se e partiu. Ainda pude ouvi-la cantar baixinho:

38 | Duanne Ribeiro


And in the master’s chambers,

They gathered for the feast

They stab it with their steely knives

But they just can’t kill the beast

As Esferas do Dragão | 39


Episódio 8

Passarinho

Avoa o Abismo

Quando a encontrei, Hinagiku pintava. Em um quarto

pequeno, entulhado de revistas Faça Fácil e volumes

encadernados de Mãos de Ouro e Bom Apetite, seus dedos

volumosos manejavam os pincéis. A tinta a óleo

manchava sua pele áspera, sapecava carnavais desencontrados

no seu rosto, multiplicava paisagens nas superfícies

das telas. Árvore seca de tronco duplo antepõe-se

ao rio de tons azuis-claros e verdes-escuros.

Guirlanda de folhas acima da mulher de saia e cesto

debaixo do braço; ao lado da moça, uma bica que despeja

água nos tijolinhos. Conhecer uma pessoa é imergir

em mitologia, pensei vendo tudo aquilo — ali, era óbvio,

pois materializado, mas em toda ocasião caminhamos

40 | Duanne Ribeiro


pelas memórias, espaços, expectativas; o outro funda

em nós uma realidade: olhar nos olhos é sempre um

convite a que nos invada uma nova teofania.

No vitral espelhado, cigano de camisa alva aberta no

peito e colete vermelho com arabescos lilases brilhantes

de purpurina; no pescoço um colar com cinco moedas.

Hinagiku tinha já mais de oitenta anos, seus cabelos

castanhos e brancos como a pelugem de um cervo; usava

óculos com armação cor-de-rosa. Casinha à beira da

queda d´água, porta entreaberta; ao fundo, geleiras de

vale. Cavalo marrom, detalhes da carne feitos em preto,

a pata esbranquiçada cisca. Dançava atrás dela uma

cauda de macaco que, eu saberia depois, era o seu descontrole

encarnado, resíduo do pavor de ver-se, do desespero

de estima, do nojo do corpo. Seu treinamento

me daria qualidades que eu me acostumaria a chamar

de “força”. Que transmitiria aos outros como “força”.

— Busco as esferas do dragão para ressuscitar

meu avô.

Hinagiku me olhou com atenção. “As pessoas que

morrem ficam aqui com a gente, pagando o que fizeram.

Não vão pra lugar nenhum não”. Eu não acho que

seja assim, respondi. “Mas é. Pra onde é que as pessoas

iam ir depois que morre? Ficam aqui”. Ela permaneceu

em silêncio por algum tempo, pensando, e depois exclamou:

“Bom, essas bolinhas parecem estar no centro

As Esferas do Dragão | 41


de tudo. O inimigo vai estar no torneio por conta de uma

delas. E a raiva dele de mim é que eu peguei uma outra

dele”. A guerreira, tinha, portanto, uma das esferas.

Eu fizera bem em vir para cá. “Vamos fazer o seguinte”,

continuou ela, “eu te treino. Se você for bem, lhe dou

a bolinha que eu tenho. Para pegar uma outra, você vem

com a gente e luta no torneio. Pode ser bom ter um a

mais”. Concordei.

***

A manhã era uma conversa com os passarinhos:

comiam alpiste das mãos dela como se encarnasse um

verso de Manoel de Barros. Céu nublado cor-de-chifre

e a voz de José Paulo de Andrade no rádio. Tínhamos

de nos alimentar bem, tomar um “café reforçado”; se

a vontade faltasse, era mister “forçar a natureza” —

subjugar o corpo: cabia à consciência decidir critérios.

O princípio transparecia em uma série de outras frases,

como “não deixar a doença tomar conta da gente”

— o que supõe que é por leniência nossa, também, que

adoecemos. Depois de comer, os exercícios começavam.

Imitávamos os movimentos de Tai Chi Chuang pela TV

Cultura; no segundo, jogávamos Final Fight (zeramos

o dois e o três). Observá-la era já estudar diligência

e resistência.

42 | Duanne Ribeiro


Sua atividade dizia que apesar de tudo as coisas

tinham de ser feitas. Tinham de ser terminadas. O desconforto

se mata com o desconforto (o amargo do boldo

contra aflições da barriga, o nojento do café com

manteiga contra catarro na garganta, o insosso espesso

e clorofilado do mentruz com leite contra a gripe),

a dor se mata com a dor (com um corte profundo no

braço, queimou folhas de jornal sobre a hemorragia,

cauterizou-se de imediato; restou a pele pintalgada de

borralho e sangue seco). Um “não quer curar?” contrapunha-se

a qualquer resistência: claro, uma falácia,

pois o que ela recomendava não era automaticamente

certo, mas, ainda assim, ali se colocava a noção de que

a nossa fraqueza alimenta a nossa fraqueza.

Quer continuar fraco? Era isso o subliminar. Até

quando quero continuar fraco? Quando, no futuro, eu

estivesse em Menwotsukeru e Kyua me discursasse sobre

o “sacrifício humano” — a ameaça de morte a que

o protagonista de Clube da Luta submetia outros caso

não se realizassem integralmente — seria talvez por reencontrar

Hinagiku nesse ponto que me fascinaria essa

noção. Sua imposição de urgência, de clareza de desejo,

de convicção: não quer viver? Hinagiku seria o

lastro de verdade que eu sentiria de pronto nos versos

do Arcade Fire “if you want something, don’t ask for

nothing; if you want nothing, don’t ask for something”.

As Esferas do Dragão | 43


No primeiro “livro” que escrevi, hoje perdido, uma história

de fantasia, eu usei como epígrafe o “não aprendi

a me render, que caía o inimigo então”, da Legião Urbana.

A mesma ideia, transmutando-se, crescendo por

agregação. E o motor era ela.

A noite era um toque que atravessa o abismo: minha

cama à parede, a dela no centro do quarto, eu estendia

minha mão para pegar a sua e nos ouvíamos inventar

fantasias; ela, sabedora da gramática de Gianni Rodari

sem sabê-lo. Era uma vez uma coruja que morava dentro

de um tronco de árvore, com tapete e escrivaninha,

um círculo cortado na madeira à guisa de porta. Tac Tac

lá fora tac tac tac renitente sem fim lá fora. Mas o que

ocorre, se enfezou a coruja, que distúrbio é esse? Tac

tac ela põe a cara pra fora e tac tac tac descobre um

pica-pau tac tac como no desenho! ostenta a penugem

vermelha tac tac tac porém é todo preto tac tac tac tac

e me destrói a casa. Ei! Ei! Chama a coruja, e ameaça

chamar a polícia, o Psiu, o diabo. O pássaro lhe retruca

cagando-lhe na cabeça. Tac tac aquela bosta toda seca

encrosta sobre a vista tac tac tac a coruja está cega como

a justiça tac tac e agora? Depois a Via Crúcis da

sabedoria procurando alguém pra lhe limpar a cara.

***

44 | Duanne Ribeiro


A criação imediata — histórias ricocheteando como

bolas de gude — a diversão da escatologia, os folguedos

de protelar o sono, a magia de ir ao sonho por uma estrada

de sonho: tudo isso me proveu um dom, que eu

usaria mais e mais para me entreter, para me muralhar,

para me subverter. O que eu vislumbrara era a faísca,

o explosivo, a incineração a cada vez que os dedos

interrompessem a digitação, detidos ante um pensamento

criança — titeriteiro marionetando o mundo ou

borboleta que deliberada se enrosca na rede caçadora.

Sabia lá tudo isso? Não. Escrevi meu primeiro conto:

Era uma vez um gato tremendamente habilidoso

na arte de saltar, o que lhe garantiu

salvar-se seguidamente de ser devorado pela onça

ardilosa. Derrotada, faz-se a onça humilde,

diz: gato, fui má, desamiga; por favor, perdoe-

-me, conceda-me a honra de ser tua aluna.

O gato, magnânimo, aceita. A onça doravante

estuda toda variedade de salto, Tsukahara,

Tkatchev, Jaeger, Comaneci, Yurchenko, todos.

Semanas e meses sucedem-se, a aluna deixa de

sentir as dores do aprendizado, o tédio torna-

-se companheiro cada vez mais frequente.

Aprendi, ela conclui. Está findo o ensinamento,

indaga ela afoita, está findo o ensinamento?

As Esferas do Dragão | 45


Está. Ela não espera mais nada; rosna, ataca,

veloz, feroz, com a habilidade que havia desenvolvido.

Mas a sua pata vara o ar, a sua mandíbula

morde o vento. Vixe! Que o gato dera um

duplo twist carpado uma tripla pirueta um flic

flac mortal esticado caindo numa sambadinha.

E a onça sente um ardor no pescoço, efeito das

garras que nem viu. Não havia lecionado tudo,

o gato. Ele ri lá do alto da árvore. Você achou

que ensinei tudo, é? Mas esse pulo é meu.

46 | Duanne Ribeiro


Episódio 9

Quebra de Samba

de Breque

“Não pode se entregar”, ainda outra variação do mesmo

princípio reativo. (Entregar-se a quem? À falta de

força, ao desespero, à degradação.) Não obstante o defendesse,

Hinagiku entregava-se, às vezes. “Sou um pobre

velho, ó Senhor. Estou abandonado, ó Senhor”, cantava,

como se a tristeza fosse uma coisa que a gente

respira, as moléculas de sofrimento acumulando âncoras

nos pulmões para depois se transferir em fogueiras

de célula a célula. Se antes eu aprendera com o espetáculo

do seu trabalho, o que me ensinava o espetáculo

do seu fardo?

Inspira: em momentos lhe sobrevinha o cansaço, pétalas

exangues, após esfregar roupas, quintal, cozinha,

As Esferas do Dragão | 47


banheiro, margarida descorada, informava ao mundo,

pararia “um pouco só”. Mesmo se não se permitia parar,

a debilidade gotejava nos resultados, se mostrava na

sujeira restante em um talher, quando antes tais detalhes

não passariam desapercebidos. Estranho vê-la em

fraqueza, vê-la abaixo de si mesma. Pelo fato de que

se obrigava a continuar, para além da necessidade de

manter o dia a dia ou de fruir sua habilidade, notava-

-se que, talvez mais agudamente do que para tantos outros,

o trabalho era sobre ela uma condenação; seu encaixe

na sociedade era dado pelo cumprimento destas

funções — dona de casa: esposa: mulher.

Quando, então, vestia sua velhice, o seu cotidiano

comportava mais períodos de descanso frente à televisão.

Acompanhava as novenas do Santuário do Pai

Eterno, cantarolava, como se a fé fosse uma tristeza diluída,

“somos povo de Deus caminhando para a luz da

Trindade sem véu”. Noutros momentos, encontrava em

Rodrigo Faro a mesma aparência de bom moço, a mesma

performance de caridade e o mesmo carisma hábil

do padre Robson de Oliveira. Sua solidão se traduzia

caricata pela crença de que as pessoas através da tela

a podiam ver e lhe falavam diretamente. Quando o programa

terminava, sorria e acenava com verdadeira simpatia

(ao ponto de que desmentir esse contato mútuo

parecia perigoso como extrair o “defeito que sustenta

48 | Duanne Ribeiro


o edifício inteiro”, conforme alerta Clarice Lispector).

É digna ou obscena a alegria que sobrevive às custas

da ingenuidade?

***

Eu fui a um baile

Na Estação da Piedade

Trouxe muitas novidades

Coisas de admirar —

te aguenta aí que eu vou contar!

Da televisão, ressoava Jorge Veiga. A canção fluía

por janelinhas retangulares que davam para o quintal.

Do outro lado dos vidros emoldurados de um metal cinza

e encardido, via-se Hinagiku, que acompanhava, com

certo atraso, a letra da música. Lá fora, eu prosseguia

meu treinamento.

Desenhava no espaço repetidamente o símbolo do

infinito, com um cabo de vassoura descascado. O ar

zumbia com os cortes sucessivos da madeira. Justeza do

gesto, agilidade na troca de mãos. E então um golpe

vertical que esmagasse a cabeça do oponente. Pedalava

a bicicleta ergométrica na varanda, com velocidade

As Esferas do Dragão | 49


bastante para que sua lataria tremesse sobre os pés roídos

de ferrugem. Encarava o sol porque me disseram

que não devia, e depois o embalava mancha no escuro

do olho fechado. Meditava ao lado do jardim — supriam-

-se da terra negra as azaleias, o coentro, a arruda, a

cebolinha e as rosas — eu me percorria o devir de todas

as coisas. Devagarinho, o mundo dá a si mesmo

uma alma; sente um cansaço de não-ser e passa a ser,

brota matéria e acalanta no interior de tudo sua força

primária: o Qi. Deixe-se levar, os braços erguidos para

cima como Atlas. Formiga à superfície da pele a alegria

da potência. Transparente e permeável, me atravessa o

sendo global.

É possível controlar essa energia (é possível deixar

que ela o coaja a querer controlá-la). Muito se passou

até que eu conseguisse forçá-la a um foco (submeter-

-me a ser artéria). Pálpebras cerradas, eu colocava minhas

mãos à direita, uma palma acima da outra, os dedos

levemente dobrados, de modo a esboçar um globo

vazio entre elas. O suor frio e as pernas trêmulas antecediam

o calor nas pontas dos dedos, sutil, intensificando-se.

Visualize. Canalize. No centro do globo, surgia

um fiapo de energia, inconstante, e sumia; mais

adiante, logrei algo do tamanho de uma semente de

feijão, supernova microscópica. A tentativa de engordá-la

parecia esvaziar-me de sangue. Eu tombava.

50 | Duanne Ribeiro


Me deu a mão e saímos passeando

E ela me conversando

E eu com toda atenção

***

“Cala a boca, vagabunda! Puta não tem vez! Vocês

são piores que as cachorras. As cachorras têm vergonha.

Que, puta? Vocês são lixo. Essas malditas destroem

a vida da gente. Tinha que fazer que nem fizeram

no Norte: botar pimenta na bicha delas”. Hinagiku

tinha sua hora orwelliana do ódio: a novela das seis.

Expira: ela chapinhava na ruela da raiva até alcançar

o alívio. Ruminava traumas até esgotar-se. Era apaixonada

por essa potência ou afetação de potência sempre

disponível.

Pobre, era classista; desprezada por sua origem, era

racista; mulher, era misógina. Sua consciência sofria

de uma doença autoimune. O que me ensinava o espetáculo

da sua contradição? Apontava, por um lado,

que Hinagiku sabia os golpes a que estava exposta; e

talvez nem tanto humilhava-se implorando cumplicidade

aos seus opressores quanto deixava claro, a um

tempo, que era superior àqueles a quem humilhavam

As Esferas do Dragão | 51


e feita, consequentemente, de uma matéria muito menos

vulnerável. Com todos eles, com qualquer um deles:

sim. Comigo, não. Convicta de sua “inferioridade”,

nunca conformada a essa “inferioridade”: quando a filha

de um fazendeiro riu dela, deixou a lata de água que

levava na cabeça e lhe atirou uma pedra na perna; quando

lhe pareceu que seu marido andava derrisoriamente

na rua com uma suposta amante, agarrou-se nas grades

do portão com tamanha força e adrenalina que o

arrancou do concreto. “Ninguém vai pisar em mim.”

Comigo, não.

Entrincheirada até o último fôlego do seu vigor.

Às vésperas de um ano novo, furtivo, encostado à porta

do quarto, pude ouvi-la rememorar uma a uma suas

mágoas e suas vontades natimortas. Se a vida se pode

representar como um território pelo qual se marcha ou

passeia, se peregrina ou se explora, Hinagiku palmilhava

sem trégua os mesmos cômodos da mesma casa

sob a qual pesavam os mesmos dias. Não obstante, naquele

dia, orelha à madeira, escutei-a declarar um manifesto:

“Não vou chorar. Todo ano novo eu choro. Esse

ano, eu não vou chorar”.

Meto a mão no bolso

Pra puxar o meu cartão

52 | Duanne Ribeiro


Foi uma decepção:

caiu um ás do meu baralho

Ela manjou meu velho galho

“Caiu um ás do meu baralho”, ela repetiu, imitando

a entonação dos sambistas de breque. Parecia contente

em se lembrar da música, porém sua expressão se anuviou

quando voltou o olhar à TV. O homem na tela, o

cantor, tinha um bigode ralo sob olhos inteligentes.

Vestia uma camisa de botão, calça e sapatos sociais;

no bolso da camisa trazia um pacote de cigarros Derby

azul e mantinha ao seu lado uma maleta executiva.

“Kachiaru”, Hinagiku sussurrou. Seus olhos estiveram

fixos em um ponto indefinido por alguns momentos,

então me afirmou, com somente um pouco de apreensão:

“Nós vamos enfrentar este homem no 23º Torneio

de Artes Marciais”. Logo depois, pôs a mão na boca, como

que pensando em algo, e acrescentou: “Mas, primeiro,

temos de resgatar alguém”.

As Esferas do Dragão | 53


Episódio 10

Esfera de Duas

Estrelas/Katiuska

“Acorda, São Paulo, do seu sono justo: é hora do Pulo

do Gato.” O rádio badalava as seis horas da manhã.

O sol não havia ainda nascido e o céu era um azul minguante.

Quando Hinagiku me acordou, me lembrei de

imediato que aquele era o dia derradeiro. Ela trouxe

meu prêmio de aluno em uma caixa hexagonal de madeira

pintada em tonalidade suaves, com figuras de papel

(anjos, corações, flores) coladas na parte de cima em

meio à decoração de strass. Então senti a sobrecarga, o

soco: à visão da esfera de duas estrelas, algo se apossou

de mim e nem mesmo percebi que dizia:

— Você vai morrer.

54 | Duanne Ribeiro


***

Uma menina ruim cutuca a lava com um toco de madeira;

o magma revela sem romper-se diversas rachaduras

de fogo. Minha prima Katiuska, franja castanha

sobre a testa, camiseta rosa com moça de vestido amarelo,

sapatos com cerejinhas dispôs à minha avó essa

informação: você vai morrer. A qual ela ouviu como

uma ameaça, um desejo, um “quero que você morra”; e,

portanto, passou a cozinhar em banho-maria um rancor.

Sete anos teria Katiuska à época; seria mesmo

capaz de uma agressividade de alvo tão definido? Uma

menina leviana engatilha uma espingarda de festim;

mira em freiras, pombas e avós (e, quem sabe, aponta

o cano à própria boca). Uma criança pode falar a alguém:

eu te odeio. Mas o que conhece a respeito do

comprometimento do ódio? Mais provável era que Katiuska

apenas seguisse as vias de um raciocínio: a avó

era idosa, seus pais eram jovens; soubera de velhos que

morreram e que se morria quando velho. (Eu tinha onze

anos e meu irmão mais novo tinha dois; estávamos

em Caldas, Minas Gerais, na casa dos fundos, sentados

na soleira da porta, à frente de um jardim com tartaruga

e videira. As férias continham já muitas ocorrências —

quando cheguei à cidade, havia me deitado na calçada

para ver a calcinha de uma prima; no dia de Natal, tirei

As Esferas do Dragão | 55


as roupas das bonecas e as escondi debaixo da cama para

apoquentar as meninas — mas a daquela tarde, sob o sol

hoje nostálgico, teria um caráter tanto mais filosófico.

Alguém disse ao meu irmão que morreríamos todos, no

fim. Chorou; pela incompreensão enorme? Lembro-me

de observá-lo sem entender. Não se chora por lendas, a

morte pra mim era como que uma lenda.) De todo modo,

por que comunicar a sentença? (Esperávamos que

nossa amiga saísse de casa, eu e outros colegas, acomodados

na calçada de uma rua de São Vicente, São

Paulo. Extrovertida, punk, dona de um riso escandaloso

durante o qual até batia nas pessoas, nos encontrou

amuada — sua avó estava doente — e nos perguntou,

pois tinha acabado de receber uma ligação do hospital:

que significa óbito? O que significa óbito? Eu sabia.

Eu não abri a boca.) Que alguém lhe mandara dizer

aquilo era uma hipótese plausível, e quem mais senão

sua nora, minha avó concluiu, agregando ao despeito

antigo outro elemento. O que Katiuska teria ouvido em

contra-ataque: se você quer que eu morra, fique sabendo

que eu não morro tão cedo, primeiro vai morrer a

tua mãe e a tua vó. Ou: se você não se importa comigo,

não vai te sobrar ninguém. Ou: neste autodecreto de

sobrevida, o medo, as variedades do medo: não havia

como desmentir a afirmação, era preciso menti-la. Uma

menina fútil inspira-se em si mesma para desenhar um

demônio numa folha de cartolina amarela; como se

56 | Duanne Ribeiro


conhece bem, o preenche cada vez com mais detalhes;

quanto mais real, mais o demônio a aterroriza. Minha

avó não era ingênua em relação à morte; de 16 irmãos,

10 morreram, ninguém sairia disso com uma fragilidade

vigorosa. Porém, não podia deixar de crer que falar

da morte era dar-lhe seu endereço. (Um homem decidiu

por à prova o amor da família, contava ela. Arrumou a

sala com antúrios e gérberas, acendeu velas por todo

o recinto e deitou-se na mesa de jantar com as mãos

sobre o peito. Fechou os olhos e aguardou para avaliar

a intensidade das lágrimas. Houve lágrimas, sim, entretanto

não chegou a assisti-las; morrera de fato, fulminado

pelo blefe.) Por igual motivo não pronunciava

o termo “câncer”, sempre preferindo “aquela doença

ruim”. (Comentara a minha avó com o vizinho do sítio

ao lado, enquanto passava o cortejo de um velório: o

próximo é o senhor. A piada ultrapassou o tabu e logo

cobrou seu preço: o homem, de fato, faleceria pouco

depois e, à noite, quando ela caminhasse no escuro e

no sereno até o banheiro, o escutaria tossir.) No mesmo

sentido: nunca admitiu totalmente o diagnóstico do

enfarto e da falência dos pulmões — segundo ela, meu

avô morreu por conta de macumba. Eu me questionava,

qual a diferença, se morreu, morreu, a fantasia é inútil,

mas é que eu não notava a modificação estrutural que

a frase impunha ao mundo: as pessoas jamais morrem,

as pessoas são mortas. As enfermidades não eram a de-

As Esferas do Dragão | 57


gradação progressiva e inelutável dos corpos; o que fere

é somente o mal, a ação da feitiçaria é o que conspurca

a carne sadia por princípio; as enfermidades são

um jogo de damas metafísico — o oponente negocia

com entidades transcendentes a realização de um crime

e marca seu alvo na existência reunindo fios de

cabelo e rasgos de roupa em uma encruzilhada; nós

podemos, do outro lado, reagir com idênticas armas.

O fundamental é que tudo permaneça ao alcance da

ação. Não é preciso agir, basta crer que seria possível

agir. (O primeiro defunto que vi foi Rubens, um parente;

não sentia nada por ele; compreendia, no entanto,

o momento, sabia o que devia sentir em torno do caixão:

forcei-me a chorar.) Uma menina forte plantou um

anjo no quintal para defendê-la dos perigos; sua harpa

ecoava calmante, mas seu primeiro voo mutilou suas

raízes e o matou. Tantas e tantas vezes escutei a lembrança

do que Katiuska dissera, e o que aprendi com as

repetições foi só a proibição. Minha prima pode pôr a

chama viscosa, a pólvora, o mistério na boca e provar

o gosto — eu só soube que era uma coisa que eu nunca

deveria dizer.

***

(O que foi isso? O que a esfera fez comigo?)

58 | Duanne Ribeiro


— Você vai morrer. Estou assustado.

Os sons dos pássaros da madrugada abriram caminho

em meio ao transe até a minha consciência. Meus

olhos estavam secos, percorridos por pruridos, as palmas

das minhas mãos estavam suadas. A esfera: em seu

núcleo alguém viveu. “Eu já morri”, respondeu a minha

mestra, “em um sonho”. No devaneio, o planeta era

destruído por imensas enchentes; todos se afogavam.

“O mundo acaba na água”, completava ela em nota de

rodapé profética. “Eu já morri.”

***

Naquela noite, ela me daria a mão e caminharíamos

para longe. A parada final, o torneio. Antes, nós encontraríamos

outro discípulo de Hinagiku, Shukun.

Sobre as nossas cabeças, dançavam no ar azul-escuro

como que fogueiras flutuantes. O termo científico —

“fogo-fátuo” — procura despojá-los da sua fantasmagoria,

mas, diante do fenômeno, não o podem. O real

supera-se em uma hipnose. Eu via neles assombrações,

maldições. “Pode vir!”, conclamou Hinagiku, “Vem

com a gente!”. E eles, à revelia do meu pavor, aquiesceram

e nos seguiram, sobressaltados pelo vigor da

lua crescente.

As Esferas do Dragão | 59


Episódio 11

Cachorros-Quentes

e Livros Obcecados

Desde a rua Orindiúva, passando pela Mere Amédea

até a avenida Guilherme Cotching, tudo tinha sido

devastado. Viaturas da Polícia Militar fumegavam no

meio do asfalto. Carros abandonados e pilhas de pneus

velhos velavam postos de gasolina largados ao léu.

À frente da loja de calçados Alfredo, a gangue Cruz-

-Caveira nos sorria maliciosa. “Lacaios do Jade”, murmurou

Hinagiku, “tem indulto de qualquer crime contanto

que levem gente arrastada”. O primeiro a sair da

calçada e vir nos desafiar tinha boina, camisa e calça

azul, além dos óculos escuros — quebrados na metade

por um soco ágil da minha mestra, que o fez cair de

costas. Enfureceram-se.

60 | Duanne Ribeiro


Outro, lenço verde na cabeça, garras de três lâminas

presas nos pulsos — pseudo-Wolverine — se lançou

contra ela velozmente. O aço zumbia no ar conforme

ela desviava das unhadas. Enquanto eu olhava, um homem

obeso de moicano me deu um encontrão com o

ombro, jogando-me longe. Eu me erguia, ele já tomava

distância para uma segunda colisão. Aguardei. Quando

se aproximou, dei-lhe um chute alto no queixo que

o pôs de pés pra cima e de lombo no chão. Hinagiku

derrotou o seu também e, por um momento, houve

calma. Mas logo descobriríamos que a Cruz-Caveira era

legião. Seus acólitos nos envolveriam como enxame e

nos perseguiriam sem trégua.

***

Da carroceria de um caminhão, pulou um troglodita

musculoso, de regata branca e quepe policial, armado

de cassetete. Hinagiku aparou um, dois, três golpes

nos antebraços, depois saltou girando no ar com as

pernas em ângulo de 90 graus; seu pé chocou-se uma,

duas, três vezes contra o rosto do criminoso. Cuspiu

dente e limpou sangue da bochecha estourada quando

se levantou. Já eu era confrontado por duas mulheres

com a mesma roupa, porém de cores diferentes —

As Esferas do Dragão | 61


top, calça justa de vinil; lilás e verde-musgo — ambas

com duas adagas, uma em cada mão. Rasgaram minha

face um pouco abaixo do olho direito (depois tive de

tomar três pontos para fechar). Agachei e rodei a perna

esticada, rasteirando a primeira e a segunda. Então um

chute com a sola em cada pescoço.

O quepe veio rolando até os meus sapatos. O miliciano

havia sido atirado ao gramado alto de um terreno,

atravessando a tela de arame que o protegia, e agora

dormia o sono dos injustos; porém Hinagiku estava cercada.

Dois gigantes com grandes cabelereiras vermelhas

e correntes amarradas na cintura; um rapaz negro

de cabelos raspados, cinto com presilha de ouro, lenço

rubro no peito; um maníaco de máscara de ferro e

dreads que portava uma enorme chave inglesa. Minha

mestra se deixou ficar no centro, cerrou os punhos e,

no instante certo, volteou rápida no próprio eixo. Seus

punhos violentaram seguidamente os maxilares de todos

os oponentes. Só um se pôs de pé outra vez: esse

que arrancava a máscara afundada e revelava sua cara

mutilada e aberrante.

Corri na sua direção. Tão veloz que eram um borrão

os veículos antigos atrás das vitrines das lojas surpreendentemente

intactas, enfeitadas com pequenas

árvores; tão veloz que o ferro-velho do outro lado da

rua — seus carros empilhados, seu piso de terra batida

62 | Duanne Ribeiro


— era um rastro no ar acobreado e ferroso. Chutei-lhe

os calcanhares para que perdesse o equilíbrio, a chave

inglesa errando a minha têmpora por pouco; segurei-o

pelos lados e o deixei de ponta-cabeça; saltei rodopiando

de forma tão frenética que o vento se aqueceu ao

redor, deixei-me cair com o crânio dele contra o meio

fio. Respiramos. A igreja da Candelária, sua arquitetura

angulosa, formando um compasso azul e branco no

entroncamento das avenidas, suspirava sobre nossa vitória

parcial.

