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Publicação Mensal Ano XV - Nº <strong>176</strong> Novembro de 2012<br />
Cristo é verdadeiro Rei
Nossa Senhora e Santa Catarina<br />
Labouré - Capela da Medalha<br />
Milagrosa, Paris (França)<br />
Gustavo Kralj<br />
No arco acima, pode-se ler: “Fui estabelecida guardiã.”<br />
S<br />
anta Catarina Labouré encontrou<br />
Nossa Senhora no presbitério,<br />
sentada numa cadeira que até<br />
hoje se pode venerar na capela da<br />
Rue du Bac. E chegou a falar com<br />
Ela, apoiando seus cotovelos nos joelhos<br />
de Maria Santíssima!<br />
O que deve ter restado na alma de<br />
Santa Catarina durante a vida inteira,<br />
por aquilo que ela viu, nem<br />
sei dizer. Mas certamente Nossa Senhora<br />
comunicou-lhe uma grandeza<br />
de alma e uma obediência cada<br />
vez maior. Quando ela era agraciada,<br />
nas sucessivas visões, Santa Catarina<br />
Labouré ficava mais obediente.<br />
Cada vez mais ela compreendia<br />
aquele universo de santidade<br />
que havia no Coração da Mãe de<br />
Deus e, portanto, lhe ficava mais<br />
claro o absurdo de desobedecer à<br />
Santíssima Virgem.<br />
(Extraído de conferência de 25/3/1995)<br />
2
Sumário<br />
Publicação Mensal Ano XV - Nº <strong>176</strong> Novembro de 2012<br />
Ano XV - Nº <strong>176</strong> Novembro de 2012<br />
Cristo é verdadeiro Rei<br />
Na capa, Cristo<br />
Pantocrator, Igreja<br />
de Nossa Senhora<br />
da Consolação,<br />
Ohio (EUA).<br />
Foto: François Boulay<br />
As matérias extraídas<br />
de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
— designadas por “conferências” —<br />
são adaptadas para a linguagem<br />
escrita, sem revisão do autor<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />
propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />
CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />
INSC. - 115.227.674.110<br />
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Antonio Augusto Lisbôa Miranda<br />
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Editorial<br />
4 Cristo é verdadeiro Rei<br />
Datas na vida de um cruzado<br />
5 Novembro de 1932<br />
Fundação da Liga Eleitoral Católica<br />
Eco fidelíssimo da Igreja<br />
6 Cristo Rei<br />
Dona Lucilia<br />
10 Suavidade e firmeza de princípios<br />
de Dona Lucilia<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
14 Lumen honoris<br />
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
20 A harmonia interna da alma como elemento da<br />
contemplação da ordem do universo - I<br />
Calendário dos Santos<br />
24 Santos de Novembro<br />
Preços da<br />
assinatura anual<br />
Comum .............. R$ 107,00<br />
Colaborador .......... R$ 150,00<br />
Propulsor ............. R$ 350,00<br />
Grande Propulsor ...... R$ 550,00<br />
Exemplar avulso ....... R$ 14,00<br />
Serviço de Atendimento<br />
ao Assinante<br />
Tel./Fax: (11) 2236-1027<br />
Hagiografia<br />
26 Santa Isabel da Hungria<br />
– Constância em meio à dor<br />
Luzes da Civilização Cristã<br />
32 A mais bela coroa do mundo<br />
3
Editorial<br />
Cristo é verdadeiro Rei<br />
“T<br />
empo houve em que a filosofia do Evangelho governava os Estados”, dizia o Papa Leão<br />
XIII na célebre Encíclica Immortale Dei, falando sobre a Idade Média. Ele acrescentava<br />
que naquele tempo “a influência da sabedoria cristã e a sua virtude divina penetravam as<br />
leis, as instituições, os costumes dos povos, todas as categorias e todas as relações da sociedade civil”,<br />
de tal modo que, naquele grupo de nações europeias, os excelentes frutos foram superiores a toda<br />
expectativa. 1<br />
Essa descrição corresponde a um estado de coisas que não pode ser chamado senão de reinado de<br />
Jesus Cristo, uma realeza à qual Ele tem direito por natureza e por conquista. Por natureza, porque<br />
“tudo foi feito por Ele, e sem Ele nada foi feito” (Jo 1,1). Por conquista, porque nos resgatou da tirania<br />
do demônio, a preço de sangue.<br />
Essa é uma das linhas de reflexão desenvolvidas por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, que o leitor encontrará na presente<br />
edição: o direito de Jesus ser Rei.<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> mostra que esse direito do Homem-Deus a ser Rei se exerce não só sobre a sociedade<br />
espiritual – a Igreja Católica –, mas também sobre a sociedade temporal, nos moldes da exposição de<br />
Leão XIII na referida Encíclica.<br />
Em dezembro de 1925, o Papa Pio XI instituiu a festa de Cristo Rei. O tema vinha de encontro aos<br />
anseios do então jovem <strong>Plinio</strong>, de batalhar para implantar na face da terra esse reinado divino. O que<br />
Pio XI mostrava coincidia completamente com suas convicções: ou a sociedade civil organiza a vida<br />
na terra para constituir um vestíbulo do Céu, ou a transforma na antecâmara do inferno. De fato, dizia<br />
aquele Pontífice, como a sociedade humana se recusava a aceitar a realeza de Cristo, já sucumbia<br />
sob diversas mazelas: ódios e rivalidades, cobiças desenfreadas, um “cego e desregrado egoísmo”, o<br />
fim da paz doméstica “pelo esquecimento e relaxamento dos deveres familiares”, o rompimento da<br />
estabilidade das famílias, tudo conspirando para empurrar para a morte a sociedade humana. 2<br />
Como reverter essa situação? Com a implantação do Reino de Maria. Afinal, como argumenta<br />
São Luís Grignion de Montfort, “foi por intermédio da Santíssima Virgem Maria que Jesus Cristo<br />
veio ao mundo, e é também por meio d’Ela que Ele deve reinar no mundo”. Quando “o conhecimento<br />
e o reino de Jesus Cristo tomarem o mundo, será como uma consequência necessária do conhecimento<br />
e do reino da Santíssima Virgem Maria” 3 . Assim pensava <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, que já via brilhar,<br />
no fim do túnel, a resplandecente luz de um reinado de Cristo muito mais completo, universal e perfeito<br />
do que foi na Europa medieval, confiado na promessa de Nossa Senhora em Fátima: “Por fim o<br />
meu Imaculado Coração triunfará”.<br />
1) Leão XIII. Carta Encíclica Immortale Dei, 1/11/1985. Nº 28.<br />
2) Pio XI. Carta Encíclica Quas Primas, 11/12/1925. Nº 24.<br />
3) São Luís Maria Grignion de Montfort. Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem. Petrópolis:<br />
Vozes, 1992. P.17,24.<br />
Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />
de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />
na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />
outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />
4
Datas na vida de um cruzado<br />
Novembro de 1932<br />
Fundação da<br />
Liga Eleitoral Católica<br />
Com a convocação da Constituinte, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
viu abrir-se uma boa oportunidade para desenvolver<br />
sua ação em favor dos direitos da<br />
Igreja. O jovem congregado mariano foi então um<br />
dos mais ativos propugnadores, junto ao Episcopado<br />
nacional, da fundação da Liga Eleitoral Católica<br />
(LEC), inspirada numa instituição semelhante<br />
existente na França 1 .<br />
No ano de 1932, li no jornal La Croix uma notícia<br />
sobre um organismo chamado Fédération<br />
Nationale Catholique, dirigida pelo General de<br />
Curières de Castelnau, um nobre francês, marquês<br />
se não me engano, que se distinguiu muito<br />
durante a Primeira Guerra Mundial, como um<br />
dos grandes generais da resistência francesa.<br />
Era um general católico praticante e muito<br />
fervoroso, e eu acompanhava de longe a sua carreira<br />
com uma certa atenção e simpatia, procurando<br />
ver o que ele fazia.<br />
Eu escrevi para a Fédération Nationale Catholique<br />
pedindo seus estatutos, e eles os enviaram<br />
para mim. E os estatutos eram extremamente<br />
interessantes, pois não se tratava de um partido<br />
político, mas uma organização que selecionava<br />
os candidatos católicos dos vários partidos e lhes<br />
mandava um questionário nas vésperas das eleições,<br />
pedindo que respondessem se eles eram a<br />
favor desse ponto, daquele ponto, que constituíam<br />
as reivindicações católicas.<br />
A Fédération Nationale Catholique publicava<br />
as respostas dos candidatos favoráveis e recomendava<br />
os nomes deles aos católicos. Isto tinha<br />
como consequência o ingresso de um bom número<br />
de católicos nas Câmaras, no Senado, nas<br />
Prefeituras etc., e davam uma certa importância<br />
à Igreja, sem que esta se transformasse num partido<br />
político.<br />
Achei a ideia muito interessante e escrevi<br />
uma carta ao Tristão de Athayde, sugerindo-lhe<br />
que propusesse a Dom Sebastião Leme, Cardeal-Arcebispo<br />
do Rio de Janeiro, a fundação da<br />
Liga Eleitoral Católica.<br />
Dom Leme pediu-me que eu lhe enviasse os<br />
estatutos, o que fiz prontamente. Fui ao Rio de<br />
Janeiro duas ou três vezes, nos entendemos a<br />
respeito dos estatutos e o Cardeal passou uma<br />
circular a todos os Bispos, recomendando a fundação<br />
da LEC em todas as dioceses brasileiras. 2<br />
Era Arcebispo de São Paulo Dom Duarte Leopoldo<br />
e Silva, prelado imponente, destemido e altamente<br />
cônscio de suas responsabilidades morais<br />
no desempenho do múnus sagrado que lhe conferira<br />
a Igreja. Tomou ele como seu braço direito a<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> para a fundação e organização da LEC<br />
do Estado de São Paulo. Assim, em novembro de<br />
1932, foi instalada sua Junta Estadual, tendo o Arcebispo<br />
escolhido para presidente o <strong>Dr</strong>. Estevão<br />
Emmerich de Souza Rezende. Os demais membros<br />
do órgão eram o <strong>Dr</strong>. Vicente Melillo, o <strong>Dr</strong>. Mário<br />
Egídio de Souza Aranha, o Prof. Papaterra Limonge<br />
e o <strong>Dr</strong>. Adolpho G. Borba; para secretário-geral<br />
foi designado o próprio <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>. Cargo de grande<br />
importância, pois o secretário geral deveria ser a<br />
alavanca propulsora da Junta Estadual 3 .<br />
1) Transcrito com adaptações da obra “Dona Lucilia”,<br />
de João S. Clá Dias, vol. II, p. 135.<br />
2) Conferência de 22/6/1973.<br />
3) João S. Clá Dias, op. cit., p. 135<br />
5
Eco fidelíssimo da Igreja<br />
Cristo Rei - Igreja das Bodas<br />
de Caná, Kfar Kana (Israel)<br />
Cristo Rei<br />
Gustavo Kralj<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo é Rei da Igreja. E, antes da Revolução<br />
Francesa, o Divino Redentor era considerado Rei também da<br />
sociedade civil; de tal modo que as leis da Igreja eram<br />
automaticamente leis do Estado. Há quase cinquenta anos,<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> percebia as negações ou as tímidas afirmações da<br />
Realeza de Cristo. O que recomendava ele naquela ocasião?<br />
6
Aideia da realeza de Nosso Senhor Jesus Cristo<br />
veio desde a vida terrena d’Ele mesmo; interrogado<br />
por Pilatos se era rei, Jesus disse: “Sim, Eu<br />
sou Rei” (Jo 18, 37).<br />
Encontramos manifestações várias e títulos diversos de<br />
Cristo como Rei, já na Igreja primitiva. Temos até a figura<br />
do Cristo Pantocrator, ou seja, Cristo Rei, porque Pantocrator<br />
quer dizer Senhor de todas as coisas. Ele está sentado<br />
sobre um trono que é o arco-íris, o sinal da aliança<br />
de Deus com os homens. E do alto desse trono Ele governa<br />
todas as coisas: a Igreja gloriosa, a Igreja padecente e<br />
a Igreja militante, como o Rei esperado por todos os séculos,<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo dominando tudo e Senhor<br />
de tudo.<br />
Rei por direito de nascimento e<br />
por direito de conquista<br />
Essa ideia de Cristo Rei envolve uma noção que é a seguinte:<br />
não só de todas as coisas, mas especialmente de todos<br />
