OR #13
Chegando em sua 13ª edição, a Originais Reprovados é uma revista literária que publica textos de alunas/os de toda a USP! Além dos 18 textos encontrados na revista impressa, esta versão online contém mais 16 textos selecionados pelos editores.
Chegando em sua 13ª edição, a Originais Reprovados é uma revista literária que publica
textos de alunas/os de toda a USP! Além dos 18 textos encontrados na revista impressa,
esta versão online contém mais 16 textos selecionados pelos editores.
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a borboleta universália
corpo
escrevi aos prantos
um minuto
m dia de gato
dimensão
saudaçõ
entre mil folhas
flor construía
emória
o dom da palavra
o urub
em da beira
insepulto
o olho má
cabeça tomada
casa de insetos
linha poema
excesso de alumínio
ors et vita
edo Cattleya labiata
#13
mar
depois da guerra requiém para e
inzeiro a repartição
14 sobre os sombras
ausência
pico do jara
nota editorial
A Originais Reprovados chega à sua décima
terceira edição e nós, do curso de
Editoração da ECA-USP, não poderíamos
estar mais contentes com seu lançamento.
A revista é uma forma de retornarmos
à comunidade uspiana o conhecimento
adquirido na graduação, dando uma
oportunidade a estudantes de toda a universidade
de se expressarem.
Em 2018, o projeto publica originais de
alunas e alunos da ECA, FAU, Educação,
FEA, FFLCH, IME, IQ, Psicologia, Poli – do
campus de São Paulo –, da FFLCRP – Ribeirão
Preto – e do IAU e IFSC – campus
de São Carlos.
Agradecemos a todas as autoras e autores
pela confiança em nosso trabalho e
esperamos que gostem do resultado!
3
sumário
A borboleta
A cabeça tomada
A carta que escrevi aos prantos
Casa de Insetos
Cattleya labiata
dimensão
Flor Construída
Insepulto
Mar
Mors et Vita
O Homem da Beira
O olho mágico
pico do jaraguá
16
17
22
24
31
32
33
34
36
37
41
45
49
4
Réquiem para ela
Sobre os Sombras
Soneto para Aline
Termino em terceira pessoa
14
51
55
58
59
60
5
escolha dos editores
A Repartição
Ausência
cinzeiro
Corpo
Depois da Guerra (Os Rostos)
Excesso de alumínio
linha poema
Medo
Memória
O dom da palavra
O urubu
Por entre mil folhas
saudações
64
69
70
71
72
77
79
81
84
85
86
90
91
6
Um dia de gato
Um Minuto
Universália: Medo
92
94
96
7
os autores
A borboleta
Raphaela Ikeuchi
Letras
raphaela.ikeuchi@gmail.com
A cabeça tomada
Joaquim Serra
Letras
joaquim.ferreira.neto@usp.br
A carta que escrevi aos prantos
AMT.
Arquitetura e Urbanismo - IAU
aluisio.teles3@gmail.com
Casa de Insetos
Lênon Guimarães Alípio
Estatística
lenongsa@gmail.com
Cattleya labiata
Gustavo Hatagima
Mestrado em Educação
gustavo.hatagima@gmail.com
8
dimensão
Tarcísio Dias
Química
tarcisio.filho@usp.br
Flor Construída
Julia Riani Marin
Psicologia - FFCLRP
juliarcmarin@gmail.com
Insepulto
Larissa Purvinni
Letras
larissa.purvinni@gmail.com
Mar
V. M. Gonsalez
Psicologia
vitor.gonsalez@usp.br
Mors et Vita
T.K. Rodrigues
Pedagogia
thays.rodrigues@usp.br
O Homem da Beira
Pedro Vittorio
Jornalismo
pedrovittorio@gmail.com
O olho mágico
Fabio Mariano
Doutorado em Design
fabiomcpereira@gmail.com
9
pico do jaraguá
Felipe Marcondes da Costa
Letras
gumpfelipe@gmail.com
Réquiem para ela
Mariana Barbieri Vassoler
Letras
marivassoler100@gmail.com
Sobre os Sombras
Miguel Giansante
Engenharia Ambiental
miguelgiansante@gmail.com
Soneto para Aline
Maria Eduarda Paniago
Letras
m.e.paniago@hotmail.com
Termino em terceira pessoa
Luiza Viana
Letras
luizav.9770@gmail.com
14
Koda
Ciências Físicas e Biomoleculares - IFSC
alvespedro769@usp.br
10
A Repartição
Rafaella Carrilho
Editoração
rafaella.carrilho@usp.br
Ausência
Fabio Mariano
Doutorado em Design
fabiomcpereira@gmail.com
cinzeiro
Tarcísio Dias
Química
tarcisio.filho@usp.br
Corpo
Gustavo Hatagima
Mestrado em Educação
gustavo.hatagima@gmail.com
Depois da Guerra (Os Rostos)
Pedro Vittorio
Jornalismo
pedrovittorio@gmail.com
Excesso de Alumínio
Rodrigo Luis
Letras
rodrigoluisms@gmail.com
Linha poema
Carolina Mendonça Marangoni
Arquitetura e Urbanismo
carolina.marangoni@usp.br
11
Medo
Daniel Nunes
Letras
dannunes63@hotmail.com
Memória
Gustavo Hatagima
Mestrado em Educação
gustavo.hatagima@gmail.com
O Dom da Palavra
Tarcísio Dias
Química
tarcisio.filho@usp.br
O Urubu
Joaquim Serra
Letras
joaquim.ferreira.neto@usp.br
Por Entre Mil Folhas
David Tatit
Psicologia
david.tatit@usp.br
Saudações
Felipe Marcondes da Costa
Letras
gumpfelipe@gmail.com
Um Dia de Gato
Arthur Akamine
Ciências Contábeis
arthur.akamine@usp.br
12
Um Minuto
Rafael Lima Dalle Mulle
Mestrado em Psicologia em FFCLRP
dalle_mulle@hotmail.com
Universalia: medo
Koda
Ciências Físicas e Biomoleculares - IFSC
alvespedro769@usp.br
13
14
15
Uma borboleta carregando um vendaval nas asas
Pousou um dia no teu ombro desnudo
Para melhor apreciar as flores desabrochadas do teu jardim,
Flores de cores muito quentes, em brasa,
Prontas para provocar um incêndio agudo
Assim como os teus lábios pintados de carmim.
A borboleta
A borboleta, hipnotizada, de asas trêmulas, titubeou.
Deveria ou não deveria?
Não deveria, mas foi
E voou até as flores.
16
A
CABEÇA
TOMADA
Acordou no meio da noite com as patas do bicho já perto do
nariz. Que coisa era aquela? Sentia que ele se movia, mas Bernardo,
que era atleta e corria todas as manhãs, não podia se
mover. Já tinha ouvido falar de paralisia do sono, mas não sabia
muito a respeito. Era daquelas coisas que acontecem com os
outros e com que não valia a pena se preocupar. Mas agora era
diferente, um artrópode nojento andava sobre sua cara com
quase que total displicência. Talvez pensasse que ali fosse um
objeto qualquer com alguns buracos escuros em que pudesse
se acomodar e depositar ovos ou fezes ou o que fosse; essas
coisas de bichos que pela distância taxonômica sempre muito
pouco importou para Bernardo.
Sentiu de novo as patas percorrerem, mas agora já não
via o bicho, devia estar perto do pescoço e subindo lento. Bernardo
não conseguia gritar, lembrava que isso acontecia pela
paralisia, mas pouco importava saber, queria mesmo era chamar
a mulher no quarto ao lado, ou que algum dos filhos acordasse
no meio da noite como sempre faziam e no caminho da
cozinha olhassem para o quarto do pai - Vitor, o mais novo,
sempre o chamava para ajudá-lo a alcançar o filtro de barro -
porém o menino miúdo não vinha.
17
18
Bernardo ouvia o som da própria voz dentro de si. Sabia
que não conseguia fazer com que ela saísse do corpo e se tornasse
livre por aqueles cômodos de paredes brancas. A luz do
abajur estava com as pilhas fracas e com essa pouca luz amarela
não podia ver direito o bicho. Percorria os olhos pelos móveis,
mas pouco enxergava. Via apenas as pilhas de papel que
cobriam quase a mesa toda do canto. Eram as provas do fundamental
que devia ter passado a noite toda corrigindo, mas, apesar
do controle que aparentava, não estava com cabeça para
aquilo. O motivo era uma pilha amarrada por um grampo que
vinha sob todos os outros e que trazia carimbos de todos os
tipos e assinaturas em várias folhas; o divórcio estava feito.
Sairia da casa em poucas semanas, era apenas esperar
até que o novo apartamento estivesse com o mínimo de mobília.
Márcia foi paciente ao apressar a mudança. Bernardo sabia
como seria, os seus pais se separaram quando ele era pequeno
e se lembrava muito bem de todo o processo. Primeiro era
a negação de tudo, e as brigas se acumulavam como mobília
no quarto de despejo. As frases são tortas, mal intencionadas
e criptografadas para espantar a atenção suspeita dos filhos –
agora o bicho aparecia novamente sob o nariz.
Bernardo acompanhou com os olhos, único recurso que
não lhe fora tirado, e viu quando o bicho entrou de uma vez.
Sentiu por dentro uma coceira leve, talvez fosse pela paralisia
amenizada e só chegava aos sentidos um reflexo turvo do
que realmente sentia. O bicho saiu. Bernardo viu o rastro melecado
que ele deixava nas pontas duplas de seus bigodes. Lamentou
não ter um daqueles bigodes fartos que tampam o nariz – feito o
do tio Manuel –, aquele que quando era pequeno sempre perguntava
ao pai como é que o tio Manuel conseguia respirar.
Não se sabe se pelo teor pegajoso do musgo pregado
nas patas ou por habilidade natural, agora o bicho andava de
lado contornando a maçã do rosto de Bernardo até parar muito
perto do canto do olho. Alguns poucos filetes de luz deixavam
que Bernardo visse uma penugem macia que cobria o que seria
o queixo do bicho. Do que seria o nariz, seguia uma haste que
se bifurcava em dois ferrões, que feito um alicate em uso, remexiam
ora simulando um corte perfeito, ora parando na metade.
Para Bernardo, esse controle parecia ainda mais asqueroso. Fitou
aqueles olhos geométricos e por instinto fechou os seus.
Quando abriu já não sabia onde o bicho estava. Olhou
em volta e tudo que via eram as pilhas de papel. Talvez tenha
ido embora. Tão rápido pensou e já sentiu uma pressão no ouvido
direito; o bicho ia entrando.
“Preciso fazer alguma coisa”, disse, mas sabia que só podia
ser ouvido por si mesmo.
Tentou mover as pernas que tentava acompanhar com
os olhos. Mas via apenas os dois montes que os joelhos quase
flexionados faziam no cobertor. Nada. Qualquer movimento
era frustrante e causava ainda mais pânico no movimento que
tentava a seguir. “O jeito mesmo é esperar”.
Deixou com que os sentidos não apelassem a nenhum
membro. Sentiu-se relaxado. Apenas sentia que o bicho cavoucava
sem destino certo. Era muito grande, não passava no canal
e metade do corpo se quedava e puxava a parte da frente para
cair duro no pavilhão auditivo. Depois disso as pernas frouxas
pelo exercício tateavam a subida. As patas traseiras se alongavam
como nunca para alcançar e suportar o peso que a pressão
do canal fazia para expulsar o bicho.
Bernardo seguia sem poder ver cada investida do bicho.
Quando sentia que ele estava ganhando espaço, apertava os olhos
o mais forte que podia para tentar causar algum dano à investida.
Ficaram assim por um tempo que pareceu longo para
Bernardo. Quando silenciou a pressão por um breve período e
ele correu com os olhos para tentar alcançar o bicho, teve uma
surpresa – espantosa mesmo sem qualquer contração nos músculos
do rosto –, o bicho ganhava novamente espaço em uma de
suas narinas. Dessa vez, ou pela mucosa que ganhara nos orifícios,
19
20
ou pela real força que trazia, o bicho conseguiu penetrar e Bernardo
apenas acompanhava a cartilagem do nariz ondular.
Tentou novamente mover os músculos que não respondiam
a seus comandos. Pensou que poderia ficar assim como
estátua pelo resto da vida e viriam outros bichos e sabe-se lá o
que mais viria. Via as duas patas traseiras esticadas que chegavam
a se confundir com os bigodes; depois não viu mais nada.
O desgraçado entrou.
Não sentia mais nada, pegada ou deslize que fosse. Poderia
ter sufocado? Bernardo tentava não respirar ou apressar
a respiração. Mas nada conseguia.
Um tempo se passou sem que ele sentisse movimento
que fosse. Poderia ter engolido o bicho? Os olhos revirados e
vidrados procuravam no quarto como se eles pudessem encontrar
alguma chave para o acontecido. Mas sempre voltavam
para a mesma pilha de papel. Os papéis do divórcio estavam ali
e o lembravam de como fora difícil receber aquilo.