***

— Você parece um José Deodato – sorria-me Hinagiku.

Era uma referência ao meu gosto pela leitura. Na sua

cidade natal, esse José abarrotava a sua casa de jornais,

revistas e livros; de tanto ler, teria ficado doido. O comentário

foi feito após comermos em um dos furgões

de lanche da Guilherme Cotching (na sua lataria havia

sido pintado um grande cachorro-quente e, ao seu

lado, um “R$1”) e depois de termos, quando caiu a noite,

armado nossa tenda na praça Santo Eduardo. Os bares

e lojas emitiam de portas e janelas uma forte luz

amarela, eu me acomodei embaixo de um poste no qual

As Esferas do Dragão | 63


duas cobras de metal entrelaçadas abriam as suas bocarras

abaixo da lâmpada cilíndrica, e retirei da nuvem

de Hermes alguns volumes que trouxera para me entreter:

O Menino no Espelho, do Fernando Sabino, e

várias edições do Asterix. Gostava de me ver lendo,

Hinagiku “sabia” que era importante, mas não entendia

realmente por quê.

Antes de dormir, criamos juntos outra história. Era

uma vez a onça e o gato acordam e percebem que têm

os rostos trocados. Os pelos cinzentos de um terminavam

na cabeçorra parda-pintada da outra. O corpo

branco em baixo, preto e amarelo-sujo em cima acabavam

na cachola acinzentada inapropriada. Só pode

ter sido o Mago, raciocinaram, pois que era o responsável

típico por tudo que fosse maligno naquelas redondezas.

Quem mijou na caixa da água? Não tenha

dúvida. Quem passou o dedo na bunda e botou pros

outros cheirar? Era batata. Partiram em direção ao castelo

do vilão — como de praxe, ultrapassaram vários

episódios menores, ao longo dos quais reuniram habilidades

precisas para sobrepujá-lo e se completaram

de autoconhecimento; porém que tédio percorrer essa

patacoada toda — aos finalmentes: a propriedade encoberta

pela noite, olham os dois pela janela e a boca

dos dois despenca. O Mago está lá dentro, e perpetra

algo atemorizante.

64 | Duanne Ribeiro


Episódio 12

Alguém Chegou

Primeiro

Minhas pernas doíam quando enfim chegamos à

avenida Morgan Dias de Figueiredo e avistamos um

quartel militar: suas instalações eram caixas retangulares

de concreto, ladeadas por um amplo estacionamento,

isoladas por grades — e coalhadas de corpos

caídos. Às dezenas, desmaiados ou mortos, ocupando

os espaços entre os carros; tanto os cruz-caveira (desde

os inúmeros rapazotes baixinhos com capacete, suspensório

e granadas até os magrelos com tacos e roupas

de baseball, cara coberta por máscaras do Jason)

quanto soldados idênticos coloridos de musgo e bordô.

O Jade havia sofrido uma imensa derrota. Algum daqueles

“como nós” não pudera ser submetido.

As Esferas do Dragão | 65


— Quem fez isso – alertou-me a minha companheira

– é quem temos de eliminar.

Adentramos o complexo militar, engolfados pelos

cheiros de sangue coagulado e carne queimada, e caminhamos

tensos pelos arabescos dourados de um tapete

de veludo azul que se estendia sem interrupções

pelo piso verde como as paredes. Em ambos os lados

do corredor, espaçadas por uns poucos metros, havia

vitrines nas quais estavam expostas armas de alta tecnologia

e mechas com o porte de rinocerontes e a altura

de dois homens. Ao chegarmos no elevador, tivemos

de retirar a pilha de cadáveres que estava lá dentro

para poder usá-lo. Eram bem uns quinze anões de

longas cabelereiras brancas e espetadas. Apertamos o

botão, e a subida foi vagarosa, silenciosa demais.

As portas se abriram com um solavanco seguido de

um longo rangido gemente. Estávamos no que parecia

ser uma prisão. Algumas paredes de pedra estavam quebradas

e os destroços bloqueavam parcialmente o caminho.

De canos estourados pingavam incômodos. De

súbito, um movimento se deu na sombra de uma cela;

quando nos viu, correu até a porta, segurando esperançosamente

as grades. “Hinagiku! Hinagiku!”, ele berrava.

Ela chegou à sua frente: “Foi ele, não foi?”. Pondo

o pé na barra inferior, por conforto, ele assentiu: “Sim.

Veio até mim. Escapei de enfrentá-lo”. “É ótimo que

66 | Duanne Ribeiro


tenha escapado de enfrentá-lo”, Hinagiku rosnou, “pois

em breve teremos de enfrentá-lo”.

***

Embaixo da boina cabelos e barba atingidos pelo

tempo, mas tingidos de preto bem forte. Na sua boca

faltavam alguns dentes da arcada inferior e o seu rosto

era bastante magro, não obstante ali havia uma vitalidade

encrustada e ainda potente, o fóssil de uma

força. Shukun tinha sido aluno de Hinagiku. Contou

que há algumas semanas o Jade tomara controle do local.

Haviam dito a ele que logo seria transferido, que

as acomodações seriam agradáveis, que eles atuariam

para preservá-lo. “Podem me deixar aqui, eu falei, que

estou acostumado.” Estava mesmo: inclusive quando

houve a invasão já estava preso naquela cela. Não o

capturaram: levou-se lá por comportamento irregular.

Não fora a primeira vez. Nesta, aconteceu por dois

motivos. Primeiro, recusara-se a lavar banheiros quando

um oficial lhe ordenou fazê-lo; se escondeu até a

obrigação baixar. Conspirou: “Eu sou armeiro, tomo

conta das armas — vou limpar banheiro? Cada banheiro

grande. Vou lavar banheiro pra marmanjo?”. Segundo,

As Esferas do Dragão | 67


comera balas. Um tenente atirou ao alto um pacote

inteirinho, e a tropa urubuzou pra cima dos doces.

Vinha vindo o comandante e não estimou a pândega.

Shukun foi posto no cárcere por três dias, para dividir

uma cama no chão com os ratos, sem comida. No dia

dois da punição, o Jade invadiu o local. “Fiquei aqui

desde então, até que Kachiaru veio e matou todos.”

***

Encolhido na cela, Shukun soube que ele chegara:

no interior da sua psique acendeu-se um ardor, um faroleiro

— o pressentimento da imensa energia que se

aproximava. Depois disso, a batalha se denunciou pelos

ruídos: o estouro nos canos dos tanques, o estrondo

de um milhar de granadas, a polifonia de metralhadoras,

escopetas, espingardas e revólveres. Os gritos de fúria

e desespero do exército. Somente o Qi poderia feri-

-lo, pois do Qi ele extraía uma força e resistência descomunais.

Longos minutos de silêncio e fumaça se sucederam.

Ouviu então pés chapinharem na água, passo

a passo até estarem bem em frente ao quarto em que

estava. Olhou nos olhos de Shukun através do escuro

e da fuligem. Via-se em seu semblante o conforto beligerante

dos sabe-tudo. Um sorriso no canto da boca

68 | Duanne Ribeiro


encimada pelo bigode bem aparado, um jeito de ver os

outros de cima ou à frente. Deixou sua maleta executiva

no chão. Abriu a cela com a mente. Disse: “Venha

aqui”. Shukun foi.

O homem tirou do bolso da camisa de botão o pacote

de Derby azul. Acendeu um. “Estou à procura daquelas

tais esferas do Dragão. Sei que você tinha uma, sei onde

a havia escondido. Mas não pude encontrá-la. Vim

até aqui para arrancá-la de você, porém fiquei sabendo

de algumas coisas... achei mais divertido adiar essa

provisão. O fumo branco se espraiava da sua boca. “Se

quiser, sei como é você, podemos lutar agora mesmo,

mas seria um estorvo um pouco maior”. Shukun respondera,

de acordo com ele: “Também posso esperar. E aviso

que você pode não ter tanta sorte como da última

vez”. “Sorte?”, o homem tirou o cigarro da boca e o

ofereceu ao soldado, “isso não tem nada a ver com sorte”.

Pôs nos lábios, tragou; a nicotina dissipou-se ao

pulmão e daí carregou o desafio à corrente sanguínea.

Shukun fumava, compenetrado. O invasor, enquanto

saía, exclamou:

— Diga a Hinagiku que eu sei que está vindo. Eu a

aguardarei no torneio.

***

As Esferas do Dragão | 69


“Depois disso, voltei à cela e aguardei, porque sabia

que você viria.”

Shukun — suas mãos enluvadas de couro com os dedos

cortados — tamborilava na grade. Ombros largos,

magro e forte, camisa branca com uma larga faixa azul

no peito, boné preto para trás, cinto de guarnição. Sua

voz grave aliava-se a uma oratória convicta e assertiva

para emular a força ou a impostação de força que representavam

o par de revólveres com os quais estava armado.

Porém seus olhos exibiam uma mistura de cansaço

e opressão, como se sob um cerco longo demais,

sem fim à vista, plácido. Deixamos as celas, ele se armou

o quanto pode, e partimos.

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Episódio 13

Esfera de Uma

Estrela/Barrabás

De tudo, ao menos para mim, uma boa notícia: nosso

companheiro recém-chegado sabia onde outra das esferas

se encontrava. Pedi que me levassem até ela, que me

deixassem tê-la. Aceitaram.

***

A linha dourada de Néfela marcava o céu nublado

bem acima de nós. Por três dias viajamos até o ponto

onde Shukun escondera a esfera. No caminho, ele me

ensinou Freecell. No jogo, as cartas são dispostas em

colunas aparentemente caóticas, mas que compõem

As Esferas do Dragão | 71


uma ordem dissimulada. Carta a carta, é preciso desenredá-la,

até o ponto em que se hierarquizem todos os

grupos possíveis do rei ao ás. É evidenciado que há

um meio de vencer — a derrota só vem do acúmulo sucessivo

de falhas. É preciso formar pequenos clusters

de organização enquanto não se pode mais do que isso,

notar e libertar tão logo quanto possível unidades cruciais.

Pode-se mover cartas entre colunas, o que se dá

com muitas limitações (pois um três vermelho só se casa

com um dois preto, e às vezes não temos oitos para os

noves), e pode-se “suspender” algumas, até quatro delas,

deixando-as de molho nuns espaços acima do tabuleiro.

Assim se tira um cinco ou um sete problemáticos

do caminho, assim se têm fôlego para movimentar

e sanar. Meu companheiro me instruiu sobre o método

— que consiste na análise cuidadosa do contexto,

na escolha ponderada da tática — engordei meu orgulho

partida após partida, assim que deslindava as lógicas.

Não tive chance de lhe demonstrar agradecimento —

não tanto pelas lições, mas por um meio simplório de

vez após vez me descobrir capaz da vitória.

“Cuzão!”, Shukun me chamava assim, fazendo piada

com a sonoridade da francesa “cousin”(éramos“primos”,

discípulos da mesma mestra), “venha pro exército. Com

faculdade, você já entra tenente”. Precisava de algo em

que se enxergar, às vezes pensava que podia fazer de

72 | Duanne Ribeiro


mim esse algo. Eu negava preguiçosamente. Preocupava-se

que o Jade parecia tomar o Estado; será que

a guerra estourava ao longo do país? Se isso era fato,

não se entendia desertor: somente tinha tirado uns dias

de folga... e disso ria malandramente. Havia dureza e

malomolência nele, uma força fluída de jogo de cintura.

Todas as noites nos contava histórias, antes e depois

de termos recuperado a esfera. Tinha de bater nos

presos nas solas dos pés porque não deixa marca. Ou

com as mãos em concha, estapeando ambas as orelhas.

Crueldade e riso se mesclavam no seu discurso, justificada

a mistura na medida em que os atingidos estavam

abaixo da linha de consideração, como que fora do

que é o humano. Além disso, a mistura se alimentava

dos prazeres orgásmicos do agir sobre as coisas. O júbilo

do demiurgo, o privilégio do escravo hegeliano.

Uma centralidade de si cuja consequência é que não

respeitasse verdadeiramente qualquer autoridade, seja

secular, seja espiritual. Dois exemplos: um general ou

algo assim lhe ordenou policiar tal passeata, onde era

possível que sua irmã estivesse — formulara silente e

rebelde o que agora conta: ”Se mandasse atirar no povo,

a gente virava e atirava nele”; um trabalho de macumba

lhe havia causado incômodo ou dor, encarcerou

a pomba gira em um pedaço de papel e atolou em

uma parede, onde o espírito permanece até hoje. Sou

As Esferas do Dragão | 73


eu que atuo, você atua por meio de mim, é o que esses

contos dizem, eu te obedeço apenas quando me obedeço.

Certo dia, escutou barulhos no telhado de casa. Prendeu

a arma às costas, no elástico da bermuda. Saiu, e

nada. Mas, em outro dia, ouviu da rua a bagunça: tinham

pego um sujeito e o acusado de roubar a vizinhança.

Shukun descobriu nos objetos “confiscados”

do ladrão ferramentas suas. “Você roubou a furadeira

que era do meu pai, seu filho da puta?” — narrava,

e me olhava nos olhos, sua córnea sanguínea — “Virei

um direto no nariz: a geleia escorreu. Depois veio a

mãe reclamando. Reclamar do quê? Quer ser presa

por desacato?”.

***

Um homem põe o indicador no canto entre o olho

e o nariz, levanta a pálpebra com a unha e enfia — o

dedo dói até o fundo, se lambuza de humor aquoso,

forma uma pinça e arranca. Na palma da mão a bolinha

branca continua vendo como se nada. Meu avô me narrou

a história de Barrabás, o homem que, por acaso e

política, carisma insuspeitado e intemperança das massas,

sobreviveu em lugar do Cristo e, por isso, foi condenado

por deus a viver para sempre. Penso nele e vejo

74 | Duanne Ribeiro


Anthony Quinn, barbado, com vestes sujas, intocado

pelas décadas e séculos, exausto de tudo. Ele levanta o

rosto pedinte para os céus, pede perdão e arrego, morre.

Mais do que reparar na arbitrariedade da deidade

cristã — who would wanna be such a control freak? — o

que me marcou mais foi essa imagem da vida inflacionada,

milhões em notas sem valor. Era possível não

querer estar aqui, tudo dependia das condições corretas.

Outro personagem bíblico punido com a vida é

Caim. Assassino de seu irmão pela paixão que a sujeição

a deus lhe impôs, foi marcado na testa para colher

apenas a indiferença das gentes, e imortalizado para

que vagasse sem fim. Que eu saiba, nunca se dobrou

ou foi indultado; e narrativas fantásticas o descrevem

como pai de vampiros. (Penso nisso e me lembro de

Brad Pitt sugando ratos num pardieiro.) Crimes mais

simples, como os de Sodoma e Gomorra, ou de todo

o planeta, no caso de Noé, recebiam veredictos mais

simples: o genocídio. Barrabás e Caim granjeiam a punição

máxima, que, paradoxalmente, se identifica à glória

máxima. Não é o que fundamentalmente esperamos

do paraíso? Jamais morrer? Viver para todo o sempre.

Um homem caminha entre camas de metal onde cadáveres

com sua face e corpo se estiram. Eles têm os

olhos fixos no teto e respiram asmáticos apesar de mortos.

O homem arranca suas unhas e elas continuam

crescendo, como fungos; extrai seus corações e os

As Esferas do Dragão | 75


chuta no assoalho, eles seguem pulsando combalidos.

A redenção é uma irmã oblíqua do suplício? Dir-se-á:

é a presença de Deus o que concede à vida valor; é ela

a Glória a transfigurar a água em vinho. A condenação

verdadeira de Caim e Barrabás é a eternidade sem

divindade; o paraíso é a fraternidade inerte no seio da

Luz. (Em Amor Além da Vida, os campos elísios a que

chegamos são universos particulares; a potência criativa

total nos é entregue como um brinquedo, e podemos

fazer mundos de tinta ou de dor. Já outra proposição,

de origem não identificada, diz que, quando morremos,

podemos escolher que partes do nosso percurso

queremos reviver, todas elas executáveis novamente

como filmes numa prateleira.) Que seja: o aprendizado

básico continua o mesmo: a vida é vazia de valor, de

que vale então, de nada, a vida é contexto. Quem, como,

quando, onde, por quê. (Criança, li um conto em que

um rei ouvia duas profecias iguais. Ambas lhe garantiam

uma vida extremamente longa, mas o primeiro profeta

sublinhou o que havia de sombrio nisso: ele assistiria

à morte de todos os seus. O segundo disse que

estaria presente para alegrar-se com suas alegrias e

para apoiá-los na tristeza. O primeiro foi enforcado;

o segundo, festejado.) Consideremos Lázaro. Jesus se

depara com o seu funeral e o convoca de volta à vida.

A questão é que ele teve a sorte de ser ressuscitado no

estado que conhecia e amava — em meio à sua família

76 | Duanne Ribeiro


e amizades, no seu tempo. E nós? Se no pós-vida tivéssemos

algo que nunca tivemos e nunca esperamos.

O evangelho: a novidade — ainda assim, bênção, ainda

assim, vida? Uma mulher grávida desparafusa a barriga

inchada e retira o bebê lá de dentro. Desenrosca dele

o cordão umbilical e o passa a outra mulher, que o reenrosca

e o põe no próprio útero. Qualquer ideia de

imortalidade dessignifica as palavras “morte” e “vida”.

Passam a descrever ambas a mesma linha, interrompidas

por um corte mínimo, diferenciadas pelos tons de

cinza com que são pintadas. O que se faz na morte é viver.

O que se faz na vida é morrer. Barrabás frui um

alívio intenso e curto, então desperta, vivo outra vez,

noutro lugar. Qual não foi a angústia que sentiu quando

soube, definitivamente, que não podia escapar, todas

as saídas eram entradas. Kierkegaard demonstra que a

provação de Abraão é suprema: teve de percorrer a extensão

inteira do amor pelo filho e se dispor a assassiná-

-lo quando chegou ao ápice. Mas essa provação é frívola,

na medida em que, sendo as almas imperecíveis,

ninguém criado jamais morreu ou morrerá. Tudo, no

máximo, retorna ao puro potencial, à esfera escolástica

da qual a criação emana. Não existir, o que seria isso,

essa sim, íntegra novidade; podemos, próximos de

Heidegger, pensar-nos no nada? Deus, acima de todos,

está encarcerado na existência. O onipotente pode matar

a si mesmo? Pela vontade impossível de poder não

ser, para degustá-la, crucificou-se Jesus?

As Esferas do Dragão | 77


Episódio 14

32º Torneio de

Artes Marciais

Na Escola Estadual de Ensino Fundamental Julio

Maia, a plataforma de pedra sob o sol do meio-dia era

uma retângulo de luz branca ardente. Seria o cenário

principal das batalhas. Políticos e ricaços, celebridades

e jornalistas empesteavam por ora esse espaço, conversando

e bebendo em volta de uma mesa coberta de tecido

vermelho onde estava depositado um troféu dourado e

delgado, com a caneca no topo pouco maior do que o

necessário para abrigar uma bola de tênis. Esconsa por

um pano preto, estava ali colocado o prêmio pelo qual

eu tinha vindo, a esfera de cinco estrelas.

Subdividiam a plataforma vários ringues menores.

Dezenas de inscritos decidiam seus destinos nas par-

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tidas classificatórias. Eu estava entre eles, e lutei bem.

Ao nosso redor urravam as arquibancadas, buzinas desritmavam

o tempo, papeis coloridos picados esmigalhavam

o espaço. Sobre as amuradas do estádio, vigiavam

os soldados do exército Jade — coletando dados,

definindo perfis, projetando a prisão dos desviantes que

ali se destacassem? Fui informado: nunca antes havia se

imposto uma influência exógena no campeonato, que

era uma instituição tradicional. Isso significa que o poder

do Jade havia crescido. Com efeito, segundo rumores,

o número de prisões subia exponencialmente (foram

de centenas a milhares os que eram levados ao Sanatório

Jade — era esse o nome — todos os dias). A iminência

do fim cada vez mais intensa, os militares explicavam:

tinham de se aguerrir.

Os gritos de apoio e a cantoria do público não deixavam

meu temor pelo que pudesse acontecer se apoderar

de mim. Eu tinha veleidades de ser não mais que

um show; atender às suas expectativas, transbordá-las,

excessivo de tão adequado, surpreendentemente hábil

segundo os critérios alheios. O Jade podia prender-nos,

preservar-nos — esse momento de aclamação faria tudo

valer a pena.

Ao fim da tarde, haviam sido escolhidos os sete atletas

do 32ª Grande Torneio de Artes Marciais. O número

As Esferas do Dragão | 79


seria completado pelo vencedor do campeonato anterior,

que ainda não tinha chegado ao local. Os fogos de

artifício irromperam no céu arroxeado. Agora a plataforma

estava vazia de gente. Nós os selecionados ficamos

ombro a ombro, quatro de um lado da mesa de coberta

vermelha, três do oposto. Hinagiku e Shukun estavam

lá. E, surpreendentemente, Hikari. Trombetas

anunciaram a vinda de pessoas com importância, e

assim reencontrei o deus: Hermes, jovem vestido à grega,

nos pés sandálias simples, pequeninas asas nascendo

diretamente da carne, pisou macio a pedra até se

colocar atrás do troféu, suas mãos brincando com as

rendas da toalha rubra. Eu o fitei, sedento; não me deu

atenção. Ao seu lado, se colocaram seus filhos Abderus

e Palaestra. Os três, juízes.

Certo nervosismo coalhava a cerimônia. Claramente

porque não podiam dar início aos trabalhos se o número

de combatentes não estava ainda completo. Isso não

foi um problema por muito tempo. Logo notamos uma

movimentação afobada entre os funcionários do Jade.

Os militares corriam com suas metralhadoras pelas escadas,

saindo atabalhoados pelas portas de emergência.

Em silêncio, a multidão dentro do centro esportivo

acompanhou os ruídos externos de uma pequena guerra.

Em não mais que quinze minutos tudo cessou. Nesse

momento, ele entrou. Em uma mão, uma maleta exe-

80 | Duanne Ribeiro


cutiva preta. Na outra, uma cabeça arrancada e sangrenta,

segurada pelos cabelos. Sem pressa, andou passo

ante passo pela nossa apreensão e subiu à arena;

deixou o cadáver defronte ao prêmio, os olhos arregalados

sob a esfera recoberta; dirigiu-se a todos em

voz desapaixonada:

— Não suportaríamos não ser chefes de nós mesmos,

não é mesmo?

Pé ante pé sobre o nosso orgulho, posicionou-se no

seu lugar na fila. Não pude olhá-lo nos olhos. A minha

mirada se prendeu ao chão. Nos seus sapatos sociais.

Manchados de lama e vida subtraída.

***

Hermes passou as mãos pelos seus cabelos loiros e

colocou os óculos escuros como se fizesse parte de um

episódio do CSI: Miami. No telão, a câmera fez um close

veloz no seu rosto quando ele tomou o microfone e

anunciou as batalhas que se seguiriam nos próximos

dias, em três rodadas de mata-mata — quatro contra

quatro, dois contra dois, um contra um: na sequência,

Hinagiku versus Hikari; Jintoku versus Shiawase;

Shukun versus Kachiaru; Kurokun versus Kyua. Estavam

abertos os jogos.

As Esferas do Dragão | 81


Episódio 15

Paz Passivo-Agressiva;

Desconsolos da

Vontade de Potência

Conversei com Hikari antes que ela subisse à arena

para enfrentar Hinagiku. Disse-me que era difícil se

concentrar no plano, focar na derrota de Kachiaru, porque

desde que nos separamos estivera em busca da mulher

que entrevira sob o impacto da esfera de quatro

estrelas. Estava obcecada. Achava pistas da fugitiva

nos livros que lia, nos homens a quem dava sustento

(“a quem eu sirvo de terceira perna”, explicou) e, fluxos

da vida, a quem chegava o momento de ter de abandonar,

no sucesso do trabalho, no tédio dos televisores.

“Em você, inclusive”, concluiu, súbita, “sinto que poderia

seguir pelo seu rosto até achá-la escondida. Esquisito.

Será que eu devia não ter dado a você um nome?”.

82 | Duanne Ribeiro


***

Colocaram-se então frente a frente. Sua luta consistiu

numa troca de mansidões esquemáticas. Isto é,

não propriamente se batiam uma contra a outra, mas

apresentavam uma coreografia: os ataques e contra-

-ataques se mantinham, inofensivos, em momentos destinados

a ataque e a contra-ataque. Não há violência,

no sentido fundo da palavra, se a violência foi absorvida

pelo rotineiro. O público certamente não notou

que se tratava não de briga, mas de dança, como eu

percebia facilmente por tê-las visto lutar antes, por

ter treinado sob a mesma tradição delas. Nos golpes eu

via signos sabidos por nós três; se voava o hanbo na

mandíbula de Hinagiku, a postura do corpo de Hikari, a

força que aplicava no golpe, a inclinação e a velocidade

da arma indicavam à oponente como responder.

Se a minha mestra não se defendia com destreza desse

avanço — de que, eu sei, ela seria capaz — claro me parecia

que o objetivo era receber o impacto no antebraço,

recuar destrambelhada três passos e abrir a guarda

para a violenta pancada no estômago. Performava

essa fragilidade.

Às vezes, porém, algo no comportamento de ambas

desmentia essa teoria. Por exemplo: Hinagiku estando

As Esferas do Dragão | 83


ajoelhada, Hikari correu em sua direção com o hanbo

erguido como um machado. Zumbiu o cilindro no ar

conforme despencava com truculência, mas só estilhaçou

a pedra. A velha se jogara em uma cambalhota para

trás e caíra de pé. Os movimentos surpreenderam

as duas e a mim: eram criativos, divergiam pequena

porém significativamente do ritmo que pretendiam.

A expressão que restou nas suas faces — um desagrado

no canto da boca — provava que sabiam o que tinha se

dado. Um burburinho na barriga do orgulho alertava

que não conseguiriam fingir por muito tempo ou que

não conseguiriam fingir o tempo todo. Sobrepunha-se

a elas uma vontade de fruir a superioridade. Por tudo

isso, alternavam-se na partida surtos de agressividade

e retraimentos simpáticos. Era uma conversa. A um

bem-vindo contrapomos um obrigado, esgrimamos

bons-dias, preemptivamente a debelar a ameaça possível

do outro, torcendo tons de voz, contendo-se, deixando-se

levar.

De todo modo, conseguiram manter o estratagema

que eu supunha (com razão) estar em jogo. Com um chute

no queixo de Hikari — que se fazia parecer atrapalhada

ao manusear as cartas mágicas — Hinagiku abriu espaço

para lhe dar um, dois, três socos no peito, girar no

próprio eixo e virar a mão fechada na nuca da adversária,

que tombou com o nariz no chão. Grand finale.

84 | Duanne Ribeiro


***

— Como funcionam as esferas do Dragão?

No telão, a cada luta, eram exibidos programas variados

sobre o torneio. Neste, agora, um jornalista da

NNS de olhos vidrados e gravata lilás, conversava com

um acadêmico de cabelos azulados e óculos redondos,

que cofiava volumosos bigodes cinéreos: “A reunião dos

orbes permite enxergar o que seja o superholograma de

Michael Talbot. A ordem implicada de David Bohm é descortinada,

a estrutura generativa por trás do tempo e

do espaço se dá a conhecer; mesmo nossa identidade é

dissociada em onipresença”. O repórter coçou a cabeça:

— É possível dizer que o detentor das sete esferas

se torna onipotente?

O pesquisador era magrelo, usava um jaleco branco

e uma camisa polo verde-água. “A onipotência que se

prova factível não é individual, mas os poderes manifestos

de uma rede complexa, a potência de um todo,

porém um todo fractal no qual cada parte é potente.

A onisciência são os variados pontos de vista dessa rede,

coordenados a uma só vez sobre o objeto em questão

(para utilizar o exemplo clássico, é como se víssemos

o aquário e o peixe por todos os ângulos e em todos

As Esferas do Dragão | 85


os seus presentes). É nesse cenário em que um gesto

de vontade pode deslocar um fragmento no núcleo da

discreta ontologia de processos e gerar basicamente

qualquer efeito desejado (são essas as ocorrências traduzidas

por visões ingênuas como realizações fantásticas

de desejos)”.

O entrevistador recuou a um silêncio desarmado.

O doutor, constrangido, resolveu acrescentar algo à

guisa de esclarecimento: “Seguindo a terminologia de

Alfred Whitehead, se trata, cada esfera, de uma entidade

atual ou de uma ocasião atual...”.