os homens Nosso Senhor Jesus Cristo é Rei. E é Rei no sentido<br />
de que, enquanto Filho de Deus encarnado e nosso Redentor,<br />
Ele adquiriu um direito verdadeiro da realeza sobre<br />
nós. E esses dois títulos não se confundem um com o outro.<br />
O primeiro título, poder-se-ia dizer, é por direito de nascimento.<br />
Porque há um princípio que estabelece o seguinte:<br />
na hierarquia dos seres, quando um deles é imensamente<br />
superior ao outro, adquire uma autoridade sobre esse<br />
outro. E com fundamento nisto Ele, que é homem verdadeiro,<br />
ligado por união hipostática à Segunda Pessoa da<br />
Santíssima Trindade, tem uma superioridade infinita sobre<br />
todos os seres do universo. E não só como Deus, mas na<br />
sua humanidade, Jesus é Rei de todos os homens porque é<br />
a cabeça do gênero humano, a mais alta criatura existente<br />
no gênero humano. Nosso Senhor é Rei do gênero humano<br />
pela união hipostática e na sua humanidade santíssima.<br />
Ele é Rei também como Redentor, porque conquistou<br />
o gênero humano, sacrificou-se, se imolou na Cruz, e essa<br />
imolação salvou a humanidade do Inferno, abriu as portas<br />
do Céu para os homens. Com seu Sangue, Jesus conquistou<br />
a humanidade, adquiriu sobre ela um direito régio.<br />
De maneira que a realeza de Cristo tanto pode ser contemplada<br />
meditando-se Nosso Senhor sobre um trono,<br />
quanto no alto da Cruz. Porque do alto da Cruz, por direito<br />
de conquista, Ele se tornou Rei de todo o gênero humano.<br />
A realeza de Nosso Senhor<br />
na sociedade espiritual e temporal<br />
Qual é a conclusão disto?<br />
O gênero humano pode ser considerado como pertencendo<br />
a duas espécies de sociedades: a espiritual e a temporal.<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo é Rei da sociedade espiritual,<br />
a Igreja Católica. Se o Papa reina na Igreja, é como<br />
Vigário de Cristo, quer dizer, como representante de<br />
Cristo. Porque o verdadeiro Rei da Igreja Católica, no<br />
sentido pleno da palavra, é Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />
A Igreja é uma instituição monárquica, antes de tudo<br />
porque ela tem um Rei, que é Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />
O Papa, como Bispo de Roma, é indissolúvel e definitivamente<br />
o Vigário de Cristo, reina sempre em nome<br />
de Cristo, e o poder das chaves exercido pelo Papa é um<br />
poder que Cristo deu a seu Vigário. O verdadeiro Rei da<br />
Igreja Católica é Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />
Devemos analisar a realeza de Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo sobre a sociedade temporal. A esse respeito, fazem-se<br />
as seguintes considerações sobre a separação entre<br />
a Igreja e o Estado que não são muito exatas:<br />
A Igreja tem uma finalidade espiritual, o Estado uma<br />
finalidade temporal. A Igreja conduz os homens ao Paraíso,<br />
e o Estado mantém a vida terrena. A partir disso, fica-se<br />
com uma ideia de que Nosso Senhor Jesus Cristo é<br />
Rei da Igreja, mas que o Estado não tem verdadeiro Rei,<br />
e sobretudo os Estados católicos não devem reconhecer<br />
Cristo como Rei.<br />
Esse princípio é profundamente falso. O Estado, enquanto<br />
Estado, tem Nosso Senhor Jesus Cristo como<br />
Rei. E o efeito concreto disto é a obrigação que tem o<br />
Estado de aplicar as leis de Nosso Senhor Jesus Cristo; e<br />
se não as aplica se coloca em estado de revolta contra o<br />
seu verdadeiro Rei.<br />
E qual é a aplicação dessas leis de Nosso Senhor?<br />
Antes de tudo, reconhecer a Igreja Católica como a<br />
única Igreja verdadeira e oficial; aplicar todas as leis da<br />
Igreja como sendo automaticamente leis do Estado. É o<br />
que se fazia antes da Revolução Francesa. De maneira<br />
tal que não era preciso que uma lei da Igreja fosse ratificada<br />
pelo rei do país, pelo Poder Público; entrava em vigor<br />
pelo simples fato de que a Igreja as tinha promulgado.<br />
As autoridades eclesiásticas eram objeto de continências<br />
e honras oficiais, porque eram autoridades públicas,<br />
e autoridades públicas porque autoridades da Igreja<br />
verdadeira do Deus verdadeiro que era Rei do Estado.<br />
Toda a vida civil se organizava no terreno cultural, artístico,<br />
e em todos os aspectos, de acordo com a lei de<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo; isto era uma aplicação do<br />
princípio de que Cristo é Rei da sociedade humana.<br />
Verdadeiros soldados de Cristo Rei<br />
Isto, que entre nós são noções tão familiares, se esquece,<br />
e de vez em quando é preciso lembrar porque tudo<br />
quanto se ouve não só tende a fazer esquecer essas verdades,<br />
mas até a negá-las. De maneira que ficamos ha-<br />
7
Eco fidelíssimo da Igreja<br />
Luis Maria<br />
A realeza de Cristo tanto<br />
pode ser contemplada<br />
meditando-se Nosso<br />
Senhor sobre um trono,<br />
quanto no alto da Cruz.<br />
Porque no alto da Cruz,<br />
Ele se tornou Rei de<br />
todo o gênero humano.<br />
Cristo crucificado - Igreja<br />
do Sagrado Coração de<br />
Jesus, Bogotá (Colômbia)<br />
bituados à ideia de que o Estado é leigo, de que por sua<br />
própria natureza nada tem a ver com religião e por causa<br />
disso ignora, desconhece Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />
Então qual é a razão de lembrar essas noções?<br />
Uma coisa é ter na mente esses princípios teoricamente.<br />
Outra é ter disso um senso vivo e contínuo, como algo<br />
que está à flor da pele. De tal maneira que em todas<br />
as ocasiões da vida civil em que notarmos estar sendo negada<br />
a realeza de Cristo, isso deve nos causar dor, tristeza<br />
e indignação.<br />
Esse laicismo que caminha para um positivo ateísmo<br />
em todas as coisas, deve nos ferir de forma a vivermos na<br />
sociedade de hoje num estado de exilados, como alguém<br />
que reside num lugar onde tudo está<br />
posto de cabeça para baixo, e vive<br />
num protesto interno e contínuo disto.<br />
É assim que por toda a parte anda<br />
o fiel vassalo, o fiel militante de Cristo<br />
Rei.<br />
É só assim que nós podemos ser<br />
verdadeiros soldados de Cristo Rei.<br />
Não adianta ter na cabeça, no “mundo<br />
da lua”, uma porção de ideias de<br />
Cristo Rei, sem que a todo o momento<br />
não estejamos percebendo as negações,<br />
ou as palidíssimas e timidíssimas<br />
afirmações da Realeza de Nosso<br />
Senhor Jesus Cristo.<br />
Lembro-me de que, quando fui<br />
constituinte em 1934 — depois isto<br />
se repetiu nas outras constituições,<br />
com estes ou aqueles termos —, vi um exemplo<br />
claro disso no preâmbulo proposto por um<br />
deputado católico muito ardoroso e muito<br />
aplaudido: “O povo brasileiro, pondo sua<br />
confiança em Deus e constituído em assembleia<br />
soberana, resolve tal coisa.” Como<br />
quem dissesse: “Deus, você é um Guaçu<br />
1 que está lá em cima e pode me estragar<br />
ou ajudar muito as coisas. Quero, portanto,<br />
que você seja um amigo. Mas ex auctoritate<br />
propria eu faço o que desejo.<br />
E ponho minha confiança para<br />
que você faça dar certo.”<br />
O Papa, como Bispo de<br />
Roma, é indissolúvel e<br />
definitivamente o Vigário<br />
de Cristo, reina sempre em<br />
nome de Cristo, e o poder<br />
das chaves exercido pelo<br />
Papa é um poder que<br />
Cristo deu a seu Vigário.<br />
São Pedro, Apóstolo - Basílica<br />
de São Pedro, Roma (Itália)<br />
8
Gustavo Kralj<br />
Coroação de Nossa Senhora - por Auguste Pugin, Igreja de Saint Gilles, Cheadle (Inglaterra)<br />
Vitor Hugo<br />
No próprio instrumento em que se afirma confiar em<br />
Deus, está negada a Realeza de Deus. Isto é uma coisa<br />
que um católico possa ver sem amargura? Não pode. E<br />
quando ele vê sem amargura, não é um verdadeiro devoto<br />
de Cristo Rei.<br />
O modo mais autêntico, elevado e<br />
sublime de realizar o Reino de Cristo<br />
O carregar dia e noite, a todos os momentos, em todas<br />
as ocasiões, essa amargura, essa tristeza — mas tristeza<br />
militante! — de que a realeza de Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo está sendo subestimada aqui, negada lá, injuriada<br />
acolá, isto nos deve caracterizar.<br />
E na festa de Cristo Rei devemos ter muito em vista<br />
essas considerações para compreendermos bem qual é<br />
a formação que precisamos adquirir; devemos ter aqui a<br />
atitude e a postura de exilados.<br />
E lembrar que, para além dessa tristeza, Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo Rei tem uma promessa para nós: a realização<br />
do seu Reino do modo mais autêntico, mais eleva-<br />
do, mais sublime que se possa imaginar, que é por meio<br />
da Realeza de Maria Santíssima. É o Reinado de Nossa<br />
Senhora, que na fímbria do horizonte se anuncia na<br />
promessa de Fátima: “Por fim o meu Imaculado Coração<br />
triunfará.”<br />
Então precisamos ter um horror da situação atual e<br />
um desejo ardente da situação para a qual estamos sendo<br />
solicitados, e que nos é dado como uma promessa. Este<br />
deve ser o nosso estado de espírito contínuo, em todas<br />
as ocasiões e em todos os momentos.<br />
Ter isto bem em vista e pedir a Nossa Senhora a graça<br />
da presença contínua dessa ideia é algo que convém muito<br />
rogar em nossas orações a Cristo Rei. v<br />
1) Do tupi-guarani: grande.<br />
(Extraído de conferência<br />
de 20/10/1964)<br />
9
Dona Lucilia<br />
Dona Lucilia no<br />
ano de 1906<br />
10
Suavidade e firmeza<br />
de princípios de<br />
Dona Lucilia<br />
O mundo moderno, por vezes, não compreende a prática<br />
de alguns opostos harmônicos, tais como: grandeza e bondade,<br />
alegria e seriedade, beleza e praticidade.<br />
Dona Lucilia sabia coadunar em sua alma duas belas atitudes,<br />
aparentemente difíceis de conviverem juntas: a suavidade<br />
de trato e a firmeza de princípios. <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, numa conferência,<br />
descreveu como isso se dava nela.<br />
Mamãe era uma pessoa eminentemente pacífica.<br />
De uma paciência, de uma doçura e de<br />
uma suavidade que eu não conheci em ninguém.<br />
Mas ela era muito clara e firme em seus princípios:<br />
O que é, é! O que não é, não é!<br />
Habitualmente, o estado de espírito dela era de muita<br />
bondade, de muita condescendência. Mas se alguma coisa<br />
não corria bem, ela mudava seu modo de ser e opunha<br />
uma barreira, tranquila, mas inquebrantável!<br />
Digna descendente de portugueses<br />
Agora, se alguém tentava forçar a barreira, ela sabia<br />
dizer não! Mas, como é natural, tudo isso muito mais na<br />
linha portuguesa do que espanhola. É natural...<br />
Há um provérbio português que diz: “Quem puxa os<br />
seus não degenera!” Ela era direta descendente de portugueses<br />
do Porto. Eram portugueses que vinham para<br />
o Brasil e casavam-se com outros descendentes de portugueses.<br />
Era tudo Portugal. Ela possuía, portanto, este<br />
modo de ser, com toda a afabilidade portuguesa, toda a<br />
doçura portuguesa, que às vezes não é muito reconhecida!<br />
Mas é uma coisa que existe e é muito notável.<br />
Esse modo de ser suave, pode ser percebido, por<br />
exemplo, nas canções populares de Portugal, diferentes<br />
das canções populares da Espanha, de que eu gosto tanto.<br />
Entretanto, meu pai era um homem ainda muito mais<br />
pacífico do que ela! Não tem comparação!<br />
Os dois morreram muito avançados em idade, ele com<br />
84 e ela com 92 anos. Tiveram, portanto, um longo tempo<br />
de casados. Eu nunca ouvi um dizer para o outro algo<br />
desagradável ou indelicado. Nunca vi uma desavença<br />
entre eles!<br />
11
Dona Lucilia<br />
<strong>Dr</strong>. João Paulo,<br />
Dona Lucilia,<br />
<strong>Plinio</strong> e Rosée em<br />
Paris no ano de 1912<br />
