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Revista Dr Plinio 311

fevereiro de 2024

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Publicação Mensal<br />

Vol. XXVII - Nº <strong>311</strong> Fevereiro de 2024<br />

O Reino de Maria e<br />

o desejo do Céu


Preparação para o Céu<br />

J.P. Ramos<br />

OPão de Açúcar não foi feito por Deus para, em certo momento,<br />

ser reduzido a pedacinhos de pedra para construir casas, mas<br />

para estar ali, sem utilidade prática, para ser visto, só porque ele<br />

é bonito.<br />

Por que Deus criou uma quantidade enorme de seres tão somente para<br />

serem belos? A pergunta última seria: qual a razão de ser da beleza no<br />

universo?<br />

A Doutrina Católica tem a resposta. O Criador quis que preparássemos<br />

nossas almas para o Céu, onde O contemplaremos por<br />

toda a eternidade, conhecendo e amando na Terra seres<br />

parecidos com Ele.<br />

Deus é perfeitíssimo. Contemplá-Lo face a face<br />

supõe uma preparação, a qual se adquire,<br />

em grande parte, considerando na Terra as<br />

criaturas boas, virtuosas, belas, reflexos<br />

d’Ele que é o sumo Bem, o abismo de<br />

todas as virtudes, a Beleza infinita.<br />

(Extraído de conferência<br />

de 9/8/1975)


Sumário<br />

Publicação Mensal<br />

Vol. XXVII - Nº <strong>311</strong> Fevereiro de 2024<br />

Vol. XXVII - Nº <strong>311</strong> Fevereiro de 2024<br />

O Reino de Maria e<br />

o desejo do Céu<br />

Na capa,<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, em<br />

março de 1991.<br />

Foto: Arquivo <strong>Revista</strong><br />

As matérias extraídas<br />

de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

— designadas por “conferências” —<br />

são adaptadas para a linguagem<br />

escrita, sem revisão do autor<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />

propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />

ISSN - 2595-1599<br />

CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />

INSC. - 115.227.674.110<br />

Diretor:<br />

Roberto Kasuo Takayanagi<br />

Conselho Consultivo:<br />

Antonio Rodrigues Ferreira<br />

Jorge Eduardo G. Koury<br />

Redação e Administração:<br />

Rua Virgílio Rodrigues, 66 - Tremembé<br />

02372-020 São Paulo - SP<br />

E-mail: editoraretornarei@gmail.com<br />

Impressão e acabamento:<br />

Pigma Gráfica e Editora Ltda.<br />

Av. Henry Ford, 2320<br />

São Paulo – SP, CEP: 03109-001<br />

Preços da<br />

assinatura anual<br />

Comum............... R$ 300,00<br />

Colaborador........... R$ 400,00<br />

Benfeitor ............. R$ 500,00<br />

Grande benfeitor....... R$ 800,00<br />

Exemplar avulso........ R$ 25,00<br />

Serviço de Atendimento<br />

ao Assinante<br />

editoraretornarei@gmail.com<br />

Segunda página<br />

2 Preparação para o Céu<br />

Editorial<br />

4 Um noviciado do Céu<br />

Piedade pliniana<br />

5 Pedindo a confiança nas<br />

intervenções de Maria<br />

Dona Lucilia<br />

6 Uma senhora jeitosa<br />

ao inimaginável!<br />

Reflexões teológicas<br />

9 O atrativo do incógnito<br />

e o Céu Empíreo<br />

Calendário dos Santos<br />

16 Santos de Fevereiro<br />

O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

18 Maldição da ambiguidade, choque<br />

entre mentalidade e princípio - II<br />

Eco fidelíssimo da Igreja<br />

23 Premiados, à medida<br />

do próprio Deus!<br />

Hagiografia<br />

28 Esplendor de renúncia para<br />

dar força à palavra de Deus<br />

Luzes da Civilização Cristã<br />

31 Cristandade: manifestação<br />

do esplendor da Igreja na<br />

sociedade temporal<br />

Última página<br />

36 A hora da graça<br />

3


Editorial<br />

Um noviciado do Céu<br />

Na Ladainha de todos os Santos existe uma invocação que diz: Ut mentes nostras ad cælestia<br />

desideria erigas, te rogamus audi nos – “Para que eleveis as nossas almas aos desejos das<br />

coisas celestes, nós vos rogamos, ouvi-nos.”<br />

O que é esse desejo? Fundamentalmente é o anseio de ir para o Céu. Mas, por mais nobre e santo<br />

que seja esse anseio, não basta para definir por inteiro o conceito contido nessa invocação.<br />

Na Terra nós temos coisas que são figuras das celestes, e é preciso amar essas figuras para, de fato,<br />

dizermos que temos apetência das coisas do Céu, pois as terrenas nos foram dadas para aprendermos<br />

a amar as celestiais.<br />

Entretanto, o desejo das coisas celestes tem como corolário necessário o ódio implacável, militante,<br />

contínuo, meticuloso, inflexível contra tudo aquilo que, na Terra, seja contrário às realidades celestes.<br />

Sem um ódio ao Inferno não existe verdadeiro amor ao Céu, portanto, sem um ódio às coisas<br />

que na Terra são à maneira do Inferno, não existe verdadeiro amor às criaturas terrenas conformes<br />

ao Céu.<br />

Quais são as coisas à maneira do Céu? Eu indico uma que engloba todas: o Reino de Maria. E à<br />

maneira do Inferno? A Revolução. A Contra-Revolução é o movimento que nos deve levar a derrotar<br />

a Revolução e a estabelecer na Terra o Reino de Maria, o qual é a imagem do Céu na Terra.<br />

Na medida em que o conjunto dos povos se deixe embeber pela ação santificadora da Igreja, ele<br />

constitui a cidade de Deus, que é um noviciado do Céu. A condição fundamental para a Terra ser esse<br />

seminário do Céu e, em consequência, as coisas terrenas serem utilizadas habitualmente para a<br />

salvação das almas, é a excelência das condições em que esteja a Igreja Católica, de maneira a estar<br />

ela na sua plena saúde.<br />

Contudo, isso não basta. É preciso haver também uma boa ordem da sociedade temporal, inspirada,<br />

suscitada e guiada pela Igreja, pois, estando em ordem a sociedade espiritual, a temporal é conformada<br />

de molde a levar as almas para o Céu. Então a vida terrena torna-se uma imagem do Céu.<br />

As ordens espiritual e temporal organizadas segundo a Doutrina Católica constituem a ordenação<br />

perfeita deste mundo. Quando falamos do Reino de Maria, é a isso que nos referimos.<br />

Assim sendo, o que devemos pedir a Nossa Senhora? Que eleve as nossas almas, obtendo para elas<br />

uma operação do Espírito Santo por meio da qual nós amemos muito e cada vez mais o ideal do Reino<br />

de Maria e desejemos a implantação desse Reino. E para que esse desejo seja vivo, tenhamos ódio<br />

à atual ordem revolucionária das coisas.<br />

Esse é o verdadeiro sintoma de que as nossas almas foram elevadas ao desejo das coisas celestes e<br />

que, portanto, caminham para o Céu, Reino Eterno, perfeito, imperecedouro, de Nossa Senhora, o<br />