***

Míope como Miguilim, óculos de grau Wayfarer tipo

Morrissey sobre bochechas cheinhas de sardas — leve,

contente, aberta ao mundo e frágil como Miguilim, mas

isto eu saberia só depois. Seu rosto era uma clareira em

meio a volumosos cabelos lilás-escuro encaracolados —

seu rosto me seria uma clareira: eu soube de imediato?

Yes, I’m sure it happens all the time. Shiawase.

Shiawase punha o pé nesse local em que o destino

se decide no soco em estado de paradoxo: era e não era

feita pra isso; era dona de um poder e de uma timidez, de

86 | Duanne Ribeiro


uma vontade de concórdia prenhe de calma e preguiça

atravessada por anseios de explosão. Feito Perséfone,

excedia-se ou minguava-se. Jintoku — gordo de pele

rosa choque, calças brancas bufantes, colete preto sem

camisa, no cinto o emblema do leão da tribo de Judá

e, dependurada, uma espada de samurai — era similar.

O que em si era potência tinha pouso na firmeza, no

descanso, no estabelecido. Nessa tríade naufragavam

o original e o individual nele. Isso, também, somente

descobri mais tarde, quando viajávamos, como ele me

descreveu, “na direção do fim de tudo que existe”. Agora,

o que via era a sua famosa katana de fio invertido (pois

não queria ferir de morte ninguém) chocar-se rutilante

no rosto da mulher.

O ruído duro e agudo do impacto de metal contra

metal demonstrou que ela não era uma menina trivial:

Shiawase era um androide. A contusão arrancara a tinta

bege da sua bochecha, deixando ver o ferro. Ela parecia

furiosa. Tomou impulso (passinhos para trás), correu

em enorme velocidade (os braços abertos de um

jeito engraçado) e saltou; furou horizontal a distância

como um homem-bala. A cabeçada atingiu o peitoral

de Jintoku com um baque seco e fofo. Ele foi impulsionado

por metros, suas botas douradas (como as luvas)

abrindo trincheiras na plataforma; manteve-se de pé.

Sua rival, apaixonada pelos resultados da própria força,

As Esferas do Dragão | 87


avançou. Desviou de um soco alto, sustentou-se em

uma perna e, com a outra contraindo-se e estendendo-

-se velozmente, despejou uma sequência de chutes no

oponente. Que foram absorvidos dezena a dezena. Era

como bater num saco de algodão.

Ofegante, ela parou. O corpo de Jintoku ficara todo

deformado: estava cheio de crateras nos pontos onde

havia sido atingido, fora modelado como massinha. Sua

carne molenga amarfanhada retornou aos poucos à normalidade.

O monstro sorriu com todos os dentes; abriu

o bocão e exibiu a língua, movendo as mãos zombeteiramente,

uma de cada lado da cara. Ela também abriu

a boca. Do fundo da garganta de Shiawase surgiu uma

luminosidade e, à queima-roupa, ela disparou uma torrente

de energia. Jintoku ainda resistiu no mesmo ponto

por alguns segundos até ser atirado além da arena,

fora dos limites regulamentares. Enquanto a moça dava

pulinhos de comemoração, ele lamentava a derrota

na grama, soltando fumaça raivosa por uns buracos que

lhe vazavam a periferia da cabeça.

88 | Duanne Ribeiro


Episódio 16

Expressões

Hereditárias da Força;

Enfeitar-se de Dor

“Não se exceda”, aconselhou Hinagiku ao pé da orelha

de Shukun antes do início da luta, mas ele só ouviu

a sua própria fúria. Nem mesmo deixou o juiz acabar

de abrir o combate. Sacou de cada flanco do corpo uma

Beretta M9 e as descarregou sem pausa. Os olhos do

inimigo sorriam sobre o bigode ralo. Sob o som dos tiros,

deu-se tempo para aspirar a nicotina. Depois sua

mão e o cigarro entre os dedos indicador e médio se

diluíram em manchas de cor bege e branca no ar. Trinta

disparos após, Kachiaru caminhou devagar até o

seu oponente, estendeu o braço e dispôs a palma para

baixo: uma série de pequenos objetos metálicos tombou

à pedra.

As Esferas do Dragão | 89


— Não se pode fugir de um estorvo para sempre.

Vamos lá.

O berro de Shukun estremeceu o estádio. Correu na

direção de Kachiaru, tentou um gancho — mas atravessou

o adversário; só o vulto dele, persistência de sua

imagem na vista, foi atingido. Sua falha lhe seria cobrada

logo: um forte chute nas costas o arremessou

contra o solo. Levantou-se, furioso, nariz estourado,

supercílio sangrando. Gritou outra vez, chamando-se.

Convocando a raiva dura que sempre lhe é disponível,

que aquece subrepticiamente o seu olhar triste. Ali eu

vi que a sua vanglória e sua cólera recobriam translúcidas

sua fraqueza, a qual eu não hesitaria dizer que

consiste em uma necessidade de amor tantas vezes disfarçada

ou tantas vezes realizada somente de forma

oblíqua ou opressa que esqueceu seu nome. Cuspiu um

dente. Voltou à carga.

Mas era como se todos os seus golpes fossem previsíveis.

Mais do que isso, como se Shukun tivesse

aprendido todos eles com Kachiaru, e este se entediasse

frente a uma sombra de si. (As gerações se sucedem

na manutenção da violência mais do que na divergência

em relação a ela; assim, se de um pai se conhece

que cintava as pernas da filha, usando o lado da presilha,

listrando as suas pernas de vergões ensanguentados,

porque voltara tarde demais de uma noitada, é

90 | Duanne Ribeiro


consequente que, do filho, se conheça que haja martelado

a mão da filha, neta daquele, porque ela havia

roubado o boné de um cretino). Shukun estava sendo

ridicularizado. Ofegante, não fazia mais que golpear

e perder.

Uniu por fim as mãos em um pseudorevólver. Da

ponta dos dedos indicadores uma luz branca vibrou por

um instante; agigantou-se de repente e foi disparada,

um meteoro de energia. Kachiaru cruzou os braços

diante do rosto e foi engolido por ela. Ainda estava lá

quando cessou. Fumegante. Andou devagar até um

Shukun exausto e paralisado, mantendo ainda, mas molemente,

o mesmo gesto; o segurou pela nuca e lançou

sua testa contra o próprio joelho. Então acabou.

***

Caminhando em um cenário feito por computação

gráfica, a jornalista apontou para as imagens que apareciam

ao seu lado sem tirar os olhos da câmera, por

vezes passando os dedos pela franja do seu cabelo curto

(penteado para a direita, de modo a deixar o lado

esquerdo da testa visível). “O atleta se submeteu por

meses a uma gravidade cada vez maior”, ela explanou,

As Esferas do Dragão | 91


conforme cenas de arquivo se sucediam, “gradativamente,

todo gesto se tornava mais difícil, mais demorado.

Até que a barreira era ultrapassada e o sofrimento antigo

evoluía ao novo normal”. Via-se um lutador de

roupa laranja e azul escura fazer flexões com um braço

só sobre um chão quadriculado vermelho; a estrutura

em que estava era circular e feita de metal; através das

janelas redondas um negrume tremendo. “Feito isso,

quando o atleta retornava à gravidade com que estamos

acostumados, sentia-se leve, imaterial quase. Nós

o assistimos golpear com impossível velocidade — mas

ele está somente se aquecendo, poderia fazer bem mais.

Ele superou a normalidade, superou o limite”.

Ajustou a franja à direita, continuou: “Temos como

compreender a grandeza? Não, e precisamente porque

a vemos como ‘grandeza’. A grande força, a grande

inteligência, a grande destreza — todas são ‘grandes’

para nós que as medimos segundo nossa força, nossa

inteligência, nossa destreza. O que dizemos da excepcionalidade

quando, no fundo, a descrevemos no sentido

de um ‘essa pessoa é mais forte do que eu, mais

inteligente do que eu, mais hábil do que eu’? Pouco

mais ou nada mais que ‘sou limitado, sou limitado, sou

limitado’. Para compreender a grandeza, temos que sa-

92 | Duanne Ribeiro


ber como é que uma normalidade se converteu noutra

normalidade. O corolário disso é que jamais devemos

buscar o poder: devemos buscar como tornar o poder

trivial”.

***

I knew right away he was not ordinary. Cabeça raspada

à navalha e nela se ramificam cicatrizes feito fractais.

Rubros olhos que amam o caos como a um filho.

Nas costas, a espada Kusanagi. Kyua. Antes que o sinal

de início tocasse, ele andou até mim, me cumprimentou

e murmurou:

— Eu quero que você me golpeie o mais forte

que puder.

O que? Certamente era o que eu pretendia. Afastou-

-se sem mais explicação. O juiz deu a permissão.

Kusanagi riscou veloz o chão, as duas mãos em seu

punho; a ponta da lâmina na pedra foi um longo som

azulado contrastado pela rítmica das passadas. Parei

a espada com as palmas nuas, uma a cada lado. Fervente,

a lâmina queimava ao toque; endureci a mandíbu-

As Esferas do Dragão | 93


la e resisti. Kyua empurrava a arma contra mim. Cada

vez mais próximo. Olhávamo-nos olhos.

— Eu não quero morrer sem cicatrizes. Me golpeie!

O mais forte que puder.

Afastou-se em um salto, apenas para tomar novo

impulso de ataque. As cicatrizes no seu crânio — eu só

podia pensar, você já tem tantas! — ardiam avermelhadas.

Duas, cinco, onze, vinte estocadas, o metal foi, voltou

e reincidiu, dança irregular. Eu desviava o mais rápido

que podia e parecia salvar-me de ferimentos pelos erros

eventuais do meu adversário... até que percebi que

não se tratavam de erros. Kyua deliberadamente continha-se

quando percebia que eu estava indefeso. Fingia

lutar à sério — para a plateia, para os juízes — talvez

—, mas mirava outro tipo de conquista.

Sem a decadência do vencer ou perder, só o conflito

debilitante e intenso; os músculos extenuados,

as têmporas pulsando de dor, o suor uma atmosfera —

eu soube que adorava aquilo. Engajados no mesmo

fruir da força e do saber, eu sentia que construíamos

uma espécie de fraternidade. Éramos, Kyua e eu, irmãos.

Expandi o Qi em uma onda de energia que o desestabilizou.

A sua guarda aberta, dei-lhe uma sequência de

socos, esquerda, direita, esquerda. Cambaleante, deixou

cair a espada. Eu a tomei, girei em meu próprio eixo e

lhe rasguei a cara da testa ao lábio.

94 | Duanne Ribeiro


No chão, o rosto lavado de sangue, Kyua gargalhava:

— Sim. Esta aqui é nova!

Antes que o juiz anunciasse uma vitória, ergueu-se

e fez a única coisa que acarretava o fim das lutas além

de inconsciência ou morte: abandonou a plataforma.

As Esferas do Dragão | 95


Episódio 17

Violências do Afeto;

Histórias de Amor,

ou: Romantologia

Perséfone, eu a chamei antes de Perséfone, não? Um

recurso retrospectivo: foi ela própria, alhures, quem se

referiu a si sob essa metáfora. Mas que me significasse

algo... isso se deve talvez a que em mim houvesse o signo

de Hades, a quem me apegava. Não pelo desejo do

rapto, porém pela vontade de ser descoberto na sombra.

Sim. Que me raptasse a Perséfone verdadeira, e que

consigo eu viesse a conhecer — para além da estação

única do mundo inferior — as primaveras, os verões, e,

também, porque não mais que humanos, os outonos e

os invernos (Can´t stand the morning rain? Can’t stand

the blazing sun?). Shiawase e eu nos digladiávamos na

plataforma. O sol das quatro queimava.

96 | Duanne Ribeiro


Algumas dezenas de minutos luta adentro, identifiquei

alguns padrões no estilo de luta de Shiawase.

Agia dentro de um procedimento; qualquer interrupção

levava a um momento de confusão, no qual ela tentava

encetar alguma outra estrutura de ação. Era um

chefão de jogo de plataforma: bastava rememorar os

seus ciclos de atividade e enxertar os contra-ataques

nos vãos da sua personalidade. Atingi-lhe diversas vezes

por meios similares: disparou contra mim, com os

braços abertos, correndo aviãozinho; aguardei o soco,

me abaixei e retornei já com o gancho no queixo; assim

que ela subiu alguns metros, saltei, juntei as mãos num

globo e lhe mandei abaixo. Os choques explosivos da

sua carcaça metálica contra a pedra soavam como acidentes

de carro. Ou: tentou incinerar-me como fez com

Jintoku, mas era simples escapar do seu tiro de boca,

retilíneo e compacto; nos segundos após usar o canhão,

ficava frágil, resfriando; aproveitei-me e lhe meti uma

sequência enorme de murros na boca. Vários dentes de

metal dispersaram-se à nossa volta.

Shiawase era linear, da intenção à execução (o que

é chamado caráter no trato ético e fraqueza na batalha).

Era uma guerreira sem ferocidade: a briga não a

movia, não era o seu primeiro recurso — a cada bloqueio,

a cada investida falhada, a cada dano sofrido,

tinha de se mobilizar para a briga, de uma maneira

As Esferas do Dragão | 97


envergonhadamente consciente. Ora, Hinagiku fizera-

-me para a fúria: eu só conseguia compreender Shiawase

como débil. Quanto insulto ela engole até que descortine

a sua raiva? Passei a querer saber qual era o gosto da

sua violência, este sinal de vida. Intensifiquei meu Qi

e lancei uns trinta corpúsculos energéticos contra ela.

Ela driblou quantos pode, mas a maioria arrebentou sobre

si em nuvens de fumaça luminescentes. Arranquei-

-lhe um olho.

A vitória tão próxima: me sentia sujo, me sentia lindo.

A arrogância abriu minha guarda. Quando dei por

mim, Shiawase tinhas as mãos no meu pescoço, esganava.

Minha boca entreaberta, pegando ar nenhum; pingava

na minha língua o mercúrio líquido que escorria do

buraco que abri na sua face. Estamos muito próximos,

muito próximos, muito próximos, seu cativo eu lhe percebia

o cheiro, e o projetava a contextos mais felizes

— intimidade improvisada, desejo imiscuído no terreno

da cólera (é possível se apaixonar em batalha?) —,

pontinhos luminosos enchiam meu campo de visão...

até que ela afrouxou os punhos um pouco. Claramente

estava preocupada.

É preciso ser certo tipo de pessoa para manter a

agressividade intacta. Dei-lhe uma testada e depois

um chute no estômago com os dois pés. Não caiu.

Encaramo-nos, metros distantes um do outro. Ela se

posicionou defensiva e cerrou os dedos. Gritou:

98 | Duanne Ribeiro


— Você não vai me derrotar. Vou convocar o dragão,

eu mesma!

Gargalhei alto. Só depois de mim, menina. Para que você

quer as esferas, afinal? Ela hesitou, dando sinais de

timidez. Acabou inchando-se de coragem e retrucou:

— Eu vou pedir que todos fiquem bem! E todo mundo

vai ficar bem!

Ah! A boa samaritana. Bom, querida, isso só vai acontecer

depois que eu trocar duas palavras com o dragão.

Todo mundo pode ficar bem depois que eu ressuscitar o

meu avô.

— O que? Você quer as esferas... porque...

Sua expressão desabou em tristeza. Os dedos se abriram

e os braços caíram ao lado do corpo. Eu fiz menção

de atacar, mas ela nem se mexeu, de cabeça baixa.

“Quer as esferas, porque...”, murmurou. E então me

virou as costas, caminhando lentamente para fora da

plataforma, ultrapassando a linha regulamentar, desistindo.

Eu venci. (Só é possível apaixonar-se em batalha.)

Shiawase venceu.

***

Em off, um antigo lutador do Grande Torneio, Hércu-

les Satã, comentava as cenas de antigas batalhas do

As Esferas do Dragão | 99


campeonato, que preenchiam a tela. “Olha, isso tem tudo

a ver com aquele poema, como é, do bojo, como é?

Muitos confrontos do torneio o negócio foi quem fincava

pé no chão mais forte. Não quero dizer que se

chega perto da vitória assim: mas se mantém a derrota

à distância, vez a vez, e isso muda tudo”. Muda? A ideia

era, contudo, interessante: do fracasso ao sucesso o intervalo

não era simples; podia ser curto ou prolongar-se

indefinidamente como em um paradoxo de Zenão.

“Bojador, gente, não tem a ver com bojo! Bojador,

como é? A dor do Bojador...” Na tela, de um lado da plataforma,

um oponente se defendia dentro de um vento

furioso, lancinante; o seu adversário não se aproximava,

sob risco de sofrer cortes graves. Tendo de recuar, era

vulnerável aos ataques e ao cansaço. “Dá uma olhada:

ele cruza os antebraços e pula. Aquela ventaria bate que

nem peixeira, o sangue vaza, o garoto vai adiante, dane-

-se. De repente está dentro. Atravessou a violência!

O jogo acabou aí”. De fato. A luta não prossegue muito

mais depois disso. “Quem quer ir além do Bojador, tem

de ir além da dor. É isso! E está aí, na cara, que é isso

mesmo, né não?”.

***

100 | Duanne Ribeiro


Do sem movimento do aguardo pelo início da luta o

sinal os levou ao sem movimento do estudo do outro.

O pôr-do-Sol tingia as pedras da plataforma de um laranja

esmaecido. Hinagiku e Kachiaru se respeitavam,

isso era evidente; um respeito, nós adivinhávamos, decantado

de choques e consensos — das relações de força

e dos devires do afeto sobrepostos ao longo de anos.

Quando enfim deram os primeiros golpes, era como se

reapresentassem um ao outro estratégias de outrora —

o ataque e a resposta sucediam-se, levemente surpreendentes

não por inéditos, mas por, contra tudo, serem

ainda os mesmos. Tanto se passou e ainda a mesma

ópera! — a serenidade de ambos dizia.

Uma aproximação ousada, uma esquiva no último

instante, um rodopio; nos primeiros movimentos: apaixonaram-se.

Hinagiku meio que contestando um desafio

de uma namorada que ele tinha (“você não vai falar

mais com ele!”), driblando o noivo que não lhe agradava

mais... Kachiaru talvez fruindo a um só tempo as

ousadias de abandonar um compromisso e de estabelecer

um compromisso — o par em especulação libertária,

liberando-se do mais para acoplar-se a algo que fosse

mais. Sou livre porque escolhi você. E/ou: Kachiaru

descobrindo uma mulher adaptada ao seu ideal de submissão

e Hinagiku deliciando-se com a fantasia de ter

domado um mulherengo: no outro um meio de sentir-

As Esferas do Dragão | 101


se ou tornar-se potente. Sou forte porque tenho você.

Os adversários se equiparavam.

A guarda aberta, um bote falho, a ponderação dos

golpes baixos: casaram-se. Kachiaru cumprindo o manual

de instruções da vida: engravidou-lhe duas vezes,

comprou carro e casa, a dispôs de criada vitalícia, educou

as crias com rigidez e um toque de crueldade. Fez-

-se objeto de fascínio para os três. Hinagiku reagiu com

ciúme doentio e destrutivo (delirante?). Mobilizou narcolepsia

e esgotamento nervoso. Quando Kachiaru tentou

uma investida especialmente violenta, Hinagiku protegeu-se

com um rebento soldado do Exército. Ele lhe

sufocou os desejos, suprimiu suas opções, desprezou

sua ambição e capacidade. Ela devolveu ressentimento

e servilidade. Velhice, doença e cansaço levaram a disputa

a diversos tipos de empate. Um romantismo curado

da sua doença podemos testemunhar nos instantes delicados

em que eles notam como cirurgia após cirurgia

fizeram-se almas gêmeas.

A aparência de equilíbrio ou o equilíbrio concreto

final no entanto eram desmentidos pela dialética deficitária

que o havia precedido: se ambos haviam estreitado

mutuamente seus horizontes, era ela quem havia

sido mais reduzida, não obstante se mantivesse firme e

operante como sempre. A cada lance, víamos como seu

102 | Duanne Ribeiro


estilo se degradava fração a fração. Tudo estava a favor

de Kachiaru: ele se encaminhava como que por destino

à vitória. Foi então que a Lua surgiu e abortou o torneio.

A cauda de minha mestra volteava atrás de si. A noite

caíra completamente. Quando a Lua cheia foi descoberta

pelas nuvens, Hinagiku fechou os olhos e deixou

fluir sua escuridão. Transfigurou-se: a epiderme foi agitada

por violentas convulsões e cobriu-se de pelos negros;

o corpo agigantava-se a explosões, como se socado

de dentro pra fora. Nas arquibancadas, parte do

público se aterrorizara com o monstruoso gorila formando-se;

fugiam aos montes, tropeçando nas escadas.

Hinagiku feita titã erguia os punhos e os descia como

meteoros. Kachiaru se esquivava ao passo que a plataforma

era completamente destroçada; por três vezes,

bloqueou o golpe com as mãos nuas, até que ela conseguiu

agarrá-lo e principiou a esmagá-lo entre os dedos.

Sentiu os seus ossos quebrarem e o atirou contra

a escola. O corpo fragilizado atravessou o teto e a estrutura

toda desabou.

Mas, logo de pé, Kachiaru escalou os escombros. Tinha

a capacidade de se regenerar? Acendeu um cigarro.

O macaco urrou; o tambor de socos no peito tremeu

todo o estádio; o terremoto rompeu-se em um novo

ataque, punho-martelo tombando sobre o inimigo — e

As Esferas do Dragão | 103


chocando-se violentamente contra uma barreira de força.

A mão ricocheteou, combalida. De pronto, Kachiaru

saltou; seu corpo recoberto de Qi roxo bruxuleante

cortou o ar e varou de ponta a ponta o coração de

Hinagiku. Os beiços moles sobre dentes não mais ameaçadores,

a expressão algo sonolenta, confusa pelo súbito

déficit de vida... Despencou. Hinagiku morta, meu

deus, Hinagiku morta...

104 | Duanne Ribeiro


Episódio 18

Esfera de Cinco

Estrelas: Gercina

O monstro regrediu aos poucos à condição de senhorinha.

Corremos, eu, Shukun e Hikari a ela, caída

em uma poça de sangue. O buraco no peito era rubro

e escuro. Estava debilmente consciente. “Meu menino”,

ela me disse, levando a mão vaga à minha bochecha,

um último sorriso encantado no seu rosto. Meu choque

obliterava por complexo o pandemônio que se fizera

no estádio.

Ouvia, como que debaixo d’água, sons de explosão e

rajadas de metralhadora. Concentrado na face dela, os

pensamentos passavam pela minha mente como bons

dias de estranhos. O Jade invadira o espaço da competição,

tinham a desculpa de que precisavam — a con-

As Esferas do Dragão | 105


clusão revoou de um lado ao outro. Persistia a evanescência

nela. O desaparecimento se evidenciava. Lutavam

contra ele, tinham de capturá-lo. A sua mão perdeu

mesmo a força mínima necessária ao carinho; caiu sobre

a barriga como uma tristeza. Shukun e Hikari ergueram-se

afoitos: também hão de lutar? Eu a abracei, chorei

sem lágrimas e sem ar. Algo em mim, a despeito de

mim, procurava criar uma metáfora para explicar a mim

o meu estado: alegrias de areia, ampulhetas partidas?

Minha subjetividade lia definições da fome a um faminto.

Na vanguarda de todos que eu era, esse fiapo de

eu não sabia nem querer.

O corpo de Shukun foi lançado ao meu lado, avançando

ainda alguns metros à frente com o impulso.

Fumegava. Soldados e mais soldados caídos pavimentavam

o perímetro. Hikari, ferida, se afastava para longe.

Outro sentimento foi capaz de vir a mim: a fúria.

Kachiaru voltava a sua atenção a mim.

— A final foi decidida. Sou eu contra você.

Ergui-me, afastei as pernas e fechei os punhos; berrei.

O Qi percorreu meu corpo, violento. Disparei contra

o inimigo, completamente concentrado, cada uma

das centenas de socos que desferi causava uma mediana

explosão de luz. Por muito tempo eu ataquei sem

nem mesmo perceber o adversário; puro avanço, pura

106 | Duanne Ribeiro


tentativa de destruição quase sem objeto. Por fim notei

que ele se defendia com facilidade; entre os dedos de

uma mão o cigarro, a outra entediando-se com os golpes.

Busquei mais força em mim, encontrei; meus olhos

queimaram e a dormência atingiu todos os meus membros

à medida em que eu atingia a velocidade da luz;

os nós dos meus dedos contra a sua palma estendida,

as ondas de impacto abriam rasgos no concreto da

plataforma. Mas era eu contra a imobilidade. Ele então

prendeu meu pulso e o torceu para trás; uma joelhada

no estômago me dobrou; uma segunda me estourou o

nariz e me atirou para trás. Perdi a consciência.

***

“Vou ficar com as suas esferas também”, a voz de

Kachiaru me arrancou do desmaio, “e será melhor para

nós dois — bem, mais para você — se não ficar no

meu caminho novamente”. Minhas esferas, ele tinha

roubado as minhas esferas... pus-me, trêmulo, sobre

os cotovelos. Com a vista embaçada, vi sua expressão

de descrédito. “Ainda de pé? Mas então a batalha não

está terminada. Este brinde ficará com quem, se a batalha

não está terminada?”. A esfera de cinco estrelas,

soturna sob a luz.

As Esferas do Dragão | 107


***

Frívola atmosfera de cores fraturadas. Morremos em

conjunto a morte dos outros. Feições de índia velha,

prosódia nordestina, a minha tia-avó Gercina faleceu

poucos anos depois do meu avô. O que senti foi alívio:

seu fim me feria, porém a ferida era precária porquanto

tia Pina era uma figura quase mitológica, inconstante,

da minha infância — sua morte era apenas o eco do perigo

real: today, we escape... Defunta, reorganizaram-se

ao redor de si responsabilidades. Levei a minha avó

Margarida a vê-la em despedida. Através de uma Guaianazes

empoeirada, no meio da tarde, entramos em uma

igreja de arquitetura modernosa, deserta. Numa das salas

retangulares projetadas para o lamento, fileiras várias

de familiares meus que eu nunca havia visto. Um

falecimento desenterra redes, ativa outra vez conexões,

eletrifica os nós com sentimentos vagos de obrigação

e pertencimento. O “meu sangue”, de repente. (Estranha,

neste dia, a transformação dialética do luto:

com a vinda dos irmãos sobreviventes, minha avó alegrou-se

pelo reencontro, riram e informaram-se mutuamente

da vida. Esquecidos do trabalho da tristeza, exibiam

a beleza daquilo que os trouxera ali; por outro

lado, eles demonstravam uma espontaneidade e egoísmo

de sentimento que impediria reunirem-se antes do

108 | Duanne Ribeiro


próximo óbito. A morte de alguém, em um sentido

delicado, é uma bênção?) Participei de funerais por dever

de respeito e amizade: da mãe da Camila — as filhas

aplicadas na recepção dos parentes e amigos, não

contendo a aflição, mas: percorrendo-a por vias diferentes;

do pai do Yoshiharu — quando o caixão desceu,

o peso do salão, mesmo entre nós, desconhecidos, se

dissipou; algo tinha terminado, ou tínhamos encenado

o símbolo de que algo terminara. (Se é assim, nosso

choro devia ser “bem diferente”, como o de Cartola: vivo

feliz em Mangueira porque sei que alguém há de chorar

quando eu morrer. Arroz e feijão quentinhos, carne na

brasa cheirosa; em vez de velório, festa, como se Akira

Kurosawa sonhasse seu sonho no Brasil.) Já disse, na manhã

do enterro do meu avô, me inventei regras morais.

Certo amigo que o acompanhou boa parte da vida tinha

o direito de saber. Também se chamava Antônio; apertou

os olhos para me identificar no pé das escadas; galgou

os degraus baqueado pelas décadas; ciente, pode

comentar apenas: “Toninho...”. Uma família; uma dedicação;

um nome; algo de estável em meio ao torvelinho,

por favor. Eu precisava também dizer — a pessoas

especiais. Contei ao Rafael: ele me devolveu um emoticon

triste, que eu senti sincero, e gosto de pensar

que lá em Minas ele se abateu um pouco por mim.

Contei ao João, que comentou uma coisa bonita: queria

estar perto, para poder me dar um abraço. Eu riscava

As Esferas do Dragão | 109


linhas entre pontos dispersos como se de tal maneira

restaurasse alguma coerência ao mundo.

***

A esfera de cinco estrelas, na mão de Kachiaru.

— Portanto, para que não digam que não mereci

o premiozinho...

... ergueu-o no ar e me fraturou com ele a têmpora

esquerda.

