Dona Maria do Pompéu: a marrecada, o ora pro nobis e outras histórias
Por Silas Fonseca Projeto Memórias Geraes Rancho da Cultura
Por Silas Fonseca
Projeto Memórias Geraes
Rancho da Cultura
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Este livro foi produzido com recursos da Lei Aldir Blanc no âmbito do estado de Minas Gerais.
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1º EDIÇÃO
Sabará, Minas Gerais
Rancho da Cultura, 2021
Autor Silas Fonseca
Ilustrações Maria Theresa Morais
Produção geral Nádia Fonseca
Projeto gráfico Letícia Bezamat
Revisão Mônica Granja
Este livro faz parte do Projeto Memórias Geraes
Tiragem 400 cópias
A produção deste projeto, embora utilize em suas publicações as normas-padrão
da língua portuguesa no Brasil, não se vê obrigada a segui-las. Este livro é resultado
de uma experência poética por isso muitas vezes não segue rigorosamente
as normas estabelecidas.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
F676d
Fonseca, Silas.
Dona Maria a marrecada e o ora pro nobis / Silas Fonseca.
Pompéu, MG : Rancho da Cultura ; 2020.
96p. : il. fotos ; 21 cm
ISBN 9786599398902
1. Literatura brasileira. 2.
CDU: 82 / CDD: 869
Bibliotecária responsável: Gilza Helena Teixeira CRB6/1725
SUMÁRIO
PREFÁCIO Mônica Granja
I
DONA MARIA, A MARRECADA E O ORA PRO NOBIS
II
17 Introdução
28 A trajetória do ora pro nobis
DONA MARIA: SUA VIDA E SUAS HISTÓRIAS
III
33 Dona Maria do Pompéu
38 A vida na fazenda
41 Juventude e casamento de Maria
47 Enfim um sítio e a mudança
49 Assalto ou golpe?
51 Perdas e lutas
55 Vida que segue
APRESENTAÇÃO PELO AUTOR
IV
61 Silas da Fonseca
62 Mamãe
63 Homenagem
67 A Gagueira de Joel
73 O trem
78 Primeiro de Abril
A HISTÓRIA DO POMPÉU
83 A História do Pompéu
Este livro é dedicado à minha mãe, Maria Torres,
pela mulher fantástica que sempre foi. Como filho
mais velho eu bem sei de suas lutas, de suas lágrimas
para criar 10 filhos, praticamente sozinha.
É uma guerreira. Dedico também à minha esposa,
Maria Cleuza e minhas filhas, Nádia e Laura, as três
maiores e melhores razões para eu celebrar, a cada
dia, este grande espetáculo que é a vida.
Certa feita, convidada a fazer meu primeiro prefácio no
livro do querido Luiz Alves, disse que “Pre” poderia ser, mas
“Fácio”?!...Não!
Pois bem, honrada com mais um para o amado ex-aluno (só
para tentar me incluir no fundinho do coração do autor),
Amigo querido, colega da Academia de Ciências e Letras de
Sabará, membro brilhante do nosso Sarau de Sabará, poeta,
cantador, contador de causos, Silas da Fonseca, digo que
aprendi... ficou mais fácil! Silas escreve de uma forma que nos
conquista pela doçura, pela linguagem simples, pelo humor
inteligente e sutil, volta e meia sarcástico...E, com imenso
amor à sua gente, à nossa gente! Neste livro se esmerou! Claro
que sim! A musa inspiradora é a sua mãe, D. Maria do Pompéu,
D. Maria do Moinho D’água, D. Maria Fonseca, nossa D.
Maria! Serenidade, poderia ser seu nome. Guerreira, também!
A Maria menina nasceu numa fazenda e por lá aprendeu mil
ofícios... cuidou dos irmãos... ia para o eito com a família,
fazia de um tudo, apesar de miudinha! Sua força era de dentro,
da alma! Assim conquistou seu Ismael. Casando-se, teve
filhos, dentre eles, o Silas....
Já fiz “spoiler” demais, não?! Recomendo, então, que saboreiem
cada página deste livro e divirtam-se muito com as
peripécias dos Fonseca do Pompéu e, principalmente, com a
história da pequenina dama de olhos de céu, D. Maria!
MÔNICA GRANJA
PARTE I
DONA MARIA, A MARRECADA E O ORA PRO NOBIS
DONA MARIA, A MARRECADA E O ORA PRO NOBIS
17 Introdução
28 A trajetória do ora pro nobis
17 Tudo começou quando, não se sabe como, veio bater à porta
de D. Maria Torres, minha mãe, um argentino de nome Hernandez,
com sua mulher e filho. Vinham não me lembro de
onde e diziam estar com muita fome, pedindo a D. Maria
que lhes preparasse alguma coisa para comer. Vinte minutos
depois a pequena família estava à mesa se regalando. De vez
em quando, o argentino parava por um instante e dizia:
− Hummmmm, delicioso!
Terminado o almoço, quiseram saber se havia sobremesa.
Havia. Foi um pote e meio de doce. Tomaram café, deitaram
no banco e dormiram um bom sono. O privilégio do sofá
coube ao “hijo de nombre “Pablito”. Quando acordaram,
disseram a D. Maria que sonharam com a comida dela e que
ela era uma santa e coisa e tal. A cozinheira sentiu-se tão
agradecida que resolveu não cobrar os seus serviços o que
lhe valeu outra enxurrada de elogios e a promessa de breve
retorno. Começaram a frequentar a casa uma vez por mês.
Depois, quinzenalmente e, por fim, toda semana. Sempre traziam
algo. Um presente, um tipo de carne, coisas desse tipo,
a título de compensação, já que minha mãe insistia em não
cobrar pela estadia. Hernandez dizia ter uma firma em Belo
Horizonte e que trabalhava com envelhecimento de móveis
para decoração de ambientes. Certo dia, enquanto palitava os
dentes, Hernandez teve uma ideia que considerou brilhante!
Chamou minha mãe e foi logo dizendo:
− D. Maria, tive uma ideia, assim, fantástica! Se a senhora
permitir, vamos criar marrecos aqui no sítio.
Eu trago os marrequinhos, uma ou duas dúzias, a gente
solta eles pelo sítio. Com tanto terreno e tanta água não
vai precisar nem de ração. Quando eles estiverem no ponto
para a panela, a gente almoça eles e traz outra turminha.
Assim, nóis num fica sem jeito de ficar comendo de graça
aqui todo fim de semana.
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D. Maria, verdade seja dita, não achou muita graça na proposta,
mas vai discutir com argentino... acabou aceitando.
Daí a uma semana, chegou Hernandez em uma caminhonete
totalmente abarrotada de caixas de papelão cheias de “marrequinhos”.
D. Maria assustou-se:
− Hernandez de Deus, ocê tá doido?
− Sabe o que é, D. Maria? É que cheguei no mercado e por
acaso os marrecos estavam em oferta, aí eu aproveitei e
comprei logo mil e quinhentos bichinhos. Mas a senhora só
vai entrar com o terreno. O resto é por minha conta.
Dentro de quatro meses teremos 1.500 bichos pra vender
para restaurantes de Belo Horizonte. Vamos ganhar um
bom dinheiro, a senhora vai ver.
Minha mãe não quis tomar sozinha a decisão de aceitar aquele
desatino e reuniu os filhos. Um dizia sim, outro dizia não,
outro não queria se meter nem com sim, nem com não. No
fim, improvisou-se um cercado no fundo do quintal, desviou-
-se para ele uma bica d’água e descarregaram-se os marrecos.
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Toda semana Hernandez aparecia com a mulher e o filho,
trazendo ração pros marrecos. Muitas pessoas no bairro ficaram
sabendo da empreitada e para lá se dirigiam só para ver
a marrecada. Certa vez, Hernandez disse ter contado o lote
e que só contou mil quatrocentos e sessenta e cinco. Com
certeza, algum bicho do mato tinha achado graça na criação
e dela se servia para o autossustento. Montou-se, então, uma
barraca próxima do local e cada noite algum dos filhos montava
guarda. Dormir ali era impossível. Bastava o barulho
de uma folha caindo no chão pra bicharada aprontar uma
algazarra de incomodar falecido. E assim corriam-se os dias
e, de maneira mais lenta, aumentava o peso dos marrecos.
Quando os bichos atingiram mais ou menos um quilo de penas
e carne, aliás, mais pena do que carne, diga-se de passagem,
o Hernandez não apareceu no fim de semana. Pensamos ter
acontecido algum imprevisto. Fomos à cidade, compramos,
fiado, metade da quantidade de ração que Hernandez trazia.
Quando ele chegasse, com certeza, acertaria as contas com
o comerciante. Os marrecos não concordaram muito com a
quantidade de ração.
Em poucos minutos deram conta dela e arrumaram uma
zueira de fazer doer ouvido de surdo. Ademar ouvira falar
que os bichos gostavam muito de “pau-de-bananeira” bem
picadinho. Fomos à luta. Picamos dois sacos de pau-de-bananeira
e jogamos na arena. Cinco minutos e... cadê comida? Os
bichos tanto comiam quanto cagavam e não havia comida que
chegasse. No outro fim de semana, Hernandez também não
apareceu. Foi batendo o desespero. Em nós e nos marrecos. O
telefone de Hernandez não atendia. A gente não tinha o endereço
dele, o dono da casa de ração já não queria vender fiado...
uma tragédia! Mas fosse explicar essas razões pros marrecos.
Eles nun tavam nem aí! Se alguém aproximava do cercado eles
pensavam estar vindo comida e já começavam entre eles uma
guerra física para garantir os primeiros lugares, aos gritos de
“arrrreda, arrrreda arrrreda...”, uma loucura! No sítio, não
ficou uma bananeira de pé. E nada de Hernandez.