Senhora espanhola<br />
Às vezes ele dava uma opinião meio modernosa, qualquer<br />
coisa assim. Ela dizia que não concordava, e discutiam<br />
o assunto, mas no terreno das ideias. Quando a discussão<br />
chegava a um certo ponto, ela dizia: “Mas, João<br />
Paulo, não pode ser” etc., e se entesava!<br />
Como ela descendia de uns vagos antepassados espanhóis<br />
do tempo em que o Brasil e Portugal estavam unidos<br />
à coroa da Espanha — vieram muitos espanhóis morar<br />
em São Paulo — ele sabia disso, e me dizia: “Hiii! Esta<br />
senhora espanhola...”<br />
Mas dizia baixinho para não entrar em encrenca. Porque<br />
sobretudo o que ele não queria era isso!<br />
Os “pitos”<br />
O modo de Dona Lucilia fazer censuras exprimia muito<br />
isto.<br />
Quando eu era menino e fazia algo que não devia, ela<br />
me chamava, passava a mão pela cintura, punha‐me bem<br />
perto dela, com um afeto tal, que eu podia senti-lo até<br />
em suas mãos. Ela me olhava com muita seriedade e me<br />
dizia: “Filhão...” Eu já sabia o que eu tinha feito...<br />
— Filhão, é verdade que você fez tal coisa?<br />
Ela olhava dentro de meus olhos. Mamãe tinha uns<br />
olhos castanhos escuros, mas que nessas ocasiões ficavam<br />
quase pretos! Ela repetia a pergunta:<br />
— É verdade que você fez isto?<br />
Eu dizia desapontado:<br />
— Sim, senhora.<br />
— Mas você pensou no que você fez? Isto é censurável<br />
por tais e tais razões. Você andou mal, e isto é um defeito<br />
dentro de você, tem de acabar com esse defeito. Sua mãe<br />
não vai querer bem a você enquanto esse defeito não for<br />
corrigido.<br />
Depois que ela percebia que eu estava bem impressionado<br />
com aquilo, dizia:<br />
— Você pede perdão a mamãe?<br />
— Peço.<br />
— Então agora você dá um beijo em mamãe.<br />
Era a hora da reconciliação. Eu a beijava muito afetuosamente,<br />
e ela a mim também. Estavam feitas as pazes!<br />
Terminado o “pito” eu saía cada vez mais encantado com<br />
ela e querendo-a mais bem ainda.<br />
v<br />
(Extraído de conferência de 21/9/1984)<br />
12
Dona Lucilia no ano de<br />
1968, poucos meses<br />
antes de seu falecimento<br />
13
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
Lumen honoris<br />
A maior honra que o homem pode alcançar nesta Terra é a amizade<br />
com Deus, ou seja, o estado de graça. Partindo deste princípio,<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> explica o que é honra e como cada nação da cristandade<br />
desenvolveu fórmulas e estilos de cortesia, respeito e honorificência.<br />
Honra é a forma particular de apreço que se deve<br />
àquilo que é excelente. A honra é distinta<br />
da aprovação. A simples aprovação é a declaração<br />
de que uma coisa está na altura de sua natureza,<br />
enquanto que a honra mostra a excelência de algo.<br />
Nesta perspectiva, podemos distinguir na honra primeiramente<br />
um aspecto pelo qual a pessoa internamente<br />
percebe a sua própria excelência e tem para consigo próprio<br />
a noção do respeito que deve a si mesmo. Isso é especialmente<br />
agudo no católico, em virtude de dois pontos:<br />
o dogma do pecado original e o dogma, ou verdade<br />
de Fé, a respeito da vida da graça na alma.<br />
Excelência e estado de graça<br />
Só é verdadeiramente excelente aquele que está no estado<br />
de graça e a partir daí faz coisas excelentes. Quem<br />
está fora do estado de graça pode ter coisas boas, mas<br />
não é excelente. Por que razão? Imaginemos uma maçã<br />
que está quase toda podre, mas tem uma parte pequena<br />
não apodrecida. Se alguém, com uma colherinha, conseguir<br />
isolar essa parte e servir-se dela, talvez perceba que<br />
foi uma deliciosa maçã. Entretanto, dela não se pode dizer:<br />
“Que boa maçã!” Pode-se afirmar que foi, mas que<br />
é, não. Porque a podridão desnatura até aquela parte pequena,<br />
não podre, que na maçã existe. Então, o estado<br />
presente daquela maçã não é excelente.<br />
Isso se dá com o homem, cuja natureza é muito elevada.<br />
O homem é uma síntese de todo o universo: tem o espírito<br />
como os anjos, a vida animal, vegetal e a existência<br />
mineral dentro de si. Mas entrou no homem a “podridão”<br />
do pecado original. E devido<br />
a isso ele é capaz de uma<br />
ou outra ação excelente,<br />
mas em todo o seu ser ele<br />
não será.<br />
Assim, por exemplo,<br />
os antigos pagãos tinham<br />
uma ou outra atitude<br />
muito bonita, mas<br />
eles não possuíam toda<br />
a personalidade excelente.<br />
É como o exemplo da maçã,<br />
a qual tem um ponto em que se<br />
pode perceber que teria sido excelente,<br />
mas de fato ela não o é.<br />
O católico é sempre auxiliado pela graça. Se ele diz<br />
“sim” à graça e se mantém na amizade de Deus, sobretudo<br />
quando está na posse habitual do estado de graça,<br />
o católico se torna bom. Se, além de possuir o estado de<br />
graça, faz alguma ação excelente, essa excelência repercute<br />
sobre todas as outras virtudes que ele possui. Ele fica<br />
excelente se tem várias disposições de alma excelentes<br />
e, mais ainda, se possui todas as disposições de alma excelentes,<br />
que é o santo.<br />
Noção respeitosa da própria dignidade<br />
Acontece que o católico, sabendo como é miserável<br />
por natureza, quando ele vê que se mantém em estado<br />
de graça e tem disposições de alma que vão além do que<br />
os Mandamentos exigem e entram na linha dos conse-<br />
Janine Pohl<br />
14
lhos — relativos a atos que, mesmo não realizados, não<br />
fazem com que a alma se perca; ela os pratica por amor,<br />
sendo esses atos excelentes —, percebe que existe nele<br />
uma raiz de excelência, a qual o eleva muito acima do<br />
pecado original.<br />
Seria mais ou menos como a maçã podre, sobre a<br />
qual Nossa Senhora pedisse a Deus que desse uma bênção<br />
e a transformasse numa maçã sadia. Ela se tornaria<br />
muito mais do que era antes de apodrecer, porque seria<br />
uma maçã “miraculada”, sobre a qual desceu o poder de<br />
Deus onipotente, como a água das Bodas de Caná: Maria<br />
Santíssima pediu e Nosso Senhor transmudou a água<br />
em vinho.<br />
Assim também é o homem com o pecado original, que<br />
pela graça consegue praticar todos os Mandamentos.<br />
Sem a graça ninguém consegue praticar duravelmente<br />
todos os Mandamentos. Então, é uma excelência! Maior<br />
ainda é a excelência se o homem considera que, além de<br />
estar acima do nível do pecado original, habita nele a<br />
graça, uma participação criada na vida incriada de Deus.<br />
O católico, que sente em si o pecado original — é um<br />
dos aspectos mais característicos da inocência o indivíduo<br />
sentir como ele, pelo pecado original, não vale nada<br />
—, vendo sua própria excelência, deve admirá-la, dar<br />
graças a Deus e ter uma noção respeitosa de sua própria<br />
dignidade. É semelhante ao leproso grato, a quem Nosso<br />
Senhor curou. Ele reconheceu que estava curado e se<br />
alegrou com o estado de saúde recuperado, a tal ponto<br />
que voltou para agradecer. Assim também nós, quando<br />
fazemos coisas excelentes, somos como leprosos curados.<br />
Devemos reconhecer a excelência daquilo que fazemos<br />
e, portanto, respeitar-nos por gratidão para com<br />
Deus, para com Nossa Senhora, sem A qual não teríamos<br />
obtido isso do Altíssimo, porque toda graça nos vem<br />
por meio da Santíssima Virgem.<br />
Devemos compreender que não é por “megalice 1 ”que<br />
precisamos reconhecer nossas qualidades, mas por respeito<br />
para com o dom de Deus. E esta vem a ser a primeira<br />
noção de honra: o fato de a pessoa se respeitar a<br />
si própria.<br />
Um dos maiores ultrajes que se pode dizer a alguém<br />
é este: “Nem você sequer se respeita a si mesmo, quanto<br />
mais querer que os outros o respeitem!” Às vezes, para<br />
chamar a atenção de um homem que está fazendo uma<br />
ação indigna, pode-se dizer: “Respeite-se!”, como quem<br />
chama a atenção para razões que ele tem para se respeitar.<br />
Admiração, respeito, benquerença<br />
Então, a honra é um estado de excelência, o reconhecimento<br />
interno dessa excelência, com o agradecimento<br />
a Deus, por meio de Nossa Senhora. E também o reconhecimento<br />
que outro faz do que temos de excelente,<br />
por onde ele mostra uma admiração e um respeito especiais.<br />
E eu ponho exatamente em ordem: primeiro admira-se<br />
e, em razão disso, respeita-se; porque só se respeita<br />
aquilo que se admira; depois querer bem, porque a quem<br />
se admira e respeita, deve-se querer bem, ter carinho. E<br />
vou dizer mais: só se tem carinho verdadeiro por quem se<br />
admira e se respeita.<br />
Então, numa civilização cristã e, sobretudo, no Reino<br />
de Maria — aonde, como diz São Luís Grignion de<br />
Francisco Lecaros<br />
Nós, quando fazemos<br />
coisas excelentes, somos<br />
como leprosos curados.<br />
Devemos reconhecer<br />
a excelência daquilo<br />
que fazemos, respeitarnos<br />
por gratidão<br />
para com Deus.<br />
Só um dos dez leprosos<br />
curados agradece a Jesus -<br />
Mosteiro de San Millán de la<br />
Cogolla, La Rioja (Espanha)<br />
15
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
Montfort, os santos vão ser tão grandes, em comparação<br />
aos antigos, como os carvalhos em relação aos arbustos<br />
— o grau de excelência vai ser incomparavelmente<br />
maior do que conhecemos agora. E a noção que<br />
cada um terá de sua própria honra e do respeito para<br />
consigo mesmo será muito maior. Crescendo essa noção<br />
de respeito, cresce também a ideia que os outros<br />
têm do respeito a nós devido. Em consequência, no<br />
Reino de Maria o trato e o ambiente, serão impregnados<br />
de honra.<br />
O que quer dizer “impregnado de honra”? Significa<br />
que se aproveitarão todas as ocasiões e todos os pormenores<br />
para dar a cada um a honra que merece. Será uma<br />
civilização eminentemente cerimoniosa.<br />
O que é cerimônia? É um conjunto de palavras e de<br />
gestos por onde a pessoa exprime respeito. Portanto, uma<br />
civilização impregnada da ideia de honra é pervadida 2 de<br />
cerimônia e de cerimonial, é toda ela cerimoniosa. E a<br />
atitude das pessoas, o modo de se portar, de olhar, de se<br />
tratar, reproduzirá isto. De que forma? Com as antigas<br />
fórmulas de respeito, usadas neste ápice da respeitabilidade<br />
que houve no mundo, que foi a Idade Média? Ou<br />
com outras fórmulas ainda acrescidas? Que fórmulas?<br />
Um problema bonito para se tratar é o seguinte: as<br />
fórmulas inventadas na Idade Média — algumas das<br />
quais decaíram no Ancien Régime 3 , mas outras, pelo contrário,<br />
se requintaram até ao “delicioso” — são arbitrárias,<br />
podem variar ou estão de acordo com a natureza<br />
das coisas e são invariáveis? Algo de invariável elas têm,<br />
e isso devem conservar.<br />
Relações entre o Papado e<br />
o poder temporal<br />
Lembro-me de uma iluminura medieval<br />
representando uma cena que, tanto quanto<br />
eu saiba, não se deu; portanto, é uma cena<br />
imaginária. Era um Papa celebrando Missa,<br />
acolitado por dois coroinhas: o Imperador<br />
do Sacro Império e o Rei da França.<br />
Tal iluminura exprime inteiramente a<br />
ideia que o católico deve ter das relações do<br />
Papado com os poderes terrenos, e o altíssimo<br />
e supremo grau de honorificência que<br />
reside no Papado, mas também no poder<br />
temporal. Sendo o Papa tão elevado, entretanto<br />
o poder temporal é digno de acolitá-lo;<br />
é uma honra ser coroinha. E um imperador<br />
que escrevesse para seu país relatando<br />
o fato, deveria redigir assim: “Tive<br />
a honra de servir de acólito na Missa celebrada<br />
pelo Vigário de Jesus Cristo na Terra,<br />
Gustavo Kralj<br />
