04.05.2021 Views

Dona Maria do Pompéu: a marrecada, o ora pro nobis e outras histórias

Por Silas Fonseca Projeto Memórias Geraes Rancho da Cultura

Por Silas Fonseca
Projeto Memórias Geraes
Rancho da Cultura

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.


2


Este livro foi produzido com recursos da Lei Aldir Blanc no âmbito do estado de Minas Gerais.

APOIO

Apoio



1º EDIÇÃO

Sabará, Minas Gerais

Rancho da Cultura, 2021


Autor Silas Fonseca

Ilustrações Maria Theresa Morais

Produção geral Nádia Fonseca

Projeto gráfico Letícia Bezamat

Revisão Mônica Granja

Este livro faz parte do Projeto Memórias Geraes

Tiragem 400 cópias

A produção deste projeto, embora utilize em suas publicações as normas-padrão

da língua portuguesa no Brasil, não se vê obrigada a segui-las. Este livro é resultado

de uma experência poética por isso muitas vezes não segue rigorosamente

as normas estabelecidas.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

F676d

Fonseca, Silas.

Dona Maria a marrecada e o ora pro nobis / Silas Fonseca.

Pompéu, MG : Rancho da Cultura ; 2020.

96p. : il. fotos ; 21 cm

ISBN 9786599398902

1. Literatura brasileira. 2.

CDU: 82 / CDD: 869

Bibliotecária responsável: Gilza Helena Teixeira CRB6/1725




SUMÁRIO

PREFÁCIO Mônica Granja

I

DONA MARIA, A MARRECADA E O ORA PRO NOBIS

II

17 Introdução

28 A trajetória do ora pro nobis

DONA MARIA: SUA VIDA E SUAS HISTÓRIAS

III

33 Dona Maria do Pompéu

38 A vida na fazenda

41 Juventude e casamento de Maria

47 Enfim um sítio e a mudança

49 Assalto ou golpe?

51 Perdas e lutas

55 Vida que segue

APRESENTAÇÃO PELO AUTOR

IV

61 Silas da Fonseca

62 Mamãe

63 Homenagem

67 A Gagueira de Joel

73 O trem

78 Primeiro de Abril

A HISTÓRIA DO POMPÉU

83 A História do Pompéu



Este livro é dedicado à minha mãe, Maria Torres,

pela mulher fantástica que sempre foi. Como filho

mais velho eu bem sei de suas lutas, de suas lágrimas

para criar 10 filhos, praticamente sozinha.

É uma guerreira. Dedico também à minha esposa,

Maria Cleuza e minhas filhas, Nádia e Laura, as três

maiores e melhores razões para eu celebrar, a cada

dia, este grande espetáculo que é a vida.



Certa feita, convidada a fazer meu primeiro prefácio no

livro do querido Luiz Alves, disse que “Pre” poderia ser, mas

“Fácio”?!...Não!

Pois bem, honrada com mais um para o amado ex-aluno (só

para tentar me incluir no fundinho do coração do autor),

Amigo querido, colega da Academia de Ciências e Letras de

Sabará, membro brilhante do nosso Sarau de Sabará, poeta,

cantador, contador de causos, Silas da Fonseca, digo que

aprendi... ficou mais fácil! Silas escreve de uma forma que nos

conquista pela doçura, pela linguagem simples, pelo humor

inteligente e sutil, volta e meia sarcástico...E, com imenso

amor à sua gente, à nossa gente! Neste livro se esmerou! Claro

que sim! A musa inspiradora é a sua mãe, D. Maria do Pompéu,

D. Maria do Moinho D’água, D. Maria Fonseca, nossa D.

Maria! Serenidade, poderia ser seu nome. Guerreira, também!

A Maria menina nasceu numa fazenda e por lá aprendeu mil

ofícios... cuidou dos irmãos... ia para o eito com a família,

fazia de um tudo, apesar de miudinha! Sua força era de dentro,

da alma! Assim conquistou seu Ismael. Casando-se, teve

filhos, dentre eles, o Silas....

Já fiz “spoiler” demais, não?! Recomendo, então, que saboreiem

cada página deste livro e divirtam-se muito com as

peripécias dos Fonseca do Pompéu e, principalmente, com a

história da pequenina dama de olhos de céu, D. Maria!

MÔNICA GRANJA


PARTE I

DONA MARIA, A MARRECADA E O ORA PRO NOBIS



DONA MARIA, A MARRECADA E O ORA PRO NOBIS

17 Introdução

28 A trajetória do ora pro nobis


17 Tudo começou quando, não se sabe como, veio bater à porta

de D. Maria Torres, minha mãe, um argentino de nome Hernandez,

com sua mulher e filho. Vinham não me lembro de

onde e diziam estar com muita fome, pedindo a D. Maria

que lhes preparasse alguma coisa para comer. Vinte minutos

depois a pequena família estava à mesa se regalando. De vez

em quando, o argentino parava por um instante e dizia:

− Hummmmm, delicioso!

Terminado o almoço, quiseram saber se havia sobremesa.

Havia. Foi um pote e meio de doce. Tomaram café, deitaram

no banco e dormiram um bom sono. O privilégio do sofá

coube ao “hijo de nombre “Pablito”. Quando acordaram,

disseram a D. Maria que sonharam com a comida dela e que

ela era uma santa e coisa e tal. A cozinheira sentiu-se tão

agradecida que resolveu não cobrar os seus serviços o que

lhe valeu outra enxurrada de elogios e a promessa de breve


retorno. Começaram a frequentar a casa uma vez por mês.

Depois, quinzenalmente e, por fim, toda semana. Sempre traziam

algo. Um presente, um tipo de carne, coisas desse tipo,

a título de compensação, já que minha mãe insistia em não

cobrar pela estadia. Hernandez dizia ter uma firma em Belo

Horizonte e que trabalhava com envelhecimento de móveis

para decoração de ambientes. Certo dia, enquanto palitava os

dentes, Hernandez teve uma ideia que considerou brilhante!

Chamou minha mãe e foi logo dizendo:

− D. Maria, tive uma ideia, assim, fantástica! Se a senhora

permitir, vamos criar marrecos aqui no sítio.

Eu trago os marrequinhos, uma ou duas dúzias, a gente

solta eles pelo sítio. Com tanto terreno e tanta água não

vai precisar nem de ração. Quando eles estiverem no ponto

para a panela, a gente almoça eles e traz outra turminha.

Assim, nóis num fica sem jeito de ficar comendo de graça

aqui todo fim de semana.

18

D. Maria, verdade seja dita, não achou muita graça na proposta,

mas vai discutir com argentino... acabou aceitando.

Daí a uma semana, chegou Hernandez em uma caminhonete

totalmente abarrotada de caixas de papelão cheias de “marrequinhos”.

D. Maria assustou-se:

− Hernandez de Deus, ocê tá doido?

− Sabe o que é, D. Maria? É que cheguei no mercado e por

acaso os marrecos estavam em oferta, aí eu aproveitei e

comprei logo mil e quinhentos bichinhos. Mas a senhora só

vai entrar com o terreno. O resto é por minha conta.

Dentro de quatro meses teremos 1.500 bichos pra vender


para restaurantes de Belo Horizonte. Vamos ganhar um

bom dinheiro, a senhora vai ver.

Minha mãe não quis tomar sozinha a decisão de aceitar aquele

desatino e reuniu os filhos. Um dizia sim, outro dizia não,

outro não queria se meter nem com sim, nem com não. No

fim, improvisou-se um cercado no fundo do quintal, desviou-

-se para ele uma bica d’água e descarregaram-se os marrecos.

19

Toda semana Hernandez aparecia com a mulher e o filho,

trazendo ração pros marrecos. Muitas pessoas no bairro ficaram

sabendo da empreitada e para lá se dirigiam só para ver

a marrecada. Certa vez, Hernandez disse ter contado o lote

e que só contou mil quatrocentos e sessenta e cinco. Com

certeza, algum bicho do mato tinha achado graça na criação

e dela se servia para o autossustento. Montou-se, então, uma

barraca próxima do local e cada noite algum dos filhos montava

guarda. Dormir ali era impossível. Bastava o barulho

de uma folha caindo no chão pra bicharada aprontar uma

algazarra de incomodar falecido. E assim corriam-se os dias

e, de maneira mais lenta, aumentava o peso dos marrecos.

Quando os bichos atingiram mais ou menos um quilo de penas

e carne, aliás, mais pena do que carne, diga-se de passagem,

o Hernandez não apareceu no fim de semana. Pensamos ter

acontecido algum imprevisto. Fomos à cidade, compramos,

fiado, metade da quantidade de ração que Hernandez trazia.

Quando ele chegasse, com certeza, acertaria as contas com

o comerciante. Os marrecos não concordaram muito com a

quantidade de ração.


Em poucos minutos deram conta dela e arrumaram uma

zueira de fazer doer ouvido de surdo. Ademar ouvira falar

que os bichos gostavam muito de “pau-de-bananeira” bem

picadinho. Fomos à luta. Picamos dois sacos de pau-de-bananeira

e jogamos na arena. Cinco minutos e... cadê comida? Os

bichos tanto comiam quanto cagavam e não havia comida que

chegasse. No outro fim de semana, Hernandez também não

apareceu. Foi batendo o desespero. Em nós e nos marrecos. O

telefone de Hernandez não atendia. A gente não tinha o endereço

dele, o dono da casa de ração já não queria vender fiado...

uma tragédia! Mas fosse explicar essas razões pros marrecos.

Eles nun tavam nem aí! Se alguém aproximava do cercado eles

pensavam estar vindo comida e já começavam entre eles uma

guerra física para garantir os primeiros lugares, aos gritos de

“arrrreda, arrrreda arrrreda...”, uma loucura! No sítio, não

ficou uma bananeira de pé. E nada de Hernandez.