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Certo dia, quando o pior já estava por acontecer, ao ler um
jornal em meu serviço na Prefeitura, dei com um classificado
anunciando a venda da firma de Hernandez. Tava lá o
endereço do gringo. Pedi licença pro chefe, corri até em casa
com o jornal na mão, chamei Ademar e nos mandamos pra
Belo Horizonte, no encalço do argentino. Lá chegando,fomos
atendidos pelo dito cujo, que custamos a reconhecer. Magro,
barbudo, cabisbaixo, Hernandez nos convidou a entrar.
Sentamos, e ele mesmo puxou a conversa.
− Eu acho que já sei porque vieram.
Eu queria ter ido lá no sítio, mas fiquei com vergonha de
aparecer para D. Maria. Dois funcionários me “levaram no
pau” e a minha firma foi fechada. Perdi tudo que tinha.
Até o carro perdi.
Sei que vocês não têm culpa, mas o que posso fazer?
Os marrecos já devem estar com um peso que dê pra vender.
Vocês podem fazer o que quiserem. Eu não quero nada
daquilo que investi lá. Enfiem os marrecos onde acharem
melhor, eu não tenho condições de ajudar mais.
Saímos de lá pior do que chegamos. Cheguei a comentar com
Ademar:
− Pra enfiar os marrecos onde a gente quiser, Hernandez
tinha de estar presente.
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Agora era chegar em casa, dar a má notícia e ver o que fazer
com as contas de ração a pagar e o mais difícil: ver o que fazer
com mais de mil marrecos magros e famintos. Em razão da
falta de uma alimentação sadia, os bichos estavam que era
pura pena e osso e não serviam nem para ensopado. Demos
a notícia pra minha mãe. Ela abaixou a cabeça e perguntou
pra si mesma:
− E agora?!
Nos dias que se seguiram, cortamos o resto das bananeiras de
pé, encomendamos restos de verduras em todos os supermercados
da cidade e fomos enganando a fome dos marrecos que,
a essa altura da situação, já eram moeda corrente na família.
Minha mãe dizia:
− Ademar, pega três marrecos pra pagar a passagem e vai na
rua buscar as verduras.
− Ernane, pergunta Sô Zé Raimundo quantos
marrecos ele quer por aquelas bananeiras dele.
r$1,00 cada
22
Além desses procedimentos estratégicos, eu escrevi em cartolina
e afixei no portão do sítio,um cartaz com os seguintes
dizeres: “Vendem-se marrecos, a prazo. Um real cada. Quem
comprar um ganha outro!”
Um grande e providencial comprador foi o engenheiro agrônomo
da Prefeitura, que adquiriu 150 marrecos a prazo, aliás,
prazo esse que se estende até a presente data, uma vez que o
mesmo sumiu sem assumir a dívida. Em todo caso eram 150
bocas, ou melhor dizendo, 150 bicos a menos para alimentar.
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Minha mãe nunca foi tão generosa. Ela ganhava um “bom
dia” e dava logo dois marrecos pro simpático interlocutor. Se
alguém lhe tomava a bênção, isso valia três marrecos. Comadre
que lhe fosse fazer uma visita, nunca saía sem um par de
marrecos em cada uma das mãos... E assim chegamos a 700
marrecos que ainda eram difíceis de manter, sem falar nas
contas a pagar pro moço da ração. Foi quando quis a providência
divina que minha mãe fosse convidada para montar uma
barraca de tira-gosto, no Iº Festival da Cachaça de Sabará.
A princípio, desorientada que estava, quase disse não. Mas
lembrou-se da marrecada, do ora-pro-nóbis verde e farto por
sobre os muros do Pompéu e exclamou:
− ORA-PRO-NOBIS COM MARRECO!!!
Na sexta-feira, primeiro dia do Festival, nada sobrou dos
trinta e cinco marrecos preparados com ora-pro-nóbis. No
sábado e domingo, foram mais de quatrocentos marrecos.
E só não se vendeu mais por falta de tempo, pois enquanto
houve Festival, a barraca de D. Maria esteve lotada. Pagas
todas as despesas e limpo o honrado nome da família, o que
restou de marrecos no quintal, pouco mais de cem, foram
alimentados com ração de primeira para aguardar o festival
de julho, para o qual, o Prefeito, pessoalmente, disse a minha
mãe que não poderia faltar o ora-pro-nóbis com marreco. No
festival de julho, minha mãe voltou à praça Melo Vianna e
repetiu o mesmo sucesso. Dessa vez, antes do fim do festival,
já teve que apelar pros frangos, pois como disse D. Maria:
– Os marrecos não deram nem pra meia missa.
A partir de então, o ora-pro-nóbis passou a ser prato obrigatório
em todas as festividades. A princípio, os donos de restaurantes
da cidade pensaram tratar-se apenas de um modismo,
coisa passageira. Em pouco tempo, mudaram de ideia e trataram
de incluir o ora-pro-nóbis no seu cardápio. Nos fins
de semana, era comum que famílias inteiras se dirigissem ao
Pompéu procurando minha mãe e pedindo que ela fizesse o
ora-pro-nóbis com marreco.
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Assim a varanda da casa virou restaurante nos sábados e
domingos. Daí, a instalar um restaurante de verdade, “foi um
pulo”. Vendo todo aquele movimento, eu propus à minha mãe
e ao meu irmão, que se encontrava desempregado, aproveitarem
um cômodo perto do moinho e fazerem o comércio.
Sugeri que o nome poderia ser Moinho D´Água, pois o moinho
ali existente é o único da região, deve ter mais de um século de
existência e ainda funcionava normalmente, podendo moer
o milho e fornecer o fubá para confecção do angu a ser consumido
com ora-pro-nóbis. Dito e feito.
Em dois anos o restaurante já atraia um público de mais de
300 pessoas aos sábados e domingos, (hoje já são mais 1.000).
Já não havia marrecos, mas todo mundo queria conhecer a
“D. Maria dos marrecos”. Depois, veio mais um restaurante
em Pompéu. Tudo em nome do ora-pro-nóbis. E a fama foi
assim, crescendo, até que em l997, o Prefeito, Wander Borges,
compreendeu a importância dessa folhinha suculenta e gostosa,
e convidou a comunidade do Pompéu a ser parceira de
sua administração na criação do Festival do Ora-pro-nóbis.
A comunidade topou na hora. Tava feito!
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O Festival se realizou com resultados muito além do esperado
e, a cada ano, a festa atrai mais gente. Gente daqui, gente
dali, gente de onde a gente nem pensa. O ora-pro-nóbis venceu!
Hernandez sumiu. Talvez nem saiba que seus marrecos
e nossas mirrecas, tenham gerado uma das mais lindas festas
do calendário da cidade.
Mas de tudo isso, o mais importante é perceber que os marrecos
foram tão somente coadjuvantes, personagens secundários,
dessa história. O grande protagonista é sem dúvida
o ora-pro-nóbis que continua desfilando o seu sucesso nos
palcos da gastronomia mineira.
A TRAJETÓRIA DO ORA PRO NOBIS
Conta a lenda, que, uma planta de caule espinhoso nascida
generosamente por sobre os muros de pedras que delimitavam
os terrenos das fazendas ou contornavam as terras de
propriedade de igrejas, tinham suas folhas verdes e suculentas
muito usadas pelos negros escravizados vindos da África em
sua alimentação. Ocorria que, sendo os terrenos das fazendas
muito policiados pelos senhores e seus jagunços, não ofereciam
aos negros qualquer chance de acesso a tal planta, que era
cultivada para formar uma “cerca viva”, tornando os muros
intransponíveis. Os muros que circundavam as igrejas também
eram protegidos pelo olhar vigilante do padre que mantinha
o cultivo da planta por sobre eles para coibir a entrada
de animais atraídos pelas hortaliças e frutas do seu pomar.
Como então agiam os negros para ter acesso à gostosa e suculenta
folha daquela planta? Bem, como os fazendeiros mantinham
rigorosa vigilância em suas propriedades, 24 horas por
dia, o jeito era surrupiar a “carne verde” dos muros da igreja,
uma vez que o padre, pelo menos nos horários anunciados
para a celebração da Santa Missa, não tinha como inibir o
acesso dos negros. Combinava-se então entre os negros que,
à exata hora em que o padre se ocupava em pedir aos céus
o “ora-pro-nóbis” (rogai por nós, em latim), eles iriam até os
muros, munidos de cabaças (utensílios fabricados a partir de
um tipo de abóbora seca) e recolheriam as folhas necessárias
à refeição familiar.
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Uma vez pronto, o prato era servido em cabaças menores ou
em “cuités” utensílios obtidos a partir de uma espécie de coco,
tipo coco da Bahia, porém de casca mais sólida e sem polpa.
Assim, o momento de se recolher as folhas da leguminosa
era conhecido entre os negros como “a hora do ora-pro-nóbis”.
Daí a planta absorveu o nome que ainda hoje se lhe dá em
Minas Gerais. Sabará foi a primeira cidade a “socializar” o
ora-pro- nóbis. Em 1984, convidada pelo prefeito da cidade a
participar como salgadeira no Festival da Cachaça da Cidade,
D. Maria Torres, moradora do bairro Pompéu, levou para a
praça o inusitado prato “ora-pro-nóbis com marreco”.
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A partir de então, o ora-pro-nóbis tornou-se um dos pratos
mais procurados na culinária sabarense, sendo servido nos
restaurantes e hotéis da cidade. A demanda foi tanta que, há 15
anos, foi criado o Festival do ora-pro-nóbis de Sabará. A festa
sempre aconteceu em Pompéu, um bairro de rara beleza paisagística
e que, apesar de contar com uma população de pouco
mais de 800 habitantes, tem mais de 300 anos de existência,
abrigando inclusive, uma Capela cuja construção se deu entre
os anos de 1726 e 1730 e que ostenta uma talha representativa
da primeira e segunda fases do Barroco em Minas.
