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Luzes da Civilização Cristã<br />
Flávio Lourenço<br />
Entrada dos cruzados em Constantinopla - Castelo de Chantilly<br />
mataram e se expuseram à morte, mas o objetivo era diferente.<br />
O verdadeiro heroísmo não consiste só em atacar, em<br />
matar, em morrer; ele supera tudo isso, porque quer impregnar<br />
a ação de atacar, matar e morrer de um sentido<br />
transcendente, o qual é enormemente superior ao homem<br />
e que dá às espadas e às lanças os seus verdadeiros<br />
brilhos.<br />
Quando penso num cavaleiro medieval e o comparo a<br />
um legionário romano, este último me parece pesadão,<br />
sem alma... Quiçá possa estar enfeitado com um armamento<br />
bonito, mas nele, a principal nota é o bater dos<br />
pés; uma legião romana andando não é senão o bater dos<br />
pés. Se imagino os cruzados avançando… já não é o galopar<br />
de cavalos a nota distinta, mas é o pulsar dos corações,<br />
das mentalidades, das almas.<br />
Isto foi a Europa medieval que representou. Por mais<br />
admiradores que sejamos da coragem, se nos oferecessem:<br />
“Aqui está a vida de Aníbal, leiam…”, folhearíamos<br />
um pouco com a ponta do dedo e a deixaríamos. Ora, se<br />
nos apresentassem a história de um cavaleiro medieval,<br />
ainda que fosse a de Ricardo Coração de Leão 1 , nós nos<br />
interessaríamos, porque a Igreja colocou de lado os aspectos<br />
censuráveis dele, omitindo-os na canção de gesta,<br />
para que não tivessem cidadania no próprio homem, de<br />
maneira a estarem contidos nos porões da alma quando<br />
ele atacava. O que aparece é um heroísmo angélico que<br />
nos entusiasma: é a sensação de sermos angelizados nele<br />
e termos a coragem e o aggredi 2 do Anjo.<br />
Contrários harmônicos no<br />
vitral da Cristandade<br />
sa a tudo quanto lhe é contrário, e da apuração<br />
a tudo o que lhe é legítimo, feito sob o bafejo<br />
da graça. Há uma espécie de fosforescência da<br />
graça, um difuso sobrenatural que é a sociedade<br />
humana levada ao primor de si mesma, porque<br />
toca em sua arquetipia, que é a Santa Igreja,<br />
a sociedade espiritual. É só então que a sociedade<br />
temporal adquire toda a sua beleza.<br />
Como é essa beleza? Há algo de indescritível,<br />
mas aponto para a presença dos contrários harmônicos,<br />
como, por exemplo, a doçura e o aggredi.<br />
Em nenhuma época se levou a doçura tão<br />
longe e nunca se levou o aggredi tão a seu auge.<br />
Ninguém levou tão longe quanto o medieval<br />
a intelectualização unida ao contato com a realidade<br />
viva, natural, como ela é, positiva. Podemos<br />
imaginar um São Tomás de Aquino parando<br />
numa hospedaria de “aldeia de marzipã”, pedindo<br />
para lhe trazerem um pão para comer. Entra um camponês<br />
analfabeto que lhe serve um pãozão; ele acha pitoresco<br />
o servidor e este, por sua vez, é tão tendente para<br />
as coisas de São Tomás, que fica bouche béant 3 olhando<br />
para o Santo. São Tomás lhe dirige uma palavra, e há<br />
um ósculo de dois extremos harmônicos, eufóricos em se<br />
encontrarem. Isto havia muito na Idade Média.<br />
Helio G.K.<br />
Então, o que é a Cristandade? É quando o esplendor<br />
da ordem humana chega ao auge da distinção e da repul-<br />
Santa Teresa de Ávila - Museu do Convento das<br />
Madres Carmelitas da Anunciação, Espanha<br />
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