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Direitos humanos - Memórias Reveladas

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evistadireitoshumanosDalmo de Abreu DallariMary RobinsonMarco AntônioRodrigues BarbosaRicardo Brisolla BalestreriAna Rita de PaulaIzabel Maria Madeirade Loureiro MaiorCarmen Silveira de oliveiraMaria luiza moura de oliveiraBaltasar GarzónAugusto BoalSebastião SalgadoEdição comemorativa60 Anos da Declaração Universaldos Direitos Humanos01dezembro 2008


ApresentaçãoNasce uma nova <strong>revista</strong> sobre direitos humanos no Brasil. Jáexistem importantes publicações, de diferentes perfis, voltadasa distintos focos de interesse. Mas faltava uma, de abrangêncianacional, com abordagem mais diretamente centrada nos temas da Educaçãoem Direitos Humanos.Ela tem caráter institucional, mas tal identidade não deve resultar em oficialismochapa branca. Governos democráticos não podem temer a convivênciacom a crítica. A vocação da <strong>revista</strong> é desenvolver reflexões e um diálogo francocom a sociedade civil. Seu formato e linguagem buscam um ponto intermediárioentre a elaboração acadêmica e aquela mais sintética das lutas populares.Os movimentos sociais e as ONGs dessa área, as instituições e autoridadesdos poderes públicos que cuidam do tema, os segmentos universitários pertinentessabem que a Educação em Direitos Humanos é o eixo mais estratégicopara a construção de uma nova consciência nacional e de um novo patamar derespeito à dignidade intrínseca da pessoa humana, consagrada na DeclaraçãoUniversal de 10 de dezembro de 1948.O lançamento faz parte da agenda brasileira de celebração dos 60 anos dessadeclaração, ao lado de marcantes eventos ocorridos em 2008, alguns comforte marca de ineditismo, como a Conferência Nacional dos Direitos Humanosdo segmento LGBT, realizada em Brasília no mês de junho, por convocação dopresidente da República, que também presidiu um pioneiro encontro, em SãoPaulo, no mesmo mês, com presidentes e dirigentes de grandes empresas,convocando-os ao engajamento claro nos compromissos com os direitos humanosorientados pelo Pacto Global da ONU.Entre 15 e 18 de dezembro se realiza em Brasília a 11ª Conferência Nacionaldos Direitos Humanos, com aproximadamente 1.400 participantes, cujapauta central é a revisão e atualização do Programa Nacional de Direitos Humanos(PNDH), que o Brasil formulou em 1996 e ampliou em 2002.Um desafio colocado para a terceira versão do PNDH é incorporar a agendaprogramática resultante de grandes encontros nacionais ocorridos desde 20033Revista Direitos Humanos


Apresesobre o vasto leque de questões relacionadas à proteção dos direitos humanos. Milharesde pessoas já participaram em alguma etapa das 50 conferências abordando educação,saúde, meio ambiente, igualdade racial, equidade de gênero, cidades, criançae adolescente, juventude, segurança alimentar, desenvolvimento agrário, economiasolidária, muitos outros temas.Em novembro, no Rio de Janeiro, nosso país sediou o mais importante congressomundial já realizado para articular o enfrentamento da exploração sexual de criançase adolescentes, reunindo nada menos que 170 países e 3.500 congressistas. Emdezembro, ocorreu em Brasília a 2ª Conferência Nacional dos Direitos da Pessoa comDeficiência, precedida pelas etapas estaduais, da mesma forma que as outras conferênciasmencionadas acima. Em março de 2009 se completará o processo da 2ª ConferênciaNacional dos Direitos do Idoso, que já concluiu em 2008 sua fase federativa.Temos um cenário de conquistas palpáveis, que encorajam nossa determinaçãode avançar rumo a metas mais desafiadoras. Mas também presenciamos a repetiçãode intoleráveis violações, dando a tônica no cotidiano nacional: violência criminal,torturas e desmandos policiais, presídios, racismo, homofobia, discriminações eviolência contra a mulher, contra idosos e contra pessoas com deficiência, persistênciado trabalho escravo, desrespeito às normas do Estatuto da Criança e doAdolescente, criminalização de movimentos sociais e assassinato de indígenas oulideranças de trabalhadores, e a impunidade ainda prevalece largamente sobre asapurações exemplares.Essa convivência entre avanços e violações tem sido marca constante desses 20anos de reconstrução democrática do País, a partir da Constituição de 1988. Numatrajetória de Estado, o Brasil já deu passos importantes no sentido de incorporar osinstrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos ao nosso sistema normativo.Programas novos são iniciados a cada ano, em diferentes áreas. Mas os passosjá dados não superam o muito que ainda resta de caminhada.


ntaçãoA <strong>revista</strong> é mais um passo. Pequeno ou grande, o passo vai na direção certa. O aniversáriode 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos perpassa todas asmatérias deste primeiro número, que exibe diversidade de temas e reflexões muito ricas.A tiragem inicial será de 8.000 exemplares, com o importante detalhe de que 500deles serão em espanhol, porque não somos apenas Brasil. Somos Brasil e Mercosul,somos Brasil e Unasul, somos um Brasil que está decidido e talhado à integração crescentecom nuestra America, dos sonhos de Bolívar, de Che e de Salvador Allende.Buscando respeitar o tamanho de nossas pernas, a publicação nasce semestral.Mas já planeja virar quadrimestral, quem sabe trimestral depois, ou bimestral, ou... Ocerto é que ela vem para ficar. A montagem de seu Conselho Editorial foi concebida comessa predestinação. Diferentes áreas, diferentes geografias, diferentes opiniões políticas,partidárias, religiosas ou filosóficas estão refletidas na composição de seus 22 integrantes,que aceitaram incorporar mais esta trincheira a suas pesadas agendas.Fica aqui registrado um enfático apelo aos futuros titulares da área de direitos humanosdo governo federal, para que não deixem a sequência ser interrompida. Uma<strong>revista</strong> vale muito como série histórica. Só com o passar dos anos torna-se referência,fonte para pesquisas e estudos posteriores, medição e fotografia dos debates queprevalecem em cada período.Na saudável alternância de partidos no poder, própria das democracias, é claro queo voto popular autoriza os governantes a introduzir mudanças e ajustes, deslocandoprioridades. Mas o apelo vale como alerta no sentido de que, em direitos humanos –talvez mais do que em qualquer outro segmento –, a acumulação ao longo dos anos, oprosseguimento, a persistência e a perseverança compõem um imperativo categórico,ao qual estamos todos obrigados.Brasília, 10 de dezembro de 2008Paulo Vannuchi


sumáriosumário>>8Direitos humanos:sessenta anos de conquistasDalmo de Abreu Dallari12Concretizando nossoscompromissosMary RobinsonBalestreriRicardo Brisolla17Segurança públicae Direitos Humanos6Revista Direitos Humanos26Direito à memóriae à verdadeMarco Antônio Rodrigues Barbosa34Um mundotodos: Univdireitos e dAna Rita de PaulaIzabel Maria Madeira


Expediente40Maioridade para os direitos humanosda criança e do adolescenteCarmen Silveira de oliveiraMaria luiza moura de oliveira46A verdade, onde estiverBaltasar GarzónPresidente da RepúblicaLuiz Inácio Lula da SilvaMinistro da SecretariaEspecial dos Direitos HumanosPaulo VannuchiSecretário AdjuntoRogério SottiliConselho editorialPaulo Vannuchi (Presidente)Aída MonteiroAndré LázaroCarmen Silveira de OliveiraDalmo DallariDarci FrigoEgydio Salles FilhoErasto Fortes MendonçaJosé Geraldo Souza JúniorJosé GregoriMarcos RolimMarília MuricyIzabel de Loureiro MaiorMaria Victoria BenevidesMatilde RibeiroNilmário MirandaOscar VilhenaPaulo CarbonariPaulo Sérgio PinheiroPerly CiprianoRicardo Brisolla BalestreriSamuel Pinheiro GuimarãesCoordenação editorial:Erasto Fortes MendonçaMariana Bertol CarpanezziPatrícia CunegundesPaulo VannuchiRevisão:Bárbara de Castro, Joíra Coelho, Luciana Melo52Projeto gráfico e diagramação:Wagner Ulisses62Augusto BoalEnt<strong>revista</strong>Ilustrações:Lívia BarretoProdução editorial:Jacumã ComunicaçãoSecretaria Especial dos Direitos HumanosEsplanada dos Ministérios, Bloco T, EdifícioSede, sala 42470.064-900 Brasília – DFdireitoshumanos@sedh.gov.brwww.direitoshumanos.gov.brde todos paraersalização deireito à diferençade Loureiro MaiorSebastião SalgadoImagensDistribuição gratuitaTiragem: 8.000 exemplaresDireitos Humanos é uma <strong>revista</strong> semestralpublicada pela Secretaria Especial dos DireitosHumanos da Presidência da República do BrasilAs opiniões expressas nos artigos são de responsabilidadeexclusiva dos autores e não representam necessariamente aposição oficial da Secretaria Especial dos Direitos Humanosda Presidência da República ou do Governo Federal.Todos os direitos reservados. É permitida a reproduçãoparcial ou total desta obra, desde que citada a fonte e nãoseja para venda ou qualquer fim comercial.7Revista Direitos Humanos


artigoDalmo de Abreu Dallari – jurista eprofessor emérito da Faculdade de Direito daUniversidade de São Paulo (USP), Dalmo deAbreu Dallari é autor de vários livros – e, entreeles, o clássico Elementos de Teoria Geraldo Estado. Entre outras atribuições, ocupaatualmente assento no Conselho de Defesados Direitos da Pessoa Humana (CDDPH).Direitos humanos:sessenta anos de conquistasDalmo de Abreu Dallari8Revista Direitos Humanos1. A Declaração Universal de 1948:compromisso humanistaHá sessenta anos a humanidade deuinício a uma nova fase em sua história,registrando num documentolúcido e objetivo a tomada de consciênciado valor primordial da pessoa humana ede seus direitos essenciais e universais,inerentes à sua própria natureza. Isso já éressaltado, com muita evidência, em suadenominação, “Declaração Universal dosDireitos Humanos”, e é enfaticamente proclamadoem seu artigo primeiro, que iniciacom o seguinte enunciado: “Todos os sereshumanos nascem livres e iguais em dignidadee direitos”.Na denominação dada ao documento enas afirmações constantes do artigo primeiroestão contidos alguns elementos esclarecedoresda mais alta importância, que dão otestemunho do extraordinário avanço já obtido,em comparação com dados anteriores.Com efeito, o primeiro documento que tevea denominação de Declaração de Direitosfoi o que a Assembléia Nacional da Françaaprovou em 1789, num dos momentos maisexpressivos de afirmação da vitória da RevoluçãoFrancesa, que punha fim ao chamadoAntigo Regime e começava uma nova fasena história da humanidade. O documentoentão aprovado foi designado “Declaraçãodos Direitos do Homem e do Cidadão”, o que


despertou reações veementes dentro da própriaAssembléia, denunciando o seu caráterdiscriminatório contra as mulheres. Isso foinegado pelos líderes da maioria, que eramfranceses brancos e ricos, mas o espírito discriminatóriofoi confirmado logo em seguida.Basta lembrar que, à semelhança dos EstadosUnidos da América, criados com a aprovaçãoda primeira Constituição escrita da história,em 1787, a França impediu o acesso dasmulheres aos altos cargos do governo e daAdministração Pública.Assim, a afirmação de que os direitoshumanos declarados são de “todos os sereshumanos” exclui qualquer espécie dediscriminação. Isso tem ainda grande importância,para constatação dos avanços,pelo fato de que tanto os Estados Unidosquanto a França se basearam na afirmaçãoda existência de direitos naturais das pessoas,primeiro deles o direito à liberdade,sendo bem conhecido o lema da RevoluçãoFrancesa, “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”,e na prática negaram por muitotempo essa afirmação. Com efeito, ambos,Estados Unidos e França, usavam o trabalhoescravo em larga escala e continuarammantendo a escravidão negra durante muitosanos. A mulher só foi admitida comoeleitora em eleições nacionais estadunidensesem 1920 e na França ela só foi admitidacomo juíza em 1946. Além disso, ostrabalhadores tiveram de enfrentar duríssimaresistência, inclusive forte repressãopolicial, para, no século XX, ser admitidoscomo “livres e iguais”. Como fica óbvio,aquilo que se denominou enfaticamente Liberalismocontinha boa dose de hipocrisia,pois os direitos declarados eram os doshomens brancos ricos, excluindo grandeparte da humanidade.Além da denominação, que abrange auniversalidade dos seres humanos, a afirmaçãode que todos, sem a possibilidade dequalquer exceção, nascem livres e iguais,deixa expresso que a Constituição e o sistemalegal que contiverem exclusões ou discriminaçõesquanto aos direitos humanosnão têm o valor de documentos jurídicosautênticos, são falsificações maliciosas quenão merecem respeito e devem ser eliminadas.Os direitos humanos são atributosnaturais de todos os seres humanos, que“Há pessoas que colocam suasambições pessoais, sua busca depoder, prestígio e riqueza acimados valores humanos”nascem com eles e que a sociedade, o Estado,os governos ou quem quer que sejanão podem restringir com legitimidade. Eaí se enquadra a dignidade humana, queé igual para todos e que é da essência dapessoa humana, não havendo qualquer diferençaentre a dignidade do proprietário deuma rica mansão ou suntuosa fazenda e ado favelado ou do morador de rua e mesmodo presidiário. Eles podem ficar sujeitos aregras legais diferentes, desde que isso nãoofenda a dignidade essencial de cada um.A Declaração Universal dos DireitosHumanos aprovada pela Organização dasNações Unidas em 1948 foi, efetivamente,um avanço para a humanidade. Existem aindaresistências à sua efetiva aplicação, masa simples existência dessa declaração temservido de apoio significativo para lutas travadaspor meios pacíficos e para denúncias ereivindicações buscando a concretização demudanças nas Constituições, na organizaçãodas sociedades e nas práticas da convivênciahumana constitucionais, visando à eliminaçãodas discriminações e à implantação dajustiça social.2. Os direitos humanos eos caminhos da HistóriaPerde-se na origem dos tempos o reconhecimentode que os seres humanos sãocriaturas especiais, que nascem com certaspeculiaridades, incluindo necessidadesbásicas de natureza material, psicológica eespiritual, que são as mesmas para todas aspessoas. Entre tais peculiaridades encontrasetambém a possibilidade de se desenvolverinteriormente, de transformar a natureza e deestabelecer novas formas de convivência.Tudo isso levou à conclusão de que o ser humanoé dotado de especial dignidade e queé imperativo que todos recebam proteção eapoio para a satisfação das necessidades básicase para o pleno uso e desenvolvimentode suas possibilidades físicas e intelectuais.Como decorrência de todos esses fatores, foisendo definido um conjunto de faculdadesnaturais necessitadas de apoio e estímulosocial, que hoje se externam como direitosfundamentais da pessoa humana.Mas apesar de serem direitos de todosos seres humanos, o que deveria levar à conclusãológica de que ninguém é contra taisdireitos, a história mostra coisa bem diferentedisso. Há pessoas que colocam suas ambiçõespessoais, sua busca de poder, prestígioe riqueza acima dos valores humanos. Issoexplica as violências da Idade Média, com oestabelecimento dos privilégios da nobreza ea servidão dos trabalhadores. Essa é, também,a raiz das agressões sofridas pelos índios daAmérica Latina com a chegada dos europeus,9Revista Direitos Humanos


artigo Direitos humanos: sessenta anos de conquistasa Declaração dos Direitos do Homem e doCidadão, afirmando, no artigo primeiro, que“todos os homens nascem e permanecemlivres e iguais em direitos”, mas, ao mesmotempo, admitindo “distinções sociais”,as quais, conforme a declaração, deveriamter fundamento na “utilidade comum”. Logoforam achados os pretextos para essas distinções,instaurando-se uma nova forma desociedade discriminatória com novas classesde privilegiados, estabelecendo-se enormedistância entre as camadas mais ricas da população,pouco numerosas, e a grande massados mais pobres.A partir de então, as injustiças incessantementeacumuladas, as discriminaçõesimpostas pela lei, excluindo da participaçãopolítica os não-proprietários e as mulheres,o uso dos órgãos do Estado para sustentaçãodos privilégios dos mais ricos e de seus ser-estando aí, igualmente, o nascedouro dassubmetidos a condições indignas. Mas a fun-viçais, tudo isso acarretou mais sofrimento,violências contra a pessoa humana, inspi-damentação teológica dos direitos humanosmiséria, violências e inevitáveis revoltas. Noradas nos valores do capitalismo, que tentafoi usada maliciosamente, para sustentar quecampo dos dominadores surgiram, entretan-renovar agora sua imagem desgastada, pro-os direitos dos reis e dos nobres decorriamto, muitas disputas, sobretudo de naturezapondo a farsa da globalização.da vontade de Deus e assim estariam justifi-econômica, em âmbito nacional e interna-O excesso de agressões à dignidade dacadas as discriminações e injustiças sociais.cional. Essa produção de injustiças e essepessoa humana, em decorrência do egoísmo,Os séculos XVII e XVIII foram marcadoschoque de ambições levaram à perda da paz,da insaciável voracidade, da insensibilidadepor lutas contra esses privilégios. Grandes fi-com duas guerras mundiais no século XX,moral dos dominadores, tem despertado re-lósofos políticos reafirmaram a existência doschegando-se a extremos, jamais imaginados,ações, tanto no plano das ideias quanto nodireitos fundamentais da pessoa humana, so-de violência contra a vida e a dignidade daâmbito da ação material. Desse modo surgi-bretudo os direitos à liberdade e à igualdade,pessoa humana.ram teorias e movimentos revolucionários,mas dando como fundamento desses direitosque foram contribuindo para que um númeroa própria natureza humana, descoberta e diri-3. A Declaração Universalcada vez maior de seres humanos tomassegida pela razão. Na sequência dessas ideias,dos Direitos Humanos: avançosconsciência de sua dignidade essencial e dosa burguesia, que tinha força econômica, mase resistênciasdireitos a ela inerentes.estava à margem do poder político, associou-Terminada a Segunda Guerra Mundial, es-No final da Idade Média, no século XIII,se à plebe, pois ambas estavam igualmentetando ainda abertas as feridas da grande tragédiaaparece a grande figura de São Tomás deinteressadas na destruição dos antigos privi-causada pelo egoísmo, pelo excesso de ambi-10Aquino que, tomando a vontade de Deuslégios de que gozavam a nobreza e o clero ações materiais, pela arrogância dos poderosos eRevista Direitos Humanoscomo fundamento dos direitos humanos,condena as violências e discriminações, dizendoque o ser humano tem direitos naturaisque devem ser sempre respeitados, chegandoa afirmar o direito de rebelião dos que foremela associado e seu valioso aliado político,também beneficiário das injustiças.O ponto culminante dessas lutas foi a RevoluçãoFrancesa. No ano de 1789, colocadoo poder nas mãos da burguesia, foi publicadapela desordem social que de tudo isso resultou,iniciou-se um trabalho visando à criação de umnovo tipo de sociedade, informada por valoreséticos e tendo a proteção e promoção da pessoahumana como seus principais objetivos.


Foi instituída, então, a Organização das NaçõesUnidas (ONU), com o objetivo de trabalhar permanentementepela paz. Demonstrando estarconscientes de que esse objetivo só poderá seratingido mediante a eliminação das injustiças ea promoção dos direitos fundamentais da pessoahumana, os integrantes da Assembléia Geralda ONU aprovaram, em 1948, a DeclaraçãoUniversal dos Direitos Humanos.A Declaração é um marco histórico, nãosó pela amplitude das adesões obtidas, mas,sobretudo, pelos princípios que proclamou,recuperando a noção de direitos humanos efundando uma nova concepção de convivênciahumana, vinculada pela solidariedade. Éimportante assinalar também que, a partir dadeclaração e com base nos princípios queela contém, já foram assinados muitos pactos,tratados e convenções, tratando de problemase situações particulares relacionadoscom os direitos humanos. Esses documentosimplicam obrigações jurídicas e o descumprimentodos compromissos neles registradosacarreta sanções de várias espécies,como o fechamento do acesso a fontes internacionaisde financiamento e aos serviçosde organismos internacionais, além de outrasconsequências de ordem moral e material.A partir da proclamação da igualdade detodos os seres humanos, em direitos e dignidade,como está expresso no artigo primeiroda Declaração Universal dos Direitos Humanos,vários pactos e tratados dispuseram sobresituações específicas em que a igualdadevinha sendo negada, fixando regras e estabelecendoresponsabilidades. Essa diretriz jápenetrou nas Constituições, o que significaum reforço, de ordem prática, da eficácia dasnormas, bem como facilidade maior para seuconhecimento e sua aplicação.O que se pode concluir disso tudo é quea Declaração Universal dos Direitos Humanosmarca o início de um novo período na históriada humanidade. Os que procuram a preservaçãoou a conquista de privilégios, os quebuscam vantagens materiais e posições desuperioridade política e social, sem qualquerconsideração de ordem ética, os que pretendemque seus interesses tenham prioridadesobre a dignidade da pessoa humana, essesresistem à implantação das normas inspiradasnos princípios da Declaração Universal.Mas a realidade mostra um avanço considerávelna conscientização das pessoas e dospovos, havendo razões objetivas para se acreditarque a história da humanidade está caminhandono sentido da criação de uma novasociedade, na qual cada pessoa, cada gruposocial, cada povo verá seus direitos humanosfundamentais reconhecidos e respeitados. Oque reforça essa crença é a constatação deque vem aumentando incessantemente onúmero dos que já tomaram consciência deque, para superar as resistências, cada umde nós deverá ser um defensor ativo de seuspróprios direitos humanos. E por imperativoético, mas também para defesa de seus própriosdireitos, todos deverão ser defensoresdos direitos humanos de todos.11Revista Direitos Humanos


artigoConcretizando nossos compromissosMary Robinson é presidente da“Realizing Rights: The Ethical GlobalizationInitiative” [Iniciativa para Globalização Ética]e membro da “Elders”. A Sra. Robinsonfoi Comissária das Nações Unidas para osDireitos Humanos entre 1997 e 2002, ePresidente da Irlanda (1990-1997).Concretizandonossos compromissosMary Robinson12Revista Direitos HumanosEste ensaio foi baseadonos comentários feitospela sra. Robinson na“Harvard Business School”[Escola de Negócios daUniversidade de Harvard],em Boston, Massachusetts,em 28 de abril de 2008.Em 2008 celebramos o 60º aniversárioda Declaração Universal dos DireitosHumanos, oportunidade para que reafirmemosa importância vital dos padrões internacionaisde direitos humanos para a construçãode um futuro mais justo e sustentável.Entretanto, as tendências vislumbradas atualmentenão são positivas no que concerne à realizaçãoefetiva da promessa representada peladeclaração. Em parte por causa das respostasnacionais e globais aos ataques terroristas de11 de setembro de 2001, nesta década os direitoshumanos foram deixados de lado e, emalguns casos, ignorados. Todavia, podemosevitar maior deterioração e impedir o avançodessa tendência se recuperarmos e fortalecermosa mensagem dos direitos humanos. Nãoconsigo imaginar forma melhor de fazer issodo que reafirmando a visão de direitos e responsabilidadesda Declaração Universal, instrumentoque representa um “padrão comum”para todos os povos e nações.Reafirmando a Mensagemda Declaração Universaldos Direitos HumanosRelembremos por um momento como erao mundo em 1948, ano em que surgiu. As


nações emergiam de uma devastadora guerramundial e do Holocausto. Pela primeira vez,armas nucleares haviam sido empregadascontra civis. A Guerra Fria começara. As pessoasbuscavam laços comuns que unissemas nações e aumentassem a segurança humanapara todos.Neste contexto, surgiu um grupo de homense mulheres com diferentes histórias, culturas ecrenças, liderado por uma mulher notável: EleanorRoosevelt. O mandato do grupo, como parteda recém-criada Comissão de Direitos Humanosda ONU, consistia em elaborar uma articulaçãointernacional dos direitos e liberdades detoda a humanidade.Resultado desses esforços, a DeclaraçãoUniversal dos Direitos Humanos ofereceunosuma visão de humanidade comum e deresponsabilidades mútuas compartilhadas,aplicáveis independentemente de lugar geográfico,de cor, de religião, de sexo ou deocupação. Passados sessenta anos, a declaração– e seu cuidadoso equilíbrio entreliberdades individuais, proteção social,oportunidade econômica e deveres com acomunidade – constituiu-se em instrumentode direitos humanos reafirmado por todos osgovernos, e, mais recentemente, pela CúpulaMundial da ONU, em 2005.Um dos temas mais subestimados dahistória dos direitos humanos nas últimasseis décadas consiste na identificação doquantum de influência moral, política e legalexercida por aquele texto no mundo. ADeclaração Universal tem constituído fontede inspiração para toda a legislação internacionaldo pós-guerra na área de direitoshumanos. Seus dispositivos têm servido demodelo para constituições e leis, regulamentose políticas internos de defesa dos direitoshumanos. Acima de tudo, a declaração temsido um símbolo de esperança para milhõesde pessoas no decorrer de longos períodosde opressão.“A Declaração Universal temconstituído fonte de inspiração paratoda legislação internacional do pósguerrana área de direitos humanos”É claro, contudo, que esta avaliação positivaprecisa ser contrabalançada. Cito, nesse são ignorados. A pobreza prende milhões ano mundo todo. Padrões trabalhistas básicossentido, afirmação feita em publicação recentepelo Conselho Internacional de Políticavidas de desespero.de Direitos Humanos, uma das organizações Da Declaração à Ação: Realizingparceiras do trabalho que agora está sob minharesponsabilidade, na Realizing Rights: Então, o que devemos aprender para osRights no Século XXIfuturos esforços não só para proteger os direitoshumanos, mas também para fazer um“À medida que a reputação e a influênciados direitos humanos aumentam, eles trabalho pró-ativo na sua concretização?passam a ser ativamente mais contestados,e por atores ainda mais poderosos...Antes eram tolerados por serem mente óbvia, mas normalmente não declara-Primeira lição – uma verdade provavel-considerados marginais… As frequentes da, é o fato de que, como em grandes áreasreferências feitas aos direitos humanos no do mundo muitas pessoas continuam pobrescontexto das relações Norte-Sul e, mais e seus governos são carentes de recursos, asrecentemente, a força das críticas legais populações precisam buscar apoio e assistênciaem a suas próprias comunidades lo-aos direitos humanos na condução da“guerra ao terrorismo” fizeram com que cais. Essencialmente, não há condições paramuitos governos quisessem restringir ou que tais grupos reivindiquem seus direitos nareverter a aplicação dos direitos humanos. forma p<strong>revista</strong> nos instrumentos de direitosAs críticas aos direitos humanos vêm se humanos. Pensemos sobre isso no contextotornando mais disseminadas e explícitas, do mundo do trabalho: a grande maioria dosprincipalmente nos países mais ricos… A trabalhadores do mundo – inclusive os maisoposição e a influência cresceram juntas, pobres, os que mais necessitam de proteção–,está no setor informal. Esse fato crialevando a um grau de desorientação.” 1um sério desafio prático para os governos.Bem sabemos que, a despeito do desenvolvimentoda legislação internacional de di-direitos humanos das comunidades muitoPara criar condições de proteção dosreitos humanos nos últimos sessentas anos, pobres ou marginalizadas, os governos precisamencontrar novos caminhos para alcançá-massivas violações a esses direitos continuama ser perpetradas nos dias de hoje. A las e atendê-las. Além disso, as organizaçõeselaboração de legislação formal não resultou de direitos humanos precisam encontrar novasformas de conquistar a confiança dessasem proteção universal aos direitos humanos.O genocídio voltou a acontecer. As mulheres comunidades. A meu ver, a única maneira dee as minorias sofrem ampla discriminação fazê-lo é por meio da celebração de parcerias13Revista Direitos Humanos


artigoConcretizando nossos compromissosdos por um espaço de atuação da sociedadecivil e dos defensores dos direitos humanos,tanto quanto pela garantia de que entre taissistemas formais e institucionalizados de defesae promoção dos direitos humanos e taisatores da sociedade configure-se verdadeirae efetiva dinâmica de relacionamento.Os direitos humanos não podem serconcretizados na ausência de instituiçõesefetivas e transparentes. Se os tribunais sãocorruptos, sobrecarregados e ineficientes, osdireitos civis básicos reputam-se violados.Se os ministérios sociais não têm recursose autonomia suficientes, ou seu quadro funcionalnão é qualificado, os direitos básicosde assistência à saúde, educação e moradiaadequadas não podem ser devidamente exercidos.A construção e a reforma dos aparatosinstitucionais do Estado não tarefas fáceis ouparticularmente notáveis, embora essenciais.O tema do incentivo à capacitação de instituiçõesme leva a refletir sobre um terceirodesafio: definir as obrigações internacionais14Revista Direitos Humanoscom organizações que estejam presentes hátempos nessas comunidades, tais como entidadesreligiosas, grupos comunitários, ONGse outras.A batalha pelos direitos humanos é inevitavelmenteuma batalha por poder, e estabatalha está geralmente ligada a batalhascorrelatas por recursos. Assim, a promoçãosustentável de todos os direitos humanos dependede políticas e programas que abordemas desigualdades econômicas e sociais.Descobrir maneiras de resguardar os direitosgarantidos por lei é outro aspecto vitalpara o empoderamento dos marginalizados.No ano passado, 2007, trabalhei para a Comissãode Empoderamento Legal dos Pobres,presidida por Hernando de Soto e MadeleineAlbright. A comissão enfatizou a importânciado acesso à Justiça e às demais garantiasdo Estado de Direito como condições para oconcreto exercício de todos os outros direitos.Resguardar os direitos daqueles que vivem napobreza é um desafio que todos devemos enfrentar,se quisermos criar sociedades maisinclusivas, prósperas e justas.Assim, chegamos a uma segunda liçãoe a um desafio – fazer mais para apoiar ospaíses em desenvolvimento na construção deseus próprios sistemas nacionais de proteçãoaos direitos humanos. Por sistemas nacionaisde proteção, refiro-me aos arranjos institucionaisque, sob a égide regulamentadora doordenamento jurídico nacional e inspiraçãonos compromissos internacionais assumidospelo Estado, têm como objetivo garantir oexercício e a proteção dos direitos humanosdos cidadãos. Incluem-se aí os tribunais, oPoder Legislativo, as instituições ou comissõesnacionais de direitos humanos. Incluemse,ainda, os sistemas de saúde e educação,assim como outros serviços públicos. Essessistemas nacionais devem ser complementa-mais concretamente. Nas últimas décadasvem sendo amplamente reconhecida a necessidadede criação de uma espécie deautoridade supranacional legítima, uma vezque a ação tomada em nível exclusivamentenacional não parece apta a resolver várioscomplexos problemas mundiais. Conhecemosmuitos desses problemas, como a mudançaclimática, o comércio desigual, a disseminaçãode pandemias e novas doenças,o comércio ilegal de armas e de pessoas, aregulamentação e o monitoramento da tecnologianuclear, entre outros.Em todos esses casos, a coordenaçãointernacional e a ação coletiva se fazem necessáriasse quisermos alcançar mudançaspositivas. A realidade é que hoje os Estadossão incapazes de chegar a uma cooperaçãoefetiva, à exceção de casos envolvendo evidentesinteresses nacionais de curto prazo.Tal fragilidade é também observável na seara