PARTE II
DONA MARIA DO POMPÉU:
SUA VIDA E SUAS HISTÓRIAS
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31
DONA MARIA: SUA VIDA E SUAS HISTÓRIAS
33 Dona Maria do Pompéu
38 A vida na fazenda
41 Juventude e casamento de Maria
47 Enfim um sítio e a mudança
49 Assalto ou golpe?
51 Perdas e lutas
55 Vida que segue
33 Maria Torres Lima, nasceu a 12 de setembro do ano de 1930,
na Fazenda Patrocínio, a cerca de 20 quilômetros do centro
da cidade de Taquaraçu de Minas, no estado de Minas Gerais,
filha do casal José Soares Torres e Joselina de Araújo Lima.
Antes dela, nascera Vilson Soares Torres, seu irmão, que faleceria
aos três anos de idade, deixando Maria como a filha mais
velha dos 16 irmãos que lhe sucederam. A Fazenda Patrocínio,
era de seu avô, José Vital Torres, tendo sido herdada pelo pai.
Dona Maria do Pompéu, como é atualmente conhecida, lembra
que o nome “Fazenda”, hoje, nos faz pensar em ricas e
pomposas propriedades. No tempo de sua infância, nem todas
eram assim. Aos oito anos de idade, já ficava responsável pela
casa e por tomar contas das crianças mais novas, enquanto
seu pai ia pra lida na roça, e sua mãe saia para trabalhar em
outras propriedades mais prósperas no fabrico de doces, queijos
e outros serviços. A vida era difícil. Excetuando-se o sal
e o querosene, tudo que se consumia na fazenda era produzido
lá. Era comum a mãe trocar seu trabalho por esses dois
produtos não produzidos na fazenda. Com 90 anos de idade,
Dona Maria lembra ainda, com espantosa lucidez, de fatos
que marcaram a sua infância. Conta que três acontecimentos
foram muito marcantes em sua infância: O primeiro, que ela
diz lembrar “como se fosse hoje”, aconteceu quando tinha
dois anos. Num dia em que estava chorando, não sabe por
qual motivo, viu seu pai caminhar em sua direção, pegá-la
no colo e dizer:
− Vem aqui, minha fia, seu irmão morreu. Vamo lá pra sala
pro cê vê seu irmão morto.
Ela não recorda muito bem de sua reação, mas nunca esqueceu
aquele cenário triste. Outra lembrança que ela guarda
com muita ternura é de que ela adorava o leite de cabra que
seu pai, às vezes, lhe trazia quando ia numa fazenda vizinha
para fazer algum serviço. Daí, seu pai acabou por comprar
uma cabra e lhe dar de presente, na qual ela pôs o nome de
“Roseira”. Ela teria então dois anos e meio. Lembra que toda
vez que ela chorava a cabra vinha do terreiro, subia no fogão
a lenha e lá ficava à espera que fosse ordenhada por sua mãe
e o leite entregue a ela. Logo que ela bebia o leite, “Roseira”
descia do fogão e voltava aos seus filhotes.
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O terceiro fato aconteceu quando ela iria fazer dez anos. Seu
avô, que ela chamava de Vovô Juca, prometera que tão logo
fosse à cidade iria lhe trazer de presente uma “travessinha”,
nome que se dava à uma espécie de pente ligeiramente curvo
para se prender os cabelos. Era a moda da época e ela pôs-se
ansiosa para que seu avô tivesse que ir à cidade para trazer-lhe
o desejado mimo. Ocorreu que, para sua decepção, vovô Juca
adoeceu e veio a falecer antes de ir à cidade. Ela ficou muito
“chorosa” e falava pra todos de sua falta de sorte:
− Vovô prometeu me dá uma travessinha,
mas demorô tanto ir na cidade, que morreu antes e quem
ficou sem a travessinha fui eu.
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Passado algum tempo da morte do avô, numa tardezinha
quase noite, seus pais saíram para pescar com os meninos num
ribeirão que passava seus peixes a cem metros da fazenda. Ela
que não achava muita graça em pescaria, ficou em casa com
a irmãzinha menor que dormia. Ao escutar um barulho na
cozinha, achou que fossem os cães procurando alguma coisa
pra comer. Dirigiu-se para lá e qual não foi a sua surpresa
quando ela chegou na cozinha e lá estava o seu avô, com a
mesma roupa vermelha com que fora enterrado, sentado no
banquinho sobre o fogão a lenha, onde ele sempre se sentava
para jantar. Ela ficou muda por alguns instantes, depois saiu
gritando socorro casa afora e ganhou, sempre gritando por
socorro, o caminho que levava ao ribeirão, onde seus pais
pescavam com seus irmãos. Ao ouvir a gritaria da menina,
seus pais vieram correndo ao seu encontro, imaginando que
alguma desgraça houvera acontecido. Maria, no entanto, não
conseguia contar direito, tal o seu estado de choque. Então,
seu pai a balançou pelos ombros e disse:
− Calma, minha fia, calma! Sussega o coração, rispira e fala
o que tá acontecendo. É com Terezinha?
Entre soluços ela conseguiu falar:
− Não, pai, é vô Juca, ele tá sentado no banquinho do fugão.
Sô Neném Vital, que não era de acreditar nessas coisas, se
tranquilizou e tentou persuadir a menina:
− Ora Maria, isso é imaginação sua. Quem já morreu, morreu,
num volta mais.
− Mais eu vi pai. Iscutei um baruio na cuzinha e quando fui
ver o que era, era ele.
− Não pricisa de ter medo. Vamo lá e ocê vai ver que num
tem ninguém lá. É tudo imaginação.
Ela agarrou-se a sua mãe, enquanto o pai foi na frente. Entrou
em casa e, daí a pouco voltou trazendo uma lamparina acesa
na mão e dizendo:
− Pode vim gente, num tem nada aqui não.
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Depois que seus irmãos também entraram e confirmaram
que nada de anormal havia na cozinha, Maria entrou ainda
trêmula e soluçando, enquanto jurava ter visto o avô sentado
no banquinho do fogão. Já era noite, todos comeram um
“mixidão’ e foram dormir.
No outro dia bem cedo, como de costume, seu pai e sua mãe
saíram para trabalhar, deixando-a ainda na cama, depois de
orientá-la sobre como cuidar da casa e dos irmãos. Pouco
depois, Maria levantou-se e foi para a cozinha dar início à
sua tarefa. Quando começou a limpar o fogão, outro susto:
A “travessinha” prometida pelo seu avô estava debaixo do
banquinho, onde ela o vira sentado.
Largou tudo, entrou para o quarto onde estavam seus irmãos,
trancou a porta e só abriu novamente depois que sua mãe
voltou do trabalho. Não quis ficar com a travessinha. Os
irmãos achavam que o pai, cansado das lamentações de Maria,
lhe comprara a travessinha e colocara lá no fogão. Isso não foi
confirmado. A mãe de Maria lançou mão do objeto e o colocou
dentro do oratório que abrigava a Santíssima Trindade.
Maria assegura que, quando casou e se mudou para sua casa,
a travessinha continuava no oratório.
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A VIDA NA FAZENDA
A vida na fazenda não era nada fácil. Levantava-se muito
cedo para o café e logo depois, ordenhavam-se as vacas. Em
seguida, quem era capaz de segurar uma enxada já ia para o
eito. Maria costumava ficar com a mãe para ajudar a olhar
os filhos menores e a fazer o almoço que ela própria levava
em um balaio para quem tava no eito. Depois era tratar dos
animais e ajudar no fabrico de quitandas, queijo, manteiga,
lavar vasilhames, arrumar a casa e varrer terreiro, quando
algum irmão pedia, Maria trocava de serviço. Ia pro eito e
deixava a irmã com a mãe. Nessa espécie de rodízio, as mulheres
sabiam fazer de tudo. Costurar, passar, fazer quitandas,
capinar, bater pasto (roçar) , guiar bois de carro para arar a
terra, moer cana, operar o moinho d’água, etc.
Em tempos de moagem de cana, não se ia para o eito. Toda
a família se mobilizava no serviço. O engenho era movido
por duas juntas de bois. Eram dois dias de serviço, de madrugada
até à noite. Tudo era muito bem engendrado. O caldo
da cana descia do engenho por uma espécie de canaleta feita
com madeira de coqueiro e ia até a casa das fornalhas um
nível abaixo, onde caia em dois grandes tachos instalados em
uma das duas fornalhas, ali era fervido e transformado em
rapaduras e melado, numa quantidade que dava para o ano
inteiro. A produção era depositada no sótão da cozinha que
era muito extensa e dividida em dois compartimentos. No
segundo, por sobre o fogão, guardavam-se as carnes de porco
ou de boi, abatidos do rebanho da família e conservadas em
gordura para consumo na alimentação.
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Um pouco abaixo do engenho, ficava o moinho d’água que
transformava o milho em fubá, canjicão ou canjiquinha, conforme
a demanda da fazenda para o trato de animais e da culinária,
uma vez que, em nenhuma refeição podia faltar o angu.
Outra coisa bastante peculiar eram os “banhos”. Esquentava se
a água em grandes tachos, colocava-se numa bacia e temperava
com água fria. Era comum que até três irmãos se banhassem
em apenas uma água. Primeiro lavava-se o rosto, enxugava-se
e depois os pés. E o banho tava tomado. Enxugavam-se os pés
e, como ninguém tinha calçado, ia-se na ponta dos calcanhares
até a cama.
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Aos domingos, os homens banhavam-se no ribeirão após os
serviços essenciais que mesmo aos domingos não podiam ser
interrompidos. Ordenhar as vacas, tratar dos animais, etc.