110 | Duanne Ribeiro


Episódio 19

Sonho do

Rei Macaco

Uma ferocidade gargalhava dentro de mim: eu era

o Rei Macaco, cauda zombeteira e clava na pata. Chapinhava

no terreiro molhado, avistei os três reis e juízes

Minos, Éaco e Radamanto. Reunidos na mesma mise-

-en-scène em que Henrique Bernardelli põe as Moiras,

Cloto, Láquesis e Átropos. Bati a madeira na lama, agitando

respingos frente às suas visagens alheias ao tempo.

Guinchei blasfemo. Eu demandava o grande tomo que

traziam consigo, suas folhas grossas feitas de trapo, sua

capa de pergaminho, sua lista de solidões. Tomei-o; percorri

febril as páginas e enfim identifiquei o nome de

minha avó, Margarida Gomes de Oliveira, ao lado de

um número que determinava a medida do seu destino.

As Esferas do Dragão | 111


Cloto, Láquesis, Átropos, Minos, Éaco, Radamanto — que

farão, filhos da puta? Cuspi-lhes no chão um tanto de

respeito. As pupilas como planetas desabitados me observaram

esfregar o papel até que as letras sumissem,

até que ele se rasgasse. Arranquei-o e mastiguei a lei

com nojo.

Dei-lhes as costas e parti, meus passos produzindo

sons aguados no silêncio completo. Interrompido apenas

pela voz de qualquer deles atrás de mim:

— E quanto ao teu nome?

Eu lhes devolvi um olhar que continha só um pouco

de desalento.

— Não. O meu pode deixar.

112 | Duanne Ribeiro


Episódio 20

Alucinações do

Androide Paranoico

Não era capaz de me mover; assistia às dores em

meu corpo como se alheias. Algo quente empapava o

meu cabelo; ergui o braço trêmulo e toquei a umidade.

Opus meus dedos manchados de rubro à lua velha. Por

trás deles apareceu o rosto assustado de Hikari. “Não

desista, não desista”, ela dizia. Rasgou a bata na altura

da barriga e passou a murmurar um palavreado indistinguível.

De repente, o seu tronco se curvou para

frente, violentado; ela exalou um gemido de dor. Quando

se endireitou, ofegante, do ventre emergia uma esfera

negra, que se manteve flutuando entre suas mãos

quando se extraiu de todo. Parecia orgânica, miríades

de pequenos tentáculos de tinta negra compactados,

As Esferas do Dragão | 113


sobrepostos. Rugiam, dissolviam-se, ressurgiam, labaredas

na superfície de um Sol subalterno. Ela o pôs em

mim. Lesmas e minhocas de nanquim lamberam-me a

barriga. “Vá, Kasshoku”, ouvi.

***

Please, could you stop the noise?

I’m trying to get some rest

Via-me de cima, deitado sobre o lençol branco de

uma cama, minha imagem alongada e distorcida como

se vista através de um espelho anamórfico. Sem foco,

reduzida a uma mancha marrom, uma porta se abriu em

um canto do quarto; vermelho, bege e preto entraram,

vieram até mim, cada vez menos pintura abstrata e cada

vez mais criatura ganhando definição conforme se

aproximava. Uma mulher. Trazia com ela uma colher

cheia de um doce alvo. Paranoid Android, do Radiohead,

tocava em algum lugar. Ela forçou o aço contra os meus

lábios. Tentei resistir, olhos fechados e lacrimosos, músculos

da face retesados, mas o açúcar chegou espúrio à

minha língua, tentei resistir, tentei.

114 | Duanne Ribeiro


When I am king,

you’ll be first against the wall

Meus pés pisando grogue no carpete azul, na cerâmica

da cozinha, parados à frente da geladeira. A garrafa

pet nua, eu bebi a água gelada aos goles. Sede e sono.

Febre e meus braços pintalgados de nódoas purpúreas.

Grogue, abri uma porta que não a minha. Na cama de

casal, um homem monta uma mulher de pernas abertas,

ambos de cueca e calcinha. Enojado, fugi pelo corredor;

à entrada do banheiro, porém, o homem, de pênis ereto,

grosso e comprido, a cabeça sanguínea. Desonrado,

voltei ao beliche. Os berros de uma briga me tiraram do

torpor. Fingi continuar dormindo. Através do batente,

vi o homem, como se a estátua o ameaçasse, esmurrar

Xangô em uma prateleira.

The panic, the vomit, the panic, the vomit:

God loves his children

Sinto o cheiro da urina e da pelugem encardida dos

pitbulls na varanda, suas orelhas decepadas e a pele

As Esferas do Dragão | 115


amarfanhada restante costurada com fios pretos. No sofá

um gato banhado inadvertidamente com um produto

tóxico agoniza com miados espaçados e tênues. Um

vira-lata de pêlos macilentos fode uma lhasa apso que

nem mesmo se digna a ficar de pé. Com o pau inchado

e preso na boceta dela ele permanece elétrico, boca

aberta e língua para um lado e para o outro, enforcando-

-se com a coleira. Antes ou depois eu tento tirar um

osso da sua boca; morde meu polegar. Entro em colapso;

percebo o corpo gradativamente dormente, subo

escadas com pernas bambas, desabo no colchão.

116 | Duanne Ribeiro


Episódio 21

Promessas

de Liberdade

Kasshoku era um compacto de Qi pervertido, fluxo

de vida estacado, oceano vertido em petróleo. Ao transferi-lo

de si, Hikari injetou em mim o ódio como se

gasolina, atiçou os anticorpos da minha subjetividade

— a arrogância, a autodepreciação, a raiva, a melancolia,

o desprezo, o orgulho — e a vontade de destruir (a si,

aos outros) que eles incitavam fortificava à sua revelia

uma identidade que pouco a pouco tornou-se capaz de

prescindir deles. A criatura sustentou meu corpo combalido

e me deu tempo para me recuperar. Após onze

dias inconsciente, acordei. Estava na casa dela.

Por muito tempo, só com dificuldade pude me levantar

da cama. Engraçado que eu me recorde dessa situação

As Esferas do Dragão | 117


com alguma nostalgia, pois era tudo como um estado de

sítio: eu, muralhado numa fração de saúde, ameaçado

de doença, cingido de fraquezas. Das ameias das minhas

possibilidades limitadas eu avistava o tanto que as circunstâncias

me recusavam. No entanto, ao lembrar, eu

sinto uma ternura própria àquele momento. O pouco

ainda é pouco, mas nosso pouco. Horas ouvindo o meu

discman, a vista da minha janela (os ladrilhos verde-

-escuros do corredor à frente do sobrado, as telhas no

muro do vizinho, cilindros cortados boiando sobre um

excesso de cimento seco). Meu violão. Olha que coisa

mais, que coisa à toa, boa, boa, boa. Meu violão. Preto.

Empoeirado.

O violão me ensinou que a dor ensina. Ou me reeducou

nessa doutrina. Admiro as falanges feridas pelo aço

ou pelo nylon; com o polegar sinto a ponta de cada dedo,

a pele que descobriu uma fértil rudeza. Repito vezes

sem fim a marcha da primeira à sexta corda e de volta,

casas um e dois, dedo indicador e médio, casas três e

quatro, casas cinco e seis, casas sete e oito, casas nove

e dez… e de novo; depois, dedos médio e anelar; depois,

anelar e mínimo. Crispa-se o mindinho, paralisado por

um momento, dolorido: não adianta: nós faremos isso

novamente. Forço o espaço entre os dedos contra o lombo

do violão, para distender a abertura e alcançar notas

mais distantes. Essa pelezinha entre um e outro parece

tão frágil — se rasgará se eu me exceder? Corro o risco.

118 | Duanne Ribeiro


Exuberante que minhas mãos sejam capazes de se

tornar capazes de tocar música. Exuberante que eu seja

capaz de me tornar capaz. Ademais, a possante preguiça

frente a ter de aprender tablaturas alheias... o que me

restava? Inventar tudo só, acarinhar-me do meu ruim.

***

Convalescente, eu era novamente mitólogo amador.

Como quando cheguei à casa da minha antiga mestra,

tive a oportunidade explorar o realismo fantástico em

que consiste uma pessoa. Na galáxia Hikari orixás e

santos católicos conviviam, sincréticos; um pote de vidro

cheio de sal grosso negava acolhida ao mal; espelhos

eram distribuídos segundos os preceitos do Feng

Shui; uma cachorrinha preta andava pra lá e pra cá,

latindo às vezes seu nome na sua língua: Wendy, que

se sentava sobre as pernas e balançava o rabo curto no

chão, a expressão pedinte, enquanto eu comia de manhã

as fatias de pão de forma fritos com margarina que

Hikari fizera. Que isso acontecesse todos os dias, tão

certo como o nascer do sol, era tão necessário e tão esplêndido

quanto o nascer do sol.

Nesses princípios de jornada, Hikari erguia-se não

todos os Césares, como escreveu Pessoa, porém senhora

As Esferas do Dragão | 119


satisfeita das coisas que construiu. Abria a porta da sala

de estar que dava à varanda, a luz entrava como um

sorriso sobre a sua sala de estar, os seus sofás, a sua

televisão, plácidos e limpos. Atrás desse cenário, uma

mesa azul dispunha um limite e criava o espaço de um

escritório, no qual ela trabalhava atendendo ligações

e mexendo no computador até a noite. Aos domingos,

o mesmo contentamento em “ter uma vida sua” tinha

como corolário o seguinte: o dono da própria vida rege

os folguedos, determina aos santos os dias. Assim, se

nos comuns da semana o que comíamos era simples (arroz,

hamburguer, ovo), no sétimo ela se decidira a ser

dedicada: a nossa refeição, singela apoteose, pronta só

lá pelas cinco, oferecia arroz amarelado com açafrão,

feijão, carne cozida.

120 | Duanne Ribeiro


Episódio 22

Dos Nomes e

dos Adereços

Durante os meses que passei em recuperação, tomei

o costume de passear à noite. Aventurava-me a

paradas longínquas, montado na nuvem de Hermes.

Em uma dessas ocasiões, fui de São Vicente, em São

Paulo — sobrevoando a praça Barão (onde uma roda

de adolescentes bramia canções punk na madrugada),

o colégio Martim Afonso e o píer do Careca (em que a

polícia militar alinhara cerca de quinze jovens; um menino

e uma menina do mesmo grupo, abraçados, acompanhavam

a batida do outro lado da rua) — até Itabira,

em Minas Gerais, na qual encontrei a taverna

Menwotsukeru. Tornei-me conviva frequente do local;

mais: me afeiçoei a ele.

As Esferas do Dragão | 121


O estabelecimento ficava nos fundos de uma locadora.

À meia-noite, as prateleiras aparentemente encostadas

à parede eram afastadas, deixando à vista uma

porta cinza-Nintendo na qual havia uma plaquinha presa

a um prego com um fio de barbante, onde o nome do

local estava escrito em tinta preta esmaecida, de tal

forma que não se viam mais o N e o W. Por ali, seguíamos

por um corredor longo, de que a luz ia sendo gradativamente

extirpada. Quando alcançávamos uma escada

no final do percurso, não se via nada; tateávamos

os degraus com os pés e descíamos. Primeiro o pavor de

não ter referências; depois o prazer de perceber-se hábil

a obter referências. Vinte e três abaixo e a luminosidade

voltava parcialmente. Chegávamos à sala de máscaras.

— Qual o seu nome?

Perguntavam-lhe à entrada. Respondia: Kurokun.

Então me apresentavam, sempre como se nunca tivesse

eu ido ali, às estantes, aos baús, às caixas de papelão

entupidas de disfarces e fantasias. Em Menwotsukeru

não se entrava como si mesmo. Alguns falaram de “revolução

permanente”; o que se dava ali era um carnaval

permanente. Todas as vezes eu vestia a mesma fantasia:

botas marrons de ponta bojuda; calças listradas na

vertical, verde e branco, presas com um grande cinto

com uma grande fivela; um casaco azul-claro com mangas

compridas dobradas para trás, branca com bordas

122 | Duanne Ribeiro


vermelhas; luvas de couro rubro curtido; e um chapéu

cônico cor-de-areia, que se dobrava flácido à altura da

minha nuca. Sua aba assombreava meu rosto. Era doce,

pois meu rosto me assombrava.

dreamed I was flying high above the trees over the hills.

looked down into the house of Mary

A música inundava o bar quando enfim entrávamos.

Todos os meus amigos estavam lá. Você quem me levou

na garupa da bicicleta tantas vezes, quem jovial criava

simplesmente melodias, quem se cansou de mim e depois

também de si mesmo, trocando-se por pó e pedra;

você quem dissertava comigo sobre todas as coisas na

varanda de um apartamento, quem quase só por descuido

crê nas próprias capacidades, quem me entristece

porque talvez eu tenha de cantar “Canção para Amigos”

para o que restou da gente; você quem me levou a uma

cidade caiçara longínqua quando o que eu queria mais

era fugir, você quem se confessou apaixonado por um

menino enquanto nós ouvíamos “Maurício” à mesa

de plástico de um boteco, você quem queria mais,

sim, mas se acostumou com a leveza. Todos os meus

amigos estavam lá e nenhum deles sabia aonde a noite

se encaminhava.

As Esferas do Dragão | 123


take a bottle

drink it down

pass it around

Cumprimentava cada um no extenso salão enquanto

a água salina enluarada pelas luzes dos postes batia

nas pedras. Coletava trocados para comprar vodka,

conhaque e cachaça bêbado de mim. Sou uma pessoa.

Não é surpreendente? Sou uma pessoa! Mas a minha

única garantia disso são vocês.

***

Para voltar de Menwotsukeru, pegava uma lotação

clandestina na avenida Presidente Wilson, em São Vicente.

Pela primeira vez por engano, não devolvi a fantasia;

como nunca me repreendessem, deixei que se

tornasse um costume. Sentado na van ajustava o chapéu

cônico na testa como quem se persigna e acompanhava

com alegria, através do vidro dianteiro, o céu

alternar-se gradações de azul até alcançar o que lhe serviria

nesse princípio de dia. Sorria porque cumpria o

verso: “Devia ter visto o Sol nascer” (pondo-me atento

124 | Duanne Ribeiro


aos tons róseos do dia recém-nascido eu parecia atender

ao chamado de cautela que me fizera a canção).

Chego à casa de Hikari soluçando, a cabeça pesada de

álcool. Cumpria, assim, outro verso: “O banheiro é a

igreja de todos os bêbados”. Mais: para imitar qualquer

filme, me sentava no chão e, com a cara sobre o vaso,

vomitava. Enfim, ia ao meu quarto.

As Esferas do Dragão | 125


Episódio 23

Ascensão do

Voo à Coisa

“Lembra? Ding, ding — o caldeirão. Eu tinha certeza

que não realizar um ritual daria problema. Uma bruxa

tem de sentir o destino e seguir.” Comigo melhor, ela

me pediu para acompanhá-la em um procedimento mágico

que, cria, encerraria “assuntos mal resolvidos”,

processos desencaminhados, e lhe traria a mulher que

procurava. “Começou quando te dei um nome. Para dar

um passo adiante, temos que partir disso. Você, aqui.

E a dádiva ao além.”

Hikari armou na terra mole uma oferenda ao demiurgo

protetor: no alguidar, alface, feijão fradinho,

cenouras cozidas, azeite de dendê, uma maçã vermelha

e uma vela branca. Sentimos nas nucas um bafo quente

126 | Duanne Ribeiro


e úmido, como se de búfalo. Encara o olho do búfalo,

Hikari, o que você vê? Um pássaro negro pousa no

mundo emanando tragédia. Encara o olho do pássaro,

Hikari, o que você vê? O som subcutâneo da respiração

do mundo intensifica-se. Ameaçador. Inconsistente.

Hikari em meio a isso tudo como uma testemunha de

assassinato eufórica por ter conquistado uma história

para contar.

“O sol se depõe a oeste, meu espírito clama por partir”,

rezava, “o sol se depõe a oeste, meu espírito clama

por partir”. Mas a noite vinha, não lhe trazendo nada

de novo, apenas fazendo flanar a neblina na floresta

próxima. Ouviam-se vozes no escuro? Encara o escuro,

Hikari. O que você vê?

***

No vão da lâmpada havia um ninho de passarinho.

Avisado por uma vizinha de Hikari, incomodada com a

sujeira que a mãe deixava ao sair e voltar, um faxineiro

cutucou-o com a vassoura até derrubá-lo. Hikari estava

à porta e ouviu isto que no futuro saberíamos ser um

sinal (teria o demiurgo ouvido a demanda?). Foi ao corredor

e em frente ao elevador viu a cena do crime:

As Esferas do Dragão | 127


dois ovinhos e um recém-nascido no ninho, o homem

informando que iria jogá-lo no lixo. Um pássaro que é

vivo e que está à morte, um pássaro que é vivo e que está

à morte, Hikari pensou; sentiu e seguiu o ímpeto de

impedi-lo. Tomou a casinha e lhe arrumou um lugar

entre as suas plantas. Deu de comer ao filhote, pondo,

com uma colher pequenina, água misturada com fubá,

pelo biquinho.

No mesmo dia, a mãe retornou. “Eu sinto a dor da

perda dela, é triste”, me dizia Hikari enquanto o animal

voava de um lado ao outro, rodeando o local onde

deviam estar seus filhotes. Hikari agitava-se —

“o desespero é visível!” —, e avançava na direção da

passarinha: “O ninho está no meu jardim! O ninho está

no meu jardim!”. Mas não pode se comunicar. E aí veio

o pequeno milagre: os pios do filho pareceram chamar a

atenção da progenitora. Quebrou seu voo em círculos e

foi direto aonde o ninho estava. Hikari gritou de alegria.

Por um tempo, a partir de então, a ave alimentou sua

prole, até que o filhote se tornou forte o bastante para

voar. Partiram sem dizer adeus.

Hikari se entristeceu só um pouco, pois o trabalho

da dádiva já havia lhe dado toda uma abundância. De

todo modo, resolvi presenteá-la: dei¬-lhe minha Néfela.

Sem você eu não teria chegado até aqui, eu disse, e além

do mais agora você já é familiar de tudo aquilo que voa.

Ela sorriu.

128 | Duanne Ribeiro


***

Contudo, em sonho ou em realidade, o pássaro pródigo

voltou a nós.

Pousou em uma árvore ao lado do riacho, e cantou.

Chamava-nos? Andamos por entre as árvores, atravessamos

Miami, Guarujá, Salvador, São Paulo. Chegamos

a um parque de diversões encanecido e só. Perseguimos

o bater das asas a bordo dos botes que navegavam

pelos caminhos pré-definidos de água rasa; ao fim de

uma descida, caíamos na água, apenas para voltar a subir

outra vez e molhar-nos de novo. Quando o barco

viking chegava às suas elevações máximas, eu e Hikari

esticávamos os braços para roçar no voo da nossa guia.

Na casa dos espelhos, por fim, proliferou-se ela em infinitos

passarinhos, mesclados às nossas imagens alongadas,

bojudas, contorcidas. Sob o olhar de inúmeros

nós mais ou menos distorcidos, mais ou menos concretos,

tendo como a estabilidade a permitir um caminho

apenas os pios que, longínquos, formavam uma melodia,

nós seguíamos, batendo a cabeça contra os vidros

uma vez e outra vez. Acabamos chegando a um planetário

à beira-mar.

Vimos tratar-se do Emissário Submarino, em Santos.

Acima, em uma cúpula cujos suportes sumiam na

As Esferas do Dragão | 129


escuridão da noite, acendiam-se pedagógicas estrelas,

acompanhadas por uma voz radiofônica: “Temos neste

momento o céu do planeta marrom e amarelo, Arlia; as

anãs-vermelhas compõem o panorama”. À passarinha

ameaçava inutilmente a maré: a espuma morria antes

de tocar as patinhas que afundavam em pulinhos na

areia encharcada. “Namek, rajado de verde e branco, sofre

o calor e a luz de três sóis; sua noite nunca acaba.”

Aproximamo-nos. Carregava algo no bico.

Uma barata. Hikari recuou um passo. O inseto sempre

a tinha horrorizado. Soube, entretanto, que desta

vez não poderia fugir. A passarinha depositou o bicho

moribundo à sua frente. “Castor A e Castor B, Pólux,

diversos astros nomeados Gem, formam uma combinação

famosa.” Hikari ouvira essa história antes; a história

vinha até ela agora. Negara e desejara o tipo de

choque transformador que ela esperava da experiência

de saborear o nojo. Ajoelhou-se, pegou a barata e trouxe

à boca.

***

O quanto os dentes precisam forçar a casca para que

estale na boca? As asas, pele de cebola roxa, folhas de

130 | Duanne Ribeiro


celofane, se dissolvem na língua? A gosma da barriga

explodida, flan de coco ou manjar branco? Mastigava,

“eu precisava que ela me dissesse algo”, chorando, “eu

precisava estar à altura dela eu mesma”. O falso céu

havia sido desligado quando ela terminou de comer.

Iluminada apenas pelos letreiros que anunciavam, vermelhos,

as saídas, Hikari desenhou com um dedo trêmulo

figuras no solo. Primeiro, seu pai e sua mãe.

Remexeu a areia, delineou seus filhos:

— Encontrei!

Mas a mão voltou a arrastar-se sobre a obra. Compôs

então a imagem de uma médica, “encontrei!”, apagou-a;

a imagem de uma escritora, “encontrei!”, mas

apagou-a; a imagem de uma empresária, “encontrei!”,

mas apagou-a. Arregimentadora de viagens, encontrada

e perdida, fazedora de doces encontrada. No fim das

contas, os grãos de areia tinham todos eles os traços do

seu rosto.

— Encontrei – concluiu.

As Esferas do Dragão | 131


Episódio 24

Cicatrizes,

Caça ao Tesouro

Naquela noite, decidi que era hora de retornar à minha

jornada. Despedi-me de Hikari e parti. Fui, também

por despedida, uma última vez à Menwotsukeru, desta

vez a pé. Lá, reencontrei Kyua.

De acordo com as regras da casa, também estava disfarçado.

Vestia uma camisa branca de mangas curtas,

com os dois botões de cima abertos, por cima de uma

camisa azul escura, da mesma cor da calça. O cinto

marrom pendia sobre a perna esquerda. Os tênis eram

também brancos. Usava uma peruca castanha com uma

franja espetada. Essa imagem se gravaria em mim, e

sempre ao rever o guerreiro, as cicatrizes, a lâmina,

eu procuraria como que em meio a escombros por ela.

132 | Duanne Ribeiro


Onde está o menino? — eu questionaria — onde está o

que eu conheci e admirei nesta manifestação curtida e

conspurcada da mesma coisa? Eu guardaria gestos, uma

timidez, uma agudeza, como conchas na praia — extrairia

do presente um passado volátil e me convenceria de

ter achado uma essência.

Olhou-me de relance, mas não me deu muita atenção.

Eu esperava mais. Mas por quê? Tratava-se de uma

ilusão de ótica a nossa proximidade, ou, ao menos, a

nossa relação se coalhava de pontos cegos que se tornavam

patentes agora quando eu o via em seu lugar “natural”.

Enraizado. Distintos os cumprimentos, os tons

de voz, os recursos de linguagem, o posicionar-se do

corpo. Não era para mim aquela pessoa nova que se

descortinava na velha. Meu relacionamento com ele

se revelava a distância construída interação após interação;

revelava-se distância o que antes surgia imediatez.

E é como se esse caminho não fosse percorrível.

O outro é o eixo central de um carrossel do qual nós

somos os brinquedos que giram em torno, fixos nos nossos

locais relativos.

Quando não os sujeitos desta analogia, estamos perpétuos

em órbita. O outro é sempre um sol.

***

As Esferas do Dragão | 133


Kyua estava à uma larga mesa de madeira, com um

pequeno grupo em torno. Mestrava uma partida de Mago

– A Ascensão. Acompanhei a narrativa por algumas rodadas,

então me decidi a ir embora. Quando eu estava

próximo à saída do salão, Kyua me alcançou: “Sei onde

está uma das esferas. Fácil de pegar. Afim?”. Qual o

preço da dica, perguntei. Não tenho dinheiro. “Isso não

é necessário. Fica me devendo o favor.” E que tipo de

favor seria esse? “Você pega a sua esfera, reencontramos

um velho conhecido e aí vocês me ajudam com a

minha viagem”. Viagem? Eu ri. Aonde você vai?

— Eu? – respondeu, já voltando à mesa, o rosto sobre

o ombro – Eu vou para o futuro.

Deixei Menwotsukeru, pois, sabendo que era para

sempre; percorri o caminho contrário à entrada, saindo

pela locadora. E fiz mais do que o meu costume dessa

vez: não sai com minha fantasia para, eventualmente,

logo, abandoná-la e ter de tornar a vesti-la — daí

doravante, ela era o que eu era. Doravante, portanto,

progredi paramentado: botas, calças, casaco, luvas, chapéu.

Vermelho, verde, marrom, branco, sombrio, foi assim

que alguns dias mais tarde compareci ao ponto

de encontro.

***

134 | Duanne Ribeiro


with your feet in the air

and your head on the ground

try this trick, and spin it, yeah

Fone nas orelhas, ligado o discman. Só recentemente

aprendi a discernir as várias linhas narrativas das músicas.

Suprimir por ora os demais instrumentos, alterar

o nível de atenção e se dedicar a uma sonoridade.

Agora: violão. Agora: segundo vocal. Agora: guitarra.

Agora: contrabaixo. Espalham-se no mesmo espaço. desenvolvem

lógicas próprias, mais ou menos coincidentes.

É engraçado quando passamos a ver algo que não

víamos, mas que sempre esteve lá. O mecanismo.

your head will colapse

but there’s nothing in it

and you’ll ask yourself:

“where’s my mind?”

Também tinha comigo meu violão. Por vezes, procurava

na internet alguma tablatura e executava a melodia

eu mesmo. A diferença entre o esquema e a feitura

era então clara. Há uma personalidade na sequência de

notas que não é atingida simplesmente por tocá-las

As Esferas do Dragão | 135


de maneira correta. As lógicas múltiplas, os mecanismos

distintos, eram em cada música e em cada postura

de música modificadas como que por refração (a reta

sendo outra reta noutro ambiente).

A versatilidade do mesmo, assim, me entretia enquanto

eu esperava por Kyua. Eu havia me movido

desde a rodoviária do Tietê, em São Paulo, até Itabira,

em Minas Gerais. As horas se passavam, mas ele não

chegava. Andando de um lado a outro e chutando

pedrinhas, acabei por achar uma carta, à frente da

estátua de Drummond, amparada pelo livro que ele

lê eternamente:

“Seguinte, é melhor andarmos separados

por um tempo para não chamar atenção.

O Jade sofreu um abalo forte, mas não foi

desmantelado e pode muito bem sabotar a

expedição. Fora a minha falta, o plano continua

como combinado. Você vai receber uma

esfera. Depois vai me ajudar com os meus

propósitos. No meio disso vamos encontrar

nosso colega.”

Senti-me contrariado. Continuei lendo:

“Outra coisa, pelo que vi do jeito que você

luta, seriosamente, você precisa de umas dicas.

Vou te mandar umas aulas por carta du-

136 | Duanne Ribeiro


rante a viagem. Para me responder, basta

escrever e inserir o sigilo GRANDECTS (elaborei

com “grandes cartas”; o desenho está

aqui embaixo), que o universo conspira e

chega aqui pra mim. Vai ser uma coisa meio

discípulo/mestre.”

Quanta presunção. A carta pelo menos tinha as indicações

de onde eu conseguiria meu pagamento, a

esfera, e os procedimentos a seguir. Peguei uma folha,

anotei esta mensagem, com o devido sigilo:

“Não sou seu discípulo. Estarei lá.”

As Esferas do Dragão | 137


Episódio 25

Esfera de Três

Estrelas: Victor

Dialogar com alguém protegido pelas distâncias se

mostrou de imensa riqueza. As grandes cartas se tornavam

cada vez maiores, abrangendo discussões teóricas

e confissões dos cotidianos. Um ouvinte justifica,

corrige, flexibiliza o vivido. Neste caso, estar longínquo

acrescentava um grau de segurança — não se tratava

tanto de conversar com uma pessoa concreta, a quem

você sempre pode decair à condição de recurso; não,

nessas trocas tudo se passava como se conversássemos

com uma outra personalidade nossa, tornada acessível

pelos sistemas de comunicação. As grandes cartas eram

um meio de nos falarmos a nós mesmos por meio um

do outro.

138 | Duanne Ribeiro


“Você está andando pra cima e pra baixo

vestido de mago de videogame. Você diz

que não sabe o porquê. Eu diria sem pensar

que está matando o seu ego. Pondo as

rédeas da vida no automático por um tempo.

Mas é isso mesmo: ‘você não é o seu nome’.

Não importa se a fantasia dá na cara que é

fantasia ou se é daquelas de pessoa normal.”