qual nós aprendemos a amar amando o Reino de Maria na Terra. *<br />

* Cf. Conferências de 30/12/1965 e 5/1/1993.<br />

Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />

de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />

na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />

outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />

4


Piedade pliniana<br />

Pedindo a<br />

Flávio Lourenço<br />

confiança nas<br />

intervenções<br />

de Maria<br />

Ó<br />

Mãe do Bom Sucesso, dai-me<br />

a graça de aproveitar, no<br />

cumprimento de minha missão,<br />

todos os recursos naturais, toda<br />

a experiência e todas as graças que<br />

me obtivestes.<br />

Dai-me, sobretudo, a convicção<br />

de que, de modo geral, a nenhum<br />

homem nada disso basta para<br />

o cumprimento de suas missões<br />

mais importantes, se não for a vossa<br />

intervenção direta e extraordinária<br />

nos fatos.<br />

Fazei-me crer nisto, desejar e pedir<br />

essas intervenções, para nelas<br />

confiar durante os dias mais duros;<br />

pedi-las e obtê-las para o esmagamento<br />

de Satanás e a vitória de vossa<br />

realeza. Amém.<br />

(Composta em 16/4/1974)<br />

A Virgem com o Menino<br />

Igreja de São Tiago, Regensburg<br />

5


Dona Lucilia<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

Irredutibilidade no cumprimento do<br />

dever, doçura para corrigir os lados<br />

maus... Dona Lucilia tinha, em alto<br />

grau, o equilíbrio entre a placidez<br />

e a disponibilidade, a presteza e o<br />

movimento, a solicitude e a atenção.<br />

Luis C. R. Abreu<br />

Há uma atitude de alma<br />

que eu nunca vi em mamãe,<br />

a de mania de bicho<br />

empacado sem razão: “Daqui<br />

não saio, daqui ninguém me tira.”<br />

Pelo contrário, ela sempre possuía a<br />

maior afabilidade, a maior disponibilidade,<br />

a qualquer momento, para<br />

mover-se em qualquer direção.<br />

Ausência completa<br />

de caprichos<br />

Ela morreu com 92 anos, quando<br />

nasci ela tinha 32. Em sessenta anos<br />

de convívio com ela eu nunca a vi<br />

ter um capricho ou algo que de repente<br />

desse um enguiço nela. Absolutamente,<br />

nunca vi nela um desses<br />

pasmos nervosos, mesmo em ocasiões<br />

de muita alegria ou de muita<br />

tristeza. Era como alguns de nossos<br />

rios da bacia amazônica que não<br />

têm pedras pelo meio, não há queda<br />

d’água, nem nada: vão, vão e vão…<br />

Assim era ela.<br />

Mamãe tinha, em alto grau, o<br />

equilíbrio entre a placidez brasileira<br />

e a disponibilidade, a presteza e o<br />

movimento, a solicitude e a atenção,<br />

sem nunca sair da placidez. Quem<br />

a olhasse, à primeira vista, diria:<br />

“Que senhora bem sentada e agradavelmente<br />

instalada!”<br />

Atenta a tudo o que<br />

estava a seu alcance<br />

Ela não perdia nunca o que ela<br />

era capaz de alcançar com o olhar e<br />

que se passasse na periferia dela. Eu<br />

já disse que ela era apenas medianamente<br />

inteligente, não era muito inteligente;<br />

mas não se passava perto<br />

dela algo que estivesse ao alcance<br />

dela, que ela não relacionasse sem<br />

esforço e sem agitação, sem afã. Mas<br />

com aplicação contínua, serena.<br />

6


Ela tinha uma grande elevação<br />

de alma, porém ela não desdenhava<br />

o mais minúsculo. Eu, às vezes, mexia<br />

com ela dizendo-lhe que ela era<br />

meticulosa demais em certas coisas.<br />

Ela era meticulosa, mas sem deixar<br />

o mais alto, fazendo o mais alto habitar<br />

em tudo, estar presente a tudo,<br />

ordenar tudo e com um seletivo à luz<br />

desse ponto de partida mental, interno,<br />

um seletivo que nunca vi errar.<br />

Algo curioso: Ela podia ter – sobretudo<br />

quando mais moça e que eu<br />

tinha exercido menos influência sobre<br />

ela – lados um tanto liberais de<br />

doutrina subconsciente, que influíam<br />

no seletivo dela. Mas esse erro<br />

mostrado – e com que precisão e<br />

muitas vezes com que reverente truculência,<br />

mas mostradíssimo! –, ela<br />

acabava acertando o passo quando<br />

via que era direito.<br />

Creio que se posso dizer que recebi<br />

algo da lógica dos jesuítas, dela recebi<br />

enormemente outras coisas. Ela<br />

era muito comunicativa dessa elevação.<br />

Ela transmitia muito, irradiava<br />

muito o que, aliás, vê-se pelo Quadrinho;<br />

nele, torna-se evidente.<br />

Amolecedora dos lados<br />

maus das almas<br />

não percebia que isso era touchant 1 ,<br />

fazia com a naturalidade que se possa<br />

imaginar: “Coitado, é bem verdade!<br />

Mas veja, tem tal lado assim e<br />

tal outro e outro que, afinal de contas,<br />

se atendêssemos, veríamos que<br />

ele tem uma atenuante…” Se ela tivesse<br />

tratado com aquela pessoa na<br />

ocasião “X” da vida desse indivíduo,<br />

e tivesse tido essa compaixão, ela teria<br />

amolecido dentro da pessoa, não<br />

o bem, mas o mal.<br />

Ela era uma amolecedora de revoltas<br />

como eu nunca vi coisa igual.<br />

Mas pela compaixão, pela pena. A<br />

pessoa objeto dessa compaixão se<br />

desarmava e tomava uma forma da<br />

doçura, que estou explicando de modo<br />

muito incompleto, mas há certas<br />

coisas que o vocabulário humano<br />

não consegue exprimir.<br />

Como vi gente recusar isso! E recusar<br />

por autossuficiência! “Não quero<br />

que tenham compaixão de mim!”<br />

Ou outras coisas: “Eu sinto que isso<br />

vai me desarmar a revolta e estou utilizando<br />

isso para conseguir tal coisa,<br />

portanto, não quero deixar de me revoltar…”<br />

Não diziam, mas eu percebia.<br />

Isso fica nos imponderáveis em<br />

torno de uma mesa de sala de jantar<br />

ou no living de uma casa. A vida cotidiana<br />

é feita de lances desses.<br />

Irredutibilidade com doçura<br />

Mamãe tinha assim uma espécie<br />

de forma de compassividade que<br />

chegava ao miúdo, entrando nos últimos<br />

meandros do sofrimento da<br />

pessoa, naquele meandrozinho mais<br />

interno onde o caco de vidro infecciona<br />

e arranha mais a ferida e, ali,<br />

Tamara Maria A.<br />

Havia uma atitude nela que afinava,<br />

aliás muito, com o meu modo<br />

de entender a devoção a Nossa<br />

Senhora – a prática da devoção,<br />

não o seu fundamento teológico –,<br />

mas um traço saliente nela, no relacionamento<br />

com os outros, era<br />

o ser compassiva. Eu não conheci<br />

ninguém compassivo como ela. De<br />

uma compaixão ordenante, não de<br />

uma ópera italiana: “Pobre filho!!!<br />

Pobre amada!!!...”<br />

Lembro-me, mais de uma vez, em<br />

relação a essa ou àquela pessoa: eu<br />

afirmava um aspecto no corte da espada…<br />

Ela não negava, ouvia tudo,<br />

depois me dizia – com uma modulação<br />

de voz e um jeito de falar que me<br />

deixava sem saber o que dizer, ela<br />

Virgem com o Menino (coleção particular)<br />

7


Dona Lucilia<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

Alunos do Colégio São Luís no bonde Grande Avenida<br />

punha uma gota de azeite, tranquilizava<br />

e dava uma coisa que não tem<br />

nome, mas que era feito de compaixão.<br />

Se alguém quiser obter alguma<br />

coisa dela, o caminho não é chegar<br />

e cobrar o cheque bancário: “Eu rezei<br />

vinte e cinco terços, fiz noventa e<br />

duas penitências e abstive-me de cinco<br />

mil e quatrocentas coisas más que<br />

quis fazer no dia de ontem e não fiz,<br />

agora pagai!” Tenho a impressão de<br />

que ela diria: “Mas, meu filho, você<br />

fez tudo isso? Coitado! Podia ter feito<br />

tanto menos, eu estava aqui para<br />

te dar!”<br />

Essa atitude dela era um incentivo<br />

à moleza? Nunca senti isso no<br />

momento em que ela me incentivava<br />

para o cumprimento do dever; e ela<br />

que teve que educar um filho mole.<br />

Por exemplo, ela nunca teve muito<br />

dinheiro, mas quando chovia – ela<br />

tinha pânico dos resfriados – aparecia<br />

um táxi no Colégio São Luís,<br />

mandado de casa para me pegar na<br />

saída, porque não queria que eu tomasse<br />

chuva. Era o único menino<br />

do Colégio São Luís que tinha táxi,<br />

porque os outros ou a família tinha<br />

automóvel e mandava buscá-los,<br />

ou não tinha e não dispunham de dinheiro<br />

para pagar o táxi. Era bonde<br />

e chuva.<br />

Nunca aconteceu, e nem aconteceria,<br />

se eu, na hora de me levantar<br />

de manhã dissesse a ela: “Eu estou<br />

com vontade de dormir mais meia<br />

hora. Mamãe, me pague um táxi…”<br />

Porque isto ela não permitiria nunca,<br />

irredutivelmente! Era hora de levantar,<br />

era preciso levantar! E táxi<br />

para ir por moleza, não!<br />

Nessa irredutibilidade, exatamente,<br />

entrava a contrapartida sem a<br />

qual eu reputaria toda essa doçura<br />

algo melosa.<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1979<br />

Porém, como na irredutibilidade<br />

entrava a doçura? Não sei como dizer.<br />

Era uma forma de pena de mim<br />

que eu percebia que ela tinha e participava<br />

do meu sofrimento, mas se<br />

ela não tivesse uma resistência irredutível<br />

contra o lado mau, eu não a<br />

admiraria.<br />

Se eu me tomasse por um capricho<br />

e não quisesse ir ao colégio, a<br />

Fräulein a avisaria. Mamãe tinha o<br />

costume de se levantar tarde, mas<br />

se levantaria a qualquer hora e iria,<br />

de robe de chambre, ao meu quarto.<br />

Sentar-se-ia aos pés de minha cama<br />

e diria: “Filhão, o que há?” Eu teria<br />

de dar logo uma explicação daquilo<br />

que estava se passando dentro de<br />

mim para pôr logo aquilo em ordem.<br />

E eu me levantaria. Não tinha conversa.<br />

Aí aparecem os tais jeitinhos dela,<br />

porque ela era jeitosa ao inimaginável!<br />

v<br />

(Extraído de conferência de<br />

8/12/1979)<br />

1) Do francês: tocante; que toca a sensibilidade.<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