20

Certo dia, quando o pior já estava por acontecer, ao ler um

jornal em meu serviço na Prefeitura, dei com um classificado

anunciando a venda da firma de Hernandez. Tava lá o

endereço do gringo. Pedi licença pro chefe, corri até em casa

com o jornal na mão, chamei Ademar e nos mandamos pra

Belo Horizonte, no encalço do argentino. Lá chegando,fomos

atendidos pelo dito cujo, que custamos a reconhecer. Magro,

barbudo, cabisbaixo, Hernandez nos convidou a entrar.

Sentamos, e ele mesmo puxou a conversa.

− Eu acho que já sei porque vieram.

Eu queria ter ido lá no sítio, mas fiquei com vergonha de

aparecer para D. Maria. Dois funcionários me “levaram no

pau” e a minha firma foi fechada. Perdi tudo que tinha.


Até o carro perdi.

Sei que vocês não têm culpa, mas o que posso fazer?

Os marrecos já devem estar com um peso que dê pra vender.

Vocês podem fazer o que quiserem. Eu não quero nada

daquilo que investi lá. Enfiem os marrecos onde acharem

melhor, eu não tenho condições de ajudar mais.

Saímos de lá pior do que chegamos. Cheguei a comentar com

Ademar:

− Pra enfiar os marrecos onde a gente quiser, Hernandez

tinha de estar presente.

21

Agora era chegar em casa, dar a má notícia e ver o que fazer

com as contas de ração a pagar e o mais difícil: ver o que fazer

com mais de mil marrecos magros e famintos. Em razão da

falta de uma alimentação sadia, os bichos estavam que era

pura pena e osso e não serviam nem para ensopado. Demos

a notícia pra minha mãe. Ela abaixou a cabeça e perguntou

pra si mesma:

− E agora?!

Nos dias que se seguiram, cortamos o resto das bananeiras de

pé, encomendamos restos de verduras em todos os supermercados

da cidade e fomos enganando a fome dos marrecos que,

a essa altura da situação, já eram moeda corrente na família.

Minha mãe dizia:

− Ademar, pega três marrecos pra pagar a passagem e vai na

rua buscar as verduras.

− Ernane, pergunta Sô Zé Raimundo quantos

marrecos ele quer por aquelas bananeiras dele.


r$1,00 cada

22


Além desses procedimentos estratégicos, eu escrevi em cartolina

e afixei no portão do sítio,um cartaz com os seguintes

dizeres: “Vendem-se marrecos, a prazo. Um real cada. Quem

comprar um ganha outro!”

Um grande e providencial comprador foi o engenheiro agrônomo

da Prefeitura, que adquiriu 150 marrecos a prazo, aliás,

prazo esse que se estende até a presente data, uma vez que o

mesmo sumiu sem assumir a dívida. Em todo caso eram 150

bocas, ou melhor dizendo, 150 bicos a menos para alimentar.

23

Minha mãe nunca foi tão generosa. Ela ganhava um “bom

dia” e dava logo dois marrecos pro simpático interlocutor. Se

alguém lhe tomava a bênção, isso valia três marrecos. Comadre

que lhe fosse fazer uma visita, nunca saía sem um par de

marrecos em cada uma das mãos... E assim chegamos a 700

marrecos que ainda eram difíceis de manter, sem falar nas

contas a pagar pro moço da ração. Foi quando quis a providência

divina que minha mãe fosse convidada para montar uma

barraca de tira-gosto, no Iº Festival da Cachaça de Sabará.

A princípio, desorientada que estava, quase disse não. Mas

lembrou-se da marrecada, do ora-pro-nóbis verde e farto por

sobre os muros do Pompéu e exclamou:

− ORA-PRO-NOBIS COM MARRECO!!!

Na sexta-feira, primeiro dia do Festival, nada sobrou dos

trinta e cinco marrecos preparados com ora-pro-nóbis. No

sábado e domingo, foram mais de quatrocentos marrecos.

E só não se vendeu mais por falta de tempo, pois enquanto

houve Festival, a barraca de D. Maria esteve lotada. Pagas

todas as despesas e limpo o honrado nome da família, o que


restou de marrecos no quintal, pouco mais de cem, foram

alimentados com ração de primeira para aguardar o festival

de julho, para o qual, o Prefeito, pessoalmente, disse a minha

mãe que não poderia faltar o ora-pro-nóbis com marreco. No

festival de julho, minha mãe voltou à praça Melo Vianna e

repetiu o mesmo sucesso. Dessa vez, antes do fim do festival,

já teve que apelar pros frangos, pois como disse D. Maria:

– Os marrecos não deram nem pra meia missa.

A partir de então, o ora-pro-nóbis passou a ser prato obrigatório

em todas as festividades. A princípio, os donos de restaurantes

da cidade pensaram tratar-se apenas de um modismo,

coisa passageira. Em pouco tempo, mudaram de ideia e trataram

de incluir o ora-pro-nóbis no seu cardápio. Nos fins

de semana, era comum que famílias inteiras se dirigissem ao

Pompéu procurando minha mãe e pedindo que ela fizesse o

ora-pro-nóbis com marreco.

24

Assim a varanda da casa virou restaurante nos sábados e

domingos. Daí, a instalar um restaurante de verdade, “foi um

pulo”. Vendo todo aquele movimento, eu propus à minha mãe

e ao meu irmão, que se encontrava desempregado, aproveitarem

um cômodo perto do moinho e fazerem o comércio.

Sugeri que o nome poderia ser Moinho D´Água, pois o moinho

ali existente é o único da região, deve ter mais de um século de

existência e ainda funcionava normalmente, podendo moer

o milho e fornecer o fubá para confecção do angu a ser consumido

com ora-pro-nóbis. Dito e feito.

Em dois anos o restaurante já atraia um público de mais de

300 pessoas aos sábados e domingos, (hoje já são mais 1.000).


Já não havia marrecos, mas todo mundo queria conhecer a

“D. Maria dos marrecos”. Depois, veio mais um restaurante

em Pompéu. Tudo em nome do ora-pro-nóbis. E a fama foi

assim, crescendo, até que em l997, o Prefeito, Wander Borges,

compreendeu a importância dessa folhinha suculenta e gostosa,

e convidou a comunidade do Pompéu a ser parceira de

sua administração na criação do Festival do Ora-pro-nóbis.

A comunidade topou na hora. Tava feito!

25

O Festival se realizou com resultados muito além do esperado

e, a cada ano, a festa atrai mais gente. Gente daqui, gente

dali, gente de onde a gente nem pensa. O ora-pro-nóbis venceu!

Hernandez sumiu. Talvez nem saiba que seus marrecos

e nossas mirrecas, tenham gerado uma das mais lindas festas

do calendário da cidade.

Mas de tudo isso, o mais importante é perceber que os marrecos

foram tão somente coadjuvantes, personagens secundários,

dessa história. O grande protagonista é sem dúvida

o ora-pro-nóbis que continua desfilando o seu sucesso nos

palcos da gastronomia mineira.




A TRAJETÓRIA DO ORA PRO NOBIS

Conta a lenda, que, uma planta de caule espinhoso nascida

generosamente por sobre os muros de pedras que delimitavam

os terrenos das fazendas ou contornavam as terras de

propriedade de igrejas, tinham suas folhas verdes e suculentas

muito usadas pelos negros escravizados vindos da África em

sua alimentação. Ocorria que, sendo os terrenos das fazendas

muito policiados pelos senhores e seus jagunços, não ofereciam

aos negros qualquer chance de acesso a tal planta, que era

cultivada para formar uma “cerca viva”, tornando os muros

intransponíveis. Os muros que circundavam as igrejas também

eram protegidos pelo olhar vigilante do padre que mantinha

o cultivo da planta por sobre eles para coibir a entrada

de animais atraídos pelas hortaliças e frutas do seu pomar.

Como então agiam os negros para ter acesso à gostosa e suculenta

folha daquela planta? Bem, como os fazendeiros mantinham

rigorosa vigilância em suas propriedades, 24 horas por

dia, o jeito era surrupiar a “carne verde” dos muros da igreja,

uma vez que o padre, pelo menos nos horários anunciados

para a celebração da Santa Missa, não tinha como inibir o

acesso dos negros. Combinava-se então entre os negros que,

à exata hora em que o padre se ocupava em pedir aos céus

o “ora-pro-nóbis” (rogai por nós, em latim), eles iriam até os

muros, munidos de cabaças (utensílios fabricados a partir de

um tipo de abóbora seca) e recolheriam as folhas necessárias

à refeição familiar.

28

Uma vez pronto, o prato era servido em cabaças menores ou

em “cuités” utensílios obtidos a partir de uma espécie de coco,

tipo coco da Bahia, porém de casca mais sólida e sem polpa.


Assim, o momento de se recolher as folhas da leguminosa

era conhecido entre os negros como “a hora do ora-pro-nóbis”.

Daí a planta absorveu o nome que ainda hoje se lhe dá em

Minas Gerais. Sabará foi a primeira cidade a “socializar” o

ora-pro- nóbis. Em 1984, convidada pelo prefeito da cidade a

participar como salgadeira no Festival da Cachaça da Cidade,

D. Maria Torres, moradora do bairro Pompéu, levou para a

praça o inusitado prato “ora-pro-nóbis com marreco”.

29

A partir de então, o ora-pro-nóbis tornou-se um dos pratos

mais procurados na culinária sabarense, sendo servido nos

restaurantes e hotéis da cidade. A demanda foi tanta que, há 15

anos, foi criado o Festival do ora-pro-nóbis de Sabará. A festa

sempre aconteceu em Pompéu, um bairro de rara beleza paisagística

e que, apesar de contar com uma população de pouco

mais de 800 habitantes, tem mais de 300 anos de existência,

abrigando inclusive, uma Capela cuja construção se deu entre

os anos de 1726 e 1730 e que ostenta uma talha representativa

da primeira e segunda fases do Barroco em Minas.


