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Publicação Mensal<br />
Vol. XXVII - Nº <strong>311</strong> Fevereiro de 2024<br />
O Reino de Maria e<br />
o desejo do Céu
Preparação para o Céu<br />
J.P. Ramos<br />
OPão de Açúcar não foi feito por Deus para, em certo momento,<br />
ser reduzido a pedacinhos de pedra para construir casas, mas<br />
para estar ali, sem utilidade prática, para ser visto, só porque ele<br />
é bonito.<br />
Por que Deus criou uma quantidade enorme de seres tão somente para<br />
serem belos? A pergunta última seria: qual a razão de ser da beleza no<br />
universo?<br />
A Doutrina Católica tem a resposta. O Criador quis que preparássemos<br />
nossas almas para o Céu, onde O contemplaremos por<br />
toda a eternidade, conhecendo e amando na Terra seres<br />
parecidos com Ele.<br />
Deus é perfeitíssimo. Contemplá-Lo face a face<br />
supõe uma preparação, a qual se adquire,<br />
em grande parte, considerando na Terra as<br />
criaturas boas, virtuosas, belas, reflexos<br />
d’Ele que é o sumo Bem, o abismo de<br />
todas as virtudes, a Beleza infinita.<br />
(Extraído de conferência<br />
de 9/8/1975)
Sumário<br />
Publicação Mensal<br />
Vol. XXVII - Nº <strong>311</strong> Fevereiro de 2024<br />
Vol. XXVII - Nº <strong>311</strong> Fevereiro de 2024<br />
O Reino de Maria e<br />
o desejo do Céu<br />
Na capa,<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, em<br />
março de 1991.<br />
Foto: Arquivo <strong>Revista</strong><br />
As matérias extraídas<br />
de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
— designadas por “conferências” —<br />
são adaptadas para a linguagem<br />
escrita, sem revisão do autor<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />
propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />
ISSN - 2595-1599<br />
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Serviço de Atendimento<br />
ao Assinante<br />
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Segunda página<br />
2 Preparação para o Céu<br />
Editorial<br />
4 Um noviciado do Céu<br />
Piedade pliniana<br />
5 Pedindo a confiança nas<br />
intervenções de Maria<br />
Dona Lucilia<br />
6 Uma senhora jeitosa<br />
ao inimaginável!<br />
Reflexões teológicas<br />
9 O atrativo do incógnito<br />
e o Céu Empíreo<br />
Calendário dos Santos<br />
16 Santos de Fevereiro<br />
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
18 Maldição da ambiguidade, choque<br />
entre mentalidade e princípio - II<br />
Eco fidelíssimo da Igreja<br />
23 Premiados, à medida<br />
do próprio Deus!<br />
Hagiografia<br />
28 Esplendor de renúncia para<br />
dar força à palavra de Deus<br />
Luzes da Civilização Cristã<br />
31 Cristandade: manifestação<br />
do esplendor da Igreja na<br />
sociedade temporal<br />
Última página<br />
36 A hora da graça<br />
3
Editorial<br />
Um noviciado do Céu<br />
Na Ladainha de todos os Santos existe uma invocação que diz: Ut mentes nostras ad cælestia<br />
desideria erigas, te rogamus audi nos – “Para que eleveis as nossas almas aos desejos das<br />
coisas celestes, nós vos rogamos, ouvi-nos.”<br />
O que é esse desejo? Fundamentalmente é o anseio de ir para o Céu. Mas, por mais nobre e santo<br />
que seja esse anseio, não basta para definir por inteiro o conceito contido nessa invocação.<br />
Na Terra nós temos coisas que são figuras das celestes, e é preciso amar essas figuras para, de fato,<br />
dizermos que temos apetência das coisas do Céu, pois as terrenas nos foram dadas para aprendermos<br />
a amar as celestiais.<br />
Entretanto, o desejo das coisas celestes tem como corolário necessário o ódio implacável, militante,<br />
contínuo, meticuloso, inflexível contra tudo aquilo que, na Terra, seja contrário às realidades celestes.<br />
Sem um ódio ao Inferno não existe verdadeiro amor ao Céu, portanto, sem um ódio às coisas<br />
que na Terra são à maneira do Inferno, não existe verdadeiro amor às criaturas terrenas conformes<br />
ao Céu.<br />
Quais são as coisas à maneira do Céu? Eu indico uma que engloba todas: o Reino de Maria. E à<br />
maneira do Inferno? A Revolução. A Contra-Revolução é o movimento que nos deve levar a derrotar<br />
a Revolução e a estabelecer na Terra o Reino de Maria, o qual é a imagem do Céu na Terra.<br />
Na medida em que o conjunto dos povos se deixe embeber pela ação santificadora da Igreja, ele<br />
constitui a cidade de Deus, que é um noviciado do Céu. A condição fundamental para a Terra ser esse<br />
seminário do Céu e, em consequência, as coisas terrenas serem utilizadas habitualmente para a<br />
salvação das almas, é a excelência das condições em que esteja a Igreja Católica, de maneira a estar<br />
ela na sua plena saúde.<br />
Contudo, isso não basta. É preciso haver também uma boa ordem da sociedade temporal, inspirada,<br />
suscitada e guiada pela Igreja, pois, estando em ordem a sociedade espiritual, a temporal é conformada<br />
de molde a levar as almas para o Céu. Então a vida terrena torna-se uma imagem do Céu.<br />
As ordens espiritual e temporal organizadas segundo a Doutrina Católica constituem a ordenação<br />
perfeita deste mundo. Quando falamos do Reino de Maria, é a isso que nos referimos.<br />
Assim sendo, o que devemos pedir a Nossa Senhora? Que eleve as nossas almas, obtendo para elas<br />
uma operação do Espírito Santo por meio da qual nós amemos muito e cada vez mais o ideal do Reino<br />
de Maria e desejemos a implantação desse Reino. E para que esse desejo seja vivo, tenhamos ódio<br />
à atual ordem revolucionária das coisas.<br />
Esse é o verdadeiro sintoma de que as nossas almas foram elevadas ao desejo das coisas celestes e<br />
que, portanto, caminham para o Céu, Reino Eterno, perfeito, imperecedouro, de Nossa Senhora, o<br />
qual nós aprendemos a amar amando o Reino de Maria na Terra. *<br />
* Cf. Conferências de 30/12/1965 e 5/1/1993.<br />
Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />
de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />
na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />
outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />
4
Piedade pliniana<br />
Pedindo a<br />
Flávio Lourenço<br />
confiança nas<br />
intervenções<br />
de Maria<br />
Ó<br />
Mãe do Bom Sucesso, dai-me<br />
a graça de aproveitar, no<br />
cumprimento de minha missão,<br />
todos os recursos naturais, toda<br />
a experiência e todas as graças que<br />
me obtivestes.<br />
Dai-me, sobretudo, a convicção<br />
de que, de modo geral, a nenhum<br />
homem nada disso basta para<br />
o cumprimento de suas missões<br />
mais importantes, se não for a vossa<br />
intervenção direta e extraordinária<br />
nos fatos.<br />
Fazei-me crer nisto, desejar e pedir<br />
essas intervenções, para nelas<br />
confiar durante os dias mais duros;<br />
pedi-las e obtê-las para o esmagamento<br />
de Satanás e a vitória de vossa<br />
realeza. Amém.<br />
(Composta em 16/4/1974)<br />
A Virgem com o Menino<br />
Igreja de São Tiago, Regensburg<br />
5
Dona Lucilia<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Irredutibilidade no cumprimento do<br />
dever, doçura para corrigir os lados<br />
maus... Dona Lucilia tinha, em alto<br />
grau, o equilíbrio entre a placidez<br />
e a disponibilidade, a presteza e o<br />
movimento, a solicitude e a atenção.<br />
Luis C. R. Abreu<br />
Há uma atitude de alma<br />
que eu nunca vi em mamãe,<br />
a de mania de bicho<br />
empacado sem razão: “Daqui<br />
não saio, daqui ninguém me tira.”<br />
Pelo contrário, ela sempre possuía a<br />
maior afabilidade, a maior disponibilidade,<br />
a qualquer momento, para<br />
mover-se em qualquer direção.<br />
Ausência completa<br />
de caprichos<br />
Ela morreu com 92 anos, quando<br />
nasci ela tinha 32. Em sessenta anos<br />
de convívio com ela eu nunca a vi<br />
ter um capricho ou algo que de repente<br />
desse um enguiço nela. Absolutamente,<br />
nunca vi nela um desses<br />
pasmos nervosos, mesmo em ocasiões<br />
de muita alegria ou de muita<br />
tristeza. Era como alguns de nossos<br />
rios da bacia amazônica que não<br />
têm pedras pelo meio, não há queda<br />
d’água, nem nada: vão, vão e vão…<br />
Assim era ela.<br />
Mamãe tinha, em alto grau, o<br />
equilíbrio entre a placidez brasileira<br />
e a disponibilidade, a presteza e o<br />
movimento, a solicitude e a atenção,<br />
sem nunca sair da placidez. Quem<br />
a olhasse, à primeira vista, diria:<br />
“Que senhora bem sentada e agradavelmente<br />
instalada!”<br />
Atenta a tudo o que<br />
estava a seu alcance<br />
Ela não perdia nunca o que ela<br />
era capaz de alcançar com o olhar e<br />
que se passasse na periferia dela. Eu<br />
já disse que ela era apenas medianamente<br />
inteligente, não era muito inteligente;<br />
mas não se passava perto<br />
dela algo que estivesse ao alcance<br />
dela, que ela não relacionasse sem<br />
esforço e sem agitação, sem afã. Mas<br />
com aplicação contínua, serena.<br />
6
Ela tinha uma grande elevação<br />
de alma, porém ela não desdenhava<br />
o mais minúsculo. Eu, às vezes, mexia<br />
com ela dizendo-lhe que ela era<br />
meticulosa demais em certas coisas.<br />
Ela era meticulosa, mas sem deixar<br />
o mais alto, fazendo o mais alto habitar<br />
em tudo, estar presente a tudo,<br />
ordenar tudo e com um seletivo à luz<br />
desse ponto de partida mental, interno,<br />
um seletivo que nunca vi errar.<br />
Algo curioso: Ela podia ter – sobretudo<br />
quando mais moça e que eu<br />
tinha exercido menos influência sobre<br />
ela – lados um tanto liberais de<br />
doutrina subconsciente, que influíam<br />
no seletivo dela. Mas esse erro<br />
mostrado – e com que precisão e<br />
muitas vezes com que reverente truculência,<br />
mas mostradíssimo! –, ela<br />
acabava acertando o passo quando<br />
via que era direito.<br />
Creio que se posso dizer que recebi<br />
algo da lógica dos jesuítas, dela recebi<br />
enormemente outras coisas. Ela<br />
era muito comunicativa dessa elevação.<br />
Ela transmitia muito, irradiava<br />
muito o que, aliás, vê-se pelo Quadrinho;<br />
nele, torna-se evidente.<br />
Amolecedora dos lados<br />
maus das almas<br />
não percebia que isso era touchant 1 ,<br />
fazia com a naturalidade que se possa<br />
imaginar: “Coitado, é bem verdade!<br />
Mas veja, tem tal lado assim e<br />
tal outro e outro que, afinal de contas,<br />
se atendêssemos, veríamos que<br />
ele tem uma atenuante…” Se ela tivesse<br />
tratado com aquela pessoa na<br />
ocasião “X” da vida desse indivíduo,<br />
e tivesse tido essa compaixão, ela teria<br />
amolecido dentro da pessoa, não<br />
o bem, mas o mal.<br />
Ela era uma amolecedora de revoltas<br />
como eu nunca vi coisa igual.<br />
Mas pela compaixão, pela pena. A<br />
pessoa objeto dessa compaixão se<br />
desarmava e tomava uma forma da<br />
doçura, que estou explicando de modo<br />
muito incompleto, mas há certas<br />
coisas que o vocabulário humano<br />
não consegue exprimir.<br />
Como vi gente recusar isso! E recusar<br />
por autossuficiência! “Não quero<br />
que tenham compaixão de mim!”<br />
Ou outras coisas: “Eu sinto que isso<br />
vai me desarmar a revolta e estou utilizando<br />
isso para conseguir tal coisa,<br />
portanto, não quero deixar de me revoltar…”<br />
Não diziam, mas eu percebia.<br />
Isso fica nos imponderáveis em<br />
torno de uma mesa de sala de jantar<br />
ou no living de uma casa. A vida cotidiana<br />
é feita de lances desses.<br />
Irredutibilidade com doçura<br />
Mamãe tinha assim uma espécie<br />
de forma de compassividade que<br />
chegava ao miúdo, entrando nos últimos<br />
meandros do sofrimento da<br />
pessoa, naquele meandrozinho mais<br />
interno onde o caco de vidro infecciona<br />
e arranha mais a ferida e, ali,<br />
Tamara Maria A.<br />
Havia uma atitude nela que afinava,<br />
aliás muito, com o meu modo<br />
de entender a devoção a Nossa<br />
Senhora – a prática da devoção,<br />
não o seu fundamento teológico –,<br />
mas um traço saliente nela, no relacionamento<br />
com os outros, era<br />
o ser compassiva. Eu não conheci<br />
ninguém compassivo como ela. De<br />
uma compaixão ordenante, não de<br />
uma ópera italiana: “Pobre filho!!!<br />
Pobre amada!!!...”<br />
Lembro-me, mais de uma vez, em<br />
relação a essa ou àquela pessoa: eu<br />
afirmava um aspecto no corte da espada…<br />
Ela não negava, ouvia tudo,<br />
depois me dizia – com uma modulação<br />
de voz e um jeito de falar que me<br />
deixava sem saber o que dizer, ela<br />
Virgem com o Menino (coleção particular)<br />
7
Dona Lucilia<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
Alunos do Colégio São Luís no bonde Grande Avenida<br />
punha uma gota de azeite, tranquilizava<br />
e dava uma coisa que não tem<br />
nome, mas que era feito de compaixão.<br />
Se alguém quiser obter alguma<br />
coisa dela, o caminho não é chegar<br />
e cobrar o cheque bancário: “Eu rezei<br />
vinte e cinco terços, fiz noventa e<br />
duas penitências e abstive-me de cinco<br />
mil e quatrocentas coisas más que<br />
quis fazer no dia de ontem e não fiz,<br />
agora pagai!” Tenho a impressão de<br />
que ela diria: “Mas, meu filho, você<br />
fez tudo isso? Coitado! Podia ter feito<br />
tanto menos, eu estava aqui para<br />
te dar!”<br />
Essa atitude dela era um incentivo<br />
à moleza? Nunca senti isso no<br />