8


Reflexões teológicas<br />

João C. V. Villa<br />

O atrativo do incógnito<br />

e o Céu Empíreo<br />

Um mistério encantador é-nos<br />

revelado através dos sonhos de<br />

São João Bosco. O Céu Empíreo<br />

em algo se assemelha com esta<br />

Terra, porém lá tudo parece ser<br />

de outra natureza. Isso nos faz<br />

ver esta Terra com olhos muito<br />

mais maravilháveis, porque<br />

compreendemos o fundamento<br />

que as coisas têm em Deus e<br />

passamos a buscar o sentido<br />

espiritual daquilo que nos rodeia.<br />

Heitor M.<br />

Flávio Lourenço<br />

Inicio a leitura do sonho de<br />

São João Bosco.<br />

Aspecto terreno,<br />

porém de outra natureza<br />

São João Bosco viu o pórtico do<br />

Céu Empíreo:<br />

“De repente, parecia encontrar-me<br />

no alto de uma colina, nos bordos de<br />

uma imensa planície, cujos confins se<br />

perdiam de vista na imensidade. Era<br />

de um azul cerúleo, como o mar calmo;<br />

embora a matéria que eu via fosse<br />

água, parecia, entretanto, um suave<br />

cristal reluzente. Debaixo dos meus<br />

pés, por detrás de mim e dos lados, eu<br />

via uma região à maneira de um litoral<br />

à beira do oceano.”<br />

A descrição é muito bonita, sobretudo<br />

vista de dentro dos olhos de um<br />

Santo. Mas ela começa por levantar<br />

um problema muito interessante, ao<br />

imaginarmos a coisa material. A ser<br />

verdadeira a interpretação, nos dá<br />

uma ideia desta Terra que é completamente<br />

nova e, por certo, antimoderna<br />

até onde possa ser; chega até<br />

os confins da antimodernidade.<br />

Eu levanto apenas o problema,<br />

mas não vou resolvê-lo: tais descrições<br />

têm o aspecto das coisas terrenas,<br />

mas não têm a natureza dela.<br />

O que parece mar não é mar nem<br />

é água; ele dá a entender que é uma<br />

matéria de outra natureza. E aquele<br />

litoral não é um verdadeiro litoral,<br />

pois, onde não há água, não há litoral.<br />

Há um encontro de matérias diversas,<br />

parecido com uma praia, mas<br />

não é praia.<br />

“Largas e gigantescas avenidas dividiam<br />

a planície em vastíssimos jardins<br />

de inenarrável beleza...”<br />

Até que ponto não era água e até<br />

que ponto não era cristal? É azul,<br />

mas possuía jardins em cima. Se o<br />

9


Reflexões teológicas<br />

compilador copiou bem, e eu creio<br />

que o tenha feito, parece real a coisa.<br />

Um enigma a ser resolvido...<br />

“...todos como que repartidos em<br />

pequenos bosques, prados e canteiros<br />

de flores de formas e cores diversas.”<br />

O problema aparece de novo. Sabemos<br />

que não há plantas no Céu<br />

Empíreo. Como, então, há canteiros<br />

de flores? E por que se faz canteiro<br />

com elas? Qual é a razão de ser<br />

disso? Dir-se-ia que esse jardim foi<br />

plantado por alguém. Não é a natureza<br />

como ela brota. Deus ordenou<br />

que essas coisas se dispusessem<br />

à maneira de jardim? Entendemos<br />

que os homens façam jardins, porque<br />

dentro do mato as coisas não tomam<br />

toda sua beleza. O mato tem<br />

sua beleza específica, mas, por exemplo,<br />

um campo não pode ter a beleza<br />

de um jardim com uma coleção de<br />

rosas; o homem precisa plantá-las. O<br />

jardim tem para nós uma razão de<br />

ser, está ligado à natureza das coisas.<br />

Entretanto, no sonho, o jardim parece<br />

não estar ligado em nada à natureza<br />

das coisas. Não se vê o que justifique<br />

um jardim no Céu. E como entender<br />

um jardim que fica em cima<br />

de uma água que não é água? Ora,<br />

deve haver um pulchrum dentro disso<br />

para ser Paraíso. Qual?<br />

“Nenhuma de nossas plantas pode<br />

dar-nos a ideia daquelas, ainda que<br />

alguma semelhança tenha. As ervas,<br />

as flores, as árvores e as frutas eram<br />

vistosíssimas e de belíssimo aspecto.<br />

As folhas eram de ouro. Os troncos e<br />

ramos de diamantes, correspondendo<br />

o resto a essa riqueza.”<br />

Assim como o mar era de uma<br />

água que não é água e de um cristal<br />

azul que não é cristal, assim também<br />

as flores, os frutos e as folhas<br />

eram de uma consistência não vegetal,<br />

porque a criatura vegetal não entra<br />

no Céu. Eram da matéria de lá,<br />

mas com as formas que se explicam<br />

de acordo com as necessidades da<br />

matéria desta Terra.<br />

Há aqui uma charada. Que uma<br />

árvore tenha folhas é a coisa mais<br />

natural do mundo. A folha é necessária<br />

para a árvore, não é um puro<br />

enfeite, como os de uma árvore de<br />

Natal. Também está na natureza da<br />

árvore dar a fruta. No Céu Empíreo,<br />

aqueles seres semelhantes aos minerais<br />

– eu hesito em dar essa qualificação<br />

– têm as formas dos seres daqui,<br />

mas não são os daqui. Qual é a<br />

razão de ser dessas formas?<br />

A pergunta vai mais além, é uma<br />

análise. Por que a matéria lá tem semelhança<br />

com a nossa? Alguém dirá:<br />

“Para o homem se sentir bem lá.”<br />

Então Deus fez uma espécie de loja<br />

de brinquedo para o homem estar no<br />

Céu? Isso não é sério. A razão não<br />

é essa. Daqui a pouco eu lanço uma<br />

hipótese que tem exatamente o atrativo<br />

do incógnito. Nós devemos ser<br />

ortodoxos lobos do mar das hipóteses,<br />

sempre com o espírito obediente<br />

a Roma.<br />

Eu estou procurando dar, na descrição,<br />

mais a beleza da incógnita do<br />

que da árvore de ouro com brilhantes.<br />

Porque uma árvore de ouro com<br />

brilhantes, um fabricante de joias<br />

falsas faz e qualquer um a toma como<br />

verdadeira. O problema é discernir<br />

o sentido espiritual e, ir em busca<br />

disso mais do que da pura descrição<br />

material.<br />

“Impossível é contar as diferentes<br />

espécies…”<br />

Portanto, há espécies diversas<br />

dessas “plantas”.<br />

“E cada espécie e cada flor resplandecia<br />

com uma luz especial.”<br />

Cada um desses seres deita focos<br />

luminosos não só de acordo com sua<br />

natureza, mas com sua individualidade,<br />

como na Terra as rosas são belas,<br />

mas cada espécie de rosa tem um<br />

tipo de beleza própria; assim também<br />

é a variedade prodigiosa dessa<br />

criação celeste, desse pequeno universo<br />

celeste. Cada uma com uma<br />

luz própria, que simboliza uma perfeição<br />

de Deus. É para nos falar de<br />

Tomas T.<br />

10


Divulgação (CC3.0)<br />

Deus, de Nossa Senhora, dos Anjos<br />

e dos Santos.<br />

“No meio daquele jardim e em toda<br />

a extensão da planície, eu contava<br />

inúmeros edifícios de uma ordem, beleza,<br />

harmonia, magnificência e proporção<br />

tão extraordinárias, que para a<br />

construção de um só deles não poderiam<br />

ser suficientes todos os tesouros<br />

da Terra.”<br />

São João Bosco viu uma planície<br />

magnífica, um jardim de uma cidade<br />

com palácios incontáveis. É uma<br />

cidade. Pode até ser uma praça pública<br />

de uma cidade. Ora, sabemos<br />

que ninguém mora em casas no Céu.<br />

Qual é o sentido dessas casas, dessas<br />

fachadas? Por que isso é assim?<br />

Qual é o mistério encantador, mas<br />

meio desconcertante, dentro do qual<br />

caminhamos?<br />

Um bonito problema: a<br />

relação da natureza celeste<br />

com as formas geométricas<br />

“Eu dizia de mim para comigo: se<br />

meus meninos tivessem uma só dessas<br />

casas, como gostariam, como seriam<br />

felizes e com quanta alegria viveriam<br />

dentro dela! E isso eu pensava<br />

quando só podia ver esses palácios<br />

por fora. Como não seriam por dentro?”<br />

Esses palácios, que não são palácios,<br />

têm um interior. Não são meras<br />

fachadas, porque não pode haver<br />

engano no Céu. E se eles têm ar de<br />

possuir um interior, é porque o possuem.<br />

Para que serve o interior desses<br />

edifícios? Haverá uma arte decorativa<br />

lá? Haverá espelhos? Haverá<br />

quadros pintados por Anjos? Haverá<br />

tapetes de alguma Pérsia indescritível,<br />

ou serão diretamente criados<br />

por Deus?<br />

A resposta não é muito fácil de<br />

dar, porque sou obrigado a responder<br />

em termos puramente geométricos.<br />

Tomemos as figuras geométricas:<br />

um quadrado, um losango, um círculo.<br />

Pensando bem, a natureza humana<br />

não vive sem ter coisas que<br />

representem formas geométricas<br />

para ela. De tal maneira são feitos<br />

nosso intelecto e nossos sentidos,<br />

que precisamos ter contato e viver<br />

dentro de um universo definível<br />

em formas geométricas. Fora disso<br />

nós estaríamos mais ou menos como<br />

quem avança em voo cego dentro<br />

de uma nuvem. É como viajar<br />

de avião. Tem-se a impressão, completamente<br />

sem graça, que se está<br />

passeando dentro de uma garrafa<br />

de leite. Nuvem, nuvem, nuvem,<br />

não se vê a paisagem, nem a cidade,<br />

é um elemento gasoso e molhado<br />

que se condensa em gotinhas sujas<br />

na asa do avião, que depois o vento<br />

leva e que se desintegram dentro<br />

da massa úmida da qual se destacaram<br />

pela pancada da asa do avião.<br />

O que é isso? Eu olho com tédio e<br />

digo: “Oh, caceteação! Se ao menos<br />

ali se desenhassem figuras geométricas,<br />

se aquilo tivesse o aspecto<br />

de um caleidoscópio, onde as formas<br />

passeiam diante do homem, como<br />

para o encantar... Sou o menos<br />

geométrico dos homens, mas como<br />

a natureza humana tem avidez da<br />

geometria!<br />

11


Reflexões teológicas<br />

J.P.Ramos<br />

E aqui entra um problema bonito:<br />

qual é a relação dessa natureza<br />

com a geometria? Entra ainda um<br />

outro problema: essas formas geométricas,<br />

de que a alma humana é<br />

tão sequiosa, não representam simbolicamente<br />

propriedades de Deus,<br />

sem cuja consideração o homem<br />

não pode viver?<br />

Então, as coisas não são redondas,<br />

quadradas ou losangulares,<br />

principalmente por causa da natureza<br />

delas, mas elas são assim porque<br />

nos dão uma ideia de Deus?<br />

E Deus as criou com essa natureza,<br />

em primeiro lugar, para nos dar<br />

uma ideia d’Ele mesmo e, em segundo<br />

lugar, atendendo às necessidades<br />

naturais delas. Mas a razão<br />

de ser dessas formas todas é muito<br />

menos a natureza das coisas do que<br />

o próprio Deus.<br />

Está dito no Gênesis: “Façamos o<br />

homem à nossa imagem e semelhança”<br />

(Gn 1,26) e “Deus contemplou<br />

toda a sua obra, e viu que tudo era<br />

muito bom” (Gn 1,31). A razão de<br />

ser profunda pela qual as coisas têm<br />

as formas que têm não é a natureza<br />

delas, mas é porque Deus quis que tivessem<br />

aquelas formas para Ele contemplar.<br />

E isso porque elas têm uma<br />

certa semelhança com Ele. Uma semelhança<br />

inefável, que não se pode<br />

exprimir em palavras humanas.<br />

Semelhanças de Deus<br />

no Céu e na Terra<br />

Quem sabe, então, se todo o Céu<br />

Empíreo é uma imensa repetição, de<br />

forma magnífica, de puras formas,<br />

puras cores, puros sons, puros deleites<br />

que têm seu fundamento em Deus<br />

e que ali nos deixam vê-Lo melhor?<br />

Olhando para as coisas desta Terra,<br />

nós devemos também não nos contentar<br />

com a explicação científica,<br />

mas pensar: por que a laranja tem,<br />

vagamente, a forma de uma esfera?<br />

Não é pelas razões que a natureza da<br />

laranja explica, mas é porque Deus<br />

queria que houvesse seres esféricos e<br />

houvesse esferas cor de laranja, com<br />

gosto de laranja, para melhor assemelharem-se<br />

a Ele. É mais ou menos<br />

como um jogo de espelhos.<br />

O caldo da laranja está dentro dela<br />

e ele se explica mais em função de<br />

Deus do que de si próprio. Como<br />

São Lourenço do Escorial<br />

Deus, sendo infinitamente superior<br />

à laranja, de algum modo Se reflete<br />

nela? Porque há uma semelhança<br />

ali. Como é essa semelhança? É dificílimo<br />

ter uma ideia. Mas vale a pena<br />

aguçar o espírito pensando nisso<br />

e como que procurando prelibar.<br />

Dessas considerações vem o verdadeiro<br />

prazer da vida, pois isso nos<br />

faz ver esta Terra com olhos muito<br />

mais maravilháveis, porque compreendemos<br />

o fundamento que essas<br />

coisas têm em Deus.<br />

Certas aulas de ciência natural<br />

quase amputam isso, dando a pura<br />

explicação botânica da forma de uma<br />

laranja; não oferecem uma formação<br />

pela qual se dá o complemento filosófico,<br />

metafísico e até, eventualmente,<br />

com algum fundamento na Revelação<br />

a respeito da natureza da laranja.<br />

Então, fica-se com a ideia de que o<br />

mundo é assim, só porque ele é assim.<br />

Ora, ele é assim para ser semelhante<br />

a Deus, que no mais alto do<br />

Céu é assim.<br />

E nós temos outra noção de tudo<br />

quanto nos cerca. Quando se vê<br />

um homem construir casas – Felipe II<br />

construindo o Escorial, ou levantar-se<br />

em Paris a Catedral de Notre-Dame<br />

–, nós pensamos<br />

em tudo quanto deu razão<br />

de ser àquilo; mas esses<br />

homens, agindo retamente<br />

segundo seu senso artístico,<br />

faziam coisas que espelhavam<br />

a Deus. Era uma<br />

semelhança nova de Deus<br />

que vinha nascendo.<br />

Daí compreendemos<br />

que todo esse Céu Empíreo<br />

é muito mais semelhante<br />

a Deus do que o nosso. E<br />

nisso tem uma beleza que<br />

não podemos imaginar como<br />

é, mas da qual podemos<br />

ter uma ideia através<br />

desta reflexão.<br />

Então as coisas se explicam<br />

mais por Deus do<br />

que pela Terra.<br />

12


Harmonia celeste e<br />

uma orquestra de cem<br />

mil instrumentos<br />

A laranja não é um exemplo bem<br />

escolhido. Outro exemplo melhor é<br />

a música, porque é muito mais espiritual<br />

do que uma coisa que se come.<br />

Os comestíveis não continuarão no<br />

Céu, porque o homem não terá fome.<br />

Mas a música continuará, como<br />

veremos em breve. A música da Terra<br />

é um reflexo da música do Céu,<br />

que é um reflexo da música dos Anjos,<br />

que é, por fim, reflexo da harmonia<br />

interna e insondável das Três<br />

Pessoas da Santíssima Trindade.<br />

Quem estudasse harmonia musical,<br />

por exemplo, deveria pensar como<br />

tudo quanto está aparecendo ali<br />

é, de algum modo, um reflexo das<br />

Três Pessoas da Santíssima Trindade,<br />

de sua vida interna ou da glória extrínseca<br />

dessas Três Pessoas Divinas.<br />

Aí apareceria para os músicos a verdadeira<br />

inspiração.<br />

Fizemos assim uma espécie de digressão<br />

pelos mistérios do Céu Empíreo,<br />

vimos o habitat; veremos agora<br />

os que moram ali. O sonho vai começar<br />

a se encher de gente nesse ambiente<br />

maravilhoso. Como são essas pessoas<br />

e que tipo de felicidade gozam lá?<br />

“Enquanto eu contemplava extasiado<br />

tão estupendas maravilhas que<br />

adornavam aquele jardim, chegou-me<br />

aos ouvidos uma música dulcíssima,<br />

de tão grata harmonia, que eu não vos<br />

posso dar uma ideia adequada de como<br />

era. Eram cem mil instrumentos<br />

que produziam cada um som diverso<br />

do outro.”<br />

A música devia ser harmônica<br />

com as impressões que o jardim<br />

produziu. São João Bosco, à medida<br />

que prestava atenção, distinguia<br />

e caracterizava os instrumentos,<br />

mas que não são os nossos miseráveis<br />

violinos e pianos. Tudo isso<br />

é nada em comparação com essa orquestra.<br />

E vem aqui algo de que eu<br />

gosto muito:<br />

“A esses uniam-se os coros de cantores.”<br />

O mais belo instrumento que há<br />

é a voz humana. Por causa do pecado<br />

original não se nota isso. Ao ouvir<br />

uma harpa julgamos que é mais bela<br />

do que qualquer cantor. Mas no Céu<br />

a voz humana dos coros gloriosos<br />

é mais bela do que todos os instrumentos.<br />

E esse cântico maravilhoso<br />

é mero fundo de quadro para o cântico<br />

dos bem-aventurados. Aí compreendemos<br />

bem o papel da música<br />

instrumental com canto.<br />

Gáudio da simpatia e da<br />

plena compreensão mútua<br />

Catedral de Notre-Dame de Paris<br />

“Então, havia uma multidão de<br />

gente que naquele jardim se encontrava<br />

e que se regozijava, alegre e contente.”<br />

Dom Bosco via uma multidão<br />

proporcionada com a capacidade dele<br />

de prestar atenção em cada um;<br />

eles andavam sem se comprimir,<br />

tão em harmonia uns com os outros<br />

que, quando se viam, se agradavam,<br />

cheios de gáudio.<br />

Esse gáudio da simpatia mútua<br />

e da plena compreensão não existe<br />

nesta Terra. É exatamente como se<br />

deve ver a Terra. Um de nossos grandes<br />

erros na fase da adolescência é<br />

procurar gente que seja consonante<br />

conosco segundo esse modelo ideal.<br />

Porém, recebe-se cada pontapé de<br />

sair chiando! A razão é porque o trato<br />

como descreve São João Bosco só<br />

se encontra no Céu. Na Terra nós te-<br />

Gabriel K.<br />

13


Reflexões teológicas<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

mos que tolerar cada casca-grossa e<br />

cada imperfeição do arco-da-velha!<br />

Essa é a vida. No Céu o convívio é<br />

outro.<br />

“Alguns cantavam, outros tocavam.<br />

Cada nota fazia o efeito de mil instrumentos<br />

reunidos.”<br />

Imaginar um instrumento que faça<br />

o efeito de mil...!<br />

Faço aqui um parêntese todo pessoal:<br />

um dos encantos que eu tenho<br />

pelo órgão. Ao tocar cada nota,<br />

ele me dá a impressão de haver<br />

uma porção de instrumentos que tocam<br />

ao mesmo tempo. Por isso acho-<br />

-o, a perder de vista, superior a qualquer<br />

outro instrumento. Lembro-me<br />

de que quando comecei a prestar<br />

atenção nele eu pensava: “As pessoas<br />

não percebem que isso é um concerto<br />

de concertos? Falam em dó, ré,<br />

mi. No órgão há isso, mas sobretudo<br />

existe mais. No piano existe um “lá”,<br />

mas no órgão existe um universo de<br />

“lás”, acentuado ainda por aqueles<br />

registros que dão uma ideia global<br />

do universo dos sons.” É a perfeição<br />

das perfeições em matéria de<br />

harmonia.<br />

“Ouviam-se os vários graus de escala<br />

harmônica, desde os mais baixos<br />

aos mais altos que se possa imaginar.<br />

Mas tudo em acordes perfeitos.<br />

Ah! para descrever essa harmonia não<br />

bastam comparações humanas! Via-<br />

-se pelo rosto daqueles felizes habitantes<br />

dos jardins que os cantores não só<br />

experimentavam extraordinário prazer<br />

em cantar...”<br />

O que torna o canto particularmente<br />

deleitável: quando a pessoa<br />

canta um canto perfeito e notam-se<br />

nela as harmonias perfeitas da alma<br />

perfeita, na alegria perfeita.<br />

“...mas, ao mesmo tempo, sentiam<br />

um imenso gáudio em ouvir cantar os<br />

demais.”<br />

Isso é um senso de harmonia pouco<br />

comum. Um cantor gostar de ouvir outros<br />

cantores ao invés de fazer solo, não<br />

é comum... Um músico gostar de ouvir<br />

os outros tocarem tão bem ou melhor<br />

do que ele na orquestra onde apenas<br />

ele tenha um clarinete... No Céu é diferente:<br />

“Este, como canta bem! E aquele,<br />

como é estupendo! Canta ainda melhor!”<br />

É um universo sem inveja.<br />

“Mais um cantava, mais se acendia<br />

nele o desejo de cantar e quanto mais<br />

escutava, mais desejava escutar.”<br />

É a convivência e a harmonia perfeitas<br />

da alma descrita de modo a<br />

impressionar a imaginação. Está<br />

contido aqui um verdadeiro tratadozinho<br />

de Filosofia ou de Moral.<br />

Cântico sobrenatural<br />

cheio de pensamento<br />

Steven Pisano(CC3.0)<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1979<br />