PARTE II

DONA MARIA DO POMPÉU:

SUA VIDA E SUAS HISTÓRIAS

30


31


DONA MARIA: SUA VIDA E SUAS HISTÓRIAS

33 Dona Maria do Pompéu

38 A vida na fazenda

41 Juventude e casamento de Maria

47 Enfim um sítio e a mudança

49 Assalto ou golpe?

51 Perdas e lutas

55 Vida que segue


33 Maria Torres Lima, nasceu a 12 de setembro do ano de 1930,

na Fazenda Patrocínio, a cerca de 20 quilômetros do centro

da cidade de Taquaraçu de Minas, no estado de Minas Gerais,

filha do casal José Soares Torres e Joselina de Araújo Lima.

Antes dela, nascera Vilson Soares Torres, seu irmão, que faleceria

aos três anos de idade, deixando Maria como a filha mais

velha dos 16 irmãos que lhe sucederam. A Fazenda Patrocínio,

era de seu avô, José Vital Torres, tendo sido herdada pelo pai.

Dona Maria do Pompéu, como é atualmente conhecida, lembra

que o nome “Fazenda”, hoje, nos faz pensar em ricas e

pomposas propriedades. No tempo de sua infância, nem todas

eram assim. Aos oito anos de idade, já ficava responsável pela

casa e por tomar contas das crianças mais novas, enquanto

seu pai ia pra lida na roça, e sua mãe saia para trabalhar em

outras propriedades mais prósperas no fabrico de doces, queijos

e outros serviços. A vida era difícil. Excetuando-se o sal


e o querosene, tudo que se consumia na fazenda era produzido

lá. Era comum a mãe trocar seu trabalho por esses dois

produtos não produzidos na fazenda. Com 90 anos de idade,

Dona Maria lembra ainda, com espantosa lucidez, de fatos

que marcaram a sua infância. Conta que três acontecimentos

foram muito marcantes em sua infância: O primeiro, que ela

diz lembrar “como se fosse hoje”, aconteceu quando tinha

dois anos. Num dia em que estava chorando, não sabe por

qual motivo, viu seu pai caminhar em sua direção, pegá-la

no colo e dizer:

− Vem aqui, minha fia, seu irmão morreu. Vamo lá pra sala

pro cê vê seu irmão morto.

Ela não recorda muito bem de sua reação, mas nunca esqueceu

aquele cenário triste. Outra lembrança que ela guarda

com muita ternura é de que ela adorava o leite de cabra que

seu pai, às vezes, lhe trazia quando ia numa fazenda vizinha

para fazer algum serviço. Daí, seu pai acabou por comprar

uma cabra e lhe dar de presente, na qual ela pôs o nome de

“Roseira”. Ela teria então dois anos e meio. Lembra que toda

vez que ela chorava a cabra vinha do terreiro, subia no fogão

a lenha e lá ficava à espera que fosse ordenhada por sua mãe

e o leite entregue a ela. Logo que ela bebia o leite, “Roseira”

descia do fogão e voltava aos seus filhotes.

34

O terceiro fato aconteceu quando ela iria fazer dez anos. Seu

avô, que ela chamava de Vovô Juca, prometera que tão logo

fosse à cidade iria lhe trazer de presente uma “travessinha”,

nome que se dava à uma espécie de pente ligeiramente curvo

para se prender os cabelos. Era a moda da época e ela pôs-se

ansiosa para que seu avô tivesse que ir à cidade para trazer-lhe


o desejado mimo. Ocorreu que, para sua decepção, vovô Juca

adoeceu e veio a falecer antes de ir à cidade. Ela ficou muito

“chorosa” e falava pra todos de sua falta de sorte:

− Vovô prometeu me dá uma travessinha,

mas demorô tanto ir na cidade, que morreu antes e quem

ficou sem a travessinha fui eu.

35

Passado algum tempo da morte do avô, numa tardezinha

quase noite, seus pais saíram para pescar com os meninos num

ribeirão que passava seus peixes a cem metros da fazenda. Ela

que não achava muita graça em pescaria, ficou em casa com

a irmãzinha menor que dormia. Ao escutar um barulho na

cozinha, achou que fossem os cães procurando alguma coisa

pra comer. Dirigiu-se para lá e qual não foi a sua surpresa

quando ela chegou na cozinha e lá estava o seu avô, com a

mesma roupa vermelha com que fora enterrado, sentado no

banquinho sobre o fogão a lenha, onde ele sempre se sentava

para jantar. Ela ficou muda por alguns instantes, depois saiu

gritando socorro casa afora e ganhou, sempre gritando por

socorro, o caminho que levava ao ribeirão, onde seus pais

pescavam com seus irmãos. Ao ouvir a gritaria da menina,

seus pais vieram correndo ao seu encontro, imaginando que

alguma desgraça houvera acontecido. Maria, no entanto, não

conseguia contar direito, tal o seu estado de choque. Então,

seu pai a balançou pelos ombros e disse:

− Calma, minha fia, calma! Sussega o coração, rispira e fala

o que tá acontecendo. É com Terezinha?

Entre soluços ela conseguiu falar:

− Não, pai, é vô Juca, ele tá sentado no banquinho do fugão.


Sô Neném Vital, que não era de acreditar nessas coisas, se

tranquilizou e tentou persuadir a menina:

− Ora Maria, isso é imaginação sua. Quem já morreu, morreu,

num volta mais.

− Mais eu vi pai. Iscutei um baruio na cuzinha e quando fui

ver o que era, era ele.

− Não pricisa de ter medo. Vamo lá e ocê vai ver que num

tem ninguém lá. É tudo imaginação.

Ela agarrou-se a sua mãe, enquanto o pai foi na frente. Entrou

em casa e, daí a pouco voltou trazendo uma lamparina acesa

na mão e dizendo:

− Pode vim gente, num tem nada aqui não.

36

Depois que seus irmãos também entraram e confirmaram

que nada de anormal havia na cozinha, Maria entrou ainda

trêmula e soluçando, enquanto jurava ter visto o avô sentado

no banquinho do fogão. Já era noite, todos comeram um

“mixidão’ e foram dormir.

No outro dia bem cedo, como de costume, seu pai e sua mãe

saíram para trabalhar, deixando-a ainda na cama, depois de

orientá-la sobre como cuidar da casa e dos irmãos. Pouco

depois, Maria levantou-se e foi para a cozinha dar início à

sua tarefa. Quando começou a limpar o fogão, outro susto:

A “travessinha” prometida pelo seu avô estava debaixo do

banquinho, onde ela o vira sentado.

Largou tudo, entrou para o quarto onde estavam seus irmãos,

trancou a porta e só abriu novamente depois que sua mãe


voltou do trabalho. Não quis ficar com a travessinha. Os

irmãos achavam que o pai, cansado das lamentações de Maria,

lhe comprara a travessinha e colocara lá no fogão. Isso não foi

confirmado. A mãe de Maria lançou mão do objeto e o colocou

dentro do oratório que abrigava a Santíssima Trindade.

Maria assegura que, quando casou e se mudou para sua casa,

a travessinha continuava no oratório.

37


A VIDA NA FAZENDA

A vida na fazenda não era nada fácil. Levantava-se muito

cedo para o café e logo depois, ordenhavam-se as vacas. Em

seguida, quem era capaz de segurar uma enxada já ia para o

eito. Maria costumava ficar com a mãe para ajudar a olhar

os filhos menores e a fazer o almoço que ela própria levava

em um balaio para quem tava no eito. Depois era tratar dos

animais e ajudar no fabrico de quitandas, queijo, manteiga,

lavar vasilhames, arrumar a casa e varrer terreiro, quando

algum irmão pedia, Maria trocava de serviço. Ia pro eito e

deixava a irmã com a mãe. Nessa espécie de rodízio, as mulheres

sabiam fazer de tudo. Costurar, passar, fazer quitandas,

capinar, bater pasto (roçar) , guiar bois de carro para arar a

terra, moer cana, operar o moinho d’água, etc.

Em tempos de moagem de cana, não se ia para o eito. Toda

a família se mobilizava no serviço. O engenho era movido

por duas juntas de bois. Eram dois dias de serviço, de madrugada

até à noite. Tudo era muito bem engendrado. O caldo

da cana descia do engenho por uma espécie de canaleta feita

com madeira de coqueiro e ia até a casa das fornalhas um

nível abaixo, onde caia em dois grandes tachos instalados em

uma das duas fornalhas, ali era fervido e transformado em

rapaduras e melado, numa quantidade que dava para o ano

inteiro. A produção era depositada no sótão da cozinha que

era muito extensa e dividida em dois compartimentos. No

segundo, por sobre o fogão, guardavam-se as carnes de porco

ou de boi, abatidos do rebanho da família e conservadas em

gordura para consumo na alimentação.

38

Um pouco abaixo do engenho, ficava o moinho d’água que


transformava o milho em fubá, canjicão ou canjiquinha, conforme

a demanda da fazenda para o trato de animais e da culinária,

uma vez que, em nenhuma refeição podia faltar o angu.

Outra coisa bastante peculiar eram os “banhos”. Esquentava se

a água em grandes tachos, colocava-se numa bacia e temperava

com água fria. Era comum que até três irmãos se banhassem

em apenas uma água. Primeiro lavava-se o rosto, enxugava-se

e depois os pés. E o banho tava tomado. Enxugavam-se os pés

e, como ninguém tinha calçado, ia-se na ponta dos calcanhares

até a cama.

39

Aos domingos, os homens banhavam-se no ribeirão após os

serviços essenciais que mesmo aos domingos não podiam ser

interrompidos. Ordenhar as vacas, tratar dos animais, etc.