Esses serviços, geralmente, eram feitos em alternância entre
os irmãos. A cada domingo, dois ficavam responsáveis pela
execução dos mesmos. Cada irmão tinha o seu cachorro e o
seu cavalo, eram tratados com muito carinho.
Nas noites de sábado, era comum aparecerem alguns visitantes
para conversar, jogar baralho, beber cachaça e tratarem
pescarias ou caçadas para o dia seguinte.
Quando não havia este tipo de programa, apareciam da mesma
forma e brincavam de tudo: cantiga de roda, quadrilha, jogo
de peteca, amarelinha, etc. As mulheres da casa gostavam mais
dessas atividades, porque podiam participar. Eram sempre as
mesmas pessoas: primos, sobrinhos e trabalhadores das fazendas
mais próximas.
Na despensa, pequeno quarto contiguo à cozinha, armazenavam-se
os grãos prontos para o consumo (já socados em
pilão e peneirados). Nas prateleiras superiores guardavam-se
os doces. As quitandas, biscoito de polvilho, roscas, bolos,
brevidades, etc., eram feitos na manhã de domingo em quantidade
para consumo durante a semana. Tudo era produzido na
fazenda, excetuando-se o sal e a querosene, que eram comprados
na cidade com o dinheiro da venda de queijos e serviços.
Era também com esse dinheiro, que Neném Vital comprava
cortes de tecidos para as costureiras da casa fazerem as roupas
de todos membros da família. Também não faltavam as lembrancinhas
para cada um dos filhos mais novos quando ia à
cidade, o que acontecia uma vez por mês. Quando ele chegava,
as crianças já corriam curiosas a perguntarem:
− Papai, o que o senhor trouxe pra mim?
− Nada, ora !
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Mas todos sabiam que, com certeza, ele trouxera alguma coisa.
JUVENTUDE E CASAMENTO DE MARIA
Até completar dezoito anos, a vida de Maria seguiu seu curso,
alinhada com a rotina da fazenda. Agora já era cozinheira de
“mão cheia”, sabia costurar muito bem, guiava bois para arar a
terra, capinava, roçava, fazia quitandas, enfim, era uma moça
prendada e pronta para iniciar um namoro sério e pensar em
casamento. Mas, até então, nenhum dos rapazes que frequentavam
a fazenda chamava-lhe a atenção para tal propósito.
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Aconteceu que houve um casamento nas redondezas. Toda a
família foi convidada, mas como Dona Joselina não passava
muito bem, somente seu pai foi à tal festa, numa fazenda que
ficava a cerca de dez quilômetros. Não ficou por lá muito
tempo, quando chegou, veio trazendo um amigo, Ismael,
que convidara para pernoitar em sua casa, para não ter que
cavalgar sozinho até a sua propriedade que ainda estava bem
longe. O moço aceitou o convite e ficou por lá. Maria já o
conhecia de vista, por causa das caçadas que fazia com seu
pai, embora nunca tivesse conversado com ele. Quando acordaram,
no domingo, Maria pôs a mesa de café, enquanto os
dois conversavam sobre a festa. Quando se sentaram à mesa,
Ismael convidou Maria para que sentasse também. Ela olhou
silenciosa para o pai esperando seu consentimento. Neném
Vital, fez o gosto do amigo e disse:
− Senta Maria!
Ela passou o tempo todo calada, respondendo a uma pergunta
ou outra sobre o fabrico das quitandas, que ele achara por
demais deliciosas. Ao saber ter sido a própria a preparar tudo
aquilo, se desmanchou em elogios e, antes de ir embora, já de
tardezinha, perguntou a Maria se podia pedi-la ao seu pai em
namoro. Maria ficou um pouco com vontade, um pouco com
medo da reação do pai, mas concordou. Fato foi que o pai
dela não se opôs e ao se despedir, Ismael já combinara votar
na terça-feira para dar curso ao namoro.
Ismael era viúvo. Tinha, então, 40 anos. Casara-se com uma
jovem de nome Leni Viana, com que tivera três filhos: Válter,
Vanda e Venício, que contavam, à época, cinco, quatro
e três anos, respectivamente. Morava numa casa próxima à
fazenda Bela Vista, que era de seu pai. As crianças ficavam
mais na fazenda, mimadas pelas tias e tios. De tudo isso ele
deu ciência à Maria e aos seus pais. Diante da preocupação de
dona Zelina com uma possível rejeição a uma madrasta, Ismael
explicou que não seria problema, pois construiria uma nova
casa, mais distante da fazenda e as crianças não morariam
com eles, pois suas irmãs jamais deixariam que os meninos
se separassem delas, visto que cuidavam dos mesmos desde a
morte da sua esposa.
42
Profissionalmente, além de ajudar os irmãos e o pai na administração
da fazenda, Ismael era “pau pra toda obra”. Pedreiro,
carpinteiro, boiadeiro e ainda aplicava injeção nos doentes
da região que ficava a mais de trinta quilômetros das cidades
de Jaboticatubas ou de Taquaraçu. Seu Tunico, pai de Ismael,
gabava-se de que nenhum serviço da fazenda demandava chamar
gente de fora pra dar conserto. Ismael resolvia tudo.
O namoro durou um ano ao fim do qual Ismael pediu a
mão de Maria em casamento. No dia 29 de setembro de
1949, Ismael e Maria casavam numa capelinha que ficava na
pequena comunidade de “Felipe” a cerca de 25 quilômetros
da fazenda. Maria fora vestida de noiva, cavalgando o mais
belo cavalo da família. Por azar, um dia antes do casamento,
houvera falecido um tio de Neném Vital, pai de Maria que,
em vista disso, cancelou o baile já marcado para acontecer a
noite inteira com sanfoneiros e violeiros dos arredores. Mas
o jantar e a mesa de doce foram caprichosamente preparados
por Dona Zelina e suas filhas.
Uma enorme turma de cavaleiros e amazonas acorreram à
fazenda dos Torres para celebrar o acontecimento e se fartaram
com as iguarias de Dona Zelina. Naquele tempo, finda
a festa do casamento, era normal o casal permanecer na casa
do pai da noiva por mais alguns dias. Assim, o casal só foi pra
casa construída por Ismael para abrigar sua nova família, no
sábado seguinte ao sábado do casamento.
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Maria estava feliz. Gostava muito do marido e a casa construída
por Ismael era muito grande, arejada, com um grande
pé de amora no terreiro da sala, debaixo do qual havia um
banco, onde, às vezes, sentavam para conversar sobra o cotidiano.
A essa casa, Ismael deu o nome de “Fazenda das Minhocas”.
Mesmo trabalhando na fazenda do pai, Ismael tinha seus
negócios particulares. Vendia e comprava gado, fazia serviços
pra terceiros e tinha uma vida que se podia chamar de
próspera. Um fato interessante, é que os filhos de Ismael, do
primeiro casamento, foram visitar o pai na casa nova.
Maria, que já tinha todo costume de lidar com crianças, brincou
com elas todas as brincadeiras que sabia. Nesse mesmo
dia já começaram a negociar com o pai a vinda deles pra casa
nova, como Maria não se opunha a isso, também gostara dos
garotos, em poucos dias já estavam morando com o casal.
Maria se engravidara logo e um ano depois, em 1950, nascia o
primeiro filho do casal, ao qual deram o nome de Camilo. O
bebê, porém, nascera com problemas de saúde e veio a falecer
cinco dias após o nascimento, para o desconsolo de todos.
Um ano depois, em 17 de julho de 1951, nascia o segundo filho,
Silas. Esse sim, com saúde e robustez, restaurando a alegria na
fazenda. Depois desse, vieram Joel e Maria Flávia. Os serviços
eram praticamente os mesmos de sua casa, só que agora eram
apenas duas pessoas para cuidar de tudo, Maria nunca deixava
a desejar. Levava um grande balaio para a roça, colocava os
meninos dentro, colocava o balaio debaixo de uma árvore e
ajudava Ismael no eito.
Nesse tempo, Ismael começou a se preocupar com seus três
primeiros filhos. Eles já alcançavam a idade escolar e lá na roça
não havia escola. Somente em Jaboticatubas, a mais de 20 quilômetros
e tinha-se que ir a cavalo. Não havia estradas. Maria
procurava ensinar o pouco que houvera aprendido com uma
tia que improvisara uma escolinha para os sobrinhos numa
estrebaria de cavalos. Mas era muito pouco. Ismael não queria
aquela vida para os seus filhos. Além disso, a terra já andava
bastante empobrecida, os pastos cada vez piores... Conversou
com Maria e falou que iria visitar algumas cidades procurando
um pequeno sítio que lhe agradasse. Daí, venderia a fazenda e
mudava-se para algum lugar que desse aos meninos condições
de frequentar uma escola.
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ISMAEL, MARIA E OS FILHOS: DA ESQUERDA PARA A DIREITA,
EM PÉ: SILAS, JOEL, ADEMAR, LEONÍDIA E MARIA FLÁVIA. NO
COLO DE MARIA, ERNANE. – FOTO DE 1960
FOTO ATUAL DA FAZENDA PATROCÍNIO EM TAQUARAÇU DE MINAS-MG,
ONDE NASCEU DONA MARIA DO POMPÉU A 12 DE SETEMBRO DE 1930.
UM DOS IRMÃOS DE MARIA AINDA RESIDE NA FAZENDA.