Já não dormia com a mulher há alguns anos pela rotina
que levava, mas não era para tanto. Para quê o divórcio? Logo as
coisas iriam se acalmar, Bernardo dizia à mulher, mas para ela a
espera matava aos poucos o pouco que ainda sentia. “Foi duro
ouvir isso”, Bernardo respondeu. E ela dava de ombros e fazia sequer
que estava ali, como se fosse muito ter que explicar-se. Isso
o incomodava e o tirava do sério a ponto de dizer nas últimas
semanas que merda nenhuma assinaria porque não se resolve
nada no fogo do instante – algum poeta disse e ele repetia. “Mesmo
que disse pode ser mentira”, disse Márcia sorrindo. Sabia que
Bernardo preferiu sempre os números às letras.
E os meninos, como ficariam? Cresceriam sem o pai em
casa, ou com alguém que fosse para sempre um estranho,
que só de pensar corria-lhe um veneno pelas artérias que fazia
a cabeça explodir.
Mas nos últimos dias vinha pensando nos meninos,
que brincavam sem preocupação. Claro que com um faro
aguçado para as conversas dos pais que pareciam agora dois
estranhos que nunca se tocavam.
“Está subindo...”, mal pôde dizer e o canto da boca foi
escancarado às pressas pela selvageria de um corpo volumoso.
O bicho parou na metade, como que para tomar fôlego. As patas
dianteiras zanzavam pelos lábios finos, mas foi no espesso
bigode que encontraram força para continuar sua marcha.
Totalmente para fora, balançou o corpo ágil, flexionou as
patas e pulou. Bernardo acompanhou o movimento e viu quando
o bicho saltava pela fresta da janela.
Pouco tempo se passou até sentir o nariz coçar e subir
uma das mãos. Não comemorou a volta dos movimentos porque
o vulto das coisas já agia sobre as memórias e Bernardo
mal se dava conta – como sempre acontece – de que era tragado
para o sono profundo.
Levantou cedo, antes do despertador de pilhas fracas arrastar
seu som baixo e melancólico pelo quarto.
Sentou-se na mesa com os olhos fixos na pilha de papel.
Tentou puxar os últimos, mas, como se estivessem colados,
trouxe metade da pilha e a outra parte ameaçou cair para trás.
Assinou as oito páginas e soltou o corpo na cadeira como
se tirasse um peso que o mantinha sempre arqueado. Deixaria
a casa o quanto antes, tomaria o café que teria outro gosto.
21
A carta que
escrevi aos prantos
Estou cansado de ser aceito e tolerado
Eu quero ser igual
Quero ser naturalizado.
Quero ser igual aos meus irmãos héteros,
Pai.
Quero ser orgulho como eles quando casar,
Mãe.
Quero poder dizer o que sinto
Quero compartilhar minha vida amorosa
Quero ser conhecido por vocês,
Receber um telefonema
Numa tarde de sexta-feira
E vocês perguntarem
Como vai o meu amor.
E vocês contarem o que acharam
Do meu namorado.
Quero, acima de tudo, ser acolhido
Ser abraçado, por quem eu sou
Não me deixem, por favor,
Viver minha vida sozinho.
Não me deixem chorar sozinho
Se meu relacionamento acabar.
Não evitem esse assunto na mesa.
Não excluam meu parceiro da família.
22
Não me vejam como antinatural
Não me vejam como quem tem menos
Moral.
Não sou mais pervertido que as outras pessoas.
Não sou doente.
Não me inflamei de paixão por outro homem
Do dia pra noite e
Escolhi ser gay.
Eu apenas amo, pais,
Como qualquer outro ser humano
Que ama e precisa ser amado,
Integralmente,
Que sente e precisa sentir
Ser sentido.
Então peço a vocês,
Não me olhem com esse filtro
Me acolham como pais
Que sou filho, como qualquer outro
Me apoiem na minha condição,
Nas minhas escolhas.
Esse é meu último pedido,
O mais difícil deles,
Mas o único que realmente
Importa.
23
Casa de Insetos
Começou com uma pequena fila de formigas, cada uma menor
que a ponta de um alfinete. Lutavam para carregar alguns farelos
de pão parede acima, e Amanda só as viu, invisíveis entre as
frestas dos azulejos, pois quase desmaiara sobre elas em seu
insone vagar pela cozinha. Observou sua laboriosa batalha por
toda a madrugada, mas adormeceu antes que houvessem terminado
a jornada até a oculta entrada de sua colônia. Quando
acordou, muitas horas depois, ainda sentada no chão da
cozinha, percebeu que elas continuavam sua escalada, não se
movendo senão alguns poucos centímetros de onde estavam
antes de adormecer.
Passou as próximas madrugadas acompanhando sua
marcha incessante e obstinada. Quando anoitecia, errava pela
casa sem direção e invariavelmente acabava de volta à cozinha,
onde observava as pequenas formigas arrastarem-se pela parede
até o sol nascer. Nos primeiros dias, ainda ia ao trabalho; chegava
exausta, e várias vezes tinha que se esconder no banheiro
para recompor-se. Contudo, sem forças para se pôr de pé quando
chegava a hora de ir, começou a faltar ao serviço. Seu chefe
lhe deu duas semanas de folga; disse-lhe que ele e todos os
24
outros estavam ali para o que ela precisasse, e pediu-lhe que
ficasse bem. Amanda pensou em viajar, usar aqueles dias para
afastar-se de tudo – especialmente de si mesma. Aceitou o convite
da mãe para visitá-la, mas no dia da viagem inventou um
mal-estar e ficou em casa, perambulando por entre as formigas
e os farelos.
A primeira coisa que percebeu foi que não era apenas
um grupo de formigas, mas vários, que emergiam de uma
centena de pequenos buracos nas paredes assim que anoitecia,
cada um deles entrava para o que Amanda não sabia
dizer se eram várias colônias ou apenas uma gigantesca a estender-se
por toda a casa. Carregavam tudo, de lixo inorgânico
a restos de comida, cada vez mais abundantes na cozinha
há tanto tempo não lavada. Houve dias em que, deitada por
horas no chão frio e sujo, podia senti-las sob si, carregando
seu corpo, milímetro a milímetro, em direção a algo para o
qual, agora via, sempre esteve fadada. Não tardou a conseguir
diferenciá-las umas das outras. Eram todas minúsculas, iguais
em sua pequenez, mas havia as que só apareciam a partir das
três da manhã e se moviam sempre em linha reta, as que ziguezagueavam
pelo teto das cinco às seis, traçando padrões
arcanos e ininteligíveis, as que davam voltas em torno de um
mesmo ponto por várias horas e pareciam sequer buscar por
comida, e outra infinidade de grupos comportamentais, cada
uma com suas obsedantes particularidades. E todas, pouco a
pouco, consumiram o ambiente ao seu redor, saturando o ar e
o mundo com sua presença.
Ao fim da primeira semana já não eram só formigas: moscas
e pernilongos dos mais diversos voavam pela cozinha, suas
sombras oscilando gigantescas pelas paredes. Zuniam ao seu
redor em voos cada vez mais rentes, mordendo sua carne com
cada vez mais fúria. Amanda, na maior parte do tempo, caída e
sem forças no chão da cozinha, deixava que consumissem-na;
algo na dor a fazia se sentir bem. Certa noite, ela viu um grupo
25
26
de formigas lutando contra uma vespa em uma batalha incompreensível
e visceral, e botou sua mão entre elas, permitindo
que a picassem até que seus dedos estivessem inchados.
Alguns dias antes de ter que voltar ao trabalho, uma
amiga foi visitá-la. Disse que coincidentemente estava nas
redondezas e resolveu parar ali por um minuto, mas Amanda
sabia que aquilo não era verdade, e em um assomo de injustificada
petulância convidou-a a se sentar na cozinha, onde,
apesar de estarem escondidos os insetos, ocultos nas frestas
e nas colônias à espera da madrugada, vigorava ainda seu indelével
estigma de podridão. Conversaram pouco, uma conversa
de risos forçados e respostas prontas e a mulher, incomodada,
foi embora sem fazer nenhuma das perguntas que queria e deveria
ter feito.
Passadas as duas semanas, voltou ao serviço aparentando
uma revigorada disposição, e foi recebida com um
bom humor cauteloso e preocupado. Amanda não se lembrava
de muito do que acontecera naquele dia. Quando foi embora,
disseram-lhe que não precisava voltar na manhã seguinte, ou
em qualquer outra. No caminho para casa, viu uma mulher
muito bonita, de talvez trinta, trinta e cinco anos, mexendo
compenetrada em seu celular, com uma criança a chorar timidamente
ao seu lado, que puxava seu braço e tentava chamar
sua atenção. Sentiu que havia ali algo cujo significado, muito
maior que si, escapava-lhe, e por muito tempo revisitou o choro
da criança e a distância da mulher em busca dessa explicação
fundamental que escondiam, mesmo sabendo que era
provável ter apenas as imaginado em um de seus devaneios
cada vez mais indistinguíveis da realidade.
Depois daquilo, ficou muito tempo sem sair de casa.
Passava as noites se arrastando pelos corredores, perdida em
meio à revoada de insetos que assolavam não mais apenas
a cozinha, mas todos os cômodos da casa, e, ao amanhecer,
desabava onde quer que estivesse, caindo em um sono inquie-
to e sem sonhos do qual despertava somente quando o sol se
punha, tão cansada quanto estava antes de adormecer, para
repetir o mesmo itinerário da noite anterior, em um vagar contínuo
e interminável pelas formigas, baratas, percevejos, e todos
os demais insetos que iam surgindo em número cada vez maior
a cada novo dia. Existir reduziu-se a uma mesma sequência de
passos e respiros, desprovidos de qualquer razão senão a de
pô-la cada vez mais próxima de um óbvio e incompreensível
desfecho.
De pouco a pouco, as pequenas coisas da vida
começaram a deixar de fazer sentido. A casa já não tinha por
que ser lavada – ninguém senão ela entraria ali. O lixo e a sujeira
logo tomaram proporções inaceitáveis para uma pessoa
normal, sem que isso causasse a ela qualquer incômodo.
Banhar-se tampouco se fazia necessário. Passava vários dias
sem se lavar, e, quando o fazia, era apenas devido ao temporário
e, cada vez mais, fugidio alívio que tirava da água
escaldante do chuveiro ao cair sobre suas costas. Não tinha
apetite; comia muito pouco, não mais do que o necessário para
não morrer. Uma noite, perdida entre o sono e o desespero,
apanhou um inseto disforme que voava sobre sua cabeça e
o pôs dentro da boca, mastigando-o com voracidade e sofreguidão.
Vomitou por toda a madrugada, sem que o gosto de fel
deixasse suas entranhas.
Saía de casa não mais do que duas vezes por semana,
sempre de madrugada, e apenas quando estritamente
necessário, fosse para comprar algumas bolachas, que lhe serviam
de alimento por vários dias, ou para fugir momentaneamente
dos insetos – quando, numerosos demais, peçonhentos
demais, tornava-se impossível respirar –, apenas para perceber
que sua desgraça já havia se expandido para muito além das
quatro paredes de sua casa. Em uma dessas saídas, deparouse
com uma mulher a chorar na calçada, fugindo dos próprios
insetos, com um pequeno gato a miar desesperadamente a
27
28
seus pés. Pareceu-lhe que um dia já havia a conhecido, e por
ver nela a mesma fuga que havia em si, aproximou-se, quase
sem se dar conta do que estava fazendo. Cumprimentaram-se,
trocaram as mentiras usuais, e a mulher contou-lhe que se
sentia mais triste do que nunca, que seu filho havia fugido de
casa para casar-se com uma garota no Sul, e que agora ela
estava sozinha, realmente sozinha, pois já não era jovem e
não havia mais ninguém ao seu lado. Contou-lhe que já tinha
sido feliz, que tivera incontáveis amigos e incontáveis amores,
que havia dançado e sorrido, que havia se lançado em cada
vazia jornada como se houvesse nelas algo mais do que apenas
um momentâneo prazer, que nunca pensara para além de
seus sonhos sem sentido e sorrisos sem razão, e que sempre
tivera a certeza de que um dia pagaria por toda essa negligente
e desmesurada alegria, que finalmente esse dia havia
chegado e agora não sabia o que fazer. Contou-lhe que o filho
deixara para trás seu gato ao ir embora, este que agora chorava
aos seus pés, e que o animal sentia tanto sua falta quanto
ela própria, miando desesperadamente todas as noites na
casa insuportavelmente vazia. Contou-lhe que não conseguia
mais dormir, e que viera até ali para abandoná-lo, mas que
não tinha coragem de fazê-lo. Contou-lhe que pensava em se
matar. E tudo aquilo Amanda ouviu com a empatia de quem
compreendia sua dor e a distância de quem sabia que não
tinha nada que poderia fazer. E assim conversaram um pouco
mais, despediram-se, e Amanda voltou para seus próprios insetos,
que pareciam corroer a casa com redobrado vigor.