momento em que ela me incentivava<br />
para o cumprimento do dever; e ela<br />
que teve que educar um filho mole.<br />
Por exemplo, ela nunca teve muito<br />
dinheiro, mas quando chovia – ela<br />
tinha pânico dos resfriados – aparecia<br />
um táxi no Colégio São Luís,<br />
mandado de casa para me pegar na<br />
saída, porque não queria que eu tomasse<br />
chuva. Era o único menino<br />
do Colégio São Luís que tinha táxi,<br />
porque os outros ou a família tinha<br />
automóvel e mandava buscá-los,<br />
ou não tinha e não dispunham de dinheiro<br />
para pagar o táxi. Era bonde<br />
e chuva.<br />
Nunca aconteceu, e nem aconteceria,<br />
se eu, na hora de me levantar<br />
de manhã dissesse a ela: “Eu estou<br />
com vontade de dormir mais meia<br />
hora. Mamãe, me pague um táxi…”<br />
Porque isto ela não permitiria nunca,<br />
irredutivelmente! Era hora de levantar,<br />
era preciso levantar! E táxi<br />
para ir por moleza, não!<br />
Nessa irredutibilidade, exatamente,<br />
entrava a contrapartida sem a<br />
qual eu reputaria toda essa doçura<br />
algo melosa.<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1979<br />
Porém, como na irredutibilidade<br />
entrava a doçura? Não sei como dizer.<br />
Era uma forma de pena de mim<br />
que eu percebia que ela tinha e participava<br />
do meu sofrimento, mas se<br />
ela não tivesse uma resistência irredutível<br />
contra o lado mau, eu não a<br />
admiraria.<br />
Se eu me tomasse por um capricho<br />
e não quisesse ir ao colégio, a<br />
Fräulein a avisaria. Mamãe tinha o<br />
costume de se levantar tarde, mas<br />
se levantaria a qualquer hora e iria,<br />
de robe de chambre, ao meu quarto.<br />
Sentar-se-ia aos pés de minha cama<br />
e diria: “Filhão, o que há?” Eu teria<br />
de dar logo uma explicação daquilo<br />
que estava se passando dentro de<br />
mim para pôr logo aquilo em ordem.<br />
E eu me levantaria. Não tinha conversa.<br />
Aí aparecem os tais jeitinhos dela,<br />
porque ela era jeitosa ao inimaginável!<br />
v<br />
(Extraído de conferência de<br />
8/12/1979)<br />
1) Do francês: tocante; que toca a sensibilidade.<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
8
Reflexões teológicas<br />
João C. V. Villa<br />
O atrativo do incógnito<br />
e o Céu Empíreo<br />
Um mistério encantador é-nos<br />
revelado através dos sonhos de<br />
São João Bosco. O Céu Empíreo<br />
em algo se assemelha com esta<br />
Terra, porém lá tudo parece ser<br />
de outra natureza. Isso nos faz<br />
ver esta Terra com olhos muito<br />
mais maravilháveis, porque<br />
compreendemos o fundamento<br />
que as coisas têm em Deus e<br />
passamos a buscar o sentido<br />
espiritual daquilo que nos rodeia.<br />
Heitor M.<br />
Flávio Lourenço<br />
Inicio a leitura do sonho de<br />
São João Bosco.<br />
Aspecto terreno,<br />
porém de outra natureza<br />
São João Bosco viu o pórtico do<br />
Céu Empíreo:<br />
“De repente, parecia encontrar-me<br />
no alto de uma colina, nos bordos de<br />
uma imensa planície, cujos confins se<br />
perdiam de vista na imensidade. Era<br />
de um azul cerúleo, como o mar calmo;<br />
embora a matéria que eu via fosse<br />
água, parecia, entretanto, um suave<br />
cristal reluzente. Debaixo dos meus<br />
pés, por detrás de mim e dos lados, eu<br />
via uma região à maneira de um litoral<br />
à beira do oceano.”<br />
A descrição é muito bonita, sobretudo<br />
vista de dentro dos olhos de um<br />
Santo. Mas ela começa por levantar<br />
um problema muito interessante, ao<br />
imaginarmos a coisa material. A ser<br />
verdadeira a interpretação, nos dá<br />
uma ideia desta Terra que é completamente<br />
nova e, por certo, antimoderna<br />
até onde possa ser; chega até<br />
os confins da antimodernidade.<br />
Eu levanto apenas o problema,<br />
mas não vou resolvê-lo: tais descrições<br />
têm o aspecto das coisas terrenas,<br />
mas não têm a natureza dela.<br />
O que parece mar não é mar nem<br />
é água; ele dá a entender que é uma<br />
matéria de outra natureza. E aquele<br />
litoral não é um verdadeiro litoral,<br />
pois, onde não há água, não há litoral.<br />
Há um encontro de matérias diversas,<br />
parecido com uma praia, mas<br />
não é praia.<br />
“Largas e gigantescas avenidas dividiam<br />
a planície em vastíssimos jardins<br />
de inenarrável beleza...”<br />
Até que ponto não era água e até<br />
que ponto não era cristal? É azul,<br />
mas possuía jardins em cima. Se o<br />
9
Reflexões teológicas<br />
compilador copiou bem, e eu creio<br />
que o tenha feito, parece real a coisa.<br />
Um enigma a ser resolvido...<br />
“...todos como que repartidos em<br />
pequenos bosques, prados e canteiros<br />
de flores de formas e cores diversas.”<br />
O problema aparece de novo. Sabemos<br />
que não há plantas no Céu<br />
Empíreo. Como, então, há canteiros<br />
de flores? E por que se faz canteiro<br />
com elas? Qual é a razão de ser<br />
disso? Dir-se-ia que esse jardim foi<br />
plantado por alguém. Não é a natureza<br />
como ela brota. Deus ordenou<br />
que essas coisas se dispusessem<br />
à maneira de jardim? Entendemos<br />
que os homens façam jardins, porque<br />
dentro do mato as coisas não tomam<br />
toda sua beleza. O mato tem<br />
sua beleza específica, mas, por exemplo,<br />
um campo não pode ter a beleza<br />
de um jardim com uma coleção de<br />
rosas; o homem precisa plantá-las. O<br />
jardim tem para nós uma razão de<br />
ser, está ligado à natureza das coisas.<br />
Entretanto, no sonho, o jardim parece<br />
não estar ligado em nada à natureza<br />
das coisas. Não se vê o que justifique<br />
um jardim no Céu. E como entender<br />
um jardim que fica em cima<br />
de uma água que não é água? Ora,<br />
deve haver um pulchrum dentro disso<br />
para ser Paraíso. Qual?<br />
“Nenhuma de nossas plantas pode<br />
dar-nos a ideia daquelas, ainda que<br />
alguma semelhança tenha. As ervas,<br />
as flores, as árvores e as frutas eram<br />
vistosíssimas e de belíssimo aspecto.<br />
As folhas eram de ouro. Os troncos e<br />
ramos de diamantes, correspondendo<br />
o resto a essa riqueza.”<br />
Assim como o mar era de uma<br />
água que não é água e de um cristal<br />
azul que não é cristal, assim também<br />
as flores, os frutos e as folhas<br />
eram de uma consistência não vegetal,<br />
porque a criatura vegetal não entra<br />
no Céu. Eram da matéria de lá,<br />
mas com as formas que se explicam<br />
de acordo com as necessidades da<br />
matéria desta Terra.<br />
Há aqui uma charada. Que uma<br />
árvore tenha folhas é a coisa mais<br />
natural do mundo. A folha é necessária<br />
para a árvore, não é um puro<br />
enfeite, como os de uma árvore de<br />
Natal. Também está na natureza da<br />
árvore dar a fruta. No Céu Empíreo,<br />
aqueles seres semelhantes aos minerais<br />
– eu hesito em dar essa qualificação<br />
– têm as formas dos seres daqui,<br />
mas não são os daqui. Qual é a<br />
razão de ser dessas formas?<br />
A pergunta vai mais além, é uma<br />
análise. Por que a matéria lá tem semelhança<br />
com a nossa? Alguém dirá:<br />
“Para o homem se sentir bem lá.”<br />
Então Deus fez uma espécie de loja<br />
de brinquedo para o homem estar no<br />
Céu? Isso não é sério. A razão não<br />
é essa. Daqui a pouco eu lanço uma<br />
hipótese que tem exatamente o atrativo<br />
do incógnito. Nós devemos ser<br />
ortodoxos lobos do mar das hipóteses,<br />
sempre com o espírito obediente<br />
a Roma.<br />
Eu estou procurando dar, na descrição,<br />
mais a beleza da incógnita do<br />
que da árvore de ouro com brilhantes.<br />
Porque uma árvore de ouro com<br />
brilhantes, um fabricante de joias<br />
falsas faz e qualquer um a toma como<br />
verdadeira. O problema é discernir<br />
o sentido espiritual e, ir em busca<br />
disso mais do que da pura descrição<br />
material.<br />
“Impossível é contar as diferentes<br />
espécies…”<br />
Portanto, há espécies diversas<br />
dessas “plantas”.<br />
“E cada espécie e cada flor resplandecia<br />
com uma luz especial.”<br />
Cada um desses seres deita focos<br />
luminosos não só de acordo com sua<br />
natureza, mas com sua individualidade,<br />
como na Terra as rosas são belas,<br />
mas cada espécie de rosa tem um<br />
tipo de beleza própria; assim também<br />
é a variedade prodigiosa dessa<br />
criação celeste, desse pequeno universo<br />
celeste. Cada uma com uma<br />
luz própria, que simboliza uma perfeição<br />
de Deus. É para nos falar de<br />
Tomas T.<br />
10
Divulgação (CC3.0)<br />
Deus, de Nossa Senhora, dos Anjos<br />
e dos Santos.<br />
“No meio daquele jardim e em toda<br />
a extensão da planície, eu contava<br />
inúmeros edifícios de uma ordem, beleza,<br />
harmonia, magnificência e proporção<br />
tão extraordinárias, que para a<br />
construção de um só deles não poderiam<br />
ser suficientes todos os tesouros<br />
da Terra.”<br />
São João Bosco viu uma planície<br />
magnífica, um jardim de uma cidade<br />
com palácios incontáveis. É uma<br />
cidade. Pode até ser uma praça pública<br />
de uma cidade. Ora, sabemos<br />
que ninguém mora em casas no Céu.<br />
Qual é o sentido dessas casas, dessas<br />
fachadas? Por que isso é assim?<br />
Qual é o mistério encantador, mas<br />
meio desconcertante, dentro do qual<br />
caminhamos?<br />
Um bonito problema: a<br />
relação da natureza celeste<br />
com as formas geométricas<br />
“Eu dizia de mim para comigo: se<br />
meus meninos tivessem uma só dessas<br />
casas, como gostariam, como seriam<br />
felizes e com quanta alegria viveriam<br />
dentro dela! E isso eu pensava<br />
quando só podia ver esses palácios<br />
por fora. Como não seriam por dentro?”<br />
Esses palácios, que não são palácios,<br />
têm um interior. Não são meras<br />
fachadas, porque não pode haver<br />
engano no Céu. E se eles têm ar de<br />
possuir um interior, é porque o possuem.<br />
Para que serve o interior desses<br />
edifícios? Haverá uma arte decorativa<br />
lá? Haverá espelhos? Haverá<br />
quadros pintados por Anjos? Haverá<br />
tapetes de alguma Pérsia indescritível,<br />
ou serão diretamente criados<br />
por Deus?<br />
A resposta não é muito fácil de<br />
dar, porque sou obrigado a responder<br />
em termos puramente geométricos.<br />
Tomemos as figuras geométricas:<br />
um quadrado, um losango, um círculo.<br />
Pensando bem, a natureza humana<br />
não vive sem ter coisas que<br />
representem formas geométricas<br />
para ela. De tal maneira são feitos<br />
nosso intelecto e nossos sentidos,<br />
que precisamos ter contato e viver<br />
dentro de um universo definível<br />
em formas geométricas. Fora disso<br />
nós estaríamos mais ou menos como<br />
quem avança em voo cego dentro<br />
de uma nuvem. É como viajar<br />
de avião. Tem-se a impressão, completamente<br />
sem graça, que se está<br />
passeando dentro de uma garrafa<br />
de leite. Nuvem, nuvem, nuvem,<br />
não se vê a paisagem, nem a cidade,<br />
é um elemento gasoso e molhado<br />
que se condensa em gotinhas sujas<br />
na asa do avião, que depois o vento<br />
leva e que se desintegram dentro<br />
da massa úmida da qual se destacaram<br />
pela pancada da asa do avião.<br />
O que é isso? Eu olho com tédio e<br />
digo: “Oh, caceteação! Se ao menos<br />
ali se desenhassem figuras geométricas,<br />
se aquilo tivesse o aspecto<br />
de um caleidoscópio, onde as formas<br />
passeiam diante do homem, como<br />
para o encantar... Sou o menos<br />
geométrico dos homens, mas como<br />
a natureza humana tem avidez da<br />
geometria!<br />
11
Reflexões teológicas<br />
J.P.Ramos<br />
E aqui entra um problema bonito:<br />
qual é a relação dessa natureza<br />
com a geometria? Entra ainda um<br />
outro problema: essas formas geométricas,<br />
de que a alma humana é<br />
tão sequiosa, não representam simbolicamente<br />
propriedades de Deus,<br />
sem cuja consideração o homem<br />
não pode viver?<br />
Então, as coisas não são redondas,<br />
quadradas ou losangulares,<br />
principalmente por causa da natureza<br />
delas, mas elas são assim porque<br />
nos dão uma ideia de Deus?<br />
E Deus as criou com essa natureza,<br />
em primeiro lugar, para nos dar<br />
uma ideia d’Ele mesmo e, em segundo<br />
lugar, atendendo às necessidades<br />
naturais delas. Mas a razão<br />
de ser dessas formas todas é muito<br />
menos a natureza das coisas do que<br />
o próprio Deus.<br />
Está dito no Gênesis: “Façamos o<br />
homem à nossa imagem e semelhança”<br />
(Gn 1,26) e “Deus contemplou<br />
toda a sua obra, e viu que tudo era<br />
muito bom” (Gn 1,31). A razão de<br />
ser profunda pela qual as coisas têm<br />
as formas que têm não é a natureza<br />
delas, mas é porque Deus quis que tivessem<br />
aquelas formas para Ele contemplar.<br />
E isso porque elas têm uma<br />
certa semelhança com Ele. Uma semelhança<br />
inefável, que não se pode<br />
exprimir em palavras humanas.<br />
Semelhanças de Deus<br />
no Céu e na Terra<br />
Quem sabe, então, se todo o Céu<br />
Empíreo é uma imensa repetição, de<br />
forma magnífica, de puras formas,<br />
puras cores, puros sons, puros deleites<br />
que têm seu fundamento em Deus<br />
e que ali nos deixam vê-Lo melhor?<br />
Olhando para as coisas desta Terra,<br />
nós devemos também não nos contentar<br />