Seu discurso era cheio de palavras novas — eu me

esforçava para acompanhá-lo. ID, Superego, Ego: eu não

era, portanto, unitário, eu consistia no embate protopolítico

entre três forças — a natureza, os instintos; a

autoridade internalizada da sociedade; e a individualidade

residual. O que me prende, o que me empurra?

Vi-me à distância; eu objeto sob escrutínio. Inconsciente

coletivo: os psiquismos reunidos redundam num

oceano de idealidades: captamos e enviamos pensamentos

e sentimentos por meio de uma rede que nos

atrela a todos. Eu não era impermeável — era legião.

Magia do Caos: através de subterfúgios esquematizados,

podemos reprogramar nosso subconsciente para

que nos ajude a conquistar o que quer que seja. Eu o

resultado dos algoritmos formadores da subjetividade,

fantoche, não obstante fantoche baconiano, vencedor

porque obediente. Assim íamos nos diluindo, e saber

quem éramos fundia-se com selecionar um personagem.

As Esferas do Dragão | 139


***

Mensagem a mensagem, Kyua me levou a encontrar,

em São Vicente, a esfera de três estrelas.

***

Uma criança fere o dedo em uma afiada folha de

sulfite; mesmerizante, o corte incha, vermelho. A criança

se apavora, pois não sabia que entranhava sangue

em si. Meu amigo Victor morreu em um acidente de

moto; tinha menos de trinta anos. Chegara em casa pela

manhã, vinha do Rock in Rio, com a catarse e a camaradagem

na pele, como costuma ser. Brigou com a

família e voltou a sair — virado e bêbado. Tinha decidido

ir à casa do seu primo, Danilo, a quem ligou, e que

lhe disse: “Não pega a moto”. O carro lhe pegou pela

lateral. (Uma característica nuclear dos acontecimentos

e das histórias que interpretamos como trágicas é

a sua falta de necessidade. Othelo e Macbeth, vistos

deste nosso ponto de vista que sobrevoa as artimanhas

e a conclusão, são criaturas que poderiam, a cada passo,

contrapondo-se ao que nos aparece como erros evidentes,

modificar seus destinos. O incômodo indispen-

140 | Duanne Ribeiro


sável da tragédia é que tudo poderia ter sido diferente.)

Não éramos próximos exatamente, mas ele estava sempre

presente nos nossos ensaios, parecia gostar verdadeiramente

da música que fazíamos. Ao fim de um

show, veio até mim e disse: “Foda!”, e isto apenas, pelo

fato de que era desinteressado e expresso com alegria,

teve valor. Foi nesta lembrança que sofri o luto, foi ela

o que tive de deixar queimar lentamente e então assistir

ao dissipar das cinzas. Victor tinha a minha idade

à época. O raciocínio surgido nessas situações funda-

-se numa petição de princípio: coloca em perspectiva o

potencial de vida desperdiçado. O que seriam esses dez,

trinta, cinquenta anos que o aguardavam, essa cidade

alagada, essa revolução traída, essa intenção defunta

de um soco? (Tyler Durden, em Clube da Luta, executa

um tipo de performance que chama de “sacrifício humano”.

O personagem arranca do seu posto um atendente

de uma loja de conveniência, lhe põe de joelhos,

mira um gatilho à sua cabeça, pergunta o que o seu refém

quer da vida, o que, de fato, queria estar fazendo,

o que gostaria de realizar. Quando extrai as respostas,

impõe ao subjugado o seu próprio jugo, demanda dele

que seja sujeito: ou cumpre o que disse desejar em tantos

meses ou Tyler retorna e o mata. De repente, então,

tudo muda: é como se se pudesse morrer a qualquer

momento, e é preciso ser de acordo com a urgência.)

As Esferas do Dragão | 141


O bebê cadáver é imediatamente subsumido pela condição

de ideal, torna-se “anjo”; o jovem deixa o gosto

persistente de rumo interrompido. He had a stroke at the

age of twenty four; it could have been a wonderful career.

O corolário disso é: e quanto a nós? O que ele poderia

ter feito aprofunda-se em: o que eu posso fazer? O que

fiz do tempo, o que farei do tempo? Quanto tempo?

O menino morto tornou-se uma régua. Mede-me e já

estou justo: minha vida cabe inteira, sem mais, na fôrma

da morte. Um velho cuja barba branca desce até o

umbigo rasga o abdômen com uma peixeira; por uma

corda, desce ao térreo da ferida, respira fundo e põe-se

a percorrer a estrada; seus pés encarquilhados afundam

na terra preta que, saturada do líquido vital, forma

poças e bolhas rubras por toda a sua extensão.

Uma amiga minha, Gabriela, suicidou-se. Para mim, ela

se tornara o símbolo da minha pós-graduação; no dia

em que apresentaram o curso aos calouros, ela se apresentou:

era representante discente. Eu, mestrando, ela,

doutoranda, cursamos a mesma disciplina em um dos

semestres. Era parte da organização dos eventos internos,

tinha criado o grupo de Facebook e o de Whatsapp,

propusera um programa de rádio sobre informação.

Agregadora, produtiva, esforçada. Como? Por que? Um

suicida demonstra que acreditamos sobretudo na inércia.

Descubramos “evidências” de que isso poderia ser

previsto: mãe de uma filha pequena — parece estava

142 | Duanne Ribeiro


tendo problemas com a guarda da menina; um ou dois

dias antes postara um pedido algo desesperado por

indicações de emprego, e compartilhara toda a letra de

“Hand in my Pocket”, da Alanis Morissette — I’m broke,

but I’m happy. O momento de ser forte ainda mais uma

vez, a borda do despenhadeiro. (Kurt Cobain, em sua

última entrevista, para a Rolling Stone, não agia como

alguém que daria um tiro na própria boca em breve.

Empolgava-se com possibilidades criativas, achava graça

em quem o via como um doido autodestrutivo. Disse

ter sugerido que um álbum seu se chamasse I Hate Myself

and I Want to Die como piada.) A morte de Gabriela

gerou um efeito curioso: eu e outros conhecidos dela,

assim como pessoas a quem contei essa história, todos

de súbito escrutaram seus amigos em busca de alguma

dor disfarçada. Sejamos mais próximos, disseram. Tudo

poderia ter sido diferente, querem crer. A menina morta

tornou-se uma régua — para os outros. A morte é o

único ponto de vista.

As Esferas do Dragão | 143


Episódio 26

Leão e Mero Cristão

Encostado em uma árvore sob a noite manauara, eu

dedilhava no violão

Hello,

I’m the ghost of troubled Joe

Hung by his pretty white neck

enquanto observava o Amazonas serpentear entre as

árvores curvadas, pesadas de penduricalhos, sobre as

águas. Entre os versos do estribilho despontou no horizonte

obliterado de escuridão a proa do navio que

eu aguardava. O dourado da madeira anunciava a sua

144 | Duanne Ribeiro


chegada como um sol adiantado. A carranca era um

dragão de boca aberta; as asas do animal se estendiam

até as laterais verdes da embarcação. Quanto aportou

próxima a mim, vi a luz da lua refletida sobre o púrpura

das suas velas quadradas. O casco balançava-se levemente

como que sobre petróleo.

but don’t, don’t mention love:

I’d hate the pain of the strain again

Quem eu aguardava, nós nos encontrávamos novamente,

afinal: era Jintoku. Sua pele rosa tinha um tom

baço na sombra, o que combinava com a sua expressão

entristecida e cismenta. Voou do barco até mim, o colete

sacudindo no ar, as calças infladas pelo vento. Tinha

a seriedade de um desenho animado; seu conforto era a

naturalidade de um cartoon.

***

Jintoku tinha se afiliado à empreitada de Kyua, co-

mo eu, por um motivo particular: estava em uma mis-

são possivelmente suicida para extrair Jesus Cristo das

As Esferas do Dragão | 145


mãos do exército Jade. Sim: o Messias da religião cristã

havia sido capturado. No momento, sob correntes, seguia

ao Sanatório Jade.

Dirigíamos agora pela Transamazônica. Meu companheiro

pilotava, as carnes róseas vazando para os lados

do banco, marcadas fundo pelo cinto de segurança

apertado. A terra vermelha permanecia monótona por

quilômetros. Devíamos ir ao encontro de Kyua; segundo

ele, teríamos de nos perder a caminho de Diamantina e

encontrá-lo em Ipatinga, ambas as cidades em Minas

Gerais. Falávamos enquanto o tédio repetia árvores.

“Um deus dinossauro? Méh. Você está correndo tanto

por isso?”, me perguntou. Não se trata de dinossauro, é

um dragão. Solucionador de desejos. Ele riu. “Sim! Um

dragão... de novo: você está pra lá e pra cá atrás... de

um réptil? Uma lagartixa que voa?”.

Que voa e repara a morte, que tal? Jintoku assumiu

um tom professoral. “Kurokun, o meu Senhor, depois

de humilhado, crucificado, assassinado, reapareceu aos

discípulos”. Uma lagartixa regenera o rabo, retruquei,

quem sabe com a própria vida possam alguns fazer o

mesmo? “Ok, ok”, rindo-se, “Mas tem mais isso: meu

Senhor concedeu outra vez a Lázaro que vivesse. Bastou

lhe dizer: levanta e anda. Você não precisa dessas suas

bolinhas laranjas. Você precisa de fé”.

146 | Duanne Ribeiro


Jintoku, me parece, nunca perderia a expectativa de

que eu me voltasse à crença; ou, o que é mais exato, era

como se avistasse detrás das minhas ações a matéria

prima dessa fé, como se eu, a cada episódio, expressasse

um tal potencial à minha revelia, e que seria suficiente

eu me encaminhar a ele e percebê-lo meu sustentáculo

e trampolim. Em outra ocasião, ele me contaria sobre

como todas as religiões podiam ser entendidas como os

feixes de luz que penetram uma cela escura, mais suaves

umas, mais encorpadas de poeira outras, não obstantes

todas originárias da mesma luz. É possível que

eu o tenha entendido de forma ecumênica demais. De

todo modo, a ideia, assim interpretada, eu admirei as

suas possibilidades de paz. Contudo, só a minha luz me

atraía verdadeiramente.

“Não há Eldorado às margens dessa estrada”, Jintoku

introduzia um novo tópico da aula, “Porém no depois

da morte haverá algo maior, onde descansaremos”. Descansar

em uma visagem estupenda — sim, isso me seduz.

Nossos pés além-viventes pisariam ruas de uma

metrópole de ouro, amarelo mesmerizante rodeado por

muros altíssimos de jaspe vermelho opaco enfeitados

pelo sárdio castanho-avermelhado, pela calcedônia marrom,

pela ametista “queimada” laranja-escuro e amarela,

pelo topázio amarelo-avermelhado ou rosa-avermelhado.

Também a ametista roxa e o topázio azul-

As Esferas do Dragão | 147


-claro, a safira azul-escuro, o berilo azul-esverdeado, o

crisoprásio verde e a esmeralda verde só um pouco menos

clara. Também a raríssima esmeralda transparente,

próxima ao topázio transparente, ao jacinto vermelho-

-vinho, à sardônica vermelho-marrom. O amarelo-ouro

do crisólito. Nestes muros, ainda, doze portas de pérola,

seu branco duro e brilhoso consoante com as vestes

purificadas de todos nós, reunidos na exuberância.

Entretanto, perguntei:

— Mas, então, para que muros?

148 | Duanne Ribeiro


Episódio 27

Eficácias da

Sinceridade

Pela janela do veículo sucediam-se espaçadas as árvores,

picolés e cilindros verdes cujos galhos lhes riscavam

de listras diagonais ou onduladas. Nas nuvens

dinossaurinhos laranjas agitavam bandeiras. A paisagem

me interessava pouco, contudo: trazidas das lonjuras,

as grandes cartas enchiam meu colo de diálogos.

Nelas, Kyua me apresentava o “Jogo de Lecter”, um desafio

inspirado em O Silêncio dos Inocentes. Consistia

em um escambo de sinceridades: cada qual devia confessar

uma vergonha, um fracasso, um desejo, uma bizarria.

Algo de escondido, algo de arriscado. Performance

negativa do “Poema em Linha Reta”. Exercício

de sinceridade absoluta, liberar-se de pesos silentes.

As Esferas do Dragão | 149


Não era tanto aquilo a que eu me dispunha a entregar,

não as brechas nas minhas defesas que dali adiante

eu abriria — era o que sutilmente me exauria não expressar,

esforçar-me por não saber ou deixar saber.

O segredo, toda forma de segredo, é uma atividade.

Colocar de lado esse esforço por um momento — eis

a perspectiva do Jogo de Lecter, potencializado pela

segurança da comunicação à distância (éramos como

abstrações, dupla personalidade um do outro). Às margens

da estrada os canos de esgoto protuberavam verdes

e verticais às margens da estrada. Observei-os passar

como borrões, absorto; então tomei da caneta e escrevi

em uma folha de resposta:

Não rezei no velório do meu avô, não me reduzi a um

crente, e me orgulho disso.

Isso porém não era vergonha, fracasso, desejo, bizarria;

não era exatamente segredo: o incômodo aí era

distinto, concentrava-se no fato de que esse ato subjetivo

plenamente consistente só ganharia uma realização

completa se fosse posto assim, em manifesto.

Era preciso que alguém soubesse, mas isso ao mesmo

tempo mediocrizava a convicção. O lúdico lecteriano

nesse caso satisfazia a precisão do “tenho de dizer” e o

embaraço do “tinha de ter dito”, e a ambos recebia indiferentemente,

doce. São várias as efetividades e desníveis

das lutas que lutamos conosco dentro de nós.

150 | Duanne Ribeiro


Um solavanco sob as rodas: passávamos agora a um

piso de madeira que flutuava na escuridão. Lá e cá flutuavam

fantasmas gordinhos. De longe via-se lava. Que

mais eu contaria nas grandes cartas?

***

Preferia e continuei preferindo mesmo após essas

experiências formas mais assépticas de confissão. A literatura,

por exemplo, ou a pretensão de tê-la exercido.

Era algo que eu havia feito mesmo antes desta viagem

em busca das esferas, recobrindo a matéria factual com

o claro-escuro das metáforas, das alusões intelectuais,

das referências endereçadas a alguns leitores em particular,

intencionando a leitura como um jogo de montar

no qual deliberadamente faltavam peças e ou se

compunham as ausentes com materiais próprios ou

se aprendia a amar as lacunas. Sempre quis me esconder

à vista de todos. Evidente e latente. Por exemplo

agora mesmo.

Kyua, frequente único leitor das minhas escrituras,

ele próprio um contador de estórias bissexto — e carregado

da leitura dos Seis Passeios pelos Bosques da

Ficção, de Umberto Eco — comentou isso:

As Esferas do Dragão | 151


“Juntando semiótica com narratodologia,

eu diria que falta um caminho dentro do

próprio texto, que vai ter as informações necessárias

para seu entendimento. A chave

tem que estar embaixo do tapete, entende?

Isso se refere à criação do leitor-modelo no

próprio texto. O entendimento se dá quando

o leitor sabe aquilo que você sabe para

desvendar o texto. Tirar da mente e colocar

sem nenhum contexto não gera o objeto

imediato que você pretende.”

Respondi algo como esperar do leitor que fosse um

detetive. Kyua retrucou:

“Sobre os ‘enigmas’ no texto, acho que

ainda sim você esconde demais em alguns.

Eu leio às vezes e não vejo nada, daí eu

leio de novo. E creio que eu devo estar bem

preparado para ser seu leitor modelo. No

entanto, não sou. Quando digo pra chave ficar

em baixo do tapete, é porque isso é comum.

Jogar pistas fáceis pelo menos para

o leitor procurar algumas mais difíceis. Há

uma coisa chamada articulação. É a maneira

com que se faz as informações de um texto

completarem outras antes ditas. Aquela ha-

152 | Duanne Ribeiro


bilidade de buscar no fim do texto um conclusão

para a pergunta que se fez no primeiro

parágrafo. Mas posso estar errado e as

pessoas realmente entendem o que precisam

entender.”

Mas como receber conselhos sobre escrever? Escreve-

-se sob a água, onde os sons do mundo, vozes e o de mais,

filtram-se gordurosas e indistintas; é lá que o ar apodrecendo

fomenta a criatividade; lá, no pequeno pseudosuicídio,

os brotos do gênio. Subo o rosto à superfície

e ouço a respeito de como agir, de como melhorar — mas

cá debaixo só posso recorrer a mim mesmo concentrado.

***

Depois dos corredores rochosos bordejados de magma

— onde escapamos dos cubos de pedra que possuídos

tombavam visando às nossas cabeças —, atravessamos

de ilhota a ilhota um arquipélago ensolarado,

alcançando os terrenos pedregosos em que flores-

-piranha mordiscavam o ar e então as pistas de neve

em torno de um lago recortado anguloso no gelo.

Enfim, sobre lajotas multicoloridas, boiando no espaço

sideral, nos aproximamos do termo desta road trip;

encontraríamos Kyua.

As Esferas do Dragão | 153


Episódio 28

Da Substância

da Salvação

Mais uma difração: o Kyua das cartas oposto ao Kyua

enfim reencontrado. As pessoas esfarelam de um jeito...

observe qualquer um: pululam ali representações

e definições gradualmente acumuladas que devem explicá-lo.

Porém soterrado por elas está um oco translúcido

o qual não podem recobrir completamente, ao

qual não aderem. Como que a leitura não me entregou

tudo? Eu tive você aqui nas minhas mãos, o seu depoimento.

Boia o meu discurso despedaçado, um tal

constrangimento de não poder firmar minhas certezas.

Móvel, móvel demais, uma pessoa.

***

154 | Duanne Ribeiro


Em um bar de Ipatinga, Kyua dispôs, à nossa frente,

entre cervejas, cartas de Magic! The Gathering, um jogo

de baralho com temática fantástica. Com ajuda delas,

explicava, seria capaz de discernir os caminhos por

dentro do Sanatório Jade. O místico, ao que parece, é

tremendamente acessível.

Havia desenvolvido um método que utilizava o Magic!

sob as regras do Tarô, presumivelmente com efeitos

análogos. A partir de um deck pré-montado (selecionando

cartas cujo descritivo incluísse um elemento “literário”,

isto é, narrativo ou aforístico — como é comum

nesse jogo), selecionavam-se uma a uma até que

se dispusessem dez cartas na mesa. Figura e texto deviam

ser interpretados de acordo com a ordem de retirada:

a primeira simulava o momento presente; a segunda,

o obstáculo; a terceira, os fatores externos; a

quarta, a motivação inconsciente; a quinta, as influências

passadas; a sexta, o futuro imediato; a sétima, a atitude

do consulente; a oitava, a visão das pessoas próximas; a

nona, as esperanças e os temores; a décima, o desfecho

da situação.

Casa 1 (Momento Presente) | “Telepatia”:

Seus oponentes jogam com os cards de suas

respectivas mãos revelados. | “A questão não

As Esferas do Dragão | 155


é se eu posso ler mentes, e sim se eu ainda

encontrarei uma mente que valha a pena

ler.” — Embaixador Laquatus

(Você também pode jogar o jogo. Suponha que a mão

tirada aqui foi sorteada para ti: o que o jogo te fala?

Eis teu momento presente: você vê claramente, é até ridículo,

todas as estratégias que foram preparadas contra

você. Não é assim? Vasculhe-se.) “Tá bem na cara,

né? O Jade não esconde suas cagadas”, Kyua pensava

alto, “o que você vê é o que você obtém”. (Ou você pode

jogar outro jogo. Que tal se eu te sacar augúrios sob

medida? Aqui, do meu monte, extraio outro momento

presente, especialmente para você: “Fecundidade”. Por

favor, procure sozinho, eu não farei tudo.)

Casa 2 (Obstáculo) | “Avatar de Serra”:

O poder e resistência de Avatar da Serra são

ambos iguais ao seu total de pontos de vida.

Quando Avatar de Serra for colocado num

cemitério vindo de qualquer lugar, embaralhe-o

no grimório de seu dono. | “Serra não

está morta. Ela vive através de mim.”

156 | Duanne Ribeiro


“Ela vive através de mim... eles dizem que ‘preservam’.

Tem coisa aí...”. Antes dessa investigação do inimigo,

Kyua montou para a gente leituras com focos nas nossas

vidas pessoais. No começo, foi um bocado constrangedor

vê-lo dar tanto valor àquilo. Afinal, faça-me

o favor, cartas de Magic? Mas a questão é que, a seu

modo, todo espelho reflete: o que faz atuar o sortilégio

é a operação de fazer com que nos vejamos de forma

inesperada. De repente uma maneira de mapear-se:

muito bem, eu sei delimitar, com uso da palavra “obstáculo”,

certos setores das coisas que vivo.

Casa 3 (Fatores Externos) | “Desmatamento”:

Reforçar — Sacrifique um terreno. | Previne

todo dano de combate que a criatura

alvo causaria neste turno. Se você pagou

o custo de reforço, previne todo o dano de

combate que outra criatura alvo causaria

neste turno.

Derramo-me nesse novo vasilhame: “Fatores externos”.

De pronto eu me capacito a me ver segundo as

ideias de influência, condicionamento, opressão. É diferente

de se supor livre: o modelo pelo qual me apreendo

muda tudo. (Decidiu qual jogo você prefere jogar?

As Esferas do Dragão | 157


Um: que travas você mantém vivas às expensas de si

mesmo, o que você tem sacrificado para imunizar-se.

Dois: uma tarefa para você: obstáculo: “Desviar Olhar”;

fatores externos: “Curandeiro Kalastria”.)

***

Quanto à carta anterior, é claro que Kyua gerou toda

uma teoria do que o Jade estaria matando em seu

nome, que territórios destruídos lhes estariam dando

invulnerabilidade. Nós acompanhávamos sem exaltação.

Não parecia funcionar igualmente bem... mas a

coisa foi em frente.

Motivação Inconsciente deu “Mestre de Etherium”, cujo

efeito de jogo era “o poder e a resistência de Mestre

de Etherium são ambos iguais ao número de artefatos

que você controla” (o que pareceu, a Kyua, corroborar

a visada da Casa 2) e a frase era “somente uma mente

livre das preocupações da carne pode ver o mundo como

ele realmente é” (o que lhe sugeriu a hipótese de que

o interesse do Jade era atingir outro grau ontológico).

Influências Passadas, “Transcendência”, sem citação e

com as regras “você não perde o jogo por ter 0 de vida

158 | Duanne Ribeiro


ou menos pontos de vida; quando você tiver 20 ou

mais pontos de vida, você perde o jogo; toda vez que

você perde vida, você ganha 2 pontos de vida para cada

1 ponto de vida perdido; o dano causado a você o faz

perder vida” (que o levou a concluir que o Jade era de

uma substância inadequada à morte).

(Seriam as suas motivações inconscientes os objetos

que você acumulou? Fácil nos vem uma crítica a esse

materialismo algorítmico que se visibiliza em ti — vem

fácil, claro, porque é uma perspectiva lugar-comum,

um clichê; mas não diz Magnólia que só os clichês são

verdade?) “Vocês não sentem no peito que alguma coisa

bateu? Esse é o sinal de que estamos no caminho.

Se não der a epifania, precisamos inventar outra descrição”.

Kyua emprestara esse método da interpretação

de sonhos de Irvin Yalom. No caso da análise das vidas,

o discurso de quem joga as cartas ou quem analisa o

sonho trisca no inconsciente quanto o sentimento do

analisando diz que é assim. Nessa especulação sobre o

ausente, como poderíamos aferir a correção das teses?

(Avante: teria sido decisivo no seu passado que a abundância

lhe aterrou e que a estreiteza lhe empurrou

adiante? É só você quem pode dizer se essas formas de

discorrer encontram confirmação em você.)

As Esferas do Dragão | 159


À Casa 6, Futuro Imediato, coube “Sipaio

da Lança Solar”. Efeito: “Enquanto Sipaio da

Lança Solar estiver equipado, ele terá iniciativa

e vínculo com a vida”; frase: “Sem

seu líder Raksha, os leoninos dividiram-se

em dois bandos: um apoiou o kha regente,

enquanto o outro se rebelou furiosamente”

(fora a confirmação que a regra dava a cartas

anteriores — o Jade era crucialmente a sua

atividade — o restante indicava que eles estavam

à beira da ruptura, o que nos era positivo).

Já A Atitude do Consulente recebeu

“Mago-Sifão de Urborg” — “descarte um card:

cada um dos outros jogadores perde 2 pontos

de vida. Você ganha uma quantidade de

pontos de vida igual à quantidade de pontos

de vida perdida dessa maneira” (outra vez a

característica vampírica do Jade) e “eu me

tornei uma espécie de gourmet. Cada alma

tem seu próprio sabor distinto. A arte está

em convidar a companhia certa para o banquete”

(no que ele identificou o objetivo do

Jade: perseguia os potentes porque os devorava

de alguma forma). Eram as cervejas

o que estava a facilitar o convencer-se de

tudo isso?

160 | Duanne Ribeiro


***

Sim, pois ocorria novamente, mudávamos do tédio

cético a um interesse razoável. Era curioso como, conforme

Kyua avançava na construção do seu discurso,

se tornava cada vez mais difícil imaginar que não fosse

tudo como expunha. Alinhavando um delírio ao outro,

bordando superintepretação em superinterpretação,

surgia algo com toda aparência de racionalidade, acima

de tudo sedutor. E no momento que nos opusemos

às suas conclusões, propondo outras possibilidades, já

havíamos sido derrotados em um nível mais fundamental:

estávamos convencidos do potencial do sistema.

Claro, podíamos negar a realidade e a utilidade disso

tudo, teimar em dizer que não passava de uma grande

bobagem — não obstante, a cada carta na mesa, a cada

gambiarra coerente, crescia o custo da incredulidade.

A fé é uma aposta, argumentou Pascal; e aos poucos

parecia que íamos perder.

Veja, essa já é outra maneira de ver a coisa toda

— deixemos de lado a revelação da subjetividade.

Passemos à fé como um processo feito de microdisputas

retóricas. Não uma definitiva, pesadíssima aposta

pascaliana, mas um curso de pequeninas apostas cujo

preço individual é irrelevante. Custaria mais esforçar-se

As Esferas do Dragão | 161


para ganhar; não custa nada perder. Míseros mistérios

se apresentam um por vez e baixamos as armas à primeira

resposta conclusiva, “até que faz sentido”, e nisso

toda a estrutura da compreensão já sofreu uma modificação

de base. Ainda mais, o prazer de preservar

nossa força, de evitar o cansaço, torna-se — ao passo em

que se multiplicam as soluções místicas e se acumulam

os benefícios microscópicos de aceitá-las — um atrativo

por si só. Conversão da fé inofensiva inicial em má

fé: fuga do uso da força, fuga de sermos por inteiro.

Prazer da fuga.

Casa 8 (Visão das Pessoas Próximas) | “Peneirador

Luvalua”: Toque Mortífero (toda

vez que esta criatura causar dano a outra

criatura, destrua aquela criatura.) | “Os peneiradores

vivem para eliminar os seca-olhos,

criaturas que os elfos julgam feias demais

para existir.”

(Certamente era o que todos sentíamos: o Jade movia

uma guerra de extermínio contra todos nós.) Avaros

e preguiçosos de nós mesmos, empanturramo-nos de

soberba através da fé. Até que ela nos ultrapassa e

desenvolve sua própria gula (e, na falta de mistérios

162 | Duanne Ribeiro


reluzentes, começamos a encenar fabulações ocas para

alimentá-la), sua própria luxúria (o gosto por não ter

de agir se torna a paixão por não agir, uma ética do

não agir). Tanto ouro falso nas nossas barrigas exigirá

ser protegido; daí todas as práticas da ira. Aos que se

formem noutras economias da energia de si, só restará

a inveja. A crença, assim, se concretiza autoimune.

Antes o mundo, então o mundo gradativamente povoado

de explicações ardilosas do mundo, por fim um invólucro

ao redor faz às vezes de mundo.

Casa 9 (As Esperanças e os Temores) | “Selo

do Destino”: Sacrifique Selo do Destino: Destrua

uma criatura alvo que não seja preta.

Ela não pode ser regenerada. | “O olhar de

um Basilisco é muito eficaz, mas desfazer-

-se dos cadáveres é uma tarefa cansativa.

É muito menos trabalhoso dissolver a vítima

por inteiro.” — Szadek

(O poder do Jade é fatal, mas a destruição é tanto

boa nova quanto maldição?) E como se enfrenta um

sistema com tal constituição? (O Jade não é nada sem

a sua atividade, mas a sua atividade reduz as coisas

todas a nada; é, então, inerentemente, suicida?) Talvez

As Esferas do Dragão | 163


com uma estratégia idêntica, uma razão de guerrilha:

vencendo pequenas batalhas em prol da empiria, distribuindo

postos de vigia da lógica, estabelecendo zonas

francas da dialética: um pensamento-cupim. (Eles têm

tudo a perder e não tem nada a perder, ou menos: são

cegos e inertes. Portanto deixar de ser visto é simples.