Não saberia dizer quanto tempo se passou até finalmente
sucumbir ao peso de seu desalento. Como acontece
àquele que desiste de si mesmo, eventualmente ruiu seu frio
estoicismo ante a própria ruína, e Amanda viu-se enfim sozinha,
presa em um corpo macilento e sujo, distante de tudo aquilo
que talvez pudesse lhe fazer feliz. A casa, já há muito completamente
tomada pelos insetos, decompunha-se, e a mulher não
precisava olhar para fora para saber que as colônias, e todas
as pestilentas e disformes criaturas que nelas se escondiam,
haviam tomado a terra, os céus, e cada desconhecido paraíso
que um dia podia tê-la salvado. Quando sua mãe, em
uma fortuita e desesperada chamada telefônica, percebeu o
que estava acontecendo, já era tarde demais. Amanda, jogada
sobre o chão, ouvia sua voz distante, chorando-lhe coisas que
não compreendia, enquanto acima de si o teto, vergado sob
o peso de tantos insetos e vapores, fazia-se cada vez mais
próximo, prestes a desabar sobre ela com tudo aquilo que
se escondia nos invisíveis labirintos de sua solidão.
***
Só a muito custo reconheceu-a sentada ali, em um banco
afastado da praça, seu olhar perdido e turvado, alheia à
multidão que girava ao seu redor. Estava muito diferente do
que se lembrava. Aproximou-se devagar, observando-a de
longe e quando finalmente convenceu-se de que de fato era
Amanda, foi até ela, sorrindo animada e cumprimentando-a
com a típica proximidade das grandes amigas. Abraçaramse,
fez um comentário sobre há quantos anos não se viam e
perguntou-lhe como andava a vida, para só então perceber
que Amanda não se lembrava de quem ela era. Surpresa e um
pouco embaraçada, apresentou-se e disse de onde se conheciam.
Amanda apenas sorriu e assentiu, sem nada dizer.
Perguntou-lhe o que estava fazendo ali, e Amanda disselhe
que havia acabado de sair de uma entrevista de emprego,
e não sabia como voltar para casa. Disse-lhe que, enquanto
vagava sem direção, chegou àquela praça e lembrou-se de que
antigamente gostava de ir até ali ver as crianças se divertirem.
Acalmava-a a despreocupada alegria com que brincavam, mas
hoje não havia nenhuma criança, apenas aquela multidão a
correr e gritar à sua volta. “É por causa do jogo. Hoje é a final”,
29
disse-lhe, mas viu em seu olhar vazio que Amanda não tinha
ideia do que estava falando. Estranhou que ela tivesse ido a
uma entrevista vestida como estava, com um roupão amassado
e velho que nada tinha de apropriado para a ocasião. Perguntou-lhe
para que tipo de trabalho foi a entrevista, mas ela não
soube responder; disse que simplesmente haviam-na chamado
e ela fora, mesmo não se lembrando de ter se candidatado para
nada.
Ao redor, a multidão entoava hinos e gritava alegres obscenidades.
Amanda os observava em silêncio, sem parecer realmente
enxergá-los. Ficaram ali, uma perdida em impenetráveis
vazios, a outra sentindo que devia dizer algo, mas sem saber o
quê, até Amanda erguer-se e, com um aceno rápido e um sorriso
curto e involuntário, despedir-se, dizendo que tinha que ir
embora. Com passos hesitantes e confusos, afastou-se antes
que a outra pudesse impedi-la. Quando já quase perdida na
multidão, parou e voltou-se para a mulher. Ficou a observá-la
por um momento, com algo incompreensível a gritar por detrás
de seus olhos, aguardando por algo que nunca veio, e que nunca
viria, para então retomar seu caminho e desaparecer.
C
30
attleya
labiata
Funda sobre o outro
sua estrutura.
Coluna de um templo
verde coriáceo.
No planalto
do ar eleva-se
ereta floresta
mínima.
Disponível ao olho
desabrocha em si
testículos
de púrpura pele
que nos alicia.
Inflorescência
da nua escultura.
31
D
I
M
E
n
s
~
Ã
O
o tempo do hoje
correvoadecolaplainaaterrissa.
os segundos passam à volta do relógio,
um...
dois...
três.
o horário se esvai no círculo que o constringe,
perco o passado que voa livre
e se limita à rocha ancorada do futuro.
o ontem, embora pétreo,
já encontrou sua razão de ser nos limites do dia,
enclausurou-se na sua possibilidade finita
de ter sido e ponto final.
o passado é um pássaro livre, que,
na meia-hora,
na hora inteira,
(sessenta minutos),
dançou a valsa de tantos minutos,
mas pôde ter sido também
a tormenta de tantos anos.
o futuro, ancorado no cais do infinito,
embora plural,
não tem tempo de ser.
não se limita ao
um...
dois...
três...
e seu decreto máximo, irremediável e impossível,
e s t e n d e - s e a o l o n g o d o v e r s o
ou impõe-se num súbito
ponto final
imprevisível.
32
A palavra que entra e sai titubeia em meus lábios
Escapa para a ponta dos meus dedos quando passo a mão por
Escorre pelos fios, cai em meus ombros
Vem se alojar em minha clavícula
Se enrosca em minhas roupas
Vai caindo aos poucos
E escorregando chega ao chão
Sigo em frente sem perceber
Mas logo alguém a apanha
Como uma flor murcha no chão
Ela se enrosca, se esgueira
Se embrenha em uma nova pessoa
E com o tempo vai ao chão novamente
Mas pouco importa
[meu cabelo
Flor bonita, mesmo quando murcha, chama a atenção
Um outro alguém há de pegá-la do chão
E colocá-la na cabeça
Até que escorregue novamente
Flor
Construída
33
In Se
Um amor sem corpo é como um cadáver
ao qual não se prestaram honras fúnebres
Vaga sem rumo, sem casa,
assombra os vivos, não descansa jamais
Interfere nas histórias
como um segredo que se revela
em tragédias ou farsas
Aviso de Cassandra sem eco nem providências
humanas ou divinas
Um amor sem corpo não deixa passos no averno
Visita um a um os círculos do inferno
Um amor sem corpo é, dos amores todos,
o único que restará eterno
34
pul to
Chama sem pira funerária
Cinzas não recolhidas
A moeda que falta
Sem Caronte nem Letes
Sem redenção
Sem nostos, sem glória
Quisera te deixar partir
Fazer o luto, sofrer
Mas teu corpo vaga sem sepultura,
seu fantasma divide meu leito
Vivo no meu desejo
que não tem como ter paz
35
A existência sobre si se agita,
Dissolvendo-se as ondas ao se criar
Em sua própria imensidão.
Imerso em mim, sinto-me tocar,
Pelas águas frias da percepção,
Minha alma, em cada gota envolta.
A realidade se revela acima
Na superfície de minha forma.
Sua luz por mim perpassa
Sem, porém, revelar de seu véu
A mais profunda fossa.
Do mundo, reflito o céu
Sem nunca o absorver:
Tal é meu ser em viver.
Mar
Meus motivos seguem as ondas
Que se derramam sobre o mar.
Sem jamais encontrar as praias,
As ondas vão sobre si desaguar
Na imensidão do meu significado:
Tais são meus pensamentos ventando.
Quando a tempestade vem
As ondas se agitam furiosas
E as águas se fazem cinzas.
Daqueles barcos que navegam este mar
Restam aqueles em que se respira
A dor de cada raio colérico
E o sal, das águas que os invadem,
Feito de sangue a chorar.
A angústia pulsante em ira
De frequência a se esgotar no vácuo.
36
Mors
et
Vita
37
O último pulsar é sentido no instante em que o bipe da máquina
declara a pulsação fraca. Os rostos ao seu redor, embaçados,
parecem mergulhar na mais densa tensão, mas nada disso
parece chegar perto de onde você se encontra. A preocupação
com a criança que vinha para o mundo desaparece assim que
seu choro surge no fundo de sua mente. E é nesse instante de
súbita compreensão que a paz a domina e...
Escuridão?
Não. Não é escuridão.
Nesse momento, me percebo. Eu existo e estou ali, ainda que
eu não consiga ver meu corpo, minha composição material.
Sou apenas alma. Existo. Olho para os lados. Está escuro,
mas não é escuridão porque escuridão é gelada, impalpável.
Ali é o algo. O algo no escuro, mas principalmente o algo.
Busco o ar, mas sinto-o passando por mim, abandonando-
-me porque de súbito vejo que não preciso dele. Eu inexisto,
mesmo existindo, afinal não preciso alimentar o corpo. Ele
foi descartado. E ali estou eu, o nada, por ali fico à espera do
que ocorrerá. Passa um segundo? Um minuto? Uma hora?
Não sei. Apenas sei que a tranquilidade me envolve. Estou
nu de intenções, benefícios e malefícios. Se tenho mente,
não sei.
E diante de uma fagulha que a clareza me proporciona,
vejo a aproximação da silhueta de uma pessoa. Uma pessoa.
Não como eu fui, porém, uma pessoa. Percebo-me
a encará-la, pequeno, diminuto, infame e humilde. O que
quer que eu havia sido no passado, já não importa, pois
passado, presente e futuro se fundem no agora. Sinto a
paz. Olho para o rosto familiar, a sensação de conhecimento
quase tocável se não fosse pelo misto de memórias e
coisas das quais provei em todas as minhas existências até
38
este exato momento. Quem é? O que faz e o que quer? Os
globos que compõem os olhos trazem a sensação do horizonte
de uma terra que um dia visitei. São azuis e brilham
sozinhos. A pele é clara. Os lábios finos e róseos. O rosto
longo, afinado. A pessoa se aproxima em sua altura e daquele
ponto vejo apenas o seu abdômen coberto por uma
roupagem elegante. Sua mão vem em minha direção e eu
a recebo. Parecemo-nos mago e feitiço. Um globo de magia
na palma de seu bruxo conjurador.
O sujeito me encara, olhos analíticos. Aproxima-me de si,
quase que a beijar a inexistente superfície do núcleo de
energia que é minha alma condensada. Percebo-me essencial
para ele, mas no fundo iludo-me com aquele ar
apaixonante que muito certamente, em outro mundo, ele
confundiria qualquer outro ser. Conforme me ergue para
enxergar-me, na ponta de seus dígitos, sorri de leve o mais
galanteador dos sorrisos. Movo meu campo de visão para
baixo e vejo que a mão alva e esquerda de meu manuseador
carrega uma saca com vários outros pontos de luz.
Infindáveis. Percebo-me neles também. E ouço lembranças
que não são minhas. Sinto as suas melancolias.
Volto-me para meu companheiro, atenção completa em
suas ações. Colocará aquela peça, o Eu, junto dos outros?
Soltar-me-á ao infinito para que eu me perca, sem destino?
Há de devolver-me? Se sim, sou indigno? Não compreendo,
ainda que saiba o que se passa. A mão que me segura abaixa
e, em um momento, vejo em seus lábios o mais amoroso dos
sorrisos. E no instante seguinte, voou para longe da presença,
do rosto angelical, dos cabelos louros escuros. Rodopio,
deslizo para o infinito.
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Acorda.
Lá está você diante de um rosto tão familiar. O sorriso no
rosto indica que alguém está realmente feliz em te ver. A combinação
de elementos, no entanto, parece estranha, disforme;
uma salada completa de cheiros, sensações, barulhos que levam
você a sentir o medo. O mais puro, o mais intenso medo.
Você chora. Os berros que saltam de sua garganta parecem
anunciar o fim do mundo. Não quer saber se o ambiente
mergulha em alegria, você apenas compreende que as luzes
fortes querem acabar com aquela faísca que era a vida. E por
isso você chora.
Contudo, ao perceber o seio perto de si, o riso fácil de alguém
que você tem certeza conhecer de algum lugar, a calmaria
chega. Seus olhos vão na direção daquele sorriso doce, estranhando,
e então depara-se com o rosto angelical da mulher
que, naquele instante, te deu vida.
A mesma por quem você morreu alguns anos antes ao
dar luz.
Luz. Vida. Morte.
E num súbito eu te tiro as lembranças.
E você volta a chorar.
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O
Homem
da
Beira
Vagava por aí há tanto tempo que só podia crer que o meu caminho
seria dor e caos e os pés cansados. Mas antes que pudesse
recordar-me, olhei ao meu redor: um mato verde calcado
por pequenos olhos tristes que, tão desamparados quanto eu,
fitavam como quem quer um pedaço. Senti um cheiro vivo, e a
cada passo quebrava alguma folha seca. Os pássaros gritavam
em algum lugar distante, sentia quase o peso do ar úmido. Então
andei, quem sabe por inércia, andei, como quem anda sem
motivo, mas com a estranha sensação de tê-lo, apenas não podendo
ter acesso; no entanto, estava lá, pois eu sentia, borrado
e indefinido, mas presente.