da legislação de direitos humanos, que aindabais e a capacidade de atingir resultadosuma sociedade estável e regrada é essen-não alcançou patamar de desenvolvimentoprovavelmente aumentará, trazendo efeitoscial para o bom andamento do empreen-suficiente para lidar com as responsabilida-cada vez mais nocivos para as pessoas edimento. As empresas precisam assegurar-des transnacionais dos Estados.comunidades, assim como para a credibi-se que seus contratos serão devidamenteVejamos os urgentes dilemas de direi-lidade política dos governos.observados, com o respaldo dos juízes etos humanos que nos são colocados pelaA atual ausência de governos nacionaistribunais de justiça, e que suas proprieda-mudança climática. Poucos negariam que olegítimos em muito locais, agravada pelades e investimentos serão protegidos.fenômeno tende a enfraquecer a capacidadegovernança internacional ineficiente, temQuanto mais nos envolvemos nessasde exercício de uma ampla gama de direitosdirecionado o foco, cada vez mais, sobre asquestões, mais percebemos que muito res-humanos protegidos internacionalmente – oresponsabilidades dos atores não estatais emta ainda a fazer. Iniciativas voluntárias dedireito à saúde e mesmo à vida, o direito àmatéria de direitos humanos. Dados seu po-responsabilidade corporativa, por exemplo,alimentação, à água, à habitação e à proprie-der e influência no mundo de hoje, o setorcomo o Pacto Global das Nações Unidas, sedade; os direitos dos povos indígenas e tra-corporativo ocupou o centro deste debate.expandiram muito nos últimos anos, mas ain-dicionais, bem como os direitos associadosDefinir de maneira mais precisa a natureza eda não conseguiram a adesão de empresasà sobrevivência e à cultura, à migração e aoestatais de países com economia de mercadoreassentamento e o direito de segurança pessoalem caso de conflito.Os impactos mais drásticos da mudançaclimática provavelmente ocorrerão – e já estãosendo vivenciados – nos países mais pobres,nos quais os mecanismos de proteção adireitos costumam ser frágeis. As populaçõescujos direitos são pouco protegidos têm menoscondições de conhecer e de preparar-separa os efeitos da mudança climática, bemcomo para demandar de maneira eficienteações do governo nacional ou da comunidadeinternacional. Somada a isso, a responsabilidadepelos impactos nos países mais vulneráveiscostuma não recair sobre o governomais próximo, mas sobre atores difusos,“Os direitoshumanos nãopodem serconcretizadosna ausênciade instituiçõesefetivas etransparentes”emergentes, os quais vêm se tornando atorescada vez mais importantes no cenário global.Ao mesmo tempo, esforços empreendidospor vários atores internacionais, coletivamente,no intuito de construir responsabilidadescorporativas claras em questões temáticastais como violações aos direitos trabalhistas,ameaças à segurança pessoal e liberdadede expressão, entre outros, geralmentenão se desenvolvem a ponto de firmarmecanismos reconhecidamente legítimosde comunicação e prestação de contas aopúblico. Esses são enormes desafios queainda precisam ser enfrentados.Também é importante mencionar que oesforço necessário para integrar os valorestanto públicos quanto privados, muitos dosde direitos humanos à cultura corporativaquais estão distantes dos limites estatais. Alegislação de direitos humanos nem sempreconsegue ultrapassar as fronteiras para imporobrigações em questões como essas.Apesar do interesse crescente de defensoresde direitos humanos e organismoslegais internacionais pelas chamadasobrigações “extraterritoriais”, novas regrase práticas comuns nessa nova área devemdemorar a constituir-se. No curto prazo, a“lacuna de oferta” entre a necessidade deação internacional efetiva em questões glo-o escopo das responsabilidades corporativasé um quarto desafio para o futuro.Todos sabemos que há diversos fatoressubjacentes à grande ênfase que o setorempresarial vem emprestando aos direitoshumanos: fortes convicções éticas de algunsexecutivos líderes, cálculo de risco para areputação, o impacto da opinião pública, ocomportamento dos pares e concorrentes, alealdade e o desempenho dos funcionáriose as novas políticas internacionais. Os líderesde empresas reconhecem, ainda, quedemanda recursos significativos para programasde treinamento e melhoria contínua.Passar aos funcionários uma mensagemde que a empresa acredita na amplaagenda de direitos humanos, que deve seruma peça essencial nas decisões comerciaisem todos os níveis, é muito mais fácilna teoria do que na prática.John Ruggie, professor da Harvard’s KennedySchool of Government [Escola Kennedyde Governo da Universidade de Harvard], noexercício de sua função como Representante15Revista Direitos Humanos


artigoConcretizando nossos compromissosEspecial do Secretário-Geral das Nações Uni-cadas ao emprego, à atividade econômica eto sustentável no futuro. Algumas grandesdas em direitos comerciais e humanos, temà igualdade, além de maior cooperação comempresas, por exemplo, vêm se preparandocontribuído de forma inestimável nos últimosorganizações especializadas nessas áreas,para analisar toda a sua cadeia de valores emtrês anos ao enfatizar que todas a empresascomo sindicatos e empresas.países em desenvolvimento, para descobrirtêm responsabilidade de respeitar os direitosComo podemos aumentar o poder doscomo podem mudar seus processos locaishumanos. Em seu relatório mais recente, omercados para os pobres? Se o principalde compras ou distribuição de modo a criarprofessor Ruggie apresentou um marco polí-patrimônio desse segmento é o trabalho,mais empregos locais sustentáveis. Esperotico que se baseia em três princípios: Prote-como podemos apoiá-los por meio de umaque possamos desenvolver mais essas me-ger, Respeitar e Remediar. O marco envolve alegislação sobre trabalho decente –, ou seja,todologias no futuro.obrigação do Estado de proteger contra os abu-um aparato legal que inclua não somentesos aos direitos humanos cometidos por atoresprevenção ao trabalho infantil e escravo, masUma Oportunidade de Reafirmar ocorporativos, a responsabilidade corporativa detambém a criação de “condições justas eDireito Comum de Nascimentorespeitar todos os direitos humanos, e a neces-favoráveis de trabalho”, assim como “remu-O 60º aniversário da Declaração Univer-sidade de emprego de medidas corretivas queneração justa e favorável”, capaz de prover asal neste ano é uma oportunidade para que assejam efetivas. O professor Ruggie sugere queexistência humana digna, como determina aorganizações, governos, universidades, gru-a responsabilidade corporativa deve respeitarDeclaração Universal dos Direitos Humanos?pos religiosos, empresas e outras instituiçõestodos os direitos humanos, e que deve ser efeti-Como podemos reafirmar a importância dano mundo todo reafirmem a importância dosvada pelas empresas por meio de um conjuntoliberdade de associação e crescimento nosdireitos humanos como garantias inerentes adefinido de ações, tais como:EUA e na Europa, se essa importância é ata-cada ser humano, e para que colaborem no• Adoção de uma política de direitos hu-cada hoje em dia?estabelecimento de uma agenda positiva paramanos.Nós, da organização Realizing Rights,esses direitos no século XXI.• Adoção de medidas pró-ativas paraapoiamos os esforços da Organização Interna-Para aproveitar ao máximo esta oportu-entender como as atividades atuais ecional do Trabalho e de um número crescen-nidade, a Elders – grupo de líderes forma-propostas podem afetar os direitos hu-te de atores da sociedade civil que se unemdo no ano passado por Nelson Mandela, domanos.em torno do conceito de “trabalho decente”.qual tenho o orgulho de participar – lançou• Realização de atualizações periódicasAcreditamos que a ampla comunidade de ati-a campanha Todo Ser Humano tem Direitos.sobre o impacto e desempenho em direi-vistas em direitos humanos tem um impor-A campanha nos convida a um compromis-tos humanos.tante papel a desempenhar, refletindo comso de viver pelos princípios da Declaração• Oferecimento ao público de mecanis-os líderes do setor privado sobre os desafiosUniversal. Eu os convido a conhecer melhormos eficientes de denúncia para lidarde gerar oportunidades de emprego decente,a campanha e a se envolver pessoalmente,com os supostos casos de violação aoscapazes de contribuir para o desenvolvimen-acessando o site www.everyhumanhasrights.padrões de direitos humanos.org. Trabalhamos com vários parceiros com16Revista Direitos HumanosPor fim, vou me referir brevemente a umquinto desafio. Esse diz respeito ao papel dageração de emprego e riqueza para a efetivaçãode uma série de direitos humanos. Atéagora, especialistas em direitos humanospouco disseram sobre essa questão. Valiosotrabalho aplicando a perspectiva de direitoshumanos à análise orçamentária e à alocaçãode assistência, por exemplo, vem sendoconstruído; nos próximos anos, entretanto,será necessário o desenvolvimento de novasformas de análise dos direitos humanos apli-“Algumas grandesempresas vêm sepreparando paraanalisar toda suacadeia de valoresem países emdesenvolvimento”o intuito de ajudar a reafirmar e recuperar aimportância dos compromissos e obrigaçõesbaseados na Declaração Universal.Todos os seres humanos nascem livres eiguais em dignidade e direitos. É isso que dizo Artigo 1º da Declaração Universal. A fraseé tão significativa e importante hoje quantofoi em 1948. Assumamos os direitos de quesomos titulares desde nosso nascimento e ousemos como pretendiam os elaboradores dadeclaração Universal: para garantir os direitoshumanos a todas as pessoas.


Segurança públicae direitos humanosRicardo Brisolla Balestreri é secretário nacional de Segurança Pública, membrodo Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos (SEDH), do Comitê Nacional paraCombate à Prática da Tortura (SEDH) e da Comissão Estruturadora da Universidade FederalLatino-Americana (Unila – MEC). As opiniões pessoais do autor, reproduzidas no presentetexto, não representam posições do Governo Federal ou de qualquer das instituições de que oele faça parte.“Creio firmemente queenquanto os homens nãoconseguirem encontraruma forma de desistir daviolência para resolverseus conflitos, e nãoencontrarem uma formade conviver sem recorrer àviolência, quer se trate daviolência das instituições,quer da violência daquelesque tentam destruir essasHá 60 anos, por decisão da Organizaçãodas Nações Unidas, o mundo deuum salto gigantesco em sua históriamoral, aprovando a Declaração Universal dospródigo em termos de direitos civis e políticos– um viés avaliativo obviamente herdado domarxismo mecanicista vulgar, que consideraos elementos “estruturais” como determi-mesmas instituições, ocurso da história continuaráDireitos Humanos.Pela primeira vez, um roteiro formal, su-nantes dos “superestruturais”. Por essa visão,tudo o que não reordene o modo de produçãoa ser o que sempre foi,ficientemente consensual entre as nações,reconheceu direitos individuais e tambémcoletivos, superando teoricamente milenaresprivilégios e preconceitos classistas, étnicos,sexistas, etários, culturais.Infelizmente, há quem desdenhe dessavitória, por julgar tal roteiro como insuficienteno campo dos direitos sociais e econômicos ee não gere, imediatamente, melhor distribuiçãode riquezas, merece desconfiança e desdém.Os resultados de tal equívoco conceituale prático, os conhecemos através da históriado “socialismo real”. Há quem insista, contudo,nessas fórmulas jacobinas, verticalistas,autoritárias, sempre frutos da “magia” de umpoder emanado, invariavelmente, de cima.ou seja, uma monótona equase obsessiva tragédia delágrimas e sangue.”(Norberto Bobbio)17Revista Direitos Humanos


“Bem-estar se conquista. Nãose ganha de brinde, por contade benfeitorias das classesdominantes”mente fundada no populismo e na demagogiae emanada principalmente dos Estados Unidos,tendo se espraiado, inclusive, pela Europa.O risco representado por tal movimentoé, no mais das vezes, subestimado. Contudo,há nele potência germinal para desestabilizaros consensos de governabilidade entre forçasprogressistas e conservadoras mais tradicionais,presentes nas democracias ocidentais.Em meio a um momento em que o sistemademocrático representativo vive umaforte crise de legitimidade, o discurso dessanova direita logra estabelecer uma ponte decomunicação direta com setores muito amplosda sociedade, seduzindo e congregandopessoas de segmentos bastante diversos (incluindomuitas que, outrora, se encontravamà esquerda). É uma retórica marcadamenteagressiva, não comedida, rupturista, que trabalhaa incorporação de categorias “morais”como fatores de alavancagem emocional dodebate político, aproveitando-se, paradoxalmente,da crise crônica de anomia inerente aoestado neoliberal que sustenta. Em tal direção,propõe “medidas excepcionais”, trocandoa liberdade pela segurança, por exemplo,com o fito de combater fantasmas externos (oterrorismo, no mundo rico) ou internos, emtodas as partes (o narcotráfico, a delinquência,a imigração, a pornografia, etc.).“Lo más paradójico”, sublinhou EmmanuelRodríguez, “es que esta nueva derecha,en un tan perverso como eficaz circulo viciosode autolegitimación, ha logrado aprovecharsede los miedos y miserias morales que provocanlas políticas neoliberales para justificarsus propias medidas represivas” (SeminárioNueva Derecha: Ideas e Medios para la Contrarrevolución-Espanha,2006).Penso que tal característica está fortementepresente também no Brasil, onde opensamento da direita (se é que se pode denominarassim tal presente conjunto de clichês)é quase um mero sinônimo de senso comum.Não se suponha, contudo, que por suas carênciasconceituais e filosóficas, por seu empirismo,por sua arrogância moldada na ignorância,seja um pensamento de pouca expressão e depouca extensão. Ao contrário, vitima-nos, comodissemos acima, praticamente como pensamentototalitário e totalizante.Por ser senso comum, igualmente, nãose suponha – em equívoco de ingenuidadeespontaneísta – que provenha da “malta”. Emsociedades do tipo da nossa, tecidas de complexosmosaicos desordenados, urbanizadas,industrializadas, de serviços, consumistasmas excludentes, desenraizadas, “americanizadas”no arremedo, midiatizadas e idiotizadas,onde os “sistemas de ensino”, a par dafragilidade conteudística, caracterizam-se porum enorme vazio no campo do que Piaget definiucomo “juízo moral”, o senso comum semolda no tecnicismo universitário sem transversalidadehumanística, nas banalidades,futilidades, silêncios e histerias dos meiosde comunicação, na “cultura” de mercadoe de manada. O senso comum, no Brasil, éde elite. Obviamente, replica-se nas classespopulares. Daí, sua aplastadora força.Como quase todo pensamento ordinário,o nosso também aninha vasta gama de preconceitos,de mitos manipulatórios, de ódios erancores, de “certezas” e “explicações totais”.19Revista Direitos Humanos


artigoSegurança Pública e Direitos HumanosO senso comum, como expressão emocionalza tantos “autos de resistência” dos pobres,televisión, publicaciones periodísticas,das massas, no mais das vezes, se nutre denem tanta pena de morte de fato, nem tantotanto digitales como en papel, weblogs...)sombras. Por isso, sobrevaloriza o poder e a“ladrão de galinha” se estragando em ex-como instrumentos propagandísticos”.força bruta, encara como fragilidade a com-temporâneas e criminógenas masmorrasAdemás lo ha hecho re-apropiándosepaixão, enerva-se com a inteligência, ojeriza amedievais. É claro que estranhamos quandode herramientas contrainformativas queousadia, a criatividade e a diferença.essas coisas atingem gente “nossa” – dasempezó a desarrollar la izquierda radicalPor isso rejeita os direitos humanos e aclasses média e alta – pelo que levantamosen las décadas de los sesenta y los se-sua militância.grandes ondas hipócritas de indignaçãotenta. Así, frente al rigorismo formal deÉ um notável paradoxo o fato de nossopassageira! A mídia nos acompanha: falalos medios “serios” convencionales, des-país, cada vez mais progressista e moder-quando consensuamos e cala quando con-pliegan una retórica hiperbólica y agresivanizado, cada vez mais “encaixado” na eco-vém. Nos retroalimentamos. A maioria dosque abusa del sarcasmo y de la soflamanomia global, expressar-se de forma tãonossos especialistas midiáticos, aliás, sóy basa sus denuncias en hipótesis y es-intensamente anacrônica e pobre no campoexpressa o conceito de organicidade quandopeculaciones fuertemente tendenciosas ydas humanidades, das “ideias de fundo”, dosse trata da vinculação com a própria mídia.escasamente contrastadas (pues su obje-projetos de sociedade.Atacar nas sístoles indignadas e sumir nastivo no es la búsqueda de la verdad, sinoPor aqui, a sociedade reage de formadiastólicas fases alienadas.el desgaste del adversario)”. Seminárioblasé em relação a crimes ocorridos noResultados? Nada de novo, nada de pro-Nueva Derecha: Ideas e Medios para laperíodo ditatorial. Não nos horrorizamos,positivo.Contrarrevolución–Espanha, 2006.20como em outros lugares. Por aqui, repercuteRevista Direitos Humanospouco a presença de gente agressivamentefascista, exibindo sua pobreza de espíritonas ruas, vestindo camisetas com fotos degenerais ditadores e os dizeres: “Eu era felize sabia”. Por aqui, não é causa de estranhe-“La nueva derecha”, aseguró EmmanuelRodríguez, “ha sido capaz de adecuarseperfectamente al nuevo orden mediático,utilizando todo tipo de medios comunicativos(emisoras de radio, cadenas deEm tal quadro, como surpreender-se quese tratem os direitos humanos como “defesade bandidos”? (Em setores mais conservadoresdas polícias e das forças armadas tambémsão tratados como “coisa de veados”).


“Como chocar-se diante daviolência doméstica, das mulheresapanhando e sendo traídas, dascrianças e idosos vilipendiados?”Obviamente, não estamos sozinhos noquadro internacional, como afirmamos acima.Somos, contudo, uma espécie de replicaçãopiorada, pela falta de alternativas relevantes àburrice única. Uma espécie de corpo que sevai desenvolvendo, formando musculatura,mas sofrendo de anencefalia. Coisa de culturaperiférico-dependente.Procurei caracterizar, até aqui, a falta de“cobertura” para a nossa causa, à esquerdae à direita.erroneamente, fundamenta-se em dores erestrições reais que precisam ser cuidadas.É aí que entra a galvanizadora questão dasegurança pública.Quero afirmar, com isto, uma genéricafalta de compreensão histórica da militânciade direitos humanos em relação aotema da segurança como pauta positiva epropositiva, da sua importância não apenaspara o Estado, mas para a Nação, desua relevância para a democracia e para odesenvolvimento. Tal incompreensão levouMais: como chocar-se diante da violênciadoméstica, das mulheres apanhando e sendotraídas pelos machões, das crianças e idososvilipendiados? Como pasmar à frente do preconceitoracial, homofóbico, estético? É bastanteóbvio que, nesse contexto, se naturalizea violência para “acabar com a violência”, seprestigie a “lógica da eliminação” dos criminososmas também dos diferentes. Dá tudona mesma e está “tudo dominado”, pela viadireita (que, por sua inconsistência teórica,de maneira geral, não se sabe e nem se assumecomo tal).Lamentavelmente, o mesmo Brasil queruma celeremente para o primeiro mundo,no campo econômico, dele se encontra pateticamentedistanciado no campo simbólico.Em que país civilizado ou em verdadeiroprocesso civilizatório se poderia encontrartanta aversão a direitos humanos? Esse é,contudo, o nosso cenário real e – ainda quedoa – creio ser necessário olharmos corajosae criticamente as nossas piores misérias:as “espirituais”.No dizer de Marco Mondaini (DireitosHumanos, Editora Contexto, São Paulo,2006), “seja na sua versão neoliberal,que procura identificar nos direitos humanosuma barreira à realização racionalda lucratividade pelo livre-mercado; sejaatravés da matriz marxista ortodoxa, quebusca observar nos direitos humanosnada mais do que um conjunto de formalidadesresponsáveis pelo encobrimentoda estrutura de classes e da luta entreestas no seio da sociedade capitalista,sendo, por isso mesmo, nada mais quedireitos das classes dominantes; ou aindana linha extremamente vulgar que defineos direitos humanos como ‘direitos debandidos’, o que se percebe claramenteé a incapacidade de compreender a fundoseu caráter universal e democrático.”O quadro poderia não ser tão ruim,contudo, se não tivéssemos ajudado aagravá-lo com nossa incompreensão deque o senso comum, ainda que concluanossa dedicada e abnegada comunidade deDH, em poucos anos de democracia, a umdramático isolamento, revelado nas evidênciasempíricas do dia-a-dia, mas tambémem inúmeras pesquisas de opinião sobrediversos temas que nos são atinentes.Diante disso, ao invés de revermosnossas metodologias e particularmentenossos processos de comunicação, nosempedernimos na certeza do acerto denossas posições e na convicção do atrasoe do reacionarismo da mesma sociedadeque defendemos. E, ainda que tenhamosrazão, vamos justificando e agravando odizer bíblico: “São como pastores sem rebanho,que se apascentam a si mesmos”.É claro que a comunidade de direitoshumanos não é um bloco monolítico enem todos os segmentos se enquadramna categoria acima. Lamentavelmente,contudo, parece-me que a maior partede nós – do ponto vista da compreensão,dos conhecimentos, da identificação coma causa da segurança pública como tam-21Revista Direitos Humanos


artigoSegurança Pública e Direitos Humanos22Revista Direitos Humanosbém uma causa popular e de direitos humanos– encontra-se paradigmaticamenteparalisada nos anos 70, quando vivíamosna zona de risco da ditadura, mas igualmentena zona de conforto da aprovaçãopopular, heróis e heroínas de um mundobipolar. Tal crítica, a faço com respeito ecompaixão, uma vez que, por anos, estive“preso” na mesma torre.Não foi fácil descer dela e ir para aplanície da democracia, enfrentando a vidacomo a vida é, com sua complexidade,contradições e desafios suprapessoais.Não foi fácil, no início, encontrar, nas salasde aula, a polícia da qual eu tinha tantasvezes apanhado e muito menos aquela quepor dois sofridos anos me havia processado.Foi, contudo, um enfrentamento desesquizofrenizantee necessário como serviçoa uma democracia que precisa devolver asua polícia ao povo. Mais do que parte doproblema, optei, com vários outros companheirose companheiras, por fazer partedas soluções.Creio que, a estas alturas, faz-se necessárioo resgate de uma aparente obviedadeque, contudo, é insuficientemente enfrentada:por quê o tema da segurança pública setornou tão crucial para a nação brasileira,como revelam as pesquisas de opinião?Inicialmente, porque a maioria dessanação se encontra, historicamente, na orfandadeem relação aos poderes públicos,vivendo em áreas de carência ou mesmode quase total ausência de políticas públicas,alcançadoras não apenas dos direitosde ordem material mas também daquelesde ordem subjetiva: balizamentos legaise éticos, mediação de conflitos, educaçãopública de qualidade, liberdades deexpressão, de organização, de ir e vir, decriar e empreender.Tal vácuo de presença do estado democráticode direito gerou ambiência parao estabelecimento de “governos” totalitáriosdo crime organizado, que se utilizamde tais áreas para estoque de armas edrogas, venda varejista e recrutamento demão-de-obra barata, além de outras atividadescriminosas associadas. Assim,grande parte dos pobres deste país se encontra,ainda, sob o tacão de uma ditaduraempresarial ilícita, covarde e sanguinária.“Grande parte dos pobres destepaís se encontra, ainda, sob otacão de uma ditadura empresarialilícita, covarde e sanguinária”São eles, os que não possuem recursospara enclausurarem-se em condomíniosprivados e seguros, as maiores vítimas dainsegurança pública. São, também eles,as maiores vítimas de padrões de policiamentoequivocados, invasivos, reativos,truculentos, criminalizadores da pobreza.Os nossos eventuais “escrúpulos” em nãonos aproximar da polícia não os ajudam emnada. Ao contrário, mantêm-nas presas deum sistema servil, junto aos criminosos ede pânico, quando da presença policial.Nossas meras atividades de denúncias,que sempre serão imprescindíveis para oaprimoramento democrático, têm se reveladoinsuficientes, e mesmo pífias, quandose trata da mudança de um sistema que,mais do que “consertado” pontualmente,precisa ser transformado. Se não tivermosdisposição para entrar quartéis, delegacias,salas de aula de academias, conselhoscomunitários de segurança, postosde polícia comunitária, não para atacarmosos policiais (o que abreviaria muitonossa presença junto a eles), mas paraajudá-los a construir modelos alternativosde policiamento e atendimento das comunidades,modelos com a cara da democracia,sempre teremos algum programade TV nos chamando para a crítica, masnão teremos uma polícia de proximidade,cuidando com cidadania dos cidadãos....”Torna-se inquestionável a prioridadena garantia de segurança para ospobres. Estes são os mais atingidosem tudo, espremidos que estão entrea violência da polícia (são os eternossuspeitos) e a violência da criminalidadecomum. São eles as principais vítimasdo narcotráfico, das balas perdidas, dosassaltos e estupros, da violência nasescolas” (Benevides, Maria Victoria, DireitosHumanos:Desafios para o SéculoXXI, in Educação Em Direitos Humanos:Fundamentos Teórico-Metodológicos, vários,Editora Universitária, João Pessoa,2007).A par de tudo isso, três fatores vêm sendoapontados por expoentes da comunidadeacadêmica internacional como gêneses do desenvolvimentonacional: a formação de redesde voluntariado e engajamento cidadão, o livreempreendedorismo popular e o acesso democráticoà educação de qualidade, construtorada autonomia intelectual e do juízo moral dosindivíduos.Pesquisas do Departamento de EstudosInternacionais de Harvard, conduzidas peloprofessor Robert Putnam (um dos referenciaisteóricos do PNUD/ONU), comprovamque o desenvolvimento dos países passa,


ao longo da história, necessariamente,pela edificação das chamadas “redes deengajamento cívico”, ou seja, pelas teiasde voluntariado social organizado que debelama cultura de passividade popular econstroem alternativas popularmente sustentadasde bem-estar. Tais teias enriqueceme estimulam a qualidade das ações doEstado que, de alguma forma, as reflete.Por essa razão, se almejamos que as democraciasrepresentativas contemporâneasagreguem caráter socializador de bense serviços, precisamos aumentar, nelas,os espaços e os saberes acumulados pelaparticipação direta.Conforme Putnam, ”as comunidades sedesenvolvem, em resumo, devido às redese associações. Nessas comunidades,os cidadãos são engajados nos negóciospúblicos, confiam uns nos outros e obedecemà lei. Solidariedade, participaçãocívica e integridade são valorizados. Elasse tornaram ricas porque havia civismoe não o contrário. O engajamento cívicoparece ser condição do desenvolvimento,independentemente de estruturas degoverno, estabilidade social, partidos políticosou ideologia.”Várias pesquisas feitas nas duas últimasdécadas comprovam a importância da criatividadee do empreendedorismo popular, nocampo econômico, como elementos deflagradoresdos processos de desenvolvimentonacional. É o caso da realizada pelo historiadorDavid Landes, também da Universidadede Harvard, sobre a riqueza e a pobreza dasnações, bem como de diversos outros estudos,especialmente aqueles que versam sobreas causas do bem estar contemporâneode países da Europa do Norte.Da mesma forma que no item anterior,o predomínio, em bolsões geográficos, dopoder de organizações criminosas representaum interdictu à criatividade e aos empreendimentosdos segmentos pobres da população,em nossa realidade a ampla maioria. É precisoobter licenças dos grupos delinqutes e,em muitos casos, tornar a atividade subsidiáriapelo pagamento de “pedágios” e propinas,em espécie ou em gêneros. Até mesmoa violência da criminalidade ordinária e desordenada,que tanto aplasta o dia-a-dia daspopulações urbanas, funciona como fatorintimidador e dissuasório do estímulo e dacoragem para abrir negócios, para empreender.Assim, prejudicado ou impedido está osegundo elemento indispensável do “caldode cultura” do desenvolvimento.O terceiro e último, igualmente importante,é o direito e o acesso à educaçãopública de qualidade. Aqui, encontramosuma das raras unanimidades no campo dasciências históricas e sociais. Praticamentetodos os estudos e pesquisas acadêmicoscontemporâneos sobre desenvolvimentonacional comparado creditam à educação adiferença entre o atraso e o desenvolvimento.Educação envolvendo “escolarização”,mas não apenas. A escolarização é umanecessidade, mas não é, necessariamente,educação. Para que o seja, é preciso quese desenvolva, através do currículo objetivo(com suas temáticas e metodologias), do“currículo oculto” (com suas práticas relacionais)e dos “saberes prévios e locais”dos sujeitos do processo, buscando a construçãode sua autonomia intelectual e de seujuízo moral dos mesmos.É gravíssimo, contudo, o interdictu representadopela violência das organizaçõesdelinquenciais à livre expressão e organizaçãopopular. Nos bolsões habitacionaisonde domina o crime, são escassas as possibilidadesdo soerguimento quantitativamentesignificativo de lideranças popularesautônomas, que não estejam contidas oucorrompidas pelas práticas criminosas.Obstaculiza-se, assim, o primeiro elementoindispensável do “caldo de cultura”que leva ao desenvolvimento.O segundo elemento é o livre empreendedorismo.