com a explicação científica,<br />
mas pensar: por que a laranja tem,<br />
vagamente, a forma de uma esfera?<br />
Não é pelas razões que a natureza da<br />
laranja explica, mas é porque Deus<br />
queria que houvesse seres esféricos e<br />
houvesse esferas cor de laranja, com<br />
gosto de laranja, para melhor assemelharem-se<br />
a Ele. É mais ou menos<br />
como um jogo de espelhos.<br />
O caldo da laranja está dentro dela<br />
e ele se explica mais em função de<br />
Deus do que de si próprio. Como<br />
São Lourenço do Escorial<br />
Deus, sendo infinitamente superior<br />
à laranja, de algum modo Se reflete<br />
nela? Porque há uma semelhança<br />
ali. Como é essa semelhança? É dificílimo<br />
ter uma ideia. Mas vale a pena<br />
aguçar o espírito pensando nisso<br />
e como que procurando prelibar.<br />
Dessas considerações vem o verdadeiro<br />
prazer da vida, pois isso nos<br />
faz ver esta Terra com olhos muito<br />
mais maravilháveis, porque compreendemos<br />
o fundamento que essas<br />
coisas têm em Deus.<br />
Certas aulas de ciência natural<br />
quase amputam isso, dando a pura<br />
explicação botânica da forma de uma<br />
laranja; não oferecem uma formação<br />
pela qual se dá o complemento filosófico,<br />
metafísico e até, eventualmente,<br />
com algum fundamento na Revelação<br />
a respeito da natureza da laranja.<br />
Então, fica-se com a ideia de que o<br />
mundo é assim, só porque ele é assim.<br />
Ora, ele é assim para ser semelhante<br />
a Deus, que no mais alto do<br />
Céu é assim.<br />
E nós temos outra noção de tudo<br />
quanto nos cerca. Quando se vê<br />
um homem construir casas – Felipe II<br />
construindo o Escorial, ou levantar-se<br />
em Paris a Catedral de Notre-Dame<br />
–, nós pensamos<br />
em tudo quanto deu razão<br />
de ser àquilo; mas esses<br />
homens, agindo retamente<br />
segundo seu senso artístico,<br />
faziam coisas que espelhavam<br />
a Deus. Era uma<br />
semelhança nova de Deus<br />
que vinha nascendo.<br />
Daí compreendemos<br />
que todo esse Céu Empíreo<br />
é muito mais semelhante<br />
a Deus do que o nosso. E<br />
nisso tem uma beleza que<br />
não podemos imaginar como<br />
é, mas da qual podemos<br />
ter uma ideia através<br />
desta reflexão.<br />
Então as coisas se explicam<br />
mais por Deus do<br />
que pela Terra.<br />
12
Harmonia celeste e<br />
uma orquestra de cem<br />
mil instrumentos<br />
A laranja não é um exemplo bem<br />
escolhido. Outro exemplo melhor é<br />
a música, porque é muito mais espiritual<br />
do que uma coisa que se come.<br />
Os comestíveis não continuarão no<br />
Céu, porque o homem não terá fome.<br />
Mas a música continuará, como<br />
veremos em breve. A música da Terra<br />
é um reflexo da música do Céu,<br />
que é um reflexo da música dos Anjos,<br />
que é, por fim, reflexo da harmonia<br />
interna e insondável das Três<br />
Pessoas da Santíssima Trindade.<br />
Quem estudasse harmonia musical,<br />
por exemplo, deveria pensar como<br />
tudo quanto está aparecendo ali<br />
é, de algum modo, um reflexo das<br />
Três Pessoas da Santíssima Trindade,<br />
de sua vida interna ou da glória extrínseca<br />
dessas Três Pessoas Divinas.<br />
Aí apareceria para os músicos a verdadeira<br />
inspiração.<br />
Fizemos assim uma espécie de digressão<br />
pelos mistérios do Céu Empíreo,<br />
vimos o habitat; veremos agora<br />
os que moram ali. O sonho vai começar<br />
a se encher de gente nesse ambiente<br />
maravilhoso. Como são essas pessoas<br />
e que tipo de felicidade gozam lá?<br />
“Enquanto eu contemplava extasiado<br />
tão estupendas maravilhas que<br />
adornavam aquele jardim, chegou-me<br />
aos ouvidos uma música dulcíssima,<br />
de tão grata harmonia, que eu não vos<br />
posso dar uma ideia adequada de como<br />
era. Eram cem mil instrumentos<br />
que produziam cada um som diverso<br />
do outro.”<br />
A música devia ser harmônica<br />
com as impressões que o jardim<br />
produziu. São João Bosco, à medida<br />
que prestava atenção, distinguia<br />
e caracterizava os instrumentos,<br />
mas que não são os nossos miseráveis<br />
violinos e pianos. Tudo isso<br />
é nada em comparação com essa orquestra.<br />
E vem aqui algo de que eu<br />
gosto muito:<br />
“A esses uniam-se os coros de cantores.”<br />
O mais belo instrumento que há<br />
é a voz humana. Por causa do pecado<br />
original não se nota isso. Ao ouvir<br />
uma harpa julgamos que é mais bela<br />
do que qualquer cantor. Mas no Céu<br />
a voz humana dos coros gloriosos<br />
é mais bela do que todos os instrumentos.<br />
E esse cântico maravilhoso<br />
é mero fundo de quadro para o cântico<br />
dos bem-aventurados. Aí compreendemos<br />
bem o papel da música<br />
instrumental com canto.<br />
Gáudio da simpatia e da<br />
plena compreensão mútua<br />
Catedral de Notre-Dame de Paris<br />
“Então, havia uma multidão de<br />
gente que naquele jardim se encontrava<br />
e que se regozijava, alegre e contente.”<br />
Dom Bosco via uma multidão<br />
proporcionada com a capacidade dele<br />
de prestar atenção em cada um;<br />
eles andavam sem se comprimir,<br />
tão em harmonia uns com os outros<br />
que, quando se viam, se agradavam,<br />
cheios de gáudio.<br />
Esse gáudio da simpatia mútua<br />
e da plena compreensão não existe<br />
nesta Terra. É exatamente como se<br />
deve ver a Terra. Um de nossos grandes<br />
erros na fase da adolescência é<br />
procurar gente que seja consonante<br />
conosco segundo esse modelo ideal.<br />
Porém, recebe-se cada pontapé de<br />
sair chiando! A razão é porque o trato<br />
como descreve São João Bosco só<br />
se encontra no Céu. Na Terra nós te-<br />
Gabriel K.<br />
13
Reflexões teológicas<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
mos que tolerar cada casca-grossa e<br />
cada imperfeição do arco-da-velha!<br />
Essa é a vida. No Céu o convívio é<br />
outro.<br />
“Alguns cantavam, outros tocavam.<br />
Cada nota fazia o efeito de mil instrumentos<br />
reunidos.”<br />
Imaginar um instrumento que faça<br />
o efeito de mil...!<br />
Faço aqui um parêntese todo pessoal:<br />
um dos encantos que eu tenho<br />
pelo órgão. Ao tocar cada nota,<br />
ele me dá a impressão de haver<br />
uma porção de instrumentos que tocam<br />
ao mesmo tempo. Por isso acho-<br />
-o, a perder de vista, superior a qualquer<br />
outro instrumento. Lembro-me<br />
de que quando comecei a prestar<br />
atenção nele eu pensava: “As pessoas<br />
não percebem que isso é um concerto<br />
de concertos? Falam em dó, ré,<br />
mi. No órgão há isso, mas sobretudo<br />
existe mais. No piano existe um “lá”,<br />
mas no órgão existe um universo de<br />
“lás”, acentuado ainda por aqueles<br />
registros que dão uma ideia global<br />
do universo dos sons.” É a perfeição<br />
das perfeições em matéria de<br />
harmonia.<br />
“Ouviam-se os vários graus de escala<br />
harmônica, desde os mais baixos<br />
aos mais altos que se possa imaginar.<br />
Mas tudo em acordes perfeitos.<br />
Ah! para descrever essa harmonia não<br />
bastam comparações humanas! Via-<br />
-se pelo rosto daqueles felizes habitantes<br />
dos jardins que os cantores não só<br />
experimentavam extraordinário prazer<br />
em cantar...”<br />
O que torna o canto particularmente<br />
deleitável: quando a pessoa<br />
canta um canto perfeito e notam-se<br />
nela as harmonias perfeitas da alma<br />
perfeita, na alegria perfeita.<br />
“...mas, ao mesmo tempo, sentiam<br />
um imenso gáudio em ouvir cantar os<br />
demais.”<br />
Isso é um senso de harmonia pouco<br />
comum. Um cantor gostar de ouvir outros<br />
cantores ao invés de fazer solo, não<br />
é comum... Um músico gostar de ouvir<br />
os outros tocarem tão bem ou melhor<br />
do que ele na orquestra onde apenas<br />
ele tenha um clarinete... No Céu é diferente:<br />
“Este, como canta bem! E aquele,<br />
como é estupendo! Canta ainda melhor!”<br />
É um universo sem inveja.<br />
“Mais um cantava, mais se acendia<br />
nele o desejo de cantar e quanto mais<br />
escutava, mais desejava escutar.”<br />
É a convivência e a harmonia perfeitas<br />
da alma descrita de modo a<br />
impressionar a imaginação. Está<br />
contido aqui um verdadeiro tratadozinho<br />
de Filosofia ou de Moral.<br />
Cântico sobrenatural<br />
cheio de pensamento<br />
Steven Pisano(CC3.0)<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1979<br />
“Este era um dos cantos: Salus,<br />
honor, gloria Deo Patri omnipotenti,<br />
Auctor sæculi, qui erat, qui est et qui<br />
venturus est, judicare vivos et mortuos,<br />
in sæcula sæculorum.”<br />
Podemos imaginar um pouco as<br />
inflexões. “Saudação, honra, glória a<br />
Deus Pai onipotente, Autor de todos<br />
os séculos, que era, que é e que será,<br />
e que virá julgar os vivos e os mortos<br />
nos séculos dos séculos.”<br />
Ora, cada palavra dessas contém<br />
um pensamento; e cada pensamento<br />
14
desses é susceptível de ser musicado.<br />
Porque não há um pensamento que<br />
não seja susceptível de ser musicado.<br />
É questão de ter talento e saber musicar.<br />
Podemos imaginar esse “salus”<br />
contendo a nobreza de todas as reverências,<br />
a humildade de todas as genuflexões<br />
e o élan de alma de todas<br />
as orações que nos ritos orientais católicos<br />
se fazem de pé.<br />
“Honor”, falando da honra de<br />
Deus, que repercussões tem! A palavra<br />
honra, nas línguas que eu conheço,<br />
como no francês “honneur”,<br />
é sempre muito bonita. Mesmo nas<br />
línguas de origem não latina, como o<br />
alemão, “Ehre”, com h, porque sem<br />
h a palavra não valeria nada. É solene,<br />
superior, honorífica. Como é bonita<br />
honneur! E como é bonita honra!<br />
Algo do pulchrum da ideia da<br />
honra se musica na própria palavra.<br />
E eu tenho a seguinte impressão:<br />
que na linguagem que se perdeu na<br />
torre de Babel, mas que ainda vinha<br />
do Paraíso, as palavras musicavam os<br />
conceitos. E isso desapareceu para<br />
castigo nosso e deu nessa Babel em<br />
que vivemos. Mas isso cantado deveria<br />
ser assim: “salus”, uma profunda<br />
reverência; “honor”, um temor reverencial<br />
e um respeito; “gloria”, uma<br />
explosão diante da manifestação de<br />
Deus. Três estágios da representação<br />
da música.<br />
Agora, não sei como pronunciar<br />
essa palavra “Deo”, porque a palavra<br />
Deus é tudo: é inefável, é perfeita.<br />
Quem poderá musicá-la? Talvez<br />
os lábios da Santíssima Virgem e, assim<br />
mesmo, à maneira de uma criatura.<br />
Entretanto, podemos ter uma<br />
ideia. Ouve-se um pouco desse som<br />
no Evangelho quando Nosso Senhor<br />
reza: “Meu Pai.” Aí transparece algo<br />
da vida trinitária. Mas é algo, não<br />
conseguimos atingi-la.<br />
Em seguida cantam: “Patri omnipotenti”:<br />
Deus Pai; Pai, enquanto gera<br />
o Filho e procede d’Eles o Espírito<br />
Santo, mas também porque é Pai<br />
de todos nós. Depois de pronunciar a<br />
palavra inefável “Deus”, pronunciar<br />
a palavra “Pai” demonstra a intimidade,<br />
a junção, o afeto. Onipotente<br />
é uma exclamação que eu imaginaria<br />
quase militar da glória de Deus.<br />
Depois eu imaginaria uma cadência:<br />
“Auctor sæculi”; o tempo foi criado<br />
por Ele. Isso deixa ver uma eternidade<br />
misteriosa para trás e uma<br />
outra para frente. “Auctor”, Aquele<br />
que fez. E fez o quê? Os séculos,<br />
procissão grandiosa das centúrias<br />
andando pela História! Isso deve ser<br />
musicável.<br />
Para indicar bem o tamanho<br />
desses séculos, o cântico continua:<br />
Órgão da Basílica de Saint-Denis, Paris<br />
“qui erat, qui est et qui venturus est”<br />
– que foi, que é e que será. Abrange<br />
tudo, e, no fim, um misto de glória<br />
e de castigo: virá para julgar os<br />
vivos e os mortos. Encerram-se os<br />
séculos com chave de ouro. Acaba<br />
o tempo e o destino é eterno. Os<br />
bem-aventurados do sonho já estão<br />
julgados. Esperam no Céu apenas<br />
os seus próprios corpos. Isso é uma<br />
beleza!<br />
E termina “in sæcula sæculorum”,<br />
a melodia se esvai de repente e se dilui<br />
numa música diferente. v<br />
(Extraído de conferência de<br />
8/9/1979)<br />
Diliff(CC3.0)<br />
15
Flávio Aliança<br />
C<br />
alendário<br />
São Raimundo de Fitero<br />
1. São Raimundo, fundador<br />
(†1160). Abade do mosteiro de Fitero,<br />
Espanha. Fundou a Ordem de Calatrava<br />
e foi insigne defensor do Cristianismo.<br />
2. Apresentação do Senhor.<br />
São Lourenço, bispo (†619). Governou<br />
a Igreja de Cantuária, na Inglaterra,<br />
depois de Santo Agostinho e<br />
converteu à Fé cristã o Rei Edvaldo.<br />
3. São Brás, bispo e mártir (†320).<br />
São Leônio, presbítero (†s. IV).<br />
Segundo a tradição, foi discípulo de<br />
Santo Hilário de Poitiers.<br />
4. V Domingo do Tempo Comum.<br />
Santo Aventino, (†537). É venerado<br />
como auxiliar do Bispo São Lopo<br />
de Troyes.<br />
5. Santa Águeda, virgem e mártir<br />
(†c. 251).<br />
São Sabas, o Jovem, monge (†995).<br />
Durante a incursão dos sarracenos,<br />
junto com o seu irmão Macário, propagou<br />
incansavelmente a vida cenobítica<br />
nas regiões da Calábria e da Lucânia.<br />
6. São Paulo Miki e companheiros,<br />
mártires (†1597).<br />
dos Santos – ––––––<br />