Num átimo, aguçaram-se os sentidos: à frente, um grande
abismo; acima, o sol; ao lado, apenas grama verde e curta.
41
42
Andei, talvez tentando contorná-lo - pois vi que do outro lado
havia vida, outra floresta como a que eu estava, outro caminho
em que pudesse andar. Segui, e após quem sabe um par de
horas, olhei e vi à minha frente inúmeras estreitas pontes de
madeira e corda.
Enquanto protegia a minha fronte de raios tão potentes
como flechas, singrava aquela orla e observava as pontes que
levavam a outro lado. Mantive o meu olhar no lado esquerdo, a
mão nos olhos, sobrancelha rota. Meu pé direito tropeçou num
galho, fazendo com que o todo desabasse. Quando tentava levantar
meu corpo, meus olhos levantaram, então viram um homem
de boné sentado, inerte, olhando fixamente à sua frente.
Aproximei-me mudo deste homem que olhava o outro
lado. Tive medo mesclado com vontade de saber quem mais
podia haver naqueles cantos sem vida humana. Então me sentei
próximo.
— Pra onde você olha? — perguntei.
— Eu olho pros caminhos que não escolhi, — respondeu.
— Pedi pros céus que me dessem o poder de olhar o futuro.
Eles me negaram... Eles negaram. Ao invés, permitiram que eu
visse tudo o que não aconteceu. Tudo, tudo o que não... Todos
os futuros que descartei enquanto tomava cada decisão.
— E quanto ao seu futuro? Você vê?
— Eu posso ver tudo o que não aconteceu. Todos os futuros
que descartei enquanto... Você não vai poder ver, mas
após aquela ponte há um homem que ensina na universidade,
toma um café saudável todos os dias e escreve coisas que as
pessoas leem atentamente. Ali, então, um pai divorciado que
trabalha numa loja de conveniências e coleciona aviões. Aquela,
ali do fundo, é um artista em decadência que odeia seu único
sucesso, uma canção qualquer.
De alguma forma, olhei e estive triste por este homem
triste. Em seu rosto eu vi certa agonia complacente, um tanto
calma, mas desiludida, denunciada por seus olhos baços. Seus
braços se apoiavam em suas pernas abertas, com seus calcanhares
pensos naquele abismo. E suas mãos, de aspecto gentil,
mas macilentas, apertavam as coxas de maneira mole, frouxa.
— Por que você não anda? — perguntei.
— Você não vê? Eu andei, andei... Mas não era eu, você
vê? Não, não... Você não vê. Não era eu: era ali, após aquela
ponte, um professor de universidade... Ali, um pai... Ali... Eu andei,
andei!
— Você pode tentar qualquer caminho, pois todos levarão
ao outro lado. E lá, se pode andar...
— Mas eu não quero.
— Então por que não volta? Há caminhos!
— Eu queimei as pontes por onde vim. Eu precisava, então
queimei, eu queimei, e você não vê, não vai ver, pois eu
queimei. Sim. Cale-se. Cale-se.
Em todo esse diálogo, o semblante do homem não mudou
nem mesmo um pouco. A sua voz, rouquenha, mas exata,
manteve-se constante, sempre calma.
— Você pode escolher alguma ponte — eu disse após
instantes de silêncio.
— Eu preciso descansar. Siga a sua ponte, siga. Eu jamais
te apontaria qual é, apesar de também saber. Eu vejo o seu futuro
também... Mas não te apontaria. Você jamais o seguiria.
Vá. Eu preciso descansar.
— Mas você não...
— Eu sei, eu também quero. Me deixe descansar. Preciso
de alguns anos, então, quem sabe... Eu conheço todos os meus
futuros, você não vê? Eu conheço todos, todos... Todos, menos
o certo.
Fitei seus olhos baços, mas impávidos, sem entender jamais
o que ele via. Então, por mais que o sono me invadisse,
por mais que a sinfonia de um instante tragasse os meus desejos
e vontades, por mais que aquele homem, de algum jeito,
pairasse como névoa no caminho, por mais que tantas partes
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44
de meu ser quisessem se manter naquele limbo, por mais que
não quisesse, levantei.
E atravessei, calado, uma das pontes, atravessei sem
nunca duvidar de que seria a certa. Mas chorava. Um choro
doce, fluido, lento e grosso, um choro jovial e quente e calmo. E
o tempo, que permeia tudo e todos, que nós atravessamos sem
dobrar, que torna pó o que já foi estrela, o tempo se mostrou e
eu tive medo. Mas sigo sempre em frente, sempre em frente...
o
olho
mágico
45
46
Quando Tertuliano, ao sair do apartamento, olhou, por costume,
pelo olho mágico da porta, teve uma visão de si próprio
tropeçando na escada. Não deu atenção à visão e seguiu para
o trabalho. O elevador estava em manutenção, decidiu ir pelas
escadas e tropeçou exatamente como viu acontecer pelo olho
mágico. Achou graça da coincidência e seguiu.
À noite, ao voltar do trabalho, assim que entrou no apartamento,
curioso, olhou pelo olho mágico da porta outra vez.
E teve outra visão: um acidente entre dois veículos no Largo
Dois de Julho, em frente ao prédio onde morava. Balançou a
cabeça e foi deitar. Às três da manhã acordou com o barulho
da colisão. Uma multidão logo se reuniu na frente do prédio.
Levantou-se para perscrutar pela janela e viu o acidente tal qual
o olho mágico o havia antecipado. E entendeu tratar-se de um
olho realmente mágico.
Com o passar dos dias, as visões foram tomando corpo.
O olho mágico, estava claro, mostrava acontecimentos futuros
com enorme precisão. Quando se olhava do lado oposto
da porta, ou seja, de fora para dentro do apartamento, era o
contrário, o olho mágico mostrava algum evento passado. Tertuliano
passou, então, a sair de casa já sabendo de ao menos
um dos tantos eventos que lhe acometeriam ao longo do dia. A
descoberta o interessava muito, pois já cogitava uma maneira
de controlar o que era previsto. Imaginava, por exemplo, como
seria se o olho lhe revelasse os próximos números premiados
da loteria esportiva, mas não tinha meios de antecipar as previsões,
muito menos de sugeri-las; ademais, todas eram banais
no fim das contas, pois tratavam apenas de pequenos acidentes
corriqueiros, quase sempre domésticos. De todo modo, a
situação não deixava de ser interessante.
Com o tempo, Tertuliano percebeu também que não era
possível, de posse da previsão, evitar o que era previsto. Foi
assim, por exemplo, na feira do sábado. O olho mágico previu
que a sacola de compras romperia e um abacaxi cairia em seu
pé. Então, durante as compras, procurou evitar a seção de abacaxis,
passou longe deles, desistiu até de comprar o dito cujo.
Mas, voltando para casa, um misterioso abacaxi despencou do
céu direto sobre o seu pé. Veio não se sabe de onde. Deve ter
caído de algum apartamento...
Em casa, analisou com mais calma a situação. O evento
se consumou, mas não como previsto pelo olho mágico, graças
à sua atitude preventiva. Logo deduziu que era possível intervir
nas previsões, ainda que não fosse possível evitá-las. Continuando
a análise, percebeu que, no caso do abacaxi, o evento
resultou em consequências mais trágicas, uma vez que o olho
não previu que um abacaxi vindo do céu o faria enfaixar o pé
inteiro.
Com o passar das semanas, o olho mágico parecia entender
que seu observador tentava interferir nos eventos e,
com isso, já incorporava às previsões tais interferências. Tertuliano,
dando-se conta de que o olho era perspicaz, passou a
contradizer as previsões de suas possíveis intervenções.
E o diálogo foi ficando irritante.
Se o olho previa que Tertuliano, ao saber de uma possível
queda, tomaria cuidados extras a ponto de, algumas vezes,
nem mesmo levantar da cama, o olho simplesmente indicava
outro evento consequente da alteração do primeiro, muitas vezes
eventos sem o menor cabimento: uma chuva inesperada
dentro do apartamento, um cheiro estranho de cigarro no banheiro,
abelhas cor de rosa saindo do travesseiro, uma capivara
escondida no guarda-roupa, formigas amarelas flutuando pela
casa... Eventos das mais diversas naturezas.
Em pouco tempo o apartamento se transformou num
labirinto de coisas irreais. O olho mágico e Tertuliano pareciam
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disputar as previsões, um ignorando a intervenção do outro, ou
simplesmente tentando mudar o rumo dos eventos conforme o
outro insistisse em alguma ideia.
Com o tempo, o interesse pelo olho mágico esmoreceu.
Tertuliano estava cansado de ser advertido sobre os seus pequenos
acidentes domésticos, bem como de suas briguinhas infantis
e interferências birrentas com o tal buraco. Foi nesse clima
de desleixo que os dias transcorreram. E percebeu que sem as
constantes consultas ao olho mágico, deixava de se envolver nos
pequenos acidentes, voltando a levar uma vida rotineira e a encerrar
dias sempre iguais. Neste sentido, o olho mágico não parecia
apenas um vidente excêntrico, estava mais para algum tipo
de... mau-olhado.
Entretanto, algo novo perturbava Tertuliano. Uma estranha
sensação de estar sendo observado. Era como se houvesse
alguém mais no apartamento, analisando-o a todo instante.
Passou a dormir inteiramente coberto, mesmo nos dias quentes.
Ao tomar banho, tinha vergonha de tirar a roupa. Jantava virado
para a parede. Tentava viajar sempre que possível só para evitar
o apartamento. Passou a tomar remédios para dormir. Estava
sempre naquele clima de silêncio desconfiado, de quem não
quer chamar atenção, sempre com medo. Jurava sentir alguém
respirando à sua espreita.
Um dia, ao sair para o trabalho, passou pela porta e se
deteve um pouco mais. A pressa rotineira não o impediu de
parar um instante e olhar pelo olho mágico como já não fazia
havia meses. E qual não foi sua surpresa quando se deu conta
de que um olho o olhava de lá. Não sabia quem era, pois estava
muito próximo, era apenas um olho, às vezes piscando, que
não parava de observá-lo. Assustado, e agora muito constrangido,
deu dois passos para trás e pôs as mãos na boca. Ali mesmo
decidiu: em vez de ir ao trabalho, foi direto à imobiliária.
Nem pensou em trocar a porta, pôs logo o apartamento inteiro
à venda.
pico do jaraguá
a primeira vez que fui ao pico do jaraguá foi com meus pais
se hoje tenho 25
isso com certeza tem mais de quinze anos
lembro que estava na moda aquele brinquedinho com duas bolinhas
que se batiam na ponta de um barbante
acho até que era bate-bate o nome
e eu estava feliz porque tinha um bate-bate azul-claro
e estava no pico do jaraguá
azul é minha cor preferida
eu era muito menino e não lembro bem desse dia
mas lembro de ter ficado muito impressionado lá em cima
não pela vista nem nada
mas por não ter proteção nenhuma no topo
era alto demais e a queda parecia muito próxima
um desequilíbrio ou um empurrãozinho
e não tinha volta
fiquei com medo
como contraponto à minha insegurança
uma imagem permanece clara
um casal que estava bem no limite do morro
para além de todos os outros visitantes dali
havia um planalto onde todos ficavam
depois um declive íngreme
mais um pequeno pedaço plano e então o abismo definitivo
o casal estava justamente no último pedaço antes da queda
sentados de mãos dadas nesse pequeno espaço
não pareciam sentir medo nenhum
49
talvez hoje eles já tenham se separado e sintam medo
pelas estatísticas eles já se separaram
mas pelas estatísticas eu também já teria esquecido deles
apesar das estatísticas é curioso pensar que é possível que já tenham
[se separado mesmo
e que talvez aquele pequeno pedaço de terra tenha sido suficiente por um
[tempo
e eles mal se lembrem daquela tarde nublada de um fim de semana
ou talvez tenha durado muito e depois acabado
e eles em vão façam força pra esquecer daquele pedaço
mas o mais bonito é pensar que o momento mais marcante desse casal
pode não estar na memória nem do rapaz nem da moça
mas na minha
significa muito ter tão forte a imagem desse casal que nunca conheci
que sequer vi os rostos
já que estavam de costas
espero pelo menos poder conhecer o que os unia e fazia com que não
[sentissem medo
pois sabiam que dali o passo seguinte seria pra voar
minha memória resiste involuntariamente eu resisto voluntariamente
nunca mais voltei ao cume de são paulo
não sei se agora lá tem proteção
talvez seja hora de voltar e ver se aquele pequeno pedaço de terra ainda
[é suficiente
50
Ré-
quiem para ela
Réquiem
para ela
Réquiem para ela
Réquiem para ela
Nota do editor: o texto faz referência à missa fúnebre
Requiém em Ré Menor (K.626) do compositor
Wolfgang Amadeus Mozart.