artigoSegurança Pública e Direitos HumanosIsso significa que a escola precisaascender política e economicamente. Ora,“Os Governos são demasiado burocráti-constituir-se em instância crítica de pro-com as maiorias excluídas de uma educa-cos. Suas reações são muito demoradas.vocação intelectual e ética, em instituiçãoção de qualidade, fecha-se a terceira pas-Eles estão envolvidos em tantas relaçõesde reserva moral, em campo contra-hege-sagem para os caminhos do desenvolvi-exteriores que requerem consultas e acor-mônico de contestação do discurso único,mento. A segurança pública, uma vez mais,dos com aliados, e têm de atender a tantosda banalização perversa da violência, daé fator preponderante para a qualidade dogrupos nacionais de interesse político que“lógica da eliminação”, da competitivi-crescimento que almejamos.demoram demais a reagir a iniciativas toma-dade destrutiva, do machismo e do ethosAssim, ao lado do emocionalismo nadas por senhores das drogas ou fanáticosguerreiro masculino, da opressão das di-maior parte das vezes rancoroso e direitistareligiosos e terroristas.ferenças individuais, do consumismo e dodo senso comum (no sentido da replicagemEm contrapartida, muitos dos Gladiadoresnarcisismo hedonista, do predomínio dada retórica demagógica e mistificadora, queGlobais, guerrilheiros e cartéis de drogasforça sobre a compaixão e a inteligência.apresenta paradoxalmente a violência comoem particular, não são burocráticos e são,Ora, tal cultura crítica, humanista, políti-fator refreador ou eliminador da própriaaté, pré-burocráticos. Um só líder carismá-ca, autonomizante, não se coaduna com aviolência) em relação à segurança pública,tico dá as ordens com rapidez e com umindústria da violência e do crime. Uma es-sobrevive uma intuitiva sabedoria popularefeito arrepiante – ou mortal. Em outros ca-cola com tais características dificilmenteque precisamos resgatar e elevar ao pata-sos, não está claro quem realmente são ossobreviverá, como enclave libertário, emmar da inteligência, da articulação racional.líderes. Os Governos saem cambaleando,meio a comunidades pobres, dominadas,Essa intuição se apresenta nas pesquisasconfusos, dos conflitos com eles.”por exemplo, pela tirania do narcotráfico.de opinião, dando conta de que segurançaQual a segurança dos operadores por ex-é a maior demanda e preocupação popular.Recordemos, ainda nesse contexto, que talcelência desse sistema, os professores?É razoável acreditar que, na prática, o povodesvantagem paira sobre as cabeças dos cida-Como poderão ousar intelectualmente,compreende que sem segurança será im-dãos como uma permanente tentação autori-favorecer atividades associativas, ques-possível expressar-se e organizar-se livre-tária por parte dos governos em democraciastionar o entorno, em escolas cercadas,mente, reivindicar, criar, empreender, fazermais jovens e inseguras, às vezes escudada noinfiltradas, invadidas ou eventualmentenegócios, aprender e ensinar. Sem seguran-senso comum, disposto a abdicar de liberda-fechadas por confrontos entre gangues eça, o povo percebe que é refém.des em nome de maior segurança.grupos criminosos ou entre estes e a po-Como um derradeiro argumento aos par-Quis elencar, neste breve texto, uma sérielícia? Como trabalharão com seus alunosceiros de luta pelos direitos humanos, su-de motivos para que nos dediquemos a estudaro respeito ao próximo, a auto estima e ablinhador da centralidade, em tal campo, domais e a atuar mais no campo da segurançaauto preservação, os limites diante dosdireito à segurança pública, quero lembrarpública, a partir da ótica dos direitos humanos.direitos humanos pessoais e alheios?que o desenvolvimento amplo de uma cultu-Se aí residem os nossos maiores problemas,Conforme pesquisa do Ibope (divulgadara de respeito e promoção da dignidade in-residem também as melhores soluções. Re-em junho de 2007), seis em cada dez bra-dividual e coletiva só é possível em contex-side, talvez, a própria recuperação de nossasileiros acima dos 16 anos acham que a es-tos democráticos, e que o crime organizado,credibilidade entreàqueles que são os sujeitoscola não é um lugar seguro (Ibope, Pesquisacom seus processos transversais de poder eda intervenção de nossa militância.Telefônica Nacional sobre Educação para acorrupção, constitui-se na maior e mais realDe minha parte, tenho procurado manterAgência Nova S/B).ameaça às democracias no mundo inteiro.coerência com estas palavras, por meio dasSe não há liberdade de ensinar e apren-Nesse sentido, destaco a lúcida análise deações da Secretaria Nacional de Segurança24der, particularmente de construir valoresAlvin Toffler, reveladora das incontornáveisPública. Neste momento, 140 mil policiais,Revista Direitos Humanossolidários, pode haver escola, mas nãohaverá educação. Uma vez mais, em talquadro, os pobres são sobre, vitimados,perpetuando-se seu afastamento das possibilidadesde compreender criticamente edificuldades oficiais nos sistemas formaisdemocráticos, sujeitos à transparência e aocontrole público e, portanto, submetidos aestruturas mais burocráticas, ao lado da celeridadeinformal do crime:bombeiros, agentes penitenciários e guardasmunicipais se encontram participando de nossarede de ensino a distância e, pelo segundociclo consecutivo, o curso de direitos humanosé o espontaneamente mais procurado. Em


outra ação inédita no contexto internacional –em uma avaliação justa e sem qualquer ufanismo– reunimos, financiamos e orientamos 66instituições de ensino superior e 82 cursos depós-graduação latu sensu em segurança pública.Estamos articulando os primeiros onzecursos de graduação e os primeiros mestrados.Para os policiais que tenham fichalimpa, queiram estudar e recebam baixossalários, a União acresce R$ 400,00 mensaispor cinco anos (o “Bolsa Formação”)e ainda oferece um plano habitacional quepoderá chegar a 37 mil residências dignas,com prestações um pouco superiores aR$ 200 mensais. Todos os nossos cursossão transversalizados pelo tema geradordos direitos humanos, que também aparececom explicitude em todos. Nossos policiaispós-graduandos, por exemplo, têm estudosobrigatórios sobre a igualdade racial, sobrea questão de gênero (não apenas em relaçãoaos direitos da mulher, mas também àanálise crítica do ethos guerreiro masculino,inclusive dentro de suas corporações), sobrecombate à homofobia e à liberdade de orientaçãosexual (há também um módulo sobreo tema no ensino a distância) e sobre direitosetários (crianças, adolescentes e idosos).Hoje, todos os projetos estaduais que analisamosestão obrigados à construção de malhasde policiamento de proximidade e estamos alcançandoquase 30 mil policiais formados emcursos especiais de polícia comunitária. Nãoseria adequado, aqui, continuar a lista. A intençãoé apenas apresentar alguns drops ilustrativosde uma praxis. Possivelmente, a maioriados leitores não saiba disso. A mídia brasileira,hoje, tem pauta muito negativa e desconstrutora.Notícias assim não têm espaço. Mas nempor isso deixam de significar uma revoluçãosilenciosa na cultura da segurança públicabrasileira. Os resultados, com certeza, virãojunto com uma nova geração de líderespoliciais, que privilegiará a cientificidade, ainteligência, a técnica, a racionalidade, as Ao encerrar, quero salientar que açõesdimensões preventiva e pedagógica. transformadoras de cultura, como essas, nãoAs notícias também não chegam porque são uma exclusividade do Estado. Certamente,a maioria dos intelectuais que conhecem de o estado faz muito em extensão, mas as ongs,perto o valor dessas iniciativas, evita, na mídia, fundações, grupos culturais, sindicatos, movimentose também os indivíduos que assumemqualquer forma de reconhecimento. O temorda suposta condição de “chapas-brancas” os uma perspectiva militante no campo dos diretoshumanos são os grandes semeadores dafaz apresentarem-se na perspectiva exclusivada crítica e da desconstrução. Preservam, assim,seus espaços e simpatias com os pautei-prioridade a questão da segurança pública,qualidade do processo. Por isso, pautar comoros e editores, ainda que soneguem à nação o no âmbito da convergência e do protagonismoda causa dos direitos humanos, a par defato de que, ao lado de tantas coisas negativas– que devem ser criticadas – também há esperança,também há gente trabalhando muito fatias maiores de apoio social, acrescerá forçaromper o cerco do isolamento e conquistarpara fazer a diferença, para não plantar “mais na construção de uma ambiência para que odo mesmo” e colher os mesmos resultados. A povo brasileiro possa se desenvolver em paz.falta da socialização das pautas positivas, além Deixo-vos, pois, nesta linha, com a lucidez, ade aplastar a população no sentimento de impotência,abre espaço para que boas políticas mesmo um vitorioso nos grandes desafios:sabedoria e o bom desafio de Paulo Freire, elepúblicas de Estado fiquem sob maior riscohistórico, estando à mercê das sucessões e “É absolutamente indispensável que oeventuais leviandades de governos. Na sociedadedo espetáculo, joga-se mais pela fama e tes, mas todos importantes, a tarefa depovo todo assuma, em níveis diferen-menos pela responsabilidade. Conheço diversasfiguras referenciais que sabem do muito si mesmo também. Sem esta assunçãorefazer a sua sociedade, refazendo-se aque se está realizando, que particularmente da tarefa maior – e de si mesmo na assunçãoda tarefa – o povo abandonaráaprovam com entusiasmo diversos programas,mas que, publicamente, dizem que “nada a pouco e pouco a sua participação nasaiu do papel”. Uma pena, mas não diminui feitura da história. Deixará, assim, dea intensidade e nem os efeitos nas bases. Elas estar presente nela e passará a ser simplesmentenela mesmas, com o tempo, terão voz.representado”.BIBLIOGRAFIA1.BOBBIO, Norberto. As Ideologias e o Poder em Crise. Editora UNB, Brasília, 1999.2.BOBBIO, Norberto. Direita e Esquerda. Editora UNESP, São Paulo, 1995.3.RODRÍGUEZ, Emmanuel. El Gobierno Imposible - Trabajo y fronteras en las metrópolis de laabundancia. Editora Traficantes de Sueños, Madrid, 2003.4.MONDAINI, Marco. Direitos Humanos. Editora Contexto, São Paulo, 2006.5.Vários. Educação em Direitos Humanos: Fundamentos Teórico-Metodológicos. Editora Universitária,João Pessoa, 2007.6.PUTNAM, Robert. Comunidade e Democracia. Fundação Getúlio Vargas Editora, 1996;7.TOFFLER, Alvin. Powershift-As Mudanças do Poder. Editora Record, Rio de Janeiro, 2003.25Revista Direitos Humanos


artigoDireito à memória e à verdadeMarco Antônio Rodrigues Barbosa éadvogado. Foi presidente do Conselho Estadual de Defesada Pessoa Humana e presidente da Comissão de Justiça ePaz de São Paulo. Atualmente, é presidente da ComissãoEspecial sobre Familiares de Mortos e Desaparecidos.direito à memóriae à verdadeMarco Antônio Rodrigues BarbosaIntroduçãoórica, discursiva e de enunciados; são tambémAinda por direitos humanos não devemos26Revista Direitos HumanosFormulo as seguintes premissas comopontos de partida para as demais reflexõessobre o objeto deste trabalho:entendo que os direitos humanos, cujo discursotem longa tradição, além de seu conteúdoético e moral, são parte integrante de umcontexto histórico, pois estão inseridos emuma determinada realidade, com componenteshistóricos, políticos e sociais; considero tambémque os direitos humanos não devem sercompreendidos apenas como mera questão te-de natureza prática, sem os quais não há paz.Entendo, por fim, que tais direitos só têm sentido,para a consecução do bem comum, coma plena realização e promoção da dignidadehumana. Aliás, assim reconhece a ConstituiçãoFederal de 1988, ao fixar princípios e aoestabelecer normas comprometendo o Brasil,sua sociedade e seu governo com a buscade uma nova forma de organização social, naqual a pessoa humana é considerada como oprimeiro dos valores.considerar somente aqueles em favor do indivíduocomo criatura, mas também os quepertencem a cada um de nós enquanto integrantesde uma coletividade. A liberdade, umdos direitos humanos fundamentais, mesmonas democracias mais tolerantes e abertas, éracionalmente limitada em razão da indispensávelconvivência com o exercício de todos osdireitos individuais e da necessária igualdadeentre os cidadãos. Daí exsurge o bem comumque deve se sobrepor ao bem próprio, inte-


grante de projeto pessoal. Todo e qualquerCom base no conjunto das situações etransformação social, com o objetivo de cons-pacto, por mais legítimo que se apresente e,na realidade atual, pode-se afirmar que os di-truir uma sociedade mais justa, e como um ins-sobretudo, diante da necessária igualdadereitos humanos, entre os quais estão aquelestrumento de luta pelo total respeito aos valoresentre os cidadãos, traz consigo uma par-que a Constituição de 1988 enumerou comodemocráticos e aos princípios republicanos dacela de renúncia à liberdade do homem.direitos fundamentais, ainda não vigoram emcidadania, tais como a liberdade e a igualdade.Trata-se de falácia, portanto, quando se dizsua plenitude para um grande número de bra-Este texto não pretende suscitar questõesque uma liberdade termina quando se ini-sileiros. Passadas duas décadas da promul-meramente teóricas. A perspectiva deste tra-cia a de outrem, pois a liberdade deve sergação da Constituição Federal, grande partebalho, ao relacionar a luta pelos direitos huma-exercida conjuntamente e com igualdade.de seus dispositivos, especialmente aquelesnos aos princípios da cidadania, democracia,E os que matam, os que torturam, os querelacionados com a garantia de efetivaçãojustiça, liberdade e igualdade, é exprimir comestupram, os que desaparecem com seresdos direitos econômicos, sociais e culturais,especificidade que tais valores também nãohumanos devem ser punidos.que constituem condição de igualdade e li-podem subsistir sem a plena vigência do “Di-Os direitos humanos, em sua formula-berdade, ainda continuam sem ser aplicados.reito à Memória e à Verdade”, principalmenteção discursiva, vão surgindo com a con-Infelizmente, ainda subsistem muitas exclu-porque nosso país nunca teve a vocação paratínua valorização da pessoa humana e dosões, marginalizações e injustiças, apesarpreservar a sua memória, muito menos paraideal de liberdade, através de sucessivasde a sociedade brasileira estar mudando etornar exemplar a trajetória daqueles que lu-gerações, com forte ênfase no séculoas camadas mais pobres da população esta-taram por uma sociedade mais justa. Isto éXVIII, quando então tais direitos foram ex-rem adquirindo consciência de seus direitos,o que acontece, por exemplo, num passadopressos pelas revoluções liberais demo-além de terem avançado no sentido de suamais recente, com a memória dos feitos da-cráticas, a americana (1776) e a francesaorganização, à medida que, aos poucos, vãoqueles que foram presos, torturados e mortos(1789). Os direitos humanos constituemdescobrindo a importância da solidariedade.durante o regime militar iniciado em 1964,uma conquista da civilização e, hodier-Por outro lado, forçoso é reconhecer queassim como, num passado mais remoto,namente, tais direitos se apresentam me-o Brasil atualmente conta com um governoocorre com a memória de indígenas, negrosdiante a configuração jurídica, remetendocomprometido com a integração social, em-e com a memória daqueles que participaramà ideia de norma.bora ainda não tenha chegado ao nível dodos primeiros movimentos pela independên-A par do aspecto discursivo, é precisoacesso social à informação.cia nacional, que cinicamente seguem sendoreconhecer que, na prática, ao longo da his-Ademais, como assinala Dalmo de Abreuchamados de movimentos de inconfidência,tória universal, é trágico o desrespeito aosDallari,tal como ocorre com a Inconfidência Mineiradireitos humanos. Na história latino-ame-– desfeita, em 1789, em Ouro Preto (MG),ricana, em geral, e na brasileira, em parti-(...) um conjunto de circunstâncias (...)logo em seu nascedouro e cujo único prota-cular, é notável a negativa desses direitos,várias ações do governo federal, desen-gonista, que foi enforcado e esquartejado, erasobretudo aos cidadãos menos favorecidoscadeadas nos últimos cinco anos, já co-um militar – e com a Inconfidência Baiana,economicamente, com total desrespeitomeçaram a produzir efeitos positivos, be-iniciada em Salvador, em 1794, e que se pro-à promoção da dignidade humana. Trata-neficiando, sobretudo, as camadas maislongou durante quatro anos.se de uma história marcada por profundaspobres da população brasileira.desigualdades entre os que tudo têm e osReflexões sobre o direito à memóriaque nada possuem, compondo, os primei-De qualquer forma, no contexto histórico-A proposta deste capítulo é ressaltar,ros, uma estrutura político-social elitizada epolítico, mesmo atual, e em particular no Brasil,em primeiro lugar, que o direito à memóriaoligárquica, resistente a transformações essenciaispara melhorar a qualidade de vidados últimos, economicamente mais fracos,e inseridos no âmbito de um sistema exploradorque, muitas vezes, quando ameaçado,também tortura e mata.a plenitude da vigência dos direitos humanos,incluindo-se aí o direito à memória e à verdade,deve ser considerada como instrumento primordialda realização e promoção da dignidadehumana. E essa plenitude deve ser permanente,entendida como uma poderosa ferramenta decom verdade, se desrespeitado, afeta todosos cidadãos, influindo no cotidiano de suasvidas. A proposta é também demonstrar aimportância da memória nos seus maisamplos e diversos sentidos, isto é, comoacontecimento histórico, psicológico, in-27Revista Direitos Humanos


artigoDreito à memória e à verdade28Revista Direitos Humanosdividual e coletivo e, em especial, fazera correlação entre o direito à memória e àcomunicação ou direito à informação comverdade, realçando a importância dessacorrelação, seja como um dever moral eético, seja como um ato político de resistênciae de luta, pois, como assinala BaltasarGarzón:A condição humana consiste em lutar constantee permanentemente para mudar omundo e melhorar nossa própria existência,no sentido de reduzir ou eliminar a exploraçãode uns seres humanos por outros, emtodas as partes, desde as políticas às criminais,ou ao menos assim deveria ser.A preservação da memória, por ser umregistro de fato ou acontecimento históricoe mesmo psicológico, individual e coletivo,exerce função primordial na evoluçãodas relações humanas: trata-se de um atopolítico, de resistência e de luta, que constituia base sobre a qual a sociedade podeafirmar, redefinir e transformar os seus valorese ações. Nesse sentido, aliás, ensinaCarmen Lúcia Vidal Pérez:Rememorar é um ato político. Nosfragmentos da memória encontramosatravessamentos históricos e culturais,fios e franjas que compõem o tecidosocial, o que nos permite ressignificaro trabalho com a memória como umaprática de resistência. (...) São nas ausências,vazios e silêncios, produzidospelas múltiplas formas de dominação,que se produzem as múltiplas formasde resistência (...) que, fundadas noinconformismo e na indignação peranteo que existe, expressam as lutas dosdiferentes agentes (pessoas e grupos)pela superação e transformação desuas condições de existência.Ao contrário do esquecimento, a memóriaindividual e a coletiva, como forma derequalificação das referências que compõema identidade brasileira, são os eixos primordiaise a forma de aplicar na prática os fundamentosdos direitos humanos, libertando denossos corações as lembranças nefastas dopassado, tais como a tortura.O esquecimento, ao contrário da memória,já consideravam os gregos da GréciaArcaica como a mais dolorosa das experiências.Irmão da morte e do sono, os gregosmencionavam o esquecimento como a verdadeiramorte, o portador do silêncio, da indiferençae da obscuridade, e entendiam queum homem morre quando o esquecem, vivequando o lembram. Entendiam também que,para que o nome de um homem de bem nãoviesse a fenecer, era essencial resgatar-lhe amemória, elogiá-lo, lembrar os seus feitosem benefício da pólis.Para o escritor austríaco Imre Kertéz,(...) enquanto o homem sonhar – as coisasboas ou ruins –, enquanto o homemtiver histórias sobre as origens, lendasuniversais, mitos, haverá literatura, a despeitodo que e do quanto falem da suacrise. A verdadeira crise é o completo esquecimento,a noite sem sonhos (...).Neste ano, em que se comemora osexagésimo aniversário da DeclaraçãoUniversal dos Direitos Humanos, aprovadaem 10 de dezembro de 1948 pelaAssembléia Geral da ONU, e o vigésimoaniversário da Constituição cidadã, promulgadaem 5 de outubro de 1988, umadas tarefas primordiais da Comissão sobreMortos e Desaparecidos Políticos, criadapela Lei nº 9.140/95, além de colaborarpara proteger esta Carta Magna contra oscontumazes violadores de direitos humanos,é também colaborar para resgatar e


preservar a memória daqueles que tombarampor um ideal democrático, valorizandoos seus feitos; é também de lutar pelapunição daqueles que praticaram crimescontra a humanidade, tais como a torturae os desaparecimentos forçados.A reconstituição da memória, fundada naverdade, é essencial: é o meio pelo qual sepode readquirir o sentimento de identidade,tanto individual quanto coletivo, na medidaem que ela fornece o elo de continuidadee de coerência de uma pessoa ou de umgrupo em sua reconstrução de si. Resgatara memória com verdade também é fundamentalpara elucidar o que é inconscientee irracional, passando-os à consciênciapara transcendê-los. Reavivar a memóriahistórica de um passado mais recente,relativa às atrocidades praticadas peladitadura militar que vigorou no Brasil por21 anos, é premente para dar voz ao queficou imanente e obscuro, submerso noambiente internacional de rivalidade entreduas potências – União Soviética e EstadosUnidos –, que dividiam o mundo emdois blocos e, submerso pelo que emanavada “doutrina de segurança nacional”,frequentemente utilizada para justificarviolações aos direitos humanos nos anosde governo autoritário que antecederam avigência da Constituição de 1988.Na realidade, mesmo ao retomar-sea ordem democrática, representada pelapromulgação da Constituição de 1988, osbrasileiros ainda se veem diante da dolorosaperda da memória do País. É conhecidaa estratégia dos regimes de força: as ditadura,tais qual a que infernizou milhares debrasileiros durante 21 anos, criam raízes,projetam-nas no futuro, produzem a supressãoda memória que se prolonga diante deum pacto de silêncios e concessões mútuas,acomodando precariamente os sobreviventesda guerra suja e mantendo intocadoum dos aspectos mais execráveis do caráternacional, que é a tentativa de supressão definitivada memória, a recusa dos donos dopoder de ajustar contas com o passado, amanutenção da ignorância, sobretudo entreos jovens, provocada pela intencional omissãode fatos históricos inclusive nos currículosescolares.É preciso insurgir-se contra essa supressãoda memória, contra esses pactos de silênciose de concessões mútuas, conscientizandoa geração atual e, por conseguinte,as futuras, de sorte que estas tenham plenoconhecimento dos fatos históricos que aviltaramseres humanos, tais como as ditadurasque nos atormentaram, cujo surgimentopode ter muitas causas, dentre elas estãoquase sempre a descrença na democracia ea crença ilusória em promessas milagrosas.É preciso que tais gerações tenham consciênciade que as ditaduras, qualquer queseja o pretexto de que se valham, são muitoparecidas: não toleram os opositores, cerceiamas liberdades, censuram a imprensa,violam os direitos humanos, prendem, torturame matam.Tanto a história recente do Brasil, marcadapor violações dos direitos humanos no períododitatorial, como a de outros períodos maisremotos, com o cerceamento dos direitos deamplos segmentos da sociedade, estão a exigirações efetivas na identificação, preservaçãoe difusão das memórias de centenas debrasileiros que lutaram por ideais democráticos.É relevante a formação de uma consciênciacoletiva, no sentido de se saber quea tortura foi historicamente utilizada no Brasilcomo instrumento de repressão política e demanutenção do poder: a propósito, a chamadaInconfidência Mineira e a denominada InconfidênciaBaiana, Canudos e o Estado Novo sãoexemplos bastante claros e conhecidos.A tortura foi largamente utilizada contraos setores marginalizados da população29Revista Direitos Humanos


artigoDireito à memória e à verdade30Revista Direitos Humanosdesde a época da Colônia: é o que ocorreucom os índios, cuja população exterminadagirava em torno de 5 milhões, ou comoocorreu com milhares de negros escravizados.Durante a ditadura militar, a tortura foisistematizada e institucionalizada. A partirde 1964, centenas de cidadãos passarama ser ilegalmente presos e submetidos àsmais bárbaras torturas, com a conivência detoda uma estrutura montada para acobertá-las.O golpe de 1964 inaugurou a fasedo requinte, da especialização no métodode torturar, matar e desaparecer compessoas. Os regimes de segurança nacionalna América Latina, dos quais o Brasilfoi o primeiro, não hesitaram em adotara tortura como técnica de combate. Taisregimes escreveram a história de sanguee violência inimagináveis: é a história daprópria negação do conteúdo dos direitoshumanos, que é o direito à VIDA.Nem os algozes, nem as vítimas datrágica história vivida no Brasil, nos chamadosanos de chumbo, têm o direito deocultar os fatos, entorpecer a memória.A proibição de restaurar a memória comverdade é o primeiro passo em direção aoprecipício. Trata-se de proibição de resgateda memória ou de ignorância dos acontecimentoshistóricos, por trás da qual seescondem a mediocridade e a impossibilidadede vencer a força das ideias.É inescusável, portanto, o resgate da memóriacom verdade e sua preservação, paraque as violações aos direitos humanos, commais ênfase às ocorridas em nosso passadorecente, mais precisamente durante a ditaduramilitar, sejam reconhecidas e sancionadas,não apenas porque deva haver justiça paraas famílias, mas também porque isso é indispensávelpara consolidar a reconstruçãodo Brasil como um país verdadeiramentedemocrático e republicano. Queremos que atragédia não se repita nunca mais.Reflexões sobre o direito à verdadeA primeira reflexão que faço em relaçãoà verdade é conceitual. Conceitualmente,podemos chamar de verdadeaquilo que não podemos modificar. Metaforicamente,na expressão de HannahArendt, ela é o solo sobre o qual nos colocamosem pé e o céu que se estendeacima de nós.Sobre a verdade, ensina Paulo Klautau Filhoque, “se na vida privada, o dever de dizera verdade consiste num imperativo da moral;na vida pública, esse dever será tratado, pelomenos, com o mesmo rigor”.Citando ensinamentos de Kant e de HannahArendt, ele acrescenta: “O homem públiconão pode se eximir da verdade, nem pode cultivaro segredo (...) e a publicidade deve serconsiderada como a solução para o ‘conflitoda política com a moral’”. A publicidade – entendeesse insigne doutrinador – se traduz noprincípio de que “são injustas todas as ações


que se referem ao direito de outros homens,cujas máximas não se harmonizem com a publicidade”.A publicidade – conclui – constituia garantia certa da moralidade da ação, porquea declaração pública de uma ação injusta a tornapor si mesma impraticável. A publicidadetem a dupla função de revelar a injustiça daação e de torná-la impraticável. É a verdadeadvinda da comunicação que impede a injustiça.Como tal, trata-se de uma exigência necessáriapara tornar possível uma prática políticaadequada aos ditames da moral.A comunicação da verdade é o que colaborapara extinguir a ignorância; seu papel éfundamental para resgatar a consciência deresponsabilidade dos indivíduos e da coletividade,de respeito para com a vida humanae a natureza, a partir da requalificação dos valoresfundamentais dos quais os direitos humanosgenuínos são alguns de seus pilares esem os quais não há possibilidade de paz. Anegativa de comunicação ou informação, aorevés, em estrita consonância com a verdade,importa em censura, que, se cometida porfuncionários do governo ou por outras instânciasdo Estado, nega o princípio democráticodo poder transparente e a democracia nãomedra em terreno onde sua existência é condicional.Todo governo deve prestar contasde seus atos à cidadania e a condição desseimperativo é a livre imprensa, pois, sem ela,é impossível avaliar os governantes ou obterinformações por qualquer cidadão a respeitode si próprio. O direito de saber o que fazemos administradores não é cedido a ninguémpelo povo soberano. A censura é tutela quereduz o cidadão à menoridade. A imprensa livreestá na essência do regime democrático.Nele, “nenhum indivíduo humano transfere oseu direito natural a um outro (em proveito doqual ele aceitaria não mais ser consultado).Ele transfere ao todo da sociedade da qual éparte. Os indivíduos permanecem, assim, todosiguais, como no estado de natureza”.Lúcia de Fátima Guerra Ferreira ensinaque, na linha do “(...) sentido mais amplo dodireito à informação, aparecem não só os direitosligados à liberdade de imprensa, mas odireito às informações referentes ao passadoe ao presente”.Conforme expressou José Augusto LindgrenAlves,o restabelecimento do sistema democráticode direito – dos direitos políticose a mobilização da sociedade nabusca de novos padrões inspirados naética – permitiu revelar a verdade. Foipossível, assim, verificar com muitomais clareza o estado deplorável dosdireitos humanos e o grau de ameaçaque isso significa à instabilidade tantodoméstica quanto internacional.No Brasil, entretanto, após passadas maisde duas décadas do término do regime autoritário,ainda não se restaurou por inteiro averdade, pois, por exemplo, ainda não foramtotalmente disponibilizados à população osassim chamados arquivos da ditadura e, portanto,a totalidade das informações pertinentesa qualquer cidadão. Ainda não se mostrou,integralmente, o que realmente se passou noperíodo ditatorial. Resistências internas emabrir os arquivos da ditadura ainda subsistem etêm gerado controvérsias no âmbito do Estado.Contudo, nenhum governante tem o direito deocultar a verdade dos fatos. A negação injustificadado amplo e livre acesso a esses arquivosviola preceitos básicos de direitos fundamentaise ignora os anseios da cidadania pelaconstrução de uma memória coletiva e peloacesso a informações estruturais para as vidasindividuais de milhares de cidadãos brasileiros.A reconstituição da memória, fundada naverdade, é consequentemente um instrumentonecessário e inarredável.Em que pese a lacuna da plena reconstituiçãoda memória, fundada na verdade e, portanto,na verdadeira e correta elaboração de nossahistória, já tivemos, importantes iniciativas,dentre as quais destaco a) a Comissão Justiçae Paz de São Paulo, fundada em 1972 por iniciativado Cardeal D. Paulo Evaristo Arns, queteve papel preponderante na defesa dos direitoshumanos; b) o Grupo Tortura Nunca Mais(surgiu em 1985 no Rio e se espalhou, a partirde 1990, por diversos estados brasileiros,como São Paulo, Pernambuco, Minas Gerais,Bahia, Alagoas, Paraná); c) o projeto BrasilNunca Mais, da Arquidiocese de São Paulo ed) o livro-relatório, intitulado Direito à Memóriae à Verdade, elaborado pela Secretaria Especialdos Direitos Humanos da Presidência daRepública – ato de justiça e não de vingança,que sinaliza nova etapa no reconhecimentodo direito à verdade e à memória, ao contaras histórias dos mortos e desaparecidos políticos,a partir dos julgamentos, realizados comfundamento na Lei nº 9.140, de quase 500casos pela Comissão Especial sobre Mortose Desaparecidos Políticos. Além disso, lembroainda as várias medidas tomadas no âmbitojudicial, que ajudaram a recuperar a verdade e,por conseguinte, a memória de acontecimentosque por si só mudaram o curso da história,“A censura é tutela que reduz ocidadão à menoridade. A imprensalivre está na essência do regimedemocrático”31Revista Direitos Humanos