Pedro vivo em nossos dias, Sua Santidade, o Papa. Comigo<br />
acolitou o augusto Rei da França.”<br />
O Rei da França deveria escrever: “Tive a honra etc.,<br />
e também a honra de ser co-acólito com Sua Majestade<br />
Imperial.” Porque, como o Imperador é mais do que o<br />
Rei da França, é também para este uma honra ficar colocado<br />
numa situação análoga à do Imperador. E isso ele<br />
precisaria reconhecer.<br />
E o último barão da Cristandade que estivesse presente<br />
na cerimônia deveria dizer: “Não cabia em mim de entusiasmo<br />
e de respeito. O Vigário de Cristo, o Imperador do<br />
Sacro Império Romano Alemão, o Rei da França participaram<br />
da Missa. O Imperador acolitou e o Rei também!”<br />
São os vários graus de respeito devidos a cada um.<br />
Origem dos Grandes de Espanha<br />
A civilização ocidental, na Alemanha, na França, na<br />
Espanha, destilou manifestações de honorificência e de<br />
respeito, próprias à índole de cada país.<br />
Por exemplo, um Grande de Espanha é uma coisa fenomenal!<br />
A Espanha de si é grande, independente de ter ou não<br />
ter colônias ou grandes extensões geográficas. O grande império<br />
colonial foi um episódio de sua grandeza. Ela é grande<br />
por causa da grande alma que possui e do consórcio comum<br />
da alma do espanhol com o que há de maior, posto nas<br />
maiores proezas — às vezes, com um pouquinho de exagero.<br />
Saint-Simon 4 narra a origem dos Grandes de Espanha.<br />
Havia naquelas primitivas monarquias espanholas,<br />
existentes antes da fusão dos vários reinos católicos, uma<br />
Coroação de Carlos Magno pelo Papa São Leão III -<br />
Museu do Vaticano, Roma (Itália)<br />
16
Sérgio Hollmann<br />
Mais do que o título<br />
de Duque era o de<br />
Grande de Espanha,<br />
que não era dado<br />
pelo Rei, mas criado<br />
pela ordem natural<br />
das coisas.<br />
The Yorck Project<br />
À esquerda o Rei Felipe II -<br />
por El Greco, Museu do<br />
Prado (Espanha). À direita o<br />
Duque de Alba - por Tizian,<br />
Palácio de Liria, Madrid<br />
porção de outros reinos que foram se unindo, se aglutinando<br />
em dois grandes blocos: Aragão e Castela. Mas<br />
continuavam existindo aqueles vários pequenos reinos,<br />
cujos monarcas possuíam pouco poder.<br />
Esses reis tinham em suas terras grandes vassalos,<br />
grandes senhores feudais, que por sua vez tinham sob a<br />
sua dependência grande número de trabalhadores manuais.<br />
E eram chamados “ricos homens”, e não condes ou<br />
barões, porque eram anteriores a esses títulos. E as mais<br />
antigas famílias espanholas e portuguesas descendem<br />
dos “ricos homens”, que chefiaram a rebelião do povo<br />
contra a invasão dos árabes.<br />
Os “ricos homens” não possuíam títulos dados pelo<br />
rei, pois eram senhores naturais daquelas terras. E há<br />
uma beleza especial nisso, pois eles tinham uma nobreza<br />
que, por assim dizer, saiu do chão, das mãos de Deus,<br />
como uma flor. Poder-se-ia dizer do “rico homem” um<br />
pouquinho o que Nosso Senhor diz dos lírios do campo:<br />
“Considerai os lírios, como crescem; não fiam, nem<br />
tecem. Contudo, digo-vos: nem Salomão em toda a sua<br />
glória jamais se vestiu como um deles” (Lc 12,27). Quer<br />
dizer, o “rico homem” é como um lírio que nasceu da ordem<br />
natural das coisas e domina suas terras.<br />
Os reis, querendo sujeitar esses “ricos homens”, começaram<br />
a dar-lhes o título de Duque. E para alguns “ricos<br />
homens” os monarcas não lhes concediam esse título,<br />
mas tiveram que reconhecer que eles eram grandes. E<br />
então, mais do que o título de Duque era o de Grande,<br />
que não era dado pelo rei, mas criado pela ordem natural<br />
das coisas. Era, por assim dizer, um título nascido das<br />
mãos de Deus, através dos dedos da História.<br />
Os monarcas acabaram dando o título de Duque a todos<br />
os descendentes dos antigos “ricos homens”, mas esses<br />
descendentes tratavam com certo desdém esse título,<br />
porque o importante era ser Grande de Espanha.<br />
Por estas e aquelas vuelteretas, os reis acabaram distinguindo<br />
os “ricos homens” em três classes: a primeira, a<br />
segunda e a terceira.<br />
Eles responderam muito hidalgamente e à la espanhola<br />
à manobra dos reis: não se revoltaram, mas não contavam<br />
a ninguém quem era de primeira, segunda e terceira<br />
classe.<br />
E Saint-Simon, que era apaixonado por coisas nobiliárquicas,<br />
depois de muito empenho, conseguiu somente<br />
a indicação de alguns Grandes de Espanha, que eram de<br />
primeira e de segunda classe, e mais nada. Porque eles<br />
mantinham isso em segredo.<br />
Os reis podiam ter feito decretos dizendo: “Declaramos<br />
que de primeira classe é este, de segunda é aquele,<br />
de terceira é aquele outro”, mas não ousaram fazer,<br />
provavelmente porque perceberam que, se publicassem<br />
decretos assim, os Grandes não iriam tomar em consideração<br />
do mesmo jeito. E fariam uma espécie de greve<br />
dos duques, o que seria uma atitude eminentemente espanhola.<br />
E assim ficou o título de Grande de Espanha.<br />
Não quero dizer que é mais do que tudo, mas é uma<br />
coisa acima da qual não há nada. A tal ponto que a própria<br />
condição de Príncipe da Casa Real espanhola, que<br />
é, teoricamente, mais, eu acho menos impressionante do<br />
que dizer que alguém é um Grande de Espanha.<br />
Para ilustrar um pouco esse assunto, um dos Grandes<br />
de Espanha é o famoso Duque de Alba, que venceu os<br />
protestantes poloneses belamente. Ele adoeceu e mandou<br />
dizer a Felipe II que precisava falar com ele, pois estava<br />
para morrer. Felipe II não foi logo, mas, com aquela<br />
majestade solene, lenta e solar que lhe era própria, che-<br />
17
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
gou alguns dias depois. Quando ele entrou no quarto do<br />
Duque de Alba, este o olhou e disse: “Es tarde, señor”, virou-se<br />
para a parede e não olhou mais para o Rei! Era<br />
um Grande de Espanha!<br />
Uma cena de Cyrano de Bergerac<br />
e o Magnata húngaro<br />
Há muitos anos, li o Cyrano de Bergerac 5 . E havia uma<br />
heroína francesa, a Roxane, que atravessou as linhas espanholas<br />
para ir visitar o exército onde estava o Cristian,<br />
que era o noivo dela, e que se encontrava lá com o Cyrano.<br />
Porque a guerra era com a Espanha e, para não dar<br />
uma volta muito grande, Roxane precisou atravessar as<br />
linhas espanholas. Rostand imagina a cena assim: ela<br />
se apresentava, vestida com a dignidade de uma nobre<br />
francesa, e dizia ao sentinela espanhol que desejava conversar<br />
com um gentilhomme francês, que estava do outro<br />
lado da linha, e perguntava se ele permitia. O soldado<br />
mandava chamar o superior, um espanhol “fier comme<br />
un prince” — altivo como um príncipe —, que tirava o<br />
chapéu para ela e dizia: “Pase, señora!”<br />
Szilas<br />
Magiar József Nádor - por Johann Peter<br />
Krafft, Galeria Nacional da Hungria<br />
Aqui está um gênero de categoria bonita, porque todo<br />
espanhol tem algo de sombrio no fundo, um ar de desafio.<br />
Esse “Pase, señora” está longe de ser: “Madame, veuillez<br />
passer —Senhora, queira passar.” É a beleza da Europa<br />
dos mil “esmaltes” e das mil “tonalidades”.<br />
Consideremos agora o contrário, um Magnata húngaro:<br />
nome dado aos nobres da Hungria, que faziam parte<br />
da Câmara dos Lordes. Com aquela aigrette 6 , pele de<br />
pantera, espada curva, aquele ar vagamente huno ou<br />
mongol, que lhe dava certo fundo de brutalidade e grandeza<br />
selvagem, tem-se a impressão de que cada um deles<br />
ainda carregava alguma árvore dos tempos pré-históricos<br />
debaixo do braço. Mas, ao mesmo tempo, sabem ser imponentes<br />
como marajás e finos a ponto de frequentarem,<br />
com garbo, qualquer corte europeia. Aquilo já é outro<br />
tom, completamente diferente do Grande de Espanha. É<br />
um outro mundo e uma outra atmosfera de cerimonial.<br />
Para a coroação dos reis da Hungria, entravam na praça<br />
os Magnatas, todos a cavalo — e cavalos fortes —, no<br />
meio ficavam os Bispos, e exigia-se destes que fossem homens<br />
fortes também.<br />
Eu vi um filme sobre a coroação do Rei Carlos, último<br />
monarca da Hungria — o Imperador Carlos da Áustria<br />
e Rei da Hungria. Estavam presentes três Bispos do<br />
rito oriental, com coroas, e outros Bispos ocidentais, com<br />
mitras altas, e todos cavalgando. Ao descerem dos cavalos,<br />
jogavam as rédeas com garbo para os escudeiros e<br />
entravam.<br />
O rei, quando era coroado — acho que isso ocorria na<br />
Hungria, mas não tenho certeza —, tinha de saltar por cima<br />
de um monte de trigo em grãos, com uma espécie de<br />
vasilha na mão, enchê-la de trigo e jogar para o povo, a<br />
fim de provar que ele era um bom cavaleiro e um bom<br />
guerreiro, mas que ao mesmo tempo era generoso e prometia<br />
ao povo grande abundância.<br />
Esse vago resquício de selvageria dá uma força e uma<br />
grandeza à majestade, que é uma coisa extraordinária!<br />
Entretanto, não tem as mil finuras da coroação de um rei<br />
da França. Por exemplo, a coroa de Luís XV, no Louvre,<br />
é uma coisa extraordinária, única no gênero.<br />
Novas formas de cortesia e de cerimonial<br />
Os reis da França, que eram os “Reis Cristianíssimos”,<br />
depois de toda a pompa da coroação, saíam da<br />
Catedral e ficavam diante da fila dos escrofulosos, parados<br />
do lado de fora da igreja, nos quais tocavam com as<br />
suas régias mãos, e diziam a cada um: “Le roi te touche,<br />
Dieu te guérisse — O rei te toca, Deus te cure.” Afirma-<br />
-se, e eu creio nisso, que vários eram curados. O soberano<br />
acabara de receber do Bispo a unção, era o ungido<br />
do Senhor, com o óleo trazido do Céu por uma pom-<br />
Sergey Prokopenko<br />
18
J-F Raffin<br />
Julmin<br />
À esquerda, réplica da coroa<br />
de Luís XV - Palácio do Tau,<br />
Reims (França). Acima,<br />
coroa de Monômaco e o<br />
Palácio do Kremlin (Rússia)<br />
ba, na santa ampola utilizada por Saint Rémy na coroação<br />
do primeiro rei católico dos francos, Clóvis. Aqui já<br />
é outra feeria!<br />
Feérico também é o velho Kremlin, com a velha coroa<br />
dos imperadores da Rússia, ainda tão primitivos que<br />
a orla da coroa é de pele. Eu acho essa coroa forte como<br />
a força de um magiar, e possui algo de selvagem, que não<br />
faz mal ao homem.<br />
Essas coisas constituem uma espécie de lumen honoris<br />
próprio. Esses eram os excelentes do povo. E cada povo<br />
elaborava assim uma excelência correspondente à sua<br />
luz primordial 7 , e algo que era a matriz de sua própria civilização<br />
e cultura.<br />
Esses homens inspiravam os poetas, os artistas, realizavam<br />
os grandes feitos. Eram propriamente a tintura-<br />
-mãe da nação, segundo a qual esta se modelava, conforme<br />
um processo muito natural, a partir da formação primeira<br />
de um núcleo excelente. Encontra-se esse processo<br />
de formação em mil fenômenos naturais. Por exemplo,<br />
se alguém quiser ter um grande exército fará muito<br />
bem possuindo, antes de tudo, um arquirregimento, e<br />
depois constituindo outros regimentos segundo aquele.<br />
Ou se faz primeiro o excelente, e depois o resto, ou nada<br />
se realiza como deveria ser feito.<br />
A todos esses “lumens” de honra próprios correspondiam<br />
escolas de cortesia, estilos, modos próprios<br />
etc., que eram as honras das várias nações. Em determinado<br />
momento a Europa soube perceber como eram<br />
essas honras das várias nações, e cada nação soube tributar<br />
à outra o apreço correspondente a isso. Houve,<br />
então, uma espécie de sinfonia de harmonia cristã por<br />
toda parte.<br />