DIES IRAE
Réquiem
Ela estava no ponto mais alto da torre, olhando para fora
com os ombros rigidamente eretos, as mãos atrás das
costas entrelaçando-se de maneira quase régia e severa.
Observava o tempo horrível com total inexpressividade,
como se aquele monte de raios e gotas afiadas como agulhas,
além do vento incessante que vinha uivar em seus
ouvidos, não fosse nada além de um espetáculo tedioso
– ou algo que, no mínimo, ela não queria ver. Mas ela via
e continuava vendo mesmo com a chuva insistindo em
cuspir-lhe um pouco no rosto.
Sem nenhum aviso, mãos vieram apoiar-se em seus
ombros. Ela sentiu os dedos entrelaçados tremerem e
apertou-os mais uns nos outros, esforçando-se para não
sair da postura de jeito algum. As mãos em seus ombros
subiram até a nuca, deslizando com a unha e por fim desceram
até a cintura apenas para voltar a subir, agora percorrendo
os braços. “Calma, está tudo bem.” disse-lhe ao
pé do ouvido, a respiração quente batendo em suas bochechas.
Réquiem
para ela
ra ela
51
ara ela
para ela
para ela
ra ela
52
Réquiem para ela
Réquiem para ela
Então lhe arremessou brutalmente em direção ao
nada.
O vento agora urrava, coisa que ela precisava fazer,
mas não conseguia tamanho o pavor. Sua queda era veloz,
desesperadamente veloz, e igualmente infindável, e
mesmo assim, de sua garganta não saía um grito. Estava
caindo em direção à morte completamente muda – e completamente
nua também. Suas roupas se destroçavam ao
Réquiem par
passo que sua queda prosseguia, atingida pela tempestade
e por abutres odiosos que vinham lhe picar a pele, ignorando
a natureza enfurecida. Ela sabia que estava sendo
Réquiem para ela
minuciosamente observada lá de cima e por isso chorou
de vergonha, tentando cobrir os seios com as mãos sem
nenhum sucesso.
Os abutres continuaram a bicar-lhe o corpo sem
trégua, quando seu coração saiu pela garganta numa confusão
visceral de veias e sangue. Ela sentiu o gosto do órgão
preenchendo o céu da boca, passeando pela língua,
atravessando os dentes, manchando tudo pelo caminho,
impregnando-lhe inteira com seu sabor pavoroso. Estendeu
os braços, tentando alcançá-lo antes que voasse para
longe de si, e o apanhou com a mão, segurando-o tão forte,
mas tão forte, que o fez estourar ali, bem entre seus
dedos.
Ela deixou de cerrar o punho, sentindo-se aterrorizada
e com frio, mas já não havia mais o que podia ser
feito. Seu coração havia explodido, os abutres continuavam
a atormentar-lhe sem dó, e a chuva se recusava a lavar
suas mãos sujas de si mesma. Os animais a deixaram
quando o fim se aproximou, voando para longe enquanto
ela caía com ainda mais rapidez. Manteve os olhos arregalados,
encarando o solo que estava prestes a dar seu
sórdido abraço, e uma dor dilacerante atravessou-lhe por
inteira. Ela não queria morrer com as mãos imundas.
uiem para ela
Réq
Réquiem
uiem para ela
a ela
Réquiem para ela
para ela
Réquiem para ela
REX TREMENDAE
Estatelou-se no chão, decerto, mas percebeu que respirava.
Ela ainda possuía uma força mínima que lhe permitia
ao menos olhar para cima com os olhos úmidos de súplica.
Olhou; lá estava ela, vendo do alto da torre seu próprio
corpo destruído no chão.
CONFUTATIS
Réquiem para ela
Réquiem p
Réquiem par
Réquiem para
Afastou-se da janela rapidamente, correndo em direção às
escadas. Desceu os degraus todos aos tropeços, caindo e
escorregando aqui e ali, sem pensar em momento algum
na chuva que lhe atingiria tão violentamente. Ao vislumbrar,
porém, um raio escandaloso rasgando os céus, tão
perto de si, sentiu medo.
Os olhos se misturaram ao aguaceiro que caía e,
avistando ao longe a silhueta de abutres voando sobre o
corpo que repousava imóvel sobre o chão, balançou a cabeça
decididamente e resolveu que atravessaria, mesmo
com os membros todos trêmulos.
Voltou a correr com mais fúria e mais pressa, sedenta
de chegar logo onde tivera seu fim. As meias sob
os sapatos estavam horrivelmente encharcadas, o cabelo
grudara pesadamente nas faces, e ela prosseguiu assim,
espantando os abutres com gritos e golpes no ar.
Os animais se afastaram, e ela pôde, finalmente, se
ajoelhar ao lado do corpo, as roupas destroçadas caídas
ao seu lado. Agarrou-se, agora com as mãos firmes. Ela
ainda estava acordada, a respiração fraqueando cada vez
53
em para ela
Réquiem para
Réquiem
Réquiem p
mais. “Eu precisei”, sussurrou para a moribunda, que com
muito esforço meneou a cabeça.
Envolveu-se com os braços e chorou, mas chorou de
olhos fechados, calada e também surda – o tempo feio já
não assustava nem castigava tanto. Abriu os olhos ao sentir
uma garoa tranquila contornar suas costas e em seus
braços já não havia mais nada; em compensação, nas palmas
das mãos encontrou punhados de cinzas. Ergueu-se,
sem desviar o olhar da torre alta, majestosa, uma mancha
no céu pálido. E, sem pressa, pôs-se a caminhar em sua
direção, batendo as palmas uma na outra para limpá-las.
Réquiem para ela
Réquiem
m para ela
Réquiem p
iem para ela
54
Réquiem para ela
para ela
Réquiem pa
ara ela
SOBRE OS
sombras
para ela
sombras
ara ela
ra ela
O sombra é o sujeito das beiradas e das esquinas. Difícil encontrar
o sombra e encará-lo. Ele se esquiva e evapora. O sombra
é o sujeito que te espreita enquanto você come. Ele não
é o pervertido nem o malicioso, nem o inconveniente, nem o
secador-de-sucessos-alheios. Ele só é curioso. Ter um amigo
sombra é ter sempre que se preocupar com um bebê por aí.
Quase tão ruim quanto carregar um guarda-chuva nos dias de
sol. O sombra tem o hábito de praticar o voyeurismo da vida,
mas ao invés de ter prazer em assistir, provavelmente ele tem
é muito medo de participar. Por isso é que ele te segue. Você
parece entender e tomar parte nas coisas, parece não ter medo
de escorregar e tropeçar e logo você o inspira. É difícil até de se
espantar um sombra, se lhe tacar luz, o sombra se afasta e te
acompanhará de longe e com binóculos. O pior é quando o seu
sombra é você.
Cansado de si mesmo e buscando umas férias, certa vez
Atílio decidiu não se escutar mais. Atílio era daqueles sujeitos
55
56
sombra, esquecido nos cantos e que não jogava bola nas aulas
de educação física. Na infância, não corria atrás do sorveteiro
quando este distribuía amostras grátis. Atílio-criança já estava
cansado só de pensar na corrida e na disputa com outras crianças,
contentava-se de assisti-las enquanto se lambuzavam.
Todos temos um Atílio dentro de nós. Atílio é o piloto-automático.
Se a vida só vai, Atílio assume a janelinha, dá as caras
e se sente confortável na vida puramente monocromática. Os
psicólogos não irão gostar do que vou dizer, mas gosto de pensar
que na escotilha do meu sujeito se instala uma assembleia
deliberativa com pautas estabelecidas, tempo de fala e teto
para acabar. Às vezes, essa assembleia é uma roda de conversa
e outras, quando todos estão cansados, instala-se um sorteio.
Atílio costuma ficar no canto, olhando e assustado, tentando
ter certeza de que quem tem certeza são os outros. De vez em
quando Atílio dá sorte, a situação evoluiu para um escarcéu e
enquanto todos se desesperam, Atílio se escorrega para o manche
e define sozinho os próximos destinos da minha máquina
espacial.
Atílio no comando te transforma naqueles sujeitos convencionais:
os protocolos de “bom dia”, de “tudo bem e você?”
e a obediência terrenha às normas e convenções. E como Atílio
consegue assumir por tanto tempo o manche? Bem, enquanto
ele se diverte com seu sorriso de canto, os outros sujeitos estão
desesperados. Até que alguém levanta a cabeça, reconhece
Atílio pilotando, afasta-se do escarcéu e simpaticamente retira
Atílio do manche. O escarcéu acaba e uma comissão vai apurar
os danos.
Atílio tem um hábito especial, um fetiche particular por
letreiros de postos de gasolina. E lá está você, frente a frente
com um anúncio qualquer, com os olhos esbugalhados e o
sorriso de canto dos homens sombra. Não há nada de especial
nesses placares, justamente esse tom monótono e repetitivo
dos anúncios que atrai a mente linear de Atílio.
A comissão formada abre o microfone e as falas subsequentes
vão desde diagnósticos a axiomas: “Atílio, tome coragem
e não faça isso”, “Atílio, sua função é ficar na ribeira e calado” e “A
natureza de Atílio o atrai para esses hábitos pequenos, a nossa
natureza nos leva ao escarcéu, e enquanto a nossa natureza permitir,
a natureza de Atílio se manifestará e assumirá o manche.
Vamos recobrar a atenção e conduzir nosso caos interno ao caos
externo e ao manche dessa embarcação”. Aplausos. As coisas se
reestabelecem, os espaços decisórios se reorganizam e colocam
próximo ao palco uma grande placa anunciando: “Estamos há 0
dias sem Atílio no manche”.
57
SONETO PARA
Aline
Aline olhou pro rio e viu um destino estranho
No vaivém da água corrente, havia um tipo de reflexo
Não eram só seus olhos a tremelicar castanhos
Lá estava o seu espírito a se revelar, perplexo
O céu estava tão azul que pareceu-lhe fevereiro
Sentiu a terra tremer como em dia de carnaval
Da bondade que lhe enchia, perdoou o mundo inteiro
Mas sem se dar essa empatia, mergulhou pro seu final
A Terra girou estridente
Em volta tão lenta e sublime
Que o coração dessa gente
Reconhecendo seu crime
Chegou a bater diferente
Ao sentir partir Aline.
58
Termino em
O chão ainda está coberto de rosas
Por mais que estejamos entorpecidos
Mesmo que a visão esteja turva
Por trás de cada pétala, uma memória
Tenta achar em qualquer uma delas
O sentido que havia no princípio de tudo
Quando você declarou, incerta, minha existência
Das poucas lembranças que eu tenho
Há uma em que o “eu" consciente não estava
[presente
E agora é um dos laços que nos restam
Um buquê de pétalas caídas
– se é que vale alguma coisa –
Não vale mais
Que a lembrança da roseira de origem
terceira pessoa
59
14
Você achou por um segundo que se se decepcionasse muito
uma hora se decepcionar seria impossível?
Só porque a casca em volta de você era tão grossa
não queria dizer que não fosse esburacada
e na noite enquanto você ria desse amor de gente
ele entrava sempre em você.
Você achou por um segundo que era possível estar tão perto do fogo
e sentir só o calor te abraçando?
Não as chamas derretendo sua pele de aço,
não suas lágrimas de álcool tentando apagar o incêndio?
Você achou por um segundo que se preparasse um quarto no seu coração
ela não buscaria lar em outro que chegou depois?
Que ela aceitaria abrigo numa fortaleza que entrou sem saber?
E talvez nunca saberá, porque de lá seus sentimentos nunca saíram.
60
Você achou que preparar uma cama
sem avisar pra quem ela fora feita
resultaria em algo além de uma cama vazia e um coração partido
Você achou que a escuridão da sua alma encontraria luz
nos olhos de alguém que nunca esperou nada além de suporte
num momento em que você a queria
pra se sentir útil?
Você achou que estar sozinho passava de primeira?
Você, que há tanto tempo foi a vela,
a solidão em volta dos seus amigos, que não moverão um dedo pra sanar
[sua agonia.
Achou que alguém seguraria sua mão?
A terra gira mesmo quando parte de ti morre.
A terra gira mesmo quando seus olhos vermelhos fecham.
A terra gira com seu travesseiro banhado a ranho.
E ela gira com ela beijando outro.
Você achou que a dor que sente agora te fez mais forte?
Mais invencível
ou mais capaz de suportar as decepções que ainda virão?
O chão estará sempre sob seus joelhos cansados.
Ninguém estará rindo de ti,
nenhum deus estará te vigiando,
ninguém estará pronto pra responder seus por quês.
Então por quê?
Seus poemas de consolo não estarão na história depois que você se for
Sua raiva, ela não vai ficar gravada.