artigoDireito à memória e à verdade32Revista Direitos Humanos“Perdão é ter consciência, érevitalizar a memória de que avida não pode ser regida por umarelação de dor e ódio ”tais como as sentenças proferidas nos casosVladimir Herzog e Manuel Fiel Filho.Como dito acima, é importante a restauraçãoda verdade, como um ato histórico, paraperpetuação da memória, em homenagem aosque tombaram e deram suas vidas pela democracia.Ter acesso à verdade, formar a memóriacoletiva são atitudes indispensáveis, comoforma de redefinir o passado, refletir o presentee projetar o futuro. Lembrar, desvendar eesclarecer são anseios da cidadania, não paraalimentar o ódio, a raiva – o que faz mal. Tampoucopara perdoar ou esquecer. O perdão nãoé esquecimento, não é o pingar de um pontofinal numa história. Perdão é ter consciência, érevitalizar a memória de que a vida não podeser regida por uma relação de dor e ódio. Nãose trata de revanchismo ou ódio, mas, sim,de criar uma racionalidade capaz de sublimaraquela tragédia que é a bestialidade humana.O reconhecimento dessa verdade históricaé essencial para a conscientização de quecondenar a tortura no Brasil e no mundo nãoé apenas necessário, mas um dever de cadacidadão que respeite a justiça e os direitos humanos.Ser contra a tortura não envolve apenasuma posição política. É mais do que isso:consiste em uma questão ética, de princípio,que precisa ser trabalhada para conscientizaro conjunto da sociedade de que a tortura é umcrime que lesa a humanidade, e cada vez queuma pessoa é torturada, degradada e aviltadana sua condição de ser humano, a sociedadecomo um todo é igualmente atingida. Somenteo conhecimento pleno do que efetivamenteocorreu nos chamados anos de chumbo serácapaz de promover a verdadeira reconciliaçãonacional, que só pode se fundar na verdade.O País não deve mais conviver com fantasmase feridas não-cicatrizadas. É inadmissívelque a pseudossegurança da sociedade e doEstado sirva de pretexto para proteger os interessese assegurar a impunidade de pessoase categorias ligadas a órgãos do Estado e àscorporações militares. É preciso que as ForçasArmadas, em especial o Exército, adquiramconsciência de que a reconciliação no Brasilexige clara posição institucional, exige participaçãona chamada mesa de diálogo, para, comcivilidade, se discutir os temas da tortura e dosdesaparecimentos forçados. As Forças Armadasbrasileiras, que contam nos seus quadroscom muitos comandantes e oficiais honrados,não têm por que continuar suportando o ônuse tampouco se confundirem com aqueles quepraticaram crimes contra a humanidade, aoinfligirem inomináveis sofrimentos a centenasde cidadãos.O direito à verdade na ConstituiçãoFederalVejamos agora a questão da verdade à luzda Constituição Federal de 1988. Já em suaabertura, no artigo 1º, clara está a afirmaçãoda opção política em favor dos princípios republicanose democráticos. Esses princípios,assim como os fundamentos enunciadosnos cinco incisos, devem nortear a condutado poder público da República Federativado Brasil, o que supõe um compromissoincondicional com a verdade, em virtude deo direito à verdade decorrer do princípio fundamentale constitucional da dignidade dapessoa humana (CF, art. 1º, inc. III).Ainda segundo outro ensinamento dePaulo Klautau Filho, em obra já citada nestetrabalho, tal como a dignidade da pessoahumana constitui o núcleo essencial dosdireitos humanos, o princípio da veracidade,como corolário da pessoa humana, constituirazão justificadora do direito à liberdade deexpressão (art. 220 da Constituição). Paraesse jurista, a dimensão social da liberdadede expressão e de informação exige que seuexercício se dê com intenção de veracidade,sob pena de frustrar o alcance de sua finalidaderepublicana e democrática. Por isso,conclui: é vedado o anonimato, sendo asseguradoo direito de resposta (a busca daverdade no livre debate de ideias) e a indenizaçãopor dano material e/ou imagem, àvida privada e à honra das pessoas. Além degarantias individuais, esses limites à liberdadede expressão são garantias, também, doacesso à informação verdadeira para toda asociedade. Tais limites e garantias concretizam,no corpo da Constituição, a velha crençade que a mentira destrói a dignidade do serhumano. Enfim, no que tange à relação entreveracidade e liberdade de expressão, podesededuzir que: 1) exige-se que o princípioveracidade seja respeitado e protegido; 2) sea liberdade de expressão não se aplicasse, oprincípio da veracidade não seria respeitado,nem protegido e 3) exige-se a aplicação daliberdade de expressão. Pode-se, daí, concluirque as normas constitucionais que dispõemsobre a liberdade de expressão, umaque se fundamentam, também, no princípioda veracidade, integram o conjunto de dispositivosque compõem o direito à verdade docidadão, perante o poder público em nossoordenamento.Ainda no que concerne ao direito à verdade,ressalte-se agora o direito que qualquercidadão tem, perante os órgãos públicos,de obter informações de caráter particular,conforme assegura o art. 5º, inciso XXXIII, da


Constituição Federal. Essa regra constitucionalimporta na rejeição ao segredo e à mentiragovernamental, pois o reconhecimento do direitoà informação, em última análise, conduzao reconhecimento do direito à verdade docidadão e a um dever governamental de dizera verdade, o que configura um princípio fundamentalem nossa Constituição, vale dizer:o direito à verdade justifica-se com base nosprincípios éticos republicanos e democráticos,decorrendo e buscando essencialmentea promoção e proteção da dignidade humana,conforme anota Paulo Klautau Filho, citando oprofessor Fábio Konder Comparato, em obraaqui já mencionada.Deixo de aprofundar a análise relativa àlegislação infraconstitucional. Ressalto apenasque o legislador não exerceu corretamente suatarefa constitucional de regulamentar o incisoXXXIII do art. 5º da Constituição Federal emnenhum de seus aspectos: não houve, quantoà exceção da imprescindibilidade do sigilo, adefinição de situações e a criação de critériosaptos a orientar a inversão (em favor da segurança)da prevalência do direito à plena informaçãogovernamental, que integra o feixe dedireitos ligados ao direito à verdade dos cidadãosem face do poder público, em concretizaçãoao princípio da veracidade. As vítimas eparentes de pessoas que sofreram os horroresda ditadura, em nome da segurança nacional,embora, num Estado de Direito Democrático,têm o direito à verdade. Os conceitos de segurançada sociedade e do Estado continuama ser utilizados para proteger os interesses eassegurar a impunidade de pessoas ligadas aórgãos do Estado e às corporações militares,que, no passado, durante a ditadura, atuaramcomo torturadores, infringindo-se, assim, oprincípio democrático do poder transparente.ConclusãoReitero que as Forças Armadas, cuja maioriade seus integrantes é composta de pessoascom espírito democrático, necessitam compreenderque, no passado, por ação de parte ria, fundada na verdade, é um instrumentoInsisto que a reconstituição da memó-de seus membros, foram utilizadas indevidamentee que sua imagem, perante a sociedade, senciais serão relegadas ao esquecimento,necessário e fundamental. Questões es-estará definitivamente restaurada quando elas se não houver um processo permanente depróprias se convencerem de que são as primeirasinteressadas em apurar toda a violência ensinou Norberto Bobbio,recuperação da memória, que, segundopraticada durante a ditadura militar. Quandoisso ocorrer, serão reconhecidas como parte (...) é a fonte inesgotável de reflexõesfundamental em um Estado de Direito. Impõese,ademais, que a sociedade civil, de forma em que vivemos, sobre as pessoas e ossobre nós mesmos, sobre o universoorganizada, continue a propugnar por legislaçãoinfraconstitucional adequada e a exigir o nho, atraíram nossa atenção (...) O mun-acontecimentos que, ao longo do cami-respeito aos princípios democrático e republicano,por meio da efetiva possibilidade de obrendoa nossas lembranças, podemosdo do passado é aquele no qual, recortenção,por qualquer cidadão, de informações buscar refúgio dentro de nós mesmos,revestidas de veracidade. Agindo assim, será debruçar-nos sobre nós mesmos e nelepreservada a verdadeira memória nacional. reconstruir nossa identidade (...).REFERÊNCIAS1 DIAS, José Carlos. Democracia e Violência. Publicação da Comissão Theotônio Vilela, p. 125,Editora Paz e Terra Política.2 DALLARI, Dalmo de Abreu. Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-metodológicos.Editora Universitária, p. 48.3 GARZÓN, Baltasar. Un Mundo sin Miedo. Plaza Janés, Ed. 2005, p. 12.4 PÉREZ, Carmen Lúcia Vidal. O lugar da memória e a memória do lugar na formação de professores:a reinvenção da escola como uma comunidade investigativa. In: Reunião Anual daAnped, 26, 2003, p. 5. Disponível em : .Acesso em:5 KERTÉZ, Imere. A língua exilada.6 ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2006.7 KLAUTAU FILHO, Paulo. O Direito dos cidadãos à verdade perante o poder público. EditoraMétodo, p. 66 e p. 68.8 SPINOZA, Tratado Teológico-Político. p. 16.9 FERREIRA, Lúcia Guerra. Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-metodológicos.p. 135.10 ALVES LINDGREN, José Augusto. Os Direitos Humanos como tema global. São Paulo: Perspectiva,2007.11 BOBBIO, Norberto. O Tempo da Memória. De senectude e outros escritos biográficos. 9ª ed.,Rio de Janeiro: Campus, 1997.33Revista Direitos Humanos


artigoUm mundo de todos para todos: Universalização de direitos e direito à diferençaUm mundo detodos para todos:Universalização de direitose direito à diferença.Ana Rita de PaulaIzabel Maria Madeira de Loureiro Maior34Revista Direitos Humanos


Ana Rita de Paula, psicóloga, é consultora da Sorri-Brasil há 15 anos, além deoutras organizações não-governamentais e órgãos públicos municipais, estaduais efederais. Recebeu, entre outros, o Prêmio Direitos Humanos da Universidade de SãoPaulo, em 2001 e o Prêmio Nacional de Direitos Humanos, outorgado pela SecretariaEspecial dos Direitos Humanos da Presidência da República, em 2004. Mestre e pósdoutorandaem Psicologia Social, doutora em Psicologia Clínica, pela Universidadede São Paulo (USP). Há 30 anos faz parte da liderança do movimento pela defesa dosdireitos das pessoas com deficiência.Izabel Maria Madeira de Loureiro Maior é médica fisiatra e neurologista,docente do Departamento de Clínica Médica da Universidade Federal do Rio de Janeiro,especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do Ministériodo Planejamento, e especialista em Bioética da Universidade de Brasília. É titular daAcademia Brasileira de Medicina de Reabilitação, conselheira titular do ConselhoNacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência e, desde 2002, está no cargo decoordenadora-geral da Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora deDeficiência (CORDE), órgão da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidênciada República. Recebeu diversos prêmios e condecorações dos estados e instituiçõesbrasileiras e foi eleita em 2002 membro do Conselho de Honra da RehabilitationInternational. Pertence ao movimento de luta das pessoas com deficiência desde 1987.Está à frente das atividades da convenção como orientadora do processo e participou da7ª e da 8ª sessões do Comitê da ONU que elaborou a Convenção sobre os Direitos dasPessoas com Deficiência.Alguns estudiosos identificam na contemporaneidadecaracterísticas que a pós-modernidade possui uma face positivatabeleceram. Como todo período histórico,determinam um período histórico e outra negativa. Convivem, lado a lado e simultaneamente,a valorização do multicultu-denominado pós-modernidade. Uma dessascaracterísticas é o pluralismo das ideias e a ralismo, as atividades terroristas e o uso daaproximação e valorização das diferentes culturasdo planeta.pelas corporações multinacionais.mão-de-obra de países subdesenvolvidosSegundo Boaventura de Souza Santos, Lindgren Alves afirma que as característicasda globalização deste fim de sécu-a pós-modernidade se caracteriza como umperíodo de transição, uma vez que os valores lo são bastante conhecidas, assim comoda modernidade estão em crise. Ao mesmo são reconhecidos seus efeitos colaterais. Atempo, novos paradigmas ainda não se es-busca obsessiva da eficiência faz aumentarcontinuamente o número dos que por elasão marginalizados, inclusive nos países desenvolvidos.Assim como a mecanização daagricultura provocou o êxodo rural, inflandocidades e suas periferias, a racionalizaçãoatual da produção empurra os pobres aindamais para as margens da economia, a informatizaçãocrescente da indústria torna superadoo trabalho não especializado e contribuipara o desemprego estrutural. Nas sociedadesemergentes, alega-se a necessidadedo desmonte da previdência pública comosendo necessário à eficiência da gestão governamental,transformando a exclusão emcontrapartida aceitável da competitividadenacional.Já no campo do pensamento, a valorizaçãoda pluralidade das ideias e a relativizaçãoda verdade consolidam o antiuniversalismopós-moderno, opondo-o ao período históricoanterior, ou seja, a modernidade.Considerando que a Declaração Universaldos Direitos Humanos surgiu durante amodernidade, com sua tentativa de identificaruma situação ideal e universal para o homem,esse documento se tornou um instrumentoimportante para a efetivação dos ideais iluministasde liberdade, igualdade e fraternidade.Nesse contexto, a Declaração de 1948inovou a gramática dos direitos humanos, aointroduzir a chamada concepção contemporâneade direitos humanos, marcada pela universalidadee indivisibilidade destes direitos.Universalidade porque clama pela extensãouniversal dos direitos humanos, sob a crençade que a condição de pessoa é o requisito úni-“A valorização da pluraridade das ideias ea relativização da verdade consolidam oantiuniversalismo pós-moderno, opondo-se aoperíodo oposto anterior, ou seja, a modernidade”35Revista Direitos Humanos


artigoUm mundo de todos para todos: Universalização de direitos e direito à diferença36Revista Direitos Humanosco para a titularidade de direitos e considerao ser humano como um ser essencialmentemoral, dotado de unicidade existencial e dignidade.Indivisibilidade porque a garantia dosdireitos civis e políticos é condição para aobservância dos direitos sociais, econômicose culturais, e vice-versa. Quando um deles éviolado, os demais também o são. Os direitoshumanos compõem, assim, uma unidade indivisível,interdependente e interrelacionada,capaz de conjugar o catálogo de direitos civise políticos com o catálogo de direitos sociais,econômicos e culturais.Essa característica da Declaração é expressaem seu próprio titulo. É a única declaraçãoda ONU que recebeu o nome deuniversal e não internacional como ocorreucom as demais. Almejava-se, desde a suaformulação, que esse documento se tornasseum instrumento da modernidade racional,secular, democrática e universal.Porém, como falar atualmente de um homemuniversal depois que a psicanálise, aantropologia, a etnologia e a própria filosofiajá demonstraram a ilusão da concepção deindivíduo como ser único, indivisível e naturale as consequências nefastas dessa forma depensar? Na contemporaneidade falamos dadeterminação pelas estruturas econômicas,sociais, culturais, linguísticas de um sujeitodividido psiquicamente.Tornou-se fundamental para os movimentossociais de luta das minorias falar, porexemplo, das diferenças de gênero. Homense mulheres habitam corpos e mentes diferentes,suas realidades mentais e corporais, porsua vez, são construídas dentro da cultura.Torna-se insuficiente tratar o indivíduo deforma genérica, geral e abstrata. Faz-se necessáriaa especificação do sujeito de direito,que passa a ser visto em sua peculiaridadee particularidade. Nessa ótica, determinadossujeitos de direitos, ou determinadasviolações de direitos, exigem uma respostaespecífica e diferenciada. Nesse cenário, asmulheres, as crianças, as populações afrodescendentes,os migrantes, as pessoas comdeficiência, dentre outras categorias vulneráveis,devem ser vistas nas especificidades epeculiaridades de sua condição social.Apesar de reconhecer as transformaçõeshistóricas não podemos negar que a DeclaraçãoUniversal dos Direitos Humanos temsido argumento daqueles que não têm voz eos direitos humanos refletem um construídoaxiológico, a partir de um espaço simbólicode luta e ação social. No dizer de Flores, osmovimentos compõem uma racionalidade deresistência, na medida em que traduzem processosque abrem e consolidam espaços deluta pela dignidade humana.Não se trata de propor a reforma de umdocumento tão importante como a DeclaraçãoUniversal dos Direitos Humanos, embora reconheçamosa necessidade de contextualizarsua produção, considerando que se trata deum documento datado, ou melhor, histórico,como toda produção humana, e não atemporalcomo parece pretender ser. É inegável quea Declaração Universal dos Direitos Humanosinfluenciou positivamente o mundo, nos últimos60 anos.Necessitamos, sim, do reconhecimentodos direitos das mulheres, dos direitos daspessoas com deficiência e de outras minorias,como parte integrante dos direitos humanosuniversais, engajando-nos na luta planetáriapelos direitos fundamentais de todosos seres humanos. É necessária a compatibilizaçãoentre o particularismo das culturas e aideia de direito universal.Ao lado do direito à igualdade, surge,também, como direito fundamental, o direitoà diferença. Para que haja, de fato, uma igualdadede condições é de suma importância orespeito à diferença e à diversidade.Destacam-se, segundo Flávia Piovesan,três vertentes no que tange à concepção daigualdade: a) a igualdade formal, reduzidaà fórmula “todos são iguais perante a lei”(que, ao seu tempo, foi crucial para a aboliçãode privilégios); b) a igualdade material,correspondente ao ideal de justiça social edistributiva (igualdade orientada pelo critériosocioeconômico); c) a igualdade material,correspondente ao ideal de justiça enquantoreconhecimento de identidades (igualdadeorientada pelos critérios de gênero, orientaçãosexual, idade, raça).Essas concepções invocam uma plataformaemancipatória voltada à proteção dadignidade humana.Segundo Bueno e Paula, vale a penaressaltar aqui que a discussão sobre a valorizaçãoda diversidade pode ter uma leituradistorcida e ser utilizada para escamotearprocessos de exclusão social. É precisocuidado ao discutir este tema para nãoincorrer em um discurso ufanista que preconizaa tolerância a supostas diferençasindividuais. Quando falamos de diferenças,temos consciência de que, ao apontá-las,estamos descortinando um processo históricode desvalorização e exclusão socialapoiado em características como gênero,raça e etnia. Não se trata, portanto, de considerartodas as diferenças como própriasda natureza humana, e sim do enfrentamentodo processo histórico da transformaçãoda diferença em desigualdade. O debatesobre diversidade só se torna consequentequando não oculta os fatores produtores dadesigualdade e da pobreza. Todos somosdiferentes e é preciso denunciar quandoessas diferenças são usadas para mantergrupos sociais marginalizados.Ao longo da história, as mais graves vio-


lações aos direitos humanos tiveram comoqual se pretende chegar, tendo como pontodas em 13 de dezembro de 2006, emfundamento a dicotomia do “eu versus ode partida a visibilidade às diferenças. Istohomenagem ao 58° aniversário da De-outro”, em que a diversidade era captadaé, essencial mostrar e distinguir a diferen-claração Universal dos Direitos Huma-como elemento para aniquilar direitos.ça e a desigualdade.nos. A mais recente das ConvençõesVale dizer, a diferença era visibilizada paraBoaventura de Souza Santos acrescenta:dirigidas a um segmento marginaliza-conceber o “outro” como um ser menordo da sociedade – nem por isto redu-em dignidade e direitos, ou, em situaçõestemos o direito a ser iguais quando azido em tamanho – entrou em vigêncialimites, um ser esvaziado mesmo de qual-nossa diferença nos inferioriza; e te-em 3 de maio de 2008, após ultrapas-quer dignidade.mos o direito a ser diferentes quandosar o mínimo de vinte ratificações. OA emergência conceitual do direito àa nossa igualdade nos descaracteriza.processo de elaboração, aprovação ediferença e do reconhecimento de identi-Daí a necessidade de uma igualdaderatificação pelos países que culminoudades é capaz de refletir a crescente vozque reconheça as diferenças e de umaneste documento é um exemplo destados movimentos sociais e o surgimentodiferença que não produza, alimentenova concepção e geração de direitos,de uma sociedade civil plural e diversa noou reproduza as desigualdades..trazendo especificidades que tornammarco do multiculturalismo.Se, para a concepção formal de igualdade,esta é tomada como pressuposto,como um dado e um ponto de partida abstrato,para a concepção material de igualdade,esta é tomada como um resultado aoIzabel Maior afirma:A Convenção sobre os Direitos dasPessoas com Deficiência foi homologadapela Assembléia das Nações Uni-efetivos para as pessoas com deficiênciaos direitos e as garantias fundamentaisdo texto de 1948. A leitura decada um dos 30 artigos da DeclaraçãoUniversal dos Direitos Humanos estáreferida diretamente nos 40 artigos de37Revista Direitos Humanos


artigoUm mundo de todos para todos: Universalização de direitos e direito à diferençaconteúdo da Convenção estreante naordem jurídica internacional, incluídosos artigos do Comitê e da Conferênciados Estados Partes. Agora este segmentoda humanidade pode dizer queé parte dos iguais na diversidade e novalor inerente de cada pessoa.“Nada aconteceu por acaso.No Brasil, cada resultado foimarcado pela luta ininterrupta,notadamente, a partir de 1980”A Convenção sobre os Direitos das Pes-Tão importante quanto a convenção édois turnos de votação no Senado Federal.soas com Deficiência foi valorizada peloo Protocolo Facultativo, pois, se não fo-Nas sessões do Congresso não houve votoEstado brasileiro desde a sua concepçãorem suficientes as instâncias nacionais, ocontrário e, como resultado, a Convençãono momento da abertura das assinaturas naComitê da Convenção atuará no monitora-dos Direitos das Pessoas com Deficiênciasede da ONU em Nova Yorque, em 30 demento e na apuração de denúncias de vio-e o Protocolo Facultativo passam à históriamarço de 2007, quando o Brasil firmou alações dos direitos humanos, individuais ecomo o primeiro tratado de direitos hu-posição de ratificar a Convenção e o Proto-coletivas, oriundos dos países signatáriosmanos tornado constitucional no Brasil. Ocolo Facultativo, assumindo compromissodo documento opcional.Decreto Legislativo n° 186, de 9 de julhoem casa e no cenário internacional.O caminho da incorporação do tratadode 2008, promulgado pelo presidente doInteressante salientar que não se ma-às leis brasileiras teve início quando o po-Senado Federal, é o documento que passanifestaram vozes divergentes a respeito dader Executivo, por meio da Mensagem Pre-a orientar toda e qualquer regra jurídica aratificação da convenção, pois foi um textosidencial n° 711/2007, encaminhou a Con-respeito das pessoas com deficiência.construído por 192 países, o qual refletevenção da ONU à Câmara, solicitando a suaDe acordo com Izabel Maior, é impor-costumes, crenças e estágios diferentestramitação com a equivalência de emendatante comentar o artigo 4º das obrigaçõesde respeito pelas liberdades fundamentaisconstitucional, com base na Emenda Cons-gerais dos Estados Partes, que precisa sere dignidade inerente das pessoas com de-titucional nº 45/2004.aplicado em conjunto com o artigo 3º dosficiência. A convenção é um tratado atual,Após intenso trabalho de articulaçãoprincípios gerais. Entende-se que dos prin-um documento internacional pela vida ple-da área governamental, liderada pela Co-cípios derivam todas as questões definidasna do segmento a que se destina.ordenadoria Nacional para Integração dasno rol das obrigações gerais e, posterior-Mesmo para alguns países que já estãoPessoas com Deficiência - Corde e pelomente, em cada um dos artigos temáticosem estágio avançado de promoção socialConselho Nacional dos Direitos das Pesso-que demonstrarão a forma mais adequadadesse conjunto da população, como o Bra-as com Deficiência - Conade, instâncias dade garantir direitos fundamentais para assil, a convenção traz em seu bojo a obriga-Secretaria Especial dos Direitos Humanospessoas com deficiência, devido às parti-toriedade de não discriminar e de dar todasda Presidência da República, e por fortecularidades que são inerentes a elas.as oportunidades e apoios necessários àpressão do movimento social, o processoAs afirmações dos princípios e dasinserção dessas pessoas na vida social ede tramitação foi alcançado a partir de umobrigações gerais são os pontos centrais ano processo de desenvolvimento do país.acordo das lideranças partidárias, tanto naser analisados no aspecto da congruênciaApesar de não serem aspectos novos para aCâmara dos Deputados como no Senadoou não entre a Convenção e a legislaçãonossa legislação, a confirmação de diversosFederal.nacional. Assim, dentre os princípios dapontos específicos de direitos e de dignidadeForam vitoriosos os esforços para queConvenção estão: o respeito pela dignida-38das pessoas com deficiência confere maioro rito escolhido fosse realmente aquelede inerente, a independência da pessoa,Revista Direitos Humanosdestaque à política de inclusão do governofederal. Com o advento da convenção, osgovernos passam a ter obrigações gerais queprecisam ser traduzidas em políticas públicas,planos, programas e ações concretas.que consta no § 3° do artigo 5° da ConstituiçãoFederal, com equivalência à emendaconstitucional, ou seja, votação e aprovaçãopor 3/5 dos deputados em dois turnose, igualmente, o quorum qualificado nosinclusive a liberdade de fazer as própriasescolhas, e a autonomia individual, a nãodiscriminação,a plena e efetiva participaçãoe inclusão na sociedade, o respeitopela diferença, a igualdade de oportunida-


des, a acessibilidade, a igualdade entre ohomem e a mulher e o respeito pelas capacidadesem desenvolvimento de criançascom deficiência.A Lei nº 7.853/1989, que instituiu aPolítica Nacional para Integração da PessoaPortadora de Deficiência, apresenta, nocapítulo das normas gerais, a garantia doexercício dos direitos e da efetiva integraçãosocial das pessoas com deficiência,bem como os valores básicos da igualdadede tratamento e oportunidades, da justiçasocial, do respeito à dignidade da pessoahumana e outros, indicados da ConstituiçãoFederal de 1988.A comparação entre os dois artigos,respectivamente o da convenção adotadapela ONU e o da lei federal brasileira, revelaestreita relação ao escolherem os termose seus significados: dignidade humana eigualdade de oportunidades. Todavia, a diferençade dezoito anos entre esses documentosenfatiza a evolução dos processospara a cidadania das pessoas com deficiência,por meio da evolução de integraçãopara inclusão social. Da mesma maneira,mostrando atualização, a questão de gêneroe de crianças, por se tratar de gruposvulneráveis.No artigo 1º da lei federal, encontra-semenção expressa sobre afastar discriminaçõese preconceitos, enquanto a convençãode 2006 explicita a não-discriminação.Fica evidente que os princípios geraisestão assentados na valorização da diversidadehumana e na não-tolerância comas mais diversas formas de discriminaçãocontra as pessoas com deficiência.Continuando, no que concerne à políticabrasileira voltada às pessoas comdeficiência, alguns aspectos não podemser esquecidos. Em nosso país, a políticade inclusão social das pessoas com deficiênciaexiste desde a Constituição deReferênciasALVES, José Augusto Lindgren. Os direitos humanos na pós-modernidade. São Paulo, Perspectiva,2005.BUENO, Carmen Leite Ribeiro e PAULA, Ana Rita. Os Paradigmas da gestão da diversidade e aspessoas com deficiência. Disponível em http://www.sorri.com.br/artigos/OsParadigmasDeGestaoDaDiversidade.pdf,acessado em 31 de outubro de 2008.FLORES, Joaquín Herrera. Direitos Humanos, Interculturalidade e Racionalidade de Resistência,Revista Sequência, Número 4, Ano 2, dezembro de 1981, disponível http://www.buscalegis.ufsc.br/arquivos/direitos%20humanos,%20interculturalidade.pdf, acessado em 31 de outubrode 2008.MAIOR, Izabel Maria Madeira de Loureiro. Apresentação (Im) A convenção sobre Direitos dasPessoas com Deficiência Comentada. Coordenação de Ana Paula Crossara Resende e FlaviaMaria de Paiva Vital. Brasília, Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Coordenadoria Nacionalpara Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, 2008.PIOSEVAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. São Paulo, Editora Saraiva, 2006.SANTOS, Boaventura de Souza. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade.São Paulo, Editora Cortez, 1997.1988, que originou a Lei n° 7.853/1989, processos de tomada de decisão, deverãoposteriormente regulamentada pelo Decreton° 3.298/1999. Esses documentos cia, inovando a convenção quando se re-ser consultadas as pessoas com deficiên-nacionais, junto a outros, com destaque fere inclusive às crianças com deficiência,para as Leis n° 10.048 e 10.098, de 2000 e que, por intermédio de suas organizaçõeso Decreto n° 5.296/2004, conhecido como representativas, passam ativamente a tomaro decreto da acessibilidade, colocam-nos parte nas deliberações que se relacionamem igualdade com o ideário da Convenção às suas vidas.da ONU. Também cabe repetir que as questõesreferentes às pessoas com deficiên-benesse. Muito ao contrário, no Brasil,Nada aconteceu por acaso ou comocia são conduzidas na esfera dos direitos cada resultado foi marcado pela luta ininterrupta,notadamente a partir de 1980,humanos desde 1995, quando passou aexistir, na estrutura do governo federal, a quando teve início o movimento socialSecretaria Nacional de Cidadania do Ministérioda Justiça.de seus direitos. Sob o lema “Nada so-das pessoas com deficiência em defesaPara esclarecer, estão em perfeita conformidadeo comando do novo tratado inciênciaescreveram e ainda escrevem, nobre nós, sem nós”, as pessoas com defiternacionale as normas brasileiras quando Brasil e na ONU, a sua história, cada vezestabelecem que na elaboração e na implementaçãoda legislação e das políticas para traduzem em redução das desigualdadescom mais avanços e conquistas que seexecutar a presente convenção e em outros e equiparação das oportunidades.39Revista Direitos Humanos