Santa Rénula (ou Reinilde), abadessa<br />
(†s. VIII). Regeu o mosteiro de<br />
Eike, na região de Tongres, no Brabante<br />
da Austrásia, atualmente Bélgica.<br />
7. São João de Triora (Francisco<br />
Maria Lântrua), presbítero e mártir<br />
(†1816). De origem italiana, entrou<br />
aos 17 anos para a Ordem dos Frades<br />
Menores. Após ordenado sacerdote,<br />
ofereceu-se para as missões, sendo<br />
designado às regiões da China. Foi<br />
martirizado por enforcamento, em<br />
Changsha, cidade do Hunan.<br />
8. Santo Estêvão, abade (†1124).<br />
Fundador da Ordem de Grandmont.<br />
9. Beata Ana Catarina Emmerich,<br />
virgem (†1824). Religiosa agostiniana<br />
favorecida com grandes dons místicos.<br />
10. Santa Escolástica, virgem<br />
(†547).<br />
Beatos Pedro Fremond e cinco<br />
companheiras, mártires (†1794). Fuzilados<br />
durante a Revolução Francesa<br />
por sua fidelidade à Igreja Católica.<br />
11. VI Domingo do Tempo Comum.<br />
Nossa Senhora de Lourdes.<br />
12. Beata Umbelina, religiosa<br />
(†1136). Convertida dos prazeres do<br />
mundo por seu irmão São Bernardo<br />
de Claraval. Com o assentimento de<br />
seu esposo, entregou-se à vida monástica.<br />
Foi prioresa do mosteiro de<br />
Jully, na região de Troyes, na França.<br />
13. Beato Jordão de Saxônia, presbítero<br />
(†1237). Sucessor e imitador de<br />
São Domingos, propagou com intenso<br />
vigor a Ordem Dominicana; morreu<br />
em um naufrágio, próximo da costa<br />
da Palestina.<br />
14. Quarta-feira de Cinzas.<br />
São Cirilo, monge (†869) e São<br />
Metódio, bispo (†885).<br />
15. São Decoroso, bispo (†d. 680).<br />
Governou a diocese de Cápua, na Itália,<br />
durante trinta anos.<br />
Beato Miguel Sopocko, presbítero<br />
(†1975). Fundador das Irmãs de Jesus<br />
Misericordioso. Confessor de Santa<br />
Faustina Kowalska e grande propagador<br />
da devoção à Divina Misericórdia.<br />
Morreu em Bialystok, Polônia.<br />
16. Beata Filipa Maréri, virgem<br />
(†1236). Ao ouvir uma pregação de<br />
São Francisco de Assis, tomou-se de<br />
entusiasmo pela perfeição evangélica<br />
e decidiu desprezar os faustos do<br />
mundo para abraçar a forma de vida<br />
de Santa Clara, recém-estabelecida<br />
em sua terra.<br />
17. Sete Santos Fundadores dos<br />
Servitas. São eles: Bonfiglio Monardi,<br />
Bonaiuto Manetti, Amadio de Amadei,<br />
Ugoccio de Ugoccioni, Sostenio<br />
de Sosteni, Maneto d’Antela e Aleixo<br />
Falconieri. Eram comerciantes em<br />
Florença, mas retiraram-se de comum<br />
acordo para o Monte Senário, onde<br />
se consagraram ao serviço da Virgem<br />
Maria, fundando uma Ordem sob a<br />
Regra de Santo Agostinho. São comemorados<br />
todos nesse dia no qual,<br />
Beata Umbelina<br />
Flávio Lourenço<br />
16
––––––––––––––– * Fevereiro * ––––<br />
em 1310, segundo a tradição, morreu<br />
o último deles, Aleixo, já centenário.<br />
18. I Domingo da Quaresma.<br />
19. São Mansueto de Milão, bispo<br />
(†680). Combateu com ardor a heresia<br />
dos monotelistas.<br />
20. Santos Francisco (†1919) e Jacinta<br />
Marto (†1920).<br />
Cinco beatos mártires (†303). No<br />
tempo do Imperador Diocleciano,<br />
foram mortos em Tiro da Fenícia, no<br />
atual Líbano. Primeiro foram flagelados<br />
com azorragues em todo o corpo,<br />
depois desnudados, lançados à<br />
arena e atirados a vários gêneros de<br />
feras, manifestando sempre a mesma<br />
constância e firmeza. Permanecendo<br />
incólumes ao perigo das feras,<br />
foram finalmente passados ao fio da<br />
espada.<br />
21. São Pedro Damião, bispo e<br />
Doutor da Igreja (†1072).<br />
Beato Tomás Pormort, presbítero e<br />
mártir (†1592). No reinado de Isabel I<br />
da Inglaterra, foi torturado no cárcere<br />
por causa do seu sacerdócio; consumou<br />
o martírio no suplício da forca,<br />
junto à Catedral de São Paulo.<br />
22. Festa da Cátedra de São Pedro<br />
Apóstolo.<br />
São Maximiano, bispo (†556).<br />
Cumpriu com fidelidade o seu ministério<br />
pastoral e combateu contra os<br />
hereges pela unidade da Igreja.<br />
23. São Policarpo, bispo e mártir<br />
(†155).<br />
Beato Luís Mzyk, presbítero e<br />
mártir (†1942). Membro da Sociedade<br />
do Verbo Divino. Durante a ocupação<br />
militar na Polônia, foi assassinado<br />
pelos guardas do quartel militar,<br />
dando testemunho de Cristo até<br />
à morte.<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
24. Beato Tomás Maria Fusco,<br />
presbítero (†1891). Fundador do Instituto<br />
das Filhas da Caridade do Preciosíssimo<br />
Sangue.<br />
25. II Domingo da Quaresma.<br />
Santa Valburga, abadessa (†779).<br />
A pedido de São Bonifácio e dos seus<br />
irmãos São Vilebaldo e São Vinebaldo,<br />
foi da Inglaterra para a Alemanha,<br />
onde dirigiu excelentemente dois<br />
mosteiros, um de monges e outro de<br />
monjas.<br />
26. São Faustiniano, bispo (†s.<br />
IV). Dirigiu a diocese de Bolonha, na<br />
Emília-Romanha, região da Itália, no<br />
Beata Piedade da Cruz<br />
tempo de Diocleciano. Exímio pastor,<br />
pela pregação fortaleceu e fez crescer<br />
a comunidade sob seus cuidados, enfrentando<br />
com galhardia os tempos<br />
difíceis da perseguição.<br />
Beata Piedade da Cruz (Tomasina<br />
Ortiz Real), virgem (†1916). Fundou<br />
a Congregação das Irmãs Salesianas<br />
do Sagrado Coração de Jesus.<br />
27. São Gregório de Narek, monge<br />
e Doutor da Igreja (†1005). Evangelizador<br />
dos Armênios, ilustre pela doutrina,<br />
escritos e ciência mística.<br />
Santa Honorina<br />
Santa Honorina, virgem e mártir<br />
(†303). Segundo a tradição, foi martirizada<br />
em Mélamare, comuna francesa,<br />
e seu corpo foi atirado ao Rio<br />
Sena indo parar em Graville, onde<br />
foi recolhido e sepultado pelos cristãos.<br />
28. Beatos Gaspar Kizaemon e<br />
Maria Mine, mártires (†1627). Esposos,<br />
martirizados com outros companheiros,<br />
no Japão.<br />
29. Santo Hilário, Papa (†468). Sucessor<br />
de São Leão Magno no sólio<br />
pontifício, confirmou os concílios de<br />
Niceia, Éfeso e Calcedônia, defendendo<br />
a primazia da Sede Romana.<br />
Além de erigir um mosteiro dedicado<br />
a São Lourenço, edificou diversos<br />
oratórios, sendo um deles em honra a<br />
São João Batista, e zelou pela dignidade<br />
do culto.<br />
Beata Antônia de Florença, viúva<br />
(†1472). Fundadora e primeira abadessa<br />
do Mosteiro do Corpo de Cristo,<br />
com a observância da primeira Regra<br />
de Santa Clara.<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
17
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Flávio Aliança<br />
Maldição da ambiguidade,<br />
choque entre<br />
mentalidade e princípio - II<br />
Toda mentalidade encarna uma doutrina, a qual muitas vezes<br />
não é confessada e permanece oculta por detrás de princípios<br />
que a pessoa diz ter, mas não ousa praticar. Este choque entre<br />
princípios e mentalidade produz um abalo na personalidade.<br />
Aprofundemos no tema sobre<br />
doutrina e mentalidade.<br />
A mentalidade enquanto<br />
encarnação da doutrina<br />
Nós nos perguntamos: por detrás<br />
dessa poesia 1 , há uma mentalidade?<br />
Há uma doutrina? Que diferença há<br />
entre uma e outra? O que é doutrina<br />
e o que é mentalidade?<br />
Há pessoas, neste atual mundo de<br />
confusão, que julgam que o estudo<br />
da mera doutrina forma um homem<br />
e que não há necessidade de estudar<br />
a mentalidade. Outras têm a ilusão<br />
em sentido contrário, de que uma<br />
vez tomado conhecimento da mentalidade,<br />
não é preciso ser conhecedor<br />
da doutrina.<br />
Sabendo das relações entre ambas<br />
realidades, percebemos como uma<br />
completa a outra e como se deve ter<br />
as duas coisas. Porque toda mentalidade<br />
é, sob certo ponto de vista, a<br />
encarnação, a redução a sinais sensíveis<br />
de uma determinada doutrina.<br />
Qual é a doutrina que está posta<br />
nesse soneto? É a do comum de um<br />
gozador da vida, que fez o cálculo de<br />
prazer para seus dias.<br />
Gozadores da vida em oposição<br />
à mentalidade católica<br />
Exporei as doutrinas sobre a vida<br />
e a felicidade que convergem na<br />
mentalidade de um gozador.<br />
Viver consiste em ser feliz. Ora, se<br />
as grandes emoções são uma desventura,<br />
logo, a felicidade consiste em<br />
18
não as ter. Deve-se preparar<br />
para uma vida calma,<br />
em que o correr das<br />
horas sem emoção confere<br />
a própria felicidade.<br />
Isso é uma doutrina.<br />
Há outros gozadores<br />
que concebem o contrário:<br />
a felicidade está nas<br />
grandes emoções. Assim<br />
sendo, têm-se a necessidade<br />
das grandes aventuras,<br />
de sair correndo,<br />
galopar, imaginar.<br />
Quando as grandes emoções<br />
cessam, o indivíduo<br />
para de viver.<br />
Se fôssemos dizer<br />
a um desses indivíduos:<br />
“Você nega a cruz<br />
de Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo?” Ele responderá:<br />
“Absolutamente não!<br />
Eu tenho um lindo crucifixo<br />
dourado em minha<br />
casa e, às Sextas-<br />
-Feiras Santas, vou sempre<br />
à paróquia com a minha<br />
mulher e meus filhos. Todos osculamos<br />
a Santa Cruz. E até a mendiga<br />
a quem dou espórtulas me elogia:<br />
‘Que beleza ver toda sua família<br />
aos pés da cruz!’ Eu comentei com<br />
minha mulher: ‘Aos pés da cruz, aos<br />
pés da cruz… que bonito!’”<br />
No entanto, esses homens constituem<br />
os dois tipos de almas mundanas,<br />
cuja doutrina é diametralmente<br />
oposta à que São Luís Grignion<br />
de Montfort denomina como a mentalidade<br />
e a doutrina dos amigos da<br />
Cruz.<br />
Ao verdadeiro católico não importa<br />
gozar, importa servir. Ele está<br />
nos antípodas dos dois gozadores,<br />
porque guia-se pela verdadeira<br />
doutrina de viver para amar, louvar<br />
e servir a Deus nesta Terra e dar-Lhe<br />
glória por toda a eternidade no Céu.<br />
A felicidade sem nuvens não existe<br />
para o homem neste vale de lágrimas<br />
e não seriam as grandes nem as<br />
pequenas emoções que lha confeririam.<br />
A única existência que não<br />
é insuportável é a do católico, que<br />
tem sua vida lançada a tudo quanto<br />
a Providência permite e dispõe. Será<br />
uma grande ou uma pequena emoção,<br />
será o acontecimento que for,<br />
Flávio Lourenço<br />
ele cumpre com seu dever<br />
e, tendo-o cumprido,<br />
ele viveu.<br />
E o que vem a ser<br />
mentalidade? Qual é a<br />
diferença que há entre<br />
ela e a doutrina?<br />
O homem é um<br />
colecionador de<br />
símbolos de sua<br />
mentalidade<br />
Mentalidade é o estado<br />
de um homem que<br />
ajustou toda a sua pessoa<br />
à doutrina que sustenta:<br />
todo o sentir, o<br />
modo de ser, tudo quanto<br />
faz, o ambiente que<br />
cria. Ele é um símbolo<br />
vivo de sua doutrina, é<br />
um colecionador de símbolos<br />
e constitui em torno<br />
de si um ambiente-<br />
-símbolo, e canta depois<br />
aquilo que simbolizou…<br />
Esse é o homem que tem mentalidade.<br />
No caso do poeta, ele tem uma<br />
convicção doutrinária que deixa<br />
transparecer. Ora, não se trata apenas<br />
de uma explicação verbal, mas<br />
todo seu ser, todo seu temperamen-<br />
Jaan Künnap(CC3.0)<br />
19
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
to, sua sensibilidade, seu estilo de vida<br />
e todos seus hábitos transmitem<br />
uma doutrina e estão ajustados a ela.<br />
Cercado dos símbolos, ele compõe<br />
ainda uma poesia a fim de fazer outros<br />
sentirem a gostosura do que ele<br />
experimenta.<br />
O espírito humano precisa conhecer<br />
a verdade e a virtude inteiras<br />
dentro da doutrina, mas esta deve<br />
ser tornada para ele cognoscível<br />
em todos seus aspectos, de modo a<br />
que toda sua pessoa assimile a doutrina<br />
quando, por exemplo, ele entra<br />
num ambiente cercado de símbolos.<br />
Deus dispôs que o homem formasse<br />
sua mentalidade assim.<br />
Para isso a Igreja foi constituída<br />
Mestra da Revelação, para garantir<br />
que chegasse a todos os povos o conhecimento<br />
da verdade. Mas ela depois<br />
promoveu a liturgia, as cerimônias,<br />
os templos, como ambientação<br />
para a prática da doutrina e para se<br />
ter horror ao que é lhe oposto.<br />
Assim é que a doutrina forma a<br />
mentalidade. Ou é isto, ou o indivíduo<br />
adere a uma doutrina e tem a<br />
mentalidade formada de outra maneira.<br />
Como pode haver essa contradição?<br />
Dou alguns exemplos.<br />
Doutrina sem mentalidade,<br />
mentalidade sem doutrina<br />
O escritor fala em partilha, o que<br />
supõe, portanto, que se tenham herdado<br />
bens. Imaginemos que ele tenha<br />
recebido de seu trisavô um velho<br />
romance de Cavalaria, um bonito livro<br />
das primeiras encadernações.<br />
Ele não lê, mas guarda-o em casa,<br />
porque acha interessante ter sobre a<br />
mesa de um de seus salões.<br />
Esse homem tem um neto que nas<br />
horas vagas vai brincar em sua casa,<br />
e como ele reputa o avô supremamente<br />
sem graça, começa a ler o romance<br />
de Cavalaria. O menino, que<br />
gosta do livro, pode até entusiasmar-<br />
-se com a história, mas, habituado à<br />
casa do avô e à casa do pai formado<br />
pelo avô, ele não viverá o espírito de<br />