“Este era um dos cantos: Salus,<br />

honor, gloria Deo Patri omnipotenti,<br />

Auctor sæculi, qui erat, qui est et qui<br />

venturus est, judicare vivos et mortuos,<br />

in sæcula sæculorum.”<br />

Podemos imaginar um pouco as<br />

inflexões. “Saudação, honra, glória a<br />

Deus Pai onipotente, Autor de todos<br />

os séculos, que era, que é e que será,<br />

e que virá julgar os vivos e os mortos<br />

nos séculos dos séculos.”<br />

Ora, cada palavra dessas contém<br />

um pensamento; e cada pensamento<br />

14


desses é susceptível de ser musicado.<br />

Porque não há um pensamento que<br />

não seja susceptível de ser musicado.<br />

É questão de ter talento e saber musicar.<br />

Podemos imaginar esse “salus”<br />

contendo a nobreza de todas as reverências,<br />

a humildade de todas as genuflexões<br />

e o élan de alma de todas<br />

as orações que nos ritos orientais católicos<br />

se fazem de pé.<br />

“Honor”, falando da honra de<br />

Deus, que repercussões tem! A palavra<br />

honra, nas línguas que eu conheço,<br />

como no francês “honneur”,<br />

é sempre muito bonita. Mesmo nas<br />

línguas de origem não latina, como o<br />

alemão, “Ehre”, com h, porque sem<br />

h a palavra não valeria nada. É solene,<br />

superior, honorífica. Como é bonita<br />

honneur! E como é bonita honra!<br />

Algo do pulchrum da ideia da<br />

honra se musica na própria palavra.<br />

E eu tenho a seguinte impressão:<br />

que na linguagem que se perdeu na<br />

torre de Babel, mas que ainda vinha<br />

do Paraíso, as palavras musicavam os<br />

conceitos. E isso desapareceu para<br />

castigo nosso e deu nessa Babel em<br />

que vivemos. Mas isso cantado deveria<br />

ser assim: “salus”, uma profunda<br />

reverência; “honor”, um temor reverencial<br />

e um respeito; “gloria”, uma<br />

explosão diante da manifestação de<br />

Deus. Três estágios da representação<br />

da música.<br />

Agora, não sei como pronunciar<br />

essa palavra “Deo”, porque a palavra<br />

Deus é tudo: é inefável, é perfeita.<br />

Quem poderá musicá-la? Talvez<br />

os lábios da Santíssima Virgem e, assim<br />

mesmo, à maneira de uma criatura.<br />

Entretanto, podemos ter uma<br />

ideia. Ouve-se um pouco desse som<br />

no Evangelho quando Nosso Senhor<br />

reza: “Meu Pai.” Aí transparece algo<br />

da vida trinitária. Mas é algo, não<br />

conseguimos atingi-la.<br />

Em seguida cantam: “Patri omnipotenti”:<br />

Deus Pai; Pai, enquanto gera<br />

o Filho e procede d’Eles o Espírito<br />

Santo, mas também porque é Pai<br />

de todos nós. Depois de pronunciar a<br />

palavra inefável “Deus”, pronunciar<br />

a palavra “Pai” demonstra a intimidade,<br />

a junção, o afeto. Onipotente<br />

é uma exclamação que eu imaginaria<br />

quase militar da glória de Deus.<br />

Depois eu imaginaria uma cadência:<br />

“Auctor sæculi”; o tempo foi criado<br />

por Ele. Isso deixa ver uma eternidade<br />

misteriosa para trás e uma<br />

outra para frente. “Auctor”, Aquele<br />

que fez. E fez o quê? Os séculos,<br />

procissão grandiosa das centúrias<br />

andando pela História! Isso deve ser<br />

musicável.<br />

Para indicar bem o tamanho<br />

desses séculos, o cântico continua:<br />

Órgão da Basílica de Saint-Denis, Paris<br />

“qui erat, qui est et qui venturus est”<br />

– que foi, que é e que será. Abrange<br />

tudo, e, no fim, um misto de glória<br />

e de castigo: virá para julgar os<br />

vivos e os mortos. Encerram-se os<br />

séculos com chave de ouro. Acaba<br />

o tempo e o destino é eterno. Os<br />

bem-aventurados do sonho já estão<br />

julgados. Esperam no Céu apenas<br />

os seus próprios corpos. Isso é uma<br />

beleza!<br />

E termina “in sæcula sæculorum”,<br />

a melodia se esvai de repente e se dilui<br />

numa música diferente. v<br />

(Extraído de conferência de<br />

8/9/1979)<br />

Diliff(CC3.0)<br />

15


Flávio Aliança<br />

C<br />

alendário<br />

São Raimundo de Fitero<br />

1. São Raimundo, fundador<br />

(†1160). Abade do mosteiro de Fitero,<br />

Espanha. Fundou a Ordem de Calatrava<br />

e foi insigne defensor do Cristianismo.<br />

2. Apresentação do Senhor.<br />

São Lourenço, bispo (†619). Governou<br />

a Igreja de Cantuária, na Inglaterra,<br />

depois de Santo Agostinho e<br />

converteu à Fé cristã o Rei Edvaldo.<br />

3. São Brás, bispo e mártir (†320).<br />

São Leônio, presbítero (†s. IV).<br />

Segundo a tradição, foi discípulo de<br />

Santo Hilário de Poitiers.<br />

4. V Domingo do Tempo Comum.<br />

Santo Aventino, (†537). É venerado<br />

como auxiliar do Bispo São Lopo<br />

de Troyes.<br />

5. Santa Águeda, virgem e mártir<br />

(†c. 251).<br />

São Sabas, o Jovem, monge (†995).<br />

Durante a incursão dos sarracenos,<br />

junto com o seu irmão Macário, propagou<br />

incansavelmente a vida cenobítica<br />

nas regiões da Calábria e da Lucânia.<br />

6. São Paulo Miki e companheiros,<br />

mártires (†1597).<br />

dos Santos – ––––––<br />

Santa Rénula (ou Reinilde), abadessa<br />

(†s. VIII). Regeu o mosteiro de<br />

Eike, na região de Tongres, no Brabante<br />

da Austrásia, atualmente Bélgica.<br />

7. São João de Triora (Francisco<br />

Maria Lântrua), presbítero e mártir<br />

(†1816). De origem italiana, entrou<br />

aos 17 anos para a Ordem dos Frades<br />

Menores. Após ordenado sacerdote,<br />

ofereceu-se para as missões, sendo<br />

designado às regiões da China. Foi<br />

martirizado por enforcamento, em<br />

Changsha, cidade do Hunan.<br />

8. Santo Estêvão, abade (†1124).<br />

Fundador da Ordem de Grandmont.<br />

9. Beata Ana Catarina Emmerich,<br />

virgem (†1824). Religiosa agostiniana<br />

favorecida com grandes dons místicos.<br />

10. Santa Escolástica, virgem<br />

(†547).<br />

Beatos Pedro Fremond e cinco<br />

companheiras, mártires (†1794). Fuzilados<br />

durante a Revolução Francesa<br />

por sua fidelidade à Igreja Católica.<br />

11. VI Domingo do Tempo Comum.<br />

Nossa Senhora de Lourdes.<br />

12. Beata Umbelina, religiosa<br />

(†1136). Convertida dos prazeres do<br />

mundo por seu irmão São Bernardo<br />

de Claraval. Com o assentimento de<br />

seu esposo, entregou-se à vida monástica.<br />

Foi prioresa do mosteiro de<br />

Jully, na região de Troyes, na França.<br />

13. Beato Jordão de Saxônia, presbítero<br />

(†1237). Sucessor e imitador de<br />

São Domingos, propagou com intenso<br />

vigor a Ordem Dominicana; morreu<br />

em um naufrágio, próximo da costa<br />

da Palestina.<br />

14. Quarta-feira de Cinzas.<br />

São Cirilo, monge (†869) e São<br />

Metódio, bispo (†885).<br />

15. São Decoroso, bispo (†d. 680).<br />

Governou a diocese de Cápua, na Itália,<br />

durante trinta anos.<br />

Beato Miguel Sopocko, presbítero<br />

(†1975). Fundador das Irmãs de Jesus<br />

Misericordioso. Confessor de Santa<br />

Faustina Kowalska e grande propagador<br />

da devoção à Divina Misericórdia.<br />

Morreu em Bialystok, Polônia.<br />

16. Beata Filipa Maréri, virgem<br />

(†1236). Ao ouvir uma pregação de<br />

São Francisco de Assis, tomou-se de<br />

entusiasmo pela perfeição evangélica<br />

e decidiu desprezar os faustos do<br />

mundo para abraçar a forma de vida<br />

de Santa Clara, recém-estabelecida<br />

em sua terra.<br />

17. Sete Santos Fundadores dos<br />

Servitas. São eles: Bonfiglio Monardi,<br />

Bonaiuto Manetti, Amadio de Amadei,<br />

Ugoccio de Ugoccioni, Sostenio<br />

de Sosteni, Maneto d’Antela e Aleixo<br />

Falconieri. Eram comerciantes em<br />

Florença, mas retiraram-se de comum<br />

acordo para o Monte Senário, onde<br />

se consagraram ao serviço da Virgem<br />

Maria, fundando uma Ordem sob a<br />

Regra de Santo Agostinho. São comemorados<br />

todos nesse dia no qual,<br />

Beata Umbelina<br />

Flávio Lourenço<br />

16


––––––––––––––– * Fevereiro * ––––<br />

em 1310, segundo a tradição, morreu<br />

o último deles, Aleixo, já centenário.<br />

18. I Domingo da Quaresma.<br />

19. São Mansueto de Milão, bispo<br />

(†680). Combateu com ardor a heresia<br />

dos monotelistas.<br />

20. Santos Francisco (†1919) e Jacinta<br />

Marto (†1920).<br />

Cinco beatos mártires (†303). No<br />

tempo do Imperador Diocleciano,<br />

foram mortos em Tiro da Fenícia, no<br />

atual Líbano. Primeiro foram flagelados<br />

com azorragues em todo o corpo,<br />

depois desnudados, lançados à<br />

arena e atirados a vários gêneros de<br />

feras, manifestando sempre a mesma<br />

constância e firmeza. Permanecendo<br />

incólumes ao perigo das feras,<br />

foram finalmente passados ao fio da<br />

espada.<br />

21. São Pedro Damião, bispo e<br />

Doutor da Igreja (†1072).<br />

Beato Tomás Pormort, presbítero e<br />

mártir (†1592). No reinado de Isabel I<br />

da Inglaterra, foi torturado no cárcere<br />

por causa do seu sacerdócio; consumou<br />

o martírio no suplício da forca,<br />

junto à Catedral de São Paulo.<br />

22. Festa da Cátedra de São Pedro<br />

Apóstolo.<br />

São Maximiano, bispo (†556).<br />

Cumpriu com fidelidade o seu ministério<br />

pastoral e combateu contra os<br />

hereges pela unidade da Igreja.<br />

23. São Policarpo, bispo e mártir<br />

(†155).<br />

Beato Luís Mzyk, presbítero e<br />

mártir (†1942). Membro da Sociedade<br />

do Verbo Divino. Durante a ocupação<br />

militar na Polônia, foi assassinado<br />

pelos guardas do quartel militar,<br />

dando testemunho de Cristo até<br />

à morte.<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

24. Beato Tomás Maria Fusco,<br />

presbítero (†1891). Fundador do Instituto<br />

das Filhas da Caridade do Preciosíssimo<br />

Sangue.<br />

25. II Domingo da Quaresma.<br />

Santa Valburga, abadessa (†779).<br />

A pedido de São Bonifácio e dos seus<br />

irmãos São Vilebaldo e São Vinebaldo,<br />

foi da Inglaterra para a Alemanha,<br />

onde dirigiu excelentemente dois<br />

mosteiros, um de monges e outro de<br />

monjas.<br />

26. São Faustiniano, bispo (†s.<br />

IV). Dirigiu a diocese de Bolonha, na<br />

Emília-Romanha, região da Itália, no<br />

Beata Piedade da Cruz<br />

tempo de Diocleciano. Exímio pastor,<br />

pela pregação fortaleceu e fez crescer<br />

a comunidade sob seus cuidados, enfrentando<br />

com galhardia os tempos<br />

difíceis da perseguição.<br />

Beata Piedade da Cruz (Tomasina<br />

Ortiz Real), virgem (†1916). Fundou<br />

a Congregação das Irmãs Salesianas<br />

do Sagrado Coração de Jesus.<br />

27. São Gregório de Narek, monge<br />

e Doutor da Igreja (†1005). Evangelizador<br />

dos Armênios, ilustre pela doutrina,<br />

escritos e ciência mística.<br />

Santa Honorina<br />

Santa Honorina, virgem e mártir<br />

(†303). Segundo a tradição, foi martirizada<br />

em Mélamare, comuna francesa,<br />

e seu corpo foi atirado ao Rio<br />

Sena indo parar em Graville, onde<br />

foi recolhido e sepultado pelos cristãos.<br />

28. Beatos Gaspar Kizaemon e<br />

Maria Mine, mártires (†1627). Esposos,<br />

martirizados com outros companheiros,<br />

no Japão.<br />

29. Santo Hilário, Papa (†468). Sucessor<br />

de São Leão Magno no sólio<br />

pontifício, confirmou os concílios de<br />

Niceia, Éfeso e Calcedônia, defendendo<br />

a primazia da Sede Romana.<br />

Além de erigir um mosteiro dedicado<br />

a São Lourenço, edificou diversos<br />

oratórios, sendo um deles em honra a<br />

São João Batista, e zelou pela dignidade<br />

do culto.<br />

Beata Antônia de Florença, viúva<br />

(†1472). Fundadora e primeira abadessa<br />

do Mosteiro do Corpo de Cristo,<br />

com a observância da primeira Regra<br />

de Santa Clara.<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

17


O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

Flávio Aliança<br />

Maldição da ambiguidade,<br />

choque entre<br />

mentalidade e princípio - II<br />

Toda mentalidade encarna uma doutrina, a qual muitas vezes<br />

não é confessada e permanece oculta por detrás de princípios<br />

que a pessoa diz ter, mas não ousa praticar. Este choque entre<br />

princípios e mentalidade produz um abalo na personalidade.<br />

Aprofundemos no tema sobre<br />

doutrina e mentalidade.<br />

A mentalidade enquanto<br />

encarnação da doutrina<br />

Nós nos perguntamos: por detrás<br />

dessa poesia 1 , há uma mentalidade?<br />

Há uma doutrina? Que diferença há<br />

entre uma e outra? O que é doutrina<br />

e o que é mentalidade?<br />

Há pessoas, neste atual mundo de<br />

confusão, que julgam que o estudo<br />

da mera doutrina forma um homem<br />

e que não há necessidade de estudar<br />

a mentalidade. Outras têm a ilusão<br />

em sentido contrário, de que uma<br />

vez tomado conhecimento da mentalidade,<br />

não é preciso ser conhecedor<br />

da doutrina.<br />

Sabendo das relações entre ambas<br />

realidades, percebemos como uma<br />

completa a outra e como se deve ter<br />

as duas coisas. Porque toda mentalidade<br />

é, sob certo ponto de vista, a<br />

encarnação, a redução a sinais sensíveis<br />

de uma determinada doutrina.<br />

Qual é a doutrina que está posta<br />

nesse soneto? É a do comum de um<br />

gozador da vida, que fez o cálculo de<br />

prazer para seus dias.<br />

Gozadores da vida em oposição<br />

à mentalidade católica<br />

Exporei as doutrinas sobre a vida<br />

e a felicidade que convergem na<br />

mentalidade de um gozador.<br />

Viver consiste em ser feliz. Ora, se<br />

as grandes emoções são uma desventura,<br />

logo, a felicidade consiste em<br />

18


não as ter. Deve-se preparar<br />

para uma vida calma,<br />

em que o correr das<br />

horas sem emoção confere<br />

a própria felicidade.<br />

Isso é uma doutrina.<br />

Há outros gozadores<br />

que concebem o contrário:<br />

a felicidade está nas<br />

grandes emoções. Assim<br />

sendo, têm-se a necessidade<br />

das grandes aventuras,<br />

de sair correndo,<br />

galopar, imaginar.<br />

Quando as grandes emoções<br />

cessam, o indivíduo<br />

para de viver.<br />

Se fôssemos dizer<br />

a um desses indivíduos:<br />

“Você nega a cruz<br />

de Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo?” Ele responderá:<br />

“Absolutamente não!<br />

Eu tenho um lindo crucifixo<br />

dourado em minha<br />

casa e, às Sextas-<br />

-Feiras Santas, vou sempre<br />

à paróquia com a minha<br />

mulher e meus filhos. Todos osculamos<br />

a Santa Cruz. E até a mendiga<br />

a quem dou espórtulas me elogia:<br />

‘Que beleza ver toda sua família<br />

aos pés da cruz!’ Eu comentei com<br />

minha mulher: ‘Aos pés da cruz, aos<br />

pés da cruz… que bonito!’”<br />

No entanto, esses homens constituem<br />

os dois tipos de almas mundanas,<br />

cuja doutrina é diametralmente<br />

oposta à que São Luís Grignion<br />

de Montfort denomina como a mentalidade<br />

e a doutrina dos amigos da<br />

Cruz.<br />

Ao verdadeiro católico não importa<br />

gozar, importa servir. Ele está<br />

nos antípodas dos dois gozadores,<br />

porque guia-se pela verdadeira<br />

doutrina de viver para amar, louvar<br />

e servir a Deus nesta Terra e dar-Lhe<br />

glória por toda a eternidade no Céu.<br />

A felicidade sem nuvens não existe<br />

para o homem neste vale de lágrimas<br />

e não seriam as grandes nem as<br />

pequenas emoções que lha confeririam.<br />

A única existência que não<br />

é insuportável é a do católico, que<br />

tem sua vida lançada a tudo quanto<br />

a Providência permite e dispõe. Será<br />

uma grande ou uma pequena emoção,<br />

será o acontecimento que for,<br />

Flávio Lourenço<br />

ele cumpre com seu dever<br />

e, tendo-o cumprido,<br />

ele viveu.<br />

E o que vem a ser<br />

mentalidade? Qual é a<br />

diferença que há entre<br />

ela e a doutrina?<br />

O homem é um<br />

colecionador de<br />

símbolos de sua<br />

mentalidade<br />

Mentalidade é o estado<br />

de um homem que<br />

ajustou toda a sua pessoa<br />

à doutrina que sustenta:<br />

todo o sentir, o<br />

modo de ser, tudo quanto<br />

faz, o ambiente que<br />

cria. Ele é um símbolo<br />

vivo de sua doutrina, é<br />

um colecionador de símbolos<br />

e constitui em torno<br />

de si um ambiente-<br />

-símbolo, e canta depois<br />

aquilo que simbolizou…<br />

Esse é o homem que tem mentalidade.<br />