Esses serviços, geralmente, eram feitos em alternância entre

os irmãos. A cada domingo, dois ficavam responsáveis pela

execução dos mesmos. Cada irmão tinha o seu cachorro e o

seu cavalo, eram tratados com muito carinho.

Nas noites de sábado, era comum aparecerem alguns visitantes

para conversar, jogar baralho, beber cachaça e tratarem

pescarias ou caçadas para o dia seguinte.

Quando não havia este tipo de programa, apareciam da mesma

forma e brincavam de tudo: cantiga de roda, quadrilha, jogo

de peteca, amarelinha, etc. As mulheres da casa gostavam mais

dessas atividades, porque podiam participar. Eram sempre as

mesmas pessoas: primos, sobrinhos e trabalhadores das fazendas

mais próximas.

Na despensa, pequeno quarto contiguo à cozinha, armazenavam-se

os grãos prontos para o consumo (já socados em


pilão e peneirados). Nas prateleiras superiores guardavam-se

os doces. As quitandas, biscoito de polvilho, roscas, bolos,

brevidades, etc., eram feitos na manhã de domingo em quantidade

para consumo durante a semana. Tudo era produzido na

fazenda, excetuando-se o sal e a querosene, que eram comprados

na cidade com o dinheiro da venda de queijos e serviços.

Era também com esse dinheiro, que Neném Vital comprava

cortes de tecidos para as costureiras da casa fazerem as roupas

de todos membros da família. Também não faltavam as lembrancinhas

para cada um dos filhos mais novos quando ia à

cidade, o que acontecia uma vez por mês. Quando ele chegava,

as crianças já corriam curiosas a perguntarem:

− Papai, o que o senhor trouxe pra mim?

− Nada, ora !

40

Mas todos sabiam que, com certeza, ele trouxera alguma coisa.


JUVENTUDE E CASAMENTO DE MARIA

Até completar dezoito anos, a vida de Maria seguiu seu curso,

alinhada com a rotina da fazenda. Agora já era cozinheira de

“mão cheia”, sabia costurar muito bem, guiava bois para arar a

terra, capinava, roçava, fazia quitandas, enfim, era uma moça

prendada e pronta para iniciar um namoro sério e pensar em

casamento. Mas, até então, nenhum dos rapazes que frequentavam

a fazenda chamava-lhe a atenção para tal propósito.

41

Aconteceu que houve um casamento nas redondezas. Toda a

família foi convidada, mas como Dona Joselina não passava

muito bem, somente seu pai foi à tal festa, numa fazenda que

ficava a cerca de dez quilômetros. Não ficou por lá muito

tempo, quando chegou, veio trazendo um amigo, Ismael,

que convidara para pernoitar em sua casa, para não ter que

cavalgar sozinho até a sua propriedade que ainda estava bem

longe. O moço aceitou o convite e ficou por lá. Maria já o

conhecia de vista, por causa das caçadas que fazia com seu

pai, embora nunca tivesse conversado com ele. Quando acordaram,

no domingo, Maria pôs a mesa de café, enquanto os

dois conversavam sobre a festa. Quando se sentaram à mesa,

Ismael convidou Maria para que sentasse também. Ela olhou

silenciosa para o pai esperando seu consentimento. Neném

Vital, fez o gosto do amigo e disse:

− Senta Maria!

Ela passou o tempo todo calada, respondendo a uma pergunta

ou outra sobre o fabrico das quitandas, que ele achara por

demais deliciosas. Ao saber ter sido a própria a preparar tudo

aquilo, se desmanchou em elogios e, antes de ir embora, já de

tardezinha, perguntou a Maria se podia pedi-la ao seu pai em


namoro. Maria ficou um pouco com vontade, um pouco com

medo da reação do pai, mas concordou. Fato foi que o pai

dela não se opôs e ao se despedir, Ismael já combinara votar

na terça-feira para dar curso ao namoro.

Ismael era viúvo. Tinha, então, 40 anos. Casara-se com uma

jovem de nome Leni Viana, com que tivera três filhos: Válter,

Vanda e Venício, que contavam, à época, cinco, quatro

e três anos, respectivamente. Morava numa casa próxima à

fazenda Bela Vista, que era de seu pai. As crianças ficavam

mais na fazenda, mimadas pelas tias e tios. De tudo isso ele

deu ciência à Maria e aos seus pais. Diante da preocupação de

dona Zelina com uma possível rejeição a uma madrasta, Ismael

explicou que não seria problema, pois construiria uma nova

casa, mais distante da fazenda e as crianças não morariam

com eles, pois suas irmãs jamais deixariam que os meninos

se separassem delas, visto que cuidavam dos mesmos desde a

morte da sua esposa.

42

Profissionalmente, além de ajudar os irmãos e o pai na administração

da fazenda, Ismael era “pau pra toda obra”. Pedreiro,

carpinteiro, boiadeiro e ainda aplicava injeção nos doentes

da região que ficava a mais de trinta quilômetros das cidades

de Jaboticatubas ou de Taquaraçu. Seu Tunico, pai de Ismael,

gabava-se de que nenhum serviço da fazenda demandava chamar

gente de fora pra dar conserto. Ismael resolvia tudo.

O namoro durou um ano ao fim do qual Ismael pediu a

mão de Maria em casamento. No dia 29 de setembro de

1949, Ismael e Maria casavam numa capelinha que ficava na

pequena comunidade de “Felipe” a cerca de 25 quilômetros

da fazenda. Maria fora vestida de noiva, cavalgando o mais


belo cavalo da família. Por azar, um dia antes do casamento,

houvera falecido um tio de Neném Vital, pai de Maria que,

em vista disso, cancelou o baile já marcado para acontecer a

noite inteira com sanfoneiros e violeiros dos arredores. Mas

o jantar e a mesa de doce foram caprichosamente preparados

por Dona Zelina e suas filhas.

Uma enorme turma de cavaleiros e amazonas acorreram à

fazenda dos Torres para celebrar o acontecimento e se fartaram

com as iguarias de Dona Zelina. Naquele tempo, finda

a festa do casamento, era normal o casal permanecer na casa

do pai da noiva por mais alguns dias. Assim, o casal só foi pra

casa construída por Ismael para abrigar sua nova família, no

sábado seguinte ao sábado do casamento.

43

Maria estava feliz. Gostava muito do marido e a casa construída

por Ismael era muito grande, arejada, com um grande

pé de amora no terreiro da sala, debaixo do qual havia um

banco, onde, às vezes, sentavam para conversar sobra o cotidiano.

A essa casa, Ismael deu o nome de “Fazenda das Minhocas”.

Mesmo trabalhando na fazenda do pai, Ismael tinha seus

negócios particulares. Vendia e comprava gado, fazia serviços

pra terceiros e tinha uma vida que se podia chamar de

próspera. Um fato interessante, é que os filhos de Ismael, do

primeiro casamento, foram visitar o pai na casa nova.

Maria, que já tinha todo costume de lidar com crianças, brincou

com elas todas as brincadeiras que sabia. Nesse mesmo

dia já começaram a negociar com o pai a vinda deles pra casa

nova, como Maria não se opunha a isso, também gostara dos

garotos, em poucos dias já estavam morando com o casal.


Maria se engravidara logo e um ano depois, em 1950, nascia o

primeiro filho do casal, ao qual deram o nome de Camilo. O

bebê, porém, nascera com problemas de saúde e veio a falecer

cinco dias após o nascimento, para o desconsolo de todos.

Um ano depois, em 17 de julho de 1951, nascia o segundo filho,

Silas. Esse sim, com saúde e robustez, restaurando a alegria na

fazenda. Depois desse, vieram Joel e Maria Flávia. Os serviços

eram praticamente os mesmos de sua casa, só que agora eram

apenas duas pessoas para cuidar de tudo, Maria nunca deixava

a desejar. Levava um grande balaio para a roça, colocava os

meninos dentro, colocava o balaio debaixo de uma árvore e

ajudava Ismael no eito.

Nesse tempo, Ismael começou a se preocupar com seus três

primeiros filhos. Eles já alcançavam a idade escolar e lá na roça

não havia escola. Somente em Jaboticatubas, a mais de 20 quilômetros

e tinha-se que ir a cavalo. Não havia estradas. Maria

procurava ensinar o pouco que houvera aprendido com uma

tia que improvisara uma escolinha para os sobrinhos numa

estrebaria de cavalos. Mas era muito pouco. Ismael não queria

aquela vida para os seus filhos. Além disso, a terra já andava

bastante empobrecida, os pastos cada vez piores... Conversou

com Maria e falou que iria visitar algumas cidades procurando

um pequeno sítio que lhe agradasse. Daí, venderia a fazenda e

mudava-se para algum lugar que desse aos meninos condições

de frequentar uma escola.

44


45

ISMAEL, MARIA E OS FILHOS: DA ESQUERDA PARA A DIREITA,

EM PÉ: SILAS, JOEL, ADEMAR, LEONÍDIA E MARIA FLÁVIA. NO

COLO DE MARIA, ERNANE. – FOTO DE 1960


FOTO ATUAL DA FAZENDA PATROCÍNIO EM TAQUARAÇU DE MINAS-MG,

ONDE NASCEU DONA MARIA DO POMPÉU A 12 DE SETEMBRO DE 1930.

UM DOS IRMÃOS DE MARIA AINDA RESIDE NA FAZENDA.