artigoMaioridade para os direitos humanos da criança e do adolescenteCarmen Silveira de oliveira é psicóloga, doutora em Psicologia Clínica (PUCSP).subsecretária de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente da Secretaria Especialdos Direitos Humanos da Presidência da República, ex-presidente e atual vice-presidentedo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente - Conanda.Maria luiza moura de oliveira é psicóloga, mestre em Psicologia Social(ucggo), presidente do Conanda, representante do conselho federal de psicologia,professora e pesquisadora da Universidade Católica de Goiás (UCG).Maioridade para os direitos humanosda criança e do adolescente40Revista Direitos HumanosIntrodução:Em 2008 comemora-se o aniversário demaioridade do Estatuto da Criança e doAdolescente (ECA). Na sua emergência,em 1990, destacam-se dois cenários.De um lado, a mobilização social diante dasgraves violações dos direitos infanto-juvenis,como a chacina de meninos e meninas de ruada Candelária e as sucessivas denúncias detorturas no sistema Febem. De outro lado, temosa luta pela redemocratização, cuja aliançasocial fecundou o ECA, considerado umdos filhos diletos da gravidez democrática noPaís, na medida uma vez que foi concebidoe partejado em meio à formulação da novaConstituição Federal de 1988.Nesse contexto, o Estatuto da Criançae do Adolescente inaugurou um novo paradigmaético-político e jurídico na sociedadebrasileira, pois colocou os direitos da populaçãoinfanto-juvenil inscritos na agendacontemporânea dos Direitos Humanos. Estaconstrução revolucionária foi resultado deum longo processo de mobilização social,que promoveu transformações profundasprincipalmente na concepção da criança e doadolescente como seres humanos em desenvolvimento,reafirmando a condição peculiarque lhes assegura a proteção integral.A convergência de lutas em favor da restituiçãodos direitos permitiu que o Brasil fossea primeira nação a promulgar um marco legalem sintonia com a Convenção sobre os Direitosda Criança, aprovada seis meses antes, aofinal de 1989, no âmbito das Nações Unidas.Isso porque os princípios mais importantesque estavam sendo discutidos no documentointernacional foram praticamente sintetizadosno artigo 227 da nova Constituição: a criançae o adolescente como sujeitos de direitos, asua priorização absoluta, bem como a responsabilidadecompartilhada de proteção integralentre a família, a sociedade e o Estado.Esta iniciativa pioneira minimizou a “esquizofreniajurídica” referida por Méndez(2001), no caso dos países que conviveramcom a vigência simultânea de duas leis, regulandoa mesma matéria, de forma antagônica:a Convenção e a velha legislação de menores.Para Barcellona (1997), o Brasil tambéminovou na tradição sociojurídica da região, aoapontar que a capacidade de produzir leis éuma competência social e não somente umaprerrogativa dos parlamentos.Dessa forma, esses novos mecanismosde produção do direitos influenciaram outrasreformas legislativas. Calcula-se que o ECA


tenha inspirado no mínimo 15 legislaçõeslatino-americanas, coincidindo também como período de enfrentamento dos governosautoritários na região. Nessa medida, paraaqueles autores, o novo marco legal podeser entendido não somente como condiçãonecessária para a melhora da situação decrianças e adolescentes, mas também para aqualidade da vida democrática.Contudo, partindo da perspectiva de queuma boa legislação é apenas um primeiro passo(e nem sempre o mais importante ou o maisdifícil, em especial no caso brasileiro em queproliferam leis que “ficam no papel”), cabe indagarquais os efeitos dessas novas premissaslegais tanto na cultura quanto, de uma formamais pragmática, nas políticas públicas e naspróprias condições de vida de crianças e dosadolescentes no Brasil, decorridos 18 anos deimplementação do estatuto.O ECA e a refundação socialÉ importante destacar, em primeiro lugar,que no plano legislativo essa refundação, deum direito da infância e adolescência, rompecom uma tradição jurídica do velho Estadoliberal, em que, na esfera privada. “menores”e mulheres estavam alheios ao direitoe submetidos às dinâmicas espontâneas derelações afetivas e tutelares, sejam familiares,como no caso do poder absoluto do paipatrão,sejam extrafamiliares, a exemplo dasintervenções policiais ou caritativas (FERRA-JOLI, 1999).O autor sinaliza que esse paradigma tradicional,por sua natureza informal e ausênciaabsoluta de regras, se revelou discricionárioe favoreceu os piores abusos e arbitrariedades.Ele chama atenção para o fato de que,no contexto latino-americano de pobrezaendêmica e de desigualdades sociais, essasfunções do direito empurraram milhões decrianças e adolescentes a institucionalização,adoções ou a uma relação adulta coma sociedade, tal como o trabalho infantil oua criminalidade. Por isso, Ferrajoli refere queessa antiga legislação era, ao mesmo tempo,paternalista e repressiva.Isso parece fazer ainda mais sentido nocaso brasileiro, pois o Código de Menores de1979 pode ser considerado como “dispositivocentral na política social do autoritarismomilitar das décadas passadas” (MÉNDEZ,1999). Isso não quer dizer que o direito de“menores” possa ser considerado um subprodutodas ditaduras militares dos anos 70,mas apenas que ele se adaptou muito bem aesse projeto social.O Estatuto da Criança e do Adolescente(ECA) é uma Lei que traduz a determinaçãopolítica que pauta os princípios da doutrinade proteção integral, contrapondo-se aoantigo modelo dos Códigos de Menores de1927 e 1979, que se dirigiam “à infância emsituação irregular”. Ou seja, o Estado só reconheciacomo seu dever e responsabilidadeo cuidado com o “menor” quando esse necessitavade amparo ou tutela nas situaçõescaracterizadas por ato infracional ou omissãopor parte da família.Nesse sentido, o ECA afirma a noção de“criança e adolescente como sujeito de direitos”,preconizando a garantia ampla dosseus direitos pessoais e sociais assumidapor toda a sociedade, como estabelecidoem seu artigo 3º:A criança e o adolescente gozam de todosos direitos fundamentais inerentes à pessoahumana, sem prejuízo da proteção integralde que trata essa Lei, assegurandose-lhe,por lei ou por outros meios, todasas oportunidades e facilidades, a fim delhes facultar o desenvolvimento físico,mental, moral, espiritual e social, em condiçõesde liberdade e de dignidade.A abordagem da prática do ato infracionalentre os adolescentes pode ser um bomexemplo comparativo das diferenças entreessa legislação menorista e a garantista dosdireitos. O velho sistema era, fundamentalmente,“correcional” e as sanções eram arbitrárias,tanto por prever a nebulosa categoriade “situação irregular”, quanto pela inexistênciade fundamentação do magistrado, docontraditório ou do direito de defesa. Já nonovo marco legal, os delitos são tipificados,a medida socioeducativa é limitada na duraçãoe na intensidade e os adolescentes têmas mesmas garantias processuais que as dodireito penal de adultos. Isso favorece “umaverdadeira educação para a legalidade”:“... al respeto de las reglas, se obtienesobre todo respetando al adolescente,incluso infractor, como ciudadano responsable,y exhibiendo el respeto y, porlo tanto, el valor de las reglas em la propiarespuesta punitiva a sus infracciones.”(FERRAJOLI, 1999, p. XVIII)Entretanto, se os espectros dos governosautoritários já não rondam os tempos atuais,as diretrizes da Convenção e do ECA enfrentamrenovados obstáculos ideológicos nosanos 2000, decorrentes de uma situação quepode ser traduzida na máxima “Estado socialmínimo e Estado penal máximo”, expressãoutilizada por Wacquant (2001) para designara tendência de judicialização das questõessociais ou, como prefere o autor, de “criminalizaçãoda miséria”.Assim, observa-se no Brasil, por exemplo,uma preocupante tendência à reduçãoda maioridade penal e ao aumento das taxasde internação no sistema socioeducativo, emespecial da adolescência pobre, o que serve“O Estatuto da Criança e doAdolescente traduz a determinaçãopolítica que pauta os princípios dadoutrina de proteção integral”41Revista Direitos Humanos


artigoMaioridade para os direitos humanos da criança e do adolescente42Revista Direitos Humanosnão apenas para uma expulsão forçada deconvívio social com vistas a neutralizar essapobreza sem destino na globalização, mastambém para aplacar a comoção pública àmedida que se sugere que “algo foi feito”.Cabe ressaltar, todavia, que a insegurançaque move a maioria da população para demandaspunitivas tem uma capacidade deautopropulsão, como refere Bauman (2008),isto é, o pressuposto da sua vulnerabilidadedepende mais da falta de confiança nas defesasdisponíveis do que do volume ou danatureza das ameaças reais.Dessa forma, é preocupante a proliferaçãode abrigos na última década no País,inclusive por motivo de pobreza e por longapermanência, como indicou o mapeamentonacional realizado pelo IPEA em 2002, ao levantarcerca de 40 mil crianças e adolescentesnessa condição. É pertinente lembrar que,na vigência da legislação menorista, a segregaçãodos pobres estava inclusive sugeridae estimulada, ao prever que o “menor” em“situação irregular” deveria ser encaminhadoà autoridade judicial competente, ou seja,quando a criança ou adolescente estivesseprivado de condições essenciais para suasubsistência, saúde e instrução obrigatória,inclusive quando eventualmente a privaçãofosse em razão de manifesta impossibilidadede pais ou responsáveis para esta provisão.Ao contrário, o ECA estabelece que “a merafalta ou carência de recursos materiais nãopoderá jamais constituir um motivo suficientepara a perda ou suspensão do pátrio poder”.Como explicar, então, a não observância destadiretriz?Sugere-se que a persistente institucionalizaçãoobservada nessas duas situaçõesaqui analisadas se deva tanto a uma discricionariedadejurídica, quanto a outra, denatureza pedagógica. Dito de outra maneira,couberam aos juízes na doutrina da situaçãoirregular desenhar e executar as políticaspara a infância pobre, mas os operadoressociais também sustentaram políticas compensatóriasreforçadoras de práticas institucionalizantes,tanto no marco do Código deMenores quanto do ECA. Por isso, Méndez(1999) propõe que é necessária a renovaçãoentre os operadores jurídicos com vistas aonovo direito, aliada à refundação urgente nocampo dos operadores sociais. Isso porque,segundo ele, “la história es muy clara mostrarlas peores atrocidades contra la infânciacometidas mucho más em nombre del amory la protección, que en nombre explícito dela propia represión”. É assim que os maioresinvestimentos nas políticas públicasbrasileiras continuam sendo feitos para viabilizaras últimas medidas protetivas (comoa construção de mais e mais unidades deinternação socioeducativa ou abrigos) e nãoaquelas que constituem a base da promoçãodos direitos de crianças e adolescentes.Além do ônus financeiro dessa opção, osresultados se mostram tão inócuos quanto“enxugar gelo”. Ao contrário, tais iniciativasinstitucionalizantes reforçam os sintomas dedesfiliação e apartheid e não levam em contaque, para milhões de crianças e adolescentesque são vitimas de violações dos direitos noBrasil, o que está em jogo não é tanto a pobreza,mas processos complexos que transcendemas fronteiras das classes sociais,como demonstram a incidência dos castigoscorporais ou do abuso sexual, por exemplo.No Brasil, a cultura da institucionalização decrianças e adolescentes pobres vem associadaà questão da regulamentação legal e social nagestão da infância e adolescência de camadaspopulares, processo marcado por momentosimportantes ao longo da história, nas diferentesconjunturas dos séculos XVIII, XIX e XX, bemcomo ao agravamento da questão social como advento da industrialização/urbanização, ouseja, a constituição da sociedade capitalista, queimpôs a exploração abusiva à classe operária,de onde provinham crianças e adolescentes, e aprecarização das condições de vida a que eramsubmetidos esses operários. Dessa maneira, foise estabelecendo e se consolidando a prática dainstitucionalização destinada a um público-alvode “exclusão social” a quem a “cultura da institucionalização”assegura sua existência.Portanto, a refundação social a partir daconvenção e do estatuto deve priorizar, comoobjeto de intervenção no campo da cultura, anecessária desinstitucionalização de criançase adolescentes, uam vez que as marcas tutelaresvêm sendo continuamente agenciadas ereavivadas no próprio ambiente de sua implementação.Também está em jogo a percepçãoadultocêntrica da infância e da dolescência,na persistente perspectiva de miragem dascrianças e dos adolescentes como cidadãosmenores, conforme se pode observar na quaseausência de sua participação, ainda hoje, naformulação das políticas públicas a eles destinadase, acima de tudo, como sujeitos ativosde um novo pacto social, desnaturalizando sua“incapacidade política” e confrontando o papelde consumistas preferenciais destinado pelomercado globalizado.


O novo direito e as condições devida da infância e da adolescênciaUm segundo eixo possível de avaliara implementação do ECA se refere a seusefeitos na materialidade da existência dascrianças e dos adolescentes brasileiros. Antecipadamente,parece razoável supor que umperíodo de dezoito anos é insuficiente para asuperação das extremas dificuldades de garantira proteção integral de aproximadamente62 milhões de crianças e adolescentes noBrasil, com a maior população infantil dasAméricas, a quinta maior dimensão territoriale uma história secular de graves desigualdadessociais, como a condição de pobreza demetade dos brasileiros entre 0 e 17 anos.Mas nesse curto intervalo temporal algumasiniciativas foram implementadas, a começarpela constituição do chamado Sistemade Garantia dos Direitos, uma das novidadesapresentadas pelo marco legal brasileiro nainterpretação da convenção. O advento do estatutoretirou da Justiça e da assistência sociala centralidade da política de atendimentoe, de certa forma, estimulou a criação deinéditos mecanismos de defesa dos direitosda infância e da adolescência, tais como osconselhos de direitos, centros de defesa, asfrentes parlamentares e a rede de jornalistasamigos da criança, entre outros.Nessa perspectiva, vale ressaltar a criação,em 12 de outubro de 1991, do Conselho Nacionaldos Direitos da Criança e do Adolescente(Conanda), órgão do Estado brasileiro, de composiçãoparitária, de caráter deliberativo e controladordas ações de promoção, de proteção edefesa de direitos da criança e do adolescente,incumbindo-se, assim, de zelar pela efetivaçãodas políticas sociais públicas destinadas àcriança e ao adolescente.Ao instituir os conselhos de direito e os tutelares,o estatuto, em uma experiência singularem comparação com outros países, estabeleceuum espaço de participação democráticae de incidência política da sociedade civil naconstrução de políticas públicas. Esse espaçoé demarcado por tensionamentos dialéticos,que se produzem na construção democrática“É preocupante a proliferação deabrigos na última década no País,inclusive por motivo de pobreza epor longa permanência”do debate plural e dinâmico frente às demandasde uma sociedade contraditória, em seuprojeto político de reconhecimento do sujeitocriança e adolescente como ator social.Por outro lado, a (re)constituição de diferentesórgãos no poder público se revelouuma tarefa imensa e ainda inconclusa. A estimativaé de que esse contingente de promoçãoe defesa dos direitos de crianças eadolescentes some, hoje, cerca de 100 milpessoas, entre conselheiros e operadores dajustiça. Outras centenas de milhares de técnicosoperam nas políticas sociais básicas, sejana gestão pública direta, seja em parceria.Entretanto, a previsão de varas especializadasno eca, por exemplo, não foi suficientepara garantir a sua criação, pois elas existemem apenas 1/3 das comarcas dos municípiosde grande porte, num total de 92 unidades,com evidentes prejuízos para a garantia doacesso à justiça da população infanto-juvenil.Também na maioria das capitais brasileirasinexistem defensorias públicas voltadas paraesse segmento, o que cerceia o direito à defesatécnica, em especial nos setores maispobres. Alguns autores apontam certa relaçãoentre condições materiais da infância econdições jurídicas. Países em que onde ascrianças apresentam condições de vida precárias,são observadas condições jurídicassemelhantes, demandando un proceso brutalde exigencias de naturaleza casi milagrosas ala nueva ley, segundo Méndez (1999).Já os conselhos de direitos e os tutelarescontam com aproximadamente 77 mil conselheiros.São 5.104 conselhos municipais dosdireitos da criança e do adolescente, cobrindo92% dos municípios e 5.004 conselhostutelares em 88% das cidades brasileiras,muito embora a maioria deles funcione deforma muito precária, como aponta a PesquisaBons Conselhos, realizada pela SEDH/Conanda em 2006.Cabe lembrar que a organização de conselhosde direitos com caráter deliberativo eparitário e de conselhos tutelares eleitos pelaprópria comunidade, bem como a realizaçãode conferências bienais, são experiênciasainda inéditas no cenário internacional e referênciapara as Nações Unidas. Até hoje, aproposição de um conselho paritário e deliberativopode ser considerada muito ousada,ainda mais se considerarmos o seu papelde formulador das políticas públicas e nãoapenas deliberador, como se observa entreoutros conselhos setoriais. Da mesma forma,os conselhos tutelares, propostos comoindependentes de qualquer poder constituídoe eleitos de forma direta pelas própriascomunidades são, por definição, ouvidoriascomunitárias. Entretanto, o próprio comitêde acompanhamento da implementação daconvenção ainda não assimilou o alcancedessa proposição e, assim, sistematicamenteaponta ao Brasil a necessidade de incluira figura do ombudsman em seu Sistema deGarantia dos Direitos, uma medida ainda aser devidamente analisada, considerando adimensão continental do país e a sua condiçãofederada.Quanto aos indicadores, observam-sevários avanços, a começar pelos dados relativosao direito à vida. Uma criança brasileira,do sexo masculino, nascida em 1990, tinha a43Revista Direitos Humanos


artigoMaioridade para os direitos humanos da criança e do adolescente44Revista Direitos Humanosexpectativa de vida projetada para 62,3 anos,enquanto os bebês nascidos em 2006 tiveram6,2 anos acrescidos a essa média. No caso dasmulheres, a expectativa aumentou em 7 anos,evoluindo de 69,1 para 76,1 anos. A taxa demortalidade de crianças menores de um anoteve um decréscimo de 44,9% nesse intervalode tempo, diminuindo de 46,9 para 24,9 mortesem cada 1.000 crianças nascidas. Tambémhouve redução na taxa de mortalidade abaixodos 5 anos de idade – de 59,6 para 29,9 – oque possibilitou ao País melhorar sua posiçãono ranking mundial, saindo da 86ª para a 113ªposição, em decorrência de ações básicas desaúde saneamento e Segurança alimentar.Os bons resultados dos programas detransferência de renda dirigidos a gruposvulneráveis permitiram que o País chegasseaos índices mais baixos de pobreza e extremapobreza desde 1987, com a menor desigualdadede renda dos últimos 25 anos. Atualmente,4,7 milhões de crianças até seis anossão beneficiadas pelo Bolsa Família, o quecorresponde a mais da metade das criançaspobres nesta faixa etária.Muito embora se observe uma melhoriade indicadores de desenvolvimento humano,como a redução da pobreza, alguns autoresapontam os riscos de transformar os cidadãosem clientes. Por isso, preconizam umainversão massiva em educação, o que equivaleao desafio, em uma sociedade da informação,de universalizar o acesso, mas comqualidade, como aponta o Plano de Desenvolvimentoda Educação, lançado pelo MECno ano passado.Os avanços na educação ainda são tímidos,mas com melhor acesso à educaçãoinfantil entre 4 e 6 anos, atingindo 76% dototal das crianças, bem como ao ensino fundamental,que evoluiu de 79% em 1990 para98% em 2006. Destaca-se que, no caso daeducação infantil, o ECA é a primeira lei federalque assegura direito à creche. Entretanto,muito ainda precisa ser efetivado, uma vezque que somente 15% das crianças até 3 anosestão matriculadas e a maioria das violações“O ECA acrescentou novosconteúdos ao conjunto de direitosda criança e do adolescente”dos direitos nessa faixa etária acontece pelaausência de melhor acompanhamento.Por outro lado, o Índice de DesenvolvimentoInfantil (IDI), calculado pelo Fundo dasNações Unidas para a Infância (Unicef), mostraque em 2006 nenhum estado brasileiroapresentou um índice baixo, ou seja, menosde 0,500, muito embora persistam as iniquidadesregionais no interior de cada estadoe também as desigualdades étnico-raciais,como no caso da maior vulnerabilidade dascrianças e dos adolescentes indígenas e afrodescendentes.Na área de proteção a crianças e adolescentesvítimas da violência, novos instrumentosforam formulados em sintoniacom o estatuto. O velho modelo Febem vemsendo gradualmente reordenado a partir doSistema Nacional de Atendimento Socioeducativo(Sinase) e do Plano Nacional doDireito à Convivência Familiar e Comunitária,destacando-se a recente iniciativa do governofederal no lançamento da Agenda Criança eAdolescente, com ações de 14 ministérios eorçamento em torno de R$ 3 bilhões.No trabalho infantil, o Brasil chegou a atingirem 1992 o seu mais alto nível histórico, com9,6 milhões de crianças e adolescentes trabalhadores,ou seja, 22% do total nessa faixaetária. Decorridos 14 anos, foram retirados dotrabalho infantil cerca de 5 milhões. Em 2005,18,7% das crianças com idades entre 5 e 17anos trabalhavam, tendo esse número sido reduzido,em 2006, para para 11,1%, e em 2007caído para 10,8%. Contudo, a queda é desigualpara pobres, negras e moradoras das zonasrurais do País, demandando maior ênfase naspolíticas de combate às inequidades de gênero,etnia e setor produtivo, com destaque para aagricultura e trabalho doméstico.Também no enfrentamento da violênciasexual, a experiência brasileira vem sendoreconhecida, como demonstra o fato de oBrasil ter sido escolhido para sediar nesteano o maior congresso mundial na área. Umadas inovações foi a abordagem intersetorial.Desde a década de 1990, o governo federalvem desenvolvendo iniciativas específicas, aexemplo do Programa Sentinela, atualmentedesignado Serviço de Enfrentamento à Violência,Abuso e Exploração Sexual ContraCrianças e Adolescentes. Atualmente estãoem curso mais de 30 ações envolvendo diretamente10 ministérios, que compõem aprimeira comissão intersetorial, da qual participamainda representantes do Conanda, dasociedade civil organizada e dos organismosinternacionais. Semelhante experiência intersetorialé desenvolvida com o Sinase e como Plano Nacional do Direito à ConvivênciaFamiliar e Comunitária.Os novos cenários e desafiosConclui-se, portanto, que três doutrinasinspiraram o Estado e a sociedade em sua relaçãoe forma de tratar a criança e o adolescente:a Doutrina do Direito Penal do Menor; a Doutrinada Situação Irregular e a Doutrina da ProteçãoIntegral. Cada uma delas trouxe uma formaprópria de concepção de criança e de adolescente,demarcando o processo social percorridoao longo da história. Nesse percurso, um dosaspectos fundamentais foi a passagem da populaçãoinfanto-juvenil da condição de objeto e“menor” (objeto e vítima) para a condição decriança/adolescente (sujeito de direitos).Nesse processo, o ECA acrescentounovos conteúdos ao conjunto de direitosda criança e do adolescente, contemplandopontos como: políticas sociais básicas; políticasde assistência; proteção especial egarantia e defesa de direitos. Isso reafirma o


ECA como uma lei revolucionária no campodos direitos coletivos, sociais, econômicos eculturais, visando à superação do assistencialismoe do clientelismo. Constituiu-se emum dos instrumentos que vem contribuindopara o desenfoque da criança-problema, possibilitandoa ampliação da concepção quealcançou todas as crianças e adolescentesenquanto oportunidade e não-risco.Por último, cabe uma análise prospectiva.O processo de globalização modificounão apenas o compromisso entre o Estado eo mercado, como deslocou alguns temas daagenda de direitos humanos. A categoria infância,por exemplo, tem sido marcadamenteinfluenciada pelo contexto contemporâneo. Ofenômeno da adolescência, colocada comoideal social nos anos 2000 (CALLIGARIS,2000) influenciou o encurtamento da infância,uma vez que crianças orbitam em tornode uma estética juvenil e se alimentam dosapelos midiáticos para uma erotização precoce.O consumismo exacerbado, por suavez, seduz os adolescentes ao acesso a bense signos, intangíveis para a maioria dos brasileiros,restando a frustração e a desqualificaçãodiante daqueles mais privilegiados,reforçando o apartheid social, que favorecea distinção entre “nós” e “eles” e sedimentaestratégias excludentes da “cidade para alguns”(OLIVEIRA et al., 2006).Em tal contexto, identifica-se um conjuntode desafios de aprimoramento do ECA eda implementação das políticas públicas depromoção dos direitos humanos de criançase adolescentes:- o enfrentamento dos novos cenáriosde violência contra crianças e adolescentes,como a drogadição e o envolvimento com onarcotráfico, a exploração sexual no turismo,a pornografia infanto-juvenil na internet, ascrescentes taxas de mortalidade por violênciaentre crianças e adolescentes, sobressaindoseos homicídios e acidentes;- a constituição de estratégias diferenciadasdiante da reiterada violação dos direitoshumanos de crianças e adolescentesno ambiente doméstico, como demonstramos recentes casos de violência veiculados namídia nacional, mas que ocupam o primeirolugar no ranking das denúncias dos conselhostutelares e do Disque 100 em mais de60% dos casos;- a urgente universalização e integraçãode sistemas de informação, em especial paranotificação de casos de violência, sistemasocioeducativo, rede de conselhos tutelarese de abrigamento;- a necessidade de maiores investimentosem sistemas locais de promoção dos direitosda criança e do adolescente, em especial pelacondição federativa do Brasil e pela maior capilaridadedas políticas públicas nos territórios;- o fortalecimento de instâncias estaduaise municipais de articulação das políticas dedireitos da criança e do adolescente, a exemplodo papel exercido pela SPDCA e Conandaem nível federal;- a mobilização e o apoio aos espaços democráticosde articulação da sociedade civil naconstituição de redes de proteção destinadasà repactuação em favor da população infantojuvenil,em especial na busca de novos atoresestratégicos, universidades, empresários, associaçõescomunitárias e de famílias, associaçõesprofissionais, sindicatos de trabalhadores e demaismovimentos sociais;- consolidação de estratégias de cooperaçãointernacional, como no âmbito doMercosul, com o GT Iniciativa NiñoSur, e doInstituto Interamericano da Organização dosEstados Americanos (OEA).E, principalmente, torna-se urgente a formulaçãode uma Política Nacional dos Direitosda Criança e do Adolescente, em favor de umSistema de Proteção Integral, a fim de não superespecializare fragmentar as políticas, mastambém para romper, com maior radicalidade,a ideia menorista de um desenho voltado paraa infância e a adolescência pobres. Aliada aisso, é fundamental definir uma agenda delongo prazo, a exemplo de um plano decenal,rompendo com o imediatismo e a perspectivade gestão de um mandato governamental, emfavor de uma estratégia de Estado.“É fundamentaldefinir umaagenda delongo prazo,a exemplo doPlano Decenal,rompendo como imediatismo”ReferênciasBAUMAN, Zigmunt. Medo Líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2008.CALLIGARIS, Contardo. Adolescência. São Paulo: Publifolha, 2000.BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente,e dá outras providências. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil], Brasília,DF, 27 set. 1990.FERRAJOLI, Luigi. Prefácio. In: MÉNDEZ, Emilio Garcia; BELOFF, Mary. Infância, Ley y Democraciaem América Latina. Buenos Aires: Editorial Temis, 1999.MÉNDEZ, Emilio Garcia. Infância, Ley y Democracia: uma cuestión de justicia. In: MÉNDEZ,Emilio Garcia; BELOFF, Mary. Infância, Ley y Democracia em América Latina. Buenos Aires:Editorial Temis, 1999.OLIVEIRA, Carmen S. de et al. Criminalidade juvenil e estratégias de (des)confinamento nacidade. Revista Katálysis. Florianópolis: Editora da UFSC, v. 9, n.1, janeiro/junho 2006.45Revista Direitos Humanos


artigoA verdade, onde estiverA verdade,onde estiverBaltasar Garzón é juiz de Instrução na Audiencia Nacional, tribunal penal de máximainstância na Espanha. Sua trajetória na magistratura tem sido caracterizada pela afirmação dosdireitos humanos em casos envolvendo genocídio, corrupção, narcotráfico e terrorismo, entreoutros. Ganhou especial projeção, em 1998, quando emitiu ordem de detenção dirigida aoex-presidente chileno, general Augusto Pinochet.Recentemente, o magistrado conduziu procedimento investigatório a respeito de 114 milpessoas desaparecidas durante a Guerra Civil Espanhola e dos doze primeiros anos doregime franquista. Como resultado de seu trabalho, apresentou em 18 de novembro de 2008,extenso relatório no qual identificou 20 fossas coletivas onde foram enterrados opositores doregime, nomeou um corpo de peritos para realizar as atividades de exumação e identificaçãodos corpos e determinou que as investigações que dirigia passassem a ser conduzidaspelo Governo espanhol e pelas autoridades provinciais dos locais onde as covas coletivasforam encontradas. A decisão judicial, embora também tenha determinado a extinção daresponsabilidade penal de Franco e de outros oficiais de Estado ligados ao regime derepressão, em razão do falecimento dessas autoridades, recebeu o apoio público de figurascomo José Saramago e Ernesto Sábato, que a reconheceram como verdadeiro libelo pelainvestigação de crimes contra a humanidade e pela efetivação dos direitos humanos, emespecial do direito à memória e à verdade.46Revista Direitos HumanosO Juiz Baltasar Garzón visitou o Brasil a convite da Secretaria Especial dos Direitos Humanosda Presidência da República (SEDH/PR) na segunda quinzena de agosto de 2008. No breveperíodo em que esteve no país, realizou duas palestras sobre o tema do direito humano àmemória e à verdade. A primeira delas, promovida pela SEDH/PR, a <strong>revista</strong> Carta Capital ea UNESP, no hotel Renaissance, em São Paulo, e a segunda, no auditório da Faculdade deDireito da Universidade de Brasília (UnB). Este ensaio foi transcrito a partir da palestra Direitoà Memória e à Verdade, proferida pelo sr. Garzón na tarde do dia 18 de agosto de 2008 nacapital paulista.