No caso do poeta, ele tem uma<br />

convicção doutrinária que deixa<br />

transparecer. Ora, não se trata apenas<br />

de uma explicação verbal, mas<br />

todo seu ser, todo seu temperamen-<br />

Jaan Künnap(CC3.0)<br />

19


O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

to, sua sensibilidade, seu estilo de vida<br />

e todos seus hábitos transmitem<br />

uma doutrina e estão ajustados a ela.<br />

Cercado dos símbolos, ele compõe<br />

ainda uma poesia a fim de fazer outros<br />

sentirem a gostosura do que ele<br />

experimenta.<br />

O espírito humano precisa conhecer<br />

a verdade e a virtude inteiras<br />

dentro da doutrina, mas esta deve<br />

ser tornada para ele cognoscível<br />

em todos seus aspectos, de modo a<br />

que toda sua pessoa assimile a doutrina<br />

quando, por exemplo, ele entra<br />

num ambiente cercado de símbolos.<br />

Deus dispôs que o homem formasse<br />

sua mentalidade assim.<br />

Para isso a Igreja foi constituída<br />

Mestra da Revelação, para garantir<br />

que chegasse a todos os povos o conhecimento<br />

da verdade. Mas ela depois<br />

promoveu a liturgia, as cerimônias,<br />

os templos, como ambientação<br />

para a prática da doutrina e para se<br />

ter horror ao que é lhe oposto.<br />

Assim é que a doutrina forma a<br />

mentalidade. Ou é isto, ou o indivíduo<br />

adere a uma doutrina e tem a<br />

mentalidade formada de outra maneira.<br />

Como pode haver essa contradição?<br />

Dou alguns exemplos.<br />

Doutrina sem mentalidade,<br />

mentalidade sem doutrina<br />

O escritor fala em partilha, o que<br />

supõe, portanto, que se tenham herdado<br />

bens. Imaginemos que ele tenha<br />

recebido de seu trisavô um velho<br />

romance de Cavalaria, um bonito livro<br />

das primeiras encadernações.<br />

Ele não lê, mas guarda-o em casa,<br />

porque acha interessante ter sobre a<br />

mesa de um de seus salões.<br />

Esse homem tem um neto que nas<br />

horas vagas vai brincar em sua casa,<br />

e como ele reputa o avô supremamente<br />

sem graça, começa a ler o romance<br />

de Cavalaria. O menino, que<br />

gosta do livro, pode até entusiasmar-<br />

-se com a história, mas, habituado à<br />

casa do avô e à casa do pai formado<br />

pelo avô, ele não viverá o espírito de<br />

Cavalaria. Neste caso, ele tem a doutrina,<br />

não tem a mentalidade.<br />

Há pessoas que gostam de assistir<br />

a romances ou novelas policiais. Se a<br />

novela é reproduzida às onze da noite,<br />

por exemplo, elas trancam bem<br />

a casa antes, sentam-se na poltrona<br />

mais cômoda; conforme o nível,<br />

põem-se de chinelos e ligam a televisão<br />

pouco antes do horário para pegarem<br />

a narrativa inteira, e a acompanham<br />

com uma torcida única.<br />

Acaba a sessão, todos se retiram,<br />

tomam um copo de água ou de leite,<br />

vão com calma para o quarto dormir,<br />

pensando como acabará o ca-<br />

Samuel Holanda<br />

Mosteiro da Batalha, Portugal<br />

20


Flávio Lourenço<br />

so da moça aflita que ficou pendurada<br />

num fio de eletricidade, prestes a<br />

cair na rua. Deitam-se e dormem um<br />

sono monumental.<br />

Uma pessoa assim pode até encantar-se<br />

doutrinariamente com o<br />

risco enquanto sendo um ornato da<br />

vida, e gosta inclusive de vê-lo na vida<br />

do outro. Mas... em sua vida, ela<br />

mesma não quer riscos, porque não<br />

tem aquela mentalidade e sim a do<br />

Plantin 2 .<br />

E a pessoa sofre uma contradição<br />

interna, a qual tona-se fonte<br />

de mal-estar. Mas ninguém há que<br />

não tenha uma mentalidade segundo<br />

uma certa doutrina. Pode-se estar<br />

dividido entre duas doutrinas<br />

distantes, mas alguém a-doutrinário<br />

não existe.<br />

O explícito vazio e o<br />

implícito envergonhado<br />

Conhecer a doutrina não basta.<br />

Quantos há no Inferno que conheceram<br />

a verdade, entretanto não amoldaram<br />

sua mentalidade.<br />

Alguém dirá: “Mas uma pessoa<br />

nunca será capaz de explicitar isso.”<br />

Quem tem a mentalidade assim não<br />

se incomoda em explicitar,<br />

isso já seria parte do pensamento;<br />

ela gosta de ser.<br />

E esse tipo de mentalidade,<br />

que vive à margem de<br />

sua própria doutrina, até<br />

prefere não explicitar nada,<br />

para não se comprometer.<br />

Voltando ao exemplo<br />

imaginário do rapazinho<br />

lendo o Amadís de Gaula<br />

3 , imaginemos que ele,<br />

enquanto faz a leitura, se<br />

regala em tomar uma coalhada<br />

deliciosa que a<br />

avó lhe preparou. Depois<br />

ele vai passear debaixo<br />

das espaldeiras pensando<br />

consigo: “Como o vovô<br />

é um colosso! Ninguém<br />

o amola.” E o avô lhe diz: “Meu filho,<br />

aprenda comigo. Ah! Vida<br />

sossegada é isso!”<br />

O rapaz percebe de modo<br />

confuso que, se explicitar<br />

a doutrina, ele tem um choque;<br />

então, se há algo que ele<br />

não quer é que as coisas lhe<br />

fiquem claras. É a convivência<br />

vergonhosa de um explícito<br />

vazio com um implícito envergonhado.<br />

Esse é o estado<br />

de espírito.<br />

Se a pessoa não explicita e<br />

persiste em não explicitar, em<br />

determinado momento a Providência<br />

a chama. E Deus,<br />

que odeia a mentira e odeia<br />

que se fechem os olhos para a<br />

verdade, sobretudo a verdade<br />

interior, vem com um castigo.<br />

Começa uma vida ordenada<br />

pela Providência, que<br />

dá esbarrões para convidar a<br />

pessoa à explicitação. Ou poderá<br />

acontecer de a pessoa,<br />

de repente, rachar. Comete<br />

uma infâmia, cai em si: “Isso<br />

eu não deveria ter feito…<br />

agora não tem remédio”, e se<br />

desespera.<br />

Choque de mentalidades;<br />

Judas e o moço rico<br />

Com Judas não terá havido um<br />

processo assim?<br />

Ele foi afundando meio subconscientemente;<br />

em certo momento rouba<br />

um dinheiro do caixa dos Apóstolos.<br />

Ora, onde está Nosso Senhor o<br />

caixa não é de ninguém, porque tudo<br />

é d’Ele. Judas rouba um valor, gasta-o<br />

na ideia de repor depois; mas para isso<br />

roubará outra vez, fazendo um negocinho<br />

para dar o lucro da reposição<br />

e para ele poder tomar mais um trago<br />

de vinho; o negocinho, entretanto, dá<br />

errado e ele desanima de pagar.<br />

Ele começa a ficar com nó, porque<br />

São Pedro percebeu a coisa e<br />

começa a olhar feio; ele fica inseguro<br />

na presença de Nosso Senhor e o<br />

processo segue seu curso. Em cer-<br />

Judas no Horto das Oliveiras - Museu<br />

Nacional Bávaro, Munich<br />

Flávio Lourenço<br />

21


O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

Nosso Senhor com o moço rico - Igreja de São Vendelino, Saint Henry, EUA<br />

to momento, ele planeja<br />

a traição… É a<br />

maldição da ambiguidade!<br />

Ele foi iludindo-se<br />

a si próprio,<br />

iludindo-se, iludindo-se,<br />

iludindo-se.<br />

São as mentalidades<br />

cujos princípios<br />

não se ousa confessar,<br />

ao mesmo tempo<br />

em que se confessa<br />

princípios os quais<br />

não se ousa praticar.<br />

Aqui está o choque<br />

mentalidade-princípio.<br />

Outro exemplo é o<br />

fato do moço rico do<br />

Evangelho. Ele encontrou-se<br />

com o Divino<br />

Mestre e perguntou<br />

o que deveria<br />

fazer para ser perfeito,<br />

e recebeu a<br />

resposta de que era<br />

preciso observar os<br />

Mandamentos. O jovem<br />

respondeu que<br />

os praticava desde a<br />

mocidade. Nosso Senhor<br />

olhou para ele,<br />

amou-o, quis-lhe bem<br />

e disse: “Uma só coisa<br />

te falta: vai, vende<br />

tudo o que tens e dá-<br />

-o aos pobres, e terás<br />

um tesouro no Céu.<br />

Depois vem e segue-<br />

-Me” (Mt 19, 21).<br />

O moço, entretanto,<br />

tinha uma ambiguidade<br />

fundamental:<br />

ele queria ser<br />

perfeito continuando<br />

a ser ele mesmo, visto numa lupa<br />

de aumento. Contudo, Nosso Senhor<br />

pedia-lhe que fosse diferente e seguisse<br />

o caminho da prova e da luta,<br />

e não o caminho cômodo da riqueza.<br />

Ele era rico, virtuoso, é verdade –<br />

dentro das comodidades da opulência,<br />

algum mérito ele tinha, porque<br />

a riqueza traz muitas solicitações<br />

para o pecado –, mas ele evitava as<br />

dificuldades específicas de quem<br />

passa pela pobreza ou pelos reveses<br />

da vida. Ora, Nosso Senhor queria<br />

que ele tivesse também a auréola<br />

Nheyob(CC3.0)<br />

dessas lutas, porque<br />

para ser perfeito é<br />

preciso ter experimentado<br />

várias formas<br />

de dificuldades<br />

e tentações. No entanto,<br />

ao ouvir aquelas<br />

palavras, ele retirou-se<br />

cheio de tristeza…<br />

O que houve no<br />

fundo dessa atitude?<br />

Houve que a mentalidade<br />

e a doutrina<br />

dele estavam fundadas<br />

numa visualização<br />

errada de perfeição.<br />

Quando Nosso<br />

Senhor lhe enunciou<br />

a verdade, houve<br />

um choque total entre<br />

doutrina e personalidade,<br />

e ele afundou…<br />

Pareceu-me necessário<br />

dar todas estas<br />

explicações para<br />

realçar a distinção<br />

entre mentalidade<br />

e doutrina, e para<br />

compreendermos<br />

quão preciosa é uma<br />

formação que transmite<br />

ambas as coisas.<br />

O mais difícil, entretanto,<br />

é justificar a<br />

necessidade de uma<br />

formação por meio<br />

da mentalidade. v<br />

(Extraído de<br />

conferência de<br />

12/6/1981)<br />

1) Comentada no número anterir, pp. 14-17.<br />

2) Christophe Plantin (*1514 - †1589).<br />

Editor e humanista neerlandês. Autor<br />

da poesia acima mencionada.<br />

3) Obra da literatura medieval espanhola,<br />

um dos mais famosos romances de<br />

Cavalaria.<br />

22


Eco fidelíssimo da Igreja<br />

J.P. Ramos<br />

Premiados, à medida<br />

do próprio Deus!<br />

Quando nesta Terra a vida<br />

estiver dura, o peso da fidelidade,<br />

da luta contra as tentações,<br />

dos problemas, das provações<br />

axiológicas parecerem desmentir<br />

a promessa, lembremo-nos<br />

de que a Santíssima Virgem<br />

tudo computa e, na Jerusalém<br />

Celeste, Deus premiará todos<br />

os atos de seus eleitos.<br />

Esta exposição se prende à<br />

ideia central de considerarmos<br />

o quanto tudo é grande<br />

na presença de Deus. Ele é infinitamente<br />

grande e qualquer ato, por<br />

menor que seja, praticado em presença<br />

ou em função d’Ele tem enorme<br />

importância. Também o menor<br />

pecado e o menor ato de virtude –<br />

para consolação nossa! – têm uma<br />

importância enorme.<br />

Os grandes ou os<br />

pequenos atos de virtude<br />

serão premiados<br />

O que é um ato de virtude pequeno?<br />

Não me refiro a um ato de<br />

pequena virtude, o que também teria<br />

valor, porque Deus conta tudo.<br />

Como no Inferno Ele castiga a<br />

menor culpa, no Céu premia tudo,<br />

cuidadosa e generosamente, até os<br />

atos em que o nível de virtude foi<br />

menor.<br />

Quando chegar a hora de premiar,<br />

Ele premiará de modo superlativo<br />

a menor das coisas que tenhamos<br />

feito, ainda mais quando sob<br />

os auspícios e o bafejo de Nossa Senhora.<br />

Inclusive premiará as coisas<br />

pequenas das quais nós não tínhamos<br />

consciência e, às vezes até,<br />

com predileção, as coisas que fizemos<br />

sem medir o que estávamos fazendo.<br />

Imaginemos uma pessoa enferma.<br />

Se um enfermeiro é muito dedicado<br />

e faz cada coisa com cuidado, pensando:<br />

“Como me é grato ser dedicado<br />

para com este doente!” Porém, se<br />

o empenho de um outro enfermeiro<br />

em tratar for maior, a ponto de não<br />

se dar conta que está sendo tão dedicado,<br />

mas apenas se preocupando<br />

com o bem do doente... às vezes<br />

passa uma noite em claro, faz isso ou<br />

aquilo sem se dar conta do que está<br />

fazendo..., a qual dos dois o doente<br />

vai pagar mais? É claro que ao segundo,<br />

porque esse nem tem noção<br />

de estar ganhando um mérito, ele<br />

quer o bem do doente. Contanto que<br />

o doente sare, o resto para ele é secundário.<br />

Celestialmente premiados<br />

Os atos de virtude, de abnegação<br />

ou de sacrifício que nós fazemos, a<br />

respeito dos quais nós nem cogita-<br />

23


Eco fidelíssimo da Igreja<br />

Flávio Lourenço<br />

Às vezes é uma coisinha qualquer<br />

que passa. Quando chegar a hora, no<br />

Céu, nós vamos receber isso magnificamente<br />

multiplicado! Nem calculamos,<br />

mas vamos receber cada um<br />

desses prêmios – se eu pudesse me<br />

exprimir dessa maneira – à la Céu.<br />

Será um grau a mais na visão beatífica<br />

e na felicidade, vendo a Deus face<br />

a face. Mas, ao mesmo tempo, será<br />

eterno. Um sacrificiozinho de um<br />

momento, um gesto de um instante,<br />

os nossos Anjos registram, Nossa Senhora<br />

oferece a Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo e nos valerão um gáudio pela<br />

eternidade das eternidades, eterníssimas!<br />

Se pudéssemos ouvir o eco no<br />

qual se simbolizaria este pequeno<br />

grau a mais de felicidade, ficaríamos<br />

inundados de gáudio. De tal forma<br />

no Céu, meticulosamente, tudo é pesado<br />

no conspecto da infinita seriedade<br />

de Deus.<br />

De outro lado, a misericórdia<br />

d’Ele se derrama insondavelmente<br />

sobre os homens, de maneira a<br />

cobri-los e lhes dar muito mais do<br />

que tinham merecido. Esse “muito<br />

mais”, Nosso Senhor o disse naquela<br />

frase que eu gosto de repetir<br />

porque acho incomparável:<br />

“Serei Eu mesmo<br />

a vossa recompensa demasiadamente<br />

grande” (cf.<br />

Gn 15, 1).<br />

Essa recompensa não é<br />

só para as coisas enormes,<br />

é também para as pequenas.<br />

As pequenas coisas ficarão<br />

cheias, túmidas de<br />

recompensa, quando chegar<br />

a hora de recebermos<br />

a coroa preparada para cada<br />

um de nós desde toda a<br />

eternidade.<br />

Os últimos momentos<br />

do mundo<br />

A enferma - Museu Nacional de Arte da Catalunha, Barcelona<br />

mos, nem pensamos, são, a esse título,<br />

muitas vezes os mais amados por<br />

Nossa Senhora.<br />

Poderá haver alguém que, durante<br />

esta conferência, esteja um pouco<br />

indisposto, com vontade de ir embora;<br />

um outro não consegue ver bem o<br />

expositor porque tem pessoas na sua<br />

frente; a um outro lhe assalta o sono,<br />

muitas vezes involuntário, orgânico.<br />

Nenhum deles pensa no prêmio que<br />

irá ter no Céu, mas pensa em permanecer<br />

até o fim. Ninguém sabe e nem<br />

pensa no mérito. Mas isto, que é tão<br />

pouco – às vezes pode ser muito – tudo<br />

isto está escrito no Livro da Vida.<br />

E quando vier o dia do prêmio, tudo<br />

será contado, ponto por ponto, meticulosamente.<br />

Nós nos espantaremos diante das<br />

coisas que fizemos sem ter uma noção<br />

concreta de seu valor, de que era<br />

um ato de virtude, mas apenas o realizamos<br />

levados pela noção difusa<br />

de que aquilo era bom e conforme<br />

a Nossa Senhora e, portanto, resultou<br />

na glorificação d’Ela e no esmagamento<br />

da Revolução. Por essa<br />

simples ideia difusa, nós já seremos<br />

enormemente premiados.<br />

No Céu há brisas, há misericórdias,<br />

há deleites. A<br />

alegria da alma que entra no Céu é<br />

algo inenarrável!<br />

Como, a meu ver, certos fatos culminantes<br />

só se podem conhecer, por<br />

assim dizer, filmando em câmara<br />

lenta, eu tratarei dos últimos acontecimentos<br />

da humanidade numa ordem<br />

histórica, baseando-me em comentários<br />

de autores como São Tomás<br />

de Aquino e Cornélio a Lápide.<br />

Por ocasião do fim do mundo restarão<br />

os últimos homens fiéis que não<br />

morrerão e irão se incorporar diretamente<br />

à corte celeste. Quando começarem<br />

os castigos e o extermínio<br />

do mundo, esses homens estarão no<br />

auge da aflição. Um auge tal que, ao<br />

que parece – tirando as dores de Nossa<br />

Senhora, não comparáveis com nada<br />

e, bem entendido, as de Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo –, excetuando essas<br />