Cavalaria. Neste caso, ele tem a doutrina,<br />
não tem a mentalidade.<br />
Há pessoas que gostam de assistir<br />
a romances ou novelas policiais. Se a<br />
novela é reproduzida às onze da noite,<br />
por exemplo, elas trancam bem<br />
a casa antes, sentam-se na poltrona<br />
mais cômoda; conforme o nível,<br />
põem-se de chinelos e ligam a televisão<br />
pouco antes do horário para pegarem<br />
a narrativa inteira, e a acompanham<br />
com uma torcida única.<br />
Acaba a sessão, todos se retiram,<br />
tomam um copo de água ou de leite,<br />
vão com calma para o quarto dormir,<br />
pensando como acabará o ca-<br />
Samuel Holanda<br />
Mosteiro da Batalha, Portugal<br />
20
Flávio Lourenço<br />
so da moça aflita que ficou pendurada<br />
num fio de eletricidade, prestes a<br />
cair na rua. Deitam-se e dormem um<br />
sono monumental.<br />
Uma pessoa assim pode até encantar-se<br />
doutrinariamente com o<br />
risco enquanto sendo um ornato da<br />
vida, e gosta inclusive de vê-lo na vida<br />
do outro. Mas... em sua vida, ela<br />
mesma não quer riscos, porque não<br />
tem aquela mentalidade e sim a do<br />
Plantin 2 .<br />
E a pessoa sofre uma contradição<br />
interna, a qual tona-se fonte<br />
de mal-estar. Mas ninguém há que<br />
não tenha uma mentalidade segundo<br />
uma certa doutrina. Pode-se estar<br />
dividido entre duas doutrinas<br />
distantes, mas alguém a-doutrinário<br />
não existe.<br />
O explícito vazio e o<br />
implícito envergonhado<br />
Conhecer a doutrina não basta.<br />
Quantos há no Inferno que conheceram<br />
a verdade, entretanto não amoldaram<br />
sua mentalidade.<br />
Alguém dirá: “Mas uma pessoa<br />
nunca será capaz de explicitar isso.”<br />
Quem tem a mentalidade assim não<br />
se incomoda em explicitar,<br />
isso já seria parte do pensamento;<br />
ela gosta de ser.<br />
E esse tipo de mentalidade,<br />
que vive à margem de<br />
sua própria doutrina, até<br />
prefere não explicitar nada,<br />
para não se comprometer.<br />
Voltando ao exemplo<br />
imaginário do rapazinho<br />
lendo o Amadís de Gaula<br />
3 , imaginemos que ele,<br />
enquanto faz a leitura, se<br />
regala em tomar uma coalhada<br />
deliciosa que a<br />
avó lhe preparou. Depois<br />
ele vai passear debaixo<br />
das espaldeiras pensando<br />
consigo: “Como o vovô<br />
é um colosso! Ninguém<br />
o amola.” E o avô lhe diz: “Meu filho,<br />
aprenda comigo. Ah! Vida<br />
sossegada é isso!”<br />
O rapaz percebe de modo<br />
confuso que, se explicitar<br />
a doutrina, ele tem um choque;<br />
então, se há algo que ele<br />
não quer é que as coisas lhe<br />
fiquem claras. É a convivência<br />
vergonhosa de um explícito<br />
vazio com um implícito envergonhado.<br />
Esse é o estado<br />
de espírito.<br />
Se a pessoa não explicita e<br />
persiste em não explicitar, em<br />
determinado momento a Providência<br />
a chama. E Deus,<br />
que odeia a mentira e odeia<br />
que se fechem os olhos para a<br />
verdade, sobretudo a verdade<br />
interior, vem com um castigo.<br />
Começa uma vida ordenada<br />
pela Providência, que<br />
dá esbarrões para convidar a<br />
pessoa à explicitação. Ou poderá<br />
acontecer de a pessoa,<br />
de repente, rachar. Comete<br />
uma infâmia, cai em si: “Isso<br />
eu não deveria ter feito…<br />
agora não tem remédio”, e se<br />
desespera.<br />
Choque de mentalidades;<br />
Judas e o moço rico<br />
Com Judas não terá havido um<br />
processo assim?<br />
Ele foi afundando meio subconscientemente;<br />
em certo momento rouba<br />
um dinheiro do caixa dos Apóstolos.<br />
Ora, onde está Nosso Senhor o<br />
caixa não é de ninguém, porque tudo<br />
é d’Ele. Judas rouba um valor, gasta-o<br />
na ideia de repor depois; mas para isso<br />
roubará outra vez, fazendo um negocinho<br />
para dar o lucro da reposição<br />
e para ele poder tomar mais um trago<br />
de vinho; o negocinho, entretanto, dá<br />
errado e ele desanima de pagar.<br />
Ele começa a ficar com nó, porque<br />
São Pedro percebeu a coisa e<br />
começa a olhar feio; ele fica inseguro<br />
na presença de Nosso Senhor e o<br />
processo segue seu curso. Em cer-<br />
Judas no Horto das Oliveiras - Museu<br />
Nacional Bávaro, Munich<br />
Flávio Lourenço<br />
21
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Nosso Senhor com o moço rico - Igreja de São Vendelino, Saint Henry, EUA<br />
to momento, ele planeja<br />
a traição… É a<br />
maldição da ambiguidade!<br />
Ele foi iludindo-se<br />
a si próprio,<br />
iludindo-se, iludindo-se,<br />
iludindo-se.<br />
São as mentalidades<br />
cujos princípios<br />
não se ousa confessar,<br />
ao mesmo tempo<br />
em que se confessa<br />
princípios os quais<br />
não se ousa praticar.<br />
Aqui está o choque<br />
mentalidade-princípio.<br />
Outro exemplo é o<br />
fato do moço rico do<br />
Evangelho. Ele encontrou-se<br />
com o Divino<br />
Mestre e perguntou<br />
o que deveria<br />
fazer para ser perfeito,<br />
e recebeu a<br />
resposta de que era<br />
preciso observar os<br />
Mandamentos. O jovem<br />
respondeu que<br />
os praticava desde a<br />
mocidade. Nosso Senhor<br />
olhou para ele,<br />
amou-o, quis-lhe bem<br />
e disse: “Uma só coisa<br />
te falta: vai, vende<br />
tudo o que tens e dá-<br />
-o aos pobres, e terás<br />
um tesouro no Céu.<br />
Depois vem e segue-<br />
-Me” (Mt 19, 21).<br />
O moço, entretanto,<br />
tinha uma ambiguidade<br />
fundamental:<br />
ele queria ser<br />
perfeito continuando<br />
a ser ele mesmo, visto numa lupa<br />
de aumento. Contudo, Nosso Senhor<br />
pedia-lhe que fosse diferente e seguisse<br />
o caminho da prova e da luta,<br />
e não o caminho cômodo da riqueza.<br />
Ele era rico, virtuoso, é verdade –<br />
dentro das comodidades da opulência,<br />
algum mérito ele tinha, porque<br />
a riqueza traz muitas solicitações<br />
para o pecado –, mas ele evitava as<br />
dificuldades específicas de quem<br />
passa pela pobreza ou pelos reveses<br />
da vida. Ora, Nosso Senhor queria<br />
que ele tivesse também a auréola<br />
Nheyob(CC3.0)<br />
dessas lutas, porque<br />
para ser perfeito é<br />
preciso ter experimentado<br />
várias formas<br />
de dificuldades<br />
e tentações. No entanto,<br />
ao ouvir aquelas<br />
palavras, ele retirou-se<br />
cheio de tristeza…<br />
O que houve no<br />
fundo dessa atitude?<br />
Houve que a mentalidade<br />
e a doutrina<br />
dele estavam fundadas<br />
numa visualização<br />
errada de perfeição.<br />
Quando Nosso<br />
Senhor lhe enunciou<br />
a verdade, houve<br />
um choque total entre<br />
doutrina e personalidade,<br />
e ele afundou…<br />
Pareceu-me necessário<br />
dar todas estas<br />
explicações para<br />
realçar a distinção<br />
entre mentalidade<br />
e doutrina, e para<br />
compreendermos<br />
quão preciosa é uma<br />
formação que transmite<br />
ambas as coisas.<br />
O mais difícil, entretanto,<br />
é justificar a<br />
necessidade de uma<br />
formação por meio<br />
da mentalidade. v<br />
(Extraído de<br />
conferência de<br />
12/6/1981)<br />
1) Comentada no número anterir, pp. 14-17.<br />
2) Christophe Plantin (*1514 - †1589).<br />
Editor e humanista neerlandês. Autor<br />
da poesia acima mencionada.<br />
3) Obra da literatura medieval espanhola,<br />
um dos mais famosos romances de<br />
Cavalaria.<br />
22
Eco fidelíssimo da Igreja<br />
J.P. Ramos<br />
Premiados, à medida<br />
do próprio Deus!<br />
Quando nesta Terra a vida<br />
estiver dura, o peso da fidelidade,<br />
da luta contra as tentações,<br />
dos problemas, das provações<br />
axiológicas parecerem desmentir<br />
a promessa, lembremo-nos<br />
de que a Santíssima Virgem<br />
tudo computa e, na Jerusalém<br />
Celeste, Deus premiará todos<br />
os atos de seus eleitos.<br />
Esta exposição se prende à<br />
ideia central de considerarmos<br />
o quanto tudo é grande<br />
na presença de Deus. Ele é infinitamente<br />
grande e qualquer ato, por<br />
menor que seja, praticado em presença<br />
ou em função d’Ele tem enorme<br />
importância. Também o menor<br />
pecado e o menor ato de virtude –<br />
para consolação nossa! – têm uma<br />
importância enorme.<br />
Os grandes ou os<br />
pequenos atos de virtude<br />
serão premiados<br />
O que é um ato de virtude pequeno?<br />
Não me refiro a um ato de<br />
pequena virtude, o que também teria<br />
valor, porque Deus conta tudo.<br />
Como no Inferno Ele castiga a<br />
menor culpa, no Céu premia tudo,<br />
cuidadosa e generosamente, até os<br />
atos em que o nível de virtude foi<br />
menor.<br />
Quando chegar a hora de premiar,<br />
Ele premiará de modo superlativo<br />
a menor das coisas que tenhamos<br />
feito, ainda mais quando sob<br />
os auspícios e o bafejo de Nossa Senhora.<br />
Inclusive premiará as coisas<br />
pequenas das quais nós não tínhamos<br />
consciência e, às vezes até,<br />
com predileção, as coisas que fizemos<br />
sem medir o que estávamos fazendo.<br />
Imaginemos uma pessoa enferma.<br />
Se um enfermeiro é muito dedicado<br />
e faz cada coisa com cuidado, pensando:<br />
“Como me é grato ser dedicado<br />
para com este doente!” Porém, se<br />
o empenho de um outro enfermeiro<br />
em tratar for maior, a ponto de não<br />
se dar conta que está sendo tão dedicado,<br />
mas apenas se preocupando<br />
com o bem do doente... às vezes<br />
passa uma noite em claro, faz isso ou<br />
aquilo sem se dar conta do que está<br />
fazendo..., a qual dos dois o doente<br />
vai pagar mais? É claro que ao segundo,<br />
porque esse nem tem noção<br />
de estar ganhando um mérito, ele<br />
quer o bem do doente. Contanto que<br />
o doente sare, o resto para ele é secundário.<br />
Celestialmente premiados<br />
Os atos de virtude, de abnegação<br />
ou de sacrifício que nós fazemos, a<br />
respeito dos quais nós nem cogita-<br />
23
Eco fidelíssimo da Igreja<br />
Flávio Lourenço<br />
Às vezes é uma coisinha qualquer<br />
que passa. Quando chegar a hora, no<br />
Céu, nós vamos receber isso magnificamente<br />
multiplicado! Nem calculamos,<br />
mas vamos receber cada um<br />
desses prêmios – se eu pudesse me<br />
exprimir dessa maneira – à la Céu.<br />
Será um grau a mais na visão beatífica<br />
e na felicidade, vendo a Deus face<br />
a face. Mas, ao mesmo tempo, será<br />
eterno. Um sacrificiozinho de um<br />
momento, um gesto de um instante,<br />
os nossos Anjos registram, Nossa Senhora<br />
oferece a Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo e nos valerão um gáudio pela<br />
eternidade das eternidades, eterníssimas!<br />
Se pudéssemos ouvir o eco no<br />
qual se simbolizaria este pequeno<br />
grau a mais de felicidade, ficaríamos<br />
inundados de gáudio. De tal forma<br />
no Céu, meticulosamente, tudo é pesado<br />
no conspecto da infinita seriedade<br />
de Deus.<br />
De outro lado, a misericórdia<br />
d’Ele se derrama insondavelmente<br />
sobre os homens, de maneira a<br />
cobri-los e lhes dar muito mais do<br />
que tinham merecido. Esse “muito<br />
mais”, Nosso Senhor o disse naquela<br />
frase que eu gosto de repetir<br />
porque acho incomparável:<br />
“Serei Eu mesmo<br />
a vossa recompensa demasiadamente<br />
grande” (cf.<br />
Gn 15, 1).<br />
Essa recompensa não é<br />
só para as coisas enormes,<br />
é também para as pequenas.<br />
As pequenas coisas ficarão<br />
cheias, túmidas de<br />
recompensa, quando chegar<br />
a hora de recebermos<br />
a coroa preparada para cada<br />
um de nós desde toda a<br />
eternidade.<br />
Os últimos momentos<br />
do mundo<br />
A enferma - Museu Nacional de Arte da Catalunha, Barcelona<br />
mos, nem pensamos, são, a esse título,<br />
muitas vezes os mais amados por<br />
Nossa Senhora.<br />
Poderá haver alguém que, durante<br />
esta conferência, esteja um pouco<br />
indisposto, com vontade de ir embora;<br />
um outro não consegue ver bem o<br />
expositor porque tem pessoas na sua<br />
frente; a um outro lhe assalta o sono,<br />
muitas vezes involuntário, orgânico.<br />
Nenhum deles pensa no prêmio que<br />
irá ter no Céu, mas pensa em permanecer<br />
até o fim. Ninguém sabe e nem<br />
pensa no mérito. Mas isto, que é tão<br />
pouco – às vezes pode ser muito – tudo<br />
isto está escrito no Livro da Vida.<br />
E quando vier o dia do prêmio, tudo<br />
será contado, ponto por ponto, meticulosamente.<br />
Nós nos espantaremos diante das<br />
coisas que fizemos sem ter uma noção<br />
concreta de seu valor, de que era<br />
um ato de virtude, mas apenas o realizamos<br />
levados pela noção difusa<br />
de que aquilo era bom e conforme<br />
a Nossa Senhora e, portanto, resultou<br />
na glorificação d’Ela e no esmagamento<br />
da Revolução. Por essa<br />
simples ideia difusa, nós já seremos<br />
enormemente premiados.<br />
No Céu há brisas, há misericórdias,<br />
há deleites. A<br />
alegria da alma que entra no Céu é<br />
algo inenarrável!<br />
Como, a meu ver, certos fatos culminantes<br />
só se podem conhecer, por<br />
assim dizer, filmando em câmara<br />
lenta, eu tratarei dos últimos acontecimentos<br />
da humanidade numa ordem<br />
histórica, baseando-me em comentários<br />
de autores como São Tomás<br />
de Aquino e Cornélio a Lápide.<br />
Por ocasião do fim do mundo restarão<br />
os últimos homens fiéis que não<br />
morrerão e irão se incorporar diretamente<br />