Todos os que aqui estamos temos umavocação universalista para a justiça,a responsabilidade, a verdade, a me-mei contato com ele numa data concreta – 28de março de 1996. Nesse dia, decidi admitiro trâmite, como juiz central de instrução, deOutra coisa é o debate político que se produzsobre essas normas, mas que deve produzirseantes de sua criação, de modo que quandomória, a luta contra a impunidade e contra auma iniciativa por crimes de genocídio, terro-as normas finalmente emergem num texto le-repressão. Mas haverá muitos que amanhãrismo e tortura contra as Juntas Militares ar-gal, presume-se que houve, já, a ocorrência– se é que a eles chegarão as notícias maisgentinas, aforada pelas vítimas da repressãoprévia de um debate reflexivo. Assim deveriaatuais sobre o evento de hoje – se pergun-durante os anos indicados no processo.ser em democracias.tarão: “Quem é que vem falar de algo que jáNaquele momento a iniciativa teve reper-Todavia, não devemos esquecer que nemestá superado? De algo que não é moderno?cussão, mas não em demasia. Na imprensa,tudo está permitido nos sistemas democráti-Quem é que vem falar disso?”inclusive, dizia-se que o que se fazia era “umcos. Há um limite. São inaceitáveis as inter-Isso foi o que sucedeu na Espanha, cujobrinde ao sol”. No uso espanhol, a expressãopretações que rompem com o Direito Interna-processo de transição democrática, um pro-indica algo importante, mas que não servecional dos Direitos Humanos, com o Direitocesso chamado modelo em muitas partes dopara nada, que é uma perda de tempo, algoInternacional Humanitário, com o Direito Pe-mundo, avocou um esquecimento que aindaposto em marcha por uma pessoa louca. Enal Internacional – as normas que constituemperdura. O esquecimento da justiça.diz-se assim porque, se é certo que existema espinha dorsal do Direito Internacional – eO afã da modernidade, de entrar na Europa,as normas que aí estão para ser cumpridas,admitem, como válidos, como eficazes, comoa ideia de que seria mais progressista olhar nahá dois tipos de juristas: os que acreditamlegais e como legítimos, sistemas como o dedireção do futuro, em vez de fazê-lo na direçãonessas normas e as aplicam, interpretando-Guantánamo, por exemplo.do passado, levou a uma transição que, no planoas num ou noutro sentido, e outros, que as-Se no dia de hoje há pessoas defendendopolítico, foi modelar e, no social, nos deu a en-sumem que as normas existem, que estãoa legitimidade e a própria ideia de legalidadetrada para o clube dos países democráticos, masem um livro, mas que esse livro se coloca nade um sistema de violação sistemática dosque deixou pendente uma conta com a justiça. Abiblioteca e não há nada mais a fazer.direitos fundamentais por meio de práticasjustiça não esteve à altura das circunstâncias.A essa segunda categoria normalmentecomo a tortura, o tratamento desumano e de-Minha aproximação desses temas nãopertencem às normas do Direito Internacio-gradante, a verdade é que vamos buscá-la,foi uma aproximação científica. Como juiz,nal, sobre as quais se debate em todo lugar.onde estiver.até 1996, meu conhecimento das consequ-Os governantes apelam à defesa dos direitosO que conseguimos no século XX, oências das ditaduras do Chile, da Argentina,humanos, ao compromisso de luta contra aséculo mais violento de toda a história dado Brasil, do Paraguai, do Uruguai, etc., eraimpunidade, mas quando se trata de aplicarhumanidade, foi uma consciência universaluma aproximação de intelectual interessado,essa doutrina em carne própria, se esquecemdos direitos humanos. É verdade que pade-de estudante rebelde dos últimos anos dade tudo que deveria ser lembrado. A lei estácemos, no século XX, particularmente na suaditadura franquista.lá, mas não se aventure ninguém a aplicá-la,última porção, muito depois do Holocausto eNaquela época, decidimos manter umaporque imediatamente se alega que isso con-da Segunda Guerra Mundial, em datas maisindignação ativa diante de um sistema que jáfiguraria uma intromissão, uma ingerência norecentes, no coração da Europa ou na Áfricaera anacrônico em todos os sentidos, e queprincípio da soberania e do territorialidade deou na América Latina – me refiro mais espe-nunca deveria ter existido. Os acontecimentosoutro país.cificamente aos casos da ex-Iugoslávia ou deque naquela época se produziram com o gol-“Como aplicar o princípio da justiça uni-Ruanda –, padecemos de cenas que rompempe de Estado do Chile, ou das Juntas Milita-versal quando se trata das relações econô-com o sentido mais elementar de defesa dosres argentinas, com a repressão feroz contra omicas de um país com outro? Como aplicarDireitos Humanos e de consciência universalpovo maia, na Guatemala, e em outros casos,era notícia não demasiadamente frequente etampouco de interesse. Em meu país havia“outras coisas” mais urgentes a atender.Minha aproximação com este tema foiconsequência da minha atividade judicial. To-essas normas, se tais relações econômicaspodem ver-se deterioradas?” Com essasperguntas, distorce-se o debate, levando-o auma esfera que é a do debate político. Umacoisa é discutir sobre normas legais, que têminterpretação jurídica, e, neste caso, judiciais.de defesa quanto a eles. E isso na década emque conseguimos, como sabem, decidir, noestatuto do Tribunal Penal Internacional, pôrfim aos crimes contra a humanidade.Na sessão inaugural de julgamento contraos responsáveis por crimes de genocídio47Revista Direitos Humanos


artigoA verdade, onde estivere contra a humanidade do Tribunal Penallidade penal em alguns casos e foram feitasNão estava previsto, ninguém havia pre-Internacional da ex-Iugoslávia, o promotorprisões em outros. Segundo: oxalá tivésse-visto, mas o fato é que já não vivemos maisRichard Gloston disse uma coisa certa: quemos um Nelson Mandela em cada um dosem fendas compartimentadas. Estas existiamnunca imaginamos que depois da Segundapaíses que padeceram.com a repressão. Fala-se hoje muito sobre al-Guerra Mundial poderiam ocorrer fatos comoUm dos argumentos utilizados para cri-deia global. Então falemos de aldeia global eaqueles que havíamos visto outrora e queticar a ação judicial é a fragilidade do siste-falemos de globalização. Eu não gosto destanunca imaginamos não estar preparados parama democrático que sai de um sistema depalavra, mas gosto mais quando falamos delafazer frente.ditadura, com a ameaça de possível reversãosimultaneamente à universalização, pois estaSou juiz e, portanto, tenho de defender opara um novo estado de repressão. Apesarúltima me apraz. Falemos de universalizaçãolado da magistratura, o lado do que faço. pordisso, uma autêntica democracia tem de sedos direitos humanos. E falemos do concei-essa razão, vou advogar pela compatibilidadearriscar para se consolidar em direção aoto universal de vítima. Falemos também doentre as distintas formas de responder a fatosfuturo. Não é uma questão de passado, mascaráter internacional dos crimes que foramgravíssimos contra os direitos humanos, auma questão de consolidação e de prevençãocometidos e que se cometem. E falemos dacrimes produzidos durante etapas de repres-para o futuro.investigação – por que não? – desse tipo desão, de ditadura, depois desses períodos seA ideia de que vale tudo, ou de que “aquicrime, quando tais crimes afetam a comuni-haverem concluído. Essa forma de justiçanão há limite para a vontade de quem decidedade internacional.transicional que defendo compatibiliza, porviolentar os direitos básicos das pessoas” éQuando se trata de investigação de crimesum lado, a memória e a verdade – com auma doutrina gravíssima, que nos traz à me-como, por exemplo, de narcotráfico, ninguémcriação das Comissões de Verdade e Memó-mória a doutrina da Segurança do Estado, ajamais se questiona sobre sua caracterizaçãoria – e, por outro, a resposta penal.doutrina da Escola das Américas, a doutrinacomo crime internacional. Todos a festejam eHá um erro muito generalizado sobreque, desde então e até agora, alguns aindapromovem a cooperação entre os juízes, entreesse assunto. Quando se cria uma Comissãopraticam.os fiscais e entre os sistemas policiais parade Verdade, uma comissão sobre a verdadeVocês devem recordar a decisão que foique atuem pró-ativamente.histórica, se toma sempre o exemplo da Áfri-tomada na Argentina imediatamente após aPor que, quando se trata de crimes muitoca do Sul como base para que se argumentequeda das Juntas Militares. Em 1985, o pre-mais horrendos, como crimes contra a hu-favoravelmente a soluções de continuidade,sidente Raúl Afonsín aprovou, consentiu emanidade, genocídio, massacres contínuos ecomo se esta fosse a única forma de enfrentarpropugnou a aprovação das “leis de perdão”,outros, surge o sentimento nacionalista e aos fatos do passado. Inclusive – e incluo asob o argumento de que delas dependia aproteção daqueles que violentaram todos osEspanha entre esses países – aprovam-se assegurança do povo argentino. O resultadosistemas de direito?chamadas “leis de memória histórica”. Nahistórico foi bem diferente. Aqueles que, deCusta-me entender como não se vê que,Espanha, por exemplo, em 2007, tal lei nãoboa-fé, como Raúl Afonsín, interpretaram a leijustamente em decorrência da universaliza-contou com o consenso das forças políticas.como segurança e conveniência para manterção dos direitos humanos na comunidade in-O partido da oposição, o Partido Popular, seo poder e a democracia, equivocaram-se,ternacional, já não há mais espaço para a im-desvinculou da iniciativa e, deste ponto deporque as vítimas e os coletivos de direitospunidade relativamente a crimes que são, ouvista, incorreu em erro, porque os temas dehumanos não se calaram.podem ser, catalogados como crimes contramemória coletiva, de memória de um povo,Tentaram fazê-los calar durante a ditaduraa humanidade. Eles não podem ter uma res-são eles mesmos uma questão de Estado.e depois dela, mas houve o ciclone das mu-posta que se afaste do princípio da igualdadeDevem ser, portanto, assumidas por todo olheres com os lenços em suas cabeças, queperante a lei. Não é tão complicado.48Estado, já que se trata de crimes contra otinham um clamor que era muito mais alto doAlém disso, não é certo – e o digo com oRevista Direitos Humanospovo, livres de prescrição.Muitos decidem que apenas com umaComissão nos moldes da África do Sul terminaa tarefa da Justiça. Há, aí, dois erros.Primeiro: na África do Sul houve responsabi-que o de qualquer outra voz que se alçasseno horizonte. Tanto foi assim, que elas nãochegaram apenas aos organismos internacionais.Elas chegaram também à justiça deoutros países e lá aforaram suas ações.máximo respeito a quem eventualmente discordeda minha posição, mas também coma máxima contundência –, não é certo queos sistemas democráticos se quebra quandoa ação da justiça se produz. É mentira, é


exatamente o contrário, e as provas históricasestão dando razão a meu argumento. Há, emmuitos países, processos abertos e nada sucedeneles que enfraqueça a democracia.O que sucede, sim, é que se está conhecendoo que realmente aconteceu. Sucedeque quando as provas afloram, nos damosconta da imensidão do mal que se produziu.Sucede que quando há torturas sistemáticasem Abu Ghraib, no Iraque, e elas são colocadasa limpo, sobre a mesa, no princípioos responsáveis negam as evidências, masquando as provas são reveladoras, eles colocamas mãos na cabeça e se perguntam: “Oque está acontecendo aqui?”Essa consciência democrática, eu, doponto de vista de minha experiência comojuiz, venho comprovando e ainda comprovo.Em todos os países a discussão é a mesma.Por exemplo: se estamos diante de crimescontra a humanidade, ou não. Se há prescriçãopara os crimes contra a humanidade, ounão. Se é possível aprovar uma lei de anistiaque proteja os perpetradores e, se aprovadaessa lei de anistia, é possível aplicar o critérioda permanência delitiva desses crimes,reivindicando sua atualidade.Para aqueles que não são técnicos emDireito, a permanência delitiva de um crimeé uma categoria que se aplica principalmenteao caso da desaparição forçada de pessoas.Segundo essa tese, enquanto não se dê razãocerta do paradeiro da vítima por aqueles queproduziram a desaparição, ou pelas autoridadesdo Estado que a consentiram, propiciaramou não a evitaram, e posteriormente poraqueles que detêm controle dos eventuaisdados, provas, documentos, etc., e não coloquemessas informações à disposição daJustiça, o crime permanece sendo cometido.Isso eu disse, já em 1988, quando acabavade começar meu destino atual, comsete anos de profissão como juiz. Disse issotambém a Corte Interamericana de DireitosHumanos, no caso Velásquez Rodrigues,e, depois desse caso, em uma infinidadede sentenças. Foi o que disse, mais recentemente,a mesma Corte Interamericana,quando prolatou duas sentenças memoráveisa respeito das auto anistias de Fujimori – aprimeira, no caso Barrios Altos; a segunda,no caso La Cantuta, de 14 de março de 2002.Àqueles que se aproximam desses temas, euaconselho encarecidamente que as leiam.Sabem qual foi o resultado dessas sentenças?O resultado é que Fujimori está sentadono banco dos réus, está sendo julgado,e ao presidente do tribunal querem afastá-lo,porque está, nem mais nem menos, exigindoque se faça um julgamento justo. Isso nãofoi permitido noutra época, e agora o estásendo. Então que se questione, inclusive, opresidente do tribunal, mas que relembremosque esse questionamento provavelmente nãoteria sido permitido naquela época. Naquelaépoca tal presidente provavelmente teria desaparecido.Uma resposta está sendo produzida e essaresposta saiu das mãos do Sistema Interamericanode Direitos Humanos, desconhecido deFujimori, que não aceitava a competência daCorte. Mas nenhum poder é indefinido, nemmesmo o dos ditadores. E, afinal, a grandezado sistema democrático, do Estado de Direitoestá em quem responde, não com ânimode vingança, senão de justiça. E essas sãocoisas perfeitamente separáveis e distintas.A vingança é um sentimento, mas a justiçaé um valor, um valor fundamental, dos maisnucleares entre os princípios democráticos.Não sou eu quem dirá que a justiça regetudo, ou que há de reger quase tudo. Se quisermos,poderemos falar da justiça e criticála,e não faltarão razões para isso, no queconcerne à lentidão, à falta de compromisso,à falta de razão ou à falta de consciência quenós, juízes, muitas vezes podemos ter frenteperante os problemas da sociedade e a res-49Revista Direitos Humanos


artigoA verdade, onde estiverposta que devemos dar a todos e a cada umPensam alguns que a proibição conduzchet e sua família. Logo depois de haver sidodos fenômenos com caráter criminoso quenecessariamente ao resultado desejado.ordenada por mim a detenção de Pinochet enos são apresentados.Isso ocorre, atualmente, no caso das imi-o bloqueio de todos os seus bens, em 1998,Nós, juízes, não podemos selecionargrações. Pensam alguns que, estabelecen-uma comissão instituída em decorrência danossos casos. Justiça à la carte não é Justiça.do normas duríssimas contra a imigração,Lei Patriótica, nos Estados Unidos, investigouE, definitivamente, aqueles que desejam pas-podem “colocar portas no campo”. A imi-o banco Riggs, que era onde Pinochet depo-sar por cima de alguns casos, o que pedem égração vai continuar acontecendo enquantositava seu dinheiro.uma Justiça à la carte. E ninguém, ninguémnão forem solucionadas suas matrizes, suasReuniram-se os senadores. O senadorestá acima da lei. Isto que é dito há muitoscausas reais.Wilson, que liderava essa comissão, disse:séculos é, também, um princípio que está emNo caso do decreto argentino, o que ele“Bem, ocorre que lembro que há uma reso-todos os textos internacionais.enfrentou foi uma inércia judicial já iniciada,lução de um juiz espanhol bloqueando osFalava do caso Barrios Altos, mas peçoque não podia parar e que nos obrigou a inven-bens de Pinochet. Como é possível que, noque voltemos ao caso da Argentina. A iniciati-tar, ou, mais que inventar, a encontrar novasano 2000, oito milhões de dólares das contasva de derrogação das leis de Ponto Final e deformas de cooperação dentro do marco legaldo senhor Pinochet e de sua família desapa-Obediência Devida a princípio deu um passointernacional que se nos dava. E consegui-reçam? Quem autorizou essa reintegração detênue, mas o que sobreveio foi sua anulaçãomos. Juízes e promotores argentinos coopera-dinheiro?” Perguntou-se isso e rapidamentepela Corte Suprema de Justiça. Foi uma de-ram com juízes espanhóis, franceses, italianos,as autoridades chilenas começaram as inves-cisão que não impôs nenhuma fratura ao Es-etc., na investigação desses crimes.tigações contra Pinochet e contra sua famíliatado e nem à sociedade.Vejamos as voltas que a história dá. E istopor crime fiscal, porque evidentemente nãoHouve, ademais, uma grande ação histó-é o que quero que guardemos hoje – o fato dehaviam declarado nada à Fazenda Pública,rica de assinatura de um decreto com refe-que negar-se à evidência da necessidade denão haviam pago os impostos.50rência a mim, o que é uma honra. Por meiodesse decreto, qualquer cooperação da justi-justiça pode ser uma arma contra si próprio.Aquela justiça que era negada no caso Pino-Uma das consequências da investigaçãofoi o direcionamento de nove milhõesRevista Direitos Humanosça argentina para a investigação dos crimesque eu adiantava naquela época, na Espanha,foi proibida. Esse decreto foi anulado por ErnestoKirschner.chet, assim como aquela cooperação que senegou no caso da Argentina, foi que determinou,ao final, o início de investigações decrimes fiscais e desvio de bens contra Pino-de dólares para as vítimas. É que, comoconsequência dos trabalhos da comissão,uma ação contra o banco Riggs foi aforada.E, de meu lado, tive de determinar, ou


aprovar, o acordo entre vítimas e, nesseseus vínculos com os paramilitares, seu fi-acontecimentos se produziram.caso, o banco federal dos Estados Unidos,nanciamento e enriquecimento – aquilo queHá uma frase, um pensamento que a mimem nove milhões de dólares, depositandose dizem “delitos conexos”. Quando se falame chamou poderosamente a atenção e quena conta da Fundação Salvador Allende, ade delitos conexos, é difícil admitir que umdescreve bastante bem quais são os limitesquem encarreguei de distribuir o pagamentocrime contra a humanidade seja conexo comque qualquer Estado de Direito deve deter,proporcionalmente a todas as vítimas queoutro crime, que poderia ser o crime políti-diferentemente do que sucede a qualquercompareceram. Vejamos, então, as voltasco. Melhor: em todos os casos deveria serEstado que não seja de Direito, ou no qual aque dá a vida. Quem pensaria que esse re-o contrário.repressão esteja instalada.sultado seria produzido?Essas iniciativas polêmicas, que estãoEssa frase foi dita pelo general DellaDiz o capítulo primeiro do Livro-Relatóriosendo tomadas, incluem uma resposta ju-Chiesa na época do sequestro de Aldo Moro,da Comissão sobre Mortos e Desaparecidosdicial e uma resposta reparadora das víti-presidente da República italiana, em 1978.Políticos do Brasil: “Só conhecendo profun-mas. Reparadora nas esferas moral, ética,Aldo Moro havia sido sequestrado pelasdamente os porões e as atrocidades daqueleeconômica, no direito à verdade – comBrigadas Vermelhas, organização terroris-lamentável período de nossa vida republicanaaudiências públicas, com confissão da ver-ta italiana, e o general Della Chiesa era oo país saberá construir instrumentos eficazesdade dos fatos cometidos – e uma respostaresponsável máximo da seção anti terroristapara garantir que semelhantes violações dospenal, escassa por certo, que, de acordonaquele momento. Posteriormente estevedireitos humanos não se repitam nunca mais”.com o princípio da proporcionalidade daem Palermo, Sicília, onde, em 1982, foiEstou absolutamente de acordo. Pelo papelpena, vem sendo muito questionada, jáassassinado pela Máfia. Esse mesmo assas-de juiz histórico que se desvela, se postulaque o limite de pena que tal norma estabe-sinato foi investigado por Giovanni Falcone,e se reafirma nesse relatório, não é apenas olece é de apenas oito anos. Mas inclui umadepois, mas isto é outra história.máximo aquilo a que se pode aspirar.complexa realidade de penas alternativasA história de 1978 foi que, quando de-O máximo a que se pode aspirar emque, com a participação das vítimas, estátido um dos presumidos sequestradores dequalquer sistema democrático, partindo eganhando cada vez mais espaço.Aldo Moro, alguém sugeriu ao general Dellaafirmando sua consistência, é que a ação daVê-se, nesta seara, o enfrentamento queChiesa que seria permitido torturá-lo, que eleJustiça não tem por que ser uma justiça dese faz entre a Corte Suprema da Colômbiapodia pressioná-lo e dessa maneira obter in-máximos, mas apenas de si mesma. Comoe o presidente Uribe. Um presidente comformações e salvar Aldo Moro. A resposta dono aforismo latino, dura lex, sed lex, a lei éuma popularidade de aproximadamentegeneral Della Chiesa foi: “A Itália não podedura mas é a lei, essa lei deve ser interpreta-90%, e que é digno de muita admiração epermitir a prática da tortura”.da e nós, juízes, temos a obrigação de fazê-respeito, em muitos casos está fazendo umEsta reflexão indica quais são os limi-lo. Há possibilidade de resposta por meio daenfrentamento com a Corte Penal Suprema,tes, quais são as fronteiras inquebrantáveis.via judicial. Há respostas que estão sendouma confrontação que tem atingido limitesAdemais, o que traduzem, o que transmitemdadas em outros países, e que estão sendomuito perigosos.é o que deve ser a resposta das instituiçõescriticadas e são polêmicas, mas que estãoMas uma resposta está sendo produzida.e, principalmente, ainda que não apenas, dosendo abordadas.Portanto, cada um, em seu próprio âmbito,Poder Judiciário e do Ministério Público, paraPor exemplo, a Lei de Justiça e Paz, natem possibilidade de dar essa resposta, sem-encabeçar essa ação regeneradora e de pro-Colômbia, que possibilitou a desmobilizaçãopre tendo em mente aquilo que eu dizia noteção real às vítimas, que o merecem.de 36 mil paramilitares e de 19 mil guer-princípio, ou seja, a constatação de que nãoO problema com as vítimas não é só o derilheiros das Farc. É verdade que gerou po-vivemos sós, em apenas um país. Vivemosterem-nas matado, torturado, ou de as teremlêmicas importantes, e está gerando porque,como consequência dela, uns 60 legisladoresda atual Câmara de Representantes e deoutras esferas municipais e governamentaisda Colômbia estão sendo investigados pelaCorte Suprema. E estão sendo investigadosem todos os países e as vítimas não são sóbrasileiras, espanholas, argentinas, francesasou iraquianas, mas são vítimas universais, e,portanto, tanto a comunidade internacionaltem direito de exigir que a justiça se cumpra,quanto o tem o cidadão do lugar onde essesfeito desaparecer, mas é também a segundatortura aplicada a elas, a denegação da Justiça,e a terceira, fazê-las responsáveis porqualquer mal que possa acontecer a um Estado,quando esse Estado se declara incapazde protegê-las.51Revista Direitos Humanos


Salete Hallackent<strong>revista</strong>52Revista Direitos HumanosAugusto BoalMOVIMENTO HUMANOS DIREITOS – Esta ent<strong>revista</strong>é uma alegria enorme para o MovimentoHumanos Direitos. Vamos começar coma questão da tortura. Quanto tempo você ficoupreso? Sabia do que estava sendo acusado?AUGUSTO BOAL – Fiquei quase quatro mesespreso. Um mês eu fiquei isolado em uma cela desegurança máxima, que tinha dois portões grandes,dada a minha “extrema periculosidade”…Olhem só a minha cara. Eu não sabia do que estavasendo acusado, mas desconfiava. A gente iafazendo algumas coisas importantes, mas nuncaelas eram aprovadas pela ditadura.MHuD – E a discussão atual sobre os crimesde tortura, sobre anistia dos torturadores?BOAL – Eu estou preocupado. As pessoas usam aspalavras e todas as palavras são apenas meios detransporte. Você tem de explicar o que está dentrode cada palavra, qual a carga que cada palavra levadentro de si. A palavra pode transportar o contráriodaquilo que está no dicionário. Você diz comuma intenção e a pessoa entende o contrário. Agente tem de ter todo o cuidado quando fala, especialmentea jornalistas e a juízes. Está se falandomuito se a tortura prescreve ou não prescreve. ADeclaração Universal dos Direitos do Homem diz


O Movimento Humanos Direitos (MHuD),que entrevistou Augusto Boal para estaprimeira edição, é um coletivo da sociedadecivil, formado por 43 associados, que realizae executa projetos e programas de proteção edefesa dos direitos humanos. Composto pormilitantes de diferentes áreas profissionais– atores, produtores, fotógrafos, professorese outros –, o MHuD tem como propósitofortalecer o espírito de cidadania nasociedade brasileira, agindo em cooperaçãocom outras organizações, promovendo eincentivando o debate público e a reflexãosobre o tema dos direitos fundamentais. Paragarantir foco e maior efetividade, as açõesdesenvolvidas pelo movimento concentramseem quatro eixos prioritários: a erradicaçãotanto do trabalho escravo quanto do trabalhoinfantil, a demarcação das terras indígenas edos territórios quilombolas e a promoção dosócioambientalismo no país.Em 1971, Augusto Boal, criador do Teatro do Oprimido, foi preso, torturado e exiliado.Morou na Argentina de 1971-1976, onde dirigiu o grupo El Machete de Buenos Aires emontou as peças O Grande Acordo Internacional do Tio Patinhas, Torquemada (sobre a torturano Brasil) e Revolução na América do Sul, de sua autoria. Foi nesse período que iniciouintensas viagens pela América Latina, onde começou a desenvolver novas técnicas do Teatrodo Oprimido: Teatro-Imagem, Teatro-Invisível e Teatro-Fórum.Em 1976 mudou-se para Lisboa, onde dirige o grupo A Barraca. Dois anos depois éconvidado para lecionar na Université de la Sorbonne-Nouvelle. Em Paris, cria o Centre duThéatre de l´Opprimé-Augusto Boal, em 1979.Trabalhou em diversos países europeus e desenvolveu a técnica introspectiva do Teatrodo Oprimido: o Arco-Íris do Desejo. Antes de regressar definitivamente ao Brasil, montou noRio de Janeiro O Corsário do Rei (de sua autoria, letras de Chico Buarque, música de EduLobo) e Fedra de Racine. A convite do então secretário de Educação do Estado do Rio deJaneiro, professor Darcy Ribeiro, Boal voltou ao Brasil em 1986 para dirigir a Fábrica de TeatroPopular. O objetivo era tornar a linguagem teatral acessível a todos, como estímulo ao diálogoe à transformação da realidade social. Ainda em 1986, criou, com artistas populares, o Centrode Teatro do Oprimido (CTO-Rio), para difundir o Teatro do Oprimido no Brasil.No CTO-Rio, desenvolveu projetos com ONGs, sindicatos, universidades e prefeituras.Em 1992, candidatou-se e foi eleito vereador da cidade do Rio de Janeiro pelo PT, para fazerTeatro-Fórum e, a partir da intervenção dos espectadores, criar projetos de lei: é o Teatrolegislativo.A partir de 1996, fora da Câmara dos Vereadores, Boal e o CTO-Rio seguiram naconsolidação do Teatro Legislativo. Em 1998, conseguiram o apoio da Fundação Ford, paraa criação de grupos comunitários de Teatro do Oprimido. Boal também realizou diversasSessões Solenes Simbólicas, de Teatro Legislativo, no exterior.Em 1999, transformou a ópera Carmem, de Bizet, em Sambópera, uma experiênciainovadora que traduziu as músicas originais para ritmos genuinamente brasileiros.Sua mais recente pesquisa é a Estética do Oprimido, programa de formação estética queintegra experiências com som, palavra e imagem.A Estética do Oprimido tem por fundamento a certeza de que somos todos melhores doque pensamos ser e capazes de fazer mais do que aquilo que efetivamente realizamos: todoser humano é expansivo.A principal criação de Augusto Boal, o Teatro do Oprimido, é hoje uma realidade mundial,sendo a metodologia teatral mais conhecida e praticada nos cinco continentes.Nessa conversa com Bruno Cattoni, Dira Paes, Generosa de Oliveira, Ricardo Rezendee Salete Hallack, do Movimento Humanos Direitos (MhuD), ele fala sobre tortura, direitoshumanos, segurança pública e sobre teatro, claro.assim: “Ninguém será submetido a tortura, nema tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”.Então, é proibido pela Declaração Universaldos Direitos Humanos torturar. O Brasil ésignatário, então, logicamente, não pode torturar.Mas ouvi alguém importante dizer que tem de veros dois lados. Diz a declaração: “Considerandoessencial que os direitos humanos sejam protegidospelo Estado de direito, etc.”. A ditadura nãoera um Estado de Direito. A semântica é um campode batalha onde cada um quer se apropriar do significadodas palavras. Por exemplo, democracia.Os atenienses inventaram essa palavra quandoeles eram um país escravocrata, quando as mulheresnão votavam, os estrangeiros eram escravosou metecos e também não votavam. Era uma democraciarestrita.MHuD – Era uma democracia direta de umapopulação muito pequena.BOAL – Pinochet disse uma vez que eles eram umpaís democrático, porque as decisões eram tomadasem conjunto. Conjunto de quem? Dos três chefes dasForças Armadas. Tem uma coisa bonita na Declaraçãoque diz assim: “...para que o homem não sejacompelido, como último recurso, à rebelião contra atirania e a opressão”. Nossa rebeldia e nossa rebeliãoeram legítimas. O Brasil democrático assinou adeclaração que a ditadura, depois, negou. Quem era,então, subversivo? As Forças Armadas, é lógico. Foramelas que subverteram o Estado de Direito, legal,que existia até 1964. Eram subversivos e chamavamos legalistas de subversivos. Agora algumas pessoasandam dizendo: eles foram terroristas! Mas quem foique instaurou o terror? Foi a ditadura!O terror do Estado foi instaurado por um grupode civis e militares – a gente não pode esquecerque muitos civis estavam no poder e alguns continuam,ainda. Então, esse argumento de que os53Revista Direitos Humanos