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ENFIM UM SÍTIO E A MUDANÇA
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Ismael andou por várias cidades circunvizinhas. Foi a Caeté,
Taquaraçu, Jaboticatubas, Lagoa Santa, Santa Luzia, mas não
achara nada do seu agrado. Quando ficou sabendo de uma
pequena chácara no arraial de Pompéu, a sete quilômetros
do centro de Sabará, Ismael gostou do sítio. Era trinta vezes
menor que a fazenda. Cerca de 50 mil metros quadrados
,porém era muito bem cuidado! Mais de 100 pés de laranjas
de várias espécies, mais de 30 pés de caqui, 10 parreiras de
uvas, mangueiras, bananeiras, um moinho d’água e o principal:
muita água. Parte vinha de uma serra conhecida como Pedra
Rachada. Essa era a que movia o moinho. Havia, também,
uma nascente no próprio terreno. Além de tudo isso, funcionava
no lugar, uma escola rural que ensinava até o terceiro
ano primário. Ismael não teve dúvida. Procurou o então dono
do sítio, Dr. Willians, um dos diretores da Cia. Siderúrgica
Belgo Mineira, obeso e de rosadas bochechas, para iniciar as
negociações. Depois de idas e vindas às duas propriedades,
entraram num acordo. Dr. Willians ficaria com a fazenda.
Passaria a chácara para Ismael e daria de volta uma boa soma
em dinheiro. O plano de Ismael era, com esse dinheiro, construir
uma pequena vila na chácara e passar a viver do aluguel
dessas moradias. Maria era informada de tudo, mas só veio
a conhecer a chácara no dia que Ismael a trouxe para assinar
os papéis relativos à negociação.
A partir desse dia, Ismael contratou um caseiro para tomar
conta da chácara, enquanto ele iniciava o processo de
mudança. Primeiro vendeu sua criação de porcos, cerca de 300
cabeças e comprou outras 300 em Sabará e colocou no sítio
aos cuidados do caseiro. Vendeu também o pouco gado que
tinha e ficou esperando que Dr. Willians lhe enviasse o caminhão
para a mudança, conforme acordo. Uma semana depois,
em março de 1955, o caminhão chegara. Os móveis da fazenda
eram pouco. Camas, mesas e cadeiras, bancos, vasilhame de
cozinha e só. Maria aboletou na boleia do caminhão com os
três filhos nascidos na fazenda: Silas, Joel e Maria Flávia.
Ismael veio na carroceria, junto com os móveis. Na saída da
fazenda, quase chorou. Silas, que adorava pescar no ribeirão,
de quando em vez, perguntava pra ela na boleia do caminhão:
_ Mãe, é verdade que lá perto da casa nova tem um rio?
Maria o tranquilizava:
_ Sim meu fio, tem um rio mais bonito do que o da fazenda.
Chegando ao Pompéu, descarregaram-se os móveis e passaram
a viver na Chácara. Silas ficara apaixonado pelo rio ,mas era
muito profundo e só podia se beneficiar dele acompanhado
pelos pais.
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A pedido de Dr. Willians, Ismael lhe concedera 20 dias para o
pagamento da alta quantia que seria a contrapartida na troca
das propriedades.
ASSALTO OU GOLPE?
Passados os vinte dias dados por Ismael para que Dr. Willians
fizesse o pagamento, ele compareceu no sítio com uma pasta
repleta de dinheiro. Pediu que Ismael conferisse a quantia, o
que ele fez e comprovou que estava tudo certo. Após alguns
dias, Ismael argumentou com Maria que era melhor que eles
fossem à cidade e depositassem o dinheiro no banco, pois não
era aconselhável guardar tanto dinheiro em casa. No outro
dia foram à cidade, Ismael e Maria, levando Silas. Os dois
menores ficaram com a vizinha.
Aconteceu que, quando chegaram ao banco, não havia mais
tempo para a transação. O banco já houvera fechado.
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Antes de vir embora, Ismael resolveu passar na casa do Dr.
Willians para cumprimentá-lo. Na casa dele, tomaram um
suculento café. Enquanto esperavam a hora do trem, Ismael
contou como ia as coisas na chácara e de como se chateara ao
encontrar o banco fechado, razão pela qual não conseguira
depositar o dinheiro.
Dada a hora do trem Ismael despediu-se de Dr. Willians, indo
para a estação siderúrgica. Quando o trem chegou, subiram
algumas pessoas, entre elas, dois rapazes desconhecidos. Ismael
subiu na frente para marcar o lugar. Sentou-se num lugar
mais ou menos no meio do vagão e colocou a pasta com o
dinheiro no canto. Ao olhar para trás, um dos dois rapazes
houvera dado um empurrão em Maria, que quase caiu com
Silas. Ismael considerou que o empurrão foi voluntário.
Levantou-se e foi tirar satisfação com o rapaz. Na discussão, o
rapaz explicou que escorregara, que não fora intencional, que
ele estava muito nervoso, que ninguém tinha se machucado.
Ismael resolveu “deixar pra lá”. Voltou ao seu lugar. A pasta
de dinheiro tinha sido levada por alguém. Percorreu todos os
vagões, perguntou muita gente, mas ninguém tinha visto a
tal pasta. Maria argumentou com Ismael que os dois rapazes
desconhecidos que pegaram o trem na mesma estação não
estavam mais no trem. Nem o que a empurrou nem o outro.
Ismael confirmou isso e concluiu que de alguma forma os
dois sabiam que estava com o dinheiro e que o empurrão em
Maria foi proposital para tirá-lo de perto do dinheiro. Teriam
percebido isso na porta do banco ou Dr. Willians comentara
com alguém? Não sabia, nem importava saber agora.
Seus planos de construir uma vila na chácara foram por água
abaixo. A maioria das pessoas apostava ter sido o próprio
Dr. Willians que mandara seus capangas pegarem a mala.
Ismael ficava na dúvida. Não podia provar nada. Certo é,
que segundo Maria, Ismael nunca mais foi o mesmo homem.
Passara uns dias chorando escondido pelos cantos da casa,
ficara mais calado, perdera muito de sua vivacidade, já não
se interessava pelos serviços da chácara e assim viveu muito
tempo até que as coisas foram voltando ao normal.
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PERDAS E LUTAS
Tudo corria mais ou menos bem com a família, quando Maria
passou pela primeira grande perda de sua vida. Ismael adoeceu,
foi para o hospital, teve complicações respiratórias e veio
a falecer em agosto de 1982. Foram dias de muita tristeza na
chácara. Ismael tinha lá seus defeitos, mas era um homem
bom, honesto, solidário e, embora desse uma surra nesse ou
naquele filho quando achava necessário, jamais levantou a
mão pra Maria. Toda a comunidade também sentiu a perda.
51
Vida que se seguiu. Conhecida por seus dons culinários, alguns
anos depois da morte do esposo, Maria foi convidada a participar
de uma feira agrícola no centro da cidade. Ela teria uma
barraca, onde poderia comercializar os produtos da chácara
e seus quitutes. Com Ismael vivo, isso seria impossível. Ele
jamais consentiria, mas agora... Além disso ela gostava de
lidar com o povo. Aceitou e começou a participar da feira.
Além de ganhar um bom dinheiro, a feira era uma distração
muito importante pra Maria. Todo sábado o caminhão da Prefeitura
vinha pegar sua mercadoria às 05h00 e, geralmente,
só chegava em casa às 14h00.
Cada vez mais conhecida, já como “Dona Maria do Pompéu”,
Maria recebia em sua casa, durante a semana, muitas pessoas
que vinham por indicação de alguém, para que ela servisse
almoço, o que começou a configurar o seu sonho de um dia
ter um restaurante. Chegou a conversar com Ismael, mas ele
nem a deixara terminar.
− Não, mulher minha não vai trabalhar servindo os outros.
Nem! De jeito nenhum!
Em 1995, deu-se o fato da marrecada introduzida na chácara
por sugestão de um argentino, conforme narrado na abertura
deste livro e que veio transformar a vida de toda a família.
Em 2002, mais uma perda. Seu filho Ernane da Fonseca veio a
falecer aos 41 anos de idade, vítima de doenças causadas pelo
álcool 13 anos depois, em 2015, aos 42 anos de idade falecia
outro filho: Antônio José da Fonseca, também por doenças
advindas do vício do álcool.
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ISMAEL COM SEUS DOIS IRMÃOS, CELSO E DUARTE
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VIDA QUE SEGUE
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Dona Maria do Pompéu tem hoje 90 anos. Seu humor ainda
é o mesmo. Nos fins de semana, em seu restaurante, ocupa-se
de vender os doces que ela própria faz. Nos dias úteis continua
servindo comida para quem a procura em sua casa. Nesses
dias, gosta de contar a sua e outras histórias para clientes.
Geralmente a comida é servida no terreiro, numa mesa tosca,
sob um frondoso pé de jabuticaba. Quase todo visitante que
vem pela primeira vez, se encanta com sua simplicidade, com
seu riso fácil e, principalmente, com a história de “como tudo
aconteceu”. Seu restaurante, no bairro Pompéu, a 5 km do
centro histórico de Sabará, continua atraindo milhares de
clientes. Depois que ela montou o restaurante, outros três já se
instalaram no pequeno povoado, mas o seu continua sendo o
referencial gastronômico local. Não há luxo, só simplicidade!
Parece que ao seu redor tudo capta-lhe a graça e alegria de
viver e de servir. Às vezes, os filhos brincam com ela:
− Mamãe, a senhora anda muito sozinha.
Nós vamos arrumar um marido pra senhora.
− Uai, se for igual no meu sonho, eu quero.
− Pois a gente procura até achar.
Como é o marido que a senhora sonha?
− Bem novo, que de veia basta eu.
Que seja bem alegre e goste muito de viver e,
principalmente, que não tenha “pinto”.
PARTE III
APRESENTAÇÃO PELO AUTOR E SEUS CONTOS
III
APRESENTAÇÃO PELO AUTOR E SEUS CONTOS
61 Silas da Fonseca
62 Mamãe
63 Homenagem
67 A Gagueira de Joel
73 O trem
78 Primeiro de Abril
Meu nome é Silas da Fonseca, filho mais velho dessa mulher
única, guerreira, solidária, de uma fibra inenarrável que fez
dela um símbolo de trabalho e luta pela comunidade.