à corte celeste. Quando começarem<br />
os castigos e o extermínio<br />
do mundo, esses homens estarão no<br />
auge da aflição. Um auge tal que, ao<br />
que parece – tirando as dores de Nossa<br />
Senhora, não comparáveis com nada<br />
e, bem entendido, as de Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo –, excetuando essas<br />
dores, ninguém sofreu tanto, nem sofrerá<br />
até o fim do mundo, quanto esses<br />
justos que até lá viverão.<br />
Depois da ressureição dos mortos,<br />
a Jerusalém Celeste se apresentará<br />
ao conhecimento dos homens<br />
que estiverem na Terra, já então<br />
dos fiéis sobreviventes e dos<br />
ressuscitados.<br />
24
A Jerusalém Celeste<br />
O que é a Jerusalém Celeste? Nós<br />
podemos dar um exemplo: a cidade<br />
de São Paulo mede tantos quilômetros<br />
quadrados. O que quer dizer isto?<br />
Entende-se aqui como o conjunto<br />
de casas e de logradouros públicos,<br />
de praças, de ruas, que integram<br />
a cidade. Mas eu posso também dizer:<br />
“São Paulo inteira exultou!” Ou:<br />
“São Paulo inteira se entristeceu com<br />
tal ou tal outro fato.” As casas não<br />
exultam nem podem entristecer-se. A<br />
cidade de São Paulo, nesse caso, representa<br />
a população. E isto vale para<br />
qualquer cidade do mundo.<br />
Jerusalém era a capital do povo<br />
eleito, a cidade do amor de Deus, da<br />
escolha predileta feita por Deus. Ali<br />
havia sido construído o Templo. Era<br />
a cidade onde Davi reinou, onde<br />
irradiou sua virtude; onde, hélas,<br />
pecou! Ali recitou os salmos<br />
penitenciais, chorou<br />
e sofreu, pediu e obteve o<br />
perdão.<br />
Em Jerusalém, Salomão,<br />
a esplêndida prefigura<br />
de Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo, reinou e espalhou<br />
sua glória sobre toda<br />
aquela parte da bacia do<br />
Mediterrâneo e da Ásia.<br />
Depois, Salomão pecou<br />
e o povo começou a decair,<br />
mas Verbum caro<br />
factum est, et habitavit in<br />
nobis!<br />
Em Jerusalém, Nosso<br />
Senhor, menino, foi<br />
encontrado no Templo.<br />
Em Jerusalém, em<br />
Jerusalém, em Jerusalém…<br />
Em Jerusalém<br />
Ele foi traído.<br />
Em Jerusalém dormiram<br />
os Apóstolos.<br />
Em Jerusalém Ele<br />
suou sangue.<br />
Em Jerusalém Ele<br />
disse: “Ego sum!”<br />
Flávio Lourenço<br />
Em Jerusalém Ele sofreu. Em Jerusalém<br />
Ele gemeu.<br />
Em Jerusalém Ele Se encontrou<br />
com Nossa Senhora durante a Via<br />
Sacra.<br />
Em Jerusalém Ele deu o brado<br />
trágico e lancinante: “Meu Deus,<br />
meu Deus! Por que me abandonastes?”<br />
Em Jerusalém Ele disse: “Consummatum<br />
est”.<br />
Em Jerusalém a Virgem sofreu a<br />
punhalada terrível do “Consummatum<br />
est”.<br />
Em Jerusalém Ele ressurgiu dos<br />
mortos com toda sua glória.<br />
Juízo Final - Antiga Pinacoteca, Munich<br />
Perto de Jerusalém Ele subiu aos<br />
Céus.<br />
Quantas glórias em Jerusalém!<br />
É claro que a Escritura fala da<br />
Jerusalém terrestre. E quando quer<br />
falar do Céu, Deus com seus Anjos<br />
e seus Santos – embora não esteja<br />
mencionado o nome por excelência<br />
mencionável de Nossa Senhora,<br />
na cabeça dos Anjos e dos Santos,<br />
ligada a Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo, a cabeça do Corpo Místico e<br />
Deus Verdadeiro, e a obra-prima da<br />
Criação – quando se fala da Jerusalém<br />
Celeste, fala-se dos habitantes<br />
do Céu, antes de tudo, que é toda a<br />
corte celeste.<br />
A Jerusalém Celeste é uma sociedade<br />
de pessoas, mas é também um<br />
lugar físico onde se encontrarão os<br />
corpos ressurrectos daqueles que foram<br />
levados ao Céu.<br />
Uma luz que transforma<br />
Então, a Jerusalém Celeste<br />
se abre para os olhos daqueles<br />
que estão ressurrectos e<br />
baixa para os assumir. Mas,<br />
esse “baixar” não significa<br />
que o Céu Empíreo vai<br />
descer, nem que as pessoas<br />
que estão no Céu<br />
vão sair dele; é uma outra<br />
coisa: a luz dessa Jerusalém<br />
começará a incidir<br />
sobre os homens. Será<br />
uma luz comparável<br />
à luz do Sol que quando<br />
desce à Terra torna-<br />
-a resplandecente e dá-<br />
-lhe uma beleza que, de<br />
si, sem ele, as suas coisas<br />
não têm.<br />
Assim também, quando<br />
a luz da Jerusalém<br />
Celeste, ou seja, das almas<br />
santas, daquelas<br />
que estão na visão beatífica,<br />
quando a luz física,<br />
do lugar físico chamado<br />
Céu Empíreo baixar sobre<br />
a Terra, esta estará<br />
25
Eco fidelíssimo da Igreja<br />
Tomas T. / J.P.Ramos<br />
toda iluminada de um modo magnífico,<br />
como nós não calculamos!<br />
E eu me lembro aqui de uma frase<br />
do Rostand 1 , no Chantecler, quando<br />
o galo saúda o Sol: “Ó Sol, sem<br />
o qual as coisas não seriam senão o<br />
que elas são!” É verdade. Às vezes o<br />
Sol bate sobre uma parede leprosa,<br />
toda rachada – isso eu vi –, um muro<br />
de taipa velho. Quando não se possui<br />
bem o espírito da tradição, tem-<br />
-se a impressão de que seria melhor<br />
derrubá-lo; entretanto, olha-se para<br />
ele e vê-se o Sol bater ali; parece que<br />
aquilo se enobrece! A coisa velha se<br />
La Virgen Blanca (coleção particular)<br />
povoa da beleza da luz e da beleza<br />
das sombras.<br />
É algo que eu tive ocasião de<br />
constatar. As deformações de um<br />
muro, um pouco abaulado, da taipa<br />
que nem sempre é inteiramente<br />
regular, as pequenas saliências que<br />
se abrem entre milímetro e milímetro,<br />
conforme o ponto de incidência<br />
da luz, fazem sombrinhas ou fazem<br />
pontos, minúsculos montezinhos,<br />
onde por coincidência brilha<br />
um pouco de mica, de malacacheta,<br />
qualquer coisa, e é uma espécie<br />
de montanhazinha luminosa, minúscula,<br />
que se pode apreciar ali. O Sol<br />
bate e aquilo se transforma.<br />
A Terra será purificada pela<br />
luz da Jerusalém Celeste<br />
Imaginem o que será a Terra<br />
quando o Céu Empíreo com a corte<br />
celeste se abrirem e todas essas<br />
luzes se derramarem sobre os ressurrectos,<br />
e eles começarem assim<br />
a receber os primeiros afagos de<br />
Deus! É a prelibação da eternidade<br />
sem fim! Eles já sabem que estão<br />
salvos. Eles viram Deus face a face<br />
e não perderam essa visão por nenhum<br />
instante. Agora eles veem a<br />
Terra purificada, transformada, embelezada<br />
por mil formas de formosura<br />
com que eles nem sonhavam!<br />
E se sentem completamente transformados.<br />
Para dar um exemplo, eu, que<br />
sou pouco matutino e pouco florestal,<br />
lembro-me de uma madrugada<br />
a que assisti, num dos lugares<br />
mais bonitos do mundo, o Flamengo,<br />
no Rio de Janeiro, do alto<br />
do Hotel Regina, onde estava hospedado.<br />
Fiquei decepcionado, porque<br />
foi um alvorecer plúmbeo, mas<br />
observei uma coisa interessante: durante<br />
a madrugada, não sei como, e<br />
sem os carros da limpeza pública, a<br />
cidade e o panorama todo foram se<br />
purificando. A cidade dorme suja,<br />
e as paredes, as árvores, as aves, as<br />
coisas parecem que são limpas durante<br />
a noite, por um misterioso orvalho;<br />
de manhã, quando a cidade<br />
acorda, tem-se a impressão de que<br />
ela tem viço.<br />
Isso é uma pequena imagem do<br />
que será o acordar do mundo purificado<br />
pela chama da cólera de Deus,<br />
que exterminou tudo quanto deveria<br />
exterminar e apresentará o mundo<br />
com o seu aspecto definitivo e eterno.<br />
Não sei se chamo isso de poema.<br />
Mas o poema do carinho de Deus<br />
começa!<br />
26
Deus e Nossa<br />
Senhora enxugarão<br />
as nossas lágrimas<br />
Deus não só vai inundar os homens<br />
de felicidade, mas vai consolá-<br />
-los pelas infelicidades que tiveram<br />
durante a vida e que foram segundo<br />
Ele. Assim como uma mãe que vê<br />
a criança chorar enxuga-lhe as lágrimas<br />
e pode osculá-la onde sente dor,<br />
ou próximo aos olhos, assim também<br />
Deus fará com cada sofrimento que<br />
cada homem tenha tido por causa<br />
d’Ele.<br />
Quando nesta Terra a vida estiver<br />
dura, o peso da fidelidade, da luta<br />
contra as tentações, dos problemas,<br />
das provações axiológicas – oh, provação<br />
axiológica! – quando tudo isso<br />
pesar sobre nós, pensemos: “Um dia<br />
as mãos alvíssimas de Maria Santíssima<br />
pousarão sobre aquilo de meu<br />
corpo que sofreu o reflexo desse tormento<br />
de alma; mas muito mais do<br />
que isso, eu terei de Nossa Senhora<br />
um sorriso, terei um afago: ‘Meu<br />
filho, eu te consolo por isto’. E isso<br />
durará eternamente!”<br />
Um olhar d’Ele é um Céu!<br />
Quanto qualquer um de nós daria<br />
para receber um olhar de Nosso<br />
Senhor Jesus Cristo! O olhar que<br />
Ele deu a São Pedro era um olhar<br />
de tristeza e de reprovação, mas como<br />
nós gostaríamos de receber esse<br />
olhar! Quanto e quanto!<br />
Eu creio que os dois mais belos<br />
olhares d’Ele tenham sido para<br />
Nossa Senhora, logo que Ele nasceu<br />
e o último olhar antes de morrer.<br />
Como terão sido? O que se pode<br />
imaginar do olhar de Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo? Não há palavras<br />
que possam descrever! Um olhar<br />
d’Ele é um Céu! Considerem um<br />
pouco o Santo Sudário de Turim,<br />
onde as pálpebras estão baixas, mas<br />
nas quais se vê o olhar. Imaginem<br />
aquele olhar pousando sobre nós e<br />
nós nos lembrando desta ou daquela<br />
ocasião em que sofremos por Ele,<br />
e Ele nos diz: “Meu filho, naquela<br />
hora sofreste por Mim. Agora olho-<br />
-te, afago-te, osculo-te. Eu te amo<br />
naquele estado de tua alma. Eu te<br />
amo assim!”<br />
Aí se compreende a loucura que é<br />
deixar de fazer o menor ato de virtude.<br />
Ou de deixar de fazer tão perfeitamente<br />
quanto se possa fazer. Porque<br />
não há, nesta Terra, nada que<br />
nos possa dar a ideia do que será esse<br />
olhar! O que possa ser a expressão<br />
e o valor de um olhar d’Ele? Nós não<br />
temos ideia!<br />
Como a esposa ornada<br />
para o esposo<br />
Nesse primeiro momento, Deus<br />
consolará especialmente os homens<br />
que viverão no fim do mundo, pois<br />
eles terão de sofrer tanto e tanto,<br />
que ninguém alcança imaginar. Esses<br />
serão inundados de gáudio e de<br />
consolação por causa daqueles sofrimentos<br />
especiais de fim de mundo,<br />
que serão parecidos, nunca iguais,<br />
com os sofrimentos da própria Crucifixão.<br />
E serão glorificados com<br />
uma glorificação cheia de alegria e<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> durante conferência em 1981<br />
de brilho como Nosso Senhor na sua<br />
Ressurreição gloriosa, com o Corpo<br />
sagrado todo refulgindo e brilhando<br />
em todas as suas cicatrizes.<br />
Para dar inteiramente uma ideia<br />
desta beleza da Jerusalém Celeste<br />
que desce, São João, no Apocalipse,<br />
usa uma comparação linda. Estará<br />
toda a Jerusalém Celeste pronta<br />
para os homens, enfeitada por Deus<br />
como se enfeita uma esposa quando<br />
vai ao encontro do esposo: “Eu<br />
vi descer do céu, de junto de Deus, a<br />
Cidade Santa, a nova Jerusalém, como<br />
uma esposa ornada para o esposo”<br />
(cf. Ap 21, 2).<br />
Uma noiva vai ao altar com todas<br />
as joias da família, com os mais belos<br />
trajes, com toda a pompa esponsalícia;<br />
assim também virá ao encontro<br />
dos homens a Jerusalém Celeste<br />
no seu todo e, mais especialmente, o<br />
Céu Empíreo!<br />
v<br />
(Extraído de conferência<br />
de 2/1/1981)<br />
1) Edmond Eugène Alexis Rostand<br />
(*1868 - †1918). Poeta e dramaturgo<br />
francês.<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
27
Hagiografia<br />
Esplendor de renúncia para<br />
dar força à palavra de Deus<br />
No púlpito, o capuchinho era o pregador indômito, representando<br />
a renúncia a tudo aquilo a que as pessoas podiam ter apego. No<br />
confessionário, era a própria expressão do confessor perfeito:<br />
leão contra o pecado e cordeiro em relação ao pecador.<br />
Flávio Lourenço<br />
Infelizmente, sobre São José<br />
de Leonissa não tenho os dados<br />
biográficos.<br />
Recebemos de presente, de Roma,<br />
uma teca com as relíquias de todos<br />
os Santos capuchinhos para deixar<br />
em nossa capela. Comentando<br />
esse Santo, fazemos uma menção de<br />
todos os Santos cujas relíquias estão<br />
ali e, de maneira especial, uma referência<br />
a São José de Leonissa.<br />
Poder-se-ia perguntar por que a referência,<br />
se temos com esse Santo uma<br />
ligação que parece puramente circunstancial,<br />
como é o fato de alguém nos<br />
ter presenteado a relíquia dele.<br />
Entretanto, o “puramente circunstancial”<br />
não existe nestas matérias.<br />
E se a Providência dispôs ter em<br />
nossa capela a relíquia desse Santo,<br />
Ela tem com isso desígnios de que<br />
ele nos proteja.<br />
Um Santo desconhecido<br />
Quem foi este Santo? O que ele<br />
fez durante a vida? Como deu glória<br />
a Deus?<br />
A resposta é um ato de fé. Sabe-<br />
-se que foi um Santo. O que ele fez?<br />
Coisas excelentes. Como? Eu não<br />
sei, mas a Santa Igreja o definiu com<br />
a sua infalibilidade: José de Leonissa<br />
é um Santo.<br />
Dele sei apenas uma coisa, mas isto<br />