E o Reino de Maria continuará isso? Ou essas serão<br />
tradições que morreram e o Reino de Maria inovará coisas<br />
que vão servir de tintura-mãe para toda uma nova escola<br />
de “lumens” de honra e de estilos de cortesia muito<br />
mais quintessenciados? É uma pergunta diante da qual<br />
eu não tenho muito o que responder.<br />
Só sei uma coisa: que, além de muito mais cerimoniosas,<br />
essas escolas de cortesia vão ser muito mais sérias<br />
porque serão a réplica a um mundo que pecou por falta<br />
de seriedade e por “nhonhozeira” 8 . E evidentemente<br />
muito mais sacrais.<br />
O pensamento religioso e o caráter da origem religiosa<br />
de toda superioridade, qualquer que seja a sua natureza,<br />
serão muito mais marcados do que antigamente. v<br />
(Extraído de conferência de 22/2/1980)<br />
1) A partir do termo “megalomania” <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> criou a palavra<br />
“megalice”, a fim de designar o vício de quem atribui a si<br />
mesmo qualidades que não possui ou então as exagera.<br />
2) Penetrada, embebida. Neologismo usado por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, derivado<br />
do verbo latino pervadere.<br />
3) Antigo Regime. Período da História da França iniciado em<br />
princípios do século XVII e extinto em 1789, com a Revolução<br />
Francesa. Naquele período, a sociedade caracterizou-<br />
-se por um requinte de bom gosto e pela elevação no convívio<br />
humano.<br />
4) Duque de Saint-Simon (1675-1755), cujas Memórias abrangem<br />
o reinado de Luís XIV e a Regência.<br />
5) Obra em versos (1897), de Edmond Rostand.<br />
6) Do francês: penacho, adorno de penas.<br />
7) A “luz primordial”, segundo a conceitua <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, é a virtude<br />
dominante que uma alma — ou um povo no seu conjunto<br />
—, é chamada a refletir, imprimindo nas demais sua<br />
tonalidade particular.<br />
8) Termo usado por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> para designar o espírito acomodatício,<br />
apegado ao conforto, à despreocupação e à vida<br />
sem dedicação a um ideal.<br />
19
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
A harmonia interna<br />
da alma como elemento<br />
da contemplação da<br />
ordem do universo - I<br />
Durante uma conferência<br />
para jovens discípulos, indagam<br />
a <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> sobre como nasceu<br />
nele a contemplação da ordem<br />
do universo. Usando de um<br />
método que lhe era muito<br />
próprio, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> introduz o<br />
denso assunto citando exemplos<br />
e ilustrando com fatos<br />
de sua vida.<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> durante uma<br />
conferência em 1989<br />
Mário Shinoda<br />
20
Eu devo tratar a respeito da ordem do universo, mas<br />
em termos “enjolráticos 1 ”, evidentemente, dando<br />
a este adjetivo a afetuosa conotação de sempre.<br />
Antes de tudo, é preciso mostrar como se adquire a<br />
noção da ordem do universo, e depois descrever como é<br />
a ordem do universo. Primeiro aprontar a lente, depois<br />
colocar nela o olho, e não o contrário.<br />
É muito difícil ser virtuoso<br />
Como se obtém a noção, o gosto da contemplação da<br />
ordem do universo? Também isso é doutrinário demais<br />
para a minha cara “geração ultranova”. E então tem de<br />
ser outra coisa: como é que uma pessoa adquiriu a noção<br />
de ordem do universo, para depois estudar como outro<br />
pode obtê-la. Posteriormente fazer a exposição teórica<br />
de como se adquire, e então subir ao mundo diáfano<br />
dos princípios nos quais se entrava diretamente nos tempos<br />
de outrora. Não era preciso jardim na casa, entrava-<br />
-se diretamente. Hoje é necessário ajardinar largamente<br />
o palácio antes de chegar a ele.<br />
Vamos, então, cuidar do jardim tanto quanto mãos<br />
nascidas no começo deste século XX conseguem fazê-lo<br />
para o fim de um século que vai caminhando para o seu<br />
encerramento.<br />
Nesse sentido, dou as minhas recordações. Tanto quanto<br />
eu posso me recordar — e talvez o que vou dizer não seja<br />
inteiramente edificante, ao menos segundo certos manuais<br />
que existem por aí —, eu tive desde cedo a noção<br />
de que era muito difícil ser virtuoso. Minha moleza, minha<br />
indolência natural — não me queiram mal — tão frequente<br />
no Nordeste, de onde o meu pai era procedente,<br />
era uma herança de família. A modorra, a tranquilidade,<br />
o gosto da despreocupação... Como eu achei interessantes<br />
as expressões francesas, quando as aprendi: laissez faire,<br />
laissez passer! 2 Oh, que coisa agradável! Eu não me incomodo<br />
com nada, contanto que não mexam comigo.<br />
Procurar os deleites das coisas<br />
honestas e sadias<br />
Com esse temperamento, quando me dei conta de que<br />
a virtude era muito difícil de praticar, pensei o seguinte:<br />
“Se eu for me impor um sacrifício total e em tudo, não<br />
terei meios de cumprir esta virtude que desejo. Preciso<br />
fazer uma coisa criteriosa: farei todos os sacrifícios necessários<br />
para ser virtuoso, custe o que custar terei de ser<br />
virtuoso, viverei na graça de Deus!”<br />
Posteriormente, Nossa Senhora acendeu em minha alma<br />
um desejo mais ardente que era de chegar até a perfeição<br />
espiritual, mas nesse tempo isso estava mais ou menos vago<br />
no meu espírito. A ideia imediata era não cometer pecado<br />
mortal, não perder a graça de Deus e nem aquilo que eu<br />
percebia possuir, mas não sabia dar nome: o meu tau 3 !<br />
Mas, de outro lado, quem gosta de modorra, gosta de<br />
viver gozando dos legítimos prazeres da vida. Então pensei<br />
o seguinte: “Preciso arranjar um jeito de praticar a<br />
virtude com a maior quota de deleite com que ela seja<br />
praticável. Porque, pelo menos assim, encontro algum<br />
lastro para tocar para a frente esse caminho, que é dificílimo,<br />
mas tenho de fazê-lo de qualquer jeito. Então, vou<br />
estudar tudo quanto há na vida de virtuoso, mas agradável<br />
para ter. E assim beber água a fim de ter coragem de<br />
enfrentar os areais do deserto, conhecer o mapa dos oásis<br />
para neles descansar quanto possível, e chegar ao outro<br />
lado da travessia.”<br />
E daí começar a deitar muita atenção nos deleites das<br />
coisas honestas e sadias. Por exemplo, qual era o modo<br />
agradável de deitar na cama, de adormecer, de comer —<br />
o que sempre ocupou no meu mapa de coisas agradáveis<br />
um papel de relevo, que a Fräulein Mathilde 4 ainda acentuou<br />
teutonicamente —, como era deleitável ver um panorama<br />
e outras coisas do gênero.<br />
A arte de enfrentar a dor<br />
Mas eu fui, desde logo, salteado por uma sombra que<br />
poderia se exprimir da seguinte maneira: “Tudo isso é<br />
agradável, mas você o percorre na perspectiva do desagradável<br />
e teme perder o deleitável que tem. Quando chega<br />
o sábado, você está na perspectiva das delícias do domingo.<br />
Mas, no domingo à noite, se encontra nas previsões<br />
das agruras de segunda-feira: aula de Aritmética, Geografia<br />
etc., uns pesos do outro mundo. A própria aula de<br />
História, um fardo por causa da insipidez irremediável do<br />
seu pobre professor.” Era a vida do colégio, a batalha com<br />
a Revolução e toda espécie de desaguisados e desentendimentos,<br />
que me esperavam ao longo da semana.<br />
Analisando isso, disse para mim mesmo: “Mas esse temor<br />
de que o sábado e o domingo passem é uma sombra<br />
que se projeta para dentro de mim, e o agradável que eu<br />
quero, que procuro dentro da virtude, não conseguirei.<br />
Mas preciso encontrar alguma coisa, porque do contrário<br />
não aguento o caminho que preciso seguir. Tenho que<br />
resolver esse assunto.”<br />
E assim, insensivelmente, foi se introduzindo no meu<br />
espírito a noção de que o agradável não é tanto uma coisa<br />
que vem de fora para dentro, mas resulta do estado de<br />
espírito com que, de dentro, se olha para as coisas que<br />
estão fora. E a arte do agradável dentro da virtude não<br />
é só ter aquilo de que se gosta, mas saber manejar a sua<br />
própria alma, de maneira a degustar aquilo que tem. O<br />
manejo interno de si próprio é um elemento fundamental<br />
para a agradabilidade da virtude.<br />
21
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Mário Shinoda<br />
Assim deveria ser<br />
eu ao longo da vida:<br />
uma torre móvel<br />
já preparada para<br />
o alto da dor, o<br />
alto da batalha, o<br />
alto do perigo.<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> durante<br />
uma conversa em<br />
março de 1991<br />
Eu percebia, desde logo, outra coisa: era o lado fraco<br />
em mim. Angustiava-me facilmente pensando no futuro.<br />
E a perspectiva do sacrifício, da luta, do esforço, da incompreensão,<br />
me atormentava mais ainda do que a própria realidade<br />
de sofrimento que eu tivesse dentro de mim.<br />
Então comecei a elaborar — mas no sentido de aproveitar<br />
a vida virtuosamente a fim de ter fôlego para a virtude<br />
— uma arte de enfrentar a dor de maneira que ela doesse o<br />
menos possível, e desse à vida a maior fruição possível para<br />
eu conseguir ser virtuoso, que era o ponto fundamental em<br />
torno do qual se esboçava toda essa elucubração.<br />
Não ser otimista<br />
E cheguei à conclusão seguinte: para meu temperamento<br />
pessoal — a perspectiva do trabalho, ou pior do<br />
que o trabalho, da luta, pior do que a luta, da dor — era<br />
preciso eu tomar três regras de viver que, com a graça de<br />
Nossa Senhora, eu não abandonei e me ajudaram a chegar<br />
até a idade a que cheguei 5 .<br />
A primeira dessas regras era: não me deixar arrastar<br />
apavorado pelas vias da semirrealidade. Se, dentro de<br />
mim, tenho uma perspectiva que me oferece um perigo,<br />
seja ele de que ordem for, não devo ficar como certos otimistas<br />
que eu notava, os quais fechavam os olhos para o<br />
perigo e, à medida que o perigo ia se aproximando, iam<br />
descerrando os olhos, e cada pequeno descerrar de olhos<br />
era um tormento, e cada tormento prenunciava um tormento<br />
maior. A pessoa ia, devagarzinho, bebendo o cálice<br />
da angústia, gota por gota, e ainda fazendo passear cada<br />
gota em todo o alvéolo da boca. Isto não!<br />
Se se apresenta diante de mim um perigo, vou desde<br />
logo prever, no primeiro passo, o pior do perigo que<br />
pode acontecer e vou retesar a minha alma para aquilo,<br />
pôr-me na presença daquilo, pois eu tenho de suportar.<br />
De que maneira? Antes de tudo, ver como evitar. Não<br />
vou me jogando na fogueira, quando é inútil. Caminho<br />
cuidadosamente, estudando para não cair dentro da fogueira,<br />
plano cuidadosamente elaborado; mas se for preciso<br />
estou resolvido a entrar na fogueira. E minha resolução<br />
está tomada logo, e eu já vou vendo o pior. De maneira<br />
que esse descerrar de olhos lento, dolorido, vagabundo<br />
e inglório eu não aceitaria. É de uma vez abrir o<br />
peito e abrir o olhar para aquilo e ir para a frente!<br />
Qual era a vantagem disto? Encurtava a longa e horrível<br />
trajetória. Vou dar uma comparação, que é muito prosaica.<br />
Quando uma pessoa é operada, o médico põe esparadrapos<br />
e algodões em cima do lugar onde foi feito o corte.<br />
Depois, quando vai arrancar os esparadrapos, ele não<br />
o faz milímetro por milímetro, porque contunde a pele.<br />
Não diz nada ao doente e, de repente, o médico arranca<br />
o esparadrapo de uma só vez. Um minuto depois, o enfermo<br />
está tranquilo.<br />
Então eu resolvi “esparadrapiar” a minha vida: adotar<br />
a técnica do esparadrapo arrancado rapidamente. Tal<br />
coisa pode acontecer, prepare-se! Faça tudo para que não<br />