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Pode-se dizer, sem nenhum medo de erro, que Dona Maria fez
com que o Pompéu fosse conhecido e divulgado como centro
gastronômico em todo o estado de Minas Gerais e fora dele.
Co-criadora do Festival do ora-pro-nóbis de Sabará, hoje, aos
noventa anos de idade, Dona Maria encontra-se com plena
lucidez. Seu restaurante que, também, leva o seu nome ,“Dona
Maria do Pompéu,” já recebeu vários artistas de todas as partes
do país, políticos de todos os estados, secretários de estado,
bispos, procurador da república, turistas de várias nacionalidades...
todos eles ansiosos por bater um papo ou tirar uma
foto com a famosa “personagem”. Ela finge que não gosta de
ser assediada, mas adora quando recebe, anualmente, jornalistas
de várias redes de televisão e jornal para dar entrevista
e contar sua história sobre a marrecada.
Eu, que sempre gostei de ler e escrever, acalentava em mim
o sonho de um dia publicar a sua história. Esta oportunidade
chegou em boa hora, oportunizando-me homenagear essa
mulher maravilhosa que, por coincidência é minha mãe. O que
mais me cativa nela é o seu humor. Sempre dada a brincadeiras
e bate-papos, está sempre se envolvendo em histórias e casos
engraçados na família e fora dela. A seguir, faço um relato de
alguns desses casos para que os leitores tenham uma ideia de
como essa mulher é fantástica!
MAMÃE
Mamãe,
quero agradecer-te
teu pranto sofrido,
teu sono perdido,
as horas de dor...
A ternura do teu olhar
teu doce ninar
e as lágrimas incontidas
molhadas de amor.
Mamãe,
a tua imagem
é como mensagem!
Mensagem de paz,
de amor, de perdão...
Tu és o sol da manhã,
razão do meu ser
e para te agradecer
fiz esta canção.
Mamãe, mamãe...
te amo demais!
Sei que jamais
vou te esquecer.
Como prova de amor
eu trouxe esta flor
pra te oferecer.
HOMENAGEM
(Para a minha mãe)
Sua bondade
é uma chave azul
que abre de norte a sul
um enorme sorriso
em meu coração.
Sua mão amiga,
acolhe, afaga, abriga...
irradia uma paz
que somente a graça divina
pode fazê-la capaz.
Que Deus mantenha sempre aceso
em seu coração,
esse farol,
esse facho de luz.
E assim,
do nascer ao pôr do sol
você possa iluminar o caminho
de cada irmãozinho
em busca de Jesus.
A GAGUEIRA DO JOEL
Joel nascera como todos os outros bebês de sua época o que em
nada contrariava o brio da família. Mais tarde, porém, contra
toda e qualquer lógica da hereditariedade, meu irmão manifestou-se
gago. Não era, verdade seja dita, aquela gagueira de
babar-se todo, engrossar a veia do pescoço e fazer terraplenagem
com os pés. Nada disso! A gagueira de Joel limitava-se
a uma meia dúzia de pô-pô-pôs que ele pronunciava, diga-se
de passagem, até com um certo charme, a cada duas ou três
palavras. Mamãe acreditava ser isso um vício infantil, sendo
tudo uma questão de dar tempo ao tempo. E assim ela pensou
até o dia em que Joel rompeu porta da cozinha adentro, quase
sem fôlego, tentando explicar o que tava acontecendo.
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− Mãe, pô-pô-pô Maria Flávia...
− O que que tem sua irmã?
− É pô-pô-pô, ela...
− Tô ocupada Joel, num tá vendo? Vê se fala direito!
− Mãe, pô-pô-pô Maria Flávia...
−Até aí cê já contou. Fala o resto!
− É que ela pô-pô-pô caiu no pô-pô-pô poço de peixe!
− No POÇO? Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, mãe de
Deus!
Saimos todos correndo e quando chegamos ao poço que ficava
no fundo do quintal, minha irmã já havia bebido uns cinco
litros do precioso líquido. Meu pai, pressionando o ventre
dela contra o chão, obrigou-a a devolver ao poço toda a água
indevidamente surrupiada e, dali a pouco, Maria Flávia estava
melhor do que Joel, que ainda não havia recuperado a sua
cor natural.
Apesar de tudo ter voltado ao normal, minha mãe entendeu
que era hora de se preocupar com a gagueira de Joel, ou
alguém ainda acabaria morrendo por causa dela. Foi a era
dos chás, no sítio. Tudo quanto era ramo que ensinavam para
minha mãe virava uma xaropada pro coitado do Joel. Cipó
cabeludo, cipó torcido, pau pelado, orelha de cachorro, cabelo
de milho, raiz de num sei o quê... depois vieram as folhas: mijo
de gato, capeba, babosa, jurubeba... e tome xarope. Mas nada
disso fazia efeito. Ao contrário, alguns membros da família,
mais espertos em cálculos matemáticos, descobriram que Joel
houvera aumentado um “pô” na segunda sequência de “pôs”
que mantinha antes dos xaropes. Às vezes, as pessoas tentavam
ajudá-lo. Tudo em vão. Como no caso do açougue que atendia
ao Joel nas encomendas de minha mãe:
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− Pô-pô-pô, Sô Luiz, eu quero um quilo de carne de
pô-pô-pô...
− Já sei! Você quer um quilo de carne de porco!
− Não! É de pô-pô-pô, de boi.
Minha mãe já começava a desistir de suas xaropadas e simpatias
para acabar com aquilo, quando passou lá no sítio um tal
de “Inhô Cumpade”, um tropeiro que vendia lenha na cidade.
Passou lá levando um “miozinho que ele mesmo cuieu no terrerin
da bitaca lá na serra e que era pra Inhá Cumade fazê o
favô de muiê” pra ele.
Quando Inhô Cumpade chegou ao portão, deu de ouvido com
o pô-pô-pô de Joel.
− Inhá Cumade tá in casa, mô fio?
− Pois inhozinho me chame ela pra eu?
Dali mesmo, do portão, Joel foi berrando:
− Manhê, pô-pô-pô tem gente chamando.
No que minha mãe veio, Inhô Cumpade quis saber “que diabo
era aquilo” e, após as explicações de minha mãe, veio com
mais uma receita:
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−Ora, Inhá Cumade, pois isso é muito face de sê curado!
Ora pois, já curei incondo muito pió. Se Inhá quisé vô
insiná um jêtio de acabá com isso.
− Mas é claro que quero, Inhô Cumpade! Já fiz de tudo que
me ensinaram e até hoje nada deu resultado...
– Pois entonces, Inhá preste atenção.
Inhá Cumade vai pô sintido num jêtio de passar um sustin
dos bruto no minino. Carece de sê um susto dos bão, assim,
de bambiá as pirninha dele.
Adispois disso Inhá Cumade, acabô-se!
O caboclinho vai falá mais doce qui padre em sermão de
Semana Santa, Deus que me perdoe e vai inventá mais
prosa que deputado em tempo de leição.
– Uai, Cumpade, então eu vou experimentar.
– Isperimente, Inhá, isperimente, e adispois me conte!
Inhô Cumpadi foi embora deixando minha mãe a pensar
numa maneira de passar um susto bem forte em Joel. Pensou
em abrir um concurso em família para tal empreitada. Recuou.
Isso poderia fazer vazar seu intento e chegar aos ouvidos da
futura vítima. Assim, ela mesma planejou tudo. Somente eu,
envolvido na parte operacional do plano, tive acesso ao projeto
antes de sua execução.
Era o seguinte: Seriam jogados dois quilos de milho no rodízio
do moinho d’água que fica lá embaixo, onde a água bate
com força. Joel seria incumbido de catar o milho e, para isso,
a água que move o moinho seria represada por uma hora,
tempo mais que suficiente para que ele desse conta da tarefa.
Só que, em meio à tarefa, a um sinal de minha mãe eu soltaria
a água represada, de modo que ela descesse com toda a força
possível e desse no “caboclinho” um susto com a grandeza
encomendada por Inhô Cumpade.
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Achei o plano o maior barato! Não que eu me preocupasse
com os pô-pô-pôs do meu irmão. Eu apanhava dele todo dia.
Eu seria capaz de pagar ingresso pra assistir ao espetáculo. Participar
dele, então, tinha um gostinho temperado de vingança.
Tudo foi preparado. A água foi represada e Joel foi catar o
milho. Quando minha mãe deu sinal para soltar a água, eu
tirei a comporta de uma só vez e o que passou por mim mais
parecia uma enchente de São José. A água descia com uma
força avassaladora, levando consigo tudo que era lixo recolhido
às margens do córrego: casca de banana, mamucha de
laranja, folha de cana, casca de coco, toco de pau podre, casca
de jabuticaba e tudo mais que encontrava pela frente .
Quando ela bateu lá embaixo no rodízio, um grito de pavor se
fez ouvir a distância. A expectativa de minha mãe não durou
mais que cinco segundos. Todo molhado, meio amarelo, meio
roxo, com cara de poucos amigos, Joel apareceu puxando seus
próprios cabelos e gritando:
– Pô-pô-pô-pô-pô-pô-pô que merda, sô! Pô-pô-pô-pô-pô-
-pô-pô-pô-pô num tá pô-pô-pô-pô-pô me vendo pô-pô-pô-
-pô aqui não?
Eu, que não sou idiota nem nada, tratei de dar no pé.
Minha mãe não gosta que eu conte, mas eu sou capaz de jurar
que naquele dia, Joel babou-se todo, engrossou a veia do pescoço
e raspou terra com os pés.
71
72
O TREM
Era dia 17 de julho, aniversário da cidade de Sabará, e na
programação constava uma “noite de seresta” com a cantora
Ângela Maria, que seria na Praça Santa Rita. Ainda molecote
e morando em Pompéu, minhas chances de ver um evento
daquela natureza eram de duas em um milhão. Não havia
qualquer tipo de transporte para se chegar à cidade e, para
voltar, somente o “noturno”, trem de passageiros da Central
do Brasil, que subia às onze da noite. Daí, ver de perto uma
cantora que eu só ouvia pelo rádio, era tão somente um sonho.