basta para saber todo o necessário.<br />
Primeiro: ele foi um Santo. Segundo:<br />
foi capuchinho. O que é ser<br />
um Santo capuchinho? Quais os traços<br />
dos capuchinhos na história da<br />
Igreja? E o que diz à alma de um católico<br />
o fato de um Santo ter sido capuchinho?<br />
A Ordem Franciscana<br />
e suas ramificações<br />
A Ordem Franciscana, que é uma<br />
das maiores famílias espirituais surgidas<br />
na Igreja, nasceu do zelo e da<br />
missão de um homem incomparável<br />
como foi São Francisco de Assis.<br />
Ele amou tanto a Nosso Senhor, que<br />
chegou a ter com Ele até uma certa<br />
semelhança física. Quem olhava para<br />
São Francisco julgava ver Nosso<br />
Senhor Jesus Cristo.<br />
A Ordem Franciscana produziu um<br />
caudal de Santos e Santas e de obras<br />
beneméritas em toda a esfera de atividades<br />
da Igreja, até esta tremenda crise<br />
na qual nos encontramos...<br />
A Providência permitiu, entretanto,<br />
esta Ordem ser muito provada<br />
28 Capuchinho pregando - Igreja<br />
de Santo Ângelo, Córdoba
pelo pecado e pelo demônio. E mesmo<br />
em vida de São Francisco de Assis<br />
houve divisões. Havia setores que<br />
pendiam para uma interpretação errada<br />
da espiritualidade de São Francisco,<br />
enquanto outros para uma interpretação<br />
certa.<br />
Dessas pluralidades de interpretações<br />
nasceram várias Ordens Franciscanas.<br />
Todas elas boas porque<br />
aprovadas pela Igreja Católica. Uma<br />
dessas ramificações teve um nascimento<br />
singular: a dos capuchinhos.<br />
Os capuchinhos foram fundados<br />
por um franciscano muito observante<br />
e exemplar que, percebendo estar<br />
sendo relativizada a regra de seu<br />
fundador, resolveu radicalizá-la, revivendo<br />
o espírito de pobreza. Resultado:<br />
a Providência abençoou este<br />
lance, suscitando Santos. E foram<br />
os Santos capuchinhos.<br />
Radicalidade da pobreza<br />
Quando o espírito de São Francisco<br />
se atenuava nas outras ramificações<br />
franciscanas, os capuchinhos<br />
representaram a radicalidade da pobreza.<br />
E, com isso, a radicalidade de<br />
todas as independências que só a pobreza<br />
dá.<br />
Hoje se julga que um homem só é<br />
inteligente quando é rico. No tempo<br />
da formação dos capuchinhos, considerava-se<br />
a riqueza como fonte de<br />
uma porção de preocupações, de apegos,<br />
de necessidades e de deveres de<br />
bens a tutelar, a proteger e, portanto,<br />
julgavam que a riqueza aproxima o<br />
homem da Terra; e o que verdadeiramente<br />
o isola da Terra é a pobreza.<br />
Na pobreza o homem tem poucas<br />
obrigações, poucos bens para defender,<br />
ele vive da confiança na Providência.<br />
Por assim dizer, quem nada<br />
tem, nada tem a temer. Quem vive<br />
da esmola que qualquer um lhe dá é<br />
dono do que todos têm. Quem precisa<br />
de muito pouco é o homem mais<br />
independente de todos.<br />
O capuchinho representava propriamente<br />
o frade independente.<br />
São José de Leonissa<br />
Não em relação aos seus superiores<br />
e à Igreja Católica – à qual ele estava<br />
ligado, como àqueles, por um voto<br />
de obediência –, mas sim em relação<br />
aos poderes do mundo. Ele era,<br />
por definição, o pregador audacioso<br />
que dizia as verdades inteiras. E as<br />
dizia como confessor e pregador para<br />
todos os grandes da Terra, fossem<br />
eles grandes da Igreja ou do Estado.<br />
O perfil de um capuchinho<br />
Flávio Lourenço<br />
A figura do capuchinho é a de um<br />
homem atarracado, popular, com a<br />
palavra fácil, com a cultura religiosa<br />
suficiente, porém não aprofundada,<br />
com o contato contínuo com as<br />
almas, tendo uma espécie de sobranceria<br />
por meio da qual trata de igual<br />
a igual não só os homens do povo,<br />
mas também os grandes segundo o<br />
mundo, inclusive os reis.<br />
Apoiado na posição de padre e de<br />
religioso e, por tal, o capuchinho era,<br />
mais do que todo mundo, possuidor<br />
do direito de dizer a verdade a todos.<br />
A compenetração disso fez do capuchinho<br />
aquele tipo do pregador célebre,<br />
que era convidado para pregar<br />
nas cortes. Subia ao púlpito causando<br />
uma espécie de estremecimento pela<br />
pobreza de sua batina, pelo cordão<br />
que usava – seu único ornato – representando<br />
a obediência, pois aquele<br />
religioso podia ser levado por toda<br />
parte; com a sua barba... num tempo<br />
em que os homens elegantes usavam<br />
barbas finas, perfumadas, com pomadas<br />
e bigodes delicados, a grande<br />
e volumosa barba capuchinha nascia<br />
espontânea e, às vezes, enchia o peito<br />
inteiro; com a sua tonsura enorme,<br />
desfigurando-lhe a beleza que os cabelos<br />
bem tratados davam aos fidalgos<br />
daquele tempo, o capuchinho subia<br />
ao púlpito representando uma renúncia<br />
a tudo aquilo a que as pessoas<br />
podiam ter apego.<br />
Ele era o pregador indômito, que dizia<br />
as verdades cruas e tonitruava contra<br />
a impureza, as acomodações, a falta<br />
de fervor, a tibieza na qual o mundo decadente<br />
estava se engolfando.<br />
No confessionário, o capuchinho<br />
era o confessor reto, preciso, cristalino,<br />
que não tinha medo de ficar sem<br />
penitente nem receio de que depois<br />
fizessem contra ele uma calúnia. Podia<br />
perder horas no confessionário<br />
atendendo apenas poucas pessoas<br />
para lhes resolver os problemas. O<br />
capuchinho era a própria expressão<br />
do confessor perfeito: leão contra o<br />
pecado e cordeiro em relação ao pecador.<br />
E com energia arrancava as<br />
almas das garras do demônio e as levava<br />
para o Céu.<br />
Esse perfil do capuchinho ficou<br />
na História através da figura de vários<br />
Santos como uma das riquezas<br />
da Igreja, como um dos esplendores<br />
dessas variedades magníficas<br />
com que o Espírito Santo faz as suas<br />
obras.<br />
Jogo de contraste<br />
harmônico produzido<br />
pelo Espírito Santo<br />
No esplendor da Igreja vemos o Papa<br />
colocado como um Monarca de todos<br />
os monarcas, à testa da Igreja Católica.<br />
Cercado de um fausto fabuloso<br />
29
Hagiografia<br />
Biografia de São José de Leonissa<br />
Eufrânio Desideri nasceu em Leonissa, Itália, em 1556 e ingressou<br />
aos 16 anos na Ordem dos Capuchinhos de Rieti, recebendo<br />
o nome de José. No convento de Carcerelle, próximo a Assis,<br />
passou seu noviciado entregando-se à mais dura penitência.<br />
Após sua ordenação sacerdotal, foi enviado como missionário para<br />
Constantinopla. Ao tomar conhecimento do estado lastimável no qual se<br />
encontravam vários cristãos, tornados escravos pelos turcos, condoeu-se<br />
de seus irmãos na Fé, passando a encorajá-los, distribuindo-lhes os sacramentos<br />
e fazendo voltar à Igreja aqueles que a haviam deixado.<br />
A pobreza na qual vivia despertou interesse nos povos daquela região,<br />
que acorriam em grande quantidade para ouvi-lo. Pregava com ardor<br />
e intrepidez, e após uma tentativa de entrar no palácio para pregar<br />
ao próprio Sultão Murad III, seu intento foi julgado como atrevido e como<br />
um crime de lesa-majestade. Preso e açoitado, suspenso por um pé<br />
e uma mão sobre uma fogueira, permaneceu nesse suplício por três dias<br />
sem, contudo, falecer. O sultão, maravilhado com o fato, trocou sua pena<br />
de morte por uma de exílio perpétuo.<br />
Voltado à Itália, José continuou sua vida de pregador na Úmbria,<br />
promovendo diversas conversões. Suas pregações eram regadas por<br />
uma vida de penitência e os carismas sobrenaturais davam maior vigor<br />
às pregações.<br />
Após uma vida marcada pela austeridade e pelo zelo apostólico, aos<br />
57 anos de idade adoeceu gravemente com um tumor. Os médicos o<br />
operaram, mas como anestésico o Santo usou somente o seu crucifixo,<br />
que apertava sobre o peito. No dia 4 de fevereiro de 1612, entregou sua<br />
alma a Deus.<br />
v<br />
e de obras de arte, habitando num Palácio<br />
como nenhum rei da Europa ou<br />
do Oriente possui, tendo um arquivo<br />
com o qual nenhum outro do mundo<br />
pode emular! E é cercado da veneração<br />
de centenas de milhões de fiéis que<br />
veem nele o Vigário de Jesus Cristo sobre<br />
a Terra. Ao lado dele, um Senado<br />
de Cardeais com manto de púrpura,<br />
homens ilustres por vários títulos, todos<br />
revestidos de grande representação social.<br />
Tudo isso é o Espírito Santo utilizando<br />
as coisas da Terra para dar força<br />
à própria vontade de Deus.<br />
Vemos depois o contrário. Através<br />
do capuchinho, que não tem nada<br />
disso porque renunciou a tudo, o<br />
Espírito Santo utilizando a renúncia<br />
a todas as coisas da Terra para dar<br />
força à palavra de Deus.<br />
É uma espécie de duplo jogo de contraste<br />
harmônico, onde se percebe a<br />
onipotência de Deus e a variedade existente<br />
dentro da Santa Igreja Católica;<br />
o poder que Deus tem de falar aos homens<br />
através de todas as suas criaturas,<br />
até das que representam a pobreza;<br />
através de uma e de outra, dizendo<br />
palavras ora de amor, ora de arrojo, ora<br />
de denodo, ora de valentia, palavras estas<br />
que se tornaram especialmente importantes<br />
em nossa época.<br />
Ao lado da Igreja em<br />
suas amarguras<br />
No tempo de São Pio X, quando a<br />
crise da Igreja estava menos profunda<br />
que em nossos dias, ele se apropriava<br />
do gemido de um dos profetas e dizia:<br />
“‘De gentibus non est vir mecum’ (cf. Is<br />
41, 28) na luta contra o modernismo<br />
– isto está no processo de canonização<br />
– ‘Entre todos os homens não há<br />
um varão que esteja comigo’”, ou seja,<br />
que leve a luta até onde deveria.<br />
Hoje, quão poucas pessoas estão<br />
ao lado de Nosso Senhor Jesus Cristo,<br />
quão poucas estão ao lado da Santa<br />
Igreja. Fica aqui a evocação esplêndida<br />
do varão eclesiástico que estava ao<br />
lado da Santa Igreja em todas as suas<br />
amarguras, aquela figura do capuchinho<br />
com o seu burel, com a sua barba,<br />
com a sua tonsura, com a sua palavra<br />
franca e com o seu olhar fogoso.<br />
Apesar de não saber muito, sabemos<br />
que São José de Leonissa foi<br />
um capuchinho que concorreu para<br />
formar no firmamento da Igreja esse<br />
perfil dos capuchinhos. Não é preciso<br />
dizer mais nada. Basta pedirmos<br />
que São José de Leonissa rogue por<br />
nós. De um Santo desconhecido tanta<br />
coisa se sabe: ele foi Santo, ele foi<br />
capuchinho!<br />
v<br />
(Extraído de conferência de<br />
4/2/1971)<br />
São José de Leonissa - Galeria<br />
Nacional de Parma<br />
Parma benia artistici(CC3.0)<br />
30
Luzes da Civilização Cristã<br />
Flávio Lourenço<br />
Conversão de Clóvis<br />
Igreja da Abadia de<br />
Saint-Ouen, Rouen<br />
Cristandade: manifestação<br />
do esplendor da Igreja<br />
na sociedade temporal<br />
Entre a graça e a natureza só pode haver harmonia. Foi sob o<br />
influxo e as bênçãos da Igreja que o Lumen Christi penetrou nos<br />
aspectos temporais da vida e a sociedade temporal desabrochou<br />
inteiramente. A graça agiu nos povos, harmonizando-os<br />
e erguendo neles o sagrado edifício da Cristandade.<br />
Um bom método para se tratar a respeito do<br />
pulchrum e do alcandorado da Cristandade<br />
é começar por descrever o que sentimos a<br />
respeito dela, para depois distinguirmos o que sentimos<br />
quando nos referimos à Igreja.<br />
A Cristandade medieval europeia<br />
A fim de exprimir bem o que sinto quando falo em Cristandade,<br />
faço referência à dupla ação que ela causa em<br />
meu espírito. A primeira refere-se a uma situação que em<br />
concreto existiu; a segunda, a algo de doutrinário implícito,<br />
que está meio embebido nas impressões daquela ordem<br />
de coisas. É um determinado lumen máximo, em estado<br />
de começo de desabrochar, diferente do período que vai<br />
desde o império pós-constantiniano até a época dos bárbaros<br />
ou do império oficialmente católico.<br />
A Cristandade, a meu ver, nasceu com a conversão de<br />
Clóvis, com o estilo românico, alcançando seu esplendor<br />
31
Luzes da Civilização Cristã<br />
gary noon (CC3.0)<br />
no gótico. Cristandade propriamente em seu estado de<br />
saúde é a Idade Média. A pré-Revolução começou, por<br />
assim dizer, a matá-la; ela entrou em estado enfermiço<br />
com o fim da Idade Média e começa a morrer quando<br />
surgem as Revoluções.<br />
Ora, Cristandade, como ela existiu, é a europeia, marcada<br />
por um determinado feitio de alma próprio aos povos<br />
que a graça levou ao auge de si mesmos. Esses povos<br />
tinham diante de si um território, incluindo as ilhas, que<br />
eram agrestes. Em função de um estado de espírito deles,<br />
embebido de catolicismo, eles foram ora selecionando,<br />
agrupando e modelando o que lhes era afim, ora perseguindo<br />
implacavelmente o que lhes era contrário, mas<br />
definindo-se mais pela oposição ao contrário.<br />
De toda fauna que havia, prevaleceram os animais<br />
que correspondem ao gosto deles, por exemplo, a perdiz,<br />
o faisão, o rouxinol, para falar das aves.<br />
Eles foram criando uma literatura e uma<br />
arte que tomavam essas coisas<br />
e as apresentavam como deveriam<br />
