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Ela tinha uma grande elevação<br />
de alma, porém ela não desdenhava<br />
o mais minúsculo. Eu, às vezes, mexia<br />
com ela dizendo-lhe que ela era<br />
meticulosa demais em certas coisas.<br />
Ela era meticulosa, mas sem deixar<br />
o mais alto, fazendo o mais alto habitar<br />
em tudo, estar presente a tudo,<br />
ordenar tudo e com um seletivo à luz<br />
desse ponto de partida mental, interno,<br />
um seletivo que nunca vi errar.<br />
Algo curioso: Ela podia ter – sobretudo<br />
quando mais moça e que eu<br />
tinha exercido menos influência sobre<br />
ela – lados um tanto liberais de<br />
doutrina subconsciente, que influíam<br />
no seletivo dela. Mas esse erro<br />
mostrado – e com que precisão e<br />
muitas vezes com que reverente truculência,<br />
mas mostradíssimo! –, ela<br />
acabava acertando o passo quando<br />
via que era direito.<br />
Creio que se posso dizer que recebi<br />
algo da lógica dos jesuítas, dela recebi<br />
enormemente outras coisas. Ela<br />
era muito comunicativa dessa elevação.<br />
Ela transmitia muito, irradiava<br />
muito o que, aliás, vê-se pelo Quadrinho;<br />
nele, torna-se evidente.<br />
Amolecedora dos lados<br />
maus das almas<br />
não percebia que isso era touchant 1 ,<br />
fazia com a naturalidade que se possa<br />
imaginar: “Coitado, é bem verdade!<br />
Mas veja, tem tal lado assim e<br />
tal outro e outro que, afinal de contas,<br />
se atendêssemos, veríamos que<br />
ele tem uma atenuante…” Se ela tivesse<br />
tratado com aquela pessoa na<br />
ocasião “X” da vida desse indivíduo,<br />
e tivesse tido essa compaixão, ela teria<br />
amolecido dentro da pessoa, não<br />
o bem, mas o mal.<br />
Ela era uma amolecedora de revoltas<br />
como eu nunca vi coisa igual.<br />
Mas pela compaixão, pela pena. A<br />
pessoa objeto dessa compaixão se<br />
desarmava e tomava uma forma da<br />
doçura, que estou explicando de modo<br />
muito incompleto, mas há certas<br />
coisas que o vocabulário humano<br />
não consegue exprimir.<br />
Como vi gente recusar isso! E recusar<br />
por autossuficiência! “Não quero<br />
que tenham compaixão de mim!”<br />
Ou outras coisas: “Eu sinto que isso<br />
vai me desarmar a revolta e estou utilizando<br />
isso para conseguir tal coisa,<br />
portanto, não quero deixar de me revoltar…”<br />
Não diziam, mas eu percebia.<br />
Isso fica nos imponderáveis em<br />
torno de uma mesa de sala de jantar<br />
ou no living de uma casa. A vida cotidiana<br />
é feita de lances desses.<br />
Irredutibilidade com doçura<br />
Mamãe tinha assim uma espécie<br />
de forma de compassividade que<br />
chegava ao miúdo, entrando nos últimos<br />
meandros do sofrimento da<br />
pessoa, naquele meandrozinho mais<br />
interno onde o caco de vidro infecciona<br />
e arranha mais a ferida e, ali,<br />
Tamara Maria A.<br />
Havia uma atitude nela que afinava,<br />
aliás muito, com o meu modo<br />
de entender a devoção a Nossa<br />
Senhora – a prática da devoção,<br />
não o seu fundamento teológico –,<br />
mas um traço saliente nela, no relacionamento<br />
com os outros, era<br />
o ser compassiva. Eu não conheci<br />
ninguém compassivo como ela. De<br />
uma compaixão ordenante, não de<br />
uma ópera italiana: “Pobre filho!!!<br />
Pobre amada!!!...”<br />
Lembro-me, mais de uma vez, em<br />
relação a essa ou àquela pessoa: eu<br />
afirmava um aspecto no corte da espada…<br />
Ela não negava, ouvia tudo,<br />
depois me dizia – com uma modulação<br />
de voz e um jeito de falar que me<br />
deixava sem saber o que dizer, ela<br />
Virgem com o Menino (coleção particular)<br />
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