46


ENFIM UM SÍTIO E A MUDANÇA

47

Ismael andou por várias cidades circunvizinhas. Foi a Caeté,

Taquaraçu, Jaboticatubas, Lagoa Santa, Santa Luzia, mas não

achara nada do seu agrado. Quando ficou sabendo de uma

pequena chácara no arraial de Pompéu, a sete quilômetros

do centro de Sabará, Ismael gostou do sítio. Era trinta vezes

menor que a fazenda. Cerca de 50 mil metros quadrados

,porém era muito bem cuidado! Mais de 100 pés de laranjas

de várias espécies, mais de 30 pés de caqui, 10 parreiras de

uvas, mangueiras, bananeiras, um moinho d’água e o principal:

muita água. Parte vinha de uma serra conhecida como Pedra

Rachada. Essa era a que movia o moinho. Havia, também,

uma nascente no próprio terreno. Além de tudo isso, funcionava

no lugar, uma escola rural que ensinava até o terceiro

ano primário. Ismael não teve dúvida. Procurou o então dono

do sítio, Dr. Willians, um dos diretores da Cia. Siderúrgica

Belgo Mineira, obeso e de rosadas bochechas, para iniciar as

negociações. Depois de idas e vindas às duas propriedades,

entraram num acordo. Dr. Willians ficaria com a fazenda.

Passaria a chácara para Ismael e daria de volta uma boa soma

em dinheiro. O plano de Ismael era, com esse dinheiro, construir

uma pequena vila na chácara e passar a viver do aluguel

dessas moradias. Maria era informada de tudo, mas só veio

a conhecer a chácara no dia que Ismael a trouxe para assinar

os papéis relativos à negociação.

A partir desse dia, Ismael contratou um caseiro para tomar

conta da chácara, enquanto ele iniciava o processo de

mudança. Primeiro vendeu sua criação de porcos, cerca de 300

cabeças e comprou outras 300 em Sabará e colocou no sítio

aos cuidados do caseiro. Vendeu também o pouco gado que


tinha e ficou esperando que Dr. Willians lhe enviasse o caminhão

para a mudança, conforme acordo. Uma semana depois,

em março de 1955, o caminhão chegara. Os móveis da fazenda

eram pouco. Camas, mesas e cadeiras, bancos, vasilhame de

cozinha e só. Maria aboletou na boleia do caminhão com os

três filhos nascidos na fazenda: Silas, Joel e Maria Flávia.

Ismael veio na carroceria, junto com os móveis. Na saída da

fazenda, quase chorou. Silas, que adorava pescar no ribeirão,

de quando em vez, perguntava pra ela na boleia do caminhão:

_ Mãe, é verdade que lá perto da casa nova tem um rio?

Maria o tranquilizava:

_ Sim meu fio, tem um rio mais bonito do que o da fazenda.

Chegando ao Pompéu, descarregaram-se os móveis e passaram

a viver na Chácara. Silas ficara apaixonado pelo rio ,mas era

muito profundo e só podia se beneficiar dele acompanhado

pelos pais.

48

A pedido de Dr. Willians, Ismael lhe concedera 20 dias para o

pagamento da alta quantia que seria a contrapartida na troca

das propriedades.


ASSALTO OU GOLPE?

Passados os vinte dias dados por Ismael para que Dr. Willians

fizesse o pagamento, ele compareceu no sítio com uma pasta

repleta de dinheiro. Pediu que Ismael conferisse a quantia, o

que ele fez e comprovou que estava tudo certo. Após alguns

dias, Ismael argumentou com Maria que era melhor que eles

fossem à cidade e depositassem o dinheiro no banco, pois não

era aconselhável guardar tanto dinheiro em casa. No outro

dia foram à cidade, Ismael e Maria, levando Silas. Os dois

menores ficaram com a vizinha.

Aconteceu que, quando chegaram ao banco, não havia mais

tempo para a transação. O banco já houvera fechado.

49

Antes de vir embora, Ismael resolveu passar na casa do Dr.

Willians para cumprimentá-lo. Na casa dele, tomaram um

suculento café. Enquanto esperavam a hora do trem, Ismael

contou como ia as coisas na chácara e de como se chateara ao

encontrar o banco fechado, razão pela qual não conseguira

depositar o dinheiro.

Dada a hora do trem Ismael despediu-se de Dr. Willians, indo

para a estação siderúrgica. Quando o trem chegou, subiram

algumas pessoas, entre elas, dois rapazes desconhecidos. Ismael

subiu na frente para marcar o lugar. Sentou-se num lugar

mais ou menos no meio do vagão e colocou a pasta com o

dinheiro no canto. Ao olhar para trás, um dos dois rapazes

houvera dado um empurrão em Maria, que quase caiu com

Silas. Ismael considerou que o empurrão foi voluntário.

Levantou-se e foi tirar satisfação com o rapaz. Na discussão, o

rapaz explicou que escorregara, que não fora intencional, que

ele estava muito nervoso, que ninguém tinha se machucado.


Ismael resolveu “deixar pra lá”. Voltou ao seu lugar. A pasta

de dinheiro tinha sido levada por alguém. Percorreu todos os

vagões, perguntou muita gente, mas ninguém tinha visto a

tal pasta. Maria argumentou com Ismael que os dois rapazes

desconhecidos que pegaram o trem na mesma estação não

estavam mais no trem. Nem o que a empurrou nem o outro.

Ismael confirmou isso e concluiu que de alguma forma os

dois sabiam que estava com o dinheiro e que o empurrão em

Maria foi proposital para tirá-lo de perto do dinheiro. Teriam

percebido isso na porta do banco ou Dr. Willians comentara

com alguém? Não sabia, nem importava saber agora.

Seus planos de construir uma vila na chácara foram por água

abaixo. A maioria das pessoas apostava ter sido o próprio

Dr. Willians que mandara seus capangas pegarem a mala.

Ismael ficava na dúvida. Não podia provar nada. Certo é,

que segundo Maria, Ismael nunca mais foi o mesmo homem.

Passara uns dias chorando escondido pelos cantos da casa,

ficara mais calado, perdera muito de sua vivacidade, já não

se interessava pelos serviços da chácara e assim viveu muito

tempo até que as coisas foram voltando ao normal.

50


PERDAS E LUTAS

Tudo corria mais ou menos bem com a família, quando Maria

passou pela primeira grande perda de sua vida. Ismael adoeceu,

foi para o hospital, teve complicações respiratórias e veio

a falecer em agosto de 1982. Foram dias de muita tristeza na

chácara. Ismael tinha lá seus defeitos, mas era um homem

bom, honesto, solidário e, embora desse uma surra nesse ou

naquele filho quando achava necessário, jamais levantou a

mão pra Maria. Toda a comunidade também sentiu a perda.

51

Vida que se seguiu. Conhecida por seus dons culinários, alguns

anos depois da morte do esposo, Maria foi convidada a participar

de uma feira agrícola no centro da cidade. Ela teria uma

barraca, onde poderia comercializar os produtos da chácara

e seus quitutes. Com Ismael vivo, isso seria impossível. Ele

jamais consentiria, mas agora... Além disso ela gostava de

lidar com o povo. Aceitou e começou a participar da feira.

Além de ganhar um bom dinheiro, a feira era uma distração

muito importante pra Maria. Todo sábado o caminhão da Prefeitura

vinha pegar sua mercadoria às 05h00 e, geralmente,

só chegava em casa às 14h00.

Cada vez mais conhecida, já como “Dona Maria do Pompéu”,

Maria recebia em sua casa, durante a semana, muitas pessoas

que vinham por indicação de alguém, para que ela servisse

almoço, o que começou a configurar o seu sonho de um dia

ter um restaurante. Chegou a conversar com Ismael, mas ele

nem a deixara terminar.

− Não, mulher minha não vai trabalhar servindo os outros.

Nem! De jeito nenhum!


Em 1995, deu-se o fato da marrecada introduzida na chácara

por sugestão de um argentino, conforme narrado na abertura

deste livro e que veio transformar a vida de toda a família.

Em 2002, mais uma perda. Seu filho Ernane da Fonseca veio a

falecer aos 41 anos de idade, vítima de doenças causadas pelo

álcool 13 anos depois, em 2015, aos 42 anos de idade falecia

outro filho: Antônio José da Fonseca, também por doenças

advindas do vício do álcool.

52


53


ISMAEL COM SEUS DOIS IRMÃOS, CELSO E DUARTE

54


VIDA QUE SEGUE

55

Dona Maria do Pompéu tem hoje 90 anos. Seu humor ainda

é o mesmo. Nos fins de semana, em seu restaurante, ocupa-se

de vender os doces que ela própria faz. Nos dias úteis continua

servindo comida para quem a procura em sua casa. Nesses

dias, gosta de contar a sua e outras histórias para clientes.

Geralmente a comida é servida no terreiro, numa mesa tosca,

sob um frondoso pé de jabuticaba. Quase todo visitante que

vem pela primeira vez, se encanta com sua simplicidade, com

seu riso fácil e, principalmente, com a história de “como tudo

aconteceu”. Seu restaurante, no bairro Pompéu, a 5 km do

centro histórico de Sabará, continua atraindo milhares de

clientes. Depois que ela montou o restaurante, outros três já se

instalaram no pequeno povoado, mas o seu continua sendo o

referencial gastronômico local. Não há luxo, só simplicidade!

Parece que ao seu redor tudo capta-lhe a graça e alegria de

viver e de servir. Às vezes, os filhos brincam com ela:

− Mamãe, a senhora anda muito sozinha.

Nós vamos arrumar um marido pra senhora.

− Uai, se for igual no meu sonho, eu quero.

− Pois a gente procura até achar.

Como é o marido que a senhora sonha?

− Bem novo, que de veia basta eu.

Que seja bem alegre e goste muito de viver e,

principalmente, que não tenha “pinto”.




PARTE III

APRESENTAÇÃO PELO AUTOR E SEUS CONTOS



III

APRESENTAÇÃO PELO AUTOR E SEUS CONTOS

61 Silas da Fonseca

62 Mamãe

63 Homenagem

67 A Gagueira de Joel

73 O trem

78 Primeiro de Abril


Meu nome é Silas da Fonseca, filho mais velho dessa mulher

única, guerreira, solidária, de uma fibra inenarrável que fez

dela um símbolo de trabalho e luta pela comunidade.