aconteça, e esteja pronto para aguentar caso aconteça. É<br />
mais ou menos como aquelas torres com guerreiros em cima,<br />
que os medievais levavam sobre pequenas rodas, nos<br />
campos de batalha, a fim de encostar na torre ou muralha<br />
dos adversários para começar a combater. Assim deveria<br />
ser eu ao longo da vida: uma torre móvel, já preparada para<br />
o alto da dor, o alto da batalha, o alto do perigo, e já disparando<br />
os golpes para vencer o inimigo tão logo quanto<br />
possível e depois descansar. E, na hora do descanso, a despreocupação.<br />
Esse era o modo de eu conceber as coisas.<br />
A segunda regra era o seguinte: nunca ter pena de si<br />
mesmo. O homem que tem pena de si mesmo perdeu a<br />
22
atalha. É preciso ser inclemente consigo, porque é a<br />
única maneira de ser clemente consigo.<br />
Meu próprio olhar sobre mim mesmo como que dizia:<br />
“Eu quero saber, ó <strong>Plinio</strong>, se você é ou não é homem, é<br />
ou não é filho de Nossa Senhora, recebe ou não recebe<br />
d’Ela as graças que pede para fazer o que é o seu dever.<br />
Agora vá adiante, eu quero julgar!”<br />
Nunca começar pelo mais fácil<br />
Bender235<br />
E, por fim, a terceira regra: num serviço qualquer,<br />
nunca começar pelo mais fácil, mas pelo mais importante,<br />
mais necessário, ainda que seja difícil. Mais ainda:<br />
em igualdade de condições, sendo tão importante o fácil<br />
quanto o difícil, começar pelo difícil, porque assim ele já<br />
fica feito e se atravessa depois o fácil ou o alegre. É melhor<br />
atravessar o fácil com o difícil atrás, do que tendo<br />
este pela frente. Joga-se a dor para trás, logo que se pode,<br />
para fazer a caminhada o mais suave possível.<br />
Em diversos assuntos, se alguém prestar atenção verá<br />
que eu estou sempre tendo em vista o pior que possa<br />
acontecer, e com os planos feitos. É assim que agirei<br />
e estarei pronto para o pior. E ainda que não chegue já a<br />
hora do sacrifício, eu com toda a tranquilidade como, bebo,<br />
durmo e tenho minhas distensões porque já está tudo<br />
pronto. Na hora é só fazer. Ficam eliminados da alma a<br />
torcida e algo germinado com ela, que é o apego.<br />
Porque nessa tática não se está apegado a nada. Se<br />
eu precisar fazer qualquer coisa a qualquer hora, realizarei.<br />
Não tem rangeres, nem “ai-ai-ai”. Tem de fazer,<br />
faça logo!<br />
Isso me deu ao longo da vida muita facilidade, porque<br />
muita cruz inútil, que Nossa Senhora não me pedia que<br />
carregasse, e que eu podia, com uma ordenação séria de<br />
mim mesmo, afastar de lado, Maria Santíssima me ajudou<br />
e afastei. Alguém me dirá: “Não! O senhor previu<br />
uma porção de coisas ruins que acabaram não acontecendo,<br />
e se atormentou com hipóteses que não se efetivaram.<br />
Não seria muito melhor não ter previsto coisas tão más,<br />
pois assim teria levado uma vida mais agradável?”<br />
Só há o agradável nesta vida a partir do momento em<br />
que existe o desagradável. Sentir-se preparado para enfrentar<br />
qualquer coisa, dê no que der, aí o homem tem<br />
sossego. E para ele se sentir assim, ele precisa de vez em<br />
quando imaginar o desagradável e testar-se: “Você está à<br />
altura disso? Se estiver, passeie, repouse e cante.”<br />
Lembro-me de uma canção que a Fräulein Mathilde<br />
ensinava: “Rir e cantar, bailar e saltar, a primavera logo<br />
chegará.” Assim também, se estou preparado para tudo,<br />
tenha eu a idade que tiver, o resto é primavera. Porque é<br />
preciso estar a postos para tudo. E com isto se tem uma<br />
vida mais animada, mais feliz e a virtude fica mais fácil.<br />
Cruzados com suas máquinas de<br />
guerra - por Gustave Doré<br />
Talvez alguém pense que o assunto sobre o qual estou<br />
tratando não tem nada a ver com a ordem do universo.<br />
Mas, de fato, tem. Como se adquire uma noção amorosa<br />
da ordem do universo? E aqui vamos passar para um outro<br />
panorama psicológico.<br />
v<br />
(Continua no próximo número)<br />
(Extraído de conferência de 16/8/1980)<br />
1) Relativo aos “enjolras”, como eram chamados por<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> os jovens que assistiam a suas reuniões.<br />
2) Do francês: deixai fazer, deixai passar.<br />
3) Tau é o nome da última letra do alfabeto hebraico e da décima<br />
nona do grego. Na visão de Ezequiel, Deus ordenou<br />
ao “homem vestido de linho, o qual trazia um estojo de escriba<br />
na cintura” (Ez 9,3), que “assinalasse com um sinal a<br />
fronte dos homens que gemem e choram por causa de todas<br />
as abominações que se fazem no meio dela [Jerusalém]”<br />
(Ez 9,4). Por analogia com essa visão, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> dizia que<br />
tinham “tau” aqueles que eram chamados a uma vocação<br />
contra-revolucionária e portanto alimentavam em si uma inconformidade<br />
com a Revolução, ou seja, “gemem e choram<br />
por causa das abominações”.<br />
4) Governanta alemã que <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> teve em sua infância.<br />
5) <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> tinha 72 anos quando fez esta conferência.<br />
23
C<br />
alendário<br />
1. Solenidade de Todos os Santos.<br />
dos Santos – ––––––<br />
2. Comemoração de Todos os Fiéis Defuntos.<br />
3. São Martinho de Porres, religioso (†1639). Nasceu<br />
em Lima (Peru) de pai espanhol e mãe negra, no ano de<br />
1579. Aprendeu desde muito jovem o ofício de barbeiro e<br />
enfermeiro. Ao ingressar na Ordem dos Pregadores, dedicou-se<br />
de forma singular à enfermaria, especialmente em<br />
favor dos pobres. Levou uma vida<br />
de constante mortificação e profunda<br />
humildade, e cultivou uma especialíssima<br />
devoção à Eucaristia.<br />
4. XXXI Domingo do Tempo Comum.<br />
São Carlos Borromeu, bispo<br />
(†1584). Nasceu em Arona (Lombardia)<br />
no ano de 1538. Foi nomeado<br />
cardeal por Pio IV, seu tio, e eleito<br />
Bispo de Milão, sendo um verdadeiro<br />
pastor da Igreja no exercício<br />
desta missão. Visitou várias vezes<br />
toda a diocese, convocou sínodos e<br />
desenvolveu a mais intensa atividade,<br />
em todos os setores, para a salvação<br />
das almas, promovendo por<br />
todos os meios a renovação da vida<br />
cristã.<br />
5. São Zacarias e Santa Isabel,<br />
pais de São João Batista.<br />
6. São Paulo, bispo e mártir<br />
(†350). Por manter a Fé professada<br />
no Concílio de Niceia, os arianos expulsaram-no<br />
diversas vezes de sua<br />
sede em Constantinopla, à qual retornava<br />
com grande heroísmo. Por<br />
fim, o Imperador Constâncio o exilou<br />
à Capadócia, onde foi cruelmente<br />
estrangulado, segundo a tradição,<br />
por insídias dos arianos.<br />
7. São Wilibrordo, bispo (†739).<br />
Ordenado Bispo de Utrech pelo Papa<br />
São Sérgio I, pregou o Evangelho<br />
na Frísia e na Dinamarca e fundou<br />
sedes episcopais e mosteiros<br />
François Boulay<br />
Santa Margarida da Escócia - Basílica<br />
de São Patrício, Montreal (Canadá)<br />
até que, esgotado pelo trabalho e avançado em idade, dormiu<br />
na paz do Senhor dentro dos muros de um mosteiro<br />
por ele fundado.<br />
8. São Adeodato I, papa (†618). Foi o primeiro a utilizar-se<br />
do timbre papal nas bulas e decretos pontifícios,<br />
sendo o selo mais antigo que se conserva no Vaticano. O<br />
Liber Pontificalis recorda-o como o papa que instituiu a faculdade<br />
de se rezar uma segunda Missa no mesmo dia.<br />
9. Dedicação da Basílica de São<br />
João de Latrão. Segundo uma tradição,<br />
que remonta ao século XII,<br />
celebra-se neste dia a dedicação da<br />
Basílica do Latrão, construída pelo<br />
Imperador Constantino.<br />
10. São Leão Magno, papa e doutor<br />
da Igreja (†461).<br />
11. XXXII Domingo do Tempo<br />
Comum.<br />
São Martinho, bispo (†397). Nasceu<br />
na Panônia cerca do ano 316,<br />
de pais pagãos. Depois de receber<br />
o batismo e de renunciar à carreira<br />
militar, fundou um mosteiro em Ligugé<br />
(França), onde levou vida monástica<br />
sob a direção de Santo Hilário.<br />
Foi depois ordenado sacerdote<br />
e, mais tarde, eleito Bispo de Tours.<br />
Foi modelo insigne de bom pastor.<br />
Fundou outros mosteiros, dedicou-<br />
-se à formação do clero e à evangelização<br />
dos pagãos.<br />
12. São Josafá, bispo e mártir<br />
(†1623). Nasceu na Ucrânia, cerca<br />
do ano 1580, de pais ortodoxos.<br />
Abraçou a Fé católica e entrou na<br />
Ordem de São Basílio. Ordenado<br />
sacerdote e eleito Bispo de Polock,<br />
dedicou-se com grande empenho<br />
à causa da unidade da Igreja, pelo<br />
que foi perseguido pelos seus inimigos<br />
e morreu mártir.<br />
13. São Leandro de Sevilha, bispo<br />
(†601).<br />
24
–––––––––––––– * Novembro * ––––<br />
14. São Serapião, mártir (†1240). Foi o primeiro religioso<br />
da Ordem de Nossa Senhora das Mercês que na Argélia,<br />
para a redenção dos fiéis cativos e anúncio do Evangelho,<br />
mereceu a palma do martírio.<br />
15. Santo Alberto Magno, bispo e doutor da Igreja<br />
(†1280).<br />
Sérgio Hollmann<br />
16. Santa Margarida da Escócia (†1093). Nasceu na<br />
Hungria, cerca do ano 1046, quando seu pai vivia aí exilado.<br />
Foi dada em matrimônio a Macom III, Rei da Escócia,<br />
e teve oito filhos. Foi exemplo admirável de mãe e rainha.<br />
Santa Gertrudes, virgem (†1301). Nasceu em Eislebem<br />
(Turíngia) no ano 1256. Era muito jovem ainda quando foi<br />
acolhida no mosteiro cisterciense de Helfta, onde se entregou<br />
com grande diligência ao estudo, dedicando-se especialmente<br />
à Literatura e à Filosofia. Mais tarde consagrou-<br />
-se exclusivamente a Deus e progrediu de modo admirável<br />
no caminho da perfeição, levando uma vida extraordinária<br />
de oração e contemplação.<br />
17. Santa Isabel da Hungria (†1231). Ver página 26.<br />
18. XXXIII Domingo do Tempo Comum.<br />
Dedicação das Basílicas de São Pedro e São Paulo,<br />
Apóstolos.<br />
19. São Roque Gonzalez, Santo Afonso Rodríguez e São<br />
João del Castillo, presbíteros e mártires (†1628).<br />
20. São Edmundo, mártir (†870). Sendo rei dos anglos<br />
do leste, caiu prisioneiro na batalha contra os invasores<br />
normandos e, por professar a Fé, foi coroado com o martírio.<br />
21. Apresentação de Nossa Senhora no Templo.<br />
22. Santa Cecília, virgem e mártir (séc. II).<br />
23. São Clemente I, papa e mártir (séc. I). Depois de Pedro,<br />
Clemente foi o terceiro a governar a Igreja de Roma,<br />
em fins do século I. Escreveu uma importante carta aos coríntios<br />
para restabelecer entre eles a paz e a concórdia.<br />
24. Santo André Dung-Lac, presbítero, e seus companheiros,<br />
mártires (séc. XVII a XIX). Em uma comum celebração<br />
se venera os 117 mártires das regiões asiáticas de<br />
Tonquin, Annam e da Cochinchina. São oito bispos, muitos<br />
presbíteros e grande número de fiéis entre homens e<br />
Santo André, Apóstolo - pórtico da<br />
Catedral de Amiens (França)<br />
mulheres de todas as condições e idades, os quais preferiram<br />
todos a morte a pisar na Cruz e desviar-se da Fé cristã.<br />
25. Solenidade de Cristo, Rei do Universo.<br />
26. São Leonardo de Porto Maurício, presbítero<br />
(†1751).<br />
27. Nossa Senhora das Graças e a Medalha Milagrosa.<br />
Comemoração das aparições da Virgem Maria a Santa Catarina<br />
Labouré, em 1830.<br />
28. Santa Catarina Labouré, virgem (†1876).<br />
29. São Saturnino, bispo e mártir (†c. 250). Segundo a<br />
Tradição, no tempo do Imperador Décio, foi detido pelos<br />
pagãos no Capitólio da cidade onde era bispo, Toulouse, e<br />
foi arrastado pelas escadas desde o alto do edifício, até que,<br />
devido a vários ferimentos, entregou sua alma a Cristo.<br />