Mas seu coração nunca esteve quebrado,
só porque você achou que ele estaria,
e agora o quarto bagunçado com a cama revirada
será seu sono sem sonhos enrolado na coberta.
61
Se deixar as portas abertas não é o suficiente,
se fechá-las não é o suficiente,
de que serve amar?
Ou melhor,
quem disse que dava pra um só amar e ser amor?
Quando a histeria passar,
quando o ódio cessar,
quando esse fogo apagar,
Só restará você e uma cama desarrumada,
pronto pra recomeçar.
62
escolha dos editores
63
A
Repartição
Certa vez, vindo do teto de um escritório, caiu sobre o chão um
pacote estranho.
Eis que a embalagem ali caída, revelando todo seu conteúdo,
isto é, dez comprimidos contendo cada qual o elixir da
imortalidade, fez com que todos os dez homens ali presentes
se pusessem a confabular sobre qual seria a divisão dos comprimidos
entre eles. Certo era que, ainda fossem comprimidos,
não poderiam ser divididos, pois não se pode ser meio imortal;
uma vida eterna é eterna e ponto.
O chefe, cuja sala era de seu uso exclusivo, ordenou que
todos se sentassem em seus lugares, Sem organização não chegaremos
a lugar algum. Os gerentes, que eram dois, se dirigiram
para as mesas coladas onde faziam seu serviço; o mesmo
se passou com os encarregados, três, para o cubículo que habitavam,
e com os secretários, quatro, para a mesa que dividiam.
Mesmo dividindo esses espaços, havia uma hierarquia,
isto é, o quarto secretário era subordinado ao terceiro; este,
ao segundo e assim por diante; da mesma forma ocorria com
os demais, encarregados e gerentes. O último secretário logo
protestou, Ora, são dez comprimidos e somos dez, portanto,
um para cada. Ocorre que cada qual dos nove restantes pretendia
sair com pelo menos dois comprimidos, porque já que se
viverá para a eternidade, que se viva com alguém de seu agrado.
O primeiro encarregado disse com voz firme, Como fomos
promovidos antes de o serem os secretários, o certo é que fiquem
de fora e façamos a distribuição entre nós, os gerentes
e o chefe. É claro que tais sinalizações provocaram os mesmos
64
efeitos nos demais trabalhadores. Os gerentes achavam injusta
a distribuição para os encarregados e secretários, afinal eles
eram parte menor de uma cadeia que só seria impossível sem
os altos patamares.
Mas fato é que estamos nos esquecendo daquele que primeiro
achou o pacote e, não de menos importância, supervisiona
todo o trabalho feito pelos nove. O chefe não tinha dúvidas de
que deveria ficar com os dez comprimidos, afinal, imagine uma
sociedade afortunada até o fim dos tempos por tê-lo ali, contribuindo
com seu esforço diário e, além disso, ao lado de sua
família, pois era esse o destino dos outros nove comprimidos, é
claro. No entanto, sabia que isso não se concretizaria e decidiu
fazer o possível para, ao menos, levar vantagem na separação.
Tomados na mão, o chefe, com os dez comprimidos, começou,
Farei uma proposta de divisão. O primeiro gerente se
inquietou, Votaremos e vencerá caso a maioria concorde, ou
seja, cinco de nós; no entanto, caso você perca a votação, caberá
a mim a distribuição dos comprimidos e asseguro-lhe que
ficará de fora da divisão. O restante pareceu concordar com a
sugestão, uma vez que, com o chefe excluído da repartição, sobrariam
mais comprimidos. Não houve demora para que o segundo
gerente, segundo porque era subordinado ao primeiro,
se pronunciasse, Pois o mesmo ocorre contigo; se sua proposta
for rejeitada pela maioria, a divisão passará a ser de minha
responsabilidade. E o pensamento seguiu em efeito dominó,
de modo que a cada rejeição de proposta, os dez comprimidos
ficariam sob guarda do próximo na hierarquia e caberia a ele
distribuí-los entre os demais.
O chefe voltou para sua sala pensando em como faria a
melhor distribuição, de modo que pudesse sair beneficiado e
que a maioria concordasse. Essa proposta deveria ser irrecusável,
ao menos para quatro deles. Se a divisão ficasse a cargo do
próximo na hierarquia certamente ficaria sem nada. Enquanto
isso, gerentes, encarregados e secretários ocupavam seus lu-
65
66
gares e discorriam sobre a possível repartição dos comprimidos.
Todos eram igualmente gananciosos e qualquer um que
assumisse tal responsabilidade, procuraria sair ganhando. Atravessando
a porta era possível ver os pertences do chefe: mesa
ampla e cadeira confortável, obras de arte herdadas do antigo
chefe e um porta-retrato com a esposa, os três filhos e um
cachorro. Teria efeito o comprimido da imortalidade no cão?
Talvez provocasse uma reação indesejada e isso significaria um
desperdício. Mas todos vivendo eternamente, juntos, na mesma
casa, possivelmente acabariam se matando e, como teriam
se tornado imortais, não poderiam se matar e aí acabamos em
uma desgraça sem fim. Talvez fosse melhor mesmo vender os
comprimidos. Por um bom preço, teria uma vida confortável
e finita ao lado de sua família. Mas a promessa de uma vida
eterna era tentadora demais. De todo modo, imortal ou rico,
deveria pensar em uma proposta, e em uma boa, caso contrário
acabaria morto, eventualmente, e pobre.
Pensou, Se distribuo um para cada gerente e um para
cada encarregado, fico com cinco. Mas, além de não gostar muito
de números primos, o chefe pensou um pouco mais e logo
viu que não obteria votos da maioria, já que, apesar de dar um
comprimido a pelo menos quatro deles, caso todos recusassem,
sobrariam mais e uma nova divisão beneficiaria mais deles.
E decerto recusariam. Como tornar a proposta irrecusável
era essa a questão. De volta à sala comum, os secretários pareciam
se unir contra sua possível exclusão da repartição e não diferentemente
ocorria com os encarregados. Permaneceremos
unidos, temos direito aos comprimidos da imortalidade, merecemos
ser imortais tanto quanto o chefe ou qualquer gerente.
Com o embrulho no colo, o chefe parecia obstinado a
resolver o problema, que não existiria se todos pudessem ver
claramente que deveria ser ele o proprietário do achado, afinal,
era ele quem comandava o escritório no qual caíra o pacote. Por
cima da mesa, seu olhar batia na parede à sua frente e voltava
sem a resposta que procurava. Tratou de se ajeitar no assento
e se pôs novamente a raciocinar, Se tenho dez comprimidos...
O maior dos ponteiros deu algumas voltas no relógio e trouxe
consigo solução nenhuma para o pobre homem. Não arriscaria
a promessa da vida eterna em uma oferta ruim, Tem que
ser boa, muito boa. Mas já cansado inclinou-se sobre a mesa
desgastada e entrelaçou os dedos, apoiando a cabeça sobre as
mãos unidas. E aí temos o desfecho que buscávamos.
Ao cabo de algumas horas, à porta de sua sala, com vistas
para a comum, a postura do chefe logo atraiu os olhares dos
nove trabalhadores. Farei minha proposta. Conversas baixas
e feições desconfiadas borbulhavam na sala tal qual água na
chaleira. Ficarei com seis comprimidos. Os demais protestaram
não sem razão, a exceção dos gerentes, ora, eram gerentes, certamente
não ficariam de fora da divisão. Um comprimido vai
para o segundo gerente, ao passo que o primeiro não ficará
com nenhum. Vistas espantadas se cruzaram no escritório. Tanto
o primeiro quanto o terceiro encarregado ficarão sem nada,
darei apenas um comprimido ao segundo encarregado. Para
os secretários, darei dois comprimidos: um para o primeiro e
outro para o terceiro; nada para os demais. E calou-se.
As promessas de união entre os trabalhadores foram
desfeitas depressa. O primeiro gerente, vendo que nada levaria,
lembrou-se da votação e foram eles a votar. Disse para os
demais que, caso todos votassem contra, ele mesmo faria uma
distribuição bem mais justa, um absurdo era uma pessoa só
ficar com seis. Mas ninguém se iludiu. A proposta do chefe era
excelente e seria reproduzida na mão de quem quer que fosse.
Se a repartição ficasse a cargo do primeiro gerente, ele daria
apenas um comprimido para o primeiro encarregado e para
o terceiro; quanto aos secretários, daria um para o segundo e
para o quarto. De forma que os beneficiados na repartição do
chefe ficariam aqui excluídos, dado como certo que o primeiro
gerente ficaria com os tais seis comprimidos e faria a divisão
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dos demais à maneira do chefe. O mesmo se sucederia se, em
vez do primeiro gerente, os comprimidos ficassem a cargo do
segundo, e assim por diante.
Ocorreu que os quatro beneficiados pelo chefe votaram
sim e ali esqueceram que eram semelhantes e que eram diferentes.
O importante mesmo era levar, ao menos, um comprimido
e assim o fizeram. Antes de reparti-los, na frente de todos,
pois consideremos justiça, o chefe guardou os dez comprimidos
da imortalidade na gaveta e trancou-a. Deu a chave a um
dos gerentes, que deixou sob a responsabilidade de um dos
encarregados, que pediu para um secretário guardar. A chave
foi perdida e maneira não houve de abrir a dita gaveta. Mas isso
faz muito tempo, hoje ninguém mais fala sobre o assunto.
– Querido! Querido!
A esposa assustada o acordou.
– Tá ouvindo? Tem um barulho na sala...
Levantou-se ainda sonolento e foi tateando as paredes
até a porta. De lá, observou a pequena sala.
Havia um menino rezando de cócoras no chão. Cinco velas
alinhadas em círculo trepidavam o escuro do apartamento.
Percebendo a presença, o menino virou-se para ele. Não tinha
rosto. Nem olhos, nem nariz, nem boca. Com o susto, o menino
correu e saltou pela janela do décimo quarto andar. As velas
continuaram acesas no chão da sala.
Calmamente, fechou a janela e recolheu as velas. Voltou
para o quarto, acendeu a luz e caiu para trás amedrontado. A
esposa também estava sem rosto.
69
outro dia se apaga
sob as melancólicas cinzas do cotidiano.
repetição sintomática de hábitos
enfileirados
sem qualquer subjacência
ou poesia que os circundem.
o dia encerra-se em si mesmo
como se, cíclico, retornasse ao ponto de origem,
enclausurando-me os graus de liberdade.
afoito me encontro,
me perco,
me espero,
receio.
as horas compridas dissociam-me em partes
como preço a ser pago por existir.
um tique-taque e já morri.
espero, um dia, renascer.
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Corpo
Este tronco
Extensão deste tempo
Despedaçado
Me restou o tão extremo
Reescrevo meu corpo
Em segredo
71
depois
da
guerra
os rostos
72
Depois da guerra, a gente para e pensa
Em cada quadro inerte na parede.
E busca um lume, mesmo que pequeno,
Num fósforo mirrado que restou,
A gente risca — calma, mão, não trema —
Querendo iluminar pra ver de novo
— Naquele clarãozinho cinco dedos —
Um rosto antigo e quente, talvez dois,
Dos quadros que sobraram da parede.
Quem liga pro zumbido ininterrupto?
Quem liga pra hematomas e feridas?
A noite é bela e boa — eu tenho um fósforo
E os rostos destes quadros da parede.
No papelão socado na janela
O vento bate úmido, insistente
E escuso e torpe!, entra pelas frestas,
Mas eu não vou deixar que ele atrapalhe
O lume do meu fósforo mirrado:
Ainda tenho um velho cobertor
Que ponho na janela, e pronto: posso
Olhar em paz os quadros da parede.
Agora que sentia a sala quente
Sorria, pois enfim veria os quadros.
Mas num piscar dos olhos marejados
Com lágrimas sem água, sal apenas,
Me descobri parado em meio aos cálices
De lama entremeados em meu cérebro
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E os olhos observando-me no escuro,
E as sombras me tragando ao seu relento,
E as portas se expandindo e todo o ritmo
Da sala se entreabrindo em meio ao pântano,
E as folhas esparzindo na cozinha,
E os sapos conversando à luz da lua,
E as páginas dos livros remofando,
E as xícaras e pratos retinindo,
E valsas verberando em Calicute
— Consigo quase ouvir as notas trêmulas —
E os risos e os segredos — descobertas
De cada estrato efêmero da infância
De novos nobres (cegos do castelo)
Que têm direito ao doce mais-que-cálido
Das fábricas dos anjos mal nascidos
Que atravessando os campos trazem, lépidos
Dos rostos de crianças malferidas
(De mais maçãs e covas que bochechas
E mãos acostumadas a ser conchas),
Açúcares sagrados e os polvilham
E os servem. E estes nobres cegos comem,
Pois digerir é o ato que faz puro
Quem nunca necessita de consolo
E nem de claridade. Assim pensava,
Mas me lembrei dos quadros da parede.