61

Pode-se dizer, sem nenhum medo de erro, que Dona Maria fez

com que o Pompéu fosse conhecido e divulgado como centro

gastronômico em todo o estado de Minas Gerais e fora dele.

Co-criadora do Festival do ora-pro-nóbis de Sabará, hoje, aos

noventa anos de idade, Dona Maria encontra-se com plena

lucidez. Seu restaurante que, também, leva o seu nome ,“Dona

Maria do Pompéu,” já recebeu vários artistas de todas as partes

do país, políticos de todos os estados, secretários de estado,

bispos, procurador da república, turistas de várias nacionalidades...

todos eles ansiosos por bater um papo ou tirar uma

foto com a famosa “personagem”. Ela finge que não gosta de

ser assediada, mas adora quando recebe, anualmente, jornalistas

de várias redes de televisão e jornal para dar entrevista

e contar sua história sobre a marrecada.

Eu, que sempre gostei de ler e escrever, acalentava em mim

o sonho de um dia publicar a sua história. Esta oportunidade

chegou em boa hora, oportunizando-me homenagear essa

mulher maravilhosa que, por coincidência é minha mãe. O que

mais me cativa nela é o seu humor. Sempre dada a brincadeiras

e bate-papos, está sempre se envolvendo em histórias e casos

engraçados na família e fora dela. A seguir, faço um relato de

alguns desses casos para que os leitores tenham uma ideia de

como essa mulher é fantástica!


MAMÃE

Mamãe,

quero agradecer-te

teu pranto sofrido,

teu sono perdido,

as horas de dor...

A ternura do teu olhar

teu doce ninar

e as lágrimas incontidas

molhadas de amor.

Mamãe,

a tua imagem

é como mensagem!

Mensagem de paz,

de amor, de perdão...

Tu és o sol da manhã,

razão do meu ser

e para te agradecer

fiz esta canção.

Mamãe, mamãe...

te amo demais!

Sei que jamais

vou te esquecer.

Como prova de amor

eu trouxe esta flor

pra te oferecer.


HOMENAGEM

(Para a minha mãe)

Sua bondade

é uma chave azul

que abre de norte a sul

um enorme sorriso

em meu coração.

Sua mão amiga,

acolhe, afaga, abriga...

irradia uma paz

que somente a graça divina

pode fazê-la capaz.

Que Deus mantenha sempre aceso

em seu coração,

esse farol,

esse facho de luz.

E assim,

do nascer ao pôr do sol

você possa iluminar o caminho

de cada irmãozinho

em busca de Jesus.





A GAGUEIRA DO JOEL

Joel nascera como todos os outros bebês de sua época o que em

nada contrariava o brio da família. Mais tarde, porém, contra

toda e qualquer lógica da hereditariedade, meu irmão manifestou-se

gago. Não era, verdade seja dita, aquela gagueira de

babar-se todo, engrossar a veia do pescoço e fazer terraplenagem

com os pés. Nada disso! A gagueira de Joel limitava-se

a uma meia dúzia de pô-pô-pôs que ele pronunciava, diga-se

de passagem, até com um certo charme, a cada duas ou três

palavras. Mamãe acreditava ser isso um vício infantil, sendo

tudo uma questão de dar tempo ao tempo. E assim ela pensou

até o dia em que Joel rompeu porta da cozinha adentro, quase

sem fôlego, tentando explicar o que tava acontecendo.

67

− Mãe, pô-pô-pô Maria Flávia...

− O que que tem sua irmã?

− É pô-pô-pô, ela...

− Tô ocupada Joel, num tá vendo? Vê se fala direito!

− Mãe, pô-pô-pô Maria Flávia...

−Até aí cê já contou. Fala o resto!

− É que ela pô-pô-pô caiu no pô-pô-pô poço de peixe!

− No POÇO? Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, mãe de

Deus!

Saimos todos correndo e quando chegamos ao poço que ficava

no fundo do quintal, minha irmã já havia bebido uns cinco

litros do precioso líquido. Meu pai, pressionando o ventre

dela contra o chão, obrigou-a a devolver ao poço toda a água


indevidamente surrupiada e, dali a pouco, Maria Flávia estava

melhor do que Joel, que ainda não havia recuperado a sua

cor natural.

Apesar de tudo ter voltado ao normal, minha mãe entendeu

que era hora de se preocupar com a gagueira de Joel, ou

alguém ainda acabaria morrendo por causa dela. Foi a era

dos chás, no sítio. Tudo quanto era ramo que ensinavam para

minha mãe virava uma xaropada pro coitado do Joel. Cipó

cabeludo, cipó torcido, pau pelado, orelha de cachorro, cabelo

de milho, raiz de num sei o quê... depois vieram as folhas: mijo

de gato, capeba, babosa, jurubeba... e tome xarope. Mas nada

disso fazia efeito. Ao contrário, alguns membros da família,

mais espertos em cálculos matemáticos, descobriram que Joel

houvera aumentado um “pô” na segunda sequência de “pôs”

que mantinha antes dos xaropes. Às vezes, as pessoas tentavam

ajudá-lo. Tudo em vão. Como no caso do açougue que atendia

ao Joel nas encomendas de minha mãe:

68

− Pô-pô-pô, Sô Luiz, eu quero um quilo de carne de

pô-pô-pô...

− Já sei! Você quer um quilo de carne de porco!

− Não! É de pô-pô-pô, de boi.

Minha mãe já começava a desistir de suas xaropadas e simpatias

para acabar com aquilo, quando passou lá no sítio um tal

de “Inhô Cumpade”, um tropeiro que vendia lenha na cidade.

Passou lá levando um “miozinho que ele mesmo cuieu no terrerin

da bitaca lá na serra e que era pra Inhá Cumade fazê o

favô de muiê” pra ele.


Quando Inhô Cumpade chegou ao portão, deu de ouvido com

o pô-pô-pô de Joel.

− Inhá Cumade tá in casa, mô fio?

− Pois inhozinho me chame ela pra eu?

Dali mesmo, do portão, Joel foi berrando:

− Manhê, pô-pô-pô tem gente chamando.

No que minha mãe veio, Inhô Cumpade quis saber “que diabo

era aquilo” e, após as explicações de minha mãe, veio com

mais uma receita:

69

−Ora, Inhá Cumade, pois isso é muito face de sê curado!

Ora pois, já curei incondo muito pió. Se Inhá quisé vô

insiná um jêtio de acabá com isso.

− Mas é claro que quero, Inhô Cumpade! Já fiz de tudo que

me ensinaram e até hoje nada deu resultado...

– Pois entonces, Inhá preste atenção.

Inhá Cumade vai pô sintido num jêtio de passar um sustin

dos bruto no minino. Carece de sê um susto dos bão, assim,

de bambiá as pirninha dele.

Adispois disso Inhá Cumade, acabô-se!

O caboclinho vai falá mais doce qui padre em sermão de

Semana Santa, Deus que me perdoe e vai inventá mais

prosa que deputado em tempo de leição.

– Uai, Cumpade, então eu vou experimentar.

– Isperimente, Inhá, isperimente, e adispois me conte!


Inhô Cumpadi foi embora deixando minha mãe a pensar

numa maneira de passar um susto bem forte em Joel. Pensou

em abrir um concurso em família para tal empreitada. Recuou.

Isso poderia fazer vazar seu intento e chegar aos ouvidos da

futura vítima. Assim, ela mesma planejou tudo. Somente eu,

envolvido na parte operacional do plano, tive acesso ao projeto

antes de sua execução.

Era o seguinte: Seriam jogados dois quilos de milho no rodízio

do moinho d’água que fica lá embaixo, onde a água bate

com força. Joel seria incumbido de catar o milho e, para isso,

a água que move o moinho seria represada por uma hora,

tempo mais que suficiente para que ele desse conta da tarefa.

Só que, em meio à tarefa, a um sinal de minha mãe eu soltaria

a água represada, de modo que ela descesse com toda a força

possível e desse no “caboclinho” um susto com a grandeza

encomendada por Inhô Cumpade.

70

Achei o plano o maior barato! Não que eu me preocupasse

com os pô-pô-pôs do meu irmão. Eu apanhava dele todo dia.

Eu seria capaz de pagar ingresso pra assistir ao espetáculo. Participar

dele, então, tinha um gostinho temperado de vingança.

Tudo foi preparado. A água foi represada e Joel foi catar o

milho. Quando minha mãe deu sinal para soltar a água, eu

tirei a comporta de uma só vez e o que passou por mim mais

parecia uma enchente de São José. A água descia com uma

força avassaladora, levando consigo tudo que era lixo recolhido

às margens do córrego: casca de banana, mamucha de

laranja, folha de cana, casca de coco, toco de pau podre, casca

de jabuticaba e tudo mais que encontrava pela frente .


Quando ela bateu lá embaixo no rodízio, um grito de pavor se

fez ouvir a distância. A expectativa de minha mãe não durou

mais que cinco segundos. Todo molhado, meio amarelo, meio

roxo, com cara de poucos amigos, Joel apareceu puxando seus

próprios cabelos e gritando:

– Pô-pô-pô-pô-pô-pô-pô que merda, sô! Pô-pô-pô-pô-pô-

-pô-pô-pô-pô num tá pô-pô-pô-pô-pô me vendo pô-pô-pô-

-pô aqui não?

Eu, que não sou idiota nem nada, tratei de dar no pé.

Minha mãe não gosta que eu conte, mas eu sou capaz de jurar

que naquele dia, Joel babou-se todo, engrossou a veia do pescoço

e raspou terra com os pés.

71


72


O TREM

Era dia 17 de julho, aniversário da cidade de Sabará, e na

programação constava uma “noite de seresta” com a cantora

Ângela Maria, que seria na Praça Santa Rita. Ainda molecote

e morando em Pompéu, minhas chances de ver um evento

daquela natureza eram de duas em um milhão. Não havia

qualquer tipo de transporte para se chegar à cidade e, para

voltar, somente o “noturno”, trem de passageiros da Central

do Brasil, que subia às onze da noite. Daí, ver de perto uma

cantora que eu só ouvia pelo rádio, era tão somente um sonho.