30. Santo André, Apóstolo (†séc. I). Irmão de Pedro, e<br />
como ele, pescador. Foi o primeiro dos discípulos de São<br />
João Batista a quem chamou o Senhor Jesus junto ao Jordão<br />
e que lhe seguiu, trazendo seu irmão. A Tradição diz<br />
que, depois de Pentecostes, pregou o Evangelho na Acaia<br />
e que foi crucificado em Patras.<br />
25
Hagiografia<br />
Santa Isabel da Hungria –<br />
A Idade Média pode ser comparada a uma catedral,<br />
em cuja fachada estão colocadas imagens de muitos santos.<br />
Uma dessas figuras foi Santa Isabel da Hungria, glória da Ordem<br />
Terceira Franciscana e um dos ornamentos da Cristandade.<br />
Ocalendário dos santos nos traz à memória Santa<br />
Isabel, viúva e religiosa, que viveu no século<br />
XIII, filha do Rei André II da Hungria e esposa<br />
de Luís, Landgraf da Turíngia.<br />
O que era um Landgraf? Ao pé da letra, land significa<br />
terra e graf, conde. O Landgraf é um Conde da Terra.<br />
E foi com um grande senhor feudal, um príncipe, que ela<br />
se casou.<br />
Muitos santos passam por dramas<br />
Eu gostaria de considerar a biografia de Santa Isabel<br />
da Hungria debaixo de um ângulo muito interessante,<br />
que é o seguinte:<br />
O itinerário, a linha geral, da vida de muitos santos se<br />
parece com o de Santa Isabel da Hungria. É uma situação<br />
inicial, um drama que leva a pessoa até ao heroísmo,<br />
depois se passam alguns anos de aperfeiçoamento e de<br />
estabilidade na quietude e no heroísmo, é a santificação,<br />
e por fim a morte.<br />
Pode-se encontrar isso na vida de quase todos os santos<br />
que mudaram o seu estado de vida.<br />
O santo mais característico nesse sentido é Santo Inácio<br />
de Loyola, um gentil-homem que frequentava a corte,<br />
era guerreiro e tinha todas as ambições costumeiras<br />
de um fidalgo de seu tempo. Entretanto, abate-se sobre<br />
Inácio o drama, que começa com o ferimento no cerco<br />
de Pamplona e termina quando ele fundou a Companhia<br />
de Jesus; foi uma fase convulsionada e difícil de sua vida.<br />
Fundada a Companhia de Jesus, inicia-se outro período<br />
de luta, mas com certa estabilidade. Depois de algum<br />
tempo ele morre.<br />
Assim foi também com Santa Teresa de Jesus. Ela era<br />
tíbia, quer como pessoa do século, quer como religiosa,<br />
mas que depois se transformou tanto, a ponto de ser um<br />
vergel de santidade até os dias atuais. Mas é o drama: a religiosa<br />
tíbia que passa a ser fervorosa e fundadora e tem<br />
de enfrentar inúmeras dificuldades e tragédias. Depois,<br />
segue um período de estabilidade; a obra está fundada, ela<br />
é a Superiora Geral, dirige-a por algum tempo e morre.<br />
No castelo de Wartenburg<br />
A mesma coisa se passou com Santa Isabel. Ela era filha<br />
do Rei da Hungria e esposa do Duque da Turíngia.<br />
Era, portanto, uma senhora de alta posição social, que<br />
vivia na perfeita prática da virtude. Não se pode falar<br />
propriamente de sua conversão, mas ela vivia feliz no século.<br />
Deus a destinava a ser uma glória da Ordem Terceira<br />
dos Franciscanos, para iluminar e tornar-se um dos ornamentos<br />
da Cristandade medieval.<br />
A Idade Média pode ser considerada como uma catedral,<br />
em cuja fachada estão colocadas imagens de muitos<br />
santos. Uma dessas figuras ornamentais e inspiradoras é<br />
exatamente Santa Isabel da Hungria.<br />
Ela foi para o Castelo de Wartenburg, na Turíngia, aos<br />
quatro anos de idade. Naquele tempo prevalecia a ideia<br />
— pelo menos nas altas camadas sociais — de que era<br />
conveniente mandar as meninas para os castelos das famílias<br />
onde deveriam se casar. Pois poderiam receber toda<br />
a formação do lugar e assumir inteiramente todos os<br />
seus costumes, embora elas fossem livres de dizer “não”<br />
no momento em que atingissem a maioridade, e de fato<br />
não se casassem.<br />
26
Constância em meio à dor<br />
Santa Isabel da Hungria - por<br />
Jan Provoost, Museu Palazzo<br />
Bianco, Gênova (Itália)<br />
Francisco Lecaros<br />
27
Hagiografia<br />
Sérgio Hollmann<br />
Santa Isabel e o milagre das flores - detalhe de<br />
um vitral da Catedral de Lisieux (França)<br />
Santa Isabel foi para lá e teve uma vida muito feliz.<br />
Ela e seu esposo deram-se muito bem.<br />
O leproso acolhido no castelo<br />
Entretanto, o que acontece na realidade é que os verdadeiros<br />
filhos de Deus sempre acumulam em torno de<br />
si a inimizade das pessoas más e invejosas. Não existe nenhum<br />
verdadeiro católico que não seja perseguido. Nosso<br />
Senhor Jesus Cristo já prevenira aos seus de que todo<br />
autêntico discípulo d’Ele seria perseguido como Ele<br />
o foi 1 .<br />
Santa Isabel tinha contra si toda espécie de odiosidades,<br />
que vinham, muitas vezes, devido a sua prática da<br />
perfeição. Os ímpios e invejosos exploravam aspectos de<br />
suas virtudes que eram incompreensíveis a eles, pois tinham<br />
mau espírito.<br />
Assim, por exemplo, em certa ocasião ela acolheu um<br />
leproso que viu passar pela rua e o convidou a entrar em<br />
seu castelo, deitou-o em seu leito e começou a tratar dele<br />
como se fosse o próprio Cristo, à vista daquela palavra<br />
de Nosso Senhor de que todos os sofredores representam<br />
a Ele 2 . A sogra de Santa Isabel soube disto e procurou<br />
a Luís, seu filho, e lhe disse: “Veja o que sua esposa<br />
está fazendo! Colocou um leproso em sua cama, para<br />
que depois você seja contagiado! Vá até lá e veja que estou<br />
falando a verdade!”<br />
Francisco Lecaros<br />
Santa Isabel acolhe um enfermo em seus aposentos - por Lucas Valdés,<br />
Museu de Belas Artes, Sevilha (Espanha)<br />
28
Vida de Santa Isabel da<br />
Hungria, 19 de novembro<br />
Embora todos os eleitos resplandeçam no Céu<br />
com um brilho próprio a cada um, Deus se compraz<br />
em agrupá-los em famílias, assim como o<br />
faz na natureza com os astros do firmamento.<br />
A Divina Majestade transforma a santidade num patrimônio<br />
augusto transmitido de geração em geração pelos<br />
membros de uma mesma família. Entre estas benditas<br />
dinastias, nenhuma será de maior valor do que a linhagem<br />
real que, desde a antiga Panônia 1 , estendeu sobre<br />
o mundo, a sombra de seus ramos. Rica em virtude,<br />
apaixonada pelo belo, levando a paz às casas coroadas da<br />
velha Europa, os nomes por ela inscritos no livro de ouro<br />
dos bem-aventurados perpetuam sua glória.<br />
Mas, de todos estes nomes ilustres, circundados como<br />
que por um diamante, agrupados numa coroa de pérolas,<br />
o maior para a Igreja e para os povos é o desta amável<br />
Santa, madura para o Céu aos vinte e quatro anos e que<br />
se reúne hoje com os Santos Estevão, Emeric e Ladislau.<br />
Isabel nasceu em 1207, filha do Rei André da Hungria.<br />
Desde sua infância temeu a Deus, sua piedade crescendo<br />
junto com a idade. Casada com Luís, príncipe da<br />
Turíngia, seu zelo não foi menor no serviço de Deus do<br />
que de seu esposo.<br />
Durante a noite, levantava-se e rezava longamente.<br />
Praticava as mais diversas obras de misericórdia, dedicando-se<br />
especialmente em aliviar as viúvas, os órfãos, os<br />
doentes, os indigentes, chegando a distribuir todo seu estoque<br />
de trigo, quando havia carência de alimentos.<br />
Certa vez, os intendentes do castelo foram queixar-<br />
-se ao príncipe dos excessos de generosidade da santa.<br />
Quando este foi ter com ela e perguntou-lhe sobre o que<br />
levava consigo, abriu-se a trouxa que levava e apareceram<br />
magníficas rosas em vez dos pretendidos mantimentos.<br />
Cuidava dos escrofulosos, inclusive osculando-lhes as<br />
mãos e os pés, e o próprio Nosso Senhor aparecia-lhe<br />
nos leprosos que tratava.<br />
Isabel entendia não dever subtrair-se de qualquer de<br />
suas obrigações e conveniências devidas à sua condição<br />
de princesa soberana ou de esposa.<br />
Simultaneamente simples na prática das virtudes,<br />
quanto afável para com todos, estranhava a atitude sombria<br />
e morosa que alguns tomavam ao rezar ou sofrer:<br />
“Parecem querer assustar a Deus, dizia ela, malgrado este<br />
amar a quem dá alegremente.”<br />
Após a morte de seu esposo, que dirigia-se à Cruzada,<br />
despojou-se de todos os ornamentos mundanos e passou<br />
a vestir tão somente uma túnica de tecido rude, e ingressou<br />
na Ordem Terceira de São Francisco, sendo sua primeira<br />
professa. Suas mais notáveis virtudes foram a paciência<br />
e a humildade.<br />
Conrado e Henrique, seus cunhados, tramaram cruéis<br />
calúnias contra ela e expulsaram-na do castelo de Wartenburg<br />
com proibição de qualquer pessoa recebê-la ou<br />
prestar-lhe auxílio, e foi obrigada a mendigar e suportar<br />
mil reprimendas num país que tinha sido objeto outrora<br />
de suas inúmeras bondades. Ninguém teve coragem de<br />
acolher a pobre mãe com os filhos, em pleno inverno.<br />
Durante essas tribulações, regressaram à Turíngia os<br />
cavaleiros que tinham acompanhado o Duque Luís à<br />
Cruzada. Apresentando-se a Conrado e Henrique, censuraram-lhes<br />
corajosamente a dureza e crueldade, e os<br />
dois culpados não resistiram à franqueza altiva dos seus<br />
vassalos e restituíram a Isabel todos os bens de que a haviam<br />
despojado.<br />
Esta, porém, preferiu continuar no completo despojamento<br />
de todas as coisas, servindo inteiramente a Deus,<br />
numa modesta casa, ao lado de um convento dos Frades<br />
Menores. Ao perceber ter chegado o termo de sua santa<br />
vida, comunicou o fato às pessoas que viviam em sua<br />
companhia. Com os olhos fixos em santa contemplação,<br />
em meio a divinas consolações, e reconfortada pelos Sacramentos,<br />
faleceu a 17 de novembro de 1231. Inúmeros<br />
milagres ocorreram sobre sua tumba, já logo em seguida.<br />
Quatro anos após sua morte foi declarada santa pelo Papa<br />
Gregório IX.<br />
(L’Année Liturgique. 14.ed. Tours;<br />
Alfred Mame et fils, 1922, v.VI, p. 380-383)<br />
1) Antiga região banhada pelo Danúbio, correspondente à<br />
Hungria ocidental.<br />
29
Hagiografia<br />
Francisco Lecaros<br />
Jesus Cristo se faz visível para Santa Isabel e o<br />
Duque Luís - detalhe da obra de Lucas Valdés,<br />
Museu de Belas Artes, Sevilha (Espanha)<br />
Ele foi e encontrou o leproso deitado na cama, e disse:<br />
— O que é isto? O que significa este homem deitado<br />
neste leito?<br />
Ela respondeu:<br />
— Meu esposo, este homem é Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo.<br />
No momento em que ela afirmou isto, deu-se o milagre<br />
e o Duque viu, no leproso, a pessoa de Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo. E sentiu um admirável odor de rosas, que se<br />
expandia da pessoa do leproso. Ele ficou profundamente<br />
impressionado e a sogra perdeu a partida.<br />
O Duque Luís era muito bom homem. Ele partiu para<br />
a Cruzada, foi contagiado pela peste e acabou morrendo.<br />
Terrivelmente perseguida, refugiou-se<br />
numa floresta com seus filhos<br />
Desde então, a perseguição se desencadeou contra<br />
Santa Isabel de um modo trágico. Ela, que era Duquesa<br />
da Turíngia e filha do Rei da Hungria, teve de morar num<br />
estábulo de porcos 3 . Foi uma perseguição tremenda, que<br />
nos faz ver bem qual é a realidade das misérias humanas.<br />
As pessoas que a desprezaram eram as que tinham sido<br />
beneficiadas por ela, mas que agora se manifestavam<br />
frias na hora do infortúnio. Em vez de irem ao encontro<br />
dela, afastavam-se, mantinham distância, pois estavam<br />
com medo das represálias que poderiam sofrer pelos que<br />
odiavam a Santa Isabel.<br />
Certa noite ela acabou sendo acolhida num convento,<br />
no qual foi muito bem recebida, mas depois teve de<br />