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Por volta das seis da tarde do dia marcado para a seresta,
quando entrei na cozinha, meu pai estava sentado num banquinho
sobre o fogão a lenha, contando os seus “cobres”, nome
que ele dava ao dinheiro. Acabou de contar, voltou com o
pequeno maço de notas pro bolso e anunciou:
− Maria, eu vô na seresta, hoje!
− Pois eu num vô nesse trem, nem que me pague!
Apenas para não deixar a conversa de minha mãe dependurada
no silêncio que se fez, emendei:
− Ô pai, hoje é meu aniversário também! O senhor bem que
podia me levar!
Meu pai ficou em silêncio por alguns instantes como se nem
tivesse ouvido, depois respondeu:
− Se qué i, pede sua mãe pra te arrumá!
Não podia ser verdade. Eu teria ouvido bem? Fiquei com
medo de refazer a pergunta e quebrar o encanto daquela
possibilidade. E foi o meu pai que voltou a falar:
− Se vai, vai arrumá logo que já tô é saindo!
Mamãe rezou uma meia dúzia de argumentos para eu desistir,
mas na verdade, não ouvi uma só palavra do que ela disse e,
em dez minutos, eu e meu pai descíamos à beira linha rumo
à cidade. Chegamos à praça por volta de oito horas da noite.
A seresta seria às dez.
Enquanto isso, fomos ao bar da esquina, onde meu pai pediu
uma cerveja pra ele e um guaraná e um sanduiche de salame
pra mim. Era o máximo! O ir e vir das pessoas, as luzes... e
eu ali. Talvez fosse o único menino da minha idade sentado
à mesa do bar. Eu já pensava em eleger aquela como a noite
mais feliz de minha vida, quando lá fora um corre-corre me
chamou a atenção. Arregalei os olhos e não acreditei. Estava
chovendo! Aquela chuvinha fina, pirracenta, sem força, sem
pressa... depois foi aumentando, aumentando e, daí a pouco
soube-se que não haveria mais a seresta. Saímos a pé, debaixo
daquela droga de chuva e fomos para a Praça da Matriz, de
onde meu pai me arrastou para um dos botecos. Lá, encontrou-se
com um tal Joaquim sei lá das quantas, começaram
com seus casos de caçada entre uma e outra cachacinha.
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Após a morte de vários tatus, pacas, veados, quatis, capivara,
perdizes, pombas e similares, em encenações que mereciam
um roteiro cinematográfico, num tiroteio que não tinha fim,
meu pai despediu-se da turma, tomou a quinta “saideira” e
fomos pra estação esperar o trem. Enquanto o trem não chegava,
sô Ismael ia dizendo ser um desaforo a gente sair do
Pompéu, tomar chuva e não ver “merda de seresta nenhuma”.
Aí veio a sua mente privilegiada a sensacional decisão:
− Qué sabê? Eu num vô pagá passage daqui ali, nem...
− Mas, pai, e o chefe?
Se não tiver passagem ele cobra multa.
− Uai, dô ele duas passage veia!
Dizendo isso, ele apanhou duas passagens velhas, já picotadas,
no chão da estação e enfiou no bolso de dentro do paletó..
Fiquei pasmo! Se eu bem conhecia o velho ele ia mesmo dar
aquelas passagens pro chefe.
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O trem parou, entramos e nos acomodamos. Meu coração não
cabia dentro do peito. E na hora em que o chefe chegasse? Na
verdade, era pouco mais de quatro minutos de viagem, mas
e daí? Tinha que pagar! Estávamos passando por sobre um
viaduto quando o chefe entrou no nosso vagão. Vinha virando-se
de um lado para o outro dos bancos enquanto gritava:
– Passagem, por favor, passagem, por favor...
Tentei falar com o velho. Ele mandou eu calar a boca!
− Nem um pio! Sentenciou.
Pensei que iria desmaiar. O chefe chegou onde estávamos.
− Passagem, por favor!
Meu pai, para o meu espanto, fingia dormir, roncando em
alto e mau som.
− Passagem, meu senhor!
Exclamou o chefe já balançando o meu pai pelos ombros.
O velho resmungou, tossiu três vezes, abriu primeiro o olho
esquerdo, depois o direito, voltou a tossir e balbuciou:
− Ham? Heim? O quê?
− A passagem, meu senhor!
Balançando a cabeça de um lado para o outro, parecendo estar
mais bêbado do que na realidade estava, meu pai fingiu procurar
as passagens duas vezes em cada bolso interno e externo
do paletó e já diante da irritação do chefe, tirou de um deles
as duas passagens velhas e entregou-lhe.
−Ah, tá aqui, as danada!
O chefe pegou as passagens e foi logo exclamando:
− O senhor deve estar brincando!
Estas passagens são velhas!
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− Que mi importa me lá?
Seu chefe é que me vendeu lá na estação.
− Olha, pra onde o senhor tá indo?
− Pra Santa Bárbara.
Enquanto eu tremia de medo, meu pai continuava discutindo
com o Chefe, o trem surpreendia o silêncio das primeiras
casas do Pompéu, enfileiradas, à margem do rio.
− Olha, meu senhor, eu vou ter que chamar o comandante
de viagem, o senhor não pode viajar com estas passagens.
− Que me importa? Chama quem ocê quisé!
O Chefe, fulo de raiva, dirigiu-se ao vagão de comando, exatamente
quando o trem chiava os freios na pequena paradinha
do Pompéu. Papai arrastou-me vagão afora e pulamos do
trem. Eram quinze segundos de parada. Mal o trem parou,
já foi apitando e colocando-se novamente em movimento.
Apeamos sem pagar.
Sô Ismael, lançando o olhar para o vagão de comando, gritou
com entusiasmo de vencedor.
− Alá, cambada de bocó! Cobra de mim, cobra?!...
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Não deu quatro passos.
Escorregou e caiu esparramado numa poça de lama. Um
tombo e tanto! Levantou-se, bateu com as mãos no fundilhos
enlameados da calça e gritou novamente, virando-se para o
trem que já sumia na curva a mais de cem metros:
− Vai rogá praga na sua mãe, capeta dos inferno!
PRIMEIRO DE ABRIL
Em matéria de primeiro de abril, minha mãe só perde mesmo
pro Governo Federal que vive passando primeiro de abril em
todos nós o tempo todo, em qualquer dia de qualquer mês.
Meu pai, muito ocupado para ficar prestando tento nessas
peculiaridades de pouca ou nenhuma importância do nosso
calendário, era o alvo preferido de minha mãe. Num primeiro
de abril andou oito quilômetros para castrar um porco no
terreiro de uma família recém- chegada ao bairro, que não
criava nem galinhas. E qual não foi o susto da dona de casa
quando atendeu a porta e o meu pai foi anunciando:
− Seu marido tá in casa?
− Tá sim.
− Chama ele. Vim capá o bicho!
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Num outro primeiro de abril, D. Maria arranjou uma injeção
pro Sô Ismael aplicar a nove quilômetros de distância. Depois
de preparar toda a sua parafernália de enfermeiro comunitário,
desinfetar seringa e coisa e tal, lá foi velho. Em lá chegando,
não encontrou ninguém da família, sendo informado
por um dos vizinhos que todos viajaram em gozo de férias
e de muito boa saúde para o litoral. Sô Ismael era homem de
se irritar por pouca coisa? Não, não era. Ficava um meio dia
de cara assim, meio amarrada, sem conversar e ignorando as
ironias da prole, tipo: “Ô pai, o moço melhorou com a injeção?”
Mas daí a pouco era o mesmo homem, conversador e
contador de causos.
Da última vez, minha mãe tirou o velho da cama às 06h00 da
manhã de um primeiro de abril, inventando-lhe: “uma porta
para assentar na casa de compadre Tinoca”.
Ora, compadre Tinoca, não pedia, mandava! Era amigo do
peito! E lá se foi meu pai com o seu alforje de couro entupetado
de ferramentas, cabo do formão sobrando pra fora
e o serrote grande sobre o ombro direito, a balançar para
cima e para baixo ao compasso dos seus passos. Daquela vez,
estranhamente, meu pai não voltara logo. Já eram 14h00, e,
nada! Minha mãe já começava a ficar preocupada, quando o
Sô Ismael velho de guerra apareceu na curva da estrada em
complicados zigue-zagues. Daquela vez, chegou falador.
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− Pois é, cê quis passá primero de abril ni mim e se danô.
Cumpadre Tinoca tinha matado um porco e, aí, nós ficô lá
bebendo golo e jogando truco até agora. E a cumadre Maria
falô assim, que se ocê quisé aproveitá as tripa pra fazê choriço,
é pro cê i lá, purquê ela não vai mexê cum isso não.
Minha mãe armou-se de bacia, foi até a horta, colheu salsa,
cebolinha, pegou canudo de talo da folha de mamão pra assoprar
as tripas e desceu a rua. Chegando à casa do Compadre
Tinoca, encarou a cara de espanto da Comadre Maria e foi
logo dizendo:
−Vim fazê o choriço, Comadre!
D. Maria de Tinoca, ainda surpresa, perguntou:
− Uai, comadre, que choriço?
Foi a vez de minha mãe ficar o dia todo sem conversar com
ninguém. Vez por outra, meu pai entrava na cozinha ainda
curando a sua bebedeira e exclamava:
−Tomô, mula veia?