Lá fora a luz da lua trespassava
Buracos na parede da antessala
E aqui eu respirava, semi-asmático,
O pó que o chão me dava de oferenda.
Em cada novo escuro há uma lição,
Mas é preciso alguma luz pra vê-la,
Pensei; e após mentar mais um segundo
74
— Pois isso era bem mais que o necessário —
Tirei do paletó meu murcho fósforo
E já me preparava pra riscar,
Mas meus ouvidos zumbem todo o tempo,
Mas não importa!, eu quero ver os rostos!,
Mas os meus dedos tremem todo o tempo,
Mas quem se importa?, os rostos!, eu preciso!,
Mas minha boca guarda um gosto cinza,
Mas do que importa?, os rostos!, veja os rostos!,
Mas meu olhar é tóxico, — vá logo!,
Os rostos!, na parede!, acenda o fósforo!
Os rostos!, veja os rostos!, veja os rostos!
Então entrei num transe, e quase via
Meu corpo como alguém que está de fora,
Agindo em modo como que automático,
(Banhados meus ouvidos de silêncio,
Meus dedos firmes, sólidos, constantes,
E a minha boca limpa, e os meus olhos
Tão claros como os olhos de um falcão)
E, ouvindo um risco seco na destrina,
Olhei a luz efêmera e pulsante
Que o fósforo mirrado me trazia:
E os quadros da parede, iluminados,
Traziam rostos, caras tão alegres,
Que, num primeiro instante, meu sorriso
Correu por toda face, até as covas,
Congratulando a mim por essa sorte
De ver a minha história, assim, tão vívida,
Assim, tão verdadeira, e bela, e jovem,
Em festas, zitanias, cerimônias,
Em taças, uniformes, tênis Nike,
E velas, veias, vidas vespertinas,
E tinta, copos plásticos e brincos,
Mas logo as sobrancelhas se encostavam
75
Nas pálpebras que davam quase um ósculo,
E o meu jazigo-lábio contraía,
Pois vendo, assim, sorrisos, caralegres,
Examinando os rostos um por um
— Como um cirurgião que busca abcessos —
Notei, nessa canção de Vaudeville,
Que as notas dissonavam entre si.
E, nas horas seguintes, eu, sozinho,
No breu de quando o lume se extinguiu,
Pensei não em cavalos (os marinhos),
Mas em serpentes, pois dos rostos todos,
Dos quadros, não reconheci nenhum.
76
excesso
de Alumínio
I
coisas todas nunca vi em matéria de destruição
a boca do verso me engoliu, os
efeitos do contrário, o mundo
em curva visto pelas costas dos olhos.
flagrado com.
coisas todas nunca vi. dou o não
penso em poetas loucos, penso na luz da geladeira, penso.
a bordo do meu quarto. prestes a morar.
meu quarto tem o azul esparso do útero da minha mãe.
77
a realidade se veste à frente dos meus olhos
capas velhas com a dança de chuva
panos pelas coxas molhadas dos apartamentos.
pouco sei. e sei que o que vejo pode parecer um corpo.
forma de corpo. metade do
meu corpo talvez. sem exatidão
II
adoecesse nessa praia.
III
maio nunca chegou em cavalo branco,
mas maio, sempre maio, desde sempre,
anuncia a estiagem do outono
em dias de sono: livros, encontros e outros.
para se esquecer. deixar para depois
o quarto galope dessas ideias.
78
linha poema
A flor vermelha é um ponto, o primeiro
Qual é o último?
E o nó da linha, quem deu?
Mas quem disse que o nó já estava lá? Será?
Acho que o nó é o último ponto
Mas a nossa linha está torta
Ela tem sulcos profundos
Tem cortes, estourou nuns pontos, quase arrebentou
E outros pontos estão sobrepostos, curvos
Só o começo é reto
Todo começo é reto?
Todo final é torto?
Mas quem disse que é o final?
Acho que o final é o nó e o nó é o último ponto
Na bem meia verdade, acho que o primeiro ponto é o último
Ou, pelo menos, alguns pontos se encontram no mesmo ponto
[e fecham
a linha, onde a linha recomeça
E todo recomeço é torcido
Eu sou reta, você é torto
Mas a gente é tão igual
Por que você tem que ser tão desfigurado? Tão plurifacial? Teu
[rosto é tão
disforme, poliforme, amorfo e mudo...
79
Por que essa linha ainda junta a gente?
Estamos juntos ou estamos ligados?
Acho que só estamos ligados
- talvez você tenha cortado a linha e eu ainda não percebi -
Eu queria que estivéssemos juntos
Não que isso signifique de mãos dadas, só juntos
E você? Você ainda pensa em mim? Na flor, no nó, nos pontos?
Quais os outros pontos?
Os pontos são começos ou são fins?
Ou são outra coisa?
E os pontos que ainda não demos? Vão ficar na agulha?
Tantos pontos na linha para tão pouco tempo
E o relâmpago preto foi minha despedida
Foi uma despedida?
Acho que ele não tocou o chão
Mas acho que nunca vai tocar
Acho que nunca vai ter o último, o nó, o final
Nossa linha vai ser incessante
Um infinito traço fino sem batida e sem desenho, sem costura
Essa linha já se transformou no traço do poema
80
ME DO
81
82
Do quanto não estamos acostumados. Do quanto talvez nos
falte. Eu comecei a ter medo das pessoas ao meu redor. De
tudo que elas vestem, falam. De como olham. Nossos ouvidos
não são aguçados o suficiente. Tudo é dolorido. Não conseguimos
ter amor ao discordar. Violência é a palavra-chave.
Viola-se o tempo todo. Corpos. Casas. Discursos. Condutas. A
morte se torna menos misteriosa. Valham-se da cafonice de um
enterro. Dos nossos filtros. Das pessoas que são cruéis conosco
através de suas próprias feridas. Nutrimos ódio por nada.
Eu realmente estou cansado do estranhamento. Estamos
condicionados a não surtar. Embora não haja receita
para o mundo, qualquer um pode ser bom ou mau.
Flores de plástico. Pessoas de plástico. De vidro. De ferro.
De borracha. De madeira. De concreto. De merda.
As luzes são de LED. As linhas de ônibus que dão nostalgia
às dez horas da noite. Barueri. Um celular, dois celulares... A
volta para casa. O trabalho. A catraca. O culto e a missa, a boate
e a praça. O bar, o mercado. A casa de ração e o cachorro. A
faculdade longe. O trem da linha 8 – diamante. A sensação de
estar existindo e enlouquecendo. Ódio generalizado. Pai todo
poderoso, dê-me saúde. Ninguém está imune. A hipocondria
é o medo da vida. Das gentes. Das doenças e da ciência. Mastigar
só aquilo que faz bem ao paladar: é para onde que eu
tenho que ir? Não há espelhos “surrealísticos” em todo lugar.
O choro entalado que não desce. A tristeza da literatura
que não chega a todos. A cara torta que a gente tenta
disfarçar. A arrogância que tentamos esconder. O ranço.
O quanto as pessoas querem nos entender tendo a gente
que explicar. Entenda, por ora, o que você conseguir, amigo.
Não é falar difícil. É decifrar um sentimento. Um sentimento
às vezes se perde em vias de ser didático. O amor. O entalado.
A língua mordida. O mijo de Carnaval. A obsessão
mal resolvida. Uma ninharia de coisas. O disse-me-disse e
nossas pavorosas e superficiais impressões. Calafrios. Nojo.
Suas piadas sujas são a podridão da sua alma cheia
de cigarro no pulmão. Ratos podres e cheiro de carniça.
Pode ser de você que eu esteja falando. VOCÊ. Ou mesmo
de mim. Vamos nos limpar. É um processo de desintoxicação.
É dois mil e dezoito. O caldo está engrossando e
aqui é o mar de enxofre. Nós somos o enxofre. Estupidez.
Por que acreditamos tanto na nossa sensatez? É melhor
a gente ter medo mesmo. Ninguém se mete com o medo.
83
Memória
O acaso faz-me abrir
a porta o álbum
a página
quem deixa álbuns de fotografia
antigas memórias
sob a cama
numa tarde de calor
o retrato nós dois
o instante
não te reconheço
o seu corpo
as peripécias a fala
as poucas palavras
as ladainhas
que não sei cantar
tudo aquilo que aprendi
por você
no silêncio mudo
as orquídeas no jardim
a água ebulindo
ervas em infusão
84
tomávamos o mesmo chá
sentados unidos no abraço
no olhar.
o
dom
da
palavra
Eu quero uma palavra
cantada, escrita, dita, sussurrada — indiferente.
Eu quero uma palavra
que me soe como adeus
ou descreva a infinitude do universo.
Sílabas que se formem coerentemente
e enfileirem-se em prol de um significado,
seja este qual for.
Que seja leve
e me faça rir.
Que seja maligna
e adentre minhas entranhas.
Quero repeti-la por dias, dando vida
às possibilidades tantas de um verso perfeito.
Estampará meu âmago
como um sentimento irredutível
e, ao mesmo tempo, impronunciável.
Quero — depressa! — uma palavra sólida,
que não se esfarele no processo
de se fazer compreendida.
Eu quero uma palavra urgente
que me socorra
irrompendo de vez
este silêncio
assassino da semântica de minha vida.
85
o urubu
Essa coisa preta não sai da minha janela.
Ele fica me olhando às vezes. Mas na
maior parte do tempo finge que não é
com ele. Aparece todos os dias lá pelas
nove. Eu nunca acordava mais cedo que
isso, agora faço questão. Vai saber o que
um bicho desses pode fazer? Dá a hora
e ele chega com essas asas enormes e
pousa na laje suja de lodo, cheia de embalagens
de porcarias que os moradores
daqui jogam pela janela. E fica lá tirando
as pulgas com o bico, rodando no eixo,
sob esse sol desgraçado; porque aqui no
interior sempre é verão.
À noite ele vai embora não sei
pra onde. Deve ir caçar o que comer
porque passa sem nada o dia todo.
Minha mulher chega depois que ele já
foi. Esses dias comentei a pontualidade
do bicho, ela disse que esses animais
carnicentos comem ratos e lixos, mas
quando ninguém está olhando. Deve
ser a nojeira desse prédio que atraiu o
bicho.
Agora ele é parte daqui, como se
tivesse sido contratado para me infernizar
a cabeça. Logo agora que estou desempregado
e preciso de tempo pra pensar.
Estes dias estão ruins. A Geise não
vai conseguir pagar tudo este mês. Aquela
mulher é heroína; aguenta de tudo.
Até esses chefes que chamam as meninas
pra sair ela aguenta. Ele já chamou
ela mais de uma vez, mas a mulher é boa,
86
tem que dar valor, dizia minha mãe. Por isso nem encasqueto
com essas coisas. Às vezes toco no assunto, mas, se ela destoca,
destoco também. Tudo pra não ver ela perder a paciência, ela
não merece.
Uma hora esse bicho tem que faltar, desatinar, partir
pra outra. Vive assim no meio da sujeira, não muda nunca, mas
é como dizem sobre as listras dos tigres, não mudam. Ou eu
mesmo mato esse animal.
Outro dia, olhando pra ele, lembrei do meu último emprego.
Esse animal se parece com os animais com que trabalhei.
Desse povo que aceita fazer de tudo pra agradar a chefia mas
nega ajuda para os iguais. Trabalhei com muitos assim, e ver
esse animal zanzando pra lá e pra cá, sem me olhar muito, mas
existindo ali, me fez lembrar isso. O Pedrão era exemplo. Sujeito
torto, quase mendigo, cheio de filhos e sem ter onde cair
duro, mesmo assim sorria até as orelhas quando o chefe passava,
mas descontava na gente a frustração do pagamento que ia
rápido, da pinga que não dava, da mulher papagaiando que não
devia ter casado. Depois, quando ele precisava de algum favor,
algum emprestado, ou coisa do similar, jogava aquela resenha
na gente, vinha rodando no eixo feito o bicho. O Vanildo caía;
nunca eu.
Esse bicho também é assim. Se precisar de alguma coisa
vai bicar o vidro da janela e me fazer jogar alguma carniça. Do
jeito que estou magro pode ser que ele esteja aqui por mim, por
isso. A comida do prato já está pela metade; o feijão-pura-água;
o arroz-vagabundo: esse bicho que nem venha.
Quando ele apareceu me fez lembrar também a mim mesmo.
Não é fácil admitir. Mas eu também estou assim, sozinho no
meio-dia, caçando algum lugar e alguma coisa pra agarrar, à noite
tem a Geise, Deus que sabe como ela tem segurado as pontas.
Nesse começo me afeiçoei a ele. Até pensei que era bicho bonito.
Mas precisava me lembrar disso toda vez que acordo? No almoço
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o bicho está lá. Volto da correria das entregas dos currículos e o
bicho não saiu. Nisso somos diferentes, eu não aguentaria ficar
ali um mês suspenso naquelas pernas finas e tortas. Escuto o
não, a porta fecha, parto pra outra.