se retirar, porque seu cunhado estava se aproximando.<br />
Antes de sair, pediu que se cantasse o Te Deum, para<br />
dar graças a Deus pelos sofrimentos pelos quais<br />
ela estava passando. Logo depois que saiu, caiu<br />
uma forte chuva sobre ela e seus filhos. E era<br />
uma chuva de inverno europeu, água gelada!<br />
E Santa Isabel, escondida numa floresta<br />
com seus filhos, sofrendo tudo aquilo teve<br />
um desfalecimento; parece ter sido tentada<br />
a ter dúvidas contra a Fé. Não se sabe<br />
qual foi o grau de seu consentimento, mas<br />
de qualquer maneira ela se penitenciou a vida<br />
inteira por isto. A Providência a perdoou, e<br />
ela chegou até a mais alta santidade. A fortuna<br />
lhe foi restituída, mas ela não quis voltar para as<br />
regalias antigas e dedicou-se de corpo e alma à Ordem<br />
Terceira dos Franciscanos.<br />
A partir do momento em que seu marido vai para a<br />
Cruzada e morre, se inicia o drama para Santa Isabel:<br />
Ela fica sozinha, perde o ducado, é perseguida e começa<br />
para ela uma vida muito mortificada e miserável. Passa<br />
por dilacerações tremendas, e a boa moça se transforma<br />
numa heroína, depois na santa que vive todo o tempo<br />
na santidade e por fim morre. São três etapas que se pode<br />
verificar em muitas vidas de santos.<br />
Isso também se verifica na vida comum: uma família<br />
se constitui, luta para ganhar a vida, formar e santificar<br />
os filhos, fazendo deles verdadeiros cumpridores da Lei<br />
de Deus. Quando essa batalha é vencida, os pais já estão<br />
velhos, têm um período de estabilidade e depois vem<br />
a morte.<br />
Provavelmente isso se dará conosco. Nós temos um<br />
período de germinação, e depois de um período de lutas<br />
também chegará a ocasião de preparar a nossa alma e<br />
prestarmos contas a Deus.<br />
A vida não teria sentido se<br />
não houvesse a luta<br />
Devemos compreender, portanto, que todos os dramas<br />
da vida fazem parte dessa arquitetura e que a existência<br />
não teria sentido se não fosse exatamente esse<br />
aspecto de luta, de tragédia, de martírio, em função do<br />
qual todo o resto se desenvolve. Uma coisa é a preparação<br />
e outra é a conclusão, mas o importante é a parte da<br />
luta, a fase dramática, na qual o homem dá tudo quanto<br />
tem, tudo quanto pode dar!<br />
E precisamos nos preparar para isso com muito entusiasmo,<br />
como um cavaleiro se preparava durante sua vigília<br />
de armas. Compreendendo que a fase mais importante<br />
da vida vai ser essa: algum momento, por vezes interior,<br />
em que a pessoa transpira sangue como Nosso Se-<br />
30
nhor no Horto das Oliveiras. Mas ela tem um ato de fidelidade<br />
e vai para a frente, confiando na misericórdia de<br />
Nossa Senhora. É o ápice da vida!<br />
Feliz aquele cuja vida apresenta muitos ápices, que<br />
desfecha num ápice central! Compreendemos então a<br />
beleza da vida de cada homem, considerada sob este aspecto.<br />
A vida de Santa Isabel da Hungria nos apresenta exatamente<br />
um exemplo muito frisante, muito importante.<br />
Peçamos a ela que nos dê a coragem nessas grandes horas<br />
e o desejo dessas grandes horas.<br />
Devemos ver também na vida desta santa um exemplo<br />
de constância em meio às piores desgraças. Há duas<br />
formas de constância na desgraça: uma quando a desgraça<br />
acontece e a pessoa a suporta. Outra quando a pessoa<br />
prevê a desgraça, fita-a com olhos calmos e oferece a<br />
Nossa Senhora o sacrifício que vai ter, e faz a oração de<br />
Nosso Senhor no Horto das Oliveiras: “Pai, se quiseres,<br />
afasta de Mim este cálice; contudo, não seja feita a minha<br />
vontade, mas a tua! 4 ”<br />
Essa foi a vida de Santa Isabel da Hungria, e assim deve<br />
ser a nossa. Na calma, a resignação de ver as desgraças<br />
pelas quais devemos passar e ter a constância no decurso<br />
delas. Isso não se pode conseguir a não ser seguindo o<br />
exemplo adorável de Nosso Senhor Jesus Cristo: na hora<br />
da aflição vigiar e orar para não cair em tentação 5 . Peçamos<br />
isso a Nossa Senhora, cuja prece é onipotente! v<br />
(Extraído de conferências<br />
de 19/11/1965 e 18/11/1966)<br />
1) Cfr. Mt 10, 16-24; Mc 13 9-12.<br />
2) Cfr. Mt 25, 31-40.<br />
3) Ao narrar a vida de Santa Isabel, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> baseia-se no livro<br />
“História de Santa Isabel da Hungria”, de Charles Forbes<br />
de Montalembert.<br />
4) Lc 22, 42.<br />
5) Cfr. Mt 26, 41.<br />
Sérgio Hollmann<br />
Santa Isabel da Hungria cuidando dos pobres e doentes - por Bartolomé Esteban Murillo,<br />
Hospital da Santa Caridade, Sevilha (Espanha)<br />
31
Luzes da Civilização Cristã<br />
A mais bela coroa<br />
do mundo<br />
Ao analisar com muita admiração a Coroa do Império Austríaco,<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> nos faz sentir um dos últimos perfumes exalados<br />
pela Civilização Cristã e mostra que ela é uma coroa que nasceu não de<br />
um mero planejamento, mas de um sonho!<br />
Ameu ver a coroa imperial da Áustria é a mais bela<br />
coroa que existe.<br />
Mandada fazer por Rodolfo II 1 para ser propriedade<br />
pessoal dele, depois passou a pertencer ao tesouro<br />
do Sacro Império Romano Alemão. Quando este<br />
foi extinto, as potências reunidas por ocasião do Tratado<br />
de Viena 2 resolveram entregar ao Imperador da<br />
Áustria, Francisco I, o tesouro dos imperadores do Sacro<br />
Império. Então o novo Império Austríaco, que era<br />
uma espécie de continuação do Sacro Império Romano<br />
Alemão, tomou esta coroa como sendo a dos imperadores<br />
da Áustria.<br />
Caráter intrinsecamente sacral<br />
do Império Austríaco<br />
A mim me parece que ela exprime magnificamente a<br />
índole, conforme a expressão francesa, le génie da Casa<br />
d’Áustria, nos aspectos em que ela corresponde à graça.<br />
A coroa é de um valor inapreciável. Ela tem um quê<br />
de mitra, exprimindo bem o caráter intrinsecamente sacral<br />
do Império Austríaco, continuador do Sacro Império<br />
Romano Germânico. É de linhas suaves, enquanto<br />
que a coroa carolíngia é mais hirta. Esta é quase uma carícia<br />
materna. Ao mesmo tempo é riquíssima, com uma<br />
quantidade enorme de ouro, pedras preciosas e pérolas,<br />
constituindo uma magnífica coleção.<br />
Ela possui uma cruz do tipo oriental, com as pontas formando<br />
trevo. Em cima foi colocada uma safira de tamanho<br />
descomunal, muito bonita, a qual significa o nexo entre o<br />
Sacro Império e o Céu. É uma gota de Céu posta no alto da<br />
coroa. A safira incrustrada tem qualquer coisa de fábula!<br />
Essa coroa tem todos os elementos para se fazer uma<br />
análise à luz do maravilhoso.<br />
Para mim, o que encanta nela são as duas fileiras de pérolas<br />
laterais, que se abrem para cima e formam um todo; isso<br />
significa uma espécie de soberania. Para dizer tudo numa<br />
palavra só: essas sociedades antigas tinham entidades secundárias<br />
que, numa determinada linha, possuíam uma soberania<br />
até em relação ao Imperador. Neste sentido, se chamavam<br />
cortes soberanas, estados soberanos, vivendo dentro<br />
do próprio Estado. Eram determinados valores que tinham<br />
uma afirmatividade pessoal e se deviam ver na arquitetura<br />
do Estado, mas não se deixavam sorver pelo Estado.<br />
Agradam enormemente esses dois lados, que se apresentam<br />
meio entreabertos, para se compreender como<br />
esses todos são distintos dentro do unum. Justificando<br />
um pouco a ideia de que o alemão e o francês são as duas<br />
metades do mundo, as quais se completam desta maneira<br />
sem se fundirem, em cuja fenda, não de guerra, mas<br />
de distinção, se sente melhor a força do pedúnculo. E isto<br />
se exprime muito bem nessa coroa, que eu acho rica<br />
em sentidos de toda ordem; uma coroa arquetípica.<br />
A meu ver, esta é a coroa! Nela a Civilização Cristã<br />
moribunda exalou um dos seus últimos perfumes. O rude,<br />
presente aqui, não está nem sequer disfarçado, mas<br />
banhado pela safira. Eu considero essa coroa uma verdadeira<br />
obra-prima!<br />
Possui esmaltes lindos, com um papel cromático que<br />
as pedras preciosas não possuem, e lhe dá uma característica<br />
própria. Não tem o requintado francês, mas é uma<br />
coisa que voa acima. Se a compararmos com outras coroas,<br />
pode-se dizer que essa é o seu pleno épanouissement 3 .<br />
Essa é a coroa por excelência, não há coisa igual.<br />
32
Coroa Imperial da Áustria,<br />
conservada no Tesouro<br />
Imperial de Viena (Áustria)<br />
Fotos: Yelkrokoyale / Gryffindor<br />
33
Luzes da Civilização Cristã<br />
Percebe-se nessa coroa muita bondade, própria de um<br />
reino paterno, uma joia perfeita. É a transesfera 4 , a águia<br />
bicéfala voando.<br />
Dignidade, bondade, esplendor,<br />
conforto e força<br />
A coroa de Luís XV é uma maravilha, mas comparada<br />
com a coroa austríaca…<br />
Eu a considero como a coroa mais bonita do mundo.<br />
Por quê?<br />
Por uma razão muito simples. É que, olhando-a, tenho<br />
a impressão da beleza total, insuperável e dificilmente<br />
igualável. Logo, tem de ser a mais bonita do mundo.<br />
A inteligência de não fazer dessa coroa um capacete<br />
todo fechado de metal, mas deixar aparecer dentro um<br />
gorro de veludo muito bonito, bem arranjado... Acho essa<br />
abertura ideal. Por cima do veludo passa uma espécie<br />
de arco, que toca numa ponta e se abre de um modo bonito.<br />
Ela tem algo de oriental. Aliás, percebe-se também<br />
o papel do sonho nessa coroa; não é uma coroa que se<br />
planeja, sonha-se com ela. É uma coisa diferente.<br />
Eu a considero a obra-prima em matéria de coroa.<br />
Ela é austera?<br />
É preciso ver o que se entende como austeridade; se é<br />
seriedade, gravidade, creio não haver dúvida de que ela<br />
é austera.<br />
O que essa coroa tem de muito interessante é qualquer<br />
coisa de materno. Um súdito que olha para essa coroa, e<br />
entenda que ela é feita para governá-lo, se sente protegido.<br />
Essa coroa é a imagem de um estado de espírito que<br />
abrange não apenas um aspecto, mas toda a mentalidade<br />
de um homem. Esse homem sonhou para si um estado de<br />
espírito de dignidade, de bondade, de esplendor, de conforto<br />
e de força; é o Céu na Terra para ele. E depois ele<br />
mandou executar o trabalho.<br />
v<br />
(Extraído de conferências de 13/5/1982,<br />
6/6/1992 e 19/7/1992)<br />
1) Rodolfo II de Habsburg (1552-1612). Arquiduque da Áustria,<br />
Imperador germânico, Rei da Hungria e da Boêmia, filho<br />
de Maximiliano II.<br />
2) Conferência entre embaixadores das grandes potências europeias,<br />
realizada na capital austríaca, entre 2 de maio de<br />
1814 e 9 de junho de 1815, cuja intenção era a de redesenhar<br />
o mapa político do continente europeu após a derrota<br />
da França napoleônica.<br />
3) Do francês: desabrochar.<br />
4) Assim denominava <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> as realidades situadas em um<br />
plano metafísico, acima das realidades terrenas.<br />
34
35
Nossa Senhora das Graças - Capela<br />
da Medalha Milagrosa, Paris (França)<br />
A<br />
invocação de Nossa<br />
Senhora das Graças<br />
quer dizer que Ela tem em<br />
suas mãos todas as graças,<br />
porque é a depositária de<br />
todos os tesouros de Deus.<br />
Mas também significa<br />
Nossa Senhora dadivosa,<br />
misericordiosa, que tem as<br />
mãos abertas para<br />
mostrar que Ela quer<br />
dar tudo. Ela é a<br />
Mãe de misericórdia,<br />
que deseja tocar todas<br />
as almas, inundá-las de<br />
benefícios, encher o mundo<br />
inteiro das manifestações<br />
soberanas e celestes de sua<br />
bondade e de seu poder.<br />
(Extraído de conferência<br />
de 26/11/1970)<br />
Gustavo Kralj