Fugir da sua linha de ação é simples.) “Faz sentido”, diziam

tanto a tanto, “faz sentido”, como a cada passo

desta argumentação, com seu ritmo, com sua força de

tração. Destarte surge um heroísmo da razão. Com a

mesma gula? A mesma luxúria? Semelhantes ira, inveja,

avareza e preguiça?

Casa 10 (Desfecho da Situação) | “Decreto

de Crufix”: Lampejo. No início da etapa de

compra de cada jogador, aquele jogador compra

um card adicional. | “O conhecimento é

cruel. Ele vai partir o seu coração e testar

suas alianças. Tem certeza de que deseja esta

maldição?”

Sim, eu respondi em minha mente de pronto, sem

escutar o que Kyua prognosticava sobre a nossa mis-

164 | Duanne Ribeiro


são; retornei minha atenção a ele, perdido na conversa.

O espadachim compreendeu e disse:

— Estaremos seguros assim que do lado de dentro.

O Jade é vazio.

As Esferas do Dragão | 165


Episódio 29

Eternidades das

Preliminares

de Partida

Era no decorrer da conversa entre as cartas lançadas

à mesa que eu exibia esses pensamentos sobre religião;

divinação concluída, continuamos. Fora o que

possa estar correto nessa argumentação, me seduzia

fundamentalmente provocar Jintoku. Mais do que contrariar

sua fé, o sabor da coisa estava em torcê-la entre

os dedos. Um iluminismo ateu como forma de realização

narcísica; mas, acima da erística, o fulgor do fato de

que a amizade compreendia essa espécie de ferocidade

sem ceder, como o globo de vidro, clichê natalino,

contém um fenômeno natural, o soçobro da neve — e,

mastigando essa metáfora, poderíamos imaginar ainda

outras miniaturas, esferas capazes de englobar pores

166 | Duanne Ribeiro


do sol, eclipses da lua, vulcões adormecidos, buracos

na camada de ozônio. Ao longo da noite, assim, tanto

chovemo-nos granizo quanto refrescamo-nos brisa de

mar. Universo declinando-se.

— Agora, você só falou tudo isso pra se justificar por

não ter rezado...

(Esta mesa, este bar — isso não se repetiria: logo

nos separaríamos indefinidamente. Quanto tempo dura

um universo?) As provocações de Kyua procuravam

o sentimento atrás da ideia, o que de cara já me irritava:

a ideia subsistia só ideia. Agora era como se eu não

pensasse que a crença dá espaço a uma degradação

progressiva do pensar e do agir — era como se eu tivesse

racionalizado que dessa forma fosse para esconder

uma frieza ou algo assim. A realidade, para Kyua, era

a sensação; a razão vinha, no mais das vezes, para tapar

o sentimento com a peneira. “Você quis rezar”, ele

interrogava, “você se sente mal agora por não ter rezado?”.

Não quis. Não me sinto. “Mas e a história que

você disse que quer escrever, não é uma forma de reza?”

Pode ser, aliás agora me lembro do que Clarice disse,

rezar a si mesmo com desprezo. “Hmm, tem algo aí mesmo

então. O que você sente?”

***

As Esferas do Dragão | 167


(Você joga esse jogo todos os dias. Há tantas, tantas

fôrmas disponíveis para preencher e esgueirar-se fora

do que se é, desbravando, todavia, adentro. Antes, espalhado

e inconsistente na convicção periclitante de

um eu; agora, aconchegando-se em um símbolo, juntando

características de si em um todo coerente. Caber

no Leão, ver-se de um só golpe em um descritivo de

poucas linhas ou em um gráfico deslumbrante, sentir

suas qualidades boas e más conectadas umas às outras

em um complexo indiscernível como o de uma demonstração

lógica, ganhar até algo como uma teleologia

pessoal, eu sou assim, eu serei assim; e daí a chance

de pensar a si: se sou assim, se serei assim, tais e tais

opções estão disponíveis e outras não. Mas os signos

são muito rígidos, pouco produtivos.

O que mais é apto também a esse tipo de efeito?

Considere. Seja como for, toma a tua mão: motivação

inconsciente: “Batedor Avançado”; influências passadas:

“Mamutes Lanosos”; futuro imediato: “Academia

de Nefália”; atitude do consulente: “Escorregão Trágico”;

visão das pessoas próximas: “Pacifismo”; esperanças e

temores: “Aboshan, Imperador Cefálida”; desfecho da situação:

“Fluxo de Ideias”.)

***

168 | Duanne Ribeiro


Como aceitar ou suportar ou admirar o paradoxo das

várias pessoas que existem a partir da mesma pessoa

em diferentes instâncias de relação, eu me perguntava.

Eu já reconhecia, espaçadas, facetas do velho Kyua neste

Kyua novo. E frações deste Kyua iluminavam outras

daquele. Logo, essas figuras desfocadas sobrepostas seriam

uma só, e eu perderia o saber das variações contextuais;

teria só um Kyua, producente dos dois casos.

Jintoku, por outro lado, jamais gerou em mim processos

do gênero — o modo como se comunicava de longe

rimava fácil com a performance de si que fazia ao vivo;

o humor frívolo e caustico, a erudição a postos, a

seriedade bonachona — naturais, sem erro.

Era curioso vê-los juntos, como se se misturassem

elementos químicos cuja soma era desconhecida. Não

opostos, algo como caos versus ordem. Muito mais:

um, caos na ordem, outro, ordem no caos.

Fruídas cachaça, carne, batata, cerveja, maconha, à

beira da missão suicida ríamos despreocupados. Dormimos

na toca do espadachim, ele na cama, nós em

colchões no chão. (Quanto tempo dura um globo de

neve?) No meio da madrugada, Jintoku acordou, perturbado.

Tivera o sonho que segue.

As Esferas do Dragão | 169


Episódio 30

Sonho do Dragão

Descascante

Vivia (sabia, no sonho, que sempre houvera vivido)

em uma caverna atapetada de ouro — moedas, troféus,

punhos de espada, armaduras —, onde aqui e ali brilhavam

pedras preciosas com os olhos de demônios. Convivia

(sabia, no sonho, que sempre houvera convivido)

com um dragão: o chumbo no focinho, o sangue nos

olhos, um corpo alongado e flexível recoberto de escamas,

sustentado por pernas como que de aranha.

Suas asas morceguentas raspavam a rocha, e do seu

nariz fumaça negra e espessa saía continuamente.

“É difícil respirar neste mundo, faz-se o possível”,

Jintoku lamentava-se a si mesmo, conforme se preparava

para, como em todas as noites, assassinar o dragão.

170 | Duanne Ribeiro


Reunia diariamente breu, gordura e pêlos de animais

variados, o que cozinhava até que se tornasse uma

massa oleosa e fedida. Modelava esse material em bolas

úmidas e peguentas e metia na boca do dragão.

O animal se contorcia, espirrava fogo e acabava morto

feito barata, virado para cima. Na manhã seguinte

(não é curioso que se possa dormir e acordar durante

um sonho?), estava lá como se nada tivesse ocorrido.

Então mais colofônia, lipídio, queratina, borbulhando,

evaporando, a pasta mastigada molemente por dentes

monstruosos, as contorções epilépticas, a morte. E aí,

na próxima manhã, a vida. Por uma eternidade — mil

duzentos e noventa dias — isso se passou.

***

Até que, uma vez, despertando de sonhos dentro

do sonho que não eram tranquilos ou intranquilos, da

nulidade narrativa acordou ele próprio o dragão. Gatinhou

em pavor para fora da caverna, cauda chicoteante

atrás, rasgando a terra com os unhões. Na folha de

água de um lago, teve confirmação. Chorou grossas

lágrimas que, em contato com as escamas, entravam

em calefação. Sentia o magma percorrer suas veias,

disponível, potente. O fogo à ponta da língua. Amedrontou-se

mais, e orou.

As Esferas do Dragão | 171


Suas preces foram atendidas. Foi visitado por um

homem com vestes de linho, brancas e beges, com

um cinto de ouro à cintura. Sua carne era uma espécie de

cristal levemente colorido, verde ou azul, dependendo

da parte do corpo. A cabeça não tinha boca nem nariz;

exatamente oval, transparente, via-se dentro dela, no

oco, uma contínua tempestade; pelos vazados que faziam

as vezes de olhos, o choque dos relâmpagos fazia

explodir luminescências como tochas de fogo branco.

Falava com a voz de mil homens e orientou Jintoku:

“Tenha força, tenha força”. Com uma adaga de bronze,

pôs-se a arrancar uma a uma as escamas do dragão que

meu amigo era.

Por semanas estenderam-se essas sessões extremamente

dolorosas de limpeza; à noite, as escamas se

regeneravam, e era preciso sempre recomeçar muitos

passos atrás do que se havia avançado. O intercessor,

não obstante, persistia. Depois de mil trezentos e trinta

e quatro dias, Jintoku não pode mais. Sacudiu as asas

enrijecidas pela falta de uso, sustentou-se periclitante

no ar e fugiu. “É difícil ser quem se é neste mundo, faz-

-se o possível”, justificou a si mesmo. Voou longe, longe,

o mais que pode, distanciando-se das suas orações

atendidas, do alcance do seu Senhor. Não poderia mais

ser visto por ele, ser monitorado por ele, agora trafegava

em direções impensadas.

172 | Duanne Ribeiro


Mas, sob as primeiras estrelas, notou-se pequenino.

Apercebeu-se de que o horizonte delineava um território.

Que o mundo sobre o qual voava era — todo

abrangente — apenas a palma do seu Deus.

As Esferas do Dragão | 173


Episódio 31

Invasão ao

Sanatório Jade

Correntes sacolejavam entre braços, correntes arrastavam

consigo a grama da colina entre pés. Em filas

longuíssimas eram escoltados inúmeros prisioneiros,

oriundos de várias direções, afunilando-se no Sanatório

Jade como se conectam ao corpo as patas da tarântula.

Os soldados atiçavam-nos com baionetas, puniam a lentidão

com insultos e agressões, debochavam daqueles

cujo poder não significa nada agora. Super-heróis; coelhos

da Páscoa; católicos canonizados; celebridades

mortas jovens; mártires dos quais cartilhas ainda falam;

filósofos que foram inventados por outro filósofos por

motivo de argumentação; escritores encardidos com a

sua imortalidade; personagens originais dos contos de

174 | Duanne Ribeiro


fadas estufados e deformados pela soma de si a todas

as suas releituras ao longo das épocas; amigos imaginários

e respectivos criadores; monstruosidades ou delicadezas

criadas por esquizofrenias várias; corporificadas

ideias tidas num instante, lembradas só levemente;

os deuses esquecidos idolatrados pelos dinossauros.

Seguiam escravizados como redentos foram os animais

à arca de Noé. Não podíamos salvá-los. Nós, em

número pequenino, só podíamos assisti-los mastigar a

dor e deixá-los. Toda fantasia morre hoje e aqui, toda

fantasia morre hoje e aqui, eu pensava, e nada mais eu

podia que testemunhar.

***

O estratagema de Kyua nos levou cuidadosos pelas

áreas menos vigiadas e pelos pontos cegos das torres

de vigia. O ritmo da atenção se estabiliza em rotinas:

o soldado averigua durante um tempo costumado um

certo espaço (digamos, durante doze compassos), assegura-se

de certa continuidade (no blues mais básico,

o primeiro acorde mantido durante 4/12, o segundo e o

primeiro, dois para cada, 8/12, aí terceiro, segundo, primeiro,

terceiro, 12/12 — permanência e variação programada),

enfim se dá por satisfeito e segue ao próximo

As Esferas do Dragão | 175


ponto onde deve repetir-se. Então: aguardávamos.

O mundo respirando do seu jeito e nós andando nos

vácuos entre expiração e aspiração.

O cheiro das plantas próximo e úmido fazendo cócegas

às narinas: aguardávamos. Os joelhos na lama,

as costas contra as viaturas, o sol subjugando as pálpebras:

aguardávamos. De vez em quando, tornava-se

necessário desacordar um dos militares; o mata-leão

os pegava desprevenidos, o sufoco não deixava soar

o alarme, o pescoço quebrado garantia a colaboração.

Avançávamos. Pouco a pouco, às vezes chamando

atenção demais, improvisando esconderijos onde o arrefecimento

das patrulhas demorava uma vida até o seu

ápice. Avançávamos. (Não só em música, o tema deve

ser desenvolvido, a dissonância solucionada; em Akira

Toryiama: permanência — duas procuras, uma gradativa,

que deve prender à contagem, um até sete, outra,

perene, que deve prender a um ideal em construção,

por exemplo, a fraqueza engatinhando para a força; e

variação programada — o motivo novo para ir número

a número até o desejo e para grau a grau debater-se à

areté). Entramos.

176 | Duanne Ribeiro


***

Dentro dos corredores, era como se a guarda perdesse

a existência. Primeiro, decaíam os detalhes dos

rostos: tornavam-se manequins que marchavam. Depois,

nem olhos, nem boca, nem nariz, nem qualquer

atributo, reduziam-se a manchas de cor ambulantes,

vermelho, verde, cores de pele. Então se transpareciam

e por fim evanesciam. Não obstante eu sentisse ainda

a sua presença, não parecia que podiam me ver ou me

afetar (isso seria desmentido); com certeza, ao menos,

não tinham mais uma capacidade contundente de

agir. Kyua ficou cheio de si por estar certo, até resolveu

explicar:

— A boa notícia – começou ele – é que o Jade é oco.

Sugam realidade dos mundos para que viajam. Nos próprios

espaços, não tem o que chupar, somem.

Por que, então, os prisioneiros se mantinham nas

suas filas, por que se adequavam às suas celas, eu quis

questionar. Conforme cumpríssemos as nossas missões,

nós os veríamos sem escolta, pondo a si mesmos sob

grilhões, encolhendo-se no canto dos quartos à frente

As Esferas do Dragão | 177


das grades escancaradas. Nós nunca nos livramos, depois

de compreendê-la, da tristeza de saber que os seres

mais autênticos do nosso território deliberadamente se

deixavam diminuir. You do it to yourself, and that’s what

really hurts. Mas o que eu perguntei foi: e a má notícia?

Kyua sorriu, cínico:

— É que são parasitas de apocalipses. Pressentem,

se estabelecem e consomem localidades frágeis. A má

notícia é que nosso mundo está mesmo acabando.

178 | Duanne Ribeiro


Episódio 32

Jesus Acorrentado

Liberta dos Grilhões

Os calabouços eram um grande galpão onde se multiplicavam

celas cúbicas de vidro. De pé, fixados em

um gesto, os olhos estatelados, os encarcerados eram

alheados do tempo. Sua excepcionalidade neutralizada,

borboletas alfinetadas em almanaque. O Jade cometia

uma taxidermia de carne viva. A fantasia morre aqui e

sempre, a fantasia morre aqui e sempre, pensava, mas

tudo o que eu podia fazer era percorrer os corredores

sem poeira, ponderar sobre o eco dos meus passos,

dar de comer ao desespero. O plano mostrou-se exato.

Chegamos ao quadrilátero onde estava Jesus Cristo.

— Meu Senhor!

As Esferas do Dragão | 179


Jintoku caíra sobre os joelhos. Jesus, na posição do

crucificado, mas sem cruz, os olhos muito abertos contemplavam

qualquer infinito miserável à frente. De

repente, o monstro rosa ergueu-se e socou o vidro; a

superfície se desintegrou uniforme, caindo como uma

cortina de pó cristalino aos pés do meu companheiro.

Ele arrastou o cativo para fora das esquadrias de metal,

sentou-se e o acalentou. A cabeça coroada de espinhos

em seu colo. Rezava, em um murmúrio frenético e incompreensível.

“Como adorar um deus tão fraco?”, eu

perguntei sem pensar. Jintoku parou um momento para

me rebater: “Como mistificar pela eternidade a própria

fraqueza?”. Deus fez-se homem, ele quis dizer, em

um sentido muito mais profundo do que o da cópia

da compleição.

Por três dias observamos a oração ignorar com veemência

a sua própria inutilidade, até que enfim o fracasso

se abateu. Jesus piscou debilmente; mais alguns

segundos e a inteligência voltou a ocupar a sua expressão.

Homem, pardo, de cabelo curto e olhar inquietante,

feio, com mãos marcadas de trabalho, pés cheios

de calos das estradas batidas. Pressentia-se seu senso

de humor e seu senso de confronto — e sentia-se

debaixo da pele que ele encarnava o que pudesse ser

o divino. As pupilas fixas do meu amigo denunciavam

o amor e o pavor a que estava reduzido. Ter no colo,

180 | Duanne Ribeiro


segundo sua fé, a essência do universo. Jesus olhou-o

nos olhos, “obrigado”, e ergueu a mão lenta, direita, e

dois dedos estendidos, algo dobrados, leves, tocaram

o rosto do crente.

O corpo de Jintoku expulsou-se de si. Deslizou violento

acima, troposfera, estratosfera, mesosfera, termosfera,

exosfera — e voltou. Despencou a alma transbordante

de retorno ao corpo oco, agora a carne pesadíssima,

opressa por uma gravidade hiperbólica, esmigalhado,

humilhado, consciente do que é em relação

a. Uma voz também percorre seus neurônios, elétrica e

terrível: do you not love me am I not worthy will you love

your own life above me. Jintoku chora. Jintoku ri. “O que

ele lhe fez?”, eu lhe perguntei um dia, “aonde ou ao que

ele o levou?”; e meu amigo respondeu:

— Eu ainda tenho medo de pensar no que ele dirá

para mim e no que dirá de mim.

De nossa parte, o que vimos foi Jesus bomba de luz

evanescer no espaço. Jintoku continuou no chão. Nos

disse para seguir em frente, que estava terrivelmente

justificado e feliz, que precisava de tempo para desacostumar-se

dessa fé estável e funda. Nós o deixamos.

***

As Esferas do Dragão | 181


O desenrolar da aventura não permitiria que nos

reuníssemos novamente tão cedo; antes de vê-lo outra

vez, eu escalaria a torre, me moeria no lombo da

cobra e assistiria ao debacle dos planetas miniatura

— e ainda mais coisas para além desta história. Assim,

apenas anos depois Jintoku me contaria o que ocorreu

mais tarde naquele dia.

Ainda era, para ele, como se o Cristo estivesse ali.

O conforto das farpas de saber-se nada ainda lhe compunha

e soçobrava. Todos os seus gestos de força eram

revelados como prestidigitação. Poderia continuar enganando

aos outros e a ele mesmo, poderia voltar a andar

entre os homens recorrendo às farsas e às evasivas

de sempre. Mas agora era como se observasse o seu eu

eficiente à sua frente, e, vistos assim distanciados, os

seus estratagemas e fugas de primeiro minuto pareciam

— indignas? Bastaria reparar a dignidade por linhas

tortas. Não se tratava tampouco de enfim se reconhecer

em pecado: pode-se armar para si um comércio de desvios

e compensações que dure uma vida. O que lhe

ocorrera fora a seguinte epifania: não havia agência nos

seus erros. Lançava seus erros adiante como batedores;

estabelecia campos avançados de erros, deixava que

atuassem em seu lugar. Eram golens, escravos que o

imobilizavam em pujança. Como retornar-se à vida,

182 | Duanne Ribeiro


como retornar os golens à não-vida? Escreveu na testa

de cada qual seu nome próprio. Desabaram em poeira.

Golens então; agora, ele, gal’mi. Humilhado, pó; recomposto:

argila. Meu companheiro finalmente pode

sentir a energia voltar aos seus membros. Abraão

teve de chegar às margens de matar o filho; a Jintoku

foi suficiente e necessário assassinar o seu senso

de autoproteção.

As Esferas do Dragão | 183


Episódio 33

Líquido Amniótico

no Seio do Robô

Kyua caminhou convicto pelos corredores, sem fazer

menção de checar o mapa, como se percorrera aquilo

— as trilhas ao “futuro”, sua meta anunciada — vezes

inumeráveis. Como se prosseguíssemos em direção

ao futuro irremediavelmente. Atravessamos uma porta

adereçada de turquesa, ouro e diamantes. Chegamos a

uma plataforma pintada com listras vermelhas e pretas,

suspensa em uma tal altitude que não se distinguia o

fundo. À meio caminho das suas extremidades, via-se

a cabeça roxa de um monumental robô. Seus olhos,

verdes, chapados, eram agressivos e inexpressivos.

— Isso vai ser legendário, exclamou Kyua.

184 | Duanne Ribeiro


Contornando o titã pela lateral, acionou um botão.

Um compartimento cilíndrico foi expelido da sua nuca.

O espadachim se voltou a mim: “Só tem espaço pra

um. Mas, daqui a um tempo, se você ligar de novo, a

cabine vai sair e vai estar vazia. Aí você pode entrar,

e nos encontramos do outro lado”. Não posso, você

sabe, tenho tanta coisa a cumprir, roguei. “Massa”, ele

retrucou, “nos encontramos do outro lado, então”. Saltou

para dentro da nave, que se fechou consigo e se

introduziu no corpo.

***

Também só soube do desenrolar dessa aventura

muito tempo depois.

Dentro do cilindro, havia pouquíssima luz. LEDs débeis

deixavam ver manches, esquerdo e direto. O guerreiro

segurou-os; um pressentimento lhe perturbou os

dedos como eletricidade: o maquinário era vivo, expectante.

Todavia, ativou a estrutura integralmente.

Um líquido alaranjado, ejetado por todos os lados, preencheu

toda a cabine. Ao invadir as vias aéreas, proporcionou

um curto sufoco — logo se percebia que,

estranhamente, ainda era possível respirar. O toque

As Esferas do Dragão | 185


da substância sobre a pele, sua circulação através dos

pulmões ao sangue e assim a todos os órgãos internos,

fazia o corpo esquecer da sua identidade. Kyua era agora

como um quebra-cabeça a ser montado. Até mesmo

os seus conteúdos mentais flutuavam dispersos. Onde

é quem estava testemunhando essas coisas? Uma liberdade

tremenda ali era oportunizada: qual alucinação

iria performar?

Digamos que a seguinte: despojado de tudo, nu,

agora pontinho imerso em um oceano de vitalidade

concentrada. Laranja carregado, pulsante. Não era como

nadar: era como atuar sem peso. Brincava sob a

ausência de gravidade, os pés para cima, a cabeça para

o chão (mas tais palavras colapsaram). Era tudo potência,

mas no interior do riso havia, contudo, outro

burburinho... chilreios, ronronares, zurros, sim, porém

não discerníveis, um amálgama animalesco, uivo, guincho.

Estavam escondidos (o que supunha que ele fosse

algo como um protagonista) ou só estavam, latentes

como lhes cabia ser? Balidos, gritapos, não, nada definível,

mais a percepção da própria categoria do ruído.

Um deles se deixou ver, não obstante; um peixe

pequenininho, à guisa de vaga-lume, logo ali...

Como assim? Assim: aparecia a tempos, saltante,

lampejo na escama, e voltava a afundar invisível. Eis

que pulava — e tornava a mergulhar. Kyua sabia que

186 | Duanne Ribeiro


não era apropriado pensar: seguiu o peixe, até que o

bicho tomou conhecimento dele. Virando-lhe o corpo,

a nadadeira atrás sem estancar as sacudidas frequentes,

não desapareceu mais. Sua boca abria e fechava

compulsivamente.

— Esse trem aqui é tudo metáfora que eu tô ligado.

Se tivesse um cigarrinho aí ia ser mais fácil digerir

o negócio. “Bom, tenho de me virar. Você só pode ser

uma representação do inconsciente...”. A boca abria e

fechava expressivamente? “O que é que meu inconsciente

está querendo me dizer...”. A boca abrindo e

fechando silente.

***

De repente, identificou naquela síncope uma mensagem:

“Eu posso te derrotar”. E se assustou. “Eu posso

te derrotar”, era um desafio ou uma constatação?

O espadachim não os vê, mas na extensão ao redor

despontam figuras fantasmáticas, homens, mulheres,

que falam baixinho, ardilosos; todos enunciam “eu posso

te derrotar”, embora com outras palavras, outras

histórias, outras acusações. A mudez do peixe, o coro

opressivo, seus sons volumosos intensificavam-se e

As Esferas do Dragão | 187


atenuavam-se. Tentou opor um “eu posso lhes derrotar”,

mas isso pareceu uma bravata até para si. Tentou o

“pode, sim”, e foi atravessado por um frescor. Escorado

nesse tipo de clareira, dedicou-se a tomar notas.

Mais um dos seus instrumentos de magia? Afinal,

se registrava “hoje, eu pude ser derrotado”, uma mudança

fundamental havia sido executada. A falação tão

múltipla obstava com esse saber simples. Mesmo quando

a cacofonia alternou sua linguagem — discorrendo

“seria melhor ter seguido outro caminho”, “é isso o

que você é e não mais”, she said: you aren’t never going

anywhere — ele soube displicentemente dispensar toda

a sua semântica, registrar somente as linhas de força,

para cima e para baixo. Mais ainda, mais fundo:

importava tampouco a oscilação, interna ou externa, o

que era decisivo era o ato de observar-se. O olho dele

sabendo: hoje isso, hoje aquilo. Ajustando-se, criando-

-se para depois: “O devir não te pega se você é movimento

também”. Como? Me dê uma metáfora.

— Lá no topo é tudo paralisia e medo da descida, da

ladeira. Deslize.

188 | Duanne Ribeiro


Episódio 34

Prazos de

Validade

da Magia

Sim, em nenhum lugar pareciam estar os combatentes

de Jade. Mas gradativamente a sua presença invisível

foi se tornando mais insidiosa: sua intenção me

tateava, eu respirava um ar distorcido pela sua avidez.

Ignorei os sinais disso o quanto pude, mas a partir de

determinado ponto, um certo peso nos meus membros

se tornou intenso. Tratava-se de uma infecção, de alcance

crescente. Em pouco tempo mais, a sensação se

elevava a paroxismos — tamanha força tinha que me

fazia cair de joelhos — para, súbita, desvanecer, como

milhares de moscas que num baque se afastassem de um

cadáver. Segui pelos fluxos e refluxos dessas investidas

fantasmas; talvez por sorte, alcancei o meu alvo.

As Esferas do Dragão | 189


***

Eram marrons claras as escadas de pedra pelas quais

desci. Talvez nem tanto marrons como beges, ou cor de

oliva... acima da entrada, uma cabeça monstruosa, olhos

redondos vidrados e abaixo deles asas ou bigodes, asas-

-bigodes, agitando-se sobre os punhos em formato de

soco com que se apoiava nos pilares aos lados da porta,

os quais formavam com ela um triângulo escaleno.

Esse limiar levava a um jardim: seis árvores de um estranho

tronco triplo e convoluto, uma para cada face

do polígono à esquerda e à direita; um gramado verdinho,

alagado, seguindo o círculo das árvores, por uma

poça da água, não, por um ribeiro rasíssimo do qual

não descobrimos a nascente; no centro, três pilastras

bordeavam um pátio com um desenho esculpido, sol

com ponto final no centro, sol-olho, oito retas fazendo

as vezes de raios de luz. O local estava repleto de outros

com a mesma fantasia que eu.

Você se lembra. Chapéu cônico, calças listradas, cinto

de fivela enorme, casaco de mangas dobradas, luvas

enrugadas sobre os dedos. Eram todos assim, com suas

pequenas variações de vestimenta, de cores, de tamanho.

Uma marcante distinção, contudo: não tinham, ou

não exibiam, rosto. Sombras bruxuleavam em torno de

190 | Duanne Ribeiro


olhos amarelos vívidos como lâmpadas fluorescentes.

Com receio, segui até um deles; a criatura foi como que

ativada pela minha presença.

— Como você sabe que existe? Talvez nós

não existamos...

O quê? Me diga o que são vocês. Me diga onde estamos.

Mas o sujeito só parecia capaz de repetir a sua

arenga, “como você sabe que existe? talvez nós não

existamos”, “como você sabe que existe, talvez nós

não existamos”. Andei até o próximo, sobre o qual causei

o mesmo efeito disparador: “Ei, você sabia que o

tempo flui igualzinho à água?”. E mais do que isso não

fui capaz de arrancar dele. O próximo exclamou: “Nós

só podemos continuar vivos por um certo período de

tempo”; e, adiante, outro: “Talvez nós sejamos bonecos

criados para servir aos humanos”. O ser dessa gente

se reduzia à performance dessas frases às quais tinham

sido incumbidos por algum programa. A dois deles uma

missão diferente tinha sido dada. Pareciam conversar.