Noite passada Geise disse que esse bicho é a sociedade.
Geise tem dessas coisas; enxerga tudo mais amplo, e tudo
na boca dela parece até axioma. Disse pra ela que esse bicho
quando chegou era da mesma desgraça que eu, era torto. Ela
insistiu que o bicho era todo mundo. Depois me explicou que
ele também tinha a alma escura, que trazia no corpo a morte
dos outros. Ela continuou:
O que esse bicho come?
Coisas podres, eu acho. Em putrefação, como se diz.
É isso, então. Morre e depois ele come toda sua existência,
sua história. Se tinha alguma cicatriz. Se tinha algum hematoma.
A pele também conta uma história, querido.
Fiquei de cair o queixo. Não tinha enxergado isso. Geise
ainda me falou de um deus asteca chamado Xinotauro, Xinozelol...
não... Xipe-Totec, isso! Ele consumia outros seres, mas,
quando maiores que ele, o corpo consumido extravasava os
limites do corpo do deus. Nem liguei que ela me chamou de
querido: não gosto.
É absurdo de se pensar. Esse bicho come e assume
um pouco da forma daquilo que comeu. Carrega no corpo as
histórias dos outros, deve ser por isso que se coça, é a pele
querendo esticar.
Essa história tinha que acabar. Fiquei pensando nessa
noite sem dormir e decidi depois de limpar uma antiga arma
do meu pai que ia matar o bicho. Era só um tiro. Ia aproveitar
essa hora do movimento nas ruas. Chegaria da rua, esperaria
um pouco, checaria telefonemas, e-mails e, se não tivesse nada,
seria a hora. Quase não dormi de excitação.
No caminho para casa já me preparava. Tentei não ter
pena do animal, mas trazer uma raiva que me faria só pensar no
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que fiz depois de feito. Quase não consegui entrar. Geise deve
ter esquecido e chutou as caixas que agora atrapalham a passagem
da porta. Eu ia beber um pouco de água do filtro, mas não
tinha copos limpos e a pia estava uma nojeira, não quis mexer
naquilo. Algumas roupas sujas jaziam na minha cama, joguei o
casaco por cima delas. Era agora.
Tirei as meias e cheirei. Eu ia usar à tarde de novo porque
não tinha outras limpas. Fiz o que tinha de ser feito: nada na
secretária eletrônica, sem e-mails, cartas de contas, só. Abri a
cortina e nada. O bicho sumiu.
Procurei, procurei. Nada. Tinha sumido mesmo. Olhei no
teto dos outros prédios, nada.
Deve ter sentido o perigo. E logo agora que eu ia dar fim
nisso tudo. Senti uma indisposição tremenda. Deitei no sofá e
comecei a olhar em volta. Não tinha quase nada no lugar. Os
papéis empilhados de qualquer jeito. Geise também não era
muito da organização. Suas roupas recobriam os espaldares
das cadeiras, os sapatos sob a mesa, alguns pares dessas meias
beges se destacavam no chão de tacos. Como tínhamos feito
aquilo tudo?
Devo ter copiado a bagunça do bicho. Geise estava errada,
eu me pareço mesmo com o bicho, só faltava mesmo era eu
sair voando por aí.
Fui até o quarto. Ia me vestir de novo para sair, já que o
trabalho com o bicho já nem precisava mais ser feito. Peguei
rápido as roupas que acabei de tirar. Olhei para o espelho e
fiquei um tempo ali com elas na mão. Minhas olheiras estavam
feito bolsas. Uma dor de estômago veio não sei de onde. Senti
um incômodo na boca, uma coisa dura rasgava minha língua
e a ponta de agulha rasgava tudo. Tentei engolir, mas perdi o
fôlego. O bicho se debatia para a luz. Era ele, a coisa preta que
saía de dentro de mim.
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Por entre mil folhas
Por entre mil folhas
À beira da estrada
Se esconde tranquila
Sem dizer palavra
Seu tronco robusto
No qual com razão
Nunca repousou
De um homem a mão
Sua raiz forte
Com sede temida
Do solo a beber
O suco da vida
Suas belas folhas
O outono tingiu
Balançam faceiras
Na brisa gentil
E se por ventura
Um passante com sorte
Vislumbra a beleza
Que zomba da morte
Na Luz Flavescente
Do sol a se pôr
Se esquece de tudo
E se lembra do amor
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saudações
oi
olá
oba
opa
olha
salve
e aí
hey
ow
bom
certo
oh
ah
hum
tranquilo
viu
é
você
sim
prazer
nenhuma me serve
porque te amo
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Era um agradável fim de tarde na minha casa. O Sol, já cansado
de mais um dia de trabalho, ia se pondo aos poucos, de uma
maneira bem calma e discreta lá no final do meu horizonte visível,
no fim da minha rua. Seus raios pincelavam toda a minha
sala com cores que variavam de um laranja escuro a um vermelho
pouco claro, levando, assim, toda aquela minha pequena salinha
de quatro paredes brancas e indiferentes a se tornar, pelo
menos nesses poucos minutos de pôr do Sol, algo realmente
bonito, vivo aos olhos de qualquer um que tenha uma sensibilidade
visual um pouco maior que a de um cachorro velho.
No momento, estava a tirar uma das minhas muitas
sonecas diárias sobre o colo de João, meu dono, que, habituado
a ver aquela mesma série tosca todo santo domingo, nem
tirara os olhos da pequena tela ao perceber que eu estava
começando a acordar.
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“Bom dia, dorminhoco”, falou ele quando eu comecei a
sair de seu colo.
“Boa tarde, João. Ai. Me lembre da próxima vez de não
tirar uma soneca no seu colo, acho que estraguei minhas costas
com essas suas pernas desconfortáveis”, respondi em um
miado enquanto ia pousando no chão.
“Por isso que você é o bichinho mais fofo que eu já tive,
Bichano, sempre me respondendo quando falo com você.”
“E por que eu não responderia?”
“Ai de novo! Haha. O Clarêncio nunca conseguiu
fazer isso.”
“Nem se atreva a me comparar com aquele cachorro
gordo! Eu sou um gato, e como...”
“Haha. Ok, Bichano, já deu pra entender que você quer
conversar, mas eu quero ver essa série. Então vai brincar lá
fora, vai.”
“Eu? Você que começou a conversar comigo, João...”
“Para de miar, Bichano, não tá dando pra eu me concentrar
no programa. Sai daqui, vai.”
“Ora, agora que eu não vou parar de falar mesmo e...”
“Ok, já chega.”, falou João se levantando do sofá.
“Você tem que ter obediência a mim, Bichano, senão
como a gente vai seguir com essa relação?”
“Está bem longe de uma relação o que nós dois temos,
João. E o que você quis dizer com obediência a vo...”
“Tá, tá. Relaxa, eu já sei o que você quer.”
“Sabe mesmo? Por que você está indo pra cozinha
então?!”
João então volta com uma pequena tigela.
“Toma...”, falou ele, jogando a tigela com ração de gato
na minha frente “...feliz agora?”, perguntou ele em seguida.
“Você tá de brincadeira comigo, né?”, falei prestes a
atacar aquele desgraçado ignorante.
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UM MINUTO
Acordo.
Olho no relógio. São 13:43.
É um domingo chuvoso. A janela está aberta e posso sentir
o ar úmido entrando.
Espreguiço-me, acho que preciso levantar...
Mas não levanto.
Viro para o outro lado. O barulho da chuva é relaxante.
Faz-me lembrar daquela vez em que...
Que barulho é esse? Não é a chuva.
Alguém passou pela porta. Sinto cheiro de café.
Do que estava lembrando, mesmo?
Ah é. Aquela vez...
Acho que tinha café, também. Eu poderia tomar um café,
agora. Mas continuo deitado.
Preciso levantar. Mas não levanto.
Parece aqueles domingos, quando somos crianças e não
queremos levantar. Como era bom ser criança...
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Já faz tanto tempo.
O cheiro do café fica mais forte. Ela entra no quarto. Em
silêncio. Deve achar que ainda estou dormindo. Não me
movo.
Olho com o olho entreaberto. Ela pega algo que está no
criado mudo, ao meu lado.
Que cheiro bom...
Seu braço encosta em mim, bem de leve. Tão de leve, que
normalmente não sentiria. Mas sinto. Ela não deve ter
percebido. Eu percebi. Um leve toque e uma sensação...
Estamos juntos.
Saiu no mesmo silêncio em que entrou. Lembro-me do dia
em que a conheci. Sinto-me bem. Como dei tanta sorte?
Sinto-me feliz.
Uma sensação incomum de paz me acerta. Será o domingo
chuvoso? O cheiro do café? Será ela? Não sei. Sinto-me em
paz.
Fito, novamente, o relógio. Posso ouvir um tic-tac. Muito
baixo. São 13:44.
Preciso me levantar.
Mas não levanto.
Sinto-me em paz.
Sinto-me feliz.
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niversalia
medo
deus é um conforto maravilhoso
o problema é que às vezes ele dura pouco
se deus fosse só segurança
e a gente não pedisse as coisas
deus seria pra sempre
o escuro foi meu primeiro medo
olhar tão forte pra escuridão
e não enxergar nada é um desespero
mesmo dentro do próprio quarto
sem luz os móveis mudam e os monstros surgem
na imaginação de achar que algum demônio se importaria em
[me matar
ficar vivo, com o tempo, é o maior castigo
de madruga as luzes tinham de acompanhar meus passos
a ausência presente no escuro de dissipava
enquanto eu corria pela casa às duas da manhã pra ir ao banheiro
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meu segundo medo foi a rejeição
é o que aparece quando você percebe o resto do mundo
quando você percebe que o resto do mundo talvez não perceba
[você
mas aquilo que esperam ou desprezam em alguém
isso fica no holofote dos seus olhos
e o amor fica dentro do cobertor
porque preferimos passar vontade a vergonha
enquanto ela beija outro que disse oi
eu achava errado ser rejeitado
mas no fim não vale a pena que pelo menos nisso
as pessoas sejam sinceras?
meu segundo medo e meio, seguindo essa linha, foi o amor
meu terceiro medo foi crescer
e é estranho porque não se evita
é ter medo de algo que ocorre invariavelmente
me peguei tendo medo da adolescência sendo adolescente
e do mundo adulto sendo adulto
me assustava fazer tanta merda
e decidir guardar o dinheiro dos jogos pra comprar o almoço
essas coisas vão passando de medo pra rotina
e no conforto da rotina nossos medos viram nossa vida
até estarmos fissurados na emoção do dia a dia
meu último medo foi o vazio
se olhar no espelho torna-se mais leve
depois de se olhar na alma e só enxergar espaço em branco
passei a trabalhar em recheios pro meu vazio
fui do cigarro pra bebida
da bebida pro sexo
e do sexo pra decepção
que nem um monte de gente
eu sabia que ia dar tudo errado
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todos os recheios são prazeres efêmeros
e é sabendo que não vai dar certo que vale a pena tentar
por amor às causas perdidas
não são as risadas ou os amigos ou a namorada que te completam
o universo se expande sempre e fica cada vez mais vazio
tal nossa alma
não se passa a vida querendo completar o infinito
passa-se tentando aceitá-lo
os medos que antes passaram de um em um
agora ficam aqui dentro, todos juntos
e é por ter passado por eles e tê-los ainda
que percebo que viver é acumular as coisas
pra senti-las todas juntas
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a equipe
Coordenação Geral
Giovanna Romera Rossi
Heloísa Fernandes Muriano
Editorial e Revisão
Heloísa Fernandes Muriano (coordenação)
Larissa Prada (coordenação)
Amanda Tiemi Nakazato
Giovanna Romera Rossi
Iana Maciel
Igor Souza
Ingrid Dias
Isabella Silva Teixeira
Júlia Gretz
Letícia Shine
Luisa Marcelino
Mariana Gomes Pereira
Mariana Lari Canina
Nathália Caixeta Francisco
Thais Moreno Ferreira
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Arte
Giovanna Romera Rossi (coordenação)
Amanda Tiemi Nakazato
Beatriz Alves de Oliveira
Heloísa Fernandes Muriano
Isabella Silva Teixeira
Letícia Shine
Luisa Marcelino
Mariana Gomes Pereira
Mariana Lari Canina
Nathália Caixeta Francisco
Thais Moreno Ferreira
Capa
Giovanna Romera Rossi
Divulgação e Redes
Giovanna Romera Rossi (coordenação)
Stéphanie Roque (coordenação)
Amanda Tiemi Nakazato
Daniela Orlandi
Fernanda Damaceno
Heloísa Fernandes Muriano
Iana Maciel
Igor Souza
Isabella Silva Teixeira
Letícia Shine
Mariana Gomes Pereira
Thais Moreno Ferreira
Orientação
Prof. Dr. Thiago Mio Salla
Apoio
Com-Arte Jr.
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