73

Por volta das seis da tarde do dia marcado para a seresta,

quando entrei na cozinha, meu pai estava sentado num banquinho

sobre o fogão a lenha, contando os seus “cobres”, nome

que ele dava ao dinheiro. Acabou de contar, voltou com o

pequeno maço de notas pro bolso e anunciou:

− Maria, eu vô na seresta, hoje!

− Pois eu num vô nesse trem, nem que me pague!

Apenas para não deixar a conversa de minha mãe dependurada

no silêncio que se fez, emendei:

− Ô pai, hoje é meu aniversário também! O senhor bem que

podia me levar!

Meu pai ficou em silêncio por alguns instantes como se nem

tivesse ouvido, depois respondeu:

− Se qué i, pede sua mãe pra te arrumá!

Não podia ser verdade. Eu teria ouvido bem? Fiquei com

medo de refazer a pergunta e quebrar o encanto daquela


possibilidade. E foi o meu pai que voltou a falar:

− Se vai, vai arrumá logo que já tô é saindo!

Mamãe rezou uma meia dúzia de argumentos para eu desistir,

mas na verdade, não ouvi uma só palavra do que ela disse e,

em dez minutos, eu e meu pai descíamos à beira linha rumo

à cidade. Chegamos à praça por volta de oito horas da noite.

A seresta seria às dez.

Enquanto isso, fomos ao bar da esquina, onde meu pai pediu

uma cerveja pra ele e um guaraná e um sanduiche de salame

pra mim. Era o máximo! O ir e vir das pessoas, as luzes... e

eu ali. Talvez fosse o único menino da minha idade sentado

à mesa do bar. Eu já pensava em eleger aquela como a noite

mais feliz de minha vida, quando lá fora um corre-corre me

chamou a atenção. Arregalei os olhos e não acreditei. Estava

chovendo! Aquela chuvinha fina, pirracenta, sem força, sem

pressa... depois foi aumentando, aumentando e, daí a pouco

soube-se que não haveria mais a seresta. Saímos a pé, debaixo

daquela droga de chuva e fomos para a Praça da Matriz, de

onde meu pai me arrastou para um dos botecos. Lá, encontrou-se

com um tal Joaquim sei lá das quantas, começaram

com seus casos de caçada entre uma e outra cachacinha.

74

Após a morte de vários tatus, pacas, veados, quatis, capivara,

perdizes, pombas e similares, em encenações que mereciam

um roteiro cinematográfico, num tiroteio que não tinha fim,

meu pai despediu-se da turma, tomou a quinta “saideira” e

fomos pra estação esperar o trem. Enquanto o trem não chegava,

sô Ismael ia dizendo ser um desaforo a gente sair do

Pompéu, tomar chuva e não ver “merda de seresta nenhuma”.


Aí veio a sua mente privilegiada a sensacional decisão:

− Qué sabê? Eu num vô pagá passage daqui ali, nem...

− Mas, pai, e o chefe?

Se não tiver passagem ele cobra multa.

− Uai, dô ele duas passage veia!

Dizendo isso, ele apanhou duas passagens velhas, já picotadas,

no chão da estação e enfiou no bolso de dentro do paletó..

Fiquei pasmo! Se eu bem conhecia o velho ele ia mesmo dar

aquelas passagens pro chefe.

75

O trem parou, entramos e nos acomodamos. Meu coração não

cabia dentro do peito. E na hora em que o chefe chegasse? Na

verdade, era pouco mais de quatro minutos de viagem, mas

e daí? Tinha que pagar! Estávamos passando por sobre um

viaduto quando o chefe entrou no nosso vagão. Vinha virando-se

de um lado para o outro dos bancos enquanto gritava:

– Passagem, por favor, passagem, por favor...

Tentei falar com o velho. Ele mandou eu calar a boca!

− Nem um pio! Sentenciou.

Pensei que iria desmaiar. O chefe chegou onde estávamos.

− Passagem, por favor!

Meu pai, para o meu espanto, fingia dormir, roncando em

alto e mau som.

− Passagem, meu senhor!

Exclamou o chefe já balançando o meu pai pelos ombros.


O velho resmungou, tossiu três vezes, abriu primeiro o olho

esquerdo, depois o direito, voltou a tossir e balbuciou:

− Ham? Heim? O quê?

− A passagem, meu senhor!

Balançando a cabeça de um lado para o outro, parecendo estar

mais bêbado do que na realidade estava, meu pai fingiu procurar

as passagens duas vezes em cada bolso interno e externo

do paletó e já diante da irritação do chefe, tirou de um deles

as duas passagens velhas e entregou-lhe.

−Ah, tá aqui, as danada!

O chefe pegou as passagens e foi logo exclamando:

− O senhor deve estar brincando!

Estas passagens são velhas!

76

− Que mi importa me lá?

Seu chefe é que me vendeu lá na estação.

− Olha, pra onde o senhor tá indo?

− Pra Santa Bárbara.

Enquanto eu tremia de medo, meu pai continuava discutindo

com o Chefe, o trem surpreendia o silêncio das primeiras

casas do Pompéu, enfileiradas, à margem do rio.

− Olha, meu senhor, eu vou ter que chamar o comandante

de viagem, o senhor não pode viajar com estas passagens.

− Que me importa? Chama quem ocê quisé!


O Chefe, fulo de raiva, dirigiu-se ao vagão de comando, exatamente

quando o trem chiava os freios na pequena paradinha

do Pompéu. Papai arrastou-me vagão afora e pulamos do

trem. Eram quinze segundos de parada. Mal o trem parou,

já foi apitando e colocando-se novamente em movimento.

Apeamos sem pagar.

Sô Ismael, lançando o olhar para o vagão de comando, gritou

com entusiasmo de vencedor.

− Alá, cambada de bocó! Cobra de mim, cobra?!...

77

Não deu quatro passos.

Escorregou e caiu esparramado numa poça de lama. Um

tombo e tanto! Levantou-se, bateu com as mãos no fundilhos

enlameados da calça e gritou novamente, virando-se para o

trem que já sumia na curva a mais de cem metros:

− Vai rogá praga na sua mãe, capeta dos inferno!


PRIMEIRO DE ABRIL

Em matéria de primeiro de abril, minha mãe só perde mesmo

pro Governo Federal que vive passando primeiro de abril em

todos nós o tempo todo, em qualquer dia de qualquer mês.

Meu pai, muito ocupado para ficar prestando tento nessas

peculiaridades de pouca ou nenhuma importância do nosso

calendário, era o alvo preferido de minha mãe. Num primeiro

de abril andou oito quilômetros para castrar um porco no

terreiro de uma família recém- chegada ao bairro, que não

criava nem galinhas. E qual não foi o susto da dona de casa

quando atendeu a porta e o meu pai foi anunciando:

− Seu marido tá in casa?

− Tá sim.

− Chama ele. Vim capá o bicho!

78

Num outro primeiro de abril, D. Maria arranjou uma injeção

pro Sô Ismael aplicar a nove quilômetros de distância. Depois

de preparar toda a sua parafernália de enfermeiro comunitário,

desinfetar seringa e coisa e tal, lá foi velho. Em lá chegando,

não encontrou ninguém da família, sendo informado

por um dos vizinhos que todos viajaram em gozo de férias

e de muito boa saúde para o litoral. Sô Ismael era homem de

se irritar por pouca coisa? Não, não era. Ficava um meio dia

de cara assim, meio amarrada, sem conversar e ignorando as

ironias da prole, tipo: “Ô pai, o moço melhorou com a injeção?”

Mas daí a pouco era o mesmo homem, conversador e

contador de causos.

Da última vez, minha mãe tirou o velho da cama às 06h00 da

manhã de um primeiro de abril, inventando-lhe: “uma porta


para assentar na casa de compadre Tinoca”.

Ora, compadre Tinoca, não pedia, mandava! Era amigo do

peito! E lá se foi meu pai com o seu alforje de couro entupetado

de ferramentas, cabo do formão sobrando pra fora

e o serrote grande sobre o ombro direito, a balançar para

cima e para baixo ao compasso dos seus passos. Daquela vez,

estranhamente, meu pai não voltara logo. Já eram 14h00, e,

nada! Minha mãe já começava a ficar preocupada, quando o

Sô Ismael velho de guerra apareceu na curva da estrada em

complicados zigue-zagues. Daquela vez, chegou falador.

79

− Pois é, cê quis passá primero de abril ni mim e se danô.

Cumpadre Tinoca tinha matado um porco e, aí, nós ficô lá

bebendo golo e jogando truco até agora. E a cumadre Maria

falô assim, que se ocê quisé aproveitá as tripa pra fazê choriço,

é pro cê i lá, purquê ela não vai mexê cum isso não.

Minha mãe armou-se de bacia, foi até a horta, colheu salsa,

cebolinha, pegou canudo de talo da folha de mamão pra assoprar

as tripas e desceu a rua. Chegando à casa do Compadre

Tinoca, encarou a cara de espanto da Comadre Maria e foi

logo dizendo:

−Vim fazê o choriço, Comadre!

D. Maria de Tinoca, ainda surpresa, perguntou:

− Uai, comadre, que choriço?

Foi a vez de minha mãe ficar o dia todo sem conversar com

ninguém. Vez por outra, meu pai entrava na cozinha ainda

curando a sua bebedeira e exclamava:


−Tomô, mula veia?