Ativei-os indo até eles:

— É este quem veio aqui com aqueles humanos?

— Ele é ok. Veja os seus olhos. Ele é atento, assim

como nós.

Gesticulavam na minha direção. Observavam-me acurados.

O segundo resolveu me explicar algo:

As Esferas do Dragão | 191


— Isto aqui é um... qual é a palavra?

— Um cemitério – respondeu o outro.

— Certo. Um cemitério.

Como um golpe no estômago veio a recrudescência

da infecção. Cambaleei e cai, sustentando-me com as

mãos. Minha cabeça pulsava quente e dolorida, grande

tambor atrás dos olhos.

— Nós nos tornamos atentos um dia, cada qual em

diferentes circunstâncias.

— Você se lembra de ter nascido?

Uma batida, duas batidas, as pupilas em febre, as lágrimas.

Três batidas. Eu vomitei aos pés dos dois magos

de sombra que conversavam, entrecortada pela minha

tosse eu escutava sua voz monótona. Diziam: “Muitos

dos nossos pararam de funcionar recentemente.

Os que foram produzidos primeiro pararam primeiro.

Varia um pouco, mas a maioria para de funcionar um

ano depois da produção”. Oito batidas, nove batidas

— por que não morrem agora, então? — a raiva um paliativo

para a minha dor, ela mobilizava algo que eu

cria obliterado, kasshoku, cobras de tinta devorando as

piranhas do nada, anticorpos ou primeiros invasores

contra os invasores tardios. Eu suava, trêmulo.

192 | Duanne Ribeiro


— Mas viver nesta vila com todo mundo me enche de

alegria. Não é o mesmo para você? Viajar com os seus

amigos dá sentido à sua vida.

E doravante, brinquedos de corda exauridos, passaram

a reproduzir suas falas, não é o mesmo com

você?, embalando-me conforme eu afundava nesse pesadelo,

você se lembra de ter nascido?, eu o palco de

uma disputa, qual é a palavra?, eu um personagem

como eles porém com uma habilidade retórica maior,

um cemitério, qual é a palavra?, você é atento, assim

como nós.

***

Despertei. O tormento passara. Abri os olhos. Negrume.

— Nos enganamos a seu respeito.

Negrume; e essa voz... sim, a minha própria. Mas

não era eu.

— Não divisamos de início que você era o comburente.

Agora está claro.

Senti enfim minha bochecha contra a grama e, abaixo,

a pedra. Tive de me esforçar para mobilizar as minhas

mãos. Senti o chão nos dedos. Forcei-me acima.

As Esferas do Dragão | 193


— Não é impossível capturar um comburente. Sim,

sempre trabalhoso. Consequentemente, sempre recompensador.

Mas a intraexegética agiu preemptivamente

no seu caso.

Eu estava de pé. Agitava os braços no ilimitado. Não

conseguia falar. Minha voz estava mesmo fora de mim?

Fechei os dedos num punho e avancei contra a fonte do

som. Varei o vento.

— Talvez ainda haja uma chance para nós, tentaremos,

mas se julgue vencedor.

Ele riu um riso meu, adoçado com uma ironia minha.

Ele dirá: é uma vitória de Pirro...

— É uma vitória de Pirro, como uma de suas expressões

disse. Embora você esteja errado quanto a

sermos “parasitas”. Bem. Não se podem salvar todos os

mundos. Vá!

Silêncio. A sensação do espaço sem ocupantes. Ele

(?) me dera permissão ou declarara desistência?

Eu tinha de sair dali, de todo jeito. Cheguei à parede;

tateei as suas formas geométricas até alcançar uma

ausência. Era o lado oposto do octágono. Uma saída.

Tropeçoso, desesperado, eu sai.

194 | Duanne Ribeiro


Episódio 35

Abrigo Contra

a Tempestade

As sombras eram consistentes como fumaça e se arrastavam

sobre o meu rosto como serpentes. O tempo

fez com que se rarefassem o suficiente para que eu

pudesse enxergar através de si um pouco — ou me

acostumei a ter um mundo turvo. As sombras se entranhavam

também em minha carne, enrijecendo os

músculos, arrancando o fôlego. Para avançar um pouco

que fosse eu tinha de extrair de mim toda força física

e toda potência do Qi. Gradativamente, fui-me tornando

menos pesado ou me acostumei com o peso. Vaguei

por dias pelo inóspito, reconhecendo nas águas de um

lago e de outro que eu me tornara uma criatura sem

definição. Até que avistei uma casa ao longo, e felicitei-

-me por poder parar. Era uma vista à beira-mar, águas

As Esferas do Dragão | 195


claras de Parati banhando a areia fina, paredes brancas,

janelas muito azuis, telhados marrons de Campos

do Jordão, chaminés roxas. Uma alegria de Buenos Aires

toda em torno. Então reencontrei, silhueta na luz do

poente, Shiawase.

“Onde você esteve?”, perguntou ela. Muitos lugares,

eu disse. “Você parece diferente”. Pois é. Acho que

sim. “Você vai ficar?”. Por ora. Porém logo devo partir.

***

Algumas refeições atingem a dignidade de arquétipos.

Nesta mesa em redor da qual eu me afeiçoei à família

de Shiawase, um comum fora sendo criado novo

a novo. O frouxo ritual que disto resultou efetivava-se

entre câmara de descompressão e mirante. No almoço,

tínhamos macarrão coberto de queijo, feito no forno.

De sobremesa, sorvete — flocos, chocolate, morango —,

em taças de plástico colorido. Nos fins de tarde, café

com leite semidesnatado e pão, acompanhado de frango

desfiado e mortadela. Todo o insosso contente do

pensado “para sempre”; de tal consistência que até hoje

a sua lembrança é sólida o bastante para que eu não

só a reproduza como imagem, mas que adentre e respire

um pouco do seu hálito, pavio aceso nas sobras da cera.

196 | Duanne Ribeiro


Era uma família grande. O pai era inventor; havia

construído não só Shiawase como três irmãos, dois

deles pequenos — um menino e uma menina, ambos

de cabelos verdes e asas pequeninas com as quais borboletavam

abaixo do ventilador de teto — e uma jovem,

com quem toquei violão às vezes. O patriarca, humano

engenhoso, após criar tanto maquinário externo, por

essa época projetava um reequipamento de si: um exoesqueleto

eletrônico recoberto de marfim de granito

que lhe tornaria uma potência visível a quilômetros.

A mãe também era inventora; sua obra, todavia, era a

casa. Sob o porcelanato movimentavam-se sem cessar

engrenagens conectadas por engenhocas de toda sorte

a todos os móveis da residência. De tempos em

tempos, a dona, tomada de inquietude, revolvia os locas

determinados, sofás agora em ângulo reto com a

estante, mesa de jantar dessa vez ao lado direito do

televisor; no subterrâneo, os mecanismos e cabos elétricos

ronronavam — ela agia como quem acertava um

relógio ou como quem buscava a combinação que escancara

um cofre.

Além deles, havia a avó, alta, magra, de saião, óculos

de vidro côncavo escurecidos. Com seus passos

largos percorria os sebos e brechós da cidade e presenteava

a família com os achados. Discuti com ela política,

e foi esse o acontecimento que tive de super-

As Esferas do Dragão | 197


valorizar, essa a memória que fui forçado a ruminar para

subverter à nostalgia o baque de quando a perdemos.

***

Shiawase era — como se torna claro em relação a

todos nós quando vistos suficientemente de perto —

um efeito da sua configuração familiar. O descanso na

operosidade, de um lado, e o comodismo perturbado

por solavancos sazonais, de outro, produziam uma eficiência

de hipnose autoinflingida. Era forte ou resistente

como quem prende a respiração debaixo d’água

e conscienciosamente inerte como quem boia entre as

ondas, o sol acima ofuscante; a mira entre calculada e

intuída do atirador somada à cegueira no voo do projétil

de efeito seguro. Conforme a observava, mais uma

vez eu me encantava pela capacidade de trabalho de

alguém; e meu afeto incipiente se estendia regiões

muito antigas da minha simbologia particular. Eu me

apaixonava pelo mesmo renascido do outro?

Sem dúvida, algo das condições de possibilidade do

amor está nessa oportunidade de reencarnação do tipo

de afeto que nos aqueceu antes, assim como na instauração

de novas fontes de calor que o alimentam de

198 | Duanne Ribeiro


forma oblíqua. Mas essas são, ainda, exterioridades.

No limite, só é razoável dizer: eu me apaixonava, ação

que regride aquém das designações de causas eficientes

até uma singularidade tão irredutível quanto a alternância

entre o sim e o não. Eu me apaixonava por que

teria o que tive? Eu me apaixonava pelos novos lugares

aonde voltar? Eu me apaixonava pela sonolência do

carinho? Eu me apaixonava pela satisfação da minha

idolatria a mim mesmo? Eu me apaixonava pelo ato de

me apaixonar? Exaustão das explicações: seria igualmente

fácil dizer: o amor veio pois a noite veio.

À noite, as ondas quebravam nos paralelepípedos da

Praça Nossa Senhora Aparecida, em Santos. A menina

esteve comigo frente ao mar insuspeitado, às florações

de espuma suspensas no vazio; aqui um outro arquétipo

esculpido? O banco de pedra curvilíneo, dois jovens,

preservados doravante no pétreo das idealidades. Essa

brisa de eternidade anuncia: a bonança que vem é da

cor dos teus olhos castanhos. Mapeamentos da textura,

lampejos do cheiro, intrepidez do gosto. Diluição.

O oceano, estou certo, me ensinou algo, mas algo alheio

a qualquer língua que eu aprendera.

As Esferas do Dragão | 199


Episódio 36

Libertação dos

Passarinhos

O amor é então essa aurora boreal que para se estender

no tempo fará as vezes de âncora. Contudo, é um

vetor entre outros; paixão na revoada das paixões, na

competição entre as paixões, e em mim um apaixonar-

-se pela viagem, ou mais, pela transformação, recendia

e retornava para conquistar as balizas mentais, inchar-

-se até ocupar o espaço completo da vontade. Esse

gosto do transtorno era filho do mesmo dinamismo

que havia dado condições de possibilidade ao amor;

contanto forte, esse último tinha nele um oponente à

altura, senão maior. Com isso eu digo: eu amo, tenho de

ficar; com isso eu digo: eu amo, tenho de partir. Ama-se

mais do que pessoas. “Eu amo” é um prisma.

200 | Duanne Ribeiro


Para acalmar esse paradoxo, passei a investigar as

proximidades da casa de Shiawase. Esperava que em

algum ponto do perímetro algo me indicaria onde procurar

as demais esferas. Na solidão dos caminhos eu

regenerava a minha capacidade de afeto, porém. Quando

eu, sem entender, me via de volta, e, ainda mais sem

compreender, querendo permanecer, eu sabia que algo

em mim havia sido alimentado e que algo em mim agora

tinha fome.

***

Em algumas dessas incursões, não obstante, Shiawase

veio comigo. Avançamos pelos gramados sob os quais

uma estranha terra se distribuía, em blocos quadrados,

amarelos e marrons. Grandes flores com as pétalas em

formato de estrela e totens primitivos com rostos esculpidos

(olhos e bocas preto contornado por verde,

alguns impassíveis, outros assustados) margeavam o

percurso. Por aberturas na superfície descíamos ao subterrâneo

onde estalactites de gelo pingavam sobre as

nossas cabeças e grandes caranguejos vermelhos tentavam

nos ferir. Saltávamos pelos suportes de toras

amarradas de madeira que flutuavam sobre as cachoeiras,

desviando das piranhas que pulavam bem alto

As Esferas do Dragão | 201


para fora da água, destruindo as vespas robóticas que

nos ameaçavam.

As aventuras agora não me aproximavam do objetivo,

pelo contrário me afastavam dele, ou melhor, do

doído incômodo de imaginar tê-lo à mão e não alcançá-

-lo, por que ainda me aventurava então? E ela, por que

me acompanhava? Adquirimos o luxo da imanência: os

percursos valiam por poderem ser percorridos. Equilibrando-se

nos longos caules que serviam de pontes nas

florestas, passeando em alamedas de plantas altas como

árvores rodeadas de flores vermelhas, expressávamos

que estar ali e ter estado lá bastavam-se. Preenchíamos

a palavra “juntos” de sentido.

Foi nessas explorações sem alvo que nos deparamos

com as prisões de passarinho. Eram estruturas de metal

cilíndricas, com porta de vidro, pouco maiores do

que um elevador mediano. Eram gaiolas. Não soubemos

quem prendera os animais, se o exército Jade, se

Kachiaru, se outro, mas nos demos a missão de libertá-

-los. Por semanas seguimos, aumentando a liberdade

do mundo aos pouquinhos.

Pelos templos de povos antigos, feitos de blocos de

pedra amarela com deuses remotos esculpidos, pelos

complexos industriais de pisos e paredes metálicas em

meio aos quais a cidade entardecia em laranjas escu-

202 | Duanne Ribeiro


ros e claros, pelas plataformas acima das torres em

construção que tremeluziam sob a ventania e as luzes

da tempestade — quebrávamos os cadeados, estilhaçávamos

as passagens, e de lá voavam pintassilgos, tico-

-ticos, canários, sanhaços, periquitos, bicos-de-lacre e

uma hipérbole de espécies. Surpreendi-nos múltiplas

vezes assistindo ao espetáculo de mãos dadas: as asas

riscando gizes amarelos, verdes, vermelhos, marrons,

brancos contra a normalidade.

***

Então, quando aparentemente tínhamos cumprido

a hordália, um susto no céu: eis novamente ele, eis o

inimigo, rasgando uma avenida nas nuvens. No horizonte,

a torre de Hermes erguia-se vertical. Tudo indicava

que ele se dirigia para lá. A oportunidade da

batalha de novo assomava.

As Esferas do Dragão | 203


Episódio 37

Esfera de Sete

Estrelas: Cícera

Retornamos sob essa sombra e quando chegamos tivemos

a notícia: a avó de Shiawase falecera. O velório

aconteceria naquele mesmo dia. A casa estava repleta

de familiares.

Não havia o que o inventor pudesse construir; os

maquinários se acumulariam tolos frente à tarefa de

reparar o fim. Não havia rearranjo da casa ou da vida

que a inventora pudesse empreender que fizesse o tempo

girar em falso. Aproximei-me do cadáver no centro

da sala, suas mãos sobre o peito, pousadas uma sobre

a outra, a pele parda e as veias grossas, eu toquei uma

delas e me deparei com uma nova qualidade de frio.

Não o da pele resfriada pelo dia de inverno, sob a qual

204 | Duanne Ribeiro


sem nos darmos conta pressentimos o movimento dos

fluídos, o burburinho dos nervos e músculos. Um frio

quieto e seco. A frieza de um objeto. O prurido que eu

fingisse estar nele sendo apenas eu.

Toca esta página agora. Toca. É assim.

***

Após o enterro, os pais de Shiawase me entregaram

um pequeno baú que a avó havia deixado para que me

encaminhassem. Dentro havia um bilhete — “(...) sei

que procura coisas desse gênero; achei essa entre edições

velhas de uns livros que eu tinha” — e, inesperada,

a esfera de sete estrelas.

***

Certos seres da infância e velhice crescem largando

para trás da pele renovada, como um tapete de carne

amarfanhada e mais ou menos peluda, a pele antiga.

A epiderme se estende por quilômetros ao fim de uma

vida; nelas os seus donos leem augúrios; nelas os demais

inventam teorias e segredos. Quando morreu

As Esferas do Dragão | 205


Cícera, avó materna da Letícia, pensei ter chegado pela

primeira vez à compreensão do que era a morte.

Não que eu não houvesse presenciado a morte antes.

Pequeninho, contam de mim que frente à minha bisavó

moribunda ou defunta eu perguntei: “A vozinha está

dormindo?” (a história tem “inocência de criança” o suficiente

para ser tanto verdade quanto mentira). Mais

tarde, compareci ao enterro de um primo da minha

mãe, Rubens, ainda criança, e, partindo de uma ideia

do que era o comportamento correto para um velório,

tentei me forçar a chorar (creio que consegui uma ou

duas lágrimas). Mas essas experiências como se vê não

ultrapassaram um turismo da morte. Certas serpentes-

-humanóides casam-se em uma cerimônia de troca

e intercâmbio de pele. Comem o invólucro antigo do

parceiro, costume que, manda a tradição, devem reproduzir

frequentemente, alimentando-se do que o outro

foi, até que este se descasque à insignificância como um

palimpsesto exaurido. Cícera morreu tão brevemente.

Estava andadeira como sempre, visitando brechós e

sebos e trazendo sacolas de tralhas para casa, de repente

foi abalada pelo mal-estar, descobriu em si um tumor

e em uma semana não mais era. Eu encostei no corpo —

e o corpo estava frio. Um frio não-natural, paralisado,

brusco. A pele possuí uma verdade que nós ignoramos

cotidianamente. Naquele dia, eu prometi, mais ou menos,

lembrar-me de tocar o outro, sentir o calor próprio

206 | Duanne Ribeiro


do vivente, de abraçar, quem sabe, pois que tudo isso

é efêmero, os primeiros a serem assassinados serão o

toque, o cheiro, o gosto. Beija esta fronte morta: a dureza

confronta os teus lábios, ridiculariza o teu afeto.

Os narizes tapados com algodão lembram que é tudo

uma farsa; o odor doentio das flores teria um acento de

podridão sem cuidados de contra-regra. As pessoas que

amamos são carne, são sangue, amamos o que pulsa,

perdemos o que pulsa. Eu chorei. E me questionei: eu

posso chorar? Tínhamos nos conhecido há pouco tempo,

tivemos poucas conversas, mas eu lhe guardava

simpatia — e isso é o bastante para chorar? Senti o

pavor do possível impostor. Chorei, de todo modo.

Claro, ninguém me repreendeu e é mais provável que

ninguém me julgasse. Hoje ainda testemunharia a meu

favor, hoje eu ainda me diria sincero. Se não podia

chorar, havia o que chorar: o choro é a reinvenção da

pessoa como memória, é a reorganização das memórias

não mais como dínamo, mas arquivo.

As Esferas do Dragão | 207


Episódio 38

Anciã no Céu

sem Livros

E se a verdade fosse só um contra-tempo? Urgia uma

história para recobrir a dor, morfina no sangue do luto.

Senti o frescor da fantasia assim que vislumbrei a

premissa, mais ou menos:

“Para a avó, ter morrido não fora mais que

um espirro; falecer coube num ops!, num

eita! e quase chegava ao mas minha gente!

Ela sacudiu a cabeça, alisou o vestido no

corpo e olhou ao redor. Era o Céu. Ali na

frente, São Pedro lhe olhava curiosíssimo.

208 | Duanne Ribeiro


Quando a mulher lhe fitou, ele se apressou

a perguntar: “Isso que a senhora traz aí

são livros?”

Sua sabedoria teria sobrevida, sim, que alegria!

O próprio Paraíso teria necessidade do seu garimpo

literário. Uma estrutura precisa logo aderiu ao germe

do enredo, e eu soube que teria de levar o leitor por

uma jornada de encontros pontuais, cada qual com um

livro no bojo, pois só assim seria renovada vez após

vez a aventura, de tal modo que mesmo após o fim dos

episódios se estabeleceria claro que o caminho poderia

prosseguir indefinidamente.

“Sabe, minha senhora? Por aqui nós só temos

a Bíblia, e nem um épico tão sangrento,

uma deliberação ética tão portentosa,

uma argumentação teológica tão embrenhada

quanto ela pode sobreviver ao tédio de

uma eternidade de leituras. Já reviramos os

textos sagrados de tudo o que é jeito, já lemos

escondidos todos os apócrifos. A gente

quer uma novidade.”

As Esferas do Dragão | 209


São Pedro era baixinho, a senhorinha era

alta, então ela o via um tanto de cima, agitando

a cabeça em concordância de vez em

quando. Quando ele terminou, ela se agachou

e abriu a mala que trazia consigo.

Estava repleta de livros. São Pedro sorriu de

maravilha. “Acho que você precisa de uma

série. Pra ter bastante e durar. Em Busca do

Tempo Perdido ou Crônicas de Gelo e Fogo?”,

perguntou a mulher. “Manda os dois”, respondeu

o santo.

Seria interessante também, pensei, se não só o conto

fosse sendo guiado pela entrega de histórias, mas se

a sua própria tessitura fosse costurada de narrativas

outras. Desde o título — uma corruptela de Lucy in the

Sky with Diamonds: Anciã no Céu sem Livros — até os

anjos que encontrasse em seu périplo, que teriam asas

de crepom branco e algodão grudadas com Super-Bonder

para referenciar Cherub Rock. Como se saltássemos de

uma a outra; uma infraestrutura Mil e uma Noites.

“Será que a senhora poderia fazer umas

visitas aqui pelo nosso cafofo, levando es-

sas glórias de Deus?”, pediu São Pedro, “sabe,

210 | Duanne Ribeiro


minha senhora, tem gente por aqui com mais

de trinta mudas de pena e não botou a mão

nem em um gibi.”

De Miguel a Rafael a Gabriel a Uriel a Jegudiel a

Salatiel a Baraquiel, distribuindo de Joyce a Pratchett

e de Amano à Clarice. Talvez inserir um interlúdio em

que a avó é contatada por Lúcifer, que pede a ela que

diminua o déficit livresco do inferno. Então de Belzebu

a Mamon a Azazel a Asmodeus a Leviatã a Belfegor e

de volta outra vez à Lúcifer. Quem sabe a leitura dissuada

as facções da guerra final que levaria ao apocalipse,

e o filho pródigo da luz reate os laços com a luz

pela luz da poesia.

Ou ainda possivelmente o próprio Deus sinta falta

de um livrinho, mas nada já escrito poderia trazer satisfação

nesse sentido, então o Todo-Poderoso demandaria,

analogamente ao evento nuclear de A História

Sem Fim, que a avó lhe diga um nome, um nome novo,

que pingará em Si fazendo tremer águas primordiais,

nome-semente inesperado como Adão, como Eva, “outra

chance de a Serpente Me presentear com A Surpresa”,

nome-big-bang, e eis que a avó o diria, e o nome seria

As Esferas do Dragão | 211


***

Li o conto à Shiawase, ela sorriu com ternura, abaixou

os olhos mareados e se deixou em silêncio. A folha pendia

na minha mão, exaurida das suas potencialidades.

Deixei-a cair. Mantive a quietude por mais algum

tempo e então me confessei: devo partir. Ela olhou para

mim como se já soubesse. Aproximou-se, estudou o meu

não-rosto, tocou as sombras, que se enrodilharam entre

seus dedos lentas como um óleo, rarefeitas. Com

suas mãos brancas ela afastou as trincheiras e me encontrou.

Beijamo-nos. Então tomei minhas coisas e

caminhei ao fim.

212 | Duanne Ribeiro


Episódio 39

Escalada da

Torre de Hermes

A torre de Hermes rivalizava em altura com o pico

do Jaraguá; erguia-se, cilindro de pedra-amarela, até as

alturas de uma memória imperecível. No sopé, estava

o deus que lhe dava o nome. Seus pés sangravam: alguém

havia arrancado asas que, mais intrínsecas que

sandálias, nasciam diretamente deles. Seu corpo, coberto

por vagos panos brancos sujos, pululava aqui e

lá em hematomas. Não obstante, ter-me visto deu-lhe

alguma satisfação.

— Telêmaco malfadado! Eis o herói!

Ele me contaria que havia lutado contra Kachiaru.

Procurara defender a torre, os tesouros de poder que ela

As Esferas do Dragão | 213


guardava em seu topo. Não pudera. Pensava ter causado

danos significativos ao adversário, mas certamente não

foram o bastante para derrubá-lo nem atrasá-lo na sua

investida. “Lá em cima”, me explicaria Hermes, “ele encontrará

não só licores de pura energia como mais uma

das esferas”. Agora eu reparava a enorme destruição

que a batalha impusera ao redor.

— O herói! Perseu que se encontrou Narciso nos

olhos da Medusa. Ulisses que diariamente costura e desfaz

penélopes sucessivas. Teseu pet sitter passeando minotauros

pelo labirinto.

Observei, e as palavras para descrever o que via me

ocorreram como se já houvessem sido escritas: era uma

terra em agonia. Por que não morria já? “Ele aprendeu

um truque novo: pode sugar a vida de tudo para dentro

de si, concentrá-la numa esfera e lançá-la contra

mim. É sorte sua, não penso que poderá fazer outra

vez.” As coisas cresciam ásperas, retorcidas, amargas,

lutando. Espinhos, musgo e moscas pardas, cinzentas,

negras; nuvens de mosquitos doidos de fome.

— Whatever happened to the heroes? Whatever happened

to the heroes? – Hermes passara a cantar, debilmente

– no more heroes anymore, no more heroes anymore.

Hermes sempre sentira prazer em ser parte do sangue

das aventuras. Mas naquele dia a derrota lhe amar-

214 | Duanne Ribeiro


gara a índole. Com estafa, indicou o alto da torre com

a testa. Sim, está certo. Cumprimentei-o com o olhar e

segui adiante. Busquei frestas na pedra rugosa, agarrei-

-me, soergui o corpo, então busquei casa para as solas.

E aí de novo, e aí de novo. Quando olhei para baixo, o

deus já avançava, curvado, braços pendentes de babuíno;

os olhos amarelos e doentios na sua careta avermelhada

e branca não pareciam mirar nada em particular;

gingando a bunda vermelha, sacudindo a pelugem

espetada, caminhou até pegar entre matos sua

roupa de viajante do espaço. Armou-se astronauta vagarosamente.

Antes de por o capacete pareceu notar-

-me, virgulinha no traço vertical. Moveu os beiços babentos

como se dissesse. Sua voz sem som retumba

ainda no interior do meu crânio.

***

Logo a terra estava longe. A pele sufocava e ardia

sob o sol, cujo brilho não deixava saber o quanto mais

perto de qualquer coisa eu tinha me colocado. Horas e

horas seguiram nessa toada. Quando a noite caiu, me

acomodei à beira do abismo sobre um bloco tanto mais

largo que os demais. O outro dia, e os outros depois

As Esferas do Dragão | 215


dele, me entregaram sóis tão pérfidos quanto o anterior.

Minhas reservas de comida e água começaram a se

esgotar na quarta manhã. Logo eu escalava sem recurso

algum, com a cabeça zonza e pesada, as veias pulsando

nas têmporas, os olhos secos, coçando e queimando.

Na noite graciosa em que choveu, permaneci

encharcado, quieto, fruindo um mínimo de vida.

Pensava sobretudo nos amigos que fizera ao longo

do percurso. Eu vivera uma espécie de benção: estivemos

alinhados, Shiawase, Kyua, Jintoku, Hikari, Shukun,

Hinagiku e eu — quanto tempo até a glória de alinhamentos

tão poderosos novamente? Nossas epopeias individuais,

entrecruzadas e/ou sobrepostas, por sorte,

gerando assim destinos. Aquilo em que rimávamos em

situação e intentos, quem sabe nunca mais se desse.

Seguíamos épicas ainda irmãs, no entanto distantes

— assim como certo dia, ou agora mesmo, eu poderei

compartilhar armaduras distintas ou viver vidas outras.

E se não vierem outros alinhamentos dessa estirpe,

por quanto eu teria ou poderia me alimentar só do eco?

Quanto tempo travar a digestão total das lembranças?

***

216 | Duanne Ribeiro


O afeto voluteia, compõe e decompõe. Impraticável

remontar a qualquer estado particular anterior. Possível

talvez seja evitar o instante decisivo em que passamos

a gostar das pessoas — e arriscar-se jamais nesse

redemoinho. É mandatório que o gesto, aí, seja vigoroso:

uma hesitação e o escape se desfaz, e veloz nasce

ao lado dos nossos sapatos uma flor tímida. O afeto

ramifica-se, densifica locais e sujeitos: os homens e as

mulheres que amo pesam fundos no tecido estendido

da minha alma, como crateras na epiderme de um planeta

— eu-território incorporo os meteoros. Âncoras —

e faróis; estrelas-guia. Ilhas encantando o continente.

E o perigo — ah! — o perigo de uma Atlântida.

***

A escalada descortinava um céu acima do céu, no

qual as nuvens compunham um descampado que mentia

solidez. A brancura frutificava figuras associativas:

acidentes geográficos de algodão-doce, crânios esculpidos

em claras em neve, fumaça de cigarro à guisa de

desertos e estepes. Atravessar a água e o gelo suspensos

era impassível como tocar um fantasma, porém.