dores, ninguém sofreu tanto, nem sofrerá<br />

até o fim do mundo, quanto esses<br />

justos que até lá viverão.<br />

Depois da ressureição dos mortos,<br />

a Jerusalém Celeste se apresentará<br />

ao conhecimento dos homens<br />

que estiverem na Terra, já então<br />

dos fiéis sobreviventes e dos<br />

ressuscitados.<br />

24


A Jerusalém Celeste<br />

O que é a Jerusalém Celeste? Nós<br />

podemos dar um exemplo: a cidade<br />

de São Paulo mede tantos quilômetros<br />

quadrados. O que quer dizer isto?<br />

Entende-se aqui como o conjunto<br />

de casas e de logradouros públicos,<br />

de praças, de ruas, que integram<br />

a cidade. Mas eu posso também dizer:<br />

“São Paulo inteira exultou!” Ou:<br />

“São Paulo inteira se entristeceu com<br />

tal ou tal outro fato.” As casas não<br />

exultam nem podem entristecer-se. A<br />

cidade de São Paulo, nesse caso, representa<br />

a população. E isto vale para<br />

qualquer cidade do mundo.<br />

Jerusalém era a capital do povo<br />

eleito, a cidade do amor de Deus, da<br />

escolha predileta feita por Deus. Ali<br />

havia sido construído o Templo. Era<br />

a cidade onde Davi reinou, onde<br />

irradiou sua virtude; onde, hélas,<br />

pecou! Ali recitou os salmos<br />

penitenciais, chorou<br />

e sofreu, pediu e obteve o<br />

perdão.<br />

Em Jerusalém, Salomão,<br />

a esplêndida prefigura<br />

de Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo, reinou e espalhou<br />

sua glória sobre toda<br />

aquela parte da bacia do<br />

Mediterrâneo e da Ásia.<br />

Depois, Salomão pecou<br />

e o povo começou a decair,<br />

mas Verbum caro<br />

factum est, et habitavit in<br />

nobis!<br />

Em Jerusalém, Nosso<br />

Senhor, menino, foi<br />

encontrado no Templo.<br />

Em Jerusalém, em<br />

Jerusalém, em Jerusalém…<br />

Em Jerusalém<br />

Ele foi traído.<br />

Em Jerusalém dormiram<br />

os Apóstolos.<br />

Em Jerusalém Ele<br />

suou sangue.<br />

Em Jerusalém Ele<br />

disse: “Ego sum!”<br />

Flávio Lourenço<br />

Em Jerusalém Ele sofreu. Em Jerusalém<br />

Ele gemeu.<br />

Em Jerusalém Ele Se encontrou<br />

com Nossa Senhora durante a Via<br />

Sacra.<br />

Em Jerusalém Ele deu o brado<br />

trágico e lancinante: “Meu Deus,<br />

meu Deus! Por que me abandonastes?”<br />

Em Jerusalém Ele disse: “Consummatum<br />

est”.<br />

Em Jerusalém a Virgem sofreu a<br />

punhalada terrível do “Consummatum<br />

est”.<br />

Em Jerusalém Ele ressurgiu dos<br />

mortos com toda sua glória.<br />

Juízo Final - Antiga Pinacoteca, Munich<br />

Perto de Jerusalém Ele subiu aos<br />

Céus.<br />

Quantas glórias em Jerusalém!<br />

É claro que a Escritura fala da<br />

Jerusalém terrestre. E quando quer<br />

falar do Céu, Deus com seus Anjos<br />

e seus Santos – embora não esteja<br />

mencionado o nome por excelência<br />

mencionável de Nossa Senhora,<br />

na cabeça dos Anjos e dos Santos,<br />

ligada a Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo, a cabeça do Corpo Místico e<br />

Deus Verdadeiro, e a obra-prima da<br />

Criação – quando se fala da Jerusalém<br />

Celeste, fala-se dos habitantes<br />

do Céu, antes de tudo, que é toda a<br />

corte celeste.<br />

A Jerusalém Celeste é uma sociedade<br />

de pessoas, mas é também um<br />

lugar físico onde se encontrarão os<br />

corpos ressurrectos daqueles que foram<br />

levados ao Céu.<br />

Uma luz que transforma<br />

Então, a Jerusalém Celeste<br />

se abre para os olhos daqueles<br />

que estão ressurrectos e<br />

baixa para os assumir. Mas,<br />

esse “baixar” não significa<br />

que o Céu Empíreo vai<br />

descer, nem que as pessoas<br />

que estão no Céu<br />

vão sair dele; é uma outra<br />

coisa: a luz dessa Jerusalém<br />

começará a incidir<br />

sobre os homens. Será<br />

uma luz comparável<br />

à luz do Sol que quando<br />

desce à Terra torna-<br />

-a resplandecente e dá-<br />

-lhe uma beleza que, de<br />

si, sem ele, as suas coisas<br />

não têm.<br />

Assim também, quando<br />

a luz da Jerusalém<br />

Celeste, ou seja, das almas<br />

santas, daquelas<br />

que estão na visão beatífica,<br />

quando a luz física,<br />

do lugar físico chamado<br />

Céu Empíreo baixar sobre<br />

a Terra, esta estará<br />

25


Eco fidelíssimo da Igreja<br />

Tomas T. / J.P.Ramos<br />

toda iluminada de um modo magnífico,<br />

como nós não calculamos!<br />

E eu me lembro aqui de uma frase<br />

do Rostand 1 , no Chantecler, quando<br />

o galo saúda o Sol: “Ó Sol, sem<br />

o qual as coisas não seriam senão o<br />

que elas são!” É verdade. Às vezes o<br />

Sol bate sobre uma parede leprosa,<br />

toda rachada – isso eu vi –, um muro<br />

de taipa velho. Quando não se possui<br />

bem o espírito da tradição, tem-<br />

-se a impressão de que seria melhor<br />

derrubá-lo; entretanto, olha-se para<br />

ele e vê-se o Sol bater ali; parece que<br />

aquilo se enobrece! A coisa velha se<br />

La Virgen Blanca (coleção particular)<br />

povoa da beleza da luz e da beleza<br />

das sombras.<br />

É algo que eu tive ocasião de<br />

constatar. As deformações de um<br />

muro, um pouco abaulado, da taipa<br />

que nem sempre é inteiramente<br />

regular, as pequenas saliências que<br />

se abrem entre milímetro e milímetro,<br />

conforme o ponto de incidência<br />

da luz, fazem sombrinhas ou fazem<br />

pontos, minúsculos montezinhos,<br />

onde por coincidência brilha<br />

um pouco de mica, de malacacheta,<br />

qualquer coisa, e é uma espécie<br />

de montanhazinha luminosa, minúscula,<br />

que se pode apreciar ali. O Sol<br />

bate e aquilo se transforma.<br />

A Terra será purificada pela<br />

luz da Jerusalém Celeste<br />

Imaginem o que será a Terra<br />

quando o Céu Empíreo com a corte<br />

celeste se abrirem e todas essas<br />

luzes se derramarem sobre os ressurrectos,<br />

e eles começarem assim<br />

a receber os primeiros afagos de<br />

Deus! É a prelibação da eternidade<br />

sem fim! Eles já sabem que estão<br />

salvos. Eles viram Deus face a face<br />

e não perderam essa visão por nenhum<br />

instante. Agora eles veem a<br />

Terra purificada, transformada, embelezada<br />

por mil formas de formosura<br />

com que eles nem sonhavam!<br />

E se sentem completamente transformados.<br />

Para dar um exemplo, eu, que<br />

sou pouco matutino e pouco florestal,<br />

lembro-me de uma madrugada<br />

a que assisti, num dos lugares<br />

mais bonitos do mundo, o Flamengo,<br />

no Rio de Janeiro, do alto<br />

do Hotel Regina, onde estava hospedado.<br />

Fiquei decepcionado, porque<br />

foi um alvorecer plúmbeo, mas<br />

observei uma coisa interessante: durante<br />

a madrugada, não sei como, e<br />

sem os carros da limpeza pública, a<br />

cidade e o panorama todo foram se<br />

purificando. A cidade dorme suja,<br />

e as paredes, as árvores, as aves, as<br />

coisas parecem que são limpas durante<br />

a noite, por um misterioso orvalho;<br />

de manhã, quando a cidade<br />

acorda, tem-se a impressão de que<br />

ela tem viço.<br />

Isso é uma pequena imagem do<br />

que será o acordar do mundo purificado<br />

pela chama da cólera de Deus,<br />

que exterminou tudo quanto deveria<br />

exterminar e apresentará o mundo<br />

com o seu aspecto definitivo e eterno.<br />

Não sei se chamo isso de poema.<br />

Mas o poema do carinho de Deus<br />

começa!<br />

26


Deus e Nossa<br />

Senhora enxugarão<br />

as nossas lágrimas<br />

Deus não só vai inundar os homens<br />

de felicidade, mas vai consolá-<br />

-los pelas infelicidades que tiveram<br />

durante a vida e que foram segundo<br />

Ele. Assim como uma mãe que vê<br />

a criança chorar enxuga-lhe as lágrimas<br />

e pode osculá-la onde sente dor,<br />

ou próximo aos olhos, assim também<br />

Deus fará com cada sofrimento que<br />

cada homem tenha tido por causa<br />

d’Ele.<br />

Quando nesta Terra a vida estiver<br />

dura, o peso da fidelidade, da luta<br />

contra as tentações, dos problemas,<br />

das provações axiológicas – oh, provação<br />

axiológica! – quando tudo isso<br />

pesar sobre nós, pensemos: “Um dia<br />

as mãos alvíssimas de Maria Santíssima<br />

pousarão sobre aquilo de meu<br />

corpo que sofreu o reflexo desse tormento<br />

de alma; mas muito mais do<br />

que isso, eu terei de Nossa Senhora<br />

um sorriso, terei um afago: ‘Meu<br />

filho, eu te consolo por isto’. E isso<br />

durará eternamente!”<br />

Um olhar d’Ele é um Céu!<br />

Quanto qualquer um de nós daria<br />

para receber um olhar de Nosso<br />

Senhor Jesus Cristo! O olhar que<br />

Ele deu a São Pedro era um olhar<br />

de tristeza e de reprovação, mas como<br />

nós gostaríamos de receber esse<br />

olhar! Quanto e quanto!<br />

Eu creio que os dois mais belos<br />

olhares d’Ele tenham sido para<br />

Nossa Senhora, logo que Ele nasceu<br />

e o último olhar antes de morrer.<br />

Como terão sido? O que se pode<br />

imaginar do olhar de Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo? Não há palavras<br />

que possam descrever! Um olhar<br />

d’Ele é um Céu! Considerem um<br />

pouco o Santo Sudário de Turim,<br />

onde as pálpebras estão baixas, mas<br />

nas quais se vê o olhar. Imaginem<br />

aquele olhar pousando sobre nós e<br />

nós nos lembrando desta ou daquela<br />

ocasião em que sofremos por Ele,<br />

e Ele nos diz: “Meu filho, naquela<br />

hora sofreste por Mim. Agora olho-<br />

-te, afago-te, osculo-te. Eu te amo<br />

naquele estado de tua alma. Eu te<br />

amo assim!”<br />

Aí se compreende a loucura que é<br />

deixar de fazer o menor ato de virtude.<br />

Ou de deixar de fazer tão perfeitamente<br />

quanto se possa fazer. Porque<br />

não há, nesta Terra, nada que<br />

nos possa dar a ideia do que será esse<br />

olhar! O que possa ser a expressão<br />

e o valor de um olhar d’Ele? Nós não<br />

temos ideia!<br />

Como a esposa ornada<br />

para o esposo<br />

Nesse primeiro momento, Deus<br />

consolará especialmente os homens<br />

que viverão no fim do mundo, pois<br />

eles terão de sofrer tanto e tanto,<br />

que ninguém alcança imaginar. Esses<br />

serão inundados de gáudio e de<br />

consolação por causa daqueles sofrimentos<br />

especiais de fim de mundo,<br />

que serão parecidos, nunca iguais,<br />

com os sofrimentos da própria Crucifixão.<br />

E serão glorificados com<br />

uma glorificação cheia de alegria e<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> durante conferência em 1981<br />