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DONA MARIA E LEONÍDIA, UMA DE SUAS FILHAS
PARTE IV
A HISTÓRIA DO POMPÉU
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85 Há muitos e muitos anos, quando o rio passava calmamente os
seus peixes em águas puras e cristalinas, esse lugar nem tinha
nome. A partir do século XVI, com o aparecimento do ouro
em toda a região do Sabarabuçu, aqui chegou o Cel. José Pompéu,
homem de pulso forte, que comandava as minas de ouro
e, que, segundo alguns historiadores, mandou erigir a Capelinha
de Santo Antônio, por volta de 1926. O Cel. Pompéu era
tão popular e tinha tanta influência que as pessoas vindas de
outros lugares anunciavam estarem vindo no “Cel. Pompéu”.
Quando deu-se a escassez do ouro, parece ter o coronel perdido
a sua patente, mas o nome Pompéu nos ficou como registro
de suas venturas e desventuras por estas bandas. Já no
século XX, o Pompéu não passava de um pequeno povoado
com uma dúzia de residências e pertencia, geograficamente,
ao Distrito de Mestre Caetano, localizado a três quilômetros
no sentido Caeté, margeando o rio, onde se instalara a
Companhia de Mineração Morro Velho, que explorava a
mineração subterrânea de ouro. Tudo no Distrito girava em
torno da mineração. A empresa lá construiu casas geminadas
para abrigar seus operários e suas famílias. Havia um casarão
de estilo colonial, construído para funcionar como Hospital
de combate à febre amarela. O comércio era bastante ativo,
com armazéns e lojas de variedades onde podia-se encontrar
de tudo que fosse necessário à vida da comunidade. A Central
do Brasil tinha lá sua estação com um bom número de
operários, uma vez que sob sua responsabilidade recaia todo
o trecho da ferrovia entre Sabará e Caeté.
A vida cultural local também era intensa, com banda de
música, grupo de congados e festas religiosas tradicionais.
Por volta de 1938, tendo estourado a primeira guerra mundial,
foi interrompida no Brasil, a importação de explosivos, matéria
prima fundamental para a produção nas minas. Frente a
isso, a mina fechou as portas e o distrito de Mestre Caetano foi
submetido a um cruel processo de decadência social. Alguns
operários resistiram por algum tempo à ideia de abandonar
o local. Mas não havia mais sentido morar ali.
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Nesse ínterim, surge na cidade, a Cia. Siderúrgica Belgo
Mineira com seus alto-fornos para a produção de aço. Para
sustentar as atividades dos fornos, duas empresas chegaram ao
Pompéu. Uma Mineração Trindade, que explorava as minas
de minério e a Companhia Agrícola Florestal, que cuidava do
reflorestamento através da plantação de eucaliptos, visando
a produção de carvão para os alto-fornos.
Nos locais próximos à mineração, aos quais deram o nome de
Segredo, e Córrego do Meio, cerca de 200 casas de madeiras
foram construídas para abrigar os operários das duas empresas,
a maioria deles vindos da cidade de Carandaí-MG. Com
isso, o comércio antes intenso em Mestre Caetano, transferiu-
-se para o Pompéu, com a construção de um armazém muito
amplo que fornecia todo tipo de mercadoria para os operários,
através de anotações, em cadernetas, mensalmente quitadas
pela empresa, que procedia o desconto da despesa de cada
funcionário em seu salário.
Por volta dos anos 60, os alto-fornos foram transferidos para
Ipatinga, a mineração foi desativada e a Cia de Reflorestamento
teve rescindido o seu contrato.
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A mineradora indenizou devidamente os seus operários e
deu-lhes seis meses de prazo para desocuparem as casas de
madeiras. Diante disso, os operários fizeram ao Sr. Raimundo
Américo, fazendeiro do Pompéu que tinha em sua propriedade
um terreno, às margens do rio, usado como campo de
futebol pela comunidade e lhe propuseram lotear aquela área.
O fazendeiro, de olho na indenização dos operários, ofereceu
o terreno ao time de futebol pelo mesmo valor que lhe fora
oferecido pelos operários. Como o time não tinha condições
de concorrer com os indenizados, o campo foi loteado, procedimento
que ocorreu com outros moradores que, também,
lotearam parte de sua propriedade com a mesma intenção de
obter um bom dinheiro.
A partir de então, o Pompéu teve um processo inverso ao de
Mestre Caetano. Loteado o campo, os compradores trataram
logo de construir suas moradias.
Quem tinha mais tempo de trabalho na mineradora e recebeu
uma indenização mais volumosa comprou lotes maiores que,
mais tarde, dariam lugar à construção da residência do filho,
do neto e assim por diante. Dessa forma, o Pompéu cresceu
sem perder o seu sentimento de família, de comunidade, que
ainda hoje seus moradores sabem conduzir, compartilhando
entre eles alegrias e tristezas, sucessos e fracassos que são
percebidos como se da comunidade fossem.
O Pompéu, por muitos considerado como um “pedacinho do
céu”, tem características peculiares que raramente podem ser
encontradas em outro lugar. O seu paisagismo é exuberante
e o verde ainda se destaca, seja qual for o ângulo de visão do
observador. Várias nascentes, naturalmente distribuídas por
entre as montanhas de sua acentuada geografia, despejam suas
águas no ribeirão Sabará que corta o povoado e que preserva
em si algumas variedades de peixes e insetos apesar de bastante
poluído. Em Pompéu não se fala ao celular. Nenhuma
operadora quis arriscar um investimento para expandir sua
cobertura até o bairro, alegando que o número de usuários não
compensaria tal investimento. Talvez não tenham levado em
conta os cerca de 10 mil visitantes que, mensalmente, acorrem
ao bairro para desfrutar do seu paisagismo bucólico e da
culinária local acentuada pelos variados pratos com ora- pro-
-nóbis. Contudo, há aqueles que comemoram esses obstáculos
naturais à modernidade eletrônica, no bairro, por acreditar
que ela traria consigo os grandes pesadelos dos centros urbanos
sem uma compensação que embalasse nossos sonhos.
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Em setembro 1996, a sala de estar da audaciosa D. Maria Torres,
ficou pequena para tanta gente que ouvia falar do seu
“ora-pro-nóbis com marreco” e no bairro chegava, com a boca
cheia d’água, na ânsia de degustar a famosa leguminosa. Assim
surgiu o Restaurante Moinho D’água, em janeiro de 1997.
O sucesso foi tanto que o então Prefeito de Sabará, Wander
Borges, propôs a D. Maria criar o Festival do Ora pro Nóbis.
Ela foi logo falando:
−Uai, se ocê pode cuidar do resto,
do ora-pro-nóbis cuidamos nós.
E assim, em maio daquele mesmo ano foi realizado o I FESTI-
VAL DO ORA- PRO- NÓBIS DE SABARÁ. Sucesso absoluto
que colocou a festa no calendário oficial de eventos da cidade.
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Pouco mais tarde, o Alambique Jotapê, que produz uma
cachaça artesanal de alta qualidade, no bairro, por sugestão
da Associação dos Produtores de Aguardente de Qualidade
– AMPAQ, resolveu também instalar o seu restaurante junto
ao alambique, juntando assim a vontade de beber com a vontade
de comer. Atualmente, cerca de seis mil pessoas passam
mensalmente pelos dois restaurantes nos fins de semana.
A capelinha de Santo Antônio é o cartão de visita da comunidade.
Com talha representativa da primeira e segunda fase
do barroco mineiro, sua construção se deu entre 1726 e 1730.
Ainda hoje, pratica-se na comunidade o costume de enterrar
os mortos em torno da capela.
Apesar de sua ostentação histórica de patrimônio tombado
pelo IPHAN, aos olhos da comunidade não é essa a importância
da capelinha.
Para cada morador, o que faz a capela ser tão especial é a
lembrança das coroações de Nossa Senhora feita à luz de
velas e ao som do violino do Sr. Vicente, que acompanhava a
ladainha cantada em latim, todos os dias do mês de maio, as
brincadeiras de roda e de passar anel, a festa do padroeiro...
Isso sim, é o que lembra cada antigo morador sobre a capela.
Outra lembrança a suscitar a saudade nos pompeuenses era a
“Paradinha do Pompéu”, uma pequena cobertura construída
com quatro esteios de ferro e algumas folhas de zinco. Era
onde paravam, por 30 segundos, os trens de passageiros da
Central do Brasil. Nos domingos, à tarde, quase todos os
moradores dirigiam-se à paradinha para ver o trem passar.
Enquanto o trem não vinha, jogava-se peteca, bola, passava-se
anel, etc., quando o trem apitava na curva da prainha todos se
posicionavam para recebê-lo. Na partida, trocavam-se acenos
com os passageiros e se ficava esperando com ansiedade o
domingo vindouro.
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O rio era bastante caudaloso, generoso em peixes e suas águas
eram puras e cristalinas. Quase toda família tinha às suas
margens o seu próprio “ batedor de roupas”, algumas pedras
grandes, justapostas, de forma a constituir uma bancada onde
era lavada a roupa da casa. Esse Pompéu, encravado no pé da
Serra de Nossa Senhora da Piedade, na memória e no coração
daqueles que o conhecem, guarda histórias felizes e infelizes
vividas pelas suas várias gerações.
O projeto Memórias Geraes é uma iniciativa da
equipe de artistas e colaboradoras do Rancho da
Cultura para registrar e valorizar vivências e saberes
de mestras e mestres populares que vivem em todos
os cantos de Minas Gerais.
Rancho da Cultura, 2021
@ranchodacultura_
(31) 36716197
foto: Kleber Bassa
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Este livro foi impresso em offset em Belo Horizonte pela gráfica Paulinelli, em papel Pólen
Bold 90g/m3, utilizando as faces tipográficas Calendas da atipo foundry e Bicyclette, da Kostic
Type Foundry. A capa foi composta em papel cartão supremo, utilizando as faces tipográficas
Bicyclett, da Kostic Type Foundry e Fairwater de Laura Worthington.