As Esferas do Dragão | 217


A contradição entre o fato e o delírio extraía verdades

das falácias e vice-versa: eu estava em uma jurisdição

própria à fábula. O mundo lá embaixo se embaralhava

em macondos e madeleines. Cheguei ao topo.

218 | Duanne Ribeiro


Episódio 40

Despertar do

Comburente

Como um ovo deitado e cortado precisamente ao

meio, as fatias distantes uns metros uma da outra, a de

cima sustentada por pilares, a de baixo equilibrando-

-se de maneira frágil sobre a torre. Alcancei uma escada

disposta na lateral da estrutura e subi à plataforma

central. O porcelanato branco, liso, se espalhava de um

ponta a outra, fazendo fronteira à pedra rústica do contorno

como o oceano se choca com a encosta. De pé, no

outro extremo, me aguardava o inimigo.

Estava eu exausto e faminto. A ascensão cobrava seu

preço em dormência e rigidez de músculo. Eu respirava

pela boca, como o peixe arrancado à perplexidade. Ele

via. Ele sorria. Tomei fôlego e botei o corpo endireitado.

As Esferas do Dragão | 219


Exclamei: me dê as esferas. Eu exijo que me dê as esferas.

Lá, prosseguiu aquele mórbido gato de Cheshire.

Lá, na outra extremidade da reta, a maleta, o cigarro, o

sorriso imóveis.

— Seria neste momento – respondeu ele, sugando o

veneno – que eu gargalharia alto e você saberia que não

há, nem nunca houve, outra possibilidade, senão lutar...

As sombras dançavam fumacentas e translúcidas em

frente aos meus olhos; assisti ao seu rosto ser coberto

pela nuvem branca de resíduos de nicotina e outros

tóxicos. Apertei as mãos em punhos e afastei as pernas

por mais sustentação. Armei-me em kamae.

— ...você saberia, você sabe. Vamos direto ao ponto,

então?

***

Engoli o sangue que vazava dos rasgos do lado interno

da minha bochecha; o inimigo me atingiu de súbito,

seu golpe me estourou a boca, eu sentia os fragmentos

de dente na língua, uma sonolência doentia me

percorria o cérebro. Mas eu estava de pé. Ergui a cabeça

quando a sua aproximação se fez adiantar por uma

220 | Duanne Ribeiro


lufada de ar ardente; o soco no estômago me dobrou

ao meio, me fez flutuar por alguns segundos, enquanto

ele entrelaçava as mãos e as descia na minha nuca feito

marreta. Eu provei o sabor do concreto da torre de

Hermes. Mas instantes depois, trêmulo, cego de sangue,

eu me coloquei disposto, eu estava de pé. Ele não pode

ser derrotado, porém eu não posso perder.

I’ll keep taking punches until their will grows tired.

Outro murro. A cabeça jogada para trás feito a de um

boneco. Outro. Kasshoku proliferava-se aceleradamente

no meu sangue, tingindo minha pele de tatuagens

serpenteantes, mas não podia me regenerar rápido o

bastante. Outro. A dor é também conforto, afinal você

sabe o que esperar do próximo instante. Outro. Lembranças

assomam à mente: um garoto perfurado em

vários pontos da carne pelas quinze estrelas da constelação

de escorpião; um garoto que corre no último

fôlego da esperança por uma escadaria recoberta de

flores que busca hipnotizá-lo ao sono e à morte. Outro.

De quem são essas memórias? Outro. Estão aqui, esses

tantos são como eu, eu vivo o que eles viveram. Outro.

Não. Viveram ou tampouco, tanto faz; me enxerto.

Abri os olhos. A palma do inimigo a um palmo à

frente do meu rosto, incandescente. Explodiu numa

rajada violentíssima, tiro de canhão na cara. Acordei

após um curto coma, pilar demolido nas minhas costas,

As Esferas do Dragão | 221


rasgo fundo na pedra denunciando meu caminho pregresso

à frente. Como sobrevivi? Notei enfim que me

refrescava a fronte outra vez o ar: as sombras endureceram

em escudo e salvaram a minha existência?

Talvez. Renovadamente nu, levantei-me de novo. “Por

que você não morre?”, eu o escuto dizer. Um homem

que congela as balas à frente e implode o adversário

com um mergulho ontológico. De onde vêm essas memórias?

Enxertava-me nessas possibilidades do impossível,

é isso, eu frui naquele momento uma lucidez incrédula.

Do que me chamaram? Comburente...

O que é que queimo? Este mundo queima por meio

de mim. Ele sussurrava a sua dependência, tinha o medo

de fenecer junto comigo. Aspirei o tudo. A força infinita

me destripou, inchei de energia, os meus olhos

fachos brancos, a minha boca holofote, brandi as mãos

nuas contra o adversário.

***

Ele aguentou. A realidade se esfacelava ao redor dele

e ao longo da gigantesca torrente desfechada através

do meu corpo, mas ele continha toda essa potência

mobilizando tudo o que era. Contudo por fim foi

222 | Duanne Ribeiro


engolido pela rajada. Incinerou em fogo atômico, urrando

sem som. Quando tudo cessou, não tinha caído.

Cambaleante, tentou armar um golpe. Caiu de costas.

Deixei-me deitar também: o descanso soava doce

como um buraco-negro. Em meio ao torpor, notei que

no centro do teto da torre de Hermes existia um nicho

no qual se aninhava um globo de pedra. Sem reação,

vi-o começar a girar, tão logo quanto pequenas linhas

que expulsavam luz surgiram na sua superfície lisa.

A bola acelerou suas voltas e veio descendente, abrindo

gradativamente de modo a montar com suas partes

deixadas a cada altura um degrau.

Terrivelmente débil, fora Kachiaru quem, com artes

por mim ignoradas, ligara o mecanismo. No pé da

escada, ele me fitou com uma expressão de afogado, e

então subiu.

As Esferas do Dragão | 223


Episódio 41

Esfera de Seis

Estrelas: Aborto

Arrastei-me degrau a degrau, atravessei a abertura

circular no topo e cheguei a um terraço do qual partia

uma passarela esculpida em formato de cobra, extensa

a ponto de não se divisar a cabeça a morder o infinito

lá adiante. À esquerda e à direita nuvens felpudas e

amarelo-manga se alongavam como um tapete. Respirar

o novo ar que se espalhava nesse nível desanuviou

a minha debilitação. Ainda fragilizado, mas capaz de

prosseguir, comecei a caminhada pelo que eu saberia

ser o Caminho da Serpente. Por um sem tempo segui,

meus passos ininterruptos nada mais que o movimento

sem movimento, já que sempre como se nada mudasse

no centro entre duas linhas sem extremidade.

224 | Duanne Ribeiro


Logo era como se eu estivesse em uma espécie de

nulidade, apenas um pensamento dormente com um

vetor. Seria razoável se eu tivesse me agarrado então

às minhas memórias — mas era também a chance de

escapar das memórias e suas bombas-relógio, cercas

de arame farpado, areia movediça.

Só voltei a mim quando encontrei – abandonada,

perdida ou deixada como dádiva – a esfera de seis estrelas.

Peguei-a na mão e deixei-me mais uma vez

afundar no que os orbes contam.

***

Um universo em que não houvesse a luz obsoleta

das estrelas, no qual em tempo real pudéssemos vê-

-las nascer e morrer, ou melhor, que vislumbrássemos

acenderem-se as constelações futuras. Eu aceitei morrer

com cerca de 12 anos. Nadando em uma praia de

Santos, fui fundo demais. Meus pés remexeram a água

sem poder riscar a terra. Ninguém estava próximo. Não

me desesperei: avaliei o momento, fitando sem dar-lhes

atenção os prédios tortos além da avenida. Conclui:

ok, vou morrer. De alguma forma, pouco depois dessa

indiferença e tomando o seu lugar com só um pouco

As Esferas do Dragão | 225


menos de debilidade veio a decisão oposta: não, vou

viver. Então me agitei, gritei, consegui que me vissem,

viessem e me levassem. Antes e quando rebocado pelo

salva-vidas, eu me fascinava com o que tinha podido

pensar, mais, me chocava (com o acréscimo de um toque

de orgulho) com o fato de ter, sem falsidade, escolhido

o suicídio, assim “tão novo”. Um messias-casmurro em

uma dimensão vencida pelo niilismo, em que o levanta-

-te e anda é substituído pelo murcha-te e recua, não

Lázaro redivivo, mas gravidezes desfeitas; um flautista

de Hamelin a quem já de início pedem para que dê

sumiço às crianças, “os ratos são um problema menor”.

Pode ter sido a primeira, mas não foi a última vez em

que me ocorreu me matar — contudo mais precisamente

concordo com o verso “I don’t wanna die, but sometimes

I wish I’ve never been born at all”. Escapar por inteiro

da avassaladora dialética que mobilizou Hilda Hilst:

nem ter sido nem estar sendo. Por que me sinto e me

raciocino dessa maneira? Deleuze fala que alguns escritores

portam certa marca da morte? Carrego-a eu?

Seria possível fazer uma pseudoargumentação nesse

sentido: eu poderia lembrar que desde a gestação não

fui um ser vivo promissor; que a minha concepção tomou

sete anos, que já em estado avançado, a minha

mãe correu risco de me perder, período em que (ela me

contou) ouvia repetidamente “Índios”, da Legião Urbana

(busquei tantas vezes nessa letra o que é que ela

encontrava aí; será pela referência repetida às riquezas

226 | Duanne Ribeiro


desperdiçadas? Será que eu coube no “você” do refrão?

— “é só você quem a cura do meu vício de insistir nessa

saudade que eu sinto de tudo que eu ainda não vi?”).

Mas eu penso que estaria mentindo se procedesse dessa

forma. O ferrete da morte não é meu privilégio. Um

Narciso-aranha que fiasse uma teia de intrincados padrões

e enorme extensão, pela qual se apaixonava, na

qual passava a se lançar sob a esperança de ser capturado,

no entanto, claro, incapaz disso, imune demais,

nunca presa o suficiente, sempre algo destacado apesar

da beberagem do engano. Minha mãe sofreu o pavor de

perder um bebê, a ameaça do aborto natural. Por que

o pavor? Um feto não é mais que o acúmulo cada vez

maior e mais habilidoso de células, até a arrogância

mamífera que passeamos ao túmulo. Mas se só isso o

aborto não aturdiria ninguém. Por que se postula que

a alma se acopla à carne já no instante em que espermatozoide

e óvulo se conjugam? Porque, de fato, algo

de simbólico foi gerado. O aborto assusta não porque

interrompe um bicho, mas porque assassina uma narrativa.

É a alegria prometida de segurar no colo que leva

um tiro na testa. É a promoção ao status de responsável

pela vida de alguém, é enfim ter, de modo palpável,

um destino (uns abraçam, outros fogem). Kundera afirma

que recorrentemente buscamos construir-nos sobre

um “deve ser”. O aborto abala a vontade de determinação.

Nos retorna à leveza. Eis aqui na verdade um

As Esferas do Dragão | 227


exemplo menor de uma circunstância existencial maior:

somos levados no fluxo das histórias. Em situação de

paz, é nelas que nos aconchegamos. Sobre os sismos, é

a elas que nos apegamos mais que nunca.

***

As outras esferas pontuavam o Caminho da Serpente

como pedaços de pão. Reencontrei a de duas estrelas,

a de uma estrela, a de cinco estrelas. Só a de quatro

estrelas não encontrei tão facilmente. Assim, somadas

as que eu havia encontrado pós-torneio – três e sete

estrelas – enfim eu chegava a portar seis de sete. Só

mais a orbe com que tudo principiara e eu concretizaria

o meu objetivo.

228 | Duanne Ribeiro


Episódio 42

Última Página

da Força

Sem as esferas para ferir o mesmo com o diferente

o percurso mergulhou-me em catatonias cada vez mais

profundas. Caminhar a serpente comeu meu cansaço

e minha força, meus projetos e meus fracassos. Ruiu

minha identidade, regurgitou um dinamismo discreto.

Meus pensamentos, meus sentimentos, eles boiavam

estrangeiros sobre um seguir em frente que não parecia

implicar em um avanço. Mais: eu vibrava. Como um

átomo isolado continha tensão e nada.

Depois de quanto? Cheguei à boca da cobra.

Percebi-me em um piso emborrachado marrom-

-claro. Tentei mover-me; senti com súbita verdade,

As Esferas do Dragão | 229


que havia desaprendido o andar. Contemplei os padrões

geométricos do chão por longo período.

— Vem, filho.

Voz-farol. O horizonte é a mão de alguém.

— Vem, filho.

Eu engatinhava. Não sei andar, mas ele sabe que andar

está em mim. Equilibrei-me em duas pernas. Era...

duvidoso. O corpo oscilava para frente, para trás, os

dedos, as solas dos pés, tensionavam-se para agarrar o

solo, para frente, para trás, as mãos inúteis, afogadas

no ar, para frente, para trás, ele me chamara, para frente,

para trás, e o que me detém não é o medo — cair não

é algo contra o qual me previna, cair seria inaugurante

—, estava só em contemplação dessa coisa incomum

que é ser bípede. Porém ele chamara — bondade à vista!,

apressam-se os navios — então, para frente, para

trás, um passo. Voou sobre os abismos o meu pé e havia

do outro lado algo tão seguro quanto. Um passo.

Ainda funcional. Um passo. O equilíbrio agora quase

entediante. Um passo... e rapidinhos múltiplos outros.

Veloz... e cadente, surpreso sou salvo da queda; ele me

segurou, ele me abraçou.

Estava de pé, os sentidos novamente nítidos. À minha

frente, um homem aleijado e atrofiado sofria.

230 | Duanne Ribeiro


***

A potência de Kachiaru, humilhada. O braço direito

agitava-se bambo no espaço, contente de poder mover-

-se? Vago, lento, estupidificado. O esquerdo e as pernas

restavam enrijecidos. O antebraço e a mão curvados

contra o peito e a barriga, os membros inferiores

parodiando a posição fetal. Esticar os músculos não

significava outra coisa que dor; sua paralisia era o mais

alto que almejava. As costas crateravam de escaras —

fundas, pegajosas, com sangue e pus reluzentes. O odor

de bosta na fralda e de urina na bolsa cirúrgica tornavam

denso o ambiente e demarcavam os sentimentos

possíveis. O olhar no seu rosto era o do sofrimento da

escassez de si. Entretanto na boca entortada, nos dentes

poucos, roídos de tártaro, quando uma alegria-

-mártir o animava, eu reconhecia o seu sorriso.

As Esferas do Dragão | 231


Episódio 43

Lições do

Sétimo Mestre

Aí então ocorreu meu derradeiro treinamento.

Descobri estarmos num planeta em miniatura — sem

pressa, era possível rodeá-lo em uma manhã — coberto

de uma grama verde-desenho-animado e ocupado por

apenas uma casa. Atravessando o portão branco, enferrujado,

sujo, da residência, víamos a nosso lado um

jardim, em que azaleias, roseiras, pés de arruda e

boldos-do-chile confraternizavam (entre as tantas,

admirei uma planta que dava frutinhos vermelhos e

tinha a minha altura). Mais avante na propriedade,

estava estacionado desde sempre um Gol cinza escuro.

Espremíamo-nos na sua lateral para chegar à porta

de entrada.

232 | Duanne Ribeiro


Dentro, uma sala que servia de escritório e oficina

de eletrônica. As paredes brancas desfaziam-se em quilos

de pó sobre a cerâmica branca do piso. Uma estante

de mogno aguentava enciclopédias Conhecer e Larousse,

uma coleção de Os Pensadores, a obra completa de

Victor Hugo, a compilação de citações Dicionário da

Sabedoria, de A. Della Nina, apostilas do Instituto Universal

Brasileiro. À sua frente, a mesa longa de madeira

escura se recobria também de chaves de fenda e alicates,

rádios feitos sobre tábuas de madeira, ferros de

soldar, uma caixa com fitas K7 de música caipira.

O horizonte era granulado por uma infinidade de

outros planetas mínimos. Como que de brinquedo, eles

giravam em tons fortes de cores primárias dentro de

contornos pretos bem definidos. Giravam, giravam, e

então alguns explodiam ou simplesmente caíam como

moscas abatidas. O debacle desses variados mundos

nos assustava e divertia, embora não soubéssemos sua

explicação, seu significado.

As coisas que existem, como dentes-de-leão salvar-

-se-ão alhures?

***

As Esferas do Dragão | 233


Kachiaru me guiou pelo seu conhecimento. Do simbólico

— aprendiz, companheiro, mestre — segui ao filosófico

— cavaleiro, missionário, guardião, servidor,

em que se enfileiram lealdade, franqueza, verdade, coragem,

justiça, tolerância, prudência, onze completos,

daí à probidade, perseverança, liberdade, igualdade, fraternidade,

perfeição, agricultura e pecuária, indústria

e comércio, trabalho, economia, educação, enfim o nível

23, aí organização social, justiça social, paz, arte,

ciência, religião, filosofia, bem público, civismo e pátria

e humanidade. Kachiaru me orientou ademais a passar,

como Jesus, 30 anos vivendo na cabala (para, quem sabe,

feito ele morrer de velho na cidade de Caximira, na

Índia). Kachiaru me repassou a arte da parapsicologia,

de estancar sangue a hipnotizar gente.

Ele me dirigia à banca de jornal e me afeiçoava à leitura.

Nesse fluxo li os diálogos em que Platão se esforça

para inventar uma sobrevida à Sócrates; não entendi

nada, mas creio que as palavras desde aí passaram a

nadar em mim causando todo tipo de efeitos. Ele me

educou no confronto aos crentes que de porta em porta

vinham anunciar redenções e continuidades, ele os contradizia

e procurava fazer com que se percebessem estúpidos.

Sua ética era tão clara quanto a de Hinagiku,

concentrada em frases simples: “seja seu próprio chefe”,

“tudo é feito por interesse”, “todas as invenções

234 | Duanne Ribeiro


foram feitas por causa da preguiça”. Ele me ensinou

palavras-terremoto, como: “Autodidata”.

Eu me fortalecia, mas para que? Kachiaru era meu

primeiro e último grande adversário. Quando sua degradação

chegasse ao ápice, minha força se evidenciaria

supérflua.

***

A convivência com essa degradação, no entanto, me

lembrou que a luta atual se renovaria mais uma e mais

outra vez, indefinidamente. People come and people go...

o risco nunca foi tão nítido: minha avó morta, minha avó

morta, me dói até escrevê-lo, um dia esta história será

velha e essa frase será verdadeira, eu a lerei como um

exorcista fracassado, nada me aterroriza mais.

Em muitos outros dias previ ocorrer, respirei acontecer,

chorei em meio ao sono, até sentir o alívio de

saber que era irreal — e nem tão alívio, pois irreal,

contudo por enquanto. Desperto, à salvo, me envolvia

e mastigava por muito tempo ainda a perfeita profecia.

Constipado, os olhos molhados, o corpo encolhido, eu

sofria, pequeno e patético. Mesmo imaginei que, no fim

das contas, isso tudo era benigno: me dispunha cara a

As Esferas do Dragão | 235


cara com meu terror, me faziam vivê-lo de imediato;

quando viesse enfim o de verdade, eu estaria preparado,

me atingiria menos — imaginava e logo me contrariava:

como eu poderia estar preparado para perder a pessoa

que me preparou para tudo? Se ela dorme, eu me assusto

— observo seu peito, vejo se ainda se move — se, de

manhã, demora-se para acordar, eu me assusto — terá

sido hoje nesta noite calma? Dores de cabeça, um aviso?

Gripe, presságio? A rotina me mente tamanha garantia:

só quero que tudo fique como está, só quero que fique...

***

Alguma coisa vai se salvar? Enquanto aqui lanço

mão do meu último recurso contra a morte ela não pode

estar manobrando para me atacar pelas costas?

236 | Duanne Ribeiro


Episódio 44

Esfera de Quatro

Estrelas/Duanne

Quando seu corpo enfim viu-se concluído, meu mestre,

passou a suar muito, opresso pelo susto e confusão

na face. Mesmo tendo mastigado a previsão do pior até

ela se tornar fugaz (e tendo, dessa forma, certeza da escapatória),

eu me preocupei o suficiente para procurar

salvá-lo. Venha, teremos de recompor nossos passos no

lombo da serpente, vamos, temos que voltar ao mundo.

Ainda a sua face que não conseguia dizer nada, mas ele

conseguiu estender sua mão boa e me ofereceu: enfim,

a esfera de quatro estrelas. Eu tinha chegado a um ponto

final. Olhei no olho do orbe para receber a sua ladainha.

Nada. Não tinha tempo, porém, para considerar

essa ocorrência propriamente. Pus meu adversário nos

braços, galguei o réptil e reiniciei a corrida.

As Esferas do Dragão | 237


***

(Eu quis dizer à Letícia: “Ele me ensinou a andar”,

mas não era só isso que eu queria dizer com “ele me

ensinou a andar” — engasgado, a voz embargada, primeira

e segunda tentativas falhas, terceira enfim, eu

queria dizer: ele me ensinou a andar! Ele me ensinou

a andar. Creio que ela não soube o que eu dizia; a sinceridade

minha mais verdadeira é, assim, esse mensageiro

incapaz.)

***

A catatonia do caminho me afogou outra vez, eu

me movia com a vítima no colo sem saber de final ou

começo. Mas agora não me parecia estar descolado do

tempo, como se corresse sem que meus pés tocassem

o chão. Tratava-se mais agora do furioso movimento

concomitante de tudo. A própria cobra debaixo de mim

parecia apressar suas escamas, lançando-me adiante, às

vezes em um ritmo que eu não podia igualar, a que eu

tinha de resistir para não cair. Às margens, ao longe,

os planetas pequeninos surgiam ou decaíam em suas

velocidades particulares, e eu, por estar imerso na cor-

238 | Duanne Ribeiro


rida de agora, perdia vislumbrá-los ou descobri-los,

talvez para sempre, ao passo que nem pressentia os

que viriam para sem querer querer sufocar a saudade

dos passados. Correndo, era como se eu me movimentasse,

ou não movimentasse, ou só ou um pouco,

ou estabanadamente.

Correndo, correndo, de todo modo eventualmente enfim

pude ver a abertura da torre, a saída, sim! Correndo

ainda, ouvia o barulho descontrolado das sirenes, sentia

desviar dos carros ansiosamente. Olhei meu avô e

meu avô me olhou e nós nos olhamos nos olhos e não

sei se ele estava consciente mas foi a última vez que

nos olhamos nos olhos em toda a vida. Eu havia reconhecido

o seu sorriso, eu reconheci o seu amor então

também. Eu poderei buscá-los? Pois ele sorri para sempre

em fotos-arquétipo que não aguento confrontar.

A gente em Aparecida do Norte, eu mesmo tirei essas

fotos. Meus aniversários, eu fantasiado de Jiraya ou

Batman. Você ao meu lado, me erguendo para soprar as

velas. O que eu desejei então? Garoto tolo. E eu, bebê,

tocando o seu queixo, poderia saber que seria esta a

última pessoa a vê-lo vivo, este menino pegando no

seu rosto, vô?

***

As Esferas do Dragão | 239


A saída, vista de cima tão aparente a uma entrada

para o abismo, estou fora, venha a mim a epopeia ainda

mais uma vez, onde porém a torre, onde o deus, agora?

Estou num escritório. A porta fechada, olho-burocracia

orientando sobre necropsias e atestados de óbito.

A compreensão compreendera. Os olhos alagaram, corri

a represar os diques, pois não diante deste estranho.

A língua-pragmatismo seguia: se houvesse um médico

de confiança, era sugerido chamá-lo para assinar a comprovação

da morte, ou teria de ser feita uma análise

do corpo para fins documentais do hospital. Minha mão

se escorou na mesa, minhas pernas em prévia de desmaio.

Pensei: então isso ocorre mesmo; pensei: será

que estou fingindo? Minhas memórias vazaram no discurso

desses lábios e dentes movendo-se na face porosa

quase cobre de um porra de camisa xadrez e jaleco, meu

avô sorrindo it sung like a violent wind that our memories

depend on a faulty camer in our minds meu avô morreu.

Meu avô morreu. Achar médico de confiança evitar necropsia

ligar pra minha mãe. Meu avô morreu: nada

depois desta frase; nada antes dela? Como se deixássemos

o possível para trás: a substância seca.

Onde as planícies, as aventuras? Tomei o telefone

do gancho. Minha voz não se sentia capaz, mas é preciso.

Eu digo: mãe — e hesito. Eu digo: mãe. E ela sabia.

Antes que eu pudesse dizer, sabia. Eu a escutei

240 | Duanne Ribeiro


chorar, meu braço trêmulo, falei; cumpri com o meu

dever. Depois nessa cadeira qualquer, vendo quando

chegaram ao hospital. Como em um filme mudo, os filhos

transmitiram a mensagem à mãe, e eu assisti. Há

um instante delicado em que eu não vejo qualquer

sentimento nela, e é a alma procurando por alguma

fuga. Porém: não. Na noite encoberta, então, houve

um abraço, eu o senti tão bonito, e sei tão bem o que

sentiam, minha avó, meu tio e minha mãe, conexos pela

notícia. Minha dor, no entanto, não queria ser dividida.

Mais adiante naquela noite, eu satisfiz outra vez

o necessário. Madrugada, andando de carro, eu e meu

tio até tivemos uma troca de futilidades. Como tudo

se dopa. Na cama de metal de um necrotério a carne

fria e dura para que a vestíssemos com suas roupas

de gala definitivas. Eu queria sentir esse gesto como

uma carícia.

***

Em um três de julho que é sempre ontem, agora a

coisa pálida no coração da sala. Ao redor, a tensão do

ritual se afrouxa, são permitidos gracejos, conversas

à toa. O cadáver nos reúne em circunstância, mas não

em sentimento — que é que você faz neste velório,

As Esferas do Dragão | 241


que é que faz nesta morte que é minha? Meu choro é

autoexílio conforme prosseguimos à cova. O dia está

criminosamente bonito. No céu voejam pipas canalhas.

A madeira e a carne morta foram enterradas, logo irão

de volta à casa meus familiares, a normalidade colonizando

os pensamentos com velocidade — “era a hora

dele”, “foi o melhor” (posso imaginar uma série de cenários

melhores), “como fica a avó” — mas eu, eu não!

Eu tenho comigo as sete esferas do Dragão. Eu posso

fazer tudo ser como era antes.

***

(Para me purgar, escrevi à Letícia, ao Rafael e ao

João um e-mail em que eu narrava com detalhes a morte

do meu avô, uma crônica de como passei por isso.

Escrevi aos três; vocês, por exemplo, não têm o menor

direito de lê-la — pela diferença entre a gota de óleo

no óleo e a gota de óleo na água.

Mas, se é assim, o que é que eu tenho feito ao longo

de todo este texto?)

242 | Duanne Ribeiro


Episódio 45

Dragão

Que viesse a mim o Dragão. Alinhei as sete na

terra. Estrelas amarelas, esferas laranjas, superfícies

polidas — reluzem feéricas. Do interior de cada uma,

compassadamente, pipocaram faíscas como fogos de artifício

minúsculos que, em seu apagar-se e surgir, para

quem soubesse ler, exibiriam sucessivos ideogramas

das linguagens do segredo. A agitação desses fulgores

foi se transformando em uma única massa de luz, homogênea

energia branca que primeiro preencheu os artefatos

e após escapou dos seus limites. A explosão me

atirou para trás; o brilho ofuscou minha vista; o clarão

me engoliu. De um fiapo verde no branco leitoso

e elétrico brotou o animal. O turbilhão luminoso era a

As Esferas do Dragão | 243


sua incubadora. O astro no horizonte foi coagido a pôr-

-se, o firmamento, reconhecendo que assim era apropriado,

estremeceu em tempestade. Raios rabiscam

garatujas na imensa rajada vertical, até tocarem sem

qualquer dano a carne reptiliana. Fez-se o Dragão.

A realidade fora espancada. Eu era ridículo e miserável

frente ao titânico da divindade. Pedi. Ele sorriu dentes

grandes como destinos.

E respondeu:

— Isto não pode nada...

244 | Duanne Ribeiro


As Esferas do Dragão | 245


246 | Duanne Ribeiro


As Esferas do Dragão | 247


Esta obra foi composta em PT Serif

em março de 2019 para a Editora Patuá.

A certa altura desse livro eu digo que ao terminá-lo

me tornei novamente capaz de olhar as fotos do meu avô.

Isso é parcialmente verdade: antes eu evitava mesmo

observá-las, agora eu apenas resisto um pouco. Posso vê-lo.

Atribuo isso ao livrinho, meu patuá, meu omamori, meu exercício

de religare. Como GH à Clarice, ele me deu uma alegria difícil —

mas que ainda se chama alegria. Cha-la Head-Cha-La!

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