ent<strong>revista</strong>Augusto Boal54Revista Direitos Humanosdois lados eram iguais não é verdadeiro. Vivíamosem um país democrático e eles subverteram esseregime e impuseram um regime que não era deDireito, era regime de força. E depois nos chamaramde subversivos. Impuseram o terror e noschamaram de terroristas. Quem se rebelou contraa ditadura estava amparado no texto de validadeuniversal, assinado por quase 200 países.No meu próximo livro, A Estética do Oprimido,eu transcrevo a Declaração Universal dosDireitos Humanos inteirinha – é uma coisa linda.Se o mundo fosse realmente guiado por ela, seriaum mundo maravilhoso, porque ela dá todas asgarantias para o indivíduo se desenvolver comoser humano.MHuD – Você é a favor da punição do torturador,da abertura dos arquivos?BOAL – “O sertanejo é antes de tudo um forte”,escreveu Euclides da Cunha. Parafraseando, eudiria: “O torturador é antes de tudo um covarde”.Porque ele não tortura em igualdade de condições,ele não combate. Ele tortura uma pessoa que jáestá vencida, que não tem mais defesa, e nuncatortura sozinho. Eu mesmo fui torturado por seisou sete homens armados. Puni-lo é uma necessidadetambém das Forças Armadas, que devemexpurgar covardes do seu meio. A gente quer umExército de gente corajosa. Aeronáutica, Marinhacom gente de coragem. Se existem covardes nomeio deles, devem ser excluídos e julgados. Sempredentro da lei do Estado brasileiro. Não existenenhuma lei no Brasil que autorize a tortura. Então,é evidente que a primeira coisa a fazer é limpar asForças Armadas de covardes, de torturadores. Seexiste um crime, tem de haver punição. Se vocênão pune o crime, as pessoas saem dizendo quese devia não só torturar, mas matar, como aqueleBolsonaro. Temos de saber quem foi torturador. Ese houve algum guerrilheiro que torturou, eu tambémacho covardia. A tortura é covardia.MHuD – Mas você acha que o crime é prescritível?BOAL – Em lugar nenhum se diz que esse crimeé prescritível.MHuD – Agora, para saber quem é o torturadortem de abrir os arquivos.BOAL – É, tem de ter as provas. Podem ser testemunhaisou documentais.MHuD – Agora, não querem dizer onde estão osarquivos. Dizem até que não existem arquivos.BOAL – Talvez não tenham as provas documentais,mas existem as testemunhais e elas também sãoválidas. As pessoas que foram torturadas e as pessoasque assistiram.MHuD – Mas você acha que de fato não existemarquivos?BOAL – Eles devem ter escondido, não é? Issosim. E devem ter queimado. Parece que já queimaramalguns, uma parte. Eles têm tanta vergonha!Além de covardes estão envergonhados do quefizeram. Medalhas ostentam-se no peito, arquivosse escondem. Se a gente pensar tendo as ideiasclaras, quem for contra a punição de crimes estásendo a favor do crime continuado. Se você nãopune, você é a favor do crime continuado. É o queestá acontecendo. Não com presos políticos, maspresos comuns estão sendo torturados.O meu centro trabalhou durante muito tempocom o Departamento Penitenciário Nacional, doMinistério da Justiça(Depen), em muitas prisões,e a gente via o que acontecia lá dentro.A verdade é terapêutica. Se você não fala averdade, não quer saber a verdade, dá úlcera. Émelhor não ter úlcera, é melhor dizer a verdade. Éuma terapia social, não terapia individual só, não.O fato de a discussão continuar mostra que elaestá muito viva. Na Argentina, os juízes julgaram,um por um, todos os torturadores. Na África doSul, fizeram tribunais da reconciliação: o torturadorque fosse lá e confessasse, e se dissesse queestava arrependido do que tinha feito, era absolvido.A punição qual era? Era que todo mundo ficavasabendo. O castigo era obrigar o torturador a dizera verdade, castigo moral. Todo mundo ficava sabendoque havia sido torturador.MHuD – Vamos falar sobre o tema da segurançapública neste momento no Brasil. De que formavocê vê esse tema e os direitos humanos?BOAL – Os direitos humanos incluem, é claro, odireito à educação, à saúde, à moradia digna e aotrabalho, à cultura e à arte, enfim, tudo que está nafamosa Declaração de 1948. Mas, objetivamente,sobre a segurança, quero contar um episódio, oudois. Em Presidente Prudente tem uma prisão bemperto da cidade que era como se fosse um leprosário.Ninguém queria nem chegar perto. Mesmodepois que eram soltos, os presos carregavam oestigma. O pessoal do meu centro conseguiu fazerum espetáculo de Teatro-Fórum na praça, no meioda cidade, com esses presos – com esse tipo depreso que às vezes pode sair no domingo. A platéiaera de gente livre, moradores do local, que entravaem cena tentando achar soluções para os problemasmostrados na peça e improvisava. –“Ah, se eu estivessepreso, faria tal coisa, assim, assim e tal”. Etodos improvisavam juntos, presos e cidadãos livres.Depois disso, como houve esse contato humanizador,acabou em parte, aquele ostracismo.MHuD – Mas houve a inclusão, depois, dessesex-detentos ou detentos em regime progressivo?Houve a inclusão na sociedade?BOAL – Alguns deles já tinham o privilégio de poderir para casa e voltar, não eram presos permanente.Estava na cadeia, mas podiam, vai trabalharem tal lugar, sempre sob custódia. Outros vinhamde outras cidades. Mas o que sentimos foi a quaseextinção do opróbrio. Em um outro espetáculo,um preso encenou o seu caso: estava há um anona cadeia e não tinha cometido crime nenhum. Oadvogado já tinha provado que não era ele, masele continuava preso. Quando fizeram o espetáculo,por coincidência havia uma juíza que assistiu acena na platéia e aí ela acionou o alvará de solturadele. Ele não voltou àcela nem para pegar a escovade dentes, foi direto para casa.MHuD – E toda a cidade participava bem disso?BOAL – Muita gente, a praça cheia. A gente estevetambém em outra prisão, em Campo Grande(MS), e não tinha onde fazer o espetáculo. Oúnico lugar viável era em frente a uma cela com200 presos lá dentro, grades imensas. Só tinhaaquele espaço. Tinha depedir autorização aospresos para fazer o espetáculo na frente deles. Aípensamos: “Eles vão ficar chateados, vão gritar,atrapalhar, vão ficar com raiva da gente”. O grupode teatro explicou: “É uma forma de teatro emque você apresenta um problema para imaginarsoluções; quando termina, começa a mesmapeça outra vez, e o espectador pode dizer ‘para’,entrar em cena, substituir o protagonista e improvisarsoluções”. Os presos e eles toparam. Entãofizemos o espetáculo na frente da cela. Quandoterminou a peça, começou o fórum. Entrou umespectador daqueles convidados que tinham vindoconosco, depois outro, mais outro. Daí a pouco,um preso de dentro da cela falou: “Para, eu


tenho uma ideia!”. O carcereiro não hesitou, abriua porta, o preso saiu, entrou em cena, fez a suaintervenção e voltou para a cela. E mais dois outrês presos: - “Eu também tenho uma ideia!”. Foiuma alegria para nós, porque parecia uma metáforado Teatro do Oprimido. A gente não quer queo espectador fique prisioneiro na sua cadeira.Quer que ele tenha a liberdade de invadir a cenae dizer o que pensa e se manifestar. E ali, naquelaprisão, conseguimos a liberdade de imaginar,de pensar juntos. Conseguimos estabelecer umdiálogo humano. Entraram em cena convidados,carcereiros, prisioneiros: seres humanos.MHuD – Mas, e a segurança pública?BOAL – Direitos Humanos são para todos, sem exclusão.Nas prisões, fazemos questão de trabalharcom presos e também com funcionários, que tambémtêm seus problemas, de segurança e econômicos.Mas veja uma criança que nasce em umacomunidade pobre: sua única chance de se integrartem sido a de entrar para o tráfico. Ou passarfome. Isso eu estou falando porque é prática nossa.Muitas peças que os jovens com que trabalhamosjá fizeram são sobre eles mesmos: jovens que nãotêm outra saída. Peças sobre crianças que são exploradas,sexual e economicamente. Vem alguéme fala: – “Você quer ser o aviãozinho? Você vai ganharpor semana o que um operário não ganha pormês.” Eles vão mesmo. Não têm uma escola quedê um embasamento, não têm saúde e às vezesnão têm nem família. A situação está mudando,mudando bastante, mas ainda é assim.A gente se enganava no começo quando perguntavaa um jovem: – “Você tem família?” Elerespondia: – “Tenho! A gente tem pai, tem mãe”.Mas quando a gente perguntava pela família, cadaum pensava na sua. Eu pensava no meu papai,minha mamãe, na mesa dos domingos onde todomundo se reunia com primos, tios. Para ele, famíliaera um pai que sumiu ou era bêbado, umdesempregado, a mãe que trabalhava como louca,a filha que se prostituía ou que havia engravidadomenina. Família para ele é isso.MHuD – Como é que você vê esse embate dahegemonia e do pensamento contra-hegemônicono mundo?BOAL – Acredito que só os oprimidos vão libertaros oprimidos. Não acredito que, de repente,os homens vão ser bonzinhos com as mulheres:– “A gente já sabe que sacrificou muito vocês,agora é a vez de vocês”. Não acredito que os cemhomens mais ricos do mundo da <strong>revista</strong> Forbes,de repente, vão ter um acesso de humanismo evão distribuir metade das suas fortunas para osmiseráveis desta terra. Isso não vai acontecernunca. Se você não está organizado e não faza sua organização atuar politicamente, vai continuarsempre submetido. Os bancos que estãose fundindo. Para quê? Para favorecer o clienteque vai lá e deposita seu dinheiro? Não. É paramais ainda enriquecer os próprios bancos e seusacionistas. Todas as grandes fusões que estamosvendo são para fortalecer os mais fortes. Se osmais fracos, oprimidos, não se fortalecem, nãovão se libertar nunca. Penso que pelo diálogoteatral as pessoas podem ser levadas a entendermelhor as alternativas para sua situação deopressão e a pensar com a própria cabeça.MHuD – Como é que você descobriu o teatro?BOAL – Na minha infância não tinha novela, nemtelevisão. Sou antigo. Tinham grandes romances.Por exemplo, Os três mosqueteiros, O conde deMonte Cristo. O Correio trazia todos os sábadosdois ou três capítulos, minha mãe recebia e lia,gostava muito de ler.MHuD – Em fascículos?BOAL – Fascículos. Foi encenando o Conde deMonde Cristo com meus irmãos, irmãs e primosque estreei como diretor de teatro. Eram cenascurtinhas, de dez minutos. Depois do almoço defamília, as pessoas sentavam e assistiam. Comeceiassim a gostar de teatro.MHuD – E seus colegas não tinham a mesmacondição financeira. Vocês moravam na Penha.Imagino que as crianças eram muito pobrese você era filho de um padeiro, de modoque tinha uma condição um pouco melhor.Como era isso?BOAL – Meu pai tinha duas padarias, mas tambémnão era rico.Salete Hallack55Revista Direitos Humanos


ent<strong>revista</strong>Augusto Boal56Revista Direitos HumanosMHuD – Mas havia interação?BOAL – Sim, mas eles não vinham para o teatronão. Com eles era o futebol no meio da rua emfrente: os carros, que passavam de meia em meiahora, paravam até a gente fazer um gol. Teatromesmo, era dentro da família, coisa familiar.MHuD – E sua relação com o Abdias Nascimento?BOAL – O Abdias é o meu mais velho amigo, muitoquerido e admirado. A gente se conheceu em1948. Por coincidência, foi o ano da Declaraçãodos Direitos Humanos. Esse é um dos direitos fundamentais:a amizade!MHuD – O Abdias é do Teatro do Negro, não é?BOAL – Teatro Experimental do Negro. O SolanoTrindade, aquele poeta negro, que também era excelente,era de São Paulo. Eu fazia peças e davapara o Abdias.MHuD – Mas quando você o conheceu, em1948, como foi?BOAL – Em frente à Associação Brasileira de Imprensatem um bar que se chamava Vermelhinho.Não sei se tem ainda, mas tinha. Era ponto de encontrode pessoas de teatro. Eu conheci o NelsonRodrigues lá. Sou engenheiro químico. Não pareço,mas tenho diploma e tudo, até da ColumbiaUniversity, veja só! Eu era diretor do DepartamentoCultural da Escola Nacional de Química, na PraiaVermelha (Urca). Fui procurar o Nelson para elefazer uma conferência para os alunos da Química,mas ali na sede do Serviço Nacional de Teatro, emfrente ao botequim. Lembro-me que a gente estavana porta, esperando chegar o pessoal, e vinhaum, dois, três, quatro, cinco, dez pessoas. Chegouuma hora em que o Nelson disse pra mim: “Vocênão prefere que a gente faça essa conferência alino Vermelhinho, comendo uma média com pão emanteiga?” Eu morri de vergonha. Depois o Abdiasquis montar uma peça minha com o Grande Otelo.Também fiquei muito amigo do Grande Otelo.MHuD – E você já tinha sensibilidade do social,tinha preocupação com os Direitos Humanos?Boal – Tinha ter. Porque perto de onde eu moravatinha o Curtume Carioca e a padaria servia osoperários de lá. Eu trabalhava com o meu pai napadaria e via o pessoal chegando, conversava. Amaior parte deles era de negros e mesmo os quenão eram negros, eram muito pobres. Então euescrevia sobre eles. Eu vivia no meio dos oprimidos.Não era tão oprimido como eles, mas vivia naPenha (Zona Norte do Rio de Janeiro) que era umbairro pobre. Na minha rua não tinha nem esgoto.MHuD – Você teve ligação com o Partido Comunista?BOAL – Não. Eu nunca fui de nenhum partido, anão ser quando fui vereador e entrei para o Partidodos Trabalhadores. Dentro do Teatro de Arena haviavários atores que eram do Partido Comunista.MHuD – Guarnieri (Gianfrancesco), por exemplo?BOAL – Guarnieri sempre disse que era, e eramesmo, todo mundo sabia. Guarnieri, Vianinha(Oduvaldo Vianna Filho), havia vários. Mas eununca concordei com o Partido Comunista.MHuD – Por que?BOAL – Uma das razões principais é que eu nãoacreditava muito na história de que havia duas burguesiasbrasileiras, entreguista e nacionalista. Euachava que os oprimidos não deviam entrar nessasnuances, deviam lutar pelos seus direitos queeram – e são – legítimos.MHuD – Mas certamente você era um materialistadialético, assim como eles.BOAL – Eu nunca me classifiquei assim.MHuD – Mas os existencialistas gostavam muitode você, porque o Sartre chegou a te defenderquando você foi preso.BOAL – Não é que ele gostasse, é que ele defendiaqualquer um que lutasse pelos Direitos Humanos.MHuD – Quer lembrar um pouco dessa históriacom o Sartre?BOAL – Com o Sartre o contato que eu tive foiuma vez só, em uma conferência que ele fez e agente debateu alguma coisa sobre Brecht. Eu diziauma coisa, ele dizia outra. Não me lembro o quedizíamos, mas acho que eu tinha razão...MHUD – Ele mandou uma mensagem quandovocê foi preso.BOAL – Foi um movimento que se fez, realmentemuito importante para me soltar. Ele mandou umtelegrama para o tribunal. Um dos militares queestava me julgando leu o que o Sartre tinha escritonesse telegrama. Como uma das acusações contramim era a de que eu teria levado artigos contra aditadura e entregue ao Sartre para que os publicassena sua <strong>revista</strong>, Les Temps Modernes, Sartre escreveuafirmando que não tinha sido eu o portadordaqueles artigos “contra a sangrenta ditadura queenxovalhava o Brasil”. O militar leu o telegrama notribunal e falou assim: “Tá vendo, até preso vocêestá fazendo subversão”.MHuD – E as ideias do Nelson Rodrigues e as suasideias, como conviviam pessoas tão diferentes?BOAL – A cabeçadas e bicadas, viu? Eu nuncaconcordei com o Nelson, em nada. Eu só concordavaque ele era um cara muito amigo. E eu eramuito amigo dele também.MHuD – E muito brilhante também.BOAL – Muito brilhante, inteligente, eu gostavademais dele e ele me ajudou bastante. E nós torcíamospelo mesmo time, que é o Fluminense.MHuD – Ele aceitava as suas ideias revolucionáriaspara o teatro?BOAL – De maneira nenhuma. Nem as minhas,nem as do Vianinha, nem as de ninguém. Masadmirava a gente. Ele foi sempre muito bacanacomigo, mas desastrado também.MHuD – Em que sentido?BOAL – Um mês depois que eu estava preso, jáestava na cela coletiva, com mais 15 pessoas lá,às vezes 17, ele escreveu um artigo para me defender.Só que a defesa dele dizia que eu nuncatinha me metido em política, que eu só falava deteatro, era um anjo celestial. Disse que uma vezeu e ele estávamos no velório de um amigo comume eu, em vez de falar com a viúva sobre asqualidades do morto, só falava de teatro, na frentedo caixão. Ele sempre foi amigo de verdade,mas era um reacionário que Deus me livre! Eledefendia a ditadura. Era muito impossível engoliras ideias políticas dele. A gente já nem discutiamais. É engraçado quando você tem um amigode quem você gosta demais, mas o cara pensa ooposto de você.MHuD – A estética pressupõe uma ética.BOAL – A estética sempre revela uma ética. Emteatro, mais ainda, porque quando você vê espetáculo,não é uma coisa estática. A peça mostra


o movimento de um grupo social e esse movimentovai de um lado para outro, no sentido de aumentar aopressão, ou no sentido de eliminar a opressão. O teatro,por meio da empatia, transfere as ideias da peçapara o espectador: esse é o perigo ético do teatro.MHuD – Nesse sentido é que se criou o Teatrodo Oprimido?BOAL – O Teatro do Oprimido, na verdade, foicriado sempre pela relação com a realidade. Porexemplo, a primeira forma de teatro oprimido foi láem São Paulo. Porque todas as peças que a gentefazia, a polícia proibia. Eu me lembro de um espetáculoque se chamava Feira Paulista de Opinião.Tinha peças de Guarnieri, Bráulio Pedroso, PlínioMarcos, Lauro César Muniz, Jorge Andrade e eu.Músicas de Gil, Caetano, Sérgio Ricardo, SydneyMiller, Edu Lobo, e artes plásticas de todos osjeitos de 15 ou 20 artistas. Em cena estavam aMiriam Muniz, Antonio Fagundes, Garnieri, RenatoConsorte, a Cecília Thumim, um grande númerode ótimos atores. O espetáculo era um mural emque a gente perguntava: “O que é que você acha doBrasil de hoje?”. E cada artista respondia da suamaneira, sempre com uma obra de arte.Eu me lembro que tinha uma escultura queera um túnel que se chamava Milagre Brasileiro. Apessoa entrava em uma cadeira de rodas e, no fim,a cadeira de rodas apertava um interruptor e acendiaa imagem de Nossa Senhora Aparecida. Então,a pessoa tinha de sair andando, não podia voltarpara trás. O milagre era: quem anda de cadeira derodas rezando, sai a pé. Um quadro era a bandeirabrasileira que se transformava na bandeira americana.Tinha também uma banana enorme, que erao símbolo do tropicalismo, logo na entrada. E apeça foi proibida.Depois houve uma greve geral lá em São Paulo,centenas de artistas vieram para nosso palcoe a Cacilda Becker proclamou o estado de desobediênciacivil. Foi uma coisa extraordinária. Masveio Médici. Começaram a proibir tudo, a gentenão podia fazer mais nada. Aí a gente começou ainventar o Teatro Jornal: por meio de notícias dejornal, fazíamos cenas de teatro.A Cecília Thumim, minha mulher, e HelenyGuariba (que foi depois assassinada pela ditadura)davam aulas no nosso curso de teatro, com alunosque beiravam os 18 anos, gente novinha, entreeles Celso Frateschi, Denise del Vecchio, DulceMuniz. Convidei todos no fim do curso e eles começarama trabalhar comigo em cima dessa ideia:como é que se transforma a ata de uma assembléia,uma cena da Bíblia, qualquer material escrito, alémdas notícias de um jornal, em teatro. A gente desenvolveumuitos grupos em São Paulo que faziam isso.Foi quando eu fui preso. Depois fui para Buenos Aires.Cecília é argentina, ela tinha família lá. Ficamoscinco 5 anos. Lá eu desenvolvi o Teatro Invisível, porquequeria fazer teatro na rua.MHuD – Isso em que ano?BOAL – Em 1971.MHuD – Qual é a função social desse teatroinvisível?BOAL – A função é revelar o escondido. A opressãoexiste muito mais insidiosamente quando éinvisível, não se vê. Então você revela o que nãose vê, mas existe. Na Alemanha a gente fez, pertode Frankfurt, onde muitos imigrantes não têmonde morar, uma cena no meio da praça com umaboliviana que queria ficar no país. Os transeuntesvinham e começaram a discutir o problema teatralmente.É um instrumento político. A gente nuncafaz pegadinhas, nunca obriga ninguém a entrarem cena, não humilha ninguém, nem ridiculariza.E tem um texto, a gente estuda o texto. A genterepresenta a peça, só que não diz que é peça. Ospassantes vêem aquilo e participam, têm vontadede participar e se instaura um debate político civilizado.Mas ninguém é obrigado a nada.MHuD – E a função pedagógica? Porque o MST,por exemplo, está usando o Teatro do Oprimido.BOAL – Eles trabalham com a gente há váriosanos. A função do nosso teatro é sempre essa, ade trazer à consciência das pessoas o tema escondidoque você está querendo tratar. Porque o maisdifícil é você mostrar o que todo mundo já olhou,mas não viu. Então você tem de fazer ver aquiloque apenas se olha.Agora, para ter eficácia política, você tem defazer cem vezes no mesmo dia. Aí explode. Em Parisa gente fazia uma cena sobre a violência contraas mulheres no metrô. Era um cara que começavaa bolinar uma moça, ambos atores, a moça reclamavae ninguém ajudava. Duas outras atrizesque estavam lá, quando a moça ia embora – e oprovocador atrás dela –, diziam: “Olha, esse rapazaqui como ele é bonito. Vamos lá provocar eletambém, porque é permitido bolinar as pessoas nometrô e ninguém protesta nem faz nada”. Começavama provocar o jovem ator e o rapaz se defendia.Criava-se uma confusão danada. Um dia o rapazfugiu com as moças atrás dele e ficou cercado nofundo do corredor da estação, todo mundo desceupara ver o desenlace da cena. Mas isso a gentefez, digamos, 10 vezes. Tinha de ser 100 ou 200,mil. Aí vira um fato político importante. A gente iae voltava na mesma linha de metrô, com o mesmogrupo. Mudavam os espectadores. No metrô ascenas têm de ser curtinhas porque se abrem asportas a cada dois minutos.MHuD – Você teve experiência no Brasil e internacional.O teatro tem uma linguagem universal?BOAL – No caso do Teatro do Oprimido, ele hoje émundial mesmo. Tem um site internacional, www.theatreoftheoppressed.org, e lá você vê, se nãome engano, 55 países onde se pratica o Teatro doOprimido. Nós conhecemos mais uns 20. E se vêos grupos que praticam: 150, mais ou menos. Agente sabe que tem muitos mais. Na África, nóstrabalhamos em Moçambique, Angola, Guiné Bissau,e existe anualmente o Festival do Teatro do Oprimidono Senegal, onde sempre algum de nós está lá participando.Eu fui à Índia em 2006 para a inauguraçãoda Federação Indiana de Teatro do Oprimido e tinha12 mil pessoas no desfile que eles fizeram e lotarama Wellington Square para ouvir a gente falando. Noprimeiro semestre deste ano trabalhei em oito paisesdiferentes. O TO é mundial mesmo.MHuD – Voltando aos desdobramentos do Teatrodo Oprimido, fale da sua parceria com a Cecília.BOAL – A Cecília trabalhou comigo, sobretudo emum ateliê que durou dois anos, em Paris, 1980-1982, sobre o Arco-íris do Desejo, que é a partedo Teatro do Oprimido que trata das opressões internalizadas.Não é terapia (Cecília é psicanalista),mas pode ser terapêutico. Isso foi lá em Paris, elaainda estava na faculdade lá.MHuD – Quantos anos vocês têm de casados?BOAL – 42 anos.MHuD – É importante a ideia do amor no seuteatro, ou só a política, a ética?BOAL – A política é amorosa. Ou pode ser. Deviaser. A política é uma forma de amor. Ou de ódio.O que vocês estão fazendo não é política? O Movi-57Revista Direitos Humanos


ent<strong>revista</strong>Augusto Boal58Revista Direitos Humanosmento Humanos Direitos não é política? Claro quesim, mas por quê? Por amor!MHuD – Você deve ser um homem de muita fé.Você tem religião? Acredita em Deus?BOAL – Nem desacredito.MHuD – Você é agnóstico?BOAL – É difícil explicar. Todas essas formulaçõesdas religiões dão uma explicação que é mais oumenos lógica. Eu sou amigo do Frei Betto. Quandoeu estava preso, ele já estava preso antes demim. Às vezes vinha na minha cela e conversavasobre Jesus Cristo enquanto ser humano, vivendoem determinada época. A gente conversava muitosobre religião. Eu adorava essas conversas. Não éque eu seja agnóstico, mas não tenho nenhumareligião. Alguma explicação as pessoas precisamter para compreender por que estão neste mundoe que mundo é este em que estão. As religiões fornecemmetáforas de alguma coisa desconhecida.Eu disse que a palavra é um meio de transportee digo que a palavra Deus é um imenso navio decarga. Transporta muita coisa contraditória. Temgente que diz que acredita em Deus e vai ver quemé Deus para cada um deles. São deuses projetadospor cada um.MHuD – Santo Agostinho dá a ideia de que oamor faz a ética.BOAL – Agora mesmo eu estava discutindo o queé ética e o que é moral. Na verdade, a moral são oscostumes. A escravidão já foi moral no Brasil e ninguémdiscutia. Era um direito do cidadão que comprououtro ser humano no mercado, pagou o preçoconvencionado, ter direito sobre vida e morte dessapessoa. Então era moral, ninguém se espantava comisso. É verdade que ética e moral parecem a mesmacoisa, mas quando Aristóteles define a ética, ethos,ele a define como sendo aquilo que a sociedade almejacomo perfeição. A palavra ética é uma coisa de hoje parao futuro, é o que eu desejo. Moral é aquilo que existe, aética é aquilo que se deseja fazer existir e começa a existircom esse próprio desejo. Você quer que a humanidadese humanize. Então você tem uma ética humanística,que vai contra o lado predatório, que ainda subsiste emmuito ser humano. Mas isso não tem a ver necessariamentecom a ideia de Deus.MHuD – Você é um homem além – fronteiras,você conseguiu se comunicar com várias línguas,com várias sociedades dentro do próprioBrasil. Que homem é esse que dialoga com adiferença e que consegue realizar tanto?BOAL – É a minha ética. Eu sempre digo para omeu grupo que o importante não é o tamanho dopasso, é a direção desse passo. Se você está dandoum passo na direção certa, mesmo pequeno,isso é bom. Agora, se você dá um passo imensona direção errada, quanto maior pior. Às vezes agente faz uma coisa que é muito pequena, masque está na direção certa. É bom.Na Estética do Oprimido quando a gente fazum trabalho com as crianças e pede para fazerema bandeira do Brasil, elas são levadas a fazer umquadro igual ao modelo. Depois, a gente pede parafazer a bandeira do Brasil do jeito que elas achamque devia ser, ou como elas acham que é o Brasil.Elas mudam tudo. Pintam revólver, fuzil, violência,drogas. Um menino disse: – “Eles ensinampra gente uma porção de coisas, mas a gente vêque a verdade não é essa”. Aquele menino abriuos olhos para a realidade por meio da pintura, parauma realidade que estava sendo negada. Diziam:“O amarelo é o ouro; o verde é a mata amazônica; oazul é o céu”. E ele: – “Não é nada disso, porque océu está poluído, a riqueza está na mão dos outrose estão devastando a Amazônia”. Quando o meninopensa isso, quando está pintando a bandeira,naquele momento ele deu um passo gigantescopara entender o Brasil e para entender o mundo.Já que estávamos falando de religião, a MadreTereza de Calcutá disse uma frase que eu achomuito linda: - “Tudo o que a gente faz é uma gotade água no oceano, mas se nós não fizéssemosnada, faltaria uma gota de água no oceano”.MHuD – Vamos retomar a questão do diálogocom as diferentes culturas?BOAL – Foi justamente trabalhando com comunidadesindígenas, no Peru, na Bolívia, na Colômbia,na Venezuela, e no México, que eu conversavacom as pessoas e me dava conta de que aspalavras não tinham o mesmo sentido para mime para elas. Eu falava espanhol, mas espanhol éminha segunda língua, não a primeira; eu tinha defazer uma tradução. Eles falavam aquelas dezenasde línguas que têm. Comecei a ver que não nosentendíamos com palavras e comecei desenvolverTeatro-Imagem, sem menosprezar a palavra, falarcom imagens, a imagem do corpo deles próprios esuas relações com as coisas. Por exemplo, quandoeu falava a palavra família, era aquela mesa da minhainfância que vocês estão vendo ali no meio daminha sala. Aos quatro anos eu me escondia embaixo,até que a minha mãe me achava. Para mim,família era essa mesa com meu pai, minha mãe,todo mundo em volta. Para eles, era outra coisa.Eles faziam diferente, esculpiam o corpo de umapessoa trabalhando, outra se embriagando, outrafazendo qualquer outra coisa. A gente trabalhavasó com imagens. Essa foi a primeira técnica; hojetemos dezenas de técnicas muito mais sofisticadas,mas simples de usar.Quando eu trabalhei em Buenos Aires, eu tinhaum grupo que se chamava Machete, aqueleinstrumento de cortar cana. Em Portugal, trabalheicom a Barraca; em Paris, fundei o Centro do Teatrodo Oprimido de Paris, depois eu vim de volta aoBrasil e fundei o Centro do Teatro do Oprimido.MHuD – A gente não chegou a falar direito daCecília.BOAL – Ela me ajudou muito na elaboração dastécnicas do Arco-Íris do Desejo que trata dasopressões interiorizadas. Ao mesmo tempo trabalhavacomigo como atriz, é uma excelente atriz,nas peças que eu dirigi no Brasil, na Argentina, emPortugal, na França. Mas, como tinha de aprenderuma língua nova a cada mudança provocada peloexílio, acabou desistindo da profissão. Quando nósmorávamos em Buenos Aires, ela trabalhava emteatro na sua língua materna e eu, quando podia,viajava por toda a América Latina e desenvolvi oTeatro-Fórum no Peru, onde dirigi a parte do teatrono programa de Alfabetização Integral baseadono método do professor Paulo Freire, que é uma