80


81

DONA MARIA E LEONÍDIA, UMA DE SUAS FILHAS


PARTE IV

A HISTÓRIA DO POMPÉU


83


84


85 Há muitos e muitos anos, quando o rio passava calmamente os

seus peixes em águas puras e cristalinas, esse lugar nem tinha

nome. A partir do século XVI, com o aparecimento do ouro

em toda a região do Sabarabuçu, aqui chegou o Cel. José Pompéu,

homem de pulso forte, que comandava as minas de ouro

e, que, segundo alguns historiadores, mandou erigir a Capelinha

de Santo Antônio, por volta de 1926. O Cel. Pompéu era

tão popular e tinha tanta influência que as pessoas vindas de

outros lugares anunciavam estarem vindo no “Cel. Pompéu”.

Quando deu-se a escassez do ouro, parece ter o coronel perdido

a sua patente, mas o nome Pompéu nos ficou como registro

de suas venturas e desventuras por estas bandas. Já no

século XX, o Pompéu não passava de um pequeno povoado

com uma dúzia de residências e pertencia, geograficamente,

ao Distrito de Mestre Caetano, localizado a três quilômetros

no sentido Caeté, margeando o rio, onde se instalara a


Companhia de Mineração Morro Velho, que explorava a

mineração subterrânea de ouro. Tudo no Distrito girava em

torno da mineração. A empresa lá construiu casas geminadas

para abrigar seus operários e suas famílias. Havia um casarão

de estilo colonial, construído para funcionar como Hospital

de combate à febre amarela. O comércio era bastante ativo,

com armazéns e lojas de variedades onde podia-se encontrar

de tudo que fosse necessário à vida da comunidade. A Central

do Brasil tinha lá sua estação com um bom número de

operários, uma vez que sob sua responsabilidade recaia todo

o trecho da ferrovia entre Sabará e Caeté.

A vida cultural local também era intensa, com banda de

música, grupo de congados e festas religiosas tradicionais.

Por volta de 1938, tendo estourado a primeira guerra mundial,

foi interrompida no Brasil, a importação de explosivos, matéria

prima fundamental para a produção nas minas. Frente a

isso, a mina fechou as portas e o distrito de Mestre Caetano foi

submetido a um cruel processo de decadência social. Alguns

operários resistiram por algum tempo à ideia de abandonar

o local. Mas não havia mais sentido morar ali.

86

Nesse ínterim, surge na cidade, a Cia. Siderúrgica Belgo

Mineira com seus alto-fornos para a produção de aço. Para

sustentar as atividades dos fornos, duas empresas chegaram ao

Pompéu. Uma Mineração Trindade, que explorava as minas

de minério e a Companhia Agrícola Florestal, que cuidava do

reflorestamento através da plantação de eucaliptos, visando

a produção de carvão para os alto-fornos.

Nos locais próximos à mineração, aos quais deram o nome de


Segredo, e Córrego do Meio, cerca de 200 casas de madeiras

foram construídas para abrigar os operários das duas empresas,

a maioria deles vindos da cidade de Carandaí-MG. Com

isso, o comércio antes intenso em Mestre Caetano, transferiu-

-se para o Pompéu, com a construção de um armazém muito

amplo que fornecia todo tipo de mercadoria para os operários,

através de anotações, em cadernetas, mensalmente quitadas

pela empresa, que procedia o desconto da despesa de cada

funcionário em seu salário.

Por volta dos anos 60, os alto-fornos foram transferidos para

Ipatinga, a mineração foi desativada e a Cia de Reflorestamento

teve rescindido o seu contrato.

87

A mineradora indenizou devidamente os seus operários e

deu-lhes seis meses de prazo para desocuparem as casas de

madeiras. Diante disso, os operários fizeram ao Sr. Raimundo

Américo, fazendeiro do Pompéu que tinha em sua propriedade

um terreno, às margens do rio, usado como campo de

futebol pela comunidade e lhe propuseram lotear aquela área.

O fazendeiro, de olho na indenização dos operários, ofereceu

o terreno ao time de futebol pelo mesmo valor que lhe fora

oferecido pelos operários. Como o time não tinha condições

de concorrer com os indenizados, o campo foi loteado, procedimento

que ocorreu com outros moradores que, também,

lotearam parte de sua propriedade com a mesma intenção de

obter um bom dinheiro.

A partir de então, o Pompéu teve um processo inverso ao de

Mestre Caetano. Loteado o campo, os compradores trataram

logo de construir suas moradias.


Quem tinha mais tempo de trabalho na mineradora e recebeu

uma indenização mais volumosa comprou lotes maiores que,

mais tarde, dariam lugar à construção da residência do filho,

do neto e assim por diante. Dessa forma, o Pompéu cresceu

sem perder o seu sentimento de família, de comunidade, que

ainda hoje seus moradores sabem conduzir, compartilhando

entre eles alegrias e tristezas, sucessos e fracassos que são

percebidos como se da comunidade fossem.

O Pompéu, por muitos considerado como um “pedacinho do

céu”, tem características peculiares que raramente podem ser

encontradas em outro lugar. O seu paisagismo é exuberante

e o verde ainda se destaca, seja qual for o ângulo de visão do

observador. Várias nascentes, naturalmente distribuídas por

entre as montanhas de sua acentuada geografia, despejam suas

águas no ribeirão Sabará que corta o povoado e que preserva

em si algumas variedades de peixes e insetos apesar de bastante

poluído. Em Pompéu não se fala ao celular. Nenhuma

operadora quis arriscar um investimento para expandir sua

cobertura até o bairro, alegando que o número de usuários não

compensaria tal investimento. Talvez não tenham levado em

conta os cerca de 10 mil visitantes que, mensalmente, acorrem

ao bairro para desfrutar do seu paisagismo bucólico e da

culinária local acentuada pelos variados pratos com ora- pro-

-nóbis. Contudo, há aqueles que comemoram esses obstáculos

naturais à modernidade eletrônica, no bairro, por acreditar

que ela traria consigo os grandes pesadelos dos centros urbanos

sem uma compensação que embalasse nossos sonhos.

88

Em setembro 1996, a sala de estar da audaciosa D. Maria Torres,

ficou pequena para tanta gente que ouvia falar do seu


“ora-pro-nóbis com marreco” e no bairro chegava, com a boca

cheia d’água, na ânsia de degustar a famosa leguminosa. Assim

surgiu o Restaurante Moinho D’água, em janeiro de 1997.

O sucesso foi tanto que o então Prefeito de Sabará, Wander

Borges, propôs a D. Maria criar o Festival do Ora pro Nóbis.

Ela foi logo falando:

−Uai, se ocê pode cuidar do resto,

do ora-pro-nóbis cuidamos nós.

E assim, em maio daquele mesmo ano foi realizado o I FESTI-

VAL DO ORA- PRO- NÓBIS DE SABARÁ. Sucesso absoluto

que colocou a festa no calendário oficial de eventos da cidade.

89

Pouco mais tarde, o Alambique Jotapê, que produz uma

cachaça artesanal de alta qualidade, no bairro, por sugestão

da Associação dos Produtores de Aguardente de Qualidade

– AMPAQ, resolveu também instalar o seu restaurante junto

ao alambique, juntando assim a vontade de beber com a vontade

de comer. Atualmente, cerca de seis mil pessoas passam

mensalmente pelos dois restaurantes nos fins de semana.

A capelinha de Santo Antônio é o cartão de visita da comunidade.

Com talha representativa da primeira e segunda fase

do barroco mineiro, sua construção se deu entre 1726 e 1730.

Ainda hoje, pratica-se na comunidade o costume de enterrar

os mortos em torno da capela.

Apesar de sua ostentação histórica de patrimônio tombado

pelo IPHAN, aos olhos da comunidade não é essa a importância

da capelinha.


Para cada morador, o que faz a capela ser tão especial é a

lembrança das coroações de Nossa Senhora feita à luz de

velas e ao som do violino do Sr. Vicente, que acompanhava a

ladainha cantada em latim, todos os dias do mês de maio, as

brincadeiras de roda e de passar anel, a festa do padroeiro...

Isso sim, é o que lembra cada antigo morador sobre a capela.

Outra lembrança a suscitar a saudade nos pompeuenses era a

“Paradinha do Pompéu”, uma pequena cobertura construída

com quatro esteios de ferro e algumas folhas de zinco. Era

onde paravam, por 30 segundos, os trens de passageiros da

Central do Brasil. Nos domingos, à tarde, quase todos os

moradores dirigiam-se à paradinha para ver o trem passar.

Enquanto o trem não vinha, jogava-se peteca, bola, passava-se

anel, etc., quando o trem apitava na curva da prainha todos se

posicionavam para recebê-lo. Na partida, trocavam-se acenos

com os passageiros e se ficava esperando com ansiedade o

domingo vindouro.

90

O rio era bastante caudaloso, generoso em peixes e suas águas

eram puras e cristalinas. Quase toda família tinha às suas

margens o seu próprio “ batedor de roupas”, algumas pedras

grandes, justapostas, de forma a constituir uma bancada onde

era lavada a roupa da casa. Esse Pompéu, encravado no pé da

Serra de Nossa Senhora da Piedade, na memória e no coração

daqueles que o conhecem, guarda histórias felizes e infelizes

vividas pelas suas várias gerações.




O projeto Memórias Geraes é uma iniciativa da

equipe de artistas e colaboradoras do Rancho da

Cultura para registrar e valorizar vivências e saberes

de mestras e mestres populares que vivem em todos

os cantos de Minas Gerais.

Rancho da Cultura, 2021

@ranchodacultura_

(31) 36716197

foto: Kleber Bassa

silasol_transporte@yahoo.com.br


Este livro foi impresso em offset em Belo Horizonte pela gráfica Paulinelli, em papel Pólen

Bold 90g/m3, utilizando as faces tipográficas Calendas da atipo foundry e Bicyclette, da Kostic

Type Foundry. A capa foi composta em papel cartão supremo, utilizando as faces tipográficas

Bicyclett, da Kostic Type Foundry e Fairwater de Laura Worthington.



Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!