de brilho como Nosso Senhor na sua<br />

Ressurreição gloriosa, com o Corpo<br />

sagrado todo refulgindo e brilhando<br />

em todas as suas cicatrizes.<br />

Para dar inteiramente uma ideia<br />

desta beleza da Jerusalém Celeste<br />

que desce, São João, no Apocalipse,<br />

usa uma comparação linda. Estará<br />

toda a Jerusalém Celeste pronta<br />

para os homens, enfeitada por Deus<br />

como se enfeita uma esposa quando<br />

vai ao encontro do esposo: “Eu<br />

vi descer do céu, de junto de Deus, a<br />

Cidade Santa, a nova Jerusalém, como<br />

uma esposa ornada para o esposo”<br />

(cf. Ap 21, 2).<br />

Uma noiva vai ao altar com todas<br />

as joias da família, com os mais belos<br />

trajes, com toda a pompa esponsalícia;<br />

assim também virá ao encontro<br />

dos homens a Jerusalém Celeste<br />

no seu todo e, mais especialmente, o<br />

Céu Empíreo!<br />

v<br />

(Extraído de conferência<br />

de 2/1/1981)<br />

1) Edmond Eugène Alexis Rostand<br />

(*1868 - †1918). Poeta e dramaturgo<br />

francês.<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

27


Hagiografia<br />

Esplendor de renúncia para<br />

dar força à palavra de Deus<br />

No púlpito, o capuchinho era o pregador indômito, representando<br />

a renúncia a tudo aquilo a que as pessoas podiam ter apego. No<br />

confessionário, era a própria expressão do confessor perfeito:<br />

leão contra o pecado e cordeiro em relação ao pecador.<br />

Flávio Lourenço<br />

Infelizmente, sobre São José<br />

de Leonissa não tenho os dados<br />

biográficos.<br />

Recebemos de presente, de Roma,<br />

uma teca com as relíquias de todos<br />

os Santos capuchinhos para deixar<br />

em nossa capela. Comentando<br />

esse Santo, fazemos uma menção de<br />

todos os Santos cujas relíquias estão<br />

ali e, de maneira especial, uma referência<br />

a São José de Leonissa.<br />

Poder-se-ia perguntar por que a referência,<br />

se temos com esse Santo uma<br />

ligação que parece puramente circunstancial,<br />

como é o fato de alguém nos<br />

ter presenteado a relíquia dele.<br />

Entretanto, o “puramente circunstancial”<br />

não existe nestas matérias.<br />

E se a Providência dispôs ter em<br />

nossa capela a relíquia desse Santo,<br />

Ela tem com isso desígnios de que<br />

ele nos proteja.<br />

Um Santo desconhecido<br />

Quem foi este Santo? O que ele<br />

fez durante a vida? Como deu glória<br />

a Deus?<br />

A resposta é um ato de fé. Sabe-<br />

-se que foi um Santo. O que ele fez?<br />

Coisas excelentes. Como? Eu não<br />

sei, mas a Santa Igreja o definiu com<br />

a sua infalibilidade: José de Leonissa<br />

é um Santo.<br />

Dele sei apenas uma coisa, mas isto<br />

basta para saber todo o necessário.<br />

Primeiro: ele foi um Santo. Segundo:<br />

foi capuchinho. O que é ser<br />

um Santo capuchinho? Quais os traços<br />

dos capuchinhos na história da<br />

Igreja? E o que diz à alma de um católico<br />

o fato de um Santo ter sido capuchinho?<br />

A Ordem Franciscana<br />

e suas ramificações<br />

A Ordem Franciscana, que é uma<br />

das maiores famílias espirituais surgidas<br />

na Igreja, nasceu do zelo e da<br />

missão de um homem incomparável<br />

como foi São Francisco de Assis.<br />

Ele amou tanto a Nosso Senhor, que<br />

chegou a ter com Ele até uma certa<br />

semelhança física. Quem olhava para<br />

São Francisco julgava ver Nosso<br />

Senhor Jesus Cristo.<br />

A Ordem Franciscana produziu um<br />

caudal de Santos e Santas e de obras<br />

beneméritas em toda a esfera de atividades<br />

da Igreja, até esta tremenda crise<br />

na qual nos encontramos...<br />

A Providência permitiu, entretanto,<br />

esta Ordem ser muito provada<br />

28 Capuchinho pregando - Igreja<br />

de Santo Ângelo, Córdoba


pelo pecado e pelo demônio. E mesmo<br />

em vida de São Francisco de Assis<br />

houve divisões. Havia setores que<br />

pendiam para uma interpretação errada<br />

da espiritualidade de São Francisco,<br />

enquanto outros para uma interpretação<br />

certa.<br />

Dessas pluralidades de interpretações<br />

nasceram várias Ordens Franciscanas.<br />

Todas elas boas porque<br />

aprovadas pela Igreja Católica. Uma<br />

dessas ramificações teve um nascimento<br />

singular: a dos capuchinhos.<br />

Os capuchinhos foram fundados<br />

por um franciscano muito observante<br />

e exemplar que, percebendo estar<br />

sendo relativizada a regra de seu<br />

fundador, resolveu radicalizá-la, revivendo<br />

o espírito de pobreza. Resultado:<br />

a Providência abençoou este<br />

lance, suscitando Santos. E foram<br />

os Santos capuchinhos.<br />

Radicalidade da pobreza<br />

Quando o espírito de São Francisco<br />

se atenuava nas outras ramificações<br />

franciscanas, os capuchinhos<br />

representaram a radicalidade da pobreza.<br />

E, com isso, a radicalidade de<br />

todas as independências que só a pobreza<br />

dá.<br />

Hoje se julga que um homem só é<br />

inteligente quando é rico. No tempo<br />

da formação dos capuchinhos, considerava-se<br />

a riqueza como fonte de<br />

uma porção de preocupações, de apegos,<br />

de necessidades e de deveres de<br />

bens a tutelar, a proteger e, portanto,<br />

julgavam que a riqueza aproxima o<br />

homem da Terra; e o que verdadeiramente<br />

o isola da Terra é a pobreza.<br />

Na pobreza o homem tem poucas<br />

obrigações, poucos bens para defender,<br />

ele vive da confiança na Providência.<br />

Por assim dizer, quem nada<br />

tem, nada tem a temer. Quem vive<br />

da esmola que qualquer um lhe dá é<br />

dono do que todos têm. Quem precisa<br />

de muito pouco é o homem mais<br />

independente de todos.<br />

O capuchinho representava propriamente<br />

o frade independente.<br />

São José de Leonissa<br />

Não em relação aos seus superiores<br />

e à Igreja Católica – à qual ele estava<br />

ligado, como àqueles, por um voto<br />

de obediência –, mas sim em relação<br />

aos poderes do mundo. Ele era,<br />

por definição, o pregador audacioso<br />

que dizia as verdades inteiras. E as<br />

dizia como confessor e pregador para<br />

todos os grandes da Terra, fossem<br />

eles grandes da Igreja ou do Estado.<br />

O perfil de um capuchinho<br />

Flávio Lourenço<br />

A figura do capuchinho é a de um<br />

homem atarracado, popular, com a<br />

palavra fácil, com a cultura religiosa<br />

suficiente, porém não aprofundada,<br />

com o contato contínuo com as<br />

almas, tendo uma espécie de sobranceria<br />

por meio da qual trata de igual<br />

a igual não só os homens do povo,<br />

mas também os grandes segundo o<br />

mundo, inclusive os reis.<br />

Apoiado na posição de padre e de<br />

religioso e, por tal, o capuchinho era,<br />

mais do que todo mundo, possuidor<br />

do direito de dizer a verdade a todos.<br />

A compenetração disso fez do capuchinho<br />

aquele tipo do pregador célebre,<br />

que era convidado para pregar<br />

nas cortes. Subia ao púlpito causando<br />

uma espécie de estremecimento pela<br />

pobreza de sua batina, pelo cordão<br />

que usava – seu único ornato – representando<br />

a obediência, pois aquele<br />

religioso podia ser levado por toda<br />

parte; com a sua barba... num tempo<br />

em que os homens elegantes usavam<br />

barbas finas, perfumadas, com pomadas<br />

e bigodes delicados, a grande<br />

e volumosa barba capuchinha nascia<br />

espontânea e, às vezes, enchia o peito<br />

inteiro; com a sua tonsura enorme,<br />

desfigurando-lhe a beleza que os cabelos<br />

bem tratados davam aos fidalgos<br />

daquele tempo, o capuchinho subia<br />

ao púlpito representando uma renúncia<br />

a tudo aquilo a que as pessoas<br />

podiam ter apego.<br />

Ele era o pregador indômito, que dizia<br />

as verdades cruas e tonitruava contra<br />

a impureza, as acomodações, a falta<br />

de fervor, a tibieza na qual o mundo decadente<br />

estava se engolfando.<br />

No confessionário, o capuchinho<br />

era o confessor reto, preciso, cristalino,<br />

que não tinha medo de ficar sem<br />

penitente nem receio de que depois<br />

fizessem contra ele uma calúnia. Podia<br />

perder horas no confessionário<br />

atendendo apenas poucas pessoas<br />

para lhes resolver os problemas. O<br />

capuchinho era a própria expressão<br />

do confessor perfeito: leão contra o<br />

pecado e cordeiro em relação ao pecador.<br />

E com energia arrancava as<br />

almas das garras do demônio e as levava<br />

para o Céu.<br />

Esse perfil do capuchinho ficou<br />

na História através da figura de vários<br />

Santos como uma das riquezas<br />

da Igreja, como um dos esplendores<br />

dessas variedades magníficas<br />

com que o Espírito Santo faz as suas<br />

obras.<br />

Jogo de contraste<br />

harmônico produzido<br />

pelo Espírito Santo<br />

No esplendor da Igreja vemos o Papa<br />

colocado como um Monarca de todos<br />

os monarcas, à testa da Igreja Católica.<br />

Cercado de um fausto fabuloso<br />

29


Hagiografia<br />

Biografia de São José de Leonissa<br />

Eufrânio Desideri nasceu em Leonissa, Itália, em 1556 e ingressou<br />

aos 16 anos na Ordem dos Capuchinhos de Rieti, recebendo<br />

o nome de José. No convento de Carcerelle, próximo a Assis,<br />

passou seu noviciado entregando-se à mais dura penitência.<br />

Após sua ordenação sacerdotal, foi enviado como missionário para<br />

Constantinopla. Ao tomar conhecimento do estado lastimável no qual se<br />

encontravam vários cristãos, tornados escravos pelos turcos, condoeu-se<br />

de seus irmãos na Fé, passando a encorajá-los, distribuindo-lhes os sacramentos<br />