enorme influência mundial. Eu sinto muito orgulhopor saber que nos Estados Unidos, todos os anos,desde 1994, se realiza uma Pedagogy and Théâtreof the Oppressed Conference, com a participaçãode centenas de professores e de gente do teatro,juntando os dois métodos que têm tantas semelhanças.MHuD – Já havia tido um encontro com ele?BOAL – Nós fomos amigos 40 anos. Ele dizia queéramos amigos desde sempre. No Peru além daalfabetização com o método do Paulo Freire, tinhaalfabetização em cinema, em serigrafia e eu alfabetizavaem teatro. Uma vez a gente estava tentandofazer dramaturgia simultânea. A gente fazia a peçae depois perguntava à plateia: “O personagem agiudireito ou não? O que você acha que ele deveria terfeito?” Os espectadores davam sugestões e a genteimprovisava cada sugestão que eles davam. Nóstentávamos várias maneiras que a plateia sugeria,mas a gente guardava o poder da cena.Até que uma mulher violenta, grande, deuuma sugestão e a gente tentou a sugestão dela.Ela ficou furiosa: “Eu não disse isso. A protagonistafoi enganada pelo marido. Ela tem de ter umaconversa clara com ele e depois ela perdoa”. Agente fazia, e a mulher: “Mas eu falei uma conversaclara!”. Depois de três tentativas, eu fiqueinervoso e disse para ela mostrar que raio de conversaclara era aquela. Ela entrou em cena, pegouuma vassoura, agarrou o ator que fazia o marido:“Vamos ter uma conversa clara!”. E começou abaixar o cabo de vassoura no marido. Essa era aconversa clara que nós não havíamos entendido.Eu já trabalho há meio século com atores, algunsSalete Hallackexcepcionais, mas nunca vi um ator tão sinceroquanto aquele que fazia o marido quando gritava:“Me perdoa, nunca mais, nunca mais eu vou teenganar!”.MHuD – Esse é ator mesmo!BOAL – Era personagem... e pessoa. Eu percebique a invasão do espectador em cena era metafóricadas transgressões que você tem de fazer navida real para se libertar das suas opressões. Vocênão pode se libertar se continua exatamente namesma estrutura opressiva. Você tem de fazer umatransgressão. Se não fizer, não se liberta. Aquelainvasão foi uma metáfora dessa verdade social.MHuD – Pensando em uma estratégia educacional,você considera o teatro como elementofundamental para alfabetizar?BOAL – Quando eu falo alfabetizar, falo na próprialinguagem do teatro.MHuD – Na linguagem do teatro como um direitoà sensibilização. A gente trabalha com comunidadescarentes. Carentes de tudo, de cultura,de sensibilidade, de acesso à sensibilidade.Será que a gente não pode pensar, falando daorigem do problema, na implantação de umaeducação cultural?BOAL – Claro, esse meu novo livro tem um subtítuloque é O Pensamento Sensível e o PensamentoSimbólico na criação artística. Existem duas formasde pensar. Uma forma de pensar simbólica, quandose usa sobretudo as palavras e certos gestos.Palavra é um som que você produz ou é um traçoque se faz no papel. Uma palavra não tem existência.Você vê um traço, lê, porque se convencionouque aquela coisa é um “a”, aquele é um “b”. Acriança, quando nasce, começa a conversar coma gente. Só que a linguagem dela é a linguagemsensível, não é a linguagem das palavras. Ela secomunica, está dizendo alguma coisa. Você põeuma música, ela dança, usa arte normalmente, seucomportamento é estético, pensamento estético,pensamento sensível desde o nascimento. Nãotemos de ter medo da palavra Estética porque elasignifica simplesmente a comunicação sensorial.MHuD – Para relembrar esse momento sensível,que está adormecido...BOAL – A capacidade de expressão artística vemda infância. Depois é oprimida pelo poder da palavra.Não nos deixam brincar depois de uma certaidade, temos de falar sério, e ficamos cada vez maisreduzidos à expressão verbal. O Teatro do Oprimidoquer restaurar aquilo que você já tem. Só quetem escondido dentro de você. Temos grupos, porexemplo, de empregadas domésticas, que trabalhamcom a gente há 10 anos. Uma delas disse umacoisa maravilhosa. A gente fez um espetáculo e elaspediram para fazer dentro de um teatro. Fizemos umfestivalzinho no Teatro Glória. Quando terminou, medisseram que uma delas estava chorando. Fui ver oque era: “Por que você está chorando?” “Nós somosensinadas a não falar, a ser invisíveis; e hojea gente estava aqui representando, ensaiando, tinhaum homem na escada dizendo: “Eu quero iluminarvocê melhor. Vai mais pra frente”. Nós somos invisíveis,mas lá ele estava querendo que nosso corpofosse visto. A gente é ensinada a não falar nada. Afamília está discutindo coisas, eu quero dar opinião,não poso. E no ensaio tinha um cara pondo microfonezinhosnos nossos vestidos e dizendo: “Falaalto, para que se possa ouvir lá em cima nas galerias.”Eu perguntei: “Foi por isso que você chorou?”- “Não, não foi por isso não. De noite, a gente estavarepresentando, eu entrei em cena com a luz, com omicrofone e tudo. E a família para quem eu trabalhohá 15 anos estava toda lá embaixo, no escuro, mevendo. E foi a primeira vez que me viram de verdade.”Um de nós perguntou: “Foi por isso que vocêchorou?” - “Não, não foi.”Então, por quê? “Eu chorei porque quandoacabou o espetáculo e vim pro camarim e olhei noespelho. E eu vi uma mulher.” Silêncio. - “Foi aprimeira vez que eu vi uma mulher no espelho”.“O que você via antes? “Antes eu via uma empregadadoméstica.”.MHuD – Isso é genial!BOAL – Genial! Ela se olhava como empregadadoméstica. Ela não era a Maria, era Maria empregadadoméstica. De repente ela olhava e via umamulher. Ela disse: “Sabe que até que sou bonita?”Ela não tinha percebido que era bonita.MHuD – É o teatro invadindo a alma e cumprindoo seu papel, que é revelar. Eu me lembrei,com isso, da parceria com o Chico (Buarque).Você não fez uma peça com o Chico que eraMulheres de Atenas?BOAL – Eu escrevi a peça que tinha quatro canções.Perguntei se ele queria musicar, ele falou59Revista Direitos Humanos


ent<strong>revista</strong>Augusto Boal60Revista Direitos Humanosque sim e começou a musicar. A peça ia ser feitalogo, dois ou três meses mais tarde. Ele começoua musicar e fez a primeira, que era essa. Aí o produtordesistiu de fazer a peça. E eu falei com eleque, já que estava com a mão na massa, por quenão fazia as outras três? “Eu vou fazer, vou fazer.”E depois nunca mais fez.MHuD – Você estava na inquietação da igualdadeentre homem e mulher?BOAL – É sempre uma das coisas que eu achomais extraordinárias. O porquê de as mulheresserem tão oprimidas. Em toda parte do mundo,é impressionante. Na Índia, uma mulher dissepara o meu filho, o Julián, que sempre trabalhacomigo na Europa, que não era oprimida porque“o meu marido não me bate mais do queeu mereço”. É terrível. Teve uma norueguesa,da cidade de Mo I Rana, quase dentro do círculoártico, que nos respondeu, sobre a relaçãode homens e mulheres, que lá na Norueganão tinha problema nenhum. Perguntei: “Masvocês ganham a mesma coisa que os homenspelo mesmo trabalho?”. Ela falou: “Não, não, oshomens ganham mais que nós”.Eu falei: “Bom,isso é opressão”. “Não, não é opressão porqueos noruegueses são muito bons maridos e tratama gente muito bem”.Ela não tinha entendido que a opressão nãoestá no exercício do poder, está na posse do poder.Se você tem o poder de oprimir, mas vocêé bonzinho, você não vai oprimir, mas tem o poderde oprimir, isso já é opressão. Outra, sueca,essa foi mais engraçada, porque a sueca tambémprotestou. Ela falou também que não havia opressãolá. “Vocês ganham a mesma coisa que oshomens?” Ela respondeu: “Não, no Brasil e naFrança as mulheres ganham menos que os homens.Aqui não, aqui eles ganham mais do quenós”. E ela não percebia que era uma oprimida amais, mesmo na Escandinávia.MHuD – Você esperava o sucesso da músicaMulheres de Atenas?BOAL – A música é uma denúncia do conformismo,mas tinha gente que entendia literalmente:sigam o exemplo das mulheres, elas sofrem e issoé bom. A peça estava denunciando isso, mas tevegente que disse: “Ah, você está contra as mulheres,você está pedindo que sejam boazinhas”...Deus me livre!MHuD – Naquele momento de resistência, oChico Buarque era muito companheiro seu?BOAL – A gente se via muito. É engraçado, no exíliovocê vê muito mais as pessoas do que quandovocê está aqui. Quando você está aqui, tantovocê como os outros têm mais o que fazer. Mas oChico, em qualquer lugar onde a gente estavaexilado, em Buenos Aires, Lisboa, Paris, a gentesempre se via. Aqui a gente mal se vê. FernandoPeixoto era outro que eu via em toda parte quandotínhamos o Oceano Atlântico pelo meio e agoraque ele mora em São Paulo não vejo mais. As pessoasse encontram muito quando trabalham juntas:hoje, meus grandes companheiros de trabalhosão os Curingas do CTO.MHuD – Quem foram seus parceiros, quem são?BOAL – Alguns atores, como o Guarnieri, LimaDuarte, eu trabalhei com eles 10 anos pelo menos.Eram os mesmos atores, sempre. O Guarnieri, saíae voltava, saía e voltava. O Lima também, mas somandotudo deu mais de 10 anos. Paulo José, eutrabalhei muito com ele, com a Dina Sfat, a IsabelRibeiro. Juca de Oliveira também, bastante, FlávioMigliaccio, Miriam Muniz, Antonio Fagundes, MiltonGonçalves... Esse pessoal todo, atores excelentes.Flávio Império, maravilhoso cenógrafo.MHuD – Naquele momento você já tinha consciênciade que estavam fazendo e marcando ahistória do teatro brasileiro?BOAL – Na verdade, não. O que a gente tinha eraaquela ética. A gente tem de falar do Brasil parabrasileiros. A gente admirava muito o TBC, o TeatroBrasileiro de Comédia, mas admirava comocoisa que não tinha a ver com a gente. Os atoresfalavam até com uma entonação meio italiana. Osdiretores do TBC eram italianos, eles tinham umjeito italiano de fazer e faziam muito bem. A gentenão queria isso, a gente queria fazer um teatro brasileiro,sobre problemas brasileiros. A gente nãoestava querendo fazer história. Estávamos vivendoo presente, que era duro.MHuD – Que público era esse que ia assistiraos espetáculos?BOAL – Tinha dois tipos. Um era um público maispequeno-burguês, que vinha ao próprio Arena, quetinha 160 lugares. O outro era quando a gente iapara o Nordeste ou para o interior de São Paulo,quando a gente fazia teatro na rua. Nós fizemos umespetáculo com minha peça, Revolução na Américado Sul, na concha acústica do Castro Alves,em Salvador, para mais de 5 mil pessoas. O LimaDuarte dizia que, quando a plateia ria, ele sentiacomo se fosse gol: explosão. Ele falava e vinhaaquela onda sonora. Até balançava com o espetáculo,você estava acostumado com um certo ritmoe tinha de parar um pouquinho assim, e depoisvinha outra onda.MHuD – O público é público que fala, “espectaatores”BOAL – Você não pode ser espectador na vida. Aprópria ideia da palavra teatro, teatron, em grego,já tem um elemento imobilizador, porque teatron éo lugar onde se vê. Você vai para ver. Eu não soucontra isso, eu gosto de escrever peças e gostariaque fossem mais montadas até. Mas temos quefazer um outro teatro também, mais livre, em que oespectador seja espect-ator.MHuD – Quantos Curingas no CTO existem hoje?BOAL – Atualmente são oito pessoas que impulsionamo Teatro do Oprimido – trabalham em todosos estados, menos Amazonas e Pará, porqueé longe e as passagens são caras. Eu devo a elesessa enorme expansão do TO por todo o territórionacional e na África. Tem mais uns quatroCuringas que estão agregados. Então seriam 12.Tem dois em São Paulo, um em Recife, curingaslocais. Temos várias vertentes no nosso trabalho.Uma são os Pontos de Cultura – a gente trabalhaem 16 estados. Somos o que eles chamam Pontãode Cultura. Os pontos que têm alguma coisapara mostrar para os outros são os pontões: nóstemos o Teatro do Oprimido. Esse projeto é patrocinadopelo Ministério da Cultura, que já crioumais de mil pontos. Depois trabalhamos em umprojeto com o Ministério da Saúde, com a SaúdeMental, nos Centro de Atenção Psicossocial(CAPS), onde a gente trabalha sobre a possívelsuperposição entre o delírio patológico e o delírioartístico e o uso dos ritmos na criação dediálogos e de estruturas sociais. O teatro em geraljá é uma forma delirante de arte. A gente jáfez algumas experiências muito lindas. Às vezesas pessoas perguntam: “Mas cadê o resultado?”O resultado é que, em muitos desses CAPS quea gente trabalha, o consumo de drogas, de medicaçãobaixa em até 80%. Quer dizer, alguns20%, outros 50% e chega até a 80% de redução.


O teatro não cura, mas substitui, tranquiliza e dámais um pouco de felicidade para as pessoas,para não ficarem tão angustiadas. A gente tambémtrabalha em escolas com a Estética do Oprimidoe publicamos Metaxis, uma <strong>revista</strong> sobrecada projeto que fazemos. E existe a Fábrica deTeatro Popular, que a gente tem em três estadosdo Nordeste, patrocinada pela Petrobras.E tinha o trabalho com o Depen, mas a burocraciaatrapalhou. Eles dizem que nunca tiveramprogramas tão bons como esses que a gente fazia,mas agora está parado porque uma das nossasCuringas é professora primaria de 16 horas dejornada. Segundo eles, a professora não podiaparticipar. Existe uma lei que permite. Não poderiase fossem 40 horas, que é tempo integral. Ela éprofessora de português e fazia o Teatro do Oprimidonos nossos programas. Temos toda razão. Masmesmo que estivéssemos errados – o que não é ocaso, – os burocratas teriam de ver qual é o bemmaior. O Tribunal de Contas da União pergunta oque significa Curinga. Aí você tem de explicar oque é Curinga, tudo bem, só que demora mesesaté que venha a resposta e a aceitação do termo.Um dos direitos humanos é acabar com a burocracia,porque a burocracia é um peso morto queatrapalha os próprios projetos do governo. Estegoverno teria tido um resultado ainda melhor nossetores culturais se não fosse tão violenta a burocracia.Fiscalização sim, burocracia não.Você tem um projeto enorme e útil, mas elesnunca pensam no bem maior. Por exemplo, a genteia fazer uma plataforma no meio da arena, no meioda sala e, em vez disso, fizemos arquibancadasmóveis para a plateia sentar. Gastamos o mesmodinheiro, nem mais nem menos, tudo comprovadoe aceito. Mas no projeto original estava “no meioda arena” e eles disseram: “Por que não pediuautorização?” Você pede autorização e leva quatromeses para vir a resposta. E os operários estavamlá, esperando...MHuD – A gente precisa falar do Prêmio Nobel.Qual foi a sensação de ter sido indicado?BOAL – O que mais me alegrou é que eu tive indicaçõesque vieram dos cinco continentes. Issofoi genial. Mas eu não tinha a menor esperança.Meu nome continua indicado, pode ser o ano quevem. Mas eu também não tenho a menor esperança.Nunca vou ganhar o Prêmio Nobel da Paz, meunome vai ficar lá rodando. Não é ruim não.MHuD – O importante é que você trabalhou pelosDireitos Humanos a vida inteira.BOAL – É uma forma de viver. Mas aquele é um prêmiopolítico. Quem ganha, em geral, são políticos.MhuD – Nós, do Movimento Humanos Direitos,estamos extremamente felizes com esta oportunidadede chegar mais próximo de você.BOAL – E eu de vocês. Agora eu queria acrescentaruma coisa só, que vocês perguntaram e eu acabeirespondendo só pela metade, quero respondera outra metade agora. Quando fui para a França, euestava acostumado com as opressões latino-americanas.Sempre tinha a história da polícia, chegaa polícia, aí vem a polícia. Quando eu fui para aFrança, comecei a trabalhar em vários países daEuropa e sempre vinham pessoas que também falavamda polícia.Mas vinha gente que dizia sobre opressoresque eu não conhecia. Falava assim: - “A minhaopressão é que eu não consigo me comunicar”. Eubrincava e dizia: “Vem cá, você está me comunicandoe não consegue se comunicar... Já é o começo dacomunicação”. A pessoa dizia: “Tá vendo, você nãome entendeu, não foi isso que eu disse”. Tinha outroassim: “A minha opressão é o medo do vazio”. Essasduas coisas vinham sempre.Que medo do vazio, que nada! Eles não conhecemas boas opressões latino-americanas,ficam inventando opressões. Eu soube, então,que na Europa, em países ricos, a percentagem desuicídios era maior que na América Latina com asditaduras. Aqui se matava muito, mas lá as pessoasse suicidavam mais. Tive de levar a sério. ACecília, minha mulher, e eu resolvemos fazer umaoficina que durou dois anos. A gente queria descobrirnovas técnicas para ajudar essas pessoas comesses tipos de problemas.Vinha uma pessoa que dizia assim: – “Olha, omeu problema é que eu não consigo me comunicarcom fulano, porque a gente vive há muito tempojuntos”. Cada um projetava no outro uma imagemque já não era mais o outro. Duas pessoas quevivem juntas há muito tempo, projetam telas umno outro. Você não fala mais com o outro, você falacom a tela que você projetou. Então, Cecília e euinventamos uma técnica que trata desse problema:os participantes criam telas, que são representadaspor outros participantes na posição do corpo,na fisionomia, etc., que ficam na frente do outroe os protagonistas devem conversar em voz baixacom as telas que reproduzem o que foi dito em vozalta; depois as telas se tornam independentes ediscutem sozinhas, depois troca a tela e a pessoa,e assim por diante. O que é muito teatral, extremamenteteatral. E chama-se Imagem-Tela. Temuma técnica que se chama Arco-íris do Desejo.Quando você tem uma relação com uma pessoa,essa relação é como um Arco-Íris, não é de umacor só. Você ama, mas também odeia, tem inveja,admiração, etc. Então você separa essas cores dodesejo com os atores que representam cada umadessas cores. Primeiro, um de cada vez, depoisdois juntos, depois o desejo contra a vontade, avontade contra o desejo. As pessoas vinham comproblemas e a gente tinha de inventar a técnicamais adequada a esse problema. Nós inventamosdurante dois anos técnicas novas. No meu livroArco-Íris do Desejo tem doze.MhuD – Quando foi isso?BOAL – 1980 até 1982.MhuD – Com a Cecília? O casamento idealmesmo...BOAL – Mas depois a gente veio para cá e ela agora épsicanalista, tem o consultório dela lá no Leblon.MhuD – Mas as técnicas desenvolvidas ficaram.BOAL – Ficaram e depois a gente desenvolveumais outras técnicas que não existiam. Agora,no Centro do Teatro do Oprimido, eu e os meusCuringas estamos querendo fazer uma coisa muitoimportante, que é ir até o mais fundo possível, omais íntimo dos protagonistas, e chegar até o TeatroFórum, o mais social e político.MhuD – Boal, você tem alguma preocupaçãoespecial com o futuro, da humanidade principalmente?BOAL – A vida inteira sempre foi assim, todas associedades sempre foram assim: conflituais. Autopia não foi feita para a gente alcançar. O sonhoé para você ir atrás dele – não se alcança. Utopiae sonho nos estimulam a ir mais longe. A utopiaé muito útil, o sonho é muito útil, tem de sonharpara poder chegar lá ou pelo menos o mais pertopossível. Temos de lutar por ele, sim. A vida é procurarcada vez mais. E se um dia alcançarmos o nossosonho, então temos de sonhar mais alto ainda! Temosde ser cidadãos e eu penso que ser cidadão não éviver em sociedade: é transformá-la!61Revista Direitos Humanos


©Sebastião Salgado / Amazonas images


imagensSebastião Salgado63Trabalhadores da AllanaCoffee Curing Works.Karnataka, sul da India,2003Revista Direitos Humanos


©Sebastião Salgado/Amazonas imagesUma mulher mal alimentada e desidratadaespera a sua vez no hospital em GourmaRharous. Mali, 198564Revista Direitos HumanosFilho de pecuaristas, Sebastião Salgado é o único filho homem entre sete irmãs. Mudou-se para São Paulo paraestudar economia na Universidade de São Paulo, tornando-se mestre em economia em 1968. Em Paris, passoua estudar na Escola Nacional de Estatísticas Econômicas, onde obteve o doutorado em 1971. Passou a trabalharna África, para a Organização Internacional do Café, atividade a que se dedicou até 1973. De volta a Paris, começou atrabalhar como repórter fotográfico free-lancer. Passou depois a trabalhar para agências de prestígio, como a MagnumPhotos, em 1979. De 1979 a 1994 dedicou-se a vários projetos, entre os quais a cobertura da guerra de Angola, o sequestrode israelenses em Entebe e o atentado ao presidente Ronald Reagan, dos EUA. Viajando pela América do Sul,captou imagens que resultaram na exposição e no livro Outras Américas, em 1986. Ainda na década de 1980, trabalhou15 meses com o grupo francês Médicos sem Fronteiras durante a seca na região do Sahel, na África. Na viagem, produziuSahel: O Homem em Pânico (1986), um documento sobre a dignidade e a perseverança de pessoas nas mais extremascondições. Em 1993 dedicou-se a um projeto sobre a extinção do trabalho manual, em 26 países, do que resultou oálbum Trabalhadores. Em seguida, produziu Terra: Luta dos Sem-Terra (1997), sobre a luta pela terra no Brasil, e Êxodose Crianças (2000), retratando a vida de retirantes, refugiados e migrantes de 41 países. Sebastião Salgado fundou suaprópria agência, a Amazonas Images, em 1994, e realizou diversas viagens para documentar populações marginalizadasde 41 países. Atualmente, dedica-se ao projeto Gênesis, no qual busca fotografar o “planeta original”, lugares do mundointocados pela destruição.


Criança trabalhando naplantação de chá Mata,Ruanda, 1991©Sebastião Salgado / Amazonas images65Revista Direitos Humanos


©Sebastião Salgado / Amazonas imagesColheita de chá numa plantação perto de Cyangugu, Ruanda,1991©Sebastião Salgado / Amazonas images66Revista Direitos HumanosOrfanato ligado ao hospital no campo de refugiados Número Um de Kibumba. Goma, Zaire, 1994


©Sebastião Salgado / Amazonas imagesUma jovem Marubona aldeia de Maronal.Amazonas, Brasil.199867Revista Direitos Humanos


©Sebastião Salgado / Amazonas imagesComunidade de Yuracruz.Província de Imbabura.Equador. 1998Envoltos em cobertores parase defender do vento friomatinal, refugiados esperamem frente do, campo deKorem. Etiopia, 1984©Sebastião Salgado / Amazonas images68Revista Direitos Humanos


©Sebastião Salgado / Amazonas imagesMuitas vezes os locaisde abastecimentode água ficam muitolonge dos camposde refugiados. Goma,Zaire. 199469Revista Direitos Humanos


Declaração Universal dos Direitos HumanosAdotada e proclamada pela resolução 217 A (III)da Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948PreâmbuloConsiderando que o reconhecimento da dignidade inerente atodos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveisé o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo,Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitoshumanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciênciada Humanidade e que o advento de um mundo em que os homensgozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverema salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais altaaspiração do homem comum,Considerando essencial que os direitos humanos sejam protegidospelo Estado de Direito, para que o homem não seja compelido,como último recurso, à rebelião contra tirania e a opressão,Considerando essencial promover o desenvolvimento de relaçõesamistosas entre as nações,Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, naCarta, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e novalor da pessoa humana e na igualdade de direitos dos homens e dasmulheres, e que decidiram promover o progresso social e melhorescondições de vida em uma liberdade mais ampla,Considerando que os Estados-Membros se comprometeram adesenvolver, em cooperação com as Nações Unidas, o respeito universalaos direitos humanos e liberdades fundamentais e a observânciadesses direitos e liberdades,Considerando que uma compreensão comum desses direitos eliberdades é da mis alta importância para o pleno cumprimento dessecompromisso,A Assembléia Geral proclamaA presente Declaração Universal dos Diretos Humanos comoo ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações,com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade, tendosempre em mente esta Declaração, se esforce, através do ensino eda educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e,pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional,por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universaise efetivos, tanto entre os povos dos próprios Estados-Membros,quanto entre os povos dos territórios sob sua jurisdição.Artigo ITodas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos.São dotadas de razão e consciência e devem agir em relaçãoumas às outras com espírito de fraternidade.Artigo IIToda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdadesestabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquerespécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política oude outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ouqualquer outra condição.Artigo IIIToda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.Artigo IVNinguém será mantido em escravidão ou servidão, a escravidãoe o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas.Artigo VNinguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigocruel, desumano ou degradante.Artigo VIToda pessoa tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecidacomo pessoa perante a lei.Artigo VIITodos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção,a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contraqualquer discriminação que viole a presente Declaração e contraqualquer incitamento a tal discriminação.Artigo VIIIToda pessoa tem direito a receber dos tributos nacionais competentesremédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentaisque lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei.Artigo IXNinguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado.Artigo XToda pessoa tem direito, em plena igualdade, a uma audiênciajusta e pública por parte de um tribunal independente e imparcial,para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de qualqueracusação criminal contra ele.Artigo XI1. Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de serpresumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provadade acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sidoasseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.2. Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissãoque, no momento, não constituíam delito perante o direito nacional ouinternacional. Tampouco será imposta pena mais forte do que aquelaque, no momento da prática, era aplicável ao ato delituoso.Artigo XIINinguém será sujeito a interferências na sua vida privada, nasua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques àsua honra e reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contratais interferências ou ataques.Artigo XIII1. Toda pessoa tem direito à liberdade de locomoção e residênciadentro das fronteiras de cada Estado.2. Toda pessoa tem o direito de deixar qualquer país, inclusiveo próprio, e a este regressar.Artigo XIV1.Toda pessoa, vítima de perseguição, tem o direito de procurare de gozar asilo em outros países.2. Este direito não pode ser invocado em caso de perseguiçãolegitimamente motivada por crimes de direito comum ou por atoscontrários aos propósitos e princípios das Nações Unidas.Artigo XV1. Toda pessoa tem direito a uma nacionalidade.2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionalidade,nem do direito de mudar de nacionalidade.Artigo XVI1. Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer retriçãode raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônioe fundar uma família. Gozam de iguais direitos em relação aocasamento, sua duração e sua dissolução.2. O casamento não será válido senão com o livre e pleno consentimentodos nubentes.Artigo XVII1. Toda pessoa tem direito à propriedade, só ou em sociedadecom outros.2.Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade.Artigo XVIIIToda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciênciae religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religiãoou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, peloensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente,em público ou em particular.Artigo XIXToda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; estedireito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar,receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios eindependentemente de fronteiras.Artigo XX1. Toda pessoa tem direito à liberdade de reunião e associaçãopacíficas.2. Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação.Artigo XXI1. Toda pessoa tem o direito de tomar parte no governo de sue país,diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos.2. Toda pessoa tem igual direito de acesso ao serviço públicodo seu país.3. A vontade do povo será a base da autoridade do governo;esta vontade será expressa em eleições periódicas e legítimas, porsufrágio universal, por voto secreto ou processo equivalente que assegurea liberdade de voto.Artigo XXIIToda pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurançasocial e à realização, pelo esforço nacional, pela cooperaçãointernacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado,dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à suadignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade.Artigo XXIII1.Toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego,a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contrao desemprego.2. Toda pessoa, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneraçãopor igual trabalho.3. Toda pessoa que trabalhe tem direito a uma remuneraçãojusta e satisfatória, que lhe assegure, assim como à sua família, umaexistência compatível com a dignidade humana, e a que se acrescentarão,se necessário, outros meios de proteção social.4. Toda pessoa tem direito a organizar sindicatos e neles ingressarpara proteção de seus interesses.Artigo XXIVToda pessoa tem direito a repouso e lazer, inclusive a limitaçãorazoável das horas de trabalho e férias periódicas remuneradas.Artigo XXV1. Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurara si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação,vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis,e direito à segurança em caso de desemprego, doença,invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistênciafora de seu controle.2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistênciaespeciais. Todas as crianças nascidas dentro ou fora do matrimônio,gozarão da mesma proteção social.Artigo XXVI1. Toda pessoa tem direito à instrução. A instrução será gratuita,pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementarserá obrigatória. A instrução técnico-profissional será acessívela todos, bem como a instrução superior, esta baseada no mérito.2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimentoda personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelosdireitos humanos e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoveráa compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as naçõese grupos raciais ou religiosos, e coadjuvará as atividades das NaçõesUnidas em prol da manutenção da paz.3. Os pais têm prioridade de direito n escolha do gênero deinstrução que será ministrada a seus filhos.Artigo XXVII1. Toda pessoa tem o direito de participar livremente da vidacultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do processocientífico e de seus benefícios.2. Toda pessoa tem direito à proteção dos interesses moraise materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária ouartística da qual seja autor.Artigo XVIIIToda pessoa tem direito a uma ordem social e internacional emque os direitos e liberdades estabelecidos na presente Declaraçãopossam ser plenamente realizados.Artigo XXIV1. Toda pessoa tem deveres para com a comunidade, em que olivre e pleno desenvolvimento de sua personalidade é possível.2. No exercício de seus direitos e liberdades, toda pessoa estarásujeita apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com ofim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdadesde outrem e de satisfazer às justas exigências da moral, da ordempública e do bem-estar de uma sociedade democrática.3. Esses direitos e liberdades não podem, em hipótese alguma,ser exercidos contrariamente aos propósitos e princípios das NaçõesUnidas.Artigo XXXNenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretadacomo o reconhecimento a qualquer Estado, grupo ou pessoa,do direito de exercer qualquer atividade ou praticar qualquer atodestinado à destruição de quaisquer dos direitos e liberdades aquiestabelecidos.


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