ser vistas, ou seja, conforme<br />
o gosto deles. Quem analisa,<br />
por exemplo, uma perdiz,<br />
não a pode ver senão pelo prisma<br />
do europeu, cujo olhar seletivo<br />
afasta os aspectos que não<br />
são os da perdiz de legenda estilizada.<br />
Na Idade Média, o animal aparecia<br />
limpo, direito, como fundo de<br />
quadro da vida humana, mas nunca<br />
como um ser quase mais perfeito que o<br />
homem. É nos tempos modernos que começa<br />
a aparecer o bicho em porcelana de<br />
Sèvres ou em bordados; ele já não é uma unilateralidade<br />
sadia, mas é uma quimera. Ao la-<br />
Loicwood (CC3.0)<br />
é legítimo.<br />
do do bom soldado figura o carneirinho encantador,<br />
com fitinha azul, que não é o carneiro<br />
da realidade, tal como o medieval o<br />
punha. Ao passar os animais para a porcelana<br />
de Sèvres já houve uma decadência.<br />
Na heráldica é intencionalmente mostrado<br />
o símbolo do bicho e não ele em si.<br />
À medida que o europeu foi relegando a<br />
galinha ao galinheiro, por exemplo, ele foi<br />
aprendendo a se lavar, tirando sua conaturalidade<br />
com o animal; o homem foi se elevando,<br />
realizando assim algo de parecido com o<br />
Paraíso Terrestre na Terra não paradisíaca;<br />
é o resgate do calabouço, o qual vai tomando<br />
ares de lugar onde se habita. É algo artificial,<br />
porque não é o Paraíso Terrestre, mas<br />
A Igreja: harmonizadora da Europa cristã<br />
Houve na Europa uma progressiva caça a tudo quanto<br />
era prosaico. Não foi levada até o fim, mas foi tão obstinada<br />
quanto a Reconquista contra os mouros. O fruto<br />
disso foi a modelagem de um mundo construído de acordo<br />
com a mentalidade de certos povos formados à luz<br />
da Igreja, a qual fazia, dentro da raça, o que esta fez no<br />
mundo; é uma regra de três magnífica.<br />
A Igreja foi fazendo aparecer o “príncipe herdeiro”, o<br />
“menino de ouro” de dentro do romano sibarita decadente,<br />
ou dos godos e ostrogodos – elementos constitutivos da<br />
Idade Média – e foi enxotando deles os aspectos reprováveis.<br />
A ascensão como tipo humano do descendente do germano<br />
ou do latino constituiu uma ascensão positiva, na<br />
qual todos os aspectos reprováveis foram desaparecendo<br />
em vista de uma modelagem operada<br />
pela graça, sobrenaturalmente.<br />
Entre a graça e a natureza<br />
não há contradição, só pode<br />
haver uma harmonia. As leis<br />
que existem numa ordem são,<br />
mutatis mutandi, as mesmas<br />
leis para outra ordem, transpostas<br />
para realidades diferentes:<br />
uma natural, a outra<br />
sobrenatural. A graça age na<br />
natureza como uma mão dentro<br />
da luva. De si ela opera esse seletivo,<br />
mas opera devagar.<br />
Por exemplo, um Santo que ensinasse<br />
a prática da pureza; olhando para<br />
o olhar dele, seus discípulos passariam a<br />
se lavar melhor sem que ele recomendasse,<br />
por afinidade e conaturalidade.<br />
32
António Godinho (CC3.0)<br />
Sabe-se que Dom Orione sempre se confessava antes de<br />
estar com São Pio X. Eu não teria a menor surpresa se ele tomasse<br />
um banho completo também. Não quero dizer que necessariamente<br />
tenha sido assim, mas seria um desdobrar-se<br />
lógico da mesma consequência. A mesma razão pela qual ele<br />
queria ter a alma pura o levaria a banhar-se para estar puro.<br />
Na Cristandade, era a graça que modelava o homem,<br />
o qual, animado por ela, modelava a natureza e fazia<br />
o seletivo. A Igreja ia fazendo uma miscigenação entre<br />
germanos, latinos, descendentes de mouros, húngaros<br />
– porque a Hungria pertenceu à Cristandade de fato, e<br />
de estatura inteira. Tal síntese constituiu a figura global<br />
do europeu em sua realidade psicológica e cultural<br />
mais importante, e até temperamental, porque a Igreja<br />
ia criando um temperamento mais importante do que as<br />
particularidades locais.<br />
É como quem olha para um vitral e vê como toda a<br />
policromia, de certo modo, vale mais do que cada pedaço<br />
de vidro. Assim era a Europa cristã na sua totalidade.<br />
Os defeitos das várias raças não tinham cidadania,<br />
porque elas se uniam pelas qualidades, formando o europeu<br />
total.<br />
Do ideal sacral ao heroísmo angélico<br />
Dentro desse quadro, um aspecto importante é o do<br />
heroísmo.<br />
No meu modo de entender, o heroísmo propriamente<br />
dito nasceu na Idade Média. Sem dúvida existiram heroísmos<br />
salientíssimos em povos anteriores. Mas, na Idade<br />
Média, pela ação da Igreja, o Lumen Christi penetrou nos<br />
aspectos temporais da vida muito mais do que no tempo<br />
do Império Romano. Na sociedade medieval foi modelada<br />
uma forma de heroísmo que não tinha tido ocasião de<br />
se realizar antes. Toda a epopeia, a beleza do heroísmo<br />
só foram inteiramente explicitadas com a ideia católica<br />
do herói a serviço de um ideal sacral.<br />
O heroísmo a serviço de Nosso Senhor Jesus Cristo<br />
é diferente do ideal de servir o Império Romano ou de<br />
outro qualquer. O heroísmo de Alexandre Magno, por<br />
exemplo, nada tinha em comum com o de Clóvis. Ambos<br />
Samuel Holanda<br />
Catedral de Notre-Dame de Paris<br />
33
Luzes da Civilização Cristã<br />
Flávio Lourenço<br />
Entrada dos cruzados em Constantinopla - Castelo de Chantilly<br />
mataram e se expuseram à morte, mas o objetivo era diferente.<br />
O verdadeiro heroísmo não consiste só em atacar, em<br />
matar, em morrer; ele supera tudo isso, porque quer impregnar<br />
a ação de atacar, matar e morrer de um sentido<br />
transcendente, o qual é enormemente superior ao homem<br />
e que dá às espadas e às lanças os seus verdadeiros<br />
brilhos.<br />
Quando penso num cavaleiro medieval e o comparo a<br />
um legionário romano, este último me parece pesadão,<br />
sem alma... Quiçá possa estar enfeitado com um armamento<br />
bonito, mas nele, a principal nota é o bater dos<br />
pés; uma legião romana andando não é senão o bater dos<br />
pés. Se imagino os cruzados avançando… já não é o galopar<br />
de cavalos a nota distinta, mas é o pulsar dos corações,<br />
das mentalidades, das almas.<br />
Isto foi a Europa medieval que representou. Por mais<br />
admiradores que sejamos da coragem, se nos oferecessem:<br />
“Aqui está a vida de Aníbal, leiam…”, folhearíamos<br />
um pouco com a ponta do dedo e a deixaríamos. Ora, se<br />
nos apresentassem a história de um cavaleiro medieval,<br />
ainda que fosse a de Ricardo Coração de Leão 1 , nós nos<br />
interessaríamos, porque a Igreja colocou de lado os aspectos<br />
censuráveis dele, omitindo-os na canção de gesta,<br />
para que não tivessem cidadania no próprio homem, de<br />
maneira a estarem contidos nos porões da alma quando<br />
ele atacava. O que aparece é um heroísmo angélico que<br />
nos entusiasma: é a sensação de sermos angelizados nele<br />
e termos a coragem e o aggredi 2 do Anjo.<br />
Contrários harmônicos no<br />
vitral da Cristandade<br />
sa a tudo quanto lhe é contrário, e da apuração<br />
a tudo o que lhe é legítimo, feito sob o bafejo<br />
da graça. Há uma espécie de fosforescência da<br />
graça, um difuso sobrenatural que é a sociedade<br />
humana levada ao primor de si mesma, porque<br />
toca em sua arquetipia, que é a Santa Igreja,<br />
a sociedade espiritual. É só então que a sociedade<br />
temporal adquire toda a sua beleza.<br />
Como é essa beleza? Há algo de indescritível,<br />
mas aponto para a presença dos contrários harmônicos,<br />
como, por exemplo, a doçura e o aggredi.<br />
Em nenhuma época se levou a doçura tão<br />
longe e nunca se levou o aggredi tão a seu auge.<br />
Ninguém levou tão longe quanto o medieval<br />
a intelectualização unida ao contato com a realidade<br />
viva, natural, como ela é, positiva. Podemos<br />
imaginar um São Tomás de Aquino parando<br />
numa hospedaria de “aldeia de marzipã”, pedindo<br />
para lhe trazerem um pão para comer. Entra um camponês<br />
analfabeto que lhe serve um pãozão; ele acha pitoresco<br />
o servidor e este, por sua vez, é tão tendente para<br />
as coisas de São Tomás, que fica bouche béant 3 olhando<br />
para o Santo. São Tomás lhe dirige uma palavra, e há<br />
um ósculo de dois extremos harmônicos, eufóricos em se<br />
encontrarem. Isto havia muito na Idade Média.<br />
Helio G.K.<br />
Então, o que é a Cristandade? É quando o esplendor<br />
da ordem humana chega ao auge da distinção e da repul-<br />
Santa Teresa de Ávila - Museu do Convento das<br />
Madres Carmelitas da Anunciação, Espanha<br />
34
Outro contrário harmônico era arte e raciocínio, razão<br />
e arte encontrando-se de modo magnífico; ou ainda,<br />
a autoridade e liberdade. Nunca se foi tão livre para o<br />
bem, nunca se foi tão perseguido para o mal. Ora, a liberdade<br />
é só para o bem, e a perseguição do mal é uma<br />
forma de liberdade.<br />
Para tocar só nesses aspectos, os contrários harmônicos<br />
emitiam uma luz posta dentro do vitral da mistura<br />
da raça branca europeia, latino-germânica, que se entrecruzava<br />
assim de modo concreto e não nas nuvens. Todas<br />
as modalidades de tipos físicos europeus, no fundo<br />
muito próximos entre si, têm um símbolo de Deus. Desde<br />
o olhar azul de um nórdico até o olhar preto e cheio<br />
de mistério de um espanhol, de um português, de um italiano<br />
do sul. Pode-se analisar os olhos de Santa Teresa<br />
de Ávila de uma pintura e compreende-se perfeitamente<br />
bem, realçando isto magnificamente.<br />
O pulchrum da Igreja<br />
transluzindo na Cristandade<br />
A Igreja foi feita para os homens. Ora, estes realizam a<br />
plenitude de seu pulchrum em conjuntos, ou seja, em sociedades<br />
e nações; assim, a Igreja ou confere o seu pulchrum<br />
aos costumes e às culturas das sociedades e nações, ou ela<br />
vive como um fantasma, privado do seu próprio corpo.<br />
Então, qual a relação entre o pulchrum da Cristandade<br />
e o da Igreja? É a relação da virtude existente na alma<br />
enquanto transluzindo no corpo. A Igreja, fazendo penetrar<br />
a graça no campo temporal, produz nele uma forma<br />
de beleza, um esplendor de graça, que a simples beleza<br />
eclesiástica de si não manifesta.<br />
É uma mesma escola de beleza. Se tomamos, por<br />
exemplo, de um lado a procissão do Império Austro-<br />
-Húngaro, Corpus Christi, Tosão de Ouro; de outro lado,<br />
um desfile militar embebido do espírito católico, eu tenho<br />
duas manifestações do mesmo espírito.<br />
Se compararmos todas as cristandades que possam<br />
no mundo existir, veremos as mil refulgências da natureza<br />
afins com mil refulgências da graça, e assim veremos<br />
mais nítidos aspectos da Igreja que antes não apareciam.<br />
Porque o temporal, animado pelo espírito da Igreja,<br />
não exprime apenas o espírito dela; mas, enquanto símbolo<br />
de Deus, manifesta o pulchrum próprio à natureza,<br />
mais próximo à matéria e mais longe do espírito; não a<br />
matéria considerada inimiga do espírito, mas enquanto<br />
irmã menor dele.<br />
v<br />
1) Rei da Inglaterra (*1157 - †1199).<br />
2) Do latim: ataque.<br />
3) Do francês: de boca aberta.<br />
(Extraído de conferência de 14/4/1978)<br />
Procissão de Corpus Christi em<br />
Sevilha - Museu do Prado<br />
Manuel Cabral y Aguado Bejarano (CC3.0)<br />
35
A hora da graça<br />
Flávio Lourenço<br />
Quando o profeta Simeão se referiu ao<br />
papel de Nosso Senhor como pedra<br />
de escândalo e ao gládio que traspassaria<br />
a alma de Nossa Senhora, ele usou esta<br />
expressão: “Eis que este Menino foi posto<br />
para a queda e para o soerguimento de muitos<br />
em Israel, e como um sinal de contradição<br />
– e a ti, uma espada te traspassará a alma<br />
– para que se revelem os pensamentos<br />
íntimos de muitos corações” (Lc 2, 34-35).<br />
Isso indica a existência de uma malícia<br />
a ser desvendada. Donde podemos concluir<br />
ser da glória de Maria que a malícia<br />
da Revolução seja descoberta e manifesta<br />
para que, aos olhos dos Anjos e dos homens,<br />
o pecado de Revolução fique caracterizado<br />
com tudo quanto ele tem de abominável. Enquanto<br />
isso não se der, a Revolução não estará<br />
madura para explodir e desaparecer.<br />
Quando há um grave pecado, embora<br />
possa haver exceções, a Providência costuma<br />
permitir que a situação chegue a um grau extremo<br />
de abominação. Essa é a hora da graça,<br />
na qual, de algum modo, o processo de<br />
imprudência em relação ao pecado chegou ao<br />
seu termo e o pecador se arrepende e volta.<br />
Porém, quantas vezes, depois do susto,<br />
a pessoa não corresponde à graça e continua<br />
no pecado... Abrem-se, então, abismos sucessivos<br />
de horrores. Mas, quando a pessoa é<br />
muito amada por Nossa Senhora, ao chegar<br />
ao horror dos horrores, existe a maior possibilidade<br />
de se converter.<br />
Para a glória de Nossa Senhora, o mundo<br />
não se encerrará sem o advento do Reino<br />
d’Ela. O Reino de Maria atingirá seu apogeu<br />
e será o melhor que se possa imaginar, não<br />
em razão da maior ou menor fidelidade havida<br />
anteriormente, mas sim por ser de Maria.<br />
(Extraído de conferência de 4/2/1967)<br />
Apresentação do Menino<br />
Jesus no Templo - Museu<br />
de Belas Artes de Lyon