e fazendo voltar à Igreja aqueles que a haviam deixado.<br />

A pobreza na qual vivia despertou interesse nos povos daquela região,<br />

que acorriam em grande quantidade para ouvi-lo. Pregava com ardor<br />

e intrepidez, e após uma tentativa de entrar no palácio para pregar<br />

ao próprio Sultão Murad III, seu intento foi julgado como atrevido e como<br />

um crime de lesa-majestade. Preso e açoitado, suspenso por um pé<br />

e uma mão sobre uma fogueira, permaneceu nesse suplício por três dias<br />

sem, contudo, falecer. O sultão, maravilhado com o fato, trocou sua pena<br />

de morte por uma de exílio perpétuo.<br />

Voltado à Itália, José continuou sua vida de pregador na Úmbria,<br />

promovendo diversas conversões. Suas pregações eram regadas por<br />

uma vida de penitência e os carismas sobrenaturais davam maior vigor<br />

às pregações.<br />

Após uma vida marcada pela austeridade e pelo zelo apostólico, aos<br />

57 anos de idade adoeceu gravemente com um tumor. Os médicos o<br />

operaram, mas como anestésico o Santo usou somente o seu crucifixo,<br />

que apertava sobre o peito. No dia 4 de fevereiro de 1612, entregou sua<br />

alma a Deus.<br />

v<br />

e de obras de arte, habitando num Palácio<br />

como nenhum rei da Europa ou<br />

do Oriente possui, tendo um arquivo<br />

com o qual nenhum outro do mundo<br />

pode emular! E é cercado da veneração<br />

de centenas de milhões de fiéis que<br />

veem nele o Vigário de Jesus Cristo sobre<br />

a Terra. Ao lado dele, um Senado<br />

de Cardeais com manto de púrpura,<br />

homens ilustres por vários títulos, todos<br />

revestidos de grande representação social.<br />

Tudo isso é o Espírito Santo utilizando<br />

as coisas da Terra para dar força<br />

à própria vontade de Deus.<br />

Vemos depois o contrário. Através<br />

do capuchinho, que não tem nada<br />

disso porque renunciou a tudo, o<br />

Espírito Santo utilizando a renúncia<br />

a todas as coisas da Terra para dar<br />

força à palavra de Deus.<br />

É uma espécie de duplo jogo de contraste<br />

harmônico, onde se percebe a<br />

onipotência de Deus e a variedade existente<br />

dentro da Santa Igreja Católica;<br />

o poder que Deus tem de falar aos homens<br />

através de todas as suas criaturas,<br />

até das que representam a pobreza;<br />

através de uma e de outra, dizendo<br />

palavras ora de amor, ora de arrojo, ora<br />

de denodo, ora de valentia, palavras estas<br />

que se tornaram especialmente importantes<br />

em nossa época.<br />

Ao lado da Igreja em<br />

suas amarguras<br />

No tempo de São Pio X, quando a<br />

crise da Igreja estava menos profunda<br />

que em nossos dias, ele se apropriava<br />

do gemido de um dos profetas e dizia:<br />

“‘De gentibus non est vir mecum’ (cf. Is<br />

41, 28) na luta contra o modernismo<br />

– isto está no processo de canonização<br />

– ‘Entre todos os homens não há<br />

um varão que esteja comigo’”, ou seja,<br />

que leve a luta até onde deveria.<br />

Hoje, quão poucas pessoas estão<br />

ao lado de Nosso Senhor Jesus Cristo,<br />

quão poucas estão ao lado da Santa<br />

Igreja. Fica aqui a evocação esplêndida<br />

do varão eclesiástico que estava ao<br />

lado da Santa Igreja em todas as suas<br />

amarguras, aquela figura do capuchinho<br />

com o seu burel, com a sua barba,<br />

com a sua tonsura, com a sua palavra<br />

franca e com o seu olhar fogoso.<br />

Apesar de não saber muito, sabemos<br />

que São José de Leonissa foi<br />

um capuchinho que concorreu para<br />

formar no firmamento da Igreja esse<br />

perfil dos capuchinhos. Não é preciso<br />

dizer mais nada. Basta pedirmos<br />

que São José de Leonissa rogue por<br />

nós. De um Santo desconhecido tanta<br />

coisa se sabe: ele foi Santo, ele foi<br />

capuchinho!<br />

v<br />

(Extraído de conferência de<br />

4/2/1971)<br />

São José de Leonissa - Galeria<br />

Nacional de Parma<br />

Parma benia artistici(CC3.0)<br />

30


Luzes da Civilização Cristã<br />

Flávio Lourenço<br />

Conversão de Clóvis<br />

Igreja da Abadia de<br />

Saint-Ouen, Rouen<br />

Cristandade: manifestação<br />

do esplendor da Igreja<br />

na sociedade temporal<br />

Entre a graça e a natureza só pode haver harmonia. Foi sob o<br />

influxo e as bênçãos da Igreja que o Lumen Christi penetrou nos<br />

aspectos temporais da vida e a sociedade temporal desabrochou<br />

inteiramente. A graça agiu nos povos, harmonizando-os<br />

e erguendo neles o sagrado edifício da Cristandade.<br />

Um bom método para se tratar a respeito do<br />

pulchrum e do alcandorado da Cristandade<br />

é começar por descrever o que sentimos a<br />

respeito dela, para depois distinguirmos o que sentimos<br />

quando nos referimos à Igreja.<br />

A Cristandade medieval europeia<br />

A fim de exprimir bem o que sinto quando falo em Cristandade,<br />

faço referência à dupla ação que ela causa em<br />

meu espírito. A primeira refere-se a uma situação que em<br />

concreto existiu; a segunda, a algo de doutrinário implícito,<br />

que está meio embebido nas impressões daquela ordem<br />

de coisas. É um determinado lumen máximo, em estado<br />

de começo de desabrochar, diferente do período que vai<br />

desde o império pós-constantiniano até a época dos bárbaros<br />

ou do império oficialmente católico.<br />

A Cristandade, a meu ver, nasceu com a conversão de<br />

Clóvis, com o estilo românico, alcançando seu esplendor<br />

31


Luzes da Civilização Cristã<br />

gary noon (CC3.0)<br />

no gótico. Cristandade propriamente em seu estado de<br />

saúde é a Idade Média. A pré-Revolução começou, por<br />

assim dizer, a matá-la; ela entrou em estado enfermiço<br />

com o fim da Idade Média e começa a morrer quando<br />

surgem as Revoluções.<br />

Ora, Cristandade, como ela existiu, é a europeia, marcada<br />

por um determinado feitio de alma próprio aos povos<br />

que a graça levou ao auge de si mesmos. Esses povos<br />

tinham diante de si um território, incluindo as ilhas, que<br />

eram agrestes. Em função de um estado de espírito deles,<br />

embebido de catolicismo, eles foram ora selecionando,<br />

agrupando e modelando o que lhes era afim, ora perseguindo<br />

implacavelmente o que lhes era contrário, mas<br />

definindo-se mais pela oposição ao contrário.<br />

De toda fauna que havia, prevaleceram os animais<br />

que correspondem ao gosto deles, por exemplo, a perdiz,<br />

o faisão, o rouxinol, para falar das aves.<br />

Eles foram criando uma literatura e uma<br />

arte que tomavam essas coisas<br />

e as apresentavam como deveriam<br />

ser vistas, ou seja, conforme<br />

o gosto deles. Quem analisa,<br />

por exemplo, uma perdiz,<br />

não a pode ver senão pelo prisma<br />

do europeu, cujo olhar seletivo<br />

afasta os aspectos que não<br />

são os da perdiz de legenda estilizada.<br />

Na Idade Média, o animal aparecia<br />

limpo, direito, como fundo de<br />

quadro da vida humana, mas nunca<br />

como um ser quase mais perfeito que o<br />

homem. É nos tempos modernos que começa<br />

a aparecer o bicho em porcelana de<br />

Sèvres ou em bordados; ele já não é uma unilateralidade<br />

sadia, mas é uma quimera. Ao la-<br />

Loicwood (CC3.0)<br />

é legítimo.<br />

do do bom soldado figura o carneirinho encantador,<br />

com fitinha azul, que não é o carneiro<br />

da realidade, tal como o medieval o<br />

punha. Ao passar os animais para a porcelana<br />

de Sèvres já houve uma decadência.<br />

Na heráldica é intencionalmente mostrado<br />

o símbolo do bicho e não ele em si.<br />

À medida que o europeu foi relegando a<br />

galinha ao galinheiro, por exemplo, ele foi<br />

aprendendo a se lavar, tirando sua conaturalidade<br />

com o animal; o homem foi se elevando,<br />

realizando assim algo de parecido com o<br />

Paraíso Terrestre na Terra não paradisíaca;<br />

é o resgate do calabouço, o qual vai tomando<br />

ares de lugar onde se habita. É algo artificial,<br />

porque não é o Paraíso Terrestre, mas<br />

A Igreja: harmonizadora da Europa cristã<br />

Houve na Europa uma progressiva caça a tudo quanto<br />

era prosaico. Não foi levada até o fim, mas foi tão obstinada<br />

quanto a Reconquista contra os mouros. O fruto<br />

disso foi a modelagem de um mundo construído de acordo<br />

com a mentalidade de certos povos formados à luz<br />

da Igreja, a qual fazia, dentro da raça, o que esta fez no<br />

mundo; é uma regra de três magnífica.<br />

A Igreja foi fazendo aparecer o “príncipe herdeiro”, o<br />

“menino de ouro” de dentro do romano sibarita decadente,<br />

ou dos godos e ostrogodos – elementos constitutivos da<br />

Idade Média – e foi enxotando deles os aspectos reprováveis.<br />

A ascensão como tipo humano do descendente do germano<br />

ou do latino constituiu uma ascensão positiva, na<br />

qual todos os aspectos reprováveis foram desaparecendo<br />

em vista de uma modelagem operada<br />

pela graça, sobrenaturalmente.<br />

Entre a graça e a natureza<br />

não há contradição, só pode<br />

haver uma harmonia. As leis<br />

que existem numa ordem são,<br />

mutatis mutandi, as mesmas<br />

leis para outra ordem, transpostas<br />

para realidades diferentes:<br />

uma natural, a outra<br />

sobrenatural. A graça age na<br />

natureza como uma mão dentro<br />

da luva. De si ela opera esse seletivo,<br />

mas opera devagar.<br />

Por exemplo, um Santo que ensinasse<br />

a prática da pureza; olhando para<br />

o olhar dele, seus discípulos passariam a<br />

se lavar melhor sem que ele recomendasse,<br />

por afinidade e conaturalidade.<br />

32


António Godinho (CC3.0)<br />

Sabe-se que Dom Orione sempre se confessava antes de<br />

estar com São Pio X. Eu não teria a menor surpresa se ele tomasse<br />

um banho completo também. Não quero dizer que necessariamente<br />

tenha sido assim, mas seria um desdobrar-se<br />

lógico da mesma consequência. A mesma razão pela qual ele<br />

queria ter a alma pura o levaria a banhar-se para estar puro.<br />

Na Cristandade, era a graça que modelava o homem,<br />

o qual, animado por ela, modelava a natureza e fazia<br />

o seletivo. A Igreja ia fazendo uma miscigenação entre<br />

germanos, latinos, descendentes de mouros, húngaros<br />

– porque a Hungria pertenceu à Cristandade de fato, e<br />

de estatura inteira. Tal síntese constituiu a figura global<br />

do europeu em sua realidade psicológica e cultural<br />

mais importante, e até temperamental, porque a Igreja<br />

ia criando um temperamento mais importante do que as<br />

particularidades locais.<br />

É como quem olha para um vitral e vê como toda a<br />

policromia, de certo modo, vale mais do que cada pedaço<br />

de vidro. Assim era a Europa cristã na sua totalidade.<br />

Os defeitos das várias raças não tinham cidadania,<br />

porque elas se uniam pelas qualidades, formando o europeu<br />

total.<br />

Do ideal sacral ao heroísmo angélico<br />

Dentro desse quadro, um aspecto importante é o do<br />

heroísmo.<br />

No meu modo de entender, o heroísmo propriamente<br />

dito nasceu na Idade Média. Sem dúvida existiram heroísmos<br />

salientíssimos em povos anteriores. Mas, na Idade<br />

Média, pela ação da Igreja, o Lumen Christi penetrou nos<br />

aspectos temporais da vida muito mais do que no tempo<br />

do Império Romano. Na sociedade medieval foi modelada<br />

uma forma de heroísmo que não tinha tido ocasião de<br />

se realizar antes. Toda a epopeia, a beleza do heroísmo<br />

só foram inteiramente explicitadas com a ideia católica<br />

do herói a serviço de um ideal sacral.<br />

O heroísmo a serviço de Nosso Senhor Jesus Cristo<br />

é diferente do ideal de servir o Império Romano ou de<br />

outro qualquer. O heroísmo de Alexandre Magno, por<br />

exemplo, nada tinha em comum com o de Clóvis. Ambos<br />

Samuel Holanda<br />

Catedral de Notre-Dame de Paris<br />

33


Luzes da Civilização Cristã<br />

Flávio Lourenço<br />

Entrada dos cruzados em Constantinopla - Castelo de Chantilly<br />

mataram e se expuseram à morte, mas o objetivo era diferente.<br />

O verdadeiro heroísmo não consiste só em atacar, em<br />

matar, em morrer; ele supera tudo isso, porque quer impregnar<br />

a ação de atacar, matar e morrer de um sentido<br />

transcendente, o qual é enormemente superior ao homem<br />

e que dá às espadas e às lanças os seus verdadeiros<br />

brilhos.<br />

Quando penso num cavaleiro medieval e o comparo a<br />

um legionário romano, este último me parece pesadão,<br />

sem alma... Quiçá possa estar enfeitado com um armamento<br />

bonito, mas nele, a principal nota é o bater dos<br />

pés; uma legião romana andando não é senão o bater dos<br />

pés. Se imagino os cruzados avançando… já não é o galopar<br />

de cavalos a nota distinta, mas é o pulsar dos corações,<br />

das mentalidades, das almas.<br />

Isto foi a Europa medieval que representou. Por mais<br />

admiradores que sejamos da coragem, se nos oferecessem:<br />

“Aqui está a vida de Aníbal, leiam…”, folhearíamos<br />

um pouco com a ponta do dedo e a deixaríamos. Ora, se<br />

nos apresentassem a história de um cavaleiro medieval,<br />

ainda que fosse a de Ricardo Coração de Leão 1 , nós nos<br />

interessaríamos, porque a Igreja colocou de lado os aspectos<br />

censuráveis dele, omitindo-os na canção de gesta,<br />

para que não tivessem cidadania no próprio homem, de<br />

maneira a estarem contidos nos porões da alma quando<br />

ele atacava. O que aparece é um heroísmo angélico que<br />

nos entusiasma: é a sensação de sermos angelizados nele<br />

e termos a coragem e o aggredi 2 do Anjo.<br />

Contrários harmônicos no<br />

vitral da Cristandade<br />

sa a tudo quanto lhe é contrário, e da apuração<br />

a tudo o que lhe é legítimo, feito sob o bafejo<br />

da graça. Há uma espécie de fosforescência da<br />

graça, um difuso sobrenatural que é a sociedade<br />

humana levada ao primor de si mesma, porque<br />

toca em sua arquetipia, que é a Santa Igreja,<br />

a sociedade espiritual. É só então que a sociedade<br />

temporal adquire toda a sua beleza.<br />

Como é essa beleza? Há algo de indescritível,<br />

mas aponto para a presença dos contrários harmônicos,<br />

como, por exemplo, a doçura e o aggredi.<br />

Em nenhuma época se levou a doçura tão<br />

longe e nunca se levou o aggredi tão a seu auge.<br />

Ninguém levou tão longe quanto o medieval<br />

a intelectualização unida ao contato com a realidade<br />

viva, natural, como ela é, positiva. Podemos<br />

imaginar um São Tomás de Aquino parando<br />

numa hospedaria de “aldeia de marzipã”, pedindo<br />

para lhe trazerem um pão para comer. Entra um camponês<br />

analfabeto que lhe serve um pãozão; ele acha pitoresco<br />

o servidor e este, por sua vez, é tão tendente para<br />

as coisas de São Tomás, que fica bouche béant 3 olhando<br />

para o Santo. São Tomás lhe dirige uma palavra, e há<br />

um ósculo de dois extremos harmônicos, eufóricos em se<br />

encontrarem. Isto havia muito na Idade Média.<br />

Helio G.K.<br />

Então, o que é a Cristandade? É quando o esplendor<br />

da ordem humana chega ao auge da distinção e da repul-<br />

Santa Teresa de Ávila - Museu do Convento das<br />

Madres Carmelitas da Anunciação, Espanha<br />

34


Outro contrário harmônico era arte e raciocínio, razão<br />

e arte encontrando-se de modo magnífico; ou ainda,<br />

a autoridade e liberdade. Nunca se foi tão livre para o<br />

bem, nunca se foi tão perseguido para o mal. Ora, a liberdade<br />

é só para o bem, e a perseguição do mal é uma<br />

forma de liberdade.<br />

Para tocar só nesses aspectos, os contrários harmônicos<br />

emitiam uma luz posta dentro do vitral da mistura<br />

da raça branca europeia, latino-germânica, que se entrecruzava<br />

assim de modo concreto e não nas nuvens. Todas<br />

as modalidades de tipos físicos europeus, no fundo<br />

muito próximos entre si, têm um símbolo de Deus. Desde<br />

o olhar azul de um nórdico até o olhar preto e cheio<br />

de mistério de um espanhol, de um português, de um italiano<br />

do sul. Pode-se analisar os olhos de Santa Teresa<br />

de Ávila de uma pintura e compreende-se perfeitamente<br />

bem, realçando isto magnificamente.<br />

O pulchrum da Igreja<br />

transluzindo na Cristandade<br />

A Igreja foi feita para os homens. Ora, estes realizam a<br />

plenitude de seu pulchrum em conjuntos, ou seja, em sociedades<br />

e nações; assim, a Igreja ou confere o seu pulchrum<br />

aos costumes e às culturas das sociedades e nações, ou ela<br />

vive como um fantasma, privado do seu próprio corpo.<br />

Então, qual a relação entre o pulchrum da Cristandade<br />

e o da Igreja? É a relação da virtude existente na alma<br />

enquanto transluzindo no corpo. A Igreja, fazendo penetrar<br />

a graça no campo temporal, produz nele uma forma<br />

de beleza, um esplendor de graça, que a simples beleza<br />

eclesiástica de si não manifesta.<br />

É uma mesma escola de beleza. Se tomamos, por<br />

exemplo, de um lado a procissão do Império Austro-<br />

-Húngaro, Corpus Christi, Tosão de Ouro; de outro lado,<br />

um desfile militar embebido do espírito católico, eu tenho<br />

duas manifestações do mesmo espírito.<br />

Se compararmos todas as cristandades que possam<br />

no mundo existir, veremos as mil refulgências da natureza<br />

afins com mil refulgências da graça, e assim veremos<br />

mais nítidos aspectos da Igreja que antes não apareciam.<br />

Porque o temporal, animado pelo espírito da Igreja,<br />

não exprime apenas o espírito dela; mas, enquanto símbolo<br />

de Deus, manifesta o pulchrum próprio à natureza,<br />

mais próximo à matéria e mais longe do espírito; não a<br />

matéria considerada inimiga do espírito, mas enquanto<br />

irmã menor dele.<br />

v<br />

1) Rei da Inglaterra (*1157 - †1199).<br />

2) Do latim: ataque.<br />

3) Do francês: de boca aberta.<br />

(Extraído de conferência de 14/4/1978)<br />

Procissão de Corpus Christi em<br />

Sevilha - Museu do Prado<br />

Manuel Cabral y Aguado Bejarano (CC3.0)<br />

35


A hora da graça<br />

Flávio Lourenço<br />

Quando o profeta Simeão se referiu ao<br />

papel de Nosso Senhor como pedra<br />

de escândalo e ao gládio que traspassaria<br />

a alma de Nossa Senhora, ele usou esta<br />

expressão: “Eis que este Menino foi posto<br />

para a queda e para o soerguimento de muitos<br />

em Israel, e como um sinal de contradição<br />

– e a ti, uma espada te traspassará a alma<br />

– para que se revelem os pensamentos<br />

íntimos de muitos corações” (Lc 2, 34-35).<br />

Isso indica a existência de uma malícia<br />

a ser desvendada. Donde podemos concluir<br />

ser da glória de Maria que a malícia<br />

da Revolução seja descoberta e manifesta<br />

para que, aos olhos dos Anjos e dos homens,<br />

o pecado de Revolução fique caracterizado<br />

com tudo quanto ele tem de abominável. Enquanto<br />

isso não se der, a Revolução não estará<br />

madura para explodir e desaparecer.<br />

Quando há um grave pecado, embora<br />

possa haver exceções, a Providência costuma<br />

permitir que a situação chegue a um grau extremo<br />

de abominação. Essa é a hora da graça,<br />

na qual, de algum modo, o processo de<br />

imprudência em relação ao pecado chegou ao<br />

seu termo e o pecador se arrepende e volta.<br />

Porém, quantas vezes, depois do susto,<br />

a pessoa não corresponde à graça e continua<br />

no pecado... Abrem-se, então, abismos sucessivos<br />

de horrores. Mas, quando a pessoa é<br />

muito amada por Nossa Senhora, ao chegar<br />

ao horror dos horrores, existe a maior possibilidade<br />

de se converter.<br />

Para a glória de Nossa Senhora, o mundo<br />

não se encerrará sem o advento do Reino<br />

d’Ela. O Reino de Maria atingirá seu apogeu<br />

e será o melhor que se possa imaginar, não<br />

em razão da maior ou menor fidelidade havida<br />

anteriormente, mas sim por ser de Maria.<br />

(Extraído de conferência de 4/2/1967)<br />

Apresentação do Menino<br />

Jesus no Templo - Museu<br />

de Belas Artes de Lyon

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